Filme Cultura n.54 1
Filme Cultura n.54 1
Filme Cultura n.54 1
VANGUARDA
=
I N O V A Ç Ã O
PRESIDENTE DA REPÚBLICA DILMA ROUSSEFF
MINISTRA DA CULTURA ANA DE HOLLANDA
SECRETÁRIO EXECUTIVO / MinC VITOR ORTIZ
SECRETÁRIA DO AUDIOVISUAL ANA PAULA DOURADO SANTANA
GERENTE DO CTAv GUSTAVO DAHL
www.filmecultura.org.br
[email protected]
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67 CINEMATECA DE TEXTOS / JULIO BRESSANE | 70 UM FILME / O GERENTE JOÃO CARLOS RODRIGUES E PEDRO BUTCHER
76 PERFIL / RUBEM BIÁFORA II GUSTAVO DAHL | 81 E AGORA? JOSÉ PADILHA | 83 E AGORA? NEVILLE D’ALMEIDA
85 LÁ E CÁ TATIANA MONASSA | 88 LIVROS / CINEMA DE GARAGEM CARLOS ALBERTO MATTOS | 90 CURTAS JOANA NIN | 91 ATUALIZANDO JOANA NIN
95 PENEIRA DIGITAL CARLOS ALBERTO MATTOS | 96 CINEMABILIA
DIRETOR GUSTAVO DAHL | EDITORA EXECUTIVA JOANA NIN | EDITOR/JORNALISTA RESPONSÁVEL MARCELO CAJUEIRO (MTB 15963/97/79)
REDAÇÃO CARLOS ALBERTO MATTOS, DANIEL CAETANO, JOANA NIN, JOÃO CARLOS RODRIGUES E MARCELO CAJUEIRO
PRODUTORA LETÍCIA FRIEDRICH | SECRETÁRIA DE REDAÇÃO MANAÍRA CARNEIRO
COLABORADORES ANDRÉ PARENTE, CAO GUIMARÃES, FERNANDO MORAIS DA COSTA, FILIPE FURTADO, LUIZ GONZAGA ASSIS DE LUCA,
MARCOS MAGALHÃES, MÁRIO ALVES COUTINHO, PEDRO BUTCHER, RUBENS MACHADO JR. E TATIANA MONASSA
PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO MARCELLUS SCHNELL | PRODUÇÃO ICONOGRÁFICA LEONARDO ESTEVES
RESTAURAÇÃO DIGITAL DE FOTOGRAFIAS ANA OLIVEIRA ROVATI | REVISÃO EDITORIARTE | PRODUÇÃO GRÁFICA SILVANA OLIVEIRA
SUPERVISÃO DO PROJETO (INSTITUTO HERBERT LEVY ) JOSÉ CARLOS BARBOZA DE OLIVEIRA
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O movimento de “liderança” que foi exercido pelas ditas vanguardas (já clássicas) do século XX
foi o de romper com modelos estabelecidos. Para compreender por que isso não se mostra
tão frequente no nosso tempo, pode ser de boa ajuda lembrar qual era o contexto histórico
que as provocou. Os artistas da chamada vanguarda oscilaram entre o fascínio e o horror
à modernidade, como já apontou Octavio Paz. Essas vanguardas ocorreram em seguida ao
século em que se estabeleceram os modelos de uma arte burguesa – que em muita situações
se conciliava com seus precursores do período aristocrático (como nos casos de neoclassi-
cismo), e em outros se opunha e radicalizava em vários níveis contra os modelos clássicos,
até chegar às rupturas vanguardistas. Em um trecho da sua Filosofia da composição, Edgar
Allan Poe diz que “a verdade é que a originalidade (a não ser em espíritos de força incomum)
de modo algum é uma questão, como muitos supõem, de impulso ou de intuição. Para ser
encontrada, ela, em geral, tem de ser procurada trabalhosamente, e embora seja um mérito
positivo da mais alta classe, seu alcance requer menos invenção que negação.” Podemos
desconfiar dos excessos do tom racionalista que caracteriza o texto de Poe, mas é certo que
o gesto de ruptura precisa que existam um ou mais modelos que possam ser confrontados.
Naturalmente, isso não aconteceu de forma idêntica em cada uma das artes. No teatro, os regis-
tros de ruptura com os modelos tradicionais ocorrem somente no final do século XIX. O mesmo
se deu com a música, em que as experimentações românticas eram cuidadosamente calculadas
dentro do regime harmônico herdado do classicismo, conforme se percebe em casos modelares
como os de compositores alemães e italianos. Já a pintura se manteve pretensamente realista
até sofrer a concorrência dos registros fotográficos: o início do impressionismo acontece na
década de 1870, quando tem início a era das vanguardas. É a literatura que se difere um pouco
entre as artes: quando estavam se definindo as formas do romance burguês, ainda sobrevinham
Se a literatura da era burguesa teve desde o princípio essa chama crítica e experimental, muito se deve
às intuições dos precursores, mas algo também se deve a uma natureza específica do texto escrito:
os letrados eram, em sua maior parte, pessoas mais abonadas. Sempre soará grosseiro afirmar que a
produção artística mais experimental é destinada apenas a pessoas mais ricas e/ou eruditas – qualquer
um pode ter sua sensibilidade provocada por obras inovadoras. No entanto, o ponto incômodo que
não se pode negar é outro: não é qualquer um que pode se dedicar à vanguarda. A experimentação
moderna não depende apenas da existência de modelos a serem criticados e reinventados – depende
também de sustento financeiro dentro deste sistema de crítica e reinvenção. Um criador de talento
pode ser levado pelas circunstâncias a querer agradar o público de todas as maneiras pela justa moti-
vação de manter o seu ganha-pão. Sobretudo nas épocas em que o público desconfia das novidades.
O recurso aos modelos já estabelecidos é comum nessas circunstâncias.
O cinema surgiu quando todas as outras artes viviam o calor dos movimentos de ruptura
com seus modelos e convenções. As heranças que o cinema guardou de outras artes, como
a literatura e a pintura, foram fontes fundamentais para a atitude experimental que existiu
na sua base. Se parece hoje natural que se tenha estabelecido uma tradição dominante de
linguagem narrativa (cujas convenções podem ser constantemente reformuladas), é preciso
apontar que esses impulsos de crítica e experimentação tomaram parte de todos os períodos
da produção cinematográfica, desde antes dos filmes de Griffith (vale mencionar o livro de
Flávia Cesarino da Costa, O primeiro cinema – espetáculo, narração, domesticação, entre
outros sobre o assunto). Já naquele princípio de século o ambiente de experimentação das
outras artes era favorável a isso, e desde então o cinema intrigou a muitos daqueles que
eram propensos a experimentações estéticas. Como apontou uma vez Alain Robbe-Grillet, já
nos anos 1960, “A atração indubitável que a criação cinematográfica exerce sobre muitos dos
novos romancistas deve ser procurada noutro lugar. Não é a objetividade da câmera que os
apaixona, mas sim suas possibilidades no domínio do subjetivo, do imaginário.” Em vários
momentos, o cinema foi visto como uma espécie de porta da esperança por quem pretendia
fazer uma arte nova – algo que nem sempre vicejava, por razões financeiras ou logísticas.
O período agônico da arte de vanguarda fez-se ver, sobretudo, no final dos anos 1960 e na
década seguinte; chegou-se enfim a uma espécie de exaustão das rupturas. De repente, um
outro ambiente se instalou. Não um “novo” ambiente, decerto, porque isso seria em si um
paradoxo: como haveria um ambiente “novo” a partir da descrença em torno da ideia de
originalidade? Seja como for, instaurou-se a fé na desconfiança.
Roda de bicicleta, Marcel Duchamp (1913) VANGUARDA - INOVAÇÃO filmecultura 54 | maio 2011
De fato, a crença na experimentação de linguagem depende mais de uma espécie de arro-
gância confiante do que do conhecimento amplo das circunstâncias e tendências. Podendo
ou não se basear em ampla erudição, e podendo se sair bem ou mal nas suas próprias
pretensões, o experimentalismo é uma atitude que não depende senão de si. As concei-
tuações formuladas pelos inúmeros manifestos vanguardistas nem sempre antecederam
as obras – ao contrário, reduzir estas àquelas é empobrecedor em diversas situações.
Talvez seja mais interessante enxergar a atitude experimentalista como uma determina-
da predisposição intuitiva e afetiva, e não como conceito relativo a um certo estado das
artes – e a criação experimental depende sobretudo de uma execução fiel a este desejo.
Neste sentido, pode parecer natural falar do fim das vanguardas, uma vez que a ideia
de vanguarda embute o conceito de progresso, de avanço – e, portanto, de ruptura
consciente de um determinado contexto. No entanto, o que motiva a experimenta-
ção não é algo desta natureza. O próprio conceito de vanguarda é “clássico-narrativo”
e racionalista demais, se for levado ao pé da letra. Mas a descrença na necessidade
(e mesmo na possibilidade) de experimentação é um sentimento tão comum, nos dias de
hoje, que pode ser diagnosticada como uma doença de muitos espíritos da nossa época.
Isto se torna mais grave (e, por outro lado, mais frágil) no espaço brasileiro. Nossa con-
cepção de modernidade, como muitos já disseram, foi importada das agendas europeias;
o grupo do Modernismo de 22 – marco de um movimento vanguardista no Brasil – por falta
de um imaginário prévio de país, precisou inventá-lo em vez de rompê-lo. Nosso contexto
de país gigante com formação colonial e socialmente desigual provocou paradoxos per-
sistentes e intrigantes, definidos ao redor da “dialética entre o não ser e o ser outro”, na
expressão clássica de Paulo Emilio. Numa sociedade até então (e, em vários aspectos, até
hoje) disposta a se enxergar a partir de modelos estrangeiros a serem imitados, Paulo Emilio
apontou o dilema que moveu os dois polos clássicos do dito modernismo: a busca mítica
e antropológica por raízes a serem inventadas, em que a figura histórica de liderança foi
Mário de Andrade, e a antropofagia oswaldiana, que se fortalecia devorando do outro seus
modos (“só me interessa o que não é meu”, conforme o clássico Manifesto Antropofágico).
Talvez seja mais interessante enxergar a atitude experimentalista como uma determinada
predisposição intuitiva e afetiva, e não como conceito relativo a um certo estado
das artes – e a criação experimental depende sobretudo de uma execução fiel a este desejo.
A concepção baziniana vai ser contestada na França dentro do próprio Cahiers, quando
Godard, no início dos anos 1960, usou (e abusou) da montagem nos seus primeiros fil-
mes (notadamente Acossado e Uma mulher é uma mulher), fragmentando a sequência
para conservar dela apenas as partes que interessam, quebrando a continuidade e a
cronologia. Desde um pouco antes, na Itália, Antonioni fazia exatamente o contrário,
preferindo os tempos mortos aos tempos de ação, e os planos longos, sem corte.
Em A aventura, o desprezo pelo enredo é tão grande que o filme termina sem que tenha
sido resolvido o incidente que detonou a trama. A plateia do festival de Cannes vaiou o
diretor, que teve de se retirar da sala por uma saída de emergência.
Pier Paolo Pasolini
Em ambos os casos estamos diante de inovações do cinema moderno, uma fuga da
gramática tradicional da dramaturgia. Mas qual seria esta, afinal? Voltando a Pasolini,
é sua uma das melhores definições desse fenômeno, expressa num artigo de 1965,
Cinema de poesia. Entre outras coisas, o texto faz uma distinção entre um cinema-prosa
e um cinema-poesia. O primeiro seguiria a estrutura dos romances de Charles Dickens,
com personagens com conflitos bem definidos e uma trama cronológica em capítulos,
de preferência emocionante, pois o que se pretende aqui é envolver o espectador num
mundo paralelo, mas sem perder a referência com a realidade. Nessa categoria podemos
incluir cineastas tão diferentes como David Griffith, John Ford, David Lean, William Wyler,
Luchino Visconti, Akira Kurosawa, Alfred Hitchcock. Já do cinema-poesia não se exige
coerência nem cronologia. Assim como num poema de Rimbaud, não é o tema que nos
seduz, mas a forma, as rimas, a métrica, as metáforas. Aqui não se pretende envolver
o espectador, mas se exibir diante dele, como um mágico diante da plateia. É o caso de
autores como Jean Cocteau, Mário Peixoto, Sergei Paradjanov, Walt Disney, Kenneth Anger,
Stan Brakhage, Glauber Rocha. Embora muito atacada pelos estruturalistas, essa classifi-
cação permanece válida, entre outras qualidades, por ser de rápida compreensão. Houve
polêmica de notáveis, uns contrários a ela (Metz), outros favoráveis (Deleuze). Claro que não
é uma cláusula pétrea, e encontramos cenas-poesia em filmes-romance (de Fellini, Buñuel
e Minnelli, entre outros tantos), e, bem mais raramente, vice-versa.
Há muito que o formato industrial padrão dos anos 1930/40, de 90 minutos, foi implodido.
Temos hoje simultaneamente filmes de um minuto ao lado dos musicais de Bollywood, e dos
épicos do cinema chinês, que frequentemente beiram quatro horas de duração. Produções
em telas múltiplas com ação simultânea, como The Chelsea girls, 1966, de Andy Warhol
e Paul Morrisey, ou filmadas num plano único de 92 minutos, como Arca russa, 2002, de
Aleksandr Sokurov. Em geral encontramos um narrador na terceira pessoa (oculto ou em voz off),
mas existem algumas tentativas de câmera subjetiva em longa-metragem, vide A dama do
lago, 1947, de Robert Montgomery, e Eros, o deus do amor, 1981, do nosso Walter Hugo
Khoury. Filmes com mais de um narrador, que contam partes diferentes da mesma história
(Cidadão Kane, 1940, Orson Welles) ou diferentes versões do mesmo fato (Rashomon, 1950,
Jean-Luc Godard e
de Akira Kurosawa). Em O gerente, 2010, Paulo Cezar Saraceni faz o narrador aparecer em
carne e osso, falando diretamente ao espectador, como na televisão. Mais recentemente, Michelangelo Antonioni
com a divulgação de obras vindas de países orientais, começam a se destacar filmes próximos
da música modal, que se repete ad aeternum, sem muitas mudanças, ao contrário da tonal,
dominante na cultura ocidental, que exige uma solução dramática definida. Tio Boonmee,
2010, de Apichatpong Weerasethakul, onde não há nenhuma progressão dramática e se con-
fundem os planos da realidade e do sobrenatural, e também os do passado-presente-futuro,
Mas resta uma pergunta que não quer calar: é possível modernizar a dramaturgia do
cinema de ficção, ou se trata de uma forma já petrificada, que apenas gira sobre si mesma
com pouquíssimas variantes?
