Para A História Do Português Brasileiro - Volume 5

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PARA A HISTÓRIA DO

PORTUGUÊS BRASILEIRO
___________________________

Volume V: ESTUDOS SOBRE MUDANÇA LINGÜÍSTICA E


HISTÓRIA SOCIAL
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
Reitor: Ronaldo Tadêu Pena
Vice-Reitora: Profa. Dra. Heloísa Starling

FACULDADE DE LETRAS
Diretor: Prof. Dr. Jacyntho José Lins Brandão
Vice-Diretor: Prof. Dr. Wander Emediato de Souza

Comissão Editorial Compras

Câmara de Pesquisa Faculdade de Letras - UFMG


Faculdade de Letras – UFMG Av.Antônio Carlos, 6627.
Av. Antônio Carlos, 6627. 31270-901 Belo Horizonte
31270-901 Belo Horizonte MG- Brasil MG -Brasil
Fone: 55(31)3409-5123
[email protected]
Jânia M. Ramos e Mônica A. Alkmim
(Organizadoras)

PARA A HISTÓRIA DO
PORTUGUÊS BRASILEIRO
___________________________

Volume V: ESTUDOS SOBRE MUDANÇA LINGÜÍSTICA E


HISTÓRIA SOCIAL

Editora FALE/UFMG

Belo Horizonte
2007
Ficha catalográfica elaborada pelas Bibliotecárias da Biblioteca FALE/UFMG

Para a história do português brasileiro / Jânia M. Ramos e Mônica A.


P221 Alkmim (organizadoras.) – Belo Horizonte : Faculdade de Letras
da UFMG, 2007.
v.

Vários autores.

Inclui bibliografia.

. Conteúdo: v. 1. Primeiras idéias – v. 2. t. 1 – t. 2 Primeiros


estudos – v. 3. Novos estudos – v. 4. Notícias de corpora e outros
estudos – v. 5. Estudos sobre mudança lingüística e história social –
v. 6. Novos dados, novas análises.

ISBN: 978-85-7758-034-7

1. Língua portuguesa – Brasil – História. 2. Língua portuguesa –


Português escrito – Brasil. 3. Língua portuguesa – Aspectos sociais –
Brasil. 4. Gramática gerativa. 5. Funcionalismo (Lingüística). 6. Língua
portuguesa – Gramática. 7. Mudanças lingüísticas. 8. História social.
9. Lingüística histórica. I. Ramos, Jânia Martins. II. Alkmim, Mônica A.

CDD :
469.798

Editor Responsável
Profa. Dra. Jânia M. Ramos

Projeto de Capa
Editora Humanitas/USP
SUMÁRIO

Apresentação......................................................................................................6

Estudos de Mudança Lingüística

Existe um ciclo de gramaticalização do artigo na România?


Johannes Kabatek ........................................................................................11

Análise multissistêmica das preposições do eixo transversal no


português brasileiro: espaço /anterior/ ~ /posterior/
Ataliba T. de Castilho ................................................................................34

Considerações acerca de mudanças semânticas da preposição “até” no


português do século XIX
Mário Eduardo Viaro....................................................................................78

Gramaticalização da preposição “com” no português brasileiro do


século XIX
Nanci Romero................................................................................................90

A gramaticalização da preposição “entre” no português brasileiro do


século XIX
Verena Kewitz................................................................................................98

Gramaticalização da preposição “de”, introdutora do segundo


elemento do par correlativo comparativo
Marcelo Módolo...........................................................................................106
Complementos verbais introduzidos pela preposição ‘a’
Marilza de Oliveira......................................................................................115

Advérbios qualitativos e modalizadores em –mente: do português


arcaico ao português do século XIX
Mário Eduardo Martelotta e Afrânio Gonçalves Barbosa... ................136

Para o estudo do artigo definido antes de pronome possessivo no


português brasileiro: algumas observações
Ane Schei.....................................................................................................153

O objeto nulo nas cartas de leitores publicadas na imprensa brasileira


do século XIX
Sonia Maria Lazzarini Cyrino....................................................................163

Algumas diretrizes para uma abordagem formal da gramaticalização


Lorenzo Vitral e Jânia Ramos ..................................................................183

Notícias sobre o tratamento em cartas escritas no Brasil dos séculos


XVIII e XIX
Célia Regina dos Santos Lopes e Maria Eugênia Lamoglia Duarte....190

Estudos de História Social

Por uma história social do português no Brasil


Renato Pinto Venâncio................................................................................205

Panorama preliminar da história do letramento de negros na Bahia


Rosa Virgínia Mattos e Silva, Klebson Oliveira e Tânia Lobo.............214

Elementos para uma sócio- história do semi- árido baiano (Zenaide


de Oliveira Novais Carneiro e Norma Lúcia F. Almeida)......... ............241

Aspectos da História Demográfica e social do Rio de Janeiro (Dinah Callou


e Carolina Serra).............................................................................................253
Os escravos e a língua: em busca de bases históricas para uma
Reflexão
Tânia Alkmim................................................................................................263

Escravos em anúncios de jornais brasileiros do século XIX: Discurso e ideologia


Helena Nagamine Brandão.........................................................................274
Marcas de interação na correspondência publicada em jornais
Maria Lúcia da Cunha Victório de Oliveira Andrade.............................285

O gênero notícia no Brasil: notas para uma história


Marlos de Barros Pessoa.... ........................................................................323

Registros rurais de tupinismos no Atlas Lingüístico do Paraná e sua


relação com a história social paranaense
Vanderci de Andrade Aguilera, Lídia Albino e Celciane Alves
Vasconcelos..................................................................................................340
Apresentação

Este volume compõe-se de textos apresentados durante o V Seminário


Para a História do Português Brasileiro, que teve lugar em Ouro Preto, no
período de 14 a 17 de outubro de 2002. Tal como os seminários anteriores,
reuniram-se neste evento pesquisadores brasileiros e alemães. A participação
dos pesquisadores estrangeiros foi possível graças ao Convênio
CAPES/DAAD/PROBRAL.

Os capítulos estão distribuídos em duas seções. A primeira trata de


análise lingüística. Inicialmente Johannes Kabatek discute a evolução histórica
que tem apontado para a obrigatoriedade do uso do artigo nas línguas
românicas. Apresenta um ciclo e discute o estatuto do português brasileiro em
relação às fases propostas. Por fim, analisa as implicações dos resultados
obtidos à luz do que se entende por gramaticalização. Os seis capítulos
seguintes mantêm o tema da gramaticalização, focalizando preposições. Ataliba
Castilho apresenta uma análise multissistêmica das preposições, em que busca
demonstrar que os parâmetros de posição, deslocamento e distância no espaço
são capazes de dar conta das diferenças semânticas e sintáticas já apontadas em
estudos anteriores. Sua contribuição representa uma alternativa tanto para as
análises que sustentam serem algumas preposições vazias de significado quanto
para aquelas que sustentam terem as preposições múltiplos significados. No
capítulo seguinte, Mário Viaro trata da gramaticalização do item ‘até’,
identificando-o como preposição. Apresenta sua etimologia, identifica
contextos de uso e documenta uma trajetória diacrônica desse item. No quarto
capítulo, Nanci Romero descreve o percurso diacrônico da preposição ‘com’.
Documenta certa estabilidade de uso no século XIX e indica estar havendo sua
substituição por outros itens no século XX. Dando prosseguimento ao tema,
Verena Kewitz toma como objeto a preposição ‘entre’. Apresenta informações
de natureza etimológica, identifica propriedades textuais e semânticas desse
item, e ainda contextos em que seu uso é preferencial. Marcelo Módulo, por sua
vez, toma como objeto a preposição ‘de’ em estruturas correlativas do tipo
‘menos do que’, argumentando que essa preposição teria inicialmente assumido
as funções do ablativo latino de separação e, posteriormente, teria se contraído
com o pronome demonstrativo neutro o. No capítulo seguinte Marilza de
Oliveira identifica dois processos de mudança em complementos verbais
introduzidos pela preposição ‘a’: (i) substituição lexical por para e em, e (ii)
apagamento, sendo esse último interpretado como uma etapa do processo de
gramaticalização.

Ainda sob o enfoque da gramaticalização, são tomados como objeto de


estudo os advérbios terminados em –mente, os artigos e os pronomes. Mário
Martelotta e Afrânio Barbosa analisam advérbios qualitativos em terminados
em –mente. Concluem que se trata de um fenômeno de gramaticalização e
explicitam sua trajetória, e sugerem novos desdobramentos dessa pesquisa.
Anne Schei, por sua vez, investiga o uso variável de artigo antes de pronome
possessivo em textos brasileiros e portugueses do século XIX. Seus resultados
mostram maior freqüência de uso do artigo, nesse contexto, em textos
portugueses. No capítulo seguinte, Célia Lopes e Maria Eugênia Duarte
apresentam uma análise sociolinguística das formas de tratamento encontradas
em cartas não oficiais escritas no Brasil nos séculos XVIII e XIX, com o
propósito de identificar fatores que aceleraram o processo de gramaticalização
cujo resultado foi a formação do item “você”. Identificam os fatores (i) grau de
intimidade e (ii) restrições sintáticas relativas à ordem dos constituintes. Ainda
sobre pronomes, Sônia Cyirino apresenta uma análise quantitativa e qualitativa
de objetos nulos em cartas de leitores publicadas em jornais do século XIX no
Brasil. Discute questões relativas ao estatuto teórico do fenômeno,
argumentando a favor de que se trata de elipse de sintagma nominal. Por fim,
Ramos e Vitral, com base em estudos prévios sobre os novos clíticos no
português brasileiro, discutem a suposição de Lehmann, C. (1982) Thoughts on
Grammaticalization: A Programmatic Sketch,Volume 1. Arbeiten des Kölner
Universalien-Projekts 48. Universität Köln, Köln, de que haveria concomitância
entre os processos de esvaziamento semântico e perda de substância fônica no
processo de gramaticalização.

A segunda seção deste volume compõe-se de nove capítulos sobre


história social da língua portuguesa no Brasil. Abre esta seção o texto de Renato
Venâncio, em que se discutem, com base em dados demográficos, a
intensidade e a importância das correntes migratórias no cenário lingüístico da
América Portuguesa. No capítulo a seguir, Rosa Virgínia Mattos e Silva, Tânia
Lobo e Klebson Oliveira identificam fontes documentais escritas por africanos
e negros brasileiros forros na Bahia no século XIX. Seu propósito é explicitar
os caminhos trilhados por negros integrantes de grupos sociais subalternos,
através de espaços extra-institucionais, em seu processo de alfabetização. Ainda
sobre a Bahia, é-nos oferecido por Zenaide Carneiro e Norma Almeida um
novo capítulo no qual é apresentada uma descrição do semi-árido baiano,
focalizando o perfil demográfico. Com base na documentação sobre núcleos
quilombolas, concluem não ter havido condições para o desenvolvimento de
algum tipo de crioulo na região. É com base na história demográfica e social do
Rio de Janeiro que vai se desenrolar o próximo capítulo. Dinah Callou e
Carolina Serra buscam correlacionar índices de escolarização e normatização
lingüística, chamando a atenção para o fato de que a constituição de uma norma
nacional ocorreu, no século XIX, rejeitando-se o modo de falar da maior parte
da população.

É exatamente a realidade lingüística de uma parte da população — os


escravos — o tema do capítulo seguinte. Nele Tânia Alkmim investiga registros
de fala de negros, mostrando serem esses brevíssimos na historiografia sobre
escravidão. Para a autora, essa lacuna é surpreendente, tendo em vista a
significativa presença dos escravos no cenário econômico da América
portuguesa nos séculos XVII a XIX. Helena Brandão, por sua vez, busca
depreender aspectos sociais, políticos e ideológicos das relações cotidianas
estabelecidas com escravos, a partir do modo como essas relações são
representadas em textos de anúncios publicados em jornais brasileiros (1828-
1880). Os jornais paulistas do século XIX são a fonte usada por Maria Lúcia
Andrade, que focaliza a interação social, a partir de marcas lingüísticas
encontradas em cartas, publicadas numa seção que poderia ser descrita como
consultório de reclamações, pedidos ou mesmo de contato com parentes ou
amigos. Elementos característicos de interatividade direta foram ali
identificados.

O capítulo seguinte trata da história da imprensa no Brasil. Marlos de


Barros Pessoa busca recompor o processo de construção do que hoje se
reconhece como notícia. Sua proposta toma como parâmetros o conteúdo, a
técnica e a forma desse tipo de texto.

Finalizando esta coletânea, Vanderci Aguilera, Lídia Albino e Celciane


Vasconcelos buscam demonstrar a concentração e expansão de alguns itens
lexicais de base tupi registrados nas cartas lexicais do Atlas Lingüístico do
Paraná, referentes ao espaço do Paraná tradicional, ou seja, o que abrange a
região colonizada entre os séculos XVII a XIX.
Em resumo, o presente volume constitui uma significativa amostra do
trabalho que vem sendo produzido por uma equipe de especialistas em história
da língua portuguesa, ao longo dos últimos dez anos.

As Organizadoras
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Existe um ciclo de gramaticalização do artigo


na România?
por
Johannes Kabatek
Universität Türbingen, Alemanha

1. O estudo da gramaticalização tornou-se, nos últimos


tempos, uma das principais áreas da lingüística histórica e,
sobretudo, da lingüística cognitiva, sendo as línguas românicas
utilizadas com freqüência como fonte de exemplos ilustrativos. De
fato, a evolução das línguas românicas apresenta alguns casos
“típicos” de gramaticalização, principalmente quando se
comparam o francês moderno e o latim e em casos como o
surgimento das perífrases verbais temporais, das partículas de
negação ou dos advérbios terminados em -mente. Nesse contexto,
o termo gramaticalização (em inglês, grammaticalisation ou
grammaticization, cf. Hopper; Traugott, 1993, xvi) é usado de
maneira não-uniforme, ou melhor, com diferentes restrições.
Tradicionalmente, utiliza-se esse termo, em analogia à
lexicalização, para todos os processos nos quais um elemento
qualquer se integra ao sistema gramatical de uma língua. Em
estudos mais recentes, ele aparece de forma menos abrangente:
primeiro, com referência a Antoine Meillet,1 especificamente no
que diz respeito a processos de transformação, nos quais
elementos do léxico se tornam elementos da gramática (por
exemplo, lat. mens como doador do sufixo adverbial -mente);
segundo, com referência a Jerzy Kuryłowicz, como um processo
no qual ou elementos do léxico se transformam em elementos da

1
Meillet é considerado nas pesquisas atuais como o “descobridor” da
noção de gramaticalização. No século XIX, entretanto, a idéia de que a
gramática retira seus elementos do léxico já era difundida (e, dessa forma,
também evidente para Meillet) e pode ser encontrada já no século XVIII
em John Horne Tooke (1786).

13
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

gramática, ou elementos da gramática se tornam “mais


gramaticais” ainda.2

Essa última definição implica uma graduação do termo


gramática, o que alcançou consenso nos últimos anos, quando, em
algumas escolas lingüísticas, uma das mudanças fundamentais de
paradigma consistia em substituir o pensamento em categorias
discretas pela noção de continuum. Pode-se considerar ainda como
uma restrição adicional nos estudos da gramaticalização a
predominância do ponto de vista “cognitivo”, a partir do qual os
processos de gramaticalização observados em diferentes línguas
do mundo têm a sua razão de ser em princípios cognitivos
básicos, como o fato de que categorias gramaticais mais abstratas
são freqüentemente substituídas por elementos concretos (por
exemplo, temporalidade por espacialidade), já que o pensamento
humano busca a reificação do abstrato. Além dessas restrições,
desenvolveram-se nas pesquisas de gramaticalização determinados
princípios básicos, aceitos em geral, pelo menos como tendências
predominantes. Entre esses podem-se citar o princípio da
unidirecionalidade e o da irreversibilidade de processos de
gramaticalização,3 ou o princípio da ciclicidade, como já defendido
em diferentes pontos na teoria da mudança lingüística.4

2. Um caso bem específico, mas mencionado na maioria das


obras de referência sobre gramaticalização, é o chamado ciclo do

2 “Gramaticalização consiste no aumento do domínio de um morfema,


avançando de um status lexical para um status gramatical, ou de um
menos gramatical para um mais gramatical, por exemplo, de um
formante derivacional a um flexional.” (Kuryłowicz, 1965: 69; cf.
também Heine, Claudi e Hünnemeyer, 1991: 2; e Hopper e Traugott,
1993, XV). Para noções introdutórias sobre gramaticalização ver, entre
outros, Lehmann (1982, 1985); Hopper e Traugott (1993); Bybee,
Perkins e Pagliuca (1996).
3 Cf., por exemplo, Haspelmath (1999).
4 Já abordado por Georg von der Gabelentz ou Otto Jespersen; na

literatura atual em Helmut Lüdtke (1980); cf. também, em relação ao


artigo, Givón (1978).

14
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

artigo, como apresentado principalmente por Joseph Greenberg


em diversos trabalhos (1978; 1991). Esses trabalhos, citados
posteriormente na discussão sobre gramaticalização em geral,
serviram de estímulo para uma série de outros estudos sobre o
tema — também no que diz respeito às línguas românicas.
Greenberg estabelece, principalmente através da análise de
diversas línguas da família Níger-Congo, uma escala de evolução
dos denominados “marcadores de gênero” (gender markers),5 a
qual é constituída de quatro níveis. No nível 0 estão os
demonstrativos, considerados “a origem mais comum do artigo
definido” (1978, 61).6 O “passo” do nível 0 para o nível I é aquele
a partir do qual um demonstrativo, depois da redução de sua força
dêitica — o que pode ser explicado, entre outros fatores, através
do uso anafórico7 —, torna-se um identificador geral, também

5 Greenberg (1978: 49 et seq.) divide as línguas com diferentes sistemas de


classificação nominal naquelas com sistemas de gênero, classificadores de
número e classificadores de possessivo.
6 Há um grande número de línguas sobre as quais se pode comprovar

que os artigos se transformaram em demonstrativos. Cf. Heine; Kuteva


(2001: 109 et seq.).
7 Cf., por exemplo, Wackernagel (1924: 130 et seq.). Em relação ao
romeno, os usos do demonstrativo, como em omul cel bun, os quais
conduzem à utilização de um “falso artigo” (cf. Greenberg, 1978: 76 et
seq.; Gamillscheg, 1936; Lerch, 1940), são considerados causadores da
perda da força dêitica do demonstrativo, o que dá ensejo à criação de
processos mais expressivos para a demonstração. Sobre a história do
surgimento do artigo nas línguas românicas há uma vasta literatura (cf.
em Schmitt, 1987 e Selig, 1992 uma visão panorâmica deste tema).
Segundo Himmelmann (1997: 96), não se pode explicar a
gramaticalização como “uma perda progressiva da força dêitica” do
demonstrativo latino; esta deveria ser explicada como “uma rede de
possíveis pontos de transição entre contextos de uso pragmatica e
semanticamente definidos e entre diferentes contextos de uso
semanticamente definidos”. Ele aponta que os contextos anafóricos
podem explicar somente em parte o surgimento do artigo e acentua
principalmente o significado da “dêixis anamnésica” (o termo é
proveniente de Bühler, 1934: 309; cf. também “Intermediate techniques”
em Auer, 1984). Uma vez que se trata aqui sobretudo da evolução do

15
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

para aqueles elementos conhecidos através do contexto ou devido


ao seu caráter universal (por exemplo “o sol”). No nível II,
amplia-se o emprego do artigo definido a praticamente todos os
substantivos; o uso do artigo torna-se cada vez mais redundante,
apesar de existirem casos típicos de exceções: sobretudo nomes
próprios, predicados nominais e objetos negados. Greenberg
chega à conclusão de que essas “exceções” surgem tipicamente em
dois pólos contrários de uma escala de determinação. De um lado,
na posição em que um nome já está inerentemente determinado
— como os nomes próprios —, de outro, em casos de uso
genérico. No nível III, por fim, a utilização do artigo é ampliada a
todos os substantivos. Nesse nível, não há mais oposição de
elementos com ou sem artigo. Dessa forma, ele perde totalmente
sua função inicial e transforma-se em pura marca nominal. Nos
casos em que o artigo possuía anteriormente funções secundárias,
como a de marcar gênero ou número, essas tornam-se a função
principal, juntamente com a de marca nominal, a qual também
pode ser utilizada para a substantivação de verbos.8

Nível 0 Nível I Nível II Nível III


Demonstrativo  Artigo  Artigo  Marca
definido não- nominal
genérico
por exemplo> > lat. arc./fr. > fr. Le > fr. le ??
lat. ILLE arc.
ILLE/le

Em relação à idéia de uma evolução cíclica do processo de


gramaticalização, deve-se dizer que podem surgir novos
demonstrativos nos níveis que se seguem ao nível I, os quais, por
sua vez, são candidatos para esse processo.

artigo nas línguas românicas, não será aprofundado neste trabalho seu
surgimento.
8 Cf. também Lehmann (1982: 57).

16
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Há, assim, uma correlação entre a evolução do ciclo e a


redução, cada vez mais marcante, da possibilidade de se utilizar
substantivos sem artigo. No nível I existe ainda uma oposição real
entre o uso com ou sem artigo, a qual se torna quase insignificante
no nível II e desaparece totalmente no III.

Quais são, atualmente, as possibilidades de utilização de


substantivos sem artigo nas línguas românicas e em que posição
da escala de Greenberg os artigos dessas línguas devem ser,
conseqüentemente, inseridos são as principais questões com as
quais me ocuparei neste trabalho. A análise ficará restrita a
algumas considerações importantes sobre o francês e os idiomas
ibero-românicos — neste caso, o espanhol, o português europeu e
o português brasileiro.9 Observando-se as línguas românicas,
pode-se constatar que o francês é o que corresponde de forma
mais evidente à escala de Greenberg, ocupando nessa a posição
mais avançada. A análise a seguir será, portanto, iniciada com essa
língua.

3. Um ano antes da publicação do ensaio de Greenberg,


Martin Harris (1977) já havia proposto, para o francês, um ciclo
de gramaticalização do artigo. Baseando-se no conhecido fato de
que o desaparecimento das desinências verbais e nominais no
francês do final da época medieval tenha feito com que gênero e
número não fossem mais expressos no próprio substantivo, mas
sim, com poucas exceções, através de artigos ou demonstrativos,
Harris defendeu a hipótese de que le se havia transformado, em
francês, em um prefixo de gênero e número. Ao mesmo tempo,
segundo ele, o sistema havia sido restabelecido com o

9 No que diz respeito ao idioma italiano, pode-se observar que, por um

lado, ele apresenta uma certa semelhança com o espanhol, por outro,
possui tendências que o aproximam do francês, devido à existência de
um artigo partitivo, que tem o uso fixado, em parte, pela norma (mas
também não-uniforme nas diversas variedades). Em romeno podem-se
constatar, em um sistema semelhante (apesar da diferença superficial da
ênclise do artigo), alguns empregos divergentes daqueles das demais
línguas românicas (principalmente em relação às preposições).

17
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

deslocamento de ce na função de artigo, conforme o seguinte


esquema (Harris, 1977: 256):

Prefixo de
gênero e Artigo Demonstrativo
número
lat. cl. - - HIC - ISTE - ILLE
lat. v. - ILLE ECCE ISTE - ECCE
ILLE
fr. arc. - le cest - cel
fr. mod. Le ce ce ... ci - ce ... lá

Apesar de as observações de Harris sobre a evolução do


demonstrativo latino estarem corretas — observações estas
certamente de conhecimento geral —, suas conclusões parecem
ser um pouco precipitadas. Primeiro, ce não possui no francês
moderno apenas uma função atualizadora, mas também
discriminadora;10 segundo, le não apresenta, de forma alguma,
exclusivamente a função marcadora de gênero e número.11

A evolução do artigo em francês foi também abordada em


diversos trabalhos por Richard Epstein, que tomou como
referência os estudos de Harris e Greenberg. Epstein criticou

10 Refiro-me aqui à terminologia de Coseriu (1955-56).


11 Isso também foi observado por Lyons (2000: 232). Ele afirma que há
uma zona de interferência entre demonstrativos e artigos, preenchida nas
línguas que não possuem artigos, de uma forma bem nítida, pelos
demonstrativos. Em francês, deve-se apontar nessa região um acúmulo
do ce, o que não alterou, de maneira alguma, seu status no sistema. A esse
respeito, Lyons presume que mesmo se ce se transformasse em um
artigo, não implicaria que le deixaria de ser um artigo, mas sim que isso
poderia levar à existência paralela de dois artigos. Cf. também
Himmelmann (1997: 94): “Um demonstrativo, mesmo quando utilizado
freqüentemente em contextos anafóricos ou anamnésticos, continua a
ser (...) um demonstrativo.”

18
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

nesses, contudo, a conclusão de que o artigo em francês moderno


se tenha transformado em uma simples marca de gênero e
número.12 O principal argumento é o de que substantivos com
artigo podem entrar em oposição com substantivos sem artigo e,
assim, os artigos não podem ser, de forma alguma, puras marcas
nominais com função determinadora de gênero e número:

A idéia de zero estar restrito a uma estrutura residual não é


exata. Ele entra em alternância significativa com os outros
artigos em uma grande variedade de contextos. (Epstein,
1995: 163)

Para Epstein, é necessário que se estabeleça, em primeiro


lugar, uma explicação discursivo-pragmática de determinados usos
(ou não-usos) do artigo. A crítica de Epstein é pertinente; deve-se
acrescentar, ainda, que os exemplos possíveis de substantivos sem
artigo no francês apresentam, quase sempre, alguma condição
especial. Em (1a) esta “condição especial” é a função atributiva;
em (1b) a utilização de sintagmas preposicionais e em (1c) o fato
de ser um nome próprio — os casos classificados por Greenberg
como típicos “resquícios” das línguas dos níveis I e II. Devem ser
acrescentados a esses, também, as freqüentes locutions verbales em
francês, casos de integração nominal no sintagma verbal, como
em (1d), nos quais não se trata, de fato, de substantivos sem
artigos, mas sim de substantivos em estruturas fixas com o
verbo.13

(1)

(a) Il est avocat.

12 “Apesar de essa teoria ser teoricamente plausível, ela permanece

inconsistente em quaisquer dados empíricos, uma vez que simplifica uma


situação bem mais complexa.” (Epstein, 1994: 76).
13 O que pode ser constatado, entre outras coisas, pelo fato de não ser
possível separar essas estruturas quando há topicalização: *C’est une faim
terrible que j’ai. Alguns desses verbos podem ser substituídos por outras
formas não-complexas, como avoir peur  craindre.

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Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(b) avec courage / avec un courage fou / avec le courage


que l’on sait / avec du courage, on arrive à tout (Pottier,
1962: 158)

(c) Pierre parle trop.

(d) avoir soif, avoir faim, avoir peur, perdre patience, rendre
justice etc.

(e) Sonia Iglésias, chercheuse au Musée des cultures


populaires... (Libération, 2. November, 1991.)

(f) Mais dès le Championnat terminé, je remettrai casque et


épaulières (L’Équipe, 22.10.1991) [apud Epstein, 1995.]

(g1) Livres, cahiers et stylos tombèrent. (Curat, 1999: 179)

(g2) Des livres, des cahiers et des stylos tombèrent.

(g3) Les livres, les cahiers et les stylos tombèrent.

Podemos caracterizar esses exemplos, assim, num sentido


amplo, como “exceções”. Os casos (1f) e (1g) podem ser,
também, explicados dessa forma: em construções coordenadas, os
elementos coordenados são considerados uma unidade cujos
elementos determinam de certo modo uns aos outros.14 Em
diversos dos casos, há ainda uma oposição, mesmo estando esta
restrita a uma “região periférica”.15

Existe ainda em francês mais um caso especial de


substantivos sem artigo: os fraseologismos, com em (2a) e (2b).

(2)

(a) Pierre qui roule n’amasse point mousse.

14 Cf. Raible (1972: 68 et seq.), com exemplos.


15 Curat (1999: 177 et seq.) apresenta uma lista com 42 dessas “exceções”.

20
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(b) Bière qui mousse n’a plus de goût.

(c) La/une pierre qui roule n’amasse pas de mousse.

(d) ?Vache qui rit ne mange pas de foin.

Os itens acima são, todavia, exemplos de estruturas


residuais de formas mais antigas da língua, ou seja, de arcaísmos,
os quais podem ser integrados, de certa forma, num texto em
francês moderno como “extra-estruturalismos” (Flydal, 1951),
como citações de uma “outra língua”.16 Essas estruturas infrigem a
regra já difundida desde Vaugelas segundo a qual uma oração
relativa não deve ser colocada depois de um substantivo sem
artigo.17 Tais fraseologismos são mantidos como símbolos
complexos e interpretados como uma unidade. Partindo-se do
atual sistema da língua, eles deveriam ser provavelmente formados
mais como em (2c). Uma nova forma como em (2d) seria ainda
imaginável, mas neste caso temos um aparente fraseologismo,
uma imitação de determinadas expressões cristalizadas comuns em
francês. Em relação aos fraseologismos pode existir na língua um
subsistema que obedece a regras próprias. Devido ao caráter
arcaico desses tipos de frases, no entanto, essas regras (ou pseudo-
regras imitativas, às vezes até mesmo hipercorretas) são
freqüentemente retiradas de um estágio mais antigo da língua.

Uma vez constatado que o francês moderno,


contrariamente ao francês arcaico, permite somente alguns casos
nos quais o substantivo pode aparecer sem o artigo, mas que
apresenta ainda casos isolados de oposição, cumprindo assim as
condições estabelecidas por Greenberg em (3), podemos
classificá-lo como uma língua avançada do nível II.

(3) Deve haver pelo menos uma construção na qual os


substantivos comuns apareçam em sua forma não-

16 Na gramática de Port Royal já são encontradas alusões sobre esses


“restos do velho estilo”. Cf. também Raible (1972: 69).
17 Cf. também Raible (1972: 66).

21
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

articulada, de maneira que todos os substantivos comuns


possuam duas formas contrastivas, uma com e outra sem
artigo. (Greenberg, 1978: 63)

4. Para o idioma espanhol, Amado Alonso defendeu, em


um artigo clássico — que ainda hoje possui uma certa atualidade
—, a idéia de orações como as do item (4) não serem de forma
alguma arcaísmos, mas sim modelos produtivos e vivos da língua
moderna:18

(4)

(a) Piedra que rueda no cría moho.

(b) Perro que ladra no muerde.

(c) Casa con dos puertas mala es de guardar.

Alonso tenta explicar a ausência ou presença do artigo na


língua espanhola de maneira homogênea.19 Nessa tentativa ele

18 Alonso aponta a existência de “orações muito abundantes já desde a

Idade Média, que não são arcaísmos ou supervivência literária, mas estão ainda
em plena vitalidade” (Alonso, 1961: 144, grifos meus).
19 “Sempre que a língua admite, portanto, a alternância da presença ou

ausência do artigo, ele destaca a referência lógica ao objeto real e também


a outros valores de caráter intelectual, como os formais. A ausência do
artigo, por sua vez, vem acompanhada de uma conotação emotiva ou da
vontade de ressaltar seus interesses em relação à organização racional da
expressão” (Alonso, 1961: 143). De maneira semelhante, Vossler (1929:
79 et seq.) comenta sobre o latim que a ausência do artigo seria
proveniente de uma maior imediaticidade de percepção: “Os latinos não
o (= o artigo) possuíam, mas também não precisavam dele. Eles tinham
as coisas, sobre as quais falavam, vivas e presentes em sua imaginação.”
Também Sekiguchi, que dedicou em sua monumental trilogia sobre o
artigo alemão um volume inteiro ao artigo nulo, argumenta de forma
parecida (cf. Sato, 1986).

22
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

mistura, porém, dois casos distintos. Enquanto casos como os dos


exemplos em (4) podem ser vistos, em analogia com o francês,
como resquícios de um estágio mais antigo da língua, há uma série
de construções nas quais o espanhol moderno, diferentemente do
francês, permite ou mesmo exige a ausência do artigo. Deve-se
acrescentar ainda que os casos do item (4) contrariam a condição
válida no espanhol moderno denominada por Margarita Suñer
“Naked-noun-constraint”:

(5) Um substantivo comum não modificado em posição


pré-verbal não pode ser o sujeito superficial de uma oração
com entonação e acento normais. (Suñer, 1982: 209)

É importante considerar aqui a condição de “entonação e


acento normais”. Com um acento marcado, os exemplos em (6)
são todos, de fato, possíveis no espanhol moderno, sendo que
essa restrição abrange também, de maneira considerável, objetos
em posição pré-verbal. Trata-se de construções focalizadas, nas
quais o objeto está deslocado para esquerda (6a-c) ou o sujeito
salientado (6d-e).

(6)

(a) Moça tan fermosa / non vi en la frontera / como una


vaquera / de la Finojosa. (Marqués de Santillana)

(b) Casa tan barata no la encuentras ya fácilmente. (apud


Alonso, 1961, p. 144.)

(c) Gente hay que no sabe lo que dice.

(d) Fotógrafos y cámaras de la televisión llegaban con la


obsesión puesta en los ojos y en los codos. (M. Vázquez
Montalban, apud Laca, 1999, p. 908.)

(e) Tipos como ese no suelen tener paciencia. (Eduardo


Mendoza. La verdad sobre el caso Savolta, p. 124, ibd.).

23
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Segundo Laca (1999: 908), sujeitos pré-verbais precisam


satisfazer, ainda, duas outras condições: eles devem estar no plural
e serem compostos ou por vários substantivos coordenados ou
por substantivos acompanhados por elementos dêiticos como así
/ como este / de este tipo / de esos / tales etc.

Que são necessárias aqui condições especiais de entonação


pode ser constatado quando comparamos a pronúncia de (6c), por
um falante nativo em (7a), com a pronúncia de La gente no sabe lo
que dice em (7b), em que o artigo é empregado. Podemos observar,
nas análises acústicas a seguir, que a freqüência fundamental do
primeiro segmento no exemplo (7b) é bem menor do que a da
oração sem o artigo, confirmando-se, assim, a idéia de Suñer.

(7) (a) Intensidade (gráfico superior) e freqüência


fundamental (gráfico inferior) de Gente hay que no sabe lo que dice.

24
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(b) Intensidade (gráfico superior) e freqüência fundamental


(gráfico inferior) de La gente no sabe lo que dice.

Apesar de os exemplos analisados anteriormente serem


bastante comuns em espanhol, os casos mais freqüentes de
substantivos sem artigos nesse idioma são aqueles que exprimem
genericidade parcial.20 O conceito de genericidade parcial remonta
a Paul Christophersen (1939), que em um trabalho sobre o inglês

20 Sigo nesse trecho, essencialmente, o trabalho de Laca (1999), um


excelente estudo, informativo e esclarecedor, sobre os possíves usos de
substantivos sem artigo no espanhol.

25
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

diferencia usos de genericidade total e usos de genericidade


parcial:21

(8) A espécie inteira em todos os lugares e em todos os


tempos (toto-generic sense): chumbo é mais pesado do que
ferro (...) [vs.] Uma quantidade indefinida da espécie (parti-
generic sense): iremos tomar chá em breve (...)
(Christophersen, 1939: 33)

Ao contrário do inglês (e, como veremos mais adiante, do


PB), a genericidade total em espanhol — como na maioria das
línguas românicas — é exprimida pelo uso do artigo definido (9a),
enquanto na genericidade parcial o artigo está ausente:

(9)

(a) A Juan le gusta el vino.

(b) ¿Quieres vino?

Dessa forma, temos como resultado uma relação entre


característica de contável, número e emprego do artigo. Uma vez
que para se exprimir uma parte do todo a genericidade parcial
somente pode existir em relação a substantivos contáveis no
plural, a oposição “artigo” (que expressa a idéia ou de um
referente definido ou genérico: los niños están en el patio / los niños
[todos] son inocentes) vs. “artigo nulo” (que expressa genericidade
parcial: hay niños en el patio) é válida somente para o plural. Para os
substantivos não-contáveis, que por suas próprias características
não possuem plural,22 a oposição ocorre somente no singular
(definido: la leche está en la mesa / genérico: la leche es sana /

21 Essa diferenciação corresponde, de forma considerável, a de Krifka et


al. (1995: 2 et seq.).
22 As formas do plural de substantivos não-contáveis são plurais nos

quais esses substantivos são considerados contáveis: “quatro leites” são


“quatro copos de leite” etc.

26
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

genericidade parcial: hay leche en la mesa). O esquema a seguir


resume essa relação para o uso do artigo:

Plural + subst. não-contáveis no singular:

Oposição subst. sem art. vs. art. + subst.

Sg. contável: sempre Art. + Subst.

Comparando-se o espanhol e o francês, pode-se observar


em (10) que, justamente para se expressar genericidade parcial, o
emprego do artigo representa a diferença mais marcante entre as
duas línguas. Em francês, exprime-se genericidade parcial através
de um artigo partitivo, o qual se tornou obrigatório com a
eliminação das desinências verbais e nominais na época posterior
ao francês medieval.

(10)

(a) fr. On a acheté du pain / des livres.

(b) esp. Hemos comprado pan / libros.

(c) fr. On a acheté un livre.

(d) esp. Hemos comprado un libro.

Tomando como base essa comparação, ainda que ela seja


reduzida, podemos afirmar que há bem menos restrições para
substantivos sem artigo em espanhol do que em francês e, no que
concerne à genericidade parcial, acrescenta-se às funções já
apresentadas do “artigo nulo” em francês mais uma importante
função no espanhol. Diacronicamente, o espanhol aparece aqui —
como em vários outros âmbitos — em um nível mais arcaico que
o francês. E, de um ponto de vista tipológico, o artigo em
espanhol está, dessa forma, menos gramaticalizado do que em
francês e situa-se na escala de Greenberg “mais à esquerda”.

27
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

5. Para o catalão, o resultado é semelhante ao do espanhol,


e também para o português europeu quase não há diferenças.23
Como em espanhol e em francês, podem ser encontrados também
em português fraseologismos com substantivos “nus” no início da
frase:

(11)

(a) Cão que muito ladra nunca é bom para a caça.

(b) Pobreza não é vileza.

(c) Em boca fechada não entra mosca.

Há em relação ao terceiro exemplo, no entanto, além do


conhecido uso do fraseologismo, mais uma possibilidade do
sistema português, produtiva ainda hoje: um substantivo contável
pode ser considerado não-contável e ser utilizado, dessa forma,
também no singular, sem artigo. Esse fenômeno foi analisado
minuciosamente por Reinhard Meisterfeld (1998) com a
denominação singular aspectual. Contrariamente ao item (12a), no
qual o objeto aparece no plural, uso comum em espanhol,
exemplos como os em (12b) e (12c) são bastante freqüentes em
português:

23 Um caso que não será analisado aqui é o emprego do artigo, nas duas
línguas, antes de nomes próprios. Uma vez que nomes próprios já são
determinados, o artigo é, neste caso, redundante e pode assumir funções
secundárias, como funções estilísticas. Na norma do catalão e do
português de Portugal, o uso antes de nomes de pessoas (em catalão, em
parte, com formas próprias) é, na maioria dos casos, obrigatório. Em
relação a algumas variedades do catalão e do sardo, deve-se questionar
ainda se os artigos que remontam ao IPSE do latim atuam da mesma
forma que os sucessores de ILLE. Blasco Ferrer (1986: 93) aponta, no que
concerne ao sardo, a existência de particularidades do uso que são
dependentes de aspectos etmológicos.

28
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(12)

(a) esp. La col no tiene bichos.

(b) port. A couve não tem bicho.

(c) port. Para que aparecesse batata no mercado liberalizou-


se o preço.

Essa é uma possibilidade do sistema que existe também em


espanhol, e em outras variedades das línguas românicas, mas a
freqüência desse fenômeno na norma desses idiomas parece ser
menor do que em português. Deve-se ressaltar, todavia, que um
estudo completo que abrangesse fatores regionais e outros fatores
condicionados pelas diversas variedades ainda está por ser
realizado.24 Parece tratar-se de um arcaísmo, de uma possibilidade
do sistema já existente em latim, a qual pode ser ilustrada através
de uma oração extraída de Cato Maior, de Cícero, exemplo
freqüentemente citado na literatura sobre este tema:

(13) “villaque tota locuples est: abundat porco, haedo, agno,


gallina, lacte, caseo, melle” (Cícero, Cato maior 16, 56).

Nesse exemplo, o porco, o cordeiro e a galinha são tratados


exatamente da mesma forma que leite, queijo e mel: como
elementos não-contáveis, devendo-se constatar simplesmente sua
existência em abundância.

Abrangendo mais situações do que as já constatadas para o


francês e o espanhol, o português europeu permite, com o uso
freqüente do “artigo nulo” para expressar o singular aspectual, casos
adicionais de substantivos sem artigos, o que possibilita posicioná-
lo ainda mais à esquerda na escala de Greenberg.

24 Esse fenômeno já foi descrito por Lang (1884). Em espanhol, o


emprego do “artigo nulo” parece estar restrito, em sua maior parte, à
associação com um elemento quantificador: “este año no hay mucho
turista”; “quanta nota dormía en sus cuerdas” (Becquer) etc.

29
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

6. É antiga a visão na romanística de as línguas românicas


modernas representarem, de certo modo, uma evolução diacrônica
linear, sendo o francês, na maioria dos casos, a língua mais
desenvolvida.25 Se a viagem ao passado da gramaticalização do
artigo na România, a qual nos conduziu através do espanhol para
o português, for ainda mais recuada, faz-se oportuno, a partir de
Portugal, avistar o outro lado do Atlântico.26 Como nas línguas e
variedades analisadas até agora, também são encontrados no
português brasileiro (PB) fraseologismos com substantivos “nus”:

(14)

(a) Santo de casa não faz milagres. (Provérbio)

(b) Sertanejo não sabe chorar. (Almeida, José Américo. A


bagaceira. 9. ed. Rio, 1967, citado em Woll, 1982: 68)

(c) Menino incomoda. (Saraiva, 1997: 43)

Ao contrário dos casos até então analisados, o uso genérico


no PB não se restringe a fraseologismos conhecidos,
caracterizando-se por sua produtividade.27 Em analogia aos

25 A caracterização feita por Gerhard Rohlfs (1959) sobre o francês

arcaico e o latim vulgar é baseada neste princípio, o qual remonta até


mesmo a Raynouard.
26 Que essa linearidade está somente em parte correta e só se relaciona a

casos isolados pode ser comprovado, por exemplo, quando se constata


que a comparação do galego (“mais arcaico”) com o português não
espelha aqui, neste caso, qualquer estágio “anterior” da língua; este deve
ser procurado no Brasil, onde “arcaísmo” aparece junto de inúmeras
inovações. Além do português brasileiro, teriam de ser analisadas outras
variedades arcaicas das línguas românicas, como algumas do reto-
românico, no qual substantivos que designam um referente único, como
“sol”, podem ser utilizados sem artigo (Rohlfs, 1975: 46).
27 Noll (1999: 203) comenta sobre esse fenômeno: “A omissão do artigo

antes de substantivos, que são utilizados de maneira genérica, está

30
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

provérbios mais conhecidos, são criadas novas orações genéricas


no presente gnômico,28 as quais apresentam, principalmente na
área publicitária (15a e b), uma grande difusão, mas podem
também ser encontradas na língua falada, como em (15c), em
combinação com o singular aspectual.

(15)

(a) Bicicleta não polui. / Crianças começam a fumar ao


verem os adultos fumando. (Painéis no Rio de Janeiro)

(b) Liberdade não vem de graça. Mas pode vir em 10 vezes sem juros.
(Publicidade na Internet da Mercedes Benz do Brasil,
primavera de 2001)

(c) Eu acho que filho dá trabalho desde a hora que nasce.


(BDI, 152)

Outro contexto no qual podem ser encontrados no


português do Brasil substantivos sem artigo é no estilo
“estenográfico” dos títulos, uma característica também de outros
idiomas, principalmente nos títulos dos artigos de jornais. Esse é
um daqueles casos nos quais as regras para um determinado tipo
de texto infringem as regras da gramática da própria língua. Como
em estilo telegráfico, é eliminado das manchetes de jornais, por
questões espaciais, tudo o que é supérfluo. A cultura jornalística
nos países de língua românica diverge nesse aspecto; no Brasil, a
eliminação do artigo é bastante comum, sendo praticada de
maneira generalizada, como nos exemplos em (16).29

evidentemente orientada, na linguagem coloquial brasileira, no uso


lingüístico típico dos provérbios (cf. camarão que dorme onda leva).”
28 O presente é, nessas “orações eternas”, um tipo de “tempo neutro” ou

um “não-tempo”; cf. Raible (1972: 83 et seq.).


29 A omissão de artigos nos títulos foi introduzida oficialmente na

imprensa brasileira nos anos 50, a partir da reforma editorial realizada


pelo Diário Carioca. Veja-se, em relação a esse tema, o artigo de Souza
(1992), o qual me foi gentilmente enviado por Marlos Pessoa.

31
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(16)

(a) Violência aumenta no Rio (Jornal do Brasil, 12.9.2000)

(b) Número de assaltos nas ruas do Rio cresce 66% (O


Globo, 12.9.2000)

(c) Bolsa cai e dólar dispara com alta do petróleo (O Estado


de S.Paulo, 19.9.2000)

Isso não seria particularmente interessante de ser


mencionado se este fenômeno não apresentasse no Brasil mais
uma especificidade: há exemplos de omissão do artigo na
linguagem jornalística — tanto de artigos definidos como de
indefinidos — também dentro dos próprios artigos dos jornais,
como em (17).

(17)

(a) Artigo defendendo essa tese foi recentemente publicado


no “Financial Time” por um dos mais influentes senadores
dos Estados Unidos, Ernest Hollings. (Folha de S. Paulo,
17.9.2000)

(b) Raridade mesmo são quatro outras faixas. (Jornal do


Brasil, 12.9.2000)

(c) Site oficial, a candidatura já tem. (Folha de S.Paulo,


17.12.2000)

Parece tratar-se de um fenômeno relativamente recente,


não muito difundido, mas que se correlaciona a determinados
lugares, tipos de textos e funções dentro dos textos. Numa
primeira avaliação, poderíamos citar São Paulo como um dos
possíveis lugares de irradiação. Este fenômeno, bastante comum
na seção de economia dos jornais, ocorre tendencialmente no
início do parágrafo, no qual assume talvez uma função

32
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

marcadora.30 Os jornalistas parecem utilizar substantivos sem


artigos como um recurso estilístico, o qual possibilita que o caráter
de imediação do substantivo seja deslocado para o primeiro plano.
São Paulo seria, a propósito, um lugar predestinado para a ação
difusora dessa inovação. Há até poucas décadas, o centro
gravitacional lingüístico da norma padrão brasileira era o Rio de
Janeiro, no entanto, desde a transferência da capital para Brasília
— que nunca conseguiu desenvolver uma verdadeira força
difusora —, pode-se observar que São Paulo, sede dos maiores
estabelecimentos da imprensa e maior centro econômico do país,
se tem tornado cada vez mais o centro lingüístico.31

Esporadicamente, há a omissão de artigos32 também em


outros tipos de textos, como em (18), e até mesmo na fala de
jornalistas e políticos (19).

30 Um fenômeno semelhante ocorre nas línguas românicas da Idade


Média: definições, muito freqüentes principalmente em textos jurídicos,
iniciam-se normalmente com os substantivos a serem definidos sem
artigo (como em occitano antigo: “Rreu es aquel a -quien demanda”).
Essa regra especial para a metalinguagem é utilizada muitas vezes nos
manuscritos de direito romano para salientar visualmente os trechos
correspondentes, possibilitando, assim, que estes sejam encontrados mais
facilmente (cf. Kabatek, 2000: 156).
31 Parece, na verdade, ocorrer uma espécie de coineização, na qual a
antiga norma carioca do Rio de Janeiro se une com a norma paulista em
uma nova coiné, como aponta Nelly Carvalho, lingüista da Universidade
de Pernambuco, em um artigo de jornal
(http://www.virtus.ufpe.br/clipping/nelly6.htm): “Agora, não é só o
linguajar carioca: é um misto quente de carioca e paulista, o modelo de
prestígio na sociedade.”
32 Um fenômeno que deve ser distinguido da omissão de artigos é o

relacionado a verbos complexos, cada vez mais freqüentes no português


do Brasil. Trata-se, nestes casos, de integração do objeto no sintagma
verbal (Saraiva, 1997). Deve-se questionar, entretanto, se os casos citados
por Saraiva, como buscar menino, são exemplos de “objeto integrado”,
uma vez que a integração do objeto está geralmente restrita a ações
prototípicas, limitando-se também a poucos verbos semanticamente
concretos (ter fome, comprar carro, ter vontade, dar medo etc.). Dieter Woll

33
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(18) “Poema Imagem, terra, memória” fez parte do livro No tempo


do mato dentro. (Introdução a Carlos Drummond de Andrade.
Farewell. Rio de Janeiro/São Paulo: Record,1996.)

(19) Está sendo discutido na câmara dos deputados projeto de lei de


minha autoria ([...] Propaganda eleitoral da deputada Alcione
Athayde, na primavera de 2000, na TV Cultura.)33

Os falantes brasileiros parecem estar pouco conscientes


deste fenômeno; entre jornalistas que produzem esse tipo de texto
e até mesmo entre os lingüistas, ele também tem merecido pouca
atenção. Nas gramáticas mais recentes, não há menção alguma
sobre esse recurso. Na nova edição da gramática de Bechara
(2001), por exemplo, somente se repete o que apresenta longa
tradição sobre o artigo, ou seja, o emprego especial antes de
nomes próprios, nomes de lugares e em relação ao pronome
possessivo.34 Este fenômeno tampouco é tematizado nas
orientações para a redação dos manuais de estilo dos jornais
brasileiros. No manual do jornal O Estado de São Paulo35, por
exemplo, é citado no verbete “omissão do artigo definido”, em
primeiro lugar, o uso particular nos títulos:

(20) Jornalisticamente, admite-se a omissão do artigo


definido, apenas nos títulos, como medida de economia de
sinais: Agora, governo usa inflação que quiser./ Brasil
repele acusações de imperialismo.

São mencionados, ainda, os seguintes casos especiais:

chama-me a atenção para o exemplo mandar canoa em Menino de engenho,


de José Lins do Rego (8a edição, Rio de Janeiro), que parece ser um caso
semelhante.
33Trata-se aqui, porém, de um caso de “parlato scritto”, pois a deputada
se utilizou seguramente de um texto escrito anteriormente.
34Para uma lista mais completa com exemplos de emprego ou omissão
do artigo, veja-se Neves (2000: 391-448).
35 http://www.estado.estadao.com.br/redac/manual.html

34
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

a) em provérbios: Tempo é dinheiro.

b) em definições: Política é a arte do possível.

c) nos vocativos: Ande logo, irmão.36

d) em expressões fixas como declarar guerra, dar esmola etc.

e) antes de determinadas palavras: O senador foi chamado a


palácio.

f) depois de cujo: era o homem cujo pai...

g) antes de superlativo: Eram os profissionais mais


competentes.

h) antes de palavras que designam matéria de estudo:


Estudava português.

i) na associação de determinados verbos e substantivos:


Pedimos permissão; Não tive tempo para sair.37

Além disso, são descritos, prioritariamente, aqueles usos


redundantes, apontados também nas gramáticas. Em relação a
esses casos, tem havido, desde o século XIX, uma discussão que
relaciona o emprego do artigo com a especificidade do português
brasileiro. Apesar de, desde o descobrimento, o PB ter-se afastado
bastante em determinados aspectos da língua do país natal —

36 A omissão de elementos determinadores no vocativo não causa


surpresa, uma vez que o interlocutor necessita já estar identificado e
determinado no espaço discursivo. Assim, elementos determinadores
são, aqui, redundantes. Isso abrange também os pronomes possessivos, o
que já havia sido observado por Meyer-Lübke (1899, III, p. 199). Em
relação ao português em geral, cf. Meier (1948).
37As categorias não são bem diferenciadas e a classificação dos exemplos
não é clara (temos, por exemplo, nos itens d, h e i, casos de integração
nominal).

