Amor de Perdição Cap. I e II

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AMOR DE PERDIÇÃO, CAMILO CASTELO BRANCO A distância de uma légua de Vila Real estava a nobreza da vila

esperando o seu conterrâneo. Cada família tinha a sua liteira com o brasão
Capítulo I da casa. A dos Correias de Mesquita era a mais antiquada no feitio, e as
librés dos criados as mais surradas e traçadas que figuravam na comitiva.
Domingos José Correia Botelho de Mesquita e Meneses, fidalgo de
linhagem, e um dos mais antigos solarengos de Vila Real de Trás-os-Montes, D. Rita, avistando o préstito das liteiras, ajustou ao olho direito a
era, em 1779, juiz de fora de Cascais, e nesse mesmo ano casara com uma sua grande luneta de oiro, e disse:
dama do paço, D. Rita Teresa Margarida Preciosa da Veiga Caldeirão Castelo
Branco, filha dum capitão de cavalos, neta de outro, António de Azevedo – Ó Meneses, aquilo que é?
Castelo Branco Pereira da Silva, tão notável por sua jerarquia, como por um,
naquele tempo, precioso livro acerca da Arte da Guerra. – São os nossos amigos e parentes que vêm esperar-nos.

Dez anos de enamorado, mal sucedido, consumira em Lisboa o – Em que século estamos nós nesta montanha? – tornou a dama
bacharel provinciano. Para fazer-se amar da formosa dama de D. Maria I do paço.
minguavam-lhe dotes físicos: Domingos Botelho era extremamente feio. Para
se inculcar como partido conveniente a uma filha segunda, faltavam-lhe – Em que século?! O século tanto é dezoito aqui como em Lisboa.
bens de fortuna: os haveres dele não excediam a trinta mil cruzados em
propriedades no Douro. Os dotes de espírito não o recomendavam também: – Ah! sim? Cuidei que o tempo parara aqui no século doze… O
era alcançadíssimo de inteligência, e granjeara entre os seus condiscípulos marido achou que devia rir-se do chiste, que o não lisonjeara grandemente.
da Universidade o epíteto de «Brocas» com que ainda hoje os seus
descendentes em Vila Real são conhecidos. Bem ou mal derivado, o Fernão Botelho, pai do juiz de fora, saiu à frente do préstito para
epíteto Brocas vem de broa. Entenderam os académicos que a rudeza do seu dar a mão à nora, que apeava da liteira, e conduzi-la à de casa. D. Rita, antes
condiscípulo procedia do muito pão de milho que ele digerira na sua terra. de ver a cara de seu sogro, contemplou-lhe a olho armado as fivelas de aço,
e a bolsa do rabicho. Dizia ela depois que os fidalgos de Vila Real eram
Domingos Botelho devia ter uma vocação qualquer, e tinha: era muito menos limpos que os carvoeiros de Lisboa. Antes de entrar na avoenga
excelente flautista; foi a primeira flauta do seu tempo; e a tocar a flauta se liteira de seu marido, perguntou, com a mais refalsada seriedade, se não
sustentou dois anos em Coimbra, durante os quais seu pai lhe suspendeu as haveria risco em ir dentro daquela antiguidade. Fernão Botelho asseverou a
mesadas, porque os rendimentos da casa não bastavam a livrar outro filho sua nora que a sua liteira não tinha ainda cem anos, e que os machos não
de um crime de morte. excediam a trinta.

