Armando Valladares - Contra Toda Esperança

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Armando Valladares

Contra Toda a Esperana

22 anos no "Gulag das Amricas" As prises polticas de Fidel Castro


(Edio Eletrnica Condensada - Agosto de 2006 - Distribuio Gratuita no Brasil)

Cuba: sinais do reino de Deus, ou do inferno?


Miami (FL), 25 de agosto de 2006.Caros amigos brasileiros, Umas breves e afetuosas palavras de apresentao da edio eletrnica condensada, em portugus, de "Contra Toda a Esperana", minhas memrias de mais de duas dcadas de crcere e torturas contnuas no "Gulag" castrista, publicadas pela primeira vez em 1985, em espanhol. Como uma amostra de amizade e afeto, esta edio eletrnica ser difundida gratuitamente, por e-mail, a todos os interessados. No Brasil, figuras representativas da chamada esquerda catlica, como o cardeal Arns, Frei Betto e Leonardo Boff chegaram a ver em Cuba comunista sinais do Reino de Deus onde, na realidade, o que existe uma ante-sala do inferno. esta a realidade que descrevo em Contra Toda a Esperana. Os brasileiros tm dado muitas mostras de afeto e de compreenso pelo sofrimento do povo cubano. Em 2001, por exemplo, foi decisiva a preocupao da opinio pblica, de autoridades e de meios de comunicao desse gigantesco pas para que as jovens Sandra Becerra Jova e Anabel Soneira Antigua, literalmente seqestradas e retidas na ilha contra a vontade de seus pais, profissionais cubanos residentes no Brasil, fossem finalmente libertadas e enviadas a esta nobre e acolhedora terra, para reunir-se com suas respectivas famlias. No momento em que escrevo estas breves linhas de apresentao, estamos a poucas semanas das eleies presidenciais nesse grande Pas sul-americano. Me atrevo ento a pedir a esse mesmo povo brasileiro, afetuoso, bondoso e compassivo, que se manifeste ante os candidatos presidenciais, solicitando-lhes um compromisso pblico para que o futuro governo atue com firmeza no campo diplomtico e humanitrio, de maneira a contribuir para a libertao de 11 milhes de meus irmos cubanos que na ilhacrcere continuam seqestrados, desde h quase 50 anos, em sua prpria ptria. Que a Providncia recompense a todos os brasileiros que assim procedam. Com um abrao afetuoso, subscreve-se Armando F. Valladares E-mail: [email protected]

Este livro no uma novela. uma denncia mundial. um relato rigorosamente autntico do que seu autor, Armando Valladares, viu e padeceu durante 22 anos de priso -absurda e arbitrria- nos crceres polticos de Fidel Castro. Valladares descreve a tenebrosa priso do castelo de "La Cabaa", onde os opositores do regime comunista so justiados com um simples tiro na cabea. Denuncia os campos de trabalhos forados, onde a vida perde todo o sentido. Descreve as celas de represso e confinamento, a maldade refinada de estilo stalinista. Revela o funcionamento do "Centro de Exterminao e Experincia Biolgica" da priso de Puerto Boniato, a pior de Cuba, onde mdicos soviticos, alemes orientais e tchecoslovacos, junto com seus colegas cubanos, sistematicamente provocam doenas e realizam experincias psicolgicas entre os presos polticos. Pela primeira vez, possivelmente, so denunciadas as condies desumanas nos centros de deteno juvenil e a violncia que ali impera. Nunca antes se haviam detalhado as condies subumanas a que as mulheres, prisioneiras polticas, so submetidas em Cuba; a humilhao que sofrem essas infelizes quando repelem a "reabilitao" poltica comunista, obrigadas a vestir apenas roupas ntimas; o risco constante de serem enviadas para as prises comuns de mulheres delinqentes, na mesma nudez, para enfim sofrer sua definitiva desestabilizao emocional e psquica. Este relato verdico comea e termina na priso poltica. Mas tambm atravessa seus muros para narrar a perseguio e o tormento a que so submetidas as pessoas que tenham um ente querido isolado no vasto presdio poltico de Cuba. Angstias, privaes, torturas e assassinatos... dor infinda que, nestas pginas, recolhida para dar uma mensagem -na verdade, um grito de angstia- pelos fatos ttricos que acontecem em nosso prprio continente, no "Gulag das Amricas": a Cuba de Fidel Castro.

Armando Valladares

Contra Toda a Esperana


(Edio Eletrnica Condensada)

"Abrao soube esperar contra toda a esperana... e no vacilou na f". (So Paulo, Epstola aos Romanos IV, 18, 19) O Homem o ser maravilhoso da Natureza. Tortur-lo, despeda-lo, extermin-lo por idias , mais do que uma violao dos Direitos Humanos, um crime contra toda a Humanidade. O Autor Copyright 1985, Armando Valladares Todos os direitos reservados sob a Conveno Internacional e a Conveno Panamericana de Direitos Autorais Esta obra foi originalmente publicada em castelhano sob o ttulo "Contra Toda Esperanza" por Kosmos-Editorial S.A., Panam, 1985

Dedicatria memria de meus companheiros torturados e assassinados nas prises de Fidel Castro e aos milhares de prisioneiros que atualmente agonizam nelas.

Introduo

Este livro meu testemunho de vinte e dois anos passados nas prises polticas de Cuba, unicamente por manifestar meus critrios diferentes do regime de Fidel Castro. Em meu pas h algo que nem mesmo os mais fervorosos defensores da revoluo cubana podem negar: o fato de que existe uma ditadura h mais de um quarto de sculo. E um ditador no pode manter-se no poder durante tanto tempo sem violar os Direitos Humanos, sem perseguies, sem presos polticos e prises. Em Cuba existem, neste momento, mais de duzentos estabelecimentos penitencirios, que vo desde as prises de mxima segurana at os campos de concentrao e as chamadas granjas e frentes abertas, onde os presos realizam trabalho forado. Em cada uma dessas duzentas prises h histria suficiente para escrever muitos livros. Por isso, os testemunhos que aqui aparecem so apenas um esboo da terrvel realidade daqueles crceres. As situaes de violncia, a represso, as surras, as torturas e incomunicabilidades so prtica diria. Hoje, agora mesmo, centenas de presos polticos, por recusar a reabilitao poltica, esto nus h quatro anos, sem assistncia mdica, sem visitas, dormindo no cho e fechados em celas cujas portas e janelas foram emparedadas. Jamais vem a luz do sol ou a luz artificial. Eu sou um sobrevivente dessas terrveis celas emparedadas de Boniato. H fotografias de alguns dos personagens que aparecem no livro, para que se saiba que so pessoas que existem, que tm um rosto. Os vivos esto, atualmente, nos Estados Unidos, Venezuela e outros pases. Devo dizer que naquele peregrinar pelas prises conheci militares e funcionrios com grande qualidade humana, que nos ajudaram na medida de suas possibilidades e com isso arriscaram-se a ir para a cadeia. Os nomes dessas pessoas, por motivos de segurana para elas, no podem ser revelados, assim como os favores que fizeram. No quero terminar sem evocar os que tornaram possvel a minha liberdade e reiterar-lhes meu reconhecimento. No escrevo nomes porque a lista seria muito longa e porque h pessoas que pensaram em mim, que fizeram muito por mim e eu nem sequer sei seus nomes. Para eles o melhor da minha lembrana e de meu corao. Madri, 1985 Armando Valladares

1. Deteno
O cano frio da submetralhadora em minha tmpora me acordou. Abri os olhos, assustado. Trs homens armados estavam ao redor de minha cama... Um deles disse que eu tinha de acompanh-los e que me vestisse. Na sala, um quarto policial vigiava minha me e minha irm. Tranqilizei-as, disse-lhes que com toda certeza tratava-se de um erro, uma vez que eu no tinha cometido crime algum. Eu era, ento, funcionrio do Governo Revolucionrio na Caixa Econmica, anexa ao Ministrio de Comunicao, e minha subida quele departamento oficial havia sido rpida, motivada, em grande parte, por minha condio de estudante universitrio. Realizaram uma busca minuciosa, prolongada: levaram quase quatro horas revistando tudo. No ficou um s centmetro da casa sem ser examinado. Abriram garrafas, verificaram livros, folha por folha, esvaziaram tubos de pasta dental, examinaram o motor da geladeira, os colches... Eu conversava com minha me, que era quem estava mais nervosa; enquanto isso, pensava em quem me teria denunciado. Pensei que a denncia deveria ter sado de meu emprego. Eu sabia que tinha uns colegas que me eram hostis, devido s minhas idias religiosas e minhas concepes idealistas do mundo, que esgrimia freqentemente para discordar do comunismo como sistema. Tambm sabia que eu estava marcado como anticomunista. Uma de minhas ltimas discusses havia sido provocada por um lema que era repetido no pas inteiro, lanado pelo aparelho propagandstico do Governo, e que tinha por objetivo ir preparando as massas, ir infiltrando nelas a idia comunista. Castro j era acusado disso e, ento, divulgaram a ordem: "Se Fidel comunista, que me ponham na lista: eu estou de acordo com ele". O lema foi impresso em adesivos para serem colocados em automveis, em placas de lato para serem fixadas s portas das casas, era diariamente publicado nos jornais, foram feitos cartazes e fixados ns paredes de escolas, quartis, fbricas, oficinas e escritrios do Governo. O propsito era bem claro e simples: Castro era apresentado ao povo como um Messias, um salvador, o homem que devolveria a liberdade, a prosperidade e a felicidade a Cuba. Os comunistas do Ministrio apareceram para colocar um daqueles lemas na minha mesa de trabalho... "se Fidel comunista...". Eu recusei. Ficaram surpresos e desorientados porque, se bem que soubessem de minha averso ao marxismo, haviam achado que eu no iria recusar, uma vez que isso seria recusar Castro. Perguntaram-me se eu no estava de acordo com Fidel. Respondi que se ele era comunista, no, que no faria parte dessa lista.

Os policiais continuavam a revista. Terminaram nos dormitrios, banheiros, cozinha e passaram para a sala. Revistaram os quadros, as estatuetas de porcelana; uma delas chamou-lhes a ateno: tinham descoberto algo dentro. Com uma caneta esferogrfica, um deles conseguiu tirar um papel: era um dos usados para embalar louas e cristais. Abriu-o e ao perceber que eu o observava com ar divertido, amassou- e atirou-o pela janela. Fizeram-nos levantar do sof, viraram-no e o examinaram cuidadosamente. Terminou a revista e no apareceram armas, nem explosivos, nem propaganda, nem listas. Se bem que nada houvessem encontrado, eu tinha que responder a umas perguntas de rotina. Minha me argumentou que no havia motivo para me levarem. Eles responderam que no se preocupasse, que eu voltaria logo: eles mesmos me trariam de volta para casa. S que a volta demorou mais de vinte anos. Chegamos esquina da 5a Avenida com a Rua 14, no Departamento Miramar. Era, ento, a sede centra da Polcia Poltica, a Lubianka cubana. Vrias residncias, produtos do despojo, formavam o complexo do G-2, que era como, a princpio, chamavam a Segurana do Estado. Fui levado ao segundo andar, ao arquivo. Tiraram minhas impresses digitais e me fotografaram com um letreiro que dizia: "contrarevolucionrio". - Conhecemos suas declaraes onde voc trabalha; voc andou atacando a revoluo - afirmaram. Defendi-me, dizendo-lhes que no havia atacado a revoluo como instituio. - Mas atacou o comunismo. Isso eu no neguei. No podia, nem queria faz-lo. - Sim, verdade - disse-lhes, - considero o comunismo uma ditadura pior da que acabamos de padecer e se ele se estabelecer em Cuba, seria como na Rssia: passar do czarismo ditadura do proletariado. Naquela mesma tarde me levaram com os outros detidos - entre eles, uma mulher - a um pequeno salo. Mandaram que nos sentssemos em um banco de madeira. Havia refletores, que se acenderam; os fotgrafos e cmeras comearam a fotografar e a filmar. No dia seguinte, aparecemos nos jornais e televiso como um bando de terroristas, agentes da CIA, capturados pela Segurana do Estado. Eu no conhecia nenhuma daquelas pessoas. Nunca as tinha visto. Foi l que entrei em contato com Nestor Piango, Alfredo Carrin e Carlos Alberto Montaner, trs estudantes universitrios. Tambm conheci Richard Heredia, que havia sido um dos chefes do Movimento 26 de Julho, na provncia de Oriente. No dia seguinte houve o segundo interrogatrio. - Voc estudou em um colgio de padres - disseram. - Sim, nos Escolapios; mas o que importa isso? - Importa, sim. Os padres so contra-revolucionrios e o fato de ter estudado nessa escola mais uma evidncia contra voc. - Mas Fidel Castro estudou no Colgio Belm,dos padres jesutas. - Mas Fidel um revolucionrio e voc um contra-revolucionrio, aliado aos padres e aos capitalistas; por isso vamos conden-lo. - No h nenhuma prova contra mim, no descobriram nada. - verdade que no temos prova alguma, concreta, contra voc, mas temos a convico de que um inimigo em potencial da revoluo. Para ns, o suficiente.

noite, cedo, tiraram Richard Heredia e eu da cela. Levaram-nos para um salo e exibiram-nos um filme feito para os noticirios de cinema e tev. Um dos jornalistas, referindo-se a mim, comentou, a meia voz, que era uma pena me fuzilarem to moo. A campanha organizada pelos comunista alcanou propores to vastas que me fez temer seriamente por minha vida. Nessa madrugada fui levado para o ltimo interrogatrio. Foi como uma despedida. - Sabemos que voc conhece elementos que esto conspirando, que deve ter contato com alguns deles. Se cooperar conosco, podemos deix-lo em liberdade e reintegr-lo em seu trabalho. - No conheo nenhuma dessas pessoas, nem tenho contato com conspiradores. - Esta a ltima oportunidade que voc tem de sair desta encrenca. - Eu no sei de nada. Vocs no podem me condenar porque no fiz nada. No h provas contra mim. No podem demonstrar nada. Nessa mesma noite, Carlos Alberto, Richard e eu, com um abridor de latas, comeamos a fazer um buraco na parede posterior do banheiro. amos tentar fugir. Era tarefa difcil. Trataramos de retirar o reboque da parede e arrancar o primeiro tijolo. Revezvamo-nos na perfurao. Sabamos que nos arriscvamos a represlias. Mas nos dedicamos ao trabalho com afinco. No entanto, no conseguimos termin-lo. Tiraram-nos de l antes. Nunca soubemos se foi por casualidade ou se algum dos muitos que ali se encontravam era delator ou agente da Polcia Poltica. Eram os primeiros dias do ano de 1961. Todo o litoral de Havana estava cheio de canhes que apontavam para o norte. Os Estados Unidos haviam rompido relaes com Cuba e o Governo agitava a ameaa de invaso. O vento erguia grandes ondas que saltavam por cima da mureta da avenida que acompanha a costa da Capital. O carro corria a grande velocidade. Passou o tnel da baa e entrou na fortaleza de La Cabaa. De repente, eu me vi no ptio, no meio daquela multido de prisioneiros. No conhecia ningum. Designaram-me para o pavilho 12 e me dirigi para l. Na porta, um preso jovem, de culos claros, ficou me olhando, sorriu, afvel, e me estendeu a mo. Era Pedro Luis Boitel, dirigente estudantil universitrio. Combateu Batista na clandestinidade, depois tinha conseguido fugir para a Venezuela, de onde voltou quando o ditador caiu. Havia me reconhecido pelas fotografias publicadas nos jornais. Foi a primeira pessoa que conheci l e chegamos a ser grandes amigos, como irmos.

2. A visita
A primeira visita foi de manh. Homens no podiam visitar os presos. S permitiam a entrada de mulheres. As revistas que faziam eram humilhantes. Deixavamnas completamente nuas, sem respeitar sequer as velhas. Entre as mulheres que faziam as revistas havia duas que protagonizaram vrios escndalos: "A China" e "Mirta", duas lsbicas que se aproveitavam da situao. Por muito que minha me e minha irm quisessem ocultar-me a vergonha e a indignao pela revista que tinham sofrido, no conseguiram. Eu as proibi de voltar. Todas as noites havia fuzilamentos, no "paredo". Os gritos dos patriotas de "Viva Cristo Rei!", "Abaixo o comunismo!" estremeciam os fossos centenrios daquela fortaleza. Quando escutava a descarga de fuzilaria, o horror apoderava-se de mim e me agarrava a Cristo com desespero. Compreendi, de repente, como numa revelao sbita, que Cristo no apenas servia para eu pedir-lhe que no me matassem, mas tambm para dar minha vida e minha morte, se chegasse a acontecer, um sentido tico que as dignificasse. Acredito que foi naquele momento, e no antes, quando o cristianismo, alm de ser uma f religiosa, transformou-se em uma forma de vida que em minha particular circunstncia s podia se concretizar em resistir, mas com a alma cheia de amor e de esperana. Aqueles gritos transformaram-se num smbolo. J em 1963 os condenados a morte eram fuzilados no "paredo", amordaados. Os carcereiros temiam esses gritos. No toleravam naqueles que iam morrer nem sequer uma ltima exclamao viril. Aquele gesto de rebeldia, de desafio, nos instantes supremos; aquela demonstrao de valor e integridade daqueles que morriam proclamando seus ideais, podia ser um mal exemplo para os soldados: podia faz-los meditar. Na priso e em situaes difceis h uma necessidade de comunicao urgente com os outros. O amigo novo nos fala de sua vida, de seus filhos, na visita nos apresenta famlia. Em apenas alguns dias forjam-se as grandes amizades, estabelece-se um afeto e simpatia muito profundos. Mas, uma tarde, chamam esse amigo para julgamento e ele no volta. E, noite, fuzilado. Compreendi muito bem, ento, a atitude dos mais velhos, que no queriam conhecer os que ainda no tinham ido a julgamento. Jesus Carreras era um dos chefes das guerrilhas contra a ditadura de Batista. Operava em Escambray, cordilheira montanhosa da zona central da ilha. Sua coragem pessoal nos combate o havia transformado em um heri lendrio naqueles lugares. Mas o comandante Carreras tampouco havia combatido para a instaurao de uma ditadura mil vezes mais feroz da que ajudou a derrubar. E Castro mandou-o para o crcere, como a tantos outros oficiais; Mas contra os de alta graduao havia um dio especial, como uma fria. Carrera havia tido atritos com Che Guevara em plena guerra, porque no aceitava a imposio de Castro de situar um comunista como chefe da frente guerrilheira de

Escambray. Quando Che Guevara penetrou na zona rebelde controlada por Carreras, este chegou quase a ponto de mat-lo. Che e Castro nunca esqueceram isso. Conversamos com freqncia porque vivamos no mesmo grupo de liteiras e ele me disse que tinha certeza de que seria condenado morte por causa daquilo. Jesus Carreras foi fuzilado. Pelos constantes fuzilamentos, a priso de La Cabaa havia se transformado no mais terrvel de todos os crceres. E para nos manter sob o terror, comearam as requisies de madrugada.Os pelotes, armados com barras de madeira, correntes, baionetas e tudo mais que servisse para bater, irrompiam nos pavilhes,gritando e batendo sem contemplao. A ordem que ns, presos, tnhamos era a de sair como estivssemos. Abriam-se as grades e a turba enfurecida de soldados entrava como uma tromba, distribuindo pancadas s cegas. Os presos, tambm como uma tromba, tratavam de sair para o ptio. Mas l, uma fileira dupla de guardas armados de fuzis, com baioneta calada, encarregava-se de fazer com que ningum ficasse sem sua rao de pancadas. Muitos saam meio despidos, de cuecas, ou nus, com sapatos ou descalos. Quando todos estvamos fora, arremetiam contra a gente e batiam com mais sanha. medida que iam batendo e gritando, os soldados se empolgavam, seus rostos se descompunham. Em cima, no telhado, uma fileira de militares - mulheres, inclusive -, fuzil na mo, contemplava o espetculo. Entre eles, um grupo de oficiais e civis da Polcia Poltica que jamais faltavam. O capito Hernn F. Marks, um norte-americano, havia sido nomeado por Fidel Castro chefe da guarnio de La Cabaa e verdugo oficial. Era esse homem que disparava os tiros de misericrdia e quem dirigia as requisies.Quando se embebedava, coisa que fazia muito freqentemente, Hernn mandava formar a guarnio e investia contra os presos em formao de combate. Ele mesmo chamava o presdio de seu "couto de caa". Outro de seus divertimentos era passear pelos pavilhes, chamar s grades aqueles para os quais se pedia pena de morte e perguntar-lhes atrs de qual dos ouvidos queria que atirassem. Anos mais tarde voltou para sua terra, os Estados Unidos. Cada amanhecer La Cabaa despertava com nova interrogao: "Quem vo fuzilar hoje?" Depois da chamada da manh, abriam as grades e nos reunamos no ptio, na interminvel fila para tomar o caf. O mais jovem do nosso grupo era Carlos Alberto, ainda menor de idade,se bem que em altura nos ultrapassasse a todos. Carlos Alberto havia se casado muito menino e sua esposa havia trazido, na ltima visita, Gina, filhinha de ambos, de apenas alguns meses. A famlia de Carlos Alberto estava tentando conseguir que, devido idade dele, o transferissem para um presdio de menores. Uns dias depois do julgamento foi chamado sala da chefia do presdio, com seus poucos pertences: ia ser mandado para uma priso nos arredores de Havana. Algumas semanas depois, tendo conseguido uma lima, cortou os barrotes da cela e fugiu. Conseguiu entrar na Embaixada da Venezuela e, depois de meses de presses, o governo cubano permitiu que sasse do pas. Carrin, Piango, Boitel e eu festejamos com jbilo a fuga de Carlos Alberto. Um a menos naquele inferno!

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3. Morte aps morte


Treze dias tinham se passado desde a madrugada em que fui tirado de minha casa e levado delegacia para que me fizessem umas perguntas. Nesse curto espao de tempo a Polcia Poltica preparou todo o processo. Em doze ou treze dias era materialmente impossvel realizar uma investigao, mas assim eram os julgamento. No me foi possvel conversar a ss com o advogado que atuou em minha defesa, nem permitiram a ele acesso ao sumrio. Sobre uma plataforma de madeira, uma grande mesa qual os membros do tribunal conversavam entre si, riam e fumavam charutos que seguravam num canto da boca, mordendo-os, ao estilo dos valentes. Todos vestiam fartas militares. Era um desses tribunais tpicos que se integravam de qualquer jeito, formado por operrios e camponeses. Ao comear o julgamento, o presidente do tribunal, Mrio Tagl, colocou as pernas em cima da mesa, forou para trs a cadeira reclinvel e abriu uma revista em quadrinhos. DE vez em quando dirigia-se aos que estavam ao seu lado, mostrava-lhes alguma passagem da historieta que tinha despertado a hilaridade dele e riam juntos. Na verdade, demonstrar ateno e interesse, se bem que fosse corts, no era necessrio e eles sabiam disso. As sentenas j vinham decididas e redigidas da sede da Polcia Poltica. Dissesse o que se dissesse, fizesse o que se fizesse, a sentena no mudaria. O promotor chamou o chefe do grupo que me deteve em minha casa. - O senhor efetuou a priso do acusado? - Sim, senhor e fizemos uma revista na casa dele, mas no encontramos nada... - Cale-se e s responda o que lhe for perguntado! - gritou o promotor, evidentemente incomodado por aquela declarao que era muito favorvel para mim diante dos olhos dos poucos espectadores militares presentes; era proibido aos familiares assistirem aos julgamentos e eles nem sabiam quando teriam lugar. O promotor no pode apresentar sequer uma prova contra mim. Fez-me duas ou trs perguntas, principalmente ligadas minha crena religiosa. - Ento voc est de acordo com esses padres que redigem pastorais contrarevolucionrias. - Eu nada tenho a ver com isso. - Mas as investigaes dizem que voc tem muito relacionamento com os padres e que estudou em um colgio catlico. Voltou-se para o presidente do tribunal e lhe disse que eu era um inimigo da revoluo e que havia cometido os crimes de estragos e sabotagem, depois recitou um nmero de artigos que supostamente referiam-se s sanes que eu merecia. Nem ento, nem depois, porque durante vinte anos continuei perguntando, nenhuma das autoridades pde me dizer onde cometi um delito de estragos. Chama-se

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assim aos destroos que so ocasionados por uma bomba, um incndio, um ato qualquer de sabotagem. So algo de concreto, visvel, palpvel. Perguntei ao promotor onde, em que fbrica, em que estabelecimento, em que data. No pde responder, porque nunca fiz nada parecido. como se algum que estivesse sendo acusado de assassinato e perguntasse ao promotor a quem havia matado e este respondesse que no sabia; e se perguntasse pelo cadver, respondesse que no havia cadver. Algo assim como ter assassinado um fantasma. Nenhum tribunal em regime de direito teria podido me condenar. No houve uma s testemunha que me acusasse, no houve quem me apontasse. Sem uma s prova, fui condenado pela equivocada convico da Polcia Poltica. Meu caso no foi uma exceo. Outro dos mais conhecidos foi o dr. Rivero Caro, advogado. Ele nunca esqueceu as palavras do interrogador da Polcia Poltica, Ildefonso Canales, que visivelmente zangado por no conseguir arrancar, nem com torturas, uma confisso do preso, disse-lhe claramente: - Sabe o que acaba com voc Sua mentalidade de advogado. Voc est focalizando sua situao com mentalidade de advogado e se engana. Olhe, o que voc declarar em juzo no importa; tambm pouco importam as provas que voc puder apresentar; no importa o que diga, alegue ou proponha o seu advogado; no importa o que diga o promotor ou as provas que apresente; tampouco importa o que pense o presidente do tribunal. A nica coisa que importa aqui o que diga o G-2. Em algumas ocasies, os presos que tinham relacionamento com advogados muito prximos da direo da Polcia Poltica podiam saber, antes da realizao do julgamento, a pena que receberiam no tribunal. Foi precisamente um contato como esse que permitiu velha me do comandante Humberto Sor Marn saber que seu filho, um dos homens prximos de Castro,ia ser fuzilado, acusado de conspirao. Sor Marn foi um dos mais estreitos colaboradores de Castro. Lutou ao lado deste nas montanhas e fez parte de seu Estado-Maior. Fez e assinou a lei da Reforma Agrria. Nos primeiros meses de triunfo revolucionrio, esses laos apertaram-se mais ainda. Castro costumava almoar de vez em quando na casa de Sor Marn, atrado pela excelente cozinheira que era a me dele. Por isso, a senhora Marn, quando soube que seu filho ia ser fuzilado, transida de dor foi falar com Castro. O encontro foi dramtico. A velha abraou, chorando, o lder revolucionrio que lhe acariciava a cabea venervel. - Fidel, eu te suplico.. que no matem meu filho, faz isso por mim... - Acalme-se... No vai acontecer nada com Humberto, eu prometo. E a me de Sor Marn, louca de alegria, ainda com os olhos cheios de lgrimas, beijou Fidel e foi correndo comunicar famlia que tinha conseguido. Ela teve esperana que ele o perdoaria, tendo passado tantos perigos juntos, tendo partilhado tantos dissabores e angstias! Aquele passado comum no podia ser esquecido dessa maneira. Na noite seguinte, por ordem expressa de Castro, Humberto Sor Marn foi fuzilado. Os homens que lutaram com Castro para estabelecer a democracia foram enganados; alguns fugiram do pas, outros voltaram a empunhar armas ou participavam de planos conspiradores. J os oficiais e policiais do regime deposto, acusados de crimes que em muitos casos no foram comprovados, haviam sido fuzilados. Aqueles eram dias em que um grupo de senhoras, vestidas de preto, penetrava nos pavilhes aguando a

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vista, perscrutando rostos... bastava que uma daquelas mulheres levantasse o indicador para acusar algum... - Esse... foi esse que matou meu filho! Aquele testemunho, sem qualquer comprovao, era o suficiente. O prezo era fuzilado. Essa situao prestou-se a vinganas pessoais, sem nenhum vnculo real com fatos criminosos. Nos primeiros dias de janeiro, 21, exatamente, em uma manifestao diante do palcio presidencial, Castro declarava: - Os esbirros que estamos fuzilando no passaro de 400... No entanto, muitos mais j haviam cado diante dos pelotes, naqueles dias de barbrie e morte.

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4. O ano do paredo
A luta do povo cubano tratando para que o comunismo no se consolidasse incrementava-se dia a dia. Vorazes incndios consumiam grandes depsitos e lojas da capital. Centenas de hectares de semeaduras de cana de acar eram pasto das chamas e as noites cubanas eram iluminadas por aquelas gigantescas fogueiras. As bombas demoliam redes telefnicas e eltricas, descarrilavam trens; os entrechoques armados entre os patriotas e as foras repressoras, na cidade e nas montanhas, eram constantes. medida que a resistncia aumentava tambm aumentava o terror do Governo. Diante dos pelotes, caam culpados e inocentes. Nas montanhas, quando as tropas do Governo prendiam os patriotas, estes eram fuzilados no local da captura e os mdicos forenses abriam-lhes o abdmen para tentar localizar o restante da guerrilha, guiando-se pelos tipos de alimento que tivessem no estmago. Em toda a ilha os pelotes de fuzilamento no cessavam de executar. Naqueles dias, o capito Antonio Nuez Jimnez declarou que, dali por diante, o ano de 1961, que havia sido cognominado como "Ano da Educao", iria chamar-se "Ano do Paredo". E sua predio foi correta. Os condenados morte, ao sair do julgamento, no voltavam para os pavilhes. Eram levados para celas pequeninas, situadas no final da galeria 22, onde se alojavam os militares do exrcito revolucionrio acusados por roubo, drogas e outros crimes comuns. Esses presos ficavam separados dos outros pelo pequeno ptio rodeado por altas grades, que constitua o rastilho da fortaleza e evitava o contato fsico com eles; mas podamos v-los do nosso ptio. Os condenados morte eram confinados naquelas celas individuais; para chegarse a elas tinha-se que passar ao longo do pavilho dos presos comuns militares. Durante esse percurso, acompanhados pelo escolta, com as mos amarradas s costas, eram insultados e recebiam todo tipo de humilhaes por parte daqueles criminosos comuns, que tentavam talvez ganhar mritos com a guarnio ou, que canalizavam realmente seu dio contra os que enfrentavam a revoluo que muitos deles apoiavam. Mas nem sempre eram apenas os poucos instantes de passagem pelo pavilho que eram aproveitados pelos delinqentes comuns para agredir e humilhar os condenados morte. Havia os que se punham a segui-los at as celas, s quais tinham acesso, e l continuavam a ofend-los, negando-lhes nas ltimas horas a paz e o recolhimento que lhes permitissem rezar, recordar a vida, meditar. As autoridades no ocultavam seu beneplcito nesse procedimento e, quando havia prisioneiros polticos nas celas da morte, distribuam bebidas alcolicas aos presos comuns para que entoassem a "Internacional" e festejassem o triunfo da revoluo sobre os contra-revolucionrios.

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Muitos dos condenados morte, longe de se sentirem derrubados ou amedrontados por tanta maldade, respondiam com arengas polticas e denunciavam o marxismo diante daquela chusma. Quando o esquadro de guardas os conduzia ao paredo de fuzilamento, ao passar pelo pavilho 22, eram despedidos com gritos de "Viva Fidel Castro, viva a revoluo!" Desde que a caminhonete com os componentes do peloto de fuzilamento passava a entrada que leva aos pores, escutava-se o inconfundvel rudo do motor nos pavilhes e nas celas dos condenados, que percebiam o aproximar-se do momento decisivo. Um acmulo de imagens e pensamentos confundia-se em nossas mentes naqueles instantes: seus filhos rfos, a viva, a me transida de dor. Tambm nos assaltava, fazendo-nos estremecer, a idia de que aquele que aguardava o peloto podia ser um de ns mesmos. E, de repente, vamo-nos com as mos amarradas, amordaadas, descendo aquelas escadas, levados ao poro... ao tablado, diante da parede de sacos de areia e os refletores iluminando tudo... uns oficiais me empurravam e me passavam uma corda pela cintura... levantavam os fuzis e um relmpago ensurdecedor reboava por todos os pores... Assim acontecia com todos ns... eu acho. Cada noite eu fazia aquele caminho, via-o em minha mente, conhecia o percurso de memria, cada degrau, o tablado... Depois do tiro de misericrdia algum sempre soluava. Houve noite de dez, doze fuzilados. Escutava-se o porto gradeado do ptio da fortaleza e algum que se aproximava da porta para ver o amigo e gritar-lhe o ltimo adeus. No se podia dormir nos pavilhes. Foi ento que Deus comeou a se tornar um companheiro constante para mim e a perspectiva da morte, em uma porta para a verdadeira vida, um passo das trevas para a luz eterna.

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5. Ilha de Pinos

O ptio do presdio tinha dois alto-falantes. Quando os militares queriam dirigirse aos presos faziam-no atravs deles. Uma tarde, ao terminar a chamada, comearam a ler uma lista de prisioneiros que deveriam recolher imediatamente todos os seus pertences. Iam ser transferidos. Quando chamavam esses grupos, fazia-se total silncio na priso. Cada qual aguava os ouvidos para perceber se pronunciavam seu nome. Nunca diziam para onde era a transferncia, mas de La Cabaa, e tantos prisioneiros, s podiam ter um destino: Ilha de Pinos. A transferncia para aquela priso, situada em uma ilha ao sul de Cuba, intimidava os nimos. Comentava-se que l aconteciam muitos horrores. Alm disso, era o afastamento dos familiares, maior incomunicabilidade. Os alto-falantes continuavam emitindo a litania de nomes e mais nomes: repetiam uma vez cada um. Escutei meu nome e sa da porta para ir arrumar minhas coisas. Diante de mim Pedro Luis Boitel e a meu lado Alfredo Carrin tambm preparavam sua equipagem. Aquela foi uma das maiores transferncias que fizeram: mais de trezentos homens em uma s chamada. Todos ns sabamos que l as visitas eram proibidas e que imperava o terror. - Vamos... apressem-se! - os guardas repetiam mecanicamente a ordem. Os primeiros que j haviam sado dos pavilhes 8, 9 e 10 amontoavam-se no ptio, carregados com seus sacos e sacolas de juta; do cinturo, pendiam o jarro de alumnio e a colher, no pescoo uma toalha e, assomando-se do bolsinho do camiso rstico, a escova e pasta dental. Pedro Luis, de compleio frgil, quase no podia com seu saco e o arrastava. Usava um crucifixo grande - presente de um padre catlico - que o acompanhou em sua candidatura a presidente da Federao Estudiantil Universitria, qual teve que renunciar ameaado por Castro pessoalmente, porque Boitel era um anticomunista ativo. Foi ento que passou para a clandestinidade, na qual viveu durante meses, at que foi capturado. ramos quase duzentos presos no ptio, cada qual com seu saco. Samos para a rua, aquela mesma que eu conhecera quando tinham me levado a julgamento; mas agora estava cheia de guardas que iam e vinham constantemente, com capacetes e fuzis com baioneta. sada da priso os nibus esperavam. Eram Leylands ingleses, pintados de branco, dos que compunham as linhas de nibus Modernos S.A., expropriados pelo Governo. O assento do fundo estava ocupado por uma escolta de seis soldados, com

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submetralhadoras. Quando todos os assentos ficaram ocupados, outros escoltas postaramse nas portas e atrs do motorista. Um tenente ameaou os que tentaram se pr de p e a comitiva de vrios nibus partiu, escoltada por patrulheiros da Polcia Nacional e carros da Polcia Poltica. A caravana de nibus deixou para trs a fortaleza, subiu a Via Monumental, virou direita e entrou em um tnel, rumo ao acampamento militar de Colmbia, lugar de onde sairiam os avies carregados de prisioneiros, rumo Ilha de Pinos.

* * *

Al aproximarmo-nos da escadinha do avio, os militares comearam a gritar; iam se aquecendo. O avio de transporte, que tinha sido usado para carregar gado, no tinha assentos e nem sequer o haviam limpado: o cho estava repleto de excremento de reses. Uma corda dividia o avio: de um lado ns, do outro a escolta. - Todo mundo no cho... sentados! Houve uma incerteza, porque era preciso atirar-se quele cho cheio de merda de vacas... e os guardas comearam a empurrar e a gritar como malucos. - E agora, escutem bem - era o tenente que falava - temos ordem de atirar em quem no obedecer. No podem olhar pelas janelas e nem sequer levantar as cabeas. Quem no fizer isso, que agente as conseqncias... Ah, outra cosa: vocs tm que fazer silncio; no podem conversar durante a viagem. Todas aquelas medidas repressoras tinham por finalidade desanimar qualquer tentativa de nos apoderamos do avio. Havia em nosso grupo homens de ao que haviam demonstrado coragem em muitas ocasies, nas montanhas, lutando nas guerrilhas, ou na cidade, nos grupos clandestinos. O piloto subiu com dois guardas escoltando-o, que se fecharam com ele na cabine. Essa medida foi adotada em Cuba no apenas para transferir presos. J naquela poca, todos os vos nacionais saam com dois soldados de escolta e, alm disso, a porta da cabina era blindada, com um visor de cristal tambm blindado. Enquanto o avio no aterrissasse asse no se podia abrir a porta da cabina, houvesse o que houvesse. Assim , ainda hoje. Com as cabeas baixas, sem falar, passou a viagem. O avio desceu no pequeno aeroporto de Nova Gerona, capital da Ilha de Pinos. Abriram a porta. L fora, o mato alto chegava acima dos joelhos e dezenas de guardas com fuzis e baionetas caladas rodeavam o aparelho. Enquanto descamos do avio, os militares comearam a gritar desaforos. A maioria dos que se agruparam diante da porta eram negros, no pareciam cubanos; do pescoo pendiam-lhes colares de sementes chamadas "olhos de boi" e contas coloridas; nas boinas, como distintivos, havia um raminho de milho. - Subindo nos caminhes, vamos, depressa! - e cagavam em nossas mes -. Chegaram ilha, seus filhos da puta! Vo ver o que bom! Depressa! Aquilo era horroroso. Os presos moviam-se como animais assustados; pelo menos eu me sentia assim. Esperava que de um momento para outro me dessem uma baionetada ou uma pancada com a culatra do fuzil. O medo havia se apoderado de mim. Sentia uma

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opresso no ventre, como se uma garra me apertasse o estmago e o puxasse lentamente. A partir de ento, aquela sensao me acompanharia durante anos; eu j sabia o que era medo, pnico. Muito havamos ouvido falar dos horrores do presdio para onde nos levavam, dos trabalhos forados nas pedreiras, das arrepiantes requisies nas quais sempre muitos prisioneiros acabavam mortos e centenas feridos a baioneta. Muito tnhamos ouvido falar dos pavilhes de castigo, de suas celas, onde se confinavam os presos que protestavam contra as injustias e abusos que se cometiam diariamente contra eles; ou simplesmente porque os carcereiros gostavam de ver os presos l, nus, com a porta da cela soldada, usando como cama o cho duro e frio. L passavam meses e era prtica diria atirar neles cubos de gelo e excrementos. Quem conseguisse controlar a mente e no saa de l com as faculdades mentais abaladas, quase sempre saa com os pulmes destrudos, tuberculoso...

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6. O presdio dos fantasmas


Foram nos chamando um a um, at um balco que nos separava dos guardas, onde se faria o inventrio dos nossos pertences, do pouco que trazamos: algumas latas de conserva, remdios, pasta dental, sabonete, roupa de baixo. E comeou o saque. Tiraramnos tudo que tinha valor ou que os agradava. Meu relgio chamou a ateno do tenente Paneque que quase destroncou meu pulso ao arranc-lo. Eram abutres repartindo o botim. Com descaramento sem limites, discutiam pela posse de um par de meias, aparelho de barbear, uma caneta. Eu tinha um crucifixo, presente de um amigo; Paneque arrancou-o com fria de meu pescoo, atirou-o ao cho, pisotearam-no. A cruz, em pedaos, ficou no cho. De repente, do outro lado soaram risadas, exclamaes indignadas e o preso que protestava atacou a socos um guarda. Vrios outros caram em cima dele. O preso se debatia, mordi, arranhava, at que as pancadas o fizeram cair ao cho, a cabea quebrada e o rosto empapado pelo sangue que lhe saa pelo nariz. Ao comear o tumulto, os demais guardas que nos rodeavam retrocederam imediatamente, manipulando fuzis e metralhadoras, ameaando-nos com nervosismo. - Ningum se mova, mos para cima e cuidado com o que fazem, seno atiramos! Tinham medo, estavam nervosos, temerosos de homens desarmados e nus; senti que crescamos diante daquela turba que mal podia segurar as armas, tanto lhes tremiam as mos. Imediatamente levaram embora o que havia atacado o guarda. Depois soubemos que o guarda, ao virar as coisas do preso sobre o banco, durante a revista, pegara uma foto da me de nosso companheiro e,insolentemente, com a fotografia na mo, perguntou-lhe em que prostbulo aquela mulher trabalhava. Aquilo esgotou-lhe a pacincia. Cego de ira, com lgrimas de fria nos olhos, saltou sobre o ofensor. Aquela me nem sequer podia imaginar que seu filho, muito longe do lar, era arrastado pelo cho, quase morto, por causa de uma surra que levara dos guardas, por tentar defend-la! Senti uma profunda admirao por aquele homem e pensei nas mes que nunca mais veriam seus filhos, que nunca mais poderiam abra-los; pensei nas mes dos fuzilados e senti que enquanto houvesse em mim um sopro de vida tentaria ser digno dos meus seres queridos. Uma vez terminada a revista, entregavam uma muda de roupa para cada recluso. Aos que usavam nmero pequeno ou mdio, davam grande; aos grandes e gordos, um pequeno; e era preciso enviar as roupas, sair dali vestidos. Ao sair, na parede de aquele sto, um cartaz com um pensamento de Fidel Castro: "A revoluo mais verde do que as palmeiras". Formamos uma fileira de dois a dois e comeamos a andar. A porta de entrada do segundo alambrado abriu-se: erguia-se ali uma guarita de concreto com holofotes e uma metralhadora que apontava para os edifcios. J estvamos dentro do presdio. Dali no se viam os jardins. Aquela porta abria-se para um mundo alienante do qual muitos dos que estavam entrando no sairiam. Passamos entre os edifcios 5 e 6, enormes, de cinco andares de altura e forma retangular, e diante de ns erguiam-se, impressionantes, as

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enormes edificaes de ferro e concreto das circulares, com seus sete andares para alojar 930 presos em cada um.Chegariam a abrigar 1.300. Eram quatro e no centro, tambm circular, mas de dois andares apenas, ficava o refeitrio, capaz de admitir 5.000 comensais ao mesmo tempo; a cozinha e as despensas tambm ficavam ali. As quatro circulares e o refeitrio distribuam-se como o nmero cinco de um dado: o ponto central era o refeitrio. Rodeamos o refeitrio por uma estradinha asfaltada e paramos diante da entrada da circular 4, nosso edifcio de destino. Sobre a porta, um irnico cartaz: "Bemvindos circular 4". A entrada era uma construo ampla, de blocos de concreto aparente e o teto de folhas onduladas de fibra e cimento. Atravs das janelas, os presos que tinham chegado no dia anterior gritavam para ns, chamando pelos nomes alguns, que tinham conhecido em La Cabaa. Atrevi-me a erguer a cabea e olhar para cima, para as ltimas janelinhas gradeadas do quinto e do sexto andares, onde mos se agitavam, dando boas-vindas. Depois, fui descendo os olhos at as janelas do primeiro andar, que estavam muito perto. Os homens por trs daquelas grades pareciam cadveres, os rostos embranquecidos pela falta de sol. Havia um to magro que parecia irreal. No falava, no se mexia, ficava ali, s olhando: parecia uma dessas figuras de museu de cera... No entanto, daqueles homens, o que mais tempo poderia ter de priso no passava de dois anos e alguns dias. S de pensar nisso um arrepio percorreu-me a espinha. Dois anos! Eu no resistiria. Pensava... como que ainda esto vivos, por que no tinham morrido? Se, ento, algum me tivesse dito que eu ia passar vinte e dois anos no crcere acho que teria comeado a rir e consideraria essa pessoa o ser mais mentiroso do mundo. Por fim, abriram a grade de entrada, depois de nos contar vrias vezes. Uma multido de presos esperava no andar trreo, em um ptio circular com uns setenta metros de circunferncia. No centro erguia-se uma torre de concreto que chegava at a altura do quarto andar. No alto dela, um terrao, com parapeito, para as rondas do vigia. Uma portinha de metal e seteiras. O acesso torre era por fora, por um tnel, que permitia aos guardas chegarem a ela sem ter que entrar no edifcio. Grudadas parede da circular, como uma enorme colmia, as celas, alinhadas uma junto da outra. Havia 93 em cada andar. Diante delas, um beiral suspenso, com corrimo de ferro gradeado, na beirada, o que o transformava em um corredor onde se podia caminhar em segurana. Os andares comunicavam-se por escadas de mrmore. Outras escadas menores, em nmero de 4, davam acesso do andar trreo ao primeiro andar de celas. No ptio, no trreo, ficavam os tanques e os chuveiros. As celas eram pequenas, com uma janela grande, quadrada, com barrotes de ferro. O sexto andar no tinha paredes, nem divises. Antes era usado como rea de castigo para os presos comuns. Existiam nele vrias celas que tinham sido demolidas. Agora, e devido ao excesso de populao penal, tambm era utilizado. Essa circular 4, excepcionalmente, tinha grades nas celas do primeiro andar. Mesmo assim foram usadas como lugares de castigo na poca dos presos comuns. O resto das celas no tinha grades e podia-se perambular pelo beiral, subir ou descer de um andar para outro. Aquilo parecia um circo romano. Todos falando e gritando ao mesmo tempo. Boitel, Carrrin e eu contemplvamos a cena atordoados, aquele mundo absurdo onde tudo tinha com que uma dimenso diferente.

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7. A linguagem do desespero

- Senhores, senhores... faam silncio, por favor. Era a voz do major da circular, Loureno, um mulato com mais de 1,80 m de altura e 90 quilos de peso, que tinha sido motociclista da polcia anterior. Os presos elegiam, mediante voto secreto, uma espcie de governo interno, que chamavam "mandana". O eleito tinha, por sua vez, a responsabilidade de escolher os que cuidariam da manuteno do edifcio: limpeza, servir o rancho, etc. O major que tratava com os militares e retransmitia o que eles quisessem comunicar. - Bem, vamos subir - disse algum do grupo. Pegamos nossas coisas e comeamos a andar para a escada. Era preciso avanar passando por cima de longas fileiras de baldes, latas, frascos. Tudo que era vasilha alinhava-se pelo ptio inteiro, formando meandros, como o curso de um estranho rio. Logo soubemos por qu: a gua era racionada na priso. Serviam cinco litros por preso a cada semana e essa era a nica gua para beber, lavar o rosto, tomar banho e lavar a roupa. Claro que no dava. O motivo desse racionamento era um conserto das instalaes que abasteciam a colnia penal. Os caminhes pertenciam a outro departamento e nem sempre podiam ir at o presdio: naquela ocasio tinham ficado sem aparecer durante nove dias. Subimos para o sexto andar. Os que haviam chegado no dia anterior tinham pegado celas vazias e levaram muitos de ns para elas. O trfego pelas escadas era constante, mudavam-se liteiras de um andar para outro, de uma cela para outra. As celas tinham duas dessas camas que chamvamos de "avies", na gria carcerria. Nunca consegui saber por qu; talvez fosse por se dobrarem como asas, fechando-se. O caixilho era um tubo ao qual se costurava a lona ou saco de juta ou aniagem; fixava-se na parede com dois ganchos de ferro enfiados no concreto e tinham dois tirantes de correntes, que tambm eram presas na parede; podiam ser fechadas durante o dia e abrir no momento em que iam ser usadas. Ter um desses avies de lona em bom estado era a aspirao mxima de um preso. Estvamos cansadssimos quando chegamos ao sexto andar, Carrin, Piango, Boitel, Jorge Vctuor e mais alguns do nosso pequeno grupo. Na priso tem-se centenas de amigos, mas sempre h um grupo reduzido com o qual passamos a maior parte do tempo, com o qual se partilham as horas e essa necessidade de se comunicar que para alguns mais importante do que para outros. Jorge Vctor era calado; mal falava e dava a impresso de ser imutvel. Realmente o era Havia estudado para padre e dava a impresso de andar de hbito. Tinha sido detido na mesma madrugada que ns. Jorge Vctor havia se sentado no cho, impassvel, e ns fizemos a mesma coisa. Ajeitamo-nos naquele quadrado, pegamos os cobertores e tratamos de dormir o melhor possvel. Como

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o esgotamento em que estvamos nos ltimos dias, afundamos quase que imediatamente num sono profundo. * * * De madrugada, um barulho e gritaria infernais nos acordaram, sobressaltados. Levantamo-nos e nos aproximamos do parapeito do beiral. Dai via-se a grade de entrada: o espetculo era alucinante. Tinha chegado um carro-tanque de gua. Haviam enfiado a mangueira de quatro polegadas entre as grades e aberto as torneiras. O lquido precioso foi jogado fora at que os primeiros, meio adormecidos ainda, desceram ao grito de GUA! Os presos precipitavam-se para o trreo, frenticos, com baldes, latas, jarros, enfim, tudo que servisse para armazenar gua. Centenas de homens enchendo suas latas medida que ia chegando sua vez, nas filas interminveis. Corriam como demnios pelas escadas e gritavam. Acima daquele barulho a torrente de voz do major Loureno fazia-se escutar: - Calma, senhores, calma! Ms aqueles j no eram homens civilizados; agiam como uma manada sedenta que, de repente, fareja gua prxima e estoura em debandada. Corriam pelas escadas; alguns, mais geis, despencavam pelos beirais, descendo de andar para andar, com o risco de cair l embaixo. Fiquei olhando tudo aquilo como que hipnotizado, at que outro preso, com um balde de plstico, passou diante de ns. - Hei, vocs! Andem logo, seno ficam sem gua! Suas palavras nos despertaram; era verdade e estvamos sedentos. Pegamos nossos baldes e samos, velozes, escadas abaixo. Eu percebi, ento, que era mais um daqueles homens. O menu no era muito variado: no almoo, arroz e ervilhas; tarde, farinha de milho e um caldo gorduroso. Em geral, a ervilha ou outros gros eram destinados ao presdio quando estavam ruins, cheios de bichos. Ento, flutuava nos caldeires enormes uma camada de carunchos. No entanto, nas situaes mais desagradveis, o cubano, devido ao seu carter, por idiossincrasia, leva as coisas na brincadeira: uma vlvula de escape para diluir o drama das coisas graves. Ento, quando vinham os cereais bichados, o gradeiro apregoava: - Ervilha com protena! Vivi durante muitos dias quase que s de po. Eu tinha certas frescuras para comer, mas a fome e o presdio se encarregariam de acabar com aquilo. Semanas depois, devorava aquela ervilha como se fosse o mximo. Quando algum dizia que a comida estava estragada ou com gosto ruim, Carrin sempre respondia: - Quem j viu preso comer por prazer? Come para sobreviver. E era verdade. Era preciso comer qualquer coisa para sobreviver e fiz o firme propsito de pr de lado todos os escrpulos e engolir o que viesse. Na circular 3, Macuran, um ex-militar do exrcito derrotado, tinha conseguido montar um rdio rudimentar que deixava os soldados da guarnio malucos. Faziam, inutilmente, uma revista aps outra tentando encontr-lo. Os presos tinham conseguido organizar uma linguagem por sinais, com as mos, similar dos surdos-mudos, porm muito mais simplificada, que permitia falar com rapidez assombrosa. Poderia parecer

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uma completa loucura a qualquer espectador alheio ao caso, ver um daqueles homens, por trs das grades, movimentando as mos como um possudo pelo demnio, abrindo e fechando os dedos, de vez em quando tocando nas barras de ferro. Por exemplo, rodear uma das barras com a mo inteira, como quem agarra um basto de beisebol, significava a letra D; colocar apenas dois dedos sobre o mesmo barrote correspondia letra N; se fossem trs dedos, era o M. Dessa maneira eram transmitidas notcias da circular 3, copiadas por ns, da 4. Ambas estavam separadas apenas pela estradinha de concreto. Para as circulares 1 e 2 era impossvel a comunicao por meio da linguagem das mos, ento usava-se o cdigo Morse. Entre ns havia muitos telegrafistas e outros aprenderam com eles. Uma rgua de papelo ou uma tabuinha funcionavam como aparelho transmissor. Uma batida lateral com a rgua ou a tabuinha equivalia ao ponto; a batida de frente significava o trao. Algum tempo depois as comunicaes foram aperfeioadas e chegou-se a ter um "blinker", "made in home" (NT: Em ingls, no original - blinker: lanterna pisca-pisca; made in home: feita em casa), e apitos feitos com tubos vazios de pasta dental; assim nasceu a comunicao sonora. Quando chegavam as notcias do rdio de Macuran, imediatamente faziam-se seis cpias, uma para cada andar, e eram dadas em crculos pequenos. As boas notcias erguiam as almas at as nuvens e quando os grupos se dissolviam notava-se em muitos um otimismo, uma alegria extraordinria. Havia quem acompanhasse os que liam as notcias s para escut-las novamente. Era como uma droga, um vcio. * * * Entra a massa de presos comuns que havia naquela poca na Ilha de Pinos, muitos simpatizavam com os presos polticos, porque aborreciam o sistema. Esses homens nos proporcionaram valiosas ajudas e se arriscavam s represlias, fazendo-nos favores. A comunicao com eles no era fcil, pois eram absolutamente proibidos de falarem conosco. Se fossem apanhados, esse contato era considerado como uma identificao com o que representvamos e iriam para as celas de castigo. Atravs da janela de uma das celas do primeiro andar, que dava para uma ruazinha, Boitel e eu conseguimos fazer contato com um daqueles presos comuns, nosso simpatizante. Foi um trabalho de dias e dias, sentados ali, junto da janela. Pedimos a ele que arranjasse jornal para ns e perguntamos sobre a possibilidade de, mais para adiante, fazer sair e entrar correspondncia nossa, coisa que naquele tempo era fcil para os criminosos comuns. Conseguimos convenc-lo. Aquele homem aceitou colaborar conosco, apsear de o advertirmos do risco que corria. E no fez isso por dinheiro; era o modo dele de se opor ao regime. Idealizamos, ento, o modo de passar o jornal. A entrega devia ser feita uns metros antes de chegar circular, no diante da cela, para que se algum visse de longe no pudesse desconfiar de nada. Teramos que tomar cuidado no s com os militares, mas tambm com outros presos comuns, delatores e colaboradores da guarnio, que poderiam denunci-lo. Recolhamos o jornal usando um fio tingido de verde, com um pedao de chumbo amarrado na ponta. Jogvamos o fio, enrolado em uma pedra, atravs dos barrotes da janela. Eu efetuei o lanamento que levou o fio at a beirada da estradinha. Depois

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desenrolamos o suficiente para que se mantivesse junto da parede, que era pintada de verde, de modo que no se distinguia o fio. Nosso amigo j ia se aproximando, olhando dissimuladamente para a beira da estradinha. Boitel deu um puxo, de leve, que fez o mato se mexer; foi o suficiente para que o homem percebesse o fio. Agachou-se como quem amarra o cordo do sapato, tirou rapidamente da meia um pacotinho achatado, fez uma manipulao rapidssima e continuou seu caminho. Esperamos cinco minutos demorados, longussimos, para dar tempo ao nosso amigo de chegar ao edifcio. Ento, Boitel puxou lenta, muito lentamente o fio... Um jornal "Revoluo", quase rasgado pelo fio, chegou s nossa mos. Desde aquele dia recebemos jornais com alguma freqncia. Mas nada podamos dizer; sabamos que existiam delatores no meio daqueles mil e tantos homens. E decidimos, com Ulisses, redigir um boletim com as notcias mais importantes e distribui-las com as notcias enviadas por Macuran. Batizamos o novo jornalzinho de "Imprensa Livre". Os livros eram proibidos. S existiam dois que se haviam salvado, nem se sabia como, quando dois meses antes, em fins de 1960, antes que nosso grupo chegasse, a guarnio arrasou tudo. Os dois livros que restavam era uma biografia de Maria Antonieta, de Stephan Zweig e "O Homem Medocre", de Jos Ingenieros. As solicitaes para ler esses livros chegavam a vrias centenas.

