Atividades de Desenho e Aprendizagem Da Linguagem Escrita

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Anais V CIPSI - Congresso Internacional de Psicologia

Psicologia: de onde viemos, para onde vamos?


Universidade Estadual de Maringá ISSN 1679-558X
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Atividades de desenho e aprendizagem da linguagem escrita:


uma relação possível e necessária

Tatiana Custódio
Maria Angélica Olivo Francisco Lucas

Introdução
Atividades de desenho fazem parte das práticas pedagógicas comumente
implementadas, principalmente, em centros de educação infantil e nos anos iniciais do ensino
fundamental. Contudo, nem sempre recorre-se a essas atividades reconhecendo-as, como
recurso que pode favorecer os processos de alfabetização e letramento.
Por concebermos o desenho infantil como ferramenta necessária à aprendizagem da
leitura e da escrita, consideramos necessário compreender os processos que permeiam tal
prática - alfabetização e letramento. Encontramos nos estudos feitos por Soares (2004)
subsídios teórico-metodológicos para esclarecer a relação entre os processos de alfabetização
e letramento.
Para Soares (1998), alfabetização é o ato de ensinar e aprender a ler e escrever;
processo de aprendizagem de habilidades necessárias para os atos de ler e escrever;
apropriação do código alfabético. Com base na referida autora, letramento é o estado ou a
condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se
apropriado da escrita.
A necessidade de diferenciar alfabetização de letramento é recente. Segundo Soares
(1998), foi na década de 1980, quando muito se discutia acerca do fracasso das escolas
brasileiras, mais especificamente sobre a não aprendizagem da leitura e escrita e consequente
repetência e evasão escolar que, no Brasil, surgiu o termo letramento. Para ela, o termo
letramento surgiu com “a necessidade de reconhecer e nomear práticas sociais de leitura e de
escrita mais avançadas e complexas que as práticas do ler e do escrever resultantes da
aprendizagem do sistema de escrita” (SOARES, 2004, p. 6).
De acordo com esta ótica, um adulto pode ser considerado analfabeto por não sabe ler
nem escrever. Contudo se ele faz parte de um meio social grafocêntrico, com indivíduos que
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se apropriaram da leitura, se se interessa em ouvir leituras de jornais e cartas, ou as dita para


que outras pessoas escrevam, segundo a referida autora, “esse indivíduo é, de certa forma,
letrado, porque faz uso da escrita, envolve-se em práticas sociais de leitura e de escrita”. Da
mesma forma, “uma criança é ainda “analfabeta”, porque não aprendeu a ler e a escrever, mas
se já penetrou no mundo do letramento, já é, de certa forma, letrada” (SOARES, 1998, p. 24).
Contudo, dados atuais revelados pelo Sistema de Avaliação da Educação Básica
(SAEB), pelo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) e pela Provinha Brasil
indicam que, hoje, muitas crianças permanecem na escola, e são promovidas de um ano a
outro, porém não aprenderam de fato a ler e escrever e usar socialmente tais habilidades. Para
Soares (1998), isso ocorre porque a prática pedagógica realizada na escola prioriza o contato
com materiais escritos, perdendo a essência do ensino da leitura e da escrita, fazendo com que
o processo de letramento se sobressaia e obscureça a alfabetização. Isso ocorre porque, “no
Brasil, os conceitos de alfabetização e letramento se mesclam, se superpõem, frequentemente
se confundem” (SOARES, 2004, p. 7). Deriva dessa situação, a necessidade de compreender a
relação entre os processos de alfabetização e letramento.
Segundo as reflexões de Soares (2004), alfabetização e letramento são processos
distintos. Contudo, é fundamental ressaltar que por mais que sejam conceitos diferentes,
alfabetização e letramento são também processos indissociáveis e interdependentes.

Porque alfabetização e letramento são conceitos frequentemente confundidos ou sobrepostos,


é importante distingui-los, ao mesmo tempo que é importante também aproximá-los: a
distinção é necessária porque a introdução, no campo da educação, do conceito de letramento
tem ameaçado perigosamente a especificidade do processo de alfabetização; por um lado, a
aproximação é necessária porque não só o processo de alfabetização, embora distinto e
específico, altera-se e configura-se no quadro do conceito de letramento, como também este é
dependente daquele (SOARES, 2003, p. 90).