35
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

devido ao contato com as línguas autóctones, africanas,


posteriormente com as línguas dos imigrantes e, não menos
importante, em conseqüência do próprio desenvolvimento no
Brasil, por um lado, e em Portugal, por outro —, tal especificidade
quase não havia sido manifestada na língua escrita até o século
XIX.38 Mesmo depois da independência do Brasil em 1822,
houve, em determinados momentos, principalmente na região
urbana, uma aproximação entre o português europeu e o
brasileiro, como entre 1808 e 1821, quando a Corte portuguesa,
fugindo das tropas napoleônicas, se instalou no Brasil. Desde o
Romantismo, podem-se destacar duas tendências principais: 1a) a
afirmação da especificidade do português brasileiro, que se
manifesta no século XIX na discussão em torno da
“brasilidade”39; 2a) o destaque da unidade lusófona, tendência
dominante até hoje no discurso da Academia e que se baseia na
idéia de uma tradição comum e, entre outros fatores, na reação
existente desde os finais do século XIX contra a “brasilidade”.

Essa polêmica concentra-se, em parte, em determinados


elementos lingüísticos, utilizados como diferenciadores na
tentativa de afirmação de uma identidade lingüística brasileira.
Assim, escritores como José de Alencar e outros criticaram o
“exagero” no emprego do artigo pelos autores portugueses,
considerando um traço estilístico próprio do português brasileiro a
não-utilização do artigo como determinante antes de nomes

38 Somente há pouco tempo, em um projeto de pesquisa amplo e em


diversos trabalhos individuais, a história do português brasileiro,
conhecida ainda hoje de maneira superficial, começou a ser cada vez
mais estudada. Nessas pesquisas, a análise de determinados tipos de
textos (como a de textos jornalísticos ou cartas particulares) mostra que a
suposta unidade lusófona é menos marcante do que se acreditava. Cf. a
dissertação de Marlos Pessoa sobre a formação da variedade urbana do
Recife no século XIX, assim como as diversas contribuições ao tema em
Mattos e Silva (2001) e Duarte e Callou (2002), no contexto do projeto
PHPB (Para a história do português brasileiro). Veja-se também, em relação a
esse projeto, http://www.letras.ufrj.br/phpb-rj.
39 Cf., em relação ao tema, os textos reunidos por Edith Pimentel Pinto

(1978).

36
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

próprios, os quais por definição já são determinados, ou antes de


substantivos antecedidos de pronomes possessivos, que também
possuem função determinadora. Como José de Alencar na
segunda edição de seu romance Iracema aponta (apud Woll, 1982,
79f)40:

(21) Nesta, como em todas as minhas obras recentes se


deve notar certa parcimônia no emprego do artigo definido,
que eu só uso quando rigorosamente exigido pela clareza
ou elegância do discurso. Isto que nada mais é do que uma
reação contra o abuso dos escritores portugueses, que
empregam aquela partícula sem tom nem som, me tem
valido censuras de incorreto. (José de Alencar, Iracema,
1870)

Alencar refere-se aqui, entretanto, aos casos de redundância


já conhecidos e suficientemente descritos, nos quais também em
outras línguas românicas a norma tende, algumas vezes mais,
outras vezes menos, à utilização dos artigos. Estes, devido à sua
redundância, como antes de nomes próprios, assumem funções
secundárias, como a de marcar determinadas variedades
diatópicas, diafásicas ou diastráticas e transformam-se não
raramente em tema de discussões metalingüísticas. Casos de
omissão do artigo como aqueles apresentados nos itens (16) a (19)
não são mencionados nessas discussões e a análise de textos
literários e jornalísticos do século XIX também não acusou
ocorrências semelhantes. Mantém-se, dessa forma, a idéia de
tratar-se de um fenômeno recente. Em relação aos exemplos de
(16) a (19), vários falantes nativos do português brasileiro
mostraram desconfiança ou recusa, considerando-os erros claros.
Em função do grau de propagação da omissão do artigo, essa
apreciação por parte dos falantes parece, no entanto, ser um caso
comum de discrepância entre realidade lingüística e avaliação
metalingüística, mas confirma também a marginalidade do
fenômeno.

40 Cf. também Anderson (1995: 4).

37
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Seria possível supor que se trata de uma particularidade do


estilo jornalístico ou de determinadas tradições da língua escrita,
criadas neste tipo de textos e que permaneceria restrita a estes. Tal
particularidade poderia ser também considerada, no sentido de
“change from above” (cf. Labov, 1994: 78), um ponto de partida
para uma maior difusão deste fenômeno, como ocorre, por
exemplo, quando técnicas originalmente expressivas ou
estilisticamente marcadas perdem, através de sua difusão, o status
inicial especial, transformando-se em “casos normais”.

Há também omissão do artigo não somente na linguagem


jornalística e em textos escritos, mas também em textos do
registro oral distantes da norma culta, como nos casos disponíveis,
em quantidades cada vez maiores, nos corpora surgidos nos últimos
anos. Assim, podem ser encontrados em alguns desses corpora,
como nestes do Rio de Janeiro, os seguintes exemplos:

(22)

(a) Bicicleta ia se arrebentar. (BDI, 144)

(b) A gente queria agora gravação de pessoas conversando.


(BDI, 179)

(c) Diminuiu turista aqui. (APF, 211)

O caso mais surpreendente é o do item (22a), uma vez que


o falante exprimiu a frase olhando para a bicicleta, ou seja, num
contexto “situacional claro”41, no qual nas línguas românicas, sem
exceção, o artigo deveria ser utilizado. Enquanto o uso genérico,
como em (15c), pode ser observado com certa freqüência na
língua falada, exemplos como os do item (22a) parecem ser
extremamente raros. Deve-se questionar, então, se esta é uma
tendência “de baixo”, comparável ou análoga à da língua escrita,
ou se estamos lidando, devido à raridade de ocorrências, com

41 Essa expressão é encontrada em Vater (1986: 87) como tradução de

um termo de John A. Hawkins.

38
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

algum tipo de exceção.42 Se se trata, de fato, de uma tendência


também da língua falada não-standard — devendo ser, portanto,
verificada —, então seria possível supor que esta se encontra com
a dos textos escritos, possibilitando assim uma difusão da omissão
do artigo, como mostrado no esquema abaixo:

As possibilidades “adicionais” de ausência do artigo no PB,


em contraposição às outras línguas românicas, constituem, de
certa forma, uma ampla base para a propagação do artigo nulo. O
encontro de uma evolução da língua escrita e da língua falada
poderia contribuir, como ilustrado acima, para a propagação do
fenômeno em questão, com todas as ressalvas em relação a
predições sobre mudanças lingüísticas.43

Seria insuficiente, no entanto, relacionar todas as tendências


do português brasileiro de uma só vez, sem distinguir suas
diversas funções. De fato, devemos diferenciar três tipos de não-
utilização do artigo. No primeiro tipo, o artigo nulo aparece em
oposição tanto com o artigo definido como com o indefinido

42 Essa “exceção” deve ser, naturalmente, esclarecida. Aqui seria possível


interpretar o exemplo como linguagem infantil, considerar a bicicleta
como nome próprio ou, até mesmo, ter ocorrido um simples erro de
transcrição. Mas os erros de transcrição também indicam, muitas vezes,
possibilidades lingüísticas: normalmente, as transcrições tendem a uma
certa “normalização” e os transcritores sentem-se inclinados a “ouvir”
elementos que geralmente são esperados numa determinada posição. A
omissão de um artigo, considerada “agramatical” pelo padrão normativo,
indica mais provavelmente a ocorrência de um fenômeno perceptível.
43Por tratar-se de casos “periféricos” não significa de forma alguma que
se possa chegar a uma difusão maior.

39
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(23a). No segundo, a utilização do artigo é neutralizada. Assim, em


orações genéricas como em (23b), é possível o emprego do artigo
definido no singular e no plural, do artigo indefinido ou a omissão
do artigo. A particularidade da ocorrência do artigo nulo está no
fato de que neste caso, contrariamente às demais possibilidades, só
é permitida uma interpretação genérica da oração, enquanto os
outros casos, em contextos correspondentes, podem ser
interpretados de outra forma. Em relação ao item (23c) trata-se,
realmente, de omissão do artigo. Nesses exemplos, em relação aos
quais seria de se esperar a presença do artigo, ele pode ser, em
determinadas circunstâncias, omitido. Esses casos podem
abranger tanto o artigo definido como o indefinido. Uma das
condições parece ser que, mesmo após a omissão, os exemplos
permaneçam compreensíveis, ou seja, o artigo não apresenta aqui
nenhuma informação extra, que já não fosse dada pelo contexto.
Nas outras línguas românicas, apesar da informação fornecida
pelo artigo, a gramática prescreve obrigatoriamente o emprego do
artigo.

(23)

a) Oposição: Vc. tem batata? / Vc. tem uma batata? / Vc.


tem a batata?

b) Neutralização: O / os / um / ø sertanejo(s) não sabe


chorar.

c) Omissão: (A) bicicleta ia se arrebentar. / (Um) artigo


defendendo essa tese foi recentemente publicado. / (A) dor
é incomunicável.

Resumindo, pode-se dizer que no português brasileiro a


possibilidade de se utilizar substantivos sem artigo é mais
abrangente do que nas outras línguas românicas. Nos casos de
oposição entre o artigo e o artigo nulo (23a), este último serve
para expressar genericidade parcial e é possível também no
singular (singular aspectual) nos dois lados do Atlântico (como
também, com restrições, em outras línguas românicas). No que
diz respeito à neutralização das orações genéricas (23b), essa

40
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

aparece no Brasil de forma ainda bastante produtiva. Nesse ponto,


o PB apresenta um caráter mais arcaico do que as línguas da
Península Ibérica, aproximando-se das línguas românicas da época
medieval. Em relação à omissão nos exemplos em (23c),
apresentamos alguns casos em que os substantivos, até mesmo em
contextos claros de determinação, não aparecem antecedidos pelo
artigo, isto é, casos em que já nas línguas românicas da Idade
Média o artigo era utilizado. Essas particularidades não podem,
dessa forma, ser mais explicadas como arcaísmos, uma vez que o
português antigo também já havia gramaticalizado o uso do artigo.
Deve tratar-se, portanto, de uma inovação. Uma inovação que não
conduz, por sua vez, a uma maior obrigatoriedade do uso do
artigo, o que seria de se esperar na conservação da hipótese de
unidirecionalidade do processo de gramaticalização, mas que
parece movimentar-se aqui no sentido contrário.

No quadro geral das línguas românicas, isso é


surpreendente, já que, normalmente, as tendências observadas em
relação ao português do Brasil são perfeitamente comparáveis aos
outros dialetos e línguas românicas e se aproximam com
freqüência do francês na sua transição da época medieval ao
francês moderno. Assim como o francês, o PB apresenta, em
variedades não-standard, uma tendência marcante de redução da
flexão em verbos e substantivos. Ao mesmo tempo, os pronomes
que exercem a função de sujeito se tornaram obrigatórios, mesmo
nas variedades próximas à norma padrão. Além do mais, tem
ocorrido um aumento na freqüência da negação dupla (não quero,
não), pelo menos sintaticamente semelhante ao francês, e da
substituição da 1a pessoa do plural dos pronomes e verbos por
uma forma da 3a pessoa (PB: a gente trabalha; fr.: on travaille). A
eliminação do morfema de plural e a obrigatoriedade dos
pronomes pessoais na função de sujeito, assim como a
substituição de pronomes enclíticos por proclíticos, conduzem,
cada vez mais, à predeterminação, o que apresenta, em vários
aspectos, paralelos com a história da língua francesa.44 Como no

44 Sobre predeterminação em francês, cf., entre outros, Baldinger (1968),

Geisler (1982), Eckert (1968), Jacob (1990).

41
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

caso do francês, supõe-se, com freqüência, que essa massiva


reestruturação do sistema, e mesmo do tipo lingüístico, esteja
relacionada a motivos prosódicos.45 Nesse sentido, seria de se
esperar — seguindo-se a analogia — a obrigatoriedade do artigo,
também devido à sua função como marcador de gênero e número.
Com base na análise do presente, porém, não se pode afirmar se o
uso se tornará obrigatório, mas a existência de uma tendência
inovadora de omissão do artigo, mesmo sendo esta marginal,
indica que o paralelo com o francês é confirmado somente em
partes e o PB segue um caminho próprio, novo na tipologia das
línguas românicas e para o qual só pode ser encontrado paralelo,
também de forma parcial, nas línguas crioulas.

7. Observando-se mais uma vez, resumidamente, os casos


estudados, os quais abrangem naturalmente somente uma parte do
emprego do artigo nas línguas românicas, pode-se constatar que
existe, de fato, um tipo de evolução histórica linear em direção a
uma obrigatoriedade contínua de utilização do artigo, que
apresenta nas línguas diferentes graus de desenvolvimento. E,
mesmo se o francês ainda não tenha atingido atualmente o ponto
indicado por Martin Harris46 com a gramaticalização de um artigo
do tipo III, podemos afirmar que este é o idioma que, de longe,
mais se aproxima desse ponto. Recuando-se na escala de
Greenberg, temos na seqüência, entre as línguas analisadas aqui
mais detalhadamente, o espanhol, o português europeu e, por fim,
o português brasileiro. Este último, apesar de partilhar da
evolução “regular” das línguas românicas, acaba divergindo do

45 Em relação ao francês, cf., por exemplo, Richter (1903), Weinrich


(1958); sobre o francês e o PB, cf. Jacobs (1994); sobre o PB, cf.
Sândalo; Truckenbrodt (2002) e, principalmente, a dissertação de Uli
Reich (2002).
46 Para a avaliação errônea de Harris pode ter sido relevante o fato de ele
ser influenciado pelo inglês, no qual o artigo é “muito mais
demonstrativo” (ou pode sê-lo) do que nas línguas românicas.
Freqüentemente, deve-se traduzir “the” como “ce” e não como “le” — e
isso se deve não somente ao francês, mas também ao próprio inglês!

42
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

esquema, ao possibilitar de maneira inovativa a ausência do artigo


em casos não aceitáveis no sistema das outras línguas.

Tipo Casos de
Português
(segundo substantivos Francês Espanhol Português
brasileiro
Greenberg) s/ artigos
O contexto (+)
situacional -- -- --
claro
I uso genérico -- -- -- +
singular (+) +
- +
aspectual
construções
-- + + +
focalizadas
uso genérico
II -- + + +
parcial
substantivos +
+ + +
coordenados
“últimos
bastiões” do + + + +
tipo II
III

Isso significa que a escala universal de gramaticalização


oferece indícios de probabilidades que, por determinadas razões,
se repetem nas línguas do mundo, mas não correspondem
necessariamente a um caminho predefinido.

Poderia haver, assim, uma tentativa de se procurar no caso


do PB — assim como em relação às línguas crioulas — as
chamadas explicações “extralingüísticas” e responsabilizar o
contato com as outras línguas por esta “evolução particular”.
Segundo Ramat e Hopper, deve-se contar, em processos de
gramaticalização, com estes tipos de fatores, que são, por assim
dizer, “fatores de estorvo” da evolução normal de uma língua:

Estamos diante do impacto dos substratos lingüísticos, que


na história do crioulo representam um fator externo e uma

43
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

fonte de mudança que pode interferir nas mudanças


‘naturais’ normais (...). (Ramat; Hopper, 1998: 7)

Um dos equívocos fundamentais das pesquisas sobre


gramaticalização, entretanto, é justamente supor a existência de
uma “evolução linear normal” em contraposição ao “estorvo”
proveniente de contatos lingüísticos. Mesmo se o contato entre
línguas tipologicamente distantes umas das outras representa, na
visão comum que se tem de processos de mudanças lingüísticas,
uma exceção, fenômenos relacionados ao contato entre línguas e
questões sobre variação possuem, na verdade, sempre um papel
importante na análise das línguas, uma vez que estas são sempre
um conglomerado de variedades que podem influenciar umas às
outras. Uma análise lingüística monolítica da evolução de uma
única língua recua a um estágio anterior aos conhecimentos já
estabelecidos no meado do século XX em direção à época dos
neogramáticos.

Muitos dos argumentos para a unidirecionalidade dos


processos de gramaticalização apresentam, de fato, paralelos
diretos na discussão sobre o caráter absoluto das leis fonéticas.
Contudo, já deveria ser de conhecimento geral que a coexistência
de diversas variedades — assim como a influência recíproca
dessas variedades — não consititui uma exceção, a qual atrapalha
as “mudanças naturais normais”, mas pertence simplesmente à
realidade lingüística, devendo ser sempre examinada. Isso significa
que uma evolução linear de um único sistema não existe, pois um
sistema lingüístico não existe nunca de forma isolada.

Se essa “evolução particular” do PB pode ser explicada pelo


contato com línguas que possuem tipologias distantes do
português ou se ocorreu dentro de variedades tipologicamente
semelhantes fica em aberto, devendo ainda ser estudado mais
minuciosamente com base em dados históricos.47 Outro ponto a

47Na história do português, há uma tradição de se imitar a língua dos


escravos africanos omitindo-se o artigo, como ocorre já no século XVI
em Clérigo da Beira, de Gil Vicente: “deoso nunca vai dormi / sempre

44
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

ser questionado é se evoluções deste tipo ocorrem somente nos


casos relacionados a processos de gramaticalização, em domínios
já gramaticais (ou seja, naqueles em que elementos da gramática se
tornam mais gramaticais ainda) ou também na evolução do léxico
para a gramática. Os grandes canais de evolução, que podem ser
vistos como tendências gerais tipológicas para as diversas línguas
do mundo, tornam-se cada vez mais divergentes e menos
retilíneos, à medida que as verdadeiras circunstâncias de cada
língua histórica são analisadas.

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abre oyo assi” (apud Neto, 1957: 459). Trata-se aqui, no entanto, de
mímese e de um texto em verso. Tais exemplos devem ser, assim,
interpretados com cuidado e não permitem conclusões a respeito da
questão se, nas regiões brasileiras, com o contato intensivo com as
línguas africanas, houve a formação de regras especiais para a utilização
do artigo em português.

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WILMET, Marc. Le système de l’article français: un bilan critique.
Travaux de Linguistique et de Littérature 18/1, p. 53-64, 1980.
WOLL, Dieter. Die Eigenentwicklung des brasilianischen Portugiesisch.
Der Artikelgebrauch. Romanische Forschungen 94, p. 67-83, 1982.
_____. “Na França” e “em França”, mas só: “na Alemanha” – porquê?
Pequena contribuição para a história do artigo definido nas línguas
românicas. In: SCHMIDT-RADEFELDT, Jürgen (Ed.). Semiótica e
lingüística portuguesa e românica. Homenagem a José Gonçalo Herculano de
Carvalho. Tübingen: Narr, 1993. p. 163-176.

50
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

APF = Amostras do português falado no Rio de Janeiro. Editado por Maria da


Conceição Paiva. Rio de Janeiro: UFRJ, 1999.
BDI = Banco de dados interacionais. Programa de estudos sobre o uso
da língua. Organizado por Cláudia Roncarati. Rio de Janeiro: UFRJ.
FCS = A linguagem falada culta na cidade de Salvador.
Materiais para seu estudo. Editado por J. Mota e V.
Rollemberg. Salvador: UFB, 1994.

51
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

Análise multissistêmica das preposições do


eixo transversal no português brasileiro:
espaço /anterior/ ~ /posterior/
por
Ataliba T. de Castilho
Universidade de São Paulo/CNPq

Introdução

O presente estudo inscreve-se na agenda das pesquisas


sobre mudança gramatical do projeto Para a História do
Português Brasileiro (PHPB), como parte de minha bolsa de
Produtividade Científica do CNPq.

Ele se compõe das seguintes partes: (1) estatuto categorial


das preposições: breve revisão da literatura, preposições simples e
preposições complexas; (2) gramaticalização e teoria
multissistêmica da língua; (3) perspectiva multissistêmica das
preposições; e (4) estudo diacrônico das preposições do eixo
transversal nos séculos XIX e XX.

Os dados do século XIX procedem dos anúncios de jornais


publicados por Guedes e Berlinck (2000) e da correspondência de
leitores e de redatores publicada em jornais, editada por Barbosa e
Lopes (2002). Os dados do século XX procedem das amostras de
entrevistas do Projeto NURC publicadas por Castilho e Preti
(1986, 1987); Preti e Urbano (1988); Callou e Lopes (1994); Mota
e Rollemberg (1994); Sá et al. (1996); e Hilgert (1997).

Os exemplos são identificados da seguinte maneira: o


primeiro numeral remete ao século, o segundo à metade do
século; as letras que se seguem identificam o Estado e a cidade em
que se publicou o documento, e depois o tipo de documento:
A[núncios] e C[orrespondência] J[ornal] / R[edator] ou L[eitor].

53
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

Assim, [19 1 SP/SP CJ/L] significa que o documento é datado da


primeira metade do século XIX, foi publicado em São Paulo,
Capital, tratando-se de correspondência publicada em jornal,
redigida por um leitor. Os dados do Projeto NURC são
identificados de acordo com um costume já estabelecido: tipo de
entrevista [EF = enunciação formal; DID = diálogo entre o
informante e o documentador; D2 = diálogo entre dois
informantes], seguido do número do inquérito e da linha da
transcrição.

1. Estatuto categorial das preposições

1.1. Breve revisão da literatura

Preposições e conjunções integram a classe dos nexos


gramaticais. Ambas ligam palavras e sentenças, diferindo nisto que
as preposições, em seus usos prototípicos, posicionam no ESPAÇO
os referentes dos termos que relacionam – papel não
desempenhado pelas conjunções. A bibliografia sobre as
preposições é compreensivelmente rica. Vou limitar-me aos textos
que se aproximam da abordagem aqui adotada, ou que tenham
sido produzidos por pesquisadores do PHPB.

Travaglia (1985) estuda a presença e a omissão das


preposições essenciais que introduzem objeto, elencando suas
significações básicas.

Pontes (1992) afirma que a preposição a vem


desaparecendo progressivamente, sendo substituída por em
quando se quer indicar /localização/, e por para, quando se quer
indicar /direção/. Ou, em outros termos, em marca /Espaço –
movimento/, e para /Espaço +movimento/. Essas observações
mostram que a escolha de em ou de para com verbos de
movimento no PB está em distribuição complementar, não
configurando um caso de variação sintática.

A esse respeito, Borba (1971: 133) mostra que, com os


verbos ir, vir, levar, chegar, conduzir, voltar, mandar, descer etc., a

54
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

preposição a indica a direção desse movimento – como em ir ao


restaurante, voltar à fazenda –, ao passo que a preposição em indica
que o falante não está interessado em representar a direção em si,
mas apenas sua inclusão no ponto de chegada, como em ir no
restaurante, voltar na fazenda. Nova diferença entre essas preposições,
ainda que em outro contexto sintático, vem apontada à página
142: na indicação de datas, a “tem valor pontual”, como em “às
oito horas, às nove horas”, ao passo que em indica a duração,
empregando-se com períodos mais longos, como em “em agosto,
em 1970”. Borba está repercutindo o ensinamento de Varrão, para
quem essas preposições não são sinônimas, visto que “in forum
ire” significa “entrar no forum”, ao passo que “ad forum ire”
significa “ir a um lugar próximo ao forum”.

Mollica (1996) sustenta que a variação a/para e em depende


de características morfossintáticas do N encaixado no SP,
explicando-se ainda por fatores discursivo-textuais.

Viaro (1994) apresenta um estudo bem documentado sobre


as alterações semânticas sofridas pelas preposições, em seu
percurso do latim ao português e ao romeno. O autor opera com
os conceitos de espaço, movimento, orientação e tempo, dentre
outras categorias.

Berlinck (1997, 2000a, 2000b, 2001) pesquisou os


complementos preposicionados no português paulista do século
XIX. Ela constatou uma diminuição progressiva da freqüência de
a, em favor de para, confirmando-se assim o prognóstico de
Pontes (1992: 20-31).

Poggio (1999) procedeu a um minucioso estudo da


gramaticalização das preposições latinas, confrontando sua sintaxe
com a do português, operando com categorias cognitivas.

Morais (1999) tratou do emprego da preposição a na


introdução de SPs dativos topicalizados, com papel temático
/origem/, hoje substituída por de como em “a Antonio José de
Babo Broxado (…) fugiu (…) um negro crioulo de idade de 50
annos”. Como ambas as preposições trazem associado o papel

55
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

/origem/, ela explica a mudança como uma competição entre as


formas, vencida por de quando a perdeu esse papel.

Oliveira (2001) estuda as construções causativas e as


preposições que ocorrem nos grupos verbais. Ela mostra que a
preposição a preserva o sentido de posição final do eixo
horizontal: “convida a todas as pessoas que lhe compraram
bilhetes de rifa, a satisfazerem sua importância”.

No que se segue, vou fixar-me na descrição de Borba


(1971) e Neves (2000).

Em sua tese de livre-docência, defendida na Universidade


de São Paulo em 1971, Francisco da Silva Borba retrata as
preposições de diferentes ângulos: freqüência de uso, estrutura
dos sintagmas preposicionados, função semântica das preposições,
função morfossintática, função expressiva e representação fônica.
As conclusões enfeixam seus achados.

No mais extenso dos capítulos, precisamente o que trata


das funções semânticas, Borba agrupa as preposições em nove
hipersememas (p. 80), também por ele denominados “áreas
significativas” (p. 140), entendidas como conjunto de
propriedades que fornecerão as bases para a classificação
semântica geral das preposições em vários “subsistemas” (p. 210).

Borba selecionou os seguintes hipersememas, que ele


exemplifica amplamente, e de que transcrevo apenas alguns
exemplos:

Espaço-tempo, “sentido comum a todas as preposições”:


“me puxou até a cerca de crótons”, “após horas de dura
caminhada, sentia-se cada vez mais inseguro” (p. 80-81).

Relação ou referência, realização semântica que abrange as


seguintes preposições: a, com, de, em, para, por, sobre: “ladrão com ele
é na cadeia”, “regateava no preço” (p. 105).

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Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

Causalidade, sentido que ocorre com as preposições a, ante,


com, de, em, para, por, sobre: “dormi de sono, não de porre”, “com as
pálpebras inchadas pela noite de insônia” (p. 106-107).

Quantidade, hipersemema relacionado com os valores


numéricos, e exemplificado por a, até, de, em, entre, para, por: “bebeu
do que quis no córrego”, “entre inúmeras lembranças, elegeu duas
ou três preferidas” (p. 109-110).

Modo, sentido identificado entre os sintagmas que


respondem à pergunta “como ?”: “foi recebido a bala”, “o aviador
lhe acenava com um lenço” (p. 111-112).

Posse, aqui incluída a noção de conteúdo: “boas pensões,


com raparigas de primeira”, “a chave do apartamento” (p. 115).

Matéria de que é feita alguma coisa: “bolinhos de fubá”,


“chapéu em palha brilhante” (p. 118).

Assunto, expresso por de, em por, sobre: “doutos em ciência”,


“falar de miséria” (p. 119).

Transformação, sentido próprio a de, em, a: “guerrilheiros


disfarçados de mulheres”, “Satanás disfarçado em Jesus Cristo” (p.
120).

Destaque-se que Borba insere no primeiro e segundo


lugares de sua hierarquia as noções de espaço, tempo e relação.
Seus exemplos mostram as preposições em diferentes arranjos
sintáticos.

Sobre o “sentido esvaziado” das preposições, ele afirma


que isso “não invalida a assertiva de que elas têm uma
significação” (p. 77), podendo-se sustentar que elas dispõem de
“uma significação interna de caráter abstrato e geral (referência ao
espaço, ao tempo, ao modo etc.)”, sendo que a “realização da
significação externa é sempre contextual onde a preposição entra
como peça acessória do conjunto significativo” (p. 79). Ele não
explicita a esta altura seu entendimento sobre “significação

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Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

interna/externa” da preposição, mas pode-se supor que estaria se


referindo aqui respectivamente a um sentido mais concreto,
prototípico, por contraste com os sentidos obtidos
composicionalmente.

Relativamente à preposição a, ele identificou 17 valores em


seu corpus de análise:

Direção no espaço (termo de um movimento): “volta à


cadeira, viajar ao sul” (p. 80).

Contigüidade no espaço: “estou bem a seu lado” (p. 80),


“sentar-se ao piano” (p. 81).

Distância no espaço: “o avião sobrevoou a cidade a uns mil


metros do solo”, “caiu a vinte metros do mar” (p. 81).

Interioridade, inclusão: “jogando aquilo à boca”, “filé ao


molho americano” (p. 81).

Posição inferior: “à sombra do herói”, “o obelisco


branquejava ao luar” (p. 81).

Através do espaço: “olha antes à janela”, “veio ver à porta”


(p.81).

Posição superior: “blusa de crochê ao ombro”, “assentada a


um tamborete” (p. 81).

Duração no tempo (tempo quando): “na rua a uma hora


dessas ?”, “havia tomado umas cervejas ao almoço” (p. 81).

Tempo futuro: “competição a ser realizada na raia


olímpica”, “a menina não era a única a ser mãe” (p.81).

Idade: “aos 92 anos, até resfriado mata”, “morreu aos 50


anos” (p. 81).

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Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

Seqüência no espaço ou no tempo: “ano a ano”, “linha a


linha” (p. 82).

O mesmo que contra: “vitória do Botafogo por 2 a 0” (p.


101).

O mesmo que para: “levou-me a comer num restaurante”,


“ouviu calado o que o Delegado tinha a dizer-lhe” (p. 102, 104).

Em relação a, com referência a: “mantê-la cega à realidade”,


“invulnerável aos perigos” (p. 105).

Preço: “o mesmo vinho é vendido a Cr$ 750,00”, “pinga a


150 cruzeiros” (p. 109).

Modo: “não sei me arrumar a jato”, “sol a pino”, “camarões


à bahiana” (p. 112).

Meio ou instrumento: “foi recebido a bala”, “escrevem a


máquina” (p. 112).

Em sua Gramática de Usos do Português, Maria Helena de


Moura Neves divide previamente a descrição das preposições em
três grandes arranjos: (1) as preposições introdutoras de
argumentos; (2) as preposições não introdutoras de argumento; e
(3) as preposições acidentais, isto é, as menos gramaticalizadas,
Neves (2000: 603-738).

A descrição de a vem entre as páginas 603 e 623 e está


organizada de acordo com os dois primeiros arranjos citados.
Vejamos essa descrição em detalhe.

(1) Preposição a funcionando no sistema de transitividade.


São aqui considerados os seguintes entornos sintáticos, no interior
de cada qual são identificadas diferentes relações semânticas:

(1.1) A preposição a introduz complemento de verbo /±


dinâmico/, o qual se refere:

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Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

a um ponto de chegada ou a um ponto final de referência


(meta): “a mocinha se agarra à mulher” (p. 603);

a um ponto de origem: “não se pode fugir à realidade” (p.


606);

ao objeto não afetado da ação verbal: “não obedecia a


ninguém” (p. 607);

ao destinatário ou receptor da ação verbal: “A ela se dirigia


o médico em suas ordens” (p. 608);

o complemento se refere ao beneficiário: “de noite ofertei


jantar ao aposentado” (p. 611);

o complemento se refere ao experimentador de um estado


ou processo: “mas parece que o noivado não agrada à rainha” (p.
611);

o complemento é causativo: “isto não se deve ao acaso” (p.


611);

o complemento é o fim, destino, utilização: “as citações em


língua estranha se destinam a deslumbrar o leitor” (p. 612);

o complemento é o afetado pela ação verbal; ocorre com


construções verbais de ação-processo que marcam qual a
transformação que se dá no complemento: “Ribeiro ainda
conseguiu impor seu ritmo aos demais” (p. 613);

o complemento é um efetuado, a partir da ação verbal;


ocorre com verbos de ação-processo que indicam criação:
“estudaremos as doutrinas que dão origem ao comunismo” (p.
613);

o complemento é locativo: “conduziram-me a um canto”,


“Noé está à mesa” (p. 613);

60
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

o complemento é um objeto direto preposicionado: “quem


sabe resolvem ajudar a nós todos ?”, “nos vejo a todos sentados
sobre este metro quadrado de terra” (p. 614).

(1.2) A preposição a introduz complemento de adjetivo,


com os mesmos valores relacionais: “imprescindível à própria
segurança nacional” (p. 615).

(1.3) A preposição a introduz complemento de substantivo,


com as mesmas relações: “obstáculo à própria instauração das
ciências” (p. 616).

(1.4) A preposição a introduz complemento de advérbio:


“utilizada juntamente a programas mais versáteis” (p. 617).

(2) Preposição a funcionando fora do sistema de


transitividade, estabelecendo relações semânticas (i) no SV como
adjunto adverbial; (ii) no SN como adjunto adnominal; (iii) no
sintagma em função predicativa; (iv) nas locuções prepositivas
indicativas de circunstância; (v) na construção de perífrases; (vi)
em construções de modalização deôntica; (vii) na construção a +
infinitivo equivalente a um gerúndio; (viii) em expressões fixas.
Limitando esta resenha ao primeiro ambiente sintático, Neves
nota que a preposição a indica as seguintes circunstâncias:

(2.1) Tempo: “a lua nasce à meia-noite”, “ao ver-me chegar


o ansioso Norberto sorriu” etc.

(2.2) Lugar: “ajoelhar-se ao pé do moribundo”.

(2.3) Proximidade ou contigüidade: “encontrou o médico à


mesa”.

(2.4) Exposição: “reluzir ao sol”.

(2.5) Instrumento: “pode ser cortada a faca”.

(2.6) Modo: “meninos de rua desapareciam a rodo”.

61
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

(2.7) Causa: “acordou ao estridor das cometas tocando


alvorada”.

(2.8) Conformidade: “dizer ao modo de Hauser”, “andar à


paisana”.

(2.9) Assunto ou referência: “ensinam a esse respeito


que…”.

(2.10) Limite superior: “a porcentagem varia de 10 a 50%”.

(2.11) Restrição ou limitação: “ficou a pão e água”.

(2.12) Preço: “a cebola pode chegar a trinta cruzeiros o


quilo”.

(2.13) Fim: “correu a fazer-lhe companhia”.

(2.14) Termo de movimento: “a gente vai de Belém a


Altamira”.

(2.15) Condição: “A não ser lá, só no tênis”.

Neves não deixa claro se essa extraordinária multiplicação


de categorias semânticas se deve ao item lexical que seleciona a
preposição, o que parece ser o caso dos exemplos do item (1), ou
se se deve à composicionalidade, caso em que os sentidos
provavelmente rarefeitos das preposições se combinariam com
aqueles das palavras à sua volta – e aqui entrariam os exemplos do
item (2).

Na introdução de sua gramática, Neves dá a impressão de


ter-se inclinado pelas duas possibilidades, com certa ênfase na
consideração das preposições como palavras relacionais, portanto
vazias de sentido. Há três momentos em sua caracterização geral
das preposições. (1) “Os dicionários tratam as preposições como
possuidoras de variadas acepções, tal como se fossem nomes” (p.
18). A autora parece condenar esse ponto de vista, e, portanto, as
preposições não possuiriam acepções variadas. (2) “Como peça do

62
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

sistema de transitividade, a preposição (…) tira seu valor das


relações contraídas entre os elementos cuja junção ela efetua”
(p.18). Essa afirmação está coerente com a anterior, isto é, as
preposições seriam vazias de significado, e as noções nelas
identificadas decorreriam de operações metonímicas, em que
ocorre a “importação do significado do vizinho”. A itemização
dos usos das preposições em sua gramática mostra que esta foi a
estratégia descritiva adotada. (3) Entretanto, na mesma página, ela
informa ter avaliado na descrição do uso das preposições “(a) seu
significado unitário, (b) a natureza dos dois termos em relação, (c)
a relação sintática entre o antecedente e o conseqüente, (d) os
traços semânticos dos dois termos em relação e a relação
semântica que entre eles se estabelece”.

O item a e o item d refletem a difícil opção pelo melhor


modo de caracterizar as preposições, uma sorte de drama bastante
comum na literatura específica. Com efeito, o termo “significado
unitário” parece apontar para a autonomia semântica das
preposições. Ele ocorre em outros autores, embora nem sempre
seja definido (Cf. Borba, 1971; Bechara, 1999: 298; e Vilela-Koch,
2001: 256). Bechara argumenta que “cada preposição tem o seu
significado unitário, fundamental, primário, que se desdobra em
outros significados contextuais (sentido), em acepções particulares
que emergem do nosso saber sobre as coisas e da nossa
experiência do mundo”.

A convivência entre um significado unitário, de difícil


conceituação, e outros traços semânticos ou acepções particulares
faz supor que Neves concebeu as preposições no quadro de sua
gramaticalização, representável por uma linha dotada de dois
polos extremos. No polo da gramaticalização menor teríamos as
preposições de significado unitário, e no da gramaticalização
maior, as preposições cujos significados resultam da composição
do significado unitário com os “traços semânticos dos dois termos
em relação”. As preposições introdutoras de argumento exibiriam
a face mais gramaticalizada, enquanto as preposições não
introdutoras de argumentos exibiriam a face menos
gramaticalizada – mas esta já é uma das leituras possíveis do texto
de Neves.

63
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

Proponho a seguir uma visão integradora das posições de


Borba e Neves, com base em sua análise da preposição a, tais
como documentados por eles. Os dois autores procederam a uma
análise minuciosa dessa classe, facilitando interpretações como a
que se segue.

Parto do pressuposto de que as preposições dispõem de um


sentido prototípico, reconhecível a partir das categorias cognitivas
de POSIÇÃO NO ESPAÇO, DESLOCAMENTO NO ESPAÇO e
DISTÂNCIA NO ESPAÇO. Operando sobre esse sentido prototípico,
abstratizando-o, chegamos aos usos derivados, vale dizer, aos
traços semânticos atribuídos. Os dois momentos, no sentido de
“movimentos” da criação lingüística, convivem na mesma
sincronia, dificultando a identificação dos passos dessa trajetória.
Será por isso que os gramáticos oscilam entre reconhecer ou
rejeitar a existência de um sentido próprio às preposições,
preferindo organizar listagens que não revelam o caminho por elas
percorrido em suas sucessivas alterações.

Para encaminhar minha análise, postularei que um macro-


eixo PROXIMAL/DISTAL governa as representações de ESPAÇO e
MOVIMENTO presentes nos estudos analisados. Por outras
palavras, as preposições:

representam os participantes do discurso em sua localização


nos espaços horizontal/vertical/transversal;

indicam se eles se apresentam estática ou dinamicamente (=


movimento);

subordinam as duas categorias anteriores às noções


“longe/perto”, que compõem portanto um macro-eixo,
proximal/distal.

Significa que a categoria de ESPAÇO, bastante complexa,


implica pelo menos: (1) posição do participante nos eixos
horizontal (origem ou ponto inicial/meta ou ponto final), vertical
(ponto superior/ponto inferior), transversal (ponto

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Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

anterior/ponto posterior); (2) posição do participante em relação a


um recipiente real ou imaginário (posição dentro/ posição fora).

No Quadro 1, reúno tentativamente minha interpretação


dos usos catalogados por Borba e Neves.

QUADRO 1: Interpretação dos exemplos de Borba (1972)


e Neves (2000)

MACRO-EIXO PROXIMAL/DISTAL
Eixo proximal A/proximidade Eixo Distal A/afastamento /
MOVIMENTO DOS
PARTICIPANTES

/ Fugir à realidade
Encontrei o médico à mesa
POSIÇÃO DOS PARTICIPANTES NO ESPAÇO
Eixo horizontal Eixo vertical Eixo transversal
Posição Posição
Posição Posição Posição Posição
inicial / final /
superior inferior anterior posterior
origem meta
Voltar à
Sobrevoar
cadeira,
a cidade Andar à
+ Fugir à veio ver à Caminhar Carregar
a mil sombra do
movim. realidade porta, à frente às costas
metros de herói
ajudar a
altura
todos
Olhar à
Blusa ao
janela, Branquejar
ombro,
- citações ao luar, Estar à Falar às
? sentar-se
movim. destinam- reluzir ao frente costas
a um
se a sol
tamborete
deslumbrar

O Quadro 1 mostra que a maior parte dos exemplos


corresponde à localização do participante no ESPAÇO, o que
pode ser captado pelos três eixos propostos, aos quais se ligam os
pares conceptuais opositivos de /posição inicial/ ~ /posição
final/; /posição superior/ ~ /posição inferior/; e /posição
anterior/ ~ /posição posterior/. Deixei de incluir uma coluna

65
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

para a categoria RECIPIENTE/CONTEÚDO, que remete ao par


/posição dentro/ ~ /posição fora/, pois salvo erro apenas Borba
exemplifica a primeira delas: de interioridade, inclusão. A
indicação de /proximidade/ atravessa todos esses índices
posicionais, despontando como a propriedade semântica maior de
a: se as preposições têm um “significado unitário”, /proximidade/
deve ser o de a. Essa constatação, bastante óbvia, revela que a
continua mantendo o sentido do latim ad, a saber, “na direção de,
para, na proximidade de, geralmente com idéia de movimento,
donde o acusativo [que essa preposição rege]” (Ernout e Meillet,
1967, s. v. ad ).

No Quadro 2, proponho um arranjo dos exemplos que


ilustram as subcategorias e os traços semânticos1 exemplificados
por a, hipotetizando que ambos representem derivações das
categorias mencionadas no Quadro 1.

QUADRO 2: Subcategorias e papéis semânticos

Aspecto: estudar ano a ano, ler linha a linha, estar


a falar [duração no eixo horizontal; aspecto
imperfectivo].
Tempo: tomou cervejas ao almoço, morreu aos 50
anos [posição anterior no eixo transversal],
competição a ser realizada [posição posterior no
SUBCATEGORIAS
eixo transversal].
Quantidade: vinho de 300 a 750 cruzeiros, vitória
por 2 a 0 [posição no eixo vertical].
Condição: a ser verdade…[a posição de
proximidade exclui a realidade e implica na
condição]

1
A expressão “traço semântico” será aqui utilizada para
designar as propriedades semânticas inerentes ao item
lexical, deriváveis com maior ou menor felicidade das
categorias cognitivas. Por “papéis semânticos” entendem-
se as propriedades semânticas atribuídas pelo predicador
ao item lexical.

66
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

Modo / Conformidade: arrumar-se a jato,


camarão a bahiana, meninos desapareciam a rodo,
andar à paisana.
Instrumento: escrever a máquina, receber a bala,
cortar a faca.
Locativo: ajoelhar-se ao pé do moribundo [macro-
eixo proximal].
Meta: a mocinha se agarra à mulher [eixo
horizontal: ponto de chegada].
Objeto afetado: impor o ritmo aos demais [eixo
vertical: posição inferior].
Objeto não afetado: obedecer a alguém [eixo
vertical: posição superior].
PAPÉIS
Objeto efetuado: doutrinas que dão origem ao
SEMÂNTICOS
comunismo [eixo horizontal: ponto de chegada].
ATRIBUÍDOS
Receptor ou destinatário: dirigir-se a ela [eixo
horizontal: ponto de chegada].
Beneficiário: oferecer jantar ao aposentado [eixo
horizontal: ponto de chegada].
Experimentador: agradar à rainha [eixo
horizontal: ponto de chegada].
Causa: dever ao acaso, acordar ao estridor das
cometas [posição exterior].

Eis aqui algumas primeiras observações aos quadros 1 e 2:


(1) As posições dos participantes são representadas pelos
referentes dos SNs ligados pela preposição ou pelo sujeito do
verbo associado à preposição. Assim, “a realidade” é o ponto
inicial da fuga, na dimensão “eixo horizontal do espaço”. Quem
volta “à cadeira” atingiu o ponto final de um percurso. Qualquer
objeto que branqueje “ao luar” está colocado abaixo dele, e assim
por diante. (2) A inscrição dos exemplos no Quadro 1 capta a
localização dos participantes num único ponto de referência,
sendo óbvio que a preposição a pode indicar o trânsito de um
desses polos ao outro, como em “variar de 10 a 50%”, por
exemplo, em que se indica a deslocação do ponto inferior ao
ponto superior de uma escala. (3) As expressões transcritas nas
colunas referentes ao macro-eixo proximal/distal, movimento dos
participantes e posição dos participantes no espaço são
consideradas prototípicas, menos gramaticalizadas, se as

67
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

contrastarmos com aquelas transcritas no Quadro 2 – TRAÇOS


SEMÂNTICOS e USOS METAFÓRICOS, que são derivados das
primeiras, e portanto mais gramaticalizadas. (4) Nota-se que o
papel temático LOCATIVO é excessivamente amplo para dar conta
dos dados sem que o especifiquemos devidamente. (5) A
expressão “estar a falar” foi capitulada como ASPECTO
imperfectivo, correspondendo a “está falando”; entretanto, pode
indicar também futuro imediato, no sentido de que alguém “está
para falar”. Essa questão levanta o problema do valor de a nas
perífrases ou mesmo nas estruturas de controle, estudado por
Oliveira (2001). (6) A categoria “relação” mencionada nos dois
textos remete à abstratização máxima das preposições.

1.2. Preposições simples e preposições complexas

Preposições simples “primitivas”, preposições simples


regramaticalizadas e preposições complexas podem ser consideradas
operadores que realizam uma ligação assimétrica entre um objeto
A,2 doravante FIGURA, e um objeto B, doravante FUNDO, com
relação ao qual pretendemos localizar o objeto A:

FIGURA PREPOSIÇÃO FUNDO


Bicicleta diante da igreja
Livro sibre a mesa

A localização de objetos e sua inserção no ESPAÇO é um


dos mecanismos básicos na construção dos sentidos, que opera
também com outras categorias cognitivas tais como VISÃO,
MOVIMENTO etc. (Castilho, 2001).

2
“Objeto” é um termo genérico que remete a pessoas, animais, coisas.
“Estado de coisas” é igualmente um termo genérico que remete a ações,
processos e eventos.

68
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

Essa localização parece funcionar à base de assimetrias. É


assimétrica a relação entre o objeto que queremos localizar
e o ambiente em que vamos localizá-lo, dadas suas
diferenças de tamanho, conteúdo, orientação, ordem,
direção, distância, movimento ou até mesmo dada a
combinação dessas propriedades. São por isso mesmo
pouco habituais expressões tais como “igreja atrás da
bicicleta”, “mesa debaixo do livro” etc., embora
perfeitamente compreensíveis em histórias infantis, contos
fantásticos e em outras articulações discursivas. (Svorou,
1993: 8 et seq.).

Arranjos espaciais são igualmente criados quando um verbo


se associa à preposição para relacionar a FIGURA ao FUNDO,
tratados então como Origem, Meta, Recipiente etc.:

FIGURA PREPOSIÇÃO FUNDO


A comida veio de Casa
A mulher foi para Casa
O livro está na Sala

Outra questão é a das locuções prepositivas, cujo estatuto é


mal definido em nossas gramáticas, como já assinalado por
Câmara Jr. (1975: 144-146), Lemle (1984: 128 et seq., 160 et seq.),
Bonfim (1988), Lobato (1989), entre outros. Macêdo (1997) fez
uma revisão bibliográfica sobre o assunto.

Tradicionalmente, as locuções prepositivas são definidas


como um advérbio, ou um nome, antecedidos opcionalmente por
preposições e seguidos obrigatoriamente por um de ou um a. As
“estruturas” assim identificadas são as seguintes:

PREP + N + PREP + ADV + PREP +


ADV + PREP
PREP PREP PREP
Dentro de A cabo de Diante de Por trás de
Fora de A par de Por/debaixo de Para com
Perto de Ao redor de Por/em cima de Por entre
Longe de Por amor de Em pós de De a

69
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

Antes de Em meio de/a Acerca de


Depois de Em vez de
Quanto a A respeito de
Junto de Defronte de
Através de Em presença de
Ademais de À beira de
Em prol de

Se tomarmos em conta o processo de regramaticalização de


nomes e advérbios, as regras de estruturação do sintagma e a
contextualização dessas expressões, ficará claro que as locuções
prepositivas não dispõem de estatuto categorial próprio, podendo
ser tratadas como preposições complexas. Sua listagem não passa de
um desajeitado recorte dos enunciados, tal como se nada existisse
depois das preposições de finalização de e a. O que temos aqui são
sintagmas adverbiais (SAdv) ou sintagmas preposicionais (SP):

SAdv  Adv + SP, como em [[ADVperto] SP[da casa]], o que


dá conta das expressões reunidas na primeira coluna. Note-se que
em alguns casos uma preposição prefixou-se ao advérbio,
regramaticalizando-a. Assim, em dentro, depois, através, ademais
perdeu-se no português contemporâneo a percepção de que uma
preposição tinha-se fixado a um advérbio

SP  Prep + SN / SAdv, ocorrendo outro SP encaixado


tanto no SN e quanto no SAdv: (1) a prep. rege um SN: [[PREP[a]
SN[o redor da casa]]; (2) a prep. rege um SAdv: [[ PREP[por]
SADV[debaixo do pano]], o que dá conta das expressões reunidas na

segunda e na terceira colunas.

A quarta coluna apresenta casos em que, aparentemente,


uma preposição está regendo outra, o que violaria a regularidade
de constituição dos SPs. Entretanto, é visível que as expressões aí
arroladas representam a confluência de duas estruturas II, com
elisão do SN repetido. Assim, “bom para ele”, e “bom com ele”
reuniram-se em “bom para com ele”, com o apagamento do SN
repetido “ele”. O mesmo se pode dizer de “caminhar por entre as
árvores”, “andar de a pé” etc.

70
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

Nesta fase da pesquisa, tomaremos essas considerações


“para começo de conversa”. Quando dispusermos de uma
casuística maior, trataremos das “condições da
preposicionalidade”, buscando contribuir para o esclarecimento
do estatuto categorial das preposições.

2. Gramaticalização e teoria multissistêmica da


língua

A partir do final dos anos 1990, surgiram no Brasil diversos


estudos sobre gramaticalização, enumerados em Castilho (2002b).
No caso das preposições, devem ser lembrados Viaro (1994,
1995), Baião e Arruda (1996), Macêdo (1997), Poggio (2002), sem
referir aquelas pesquisas que trataram indiretamente desse
processo, como Bonfim (2000), entre outros.

Num artigo-balanço sobre parte da bibliografia publicada


até 1995, propus que nos argumentos sobre a gramaticalização (1)
se aceitassem como fases desse processo a fonologização, a
morfologização e a sintaticização; (2) se considerassem como seus
princípios (i) a analogia, (ii) a continuidade e o gradualismo, (iii) a
unidirecionalidade e a simultaneidade, (iv) a reanálise; e,
finalmente, (3) ficasse claro que a gramaticalização é apenas um
dos processos de criação lingüística, sendo a lexicalização, a
discursivização, e a semanticização outros tantos processos, não se
devendo estabelecer entre eles relações de derivação nem de
determinação (Castilho, 1997).

Mais recentemente, Campbell e Janda (2001: 108)


resenharam a amplitude das definições de gramaticalização,
identificando pelo menos 13 questões críticas: (1) que mecanismos
subjazem na gramaticalização? (2) a gramaticalização é
unidirecional? (3) esse processo tem algum valor explanatório? (4)
a gramaticalização tem um estatuto próprio, ou é totalmente
derivativa? (5) caso não disponha de estatuto próprio, seria ela
necessária, no sentido de que teria poder heurístico? (6) qual é o

71
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

papel do desbotamento semântico e da erosão fonética em relação


a outros fenômenos de gramaticalização? (7) o que é
‘desgramaticalização’ e ‘lexicalização’, e quais são suas relações
com o princípio da unidirecionalidade? (8) se a gramaticalização é
um processo, o que significa isso? (9) a gramaticalização é
contínua, e se for, como explicar isso? será ela gradual? (10) seriam
circulares as afirmações sobre a gramaticalização? as reconstruções
são causa ou conseqüência da proclamada unidirecionalidade? (11)
os contextos sociolingüísticos e a história social afetam a
gramaticalização e sua implementação? (12) gramaticalização é o
trâmite de um item do léxico para a gramática, ou será o trâmite
de um item menos gramatical para um mais gramatical? será ela
constitutiva da gramática? (13) como será o futuro da teoria da
gramaticalização, ou como deveria ser essa teoria?