Nos últimos 30 anos, a fórmula revelada pelo roteirista americano Syd Field, no seu livro
Screenplay/ The foundations of screenwritting, 1979, foi exportada, como uma praga,
para todas as partes do mundo. É o paradigma dos três atos, segundo o qual todo filme
possui uma Apresentação (25% do total) onde são introduzidos o protagonista e situa-
ção; um Confronto (50% do total) quando protagonista e antagonista entram em choque
(recomenda-se lá pela página 60 de um roteiro de 100 uma pequena reversão de expec-
tativa para “acordar” o espectador eventualmente desatento); e uma Solução (os 25%
restantes), quando o protagonista consegue, ou não, o seu objetivo. Hoje um roteiro que
não siga essas regras pétreas dificilmente será aprovado para produção. A famosa frase
de Godard, “todo filme tem um começo, um meio e um fim - mas não necessariamente
nessa ordem”, tornou-se um anátema, um sacrilégio. Busca-se a ordem.
Se a dramaturgia no cinema parte do roteiro para chegar à mise-en-scène, torna-se evidente que
o primeiro condiciona a segunda, e um roteiro acadêmico conduzirá o diretor na mesma direção.
A primeira implicância da nouvelle-vague contra o “cinema de qualidade” do pós-guerra começou
exatamente com os roteiros literários, de diálogos pomposos, que caracterizavam a produção
francesa. Também no Brasil, os diretores do Cinema Novo investiram contra o incipiente cinema
industrial, geralmente melodramas ou policiais, e também contra o cinema popular, representado
pela chanchada. Sua dramaturgia é bem mais consistente que a do primeiro grupo, e mais bem
acabada, se bem que menos comunicativa, que a do segundo. Em Deus e o diabo na terra do sol
e Terra em transe Glauber Rocha apresentou novidades reais diante do que se fazia então no
Brasil, e mesmo fora dele: visão não folclórica da cultura popular, uso da canção como parte
da narrativa, direção estilizada dos atores, figurinos – no primeiro. Superposição de narrativas
sonoras simultâneas, alegoria política, pré-tropicalismo – no segundo. Em oposição a ele e ao
Cinema Novo, querendo ir mais além, vieram os filmes da Bel-Air, outro momento em que a
dramaturgia do cinema brasileiro foi sinônimo de vanguarda. Velhos tempos.
A tentativa, até o momento frustrada, de implantar uma indústria de cinema no Brasil, muito
presente a partir de 1970, veio disciplinar e empobrecer tudo. Produção alavancada por leis
de incentivo, pré-aprovada pela empresa que escolhe o projeto, “selecionando” temas menos
explosivos, “sugerindo” elenco televisivo, “opinando” aqui e ali, “preferindo” roteiros bem for-
matados a qualquer novidade. Os sucessos narrativos que encontraram resposta na bilheteria,
como, por exemplo, os escritos por Bráulio Mantovani, são muito eficientes, mas não escapam
do modelo padrão vigente. Nem pretendem. Fazem parte da indústria de entretenimento.
O que os fez cair no gosto popular é principalmente a temática. O ponto inicial de todo filme:
o seu argumento, o seu conteúdo. Caímos então, inesperadamente, no campo da política.
A escolha de certos temas pode ser muito explosiva. Na esquerda ortodoxa dos anos 1930/60,
ele tinha de ser “progressista” e os protagonistas, “positivos”. É o Realismo Socialista do regime
stalinista. Curioso verificar sua diluição na ideologia liberal dos filmes feitos em Hollywood
nos anos 1960 com mensagem antirracista, e com personagens negros “sem nenhum defeito”,
interpretados por Sidney Poitier, e dirigidos academicamente por Martin Ritt ou Stanley
Kramer. Foram os jovens turcos da crítica francesa que separaram a temática da mise-en-scène.
Mas da Índia, onde à sombra da maior produção mundial a cinefilia chega às raias do fanatismo,
volta e meia ainda nos chegam notícias de cinemas incendiados porque exibiram filmes com
personagens transgressores, e uma religião ou casta sentiu-se ofendida.
Não é à toa que, de hábito, quando pensamos em cinema, a imagem que nos vem à cabeça é a de
um espetáculo que envolve ao menos estes três elementos distintos: uma sala escura, onde há uma
projeção de uma imagem em movimento que conta uma história em cerca de uma hora e meia.
Os irmãos Lumière Quando se diz que os irmãos Lumière inventaram o cinema, esquece-se, muito frequente-
mente, que o Cinematographo só continha as duas primeiras dimensões acima mencionadas.
Apenas recentemente começou-se a distinguir de forma sistemática o cinema dos primeiros
tempos, o cinema dito de atrações (Noël Burch, André Gaudreault, Tom Gunning etc.), do
cinema narrativo clássico, que surge em torno de 1908. De fato, a história do cinema dos
primeiros tempos nos permite separar dois momentos absolutamente diferentes: o da
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Portanto, quando se diz hoje que as novas tecnologias de um lado, e a arte contemporâ-
nea, de outro, estão transformando o cinema, é preciso perguntar de que cinema se trata.
O cinema convencional, que doravante chamaremos de “forma cinema” (termo que cunha-
mos para distinguir do cinema do dispositivo), é apenas uma forma particular de cinema,
porque não dizer uma instalação, que fez sucesso e se tornou hegemônica: vale dizer, um
modelo estético determinado histórica, econômica e socialmente. Trata-se de um modelo
de representação, a “forma narrativa-representativa-industrial” (N.R.I., termo cunhado por
Claudine Eizykman), ou um modelo institucional “modelo-representativo-institucional”
(M.R.I., sigla inventada por Noël Burch) ou um modelo estético, “estética da transparência”
(termo utilizado por Ismail Xavier).
O cinema, na condição de sistema de representação, não nasce com sua invenção técnica, pois
leva cerca de uma década para se cristalizar e se fixar como modelo. Ele é um dispositivo com-
plexo que envolve aspectos arquitetônicos, técnicos e discursivos – cada um deles é, por si só,
um conjunto de técnicas –, todos eles voltados para a realização de um espetáculo que gera no
espectador a ilusão de que está diante dos próprios fatos e de acontecimentos representados.
Não devemos, portanto, permitir que a “forma cinema” se imponha como um dado natural, ou
melhor, que o cinema se defina por ela. A própria “forma cinema”, aliás, é uma idealização.
Deve-se dizer que nem sempre há sala; que a sala nem sempre é escura; que o projetor nem
sempre está escondido ou é desapercebido (é silencioso, por exemplo); que o filme nem
sempre é projetado (muitas vezes, e cada vez mais, ele é transmitido por meio de imagens
eletrônicas e digitais); e nem sempre conta uma história (muitos filmes são atracionais,
abstratos, experimentais etc.). A história do cinema tende a recalcar os pequenos e grandes
desvios produzidos nesse modelo, como se ele se constituísse apenas do que quer que tenha
contribuído para o seu desenvolvimento e o seu aperfeiçoamento.
Thomas Edison O termo cinema dos primeiros tempos se refere a toda uma produção de filmes que, ao
contrário dos pré-cinemas, eram realizados para serem exibidos em sala de cinema. O que
diferencia o cinema (“forma cinema”) do pré-cinema é basicamente a ausência, nestes
últimos, de decupagem e de montagem, ou seja, do que veio a ser denominado posterior-
mente de linguagem cinematográfica ou de sistema de representação (NRI, MRI, estética
da transparência, forma cinema).
O que hoje chamamos de pós-cinema nasceu no Pós-guerra, mais particularmente nos anos
de 1960, com a videoarte e com as instalações e happenings cinematográficos. A videoarte
é o meio privilegiado a partir do qual se deu o encontro entre o audiovisual e a arte con-
temporânea. A videoarte estava presente em todos os movimentos que fizeram a passagem
do moderno ao contemporâneo – movimentos resultantes de uma ruptura com o repertório
modernista, entre os quais destacamos: a pop arte, o neoconcretismo, o minimalismo, a
arte conceitual, o grupo Fluxus, a land art.
Nos anos 1960, surgiu uma série de experiências de cinema com projeções múltiplas, instalações e
happenings, realizada por cineastas experimentais, em sua maioria americanos – Kenneth Anger,
Stan VanDerBeek, Robert Whitman, Andy Warhol, Jeffrey Shaw, Anthony McCall –, interessados
em experimentar a combinação de vários meios de expressão, misturando o cinema, a dança, a
música, a performance e as artes plásticas. O cinema expandido foi ao mesmo tempo um movi-
mento de radicalização do cinema experimental e um movimento sincronizado com a diáspora
do cinema da sala. De lá para cá, cada vez mais encontramos cinema em todos os lugares, da
televisão aos gadgets digitais, da internet aos muros da cidade, nos museus e galerias.
Lembramos que foram os neoconcretistas que, antes mesmo dos minimalistas, propuseram a
participação do espectador na obra de arte. Em 1973, em seus projetos de Cosmococas, que só
vieram a ser apresentadas em público bem mais tarde, Hélio Oiticica e Neville D’Almeida busca-
ram realizar um conjunto de instalações, no qual o espectador pudesse experimentar o cinema
a partir da projeção audiovisual. A ideia principal de Oiticica e Neville era a de experimentar
um duplo devir: o devir do cinema das artes plásticas e o devir das artes plásticas do cinema,
em uma espécie de discurso indireto livre. Isso fica muito claro no comentário de Hélio:
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“Colocam-me o visual (cujo problema de imagem já fora consumido em TROPICÁLIA), num nível
de ESPETÁCULO (PERFORMANCE-PROJEÇÃO) a q me atrai a experiência de cinema de NEVILLE:
os MOMENTOS-FRAMES dos SLIDES são a suíte lógica de MANGUE BANGUE limite: a mim me
anima insuflar experimentalidade nas formas mais ESPETÁCULO-ESPECTADOR q continuam
a permanecer virtualmente imutáveis: a NEVILLE interessa gadunhar a plasticidade sensorial
do ambiente q quer como se fora “artista plástico” (e o é mais do que ninguém!) INVENTAR:
em MANGUE BANGUE a câmera é como uma luva sensorial pra tocar-cheirar-circular: explodir
portanto em fragmentos-SLIDES é pretexto-consequência pra PERFORMANCE-AMBIENTE: EU-
NEVILLE não “criamos em conjunto”, mas incorporamo-nos mutuamente de modo q o sentido
da “autoria” é tão ultrapassado quanto o do plágio: é JOGO-JOY: nasceu de blague de cafungar
pó na capa do disco de ZAPPA WEASELS RIPPED MY FLESH: quem quer a sobrancelha ? – e a
boca ?: sfuuum! : pó-SNOW: paródia das artes plásticas: paródia do cinema.”
Hélio Oiticica e Neville D’Almeida
Se Hélio e Neville vieram a denominar as Cosmococas de Quasi-cinema, isso não se deve ao
fato de estas não usarem imagem em movimento, mas por colocarem de lado o que ele chama
a unilateralidade do cinema. O quasi-cinema de Hélio e Neville é cinema, mas é um cinema
participativo, que pode romper com a NUMBNESS que aliena o espectador na cadeira-prisão.
Pois “como soltar o CORPO no ROCK e depois se prender à cadeira do numb-cinema???”
Por outro lado, a tecnologia jogou um papel crucial nesse processo de transformação da relação
dos vários meios de expressão e o espectador. Para continuarmos tomando como exemplo a
música, a partir dos anos de 1930 a música passou a ser ouvida em qualquer lugar – proces-
so já prenunciado por Paul Valery em 1928, em um texto utópico intitulado “A conquista da
ubiquidade”, no qual ele afirma que a música, por sua integração com todos os aspectos da
vida individual e social, é a arte que vai encontrar primeiro novos modos de reprodução, distri-
buição e de escuta – em primeiro lugar por meio do rádio e depois do som portátil: o cassete,
o walkman, e finalmente os minúsculos tocadores de MP3, celulares, entre outros.
No Brasil, embora tenhamos tido, durante os anos de 1970, uma intensa produção de cinema
experimental (Antônio Dias, Antônio Manuel, Paulo Brusky, Arthur Omar, Lígia Pape, André
Parente – a esse respeito remetemos o leitor ao catálogo da exposição Filmes de Artista -
1965-1980, organizada por Fernando Cocchiarale em 2007 e publicada pela Contra-Capa) e
de videoarte (Sônia Andrade, Letícia Parente, Regina Silveira, Rafael França, Eder Santos,
Sandra Kogut, entre outros. Ver a esse respeito o livro Extremidades do vídeo, de Christine
Mello, Editora Senac, 2009), a produção instalativa começa a surgir, com raríssimas exceções,
como as já citadas “Cosmococas”, apenas em meados dos anos de 1980, e ainda assim de
forma muito tímida. Foi apenas a partir dos anos de 1990 que uma série de artistas, cine-
astas e videomakers vieram a produzir intensamente instalações: Júlio Plaza, Eder Santos,
Sônia Andrade, Regina Silveira, Tadeu Jungle, Diana Domingues, Maurício Dias & Walter
Riedweg, Sandra Kogut, Arthur Omar, Lucas Bambozzi, Simone Michelin, Cao Guimarães,
André Parente e Katia Maciel, entre muitos outros.
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Toda vez que me questionam sobre o futuro do cinema, vem-me à cabeça um artigo
que li na revista espanhola Muy interessante há 25 anos. Convidaram dez cineastas para
relatar como viam o cinema dos anos 2000. Um escreveu que seria um barco percorrendo o
Sena com projeções em suas velas. Outro afirmava que as exibições seriam tridimensionais
no centro de uma grande praça. Um terceiro descrevia uma sala com inúmeras e gigantescas
telas, onde o espectador escolhia o que queria ver. Todas as interpretações eram poéticas,
sem qualquer preocupação com os aspectos mercadológicos ou técnicos.