Formara-se Domingos Botelho em 1767, e fora a Lisboa ler no O modo altivo como ela recebeu as cortesias da nobreza – velha
Desembargo do Paço, iniciação banal dos que aspiravam à carreira da nobreza, que para ali viera em tempo de D. Dinis, fundador da vila – fez que
magistratura. Já Fernão Botelho, pai do bacharel, fora bem aceite em Lisboa, o mais novo do préstito, que ainda vivia há doze anos, me dissesse a mim:
e mormente ao duque de Aveiro, cuja estima lhe teve a cabeça em risco, na «Sabíamos que era dama da Senhora D. Maria I; porém da soberba com que
tentativa regicida de 1758. nos tratou ficamos pensando que seria ela a própria rainha.» Repicaram os
sinos da terra, quando a comitiva assomou à Senhora de Almodena. D. Rita
O provinciano saiu das masmorras da Junqueira ilibado da disse ao marido que a recepção dos sinos era a mais estrondosa e barata.
infamante nódoa, e até benquisto do conde de Oeiras, porque tomara parte
na prova que este fizera do primor de sua genealogia sobre a dos Pintos Apearam à porta da velha casa de Fernão Botelho. A aia do paço
Coelhos do Bonjardim do Porto: pleito ridículo, mas estrondoso, movido pela relanceou os olhos pela fachada do edifício, e disse de si para si: «É uma
recusa que o fidalgo portuense fizera de sua filha ao filho de Sebastião José bonita vivenda para quem foi criada em Mafra e Sintra, na Bemposta e
de Carvalho. Queluz.»

As artes com que o bacharel flautista vingou insinuar-se na Decorridos alguns dias, D. Rita disse ao marido que tinha medo
estima de D. Maria I e Pedro III não as sei eu. É tradição que o homem fazia de ser devorada das ratazanas; que aquela casa era um covil de feras; que os
rir a rainha com as suas facécias, e porventura com os trejeitos de que tirava tectos estavam a desabar; que as paredes não resistiriam ao Inverno; que os
o melhor do seu espírito. O certo é que Domingos Botelho frequentava o preceitos de uniformidade conjugal não obrigavam a morrer de frio uma
paço, e recebia do bolsinho da soberana uma farta pensão, com a qual o esposa delicada e afeita às almofadas do palácio dos reis.
aspirante a juiz de fora se esqueceu de si, do futuro, e do ministro da justiça
que, muito rogado, fiara das suas letras o encargo de juiz de fora de Cascais. Domingos Botelho conformou-se com a estremecida consorte, e
começou a fábrica de um palacete. Escassamente lhe chegavam os recursos
Já está dito que ele se atreveu aos amores do paço, não poetando para os alicerces: escreveu à rainha, e obteve generoso subsídio com que
como Luís de Camões ou Bernardim Ribeiro; mas namorando na sua prosa ultimou a casa. As varandas das janelas foram a última dádiva que a real
provinciana, e captando a benquerença da rainha para amolecer as durezas viúva fez à sua dama. Quer-nos parecer que a dádiva é um testemunho, até
da dama. Devia de ser, afinal, feliz o «doutor bexiga» – que assim era na agora inédito, da demência da Senhora D. Maria I.
corte conhecido – para se não desconcertar a discórdia em que andam
rixados o talento e a felicidade. Domingos Botelho casou com D. Rita Domingos Botelho mandara esculpir em Lisboa a pedra de armas;
Preciosa. Rita era uma formosura, que ainda aos cinquenta anos se podia D. Rita, porém, teimara que no escudo se esquarteassem também as suas;
prezar de o ser. E não tinha outro dote, se não é dote uma série de avoengos, mas era tarde, porque já a obra tinha vindo do escultor, e o magistrado não
uns bispos, outros generais, e entre estes o que morrera frigido em caldeirão podia com a segunda despesa, nem queria desgostar seu pai, orgulhoso de
de não sei que terra da mourisma; glória, na verdade, um pouco ardente; seu brasão. Resultou daqui ficar a casa sem armas e D. Rita vitoriosa.
mas de tal monta que os descendentes do general frito se
assinaram Caldeirões. O juiz de fora tinha ali parentela ilustre. O aprumo da fidalga
dobrou-se até aos grandes da província, ou antes houve por bem levantá-los
A dama do paço foi ditosa com o marido. Molestavam-na até ela. D. Rita tinha uma corte de primos, uns que se contentavam de serem
saudades da corte, das pompas das câmaras reais, e dos amores de sua feição primos, outros que invejavam a sorte do marido. O mais audacioso não
e molde, que imolou ao capricho da rainha. Este desgostoso viver, porém, ousava fitá-la de rosto, quando o ela remirava com a luneta em jeito de tanta
não empeceu que se reproduzissem em dois filhos e três meninas. O mais altivez e zombaria, que não será estranha figura dizer que a luneta de Rita
velho era Manuel, o segundo Simão; das meninas uma era Maria, a segunda Preciosa era a mais vigilante sentinela da sua virtude.