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8. Suicdios e excrementos

Cajigas era um campons da regio montanhosa de Escambray, cenrio de levantes contra Castro desde 1960. Vrios dos filhos desse ancio somaram-se aos grupos de patriotas que combatiam o comunismo. Unicamente por essa causa, porque seus filhos estavam l, nas montanhas, e no tinham conseguido apanh-los, prenderam o velho Cajigas, pensando que assim os rapazes se entregariam. Depois de interrog-lo, tentando conseguir informaes sobre os contatos e os acampamentos dos revoltosos, Cajigas foi preso na Ilha de Pinos. Mas as tortura a que fora submetido e os interrogatrios perturbaram-lhe as faculdades mentais. Levaram-no para La Campana, lugar do Escambray utilizado durante muitos anos para fuzilar os que se opunham a Castro. E l fingiram fuzilar o velho com balas de festim. A mente dele no suportou: ficou desequilibrado. Na loucura de Cajigas havia uma idia fixa, obsessiva: ver os filhos. E constantemente aproximava-se das grades da entrada, chamando-os: - Quero ver meus filhinhos... quero ver meus filhinhos! Um dia, um dos guardas teve a idia de dizer a ele que seus filhos tinham sido fuzilados: - Ouviu, velho? Fuzilamos seus filhos, para de foder nossa pacincia! Foram fuzilados... esto bem mortos! Ento, Cajigas agarrou-se aos barrotes, chorando. Chamaram o major para ir busc-lo e lev-lo para a cela. O velho tinha as mos crispadas ao redor dos barrotes e foi preciso arranc-lo dali fora. O guarda informou ao oficial que Cajigas havia rompido o silncio e alterado a ordem; no adiantaram explicaes. Enfiaram-no na cela de castigo. Na manh seguinte, quando passou o militar fazendo chamada, o cadver de Cajigas balanava lgubremente. Havia se enforcado com as calas. * * * Quando se construiu o conjunto carcerrio da Ilha de Pinos, todas as celas tinham um vaso sanitrio, uma pia e uma lmpada eltrica. Tudo isso foi eliminado pela revoluo e apenas duas celas por andar foram reformadas para funcionar como banheiros. Mas em quase todos os andares os vasos sanitrios e pias foram arrancados medida que o pessoal da guarnio ia precisando deles. At os soquetes das lmpadas desapareceram, assim como os interruptores de luz. Ficou apenas uma lmpada de 500 ou 1.000 velas na torre, que noite espalhava uma luz esmaecida sobre o local. A circular parecia, ento, uma praa de touros meia-luz. Como no havia gua corrente, como j no existiam instalaes sanitrias nas celas, era preciso ir, necessariamente, aos banheiros dos andares. Em cada um havia dois

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vasos sanitrios; mas usar um desses vasos era algo de incrivelmente repugnante Os excrementos transbordavam. Os banheiros no tinham porta, cortinas, nem nada que isolasse ou separasse, mesmo que parcialmente, quem tivesse necessidade de us-los. Diante deles sempre havia uma fila de espera. Era preciso defecar assim, como se o fizssemos em plena rua, ao meio-dia. Alm disso, s o fato de colocar os ps na beirada do vaso sanitrio era perigoso; mil vezes a gente escorregava e afundava at a metade da perna naquela poa de merda. Quando os vasos estavam assim, transbordando, havia os que subiam janela, agarravam-se nos barrotes e colocavam a bunda para trs, de modo que ficasse em cima do vaso; davam a impresso de macacos. Quando vi aquilo, disse a mim mesmo que jamais poderia defecar ali. Fiquei vrios dias sem ir ao banheiro. Tive a idia de esperar pela madrugada, mas vi que muitos outros haviam pensado a mesma coisa. Para ir quela privada era preciso tomar medidas especiais de preveno contra acidentes. amos nus, com uma toalha ao redor da cintura e descalos, pois se escorregasse e o p se enfiasse no vaso era quase certo o sapato ficar por l. A nica vantagem era que noite as milhares de moscas no incomodavam. Quando os excrementos comeavam a transbordar, era preciso retir-los com baldes e ps. Sempre, em toda sociedade ou agrupamento humano, h os que so capazes de se encarregar das tarefas mais desagradveis. Os que se dedicavam retirada dos excrementos eram homens que mereciam uma enorme admirao e agradecimento. Mas o que fazer com o excremento? Era jogado, de todos os andares, para o trreo e ali acumulava-se uma pilha de quatro ou cinco metros de dimetro, sobre a qual pululavam milhares de moscas. Quando se olhava de cima, a asquerosa montanha dava a impresso de se movimentar: era a camada de moscas que a cobria constantemente. Quando algum se aproximava, o enxame se erguia com uma nuvem escura. A peste, a hediondez, eram insuportveis; toda a circular fedia. A gente, ento, se deslocava para o lado de onde soprava o vento, procurando um pouco de ar puro, respirvel. noite ou quando se estava comendo e a brisa trazia ondas daquela fetidez, nossas entranhas se revolviam. Uma vez por semana passava o caminho de lixo. Ento, passava-se a merda, com ps, para caambas de uns vinte mil litros. Se em repouso empestava o ar, quando era revolvida sua fetidez se tornava intolervel. O risco de doenas e epidemias era enorme e por isso tomvamos medidas de precauo, principalmente contra as moscas, devido hepatite. Os pratos e colheres eram guardados em sacos de nilon e tratava-se de no deixar nenhum jarro ou alimento ao alcance desses insetos. Mesmo assim houve epidemias, com mortos de febre tifide. Os casos de diarria, vmitos e infeces estomacais eram muitos e constantes.

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9. As revistas, surras e saques

Eram freqentes as revistas na circular 3, em busca constante, porm intil, do rdio que escondamos. Os guardas se amontoavam na sada e distribuam baionetadas e correntadas s mos cheias; as vtimas saam sob uma chuva de golpes, protegendo a cabea com as mos. Os guardas gritavam, sempre o faziam, era um mecanismo para se aquecer, excitar-se. Provavelmente, nem mesmo para os mais desalmados, no fcil surrar outros homens sem uma causa, um motivo. Aqueles guardas eram homens com esposas, filhos. O que sentiriam quando os primeiros prisioneiros assomavam pela grade, assustados, e tinham que erguer a baioneta e bater neles? Penso que para uma atitude dessas um ser humano precisa justificar sua ao, descobrir uma motivao interior; como no a tinham, procuravam-na nos gritos, nos insultos. Lembro-me de uma revista na circular 2. As escadas estavam tomadas pelos guardas, que batiam selvagemente nos presos que iam descendo. J estvamos quase todos no trreo, restavam apenas alguns retardatrios. Entre eles o dr. Velazco, um preso alto, negro, vestido com uniforme completo. Usava culos redondos, pequeno, de lentes transparentes. Como sempre, ele andava, da mesma maneira que falava, com parcimnia, desenhando cada slaba, cada letra, imutvel, imperturbvel, lentamente. Do trreo, ns, seus amigos, pedamo-lhe que se apressasse, para evitar que batessem nele. Ao chegar no ltimo lance de escada, com seu inseparvel leque de papelo, com que se abanava tranqilamente, os guardas descarregaram uma srie de pancadas furiosas nas costas dele. O dr. Velazco no movia um s msculo, como se as costas que recebiam o castigo no fossem suas. Ergueu-se um rugido de indignao: - o mdico... no batam mais nele! - gritvamos; mas que importava guarnio que ele era um mdico? O dr. Velazco desceu os ltimos degraus e apesar das pancadas no cessarem, no se apressou, em absoluto. Um dos guardas, que estava no segundo andar, jogou-se para trs, projetou metade do corpo fora do corrimo, segurando-se com uma das mos e com a outra, com a qual brandia um faco, deu-lhe uma ltima pancada, com a lmina de prancha. Ns, que espervamos o dr. Velazco no trreo, aproximamo-nos dele, preocupados. Com seu falar parcimonioso, disse-nos que no tinha importncia... e procurou um lugar junto da torre, colocou ali seu banquinho e sentou-se abanando-se. Eu tinha certeza de que suas costas ardiam, queimadas como deveriam estar a pele e a carne pelas pancadas. Mas ele se mantinha imperturbvel.

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Em princpios de 1961 comearam a afluir ao presdio modelo prisioneiros pertencentes aos rebeldes que, em numerosos focos de guerrilheiros, operavam em Escambray. Atravs deles ficamos conhecendo detalhes da gigantesca operao que o Governo havia desencadeado: mais de 60 mil efetivos, na maioria milicianos, participavam do que se chamou "limpeza do Escambray". A represso guerrilha custou caro para Castro. No jornal Granma -rgo oficial do Partido- de maio de 1970, Ral Castro, fazendo o balano do que foram aqueles anos de luta contra os camponeses sublevados, admitiu que as perdas de vidas no exrcito tinham passado de 500 e que custou uns 800 milhes de pesos. Houve 179 guerrilhas integradas por 3.591 homens, confessou o irmo de Fidel. Para ocultar o fato de que havia uma forte repulsa ao Governo comunista por parte dos camponeses, chamaram-nos de "bandidos" e criaram uma fora especial contra os insurretos, qual batizaram com o nome de "Batalhes de Luta contra Bandidos", mais conhecida pela sigla LCB. interessante assinalar que pela primeira vez surgiu em Cuba um verdadeiro levante campons, com chefes e tropas camponesas. Procurando seu extermnio, fuzilavam no apenas os guerrilheiros, mas tambm os camponeses que atuavam como guias, correios e contatos.Os camponeses da regio j discordavam em grande nmero do regime de Castro e os que no integravam as guerrilhas cooperavam com elas de muitas maneiras. Aquelas terras so muito frteis e os camponeses plantavam bananeiras, tubrculos e todo tipo de frutos menores; criavam porcos e aves em seus pequenos stios e o Governo considerava que era dessas fontes que os rebeldes se abasteciam. Para tirar-lhes esse apoio, o Governo idealizou um plano de reconcentrao. Todas as famlias estabelecidas no Escambray e seus arredores foram desalojadas. No dia em que comearam o desalojamento, caminhes do Instituto Nacional da Reforma Agrria (INRA) e do exrcito, cheios de tropas, pararam diante das casas humildes. S lhes permitiram levar algumas roupas e objetos pessoais. As frutas, aves, porcos e algum gado foram confiscados pelo INRA. Destruram as plantaes, puseram fogo nas casas e a gua dos poos foi envenenada. A poltica da terra arrasada para eliminar as fontes de abastecimento aos guerrilheiros foi meticulosamente levada a cabo. As mulheres e crianas foram separadas dos homens e levadas para Havana Os destinaram s residncias do luxuoso bairro de Miramar, mas foram presos l, como em crceres. As famlias amontoavam-se naquelas casas. Como se no bastasse, informaram s mulheres que teriam de ir para o campo, trabalhar na roa. As velhas ficariam cuidando das crianas. Essa situao durou anos e em todo esse tempo jamais viram seus maridos, seus irmos. As crianas em idade escolar foram separadas das mes e "colocadas" em escolas do Governo para serem "reeducadas", de modo a anular a influncia "daninha" dos mais velhos. Os homens foram levados at a pennsula de Guanahacabibes, a regio mais ocidental de Cuba e uma das mais inspitas, a centenas de quilmetros do teatro da guerra e de seus familiares. Esses camponeses jamais compareceram diante de um tribunal, no foram a julgamento, mas estavam presos. Foram ameaados de fuzilamento, se tentassem escapar do lugar onde haviam sido colocados e foram informados de que seriam tomadas represlias contra seus parentes, que os infelizes nem sequer sabiam onde

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se encontravam. Foram obrigados a realizar trabalhos agrcolas e a construir os Campos de Concentrao Sandino 1, 2 e 3, que ainda existem. Quando terminaram esses trs campos de concentrao, disseram a eles que iam construir uma cidadezinha e que quando ela estivesse pronta morariam l com suas famlias. Com essa iluso, aqueles homens trabalharam dia e noite, erguendo blocos de edifcios. Ao termin-la, as mulheres e as crianas foram levadas para l. Desse modo, muito antes de existirem as aldeias estratgicas do Vietn, Castro j as havia posto em prtica em Cuba. Essa primeira chamou-se Cidade Sandino e ainda existe. O estrangeiro sabe muito pouco dessas cidadezinhas e da terrvel tragdia daquelas famlias. Os homens estiveram presos,obrigados a trabalhos forados. No entanto, no h um papel, um documento, nada, para pelo menos cobrir a forma daquele despojo e do que aconteceu nos anos que se seguiram.

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10. Sobre um barril de plvora


Carrin dormia no avio de cima: tinha sono pesado e era preciso sacudi-lo para que acordasse. Quando ouvi o matraquear de metralhadoras e o troar dos canhes cheguei janela de um salto. Acima das colinas fulguravam as lnguas de fogo avermelhadas e alaranjadas das baterias l instaladas. As balas destruidoras sulcavam o cu azulado, em busca de um alvo invisvel para mim. O alarme era geral na circular, e a confuso, tremenda. - Esto nos atacando! - gritavam alguns - Atiram em ns! - diziam outros. Mas, sem dvida, o objetivo daqueles projteis no era a circular. Cheguei ao sexto andar. Muitos olhavam pelas janelas, trepados em latas, catres ou erguidos nas pontas dos ps, segurando-se nos barrotes. A leste do presdio, quase em cima de ns, explodiam obuses antiareos, fazendo subir uns cogumelos de fumaa preta, e entre eles passeava lentamente um avio de bombardeio B-26. Sua fuselagem prateada brilhava ao sol da manh e as exploses continuavam pontilhando o caminho dele. Vi o avio afastar-se rumo desembocadura do rio Las Casas. Dali comearam a atirar nele, de uma unidade da Marinha cubana. Era atacado pela fragata Baire. O piloto descobriu-a e lanou-se sobre ela num mergulho, as metralhadoras disparando. A fragata comeou a movimentar-se para no ser atingida pelo avio; este disparou o primeiro foguete e uma coluna de gua, altssima, ergueu-se diante da proa do barco, que comeou a se afastar a toda mquina. Ento, o B-26 desviou-se para a esquerda. Comearam a atirar nele, de novo, ds colinas, e de novo ele passou olimpicamente entre os obuses da artilharia, que o procuravam enraivecidos. Aquele piloto fazia uma exibio de sangue frio. Dirigiu-se novamente rumo ao navio que disparava contra ele e desta vez no errou o alvo. O foguete rebentou a popa da fragata, que foi envolvida por um torvelinho de fumaa preta. Ento, o avio afastou-se rumo a noroeste. Iniciava-se a invaso de Cuba pela Baa dos Porcos. Era dia 17 de abril de 1961. Aquele fato produziu uma excitao extraordinria entre os presos. Imediatamente pegamos nosso rdio rudimentar, que mantnhamos escondido, e o ligamos. Nesse dia, logo depois do almoo, chegou um caminho, escoltado por dois veculos, coberto com uma lona, com vrios soldados armados em cima. Estacionou com a traseira voltada para a casinha de entrada e algum, querendo fazer piada, gritou: - Snchez... os pacotes! Mas no eram os pacotes; pelo menos, no eram os pacotes com coisas destinadas ao nosso consumo, se bem que fossem a ns dedicados. Eram caixas com cartuchos de dinamite, de fabricao canadense.

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Os militares, dirigidos pelo comandante William Glvez, comearam a descarregar a temvel mercadoria. A dinamite foi depositada no sto. Aquele acontecimento modificou completamente o clima da circular. Muitos especulavam sobre o porqu daqueles explosivos. Alguns achavam que os haviam levado para l a fim de que ficassem num lugar seguro, ao abrigo de ataques como o daquela manh, pois os avies no bombardeariam as circulares, sabendo que ns estvamos nelas. Ao entardecer chegaram as primeiras informaes atravs do radinho clandestino. Combatia-se no lodaal de Zapata, na Baa dos Porcos, desde muito cedo. As notcias eram muito otimistas e a euforia dos presidirios no teve limites. Houve os que gritavam de pleno peito, pulavam e abraavam os amigos, invadidos por uma alegria que s podem imaginar os homens que estiveram em uma situao como a nossa. Os comunicados da imprensa internacional continuavam chegando at ns. Os companheiros que manipulavam o radinho no descansavam: quase no dormiram durante dois dias. De madrugada a Rdio Swan, emissora que transmitia para Cuba, lanou uma mensagem pedindo a ajuda da resistncia interna em apoio invaso. "Povo de Havana: ateno, povo de Havana. Devem cooperar com os valentes patriotas do exrcito de libertao. As usinas eltricas no devem fornecer energia para as poucas indstrias que o regime tenta manter funcionando. Hoje, s 7h45min, quando dermos o sinal por esta emissora,todas as luzes de todas as casas devem ser acesas, todos os aparelhos eltricos devem ser ligados para que haja uma sobrecarga nos geradores da usina eltrica". Outras notcias diziam que as foras invasoras, arrasando tudo sua passagem, aproximavam-se triunfantes de Havana. Era mentira e a invaso tinha sido derrotada. Castro, o mesmo homem que declarara mil vezes que no era comunista, que a revoluo era mais verde do que as palmeiras, arrancava a mscara com que havia enganado a todos e proclamava a verdadeira natureza da revoluo, que ela sempre tivera. - Esta uma revoluo socialista... - disse - e ns a defenderemos com estes fuzis - e terminava com uma linguagem inconfundivelmente comunista: - Viva a classe operria! Vivam os camponeses! Vivam os humildes! Viva a revoluo socialista! Ptria ou morte, venceremos! Durante seu discurso, a claque o interrompia para gritar as palavras de ordem fornecidas pelo Partido: "Fidel, Kruschov, estamos com os dois!" Era 16 de abril de 1961, no cemitrio de Colombo, na cidade de Havana, e enquanto Castro despachava o fretro dos mortos nos bombardeios do dia 15, pela porta dos fundos, em silncio, sem flores, coroas, familiares ou amigos para pronunciar palavras de despedida, seis cadveres de cubanos, fuzilados na priso de La Cabaa, chegaram e foram enterrados em vala comum. Desde o primeiro ataque, no dia 15, quando os B-26 bombardearam aeroportos em diversos lugares da ilha, o Governo desencadeou uma feroz represso contra todos que eram considerados no-simpatizantes do regime. Cerca de quinhentas mil pessoas foram detidas em todo o pas. Padres, operrios, velhos e mulheres, militares e estudantes foram confinados em teatros, estdios, edifcios pblicos, quartis, escolas, etc., porque os presdios estavam abarrotados.

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No ptio de La Cabaa, intemprie, chacinaram centenas de pessoas, inclusive algumas mulheres com crianas. Tambm nos pores, que rodearam de metralhadoras; deixaram livre apenas o poro onde havia o paredo para os fuzilamentos. Aquela redada s cegas levou priso centenas de cubanos que conspiravam, alguns infiltrados e que, uma vez identificados, foram imediatamente fuzilados, sem qualquer julgamento; e tambm a funcionrios do Governo, como a vrios diretores do Banco Nacional, elite marxista, que foram detidos enquanto comiam num restaurante e passaram dois dias presos. Nos pores do Castelo do Morro milhares de pessoas passaram dois dias sem gua, nem alimento. Ao fim desse tempo, encharcaram-nos com uma mangueira, para que acalmassem a sede. Dezenas de pessoas morreram naquelas chacinas; houve mulheres grvidas que abortaram e outras que deram luz ali mesmo, no cho, assistidas pelas outras mulheres. Os guardas ameaavam todo mundo com metralhamento, se a invaso triunfasse. O teatro Blanquita, o maior de Cuba, transformou-se em um gigantesco presdio que abrigou oito mil pessoas. Durante cinco dias, os que estavam concentrados l receberam alimento apenas em quatro ocasies. O Palcio dos Esportes alojou outros milhares. Uma noite, os milicianos comearam a gritar que todos se deitassem no cho e, para se divertirem, dispararam as submetralhadoras, com um saldo de vrios feridos. A perseguio e a represso desencadearam-se de forma aniquilante. Todo cidado era um inimigo em potencial. Se no estivesse nas foras armadas ou na milcia, ou se no pudesse provar sua militncia revolucionria, era detido. Jorge Rodriguez e Jesus Casais, jovens revolucionrios que haviam lutado por uma verdadeira democracia, caram abatidos por membros da Polcia Poltica, em plena rua, diante de vrias testemunhas que certificaram que seus agressores nem sequer demonstraram inteno de prend-los. Marcial Arufe e sua esposa Digna, recm-casados, passavam a lua-de-mel em um apartamento no bairro de Luyan, em Havana. A Polcia Poltica bateu porta e, quando a abriram, metralharam-nos. No h dados de quantos foram fuzilados naqueles dias em toda a ilha; mas os pelotes de execuo funcionaram no regimento de Pinar del Ra; na base de San Antonio de los Baos; no Morro; em La Cabaa; no castelo de San Severino, em Matanzas; em La Campana; em Camaguey e no Oriente. Desta vez nem sequer puseram os cadveres em caixes: despiam-nos e enfiavam-nos em sacos de nilon, enterrando-os assim. No cemitrio de Colombo, em Havana, um oficial da Polcia Poltica e dois soldados, em uma perua VW branca, recebiam os cadveres e transportavam-nos para uma rea sob controle militar,onde eram atirados em uma vala comum. Juan Hernndez, um daqueles militares, depois foi preso, acusado de conspirao e contou-nos tudo com detalhes. Encorajados pelo triunfo, os "chefes" da priso caram em cima de ns; a represso tornou-se mais violenta e nos comunicaram oficialmente que a dinamite ficaria colocada nos alicerces para nos fazer voar pelos ares se houvesse outra tentativa de invaso.

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11. Preparativos de fuga

Logo depois do fracasso da Baa dos Porcos, Boitel, Ulisses e eu analisamos a situao poltica e conclumos que, por muitos e longos anos, a revoluo iria permanecer no poder. Diante dessa perspectiva s havia uma sada: tentar fugir. Desde que concebemos a idia de fugir, nossos crebros ocuparam-se com esse tema durante quase todas as horas do dia. Cada um por seu lado pensava, analisava, considerava como devamos fazer. Na fase dos estudos, eu fui o encarregado de levantar um mapa dos arredores. Devia situar nele, com a mxima exatido possvel, os caminhos, elevaes, postos, enfim, tudo quanto pudesse interessar no momento da fuga. Apesar de que no quinto andar cobria-se com a vista muitos quilmetros ao redor, conseguimos com Tasi, um preso que tinha sido o acompanhante dos filhos de Batista quando viajavam para o estrangeiro, um pequeno binculo fabricado ali mesmo com umas lentes entradas clandestinamente. Com sua ajuda, os objetos ficavam um pouco mais prximos e eu passava muitas horas do dia e da noite em atenta observao. Aos poucos o mapa ia adquirindo novos detalhes: os pequenos acampamentos de milicianos a noroeste, a guarda cossaca do outro lado do cordo, entre os pinheiros, e que s pudemos descobrir pelos cigarros que acendiam noite. Alm disso, ia me familiarizando com todo o movimento da guarnio. Conseguimos que o gradeiro, autorizado a usar relgio, nos emprestasse o dele. Foi uma grande ajuda. Podia, ento, calcular quanto um soldado demorava para ir do quartelzinho at o ltimo posto que se via, ou at uma casa, situada a leste, alm do pequeno bosque de pinheiros, onde se escondia outra cabaninha de guardas. Essa casa foi importante; tanto que, graas a ela, pudemos escapar da priso. Era l que lavavam e passavam os uniformes dos guardas. Podia-se ver as roupas verde-oliva agitando-se ao vento. essa altura, a Direo-Geral dos Crceres e Presdios, como um ato de "generosidade", decidiu conceder-nos duas visitas por ano, uma no ms de junho e outra em setembro. Aquilo foi um verdadeiro acontecimento no presdio. Para ns e para os planos de fuga, principalmente, uma bno. Tnhamos decidido fugir disfarados de milicianos: cala verde-oliva, camisa azul, boina preta, cinturo militar tambm verde-oliva e botas pretas. Por que de milicianos? Porque eram os que entravam e saam constantemente, porque eram numerosos nos acampamentos de milcias e era mais fcil confundir-se com eles do que com os soldados da guarnio regular. A informao de que precisvamos ia chegando por intermdio dos presos comuns. Boitel era quem cuidava desses contatos.Ulisses, dos uniformes. Eu, da vigilncia e de outros detalhes.

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Conosco iria um quarto homem, Benjamin Brito, que seria o guia e o prtico. Brito era marinheiro, experiente em tudo que diz respeito ao mar, e conhecia os mangues da ilha, j que tinha se dedicado caa de jacars naquela regio. Os presos comuns conseguiram para ns um mapa da Ilha de Pinos, com bastante detalhes: curvas de nvel, rios, riachos e tambm as regies pantanosas. Os alambrados tinham uma vigilncia impossvel de burlar. A cada cinqenta metros havia uma guarita provida de holofotes e um sentinela armado com fuzil. As dos extremos, na frente e no fundo, eram mais altas e tinham metralhadoras. As cercas de tela de ao foram restauradas em 1960. Erigiam-se sobre profundos alicerces de concreto, onde estavam chumbadas, rematadas por peas de metal em forma de V pelas quais passavam dez ou dize linhas de arame farpado. Depois das seis da tarde, um jipe dava voltas ininterruptamente ao redor do presdio, andando perto do alambrado, enquanto outro jipe fazia a mesma coisa por dentro dele Neste nterim, conseguimos lentes para fazer um binculo mais potente. Fabricamos os tubos com papelo, que colamos com uma pasta feita de macarro. Tingimos os tubos por dentro com fuligem e fumaa, proporcionados pelo querosene que de vez em quando os gradeiros conseguiam com os guardas para matar percevejos. O binculo era desmontvel e eu tinha o cuidado de mant-lo sempre desmontado quando no estava em uso. Suas lentes eram mais poderosas e permitiam uma viso muito mais ampla. Esconder as lentes era fcil: cada vez que terminava de usar o binculo, jogava-as no balde de gua: mesmo que houvesse uma revista, por mais que os guardas olhassem no as veriam. Precisvamos de camisas de milicianos e boinas. As calas cqui, cor do antigo exrcito, que eram do nosso uniforme de presos,podiam ser tingidas de verde-oliva. Muitas dessas calas, pelo uso e lavagem constantes, j no tinham mais a letra P. Os cintos militares tambm faziam parte do nosso uniforme. Tnhamos as botas. Precisvamos, tambm, de folhas de serra para cortar os barrotes, dinheiro cubano e americano, instrumental de primeiros socorros, facas de mato, tabletes para purificar gua e mil coisas mais. Por fim, chegou o dia da visita. Mil e duzentos prisioneiros que ramos, receberamos nossos familiares ao mesmo tempo e no mesmo lugar: no "curral" de mil metros quadrados, com a alta cerca de alambrado. Boitel, Ulisses e eu preparamos trs bilhetes minsculos, os trs iguais, para tentar que pelo menos um escapasse da revista. Nesses bilhetes, pedamos aos contatos de fora o que precisvamos para a fuga e explicvamos de que modo mandar as coisas; alm disso, pedamos que providenciassem para que um barco nos apanhasse no mar em lugar,hora e dia marcados, coisa que poderamos confirmar na visita seguinte. Pedamos resposta. Os bilhetes estavam em cdigo e diramos o modo de decifr-lo pessoalmente,durante a visita, pessoa encarregada deles. Era apenas uma palavra de cinco letras, que no esqueci porque era o sobrenome do Mestre, do Apstolo da Independncia cubana: MARTI. s sete da manh o peloto de guardas que nos revistaria para sairmos e recebermos a visita chegou ao ptio. Era preciso ficar completamente nu. Ento, os guardas revistavam as roupas, costura por costura,assim como as barras das calas, os forros duplos das braguilhas... Enfiavam a mo nos sapatos,procurando um bilhete, um papelzinho qualquer. Faziam o mesmo com as meias. Ordenavam que levantssemos os braos para revistarem as axilas. Como nos chamavam por ordem alfabtica, alm de

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pelo nmero de preso, Boitel havia sido um dos primeiros e tinha passado sem problemas. Quando o guarda entregou-me as roupas de volta, senti um enorme alvio. A revista, mas no o suficiente: os bilhetes tinham sido presos com esparadrapo atrs dos testculos. Quando todos os presos estavam no curral, situaram guardas em cada canto, por fora, armados de fuzis. Todos olhvamos para o porto por onde iam entrar nossos familiares, que desde a noite anterior esperavam diante do presdio, intemprie, atirados na beira da estrada, debaixo de rvores,fazendo suas necessidades fisiolgicas entre os arbustos que cresciam dos lados. Abriram a porta e nos amontoamos, esperando a entrada de nossos parentes. Os que j haviam percebido os seus, gritavam e agitavam as mos. Ao entrar, as cenas foram dolorosas,dramticas: as mulheres abraava-se aos presos, chorando, as crianas tambm. Minha me e minha irm chegaram nos primeiros grupos. Era proibido os homens entrarem no curra, tinham que ficar do lado de fora, por trs da cerca. L estava meu pai, sob o sol implacvel que no ms de junho, em pleno trpico, esgota at a extenuao. A visita terminou s trs da tarde. As famlias no podiam ir embora imediatamente; ficavam retidas dentro da priso at que nos contassem e tivessem certeza de que ningum tinha fugido. Depois de todos sarem contara-nos e, de volta circular, novamente tivemos que ficar nus. No comeo a maioria tinha um ar de nostalgia, estvamos cabisbaixos. No entanto, depois que estvamos l dentro, reunamo-nos, em grupo de amigos, comentando a visita, os acontecimentos familiares e polticos, os boatos. Falvamos das ltimas notcias, que chegaram com as visitas, sobre a situao das prises da ilha. De repente, e vindo de cima, um vulto passou diante de ns, muito perto. Com estrpito, chocou-se contra o cho, no trreo. Jamais esquecerei o barulho feito pela cabea, ao rebentar contra o cimento. O homem caiu de barriga para baixo. Estava com o rosto de lado e uma perna encolhida. A massa enceflica flua lentamente de seu nariz. Jess Lpez Cuevas tinha se matado atirando-se do quarto andar. Sabamos que, se falhssemos na tentativa de fuga, a conseqncia seria a morte, mas continuamos os preparativos. Tnhamos dado instrues aos nossos familiares para que enviassem dinheiro a um endereo que tnhamos combinado com nosso contato, o preso comum que nos ajudava. Pedimos tambm fotos para documentos. Duas semanas depois da visita, nosso amigo fazia chegar s nossas mos, pela via estabelecida, atravs da janela, quatro flamantes carteirinhas de milicianos, com nossas fotos. Segundo aqueles documentos, cada um de ns pertencia a uma das companhias de milicianos prximas do presdio. E os nomes nas carteirinhas no eram inventados: existiam de verdade. Eu me chamava Braulio Barcel e pertencia ao batalho 830, acantonado em "Los Mangos", um acampamento prximo. Assim, caso fosse detido em algum lugar da ilha e se comunicassem com "meu batalho" perguntando pelo nome da carteirinha, de fato esse miliciano pertencia quela unidade militar. Um amigo muito habilidoso na fabricao de facas fez quatro para ns, com cabos de madeira, muito bem-acabadas; fabricou-as com a lmina de um faco. Pouco a pouco amos conseguindo o que era necessrio. Continuava minhas observaes com o binculo. Cheguei at a me familiarizar com as caras dos soldados das guaritas e dos que montavam guarda diante do quartel, que via como se estivessem a um palmo dos meus olhos.

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Para escolher a cela da qual deveramos fugir, fizemos um estudo da localizao ideal e verificamos que a 64 era a que nos oferecia maior segurana de no sermos vistos. Era justamente a nossa, s que estava no segundo andar, e precisvamos estar no primeiro. No devia ser nenhuma outra, uma vez que tanto da 63 quanto da 65 seramos vistos da guarita do fundo, ao oeste, e pelo posto situado diante do quartelzinho. Em meados de agosto chegou um grosso colcho para Boitel. Um colcho inofensivo, aparentemente bem revistado. Os colches,em Cuba, tinham todos ao redor uma borda de uns trs centmetros de dimetro: dentro dela estavam quatro camisas de milicianos. Haviam-nas preparado esticando-as, torcendo-as e enrolando sobre elas um fio de barbante, de maneira que ficassem como um tubo. Colocaram-na na borda do colcho, enroladas em uma fina camada de algodo, duas em cima, duas embaixo. Carmem Jimnez, a namorada de Boitel, havia ido ilha a fim de observar que tipo de revista faziam nos colches, pois a verificao era feita diante dos familiares, para responsabiliz-los, caso tentassem fazer passar algo proibido. Ela presenciou trs ou quatro revistas. Assim, notou que havia apenas um local que no o revistavam: a grossa beirada do colcho. Com essa informao, voltou para Havana e preparou o colcho em casa de amigos. Ela mesma levou-o ao presdio. Se tivessem descoberto, Carmen acabaria na cadeia. S faltava tingir as calas e os cintos. As boinas e as serrilhas tinham entrado do mesmo modo. Tivemos sorte, pois aquela foi a ltima vez que permitiram a entrada de colches. Comeamos um treinamento de marcha, para adquirir resistncia. Calculamos a circunferncia dos andares e todos os dias andvamos por eles dezenas de vezes, do quinto ao primeiro, do primeiro ao quinto, aumentando a cada trs dias o nmero de voltas e a velocidade. Muitos presos faziam isso como exerccio, de maneira que no despertvamos suspeitas. Chegamos a caminhar vinte e cinco quilmetros por dia. Outro detalhe que poderia chamar a ateno era a falta de sol na nossa pele, plida pelos meses de priso. Precisvamos adquirir o tom moreno dos milicianos Essa foi uma tarefa tremenda. Caando o sol pelas janelas das celas e expondo nossos rostos aos raios que entravam pelas grades, fomos nos amorenando um pouco. Em um saquinho plstico, costurado dentro de um saquinho de nilon maior, cheio de farinha de milho, escondemos os comprimidos para esterilizar gua.

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12. Martha debaixo da chuva

Todas as noites, nesses minutos que antecedem ao sono, pensava em minha famlia e me recomendava a Deus, pedindo-lhe que fortalecesse minha f e me permitisse manter o firme propsito que fizera de no deixar que os carcereiros me esmagassem espiritualmente, que no envilecessem minha alma semeando nela o dio e o rancor. Minha preocupao, em todo momento,era no afundar no desalento, nem no desespero, que tanto mal faziam a todos que estavam ali. Em minhas conversas com Deus, na solido daqueles minutos, ia encontrando o cimento de uma f que com o passar dos anos seria submetida a titnicas provas de resistncia, das quais sairia vitoriosa. Uma atitude de confiana diante de toda circunstncia difcil transformou-se, em mim, num instrumento de combate. Mais de vinte anos depois, os coronis da Polcia Poltica teriam que comentar,com odiosa inveja, que eu sempre estava rindo. Tiraram-me o espao, a luz, o ar, mas no puderam me tirar o sorriso. Eu considerava isso um triunfo do amor sobre o dio. Os dias passavam lentos para minha ansiedade. As revistas eram freqentes e as medidas repressivas iam aumentando. O tenente Julio Tarrau, diretor do presdio, estabeleceu um regime de terror. Esse homem, mestio, militante nas fileiras do Partido Comunista desde os anos quarenta, no perdia ocasio de exercer seu dio sobre os prisioneiros polticos. Foi Tarrau que nomeou chefe da Ordem Interior o tenente Bernardo Diaz, um velho camarada do Partido. O 5 de setembro amanheceu cinzento e chuvoso. Uma das tpicas perturbaes ciclnicas do Caribe aproximava-se de Cuba; nos dias anteriores sua chegada as chuvaradas e o vento tinham sido freqentes. Para ns a visita desse dia seria transcendental; para mim muito mais, pois se bem que ainda no soubesse, era nela que viria a conhecer minha futura esposa. E precisamente esse contato, mais do que o outro que espervamos, seria o que me tiraria do crcere, vinte anos depois... Mais ou menos s nove horas avistaram-se os primeiros grupos de visitantes Duas horas mais tarde a maior parte dos familiares j estava dentro do curral; mas os meus e os de outros prisioneiros no apareciam. Saberamos depois que dois dias antes, quando estavam a bordo do barco que os levaria do porto de Bataban, na costa sul de Cuba, at a ilha, foram obrigados a descer para que o barco transportasse um contingente de milicianos e armamentos.

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Assaltava-me o pressentimento de que no iria ter visita. Perambulava pelo curra com essa preocupao quando Benito Lopez, um comerciante detido unicamente por ter se manifestado contra o comunismo, chamou-me para apresentar-me famlia dele: - Olhem, este Armando. Ele agiu com um filho, comigo. Agradeceram-me com emoo. Tinham vindo v-lo a esposa e a filha mais nova, Martha. Diante de meus olhos estava uma linda garota de uns quinze anos, alta, elegante, de maneiras finas, com rosto infantil e meigo. Seus olhos refletiam uma vontade firme, misto de ternura e coragem. Acho que foi isso que mais me impressionou nela. Perguntei-lhes se sabiam alguma coisa dos familiares descidos do barco, dois dias antes. Responderam-me que haviam dito que eles seriam trazidos de qualquer maneira e me convidaram para ficar com eles at que meus pais e minha irm chegassem. O cu escureceu a leste e apareceram grandes nuvens. Comeou a chover com um mpeto tremendo. Cerca de seis mil pessoas debaixo da chuva. Coloquei-me de frente para Martha, de costas para o vento, para que as rajadas frias e molhadas no a atingissem diretamente; era tudo que podia fazer. Em alguns minutos estvamos todos empapados at os ossos. Depois de mil pedidos e argumentaes conseguimos que a direo permitisse s mulheres atravessarem a rua para ir abrigar-se no refeitrio, que tinha capacidade par quase seis mil comensais. Abriram o curral e os visitantes comearam a sair. A chuva no parava. A caravana de familiares, tentando proteger os pacotinhos em que levavam algo para almoar, foi entrando no refeitrio. Fui com Benito e sua famlia. Martha e eu nos sentamos um diante do outro, em uma mesa estreita. Tirei as botas, virei-as e a gua saiu delas aos borbotes. Ela estava com os cabelos escorrendo, usava um vestidinho claro que, molhado, grudava-se ao corpo. Eu a achava radiantemente bela; no se maquilava e era a primeira vez que a tinham deixado arrumar as sobrancelhas. Convidaram-me a comer. Quando mastigava a comida, soltava gua. Minha conversa com Martha naquele dia do nosso primeiro encontro foi trivial, mas inesquecvel para os dois. Uma simpatia mtua fez com que em algumas horas nos sentssemos como se tivssemos sido amigos a vida toda. Ela estava com quatorze anos e eu, com vinte e quatro; justamente me atraia sua juventude quase infantil. Iniciamos uma conversa com assuntos gerais, eu procurando informaes sobre suas atividades, gostos. Lembro que cruzou os braos sobre a mesa e inclinou a cabea sobre eles. Assim ficava mais cmoda e o cansao da viagem, as quarenta e oito horas sem dormir fizeram o resto; adormeceu enquanto seu admirador e futuro marido falava com ela... Levantei-me com cuidado e me aproximei de uma das janelas com grades, pelas quais o ar entrava, para tentar secar um pouco a roupa. Mas acabei tiritando de frio. Voltei para a mesa. Minha linda amiga ainda dormia e fiquei a contempl-la. Senti uma grande ternura enquanto o fazia, uma ternura que jamais tinha experimentado. Deus sbio em seus desgnios e s vezes emprega os meios mais insuspeitados para que dois seres se encontrem e unam suas almas. Se minha famlia tivesse chegado com os primeiros visitantes, se no tivesse sido obrigada a sair do barco, talvez Martha e eu no nos tivssemos conhecido. Se ento algum nos tivesse dito, a Martha, minha famlia, a mim, que anos depois todos nos alegraramos com o que havia acontecido, simplesmente no o teramos entendido. Quando Martha acordou ficou sem jeito e pediu-me desculpas Rimos juntos e nossa nascente amizade tambm sorriu, feliz.

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Meia hora antes de terminar a visita, minha me e minha irm,com outros parentes, chegaram ao refeitrio. No lhes permitiram passar com o pacote que me traziam. Eles as haviam feito descer do barco, eles as tinham impedido de chegar cedo e, agora, diziam-lhe que estavam atrasadas demais para a visita. Tivemos apenas alguns minutos para conversar. Fizeram, tambm, uma viagem terrvel, na coberta do barco o tempo todo, debaixo da chuva. Quando aquele militar subiu a uma das mesas e comeou a gritar que todos fizessem silncio, eu sabia o que isso significava: - Acabou-se a visita! Saindoooo!

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13. A fuga

De volta, Ulisses, Boitel e eu reunimo-nos na minha cela. Tudo estava correndo bem. Um homem, mandado pelos que enviariam o barco, havia entrado com os visitantes. Boitel falara com ele por alguns minutos, atravs da cerca. Queria saber como pensvamos sair dali, porque eles achavam impossvel. Boitel disse-lhe que tnhamos um plano e que tentaramos realiz-lo, mas que no podia dar os detalhes. Ficou combinado que uma embarcao nos apanharia na embocadura do rio Jcaro, muitos quilmetros a sudeste do presdio, no dia 21 de outubro, uma da madrugada. Ns a esperaramos dois dias seguidos. Combinamos os sinais para identificar o barco. Saber que nossos planos de fuga iam se firmando encheu-nos de alegria. Agora no nos interessavam as dezenas de notcias e boatos que os visitantes tinham trazido. Em menos de dois meses iramos tentar recuperar nossa liberdade por meios prprios. Esse pensamento j me fazia sentir fora daquelas grades. Enquanto um homem pensa em sua liberdade e luta para consegui-la, mesmo que tenha correntes nos ps e nos braos, no se sente escravo. Claro que no. Jamais abandonamos a observao. Ns quatro devamos nos familiarizar com os arredores. Tnhamos que conhecer a movimentao do quartelzinho, os postos, o percurso das patrulhas. Graas contnua observao, semanas depois seramos capazes de fazer o caminho escolhido at de olhos fechados. O caminho que levava at o barraco onde eram lavados e passados os uniformes dos soldados, ia ser nosso primeiro lance. Para chamar o menos possvel a ateno, nosso destino seria o barraco. No despertaramos suspeitas porque todo mundo ia a ele. Ao lado do quartelzinho, onde comeava o caminho da terra avermelhada, batida, havia uma porta pequena; o guarda de sentinela entrada do quartel mantinha-se a uns dez metros dela. Jamais passavam veculos por essa entrada: servia apenas para a passagem de militares e milicianos. Na verdade, aquela sada era muito til.. Um dia, a ausncia total de milicianos no penal chamou a ateno de Ulisses. De fato, no se viu um s naquele dia, nem no seguinte. No demoramos a saber o motivo: eles tinham sido proibidos de entrar no presdio. A ordem de no permitir a entrada dos milicianos na circular obedecia a motivos de segurana. A Polcia Poltica sabia perfeitamente que nem todos os milicianos simpatizavam com o regime e que em suas fileiras, alm dos no-simpatizantes, havia contra-revolucionrios. A entrada macia de milicianos no presdio podia prestar-se ao estabelecimento de contato como os presos, para que recebessem informaes e at para facilitar possveis evases. A notcia foi um impacto para ns. Fazer as quatro camisas e boinas de milicianos entrarem no crcere, para nos disfararmos, tinha sido um trabalho colossal. Que fazer

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agora? Restava apenas uma soluo: tingir tambm as camisas de verde-oliva e tentarmos passar por soldados. Para isso era preciso fabricar imediatamente os quatro quepes, coisa que no era muito difcil, porque o exrcito usava quepes de campanha. Tnhamos entre ns alfaiates, seleiros, enfim, homens de todos os ofcios que existem. Os quepes, indispensveis, no seriam problema. Nosso nimo e esprito de luta no decaram por isso. Desfeito o plano de fugir como milicianos, concentramos todos os nossos esforos em evadir-nos disfarados de guardas. Por sorte as pastilhas de tinta eram o suficiente. Um dia eu estava de vigia quando vi algo que fez minha alma cair at os ps: a portinha por onde pensvamos fugir estava sendo selada. Abriram uns buracos, colocaram umas barras de metal e uma tela de ao, como a que cercava o terreno ao redor do presdio. A porta desapareceu e, com ela, nossa possibilidade de fuga. Chamei os outros para comunicar a terrvel notcia. Agora, sim, o desafio era mais do que difcil. Apesar disso, decidimos continuar observando, em busca de alguma soluo. O quartelzinho tinha ao seu redor uma cerca com moures de um metro e meio de altura e vrios fios de arame. Os soldados estendiam roupas de baixo e meias nesses arames, para que secassem. Continuavam levando os uniformes para o barraco. E no se importaram por terem selado a portinha. Simplesmente inauguraram outro caminho: levantavam os arames da cerca e passavam para o outro lado. Assim eles estabeleceram nossa nova rota.Se quisssemos fugir, teramos que fazer como eles. Acho que nenhum plano de fuga teve mais inconvenientes para vencer, nem mais interrupes, do que o nosso. Os militares continuavam reforando seu sistema de defesa. Limparam o terreno atrs do quartel; com patrolas, arrancaram rvores e arbustos, deixando mais de cem metros to lisos quanto uma pista para pouso de avies. Ao mesmo tempo, ergueram mais um alambrado com mais de trs metros de altura para reforar a fraca cerca interior. Colocaram na nova cerca um fio de arame farpado a cada dez centmetro. Se o quartel fosse atacado pelo exterior, sua tomada seria muito difcil. Aquele alambrado pareceu sepultar definitivamente nossas esperanas de escapar. Agora sim, estvamos desolados. Esquadrinhamos com ansiedade tudo que ficava ao alcance dos nossos olhos procurando um lugar, um canto, uma possibilidade de fuga. E no podia ser depois da data marcada para nos apanharem na costa. Na manh sem que vrios guardas, com picaretas e ps, comearam uma escavao junto do alambrado, eu estava de vigia. O que seria aquilo? No os perdi de vista, com o binculo, nem um segundo. J tinham feito um buraco em que cabiam at os joelhos, mas continuavam cavando; a terra retirada amontoava-se devagar. Tratava-se de uma trincheira que passava por baixo do alambrado. Quando o trabalho terminou, trouxeram uma metralhadora e colocaram-na na trincheira; puseram tambm, sobre o telhado do quartel, um holofote fixo, que podia ser aceso de baixo e que iluminava o terreno limpo, ao fundo. O guarda que cuidava da metralhadora fazia-o da parte de trs do quartelzinho, a uns cinco metros, sentado em um tamborete encostado parede. De novo aquele barraco de camponeses, ao qual os guardas levavam os uniformes para lavar e passar, ajudou-nos. A trincheira passou a ser usada com porta de sada e entrada. Sentimos uma enorme alegria quando vimos que os soldados iam e vinham atravs dela, para levar ou trazer seus uniformes.

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Restavam-nos poucos dias, por isso apressamos os preparativos. Boitel tirou do colcho os pedaos de serrinha para cortar os barrotes. Ulisses tratou de tingir os quepes que,entre parnteses, ficaram melhores do que os usados pelos guardas. Como Carrin no ia conosco, fizemos com que mudasse de lugar com Brito, porque se ele ficasse na cela onde se desse a fuga, as represlias que cairiam sobre ele seriam terrveis. Para cortar as barras da janela Boitel e eu tnhamos que tomar muito cuidado.Naquela poca permitiam que se pendurasse roupas nas grades, para secarem, at s cinco da tarde. Colocando uma toalha para secar, ficvamos protegidos dos olhares do exterior. Quando algum se aproximava, parvamos de serrar. Para nos precavermos da eventual subida de algum guarda torre, baixvamos as camas e estendamos uma toalha presa pelas pontas, enquanto Carrin ficava no estreito corredor, no apenas para obstruir a viso dos guardas, mas tambm de indiscretos da circular, pois sabamos que existiam delatores que se vissem alguma coisa iriam denunciar guarnio. Precisvamos cortar trs barrotes. No terminvamos de serr-los completamente; deixvamos dois pontos de unio que, quando chegasse a hora, eliminaramos em alguns minutos. Fabricamos seis peas, com pratos de alumnio, que seriam usadas, depois da fuga, para tornar a firmar os barrotes no lugar. Eram umas plaquinhas que uniriam os ferros cortados, aos que ficavam chumbados ao cimento. Seriam presos com arame e como as plaquinhas haviam sido pintadas da mesma cor das grades, no se perceberia nada l de baixo. No podamos deixar o buraco na janela, pois a sentinela perceberia, daria o alarme e no teramos tempo nem de chegar ao quartelzinho. Inclumos em nossa equipagem mosquiteiros verde-oliva para cobrirmos a cabea, porque os mosquitos das regies pantanosas so capazes de enlouquecer qualquer um, luvas pretas e, embaixo da camisa, coletes com vrios bolsinhos, onde levaramos os comprimidos para esterilizar gua, barras de chocolate, remdios de urgncia, navalha para barba, fsforos em embalagens seladas, prova de gua, um espelhinho para sinais, etc. No iramos ter dificuldades com a orientao, pois tnhamos estudado os mapas, e embora a fuga fosse ocorrer durante a noite, achvamos que no iramos nos perder, se bem que para nos guiar tivssemos apenas uma dessas bssolas pequeninas, que so enfeites de chaveiros. Mas eu conhecia bastante sobre constelaes e Brito tambm, que de ns era quem tinha melhor senso de orientao, por ter passado a vida toda navegando. Boitel continuava obcecado pela idia de chegar Conferncia de Punta del Este.

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14. Destruir um mito

Tnhamos um grupo valioso de amigos cuja colaborao foi utilssima; sem ela no teramos podido fugir. Era preciso colocar vigias na hora de fugirmos a fim de termos certeza de que nenhum veculo estava se aproximando da circular. Portanto, trs dos nossos companheiros, espalhados pelos andares, iam se encarregar dessa observao. Ulisses mandou preparar uma corda pela qual deslizaramos da janela at o cho. Fabricvamos cordas com os fios de aniagem de sacos desmanchados. Uniam-se dez ou doze desses fios para conseguir uma fibra grossa. Depois, fazia-se a corda tranando quatro ou cinco fibras. Os uniformes j estavam tingidos e passados,os quepes eram impecveis. Amanheceu nosso dia: 21 de outubro de 1961. Houve visita na circular 3. Logo depois da chamada da tarde, comeamos os preparativos. Se tudo desse certo, teramos tempo at a chamada do dia seguinte, ao amanhecer, quando seria descoberta nossa fuga. A partir do momento em que ns quatro entramos na cela, tudo foi feito com rigor cronomtrico. Vestimo-nos: os coletes, as tiras de borracha com as facas, cigarros, fsforos nos bolsos, dinheiro cubano e dlares, que eu levava numa carteira velha, as carteirinhas de identificao... Comea a entardecer, a sentinela que dava voltas ao redor da circular j havia chegado e tinha feito uma ronda; fumava e o cachorro andava a seu lado. Com um pedao de pano umedecido em querosene esfregamos as axilas e os genitais, a fim de desorientar os ces. Os primeiros a saltar seriam Brito e Ulisses. Brito saiu pela janela e deslizou com rapidez; atrs dele seguiu Ulisses, depois Boitel. Mas nesse momento apagaram-se as luzes; falta de energia geral. Eu no sabia, mas a corda se havia destranado na vez de Boitel, o que o obrigou a se deixar cair; bateu no cho com fora, fraturando os ossos do calcanhar. Quando saltei, a corda no tinha espessura suficiente; fui dar uma braada, rpida, e fiquei com fiapos nas mos. Precipitei-me no vazio e ca sobre um monte de escombros. Senti uma dor horrvel no p direito, mas me levantei instantaneamente. Nos momentos de perigo o homem capaz de fazer coisas incrveis, de superar dores e limitaes fsicas. como se a mente, ocupada apenas com um objetivo, bloqueasse todas as outras sensaes. Depois, eu saberia que na queda tinha fraturado o calcanhar, o escafide, o primeiro cuneiforme e que o astrgalo, pressionado pelos outros ossos, havia se deslocado de seu lugar. No entanto, andei normalmente, sem mancar, e me uni a Boitel que, acendendo um cigarro, esperava-me junto da estradinha. Samos andando.