Essa visão lúdica transmite uma visão otimista sobre a exibição coletiva, aquela que coloca
diferentes pessoas compartilhando emoções ao mesmo tempo. Escrevi um artigo no final
dos anos 1980, portanto quando milhares de cinemas cerravam definitivamente suas portas
e locadoras de videocassete eram abertas em cada esquina. Afirmava que a exibição coletiva
jamais deixaria de existir, pois estar junto, compartilhar o prazer ou a dor é uma necessidade
humana. O tempo se incumbiu de provar tal afirmação – o theatrical encontra-se novamente
em ascensão, enquanto a venda ou o aluguel de DVDs entrou em profundo declínio, pratica-
mente deixando de existir em importantes mercados como o sul-coreano ou o mexicano.
Tentarei ficar restrito às prospecções sobre as tecnologias que existem ou que estão em
desenvolvimento, evitando fazer futurologia. Neste sentido, o conceito de convergência di-
gital passa a ser fundamental em nossa explanação. Tem-se a integração de todos os meios
e veículos, permitindo que um mesmo produto audiovisual circule em qualquer um deles. A
especialização dos equipamentos, tão valorizada na sociedade industrial tradicional, perdeu
o seu sentido. Os Meios de produção como câmeras e “ilhas de edição e finalização” pas-
saram a estar disponíveis a qualquer um que possa adquirir um computador doméstico,
uma câmara de filmagem ou, mais simplesmente, um telefone que lhe permitirá captar as
A afirmação acima descrita pode levar a uma interpretação de que se atingiram as condições
tão sonhadas de acesso das produções de baixo orçamento aos cinemas mais rentáveis.
Intensamente sonhadas desde a década de 1950, quando surgiram as câmaras e gravadores
de som portáteis, que permitiram a mobilidade e o registro de cenas sem o aparato que os
estúdios exigiam. No atual estágio tecnológico, produzir um filme é algo muito mais simples
e barato que realizá-lo com película 16 mm, que exigia quase que o mesmo aparato de fina-
lização dos filmes mais dispendiosos, como a locação de mesas de montagem (moviolas),
o uso de fitas magnéticas perfuradas, a mixagem destas pistas de som, a transcrição da fita
mixada para o ótico de som, a montagem dos negativos e as cópias positivas. Não bastassem
os altos custos das diversas etapas de produção, as caras cópias em 16mm tinham baixa
resistência física e raramente superavam uma vida útil de 50 ou 60 exibições.
O baixo investimento na produção de um filme que pode circular em mídias comuns como os
DVDs, os hard discs ou através de sinais transmitidos pela internet ou por satélite, aponta
para uma possibilidade inédita na circulação de conteúdos. Porém, as salas de cinema não
se regem apenas pela oferta de produtos, mas por um complexo sistema de distribuição dos
filmes, onde é ofertado um número muito maior de produtos do que as suas reais capacidades
de exibição. Basta ver que anualmente os Estados Unidos, o México e a França lançam até
o dobro de títulos do Brasil. Podemos dizer que, genericamente, faltam telas no país e que,
por isso mesmo, a produção nacional e estrangeira supera as suas disponibilidades.
Assim apresentado, pode parecer que os produtores independentes adentraram o pior mundo.
Num resumo pessimista, pode-se expressar: primeiro, os grandes estúdios foram substituídos
por megaconglomerados. Depois, seus principais produtos, que não passam de 20 títulos por
ano, chegam a custar centenas de milhões de dólares, tomam a maior parte das datas. Em julho
do ano passado, apenas três filmes estrangeiros ocupavam quase 70% das telas dos cinemas
brasileiros. Qual a vantagem que a tecnologia digital trouxe, então, ao cinema independente?
Podemos afirmar que se tem um momento inédito, de grande perspectiva para o produto
independente, seja ele um longa-metragem experimental, um documentário, um curta-
metragem, uma série de televisão, um programa televisivo, ou até mesmo um curtinha de
alguns segundos. Em primeiro, porque nunca houve tantos veículos para exibir os filmes.
Basta ver o Youtube para ficarmos embasbacados com a quantidade de material disponível.
Legal ou ilegalmente (e esta é uma discussão mais complexa da qual fugirei) assiste-se a
materiais que jamais chegariam a qualquer tipo de tela. Mesmo brincadeiras amadoras feitas
com uma simples câmara de telefone chegam aos sites, e cada vez mais os assistimos em
canais de televisão por assinatura e mesmo nas emissoras abertas.
Trata-se de uma mudança extrema nos sistemas de circulação dos produtos audiovisuais.
Não só é possível produzi-los com o simples custo de aquisição de um telefone celular,
como é possível fazer sua circulação, que será assistida por um número muito maior de
espectadores do que nos veículos tradicionais. Não se dependeu de um produtor, de um
distribuidor ou de um proprietário de veículo ou meio de comunicação.
Essa nova dimensão de fazer circular amplamente os produtos que antes não chegavam às
mãos do consumidor já foi retratada por Chris Anderson ao criar a teoria da “cauda longa”,
uma proposição de comercializar produtos que não se submetem aos critérios tradicionais
de consumo devido à sua pequena escala de vendas. Através do consumo globalizado,
obtido pela oferta na internet, localiza-se um número de consumidores suficiente para lhes
dar a viabilidade econômica. Se estivermos discutindo a exibição pelas salas de cinema,
não teremos um volume imediato de ingressos vendidos para permitir uma programação
contínua como ocorre nos cinemas tradicionais. Porém, a oferta concentrada e dirigida a
determinados horários possibilita que os conteúdos sejam colocados nas telas, como vêm
ocorrendo com as óperas, balés, shows de rock e eventos esportivos.
A definição do cinema do futuro vai em direção à multiplicidade das ofertas, tanto na direção
de salas com telas enormes, sonorizações espetaculares, projeções tridimensionais, capazes
de se transformar em arenas que exibam conteúdos diferenciados, como vai em direção à
expansão de circuitos alternativos. De um lado, estrutura-se uma indústria gigante que visa
grandes lucros ao ofertar caras produções e, do outro lado, constitui-se uma ampla rede
de veículos e meios voltada a receber os produtos artísticos. Esta dispõe praticamente do
mesmo arsenal de circulação de conteúdos que os estúdios: múltiplos veículos e meios.
Como já foi dito neste artigo, a necessidade de suprimento de produtos audiovisuais para
o sistema audiovisual existente propicia condições inéditas para a produção de filmes.
Ou melhor, para ser mais exato, de conteúdos.
Luiz Gonzaga Assis De Luca é doutor em Ciências das Comunicações e autor dos livros
Cinema digital - um novo cinema? e A hora do cinema digital.
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É um sentimento muito forte que transpassa boa parte do jovem cinema brasileiro.
Ela está lá num desejo de reforçar a própria ideia de geração – muito menos uma ferramenta
de marketing e mais um reconhecimento de que a cena é ela própria a maior consumidora
de si mesma –, assim como os vários focos locais, cada um com algumas características
muito próprias que propõem vários minigrupos; algo que fica claro quando nos lembramos
da organização da 50ª edição desta mesma Filme Cultura, em artigos que buscavam chegar
ao cinema brasileiro contemporâneo através de vários cinemas regionais. Sobretudo esta
ideia de grupo ganha força quando observamos como muito do que de mais vital no cinema
brasileiro recente nasceu de produtoras locais, como a Teia (MG), Símio (PE) e Alumbramento
(CE) que são mais que meras empresas que abrigam uma série de realizadores, e sim focos
criativos que apresentam cada um ao seu modo um olhar para o cinema muito próprio.
Ainda assim temos uma diferença entre os filmes de uma produtora como a Teia, no qual o
cinéfilo pode localizar uma série de interesses estéticos comuns, mas nos quais ainda são
inegáveis as personalidades próprias de cineastas, como Sergio Borges e Marília Rocha,
e filmes nos quais a identidade do autor se torna muito mais difusa. Voltando no tempo,
encontramos dois filmes realizados no começo dos anos 2000 que podem ser vistos como
ancestrais dos filmes coletivos recentes: o curta Resgate cultural, o filme, do coletivo per-
nambucano Telephone Colorido, e o longa Conceição – autor bom é autor morto, codirigido
por um grupo de estudantes da Universidade Federal Fluminense. O Telephone Colorido,
Conceição – Autor bom é autor morto lida diretamente com a figura do autor. O filme foi reali-
zado entre 1998 e 2000 como trabalho de conclusão da UFF por André Sampaio, Cynthia Sims,
Daniel Caetano, Guilherme Sarmiento e Samantha Ribeiro e finalmente finalizado e lançado
em 2007. Apesar de ser um filme com episódios dirigidos individualmente pelos diretores
e unidos pela ideia de um grupo de estudantes de cinema num bar falando sobre os filmes
que gostariam de fazer, vemos muito mais fragmentos de filmes – muito bem costurados
pela excelente montagem de Sampaio – do que uma série de curtas, e não há créditos que
especifiquem quem foi responsável pelo quê. A ideia dos personagens que se revoltam contra
a crueldade constante, a que são sujeitados pelos seus criadores, só reforça o interesse do
filme de colocar em crise o conceito de autoria. Curiosamente, a despeito de todo este esforço
de matar o autor, Conceição não consegue deixar de explicitar suas múltiplas sensibilidades,
e quem conhece, por exemplo, os curtas de Sampaio ou as crônicas de Sarmiento tende a
reconhecer ao menos parte das sequências pelas quais eles são responsáveis. Sem falar na
forte presença teórica do hoje redator da Filme Cultura, Daniel Caetano, que não deixa de ser
uma espécie de autor da crise do autor proposta pelo seu filme. Conceição se revela muito
mais uma cacofonia de sensibilidades do que a dissolução da autoria que a princípio sugere.
Vale destacar que a disposição dos seus diretores de se colocarem em cena como ficções
de si mesmos aponta para uma tendência muito comum que se aprofundaria em boa parte
do jovem cinema brasileiro com gosto pelo coletivo com suas equipes frequentemente em
cena nos documentários e híbridos e seus cineastas atores de si mesmo em ficções como
Os monstros dos Irmãos Pretti e Primos Parente. Esta autoconsciência que é ao mesmo
tempo presente o tempo todo e completamente dissolvida dentro das suas narrativas – uma
característica comum tanto a Conceição como Resgate cultural – não deixa de ser um dos
maiores elos entre estes filmes coletivos. No caso de Conceição, a despeito de toda a dis-
cussão sobre autores, o filme nunca deixa de ser principalmente uma chanchada possível
dentro do contexto do cinema brasileiro do fim dos anos 1990. Resgate cultural, o filme
Os monstros é um filme que acredita plenamente que o desejo de uma expressão autêntica só
tem como existir se compartilhado com o outro. Não um público abstrato,
mas um companheiro que tenha um mínimo de sintonia com o seu trabalho. Não se faz
cinema sozinho, Os monstros parece repetir sempre.
Ninguém levou tão a sério a ideia do trabalho coletivo como a produtora cearense
Alumbramento, em especial nos dois longas-metragens do quarteto Luiz e Ricardo Pretti,
Pedro Diogenes e Guto Parente. Os quatro cineastas já realizaram extensa obra em curtas
individualmente (Luiz e Ricardo frequentemente trabalham juntos) e mais recentemente
fizeram em conjunto os longas Estrada para Ythaca e Os monstros. Desde 2008, quando da
realização do longa em episódios Praia do Futuro, um típico filme de apresentação, e do curta
dos Pretti Vida longa ao cinema cearense, uma espécie de carta de intenções, a Alumbramento
se destaca por ser um polo criativo no qual os cineastas regularmente colaboram nos filmes
uns do outros, mas nestes longas recentes este processo vem para dentro da imagem.
Se num filme como Conceição o coletivo passa inevitavelmente por uma tentativa de matar
a figura do cineasta como um criador solitário, em filmes como Desassossego e Os monstros
entramos pelo terreno muito maior que o do compartilhamento de sensibilidades. Já não se
contenta simplesmente em mostrar a obra pronta aos cineastas-amigos, é preciso trazê-los
para dentro delas. Se Conceição e Resgate cultural eram filmes que não disfarçavam dentro
do seu mal-estar um confronto, Desassossego e Os monstros misturam o seu mal-estar a
uma constante afetividade. O grupo é o último refúgio tanto dos seus personagens como
dos seus criadores. É uma forma tanto de resistência como de fuga, algo que se manifesta
de forma mais direta nestes filmes, mas encontra eco em vários outros trabalhos de jovens
cineastas que, se assinados individualmente, não escondem o mesmo desejo de dissolver o
indivíduo (seja este o personagem como seu autor) num grupo. A única afirmação constante
neste cinema é que já não podemos sobreviver realizando filmes sozinhos.
Eu próprio dei início a uma pesquisa do experimentalismo superoitista, há pouco tempo, com
interrupções grandes, e posso falar relativamente ao que pude processar até aqui (ver p. 32).
Se falamos de vanguarda no cinema brasileiro moderno, o Cinema Novo (e o Marginal, quase
como um eco invertido dele) fornecem ao longo dos anos 1960 a régua e o compasso que
vão repercutir até os dias que correm. Falo aqui de vanguarda e experimental sem nas suas
teorias me aprofundar, o que implicaria esforço considerável, já que existem aspectos e
compreensões diferentes, disseminados sem maior sistematização enquanto debate especí-
fico: tomo então os termos num âmbito genérico de uso em nossa tradição cultural. São por
vezes termos sinônimos, outras antagônicos, segundo o contexto. Pode-se generalizar que
a ambição do experimental (com inúmeras exceções) é menos explícita no campo político
ou das instituições sociais, e por fim também no aspecto projetual, no sentido de articular
o fazer artístico da criação a um horizonte histórico de modo manifesto e conceituado. Já o
experimental costuma aguardar interpretações a posteriori. Exemplo? Candeias. Se a postura
experimental se dissemina pelo país a partir do final dos anos 1960, junto com o Tropicalismo
e o recrudescimento da ditadura, assumindo contornos de vanguarda nos mais diferentes
sentidos, isto tudo se pode discutir, mas não quer dizer que possamos verificar nas obras
resultados à altura das pretensões.