Ana, e a última tinha o nome de sua mãe, e alguns traços da beleza dela.
Domingos Botelho desconfiava da eficácia dos merecimentos
O juiz de fora de Cascais, solicitando lugar de mais graduado próprios para cabalmente encher o coração de sua mulher. Inquietava-o o
banco, demorava em Lisboa, na freguesia da Ajuda, em 1784. Neste ano é ciúme; mas sufocava os suspiros, receando que Rita se desse por injuriada da
que nasceu Simão, o penúltimo de seus filhos. Conseguiu ele, sempre suspeita. E razão era que se ofendesse.
balanceado da fortuna, transferência para Vila Real, sua ambição suprema.
A neta do general frigido no caldeirão sarraceno ria dos primos,
que, por amor dela, eriçavam e empoavam as cabeleiras com desgracioso
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esmero, e cavaleavam estrepitosamente na calçada os seus ginetes, fingindo mas de todo avesso em génio. Na plebe de Viseu é que ele escolhe amigos e
que os picadores da província não desconheciam as graças hípicas do companheiros. Se D. Rita lhe censura a indigna eleição que faz, Simão
marquês de Marialva. zomba das genealogias, e mormente do general Caldeirão que morreu frito.
Isto bastou para ele granjear a malquerença de sua mãe. O corregedor via as
Não o cuidava assim, porém, o juiz de fora. O intriguista que lhe coisas pelos olhos de sua mulher, e tomou parte no desgosto dela, e na
trazia o espírito em ânsias era o seu espelho. Via-se sinceramente feio, e aversão ao filho. As irmãs temiam-no, tirante Rita, a mais nova, com quem
conhecia Rita cada vez mais em flor, e mais enfadada no trato íntimo. ele brincava puerilmente, e a quem obedecia, se lhe ela pedia, com
Nenhum exemplo da história antiga, exemplo de amor sem quebra entre o meiguices de criança, que não andasse com pessoas mecânicas.
esposo deforme e a esposa linda, lhe ocorria. Um só lhe mortificava a
memória, e esse, conquanto fosse da fábula, era-lhe avesso, e vinha a ser o Finalizavam as férias, quando o corregedor teve um grande
casamento de Vénus e Vulcano. Lembravam-lhe as redes que o ferreiro coxo dissabor. Um dos seus criados tinha ido levar a beber os machos, e, por
fabricava para apanhar os deuses adúlteros, e assombrava-se da paciência descuido ou propósito, deixou quebrar algumas vasilhas que estavam à vez
daquele marido. Entre si, dizia ele que, erguido o véu da perfídia, nem se no parapeito do chafariz. Os donos das vasilhas conjuraram contra o criado;
queixaria a Júpiter, nem armaria ratoeiras aos primos. A par do bacamarte espancaram-no. Simão passava nesse ensejo; e, armado dum fueiro que
de Luís Botelho, que varara em terra o alferes, estava uma fileira de descravou dum carro, partiu muitas cabeças, e rematou o trágico
bacamartes em que o juiz de fora era entendido com muito superior espectáculo pela farsa de quebrar todos os cântaros. O povoléu intacto
inteligência à que revelava na compreensão do Digesto e das Ordenações do fugira espavorido, que ninguém se atrevia ao filho do corregedor; os feridos,
Reino. porém, incorporaram-se e foram clamar justiça à porta do magistrado.