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No tnhamos tido tempo de dizer sequer uma palavra, quando saiu do hospital o sargento Pitanguilla,o que fazia as chamadas; tinha pendurada ao ombro uma submetralhadora tcheca. Brito e Ulisses, que andavam uns quarenta metros adiante, iam cruzar com ele. Quando passaram, o sargento parou, virou a cabea com ar perplexo, como se no se lembrasse daquelas caras. Foram momentos de tenso indescritvel. Boitel e eu, que nos aproximvamos do sargento, erguemos a voz, conversando: - Olha s a pressa do gordo, nem espera a gente! Est louco para voltar a Havana. Se o capito Kindeln estivesse aqui, podamos ir amanh cedinho. O sargento escutou minhas palavras, que respondiam perfeitamente s perguntas que devia estar fazendo a si mesmo. No os conhecia porque eram de Havana e estavam ali para falar com o capito Kindeln, chefe da guarnio. Sem dvida sua mente simplista estava satisfeita com minhas justificaes. Quando passamos ao lado dele, Boitel e eu conversvamos com naturalidade. Quando estvamos lado a lado eu cumprimentei: - Como que , sargento? - Tudo bem, filho... A noite chegou de repente, sem qualquer outro aviso seno aquela penumbra que d lugar escurido total. Enquanto andvamos na direo do quartel, acenderam-se os holofotes de rastreio. Nosso plano era rodear o edifcio militar pelos ptios laterais, como faziam os guardas que iam buscar roupas de baixo e meias na cerca ou se dirigiam casinha que lhes servia de tinturaria. Tnhamos que sair pela trincheira, onde estava a metralhadora, avanar para a direita, rumo aos arbustos junto ao terreno roado. Aqueles minutos seriam decisivos, pois bastaria que o guarda da metralhadora acendesse o holofote fixo no telhado para que descobrisse nossa fuga; mas em nossas observaes havamos comprovado que ele s fazia isso com a noite bem adiantada. Vimos Ulisses e Brito entrarem no jardim do quartelizinho como se fosse a casa deles. A sentinela estava esquerda. Eles dobraram direita e ns os perdemos de vista; j havia sombras e obscuridade. O p me doa horrivelmente, mas eu sabia que no podia mancar em um passo sequer: isso seria fatal. Boitel e eu j estvamos diante do pequeno jardim, sempre conversando em tom normal, tentando dar a maior naturalidade possvel s nossas presenas. O guarda, que ultrapassamos uns quinze metros, no notou nada de estranho: ramos mais dois entre os muitos guardas que entravam e saam. Tambm viramos direita. Uma porta aberta, ampla, dava para os chuveiros. Um guarda ao qual os companheiros tinham apelidado de El Chino, e que costumava fazer sentinela em nossa circular, estava tomando banho. Boite gritou para ele: - Ei, Chino, lave bem as costas! Aquele grito diminuiu nossa tenso. Foi como um alvio, uma vlvula de escape. Chegamos ao patiozinho dos fundos. Um guarda alto, loiro,sentado num tamborete, recostado contra a parede, cantava dcimas, a msica tpica do interior cubano. L o mato crescido ia at quase o meio das pernas. No vimos nem rastro de Brito e Ulisses, que j haviam passado. Boitel e eu procuramos a trincheira, mas devido obscuridade e ao mato no a divisamos. Foram momentos angustiosos. Eu disse a Boitel que esperasse um pouco, que ia urinar junto da cerca. Virei de costas para o guarda que estava empolgado pela cano e fingi que urinava.Isso deu tempo a Boitel para deslizar junto da cerca e chegar trincheira. Quando o vi agachar-se no escuro, fui atrs dele.

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Tropecei em algo duro e percebi entre o mato umas rodas denteadas de ferro; estavam umas sobre as outras e quase tropeo de novo em outro monte delas. A operao de passar pela trincheira fez meu p doer a ponto de eu ter vontade de gritar; suei frio, em grande quantidade. Boitel me esperava do outro lado. Viramos direita, passando por perto da casa do tenente Antnio "La Somba", como o chamavam aludindo com esse apelido sua sinistra natureza repressiva. Ulisses e Brito estavam nos esperando ali. Os ces do tenente Antnio ladraram, mas no eram eles que nos preocupavam, mas sim os sabujos do Ministrio do Interior. Fomos avanando junto a uma fileira de arbustos que a patrola havia poupado. Mesmo que acendesse, o holofote do quartel j no podia nos delatar. Caminhamos mais de cem metros paralelos ao terreno limpo; afinal, viramo-nos para dar uma olhada nas silhuetas imponentes das circulares. A nossa, mais prxima de todas, era impressionante com as janelas iluminadas mortiamente pelas lampadinhas da torre central. Foi um momento muito emocionante, inesquecvel, nenhum preso tinha podido ver as circulares daquela perspectiva. O mito da fuga impossvel acabava de fenecer, morto por ns, que havamos demonstrado que a fortaleza era vulnervel. Comeamos a subir o morro. Fizemos uma breve parada a fim de no deixar "pistas" para os ces; trs pedaos de pano sobre os quais colocamos cuidadosamente pimenta-do-reino em p. Quando os ces se aproximassem, farejando, daquele modo caracterstico que os faz aspirar o ar com fora, ficariam com os narizes cheios de pimenta, comeariam a espirrar e seu faro seria anulado. Colocamos os panos separados. Chegamos a um desnvel muito abrupto do terreno. Meu tornozelo doa terrivelmente e a presso que a inflamao estava fazendo tornava o andar ainda mais doloroso. Paramos um instante, o tempo necessrio para pegar a faca e cortar a bota, que me oprimia at quase as pontas dos dedos. A lua derramava sua luz prateada sobre o cho amarelado. Estvamos em um descampado e, se bem que no houvesse casas por perto, sem a proteo dos arbustos sentamo-nos mais expostos ao perigo, pois qualquer campons ou miliciano poderia passar por aqueles lados e nos ver. Deitamo-nos no cho, examinando os arredores. Foi Brito que disse que devamos atravessar aquele trecho correndo. Como eu no podia correr, Brito carregou-me nas costas e com uma agilidade incrvel, com uma fora que no sei de onde tirou, correu quase duzentos metros comigo. A primeira estrada atravessou-se diante de ns. Larga, com duas valetas nuas dos lados, e cercas de arame para o gado no fugir. A travessia tinha que ser feita com o maior cuidado, para evitar que um veculo nos viesse em cima. Escutamos um motor ao longe e achatamo-nos ainda mais no cho, escondendo-nos entre o mato. Aproximava-se. Um caminho sovitico Zil passou como um blido, erguendo uma imensa nuvem de p amarelo. - Vamos, agora! Assim dizendo e fazendo, Boitel deslizou, de barriga para cima, por baixo do ltimo arame da cerca. Depois eu, Ulisses e Brito na retaguarda. Passamos para o outro lado da estrada rolando sobre nossos corpos, j que se o fizssemos de p poderamos ser vistos de longe. Antes de entrarmos no bosquinho de pinheiros, colocamos outros pedaos de pano com pimenta-do-reino para os sabujos. J no se ouviam latidos. A noite deslizava tranqila, silenciosa.

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Apareceu outra estrada. Estvamos no rumo e nosso mapa assinalava com exatido todos os detalhes de que precisvamos para nos orientar. Deixamos direita um barraco rstico, com telhado de folhas de palmeira. Os ces da casa nos farejaram e latiram. A vegetao comeou a mudar e apareceram os mosquitos, em nuvens, agressivos.Aproximvamo-nos dos pntanos do Jcaro, na desembocadura do mesmo rio. Era esse o nosso objetivo e a embarcao deveria estar l uma da madrugada. Tudo parecia em calma. Os rudos naturais da noite, os barulhos de insetos, o coachar de alguma r... A gua do pntano chegava aos nossos tornozelos. Fazia frio e um ventinho noroeste comeava a soprar com certa fora. Dez minutos e Brito no voltava. Comeamos a nos impacientar. Por que estava demorando tanto? Ulisses ofereceu-se para ir procur-lo, mas Boitel props que esperssemos mais cinco minutos. Afinal, Brito apareceu e nos informou. Estivera observando uma embarcao, mas tinha entrado pelo rio. Estvamos exatamente em frente do local do encontro. Boitel olhou o relgio que o gradeiro havia nos dado. Tnhamos chegado meia hora antes. Mais meia hora, pensvamos, e nossa embarcao estaria ali, ao amanhecer estaramos a muitos quilmetro da ilha, em alto-mar, proa na direo de Grand Caimn, o rumo do qual menos podiam desconfiar os nossos inimigos, que imaginariam que teramos ido para o norte, rumo a Cuba, ou para o oeste, rumo ao Mxico. Mas nosso barco no chegava Uma hora... uma e meia... duas... s trs da madrugada o desnimo comeou a tomar conta de nossas almas. O que podia ter acontecido? Estvamos no lugar exato, no dia e hora combinados. No compreendamos. O pessoal que devia vir nos apanhar sabia a que nos expnhamos, se fssemos capturados. morte, quase certamente. s seis da manh, quando surgiram os primeiros albores e o rudo dos milicianos do outro lado do rio chegava at ns como um murmrio distante, retiramo-nos da praia. O pessoal do barco havia ficado de vir dois dias ao encontro. Chegariam naquela noite, com certeza. Pelo menos, queramos acreditar nisso. Teramos que estar de novo, dentro de dezoito horas, no mesmo lugar. Deus nos ajudaria e confiei-me a Ele de novo, enquanto o sol tingia de vermelho as nuvens altssimas e algumas gaivotas cortavam o ar.

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15. A caada

Foi o sargento Pinguilla,o mesmo que cruzou conosco na noite anterior que, ao terminar a chamada nos pavilhes, deu o alarme. - Fuga! Fuga! O estado de alerta foi dado na ilha inteira. Milhares de milicianos e tropas regulares saram em nossa perseguio. Pensavam que estvamos armados e, por isso, sempre que chegavam a um bosque em que achavam que podamos estar ocultos, a tropa jogava-se ao cho, apontavam as metralhadoras B-Z tchecas e abriam fogo. As penses e hotis prximos foram invadidos pela Polcia Poltica. Em um deles detiveram Carmen, a namorada de Boitel. O comandante William Glvez interrogou-a pessoalmente, ameaou-a e disse que seria presa se seu namorado chegasse a sair do pas. J quase de tarde, Brito avistou militares que se aproximavam do local onde estvamos; nossa frente estendia-se a amplido do mangue, cuja gua nos chegava cintura e, no final dele, o bosquinho no qual estvamos escondidos. Quando os guardas comearam a atirar nesse bosquinho, uma chuva de folhas e raminhos caiu sobre ns, despedaados pelos projteis. As rajadas passavam alto, mas nos inclinvamos, procurando proteo. Apagamos as marcas que nossos corpos haviam deixado no local e fomos embora, deslocando-os para a direita do cerco. O firme do lodaal, onde comeava a vegetao, dilatava-se em forma semicircular. Os militares, quando continuassem a marcha, desembocariam forosamente no terreno despovoado de rvores, onde s cresciam as taboas. Quando os primeiros guardas apareceram, j amos avanando pela beirada da vegetao. Eles se deslocavam em leque. Sabiam que do outro lado daquela franja pantanosa estava o acampamento de Jcaro e, por isso, no atiravam. Talvez a proximidade do acampamento militar fez com que pensassem na impossibilidade de termos nos escondido exatamente ali. E isso levou-os a serem menos minuciosos, quando revistaram o terreno. Entre o ltimo militar e a beirada da vegetao, nossa direita, ficaram uns trinta metros sem guardas para fechar a revista. Por esse lado amos ns, protegidos pelas folhagens, rastreando algumas trilhas. Tnhamos a vantagem de ver sem sermos vistos. O verdadeiro perigo teria sido se eles realizassem uma "operao pentefino", como se esperava, com soldados dentro do lodaal. Mas no o fizeram. No entanto, o ltimo guarda desviou-se um pouco para o lado onde estvamos; escutamos o barulho de suas botas pisando as taboas e afundando no solo pantanoso. Ms retificou o rumo e avanou de novo frente, passando a poucos metros de ns. Estvamos salvos. Pelo menos desta vez tnhamos escapado... Os guardas nem sequer entraram no local de onde tnhamos sado. Movimentaram-se para o sul, para a estradinha

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de terra e a pequena ponte de madeira que atravessava o rio. Ficamos onde estvamos por uma meia hora. Depois,voltamos ao nosso acampamento original. No viriam mais nos procurar por ali, pois acabavam de faz-lo... mal, porm diriam que bem feito, e os superiores dariam a zona por verificada. No sabamos, mas diante do porto de Gerona um barco canadense pegava um carregamento de cidras. As autoridades consideraram a possibilidade de termos abordado o cargueiro e trataram de revist-lo. O capito do navio negou terminantemente sua permisso. Naquela poca o Canad mantinha excelente comrcio com Cuba e o governo cubano interessava-se muito em no alterar esse relacionamento. A negativa do capito canadense em deixar revistar o navio foi interpretada pela Polcia Poltica como prova de que estvamos a bordo. Desde as onze e meia da noite estvamos novamente no local marcado, esperando que nos apanhassem. Minha perna doa terrivelmente, a inflamao era tremenda e os esforos a que eu a submetera haviam piorado muito seu estado. A pele estava com uma cor violcea na regio do tornozelo, onde o golpe produzido pela queda tinha sido mais violento. Tinha tomado aspirina o dia inteiro, mas a dor no cedia. Chegou uma hora, uma e meia, duas, trs da madrugada e o barco no aparecia de canto algum. Examinvamos o horizonte, aguando a vista, mas nada. No tinham ido nos apanhar. Ao amanhecer, quando nos dispnhamos a voltar para o esconderijo, escutamos gritos distantes, depois uns tiros e, em seguida, rajadas de metralhadoras pesadas provenientes da desembocadura do rio. Depois, silncio... Alguns minutos depois ouvimos vozes, mas no podamos entender o que diziam. Permanecemos ali at que o cu comeou a clarear. Tnhamos dormido em turnos, estvamos esgotados pelo cansao e, agora, a tenso era maior. uma da tarde, o cargueiro canadense cheio de cidras levantou ncora e se enfiou pelo canal, rumo ao mar aberto. A Polcia Poltica achou que estvamos escondidos em seu poro. Uma hora depois ordenaram que se pusesse fim s buscas em toda a ilha e transmitiram essa deciso a todos os comandos, para que suas tropas voltassem aos quartis e acampamentos. O sol iniciava sua descida quando Brito nos avisou que uma tropa numerosa vinha para cima de ns. Escondemo-nos atrs dos troncos de umas palmeiras espinhosas. O mais prximo da tropa era Ulisses, Brito estava minha direita, Boitel estava mais atrs, um pouco. - Vamos virar direita e passar pela pontinha! - gritou um dos guardas. Rezei para que fizessem isso, pois se continuassem em frente era inevitvel que nos encontrassem. Com frenesi, eu cavava a terra pantanosa para esconder o mapa e a carteirinha que tinha comigo. Os outros deviam estar fazendo a mesma coisa, porque era o que havamos combinado para o caso de acontecer uma situao como aquela. - No. Pela ponte a gente se desvia. Vamos seguir em frente. E entraram pelo saral, na nossa direo. Mais alguns metros e estaramos cara a cara. Achei que aqueles eram os ltimos minutos da minha existncia. Recomendei-me a Deus, pensei na minha famlia e uma poro de coisas vieram-me atropeladamente cabea. Pensei que ia morrer ali, naquele pntano imundo e ftido; senti um medo atroz, aquela garra invisvel que sempre envolve meu estmago e o vai apertando at a dor e o espasmo.

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- No atirem! Estamos desarmados! Ulisses, com o aviso, desencadeou os acontecimentos. Escutou-se o rascar metlico dos ferrolhos dos fuzis e a gritaria dos guardas, pedindo ao que abria a marcha que se afastasse, para que pudessem atirar. - No atirem, estamos desarmados! - tornou a gritar Ulisses. O guarda grisalho que abria a marcha voltou-se para a tropa e ordenou que no abrissem fogo. Ulisses foi o primeiro a sair... - Outro! Boitel seguiu-o. Depois Brito: - Um de ns est com uma perna machucada - disse-lhes Boitel. Eu sa coxeando. L estvamos os quatro, as mos atrs da cabea. Com desalento e cansao enormes. Uma tropa de uns cem homens nos rodeava.

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16. Pavilho de castigo

Talvez nos momentos em que os guardas se aproximavam de ns no pntano, nas circulares deveria estar acontecendo a revista de represlia. Cheios de raiva pela nossa fuga, os militares encarniaram-se contra os presos. Colocaram sacos de areia e metralhadoras apontando para as portas das circulares e entraram brandindo os fuzis com as baionetas caladas. Feriram dezenas de homens. Srgio Bravo tinha apenas trinta anos. De compleio atltica, muito gil e entusiasmado, dedicava-se a pregar a palavra de Deus. Srgio ficava no quinto andar da circular 3. Havia algum tempo, e valendo-se das mais inimaginveis argcias, tinha conseguido fazer entrar, folhinha por folhinha, e armar, com cuidadoso amor, uma Bblia pequenina, dessas que no ultrapassam o tamanho de um mao de cigarros. Num esconderijo em sua cela, bem dissimulado na parede, tinha conseguido proteger o livro das revistas. Quando comeou o vozerio dos guardas e a pancadaria, Srgio, que descansava em seu beliche, ps-se de p, num salto, no meio da cela, olhou para baixo e o espetculo o deixou horrorizado: estavam cometendo uma carnificina. Lanou-se escada abaixo, de trs em trs degraus. Ao chegar no quarto andar lembrou-se da Bblia: havia deixando embaixo do travesseiro, fora do esconderijo. Com certeza os guardas iam tira-la. Sabia que as pancadas que levaria por chegar l embaixo atrasado seriam mais, no entanto no se importou e voltou para escond-la. Entrou precipitadamente na cela, com o corao na boca; finalmente conseguiu esconder a Bblia. Saiu novamente para o beiral e deu, veloz, a ltima corrida de sua vida. Os guardas j tinham comeado a atirar e a bala de um fuzil rebentou os ossos de uma de suas pernas, abaixo do joelho. O impacto foi como o de uma machadada brutal. Enquanto eu caminhava, apoiado nos saibros de Ulisses e Brito, amputavam a perna de Srgio Bravo. * * * Fizeram-nos entrar na sala do tenente Tarrau. Sobre a mesa dele vimos quatro colunas de fotografias nossas; haviam sobrado das que tinham distribudo pela ilha inteira para nossa identificao. Indicaram-nos um sof e ns quatro nos sentamos nele. Um tumulto de militares entrou na sala frente vinha o comandante William Glvez, chefe territorial da Ilha de Pinos, que tambm conhecia Boitel. Glvez era famoso por suas excentricidades, como aquela de andar patinando pelas ruas da cidade de

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Matanzas de farda completa e aparecer assim nos Tribunais Revolucionrios, nos quais tomava parte como fiscal. Estava muito interessado nos detalhes da evaso. Aventureiro por natureza, Glvez no podia dissimular sua admirao pela nossa fuga. Houve um momento em que disse que eles sabiam que um submarino da Agncia Central de Inteligncia viria nos apanhar. Boitel negou. Mas Glvez no acreditou e houve uma acareao. Boitel continuou negando que qualquer submarino iria nos buscar. Ento, como iam sair da ilha? Pensvamos em ir num barco. Mas quem vocs pensam que so? quase gritou aquele inslito comandante, considerando impossvel que fssemos capazes de fazer isso. Pense, comandante, se mais difcil dirigir um barco do que fazer o que fizemos. William Glvez ficou em silncio. Ficou olhando Boitel fixamente. Voltou-se e murmurou, em voa baixa: Sim... verdade. No obstante, a Polcia Poltica encarregou-se de difundir a histria do submarino da CIA e a primeira verso foi dada a Marcha Gonzlez, uma exilada que voltou dos Estados Unidos para Cuba com o compromisso de escrever um livro cheio de falsidades e mentiras, intitulado Sob palavra, com matria fornecida pela prpria Polcia Poltica. Quando o diretor Tarrau entrou na sala, fez-se silncio total. Olhou-nos com um dio que saa aos borbotes pelos olhos. Bufava. As aletas do nariz estavam lvidas e notava-se que fazia um grande esforo para se conter. O diretor Tarrau no ameaava pelo gosto de faz-lo; tinha tudo que era necessrio para cumprir suas ameaas. Comeou, tambm, um interrogatrio. O nico conhecido do grupo era Boitel. Os outros, no. E era para ele que iam todas as acusaes, dele que exigiam as responsabilidades. E para ele havia um dio especial, expresso pessoalmente por Castro em muitas ocasies. Parecia-me que a responsabilidade daquele fato devia ser partilhada, como havamos partilhado da esperana de conseguir nosso objetivo. Por isso tomei a palavra e disse a Tarrau e Glvez que Boitel no era o nico responsvel, que a fuga fora feita pela minha cela e que eu tinha cerrado os barrotes da janela. Brito e Ulisses tambm se responsabilizaram pela tentativa de evaso. Aqui todos vo ter que assumir as responsabilidades. Os quatro vo apodrecer nas celas de castigo. Jamais sairo de l e vo se arrepender do que fizeram comigo. Preciso de um mdico eu disse. O comandante Glvez fitou-me, indignado: Ainda tem o cinismo de nos pedir assistncia mdica? Levaram-nos para o primeiro salo, onde ficavam as celas de castigo. Aquela rea tinha sido desocupada para ns. Eram onze celas, construdas dentro de um salo que no tinha sido feito para essa finalidade. O p direito muito alto da antiga construo permitiu construir celas de uns dois metros e pouco de altura. O teto era uma malha de ao, de buracos grandes, como as telas usadas na cerca do presidiu. Dessas malhas at o teto do salo havia espao para que os guardas pudessem andar em cima e manter, assim,

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vigilncia total sobre os castigados. As portas eram cobertas por placas de ferro soldadas aos barrotes. S na parte inferior da grade, muito perto do cho e em um dos lados, ficava uma estreita fenda: era por ali que enfiavam o prato com a comida. Num dos cantos, no centro de uma leve com cavidade, um buraco fazia as vezes de latrina. E um pedao de tubo dobrado, em cima, era a ducha. A torneira ficava fora da cela e era manejada pelos guardas. A cela era totalmente vazia: a cama era o cho de granito. Media uns dois metros e meio de largura por dois de comprimento. Anos depois eu iria conhecer muitas celas de castigo, mas nenhuma individual maior do que as da Ilha de Pinos. Fui destinado nmero um, Boitel trs, Ulisses cinco e Brito sete, com uma cela vazia entre cada um de ns. Nem sequer a roupa de baixo me deixaram conservar. Completamente nu, fiquei ali, na obscuridade da cela. Fazia frio e eu o sentia. Minha perna doa muito e continuava inflamada do mesmo jeito. Uma hora depois trouxeram-nos o prato com o rancho. Nunca vou esquecer. Arroz branco e carne em conserva com batatas. Em seguida, apareceram vrios oficiais trazendo uniformes para cada um de ns. Mandaram que nos vestssemos porque iam nos tirar dali. Apoiando-me em Brito e na parede, dando saltos sobre um p s, atravessei o ptio interior e chegamos ao salo. Ali estavam grandes mesas com mquinas de escrever. Uma senhora de meia-idade estava diante de uma das mquinas. Era a juza de Nova Gerona que ia fazer a instruo do nosso julgamento. A um observador desprevenido tudo pareceria estar acontecendo conforme a lei. Claro, a instruo foi feita, mas ns NUNCA comparecemos a julgamento. Um dia, chegou a sentena do tribunal. Tinham nos condenado a mais dez anos de cadeia pelo crime de "quebra de condenao e danos propriedade do Estado" cometidos ao cortarmos os barrotes da janela. Soubemos, depois, que o tenente, chefe da revista, apelidado Tareco, elemento repressivo e abusador, tinha sido enviado para uma granja, condenado a dez anos de crcere por "infidelidade na custdia da revista". Consideraram-no responsvel por termos feito entrar o necessrio para a fuga. Nunca souberam de que meios nos valemos. S agora, depois de vinte anos, eles esto revelados neste livro. Levaram-nos de volta s celas e nos deixaram nus de novo. No fecharam a grade e aquele detalhe chamou-me a ateno. Estava sentado no cho. L fora soaram vozes de vrios militares, que se aproximavam. Trs ou quatro deles (ou cinco, eu no saberia dizer exatamente quantos) apareceram diante da cela aberta. Terminados os interrogatrios e a papelada, iam acertar contas com a gente, iam nos cobrar por termos tentado fugir. Como a lmpada do corredor ficava s costas deles, no percebi que estavam armados com cacetes grossos e fios eltricos tranados. Levante-se, pois vamos tirar sua vontade de fugir, para sempre! Senti meu estmago se contrair mais do que nunca, que me faltava o ar e que uma opresso apertavam-me o peito. Eu conhecia bem essas reaes de meu corpo: era medo, terror. Em uns segundos a viso do que ia acontecer passou por minha mente e compreendi, com horror, a realidade. J estavam batendo nos meus companheiros. Escutei os impactos secos das pancadas nos corpos nus, os gritos e as ofensas dos guardas. Levanta da, maricas! tornou a gritar o guarda, erguendo o brao armado.

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E tudo foi como uma vertigem repentina. Minha cabea comeou a girar. Bateram em mim no cho. Um deles agarrou-me por um brao, para virar-me de maneira a apresentar as costas, em posio mais cmoda para que fosse atingida pelos fios. As pancadas me davam a sensao de que estavam batendo em mim com ferros em brasa. De repente, senti a dor mais intensa, mais indescritvel e brutal da minha vida. Um dos guardas saltou com todo peso do corpo sobre minha perna quebrada e inflamada. As dores da surra no me deixaram dormir naquela noite. As costas ardiam-me como se estivessem em, fogo e a dor na perna era quase insuportvel. Cumpria-se, assim, a ameaa do tenente Tarrau, feita apenas algumas horas antes, em sua sala de diretoria.

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17. A vara Ho Chi-Minh

Na manh seguinte soldaram as portas. O tenente Cruz, da Polcia Poltica, dissenos que era uma ordem pessoal de Castro e que ficssemos sabendo que amos permanecer anos naquelas celas. O mdico militar era um comunista que tentava parecer-se com Lnin, usando o mesmo tipo de barbicha. Alto mais de um metro e oitenta e dois de altura , de pele muito branca e corpulento. Chamava-se Lamar, usava uniforme de mdico e era um sdico. Quando lhe pedi assistncia mdica, assomou-se pela fenda, olhou minha perna e disse: Espero que isso seja uma boa gangrena... Eu mesmo entrarei a para cort-la. E conseguiu me angustiar, porque realmente tive medo que me acontecesse uma infeco irremedivel. A perna continuava muito inflamada ao redor do tornozelo e o p do derrame estava com uma cor escura, a pele brilhante, de to inchado. No podia ficar de p e me locomovia sentado, arrastando-me sobre as ndegas. A situao se tornou mais difcil quando nomearam nossos guardies os soldados que estavam de sentinela no quartel na noite da fuga. Os que cuidavam das celas eram os guardas castigados. Impossvel descrever a sanha daqueles homens. Principalmente o loiro alto, da metralhadora, que nos considerava culpados de sua desgraa. Esse guarda arranjou uma lata de cinco gales, das que eram usadas para lavar o cho, e levou-a aos presos comuns para que urinassem e defecassem nelas. Quando estava at a metade dessas imundcies, juntou gua e subiu ao teto de malha das celas. Foi a sensao de frialdade que me acordou. Estava molhado de cima a baixo, sentado em um charco ftido, pestilento. Pedaos de excremento deslizavam por minha cabea e minha cara. Com a surpresa, no pude evitar que me cassem dentro da boca. Com o dedo indicador, empurrei uns restos de excrementos dos ombros e das coxas, depois me arrastei at o chuveiro, para me lavar. A gua estava fechada. Chamei o guarda. No respondeu. Ento, chamei Boitel e os outros; contei-lhes o que tinha acontecido. Todos comearam a gritar : gua! gua! O guarda loiro, o mesmo que tinha jogado urina e excrementos em mim, entrou no corredor e mandou-nos fazer silncio. Depois disse que havia recebido ordens para nos dar gua s para beber e na hora da comida. Um instante mais tarde chegou outro militar com uma chave inglesa e apertou fortemente os registros situados no corredor e fora do nosso alcance. Durante mais de trs meses ficaram de guarda ali. Em todo esse tempo no nos deixaram tomar um banho

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sequer. S tnhamos aqueles banhos de urina e fezes, que eles nos davam de cima do teto de malha. A porcaria secou nos plos do nosso corpo. O mau cheiro enchia a cela. Quando algum l ou ouve falar sobre um prisioneiro confinado numa cela, nas condies que ns estvamos, nunca pensa em certas coisas, porque impossvel conceb-las fora de um crcere. Entre elas, como satisfazer as necessidades fisiolgicas com um mnimo de higiene. Tnhamos que faz-lo ali, naquele buraco, em um dos cantos; mas ao terminar no havia nada para nos higienizarmos: nem gua, nem sabo, nem papel, nem um pedao de pano. Como papel higinico tnhamos que usar os dedos. No havia outro jeito. Boitel estava gritando e discutindo com um guarda. Eu no sabia do que se tratava: Isso covardia. Vocs so uns miserveis e fazem tudo isto amparando-se na fora da farda! O que h, Boitel? perguntou Ulisses. Boitel nos explicou que o haviam fincado com um pau. Na realidade, no entendi bem o que ele estava querendo dizer at que o guarda, caminhando pelo teto, chegou minha cela. Estava com uma comprida vara de madeira, com a ponta afinada, e logo percebi o que tinha acontecido. Boitel estava dormindo e o guarda, silencioso, enfiara a vara pelas malhas da rede e o aguilhoara, acordando-o. Desde ento, as varas de Ho Chi-Minh iriam nos torturar e levar beira da loucura. No havia possibilidade de escapar, pois o guarda, l de cima, dominava a cela e podia cutucar vontade. A ponta da vara era meio rombuda e no furava, mas machucava, no nos deixando dormir. Era justamente isso que eles queriam. S havia uma sentinela que no nos aguilhoava e a cada trs dias, quando ele entrava de servio naquela rea, dormamos seis horas seguidas. Quando seu substituto chegava, subia ao teto, vara na mo, e nos aguilhoava. Depois, descia. Da a uma hora tornava a subir e de novo o despertar sobressaltado. Eu estava esgotadssimo. A falta de sono e a tenso afetavam-me seriamente e eu notava. Recorria, ento, a Deus. Minhas conversas com Ele terminavam em um fortalecimento espiritual que, eu sentia, dava-me novas energias. Nunca lhe pedi que me tirasse dali. No achava que se devesse usar Deus para esse tipo de pedido; s que me permitisse resistir, que me desse f e fortaleza de esprito necessrias para suportar aquela situao sem adoecer de dio. Unicamente lhe rogava que me acompanhasse. E sua presena, que eu sentia, fez da minha f uma arma indestrutvel. Continuaram jogando baldes de urina e excremento em ns. Nas madrugadas daquele frio inverno, jogavam tambm gua gelada. Era desagradvel, mas nos permitia limpar um pouco os restos de excremento do piso da cela. Aos poucos a latrina, sem gua para levar as fezes, foi se enchendo. Ao anoitecer, baratas andavam pelas paredes, pelo cho, subiam-me pelo corpo e suas patas, provocando ccegas, faziam-me acordar subitamente. As semanas sem banho fizeram com que meu corpo se cobrisse de uma camada gordurosa, escura, que provocava irritao nas axilas, nos genitais e na cabea. Uma erupo de pequeninos caroos invadia-me todo o couro cabeludo.

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Fungos tambm comearam a aparecer na sujeira de meu corpo, que o ambiente ideal para sua proliferao. Primeiro nos ps, nas virilhas, pernas; depois no pescoo. Quando me invadiram os testculos a coceira era insuportvel. Serviam-nos gua em uma lata de conserva, na hora do almoo e na do jantar. Para conseguir gua entre as refeies ou em outras horas, era preciso chamar mil vezes o guarda, gritar, armar um escndalo. Assim, s vezes, conseguamos mais um pouquinho. Minha grande preocupao era no pegar uma hepatite. Conhecia os perigos da falta de higiene, das fezes acumuladas no canto da cela, na latrina, sobre a qual pululavam centenas de vermezinhos viscosos, que subiam pelas paredes e arrastavam-se pelo cho. Eu jamais punha a mo nos alimentos. Era preciso devolver a colher com o prato. Ulisses tentou ficar com a dele, pensando que ningum entraria na cela a fim de peg-la. De fato, no entraram; simplesmente disseram-lhe que no ia mais receber comida at devolv-la. Na refeio seguinte no deram colher a nenhum de ns: tivemos que comer com as mos. Como pegar macarro, farinha ou po com as mos sujas, cheias de excrementos? Era coisa que eu no queria fazer; pegava ento o prato pela fenda, colocava os lbios na borda e, com curtas sacudidelas, ia fazendo a comida cair dentro da boca. Comia assim ou do mesmo jeito que um cachorro, enfiando a boca no prato. Materialmente, estava reduzido a uma condio subumana. Era mais animal do que homem e s me salvava daquele estado animalesco inventando mundos interiores, que eu enriquecia com o estranho processo de fechar os olhos e imaginar a luz, o ar, sis perenes, horizontes nos quais no se podia pr cercas nem alambrados, cus, estrelas, flores e mil sons agradveis tirados do fundo das lembranas: o canto dos pssaros, o estrondo das ondas do mar batendo nas pedras, o sussurro do vento passando entre os ramos das rvores. Bastavame, na escurido daquele canto imundo, cerrar os olhos para que o milagre bblico do fazer a luz se repetisse dentro de mim. L, nos meus mundos, estava fora do alcance de meus carcereiros, sentia-me livre, podia vagar por prados e ribeiros, habitando um universo secreto no qual a f religiosa conjugava-se com a imaginao e as lembranas.

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18. A primeira vitria

A inflamao da perna havia cedido muito. Mas os ossos fraturados e deslocados do lugar tinham soldado mal e meu p estava torcido para dentro, com uma visvel deformidade. Nunca deixamos, meus companheiros e eu, de pedir assistncia mdica. A negativa sempre foi total. As colnias de fungos continuavam invadindo meu corpo e meu grande temor era que chegassem aos olhos. Adquiri, ento, uma infeco intestinal, com febre muito alta. As diarrias eram constantes e me desidrataram. A restrio de gua persistia e no tnhamos conseguido um banho sequer, durante meses. Meu corpo estava cada vez mais escuro e ensebado. Quase j no tinha foras para falar, mas meus companheiros continuaram exigindo que tratassem de mim. Por fim concordaram em me levar para o hospital. Naquela poca os mdicos prisioneiros que dirigiam as salinhas do hospital. Se no fossem eles, no teramos tido a mnima assistncia. O dr. Armando Zaldvar era o chefe da Balinha a que fui destinado. Zaldvar era uni mdico jovem, formado na Espanha. Catlico praticante, regressou a Cuba com o triunfo da revoluo. Logo compreendeu que o pas estava sendo dirigido para o comunismo e no vacilou em deixar de lado o estetoscpio para empunhar um fuzil e subir para as montanhas do Escambray para combater contra Castro. Capturado e condenado a trinta anos, j estava h vrios meses no presdio da Ilha de Pinos. Meu aspecto impressionou a todos os que estavam l. A primeira coisa que Zaldvar fez foi mandar que cortassem minha cabeleira de meses, que j cobria as orelhas e estava chegando aos ombros. Tambm me barbearam. Enquanto isso, prepararam um banho. Lembro que com uma tampa de lata de conserva, que dividi ao meio para servir de colher, raspei a crosta de sujeira que tinha no corpo. Ela saa enroscando-se como cortia, como uma casca. Uma coisa inaudita, incrvel. Foram necessrias vrias latas de gua de cinco gales para aquele primeiro banho. De cabelo cortado, banho tomado e barbeado, era outro homem; depois, deitado em uma cama limpa. Eu me sentia como se me tivessem posto em liberdade. A sada dos pavilhes de castigo para o hospital ou para as circulares era como a liberdade. Com soro e antibiticos eliminou-se a infeco intestinal. Zaldvar mandou que me fizessem umas muletas de madeira, para me apoiar nelas. Andar sem esse apoio era impossvel, pois eu no podia firmar o p machucado. Enquanto as muletas no ficavam prontas, apoiava-me em dois paus guisa de bengalas.

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Com Raul Lopez, um dos pilotos do exrcito anterior, consegui fazer sair um recado para minha famlia. A acolhida que todos me ofereceram foi clida, carinhosa. Faziam tudo para me cobrir de atenes, por mnimas que fossem. Zaldvar conseguiu que fizessem uma radiografia do meu p. Foi assim que soube o estrago que sofrera com a queda e, talvez, com os pulos do guarda sobre minha perna. Os ossos fraturados haviam soldado fora do lugar, formando uma confuso. Alm disso, estava com uma artrite ps-traumtica e trocas artrsicas. No se podia fazer mais nada. Ento, para me reter uns dias no hospital, pois a diretoria estava pressionando para que me levassem de volta aos calabouos de castigo, Zaldvar resolveu engessar-me a perna e ergu-la, acima da cama, com umas polias de ferro. Ele mesmo colocou o gesso desde a barriga da perna at as pontas dos dedos. Assim que o gesso secou, cortou-o por baixo, com uma tesoura, de ponta a ponta e retirou-o. Eu podia pr e tirar essa bota de gesso com rapidez. Quando os oficiais entravam na sala para nos contar, viam-me na cama com a bota de gesso e a perna erguida pelas polias. Assim que saam, eu me livrava de tudo. O tratamento contra os fungos, vrias vezes por dia, estava dando resultado. Pele nova, limpa, ia aparecendo nos lugares antes infectados. Pela primeira vez em longos meses, pude limpar a boca com escova de dentes. A represso contra nossa sala tornava-se mais intensa, at chegar ao ponto da diretoria ordenar que me devolvessem cela de castigo. Os meses passavam, lentos; a priso ia embotando meus sentidos. A cela onde me encontrava, a nmero 9, ficava no final do corredor. Na parede, um preso havia desenhado um Cristo na cruz, com mosquitos. O original artista havia esmagado esses insetos, cheios de sangue, contra a parede, onde tinham ficado grudados. A cruz escura, com tons preto-vermelhos, tinha mais ou menos um metro e vinte de altura e me causou profunda impresso quando a vi. Parecia que a profecia do tenente Tarrau de que passaramos anos naquele calabouo ia se realizar. Decidimos, ento, fazer uma greve de fome exigindo que nos devolvessem s circulares. Eu achava que com cinco ou seis dias sem comer era possvel morrer. S bebamos gua. No me mexia e permanecia o tempo todo deitado no cho para economizar energia. Passou o primeiro dia, o segundo . No terceiro, o tenente Cruz, chefe da Polcia Poltica da Ilha de Pinos, foi nos visitar. Eu disse a ele que a medida do castigo tinha excedido todos os precedentes e que no amos continuar l. Bem cedo, no dia seguinte, o mdico Lamar, aquele de barba estilo Lnin, apareceu no pavilho. A ordem de nos tirar dali j havia sido dada, ns sabamos, mas o mdico parecia ignorar que estvamos a par da deciso tomada. Minha negativa em suspender a greve foi decidida. Disse-lhe que s voltaramos a comer quando estivssemos fora dali. Informei-o, alm disso, que Boitel estava em pssima situao fsica e que precisava imediatamente de assistncia mdica. Poucas horas depois levaram-no tambm para o hospital. Quando o militar que foi nos buscar me deu uma muda de roupa e me disse que ia para a circular, senti uma das maiores alegrias da minha vida. Sair dali era como sair do prprio inferno.

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19. Greve geral

Senti-me ligeiramente enjoado quando chegamos estradinha. Dois guardas andavam a meu lado. Depois de tantos meses fechado, sem poder olhar para longe, alguma coisa se havia alterado em mim, pois tinha a impresso de que as duas moles enormes das circulares e as montanhas, minha esquerda, caam por cima de mim, em um movimento constante, como o de ondas. No ano anterior, vestido de militar, eu tinha percorrido aquele caminho tentando fugir. Agora, a viagem de volta amontoava em meu crebro muitas lembranas e emoes daquela tarde memorvel, prxima no tempo, porm inexplicavelmente remota na memria. O trreo estava cheio. Quando entrei, uma atroadora ovao e vivas reboaram para me receber. Foi to emocionante v-los me aplaudindo de maneira to sincera que no pude evitar, entre abraos e cumprimentos, que meus olhos se enchessem de lgrimas. Nos dias posteriores ao regresso, informei-me de tudo que havia acontecido durante a ausncia. Havia um clima de muito descontentamento mesmo entre os prisioneiros mais resignados. Sempre, em todo grupo humano, h os que suportam tudo, os que calam e que em pocas de violncia deixam-se matar lentamente, sem ter sequer o desabafo do protesto ou a coragem da rebeldia. Mas at esses estavam fartos. Chega o momento em que at mesmo o mais manso dos homens sente que sua pacincia se esgotou. A situao era muito propcia para declarar uma greve de fome geral em demanda de tratamento humano, assistncia mdica, cartas, sol, alimentao adequada, etc. Assim, mandei um recado para o major da circular, que j no era o Loureno, e me reuni com amigos para explicar-lhes a concluso que Boitel e eu tnhamos tirado do xito da nossa greve nas celas de castigo. Os comunistas, acostumados a ser sempre os que faziam greves de fome, ainda no sabiam como combat-las e, antes que reagissem, podamos ganhar a primeira grande batalha do presdio poltico. Desde minha chegada dediquei todo tempo a convencer meus companheiros que o momento era oportunssimo, que no devamos deix-lo passar. Pouco a pouco, o grupo mais combativo foi simpatizando com a idia. A comida piorava dia a dia. Sentamos fraqueza pela carncia de alimentao. E naquele meio-dia, quando entraram os paneles do almoo, os encarregados de servir as raes mexeram o caldo, achando que no fundo deveria haver alguma coisa; mas nada encontraram: era apenas gua quente com uma camada de gordura na superfcie. E comearam os gritos para que devolvessem a "comida". Os nimos estavam dispostos e estourou a greve.

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Nesse momento era dia de visita em uma das circulares e os familiares dos presos estavam no refeitrio. Subi com toda rapidez que minha perna permitia pois continuava usando muletas at o quinto andar. Fui para minha cela e l, com Ren, Chaguito e outros, procuramos e costuramos rapidamente quatro lenis. Ainda faltavam algumas horas para a visita terminar. Como uma mistura de mercurocromo, merthiolate e gua, pintei um letreiro no pano: ESTAMOS EM GREVE DE FOME! Colocamos o letreiro para fora da janela, com cordas. Quando os familiares comearam a sair, viram-nos e atravs deles a notcia percorreu Cuba, no dia seguinte. A circular 1 juntou-se greve, a circular 2 tambm e apenas uma parte da 3, pois um grupo de presos que estava l desde 1959 no quis aderir ao movimento. No outro dia levaram os paneles com um almoo que parecia apetitoso. Como no o aceitamos, deixaram-no entrada da circular: os lates continham arroz e via-se por cima carne e pimento em abundncia. Pretendiam, com uma comida como aquela, antes nunca vista no presdio, enfraquecer nossa deciso e, assim, romper a greve. Nenhuma circular aceitou a comida, a no ser a 3. Os comissrios polticos andavam irritando os guardas contra ns. Soubemos por um deles, que contou ao gradeiro. Ento, para neutralizar aquela campanha, pintei outro lenol, desta vez dirigido aos guardas, que dizia: SOLDADO, MILICIANO, NADA TEMOS CONTRA VOCS. PEDIMOS TRATAMENTO HUMANO! Esse lenol foi posto para fora do lado que dava para o quartel, a fim de que fosse visto pelos guardas. A diretoria do crcere chamou os majores das circulares para uma entrevista com Tarrau e outros funcionrios. Ao voltarem, comunicaram-nos que a direo havia dito que no cederia em nada. Que interrompssemos a greve incondicionalmente e, ento, eles os chamariam de novo, mais adiante, para que os majores apresentassem as necessidades que tnhamos. A resposta foi nos concentrar no trreo. Descemos com colchas, lenis, catres e acomodamos frente os que estavam mal de sade, doentes crnicos, velhos. Pintei outro lenol dirigido direo e circular 1: NOSSA RESPOSTA: HOMENS DISPOSTOS A MORRER O protesto coletivo foi bem alm das circulares. Uma tarde, vrios oficiais chamaram diretoria o dr. Valdes Rodriguez, o neurocirurgio. Uma menininha, gravemente ferida, estava no hospital civil de Nova Gerona. Era preciso uma interveno cirrgica cerebral para salv-la: Valdes Rodriguez no hesitou. Quando chegaram ao hospital, levaram-no a uma saleta, em companhia do diretor, de mdicos e oficiais que o escoltavam, L estava servido um jantar suculento, para que ele comesse antes de passar sala de cirurgia. Valdes Rodriguez no aceitou. Insistiram, mas a negativa dele foi inabalvel. A operao levou duas horas. A menininha se salvou e Valdes Rodriguez regressou para a cela, faminto. Enquanto isso, na circular 1, Tony Lamas, com risco da prpria vida, subiu pelas vigas do edifcio at o ponto mais alto do teto cnico. Era uma proeza que exigia

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serenidade e nervos de ao. A uma altura de mais de trinta metros, teve que andar por vigas estreitas para alcanar o local para onde convergiam todas as demais, distribudas como se fossem os raios de uma roda de bicicleta. Ele se dirigiu para aquele centro. Embaixo, o vazio, a morte. E estava em greve de fome. A mais leve tontura significaria cair e estourar-se contra o cho. Quando chegou quele ponto, teve que gatinhar at outro, mais alto, onde se abriam uma janela guisa de clarabias, e por elas colocou para fora uma bandeira cubana, cumprindo, assim, a misso que impusera a si mesmo. A greve continuava. A falta de preparo mental afetava tanto quanto a dos prprios alimentos. Os quinze ou vinte frascos de soro que havia no hospitalzinho foram colocados nos mais velhos e fracos, e nos que estavam vomitando e se desidratando, porque no retinham gua no estmago. No dia seguinte ao que tinha sido dito que no cederiamos, a direo mandou chamar novamente os majores. Eles entrevistaram-se com Sanjurjo, ento diretor dos Crceres e Prises de Cuba. Vindo de Havana com urgncia, Sanjurjo escutou as explicaes sobre a medida por ns adotada. No obstante, tentou negociar apenas com promessas. A atitude firme dos nossos representantes fez com que compreendesse que no amos transigir, e ento eles tiveram que ceder. Ganhamos a greve. A alegria foi tremenda. Aquela vitria nos deu vida nova. Depois de tanto sofrimento, tanta ignomnia e misria, o triunfo serviu para fortalecer nosso esprito combativo e de resistncia. A alimentao melhorou em todos os aspectos. Alm disso, entregavam-nos correspondncia uma vez por semana e nos permitiam escrever uma carta a cada quinze dias. Tambm abriam a entrada de gua por mais tempo. Deram-nos um pouco mais de medicamentos e as visitas passaram a ser trimestrais. Conseguir aquilo da Direo dos Crceres e Prises constituiu um xito sem precedentes. Mas os comunistas no se sentem obrigados a cumprir o que prometem. Assim, depois de poucas semanas, comearam os problemas. Por exemplo, no entregavam a correspondncia e ns, para pressionar, recusvamo-nos a responder chamada at nos darem as cartas. O ano de 1962 foi de grandes acontecimentos em Cuba; deve-se recordar a crise dos foguetes soviticos na ilha, que levou o mundo ao umbral da guerra atmica. Alm disso, a Polcia Poltica abortou uma conspirao militar a nvel nacional, que tinha como objetivo a derrubada do Governo. O Exrcito, a Marinha e a Polcia estavam implicados naquele compl. A reao do Governo, depois de descobertos os conspiradores, foi uma verdadeira orgia de sangue. Dezenas de militares detidos entravam para o presdio La Cabaa, para o Castelo do Morro e eram imediatamente fuzilados, sem julgamento prvio, unicamente por deciso do Alto Comando da Polcia Poltica. Nesta conspirao, conhecida com a de 30 de agosto, fuzilaram 460 militares nos presdios da ilha inteira. Apesar de tudo, tivemos vrios meses de relativa tranqilidade, at que chegou o ms de setembro. Estavam fazendo revistas em todas as circulares e na nmero dois descobriram cortados os barrotes da cela de Hector Gonzalez e de Domingo Sanchez, "O Machado", como ns, amigos, o chamvamos.

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Quando os levaram para as celas de castigo, os guardas comearam a bater neles. Os dois se revoltaram, retriburam a agresso e uma turba de guardas caiu em cima deles; foram batendo nos presos durante todo o trajeto. Imediatamente os presos de todas as circulares comearam a gritar. Uma parte dos detentos da circular 2 havia entrado, mas um grupo negou-se a entrar. Fizeram isso em solidariedade aos presos que tinham sido surrados. Exigiam que os tirassem das celas de castigo. A guarnio foi reforada e os soldados entraram no curral para fazer entrar fora os que protestavam. Houve, ento, um entrechoque de presos e guardas. Estes batiam com selvageria. Impotentes, atrs das grades, ns s podamos gritar guarnio, tentando fazer com que parassem a agresso. Da circular 2 comearam a atirar pratos, garrafas e qualquer objeto que tivessem mo, em cima dos guardas. A resposta foi atirar. Metralharam as janelas e houve vrios feridos, dois deles graves, mas ningum morreu. Nessa mesma tarde, e como protesto contra a brbara agresso, a circular resolveu devolver a comida. A princpio no se pensou realmente em uma greve de fome, mas sim em provocar a presena de um funcionrio da direo penal, a fim de expor a ele a situao dos surrados que estavam nas celas de castigo e pedir seu regresso circular. No entanto, na manh seguinte, alentados pelo triunfo fcil do movimento anterior, amanhecemos em greve de fome. O dia passou sem qualquer novidade. Ainda no havia amanhecido quando Samuel me acordou, sacudindo-me. Estava visivelmente assustado e trazia a bandeira na mo, dobrada. Estamos cercados! disse e apontou para a janela. Desci da cama e quando olhei para a estradinha o vulto metlico de um tanque russo Stalin, com o canho apontado para a nossa circular, deixou-me atnito. Perto do refeitrio, outro... e logo eu veria mais. Um cordo de guardas rodeava cada circular; estavam to perto um do outro que poderiam dar-se as mos. A cada dezoito ou vinte metros colocaram um trip alto e ajeitaram em cada um uma metralhadora. Patrulhas com ces pastores iam e vinham. Passavam caminhes e jipes, em uma atividade tremenda. Quando as quatro circulares estavam rodeadas, chegaram o comandante William Glvez, Curbelo, Tarrau e vrios oficiais de alto nvel da Polcia Poltica. Chamaram os majores para dizer-lhes que iam fazer uma revista "pacfica". Foi por esta sdica ironia que batizamos aquela revista de "A Pacfica". Primeiro, entraram nas circulares 1 e 2. A revista durou desde o comeo da manh at a noite. Vimos encherem caminhes e caminhes com pertences nossos. Os tanques passaram a noite inteira patrulhando e o sol ainda no tinha nascido quando um grupo de militares com capacetes e fuzis R-2, de baioneta calada, tomaram posio junto da parede do trreo, de ambos os lados da grade de entrada. Outro grupo sem armas longas, mas com baionetas, formou fila em frente dos soldados. Na torre apareceram vrios guardas portando lana-gs lacrimogneo. Um peloto de oficiais entrou, ento, vociferando. Com um megafone, comearam a gritar ordens e ameaas. Exigiram que ficssemos nus e colocssemos as mos atrs da cabea, depois que descssemos, assim, para o trreo. Foram nos amontoando no canto dos tanques de lavar roupa. Estvamos to apertados que ramos como uma massa compacta. Os que ficaram atrs no podiam tirar

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as mos da nuca. Eu estava no centro e por isso a multido me colocava longe do alcance direto dos militares. Com as mos, tapvamos os genitais, para no encost-los nos companheiros da frente. Assim ficamos mais de doze horas. Jogaram todas as nossas coisas para o trreo, menos as camas. Os livros, alimentos, sabonetes, colheres, meias, roupa de baixo ... Arrancaram os saltos dos sapatos. Quebraram os espelhinhos que encontraram nas celas. Os copos, jarros e escovas dentais tiveram o mesmo destino. Jamais houve, nos vinte e cinco anos de existncia que j tem o presdio poltico cubano, uma revista como aquela e eu estive, at 1982, presente s piores. Massacres e surras maiores, sim, com mortos e feridos gravemente a bala e baioneta, mas no uma destruio organizada, nem to impiedosa, como "A Pacfica". Alm disso, tinham tudo preparado para nos massacrar, se nos rebelssemos. Levaram ou destruram mais de noventa por cento dos nossos pertences. As lonas ou sacos de aniagem das liteiras foram cortados com as baionetas. Nunca vou esquecer a comida que nos deram, quase s nove da noite: arroz com feijo preto. Tnhamos passado o dia inteiro sem comer nada, sem sequer beber gua. A nica que havamos recebido foi a gua asquerosa que caiu em cima de ns quando os guardas, l de cima, nos andares, derramaram a que estava nos baldes de limpeza. Tive que usar como prato um pedao de papelo, pois tinham levado o meu embora.

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20. A importncia de viver?

Primeiro, a derrota da invaso da Baa dos Porcos, depois, a revista e a constante ameaa de voarmos com os explosivos foram as causas do desencanto, da frustrao de muitos prisioneiros. As guerrilhas nas montanhas haviam sido esmagadas e apenas pequenos focos de valentes camponeses sobreviviam; mas no constituam uma promessa real da derrocada do regime. Todos esses acontecimentos gravitavam sobre o presdio e determinaram que certos prisioneiros optassem por se voltarem para os planos de reabilitao poltica. A situao familiar tambm influiu na deciso de muitos daqueles homens. Lanaram-se luta sacrificando famlia e lar, sem se importarem com as prprias vidas, tentando, com sua contribuio pessoal, impedir que o comunismo se apoderasse do pas. Mas, ao serem detidos, a Polcia Poltica se encarniava contra seus parentes, saqueava suas casas, em muitos casos despojavam-nas at mesmo dos mveis e, se tinham uma moradia bonita, expulsavam-nos dela, como aconteceu com a de minha esposa Martha, quando o pai dela foi preso. Como todos os mveis estavam em seu nome, tiraram-lhe o televisor, a geladeira e o toca-discos, pois esses aparelhos escasseavam no pas. Tambm confiscaram o dinheiro que a famlia tinha na poupana, em um banco. A revoluo ditou uma resoluo mediante a qual todos os bens de quem atentasse contra o Estado seriam confiscados. Logo, as turbas reuniam-se diante dos lares dos presos, como fizeram diante do meu lar. Agentes da Gestapo cubana, vestidos de civis, lideravam as manifestaes "espontneas" de repdio da populao contra os familiares dos contra-revolucionrios. E a famlia ficava marcada para sempre, como se seus componentes estivessem empestados. A esposa e os filhos de um "traidor" revoluo eram expulsos do trabalho. At aos filhos pequenos, na escola, chegava a mar de dio. As crianas chegavam em casa chorando, por causa dos insultos que os coleguinhas lhes gritavam. A represso aos familiares condenava-os tambm misria e perptua flagelao. minha famlia, que morava em um segundo andar, fechavam o registro de gua geral e minha me e irm tinham que ir casa da famlia de outro preso, que morava em frente, busc-la nos baldes. Sofriam todo tipo de humilhao e diariamente recebiam presses. Por exemplo, minha me entrava em uma longa fila, com o carto de racionamento, diante do armazm que lhe correspondia. Quando chegava a vez dela, o miliciano que distribua o produto, em companhia da presidente do Comit de Defesa, dizia-lhe que tinha acabado. Minha me sabia que no era verdade, mas no podia reclamar. Saa da fila e via que imediatamente continuavam a distribuio do produto que lhe haviam negado e que lhe pertencia.