A distinção dos conceitos de alfabetização e letramento torna-se imprescindível para a


prática pedagógica, em especial para os professores que trabalham com crianças que estão em
início de escolarização.

Parece ser necessário rever os quadros referenciais e os processos de ensino que têm
predominado em nossas salas de aula, e talvez reconhecer a possibilidade e mesmo a
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necessidade de estabelecer a distinção entre o que mais propriamente se denomina letramento,


de que são muitas as facetas – imersão das crianças na cultura escrita, participação em
experiências variadas com a leitura e a escrita, conhecimento e interação com diferentes tipos
de gêneros de material escrito – e o que é alfabetização, de que também são muitas as facetas
– consciência fonológica e fonêmica, identificação das relações fonema-grafema, habilidades
de codificação e decodificação da língua escrita, conhecimento e reconhecimento dos
processos de tradução da forma sonora da fala para a forma gráfica da escrita (SOARES,
2004, p. 15).

Sabendo diferenciar esses dois processos, o professor será capaz de organizar e


sistematizar suas práticas alfabetizadoras e letradoras de maneira a encaminhar a apropriação
da linguagem escrita de forma significativa. Neste sentido, consideramos como
imprescindíveis as contribuições da Teoria Histórico-Cultural para a compreensão do
processo de apropriação da linguagem escrita, o qual envolve o letramento e a alfabetização.
Para tanto, neste estudo explicitamos a relação entre o ato de desenhar e a
aprendizagem da escrita destacando as reflexões de Vigotski (2008) e Luria (1988) acerca do
desenho feito pela criança, encontrando nelas uma das mais importantes orientações teórico-
metodológicas deixadas pela referida perspectiva teórica para o encaminhamento do ensino
dessa forma de linguagem: preparar e organizar o deslocamento do desenho das coisas para o
desenho das palavras.
A fim de constatar esta relação evidenciada pela Teoria Histórico-Cultural, realizamos
anteriormente um estudo objetivando analisar se os encaminhamentos metodológicos
relacionados às atividades de desenho faziam, ou não, relação com a aprendizagem da
linguagem escrita, objetivando a efetivação dos processos de alfabetização e letramento
(Lucas; Custódio; Vidotti, 2010). Este estudo foi realizado em escolas públicas localizadas no
município de Maringá, nas quais foram observadas práticas pedagógicas de quatro professoras
que assumiram aulas no 1º ano do ensino fundamental no ano letivo de 2010. Concluiu-se que
o professor pouco recorria à prática de desenhar devido ao fato de as crianças já manterem, na
escola, contato com o código alfabético de maneira sistematizada e, portanto, as atividades de
desenho eram secundarizadas, senão, quase inexistentes.
Frente a estes dados, considerou-se pertinente a continuação desta pesquisa, porém em
turmas anteriores às do 1º ano do ensino fundamental, por se tratar de crianças que ainda não
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tiveram contato com o código escrito de forma sistematizada. Por conseguinte, o trabalho ora
apresentado teve como objetivo descrever e analisar situações nas quais atividades de desenho
foram propostas aos alunos matriculados no terceiro nível da educação infantil, visando a
aprendizagem da leitura e da escrita e os usos sociais destas. Para tanto, este estudo foi
dividido em duas etapas: a teórica, na qual foram levantados subsídios teórico-metodológicos
tendo por base a Teoria Histórico-Cultural; e a etapa empírica, na qual foram observadas
práticas pedagógicas implementadas por professoras do terceiro nível da educação infantil e
coletados alguns materiais para posterior análise. Adiantamos que verificamos a realização de
várias práticas pedagógicas que recorriam a atividades de desenho estabelecendo relação com
a escrita, as quais contribuíram de maneira oportuna para a os resultados dessa investigação.