Esses autores concluem que a gramaticalização não tem um


estatuto próprio, e que os fatos considerados como de
gramaticalização se dispersam pelos campos da mudança
semântica e da reanálise gramatical, em sua qualidade de
epifenômeno. Em todo caso, concluem eles, as pesquisas levadas a
cabo criaram um interessante banco de dados, e isso parece ser
tudo.

Da pena dos gramaticalizadores não escorreu nenhuma


teoria explícita sobre a língua, ficando os leitores obrigados a
inferir em que teoria ou em que teorias eles se fundamentam,
tanto quanto a arranjar-se no cipoal de conceitos, interfaces e
terminologias — o que levou Campbel e Janda (2001) a
concluírem que a gramaticalização não tem um estatuto próprio.

Uma exegese possível dos textos disponíveis mostraria que


seus autores parecem entender a língua como uma entidade
heteróclita, estática, passível de representação através de uma
linha, na qual podemos reconhecer pontos e estabelecer
derivações entre esses pontos. Eis aqui alguns pontos que
parecem integrar sua teoria lingüística:

(1) As línguas naturais são um conjunto de signos dispostos


numa linha. A alteração desses signos se dá por estágios

72
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

unidirecionais, de tal maneira que a um estágio A se segue um


estágio B, a este se segue um estágio C, e assim por diante
(Hopper e Traugott, 1993: 95). Cada estágio corresponde a um
ponto na língua-linha e, portanto, uma relação de seqüencialidade
pode ser estabelecida entre esses pontos. Em estudo recente,
Mattos e Silva (2002) evidenciaram a vertente neogramatical dessa
perspectiva em suas pesquisas sobre as “leis fonéticas”. Como se
sabe, foi o “neogramático” Antoine Meillet quem deu visibilidade
ao problema da gramaticalização, em seu estudo sobre as
conjunções. A teoria lingüística dos neogramáticos foi conservada
nos estudos contemporâneos sobre esse processo.

(2) Depositadas sobre essa linha, categorias lexicais dão


surgimento a categorias gramaticais, e estas a categorias ainda
mais gramaticais, entendendo-se por isto os afixos. Quereria isto
dizer que os itens lexicais não têm propriedades gramaticais,
suficientes para arranjá-los em categorias próprias? Se eles não
têm essas propriedades, como entender que as palavras possam
ser dispostas nitidamente em classes lexicais, as conhecidas classes
maiores (Pronomes, Nomes e Verbos), intermediárias (Advérbios,
Adjetivos), e menores (Artigos, Conjunções e Preposições) que
freqüentam estas páginas? Por outro lado, teriam essas classes um
estatuto categorial claramente configurado, a ponto de se
sucederem perceptivelmente umas às outras na língua-linha,
permitindo-nos testemunhar sua metamorfose? Nesse caso, e
pensando nos estudos funcionalistas sobre a gramaticalização,
onde foi parar a Teoria dos Protótipos? Seriam mesmo tão claros
os limites entre as classes lexicais, de tal forma que pudéssemos
estabelecer uma relação de derivação entre elas?

(3) Finalmente, na literatura sobre gramaticalização ficam


situados no mesmo nível fenômenos tais como erosão fonética,
descategorização/recategorização morfológica, ampliação dos
empregos sintáticos, perda semântica, sem falar nas pressões do
Discurso sobre o sistema. Esse ponto de vista levou diversos
autores a dispor o Discurso, a Gramática e a Semântica num
“(c)line” — e aqui faço um jogo de palavras associando line e cline
— admitindo implicitamente uma hierarquia e uma decorrente
derivação entre eles. Essa percepção exige que no momento da

73
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

criação lingüística nossa mente funcionaria por impulsos


seqüenciais, isolados uns de outros, indo linearmente de uma
classe lexical para outra, de um subsistema lingüístico para outro.

Em resumo, nos textos sobre gramaticalização a língua é


postulada como uma combinação linear de itens separáveis. Isso
de fato acontece quando falamos ou quando escrevemos — mas
fala e escrita são produtos lingüísticos, e a gramaticalização é o
estudo de um processo lingüístico. Caso contrário, o que estaria
fazendo ali o sufixo –ização?

Os pontos acima resumem boa parte da complicação


teórica da gramaticalização, embora nossos gramaticalizadores
nunca deixassem de reconhecer que estavam tratando de um
processo, não de um produto lingüístico. Eles sem dúvida sempre
estiveram mais interessados na criatividade lingüística do que no
enunciado pronto e acabado — notadamente os autores de corte
funcionalista. É por isso mesmo estranho que continuassem
apegados a categorias que pressupõem a língua como um
enunciado. Estas breves reflexões nos conduzem ao próximo
tópico, a saber, uma proposta de teoria multissistêmica da língua.

Neste texto, argumento contra os três pontos explicitados,


e procuro achar alternativas para elas. A escolha dessas
alternativas é obviamente tarefa para um grupo de pesquisadores.
Em conseqüência, este item do texto deve ser considerado como
um convite à busca de uma teoria que dê conta da enorme
multiplicidade de fenômenos atualmente apresentados como casos
de gramaticalização.

Num primeiro momento, precisaríamos tirar algumas


conseqüências de um fato que goza de grande unanimidade: a
gramaticalização é um processo de criação lingüística, o que
demandará uma teoria dinâmica sobre a língua. Mais que isso, a
gramaticalização é um dentre outros processos de criação
lingüística, o que demandará a postulação de uma teoria
multissistêmica da língua para a identificação dos demais
processos.

74
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

Uma teoria dinâmica e multissistêmica nos permitiria — se


é que em algum dia conseguiremos desenhá-la! — dar conta da
grande quantidade de fenômenos que temos estudado sob a
rubrica “gramaticalização”, permitindo, ademais, enquadrar esse
processo entre outros igualmente relevantes para o entendimento
da criatividade lingüística.

Para começo de conversa, poderíamos assumir que a língua


é um multissistema dinâmico, que pode ser graficamente
representado numa forma radial, tendo ao centro o Léxico e à
volta a Semântica, o Discurso e a Gramática. Esses subsistemas
seriam por postulação teórica independentes uns dos outros,
dispondo cada um de categorias próprias. Admitiríamos também
que nossa mente opera simultaneamente sobre o conjunto das
categorias recolhidas nesses sistemas — as categorias lexicais,
discursivas, semânticas e gramaticais. Quero com isto dizer que
qualquer expressão lingüística exibe simultaneamente
propriedades lexicais, discursivas, semânticas e gramaticais,
variando o grau de saliência entre elas, por razões pragmáticas.

Dialogando com os textos de Morris (1938), Franchi (1976)


e Nascimento (1993), vou, portanto, assumir que a língua tem uma
natureza multissistêmica, captada em termos dos quatro sistemas
acima mencionados. Insisto em que esses sistemas são
independentes uns dos outros, não sendo postuláveis implícita ou
explicitamente regras de determinação entre eles. Por outras
palavras, o Discurso não estipula a criação dos sentidos, e estes
não estipulam as estruturas gramaticais que os “empacotam”. No
atual quadro dos meus conhecimentos, não vejo vantagem em
estabelecer uma hierarquia entre Semântica, Discurso e Gramática,
admitida pelos autores ligados às diversas fases da
gramaticalização, reproduzidas no item 2 deste texto.

Eis aqui uma descrição ainda sumária dos sistemas


propostos.

O Léxico será definido como um conjunto de categorias


cognitivas prévias à enunciação, com base nas quais construímos
os traços semânticos inerentes. Entendo por categorias cognitivas

75
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

VISÃO, OBJETO, ESPAÇO, TEMPO, MOVIMENTO etc., e por


subcategorias, digamos, de VISÃO, (i) FUNDO/FIGURA, (ii)
PERSPECTIVA etc.; de ESPAÇO, (i)
VERTICALIDADE/HORIZONTALIDADE/TRANSVERSALIDADE, (ii)
DISTÂNCIA/PROXIMIDADE, (iii) CONTINENTE/CONTEÚDO etc.
Os traços semânticos são constituídos a partir dessas categorias,
tais como /contável ~ não-contável/, etc., a partir de OBJETO,
/télico ~ atélico/ a partir de EVENTO, e assim por diante.

Combinando categorias e traços de diferentes modos,


obtemos os itens lexicais, que serão realizados no dicionário da
língua seja como um Nome, um Verbo, um Adjetivo, um Artigo,
um Advérbio, uma Conjunção ou uma Preposição. Quer isto dizer
que a cada um desses itens corresponde determinado arranjo de
traços, não sendo necessário afirmar que um Nome gera um
Advérbio, e este uma Preposição, por exemplo. A lexicalização
será, assim, o processo de criação de itens, dispostos nas classes de
palavra ou categorias lexicais.

É bem visível que estou seguindo os autores que entendem


o Léxico como um conjunto de traços semântico-cognitivos, não
como um conjunto de palavras, que é o dicionário da língua,
situando-o ademais no centro do sistema lingüístico. Quando
adquirimos o Léxico, provavelmente adquirimos em primeiro
lugar esses traços e a habilidade de combiná-los em diferentes
padrões, e em segundo lugar as palavras em que por convenção
social esses padrões se abrigam. Em suma, proponho que o
Léxico seja entendido nos quadros de uma hierarquia que vai da
cognição pré-verbal para a expressão verbal.

A Semântica é a criação dos significados baseada em


estratégias cognitivas tais como o emolduramento da cena, a
hierarquização de seus participantes, a organização do campo
visual, a movimentação real ou fictícia dos participantes, sua
reconstrução através da metáfora e da metonímia etc. Daqui
resultam as categorias semânticas de dêixis, referenciação,
predicação, foricidade e conexidade.

76
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

O Discurso é uma sorte de contrato social que


estabelecemos lingüisticamente, de que decorrem os usos
lingüísticos, concretizados no Texto. Esse sistema está fulcrado no
eixo dêitico, isto é, na instanciação das pessoas do discurso e em
sua localização no ESPAÇO e no TEMPO. Satisfeitas essas
condições prévias, dá-se a interação através de estratégias
pragmáticas que nos revelam as categorias discursivas de turno
conversacional, tópico, unidades discursivas, nexos textuais etc.
(Castilho, 1989).

Finalmente, a Gramática é um conjunto de estruturas


razoavelmente cristalizadas, ordenadas nos subconjuntos da
Fonologia, Morfologia e Sintaxe, e governadas por regras de
determinação interna. Essas estruturas se expressam por meio das
categorias gramaticais, definíveis em termos de classes (palavra,
sintagma, sentença), relações (regência, concordância, colocação) e
funções (construções de tópico, argumentos, adjuntos). A
regularidade das categorias gramaticais tem sido comumente
reconhecida, o que não exclui que a instabilidade é constitutiva da
estrutura gramatical.

O ponto central desta proposta, ainda em seus lineamentos


muito gerais, é que o Léxico é governado por um dispositivo
sociocognitivo de caráter pré-verbal, através do qual o falante ativa,
reativa e desativa as propriedades lexicais, dando origem às
categorias discursivas, semânticas e gramaticais. Esse dispositivo é
“social” porque é baseado numa análise continuada das situações
que ocorrem num ato de fala. E é cognitivo porque lida com as
categorias cognitivas e os traços semânticos já mencionados. Uma
conseqüência dessa postulação é negar que as classes de palavra
sejam deriváveis umas de outras.

A postulação desse dispositivo repousa nos achados da


Análise da Conversação e nos achados dos pesquisadores ligados
ao Projeto de Gramática do Português Falado (PGPF). Nos dois
casos, o objeto empírico foi exclusivamente a língua falada, mais
reveladora dos processos de criatividade lingüística que a língua
escrita.

77
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

A conversação é a atividade lingüística básica e pode,


portanto, proporcionar-nos alguns princípios de interesse para
esta demonstração. Quando conversamos, tentamos o tempo todo
prever os movimentos verbais do interlocutor, isto é, se ele
completou sua intervenção, se ela ainda está em curso, se devemos
antecipar o momento de nossa entrada no curso da fala etc. Para
dar conta desse mecanismo, que assegura a manutenção da
conversação, Sacks, Schegloff e Jefferson (1974: 702) postularam
um “componente de construção de turnos” cujas unidades-tipo,
isto é, palavras, sintagmas e sentenças com os quais o falante
contrói seu turno, “projetam a próxima unidade-tipo”, numa sorte
de antecipação da atuação verbal do interlocutor. Essas afirmações
constituem o princípio de projeção pragmática.

Por outro lado, que mecanismos lingüísticos os


pesquisadores do PGPF identificaram, ao longo dos mais de 200
ensaios que escreveram? Algumas respostas podem ser
encontradas em Nascimento (1993), Castilho (1989, 1998b).
Pessoalmente, penso que os pesquisadores do PGPF identificaram
três mecanismos, que aqui apresento como princípios — mesmo
reconhecendo a precocidade deste rótulo. Esses princípios
encontram seu fundamento nas estratégias de gestão dos turnos
conversacionais — o que situa a conversação como a
manifestação discursiva por excelência. Os princípios aqui
propostos assentam, portanto, em observações empíricas, não
precedem os dados da língua, não são apriorísticos. Sua
postulação aparece em versões anteriores, sucessivamente
alteradas (Castilho 1998a, 1998b).

2.1. Princípio de ativação ou princípio de projeção


pragmática

A ativação lexical é o movimento mental de escolha das


categorias cognitivas e de seus traços semânticos que se agruparão
nas palavras. Os diferentes padrões de agrupamento das categorias
e dos traços constroem a dimensão semântica, discursiva e
gramatical das palavras.

78
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

A ativação das propriedades semânticas tem o papel de


escolher as palavras necessárias à representação da dêixis, da
referenciação, da predicação, da foricidade e da conexidade. No
sistema discursivo, a ativação seleciona as palavras necessárias à
hierarquização dos tópicos, à construção das unidades discursivas
e sua conexão etc. A ativação das propriedades gramaticais é
responsável pela construção dos sintagmas e das sentenças, pela
ordenação dos constituintes, pela concordância, pela organização
da estrutura argumental etc. Neste particular, entendo que a
atribuição de caso e de papéis semânticos decorre do princípio de
projeção estrita, descrita na reflexão tradicional como
“transitividade”, “regência”, “valência”, e como “princípio de
projeção” em alguns modelos formais. A projeção estrita é o
correlato da projeção pragmática (Castilho, 1998b).

2.2. Princípio de reativação ou princípio de correção

A reativação é o movimento mental por meio do qual


rearranjamos as propriedades lexicais e as palavras que as
representam, retomando por assim dizer a construção do
enunciado. O princípio da reativação encontra seu fundamento no
sistema de correção conversacional. Como se sabe, no curso de
uma conversação temos freqüentemente de mudar seu rumo, seja
corrigindo nossas próprias intervenções (= autocorreção), seja
corrigindo a intervenção do interlocutor (= heterocorreção). O
sistema de correção conversacional busca eliminar os erros de
planejamento.

A reativação produz no Léxico as ressignificações, vale


dizer, as reconstruções das palavras, corrigindo-se sua adequação à
representação dos OBJETOS e dos EVENTOS, tanto quanto a
regramaticalização das palavras. Na Semântica, a reativação
provoca a paráfrase de textos já produzidos, aos quais voltamos
com diversos propósitos examinados, por exemplo, por Hilgert
(1987). No Discurso, ela abre caminho à repetição dos enunciados
para assegurar a coesão do texto, altera o eixo argumentativo etc.
No domínio da Gramática, pelo menos dois rótulos têm sido
utilizados na literatura para captar os efeitos desse princípio: a
poligramaticalização e a reanálise. A reanálise, dada como um dos

79
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

princípios da gramaticalização, decorre deste impulso da


criatividade lingüística. Reanalisam-se sintagmas e as sentenças, o
que acarreta mudanças da fronteira sintática. Repetem-se as
palavras, para assegurar a constituência sentencial, fato que
examinei em Castilho (1997c).

2.3. Princípio de desativação ou princípio do silêncio

A desativação é o movimento que ocasiona o abandono das


propriedades e das palavras que estavam sendo ativadas. Este
princípio mostra que o silêncio é igualmente constitutivo da
linguagem. A linguagem musical apropriou-se dessa característica,
alternando-se na pauta as notas, ativadas e reativadas, e as pausas,
que são a desativação do som.

Também este princípio assenta nas práticas


conversacionais, quando ocorre a chamada “despreferência”. A
estratégia da “despreferência” consiste em verbalizar o que não é
esperado, violando-se o princípio de projeção pragmática. Isso
ocorre quando respondemos a uma pergunta com outra pergunta,
quando recusamos um convite etc. Nesses casos, cria-se na
conversação um “vazio pragmático” (Marcuschi, 1986).

O princípio de desativação promove no Léxico a morte das


palavras. No sistema semântico, ele está por trás das alterações de
sentido presentes nas metáforas, nas metonímias, na
especialização e na generalização, por meio dos quais
“silenciamos” o sentido anterior e simultaneamente ativamos
novos sentidos. Ele produz no sistema discursivo a alteração da
hierarquia tópica, levando os locutores a manobras tais como os
parênteses e as digressões. Na Gramática, o princípio de
desativação é responsável pela categoria vazia, de que se
encontram exemplos na Fonologia (sílaba com núcleo vocálico
omitido), na Morfologia (morfema flexional zero) e na Sintaxe
(elipse de constituintes sentenciais, ou categoria vazia).

É importante entender que esses princípios operam ao


mesmo tempo, não seqüencialmente, numa forma já prevista por
Lakoff (1987). Assim, a desativação ocorre simultaneamente com

80
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

a ativação, e esta com a reativação, o que compromete o princípio


da unidirecionalidade. A mente humana parece funcionar de
modo mais complexo que um computador, que obedece a
instruções seriais, constantes de entidades opositivas do tipo “zero
/ 1”, ou “sim / não”. O dispositivo sociocognitivo age por
acumulação de impulsos, e somente assim poderemos dar conta
da extraordinária complexidade da linguagem. Neste quadro, fica
difícil concordar com as análises que mencionam o
“desbotamento” do sentido, a “erosão” fonética, pois a língua
desvela um processo contínuo de ganhos e perdas.

Tendo essas idéias como pano de fundo, parece claro que


três programas adicionais precisariam ser desencadeados no
quadro dos estudos sobre mudança gramatical empreendidos
pelos pesquisadores do PHPB: o da lexicalização, o da
semanticização e o da discursivização, privando a gramaticalização
de sua atual centralidade. Passo a oferecer uma agenda mínima
para o estudo desses processos.

Lexicalização é a criação das palavras via seleção de


propriedades cognitivas e de traços semânticos derivados,
processando-se sua misteriosa concentração numa forma. A
Etimologia e a observação dos usos das preposições nos bons
dicionários de usos nos permitirão identificar essas propriedades,
numa espécie de volta ao momento de criação do item lexical ou,
se quiserem, numa espécie de arqueologia lexical. As diferentes
classes de palavras, ou categorias lexicais, são o produto resultante
da lexicalização.

Precisamos sem dúvida entender mais claramente os


mecanismos semânticos das línguas naturais, para configurar a
agenda da semanticização. A criação e as alterações do sentido são
algumas das perguntas básicas a formular aqui. Vejo dificuldades
nas explicações que aludem a um desbotamento semântico
(bleaching, fading), como se a permanente criatividade de que é feita
a língua implicasse em perdas, sem ganhos, em desmaios, sem
despertares. Em contrapartida, parece adequado aprofundar as
pesquisas sobre a dêixis, a referenciação, a predicação, a foricidade
e a conexidade, precedendo tudo isso com indagações sobre como

81
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

criamos os sentidos. Neste trabalho, dou alguns passos na direção


do estudo da conexidade. Heine, Claudi e Hünnemeyer (1991)
fornecem um quadro interessante para captar as translações de
sentido e partir de categorais cognitivas de base, e suas idéias serão
levadas em conta. O produto da semanticização são os sentidos
das palavras (Semântica lexical), as significações composicionais
das expressões multivocabulares (Semântica sintática) e os
significados inferenciais (Semântica pragmática).

O processo de discursivização tem por resultado as categorias


textuais de topicalização (= seleção e hierarquia tópica, desvios
tópicos por digressão e por parênteses), correção sociopragmática,
fluxo da informação, conexão textual, entre outros temas. Alguns
lingüistas brasileiros têm estudado a discursivização, sem uma
elaboração teórica maior (Ver, pelo menos, Castilho, 1997a: 60;
Bittencourt, 1999; e Gorski, Gibbon, Valle, Rost e Mago, 2002).
Essas referências têm o mérito de mostrar que há certo
desconforto em tratar os temas acima como casos de
gramaticalização, o que significaria fazer confluir para uma mesma
dimensão processos lingüísticos de variada ordem. O estudo
pormenorizado da utilização das preposições na organização do
texto poderia verificar se elas atuam em questões tais como (1)
introdução do tópico discursivo; (2) agregação de informação
secundária, enriquecendo a elaboração do tópico, via adjuntos; (3)
determinação/indeterminação/impessoalização do tópico, (4)
articulação do texto etc. O produto da discursivização é o texto.

A gramaticalização cinde-se em três subprocessos:


fonologização (alterações no corpo fônico das palavras),
morfologização (alterações que afetam o radical e os afixos) e
sintaticização (alterações que afetam os arranjos sintagmático e
sentencial), os quais ocorrem simultaneamente, sem uma
hierarquia de precedência entre eles. A unidirecionalidade só pode
ser comprovada no tratamento das palavras no interior de cada
um desses subprocessos — e por aqui vai ficando o famoso
princípio da unidirecionalidade. Acredito que a ação do
dispositivo sociocognitivo, uma vez mais detalhado e melhor
entendido, fornecerá as bases teóricas para o entendimento da
gramaticalização, da regramaticalização e da desgramaticalização.

82
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

O produto da gramaticalização são as estruturas fonológicas,


morfológicas e sintáticas.

3. Perspectiva multissistêmica das preposições

Tomando em conta a teoria esboçada no item anterior,


penso que um estudo sistemático das preposições deve formular
as seguintes questões, parte das quais reproduzem a trajetória das
pesquisas específicas sobre gramaticalização: (1) lexicalização das
preposições: a construção desses itens lexicais; (2) discursização
das preposições: a construção do texto; (3) semanticização das
preposições: a construção dos sentidos; (4) gramaticalização das
preposições: a construção da sentença.

3.1. Lexicalização das preposições: a construção dos


itens lexicais

Para avaliar as propriedades lexicais das preposições,


iniciaremos o trabalho pelo estudo de sua etimologia. Um mesmo
étimo pode dar origem a diferentes itens, ordenados nas classes de
palavras. Vou denominar esse fenômeno de polilexicalização, um
fenômeno paralelo à polissemia. Ocorrendo a polilexicalização,
uma rápida análise das classes derivadas será feita nesta parte do
trabalho, para avaliar comparativamente o comportamento das
preposições nesse quadro de dispersão etimológica.

A “fortuna léxica” dos itens será explicada a partir da


identificação das categorias cognitivas básicas e dos traços
semânticos derivados, o que guardará muitas relações com o
estudo de sua semanticização. Assim, um étimo como *ant “testa”,
deu origem às seguintes categorias léxicas em português:

3.1.1 – Preposição:

(1) Ante o espetáculo de abandono dos projetos, preferiu


desistir.

3.1.2 – Pronome-advérbio:

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Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

(2) Poucos dias antes ele estivera na cena do crime.

3.1.3 – Conjunção: Os dados levantados até aqui mostram


que *ant, em geral acompanhada por outras expressões, pode
funcionar como conjunções intersintagmáticas e intersentenciais:

(3) Conjunção coordenativa

[19 1 BA/SA CJ/R][SN ou antes SN] Desgraça fatal! Ou


antes moles | tia, que tanto persegue a certos | homens, que
pelos effeitos de hu ma debilidade capital se propõe a dar | Leis
ao Mundo, quando elles se não | sabem reger a si proprios.

[19 2 SP/SP CJ/L][[S] ou antes [S]] O caipira, é vadio. Vive


em sua casa,|mal barreada, e ali vivem, ou antes morrem,|a
mulher e filhos, ao desabrigo.

(4) Conjunção subordinativa

[19 2 PR/LO CJ/L][[S] antes de [S]] Entretanto (preceitua


o mesmo regulamento) quem, antes de findar os dous annos,
quizer pagar o valor da letra, po- | del-o-há fazer mediante um
abatimento correspondente ao | tempo, que faltar para o do seu
vencimento.

(5) Conjunção correlativa

[19 2 SP/SP CJ/R] [[S mais] [do que S]] Hoje gastamos
mais do que vendemos, nossa venda é menor que a despesa (…).

3.2. Semanticização das preposições: a


construção do sentido

A literatura sobre as preposições sempre reconheceu a


importância das categorias cognitivas, sobretudo ESPAÇO, para o
estudo dessa classe. Para ficar com apenas dois autores, vejamos o
que pensam sobre a relação “categoria cognitiva — categoria
lingüística de preposição” — Jerônimo Soares Barbosa, gramático

84
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

português do século XVIII, e Viggo Brondal, teórico da


linguagem do século XX.

Soares Barbosa (1803: 218-236) define a preposição como


“uma parte conjuntiva da oração, que posta entre duas palavras
indica a relação de complemento que a segunda tem com a
primeira”. Em seguida, evidentemente fundamentado numa
Teoria Localista, reconhece duas classes de preposições, dizendo o
essencial sobre essa classe:

PRIMEIRA CLASSE - PREPOSIÇÕES DE ESTADO E


EXISTÊNCIA. As preposições d’esta classe exprimem as
relações dos objectos por ordem ao logar onde existem, ou
absolutamente, ou tambem em respeito a outros objectos
que no mesmo se acham. Porque a idéa do logar onde, é
geral e indeterminada, e por isso susceptivel de várias
determinações particulares, quaes são as differentes
situações de um objecto a respeito de outro mesmo logar, e
os acompanhamentos que com elle concorrem, ou deixam
de concorrer. As situações podem-se considerar
relativamente ou ás superficies horisontaes, ou ás
perpendiculares. Tudo são modificações do logar onde, que
as preposições d’esta classe exprimem do modo seguinte
(...) (p. 227).

Ele situa aqui as seguintes preposições: em, relativa ao lugar


onde em geral; sobre, sob, entre, relativas às situações horizontais do
mesmo lugar onde; ante, após, contra, relativas à situação
perpendicular no mesmo lugar onde; com, sem, relativas aos
acompanhamentos no mesmo lugar.

SEGUNDA CLASSE - PREPOSIÇÕES DE AÇÃO E


MOVIMENTO. Toda a acção é um movimento ou real ou
virtual, e todo o movimento tem um principio d’onde parte,
um meio por onde passa, e um fim aonde ou para onde se
dirige. Estas são as relações geraes das preposições activas,
cujo primeiro destino, tendo sido o de indicar o logar
d’onde começa qualquer movimento, o espaço por onde
passa, e o termo aonde se encaminha; d’aqui, por analogia

85
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

do espaço local com o espaço do tempo, passaram a


significar as mesmas relações por ordem ao tempo em que
uma coisa começa, pelo qual continua, e aonde termina (...)
(p. 230) .

Ele situa aqui as seguintes preposições: de, desde, por,


pertencentes ao lugar de onde; per, pertencente ao lugar por onde;
a, até, para, pertencentes ao lugar para onde.

Viggo Brondal, em sua Teoria das Preposições de 1950, apud


Borba (1971: 80) afirma que

(...) o primeiro sentido, comum a todas as preposições é o


espaço-temporal, ou melhor, a localização no espaço ou no
tempo. Ele explica que “a imagem sensorial é a primeira
que se apresenta e muitas vezes é indispensável como
ponto de partida do pensamento, ainda que a língua nem
sempre se assente sobre imagens sensoriais.

Por outro lado, a literatura sobre as preposições tematiza


continuadamente a difícil questão de seu sentido. Teriam elas um
sentido de base, de que decorreriam sentidos derivados? Ou
seriam completamente vazias de sentido, e a semântica das
expressões preposicionadas decorreria dos termos que elas
relacionam?

Nesta pesquisa, vamos hipotetizar que as preposições têm


um sentido prototípico, dado pelas categorias e subcategorias
cognitivas, que se desdobram por processos vários em traços
semânticos derivados.3

Os sentidos prototípicos das preposições correspondem às


categorias semântico-cognitivas de POSIÇÃO NO ESPAÇO,
DESLOCAMENTO NO ESPAÇO, DISTÂNCIA NO ESPAÇO e
MOVIMENTO. A categoria de ESPAÇO poderá ser descrita em
termos dos eixos horizontal, vertical e transversal. Reúno

3As categorias e subcategorias cognitivas são representadas em


VERSALETES, e os traços semânticos, entre barras inclinadas.

86
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

tentativamente no Quadro 3 as categorias cognitivas de base e


derivada, e os traços e papéis semânticos de interesse para esta
pesquisa.

87
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

QUADRO 3: Categorias cognitivas, traços e papéis


semânticos

CATEGORIAS CATEGORIAS TRAÇOS E


COGNITIVAS COGNITIVAS SUBCATEGORIAS PAPÉIS
DE BASE DERIVADAS SEMÂNTICOS
FIGURA,
/imperfectivo/
FUNDO,
VISÃO Aspecto /perfectivo/
PERSPECTIVA,
/iterativo/
etc
/contável/
Quantidade /não-contável/
etc
/causa/,
CONCRETO
OBJETO /modo/,
ABSTRATO
/posse/,
Qualidade
/matéria/,
/instrumento/,
/condição/
/agentivo/
Télico
/passivo/
Atélico
DELIMITAÇÃO /médio/
DE /presente/
EVENTO ENTIDADES, Tempo /passado/
DINAMISMO, /futuro/
etc /coordenação/
Relação /subordinação/
/correlação/
/origem/,
Eixo horizontal
/meta/
POSIÇÃO NO /superior/,
Eixo vertical
ESPAÇO /inferior/
/anterior/,
Eixo transversal
/posterior/
ESPAÇO
MOVIMENTO /dinâmico/,
Real Imaginário
NO ESPAÇO /estático/
PROXIMIDADE /proximal/,
NO ESPAÇO /distal/
CONTEÚDO/ /dentro/,
CONTINENTE /fora/

88
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

Seria, entretanto, ingênuo supor que as preposições


espelham perfeitamente os eixos espaciais indicados nesse quadro.
Como se reconhece amplamente na literatura cognitivista, “entre a
linguagem e o mundo físico ou objetivo há um nível intermediário
que nos chamamos ‘cognição’” (Svorou, 1993: 2). A criatividade
humana intervém aí de diferentes modos, promovendo alterações
nos sentidos prototípicos, de que derivam as subcategorias de
Aspecto, Tempo, Quantidade e Qualidade. (Castilho, 2002a).

Num trabalho anterior, Viaro (1994) havia proposto várias


categorias para dar conta do desenvolvimento semântico das
preposições latinas em sua mudança para o português e o romeno.
Ele opera com as seguintes categorias:

Afastamento (ab, ex, de, sine, se(d), *an, dis-).

Aproximação (ad, usque, tenus, paene, illac).

Meio (per).

Circularidade (circum, circa, ambi-).

Verticalidade (de, *an-, au-, *ni-, infra, sub, super, sursum,


deorsum, subter, subtus, supra, per).

Seqüência (ob, prae, por-, pri-, pro, ante, contra, erga, re-,
pos, secus).

Interioridade (ex, in, inter, indu-, intro-, intra, foras, foris,


penes).

Proximidade (apud, iuxta, cum, ad, ab, prope, cis, citra, uls,
ultra, trans, longo).

Os termos “afastamento”, “aproximação”, “meio” e


“seqüência” de Viaro (1994) correspondem ao percurso
horizontal, captado pelo eixo respectivo; “verticalidade”, ao eixo

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Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

vertical; “interioridade”, à oposição recipiente/conteúdo. No


Quadro 3, ficou de fora o parâmetro de “circularidade”,
gramaticalizado em português por meio das preposições
complexas mencionadas no item 1.2.

Haveria uma mudança diacrônica nessas representações?


Para responder a essa pergunta, teríamos de investigar a
estabilidade das preposições em sua representação das categorias
cognitivas:

3.2.1 – Que categorias semântico-cognitivas de base as


preposições exemplificam? Que categorias cognitivas e traços
semânticos derivaram dessas categorias prototípicas?

3.2.2 – Na organização de seus textos, os falantes se


movimentam de um pólo a outro do eixo espacial considerado?
Como se gramaticalizam os movimentos origem ⇔ meta, superior ⇔
inferior, anterior ⇔ posterior, continente ⇔ conteúdo, proximidade ⇔
distância?

3.2.3 – Embora não se admita aqui que uma classe lexical


derive de outra, reconhece-se que há uma gradualidade de
abstração quando comparamos os diferentes usos do mesmo item.
Assim, no Ide. *ant especifica um OBJETO, deslisando daqui o
sentido para a indicação de uma QUALIDADE, ou propriedade,
como Advérbio, e de uma RELAÇÃO como Preposição e
Conjunção. A escala OBJETO > QUALIDADE > RELAÇÃO
capta essa regularidade, admitida a unidirecionalidade de base
cognitiva no interior do sistema semântico, que rejeito quando se
pretende aplicá-lo de um sistema para outro.

Os dados apurados serão reunidos em quadro próprio nas


Conclusões, permitindo que se compare a atuação das preposições
estudadas. De toda forma, será conveniente dispor as preposições
em eixos espaciais, o que proverá um arranjo prévio para seu
estudo, fugindo-se ao esquema de listas que tem predominado
neste campo.

90
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

Eis aqui uma primeira proposta de arranjo:

A) Preposições do eixo horizontal: /+Origem/: de, desde ~


/+Meta/: até, contra, a, para. Orientação lateral: à esquerda de,
à direita de.

B) Preposições do eixo vertical: /+Superior/: sobre, por


cima de, em cima de ~ /+Inferior/: sob, embaixo de, por
baixo de, debaixo de.

C) Preposições do eixo transversal: /+Anterior/: ante,


diante de, antes de, em frente de, em face de, defronte de,
defronte a, à frente de ~ /+Posterior/: atrás (de), por trás
de, após, depois (de), em pós de.

D) Preposições do eixo Continente ~ Conteúdo:


/+Dentro/: em, entre, dentro de, em meio de, em meio a,
com ~ /+Fora/: fora de, sem.

E) Preposições do eixo Proximal: perto de, acerca de, a


cabo de, junto de, a par de, em presença de, à beira de;
Distal: longe de, distante de, na ausência de.

Nesta fase do trabalho, vou concentrar-me nas preposições


do eixo transversal.

3.3. Discursivização das preposições: a construção


do texto

Givón (1979) postulou que a Pragmática alimenta a


Gramática, sustentando que por gramaticalização também se
entende o trânsito das estruturas pragmáticas para a sintaxe.
Tornou-se famosa sua explicação de que as construções de tópico
se gramaticalizam como sujeito.

À primeira vista, parece estranho que Givón tivesse


alargado a escala então vigente para Discurso > Sintaxe > Morfologia
> Morfofonêmica > zero. Afinal, se por Discurso se entende o
contrato social que estabelecemos por meio das línguas naturais,

91
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

como admitir que as categorias interacionais próprias do Discurso


pudessem transmudar-se em categorias gramaticais?

Essa, entretanto, não é a teoria do Discurso esposada por


Givón, quando ele distingue em seu texto aqui referenciado o
“modo pragmático” do “modo sintático”. Para ele, entende-se por
modo pragmático o predomínio da estrutura tópico-comentário, o
encadeamento vocabular frouxo e o uso reduzido da morfologia
gramatical. O modo sintático, ao contrário, se caracteriza pela
estrutura sujeito-predicado, pela subordinação, pela ordem rígida
das palavras, e pelo uso elaborado da morfologia gramatical. O
primeiro modo se documenta nos pidgins, na linguagem infantil,
na linguagem falada não-planejada. O segundo modo se
documenta nos crioulos, na linguagem adulta, na linguagem escrita
planejada. Conclui-se que o Discurso givoniano é uma sorte de
macro-sintaxe que toma o texto por objeto empírico. Muitos
ensaios sobre gramaticalização que adotaram esse ponto de vista
versaram questões tais como a conectividade textual, a foricidade,
a topicalização — em suma, as categorias comumente aceitas
como textuais. Célia Maria Moraes de Castilho (comunicação
pessoal) alertou para o fato de que o “modo pragmático” de
Givón segue muito de perto a teoria lingüística dos neogramáticos
indoeuropeístas e romanistas da primeira metade do século XIX.
Autores como Friedrich Diez, Meyer Lübke, entre outros,
acreditavam que a sintaxe das línguas passava por duas fases em
sua história, indo de uma sintaxe aposicional ou paratática, para
uma fase dependencial ou hipotática. No primeiro momento, as
palavras se seguiam umas às outras, sem mecanismos gramaticais
de conexão — este é o modo pragmático de Givón, o modo da
loose syntax. No segundo momento, surgiam diferentes
mecanismos gramaticais de conexão, tais como as flexões
morfológicas, a transitividade, as preposições e conjunções — este
é o modo sintático de Givón, o modo da tied syntax.

Devidamente filtradas, as considerações acima fornecem


algumas sugestões de investigação. Para o estudo das propriedades
textuais das preposições, formularemos as seguintes perguntas: (i)
que expressões preposicionadas topicalizam o enunciado, isto é,
que expressões fornecem o quadro de referências dentro do qual

92
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

deve ser entendido o enunciado que se segue? é possível


identificar as funções dessas construções de tópico? (ii) que
expressões operam como conectores do enunciado? (iii) houve
variação entre as preposições que desempenham essas funções
textuais?

Uma pré-analise dos materiais revelou as seguintes


propriedades textuais das preposições:

3.3.1 - Preposições que atuam nas construções de tópico (=


CTs). As CTs até aqui identificadas desempenham as seguintes
funções:

(6) CT modalizadora

[19 1 SP/SP CJ/L] De certo / sem dúvida, logo havendo o


uniforme fica sempre o mesmo vicio que se quer evitar.
[hiperpredicação da sentença por modalização asseverativa].

(7) CT delimitadora

(a) Para nós, a situação de Ruanda é igual à de Botsuana.[o


conteúdo proposicional é considerado verdadeiro dentro do
quadro de referências criado pela CT]

(b) Com respeito à globalização, eu gostaria que o senhor


falasse sobre o significado da globalização no mundo moderno.

Serão consideradas CTs as expressões preposicionadas que


tomam por escopo toda a sentença, e não apenas um de seus
constituintes. As CTs se situam fora das fronteiras sentenciais.
Isso quer dizer que distinguiremos “topicalização” (= (i)
mecanismo discursivo de seleção de um tópico textual; (ii)
deslocamento de constituinte para a esquerda da sentença) de
“construção de tópico” (= estruturação de um constituinte extra-
sentencial). Adjuntos se movem na sentença, mas as CTs já são
produzidas em sua periferia. Tanto assim é que, adotado o
expediente de movê-las para dentro da sentença, altera-se o
significado proposicional, como se pode constatar em

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Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

(7b’) Eu gostaria que o senhor falasse com respeito sobre


o significado da globalização,

isto é,

(7b’’) Eu gostaria que o senhor falasse respeitosamente


sobre o significado da globalização,

que não parafraseia (7b’). Neste caso, o SP está em


adjunção ao SV, funcionando como um adjunto adverbial de
qualidade.

Distinguiremos CTs preposicionadas, que tomam toda a S


por escopo, de (i) SNs anacolúticos, como em “O ônibus! e não é
que eu esqueci minha carteira outra vez!; (ii) SNs movidos para a
esquerda, coindexados a um constituinte da S, como em “A minha
carteira ela está cheia de contas”; e (iii) outros constituintes
deslocados para a esquerda, como em “Banana eu não como
mesmo”. Essas expressões nominais não modificam a sentença,
fato que ocorre com as CTs preposicionadas.

Em conseqüência, sentenças discutidas na literatura tais


como “O carro furou o pneu”, “Drama já basta a vida”, “O
Amazonas é impressionante o número de frutas”, “Paris eu não
pago hotel” serão consideradas aqui como adjuntos deslocados
para a esquerda, com elisão da preposição.

3.3.2 - Expressões preposicionadas que funcionam como


conectivos textuais:
(8) As chuvas chegaram com uma fúria incontrolável,
as lavouras foram destruídas,
perdeu-se a criação.
com isso / desse modo
Os prejuízos se avolumaram, e
a miséria se abateu sobre a região.

3.4. Gramaticalização das preposições: a construção


da sentença

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Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

Como hipótese inicial, agruparemos as preposições em pelo


menos três pontos em sua escala de gramaticalização: (i) as mais
gramaticalizadas, isto é, as que se comportam exclusivamente
como preposições (como parece ser o caso de de, em, a, para, com,
por); (ii) as medianamente gramaticalizadas (sem, sob, sobre, até, entre,
contra, desde, após); e, finalmente, (iii) as menos gramaticalizadas
(ante, perante, durante, exceto, salvante, salvo, conforme, trás, segundo).
Essa espécie de “escala interna” vai dos itens mais freqüentes e
com maior amplitude sintática, para os itens menos freqüentes, de
menor amplitude sintática. Como se vê, a escala de
gramaticalização das preposições nada tem a ver com sua escala
semântica, apresentada no item 3.2, comprovando que não há
determinações entre os sistemas lingüísticos.

Observando o papel das preposições na construção da


sentença, serão considerados os seguintes quesitos: (1) funções
sentenciais das expressões preposicionadas; (2) posição do
constituinte preposicionado na sentença; (3) elipse de preposições;
(4) troca lexical de preposições; (5) grau zero, ou desaparecimento
de preposições.

3.4.1 – Funções sentenciais

3.4.1.1 – Argumentos preposicionados

(9) Objeto indireto

Deu a prova ao aluno.

(10) Complemento oblíquo

Preciso de remédios.

3.4.1.2 – Adjuntos adverbiais preposicionados4

4 Nesta fase da pesquisa não serão considerados os adjuntos adnominais

preposicionados.

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Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

(11) Adjunto adverbial de Lugar

Eles se encontraram no bar.

Naquele país, tudo podia acontecer.

(12) Adjunto adverbial de Aspecto

Eles se falavam com freqüência.

(13) Adjunto adverbial de Tempo

Naqueles tempos, as coisas eram assim mesmo.

(14) Adjunto adverbial de Qualidade

(a) Falei com franqueza tudo o que estava atravessado na


minha garganta. [modo]

(b) Cortei o bolo com a faca. [instrumento]

(c) Saí com os colegas para comer umas pizzas.


[companhia]

3.4.2 – Posição de constituintes preposicionados e seu


movimento

Para o estudo dos lugares de figuração dos constituintes


preposicionados, será adotada com pequenas alterações a seguinte
representação da sentença proposta por Tarallo e Kato (1992:
321):

[…Tóp (...Suj...V...OD...O1...OBL) Antitóp…]

Na formulação acima, substituiu-se da representação


original V+FLEX por V, Co por OD, Ci por OI, tendo-se
incluído OBL para “complemento oblíquo”. Caso se trate de
perífrase, V se desdobrará em V1 e V2. As reticências assinalam os
espaços passíveis de preenchimento por adjuntos adverbiais.

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Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

Para o estudo da movimentação desses constituintes,


vamos partir da hipótese de que adjuntos adverbiais
preposicionados movem-se mais na sentença do que os
argumentos. A pesquisa procurará correlacionar os tipos de
adjuntos adverbiais e sua posição preferida, identificando quais os
que se movimentam mais, e se é verdadeiro que os argumentos
preposicionados têm perfil diferente.

Braga e Botelho (1981) mostraram que os Adjuntos


Adverbiais de Tempo [e de Aspecto] movimentam-se para a
esquerda mais que os de Lugar, Modo, Quantidade e Companhia,
numa proporção de 43,5% deslocados para os temporais, e de
56,5% não deslocados para os demais:

(15) Naquele dia, eles me levaram... [SP / Tempo]

(16) ∅ Sábado e domingo eu não gosto de passar sem


dinheiro. [SP / Tempo, com apagamento da preposição a]

(17) Às vezes, ela fica em casa. [SP / Aspecto iterativo]

(18) Sempre o carnaval dá mais preocupação. [Sadv /


Aspecto imperfectivo]

Admitindo que (i) adjuntos e argumentos são pólos


extremos de um continuum funcional das sentenças, identificáveis
por gradiência, não por oposição, e que (ii) um adjunto pode ser
reanalisado como argumento, (iii) habitualmente argumentos
ocupam uma posição mais rígida na sentença, será necessário em
conseqüência descrever o grau de mobilidade de uns e outros,
para o estudo de sua diacronia.

3.4.3 – Elipse de preposições

Expressões preposicionadas movidas para a esquerda


elidem habitualmente a preposição. Rocha (1996) estudou os
adjuntos sem cabeça no PB, concluindo que os papéis temáticos

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Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

temporal, locativo e freqüentativo favorecem a elisão das


preposições. Os seguintes nomes encabeçam os adjuntos sem
cabeça: unidades do calendário (dia, mês, ano, minuto, hora),
intervalos particulares do calendário (abril, segunda, manhã, noite, dia,
sábado), nomes comuns (tempo, vez, ocasião, férias, época), nomes
comuns ou próprios indicativos de lugar. Em outro trabalho,
tratando de “adjuntos que ocorrem à margem esquerda da
sentença sem serem regidos por um núcleo visível”, Rocha (2001:
41) dá o seguinte exemplo:

(19) ∅ O Norte, principalmente no Amazonas e no Pará, a


influência indígena é muito grande.

O exemplo (19) mostra a elipse da preposição em em O


Norte, e sua retenção quando o constituinte vem focalizado:
“principalmente no Amazonas e no Pará”.

3.4.4 – Troca lexical de preposições

Alguns autores admitem que as seguintes preposições estão


em processo de substituição no PB: a por em/para; em por ni; de
por desde; ante por diante de; e após por depois de. Como se vê, a troca
lexical em alguns desses casos se dá por regramaticalização, fato já
documentado no latim vulgar e no português arcaico (de que são
exemplos sempre lembrados de > des > desde, migo > comigo, entre
outros), ou por substituição por locuções prepositivas, como em
ante/diante de. O item que sai e o item que o substitui entram
inicialmente em variação, assumindo uma das variáveis um valor
mais geral, e outra um valor mais específico, até que se consuma a
troca lexical.

Alguns casos terão de ser examinados mais de perto. Por


exemplo, há de fato substituição de a por para?

Borba (1971: 133) mostra que, com os verbos ir, vir, levar,
chegar, conduzir, voltar, mandar, descer etc., a preposição a indica a
direção desse movimento, como em “ir ao restaurante”, “voltar à
fazenda”, ao passo que a preposição em indica que o falante não

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Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

está interessado em representar a direção em si, mas apenas sua


inclusão no ponto de chegada, como em “ir no restaurante”,
“voltar na fazenda”. Nova diferença entre essas preposições, ainda
que em outro contexto sintático, vem apontada à página 142: na
indicação de datas, a “tem valor pontual”, como em “às oito
horas, às nove horas”, ao passo que em indica a duração,
empregando-se com períodos mais longos, como em “em
agosto”, “em 1970”. Borba está repercutindo o ensinamento de
Varrão, para quem essas preposições não são sinônimas, visto que
“in forum ire” significa “entrar no forum”, ao passo que “ad
forum ire” significa “ir a um lugar próximo ao forum”. Pontes
(1992: 25) dá exemplos em que a é mais geral e em é mais
específico, quando introduzem complementos de verbo de
movimento; em é mais geral que ni; de é mais geral que desde.
Mollica (1996) sustenta que a variação a / para e em depende de
características morfossintáticas do N encaixado no SP,
explicando-se ainda por fatores discursivo-textuais. Morais (1999)
tratou do emprego da preposição a na introdução de SPs dativos
topicalizados, com papel temático /origem/, hoje substituída por
de como em “a Antonio José de Babo Broxado (…) fugiu (…) um
negro crioulo de idade de 50 annos”. Como ambas as preposições
trazem associado o papel /origem/, ela explica a mudança como
uma competição entre as formas, vencida por de quando a perdeu
esse papel.

3.4.5 – Grau zero da gramaticalização das preposições

Quando uma preposição A é trocada por uma preposição


B, é de supor-se que A esteja morrendo. O grau zero da
gramaticalização das preposições sobreviria após uma troca lexical.

Hipóteses gerativistas sobre a mudança do PB previram


que alterações no quadro dos pronomes acarretariam perdas no
sistema das preposições. Mollica (no prelo) notou que no
português do Rio de Janeiro, entre os anos 1980 e 1990,
prevaleceram as relativas cortadoras, o que confirma essa hipótese.

Berlinck (1997, 2000 a, 2000b, 2001) pesquisou os


complementos preposicionados no português paulista do século

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Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

XIX. Ela constatou uma diminuição progressiva da freqüência de


a, em favor de para, confirmando-se assim o prognóstico de
Pontes (1992: 20-31). Comparando o PB moderno com o PB do
século XIX, tal como documentado em textos de Martins Pena,
Simões Lopes Neto e em anúncios de jornais, ela encontrou os
seguintes valores, que falam por si:

TABELA 1: As preposições a e para segundo Berlinck

A PARA EM
PB século XIX 72% 20% 8%
PB 4% 74% 22%
contemporâneo

O desaparecimento progressivo de a deve explicar as


dificuldades atuais em operar com a questão da crase.

Em suma, uma decisão metodológica calcada no exame


multissistêmico dos dados permitirá no final da pesquisa
identificar as “condições da preposicionalidade”, o que abre
caminho para uma compreensão melhor do estatuto categorial
dessa classe.

4. Estudo diacrônico das preposições do eixo


transversal

4.1. Lexicalização

4.1.1 – São as seguintes as preposições indicativas de espaço


/+Anterior/: ante, perante, diante de, antes de, defronte de/a, a/em frente
de/a, em face de. Elas se calcam em três étimos: Ide. *ant, Lat. fronte e
facie.

(1) Do ponto de vista etimológico, ante deriva do advérbio


latino ante “adiante, antes, anteriormente” que, por sua vez,
“deriva-se do ide. *ant- ‘testa, fachada, frontispício’” (Viaro, 1994:

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Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

178). Em latim, ante tinha derivado de anti, funcionando como


advérbio, prevérbio e preposição de tempo e de lugar, que
selecionava acusativo. Segundo Houaiss (2001) s.v. ante, a
preposição “relaciona por subordinação (vocábulos, termos,
orações, etc.) orientando prospectivamente no tempo, no espaço,
na noção”; “posição próxima ou frontal”.

O étimo deu origem no latim a três categorias lexicais,


exemplificando o fenômeno da polilexicalização: (1) Como
pronome-adverbial5 locativo e temporal, representava
habitualmente um participante da cena localizado diante dos
olhos, gramaticalizando-se como preposição, como em
innumerabiles supra, infra, ante, post mundos esse [existem inúmeros
mundos em cima, embaixo, atrás, na frente], ou o tempo anterior,
gramaticalizando-se como advérbio [na terminologia dos autores
citados], como em tertio anno ante [três anos antes]. (2) Como
preposição, ante selecionava caso acusativo, com significado
igualmente locativo, como em ante oculos ponere [pôr diante dos
olhos], ou temporal, como em ante Romam conditam [antes da
fundação de Roma] (Gaffiot, 1957), s.v. ante. (3) Por algum
mecanismo semântico de caráter associativo, a expressão
desenvolveu o sentido de comparação, aparecendo na locução
conjuncional correlativa ante…quam [antes que].

No latim vulgar, o item vinha reforçado por uma partícula


preposta, donde abante, deante, exante, inante, casos evidentes de
regramaticalização, que apontam para a perda de propriedades do
item já naquela época (Ernout e Meillet, 1967), s.v. ante.
Interessante sublinhar que essas partículas de regramaticalização
são outras tantas preposições latinas, as quais têm em comum (i)
disporem os participantes num percurso, de que se assinala o
marco inicial no eixo horizontal, de onde alguém se afasta (ab); ou
(ii) disporem os participantes no ponto superior do eixo vertical

5Para uma discussão sobre os pronomes-advérbios (ali denominados


pronomes circunstanciais de tempo e lugar), ver Ilari et al. (1990). Dada a
escalaridade entre pronomes circunstanciais de tempo e lugar e advérbios
não predicativos, adotarei aqui a expressão “pronomes-adverbiais” para
denominar as expressões de tempo e lugar.