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Esse suplcio dos familiares dos presos polticos agravava-se medida que a revoluo ia se radicalizando. Represso, humilhaes de todo tipo, perseguio, fome, terror: esse era o quadro familiar. No crcere, os comissrios polticos exploravam essa situao, criada pela prpria revoluo, para coagir o prisioneiro. Chamavam-no para entrevistas e pintavam-lhe o panorama em seu lar. Quem ajuda a sua famlia? dizia o comissrio. Os yankees lhe mandaram algum dinheiro? Sua famlia est abandonada prpria sorte. Usaram voc para atentar contra a revoluo e est vendo que justamente a revoluo que se preocupa com seus familiares e com voc mesmo. Esse tipo de trabalho foi planejado e executado pela Direo Geral de Reabilitao Poltica dos Crceres e Presdios. Cada um dos que aceitaram tinha uma circunstncia muito especial e por isso nunca julguei a deciso de aceitar a reabilitao poltica. Sabia que muitos deles jamais mudariam de ideal e que sofriam de terrveis conflitos interiores ao dar aquele passo que me separou, mas apenas fisicamente, de grande amigos, aos quais continuo querendo bem como a irmos. Em outubro de 1962, ainda na priso, soubemos de imediato da presena de foguetes soviticos em Cuba. A informao nos foi dada pelo radinho. Deu comeo a uma grande atividade entre os militares porque, sem dvida, o pas estava em perigo de ser invadido pelos Estados Unidos. Todos os terrenos ao redor das circulares foram semeados de compridas e afiadas estacas de madeira contra a descida de pra-quedistas que pudessem ser lanados para tomar o presdio. Vrias baterias instaladas apontavam para ns e os tcnicos que cuidavam do TNT ativaram explosivos para nos fazerem em pedacinhos. Foram dias angustiosos. Como amos sabendo dos acontecimentos, sabamos que poderia estourar uma guerra nuclear. sabido que nunca o mundo correu maior perigo que naquela ocasio. Se acontecesse, ns seramos os primeiros mortos. Quando terminou a crise, em fins de outubro, Castro, com a promessa de Kennedy a Moscou de que Cuba no seria invadida, mandou que desativassem as cargas de TNT. Meses mais tarde, os explosivos que nos ameaavam desde abril de 1961 seriam retirados. Depois de "A Pacfica", o peso do pequeno pacote familiar que podamos receber baixou para sete quilos e s podiam chegar a cada dois meses. Alm disso, no podiam conter leite em p. A nova disposio duraria pouco tempo. Tinha havido uma mudana interior em fevereiro, enquanto estvamos nas celas de castigo. Benito, meu futuro sogro, foi levado para a circular 3. Carrin e outros amigos ntimos foram mudados para a 1. Comecei a escrever clandestinamente para Martha. Para isso, utilizava amigos que tinham passado para o Plano de Reabilitao: eles recebiam visitas freqentes e tinham muitos contatos com civis que colaboravam conosco. Chegaram as mudanas entre as circulares. Lnin dizia que o preso devia ser constantemente movido e cumpriam suas orientaes ao p da letra. O objetivo disso era desestabilizar o prisioneiro. A mudana fora-o a dissolver os planos de qualquer tipo que tenha elaborado, a romper o crculo de amigos ... Isso o desorienta, afeta-o psiquicamente e, ento, gasta suas energias na nova adaptao. Com as mudanas freqentes, os planos de fuga eram desmantelados.

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Sa sem saber para que circular iam me mandar. Aconteceu ser a nmero um. Boitel e Carrin estavam l. O encontro com eles foi uma grande alegria. Boitel estava no segundo andar com Perez Medina, amigo desde o tempo em que ramos livres. Primo de Neno, o que me deu um rosrio e lanou um caminho cheio de soldados em um desfiladeiro. Consegui lugar na cela 53, no segundo andar, com Wilfredo Noda, um dos melhores poetas do presdio, amigo leal e extraordinrio. Aquela circular, que jocosamente chamvamos a dos Generais e Doutores, parodiando o ttulo da conhecida novela de Carlos Loveira, era formada por um pessoal cuidadosamente selecionado pela direo penal. Concentraram ali todos os profissionais, universitrios, estudantes, dirigentes de organizaes anticastristas, polticos, ex-oficiais de alta patente do exrcito de Batista e de Castro, funcionrios importantes dos governos e elementos considerados como perigosos pelo regime. Essa seleo tinha por objetivo distanciar os milhares de presos que estavam nas trs outras circulares dos que o Governo chamava de cabeas ou idelogos. Do ponto de vista intelectual, aquele tempo na circular 1 foi para mim a Idade do uro no presdio da Ilha de Pinos. A astcia de nossos familiares para passar nas revistas os livros que nos traziam proporcionou-nos uma grande quantidade de textos sobre toda a sabedoria humana. As atividades culturais, com todos aqueles livros, intensificaram-se. Conseguimos introduzir uns cursos de idiomas e em uma semana fizemos dezenas de cpias manuscritas deles. As cadernetas no davam e, quando terminvamos uma, apagvamos a escrita com a sola do tnis. Com esse mtodo, uma caderneta podia ser usada at cinco vezes. A alimentao reduziu-se mnima expresso, principalmente depois do ciclone Flora, que aoitou Cuba de maneira terrvel, em 1963, deixando cerca de mil mortos e uma provncia do Oriente arrasada. A direo da penal apresentou-se nas circulares solicitando nossa ajuda: pediramnos que dossemos roupas, lenis... porque muitos familiares nossos viviam nas regies flageladas e, alm disso, por solidariedade humana, ajudamos com a maior boa vontade. Foi impressionante ver presos, que no tinham nem o suficiente para satisfazer s suas necessidades mais elementares, dar o pouco que tinham : lenis, camisetas, meias, para ajudar as vtimas do ciclone. Vrios caminhes com nossa doao saram carregados do presdio. Naquele inverno passei um frio intenso. Tinha doado, como quase todos, meu nico cobertor. Depois consegui um saco de juta e costurei nele uns pedaos de nilon, tecido que protege muito porque no deixa escapar o calor, e me cobria com ele noite. Incrivelmente, a direo da penal nos comunicou que tnhamos doado durante trs meses nosso almoo para as vtimas do ciclone. Que tipo de Governo esse que tem de recorrer a presos para que o ajudem em uma calamidade? A fome nunca foi maior. Houve quem se dedicasse caa de pardais, que eram abundantes por ali. Gatos costumavam entrar nas circulares noite. Logo fizeram-se armadilhas para apanh-los. E um gato transformou-se em cobiado quitute. Na primeira vez que comi gato, apreciei sua carne como a mais extica que provei na vida. Se a gente tinha sorte de um amigo apanhar um gato, podia comer um pedao. Martha e eu continuvamos, com mil esforos, trocando cartas. Idealizamos um mtodo de escrita invisvel, muito elementar, mas que deu resultado. Como era permitida

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a entrada de cadernos escolares, Martha, seguindo minhas instrues, preparou uma tinta invisvel muito fcil de fazer: coloca-se um pouco de goma de mandioca em um pouco de gua fervendo, at que se forme uma pasta de consistncia leve. Depois, ela me escrevia usando essa mistura como se fosse tinta; a pena traava as letras que se viam pelo suave brilho do lquido, que desaparecia rapidamente, absorvido pelo papel. Quando eu recebia os cadernos, para revelar o que estava escrito, passava sobre as folhas um pedao de algodo embebido em gua com umas gotas de tintura de iodo. Ento, iam aparecendo as letras, precisas, claras, facilmente legveis. A cada dois meses eu recebia um caderno inteirinho escrito por ela. Era uma grande alegria para mim ir descobrindo pgina por pgina. Quando, por motivos de segurana, eu precisava dizer algo a ela, usava o mesmo mtodo. Inclusive, s vezes mandava cartas pelas vias normais. Tinha uma ttica que no falhava: usava uma folha de papel grande, com linhas; escrevia a mensagem invisvel e, depois, nas mesmas linhas, redigia uma carta elogiando o "bom trato" que recebia das autoridades. Isso era o bastante: minha carta chegava sem falta s mos de Martha. Ela devia usar dois processos para revelar: o mesmo empregado por mim ou o calor, porque nem sempre eu podia conseguir o amido de mandioca. Quando isso acontecia, usava uma aspirina dissolvida em gua para escrever, pois o cido acetilsaliclico reage com o calor. A mesma coisa acontecia com o medicamento chamado Pahomn, um antiespasmdico que havia na farmacinha, ou com suco de limo. Quando no tinha nada disso, usava algo que jamais faltava: urina. Aquela correspondncia com Martha era a coisa mais importante a que me dedicava ento. Graas s cartas amos nos conhecendo um ao outro. Martha j no era a adolescente de quinze primaveras. Agora estava com dezessete anos e ns dois amos edificando, em nosso mundo de letras, um futuro muito lindo, que partilhvamos com fervor e esperana. Aquela amizade encheu de ternura e f as nossas vidas. Comeamos a nos sentir como amigos de sempre, como dois seres queridos que h muito tempo no se encontravam. Para mim foi um doce apoio, um sustentculo firme que muito me ajudava. No lhe havia declarado meus sentimentos, mas mesmo sem essas palavras, sentia que havia algum pensando em mim, que me esperava, alm da minha famlia.

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21. Trabalhos forados

Depois de vrios anos, um dia nos deram carne de cabrito. Era uma carne em conserva, hedionda, que enchia a circular com seu odor penetrante. Para mim, que a devorei com deleite, foi um prato inesquecvel Depois incluram um ovo cozido, trs vezes por semana. Apareceram pepinos em rodelas e iniciou-se uma melhora nos alimentos. No podamos estar fracos e anmicos para o que haviam preparado e de que ns nem de longe desconfivamos. O comeo do trabalho forado foi precedido por uma onda de terror e presso que tinha como objetivo nos amedrontar. E a diretoria do Ministrio do Interior havia calculado que teriam que matar muitos de ns. Deram ao plano o nome de Camilo Cienfuegos, que era como se chamava um dos comandantes que lutou com Castro ria guerrilha e era militante da Juventude do Partido Socialista Popular, denominao que o Partido Comunista usava desde 1944. Camilo Cienfuegos desapareceu misteriosamente em um vo da cidade de Camaguey a Havana. A 9 de agosto de 1964 iniciou-se a formao dos primeiros grupos de trabalhos forados nos edifcios que ento hospedavam presos polticos plantados, isto , que no aceitavam o Plano de Reabilitao. Eu fui chamado e designado para o bloco 20, no qual estava a maioria dos meus amigos, com exceo de Boitel, que foi includo no bloco dos estudantes. Carrin, Pruna, Gustavo Rodriguez, os pilotos e outros duzentos mais compunham nosso batalho de trabalho. Alfredo Izaguirre que tinha sido membro da Sociedade Interamericana de Imprensa e diretor do jornal mais jovem da Amrica, El Crisol, de Havana, antes de ser nacionalizado pelo Governo foi o primeiro que decidiu no trabalhar. Alfredo havia participado de diversas aes contra o regime de Castro. Entrou e saiu muitas vezes de Cuba, clandestinamente; planejava um atentado contra Raul Castro. Depois, um ataque base naval norte-americana de Guantnamo, encravada ao sul da provncia de Oriente, que se interpretaria como uma ao de vingana de Castro. A manobra tinha a finalidade de provocar uma interveno armada dos Estados Unidos, que acabaria com o governo revolucionrio. Mas os rgos da segurana do Estado descobriram o compl e Alfredo foi detido. Passou muitas semanas condenado morte, esperando todas as noites ser levado ao paredo de fuzilamento. O fato de ser membro da

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SIP Sociedad Interamericana de Prensa (Sociedade lnteramericana de Imprensa) influiu de maneira decisiva para Castro mudar a pena mxima para trinta anos de recluso. Alfredo Izaguirre tinha decidido serenamente, depois de uma anlise que comentou comigo, no trabalhar nunca. Sabia que se arriscava a ficar mutilado ou at a que o matassem de pancada, mas sua deciso era irrevogvel. Quando o puseram na cela de castigo, deixaram-no sossegado por dois ou trs dias. Depois desse tempo, foram busc-lo. Da circular, vimos Alfredo escoltado por um peloto que o levou para o fundo do quartel, por onde passava uma vala que era percorrida pela gua servida dos banheiros e latrinas. Queriam que Alfredo movimentasse para a frente, com uma lata, os excrementos que se acumulavam nas beiradas da escavao. Alfredo negou-se at mesmo a tocar na lata. O tenente Porfirio Garcia, chefe da Ordem Interior, explicou que a nica coisa que ele tinha a fazer era agachar-se e movimentar um pouco a lata; isso seria o suficiente. Para os militares era uma questo de princpio: tratava-se de quebrar a resistncia de Alfredo, de faz-lo abaixar a cabea, submeter-se, obrig-lo a renunciar, a se contradizer. Mas Alfredo ns o vamos da circular sem sequer dar-se ao trabalho de falar, movimentava a cabea dizendo NO. A primeira coisa que fizeram foi rebentar a lata na cabea dele, ferindo-o. E comeou uma surra brutal. A lmina de uma baioneta soltou-se ao bater-lhe contra a testa. Depois da primeira sesso de pancadas, o tenente Porfirio tornou a insistir, tentando convenc-lo que era melhor para ele concordar em trabalhar, nem que fosse por um minuto apenas. A atitude de Alfredo tornou-se mais teimosa ainda e tornaram a surr-lo. Pararam de bater e ofereceram at lev-lo para Cuba, o que para um detento da Ilha de Pinos era uma das perspectivas mais ansiadas. Mas Alfredo, com o rosto ensangentado, continuou dizendo que no. Continuaram a bater, interrompendo a surra de vez em quando, para ver se ele cedia. Mas foi intil. Irritados, furiosos, cutucaram-no com as baionetas e bateram nele com a culatra dos fuzis at que Alfredo perdeu os sentidos. Desmaiado, sangrando, agarraram-no pelos ps e pelas mos, jogando-o na parte traseira de um jipe. Das circulares 3 e 4, dezenas de olhos acompanhavam o que estava acontecendo. Quando o estavam retirando do jipe, ele comeou a voltar a si. Jogaram-no ao cho da cela e poucos minutos depois apareceu o dr. Agramonte, novo mdico militar do presdio, acompanhado por outro mdico, de pequena estatura. Foi este que se agachou junto de Alfredo, que jazia no cho, de bruos. Levantou-o com esforo e apoiou-lhe as costas em um dos joelhos, para poder examin-lo. Verificou as baionetadas. A presso arterial estava muito baixa. Tiraram-lhe toda roupa, deixando-o apenas com as botinas. Alfredo escutava-os, mas no tinha foras para falar. Precisamos lev-lo j! disse o mdico baixinho ao dr. Agramonte, preto alto e corpulento. Em uma maca, completamente coberto por um lenol, levaram-no para o hospital. S aparecia um pouco das botinas. Quem o viu chegar, pensou que estava morto. Examinaram-no outra vez. Estava com o osso do nariz quebrado, tinha vrios ferimentos e contuses no corpo inteiro. Uma das baionetadas havia pegado na dobra da ndega, logo no nascimento da coxa, e quando estava deitado de barriga para baixo no se percebia, uma vez que o ferimento se mantinha fechado pela posio do corpo. Por isso escapou ao exame mdico.

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Administraram-lhe soro. Quando foi deitado de costas, o ferimento da dobra da ndega abriu-se e comeou a sangrar. O sangue empapou o colchonete e atravessou-o, gotejando no cho. Quando descobriram o que estava acontecendo, Alfredo j agonizava, em estado de coma, nos umbrais da morte. Transfuses urgentes para devolver-lhe os litros de sangue perdido, salvaram-no. Quinze dias depois Alfredo ainda no podia se levantar. A surra brbara o deixara com hematomas enormes no corpo inteiro. A inflamao do rosto e o derrame pela pancada que lhe fraturou o nariz formaram olheiras completas, violceas. Nessas condies, tornaram a coloc-lo na cela de castigo, sem nenhum tipo de assistncia mdica. Alfredo Izaguirre foi o nico preso que no prestou trabalhos forados nem por um minuto, nem um segundo. E seu nome passou para a Histria da Rebeldia do presdio poltico cubano.

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22. A pedreira

Ao amanhecer, um gradeiro mandou todo mundo se levantar para a chamada. O cu ainda estava escuro e uma dbil claridade assomava-se a leste. Depois de nos contar, nos mandaram para o trreo, para o caf da manh: um pouco de gua quente com acar e um pozinho pouco maior do que um ovo, mas no muito. Quase todos estavam na expectativa. Aquilo de ir trabalhar longe dos arredores do presdio significava, sem dvida, um verdadeiro acontecimento. Os grupos da circular 3, que haviam comeado a sair antes de ns, contavam-nos que os presos eram levados pela ilha inteira, plantando e colhendo frutas ctricas, fertilizando pastos, limpando pastos. O cabo fez a chamada e nos dirigimos para a entrada principal. L esperavam os caminhes que nos levariam para a rea de trabalho e a guarnio que nos escoltaria. Centenas de guardas, alguns com matilhas de ces policiais, ao estilo dos nazis. O comboio saiu escoltado por um caminho cheio de guardas. Sobre a cabina desse caminho havia um fuzil metralhadora B-Z, fabricado na Tchecoslovquia, que apontava para ns. Os caminhes entraram por um caminho de terra vermelha, ladeado de rvores medianas. L esperava um civil encarregado da propriedade estatal. Os guardas desceram e atravessaram a linha de arbustos, formando um crculo que nos envolveu completamente. O trabalho que nos tinham destinado era fertilizar mo, claro os quadrades semeados de pangola, um capim para gado pastar. Tinham preparado uns sacos de aniagem com um tirante para pendur-los ao ombro. Em Cuba, chamamos esse saco de "jabaco", uma palavra indgena. Os sacos de adubo se amontoavam ao longo do campo. medida que avanvamos, o cordo de guardas tambm o fazia. Movimentvamo-nos dentro de ampla circunferncia de fuzis, baionetas e ces. Caminhvamos sempre em terreno plano, sem rvores. Qualquer tentativa de fuga seria suicida. Desde o primeiro dia tivemos conscincia de resistir e sabotar o que nos mandassem fazer. Lembro que a maneira de distribuir o adubo foi incrvel. Tinha chovido nos dias anteriores e o terreno estava cheio de charcos. Neles esvaziamos, s escondidas dos guardas, muitos sacos de adubo, que a gua engolia sem deixar sinais. Fizemos desaparecer uma caixa de faces por uma fenda no solo. Com os fertilizantes que gastamos naquela seo de trabalho seria possvel adubar vinte ou trinta vezes mais terrenos. No dia seguinte levaram-nos mais longe, a um lugar que chamavam "El Bobo", perto da costa norte da ilha. A tarefa consistia em limpar, com enxado, ao redor das

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mangueiras, tambm, plantadas naquela regio, e rastelar a terra, formando um montculo ao redor do tronco. Uma das formas de resistncia era no se apressar, fazer tudo com lentido. Tinham designado dois presos para trabalhar em cada rvore. Gustavo Rodriguez e eu tnhamos ficado atrs. O cabo Malvadeza exigia que nos apressssemos, mas continuvamos no mesmo ritmo. Ento, tiraram-nos do grupo e nos puseram de lado. Tnhamos ficado quase a manh inteira na mesma rvore. O chefe do grupo tinha sido avisado e veio para junto de ns. J estava de baioneta em punho e se dispunha a nos bater com ela. Quem estava mais perto dele era Gustavo, que o viu e o enfrentou, assumindo posio de defesa, com o enxado seguro com as duas mos, como se emprega uma arma longa para se defender, na esgrima de fuzil. O chefe percebeu e parou: Largue o enxado! Gustavo no se mexeu. Largue! No vou largar, cabo. Foram minutos de tenso. Todos ficaram em silncio. Por que o cabo no sacou a pistola e deu um tiro em Gustavo? Sempre me perguntei isso. No terceiro dia, destinaram-nos pedreira. L o chefe da guarnio era um militar muito alto e magro, negro como azeviche, chamado Hol, filho de haitianos. O tenente Pompnio me tirou da fila e me levou diante do cabo Hol: Este um dos que fugiu com Boitel. D a ele, portanto, a maior picareta que tiver. E diga aos guardas que atirem para matar, se ele se aproximar da cerca. Hol olhou-me com curiosidade. Venha comigo disse. Fomos at a casa das ferramentas, ele procurou e me deu uma picareta de uns onze quilos. Quase no podia com ela. Coloquei-a no ombro e tomei o caminho de terra que levava ao campo de trabalho. . Uma picareta ferramenta. que, como todas as outras, preciso saber manejar. Nenhum dos que estava ali havia sequer pegado em uma, na vida. Um dos cabos que pertencia ao pessoal de guarda da pedreira, aproximou-se. Coxeava visivelmente. Voc nunca quebrou pedra? No, cabo, nunca. Ento, bom aprender. Olhem indicou. A primeira coisa que tm que ver o veio da pedra. E sobre ele que devem bater. E levantou a picareta. Depois que ele bateu duas ou trs vezes, a pedra abriu-se ao longo do veio. Continuou batendo e quebrou as duas partes da pedra em pedaos menores. Ele se afastou e tentei imit-lo. Era melhor aprender, pois assim me esgotaria menos. No comeo eu no conseguia fazer a picareta saltar e quando a deixava cair sobre a pedra, como segurava-a com fora pelo cabo, a vibrao do choque passava pelos meus braos como uma corrente eltrica. Fui percebendo que precisava abrir um pouquinho as mos quando a picareta batia na pedra. A, ela saltava, tornando a erguer-se um pouco, com pequeno impulso. No tnhamos a proteo que requerem os trabalhadores que quebram pedras em pedreiras. Nem botas, nem culos. As lascas de pedra varavam as calas como

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verdadeiros projteis e enterravam-se nas pernas. O brilho enceguecedor do sol nas pedras foi comendo nossas vistas. Sabe-se que preciso usar lentes especiais para este trabalho. Dias depois consegui dar um jeito de boicotar tambm o trabalho com a picareta. Gustavo e eu estvamos de parceria novamente e, quando o cabo passava por perto, trabalhvamos; quando se afastava, parvamos. Mas medida que o tempo passava, eles iam criando novos processos para nos obrigar a render mais. Mazinha, o cabo que nos ensinou a usar a picareta, e outro, que apelidaram Cachorro Preto, comearam a nos surrar sistematicamente. O objetivo era nos aterrorizar. Desde cedo comeavam as surras. A baionetadas. E exigiam que quebrssemos mais pedras; que os areieiros extrassem mais areia e que os carregadores de pedras enchessem os caminhes com mais rapidez. * * * Eloy Gutierrez Menoyo tinha nascido na Espanha e se criado em Barcelona. Seu pai tinha sido um dos fundadores do Partido Socialista Espanhol (PSOE). Seus dois irmos tinham morrido. Um, na Guerra Civil espanhola e o outro, Carlos, em Cuba, na mais herica das aes de todo o processo revolucionrio: o assalto ao Palcio Presidencial, que tinha com o objetivo matar o ditador Batista. Castro e seu movimento nada tiveram a ver com aquela ao.. A famlia de Eloy fugiu da Espanha durante a Guerra Civil e se refugiou em Cuba. Contrrio ao regime ditatorial, Eloy subiu para a regio montanhosa do Escambray, no centro da ilha, e l fundou a Segunda Frente Nacional de que foi comandante em chefe. Travou cruentos combates contra o e exrcito e desceu, vitorioso, quando Batista fugiu. Naquela regio era chefe indiscutvel e desfrutava das simpatias de todos os camponeses. Mas Eloy lutou para estabelecer em Cuba um regime realmente democrtico e no, outra ditadura. Por isso, quando compreendeu que Castro ia se arvorar em tirano, fugiu do pas. Tempos depois voltou com um pequeno grupo de homens armados que trataram de ir para as montanhas e continuar a luta. Mas foi capturado. Condenaram-no a trinta anos de priso. Estava conosco no grupo da pedreira. Os militares tinham recebido instrues de Curbelo, o delegado da Polcia Poltica na Ilha de Pinos. Todos vimos, naquela manh, o jipe de Curbelo entrar na pedreira e ele entrevistar-se com o comissrio poltico e o cabo Luis. Nossa intuio, aguada em farejar tragdia e horror, avisou-nos que alguma coisa ia acontecer. No meio da tarde chamaram Eloy. Estava carregando pedras e amontoando-as como haviam indicado os militares. O cabo Luis e outro guarda que estava l h poucos dias, como encarregado da pedreira, ladearam-no, enquanto ia em direo do porto de sada, pelo caminho empoeirado de terra amarelenta. Pararam quase diante das guaritas de entrada. L, o cabo Luis pegou a baioneta, s costas de Eloy, alheio agresso, e descarregou-lhe uma pancada com a lmina de lado. Eloy voltou-se como vento, furioso. cabo deu vrias estocadas em Eloy, tentando feri-lo com a ponta da baioneta e foi ento que o outro militar, que no tinha batido em ningum at aquele momento, empunhou a

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baioneta e comeou a bater nele. Eloy no tinha mais possibilidades de evitar os golpes. Com um gesto instintivo de proteo, ergueu os braos para aparar as pancadas. De longe, assistimos ao brbaro espancamento. Alguns presos gritaram e os guardas das guaritas destravaram a segurana dos fuzilmetralhadoras, prontos para uslos em ns. Eloy cambaleava. Alm das pancadas com as baionetas, davam-lhe socos. Caiu, sem foras e continuaram, dando-lhe pontaps. O cabo Luis chamou o caminho do moinho de pedras, que era dirigido por um preso do Plano de Reabilitao. Com Lus e outro militar, ergueu o corpo de Eloy inconsciente. Agarraram-no pelos braos e pelas pernas, balanaram-no para dar impulso e atiraram-no dentro do caminho. Subiram imediatamente e disseram para o motorista tocar. Este arrancou to bruscamente que foi um milagre dois dos guardas no carem. O motorista pensou que fossem para o hospital, mas o cabo Luis gritou-lhe que virasse para baixo, na direo do grupo que estava quebrando pedras na rea sul da pedreira. L estava o terrvel Cachorro Preto, assim chamado por sua ferocidade. Tiraram Eloy do caminho e deixaram-no com Cachorro Preto. Quando vimos que em lugar de seguir com Eloy para o hospital haviam-no tirado do caminho ali, ficamos desconcertados. No podamos compreender por qu. Mas logo soubemos. Eloy comeou a voltar a si. O prprio Cachorro Preto ajudou-o a levantar-se e, quando ficou de p, o cabo desembainhou a baioneta e comeou a espanc-lo com sanha at que Eloy desmaiou de novo e caiu. Ento, Cachorro Preto sentou-se em cima dele, acendeu um cigarro, aspirou a fumaa com fora e, depois, erguendo a cabea para o cu, soltou-a muito lentamente... Havia um silncio absoluto. No se escutava um s dos gritos que haviam soltado no comeo, quando Eloy levara a primeira surra. O terror flutuava no ar, ameaador, ocupando todos os minutos. Eloy tornou a recuperar os sentidos um instante depois, e Cachorro Preto tornou a surr-lo. Assim, a cena se repetiu vrias vezes. Daquela surra, que rebentou-lhe um ouvido, Eloy ficou tonto para sempre, atacado por vertigens e enjo. Sua convalescena demorou semanas. Estava irreconhecvel. O rosto dele era um hematoma s, inchado, roxo. Nas costas, os ferimentos provocados pelas baionetas deixaram marcas que anos depois ainda no haviam sumido. A retina de um dos olhos ficou lesada, mas no se pde saber no momento qual o grau exato da leso, pois para isso seria preciso um exame feito por especialistas com aparelhamento adequado. No momento em que esta narrao escrita, Eloy, juntamente com dezenas de prisioneiros, estava h trs anos em cela murada, sem roupa, totalmente incomunicvel, sem correspondncia e com absoluta proibio de receber assistncia mdica. Para conseguir isso, teria que aceitar a reabilitao poltica.

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23. O Irmo da F
O Plano de Trabalhos Forados teve uma conseqncia que escapou aos "especialistas" em conduta humana do Ministrio do Interior. O presdio uniu-se de maneira monoltica. Diante da agresso e de um inimigo comum que batia, fustigava, torturava, produziu-se uma sensibilizao e identificao total e cada vez que batiam em algum era como se batessem em todos; cada vez que assassinavam um de ns nos campos era um irmo que matavam e nos doa a alma, o sangue. A angstia e o horror foram nos unindo mais e mais. Naquele sbado os grupos de prisioneiros regressavam s circulares ao entardecer. Homens rodeados de fuzis e baionetas iam chegando, silenciosos, dos campos de trabalhos forados, formando apertadas filas de fome, suor, cansao. Sujos, descalos alguns e outros com as roupas em trapos. Tinham os ombros cados e as costas curvadas, como se suportassem sobre si todas as amarguras e misrias humanas. O grupo 26, com suas quatro quadrilhas, avanava devagar pela estrada que corria paralela ao nosso edifcio. Estavam cansados, extenuados. Mais do que andar, arrastavam-se, quase sem foras para erguer as pernas. Os guardas exigiam mais rapidez na marcha e ameaavam, agitando no ar faces e baionetas. Os prisioneiros fizeram um esforo, mas os guardas queriam mais e comearam as pancadas com as lminas de lado... "Andem logo, filhos da puta!", gritavam, enquanto descarregavam a raiva. Lminas de faces e de baioneta cantavam nas costas dos presos. De repente, um preso de cabelos brancos, enquanto descarregavam em suas costas pancadas de lmina de faco, ergueu os braos para o cu e gritou, olhando para cima: "Perdoai-os, Senhor, eles no sabem o que fazem!". Todos chamvamos Gerardo, simplesmente, de "Irmo da F". Pregador protestante, havia dedicado sua vida a propagar a palavra de Deus. Ajudou muitos a enfrentar a morte com coragem e serenidade. E ia e vinha constantemente entre os grupos, infundindo f, tranqilizando os nimos, dando apoio. Auxiliou a muitos, a muitos consolou. Tirava-nos da cama para participar do culto. "Levanta-te, que o Senhor te chama!". No se podia dizer no ao Irmo da F. Se percebia algum pensativo e triste, dizia: "Quero ver voc no culto, hoje tarde"... E era preciso ir. Seus sermes eram de uma beleza primitiva e ele tinha um magnetismo extraordinrio. Desde o plpito, que improvisava cobrindo velhos caixotes de bacalhau com um lenol e com uma cruz simples, a voz atroadora do Irmo da F nos dava seus sermes diariamente. Depois, cantava-se em coro hinos de louvor a Deus, que ele escrevia em maos de cigarros e distribua entre os presentes. Muitas vezes a guarnio acabava com esses minutos de orao com pancadas de baionetas e de culatras de fuzil, mas no conseguiam atemorizlo.

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Quando o levaram para o campo de trabalhos forados da Ilha de Pinos, organizou leituras bblicas e coros religiosos. Ter uma Bblia era ato subversivo. Ele tinha, no sabamos como, uma pequenina que o acompanhava sempre. Se algum companheiro, fatigado ou doente, se atrasava na semeadura ou no tinha acumulado o nmero de pedras que tinha que quebrar com a picareta, o Irmo da F aparecia ali. Magro, musculoso, tinha uma resistncia incrvel para o esforo fsico e adiantava o trabalho do outro, salvando-o de uma surra. Quando algum dos vigilantes passava por trs dele e descarregava-lhe uma baionetada, o Irmo da F erguia-se como uma mola, olhava o soldado nos olhos e dizia: "Que o Senhor te perdoe!". *** A diretoria da penal comunicou, uma noite, que receberamos as visitas no refeitrio, sem as odiosas cercas de arame. E, alm disso, que os visitantes seriam autorizados a nos levar um pacote de ajuda familiar, com os alimentos que quisessem. A visita seria a cada quarenta e cinco dias, mais ou menos. Foi extraordinrio o jbilo em toda a circular. Depois de anos sem ver nossos familiares aquela possibilidade nos encheu de iluses. Pensei em meus pais, em minha irm e em Martha, que por fim iria ver. Depois de anos de correspondncia clandestina, nossa identificao havia sido to profunda que tudo em ns pedia um encontro. Por fim chegou o dia de visita, a primeira nos ltimos dois anos e alguns meses. Tiraram-nos do refeitrio para nos revistar. Vrios pelotes de guardas esperavam. A revista foi vexaminosa. Tivemos que ficar completamente nus, deixando a roupa ao nosso lado, para que a revistassem costura por costura. Tnhamos que abrir a boca para que olhassem dentro e se notavam que o preso tinha dentadura postia, obrigavam-no a tirla. Tambm podiam nos mandar levantar os testculos. Um guarda se agachava e olhava, para comprovar que no havia nenhum papel escondido. Era uma obsesso: tinham que impedir que sasse qualquer denncia, uma carta que tivesse valor de testemunho. No era permitido levar nada s visitas, a no ser o jarro de alumnio. s dez da manh, aproximadamente, apareceu na estrada o contingente de familiares. Os encontros foram dramticos, carregados de emoo. Os abraos, as lgrimas e a alegria, tudo misturado naquele momento ansiado durante anos. Chegou a minha famlia. Meu pai foi o nico que deixou escapar uma lgrima. Minha me e minha irm, mais fortes nesses instantes, expressavam sua alegria beijandome e abraando-me, as duas ao mesmo tempo. S podiam entrar trs familiares por preso. Martha conseguiu entrar com uma famlia amiga. Sua presena foi inesquecvel para mim. Mais de trs anos tinham se passado desde que nos vramos pela primeira vez. A adolescente que tanto me impressionara ento, havia se transformado em uma moa j quase com dezoito anos, mais alta, mais mulher, mais bonita e elegante. Quando chegou, olhamo-nos nos olhos, sem dizer uma palavra. Ela corou. Por dentro, no tnhamos deixado de estar juntos desde aquele 5 de setembro. Sabamos que estvamos unidos para sempre. As palavras no so necessrias quando as almas dizem tudo.

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Nossa conversa foi como dar-nos as mos e entrarmos em um mundo maravilhoso, criado pelo amor que sentamos e compartilhvamos. Tudo desapareceu ao nosso redor, as pessoas, o lugar, e ramos como o primeiro casal de namorados debaixo de um cu aberto e azul, inundado de uma luz que jamais nos faltaria. Sob ele nos encontramos sempre, deixando para trs celas e ferrolhos, angstias e tristezas. * * * Os sapatos que eu havia recebido abriram-se, desgastados pelas pedras. Mas eu acelerei o processo de desgaste esfregando-os na parede da cela; um trabalho paciente, de preso. E certa manh comuniquei ao chefe do meu grupo que meus sapatos tinham acabado e os mostrei. Foi assim que passei a fazer parte do grupo que ficava na circular, sem sair para trabalhar.

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24. As guas negras

Era o comeo dos trabalhos forados e ainda no tinham tido a idia de nos mandar trabalhar sem sapatos, mesmo. Pelo menos era o que eu pensava naquela madrugada, quando fomos chamados ao trreo. Chegou um peloto de guardas, diante do qual vinha Juan Rivero, aquele que era escolta e cuidava de ns nas celas de castigo. Ficou uns minutos olhando-nos e sorriu dissimuladamente quando terminou a inspeo. Mandaram-nos formar filas de dois no fundo. A partir desse instante j se notava a hostilidade em relao a ns. Comeamos a andar na direo da sada da priso; os guardas que nos escoltavam dos dois lados tinham sacado as baionetas e agitavam-nas, com gritos e ameaas. Passamos diante das guaritas dos militares, dos edifcios da diretoria, transpusemos o alambrado pelo porto principal e viramos direita, para o leste. A violncia de vez em quando aumentava. A caminhada se tornava dificultosa porque a maioria de ns estava descalo. Espinhos e pedras no nos permitiam um caminhar seguro como o dos guardas que calavam botas. Naquela zona encontrava-se uma valeta na qual desembocavam todas as guas servidas do presdio; no apenas dos presos, mas tambm das instalaes da diretoria, dos alojamentos dos militares, das oficinas, do hospital, do quartel, etc. L desembocavam os excrementos de umas oito a nove mil pessoas. O solo era rochoso, com pedras cheias de arestas cortantes, formadas por milhes de minsculas carapaas de foraminferos, que em Cuba se chamam "dentes de co". Chegamos a uma cerca de arame farpado. Os primeiros que tentaram passar por ela levantando com cuidado os fios de arame, para passar entre eles, apanharam de imediato. Mandaram que saltassem a cerca. Era proibido passar entre os arames: tinha-se que pular e cair do outro lado, de ps descalos sobre as rochas afiadas. Agarrei-me a um dos moures da cerca, dei impulso e pulei, sempre agarrado madeira, para amortecer a queda. No calculei que isso me faria cair muito perto do arame farpado e ao falhar-me o tornozelo direito, devido aos ossos fora de lugar que tinha desde que o havia quebrado ao tentar a fuga, meu joelho esquerdo dobrou, girei e ca sobre os arames. As farpas cravaram-se nele, rasgando a cala e a pele, deixando-me cicatrizes para sempre. Diante de ns estava a valeta de guas negras e na superfcie, flutuando, ilhotas de excrementos; por cima deles nuvens de moscas verdes. A fetidez tpica de guas podres, daqueles miasmas asquerosos, enchia o ar. Os cabos, aos empurres, usando os fuzis, obrigaram-nos a entrar na valeta imunda. Ca na gua negra, empurrado pelas costas, e no pude evitar que me enchesse a boca e inundasse

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os olhos. O pretexto para aquela tortura era que precisvamos limpar o fundo para evitar que o canal entupisse. Em alguns lugares a gua batia-nos no peito ou altura do queixo, dependendo da estatura do preso; o fundo, irregular e com bruscos declives, fazia a gente afundar de repente, quando se pisava em falso. Tnhamos que tirar alguma coisa do fundo, uma pedra, um pouco de lixo, qualquer coisa, nem que fosse um pouco de lodo, e levar margem, quando ento os guardas aproveitavam para nos bater com as baionetas. Aquele espetculo era indescritvel. Se algum de ns no submergia o suficiente, era retirado da valeta e surrado. Enquanto estvamos no centro da valeta no era fcil ento nos atingir com as baionetas. Arranjaram umas varas compridas para poderem nos surrar de longe. Outros guardas, desejosos de participar do castigo, atiravam-nos pedras. Mandaram que avanssemos para o trecho mais estreito da valeta. Justamente naquela parte uma camada espessa de excrementos cobria toda a superfcie, estancando a gua, que flua apenas por um pequeno canal. amos avanando naquele mar de merda. Cada vez que mergulhvamos, afastvamos os excrementos com as mos, para afundar a cabea. Os cabelos estavam grudados, os ouvidos e os ferimentos dos ps e os das pernas, causados pelas baionetas da guarnio, eram como portas abertas para a infeco. Os guardas, embriagados pela morbidez, desfrutavam aquela tortura: deleitavam-se ao nos ver afundar a cabea na gua podre. No perdiam ocasio de espetar com as baionetas ou a apoiar o p na cabea de um de ns e forar, a fim de nos obrigar a afund-la. Nada pode ser pior do que isto, pensava eu naqueles instantes angustiosos, enquanto pedia a Deus que me desse foras para resistir. J tinham me batido vrias vezes e os ferimentos do joelho ardiam, irritados pela ao da gua ftida. Continuamos por mais umas duas horas enfiados na merda. Voltamos andando. No me lembro de viagem ou caminhada mais penosa do que essa, nem de regresso mais desejado. S pensava em tomar um banho e desinfetar os ferimentos; sabia o perigo que significavam, pelo alto ndice de contaminao de guas servidas e excrementos. A circular esperava nossa volta. Os corredores encheram-se. Quando o grupo de homens alquebrados, arrastando os ps, exaustos, que formvamos, entrou no trreo, nossos companheiros entoaram a melodia do hino nacional. Uma parte dos oitenta homens, no entanto, ainda no tinha passado pelo porto: a guarnio, indignada com a recepo, presenteou-os com uma dose extra de pancadas, como despedida. Eu era um dos ltimos e a ponta de uma baioneta feriu-me no pulso esquerdo, quando levantei o brao, tentando me proteger da estocada. A represlia por terem cantado o hino nacional no se fez esperar: fecharam a gua at o dia seguinte e no pudemos tomar banho.

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25. Assassinatos e novos planos de fuga

Os prognsticos do Ministrio do Interior de que no resistiramos um ano sem pedir a reabilitao poltica se esfumavam. Eles tinham confiado, achando que o terror nos dobraria. O fracasso os fez descambar para uma violncia desesperada. Mas, paralelamente vesnia dos militares tinha ido nascendo em ns uma conscincia profunda, uma determinao inflexvel de resistir, de no ceder. amos vencendo o terror, amos nos endurecendo, convencidos de que ramos o smbolo da resistncia. No podiam nos fazer renunciar aos princpios que nos deixavam orgulhosos, que nos definiam. Continuvamos resistindo, mas com tranqilidade. No era uma resistncia fantica e obscura, mas sim clara, pensada, produto da nossa prpria essncia, da f e do amor por Deus, pela liberdade. A 9 de janeiro de 1966 os chefes de grupos reuniram-se na diretoria da penal. A reunio durou apenas alguns minutos. Foi uma anlise rpida do porqu os presos contrarevolucionrios no aceitavam a reabilitao. O mtodo que combinaram para conseguir isso foi uma verdadeira operao de terror. Os chefes receberam instrues sanguinrias e deixaram-nos com as mos livres para matar prisioneiros em cada bloco e generalizar o terror. Quando os presos protestavam por alguma agresso, os escoltas comeavam a atirar. Assim mataram, no bloco 31, Eddy Alvarez e Dany Crespo. O cabo Areia, chefe do grupo de Jlio Tan, quis humilh-lo, obrigando-o a arrancar mato com as mos. Tan negou-se. O cabo, baioneta na mo, foi em cima dele, agredindo-o. O preso, tentando esquivar-se das estocadas, caiu. Por trs, outro guarda atingiu-o com um enxado. Foi o momento esperado por Areia para enterrar a baioneta na coxa de Jlio Tan e revir-la, em crculos, para alargar o ferimento. Jlio Tan morreu de hemorragia em alguns minutos. Deudado Aquit tinha pegado seu prato e estava na fila diante dos caminhes, como se fazia todas as tardes. O cordo de escoltas encontrava-se muito perto e pronto para subir nos seus caminhes, depois que os presos, uma vez contados, subissem no deles. Soprava um vento forte. O chapu de Aquit saiu voando e caiu a alguns metros. O preso pediu autorizao ao chefe do grupo para sair da fila a fim de peg-lo e o militar respondeu-lhe que esperasse um pouco, que ia contar os presos. Quando terminasse, ele poderia pegar o chapu. O cabo comeou a contagem, chegou ao final, voltou-se e fez-lhe

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sinal que j podia ir pegar o chapu. Aquit saiu, deu dois passos, inclinou-se e nunca mais tornou a se erguer. Do fim da fila, um dos escoltas disparou uma descarga de fuzil AK nas costas dele. Isso para ele no tornar a sair da fila sem permisso comentou, apontando Aquit com o cano fumegante. * * * Diante do presdio, de um lado dos escritrios da penal, havia um grupo de casas ocupadas por funcionrios do presdio e seus familiares. Uma delas era do dr. Condi, diretor do hospital. Morava l com a esposa, jovem e muito imaginativa. Essa moa tinha o costume de nos oferecer sesses noturnas a respeito das quais foi preciso fazer uma campanha entre os presos, para que no assistissem ao espetculo. Quase todas as noites, quando o marido saa para as reunies e assemblias, ela apagava as luzes da casa inteira, menos a do quarto, cuja janela, aberta de par em par, dava para o presdio. Ento, colocava-se diante do espelho, de costas para ns, e comeava a tirar a roupa, lentamente, como se fosse uma dessas profissionais de striptease. Completamente nua, contemplava-se no espelho. Depois, comeava a pentear-se: os cabelos compridos caam-lhe at a metade das costas e ela os alisava com gestos provocantes. Com o pente, erguia os cabelos, sacudia a cabea, e os deixava cair. Passava, ento, a posar diante do espelho. Colocava as mos na cintura ou deslizava-as pelos seios e quadris, acariciando-os voluptuosamente, enquanto se movimentava ritmicamente em uma dana lbrica. O que passava pela cabea daquela mulher? Sabia que centenas de olhos a devoravam das janelas do presdio, que olhares carregados de desejo atravessavam o espao. Olhares de homens que estavam h anos sem contato sexual. Talvez em seus sonhos de luxria, ela se visse possuda por ns, em uma orgia indescritvel. Logo, a guarnio descobriu a coisa e nunca mais aquela janela se abriu. Dias depois, o mdico e sua mulher exibicionista foram transferidos.

* * * Celestino e Buria convidaram-me para planejar uma fuga. Conheciam minha tentativa anterior e queriam que tentssemos de novo. A fuga seria dos campos de trabalho. Nada fcil, mas no impossvel. O plano teria uma variante que, pensvamos, aumentaria a possibilidade de escaparmos. No tentaramos sair da ilha imediatamente, porque o maior risco estava justamente nisso. Fingiramos t-lo feito, mas permaneceramos escondidos. Depois, j com a vigilncia diminuda, acreditando que tnhamos ido embora, seria mais fcil sair da ilha. Era sabido que os presos comuns que h anos fugiam dos estbulos, ou de outros centros de trabalho, e se internavam nos pinheirais ou nos pntanos, entregavam-se por falta de alimento.

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A vigilncia e o terror dos camponeses tornava impossvel bater a qualquer porta para pedir comida ou ajuda. As autoridades confiavam nesta circunstncia. Disse aos meus companheiros que a nica maneira de subsistir no era com reserva de alimentos previamente enterrados em alguns lugares, mas sim comendo o que aparecesse: grilos, lagartos, rs, rpteis e os vegetais que conhecamos, que sabamos que eram comestveis. Propus que treinssemos, comeando desde logo a comer insetos. A idia, a princpio, pareceu muito violenta, mas acabou sendo aceita, se bem que Celestino e Buria no comeassem imediatamente. Eu comecei. Tinha lido que em algumas regies da sia comiam grilos e achavam-nos excelentes. Os da ilha eram grandes e sumarentos. Fui me preparando mentalmente. E certa manh decidi comer o primeiro grilo cru. Antes de coloc-lo na boca, esmaguei-lhe a cabea para evitar que pudesse me morder a lngua. Por ser o primeiro, at que o sabor no me desagradou. Uma semana depois, j comia trinta ou quarenta desses insetos por dia. Todos os amigos do bloco caavam grilos para mim. H algumas semanas, desde que tnhamos comeado a trabalhar no campo de capim pangola, Obregn e eu vnhamos comendo dessa erva. Escolhamos os talhinhos sumarentos e mastigvamos longamente. Parecamos ruminantes, o dia inteiro extraindo o suco do capim. Eu tinha lido um artigo sobre o valor nutritivo do capim pangola em um texto sobre criao de gado, que meu vizinho de cela, Alfredo Sanchez, tinha. Como brincadeira, Obregn e eu dizamos aos outros que se quisessem ficar fortes como um touro no era preciso que comessem o touro, mas sim o que o touro come. E muitos se convenceram e uniram-se a essa prtica. Do grilo passei a comer lagartixas e rs; depois, pequenas cobras, pois j a maj, um rptil da ordem dos bodeos, parente da boa, que em Cuba chega a medir vrios metros, era considerado um prato muito apreciado pela carne limpa e deliciosa. Tambm comia, entre outras coisas, tubrculos crus, ovos de pssaros e os brotos da erva-deelefante. Tudo o que andasse, voasse ou nadasse era comestvel para mim. Nos campos, onde as reses pastavam, disputava com elas o mel de purga que punham nos cochos; era caloria e eu precisava disso. Meu estomago de ferro suportava isso tudo muito bem, s mil maravilhas. Na manh seguinte, o guarda desdentado, de luvas vermelhas, estava nos esperando. No caminho, deu uma baionetada, de prancha, em cada um de ns e desde que chegamos comeou a ameaar que nos surraria se no trabalhssemos mais depressa. Continuou provocando Socarrs e at chegou a empurr-lo com a submetralhadora. Eu gritei para nossos companheiros saberem o que estava acontecendo e isso o acalmou um pouco. Seriam umas dez da manh. Tnhamos cinco minutos para comer um pouco de farinha grossa de trigo, mandada pelos nossos familiares. Nas savanas cubanas h uma variedade de serpente pequena chamada jubo. Capturei uma de mais ou menos meio metro; eu a segurava com fora e apenas sua cabea sobressaa de minha mo fechada; o restante do corpo enroscava-se em meu brao, em movimentos frenticos. Sacudi a luva da mo direita e agarrei-a com as duas mos. Vamos merendar! Voc vai comer a jubo?

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Socarrs perguntou isso com ar de gozao, por minha deciso de comer tudo quanto fosse animal que passasse ao meu alcance. Eu respondi, firme : Sim! O guarda me observava com curiosidade. E viu o que menos imaginava: com rpido movimento, enfiei a cabea da jubo na boca e cravei-lhe os dentes com fora. Foi uma dentada feroz, que lhe quebrou a espinha dorsal e rasgou a carne. Depois, cortei com os incisivos e com um puxo separei a cabea do corpo, do qual o sangue, que brotava em pequenos jorros, salpicou-me o rosto. O guarda saiu correndo, gritando pelo chefe do bloco e eu cuspi a cabea e joguei a cobra fora, enquanto ainda se retorcia.

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26. Outra vez La Cabaa

Quando o gradeiro, com uma lista na mo, mandou que toda a circular fizesse silncio, no tive a mais remota idia do que ia acontecer. Escutei meu nome e o de muitos dos amigos mais prximos Pruna, Celestino e, depois, a ordem de recolhermos todos os nossos pertences, menos as camas. amos ser transferidos. Havia alguma coisa anormal naquela transferncia. O pessoal que havia aparecido com as listas no se formava de oficiais conhecidos e pela hora no parecia se tratar de transferncia interna. Talvez fossem nos levar para o campo de concentrao do Vale dos ndios, ao sul da ilha, pensamos muitos de ns, pois corria o rumar de que os presos que causavam maior complicaes para eles iriam para aquele campo. Samos entre adeuses e demonstraes de afeto dos amigos. Buria no tinha sido chamado, Outra vez uma transferncia atrapalhava os planos de fuga. Levaram-nos a um local perto da instalao eltrica. L fizeram uma revista que nos deixou apenas com uma frao mnima do que tnhamos. E chegaram os caminhes. Tiraram Boitel do hospital e alguns detidos das celas de castigo, entre eles Izaguirre, Rivero e Nern. Mas no nos levavam para os campos de concentrao do sul da ilha. As especulaes a respeito da nossa transferncia deram um salto para o otimismo: o presidente Johnson tinha pedido a Castro que permitisse a sada de prisioneiros polticos quando do xodo por Camarioca, aquele porto da costa norte da provncia de Matanzas, por onde os exilados cubanos em Miami foram procurar seus familiares. Os caminhes saram pela estradinha que rodeia os alambrados do leste. Das janelas do presdio, lenos, mos dizendo adeus e gritos de jbilo despediam-se de ns. ramos uns cento e cinqenta homens, especialmente selecionados. S uma vez tinha acontecido uma sada como aquela: a dos invasores da Baa dos Porcos, quando foram permutados. Ao chegar ponte sobre o rio Las Casas, o comboio virou para a direita e desembocou no cais. Este estava militarmente tomado, com severas medidas de segurana. As entradas estavam bloqueadas por carros de patrulha e nos tetos vamos soldados armados com fuzilmetralhadoras. Entramos num barco e nos fizeram sentar no salo. Do meu lugar, perto da popa, eu via a metralhadora apontada para ns. Toda a coberta estava tomada por militares e agentes da Polcia Poltica paisana. A tarde estava de uma beleza imponente. Atrs, as cordilheiras da Ilha de Pinos pareciam lombos azulados de grandes dinossauros. E entre elas viam-se as pequenas

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luzes do presdio. Uma nvoa cinzenta ia envolvendo os vultos cilndricos, enormes, das circulares. Para ns, a viso do presdio ao longe, ao entardecer, surpreendia. O sol afundou no mar e ns, em ntimos pensamentos. Escutava-se o barulho da gua cortada pelo barco, da esteira que o deslocamento formava atrs, o que de meu lugar no podia ver. No se ouvia uma s voz. Pensava, tambm, que podamos ser permutados, porque sabia que havia gente agindo nesse sentido. Rumores constantes fortaleciam essa esperana, que se manteve por mais de vinte anos, s vezes alimentada pelas prprias autoridades. Eles usavam esse mtodo para erguer o nimo do preso: alimentavam-no espiritualmente, para depois deix-lo cair. Essas mudanas bruscas provocavam crises de depresso que iam minando o prisioneiro, desgastando suas reservas psquicas. Os altos e baixos repentinos deixavam marcas de desorientao e angstia. Mas agora estava acontecendo uma coisa fora de qualquer clculo: estvamos saindo da Ilha de Pinos. No mesmo banco estvamos Pruna, Luis Pozo e eu; um pouco mais adiante, Boitel, que eu no via h mais de um ano. Estava rodeado de vrios amigos. Quando ficou s, aproximei-me dele e comentamos as coisas mais importantes que tinham acontecido desde a ltima vez que nos vramos. Boitel estava muito magro, mas sempre com aquela energia e entusiasmo que contagiava a todos. A viagem levou umas doze horas. Estava amanhecendo o dia 29 de maio de 1966 quando chegamos a Bataban. L, as medidas de segurana eram maiores ainda. Os tetos dos armazns e as esquinas das ruas estavam transformados em ninhos de metralhadoras. nibus ingleses Leyland esperavam-nos. Fomos entrando. O ltimo banco estava completamente ocupado por seis guardas armados com submetralhadoras tchecas. Quando estvamos sentados, quatro ou cinco militares postaram-se perto do motorista, apontando-nos suas armas. Cinco ou seis nibus formavam o comboio, que partiu lentamente entre um corre-corre de jipes com militares que berravam ordens aos motoristas. Em ns continuava firme a idia da troca, que dentro de uma hora, mais ou menos, seria confirmada ou descartada. Quando os nibus, sempre escoltados por muitos patrulheiros das polcias Metropolitana e Poltica, entraram pela Rua Monumental, rumo ao presdio de La Cabaa, as aes da troca comearam a baixar. E ao dobrar, de maneira inequvoca, para a ttrica fortaleza, outras anlises e preocupaes irromperam em nosso crebro. No entanto, regressar da Ilha de Pinos era algo assim como a maior iluso que tnhamos todos ao sairmos para os campos de trabalhos forados, de onde no sabamos se sairamos vivos. A guarnio de La Cabaa, sob o comando de um oficial de raa negra, esperavanos com uma agressividade tremenda. Atravessamos a p o fosso onde se erguia o poste carcomido com a parede de sacos ao fundo. O "Matadouro de Castro", como o povo o chama. O fatdico paredo. Amarrados quele poste, milhares de cubanos foram executados.

