Filme Cultura n.54 1

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FILME CULTURA no 5 4 . MAIO 2 0 1 1 WWW.FILMECULTURA.ORG.

BR R$5,00 ISSN 2177-3912

VANGUARDA
=
I N O V A Ç Ã O
PRESIDENTE DA REPÚBLICA DILMA ROUSSEFF
MINISTRA DA CULTURA ANA DE HOLLANDA
SECRETÁRIO EXECUTIVO / MinC VITOR ORTIZ
SECRETÁRIA DO AUDIOVISUAL ANA PAULA DOURADO SANTANA
GERENTE DO CTAv GUSTAVO DAHL

Filme Cultura é uma realização viabilizada pela


parceria entre o Centro Técnico Audiovisual – CTAv
e o Instituto Herbert Levy - IHL.

Este projeto tem o patrocínio da Petrobras e utiliza


os incentivos da Lei 8.313/91 (Lei Rouanet).

www.filmecultura.org.br
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CTAv - Centro Técnico Audiovisual


Avenida Brasil, 2482 | Benfica | Rio de Janeiro | RJ | Brasil
cep 20930.040
tel (21) 2580-3775 ramal 2006

2 filmecultura 54 | maio 2011


Luiz Fernando Carvalho registra com

seu celular a projeção de Lavoura arcaica.

Em primeiro plano: Leonardo Medeiros (Pedro)

4 EDITORIAL GUSTAVO DAHL | 5 OS CORPOS E ESPÍRITOS DA ÉPOCA DANIEL CAETANO


10 DRAMATURGIA OU VANGUARDA: EIS A QUESTÃO JOÃO CARLOS RODRIGUES
14 DO QUASE AO PÓS-CINEMA: CINEMA E INSTALAÇÃO NO BRASIL ANDRÉ PARENTE | 19 O FUTURO DO CINEMA LUIZ GONZAGA ASSIS DE LUCA
23 O DESEJO PELO OUTRO FILIPE FURTADO | 28 O INCHAÇO DO PRESENTE: EXPERIMENTALISMO SUPER-8 NOS ANOS 1970 RUBENS MACHADO JR.
33 BUSCA AVANÇADA MÁRIO ALVES COUTINHO | 35 FILME CULTURA ENTREVISTA CLÉBER EDUARDO DA REDAÇÃO
41 DOCUMENTÁRIO DE INVENÇÃO CARLOS ALBERTO MATTOS | 45 NOVOS CAMINHOS PARA A ANIMAÇÃO EXPERIMENTAL MARCOS MAGALHÃES
49 COMO SOA HOJE EXPERIMENTAL? FERNANDO MORAIS DA COSTA | 54 CAMINHOS DA INOVAÇÃO | 59 ENSAIO FOTOGRÁFICO CAO GUIMARÃES

67 CINEMATECA DE TEXTOS / JULIO BRESSANE | 70 UM FILME / O GERENTE JOÃO CARLOS RODRIGUES E PEDRO BUTCHER
76 PERFIL / RUBEM BIÁFORA II GUSTAVO DAHL | 81 E AGORA? JOSÉ PADILHA | 83 E AGORA? NEVILLE D’ALMEIDA
85 LÁ E CÁ TATIANA MONASSA | 88 LIVROS / CINEMA DE GARAGEM CARLOS ALBERTO MATTOS | 90 CURTAS JOANA NIN | 91 ATUALIZANDO JOANA NIN
95 PENEIRA DIGITAL CARLOS ALBERTO MATTOS | 96 CINEMABILIA

DIRETOR GUSTAVO DAHL | EDITORA EXECUTIVA JOANA NIN | EDITOR/JORNALISTA RESPONSÁVEL MARCELO CAJUEIRO (MTB 15963/97/79)
REDAÇÃO CARLOS ALBERTO MATTOS, DANIEL CAETANO, JOANA NIN, JOÃO CARLOS RODRIGUES E MARCELO CAJUEIRO
PRODUTORA LETÍCIA FRIEDRICH | SECRETÁRIA DE REDAÇÃO MANAÍRA CARNEIRO
COLABORADORES ANDRÉ PARENTE, CAO GUIMARÃES, FERNANDO MORAIS DA COSTA, FILIPE FURTADO, LUIZ GONZAGA ASSIS DE LUCA,
MARCOS MAGALHÃES, MÁRIO ALVES COUTINHO, PEDRO BUTCHER, RUBENS MACHADO JR. E TATIANA MONASSA
PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO MARCELLUS SCHNELL | PRODUÇÃO ICONOGRÁFICA LEONARDO ESTEVES
RESTAURAÇÃO DIGITAL DE FOTOGRAFIAS ANA OLIVEIRA ROVATI | REVISÃO EDITORIARTE | PRODUÇÃO GRÁFICA SILVANA OLIVEIRA
SUPERVISÃO DO PROJETO (INSTITUTO HERBERT LEVY ) JOSÉ CARLOS BARBOZA DE OLIVEIRA

Grupo Gráfico Stamppa | tiragem 2.000 exemplares

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Para que o novo nasça, é preciso que o velho morra, diz, com certa brutalidade,
a interpretação da carta “O Ancião”, no tarô criador. Na mitologia veda, Vishnu,
o mantenedor, é precedido por Brahma, o criador e sucedido por Shiva, o destruidor.
É nesta dialética de criação e destruição que a vida avança. Quando Giotto rompe com
a tradição dos ícones bizantinos e representa o homem na mesma escala dos santos,
inova. Quando os impressionistas abandonam a linha e a perspectiva da pintura clássica,
usando diretamente a cor, criam uma nova forma de representação, forçam um novo olhar.
Exemplos de avanços na evolução artística pela ruptura são inúmeros. Quando Schoenberg
e Webern trocam a harmonia melódica da escala de sete notas pela utilização sistemática e
sucessiva das doze notas do método dodecafônico, mudam a própria natureza da música.
Adeus Tchaikovsky. O início do século XX foi pródigo em revoluções. Joyce, Mallarmé,
Brancusi. Freud e Einstein. Ruptura e desconstrução foram o preço pago pela invenção.
O mundo não seria o mesmo depois do modernismo – soa tão antiga a palavra – como
não o foi depois das revoluções americana e francesa, no final do século XVIII.Tudo muda.
“Menos a vanguarda”, diria mais tarde, ironicamente, Louis Jouvet, monstro sagrado dos
palcos franceses. Sim, o desejo do novo é sempre o mesmo porque o velho se aferra à sua
sobrevivência. Quando a informação se exaure de significado pelo longo uso, para significar
novamente tem que ser diferente. Mas se for demais, deixará de ser percebida, da mesma
maneira que aquela se exauriu. A linguagem, como o corpo e a crosta terrestre, se gasta.

Atualmente o conceito de inovação se aplica preferencialmente a modelo de negócio, jargão


introduzido pela informática, como “escopo” e “deletar”, que todo o mundo entende. Trata
de interrelações determinadas por um formato. A troca de uma lógica da escassez por uma
da abundância como é feito no mundo digital, a facilidade de acesso proporcionada pela
evolução tecnológica, a diminuição de custos de captação visual e sonora, bem como de
sua difusão, mudaram definitivamente a fabricação e o consumo da imagem em movimento.
Novos instrumentos, como o celular, o i-pod, o i-pad, nova redes sociais como o Youtube.
twitter, o Facebook, a obsolescência do suporte físico, transformaram estruturalmente o
audiovisual. Sua unidade mínima, o plano – esta fração de mundo – será diferente segundo
sua reprodução se dá numa tela de cinema, de televisão, de computador ou celular.
O quadro, a escala,o tempo, a distância do objeto, o ritmo serão outros segundo o
instrumento em que são contemplados. Adeus também para a doçura de viver das imagens
eternas do cinema. Filmes de família, registros de câmera de segurança, realidade não
mediada do jornalismo televisivo, são tão nobres quanto. Como queria Heisenberg, com seu
princípio da indeterminação, pelos idos dos anos 1920, o observador modificou a experiência.

Ninguém é perfeito. A presente edição de Filme Cultura, a um só tempo ambiciosa e modesta,


se aventura em tentar dar conta deste estado das coisas. Mistura o presente, o passado e o
futuro: se há hoje uma certeza é que o mundo é mix. FC não quer ser “cabeça” nem ingênua,
espaços preenchidos pela academia e pelo consumo. Pretende simplesmente começar a
corresponder a esta abrupta invasão do Novo, em um mundo cada vez mais audiovisual.

GUSTAVO DAHL DIRETOR DA FILME CULTURA E GERENTE DO CTAv


POR DANIEL CAETANO

A
G U ARD
VA N A Ç Ã O
V
INO

Limite VANGUARDA - INOVAÇÃO filmecultura 54 | maio 2011


Como já foi apontado em muitas análises sobre a pós-modernidade, o ambiente
cultural da nossa época tem como característica uma desconfiança com relação aos
conceitos de originalidade e inovação. As transformações sociais e culturais não deixam
de acontecer, nem modos novos de lidar com circunstâncias novas deixam de surgir e
se instituir devido a essa descrença nas mudanças, mas estamos próximos demais da
memória fantasma de uma época em que eram notáveis os movimentos de invenção e
ruptura – movimentos que começaram em meados do século XIX tiveram momentos de
ápice nas décadas de 1920 e 1960 e se tornaram cada vez mais raros a partir de algum mo-
mento dos anos 70. Daí em diante, as discussões sobre o que é este momento posterior à
modernidade se difundiram por conta da mudança de ambiente cultural, devido aos sinais
de esgotamento radical dos movimentos vanguardistas; neste novo momento, as ideias,
as discussões, as crenças e as obras – enfim, o espírito do tempo –, tudo isso é marcado
pela presença de uma forte consciência histórica, tão presente que impede a possibilidade
de ruptura. E os gestos de rompimento estético ainda precisam sobreviver à epidemia de
historicismo, uma vez que correm o risco de serem vistos como “repetições” do que foi
feito ou do que se faz em outros lugares, cabendo aos críticos buscar rótulos compatíveis
em algum livro velho. Para mencionar um exemplo óbvio, qualquer forma narrativa que
subverta a ordem lógica da natureza recebe a alcunha de “surrealista”, mesmo que não
tenha nada a ver com os princípios da escrita automática de André Breton e seus comparsas.

O movimento de “liderança” que foi exercido pelas ditas vanguardas (já clássicas) do século XX
foi o de romper com modelos estabelecidos. Para compreender por que isso não se mostra
tão frequente no nosso tempo, pode ser de boa ajuda lembrar qual era o contexto histórico
que as provocou. Os artistas da chamada vanguarda oscilaram entre o fascínio e o horror
à modernidade, como já apontou Octavio Paz. Essas vanguardas ocorreram em seguida ao
século em que se estabeleceram os modelos de uma arte burguesa – que em muita situações
se conciliava com seus precursores do período aristocrático (como nos casos de neoclassi-
cismo), e em outros se opunha e radicalizava em vários níveis contra os modelos clássicos,
até chegar às rupturas vanguardistas. Em um trecho da sua Filosofia da composição, Edgar
Allan Poe diz que “a verdade é que a originalidade (a não ser em espíritos de força incomum)
de modo algum é uma questão, como muitos supõem, de impulso ou de intuição. Para ser
encontrada, ela, em geral, tem de ser procurada trabalhosamente, e embora seja um mérito
positivo da mais alta classe, seu alcance requer menos invenção que negação.” Podemos
desconfiar dos excessos do tom racionalista que caracteriza o texto de Poe, mas é certo que
o gesto de ruptura precisa que existam um ou mais modelos que possam ser confrontados.

Naturalmente, isso não aconteceu de forma idêntica em cada uma das artes. No teatro, os regis-
tros de ruptura com os modelos tradicionais ocorrem somente no final do século XIX. O mesmo
se deu com a música, em que as experimentações românticas eram cuidadosamente calculadas
dentro do regime harmônico herdado do classicismo, conforme se percebe em casos modelares
como os de compositores alemães e italianos. Já a pintura se manteve pretensamente realista
até sofrer a concorrência dos registros fotográficos: o início do impressionismo acontece na
década de 1870, quando tem início a era das vanguardas. É a literatura que se difere um pouco
entre as artes: quando estavam se definindo as formas do romance burguês, ainda sobrevinham

6 filmecultura 54 | maio 2011 VANGUARDA - INOVAÇÃO


ruídos da crítica irônica às narrativas do período aristocrático feita pelo Marquês de Sade.
Não é por acaso que Sade foi considerado por estudiosos como Michel Foucault o primeiro escritor
moderno, aparecendo antes mesmo de existir um modelo burguês a ser rompido. Na verdade,
a paródia, crítica irônica aos modelos, podia ser percebida já em obras célebres do período
barroco, como o Dom Quixote de Cervantes... Seja como for, a seu modo a literatura precisou
ser moderna “antes da palavra”: para escrever, foi preciso criticar, romper e recriar os modelos,
sem o empurrão de qualquer aparato de registro tecnológico (tal como aconteceu com a pintura
e com a música). Isso no caso da escrita em prosa, pois a poesia foi talvez mais radical: os
poetas da sociedade burguesa desde o princípio são poetas da ruptura, parente da revolução.

Se a literatura da era burguesa teve desde o princípio essa chama crítica e experimental, muito se deve
às intuições dos precursores, mas algo também se deve a uma natureza específica do texto escrito:
os letrados eram, em sua maior parte, pessoas mais abonadas. Sempre soará grosseiro afirmar que a
produção artística mais experimental é destinada apenas a pessoas mais ricas e/ou eruditas – qualquer
um pode ter sua sensibilidade provocada por obras inovadoras. No entanto, o ponto incômodo que
não se pode negar é outro: não é qualquer um que pode se dedicar à vanguarda. A experimentação
moderna não depende apenas da existência de modelos a serem criticados e reinventados – depende
também de sustento financeiro dentro deste sistema de crítica e reinvenção. Um criador de talento
pode ser levado pelas circunstâncias a querer agradar o público de todas as maneiras pela justa moti-
vação de manter o seu ganha-pão. Sobretudo nas épocas em que o público desconfia das novidades.
O recurso aos modelos já estabelecidos é comum nessas circunstâncias.

O cinema surgiu quando todas as outras artes viviam o calor dos movimentos de ruptura
com seus modelos e convenções. As heranças que o cinema guardou de outras artes, como
a literatura e a pintura, foram fontes fundamentais para a atitude experimental que existiu
na sua base. Se parece hoje natural que se tenha estabelecido uma tradição dominante de
linguagem narrativa (cujas convenções podem ser constantemente reformuladas), é preciso
apontar que esses impulsos de crítica e experimentação tomaram parte de todos os períodos
da produção cinematográfica, desde antes dos filmes de Griffith (vale mencionar o livro de
Flávia Cesarino da Costa, O primeiro cinema – espetáculo, narração, domesticação, entre
outros sobre o assunto). Já naquele princípio de século o ambiente de experimentação das
outras artes era favorável a isso, e desde então o cinema intrigou a muitos daqueles que
eram propensos a experimentações estéticas. Como apontou uma vez Alain Robbe-Grillet, já
nos anos 1960, “A atração indubitável que a criação cinematográfica exerce sobre muitos dos
novos romancistas deve ser procurada noutro lugar. Não é a objetividade da câmera que os
apaixona, mas sim suas possibilidades no domínio do subjetivo, do imaginário.” Em vários
momentos, o cinema foi visto como uma espécie de porta da esperança por quem pretendia
fazer uma arte nova – algo que nem sempre vicejava, por razões financeiras ou logísticas.

O período agônico da arte de vanguarda fez-se ver, sobretudo, no final dos anos 1960 e na
década seguinte; chegou-se enfim a uma espécie de exaustão das rupturas. De repente, um
outro ambiente se instalou. Não um “novo” ambiente, decerto, porque isso seria em si um
paradoxo: como haveria um ambiente “novo” a partir da descrença em torno da ideia de
originalidade? Seja como for, instaurou-se a fé na desconfiança.

Roda de bicicleta, Marcel Duchamp (1913) VANGUARDA - INOVAÇÃO filmecultura 54 | maio 2011
De fato, a crença na experimentação de linguagem depende mais de uma espécie de arro-
gância confiante do que do conhecimento amplo das circunstâncias e tendências. Podendo
ou não se basear em ampla erudição, e podendo se sair bem ou mal nas suas próprias
pretensões, o experimentalismo é uma atitude que não depende senão de si. As concei-
tuações formuladas pelos inúmeros manifestos vanguardistas nem sempre antecederam
as obras – ao contrário, reduzir estas àquelas é empobrecedor em diversas situações.
Talvez seja mais interessante enxergar a atitude experimentalista como uma determina-
da predisposição intuitiva e afetiva, e não como conceito relativo a um certo estado das
artes – e a criação experimental depende sobretudo de uma execução fiel a este desejo.

Neste sentido, pode parecer natural falar do fim das vanguardas, uma vez que a ideia
de vanguarda embute o conceito de progresso, de avanço – e, portanto, de ruptura
consciente de um determinado contexto. No entanto, o que motiva a experimenta-
ção não é algo desta natureza. O próprio conceito de vanguarda é “clássico-narrativo”
e racionalista demais, se for levado ao pé da letra. Mas a descrença na necessidade
(e mesmo na possibilidade) de experimentação é um sentimento tão comum, nos dias de
hoje, que pode ser diagnosticada como uma doença de muitos espíritos da nossa época.

Isto se torna mais grave (e, por outro lado, mais frágil) no espaço brasileiro. Nossa con-
cepção de modernidade, como muitos já disseram, foi importada das agendas europeias;
o grupo do Modernismo de 22 – marco de um movimento vanguardista no Brasil – por falta
de um imaginário prévio de país, precisou inventá-lo em vez de rompê-lo. Nosso contexto
de país gigante com formação colonial e socialmente desigual provocou paradoxos per-
sistentes e intrigantes, definidos ao redor da “dialética entre o não ser e o ser outro”, na
expressão clássica de Paulo Emilio. Numa sociedade até então (e, em vários aspectos, até
hoje) disposta a se enxergar a partir de modelos estrangeiros a serem imitados, Paulo Emilio
apontou o dilema que moveu os dois polos clássicos do dito modernismo: a busca mítica
e antropológica por raízes a serem inventadas, em que a figura histórica de liderança foi
Mário de Andrade, e a antropofagia oswaldiana, que se fortalecia devorando do outro seus
modos (“só me interessa o que não é meu”, conforme o clássico Manifesto Antropofágico).

O paradoxo teve sua oportunidade de concretização em um determinado momento do que se


poderia chamar contexto cultural brasileiro: se Oswald falava do “biscoito fino” que a massa
experimentaria, a música fez acontecer esse fenômeno. Com a rádio e a modernização dos
meios de difusão de música, consolidou-se uma ‘era de ouro’, uma forma modelar de “música
brasileira”. A isso sucedeu-se o biscoito fino que João Gilberto e seus parceiros de Bossa Nova
prepararam: quebraram modelos e os reinventaram, fazendo uma arte moderna que, parado-
xalmente, se caracterizava pelo rigor e pela contenção em pleno “país do carnaval”. Conforme
já afirmaram tanto Caetano Veloso como Tom Zé, o sucesso de João Gilberto fez crer numa
certa “vocação para a modernidade” do nosso país do futuro. Moderna, popular e massificada,
a Bossa Nova sugeriu a uma nova geração que o caminho da negociação com a indústria De cima para baixo:
poderia ser tão radical e inovador quanto o enfrentamento podia ser. Assim o tropicalismo
fez um novo movimento na relação antropofágica: também “as massas” são um ‘outro’ que L’homme de tête, Caoutchouc e
provoca interesse. Nesta perspectiva, a inovação e a invenção são naturais em um espaço de Viagem à lua, de Georges Méliès
circulação de obras e ideias que continua em processo de se consolidar em todo o país.

8 filmecultura 54 | maio 2011 VANGUARDA - INOVAÇÃO


Isso não aconteceu com a produção de cinema. Podemos dizer que, graduadas na precariedade, O cão andaluz, de Luis Buñuel
nossa modernidade era verde e a nova vanguarda ainda amarela. As referências vanguardistas,
sobretudo os cânones dos cinemanovistas e dos marginais, não têm a força fantasmática da Bossa
Nova e da MPB que se seguiu. Talvez por isso o cenário musical, tão vigoroso, pareça ter dificuldades
ainda maiores para indicar movimentos de renovação do que a produção de cinema. Esta, subven-
cionada pelo mecenato, ainda tem um quê de pré-moderna, já que seus modelos mal se constituem
– com a possível exceção de comédias de costumes, do ironicamente chamado favela movie e,
claro, da chanchada. Chanchada que ainda se mostra presente apesar de todas as mudanças nas
circunstâncias – seja nas sessões de humor e de grosserias na televisão, seja na “incapacidade
de copiar” modelos externos que alguns filmes nativos seguem a mostrar. O chanchadesco, por
natureza, é um humor que produz constrangimento, e não é por acaso que, em certas ocasiões,
essa herança foi e é reaproveitada e reinventada por alguns dos realizadores considerados mais
experimentais, do “cinema de invenção”, conforme a expressão do Jairo Ferreira.

Talvez seja mais interessante enxergar a atitude experimentalista como uma determinada
predisposição intuitiva e afetiva, e não como conceito relativo a um certo estado
das artes – e a criação experimental depende sobretudo de uma execução fiel a este desejo.

A relativa ausência de modelos estabelecidos e consistentes acaba provocando esse curioso


paradoxo: o espaço para invenções e reinvenções que recriem e consolidem novos modelos
parece existir (como sempre) e, ao mesmo tempo, ser inatingível (talvez por não ter modelo
forte a confrontar). A consciência histórica não tem efeito apenas nos estilos das obras,
mas também na recepção a elas. Mas, como circunstâncias sempre guardam diferenças
entre si, os modos de inventar se apresentam: para isso, como já disse, é preciso uma certa
confiança na capacidade de inventar algo que não foi feito até então. Trata-se de uma certa
disposição do espírito, até natural, uma vez que a existência se marca pela diferença e a
mera repetição arrisca se tornar um eco do que já foi feito. Essa disposição atualmente é
perceptível em alguns filmes de realizadores de várias idades. Mesmo que eventualmente
se mostre travada por alguns cacoetes expressivos, ela sugere a chance de que o ambiente
esteja passando por mudanças e as possibilidades de inovação estética possam provocar
menos ceticismo e mais interesse. Mas esse movimento ainda precisa se mostrar marcante
e incontornável para não se parecer com andorinhas de verão, como em outras ocasiões da
produção de cinema no Brasil.

Daniel Caetano [email protected]

VANGUARDA - INOVAÇÃO filmecultura 54 | maio 2011


POR JOÃO CARLOS RODRIGUES

Ao contrário da fotografia e da edição, muito modificadas na última déca-


da pela tecnologia digital, há um setor da atividade cinematográfica que tem passado
incólume pelas recentes inovações: a dramaturgia. André Bazin, no célebre Ontologia
da imagem cinematográfica (Cahiers du Cinéma, dezembro 1956) a rebatizou de mise-
en-scène, e para ele, deveria ser uma arte do “registro do real”, com pouca ou nenhuma
intervenção da edição (“montagem proibida”). Esse destino manifesto do cinema, não o
realismo, mas a realidade, foi confirmado dez anos depois, em “Le fine dell’avanguardia”,
artigo de Pier Paolo Pasolini: “O cinema não evoca a realidade, como a língua literária;
não copia a realidade, como a pintura; não imita a realidade, como o teatro. O cinema
reproduz a realidade: imagens e sons. Ao reproduzir a realidade, o que faz o cinema?
O cinema exprime a realidade com a realidade mesma.”

A concepção baziniana vai ser contestada na França dentro do próprio Cahiers, quando
Godard, no início dos anos 1960, usou (e abusou) da montagem nos seus primeiros fil-
mes (notadamente Acossado e Uma mulher é uma mulher), fragmentando a sequência
para conservar dela apenas as partes que interessam, quebrando a continuidade e a
cronologia. Desde um pouco antes, na Itália, Antonioni fazia exatamente o contrário,
preferindo os tempos mortos aos tempos de ação, e os planos longos, sem corte.
Em A aventura, o desprezo pelo enredo é tão grande que o filme termina sem que tenha
sido resolvido o incidente que detonou a trama. A plateia do festival de Cannes vaiou o
diretor, que teve de se retirar da sala por uma saída de emergência.
Pier Paolo Pasolini
Em ambos os casos estamos diante de inovações do cinema moderno, uma fuga da
gramática tradicional da dramaturgia. Mas qual seria esta, afinal? Voltando a Pasolini,
é sua uma das melhores definições desse fenômeno, expressa num artigo de 1965,
Cinema de poesia. Entre outras coisas, o texto faz uma distinção entre um cinema-prosa
e um cinema-poesia. O primeiro seguiria a estrutura dos romances de Charles Dickens,
com personagens com conflitos bem definidos e uma trama cronológica em capítulos,
de preferência emocionante, pois o que se pretende aqui é envolver o espectador num
mundo paralelo, mas sem perder a referência com a realidade. Nessa categoria podemos
incluir cineastas tão diferentes como David Griffith, John Ford, David Lean, William Wyler,
Luchino Visconti, Akira Kurosawa, Alfred Hitchcock. Já do cinema-poesia não se exige
coerência nem cronologia. Assim como num poema de Rimbaud, não é o tema que nos
seduz, mas a forma, as rimas, a métrica, as metáforas. Aqui não se pretende envolver
o espectador, mas se exibir diante dele, como um mágico diante da plateia. É o caso de
autores como Jean Cocteau, Mário Peixoto, Sergei Paradjanov, Walt Disney, Kenneth Anger,

10 filmecultura 54 | maio 2011 VANGUARDA - INOVAÇÃO


VA N
G
I N O UA R D A
VAÇ
ÃO

Stan Brakhage, Glauber Rocha. Embora muito atacada pelos estruturalistas, essa classifi-
cação permanece válida, entre outras qualidades, por ser de rápida compreensão. Houve
polêmica de notáveis, uns contrários a ela (Metz), outros favoráveis (Deleuze). Claro que não
é uma cláusula pétrea, e encontramos cenas-poesia em filmes-romance (de Fellini, Buñuel
e Minnelli, entre outros tantos), e, bem mais raramente, vice-versa.

Retornemos ao tema da gramática cinematográfica. Desde o cinema silencioso ela vem


se aprimorando. Primeiro incorporou recursos já existentes na literatura (o flashback), na
pintura (as imagens oníricas de sonho e pesadelo) ou no teatro (os diálogos, a cenografia).
A música ao vivo, que acompanhava os filmes mudos, foi transformada em trilha sonora,
música de fundo. Hoje encontramos filmes com um rolo fora do lugar por opção (Pulp fiction,
1994, de Quentin Tarantino), onde a narrativa se conta três vezes, cada uma delas com um
pequeno incidente que muda tudo (Corra, Lola, corra/Lola rennt, 1998, de Tom Tykwer), ou
é narrada de trás para frente (Amnésia/Memento, 2001, de Christopher Nolan). No longa-
metragem Blue, 1993, em que o cineasta Derek Jarman fala da experiência de ter ficado cego
em decorrência da Aids, ouvimos uma trilha de diálogos e ruídos, diante de uma tela azul,
completamente vazia. A versão de Branca de Neve, 2000, por João César Monteiro, também
prescinde quase totalmente da imagem.

Há muito que o formato industrial padrão dos anos 1930/40, de 90 minutos, foi implodido.
Temos hoje simultaneamente filmes de um minuto ao lado dos musicais de Bollywood, e dos
épicos do cinema chinês, que frequentemente beiram quatro horas de duração. Produções
em telas múltiplas com ação simultânea, como The Chelsea girls, 1966, de Andy Warhol
e Paul Morrisey, ou filmadas num plano único de 92 minutos, como Arca russa, 2002, de
Aleksandr Sokurov. Em geral encontramos um narrador na terceira pessoa (oculto ou em voz off),
mas existem algumas tentativas de câmera subjetiva em longa-metragem, vide A dama do
lago, 1947, de Robert Montgomery, e Eros, o deus do amor, 1981, do nosso Walter Hugo
Khoury. Filmes com mais de um narrador, que contam partes diferentes da mesma história
(Cidadão Kane, 1940, Orson Welles) ou diferentes versões do mesmo fato (Rashomon, 1950,
Jean-Luc Godard e
de Akira Kurosawa). Em O gerente, 2010, Paulo Cezar Saraceni faz o narrador aparecer em
carne e osso, falando diretamente ao espectador, como na televisão. Mais recentemente, Michelangelo Antonioni
com a divulgação de obras vindas de países orientais, começam a se destacar filmes próximos
da música modal, que se repete ad aeternum, sem muitas mudanças, ao contrário da tonal,
dominante na cultura ocidental, que exige uma solução dramática definida. Tio Boonmee,
2010, de Apichatpong Weerasethakul, onde não há nenhuma progressão dramática e se con-
fundem os planos da realidade e do sobrenatural, e também os do passado-presente-futuro,

VANGUARDA - INOVAÇÃO filmecultura 54 | maio 2011


é apenas um dos mais famosos. Outros virão. A substituição da Razão pela Fé, que parece ser uma
das temáticas do século 21, deu origem a uma corrente de filmes espiritualistas, inviável déca-
das atrás, e cuja produção brasileira kardecista (Bezerra de Menezes, Chico Xavier, Nosso lar)
é a manifestação nacional do fenômeno, que prenuncia ser de longuíssima duração.

Portanto, na dramaturgia cinematográfica de ficção já se tentou de tudo um pouco, e tudo


indica termos chegado a um impasse de formas e ideias. Muitos críticos importantes acre-
ditam estar esse tipo de cinema esgotado e destinado à extinção, passando a dedicar seu
tempo e atenção ao documentário ou ao videoclipe. Outros vão mais longe na sua obsessão
novidadeira, e analisam imagens das câmaras de segurança dos bancos e shoppings, ou
filmes domésticos postados na web. Imagens a esmo, captadas quase por acaso. Depois
do cinema de autor, procuram um cinema sem autor, portanto sem dramaturgia. Tudo bem,
é uma opção. O equívoco estará se essas imagens casuais forem colocadas no mesmo nível
das de um Murnau, um Tarkovsky, um Bressane, um Hawks, mesmo de um Watson Macedo,
onde tudo é voluntário, portanto artístico, mesmo quando destinado ao mercado.

Permitam-me discordar. Desde os primórdios da humanidade é muito claro que o homem


tem um grande apreço, se não uma necessidade, pela narrativa ficcional. Começou com
Derek Jarman e a chamada literatura oral, que precede a escrita, e teve no teatro uma de suas primei-
João César Monteiro ras manifestações. Os folhetins, as radionovelas, as telenovelas são provas mais do
que conhecidas por todos nós. O interesse pela vida alheia, a necessidade de fugir da
realidade e a utilização da ficção como reflexo e comentário da sociedade são apenas
alguns dos ingredientes dessa necessidade. Não, a obra de ficção não vai acabar. Nem
na literatura, nem no cinema, nem na televisão. Digamos mesmo que continua a ser o
eixo principal que sustenta essas atividades, e assim será.

Mas resta uma pergunta que não quer calar: é possível modernizar a dramaturgia do
cinema de ficção, ou se trata de uma forma já petrificada, que apenas gira sobre si mesma
com pouquíssimas variantes?

Nos últimos 30 anos, a fórmula revelada pelo roteirista americano Syd Field, no seu livro
Screenplay/ The foundations of screenwritting, 1979, foi exportada, como uma praga,
para todas as partes do mundo. É o paradigma dos três atos, segundo o qual todo filme
possui uma Apresentação (25% do total) onde são introduzidos o protagonista e situa-
ção; um Confronto (50% do total) quando protagonista e antagonista entram em choque
(recomenda-se lá pela página 60 de um roteiro de 100 uma pequena reversão de expec-
tativa para “acordar” o espectador eventualmente desatento); e uma Solução (os 25%
restantes), quando o protagonista consegue, ou não, o seu objetivo. Hoje um roteiro que
não siga essas regras pétreas dificilmente será aprovado para produção. A famosa frase
de Godard, “todo filme tem um começo, um meio e um fim - mas não necessariamente
nessa ordem”, tornou-se um anátema, um sacrilégio. Busca-se a ordem.

12 filmecultura 54 | maio 2011 VANGUARDA - INOVAÇÃO


AC E RVO T E M P O G L A U B E R
Glauber Rocha

Se a dramaturgia no cinema parte do roteiro para chegar à mise-en-scène, torna-se evidente que
o primeiro condiciona a segunda, e um roteiro acadêmico conduzirá o diretor na mesma direção.
A primeira implicância da nouvelle-vague contra o “cinema de qualidade” do pós-guerra começou
exatamente com os roteiros literários, de diálogos pomposos, que caracterizavam a produção
francesa. Também no Brasil, os diretores do Cinema Novo investiram contra o incipiente cinema
industrial, geralmente melodramas ou policiais, e também contra o cinema popular, representado
pela chanchada. Sua dramaturgia é bem mais consistente que a do primeiro grupo, e mais bem
acabada, se bem que menos comunicativa, que a do segundo. Em Deus e o diabo na terra do sol
e Terra em transe Glauber Rocha apresentou novidades reais diante do que se fazia então no
Brasil, e mesmo fora dele: visão não folclórica da cultura popular, uso da canção como parte
da narrativa, direção estilizada dos atores, figurinos – no primeiro. Superposição de narrativas
sonoras simultâneas, alegoria política, pré-tropicalismo – no segundo. Em oposição a ele e ao
Cinema Novo, querendo ir mais além, vieram os filmes da Bel-Air, outro momento em que a
dramaturgia do cinema brasileiro foi sinônimo de vanguarda. Velhos tempos.