101
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

(de); ou, finalmente, (iii) situarem-no num ponto de chegada, para


o qual alguém se destina ou se inclui (in). Essa regramaticalização
deve explicar-se pela vaguidão de termos dêiticos como ante, post.
Provavelmente, as preposições agregadas ao advérbio serviam
para inserir pontos de referência no espaço, delimitando o ponto
inicial ou final.

O português preservou as categorias gramaticais herdadas


do latim, encontrando-se nos materiais (i) o pronome-advérbio
antes, com –s paragógico; (ii) a preposição ante; (iii) as
regramaticalizações avante, diante [< de in ante], adiante [< ad de in
ante], a segunda das quais deu surgimento a adverbiais complexos
como de hoje em diante; e (iv) o prefixo ante–, que aparece em
substantivos (antanho, antecipação, antebraço, avanguarda/ vanguarda
etc.), pronomes circunstanciais de tempo (antes-de-ontem, anteontem,
antemanhã), e verbos (arc. avantar, antevir, avançar [<* abantiare]) (cf.
Machado, 1956), s.v. ante.

O exame preliminar dos dados revelou que ante lexicaliza-se


como uma preposição simples em (20-21), pronome-advérbio em
(22), preposição complexa em (23), conjunção coordenativa
intersintagmática em (24) e intersentencial em (25), conjunção
subordinativa em (26) e expressão volitiva em (27):

(20) [19 2 BA/SA CJ/L] Senhor Redator.- Não posso ficar


mudo ante o espectaculo doloroso, que acabo de
presenciar. Um carroceiro, portuguez, ao que parece, alvo,
com barba fechada (…)

(21) [19 2 MG/OP A] Ernesto Augusto de Oliveira,


incumbe-se de procuratórios perante todas as repartições
públicas da capital.

(22) [19 1 RJ/RJ A] No dia 17 de Fevereiro corrente pelas


10 horas da manhã, se perdeo hum Moleque na Praia do
Peixe, o qual terá 15 annos de idade; chama-se Matheus, he
de Nação Cabundá, com calças de Amiagem, e Camiza de
pano de linho; ignora a lingoa Portugueza por ser comprado
dias antes no Valongo: Quem delle souber, vá falar com

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Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

João Pereira da Silva, morador na Rua da Ajuda Número 52


ao pé do Coronel Antonio Correa da Costa; e delle receberá
boas alviçaras.

(23) A sala de jantar é antes da cozinha.

(24) [19 1 BA/SA CJ/R] Desgraça fatal! Ou antes moles |


tia, que tanto persegue a certos | homens, que pelos effeitos
de hu- | ma debilidade capital se propõe a dar | Leis ao
Mundo, quando elles se não | sabem reger a si proprios.

(25) [19 2 CJ/L] O caipira, é vadio. Vive em sua casa,|mal


barreada, e ali vivem, ou antes morrem,|a mulher e filhos,
ao desabrigo.

(26) [19 2 PR/LO CJ/L] Entretanto (preceitua o mesmo


regulamento) quem, antes de findar os dous annos, quizer
pagar o valor da letra, po- | del-o-há fazer mediante um
abatimento correspondente ao | tempo, que faltar para o
do seu vencimento.

(27) [19 2 SP/SP CJ/L] Infeliz homeopatha!… antes não


tivesse vindo a S. Paulo! Por certo daria um passo muito
mais acertado se tivesse procurado um lugar inculto.

(2) A preposição complexa defronte (de) (a) deriva do


substantivo latino fronte “fronte”, “testa”, “parte anterior do rosto”
— (Machado, 1956) s.v. fronte, que a data do século XVI —, ao
passo que (a) (em) frente (de) (a) deriva de frente, dada pelo mesmo
dicionarista como uma variante da primeira forma, datada do
século XVII. A expressão fazer frente a “encarar”, “enfrentar”
preserva o sentido primitido de parte do corpo humano, segundo
Ernout-Meillet (1967), s.v. frons, frontis.

Esses étimos se lexicalizaram como preposições complexas,


em (28) e (29) como pronomes-advérbios em (30) e (31):

103
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

(28) [19 1 SP/SP A] se dirija a chacra cita adereita da


estrada que segue para S.Amaro defronte ao Capitão
Gabriel Henriques Pessôa

(29) [19 2 BA/SA CJ/R] ao entrar em casa, notou que dous


| degráos da escada, que fica sobre a sua loja de ||
charutos, na rua d’Alfandega, em frente do | Correio Geral,
achavão-se fora do logar compe- | tente

(30) [20 2 PE/RE DID 004] naquela casa ali defronte mora
um cidadão que é diretor do SANER...

(31) [20 2 PE/RE DID 004] descobrimos que havia uma


diferença muito pequena de nível daqui para a frente: daqui
da frente da casa para o final...

(3) A preposição complexa em face de deriva igualmente de


um substantivo latino, facies “face, semblante, beleza, ar,
aparência” (Houaiss, 2001, s.v.), cuja forma popular facia foi
produtiva em outras línguas românicas e no português facha “cara”
e fachada “parte dianteira do prédio”.

Este étimo se realizou apenas como preposição complexa


(32) e (33):

(32) [19 2 PR/CR CJ/L] Mas, em compensação, os


casamentos mul- | tiplicaram-se espantosamente, e raro é o
dia | em que um homem e uma mulher (ás vezes é | uma
mulher e um homem) não sejam unidos á | face da Igreja
pelos indissoluveis laços do hy- | mineu.

(33) [19 2 RJ/RJ CJ/L] É possivel que em face das provas |


que submetti ao juiz que me condem- | nou e submetteo
aos integros desembargadores, que o Senhor Souto
Carvalho | procurador do Senhor visconde de Santa | Cruz
, erre nos seus calculos.

104
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

4.1.2 – São as seguintes as preposições indicadoras do


espaço /+Posterior/: trás, por trás de, atrás de, após, depois de. Elas se
calcam em dois étimos: Latim ad + trans e ad+post.

(1) Trás deriva de trans, e atrás de ad+ trans, “no lado oposto
à face (nos humanos), lado oposto àquele que se vê ou de que se
fala” (Houaiss, 2001, s.v.). Trans é uma preposição latina que regia
acusativo com o sentido de “além de”, com ou sem movimento.

O étimo deu origem à preposição simples, trás, como em


(34), não documentado no corpus, às preposições complexas atrás
de, por trás de (35-37) e ao pronome-advérbio atrás, como em (38):

(34) Trás mim virá quem melhor me fará. Trás aquela fala
macia, existe uma grande raiva contida [exemplo de Houaiss
2001, s.v.).

(35) Vive correndo atrás do prejuízo.

(36) [20 2 BA/SA DID 135: 400] Quando ela nasce, aqui,
por trás desse casario, compreendeu (...)

(37) Saiu correndo, atrás de mais dinheiro.

(38) [20 2 SP/SP DID 234: 590] há dez anos atrás os


aviões não tinham o conforto de hoje...

Esse étimo se realizou também como prefixo, como em


transformar etc.

(2) Pós deriva de post, tendo aparentemente se cristalizado


como sufixo, como em pós-graduação. O item, não encontrado até
aqui como preposição no corpus disponível, é documentado por
Houaiss (2001, s.v.) (“corria o cão em pós de uma lebre”). Após já
é uma regramaticalização da forma anterior, tendo derivado de
ad+ post “atrás de, depois de, em momento ou ocasião posterior
a”. Depois é uma nova regramaticalização da mesma base post, de
etimologia controvertida. Aparentemente, as formas de+post >

105
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

depos, depois e de+ex+post > arcaico e popular despois entraram em


variação, recaindo sobre a primeira a preferência da língua culta.

O étimo se realizou como preposição (39) e, por


regramaticalização, como preposição complexa (40-41):

(39) [20 2 PE/RE DID 004] e nos mudamos... de qualquer


forma... tanto que assim que as últimas jane:las e as últimas
portas foram pintadas já: APÓS a mudança...

(40) [19 1 MG/OP CJ/L] vem pois o supplicante requerer


a vossa senhoria se digne man | dar que junta(sic) esta aos
autos e sciente este juizo de | ter havido a absolvição fique
o supplicante exonerado | do deposito que assignou, visto
que o mandado de | levantamento que o executado havia se
passar depois | da absolvição, ficou de nenhuma força e
vigor e com | pletamente extincta a execução e penhora.

(41) [20 2 PE/RE DID 004] vencido o primeiro satisfação


do que se QUER e:: preenchendo também éh::... as
intenções da consorte... ((ri)) depois de muita discussão
“não porque a cozinha deve ser maior do que aquilo e:: falta
a área da::... áh:... éh: área de serviço...

Reúno na Tabela 2 os resultados da lexicalização dos


étimos examinados.

TABELA 2: Lexicalização de *ant, fronte, facie, trans,


post

PRONOME
ÉTIMO PREPOSIÇÃO CONJUNÇÃO
ADVÉRBIO
*ant > ante 81/164 - 74/164 - 45,2% 9/164 - 5,5%
49,3%
Front/frente 3/35 - 8,5% 32/35 - 91,5% -
Facie > em face 3/16 - 19% 4/16 - 25% 9/16 - 56%
de
Trans > trás - 1/1 - 100% -
Ad + trans > 7/7 - 100% - -

106
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

atrás
Ad + post > - 1/1 - 100% -
pós/após
De + post > 21/75 - 28% 28/75 - 38% 26/75 - 34%
depois

A Tabela 2 mostra que o étimo *ant, mais antigo que os


demais, conheceu uma polilexicalização mais acentuada que suas
formas variantes, com forte aproximação percentual entre os usos
pronômino-adverbiais e os usos preposicionais. Seguem-se facie e
de+post, que se polilexicalizaram igualmente pelas três classes
lexicais, com uma freqüência de uso um tanto semelhante. Numa
dispersão intermediária se concentraram fronte/frente, que deram
origem categoricamente a preposições e muito discretamente a
pronomes-advérbios. Restringiram-se ao uso apenas preposicional
trans e ad+post.

Confrontando as preposições /+Anterior/ com as


preposições /+Posterior/, observa-se que as primeiras aparecem
110 vezes, contra 30 ocorrências das segundas. Conclui-se que os
objetos localizados no espaço diante dos olhos integram uma
hierarquia cognitiva mais alta que aqueles localizados às costas,
numa razão de 79% de usos para /anterior/ versus 21% para
/posterior/.

Seria igualmente interessante comparar de um ângulo


diacrônico (1) a produtividade de preposições simples diante das
preposições complexas, e (2) se houve alguma mudança do século
XIX para o XX nos dois casos. Os resultados aparecem na Tabela
3.

TABELA 3: Diacronia das preposições /+Anterior/ e


/+Posterior/

ÉTIMO / ITEM SÉCULO XIX SÉCULO XX


ante 17/17 – 100% ---
perante 7/7 – 100% ---

107
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

antes de 24/26 – 93% 2/26 – 7%


diante de 15/20 – 75% 5/20 – 25%
defronte (de) (a) 10/11 – 90% 1/11 – 10%
(a) (em) frente (de) 18/21 – 86% 3/21 – 14%
(a)
Em face de / face a 4/4 – 100% ---
trás --- 1/1 – 100%
por trás de --- 1/1 – 100%
após --- 1/1 – 100%
depois de 26/29 – 90% 3/29 – 10%

A Tabela 3 mostra que as preposições /+Anteriores/


levam vantagem sobre as /+Posteriores/ também na dispersão
entre simples e complexas, apontando para uma representação
gramatical mais rica: 2 itens simples para 5 itens complexos entre
as /+Anteriores/, contra 2 itens simples para 2 itens complexos
entre as /+Posteriores/.

Quanto à diacronia, os dados utilizados até aqui assinalam o


possível desaparecimento das preposições ante e perante,
certamente substituídas pelas muitas preposições complexas do
mesmo eixo. Isso contraria a previsão de que a forma
regramaticalizada perante estivesse substituindo ante, como ocorreu
com para em relação a a. Estas observações devem ser recebidas
com reserva, pois os dados mostram um percentual mais baixo de
uso das preposições complexas no século XX, que não parecem
estar desalojando as simples. Num movimento assimétrico, as
preposições /+Posteriores/ tiveram um incremento em seu uso
no século XX, salvo depois de. A análise do comportamento
sintático poderá matizar este quadro.

4.2. Semanticização das preposições de traço


/+Anterior/~ /+Posterior/: a construção do sentido

As preposições integradas no eixo transversal preservaram


com maior ou menor vigor o valor prototípico de ESPAÇO,
cindindo-se em duas possibilidades:

108
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

o participante que desejamos localizar (= FIGURA) tem à


sua frente o participante que serve de ponto de referência (=
FUNDO); diremos que essas preposições exemplificam a
subcategoria ESPAÇO ANTERIOR. por assim dizer, a FIGURA
“olha” para o participante FUNDO.

o participante figura está localizado atrás do participante


FUNDO; diremos que essas preposições exemplificam a
subcategoria ESPAÇO POSTERIOR. por assim dizer, a FIGURA se
localizou “às costas” do participante FUNDO.

Como vimos no item anterior, a lexicalização desses


espaços não se deu com a mesma intensidade na gramática da
língua portuguesa, ficando (2) com uma representação mais
discreta em relação a (1).

Vejamos agora com detalhe os sentidos liberados por essas


preposições.

4.2.1 – Preposições que denotam o ESPAÇO ANTERIOR

Ante e perante preservam seu valor prototípico quando o


FUNDO foi lexicalizado por OBJETO, seja /+ Concreto/, como em
(42 a, 42b), seja /+Abstrato/, como em (43 a, 43b):

(42a) [19 2 PE/RE CJ/L]O seu comportamento ante o


tribunal dos jurados ex- | cedeu em exaltação insensata, em
brutalidades vio- | lentas todos os actos da sua vida.

(42b) [19 2 MG/OP A] Ernesto Augusto de Oli|veira,


incumbe-se de procu|ratorios negocio| concernente a sua
profissão| de procurador. Escriptorio| no largo junto á
academia de| direitos.|Ouro Preto.

(43a) [19 2 BA/SA CJ/L] Senhor Redactor. – Não posso


ficar mudo | ante o espectaculo doloroso, que acabo de |
presenciar. Um carroceiro, portuguez, ao | que parece, alvo,
com barba fechada

109
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

(43b) [19 2 SP/SP CJ/R] se não tivessemos de quixar-nos


primeiramente da pouca reflexão com que tem se exprimido
sobre esta materia as pessoas incubidas de deffender os
nossos interesses perante o jornalismo da corte.

Esses exemplos mostram que os sentidos processados


relacionados pela preposição reuniam as condições para a
preservação de seu sentido prototípico. Um caso de “linking”,
como diria Weinreich (1972).

Uma primeira alteração de sentido ocorre quando passamos


de ESPAÇO ANTERIOR para TEMPO ANTERIOR. Quando o
dispositivo sociocognitivo desativa na preposição complexa antes
de seu sentido prototípico de ESPAÇO ANTERIOR, ele ativa ao
mesmo tempo o sentido de TEMPO ANTERIOR atribuído à
FIGURA. Como se sabe, o trâmite ESPAÇO > TEMPO resulta da
categoria cognitiva de MOVIMENTO. Quer dizer que o tempo
passado da FIGURA se situa anteriormente ao tempo futuro do
FUNDO, como se pode ver em:

(44) [19 1 BA/SA CJ/L] Quem incumbiria aos dous mal


ama- | nhados correctores, José da Silva Cer- | queira
Junior, e João da Silva Barbosa | a andarem dias antes das
eleições de ca- | sa em casa pedindo votos para Luiz Fer- |
nandes?

Isto é,

(44 a) os dois corretores andaram (no passado) e as eleições


ocorreram (no futuro).

(45) [19 2 SP/SP A] O Doutor Ricardo Gumbleton Daunt


obrigado por circuns|tancias imprevistas á partir da capital
antes do dia que havia|designado, não pode cumprir o seu
dever despedindo-se pes|soalmente das pessoas que
dignarão honral-o por suas relações|durante a sua estada
em São Paulo, e por tanto o faz por este an|nuncio, e á
todos

110
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

Nova alteração de sentido ocorre quando o FUNDO for


lexicalizado por um EVENTO, fato já anotado por Neves (2000:
720):

(46) [19 2 PR/LO CJ/L] e se o maligno | espirito de


partido quebrar suas furias ante as considerações | do bem
publico, que bradão tão alto pela união dos habi- | tantes
do Paraná

Entender como se desenvolveu o sentido de “por causa das


considerações” é um desafio e tanto. Provavelmente a alteração
envolva a noção de TEMPO contida no EVENTO “consideração”,
colocado imageticamente à frente de “quebrar suas fúrias”. Se o
tempo do EVENTO-FUNDO ocupa imageticamente um lugar de
hierarquia mais alta que o do EVENTO-FIGURA, que ele passa
por metonímia a governar, segue-se que “considerações” passa a
causador, e “quebrar suas fúrias” passa a causado. Por outras
palavras, a metáfora do TEMPO do evento foi o gatilho da
metáfora de CAUSA. Nos termos de Fauconnier e Turner (2000),
o espaço mental “evento situado num tempo” projeta um novo
espaço, o de “evento causador”.

Essa observação confirma a hipótese levantada no Quadro


3, segundo a qual subcategorias semântico-cognitivas tanto quanto
traços semânticos derivam de categorias semântico-cognitivas de
base.

Estudar o comportamento do pronome-advérbio antes


poderá talvez deitar novas luzes sobre os passos da semanticização
que estamos pesquisando. Vejamos alguns exemplos:

(47) [19 1 RJ/RJ A] No dia 17 de Fevereiro corrente pelas


10 horas da manhã, se perdeo hum Moleque na Praia do
Peixe, o qual terá 15 annos de idade; chama-se Matheus, he
de Nação Cabundá, com calças de Amiagem, e Camiza de
pano de linho; ignora a lingoa Portugueza por ser comprado
dias antes no Valongo: Quem delle souber, vá falar com
João Pereira da Silva, morador na Rua da Ajuda Número 52

111
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

ao pé do Coronel Antonio Correa da Costa; e delle receberá


boas alviçaras.

(48) [19 2 SP/SP A] O abaixo assignado faz sciente aos


Senhores|devedores da caza fallida de Dom Victoranno
|Jygena, para que quanto antes hajão do annun|ciante no
prazo de 30 dias, pena de que não o|fazendo serão
indispensavelmente executados.|São Paulo 20 de maio de
1853|Daniel Senra Cardozo

Como um operador, esse pronome-advérbio tem seu


escopo ora à esquerda, criando um movimento fictício nessa
direção, como em [dias antes], em (47), ora à direita, com o
mesmo papel, como em (48) [quanto antes  hajão]. a associação de
ESPAÇO a MOVIMENTO produz a metáfora do tempo, que será o
tempo anterior ou passado no primeiro caso, ou o tempo
posterior ou futuro, no segundo. um objeto se desloca no
ESPAÇO, e ao fazê-lo vai ocupando diferentes pontos na linha do
TEMPO.

Esse pronome-advérbio pode tomar como Especificador


uma expressão de graduação, como em [muito antes], [pouco antes],
[quanto antes], ou de focalização, como em [bem antes]. Com isto,
novas especificações de ESPAÇO e TEMPO podem ser obtidas:

Antes: anterioridade proximal

Quanto antes, muito antes: anterioridade distal

Bem antes: anterioridade focalizada

Temos lidado até aqui com a a escala [ESPAÇO > TEMPO >
CAUSA]. Se continuarmos examinando os pronomes-advérbio
constituídos a partir da mesma etimologia das Preposições, será
possível agregar também Modo a essa escala. Veja-se o exemplo
(49):

(49) [19 2 SP/SP CJ/L] “Infeliz homeopatha! . . . antes não


tivesse vindo a | S. Paulo ! | Por certo daria um passo

112
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

muito mais acertado se ti- | vesse procurado um lugar


inculto,

equivalente a

(49a) que não tivesse vindo a S. Paulo!

O caráter modal volitivo desse exemplo está implícito no


traço de comparação próprio a antes, documentado já na
latinidade. E é que, assinalando o ESPAÇO situado à frente do
falante, cuja avaliação cognitivamente positiva já foi aqui
lembrada, antes implicita uma escolha e explicita uma vontade. A
comparação está implícita em vir a São Paulo / não vir a São Paulo, e
a escolha está na opção por não ter vindo a São Paulo.

Resumindo o que se viu até aqui, nota-se que as


preposições estudadas mantiveram o valor semântico primitivo de
ESPAÇO e desenvolveram outros sentidos, ao passo que o
pronome-advérbio (e também a conjunção coordenativa ou antes,
a subordinatIva antes que e a correlativa antes...do que não
exemplificadas aqui ) se limitaram aos valores derivados de TEMPO
e MODO. Como então sustentar, em face desses resultados, que o
Advérbio deu origem unidirecionalmente à preposição e à
conjunção? Nas conclusões apresentarei uma alternativa a esse
modo de ver as coisas.

Outras preposições que remetem ao ESPAÇO ANTERIOR


revelam igualmente aspectos interessantes do processo de
semanticização. Assim, se compararmos as diversas ocorrências
do item face no corpus examinado, notaremos a importância do
trâmite /+Concreto/ > /+Abstrato/ nesse processo. Sejam os
seguintes exemplos:

(50) [19 2 PR/CR CJ/R] Estala a gargalhada rubra na face


dos que a | menospresão, e chóra as degraças d'aquelles | a
quem acolhe, acaricia, acalenta.

(51) [19 2 BA/SA CJ/R] O que se não pode contestar é que


o governo actual, como seus predecessores ultimos, nada

113
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

têm poupado para mudar a face da situação finan | ceira


nacional e promover o desenvolvimento das | riquezas do
paiz

(52) [19 2 PE/RE CJ/L] Para fazer face aos pagamentos


que ainda restam, e concluir a | liquidação das despezas de
guerra, esta taxa deverá | ser prorogada até março de 1858.

Em (50), face é um substantivo /+Concreto/, designando


parte do corpo humano. Em (51) já se trata de um substantivo
/+Abstrato/, algo como “rumo da situação”, “ponto para o qual
estamos mirando”, que abre caminho à sua utilização com verbo
suporte, como em (52), equivalente de encarar, à expressão
adverbial face a face, e à preposição complexa em face de,
preservando esta a noção de ESPAÇO ANTERIOR, como em:

(53) [19 1 BA/SA CJ/L] muito trabalhou, e despendeo á


face | de seos superiores e subalternos, para | obter, como
obteve sua reforma.

A mesma escala ESPAÇO ANTERIOR > TEMPO > CAUSA


é igualmente documentada nos dados, sempre que o FUNDO seja
lexicalizado por um item /+Abstrato/:

(54) [19 2 BA/SA CJ/R] E é este o maximo perigo á que


nos acha- | mos expostos em face da penuria que se |
observa nos mercados.

vale dizer, “por causa da penúria que se observa nos


mercados”.

4.2.2 – Preposições que denotam o ESPAÇO POSTERIOR

As preposições que denotam o ESPAÇO POSTERIOR sofrem


processos idênticos de semanticização.

Destaco primeiramente os exemplos em que foi preservado


o sentido etimológico e cognitivo de base. Requer-se para isso que
FIGURA e FUNDO sejam expressos por OBJETOS. Nada de

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Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

estranhar, pois se tem demonstrado que OBJETOS são mais básicos


que QUALIDADES e RELAÇÕES, e assim por diante.

Os exemplos mostram que o falante pode inverter a


seqüência prevista em 4.2.1, como se pode constatar em

(55) [20 2 RJ/RJ D2 355: 610] e depois da sala de estar se


você sobre um lance de escada você chega a dois quartos e
um banheiro e depois mais outro lance e você chega a um
outro quarto

isto é,

(55a) dois quartos depois da sala de estar

(55b) sala de estar antes dos dois quartos

em que o ponto de vista seleciona a seqüência desejada.

Ativa-se TEMPO e se desativa ESPAÇO POSTERIOR se


FIGURA e FUNDO são expressões temporais, como em

(56) [19 2 SP/SP CJ/L] A 16 minutos depois do meio dia


partio a locomotiva | daquelle ponto. || Lia-se o
enthusiasmo e alegria em todos os rostos,

ou se FUNDO é um evento:

(57) [19 2 SP/SP CJ/L] D’antes eu dizia-lhes rua de tal


número 20. Depois do | borramento do 2 eu só dizia - rua
de tal numero cifra.

A subcategoria TEMPO é preferida para esta preposição


complexa, e se mostra mais plenamente realizada nos pronomes-
adverbiais e na conjunção subordinativa:

(58) [19 2 MG/OP CJ/L] sua vida não foi mais | que um
sonho semelhante á roza que vem de desabrochar, | e que
depois inclina-se sobre a haste, que a sustinha,

115
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

(59) [19 2 PE/RE CJ/L] mas asseguro que nunca me fora


ella pedi- | da, e só depois que se dera o julgamento de
inter- | dicção pelo juizo de orphãos é que recebi a intima-
| cão judicial,

(60) [19 1 BA/SA CJ/R] Agoardente de cochlearia,


quantidade sufficiente | para fazer uma massa espessa, que
depois de se ha- | ver bem limpo o dente enche-se o
buraco com ella.

Ao mover imageticamente o participante de FUNDO para as


costas, depois de cria o efeito secundário de seqüenciamento, de
hierarquização dos participantes:

(61) [19 1 BA/SA CJ/R] Um amigo he sem duvida o mais


precioso bem | depois da saúde.

Esse valor é mais nítido em expressões como uns após outros,


dia após dia, mencionados por Neves (2000: 723). Estamos aqui a
um passo do pronome-advérbio depois, como em:

(62) [19 2 BA/SA CJ/L] logo á primeira | vista fiquei


extremamente sorprehendido, | mas vindo depois a
reflexão, lembrei-me | do seguinte.

Os materiais não se mostraram ricos nos casos em que o


participante se desloca de um pólo transversal para outro, como
em de trás para frente, de diante para trás etc. A única abonação
encontrada foi

(63) [19 1 BA/SA CJ/L] Ora, si o Diario ja disse que


diversos ca- | sos se tem dado nesta provincia antes e de-
| pois da epidemia, com todos os sympto- | mas do
cholera,

4.3. Discursivização das preposições de traço


/+Anterior/ ~ /+Posterior/: a construção do texto

116
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

Neste trabalho, entendo que dispõem de propriedades


textuais as expressões preposicionadas não governadas por verbo
ou por outra classe predicadora, funcionando como CT ou como
conectivo de unidades maiores que a sentença. Essas expressões
fazem delas elementos de interesse para a construção do texto.

A preservação das categorias de ESPAÇO (ou LUGAR) e


TEMPO concorre para seu funcionamento como CTs,
desativando-se o valor de lugar físico e de tempo cronológico,
ativando-se sentidos tais como “espaço do discurso”, “tempo do
discurso”. Vejam-se os seguintes exemplos de CT Delimitadora:

(64) Antes de tudo, me explique que assunto é esse.

(65) [19 2 PE/RE CJ/R]Ante tão eloquentes e convicentes


palavras, e, ainda mais, perante o § XIV do artigo 102 que,
como dissemos, foi um corolano do artigo 5º da
constituição do imperio, permitta-nos o Excelentíssimo
Senhor bispo que lhe digamos, com profunda magoa, que
andou mal aconselhado o seu esclarecido espirito, quando
deixou-se dominar pelas razões que expondeu no citado
capitulo IV da sua estirada pastoral.

(66) [19 2 BA/SA CJ/L] Para nós e diante dos factos,


reque- | rimentos e actos do governo o unico |
concessionorio(sic) em condições de dispor | da estrada é o
senhor Leopoldo José da Sil- | va, que nos apresentou
escriptura de | cessão em seu favor.

Em (66) são observadas duas CTs Delimitadoras expressas


por expressões preposicionadas.

Se o núcleo do SN relacionado pela preposição mantém


muito vivaz o sentido lexical, bloqueia-se seu uso, o que explica a
inexistência de CTs formadas a partir de fronte, frente, face.

São raros os usos desSas preposições como conectivos


textuais. Como era de se esperar, restringem-se tais usos à
preposição /+Posterior/, que associada a outro dêitico faz a

117
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

ponte entre “o que foi” e “o que virá”, funcionando como


seqüenciador do discurso:

(67) [19 2 PR/CR CJ/R] Depois disto, para que mais a


minha prosa | charra, chilra, chôca, chula? ....

Os pronomes-advérbios de mesmo étimo são muito


freqüentes como conectivos textuais, como destacaram os
pesquisadores do Projeto de Gramática do Português Falado, ao
analisarem exemplos semelhantes a:

(68) [19 2 PR/CR CJ/R] Depois, o amor é extremamente,


demasiada- | mente pueril, e até extravagante; é mais lyri- |
co do que épico.

(69) [19 2 PR/CR CJ/R] E depois .... o infinito! O céo e o


mar, | aqui; ali, o céo e o mar; além ainda, o céo e | o mar!
|| O céo e o mar! As duas enormes circumfe- | rencias
cujo centro está em toda a parte! || E depois ... Paris! Paris
maravilhosa, mag- | nifica, sublime!

Finalmente, a grande quantidade de adjuntos adverbiais


constituídos por essas preposições mostram que seu papel
discursivo mais importante é o de agregar informações
secundárias à estrutura tópica.

4.4. Gramaticalização das preposições de traço


/+Anterior/ ~ /+Posterior/: a construção da sentença

4.4.1 – Sintaticização

As preposições aqui estudadas desempenham as funções de


argumento e adjunto adverbial, com larga predominância desta
última função.

A Tabela 4 resume os achados até esta altura da pesquisa.

TABELA 4: Diacronia das funções sentenciais

118
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

/+ANTERIOR/ /+POSTERIOR/
Argumentos Adjuntos Argumentos Adjuntos
Séc. 5/92 - 6% 87/92 - 94% 0/0 25/25 - 100%
XIX OI OBL Lugar Tempo Qualidade OI OBL Lugar Tempo Qualidade
5/5 56/87 25/87 6/87 1/25 24/25
0/0 0/0 0/0 0/0
100% 64% 29% 7% 4% 96%
0/0 10/10 - 100% 0/0 5/5 - 100%
Séc.
7/10 2/10 1/10 2/5 3/5
XX 0/0 0/0
70% 20% 10%
0/0 0/0
40% 60%
0/5

Vejamos alguns exemplos:

(70) Argumento Oblíquo

[19 2 RJ/RJ CJ/L] porém recorde-se que temos o bastante


coragem de chegarmos ante os degraos do THRONO e
dizermos ao MONARCHA (…).

[19 2 BA/SA CJ/L] E a prova é que o senhor Bahiana


confes- | sa esbarrar diante delle quando, combi- | nando
datas a seu bel prazer declara | que somente depois de 28
de fevereiro | proximo e no caso de não satisfazermos | os
nossos compromissos para com o senhor | Leopoldo é que
elle reclamará o direito | de reversão da linha em seu favor.

[19 2 RJ/RJ CJ/L] porém recorde-se que temos o bastante


co- | ragem de chegarmos ante os degraos do THRONO |
e dizermos ao MONARCHA – “SENHOR os mi- | nistros
de V.M.I. arrede de S.I. esses TRAIDORES: o ministro da
guerra é UM PREVARICADOR, o ministro do imperio é
CONCUSSIONARIO, e o fazenda foi com- | vencido
perante o jury desta côrte como TESTE- | MUNHA
FALSA no processo do Illustre tutor de | V.M.I. E DE
SUAS AUGUSTAS IRMÃAS.

(71) Adjunto adverbial de lugar

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Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

[19 2 MG/OP A] Ernesto Augusto de Oli|veira, incumbe-


se de procu|ratorios perante todas as| repartições publicas
da ca|pital; e bem assim encarre|ga-se de qualquer
negocio| concernente a sua profissão| de procurador.
Escriptorio| no largo junto á academia de| direitos.|Ouro
Preto.

[20 2 BA/SA DID 135: 400] Quando ela nasce, aqui, por
trás desse casario, compreendeu (...)

(72) Adjunto adverbial de tempo

[19 2 BA/SA A] COITADO! || Grande barulho entre dois


ca|sados hontem antes do jantar| coitados!!

[19 1 MG/OP CJ/L] vem pois o supplicante requerer a


vossa senhoria se digne man | dar que junta(sic) esta aos
autos e sciente este juizo de | ter havido a absolvição fique
o supplicante exonerado | do deposito que assignou, visto
que o mandado de | levantamento que o executado havia se
passar depois | da absolvição, ficou de nenhuma força e
vigor e com | pletamente extincta a execução e penhora.

(73) Adjunto adverbial de qualidade (causa)

[20 2 SP/SP D2 360: 33]é e:: mas... depois diante das


dificuldades de conseguir quem me ajudasse... nó::s paramos
no sexto filho...

De um ponto de vista descritivo, a Tabela 4 confirma a


assimetria entre as preposições /+Anterior/, em face de
/+Posterior/:

/+Anterior/ preenche todas as células dessa tabela, com a


exceção esperada do Objeto Indireto, mostrando-se
semanticamente conservadora em seus usos adjuncionais, em que
predomina a categoria de base Lugar.

120
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

/+Posterior/ não opera como introdutora de argumentos e


não exemplifica os adjuntos adverbiais de Qualidade, mais
alterados semanticamente que os de Lugar e Tempo. Em
compensação, essa preposição oferece um percentual mais
elevado de Tempo, valor quase categórico nesta subclasse das
preposições do eixo transversal.

De um ponto de vista diacrônico, embora disponhamos


ainda de poucos dados para o século XX, é notável

o desaparecimento do uso argumental nas duas subclasses,


o que aponta para uma especialização dessas preposições.

no quadro dessa especialização, fica evidente entre as


/+Anteriores/ a tendência a concentrar os usos adjuncionais em
Lugar, sendo que as /+Posteriores/ atenuam a tendência a
concentrá-los no valor de Tempo.

Vejamos agora a questão da colocação dos adjuntos


adverbiais, em que se constata uma preferência pela posição
adsentencial, com incursões pobres no interior da sentença,
conforme demonstra a Tabela 5:

TABELA 5: Diacronia da posição sentencial dos


constituintes preposicionados

121
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

A Tabela 5 mostra que no século XIX os adjuntos


adverbiais formados pelas preposições em estudo se situam
predominantemente às margens da sentença, com 71% dos casos
para os Locativos e 84% dos casos para os Temporais,
predominando a posição pós-sentencial. Nos restantes casos,
localizando-se os adjuntos, respectivamente, em 29% e em 16%
no interior da sentença. Essa distribuição se acentua no século
XX. O achado infirma por um lado a suposição corrente na
literatura de que as expressões de Tempo situam-se adjacentes ao
V, internalizando-se na sentença, e confirma por outro lado a
análise de Tarallo-Kato et al. (1992), válida para a língua falada
culta do século XX, segundo a qual os espaços mais permeáveis à
inserção de elementos lexicais são aqueles entre o S e V, e os
menos permeáveis são aqueles entre V e O. Seguem-se alguns
exemplos:

(74) ___S

[19 2 PR/LO CJ/L] Antes do estabelecimento de um


banco rural (…), não se deve esperar por um movimento
lento em favor da colonisação.

[19 2 SP/SP A] Diante de vantagem tão reaes e


incontestaveis, excusado é encarecer os meritos desta
machina, e para sua significativa importancia nos limitamos

122
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

a reclamar em|geral a attenção da lavoura do paiz, a favor


da qual revertem os seus beneficios.|

(74) S___

[19 2 SP/SP CJ/L] (…) curvemos a cabeça ante os


dictantes (sic) do Altíssimo

[20 2 PE/RE DID 004] e nos mudamos... de qualquer


forma... tanto que assim que as últimas jane:las e as últimas
portas foram pintadas já: APÓS a mudança...

(75) S__V

[19 2 PE/RE CJ/L]O seu comportamento ante o tribunal


dos jurados ex- | cedeu em exaltação insensata, em
brutalidades vio- | lentas todos os actos da sua vida.

(76) V__O

[19 2 PR/LO CJ/L] creio até que é uma razão para se


organisar quanto antes a propaganda agricola, pois mais
depressa attingirá provincia á sciencia de seus interesses.

[19 2 BA/SA CJ/L] sobre o crime do infeliz meu parente


José Pinto | de Carvalho, corre-me o indeclinavel dever de
affir- | mar que eu nunca me comprometti perante o meu
| amigo o tenente- coronel Joaquim Elias Machado de |
Faria de perseguir ao Srº José Pinto de Carvalho,

[19 2 PR/CR CJ/R] Tenho diante de mim, e ao alcance da


mão, | o excellente livro de versos de Emiliano Per- | netta
- Musicas.

4.4.2 – Morfologização

Tratando-se de itens invariáveis, as preposições não têm


interesse para o estudo da morfologia flexional diacrônica. Sua
importância neste aspecto da gramaticalização se concentra na

123
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

morfologia derivacional que, entretanto, não será considerada


nesta fase do trabalho.

4.4.3 – Fonologização

Os itens estudados exemplificam o problema da paragoge


de –s no pronome-advérbio antes, a prótese de a– e a redução do
grupo ns em ad+trans > atrás, por regramaticalização de trans, o
mesmo tendo ocorrido em post, alterado para depois (<de+post),
cujo iode deve ser resultado da ditongação da vogal acentuada o
quando travada por alveolar surda (cf arroz > pop. arroiz). O item
está sendo novamente regramaticalizado, na forma pop. adispois.

Conclusões

Um entendimento multissistêmico e diacrônico das


preposições no português brasileiro somente será alcançado
quando os instrumentos de análise forem refinados, e a casuística
aumentada. Para a construção de um pano de fundo que embase
nossas análises, poderá ser de interesse que algum pesquisador
proceda a uma investigação sobre o comportamento das
preposições no século XV, que Moraes de Castilho (2001) supõe
ser a base do PB.

Este trabalho representa um primeiro passo na direção do


estudo multissistêmico, tendo-se escolhido as preposições que
integram o eixo transversal. Reproduzo a seguir as conclusões
parciais que foram sendo obtidas ao longo do texto.

Quanto à sua lexicalização, observou-se uma freqüência


maior das preposições que apresentam o traço /+Anterior/, numa
razão de 79% de usos versus 21% para /+Posterior/.

Comparando de um ângulo diacrônico a produtividade de


preposições simples diante das preposições complexas, e a
ocorrência de alguma mudança do século XIX para o XX nos dois
casos, constatou-se que as preposições /+Anterior/ também aqui
levam vantagem sobre as /+Posterior/, pois dispõem de uma
representação gramatical mais rica: 2 itens simples para 5 itens

124
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

complexos entre as /+Anteriores/, contra 2 itens simples para 2


itens complexos entre as /+Posteriores/. Outra questão
diacrônica é o possível desaparecimento das preposições ante e
perante, certamente substituídas pelas muitas preposições
complexas do mesmo eixo. Isso contraria a previsão de que a
forma regramaticalizada perante pudesse substituir ante, como
ocorreu com para em relação a a. Estas observações devem ser
recebidas com reserva, pois os dados mostram um percentual mais
baixo de uso das preposições complexas no século XX, que não
parecem estar desalojando as simples. Num movimento
assimétrico, as preposições /+Posteriores/ tiveram um
incremento em seu uso no século XX, salvo depois de.

Essas observações abrem caminho para uma explicação


fundamentada no funcionamento do dispositivo sociocognitivo,
responsável pela dispersão do étimo *ant por três classes de
palavras. Considerando apenas os usos mais freqüentes de cada
uma delas, pode-se dizer que elas resultam do agrupamento dos
seguintes categorias:

As preposições ante e perante resultam da ativação de


ESPAÇO ANTERIOR e da desativação de TEMPO; depois de ativou
TEMPO e desativou ESPAÇO POSTERIOR. As preposições diante
de, perante resultam da reativação de ESPAÇO.

O pronome-advérbio antes resulta da desativação de


/ESPAÇO/ e da ativação de TEMPO.

As conjunções e/ou antes, antes que, antes de + {r} resultam da


desativação de ESPAÇO e da ativação de RELAÇÃO e TEMPO
ANTERIOR; no caso da conjunção volitiva antes + subjuntivo,
ativa-se também MODO; e depois, depois que, depois de + {r} resultam
da ativação de TEMPO POSTERIOR e da desativação de ESPAÇO
POSTERIOR.

Por este raciocínio, torna-se irrelevante derivar uma classe


de outra, valorizando-se em seu lugar os arranjos semânticos
localizáveis no interior de cada uma delas, regidos pelo dispositivo
sociocognitivo. A mudança diacrônica dos itens se explicaria

125
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

apenas pelas alterações na seleção de categorias e traços, visto que


todos eles convivem numa mesma sincronia. Assim, em agina
“ponto de apoio dos braços da balança” > arc. aginha “depressa”,
desativou-se a categoria OBJETO CONCRETO e se ativou
MOVIMENTO NO ESPAÇO. Associações metafóricas embasaram
a mudança.

Quanto à semanticização, as preposições do eixo transversal


mantiveram a categoria semântico-cognitiva de base ESPAÇO e
desenvolveram categorias derivadas, tais como TEMPO e
QUALIDADE, mais propriamente CAUSA. Uma nova assimetria
foi notada, pois as preposições /+Anterior/ exibem com maior
freqüencia o valor de ESPAÇO, enquanto que /+Posterior/ se
concentram quase que categoricamente em TEMPO. O exame dos
dados mostra uma tendência a mudar /+ Concreto/ para
/+Abstrato/, o que não é uma novidade, consagrando-se a escala
ESPAÇO > TEMPO > QUALIDADE. Escalas como esta têm mais
poder explanatório que a suposição de que Classes maiores
(Nome, Verbo) dão lugar a Classes intermediárias (Adjetivo,
Advérbio), migrando estas para as classes menores (Artigo,
Preposição, Conjunção).

A discursivização das preposições do eixo transversal se


concentrou no fornecimento de CTs delimitadoras e de
conjunções textuais seqüenciadoras. Do ponto de vista da
estrutura informacional do texto, essas preposições se prestam à
veiculação de informações secundárias, gramaticalizadas como
adjuntos.

A gramaticalização, ou, mais propriamente, a sintaticização,


revelou uma alta concentração na função de adjunção, dispondo-
se as expressões nas margens sentenciais.

Na continuação deste trabalho, examinarei o


comportamento das preposições que integram os eixos horizontal
e vertical. A síntese que se vier a obter destas pesquisas permitirá
— talvez — melhorar nosso conhecimento sobre o estatuto da
preposicionalidade, tanto quanto considerar a correlação entre
lugares sintáticos e papéis semânticos desempenhados pelas

126
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

expressões preposicionadas. Isso poderá ser um primeiro passo


para desenhar um algoritmo semântico da sentença e, em seguida,
indagar diacronicamente se tais correlações são estáveis ou não.

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132
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Considerações acerca de mudanças


semânticas da preposição “até” no português
do século XIX
por
Mário Eduardo Viaro
Universidade de São Paulo

Introdução

A preposição até tem uma história extremamente polêmica.


A forma mais antiga é, sem dúvida ata, que normalmente é
associada à preposição espanhola hasta. A antiga hipótese do
arabismo hatta (Steiger, 1932) foi aceita para ata, mas Silva Neto
(1958) mostra que há uma grande variedade de outras formas nos
textos antigos (ata, ate, atro, tra, ta, te, tro, trões, atẽ) e propõe uma
outra etimologia, ad tenus, a fim de explicar alguns problemas
fonéticos. Na verdade, as duas hipóteses são etimologias de
exceção e, portanto, pouco integradas em uma visão românica: a
primeira preveria um estranho exotismo no inventário fechado
das preposições, que é, por sinal, bastante conservador no tocante
à forma, se comparado com as conjunções. Além disso, esse
arabismo atingiria inclusive a área do galego, que dispõe de um
número significativamente menor de vocábulos árabes,
proporcionalmente com o português.

Outras dificuldades para a hipótese arábica são de ordem


fonética: h- inicial do árabe > f- e não há exemplos de *fata e –tt-
não se torna –st- (cf. castelhano hasta). Já a segunda hipótese, de ad
tenus, além do problema fonético que gera (não há *atẽos, *ateios
em português), apontaria para uma exceção românica, uma vez
que tenus, por ser já rara no latim, não apareceria em nenhum

133
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

outro lugar senão no português, dizendo de outra forma, seria


uma espécie de preciosismo que o português conservara.

Baseando-se, sobretudo, nas Cantigas de Santa Maria do


século XIII, que dispõe de uma gama complexa de variantes
suscetíveis de assimilação, e comparando a dialetação românica,
propus uma terceira etimologia, muito mais simples, intra/ intro
com exemplos abundantes inclusive na Península Ibérica (Viaro,
1995). Tal etimologia encontra respaldo em formas ibero-
românicas como ta e enta em aragonês e catalão. A forma
castelhana hasta se montaria como hacia, ou seja, a partir de uma
composição com faciem > faz(e) + tra > fastra, hastra, hasta (para zt
>st cf. lat. amicitatem > cast. *amiztad > amistad). A aparente
dificuldade de explicação do deslocamento de acento se observa
em muitas preposições dissilábicas: intra > intrá > tra como port.
para > pra, ital. infra > *infrá > fra. A perda do cluster consonantal
do ataque não é estranho também tra > ta, cf. português coloquial
pra > pa (também na Andaluzia cf. Pidal, 1949: 338) ou per extra>
romeno peste “por cima”. Na Crónica Troyana (século XIV) aparece
ente por entre e assim continuam a dizer nas Astúrias (Corominas,
1954 sv. hasta). Finalmente a prótese de um a- formaria a+ta > atá.
Uma variante assimilativa de atá é o nosso até, que, nas Cantigas
de Santa Maria, sempre aparece antes da preposição marcadora do
alativo en: ate en (como atro en > (a)trõe). O inté caipira, também
testemunhado em dialetos do português europeu e no mirandês,
viria da forma aferética té, precedido da preposição em, num
processo semelhante ao que teria acontecido com a+tá. A variante
adverbial atẽes não viria, portanto, de ad tenus, como quer SILVA
NETO, mas tem o mesmo –s adverbial analógico de ante-s, cf.
mentre-s, aten-s que ao lado de trõe-s que “até que” ou português
coloquial de modo-s que.

No século XIX, a partir do corpus de anúncios de jornais de


Guedes e Berlinck (2000), foram coletados 137 exemplos de até.
As variantes gráficas que se encontram são ainda ate, athe, atè. Fora
essas, contam-se casos de formas aferéticas, grafadas te ou thé.

134
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

1. Categorização de até e suas funções


sentenciais

O item lexical até vem amiúde (mas não necessariamente)


em uma estrutura sintática do tipo correlativo, do seguinte tipo:

(desde/de x) até (a) y

Nessa estrutura, a primeira parte focaliza o início da ação,


daí a escolha de preposições que reproduzem a posição de
ORIGEM, como de ou desde. As variáveis x, y formam os núcleos de
cada SP, que trazem, respectivamente, os papéis temáticos do
ablativo (ORIGEM) e do alativo (TEMA).

O núcleo do SP da correlação com de/desde pode estar


presente ou não, mas quando está, a cabeça do sintagma não é
obrigatória. Por outro lado, se a cabeça estiver presente, o núcleo
necessariamente também estará. No corpus, é possível observar que
até pode ter núcleo completo ou vago, mas nunca será zero, como
se apresenta na língua falada moderna: falou até! (isto é, até nos
aborrecer).

O item lexical até categoriza-se como preposição, advérbio


e conjunção no português. A fim de descrever a categorização de
até, levou-se em conta uma série de fatores: (a) até foi considerado
preposição quando fazia parte da correlação com de ou desde; (b)
também foi entendida como preposição quando associada a verbo
de movimento; (c) ainda se entenderam como preposições os
casos em até encabeçasse um SP, cujo núcleo fosse um advérbio de
tempo ou de espaço; (d) a construção até a foi entendida como
uma associação de duas preposições (como em dentre, para com
etc.); (e) por fim, todos os demais sintagmas que formam
adjunções adverbiais de SPs encabeçados por até permitem
categorizá-lo como preposição; (f) apostos explicativos
encabeçados por até categorizam-no como advérbio; (g)
argumentos e adjuntos formados por SPs antecedidos por até
categorizam-no como advérbio; (h) orações desenvolvidas ou

135
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

reduzidas de infinitivo antecedidas por até categorizam-no como


conjunção.

Do total de 137 ocorrências do item, apenas 9 são


inequívocos advérbios e 5 são conjunções, os demais 123 casos
são preposições, o que nos remete ao seguinte quadro:

Quadro 1: Categorização de até

ADVÉRBIO CONJUNÇÃO PREPOSIÇÃO


9 5 123
6,57% 3,65% 89,78%

As propriedades sintáticas de até, no corpus analisado, não


revelam grande variação. O sintagma encabeçado por até nunca
forma argumento da frase, mas sempre adjuntos adverbiais. Com
núcleos temporais, a questão é mais pacífica: só ocorre a adjunção,
assim como em outras relações abstratas.

Alguma dúvida poderia surgir com os verbos de


movimento, como em vou até o lago. Entende-se, porém, que o
pretenso argumento, com papel temático META, se confunda com
o de LIMITE nessa frase. Ambos seriam facilmente desmembrados
em outra oração como: vou ao interior, até Ourinhos, mas depois volto.
No primeiro exemplo, a complementação parece satisfazer a
transitividade de ‘ir’ com o sintagma encabeçado por até; no
segundo, ele é claramente um adjunto adverbial. Há motivos
históricos para entender orações como a do primeiro exemplo
como orações com argumento despreposicionado e reforçado por
um advérbio em vias de gramaticalização, à maneira de frases
latinas como ire Romam, que podiam ser especificadas como ire ad
Romam ou ire in Romam. Na verdade, o movimento era
manifestado puramente pelo acusativo, mas a preposição (ou seja,
o advérbio gramaticalizado) é que lhe dava a especificação. Nesse
caso, até se apõe ao argumento para adicionar-lhe o sentido de
limite. Uma prova disso é o fato de que a mesma prova pode ser
dita também com argumento preposicionado: vou até ao lago.

136
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Outros exemplos — infelizmente não encontrados no


corpus — descartariam por completo a interpretação do argumento
como um SP encabeçado com até. Trata-se de casos em que outros
argumentos sentenciais, normalmente despreposicionados, como,
por exemplo, o sujeito de frase, aparecem antecedidos de até.
Quando se diz até eu sei isso, jamais se imagina que até seja uma
preposição. Até mesmo a correlação com de/desde é possível de se
encontrar, formando sujeitos compostos do tipo foram encontrados
desde fotos até rascunhos do escritor falecido.

A etimologia polêmica, exposta no item 1, mostra que até é


uma preposição recente, fato novo na lista conservadora de
preposições herdadas do latim. Dessa forma, está ainda em
processo de gramaticalização. É sabido que o latim não dispunha
de preposições marcadoras de LIMITE, daí a variedade de formas
que surgem nas línguas românicas: o francês diz jusqu’à < lat. usque
ad, o espanhol diz hasta, o português até, o italiano fino < fin < fines,
o romeno pânǎ < paene ad. Tampouco havia uma preposição para
indicar DIREÇÃO, daí também a variedade de formas: castelhano
hacia < faciem ad, galego cara, francês vers < versum, o romeno spre <
super ou cǎtre < contra. O português, como o latim e diferentemente
do castelhano, não dispõe também de uma preposição
exclusivamente para a DIREÇÃO pura, sendo necessário usar uma
locução como “em direção a” ou as preposições de META, como
a, para ou em.