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Quando entramos no ptio do crcere, aplaudiram-nos. Todos que voltavam da ilha eram recebidos com admirao. Sabia-se em todos os presdios o que acontecia por l e da herica resistncia que os presos faziam diante dos brbaros planos do Governo. Destinaram-nos a gal 7, a ltima, a menor, a mais lbrega, a mais isolada, a mais escura e pior de todas. Onde cabiam apenas 80 homens apertados, enfiaram 225. As torres de quatro a cinco camas de ferro quase esbarravam no teto. O centro era um corredor to estreito que mal cabia uma pessoa. No espao que ficava entre uma torre de cama e outra s se podia passar de lado. A fome que reinava ento na priso de La Cabaa nem sequer podia ser comparada do presdio da Ilha de Pinos. s duas horas da tarde mandaram-nos para o refeitrio. Nunca esqueci aquela comida: eram trs colheres de arroz com uns ossos de frango. sem absolutamente nada de carne. Quando digo trs colheres, no exagero: eram exatamente trs... eu as contei. E mais um po. Era tudo. Nunca vi rao como aquela. Um guarda, de olho no relgio, contava dois minutos. Passado esse tempo, era preciso levantar-se, tivesse o preso terminado de comer ou no. Mas para aquele arroz at sobrava tempo. Era proibido levar po para a gal. Os que no sabiam e o deixaram mostra, na mo, ficaram sem ele: os guardas tiraram. Tudo estava dirigido para nos fazer sentir a presso da fome, pois que lhes podia importar se levssemos o po para comer mais tarde? Durante a volta cela estive pensando naquela situao. Muitos se indignaram com a restrio dos alimentos. Era isso mesmo que os guardas queriam: que os presos se alterassem. Compreendi que com aquela medida pretendiam nos manipular, nos humilhar, nos reduzir a nada por meio da fome. E decidi, no dia seguinte, impor-me uma medida de autodisciplina que exercitasse e fortalecesse minha vontade. Quando me sentei diante das trs colheradas de arroz, separei uma e comi imediatamente as outras duas. Celestino e Pruna diziam que eu estava louco. Respondi que era um modo de pr prova a vontade e o carter. Se no dia seguinte me dessem duas colheradas, deixaria uma. Para mim, aquele modo de proceder foi como uma vitria. Desde ento sempre me sobrou comida. Nos dias que davam farinha de milho a comida era mais do que uma tortura. Serviam esse alimento fervendo e quando mal tnhamos conseguido pr uma colherada na boca, terminavam os dois minutos, tnhamos que ficar de p e sair do refeitrio com o estomago vazio. Como podamos levar o jarro de gua, logo resolvi esse problema. Simplesmente, derramava gua na farinha fervente, mexia um pouco e bebia aquele caldo.

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27. A luta contra o uniforme azul

Os presos que tiravam da Ilha de Pinos eram espalhados por todo o pas, em campos de concentrao e presdios fechados de grande segurana. Situavam-nos o mais longe possvel de suas famlias, em regies distantes. Essa operao tinha como objetivo a desestabilizao emocional do preso j que, para a nova etapa que iniciariam, tentavam romper os pontos mais firmes de resistncia. Ao chegar aos seus lugares de destino, entregavam-lhes um novo uniforme, azul, o mesmo que era usado pelos presos por crimes comuns e os reabilitados. Os que se negavam a vesti-los eram surrados por especialistas em luta corpo-a-corpo do Ministrio do Interior. Em Pinar del Rio, nos trs campos de concentrao Sandino, os mtodos que usaram foram mais brutais do que em qualquer outro presdio. Encapuzavam e afundavam em poos, amarrados com cordas por. baixo dos braos, os que no aceitavam o uniforme; queimavam-nos com charutos acesos, agarravam-nos pelos cabelos e batiamlhes as cabeas contra a parede at que caam ao cho, sem sentidos. Depois de dois dias, sem dar-lhes gua nem alimento, desamarravam-nos e se o preso tirasse o uniforme levava outra surra. No respeitaram sequer os velhos e doentes. Os que resistiram a todas as torturas e no vestiram o uniforme azul foram levados sem roupas para o presdio provincial, .localizado no quilometro 5,5 da estrada que vai para o povoado de Luiz Lazo, na provncia de Pinar del Rio. L, em um pavilho especial, com celas dos dois lados, aglomeraram todos os que iam chegando dos diferentes campos de concentrao da provncia: Taco-Taco, Sandino 1, 2 e 3, O Bruxo, etc. Foi por isso que essa priso foi chamada "a cidade nua". No presdio de La Cabaa a troca de uniformes aconteceu sem apelao para a violncia. Ns que no aceitamos o uniforme fomos despojados de todos os nossos pertences e da roupa que tnhamos usado at aquele momento um uniforme cqui e levados para as gals completamente vazias. ramos mais de trezentos em cada gal. Na hora de dormir, no cabamos deitados no cho. Tnhamos que deitar um colado ao outro. Ainda assim tnhamos que nos dividir em turnos; um grupo de uns trinta homens sempre tinha que ficar de p, a entrada da cela. medida que os dias passavam, muitos que no viam outra sada para a situao resolveram aceitar a roupa azul. Quando isso acontecia, eram retirados imediatamente da gal e os levavam embora de La Cabaa. Depois, insistiam em que falassem com os

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amigos e tentassem convenc-los da inutilidade da recusa do uniforme. Nem todos se prestaram a esse trabalho de proselitismo em favor do uniforme do preso comum. Pouco a pouco o nmero dos que estavam sem roupa se foi consolidando. Naquele ano as frentes frias chegaram mais cedo do que nunca. Rajadas de vento, gelado para nossa falta de roupas, varriam as gals. Vamos ver o que faro quando o frio chegar diziam-nos. No se podia dormir. O vento soprava a noite inteira. Lembro que consegui um rolo de papel higinico com um amigo do andar de reabilitao, que trabalhava na farmacinha. Ento, eu dormia o mais perto possvel da parede. Tive a idia de enrolar o papel sanitrio no corpo, como se fosse a bandagem de uma mmia. E incrvel o agradvel bem-estar que uma coisa to leve como esse papel me dava. Era como se eu tivesse vestido uma cala de l. Mas durou apenas duas noites. Descobriram, e me tiraram o papel higinico. Os militares chamavam os presos ao acaso para propor-lhes que se vestissem. Argumentavam, falsamente, que o uniforme cqui se esgotara no almoxarifado, que no ia mais ser fabricado e que esse era o motivo pelo qual tinham que nos dar o uniforme azul. Diziam que aceit-lo no tinha implicaes polticas. Mas nem eles acreditavam nisso.

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28. Os nus

Tiraram-nos da gal e em um canto do ptio os barbeiros fizeram-nos um ridculo corte de cabelo, raspando tudo a zero, menos um chumao de cabelos sobre a testa. Sem roupa, o ar gelado me arrepiava inteiro. Passava o tempo todo com a pele eriada. Samos do ptio escoltados por guardas armados com fuzis AK e baioneta calada. Enfiaram-nos no curral onde eram feitas as visitas. Poucos minutos depois, fizeram-nos sinais para que comessemos a andar. Naquela manh de 5 de outubro de 1967 tudo era cinzento, o cu, o ar. J nos aproximvamos das instalaes da diretoria quando uma porta se abriu e o diretor saiu. Ele disse a um dos guardas que me fizessem entrar em um local direita. Escutei vozes e de repente a porta se abriu. Minha me e Martha foram literalmente empurradas para dentro da sala. Eu queria que a terra se abrisse embaixo de meus ps e me engolisse. Minha primeira reao foi abraar-me minha me para ocultar minha nudez. Martha era minha namorada. Tnhamos um idlio maravilhoso, mas aquela canalhice dos militares, fazendo-a entrar eu estando sem roupa, era uma atitude inqualificvel. Imediatamente entraram o diretor, o ento tenente Lemus, chefe dos Crceres e Presdios, e um capito da Poltica Poltica, alto, de cabelos brancos, chamado Ayala. Ofereceram-me um uniforme azul, dizendo-me que se o vestisse me dariam uma licena de quarenta e oito horas para ir para casa, com minha famlia. Queriam explorar aquela situao, o pudor e a vergonha de me encontrar naquela circunstncia to deprimente. Minha resposta, irada, foi que eram um imorais e uns chantagistas, que no ia me vestir de azul. Disse a minha me e Martha que fossem embora e avisassem aos demais familiares que no viessem, que no se prestassem a essa manobra dos nossos carcereiros. Elas tinham sido chamadas por um telegrama no qual diziam que se fossem ao presdio dariam autorizao para visita. Dei um beijo em cada uma e foram embora. Tinham sido muito curtos os minutos da presena de minha me e de minha namorada ali, mas me pareceram eternos. Ento, o tenente Lemus gritou-me, indignado, que conseqncias eu esperava da atitude rebelde que vinha mantendo. Eu no espero nada, tenente. Simplesmente ajo da maneira que considero certa. Pouco depois, os que continuavam sem aceitar o uniforme azul foram enviados para o presdio de Boniato, na provncia de Oriente, no extremo de Cuba. L era muito

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mais frio do que em Havana, talvez porque o presdio estava no fundo de um vale. Tnhamos que dormir no cho, pois as celas no tinham camas, nem "avies". Bernardo Alvarez e eu partilhamos um daqueles calabouos. Soubemos que outro grupo de prisioneiros polticos estava isolado no hospitalzinho. Como ns, eles tambm recusavam o uniforme militar. Eram cerca de uns vinte e os mantinham fechados nos cubculos onde estavam os tuberculosos e outros doentes que sofriam de males infecciosos, o que era como conden-los a morte. As celas eram espaosas, mas estavam com as entradas seladas por placas metlicas e tinham apenas uma janela gradeada ao fundo. As autoridades tinham prometido que lhes dariam roupas de baixo para cobrir a nudez e cobertas para o frio. Mas no passara de promessa. J estavam h meses dormindo no cho de granito. No dia 13 de novembro, quando o frio entrava em rajadas geladas pela abertura gradeada do fundo, o chefe do Ordem Interna, tenente Jauto, apresentou-se para responder s constantes demandas dos prisioneiros para que lhes dessem roupas de baixo e as cobertas de inverno prometidas. Se no quiserem passar frio, vo ter que aceitar o uniforme azul e se no gostarem, podem fazer uma greve de fome disse e foi embora. No dia seguinte, os prisioneiros aceitaram o desafio: devolveram a gua aucarada do caf da manh e declararam-se em greve de fome. Depois de cinco dias de greve de fome, um mdico que inspecionava os calabouos informou ao oficial Castillo, chefe militar do hospitalzinho, que a partir daquele momento uma complicao poderia acarretar a morte de qualquer um deles. Nessa mesma noite vrios guardas entraram nas celas e levaram os presos, fora, ao salo da farmacinha. Amarraram-nos a umas macas e aplicaram soro em seus braos. Todos os dias hidratavam os grevistas do mesmo modo. Uma mudana na diretoria da priso levou o tenente Garcia, velho militante do Partido Comunista, chefia. Visitou os grevistas e prometeu-lhes que, se comessem no dia seguinte, receberiam roupas e cobertas. J se haviam passado dezessete dias. Eles aceitaram, com a condio de reiniciar a greve, se a promessa no fosse cumprida. Mas, cumpriram-na. *** Uma tarde, Jauto, o chefe dos comissrios polticos, me chamou para comunicar que meu pai tinha sido preso, condenado a vinte anos de priso e que se eu vestisse o uniforme azul me levaria para v-lo no campo de concentrao de Manacas, na provncia de Las Villas. Aquela notcia me transtornou. Era uma coisa que eu jamais tinha esperado. Mas respondi que seu oferecimento no me interessava. No pretendia me vestir por motivo algum, absolutamente. Fiquei muito preocupado com a notcia da priso de meu pai. Um novo sofrimento acrescentava-se a minha existncia, talvez o mais preocupante de todos, porque significava necessidades, misria e perseguio para minha famlia. Minha me e irm tinham ficado sozinhas, desamparadas e mais marcadas ainda porque, alm de mim, tambm meu pai, agora, era um preso poltico.

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Aquela foi a pior notcia de todas as que eu havia recebido naqueles anos de priso. Tambm sentia por meu pai, j entrado em anos e doente. Mas nada podia fazer, a no ser assimilar o duro golpe e fortalecer ainda mais a minha f diante do contratempo. Mais uma provao, mais um desafio minha resistncia. No entanto, meditei, analisei minha posio : valia a pena minha conduta rebelde? Bastava que eu dissesse que aceitava o uniforme azul e no dia seguinte partiria para Havana; no outro, estaria junto com minha famlia. Isso, sem dvida, mitigaria o efeito da priso de meu pai. Para minha me e minha irm seria um alvio enorme. E para Martha? Ela seria capaz de compreender meu modo de agir, de aceit-lo? Tinha certeza de que sim, que materialmente o aceitaria, mas compreenderia interiormente? Eu a havia preparado desde o primeiro dia, havia demonstrado claramente que no pensava em modificar minha conduta. Sempre lhe explicava o que fazia e por qu. Agora. uma mudana em meu comportamento poderia parecer inconseqente. No acredito que o homem deva ser dogmtico, mas sim que, ao contrrio, seus critrios devem evoluir. Mas h algo em que ele no pode ceder: suas convices ou valores ticos, que so como pilares que o sustentam interiormente. Se apenas um deles quebrasse, o edifcio ntegro de sua vida poderia vir abaixo. Quando analisava meu modo de proceder, eu sentia que minhas estruturas interiores correriam perigo se mudasse, como queriam meus carcereiros. Duvidava, mas ento recorria a Deus, pois Dele, sim, nunca duvidei, e encontrava novamente o caminho; minhas anlises tornavam-se difanas e eu reiniciava a marcha com nova proviso de f e esperana. Ns, dos grupos que recusaram os uniformes azuis, fomos dispersados por todos os presdios e campos de concentrao do pas: o crcere de Camagey, o de Holgun, o de Manzanillo, em Pinar del Rio, em Guanajay, no Castelo do Prncipe, em La Cabaa e outros. Em muitos presdios empregaram-se surras sistemticas para obrigar-nos a nos vestir. Tambm o confinamento em calabouos com paredes e solo cobertos com asfalto derretido, pegajoso, que deixou para sempre suas marcas na pele dos prisioneiros. O chefe de Crceres e Prises, capito Medardo Lemus, participou pessoalmente, com um nutrido grupo de guardas, de espancamentos de prisioneiros no castelo de San Severino e no campo de concentrao de Agica, na provncia de Matanzas. Foi l que Garcia Plasencia, um prisioneiro que estava morrendo de pancadas, deu um soco no meio da cara do capito Lemus. Por isso, caram em cima dele a pontaps. Quando escrevo estas linhas, Garcia Plasencia continua preso, h mais de vinte anos. A existncia dos prisioneiros polticos nus foi denunciada diante de governos e organizaes internacionais, mas estes no se preocuparam em se manifestar. A Anistia Internacional manteve-se em silncio. Seu diretor era, nessa poca, Sam McBride, que recebeu o Prmio Lnin da Paz, concedido, como se sabe, pelo Soviet Supremo da URSS aos que defendem os interesses da Unio Sovitica, sua poltica exterior e suas concepes ideolgicas. Esse mesmo Sam McBride, dez anos depois, em julho de 1978, presidia uma conferncia sobre Direitos Humanos, realizada na Venezuela, para denunciar as violaes que estavam acontecendo na Amrica Latina. Correto e gentil, cumprimentou minha esposa, que participava da conferncia, sem saber quem era ela. Quando Martha comeou seu discurso e o sr. McBride escutou-a dizer que em Cuba os Direitos Humanos eram violados, perdeu toda a compostura, gritou, histrico, e proibiu-a

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de continuar falando. Martha tentou continuar a exposio e o sr. McBride comeou a bater fortemente sobre sua mesa, gritando, ao microfone, para os tradutores, que faziam traduo simultnea, no traduzirem as palavras dela, impedindo, dessa maneira, e diante da consternao de todos os presentes, que ela continuasse falando. No dia seguinte, na primeira pgina do jornal venezuelano ltimas Notcias, havia esta manchete, ocupando toda largura do jornal: "VIOLAM-SE OS DIREITOS HUMANOS EM CONFERNCIA SOBRE DIREITOS HUMANOS". Os demais rgos da imprensa tambm comentavam o incidente com duras crticas. O sr. McBride no queria ouvir nada sobre a violao dos Direitos Humanos em Cuba. O que teria pensado o Soviet Supremo se ele o tivesse permitido? Talvez lhe retirassem a medalha Lnin da Paz e seus comparecimentos a Rdio Moscou. * ** Passaram-se vrios meses. O governo de Castro convenceu-se de que nossa posio, depois de terem ido embora os que no estavam completamente convencidos para sustent-la, se havia consolidado. verdade que o resultado tinha sido favorvel ao regime. A maioria havia aceitado o uniforme azul. Foi ento que nos chamaram e partimos outra vez rumo a Havana. O Ministrio havia dado ordem de nos reconcentrarem, todos, na priso de La Cabaa. Momentos antes de partir do presdio de Boniato, um soldado aproximou-se de ns, olhou receioso para todos os lados, e quando se convenceu de que no seria ouvido pelos outros guardas, disse, num sussurro, que iam nos dar o que queramos: o uniforme que usvamos antes. A viagem de volta a Havana, se bem que significassem mais de doze horas de falta de comodidade, era-nos agradvel, pois queria dizer a volta para a capital, para a informao, a proximidade dos nossos familiares que, mesmo no podendo ver, sabamos que estavam prximos, do outro lado da baia. Em Camagey, outro veculo cheio de presos nus uniu-se ao nosso. Procediam de outro presdio. Quando chegamos a La Cabaa, no ptio, deram-nos cuecas e uma toalha. A maioria estava concentrada ali; s faltvamos ns e um grupo do campo de concentrao San Ramn. O tratamento dos militares foi pouco agressivo, o reencontro de velhos companheiros nos dava grande alegria. Designaram-nos o pavilho 13. E anunciaram a visita do Ministro do Interior, o comandante Sergio del Valle, um dos homens de confiana de Castro. Assim que entrou, rodeado por meia dzia de guarda-costas, comeou a falar. Disse que o caso do uniforme havia terminado, que nos dariam o que usvamos antes. Acrescentou que no seriam tomadas medidas contra os que no quisessem aceit-lo, que inclusive dariam a eles os mesmos direitos que aos vestidos. A muitos de ns aquelas palavras pareceram falsas, hipcritas, enganadoras. Perguntvamos a ns mesmos por que se haviam nos mantido mais de um ano sem roupas, batendo na gente, torturando-nos tinham, de repente, tanto interesse em que tornssemos a aceitar o uniforme que nos tinham tirado. Valeu a pena estudar, analisar isso. Alm disso, havia outras questes a serem tratadas: por exemplo, o regime de

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visitas, correspondncia, assistncia mdica, condies de vida, etc. Devamos esperar antes de aceitar a roupa. Muitas coisas tinham acontecido. Boitel era um dos promotores desse planejamento. Mas a maioria se vestiu e apenas uns 250 de ns permaneceram nus, esperando para ver como se desenrolava a estratgia dos comunistas. No comeo, o prprio Ministro do Interior tinha dito que ns todos podamos ficar juntos no mesmo pavilho, os que tinham aceito o uniforme e os que no. Mas, poucos dias depois, houve uma separao e ns, os sem roupa, fomos levados para os pavilhes 12 e 13. Marcaram os dias de visita. E autorizaram a confeco de bermudas ou shorts e a entrada de camisetas brancas, sem gola, para que fossemos ao encontro dos nossos familiares. Colocaram uns tabiques e fizeram dez ou doze separaes no enorme salo de visita, de maneira a podermos ficar ao lado dos nossos familiares. O encontro com eles foi de uma alegria imensa, inefvel. Minha me, minha irm e Martha contaram-me o que havia acontecido nos ltimos tempos. Aquelas visitas, depois de meses e meses sem nos vermos, e a angstia de querer saber tudo em alguns minutos, produziam uma perturbao tremenda. Eu j havia passado por isso antes, e estava com uma lista, feita com tranqilidade, dos assuntos que me interessavam com prioridade. Naqueles visitas usei como bolso secreto o forro duplo que os cales de ginstica tm. Logo ficaria na moda o seu uso para entrada e sada clandestina de correspondncia. A vigilncia das autoridades havia diminudo. Permitiam que ficssemos vrias horas no ptio, tomando sol, e o modo da guarnio nos tratar suavizou-se. Tudo fazia parte de uma estratgia: a de que os nus no vissem diferena algumas com os uniformizados e acabassem aceitando a roupa, coisa que eles precisavam para poder iniciar o novo plano de destruio do presdio poltico. Logo ficaria provado que tnhamos, razo em ter desconfiado.

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29. Martha detida: nosso casamento

As condies de vida comearam a se deteriorar. No se cumpriam as promessas de assistncia mdica adequada, no se passava os loucos para um local apropriado e no entregavam a correspondncia. Foi proposta uma greve de fome, da qual participariam os vestidos, com uniformes amarelos, e ns, os nus. Houve passagens dignas de serem lembradas, como o que aconteceu com o dr. Mic Urrutia, um velho beirando os setenta anos. Seu aspecto, depois de trs semanas sem comer, era cadavrico como o dos sobreviventes dos campos de concentrao nazis. Foram dizer a ele que se desistisse imediatamente da greve lhe dariam a liberdade. Eu no abandono meus companheiros em uma situao difcil respondeulhes. Nem um s dos doentes e havia alguns em estado grave desistiram da greve. Aldo Cabrera havia tido enfartes, Fernandez Gmez ficou com o corpo coberto por crostas escamosas, Luis Lara no retinha gua no estmago, vomitava o tempo todo; como ele, havia mais alguns para os quais a greve de fome se transformava em tortura dupla. Martha foi a primeira a saber o que estava acontecendo, por uma carta que consegui lhe mandar, e avisou muitos familiares dos demais presos que, dois dias depois, apresentaram-se no primeiro posto da entrada e ficaram esperando l at que lhes deram notcias nossas, da situao em que nos encontrvamos Outras mulheres dirigiam-se s dependncias do Ministrio do Interior, mas sempre recebiam a mesma resposta por parte dos funcionrios: enquanto no depusssemos nossa atitude de fora, no havia soluo. Na segunda semana, patrulhas de militares impediram o acesso porta do presdio e nossas mes, esposas e irms ficaram em um caminho de terra que une La Gabaria ao Castelo do Morro. Passaram o dia inteiro ao sol e chuva. Em meados de outubro, a tenso e a incerteza levaram os familiares secretria de Castro, Celia Snchez, para pedir-lhe que intercedesse em nosso favor. Do presdio, foram rua onde ela morava. No era uma manifestao clssica, com cartazes ou com palavras de ordem. Simplesmente, um grupo de numerosas mulheres caminhando juntas, em silncio. De repente, carros de patrulha, com as sirenes ululando, apareceram na rua inteira, bloqueando-a. Os policiais saram dos veculos como se fossem caar criminosos perigosos. As senhoras idosas foram arrastadas sem misericrdia, aos arrancos, e enfiadas, aos empurres, em automveis; nas mais moas chegaram a bater, dando-lhes bofetadas.

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Martha, junto com outra senhora, tinha conseguido escapar, mas olhou para trs e viu sua amiga Ins, a esposa de Raul del Valle, debatendo-se nas mos de um policial que a havia agarrado pelos pulsos e a arrastava para um carro de patrulha. Correu at ela. Enfiaram-nas no mesmo automvel, levaram-nas para a Chefatura Central da Polcia Nacional Revolucionria. Apareceu o chefe dos carros de patrulha, capito Justo Hernndez, o mesmo que, sendo diretor de La Cabaa, ameaou Martha de prend-la. Estava histrico, guinchava e dava gritos, dizendo que eram todas agentes da CIA. Ins, que sabia da ojeriza que o capito Hernndez tinha de Martha, tratou de escond-la, colocando-se na frente dela. Mas quando puxaram Ins para enfi-la num dos carros, ele a viu. Olhem s quem caiu na rede! Agora, sim, voc vai apodrecer na priso. Um tenente foi pegar Martha e levou-a para um dos tantos escritrios daquele labirinto. L a esperava, sentado atrs de uma escrivaninha, um oficial mestio, de uns cinqenta anos, que comeou a interrog-la. Queria saber quem hava organizado a manifestao. Martha respondeu que os familiares daquelas mulheres iam morrer em uma greve de fome que eles haviam provocado no fornecendo aos presos o mnimo necessrio para subsistir. O oficial disse ento a Martha que elas eram dirigidas e pagas pela CIA. Depois, perguntou se ela havia proposto ao pai dela e a mim que passssemos para o Plano de Reabilitao, pois era a soluo ideal, j que a revoluo, humana e justa, dava aos que a haviam tentado destruir a sociedade socialista a oportunidade de se reintegrar nela. Martha respondeu que nem para ns, nem para ela, a reabilitao era uma soluo, que no amos negar a Deus, quaisquer que fossem as conseqncias. Pois vai ter muito tempo para pensar nisso. Foram as ltimas palavras daquele oficial e Martha achou que ia passar muitos anos na priso. Tornaram a cham-la. Novamente corredores e escadas desertas. Chegaram a um salo onde estavam as outras. L tiveram que escutar uma longa exposio de ameaas e acusaes, at que, finalmente, disseram que daquela vez iam passar por alto sobre o que tinham feito. A Polcia Poltica chamou Josefa, a me de Martha, e lhe disse para ficar em uma esquina que lhe indicaram, e que no sasse dali. De madrugada, disseram a Martha e a Ins que andassem at onde Josefa estava. Encontraram-se e se abraaram, chorando. No dia seguinte a greve terminou. Depois de vinte e um dias, nossa firme deciso obrigou as autoridades a ceder diante da justeza dos pedidos. * * * Alguns de ns solicitamos direo do Ministrio autorizao para nos casarmos; acreditvamos que era o momento propcio para faz-lo, dada a suposta poltica conciliadora que estavam desenvolvendo. O pai de Martha e eu queramos que ela fosse embora de Cuba, morar com seus irmos no exterior. Isso era necessrio para sua segurana, depois de ter sido detida e fichada pela Polcia Poltica.

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Martha, depois de mil argumentaes do pai e minhas, mudou a deciso de permanecer em Cuba e concordou em ir embora do pas. A dela era uma das poucas famlias que tinham ficado para trs, quando as solicitaes para sair de Cuba foram aprovadas. Naquela ocasio, dezenas de milhares de pessoas foram embora para os Estados Unidos nos chamados Vos da Liberdade, em 1965. Ela tambm teria podido ir. Certa manh, no escritrio dos militares, assinamos os documentos legais e, assim, nos casamos. Aquele ato no tinha para ns o menor valor espiritual. S nos sentiramos realmente casados quando nos unssemos diante de Deus. Como uma especial concesso para os dois pares que se haviam casado, concederam-nos quinze minutos no salo de visitas. Quando Martha sasse de Cuba, faria isso como minha esposa. Tnhamos conversado o quanto seria til seu trabalho fora do pas, em favor da minha libertao. Planejamos toda uma srie de atividades com o objetivo de criar uma campanha de opinio pblica que obrigasse Castro a me libertar. Ela no teria dificuldades para levar essa campanha a cabo, pois era uma verdadeira ativista. Martha respondeu com juros s esperanas que depositei nela.

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30. Uma priso nazi no Caribe

De todas as prises e campos de concentrao de Cuba a mais repressiva o crcere de Boniato, no extremo leste da ilha. Ainda atualmente, quando se quer processar um grupo de prisioneiros, quando se quer fazer experincias biolgicas e psquicas com eles, quando se quer deix-los incomunicveis, surr-los e tortur-los, o presdio de Boniato a instalao favorita dos comunistas cubanos. Enterrada no fundo de um vale, rodeada de acampamentos militares, afastada de povoados e de estradas, o lugar ideal para isso. Os gritos dos torturados e as rajadas de metralhadoras no so ouvidos por ningum; afogam-se na solido do local, perdem-se entre colinas e morros. A viagem que fizemos a Boniato foi a pior de todas. A capacidade dos carroscelas era de vinte e dois prisioneiros apertados e incmodos, mas a cacetadas de culatras de fuzil e empurres enfiaram vinte e seis. amos quatro em uma cela rolante para trs. Como no cabamos sentados, enfieime debaixo do banco de madeira, encurvado e entre as pernas dos outros. Dormi com o sacolejar do veculo, at que Piloto, enjoado com o cheiro da gasolina e as sacudidas, comeou a vomitar. O nico recipiente que tnhamos era meu jarro de alumnio e eu o ofereci. Trezentos quilmetros depois, na cidade de Santa Clara, deram a cada cela uma lata para urinar. Tornei a me enfiar debaixo do banco. A lata de urina, com a freadas bruscas e as sacudidelas, salpicava e molhava as pernas. Um dos carros encrencou, quando chegamos a Camagey. A viagem demorou mais de vinte e cinco horas. Por fim, a caravana se deteve entrada do presdio de Boniato. Quando a porta se abriu, consegui ver uma enorme estrutura com um gigantesco letreiro que estava muito em voga: "Cuba, primeiro territrio livre da Amrica". Nesse dia iniciou-se o plano de extermnio e de experincias biolgicas e psquicas mais desumano, brutal e impiedoso que o mundo ocidental conheceu, depois dos nazis. Foram prdigos em maldades, sanha e torturas. Boniato e suas celas muradas sero sempre uma acusao, uma prova de como se torturou, enlouqueceu e assassinou presos polticos em Cuba. Se no tivessem acontecido todas as outras violaes dos Direitos Humanos, o que aconteceu em Boniato bastaria para condenar o regime cubano como o mais cruel e degradante que o continente americano conheceu. Permanecamos encarcerados em 40 celas. Ao amanhecer, a guarnio invadiu os corredores: chegaram gritando e cagando em nossas mes. A coisa de sempre:

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precisavam se aquecer, se entusiasmar. Batiam nas paredes e nas grades com a arma que empunhavam: canos de ferro enfiados em mangueiras de borracha para no romper a pele, cacetes de madeira, grossos fios eltricos tranados, correntes enroladas nas mos e baionetas. No houve nenhuma justificativa, nenhum pretexto. Simplesmente, comearam a abrir as celas, uma a uma, e a bater nos presos. A primeira foi a de Martn Perez. Lembro-me dele por seu vozeiro amaldioando os comunistas, mas sem dizer um s palavro. Tentei olhar, aproximando-me da grade, e um golpe de corrente me fez afastar. Tive sorte da corrente no atingir meu rosto, para onde o golpe foi dirigido. Abriram a cela trs, a quatro, a cinco... medida que iam se aproximando, eu me sentia tremer todo por dentro, tinha os msculos contrados, como num espasmo, minha respirao se tornava difcil e o medo, a impotncia e a ira misturavam-se em mim enquanto escutava as pancadas sobre as costas nuas, as cabeas, o ofegar da curta luta e o corpo que caa. Aquela espera era alienante, destruidora, aniquilante. Alguns, esgotada a resistncia psquica, sem poder se conter e antes que os soldados que surravam entrassem em sua cela, comeavam a gritar histericamente. Aqueles gritos duplicavam o horror. O primeiro que abriu a porta do nosso calabouo estava armado com baioneta; atrs dele, outros trs bloquearam a entrada. S atinei ver que outro guarda tinha uma corrente. Empurraram-nos para o fundo da cela, a fim de terem espao para erguer os braos e nos surrar porque, junto de ns, no forcejar da luta, era-lhes difcil movimentar correntes e baionetas. Tratamos de nos separar, pois sabamos que era o momento mais perigoso. Ento, davam pontaps e joelhadas. Ca no cho e me espezinharam; romperam meu lbio inferior com um pontap, causando-me profundo ferimento. Quando voltei a mim, estava com o rosto em uma poa de sangue. Meu companheiro de cela sangrava pelo nariz e tinha urna das mos fraturada perto do pulso. Houve vrios feridos graves. Um dos irmos Graio, a quem o sargento Boa Gente fraturou a maa do rosto, cuspiu dentes quebrados. Foi uma pancada brutal que provocou um derrame daquele lado inteiro de seu rosto. Abriram a cabea de Pechuguita, um campons de Pinar del Rio, pequeno e sossegado. Foi to grande o ferimento que deram doze pontos para sutur-lo. Cela por cela, apanhamos todos, sem exceo. Depois da surra, os oficiais e um mdico passaram para nos examinar. Tiravam os feridos e, ali mesmo, um enfermeiro, com um carrinho de medicamentos, costurava e punha curativo nos feridos. Quando terminavam de nos tratar, diziam: Depois, no vo dizer que no lhes damos assistncia mdica. E de novo para a cela, esperar nova surra. Eu estava em mau estado, tinha o rosto sanguinolento e inflamado. Quase no podia ficar de p, porque meu corpo inteiro doa: tinham me dilacerado, me modo de pancada. No entanto, o que mais me afetava era esperar que chegassem minha cela para bater em mim. Aquilo me fazia mais mal do que a surra em si. Invejei mil vezes no estar na primeira cela: assim eles entrariam, bateriam em mim e eu no passaria por aquela tortura de esperar... esperar... Sentir que iam se aproximando de mim, cela por cela, rebentava-me os nervos. Um dos feridos mais graves daquela primeira onda de violncia foi Odilo Alonso, um espanhol que em fins da dcada de 50 emigrou para Cuba. Aconselharam Odilo a

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voltar para a Espanha quando Castro confiscou a fazenda onde ele trabalhava. Podia t-lo feito, mas disse que se Cuba o havia acolhido como um filho, seu dever era lutar pela liberdade dela. E pegou um fuzil e foi para as montanhas do Escambray, unindo-se s guerrilhas que lutavam contra o comunismo. Foi feito prisioneiro e condenado a vinte anos de priso. Rebelde e cristo, idealista e corajoso, recusou os planos de reabilitao e manteve, at o ltimo dia, uma atitude intransigente para com seus carcereiros. Regressaram tarde, quase ao escurecer, e repetiu-se o pesadelo da manh: espancamento cela por cela, com mais feridos. Comunicvamo-nos aos gritos com as outras sees do edifcio para informar e ficar sabendo quais eram os mais gravemente atingidos. Odilo Alonso amanheceu com a cabea monstruosamente inchada. Nunca pensei que uma cabea pudesse ficar to inflamada. O inchao abaixava-lhe as orelhas, de tal modo que dava a impresso de estar usando um gorro. Depois de trs dias daquelas surras, duas dirias, alguns j no conseguiam ficar de p. Martn Perez urinava sangue, outros tinham os olhos roxos e quase fechados por causa das pancadas. Mas os soldados no se importavam com isso; tornavam a bater, mesmo naquelas condies. O sargento Boa Gente, cujo verdadeiro nome era Ismael, pertencia ao Partido Comunista; usava espesso bigode cado, ao estilo de Pancho Villa. Quando a guarnio entrava para nos surrar, ele dava desaforados vivas ao comunismo. Era algo assim como seu grito de guerra. Pedia aos outros militares que lhe deixassem os feridos para bater neles nos locais de curativo, assim no poderiam dizer que os haviam machucado duas vezes. Outro sargento fazia ao contrrio, batia nos feridos e dizia: Para costurarem voc de novo. Odilo foi ficando pior, devido s pancadas recebidas na cabea. Seus ouvidos supuravam uma gua sanguinolenta e seu rosto estava se inflamando. No podia ficar de p. S ento levaram-no para o hospital do presdio. Nem aos gravemente feridos davam sequer uma aspirina. No tiravam preso algum da seo, a no ser que estivesse em perigo de morte. No tentavam nos matar com rapidez: seria generoso demais esperar um tal gesto de nossos verdugos. O objetivo era nos levar, por meio do terror e das torturas, aos planos de reabilitao poltica. Essa era a meta deles e, para alcan-la, estavam decididos. A conduzir-nos at os prprios umbrais da morte e manter-nos ali, sem atravess-los. Tudo tinha sido preparado com meticuloso sadismo, a tal ponto que, antes de sair de Havana, haviam nos vacinado contra o vrus do ttano. Assim podiam nos ferir com baionetas e facadas, rachar nossas cabeas com ferros, com a certeza de que esse mal no iramos contrair. Muitos no puderam resistir s surras dirias, ao terror, s torturas psquicas e se vestiram. Aquelas deseres causavam grande dor: era como se arrancassem pedaos de ns. Eu me sentia diminudo cada vez que um dos nossos ia embora. Uniam-me a eles anos de terror, de penria e o mesmo sonho de liberdade. A capacidade de resistncia algo muito difcil de medir no ser humano. Homens que haviam enfrentado a ditadura castrista em combates a tiros limpos, nas montanhas ou nas cidades, que tinham entrado ou sado de Cuba clandestinamente em misses de guerra, que tinham dado demonstraes de coragem e de herosmo, no podiam,

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desarmados, enfrentar o terror, a incomunicabilidade, o confinamento por muito tempo. E cediam. Mas foi prefervel assim, porque, ento, nossa posio se consolidou. A cada dia os corpos emagreciam, as foras fugiam, as pernas fraquejavam, mas nossos cimentos interiores se solidificavam e urna fora indestrutvel ia se erguendo dos cantos mais remotos da alma e do crebro: a f, que com cada baionetada, com cada ignomnia, com cada vexame, com cada surra, firmava-se mais ainda. Trataram de impedir nossas prticas religiosas, de interromper, de desbaratar, de calar as oraes e isso custou-nos raes extras de espancamentos. Uma noite, em um descuido, abstrado pela leitura, surpreenderam o irmo Rivero, outro pregador protestante, lendo uma pequena Bblia que tinha entrado burlando a vigilncia dos guardas. Descobri-la foi, para os comunistas, como achar um depsito de armas. Em cinco minutos o diretor do presdio, o chefe da Polcia Poltica e um grupo de oficiais amontoavam-se diante da cela de Rivero, um negro velho, todo bondade, carinhoso e suave para conosco, mas rebelde e cido para com os inimigos. Entraram, bateram nele com um sabre da cavalaria em todo o corredor ouvia-se o som da lmina de ao contra as venerveis costas do irmo Rivero. No lembro quantas pancadas lhe deram; podem ter sido quinze, vinte, talvez mais, no sei ... Ali mesmo, com dio e raiva, despedaaram a Bblia e o deixaram com as costas em carne viva. No edifcio nmero quatro estavam reformando as celas e transformando-as nos calabouos mais desumanos e repressivos que j existiram, com exceo das "celasgavetas" dos campos de concentrao Trs Macios e San Ramon. De dia vamos, com horror, como a construo se adiantava. Experimentvamos e soframos antecipadamente aquelas celas. Entre ns, evitvamos mencion-las; olhvamos para elas com angstia, mas nada comentvamos. As celas tinham uns trs metros de comprimento por um metro e meio de largura; em um canto, um buraco fazia as vezes de latrina e sobre ela, quase grudado no teto, um pedao de tubo dobrado: o "chuveiro". De fora, o guarda de servio, no corredor, com duas chaves mestras, abria ou fechava todos os chuveiros de um ou do outro lado do corredor, quando bem entendesse. Quando os militares terminaram de fazer as celas muradas do presdio Boniato, quiseram experimentar seu efeito em presos comuns. E enfiaram l os mais "valentes" e os mais "ferozes", que viviam percorrendo crceres h anos. E estes, para que os tirassem de l, cortavam veias, engoliam pregos, pedaos de colher, lminas de barbear; preferiam que lhe abrissem as barrigas a permanecerem ali. O que mais agentou resistiu apenas trs meses. Essas celas foram feitas especialmente para os presos polticos cubanos. A elas confiavam o que no tinham podido conseguir todas as tentativas anteriores, o que no puderam conseguir com os trabalhos forados da Ilha de Pinos, com seus lodaais, pedreiras e plantaes, com suas torturas, mutilaes e assassinatos. Quando, dia 6 de janeiro, amos entrar nas celas, uns oficiais nos disseram que os presos comuns mais "bravos" no tinham conseguido resistir s celas muradas e que antes de seis meses ns estaramos pedindo perdo, de joelhos... Empurraram-nos para dentro das celas e o barulho dos cadeados e ferrolhos foi abafado pelo estrondo das pesadas portas metlicas que se fechavam s nossas costas, no sabamos por quanto tempo. Alguns no sairiam vivos dali.

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De manh, o sol aquecia a placa de ferro da minha janela, que dava para o leste. A cela transformava-se em um forno. Suava-se, ento, aos jorros. A transpirao e a gordura que com ela se expulsava adquiriam, naquele espao fechado e na obscuridade, uma fetidez peculiar. A tarde, aqueciam-se as placas da frente, medida que o sol avanava. Passvamos semanas inteiras sem tomar banho. Quando lhes dava gana ou recebiam ordens, os guardas, sentados no corredor, abriam os "chuveiros" com algumas voltas dos registros. Faziam isso a qualquer hora. No vero, abriam-nos quando as placas de ferro estavam em brasa. No inverno, de madrugada. Ento, chegavam no comprido corredor e gritavam que tnhamos cinco minutos para o banho. Quando calculavam que estvamos ensaboados, fechavam a gua. Ento, comeava uma gritaria infernal. A, os guardas iam tranqilamente para a cozinha, conversar com as guarnies dos outros edifcios. O sabo secava em nossos corpos e sentamos como a pele empastada ia se esticando; os cabelos ficavam duros. Isto alterava muito os nervos e os gritos pedindo gua eram uma tortura a mais. E todo aquele inferno ia minando aos poucos o equilbrio de nossas mentes. Era exatamente esse o objetivo dos nossos carcereiros. No podamos ter recipientes para guardar gua, era proibido. Apenas uma latinha de um quarto de litro. O oco-latrina da minha cela entupiu em poucos dias. Ao redor dele havia uma pequena cavidade de cimento que logo se encheu de urina e excrementos. Pepin e eu fizemos o possvel para desentupi-lo. Enfivamos o brao no buraco, usvamos as colheres, mas todos os nossos esforos foram inteis. Os pedidos para que consertassem a latrina no davam resultado. Quando abriam a ducha, tnhamos que ficar de p ali, onde havia vermes. O jorro de gua caa exatamente no centro do charco, salpicando as paredes. Vivamos dentro de uma latrina. O cheiro era insuportvel, grudava-se nas fossas nasais. Era como se tivssemos constantemente tampes de merda no nariz. Quando vinha a comida pegvamos a latinha como sempre se fazia em situaes semelhantes na palma da mo e, fazendo o possvel para no tocar no que amos comer, sem usar a colher, amos jogando a comida diretamente na boca, como se fosse um lquido. Afinal, era sempre a mesma coisa! Macarro cozido, po ... po, macarro cozido .. .

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31. As experincias biolgicas e suas primeiras vtimas

A dieta era organizada de maneira a provocar doenas carenciais e problemas de metabolismo. Farinha de milho e, s vezes, uma mistura de arroz e macarro cozidos compunham basicamente a nossa alimentao. Calculamos que no chegava a mil calorias dirias. Logo comearam a aparecer os resultados da alimentao insuficiente, carente de protenas e vitaminas. Emagrecamos dia a dia, hora a hora. A fome roia-nos o estmago. O escorbuto uma doena carencial pouco freqente. produzido pela falta da vitamina C e manifesta-se por meio de uma espcie de grozinhos escuros que vo aparecendo nas pernas e coxas; tambm comeam a aparecer manchas arroxeadas, como se a gente tivesse levado uma pancada violenta. As gengivas ficam inflamadas e se avermelham, sangrando facilmente ao mais leve contato. Os dentes afrouxam, amolecem, e aparecem outros transtornos, at que, afinal, o doente morre. Os guardas andavam nas pontas dos ps, deslizando junto da parede, para ouvir nossas conversas. Faziam isto continuamente. As vezes, o pessoal da Polcia Poltica que desempenhava esse trabalho. Como sabamos disso, para conversarmos de uma cela para outra, usvamos uma gria mista de ingls, francs e espanhol, e palavras criadas por ns. Era uma linguagem impossvel deles entenderem. Nunca sabamos quem andava pelos corredores. Apenas ouvamos o barulho dos passos ou vamos sombras fugazes passarem diante da ranhura entre a porta e o umbral. J no nos surravam em horas determinadas. As vezes, passavam vrios dias sem bater na gente para, de repente, irromper a qualquer momento do dia ou da noite. Por isso no havia descanso; ao menor rudo o preso acordava sobressaltado, pensando que a guarnio estava l fora. Em algumas ocasies chegavam fazendo a maior confuso, correndo pelas escadas; batiam nas portas com as armas que levavam para nos agredir, sacudiam os cadeados e gritavam ao carcereiro militar : Ei, me abra esta cela! Mas no entravam. Todos iam embora e ficvamos numa grande tenso, pois a adrenalina e todos os mecanismos que se desencadeiam quando se espera uma agresso fsica j agiam em nosso organismo. Faziam isto com freqncia e, como algumas vezes voltavam e batiam em ns, eu sempre ficava espera deles, com a conseqente ansiedade que provocavam aquelas tenses. Os guardas, que eram simples instrumentos, no conseguiam compreender esses mtodos e protestavam pelo que consideravam pura perda de tempo, uma ordem que os

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tirava do quartel para nada, porque o que queriam era que abrissem as celas para acabar conosco de pancada. Os que sabiam perfeitamente o que estavam fazendo e qual seriam as conseqncias eram os psiclogos do Departamento de Avaliao Psquica da Polcia Poltica, diretores da mais ambiciosa e criminosa experincia da qual ramos cobaias e no qual as autoridades depositavam suas esperanas de nos dobrar e nos levar aceitao da doutrina marxista, nos planos de reabilitao poltica. Se no conseguissem a finalidade com aquele processo, s lhes restaria, depois do uso de tanta violncia fsica e psquica, a alternativa de nos assassinar. A capacidade de resistncia tem um limite e nos levavam para ele dia a dia, hora a hora. Iam nos minando, lenta e inexoravelmente. Periodicamente nos submetiam a interrogatrios para ir avaliando a experincia e seus resultados. Insistiam em que lhes dissssemos as horas em que nos sentamos melhor ou pior, o que mais nos incomodava, o que sonhvamos, se pensvamos em nossa famlia com freqncia ... Os homens que nos entrevistavam no usavam farda, mas sim aventais brancos, de mdicos, e mostravam-se corteses, amveis, dizendo-se dispostos a melhorar um pouco a nossa situao. Por isso interessavam-se pelas nossas respostas, que anotavam cuidadosamente em fichas e cadernos. Durante vrias semanas colocaram nos alimentos uma quantidade excessiva de sal, tanto que ao comer nossa garganta ficava em brasa. Depois, tiraram o sal completamente. Com esse sistema, o metabolismo dos detentos foi alterado. Aqueles que sofriam de problemas renais e de tenso arterial pioraram. A ausncia de protenas fez aparecer os chamados edemas de fome ou de nutrio. Primeiro, inchavam os tornozelos e as pernas; depois, as coxas, os testculos, o abdmen e o rosto. Os casos dos que ficavam inflamados da cintura para cima eram observados por eles. Sabiam que se o edema atingisse os pulmes, o crebro e as vsceras a complicao seria mortal. Por isso, retiravam os que eram considerados em perigo de morte e levavam-nos para o hospitalzinho, um local especial, tambm murado com placas de ferro e incomunicvel. L, vrios psiclogos e mdicos esperavam o preso; pesavam-no e desse instante em diante exerciam sobre ele uma estrita vigilncia. Imediatamente comeavam as perguntas. Interessavam-se mais pela deteriorao mental do que pela fsica. Interessavam-se em saber at que ponto e como as mentes eram afetadas. L faziam todo tipo de anlises, mediam e pesavam os alimentos, assim como excrementos e urina. Tomavam a temperatura e presso arterial mais ou menos de quatro em quatro horas. As observaes duravam uns quatro ou cinco dias, findos os quais administravam doses macias de diurticos. Os doentes no podiam, ento, dormir porque tinham que se levantar constantemente para urinar. Desinchvamos como bales de borracha. Um dos casos mais graves foi o de Jose Carreo, cujo trabalho consistia em ler as notcias dos rgos oficiais do Partido da Juventude Comunista, e coment-las, assinalando onde se encontrava a propaganda, a mentira e a doutrinao, dando uma explicao. Essa tarefa abnegada e diria de Carreo, verdadeiro profissional apaixonado por seu trabalho, foi tremendamente til, porque entre ns havia camponeses, operrios, gente pouco politizada que poderiam ser alterados ou confundidos com a propaganda, em alguns aspectos. Graas a Carreo isso no aconteceu. Quando ele apresentou edema excessivo, generalizado, tiraram-no da cela e tiveram que lev-lo para o hospitalzinho

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completamente nu, porque as coxas no entravam nem mesmo no maior nmero de cueca. No momento em que os guardas o levaram estavam me servindo o almoo, por isso a porta da minha cela estava aberta e eu o vi passar. Quase no o reconheci, to monstruosamente inchada estava a cara dele, assim como as pernas e os testculos. Quando deram diurtico a Carreo e ele urinou todo aquele lquido que tinha retido nos tecidos processo que levou uns cinco dias perdeu quase vinte e cinco quilos de peso. Em mim, os edemas comearam pelos tornozelos, subindo para as coxas e os genitais. Tambm me levaram para o hospitalzinho quando minha barriga comeou a inflamar. Ao chegar eu pesava sessenta e um quilos. Depois de passar pelo processo todo de exames e perguntas, deram-me diurticos e, ao eliminar o lquido, fiquei pesando cinqenta e dois. Tinha perdido nove quilos em cinco dias. Meu peso, quando fui preso, era sessenta e oito quilos. Faltava-me a memria e eu sofria de enorme confuso mental. Perdi a coordenao de alguns movimentos e no encontrava as palavras necessrias para me expressar. Ca em profundo estado de depresso. O menor rudo me alarmava e isso provocava uma taquicardia muito forte, que me fazia ouvir as batidas do corao como um martelar incessante. Sentia um medo inexplicvel e no podia encontrar a causa daquele temor. No sabia exatamente o que temia. No era a surra, era um medo que ia alm disso. Sentia-me muito fraco e no conseguia dormir bem. Ento, quando pensava que a angstia ia me esmagar, recorria a Deus. Sempre recorri a Ele em busca de apoio e paz. E sempre os encontrei. As semanas continuavam passando e cada dia intensificavam mais o rigor daquele aprisionamento. Tinha nuseas e diarrias freqentes. O cabelo caa em quantidade. Apareceram em minha boca umas chagas que ardiam, os lbios ficaram ressecados. Quem ficou em estado mais grave com essas afeces foi Jorge Portuondo. Devido ao meio favorvel para sua proliferao, apareceram os fungos; quase todos ns os tnhamos nos locais mais midos e escondidos do corpo. Eu quase no podia engolir, to doloroso era tentar faz-lo. Alguns j tinham enlouquecido completamente e gemiam, chamando seus familiares, ou explodiam em ataques de choro ou de riso. Outros gritavam, como se os comunistas estivessem ali para nos surrar, mas eles existiam apenas em suas mentes perturbadas. No obstante, cada vez que ouvamos aqueles gritos de alarme, acordvamos angustiados, porque nosso terror apresentava a pergunta: ser verdade? Comecei a ter crises de asma. Asfixiavam-me, mas no me davam medicao; nem sequer permitiam o uso de nebulizador para acalmar o ataque. Quando eu era presa desses ataques, tentava me manter calmo e respirava lentamente; assim mesmo era horrvel a sensao, que me atazanava, de morrer por falta de ar. Hoje penso em todo aquele espanto como em um pesadelo. Mas no foi. Meus pulmes tm enfisemas, esto fibrosos, sem elasticidade. A negativa de assistncia mdica foi total e foram inteis os pedidos dos demais presos para que tratassem de ns, os asmticos, quando sobrevinham as crises. Outro mtodo de tortura usado com muitos de ns foi o de nos levar ao hospitalzinho e fazer-nos eletrocardiogramas, informando-nos mais tarde, com toda seriedade, que soframos de perigosa e grave afeco cardaca, Com isso atemorizavam a

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gente e depois ofereciam assistncia mdica, a salvao, a sada daquele buraco "onde a qualquer momento iramos morrer" durante um ataque, desde que, em troca, aceitssemos a reabilitao poltica. O propsito de nos transformar em farrapos ia sendo cumprido com meticuloso rigor. ramos como espectros. Esquelticos, como aqueles sobreviventes dos campos de concentrao nazis, depois de termos perdido treze, dezoito e at vinte e sete quilos de peso. Outros continuavam inchados. A 7 de fevereiro de 1972 morria Ibrahim Torres, nosso querido Pire, como ns todos o chamvamos. Seu corpo no pde resistir quelas experincias. Depois, os que dirigiam aquele plano de extermnio compreenderam que os mais afetados poderiam morrer e o objetivo no era nos matar. Resolveram, ento, no correr o risco de acontecerem outros bitos. * * * Por fim, Martha conseguiu sair do pas com seus pais. Ela daria minha situao a conhecer no estrangeiro, assim como a de todos os prisioneiros polticos. Talvez com isso consegussemos sensibilizar a opinio pblica mundial diante dos horrores dos crceres castristas. Castro, como Stalin fez na Unio Sovitica, negava a existncia de campos de concentrao, de prisioneiros polticos e de crimes em crceres em Cuba. Martha tinha todas as qualidades necessrias para nos ajudar, para revelar a verdade, e o faria.