28 Navarro
Edgard filmecultura 54 | maio 2011 VANGUARDA - INOVAÇÃO
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Avaliar esse problema é entrar no campo da crítica, da análise de filmes, entrar no mérito
da estética que se realiza nos filmes – não apenas na proposta ou convicção dos autores,
como, aliás, de hábito se verifica. Porque tem muita coisa diferente debaixo desse conceito
guarda-chuva do cinema experimental, em que cabe um pouco de tudo –filme de artista,
agit-prop, cinema de poesia, amadorismo radical etc. É preciso pôr a bola no chão e partir dos
filmes, sobretudo, e da experiência que eles nos proporcionam, para conseguir estabelecer
algum debate mais produtivo, para além do surdo tiroteio. Ou seja, trata-se de uma discus-
são necessária, de longo prazo, sem dúvida um pouco mais republicana, e que em grande
medida apenas começa a engatinhar, levantando os filmes, vendo e procurando estabelecer
os seus parâmetros próprios em face das expectativas autorais, diante dos olhares da sua
época e os de hoje; claro, da parte do público, da crítica.
Pois bem, o que eu estou chamando então de um efeito Super-8 se insinua e grassa como uma
facilitação técnica, a redundar em faturas rústicas mas desenvoltas, explorando e elaborando
o que o profissional chamaria de erro, barbeiragem ou incompetência. Apertar o botão e
sair filmando, eis o gesto libertário! Convertem-se em práxis cinematográfica as palavras de
Oswald de Andrade, ao falar da “contribuição milionária de todos os erros”. Clamava de sua
coluna-tribuna Geleia Geral o tropicalista Torquato Neto (também superoitista) nos tempos
duros de 1971: “pegue uma câmera e saia por aí, como é preciso agora (...) documente tudo
o que pintar, guarde. Mostre. Isso é possível”.
O que aconteceu a partir da invenção do Super-8 em 1965 foi uma comercialização com preço
acessível, similar ao das câmeras digitais de hoje. A consciência da sua precariedade no contexto
histórico brasileiro, cultural ou artístico, deu um significado especial a essa produção feita
com pouco; como, aliás, num patamar anterior, o fizera o chamado Cinema Marginal, ainda
que ali respeitando mais certos padrões convencionais, como o 35 mm e o longa. Quando
Sganzerla no final dos anos 1960 propunha espirituosamente que no Brasil passássemos a
fazer “filmecos”, glosava e traduzia em miúdos ideias de Glauber que marcaram o Cinema
Novo. Mas a sua radicalização visionária não podia então prever que na década seguinte isto
se concretizasse de fato; e sobretudo via Super-8. O manifesto Uma estética da fome, 1965,
propunha fazermos frente à indústria cultural não tendo que imitar modelos hollywoodianos,
com filmes caros e complicados, produção alambicada, como no pós-guerra se tentou por aqui.
Talvez o Super-8 tenha realizado a mais funda repercussão da Estética da Fome em termos
de realização poética, no plano da criação de formas cinematográficas no país. Zona Sul
A RQ U I VO E D G A R N AVA R RO
Marginália 70
Lumbra. Da esquerda para a direita,
Pola Ribeiro, Edgar Navarro, José Araripe Jr.,
Fernando Belens Jorge Felippi (no meio, sentado
no chão), Ana Nossa e Henrique Andrade.
Rubens Machado Jr. é pesquisador, curador e professor titular de Teoria e História do Cinema da ECA-USP.
É vice-presidente do Conselho de Orientação Artística do MIS-SP. Dedica-se ao estudo das vanguardas no cinema
brasileiro escrevendo em publicações especializadas e editou várias revistas desde Cine-Olho (1975-80).
Da esquerda para a direita: Torquato Neto, Jomard Muniz de Britto e Jorge Mourão
LEON A R DO L A R A , AC E RVO U N I V E RS O P RO D UÇ ÃO
“ A inventividAde é pArA pouquíssimos ”
F I L M E C U L T U R A en trevis ta
Como responsável pela curadoria da Mostra de Cinema de Tiradentes desde
2007, o paulista Cléber Eduardo, torcedor do Botafogo, tem tido contato ano a ano com as
produções brasileiras mais ambiciosas em termos estéticos. No dia 11 de fevereiro, poucos
dias após o fim da 14ª edição da Mostra, Cléber conversou com a Filme Cultura:
que isso não vem somente de uma produção de filmes, mas sim de um momento histórico.
FC: Você apontou que esse cinema autoconsciente é tributário dos filmes do Antonioni, passando
por Tsai Ming-Liang e Apichatpong Weerasethakul. Além deste, existem em Tiradentes outros
cinemas, outros modelos e matrizes?
CE: Certamente existem. Esse cinema que destaquei é o que estaria mais próximo da pauta que vocês
propõem: o cinema de vanguarda, de experimentação e ousadia. Os filmes mais ousados são
esses filmes conscientes das suas citações e referências, o cinema da rarefação dramática e do
alargamento do plano, de um certo recuo da significação e da enunciação, algo muito evidente
nessas produções, assim como o recuo dos olhares, dos posicionamentos. Eu reconheço que é
neste universo que está o cinema brasileiro mais inquieto. Porém, nem ele é único em Tiradentes,
nem acho que seja radical, um cinema de quebrar os pratos. O Aurora ficou mais associado a
esse cinema mais lento e mais bem enquadrado. Estar lá significa um selo de qualidade, uma Os residentes
espécie de legitimação, por isso é importante pôr uns filmes toscos em que eu vejo valor,
mas que têm um lado mais selvagem, mais precário, mais intuitivo. Eu tenho admiração pelo
A LE XA N D R E C. MOTA, AC E RVO U N I VE R SO P RO D UÇ Ã O
cinema racional, mas também gosto desse outro mais intuitivo, com mais frescor.
FC: Mas você vê a experimentação acontecer no cinema expandido, no chamado pós cinema,
no cinema relacionado às artes plásticas?
CE: Olha, eu acho que existem lugares mais apropriados para experimentações do que o cinema.
A ideia de experimentação nunca foi e nunca será hegemônica no cinema como é nas artes
plásticas contemporâneas. Não é à toa que muita gente está indo para as galerias, dizendo
que os dispositivos do cinema não interessam mais. Eu tenho um pouco de fobia da Bienal,
não consigo ficar duas horas numa. E isso não diminui o cinema: ainda dá para lotar uma
tenda fazendo com que as pessoas assistam a um filme inteiro. Num momento em que as
pessoas só assistem a 10 minutos de qualquer coisa, ver um filme inteiro, como diz o Pedro
Costa, é uma atitude de resistência política, é quase reacionário. Desse reacionarismo eu
gosto. Eu gosto muito de uma frase do Agamben, que diz: para ser contemporâneo, é neces-
sário estar defasado do seu momento histórico. Eu gosto dessa ideia de um certo recuo do
contemporâneo pra melhor entender, como dar um passo para trás. Eu sou meio desconfiado
com o passo à frente. A minha percepção é antivanguardista. Eu prefiro ficar atrás para poder
analisar o rumo das coisas. Não me sinto capaz de manter sempre esse olhar para o olho do
furacão. As coisas muito “contemporâneas” me incomodam.
FC: E o eixo Rio/São Paulo? Você acha que a inovação pode estar tolhida por um sistema que já
existe? Ou talvez não haja figuras específicas que se destaquem?
CE: Rio e São Paulo estão sempre presentes, mas são casos diferentes, têm caminhos muito
próprios. No Rio até pode haver cineastas unidos que saíram todos ou boa parte da UFF,
mas não necessariamente constituem um grupo. Eles têm núcleos próprios, independentes,
particulares, cada um desenvolve o seu caminho. Não existe essa ideia de colaboração mais
ampla que a gente vê em Minas, Ceará e Pernambuco. Talvez porque exista a necessidade
dessa união nesses lugares, enquanto no Rio e São Paulo isso é uma opção, não uma ne-
cessidade. E claro que o cinema cearense não é só a Alumbramento, não é? Existem outros
realizadores, mas pelo menos nas produtoras Alumbramento, do Ceará, Símio e Trincheira,
de Recife, na Teia e agora na Filmes de Plástico, de Minas Gerais, o processo coletivo é quase
uma condição para a existência do filme. Não é que sempre dirijam coletivamente e, mesmo
que aconteça, não será assim para sempre. Num debate em que estavam fazendo uma com-
paração entre os filmes brasileiros baratos de hoje e o cinema marginal underground dos
anos 60 e 70, o André Gatti lembrou do seguinte: “Pode ter uma familiaridade aqui e outra
ali, mas o cinema de hoje não tem nada de marginal, todo mundo tem CNPJ.” Não acho que as
pessoas queiram fazer cinema só por afeto. Isto é uma condição para que as pessoas façam
cinema, talvez elas não façam cinema se não for com afeto, mas todo mundo quer se inserir,
estrear, vender filme lá fora, os diretores querem passar seus filmes em Cannes. Eu não acre-
dito nesse romantismo do pós-industrial, esse pós-industrial na verdade é um pré-industrial,
no caso desse segmento. Todos estão querendo se inserir, só que com liberdade.
FC: A invenção é um desejo, como se não tivessem noção de quais são os caminhos abertos?
Ou talvez estes caminhos estejam abertos demais?
CE: Eu acho que estamos vivendo num momento de transição para alguma coisa que ainda está
nebulosa. Eu acho muito difícil a gente conseguir dar nomes e entender o processo contem-
porâneo, o que acontece de agora pra frente, porque acho que as mudanças serão cada vez
mais rápidas, inclusive nas formas de estruturar a narrativa.
FC: Por outro lado, você falou que os planos estão cada vez mais longos.
CE: Pretendendo ser uma forma de resistência. Existe um mercado da resistência pelo plano.
Hoje, fala-se muito sobre o tempo de duração do plano, o retorno à vida, só que é um “retorno
à vida” estetizado, com uma luz bem pensada. Se a gente pega, por exemplo, um de nossos
FC: Temos visto inovação nos filmes dos diretores mais velhos?
CE: As minhas últimas experiências de ver filmes de cineastas mais velhos foram mais impac-
tantes que ver os dos mais novos. Os filmes do Bressane, como Cleópatra, assim como
o novo filme do Saraceni, O gerente, e também Serras da desordem e esse mais recente
do Geraldo Sarno, O último romance de Balzac. Nem todos são tão radicais em seus fil-
mes. No caso do Bressane, ele está sempre inventando o cinema novamente. É o único
cineasta que consegue me surpreender de verdade. Eu senti isso com esse do Saraceni.
Onde é que está essa inventividade ali? É aí que eu acho que há algo de intangível e
invisível na invenção, porque nem sempre a gente consegue defini-la no procedimento.
FC: Qual é a importância da crítica nessa nova cena? E esse rótulo da “nova crítica”?
CE: Esse rótulo nomeou o grupo de uma geração que já não é mais nova, que agora já está insti-
tucionalizada em alguns casos. Enfim, ao mesmo tempo que há o vídeo digital para o cinema,
hoje há a possibilidade para os críticos publicarem na internet. Tiradentes é sobretudo um
grande espaço de discussão para os novos realizadores, e talvez seja o festival de cinema
que tenha mais críticos por metro quadrado no Brasil. Esse confronto entre filmes e críticos é
fundamental, e num segundo momento existe essa relação entre crítico e realizador na mesa
de debate, com outros críticos e cineastas na plateia fazendo perguntas ou respondendo.
A presença da crítica ajuda muito a dar uma aquecida no clima. Boa parte desses segundos
longas são de realizadores que já têm com a crítica uma relação, que começa a ter fissuras e
ressentimentos a partir do momento em que os filmes são feitos e debatidos. Não sei até que
ponto isso abala a relação amistosa e saudável, mas os realizadores têm que ter maturidade
para tratar com a crítica. Um certo receio do conflito é uma característica muito brasileira.
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Sem dúvida a maior contribuição para esse momentum foi a desrepressão das subjetividades.
E isso se deu tanto no foco de interesse dos filmes – pessoas vistas cada vez mais como
individualidades, em vez de representantes de classes ou grupos sociais –, como no eixo
de expressão dos realizadores, que se permitiram participar explicitamente do processo de
documentação e, em alguns casos, até se colocarem como protagonistas de seus docs.
Mas, afinal, como se têm manifestado essas várias tendências que proponho enfeixarmos no
conceito de documentário de invenção? É o que pretendo sintetizar nos próximos parágrafos.
(Convém aqui dar o crédito ao termo “cinema de invenção”, cunhado por Jairo Ferreira, que veio
para sanar o caos semântico em torno das ideias de vanguarda, experimental e marginal.)
O princípio da incerteza
Caminho bastante comentado e debatido ultimamente – inclusive em artigo meu na Filme
Cultura nº 50 –, a hibridez de códigos documentais e ficcionais dentro de um mesmo filme
forjou para o doc novos paradigmas de recepção por parte do público. A valorização da
incerteza, ou pelo menos um relaxamento nas exigências de “autenticidade” na origem
das imagens documentais, tem levado documentaristas como Andrea Tonacci (Serras da
desordem), Gabriel Mascaro (Avenida Brasília Formosa) e Maria Augusta Ramos (Juízo) a Em cima, Pacific,
trabalharem, cada um a seu modo, nos interstícios entre registro e encenação.
em baixo, Avenida Brasília Formosa
É comum no doc de invenção que a informação, ou parte considerável dela, seja passada
pelo estilo e pelos signos de linguagem, e não pela descrição, o dado simples ou a retórica
expositiva. O mundo factual não é referido retoricamente, mas emocionalmente. Trabalha-se
mais com o sensorial e o rítmico do que com a explanação didática. Aboio, de Marília Rocha
(2005), por exemplo, ecoava essa tradição vocal dos vaqueiros através de ensaios audiovi-
suais na caatinga, privilegiando a beleza do movimento bruto e a tonalidade evocativa dos
sons. Quando Cao Guimarães, Lucas Bambozzi e Beto Magalhães resolveram documentar
profissões em extinção (O fim do sem fim, 2007), optaram por imagens de Super 8 e uma
edição em que as coisas parecem mais desaparecer que ser trazidas à tela.
O doc de invenção utiliza modelos narrativos menos convencionais, toma liberdades poéticas
em maior grau e adota formas subjetivas de representação. Em sua linguagem, incorpora técni-
cas antes mais associadas à ficção, como efeitos digitais, imagens incrustadas ou sobrepostas,
alterações do ritmo natural, congelamentos, trilha sonora assumidamente não diegética,
planos subjetivos, descontinuidades. Em última instância, aproxima-se tanto da ficção quanto
do cinema experimental, mas destes se difere basicamente por voltar-se para objetos reais do
mundo social. Essa âncora com o real é o que ainda os caracteriza como documentários.