A tentativa, até o momento frustrada, de implantar uma indústria de cinema no Brasil, muito
presente a partir de 1970, veio disciplinar e empobrecer tudo. Produção alavancada por leis
de incentivo, pré-aprovada pela empresa que escolhe o projeto, “selecionando” temas menos
explosivos, “sugerindo” elenco televisivo, “opinando” aqui e ali, “preferindo” roteiros bem for-
matados a qualquer novidade. Os sucessos narrativos que encontraram resposta na bilheteria,
como, por exemplo, os escritos por Bráulio Mantovani, são muito eficientes, mas não escapam
do modelo padrão vigente. Nem pretendem. Fazem parte da indústria de entretenimento.
O que os fez cair no gosto popular é principalmente a temática. O ponto inicial de todo filme:
o seu argumento, o seu conteúdo. Caímos então, inesperadamente, no campo da política.

A escolha de certos temas pode ser muito explosiva. Na esquerda ortodoxa dos anos 1930/60,
ele tinha de ser “progressista” e os protagonistas, “positivos”. É o Realismo Socialista do regime
stalinista. Curioso verificar sua diluição na ideologia liberal dos filmes feitos em Hollywood
nos anos 1960 com mensagem antirracista, e com personagens negros “sem nenhum defeito”,
interpretados por Sidney Poitier, e dirigidos academicamente por Martin Ritt ou Stanley
Kramer. Foram os jovens turcos da crítica francesa que separaram a temática da mise-en-scène.
Mas da Índia, onde à sombra da maior produção mundial a cinefilia chega às raias do fanatismo,
volta e meia ainda nos chegam notícias de cinemas incendiados porque exibiram filmes com
personagens transgressores, e uma religião ou casta sentiu-se ofendida.

Portanto, o conteúdo de um filme incomoda. Dentro do cinema comercial e seus roteiros


pré-formatados, é, a rigor, a única brecha por onde inovar a dramaturgia. No cinema-poesia,
de autor ou de vanguarda, onde vale tudo, continua pertinente, pois o experimentalismo da
mise-en-scène não pode ser pretexto para falta de assunto ou opinião.

João Carlos Rodrigues [email protected]

Apichatpong Weerasethakul VANGUARDA - INOVAÇÃO filmecultura 54 | maio 2011


Ultimamente vemos surgir, em relação a um certo campo de experimentação do
cinema, termos tais como cinema expandido, pós-cinema, cinema de artista, cinema de
exposição, cinema do dispositivo – este último termo, criado por nós. O que há de comum
entre todos esses termos é uma certa forma de pensar o cinema em relação com dois ou-
tros campos de problema, o da arte contemporânea e o das novas mídias. Razão pela qual
intitulamos nosso último livro de Cinema em trânsito: cinema, arte contemporânea e novas
mídias (Azougue, 2011), livro que comenta uma série de experimentações cinematográficas
seminais realizadas em espaços outros, fora da sala de cinema.

Entretanto, do ponto de vista da prática, as formas de representação do cinema já nascem,


como veremos, juntamente com processos de recriação de seu dispositivo. Deixando de lado
o contexto e os autores que, no início dos anos de 1970, discutiram o processo ideológico
do sistema cinema, e trazendo a discussão para o presente, podemos recolocar o problema
dizendo que o cinema já nasceu multimídia. A exemplo do que vem sendo dito sobre as novas
tecnologias de comunicação, podemos afirmar que, em seu dispositivo, o cinema faz convergir
três dimensões diferentes: a arquitetura da sala, herdada do teatro italiano (os anglo-saxões
usam, até hoje, o termo movie theatre para designar essa sala); a tecnologia de captação e
projeção da imagem e cujo padrão foi inventado no final do século XIX por Edison; e a forma
narrativa (estética da transparência) adotada pelo cinema em torno dos anos de 1910, em
particular o cinema de Hollywood, sob a influência da vontade de viajar sem se deslocar.

Não é à toa que, de hábito, quando pensamos em cinema, a imagem que nos vem à cabeça é a de
um espetáculo que envolve ao menos estes três elementos distintos: uma sala escura, onde há uma
projeção de uma imagem em movimento que conta uma história em cerca de uma hora e meia.

Os irmãos Lumière Quando se diz que os irmãos Lumière inventaram o cinema, esquece-se, muito frequente-
mente, que o Cinematographo só continha as duas primeiras dimensões acima mencionadas.
Apenas recentemente começou-se a distinguir de forma sistemática o cinema dos primeiros
tempos, o cinema dito de atrações (Noël Burch, André Gaudreault, Tom Gunning etc.), do
cinema narrativo clássico, que surge em torno de 1908. De fato, a história do cinema dos
primeiros tempos nos permite separar dois momentos absolutamente diferentes: o da

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POR ANDRÉ PARENTE ( Para Arlindo Machado )

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emergência de um dispositivo técnico (o cinema como dispositivo espetacular de produção


de fantasmagorias) e aquele outro, fruto de um processo de institucionalização sociocultu-
ral do dispositivo cinematográfico (o cinema como instituição de uma forma particular de
espetáculo), isto é, o cinema entendido como formação discursiva.

Portanto, quando se diz hoje que as novas tecnologias de um lado, e a arte contemporâ-
nea, de outro, estão transformando o cinema, é preciso perguntar de que cinema se trata.
O cinema convencional, que doravante chamaremos de “forma cinema” (termo que cunha-
mos para distinguir do cinema do dispositivo), é apenas uma forma particular de cinema,
porque não dizer uma instalação, que fez sucesso e se tornou hegemônica: vale dizer, um
modelo estético determinado histórica, econômica e socialmente. Trata-se de um modelo
de representação, a “forma narrativa-representativa-industrial” (N.R.I., termo cunhado por
Claudine Eizykman), ou um modelo institucional “modelo-representativo-institucional”
(M.R.I., sigla inventada por Noël Burch) ou um modelo estético, “estética da transparência”
(termo utilizado por Ismail Xavier).

O cinema, na condição de sistema de representação, não nasce com sua invenção técnica, pois
leva cerca de uma década para se cristalizar e se fixar como modelo. Ele é um dispositivo com-
plexo que envolve aspectos arquitetônicos, técnicos e discursivos – cada um deles é, por si só,
um conjunto de técnicas –, todos eles voltados para a realização de um espetáculo que gera no
espectador a ilusão de que está diante dos próprios fatos e de acontecimentos representados.

Não devemos, portanto, permitir que a “forma cinema” se imponha como um dado natural, ou
melhor, que o cinema se defina por ela. A própria “forma cinema”, aliás, é uma idealização.
Deve-se dizer que nem sempre há sala; que a sala nem sempre é escura; que o projetor nem
sempre está escondido ou é desapercebido (é silencioso, por exemplo); que o filme nem
sempre é projetado (muitas vezes, e cada vez mais, ele é transmitido por meio de imagens
eletrônicas e digitais); e nem sempre conta uma história (muitos filmes são atracionais,
abstratos, experimentais etc.). A história do cinema tende a recalcar os pequenos e grandes
desvios produzidos nesse modelo, como se ele se constituísse apenas do que quer que tenha
contribuído para o seu desenvolvimento e o seu aperfeiçoamento.

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Em outras palavras, o cinema sempre foi múltiplo, mas essa multiplicidade se encontra,
por assim dizer, encoberta, recalcada ou idealizada em função de sua forma dominante.
Ao longo da história do cinema há não apenas experiências esparsas, como cinco momentos
fortes que se notabilizam por grandes transformações e variações quanto ao dispositivo
cinematográfico, sobretudo depois no pós-guerra: cinema do dispositivo, arte do vídeo,
cinema expandido e cinema interativo.

Cada um desses momentos históricos de invenção (pré-cinema) e reinvenção do cinema


(pós-cinema) está ligado a um processo de variação e transformação das três dimensões
do dispositivo cinematográfico supracitadas. Por exemplo, o termo pré-cinema está ligado
a tudo o que, de certa forma, ainda que realizado com imagens em movimento, veio a ser
criado antes do surgimento e da cristalização do cinema como um espetáculo de sala,
o que de fato se deu com os irmãos Lumière, tidos como inventores do cinema, quando na
verdade vários outros inventores já faziam cinema sem sala, dentre os quais destacamos
Thomas Edison, com seu Kinetoscópio – que hoje poderia ser considerado um totem,
termo muito utilizado para os dispositivos multimídias –, e Raul Grimoin-Sanson, com seu
Cineorama, cinema de 360 graus, apresentado na feira de 1900 com o intuito de fazer o
espectador experimentar a subida de um balão. O Kinetoscópio e o Cineorama eram duas
vias completamente diferentes: o primeiro mais relacionado à questão da ilusão da imagem
em movimento e o segundo mais calcado ao processo de imersão e aos antigos panoramas,
aos quais a forma cinema está intimamente ligada nessa tentativa de produzir um processo
de imersão o mais intenso possível.

Thomas Edison O termo cinema dos primeiros tempos se refere a toda uma produção de filmes que, ao
contrário dos pré-cinemas, eram realizados para serem exibidos em sala de cinema. O que
diferencia o cinema (“forma cinema”) do pré-cinema é basicamente a ausência, nestes
últimos, de decupagem e de montagem, ou seja, do que veio a ser denominado posterior-
mente de linguagem cinematográfica ou de sistema de representação (NRI, MRI, estética
da transparência, forma cinema).

O que hoje chamamos de pós-cinema nasceu no Pós-guerra, mais particularmente nos anos
de 1960, com a videoarte e com as instalações e happenings cinematográficos. A videoarte
é o meio privilegiado a partir do qual se deu o encontro entre o audiovisual e a arte con-
temporânea. A videoarte estava presente em todos os movimentos que fizeram a passagem
do moderno ao contemporâneo – movimentos resultantes de uma ruptura com o repertório
modernista, entre os quais destacamos: a pop arte, o neoconcretismo, o minimalismo, a
arte conceitual, o grupo Fluxus, a land art.

Nos anos 1960, surgiu uma série de experiências de cinema com projeções múltiplas, instalações e
happenings, realizada por cineastas experimentais, em sua maioria americanos – Kenneth Anger,
Stan VanDerBeek, Robert Whitman, Andy Warhol, Jeffrey Shaw, Anthony McCall –, interessados
em experimentar a combinação de vários meios de expressão, misturando o cinema, a dança, a
música, a performance e as artes plásticas. O cinema expandido foi ao mesmo tempo um movi-
mento de radicalização do cinema experimental e um movimento sincronizado com a diáspora
do cinema da sala. De lá para cá, cada vez mais encontramos cinema em todos os lugares, da
televisão aos gadgets digitais, da internet aos muros da cidade, nos museus e galerias.

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Na verdade, esse movimento se deu em vários campos artísticos, na música, no teatro, na
dança, nas artes plásticas: em todos esses campos, houve uma dessacralização do espaço
tradicional de apresentação das obras. Vale aqui lembrar a importância da música nesse
processo: o rock rompeu com as estruturas da sala, o muro e a cadeira, tornando a música
cada vez mais comportamental. Hoje, a música tecno foi mais além: qual o sentido de ouvir-
mos uma música tecno em uma sala de concerto? A música tecno é avessa à contemplação
estética, no sentido de que dispensou os principais elementos de apreciação estética que
são a melodia e a harmonia. Na verdade, o teatro, a dança, a música, as artes plásticas e
o cinema mais experimental dos anos 1970 buscaram na dessacralização dos espaços de
exibição uma maneira de torná-los cada vez mais interativos.

Lembramos que foram os neoconcretistas que, antes mesmo dos minimalistas, propuseram a
participação do espectador na obra de arte. Em 1973, em seus projetos de Cosmococas, que só
vieram a ser apresentadas em público bem mais tarde, Hélio Oiticica e Neville D’Almeida busca-
ram realizar um conjunto de instalações, no qual o espectador pudesse experimentar o cinema
a partir da projeção audiovisual. A ideia principal de Oiticica e Neville era a de experimentar
um duplo devir: o devir do cinema das artes plásticas e o devir das artes plásticas do cinema,
em uma espécie de discurso indireto livre. Isso fica muito claro no comentário de Hélio:
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“Colocam-me o visual (cujo problema de imagem já fora consumido em TROPICÁLIA), num nível
de ESPETÁCULO (PERFORMANCE-PROJEÇÃO) a q me atrai a experiência de cinema de NEVILLE:
os MOMENTOS-FRAMES dos SLIDES são a suíte lógica de MANGUE BANGUE limite: a mim me
anima insuflar experimentalidade nas formas mais ESPETÁCULO-ESPECTADOR q continuam
a permanecer virtualmente imutáveis: a NEVILLE interessa gadunhar a plasticidade sensorial
do ambiente q quer como se fora “artista plástico” (e o é mais do que ninguém!) INVENTAR:
em MANGUE BANGUE a câmera é como uma luva sensorial pra tocar-cheirar-circular: explodir
portanto em fragmentos-SLIDES é pretexto-consequência pra PERFORMANCE-AMBIENTE: EU-
NEVILLE não “criamos em conjunto”, mas incorporamo-nos mutuamente de modo q o sentido
da “autoria” é tão ultrapassado quanto o do plágio: é JOGO-JOY: nasceu de blague de cafungar
pó na capa do disco de ZAPPA WEASELS RIPPED MY FLESH: quem quer a sobrancelha ? – e a
boca ?: sfuuum! : pó-SNOW: paródia das artes plásticas: paródia do cinema.”
Hélio Oiticica e Neville D’Almeida
Se Hélio e Neville vieram a denominar as Cosmococas de Quasi-cinema, isso não se deve ao
fato de estas não usarem imagem em movimento, mas por colocarem de lado o que ele chama
a unilateralidade do cinema. O quasi-cinema de Hélio e Neville é cinema, mas é um cinema
participativo, que pode romper com a NUMBNESS que aliena o espectador na cadeira-prisão.
Pois “como soltar o CORPO no ROCK e depois se prender à cadeira do numb-cinema???”

Por outro lado, a tecnologia jogou um papel crucial nesse processo de transformação da relação
dos vários meios de expressão e o espectador. Para continuarmos tomando como exemplo a
música, a partir dos anos de 1930 a música passou a ser ouvida em qualquer lugar – proces-
so já prenunciado por Paul Valery em 1928, em um texto utópico intitulado “A conquista da
ubiquidade”, no qual ele afirma que a música, por sua integração com todos os aspectos da
vida individual e social, é a arte que vai encontrar primeiro novos modos de reprodução, distri-
buição e de escuta – em primeiro lugar por meio do rádio e depois do som portátil: o cassete,
o walkman, e finalmente os minúsculos tocadores de MP3, celulares, entre outros.

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No campo do audiovisual e do vídeo, o cinema começou a sair da sala ao ser distribuído na tevê,
ainda nos anos de 1940, para depois passar a ser distribuído em vídeo, nos lares, primeiro em VHS
(1970), e depois em DVD (1990), e na Internet. Hoje, a internet possibilitou que qualquer aluno
cinéfilo bem-informado possuísse sua própria “cinemateca”. Mas do ponto de vista da criação,
a imagem eletrônica teve sua importância para o cinema expandido em dois momentos cruciais:
em primeiro lugar, nos anos de 1960, quando artistas como Nam June Paik, Bruce Nauman, Peter
Campos, Dan Graham, Steina Vasulka e Woody Vasulka utilizaram as câmeras em circuito fechado
para fazer instalações nas quais a experiência da obra é o foco do trabalho; e mais tarde, quando
do surgimento dos projetores multimídia, autores da videoarte como Gary Hill, Bill Viola, Thierry
Kuntzel, Zbigniew Rybczynski vieram a fazer suas complexas instalações que transformavam o
cinema em todas as suas três dimensões fundantes, como é típico das instalações.

No Brasil, embora tenhamos tido, durante os anos de 1970, uma intensa produção de cinema
experimental (Antônio Dias, Antônio Manuel, Paulo Brusky, Arthur Omar, Lígia Pape, André
Parente – a esse respeito remetemos o leitor ao catálogo da exposição Filmes de Artista -
1965-1980, organizada por Fernando Cocchiarale em 2007 e publicada pela Contra-Capa) e
de videoarte (Sônia Andrade, Letícia Parente, Regina Silveira, Rafael França, Eder Santos,
Sandra Kogut, entre outros. Ver a esse respeito o livro Extremidades do vídeo, de Christine
Mello, Editora Senac, 2009), a produção instalativa começa a surgir, com raríssimas exceções,
como as já citadas “Cosmococas”, apenas em meados dos anos de 1980, e ainda assim de
forma muito tímida. Foi apenas a partir dos anos de 1990 que uma série de artistas, cine-
astas e videomakers vieram a produzir intensamente instalações: Júlio Plaza, Eder Santos,
Sônia Andrade, Regina Silveira, Tadeu Jungle, Diana Domingues, Maurício Dias & Walter
Riedweg, Sandra Kogut, Arthur Omar, Lucas Bambozzi, Simone Michelin, Cao Guimarães,
André Parente e Katia Maciel, entre muitos outros.

A razão para o surgimento tardio das instalações no Brasil – mesmo os Quasi-Cinema ou


Cosmococas só foram apresentadas mais de dez anos após a morte de Hélio Oiticica, a partir
dos anos de 1990 – é muito simples. O cinema expandido requer o acesso a meios dispendio-
sos e um certo domínio técnico. Por outro lado, do ponto de vista estético, requer uma certa
CÉSA R OI T I C I C A F I L HO

problematização do dispositivo do cinema, sobre o qual falamos no início. De fato, a questão


do dispositivo está completamente entranhada no cinema expandido (cinema experimental
ou videoarte), uma vez que nela a obra não se apresenta mais como um objeto autônomo
preexistente à relação que se estabelece com o sujeito que a experimenta. Tudo nos leva a
crer que nessas instalações o cinema sofre uma transformação radical. A instalação permite ao
artista espacializar e temporalizar os elementos constitutivos da obra. O termo indica um tipo
de criação que recusa a redução da arte a um objeto para melhor considerar a relação entre
seus elementos, entre os quais, muitas vezes, está o próprio espectador. A obra é um processo,
sua percepção se efetua na duração de um percurso, que é único, singular, e que implode o
tempo de um espetáculo com início, meio e fim (show, sessão, peça). Engajado em um percurso,
envolvido em um dispositivo, imerso em um ambiente, o espectador participa da mobilidade
da obra. A experiência da obra pelo espectador constitui o ponto nodal do trabalho.
De cima para baixo:
Cosmococa CC2 - onobject, 1973;
Cosmococa CC5 - Hendrix War, 1973;
André Parente é cineasta, artista e pesquisador do cinema e das novas mídias. Professor da UFRJ, é autor
Cosmococa CC5 - Trashislapes, 1973; de diversos livros, entre eles: Imagem-máquina (1993); Sobre o cinema do simulacro (1998); Narrativa e
Cosmococa CC3 - Ailcryn*, 1973. modernidade (2000); Cinéma et Narrativité (L’Harmattan, 2005); Cinema em Trânsito (2011).

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POR LUIZ GONZAGA ASSIS DE LUCA

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Toda vez que me questionam sobre o futuro do cinema, vem-me à cabeça um artigo
que li na revista espanhola Muy interessante há 25 anos. Convidaram dez cineastas para
relatar como viam o cinema dos anos 2000. Um escreveu que seria um barco percorrendo o
Sena com projeções em suas velas. Outro afirmava que as exibições seriam tridimensionais
no centro de uma grande praça. Um terceiro descrevia uma sala com inúmeras e gigantescas
telas, onde o espectador escolhia o que queria ver. Todas as interpretações eram poéticas,
sem qualquer preocupação com os aspectos mercadológicos ou técnicos.

Essa visão lúdica transmite uma visão otimista sobre a exibição coletiva, aquela que coloca
diferentes pessoas compartilhando emoções ao mesmo tempo. Escrevi um artigo no final
dos anos 1980, portanto quando milhares de cinemas cerravam definitivamente suas portas
e locadoras de videocassete eram abertas em cada esquina. Afirmava que a exibição coletiva
jamais deixaria de existir, pois estar junto, compartilhar o prazer ou a dor é uma necessidade
humana. O tempo se incumbiu de provar tal afirmação – o theatrical encontra-se novamente
em ascensão, enquanto a venda ou o aluguel de DVDs entrou em profundo declínio, pratica-
mente deixando de existir em importantes mercados como o sul-coreano ou o mexicano.

Tentarei ficar restrito às prospecções sobre as tecnologias que existem ou que estão em
desenvolvimento, evitando fazer futurologia. Neste sentido, o conceito de convergência di-
gital passa a ser fundamental em nossa explanação. Tem-se a integração de todos os meios
e veículos, permitindo que um mesmo produto audiovisual circule em qualquer um deles. A
especialização dos equipamentos, tão valorizada na sociedade industrial tradicional, perdeu
o seu sentido. Os Meios de produção como câmeras e “ilhas de edição e finalização” pas-
saram a estar disponíveis a qualquer um que possa adquirir um computador doméstico,
uma câmara de filmagem ou, mais simplesmente, um telefone que lhe permitirá captar as

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imagens e exibi-las em qualquer meio ou veículo. Mesmo a definição conceitual do que seja
um filme ou um programa televisivo mostra-se obsoleta, adotando-se uma definição mais
ampla, que é o conceito de conteúdo.

A afirmação acima descrita pode levar a uma interpretação de que se atingiram as condições
tão sonhadas de acesso das produções de baixo orçamento aos cinemas mais rentáveis.
Intensamente sonhadas desde a década de 1950, quando surgiram as câmaras e gravadores
de som portáteis, que permitiram a mobilidade e o registro de cenas sem o aparato que os
estúdios exigiam. No atual estágio tecnológico, produzir um filme é algo muito mais simples
e barato que realizá-lo com película 16 mm, que exigia quase que o mesmo aparato de fina-
lização dos filmes mais dispendiosos, como a locação de mesas de montagem (moviolas),
o uso de fitas magnéticas perfuradas, a mixagem destas pistas de som, a transcrição da fita
mixada para o ótico de som, a montagem dos negativos e as cópias positivas. Não bastassem
os altos custos das diversas etapas de produção, as caras cópias em 16mm tinham baixa
resistência física e raramente superavam uma vida útil de 50 ou 60 exibições.

O baixo investimento na produção de um filme que pode circular em mídias comuns como os
DVDs, os hard discs ou através de sinais transmitidos pela internet ou por satélite, aponta
para uma possibilidade inédita na circulação de conteúdos. Porém, as salas de cinema não
se regem apenas pela oferta de produtos, mas por um complexo sistema de distribuição dos
filmes, onde é ofertado um número muito maior de produtos do que as suas reais capacidades
de exibição. Basta ver que anualmente os Estados Unidos, o México e a França lançam até
o dobro de títulos do Brasil. Podemos dizer que, genericamente, faltam telas no país e que,
por isso mesmo, a produção nacional e estrangeira supera as suas disponibilidades.

Pode parecer um paradoxo afirmar que, se a convergência digital incrementa a capacidade


produtiva de filmes, ela, por outro lado, leva à concentração nos processos de comerciali-
zação. Os grandes estúdios não são mais empresas voltadas a realizar filmes, buscar seus
lucros nas salas de cinema e complementarmente no homevideo. Hoje, as produções atendem
a todos os veículos e meios existentes, projetando-se para as possibilidades de exploração
futuras (como o video-on-demand), tratando os mercados sem divisar fronteiras ou países.
Busca-se o maior lucro possível em cada “janela de exibição”, enfim, cada veículo ou meio é
tratado como importante fonte de receitas. As majors não são nacionais ou multinacionais,
definindo-se enquanto transnacionais. Basta ver que um destes grandes conglomerados,
a Sony, proprietária da Columbia-Tristar, tem capital japonês; a News Corp, proprietária da
Fox, nasceu na Austrália e a Universal era controlada pelo conglomerado francês Vivendi
até poucos anos atrás. Os conglomerados focam seus interesses na universalidade da
exploração de seus produtos, que circulam em sistemas que abrangem redes de comu-
nicação que podem abranger jornais, emissoras de televisão, produção musical, portais
de internet, produtores de videojogos, agências de notícias, telefonia, licenciamento de
personagens etc. Para resumir: os interesses dos grandes estúdios não se situam exclu-
sivamente na exploração de filmes, mas em atender às necessidades que os sistemas de
Imax 3D comunicações demandam no consumo de conteúdos.

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Os grandes estúdios visam o suprimento dos seus sistemas de comunicação com os produtos
audiovisuais com maior volume de arrecadação de receitas. Os produtos classificados como
prime. Os demais produtos, em geral produzidos por terceiros, complementam a grade de
programação dispensando o investimento contínuo por parte destes investidores que adqui-
rem os demais produtos já finalizados no mercado secundário. Os produtos diferenciados,
comumente conhecidos como blockbusters, recebem investimentos estratosféricos, tendo
suas margens de riscos reduzidas ao serem oferecidos aos mais diversos meios e veículos.
Chegam a custar mais de duas centenas de milhões de dólares. Avatar e Alice ultrapassaram
a arrecadação de U$ 2 bilhões apenas no theatrical. Os blockbusters são planejados em longo
prazo, prevendo as suas sequências, constituindo o que se passou a chamar franquias. No
começo dos anos 2000, representavam quase 40% das arrecadações totais dos cinemas.
No ano de 2010, as vinte maiores rendas do ano atingiram, nos principais mercados cine-
matográficos, patamares entre 65% e 75% do total das rendas auferidas nas bilheterias.
Esbanjam tecnologia nos efeitos especiais e no realismo virtual. Para se assegurar o fatu-
ramento maciço destes filmes, têm se introduzido novas técnicas, como ocorreu com o 3D,
avança-se sobre as projeções tridimensionais sem o uso dos óculos e sobre a interatividade
do espectador, que já pode assistir a filmes 4D, que incorporam sensações tácteis, olfativas
e movimentos das cadeiras. As salas de exibição já podem ter configurações físicas variáveis
com o recolhimento total ou parcial das poltronas, viabilizando a dança em shows musicais
e propiciando um ambiente mais adequado nos espetáculos esportivos.

Assim apresentado, pode parecer que os produtores independentes adentraram o pior mundo.
Num resumo pessimista, pode-se expressar: primeiro, os grandes estúdios foram substituídos
por megaconglomerados. Depois, seus principais produtos, que não passam de 20 títulos por
ano, chegam a custar centenas de milhões de dólares, tomam a maior parte das datas. Em julho
do ano passado, apenas três filmes estrangeiros ocupavam quase 70% das telas dos cinemas
brasileiros. Qual a vantagem que a tecnologia digital trouxe, então, ao cinema independente?

Podemos afirmar que se tem um momento inédito, de grande perspectiva para o produto
independente, seja ele um longa-metragem experimental, um documentário, um curta-
metragem, uma série de televisão, um programa televisivo, ou até mesmo um curtinha de
alguns segundos. Em primeiro, porque nunca houve tantos veículos para exibir os filmes.
Basta ver o Youtube para ficarmos embasbacados com a quantidade de material disponível.
Legal ou ilegalmente (e esta é uma discussão mais complexa da qual fugirei) assiste-se a
materiais que jamais chegariam a qualquer tipo de tela. Mesmo brincadeiras amadoras feitas
com uma simples câmara de telefone chegam aos sites, e cada vez mais os assistimos em
canais de televisão por assinatura e mesmo nas emissoras abertas.

Trata-se de uma mudança extrema nos sistemas de circulação dos produtos audiovisuais.
Não só é possível produzi-los com o simples custo de aquisição de um telefone celular,
como é possível fazer sua circulação, que será assistida por um número muito maior de
espectadores do que nos veículos tradicionais. Não se dependeu de um produtor, de um
distribuidor ou de um proprietário de veículo ou meio de comunicação.

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A distribuição do homevideo, no sistema de locação (rental), declina com o avanço das
técnicas de circulação dos conteúdos na internet. Num futuro muito próximo, o video-on-
demand terá um consumo muito intenso, bastando ao consumidor baixar o conteúdo em
seu computador, em seu telefone, em seu tablet, em seu televisor... O consumo on-demand
muda a estrutura de comercialização de conteúdos, pois permitirá adquirir os direitos de
assistir a um “conteúdo” a preços ínfimos. Porém, se estes valores são baixos, a imensidão
de compradores gera volumosos montantes para os conteúdos oferecidos.

Essa nova dimensão de fazer circular amplamente os produtos que antes não chegavam às
mãos do consumidor já foi retratada por Chris Anderson ao criar a teoria da “cauda longa”,
uma proposição de comercializar produtos que não se submetem aos critérios tradicionais
de consumo devido à sua pequena escala de vendas. Através do consumo globalizado,
obtido pela oferta na internet, localiza-se um número de consumidores suficiente para lhes
dar a viabilidade econômica. Se estivermos discutindo a exibição pelas salas de cinema,
não teremos um volume imediato de ingressos vendidos para permitir uma programação
contínua como ocorre nos cinemas tradicionais. Porém, a oferta concentrada e dirigida a
determinados horários possibilita que os conteúdos sejam colocados nas telas, como vêm
ocorrendo com as óperas, balés, shows de rock e eventos esportivos.

Há outro mercado que se constitui. Os equipamentos simples e baratos que apresentam


projeções de boa qualidade estão gerando um circuito paralelo e alternativo ao fornecimento
dos conteúdos dos grandes distribuidores. Com isso filmes de longa, média metragem e
mesmo programas televisivos têm chegado às telas, sem que tenha que se investir nos altos
custos das cópias cinematográficas. O boom de documentários que chegaram aos cinemas
brasileiros enquadra-se nesta ampla segmentação. Tem-se uma vigorosa rede de auditórios e
cinemas que independe dos grandes proprietários de salas e que não são ameaçados na sua
sobrevivência pela disponibilidade de cópias e dos altos custos operacionais de um cinema
tradicional. Em termos qualitativos, elas se mostram satisfatórias, já que utilizam as tecno-
logias da televisão que têm evoluído em direção às emissões em HD (High Definition).

A definição do cinema do futuro vai em direção à multiplicidade das ofertas, tanto na direção
de salas com telas enormes, sonorizações espetaculares, projeções tridimensionais, capazes
de se transformar em arenas que exibam conteúdos diferenciados, como vai em direção à
expansão de circuitos alternativos. De um lado, estrutura-se uma indústria gigante que visa
grandes lucros ao ofertar caras produções e, do outro lado, constitui-se uma ampla rede
de veículos e meios voltada a receber os produtos artísticos. Esta dispõe praticamente do
mesmo arsenal de circulação de conteúdos que os estúdios: múltiplos veículos e meios.
Como já foi dito neste artigo, a necessidade de suprimento de produtos audiovisuais para
o sistema audiovisual existente propicia condições inéditas para a produção de filmes.
Ou melhor, para ser mais exato, de conteúdos.

Luiz Gonzaga Assis De Luca é doutor em Ciências das Comunicações e autor dos livros
Cinema digital - um novo cinema? e A hora do cinema digital.

22 filmecultura 54 | maio 2011 VANGUARDA - INOVAÇÃO


POR FILIPE FURTADO

VA N
G
I N O UA R D A
VAÇ
ÃO

Num dos debates com realizadores de curtas-metragens na última Mostra de


Cinema de Tiradentes chamou atenção o depoimento de Jair Molina, que estava lá repre-
sentando o Coletivo Santa Madeira, que pelo segundo ano consecutivo exibia um curta
no evento. Molina relata como o grupo quase acabou após as filmagens do filme anterior
Pescaria de merda porque ele próprio impôs uma série de ideias radicais que lhe pareciam
essenciais ao trabalho, mas que na época não caíram bem com seus companheiros;
o novo curta, O plantador de quiabos, novamente se revelou traumático e rachou o grupo que
o próprio cineasta parecia no debate pôr em questão. Entre sua presença como representante
do grupo e sua própria versão dos fatos, é fácil justa ou injustamente imaginar Molina como a
força criativa do Coletivo Santa Madeira, mas o que de mais significativo temos nesta pequena
anedota sobre diferenças criativas na realização de um curta envolve menos esta figura singular
do autor, e muito mais como ela encapsula um desejo muito comum entre jovens cineastas
brasileiros. Molina e seus colegas de grupo, egressos da mesma faculdade de Cinema, em vez
de se organizar segundo nossa lógica tradicional de funções cinematográficas, preferiram,
a despeito das possíveis diferenças criativas, se instalar dentro desta ideia de grupo.

O plantador de quiabos VANGUARDA - INOVAÇÃO filmecultura 54 | maio 2011


Vigias

É um sentimento muito forte que transpassa boa parte do jovem cinema brasileiro.
Ela está lá num desejo de reforçar a própria ideia de geração – muito menos uma ferramenta
de marketing e mais um reconhecimento de que a cena é ela própria a maior consumidora
de si mesma –, assim como os vários focos locais, cada um com algumas características
muito próprias que propõem vários minigrupos; algo que fica claro quando nos lembramos
da organização da 50ª edição desta mesma Filme Cultura, em artigos que buscavam chegar
ao cinema brasileiro contemporâneo através de vários cinemas regionais. Sobretudo esta
ideia de grupo ganha força quando observamos como muito do que de mais vital no cinema
brasileiro recente nasceu de produtoras locais, como a Teia (MG), Símio (PE) e Alumbramento
(CE) que são mais que meras empresas que abrigam uma série de realizadores, e sim focos
criativos que apresentam cada um ao seu modo um olhar para o cinema muito próprio.