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32. A morte de Boitel

No presdio do Castelo do Prncipe, Pedro Luis Boitel agonizava em conseqncia de uma greve de fome que mantinha como protesto ao tratamento desumano que recebia. A notcia foi divulgada no estrangeiro. A 7 de maio, quando j fazia mais de um ms que Boitel se encontrava em greve, o dr. Humberto Medrano publicava um artigo no Diario Las Americas denunciando o que estava acontecendo. No dia seguinte, personalidades e organizaes do exlio enviavam telegramas Comisso dos Direitos Humanos da ONU e Cruz Vermelha Internacional, implorando-lhes que interviessem com urgncia, a fim de salvar a vida de Boitel. A ONU guardou silncio. Um silncio cmplice. Sempre fraco e muito magro, o estado fsico dele no tardou a entrar em crise. Mesmo assim, sua deciso de que no se comunicasse s autoridades que estava em greve foi firme, at que, quando j agonizava, seus companheiros avisaram a chefia da penal que, claro, j sabia. O primeiro a aparecer foi um sargento, ajudante do tenente Valds, chefe da Polcia Poltica naquele presdio. Quando o sargento ergueu o lenol e viu o que restava de Boitel arregalou os olhos, deu um passo para trs e saiu correndo, para informar seus superiores. Na verdade, era impressionante aquele esqueleto coberto de pele, que emitia apenas uns fracos gemidos. Pouco depois chegou o tenente Valds. Tambm ergueu o lenol e, apesar de tentar dissimular, seu rosto se contraiu. Pediram-lhe que retirasse Boitel imediatamente dali, para que lhe dessem assistncia mdica e impedissem, assim, a sua morte. Valds olhou para os que lhe pediam aquilo, depois voltou os olhos para Boitel, no catre, e disse: Isso eu no posso fazer. Vou informar ao Ministrio o estado em que ele se encontra e que os superiores decidam. Mas podem estar certos de que no vamos ceder a nenhuma imposio pela fora. Boitel j nos cansou com suas greves. Se fosse por mim, ele morria, mesmo. E acho que vai ser esse o critrio do Ministrio. Passaram-se horas e no davam cuidados mdicos a Boitel. Ele se queixava continuamente. Seus companheiros mantinham-se silenciosos o tempo todo, conscientes de que estavam presenciando a morte de um companheiro e que nada podiam fazer para evit-la. No dia seguinte, chamaram insistentemente, porm s algumas horas mais tarde tiraram-no dali. Tinham esvaziado uma salinha l mesmo, no presdio, no fundo da sala de Fajardo. A porta esperavam o chefe dos Crceres e Prises, Medardo Lemus, o tenente Valds, O'Farrill e outros oficiais. No alto das janelas da outra sala vrios detentos observavam a cena.

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Quando depositaram Boitel l dentro, colocaram um biombo diante das grades e um sargento ficou de guarda. Todos escutaram claramente quando disse ao tenente Lemus: Quando ele parar de respirar, avise. Antes, no. E foi embora com toda a comitiva. Os presos da outra sala revezaram-se durante a noite inteira para no perderem o que acontecia. De madrugada, escutaram a voz agonizante de Boitel pedindo gua. Viram o sargento remexer-se, inquieto, diante das grades... Passaram-se horas e Boitel no tornou a se queixar. Tinha morrido depois de cinqenta e trs dias de greve de fome. Era 24 de maio de 1972. Dias depois, o tenente da Polcia Poltica, Abad, de ascendncia libanesa, apresentou-se na casa da sra. Clara Abraham, me de Boitel. Ela estava lendo a Bblia. A porta entreaberta foi empurrada pelo grupo de militares, entre os quais estava um mdico. Clara, ao v-los, foi assaltada por uma dessas premonies que nunca enganam o corao de me. Meu filho morreu! Quem lhe disse isso? perguntou, estranhando, o tenente Abad, pensando que talvez a notcia houvesse transpirado. Est enganada... Mas o que aconteceu com meu filho? insistia a me. Um primo de Boitel estava na casa e as autoridades chamaram-no de lado, para que desse a notcia a ela. Mas Clara no esperou. Saiu para a rua e dirigiu-se, alucinada, para a priso do Prncipe. Mas os guardas, que a conheciam e que sabiam que Boitel havia morrido, no a deixaram passar nem pelas primeiras - guaritas de vigilncia. Clara negou-se a sair dali e foi enfiada fora em um carro de patrulha e levada sede da Polcia Poltica, a Lubianka cubana, Vila Maristas. Uma amiga que a acompanhava, Noem, recusou-se a abandon-la, se bem que Clara insistisse para que no ficasse com ela. O libans Abad apareceu de novo na sala. De qualquer modo, vamos ter que lhe dar a notcia, Clara disse-lhe. .Ela estava sentada, mas quando escutou aquelas palavras, ergueu-se de um salto e agarrou o tenente pelos ombros, sacudindo-o: Que notcia? Diga que notcia essa! O oficial empurrou-a com violncia. Clara caiu num sof e ia se levantar quando Abad cortou-a, seco: Seu filho est morto e enterrado. No grite, pois no est em sua casa e sim, na Segurana do Estado. Clara tentou pr-se de p, mas o tenente Abad jogou-a de novo no sof. Ela, em crise nervosa, adquiriu foras e Abad esbofeteou-lhe o rosto. Depois, puseram-na a fora em um calabouo. J noite avanada levaram-na de volta para casa, num carro de patrulha. Havia guardas paisana l. Haviam cortado o telefone, para impedir que ela comunicasse a notcia a outras pessoas, e membros do Comit de Defesa da Revoluo, orientados pela polcia, ameaaram-na, dizendo-lhe que no podia perturbar a ordem pblica com gritos. No dia seguinte, oficiais da Polcia Poltica visitaram-na de novo, para informar o local onde o cadver de seu filho estava enterrado.

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No dia 30 de maio, acompanhada por outras mes e familiares de presos, Clara tentou chegar, com flores, ao tmulo onde estava sepultado Pedro Luis. Com rosrios apertados nas mos, avanaram pelas alamedas do cemitrio, rumo ao local das valas comuns, o mesmo lugar onde se enterravam os fuzilados. Mas antes de chegar foram interceptadas, insultadas e agredidas por um grupo de mulheres armadas com bastes de madeira envolvidos em jornal. No lhes permitiram nem sequer fazer uma orao. Algumas das agressoras, se bem que estivessem paisana, pertenciam guarnio do crcere de mulheres. A notcia da morte de Boitel, o mais rebelde dos presos polticos cubanos, chegou at ns pelo dr. Gallardo, um mdico preso que nos visitava e que, mais tarde, soubemos que era um infiltrado da Polcia Poltica. Algumas semanas mais tarde, na casa do oficial do Ministrio do Interior, Alfredo Mesa, situada no bairro do Cassino Esportivo, nos arredores da Capital, e enquanto preparavam espingardas para ir caar patos no pntano de Zapata, o chefe dos Crceres e Prises, Medardo Lemus, comentou que Fidel deu a ordem de "liquidarem Boitel para que no fodesse mais".

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33. Uma greve imposta

Atravs das visitas estabeleci um correio clandestino com Martha. Assim, recebi sua primeira carta, escrita em pregas de um papel finssimo, com letra miudinha, microscpica, que eu devorava com ansiedade. Sentia-me muito mal. Ela tinha ido embora pressionada por mim e com a idia que ento se negava a aceitar de que podia me tirar da priso. Confessava-me que se sentia intil, que quando estava em Cuba pelo menos podia, do outro lado dos muros e fossos, partilhar comigo o mesmo cu, o mesmo sol . Eu a compreendia e tambm sofria com sua distncia, mas estava tranqilo porque pelo menos sabia que ela estava a salvo da represso dos comunistas. Outra de minhas denncias tinha conseguido burlar todas as dificuldades e censuras do Governo: estava sendo publicada no estrangeiro, dando a conhecer o que acontecia nos crceres. Em pedacinhos de papel de seda, que entravam clandestinamente, eu escrevia a Martha vrias vezes por semana. Para que sassem, eu os dobrava cuidadosamente em preguinhas, como as de uma sanfona, pois desse modo que o papel tem menos volume. Envolvia-os em nilon e os escondia no forro duplo do calo que usava. Jamais me separava daquelas cartinhas. Dormia com elas e as levava comigo mesmo quando ia tomar banho, porque os militares costumavam revistar as celas de surpresa e poderiam encontr-las. Quando enviava a Martha algumas informaes, denncias ou instrues, fazia muitas cpias para, assim, aumentar as possibilidades de que uma chegasse s mos dela, pois se era difcil burlar a revista no presdio, muito mais difcil era fazer a correspondncia sair do pas. Usvamos endereos de pessoas amigas em naes da Europa ou da Amrica Latina. Sabendo que a maior concentrao de exilados encontrava-se nos Estados Unidos, a correspondncia que saa de Cuba dirigida a esse pas algumas vezes era destruda. A que chegava da Amrica do Norte tinha o mesmo destino. Ns, presos, tnhamos duas alternativas: guardar esses papis em esconderijos considerados seguros, tais como buracos nas paredes, forros duplos de travesseiros, calo, etc., ou carreg-los constantemente. Eu sempre preferi a ltima alternativa. Assim, podia defender meus papis at o ltimo instante. Escrevia com frenesi, dando instrues a Martha de como denunciar a nossa situao perante as organizaes internacionais, governos e imprensa. A propaganda de Castro e de seus porta-vozes no mundo abafava os gritos dos torturados e o clamor de suas vtimas. Cuba era, para a maioria das pessoas no exterior, uma espcie de paraso terreno conseguido graas revoluo.

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A grande imprensa apoiava, com suas informaes distorcidas sobre a realidade cubana, o tirano Castro, e os governos de pases capitalistas da Europa ofereciam-lhe apoio diplomtico, comercial e generosas ajudas financeiras gratuitas, como o caso da Sucia. A Internacional Socialista oferecia, ento, seu respaldo moral e poltico ao tirano. Vinte e cinco anos depois continuaria fazendo isso. As denncias a organizaes internacionais, especialmente Comisso dos Direitos Humanos das Naes Unidas, eram boicotadas e freadas pelos que apoiavam Cuba e, por isso, as centenas de informaes e documentos que provavam de maneira irrefutvel as torturas, crimes e violaes dos Direitos Humanos cometidos pelo regime de Castro eram atirados aos cestos de lixo. Tanto no Velho como no Novo continentes mantinha-se um silncio cmplice. Era comunista a bota que nos esmagava o pescoo, mas capitalista o p que a calava. Causava-nos profunda tristeza ver aquela indiferena por parte dos que deveriam sentir-se solidrios a ns, pelo nosso sacrifcio. Era indigno, deprimente e doloroso o manto de silncio que as mos, que supostamente deveriam levant-lo, lanavam sobre a barbrie e os crimes perpetrados no presdio poltico cubano. Eu tinha compreendido, com resignao, que nada podamos esperar da indolncia e insensibilidade do mundo livre, que apenas deixava ouvir vozes indignadas e denunciadoras quando maltratavam prisioneiros das ditaduras de direita. Por esse motivo, sabia que no seria tarefa fcil criar um estado de opinio pblica o suficientemente forte para que se fizesse algo concreto em favor da nossa liberdade. Mas confiava em Martha, em meus amigos no exterior e em que Deus nos ajudaria. Com eles poderia conseguir. Tambm pensava em denunciar minha priso injusta, se bem que houvesse um perigo para mim: poderiam me matar. Mas precisava correr esse risco. Quando abriam as gals para os presos sarem ao ptio, alguns de nos conseguamos burlar a vigilncia e nos misturvamos com os demais prisioneiros. Foi assim que conheci Pierre Golendorf, um intelectual marxista francs, que tinha viajado para Cuba e trabalhado para o governo cubano. Mas Pierre comprovou a falsidade dos cacarejados "logros" da revoluo e compreendeu que a ilha era uma grande fazenda em que Castro mandava como um maioral escravagista. E disse isso. E escreveu isso. E revelou em suas cartas a mentira que era a revoluo, sem desconfiar que a Polcia Poltica censurava sua correspondncia. Acusaram-no, como a todos os que discordam, de agente da CIA e mantiveram-no incomunicvel para interrogatrio. O promotor pediu vinte e cinco anos de priso para ele, mas um oficial investigador informou-o que no se preocupasse, que receberia uma condenao menor, que tambm no precisaria cumprir. Recebeu dez anos. Mas o oficial da Polcia Poltica no o enganou: cumpriu apenas trs anos e dois meses. Eles o sabiam, porque assim haviam decidido na sede da Lubianka cubana, que onde h um quarto de sculo impem-se os anos de condenao que so dados nos "julgamentos" de rus polticos. Os tribunais no fazem mais do que comunicar as sentenas. Meus companheiros tinham um pouco de hostilidade contra Pierre por seus antecedentes polticos. Era membro do Partido Comunista francs. Eu nunca me irritei por algum pensar de maneira diferente da minha e tinha verdadeiro interesse em

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conversar com ele. E daquelas grades para dentro, todos ns ramos prisioneiros pensava. Naquela tarde Pierre lavava um de seus uniformes nos tanques do ptio. Senteime ao lado dele, cumprimentei-o e perguntei-lhe que motivos o haviam levado para a priso. Para mim, seus critrios, seus enfoques da realidade cubana, eram muito importantes e interessantes, por serem analisados de outra perspectiva. Voc viu, Pierre, o que o comunismo fez com o nosso pas disse-lhe. A ditadura de Batista foi substituda por outra mais feroz, mais cruel e repressiva, em todos os aspectos. Voc, s por ter escrito o que viu, foi acusado de ser agente da CIA e condenado a dez anos de cadeia. A nova tirania mais implacvel do que a anterior. Eu o fiz saber que, com Batista, os comunistas tinham at podido participar do Governo. Carlos Rafael Rodriguez, o atual vice-presidente de Castro, tinha sido um dos ministros do gabinete do ditador anterior. E Blas Roca e Lzaro Pena, tambm comunistas, haviam desfrutado dos benefcios da ditadura de Batista, mesmo exilados. Pierre mostrou-se surpreso. Comprovei, amargamente, que muitas coisas aqui no so como eu imaginava. Achei que a revoluo cubana era o ideal socialista, que devolveria a liberdade ao povo. Vim para c como um entusiasta admirador desse processo. disposto a dar-lhe o melhor de mim, mas encontrei uma burocracia implacvel, com uma nova classe poderosa que eliminou todas as liberdades e com uma desorganizao que quase um dogma. O pas governado, como se fosse um quartel, por um ditador implacvel, que o faz debaixo de uma fraseologia revolucionria com a qual conseguiu enganar muitos, como a mim. E o mais dramtico que esse engano no permite aos cubanos conhecerem a verdade destes crceres e campos de concentrao, das torturas e crimes. verdade, Valladares. A maioria da esquerda europia benevolente com Castro e parece-lhes aceitvel que ocorram fatos reprovveis, que eles qualificam como legtimos atos de defesa da revoluo. As ditaduras boas no existem. Se terrveis e injustificveis so as de direita continuei, muito mais sanguinrias so as totalitrias de esquerda. A primeira corta um brao do homem. A segunda, as quatro extremidades e, alm disso, tritura-lhe o crebro. Stalin e Mao aniquilaram juntos mais de cento e vinte milhes de pessoas. E seus seguidores, como Castro, continuaro fazendo isso, porque de outro modo no podem se manter no poder. Pierre e eu nos tornamos grandes amigos. E, quando no podamos nos encontrar no ptio, escrevamos um para o outro. No ms de junho de 1974 todos ns, prisioneiros, fomos transferidos para o ptio 1, de onde tinham tirado os jovens recrutas detidos por supostos crimes militares. A gal destinada a ns era a menor e mais lbrega de todas, infestada de percevejos e piolhos. Do teto pendiam pequenas estalactites provocadas pela infiltrao, que naquela masmorra empapava o teto ovalado. As grades do fundo tinham sido cruzadas por dezenas de barras de ferro. Soldadas transversalmente, formavam uma verdadeira rede e nos espaos entre uma barra e outra cabiam apenas as pontas dos dedos. As portas dos banheiros tinham sido arrancadas. Aquela transferncia dava incio a outro plano para romper a nossa resistncia. As oito da noite no havamos sequer provado um bocado, nem mesmo gua, e ordenaram que deveramos ir para o refeitrio aceitando novas medidas de disciplina e disposies,

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tais como no poder levar comida aos doentes impossibilitados de levantar ou aos machucados, e outras mais difceis para o meu grupo, por estarmos vestidos somente com cuecas. Eles acharam que essa altura, esgotados pela mudana, pela fome e a sede, amos ceder; mas todos os prisioneiros negaram-se a ir para o refeitrio. Assim passamos dois dias, sem comer. No terceiro, a guarnio, de capacetes e fuzis, tomou os terraos, localizaram metralhadoras e o chefe dos Crceres e Prises, Lemus, entrou no ptio. Passeou de um lado para outro e disse que se no dia seguinte no fssemos comer declararia todo o ptio em greve de fome e levaria sua deciso at as ltimas conseqncias. Como queramos comer, nossos amigos, burlando a vigilncia dos militares no refeitrio, pegavam alimentos s ocultas e jogavam-nos pelas janelas. Durante quinze dias ficamos assim, repartindo quinze ovos e dez pes entre quarenta homens. At que colocaram vigias junto das janelas. No quarto dia a guarnio apresentou-se em nossa gal e nos mudaram para outra, fora da zona dos presos. Tiraram-nos tudo: escovas para dentes, jarros, sabonete, medicamentos e at os nebulizadores contra asma. Na gal ao lado estavam confinados Huber Matos, Eloy, Csar Pez, Lauro Blanco e outros. Comunicamo-nos imediatamente com eles e explicamos a situao. Tony Lamas comeou a perfurar a parede de blocos que tinha quase dois metros de espessura. Na rea, por ser militar, aqueles golpes secos no chamavam ateno. Nos os amortecamos enrolando um lenol ao redor da barra. Assim o rudo ficava abafado. Terminaram no dia seguinte e, com uma borrachinha para soro, nos passavam gua com acar e leite em p. Os guardas levaram apenas dois dias para descobrir a abertura. E novamente nos transferiram, desta vez sem possibilidade de contatos. Paco Arenal foi designado para falar com a guarnio. Todos os dias, no incio da manh, chamava o oficial de guarda: Por favor, queremos o caf da manh. Vo aceitar nossas condies? Queremos comer sem condies polticas. Na hora do almoo e do jantar repetia-se o pedido para que nos dessem comida. Nem um s dia deixamos de faz-lo. Em outras ocasies havamos entrado em greve de fome por deciso nossa; agora, era diferente: eram os militares que se negavam a nos dar alimentos. Depois de duas semanas daquele jejum obrigatrio eu j no podia andar. Os anos de maus tratos e desnutrio, as doenas por carncias alimentares e a polineurite de que sofria agravaram com rapidez minha depauperao fsica. Depois de trinta dias negando-nos alimentos, os militares comearam a dar parte, aos nossos familiares, de supostas mortes, sem citar nomes. No me lembro de medida mais cruel do que essa. Provocavam cenas patticas, cada vez que anunciavam que outro dos grevistas havia falecido. Algumas mes, transidas de dor, decidiram declarar-se em greve de fome, alegando que se seus filhos no comiam, elas tampouco o fariam. Entre as primeiras estava Josefina, a me de Nacer. Tambm minha me deixou de comer. E muitas outras. Outra tentativa para quebrar nossa resistncia foi o de insistir com nossos familiares para que nos escrevessem, pedindo-nos que desistssemos da nossa atitude.

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A carta de minha me me aniquilou. Seu organismo, prematuramente envelhecido pelos sofrimentos e o terror, no poderia resistir muito. "E se minha me morrer?", perguntei-me. Avisaram vrios de meus companheiros quando suas mes agonizavam ou j haviam morrido. Ofereciam-se para lev-los por alguns minutos junto ao leito da moribunda ou ao enterro, mas s em troca de que claudicassem politicamente, de que abandonassem a atitude de rebeldia e aceitassem a reabilitao. Muitos, no todos, negaram-se, transidos de dor. Passei dois dias sem dormir. Pensava na minha me em estado grave. Foram dias angustiosos. Valia a pena sacrific-la, tambm? A ela, que apenas vivia sonhando com o dia da minha volta? Como seria a minha vida futura se eu me salvasse, mas minha me morresse por isso? Poderia, seria capaz de assimilar esse golpe espantoso? Que tortura horrvel foram aqueles dias! Era s chamar o comissrio poltico e dizer que queria ir embora, para que tudo mudasse no mesmo instante. Mas isso significava rendio incondicional. No entanto, salvaria minha me. me salvaria e tudo seria mais agradvel. Mas, depois, poderia escapar da minha conscincia, do meu prprio juiz, do ser ntimo que me reprovaria sempre por ter agido de maneira contrria s minhas idias e critrios, mesmo tendo sido sobrepujado pela dor e a angstia? Novamente recorri a Deus e me confiei a Ele, sua infinita sabedoria, pedindoLhe que me escutasse. E, como sempre, me escutou. Devia continuar pelo caminho escolhido, porque um homem s pode viver sossegado quando o est consigo mesmo. Todos os dias pedamos comida e dizamos a eles que queramos comer. Tinham comeado a nos negar alimentos no dia 24 de junho; julho j havia passado e estvamos em principio de agosto. Compreenderam que nossa deciso culminaria com a morte macia. A qualquer momento poderamos comear a morrer; s ento, sob essa presso, decidiram pr fim mais impiedosa medida que haviam tomado at esse momento nos crceres polticos cubanos. Quer dizer, isso era o que ns pensvamos, porque aquilo no era mais do que uma manobra dos comunistas.

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34. Em cadeira de rodas

A maioria de ns teve que ser levada de volta gal em macas. Imediatamente vrios mdicos foram nos examinar. O diagnstico que fizeram do meu caso, junto com o de outros cinco, foi alarmante. Os reflexos haviam desaparecido e o mdico constatou uma paraplegia flcido-carencial. Os exguos msculos das extremidades inferiores eram como uma pequena poro de massa gelatinosa e os superiores estavam com limitaes funcionais. Os mdicos disseram que os outros cinco casos e eu deviam ingressar o quanto antes em um hospital de reabilitao fsica. Aplicaram-me soro com alguma dificuldade: o sangue estava pastoso. A alimentao reiniciou-se com pequenas doses de gua com acar e soro. No terceiro dia deram-nos leite frio. No quarto, quente. Mas sem retirarem o soro. Eu pensava que dentro de poucos dias poderia recomear a sentir, a movimentar as pernas; mas no foi assim. E comeou a luta por assistncia mdica. Trouxeram uma comisso de mdicos do Instituto Neurolgico de Havana. Aqueles neurologistas nos examinaram com rigor e seu diagnstico para ns seis foi paraplegia flcido-nutricional. Recomendaram nossa internao em um hospital especializado. Mas a Polcia Poltica se ops. E comecei uma luta, que duraria anos, para que me dessem tratamento mdico. Escrevi para o Ministrio, para os chefes da revoluo, para o Comit Central do Partido e para outros mil departamentos. No tnhamos cadeiras de rodas e nos arrastvamos sobre uns caixotes de madeira. Estava duplamente preso. No meu beliche, pegava as pernas com as mos e movimentava todas as articulaes para evitar que ficassem ancilosadas. Eu no podia ficar invlido para sempre. Meus amigos me ajudaram, aplicando-me movimentos passivos e massagens. Mas no era o bastante. Napoleozinho, que tambm no podia andar, foi se recuperando. De Vera e eu continuvamos prostrados, assim como os outros quatro. Na semana seguinte 19 de agosto comunicaram-nos que acabavam-se os caldos e purs, de novo amos comer macarro cozido e spam... Esse prato era o "manjar" do presdio: os presos haviam-no batizado com o nome de "vmito de cachorro". Vinha da Holanda e era uma pasta suave de carne com grande quantidade de gordura e amido, acondicionada em latas grandes, de 1,8kg, pela firma HOMBURG. No presdio de La Cabaa estava preso, acusado de agente da CIA, um holands, funcionrio de seu pas em Havana, chamado Paul Redeker. Ele nos informou que aquele produto no era apto para o consumo humano, que era fabricado com refugos e que tinha

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sido pedido, dessa maneira, pelo governo cubano. Ele conhecia bem os detalhes porque participara das negociaes. Contou-nos que eles tinham pensado que seria usado para misturar com outras raes, para animais. No mercado no existia aquele produto, pois no era para ser vendido ao pblico. Foi comprado especialmente para os mais de cem mil presos cubanos * * * Enquanto isso, o dr. Humberto Medrano, presidente do "Comit para a Divulgao dos Maus Tratos aos Presos Polticos Cubanos", conseguia, graas SIP Sociedad Interamericana de Prensa (Sociedade Interamericana de Imprensa) que lhe cedeu sua vez, apresentar-se Comisso de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, Sua, para denunciar o que homens e mulheres sofriam nos crceres castristas. L entregou Secretaria da Subcomisso a documentao que provava os horrores do presdio poltico cubano. Listas imensas de torturados, mutilados e assassinados, assim como cartas de prisioneiros, sadas clandestinamente, e a relao dos campos de concentrao com sua exata localizao na ilha. O dr. Medrano, em sua exposio, se apoiou nas informaes da Comisso Internacional de Juristas, da Comisso Interamericana dos Direitos Humanos da OEA, da Liga dos Direitos do Homem, da Cruz Vermelha Internacional e da Anistia Internacional, assim como em outras investigaes de prestigiadas organizaes que comprovaram a violao dos Direitos Humanos em Cuba e o tratamento degradante que recebamos, os presos polticos. As surras, as negaes de alimentos, visitas e correspondncia, a reimposio das penas foram tambm denunciadas pelo dr. Medrano. Enquanto lia uma lista dos assassinados nos campos de trabalhos forados da Ilha de Pinos, Sergei Smirnov, o delegado sovitico interrompeu-o, gritando que aquilo tudo era mentira. O dr. Medrano respondeu-lhe que eram fatos comprovados. O sovitico Smirnov insistiu em que se tirasse a palavra do dr. Medrano e props que a informao nem sequer aparecesse nas atas. Gerou-se uma polmica entre os delegados, que debateram se nosso compatriota tinha direito ou no de continuar falando. Quando lhe restituram a palavra, o dr. Medrano, evitando a lista dos assassinados, continuou, falando do presdio poltico das mulheres, mais cruel e desumano do que o dos homens. E de novo desatou-se a tempestade; o sovitico Smirnov continuava berrando: Camarada presidente... camarada presidente... este no o lugar para esse tipo de expresses polticas e essa interveno tem que terminar. Uniu-se a Smirnov o delegado cubano Hernn Santa Cruz, que pediu que cassassem a palavra do dr. Medrano. Alguns delegados eram de opinio que deviam conceder-lhe cinco minutos; outros, dois: Foi ento que a voz do dr. Medrano ressoou naquela sala: Presidente, pedimos que sejam, pelo menos, quinze minutos mais, um para cada ano de selvagem perseguio que se comete contra o povo e os presos polticos em Cuba! O presidente, um romeno, concedeu-lhe cinco minutos. O dr. Medrano pediu que a documentao apresentada circulasse oficialmente e que se nomeasse uma comisso especial que investigasse e analisasse o acmulo de

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provas que demonstravam as constantes violaes dos Direitos Humanos em Cuba, o genocdio ideolgico e as torturas. Como a 12 de maio de 1972, quando foi solicitado que salvassem a vida de Boitel, a ONU manteve silncio. A comisso de investigao requerida no foi nomeada, a documentao no circulou e, semanas mais tarde, desaparecia misteriosamente. Isso aconteceu no ms de agosto de 1974. Enquanto isso, Castro continuava fuzilando seus opositores, nos crceres continuava a tortura e Cuba aspirava secretaria da Comisso dos Direitos Humanos da ONU, precisamente. Continuei escrevendo para o ministro do Interior, ao vice, ao diretor da Cruz Vermelha, pedindo-lhes assistncia mdica. Soube que o tenente Homero, um dos comissrios polticos, que todos chamavam de Cadernetinha, porque estava sempre com uma caderneta debaixo do brao e nela anotava tudo, era o secretrio do ncleo do Partido na priso. Chamei-o e disse-lhe que queria entregar a ele, como autoridade mxima do Partido na priso, uma carta para a Direo da Provncia. Assustou-se. Aquilo de um preso contra-revolucionrio dirigir-se ao Partido escapava de seu entendimento e prometeu que ia cuidar do assunto. Nem por isso deixei de continuar escrevendo. Todos os dias, quando o oficial da chamada entrava, eu j estava com trs ou quatro cartas. Por fim, a 4 de novembro, levaram-me a um neurologista. O dr. Joaquim Garcia, depois de demorado exame que incluiu teste muscular, expediu certificado de internao em um hospital de reabilitao fsica e diagnosticou: "polineuropatia carencial aguda; sndrome carencial e paraplegia flcida", sublinhando que somente um tratamento intensivo poderia me recuperar. Mas a Policia Poltica no se satisfez com aquele diagnstico e chamou um de seus mdicos, de confiana, o dr. Luis Daz Cuesta, Chefe dos Servios de Medicina Fsica de Havana. 0 diagnstico foi o mesmo, s que, alm disso, constatou atrofia dos msculos das pernas e deficincia nos dos braos. A 3 de janeiro de 1975 esse mdico recomendou minha internao em um hospital, sem mais demora, ou havia o risco das leses se tornarem irreversveis. Pessoas amigas, dentro do presdio, facilitaram-me fotocpias de todos esses diagnsticos e consegui faz-los chegar s mos de Martha, no estrangeiro. Anos mais tarde, serviriam para desmentir redondamente o governo cubano. Ns, os invlidos, continuvamos nos arrastando em caixotes de madeira, com a ajuda dos companheiros. Na verdade, aquela impotncia era deprimente. Conseguir uma cadeira de rodas requeria uma tramitao burocrtica que poderia durar anos. Mas ns no podamos esperar tanto. Uma tarde falei com Menchaca. Era comunista, mas falava com clareza e no prometia o que no podia cumprir. Era um desses raros personagens, dentro do aparelho repressivo, que mantinha atitude de respeito em relao ao preso. Comigo sempre agiu de maneira correta, sem encarniamento nem abusos. Havia calor humano nele, coisa que pouqussimas vezes encontrei em um funcionrio do governo cubano. Desempenhava o cargo de administrador dos servios de medicina da priso. Disse-lhe que precisvamos de cadeiras de rodas, que eu tinha amigos que poderiam mand-las, do estrangeiro, coisa que eles no ignoravam. Comuniquei que se em uma

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semana todos ns no as tivssemos, eu iria pedi-las aos meus amigos da Anistia Nacional. Poucos dias depois entregaram cadeiras de rodas a ns seis. Isso significou livrarnos de ficarmos prostrados na cama o tempo todo. Comeava para mim um grande desafio fora de vontade, ao meu carter hipercintico, que necessitava de atividade constante. Estava, ento, amarrado cadeira, que logo incorporei ao meu corpo e tornouse como um prolongamento de mim mesmo. Em fevereiro daquele ano, 1975, chamaram minha me ao escritrio do presdio. Foi recebida pelo dr. Torres Prieto e o tenente Ginebra, chefe dos comissrios polticos. Disseram-lhe que eu poderia morrer a qualquer momento e que nunca mais voltaria a andar, porque as leses eram irreversveis. Depois, trataram de convenc-la para me escrever, pedindo-me que aceitasse a reabilitao poltica. Prometeram-lhe que me poriam em liberdade em alguns meses. Essa era a resposta aos requerimentos e cartas de minha me aos dirigentes da revoluo, solicitando assistncia mdica para mim. * * * Na hora da comida, o tenente Mauricio, acompanhado por meia dzia de guardas, entrou no ptio, passeou de um lado para outro com ar de desafio, olhando agressivamente os presos que formavam fila diante do refeitrio. Os militares do refeitrio negaram-se a servir comida para quatro ou cinco detentos, por estarem com o primeiro boto da camisa desabotoado, e quiseram mandlos de volta gal. Mas eles se negaram e o tenente Mauricio deu ordem para que os atacassem. Ele foi o primeiro a erguer a baioneta e descarreg-la sobre os presos. Eduardo Capote era professor. Lutou contra a ditadura de Batista, nas montanhas, ao lado de Fidel Castro. Mas no o fez para instaurar o marxismo: estava na cadeia por ter se oposto a ele e encontrava-se no final da fila onde estavam surrando seus companheiros. Um guarda chamado Borroto, empunhando um faco, atacou Capote, que por instinto de conservao tratou .de cobrir a cabea com o prato. A primeira facozada, dada de fio e no de prancha, cortou-lhe msculos e tendes, chegando at o osso de sua mo esquerda. Apesar disso, Capote tentou se proteger de novo, erguendo os braos, e outra facozada atingiu-lhe a mo direita. Os dedos caram no cho, cortados perfeitamente. Sem se importar com os ferimentos e o sangue que brotava da mo mutilada, o guarda Borroto continuou golpeando com sanha, atingindo-lhe a cabea, os ombros, os braos... Da gal, contemplvamos, horrorizados, o crime que estava sendo cometido contra Capote e comeamos a sacudir as grades, tentando inutilmente arranc-las. Aquela cena me aterrorizou de tal maneira que em meu crebro acumularam-se imagens de outras carnificinas que tinha presenciado nos campos de trabalhos forados, na Ilha de Pinos, nas muradas de Boniato. Dos terraos, os guardas de turno deram vrios tiros e logo o ptio encheu-se de oficiais. Levaram Capote, que se esvaa em sangue. No havia ambulncia e na farmacinha no havia o necessrio para trat-lo. Afinal, conseguiram um veculo e levaram-no. Os demais feridos foram atendidos l mesmo, na enfermaria. Anoitecia

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quando voltaram para as celas. No manh seguinte, enquanto varriam o ptio, entre papis e lixo apareceu, enegrecido, um dos dedos de Capote. Dias depois, quando um familiar soube do que tinha acontecido com Capote, comentou o fato, consternado, com um primo dele, Ren Anillo Capote, vice-primeiroministro das Relaes Exteriores do governo de Castro, que pulou, indignado, dizendo que aquilo era uma calnia para desacreditar a revoluo, que nos crceres cubanos no maltratavam os prisioneiros.

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35. Sim, sabem o que fazem

O calor no sul da provncia de Oriente o mais intenso de toda ilha. E como o presdio de Boniato fica no fundo de um vale, durante o vero um verdadeiro forno. A priso estava cheia de cartazes saudando o primeiro congresso do Partido Comunista, que seria realizado em setembro. Terminava o ms de agosto e Laureano vinha padecendo h muitos dias de desesperante dor de dente. Uma crie enorme tinha comido o dente quase inteiro, do qual restava apenas a "casca". Laureano passava as noites sufocantes sem dormir. O tormento da dor ia se acumulando em sua mente, desesperando-o. Mandamos buscar o tenentechefe dos comissrios polticos para explicar-lhe o que estava acontecendo. Respondeu que, para que lhe arrancassem o dente, Laureano teria que renegar sua atitude. Acrescentou que sabamos que enquanto estivssemos em estado de rebeldia no tnhamos direito de receber ajuda mdica. Desesperado, Laureano arrancou o dente com uma colher e um prego enferrujado. Foi uma operao brbara. Retalhou as gengivas, mas s conseguiu desprender pedaos do dente. Depois, sobreveio uma infeco que lhe tomou todo o maxilar. Passaram-se horas e no vinham retirar Laureano, que ento j estava com febre alta e corria o perigo de morrer de septicemia. Quando levaram o almoo, os presos recusaram-no. O tenente Elio, chefe do edifcio, apresentou-se para perguntar por que no queramos almoar e, ento, perguntamos-lhe por que no tinham ido retirar Laureano, que estava em estado grave. Vocs conhecem as condies estabelecidas. Enquanto mantiverem sua atitude, no podemos dar-lhe a assistncia. So ordens superiores. A resposta que lhe demos foi a nica que estava ao alcance de prisioneiros: bater nas placas de ferro que muravam as portas com as colheres de calamina, os jarros e os pratos. Uma resposta de impotncia e dor. A guarnio, equipada para combate, marchou contra o nosso edifcio. Quando os guardas subiram a escadinha que ia desembocar no ptio, os presos, entrincheirados atrs dos tanques, atiraram-lhe frascos de vidro; a guarnio respondeu com rajadas de metralhadora. Dois caram atingidos pelos tiros. Ento, os soldados entraram no corredor das celas muradas e comearam a abrir as portas. A medida que saam, os presos eram empurrados a pancadas de culatra de fuzil, at o fim do corredor. Faltavam apenas cinco ou seis celas para serem abertas. A chuva de golpes sobre eles, com paus, baionetas, correntes, no parava um instante; mas, de repente, como que para proteg-los, entre eles e os agressores se interps um homem esqueltico, de cabelos

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brancos e olhos fulgurantes, que abrindo os braos em cruz levantou a cabea para o cu invisvel ... Perdoai-os, Senhor, eles no sabem o que fazem! O Irmo da F quase no conseguiu completar a frase, porque o tenente Ral Prez de la Rosa, ao v-lo interpor-se, ordenou aos guardas que retrocedessem e disparou seu fuzil metralhadora AK. A rajada subiu pelo peito do Irmo da F at o pescoo, que ficou quase solto, como que cortado por brutal machadada. Morreu instantaneamente. Enrique Diaz Correa, que estava ao lado dele, tentou amparar o corpo ensangentado, mas o tenente Ral Prez tornou a atirar, at terminar a carga. Enrique recebeu nove impactos de bala no corpo. Ento, desencadeou-se uma verdadeira carnificina organizada, sistemtica. Segurando os fuzis pelo cano, como se fossem tacos de beisebol, batiam nos presos que, completamente nus, eram evacuados para o andar trreo. Nem um s prisioneiro deixou de apanhar naquela orgia de sangue e horror. Nus, acuados como animais aterrorizados e rodeados por um crculo de baionetas, agruparam-se mais de vinte feridos a bala e por outras armas contundentes e cortantes. L em cima, nas celas, os guardas estavam destruindo tudo, at as roupas. Passou-se mais de uma hora antes de trazerem as macas. Desceram o Irmo da F e Enrique Diaz Correa e colocaram-nos no corredor que une os edifcios e que fechado por rede de ago. Os olhos claros do Irmo da F so agora como de um cristal duro, opaco, abertos de assombro. A boca tambm no estava fechada. A seu lado Enrique emite um gemido quase inaudvel. Est vivo, com nove projteis no corpo, mas se salvar, depois de lhe extirparem vrios rgos e parte dos intestinos. Era 1o de setembro de 1975, ano do Primeiro Congresso do Partido Comunista de Cuba. A morte do Irmo da F logo foi sabida em todos os presdios de Cuba e no exterior. Antes de morrer, ele repetiu as palavras de Cristo na cruz: "Perdoai-os, Senhor, eles no sabem o que fazem!". Uma carta minha, denunciado o que havia acontecido em Boniato, conseguiu chegar s mos de Martha. O dr. Medrano e um grupo de exilados apresentaram-na diante da ONU, mas essa prestigiosa instituio nem sequer deu-se ao trabalho de acusar recebimento. Continuava surda e cega quando se tratava dos crimes que a ditadura castrista cometia com presos polticos cubanos. Eu continuava escrevendo ao Ministrio do Interior, solicitando assistncia mdica. Como resposta, levaram-me para um hospital, a fim de me extrair lquido da espinha dorsal e analis-lo. Estando l, apareceu o tenente Ramiro Abreu, delegado do ento ministro do Interior. Aquilo fora preparado. Ele falou com os escoltas e eles se afastaram. Disse-me, ento, que a revoluo sabia que eu no podia trabalhar, mas que em setenta e duas horas me poriam em liberdade se eu lhes dissesse, apenas de palavra, sem assinar qualquer documento, que aceitava minha reabilitao poltica: Ningum vai ficar sabendo, pois sabemos que se criam compromissos com os companheiros... disse. Mas eu vou saber, tenente. Isso o bastante. Insistiu nos oferecimentos, com cortesia.

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A liberdade com condies no me interessa, tenente. Obrigado por seu interesse. Ento, levaram-me para a sala que a Polcia Poltica tem no Hospital Militar. Nessa instalao prolongam-se os mtodos de tortura psquica e isolamento de Vila Marista. Mantm os doentes que esto sob investigaes em condies de represso excepcionais. Foi l que um capito informou-me que eu no seria internado em um hospital civil porque sabiam que meus amigos tentariam me resgatar; algo completamente absurdo. Os neurologistas me examinaram e diagnosticaram a mesma coisa que os outros mdicos e como ali no podiam me dar o tratamento necessrio, devolveram-me ao presdio La Cabaa. Ento, o tenente Ginebra me comunicou que estavam dispostos a me internar imediatamente em um hospital especializado, mas para isso teria que aceitar a reabilitao, que o Ministrio me garantia que em um prazo no maior do que noventa dias seria posto em liberdade. Eu no penso em aceitar essa reabilitao, tenente, e como ser humano tenho direito a receber assistncia mdica sem nenhuma condio foi a minha resposta. Esta a nossa ltima palavra, Valladares, pense nisso. Aquele viver em uma cadeira de rodas deu uma nova perspectiva minha vida. Minhas impresses, meus estados de nimo e minha impotncia diante de uma excrescncia de cimento, que qualquer criana podia saltar e eu no, fui descrevendo-os em versos, que logo formaram uma coleo. Um dia, mostrei-os ao meu amigo Alfredo Izaguirre e disse-lhe que ia tentar fazer com que sassem do presdio, para serem publicados. Se voc publicar isso, os comunistas o fuzilam pelas costas, na cadeira de rodas mesmo foi o comentrio dele. Bem, se o fizerem, tanto faz que seja pelas costas ou pela frente. E me empenhei para que os poemas chegassem ao estrangeiro. Escrevi vinte e uma cpias e apenas uma, atravs de meu bom amigo Agustn Piera, chegou s mos de Martha. De minha cadeira de rodas foi publicado e traduzido para vrios idiomas. Foi esse livro que me tornou conhecido em muitos pases do mundo e contribuiu para que a parede de silncio e indiferena que existia em relao aos presos polticos cubanos comeasse a rachar. Martha conseguiu publicar a primeira edio com a ajuda de amigos no estrangeiro. Sabia que me expunha morte com a publicao do livro, mas era preciso dar um exemplo. Outros tinham morrido em condies similares e no haviam podido deixar outra mensagem a no ser sua morte inesquecvel; se eu morresse, meus versos seriam uma constante acusao barbrie criminosa do presdio poltico cubano. Algo que duraria mais do que a simples e humana lembrana, to passvel de ser desbotada pelo tempo. Meu livro quis ser unia chamada de conscincia para os homens livres do mundo para que, mediante meus poemas e prosas, soubessem o que estava acontecendo com os prisioneiros de Castro, a aqueles seres ainda h centenas deles nos crceres de Cuba esquecidos por todos. Os nicos no mundo ocidental que, por mais de vinte anos de torturas, foram experimentados em sua f na democracia e no amor a Deus, liberdade, e justia. Homens do povo, simples, humildes.

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Assim, a poesia transformou-se em arma de combate. Os tiranos no toleram e odeiam os poetas porque so as vozes deles que se erguem e denunciam suas infmias. Um dia, sonhei que cresceriam asas em minha cadeira de rodas e meu sonho estava se tornando realidade. Ento, uma srie de circunstncias concorreram em meu favor. Depois das investigaes meticulosas que sempre faz, a Anistia Internacional me adotou como preso de conscincia e nomeou vrios grupos na Alemanha Ocidental, Holanda e Sucia para trabalharem em prol da minha liberdade. Por minha correspondncia clandestina com Martha, eu conhecia a atividade dos membros da Anistia a meu favor. Tambm por um militar da priso, que colaborou comigo, sabia da chegada de centenas de cartes que me enviavam. Uma ou outra vez, quando no tinham distintivo e estavam escritos em idiomas entregavam-me alguns. Posso dizer que isso contribuiu enormemente para que as autoridades cubanas no me eliminassem fisicamente, de forma violenta. Ter sido adotado pela Anistia Internacional constitua uma espcie de proteo. Eles j sabiam que no mundo inteiro havia pessoas a par da minha situao. O grupo nmero cento e dez, da Sucia, realizou um trabalho extraordinrio e a ele agradeo em boa parte por ter conseguido a liberdade. Dia a dia, Martha ia fazendo meu caso e os de meus companheiros irem sendo conhecidos, por meio de artigos publicados pela imprensa.

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36. O Combinado do Leste

Em janeiro de 1977, o governo cubano estreou um grande presdio, o Combinado do Leste, que podia hospedar at 13.500 detentos. Todos ns fomos transferidos para l. No hospital desse presdio, com mais dois de meus companheiros invlidos, Israel e Pedro, fecharam-me em um calabouo no final de uma sala. Mal podamos movimentar as cadeiras de rodas, to pequeno era o espao que tnhamos. Um dia de abril, s trs da tarde, avisaram-me que uns mdicos iam me examinar e me tiraram da sala. Esperavam-me cinco ou seis mdicos de vrias especialidades. Toda a equipe principal estava l. O dr. Campos, diretor do hospital, achou que aquilo era para me libertar e congratulou-se comigo. O exame geral durou dois dias. Levaram-me para a sala de medicina dos Hospital Naval para me submeter a um eletromiograma, com equipamento modernssimo, como no existe outro em Cuba, e para uso exclusivo dos militares. Mais tarde saberia que um comandante ajudante do ministro do Interior esperava aqueles resultados e que tudo se devia a uma comisso de parlamentares europeus que chegara a Havana convidada pelo governo cubano. Alguns deles pertenciam Anistia Internacional e ao colocar os ps em terra, a primeira coisa que fizeram foi perguntar por mim. Pediram para me ver e se interessaram por meu estado de sade. O governo cubano, pela primeira vez, viu-se forado a dar uma resposta a respeito do meu caso. Os parlamentares estavam a e era difcil no lhes dar resposta. Aquele foi um interessante relatrio mdico que, em lugar de meu estado de sade, dizia: "Foi condenado a trinta anos por ter feito, em unio com outros indivduos, planos de revolta armada contra o Estado e realizado atos de sabotagem, atentados pessoais a dirigentes da revoluo, aes terroristas ..." e outros mil fatos, todos gravssimos. Continuava dizendo, o "relatrio mdico", que eu mantinha uma "posio recalcitrante dentro da priso havia dezesseis anos" e que incitava os demais detentos a seguir meu mau exemplo. Depois, dizia que "participou de vrias greves de fome e devido a isso padece de paresia recupervel dos membros inferiores e superiores, como conseqncia de uma polineuropatia por deficincia nutritiva. Essa doena continuava o relatrio aparentemente limita totalmente os movimentos de suas extremidades inferiores". Admitiam a doena, mas acrescentavam que no era to grave quanto se dizia, porque tinham informao de que essa gravidade era simulada e que eu podia andar. Quando o relatrio do governo cubano chegou ao estrangeiro, a resposta de minha esposa foi contundente, irrefutvel, comprovada pelas fotocpias dos diagnsticos dos especialistas cubanos, aqueles que eu havia conseguido fazer sair, sabendo que teramos que usar, um dia.

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Quando minha esposa apresentou as fotocpias dos diagnsticos, a Polcia Poltica viu-se desmascarada em sua mentira e ao sentir-se ridicularizada, reagiu impulsivamente. Foram ao Hospital Calixto Garca, interrogaram as enfermeiras, a todos que tiveram contato comigo e levaram dos arquivos todas as provas mdicas, expediente, etc. Fizeram o mesmo no hospital do presdio. Desde ento meu expediente de doente ficou sob custdia. * * * Sem dvida as providncias da Anistia Internacional, meu livro que j estava na segunda edio e o interesse de polticos e intelectuais do mundo inteiro comeavam a preocupar as autoridades cubanas. Eu tinha escapado das garras deles; no podiam me matar, porque comeava a ficar conhecido. Eu soube interpretar bem a situao e multiplicava as denncias, os escritos e preparava um novo livro. Ento, uma amiga da minha famlia, Sandra Estvez, foi recrutada pela Polcia Poltica. Ela recolhia cartas clandestinas para minha me em vrios lugares da cidade. Em uma ocasio, o capito Adrin, que no conseguia guardar nada, para bancar o bem-informado, anunciou-me que possivelmente me levariam para um hospital de reabilitao, mas que no poderia receber visitas, nem sequer de Alicia e, ao me dizer isso, ficou me olhando, sorridente. Alicia era um codinome que eu mencionara para minha me, em minha ltima carta. Ao mencion-lo, o capito Mentira, por ser vaidoso, revelava sua informante. Imediatamente alertei minha famlia de que Sandra estava trabalhando para a Polcia Poltica. Disse-lhes o que deviam fazer e desde aquele momento utilizei-a para desinformar seus patres. Preparei uma "grande operao" de um amigo imaginrio, que viajaria para Cuba a fim de entregar a Sandra uma mquina fotogrfica Minolta. Com ela, deveria tirar fotos do presdio e de documentos, alm de realizar outras tarefas que eu iria lhe dando. Eram to torpes, que o prprio capito Mentira, em um Toyota amarelo, levava-a para apanhar minhas cartas. Se eu j no a tivesse descoberto, iria faz-lo semanas mais tarde, quando um dos familiares que iam apanhar meus bilhetes, e que conheciam o capito pelo apelido El Chino, reconheceu-o quando foi com Sandra pegar as cartas. Depois, fiz acreditarem que o outro livro que terminara estava guardado em determinada casa e que ela iria peg-lo quando meu amigo chegasse do exterior. Mandava-os apanhar cartas em endereos que no existiam ou com pessoas cujos nomes eu lia nos jornais, como apoios da revoluo. Assim os levei durante seis meses, correndo pela Capital inteira. Divertiam-me as cartas de Sandra aconselhando-me a dizer onde estava o livro, pois ficaria mais seguro se ela o guardasse at a chegada do meu amigo. No dia que resolvi que a expulsassem de minha casa, preparamos-lhe uma armadilha. Minha irm a fez pensar que atrs de um quadro da sala estava escondida uma carta minha para Martha. Na mesma tarde, o capito Mentira apareceu na minha casa, foi diretamente at o quadro e o retirou, revistando-o. Dois dias depois, quando Sandra apareceu, minha famlia a pressionou e, desmoralizada, numa crise de choro, pedindo perdo, confessou que o capito Mentira a ameaara, dizendo que ia enfi-la na cadeia e mandar Gianni, seu filhinho, para a escola de "Camilitos", um internato militar, se no colaborasse com eles.