O tratamento poético da realidade pode ser motivado pelo próprio tema ou personagem, como é
o caso da evocação do poeta Waly Salomão pelo amigo Carlos Nader em Pan-cinema permanente
(2009). Qualquer veleidade informativa é saborosamente sabotada pelo sopro de desarrumação
que provém das atitudes de Waly. Daí resulta uma biografia experimental perfeitamente ajustada
a seu objeto. Mas essa poetização do real pode, ao contrário, vir de uma escolha deliberada do
realizador. Este é o caso de Joel Pizzini em 500 almas (analisado na Filme Cultura 53), que procura
nos quase extintos índios guatós, bem como no acervo científico e imaginário sobre eles e os
índios em geral, os elementos para a construção de uma etnopoética audiovisual.
Pan-cinema permanente
Compilações que recriam
O documentário baseado em materiais de arquivo também conheceu um rejuvenescimento
significativo na última década. Os filmes, fotos e arquivos sonoros preexistentes passaram
a ser usados não apenas como evidências e ilustrações, mas como matéria-prima para jogos
intertextuais, signos disponíveis para uma outra escrita radicalmente original. O exemplo mais
popular dessa tendência foi Nós que aqui estamos por vós esperamos (1998), de Marcelo
Masagão, inventário crítico-afetivo de verdades e mentiras sobre o século XX. Jean-Claude
Mas o nome mais profundamente identificado com uma renovação do olhar sobre os arquivos
é sem dúvida Carlos Adriano. A partir de materiais às vezes ínfimos (poucos fotogramas,
velhos discos de vinil, uma curta cena de mutoscópio), ele cria ensaios minuciosos sobre
memória, perda e esquecimento. A manipulação (física e artística) de artefatos fora de uso
é uma condição fundamental do seu trabalho. Em filmes como Remanescências (1997),
Militância (2002) e Santos Dumont pré-cineasta? (2010), Adriano cria elos inesperados
entre os primórdios do cinema e a era da manipulação digital, sempre no pleno espírito de
desbravamento experimental.
Se por um lado vigora um impulso documental nas artes plásticas – com as operações sobre
fotografias, o agenciamento de matérias corporais e a inserção do documentário na pauta
das Bienais, entre outras coisas –, verifica-se também o deslizamento do doc para o âmbito
dos museus, galerias e instalações. Arthur Omar propôs ao espectador a experiência imer-
siva de uma mesquita afegã em sua instalação Dervix (2005). Kika Nicolela pediu a travestis
que se recriassem à vontade, sozinhos diante de uma câmera num quarto de motel, e criou
Trópico de Capricórnio (2004) para ser visto numa instalação com tela no teto. Carlos Nader
desenvolveu o conceito de segredo pessoal em múltiplas plataformas de interação, que
incluíam o vídeo, a performance e a instalação. Nesses trabalhos de Nader, sigilo, sucessi-
vamente reiterado, funcionava como um manifesto pelo recalcamento do teor informativo
Dervix do documentário, em busca de uma expressividade mais conceitual e sensorial.
Esse contágio e essa expansão, que absorvem artistas com trânsito entre várias disciplinas,
estão levando o doc a pontos extremos de sustentação do seu vínculo com o real. Isso
conduz inevitavelmente ao debate sobre o prazo de validade da própria distinção entre
documentário, ficção e experimentação. Talvez estejamos muito próximos não exatamente
de um futuro, mas de um passado que ainda soa como matriz e utopia: as vanguardas dos
anos 1920, quando todos os códigos se mesclavam em nome da invenção.
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MA R IO L A DEIR A
Oups
Então o que seria, afinal, uma animação experimental? No livro norte-americano Experimental
animation, uma das raras obras de referência sobre o assunto, os autores Robert Russett
e Cecile Starr listam três condições em seu critério para classificar filmes e autores de ani-
mação como experimentais: o uso de técnicas individuais, dedicação pessoal (trabalho não
encomendado ou financiado) e ousadia artística.
É interessante citar que McLaren, tido entre nós como cineasta livre e experimental, viveu
mais de 40 anos como funcionário do governo do Canadá. Praticamente toda a sua obra au-
toral é patrimônio estatal, o que foge aos critérios de Russett e Starr (apesar de figurar com
destaque no livro). McLaren personifica o cinema laboratório industrial, a busca de lingua-
gens com o objetivo de aplicá-las a objetivos concretos. Não há dúvidas de que ele cumpriu
magistralmente esta função, sem se contaminar pelos vícios do funcionalismo, mas mesmo
assim não escapou de uma certa indiferença da radical comunidade apreciadora do cinema
“não-narrativo” (como alguns preferem nomear o experimental na América do Norte), pelo fato
de sua obra não ser de todo descompromissada e sua pacata vida pessoal não corresponder
ao radicalismo de algumas de suas manifestações estéticas.
Ao longo dos anos 1960 e 70, pela própria circunstância libertária (e depois escapista) da
arte daquele período, muitos artistas brasileiros passaram pela animação como veículo
de experimentação estética – foi o caso de José Rubens Siqueira (Sorrir), Antônio Moreno
(Eclipse), Rui de Oliveira (Cristo procurado), Stil (Batuque) e outros. Com a vinda dos anos
1980, praticamente desapareceu o espaço para experiências mais radicais, mas elas conti-
nuaram acontecendo quando possível. Adeus, de Céu d’Ellia, é um perturbador exemplo de
antropofagia de símbolos visuais feito por um animador formado pelo mercado da publicidade.
Ainda fora do circuito, é preciso destacar o lugar de autor experimental para Fernando Diniz,
artista do Museu de Imagens do Inconsciente, que surpreendeu a todos com a maestria em
seu único filme, Estrela de oito pontas, de 1996.
Com a revolução tecnológica iniciada dos anos 1990, o advento das mídias digitais e os
novos processos de produção, pode-se destacar duas vertentes para novas experimenta-
ções: uma seria a computação gráfica. Outra seria o cruzamento de tecnologias, suportes
e formatos permitidos pelo meio digital.
No segundo caminho, todos os autores hoje em dia, sem exceção, se sentem tentados a expe-
riências no limiar entre duas ou mais linguagens. Unir o artesanal ao digital tem possibilidades
Engolervilha infinitas. A animação pode agora se inserir livremente em longas ao vivo, documentários,
instalações e produtos multiplataforma, desafiando o senso comum e intrigando o espectador.
Um jovem talento do nosso cinema de atores, Matheus Souza, revelado pelo longa Apenas o fim,
prepara seu projeto seguinte usando a roupagem de animação proporcionada pela rotoscopia
(à maneira de Richard Linklater em Waking life, aliás uma óbvia influência).
Guilherme Marcondes, paulista, hoje trabalhando para o mundo todo a partir de Los Angeles,
iniciou-se com um curta independente, Tyger, que conjuga magistralmente diversas técnicas
e linguagens: teatro de animação, filmagem ao vivo e animação 2D e 3D. Marcondes continua
criando para o mercado de clipes e publicidade trabalhos que sempre inovam e expandem
a inserção do experimental.
Grafite animado
Obra emblemática e inspiradora para muitos é a do grafiteiro e animador italiano Blu, que
tem feito sua carreira quase exclusivamente com filmes postados no Vimeo com licença
Creative Commons, nos quais usa uma simples câmera fotográfica digital e as tintas, pincéis
e aerossóis do grafite. Blu tem pelo menos um possível seguidor no Brasil: Meton Joffily,
também grafiteiro, que incorpora a seus curtas de animação a estética dos painéis de rua
em Ratos de rua, Sinal vermelho e outros.
Uma outra tendência experimental lida com a forma narrativa e o modelo de produção: o filme
coletivo. Voltando mais uma vez ao passado, em 1986, Ano Internacional da Paz da ONU, a anima-
ção brasileira fora apresentada ao mundo pelo coletivo Planeta Terra, que reunia 30 animadores
em atividade constante no Brasil, cada um demonstrando sua visão e representação do tema
“Paz”. O que era uma moda na época (puxada pelo clipe musical coletivo de Michael Jackson,
We are the world) amadureceu agora para uma forte tendência alimentada pelas redes digitais,
que pode influenciar todo o futuro da produção e permitir cada vez mais cruzamentos.
Fabio Yamaji, paulista e nissei, foi formado em uma infelizmente extinta produtora, a
Trattoria di Frame, que conseguia aplicar uma postura experimental ao mercado publicitário
de animação. Ao se ver solto na área autoral, Yamaji despertou para uma brilhante carreira
iniciada com Divino, de repente... Neste filme, além das diversas técnicas (pixilation, desenho,
objetos, etc.), destacam-se a criação e produção coletiva.
Ratos de rua e
Mutu
VANGUARDA - INOVAÇÃO filmecultura 54 | maio 2011
Marão, o irreverente animador carioca de muitos curtas, como O arroz nunca acaba, já fora res-
ponsável por unir jovens animadores (entre eles, Fabio) em torno da absurda e iconoclasta série
coletiva Engolervilha, cujo terceiro episódio já extrapola com o nome de Engole logo uma jaca
então. Diversas técnicas e um total descompromisso com lógica e ética fazem um terreno fértil
para extravasar em catarse as linguagens e técnicas experimentais de vários animadores.
Dentre os nomes revelados por esta série está também o de um jovem cearense, Diego Akel,
que assume a bandeira do cinema de animação experimental no conceito McLaren: formas
abstratas, pesquisa de texturas e descompromisso com personagens e narrativas pronta-
Planeta Terra mente reconhecíveis. Diego tem atuado com oficinas e seminários em Fortaleza e promete
continuar a expandir esta tendência em sua comunidade.
É importante mesmo que estruturas e recursos sejam mantidos para ampliar nossos laboratórios
de linguagens. Um dos mais antigos laboratórios se mantém há 21 anos em um cenário idílico,
à beira da Floresta da Tijuca, no Horto do Rio de Janeiro: o Visgraf (Laboratório de Visualizações
Gráficas) do Impa (Instituto de Matemática Pura e Aplicada), onde a equipe liderada pelo designer,
fotógrafo e matemático Luiz Velho cria softwares e sistemas que fazem cada vez mais junções de
conhecimentos musicais, de dança e de captura de movimento muito interessantes e intrigantes
para a comunidade artística. Não existem (ainda) casos de obras artisticamente reconhecidas
(por exemplo, filmes premiados em festivais de cinema) feitos com as ferramentas digitais pes-
quisadas pelo Visgraf, mas pode-se apostar que isso não demorará a acontecer.
Marcio Ambrósio, animador e artista plástico paulista com passagem pela Bélgica, explora o
fazer intuitivo da animação com interfaces digitais interativas em instalações performáticas
como Oups e o Grafite animado, mostrados ao público em eventos como o festival Anima
Mundi. Aliás, uma das marcas do festival é justamente o Estúdio Aberto, onde os futuros
talentos descobrem o prazer da experimentação com o quadro a quadro. Não deixa de ser
um laboratório temporário e democrático a céu aberto, no mês de julho, quando acontece
o festival no Rio e em São Paulo.
Ultimamente o foco de atenção para a animação tem se voltado para a conquista do mercado
brasileiro de séries de TV e longas para cinema, fato indiscutivelmente importante, histórica
e estrategicamente. À medida que este mercado se estabelece (e ainda há muito caminho a
percorrer), vai se evidenciando cada vez mais a necessidade destes laboratórios de novas
possibilidades. O importante é que esta vocação de pesquisa, natural e intuitiva na arte da
animação, não se deixe perder na ambição estreita de atender ao que o mercado começa a
determinar, pelo simples e cômodo vício da repetição. Pois a história mostra que os mercados
mais sólidos e frutuosos foram conquistados com a inovação, e esta é uma lição que, no que
Estúdio aberto no Anima Mundi diz respeito aos animadores, apesar de sua vocação natural, precisa sempre ser renovada.
Marcos Magalhães é cineasta de animação, autor de Animando e Meow! (premiado em Cannes), professor
pleno de Animação na PUC-Rio e um dos diretores do Anima Mundi, Festival Internacional de Animação do Brasil.
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Quando fui convidado pelos editores da revista para escrever sobre vanguardas
e experimentações sonoras, a junção de dois fatos me levou a um impasse inicial: primeiro,
havia certa indicação de que o texto tratasse de inovações recentes; segundo, há a minha
própria vontade atual de escrever mais sobre o cinema contemporâneo do que sobre perío-
dos passados da história do cinema. O problema configurou-se quando pensei o seguinte:
o que há de inovações sonoras hoje?
Ando dizendo em salas de aula e em lugares menos cotados que há hoje uma espécie de
vale-tudo sonoro, embora domesticado, porém mais livre de certas convenções ensinadas
pelo cinema clássico narrativo. Assim, creio não estar sozinho ao defender que certos usos do
som que já foram considerados tabus, no que, generalizando, se diz ser o cinema comercial,
estão hoje cada vez mais naturalizados. Quanto à música, por exemplo, ideias tradicionais
como as que diziam respeito a uma impossibilidade no dito cinema comercial, hollywoodiano
que seja, da música ir contra o que as imagens narram são difíceis de aplicar hoje, mesmo na
análise dos filmes que mais fazem sucesso pelo mundo afora. Antigos argumentos sobre o
medo de silenciar certas ações, sob risco do espectador simplesmente estranhar a ausência
de tal som e de repente perceber que há mecanismos de junção entre sons e imagens em
operação, já não fazem sentido quando passa a se tornar um clichê o fato de propositada-
mente não se ouvir o tiro fundamental, a explosão mais impactante. Se tais silenciamentos
têm a função primordial de chamar exatamente a atenção do espectador para tais ações,
ao invés de causar distanciamento, pode-se dizer que cortes abruptos de grande intensidade
sonora para impressões de silêncio não assustam mais ninguém.
Na verdade, creio ser mais interessante exatamente a fronteira entre uma coisa e outra: uma
espécie de hiper-realismo sutil, se isso não for um oximoro. É evidente que no caso dos maiores
lançamentos do cinema mundial o hiper-realismo está indubitavelmente em funcionamento.