Uma boa forma de observarmos as características deste movimento de dissolução da


criação do indivíduo para o grupo é compararmos as diferenças da ideia de encontro com
personagens nos filmes de Eduardo Coutinho e de alguns filmes de jovens realizadores como
A casa de Sandro, de Gustavo Beck, e Vigias, de Marcelo Lordello. Num filme como O fim e o
principio, a câmera de Coutinho não deixa de documentar como toda sua equipe se desloca
com ele para a pequena cidade na qual as entrevistas são coletadas, mas o foco invaria-
velmente se encontra na figura do cineasta e seus personagens; a equipe existe somente
enquanto exerce uma função. Existe uma hierarquia muito clara nestes encontros captados
por Coutinho. Quando Beck descreve A casa de Sandro como um filme de visita, o visitante
em questão visivelmente não é só o cineasta. Da mesma forma Vigias não é sobre Lordello
acompanhando a noite de uma série de vigias noturnos, mas de todo um grupo que está
ali junto com o cineasta. Há uma clara mudança de paradigma entre um filme como O fim e
o princípio e Vigias, da figura do autor para a imagem do grupo. Não deixa de dizer muito
sobre este processo que Beck seguiu A casa de Sandro com Chantal Akerman de Cá, filme-
entrevista com a cineasta belga Chantal Akerman realizado em parceria com o jornalista
Leonardo Luiz Ferreira, responsável pela entrevista que serve de base para o filme, que, num
outro momento, seria só mais uma personagem, mas aqui é alçado à posição de coautor.

Ainda assim temos uma diferença entre os filmes de uma produtora como a Teia, no qual o
cinéfilo pode localizar uma série de interesses estéticos comuns, mas nos quais ainda são
inegáveis as personalidades próprias de cineastas, como Sergio Borges e Marília Rocha,
e filmes nos quais a identidade do autor se torna muito mais difusa. Voltando no tempo,
encontramos dois filmes realizados no começo dos anos 2000 que podem ser vistos como
ancestrais dos filmes coletivos recentes: o curta Resgate cultural, o filme, do coletivo per-
nambucano Telephone Colorido, e o longa Conceição – autor bom é autor morto, codirigido
por um grupo de estudantes da Universidade Federal Fluminense. O Telephone Colorido,

24 filmecultura 54 | maio 2011 VANGUARDA - INOVAÇÃO


que se autodescreve como um grupo de guerrilha cultural, vem realizando ao longo da dé- Da esquerda para a direita:
cada, entre curtas e clipes, um trabalho notável no meio da cena pernambucana que chegou
A casa de Sandro,
até nós pela primeira vez nos vinte minutos de cine manifesto de Resgate cultural. O filme
coloca em tensão uma série de elementos da cultura pernambucana a partir da ideia do Desassossego (filme das maravilhas),
sequestro de Ariano Suassuna. O Telephone Colorido se identifica com os sequestradores Pescaria de merda.
e muito da força do inventário cultural proposto pelo filme nasce justamente do discurso
não ser identificado com um indíviduo em si, mas com a presença muito mais ambígua do
“coletivo de guerrilha”.

Conceição – Autor bom é autor morto lida diretamente com a figura do autor. O filme foi reali-
zado entre 1998 e 2000 como trabalho de conclusão da UFF por André Sampaio, Cynthia Sims,
Daniel Caetano, Guilherme Sarmiento e Samantha Ribeiro e finalmente finalizado e lançado
em 2007. Apesar de ser um filme com episódios dirigidos individualmente pelos diretores
e unidos pela ideia de um grupo de estudantes de cinema num bar falando sobre os filmes
que gostariam de fazer, vemos muito mais fragmentos de filmes – muito bem costurados
pela excelente montagem de Sampaio – do que uma série de curtas, e não há créditos que
especifiquem quem foi responsável pelo quê. A ideia dos personagens que se revoltam contra
a crueldade constante, a que são sujeitados pelos seus criadores, só reforça o interesse do
filme de colocar em crise o conceito de autoria. Curiosamente, a despeito de todo este esforço
de matar o autor, Conceição não consegue deixar de explicitar suas múltiplas sensibilidades,
e quem conhece, por exemplo, os curtas de Sampaio ou as crônicas de Sarmiento tende a
reconhecer ao menos parte das sequências pelas quais eles são responsáveis. Sem falar na
forte presença teórica do hoje redator da Filme Cultura, Daniel Caetano, que não deixa de ser
uma espécie de autor da crise do autor proposta pelo seu filme. Conceição se revela muito
mais uma cacofonia de sensibilidades do que a dissolução da autoria que a princípio sugere.
Vale destacar que a disposição dos seus diretores de se colocarem em cena como ficções
de si mesmos aponta para uma tendência muito comum que se aprofundaria em boa parte
do jovem cinema brasileiro com gosto pelo coletivo com suas equipes frequentemente em
cena nos documentários e híbridos e seus cineastas atores de si mesmo em ficções como
Os monstros dos Irmãos Pretti e Primos Parente. Esta autoconsciência que é ao mesmo
tempo presente o tempo todo e completamente dissolvida dentro das suas narrativas – uma
característica comum tanto a Conceição como Resgate cultural – não deixa de ser um dos
maiores elos entre estes filmes coletivos. No caso de Conceição, a despeito de toda a dis-
cussão sobre autores, o filme nunca deixa de ser principalmente uma chanchada possível
dentro do contexto do cinema brasileiro do fim dos anos 1990. Resgate cultural, o filme

VANGUARDA - INOVAÇÃO filmecultura 54 | maio 2011


Os monstros

Muito do desejo de dissolução de autor presente em Conceição viria a se completar de


forma ambígua ano passado em Desassossego (filme das maravilhas), projeto coletivo
coordenado pela dupla de cineastas Felipe Bragança e Marina Meliande. É um filme que
existe ao mesmo tempo em dois planos. De um lado, trata-se de um trabalho coletivo com
dez episódios dirigidos por Helvécio Marins Jr/Clarissa Campolina, Carolina Durão/Andrea
Capella, Ivo Lopes Araújo, Marco Dutra/ Juliana Rojas, Marina Meliande, Caetano Gotardo,
Raphael Mesquita/Leonardo Levis, Gustavo Bragança, Felipe Bragança e Karim Aïnouz); por
outro, é também a terceira parte da trilogia Coração no fogo de Bragança e Meliande (que
também inclui os seus longas A fuga da mulher gorila e A alegria). Logo Desassossego existe
num espaço único, parte de um projeto pessoal, no qual os cineastas incluíram uma série de
realizadores amigos. De certa forma é a expressão mais clara deste desejo de buscar o outro
presente no jovem cinema brasileiro, como se o projeto Coração no fogo fosse incompleto
se não se estender a mão e convidar outros parceiros para compartilhar dele. Por outro
lado, Desassossego não deixa de anular suas individualidades em favor do projeto geral
com a sensibilidade de Bragança/Meliande dominando de tal forma o filme que os múltiplos
episódios se misturam num só. A ideia de autor se dissolve no que podemos chamar de um
filme de curador. São dois movimentos completamente opostos à generosidade do convite
e a forma como tudo se dilui num só olhar. O próprio conceito central de Desassossego – um
filme-carta que convida o espectador a colaborar também – reforça a ideia de inclusão, de
obra incompleta sem um convite ao outro.

Os monstros é um filme que acredita plenamente que o desejo de uma expressão autêntica só
tem como existir se compartilhado com o outro. Não um público abstrato,
mas um companheiro que tenha um mínimo de sintonia com o seu trabalho. Não se faz
cinema sozinho, Os monstros parece repetir sempre.
Ninguém levou tão a sério a ideia do trabalho coletivo como a produtora cearense
Alumbramento, em especial nos dois longas-metragens do quarteto Luiz e Ricardo Pretti,
Pedro Diogenes e Guto Parente. Os quatro cineastas já realizaram extensa obra em curtas
individualmente (Luiz e Ricardo frequentemente trabalham juntos) e mais recentemente
fizeram em conjunto os longas Estrada para Ythaca e Os monstros. Desde 2008, quando da
realização do longa em episódios Praia do Futuro, um típico filme de apresentação, e do curta
dos Pretti Vida longa ao cinema cearense, uma espécie de carta de intenções, a Alumbramento
se destaca por ser um polo criativo no qual os cineastas regularmente colaboram nos filmes
uns do outros, mas nestes longas recentes este processo vem para dentro da imagem.

26 filmecultura 54 | maio 2011


DA N I E L C A E TA N O LU C A S VA N DE B E UQUE

Conceição - autor bom é autor morto

Em ambos os filmes, os quatro cineastas interpretam versões de si mesmos e a ideia da camara-


dagem do grupo está sempre no centro do processo com a ideia de borrar a fronteira entre cinema
e vida presente o tempo todo. Em Estrada para Ythaca, o processo é uma viagem alcoolizada
para velar um amigo morto, mas em Os monstros a ação se torna muito mais direta e simbólica.
Os monstros é um filme que acredita plenamente que o desejo de uma expressão autêntica só
tem como existir se compartilhado com o outro. Não um público abstrato, mas um companheiro
que tenha um mínimo de sintonia com o seu trabalho. Não se faz cinema sozinho, Os monstros
parece repetir sempre. No filme os Pretti interpretam dois músicos e Diogenes e Parente são dois
técnicos de som, e tudo afunila para uma longa – dura cerca de 15 minutos – jam session que o
quarteto grava. É um filme todo agoniado em busca deste momento no qual a colaboração final-
mente acontece e o trabalho de cada um pode finalmente encontrar seu espaço e respirar.

Se num filme como Conceição o coletivo passa inevitavelmente por uma tentativa de matar
a figura do cineasta como um criador solitário, em filmes como Desassossego e Os monstros
entramos pelo terreno muito maior que o do compartilhamento de sensibilidades. Já não se
contenta simplesmente em mostrar a obra pronta aos cineastas-amigos, é preciso trazê-los
para dentro delas. Se Conceição e Resgate cultural eram filmes que não disfarçavam dentro
do seu mal-estar um confronto, Desassossego e Os monstros misturam o seu mal-estar a
uma constante afetividade. O grupo é o último refúgio tanto dos seus personagens como
dos seus criadores. É uma forma tanto de resistência como de fuga, algo que se manifesta
de forma mais direta nestes filmes, mas encontra eco em vários outros trabalhos de jovens
cineastas que, se assinados individualmente, não escondem o mesmo desejo de dissolver o
indivíduo (seja este o personagem como seu autor) num grupo. A única afirmação constante
neste cinema é que já não podemos sobreviver realizando filmes sozinhos.

Filipe Furtado é ex-editor da Revista Paisà e atualmente redator da revista Cinética.

Desassossego, (filme das maravilhas) filmecultura 54 | maio 2011


POR RUBENS MACHADO JR.

Quem se dispuser a conhecer a história do cinema experimental ou de van-


guarda realizado no Brasil encontrará dificuldades de acesso a cópias, além de uma filmo-
grafia ainda mal mapeada em vários lugares, épocas e vertentes. Vai encontrar debates e
bibliografia do maior interesse sobre certos momentos, autores e movimentos - o Limite de
Mário Peixoto, o Cinema Novo, o Marginal. E os anos 1970 configuram, em todo caso, um
apogeu dessa produção, pelo menos do ponto de vista quantitativo. A produção experimental
realizada em Super-8 nessa década é enorme, se comparada ao vídeo ou ao 16 e 35 mm.
E não tem sido vista desde então, quando foi por seu turno muito pouco vista, foi só em ses-
sões alternativas, festivais atomizados, e depois disso não mais. Nem público cinéfilo ou de
especialistas, pesquisadores. Portanto, é difícil essa tarefa de falar sobre algo que ainda não
está incorporado ao debate, não possui abordagens comparativas, algo sequer recenseado
sistematicamente, quanto mais historiado e criticado, reverberado em alguma fortuna crítica
(nem os mais vistos S8 de E. Navarro, ou H. Oiticica, tiveram em décadas alguma página de
análise). A historiografia do cinema entre o pós-guerra e os anos 1990 foi se tornando cada
vez mais da indústria, em particular no país – onde nunca fomos tão industrialistas quanto
nessa virada de século. E quando trata do radicalismo experimental não traz muita análise
crítica, predomina o tom do elogio e da adesão pessoal ou metafísica.

Eu próprio dei início a uma pesquisa do experimentalismo superoitista, há pouco tempo, com
interrupções grandes, e posso falar relativamente ao que pude processar até aqui (ver p. 32).
Se falamos de vanguarda no cinema brasileiro moderno, o Cinema Novo (e o Marginal, quase
como um eco invertido dele) fornecem ao longo dos anos 1960 a régua e o compasso que
vão repercutir até os dias que correm. Falo aqui de vanguarda e experimental sem nas suas
teorias me aprofundar, o que implicaria esforço considerável, já que existem aspectos e
compreensões diferentes, disseminados sem maior sistematização enquanto debate especí-
fico: tomo então os termos num âmbito genérico de uso em nossa tradição cultural. São por
vezes termos sinônimos, outras antagônicos, segundo o contexto. Pode-se generalizar que
a ambição do experimental (com inúmeras exceções) é menos explícita no campo político
ou das instituições sociais, e por fim também no aspecto projetual, no sentido de articular
o fazer artístico da criação a um horizonte histórico de modo manifesto e conceituado. Já o
experimental costuma aguardar interpretações a posteriori. Exemplo? Candeias. Se a postura
experimental se dissemina pelo país a partir do final dos anos 1960, junto com o Tropicalismo
e o recrudescimento da ditadura, assumindo contornos de vanguarda nos mais diferentes
sentidos, isto tudo se pode discutir, mas não quer dizer que possamos verificar nas obras
resultados à altura das pretensões.

28 Navarro
Edgard filmecultura 54 | maio 2011 VANGUARDA - INOVAÇÃO
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VAÇ
ÃO

Avaliar esse problema é entrar no campo da crítica, da análise de filmes, entrar no mérito
da estética que se realiza nos filmes – não apenas na proposta ou convicção dos autores,
como, aliás, de hábito se verifica. Porque tem muita coisa diferente debaixo desse conceito
guarda-chuva do cinema experimental, em que cabe um pouco de tudo –filme de artista,
agit-prop, cinema de poesia, amadorismo radical etc. É preciso pôr a bola no chão e partir dos
filmes, sobretudo, e da experiência que eles nos proporcionam, para conseguir estabelecer
algum debate mais produtivo, para além do surdo tiroteio. Ou seja, trata-se de uma discus-
são necessária, de longo prazo, sem dúvida um pouco mais republicana, e que em grande
medida apenas começa a engatinhar, levantando os filmes, vendo e procurando estabelecer
os seus parâmetros próprios em face das expectativas autorais, diante dos olhares da sua
época e os de hoje; claro, da parte do público, da crítica.

A multiplicidade de proposições estéticas é uma das marcas distintivas da produção au-


diovisual na década de 1970, imposição, em parte, de uma segmentação fragmentária de
experiências, forçada pela ditadura civil e militar que se implantou no país em 1964 e que
recrudesceu a partir de 1968. Ao lado da vigorosa expansão da TV e do relativo sucesso da
Embrafilme, houve também uma proliferação de experimentalismos jamais vista, o mais das
vezes localizados e circunscritos, implicando microesferas comunitárias, como no caso de
festivais intermitentes, certos cineclubes, mostras artísticas, e de uma miríade de pequenos
eventos. Uma parte desses espaços de exibição cumprirá, conforme avançamos na década,
um papel crescente e premonitório, ainda que extremamente limitado, de “esfera pública de
oposição” (conforme no pós-68 europeu cogitariam A. Kluge e O. Negt, em seu livro Esfera
pública e experiência). Um motivo que tem dificultado o debate da história do cinema expe-
rimental no Brasil é a sua grande produção em bitola menor e suporte amadorístico, como
o 8 mm, Super-8, os primeiros formatos do vídeo, cuja “irreprodutibilidade técnica” tornou
suas poucas, fugidias e auráticas primeiras sessões, não raro, o único acesso às obras,
dotando a sua memória mortiça de uma cintilação mítica. Repete-se assim o mau exemplo
inaugural dado pelo 35 mm Limite, de M. Peixoto, eclipsado por décadas de uma história
carente, deixando muita pólvora por reinventar.

O experimentalismo superoitista por suas características intrínsecas como meio e inserção


social, nas condições brasileiras dos anos 1970, chegando aos 1980, implicou uma forte
experiência de rebeldia e negação. No caso, o “valor de exposição” das obras nessa nova
esfera sensorial implica e acarreta em diferenças específicas no âmbito das práticas rituali-
zadas, tal como foi pensado por Walter Benjamin em torno da questão da aura, requerendo

VANGUARDA - INOVAÇÃO filmecultura 54 | maio 2011


Exposed

uma reproposição crítica. Já no momento da captação, do registro das imagens, observam-se


parâmetros sensíveis de modificação no acionamento da câmera e no comportamento de
quem filma. Há uma desritualização do fazer cinematográfico convencional com sentidos
diversos. Pode ser acompanhada ao longo da década sua evolução circunstanciada pelo que
seria mais “filmável”, sobretudo em direção aos espaços abertos, a descoberta de seu teor
urbano, existencial, público e político. Bastante recorrente na produção mais radical, uma
determinada ironia se constrói, em glosas ou ataque simbólico aos monumentos culturais
dispostos no espaço público da cidade, como se pode verificar em filmes como Explendor
do martírio, de Sérgio Péo, Fabulário tropical, de Geneton Moraes Neto, e Gato / Capoeira,
de Mário Cravo Neto.
Ivan Cardoso
Politicamente suspeito, o cinema experimental ou de vanguarda no Brasil, nas poucas
manifestações que provocou para além do Cinema Novo e Marginal, foi pensado historica-
mente no diapasão do formalismo de fundo conservador. A ponta do iceberg mais visível
é Glauber divisando “O Mito Limite”. Com o advento do Cinema Novo, convém notar,
é um tanto paradoxal que isto de certo modo ainda continuasse acontecendo, embora com
uma nova visão do problema. Desde então, conforme se observou mesmo nos meios mais
críticos e de esquerda, persiste um desinteresse sobre o teor político do chamado cinema
experimental, que alcança mesmo os dias atuais. A produção dos anos 1970 em Super-8 nos
sugere todavia revogar esse lugar-comum, fazendo uma ponte do cinema com a inquietude
das artes plásticas e da poesia de mimeógrafo.

A desmonumentalização superoitista estava ligada a outra tendência bastante evidente em


sua carga contestatória aos padrões da arte estabelecida: a performance, o registro pela
câmera de um ato performático rompendo com o comportamento “respeitável”. A perfor-
mance estava seguidamente ligada à contestação da ordem imposta ao espaço público,
como na “observação-ação” proposta por Sérgio Péo, que quer “usar o espaço físico da rua
reavaliando seu funcionamento e introduzindo “novas atitudes”. O Super-8 aproximava-se,
nesses momentos, do happening teatral, da pichação e da momentaneidade da poesia
marginal, que se propunham transitórias, imediatas, mais ativas que representativas.
Coerente com essa espécie de ação fílmica direta, a política do corpo e da sexualidade ad-
quiria centralidade naquele verdadeiro inchaço do presente dos filmes Super-8. “Era uma
coisa bem política, erótica e política”, segundo o filósofo e poeta Jomard Muniz de Britto,
protagonista do tropicalismo no nordeste, que se entrincheirou no “anarcossuperoitismo”.
Céu sobre água Bissexualismo, travestis, desconstrução da imagem burguesa da mulher, frequentavam a
“simpática bitola”. Muitos dos filmes têm algo de festa dionisíaca, versão cinematográfica
do desbunde. Com a forte presença da contracultura nos anos 1970, o diálogo do corpo que
grita por libertação parece clamar pela natureza, à qual o corpo deseja retornar. A fruição da
relação imediata corpo-espaço, sob o signo da natureza, como no curitibano Vitrines (1978)
de Rui Vezzaro ou no soteropolitano Pó e mandalas (1977) de Paulo Barata, é outra das
formas de contestação do status quo, ora impostando um olhar que desdenha ou estranha
o advento sisudo da urbe, ora se aproximando da “curtição” primitivista hippie – de que é
obra máxima Céu sobre água (1978) de José Agrippino de Paula.

30 filmecultura 54 | maio 2011 VANGUARDA - INOVAÇÃO


Agrippina

Já na época o Super-8 foi bastante estigmatizado como um tipo de amadorismo anarquista,


e no melhor dos casos técnica precária demais para ser levada a sério. Entretanto uma es-
pecífica estética do precário vai se incorporando também nas outras bitolas, há mimeses
entre os diferentes suportes, fazendo com que em distintas práticas se possa encontrar
uma estética indelével do Super-8. Em filmes como A rainha diaba (1973), de Fontoura,
ou no curta Di Glauber (1977), há procedimentos de soltura da câmera 35 mm que mostram a
impregnação de novos repertórios gestuais, difíceis de se verificar antes do Super-8. Isso se
pode afirmar sem sabermos que Glauber tinha já filmado em Super-8 no exílio; e de Fontoura
ter declarado combinar com seu fotógrafo uma deliberada imitação da câmera Super-8. Há, com
efeito, uma questão que estou tentando compreender, a técnica junto com toda uma época, seus
humores, sua “adrenalina” singular, aqueles determinados fatores que se compõem: a contra-
cultura, o sufoco ditatorial, a simpatia pelo espontâneo, a abertura lenta, gradual e relativa.

Pois bem, o que eu estou chamando então de um efeito Super-8 se insinua e grassa como uma
facilitação técnica, a redundar em faturas rústicas mas desenvoltas, explorando e elaborando
o que o profissional chamaria de erro, barbeiragem ou incompetência. Apertar o botão e
sair filmando, eis o gesto libertário! Convertem-se em práxis cinematográfica as palavras de
Oswald de Andrade, ao falar da “contribuição milionária de todos os erros”. Clamava de sua
coluna-tribuna Geleia Geral o tropicalista Torquato Neto (também superoitista) nos tempos
duros de 1971: “pegue uma câmera e saia por aí, como é preciso agora (...) documente tudo
o que pintar, guarde. Mostre. Isso é possível”.

O que aconteceu a partir da invenção do Super-8 em 1965 foi uma comercialização com preço
acessível, similar ao das câmeras digitais de hoje. A consciência da sua precariedade no contexto
histórico brasileiro, cultural ou artístico, deu um significado especial a essa produção feita
com pouco; como, aliás, num patamar anterior, o fizera o chamado Cinema Marginal, ainda
que ali respeitando mais certos padrões convencionais, como o 35 mm e o longa. Quando
Sganzerla no final dos anos 1960 propunha espirituosamente que no Brasil passássemos a
fazer “filmecos”, glosava e traduzia em miúdos ideias de Glauber que marcaram o Cinema
Novo. Mas a sua radicalização visionária não podia então prever que na década seguinte isto
se concretizasse de fato; e sobretudo via Super-8. O manifesto Uma estética da fome, 1965,
propunha fazermos frente à indústria cultural não tendo que imitar modelos hollywoodianos,
com filmes caros e complicados, produção alambicada, como no pós-guerra se tentou por aqui.
Talvez o Super-8 tenha realizado a mais funda repercussão da Estética da Fome em termos
de realização poética, no plano da criação de formas cinematográficas no país. Zona Sul
A RQ U I VO E D G A R N AVA R RO

Marginália 70
Lumbra. Da esquerda para a direita,
Pola Ribeiro, Edgar Navarro, José Araripe Jr.,
Fernando Belens Jorge Felippi (no meio, sentado
no chão), Ana Nossa e Henrique Andrade.

VANGUARDA - INOVAÇÃO filmecultura 54 | maio 2011


Em 2001 veio a público o levantamento que fiz do experimental Super-8, com apoio do Itaú
Cultural, remasterizando 180 títulos. Vi então mais de 450 filmes, dos quase 700 levantados,
envolvendo-se 237 realizadores (um terço destes sendo artistas plásticos) de 21 cidades
(Porto Alegre, Florianópolis, Curitiba, São Paulo, Campinas, Santos, Rio, Goiânia, Belo
Horizonte, Governador Valadares, Vitória, Salvador, Aracaju, Maceió, Recife, Caruaru, João
Pessoa, Teresina, Fortaleza, São Luís e Manaus). Entre 2001 e 2003, uma seleção itinerante
da mostra feita em São Paulo, Marginália 70: o experimentalismo no Super-8 brasileiro,
percorreu dezenas de cidades no país e no exterior (na França, À vos marges, années 70,
em 2003). A versão paulistana totalizava 125 filmes e as itinerantes variavam entre 42 e 24
filmes. Dentre as dezenas de realizadores resgatados (78 na mostra maior) figuram Jomard
Muniz de Britto, Edgard Navarro, Ivan Cardoso, José Agrippino de Paula, Hélio Oiticica, Lygia
Pape, Antonio Dias, Torquato Neto, Sérgio Péo, Jorge Mourão, Rui Vezzaro, Mário Cravo Neto,
Raymond Chauvin, Geneton Moraes Neto, Paulo Bruscky, Jairo Ferreira, Abrão Berman, Carlos
Porto, Leonardo Crescenti, Gabriel Borba, Marcello Nitsche, Claudio Tozzi, Nelson Leirner,
Regina Vater, Anna Maria Maiolino, Henrique Faulhaber, Giorgio Croce, Ragnar Lagerblad,
Fernando Bélens, Pola Ribeiro, José Araripe Jr., Virgílio de Carvalho Neto, Marcos Sergipe,
Paulo Barata, Robinson Roberto, José Umberto Dias, Kátia Mesel, Donato Ferrari, Marcos
Bertoni, Isay Weinfeld, Marcio Kogan, Iole de Freitas, Ismênia Coaracy, Vivian Ostrovsky,
Fernando Severo, Peter Lorenzo, Paulo Rocha, Hassis, Júlio Plaza, Luiz Alphonsus, Artur
Barrio, Carlos Vergara, Carlos Zilio, Maria do Carmo Secco, Daniel Santiago, Ypiranga Filho,
Amin Stepple, Ana Nossa, Berenice Toledo, Bernardo Caro, Marcos Craveiro, Getulio Gaudielei
Grigoletto, Henrique de Oliveira Jr., José Albino Gonçalves, Bertrand Lira, Torquato Joel, Chico
Liberato, Firmino Holanda, Flávio de Souza, Flávio Motta, Luciano Figueiredo, Óscar Ramos,
Luiz Otávio Pimentel, Sérgio Giraud.

Rubens Machado Jr. é pesquisador, curador e professor titular de Teoria e História do Cinema da ECA-USP.
É vice-presidente do Conselho de Orientação Artística do MIS-SP. Dedica-se ao estudo das vanguardas no cinema
brasileiro escrevendo em publicações especializadas e editou várias revistas desde Cine-Olho (1975-80).

Da esquerda para a direita: Torquato Neto, Jomard Muniz de Britto e Jorge Mourão

32 filmecultura 54 | maio 2011 VANGUARDA - INOVAÇÃO


POR MÁRIO ALVES COUTINHO

Luiz Rosemberg Filho, as imagens, os sons e a força revolucionária da palavra

“Seus projetos são todos possuídos de ambições totalizantes.”


A
G U ARD Glauber Rocha em Revolução no Cinema Novo
VA N A Ç Ã O
V
INO
Todo internauta que assim o desejar poderá ver da morte; a terrível luta de ser o que se é; deixei de ser
algumas obras-primas do curta-metragem, da autoria de um animal, um selvagem, um homem, uma contradição”,
Luiz Rosemberg Filho: Nossas imagens (http://vimeo. o trabalho da trilha sonora, apontam para um pesquisador
com/18157969), O discurso das imagens (http://vimeo. que sempre procurou inovar, não repetir. Rosemberg sem-
com/14184725), $em título (http://www.youtube.com/ pre trabalhou a literatura (mais propriamente, a poesia:
watch?v=sCPTDQHWYm4) e As últimas imagens de “o cinema sem poesia nunca me interessou muito”, escreveu)
Tebas (http://vimeo.com/16861345). Filmes primorosos, em todos seus filmes: primeiramente a literatura falada,
produtos da imaginação e sensibilidade férteis de um orquestrada num texto primoroso (Crônica de um indus-
autor no pleno domínio da linguagem da sua arte: como o trial), até chegar a seus curtas mais recentes, onde ele
universo virtual é algo anônimo, fica uma questão: quem filma (escreve) as muitas palavras que tem a dizer. Mas já
é realmente Luiz Rosemberg Filho? em Crônica de um industrial ele filmava algumas palavras
(anúncios em neon), mas também uma mão escrevendo
Glauber Rocha, em A revolução no Cinema Novo (1981), num caderno; assim como, nos seus últimos curtas, existe
nos dá algumas pistas e fala de um cineasta ambicioso, quase sempre um esplêndido texto em off (a narradora por
cuja pretensão é tratar do todo: “totalizante” Rosemberg vezes aparece na imagem).
sempre foi, e continua sendo. Nesses últimos curtas-
metragens os temas são na verdade grandes perguntas: “Revolucionário pela RAYZ” e filmes de “vanguarda”: mais
O que é o cinema? O que é a imagem? (esta palavra/ uma vez, uma definição perfeita para seus quatro curtas.
questionamento está no título de três dos quatro curtas. Agora, pesquisando a imagem digital, Rosemberg chega
Em O discurso das imagens, Walter Benjamin pode ter à conclusão (própria) de que ela é tão cinematográfica
uma resposta: “aquilo que sabemos que em breve já não quanto a imagem realizada com o celuloide. Imagens
teremos diante de nós torna-se imagem”). Para respondê- soberbas são criadas em todos os curtas: por exemplo,
las, Rosemberg cita amplamente o cinema, o teatro, em O discurso das imagens, a narradora fecha os olhos,
a filosofia, o ensaio, a poesia, as artes plásticas, a música quando se sobrepõe a este plano o plano-sequência final
(empregando com insistência o princípio da colagem): de One plus one, de Jean-Luc Godard, onde vemos uma
a medida do autor é tudo que a cultura e a civilização personagem, morta, ser carregada pela grua em movimen-
ocidental pensaram e produziram de melhor na sua longa to. Ou, então, em As últimas imagens de Tebas, o rosto
história; embora um cineasta assumidamente brasileiro do personagem, encarnado pelo próprio diretor, com os
e preocupado com o seu país, ele definitivamente não é olhos vazados, sangrando, enquanto atrás dele é exibida
um autor paroquial nem limitado ao Brasil. a sequência inicial de O cão andaluz, onde o diretor (Luis
Buñuel) corta o olho de uma mulher com a navalha: duas
Glauber diz também que Rosemberg é um “revolucionário imagens de uma beleza esfuziante. Quanto à trilha sonora
pela RAYZ” e que realizou “filmes de vanguarda”. Crônica desses curtas: quase sempre um texto que interage em
de um industrial (1978, longa-metragem) era exatamente perfeita sintonia com as imagens, ou então se relaciona
isto: um filme de vanguarda, de um pensador, de um expe- com elas numa contradição dialética (toda palavra é mú-
rimentador de formas. Seus planos-sequências enormes, sica, nos é dito em O discurso das imagens; música das
seu texto extremamente bem cuidado (alguns exemplos de palavras mais a melodia: outra dialética/colagem de sua
sua poderosa prosa poética: “incertezas da vida e a certeza obra). Rosemberg vai além: sua montagem (ritmo) por

VANGUARDA - INOVAÇÃO filmecultura 54 | maio 2011


Luiz Rosemberg Filho

si só transforma seus filmes em música, quer dizer, em


peças musicais. Mas atenção: suas fitas são de um autor
que procura o novo; mas certo classicismo (e mesmo
romantismo) ronda conscientemente suas obras. A trilha Resumindo, ele diz que em “breve será possível escrever
sonora musical de Crônica de um industrial é quase toda ideias diretamente no filme”.
de Bach, mas no final temos Tristão e Isolda, de Wagner.
As últimas imagens de Tebas, por sua vez, é livremente Quanto a André Bazin, num dos muitos textos sobre a
inspirado em Édipo Rei e Édipo em Colono, de Sófocles. questão, abordando um filme de Chris Marker, Lettre de
Rosemberg pode ser um cineasta de vanguarda, mas não Sibérie, diz que:
abandona nenhum dos períodos da arte, nem mesmo o com Chris Marker (...) diria que a matéria primitiva é a
surrealismo (a imagem inicial de Nossas imagens: uma inteligência, sua expressão imediata a palavra, e que
câmera, um trampolim e um céu esplendoroso). a imagem não intervém senão em terceira posição em
referência a esta inteligência verbal. (...) uma noção
Os quatro curtas são, portanto, o entrechoque perturbador absolutamente nova da montagem (...). Aqui, a imagem
entre frases filmadas, faladas, imagens soberbas e uma não reenvia àquela que a precede ou à que a segue,
música poderosa (articuladas por uma montagem lateral: mas lateralmente, de qualquer maneira, em relação
ver Bazin logo adiante), quer dizer, cinema sim, imagem ao que é dito, ao mesmo tempo. Melhor, o elemento
e som, mas também literatura, poesia e música refinada- primordial é a beleza sonora, e é a partir dela que o
mente trabalhadas. Este tipo de cinema foi claramente espírito deve saltar em direção à imagem. A montagem
mapeado por André Bazin e Alexandre Astruc. Em 1948, se faz da orelha ao olho.
Astruc escreveu um ensaio, Nascimento de uma nova
vanguarda: a câmera-caneta, onde defendia um cinema É só trocar Marker por Rosemberg, e pareceria que Bazin
“escrito com a câmera”, no qual as imagens não eram os estaria escrevendo e antecipando este último.
únicos elementos de linguagem que um cineasta poderia
usar. Escreveu: No final de Crônica de um industrial o personagem prin-
[o cinema] se torna pouco a pouco uma linguagem. Uma cipal diz que “queria a toda força ser poeta, acreditava
linguagem, quer dizer, uma forma na qual e pela qual um na força revolucionária da palavra”. Luiz Rosemberg há
artista pode exprimir seu pensamento, por mais abstrato mais de quarenta anos realiza filmes em celuloide, vídeo,
que ele seja, ou traduzir suas obsessões exatamente digital, curtas e longas. Mas ele também escreveu com
como acontece hoje no ensaio e no romance. a câmera, colocou suas ideias diretamente no cinema,
criou uma montagem que usa primeiro a inteligência, em
E continuava: seguida as palavras, a música, e só então salta para as
o cinema gradualmente se livrará do que é visual, da ima- imagens. Luiz Rosemberg Filho é um cineasta/ensaísta
gem pela imagem, das imediatas e concretas demandas admirável; mas é, também, um enorme poeta.
da narrativa, para se transformar num meio de escritura
tão flexível e sutil como a linguagem escrita.
Mário Alves Coutinho é crítico de cinema, literatura e ensaísta, autor de
Escrever com a câmera, a literatura cinematográfica de Jean-Luc Godard;
Quanto às possibilidades expressivas: organizador de Presença do CEC: 50 anos de cinema em Belo Horizonte;
a mais filosófica meditação sobre a produção humana, tradutor de Tudo que vive é sagrado, poesias de William Blake e
D. H. Lawrence; Canções da inocência e da experiência, William Blake;
psicologia, metafísica, ideias e paixões é perfeitamente
O livro luminoso da vida, ensaios literários de D. H. Lawrence, e roteirista
cabível no cinema. [...] ideias contemporâneas e filo- (Idolatrada, longa; João Rosa e O horizonte de JK, curtas). É doutor em
sóficas são tais que somente o cinema pode fazer Literatura Comparada pela Faculdade de Letras/UFMG. Pós-Doutorado no
justiça a elas. Departamento de Comunicação Social/UFMG, sobre André Bazin.