Objetivos
A pesquisa aqui relatada teve como principal objetivo analisar as situações nas quais
as atividades de desenho são propostas as crianças matriculadas no terceiro nível da educação
infantil, visando a aprendizagem da leitura e da escrita.
Em decorrência deste objetivo, outros, não menos importantes, foi necessário
estabelecer para a organização e desenvolvimento da pesquisa:
• Estudar a relação entre desenho e aprendizagem da leitura e da escrita à luz da teoria
histórico-cultural.
• Pesquisar acerca dos conceitos de alfabetização e letramento, e a relação existente
entre eles;
• Recolher informações (anotações das observações e cópias das atividades) sobre em
que situações as atividades de desenho foram propostas em sala de aula e o uso destas
por professoras do terceiro nível da educação infantil.
• Categorizar os dados coletados, a fim de observar a relação entre o desenho infantil
e a linguagem escrita buscando identificar o deslocamento do desenho das coisas para
o desenho das palavras.
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Metodologia
Este trabalho foi realizado em duas etapas: a primeira corresponde a parte teórica da
pesquisa e a segunda, a parte empírica. Com base em Triviños (1987), compreendermos que
deve haver um trânsito livre entre teoria e empiria. Porém, tal divisão foi necessária para
tornar executável esta investigação.
O primeiro momento refere-se ao estudo aprofundado do referencial teórico adotado -
Teoria Histórico-Cultural - focando a relação entre desenho e aprendizagem da leitura e da
escrita. Para tanto, foram realizadas leituras, análises e fichamentos de textos de autoria de
Vygotsky e Luria. Recorremos também às pesquisas realizadas por alguns de seus intérpretes.
O segundo momento diz respeito à parte empírica desta investigação. Foram
selecionadas como lócus, duas instituições públicas de educação infantil localizadas em
diferentes bairros do município de Maringá, no Estado do Paraná. Os sujeitos desta pesquisa
foram duas professoras que durante o ano letivo de 2011 assumiram turmas de terceiro nível
da educação infantil, atuando, cada uma, em um dos centros de educação infantil escolhidos
para a realização desta investigação. Os dados referentes às situações nas quais as atividades
de desenho foram propostas pelas professoras foram coletados por meio de observação
sistemática em sala de aula, por um período de 12 horas em cada turma e descrição minuciosa
dos fatos observados. Outros materiais também foram recolhidos, digitalizados e,
posteriormente devolvidos, tais como trabalhos mimeografados ou xerocopiados, visto que
revelavam a forma como as professoras utilizavam o desenho em sala de aula.

Contribuições da Teoria Histórico-Cultural para a compreensão da importância do


desenho para o processo de alfabetização
A Teoria Histórico-Cultural traz muitas contribuições para a compreensão do processo
de alfabetização. Neste artigo limitar-nos-emos a apontar tais contribuições, tomando como
referência dois textos. Um, de autoria de Vigotski, intitulado “A pré-história do
desenvolvimento da linguagem escrita”, escrito em 1931, explica a gênese da linguagem
escrita na criança, localizando, em sua pré-história, a emergência das funções específicas que
permitem seu uso como mediação da atividade mental. O outro, “O desenvolvimento da
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escrita na criança”, escrito por Luria, em 1929, descreve de forma minuciosa os resultados de
uma pesquisa experimental sobre a gênese do processo de simbolização na criança, inspirado
em investigações realizadas por Vigotski. Ambos consideram que a aprendizagem da
linguagem escrita, como um instrumento cultural complexo, é elemento essencial no
desenvolvimento de cada sujeito.
Vigotski (2008) teceu críticas à forma como estava sendo organizado o ensino da
escrita às crianças das escolas soviéticas do início do século XIX, nas quais a prática
mecânica de decodificar o que estava escrito era valorizada, ao passo que a escrita em si era
menosprezada, obscurecendo o papel dessa forma de linguagem na promoção do
desenvolvimento do indivíduo. Por existirem muitos métodos focados na codificação e
decodificação, a pedagogia prática ainda precisava desenvolver mecanismos para o ensino
efetivo e qualitativo da linguagem escrita às crianças, afirma o referido autor. Em suas
palavras: “Ensinam-se as crianças a desenhar letras e construir palavras com elas, mas não se
ensina a linguagem escrita. Enfatiza-se de tal forma a mecânica de ler o que está escrito que
se acaba obscurecendo a linguagem escrita como tal” (VIGOTSKI, 2008, p. 125).
De acordo com a perspectiva de Vigotski (2008), a linguagem escrita é constituída por
signos que nomeiam os sons e palavras da linguagem oral, os quais por sua vez, designam
objetos reais. Por esse motivo é que a escrita depende do ensino sistematizado para ser
adquirida, diferentemente da linguagem oral, a qual pode ser aprendida pela criança pelo
contado com indivíduos falantes.
Ao obter certo domínio da linguagem escrita, a criança, gradativamente, deixa de
recorrer a linguagem oral como elo intermediário entre a escrita e o objeto a ser representado
e passa a fazer uma representação direta do objeto, da ação ou de um fenômeno real. “Um
aspecto desse sistema é que ele constitui um simbolismo de segunda ordem que,
gradualmente, torna-se um simbolismo direto” (VIGOTSKI, 2008, p.126). O quadro abaixo
explica como isso ocorre.
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FONTE: LUCAS, Maria Angélica Olivo Francisco. Os processos de alfabetização e