Este viver de sobressaltos durou seis anos, ou mais seria. O juiz de Domingos Botelho bramia contra o filho, e ordenava ao
fora empenhara os seus amigos na transferência, e conseguiu mais do que meirinho-geral que o prendesse à sua ordem. D. Rita, não menos irritada,
ambicionava: foi nomeado provedor para Lamego. Rita Preciosa deixou mas irritada como mãe, mandou, por portas travessas, dinheiro ao filho para
saudades em Vila Real, e duradoura memória da sua soberba, formosura e que, sem detença, fugisse para Coimbra, e esperasse lá o perdão do pai.
graças de espírito. O marido também deixou anedotas que ainda agora se
repetem. Duas contarei somente para não enfadar. Acontecera um lavrador O corregedor, quando soube o expediente de sua mulher, fingiu--
mandar-lhe o presente duma vitela, e mandar com ela a vaca, para se não se zangado, e prometeu fazê-lo capturar em Coimbra. Como, porém, D. Rita
desgarrar a filha. Domingos Botelho mandou recolher à loja a vitela e a lhe chamasse brutal nas suas vinganças, e estúpido juiz de uma rapaziada, o
vaca, dizendo que quem dava a filha dava a mãe. Outra vez, deu-se o caso magistrado desenrugou a severidade postiça da testa, e confessou
de lhe mandarem um presente de pastéis em rica salva de prata. O juiz de tacitamente que era brutal e estúpido juiz.
fora repartiu os pastéis pelos meninos, e mandou guardar a salva, dizendo
que receberia como escárnio um presente de doces, que valiam dez patacões, Capítulo II
sendo que naturalmente os pastéis tinham vindo como ornato da bandeja. E
assim é que, ainda hoje, em Vila Real, quando se dá um caso análogo de ficar Simão Botelho levou de Viseu para Coimbra arrogantes
alguém com o conteúdo e continente, diz a gente da terra: «Aquele é como o convicções da sua valentia. Se recordava os chibantes pormenores da derrota
doutor Brocas.» em que pusera trinta aguadeiros, o som cavo das pancadas, a queda
atordoada deste, o levantar-se daquele, ensanguentado, a bordoada que
Não tenho assunto de tradição com que possa deter-me em abrangia três a um tempo, a que afocinhava dois, a gritaria de todos, e o
miudezas da vida do provedor em Lamego. Escassamente sei que D. Rita estrépito dos cântaros afinal, Simão deliciava-se nestas lembranças, como
aborrecia a comarca, e ameaçava o marido de ir com os seus cinco filhos ainda não vi nalgum drama, em que o veterano de cem batalhas relembra os
para Lisboa, se ele não saísse daquela intratável terra. Parece que a fidalguia louros de cada uma, e esmorece, afinal, estafado de espantar, quando não é
de Lamego, em todo o tempo orgulhosa duma antiguidade que principia na de estafar, os ouvintes. O académico, porém, com os seus entusiasmos, era
aclamação de Almacave, desdenhou a filáucia da dama do paço, e incomparavelmente muito mais prejudicial e perigoso que o mata-mouros
esmerilhou certas vergônteas podres do tronco dos Botelhos Correias de de tragédia. As recordações esporeavam-no a façanhas novas, e naquele
Mesquita, desprimorando-lhe as sãs com o facto de ele ter vivido dois anos tempo a academia dava azo a elas. A mocidade estudiosa, em grande parte,
em Coimbra tocando flauta. simpatizava com as balbuciantes teorias da liberdade, mais por
pressentimento, que por estudo. Os apóstolos da Revolução Francesa não
Em 1801, achamos Domingos José Correia Botelho de Mesquita tinham podido fazer reboar o trovão dos seus clamores neste canto do
corregedor em Viseu. mundo; mas os livros dos enciclopedistas, as fontes onde a geração seguinte
bebera a peçonha que saiu do sangue de noventa e três, não eram de todo
Manuel, o mais velho de seus filhos, tem vinte e dois anos, e ignorados. As doutrinas da regeneração social pela guilhotina tinham alguns
frequenta o segundo ano jurídico. Simão, que tem quinze, estuda tímidos sectários em Portugal, e esses de ver é que deviam pertencer à
humanidades em Coimbra. As três meninas são o prazer e a vida toda do geração nova. Além de que o rancor à Inglaterra lavrava nas entranhas das
coração de sua mãe. classes manufactureiras, e o desprender-se do jugo aviltador de estranhos,
apertado, desde o princípio do século anterior, com as sogas de ruinosos e
O filho mais velho escreveu a seu pai queixando-se de não poder pérfidos tratados, estava no ânimo de muitos e bons portugueses que se
viver com seu irmão, temeroso do génio sanguinário dele. Conta que a cada queriam antes aliançados com a França. Estes eram os pensadores reflexivos;
passo se vê ameaçado na vida, porque Simão emprega em pistolas o dinheiro os sectários da academia, porém, exprimiam mais a paixão da novidade que
dos livros, convive com os mais famosos perturbadores da academia, e corre as doutrinas do raciocínio.