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Minha casa era vigiada e por isso eu no podia enviar ningum do hospital ou familiar de presos, pois essa pessoa iria parar na cadeia. Ento, eu fazia minha correspondncia chegar at uma senhora que no tinha vnculos com prisioneiros e ela, que era amiga de minha famlia h muitos anos, levava-a minha casa. Entretanto, no ms de junho, Martha chegava a Caracas, no incio de uma peregrinao que a levaria pelo mundo inteiro, pedindo ajuda para minha libertao. L a esperava o dr. Rebelio Rodriguez, que a apresentaria no famoso programa de televiso de Carlos e Sofia Rangel e a faria conhecer o deputado Jos Rodriguez Iturbe, um dos mais importantes lutadores pela minha liberdade. Ele j havia redigido uma carta para Castro, pedindo-lhe minha libertao, conseguindo a assinatura da maioria dos membros do Congresso. O ex-presidente da Venezuela Rmulo Betancourt uniu-se campanha e ofereceu a Martha sua valiosa cooperao. A mesma coisa fizeram todos os partidos democrticos, imprensa e instituies venezuelanas. De l, Martha passou para a Costa Rica, onde continuou o trabalho para me tirar da priso. Os grupos da Anistia Internacional continuavam trabalhando e, de maneira muito especial e dinmica, o grupo cento e dez de Per Rasmussen, na Sucia. Parlamentares do Canad somaram-se s peties pela minha liberdade. Dia a dia a campanha em meu favor era uma bola de neve ladeira abaixo. Castro jurava e perjurava que enquanto essa campanha existisse eu no seria libertado e os recadeiros da Polcia Poltica levavam-me essas mensagens com as ameaas veladas de sempre. Dei minha resposta publicamente em uma carta dirigida Martha, que dizia: "No pode parar a ofensiva. Se disserem a voc que vo me fuzilar e que s no faro isso se voc se retirar e deixar de denunciar, no pare por nada, por ningum". O calor naquele cubculo era infernal, pois as paredes pr-fabricadas tinham por dentro uma armao de ferros que o sol aquecia durante muitas horas. No se podia encostar nas paredes: eram como as de um forno. Suvamos copiosamente e para mitigar o calor infernal afastvamo-nos das grades ou nos enfivamos no banheiro. Quando lavvamos a roupa de baixo, era s coloc-la na parte da cama que estava perto da parede para que secasse em poucos minutos. Sabia que aquele encarniamento era comigo, mas meus dois companheiros de cela tambm sofriam e isso me dava pena. Eles partilhavam estoicamente do meu castigo. Uma denncia minha deu a conhecer no exterior a situao em que nos mantinham e o governo cubano recebeu centenas de cartas pedindo que me dessem tratamento humano. Tal foi o clamor que, uma tarde, o chefe militar do hospital deu ordem que abrissem nossas grades. Tnhamos ganho outra batalha da prepotente Polcia Poltica. E fortalecia-se meu critrio de que se conseguisse elevar a campanha de opinio internacional ao nvel adequado, Castro teria que me pr em liberdade, mesmo que no quisesse. O tempo me daria razo. Uma noite, vrios coronis foram at meu cubculo para me comunicar que seria transferido para um hospital especializado. E assim foi. Levaram-me ao Ortopdico de Vedado. Tinham preparado um quarto selando a janela com tbuas. A porta permanecia sempre fechada, como que murada, e era bloqueada por um militar com metralhadora. S uma enfermeira, a chefe de sala, foi autorizada a entrar, por ser de absoluta confiana. O marido era um comandante do

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Ministrio do Interior. No entanto, ao contrrio do que eles pensavam, essa enfermeira sensibilizou-se com a minha situao e, quando eles descobriram, transferiram-me no ato. Fui parar no hospital Frank Pas. Enquanto isso, o governo cubano libertava vinte e oito presos polticos doentes e feridos, que estavam h vinte anos na priso. Aquele era o momento de me libertar, como fizeram com os outros que estavam invlidos. Ento, eu teria sido um entre os milhares que saram, meu caso no teria alcanado a notoriedade que alcanou e eu estaria em qualquer lugar do mundo, com minha esposa Martha, tratando de organizar minha vida. Os coronis da Polcia Poltica foram os grandes promotores da campanha de opinio a meu favor. Cegos de dio, no puderam ver que muitas pessoas no mundo estavam a par da minha situao. Eles tinham sido meus melhores agentes publicitrios, os mais teis, os que demonstravam, dia-a-dia, a veracidade das minhas denncias. No novo hospital tudo mudou completamente. Deram-me um cubculo com mesas de fisioterapia e basculante, tanques para hidromassagens. Designaram um dos terapeutas de confiana, Luis Manuel, militante da Juventude, para me aplicar o tratamento. Atendiam-me o diretor, dr. Alvarez Cambra, e a enfermeira-chefe do hospital, Esperanza Ortiz, ambos membros do Comit Central do Partido. Permitiam-me falar com todos, ir para o jardim tomar sol e, semanas depois, visitas de minha me e de minha irm. Naquelas condies, acreditei sinceramente que seria libertado. Da mesma maneira que quando estava em situao difcil escrevia para os amigos da Anistia Internacional e os outros, contando meu caso, escrevi contando a mudana. Um dia, o coronel Carlos, um dos chefes, disse-me, satisfeito, que meu nome j no estava na lista da Anistia Internacional e no me negava que ao governo cubano afetava o que essa prestigiosa organizao dizia. Sentia-me bem e minha cura progredia. Quis verificar se meu terapeuta era informante da Polcia e comentei, s com ele, quando o escolta estava fora, que tinham dado em uma rdio estrangeira a notcia de que minha esposa iria entrevistar-se com Manley, o Premier da Jamaica. No dia seguinte, o capito Mentira apareceu para dizer que minha esposa no ia conseguir nada falando com Manley e comprovei, assim, que o terapeuta era um informante. Depois, dei-lhe uma carta para que pusesse no correio e ele entregou-a ao capito Mentira. Enquanto isso, publicava-se a terceira edio do meu livro. A bola de neve no parava. O PEN Club francs interessou-se por mim e nomeou-me seu membro de honra. O novo presidente da Venezuela, Herrera Campins, incluiu a minha liberdade nas tratativas com Havana. E deu instrues ao seu embaixador em Cuba de entrar em contato com a minha famlia. J tinham pedido minha libertao a Castro, mas ele respondeu ao deputado venezuelano Jos Rodriguez Iturbe que eu no sairia de Cuba enquanto no voltasse a andar, que eu era o nico que no podia sair do pas em cadeira de rodas. A organizao "Of Humans Rights", em Washington, conseguiu que dezenas de representantes norte-americanos assinassem uma carta pedindo minha liberdade a Castro e fundaram na Europa comisses de luta com a mesma finalidade. Castro se encolerizou. Disse a um grupo de parlamentares venezuelanos que no tolerava atitudes de fora e que eu no seria libertado se no cessasse a campanha a meu favor. No

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entanto, o governo cubano tentou negociar e a embaixada de Cuba na Venezuela mandou um recado a Martha dizendo-lhe que, se ela solicitasse, o Governo me poria em liberdade. Martha viajou para Caracas mas no foi sozinha ao encontro marcado com o cnsul geral de Cuba, Amado Soto; foi acompanhada pela nosso grande amigo o deputado Jos Rodriguez Iturbe, na poca presidente da Comisso de Relaes Exteriores do Senado venezuelano. Ento, as relaes entre Caracas e Havana iam aos tropees e foi por isso que o embaixador cubano Norberto Hernndez, ao ver o dr. Rodriguez Iturbe, adiantou-se de mo estendida, com amplo sorriso. Quem sabe que iluses teve com a presena do prestigiado deputado? A que devemos a honra da sua visita? Minha visita no oficial, mas sim oficiosa. Vim acompanhando a sra. Valladares. O sorriso do embaixador cubano desapareceu. A conversa entre Martha e o cnsul Soto foi breve: Ele lhe props que publicasse uma carta desmentindo tudo que se havia dito sobre mim e que proibisse organizaes internacionais, jornalistas e intelectuais de falarem no meu caso. Em troca disso, o governo cubano prometia me libertar em algumas semanas. Martha recusou rotundamente. Minha melhora ia de vento em popa. J conseguia ficar de p com uma armao que impede os joelhos de se dobrarem e podia me sustentar entre barras paralelas. tarde, sempre com o escolta, ia para o jardim, podia conversar com outros doentes e assim conheci duas moas com seqelas de plio, Alicia e Maria Luisa, que deram alegria e ternura quela minha estada no hospital. Fiz para elas um presente subversivo em Cuba: uma arvorezinha de Natal, em miniatura, e entreguei-a em uma caixinha que abriram s escondidas, no cubculo delas. Eu recebia atenes especiais. Mantinham-me no mesmo salo reservado aos estrangeiros e esportistas. Havia ali sandinistas recuperando-se de operaes, angolanos, iemenitas, etc. Unicamente os esportistas e estrangeiros tinham direito a receber iogurte e outros alimentos, como manteiga, ao passo que nas outras salas, onde ficava o povo, no havia merenda. S os estrangeiros e esportistas tm ar-condicionado, o restante dos doentes no, a no ser no pavilho das crianas. Um ataque de asma me asfixiava h dois dias. Aquele hospital no tinha sala de urgncia e, em gravssimo estado, fui remetido para o Hospital Militar. Acompanhavamme o escolta e a enfermeira, que durante todo o trajeto ia me ajudando a respirar, manipulando-me o trax. Quase asfixiado, tiraram-me, com o rosto arroxeado. Foi preciso aplicar-me um ressuscitador Mark 8, com oxignio em presso positiva, e aplicarme injees na veia, urgentemente. Quando voltamos ao Frank Pas, a enfermeira foi repreendida por me acompanhar. No adiantou ela se justificar, dizendo que o havia feito por motivos humanitrios, porque era a enfermeira de planto e o mdico a mandara ir, uma vez que meu estado o requeria. O dr. Humberto Barrera, secretrio do Ncleo do Partido, disse-lhe: Afinal, se ele tivesse morrido no se perdia grande coisa! Contra o que eles tinham calculado enganados por sua prpria propaganda de vinte anos , que as pessoas no iam se aproximar do "preso", aos poucos foram-no fazendo.

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Criou-se ao meu redor um crculo de admirao e simpatia por parte das enfermeiras, pacientes, funcionrios e as crianas, para as quais eu desenhava. O anti-heri transformava-se em heri. Para impedir aquela perigosa situao, isolaram-me em um cubculo anexo sala do diretor. Partilhvamos o mesmo banheiro. Assim, mantinham-me bem controlado e incomunicvel. Daquele segundo andar, cujas janelas davam para o jardim, as enfermeiras continuaram a me cumprimentar, os funcionrios tambm e as crianas gritavam, chamando-me pelo nome. A 2 de maro de 1978, no teatro do hospital, convocaram uma assemblia geral em que Enrique Otero, dirigente do Partido, arremeteu contra os que me cumprimentavam e, com ameaas, proibiu-os de continuarem a faz-lo. Mas Alicia, minha linda amiguinha peruana, todas as tardes erguia a mo e me acenava, de sua cadeira de rodas. Ento, Esperanza Ortiz, a chefe das enfermeiras, quis proibi-la de fazer isso, dizendo-lhe que eu era um criminoso. Nunca conheci ningum mais bondoso do que ele respondeu-lhe Alicia e vou continuar a cumpriment-lo. No dia seguinte foi notificada que devia deixar o hospital e avisar sua famlia, no Peru. Acusaram-na de ser mal-agradecida para com a revoluo. O diretor Alvazez Cambra visitou-a em seu quarto, para amea-la se dissesse algo de mim no estrangeiro. Na alfndega ela era esperada pela Polcia Poltica que quis fich-la. Mas ela, que tinha instrues minhas, recusou-se e exigiu a presena de um funcionrio de sua embaixada. Alicia levava uma carta para Martha, que conseguiu fazer passar. As enfermeiras no podiam subir onde eu estava confinado. Todos os dias davam ao escolta, para que me entregasse, uns envelopes com comprimidos e um carto com os horrios de tom-los. Colocaram um balo de oxignio e me deram ampolas com liquido: quando tinha crise de asma, entre estertores e esforos para respirar, eu tinha que quebrar as ampolas, preparar os vaporizadores e manipular as chaves dos relgios. As pessoas que eles mesmos tinham autorizado a me visitar foram detidas pela Policia Poltica, interrogadas, aterrorizadas. Durante meses proibiram a visita de minha me. Eu continuava o tratamento. Colocaram barras paralelas e a mesa no quarto. Tinham mudado o terapeuta. Agora, era uma moa bonita, militante da Juventude Comunista. Tambm mudaram o capito Mentira. Disseram que permitiriam que minha famlia sasse do pas, mas quando j tinham malas preparadas e vo marcado, comunicaram-lhes a suspenso do visto de sada. Dias depois, o coronel Carlos e o substituto do capito Mentira disseram-me que s os deixariam sair de Cuba se eu escrevesse uma carta renegando meus amigos do exterior e proibindo a eles, assim como qualquer pessoa, jornais e organizaes que falassem de meu caso ou publicassem meus trabalhos literrios. E que eu desmentisse tudo quanto havia dito em minha defesa. Respondi, tranqilamente, que jamais escreveria essa carta. Ento sua famlia jamais sair respondeu-me o coronel. Depois de vrios meses autorizaram de novo as visitas de minha me e minha irm. Eu tinha um escolta que se gabava das surras que havia dado em prisioneiros nos campos de trabalhos forados. Naquela manh, quando minha famlia chegou, avisaram-

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no. Ele desceu ao saguo do hospital e disse-lhes que no podiam subir. Minha irm argumentou que tinham autorizao e que era hora de visita. Sem que existisse motivos, sem respeitar duas mulheres, uma delas anci, tratou-as com grosseria, empurrou-as e gritou que sumissem dali ou chamaria um patrulheiro da polcia para prend-las. Por acaso aquela cena foi presenciada por uma delegao estrangeira presidida pela filipina Stefania Abdaba Lim, subsecretria-geral das Naes Unidas, que estava l como representante da Comisso para o Ano Internacional da Criana. Se algum dos integrantes daquela delegao ler este livro, na certa ir se lembrar daquele incidente, em que uma anci e uma moa eram destratadas por um policial. Foi no dia 9 de maio de 1979, no saguo do hospital Frank Pas, em Havana. O governo cubano j havia libertado mais de dois mil prisioneiros polticos, com centenas de prisioneiros comuns misturados com eles. E declarava, falsamente, que o restante no estava includo no indulto porque eram terroristas. Fechada a vitrina de exibio, voltamos aos mtodos habituais: iniciou-se nova onda de represso em todos os presdios do pas. Transferiram cem prisioneiros polticos para as celas muradas da priso de Boniato, despojando-os de todos os pertences. Acontece ento que, animados por uma estao de rdio clandestina e um locutor que se identificava como o comandante David, dezenas de jovens lanaram-se luta ativa. Apareciam em Havana letreiros contra o comunismo e contra Castro. Na provncia de Pinar del Rio incendiaram nove armazns de tabaco. Em Havana, algumas fbricas e cinemas eram pasto de lhamas; nas ruas apareciam pichaes contra a ditadura. Isso provocou centenas de detenes. Poucos meses depois, ao voltar para a priso, eu iria conhecer muitos dos autores desses feitos. No presdio de Pinar del Rio e na priso de Kilo 7, em Camagey, deram surras brutais nos presos polticos e os colocaram incomunicveis, deixando os feridos sem assistncia mdica. Entretanto, os pelotes de execuo, em uma s noite, ceifaram a vida de seis jovens, no paredo de fuzilamento de La Cabaa. * * * Um congresso de intelectuais em Paris nomeou-me presidente de honra e meu bom amigo francs Pierre Golendorf fundou na Frana uma comisso para minha libertao, qual aderiram prestigiosos intelectuais como Fernando Arrabal, Henri Levy, Eugene Ionesco, o ator Yves Montand e muitos outros. Meus amigos venezuelanos continuaram insistindo com o governo cubano em minha libertao. Uma comisso de alto nvel chegada desse pas visitou minha casa. O dr. Rodriguez Iturbe, Leopoldo Castillo e outros funcionrios comprovaram a vigilncia e a presso a que minha famlia estava submetida pela Polcia Poltica. As peties que fizeram para que lhes permitissem ver-me foram recusadas. Nas conversas mantidas com a finalidade de melhorar o relacionamento de ambos pases, a parte venezuelana mantinha a minha liberdade como uma constante. Isso motivou que, meses depois, quando o embaixador venezuelano em Havana Csar Rondon Lovera comunicava a Carlos Rafael Rodriguez, antes ministro do ditador Batista e agora de Castro, a chegada de outra comisso de alto nvel de seu pas, este perguntasse: O dr. Rodriguez Iturbe vir com essa comisso? Com toda certeza respondeu o embaixador. Por qu?

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Porque esse homem, em lugar de tratar dos assuntos que interessam aos nossos pases, desde que chega a nica coisa que faz perguntar: "E o poeta Valladares? E o poeta Valladares?". J estou vendo Valladares at na sopa! O embaixador Rondon Lovera sorriu e lembrou a Carlos Rafael Rodriguez que eu era um dos interesses da Venezuela: Por que no o colocam em liberdade e acabam com essa situao desagradvel? acrescentou. Carlos Rafael Rodriguez moveu a cabea de forma negativa: Valladares prisioneiro de Fidel; Fidel o nico que pode tomar decises a esse respeito. Enquanto isso, eu no deixava de fazer exerccios todos os dias. O tratamento de fisioterapia ia dando seus frutos. J tinha deixado os aparelhos longos e usava uns curtos, que chegavam apenas at abaixo dos joelhos. Andava dentro das paralelas e fazia quase todos os movimentos com meus msculos. Com mais trs ou quatro meses no iria mais precisar de aparelhos para andar. Em maro de 1980 saiu meu segundo livro O corao com que vivo, um volume de depoimentos, relatos, poemas e documentos, que provocou verdadeira histeria entre os coronis da Polcia Poltica. Foi um bocado que as autoridades no conseguiram engolir. Uma noite, o coronel Mao, com um ataque de raiva, irrompeu em meu cubculo acompanhado por seis ou oito oficiais. Um deles tirava fotografias. Vai para a cadeia de novo! Estava frentico, o lbio inferior, pendurado, tremia de ira. Eu compreendia: sua vontade era me bater, mas, com certeza, tinha instrues para no fazer isso. Era a nica coisa que poderia cont-lo. Tentei me aproximar da mesinha e pegar minhas coisas, mas o coronel se interps: No pode mexer em nada. E meus pertences? perguntei, referindo-me a meias, roupas de baixo e outras coisas que tinha. Vamos entregar sua famlia. No me permitiram levar sequer a escova de dentes. Rodeado pelos oficiais que o acompanhavam, que no estavam absolutamente ligando para nada, fui tirado do quartinho. Dois deles, com muito cuidado, carregaram a cadeira de rodas e descemos a escada, enquanto o da mquina no parava de tirar fotos. Assim, levaram-me at o fundo do hospital, onde vrios carros de patrulha esperavam. O coronel Mello e o capito Lster ficaram para revistar o quartinho e apoderar-se do butim de guerra, formado por artigos muito cobiados: lminas de barbear marca Gillette, meias, roupas de baixo, pulveres alguns novos , gua de colnia, lenos, canetas, etc., que Martha tinha feito chegar at minha me por meio dos amigos diplomatas. Os oficiais que me levaram de volta priso foram atenciosos, ofereceram-me cigarros, mas no disseram uma s palavra durante todo o trajeto. Ficamos fazendo rodeios por quase uma hora, coisa que eu no conseguia compreender, at que receberam uma mensagem pelo rdio e nos dirigimos, a toda velocidade, para o crcere do Combinado do Leste. L esperava o fotgrafo que estivera manejando a cmera no hospital. Levaramme ao cubculo no final do corredor da ala C. Tinham posto l dentro barras paralelas,

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uma mesa de fisioterapia e o que eu jamais teria esperado: a cadeira de rodas enviada pela Anistia Internacional da Holanda. Fotografaram-me ao lado dela. Sem dvida, minhas denncias constantes obrigaram-nos a entreg-la, depois de anos de litgio. Quando foram embora e fecharam a grade que me cortava a passagem para o corredor, meus companheiros que tinham entrado na salinha se aproximaram para me cumprimentar. Conversamos durante muito tempo. Depois, tentei mudar de cadeira, para usar a nova, e verifiquei que os pneus estavam vazios e que no havia bomba pneumtica para ench-los. Entregaram-me a cadeira, fizeram fotos, mas eu no podia us-la. No dia seguinte falei com o diretor do hospital, tenente Odisio Fernndez, pedindo-lhe que mandasse um terapeuta para continuar os exerccios. Estava entusiasmado e alegre por estar entre minha gente e, alm disso, com todos os equipamentos, podia continuar o tratamento, o que era meu maior interesse. Por isso surpreendeu-me o diretor mdico informar que tinha ordens do coronel Blanco Fernndez de no me dar o tratamento de fisioterapia. Partiam para uma nova ofensiva e com as fotos dos equipamentos na minha cela tratariam de respaldar suas mentiras, dizendo que eu no queria fazer os exerccios. Voltavam s represlias, com a segurana e a impunidade que proporcionavam o poder absoluto. Foi ento que Castro, cheio de soberba porque um grupo de cubanos asilava-se, fora, na Embaixada do Peru, anunciou que retiraria a forte guarnio que a guardava e que faria o mesmo com as demais embaixadas de pases livres sediadas em Havana. Em seus delrios paranicos, que o fizeram declarar que a CIA dirige ciclones domesticados para Cuba ou que a bombardeiam com fungos que atacam as plantaes de fumo e cana, chegou a crer que apenas uns poucos corruptos iriam asilar-se na Embaixada do Peru quando a guarda fosse retirada. Seu equvoco foi enorme, porque em apenas algumas horas mais de dez mil havaneses entraram na Embaixada: estudantes, operrios, militares, profissionais liberais. E cerca de cinco mil foram detidos nos arredores, entre eles humildes camponeses que, vindos dos povoados prximos, com uma trouxa no ombro, seguidos da esposa e filhos, indagavam como se chegava Embaixada do Peru. Depois, quando Castro convidou os exilados cubanos que estavam nos Estados Unidos para irem a Cuba buscar os familiares que quisessem emigrar, iniciou-se o xodo pelo porto de Mariel, por onde saram umas 14.000 pessoas, ficando 600.000 na lista de espera. Entre os primeiros deportados encontravam-se os presos comuns, porque Castro quis dar a imagem que apenas os criminosos discrepavam do marxismo e no as pessoas decentes. Para isso, forneceram documentos aos presos, que ainda estavam na cadeia, como se estivessem estado na Embaixada peruana e enviaram-nos para os Estados Unidos. Da minha janela eu via o ptio do edifcio 2. Tiraram os presos comuns e escutei os tenentes Calzada e Salcines gritarem que quem quisesse sair do pas formasse fila. Muitos formaram, outros renunciavam a isso por motivos sentimentais, para no deixar os familiares, os filhos que, sabiam, teriam que abandonar para sempre, ou por temor de que aquilo fosse uma armadilha. Quando mais ningum saiu, a guarnio, debaixo de pancadas, fez todos passarem para a fila dos que iam embora. Muitos dos obrigados a ir voltaram, meses mais tarde, em frgeis embarcaes, para buscar seus filhos e esposas. Eu conheci vrios, internados no hospital. Um ano depois, o governo cubano levou-os para alto-mar e l os abandonaram, em botes escangalhados, com umas latas de gua,

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para que voltassem aos Estados Unidos. Por isso, uns vinte deles se afogaram; apenas alguns felizardos chegaram a terra, nas costas da Flrida; suas famlias ficaram em Cuba, talvez para sempre. Em um hospital da Califrnia, Thomas White convalesce de uma operao de cncer no estmago. Quando est s, levanta, segura o frasco de soro e anda pelo quarto. Est treinando. Pede alta, mas os mdicos negam. Ainda no pode sair do hospital, mas Thomas White sabe que se aproxima o dia de sua ltima misso sobre Cuba. J realizou muitas outras e quer fazer tambm esta. E foge do hospital. Com seu piloto, Melvin Lee, um veterano do Vietn, voa para Cuba a fim de deixar cair sua carga, no de bombas, mas sim de textos cristos. a pregao do amor, a palavra do Senhor, que Tom White lana do cu, aos milhares, para os camponeses cubanos. Uma tempestade os obriga a descer em um povoado ao sul da provncia do Oriente e so capturados pelas autoridades, Alguns folhetos presos fuselagem e cados dentro do avio os delatam. Depois de longos interrogatrios so condenados a vinte e quatro anos de priso, acusados do crime de propaganda religiosa. Quando soube que eles estavam ali, no presdio do Combinado do Leste, escrevi para Tom, cumprimentando-o e agradecendo seu sacrifcio, de verdadeiro cristo. Tom pertence organizao "Cristo ao mundo comunista", que no se detm diante de qualquer perigo em sua tarefa de evangelizao. Tom me conhecia, alm de atravs de outros prisioneiros, pela imprensa dos Estados Unidos. Quando recebeu minha carta, fez solicitaes e acabou conseguindo que o levassem ao pavilho onde eu estava fechado num cubculo. Eu estava dormindo quando algum me acordou, chamando-me, de junto grade. Era Tom White. Disse que me havia imaginado como um velho curvado, de cabelos brancos; por minha vez, eu contei que tambm o imaginara velho e encanecido. Tom o tpico jovem norte-americano, alto, magro, loiro, com olhos claros e vivos. Tinha trinta e um anos e era casado com uma costarriquense, pai de dois meninos lindos. Tom White uma das pessoas que mais me impressionou, entre as muitas que conheci; por sua simplicidade, por seu modo de viver cristo, pela grandeza e bondade de seu corao, pela sua honestidade nos momentos difceis. Em poucos dias fizemos uma grande e profunda amizade. Passvamos todo o tempo conversando. Tinha uma habilidade e um sangue-frio extraordinrios para escorregar at o primeiro andar, onde examinavam doentes de outros presdios, levando e trazendo correspondncia clandestina. No se esquea de que meu trabalho justamente esse: infiltrar-me diziame, com um sorriso brincalho. Quando consegui uma mquina fotogrfica para retratar o local onde me mantinha, Tom que tirou as fotos. A delao de um preso comum, que o viu fotografando, fez oficiais da Polcia Poltica invadirem meu cubculo, procurando a mquina. Remexeram tudo e pegaram dois rolos de filmes sem usar. Mas no encontraram a mquina fotogrfica. Um dos muitos mdicos estava com ela e, terminada a revista, devolveu-a a mim, pois corria o risco de ser revistado. Pessoas amigas esconderam-na, ento, no banheiro dos militares. Declararam o hospital em estado de

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stio, reforaram as sentinelas e tudo que entrava ou saa era minuciosamente revistado. A Polcia Poltica andava de um lado para outro com pares de ces, mas nada puderam descobrir. Poucos dias depois, um preso comum chamado Hernn, em colaborao com a guarnio, subiu na cumieira e, procurando no oco do respiradouro, encontrou a mquina, que estava pendurada para fora, pela janela do banheiro. Na revista, tentando localizar o rolo de filme, tomaram medidas excepcionais, e fizeram homens e mulheres ficarem nus. Mais uma vez Tom White conseguiu burlar a revista, fazer o rolo sair e depois chegar s mos de Martha. Ento, foram publicadas minhas primeiras fotografias em cadeira de rodas. Assim, apliquei um bom golpe na Polcia Poltica, que logo iria me cobrar com juros. Eu sabia. Mas estava contente por ter conseguido demonstrar que no eram infalveis.

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37. Robertico

Novamente consegui romper a incomunicabilidade. Colaboradores amigos fizeram sair uma carta minha denunciando a nova situao e Martha a fez chegar aos grupos da Anistia Internacional que trabalhavam pela minha liberdade. Na Frana, o escritor Eduardo Manet conseguiu que recitassem, num espetculo teatral, um dos poemas do meu primeiro livro. O PEN Club francs me outorgou, ento, o prmio "Liberdade". Enquanto isso, na Sucia, Britt Arenander, secretria do PEN Club nesse pas, e cuja ajuda foi valiosssima para mim, deu meu caso a conhecer, com detalhes, em um livro que intitulou O caso Valladares (Fallet Valladares). Com a publicao desse livro e a ao pessoal de Britt no PEN Club sueco, fui nomeado membro de honra do mesmo. Os coronis da Polcia Poltica, loucos de dio, tornaram a cometer um erro ao redobrar as medidas de represlias contra mim, dando-me motivos para continuar a. denunci-los. Como aquele era o Hospital Nacional para detentos, havia prisioneiros de todos os crceres. No presdio La Cabaa mantinham os novos presos polticos: os que pichavam paredes, os que faziam sabotagens e os acusados de diversionismo ideolgico, quase todos professores universitrios que se opuseram s violaes dos Direitos Humanos. Entre estes, o professor Ricardo Bofill, que dois anos depois seria protagonista e vtima de acontecimentos conhecidos no mundo inteiro. Quando cumpriu a condenao foi posto em liberdade, mas no o autorizaram a sair de Cuba. A Universidade de Sorbonne, em Paris, convidou-o para dar cursos de Sociologia, mas a Polcia Poltica continuou negando-lhe a sada. Em certa ocasio, a polcia recebeu uma informao de que Bofill tinha se asilado na Embaixada da Frana e cercou essa sede diplomtica. Mas ele j estava l dentro. S saiu de l porque o embaixador Pierre Decamps garantiu-lhe que o vice-presidente de Cuba, Carlos Rafael Rodriguez, havia prometido que lhe dariam autorizao para sair do pas e que no haveria represlias contra ele. No cumpriram a promessa. Meses mais tarde, os jornalistas franceses Renaud Delourme e Dominique Nasplzes chegaram a Cuba e foram casa de Bofill, visit-lo. A Polcia Poltica, que vigia o dissidente, os deteve. Foram submetidos a interrogatrios durante nove dias e, depois, expulsos do pas. Bofill desapareceu e, tempos depois, ficou-se sabendo que foi condenado em um julgamento secreto a doze anos de priso por conversar com jornalistas capitalistas sem autorizao do Governo. * * *

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Nem sequer os estrangeiros ficaram a salvo da onda repressiva. Terence Stanley Child era ingls e estava preso em Cuba h alguns meses. Quando soube que Edward Heath, o ex-primeiro ministro e lder do Partido Conservador de seu pas, ia visitar Havana para se confraternizar com Castro, mandoulhe uma carta denunciando os maus tratos e torturas a que estava sendo submetido e entregou-a ao tenente Salcines. Levaram-no para as celas de castigo e Sardias deu-lhe uma surra de advertncia. Stanley estava aterrorizado. Quando o levaram de volta ao edifcio, sofria de febre muito alta causada por desconhecida infeco pulmonar. Eu o conheci no hospital. O chefe da seo dele, tenente Calzada, tambm muito corpulento, tornou a surrlo; chutou-o enquanto estava no cho e, depois, ameaava-o constantemente com outra surra. Depois, confiscou-lhe livros e fotografias de sua esposa e dos familiares. O embaixador ingls dizia Stanley era surdo e mudo diante das denncias que ele lhe fazia. Dia aps dia o tenente Calzada o foi aterrorizando e Stanley mergulhou em profundo estado de depresso. O tenente Calzada disse que ia dar-lhe outra surra e ento Stanley, presa de um terror insupervel, decidiu matar-se. Escreveu duas cartas; ps uma dentro de um livro de um amigo de outra cela ele estava sozinho ' e deixou a outra no catre, para despistar os guardas, a fim de que no procurassem a carta que, em geral, os suicidas deixam. As duas diziam a mesma coisa: que no conseguia mais suportar as torturas. Quando os militares o encontraram pendurado na grade e leram a carta, imediatamente trouxeram para a cela os livros e os retratos dos familiares do morto. Colocaram tudo ali, como se sempre estivessem estado com ele, e tiraram fotografias. Levaram o cadver, no meio da manh, no carro do padeiro. Era o dia 28 de fevereiro de 1981, aniversrio do nascimento do apstolo de Cuba, Jos Marti, o mesmo que tinha dito: "Contemplar um crime em silncio a mesma coisa que comet-lo". Talvez o sr. Edward Heath no soubesse disso. Por absurdo que parea, no dia seguinte o tenente Calzada reuniu os estrangeiros e ameaou-os dizendo que o preso que fosse surpreendido enforcando-se seria condenado a mais cinco anos de priso. * * * A 5 de fevereiro do mesmo ano um grupo de oficiais irrompeu em meu cubculo exigindo que os acompanhasse para uma suposta conversa com o diretor do hospital. Assim que sa da salinha, cinegrafistas da Polcia Poltica, escondidos em determinados lugares, comearam a me filmar. Descobri-os quando voltei. Dois dias depois, sbado, dia 7, j sem se esconder, voltaram com cmeras e fortes refletores, que no haviam usado antes, pelo que deduzi que a falta de luz tinha estragado a filmagem anterior. Tinham me tirado para o corredor e tratei de voltar ao cubculo. Eles j estavam focalizando as cmeras. Ento, o tenente Calzada me perseguiu e deteve a cadeira de rodas pelos punhos que servem para empurr-la; eu quis me virar para afastar as mos dele e ele me atingiu no pescoo com a quina da mo. Perdi os sentidos. Depois, meus companheiros me contaram que os mdicos tinham me examinado e dito que eu estava com 160 pulsaes por minuto, em conseqncia da pancada na nuca.

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Desmaiado como estava, ao invs de me colocarem na cama, levaram-me para o salo. Aplicaram-me mscara de oxignio e uma injeo na veia. Um dos oficiais da Polcia Poltica, quando viu que eu estava me recuperando, apressou-me para que abrisse os olhos e erguesse a cabea. Mas eu estava to aturdido que ca para um lado da cadeira. Ento ele empunhou um dos refletores, arrancou a toalha que estava no meu pescoo e disse aos outros: Vo ver como agora ele levanta a cabea! E foi aproximando o refletor de mim, lentamente, calculando que eu no resistiria. Aquele calor insuportvel estava me queimando. "Ajudai-me, meu Deus!", foi a nica coisa que eu disse, em pensamento. E comecei a pensar que o que se aproximava de mim no era quente, mas sim frio; um pedao de gelo. "E frio... frio ..." repetia para mim mesmo, num esforo sobre-humano para enganar meus sentidos. No sei quantos minutos aquilo durou, mas para mim foram sculos de um esgotamento psquico inimaginvel, at que o torturador, indignado por no conseguir o que queria, encostou o refletor no meu pescoo. No me mexi. Na beirada de metal, em alta temperatura, minha pele ficou grudada. Levem esse filho da puta daqui! Isso foi a ltima coisa que escutei e as botas dos militares, a nica coisa que vi, porque continuei com a cabea cada at que me deixaram em meu cubculo e percebi que estava s. No dia seguinte, a bolha de queimadura de primeiro grau era verificada pelo diretor mdico. A 14 de maro o novo diretor, coronel Edmgio Castillo, com aparatosa exibio de fora, despojou o resto dos prisioneiros polticos do uniforme amarelo para obrig-los a aceitar a reabilitao. Todos estvamos sem roupa. Mas a represso continuava e a ns, que j estvamos desde 1967 sem uniforme, tiraram-nos camisetas e lenis, deixandonos apenas de cueca. Proibiram os medicamentos de urgncia dos doentes crnicos e bateram em Roberto Montenegro, na cela de castigo, machucando-lhe o nariz e um olho. A guarnio tambm bateu brutalmente e atirou na cela de castigo o ex-comandante Mario Chanes, que assaltara com Castro o quartel Moncada, estivera na priso com ele e o acompanhara no desembarque do "Granma". Uma tarde, entraram violentamente em minha cela. Aquela revista foi para se apoderarem de todas as minhas coisas, principalmente meus trabalhos literrios. Cinco dias depois me confinaram em uma cela do pavilho de castigo. Sem dvida, a escalada de represlias contra mim ia aumentando. O edifcio tinha trs corredores. S havia celas. de um lado e para chegar a elas, primeiro era preciso abrir uma porta de madeira que dava para uma espcie de pequeno vestbulo e este, s grades da cela. Sobre o teto desse vestbulo, muito alta, abria-se uma clarabia. Dentro, uma meseta de concreto para dormir. O nico espao livre era ocupado pela cadeira de rodas. No fundo, ao nvel do piso, a latrina. Dias depois me deram uma caixa de madeira, com um buraco, como mvel sanitrio. A noite, a escurido era total e ao entardecer nuvens de mosquitos entravam pela clarabia. Era impossvel dormir. Destinaram-me o corredor onde se encontravam quase todos os condenados morte. Quando cheguei, havia 67 esperando para serem fuzilados, acusados de crimes comuns e polticos. Meses depois, quando me tiraram dali, s restavam 13 com vida, que tambm executaram.

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* * * Em geral, entre os presos que punham para trabalhar nas celas de castigo havia informantes da guarnio, por isso eu nem quis tentar qualquer contato, at que me enviaram um. O contato deve sempre vir de fora e o preso incomunicvel deve evitar desesperar-se, porque pode acabar confiando num alcagete. O que se aproximou de mim era mandado por Eduardo Delgado, um estudante de Medicina que, com Raudel Rodriguez, da Faculdade de Matemtica, tinha decidido fundar uma organizao para mudar a ordem poltica e social de Cuba. Os dois tinham nascido quando Castro j estava no poder, formaram-se nos valores marxistas, eram membros da Juventude Comunista e tinham vinte e um anos. Foram condenados morte. Estavam no mesmo corredor, esperando o resultado da apelao. Quer dizer, suas vidas estavam nas mos do presidente do Conselho de Estado de Castro, que mandaria fuzil-los. Eles me deram lpis e papel e, assim, comeamos nossa correspondncia clandestina. Soube que um hispano-sueco estava preso ali, acusado de agente da CIA. Era Ramn Ramudo, para quem escrevi imediatamente; ela j me conhecia, atravs da imprensa europia. Os dias passavam idnticos e apenas a transferncia de rus para o paredo quebrava a monotonia. A violncia naquele pavilho era uma aberrao. Havia sesses dirias de surras. Tiravam os detentos dos calabouos e levavam-nos para a salinha de entrada. Da minha cela, apenas a quatro metros de distncia, eu ouvia, estremecendo, o barulho rascante das baionetas e faces batente nos corpos. Num entardecer, ouvi uns gemidos em cela muito prxima da minha e uma vozinha infantil que dizia: Me tirem daqui... me tirem daqui... Eu quero ver minha me! Achei que meus sentidos estavam me pregando uma pea, pois era inconcebvel que houvesse uma criana naqueles calabouos. Me tirem daqui... me tirem daqui... Eu quero ver minha me! continuava repetindo, num lamento. Aqueles queixumes me doam na alma. No havia dvida: era um menino que estava ali. Dias mais tarde conheci a histria de Robertico. Tinha doze anos. Um dia, havia trs ou quatro meses, ia andando pela rua. Viu um automvel estacionado junto da guia. Estava aberto e sobre o assento havia uma pistola. Pegou-a e, brincando, apontou-a para o cu, para alvos imaginrios. Estava carregada e o tiro explodiu. Um comandante do Ministrio do Interior, o imprudente que deixou a pistola abandonada e o carro aberto, saiu quando ouviu o estampido; viu Robertico, que tinha ficado paralisado com o susto, e tirou-lhe a arma. Esbofeteou-o e levou-o para a Delegacia de Polcia. Condenaram-no at a maioridade e mandaram-no para o presdio do Combinado do Leste. Destinaram-no ao pavilho onde estavam os piores criminosos. Em Cuba no existe classificao de presos e misturam todo tipo de sentenciados. Em poucos dias vrios daqueles desalmados estupraram Robertico, que teve de ser internado no hospital, com graves rompimentos e hemorragia. Quando lhe deram alta, haviam posto em sua ficha um carimbo que dizia "homossexual" e o levaram para o pavilho destinado a eles, que existe em todos os presdios.

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Acho que h muito poucos exemplos na histria da represso aos homossexuais como a desencadeada pelo governo cubano. Os homossexuais foram perseguidos, acossados. A revoluo encarniou-se contra eles. Detinham-nos nas ruas apenas pelo modo de andar, por usar calas justas ou por usar p-de-arroz. Assim, foram levados aos milhares para a provncia de Camagey, onde instalaram campos de concentrao que chamaram UMAP, sigla de Unidades Militares de Ajuda Produo. L reuniram os desafetos revoluo, os Testemunhas de Jeov, os Adventistas do Stimo Dia, padres catlicos, como o monsenhor Alfredo Petit Vergel, atual reitor do Seminrio San Carlos y San Ambrosio, na cidade de Havana. Tambm o atual arcebispo de Havana, monsenhor Jaime Ortega Alamino, foi levado aos campos de trabalhos forados. Todos os sacerdotes catlicos iam passar por esses campos. O Governo j havia pedido a lista deles e comunicado aos bispos a deciso do Governo de que, em grupos de cinco, teriam que se submeter ao trabalho obrigatrio. Todo cidado que por sua conduta no se encaixava na nova sociedade foi levado para aqueles horrveis campos da UMAP. Muitos foram os torturados, os mutilados, os assassinados. Conheci uns Testemunhas de Jeov que foram despidos, amarrados a postes e aoitados. Ainda estavam com as costas marcadas pelas chicotadas quando foram transferidos para a Ilha de Pinos. Uma campanha de presses no exterior, da qual participaram Jean-Paul Sartre, Gian Giacomo Feltrinelli, Carlos Franqui e outros, obrigou Castro a desmantelar os campos de trabalhos forados da UMAP. Os homossexuais foram, ento, dispersados por todos os crceres do pas, nos quais abriram-se sees especiais para eles. Eu vi essas sees na priso do Castelo do Prncipe, no crcere de Boniato, no presdio do Combinado do Leste. Atualmente, existem em todos os crceres porque a represso aos homossexuais nunca cessou. Robertico, sem o ser, foi parar numa dessas sees, onde a represso, a humilhao, as piadas em relao condio sexual e os castigos corporais so horrveis. Robertico era to pequeno e mido de corpo que passava entre os barrotes das grades. Uma noite, saiu da cela para ver um programa de desenhos animados no televisor dos militares. Descobriram-no e o atiraram nas celas de castigo. Tiravam-no trs vezes por semana para dar-lhe injeo, porque sofria de blenorragia, uma doena venrea. Um militar me contou que ele nem sequer tinha plos no pbis. Todos os dias, quando anoitecia, ele se assustava com a escurido e suplicava que o tirassem dali, que o levassem para ver a me. Ento, em todo pavilho fazia-se um silncio impressionante. Estou certo de que o corao de todos os homens que se encontravam naquelas celas, homens endurecidos pela violncia, abrandavam-se pensando, talvez, em suas mes, nos prprios filhos que, como Robertico, poderiam ir parar ali. Semanas depois, comunicaram-me que um tribunal tinha me julgado revelia e me condenado por meus escritos e poesias: teria que permanecer na cela de castigo por tempo indeterminado. Eu tinha conseguido organizar uma rede de comunicao com meus companheiros, atravs de um grupo de presos comuns. No existia nenhum contato entre o edifcio de castigo e o restante da penal. Enviei as instrues com um preso que terminava seu tempo de isolamento.

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Era preciso um ponto para deixar e apanhar a correspondncia e escolhemos a lixeira geral do presdio como caixa de correio. Desse modo, todas as tardes, quando levavam as latas de lixo podia haver troca de correspondncia. Continuavam fuzilando presos, comuns e polticos. Foram fuzilados os trs irmos Garca Marin, que ocuparam a sede do Vaticano, em Havana, em dezembro de 1980, pedindo para sair do pas. Os sobreviventes dessa causa me contaram que a hierarquia catlica autorizou e colaborou em um plano para que foras especiais da Polcia Poltica, fazendo-se passar por uma delegao chegada do Vaticano, disfarados de padres, entrassem na sede diplomtica e reduzissem pela fora os refugiados, dois dos quais estavam armados. Eles de nada desconfiaram, pois haviam lhes anunciado a visita dessa delegao; contaram-me que os viram descer de um automvel da Nunciatura e confiaram. Como se no tivesse sido castigo suficiente fuzilar-lhes os trs filhos, a atribulada me dos Garca Marin foi condenada a vinte e cinco anos de priso, que est descontando atualmente, com mais onze familiares. Sardias, o militar torto, estava surrando um daqueles que teve a infelicidade de ir parar nas celas. Estava quase anoitecendo. Os gritos da vtima pedindo perdo eram arrepiantes. Por isso, Rodolfo Alonso, que tinha apenas vinte e um anos e estava condenado morte por uma tentativa de sabotagem, no pde ficar impassvel e pediu ao militar que parasse de bater. O companheiro de causa de Rodolfo, outro jovem como ele, era Abilio Gonzlez. Tinham sido apanhados quando tentavam pr fogo em uns nibus. Em represlia contra a famlia, a esposa de Abilio e seus dois filhos pequenos foram tirados de casa e jogados na rua. A 13 de junho de 1981 ouvi que me chamavam da salinha de sada. Era Rodolfo: Irmo Valladares, estamos indo... Para onde? perguntei, estranhando aquilo. Para o paredo, j vieram nos buscar. Fiquei com um n na garganta. Achava que nunca mais, depois de vinte anos em presdios, teria que passar pelo transe doloroso de me despedir de companheiros que iam para a morte. A voz de Rodolfo era serena e firme. Repetiu uma frase que eu escrevia em minhas cartas, quando tentava prepar-los para aquele momento. Deixamos as pginas da vida para entrar nas da histria e me encarregou de cumprimentar vrios companheiros que tinha conhecido quando haviam passado, de castigo, pelas celas. Eu no sabia o que dizer. Bem, Rodolfo, Deus te acompanhe, nada tema e aja com firmeza at o fim! Com eles levaram Emilio Reloba. Foram fuzilados naquela mesma noite. * * * Uma madrugada levaram um preso comum que havia gritado "Abaixo Fidel!". Assim que ele chegou, rodearam-no e comearam a bater nele, exigindo-lhe que gritasse "!Viva Fdel Castro!".

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No entanto, quanto mais o infeliz gritava, mais batiam nele. Os quatro ou cinco guardas que o surravam se inflamaram; quase no se ouvia a voz do preso dando "vivas" a Fidel Castro; ele ofegava sob a chuva de pranchadas de ao. Mais alto, escroto, mais alto! Grite "Viva Fidel Castro" mais alto! E descarregavam as baionetas sobre o prisioneiro, at que ele caiu ao cho, sem sentidos. Ouvi o barulho do corpo sendo arrastado pelo longo corredor, at uma cela. Na manh seguinte, tornaram a tir-la da cela, antes do almoo. Ento, foi voc que gritou "abaixo Fidel", ontem noite? ouvi o novo verdugo perguntar-lhe. Pois, agora, grite "que viva". E outra vez encheram o homem de pancada, enquanto ele dava vivas ao ditador. Alguns anos atrs, em 1959, muitos militares foram fuzilados por terem feito a mesma coisa, s que mandavam os revolucionrios gritar "viva Batista". Todos os dias davam oito a dez surras. E, por isso, batizaram aquele pavilho de "Palcio dos Gritos". Quando Juan Serrano, um guarda do povoado de Guane, na provncia de Pinar del Rio, entrava de sentinela, o silncio naquele pavilho podia ser cortado com uma faca. Abro de cima a baixo, como um bacalhau, o primeiro que respirar era a ameaa dele para todos os castigados. E no se ouvia nem o respirar dos presos. Mas Juan Serrano no podia ficar sem bater, alucinado, ele mesmo, por aquele mundo demente. Para ele, bater era como para o drogado receber sua dose de herona. Quando o corpo pedia, abria qualquer cela e tirava uni preso. Levava-o para a salinha onde estavam, num grande mural, as normas disciplinares do pavilho de castigo. Leia isso bem alto dizia ele ao infeliz, que j sabia o que o esperava. E o preso comeava a leitura. Mais alto... eu disse pra voc ler mais alto! e ia se aquecendo, se motivando com seus prprios gritos; o preso se esgoelava, mas era intil. Mais alto, escroto ... mais alto! E comeava, ento, a descarregar pancadas na vtima que, em geral, imploravalhe que no batesse mais. Como Serrano havia outros, verdadeiros doentes, que no podiam ficar sem bater. Eu recebia cartas de Eduardo e Raudel; eram, realmente, dois rapazes extraordinrios. Cada vez que fuzilavam condenados morte, eles sentiam que sua hora se aproximava, inexoravelmente. "Morrer pela ptria s comparvel a viver por ela", escrevia-me, um dia, Eduardo. E era verdade; para eles, viver era uma tortura, sempre espera de que os fuzilassem no dia seguinte. Viviam pela ptria, para morrer por ela. Eduardo havia me pedido que escrevesse para a me dele, quando me tirassem da cela de castigo, para contar-lhe corno tinham sido seus ltimos instantes. Talvez as ltimas cartas que Eduardo escreveu foram as que Raimundo fez sair e levou para a Sucia. A rede para me comunicar com meus companheiros, formada por presos comuns, funcionava muito bem. Quando Martha fazia alguma declarao, ouviam-na pelo rdio clandestino e me avisavam. Um dia, tomaram medidas sem precedentes. Entraram na minha cela, revistaramna, confiscaram papel e lpis. Depois, levaram um carpinteiro que colocou um ferrolho com cadeado na porta de madeira do corredor. Nunca haviam feito isso. E designaram

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uma sentinela especial para mim, que mantinha as chaves penduradas ao pescoo, com um barbante. Eu tinha conseguido salvar da revista uma lmina de barbear e uma dessas folhas de receitas mdicas. Cortei uma lasca da tbua que me servia de assento, na cadeira de rodas, apontei-a e dei um corte em um dos dedos; espremi, gota a gota, o que seria a minha tinta. Escrevi, assim, com meu prprio sangue, uma poesia. Apesar da incomunicabilidade e das medidas extraordinrias adotadas, algum atreveu-se a tir-la da priso. Chegou at Martha, foi traduzida e publicada em vrios idiomas. Foi a ltima coisa que escrevi na priso. Eis o poema: Tiraram-me tudo as canetas os lpis as tintas, porque eles no querem que eu escreva e me afundaram nesta cela de castigo, mas nem assim sufocaro minha rebeldia. Tiraram-me tudo bem, quase tudo porque me resta o sorriso o orgulho de me sentir um homem livre e na alma um jardim eternamente florido. Tiraram-me tudo as canetas os lpis mas me resta a tinta da vida meu prprio sangue e com ela ainda escrevo versos. Quando o major Guido, gordo, barrigudo, com aspecto de lutador de sum e outros oficiais apresentaram-se em minha cela e me disseram' que pegasse minhas coisas, que ia ser transferido, pensei que o castigo tivesse terminado. Mas quando Guido me disse, com ostensiva hostilidade: Agora, vamos ver se voc escreve de novo... Desconfiei que o castigo no tinha terminado. E estava com a razo.

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38. A ltima incomunicabilidade


Ao chegar ao hospital notei que no havia ningum. Sem dvida tinham prendido todos, inclusive enfermeiras e funcionrios. Os corredores do andar trreo estavam desertos. O buraco onde devia haver o elevador estava vedado com uma grade. H cinco anos esperavam que a maquinaria burocrtica atendesse solicitao do elevador, feita em 1976, mas que tinham esquecido de incluir nos oramentos. Tinham que subir e descer os doentes recm-operados em macas, pelas escadas, o que era feito com mil dificuldades. Assim, os militares que me acompanhavam carregaram-me escada acima, na cadeira de rodas. Quando chegamos ao segundo andar, viraram esquerda, para a sala F. Haviam-na esvaziado. Avanamos por ela at o fundo, um cubculo de uns quatro metros quadrados. As paredes e o teto tinham sido pintados de um branco brilhante e tinham instalado dez grandes tubos de luz de non, com mais de um metro de comprimento cada um. Uma cama e uma mesinha de cabeceira compunham o mobilirio. O gorducho Guido sorria, os olhinhos brilhando, como se gozasse de antemo com o que os crebros repressores tinham idealizado. Eu passaria mais de um ano ali, em torturas psquicas; os piores meses da minha deteno. Mas, curiosamente, foi aquele tipo de priso desumana que acelerou a bola de neve da campanha a meu favor. O encarniamento, a aberrao, o dio dos meus carcereiros transformaram-se em grande ajuda para mim. A Polcia Poltica tinha iniciado uma feroz campanha de descrdito destinada a destruir meu prestgio, fazendo-me passar por assassino e torturador da polcia secreta de Batista, ocultando o fato de que ao ser detido eu era funcionrio do Governo revolucionrio. Na imprensa da poca no havia nenhuma referncia minha suposta condio de feroz torturador. Se aquilo fosse verdade, Castro me teria fuzilado, como tantos outros que tinham sido mortos apenas por suspeitas. A campanha de difamao, tpica de todos os regimes marxistas, contra os que discordam da ditadura, foi coordenada pelo Instituto Cubano de Amizade com os Povos (ICAP), uma das agncias da Segurana do Estado, dirigida pelo comandante Ren Rodriguez, pessoa atualmente acusada, nos tribunais dos Estados Unidos, como um dos responsveis pela introduo de drogas naquele pas. A operao comeou com algo surpreendente: deixaram um jornalista chegar at minha cela de prisioneiro incomunicvel. Assim que o vi, acompanhado por oficiais da represso, sabia que tudo obedecia a um plano contra mim. Da minha negativa, no incio, de falar com ele, de deixar que tirassem fotos minhas. Ficaram mais de uma hora tentando me convencer. Durante esse tempo, meu crebro trabalhava com toda a capacidade. Sabia que se tratava de uma canalhice e que podiam me atribuir declaraes que eu no tinha feito. Ento, ofereci-me para escrever uma carta e uns versos. Todos aceitaram. Os que lessem minha carta perceberiam, no ato, minha desconfiana naquele jornalista, porque comeava dizendo: "O senhor pediu-me uma entrevista para sua

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revista. Preferi escrever; qualquer critrio, comentrio ou interpretao do que se conversou ser, fora desta carta, um enfoque do jornalista. Esta carta no tem uma s rasura ou borro e deve ser publicada na ntegra". Estava certo de que a publicao de alguma infmia contra mim teria, imediatamente, uma resposta contundente de meus amigos do exterior. E assim foi, exatamente, porque a publicao inclua uma identificao da polcia de Batista, torpemente falsificada, na qual se afirmava que meus olhos eram castanhos, quando na verdade so negros, e dava-se uma data de nascimento que no era a minha. Por ltimo, para cmulo da palhaada, minhas medidas estavam anotadas no sistema mtrico decimal, quando antes da revoluo os cubanos usavam ps e polegadas para medidas e libras para pesos. Pouco depois, em 1981, no boletim de informao que tem o nmero trs, o ICAP distribuiu (e ainda distribui) um folheto feito por um tal de Luis Adrin Betancourt, do Servio de Informao do Instituto Cubano de Amizade com os Povos, intitulado "Da Cadeira da Mentira", escrito com o objetivo de "informar devidamente os amigos de Cuba no exterior" sobre o caso Valladares. No folheto se contradiz a informao que aparece na identidade falsificada. Esta diz claramente que ingressei na polcia secreta de Batista em maio de 1958 e o folheto, na pgina trs, diz que foi em outubro de 1957, coisa, alis, impossvel por eu no ter na poca a idade requerida. Em publicaes posteriores, depois que sa da priso e pude denunciar a mentira, a identidade aparece cortada do lado direito, para que no se veja a data falsa. Quando digo que os grandes promotores da campanha de opinio a meu favor foram sem querer, claro os coronis, da Polcia Poltica, no exagero. A propaganda contra mim transformou-se em um bumerangue para eles. A Polcia Poltica, insensvel e ignorante do comportamento humano, acostumada a desprezar seu prprio povo, que amordaado pelo terror no pode replicar diante de uma injustia, esquecia que nos pases onde h liberdade isso no acontece e que existem pessoas que sentem o impacto de um fato como o que eles apresentavam, caluniando um prisioneiro que, com vinte anos de priso, somente por um crime de opinio, em cadeira de rodas, era mantido em condies desumanas e degradantes, completamente incomunicvel, no tinha oportunidade de se defender das acusaes de ser um torturador e criminoso feroz, agente da CIA e outras mil falsidades. A Polcia Poltica jamais calculou a reao que seu artigo difamador iria desencadear. Por solidariedade, iniciou-se na Europa uma campanha para me apoiar. O Comit Pr-Defesa de Valladares, da Frana, por iniciativa de Fernando Arrabal, deu a conhecer um manifesto assinado por Andrs de Wass (Prmio Nobel), Jorge Semprn, Ionesco, Bernard Henry Levi, Ives Montand, Pierre Golendorf, os poetas Philippe Sollers e Pierre Enmanuel e muitas outras personalidades. Como conseqncia desse gesto, o Dirio 16, de Madri, em seu suplemento "Dissidncias", solicitou que todos que quisessem aderir ao protesto contra as difamaes do governo cubano fizessem-no enviando suas assinaturas a essa publicao. Isto originou um movimento de apoio ao qual somaram-se centenas de pessoas e intelectuais do mundo inteiro, tais como Octavio Paz, Camilo Jos Cela, Mario Vargas Llosa, Ernesto Sbato e muitssimos mais, que formam uma longussima lista. Durante semanas chegaram cartas para o Dirio 16, cuja participao foi muito importante para a minha liberdade.