34 filmecultura 54 | maio 2011 VANGUARDA - INOVAÇÃO


VA N
G
I N O UA R D A
VAÇ
ÃO

LEON A R DO L A R A , AC E RVO U N I V E RS O P RO D UÇ ÃO
“ A inventividAde é pArA pouquíssimos ”

F I L M E C U L T U R A en trevis ta
Como responsável pela curadoria da Mostra de Cinema de Tiradentes desde
2007, o paulista Cléber Eduardo, torcedor do Botafogo, tem tido contato ano a ano com as
produções brasileiras mais ambiciosas em termos estéticos. No dia 11 de fevereiro, poucos
dias após o fim da 14ª edição da Mostra, Cléber conversou com a Filme Cultura:

Filme Cultura: Cléber, num determinado momento a curadoria da Mostra de Tiradentes


passou a focar em cineastas estreantes e num cinema inovador. Foi aí que surgiu a mostra
Aurora, não?
Cléber Eduardo: Essa foi a quarta edição da Aurora. Antes dela, esse não era o perfil predo-
minante da mostra, uma vez que ela sempre incluiu filmes com propostas mais populares,
mas já havia uma abertura para isso. Duas coisas aconteceram então: até a edição de 2006
a mostra não tinha inscritos - os filmes eram convidados depois que passavam por outros
festivais. Em 2007, quando eu comecei a fazer a curadoria, foram 35 longas inscritos. Aí,
pela primeira vez, a mostra teve contato com uma outra produção. E havia um número
grande de primeiros e segundos filmes, com características diferentes do que os festivais
de cinema estavam exibindo. Não havia nada claro sobre o que era esse cinema brasileiro
contemporâneo. Além disso, esse foi o momento em que a Mostra se abriu para produções
em vídeo digital - e houve um aumento avassalador de inscrições, chegamos a ter 80 longas
inscritos por ano.

FC: A maior parte dos filmes inscritos é em digital?


CE: Sim, a maioria. E entre eles há um maior número de documentários. Uma das característi-
cas que a Mostra sempre teve, desde antes de eu entrar, é o espaço para o debate com os
críticos, que são protagonistas da mostra junto com os realizadores. A mostra Aurora não
dá prêmio em dinheiro, a ideia é que ela sirva de vitrine para os filmes. A gente vê cerca de
80 inscritos para selecionar sete filmes, então ser selecionado para a Aurora já é um certo
mérito, independente de prêmio.

VANGUARDA - INOVAÇÃO filmecultura 54 | maio 2011


FC: Quando você escolhe esses sete filmes, quais são os critérios que utiliza? De que maneira
há uma política e uma estética nessa escolha?
CE: O primeiro critério é que esses sete filmes não cheguem à mostra Aurora pré-legitimados,
ou seja, não entram os filmes que já passaram em Cannes ou ganharam o prêmio principal
em outros festivais. Esse é o primeiro critério, que não haja um pré-favorito. No ano em que
tinha o Belair, por exemplo, eu achei que ele seria um grande favorito. Aí é preferível exibir
num horário nobre do festival, mas não incluir na seleção do Aurora. A partir deste critério,
nós vemos o que existe à disposição. Nem sempre se tem sete filmes com a força ou a ho-
mogeneidade que a curadoria gostaria. Depende muito da safra de cada ano. Dentro das
circunstâncias, eu procuro desenhar um perfil para a Mostra.

FC: Que perfil seria este? Você busca vanguardistas?


CE: Olha, quase nada que escolhi eu consideraria de vanguarda. Eu busco filmes que me causem
algum tipo de estranhamento, filmes que quebrem as expectativas. O que me interessa é tentar
criar outro padrão de normalidade, um outro padrão do popular. Hoje, eu acho que o público
de Tiradentes suporta e gosta de determinados filmes que não aceitaria há alguns anos. Existe
um clima de abertura para o que a gente entende como diferente, e esse diferente pode ser
mais ousado, ou pode não ser. Não tenho admiração exclusiva por filmes experimentais e
vanguardistas que quebrem a narrativa. O que me interessa aqui é que haja alguma reflexão
sobre os filmes escolhidos, pois a mostra não resume o cinema contemporâneo brasileiro,
ela não pretende dar conta disso. Ela dá espaço para esse cinema dos filmes sem edital, de
baixo orçamento, sem lei de incentivo, sem distribuidora. Eu acredito que nesse lugar de
diretores jovens, baixos orçamentos, com um clima vigente de pessoas que se juntam para
trabalhar, poderá surgir alguma coisa com uma pulsão nova. Os compromissos são menores.
Eles podem correr mais riscos porque são mais jovens, não têm filhos ainda, não têm que
pagar pensão etc.

FC: Quais os filmes que você apontaria como inovadores de fato?


CE: É difícil falar de inovação ou invenção nos filmes que se encaixam nesse perfil. Essa geração
é muito reverente e muito consciente da relação que tem com a produção mais antiga. É uma
geração que vem da universidade, então esses processos são vinculados a certos filmes,
certos cineastas. Essa geração é muito consciente da necessidade de estar na pauta, e a
entrada de curadores internacionais em Tiradentes começa a evidenciar isso. Lembrei agora
daquela divisão que o Jairo Ferreira fazia, baseado no livro do Ezra Pound, entre os cineastas
inventores, diluidores, mestres, artesãos e beletristas, seguidores de moda. A questão é
em que ponto eles estão inventando e até que ponto estão diluindo. Isso não quer dizer
que esses filmes são meras diluições dos inventores, mas eles estão querendo se colar,
criar a partir dos inventores. Às vezes os filmes acabam ficando à sombra das grandes
árvores dos inventores.

FC: Quais são os modelos principais desses filmes recentes?


CE: Os que estão trabalhando numa rarefação dramática, numa duração do plano que não é
necessariamente a duração do acontecimento. Isso em primeira instância. De uma certa
maneira, quem esteja trabalhando com o formalismo do enquadramento, da relação entre

36 filmecultura 54 | maio 2011 VANGUARDA - INOVAÇÃO


PE D RO V E N E ROS O
câmera, espaço e formas de composição dos atores; mas trabalhando também com quase
uma fenomenologia do acontecimento. Essa estetização do fenômeno é comum nesse cinema
dos anos 2000 e está presente nessa geração nova em vários filmes. A matriz disso, hoje,
vem dos asiáticos, mas se pensarmos historicamente eu diria que Antonioni ganhou. O filme
do Thiago Matta Machado, Os residentes, difere disso: Os residentes vai trabalhar com outra
coisa, que parece até um pouco datada, referente demais a um determinado momento do
cinema, mas ele não está procurando essa rarefação. Se comparado aos filmes da mesma
geração, nele há uma certa agressividade que é ausente na maioria desses outros filmes.
Um pouco ironicamente, eu chamei estes filmes, em algum texto meu, de “apatia feliz”. É uma
falta de revolta, falta de reatividade, uma certa apatia afetiva, afetuosa, mas um pouco resig-
nada: aquela que procura a beleza da gota d’água, mas não se preocupa com a chuva. Acho
A LE X A N D R E C . MOTA , AC E RVO U N I VE R SO P RO D UÇ Ã O

que isso não vem somente de uma produção de filmes, mas sim de um momento histórico.

FC: Você apontou que esse cinema autoconsciente é tributário dos filmes do Antonioni, passando
por Tsai Ming-Liang e Apichatpong Weerasethakul. Além deste, existem em Tiradentes outros
cinemas, outros modelos e matrizes?
CE: Certamente existem. Esse cinema que destaquei é o que estaria mais próximo da pauta que vocês
propõem: o cinema de vanguarda, de experimentação e ousadia. Os filmes mais ousados são
esses filmes conscientes das suas citações e referências, o cinema da rarefação dramática e do
alargamento do plano, de um certo recuo da significação e da enunciação, algo muito evidente
nessas produções, assim como o recuo dos olhares, dos posicionamentos. Eu reconheço que é
neste universo que está o cinema brasileiro mais inquieto. Porém, nem ele é único em Tiradentes,
nem acho que seja radical, um cinema de quebrar os pratos. O Aurora ficou mais associado a
esse cinema mais lento e mais bem enquadrado. Estar lá significa um selo de qualidade, uma Os residentes
espécie de legitimação, por isso é importante pôr uns filmes toscos em que eu vejo valor,
mas que têm um lado mais selvagem, mais precário, mais intuitivo. Eu tenho admiração pelo
A LE XA N D R E C. MOTA, AC E RVO U N I VE R SO P RO D UÇ Ã O

cinema racional, mas também gosto desse outro mais intuitivo, com mais frescor.

FC: Mas você vê a experimentação acontecer no cinema expandido, no chamado pós cinema,
no cinema relacionado às artes plásticas?
CE: Olha, eu acho que existem lugares mais apropriados para experimentações do que o cinema.
A ideia de experimentação nunca foi e nunca será hegemônica no cinema como é nas artes
plásticas contemporâneas. Não é à toa que muita gente está indo para as galerias, dizendo
que os dispositivos do cinema não interessam mais. Eu tenho um pouco de fobia da Bienal,
não consigo ficar duas horas numa. E isso não diminui o cinema: ainda dá para lotar uma
tenda fazendo com que as pessoas assistam a um filme inteiro. Num momento em que as
pessoas só assistem a 10 minutos de qualquer coisa, ver um filme inteiro, como diz o Pedro
Costa, é uma atitude de resistência política, é quase reacionário. Desse reacionarismo eu
gosto. Eu gosto muito de uma frase do Agamben, que diz: para ser contemporâneo, é neces-
sário estar defasado do seu momento histórico. Eu gosto dessa ideia de um certo recuo do
contemporâneo pra melhor entender, como dar um passo para trás. Eu sou meio desconfiado
com o passo à frente. A minha percepção é antivanguardista. Eu prefiro ficar atrás para poder
analisar o rumo das coisas. Não me sinto capaz de manter sempre esse olhar para o olho do
furacão. As coisas muito “contemporâneas” me incomodam.

VANGUARDA - INOVAÇÃO filmecultura 54 | maio 2011


FC: A cada ano a gente vê a predominância na Mostra de Tiradentes de uma cinematografia de
uma parte do Brasil. De que maneira isso é um diferencial ou pode se tornar um problema
para a mostra?
CE: A distribuição regional não tem importância nenhuma, isso não é um critério. O que importa
são os filmes. O que vale é trazer pessoas novas, que normalmente não chegavam com os
seus filmes. O Festival acaba sendo um lugar de muitas trocas e armação de filmes, muitas
parcerias começaram ali. Não tem essa questão da cota regional, o que tem é uma atenção
e interesse pelos filmes, de onde quer que eles venham. E existem núcleos muito fortes em
Pernambuco, Ceará e Minas.

FC: E o eixo Rio/São Paulo? Você acha que a inovação pode estar tolhida por um sistema que já
existe? Ou talvez não haja figuras específicas que se destaquem?
CE: Rio e São Paulo estão sempre presentes, mas são casos diferentes, têm caminhos muito
próprios. No Rio até pode haver cineastas unidos que saíram todos ou boa parte da UFF,
mas não necessariamente constituem um grupo. Eles têm núcleos próprios, independentes,
particulares, cada um desenvolve o seu caminho. Não existe essa ideia de colaboração mais
ampla que a gente vê em Minas, Ceará e Pernambuco. Talvez porque exista a necessidade
dessa união nesses lugares, enquanto no Rio e São Paulo isso é uma opção, não uma ne-
cessidade. E claro que o cinema cearense não é só a Alumbramento, não é? Existem outros
realizadores, mas pelo menos nas produtoras Alumbramento, do Ceará, Símio e Trincheira,
de Recife, na Teia e agora na Filmes de Plástico, de Minas Gerais, o processo coletivo é quase
uma condição para a existência do filme. Não é que sempre dirijam coletivamente e, mesmo
que aconteça, não será assim para sempre. Num debate em que estavam fazendo uma com-
paração entre os filmes brasileiros baratos de hoje e o cinema marginal underground dos
anos 60 e 70, o André Gatti lembrou do seguinte: “Pode ter uma familiaridade aqui e outra
ali, mas o cinema de hoje não tem nada de marginal, todo mundo tem CNPJ.” Não acho que as
pessoas queiram fazer cinema só por afeto. Isto é uma condição para que as pessoas façam
cinema, talvez elas não façam cinema se não for com afeto, mas todo mundo quer se inserir,
estrear, vender filme lá fora, os diretores querem passar seus filmes em Cannes. Eu não acre-
dito nesse romantismo do pós-industrial, esse pós-industrial na verdade é um pré-industrial,
no caso desse segmento. Todos estão querendo se inserir, só que com liberdade.

FC: A invenção é um desejo, como se não tivessem noção de quais são os caminhos abertos?
Ou talvez estes caminhos estejam abertos demais?
CE: Eu acho que estamos vivendo num momento de transição para alguma coisa que ainda está
nebulosa. Eu acho muito difícil a gente conseguir dar nomes e entender o processo contem-
porâneo, o que acontece de agora pra frente, porque acho que as mudanças serão cada vez
mais rápidas, inclusive nas formas de estruturar a narrativa.

FC: Por outro lado, você falou que os planos estão cada vez mais longos.
CE: Pretendendo ser uma forma de resistência. Existe um mercado da resistência pelo plano.
Hoje, fala-se muito sobre o tempo de duração do plano, o retorno à vida, só que é um “retorno
à vida” estetizado, com uma luz bem pensada. Se a gente pega, por exemplo, um de nossos

38 filmecultura 54 | maio 2011 VANGUARDA - INOVAÇÃO


cânones contemporâneos, o Jia Zhang-Ke, ele sintetiza o que é o paradigma do cinema con-
temporâneo, essa ideia de um contato com o tempo e com o espaço, mas com um desenho
muito bem feito. A questão é: será que daqui a 10 anos o Jia Zhang-Ke vai ser um paradigma?
Seria uma resistência que ganhou prêmio em Cannes, uma resistência mainstream. Aí não
é mais resistência.

FC: Mas só se vê invenção e resistência nos filmes de planos longos?


CE: Quando a gente fala em cinema experimental, mesmo no curta-metragem, a gente imagina
um cinema da velocidade, de choque entre planos, de mudanças abruptas, mas eu vejo
muito pouco disso hoje, até em curtas-metragens. O que está se fazendo com a narrativa já
foi feito antes. O que se pode mais fazer com a narrativa? Existe talvez uma proposta que se
reinventa dentro da narrativa.

FC: Não é possível inventar dentro da tradição?


Jia Zhang-Ke
CE: É, sim. Como já disseram, a tradição é saber acender o fogo, não é cultuar as cinzas. A tradi-
ção está aí, que bom que ela se constituiu ao longo do tempo. Mas criar a partir da tradição
narrativa também não é algo novo. Existe uma grande crise de invenção, é difícil ser inventivo
hoje. Quanto mais consciente, mais difícil é. Não acho que o cinema contemporâneo seja tão
inventivo. O que o Apichatpong está fazendo é uma coisa que não consigo relacionar com
nada da tradição cinematográfica. Mas, fora ele, quem está fazendo algo novo? O Kiarostami
estava numa experiência muito radical, é um caso. A inventividade é para pouquíssimos.
E ela não é uma característica de todas as épocas do cinema.

FC: Em documentários como Pacific ou os filmes do Eduardo Coutinho, ou em ficções dirigidas


coletivamente, o questionamento da autoria no Brasil está sendo trabalhado como uma
coisa nova?
CE: Talvez eu concorde no sentido de não estar muito na moda o realizador manipulador, o sujeito
que decide o que vai acontecer, aquele que expõe a sua visão de mundo e de cinema. Nesse
sentido houve um recuo, com esse elogio do processo, do ator colaborativo, do fotógrafo que
também é co-autor. Por outro lado, o que o Foucault chamava de culto ao autor continua pre-
valecendo. A assinatura nunca foi tão importante como grife para os festivais internacionais.

FC: Você gosta da expressão “novíssimo cinema brasileiro”?


CE: Não, porque não diz nada. Ele é novíssimo, e daí? Daqui a alguns anos a gente terá um ou-
tro novíssimo. Esse rótulo, originalmente, era apenas o nome de uma sessão realizada no
Rio de Janeiro. O problema desses cinemas novos é que eles se pautam por uma suposta
novidade, uma originalidade. E quando mudar a época, vamos dar o nome de quê? Hoje há
uma configuração diferente do que era na década de 1990, assim como essa era diferente
da de 1960, e assim por diante. A questão é como a gente vai nomear qualquer mudança na
configuração. Vamos fazer o trabalho completo, porque falar só que é novo é uma atitude
preguiçosa: significa não ir a essa “nova” configuração e dizer o que ela é, quais são as suas
características, apontando o que é novo com relação ao que havia antes.

VANGUARDA - INOVAÇÃO filmecultura 54 | maio 2011


FC: O Marcelo Ikeda e o Dellani Lima publicaram um livro nomeando essa produção como Cinema
de garagem, uma definição a partir da precariedade das condições de produção.
CE: Assim eles demarcam o modo de criação e produção, não demarcam um movimento estético,
e sim o ambiente. O Paolo Gregori fez uma divisão de que eu gostei muito: ele conceituou o
“cinema de galpão” e o “cinema de fundo de quintal”. O “cinema de galpão” é aquele com
CNPJ, e o outro, que é feito sem precisar de galpão, é esse “cinema de garagem”. Espaço para
isso existe: hoje temos mais festivais de cinema que exibem essas produções, e a forma de
produzir está mais fácil. Falta fazer a segunda parte do trabalho, que é tentar ver se acontece
de fato uma nova configuração estética. Se a gente for pegar o foco dessa ceninha novíssima,
o José Eduardo Belmonte está na periferia e o Lírio Ferreira está quase fora dela. Eu gosto muito
de todos os filmes do Belmonte. Gosto dessa sensação de descontrole dos personagens que
ele cultiva. Isso eu não vejo com frequência no cinema brasileiro atual, a gente ficou meio blasé,
perdeu a agressividade, e eu sinto falta disso. Existe uma vertente da produção e do pensamento
cinematográfico brasileiro que recusa essa proposta de cinema, que é contra a agressividade.

FC: Temos visto inovação nos filmes dos diretores mais velhos?
CE: As minhas últimas experiências de ver filmes de cineastas mais velhos foram mais impac-
tantes que ver os dos mais novos. Os filmes do Bressane, como Cleópatra, assim como
o novo filme do Saraceni, O gerente, e também Serras da desordem e esse mais recente
do Geraldo Sarno, O último romance de Balzac. Nem todos são tão radicais em seus fil-
mes. No caso do Bressane, ele está sempre inventando o cinema novamente. É o único
cineasta que consegue me surpreender de verdade. Eu senti isso com esse do Saraceni.
Onde é que está essa inventividade ali? É aí que eu acho que há algo de intangível e
invisível na invenção, porque nem sempre a gente consegue defini-la no procedimento.

FC: Qual é a importância da crítica nessa nova cena? E esse rótulo da “nova crítica”?
CE: Esse rótulo nomeou o grupo de uma geração que já não é mais nova, que agora já está insti-
tucionalizada em alguns casos. Enfim, ao mesmo tempo que há o vídeo digital para o cinema,
hoje há a possibilidade para os críticos publicarem na internet. Tiradentes é sobretudo um
grande espaço de discussão para os novos realizadores, e talvez seja o festival de cinema
que tenha mais críticos por metro quadrado no Brasil. Esse confronto entre filmes e críticos é
fundamental, e num segundo momento existe essa relação entre crítico e realizador na mesa
de debate, com outros críticos e cineastas na plateia fazendo perguntas ou respondendo.
A presença da crítica ajuda muito a dar uma aquecida no clima. Boa parte desses segundos
longas são de realizadores que já têm com a crítica uma relação, que começa a ter fissuras e
ressentimentos a partir do momento em que os filmes são feitos e debatidos. Não sei até que
ponto isso abala a relação amistosa e saudável, mas os realizadores têm que ter maturidade
para tratar com a crítica. Um certo receio do conflito é uma característica muito brasileira.

Leia a versão integral da entrevista no site www.filmecultura.org.br

Julio Bressane e Cleópatra

40 filmecultura 54 | maio 2011 VANGUARDA - INOVAÇÃO


POR CARLOS ALBERTO MATTOS

U A RDA
G O
VA N V A Ç Ã
INO

Santos Dumont pré-cineasta?


Os historiadores do cinema brasileiro não terão dúvidas em apontar o primeiro fe-
nômeno da área depois da Retomada: foi a renovação do documentário, que começou em 1997 e
teve seu pique entre 2004 e 2007. A partir, sobretudo, do surgimento de Santo forte, de Eduardo
Coutinho, Socorro Nobre, de Walter Salles, e Notícias de uma guerra particular, de João Moreira
Salles, o doc brasileiro conheceu um surto não somente de repercussão no meio e junto ao público,
como também de inquietação formal que o colocou na linha de frente do setor audiovisual.

Sem dúvida a maior contribuição para esse momentum foi a desrepressão das subjetividades.
E isso se deu tanto no foco de interesse dos filmes – pessoas vistas cada vez mais como
individualidades, em vez de representantes de classes ou grupos sociais –, como no eixo
de expressão dos realizadores, que se permitiram participar explicitamente do processo de
documentação e, em alguns casos, até se colocarem como protagonistas de seus docs.

À explosão das subjetividades somaram-se os intercâmbios com a ficção, com a videoarte


e com o experimentalismo para configurar um panorama atraente como o doc brasileiro só
conheceu, em escala quantitativa infinitamente menor, na aurora do Cinema Novo. Atraente
sobretudo para as novas gerações de cineastas, que ali encontraram um ambiente propício
ao desejo de experimentação e à necessidade de trabalhar em regime de baixo orçamento.
Ao longo dos anos 2000, o doc virou um grande laboratório de pesquisa de linguagem nos
coletivos, escolas de cinema e mesmo entre diretores consagrados. Até hoje a Mostra de
Cinema de Tiradentes, principal vitrine do cinema jovem no país, recebe documentários
numa proporção maior que 50% no seu processo de inscrições.

Mas, afinal, como se têm manifestado essas várias tendências que proponho enfeixarmos no
conceito de documentário de invenção? É o que pretendo sintetizar nos próximos parágrafos.
(Convém aqui dar o crédito ao termo “cinema de invenção”, cunhado por Jairo Ferreira, que veio
para sanar o caos semântico em torno das ideias de vanguarda, experimental e marginal.)

VANGUARDA - INOVAÇÃO filmecultura 54 | maio 2011


Rua de mão dupla
O império do dispositivo
Ao mesmo tempo libertação e prisão para o documentarista, o uso de um dispositivo no
lugar de um roteiro tem recriado as possibilidades da dramaturgia documental. O termo
“dispositivo” é usado aqui em sua vertente francesa (dispositif), baseado em acepções de
Michel Foucault e Gilles Deleuze, como um sistema de escolhas (temporais, espaciais e/ou
circunstanciais) que norteiam o percurso do cineasta dentro de uma realidade e um campo
de trabalho. Coutinho, quando elegeu determinada comunidade, um certo período e formas
de conduta mais ou menos regulares para fazer filmes como Santo forte, Babilônia 2000,
Edifício Master e O fim e princípio, estava ajudando a estabelecer o dispositivo na pauta
dos documentaristas brasileiros.

Cezar Migliorin, devotado estudioso do assunto, assim definiu sinteticamente o dispositivo


como estratégia narrativa: “é a introdução de linhas ativadoras em um universo escolhido”.
Para exemplificar, ele analisou o doc Rua de mão dupla, de Cao Guimarães (2003), em que
pares de pessoas que não se conheciam foram convidadas a trocar de casa durante 24
horas e filmar a casa do outro, tentando intuir sobre a personalidade do dono. A troca e o
espelhamento de impressões constituem a aventura do filme.

O doc de dispositivo traz como novidade a substituição do planejamento e da retórica expo-


sitiva pelo inesperado. Coloca o realizador à mercê de suas escolhas iniciais e o obriga a lidar
com resultados nem sempre controláveis. Pacific, de Marcelo Pedroso (2010), foi inteiramente
realizado com filmagens de turistas em cruzeiros marítimos, coletadas depois das viagens.
O próprio Migliorin é autor de um curta provocativo, Ação e dispersão (2003), em que ele se
limita a exibir a maneira como gastou a verba do edital em viagens pessoais que simultane-
amente compunham o seu filme-prestação de contas. Não é este o caso, mas o inferno do
dispositivo começa quando se torna mero fetiche, bastando-se em sua simples exposição.

O princípio da incerteza
Caminho bastante comentado e debatido ultimamente – inclusive em artigo meu na Filme
Cultura nº 50 –, a hibridez de códigos documentais e ficcionais dentro de um mesmo filme
forjou para o doc novos paradigmas de recepção por parte do público. A valorização da
incerteza, ou pelo menos um relaxamento nas exigências de “autenticidade” na origem
das imagens documentais, tem levado documentaristas como Andrea Tonacci (Serras da
desordem), Gabriel Mascaro (Avenida Brasília Formosa) e Maria Augusta Ramos (Juízo) a Em cima, Pacific,
trabalharem, cada um a seu modo, nos interstícios entre registro e encenação.
em baixo, Avenida Brasília Formosa

Se não representa necessariamente uma renovação na dramaturgia do documentário, como


é o caso do dispositivo, esse princípio da incerteza altera a atitude do cineasta perante seus
personagens e objetos. Mas principalmente modifica a maneira como o público consome – e
reage – a um tipo de cinema que, durante meio século (dos anos 1930 aos 80, pelo menos),
ficou escravizado ao papel de janela ou explicador do mundo. O que se impõe agora é o doc
como construção cinematográfica acima de tudo. Livre, portanto, para viajar na invenção.

42 filmecultura 54 | maio 2011 VANGUARDA - INOVAÇÃO


Aboio
A estética como ação documental
No curta Clandestinos (2001), Patrícia Moran entrevista ex-militantes contra o regime militar
em Belo Horizonte. O tema ultraexplorado se reaquecia mediante uma edição de som e de
imagens que simulava o desnorteamento, a comunicação precária, a dissimulação de iden-
tidades e o clima de vigilância que marcavam a vida na clandestinidade. Como esse, muitos
outros docs têm pisado o terreno da inovação com os calçados de uma estética aplicada
diretamente ao tema.

É comum no doc de invenção que a informação, ou parte considerável dela, seja passada
pelo estilo e pelos signos de linguagem, e não pela descrição, o dado simples ou a retórica
expositiva. O mundo factual não é referido retoricamente, mas emocionalmente. Trabalha-se
mais com o sensorial e o rítmico do que com a explanação didática. Aboio, de Marília Rocha
(2005), por exemplo, ecoava essa tradição vocal dos vaqueiros através de ensaios audiovi-
suais na caatinga, privilegiando a beleza do movimento bruto e a tonalidade evocativa dos
sons. Quando Cao Guimarães, Lucas Bambozzi e Beto Magalhães resolveram documentar
profissões em extinção (O fim do sem fim, 2007), optaram por imagens de Super 8 e uma
edição em que as coisas parecem mais desaparecer que ser trazidas à tela.

O doc de invenção utiliza modelos narrativos menos convencionais, toma liberdades poéticas
em maior grau e adota formas subjetivas de representação. Em sua linguagem, incorpora técni-
cas antes mais associadas à ficção, como efeitos digitais, imagens incrustadas ou sobrepostas,
alterações do ritmo natural, congelamentos, trilha sonora assumidamente não diegética,
planos subjetivos, descontinuidades. Em última instância, aproxima-se tanto da ficção quanto
do cinema experimental, mas destes se difere basicamente por voltar-se para objetos reais do
mundo social. Essa âncora com o real é o que ainda os caracteriza como documentários.

O tratamento poético da realidade pode ser motivado pelo próprio tema ou personagem, como é
o caso da evocação do poeta Waly Salomão pelo amigo Carlos Nader em Pan-cinema permanente
(2009). Qualquer veleidade informativa é saborosamente sabotada pelo sopro de desarrumação
que provém das atitudes de Waly. Daí resulta uma biografia experimental perfeitamente ajustada
a seu objeto. Mas essa poetização do real pode, ao contrário, vir de uma escolha deliberada do
realizador. Este é o caso de Joel Pizzini em 500 almas (analisado na Filme Cultura 53), que procura
nos quase extintos índios guatós, bem como no acervo científico e imaginário sobre eles e os
índios em geral, os elementos para a construção de uma etnopoética audiovisual.
Pan-cinema permanente
Compilações que recriam
O documentário baseado em materiais de arquivo também conheceu um rejuvenescimento
significativo na última década. Os filmes, fotos e arquivos sonoros preexistentes passaram
a ser usados não apenas como evidências e ilustrações, mas como matéria-prima para jogos
intertextuais, signos disponíveis para uma outra escrita radicalmente original. O exemplo mais
popular dessa tendência foi Nós que aqui estamos por vós esperamos (1998), de Marcelo
Masagão, inventário crítico-afetivo de verdades e mentiras sobre o século XX. Jean-Claude

VANGUARDA - INOVAÇÃO filmecultura 54 | maio 2011


Bernardet foi outro que se exercitou no subgênero, com destaque para São Paulo – sinfonia
e cacofonia (1995), ensaio sobre continuidades e picos de invenção no cinema paulista de
várias épocas. Joel Pizzini, por sua vez, forjou em Glauces: estudo de um rosto (2001) uma
espécie de atuação póstuma de Glauce Rocha ao samplear e criar novos significados com
as imagens da atriz em diversos filmes.

Mas o nome mais profundamente identificado com uma renovação do olhar sobre os arquivos
é sem dúvida Carlos Adriano. A partir de materiais às vezes ínfimos (poucos fotogramas,
velhos discos de vinil, uma curta cena de mutoscópio), ele cria ensaios minuciosos sobre
memória, perda e esquecimento. A manipulação (física e artística) de artefatos fora de uso
é uma condição fundamental do seu trabalho. Em filmes como Remanescências (1997),
Militância (2002) e Santos Dumont pré-cineasta? (2010), Adriano cria elos inesperados
entre os primórdios do cinema e a era da manipulação digital, sempre no pleno espírito de
desbravamento experimental.

Passeios pelo bosque da arte


Pode não ser o mais radical, mas o passo mais vistoso dado pelo documentário contemporâ-
neo no rumo da experimentação é o que o aproxima da esfera das artes visuais. Um histórico
da contaminação entre docs e artes plásticas no Brasil tem que necessariamente remontar
ao alvorecer dos vídeos de artistas, na década de 1970. Daí nasce uma tradição com pontos
marcantes na série Rioarte Vídeo – Arte Contemporânea, trabalhos conjuntos de artistas
plásticos e videoartistas, e nas experimentações de pioneiros como Arthur Omar, Miguel Rio
Branco e Mário Cravo Neto (ver artigo de Rubens Machado Jr. nesta edição).

Se por um lado vigora um impulso documental nas artes plásticas – com as operações sobre
fotografias, o agenciamento de matérias corporais e a inserção do documentário na pauta
das Bienais, entre outras coisas –, verifica-se também o deslizamento do doc para o âmbito
dos museus, galerias e instalações. Arthur Omar propôs ao espectador a experiência imer-
siva de uma mesquita afegã em sua instalação Dervix (2005). Kika Nicolela pediu a travestis
que se recriassem à vontade, sozinhos diante de uma câmera num quarto de motel, e criou
Trópico de Capricórnio (2004) para ser visto numa instalação com tela no teto. Carlos Nader
desenvolveu o conceito de segredo pessoal em múltiplas plataformas de interação, que
incluíam o vídeo, a performance e a instalação. Nesses trabalhos de Nader, sigilo, sucessi-
vamente reiterado, funcionava como um manifesto pelo recalcamento do teor informativo
Dervix do documentário, em busca de uma expressividade mais conceitual e sensorial.

Esse contágio e essa expansão, que absorvem artistas com trânsito entre várias disciplinas,
estão levando o doc a pontos extremos de sustentação do seu vínculo com o real. Isso
conduz inevitavelmente ao debate sobre o prazo de validade da própria distinção entre
documentário, ficção e experimentação. Talvez estejamos muito próximos não exatamente
de um futuro, mas de um passado que ainda soa como matriz e utopia: as vanguardas dos
anos 1920, quando todos os códigos se mesclavam em nome da invenção.