Mas em parte do cinema brasileiro dos anos mais recentes, do cinema argentino, mexicano,
uruguaio até, o som vem deixando de se ancorar no real, seja lá o que isso for, e ganha auto-
nomia para que dele se possa dizer: a representação de tais sons nesses tais filmes se traduz
em um excesso obrigatório, em uma intensidade maior do que se espera quando vemos na
tela as fontes que produzem os sons. Mesmo aqui, no cinema feito à nossa volta, as coisas
parecem soar mais densas do que na própria realidade, quando entramos nas salas.
Preocupavam-me ainda, quando pensava no texto por escrever, os termos a serem usados:
é conhecida a resistência dos que seriam expoentes de uma história do cinema experimental
a essa própria palavra. Stan Brakhage, que como ensina Fred Camper não deve ser visto
apenas como um bastião do suposto reinado da imagem no cinema, mas também como o
responsável pela experiência radical de colocar seus espectadores frente ao silêncio total
de suas projeções, notoriamente não gostava da palavra para definir seu trabalho. Mudando
do cinema para a música, John Cage, em texto de 1957 chamado exatamente Experimental
Music, comentava como passou da objeção radical à aceitação do termo “experimental”
para definir seu trabalho.
Ao pensar um pouco sobre décadas passadas, é evidente que há uma tradição de experimen-
tações sonoras no cinema brasileiro. Mais especificamente, óbvio, no cinema moderno. O
trabalho de Simplício Neto, em vias de publicação, sobre o som de Hitler IIIº mundo, lembra
a complexidade de sua trilha sonora. Simplício Neto lembra tanto a influência do diretor José
Agripino de Paula sobre a comunidade artística da São Paulo do fim dos anos 1960 e início dos
1970 quanto sua erudição, o fato de estar antenado com diversas correntes artísticas espa-
lhadas entre a Europa e os Estados Unidos. Agripino defenderia assim a chamada “música de
fita”, em referência à música concreta capitaneada, entre outros, por Pierre Schaeffer. Seria
essa uma das múltiplas influências de suas experimentações sonoras, materializadas em um
disco raro e no próprio filme. Para Simplício, um filme como o de Agripino borra a sempre citada
fronteira entre diegese e não diegese de forma grave, até porque talvez a preocupação com
o espaço que cada som ocupa não seja nem relevante para se analisá-lo. Simplício chega a
colocar a questão: o som de Hitler IIIº mundo não seria um imenso comentário extradiegético?
Se a resposta fosse afirmativa, estaríamos dizendo que nenhum som faz parte das ações que
vemos. O próprio autor da pergunta, no entanto, não a responde afirmativamente, ao chegar
à conclusão de que mesmo tal raciocínio pareceria reducionista.
Se o som no cinema clássico narrativo está claramente, na maior parte do tempo, em um lugar
ou em outro (no espaço da ação ou vindo de fora dele); se é uma característica do cinema
moderno embaralhar essa divisão, existiriam filmes, como Hitler IIIº mundo, nos quais as
relações entre sons e imagens parecem estar ainda mais soltas. É o caso, por vezes citado,
da voz sobre as imagens nos filmes de Marguerite Duras, os quais o público carioca teve
recentemente a oportunidade de ver em sala de cinema. India song talvez seja o maior e mais
célebre exemplo: ali, as vozes que narram evidentemente não estão no espaço e no lugar da
ação mostrada nas imagens, mas também não se encaixam nos parâmetros tradicionais da
voz over. Tais vozes parecem estar em um terceiro lugar, deslocado, talvez entre o primeiro
e o segundo. Criam relações inconclusivas com as imagens.
Mas voltando aos filmes de hoje e à nossa questão inicial: o que há de invencionices sonoras,
especificamente no cinema brasileiro? Aqui surge uma vontade desagradável de dizer que
o que há de mais inventivo não caracteriza uma novidade assim tão nova, embora se possa
fazer uma relativização, como de fato faremos.
A indistinção, por exemplo, entre música e ruídos, uso sonoro paradigmático do cinema
moderno, vem se tornando um dos clichês do cinema contemporâneo. Pense-se, sobre o
cinema moderno, no famosíssimo caso de Vidas secas, na criação sonora de Geraldo José
para a obra de Nelson Pereira dos Santos que não precisa ser reexplicada aqui. Aliás, modo
de sonorizar presente em Vidas secas, mas não só. Geraldo José organizaria os ruídos se-
gundo parâmetros musicais em Os fuzis, em Navalha na carne, em O amuleto de Ogum e em
outros. Sobre O amuleto de Ogum, Jards Macalé, compositor da música do filme, explicaria,
em depoimento para Severino Dadá inserido no documentário do montador sobre o técnico
de som, que Geraldo José o ensinara que “ruído é som, e som é música, e música é ruído”.
No cinema internacional das últimas décadas, tal modo de sonorizar que já foi marca do cinema mo-
derno pode ser ouvido em filmes provenientes de diferentes modos de produção: Lars Von Trier em-
baralha a fronteira entre o que é música e o que é ruído, Darren Aronofsky o faz repetidamente.
O teórico de música e de música para cinema Robin Stilwell propõe, em artigo chamado The fan-
tastical gap between diegetic and nondiegetic, que na análise do som do cinema contemporâneo
não sejam necessariamente utilizados parâmetros que serviram para pensar o cinema clássico
narrativo ou mesmo o cinema moderno. A partir da sugestão de Stilwell, pode-se dizer que, em-
bora certas estratégias para unir sons e imagens no cinema possam não parecer necessariamente
novas, o modo como se operam essas estratégias é particular dos filmes contemporâneos. Assim,
por exemplo, a transformação de um som identificado como ruído, em um primeiro momento, em
algo que se pode chamar de música, em um segundo, não produziria hoje, é evidente, o mesmo
sentido que produzia cinquenta anos atrás, quando determinados diretores circunscritos ao
início do cinema moderno mostraram ser possível aquela operação sonora.
Curta-metragem recente que também faz da não aparição do corpo da personagem principal
sua principal estratégia narrativa é A dama do Peixoto, de Douglas Soares e Allan Ribeiro.
Além de seguirmos pelo filme esperando por uma personagem que não aparece, tampouco
vemos de onde vêm as várias vozes que falam dela. Enquanto ouvimos a montagem de vozes,
vemos não os corpos, mas recantos da praça habitada pela personagem principal invisível.
Ao final, vemos, evidentemente, o rosto da personagem tão discutida.
Essa estratégia de deixar fora de quadro o que mais se espera ver, de linhagem tão nobre
na história do cinema, encontra outros praticantes no cinema brasileiro contemporâneo.
É o caso de Eduardo Valente. O exercício do fora de quadro nos seus curta-metragens, mais
radical em O sol alaranjado, teve mais um capítulo no longa-metragem No meu lugar, no
qual ações fundamentais para o desenrolar da trama não são vistas, mas ouvidas.
Voltando a Viajo porque preciso, volto porque te amo, surge, para além da análise da
voz encaminhada por Bernardet, uma última questão: se a voz nos leva de tal forma para
dentro da cabeça do personagem, se ouvimos o que ele pensa, o que dizer dos demais
sons? Também ouvimos os sons do sertão a partir da sua apreensão pelo personagem?
Se dissermos que não, de fato estaremos criando estatutos diferentes para a voz e para os
demais sons, especificamente para os ruídos. Pois, neste caso, a voz seria um som subjetivo
(a ouvimos pois ouvimos os pensamentos do personagem), enquanto os ruídos tentariam
representar o sertão objetivamente. Se, ao contrário, negarmos essa primeira hipótese,
chegaríamos à conclusão oposta: tudo o que ouvimos está na cabeça de Zé Renato, e ouvi-
mos os sons do sertão, do São Francisco, das cidades, a partir do que ele ouve. É certo que
a voz em primeira pessoa cria a identificação entre os espectadores e o personagem, mas
essa identificação se expande para todos os sons do filme? Ou estes estão em outro lugar,
funcionando de acordo com outras regras? As vozes e os demais sons produzem sentidos
assim tão diferentes entre si?
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Com o objetivo de compreender os pontos em comum e as diferenças nas mais recentes
propostas de experimentação de linguagem no cinema e nas demais artes, Filme Cultura
procurou especialistas de outras areas para falar sobre as circunstâncias atuais. A eles,
apresentamos a seguinte questão:
Meu ponto é que - tal como já havia experimentação artística antes dos meados do século XIX -
após o fim das vanguardas, quando se tornou anacrônica a figura do artista que quer com cada
obra inventar uma nova linguagem para sua arte, continuará a haver inovação artística e novos
experimentos em arte. Em todas as áreas de criação continuarão a surgir processos e linguagens
novas, ora buscados de modo calculado, ora produzidos mais intuitivamente; alguns ficarão na
história como curiosidades apenas, enquanto outros darão uma inflexão diferente ao desen-
volvimento de uma determinada arte. Para dar exemplos do cinema, o close-up e o cinema
falado foram inovações técnicas férteis; por outro lado, o Cinerama e o processo Smell-o-
vision criado por Mike Todd, Jr. foram (em graus diferentes) improdutivos.
Para encerrar, algumas palavras sobre a poesia brasileira. (...) O poeta de 2011 pode optar por
escrever uma sestina ou criar um poema visual e sonoro num blogue. Assim, na obra de alguns
dos mais importantes poetas contemporâneos, como Claudia Roquette-Pinto e Carlito Azevedo,
podemos encontrar elementos do concretismo, retrabalhados e combinados com recursos mais
tradicionais. Outros, como Antonio Cicero, combinam forma clássica e dicção coloquial; e a
profusão polifônica de vozes que marca a poesia de Francisco Alvim tem mais de um traço
em comum com o informalismo anárquico da geração mimeógrafo. Ricardo Domeneck
produz uma lírica confessional que mais uma vez evoca a geração mimeógrafo, mas
acumula referências e citações poliglotas à maneira de Haroldo de Campos. Poetas
“É uma impressão subjetiva, claro. Eu acho que a vertente para uma inovação passa pelo
cinema, que está sendo cooptado pelas artes plásticas.
Esta junção é poderosa. Primeiro, quebra o enredo linear baseado em ação, o tempo determi-
nado pelo espetáculo, e assim devolve um envolvimento livre do tempo e dos racionalismos.
É sintomático a última Bienal de São Paulo estar coalhada de vídeos. Um exemplo maior é o
do diretor tailandês ganhador da Palma de Ouro, também presente na Bienal, Apichatpong
Weerasethakul.”
Bia Lessa
encenadora de teatro e ópera, cenógrafa e designer de exposições e museus
“Acho que as grandes inovações e experimentações passam hoje pelas ciências exatas – nada
nos cria maiores questionamentos do que as novas possibilidades abertas pelo universo
científico. Penso que saímos da linha de frente e que estamos buscando um novo espaço.
Nesse sentido acho que os espetáculos, sejam eles em teatro, música ou ópera, estão cada
vez mais difíceis de serem realizados. Por essa razão as linguagens começam a se misturar
na esperança de estabelecer um novo universo de possibilidades - mas eu, particularmente,
estou descrente desse caminho apesar de tê-lo utilizado em alguns dos meus trabalhos.
Zé Celso e Antunes Filho em teatro ainda são imbatíveis. Eles estão na linha de frente, no
meu entender. Alguns momentos de suas obras atuais são suficientes para nos proporcionar
momentos de emoções e transformações profundas. Instantes dentro de grandes percur-
sos. Cito a obra de Paulo Mendes da Rocha, Tadao Ando, o escritório Sanaa em arquitetura; a
música de Egberto Gismont, Caetano e Bethania; Pina Bausch, o maestro Sergiu Celibidache.
Fiquei emocionada com o último filme do Godard, Filme socialismo.”
“A inovação e a experimentação seguem sendo coisa rara, mas passam por vários lugares no meio
de arte. Ela pode estar nas pinturas de Sean Scully, nos filmes e desenhos de William Kentridge,
nas ações propostas por Tino Sehgal ou Laura Lima, nas instalações de Ernesto Neto ou Janet
Cardiff etc. Citei estes exemplos - e poderia citar outros - para mostrar que a diferença do novo
não está ligada a um suporte ou meio expressivo, não tem nada a ver com evolução tecnológica
(nem é contra ela), mas se apresenta como uma surpresa estética: algo que nos tira das fórmulas
constituídas e nos faz poder perceber as coisas de um modo singular. É claro que com a prolife-
ração de museus e com um mercado de arte aquecido, há uma demanda inflacionada por obras
de arte. A quantidade não implica qualidade, tampouco é contrária a ela. Sempre houve um
excesso de obras que com o tempo foram sendo filtradas pela história, sobrando o osso poético.
As reservas técnicas estão abarrotadas de obras expelidas. Do contraste nascem as diferenças
e estas se manifestam, de início, com o que chamei de surpresa estética – que está relacionada
à inovação e à experimentação. O resto é especulação e business, que estão no meio de tudo e
não adianta reclamar. Cabe a cada um e à história separar o joio do trigo.”
“Do meu ponto de vista, a literatura brasileira está num momento áureo. A nova geração está
entrando com força, criando seu público leitor, é uma geração que tem uma formação literária
com forte input de imagens, música, quadrinhos, clipes etc. Então você vê uma literatura
quase multiplataforma, mesmo que só use a palavra impressa. Outra enorme novidade é a
emergência do nicho de literatura infanto-juvenil. Adolescentes estão lendo! É verdade que
essa geração está superatraída por um mundo de vampiros e bruxos(as), mas o interesse
pela leitura aumenta e começa a chegar em outros tipos de literatura. E, por último, as duas
perspectivas de inovação que estão chegando e fazendo barulho: a literatura produzida nas
periferias, que vem com dicção própria e trazendo uma nova relação com a criação e com
a própria leitura, e o universo da web, que para mim é o grande laboratório literário desse
momento. A convergência de mídias e linguagens, os recursos de participação e expressão
são quase infinitos, os games sinalizam novos formatos narrativos para a novela e para o
romance. Enfim, teremos surpresas no pacato mundo das Letras.
Novos nomes: Cecilia Gianetti, João Paulo Cuenca, Andréia del Fuego, Alice Santana.
Periferia: Ferrez, Alessandro Buzo, Sacolinha, Allan da Rosa, Nelson Maca, Sergio Vaz.”
Ota
quadrinista
“O mundo está mudando e as novas mídias dão uma nova dimensão aos quadrinhos e à animação.
A N D R E A S VA LE N T I N
Estamos num momento de transição, mas ainda no início dessa nova era, e a humanidade ainda
está se adaptando. Mas acredito que ainda não descobriram o jeito certo de fazer as coisas.