Segundo essa interpretação, é possível entender por que até


se regramaticaliza facilmente com outras preposições: até por
debaixo da escada. Também outras línguas necessitam de uma
segunda preposição para marcar a META ao lado da
correspondente de até, para marcar LIMITE: o alemão bis zu, bis in,
bis an, bis auf; em romeno, pânǎ la, pana in, o italiano fino a. O valor
prototípico da função adverbial de até, por isso, está mais visível
do que em qualquer outra preposição de hoje em dia, ou seja, está
num nível intermediário entre as preposições propriamente ditas e
as locuções prepositivas.

Quadro 2: Funções sentenciais

137
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

ATÉ +
FUNÇÃO ATÉ + SN/ ATÉ A + PREP.
ATÉ + SV
SINTÁTICA ORAÇÃO SN (com, de,
por)
Tópico - - - -
Argumento
- - - -
interno
Adjunto
2 - 1,46% - - 2 - 1,46%
adnominal
Adjunto
116 - 84,67% 4 - 2,92% 11 - 8,03% 2 - 1,46%
adverbial
Antitópico - - - -

Os tipos de adjuntos adverbiais e suas implicações


semânticas são estudados pormenorizadamente nos próximos
capítulos.

2. A preposição até seguida de SNs/SAdvs com a


categoria semântica TEMPO

A predileção por núcleos com a categoria semântica TEMPO


não está no valor prototípico do item até, uma vez que pode
facilmente ser substituída por a (das cinco às seis, das cinco até as seis),
preposição esta que tampouco privilegia contextos que envolvam
categoricamente o fator tempo.

Do ponto de vista semântico até pressupõe, sobretudo, um


aspecto imperfectivo, uma vez que focaliza a duração de um
movimento alativo, ou seja, de movimento para. Por outro lado, não
se confunde com outras preposições de alativo, como a ou para,
pois também indica o limite a ser atingido no plano espaço-tempo.

É preciso observar que o traço TEMPO não faz parte do


valor prototípico de até, pois é possível marcar a duração no
passado, no presente ou no futuro, assim como também se podem
estabelecer durações hipotéticas, como se verá abaixo.

138
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

No entanto, até parece mais adaptada para marcar relações


temporais do que em quaisquer outras relações.

Desses, mais da metade, ou seja, 73 exemplos (53,28%), co-


ocorriam com núcleos nominais e adverbiais com o papel
temático TEMPO. É necessário observar que é comum uma
correlação entre o núcleo da SP encabeçado pela preposição de
ORIGEM e o do da preposição de META: ambos pertencem ao
mesmo campo semântico: assim, se o alativo representa uma
categoria semântica de TEMPO, o ablativo, quando existente,
também o fará. A quebra, motivada por efeitos estilísticos, desse
paralelismo, normalmente, gera efeitos surpreendentes, como se
verifica em Machado de Assis: “gastei trinta dias para ir do Rocio
Grande ao coração de Marcela” (Memórias Póstumas de Brás
Cubas, capítulo XV).

De qualquer forma, a etimologia de até não nos serve de


base para justificar seu comportamento de exceção no século XIX
(e na atualidade), uma vez que o valor prototípico dos núcleos dos
SPs da maioria das preposições é espacial (outra exceção seria
após). O mesmo não vale para advérbios (cf. ante com termos
espaciais, mas antes de, temporais).

Em anúncios, o núcleo tende a ser completo, citando hora


e minutos, parte do dia, dia, mês e ano. A correlação ablativa
normalmente está implícita na data da publicação do jornal ou da
assinatura do anúncio. O ano também é muitas vezes
subentendido e às vezes o mês.

(1) [SP/SP A 19 2] A directoria tem resolvido admitir um


número limitado de internos (...) os quaes podem ser
matriculados até o dia 7 de Janeiro de 1879. (Diário
Popular, 09 de janeiro de 1879)

(2) [BA/SA A 19 1] Embarcações entradas neste Porto Das


6 horas da manhã até as 6 da tarde do dia 30 de Novembro.
(Diario Constitucional, 04 de dezembro de 1821)

139
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(3) [BA/SA A 19 1] O Brigue Francez, L'Indien, Capitão


Boissy, faz viagem para Pernambuco até o dia 10 (Idade d
'ouro do Brasil, 22 de junho 1821)

Também são comuns elementos lexicais com função


dêitica. Para o dia específico de hoje se vale normalmente de “esta
data” ou “o presente”, já para mês ou ano atual, “o corrente”.
Também há lexicalizações com finalidade dêitica para o passado e
para o futuro.

(4) [BA/FS A 19 2] O abaixo assignado faz sciente ao


publico que até esta data não deve um só real ao
commercio d'esta cidade (Correio de Notícias, 22 de
outubro de 1885)

(5) [BA/CC A 19 1] até o presente se tem o dito


comportado por maneiras de ser estimado de seo Senhor
(Recopilador Cachoeirense, 26 de fevereiro de 1834)

(6) [BA/CC A 19 2] Avisa-se que até 15 do corrente em


falta de pagamento, serão seos nomes inseridos neste jornal.
(O Guarany, 11 de novembro de 1886)

(7) [MG/DI A 19 2] O abaixo assignado, não tendo podido


retirar-se no dia 10 do presente mez, como havia
annunciado por esta folha: vem novamente dizer ao
publico, que, ainda se demorará, até 17 de Abril próximo
futuro (O Jequitinhonha, 1870)

(8) [SP/SP A 19 2] Terá lugar a abertura e queima das


cartas atrazadas existentes nesta administração até
Setembro do anno passado. (O Constitucional, 28 de
outubro de 1854)

Mais raramente, muitos elementos são subentendidos por


conta de uma única pista referencial (dêitico ou dia da semana),
assemelhando-se a casos da situação conversacional:

140
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(9) [RJ/RJ A 19 2] Roga-se aos Senhores assignantes o


favor de mandarem buscar os seus bilhetes e fazerem a
ultima entrada até sabbado (Jornal do Brazil, 01 de junho
de 1881)

(10) [SC/FL A 19 1] Encerrando a correspondencia que


entrar na Administração hoje até ás 2 horas da tarde com
porte simple, e desta ás 4 com porte duplo.(O Novo Iris, 28
de maio de 1850)

Esses elementos dêiticos apontam para constantes. Há


também dêiticos variáveis, porém precisos do ponto de vista
referencial:

(11) [SP/SP A 19 2] Até o ultimo dia util, anterior ao do


leilão terá o depositante o direito de resgatar o seu penhor
pagando a importancia do capital (Correio Paulistano, 05 de
fevereiro de 1879)

(12) [MG/DI A 19 2] Os bilhetes achão-se a venda até dia


do Espectaculo em casas da beneficiada, e no dia, no lugar
do costume. (O Jequitinhonha, 1870)

Outros agrupamentos temporais como bimestres,


semestres, séculos, assim como intervalos de anos, são
representados no corpus:

(13) [BA/CC A 19 2] a cobrança se effectuarà sempre no


segundo mez de cada trimestre, e ás pessoas que não
tiverem pago até o começo do terceiro será suspensa a
entreaga da folha. (O Progresso, 15 de setembro de 1877)

(14) [BA/SM A 19 2] Precisa-se especialmente de sellos de:


1844 até 1850 (Numero pequeno, inclinado) de 300 e de
600 réis pelo qual se pagará 15$000 (O Commercial, 13 de
dezembro de 1893)

141
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

3. Gramaticalizações dos SPs compostos de até


e SNs/SAdvs com categoria tempo

O núcleo do SP pode ainda comportar uma data ou um


momento impreciso, expressa por um sintagma nominal. Nesses
casos, o momento exato é menos importante do que a ação que se
desenvolveu, por isso “até a ocasião em que” no exemplo abaixo
se assemelha a uma situação fronteiriça entre a preposição e uma
locução conjuntiva, num processo tênue de gramaticalização:

(15) [BA/FS A 19 2] conheceu ser um homem, e ainda


mais convenceo-se, logo que deu o charuto, por conservar-
se o desconhecido de rosto voltado para o outro lado, até a
occasião em que com sua mão grosseira lhe entregou o
charuto. (O Feirense, 08 de fevereiro de 1863)

Outro caso interessante ocorre com até seguido de SAdvs,


como “até hoje” ou “até então”, que perdem seu valor dêitico
para integrar expressões comparativas ou superlativas em
correlação com “mais”:

(16) [BA/CC A 19 2] Para o banho é o melhor até hoje


conhecido (Correio de Notícias, 10 de novembro de 1899)

(17) [SP/CA A 19 2] limpa e chumba os dentes cariados


com os melhores metaes até hoje conhecidos, e tudo
quanto é adherente á sua profissão. (Gazeta de Campinas,
08 de setembro de 1870)

(18) [SP/CA A 19 2] Negociantes que continuão a comprar


cafè em maior quantidade do que o faziam até hoje (A
Mocidade, 14 de outubro de 1874)

(19) [SP/SP A 19 2] Si bem que até hoje ninguem tem feito


maiores vantagens. (Correio Paulistano, 03 de abril de 1889)

142
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(20) [SP/SP A 19 2] Lecciona-se estas materias por um


methodo o mais aperfeiçoado até hoje conhecido. (A
Constituinte, 14 de novembro de 1879)

(21) [RJ/RJ A 19 2] Para o uso geral das familias o Sapolio


é o artigo mais economico até agora usado. (A Nação, 15
de março de 1873)

Perceba-se que há uma diferença importante com


construções dêiticas como as citadas nos exemplos 9 e 10 e nas
seguintes:

(22) [BA/FS A 19 2] A minha petição, remetida por elle a


camara para informar, ficou, até hoje, sem despacho (O
Feirense, 05 de novembro de 1862)

(23) [SC/FL A 19 1] QUERENDO o Doutor Herman


Blumenau e Fernando Haweradt dissol[v]er a sociedade que
existio até agora entre os mesmos (O Novo Iris, 12 de
novembro de 1850)

(24) [SP/CA A 19 2] Como até agora espera a protecção


dos seus numerosos freguezes e amigos. Na mesma casa
precisa-se de uma boa engomadeira, não se duvida pagar
bem. (Gazeta de Campinas, 09 de junho de 1870)

(25) [SP/JA A 19 2] Acham-se novamente a testa do seu


estalecimento commercial, onde esperam merecer a mesma
confiança que até aqui lhes tem sido dispensada. (Correio
do Jahu, 04 de julho de 1897)

Por outro lado, em situação intermediária parece ocorrer os


seguintes casos:

(26) [SP/CA A 19 2] Colloca dentes por todos os processos


até hoje conhecidos na arte dentaria, assim comotodas as
operações relativas á mesma arte. (Gazeta de Campinas, 11
de julho de 1872)

143
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(27) [SP/SP A 19 2] Possúem um graú de concentração e


suavidade até então desconhecido. (Correio Paulistano, 19
de julho de 1887)

A razão da situação intermediária dos exemplos 26 e 27


parece estar vinculada ao tipo de discurso. Num discurso em que a
data é importante como, por exemplo, no discurso jurídico,
“hoje” aparece com valor dêitico (cf. exemplos 23 a 25), já num
discurso com forte função apelativa, como o discurso publicitário,
o “hoje” (mesmo mesclado de discurso científico) parece perder
seu sentido dêitico e carregar-se de noções abstratas: “atualidade”,
“progresso científico”. É nessa brecha comunicativa, despida de
objetividade, mas carregada de intensidade, que nasce um embrião
correlativo “mais...até hoje/ agora/ então” no plano sintático nos
exemplos 16 a 21. É interessante que os exemplos 26 e 27
mostram que a rigidez sintática típica da gramaticalização acaba
atuando na independência do segundo elemento correlativo,
deixando sempre uma margem interpretativa para o
leitor/ouvinte: “um grau de concentração e suavidade (altíssimo,
muito alto, espetacular...) até então desconhecido”.

Por fim, sob o ponto de vista exclusivamente temporal,


alguns termos ou construções sintáticas pressupõem elementos
referenciais que não estão formalmente explícitos.

(28) [SP/JA A 19 2] Os leilões de Prendas que começarão


antes das ladainhas até final da festa. (Correio do Jahu, 08
de julho de 1897)

(29) [SP/SP A 19 1] M. Izidoro tem a honra de participar


ao Respeitável publico que tendo-se determinado a deixar a
carreira de Mestre de francez que exerce 11 annos no Rio
de Janeiro por seguir os estudos do Curso Juridico n’esta
Cidade, e querendo occupar o tempo, que tem até
matricular-se, abrindo dois Cursos de Francez, um (...) para
a tradução sómente, e outro (...) para fallar e escrever a dicta
lingoa. (O Farol Paulistano, 06 de agosto de 1828)

144
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

O exemplo 28, além de pressupor o conhecimento que o


leitor tem/tinha acerca da ordem dos acontecimentos durante os
leilões, usa do marcador para um limite temporal indefinido (“final
da festa”). O exemplo 29 também tem um limite temporal não-
declarado (ou seja, a matrícula dos estudos do Curso Jurídico): a
construção sintática até+INFINITIVO pressupõe na verdade algo
como: “até (a época em que deverá) matricular-se”. O processo
desencadeado para o uso conjuntivo de até, neste caso, assemelha-
se, portanto, ao já citado exemplo 15.

4. A preposição até seguida de SNs/ SAdvs com


a categoria semântica META

O emprego de até com núcleos com a categoria META, ou


seja, com um alativo indicador de movimento proximal, é
atestado, no corpus estudado, em 23 casos (16,79%). O exemplo 25
mostra que, apesar de ser menos freqüente, o valor espacial de até
é prototípico: é fácil derivar do valor espacial de até aqui um valor
temporal, mas o inverso não é possível (por exemplo, de até agora é
impossível derivar um valor espacial).

A gama de termos associados ao limite espacial, no entanto,


restringe-se, no corpus, a topônimos, pontos de referência do
conhecimento do leitor ou partes do corpo, o que dispensa uma
exemplificação muito minuciosa:

(30) [SP/SP A 19 1] consta ter passado té Iguapé com


Passaporte falso (O Farol Paulistano, 08 de novembro de
1828)

(31) [SC/FL A 19 1] Damazio José Leopoldo, fica


summamente agradecido aos seus amigos que lhe fizerão o
favor de acompanhar o cadaver de sua muito prezada mana,
desde a sua caza até o cemiterio. (O Novo Iris, 20 de
setembro de 1850)

145
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(32) [SP/CA A 19 2] Tem uma das canellas até o


tornozello mais grossa do que a outra (Gazeta de Campinas,
10 de março de 1872)

(33) [SP/PI A 19 2] Tem um pé e uma mão brancos,


ambos do mesmo lado e na testa uma estrella, d'onde desce
uma risquinha até o focinho. (Gazeta de Piracicaba, 24 de
janeiro de 1883)

É curiosa uma construção freqüente nos anúncios de perda


de objetos, hoje desusada (hoje se empregaria normalmente entre),
em que a soma dos núcleos do ablativo e do alativo marca um
perímetro onde há alta probabilidade de certo evento ter ocorrido:

(34) [BA/CC A 19 1] Perdeo-se, desde a baixa dos


çapateiros até aos cobertos, hum alfinete de peito de 1
brilhante (Gazeta Commercial da Bahia, 22 de fevereiro de
1836)

(35) [BA/SA A 19 1] Quem achasse hum mólho de chaves


pequenas, desde a Praça do Commercio até Santa Thereza,
procure na Loja da Gazeta que se lhe darão suas alviçaras.
(Idade d'ouro do Brazil, 1821).

Também o estilo de anúncios promove algumas


construções sintáticas em que se subentendem algumas partes
importantes:

(36) [RJ/RJ A 19 1] Na cocheira da rua Santa Teresa por


detraz do Imperio da Lapa há duas seges muito asseadas, e
com boas parelhas, as quaes se alugão pelo preço de 5
patacas, tanto de manhã como de tarde, até a distancia da
praia do Botafogo, ou de São Cristovão (Gazeta do Rio de
Janeiro, 31 de maio de 1809)

Ou seja, o sintagma encabeçado por até parece formar


adjunção com o verbo alugar, mas aí está implícito: “seges (...), as
quaes se alugão (...) (e podem ser usadas para conduzir
passageiros) até a distância da praia do Botafogo”.

146
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Como nos exemplos 15 e 29, um uso conjuntivo de até


aparece em contexto associado à categoria semântica de META:

(37) [SP/SP A 19 2] Aquem e alem do novo canal do rio


Tamandatehy, que por um lado devide com terras do
recolhimento de nossa Senhora da Luz até encontrar um
vallo velho. (O Constitucional, 07 de setembro de 1853)

De qualquer forma, construções como “até um valo velho”,


“até um local onde poderá encontrar um valo velho”, “até onde
poderá encontrar um valo velho” parecem anteceder,
diacronicamente, a construção acima, “até encontrar um valo
velho”, mas isso precisaria ser comprovado com outros corpora.

5. Usos de até em gradações discretas e


mensuráveis

Núcleos que tenham valor semântico de início e limite de


um movimento derivam necessariamente uma gradação na ordem
dos fenômenos. É por isso que a estrutura (desde/de x) até y
comparece com termos que não se circunscrevem exclusivamente
no plano espaço-temporal. Em 17 ocorrências (12,41%) é possível
observá-la em gradações numéricas, escalas e numerações
convencionais de outra ordem. Trata-se de noções passíveis de
quantificação como preço, comprimento, altura, profundidade,
idade, peso, que podem valer-se muito bem da mesma estrutura.

(38) [PR/CR A 19 2] morins finos de 24 jardas peças 3:600


até 6:500 ditos muito lasgo superior de 40 jardas a 14$ até
18$ chitas de 220 jardas até 290, e muitas outras fazendas
de gosto, ferragens, e miudesas de armarinho. (O 19 de
dezembro, 29 de abril de 1854)

(39) [RJ/RJ A 19 2] Recebe dinheiro em deposito desde


Um Mil Reis até a maior quantia que se quizer depositar.
(Atirador Franco, 09 de janeiro de 1881)

147
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(40) [RJ/RJ A 19 2] Internato, semi-internato e externato


para meninas e meninos até 10 annos (O Jacobino, 24 de
abril de 1897)

(41) [SP/PI A 19 2] Vende-se colchões pelos preços


seguintes: Colchão de marqueza, de 5$000 até 8$000, muito
superior.Ditos de marquezão, de 8$000 até 15$000. (Gazeta
de Piracicaba, 14 de janeiro de 1883)

(42) [SP/SP A 19 1] Faz pianos fortes e fortes pianos de


cinco e meia,até sete e meia oitavas (A Phenix, 03 de
fevereiro de 1841)

(43) [SP/SP A 19 2] Dos Psalmos de David desde o 51 até


o 100 inclusivamente. (O Constitucional, 21 de setembro de
1853)

A mesma construção pode indicar o máximo de um preço,


por isso, é amplamente usada em publicidade, quando o núcleo
pode ser avaliado como abaixo ou acima da expectativa do leitor:

(44) [SP/SP A 19 2] OS SENHORES PHOTOGRAFOS


encontrarão neste estabelecimento tudo que é mister á
mesma arte, e pelos preços do Rio de Janeiro Retratos até
Réis 5$ a duzia!!! (Correio Paulistano, 22 de janeiro de 1879)

(45) [SP/SP A 19 2] Em cujas experiencias tem-se


observado que os nossos descascadores augmentam a safra
até dez por cento. (Correio Paulistano, 27 de fevereiro de
1889)

6. Usos de até em gradações qualitativas

A gradação, no entanto, pode não ter bases quantitativas,


mas qualitativas, o que ocorre com as demais 24 ocorrências
(17,52%). É o que se depreende de exemplos como os abaixo, que
supõem um crescendum ou um decrescendum de tamanho, alvura,
textura, elegância, nível social, que pode ter uma base referencial
natural ou simplesmente valorativa. Normalmente a correlação

148
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

ablativa está presente, mas não necessariamente (como prova o


exemplo 50):

(46) [SP/SP A 19 2] Neste estabelecimento, que conta 16


annos de existencia (o mais antigo desta provincia)
continua-se a trabalhar por todos os sistemas de
photografias,desde o retrato em a mais pequena miniatura
até o tamanho natural. (Correio Paulistano, 22 de janeiro de
1879)

(47) [SP/CA A 19 2] Recebe mensalmente grande porção


de assucar de Penambuco, das melhores qualidades,desde o
alvo fino até o mascavo. (Gazeta de Campinas, 08 de
agosto de 1872)

(48) [SP/SP A 19 2] Perfeitas para todas as costuras, desde


a mais fina cambraia até o mais encorpado algodão.
(Correio Paulistano, 29 de julho de 1887)

(49) [SP/SP A 19 2] Em prataria encontra-se os objectos


mais variados e proprios para presentes,desde a mais
elegante bombonière até o mais rico serviço de café.
(Correio Paulistano, 12 de janeiro de 1889)

(50) [SP/SP A 19 2] Como se tenha dado este equivoco até


com os senhores empregados do correio de São Paulo. (A
Constituinte, 02 de outubro de 1879)

Esse emprego pode derivar um valor puramente


enumerativo de uma listagem, donde não se depreende um
(de)crescendum abstrato. É curioso que, nesse caso, a posição
sintática de até não precisa estar no final, uma vez que não gera
um jogo de expectativa:

(51) [BA/CC A 19 2] ha tudo até pianos e bicyclette, gaitas


e tambores, essencias e oleos, chitas e dedàs, cassas e
gorgurões, chapéos e leques, bengalas e chapéos de
s[o]l.(Correio de Notícias, 16 de fevereiro de 1899)

149
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(52) [BA/SM A 19 2] Fizeram-se depois experiencias de


construcção de rails, de rodas de wagons e até de
espingardas e canhões de papel. (O Commercial, 13 de
dezembro de 1893)

No entanto, a colocação no final das enumerações ou de


(de)crescenda explica por que até pode seguir-se de um termo que
mostre simplesmente o objetivo ou a finalidade de uma ação, uma
vez que o núcleo associado a essa preposição está sempre no fim
de uma escala real ou imaginária de acontecimentos. A
categorização de até como conjunção, já apontada nos exemplos
15, 29 e 37, também aparece aqui:

(54) [SP/PI A 19 2] A escrava, na noite de 15 do corrente


andou com a misera creancinha (...), dizendo havel-a
encontrado sobre as calçadas da rua, até que o senhor
Oséas Borges da Costa, de São Pedro, tomou conta d'esta e
depositou-a em casa de uma familia. (Gazeta de
Piracicaba,18 de agosto de 1882)

(55) [SP/SP A 19 2] Serão vendidos em leilão para


pagamento do estabelecimento até a importancia do
emprestimo e mais despezas. (Correio Paulistano, 05 de
fevereiro de 1879)

(56) [SC/FL A 19 1] Repelliremos com toda a dignidade os


insultos, que por escarneo ao publico ousou dirigir-nos o
Senhor... .até nos envergonhamos de escrever semelhante
nome! (O Novo Iris, 27 de setembro de 1850)

O exemplo 56 parece deixar implícita a intensidade já


prevista nos exemplos 26 e 27: “repelliremos (muito, de forma
tal)... até (o ponto em que) nos envergonhamos”.

O resultado ou o limite do crescendum da repulsa é a


vergonha. Tal escala imaginária se encontra no discurso que a
constrói (cf. orações como comi até ficar triste). Esse resultado não
deixa de ser surpreendente, uma vez que não é previsível como
num fenômeno pautável numa escala ou quantificação numérica,

150
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

por isso até acaba adquirindo efetivos componentes semânticos


com função apelativa.

(57) [RJ/RJ A 19 2] Com ele se limpam todos os objectos


do uso tanto de metal como de louça ou vidro, até de
madeiras pintadas, como portas, portadas, etc. (Diario de
Noticias, 12 de julho de 1869)

Neste exemplo, o elemento-surpresa é a capacidade do


produto vendido poder limpar objetos de madeira pintada. Neste
caso, até tem função morfológica opaca, mas, por anteceder uma
locução adjetiva, poderia ser entendido como advérbio. Na
verdade, a madeira foi buscada além da escala imaginária de
dificuldade de limpeza que incluía metais, louças e vidro. O
marcador até acaba incluindo as madeiras nesta escala. A
excepcionalidade de fato tão inusitado ou insólito só pode ser
observada ainda em outros exemplos:

(58) [SC/FL A 19 1] Sempre vi um cego buscar um guia, e


até tenho visto cegos guiados por hum cachorrinho (O
Novo Iris, 14 de junho de 1850).

(59) [SP/PI A 19 2] Vinho tinto e branco, differentes


marcas. Espiritos brancos, até pinga.(Gazeta de Piracicaba,
01 de setembro de 1882)

(60) [SP/CA A 19 2] O Elixir alimenticio Ducro e muito


agradavel ao paladar e as pessoas a quem mais repugnam os
alimentos, o tomam até por gosto. (Diário de Campinas, 01
de fevereiro de 1888)

(61) [RJ/RJ A 19 2] Vejam de quanto são capazes esses da


tarracha, que até negam a submissão e as satisfações que
deram. (A Nação, 15 de março de 1873)

Observações finais

Observa-se que o corpus do século XIX revela as mesmas


estruturas sintáticas e valores semânticos presentes ainda hoje,

151
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

com exceção de construções como as dos exemplos 34 e 35, hoje


desusadas e que têm grande valor para a história da língua
portuguesa. Dentro das categorias cognitivas, até transita em seu
valor prototípico espacial, associado com o alativo, sem
confundir-se necessariamente com ele. Entre as relações
aspectuais, associa-se com o aspecto imperfectivo embora não
esteja vinculado com nenhuma relação temporal específica.
Nenhuma relação abstrata de causa, posse, matéria, assunto,
instrumento ou condição se depreende desse marcador, embora se
entreveja, nos casos mais gramaticalizados, listados no item 6
deste trabalho, uma relação abstrata de modo, derivada de uma
visão resultativa paralela a de preposições associadas ao alativo.

Assim, no português, deriva-se com facilidade uma relação


aspectual perfectiva a partir de uma relação aspectual imperfectiva,
por exemplo: quando se diz ele vai para as bandas de lá, o alativo
reforça cognitivamente a imperfectividade da ação, uma vez que
descreve uma duração, já em ele mora para as bandas de lá, a mesma
preposição para tem valor locativo, pois deriva da focalização
semântica do resultado (perfectivo), sempre presente no final de
uma duração. Não parece ser diferente o que acontece com os
exemplos 58 a 61, uma vez que, de uma gradação imaginariamente
construída, pode extrair-se um resultado inesperado ou apenas
marcado pela função apelativa. Eventuais construções não
atestadas no corpus, mas presentes na língua atual, necessitariam ser
listadas e, a partir daí, seria possível estabelecer uma ampla
descrição diacrônica mais minuciosa dos usos das preposições no
português do Brasil.

Referências
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1959. 4v.
COROMINAS, J. Diccionario crítico etimológico de la lengua castellana.
Madrid: Gredos, 1954. v. 2.
ERNOUT, A.; MEILLET, A. Dictionnaire étymologique de la langue
latine: histoire des mots. 4. ed. Paris: Klincksieck, 1979.
GIFFORD, D. J.; HODCROFT, F. W. Textos lingüísticos del medievo
español. Oxford: Dolphin, 1966.

152
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

GUEDES, Marymarcia; BERLINCK, Rosane de A. (Org.). E os preços


eram commodos: anúncios de jornais brasileiros – século XIX. São Paulo:
Humanitas, 2000.
MACHADO, José P. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 2. ed.
Lisboa: Confluência, 1967.
PIDAL, Ramón Menéndez. Manual de gramática histórica española. 8. ed.
Madrid, Espasa- Calpe, 1949.
ROHLFS, Gerhard. Grammatica storica della lingua italiana i dei suoi
dialetti: sintassi e formazione delle parole. Torino: Einaudi, 1969. v. 3.
SILVA NETO, Serafim da. História da preposição portuguesa até. In:
Etymologica - Festschrift für Walther von Wartburg zum siebzigsten Geburtstag.
Tübingen: M. Niemeyer, 1958. p. 751-61.
STEIGER, Arnald. Contribución a la fonética del hispano-árabe y de
los arabismos en el ibero-románico y el siciliano. Madrid: Ed. Hernando,
1932.
SVOROU, Soteria. The grammar of space. Amsterdam/ Philadelphia: John
Benjamins, 1993.
VIARO, Mário E. Sobre a presença de tenus no ibero-romance.
Confluência - Boletim do departamento de Lingüística (Faculdade de Ciências e
Letras - UNESP) – EELA, número especial, 2, p. 269-277, Assis, 1995.

153
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Gramaticalização da preposição ‘com’ no


português brasileiro do século XIX
por
Nanci Romero
Universidade de São Paulo

1. Etimologia e manifestações categoriais de com

Com deriva da preposição latina cum, que, por sua vez, seria
“uma forma casual fossilizada”, segundo E. Faria (apud Poggio,
2002). Ou seja, teria sido inicialmente um morfema indicador do
caso comitativo (caso inexistente no latim documentado, mas
presente em muitas línguas, como ocorre ainda hoje no finlandês:
professorine, que significa “com o professor”). Essa preposição era
usada prioritariamente para indicar companhia, proximidade,
sendo esse, talvez, o sentido prototípico da preposição: “Cum
amico ambulare” [Caminhar com o amigo]. Também era empregada
para indicar o modo: “Caesar Galliam cum virtute vicit” [César venceu a
Gália com coragem]. Cum e também ab (a), de, ex (e), in (lugar onde),
prae, sub (sem idéia de movimento), super (assunto ou posição sem
idéia de movimento) e sine eram preposições que exigiam o
ablativo, também usado para indicar certos usos adverbiais. No
latim tardio, a preposição cum era empregada com acusativo
(Väänänen, 1985).

No português, continuou-se utilizando a preposição com


para introduzir adjuntos adverbiais de companhia e de modo, mas,
juntamente com outras preposições que regiam o ablativo, passou-
se a empregá-la também para introduzir aqueles adjuntos
adverbiais que, no latim, não eram preposicionados, mas exigiam
o caso ablativo. Vejamos alguns exemplos:

155
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

1.1 Adjunto adverbial de companhia:

(1) “Cum amicis venerunt.” [ Vieram com os amigos.]

(2) [BA/FS A 19 2] Apresentou-se, hontem á tarde no


escriptorio d'esta redacção a escravisada Joanna com dous
filhos ingenuos, quixando-se dos máus tratos que tem
recebido de seu senhor Manoel Martins Rodrigues de
Souza, morador nos suburbios d'esta cidade, o que
verificámos pelas sevicias que se lhe notavam nas costas.
(Correio de Notícias, 18 de outubro de 1885).

(3) [BA/CC A 19 2] Save! Queen! E' hoje grande moda em


Inglaterra uma es plendidosêda denominada Save! Queen!
(Salve! Rainha!) por ter com ella se apre sentado Sua
Majestade a Rainha Victoria nos ultimos concertos do
palacio de Windsor.

1.2 Adjunto adverbial de modo:

(4)“Maxima cum gratia ambulat.” [Caminha com muita


graça.]

(5) [BA/FS A 19 2] O senhor doutor Fabio Lyra dos


Santos, fazendo da medicina um verdadeiro sacerdocio de
caridade, foi, á cabeceira de padre Canuto, um amigo
desvelado e sincero que, com paternal carinho, empregou
todos os esforços para salval-o da terrivel molestia que o
levou ao tumulo.

1.3 Adjunto adverbial de meio:

(6) “Caesar omnem Galliam exercitu vicit.” [César conquistou toda


a Gália com seu exército.]

(7) [BA/CC A 19 2] Com este tratamento garantido e


economico, qualquer que seja a causa do beriberi o doente
tira sempre o mesmo resultado pela riqueza das suas
propriedades tonicas e reconsti tuintes.

156
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(8) [BA/FS A 19 2] felizmente foram reppelidos com tiros


dados pela familia dos meninos, que estava proxima.

1.4 Adjunto adverbial de instrumento:

(9) Turba signum dabitur. [O sinal foi dado com o


trompete.]

(10) [BA/FS A 19 2] mas o monstro arremessou-se a elle


com uma faca de ponta, e fêl-o correr para uma casa
visinha, onde escapou á sanha do malvado!

Evidentemente, alguns casos do ablativo latino não


poderiam ser introduzidos pela preposição com em razão de seu
sentido de base. Assim sendo, as noções de separação e de lugar
de origem foram assumidas pela preposição de, cujo sentido de
base é mais próximo.

No latim também havia a conjunção subordinativa cum,


cujas acepções principais eram de tempo e de concessão:

Tempo:

(11)“Cum responderit, omnia intellegetis.” [Quando ele


responder, entenderás tudo.]

Concessão:

(12) "Cum respondisset, non tamen intellexistis." [Embora


ele respondesse, ainda não entendestes.]

No corpus analisado, não foram encontrados exemplos de


com empregado como conjunção, mas a literatura aponta alguns
exemplos:

(13) “As noites, com ser tão dentro da zona tórrida, são
frigidíssimas em todo o ano.” [com ser = apesar de ser, não
obstante ser]. Silveira (1972, 8ª ed.).

157
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(14) Antecedendo verbos no infinitivo, indica idéia de


concessão e equivale a ‘apesar de’: ‘Inês de Castro..., com
ser o mais belo, é também o mais simples assunto que ainda
trataram poetas.’ (Almeida Garrett, Frei Luís de Souza, p.
37, apud Ferreira, 1986).

Outra manifestação categorial de com é o vasto uso como


prefixo, que não será tratado neste trabalho, mas merece menção.
Além disso, convém destacar o fato de que verbos que
apresentam o prefixo com ou suas variantes (com- antes de b, m e p;
con-; co- antes de vogais e de h, l, r e n), normalmente selecionam a
preposição com:

(15) [BA/CC A 19 2] Congratulo-me com toda a im /


prensa.

(16) [BA/FS A 19 2] (...) é bem triste, é bem mesquinha a


sorte do homem social fraco de posição, que se vê na
penosa obrigação de conviver com essas pantheras-
arlequins, que da moral, nem entendem a significação: e só
conhecem por lei seu apetite depravado.

(17) [BA/FS A 19 2] (...) acharam-se em um quilombo de


pretos fugidos, que se sabe que não tem communicação
nem com esta Villa, nem com a de Marahú, nem com a de
Camamú, e suppõe-se que traficam com os trabalhadores
das mattas de Jequié, ou com os Jubebeiros do centro de
Camamú.

(18) [MG/DI A 19 2] (...) tem o costume encarar pouco


para quem com elle conversa.

Como se vê, com tem um vasto emprego como prefixo, o


que ocorreu ainda no latim: congratular, conviver, comunicar e conversar
originaram-se, respectivamente, de: congratulare, convivere,
communicare e conversare. Esse uso, freqüente no latim, ainda ocorre
no português, como em correligionário, mas tem-se mostrado muito
menos produtivo.

158
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

2. Funções sentenciais

Com introduz adjuntos adnominais, adverbiais e


argumentos, porém a relação entre o número de ocorrências de
cada caso pode variar na mesma época em função do tipo de
texto, por isso decidiu-se elaborar a tabela abaixo separando
anúncios de cartas de leitores:

Quadro 1: Funções sentenciais de com no século XIX

TIPOS DE TEXTOS ANÚNCIOS CARTAS TOTAL


Introdutor de adjuntos 58 0 58
adnominais
Introdutor de adjuntos 64 26 90
adverbiais
Introdutor de argumentos 39 8 47
Total 161 34 195

Os dados mostram que nos anúncios há um número de


ocorrências semelhante entre adjuntos adnominais e adverbiais, o
que não se verifica nas cartas, nas quais não houve nenhum caso
de adjunto adnominal introduzido por com. Talvez o fato de
anúncios serem textos muito descritivos, já que seu objetivo é
detalhar bem para melhor vender, justifique o excesso de adjuntos
adnominais aí presentes.

3. Ordem dos constituintes

Quadro 2: Posição dos adjuntos adverbiais introduzidos


por com no século XIX

...[SVO] [...SVO] S...V V1...V2 V...O [SVO...] [SVO]... TOTAL


- 26/90 2/90 1/90 13/90 48/90 - 90/90
- 28,9% 2,2% 1,1% 14,5% 53,3% - 100%

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Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

A posição mais freqüente dos adjuntos adverbiais


introduzidos por com é depois de SVO, que tem sido a regra para
todos os adjuntos adverbiais, podendo, entretanto, aparecer em
todas as posições dentro da sentença.

3.1 - [...SVO]

Foram encontradas apenas duas ocorrências na oração


principal (sentença matriz), todas as demais em orações
subordinadas (encaixadas) introduzidas por pronome relativo:

(19) [PR/LO CJL 19 2] Com mais intelligencia, e


prudencia, não podia ser com- prehendida, e desempenhada
a difficil tarefa de administrar | e encaminhal-a em seus
negocios

(20) [BA SM A 19 2] As casas de papel tem tambem a


enoralíssima vantagem de serem 4inconbustiveis. Com a
transformação dos prédios de pedral e cal em casas de papel
imprimido e preparados contra os fogos desappareceriam
de um momento para o outro as companhias de seguros.

(21) [BA FS A 19 2] AGRADECIMENTO Os amigos do


finado padre Canuto Severino Augusto de Lima vêm
agradecer ao senhor doutor Fabio Lyra dos Santos a
maneira desvelada e caridosa com que prestou-se durante
sua enfermidade.

(22) [PR/LO CJL 19 2] Todavia, para responder, ao menos


com um esforço de boa | vontade, a honra com que me
distinguio, inquirindo mi- | nha humilde opinião, emittirei
algumas idéas

3.2 - S...V / V...S

As duas ocorrências de adjunto adverbial entre o verbo e o


sujeito se deram em casos de passiva sintética ou oração
subordinada adjetiva, na qual o sujeito é um pronome relativo:

160
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(23) [BA SA A 19 1] Vende-se com commodidade o


Engenho denominado São Bernardo, d'agoa moente, e
corrente, com grandes extensões de terras, occupadas de
mais de duzentos lavradores de mandiocas, que pagão
renda.

(24) [BA FS A 19 2] O senhor doutor Fabio Lyra dos


Santos, fazendo da medicina um verdadeiro sacerdocio de
caridade, foi, á cabeceira de padre Canuto, um amigo
desvelado e sincero que, com paternal carinho, empregou
todos os esforços para salval-o da terrivel molestia que o
levou ao tumulo.

3.3 - V1...V2

Houve apenas uma ocorrência de adjunto adverbial entre o


verbo auxiliar e o principal:

(25) [CC A 19 2] Save! Queen! E' hoje grande moda em


Inglaterra uma es plendidosêda denominada Save! Queen!
(Salve! Rainha!) por ter com ella se apre / sentado Sua
Majestade a Rainha Victoria nos ultimos concertos do
palacio de Windsor.

3.4 - V...O

Somente adjuntos adverbiais de modo foram encontrados


entre o verbo e o complemento, e este tipo de adjunto foi o que
apresentou maior flexibilidade quanto à posição ocupada.

(26) [BA/SM A 19 2] Este novo preparado pharmaceutico


composto de vegetaes de origem ndigena, tão abundantes
em nosso paiz, goza por sua composição de ta [ ]
propriedades theraupeuticas, que não se pode duvidar da
sua efficacia para combater com segurança a tosse mais
rebelde ou qualquer alteração da mucosa pulmonar

161
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(27) [BA/CC A 19 2] "Attesto que te nho empregado com


proveito na minha clinica, a Emulsão de Scott,
principalmente nos doentes affectados de rachitismo e
limpha / tismo."

(28) [PR/LO CJL 19 2] (...) v.s., como eu, se interessa pelo


desenvolvi- | mento da população livre desta provincia,
procurando | com muito acerto, a realisação desse
pensamento por meio | da colonisação e emigração
estrangeira.

(29) [PR/LO CJL 19 2] (...) para que pudesse | supporar


com vantagem a concurrencia com o assucar | procedente
desses lugares.

3.5 - [SVO...]

É a posição favorita da maior parte dos adjuntos adverbiais


introduzidos por com no corpus analisado:

(30) [BA/SM A 19 2] Attesto que o Hydrolato Anti-


Paludoso do Senhor Pharmaceutico Gabino do Nascimento
Bahia tem sido por mim empregado [ ]uas febres
intermittentes, sempre com os melhores resultados.

(31) [BA/FS A 19 2] NOTICIARIO Fatalidade . Manoel


João de Deos, pardo, solteiro, com 40 annos de idade
pouco mais ou menos, indo no Domingo primeiro do
corrente examinar humas - esperas de viado - de volta para
casa cortou humas varas, e na occasião que as apanhava,
embaraçou-se com a arma de fogo que trasia, e esta
disparou

(32) [BA/CC A 19 2] No intuito de evital-os e evitar


tambem que os nossos innumeros consumidores sejam
illudidos com productos de má qualidade, temos, nesta
data, admittido nos rotulos dos nossos cigarros -
EXPOSIÇÃO - um sinete perfurado com as iniciaes L. &

162
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

A. em systema vertical, guarnecidas por duas linhas tambem


perfuradas e verticaes.

(33) [BA/SA A 19 1] (...) fugio da obra ... um preto... levou


vestido cal / ças de brim; foi comboiado com um crioulo
da dita obra de nome Cypriano, delgado do corpo.

(34) [BA/SA A 19 1] Pelas 2 horas da tarde deo fundo o


Brigue Nacional Real Infante Dom Sebastião, vindo de
Lisboa com 32 dias com escalla pela Ilha da Madeira e
Pernambuco.

Quadro 3: Distribuição dos adjuntos adverbiais


introduzidos por com

Tipo ...[SVO] [...SVO] S...V V1...V2 V...O [SVO...] [SVO]... Total


9/57 2/57 13/57 33/57 57/90
Modo - - -
15.8% 3,5% 22,8% 57,9% 63,4%
2/6 1/6 3/6 6/90
Companhia - - - -
33,4% 16,6% 50% 6,6%
10/17 7/17 17/90
Meio - - - - -
58,9% 41,1% 18,9%
5/7 2/7 7/90
Tempo - - - - -
71,4% 28,6% 7,7%
3/3 3/90
Instrumento - - - - - -
100% 3,4%
26/90 2/90 1/90 13/90 48/90 90/90
Total - -
28,9% 2,2% 1,1% 14,5% 53,3% 100%

4. Elisão da preposição com

Só foi encontrado um caso de elisão da preposição, num


contexto em que com já havia aparecido:

(35) [SM A 19 2] CASAS DE PAPEL De uma


correspondencia de Paris: Estamos n'um fim de seculo de
verdadeiras maravilhas! Senão, veja-se o que a sciencia vae,
dia a dia, obtendo hontem com o ferro depois (Ø) o
aluminio e hoje com o papel.

163
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

5. Propriedades semânticas de com

Analisando as várias nuances da preposição com (presentes


no século XIX e ainda hoje) é possível supor o caminho por ela
percorrido, ao longo do qual foi adquirindo novos usos.

Da idéia básica de proximidade foram derivadas as noções


de companhia e qualidade. Quando o elemento próximo tem um
traço [+ humano], a noção que se estabelece é de companhia. Se o
elemento tem apenas um traço [+ animado], essa idéia ainda é
aceitável: Caminhava com o cão. Se o traço é [– animado], a idéia que
começa a aflorar é a de qualidade ou característica.

(36) [BA/SA A 19 1] Vende-se huma roça bem plantada,


com boa casa, e agoa de beber; quem a qui zer procure na
Loja da Gazeta.

(37) [BA/CC A 19 1] A Paulino José Lopes senhor de


engenho outeiro redondo, fugio-lhe em o dia 2 do cor rente
mez, hum escravo moço de nome Rafaiel, nação nagô, alto,
magro, pernas finas, cara descarnada, com hum signal de
cutilada no pes coço que tem tres a quatro dedos de
comprido e alguma coiza a calombada, com alguns sig naes
da costa altos no rosto, tristonho da cara, fulo.

Da mesma noção de proximidade vêm os usos como meio


e instrumento:

(38) [BA/FS A 19 2] (...) por conservar-se o desconhecido


de rosto voltado para o outro lado, até a occasião em que
com sua mão grosseira lhe entregou o charuto.

(39) [BA/FS A 19 2] NOTICIARIO Fatalidade. Manoel


João de Deos, pardo, solteiro, com 40 annos de idade
pouco mais ou menos, indo no Domingo primeiro do
corrente examinar humas - esperas de viado - de volta para
casa cortou humas varas, e na occasião que as apanhava,
embaraçou-se com a arma de fogo que trasia, e esta
disparou (...)

164
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Lakoff e Johnson (apud Poggio, 2002) consideram a


associação entre as noções de companhia e instrumento como um
universal, presente em praticamente todas as línguas do mundo.
Vale lembrar que no latim não havia necessidade de preposição
para indicar instrumento (exemplo 3), mas que o português
escolhe justamente a preposição que indica companhia para
exprimir essa relação.

Das noções mais concretas de proximidade passou-se a


noções mais abstratas, gerando o uso como adjunto adverbial de
modo, quando o substantivo do SP é abstrato:

(40) [BA/SA A 19 2] PALETOTS FRANCEZES DE


CINTA. De pano preto muito fino e casemira preta e de
cores, obra acabada com toda perfeição: vende a Loja de
Variedades.

(41) [BA/CC A 19 2] Consta que o mesmo fora auctor do


roubo praticado ha tempos no elevador hydraulico da
capital e que alli exerce a sua "honrosa pro fissão" com
grande pericia.

(42) [BA/FS A 19 2] Tendo perdido já um olho e soffrendo


de cataracta em outro, foi n'estas condições que recorri aos
cuidados do preclaro oculista que sem remuneração operou-
me tratando-me com a maior caridade e desvelo, dedicação
e carinho, sob o seu tecto, no seio de sua familia, como se
eu d'ella fizesse parte.

A noção de tempo ligada a com pode ser subdividida em


duas: uma mais primitiva, ligada à noção de proximidade, e outra
derivada da noção de modo:

Proximidade:

(43) “Adventu Caesaris iter faciemus.” [Com a chegada de


Cesar, saíremos]

(44) As flores renascem com a primavera.

165
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Modo:

(45) [PR/LO CJL 19 2] Todavia ainda hoje nos arredores |


de Principe e de alguns poucos lugares continuão a colher |
o trigo com algumas intermitencias

A noção de causa parece ser derivada da noção de tempo,


em função da idéia básica de proximidade, concomitância que os
adjuntos adverbiais de tempo preservam. Ou seja, a
simultaneidade de dois fatos gera a noção de que um é causador
de outro:

(46) As aves voltaram com as primeiras chuvas.

(47) [PR/LO CJL 19 2] (...) e com votação con- | sideravel


para represental-os na camara temporaria, devos- | lhes a
confissao de meu leal e candido roconhecimento, (...)

6. Considerações finais

Este texto, integrante de um conjunto de trabalhos sobre as


preposições no português brasileiro do século XIX, buscou
verificar traços de gramaticalização da preposição com nesse
período. Lehmann (1985) e outros estudiosos da gramaticalização
geralmente apontam algumas propriedades desse processo, entre
as quais a “perda” de conteúdo fonológico ou semântico (attrition),
a fixação numa determinada posição sintática (fixation) e também a
perda de propriedades sintáticas (condensation). No corpus analisado,
a situação da preposição com parece bem estável, já que as
propriedades morfológicas, sintáticas e semânticas encontradas
não diferem das já existentes na língua. A mudança que se percebe
é com relação ao século XX, quando com cede lugar para outras
preposições ou construções:

(48) [BA/FS A 19 2] Vende-se uma posse de terra proprias


para plantação ou criação, as quaes partem da ribanceira do
rio de Jacuipe em procura da Mochila, com 340 braças de
extensão.

166
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(49) [BA/SA A 19 1] Da Cotinguiba em 36 horas a Sumaca


Portugueza Invencivel, Mestre José da Silva 10 pessoas, 80
caixas com açúcar, 10 saccas com algodão.

Hoje encontra-se mais freqüentemente a construção “um


terreno de 300 metros” que “um terreno com 300 metros”.
Também pode-se afirmar que atualmente há uma preferência pela
construção “80 caixas de açúcar”. Portanto, há alguma
transformação em curso, que deverá ser verificada num trabalho
futuro.

Referências
AMARAL, Vasco Botelho. Novo Dicionário de Dificuldades da Língua
Portuguesa. Porto: Editora Educação Nacional Ltda., 1943.
DARDANO, M.; TRIFONE, P. Grammatica Italiana. Bologna: Zanichelli,
1983.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda. Novo dicionário da língua
portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
JUCÁ, Cândido (Filho) Dicionário Escolar das Dificuldades da Língua
Portuguesa. 5. ed. Rio de Janeiro: Fundação de Assistência ao Estudante,
1985.
LEHMANN, Christian. Grammaticalization: synchronic variation and
diachronic change. Lingua e Stile 20, p. 303-18, 1985.
NUNES, José J. Gramática Histórica Portuguesa. 2. ed. Lisboa: Livraria
Clássica Editora, 1930.
POGGIO, Rosauta Maria Galvão Fagundes. Processos de
gramaticalização de preposições do Latim ao Português. Salvador:
EDUFBA, 2002.
SILVEIRA, Souza da. Lições de Português. 8. ed. Rio de Janeiro: Livros de
Portugal, 1972.
VÄÄNÄNEN, V. Introducción al Latín Vulgar. 2. ed. Madrid: Editorial
Gredos, 1985.
WILLIAMS, Edwin B. Do Latim ao Português. 3. ed. Rio de Janeiro:
Editora Tempo Brasileiro, 1975.

167
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

A gramaticalização da preposição “entre” no


português brasileiro do século XIX
por
Verena Kewitz
Universidade de São Paulo

1. Introdução

No que diz respeito à etimologia, a preposição entre deriva


da preposição latina inter “no meio de, junto de” no sentido
espacial e “durante, no espaço/intervalo de, dentro de” no sentido
temporal: (Faria, 1975). Segundo Poggio (1999: 541), inter provém
da preposição in + -ter (sufixo de comparação).

Poggio (1999) apresenta um resumo da literatura referente a


inter, recolhido no quadro a seguir:

Quadro 1: Resumo da literatura a respeito de inter. Poggio


(1999: 396-398)

Inter era usado com verbo de movimento ou


estativo, no sentido temporal, significava
M. B. Climent (1956)
“durante”, podia ser usado com verbos que
indicavam superioridade (mais do que)
Inter concorria com intra, sendo o primeiro
conservado em quase todas as línguas
M. Breal (1985) românticas com sentido de “duração”. Com
valor temporal, inter concorrria com per para
denotar “pontos extremos”.
Inter: preposição usada exclusivamente com
A. Ernout e A. Meillet acusativo no sentido de “no interior de “. No
(1951) sentido locativo, significava “entre”, e no
sentido temporal, “durante”.

169
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

De acordo com a mesma autora, inter podia expressar


“espaço”, “companhia”, “meio”, “causa” e “modo”. Na maioria
dessas acepções, inter foi substituído por outras preposições em
português, tais como com e por. Entre ficou restrito a exprimir
“situação intermediária” e “no interior de”.

No português arcaico, entre/antre/ontre manteve as duas


últimas acepções acima, tal como no português atual. Rocha Lima
(1992 [1972]: 373) e Cunha (1982: 525-526) atribuem a entre o
sentido de “posição do meio” ou “posição no interior de dois
limites indicados” no espaço, no tempo nocionalmente.1 Neves
(2002: 681-691) enumera várias acepções dessa preposição,
fundamentando-se na semântica do verbo ou do nome adjacentes,
e não na preposição em si.

Pontes (1992: 26-30) observa que entre é mais marcada que


a preposição em no que diz respeito à posição no espaço, “porque
é mais específica, indica uma posição no espaço intermédio entre
dois pontos”. Para a autora, as preposições marcadas são “mais
encorpadas fonologicamente, têm duas sílabas”, enquanto que as
não-marcadas são monossílabas. A autora assinala ainda que existe
um ponto de contato entre as preposições entre e por, pois ambas
significam “no meio de dois lugares”. Por isso, combinam-se na
expressão “por entre (as árvores)”. Esse fenômeno já existia no
latim, permaneceu no período arcaico da língua portuguesa e
ainda é produtivo no português atual.

Enquanto prefixo, o item entre pode ser encontrado em


palavras como entreter e entrelinha. Neste trabalho, os usos prefixais
de entre não serão estudados.