Carlos Alberto Mattos [email protected]

44 filmecultura 54 | maio 2011 VANGUARDA - INOVAÇÃO


POR MARCOS MAGALHÃES

VA N
G
I N O UA R D A
VAÇ
ÃO
MA R IO L A DEIR A

Oups

A Animação, origem de todas as linguagens audiovisuais, é arte de invenção


por excelência. Desde Joseph Plateau (1801-1883) e Emile Reynaud (1844-1918), os desenhos
e objetos animados quadro a quadro se constituíram no mais essencial tubo de ensaio para
a experimentação de técnicas e estilos do que se passou a chamar de Cinema. Isto posto,
pode-se concluir que não se faz animação sem inovação ou experimentação. Mesmo na
obra mais comercial é quase impossível escapar de um ou outro fator de risco, tentativa ou
pura ousadia no visual, na narrativa ou concepção estética, já que tudo em uma animação
é intermediado pela mente e pelas mãos do(s) indivíduo(s) criador(es).

Então o que seria, afinal, uma animação experimental? No livro norte-americano Experimental
animation, uma das raras obras de referência sobre o assunto, os autores Robert Russett
e Cecile Starr listam três condições em seu critério para classificar filmes e autores de ani-
mação como experimentais: o uso de técnicas individuais, dedicação pessoal (trabalho não
encomendado ou financiado) e ousadia artística.

VANGUARDA - INOVAÇÃO filmecultura 54 | maio 2011


Até bem pouco tempo (talvez até o fim do século passado), virtualmente toda obra de anima-
ção autoral produzida no Brasil poderia se encaixar nestes padrões, já que as possibilidades
comerciais eram inexistentes ou tão tênues que não representavam constrangimentos ou
barreiras a qualquer tipo de experimentação. O rótulo “experimental” poderia até ser aplicado,
de maneira pejorativa, ao filme que não atingisse os padrões esperados para uma aplicação
comercial. O esforço de Anélio Latini nos anos 1950 ao fazer praticamente sozinho Sinfonia
amazônica, levado a experimentar pela carência absoluta de recursos, constituía uma inovação
pelo feito histórico – primeiro longa-metragem de animação brasileiro – mas buscava repetir,
da maneira possível, as fórmulas já testadas por Walt Disney em filmes como Fantasia.

Desde sempre, é claro, existiram os autores que aceitaram ou reclamaram conscientemente


o rótulo de experimentais, sem ambições comerciais ou mesmo narrativas, encantados por
um exercício visual com as imagens em movimento. O autor de animação brasileiro até hoje
mais classificado assim é Roberto Miller, um dos muitos influenciados aqui pelo escocês-
canadense Norman McLaren. Como seu ídolo, Miller se destacou por realizar a partir dos anos
1960 filmes abstratos desenhados diretamente sobre a película. Desde então, esta técnica
ficou caracterizada aqui como expressão máxima da animação experimental.

É interessante citar que McLaren, tido entre nós como cineasta livre e experimental, viveu
mais de 40 anos como funcionário do governo do Canadá. Praticamente toda a sua obra au-
toral é patrimônio estatal, o que foge aos critérios de Russett e Starr (apesar de figurar com
destaque no livro). McLaren personifica o cinema laboratório industrial, a busca de lingua-
gens com o objetivo de aplicá-las a objetivos concretos. Não há dúvidas de que ele cumpriu
magistralmente esta função, sem se contaminar pelos vícios do funcionalismo, mas mesmo
assim não escapou de uma certa indiferença da radical comunidade apreciadora do cinema
“não-narrativo” (como alguns preferem nomear o experimental na América do Norte), pelo fato
de sua obra não ser de todo descompromissada e sua pacata vida pessoal não corresponder
ao radicalismo de algumas de suas manifestações estéticas.

Ao longo dos anos 1960 e 70, pela própria circunstância libertária (e depois escapista) da
arte daquele período, muitos artistas brasileiros passaram pela animação como veículo
de experimentação estética – foi o caso de José Rubens Siqueira (Sorrir), Antônio Moreno
(Eclipse), Rui de Oliveira (Cristo procurado), Stil (Batuque) e outros. Com a vinda dos anos
1980, praticamente desapareceu o espaço para experiências mais radicais, mas elas conti-
nuaram acontecendo quando possível. Adeus, de Céu d’Ellia, é um perturbador exemplo de
antropofagia de símbolos visuais feito por um animador formado pelo mercado da publicidade.
Ainda fora do circuito, é preciso destacar o lugar de autor experimental para Fernando Diniz,
artista do Museu de Imagens do Inconsciente, que surpreendeu a todos com a maestria em
seu único filme, Estrela de oito pontas, de 1996.

Com a revolução tecnológica iniciada dos anos 1990, o advento das mídias digitais e os
novos processos de produção, pode-se destacar duas vertentes para novas experimenta-
ções: uma seria a computação gráfica. Outra seria o cruzamento de tecnologias, suportes
e formatos permitidos pelo meio digital.

46 filmecultura 54 | maio 2011


No primeiro caso, novas ferramentas de visualização digital expandem tecnologias de repre-
sentação que seriam destinadas a ser cada vez mais fiéis à realidade. Hiper-realismo em
3D, motion capture, estereoscopia, podem também ser usados para criar novos universos e
lógicas narrativas, desconstruindo e inovando nossas percepções de realidades. Um autor
que optou entre nós por um caminho consistente nesta área é Carlos Eduardo Nogueira, ani-
mador independente com sólida carreira em linguagem experimental em computação gráfica.
Nogueira se encaixa nos três quesitos de Russett e Starr, criando em software 3D texturas e
shadings completamente fora do padrão comercial, mantendo uma postura independente e
sempre buscando alguma inovação em cada trabalho, desde Desirella até Yansan.

No segundo caminho, todos os autores hoje em dia, sem exceção, se sentem tentados a expe-
riências no limiar entre duas ou mais linguagens. Unir o artesanal ao digital tem possibilidades
Engolervilha infinitas. A animação pode agora se inserir livremente em longas ao vivo, documentários,
instalações e produtos multiplataforma, desafiando o senso comum e intrigando o espectador.
Um jovem talento do nosso cinema de atores, Matheus Souza, revelado pelo longa Apenas o fim,
prepara seu projeto seguinte usando a roupagem de animação proporcionada pela rotoscopia
(à maneira de Richard Linklater em Waking life, aliás uma óbvia influência).

Guilherme Marcondes, paulista, hoje trabalhando para o mundo todo a partir de Los Angeles,
iniciou-se com um curta independente, Tyger, que conjuga magistralmente diversas técnicas
e linguagens: teatro de animação, filmagem ao vivo e animação 2D e 3D. Marcondes continua
criando para o mercado de clipes e publicidade trabalhos que sempre inovam e expandem
a inserção do experimental.
Grafite animado
Obra emblemática e inspiradora para muitos é a do grafiteiro e animador italiano Blu, que
tem feito sua carreira quase exclusivamente com filmes postados no Vimeo com licença
Creative Commons, nos quais usa uma simples câmera fotográfica digital e as tintas, pincéis
e aerossóis do grafite. Blu tem pelo menos um possível seguidor no Brasil: Meton Joffily,
também grafiteiro, que incorpora a seus curtas de animação a estética dos painéis de rua
em Ratos de rua, Sinal vermelho e outros.

Uma outra tendência experimental lida com a forma narrativa e o modelo de produção: o filme
coletivo. Voltando mais uma vez ao passado, em 1986, Ano Internacional da Paz da ONU, a anima-
ção brasileira fora apresentada ao mundo pelo coletivo Planeta Terra, que reunia 30 animadores
em atividade constante no Brasil, cada um demonstrando sua visão e representação do tema
“Paz”. O que era uma moda na época (puxada pelo clipe musical coletivo de Michael Jackson,
We are the world) amadureceu agora para uma forte tendência alimentada pelas redes digitais,
que pode influenciar todo o futuro da produção e permitir cada vez mais cruzamentos.

Fabio Yamaji, paulista e nissei, foi formado em uma infelizmente extinta produtora, a
Trattoria di Frame, que conseguia aplicar uma postura experimental ao mercado publicitário
de animação. Ao se ver solto na área autoral, Yamaji despertou para uma brilhante carreira
iniciada com Divino, de repente... Neste filme, além das diversas técnicas (pixilation, desenho,
objetos, etc.), destacam-se a criação e produção coletiva.
Ratos de rua e
Mutu
VANGUARDA - INOVAÇÃO filmecultura 54 | maio 2011
Marão, o irreverente animador carioca de muitos curtas, como O arroz nunca acaba, já fora res-
ponsável por unir jovens animadores (entre eles, Fabio) em torno da absurda e iconoclasta série
coletiva Engolervilha, cujo terceiro episódio já extrapola com o nome de Engole logo uma jaca
então. Diversas técnicas e um total descompromisso com lógica e ética fazem um terreno fértil
para extravasar em catarse as linguagens e técnicas experimentais de vários animadores.

Dentre os nomes revelados por esta série está também o de um jovem cearense, Diego Akel,
que assume a bandeira do cinema de animação experimental no conceito McLaren: formas
abstratas, pesquisa de texturas e descompromisso com personagens e narrativas pronta-
Planeta Terra mente reconhecíveis. Diego tem atuado com oficinas e seminários em Fortaleza e promete
continuar a expandir esta tendência em sua comunidade.

É importante mesmo que estruturas e recursos sejam mantidos para ampliar nossos laboratórios
de linguagens. Um dos mais antigos laboratórios se mantém há 21 anos em um cenário idílico,
à beira da Floresta da Tijuca, no Horto do Rio de Janeiro: o Visgraf (Laboratório de Visualizações
Gráficas) do Impa (Instituto de Matemática Pura e Aplicada), onde a equipe liderada pelo designer,
fotógrafo e matemático Luiz Velho cria softwares e sistemas que fazem cada vez mais junções de
conhecimentos musicais, de dança e de captura de movimento muito interessantes e intrigantes
para a comunidade artística. Não existem (ainda) casos de obras artisticamente reconhecidas
(por exemplo, filmes premiados em festivais de cinema) feitos com as ferramentas digitais pes-
quisadas pelo Visgraf, mas pode-se apostar que isso não demorará a acontecer.

Marcio Ambrósio, animador e artista plástico paulista com passagem pela Bélgica, explora o
fazer intuitivo da animação com interfaces digitais interativas em instalações performáticas
como Oups e o Grafite animado, mostrados ao público em eventos como o festival Anima
Mundi. Aliás, uma das marcas do festival é justamente o Estúdio Aberto, onde os futuros
talentos descobrem o prazer da experimentação com o quadro a quadro. Não deixa de ser
um laboratório temporário e democrático a céu aberto, no mês de julho, quando acontece
o festival no Rio e em São Paulo.

Ultimamente o foco de atenção para a animação tem se voltado para a conquista do mercado
brasileiro de séries de TV e longas para cinema, fato indiscutivelmente importante, histórica
e estrategicamente. À medida que este mercado se estabelece (e ainda há muito caminho a
percorrer), vai se evidenciando cada vez mais a necessidade destes laboratórios de novas
possibilidades. O importante é que esta vocação de pesquisa, natural e intuitiva na arte da
animação, não se deixe perder na ambição estreita de atender ao que o mercado começa a
determinar, pelo simples e cômodo vício da repetição. Pois a história mostra que os mercados
mais sólidos e frutuosos foram conquistados com a inovação, e esta é uma lição que, no que
Estúdio aberto no Anima Mundi diz respeito aos animadores, apesar de sua vocação natural, precisa sempre ser renovada.

Marcos Magalhães é cineasta de animação, autor de Animando e Meow! (premiado em Cannes), professor
pleno de Animação na PUC-Rio e um dos diretores do Anima Mundi, Festival Internacional de Animação do Brasil.

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POR FERNANDO MORAIS DA COSTA

U A RDA
G O
VA N V A Ç Ã
INO

Quando fui convidado pelos editores da revista para escrever sobre vanguardas
e experimentações sonoras, a junção de dois fatos me levou a um impasse inicial: primeiro,
havia certa indicação de que o texto tratasse de inovações recentes; segundo, há a minha
própria vontade atual de escrever mais sobre o cinema contemporâneo do que sobre perío-
dos passados da história do cinema. O problema configurou-se quando pensei o seguinte:
o que há de inovações sonoras hoje?

Ando dizendo em salas de aula e em lugares menos cotados que há hoje uma espécie de
vale-tudo sonoro, embora domesticado, porém mais livre de certas convenções ensinadas
pelo cinema clássico narrativo. Assim, creio não estar sozinho ao defender que certos usos do
som que já foram considerados tabus, no que, generalizando, se diz ser o cinema comercial,
estão hoje cada vez mais naturalizados. Quanto à música, por exemplo, ideias tradicionais
como as que diziam respeito a uma impossibilidade no dito cinema comercial, hollywoodiano
que seja, da música ir contra o que as imagens narram são difíceis de aplicar hoje, mesmo na
análise dos filmes que mais fazem sucesso pelo mundo afora. Antigos argumentos sobre o
medo de silenciar certas ações, sob risco do espectador simplesmente estranhar a ausência
de tal som e de repente perceber que há mecanismos de junção entre sons e imagens em
operação, já não fazem sentido quando passa a se tornar um clichê o fato de propositada-
mente não se ouvir o tiro fundamental, a explosão mais impactante. Se tais silenciamentos
têm a função primordial de chamar exatamente a atenção do espectador para tais ações,
ao invés de causar distanciamento, pode-se dizer que cortes abruptos de grande intensidade
sonora para impressões de silêncio não assustam mais ninguém.

Andarilho VANGUARDA - INOVAÇÃO filmecultura 54 | maio 2011


Sobre grande parte da sonorização para cinema hoje paira o conceito de hiper-realismo.
Inicialmente relacionada à pintura, tal expressão parece dar conta de modos a unir sons e
imagens em ilhas de edição, reproduzidos nas salas de cinema cujo aparato sonoro seja mais
impactante. Não se trataria mais de mostrar ao espectador que aqueles sons são fidedignos
aos que ele escuta na realidade, mas de deixar claro que som de cinema passa a ser um
artefato que produz impacto sensorial maior do que os sons do mundo, ou do que os sons
que tais objetos produziriam no mundo.

Na verdade, creio ser mais interessante exatamente a fronteira entre uma coisa e outra: uma
espécie de hiper-realismo sutil, se isso não for um oximoro. É evidente que no caso dos maiores
lançamentos do cinema mundial o hiper-realismo está indubitavelmente em funcionamento.
Mas em parte do cinema brasileiro dos anos mais recentes, do cinema argentino, mexicano,
uruguaio até, o som vem deixando de se ancorar no real, seja lá o que isso for, e ganha auto-
nomia para que dele se possa dizer: a representação de tais sons nesses tais filmes se traduz
em um excesso obrigatório, em uma intensidade maior do que se espera quando vemos na
tela as fontes que produzem os sons. Mesmo aqui, no cinema feito à nossa volta, as coisas
parecem soar mais densas do que na própria realidade, quando entramos nas salas.

Confesso aqui a preocupação de não cair no binarismo “experimental X comercial”.


Daí até a falta de pudor em tomar o dito cinema comercial como lugar de uma estética sonora
contemporânea reconhecível.

Preocupavam-me ainda, quando pensava no texto por escrever, os termos a serem usados:
é conhecida a resistência dos que seriam expoentes de uma história do cinema experimental
a essa própria palavra. Stan Brakhage, que como ensina Fred Camper não deve ser visto
apenas como um bastião do suposto reinado da imagem no cinema, mas também como o
responsável pela experiência radical de colocar seus espectadores frente ao silêncio total
de suas projeções, notoriamente não gostava da palavra para definir seu trabalho. Mudando
do cinema para a música, John Cage, em texto de 1957 chamado exatamente Experimental
Music, comentava como passou da objeção radical à aceitação do termo “experimental”
para definir seu trabalho.

Em cima John Cage,


De qualquer forma, mais simpática talvez do que cinema experimental seja a expressão
em baixo Stan Brakhage “cinema de invenção”, o que remete ao saboroso livro de Jairo Ferreira. Sua análise das
obras de Candeias, de Reichenbach, de José Agripino de Paula, de Bressane, de Tonacci e
de tantos outros é sempre sensível ao som dos filmes e às suas relações com as imagens.
A mirabolante divisão do livro nas categorias de “sintonia experimental” (eis aí a tal palavra),
“sintonia existencial”, “visionária”, “intergalática” faz apenas mostrar a sintonia da própria
análise com os objetos identificados e não identificados, vistos e ouvidos.

Ao pensar um pouco sobre décadas passadas, é evidente que há uma tradição de experimen-
tações sonoras no cinema brasileiro. Mais especificamente, óbvio, no cinema moderno. O
trabalho de Simplício Neto, em vias de publicação, sobre o som de Hitler IIIº mundo, lembra
a complexidade de sua trilha sonora. Simplício Neto lembra tanto a influência do diretor José

50 filmecultura 54 | maio 2011 VANGUARDA - INOVAÇÃO


Hitler IIIº mundo

Agripino de Paula sobre a comunidade artística da São Paulo do fim dos anos 1960 e início dos
1970 quanto sua erudição, o fato de estar antenado com diversas correntes artísticas espa-
lhadas entre a Europa e os Estados Unidos. Agripino defenderia assim a chamada “música de
fita”, em referência à música concreta capitaneada, entre outros, por Pierre Schaeffer. Seria
essa uma das múltiplas influências de suas experimentações sonoras, materializadas em um
disco raro e no próprio filme. Para Simplício, um filme como o de Agripino borra a sempre citada
fronteira entre diegese e não diegese de forma grave, até porque talvez a preocupação com
o espaço que cada som ocupa não seja nem relevante para se analisá-lo. Simplício chega a
colocar a questão: o som de Hitler IIIº mundo não seria um imenso comentário extradiegético?
Se a resposta fosse afirmativa, estaríamos dizendo que nenhum som faz parte das ações que
vemos. O próprio autor da pergunta, no entanto, não a responde afirmativamente, ao chegar
à conclusão de que mesmo tal raciocínio pareceria reducionista.

Se o som no cinema clássico narrativo está claramente, na maior parte do tempo, em um lugar
ou em outro (no espaço da ação ou vindo de fora dele); se é uma característica do cinema
moderno embaralhar essa divisão, existiriam filmes, como Hitler IIIº mundo, nos quais as
relações entre sons e imagens parecem estar ainda mais soltas. É o caso, por vezes citado,
da voz sobre as imagens nos filmes de Marguerite Duras, os quais o público carioca teve
recentemente a oportunidade de ver em sala de cinema. India song talvez seja o maior e mais
célebre exemplo: ali, as vozes que narram evidentemente não estão no espaço e no lugar da
ação mostrada nas imagens, mas também não se encaixam nos parâmetros tradicionais da
voz over. Tais vozes parecem estar em um terceiro lugar, deslocado, talvez entre o primeiro
e o segundo. Criam relações inconclusivas com as imagens.

Mas voltando aos filmes de hoje e à nossa questão inicial: o que há de invencionices sonoras,
especificamente no cinema brasileiro? Aqui surge uma vontade desagradável de dizer que
o que há de mais inventivo não caracteriza uma novidade assim tão nova, embora se possa
fazer uma relativização, como de fato faremos.

VANGUARDA - INOVAÇÃO filmecultura 54 | maio 2011


Viajo porque preciso, volto porque te amo

A indistinção, por exemplo, entre música e ruídos, uso sonoro paradigmático do cinema
moderno, vem se tornando um dos clichês do cinema contemporâneo. Pense-se, sobre o
cinema moderno, no famosíssimo caso de Vidas secas, na criação sonora de Geraldo José
para a obra de Nelson Pereira dos Santos que não precisa ser reexplicada aqui. Aliás, modo
de sonorizar presente em Vidas secas, mas não só. Geraldo José organizaria os ruídos se-
gundo parâmetros musicais em Os fuzis, em Navalha na carne, em O amuleto de Ogum e em
outros. Sobre O amuleto de Ogum, Jards Macalé, compositor da música do filme, explicaria,
em depoimento para Severino Dadá inserido no documentário do montador sobre o técnico
de som, que Geraldo José o ensinara que “ruído é som, e som é música, e música é ruído”.

No cinema internacional das últimas décadas, tal modo de sonorizar que já foi marca do cinema mo-
derno pode ser ouvido em filmes provenientes de diferentes modos de produção: Lars Von Trier em-
baralha a fronteira entre o que é música e o que é ruído, Darren Aronofsky o faz repetidamente.

O teórico de música e de música para cinema Robin Stilwell propõe, em artigo chamado The fan-
tastical gap between diegetic and nondiegetic, que na análise do som do cinema contemporâneo
não sejam necessariamente utilizados parâmetros que serviram para pensar o cinema clássico
narrativo ou mesmo o cinema moderno. A partir da sugestão de Stilwell, pode-se dizer que, em-
bora certas estratégias para unir sons e imagens no cinema possam não parecer necessariamente
novas, o modo como se operam essas estratégias é particular dos filmes contemporâneos. Assim,
por exemplo, a transformação de um som identificado como ruído, em um primeiro momento, em
algo que se pode chamar de música, em um segundo, não produziria hoje, é evidente, o mesmo
sentido que produzia cinquenta anos atrás, quando determinados diretores circunscritos ao
início do cinema moderno mostraram ser possível aquela operação sonora.

Em Andarilho, de Cao Guimarães, parece, de fato, haver um modo contemporâneo de


borrar fronteiras tanto entre diegético e não-diegético, quanto entre música e ruídos.
Em um cinema no qual as imagens sugerem uma contemplação mais radical, os sons podem
ganhar funções proeminentes: criar ritmos internos em determinados planos, no meio-tempo
entre dois cortes de imagem, materializar índices que na imagem não apareçam de forma
tão clara. Viajo porque preciso, volto porque te amo, de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz,
provoca questões sonoras interessantes, algumas delas discutidas recentemente no blog
de Jean-Claude Bernardet. Salta aos olhos e aos ouvidos a radicalidade do filme em primeira
pessoa; a centralidade da voz através da qual recebemos a confissão da perda da mulher,
e através da qual descobrimos paulatinamente que personagem é esse. É extremamente
funcional a estratégia de criar uma identificação entre personagem e espectadores a partir
dessa voz, embora, como bem lembra Bernardet, haja elementos na imagem que a reforcem,
como os planos de estrada do ponto de vista de quem está no volante, sendo que quem

52 filmecultura 54 | maio 2011 VANGUARDA - INOVAÇÃO


A dama do Peixoto

supostamente está no volante é o personagem principal, Zé Renato. Bernardet destaca a


necessidade do texto rigorosamente construído, embora a lógica de sua construção exija uma
margem de ambiguidade que não deixa criar uma relação precisa entre sons, palavras (que
não deixam de ser sons) e imagens. O crítico chega à surpreendente conclusão de que tal
narração onipresente torna, ao fim do filme, o corpo invisível de Zé Renato “mais pesado do
que no início”. Corpo que, lembra ainda Bernardet, como no célebre caso do Doutor Arthur,
do Triste trópico de Arthur Omar, não tem existência visual em momento algum.

Curta-metragem recente que também faz da não aparição do corpo da personagem principal
sua principal estratégia narrativa é A dama do Peixoto, de Douglas Soares e Allan Ribeiro.
Além de seguirmos pelo filme esperando por uma personagem que não aparece, tampouco
vemos de onde vêm as várias vozes que falam dela. Enquanto ouvimos a montagem de vozes,
vemos não os corpos, mas recantos da praça habitada pela personagem principal invisível.
Ao final, vemos, evidentemente, o rosto da personagem tão discutida.

Essa estratégia de deixar fora de quadro o que mais se espera ver, de linhagem tão nobre
na história do cinema, encontra outros praticantes no cinema brasileiro contemporâneo.
É o caso de Eduardo Valente. O exercício do fora de quadro nos seus curta-metragens, mais
radical em O sol alaranjado, teve mais um capítulo no longa-metragem No meu lugar, no
qual ações fundamentais para o desenrolar da trama não são vistas, mas ouvidas.

Voltando a Viajo porque preciso, volto porque te amo, surge, para além da análise da
voz encaminhada por Bernardet, uma última questão: se a voz nos leva de tal forma para
dentro da cabeça do personagem, se ouvimos o que ele pensa, o que dizer dos demais
sons? Também ouvimos os sons do sertão a partir da sua apreensão pelo personagem?
Se dissermos que não, de fato estaremos criando estatutos diferentes para a voz e para os
demais sons, especificamente para os ruídos. Pois, neste caso, a voz seria um som subjetivo
(a ouvimos pois ouvimos os pensamentos do personagem), enquanto os ruídos tentariam
representar o sertão objetivamente. Se, ao contrário, negarmos essa primeira hipótese,
chegaríamos à conclusão oposta: tudo o que ouvimos está na cabeça de Zé Renato, e ouvi-
mos os sons do sertão, do São Francisco, das cidades, a partir do que ele ouve. É certo que
a voz em primeira pessoa cria a identificação entre os espectadores e o personagem, mas
essa identificação se expande para todos os sons do filme? Ou estes estão em outro lugar,
funcionando de acordo com outras regras? As vozes e os demais sons produzem sentidos
assim tão diferentes entre si?

Fernando Morais da Costa é professor do Departamento de Cinema e Vídeo e do Programa de Pós-Graduação em


Comunicação da Universidade Federal Fluminense. É autor de O som no cinema brasileiro.

VANGUARDA - INOVAÇÃO filmecultura 54 | maio 2011


enquete F I L M E C U L T U R A

U A RDA
G O
VA N V A Ç Ã
INO
Com o objetivo de compreender os pontos em comum e as diferenças nas mais recentes
propostas de experimentação de linguagem no cinema e nas demais artes, Filme Cultura
procurou especialistas de outras areas para falar sobre as circunstâncias atuais. A eles,
apresentamos a seguinte questão:

Por onde passam hoje a inovação e a experimentação, seja na sua área ou em


geral? Você pode dar exemplos de nomes ou obras?
As respostas que nos foram dadas por estas figuras de destaque da literatura, do teatro,
dos quadrinhos, das artes plásticas e da TV podem ser lidas a seguir.

Paulo Henriques Britto


poeta, tradutor e professor

“Há que distinguir o conceito de vanguarda de outro, estreitamente a ele associado: o de


experimentalismo. Aqui a metáfora é cientificista em vez de militar: o artista experimental
é aquele que, tal como o cientista que elabora experimentos no laboratório em prol do pro-
gresso da ciência, desenvolve inovações que levariam a avanços no campo da arte. Quando
não assumiu um papel radical de demolidor niilista, o artista de vanguarda era muitas vezes
experimental neste sentido, pois precisamente por se dedicar à “pesquisa de formas” ele
ajudava a traçar o futuro para o qual abria caminho. (...)

Meu ponto é que - tal como já havia experimentação artística antes dos meados do século XIX -
após o fim das vanguardas, quando se tornou anacrônica a figura do artista que quer com cada
obra inventar uma nova linguagem para sua arte, continuará a haver inovação artística e novos
experimentos em arte. Em todas as áreas de criação continuarão a surgir processos e linguagens
novas, ora buscados de modo calculado, ora produzidos mais intuitivamente; alguns ficarão na
história como curiosidades apenas, enquanto outros darão uma inflexão diferente ao desen-
volvimento de uma determinada arte. Para dar exemplos do cinema, o close-up e o cinema
falado foram inovações técnicas férteis; por outro lado, o Cinerama e o processo Smell-o-
vision criado por Mike Todd, Jr. foram (em graus diferentes) improdutivos.

Para encerrar, algumas palavras sobre a poesia brasileira. (...) O poeta de 2011 pode optar por
escrever uma sestina ou criar um poema visual e sonoro num blogue. Assim, na obra de alguns
dos mais importantes poetas contemporâneos, como Claudia Roquette-Pinto e Carlito Azevedo,
podemos encontrar elementos do concretismo, retrabalhados e combinados com recursos mais
tradicionais. Outros, como Antonio Cicero, combinam forma clássica e dicção coloquial; e a
profusão polifônica de vozes que marca a poesia de Francisco Alvim tem mais de um traço
em comum com o informalismo anárquico da geração mimeógrafo. Ricardo Domeneck
produz uma lírica confessional que mais uma vez evoca a geração mimeógrafo, mas
acumula referências e citações poliglotas à maneira de Haroldo de Campos. Poetas

54 filmecultura 54 | maio 2011 VANGUARDA - INOVAÇÃO


como esses, e muitos outros que eu poderia mencionar, estão, cada um a seu modo,
experimentando com a linguagem poética, embora não possam ser considerados artis-
tas experimentais como os do tempo das vanguardas; e não temos nenhum motivo para
duvidar que no futuro experimentos continuem a ser realizados na poesia, como em
todas as artes. O ocaso do vanguardismo experimental não é a morte da experimentação
artística: é apenas o fim de um longo capítulo.”

Leia a íntegra da resposta de Paulo Henriques Britto em www.filmecultura.org.br

José Roberto Aguilar


artista plástico, escritor e bandleader

“É uma impressão subjetiva, claro. Eu acho que a vertente para uma inovação passa pelo
cinema, que está sendo cooptado pelas artes plásticas.

Esta junção é poderosa. Primeiro, quebra o enredo linear baseado em ação, o tempo determi-
nado pelo espetáculo, e assim devolve um envolvimento livre do tempo e dos racionalismos.
É sintomático a última Bienal de São Paulo estar coalhada de vídeos. Um exemplo maior é o
do diretor tailandês ganhador da Palma de Ouro, também presente na Bienal, Apichatpong
Weerasethakul.”

Bia Lessa
encenadora de teatro e ópera, cenógrafa e designer de exposições e museus

“Acho que as grandes inovações e experimentações passam hoje pelas ciências exatas – nada
nos cria maiores questionamentos do que as novas possibilidades abertas pelo universo
científico. Penso que saímos da linha de frente e que estamos buscando um novo espaço.
Nesse sentido acho que os espetáculos, sejam eles em teatro, música ou ópera, estão cada
vez mais difíceis de serem realizados. Por essa razão as linguagens começam a se misturar
na esperança de estabelecer um novo universo de possibilidades - mas eu, particularmente,
estou descrente desse caminho apesar de tê-lo utilizado em alguns dos meus trabalhos.

Zé Celso e Antunes Filho em teatro ainda são imbatíveis. Eles estão na linha de frente, no
meu entender. Alguns momentos de suas obras atuais são suficientes para nos proporcionar
momentos de emoções e transformações profundas. Instantes dentro de grandes percur-
sos. Cito a obra de Paulo Mendes da Rocha, Tadao Ando, o escritório Sanaa em arquitetura; a
música de Egberto Gismont, Caetano e Bethania; Pina Bausch, o maestro Sergiu Celibidache.
Fiquei emocionada com o último filme do Godard, Filme socialismo.”

VANGUARDA - INOVAÇÃO filmecultura 54 | maio 2011


Luiz Camillo Osorio
crítico de arte

“A inovação e a experimentação seguem sendo coisa rara, mas passam por vários lugares no meio
de arte. Ela pode estar nas pinturas de Sean Scully, nos filmes e desenhos de William Kentridge,
nas ações propostas por Tino Sehgal ou Laura Lima, nas instalações de Ernesto Neto ou Janet
Cardiff etc. Citei estes exemplos - e poderia citar outros - para mostrar que a diferença do novo
não está ligada a um suporte ou meio expressivo, não tem nada a ver com evolução tecnológica
(nem é contra ela), mas se apresenta como uma surpresa estética: algo que nos tira das fórmulas
constituídas e nos faz poder perceber as coisas de um modo singular. É claro que com a prolife-
ração de museus e com um mercado de arte aquecido, há uma demanda inflacionada por obras
de arte. A quantidade não implica qualidade, tampouco é contrária a ela. Sempre houve um
excesso de obras que com o tempo foram sendo filtradas pela história, sobrando o osso poético.
As reservas técnicas estão abarrotadas de obras expelidas. Do contraste nascem as diferenças
e estas se manifestam, de início, com o que chamei de surpresa estética – que está relacionada
à inovação e à experimentação. O resto é especulação e business, que estão no meio de tudo e
não adianta reclamar. Cabe a cada um e à história separar o joio do trigo.”

Heloísa Buarque de Hollanda


professora e editora

“Do meu ponto de vista, a literatura brasileira está num momento áureo. A nova geração está
entrando com força, criando seu público leitor, é uma geração que tem uma formação literária
com forte input de imagens, música, quadrinhos, clipes etc. Então você vê uma literatura
quase multiplataforma, mesmo que só use a palavra impressa. Outra enorme novidade é a
emergência do nicho de literatura infanto-juvenil. Adolescentes estão lendo! É verdade que
essa geração está superatraída por um mundo de vampiros e bruxos(as), mas o interesse
pela leitura aumenta e começa a chegar em outros tipos de literatura. E, por último, as duas
perspectivas de inovação que estão chegando e fazendo barulho: a literatura produzida nas
periferias, que vem com dicção própria e trazendo uma nova relação com a criação e com
a própria leitura, e o universo da web, que para mim é o grande laboratório literário desse
momento. A convergência de mídias e linguagens, os recursos de participação e expressão
são quase infinitos, os games sinalizam novos formatos narrativos para a novela e para o
romance. Enfim, teremos surpresas no pacato mundo das Letras.

Novos nomes: Cecilia Gianetti, João Paulo Cuenca, Andréia del Fuego, Alice Santana.
Periferia: Ferrez, Alessandro Buzo, Sacolinha, Allan da Rosa, Nelson Maca, Sergio Vaz.”