de noite as ruas insultando os habitantes e provocando-os à luta com
assuadas. O corregedor admira a bravura de seu filho Simão, e diz à No ano anterior de 1800, saíra António de Araújo de Azevedo,
consternada mãe que o rapaz é a figura e o génio de seu bisavô Paulo depois conde da Barca, a negociar em Madrid e Paris a neutralidade de
Botelho Correia, o mais valente fidalgo que dera Trás-os-Montes. Portugal.

Manuel, cada vez mais aterrado das arremetidas de Simão, sai de Rejeitaram-lhe as potências aliadas as propostas, tendo-lhe em
Coimbra antes de férias e vai a Viseu queixar-se, e pedir que lhe dê seu pai conta de nada os dezasseis milhões que o diplomata oferecia ao primeiro-
outro destino. D. Rita quer que seu filho seja cadete de cavalaria. De Viseu cônsul. Sem delongas, foi o território português infestado pelos exércitos de
parte para Bragança Manuel Botelho, e justifica-se nobre dos quatro Espanha e França. As nossas tropas, comandadas pelo duque de Lafões, não
costados para ser cadete. chegaram a travar a luta desigual, porque a esse tempo Luís Pinto de Sousa,
mais tarde visconde de Balsemão, negociara ignominiosa paz em Badajoz,
No entanto, Simão recolhe a Viseu com os seus exames feitos e com cedência de Olivença à Espanha, exclusão de Ingleses de nossos portos,
aprovados. O pai maravilha-se do talento do filho, e desculpa-o da e indemnização de alguns milhões à França.
extravagância por amor do talento. Pede-lhe explicações do seu mau viver
com Manuel, e ele responde que seu irmão o quer forçar a viver Estes sucessos tinham irritado contra Napoleão os ânimos
monasticamente. daqueles que odiavam o aventureiro, e para outros deram causa a
congratularem-se do rompimento com a Inglaterra. Entre os desta
Os quinze anos de Simão têm aparência de vinte. É forte de parcialidade, na convulsiva e irrequieta academia, era voto de grande monta
compleição; belo homem com as feições de sua mãe, e a corpulência dela; Simão Botelho, apesar dos seus imberbes dezasseis anos. Mirabeau, Danton,
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Robespierre, Desmoulins, e muitos outros algozes e mártires do grande Na véspera da sua ida para Coimbra, estava Simão Botelho
açougue, eram nomes de soada musical aos ouvidos de Simão. Difamá-los na despedindo-se da suspirosa menina, quando subitamente ela foi arrancada
sua presença era afrontarem-no a ele, e bofetada certa, e pistolas da janela. O alucinado moço ouviu gemidos daquela voz que, um momento
engatilhadas à cara do difamador. O filho do corregedor de Viseu defendia antes, soluçava comovida por lágrimas de saudade. Ferveu-lhe o sangue na
que Portugal devia regenerar-se num baptismo de sangue, para que a hidra cabeça; contorceu-se no seu quarto como o tigre contra as grades inflexíveis
dos tiranos não erguesse mais uma das mil cabeças sob a clava do Hércules da jaula. Teve tentações de se matar, na impotência de socorrê-la. As
popular. restantes horas daquela noite passou-as em raivas e projectos de vingança.