letramento na educação infantil: contribuições teóricas e concepções de professores.
Tese. 2008, 322f. (Doutorado em Educação) – Universidade de São Paulo, 2009.

Entende-se que a escrita é uma representação da representação ou, segundo Vigotski


(2008), uma representação de segunda ordem, consistindo em um sistema complexo de
signos, cuja aprendizagem significa um salto qualitativo no desenvolvimento das funções
psicológicas superiores. Isto quer dizer que a apreensão da linguagem escrita pela criança, por
meio de métodos mecânicos não possibilita que ela chegue ao domínio desse sistema de
símbolos e entenda a necessidade funcional da escrita, já que vivemos em uma sociedade
grafocêntrica.
Vigotski (2008) declara que o início do desenvolvimento da escrita acontece antes da
inserção da criança na escola. Ele assinalou os principais pontos pelos quais a criança passa
até se apropriar da linguagem escrita: o gesto, o desenho e o jogo. O início da pré-história da
linguagem escrita acontece quando os bebês, sem o domínio da oralidade, utilizam o gesto
como uma forma de manifestar um desejo. Para Vigotski:

Essa história começa com o aparecimento do gesto como um signo visual para a criança. O
gesto é o signo visual inicial que contém a futura escrita da criança, assim como uma semente
contém um futuro carvalho. Como se tem corretamente dito, os gestos são a escrita no ar, e os
signos escritos são, frequentemente, simples gestos que foram fixados (VIGOTSKI, 2008,
p.128).
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Há dois momentos em que o gesto é ligado à escrita: os jogos simbólicos e o desenho.


O gesto se aproximado da escrita quando, nas brincadeiras de faz-de-conta, ou jogos
simbólicos, a criança utiliza um objeto para substituir outro. O primeiro não precisa ter
semelhança com o que será representado, apenas deve comportar o movimento do objeto real.
Como por exemplo, os cavalinhos de pau feitos de cabo de vassoura, os quais comportam a
ação da montaria, mas não se parecem com cavalos reais. Além disso, desde quando as
crianças realizam seus primeiros desenhos, gesticulando o que querem representar, o que fica
registrado no papel são rabiscos que complementam o que foi iniciado com o gesto. Isto quer
dizer que o desenho, tal como o brinquedo simbólico, também está permeado de
representações simbólicas:

Assim como no brinquedo, também no desenho o significado surge, inicialmente, como um


simbolismo de primeira ordem. Como já dissemos, os primeiros desenhos surgem como
resultado de gestos manuais [...]; e o gesto, como vimos, constitui a primeira representação do
significado. É somente mais tarde que, independentemente, a representação gráfica começa a
designar algum objeto. A natureza dessa relação é que aos rabiscos já feitos no papel dá-se um
nome apropriado (VIGOTSKI, 2008, p. 133).