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O PEN Club francs entregou pessoalmente uma carta ao embaixador de Castro em Paris, na qual, depois de afirmar que tinha informaes de que eu era vtima de torturas, notificava-o: "Esperamos sua resposta antes de informar opinio pblica, Anistia Internacional, Comisso de Direitos Humanos do Conselho da Europa e a todas as organizaes internacionais com as quais estamos relacionados". Enquanto isso, os efeitos da reao internacional chegavam aos Estados Unidos e a embaixadora norte-americana, diante da Assemblia das Naes Unidas, a inigualvel e extraordinria Jeanne Kirkpatrick, denunciava com detalhes, no seio da organizao mundial das naes, a situao em que eu me encontrava. Eu no podia responder, estava completamente indefeso, nem sequer conhecia os documentos falsos que o governo cubano publicava, mas havia quem, indignado pela evidente calnia, assumisse a defesa de meu caso. Todos, no Ocidente, sabem que uma prtica habitual da Polcia Poltica dos pases comunistas a falsificao de documentos. Isso foi explicado detalhadamente pelo major Stanislav Levchenko, da KGB, que coordenava atividades de espionagem no Japo, durante os anos 19751979, ocultando sua verdadeira identidade sob a cobertura de um jornalista da revista Tempos Novos, quando fugiu para o oeste. Mais de uma dzia de falsificaes de documentos e cartas oficiais do governo norte-americano foi descoberta, entre elas uma missiva apcrifa de Alexander Haig que era comandante supremo das foras aliadas na Europa , supostamente dirigida a Joseph Luns, Secretrio-Geral da OTAN. Tambm falsificaram uma carta em nome do rei da Espanha. Outros exemplos so os denunciados pelo Secretrio de Estado da R.F.A., Carl-Dieter Sprayer, que pem a descoberto a campanha de difamao dos adversrios do comunismo. Um dos mais conhecidos foi o do ento presidente federal, Heinrich Lubke. A televiso alem, no telejornal de maior audincia, disse que o sr. Lubke tinha colaborado com os nazis, construindo campos de concentrao. A campanha era dirigida e organizada pela Alemanha comunista. Um dos mais recentes exemplos, em fins do ano de 1984, foi o envio de uma carta a firmas alems, em papel e envelopes oficiais do Ministrio do Comrcio norteamericano, com sobrescritos e tudo. Nela exigia-se uma informao detalhada dos produtos exportados para os pases do Leste e deixava flutuando uma suspeita de que colaboravam com os comunistas. Essa carta era falsa e seu objetivo foi criar desconfiana e hostilidade contra os Estados Unidos. Os comunistas chamam essa prtica de "AKTIVNYYE MEROPRIYATIVA" (medidas ativas) que inclui uma variada gama de aes, entre elas a promoo de campanhas nos meios de informao, com documentos falsificados. Isso foi o que fez a Polcia Poltica cubana, mas com uma avaliao errnea do resultado, que deixou um saldo muito positivo para mim ao despertar a curiosidade sobre o meu caso e chamar a ateno de muitos que no o conheciam ou que o -conheciam pouco. Novamente o dio era derrotado. Mas, como represlia, j que no podiam me matar de maneira escandalosa, iam se encarniar torturando-me com os meios mais sofisticados de que dispunham. Minha famlia tambm seria vtima de seu rancor. * * *

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Quando fiquei s naquele quarto, no era sequer capaz de desconfiar o tempo que passaria nele e nas condies de vida que meus carcereiros me tinham reservado. A grade de entrada dava para um corredor cujas janelas tinham sido seladas com tbuas, impedindo que eu visse at mesmo a claridade do dia. A sala, completamente vazia, eliminava toda possibilidade de me comunicar com outros presos. Alm disso, no existia uma s janela e o banheiro ficava no mesmo aposento. Quando abri a torneira para beber gua, no saiu nenhuma gota; chamei a sentinela e pedi que abrisse o registro do corredor; conhecia o hospital, seu funcionamento e sabia que se podia fechar a gua por sees. Respondeu-me que no podia fazer nada, apenas informar o oficial da guarda especial. Soube, assim, que os que me vigiavam pertenciam a uma guarnio especial. Por ordem da Polcia Poltica nenhum dos militares que normalmente faziam guarda no hospital deviam ter contato comigo. Os que me vigiariam a seguir seriam selecionados por eles e todos teriam que ser membros do Partido. Observando a parede, descobri que tinham retirado os interruptores de luz. Chamei de novo o militar e disse-lhe que fizesse o favor de apagar a luz, que eu ia dormir. No se pode apagar respondeu. Insisti que no era possvel dormir com dez lmpadas acesas sobre a cabea. Sinto, mas so ordens superiores e no posso apag-las. Compreendi, ento, que nunca se apagariam. S se consegue um sono reparador em um quarto s escuras ou na penumbra. Sabe-se que se pode dormir sob luzes brilhantes, mas no se descansa. Era justamente esse o objetivo deles: no me deixar descansar. O calor daquele lugar era insuportvel, porque alm da parede do fundo ser aquecida pelo sol, exatamente embaixo ficava a cozinha do hospital onde, ao amanhecer, acendiam grandes fornos a gs que esquentavam o soalho e transformavam o cubculo num verdadeiro inferno. E era pleno vero. Se bem que as janelas do corredor, minha frente, estivessem seladas com tbuas, pelas da sala, que ficavam abertas, entravam nuvens de mosquitos. Houve noites em que matei mais de duzentos. Passei minha primeira noite dormitando a intervalos. Pensei que ia dormir a sono solto num colcho, mas as luzes no deixavam. Deitado na cama, no podia abrir os olhos porque os dez tubos de non feriam-me as pupilas. Tambm no podia olhar para as paredes, porque a brancura resplandecente tambm me feria a vista. No outro dia no me levaram o caf da manh. Reclamei para o militar e ele explicou que no podia sair da sala, que precisava esperar que algum aparecesse. Eu lhe disse que no havia gua, nem recipiente de qualquer tipo e que precisava de artigos de asseio pessoal: sabonete, papel higinico, pasta e escova de dentes. Pelos barulhos provenientes da cozinha eu soube, naquele primeiro amanhecer, que eram aproximadamente quatro horas da madrugada, pois lembrava que a essa hora os cozinheiros chegavam para iniciar a rotina. No quarto havia um dia perptuo, artificial, infinito. Carecia de qualquer indcio que me indicasse se l fora era dia ou no. Davam-me gua somente hora das refeies. No adiantavam meus pedidos de um recipiente para guardar um pouco. Suava mais do que em qualquer outro presdio anterior; logo, o lenol e o colcho ficaram encharcados. No me davam sabonete, nem abriam a gua do chuveiro para eu tomar banho. Tambm no me davam papel higinico.

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Permaneci duas semanas nessas condies humilhantes, ao fim das quais o major Guido foi me visitar. Claro que ele sabia o que estava acontecendo, mas parte do jogo consistia em que eu o informasse e assim fiz. Com um gesto magnnimo, ento, ordenou sentinela que me trouxesse sabonete, pasta dental, um recipiente para guardar um litro de gua e prometeu que daria instrues ao chefe da guarda especial para abrirem o chuveiro uma vez por dia. Invariavelmente eles sempre eram portadores das boas notcias, os nicos que podiam conceder desde um simples sabonete at a autorizao para tomar um banho. Os donos absolutos de vidas e bens. Como v, Valladares, tudo vai se resolvendo disse-me, com dissimulada ironia. Parece que sim, major, mas eu gostaria de saber qual o motivo desta priso excepcional, prpria de recm-detentos sujeitos a interrogatrios. Voc sabe, Valladares, temos que tomar medidas drsticas para que no continue a mandar falsas denncias para o exterior, de que estamos dando a voc tratamento desumano. Aqui no vai poder continuar escrevendo. Esse o motivo e voc o nico culpado da situao em que se encontra. Ento, eu sou o culpado de andar numa cadeira de rodas e de estar aqui? Sim, porque voc se nega a aceitar as medidas disciplinares que regem todo o estabelecimento penitencirio; no apenas aqui, mas tambm nos crceres dos pases capitalistas elas existem; e l sim, so realmente desumanos, porque tm como nico objetivo castigar o homem. Mas as normas de disciplina nos crceres dos pases livres no tm como objetivo obrigar o prisioneiro a renunciar s suas idias e crenas para adotar as de seus carcereiros, como acontece em Cuba, major. Alm disso, nos pases livres no h prisioneiros polticos, porque no se persegue ningum por suas idias, nem se prende quem discorda do Governo, como aconteceu aqui com tantos, eu entre eles. Voc est enganado, Valladares, nos pases capitalistas h milhares de prisioneiros. Nos Estados Unidos, os crceres esto cheios de porto-riquenhos, latinos e negros que se vm obrigados a cometer crimes, pressionados por uma sociedade desumana e exploradora que os marginaliza, discrimina e viola seus direitos sistematicamente. Esses homens so verdadeiros presos polticos, porque discordam de uma sociedade injusta que gostariam de mudar. Vocs, no. Vocs tentaram impedir as conquistas do proletariado e suas aspiraes. Parece que as aspiraes desse proletariado no concordam com as da ditadura marxista, porque a enorme maioria dos presos integrada por operrios e camponeses, homens de classes humildes. Foram eles que conspiraram, eles que empunharam armas, nas montanhas. Sim, mas enganados pela propaganda e as mentiras do imperialismo, que os usou como instrumento de sua poltica agressiva contra a revoluo. Na realidade, o major Guido emitia seus argumentos com tanto entusiasmo que qualquer um poderia pensar que acreditava neles. Claro que eu, no. Depois de duas semanas iniciaram uma nova poltica. Certa manh me trouxeram o almoo apenas uma hora depois do caf da manh e o jantar duas horas depois. Quando perguntei a hora ao guarda, disse-me que eram oito horas da noite. Eu no sabia a hora exata, mas tinha certeza de que no eram oito. L embaixo, na cozinha, a lida com louas e panelas terminava s cinco da tarde e ainda a escutava. Compreendi

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que pretendiam fazer com que me perdesse no tempo e, ento, dediquei-me a evitar que o conseguissem. Sabia que nas celas da Polcia Poltica usavam esses mtodos. Alm de prender o detento em um poro onde jamais chega qualquer barulho do exterior e priv-lo de qualquer ponto de referncia, punham drogas nos alimentos para mant-lo adormecido um dia inteiro. Depois, quando realmente era noite, levavam-lhe o caf da manh. No lugar em que me mantinham isso seria muito difcil; eu no podia ver nada, mas ouvia os rudos de fora, que logo passaram a ter significado concreto como assinaladores do tempo. Quando estava internado l, antes de ser levado para as celas de castigo, dediquei toda a ateno a observar o movimento do hospital e isso me serviu de ajuda. Tambm descobri que ali pelas dez da manh, todos os dias, menos aos domingos, o caminho do armazm central trazia mantimentos para o dia seguinte; ele parava bem embaixo das janelas seladas de meu calabouo e o motorista, assim que chegava, tocava a buzina para os presos irem descarregar os sacos de vveres. Tambm no podiam calar os alto-falantes situados em todas as torrinhas e edifcios da penal, que davam ordem para se fazer silncio s dez da noite e de levantar, s cinco e meia da madrugada. Eu vivia atento s conversas que os presos e os militares mantinham no trreo do edifcio. Os presos sabiam que eu estava l em cima, mas nunca puderam me dizer nada, porque o preso comum, chefe da cozinha, que o pessoal conhecia como Pury, era colaborador e informante da Polcia Poltica, que o havia colocado ali para estar a par de tudo o que acontecia. Ele at dormia l. Os alimentos eram levados pelo oficial de guarda, os meus e os da sentinela. Entregava-os a ele, que fechava de novo a grade de entrada e ia at o fundo da sala, para me dar a bandeja. Desde o primeiro dia eu tinha o hbito de lhes perguntar as horas. Ento, apareceram alguns dias sem relgio. Apesar disso, eu continuava perguntando e eles respondiam que no sabiam. Como aquilo era um tanto grosseiro, parece que receberam outras ordens: as de entrar com a hora do relgio alterada. Eu olhava para eles e percebia, depois perguntava e fazendo-me de bobo, quando a hora que me davam era muito adiantada, comentava: Como o tempo voou! Pensei que fosse mais cedo. E eles ficavam certos de que haviam me enganado. Pouco a pouco foram se tornando mais repressivos em todos os aspectos. No mudavam a roupa de cama, suada e malcheirosa de gordura do corpo, e eu no tinha a menor possibilidade de conseguir outra limpa. O colcho dava nojo. A gua para o banho durava apenas alguns minutos. O cubculo no era varrido durante semanas. Eu me sentia embotado. Toda manh, ao acordar, estava cansado pelo efeito das luzes. No podia deixar de franzir a testa para entrecerrar um pouco os olhos, constantemente. No havia jeito de escapar ao brilho das lmpadas. Ento, tive a idia de enrolar a meia na testa, logo acima das sobrancelhas, formando assim uma viseira que me protegia um pouco os olhos. Se escutava os passos do guarda, tirava-a imediatamente. Pela situao das lmpadas no corredor, eu podia ver a sombra das pessoas, antes que chegassem. Todas as manhs, quando abria os olhos, dedicava um longo momento a repetir o dia, o ms e o ano em que estvamos. H presos que costumam fazer risquinhos nas paredes ou outro tipo de marca. Mas se forem mudados de cela perdem as anotaes. Eu as tinha onde no poderiam tir-las: na mente. noite me preparava para o dia seguinte, anunciando a mim mesmo: "Amanh ser dia tal, do ms tal", sem esquecer o dia da chegada ao hospital.

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Ento, recebi a visita do dr. Roberto Puente, subdiretor do hospital e tenente do Ministrio do Interior que, sem nenhum recato, disse que tinha estado em uma misso internacionalista em El Salvador. Eu sabia que outros oficiais lotados no presdio tinham sido enviados a El Salvador, mas, na verdade, Puente o dizia com alarde e no acreditei muito: ele gostava de se dar importncia. Esse homem um dos torturadores mais sdicos que conheci no crcere, cheio de complexos e de maldade. Sua falta de humanidade e de tica profissional inconcebvel. Para economizar remdios para a revoluo, suprimiu o tratamento de centenas de doentes crnicos e a pacientes que vomitavam sangue, devido a um estranho vrus que varreu a priso, deu-lhes alta mandando-os de volta aos insalubres calabouos. Mandou embora do hospital Eugenio Silva e Juan Gonzles, que eram doentes que requeriam cuidados Silva sofria de uma lcera gravssima , porque se negaram aceitar os planos de reabilitao do Governo. A finalidade da visita dele era verificar meu estado de nimo e o efeito do "tratamento". Lembro-me de que lhe perguntei a data eu a sabia com exatido , mas notei que ele tirara o relgio e o guardara no bolso da frente da cala, pois a fivelinha da pulseira ficara para fora. Voc no sabe que dia hoje? No, doutor. H muitos dias que no sei. Sorriu, satisfeito, ento me disse a data, s que com quatro dias de adiantamento. Depois, falei das luzes e de seu efeito, que ele conhecia bem como mdico. Respondeu-me que no faziam mal algum, que ele sempre dormia de luz acesa. Doutor, o senhor sabe que h uma campanha da revoluo para economizar eletricidade e que se deve acender a menor quantidade de luzes possvel. Tenha cuidado para no o acusarem de contra-revolucionrio por causa deste desperdcio de luz. A um cnico como o dr. Puente s se podia responder com caoada e ironia. As semanas passaram. As revistas da Polcia Poltica eram peridicas, para o caso de que eu pudesse conseguir, no se sabe de que jeito, papel ou algo que servisse para escrever. Apesar dos policiais que me vigiavam serem escolhidos com cuidado, eram substitudos com freqncia para impedir que com o contato dirio pudessem estabelecer relaes comigo. Muitos passaram por l e um deles, que se sensibilizou com a minha situao ao me ver preso naquelas condies, sentiu curiosidade e uma noite perguntou por que me mantinham assim. Estava havendo um fenmeno interessante. O militar de sentinela, que devia permanecer vinte e quatro horas em um cubculo anexo ao meu, do qual no podia sair um minuto, aborrecia-se e houve algum, falador, que se aproximou para conversar. Este foi um deles. Quando terminei de lhe contar minha histria, que escutou com interesse, pude notar uma expresso mista de admirao e pena em seu rosto. Disseram-me que voc era um criminoso, que tinha planos para dinamitar os crculos infantis e matar crianas. isso que sempre dizem, para evitar que vocs se aproximem de mim. A Segurana disse que terminantemente proibido falar com voc. Claro, porque acontece o que est acontecendo agora: eu posso explicar minha verdade e vocs, tendo as duas verses, podem analisar e tirar suas prprias concluses. A Segurana no quer que vocs saibam a verdade, por isso diz que sou um assassino.

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Aquele era um homem bom, no como tantos outros que conheci ao longo de meus anos de crcere, mas limitado pelo terror. A partir daquela noite foram muitas as que aquele militar e eu conversamos. O que menos o gorducho Guido podia imaginar que a cada trs dias eu lia jornal. Mas esse privilgio durou apenas um ms. Na manh em que comearam a reforma na sala eu escutava as marretadas e o som de ladrilhos e tijolos quebrados. No podia ver nada, mas soube que haviam levantado duas paredes que dividiram a sala, deixando meu cubculo e outro anterior ao meu separados. Em dois dias tinham terminado o trabalho e eu me encontrei mais isolado do que qualquer outro preso isolado. Vrios dias depois, escutei um rudo de ferros, porcas, parafusos e pranchas de metal do outro lado da parede. Tinham feito subir aparelhos de ginstica, barras paralelas, mesa, aparelhos para andar, lmpadas de calor e todo o necessrio para um tratamento de fisioterapia. Apareceram porta o dr. Roberto Puente e um oficial da Polcia Poltica, ajudante do major Guido. Este era ao contrrio: magro como um espaguete, de testa abaulada, desproporcional. Dizia chamar-se Beltrn. Era jovem, muito correto e amvel no trato. Tinha doze anos quando fui preso. J est pronta sua sala de fisioterapia particular, com tudo que preciso. Isso para voc ver que a revoluo, sem consideraes polticas, contempla o homem como um ser humano, acima de todas as diferenas. Sim, doutor ... minhas condies de vida e isolamento, as luzes perptuas, a humilhao diria, a negao das coisas mais elementares de que um ser humano precisa, so uma confirmao do que o senhor acaba de dizer ... Ele ficou vermelho. O tenente saiu em sua ajuda, falando suavamente: No, Valladares, esta situao atual no foi gerada por ns, mas sim por voc mesmo, que nos obrigou a tomar essas medidas preventivas. E tem sorte de estar num presdio comunista, onde se respeita a integridade fsica do detento. Se isto fosse em um dos crceres dos pases capitalistas j o teriam matado ou surrariam voc. E as surras que me deram, tenente?- No sabe as histrias dos campos de trabalhos forados e da priso de Boniato? E no exatamente um crcere capitalista... e ri com gosto. Esse tipo de resposta os exasperava. O comunista prefere a contestao exaltada, sem controle, o ex-abrupto; mas a verdade, dita tranqilamente em suas caras os tirava de si. Como no podia refutar o que eu dizia, foram embora. Pareceu-me esquisito terem resolvido me dar assistncia. Mas me alegrava; eu no recebia tratamento porque o coronel Blanco Fernndez havia proibido o diretor do hospital de continu-lo, se bem que tinha certeza de que ele dizia aos seus chefes que eu recusava o tratamento. Eles eram os todo-poderosos, tinham o domnio absoluto e dispunham a vontade dos prisioneiros, com o tambm do povo cubano inteiro, de suas vidas e suas vontades. No dia seguinte, o major Guido, seu ajudante Beltrn e outro oficial me visitaram. Estavam estreando novos uniformes, exclusivos da Polcia Poltica. Tecido da mais alta qualidade e um modelo que os diferenciava dos outros uniformizados. Em apenas uma semana o povo iria ter horror daquela farda. Bem, Valladares, como j ningum fala de voc, como sua esposa Martha no aparece nos jornais e ningum oferece a ela um microfone para que faa declaraes

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Guido dava uma entonao especial s suas palavras, decidimos continuar a fisioterapia. Demorou porque no cedemos a presso de ningum. A revoluo desafiou o imperialismo ianque e, falando vulgarmente, fizemos a poltica que nos saiu das calas. Sim aprovou o tenente Beltrn. Tudo passa e sabamos que o interesse da imprensa capitalista dura pouco. J se cansaram de utilizar voc como instrumento para desacreditar a revoluo. Seus amigos o esqueceram, Valladares, e agora ns que vimos em sua ajuda, para dar a ateno mdica de que precisa. Eu sabia que aquela deciso no era espontnea: a Polcia Poltica alheia a todo sentimento humanos, so robs para reprimir e sua atitude era determinada pela nica coisa que faz os comunistas conceder algo aos seus presos rebeldes: presses internacionais. O fato de Guido e Beltrn afirmarem que ningum falava em mim, que a campanha a meu favor havia terminado e que meus amigos tinham me esquecido foram as notcias mais alegres, e que mais me confortaram, desde que me enfiaram naquela caverna com velas perptuas. Eu as interpretei ao contrrio. E no me enganei. No sabia de nada, de um fato sequer concreto, nem de detalhes, mas tinha certeza de que a campanha a meu favor ia ladeira abaixo, como uma bola de neve. O fato deles cederem da obstinao de no me dar fisioterapia era uma prova definitiva. Na UNESCO, um dos testas-de-ferro da tirania castrista, o diretor do escritrio de Normas Internacionais sr. Karel Vesak, na sesso de 4 a 12 de maio de 1981, declarava inadmissvel que meu caso fosse tratado naquela organizao e me acusava de no ter sido pintor nem poeta antes de ser preso e de ter sido julgado por crimes comuns. Para dar uma imagem de veracidade s suas calnias e falsidades, ocultava que era o governo cubano que lhe havia fornecido aquela mendaz informao. A carta, datada de 18 de junho de 1981 e mandada a Martha pela UNESCO, continuava dizendo que eu estava submetido a um regime penitencirio normal e que recebia atendimento mdico adequado. Naqueles momentos, e desde h muitos meses, eu me encontrava jogado em uma lbrega cela de castigo, asfixiando-me com crises de asma e dormindo sobre uma placa de concreto. O sr. Vesak, dignssimo representante da UNESCO e servidor da ditadura cubana, prestava um magnfico servio a ela. Mas, com exceo dos delegados comunistas, mais ningum acreditou no sr. Vesak. Depois de ser solto, reuni-me, privadamente, na sede da UNESCO, em Paris, com as delegaes da Frana, Inglaterra, Alemanha Ocidental, Estados Unidos, Espanha e outras; expliquei-lhes detalhadamente o acontecido. O meu primeiro tratamento foi assistido pelo major Guido, o tenente Beltrn e o dr. Puente, que desde ento seria quem dirigiria os exerccios pessoalmente, seguindo um plano do dr. Alvarez Cambra. Fizeram uma cerimnia daquela minha primeira sada do cubculo. As janelas do cubculo onde estava a aparelhagem estavam fechadas, mas no seladas. O tenente colocou-se diante dela e a sentinela tambm. Guido ficou perto de Puente, observando o tratamento. Calor, massagens, movimentos e, depois, a colocao dos aparelhos de ferro, presos com correias, s pernas, para andar entre as barras paralelas. Ao trmino daquela primeira sesso, que durou quase a manh inteira, senti-me esgotado. Mas estava contente e coloquei todas as minhas foras fsicas e psquicas no propsito de me recuperar o quanto antes. Poucos dias depois, um coronel foi me informar que a alimentao melhoraria, como parte do tratamento. Sua visita foi s para isso. E no dia seguinte aconteceu algo

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portentoso, inconcebvel: levaram-me um litro de leite, meio frango, frutas e salada. O menu milagroso repetiu-se noite. Sem dvida estavam decididos a me reabilitar fisicamente. Eu desconfiava que tudo era para neutralizar a campanha para que me dessem assistncia. Mas era mais do que isso. Como j tinham decidido minha liberdade, toda aquela manipulao tinha a finalidade de apagar as marcas das torturas s quais me condenaram a dupla priso de um crcere e de uma cadeira de rodas. No havia qualquer preocupao humana ou profissional neles ao me dar o tratamento que durante anos organizaes internacionais, meus amigos e eu tnhamos solicitado com insistncia e inutilmente. Obedecia a um interesse malvado. E naquele ano e meio ningum pde saber de mim, nem do que estava acontecendo naquela dependncia fechada por paredes e janelas seladas. No queria que se soubesse que estavam me dando fisioterapia e mantinham tudo em segredo. Porque se soubessem que estavam me devolvendo a faculdade de andar, ningum na Europa iria supreender-se vendo-me descer do avio pelas minhas prprias pernas e no numa cadeira de rodas, como esperavam. Havana diria que eu no era um invlido. Seus porta-vozes e agentes no exterior repetiriam a mesma coisa. E o repetiriam como se tivessem dito que haviam me amputado um brao e todos me vissem com os dois em seus lugares. Sempre se dissera que minha doena era recupervel e assim foi. Por trs de minha recuperada capacidade de andar no havia nenhum milagre, nem mistrio, mas sim, manipulao. Os mesmos que me adoeceram, me curaram. Castro tinha dito ao dr. Rodriguez Iturbe, deputado venezuelano e presidente da Comisso de Relaes Exteriores do Senado de seu pas, que eu jamais sairia de Cuba em uma cadeira de rodas. E me preparavam para que assim fosse. Apesar da qualidade dos alimentos, as luzes continuavam acesas, as revistas eram feitas. Um dia me pegaram com a tampinha de papelo do litro de leite; o chefe militar do hospital apareceu e me perguntou para que a queria. Fizeram um registro. Dia a dia minhas pernas iam se fortalecendo; o tratamento intensivo prosseguia; s vezes era aplicado at nos domingos. Outro mdico da Polcia Poltica, cujo nome jamais soube, juntou-se equipe de fisioterapia. Massagens, calor, exerccios, equilbrio, andar entre as paralelas. Um minha frente e outro atrs de mim empurravam-me pelo peito e pelas costas. Eu ia adquirindo mais e mais domnio de meus movimentos. O tratamento realizou-se em um clima de tenso e quase em silncio. Os mdicos s falavam se tinham que dar alguma indicao e da maneira mais seca possvel. Logo pude voltar a usar os aparelhos curtos. Haviam passado vrios meses e eu andava entre as barras paralelas, cada vez com mais desenvoltura, apoiando-me muito pouco nelas. Quando terminavam as sesses de fisioterapia, voltava para meu cubculo.

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39. Rumo a Paris


Para manter a mente treinada e a faculdade de falar, eu organizava conferncias para um imaginrio auditrio. Tambm repetia meus conhecimentos de matrias universitrias e improvisava aulas de Histria, Geologia, etc. Tudo isso em voz alta. O que fez as sentinelas se aproximar mais de uma vez; eles no chegavam at a grade, mas me espiavam, talvez achando que eu tinha enlouquecido. Naquela poca eu tinha necessidade de escrever, mas isso era impossvel. Ento, tive a idia de compor poesias de memria. E, assim, iniciei uma nova experincia. Quando tinha repetido, at saber de cor, o primeiro verso, ia em busca do segundo. Depois de aprendidos os dois, compunha o terceiro e assim at completar a estrofe, depois o poema, que eu repetia diariamente muitas vezes, para grav-lo na memria. Todas essas poesias, quando as disse para Fernando Arrabal, na casa dele em Paris, noites depois da minha sada de Cuba, ele me pediu que gravasse em fita e que as escrevesse, com medo que se perdessem. Como Arrabal tinha razo! Eu o fiz e algumas semanas depois era incapaz de repeti-las. Esses poemas apareceram em um volume intitulado Cavernas do Silncio, editado por Playor, em Madri. Existia uma situao que hoje posso compreender porque analiso os seus motivos. O pessoal da Polcia Poltica sabia que eu ia embora e no estava de acordo: a vtima escapava e trataram de me torturar o mais que puderam. As luzes e os mosquitos me agoniavam. Na noite que cheguei a Paris, mostrei as costas a Fernando Arrabal: estava toda picada pelos insetos e cheia de pstulas nas picadas que infeccionaram. No s derramaram seu dio doentio sobre mim, como tambm sobre meus familiares. Sob a ameaa de encarcerar minha irm, obrigaram minha me a escrever-me uma carta dizendo que eu era um inimigo do povo, que merecia a incomunicabilidade e que devia agradecer revoluo o que fazia por mim. Quando o major Guido me entregou a carta e terminei de l-la, eu sabia que a tinham conseguido com ameaas. Em vrias partes do texto ela repetia como era bom o comandante Blanco Fernndez. Fizeram isso para se deliciar vendo minha me elogiar o coronel que ordenava o tratamento repressivo que eu recebia. Sabiam que me dilacerava minha me me escrever defendendo um dos meus verdugos. Eles chamavam minha irm sede da Polcia Poltica freqentemente, e se aproveitavam do fato de minha me estar s para aterroriz-la. Um dia, no meio do caminho, minha irm encheu-se de coragem e voltou. Disse a si mesma que se queriam interrog-la e amea-la teriam que ir busc-la em casa. E, quando entrou, surpreendeu um dos oficiais da Polcia Poltica ditando uma carta minha me, dirigida Anistia Internacional. Ao me reunir com minha famlia nos Estados Unidos, minha me me contou que a obrigaram a redigir e assinar muitas outras cartas, a fazer declaraes a pessoas estrangeiras que eles levavam minha casa desmentindo o que eu denunciava. Quando minha irm negou-se a ir sede da Polcia Poltica, o coronel Blanco Fernndez foi busc-la. Mostrou-lhe uma sentena em que era condenada a doze anos de cadeia, sem jamais ter sido julgada. Ela teve que pegar seus objetos pessoais e levaram-na

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para o presdio de mulheres. Mantiveram-na esperando at o anoitecer, com o pretexto de que faltavam uns trmites, depois a mandaram para casa, dizendo que no dia seguinte iriam busc-la. Fizeram isso vrias vezes. Devido a essa presso, minha irm acabou num psiquiatra: ainda hoje est em tratamento. Em uma ocasio, para lhe revistarem a bolsa, foi maltratada fisicamente pelo coronel Blanco Fernndez e pelo capito Mentira. Minha velha me sofreu muitas ameaas. Um dia, o capito Mentira apresentou-se em casa e disse-lhes que renunciassem a sair do pas, que para eles s havia trs possibilidades: 1) Transformarem-se em comunistas. 2) Conspirar contra a revoluo. 3) Sair de Cuba clandestinamente, em um bote. Toda essa perseguio contra pessoas indefesas. * * * O tratamento avanava, as pernas se fortaleciam, j conseguia dobrar os joelhos e levantar-me um pouco, se bem que ainda com a ajuda dos braos. Passava horas andando entre as paralelas. Uma de minhas sentinelas, Mariano Corrales, conversador ao extremo, costumava falar muito comigo. Procurava minha conversa para mitigar a solido, mas em alguns detalhes eu notava seu dio por mim. Tinha estado em Angola e me contou como seu batalho participou da invaso do Zaire e a maneira como penetraram no territrio daquele pas, o primeiro choque com tropas belgas e as setenta baixas que estas lhes ocasionaram, enquanto Castro jurava que seus soldados no estavam l. Era mestio e um dia pegou a carteira para me mostrar o retrato da esposa, uma mulher branca. Agora, com a revoluo, somos todos iguais disse-me, sorridente. Coisa falsa, porque em Cuba o casamento entre pretos e brancos existiu desde o comeo do sculo como prtica normal. Aquela mulher branca e um jogo de mveis de sala, que ele mesmo tinha construdo com madeira velha, eram seu grande orgulho. Em algumas ocasies eu sentia que entravam pessoas na sala e escutava, muito apagado, o rudo de passos no cubculo contguo ao meu. A parede, quase perto do teto, estava cheia de furos produzidos pela deficincia da construo. Qualquer deles poderia servir para me vigiar. Foi o sargento Corrales que me convenceu disso, pois um dia, quando fui falar com ele, respondeu-me de jeito agressivo, dizendo coisas que, compreendi no ato, eram dirigidas a terceiras pessoas que estavam nos vendo e ouvindo. Ele, que passava horas conversando comigo, agora nem sequer me olhava; entregou-me a bandeja apressadamente e saiu do cubculo como alma perseguida pelo diabo. Os meses passavam lentos, arrastando-se. Eu continuava repetindo minhas poesias de memria. Tinha quase vinte e passava o tempo com isso. Uma tarde, o major Guido e seu ajudante falaram-me da Legalidade Socialista. Respondi-lhes que por essas leis eu devia ser libertado depois de vinte anos de cadeia. O tenente Beltrn disse-me que a Segurana do Estado tinha sua prpria interpretao das leis, que ele conhecia bem o assunto porque estava estudando Direito na Universidade de Havana. Aquilo pareceu-me to incongruente que lhe disse:

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Para mim, o fato dos senhores estarem estudando leis como se algum passasse longos anos aprendendo cirurgia e ao formar-se fosse trabalhar num aougue, esquartejando reses. Quando lhes disse isso, enfureceram-se, disseram-me que era falta de respeito. No, no falta de respeito. isso que os senhores fazem com as leis: esquartejam-nas. * * * Eu no soube, at sair, que Martha tinha feito uma viagem por pases da Europa, em busca de apoio para minha libertao. Polticos, jornalistas e intelectuais receberam-na na Espanha e tambm na Frana, onde Fernando Arrabal escreveu uma carta ao presidente Mitterrand. A essa carta juntouse outra de Martha, pedindo-lhe audincia. Na Sucia foi atendida pelo grupo 110 da Anistia Internacional. Per Rasmussen tinha conseguido, desde h mais de um ano, que a coalizo no-socialista no Governo solicitasse minha libertao, oferecendo-me ao mesmo tempo asilo poltico e trabalho naquele pas. Funcionrios do governo sueco receberam Martha com verdadeira solidariedade. Per Rasmussen conseguiu, alm disso, depois de mil peripcias, que Pierr Schori, secretrio internacional do Partido Social Democrata, e atualmente subsecretrio de Relaes Exteriores da Sucia, aceitasse falar com Martha por alguns minutos. A entrevista teve lugar de manh, muito cedo, no Hotel Continental, de Estocolmo. Pierr Schori no estava muito interessado que o vissem com a esposa de um prisioneiro poltico de Castro. No permitiu que Per e Humberto estivessem presentes. No queria testemunhas. Tudo foi s escondidas, clandestinamente. Senhora, se quer fazer algo por seu marido, aconselho-a a no continuar com a campanha de publicidade e denncias. Assim nunca ir tir-lo da priso Schori aconselhava exatamente a mesma coisa que as autoridades cubanas; "conselho" igual lhe havia sido dado por Regis Debray, na Frana, atravs de uma terceira pessoa. Essas coisas devem ser feitas em muito silncio. No entanto, sr. Schori replicou Martha, quando um prisioneiro das ditaduras do Chile ou Argentina maltratado, os senhores fazem denncias e escndalos. Ainda acham que Cuba um paraso? No, claro que no. Poucos na Europa acham que Cuba um paraso disse, olhando seus dois relgios, um em cada pulso. Se sabem o que est acontecendo e que a ditadura cubana implacvel, que acabou com toda liberdade, por que no o dizem? Porque seria dar armas aos norte-americanos. Martha no respondeu, mas pensou que aquela era uma conduta imoral, carente de honestidade e de toda tica. Apegou-se ao meu caso: No inteligente continuar mantendo meu marido preso, porque a cada dia aumenta mais os que se unem campanha pela liberdade dele e isso prejudica a imagem que Castro quer manter dele e de seu regime no exterior. Senhora, em Castro chocam-se a inteligncia e a soberba olhava ao redor enquanto falava. E a soberba sempre triunfa terminou.

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Martha levantou-se; compreendeu que a insistncia de Schori em olhar para o relgio tentava terminar a entrevista-relmpago e quis adiantar-se. Antes de se separarem, Pierr Schori avisou-a de que a conversa com ele no devia se tornar conhecida pela imprensa. Talvez no quisesse provocar a soberba de Castro. Ramn Ramudo, o hispano-sueco, foi libertado logo que a Polcia Poltica cubana mudou a acusao original que lhe havia feito, de agente da CIA, pela de contrabandista de lenos de seda, crime muito perseguido em Cuba. Ramudo conseguiu fazer sair as cartas que eu tinha escrito na cela de castigo, em pedacinhos de jornais, e chegou com elas a Estocolmo. Foi a ltima pessoa que teve contato comigo e por uma dessas estranhas coincidncias que Deus prepara. Martha ainda estava na capital da Sucia quando Ramudo, magro e amarelo, ainda com a marca da priso e das torturas no olhar, soube de sua presena l. O encontro dos dois e o testemunho de Ramudo na televiso sueca, em que mostrou minhas cartas, foi de valor extraordinrio porque a imprensa do mundo inteiro recolheu suas declaraes. Da Sucia, Martha seguiu para a Noruega, onde a maravilhosa atriz Liv Ullmann, com um grupo de jornalistas e intelectuais, sensibilizados pelo que Martha lhes contou, fundaram um comit para trabalhar pela minha liberdade, em Oslo, e da Europa nrdica, de gelos perptuos, a bola de neve, j impossvel de se deter, esmagar a soberba de Castro que, pelo menos desta vez, apesar dos augrios de Pierr Schori, no triunfaria; ao contrrio, teria que ceder. * * * Meu tratamento continuou. Foram passando meses de exerccios dirios; j podia andar entre as barras paralelas sem a ajuda de aparelhos ortopdicos, ficar de ccoras e dar pequenos saltos no mesmo lugar, como se estivesse correndo. Para mim, os primeiros passos no caminhos do restabelecimento tiveram um valor indescritvel: voltava a me sustentar sobre as pernas, voltava a vencer outro obstculo! Tenho vrios ossos do p direito fora do lugar, aqueles que fraturei em 1961, durante a fuga do presdio e que se soldaram errado. Os mdicos, quando vem as radiografias, dizem que impossvel andar com essas leses sem coxear gravemente. Mas eu no coxeava. Obriguei-me a no faz-lo e, torcendo o p no sentido contrrio, fui exercitando novos msculos, at conseguir compensar a deficincia. Curiosamente, apesar de j estar com as pernas fortalecidas, poder fazer trote suave e ficar de ccoras no mesmo lugar, entre as paralelas ou no banheiro antes da ducha diria, no podia andar pelo cubculo sem me apoiar em alguma coisa. Era impossvel por causa da perda da linha de marcha, aquele mesmo descontrole que nos fazia andar em ziguezague, no presdio de Boniato. Por isso tinha que continuar usando a cadeira de rodas. Se tentasse ir da minha cama ao banheiro, atravessando o cubculo, meu andar era errante e a primeira vez que o fiz no consegui manter a linha e fui parar na parede do fundo. Precisava, para concluir aquela etapa do tratamento, de espao aberto para que o crebro voltasse a ter a perspectiva de profundidade de que carecia entre aquelas quatro paredes. Mas o segredo de minha recuperao fsica tinha que ser guardado at o ltimo minuto.

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Uma tarde, outro especialista veio me examinar; fez um teste muscular, observoume fazendo exerccios e me explicou que com apenas uns dias de espao aberto eu recuperaria a linha de marcha. Dias depois, o dr. Puente subiu uma bicicleta de ginstica e comecei a fazer exerccios nela. Os mdicos intensificaram o tratamento, de manh e tarde. Aproximava-se a minha sada, da qual eu nem sequer suspeitava. No entanto, a tortura continuava. Aquela dualidade carcerria era grotesca, uma loucura. A comida continuava sendo abundante e de qualidade, mas no me davam nenhum comprimido. Algo me provocava alergia e meu corpo estava ficando cheio de verges, alm de coar de modo desesperador, mas no me davam remdio. Uma aspirina era to difcil de conseguir quanto ver o sol. Uma madrugada, um grupo de coronis apareceu no meu cubculo. Ordenaramme que recolhesse tudo o que tinha. O general quer v-lo disse o chefe do grupo. A caravana, composta de trs carros, saiu da priso. Chegamos Vila Marista, sede da Lubianka cubana, um enorme conjunto de edifcios. Deixaram-me em uma cela dos longussimos corredores. Por aqueles corredores passaram dezenas de milhares de cubanos que foram submetidos a interrogatrios alienantes para arrancar-lhes confisses sob presso de torturas. Muitos no puderam resistir e morreram. Logo a Polcia Poltica informava que haviam se suicidado. O expediente do "suicdio" naqueles ttricos calabouos serviu para desvirtuar o assassinato de Eurpedes Nues, um dirigente operrio que foi Secretrio-Geral do Sindicato dos Trabalhadores da conhecida fbrica de tabacos H. Uppmann. Tambm foi liquidado desta maneira o professor de Filosofia da Universidade de Havana, Javier de Varona; o mdico e ativista pelos Direitos Humanos, dr. Jos Janet; o comandante do Diretrio Revolucionrio e ex-ministro do Comrcio Exterior de Cuba, Alberto Mora; s para citar casos de pessoas conhecidas, pois a lista de vtimas annimas, de homens e mulheres simples, cujos nomes no transcendem, e que desapareceram naqueles calabouos, interminvel. No h listas, nem detalhes, jamais algum testemunha das detenes. O terror fecha olhos e lbios. Os cidados podem ser presos por simples suspeitas e ser mantidos sob processo de investigao e interrogatrios durante anos, como aconteceu com o dissidente marxista e professor universitrio de Economia, Elizardo Snchez Santa Cruz, a quem por dois anos mantiveram naqueles calabouos, submetido a todo tipo de presses. na tentativa de arrancar-lhe uma confisso que envolvesse outras pessoas, assim como sua autoacusao. Um dos casos tpicos de tortura fsica e mental que conheci o do mdico Mario Zaldivar, que foi clnico no Hospital Militar de Havana. Foi submetido a cmaras de congelamento e aquecimento alternados, assim como a surras. Depois, ameaaram-no de tomarem represlias contra a famlia dele, se contasse o que tinha acontecido. A ltima vez que o vi estava aterrorizado. Manuel del Valle, depois de interrogatrios massacrantes e torturas, foi retirado uma madrugada, com os ps e as mos amarrados; levaram-no para o ttrico "matadouro de Castro", onde o amordaaram com esparadrapo, prenderam-lhe os braos para trs, passados por uma tbua, e fuzilaram-no com tiros de festim. Essa prtica de falsos fuzilamentos era usada constantemente.

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Orlando Garcia Plasencia e muitos outros de seus companheiros foram detidos por uma conspirao abortada que tinha, entre outros planos, o de atentar contra a vida de Castro. Projetavam atirar nele com uma bazuca. Um dos conspiradores, uma moa chamada Dalia Jorge, no pde resistir aos interrogatrios. Colocaram-na completamente nua diante de um grupo de oficiais. Se para um homem humilhante ficar nu diante de seus verdugos, para uma mulher o infinitamente mais. Aos poucos, com aquelas tcnicas de interrogatrio, a cela fria e o terror, obrigada a se exibir nua, a resistncia de Dalia Jorge desmoronou. Delatou ento todos os seus antigos companheiros e informou tudo que sabia. Enquanto Garcia Plasencia e outros grupos sofriam torturas, ela perambulava pelo presdio, porque lhe haviam concedido liberdade dentro daquela zona. Quando sentiu a formao de um novo ser em suas entranhas, no pde saber qual daqueles oficiais que a haviam possudo era o pai. Para arrancar de Garcia Plasencia uma confisso que implicasse outros supostos conspiradores, torturaram-no durante semanas. Completamente nu, amarravam-lhe as mos s costas e obrigavam-no a subir sobre os depsitos de gelo, diante de um aparelho de ar-condicionado ligado no mximo de frio. Se, dolorido pelo contato do gelo nas solas dos ps Garcia Plasencia se abaixava, o guarda jogava um jarro de gua gelada nele. Depois de semanas dessas torturas, passaram a amarr-lo com cordas, em posio fetal, cabea enfiada entre os joelhos; quando urinava empapava a cabea com a prpria urina. Tambm amarravam-no pelos ombros e, com a cabea coberta por um capuz, mergulhavam-no em gua quase at a asfixia. Uma vez disseram-lhe que iam imergi-lo no poo dos crocodilos. Garcia Plasencia me contou que, enquanto iam-no descendo, ele calculou a distncia que o separava da gua e encolheu os ps. Mas, assim mesmo, sentiu o lombo viscoso e spero dos crocodilos, que no eram mais do que as carapaas de inofensivas tartarugas. Uma madrugada, o prprio Castro apareceu. Por que no atirou em mim? disse-lhe. Voc um covarde. O prisioneiro no respondeu e Castro o esbofeteou. Garcia Plasencia estava manietado e completamente nu. Hoje, mais de vinte anos depois, continua no presdio do Combinado do Leste. O calabouo que me destinaram na sede da Polcia Poltica tinha uma abertura pela qual o guarda do corredor assomava-se constantemente. Isso tinha a finalidade de fazer o preso se sentir constantemente vigiado. Poucas horas depois, uma verdadeira corte de coronis e ajudantes foi me buscar. Esperava-me um homem de uns quarenta e oito anos, em um escritrio luxuosssimo, com tapetes e cortinas vermelhas. Era o general, chefe da Lubianka. Valladares, trouxemos voc para c porque vamos p-lo em liberdade... e possivelmente iremos deix-lo sair do pas. A notcia no teve o efeito que esperavam e o general percebeu. Eu havia conhecido casos de prisioneiros que tinham sido manipulados, iludidos por essa idia. A notcia no o agrada, Valladares? Por que vo me libertar, general? perguntei, sem acreditar muito. Desde h muitos anos mantinha a conduta de no me iludir com nada do que eles dissessem. Porque a revoluo ir dando soluo a casos como o seu, apesar da sua hostilidade na priso e sua recusa aos planos de reeducao poltica e olhou seu

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relgio, um Rolex dos que Castro d e que se tornaram em Cuba provas das simpatias pessoais do ditador. J muito tarde, voc precisa descansar ... levantou-se e acrescentou: Sabemos que precisa de um pouco de exerccio ao ar livre e deve tomar um pouco de sol, porque est muito plido. Amanh o companheiro Alvarez Cambra, seu mdico, vir v-lo. Ele orientou o seu tratamento e est a par de como evoluiu. Eu no pude dormir pelo que restava da madrugada. A notcia que iam me dar a liberdade era algo que j no esperava e em que no podia acreditar; temia que fosse outra jogada da Polcia Poltica e tentava adivinhar que maquinao ocultava. Talvez quisessem me iludir com a idia da libertao para mais tarde apresentar-me alguma condio, como assinar que aceitava minha reabilitao ou algo do estilo. Minha experincia com inimigos capazes de tudo dizia-me que devia suspeitar at o ltimo instante e que eles no iriam me libertar em troca de nada. Eu nem sequer podia desconfiar que o nvel de opinio pblica mundial, to ansiado por mim, tinha chegado altura necessria para obrigar Castro a me libertar, apesar de sua soberba e do juramento que no o faria enquanto houvesse uma campanha a meu favor. Na tarde seguinte, o dr. Alvarez Cambra me visitou; muito gentilmente, disse-me que eu seria levado ao ginsio e que me deixariam andar na quadra de esportes. Primeiro, fizeram-me percorrer os corredores, apoiado em uns oficiais. Depois, levaram-me ao ginsio, onde o general me esperava. Nos dias seguintes, faziam-me subir e descer escadas, primeiro devagar, depois mais depressa. Dia a dia fui adquirindo a habilidade. Certa manh, acompanhado pelo dr. Alvarez Cambra, sa ao polgono esportivo. Os primeiros passos ainda eram titubeantes; entre ele e o general, fui avanando. Do outro lado me filmavam. O dr. Alvarez Cambra explicou-me que o cerebelo se readaptaria logo e assim foi. Atravs do general, eu soube que no apenas teria a liberdade, mas que tambm me permitiriam sair do pas. Respondi-lhe que aceitava, desde que minha famlia tambm pudesse ir embora de Cuba. Disse-me que sobre isso teria que consultar o nvel superior. Quando me levaram ao polgono, comecei a dar voltas nele, primeiro devagar, depois mais depressa, a trote curto. Quando puder correr bem, ir embora dizia-me o general. Perguntei pela minha famlia e ele disse que haviam respondido que ela no podia ser includa. Ento, general, no aceito a sada. Sem minha famlia eu no irei. Vocs hostilizaram minha gente durante anos, mantiveram-nos como refns, para tomar represlias contra mim; agora, no vou embora deixando-os aqui. Eles esto com tudo pronto; passaportes, vistos, passagens. No justo que continuem sofrendo em um pas que os hostiliza e fustiga. Voc est louco, no sabe o que diz. Sua famlia ir depois. No, general. No aceito isso. Olhe, amanh vir uma pessoa que vai falar com voc e faz-lo mudar de idia. No dia seguinte, eu estava na quadra fazendo exerccios, quando o general chegou acompanhado por um senhor de bigodes, alto e claro. Era Pierre Charasse, o embaixador interino da Frana. Foi na conversa com ele que soube, enfim, o porqu da minha libertao. O presidente Mitterrand a havia pedido a Castro e este tinha cedido. Mostrou-

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me a cpia de um telegrama da presidncia francesa: esperava-se minha chegada a Paris nos prximos dias e a imprensa mundial j estava dando a notcia. Deus me iluminou. Compreendi em segundos que o jogo tinha mudado, que minha posio era forte. Expliquei ao sr. Charasse a situao da minha famlia e tudo o que tinham feito contra ela. Pedi-lhe que transmitisse meus agradecimentos ao presidente da Frana e acrescentei: Prefiro continuar num calabouo, comendo farinha de milho, mas com a conscincia tranqila, do que comer um pato com laranja no "Maxim's" de Paris, sabendo-me traidor da minha famlia. O embaixador foi muito gentil. Tentou me fazer raciocinar. Certamente para ele, que sabia que eu estava preso h vinte e dois anos, minha negativa de ir para Paris, para a liberdade, tinha que parecer loucura. Quando ele foi embora uma grande tranqilidade me envolveu. Eu sabia que o mais importante era viver em harmonia com a prpria conscincia, agindo como se acha certo, sem levar em conta as conseqncias. Minha verdadeira liberdade era essa, a que Deus d interiormente aos homens. Eu no podia deixar a minha famlia para trs. Nos regimes marxistas elas so tomadas como refns essa prtica bem conhecida no mundo inteiro para impor silncio aos que esto no exterior. No entanto, a reao do general foi de indignao. Quando mandou me buscar, a ira congestionava-lhe o rosto. Repetiu-me coisa que tinha me dito durante anos que eles no aceitavam imposies e que Castro, quando soube da minha exigncia, respondera que eu apodrecesse na priso. Vamos lhe dar uma ltima oportunidade, Valladares. Agradeo, mas sem minha famlia eu no irei, general. Nessa noite, com grande hostilidade, levaram-me de volta priso. O clima era tenso. Os mesmos coronis que dias antes se desfaziam em atenes e gentilezas para comigo, como que para apagar em algumas horas os anos de torturas e ignomnias, no me dirigiam a palavra. Um silncio total reinou entre eles e eu, durante todo o trajeto. Dois dias depois, as autoridades trouxeram minha famlia, acompanhada pelo sr. Charasse. Minha me e eu nos abraamos, depois de longos anos sem nos vermos; minha irm me beijava, emocionada. Estavam felizes por me ver andando. No sabiam do tratamento que me tinham dado em segredo, para no poder informar a respeito. Quando, meses atrs, perguntavam por mim, os oficiais diziam que eu me negava a ser tratado. Soube, ento, que em conversas entre Castro e o governo francs, tinham resolvido incluir minha famlia na negociao. Ainda assim, respondi que no acreditava nas palavras de Castro. Martha esperou vinte e um anos por voc; nenhum dos dois merece que esse encontro demore mais disse-me minha irm, me abraando. V, meu irmo, que pelo menos ns estamos l fora, ao passo que voc sofreu muito e merece um pouco de felicidade... V e seja o que Deus quiser... No tenha pena disse-me minha me. Nosso sonho era ver voc livre e j posso morrer tranqila. Novamente levaram-me para a sede da Polcia Poltica. Outra vez os coronis estavam sorridentes e atenciosos.

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No dia da partida tornaram a me filmar no campo esportivo, enquanto eu corria ao redor dele. Quando me tiravam da cela, o oficial que me acompanhava assobiava para avisar que ia levando um preso, sinal que usavam para avisar um ao outro e evitar que eu cruzasse com outros detidos. L ningum deve se ver. Outras vezes, colocam um capuz no preso. Um preso enlouquecido, no corredor lateral, empurrou o guarda e saiu correndo; ao chegar escada, soltou um grito e se atirou de cabea por ela abaixo. Quem seria aquele infeliz? Que torturas teria sofrido para chegar quele ponto? Deram-me um terno, um capote e uma maleta. Na ltima conversa com o general, este me fez uma velada ameaa : minha famlia ficava e dependia de mim que a deixassem sair ou no, insinuando que se eu fizesse declaraes contra Cuba nunca sairia. Os braos da revoluo so longos, Valladares, no se esquea disso... e ficava implcita uma sinistra ameaa contra mim. Nada respondi. Minha mente estava fora daquela sala, longe... muito longe, em Paris, onde Martha me esperava, minha Penlope real. Em 1979 eu havia escrito um poema para ela que terminava com uma premonio, um canto esperana, sua angustiante espera... Chegarei a ti desta vez no duvide j est decidido nosso encontro apesar do dio e dos abismos. Chegou a hora da partida. A comitiva de vrios carros enfiou-se pela Avenida de Rancho Boyeros, rumo ao Aeroporto Internacional Jos Marti. O avio partiria s 7 da noite. Um sol vermelho como sangue tingia a tarde de escarlate e em meu corao elevei uma prece agradecida a Deus por ter me ajudado a esperar contra toda esperana, e roguei-Lhe pela minha famlia, de quem no tinham permitido que eu me despedisse, por meus companheiros que ficavam para trs, na noite interminvel dos crceres polticos cubanos. Os carros corriam, velozes, e uma mistura de melanclica tristeza e alegria foi me afundando nas lembranas de vinte e dois anos . .. Lembrava-me dos sargentos Porfirio e Matanzas, afundando as baionetas no corpo de Ernesto Diaz Madruga; de Roberto Lopez Chavez agonizando em uma cela, implorando como louco por um pouco de gua e dos guardas que lhe urinavam na cara, na boca; de Boitel a quem, tambm depois dos cinqenta e tantos dias de greve de fome, negaram gua, porque o prprio Castro tinha dado ordem de mat-lo; depois de Clara, sua atribulada e velha me, agredida pelo tenente Abad nas dependncias da Polcia Poltica, s porque queria saber onde haviam enterrado seu filho; lembrava-me de Carrin com um tiro na perna, pedindo ao miliciano Jagey que no atirasse mais e este, sem compaixo, metralhando-o pelas costas; e pensava que outros oficiais, semelhantes aos que me rodeavam, haviam proibido aos familiares que chorassem na funerria, sob ameaa de levar o cadver.

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Lembrei de Estebita, de Pire, que amanheceram mortos nas celas muradas, vtimas de experincias biolgicas. De Diosdado Aquit, do Chino Tan, de Eddy Molina e tantos outros assassinados nos campos de trabalhos forados. Uma legio de espectros nus, aleijados, passou pela minha mente, do mesmo jeito que nas revistas horrorosas com centenas de feridos, os mutilados, a dinamite para nos fazer em pedaos, os celas de confinamento com seu regime de surras, as mos decepadas a faco de Eduardo Capote. Campos de concentrao, torturas, mulheres surradas no crcere, o militar que me jogava excrementos e urina no rosto, as surras que deram em Eloy, em Izaguirre. Martin Perez com os testculos feridos a tiros. O pranto de Robertico chamando pela me. E no meio da viso apocalptica de minhas terrveis experincias passadas, entre a fumaa acinzentada da plvora e da orgia de pancadas, de prisioneiros abatidos a tiros, um homem famlico, esqueltico, com cabelos brancos, olhos azuis fulgurantes e corao cheio de amor, erguendo os braos para o cu invisvel e pedindo demncia para seus verdugos ... "Perdoai-os, Senhor, eles no sabem o que fazem!", enquanto uma rajada de metralhadora' perfurava o peito do Irmo da F. "Do nosso ponto de vista, no temos problema algum com os Direitos Humanos: aqui no h desaparecidos, aqui no h torturados, aqui no h assassinados. Em vinte e cinco anos de revoluo, apesar das dificuldades e dos perigos pelos quais passamos, jamais se cometeu uma tortura, jamais se cometeu um crime." (Declaraes de Fidel Castro a jornalistas franceses e norte-americanos, no Palcio da Revoluo, em Havana, a 28 de julho de 1983, publicadas no jornal Granma, na edio de 10 de agosto do mesmo ano).

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