Com o amanhecer esfriou-lhe o sangue, e renasceu a esperança com os
Estes discursos, arremedo de alguma clandestina objurgatória de cálculos.
Saint-Just, afugentavam da sua comunhão aqueles mesmos que o tinham
aplaudido em mais racionais princípios de liberdade. Simão Botelho tornou- Quando o chamaram para partir para Coimbra, lançou-se do
se odioso aos condiscípulos que, para se salvarem pela infâmia, o delataram leito de tal modo desfigurado, que sua mãe, avisada do rosto amargurado
ao bispo-conde, reitor da Universidade. dele, foi ao quarto interrogá-lo e despersuadi-lo de ir enquanto assim
estivesse febril. Simão, porém, entre mil projectos, achara melhor o de ir
Um dia, proclamava o demagogo académico na praça Sansão aos para Coimbra, esperar lá notícias de Teresa, e vir a ocultas a Viseu falar com
poucos ouvintes que lhe restaram fiéis, uns por medo, outros por analogia de ela. Ajuizadamente discorrera ele, que a sua demora agravaria a situação de
bossas. O discurso ia no mais acrisolado da ideia regicida, quando uma Teresa.
escolta de verdeais lhe aguou a escandecência. Quis o orador resistir,
aperrando as pistolas, mas de sobra sabiam os braços musculosos da coorte Descera o académico ao pátio, depois de abraçar a mãe e irmãs, e
do reitor com quem as haviam. beijar a mão do pai, que para esta hora reservara uma admoestação severa, a
ponto de lhe asseverar que de todo o abandonaria se ele caísse em novas
O jacobino, desarmado e cercado entre a escolta dos archeiros, foi extravagâncias.
levado ao cárcere académico, donde saiu seis meses depois, a grandes
instâncias dos amigos de seu pai e dos parentes de D. Rita Preciosa. Quando metia o pé no estribo, viu a seu lado uma velha mendiga,
estendendo-lhe a mão aberta, como quem pede esmola, e, na palma da mão,
Perdido o ano lectivo, foi para Viseu Simão. O corregedor repeliu- um pequeno papel. Sobressaltou-se o moço; e, a poucos passos distante de
o da sua presença com ameaças de o expulsar de casa. A mãe, mais levada sua casa, leu estas linhas:
do dever que do coração, intercedeu pelo filho e conseguiu sentá-lo à mesa
comum. «Meu pai diz que me vai encerrar num convento, por tua causa.
Sofrerei tudo por amor de ti. Não me esqueças tu, e achar-me-ás no
No espaço de três meses fez-se maravilhosa mudança nos convento, ou no Céu, sempre tua do coração, e sempre leal. Parte para
costumes de Simão. As companhias da ralé desprezou-as. Saía de casa raras Coimbra. Lá irão dar as minhas cartas; e na primeira te direi em que nome
vezes, ou só, ou com a irmã mais nova, sua predilecta. O campo, as árvores, hás-de responder à tua pobre Teresa.»