Quando as crianças já possuem certo domínio da fala, seus rabiscos iniciais, agora
denominados desenhos, são a princípio, feitos de memória, ou seja, elas desenham o que
sabem que existe. Esses desenhos são chamados de “raios-x”: ao desenhar um homem com a
mão no bolso, desenha também a mão, como se o bolso da calça fosse transparente.
Segundo Vigotski (2008, p.136), “há um momento crítico na passagem dos simples
rabiscos para o uso de grafias como sinais que representam ou significam algo”. Nesta fase
inicial, o desenho ainda é uma representação de primeira ordem, na qual as crianças ainda não
representam palavras, mas objetos, e se relacionam como se realmente o fossem. Vigotski
(2000) exemplificou esta fase com o fato de que uma criança, ao ver o desenho de um homem
de costas, virou a folha para ver se o resto estava em seu verso. Para evoluir para a produção
de simbolismos de segunda ordem, “a criança precisa fazer uma descoberta básica – a de que
se pode desenhar, além das coisas, também a fala. Foi essa descoberta [...] que levou a
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humanidade ao brilhante método da escrita por letras e frases; a mesma descoberta conduz as
crianças à escrita literal” (VIGOTSKI, 2008, p. 140).
Luria também evidenciou a presença de desenhos como forma de escrita ao apresentar
os resultados de suas pesquisas dedicadas a revelar o caminho pelo qual a criança perpassa em
direção a leitura e escrita, antes de iniciar o processo de escolarização. Teve como objetivo
“[...] traçar o desenvolvimento dos primeiros sinais do aparecimento de uma relação funcional
das linhas e rabiscos na criança, o primeiro uso que ela faz de tais linhas, etc. para expressar
significados” (LURIA, 1988, p. 146).
Para tanto, elegeu como sujeitos de sua pesquisa crianças de quatro a seis anos de
idade que ainda não sabiam ler e escrever, uma criança de nove anos, escolarizada, com a
finalidade de comparar os procedimentos usados por ela e pelas crianças não escolarizadas,
uma criança com deficiência cognitiva que, pela hipótese de Luria (1988), por haver maior
lentidão em seu desenvolvimento, tornaria possível a observação de certas etapas, as quais se
fariam de maneira muito rápidas em crianças sem deficiência.
Luria (1988) propunha às crianças a tarefa de relembrar um número de sentenças –
acima de seis – que ultrapassava a capacidade de recordá-las. A partir do momento em que as
crianças se julgavam incapazes de realizar a tarefa proposta, eram lhes entregue lápis e papel,
para que pudessem “escrever” os conteúdos das sentenças e relembrá-los depois. Neste caso, a
escrita é concebida como uma forma de extensão da memória; nas palavras do referido autor:
como recurso mnemônico. Depois de a criança ter “escrito” as sentenças, era lhe solicitado
que lesse suas anotações a fim de relembrar os conteúdos preditos por Luria (1988).
Azenha (1997) estudou e organizou os estágios da aprendizagem da linguagem escrita
encontrados por Luria (1988) da seguinte maneira: escrita imitativa, escrita topográfica,
escrita pictográfica e escrita simbólica. Na escrita imitativa as crianças utilizavam o traço
gráfico apenas como um rabisco imitativo, como uma imitação da escrita cursiva utilizada
pelo adulto, reproduzida por linhas contínuas em forma de ziguezague. Segundo Luria (1988,
p. 150), nesta fase o “escrever está dissociado de seu objetivo imediato e as linhas são usadas
de forma puramente externa; a criança não tem a consciência de seu significado funcional
como signos auxiliares”. (LURIA, 1988, p. 150).
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Na fase correspondente à escrita topográfica, Luria (1988) observou que alguns