No total de dados com a preposição entre no século XIX,


todas as ocorrências são de preposição (19 dados nos Anúncios e
70 nas Cartas de Leitores aos Jornais). Em alguns casos, entre aparece
precedida pelas preposições de (d’) e por, regramaticalizando-se. No
item 3, faço algumas observações a respeito dessas formas

1
Mantenho, por ora, a terminologia adotada por esses autores.

170
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

2. Propriedades textuais de entre

De todos os dados examinados, apenas dois apontam para


o uso discursivo de entre, um deles na organização de construção
de tópico (exemplo 1):

(1) [RJ CJ 19 1] Asseverão-me que o muito illustre Sr.


general Chagas Santos entre outras reformas importantes
que introdusio no quartel general da côrte, mandou que não
fossem mais empregadas, como ali se usava, obreias verdes
e amarellas..

Nesse caso, a CT não foi deslocada para a esquerda da


sentença, mas poderíamos restruturá-la da seguinte forma:

(1a) Entre outras reformas importantes... o muito illustre


Sr. general Chagas Santos mandou que não fossem mais
empregadas... obreias verdes e amarellas.

No exemplo abaixo, a preposição entre constitui um SP que


redobra o pronome locativo cá, constituindo uma expressão de
valor aparentemente epilingüístico:

(2) [MG CJ 19 2] ...mas que por esse mesmo motivo deve


ser considerado como possuidor das rendas necessarias,
porque tudo quanto faz é para empicuar; mas vamos cá
entre nós discutir: elle só em fallar, intrigar, e bater pernas;
só em ser espião do serralho, não arranja 200$000? o que
achas?

É como se o autor da correspondência deixasse de lado um


tom mais impessoal, introduzindo seu destinatário por meio da
expressão negritada. Cria-se um espaço abstrato em que se situa
de um lado o destinador e de outro o destinatário. Nesse espaço
ocorre uma fuga do impessoal para o pessoal. O sentido de base
de “cá entre nós” é reativado na oralidade, ao passo que, na língua
escrita, essa expressão diz respeito ao lugar do discurso.

171
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

3. Propriedades sintáticas de entre

3.1 - Funções sentenciais

Em relação às funções sentenciais, verificou-se que entre


pode introduzir (i) complemento oblíquo, (ii) complemento
nominal, (iii) adjunto adnominal, (iv) adjunto adverbial e (v)
aposto. Na tabela seguinte, pode-se observar o percentual dessas
ocorrências:

Tabela 1: Distribuição de entre em relação às funções


sentenciais

complemento complemento adjunto adjunto


aposto Total
oblíquo nominal adnominal adverbial
Quantidade - percentual
87 -
3 – 3% 6 - 6% 33 - 38% 43 - 50% 2 - 2%
100%

Exemplos:

(i) complemento oblíquo:

(3) [BA CJ 19 2] Alem d’isso quando o inventariante de um


casal, que goza, segundo as leis do paiz, de todas as
attribuições necessarias para promover o seu augmento,
zelando a sua conservação, vê que, por suggestões malignas
de quem quer que seja, é inevitavel a perda dos bens
sugeitos á sua administração, não deve, não póde mesmo
hesitar um só momento entre a escolha de um
desencaminhamento e a disposição de taes bens ameaçados
de proxima perda.

(ii) complemento nominal:

(4) [PR CJ 19 2] entendeu não dever protestar contra a


venda, pôr existirem as terras de seos constituintes na

172
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

comarca e municipio de Guarapuava, sendo aliás as divisas


entre os terrenos destas duas localidades bem
determinadas.

(iii) adjunto adnominal:

(5) [SP CJ 19 2] Tem o distincto professor matriculados


sessenta e tantos alumnos em lugar tão insignificante, que
muito têm aproveitado, e de entre os quaes alguns ja estão
bem adiantados, (...).

Neste caso, o adjunto adnominal moveu-se para antes do


SN “alguns”, no qual está encaixado.

(iv) adjunto adverbial:

(6) [SP CJ 19 1] A mocidade está toda enthusiasmada: entre


os moços não se ouve fallar n’outra coisa senão em estudar
com empenho para se matricular no Curso Juridico.

(v) aposto:

(7) [PR CJ 19 2] julga dever esclarecer estes factos


occorridos ao Excelentíssimo governo, e aos interessados
requerentes, confirmando que protestará sempre que os
signatarios da petição tencionem comprar terrenos
pertencentes a esta comarca, no logar denominado -
Concordia - entre a serra da Esperança e o rio Iguassú, com
o denominado - Tarypanê - , que são da propriedade
particular dos seus ditos constituintes.

Observa-se, na Tabela 1, que o SP introduzido por entre


apresenta-se mais freqüentemente na função de adjunto adverbial
(50%), seguido de adjunto adnominal, (38%). A preposição entre
nas demais funções não se mostrou muito relevante.

No que diz respeito aos itens regramaticalizados, verificou-


se que d’entre assume apenas a função de adjunto adverbial (2

173
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

ocorrências), e por entre, as funções de adjunto adnominal (1


ocorrência) e adjunto adverbial (4 ocorrências). Exemplos:

(8) [BA CJ 19 2] D’entre as muitas revelações feitas por s.


s. sem fundamento algum, a que me obriga a vir hoje, á
imprensa, é a que se refere ao mandado de prisão contra
mim, sem que s. s. dissesse por que.

(9) [MG CJ 19 2] Longas e tristes provas me tem


compellido a esta convicção desanimadora que servir a
Egreja ou aos homens que por entre nós pretendem
governal-a, não

3.2 - Posição dos constituintes preposicionados

A posição da preposição entre é fortemente adsentencial,


embora apareça também no interior da sentença, como se observa
na tabela abaixo:

Tabela 2: Posição de entre na sentença2

Quantidade - percentual
[SVO] -
[ SVO] 15 - 17%
V S/S V 14 - 16%
V1 V2 1 - 1%
[SVO ] 49 - 56%
Total 88 - 100%

2 (i) estou considerando aqui toda a expressão “cá entre nós” do exemplo

(2) acima, e não apenas a preposição entre; (ii) O único exemplo de CT


ocorre entre S e V; (iii) embora um dos exemplos de aposto esteja entre
dois sns numa sentença equativa, preferi incluí-lo na posição V...O por
uma questão metodológica; o mesmo ocorreu para um dado de entre
introdutor de um complemento nominal numa sentença atributiva; (iv)
do total de 89 dados de entre, excluiu-se, do quadro de posições, um
exemplo dos anúncios, pois não havia verbo na sentença.

174
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

A Tabela 2 mostra que a preposição entre ocupa com maior


freqüência as margens da sentença, com 56% à direita e 17% à
esquerda. Entre S e V, a preposição ocorre com 16%. As posições
menos preenchidas são entre V e O, V e O e V1 e V2. Nenhuma
ocorrência fora de SVO foi encontrada no corpus do século XIX.
Veja alguns exemplos:

(10) [...SVO]: [SP CJ 19 2] entre nós porém, a illuminação


da capital, parece que é mais uma penção ao contractador,
com meio de vida particular do que serviço publico.

(11) V...S / S...V: [BA CJ 19 2] Ha dous annos alguns


amigos meus, entre os quaes Vossa Senhoria tambem se
achava, instaram commigo para que requeresse as honras de
conego...

(12) V...O: [PR CJ 19 2] A sua folha de quarta-feira ultima


publicou, entre os à pedido, uma chapa para a elição dos
vereadores deste municipio ...

(13) [SVO...]: [RJ A 19 2] O consumo extraordinário a que


attingiu, é prova sufficiente de que o publico reconheceu a
sua superioridade entre a immensa multidão de tintas que
por ahi se vendem ...

Observando agora os resultados das ocorrências da


preposição entre na função de adjunto adverbial, tem-se a seguinte
tabela:

Tabela 3: Distribuição da posição de entre na função de


adjunto adverbial

V S/S
[ SVO] V O [SVO ] Total
O
Quantidade - percentual
9 - 21% 7 - 16% 4 - 9% 23 - 54% 43 - 100%

A tabela acima confirma que a preposição na função de


adjunto adverbial ocupa as margens da sentença com maior

175
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

freqüência (51% à direita e 21% à esquerda). Vale ressaltar que


entre nas demais funções também apresenta maior freqüência
nessas posições, sobretudo à direita.

A mobilidade de entre como adjunto adverbial confirma a


hipótese apresentada na introdução deste trabalho: “os adjuntos
adverbiais movem-se mais na sentença do que os argumentos”
(Castilho, 2003).

Em relação à troca lexical e ao apagamento da preposição,


verificou-se que tais fenômenos não ocorrem com entre. Isso
talvez se deva, entre outros fatores, ao fato de ser “mais
encorpada fonologicamente”, nas palavras de Pontes (1992). A
forma regramaticalizada dentre teve escassa freqüência, por isso,
não se pode falar em substituição, como se verificou com
ante>diante. Talvez esses fatores sirvam de argumento para
classificar entre no conjunto das preposições medianamente
gramaticalizadas.

4. Propriedades semânticas de entre

A preposição entre pode introduzir um SP que exprime


espaço, tempo e noções abstratas. A maioria dos dados mostra
que entre tem a acepção de “no interior de um conjunto de
pessoas, objetos ou idéias”, considerando um campo
tridimensional, como nos exemplos (14), (15) e (16)
respectivamente. Já num campo unidimensional, entre expressa
“no meio de dois pontos extremos” no espaço físico, exemplo
(17), no tempo (18) e no espaço abstrato, como em (19).

(14) [SP CJ 19 1] E como póde qualquer saber se na alta


mente de Sua Excellencia foi ou não incluido entre as
pessoas que tem direito a semelhante obsequio?

(15) [PR CJ 19 2] O chá, me parece ser, entre todos os


productos agriculos do Paraná o mais apropriado para suas
circumstancias actuaes.

176
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(16) [RJ CJ 19 1] Asseverão-me que o muito illustre Sr.


general Chagas Santos entre outras reformas importantes
que introdusio no quartel general da côrte, mandou que não
fossem mais empregadas (...) obreias verdes e amarellas...

(17) [SC A 19 1] Vende-se uns terrenos com 5 braças de


frente na rua do Rosario, com fundos a rua do Alecrim
entre as casas do cirurgião Mello, e a do Cidadão
Domingos Dias de Souza Predeiros.

(18) [PE CJ 19 2] Foi isto entre 24 de abril e 23 de julho de


1868, periodo em que se assignalou pelos esforços em que
auxiliou o governo central na afanosa luta travada nos
campos do Paraguay, então n’uma phase bastante
angustiosa. 3

(19) [PR CJ 19 2] Quanto a propalada demissão, rio-me


della, não vacillo entre a defeza de meus brios offendidos e
as vantagens que me trazem o cargo.

Há alguns casos em que a distinção entre essas duas


acepções não está muito clara, ou seja, a interpretação pode recair
sobre as duas, como no exemplo (20) abaixo:

(20) [SP A 19 2] Vende-se no municipio de Pederneiras um


sitio denominado Jacuba, 77 alqueires de terra alta na maior
parte, (...) grande porção de madeiras lavradas para cazas, 35
porcos entre gordos e magros.

A próxima tabela mostra o total de ocorrências da


preposição entre nos três casos:

3 Embora este dado não tenha sido computado no total — por ter sido

encontrado numa carta de redator — serve para ilustrar a ocorrência de


entre temporal.

177
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Tabela 4: Distribuição dos sentidos da preposição entre

campo
campo
unidimensional
tridimensional ambíguo Total
(entre dois pontos
(conjunto)
de uma linha)
Quantidade - percentual
28 - 31% 53 - 60% 8 - 9% 89 - 100%

Esses resultados mostram que a preposição entre ocorre


mais freqüentemente no sentido de “dentro de um conjunto”
(60%). Retomando Poggio (1999), entre possui o sentido de “no
interior de”, valor este transmitido por in, forma latina que
originou inter. Com isso, conclui-se que o sentido de base de entre
ainda é bastante produtivo nos dados do século XIX.

Para responder às questões de Castilho (2003) “Qual a


freqüência dos usos prototípicos, mais concretos” e “(...) dos usos
metafóricos, mais abstratos?”, procurei observar quais ocorrências
da preposição entre se encaixam em contextos mais ou menos
concretos. Nesse sentido, considero mais concreto quando o SP
introduzido por entre tem o sentido de “conjunto” ou “no meio de
uma linha” no espaço físico, e abstrato quando o “conjunto” e a
“linha” são imaginários. Os resultados podem ser verificados na
tabela seguinte:

178
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Tabela 5: Freqüência da preposição entre em relação aos


espaços físico e imaginário

linha conjunto linha/conjunto


Espaço espaço espaço espaço
imaginário
físico imaginárioo físico imaginário
Quantidade - percentual
12 – 43% 16 - 57% 4 - 8% 19 - 92%
8 - 100%
Total = 28 - 100% Total = 53 - 100%

Observa-se que entre apresenta 43% para o sentido de “no


meio de uma linha” no espaço físico e 57% no espaço imaginário,
ou seja, estão praticamente equilibrados. Já em relação ao sentido
“conjunto”, entre aparece com 92% para o espaço imaginário.
Quando a interpretação é ambígua (em relação aos dois sentidos),
a preposição é categórica no espaço imaginário.

Do espaço físico (em ambas as acepções) passa-se à


representação de algo abstrato como se isso pudesse ser colocado
entre dois pontos de uma linha imaginária ou dentro de um
conjunto imaginário, pois tanto podemos dizer “entre a casa e a
escola” quanto “entre música e literatura, prefiro a primeira” e
“entre as coisas na sacola, tem um disco” quanto “entre todas as
coisas que fiz, ter viajado foi a melhor”.

Considerações finais

Com base nos dados analisados, o item entre apresenta-se


categoricamente como preposição. Apenas dois casos foram
encontrados em que entre apresenta propriedades textuais de
construção de tópico, sendo um deles na expressão “cá entre
nós”.

Dentre as funções sintáticas que essa preposição assume, é


a de adjunto adverbial a mais freqüente, com 50%.

No que diz respeito aos sentidos atribuídos à preposição


entre, constatou-se que ainda carrega o sentido da preposição latina

179
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

intra “no interior de” e “posição no interior de dois limites


indicados”, os quais estou chamando “dentro de um conjunto” e
“no meio de dois ponto de uma linha”, respectivamente.

Verificou-se ainda que a preposição entre ocorre com maior


freqüência quando a linha e o conjunto são imaginários. Fica aqui
uma pergunta: que item ou expressão estaria entrando no lugar de
entre para designar “espaço físico”? Para responder a essa questão,
seria necessário fazer um levantamento quantitativo e qualitativo
das ocorrências de expressões como “no meio de” e “dentro de”.

Referências
CASTILHO, Ataliba T. de (2003). Análise multissistêmica das
preposições do eixo transversal no português brasileiro: a anterioridade e
a posterioridade. In: RAMOS, Jânia; ALCKMIN, Mônica (Org.). Para a
história do português brasileiro. v. VI. (No prelo)

CUNHA, Celso. Gramática da língua portuguesa. 8. ed. Rio de Janeiro:


Mec/Fename, 1982.

FARIA, Ernesto. Dicionário escolar latino-português. 5. ed. Rio de Janeiro:


Mec/Fename, 1975.

NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática de usos do português. São


Paulo: Ed. da Unesp, 2000.

POGGIO, Rosauta Maria Galvão Fagundes. Relações expressas por


preposições no período arcaico do português em confronto com o latim.
Tese (Doutoramento), Salvador, UFBA, 1999.

PONTES, Eunice. Espaço e tempo na língua portuguesa. Campinas: Ed.


Pontes, 1992.

ROCHA LIMA, Carlos Henrique da. 31. ed. Gramática normativa da língua
portuguesa. Rio de Janeiro: José Olympio, 1992 [1972].

180
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Gramaticalização da preposição ‘de’,


introdutora do segundo elemento do par
1
correlativo comparativo.
por
Marcelo Módolo
Universidade de São Paulo

Introdução

Este trabalho insere-se em uma pesquisa mais ampla,


Gramaticalização das conjunções correlativas no período medieval e no século
XIX. Nessa pesquisa, mostro que as correlações conjuncionais do
português — aditiva, alternativa, comparativa e consecutiva —
devem ser tratadas como um processo distinto de ligação sintática,
não se encaixando, portanto, nos tradicionais processos de ligação,
coordenação e subordinação. Além de teorizar sobre a diversidade
da estrutura correlativa, também estudo o processo de
gramaticalização dessas construções.

Desses quatro pares conjuncionais, os comparativos de


desigualdade destacam-se por apresentar a preposição de,
introduzindo o segundo termo da comparação. Meu objetivo,
neste artigo, será focar a gramaticalização da preposição de, dentro
desse tipo de estrutura sintática.

1 Agradeço aos Profs. Ataliba T. de Castilho, Marilza de Oliveira e Mário

Eduardo Viaro pela leitura crítica da versão anterior, bem como aos
colegas da equipe de São Paulo do PHPB. Os erros continuam de minha
inteira responsabilidade.

181
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

O corpus de análise se compõe de dois tipos de textos,


produzidos no século XIX: anúncios de jornais, editados por
Guedes e Berlinck (2000) e correspondência publicada em jornais
por Barbosa e Lopes (2002).

1. As estruturas comparativas no latim e no


português: breve percurso

A língua latina indicava a comparação por dois processos


distintos: a) o segundo termo da comparação vinha no ablativo,
como em (1); ou b) recorria-se à conjunção quam, conservando no
mesmo caso os termos comparados, como em (2).

(1) "Turris altior est domo" Maurer Jr. (1967: 269) [A torre é
maior do que a casa.]

(2) "Libris Ciceronis magis delector quam Caesare"


Lipparini (1961:117) [Eu me deleito mais com os livros de
Cícero do que com os de César.]2

Segundo Maurer Jr. (1967: 269), no latim vulgar o primeiro


tipo de construção passou a exibir a preposição de. A inserção de
preposições, tendência geral do sermo plebeius, justifica-se na
medida em que essas vão assumindo o lugar dos antigos casos da
declinação. Assim, a preposição de assumiria as antigas funções do
ablativo latino nas estruturas comparativas.

Com o desaparecimento dos casos no latim vulgar, a


preposição de, que era empregada juntamente com a, ab e ex nessa
forma de ablativo, acabou por hipertrofiar-se, ocupando o lugar
das outras. Segundo Meyer-Lübke apud Machado (1990: 282), "De
invadiu consideravelmente o domínio de ex e ab, e quase acabou

2 Literalmente "do que com César", o que os gramáticos chamam de

comparatio compendiaria.

182
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

por expulsar essas duas concorrentes, conforme revelam as


confusões entre as três, que apareceram no latim tardio".

Além de substituir a marca morfológica de caso, a


preposição de tinha, conforme Bourciez (1967: 103), a função
explícita de marcar um ponto de partida e a idéia de diferenciação,
em estruturas como: *plus fortis de frate (c.f. aliquid de mutatione felicius,
Tert. resurr.6). A estrutura comparativa com a preposição de vingou
no português arcaico, correlacionando-se de com "may(i)s" e
"menor", como mostram (3), (4) e (5):

(3) "por ha dona, se me ualha Deus,/ que depois uiron


estes olhos meus,/ que mh-a semelha muy mays d'outra
rem. Apud Nunes (1943: 226)

(4) (...) que oi dizer/ que aquela por que trobad' auedes/ e
que amastes uós mais d'outra rrem/ que uos morreo, (...)
apud Nunes (1943: 271)

(5) "E sabede que non foi menor de seu padre" Graal.
Apud Borba (1965: 185)

Em todo caso, seria necessário entender por que foi


escolhida a preposição de para indicar a comparação. Trato disso
no próximo item.

2. O aparecimento da preposição de no par


correlativo-comparativo

2.1. Do ablativo latino para a preposição portuguesa

Segundo Riemann (1927: 136) "La fonction propre de


l'ablatif est remarquer le point de départ, l'endroit d'où quelque
chose est éloigné ou séparé."

No português arcaico, segundo Dias (1959: 125), também


na comparação "A prepos. (de) designa o ponto d'onde as cousas
se observam":

183
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(6) "todollos christãos pouco menos de dous mil forom


trazidos aas mãos dos barbaros (Mil. de Sto. Ant., 20)

Vimos mais acima que Bourciez (1967) atribuía à


preposição de das estruturas comparativas justamente a função de
marcar o ponto de partida e a idéia de diferenciação.

Por extensão do traço semântico "ponto de partida", as


gramáticas latinas tratam de um ablativo de separação (antiga
classificação do ablativo comparativo), no exemplo a seguir:

(7) Paulus maior est Petro3

Nesse caso, o ablativo marca o ponto de partida da


comparação, ou seja, Pedro. Portanto, se há um ponto de partida
para a comparação, conseqüentemente se visualiza a separação, o
afastamento em relação ao outro ente comparado: Paulo.4

Em uma tradução literal, teríamos algo como:

(8) Paulo é particularmente grande, partindo-se de Pedro


(como comparação).

O sentido atual, "Paulo é maior do que Pedro", seria


derivado desse "sentido base". E não, portanto, um cruzamento
sintático de (1) e (2) como já afirmaram alguns gramáticos, dentre

3 O sufixo "o", de "Petro", tem aqui uma hierarquia mais alta sobre o

radical a que se aplica, uma vez que esse sufixo especifica uma leitura
diferente da sentença.
4 Esse mesmo raciocínio encontrei em Allen e Greenough (1903):"406.
The comparative degree is often followed by the Ablative1 signifying
than: — Cato est cicerone eloquentior, Cato is more eloquent than
Cicero.Note: 1) This is a branch of the Ablative of Separation. The
object with which anything is compared is the starting-point from which
we reckon. Thus, "Cicero is eloquent"; but, starting from him, we come
to Cato, who is "more so than he".

184
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

eles Nunes (1928: 172-175), Pereira (1915: 381), com


argumentação sempre na esteira de Moreira (1907).5

Se realmente fosse um cruzamento sintático,


pressuporíamos a existência da locução conjuntiva de que
(resultante de mais...de x mais...que) no português arcaico e isso não
ocorre, segundo Maurer (1967).

2.2. Do Dequeísmo na locução conjuntiva de que

Estudando a presença da locução conjuntiva comparativa de


que em materiais do NURC-SP, Mollica (1995) observa sua
insignificância em termos quantitativos. Isso talvez se deva à
variante não standard "de que" (em oposição à que, do que
consideradas como standards) ser muito marcada socialmente.

Com base nesses resultados, a autora sugere que a variante


de que teria sido introduzida na língua portuguesa por analogia a
outras estruturas Dequeístas. Com as palavras da própria autora:

A pesquisa anterior formulou a hipótese de que tal variação


("de que" comparativo) tenha sido introduzida na língua por
analogia a estruturas Dequeístas o que mais tarde fora
efetivamente constatado. Mollica (1995: 68).

Ainda segundo a pesquisadora, ao contrário do que


comumente se acredita, o Dequeísmo sempre existiu no
português:

Como já afirmei, do processo de varredura do material


sonoro em vários corpora, do português do século XX e do
português em vários séculos de história, constatei que o
Dequeísmo existe no português desde sempre. Mollica
(1995: 40) (Grifo meu.)

5 MOREIRA (1907) foi o pioneiro a propor essa hipótese, muita seguida

por gramáticos brasileiros e portugueses.

185
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Salvo erros tipográficos, encontrei exemplos em Ferreira


Netto (2001) e Maurer Jr. (1967: 277) que corroboram com a
afirmação acima.

(9) Quem há de dizer que uma menina de sua idade sabe


mais de que muitos homens que aprenderam nas
academias?"Alencar, José de. Senhora. Apud Ferreira Netto
(2001).

(10) (...) que para o Verbo mostrar ao mundo a inteireza da


sua igualdade e a perfeição da sua semelhança, foi
conveniente que fizesse mais de que o Padre fizera.”
VIEIRA, Padre Antônio. Sermão de Santo Inácio, fundador da
Companhia de Jesus. Lisboa: Real Colégio de S. Antão, 1669.
Apud Ferreira Netto (2001).

(11) Em todos os instantes nas decepções e nos


entusiasmos, levantando o nosso ânimo e multiplicando as
nossas forças, mais de que qualquer outro amparo ou guia,
foi a Esperança valimento nosso.” KUBISTCHEK,
Juscelino. Discurso a operários, na inauguração de Brasília, 1960.
Apud Ferreira Netto (2001).

(12) Não admira, pois, que o nosso conferente de hoje


tenha escrito num dos seus mais formosos livros: "Uma
região pode ser polìticamente menos de que uma nação.
Mas vitalmente e culturalmente é mais de que uma nação;
é mais fundamental de que a nação como condição de vida
e como meio de expressão ou de criação humana"
(Interpretação do Brasil, p. 140).”6 FREIRE, Gilberto. Apud
Ferreira Netto (2001).

6 Teria escrito Gilberto Freire no texto referido pelo Doutor Álvaro J. da


Costa Pimpão, nas palavras de apresentação, proferidas como Director
do Instituto de Estudos Brasileiros da Faculdade de Letras de Coimbra,
antes do Freire palestrar sobre o tema: Em torno de um novo conceito de
tropicalismo.

186
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(13) Mais acendem de que apagam a sêde recrescente.


(Latino Coelho, Vasco da Gama, vol. II, pág. 29) apud
Maurer Jr. (1967: 277)

(14) Só teríamos inveja a quem o fôsse menos de que nós


(A. A. Teixeira de Vasconcelos, em artigo sôbre Latino
Coelho reproduzido em uma edição de Fernão de Magalhães,
do referido escritor luso). Apud Maurer Jr. (1967: 277).

(15) Mais dadas de que outras à exibição de distinções


exteriores. (Otoniel Mota, Valor, p. 57) apud Maurer Jr.
(1967: 277).

Para discutir a gramaticalização da preposição de nas


construções do par correlativo-comparativo, analisei essas
estruturas no século XIX. Os resultados acham-se na terceira
parte deste trabalho.

3. Sintaxe da preposição de como introdutora do


segundo elemento do par correlativo
comparativo

Nesta seção, analiso as construções em que aparecem as


locuções mais de, menos de e antes de (3.1.), as conjunções mais de que,
menos de que e antes de que (3.2.) e as conjunções mais do que, menos
do que e antes do que (3.3.).

3.1. mais de, menos de e antes de

Nos textos analisados, as "locuções prepositivas" mais de e


menos de são bastante produtivas e — em sua totalidade de
exemplos — vêm antepostas a números e gramaticalizadas, com
valor adverbial de acima de e abaixo de. Essas "locuções" passam a
funcionar como delimitadores. Delimitadores são aqui entendidos
como adverbiais que modalizam o dictum. Segundo a terminologia

187
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

adotada por Moraes de Castilho (1991: 94)7, posso classificá-los


como “delimitadores aproximadores” pois “o falante, por assim dizer,
compara o item verbalizado com uma espécie de 'pauta categorial' e conclui
que a significação que ele contém é aproximativa, não tem limites exatos,
(...)”.

Exemplos:

(16) Poderão negar que existem mais de 100 casas


cobertas com telhas? [BA/SA CJ 19 2]

(17) Vm. bem sabe, que as fazendas são carissimas; uma


samarra de lila, ou de pano não importa menos de8 5c$ rs
ou 6c$: as meias de ceda importão de 4$ rs. a 6$rs. o par. e
este par de meias não dara um mez. [SP/SP CJ 19 1]

(18) Como já lhe disse preterio(sic) ao Gustavo que tem gasto


mais de dois contos de réis com a politica da Rua do Paço, (...)
[RJ/RJ CJ 19 2]

(19) Por outro lado, bordou as margens das tres grandes


veias d'agua que, depois de baixarem mais de dois terços
do territorio da provincia vão se derramar na immensa bacia
do Prata, (...) [PR/LO CJ 19 2]

Já antes de aparece gramaticalizada com valor adverbial de


"em tempo anterior". Exemplo:

(20) (...) regressando Pedro antes de terminados os dous


annos do primeiro registramento desses mesmos animaes;

7 A autora não registrou, em sua dissertação, "mais de", "menos de" e

"antes de" como delimitadores aproximadores, o que demonstra ainda


que essas construções foram pouquíssimo estudadas.
8 No século XIX, não se mostraram produtivos os adverbiais

delimitadores mais que, menos que e antes que; gramaticalizações do segundo


tipo de comparação, isto é, (2). Ex.: Pedro tem mais que 30 anos, Pedro
tem menos que 30 anos.

188
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

fará figurar como vaqueanos isentos do pagamento do


imposto, o duplo dos animaes que anteriormente dissera
terem la ficado. [PR/LO CJ 19 2]

Na base desses modalizadores, observa-se uma preposição


de caráter partitivo, seguindo a interpretação de Gili e Gaya (1975:
252) sobre essas construções: "Cuando nos referimos a parte de
alguna cosa o cantidad, la preposición de comunica a la expresión
sentido partitivo: bebimos de aquel vino; algunos de vosotros; diez de los
reunidos votaron en contra. De aquí el uso comparativo cuando se
trata de cantidades: más de ciento; menos de dos docenas; más de dos
horas."

Talvez pudéssemos supor nas sentenças (16-19) uma


comparação mais subjetiva (abstrata) do que formal (matemática),
pois um dos termos comparados não vem expresso. Por exemplo,
(16) insinua a comparação com um número menor de 100 casas
cobertas com telhas. Como bem já salientou Ducrot (1977) "Tudo
na língua é comparação ou, pelo menos, muita coisa — muito
mais do que se pensa habitualmente".

No português atual, conforme Moura Neves (2000: 898), as


construções comparativas sentenciais são compostas por uma
sentença matriz e uma sentença comparativa, que constitui um
segundo termo de comparação em relação à sentença matriz (ou,
mais especificamente, a um constituinte dela). Ainda segundo a
autora, as construções comparativas são de dois tipos principais:
a) construções comparativas correlativas, como em (21); e b)
construções comparativas não-correlativas, como em 22).

Exemplos:

(21) As palavras expressam mais do que dizem. (PSI) p.


898

(22) Se nos bailes a Bandeirantes cometeu erros de imagem,


no desfile das escolas esteve também, como a Globo, quase
perfeita. (AMI) p. 900

189
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Analisando essas construções correlativas, verifica-se


sempre a intensificação ou quantificação de um elemento da
sentença tida como matriz. Nesse caso, há uma intensificação da
ação processada pelo verbo, por meio do advérbio mais.

Já as construções não-correlativas não possuem nenhum


elemento intensificado ou quantificado na sentença matriz e
começam a segunda sentença por uma conjunção ou elemento
conjuntivo.

Trato das construções correlativas em 3.2. e 3.3.

3.2. mais de que, menos de que e antes de que

Raríssima é a presença dessas locuções nos textos


analisados do século XIX, nos quais documentei apenas um único
exemplo:

(23) Há uma economia enorme de corrente electrica e além


disso esses tubos de papel são mais baratos de que todos
os outros. [BA/SM A 191]

Talvez isso se deva, como explicado em 2.2., à variante não


standard “de que” ser estigmatizada socialmente.

3.3. mais do que, menos do que e antes do que

O português do século XIX conserva a preposição de em


construções comparativas, combinando-as — na maioria dos
exemplos — com o pronome demonstrativo o.

Exemplo:

(24) (...) e concerta qualquer umbrella, vende os objectos


acima mencionados por preço mais commodo do que em
outra parte, os freguezes acharão uma grande differença no
preço. [ BA/SM A 19 1]

190
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Esse tipo de construção (24) é muito produtivo no século


XIX. Do corpus analisado, encontrei um total de 66 comparações
correlativas. Desse total, 58 (87,87%) ocorrências abonadas com
mais...do que; 5 (7,57%) ocorrências com menos...do que e 3 (4,54%)
ocorrências com antes... do que.

Esses elementos conjuntivos correlacionam dois sintagmas


(Sint.—Sint.), duas sentenças com verbos expressos (S—S)9 e
duas sentenças com o verbo da segunda sentença elíptico, por
conta de paralelismo gramatical (S—S-v).

Do total de 66 ocorrências, tenho as seguintes distribuições:

Quadro 1: A preposição de no par correlativo-comparativo


no século XIX

mais... do menos... do antes do


TOTAL
que que que
Número - percentual
Sint. - Sint. 13 - 22,4 1 - 20 0 14 - 21,2
S-S 3010 - 51,7 1 - 20 1 - 33,3 32 - 48,5
S-S-v 15 - 25,9 3 - 60 2 - 66,7 20 - 30,3
TOTAL 58 - 100 5 - 100 3 - 100 66 - 100

Se as locuções prepositivas mais de e menos de antecedem


regularmente um sintagma quantificado e ganham, assim, o
estatuto de delimitadores, as conjunções mais do que e menos do que
ocorrem no corpus com a função de ligar sentenças. Observe que
se somarmos os dados de (S—S) com (S—S-v), chegamos a 45
ocorrências, o que equivale a 77,6%. Assim, hipotetizamos que,
embora a locução mais do que ligue sintagmas, ela caracteriza-se por
ligar sentenças, gramaticalizando-se, portanto, como conjunção.

9 Às vezes, a segunda sentença aparece com verbo vicário.


10 Duas dessas construções elidem o verbo ser na primeira sentença.

191
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Negando a hipótese do cruzamento sintático,


hipotetizamos que a locução do que se formaria da seguinte
maneira: a) por analogia às construções do tipo (3, 4 e 5), nas
quais a preposição de funciona como introdutora do segundo
elemento da comparação; b) unindo-se a preposição com o
demonstrativo neutro o, nesse caso o segundo elemento da
comparação; e c) finalmente, o demonstrativo funcionando como
antecedente de uma oração relativa.

Essa é a mesma opinião de Leopoldo Pereira apud


Coutinho (1974: 243):

Êste fato é de outra maneira explicado por Leopoldo


Pereira: “Do que não é propriamente locução conjuntiva
como geralmente se diz. Em português, a preposição de
(como em italiano di) rege o complemento pelos adjetivos
comparativos, e o pronome o, que se contrai com ela,
invariável. Exs. ‘Tem o lugar maior antiguidade da que lhe
dão as lembranças’. (Fr. Luís de Sousa). ‘Inda são mais
embaraços dos que eu quisera comigo’ (Sá de Miranda).
‘Compreendem muito mais gerações das que Ptolomeu
determinou’. (João de Barros). Na linguagem moderna, o
pronome demonstrativo se imobilizou na forma masculina
(aliás neutra do singular, e dizemos — maior antiguidade do
que ( daquilo que) lhe dão as lembranças”.

As etapas de gramaticalização são exemplificadas abaixo:

3.3.1. O o, pronome demonstrativo neutro, funcionando


como o antecedente de uma sentença relativa;

(25) Hoje gastamos mais do que vendemos, nossa venda é


menor que a despesa e estamos a braços com duas
republicas; uma pobre em homens e recursos e outra pobre
de recursos, porém rica em homens. [SP CJ 19 2]

A locução conjuntiva do que = prep. de + pronome


demonstrativo neutro o + que pronome relativo daria à frase a
seguinte interpretação: Hoje gastamos mais daquilo que

192
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

vendemos (...) < Hoje gastamos mais que o que


vendemos...11

(26) De forma que, pelo que lhe digo, fique você sciente
que nada me falta e tenho mais do que preciso. [SP CJ 19
2]

3.3.2. Em um segundo momento, o pronome


demonstrativo neutro o se generalizaria, empregando-se mesmo
nos casos em que o termo comparado era do gênero masculino ou
feminino e do número singular ou plural. Ressalva-se que, ainda
nessa segunda fase, a locução conjuntiva do que é empregada
somente quando se correlacionam sentenças;

(27) Ninguem poderá negar que os signaes feitos no forte


do mar são hoje em dia incomparavelmente mais exactos e
promptos do que os que ha poucos annos se faziam; (...)
[BA/SA CJ 19 2]

(28) E demais um mercado no centro da cidade é muito


mais conveniente do que collocado quasi que em um
arrebaldo, (...) [SP CJ 19 2]

3.3.3. Em uma terceira fase, a locução do que não seleciona


mais seus traços semânticos primitivos, generalizando-se como
introdutor de qualquer complemento do comparativo de
desigualdade.

11 Segundo DIAS (1959: 171) "Consoante ao que se lê no § 167, a, 2,


dizia-se, e diz-se, correctamente, v. g.: vi mais do que desejaria por vi
mais que o (= aquillo) que desejaria (cf. nos Lusiadas, [II, 9]: .. notárão/
muito menos d'aquillo que querião). D'ahi por confusão*, vem do que a
tomar o lugar da simples partícula comparativa que.
* N.T. A. "Confusão", aqui, é empregada próxima do sentido latino que
essa palavra possuía: lat. confusìo,onis 'ação de juntar, reunir, misturar'.
Não é, portanto, o sentido atual.

193
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(29) Os estrangeiros são, em geral, amigos do Brazil, e


alguns até mais amigos do que muitos nacionaes, (...)
[SP/SP CJ 19 2] (Correlação intersintagmática.)

(30) (...) bem feito, boa dentadura, topéte na testa, tem um


sigual de uma ferida que teve no tornozêlo do pé esquerdo,
que ficou mais grosso do que o outro, saïo com camisa,
siroula de algodão, e um surtum de panno azul: Quem o
pegar póde avisar ao dicto senhor para o procurar e pagar a
despeza. [SP/SP A 19 1]

(31) Depois, o amor é extremamente, demasiadamente


pueril, e até extravagante; é mais lyrico do que épico,
escreve mais dithyrambos do que historias, compoe mais
poemas do que tratados de philosophia; emfim não
apresenta <<novas doutrinas; (...) [PA/ CR CJ 19 2]

No que concerne à gramaticalização da preposição de,


recupero os estudos clássicos que vêem no ablativo o ponto de
partida da comparação e que focaliza o afastamento de X em
relação a Y, ente comparado.

Assim, tenho a macrocategoria espaço, distância entre


duas pessoas [(no caso i) Pedro e (ii) Paulo] > comparação.
Portanto, a comparação prevê uma separação, uma distância
entre os seres comparados12 e o segundo elemento (da
comparação) seria sempre justaposto.

Destaco ainda que a direção da comparação, nas


construções latinas, é diferente do português do século XIX (ou
mesmo do português atual): primeiramente focalizaríamos o
segundo termo em comparação com o primeiro, como se vê pelo
termo marcado com o caso.

12 Ver também JESPERSEN (1955: 250) With comparisons of inequality

the degree of difference (the distance) is often indicated, e.g. "he is two
years older than his brother"; also with by; in Latin the ablative is here
used, in G. frequently um, etc. (Sublinhado meu.)

194
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Conclusões

A gramaticalização da preposição de, como introdutora do


segundo elemento do par correlativo comparativo, concretizou-se,
de início, na medida em que essa preposição assumiu as funções
do ablativo latino de separação.

Ao assumir o lugar desse ablativo, de — já no português


arcaico — passa a reger sintagmas comparativos correlacionados
e, igualmente, sentenças comparativas correlacionadas.

Em seguida, por analogia com essas construções do


português arcaico, de contrai-se com o pronome demonstrativo
neutro o — o segundo elemento da comparação — e passa a reger
principalmente sentenças. Os dados mostram essa ligação ainda
muito produtiva no século XIX, conforme o Quadro 1: "51,7%
para S—S" e "25,9% para S—S-v".

A locução conjuntiva do que então se gramaticaliza,


seguindo as seguintes etapas:

i - correlacionando sentenças, com um pronome


demonstrativo retomando formas marcadas com traços de gênero
e número;
ii - correlacionando sentenças, com o pronome
demonstrativo o retomando formas não marcadas com traços de
gênero e número;
iii - perda da função pronominal do elemento o.

Finalmente, a preposição de teria permanecido com caráter


partitivo em adverbiais delimitadores como mais de, menos de e antes
de no século XIX.

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Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

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196
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Complementos verbais introduzidos pela


preposição ‘a’
por
Marilza de Oliveira
Universidade de São Paulo(USP)

1. Introdução

Muitos trabalhos têm apontado a perda da preposição a no


PB.1 Duas são as tendências: a substituição de a por em ou para e o
mero apagamento de preposição. A substituição ocorre com
verbos de movimento (Guedes e Berlinck, 2001) e com verbos
dativos ditransitivos (Berlinck, 1997, 1999, 2000a; Gomes 1998;
Torres Moraes, 2001). O apagamento da preposição é observado
no contexto de objeto direto preposicionado (Ramos 1989 e
1992), nas construções perceptivas e causativas (Duarte e
Gonçalves, 2001) e com verbos dativos (Nascentes, 1953; Scher
1996; Gomes, 1998).

Neste trabalho pretendemos analisar a mudança no uso da


preposição introdutora de complementos para averiguar o
contexto lingüístico que deu início ao processo de mudança (=
perda da preposição a), com o objetivo de contribuir para a
formação de uma hipótese geral de mudança lingüística. O corpus
é constituído de cartas enviadas aos jornais e anúncios publicados
nos jornais do século XIX.

O trabalho está organizado da seguinte maneira: na


primeira parte, tratamos da função da preposição dentro da
abordagem da Gramática Gerativa; na segunda parte,
apresentamos os contextos lingüísticos escolhidos para a análise

1 Excluímos os casos em que a preposição carreia a noção de origem

e/ou genitivo: “Fugiu um escravo a Joaquim”.

197
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

da preposição a e as hipóteses de trabalho; na terceira parte,


fazemos uma análise descritiva dos dados do século XIX, e, por
fim, alinhavamos algumas hipóteses de mudança.

2. Função da preposição: atribuição ou


realização de Caso; atribuição de papel temático

2.1 - A questão do Caso:

Dentro da abordagem gerativa, faz-se a distinção entre


Caso abstrato e caso morfológico. Todas as línguas estão sujeitas a
um sistema nuclear de atribuição de Caso abstrato, mas somente
algumas delas manifestam a realização morfológica de caso.

No que concerne ao Caso abstrato, assume-se que todo NP


lexical deve receber Caso, princípio conhecido como Filtro do
Caso. Há quatro formas de atribuir Caso abstrato a um NP: 1) a
flexão verbal dá Caso nominativo ao NP sujeito; 2) o verbo dá
Caso acusativo ao NP objeto; 3) a preposição dá Caso oblíquo a
seu complemento; e 4) nomes e adjetivos atribuem Caso genitivo
ao NP que os segue.

Os Casos nominativo e acusativo são independentes da


atribuição de papel temático. São atribuídos configuracionalmente.
Os Casos oblíquo e genitivo são Casos inerentes, no sentido de
que eles estão associados à atribuição de papel temático. O NP
recebe papel temático e Caso do mesmo elemento:

(...) inherent Case is assigned by α to NP if and only if α ϑ-


marks NP, while structural Case is assigned independently
of ϑ-marking (…) (Chomsky, 1986: 193)

Chomsky (1986: 194) ainda estabelece uma diferença entre


os dois Casos inerentes (oblíquo e genitivo) ao propor a distinção
entre atribuidor de Caso e realizador de Caso. O Caso oblíquo é
atribuído pela preposição, responsável também pela atribuição de
papel temático ao NP (1); o Caso genitivo é atribuído pelo N (ou

198
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

A), categoria responsável também pela atribuição de papel


temático, mas é realizado morfologicamente pela preposição (2):

(1) nossa promessa a José

(2) A construção de+a casa

Em (2) a preposição é um elemento “dummy”, isto é, não


tem conteúdo lexical pleno, portanto, não pode atribuir papel
temático ao NP e, como tal, não atribui Caso ao NP.2 A inserção
da preposição “de” é uma regra default e só se aplica quando não
há outra preposição que atribua o papel temático:

(2a). a [construção [ a cidade ]]

(2b). a [construção [da cidade ]]

Em (2a) o Caso genitivo é atribuído ao NP [a cidade] pelo


N construção e em (2b) o Caso genitivo é morfologicamente
realizado através da inserção da preposição “de”. Como
marcadora de caso ´morfológico’, a preposição pode ser
considerada uma marca flexional, como as de número, pessoa e
gênero (Chomsky, 1982). Trata-se de um mecanismo específico
que pertence à gramática periférica e não nuclear, caracterizando,
assim, uma determinada língua. Diferente é o caso da preposição a
em (1), pois aí a preposição atribui papel temático alvo e atribui
Caso oblíquo ao NP, mecanismo que caracteriza as línguas, de um
modo geral, enquadrando-se na gramática nuclear.

2.2 - A questão do papel temático: atribuição X


transmissão

A atribuição do papel temático é regulada pelo Critério


Temático:

2 Dentro do modelo minimalista, o Caso é checado ou verificado com

uma categoria funcional.

199
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

a. Todo argumento deve receber um e só um papel


temático;

b. Todo papel temático deve ser atribuído a um e só um


argumento.

O papel temático é atribuído por categorias lexicais.


Fiquemos com a preposição. Dentro da definição das categorias
em termos de traços [6N, 6V], a preposição é considerada uma
categoria lexical [-N, -V].3 Como categoria lexical, a preposição
atribui papel temático ao NP (Chomsky, 1981, 86). Essa proposta
dá conta da agramaticalidade da sentença (3) na ordem canônica:

(3) *Eu vim __ Paris.

Nessa sentença a agramaticalidade está associada ao fato de


que o NP Paris não recebe papel temático.

Larson (1988) propõe que em alguns casos, os “bare-NP


adverbs”, o papel temático é oriundo das propriedades do núcleo
do NP, e não da preposição:

(4) I saw John [NP that day]

O NP [that day] pertence à classe de NP advérbios marcada


pelo traço F (= tempo, lugar, modo, etc.), isto é, possui um traço
[+F] herdado do núcleo. Isto significa que o NP recebe papel
temático de acordo com seu traço semântico intrínseco. Nestes
casos, a preposição tem a função de tornar visível o traço [+F].
Ela não atribui papel temático, apenas realça, torna proeminente
um traço semântico do próprio NP.

Voltando à sentença (3), parece-nos que a proposta de


Larson dá conta do papel temático secundário [locativo],
intrínseco ao Nome Paris. Entretanto, não dá conta do papel

3 Remeto o leitor a Berg (1998) para uma discussão a respeito da

natureza categorial da preposição.

200
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

temático primário [meta] ou [fonte], nos termos de Guerón


(1985).4 Nesse sentido, pode-se assumir que a agramaticalidade de
(3) não está na falta de visibilidade do papel [locativo] causada pela
ausência da preposição, mas na falta de marcação do papel
temático primário [meta] ou [fonte] do complemento-NP do
verbo de movimento.5

Dentro da abordagem Princípios e Parâmetros, as


categorias funcionais passam a ter um papel central na estrutura
sentencial. Elas são responsáveis pela definição das gramáticas
particulares:

(...) a variação paramétrica se reduz, em grande parte, à


variação nas propriedades lexicalmente especificadas das
categorias funcionais (...) (Ouhalla, 1991: 3)

É dentro desse cenário que Ouhalla propõe que a


preposição tem a função de transmitir e não de atribuir papel
temático ao NP. Nessa perspectiva, a atribuição do papel temático
é feita pelo Verbo ou pelo Nome ao PP, que, por sua vez, o
transmite ao NP.6

Atribuidora ou transmissora de papel temático, tem-se que


a preposição possui função relevante no que concerne à questão
do papel temático. Diferente é o caso das preposições dummy que,
por não terem conteúdo lexical pleno, não podem atribuir ou

4 Guerón distingue papéis temáticos primários (agente, tema, alvo, fonte


e meta) dos papéis temáticos secundários (benefactivo, locativo). Os
papéis temáticos primários são obrigatoriamente atribuídos; os
secundários podem ser atribuídos ou não, dependendo da atuação de
outros fatores, inclusive pragmáticos.
5 Assim como ‘Paris’ tem apenas traço mais geral (= locativo), o verbo vir

também não especifica se o movimento é meta ou fonte. A preposição


parece ser crucial para o estabelecimento desses papéis temáticos.
6 Transmissão de papel temático não se confunde com realização de

Caso.

201
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

transmitir papel temático ao NP. A sua função é apenas a de


realizar o Caso.

3. Hipótese de trabalho

Há três linhas de análise da preposição a no português: 1) a


preposição a tem conteúdo lexical e como tal atribui papel
temático ao argumento selecionado pelo verbo (Scher, 1996); 2) a
preposição a é uma preposição dummy, portanto, não atribui papel
temático. Sua função é a de atribuir Caso dativo7 ao argumento
selecionado pelo verbo. Trata-se de um Caso atribuído
configuracionalmente (Figueiredo e Silva, ms); 3) a preposição a
que introduz o objeto direto preposicionado é um marcador
dummy e tem a função de realizar morfologicamente o Caso
(Ramos, 1989 e 1992).

Neste trabalho, pretendemos analisar o uso das variantes


[a], [zero], [para] e [em] nos documentos do século XIX (anúncios
e cartas enviadas aos jornais), a partir dos seguintes contextos
lingüísticos:

a. Verbos de movimento simples:

(5) Ao meio dia chegou a locomotiva na Mooca (SP1865)

b. Verbos de movimento híbrido. A entidade pode ser


movida em direção a um lugar ou em direção a uma pessoa:

(6) Eis ahi a carta que elle dirigio ao Arcebispo (MG1895)

(7) dirigi-me então à loja (SP1857)

c. Verbos dativos:

7 O termo dativo é usado para Caso oblíquo atribuído pela preposição

“a” ao objeto indireto. Estamos adotando esse termo de agora em diante.

202
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(8) pedindo ao Excelentíssimo governo compra de


fachinaes (PR1879)

d. Verbos causativos e perceptivos:

(9) eventualidades que fez ao referido Cardoso regeitar o


chá (SP1841)

e. Objeto direto preposicionado:

(10) se pretendeis nutrir vigorosamente a vossos filhinhos...


(RJ1873)

Considerando a especificidade da função da preposição em


cada construção, levantamos as seguintes hipóteses para o
aparecimento das variantes da preposição a:

A variante em, com verbos de movimento, ocorre apenas


com nomes com o traço [+fechado], como o propõe Mollica
(1996) para o PB contemporâneo;

A variante para com verbos dativos tenha entrado no


sistema a partir das construções com verbo de movimento em que
a direção da entidade movida é marcada com o traço [+pessoa]
(trouxe o livro para o Paulo), atingindo primeiro os argumentos
benefactivos (comprei o livro para o Paulo) e, posteriormente, os
argumentos com o papel meta (dei o livro para o Paulo);

Hipotetiza-se que os complementos substituíveis por a ele


(recorrer a ele/*lhe) sejam mais resistentes às duas variantes (0 e
para). Os complementos que podem ser cliticizados por lhe
(obedecer-lhe) são os que sofrem variação e mudança, dado o
processo de desaparecimento dos clíticos e de apagamento do
objeto direto (Omena, 1978; Duarte, 1986; Cyrino 1993, 1994 e
2000; entre outros);

Temos como hipótese que objetos diretos preposicionados


e construções causativas/perceptivas introduzidas pela preposição

203
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

´a´ tenham baixa freqüência, devido ao alto índice (90%) da


ordem SVO no século XIX (Berlinck, 1989 e 2000).

4. Análise descritiva dos dados no século XIX

4.1 - Verbos de Movimento

Concentramo-nos no estudo de dois verbos de movimento:


ir e chegar. A análise da preposição com esses verbos de
movimento teve como finalidade analisar os seguintes aspectos:

1) Há variação no uso da preposição? Quais as preposições


usadas com valor meta?

2) A preposição pode ser apagada?

Obtivemos o seguinte quadro de preposições no século


XIX, de acordo com o tipo de verbo de movimento:

Tabela 1: Tipo de verbo X tipo de preposição: anúncios e


cartas
A EM PARA ZERO TOTAL
Número – percentual
IR 19 - 67,8 1 - 3,6 8 - 28,6 - 28
CHEGAR 32 - 84,2 6 - 15,8 - - 38
TOTAL 51 - 77,3 7 - 10,6 8 - 12,1 - 66

Não houve nenhum caso de omissão de preposição com os


verbos de movimento. O verbo ir apareceu com os três tipos de
preposição, como sugerem os exemplos:

(11) Valle mais ir alli ao rio buscal-a (SP1862)

(12) ...annuncia a todos (...) que quizerem hir para a sua loje
(SP1829)

204
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(13) Quem no mez de setembro findo por occasião de ir na


Capela de Santo Antonio de Arguim cazar uma filha.... (BA1832)

Note-se, porém, que no único caso em que a preposição em


ocorre com o verbo ir, ela antecede um elemento nominal com
valor [+fechado], conforme os resultados de Mollica (1996) para o
PB culto do século XX.