Minhas áreas são quadrinhos e animação. Os quadrinhos tais como os conhecemos, em papel
impresso, não devem morrer tão cedo nas edições de colecionadores, mas na transição para os
Estou certo de que alguém vai descobrir o caminho e dar um passo que coloque tudo num
novo patamar... mas acho que ainda é cedo para citar nomes.”
(...)
“Gostaria que chegasse até vocês essa ideia do vazio da invenção de onde parto sempre;
que, desde que existe, no século XIX, esta mesma linguagem não cessa de se esvaziar, seja
na Literatura, nas Artes Plásticas, ou depois, como agora, no próprio Cinema, ou mesmo na
Televisão ou através das novas mídias.
Parece-me, ao contrário, que a invenção não é, desde sempre, desde sua origem, feita de
algo inefável. Ela é feita de algo “tátil”, de algo constituído por nossos sentidos; portanto,
poderia ser chamada de fábula, no sentido rigoroso e originário do termo. Então, a invenção
é feita de algo que deve e pode ser “experimentado” e construído: uma fábula que, todavia,
dependendo do traçado de seu artesão, pode ser reproduzida numa linguagem de ausência,
assassinato, duplicação ou simulacro.
(...)
Quando uma invenção é uma invenção?
O paradoxo de um filme reside no fato de só ser Cinema no exato momento de seu começo,
na tela ainda em branco – e que permanece em branco, quando nada ainda foi projetado
na sua superfície.
O que faz com que a Literatura seja Literatura, que a linguagem escrita em um livro seja
Literatura, é uma espécie de ritual prévio que traça o espaço da consagração das palavras.
Poderíamos, substituindo a palavra Literatura pela palavra Cinema, dizer então que o que
faz com que um filme seja Cinema, [que a linguagem visual de um filme seja Cinema], é uma
espécie de ritual prévio que traça o espaço da invenção das Imagens.
De fato, desde que uma palavra esteja escrita na página em branco, ela deixa de ser Literatura,
assim como desde que uma imagem é projetada em uma tela em branco deixa de ser Cinema.
Quero dizer que a invenção de cada palavra ou imagem é, de certo modo, uma transgressão
da essência pura, branca, vazia e sagrada da Imaginação, que faz de toda invenção não uma
realização Literária ou Cinematográfica, mas sua ruptura, sua queda, seu arrombamento.
Silviano Santiago
escritor e crítico literário
‘Aceito mal o que em arte se designa por inovador. Deverá uma obra ser entendida pelas
gerações futuras? Por quê? Que quererá isso dizer? Que elas poderão utilizá-la? Em quê?
Não vejo bem. Já vejo melhor – ainda que muito obscuramente –: toda a obra de arte que
pretenda atingir os mais altos desígnios deve, desde o início e com paciência e uma infinita
aplicação, recuar milênios e juntar-se, se possível, à imemorial noite povoada pelos mortos
que irão reconhecer-se nessa obra.
Nunca, nunca, a obra de arte se destina às novas gerações. Ela é oferenda ao inúmero
povo dos mortos. Que a acolhem. Ou rejeitam. Mas os mortos de que falo nem vivos foram.
Ou então esqueci-os. Porque foram-no suficientemente para que os esqueçam, já que a vida
teve como fim levá-los a cruzar esta tranquila margem de onde aguardam – ido daqui – um
sinal reconhecível.
(...)
Giacometti tem um modo de falar rude, como se escolhesse a dedo a entoação e os termos
mais próximos da linguagem corrente. Parece um tanoeiro.
Hesito de novo proferir a frase que melhor se aplica aos meus sentimentos.
Eu – Você vai voltar a rir-se, mas curiosamente eu não diria que elas ganham, mas sim que
o bronze ganhou. Pela primeira vez na vida o bronze acaba de triunfar. As suas mulheres
são uma vitória do bronze. Sobre o próprio bronze, creio.’”
Sentei ali no meio deles em silêncio esperando que algo acontecesse. Longas
horas se passaram e nada aparentemente aconteceu. Ao anoitecer fomos embora
e o chacoalho do carro me embalou num sono profundo. Agora eles já dançavam
em roda entoando uma canção antiga pontuada por gritos paleolíticos. A cada
grito uma peça de roupa de seu fabuloso vestuário era lançada no meio da roda.
A canção continuava infinita pelo meio da noite e sobre a terra fofa recém-arada
apenas um monte de roupas e uma profusão de pegadas de pés pequenos onde
alguns pássaros ciscavam aqui e ali.
Imagino que hoje, uma década depois, esta profissão quase não exista mais e não
faço a menor ideia de onde foi parar esta pequena multidão de seres fascinantes
que habitavam nossas lavouras. Talvez apenas migraram para um plano de
realidade diferente e estejam assustando os pássaros famintos que hoje habitam
nossos sonhos.
A vontAde de Comer
por João Carlos Rodrigues
Aos 77 anos de idade, Paulo Cézar Saraceni volta a surpreender com seu décimo
segundo longa-metragem, uma produção de baixo orçamento bancada pela Petrobras. Como boa
parte de sua obra, se baseia na literatura brasileira (três adaptações de Lúcio Cardoso, uma de
Machado de Assis, outra de Paulo Emílio Salles Gomes). Desta vez, temos Carlos Drummond de
Andrade. Mas um Drummond atípico, pois não se trata de um poema, mas de um conto.
O gerente (o conto) data de 1945, e foi inicialmente definido como “novela”. Seis anos de-
pois reapareceu na coletânea Contos de aprendiz. Em 2009 voltou a ser publicado de modo
separado. Possui uma narrativa irônica, quase machadiana. Analisando detalhadamente,
revela uma analogia evidente com o célebre conto de João do Rio, Dentro da noite, que é
de 1910. Em ambos temos o feliz encontro entre um personagem sádico e um masoquista.
Pois se no primeiro um jovem crava alfinetes nos braços de sua amada e ela consente, em
O gerente o protagonista possui um vício ainda mais monstruoso e ainda assim desperta
paixões. O erotismo intenso de Drummond na fase final de sua obra não teria surpreendido
tanto se este conto tivesse sido mais bem analisado quando publicado pela primeira vez.
Muita coisa já está ali, para quem tem olhos atentos.
À primeira vista, O gerente (o filme) é uma adaptação linear, onde até os diálogos foram
mantidos. Há uma grande fluência narrativa, que podemos também chamar de leveza,
e tudo se desenrola com grande elegância e estilo. Pouco a pouco, porém, descobrimos que
a fidelidade ao texto não exclui uma visão personalíssima. Surgem citações à obra drum-
mondiana, vindas de outras fontes: poemas ditos pelos atores ou recitados em disco pelo
próprio poeta, que surge em pessoa num clipe de um raro documentário de Fernando Sabino
e David Neves ou na famosa estátua da Avenida Atlântica. Outras são mais pessoais: a bossa
nova, João Gilberto, o crítico Almeida Salles. Em determinado momento, o personagem vai
“Era um homem que comia dedos de senhoras, não de senhoritas. Eis pelo menos o que se
dizia dele, por aquela época. Mas apresentemo-lo antes. Viera do Norte, morava em Laranjeiras,
chegara a gerente de banco. Distinguia-se pela correção de maneiras e pelo corte a um tempo
simples e elegante da roupa. Ou melhor, não se distinguia, pois o homem bem-vestido passa
mais ou menos desapercebido nos dias que correm, entre moças e rapazes americanizados,
de gestos soltos, roupas vistosas. As pessoas mais velhas certamente o prezavam por isso,
e recebiam-no com simpatia especial; porém, mesmo entre essas pessoas já penetrara a moda
das meias curtas, chamadas soquetes, a que Samuel jamais aderiu, e dos paletós esportivos,
soltos como camisolas, para ir ao bar ou passear na praia, e que Samuel nunca chegaria a
vestir. Tudo isso está no passado – por que ele morreu há um ano, de uremia.”
Assim se inicia o conto, já resumido no primeiro parágrafo. E também assim começa o filme,
onde o narrador do texto, oculto na terceira pessoa, ressurge como alguém que fala direta-
mente para o espectador e não interage com os outros personagens. O uso de um narrador
de carne e osso e não do velho recurso da voz off tem sua razão de ser. O sexo de quem
narra o conto não é definido, mas deduz-se ser masculino, como Drummond. Já a narração de
Saraceni é feita pela atriz Joana Fomm. Essa mudança permite uma analogia inevitável, para
quem conhece a obra do cineasta, com o misterioso personagem interpretado por Margarida
Rey em Porto das Caixas, seu primeiro longa. Mulher madura, enrolada num xale escuro,
na encruzilhada da vida. Personagem que associamos ao Destino, ou quem sabe, à Morte.
Há momentos em O gerente, como toda sequência na escadaria da igreja no Largo do
Machado, em que a autocitação, a começar pelo figurino e a postura da atriz, é bem evidente.
Quem narra o filme é a Morte, ou, se preferirem, o Destino. Estamos longe do realismo.
Samuel passa a ser comentado, evitado até. Temos então a sequência-chave da confeitaria.
Há um momento memorável onde uma senhora dá-lhe a mão a beijar, entre apavorada
e apreensiva, e vemos sua expressão de alívio ao tê-la de volta sem faltar um pedaço.
Um toque de atabaque, e surge, descendo uma escadaria, Pombajira, entidade dos amores
desregrados, às gargalhadas de deboche. Notemos, em breve flashback, que ao morder
seu primeiro dedo, o da madame Boanerges, Samuel estranhamente gira 360 graus sobre
si mesmo, marcação não realista que parece estapafúrdia. Agora adquire um sentido.
A citação das religiões afro-brasileiras, muito frequente na obra do diretor, divide o filme em
duas partes. Pois introduz a bela Deolinda Mendes Gualberto (Ana Maria Nascimento Silva).
Samuel não se contém e finca-lhe o dente. Escândalo. Processo. Surpresa: apesar das provas
e testemunhas, a vítima inocenta o algoz. Ao contrário das outras, Dona Deolinda gostou de
ser mordida. Na assistência, rumo ao hospital, seu rosto oscila entre a dor e o prazer.
Esse tipo de perversidade sexual refinada não é frequente no cinema brasileiro, e só encon-
tro correspondente no português João César Monteiro e no espanhol Buñuel, dois velhos
devassos, no bom sentido do termo. Mesmo a mulher fatal não frequenta muito nossas
telas. Temos os personagens interpretados por Odete Lara, e poucos mais. Deolinda é a
típica mulher fatal. A ferida infecciona, perde o braço, mas não desiste. Persegue Samuel
até reconquistá-lo. No livro, depois do ato, ele regressa a São Paulo, para onde se mudou.
No filme, o casal termina na cama, enlouquecido pelo prazer dos sentidos.
“Samuel ajoelhou-se à beira da cama, envolveu-lhe com a colcha o toco de braço. Tirou-lhe
os sapatos, acomodou melhor o corpo mole, abandonado. E tomou-lhe de manso a mão.
Aproximou-se mais. O anel de pedra azul projetava uma sombra insignificante na base do dedo.
O mais era branco, um branco amarelado, de papel velho, muito macio. Samuel ergueu a mão
até os lábios, devagar, com extremo cuidado e gentileza. Muito tempo durou o contato.”
Nada se sabe do final da história. A única pista, suprema ironia, voltando à última frase da
fala que abre o filme, é a causa mortis do nosso anti-herói. Uremia. Que vem a ser o excesso
de proteína animal. Quem sabe adquirida ao comer dedos de senhoras respeitáveis.
Uma overdose, talvez. Ou quem sabe uma indigestão.
Disse Paulo Cézar Saraceni que “o Cinema Novo não é uma questão de idade; é uma
questão de verdade”. Hoje quase mítica, a frase é citada por Glauber Rocha na epígrafe de
um artigo escrito em 1962, mais tarde incluído no livro Revolução do Cinema Novo.
Aos 77 anos, oito anos depois de lançar o singular documentário-bêbado Banda de Ipanema,
Saraceni faz jus à sua frase com O gerente, um velho filme novo, deslocado de seu tempo.
No atual contexto do cinema brasileiro, O gerente é um filme sem lugar. Dificilmente encon-
trará distribuição comercial e, apesar de ter inaugurado o Festival de Tiradentes, em janeiro
passado, é possível que tenha dificuldades até mesmo de circular pelo circuito dos festivais
nacionais. Isso porque Saraceni o concebe como um filme livre, sem qualquer amarra, e encara
de frente as consequências geradas por essa opção.
Na página seis de seu livro Por dentro do Cinema Novo – minha viagem, Saraceni narra seu primeiro
contato com o conto de Carlos Drummond de Andrade que serviu de inspiração para o roteiro.
Ele ouviu falar de O gerente pela primeira vez em uma mesa de bar, ainda nos anos 1950:
“Havia o Cuca, homem de teatro, bom de papo, que nos falou de Fernando Pessoa e adorava um
conto de Drummond chamado O gerente, a história de um gerente de banco muito conceituado
na praça que adorava ir às festas do soçaite e que, ao cumprimentar as madames, beijava-lhes
as mãos, sugando, disfarçadamente, um dedo, que podia ser o mindinho ou o indicador.”
Publicado pela primeira vez em 1945, em uma pequena edição autônoma, O gerente foi incluído
no fundamental Contos de aprendiz, publicado em 1951. Em Tiradentes, Saraceni destacou
esse contato inicial com as palavras de Drummond. A paixão pela palavra transparece no
filme, que tem na figura de Joana Fomm uma narradora não convencional, dirigindo-se para
Diferentemente da descrição de Saraceni, Samuel não “suga” o dedo das madames; ele apro-
veita o gesto cavalheiresco de “beijar a mão” e morde o dedo com velocidade suficiente para
sequer ser notado e força para arrancar um pedaço. É uma curiosa aproximação de Drummond
ao conceito da antropofagia, tão importante para o modernismo brasileiro, um movimento do
qual Drummond fez parte e ao mesmo tempo não fez, transcendendo suas margens.
De certa forma, o filme de Saraceni é, antes de tudo, uma tentativa de estabelecer diálogos
com o modernismo brasileiro, de se reaproximar de ideias e formas que foram abandonadas
pelos filmes – e, indiretamente, por esse gesto, Saraceni retoma questões do cinema novo.