rabiscos eram utilizados como recursos mnemônicos, mesmo que não fossem diferenciados
entre si. Contudo, as diferenciações eram realizadas quando as crianças desenhavam suas
anotações em diferentes posições no papel. Óbvio que, com o passar dos dias, aqueles
rabiscos não serviriam mais como recursos mnemônicos. Entretanto, esta é a primeira forma
que contém vestígios da futura escrita.
Luria também verificou que algumas crianças anotavam as sentenças de maneira a
diferenciá-las ritmicamente: para sentenças curtas utilizavam traços curtos; para sentenças
longas faziam traços longos. Essas diferenciações foram possíveis quando associou-se ao
conteúdo das frases fatores como tamanho e quantidade, cuja forma de escrita foi chamada de
pictográfica - a primeira utilizada como forma de expressão. Apesar de esta diferenciação
rítmica não trazer à tona o conteúdo da frase propriamente dito, Luria (1988) considerou que
quando a criança se utiliza de uma marca para representar o objeto, ela está próxima da escrita
simbólica.
Segundo o referido autor, “Um grau considerável de desenvolvimento intelectual e de
abstração é necessário para que a criança seja capaz de retratar todo um grupo por uma ou
duas características. Uma criança capaz de agir assim já está no limite da escrita simbólica”
(LURIA, 1988, p. 179). Porém, ele salienta que uma criança, mesmo desenhando bem, pode
não relacionar-se com o seu desenho como um recurso auxiliar a memória, tornando-o apenas
um brinquedo.
Em alguns casos observados por Luria (1988 p. 183), as crianças se utilizavam de
letras isoladas sem que reconhecessem as suas finalidades para registrar as sentenças. Ao
solicitar que algumas crianças, que já tinham iniciado o processo de escolarização, anotassem
sentenças sem o uso das letras, Luria (1988) constatou que elas não regrediram à fase
pictórica, permanecendo em um nível de escrita chamado de simbólica. Para o autor “A
aquisição da escrita requer a aprendizagem dos mecanismos da escrita simbólica
culturalmente elaborada e o uso de expedientes simbólicos para exemplificar e apressar o ato
de recordação” (LURIA, 1988, p. 188). Porém, antes de a criança ter apreendido esses
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mecanismos, já realizou diversas tentativas de registro, perpassando por vários estágios os


quais constituem a pré-história da sua escrita.
Neste sentido, uma das mais importantes orientações metodológicas deixadas pela
Teoria Histórico-Cultural em relação ao processo de apropriação da linguagem escrita é a de
que “O desenvolvimento da linguagem escrita nas crianças se dá pelo deslocamento do
desenho de coisas para o desenho de palavras. [...] Na verdade, o segredo do ensino da
linguagem escrita é preparar e organizar adequadamente essa transição natural” (VIGOTSKI,
1988, p. 141).
Portanto, é imprescindível compreender que o desenho infantil deve ocupar um lugar
de destaque no processo de ensino e aprendizagem da escrita e que, por ser considerado uma
linguagem peculiar, deve-se, de forma sistematizada e intencional, a ele recorrer em práticas
pedagógicas que visam o processo de alfabetização. Foi a partir desse entendimento que
desenvolvemos a parte empírica da pesquisa relatada nesse artigo, como a seguir
explicaremos.

A atividade de desenhar em práticas pedagógicas alfabetizadoras


A parte empírica deste estudo constituiu-se de observações e descrições minuciosas de
práticas pedagógicas desenvolvidas em salas de aula, focando as ações que envolviam o ato
de desenhar para representar algo e que, especificamente, estabeleciam relação entre o
desenho e a escrita. Com o objetivo de verificar se havia na prática pedagógica a intenção de
relacionar as atividades de desenho com a aprendizagem da escrita, foram analisadas
atividades de desenhos propostas às crianças matriculadas no terceiro nível da educação
infantil, com idade entre 4 e 5 anos.
Notamos que, durante as observações feitas em sala de aula, foram realizadas várias
atividades que envolviam o desenho. Muitas delas faziam relação com a escrita e, portanto,
eram ferramentas de qualidade para a promoção do processo de alfabetização.
Contudo, verificamos diferenças entre as turmas observadas. Sabe-se que uma turma é
diferente da outra por ter crianças em níveis de desenvolvimento desiguais e por estarem
expostas a práticas pedagógicas distintas. Assim sendo, foi possível observar algumas
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situações nas quais as práticas que envolviam o ato de desenhar, apesar de apresentarem
relação com a linguagem escrita, não tinham intencionalidade explícita, ou seja, aconteciam,
por vezes, de maneira fortuita, sem sistematização, condições necessárias para a
aprendizagem, como declarou Vigotski (2008), ao dizer que o segredo do ensino está em sua
preparação, organização, e sistematização.
Lembrando que não foram encontradas atividades de desenho em todas as
observações, portanto, serão apresentadas a seguir, acompanhadas de uma breve análise, três
das práticas pedagógicas observadas, de um total de sete, divididas em duas categorias: a)
estabelecem relação com a escrita; b) não estabelecem relação com a escrita.