Ota
quadrinista

“O mundo está mudando e as novas mídias dão uma nova dimensão aos quadrinhos e à animação.
A N D R E A S VA LE N T I N

Estamos num momento de transição, mas ainda no início dessa nova era, e a humanidade ainda
está se adaptando. Mas acredito que ainda não descobriram o jeito certo de fazer as coisas.

Minhas áreas são quadrinhos e animação. Os quadrinhos tais como os conhecemos, em papel
impresso, não devem morrer tão cedo nas edições de colecionadores, mas na transição para os

56 filmecultura 54 | maio 2011 VANGUARDA - INOVAÇÃO


formatos eletrônicos podem ter implementos. Afinal, se antes as imagens não podiam se mexer
por serem impressas em papel, agora elas podem quando lidas em e-books. Então podem ser
como as imagens dos livros e jornais do universo de Harry Potter, onde são todas animadas.
Há que ter cautela no uso desses recursos, para não desvirtuar muito a linguagem. Já a animação
tende, num futuro não muito distante, a se mesclar com a holografia. Já existe tecnologia para
isso, porém os custos são proibitivos para produzir de um jeito acessível às massas. Sem contar
com o recurso da interatividade, que pode ser utilizado também. Mas é preciso que ambos os
lados da indústria – os criadores e os produtores – se adaptem à transição. O conteúdo é fun-
damental, e a responsabilidade é maior para os criadores... sem uma boa história não adianta
ter toda a tecnologia à disposição.

Estou certo de que alguém vai descobrir o caminho e dar um passo que coloque tudo num
novo patamar... mas acho que ainda é cedo para citar nomes.”

Luiz Fernando Carvalho


cineasta e diretor de TV

(...)
“Gostaria que chegasse até vocês essa ideia do vazio da invenção de onde parto sempre;
que, desde que existe, no século XIX, esta mesma linguagem não cessa de se esvaziar, seja
na Literatura, nas Artes Plásticas, ou depois, como agora, no próprio Cinema, ou mesmo na
Televisão ou através das novas mídias.

Gostaria, ao menos, de apresentar a necessidade de abandonar uma ideia preconcebida, ideia


de que uma invenção se faz de si própria, segundo a qual ela já é uma linguagem, possível de
pertencer a um contexto de “invenções”, inventadas como as outras, mas suficientemente
e de tal modo escolhidas e dispostas que, através delas, passe algo de inefável.

Parece-me, ao contrário, que a invenção não é, desde sempre, desde sua origem, feita de
algo inefável. Ela é feita de algo “tátil”, de algo constituído por nossos sentidos; portanto,
poderia ser chamada de fábula, no sentido rigoroso e originário do termo. Então, a invenção
é feita de algo que deve e pode ser “experimentado” e construído: uma fábula que, todavia,
dependendo do traçado de seu artesão, pode ser reproduzida numa linguagem de ausência,
assassinato, duplicação ou simulacro.

(...)
Quando uma invenção é uma invenção?

O paradoxo de um filme reside no fato de só ser Cinema no exato momento de seu começo,
na tela ainda em branco – e que permanece em branco, quando nada ainda foi projetado
na sua superfície.

O que faz com que a Literatura seja Literatura, que a linguagem escrita em um livro seja
Literatura, é uma espécie de ritual prévio que traça o espaço da consagração das palavras.
Poderíamos, substituindo a palavra Literatura pela palavra Cinema, dizer então que o que
faz com que um filme seja Cinema, [que a linguagem visual de um filme seja Cinema], é uma
espécie de ritual prévio que traça o espaço da invenção das Imagens.

VANGUARDA - INOVAÇÃO filmecultura 54 | maio 2011


Então, quando a página em branco começa a ser preenchida, quando se começa a transcrever
palavras nessa superfície ainda virgem, cada palavra [assim como no Cinema, cada imagem]
se torna, de certo modo, absolutamente decepcionante com relação à imaginação Literária
ou Cinematográfica, pois não há nenhuma palavra ou nenhuma imagem que pertença, por
essência, por direito de natureza, à Literatura ou ao Cinema, ou até mesmo às novas mídias.

De fato, desde que uma palavra esteja escrita na página em branco, ela deixa de ser Literatura,
assim como desde que uma imagem é projetada em uma tela em branco deixa de ser Cinema.
Quero dizer que a invenção de cada palavra ou imagem é, de certo modo, uma transgressão
da essência pura, branca, vazia e sagrada da Imaginação, que faz de toda invenção não uma
realização Literária ou Cinematográfica, mas sua ruptura, sua queda, seu arrombamento.

A invenção é uma queda para o alto.”

Leia a íntegra da resposta de Luiz Fernando Carvalho em www.filmecultura.org.br

Silviano Santiago
escritor e crítico literário

“Cito a passagem do livro de Jean Genet sobre Giacometti:

‘Aceito mal o que em arte se designa por inovador. Deverá uma obra ser entendida pelas
gerações futuras? Por quê? Que quererá isso dizer? Que elas poderão utilizá-la? Em quê?
Não vejo bem. Já vejo melhor – ainda que muito obscuramente –: toda a obra de arte que
pretenda atingir os mais altos desígnios deve, desde o início e com paciência e uma infinita
aplicação, recuar milênios e juntar-se, se possível, à imemorial noite povoada pelos mortos
que irão reconhecer-se nessa obra.

Nunca, nunca, a obra de arte se destina às novas gerações. Ela é oferenda ao inúmero
povo dos mortos. Que a acolhem. Ou rejeitam. Mas os mortos de que falo nem vivos foram.
Ou então esqueci-os. Porque foram-no suficientemente para que os esqueçam, já que a vida
teve como fim levá-los a cruzar esta tranquila margem de onde aguardam – ido daqui – um
sinal reconhecível.

(...)

Giacometti tem um modo de falar rude, como se escolhesse a dedo a entoação e os termos
mais próximos da linguagem corrente. Parece um tanoeiro.

Ele – Viu-as em gesso... lembra-se do gesso?


Eu – Sim.
Ele – Acha que perdem por ser bronze?
Eu – Não. Nada.
Ele – E ganhar, ganham?

Hesito de novo proferir a frase que melhor se aplica aos meus sentimentos.

Eu – Você vai voltar a rir-se, mas curiosamente eu não diria que elas ganham, mas sim que
o bronze ganhou. Pela primeira vez na vida o bronze acaba de triunfar. As suas mulheres
são uma vitória do bronze. Sobre o próprio bronze, creio.’”

58 filmecultura 54 | maio 2011 VANGUARDA - INOVAÇÃO


Ensaio fotográfico P O R C A O G U I M A R Ã E S

Na passagem do milênio, no início das filmagens de O fim do sem fim


(sobre profissões em extinção), na região do Alto Jequitinhonha, em Minas Gerais,
encontramos estes seres estranhos cuja profissão era assustar pássaros.

Pareciam congelados em um gesto – apontando algo no horizonte, um contrapé


de dança, um tropeço, um grito. Pareciam congelados para a eternidade como as
múmias, as montanhas e as pedras.

Apesar de estarem ali para assustar, provocavam em mim uma intimidade


imediata, a arqueologia de uma ludicidade infantil derretendo as estalactites da
minha alma envelhecida.

Sentei ali no meio deles em silêncio esperando que algo acontecesse. Longas
horas se passaram e nada aparentemente aconteceu. Ao anoitecer fomos embora
e o chacoalho do carro me embalou num sono profundo. Agora eles já dançavam
em roda entoando uma canção antiga pontuada por gritos paleolíticos. A cada
grito uma peça de roupa de seu fabuloso vestuário era lançada no meio da roda.
A canção continuava infinita pelo meio da noite e sobre a terra fofa recém-arada
apenas um monte de roupas e uma profusão de pegadas de pés pequenos onde
alguns pássaros ciscavam aqui e ali.

Imagino que hoje, uma década depois, esta profissão quase não exista mais e não
faço a menor ideia de onde foi parar esta pequena multidão de seres fascinantes
que habitavam nossas lavouras. Talvez apenas migraram para um plano de
realidade diferente e estejam assustando os pássaros famintos que hoje habitam
nossos sonhos.

VANGUARDA - INOVAÇÃO filmecultura 54 | maio 2011


JULIO BRESSANE

O EXPERIMENTAL NO CINEMA NACIONAL


publicado no Mais!, Folha de S. Paulo em 4/4/1993 e extraído
do livro Julio Bressane - Cinepoética, organizado por Carlos
Adriano e Bernardo Vorobow. Ed. Massao Ohno, SP, 1995.

O primeiro filme experimental no Brasil foi o dos dois


irmãos Segretto, que adquiriram na França, no ano mesmo
de sua fabricação (1897), a câmera de filmar criada pelos
(também dois) irmãos Lumière.

Os irmãos Segretto filmaram em 1898, do convés do


paquette que os trazia da Europa, a entrada da Baia da
Guanabara com seus fortes portugueses e megalitos
lendários. Este material foi destruído. Mas podemos con-
jecturar que estas imagens com a câmera em movimento
(travelling) e oscilando, movimento natural do barco,
foram um total experimento cinematográfico. O experi-
mental está, entre outros indicadores, pelo inusitado do
lugar onde se encontrava a câmera, pelo movimento e
IVA N C A R DOSO

pela oscilação (pelo balanço, e isto era bossa-nova), que


certamente alterava a apreensão da luz e da paisagem.
A imagem dos megalitos e das cavernas pré-históricas
fascinavam e sugeriam a experimentação e a descoberta.
O registro habitual da tomada de câmera era fixo e sobre
Julio Bressane
tripé, para a necessária imobilidade da câmera na fixação
e captação da luz. Não se faziam os registros de tomadas
com a câmera em movimento e muito menos oscilando...
Os irmãos Lumière quando espalharam pelo mundo seus
cinegrafistas pela primeira vez viram tomadas feitas
com a câmera em movimento. Eram os registros de seus
operadores, que de Veneza e da China enviavam imagens
filmadas de dentro de gôndolas ou balsas. Nascia o tra-
velling. Figura da sintaxe cinematográfica que se tornaria
a mais clássica do cinema moderno.

VANGUARDA - INOVAÇÃO filmecultura 54 | maio 2011


anos 20. Refiro-me ao cinema de L’Herbier, Dulac, Delluc,
Epstein, Gance, Alberto Cavalcanti, entre outros. É um
cinema totalmente voltado para a experimentação e para
a busca de limites, quebra de compartimentos, mistura de
disciplinas, cinema pensado como organismo intelectual
demasiadamente sensível e que faz fronteira com todas
as artes, ciências e a vida...

Este cinema formula (Abel Gance o fez) a teoria segundo a


qual “cinema é a música da luz”. O filme é um fotograma
Major Thomaz Reis em O Cinegrafista de Rondon transparente, branco, onde a sombra é que organiza a
imagem. A sombra é, portanto, música.
Notamos aí nesse episódio dos irmãos Segretto (nascimento
do cinema entre nós) que no cinema nacional no seu nasce- Foi esta tradição do cinema que fez de forma sistemática a
douro, na sua primeira configuração, no esboço de seu signo, exploração dos lugares inabituais de registro, de tomada
existe já o elemento experimental. Este fio fino transpassará de câmera. A câmera foi retirada de seu tripé ou carrinho
todo cinema brasileiro daí em diante e para sempre. e lançada em hélice no espaço ou em um balão ou ainda
amarrada a um selim de bicicleta... Ângulos inusitados
E repetiu-se. Veio depois nos anos 20, o Major Thomaz para as novas emoções!
Reis. Documentarista que acompanhou, filmando, a ex-
pedição de Rondon ao Alto Xingu em 1923. Este operador Limite, o filme, experimentou, inventou, criou novos
cuidadoso filmou a Visão do Paraíso. São imagens do enquadramentos, desenquadrou e criou novas possibili-
Brasil mítico, filmado com lente plana, enquadramento dades de compreensão e apreensão da luz. Novas ferra-
organizado, closes únicos de índios e gente brasileira. mentas para esta coisa pouco simples a que se resume
Composições que combinam rigor e improviso, em planos toda arte: transmitir uma emoção. Tratou o cinema de
de criaturas, selva e forças da natureza (como, por exem- maneira a submetê-lo e dotá-lo de todas as influências,
plo, a tomada da barca-arca de Noé, que atravessa uma dando-lhe uma flexibilidade que até ali ele desconhecia.
caudaloso rio-dilúvio). Uma luz apreendida com grande
domínio técnico e originalidade, sendo que o negativo foi Uma última olhadela, um último talho no experimentalis-
revelado nas águas da própria selva. Imagens que deixa- mo ancestral e prógono do Limite. Limite radicaliza esta
rão sua marca duradoura em nossa cinematografia. formulação de Gance: cinema é a música da luz. Mas ainda
mais: distingue e configura a primeira vez o próprio signo
No ano de 1930 temos Limite de Mário Peixoto. Inaugura cinematográfico. O signo do eu-cinema. É o seguinte: a
uma outra e nova mentalidade. Digo que Limite é uma nova câmera na mão sempre foi a mais perturbadora posição
mentalidade porque já é, entre nós, arte alusiva, paródica de câmera na “coisa” do filme, muito usada desde o nas-
ou de consciência do passado do cinema. Já é cinema do cimento do cinema, mas sempre enquadrada na altura do
cinema, ou seja, implica a criação e recriação da imagem olho. No Limite dá-se uma transgressão. A câmera na mão
no filme cinematográfico. é colocada na altura do chão. Em visionária tomada sem
corte, a câmera abandona, retira de seu enquadramento
Ciente do passado, Limite sente a influência e radicaliza os todos os elementos acessórios do filme, tais como ator,
procedimentos, a figuras da tradição máxima do cinema enredo, paisagem para filmar apenas a própria luz e o
experimental, que é o cinema de vanguarda francês dos movimento. Cinema puro, ele mesmo, em Mangaratiba!

68 filmecultura 54 | maio 2011 VANGUARDA - INOVAÇÃO


Lembremo-nos da formulação de um monstro do laco- ponto de vista. São topoi, lugares-comuns, recriados e
nismo francês, R. Barthes, que flagra, no famoso poema recombinados abundantemente. Sinais de experimentalis-
de Rimbaud Le bateau ivre, o momento em que o barco- mo (exemplo: as tomadas em plano geral com silhuetas no
poema expulsa o comandante e diz EU... horizonte de cangaceiros caminhando, o clichê da música
e da balada-cordel (elemento iconológico), o bandoleiro
Há mais em nosso tecido cinematográfico experimental (interpretado pelo próprio Lima Barreto) que em um clássi-
a ser observado. co lugar-comum morre atirando, lutando contra ninguém.
E uma experimentação inusitada: a longa cena de suplício
Tal como o Major Reis, nos anos 20, que filmou des- e vingança em que o ator representa hipnotizado...).
lumbrantes imagens do mito Brasil, com lente plana e
cuidados de luz e câmera, criando um paradigma para o “Fórmulas do patético” (fórmula estilística arcaizante,
nosso cinema, aconteceu nos anos 30 outro fenômeno: expressão adequada aos estados emocionais no limite
o mascate sírio Benjamin Abrahão, que filmou o sertão, da tensão) marcam O cangaceiro. São verdadeiros topoi
a caatinga, Lampião e seu grupo. São imagens pertur- figurativos: testemunhos de estado de espírito transfor-
badoras. Com uma luz solarizada, estourada, sem rígido mado em imagem.
controle, irregular, com uma câmera de corda na mão,
brutalista, criou uma poderosa imagem-dejeto, bárbara, Estes são apenas alguns fios de nossa tradição de filmes.
paradigmática em nosso cinema e em nossa cultura. Uma O cinema experimental no Brasil vive desde 1898. Noto que
Imagem-Canudos... nosso cinema ou é experimental ou não é coisa alguma!

Deus e o diabo na terra do sol foi extraído destas cenas


gravadas pelo mascate sírio. Alude a estas imagens.

O Major Thomaz Reis e Benjamin Abrahão formam um


eixo de onde sai e por onde passa tudo que presta no
nosso cinema.

Nos anos 50, temos o transplante positivo de órgãos e


métodos do cinema europeu, sobretudo inglês, para o
Brasil. Foi a Vera Cruz. Um movimento civilizador entre
nós. Hoje, revendo estes filmes, podemos constatar esta
verdade. Produziu uma obra-prima que influenciou o
cinema internacional: O cangaceiro de Lima Barreto. Não
podemos esquecer que a figura principal, o animador, da
Vera Cruz, foi Alberto Cavalcanti, artista ligadíssimo ao
cinema experimental francês (trabalhou com L’Herbier
em El Dorado e fez vários filmes nesta fase, entre eles La
P’tite Lilie e Le train sans yeux).

Os elementos e procedimentos experimentais do


Cangaceiro são inúmeros. É uma paródia acaboclada
do western, devorando os principais clichês do gênero,
saturando-os, e recriando-os à maneira canibal, de seu Afonso Segretto

VANGUARDA - INOVAÇÃO filmecultura 54 | maio 2011


O GERENTE de PAULO CÉZAR SARACENI
por JOÃO CARLOS RODRIGUES

& PEDRO BUTCHER

A vontAde de Comer
por João Carlos Rodrigues

Aos 77 anos de idade, Paulo Cézar Saraceni volta a surpreender com seu décimo
segundo longa-metragem, uma produção de baixo orçamento bancada pela Petrobras. Como boa
parte de sua obra, se baseia na literatura brasileira (três adaptações de Lúcio Cardoso, uma de
Machado de Assis, outra de Paulo Emílio Salles Gomes). Desta vez, temos Carlos Drummond de
Andrade. Mas um Drummond atípico, pois não se trata de um poema, mas de um conto.

O gerente (o conto) data de 1945, e foi inicialmente definido como “novela”. Seis anos de-
pois reapareceu na coletânea Contos de aprendiz. Em 2009 voltou a ser publicado de modo
separado. Possui uma narrativa irônica, quase machadiana. Analisando detalhadamente,
revela uma analogia evidente com o célebre conto de João do Rio, Dentro da noite, que é
de 1910. Em ambos temos o feliz encontro entre um personagem sádico e um masoquista.
Pois se no primeiro um jovem crava alfinetes nos braços de sua amada e ela consente, em
O gerente o protagonista possui um vício ainda mais monstruoso e ainda assim desperta
paixões. O erotismo intenso de Drummond na fase final de sua obra não teria surpreendido
tanto se este conto tivesse sido mais bem analisado quando publicado pela primeira vez.
Muita coisa já está ali, para quem tem olhos atentos.

À primeira vista, O gerente (o filme) é uma adaptação linear, onde até os diálogos foram
mantidos. Há uma grande fluência narrativa, que podemos também chamar de leveza,
e tudo se desenrola com grande elegância e estilo. Pouco a pouco, porém, descobrimos que
a fidelidade ao texto não exclui uma visão personalíssima. Surgem citações à obra drum-
mondiana, vindas de outras fontes: poemas ditos pelos atores ou recitados em disco pelo
próprio poeta, que surge em pessoa num clipe de um raro documentário de Fernando Sabino
e David Neves ou na famosa estátua da Avenida Atlântica. Outras são mais pessoais: a bossa
nova, João Gilberto, o crítico Almeida Salles. Em determinado momento, o personagem vai

70 filmecultura 54 | maio 2011


ao cinema. O filme é Luzes da ribalta, de Chaplin, homenagem ao Chaplin Clube do Otávio
de Faria, o guru que transformou Saraceni de jogador de futebol em cineasta. Essas inter-
venções, longe da gratuidade, servem de contraponto entre o universo do poeta mineiro e
o do cineasta carioca, até agora mais próximo do barroquismo católico. Essa mudança de
tom na obra de Saraceni é uma das boas surpresas que o filme apresenta.

“Era um homem que comia dedos de senhoras, não de senhoritas. Eis pelo menos o que se
dizia dele, por aquela época. Mas apresentemo-lo antes. Viera do Norte, morava em Laranjeiras,
chegara a gerente de banco. Distinguia-se pela correção de maneiras e pelo corte a um tempo
simples e elegante da roupa. Ou melhor, não se distinguia, pois o homem bem-vestido passa
mais ou menos desapercebido nos dias que correm, entre moças e rapazes americanizados,
de gestos soltos, roupas vistosas. As pessoas mais velhas certamente o prezavam por isso,
e recebiam-no com simpatia especial; porém, mesmo entre essas pessoas já penetrara a moda
das meias curtas, chamadas soquetes, a que Samuel jamais aderiu, e dos paletós esportivos,
soltos como camisolas, para ir ao bar ou passear na praia, e que Samuel nunca chegaria a
vestir. Tudo isso está no passado – por que ele morreu há um ano, de uremia.”

Assim se inicia o conto, já resumido no primeiro parágrafo. E também assim começa o filme,
onde o narrador do texto, oculto na terceira pessoa, ressurge como alguém que fala direta-
mente para o espectador e não interage com os outros personagens. O uso de um narrador
de carne e osso e não do velho recurso da voz off tem sua razão de ser. O sexo de quem
narra o conto não é definido, mas deduz-se ser masculino, como Drummond. Já a narração de
Saraceni é feita pela atriz Joana Fomm. Essa mudança permite uma analogia inevitável, para
quem conhece a obra do cineasta, com o misterioso personagem interpretado por Margarida
Rey em Porto das Caixas, seu primeiro longa. Mulher madura, enrolada num xale escuro,
na encruzilhada da vida. Personagem que associamos ao Destino, ou quem sabe, à Morte.
Há momentos em O gerente, como toda sequência na escadaria da igreja no Largo do
Machado, em que a autocitação, a começar pelo figurino e a postura da atriz, é bem evidente.
Quem narra o filme é a Morte, ou, se preferirem, o Destino. Estamos longe do realismo.

O Samuel de Drummond é um homem quase gordo, de pouco cabelo. O de Saraceni é Nei


Latorraca, nem uma coisa nem outra. Ator possuidor de ironia rara, o seu Samuel não é
antipático ao espectador. Percebemos que agrada as mulheres, é um galanteador nato, mas
foge assim que percebe a possibilidade de um relacionamento mais sério. No livro sabemos
que tudo aconteceu entre 1925 e 1932, mas no filme pouco se fala em datas, e a cenografia e
os figurinos avançam no tempo de maneira muito livre. Há momentos onde, ao longe, vemos
construções modernas, enquanto no primeiro plano estamos meio século atrás. Só a partir de
certo momento surgem as primeiras evidências de sua atividade predatória nas recepções da
alta roda. Os três ataques consecutivos não tem explicações, nem precedentes. Acontecem,
e pronto. Aqui é o alfinete no vestido de Madame Boanerges. Ali, o esbarrão de um apressado
no Jóquei Clube em Guiomar, esposa do amigo Tancredo. Acolá, um garçon afoito que empurra
a senhora Figueroa, esposa de um encarregado de negócios da América Central. Sempre no
exato momento em que Samuel lhes beijava as mãos. E lá se foram as pontas dos dedos das
respeitabilíssimas damas, arrancadas a dente, diante de toda sociedade estabelecida.

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A tal Figueroa é descrita como “criatura magnífica, talvez um pouco ampla de busto; olhos pesta-
nudos, que brilhavam, e uma voz quente, parecendo queimar as palavras.” Seu episódio acontece
“na legação da China”. Na tela, a cor dominante é o vermelho, e um show de samba com músicas
de Noel Rosa anima o ambiente, como na Lapa atual. Ela é Adriana Bombom, esfuziante mulata
carioca, sex-symbol popular. A música e a dança também dominam o episódio Boanerges, onde
madame e Samuel conversam amenidades enquanto valseiam, como nas décadas de 1930 ou
40. Todas as mulheres são maravilhosas, charmosas, elegantes. Já os personagens masculinos
(o delegado, o médico, o diretor do banco) são predominantemente desagradáveis e repressores.
Mesmo os amigos que carregam o caixão de Samuel parecem mortos vivos. Outra das boas carac-
terísticas de O gerente é não ser previsível. Merece um destaque especial o enquadramento de
certas paisagens cariocas, como o Passeio Público, o Campo de Santana, a ilha de Paquetá,
transfiguradas a ponto de parecerem novas até para quem as conhece muito bem. Lembrei de
Júlio Bressane, cujos filmes também nos surpreendem ao reenquadrar a paisagem do Rio.

Samuel passa a ser comentado, evitado até. Temos então a sequência-chave da confeitaria.
Há um momento memorável onde uma senhora dá-lhe a mão a beijar, entre apavorada
e apreensiva, e vemos sua expressão de alívio ao tê-la de volta sem faltar um pedaço.
Um toque de atabaque, e surge, descendo uma escadaria, Pombajira, entidade dos amores
desregrados, às gargalhadas de deboche. Notemos, em breve flashback, que ao morder
seu primeiro dedo, o da madame Boanerges, Samuel estranhamente gira 360 graus sobre
si mesmo, marcação não realista que parece estapafúrdia. Agora adquire um sentido.
A citação das religiões afro-brasileiras, muito frequente na obra do diretor, divide o filme em
duas partes. Pois introduz a bela Deolinda Mendes Gualberto (Ana Maria Nascimento Silva).
Samuel não se contém e finca-lhe o dente. Escândalo. Processo. Surpresa: apesar das provas
e testemunhas, a vítima inocenta o algoz. Ao contrário das outras, Dona Deolinda gostou de
ser mordida. Na assistência, rumo ao hospital, seu rosto oscila entre a dor e o prazer.

Esse tipo de perversidade sexual refinada não é frequente no cinema brasileiro, e só encon-
tro correspondente no português João César Monteiro e no espanhol Buñuel, dois velhos
devassos, no bom sentido do termo. Mesmo a mulher fatal não frequenta muito nossas
telas. Temos os personagens interpretados por Odete Lara, e poucos mais. Deolinda é a
típica mulher fatal. A ferida infecciona, perde o braço, mas não desiste. Persegue Samuel
até reconquistá-lo. No livro, depois do ato, ele regressa a São Paulo, para onde se mudou.
No filme, o casal termina na cama, enlouquecido pelo prazer dos sentidos.

“Samuel ajoelhou-se à beira da cama, envolveu-lhe com a colcha o toco de braço. Tirou-lhe
os sapatos, acomodou melhor o corpo mole, abandonado. E tomou-lhe de manso a mão.
Aproximou-se mais. O anel de pedra azul projetava uma sombra insignificante na base do dedo.
O mais era branco, um branco amarelado, de papel velho, muito macio. Samuel ergueu a mão
até os lábios, devagar, com extremo cuidado e gentileza. Muito tempo durou o contato.”

Nada se sabe do final da história. A única pista, suprema ironia, voltando à última frase da
fala que abre o filme, é a causa mortis do nosso anti-herói. Uremia. Que vem a ser o excesso
de proteína animal. Quem sabe adquirida ao comer dedos de senhoras respeitáveis.
Uma overdose, talvez. Ou quem sabe uma indigestão.

João Carlos Rodrigues [email protected]

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velho Filme novo
por Pedro Butcher

Disse Paulo Cézar Saraceni que “o Cinema Novo não é uma questão de idade; é uma
questão de verdade”. Hoje quase mítica, a frase é citada por Glauber Rocha na epígrafe de
um artigo escrito em 1962, mais tarde incluído no livro Revolução do Cinema Novo.

Aos 77 anos, oito anos depois de lançar o singular documentário-bêbado Banda de Ipanema,
Saraceni faz jus à sua frase com O gerente, um velho filme novo, deslocado de seu tempo.

No atual contexto do cinema brasileiro, O gerente é um filme sem lugar. Dificilmente encon-
trará distribuição comercial e, apesar de ter inaugurado o Festival de Tiradentes, em janeiro
passado, é possível que tenha dificuldades até mesmo de circular pelo circuito dos festivais
nacionais. Isso porque Saraceni o concebe como um filme livre, sem qualquer amarra, e encara
de frente as consequências geradas por essa opção.

Na página seis de seu livro Por dentro do Cinema Novo – minha viagem, Saraceni narra seu primeiro
contato com o conto de Carlos Drummond de Andrade que serviu de inspiração para o roteiro.
Ele ouviu falar de O gerente pela primeira vez em uma mesa de bar, ainda nos anos 1950:

“Havia o Cuca, homem de teatro, bom de papo, que nos falou de Fernando Pessoa e adorava um
conto de Drummond chamado O gerente, a história de um gerente de banco muito conceituado
na praça que adorava ir às festas do soçaite e que, ao cumprimentar as madames, beijava-lhes
as mãos, sugando, disfarçadamente, um dedo, que podia ser o mindinho ou o indicador.”

Publicado pela primeira vez em 1945, em uma pequena edição autônoma, O gerente foi incluído
no fundamental Contos de aprendiz, publicado em 1951. Em Tiradentes, Saraceni destacou
esse contato inicial com as palavras de Drummond. A paixão pela palavra transparece no
filme, que tem na figura de Joana Fomm uma narradora não convencional, dirigindo-se para

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a câmera com um texto que ora faz a ação avançar, ora limita-se a comentar a cena e os des-
varios de seu personagem principal, o aparentemente pacato gerente de banco Samuel.

Diferentemente da descrição de Saraceni, Samuel não “suga” o dedo das madames; ele apro-
veita o gesto cavalheiresco de “beijar a mão” e morde o dedo com velocidade suficiente para
sequer ser notado e força para arrancar um pedaço. É uma curiosa aproximação de Drummond
ao conceito da antropofagia, tão importante para o modernismo brasileiro, um movimento do
qual Drummond fez parte e ao mesmo tempo não fez, transcendendo suas margens.

De certa forma, o filme de Saraceni é, antes de tudo, uma tentativa de estabelecer diálogos
com o modernismo brasileiro, de se reaproximar de ideias e formas que foram abandonadas
pelos filmes – e, indiretamente, por esse gesto, Saraceni retoma questões do cinema novo.

Assim como o modernismo libertou a poesia da métrica e das amarras temáticas, o cinema
novo, do qual Saraceni é uma das figuras centrais, procurou libertar o cinema brasileiro da
reprodução de modelos estrangeiros e das amarras técnicas da produção industrial. Ao mes-
mo tempo, Drummond, de certa forma, representa uma síntese que poucas vezes o cinema
brasileiro foi capaz de encontrar, mas que é sempre um fantasma para nós: a combinação
de invenção formal e sucesso popular.

Em uma de suas colunas recentes no jornal O Globo, José Miguel Wisnik comentou esse
aspecto falando de No meio do caminho, poema escrito em 1928 que se tornou alvo de
intensa controvérsia justamente por ter se popularizado (algo que, quando o assunto é
poesia, é uma exceção e, para muitos, heresia). O poema tem apenas dez linhas, das quais
se imortalizaram os versos “no meio do caminho tinha uma pedra/tinha uma pedra no meio
do caminho”. Mas esse mesmo poema traz outra expressão-chave: “nunca esquecerei desse
acontecimento/na vida das minhas retinas tão fatigadas”.

O gerente pode ser visto como um belo descanso para “retinas fatigadas”. Filmado em outra
cadência que não o da imagem em “tempo real” e da montagem frenética, o filme traz com
uma abordagem frouxa (porque livre) e um ritmo próprio, singular. Essa opção gera momentos
de beleza e outros bastante estranhos, como a bizarra homenagem à Petrobras que irrompe
no meio do filme. Em determinado momento, a câmera se detém em alguns personagens que
fazem comentários sobre a estatal do petróleo criada por Getúlio, e um deles afirma algo
como “já se sabia, ali, que a Petrobras seria a grande patrocinadora do cinema brasileiro”,
em uma espécie de leitura meio torta do tema nacionalista do modernismo.

Em outros momentos, por sorte majoritários, Saraceni consegue um real diálogo com o moderno,
e não é à toa que O gerente lembre tanto aquele que seja, talvez, o mais moderno dos cineastas
vivos: o português Manoel de Oliveira. Como Oliveira, Saraceni quase sempre constrói seus planos
com simplicidade, sem pirotecnias. Os personagens podem andar pelo centro do Rio dos dias de
hoje caracterizados com roupas de época, em meio a pedestres que circulam por ali normalmente.
Em outro momento, o filme para uma vez mais para uma homenagem bem mais interessante,
festejando, com imagens de arquivo, Francisco Almeida Salles, em uma bela sequência aparen-
temente sem propósito que reverencia um dos grandes intelectuais brasileiros.

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Mas, apesar de tantas digressões, O gerente é, antes de tudo, um filme de personagens e
de atores. Saraceni não se exime de contar a história do respeitável gerente de banco com a
estranha tara de morder os dedos das mulheres que corteja. O tema do conto bem poderia
aproximar o filme de uma boa comédia de costumes à moda antiga – uma boa tradição do
cinema brasileiro – mas Saraceni opta por um tom bem diferente. O roteiro se divide em dois
tempos: um primeiro um pouco mais próximo do cômico, apesar de sombrio; e um segundo
bem mais soturno, quase um filme de horror.

Na primeira parte, somos apresentados, aos poucos, à estranha tara de Samuel, que tem entre
suas vítimas Djin Sganzerla, Letícia Spiller e Adriana Bombom. Na segunda, uma das vítimas
do protagonista se apaixona por ele, o que desestabiliza por completo a vida do gerente.

A escolha dos atores tem importância fundamental na concepção de Saraceni. A trinca de


protagonistas, formada por Ney Latorraca, Joana Fomm (amiga de Samuel e narradora) e
Ana Maria Nascimento e Silva (a vítima apaixonada) são três figuras um tanto esquecidas
pela produção atual. As participações especiais, visivelmente carregadas de afeto, vão de
Paulo Cesar Pereio a Nildo Parente.