A preposição para ocorreu nos seguintes contextos:

(14) e folgariamos que no proximo seguinte anno de 1828


começassem a ir alguus jovens Paulistas para os paizes
illustrados. (SP1827)

(15) E’ captivo de homem rico, podia ir para uma chacara,


e não se largar ali em um quarto, em uma rua tão
caminhada. (SP1863)

(16) Agora é que se percura os pobres como Manduca p’ra


ir p’ra as guerras; (SP1865)

(17) mas não foi, nem vão para o Mexico, tomar posse da
sua pasta. (BA1830)

Além dos exemplos acima, em que se registra o uso da


preposição para, atestamos a presença de 4 ocorrências de para
com valor direcional. Todos eles ocorrem com o verbo ir.
Entretanto, nesses casos o verbo ir não apresenta o movimento
propriamente dito8 (veja também Coelho, 2002), como sugerem
os exemplos abaixo:

(18) opode procurar na sua casa rua de S.Joaquim, indo


para Santa Anna (RJ1809)

8 O verbo mudar tem comportamento semelhante ao verbo ir nesses


contextos, pois apresenta apenas a idéia de direção: ‘mudou-se da rua...
para a rua direita’ (SP1874).

205
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(19) estrada que vai para Jundiay (SP1828)

(20) Vende-se uma chacara... á direita da estrada que vai


para o Campo magro (PR1854)

(21) e como fosse para a Villa de Sanctos...(SP1829)

Nestes casos, tem-se a explicitação de direção sem


movimento. É bastante provável que o uso de [para] tenha se
originado destas construções e tenha se expandido para contextos
com movimento.

Quanto ao uso da preposição a, São Paulo, Minas e Bahia


apresentam uma taxa acima de 70%. De todas as localidades, o
Rio de Janeiro é a que apresenta a mais baixa freqüência desta
variante (25% = 01 ocorrência). A preposição para, por sua vez,
aparece em todas as regiões, salvo nos dados do Paraná. Observa-
se uma tendência ao uso de para no Rio de Janeiro. Entretanto,
dado o exíguo número de dados do Rio de Janeiro, não se pode
afirmar que essa região estava mais avançada na mudança
lingüística.

No que concerne ao verbo chegar, não atestamos o uso da


preposição para. Porém, observamos o uso seja da preposição em
seja da preposição a nos dados de São Paulo e do Paraná:

(22) Atravez de muitos incômodos, xeguei emfim a esta


capital (MG1834)

(23) Hontem cheguei a esta São Paulo (SP1865)

(24) Ao meio dia chegou a locomotiva na Mooca (SP1865)

(25) He chegado nesta Cidade (SP1828)

(26) chegando eu em Curityba com uma boiada (...)


incumbi a Vossa Senhoria da venda della (PR1878)

206
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(27) Chegando em Curityba no dia 13 de Junho (...)


hospedei-me com a minha familia na casa do Senhor Firmino
Baptista do Nascimento. (PR1880)

Observa-se que o uso da preposição em se dá antes de


nomes de bairros e cidades, o que poderia nos remeter ao traço
[+fechado] do SN. É possível que esse traço tenha sido relevante
para o uso da preposição em com o verbo chegar, como parece ter
ocorrido com o verbo ir. Entretanto, não nos parece óbvio que
nomes de bairros e cidades apresentem o traço [+fechado].
Parece-nos mais provável que o uso de em com verbos de
movimento tenha uma origem diferente.

Nos nossos dados encontramos verbos apresentativos,


como aparecer e comparecer, que favoreciam o uso da preposição em:

(28) As pessoas [...] deverão comparecer no consistório da


Igreja (SP1853)

(29) Apareceu no Destricto da Applicação...um pardo


(SP1830)

Se se considera que o verbo chegar, além de verbo de


movimento, é um verbo apresentativo, pode-se estabelecer um
paralelo desse verbo com os verdadeiros apresentativos. Dessa
forma, o uso de em teria se estendido para chegar através da noção
apresentacional. Teríamos o seguinte percurso da extensão de em:

estado > existencial-apresentacional > movimento

Enfim, no caso dos verbos de movimento, os dados


apresentam variação entre as preposições a, para e em. A
preposição para parece ter entrado no sistema com o valor de
direção, sem estar associada ao movimento do verbo (a estrada vai
para Jundiaí).

A preposição em com verbo de movimento parece ter


entrado no sistema a partir de verbos apresentativos, uma vez que
verbos como chegar, além de ser um verbo de movimento, podem

207
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

ser considerados apresentativos, como aparecer e comparecer que


ocorriam com as preposições a e em.

4.2 - Verbos de movimento híbrido

Com os verbos de movimento híbrido, a entidade é movida


em direção a um lugar e/ou a uma pessoa. Há a possibilidade de
ter a combinação dos dois traços (pessoa e lugar):

(30) póde dirigir-se naquella villa ao commendador


(SP1854)

(31) dirija-se naquelle lugar a Manoel Dias (SP1854)

A análise dessa classe de verbos tem por finalidade


responder às questões:

1) O traço [+pessoa] ou [+lugar] do N interfere na escolha


da preposição?

2) Verbos que podem ser seguidos de dois nomes [+pessoa,


+lugar] se comportam como os verbos que ocorrem apenas com
um nome?

3) Esses verbos ocorrem com a preposição de realização


zero? Em qual contexto, com nomes [+pessoa] ou com nomes
[+lugar]?

A nossa hipótese era que as preposições em e para


ocorressem com nomes [+lugar] e a preposição a ocorresse
preferencialmente com nomes [+pessoa].

Obtivemos os seguintes resultados (número de


ocorrências):

208
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Tabela 2: Verbos de movimento híbrido X tipo de


preposição

LUGAR +
LUGAR PESSOA
PESSOA9
Em A
A EM PARA 0 A PARA 0 a a
Dirigir-se 78 01 03 - 57 - - 6 -
Conduzir/
27 04 03 - 11 - - 12 01
Levar
Trazer 07 - - - 04 - - 01 -
Mandar/
12 - 06 - 03 - - - -
Remeter
TOTAL 124 05 12 - 75 - - 19 01

Não houve nenhuma ocorrência da variante [zero]. Os


nomes com traço [+pessoa] eram categoricamente usados com a
preposição a, ao contrário dos nomes com traço [+lugar] que
apresentavam variação no uso da preposição (a, em e para).

Contextos como os de verbos de movimento híbrido


apontam para uma especialização da preposição a para nomes
[+pessoa] 10 e podem ter contribuído para o avanço de em na
indicação de lugar com verbos de movimento. Quanto à
preposição para, esta não apareceu com os nomes [+pessoa],
contrariando a nossa hipótese de que estes verbos teriam sido o
contexto para a expansão do uso de para atingindo a função de

9Na coluna [lugar+pessoa], temos ´em NP (lugar) a NP (pessoa)´ e ´a


NP (lugar) a NP (pessoa)´. Não ocorreram outras combinações.
10Há aqui uma correlação com o objeto direto preposicionado: objetos
com traço [+ animado] favorecem o uso da preposição (Ramos, 1986).

209
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

objeto indireto (para com verbos de movimento simples > para


com verbos de movimento híbrido > para com objeto indireto).

4.3 - Os verbos dativos

O estudo desse tipo de verbo teve como finalidade


responder às seguintes questões:

1) A monoargumentalidade do Verbo interfere na


realização da preposição? O complemento sentencial favorece a
realização nula da preposição?

2) Complementos cliticizáveis se comportam como os não


cliticizáveis no que diz respeito à realização da preposição?

3) Qual a conseqüência imediata da realização zero da


preposição?

A presença da preposição a introduzindo um complemento


de verbo dativo é fortemente marcada nos dados. Entretanto,
verifica-se a presença da preposição para e da realização zero:

Tabela 3: Tipo de preposição que introduz OI: total geral


A PARA ZERO TOTAL
Número - percentual
594 - 95,1 08 - 1,4 22 - 3,5 624 - 100

(32) o motivo da venda há de agradar ao comprador


(SP1879)

(33) o motivo da venda não desagradará ___ o comprador


(SP1879)

(34) pedindo ao Excelentíssimo governo compra de fachinaes


(PR1879)

(35) O sr Bicalho (...) se limitava á escrever cartas (...)


pedindo votos para seus amos (MG1840)

210
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Analisando o tipo de realização da preposição em função


do número de argumentos internos do verbo, obtivemos que os
verbos com apenas um argumento interno apresentam variação
entre o uso da preposição a e a realização zero. Os verbos com
mais de um argumento interno apresentam variação entre os três
tipos de realização: a, para e zero.

Restringindo a análise às variantes inovadoras, obtivemos


os seguintes resultados:

Tabela 4: Número de argumentos X variantes [para] e


[zero]
PARA ZERO TOTAL
Número - percentual
Um argumento 01 - 12,5 14 - 63,6 15 - 100
Dois argumentos 07 - 87,5 08 - 36,4 15 - 100
TOTAL 08 - 100 22 - 100 30 - 100

4.3.1 - Verbos dativos com um argumento interno

A realização zero com verbos dativos com apenas um


argumento interno se justifica pela Teoria do Caso. A preposição
não é crucial para a atribuição de Caso, pois como o verbo tem
apenas um argumento interno, ele pode atribuir Caso ao NP
existente. Exemplos desses verbos dativos com a variante [zero]
são:

(36) Gratifica-se quem o prender (MG1856)

(37) com pouco lucro só para servir os freguezes


(SP1879)

(38) não desagradará o comprador (SP1879)

(39) apresenta-se para ensinar meninos, aos pais de família


(SP1854)

(40) aspiro que os brasileiros consultem suas consciências


(SP1865)

211
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(41) procurando satisfazer o pedido (PR1854)

Houve um único caso de verbo dativo com a variante


[para]:

(42) É a primeira vez que me aventuro, a escrever para


um jornal (RJ1879)

Entretanto, parece-nos que nesta sentença há um objeto


incorporado (escrevi uma carta), o que nos leva a rever o número de
argumentos desse verbo, que parece se comportar como os
diargumentais. Se assim for, não temos o uso da variante [para]
com verbos dativos de apenas um argumento.

Tarallo e Kato (1989), Kato e Tarallo (1993) apontaram a


relevância do traço monoargumentalidade para dar conta da
ordem VS no PB. A análise dos dados sugere que a
subcategorização de um único argumento interno também é um
fator relevante para o apagamento da preposição.

Quanto aos verbos dativos cujo argumento interno não é


substituível por lhe, a presença da preposição a é categórica:

(43) veio recorrer aqui ao uso dos banhos (SP1841)

(44) para melhor resistir ao trabalho de eliminação e


supuração (RJ1864)

Esse resultado confirma a hipótese inicial de que os verbos


cujo argumento não pode ser cliticizável retêm a mudança. Com
base nessa diferença, Paredes (1976) propõe a existência de duas
preposições a.

4.3.2 - Os verbos dativos diargumentais: a > para

Os verbos diargumentais que são seguidos da preposição


para encontram justificativa no fato de que o verbo, já tendo
atribuído Caso a um NP, não tem como atribuir Caso ao segundo

212
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

NP. Portanto, a preposição para, em substituição à preposição a,


cumpre esse papel:

(45) O sr Bicalho (...) se limitava á escrever cartas (...)


pedindo votos para seus amos (MG1840)

(46) Pretende-se entregar uma carta (...) para a Sra...


(SP1828)

(47) por ir fazer compras nessa rua para os meus


estudantes... (SP1863)

A preposição para aparece com o papel temático meta (36)


ou benefactivo (35/37), contrariando as nossas expectativas.
Tínhamos como hipótese que essa variante fosse uma extensão
das construções com verbos de movimento híbrido e que tivesse
atingido primeiro os argumentos benefactivos. Entretanto, não foi
registrada nenhuma ocorrência de para com os verbos de
movimento híbrido em direção a uma entidade [+pessoa]. Além
disso, as sentenças acima sugerem que a variante inovadora passou
a ser usada com verbos dativos, independentemente do tipo de
papel temático (benefactivo ou meta) do argumento interno. Qual
terá sido o contexto que favoreceu o uso de para com os
complementos dativos?

A presença da variante inovadora nas sentenças abaixo


pode ser um indício de que a extensão do uso de para com
complementos dativos tenha ocorrido a partir da noção de
finalidade:

(48) Pelo qual provava ter dado para a guerra do Paraguay


um escravo (MG1873)

(49) hoje que por Deliberação de SMI foi dada [a praça]


para o estabellecimento da Academia do Curso Jurídico
(SP1828)

213
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

O uso de para com a noção de finalidade é registrado nas


sentenças finais desde o português medieval (Mattos e Silva,
1993).

É possível que a gramaticalização de para como introdutora


de argumento interno de verbos dativos tenha ocorrido a partir de
deverbais, como é o caso da sentença (49):

SMI deu a praça para estabelecer a Academia do Curso


Jurídico

> SMI deu a praça para o estabelecimento da Academia


do Curso Jurídico

em que o verdadeiro argumento dativo não está realizado


lexicalmente e pode ser tomado como um argumento
[+arbitrário]: SMI deu a praça [ao povo paulista] para...

Com a sentença (48) teríamos o mesmo processo:

[fulano] deu um escravo para guerrear na guerra do


Paraguai

> [fulano] deu um escravo para a guerra do Paraguai

em que o verdadeiro argumento dativo está lexicalmente


ausente [exército].

A gramaticalização de para como introdutora de objeto


indireto perpassa pela questão da atribuição de papéis temáticos e
da reanálise da função de adjunto em argumento.

Em estudo sobre o objeto indireto do PB contemporâneo,


Figueiredo Silva (ms) sugeriu que a preposição para atribui papel
temático benefactivo ao seu complemento. Apoiando-se na
subdivisão dos papéis temáticos em primários (agente, tema, alvo,
fonte) e secundários (locativo, benefactivo) proposta por Guerón
(1985), a autora propôs que os argumentos com papel alvo e
aqueles com papel benefactivo não ocupam o mesmo lugar na

214
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

estrutura sentencial. Para ela, o argumento com papel alvo ocupa


uma posição interna à estrutura do sintagma verbal; o argumento
com papel benefactivo é projetado fora de VP, como os adjuntos:

Papel alvo (A) Papel Benefactivo (PARA)


VP VP
PP
Spec V´ VP
(Benefeactivo)
V´ PP (alvo) Spec V´
V NP V NP

Ainda que os resultados da análise do uso da preposição


para em posição de objeto indireto não se coadunam com a
interpretação benefactiva dada por Figueiredo Silva à preposição
para, podemos adaptar a sua análise à leitura dos dados do século
XIX.

A posição de adjunto para os argumentos benefactivos,


hipótese de Figueiredo Silva, está de acordo com a análise de que
a preposição para ingressou no sistema em estruturas que
apresentavam um complemento indireto não realizado
lexicalmente, com o valor [+arbitrário], e que exibiam um adjunto
com valor finalidade. É nossa opinião que o adjunto foi
reanalisado como argumento, porém, isto se deu a partir de
sentenças finais e não a partir de elementos com valor
benefactivo.

4.3.3 - Os verbos dativos com dois argumentos: a >


zero

A realização zero com os verbos dativos de dois


argumentos ocorreu na estrutura NP+S. Tendo em vista que o
filtro do Caso se aplica aos NPs e não a sentenças, o argumento
sentencial não precisa receber Caso e, por conseguinte, não
precisa ser precedido de preposição. É o que se verifica nas
seguintes sentenças:

215
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(50) convido ___ os senhores accionistas desta companhia


a se reunirem em assemblea (SP1889)

(51) O mesmo conselho... roga desde já __ os seos dignos


consócios para que não faltem com seu poderoso e
indispensável auxilio (BA1885)

Estes dados sugerem, portanto, que o tipo de preposição é


dependente não só da estrutura argumental do verbo, mas do tipo
de estrutura sintagmática do próprio argumento. Nos dados do
século XIX, a preposição a precede uma estrutura formada de
NP+NP ou uma estrutura formada de NP+S; a preposição para
ocorre apenas com a estrutura NP+NP (salvo os casos em que se
tem uma sentença final) e a realização zero ocorre com a estrutura
NP+S.

Os dados parecem apontar para uma reorganização dos


constituintes sentenciais, a partir da variante [zero]. Vejam-se os
exemplos:

(52) Senhor Salvador (...) é rogado a tomar o rumo de


Sorocaba (SP1853)

(53) são convidados os senhores sócios para a reunião


(SP1879)

(54) Quem o apprehender e levar ao abaixo assignado será


bem gratificado (SP1879)

(55) faz imprimir circulares á todos si (...) não é obedecido


(MG1840)

(56) mas agora foi avisado para trazer as ditas vacas a juízo
(MG1848)

(57) quem o troucer preso a dita fazenda será pago das


despesas (MG1851)

216
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(58) Os senhores assignantes serão entregues dos seus


exemplares (SP1829)

(59) deixando de os avisar das transferências (SP1875)

(60) pode-se dirigir ao abaixo assignado, que o informará


com toda a lealdade (RJ1853)

As sentenças (52-58) estão na forma passiva e as sentenças


(59-60) apresentam um clítico acusativo, o que denota uma
reanálise do complemento, que de objeto indireto passa a objeto
direto. O segundo NP, quando aparece lexicalmente realizado, é
precedido da preposição de como nas sentenças (47-50), de forma
a receber Caso.

A reanálise mencionada acima nos remete à reanálise


ocorrida no inglês com o verbo “to like” na sentença The king likes
the queen (Lightfoot, 1979). De uma estrutura como “ao rei agrada
a rainha”, passou-se a “o rei ama/gosta da rainha”. A perda da
marca de Caso dativo e a fixação da ordem SVO estão na base da
mudança no inglês.

No português as passivas derivadas de verbos “dativos” e a


presença dos clíticos acusativos constituem uma evidência
empírica a favor da hipótese de reorganização dos constituintes
sentenciais de forma semelhante (ainda que não idêntica) ao que
ocorreu no inglês. O apagamento da preposição que precede o
argumento com função dativa leva à interpretação desse
argumento como acusativo.

4.4 - Verbos causativos e perceptivos

4.4.1 - Introdução

De acordo com a análise tradicional, as construções


infinitivas formam uma unidade (sujeito lógico + verbo não finito)
que funciona como objeto do verbo da matriz (fazer, sentir).
Segundo Skytte (1976), esta análise não é satisfatória porque não
dá conta das diferenças entre as construções perceptivas e

217
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

causativas na língua italiana. Entre elas o autor cita a posição do


sujeito lógico do verbo não finito; nas causativas o sujeito lógico é
posposto ao infinitivo, de forma que o verbo da matriz e o
infinitivo formam uma unidade; nas perceptivas o sujeito precede
o verbo infinitivo, de modo que os dois verbos não formam uma
unidade:

(61) a. Faccio arrivare la madre b.*Faccio la madre


arrivare

(62) a. Vedo arrivare la madre b. Vedo la madre


arrivare

Entre os argumentos usados para definir a hipótese de


unidade nas construções causativas salientamos a presença do
elemento negativo. Na construção causativa o verbo não finito
nunca é negado (a negação toma como escopo toda a construção
verbo causativo+infinitivo, como uma unidade); na construção
perceptiva a negação toma como escopo o verbo perceptivo e não
o infinitivo:

(63) Non lo lasciò entrare (não o deixou entrar) = não


entrou

(64) Non lo sentì entrare (não o ouviu entrar) =


entrou

A diferença entre as construções causativas e perceptivas é


formalizada por Guasti (1989) e por Rosen (1989): o
complemento das construções perceptivas é um IP e o
complemento das construções causativas é um VP. Ambas as
autoras tomam as construções perceptivas, que projetam IP, como
a instanciação de uma estrutura de Marcação Excepcional de Caso
(ECM). Em outras palavras, como o verbo não finito não tem
Caso para atribuir ao NP sujeito, o Caso é atribuído pelo verbo da
matriz:

218
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(65) Maria [I ouviu [IP Pedro [I´[I] [VP cantar]]]]

Se se assume que os clíticos são o spell-out dos traços de


Caso atribuídos por um verbo (Burzio, 1986), tem-se que o NP na
posição de sujeito recebe Caso acusativo do verbo de percepção,
como nas estruturas ECM.

Rosen salienta o fato de que nas construções perceptivas as


sentenças matriz e encaixada comportam-se de maneira
autônoma, no sentido de que cada verbo tem estruturas
argumentais distintas. Nas construções causativas a estrutura
argumental do verbo não finito ´merge´ com a estrutura
argumental do verbo da matriz, criando uma estrutura argumental
única, daí a proposta de que as causativas são geradas em VP.
Adotando a hipótese de Sportiche (1988) de que o sujeito é
originado em VP e alça para IP para receber Caso, Rosen sugere
que nas construções causativas (ao contrário das perceptivas) o
NP permanece na posição de SpecVP, pois a estrutura não projeta
IP:

(66) Maria fez [VP [V´ arrumar o carro] [Spec ao mecânico]]]

Para Kayne (1975) e Burzio (1986), as causativas, que


subcategorizam VP, comportam-se como as passivas, pois não
atribuem papel temático externo. Assim, o complemento é uma
estrutura que não apresenta uma posição estrutural de sujeito.

Assumindo que as causativas têm uma estrutura argumental


única, Rosen sugere que o Caso do verbo da matriz é transferido
para o verbo mais baixo, que passa a ter mais de um Caso para
atribuir. Para Burzio (1986) o sujeito e o objeto do verbo mais
baixo recebem Caso Acusativo. Visto que as línguas românicas
não admitem duplo objeto, uma regra muda o Caso do sujeito em
dativo: NP N > NP a NP.

Enfim, a literatura tem mostrado que nas construções


causativas transitivas que exibem a ordem V+inf+aNP, o Vinf
atribui Caso acusativo ao NP. A preposição não atribui Caso, mas
muda o Caso acusativo em dativo, funcionando mais como uma

219
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

realizadora de Caso Morfológico, do que como uma atribuidora


de Caso abstrato.

Com base nessas idéias, propomos as seguintes questões:

1) Nas construções causativas temos de fato uma única


estrutura argumental?

2) A posição do argumento favorece o apagamento da


preposição?

3) Qual a conseqüência imediata da realização zero da


preposição nas construções causativas/perceptivas?

4) Qual o elemento que atribui Caso ao sujeito do verbo


mais baixo?

4.4.2 - Análise das construções perceptivas e


causativas no século XIX

A análise das estruturas perceptivas e causativas


monoargumentais do século XIX permitiu observar que o sujeito
do verbo mais baixo aparece na forma de NP ou de clítico
acusativo seja para os verbos causativos seja para os perceptivos.
A única ocorrência de PP é a sentença a seguir, que apresenta
propriedades do objeto direto preposicionado (ver próximo item):

(67) Por preços que a todos faz admirar


(SP1870/Campinas)

Nas estruturas biargumentais, o sujeito do verbo mais baixo


deveria aparecer na forma de PP ou de clítico dativo. Entretanto,
nas construções perceptivas o argumento se apresenta
categoricamente na forma de NP ou de clítico acusativo. As
construções causativas apresentam variação, sendo que é mais alta
a freqüência de PPs do que de NPs, conforme se observa na
Tabela 5:

220
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Tabela 5: Tipo de sujeito (PP/NP) X tipo de verbo:


estruturas biargumentais
PP NP TOTAL
Número - percentual
Causativos 12 - 80 03 - 20 15 - 100
Perceptivos - 07 - 100 07 - 100
TOTAL 12 - 100 10 - 100 22 - 100

Os resultados da Tabela 6, a seguir, sugerem que os clíticos


acusativos aparecem categoricamente com os verbos perceptivos e
aparecem com freqüência mais alta do que os clíticos dativos com
os verbos causativos:

Tabela 6: Tipo de clítico X tipo de verbo: estruturas


biargumentais
Cl. dat. C. Acus. TOTAL
Número - percentual
Causativos 02 - 33,4 04 - 66,6 06 - 100
Perceptivos - 02 - 100 02 - 100
TOTAL 02 - 100 06 - 100 08 - 100

Comparando-se os resultados das duas tabelas acima, no


que concerne às estruturas causativas, observa-se que a mudança
parece iniciar-se com os elementos pronominais (66,6% de clíticos
acusativos) para em seguida atingir os nomes (20% de NPs).
Abaixo seguem-se alguns exemplos que apontam a variação entre
NP e PP e entre clítico acusativo e clítico dativo:

(68) faz imprimir circulares á todos os colletores


(MG1840)

(69) Discutirei o monstruoso processo fazendo o publico


conhecer a iniqüidade da sentença que tive (RJ1882)

(70) o que faz lhe atribuir, serem elles os authores do


attentado (BA1863)

221
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(71) Fazendo-a espargir o mais suave aroma (BA1899)

As sentenças acima sugerem que a conseqüência imediata


da queda da preposição é a pronominalização com o clítico
acusativo, o que sugere uma alteração na estrutura sentencial
dessas construções. Esta alteração pode estar correlacionada com
a fixação da ordem SVO no século XIX, pois, como mostrou
Berlinck (1989), a reestruturação da ordem dos constituintes
sentenciais parece ter sido resultado da queda dos clíticos.

Apesar de ser pronominalizado com o clítico acusativo, não


foi observada a construção passiva com o NP-argumento nessas
construções, ao contrário do que se verificou para os verbos
dativos de um argumento interno.

4.4.3 - Construções causativas e perceptivas em


estruturas monoargumentais

Quanto à posição dos argumentos, nas construções


perceptivas há uma leve preferência pela posição intermediária,
isto é, o argumento acha-se entre o verbo da matriz e o verbo
mais baixo vXV (Vi o Paulo sair); nas causativas o argumento está
categoricamente posposto ao verbo mais baixo vVX (Fiz sair o
Paulo):

Tabela 7: Estruturas monoargumentais: posição do NP


sujeito (X)
vVX vXV TOTAL
Número - percentual
Causativos 17 - 100 - 17 - 100
Perceptivos 03 - 37,5 05 - 62,5 07 - 100
TOTAL 20 - 100 05 - 100 22 - 100

(v = verbo finito; V= verbo não finito; X= NP sujeito)

Os dados acima mostram que as causativas eram


categoricamente geradas em VP e que as perceptivas podiam ser
geradas em VP (37,5%) e em IP (62,5%).

222
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

4.4.4 - Construções causativas e perceptivas em


estruturas biargumentais

No que concerne à posição do sujeito do verbo mais baixo


em estruturas biargumentais, observamos que nas construções
perceptivas o sujeito, sempre na forma de NP, aparece quase
categoricamente entre o verbo da matriz e o verbo mais baixo, ou
seja, em IP. Há um único caso da ordem XvV, em que o sujeito
precede inclusive o verbo flexionado.

Nas construções causativas, há variação: se o argumento


tem a forma de NP, ele ocupa a posição intermediária entre verbo
matriz e verbo mais baixo, isto é, é gerado em IP (75%); se o
argumento tem a forma de PP, ele ocupa quase categoricamente a
posição posposta ao verbo mais baixo, sendo gerado em VP
(100%), como as estruturas causativas no italiano e no francês:

Tabela 8: Verbos biargumentais: posição do sujeito (NP ou


PP, expresso por X)
Construções Causativas Construções Perceptivas
NP PP TOTAL NP PP TOTAL
Número - percentual
11 -
vV(y)X - 11 - 100 - - -
100
06 -
V(y)XV 03 - 75 01 - 25 04 - 100 - 06 - 100
100
01 -
XvV - - - - 01 - 100
100
03 - 12 - 07 -
TOTAL 15 - 100 - 07 - 100
100 100 100

A ocorrência, mesmo que única, do argumento na forma de


PP entre o verbo da matriz e o verbo mais baixo, na sentença a
seguir, sugere que se essa estrutura não é uma unidade complexa,
também não faz parte da estrutura de marcação excepcional de
Caso, dada a presença da preposição:

223
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(72) ...eventualidades que fez ao referido Cardoso regeitar


o chá (SP1841)

Não sendo uma construção com estrutura argumental


complexa (cf. Rosen), o verbo mais baixo não tem dois Casos para
atribuir ao seu sujeito. Como justificar a ocorrência desse dado
(isto é, a gramaticalidade da estrutura verbo + aNP + infinitivo),
se a literatura não considera a preposição uma atribuidora de Caso
nessas construções?

A sentença (62) nos faz declinar a hipótese da existência de


uma única estrutura argumental para os verbos biargumentais (cf.
Rosen) e, por conseguinte, nos faz descartar a hipótese de que o
verbo mais baixo atribui Caso para o sujeito do infinitivo. Se se
considera que o verbo mais baixo não tem uma estrutura
argumental única, ele não tem dois Casos para atribuir. Em
decorrência disso, o sujeito do verbo mais baixo fica sem Caso,
violando o Filtro do Caso, a não ser que se proponha que a
preposição dá Caso oblíquo (= dativo) a esse argumento.

Os dados analisados sugerem que nas estruturas


biargumentais a posição do argumento com função de sujeito [na
ordem fixa SVO] favorece o apagamento da preposição, que, por
sua vez, instancia uma estrutura de marcação excepcional de Caso,
em que se tem a projeção de IP, ou uma estrutura em que a flexão
dá Caso Nominativo ao NP. De fato, em onze ocorrências de NP
pluralizado, encontramos três dados de realização de
concordância, entre os quais há uma construção causativa:

(73) Eu via em Coimbra os Estudantes trazerem dentro do


gorro livro (SP1828)

(74) Eu vi os liberaes andarem por ahi (MG1830)

(75) Esforçando por fazer as idéias theoricas dominarem a


pratica cirúrgica (RJ1864)

Enfim, a sentença (62) sugere que a mudança começou


com a fixação da ordem dos constituintes sentenciais. Uma vez

224
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

estabelecida a ordem SVO, tem-se a perda da preposição. O caso


será atribuído pelo verbo matriz, instanciando uma estrutura ECM
em que o sujeito do verbo mais baixo recebe caso acusativo, ou
pelo verbo da encaixada, contexto em que o NP recebe Caso
nominativo. Fica em aberto a questão: por que a mudança
começou com os verbos perceptivos?

4.5 - Objeto direto preposicionado

4.5.1 - Introdução

Em uma análise diacrônica do objeto direto no PB, Ramos


(1992) observou que nos séculos XVI-XVII havia uma média de
14% da presença da preposição ´a´ encabeçando esse tipo de
argumento. No século XVIII, essa média decresce para 12,7%; no
XIX para 5,9% e no século XX para 1,7%. Esses dados numéricos
levam a autora a propor uma mudança lingüística acabada ou
prestes a se completar.

A autora defende que a preposição a introdutora de objeto


direto preposicionado é uma realização ´morfológica´ de Caso,
equivalente à marca flexional. Sendo uma marca de Caso, o
favorecimento da presença da preposição depende,
fundamentalmente, da não-adjacência entre verbo e objeto11 e da
coincidência do traço animacidade entre o NP sujeito e o NP
objeto (Lois, 1982).12

Além da não-adjacência e da coincidência de traço


animacidade, outros fatores favorecem a presença da preposição,
como a ordem VS e o tipo de realização do NP objeto. Nos
séculos XVI e XVIII o nome próprio favorece a variante [a]; nos

11Stowell (1981) propõe a condição de adjacência para a atribuição de


Caso.
12 Lois (apud Ramos, 1992) propõe uma explicação funcional para

explicar o fato de que o traço [+animado] do objeto favorece a presença


da preposição: a preposição permite distinguir o argumento interno do
argumento externo.

225
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

séculos. XVII e XIX é o pronome de tratamento que favorece a


variante preposicionada.

4.5.2 - O objeto direto preposicionado nos anúncios e


cartas do século XIX

A análise do objeto direto preposicionado nos jornais do


século XIX difere da análise de Ramos na medida em que
descartamos os verbos como agradar, ajudar, seguir, avisar, renunciar
etc. Estes verbos foram analisados no item dedicado a verbos com
complemento dativo. Consideramos que a ausência da preposição,
nesses casos, é indício de mudança em relação à atribuição de
Caso e não em relação à realização de Caso, característica esta do
objeto direto preposicionado.

De um total de 77 dados, obtivemos 76 ocorrências com a


preposição a e 1 ocorrência com a preposição para:

(76) tem o costume de encarar pouco para quem com elle


conversa (MG1868)

No que concerne ao tipo de documento, o uso da


preposição a é mais freqüente no documento cartas, com 85,5%
de freqüência (65 ocorrências).

Diferentemente dos resultados obtidos por Ramos, o fator


não-adjacência do objeto ao verbo não incide na presença da
preposição. Objetos adjacentes ao verbo tiveram uma incidência
maior no uso da preposição (77,6%, 59 ocorrências) do que
objetos não adjacentes ao verbo (22,4%, 18 ocorrências):13

(77) Precisa-se de uma rapariga (...) prefere-se branca para


seguir a duas pessoas de família (SP1887)

(78) se pretendeis nutrir vigorosamente a vossos filhinhos...


(RJ1873)

13Eliminei o dado com a preposição para, pois como se trata de apenas


uma ocorrência não é possível fazer ulteriores comparações.

226
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Quanto ao traço animacidade, detectamos 66 ocorrências


de objeto direto preposicionado [+animado] e 11 ocorrências de
objeto direto preposicionado com o traço [-animado], 87,6% e
12,4%, respectivamente. Na verdade, mais do que [+animado], o
traço relevante para o aparecimento do objeto direto
preposicionado parece ser o traço [+pessoa]:

(79) oficiaes... expulsão a funccionarios empregados


(RJ1824)

(80) Obra, que tanto honra ao insigne Poeta que o compôz


(MG1825)

Restringindo a análise aos casos em que o sujeito e o objeto


tinham a forma de um NP, registramos 26 ocorrências de
coincidência de traço [+pessoa] do NP sujeito e do NP objeto, 17
ocorrências de objeto [+pessoa] e sujeito [-animado] e 1
ocorrência de objeto [-animado] e sujeito [+pessoa]:

Tabela 9: Objeto direto preposicionado X traço [pessoa] do


sujeito e do objeto
Suj [+ pess] Suj [- pess] Suj [ + pess]
TOTAL
Obj [+ pess] Obj [+ pess] Obj [- pess]
Número - percentual
26 - 58,8 17 - 38,6 01 - 2,6 44 - 100

Esses dados sugerem que, ainda que a coincidência de traço


[+pessoa] entre sujeito e objeto favoreça a presença da preposição
(58,8%), é o traço [+pessoa] do objeto que incide na presença da
preposição, pois a soma dos percentuais de objeto direto
[+pessoa], independentemente do traço do sujeito, alcança o
índice de 97,4%.

A única ocorrência de preposição com objeto [-animado] e


sujeito [+pessoa] tem a ordem VOS:

(81) prega ao evangelho o padre José Herculano (RJ1869)

227
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Quanto ao tipo de realização do NP objeto, verificamos


que o pronome de tratamento, título honorífico e Nome próprio é
o fator que mais favorece o uso da preposição (17 ocorrências),
seguido do quantificador (15 ocorrências) e do Nome comum
[+pessoa]:

(82) Quem quizer arrendar um sítio (...) procure a Lidoro


Victor Valle para contratar-se pois o mesmo está a mudar-
se para o sertão (MG1833)

(83) Deos guarde a VS (MG1875)

(84) Procure-se ao ilustríssimo sr tenente (...) a quem esta´


affecto este negocio (MG1856)

(85) indo eu visitar a uma pessoa da minha amizade...


(MG1830)

(86) empregados que... só ambicionão iludir ao publico


(MG1832)

(87) oficiaes...expulsão a funccionarios empregados


(RJ1824)

(88) trata de insultar-me e aos empregados da bibliotheca


(SP1874)

Exemplos de ODprep com N comum [-pessoa]:

(89) prega ao evangelho o padre José Herculano (RJ1869)

(90) as quaes serviram como lenitivo, para minorar aos


dissabores da vida jornalística (MG1895)

A presença da preposição diante de nomes comuns [-


pessoa] é acionada pela ordem OVS, pela estrutura coordenada ou
por fatores pragmáticos.

228
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Em geral, o que se observou foi a alta incidência de objetos


diretos preposicionados, ao contrário de nossa hipótese inicial. O
objeto direto preposicionado se dá na presença de pronomes de
tratamento ou de algum tipo de modificador do nome com o
traço [+pessoa], um título honorífico, um adjetivo, um diminutivo
etc. Pelo exposto, observamos que os nossos resultados estão em
conformidade com os de Ramos (1992). As duas únicas diferenças
estão na análise do fator não-adjacência e da coincidência do traço
[+pessoa] do sujeito e do objeto. Ao contrário dos resultados de
Ramos, verificamos que há um alto índice de objeto direto
preposicionado, quando este se acha adjacente ao verbo, e que o
traço [+pessoa] do objeto ativa o aparecimento da preposição.

5. Considerações finais: hipótese de mudança

Os dados analisados sugerem dois tipos de mudança em


relação à preposição a, valor meta:

a) substituição lexical: a > em / a > para;

b) gramaticalização: apagamento da preposição.

As mudanças pontuadas (uso de para, uso de zero e


reanálise do argumento com função dativa) levantam a questão:
qual a mudança mais geral que motivou a alteração no uso da
preposição?

A análise dos contextos em que ocorre a variante [a]


mostrou que

1) com os verbos de movimento híbrido, o NP com traço


[+pessoa] se diferencia do NP com traço [+lugar] pelo fato de ser
categoricamente precedido pela preposição a;

2) NPs com traço [+pessoa], normalmente precedidos pela


preposição a com verbos dativos, são apassivados quando ocorre
o apagamento da preposição;

229
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

3) o objeto direto preposicionado ocorre majoritariamente


quando o NP-objeto tem o traço [+pessoa].

Esses dados permitem captar a correlação entre a


preposição a e o traço [+pessoa], ao contrário da preposição para,
que aparece nos casos em que a direção da entidade movida tem o
traço [+lugar].

Galves (1993) interpreta o enfraquecimento da morfologia


verbal a partir da perda do traço semântico [+pessoa].
Considerando a correlação entre a preposição a e o traço
[+pessoa], podemos inferir que a mudança mais geral, a que
aludimos, é a perda do traço [+pessoa] associado às formas
verbais (Galves) e à preposição a.

Considerando que o clítico lhe apresenta o traço [+ pessoa]


(cf. Raposo, 1998), pode-se inferir que a perda da preposição a
leva à perda do clítico ou vice-versa.14 De fato, Matos e Duarte
(1984, apud Ramos 1992)15 mostram que a variante [a] ocorre em
construções com reduplicação de clítico e que a reduplicação só
ocorre com essa variante. Além disso, o complemento de verbos
monoargumentais do tipo “renunciar”, “resistir” não é cliticizável
e nestes casos não ocorre a variante [zero].

Ramos (1992) sugere que a queda de clíticos no PB pode


ter contribuído para diminuir a freqüência de a e aumentar a
freqüência de para com SNs dativos. Neste trabalho não
analisamos a correlação entre queda de clíticos e avanço da
variante [para], mas ela pode ser confirmada se considerarmos que
a queda de clíticos e a perda da preposição a estão submetidas à
perda do traço [+pessoa] que subjaz aos dois elementos.

14 Veja o trabalho de Oliveira intitulado A perda da preposição ´a´ e a

recategorização do clítico ´lhe´, comunicação apresentada no GEL (2003).


15 Isso é-me útil a mim. (Matos e Duarte 1984:501)
*Isso é-me útil para mim. (idem)

230
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

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233
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Advérbios qualitativos e modalizadores em –


mente: do português arcaico ao português do
século XIX
por
Mário Eduardo Martelotta
Universidade Federal do Rio de Janeiro
e
Afrânio Gonçalves Barbosa
Universidade Federal do Rio de Janeiro

1. Introdução1

O objetivo deste trabalho é analisar os advérbios


qualitativos em -mente, observando, em seus usos, três aspectos
que são aparentemente distintos, mas que um estudo mais atento
revela estarem bastante relacionados: as suas tendências de
ordenação, a polissemia que os caracteriza e o fenômeno da
gramaticalização.

Observar a ordenação dos diferentes tipos de advérbios


implica examinar a polissemia associada a seus usos, já que,
normalmente, diferentes valores possuem diferentes tendências de
ordenação. Se queremos saber como se desenvolve essa
polissemia, precisamos levar em conta, além dos mecanismos de
extensão metafórica e metonímica que se dão no nível lexical, os
processos envolvidos na mudança por gramaticalização.

1 Este trabalho foi elaborado com o auxílio das bolsistas de Iniciação

Científica Roberta Cardoso (PIBIC/UFRJ) e Elaine Soares Frederico


(PROFAG/UFRJ).

235
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Uma apreciação histórica desses aspectos do uso dos


advérbios qualitativos nos leva a algumas questões interessantes.
De uma perspectiva diacrônica, percebemos que suas tendências
de ordenação mudaram com o tempo. Esses advérbios parecem se
colocar, no português arcaico, não apenas depois do verbo, como
é normal atualmente,2 mas também antes do verbo, aparecendo,
inclusive, entre o sujeito e o verbo:

(1) a. ...fa los desconhecidos com pouca paciência e


contentamento e muy fracos em caridade porque entendem
que cousa nom reçebem graçiosamente mes que daquillo que
son merecedores algu)a parte lhe tiram... (Livros dos
conselhos de El-Rei D. Duarte)

b. Sempre perfeitamente todalas cousas obrar... (Livros dos


conselhos de El-Rei D. Duarte)

c. ...o coração toruadamente querja receber as cousas...


(Livros dos conselhos de El-Rei D. Duarte)

Os exemplos acima sugerem uma mobilidade maior dos


advérbios em -mente no português arcaico. No exemplo 1a, o
advérbio graciosamente ocorre imediatamente após o verbo, posição
que em nada surpreende o falante contemporâneo. Entretanto, a
colocação de perfeitamente, anteposta ao verbo e dele distanciada
(exemplo 1b), assim como o posicionamento de toruadamente entre
o sujeito e o verbo (exemplo 1c), não correspondem às tendências
de ordenação de elementos desse tipo no português atual.

Isso reforça o que está apresentado em Pinto (2002) em


relação ao fato de que os advérbios qualitativos em -mente têm um
leque maior de possibilidades de ordenação no português arcaico
do que no português atual.

2 A referência à atualidade está baseada em pesquisas desenvolvidas pelo

Grupo Discurso & Gramática –UFRJ. Em especial, o levantamento feito


em Pinto (2002), com base em dados de língua falada e escrita,
recolhidos do corpus do Projeto Discurso e Gramática.

236
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Não se pode descartar a hipótese de que essa mudança


esteja relacionada a uma tendência mais geral de ordenação
vocabular característica do português arcaico, que apresentava
uma mobilidade maior do que a atual. Pádua (1960), Mattos e
Silva (1989) e Ribeiro (1995) já demonstraram que a frase iniciada
por verbo é tão freqüente no português arcaico quanto a frase
SVO e que outras ordenações, como SOV, não são incomuns.
Além disso, trabalhos como os de Kato et al. (2002) e de Duarte e
Kato (1998) levam à conclusão de que, a partir da segunda metade
do século XX, o português brasileiro parece passar a não evitar o
preenchimento dos sujeitos referenciais de primeira, segunda e
terceira pessoas. É possível que esses fatores tenham influenciado
a alteração nas tendências de colocação de advérbios, já que há
evidências de que, mesmo na fase atual, orações com sujeito
oculto, indeterminado ou inexistente admitem advérbios
qualitativos antes do verbo.

Acreditamos que, ao lado desses dados de ordem estrutural,


atuam fatores pragmático-discursivos. Nesse sentido, levando em
conta a mudança por gramaticalização, podemos observar que,
com o desenvolvimento desse processo, novos usos surgem,
especializando-se em posições específicas. É o caso dos advérbios
em -mente, que, perdendo valor de qualitativo e assumindo valor
modalizador, assumem tendências de colocação diferentes, como
se vê nos exemplos abaixo:

(2) a. ...çarrada a vista da [carne per ciguydade, a outra vista


da] alma mais certamente chegua ao Senhor Deus, que he fito
em fim prestomeyra, co a vissom das suas cuydações. (Orto
do Esposo)

b. Certamente elle escolhe mal, ca escolhe seer forte e)


pequena cousa e seer fraco e)na alma, que he muy mayor e
milhor que o corpo... (Orto do Esposo)

No exemplo 2a, temos um uso em que certamente apresenta


valor qualitativo, pois expressa o modo mais certo (ou mais direto) de
se chegar ao senhor. Como, nesse caso, o elemento se refere ao

237
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

verbo, tende a ocorrer próximo a ele. Veremos mais adiante que


esse valor do advérbio certamente não é incomum no português
arcaico, ocorrendo freqüentemente ao lado de verbos de
movimento.

Por outro lado, no exemplo 2b, o advérbio assume valor


modalizador, passando para o início da oração. Nesses casos, o
advérbio não se refere ao verbo, mas a toda a oração, ou, nos
termos de Ducrot (1972), ao ato ilocucionário de afirmar, uma vez
que qualificam o ato de dizer e não a coisa dita. Sendo assim, se
afasta do verbo, ocorrendo antes do elemento modificado: a
oração.

Isso demonstra a importância de se observar a polissemia


dos advérbios nos diferentes momentos evolutivos da língua
estudados. Levantamentos preliminares demonstraram que, se,
por um lado, surgem eventualmente valores novos com o passar
do tempo, por outro, existe uma forte tendência de a polissemia
dos elementos lingüísticos se manter estável. Por isso, optamos
por analisar, paralelamente ao fenômeno da ordenação, a
polissemia dos elementos estudados: a sua natureza estável e
pancrônica (Saussure, 1978)3 e os diferentes tipos de extensão
semântica que geram os novos usos, que ora assumem colocações
diferentes, ora não.

Nossa análise pretende verificar a ocorrência e a posição


dos advérbios em -mente em textos do português arcaico e do
século XIX. Para tanto, vimos ampliando os corpora utilizados em
Martelotta e Leitão (2002) e Martelotta, Barbosa e Leitão (2002),
reunindo aqui os textos: Bíblia Medieval Portuguesa, organizado por
Silva Neto (1958), Livro das aves, de Rossi et al. (1965), Livros dos
conselhos de El-Rei D. Duarte, transcrito por Dias (1982), O Orto do

3 Com pancrônicas, entendemos as tendências que atuam sobre os


elementos lingüísticos em termos atemporais e universais. Com
exemplos dessa visão, destacamos trabalhos como os de Votre (1999) e
Ferreira (2000; 2003), que propõem ter a polissemia de alguns elementos
lingüísticos se mantido estável desde o latim.

238
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Esposo, de Maller (1956), os Registros médicos, de Bastos (1993) e o


Tratado da cozinha portuguesa do século XV de Gomes Filho (1994),
para o português arcaico. Já os exemplos do século XIX são
retirados dos corpora do Projeto Para a História do Português
Brasileiro (PHPB): cartas publicadas em jornais oitocentistas e de
cartas pessoais manuscritas. Os dados recolhidos das cartas
pessoais são do Rio de Janeiro, Paraná, Minas Gerais e Bahia, ao
passo que os dados retirados de jornais, além de oriundos desses
mesmos lugares, contam, também, com material de São Paulo.4

1.1. Posições do advérbio qualitativo

Tentando cobrir todas as possibilidades de colocação dos


elementos observados,5 analisamos a distribuição dos advérbios
em -mente tomando como base seu alvo, ou seja, o elemento ao
qual ele se refere.

1.1.1. Os qualitativos

Procuramos observar a distribuição dos qualitativos em -


mente, tomando como ponto de referência o elemento ao qual ele
se refere: o verbo. Assim observamos os advérbios qualitativos
pelas seguintes posições:

1- Posições pré-verbais

a) Sujeito + Advérbio + Verbo:

4 Trata-se dos corpora formados pelas equipes do PHPB. Material


distribuído eletronicamente.
5 Não levamos em conta, nesta análise, os casos em que os advérbios

estudados ocorreram entre dois verbos de uma locução.

239
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(3) ...e guisa que aquelle que ella falsamete chama


bemaueturado... (Orto do esposo)

b) Sujeito +X + Advérbio + Verbo:

(4) Onde diz Sam Joham Boca douro que os prelados per
razom da alteza da dignidade mais graueme)te caae) ... (Orto
do esposo)

c) Advérbio + Verbo:

(5) Mas lympamente dizem a seu senhor a razom... (Livro dos


conselhos de el-Rei D. Duarte)

d) Advérbio + X + Verbo:

(6) Sempre perfeitamente todalas cousas obrar... (Livro dos


conselhos de el-Rei D. Duarte)

e) Advérbio+Verbo+Sujeito:

(7) Em esta batalha conhocidame)te obrou a graça de Deus


polla fe catholica e pela uirtude da Sancta Scriptura... (Orto
do esposo)

2- Posições pós-verbais

a) Sujeito+Verbo+Advérbio:

(8) Se o home guardar firmeme)te este nome Jhesu eno seu


coraçom... (Orto do esposo)

b) Sujeito+Verbo+X+Advérbio:

(9) Ca aquellas uozes corriam eñas minhas orelhas fortemete...


(Orto do esposo)

c) Verbo + Advérbio:

240
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(10) ...porque entendem que cousa nom reçebem


graciosamente... (Livros dos conselhos de El-Rei D. Duarte)

d) Verbo + Sujeito + Advérbio

(11) ...e morre o home) asesegadame)te... (Orto do esposo)

e) Verbo + X + Advérbio:

(12) E repartir por todos irmãmente, até se acabar... (Livros


dos conselhos de El-Rei D. Duarte)

f) Verbo+ Sujeito+ X+Advérbio:

(13) Porque aquel fructo que primeyro pendia ena aruor,


gosta-o o home) ena obra muy docemente (Orto do esposo)

Para que se compreenda a natureza exata das posições


consideradas, deve-se levar em conta o seguinte:

V é o verbo, ou seja, o alvo, ou o elemento com o qual o


advérbio se relaciona;

X é qualquer elemento lingüístico que possa ocorrer entre o


advérbio e o seu alvo, e vice-versa. É importante frisar que não
consideramos como X outros advérbios que se referem ao
advérbio em -mente, como, por exemplo, mais no sintagma mais
tranqüilamente, assim como não levamos em consideração os
clíticos, que, por sua natureza, ocorrem sempre mais perto do
verbo do que o advérbio em estudo.

3- Posições relativas a adjetivos e particípios

Observamos ainda as ocorrências em que os qualitativos se


referem a adjetivos e particípios. Nesses casos, as posições
observadas foram:

a) Advérbio+Adjetivo/particípio

241
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(14) [p]or huma immensidade | de Gente desconhecida a


quem se incum|bira a numeração; tudo, [p]or, tudo [já] sido
envenenado pelos Malevolos; tudo | calumniosamente
exagerado e não Lê... (Cartas de Redatores de Jornais -
Bahia)

b) Adjetivo/particípio+Advérbio

(15) Offendido indignamen- | te em meus brios e na minha


educação | por um pretendido Imparcial que no | Diario de
hoje me assaca factos inteira- | mente calumniosos e
injurias não aucto- | risadas por acto algum meu, não posso
| prescindir de recorrer ao seu conceituado | Jornal para
defender-me de tão nojen- | tas mentiras. (Cartas de
Redatores de Jornais - Bahia)

1.1.2. Modalizadores

No caso dos modalizadores, que não se referem ao verbo,


mas à oração inteira, observamos sua colocação em relação à
oração:6

a) Advérbio+Oração

(16) E certame)te, se o home) parasse be) me)tes queyrando


he o mal que [he] cõju)to aa nobreza carnal, nõ curarya della

6 Não levamos em conta, nesta análise, os casos em que o modalizador


se relaciona a um termo do meio da cláusula, como ocorre em
“...recorrerá ainda a uma outra subtileza visivelmente lucrativa a elle...”.
Nesse exemplo o modalizador tem como alvo o adjetivo lucrativa, o que
não ocorre no exemplo (17), em que o modalizador se refere a toda
oração.