Atividades de desenho que estabelecem relação com a escrita


A professora expôs para a turma um texto impresso, com letras grandes e em caixa
alta, colado no centro de uma cartolina. O texto lido pela professora falava sobre a festa
junina. A professora fez a leitura do texto, juntamente com as crianças, lendo pausadamente
cada linha, acompanhando palavra por palavra com uma régua, e perguntando os significados
de algumas palavras, como exemplo: “O que é algazarra?”
Durante a leitura a professora perguntava às crianças quais palavras era possível
representar por meio de desenhos e as circulava com diferentes cores de canetinhas.
Exemplificando: “BANDEIRINHAS. Dá para desenhar esta palavra?” Enquanto as crianças
diziam que sim, a professora circulava a palavra e comentava que havia vários tipos de
bandeirinhas, fazia desenhos no quadro de diferentes modelos, facilitando a compreensão do
conceito.
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Cartaz com o texto sobre Festa Junina. Fotografado em 04/07/2011.

Ao final, a professora colocou a cartolina em uma das mesas das crianças e pediu-lhes
que, em pequenos grupos, desenhassem ao redor do texto, as palavras circuladas durante a
leitura. A professora nesta situação didática explicitou a relação entre o ato de escrever e a
atividade de desenhar, sendo que as crianças percebiam que elas podiam escrever o que
haviam desenhado ou desenhar o que estava escrito. Contudo, há de se esclarecer que mesmo
os adjetivos, verbos, preposições, enfim palavras que não são substantivos, apesar de serem
mais difíceis de desenhá-las, podem ser representadas pela escrita.
Em uma outra situação, a professora entrou na sala com uma mala, dizendo tratar-se
de uma mala mágica. De dentro dela retirou um fantoche e começou contar a história “A
família do Marcelo”, de autoria de Ruth Rocha. Durante a história a professora explica
algumas relações de parentesco – tios, primos, avós, pais, irmãos – e também comenta sobre
os diferentes tipos de família existentes na atualidade.
Após, a professora escreveu no quadro o título da história, solicitando que as crianças
a ajudassem falando as letras necessárias e, de fato, elas a ajudaram. Embaixo do título a
professora escreveu os componentes da família do Marcelo, personagem principal da história,
pedindo que as crianças ajudassem-na novamente, dizendo as letras necessárias. Então a
professora distribuiu folhas de papel sulfite com a seguinte escrita: MINHA FAMÍLIA. Em
seguida, solicitou que as crianças desenhassem suas próprias famílias.
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Uma criança, após desenhar os membros de sua família, com o auxílio da professora,
escreveu PAI e MÃE ao lado do desenho de seus pais, não demonstrando dificuldades para
realizar tal atividade. Ao final, essa mesma criança copiou o título da história contada que
estava registrado no quadro.

Desenho “Minha Família”. Xerocopiado no dia 30/06/2011.

Pode-se notar, nesta atividade, a relação que as crianças fizeram com os seus próprios
desenhos e com o que estava escrito no quadro. Mesmo sem saber ler, as crianças prestavam
atenção na fala da professora, e escreviam ao lado dos seus desenhos as palavras
correspondentes a eles.

Atividade de desenho que não estabelece relação com a escrita


“Vamos desenhar a festa de São João” foi o título da atividade ora relatada. A
professora comentou em sala sobre quais itens deveriam haver em uma festa junina – pipoca,
quentão, bandeirinhas, fogueira, etc. – e depois pediu, apenas, que as crianças desenhassem a
festa de São João com tais itens.
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Desenho “Vamos desenhar a festa de São João”. Xerocopiado no dia 21/06/2011.

Essa seria uma oportunidade de explorar, juntamente com as crianças, a relação


existente entre os objetos juninos que enfeitavam a escola, a oralidade, como forma de
primeira representação e depois, em sala, o ato de desenhar e as possíveis associações entre o
que as crianças viram, ouviram e poderiam ter escrito. Portanto, neste caso, não houve, por
parte da professora, uma intenção de organizar sua atividade de desenho a fim de evidenciar
sua relação com a escrita. Dessa forma, o desenho constituiu-se somente em uma atividade de
entretenimento.