e os sítios mais sombrios e ermos eram o seu recreio. Nas doces noites de
Estio demorava-se por fora até ao repontar da alva. Aqueles que assim o A mudança do estudante maravilhou a academia. Se o não viam
viam admiravam-lhe o ar cismador e o recolhimento que o sequestrava da nas aulas, em parte nenhuma o viam. Das antigas relações restavam-lhe
vida vulgar. Em casa encerrava-se no seu quarto, e saía quando o chamavam apenas as dos condiscípulos sensatos que o aconselhavam para bem, e o
para a mesa. visitaram no cárcere de seis meses, dando--lhe alentos e recursos, que seu
pai lhe não dava, e sua mãe escassamente supria. Estudava com fervor, como
D. Rita pasmava da transformação, e o marido, bem convencido quem já dali formava as bases do futuro renome e da posição por ele
dela, ao fim de cinco meses, consentiu que seu filho lhe dirigisse a palavra. merecida, bastante a sustentar dignamente a esposa. A ninguém confiava o
seu segredo, senão às cartas que enviava a Teresa, longas cartas em que
Simão Botelho amava. Aí está uma palavra única, explicando o folgava o espírito da tarefa da ciência. A apaixonada menina escrevia-lhe a
que parecia absurda reforma aos dezassete anos. miúdo, e já dizia que a ameaça do convento fora mero terror de que já não
tinha medo, porque seu pai não podia viver sem ela.
Amava Simão uma sua vizinha, menina de quinze anos, rica
herdeira, regularmente bonita e bem-nascida. Da janela de seu quarto é que Isto afervorou-lhe para mais o amor ao estudo. Simão, chamado
ele a vira a primeira vez, para amá-la sempre. Não ficara ela incólume da em pontos difíceis das matérias do primeiro ano, tal conta deu de si, que os
ferida que fizera no coração do vizinho: amou-o também, e com mais lentes e os condiscípulos o houveram como primeiro premiado.
seriedade que a usual nos seus anos.
A este tempo, Manuel Botelho, cadete em Bragança, destacado no
Os poetas cansam-nos a paciência a falarem do amor da mulher Porto, licenciou-se para estudar na Universidade as matemáticas. Animou-o
aos quinze anos, como paixão perigosa, única e inflexível. Alguns a notícia do reviramento que se dera em seu irmão. Foi viver com ele;
prosadores de romances dizem o mesmo. Enganam-se ambos. O amor aos achou-o quieto; mas alheado numa ideia que o tornava misantropo e
quinze anos é uma brincadeira: é a última manifestação do amor às bonecas; intratável noutro género. Pouco tempo conviveram, sendo a causa da
é a tentativa da avezinha que ensaia o voo fora do ninho, sempre com os separação um desgraçado amor de Manuel Botelho a uma açoriana casada
olhos fitos na ave-mãe, que está da fronde próxima chamando: tanto sabe a com um académico. A esposa apaixonada perdeu-se nas ilusões do cego
primeira o que é amar muito, como a segunda o que é voar para longe. amante. Deixou o marido e fugiu com ele para Lisboa, e daí para Espanha.
Em outro relanço desta narrativa darei conta do remate deste episódio.
Teresa de Albuquerque devia ser, porventura, uma excepção no
seu amor. No mês de Fevereiro de 1803, recebeu Simão Botelho uma carta
de Teresa. No seguinte capítulo se diz minuciosamente a peripécia que
O magistrado e sua família eram odiosos ao pai de Teresa, por forçara a filha de Tadeu de Albuquerque a escrever aquela carta de
motivos de litígios, em que Domingos Botelho lhes deu sentenças contra. pungentíssima surpresa para o académico, convertido aos deveres, à honra,
Afora isso, ainda no ano anterior dois criados de Tadeu de Albuquerque à sociedade e a Deus, pelo amor.
tinham sido feridos na celebrada pancadaria da fonte. É, pois, evidente que o
amor de Teresa, declinando de si o dever de obtemperar e sacrificar-se ao
justo azedume de seu pai, era verdadeiro e forte.

E este amor era singularmente discreto e cauteloso. Viram-se e


falaram-se três meses, sem darem rebate à vizinhança, e nem sequer
suspeitas às duas famílias. O destino, que ambos se prometiam, era o mais
honesto: ele ia formar-se para poder sustentá-la, se não tivessem outros
recursos; ela esperava que seu velho pai falecesse para, senhora sua, lhe dar,
com o coração, o seu grande património. Espanta discrição tamanha na
índole de Simão Bote-lho, e na presumível ignorância de Teresa em coisas
materiais da vida, como são um património!
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