Entre a narrativa e as digressões, a característica maior de O gerente é a estranheza. Nesse


ponto, Saraceni se afasta de Manoel de Oliveira (em que nada está fora do lugar) para se
aproximar de Julio Bressane e Rogério Sganzerla, duas figuras pós-Cinema Novo. No Festival
de Tiradentes, Bressane afirmou que O gerente é “um filme que impele o espectador a um
esforço sensível para sair da mediocridade”: “É um cinema que desapareceu. Não há mais
público para vê-lo, pois esse público não está mais preparado para determinadas coisas.”

De fato, O gerente é um filme que não se identifica com corrente alguma – e não apenas no
atual cenário do “cinema brasileiro”, mas do cinema em geral. Nunca a “sétima arte”, que
nasceu sob o signo da indústria e dentro dela viveu seu ápice como linguagem e criação,
se viu tão radicalizada entre a produção industrial que deságua nos multiplex/shopping
centers, e uma produção feita às margens, cada vez mais caracterizada pela criação coletiva
e a circulação em meios alternativos, como a internet. No meio disse tudo está o “cinema de
autor”, que vive sua maior crise. O gerente é um filme de autor, que vive na carne e espelha
essa crise. É antigo porque é moderno; é vivo porque é a afirmação de um tipo de fazer cine-
matográfico que perdeu seu espaço e, talvez, esteja moribundo. Um filme gauche na vida.

Pedro Butcher é formado pela Escola de Comunicação da UFRJ. Trabalhou como repórter e crítico de cinema no
Jornal do Brasil e em O Globo. Atualmente edita o website Filme B, especializado em mercado de cinema no Brasil,
e colabora para o jornal Folha de S. Paulo.

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POR GUSTAVO DAHL

BIÁFORA o Fenômeno (ii)

A história da cinefilia brasileira, ao contrário da


francesa, que acaba de ganhar um tratado, não desperta
grande interesse nem nos jovens nem na academia. Tanto
pior. Não se compreenderá o cinema no Brasil sem ela.
Nada de novo. Tentem achar nas bibliotecas exempla-
res passados das revistas de cinema publicadas aqui...
ou mesmo vestígios da crítica mais recente na internet.

Pois bem, nesta história que ainda depende muito de


depoimentos pessoais, há um momento épico que é o
duelo entre Rubem Biáfora e Paulo Emilio Salles Gomes,
no segundo Clube de Cinema de São Paulo, em 1946.
O primeiro, fundado por nada menos que P.E., Antonio
Candido de Mello e Souza e Décio de Almeida Prado, sur-
giu em 1941 na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras.
Atentem aos sobrenomes. A Universidade de São Paulo,
fundada na década anterior pelo governador Armando
Salles de Oliveira, tinha como objetivo explícito qualificar
a jovem elite paulista pelo contato com a civilização eu-
ropeia. Para a Filosofia vieram nada menos que os jovens
Claude Levy-Strauss e Fernand Braudel. Roger Bastide
era uma estrela menor. Depois viria Ungaretti, autor do
genial poema curto, que diz simplesmente: M’illumino
d’imenso. As aulas eram dadas em francês. Rapidamente
os bons rapazes foram identificados pelo Estado Novo e o
cineclube foi fechado. Em 46, depois de sua segunda estada
em Paris, P.E. volta, e com a cumplicidade de Caio Scheiby, coleção Aplauso, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo,
abre o segundo Clube de Cinema, origem da Filmoteca do 2006, disponível na internet. Décadas depois as míticas
Museu de Arte Moderna de São Paulo, que, por sua vez, fichas do Biáfora seriam usadas na sua seção Indicações
iria virar a Cinemateca Brasileira. E de repente aparece da Semana, n’O Estadão.
o jovem Biáfora, vinte e poucos anos, que sabia tudo do
cinema americano dos anos 30 e 40. Aos doze anos de De um lado P.E., alto, belíssima estampa, elegante, ternos
idade já recolhia todas as fichas técnicas e informações de alfaiate, boa família de Sorocaba, formado em filosofia
sobre os lançamentos, que começaram a ser registradas na famosa Filosofia, vindo de Paris, já tendo feito a revista
em papel de pão, porque a família era muito pobre, do Clima, chamado de “chato-boy” por Oswald de Andrade,
modesto bairro da Casaverde, conforme ele cita em sua num evidente acesso de ciúmes. Grande orador, voz de
entrevista autobiográfica, no final da coletânea de suas barítono, intelectual com o brilho e inteligência que fariam
críticas, organizadas por Carlos M. Motta, A coragem de ser, dele, nos próximos trinta anos, o que foi. E Rubem Biáfora,

76 filmecultura 54 | maio 2011 VANGUARDA - INOVAÇÃO


seu antípoda. Baixo, extração humilde, ternos prontos das reconhecendo esta dualidade, diria mais tarde que só
Casas Garbo, confuso no discurso, mas com um conhe- André Bazin, o cara da crítica cinematográfica do século XX,
cimento e paixão pelo cinema únicos, instruídos por um conseguia superá-la e conciliar os dois. Já Biáfora lite-
olho privilegiado, imensa curiosidade e uma memória ralmente espumava de raiva quando se referia à crítica
formidável. Gostava de ir contra a corrente e desarrumar franco-italiana, esquerdista, intelectual e grã-fina, vendida
o arrumado, não se deixava impressionar por reputações ao realismo do cinema soviético e posteriormente ao mo-
já feitas, consagrações unânimes. Não gostava de Chaplin vimento neorrealista. Inimigos do glamour e dos valores
(que horror!) e sim de Buster Keaton. Uma aproximação do Olimpo hollywoodiano ou da densidade expressionista
absolutamente sensorial do cinema, iniciada na infância germânica, aos quais contrapunham a cara nua do povo.
pelo exercício de um confesso voyeurismo fetichista das Identificava nesta crítica dominante o reconhecimento
grandes estrelas hollywoodianas dos anos 1930. Deusas prévio e incondicional, o espírito de igrejinha sistematica-
inacessíveis, feitas de luz. Ou então semideusas, quase mente repercutido pela imprensa “politizada”. Como diria
humanas, profanas por conta de uma disponibilidade mais tarde dos filmes do Cinema Novo, prevalecimento
fantasiada, promíscua, pela massa de fãs de qualquer dos fatos da vida sobre a beleza da forma e a harmonia
gênero. Transidos de desejo, abrigados na penumbra dos valores. Ele e sua turma prefeririam os estilistas,
anônima das salas escuras. Algo como o esplendor o Joaquim Pedro de O padre e a moça, o Ruy Guerra de
físico dos deuses e heróis retratados em mármore pela Os cafajestes, o Paulo Cezar Saraceni de Porto das Caixas,
estatuaria helênica, de brilho opaco e tato suave, como à soltura do Glauber de Barravento ou Cacá Diegues em
a pele. Esta aproximação, por assim dizer, corpórea, fez Ganga Zumba.
com que Biáfora fosse imediatamente sensível e atento
aos aspectos visuais do cinema, como a tipologia dos Se Paulo Emilio era um deus, Biáfora era um demônio.
intérpretes, a fotografia, os figurinos, a cenografia. E gostava de sê-lo. “Remar contra a maré, ir contra o pre-
E também à música, aos sons, ao uso da voz. Uma visão estabelecido”, segundo Carlos M. Motta, no livro já citado.
formal do cinema, não verbal, autodidata, extrauniversi- Paga um preço até hoje, queimando no fogo do inferno
tária, inculta, poética, trágica e panteísta, autônoma, por da falta de reconhecimento e do desinteresse. Num país
ele mesmo subvalorizada quando a restringia meramente conservador, numa cultura conformada, numa crítica con-
a “aspectos técnico-artísticos” e “valores de produção”. vencional, não estará sozinho nem em má companhia.
Mas que por outro lado se caracterizava pela visão do
papel criativo do produtor. Adorava Erich Pommer, Arthur A relação de Biáfora com a coreografia e a dança pode ser-
Freed, Val Lewton, Jerry Wald e detestava Michael Powell vir de exemplo. Na década de 1930, em Hollywood, Busby
e Dore Schary. Contrapunha-se à visão “sociológica” Berkeley era consagrado como coreógrafo e diretor. Suas
de Paulo Emilio, formada, sobretudo, pelo cinema francês imagens de pernas femininas multiplicadas ad infinitum,
de antes da guerra, sempre testemunha consciente de seu
momento histórico. O contrário do americano, pretenso
entretenimento.

O historiador Boris Fausto, que estava lá em 1946, frequen-


tador do cineclube e testemunha dos debates e embates,
depondo sobre o tema, fala da complementaridade das
visões e da excepcional oportunidade de aprender com
Paulo Emilio o alcance dos filmes como fenômeno social
e com Biáfora a dar atenção aos aspectos de linguagem
e estilo, estéticos, cênicos, que faziam a excelência dos
filmes americanos da época. O próprio Paulo Emilio,

Buster Keaton
assim como as bananas e morangos do número The lady in
the tutti frutti hat, com Carmem Miranda em Entre a loura e
a morena (1943) são inesquecíveis. Comentário de Biáfora
nas Indicações, sobre o filme-antologia O esplendor de
Hollywood/Hooray for Hollywood (1976) “O maior bene-
ficiado é Busby Berkeley, o famoso coreógrafo das girls
semidespidas em shows simétricos, que eram muito mais
caleidoscópios, efeitos de câmera do que dança pura. Isto só
viria a ocorrer mesmo na revolução neoexpressionista, nos
musicais coloridos de Arthur Freed na Metro.” Na época dos
musicais de Busby, antes desta série, Biáfora preferia Fred
Astaire e Ginger Rogers “a combinação perfeita, a dupla inimi-
tável de dançarinos” coreografada por Hermes Pan. Quando
os Cahiers du Cinéma vão descobrir, no início dos 1960, em
Ziegfield Follies, o número de Judy Garland e os repórteres,
filmado por seu marido Vincente Minelli em um plano só, em
tons de roxo e cor de abóbora, chovem no molhado. Biáfora
já sabia desde sempre que a coreografia cinematográfica tem
que combinar os movimentos dos bailarinos com aqueles da
câmera, no caso montada na famosa grua de trinta metros
da M.G.M. É isto que ele reconhece, por oposição às imagens
barrocas, mas chapadas, bidimensionais, de Busby Berkeley,
que hoje pareceriam replicadas em computador. Sem
deixarem de ser sublimes, mas caindo mais para um visual
de arabescos figurativos que da força da dança moderna
americana, grande contribuição ao século XX. E também era
capaz de revelar os méritos de Gower Champion, da dupla
com Marge, inspirado bailarino mas subestimado coreógrafo,
que em Jupiter’s darling/A favorita de Jupiter (1955) faz com a
parceira um balé inesquecível, filmado em longos travellings,
saltando entre as barracas de um mercado de rua na Roma
Antiga. E que também bota no mesmo filme, elefantes cor-
de-rosa contracenando com Esther Williams. Biáfora vai
identificar também a grande diferença dramatúrgica entre os
musicais dos anos 1930 e os dos 1940. Enquanto os primei-
ros, influenciados pela estrutura dramática das operetas com
Nelson Eddy e Jeanette Mac Donald, paravam a ação para
entrar o número musical – donde tantos exemplos em que
o pretexto do filme é a montagem de um show na Broadway
ou alhures – os musicais da Metro incorporavam os números
à ação, sem interrompê-la para a canção ou para a dança.
Criavam uma nova convenção narrativa na qual o especta-
dor entrava como se a vida pudesse ser falada, cantada e
dançada o tempo todo.

Footlight parade / Belezas em revista

78 filmecultura 54 | maio 2011


Judy Garland em The pirate / O pirata

Lembro perfeitamente do dia em 1958, no hall entre o


auditório e o barzinho do MAM, quando lendo uma en-
quete feita pela Filmoteca, com as listas dos melhores
dez filmes de todos os tempos afixadas na parede, a de
Biáfora incluía The pirate / O pirata (1947), de Vincente
Minelli, Gene Kelly protagonizando. Aos vinte anos, recebi
um tapa na cara da minha caretice jovem e bem pensante:
um musical da Metro podia ser o melhor filme do mundo!
Mais tarde o Tigre, como o chamava Khouri, relembraria
de seu gosto e familiaridade com as bailarinas clássicas
do cinema: preferia Tamara Toumanova a Moira Shearer.
E o flamenco de José Greco e José Limon. Tudo isto vindo lá
de trás, lá de longe, de uma visão juvenil, solitária, formada
nos “poeiras” da Casaverde e do velho Centro. Praça da Sé,
Vale do Anhangabaú, Largo Paissandu, Rua da Consolação.
Sem nunca ter saído de São Paulo nem ido a Paris, Biáfora
era um cosmopolita. A volta ao mundo percorrida nas telas
em mais de oitenta dias, confirmando o que se sabe desde
Lumière e Meliés: o cinema é viajante.

Outro exemplo. Jean Pierre Melville, cineasta francês autor


de filmes de gângster que por ser fora de esquadro, como
Jean Cocteau, Georges Franju, Alexandre Astruc, Jacques
Becker e Agnés Varda, foi poupado da tsunami icono-
clástica com que os jovens turcos dos Cahiers (Chabrol, Goulding, Clarence Brown, Leo Mac Carey, mas em obs-
Godard, Truffaut, Rohmer, Domarchi, Moullet) arrasaram curos filmes de guerra baratos, passados em submarinos.
o “cinéma de papa” das glórias do entreguerras, Duvivier, Ao qual Biáfora aproximava outros “injustiçados” como
Carné, Autant-Lara, René Clair, para abrir espaço para a Alfred Newman e Sidney Salcoff. Hugo Haas, ator e diretor
Nouvelle Vague. Um dia numa entrevista lhe perguntaram checo, com filmes de crimes, herdou a paixão de Biáfora
quais eram seus diretores preferidos. Desfilou de memó- pelo cinema de onde viera Gustav Machaty, de Extasy
ria os nomes de uns cento e vinte do cinema americano, (1933), apogeu do panteísmo, primeiro nu frontal do ci-
onde pela primeira vez reconheci vários que já haviam nema, com a belíssima Heddy Lamar adolescente. O olho
sido achados por Biáfora. Pensei que malucos de cinema e o faro de Biáfora identificavam pelo estilo os diretores
havia pelo mundo inteiro e que nós no Brasil tínhamos o nascidos na Europa Central e emigrados para Hollywood,
nosso, o melhor, de primeira. como o húngaro Charles Vidor. Quase germânicos, já eram
vistos com uma expectativa positiva. Mas, seguramente,
Biáfora inventava diretores. Alguns como Joseph H. Lewis o exemplo mais extremado é Frank Wisbar. Na já referida
ou Douglas Sirk, que Fassbinder considerava seu mestre, lista dos dez melhores, ele incluiu Fronteiras da ambição/
seriam redescobertos na onda dos Cahiers, no final dos The prairie (1948). Era um western de produção barata,
1950. Outros permanecem obscuros até hoje. Lesley baseado num livro de James Fenimore Cooper, sobre uma
Selander e Ray Nazarro eram considerados grandes dire- família que se muda para a Louisiana, quando ela está
tores de westerns classe B. William Witney trabalhava em sendo comprada pelos Estados Unidos, no século XIX. Um
seriados mais humildes. Robert Gordon era transparente, filme de colonização. Nunca o vi citado, nem a seu diretor,
no estilo dos grandes intimistas dos anos 1930, Edmund mas consta dos livros de referência e da Wikipedia. Existe.

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Porto das Caixas

Biáfora se delongava em elogiá-lo. Descrevia um plano no


qual na frente havia um laço de forca esperando um conde-
nado, e no fundo, dentro dele, uma Bíblia com suas folhas
sendo viradas pelo vento. No mínimo, curioso. Talvez trágico.
O diretor era alemão, logo expressionista. Diz a mitologia
biafórica que era um filme Z, feito em uma semana. Foi
relançado um ano depois de sua estreia, com um corte de
vinte minutos feito pelo estúdio, sinalização de fracasso no
lançamento. No entanto, para Biáfora, era o maior western
de todos os tempos.

Ele nunca se recuperou da decadência industrial de


Hollywood. E da visão de mundo e dos valores éticos que
estavam por trás dos filmes, que eram seus e se foram com
ela. Paradoxalmente, a partir dos anos 1960, viu acesa a
chama “cinemática” em autores como Resnais, Antonioni,
Rosi, Werner Herzog, Carlos Saura, Marco Ferreri. Sem falar
em Bergman, que descoberto em 1952, com Juventude, no
Festival de Punta del’Este, teve Noites de circo/Giklarnas
afton exibido no Festival de Cinema de São Paulo, 1954,
criando uma nova devoção em Biáfora e Khouri. Forte.

Haveria ainda muito a dizer de Rubem Biáfora. Seu lado es-


curo, idiossincrático, paranoico, seu antiesquerdismo radical,
a rivalidade persistente com Paulo Emilio e sua Cinemateca
Brasileira, o anticinemanovismo, que chegou à beira da
delação pública durante a ditadura, sua paulistice provin-
cianamente anticarioca, seu desencanto com o progresso
e a modernidade (detestava os Beatles). E também de sua
carreira como diretor bissexto (Ravina, O quarto, A casa das
tentações) que se queixava de ter tido uma má relação com
os atores (Eliane Lage, Sergio Hingst, Elizabeth Gasper). Logo
ele. Ver sua relação com a política, a visão da esquerda como
uma utopia inatingível, seu lado místico. Uma vez, andando
juntos pelo Centro, início da noite, falamos de Deus. Eu disse
que se ele existisse seria inconcebível pelo homem. Falamos
de imanência e transcendência, eu menino, ele homem feito,
o protótipo do gênio incompreendido. Capaz de dizer em sua
última entrevista, citando Einstein e o eterno ciclo de criação e
destruição do Universo: “quantas vezes a Terra e os planetas
já se fizeram e se desmancharam... e se tornaram a fazer. E as
pessoas pensam na eternidade... Não tem eternidade”. Mas
tem. André Gatti me contou que certa vez, ao se referirem
a meu nome diante dele, laconicamente comentou: “Minha
cria”. Tive na hora uma ponta de orgulho. Afinal, sua eterni-
Em cima, Barravento; embaixo, O padre e a moça. dade é estar aqui, mantendo-se vivo.

80 filmecultura 54 | maio 2011 VANGUARDA - INOVAÇÃO Gustavo Dahl [email protected]


E agora, José? Apenas dez anos depois de dar início
à carreira cinematográfica com a produção do documentário
Os carvoeiros, José Padilha dirigiu nada menos que o filme
brasileiro de maior público desde que começa em 1970 a afe-
rição confiável de bilheteria no país. Com o impressionante
fenômeno popular dos dois Tropa de elite há uma tendência
de se classificar Padilha como um diretor voltado para pro-
duções de caráter meramente mercadológico. Mas um olhar
isento de preconceitos leva à conclusão de que Tropa de
elite, laureado com o Urso de Ouro em Berlim, e, sobretudo,
A LE X A N D R E L I M A
Tropa de elite 2 contam com muito mais do que cenas de
ação executadas com perfeição. Citando apenas uma das que os problemas reais na área da segurança pública criam na
qualidades dos filmes, a construção de um personagem- sociedade. Conseguimos montar filmes em que a história dos
marco do cinema nacional, ao mesmo tempo extremamente personagens se sobrepôs à realidade que eles representam.
realista e dotado de simbolismo de um quase super-herói Isto gerou grande interesse popular pelos filmes e pelos seus
tupiniquim, o Capitão Nascimento, remete a um realizador personagens. No que tange à estética e à qualidade, acho que
no mínimo esmerado na dramaturgia. E ainda há o Padilha os dois Tropa romperam com a antiga tendência do cinema
documentarista, de Garapa e Segredos da tribo, produções brasileiro de taxar de “filme hollywoodiano” os filmes locais
de menor orçamento para o nicho de festivais, e de Ônibus que utilizam efeitos especiais, efeitos sonoros e grandes cenas
174, doc-sensação com entrada no circuito comercial, para de ação em sua narrativa. Podemos importar estes aspectos
não falar de RoboCop. técnicos do cinema americano, e mesmo assim fazer filmes
tipicamente brasileiros.
Que tipo de diretor é José Padilha?
Eu faço os filmes que sinto vontade de fazer, e penso a di- Como vocês atingiram este grau de
reção de cada projeto nos seus próprios termos. A questão maestria nas cenas de tiroteio e combate?
é: dada a vontade de se fazer um determinado filme, qual As cenas de ação, em qualquer filme, resultam da coor-
a melhor maneira, o melhor formato, para executá-lo? Se denação dos departamentos de efeitos especiais de cena
acho que o melhor formato para o filme é um projeto grande e de stunts com a direção e a fotografia. Temos grandes
com cenas de ação e coisas do gênero, faço o filme assim. diretores e fotógrafos no cinema brasileiro, mas não temos
Se acho que o filme pede câmera na mão, preto e branco e tradição em efeitos especiais de cena e em stunts. Por isso,
som em mono, faço isto. Onde o filme vai passar, em que importamos profissionais destes dois departamentos.
festival vai entrar, e qual o público que vai interessar são Trouxemos técnicos com tradição no mercado americano,
problemas que usualmente deixo para depois. gente que fez Homem de ferro, Falcão negro em perigo
e Guerra nas estrelas. A junção entre estas pessoas e o
Por que mais de 11 milhões de pessoas jeito brasileiro que eu e Lula temos de filmar deu origem
pagaram ingresso para ver Tropa de elite 2? à estética das cenas de ação dos dois filmes.
Acho que o sucesso de público no caso dos dois Tropa de
elite deriva da junção do cinema com a realidade. O cinema, Acho que as cenas de ação vão entrar no cinema brasileiro
por si só, já é capaz de suscitar fortes emoções. Quando um para ficar, mas acho também que as faremos do nosso
filme tem uma boa dramaturgia e é bem realizado, ele gera jeito, sem copiar o cinema dos outros. Afinal, por que de-
empatia entre o público e os seus personagens, mesmo se veríamos limitar a priori o uso de qualquer recurso técnico
estes personagens forem totalmente fictícios. No caso dos dois disponível no cinema, sobretudo se o nosso público se
Tropa de elite, as emoções do cinema se juntaram às emoções interessa por eles?

VANGUARDA - INOVAÇÃO filmecultura 54 | maio 2011


A LE X A N D R E L I M A

Tropa de elite 2 e Garapa

Como vocês conceberam o personagem Faróis


do Capitão Nascimento? Os dez filmes que mais influenciaram a concepção de
Criei o personagem junto com o Rodrigo Pimentel, o Bráulio cinema de José Padilha.
e o Wagner Moura. Ele surgiu de muita pesquisa, da expe-
riência de vida do Pimentel, de algum talento por parte dos 1. Gimme me Shelter, de Albert Maysles e David Maysles
roteiristas, e de um grande trabalho do Wagner. Foi o primeiro filme do Albert Maysles que eu vi.
Por causa do filme eu o procurei. E ele me ajudou bastante
Qual é a sua relação prévia com este com conselhos e com a distribuição de Ônibus 174.
(sub)mundo do crime e da polícia?
2. Um dia em setembro, de Kevin Macdonald
Vi filmes importantes sobre o submundo carioca, como
Vi em Sundance e fiquei com vontade de fazer Onibus 174.
Lúcio Flávio e Notícias de uma guerra particular, mas o meu
real contato com o universo da violência carioca começou 3. Minha vida de cachorro, de Lasse Hallström
com a pesquisa que fiz para o Ônibus 174, evento que não Um filme de grande sensibilidade. Me fez amar mais o cinema.
apenas caiu de paraquedas na minha vida, como caiu de
4. Clube da luta, de David Fincher
paraquedas na vida da cidade. O evento do Ônibus 174 foi
Um filme de grande risco e muito bem realizado.
um marco para o debate da segurança pública no Brasil,
porque incluiu em seu enredo quase todos os agentes 5. 2001, uma odisseia no espaço, de Stanley Kubrick
envolvidos nos problemas da segurança pública brasilei- A prova de que o cinema pode discutir ideias
ra. Do menino de rua até o governador do estado. Foi um sofisticadas.
marco também na minha carreira no cinema. Me apaixonei
6. Apocalypse now, de Francis Ford Coppola
pela história e por seu significado, e isto me levou a fazer
O maior filme independente de todos os tempos.
três filmes sobre o problema da segurança pública.
7. Os bons companheiros, de Martin Scorsese
RoboCop? Me ajudou a pensar a narrativa dos dois Tropa de elite.
Tento fazer os filmes que gosto, seja no cinema brasi-
8. Cidade de Deus, de Fernando Meirelles
leiro ou no cinemão de Hollywood. Resolvi desenvolver
Me colocou em contato com Bráulio Mantovani e
RoboCop, porque gosto do primeiro filme da série e por-
Daniel Rezende.
que idealizo um filme que me permita abordar assuntos
que considero interessantes de um ponto de vista filosó- 9. Terra estrangeira, de Walter Salles
fico, no caso o problema mente-corpo. Por isso embarquei O primeiro filme da retomada que realmente amei.
no projeto com entusiasmo.
10. Forrest Gump, de Robert Zemeckis
Um filme que parece simples, mas que resulta de um
Da esquerda para a direita, Cidade de Deus, Clube da lura e 2001 roteiro complexo e difícil.
E agora, Neville? Você já contou que
o início da sua carreira não foi fácil.
Você chegou a ir para os EUA antes de
fazer seu primeiro filme, não?
Eu fui para os EUA no dia 13 de março de 1964, antes do
golpe militar. Eu tinha 22 anos e tinha passado pelo CEC,
o Centro de Estudos Cinematográficos de Belo Horizonte,
onde eu tinha sido membro fundador do Centro Mineiro
de Cinema Experimental. Foi lá que eu conheci o cinema
de vários países do mundo, havia críticos como Cyro
Siqueira e Jacques do Prado Brandão, além de pessoas
da minha geração, como Geraldo Veloso, Guará Rodrigues
e Carlos Alberto Prates Correa. Então eu fui para os EUA passou. Isso só mudou quando eu fiz A dama do lotação.
e fiz um curso de direção de cinema no New York City Mas nunca fiz um plano de cinema sequer para agradar
College, mas era muito ruim: os professores davam aulas a ditadura ou quem quer que seja. Me diziam: “Não faz
sobre questões técnicas, como decorar a nomenclatura esse nu com luz acesa, faz no escuro, assim não pode!”
de planos médios, gerais e em close-up. Aquilo não me Mas eu dizia que a ditadura ia passar e eu ia ficar. Por
satisfazia, eu perguntei a um professor sobre os grandes causa disso, perdi muito dinheiro meu e de vários amigos.
cineastas do mundo, como Eisenstein, Fellini e outros, e
ele me disse que o único cinema realmente importante E onde estão as cópias dos primeiros filmes?
era o de Hollywood. Aí eu percebi que foi no CEC que eu Só sobraram Jardim de guerra e Mangue bangue, esse
aprendi tudo que eu sei sobre cinema. Enfim, no final numa cópia encontrada recentemente em Nova York.
desse curso em Nova York eu dirigi um curta, That night Piranhas do asfalto tem uma cópia que foi para Paris e
on the bowery, inspirado no Quincas Berro d’água, do nunca mais voltou, e os negativos foram destruídos numa
Jorge Amado. A gente filmou e montou em 16mm, mas eu enchente que houve na Líder. No Brasil não existe política
nem cheguei a ver a cópia final. Eu voltei para o Brasil e de preservação de verdade. O cineasta precisa morrer
fiz um curta-metragem chamado O bem-aventurado, que para que comecem a se preocupar em preservar os filmes.
inscrevi no festival JB/Mesbla. O presidente do júri era o
Nelson Pereira dos Santos, eu ganhei um dos prêmios. Como você e Hélio Oiticica se aproximaram?
Mas depois não aconteceu nada - e aí, passado um tempo, O Jardim de guerra foi proibido, mas a gente fez uma
eu voltei para Nova York, onde trabalhei como garçom. sessão secreta no laboratório, aí o José Celso Martinez
Numa noite, uma pessoa me chamou para atender uma Correa e Wally Salomão foram e levaram o Hélio. No final
mesa de brasileiros. Eu fui e nela estava o Nelson. Ele foi ele veio me dizer que tinha adorado, que era a primeira
muito gentil e me falou para nos encontrarmos no dia vez que ele tinha visto projeção de slides num filme. Aí
seguinte. Aí ele me disse: “Neville, eu vou fazer Fome nós saímos todos juntos, ficamos a noite inteira conver-
de amor; ia filmar na França, mas agora o personagem é sando sobre arte, invenção, fazendo planos, sonhando...
um brasileiro que trabalha como garçom em Nova York. Naquela noite mesmo eu e o Hélio combinamos de fazer
Você pode organizar a filmagem para mim aqui e ser meu um trabalho juntos, uma união entre o cinema e as artes
assistente de direção.” Foi uma felicidade muito grande. plásticas. Daí veio o Quasi-cinema e as Cosmococas. Isso
No ano seguinte eu voltei ao Brasil e fiz meu primeiro é a arte contemporânea, quando ela sai da parede, da
longa-metragem, Jardim de guerra. Que foi proibido e pintura e da escultura e se une a outras artes. Depois nós
jamais exibido. Depois fiz um segundo filme, Piranhas combinamos de fazer um filme juntos, chamado Mangue
do asfalto, que também foi proibido. Entre 1966 e 1977 bangue, mas o Hélio ganhou uma bolsa e foi para Nova
eu fiz cinco filmes e todos foram proibidos, nenhum deles York, aí eu dirigi o filme sozinho.

filmecultura 54 | maio 2011


Seus filmes não amaciam - todos têm 3. Cidadão Kane, de Orson Welles
uma dose de agressividade que é É um filme que me emociona muito por causa do Rosebud:
fundamental para eles. O cenário de é sobre a infância perdida.
hoje dá espaço para isso? 4. 8 e 1/2, de Federico Fellini
A realidade é brutal, então meu cinema é brutal e delicado,
É a história de um diretor louco, em crise e sem saber o
mas não tão brutal quanto a realidade. Hoje eu tenho mais
que fazer. Acho que essa é a história de todos os diretores
de cem filmes rodados em digital e ainda não montados,
de cinema conscientes.
muitos documentários sobre vários assuntos, como a Daspu,
a Parada Gay e outros. Hoje as câmeras digitais permitem que 5. A doce vida, de Federico Fellini
a gente possa fazer filmes como o lema do Glauber, “uma É a vida que todo mundo queria viver naquela época: a
câmera na mão e uma ideia na cabeça”. Mas é preciso ter Itália dos artistas, mulheres lindas, intelectuais, festas...
ideias na cabeça, porque às vezes eu vejo algumas porcarias O filme é ingênuo, bobinho: não tem droga, não tem crime,
em documentários aplaudidos, como zooms e movimentos não tem travesti, não tem nada. Mas é genial.
de câmera malfeitos, aí eu pergunto por que fazem assim e
6. A dama do lotação, de Neville D’Almeida
me dizem que não tem problema porque é feito em vídeo.
É um filme revolucionário. Foi um dos primeiros filmes no
Mas é tudo a mesma coisa, do vídeo ao cinemascope:
mundo a mostrar o desejo da mulher, apresentando uma
é preciso ter linguagem cinematográfica. Às vezes parece que
personagem que é ativa no sexo.
os jovens cineastas estão preocupados com a lei de incentivo,
o patrocínio, fazer filmes parecidos com os de Fulano ou 7. Un chant d’amour, de Jean Genet
Beltrano, o sucesso aqui ou ali... Isso poderia ser saudável, Acho que é o maior de todos os filmes. A cena de um preso
mas aí o cara acaba pensando só em histórias que se encaixam enviando uma rosa para o outro é maravilhosa.
nisso tudo. Se o sujeito está disposto a fazer alguma coisa no
8. Terra em transe, de Glauber Rocha
filme para agradar o patrocinador, ou se deixar de mostrar
Essa mistura que o Glauber fez da alma carnavalesca com
alguma coisa no filme porque o público vai reagir e a burguesia
Villa-Lobos foi uma coisa muito forte para todos nós que
vai ficar preocupada, é melhor ir para a televisão fazer novelas.
queríamos fazer cinema no Brasil naquela época.
Tem muito jovem fazendo filmes velhos e muito velho fazendo
filmes jovens. Mas isso não acontece só no cinema, acontece 9. Ivan, o terrível, de Sergei Eisenstein
em todas as artes atualmente. Aqui é o outro polo do Eisenstein. A cena de multidão com
trinta mil figurantes ainda é uma das mais impressionantes
Faróis da história.
Os dez filmes que mais influenciaram a concepção de
10. Limite, de Mário Peixoto
cinema de Neville D’Almeida.
O Mário Peixoto foi um inventor, é um absurdo que não
1. Rio Babilônia, de Neville D’Almeida tenham dado condições para ele fazer outros filmes. Limite
Eu nunca vi nada como Rio Babilônia. O Rio de Janeiro é poesia em forma de filme.
sempre era filmado de forma tímida, e esse filme tem
11. O anjo exterminador, de Luis Buñuel
de tudo.
É incrível a capacidade do Buñuel em fazer o filme todo
2. O Encouraçado Potemkin, de Sergei Eisenstein dentro de uma casa. O Hitchcock já tinha feito isso em
Pela força dramática e pela montagem paralela do Festim diabólico, mas o Buñuel vai além, porque traz
Eisenstein. É uma coisa espetacular, de tirar o fôlego, e uma dimensão existencial a essa reclusão. Ele trata das
ao mesmo tempo é um filme político. frustrações das pessoas, é fantástico.