Discussão
No caso das duas turmas observadas, verificou-se que as crianças de ambas não
haviam compreendido a característica fonográfica da nossa língua, o que possibilitou observar
o processo inicial de aprendizagem da escrita, evidente nos desenhos que se misturavam com
algumas tentativas de escrita. Contudo, entende-se que para observar a origem desse processo
seria necessária uma nova pesquisa que objetivasse compreender a gênese da escrita,
conforme propuseram Vigotski (2008) e Luria (1988). Entretanto, os dados dessa pesquisa,
ainda que singelos, possibilitaram verificar como a prática pedagógica intencional e
organizada favorece a compreensão de que a linguagem escrita é uma representação complexa
que tem a linguagem oral como elo entre o objeto que se quer representar e a escrita
propriamente dita. As atividades de desenho, portanto, não se constituem em ações
Anais V CIPSI - Congresso Internacional de Psicologia
Psicologia: de onde viemos, para onde vamos?
Universidade Estadual de Maringá ISSN 1679-558X
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pedagógicas isoladas. Pelo contrário, elas correspondem à forma como as práticas


alfabetizadoras e letradoras são encaminhadas no cotidiano escolar.
Verificamos que a questão da estética foi observada em todas as atividades que
envolviam o desenho, pois, muitas vezes, as professoras eram solicitadas pela coordenação
pedagógica a elaborar cartazes e atividades que tivessem visibilidade no centro de educação
infantil, quando da visitação dos pais. Isso fez com que a preocupação com contornos bem
delimitados, margens bem feitas, estivesse presente nas práticas realizadas. Reconhecemos
que tal cuidado seja necessário e se constitui parte de toda ação educativa. Contudo, por
vezes, o que se observa é que tal preocupação se transforma no cerne da prática realizada,
desfocando o objetivo para o qual foi pensada.
Os dados desta pesquisa comprovam que a mediação pedagógica é condição
imprescindível ao trabalho docente, em especial na atuação de professores que trabalham em
centros de educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental, responsáveis por
alfabetizar e letrar as crianças. Para tanto, faz-se necessário que o professor dote sua prática
pedagógica de intencionalidade e sistematicidade, pois desta forma ampliará e qualificará o
que foi iniciado pelas crianças, mediando sempre que necessário, a fim de garantir que elas se
apropriem das máximas capacidades humanas dadas naquele momento da história e se
desenvolvam qualitativamente como indivíduo, no tocante às suas funções psicológicas
superiores. Isto porque tais processos dizem respeito ao domínio de habilidades que não
podem ser naturalmente adquiridas, pois, ao tratar de conteúdos complexos e resultantes de
convenções socialmente estabelecidas, torna-se indispensável a ação de um mediador
competente, principal papel do professor alfabetizador.

Referências
Azenha, Maria da Graça. (1997). Imagens e letras: Ferreiro e Luria – duas teorias
psicogenéticas. São Paulo: Ática.
Lucas, M. A. O. F; Custódio, T; Vidotti, T. T. (2010). As contribuições do desenho
infantil para os processos de alfabetização e letramento. Projeto de Iniciação Científica,
Centro de Ciências Humanas Letras e Artes, Universidade Estadual de Maringá.
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Luria, A. R. (1988) O desenvolvimento da escrita na criança. In: Vigotski, L.S.,


Luria, A. R. Leontiev, A. N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. p. (143-189) São
Paulo, Ícone.
Soares, Magda. Alfabetização: a ressignificação do conceito. (2003). In:
Alfabetização e Cidadania, nº 16, p 9-17, jul.
_______. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. (2004) Revista Brasileira de
Educação. São Paulo, n. 25, p. 5-17, jan./abr.
_______. (1998) Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte,
CEALE/Autêntica.
Triviños, Augusto Nibaldo Silva. (1987). Introdução a pesquisa em ciências sociais:
a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas,
Vigotski, Lev Semenovich. (2008). A pré-história da linguagem escrita. In: A
formação social da mente. (p. 125-141). São Paulo: Martins Fontes.

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