Assim como o modernismo libertou a poesia da métrica e das amarras temáticas, o cinema
novo, do qual Saraceni é uma das figuras centrais, procurou libertar o cinema brasileiro da
reprodução de modelos estrangeiros e das amarras técnicas da produção industrial. Ao mes-
mo tempo, Drummond, de certa forma, representa uma síntese que poucas vezes o cinema
brasileiro foi capaz de encontrar, mas que é sempre um fantasma para nós: a combinação
de invenção formal e sucesso popular.
Em uma de suas colunas recentes no jornal O Globo, José Miguel Wisnik comentou esse
aspecto falando de No meio do caminho, poema escrito em 1928 que se tornou alvo de
intensa controvérsia justamente por ter se popularizado (algo que, quando o assunto é
poesia, é uma exceção e, para muitos, heresia). O poema tem apenas dez linhas, das quais
se imortalizaram os versos “no meio do caminho tinha uma pedra/tinha uma pedra no meio
do caminho”. Mas esse mesmo poema traz outra expressão-chave: “nunca esquecerei desse
acontecimento/na vida das minhas retinas tão fatigadas”.
O gerente pode ser visto como um belo descanso para “retinas fatigadas”. Filmado em outra
cadência que não o da imagem em “tempo real” e da montagem frenética, o filme traz com
uma abordagem frouxa (porque livre) e um ritmo próprio, singular. Essa opção gera momentos
de beleza e outros bastante estranhos, como a bizarra homenagem à Petrobras que irrompe
no meio do filme. Em determinado momento, a câmera se detém em alguns personagens que
fazem comentários sobre a estatal do petróleo criada por Getúlio, e um deles afirma algo
como “já se sabia, ali, que a Petrobras seria a grande patrocinadora do cinema brasileiro”,
em uma espécie de leitura meio torta do tema nacionalista do modernismo.
Em outros momentos, por sorte majoritários, Saraceni consegue um real diálogo com o moderno,
e não é à toa que O gerente lembre tanto aquele que seja, talvez, o mais moderno dos cineastas
vivos: o português Manoel de Oliveira. Como Oliveira, Saraceni quase sempre constrói seus planos
com simplicidade, sem pirotecnias. Os personagens podem andar pelo centro do Rio dos dias de
hoje caracterizados com roupas de época, em meio a pedestres que circulam por ali normalmente.
Em outro momento, o filme para uma vez mais para uma homenagem bem mais interessante,
festejando, com imagens de arquivo, Francisco Almeida Salles, em uma bela sequência aparen-
temente sem propósito que reverencia um dos grandes intelectuais brasileiros.
Na primeira parte, somos apresentados, aos poucos, à estranha tara de Samuel, que tem entre
suas vítimas Djin Sganzerla, Letícia Spiller e Adriana Bombom. Na segunda, uma das vítimas
do protagonista se apaixona por ele, o que desestabiliza por completo a vida do gerente.
De fato, O gerente é um filme que não se identifica com corrente alguma – e não apenas no
atual cenário do “cinema brasileiro”, mas do cinema em geral. Nunca a “sétima arte”, que
nasceu sob o signo da indústria e dentro dela viveu seu ápice como linguagem e criação,
se viu tão radicalizada entre a produção industrial que deságua nos multiplex/shopping
centers, e uma produção feita às margens, cada vez mais caracterizada pela criação coletiva
e a circulação em meios alternativos, como a internet. No meio disse tudo está o “cinema de
autor”, que vive sua maior crise. O gerente é um filme de autor, que vive na carne e espelha
essa crise. É antigo porque é moderno; é vivo porque é a afirmação de um tipo de fazer cine-
matográfico que perdeu seu espaço e, talvez, esteja moribundo. Um filme gauche na vida.
Pedro Butcher é formado pela Escola de Comunicação da UFRJ. Trabalhou como repórter e crítico de cinema no
Jornal do Brasil e em O Globo. Atualmente edita o website Filme B, especializado em mercado de cinema no Brasil,
e colabora para o jornal Folha de S. Paulo.
Buster Keaton
assim como as bananas e morangos do número The lady in
the tutti frutti hat, com Carmem Miranda em Entre a loura e
a morena (1943) são inesquecíveis. Comentário de Biáfora
nas Indicações, sobre o filme-antologia O esplendor de
Hollywood/Hooray for Hollywood (1976) “O maior bene-
ficiado é Busby Berkeley, o famoso coreógrafo das girls
semidespidas em shows simétricos, que eram muito mais
caleidoscópios, efeitos de câmera do que dança pura. Isto só
viria a ocorrer mesmo na revolução neoexpressionista, nos
musicais coloridos de Arthur Freed na Metro.” Na época dos
musicais de Busby, antes desta série, Biáfora preferia Fred
Astaire e Ginger Rogers “a combinação perfeita, a dupla inimi-
tável de dançarinos” coreografada por Hermes Pan. Quando
os Cahiers du Cinéma vão descobrir, no início dos 1960, em
Ziegfield Follies, o número de Judy Garland e os repórteres,
filmado por seu marido Vincente Minelli em um plano só, em
tons de roxo e cor de abóbora, chovem no molhado. Biáfora
já sabia desde sempre que a coreografia cinematográfica tem
que combinar os movimentos dos bailarinos com aqueles da
câmera, no caso montada na famosa grua de trinta metros
da M.G.M. É isto que ele reconhece, por oposição às imagens
barrocas, mas chapadas, bidimensionais, de Busby Berkeley,
que hoje pareceriam replicadas em computador. Sem
deixarem de ser sublimes, mas caindo mais para um visual
de arabescos figurativos que da força da dança moderna
americana, grande contribuição ao século XX. E também era
capaz de revelar os méritos de Gower Champion, da dupla
com Marge, inspirado bailarino mas subestimado coreógrafo,
que em Jupiter’s darling/A favorita de Jupiter (1955) faz com a
parceira um balé inesquecível, filmado em longos travellings,
saltando entre as barracas de um mercado de rua na Roma
Antiga. E que também bota no mesmo filme, elefantes cor-
de-rosa contracenando com Esther Williams. Biáfora vai
identificar também a grande diferença dramatúrgica entre os
musicais dos anos 1930 e os dos 1940. Enquanto os primei-
ros, influenciados pela estrutura dramática das operetas com
Nelson Eddy e Jeanette Mac Donald, paravam a ação para
entrar o número musical – donde tantos exemplos em que
o pretexto do filme é a montagem de um show na Broadway
ou alhures – os musicais da Metro incorporavam os números
à ação, sem interrompê-la para a canção ou para a dança.
Criavam uma nova convenção narrativa na qual o especta-
dor entrava como se a vida pudesse ser falada, cantada e
dançada o tempo todo.
O anjo exterminador,
A doce vida e
Un chant d’amour
POR TATIANA MONASSA
ressACA dA
ondA AsiátiCA
em solo nACionAl
A viagem do balão vermelho
A amiga americana
No processo chamado de retomada do cinema brasileiro,
uma série de booms teve lugar, dentre os quais o relativo
aumento da produção em meados da década de 1990 talvez
seja o menos relevante para o estabelecimento do quadro
de produção e circulação que notamos hoje. Afinal, com o
fortalecimento da democracia pós-Collor, um novo quadro
sociocultural naturalmente haveria de se desenvolver no
país. E, nesta conjuntura, pode-se notar um marcante
reflexo de abertura para o estrangeiro, como se o Brasil se
visse subitamente diante da globalização crescente e dei-
xasse pra trás tanto o ufanismo da tradição militarista que o
havia acompanhado durante o século XX, quanto o esforço
de afirmação brasilianista que havia pautado o grosso da
produção artística das décadas anteriores.
Cinema de garagem
INO
Enquanto imagens de filmes em Super-8 perambulam
erráticas, vozes em primeira pessoa tentam explicar
quais são as visões internas de cegos, aquelas que eles
A animação Tempestade, de César Cabral (2008), o do- produzem enquanto dormem. No mínimo dá para dizer
cumentário Dreznica, de Anna Azevedo (2008) e a ficção que a ideia é original, mas o principal mérito dela é nos
Engano, de Cavi Borges (2010) são três bons exemplos de provocar experiências sensoriais desavisadamente. Ao
curtas-metragens recentes que inquietam por trazerem em tentar encontrar relação entre as imagens e arriscar algu-
si propostas de inovação criativa. Ambos se destacam pela ma conexão com a fala dos personagens nos perdemos,
ousadia na linguagem e audácia na realização, tudo regado a como que sonhando acordados.
bom gosto. São filmes bem-sucedidos, vamos dizer, mas que
Já Engano produz uma narrativa a partir de dois planos-
escolheram caminhos improváveis para contar suas histórias.
sequência projetados lado a lado o tempo todo, unidos
Surpreendem sem sair do próprio rumo, mas desvirtuam
por um telefonema. O filme tem 11 minutos e percorre
nossa expectativa, levam-nos a procurar outra ótica.
ruas do Rio de Janeiro e estações de Metrô levando junto
Por exemplo, como pode ser retratada uma tempestade em a nossa crescente inquietação com a conversa do casal
alto-mar com animação stop motion? Água, fogo e outros que não se conhece. Minuto a minuto eles dão a impres-
elementos com movimentos de difícil controle quadro a qua- são de estarem mais perto de algo que não podemos
dro são sempre um desafio para quem utiliza esta técnica supor o que seja, mas que também pode não ser nada.
de fotografar sequencialmente bonecos em cenários cons- A atenção dividida entre o diálogo, o caminho de cada
truídos em estúdio. O filme de César Cabral, Tempestade, um deles e as imagens divididas na tela nos prendem
consegue um resultado muito interessante usando tubos ao filme sem necessidade de mais nenhum elemento
translúcidos revestidos e coloridos com iluminação. “O de- cênico. O pulo do gato vem perto do final, quando os
safio maior foi tentar construir o mar de uma forma que até personagens trocam de câmera naturalmente, cruzando-
então desconhecia (...) e sabia que o mar/tempestade era se numa faixa de pedestres. Um passa a seguir pelo
fundamental para criar e dar narratividade ao filme. Lembro caminho inverso do outro até se perderem por completo.
que estudamos várias possibilidades, tintas dissolvidas em É uma ficção, mas traz com muita verdade e originalidade
água, celofanes, cheguei até a fazer um estudo com malhas um sentimento comum nas cidades grandes.
de correntes (...) no final chegamos aos tubos”, conta César.
Se o curta é o terreno da experimentação por excelência,
A fotografia de Alziro Barbosa e os raios e riscos de chuva
não deveria ser tão difícil encontrar exemplos compro-
feitos na pós-produção também ajudaram muito.
metidos com novas propostas e soluções diferenciadas.
O curioso é que este curta é inspirado na obra do artista plásti- Mas foi. Adotou-se aqui como critério escolher um de
co William Turner, pintor inglês do século XIX considerado um cada gênero que pudesse ser enquadrado também com
dos precursores do Impressionismo, com obras produzidas 50 o nebuloso rótulo de “experimental”. Os escolhidos são
anos antes dos demais – ou seja, um artista de vanguarda. O obras despretensiosas, inovadoras em sua própria órbita.
curta foi produzido em quatro meses e trata da solidão e do E este é justamente o maior mérito delas.
amor de um marinheiro isolado no meio do oceano. Joana Nin [email protected]
Tempestade.
À direita, Engano.
Arriscan
salva filmes. O restauro fotoquímico salva filmes”. Patrícia da tentativa de recompor esta opção estética pode ter
de Filippi é enfática quando defende que a digitalização ficado um pouco exagerado. “Eu não tenho lembranças
deve ser imediatamente seguida de restauro. “Se a gente do Macunaíma tão saturado, vi o filme na virada dos anos
começa a deixar tudo em digital, depois para transferir 1970 para os 80. Várias outras pessoas comentaram isso.
para película fica complicado. A plataforma digital muda As cores das roupas dos personagens mudam de cena
muito rápido, com o tempo não faz mais sentido utilizar para cena”, comenta Hernani Heffner. E emenda “o filme
materiais digitalizados anteriormente. Se tivéssemos pagou um preço por causa do pioneirismo de sua restau-
guardado coisas que escaneamos em 2003, hoje pode- ração. Hoje se você perguntasse para quem trabalhou no
ríamos fazer melhor por estas imagens”, diz. A exceção, processo, provavelmente eles fariam diferente.”
segundo ela, fica por conta de materiais em estado muito
ruim, ou quando a película tiver a perspectiva de “sofrer” O mais inquietante diante de toda esta profusão de in-
por ainda mais tempo, sem condições de esperar. formações é pensar que quando o primeiro equipamento
com estas modernas tecnologias de escaneamento pisar
Algumas armadilhas podem se esconder atrás das ultra- em solo brasileiro a um custo que pode chegar a 1 milhão
modernas máquinas e tecnologias de digitalização, res- de dólares, certamente já haverá outros muito mais avan-
tauração e preservação de películas. Suas possibilidades çados em desenvolvimento ao redor do mundo. Hoje o
são tantas que é possível fazer pelos filmes mais do que diferencial é dispensar as grifas e roletes dentados, usar
eles precisam. O primeiro filme restaurado digitalmente no iluminação LED, determinar padrões mais precisos para
Brasil foi Macunaíma, 1969, de Joaquim Pedro de Andrade. a recuperação de riscos, ler ou não bandas sonoras e
O trabalho foi realizado entre 2003 e 2004 e houve diver- trabalhar ou não com janela molhada. Não há como saber
gências conceituais entre os profissionais envolvidos, quais serão as novidades do futuro, mas uma coisa é certa:
principalmente sobre o quanto de cor seria devolvido à nem que seja por questões de interesse mercadológico
cópia restaurada. O filme foi produzido no final dos anos de grandes fabricantes de equipamentos do setor, os
1960 e ficou conhecido na época como exemplo do “tro- acervos fílmicos estão em foco – que seja para o bem da
picolor”, uma forma jocosa de chamar a forma brasileira recuperação de nossa memória audiovisual.
de tratar as cores naquele momento, bem diferente do
padrão americano dominante. Na restauração, o resultado Joana Nin [email protected]
PATROCÍNIO
LEI DE
INCENTIVO
À CULTURA
REALIZAÇÃO
I HL
INSTITUTO
CENTRO TÉCNICO AUDIOVISUAL HERBERT LEVY