O anjo exterminador,
A doce vida e
Un chant d’amour
POR TATIANA MONASSA

ressACA dA
ondA AsiátiCA
em solo nACionAl
A viagem do balão vermelho

Observando a efervescente produção indepen-


dente brasileira recente, constatamos que certas formas
e temas recorrentes a aproximam de cinematografias
estrangeiras em voga, sobretudo a asiática, que desde me-
ados da década de 1980 vem trilhando os caminhos mais
inovadores e instigantes do cinema. E ainda que a rede de
influências que se estabelecem entre os meios artísticos
possa seguir desígnios misteriosos, apontar correntes e
determinantes que delineiam pontos de contato e polos de
influência prioritários é parte incontornável de uma crítica
que deseje transcender a análise estrita dos objetos.

A amiga americana
No processo chamado de retomada do cinema brasileiro,
uma série de booms teve lugar, dentre os quais o relativo
aumento da produção em meados da década de 1990 talvez
seja o menos relevante para o estabelecimento do quadro
de produção e circulação que notamos hoje. Afinal, com o
fortalecimento da democracia pós-Collor, um novo quadro
sociocultural naturalmente haveria de se desenvolver no
país. E, nesta conjuntura, pode-se notar um marcante
reflexo de abertura para o estrangeiro, como se o Brasil se
visse subitamente diante da globalização crescente e dei-
xasse pra trás tanto o ufanismo da tradição militarista que o
havia acompanhado durante o século XX, quanto o esforço
de afirmação brasilianista que havia pautado o grosso da
produção artística das décadas anteriores.

No meio cinematográfico, isso se manifestou de di-


ferentes maneiras: nos filmes de longa-metragem, o
desejo de se equiparar em qualidade técnica à produção
comercial estrangeira levou a distorções de foco, cujas
Eternamente sua

filmecultura 54 | maio 2011


consequências se estendem até hoje. No campo temático, Taiwan, Coreia do Sul, China, Tailândia – e num segundo
a figura do estrangeiro, desde Carlota Joaquina, princesa do momento, Filipinas, Malásia e outros – viram o nascimento de
Brazil, passou a assombrar-nos como a grande voz da razão gerações promovendo uma espécie de reinvenção antropo-
superior, daquele que detém o conhecimento do mundo fágica própria: deglutiram a influência e a educação artística
perante os eternos países em desenvolvimento. De outro recebidas no exterior para reformulá-las de acordo com suas
lado, no entanto, a “abertura” se apresentou como um desejo culturas locais, terminando por originar uma verdadeira
genuíno de abolir as fronteiras restritivas entre o nacional e combustão nos rumos do cinema internacional.
o estrangeiro, de alargar os horizontes para um intercâmbio
mais livre do ranço de um engajamento político gerador de E como o Brasil teria se conectado a essa rede, ao ponto de
diversos preconceitos. estabelecer uma confluência de formas e estilos? Retornando
à questão da “abertura” exposta acima, constatamos que,
E é nesse cenário que emergem novas gerações, empenha- no que diz respeito à ampliação de perspectivas artísticas e
das em buscar o contato com o mundo, em ir atrás do que de reflexão, a renovação geracional de meados da década
de mais novo e/ou estimulante se estava produzindo em de 90 promoveu um feliz casamento entre o afã do novo e
outros países e em renovar o interesse pela crítica e pelo o anseio de se sentir mais conectado ao mundo. E talvez
pensamento: em suma, em buscar novos modelos, novos não fosse exagero afirmar que o advento das revistas ele-
ideais. Num primeiro momento, as escolas de cinema e a trônicas de crítica de cinema nacionais tenha tido um papel
internet certamente tiveram um papel fundamental para fundamental em estimular a divulgação de cinematografias
a formação destas gerações. As primeiras, por serem um e autores antes restritos a meios bastante específicos, com
espaço natural de convergência de desejos, cultivo de influ- os quais o contato e a afinidade costumava ser pouca, como
ências e estímulo a trocas e intercâmbios. A segunda, pela revistas estrangeiras especializadas e o circuito dos grandes
possibilidade espantosa e reveladora de aproximar todos festivais internacionais, abrindo caminho, pouco a pouco,
os cantos do globo não apenas pela comunicação facilitada, para o reconhecimento de um novo horizonte comum de
mas sobretudo pela troca e circulação potencializadas e preferências e sensibilidades.
magnificadas de conteúdos.
Em que pese o magma de uma série de variantes próprias a
Alargando um pouco o escopo, percebemos que esta experi- um período histórico e compartilhadas pela maioria, como
ência brasileira na verdade se insere em um processo maior compreensão de mundo e concepções de tempo e espaço,
de renovações culturais, verificável, em maior ou menor podemos dizer que esta agitação em solo brasileiro gerou
medida, em diversos países periféricos de economia mais ou algo bastante promissor e desafiador para os nossos pa-
menos ascendente. E, mais ainda: que a valorização da pro- drões até então. Pois o abandono da reverência ao Cinema
dução cinematográfica nestes países encontra um paralelo Novo como norte maior, de um lado, e a negação da tradi-
fundamental justamente com o despontar dos novos cinemas ção pseudoindustrial que vai da Vera Cruz à Globo Filmes,
asiáticos na cena internacional na década de 90. de outro, teria deixado essas novas gerações à vontade
para perseguir, a exemplo dos asiáticos, uma expressão
Os processos que deram origem a tais inovações estilísticas espontânea fundamentalmente ligada à experiência do
do outro lado do mundo são próprios a cada país, embora contemporâneo.
guardem pontos de contato entre si. Em geral, pode-se dizer
que o que gerou esse sopro de frescor na Ásia foi uma cres- Se Tsai Ming-liang se dedicava à solidão melancólica das
cente pujança econômica destes países no cenário interna- metrópoles em seus planos fixos de longa duração que
cional, um reprocessamento da influência dos cinemas novos flertam com o enfado, Hou Hsiao-hsien se entregava a
da década de 60 e 70, sobretudo os europeus, e mecanismos lânguidos movimentos de câmera para captar movimentos
diversos de fomento ou facilitação da produção, seja em imperceptíveis de homens destituídos de uma existência
termos tecnológicos ou financeiros. Dessa forma, Hong Kong, funcionalista; Wong Kar-wai abraçava a incompletude dos

86 filmecultura 54 | maio 2011


relacionamentos amorosos e a fragmentação do indivíduo
traduzindo-os em manipulações delirantes da imagem, e
Apichatpong Weerasethakul mergulhava numa relação sen-
sualista com a natureza, contemplando um tempo mítico feito
de ações banais – ficando apenas nos realizadores orientais
de maior projeção –, um universo vasto de invenção se nos
anunciava também.

E a produção que vemos hoje circulando na maioria dos


festivais nacionais e também representando o Brasil em fes-
tivais internacionais é, sem dúvida, derivada em grande parte
desse movimento invisível de aproximação e contaminação
que vem se dando há mais de dez anos. Longas-metragens
como A fuga da mulher gorila, de Felipe Bragança e Marina
Meliande, Mutum, de Sandra Kogut, ou ainda O céu de Suely,
de Karim Aïnouz, e curtas como Sobe, Sofia, de André Mielnik,
Handebol, de Anita Rocha da Silveira, ou A amiga americana,
de Ivo Lopes Araújo e Ricardo Pretti, são testemunhos de que
o Brasil tangencia uma espécie de world cinema inspirado
em traços marcantes da produção independente asiática.
Sensibilidade à flor da pele, tempos distendidos, rarefação
narrativa e relação tátil com o espaço são algumas das
características que unem esses filmes nacionais a diversos
outros realizados em países como os do Leste Europeu ou
da América Latina.

Embora as características mencionadas não sejam exclusi-


vidade da produção asiática, afinal são também verificáveis
em autores ocidentais de reputação anterior, a exemplo de
Gus Van Sant e Claire Denis, não seria ilícito afirmar que a
nova onda asiática como um todo determinou em grande
parte as tendências mais valorizadas do cinema de autor
internacional nos últimos 15 ou 20 anos. E o que significa
para o cinema brasileiro trilhar esse caminho? Arejar a pro- A fuga da mulher gorila
dução, sem dúvida. Se aproximar do circuito de prestígio
internacional, inegavelmente. Mas eu acrescentaria ainda: se
afastar relativamente do desafio de confrontar sua história e
seu legado a partir do presente. Porque, diferentemente do
que ocorreu no caso dos cinemas novos do pós-guerra, em
que se pode dizer que o neorrealismo italiano e a Nouvelle
Tatiana Monassa é editora da revista eletrônica Contracampo
Vague francesa provocaram uma ebulição diferenciada em
(www.contracampo.com.br). Formada em cinema pela UFF,
cada solo nacional que tocaram, a onda asiática parece ter ministra cursos e oficinas, organiza e escreve para catálogos
dado origem mais a decalques sem muita vida do que a obras de mostras de cinema e participa de seleções de festivais.
vibrantes e autônomas como as originais.

filmecultura 54 | maio 2011


POR CARLOS ALBERTO MATTOS

Cinema de garagem

A nova cena do cinema jovem brasileiro já tem seu primeiro


esboço de perfil. Em vários aspectos, Cinema de garagem
se assemelha a muitos dos filmes que aborda. Foi editado
com recursos próprios dos autores. Resulta de um trabalho
colaborativo entre Marcelo Ikeda e Dellani Lima, que, entre
outras coisas, dividem os ofícios de cineastas e curadores
de eventos de cinema. Como diversos realizadores jovens,
eles transitam entre polos regionais diferentes: Marcelo
mudou-se recentemente do Rio para Fortaleza, enquanto
Dellani, nascido na Paraíba, formou-se no e atua há 11 anos
em Belo Horizonte.

Não por acaso, Minas e ocupam lugar de destaque nesse


“Inventário afetivo sobre o jovem cinema brasileiro do
século XXI”, como se apresenta o livro no subtítulo.
Daí talvez a insuficiência que impede de se ver ali um ba-
lanço mais completo de uma cena em que se destacam
igualmente produções do Rio, São Paulo e, sobretudo, de
Pernambuco. A seu favor, os autores dispensam a preten-
são de “dar conta” de tudo o que ocorreu de inovador no
período 2000-2010. Pretendem apenas demarcar formas
de criação e apontar picos de inventividade nessa década
que, significativamente, fechou com as vitórias simbólicas
do cearense Estrada para Ythaca na Mostra de Cinema
de Tiradentes e do mineiro O céu sobre os ombros no
Festival de Brasília.

Para esses observadores, carinhosos mais que críticos,


o que define um certo tipo de cinema que pode ser cha-
mado “de garagem”? Isso passaria tanto pelo modelo de
produção quanto pelo processo de criação. Muitos desses
filmes, mesmo de longa metragem, são feitos sem dinheiro
de editais ou de grandes patrocinadores. Respondem a
um desejo mais de expressão que de reconhecimento.
Em alguns casos, o propósito de viver “no” cinema supera
o de viver “do” cinema, refletindo uma linha de continuida-
de entre o profissional e o vivencial. A assinatura do autor
é diluída entre vários signatários, que ora se agrupam em
conjuntos (Alumbramento, Teia etc.), ora se permutam em
redes através de vários estados.

88 filmecultura 54 | maio 2011 O céu sobre os ombros


A internet é apontada como a grande responsável por especialistas. No entanto, suas próprias notas críticas so-
uma nova explosão de cinefilia que forma o campo de bre filmes alheios estão repletas de afirmações convictas
referências desses novos diretores. E aí não temos mais e adjetivos policromáticos.
a hegemonia do Cinema Novo nem mesmo do Cinema
Marginal, mas um cardápio de admirações que alcança o Se a contradição pode ser tomada aqui como uma virtu-
cinema asiático, a vanguarda americana dos anos 1960 e de, isso se deve ao caráter “de garagem” do livro em si.
70 (incluindo John Cassavetes) e ídolos como Pedro Costa, Ele nasceu do desejo de oferecer, de bate-pronto, um
Chantal Akerman e Claire Denis. pacote de reações aos filmes, muitas vezes no ato mesmo
de sua primeira exibição. Em vez de reflexão distanciada,
Um forte sentimento de grupo se delineia nas argumen- Cinema de garagem é, em sua maior parte, uma coletânea
tações dos autores do livro, fruto de seu franco engaja- de textos publicados em catálogos de mostras e blogs
mento na cena que descrevem e das estirpes que elegem frequentados pelos autores, que acompanham a cena
como marcos comparativos. Valores como “amizade” desde seu alvorecer. Daí vêm uma certa descontinuidade,
e “afeto” não só estão na gênese desse cinema como algumas repetições e principalmente o sentido de urgência
repercutem nas análises que dele se faz. Dellani Lima, que norteou aqueles artigos.
autor de projetos nas áreas de música e cinema, além de
cineasta ultraindependente, cunhou o termo “cinema de As ideias passam quentes de eventos como a Mostra de
garagem” para uma mostra de filmes. Ele ocupa a primeira Tiradentes, a Mostra do Filme Livre (RJ), o Cine Esquema
parte do livro com seu estilo caudaloso e enumeratório, Novo (RS) e a Mostra Indie (BH), onde esse panorama se
trabalhando com justaposições não narrativas que procu- formou e prosperou na última década. O livro não se limita
ram mapear as características do contexto em que esse a apresentá-lo a partir de suas raízes. Quer também fazer
novíssimo cinema floresceu. Na segunda metade, Marcelo a defesa de um “cinema mínimo” (no dizer de Dellani) que
Ikeda, que é também crítico e professor, se fixa em filmes, afete o espectador (seja ou não pelo afeto) e transborde da
realizadores e grupos. vida de quem faz diretamente para o mundo de quem vê.
O cinema como vocação, mais que como profissão.
A figura do autor pode estar em questão, mas não deixa
de guiar as escolhas de Ikeda. De seus textos se depre-
ende a importância, para a nova cena, dos irmãos Luiz e
Ricardo Pretti, do diretor de fotografia Ivo Lopes Araújo,
de Cao Guimarães, Helvécio Marins Jr., Marco Dutra, André
Sucato e Guto Parente, para citar os que têm mais filmes
mencionados. Muito significativamente, Luiz Rosemberg
Filho é o único veterano a merecer um artigo específico,
por conta de seu “exemplo de lucidez e resistência”.

Se de um lado a postura crítica dos autores soa cau-


telosa ao recuar sempre de hierarquias e totalizações,
de outro assume preferências de maneira explícita e às
vezes retumbante. Como quando Ikeda, ao analisar o
documentário de Cao Guimarães e Pablo Lobato, conclui
peremptório: “acredito que o cinema deva ser como
Acidente”. Ikeda, aliás, insere no livro seu sonoro mani-
festo por uma crítica que seja não um porto seguro, mas
“um barco à deriva”, que prefira a dúvida às certezas de

Carlos Alberto Mattos [email protected] Acidente e Cartas ao Ceará


POR JOANA NIN

experimentAções de CurtA metrAgem


Dreznica

U A RDA O documentário Dreznica, de Anna Azevedo (2008), ilu-


G O
VA N V A Ç Ã mina na tela sonhos de pessoas que perderam a visão.

INO
Enquanto imagens de filmes em Super-8 perambulam
erráticas, vozes em primeira pessoa tentam explicar
quais são as visões internas de cegos, aquelas que eles
A animação Tempestade, de César Cabral (2008), o do- produzem enquanto dormem. No mínimo dá para dizer
cumentário Dreznica, de Anna Azevedo (2008) e a ficção que a ideia é original, mas o principal mérito dela é nos
Engano, de Cavi Borges (2010) são três bons exemplos de provocar experiências sensoriais desavisadamente. Ao
curtas-metragens recentes que inquietam por trazerem em tentar encontrar relação entre as imagens e arriscar algu-
si propostas de inovação criativa. Ambos se destacam pela ma conexão com a fala dos personagens nos perdemos,
ousadia na linguagem e audácia na realização, tudo regado a como que sonhando acordados.
bom gosto. São filmes bem-sucedidos, vamos dizer, mas que
Já Engano produz uma narrativa a partir de dois planos-
escolheram caminhos improváveis para contar suas histórias.
sequência projetados lado a lado o tempo todo, unidos
Surpreendem sem sair do próprio rumo, mas desvirtuam
por um telefonema. O filme tem 11 minutos e percorre
nossa expectativa, levam-nos a procurar outra ótica.
ruas do Rio de Janeiro e estações de Metrô levando junto
Por exemplo, como pode ser retratada uma tempestade em a nossa crescente inquietação com a conversa do casal
alto-mar com animação stop motion? Água, fogo e outros que não se conhece. Minuto a minuto eles dão a impres-
elementos com movimentos de difícil controle quadro a qua- são de estarem mais perto de algo que não podemos
dro são sempre um desafio para quem utiliza esta técnica supor o que seja, mas que também pode não ser nada.
de fotografar sequencialmente bonecos em cenários cons- A atenção dividida entre o diálogo, o caminho de cada
truídos em estúdio. O filme de César Cabral, Tempestade, um deles e as imagens divididas na tela nos prendem
consegue um resultado muito interessante usando tubos ao filme sem necessidade de mais nenhum elemento
translúcidos revestidos e coloridos com iluminação. “O de- cênico. O pulo do gato vem perto do final, quando os
safio maior foi tentar construir o mar de uma forma que até personagens trocam de câmera naturalmente, cruzando-
então desconhecia (...) e sabia que o mar/tempestade era se numa faixa de pedestres. Um passa a seguir pelo
fundamental para criar e dar narratividade ao filme. Lembro caminho inverso do outro até se perderem por completo.
que estudamos várias possibilidades, tintas dissolvidas em É uma ficção, mas traz com muita verdade e originalidade
água, celofanes, cheguei até a fazer um estudo com malhas um sentimento comum nas cidades grandes.
de correntes (...) no final chegamos aos tubos”, conta César.
Se o curta é o terreno da experimentação por excelência,
A fotografia de Alziro Barbosa e os raios e riscos de chuva
não deveria ser tão difícil encontrar exemplos compro-
feitos na pós-produção também ajudaram muito.
metidos com novas propostas e soluções diferenciadas.
O curioso é que este curta é inspirado na obra do artista plásti- Mas foi. Adotou-se aqui como critério escolher um de
co William Turner, pintor inglês do século XIX considerado um cada gênero que pudesse ser enquadrado também com
dos precursores do Impressionismo, com obras produzidas 50 o nebuloso rótulo de “experimental”. Os escolhidos são
anos antes dos demais – ou seja, um artista de vanguarda. O obras despretensiosas, inovadoras em sua própria órbita.
curta foi produzido em quatro meses e trata da solidão e do E este é justamente o maior mérito delas.
amor de um marinheiro isolado no meio do oceano. Joana Nin [email protected]

Tempestade.
À direita, Engano.

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POR JOANA NIN

equipAmentos de últimA gerAção


AjudAm A sAlvAr pelíCulAs dA morte

Enquanto o cinema em película está a caminho


da extinção, empresas de finalização ao redor do mun-
do empenham-se em produzir e aperfeiçoar modernos
equipamentos destinados a criar novas soluções para o
trato com filmes. Este paradoxo tem uma explicação, com
Hollywood e todos os outros polos produzindo cinema
digital, os fabricantes de telecines, scanners, transfer tape
to film e outros inventos da tecnologia do mercado viram
minguar suas perspectivas de expansão. Para continuar a
vender eles precisaram adaptar o foco, lançar olhar mais
cauteloso aos acervos já existentes – e se deteriorando dia
e noite por todos os cantos. As cinematecas e museus de
imagem passaram a ocupar lugar de destaque na carteira
de clientes destes fabricantes, quem sabe dando aos
filmes mais comprometidos uma nova chance.

Pena que a lógica comercial é diferente daquela que rege


a preservação audiovisual. Equipamentos digitais, por
melhor que sejam, modernizam-se com grande velocida-
de. É preciso muitas horas de ocupação da agenda deles
para pagar o investimento. Para complicar, as iniciativas
de restauração de obras audiovisuais ainda são escassas
e o dinheiro, limitado. “Os projetos demoram muito para
começar por causa da dificuldade de captação de recursos,
não existe volume que justifique novos investimentos
nesta área”, pondera Marcelo Siqueira, diretor técnico e
supervisor de restauração da Teleimage. Ele explica ainda
que os acervos históricos estão majoritariamente nos
espaços públicos. “Estes órgãos têm acesso direto aos
governos, então fica cada vez mais difícil para as empresas
particulares concorrerem”, diz.

É consenso entre preservadores que não basta copiar os


filmes para meios digitais. Para preservá-los é necessário
restaurar as películas, duplicá-las e depois manter rigo-
roso controle de temperatura e umidade. “O conceito de
preservar significa conservar o material em seu suporte

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original. Portanto, telecinar não representa preservar. Esta
ação se insere no processo e auxilia a preservação, já que
os materiais originais serão menos manipulados e estarão
acessíveis em outro suporte. Uma fita pode durar 15 anos
e a película, 100 – quando bem conservados”, explica
Débora Butruce, coordenadora do Acervo Audiovisual do
Centro Técnico Audiovisual – CTAv/SAV/MinC. Marcelo
Siqueira concorda e acrescenta: “não existe uma norma
determinando qual deveria ser o procedimento para a
digitalização de acervos visando à utilização do dinheiro
público X qualidade dos serviços. Muitos acervos gastam
verbas digitalizando seus materiais para MiniDV ou DVD,
mas estes formatos não têm qualidade e nem longevidade
para serem considerados preservação.”

As máquinas para escaneamento ou telecinagem de


películas são as mesmas utilizadas para a finalização de
filmes novos, o que dá a elas um pouco mais de popula-
ridade e chances de mercado. O trabalho representa a Scanity
primeira etapa da restauração digital, processo difundido
pelo mundo na década de 1990 e adotado pelo Brasil no
começo dos anos 2000. A novidade dos dias atuais fica
por conta dos modelos mais recentes estarem sendo
produzidos com características especiais, também vol-
tados para películas em decomposição. Com isso, filmes
encurtados, entortados pela ação do tempo e pela falta de
climatização adequada também podem ser escaneados,
embora a solução não sirva para todos. “Existem pelícu-
las que sequer podem ser desenroladas e, portanto, não
são possíveis de passar em nenhuma máquina. Sempre
o que irá determinar o resultado de um processo digital é
o estado em que a película se encontra. Digitalização não
é mágica”, explica Débora.

Entre as vedetes do momento estão dois scanners de


películas concorrentes entre si: um americano, o Arriscan,
da Arri, que produziu o gravador de filme Arrilaser; e o
Scanity, da alemã DFT, fabricante do Spirit, marca de
telecine bastante conhecida no mundo com mais de 400
unidades vendidas. Ambos partem de um mesmo princí-
pio: filmes antigos se deterioram e precisam de máquinas
capazes de transcrevê-los para suportes digitais mais

Arriscan

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fidedignamente quanto possível. “O fabricante pensou: não passam pelos roletes dentados, até a chegada da
o filme está morrendo, é fato. Vou vender pouco scanner nova máquina a Cinemateca resolve as dificuldades como
para os mercados atuais. Então vou pensar nas cinema- pode. “Hoje, para salvar um negativo encolhido, nós o
tecas e arquivos”, justifica João Rodrigues, representante passamos por uma copiadeira com janela molhada para
comercial da alemã DFT – Digital Film Thecnologie. duplicar o máster, e depois escaneamos o novo material.
Ter este novo equipamento economizaria uma etapa do
Os dois equipamentos utilizam, entre outras qualidades processo”, diz.
exaltadas por cada fabricante, sensores ultrassensíveis,
iluminação por LED (luz fria que dispensa filtro, aumenta A desvantagem da janela molhada é que a imagem perde
a segurança do processo e dá maior precisão da intensi- definição quando escaneada porque o próprio líquido re-
dade do feixe luminoso), infravermelho para detecção de presenta um componente a mais “na frente” do fotograma,
arranhões e opções de deslizamento das películas sem a como um filtro a gerar interferências na copiagem. Pesar
necessidade de roletes dentados, ou grifas – pinos que na balança prós e contras nem sempre é tão fácil quanto
tracionam os filmes por meio de suas perfurações para parece. Há posições convictas a favor e contra o uso dos
que eles possam avançar e serem copiados. Eles ainda equipamentos com janela molhada como ferramenta
preparam o terreno para a restauração digital, produzin- principal no processo de restauro de filmes. “Eu usaria
do sugestões de parâmetros para a recomposição das para um ou outro plano específico, ou na total falta de
imagens danificadas, o que economiza tempo na etapa alternativa. Se me chegar um péssimo negativo original,
seguinte. Mas há algumas diferenças entre os modelos. tenho chances de apresentar um restauro 100%. Ou seja,
O Scanity lê em tempo real qualquer tipo de áudio sin- exatamente igual ao original quando foi lançado. Partindo
cronizado, e também negativos de som. Já o Arriscan não de uma cópia boa ou de uma janela molhada, não é pos-
trabalha com registros sonoros, apenas com imagens, sível chegar a 70% de fidelidade, e com quase o dobro do
mas oferece a possibilidade de utilização ou não de janela custo”, assegura Fábio Fraccarolli, profissional atuante no
molhada – captura das imagens durante banho químico ramo há 10 anos que criou recentemente a Photograma,
com líquidos especialmente desenvolvidos para preencher empresa especializada exclusivamente na restauração
riscos e arranhões dos suportes originais dos filmes. digital de filmes. Já o pesquisador cinematográfico Hernani
O assunto é motivo de polêmica entre preservadores e Heffner defende o recurso: “sou favorável ao uso da janela
restauradores. molhada, ela economiza horas de máquina na restauração.
Acho um passo necessário, o resultado é melhor do que
A Cinemateca Brasileira está realizando testes para definir o de qualquer software que faça isso”.
em qual scanner deverá investir nos próximos meses –
ainda não há nenhum destes modelos citados no Brasil. O filme antigo passa por scanner, ou telecine, e depois
Patrícia de Fillipi, diretora adjunta e coordenadora do la- segue para um trabalho técnico especializado – profis-
boratório de restauração da Cinemateca Brasileira, explica sionais e programas desenvolvidos para recuperar suas
que hoje a instituição tem um scanner que trabalha com características originais e devolvê-los ao público. “A res-
rolete dentado e simula digitalmente a janela molhada. tauração digital de cinema é um serviço ainda caro que
“A janela molhada, com líquido mesmo, é muito mais proporciona devolver a visibilidade a filmes que estavam
precisa em todos os registros”, argumenta. Segundo indisponíveis e que não tinham condições técnicas de co-
Frank Mueller, representante comercial da Arri em Nova mercialização. Foi o que aconteceu com O bandido da luz
York, “a principal vantagem para a janela molhada contra vermelha (Rogério Sganzerla, 1969) e com os desenhos do
a seca é a redução do tempo de trabalho necessário para Maurício de Sousa”, esclarece Fábio Fraccarolli. No entan-
restaurar a imagem digitalmente”. Para os filmes que to, ele alerta: “é um engano pensar que o restauro digital

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Filmtransport

salva filmes. O restauro fotoquímico salva filmes”. Patrícia da tentativa de recompor esta opção estética pode ter
de Filippi é enfática quando defende que a digitalização ficado um pouco exagerado. “Eu não tenho lembranças
deve ser imediatamente seguida de restauro. “Se a gente do Macunaíma tão saturado, vi o filme na virada dos anos
começa a deixar tudo em digital, depois para transferir 1970 para os 80. Várias outras pessoas comentaram isso.
para película fica complicado. A plataforma digital muda As cores das roupas dos personagens mudam de cena
muito rápido, com o tempo não faz mais sentido utilizar para cena”, comenta Hernani Heffner. E emenda “o filme
materiais digitalizados anteriormente. Se tivéssemos pagou um preço por causa do pioneirismo de sua restau-
guardado coisas que escaneamos em 2003, hoje pode- ração. Hoje se você perguntasse para quem trabalhou no
ríamos fazer melhor por estas imagens”, diz. A exceção, processo, provavelmente eles fariam diferente.”
segundo ela, fica por conta de materiais em estado muito
ruim, ou quando a película tiver a perspectiva de “sofrer” O mais inquietante diante de toda esta profusão de in-
por ainda mais tempo, sem condições de esperar. formações é pensar que quando o primeiro equipamento
com estas modernas tecnologias de escaneamento pisar
Algumas armadilhas podem se esconder atrás das ultra- em solo brasileiro a um custo que pode chegar a 1 milhão
modernas máquinas e tecnologias de digitalização, res- de dólares, certamente já haverá outros muito mais avan-
tauração e preservação de películas. Suas possibilidades çados em desenvolvimento ao redor do mundo. Hoje o
são tantas que é possível fazer pelos filmes mais do que diferencial é dispensar as grifas e roletes dentados, usar
eles precisam. O primeiro filme restaurado digitalmente no iluminação LED, determinar padrões mais precisos para
Brasil foi Macunaíma, 1969, de Joaquim Pedro de Andrade. a recuperação de riscos, ler ou não bandas sonoras e
O trabalho foi realizado entre 2003 e 2004 e houve diver- trabalhar ou não com janela molhada. Não há como saber
gências conceituais entre os profissionais envolvidos, quais serão as novidades do futuro, mas uma coisa é certa:
principalmente sobre o quanto de cor seria devolvido à nem que seja por questões de interesse mercadológico
cópia restaurada. O filme foi produzido no final dos anos de grandes fabricantes de equipamentos do setor, os
1960 e ficou conhecido na época como exemplo do “tro- acervos fílmicos estão em foco – que seja para o bem da
picolor”, uma forma jocosa de chamar a forma brasileira recuperação de nossa memória audiovisual.
de tratar as cores naquele momento, bem diferente do
padrão americano dominante. Na restauração, o resultado Joana Nin [email protected]

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POR CARLOS ALBERTO MATTOS

A biografia de Joaquim Pedro é disposta numa linha do


tempo, com significativo material iconográfico e trechos de
artigos e depoimentos a partir dos quais se pode ter acesso
às respectivas versões integrais. Em outro item do menu
FILMOGRAFIA BRASILEIRA www.cinemateca.com.br estão os textos de cinco entrevistas fundamentais de Joaquim
Pedro e mais três depoimentos em vídeo. A filmografia reúne
O maior e mais confiável banco de dados sobre cinema
sinopses, fichas técnicas, fotos e trechos em movimento
brasileiro pode ser consultado no site da Cinemateca
de seus 14 filmes, além de uma seleta de críticas e ensaios.
Brasileira, no item “Bases de dados – Filmografia
Brasileira”. Ali o pesquisador encontra informações bá-
Por fim, há uma extensa bibliografia sobre o cineasta,
sicas sobre cada filme produzido no Brasil entre 1897 e
compreendendo livros, artigos, entrevistas, textos de ca-
2007, incluindo longas e curtas-metragens, cinejornais e
tálogos etc. Pena que não sejam fornecidos os links para
muitos filmes domésticos.
os materiais que já estejam disponíveis na internet. Mas
isso, afinal, é irrelevante frente à imersão que o site nos
Esse manancial resultou do Censo Cinematográfico
propicia na obra e no pensamento de um dos principais
Brasileiro, empreendido pela cinemateca nos primeiros
definidores do cinema moderno brasileiro.
anos da década de 2000 com patrocínio da Petrobras.
No levantamento foram incluídos não somente os filmes
depositados no acervo da entidade, mas todos os que cir-
cularam e foram noticiados naqueles 110 anos de cinema. DAVID BORDWELL’S WEBSITE ON CINEMA www.davidbordwell.net
Na ficha de cada filme constam todas as fontes (cópias,
Roger Ebert o chamou de “nosso melhor escritor de
publicações etc.) utilizadas na pesquisa.
cinema”. Seus ensaios críticos, atentos à fisiologia das
imagens e dos sons, frequentam tanto as bibliografias
Os dados compreendem ficha técnica completa, sinopse,
acadêmicas quanto as páginas da indústria do entrete-
premiação, canções da trilha sonora, locações, data e local
nimento. David Bordwell aposentou-se da Universidade
de lançamento, termos descritores (tags) e muitas vezes
de Wisconsin em 2004 e, desde então, divide seu tempo
uma miniatura do cartaz do filme. O site admite consultas
entre a preparação de livros, a frequência a festivais e o
simples e algumas formas de pesquisa avançada, sendo
dia a dia do seu visitadíssimo site na internet.
muito útil para estudantes, curadores e estudiosos do
cinema brasileiro.
Em davidbordwell.net, o crítico reúne muitos de seus
famosos ensaios, que combinam a análise de filmes e fe-
nômenos cinematográficos com uma boa dose de simples
prazer cinéfilo. O site é utilizado também para expandir
seus livros, com adendos, textos contíguos e observações
que ele considerou impertinentes na versão impressa. Há
espaço, ainda, para artigos, resenhas de livros e um blog
mantido por Bordwell e sua esposa, Kristin Thompson.

JOAQUIM PEDRO DE ANDRADE www.filmesdoserro.com.br/jpa.asp


Num dos pequenos comentários sobre os livros de cinema que
O site oficial de Joaquim Pedro de Andrade é uma espécie costuma receber, Bordwell elogia a edição brasileira do seu
de padrão mínimo do que deveria existir na web para Figuras Traçadas na Luz (Papirus Editora, 2009) por ter trans-
cada grande cineasta brasileiro. Oferece uma introdução formado as notas de fim de capítulo em notas de pé de página.
sintética à obra do diretor de Macunaíma, conectado como Valorizar esse detalhe que implica qualidade da leitura é típico
hotsite da página da produtora Filmes do Serro. das observações minuciosas do hoje ilustre blogueiro.

filmecultura 54 | maio 2011


96 filmecultura 54 | maio 2011 AC E RVO C I N E M AT EC A B R A S I LE I R A / A RQU I VO P E D RO L I M A
AC ERVO C INEMATEC A BR A SILEIR A

Fotogramas da animação Desenho abstrato, de Roberto Miller, 1961.


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À CULTURA

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INSTITUTO
CENTRO TÉCNICO AUDIOVISUAL HERBERT LEVY

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