242
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

ne) sse gloriaria e) ella. (Livros dos conselhos de El-Rei D.


Duarte)

b) Oração+Advérbio (Não encontrada)

c) Meio de oração

(17) Tu sabes, que, alem de seu irm- | mão, sou realmente


teu amigo... (Cartas de Redatores de Jornais - Bahia)

1.2 Hipóteses

Partimos nossas análises das seguintes hipóteses:

a) De acordo com o que está proposto em Pagotto (1999),


Martelotta e Leitão (2002) e Martelotta, Barbosa e Leitão (2002), a
posição pré-verbal (sobretudo entre o sujeito e o verbo), até o
século XVIII, era disponível a todo tipo de advérbio, inclusive os
que hoje não ocupam essa posição, entre eles, os qualitativos. Do
século XIX em diante, essa posição passa a ser ocupada por esses
advérbios apenas em frases estilisticamente marcadas como as
estruturas comparativas propostas em Ilari et al. (1996). Com o
processo de mudança, essa posição teria ficado menos disponível
para muitos advérbios, inclusive os qualitativos em -mente.

b) Quanto aos advérbios referentes a adjetivos ou a


particípios, partimos do princípio, também já testado em
Martelotta e Leitão (2002) para outros advérbios, de que não
houve mudança de ordenação. Ou seja, o advérbio coloca-se antes
do elemento a que se refere, desde a fase arcaica do português.

c) Partindo do princípio de que os advérbios são termos de


valor determinante, adotamos a hipótese de que ele deva ocorrer
próximo ao elemento que determina. Essa hipótese se relaciona
com o princípio de iconicidade, mais especificamente ao
subprincípio da proximidade (Givón, 1990), que propõe uma
relação entre proximidade semântica e proximidade sintática.
Nesse sentido, advérbios que se referem a aspectos mais essenciais
da ação verbal ocorrem mais próximos ao verbo. Assim, ao

243
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

contrário dos modalizadores, os advérbios qualitativos, que


modificam o verbo, tendem a aparecer imediatamente próximos a
ele: antes ou depois.

d) Com o processo de gramaticalização, os advérbios


qualitativos tendem, ora a se fixar no início da oração,
estabelecendo uma conexão com outra oração, ora a assumir uma
colocação mais livre. No primeiro caso, os advérbios assumem
função semelhante à de um conectivo, estabelecendo relações
textuais. No segundo caso, os advérbios assumem, inicialmente,
função de modalizador, tendendo a ocorrer nas extremidades da
oração e, com a continuação do processo, assumem, na função de
marcador, posições mais livres de restrições sintáticas. Em tais
circunstâncias, não é incomum estabelecer-se uma espécie de
distribuição complementar entre a função original de advérbio e
sua nova função.

e) Advérbios qualitativos em -mente tendem apresentar a


trajetória de Traugott (1995) advérbio interno à cláusula > advérbio
sentencial > marcador discursivo. Segundo essa proposta, determinados
advérbios ganham progressivamente liberdade sintática e têm seu
escopo ampliado, até assumirem função de marcador discursivo.

f) Existem processos de ordem metafórica e metonímica,


subjacentes à polissemia dos advérbios qualitativos, que atuam em
diferentes línguas de modo atemporal.

g) Pode haver diferenças nas tendências de colocação dos


advérbios analisados em diferentes tipos de texto. Textos de
caráter argumentativo, por exemplo, tendem a caracterizar-se por
um comportamento adverbial diferente dos textos narrativos ou
descritivos.

2. Os advérbios em -mente

De acordo com Machado (1997) os advérbios em -mente


são conseqüentes da união de um adjetivo com o elemento
proveniente do latim mente, para indicar estado de espírito, como
obstinata mente. Inicialmente aparecia com freqüência nos

244
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

testamentos, depois passou a ser empregado em sentido mais


geral, como em bona mente, mala mente e, mais tarde, talvez já
depois de terminado o período do latim vulgar, usou-se com
alguns adjetivos que podiam formar advérbios de modo, como
em longa mente, sola mente.

No português arcaico, empregou-se já com a variante


gráfica representando um vocábulo único, conforme se vê no
exemplo abaixo:

(18) A uestidura molle legeiramente faz dilycado o corpo riio.


(Orto do Esposo)

Entretanto, ainda se vê, embora mais raramente, casos


como os do exemplo (19), em que os elementos ocorrem ligados,
mas com a presença da preposição de, o que remete à construção
adverbial original, formada com o substantivo mente:

(19) Muito alto e muy poderoso senhor se o caso tal fora


que eu poderia hyr sem algu) grande meu dano eu fora
muyto de boamente... (Livros dos conselhos de El-Rei D.
Duarte)

São também interessantes ocorrências como as dos


exemplos (20) e (21), em que os elementos constituintes aparecem
sob a forma variante, com fronteira vocabular:

(20) E o husureyro lhe disse que as duas cousas prymeiras


faria de boa mente mas a IIIra nõ podia fazer... (Orto do
esposo)

(21) E porem diz Salomõ: Bem aue)turado he o home) que


sempre he temeroso, mas aquelle que he de dura me)te – s.
qual he o atreuudo e ardido – quayra e) mal. (Orto do
esposo)

Isso também poderia ser visto como um resquício da


construção original, em que os elementos eram separados.

245
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Entretanto, não podemos esquecer que não só dependemos da


fidedignidade da edição para sabermos se as palavras estavam de
fato juntas no original, mas também que, mesmo nos manuscritos,
muitas vezes a união, ou separação, entre vocábulos poderia ser
usada para se justificar a mancha gráfica na página. Desse modo,
devemos tomar cuidado ao relacionar a escrita separada/junta dos
elementos com sua gramaticalização, pois só o controle estatístico
pode revelar o real avanço da grafia dos advérbios em -mente como
um único vocábulo. Podemos dizer, grosso modo, que a
freqüência da variante com fronteira vocabular entre a base
adjetiva e -mente cai ao longo do tempo, sendo relativamente
pequena no século XVIII.

Todo esse processo envolvendo a formação dos advérbios


em -mente sugere uma trajetória de mudança, iniciada no latim, de
acordo com a qual uma formação casual, envolvendo adjetivos
semanticamente compatíveis com o valor original de mente, passa a
ter sua produtividade ampliada a outros tipos de adjetivos,
acarretando, assim, um aumento de freqüência que justifica o
processo de gramaticalização. Com esse processo, o elemento
lexical, por reanálise, perde liberdade sintática, tornando-se um
morfema, o que implica também uma diminuição de escopo.

Mas há ainda determinados aspectos do uso de alguns


advérbios em -mente que são interessantes para a análise da
gramaticalização relacionada a esses elementos. É o que propõem
Traugott (1995) e Tarbor e Traugott (1998). Esses autores
repensam a noção de unidirecionalidade, com o objetivo de
englobar alguns usos de marcadores discursivos que não podem
ser explicados pela teoria da gramaticalização, tal como
apresentada nas primeiras propostas do início da década de 1990.

Os autores argumentam que, nos fenômenos de


natureza gramatical, devem ser incluídos os aspectos
pragmáticos, propondo como relevantes para a
gramaticalização os fenômenos referentes à de-categorização, à
redução fonética e ao aumento da função pragmática, que são
características nos marcadores discursivos. Além disso,

246
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

propõem que características como diminuição de escopo, perda de


obrigatoriedade e liberdade sintática não sejam consideradas
salientes para gramaticalização. Com isso, o
desenvolvimento dos marcadores discursivos, elementos de
relativa liberdade sintática que deixam de funcionar no nível
sintático para ter seu escopo ampliado ao nível do discurso,
podem ter seus usos explicados pela trajetória de
gramaticalização advérbio interno à cláusula > advérbio sentencial >
marcador discursivo.7

Essa trajetória caracteriza alguns advérbios do inglês, entre


eles, in fact, que contém fact (originalmente ação), que é
etimologicamente um termo latino, e indeed de in dede, que contém,
dede, nome (valor lexical), que significa ação, ato. Ambos derivam
do particípio passado de um verbo que significa fazer, ocorrem em
construção preposicional, têm sentido metatextual e epistêmico
concernente a factualidade e certeza e ambos se tornam
marcadores discursivos. Valor semântico semelhante apresentam
elementos adverbiais portugueses como de fato, com certeza e
formações em -mente, como certamente, realmente, verdadeiramente,
seguramente, fatalmente, praticamente, obviamente, entre outros.

2.1. Os valores dos advérbios em -mente

Os advérbios em -mente podem assumir valores bastante


diferentes. Na maioria dos casos, se enquadram no grupo de
advérbios que Ilari et alii (1996) classificam como predicativos, ou
seja, elementos que funcionam como atribuidores de
características semânticas a um outro elemento lingüístico.

7 Muitos autores como Traugott (1995), Tarbor e Traugott (1998),


Hopper (2000) e Valle (2002) consideram que a teoria da
gramaticalização dá conta dos usos dos marcadores discursivos. Por
outro lado, trabalhos como os de Martelotta, Votre e Cezario (1996),
Castilho (1997; 2002), Gasparini (2001), Detges e Waltereit (2002) e
Leitão (2002), defendem que, nesses casos, ocorre um processo de
discursivização.

247
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Dentre os advérbios predicativos, distinguem-se


basicamente quatro tipos: os intensificadores, os aspectualizadores, os
qualitativos e os modalizadores, podendo todos eles ser expressos por
advérbios em -mente:

a) Intensificadores: podem ser usados para se referir a


verbos, adjetivos e outros advérbios, mas também aparecem em
construções com substantivos e pronomes tendo uma certa
ambivalência semântica de intensidade, quantidade, ou mesmo
qualidade.

(22) ...por isso, logo á primeira vista fiquei extremamente


sorprehendido... (Cartas de Redatores de Jornais - Bahia)

b) Aspectualizadores- associam-se a noções de tempo e


aspecto.

(23) ....Elle marchará cons- | tantemente em proteger a ardua,


e fe- | liz empreza, que principiou, e comple- | tou – A
Independencia do Brasil! (Cartas de Redatores de Jornais -
Bahia)

c) Qualitativos: caracterizados por exprimirem uma


qualidade, modificam o sentido do elemento ao qual se ligam:

(24) ...e guisa que aquelle que ella falsamete chama


bemaueturado... (Orto do esposo)

d) Modalizadores: caracterizados por qualificarem toda a


asserção, esses advérbios não modificam a informação verbal,
codificada na oração, mas indicam um tipo de atitude do falante
em relação àquilo que fala, caracterizando-se, portanto, por uma
informação que remete ao ponto de vista do falante, ou às
restrições argumentativas que ele quer dar a seu enunciado. Com
base em uma classificação apresentada em Castilho e Castilho
(2002), podemos dividir os modalizadores em subclasses.

d.1- Advérbios epistêmicos: indicam uma avaliação do


falante acerca do conteúdo transmitido, expressando idéia de

248
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

dúvida/certeza, obrigatoriedade/virtualidade, ou
necessidade/possibilidade. Essa avaliação apresenta caráter
epistêmico, estando relacionada às crenças, opiniões e expectativas
dos interlocutores.

(25) Seguramente esse uniforme também ia fora... (Cartas de


Leitores - Minas Gerais)

d.2- Advérbios de circunscrição ou hedges: focalizam ou


delimitam o ponto de vista sob o qual a asserção pode ser
considerada correta.

(26) Não podemos comprehender por li- | berdade de


cultos o comparecimento | das auctoridades governantes,
official- | mente, com apparato de tropas, a um | culto,
desprestigiando-se os outros, como | si elles não existissem,
embora em mi- | noria. (Cartas de Redatores de Jornais -
Bahia)

d.3- Advérbios de atitude proposicional: indicam uma


avaliação do falante acerca do conteúdo transmitido, mas não
apresenta caráter epistêmico, já que reflete seu estado de espírito,
ou a sua emoção diante do que diz. Castilho e Castilho (2002)
caracterizam esses casos como modalizadores afetivos subjetivos.

(27) Felizmente che- | gou, porém um pouco tarde... (Cartas


de Redatores de Jornais - Paraná)

d.4- Advérbios de ato de fala: indicam uma postura


comunicativa do falante em relação àquilo que fala. Castilho e
Castilho (2002) caracterizam esses casos como modalizadores
afetivos intersubjetivos.

(28) Francamente, eu não gosto de você.8

8 Este é um exemplo inventado. Não encontramos casos desse tipo de

advérbio nos corpora.

249
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

d.5- Deônticos: expressam a posição do falante de que o


conteúdo transmitido precisa obrigatoriamente ocorrer.

(29) O regimen de uma boa administração, cujo salutar vi-


| gor cortando os males que soffriamos supprisse os bens
que | nos faltavão, era uma necessidade da época: e o
governo | central que por certo não quereria, que um
pensamento | filho de sua politica soffresse contrariedades
e abortasse as | esperanças inculcadas a frente da opposição
que se levan- | tara contra a idéa da emancipação,
necessariamente devia | ser mais tolerante e quasi que paternal.
(Cartas de Redatores de Jornais - Paraná)

Dentre esses tipos de advérbios predicativos, apenas nos


interessam, neste trabalho, os advérbios qualitativos e
modalizadores.

2.2. A polissemia de alguns advérbios em -mente

Os usos dos advérbios em -mente do tipo que estudamos


aqui apresentam uma polissemia bastante regular em alguns
aspectos. Nas duas fases da nossa língua que estudamos,
encontramos advérbios em -mente específicos, que apresentam
valor qualitativo e modalizador. Que relação pode ser estabelecida
entre esses usos?

Como foi mencionado anteriormente, Traugott (1995)


e Tarbor e Traugott (1998), englobando o desenvolvimento
de marcadores discursivos a partir de elementos de natureza
adverbial no fenômeno da gramaticalização, propõem que
esses elementos de relativa liberdade sintática que deixaram
de funcionar no nível sintático para ter seu escopo ampliado
ao nível do discurso, podem ter seus usos explicados pela
trajetória de gramaticalização advérbio interno à cláusula >
advérbio sentencial > marcador discursivo.

É interessante observar os valores de alguns desses


elementos no português arcaico, e perceber que muitos deles

250
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

apresentavam então usos como advérbio interno à cláusula (com


valor qualitativo) que não existem mais no português atual. É o
que se pode ver nos exemplos abaixo envolvendo usos
qualitativos de seguramente:

(30) ...façase sangria da vea que responde à segunda


postema, tendo resguardo a que a virtude está mais fraca, E
que de rezão ha de estar tirada a mayor parte do
enchimento. E para que mais seguramente se possa fazer a
sangria, por rezão da segunda postema donde está dito...
(Registros Médicos)

(31) Entre as outras cousas em a fisica mais louuadas, E


q) mais seguramente se pode tomar em a cantidade que
quiserem, E com ser mezinha he mãjar, he hu)a mistura de
figos passados, E nozes, folhas de arruda, com hum
piqueno de sal, E he tão virtuoso ~q lhe quiseram chamar
Triaga... (Registros Médicos)

Nesses casos, seguramente funciona como advérbio


modificador do verbo, com valor qualitativo, apresentando
sentido semelhante a fazer a sangria com segurança ou com tranqüilidade
ou tomar com segurança ou com tranqüilidade. Esse uso não é mais
comum no português, ou, pelo menos, nossas intuições de
falantes nativos nos dizem que, atualmente, emprega-se
preferivelmente valor de modalizador de seguramente, que não foi
encontrado nos textos arcaicos observados.

Algo semelhante ocorre com certamente, como se pode ver


abaixo:

(32) E muitas vezes a ciguidade dos olhos corporaes obra


estas taaes cuydaçõões, ca, asy como o beesteyro cõ olho
çarrado tira mais certamente ao fito, be[m] assy, çarrada a vista
da [carne per ciguidade, a outra vista da] alma mais certamente
chegua ao senhor Deus, que he fito e fim prestomeyra, com
a vissom das suas cuydações. (Orto do esposo)

251
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Pelo contexto em que ocorre, não é possível interpretar


esses dois usos de certamente do exemplo (32) como tendo valor
modalizador. Pode-se ver, também nesses casos, usos com valor
qualitativo, que não se encontram mais no português. Na segunda
ocorrência, certamente está se referindo a um verbo de movimento
chegar, o que parece ser comum no português arcaico, como se vê
nos exemplos abaixo:

(33) ...que non posa saber onde certamente aueis d hir se uos
nom açertardes em trauto... (Livros dos conselhos de El-Rei
D. Duarte)

(34) ...e que nõ seendo e)bargado pellos sentidos de fora,


chegasse a Deus mais cetame) te e mais continuadame) te.
(Orto do esposo)

Entretanto, ao contrário do que ocorreu com seguramente, o


português arcaico apresentou casos de certamente com valor de
modalizador:

(35) Certame)te todo manjar da alma he seco, se nõ for


espargido sobre el esse oleo do nome de Jhesu... (Orto do
Esposo)

(36) Emuelheceste e) terra alheia, emçuiado es cõ os


mortos e cõtado es com aquelles que descende[m] e)no
jnferno, leyxaste a fonte da sabedoria, qua, se tu e) ella
ouuesses andado, certame)te tu morarias em paz perdurauil.
(Orto do esposo)

3. Análises dos resultados

3.1. Português arcaico

3.1.1. Os advérbios qualitativos

252
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

A tabela abaixo apresenta a distribuição dos advérbios


qualitativos em -mente encontrados no português arcaico pelas
posições observadas:

Tabela 1: Distribuição dos qualitativos em -mente pelas


posições observadas – PA

Posições pré-verbais Posições pós-verbais


SAV SXAV AXV AV AVS SVXA VXA VA VSXA VSA SVA
8 2 11 116 3 6 67 218 3 5 2
Total das posições pré-verbais: Total das posições pós-verbais:
140 (31,8%) 301 (68,2%)
Total de ocorrências: 441

Essa tabela apresenta alguns resultados interessantes. Nota-


se, inicialmente, a forte tendência dos qualitativos em -mente para
ocorrer em posições pós-verbais: 301 casos ou 68,2% do total de
441 ocorrências. Entretanto, podemos ver uma quantidade
significativa de ocorrências desses elementos em posição pré-
verbal: 140 ocorrências, ou 31,8%. Chama principalmente atenção
a quantidade, incomum pelo menos no português atual, de
ocorrências entre o sujeito e o verbo: 9 ocorrências, sendo 7 em
posição SAV e 2 em SXAV. Esses fatos apontam, portanto, para
uma abertura às posições pré-verbais na fase arcaica do português,
já prevista em nossas hipóteses.

A menor quantidade de casos de SXAV do que de SAV se


deve, provavelmente, ao fato de não ser muito produtivo construir
frases com o sujeito longe do verbo. Por outro lado, a presença de
construções como SAV e SXAV (e não SAXV) está associada a
uma tendência mais geral que esses advérbios apresentam de
ocorrerem próximos ao elemento que modificam, no caso, o
verbo. A presença maciça de construções AV (116 casos) e VA
(218 casos) ratifica isso. Esse resultado já era esperado, já levamos

253
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

em conta o princípio de iconicidade, que funciona como uma


força pancrônica, incentivadora de um posicionamento do
advérbio próximo ao seu alvo.

Esse princípio parece se manifestar também em alguns


casos de colocação pré-verbal. É interessante notar que algumas
das ocorrências de SAV enquadram-se em um tipo de qualitativo
que Jackendoff (1972) caracteriza como advérbio orientado para o
sujeito. O exemplo abaixo ilustra esses casos, em que, tendo como
alvo o sujeito, o advérbio ocorre próximo a ele:

(37) ...e guisa que aquelle que ella falsame)te chama


bemaueturado... (Orto do esposo)

O advérbio falsame)te, nesse contexto, relaciona-se com o


sujeito ella e não com o verbo: o advérbio aponta para uma atitude
do sujeito. Além disso, pode-se negar o verbo sem que isso afete a
caracterização de falsidade na atitude do sujeito, já que seria
possível algo como ela falsamente não chama bemaventurado. Essa
possibilidade de qualitativos se referirem ao sujeito está prevista
na caracterização de Givón (2001) para o que ele chama papel
semântico de modo: “a maneira pela qual um evento ocorre ou como
um agente desempenha a ação”. Assim, pode-se ampliar a visão
tradicional de que os advérbios de modo se referem ao verbo,
propondo que esses elementos podem, também, ter como alvo o
sujeito agente.

Percebe-se ainda que, quando o sujeito ocorre antes do


verbo, há uma tendência maior de o advérbio assumir posição
pós-verbal. Isso pode ser visto como uma espécie de processo de
equilíbrio entre os elementos na oração.

No que se refere ao qualitativo referente a adjetivos e


particípios, temos os seguintes resultados:

254
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Tabela 2: Distribuição dos qualitativos em -mente pelas


posições observadas – PA

A part/adj Part/Aadj A
47 (61,1%) 30 (38,9%)
Total de ocorrências: 77

Nota-se que existe uma grande quantidade de qualitativos


em -mente colocando-se depois do seu alvo: 30 ocorrências ou
38,9% do total de 77 ocorrências. Isso não era esperado, já que
estudos feitos acerca de outros advérbios qualitativos
demonstraram, para o português arcaico, uma tendência de
ocorrer antes do adjetivo ou do particípio a que se referem. Além
disso, levantamentos referentes aos usos dos advérbios em -mente
no português, registrados em Pinto (2002), detectaram a presença
categórica da posição anterior ao particípio/adjetivo, o que sugere
que, nesse contexto de uso, houve mudança nas tendências de
colocação dos advérbios em estudo.

3.1.2. Os advérbios modalizadores

A tabela a seguir apresenta a distribuição dos advérbios


modalizadores em -mente encontrados no português arcaico pelas
posições observadas:

Tabela 3: Distribuição dos modalizadores em -mente pelas


posições observadas – PA

A or Meio de oração
20 (52,6%) 18 (47,4%)
Total de ocorrências: 38

Esperávamos uma quantidade grande de elementos


modalizadores no início da oração. Mas constatou-se quase um
equilíbrio com as ocorrências no meio da oração: quando isso
ocorre parece-nos haver uma intenção de enfatizar um elemento
da oração, mais especificamente aquele que é precedido pelo
advérbio.

255
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(38) Outrossy, as riquezas fazem ao home) tremer, ca


aquelles que ham possissõões e)no mu)do certame)te em
tremor som... (Orto do Esposo)

(39) Viste nu)ca o leom, que he rey das animálias, coroar-se


de rrosas? Ou viste a aguya afeytar-se com pedras preciosas?
Per u)entura faria esto a bugia que o aprehendese dos
home)s sandeus, que som semelhantes aa bugia e) sua
sandice. Pore) diz Boecio: As outras animálias certame)te som
conte)tas de ssy meesmas... (Orto do Esposo, p. 327/ 21)

Nesses dois casos, o advérbio se refere a toda a oração,


posicionando-se, entretanto, no seu interior e não no início ou no
fim, como esperávamos.

3.2. Português do século XIX

3.2.1. Os qualitativos

A tabela a seguir apresenta a distribuição dos advérbios


qualitativos em -mente do português do século XIX, pelas posições
observadas:

Tabela 4: Distribuição dos qualitativos em -mente pelas


posições observadas – século XIX

Posições pré-verbais Posições pós-verbais


SAV AV AVS AXV SVA VA VXA SVXA
10 44 3 2 27 106 15 4
Total de posições pré-verbais: Total de posições pós-verbais:
59 (27,9%) 152 (72,1%)
Total de ocorrências: 211

Essa tabela apresenta alguns resultados de certo modo


surpreendentes. Nota-se a mesma tendência do português arcaico
para as posições pós-verbais, com as diferentes posições pré e
pós-verbais apresentando percentagens muito parecidas e, do
mesmo modo, uma quantidade considerável de ocorrências entre

256
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

o sujeito e o verbo: 10 ocorrências. Apesar da queda de 31,8%


para 27,9%, que as posições pré-verbais aqui apresentam,
podemos afirmar que esses fatos vão contra nossa hipótese inicial
de que o século XIX apresentaria bem menos casos de
qualitativos em -mente em posição pré-verbal, especialmente entre
o sujeito e o verbo.

Entretanto, como argumentamos em Martelotta, Barbosa e


Leitão (2002), esta parecia ser uma característica específica das
cartas publicadas nos jornais do século XIX, e não de outros
textos da época, como os anúncios de jornais, que visam à síntese.
As cartas de jornais constituem um tipo de texto favorável à
colocação marcada SAV, já que têm como característica básica a
análise. Além da descrição e do relato dos fatos, o material conta
com as considerações — por vezes reclamações enfáticas ou
críticas cheias de ironia — dos leitores e de redatores dos jornais.
Esse contexto poderia deixar as cartas mais abertas à estilização das
construções. Deve-se considerar, agora, as cartas manuscritas que,
a princípio, deveriam alterar mais significativamente esse quadro.

De 18 dados de advérbios qualitativos em -mente recolhidos


do corpus “cartas pessoais do PHPB”, 8 são pós-verbais contra 10
de advérbios pré-verbais. Mais uma vez aspectos estilísticos
parecem enviesar os resultados. Primeiro que dessas dez
ocorrências, três são fórmulas fixas de despedida de um mesmo
redator, o escritor fluminense Casimiro de Abreu, e quatro outras
aparecem em contextos reforçados por alguma estratégia de
estilização da linguagem.

Voltando à Tabela 4, observamos outra semelhança com o


português arcaico no fato de que a tendência maior dos
qualitativos em -mente é ocupar posições próximas ao verbo. Pela
natureza dessa tendência, trata-se de uma tendência atemporal de
natureza semântica, associada ao princípio da iconicidade, mais
especificamente ao subprincípio da proximidade (Givón, 1990),
que propõe uma relação entre proximidade semântica e
proximidade sintática. Nesse sentido, advérbios que se referem a
aspectos mais essenciais da ação verbal ocorrem mais próximos ao

257
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

verbo. Assim, os advérbios qualitativos, que modificam o verbo,


tendem a aparecer imediatamente próximos a ele: antes ou depois.

Por outro lado, nota-se na tabela uma diminuição da


possibilidade de colocações, com o desaparecimento de algumas
posições. Isso provavelmente ocorre em função da perda de
mobilidade dos elementos que caracterizava o português arcaico.

No que se refere ao qualitativo referente a adjetivos e


particípios, temos os seguintes resultados:

Tabela 5: Distribuição dos modalizadores em -mente pelas


posições observadas - XIX

A part/adj Part/adj A
23 (85,2%) 4 (14,8%)
Total de ocorrências: 27

Nota-se que há uma tendência de o qualitativo em -mente,


no contexto em questão, ocorrer antes do seu alvo: 85,2% do total
de 27 ocorrências. Houve, com relação ao português arcaico, uma
significativa diminuição de mobilidade. Esses dados são
interessantes, uma vez que apontam para uma mudança em
direção à tendência atual de o advérbio se colocar basicamente
antes do seu alvo.

3.2.2. Os modalizadores

A tabela seguinte apresenta a distribuição dos advérbios


modalizadores em -mente do português do século XIX, pelas
posições observadas:

Tabela 6: Distribuição dos modalizadores em -mente pelas


posições observadas – XIX

A or Meio de oração
22 (61%) 14 (39%)
Total de ocorrências: 36

258
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Com base em Ilari et al. (1996), esperávamos encontrar mais


modalizadores no início e, em menor escala, no fim da oração, já
que esses advérbios se referem à oração como um todo. De fato a
maioria das ocorrências se deu no início da oração: 22 casos ou
61% do total de 36 ocorrências. Entretanto, além de não
encontrarmos ocorrências no final da oração, detectamos 14 casos
(39%) no meio da oração. Embora, nesses casos, o advérbio se
refira à oração como um todo, ele parece enfatizar um elemento
que ocorre no seu interior. É o que ocorre nos exemplos abaixo:

(40)...fazem [.] conver- | sas, certamente para com mais


seguran- | ça attrahirem os Beneficios, e Senecu- | ras, com
que os incautos costumão mi- | mosear á Impostores...
(Cartas de Redatores de Jornais - Paraná)

(41) ...No Diario numero 272, transcrevemos os Decretos |


de 2 de Novembro do anno ultimo, que nos di- | zem, que
a segurança e tranquilidade do Impe- | rio está infelizmente
assaltada em alguns pontos | por feroz anarchia... (Cartas
de Redatores de Jornais - Bahia)

Nos dois exemplos acima, a presença do advérbio no meio


da oração enfatiza o termo que o sucede, embora o advérbio, na
verdade, tenha como escopo toda a oração.

4. Conclusão

À guisa de conclusão, passamos a algumas reflexões acerca


do nosso trabalho. Os dados sugerem uma mudança na colocação
dos advérbios em -mente, no sentido de que, na fase arcaica, havia
um leque maior de possibilidades de colocação desses elementos,
que parece ter diminuído no século XIX e diminuído ainda mais
na fase atual. Uma questão interessante em relação a isso é
observar até que ponto essa diminuição está associada a mudanças
mais gerais da estrutura sintática da frase portuguesa.

259
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Outra questão que merece menção relaciona-se à trajetória


de gramaticalização advérbio interno à cláusula > advérbio sentencial >
marcador discursivo. Essa trajetória pode ser vista como uma
seqüencial e unidirecional, à maneira de Traugott (1995) e Tarbor e
Traugott (1998), no sentido de que cada novo uso se desenvolve
de um anterior na seqüência do tempo. Pode também ser
caracterizada como instantânea, conforme se vê em Ferreira (2000;
2003), ou, anteriormente em Votre (1999), que assim se refere ao
fenômeno:

a faculdade metafórica da linguagem opera de modo


instantâneo, no sentido de que todas as virtualidades e
potencialidades se tornam disponíveis na mente das
pessoas, que interagem na comunidade discursiva,
ancoradas no contexto situacional de cada interação.

Essa opção entre unidirecionalidade e extensão imagética


instantânea é um problema que o estudioso da mudança lingüística
tem de tentar resolver. Nesse sentido, devemos observar a
natureza do fenômeno da polissemia e constatar se ela implica um
conjunto de manifestações simultâneas de um único sentido ou
uma relação seqüencial de sentidos diferentes, que evoluem uns
dos outros. Notamos que essa é uma difícil tarefa, quando
percebemos as diferentes conclusões a que chegaram pesquisas
anteriores.

Votre (1999) e Ferreira (2000; 2003), ao estudarem a relação


entre a polissemia de determinados verbos e suas características
sintáticas, perceberam que não houve mudança no que se refere a
esse fenômeno, desde o latim. Isso significaria que a
unidirecionalidade relacionada ao desenvolvimento de um sentido
novo a partir de um uso anterior, como prevê a teoria da
gramaticalização, não pode ser constatada historicamente. Por
outro lado, Silva e Silva (2002), em sua pesquisa sobre o advérbio
mal, só encontrou usos desse elemento com valor de conjunção
temporal a partir do século XIX, o que sugere seqüencialidade
unidirecional.

260
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

No caso de nossa pesquisa, encontramos advérbios como


naturalmente empregados como qualitativo e como modalizador nas
diferentes fases do português, o que aponta para a estabilidade da
polissemia. Por outro lado, vimos que alguns advérbios como
certamente e seguramente apresentaram valor qualitativo apenas no
português arcaico, sendo que somente no caso de certamente foram
encontrados valores modalizadores também na fase arcaica.

Essa é uma questão que merece aprofundamento. De


qualquer modo, fica patente, por sua regularidade pancrônica, a
força dos fatores cognitivos que estão em operação nessas
extensões de sentido.

Além desses, outros problemas surgem, como, por


exemplo, o fato de que nem todos os qualitativos em -mente
cumpriram a trajetória. Por mais que aceitemos como inevitável
alguma casualidade envolvida nisso, temos de admitir uma certa
interferência das bases adjetivas no processo. Isso poderia explicar
uma série de advérbios em -mente estabilizados há muito como
qualitativos. Um possível desdobramento desse trabalho seria,
portanto, o controle de traços associados às bases adjetivas que
compõem os advérbios em questão como [± descritivo], [±
objetivo], [± concreto], para citar alguns.

Os pontos acima levantados indicam possibilidades de


desenvolvimento de nossa pesquisa no futuro.
Independentemente do viés a ser seguido, o espírito de nossas
abordagens deverá estar aberto a questões como essas, assim
como a dados de outras línguas românicas. Enfim, um trabalho de
espírito aberto, ou, em outras palavras, uma pesquisa que se
desenvolva de aberta mente.

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264
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

Para o estudo do artigo definido antes de


pronome possessivo no português brasileiro:
algumas observações
por
Ane Schei

Universidade de Estocolmo

1. Introdução
No português brasileiro (doravante PB) usar e não usar o
artigo definido antes de pronome possessivo seguido de
substantivo varia: diz-se meu livro ou o meu livro. No presente
trabalho tentamos descrever resumidamente a evolução
diacrônica do fenômeno e mostramos que há diferenças
consideráveis entre diversos corpora. Faremos também uma
breve análise descritiva de uma parte do corpus do Projeto para
a História do Português Brasileiro, mais exatamente examinando
cartas de leitores e anúncios em jornais brasileiros do século
XIX.

A exposição a seguir é em grande parte baseada na tese


de Giselle Machline de Oliveira e Silva, Estudo da regularidade
na variação dos possessivos no português do Rio de Janeiro, na
qual a autora faz um estudo detalhado do fenômeno em corpora
diacrônicos e sincrônicos. Contudo, apesar dos méritos desse
trabalho, veremos que ainda existem lacunas no nosso
conhecimento da variação entre presença e ausência do artigo
definido frente a possessivo seguido de substantivo.


Agradeço à Profa. Dra. Maria Aparecida C. R. Torres Morais pela
leitura cuidadosa deste texto e pelos seus comentários. Os erros
remanescentes são de minha inteira responsabilidade.

265
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

2. Breve panorama histórico


Nos primeiros documentos escritos em português o uso
do artigo era bastante raro, mas ao longo dos séculos a freqüência
do artigo aumentou cada vez mais no português europeu
(doravante PE). Said Ali, estudando o fenômeno em algumas
obras da literatura portuguesa, chega ao seguinte resultado:1

Corpus freqüência relativa de casos com artigo


Fernão Lopes 5% aproximadamente
Camões 30%
Vieira mais de 70%
Herculano mais de 90%

Tabela 1. Baseada em Said Ali (1964a:96-97): a evolução


diacrônica do português europeu.

Meier (1973:6) questiona esta evolução linear:


analisando outras obras, encontra freqüências relativas dos casos
com artigo de 33% no século XV e apenas 29% no século XIX.
No entanto, concordamos com Silva (1982) que observa que as
obras analisadas por Meier não são muito adequadas: o texto do
século XV é uma tradução de De officiis de Cícero e o texto
oitocentista consiste em poesias. Nas palavras de Silva
(1982:358), “tanto as traduções quanto as obras líricas tornam as
condições da linguagem muito artificiais para este tipo de
estudo”, e o estudo diacrônico do PE em Silva (1982:314)
confirma a evolução

1
Com o seguinte método e corpus: “Tal estatística sem pretensões a
rigor absoluto foi por mim obtida, examinando, em páginas seguidas,
todos os casos (em número de 100 a 150 para cada autor) não sujeitos
a regras especiais e portanto parecendo permitir o emprêgo de
possessivo com ou sem artigo. Ministraram exemplos: Fernão Lopes,
Crônica de D. João, pág. 161 a 200; Camões, Lusíadas, cantos V a VIII;
Vieira, Sermões, vol. 5, pág. 1 a 45; Herculano, Eurico, pág. 1 a 71.”
(Said Ali 1964a:96)

266
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

apresentada por Said Ali: de 2%2 em Fernão Lopes chega-se a


90% em jornais diários de Lisboa no século XX. Como veremos
mais adiante (tabela 4), uma análise nossa confirma que na
literatura portuguesa do século XIX o artigo era empregado na
grande maioria dos casos. Conforme Cunha & Cintra (1991:216),
hoje em dia a presença do artigo definido antes de possessivo é
“praticamente obrigatória” no PE.

Também no PB o uso do artigo definido aumentou ao


longo dos séculos, mas menos do que em Portugal. Na tabela 2
vemos os resultados do estudo diacrônico de Silva (1982:315).
Note-se que expressões feitas (a meu lado, em sua opinião, etc.)
foram estudadas em separado, tanto por Silva como por nós, e
portanto não são incluídas em nenhuma das tabelas deste
trabalho.

corpus3 freqüência relativa de casos com


artigo
Vieira 41%
Documentos séc XVII 11%
Documentos séc XVIII 34%
Bernardo Guimarães 26%

Tabela 2. Baseada em Silva (1982:315): a evolução diacrônica


do português brasileiro.

Para descrever a situação no PB atual, Silva utiliza


material tanto oral como escrito: o corpus oral consiste em
gravações com jovens universitários e alfabetizandos (na tabela
3 apresentados num grupo só, já que não há diferença
significativa entre os dois tipos de informantes), e o corpus
escrito consiste em jornais4,

2
Muitos dos estudos aqui referidos apresentam as percentagens com
uma ou duas decimais, mas preferimos arredondá-las.
3
Os corpora são os seguintes: Padre Antônio Vieira, Sermões;
Documentos da Câmara do Rio de Janeiro no século XVII; Documentos
sobre a Inconfidência Mineira; Bernardo Guimarães, A Escrava Isaura.
4
Jornal do Brasil e O Globo.

267
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

fotonovelas5 e revistas em quadrinhos6. A conclusão é que


também no PB o uso do artigo definitivo aumentou desde o
século XVI, mas muito menos do que em Portugal.

Corpus freqüência relativa de casos com artigo


corpus oral 43%
Jornais 29%
Fotonovelas 35%
Quadrinhos 59%

Tabela 3. Baseada em Silva (1982:311-312): o português


brasileiro atual.

Dado que o PE praticamente generalizou o uso do artigo,


estamos diante de mais um fenômeno sintático que distingue o
PE do PB. Porém, observe-se desde já que parece haver bastante
variação no PB dependendo do corpus analisado: na tabela 3 há
diferenças entre 29-59%, e em outro corpus oral, o corpus do
Projeto NURC,7 o artigo ocorre em 65% dos casos (Neves
1993:175). Adiante veremos que na literatura brasileira moderna
há mais variação ainda.

3. A variação no PB

Como veremos com maiores detalhes na seção 4, há


alguns casos em que a ausência do artigo definido é de
regra, mas na grande maioria dos casos há variação, e a
julgar pelas gramáticas esta variação é livre: a afirmação de
que o artigo pode ser usado ou não encontramos em Said
Ali (1964b:190),

5
Amiga e Sétimo Céu.
6
Mônica, Cebolinha, Vaca Voadora, Pelezinho, Sítio do Pica-Pau
Amarelo e Os Trapalhões.
7
O corpus do Projeto NURC (Projeto de Estudo da Norma Urbana
Lingüística Culta) consiste em gravações realizadas nos anos 70 com
informantes com formação universitária em cinco cidades brasileiras:
Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre.

268
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

Rocha Lima (1980:291), Cunha & Cintra (1991:216), Bechara


(1999:157), Neves (2000:475).

No entanto, Silva (1982), que examinou


detalhadamente a variação entre a presença e a ausência do artigo
nos seus corpora diacrônicos e sincrônicos, chega à conclusão de
que o uso do artigo é fortemente determinado pelo fator
‘especificidade’: o artigo seria empregado com maior freqüência
nos casos em que o possuído é mais ‘específico’. Observe-se que
com este termo a autora não quer “afirmar, em termos absolutos,
que o artigo frente ao possessivo especifica o que equivaleria a
dizer que, sem ele, o possessivo é inespecífico, indefinido, o que
sabemos ser irreal” (Silva 1982:268); o que este termo quer dizer
é que “os [casos] sem artigo são aqueles em que o falante não
necessita destacar elemento(s) do conjunto: a informação ou não
é necessária ou, pelo contrário, já está bem clara” (Silva
1982:271). Verifica-se que em todos os corpora sincrônicos e em
quase todos os diacrônicos “os possuídos ‘específicos’ sempre
favorecem a presença do artigo, enquanto os ‘não específicos’ a
desfavorecem” (Silva 1982:358). O fator ‘especificidade’
também explica o uso muito reduzido do artigo com nomes de
parentesco (p.ex. meu pai, teu irmão), dado que estes nomes já
têm, por sua natureza, uma certa determinação; como já são
determinados, dispensam o artigo. Silva nota também que o
artigo é mais freqüente no singular do que no plural, o que
também seria um efeito do fator ‘especificidade’: “Havíamos
postulado que o plural já trazia em si uma definição intrínseca,
que fizesse com que o artigo especificado se tornasse inútil. O
plural refere-se ao conjunto inteiro. Não necessitando de artigo
para expressar veladamente a idéia de todos, o artigo torna-se
redundante.” (Silva 1982:367). É ainda a especificidade que
explica a total ausência do artigo em apostos: “De fato um aposto
é uma definição, uma especificação e, mais do que o campo
semântico de parentesco, deve ser ‘super determinado’, tornando
o artigo redundante” (Silva 1982:272).

Essa função especificadora do artigo é resumida


da seguinte maneira em outro estudo de Silva (1986:236):

269
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

“Há diferença semântica entre os exemplos ‘seu livro’ e ‘o seu


livro’. O primeiro pode ser parafraseado como ‘um dos seus
livros’ enquanto o segundo tenderá a ser interpretado como ‘esse
seu livro’. O uso do artigo está ligado à questão da
especificidade: quando o falante destaca apenas um dentro de um
conjunto de elementos possuídos, há maior especificidade e o uso
do artigo é maior. [...] Quando, por sua natureza, o possuído já é
claramente específico, o artigo torna-se redundante, como nos
casos de parentesco apontados por Jespersen e De la Grasserie
(apud Krámský, 1972, p. 25) como hiper definidos (meu pai, meu
irmão em oposição a meu professor).”

Observe-se, no entanto, que as ocorrências por Silva


classificadas como específicas nem sempre têm artigo: a
especificidade só favorece o emprego do artigo, não o torna
obrigatório. Se, por exemplo, o corpus oral da tabela 3 for
dividido em dois grupos – ocorrências específicas e não
específicas – verifica-se que o artigo ocorre em 49% dos casos
específicos e em 30% dos casos não específicos, e se juntarmos
os três corpora escritos da tabela 3, as percentagens
correspondentes são 43% e 32%, respectivamente (Silva
1982:298-299). Note-se também que os fatores analisados por
Silva sempre atuam da mesma maneira, no sentido de a
especificidade favorecer o artigo, tanto nos corpora sincrônicos
como nos diacrônicos: “Poderíamos dizer que o sistema de
variáveis não mudou nem quantitativa nem qualitativamente
embora tenha aumentado o número geral de artigos” (Silva
1982:387).

Outro fato a ser notado é que a escolha entre usar


e não usar o artigo não parece ser uma escolha consciente por
parte dos falantes. Conforme Silva (1982:274) parece que muitas
pessoas nem sequer estão conscientes de que existe uma variação
entre presença e ausência do artigo antes de possessivo, e por
conseguinte não há uma consciência sobre como se ‘deve’ fazer.
Em outras palavras, não há uma pressão social sobre a variação.
Ao mesmo tempo, Silva (1982:385) nota que fatores sociais
podem influir: “Quanto às classes notou-se que tanto os falantes
provenientes de pais mais instruídos quanto os mais instruídos

270
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

eles mesmos mostraram significativo desfavorecimento do


artigo”. Apesar disso, já vimos que a freqüência é bastante alta
(65%) no corpus do Projeto NURC, cujos informantes têm
formação universitária.

Se não há uma consciência sobre o fenômeno em questão


hoje, parece que o mesmo não acontecia no século XIX, o que
observamos em José de Alencar. Mais uma vez encontramos em
Silva (1982) uma observação interessante: no pós-escrito à
segunda edição de Iracema, Alencar defende “certa parcimônia
no emprêgo do artigo definido”, explicando-a como “uma reação
contra o abuso dos escritores portuguêses”8 (Alencar 1953:194).
No entanto, depois de uma análise de um outro romance de
Alencar, Diva, Silva afirma que este autor não parece seguir suas
teorias:

“Em resumo, Alencar defende a ausência do artigo (portanto


consciente), como libertação da língua de Portugal. Bem alto
(325/687 = 47,3%), o overall de Diva não se coaduna com o
sentimento de Alencar sobre o assunto já que ultrapassa os dados
não só do século XIX mas até do século XX. Esse fato confirma
quão inconsciente é o uso dessa regra e quão longínquo pode
estar o uso da atitude.” (Silva 1982:356-358).

A opinião de Silva é, portanto, que a freqüência de


Alencar é alta, já que o emprego do artigo em Diva é mais
freqüente do que nos demais corpora dos séculos XIX e XX, mas
uma análise nossa de romances de escritores portugueses e
brasileiros do século XIX9 indica que a freqüência do uso do
artigo em Diva na verdade não é particularmente alta:

8
Como se vê na tabela 4, os escritores portugueses dessa época usavam
quase sempre o artigo definido antes de possessivo.
9
Os dados das tabelas 4 e 5 são tirados de Schei (em andamento). Os
romances analisados são os seguintes (ano da primeira edição entre
colchetes): Alexandre Herculano, Eurico [1844]; Camilo Castelo
Branco, Amor de perdição [1862]; Eça de Queiroz, O crime do Padre
Amaro [1874]; Joaquim Manuel de Macedo, A Moreninha [1844];
Manuel Antônio de Almeida, Memórias de um sargento de milícias
[1854-1855]; José de Alencar, Lucíola [1862]; Bernardo Guimarães, O
garimpeiro [1872]; Visconde de Taunay, Inocência [1872]; Machado
de Assis, Dom Casmurro [1899]. Os diálogos não foram incluídos na
análise.

271
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

autor com artigo


Herculano 94%
Camilo 87%
Eça 99%

Tabela 4. Romances portugueses do século XIX.

Autor com artigo


Macedo 33%
Almeida 63%
Alencar 69%
Bernardo 22%
Taunay 73%
Machado 96%

Tabela 5. Romances brasileiros do século XIX.

Em relação aos três escritores portugueses, Alencar de


fato usa menos o artigo definido, como ele mesmo diz. Se, por
outro lado, compararmos Alencar com os demais escritores
brasileiros, notamos que esse tem mais ou menos a mesma
freqüência encontrada em Almeida e Taunay, ou seja, não usa o
artigo mais do que esses outros autores brasileiros. Vemos
também que ele o usa menos do que Machado, que por sua vez
emprega o artigo com a mesma freqüência dos escritores
portugueses. Ao mesmo tempo verifica-se que Macedo e
Bernardo usam o artigo com menor freqüência do que os demais,
inclusive Alencar. Uma explicação disso poderia ser que Macedo
e Bernardo usam um modelo mais brasileiro, enquanto Machado,
que atuava no final do século quando o purismo preconizava um
modelo lusitano para a língua literária, está usando, de propósito,
o modelo português. Se

272
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

as freqüências baixas de Macedo e Bernardo são típicas do PB,


Alencar também estaria se aproximando do modelo lusitano,
embora talvez não de maneira consciente.

Uma outra explicação, contudo, seria que Alencar


não está seguindo o modelo lusitano, mas um modelo brasileiro,
porém, não o modelo de Macedo e Bernardo; o modelo desses
dois escritores seria um modelo brasileiro mais antigo, caindo em
desuso durante o século XIX, porque o uso do artigo de fato teria
aumentado no PB durante este século. Em outras palavras, uma
hipótese seria que Macedo e Bernardo ainda estariam usando um
modelo brasileiro mais antigo, com poucos casos de artigo
definido, enquanto os demais (com exceção de Machado)
também estariam usando um modelo brasileiro, mas um modelo
mais moderno que teria evoluído durante o século XIX. Como
veremos na seção 4, também em um dos corpora do Projeto para
a História do Português Brasileiro, cartas de leitores, o artigo é
usado em cerca de 60% dos casos no século XIX.

Um indício de que o uso do artigo de fato


aumentou no PB durante o século XIX poderia ser o fato de
Mário de Andrade usar o artigo com certa freqüência: se
analisarmos o romance Amar, verbo intransitivo, de 1927,
verifica-se que nesse livro o artigo é empregado em 74% dos
casos. Ora, se o artigo fosse muito menos comum no PB falado
espontâneo, parece-nos provável que a freqüência em Amar,
verbo intransitivo tivesse sido mais baixa, ou porque Mário,
consciente de que isso era brasileiro e não lusitano, de propósito
teria evitado o artigo, ou porque ele, não consciente da variação,
espontaneamente usaria o seu próprio modelo brasileiro, também
usando pouco o artigo.

Para tentarmos detectar com que freqüência o


artigo é usado na língua literária de hoje, examinamos seis
romances10 do fim do século XX, e encontramos uma imagem
heterogênea:

10
Estes seis romances são (ano da primeira edição entre colchetes):
Rachel de Queiroz, Dôra, Doralina [1975]; Moacyr Scliar, Os
voluntários [1979]; Rubem Fonseca, Vastas emoções e pensamentos
imperfeitos [1988]; Lya Luft, Exílio [1988]; Josué Montello, Enquanto
o tempo não passa [1996]; Autran Dourado, Confissões de Narciso
[1997]. Só foram analisadas as primeiras 100 páginas em cada livro, e
os diálogos não foram analisados.

273
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

Autor com artigo


Queiroz 88%
Scliar 22%
Fonseca 36%
Luft 35%
Montello 48%
Dourado 80%

Tabela 6. Romances brasileiros do século XX.

Enquanto nos corpora de Silva (1982) da tabela 3 a


freqüência do artigo varia entre 29-59%, nas obras literárias da
tabela 6 há uma variação maior ainda: 22-88%. O que estes dados
nos dizem? Que cada escritor/a tem um modelo próprio dele/dela
(gosto pessoal)? Aliás, isso é consciente ou não? Em Schei
(2003) analisamos os romances da tabela 6 no que diz respeito à
colocação pronominal, e constatamos que a colocação dos
pronomes átonos varia bastante entre os seis escritores: Queiroz
e Dourado usam muito a próclise e se aproximam, assim, do PB
falado, enquanto Montello se destaca dos demais por usar uma
colocação mais em conformidade com as normas da gramática
tradicional, normas essas baseadas na colocação européia.
Fonseca, Scliar e Luft se encontram entre os dois extremos. É
sabido que o PB difere do PE no que diz respeito à colocação
pronominal, e pode-se supor que os escritores brasileiros estejam
conscientes de se o modelo que usam é mais português ou mais
brasileiro. Se também o artigo frente a possessivo fosse
considerado um fenômeno tipicamente português, seria de
esperar que Montello fosse quem mais se aproximasse do modelo
europeu, com freqüências altas do artigo, enquanto Queiroz e
Dourado evitariam o artigo, já que isso seria mais brasileiro. No
entanto, não é isso que se observa: Queiroz e Dourado, que usam
a colocação pronominal mais tipicamente brasileira, são os que
com maior freqüência empregam o artigo definido antes de
possessivo.

274
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

Ou a variação seria devida a diferenças regionais?


Conforme Lucchesi (1993:91) o artigo é mais comum no sul do
país: “In Portugal and the south of Brazil, the definite article and
the possessive normally co-occur, whereas in northern and
northeast Brazil the article is normally absent.” No entanto,
Queiroz, com a freqüência mais alta, é do Nordeste, enquanto
Scliar e Luft, com freqüências muito baixas, são do Rio Grande
do Sul. Além disso, no corpus do Projeto NURC, analisado em
Neves (1993), verifica-se que as diferenças entre as cinco cidades
estudadas são mínimas: Recife 66%, Salvador 64%, Rio de
Janeiro 68%, São Paulo 65% e Porto Alegre 64%.

Em suma, não ficou claro como têm sido a evolução


diacrônica até os nossos dias no PB, e qual é, exatamente, a
situação atual. Houve um aumento na freqüência do uso do artigo
desde o século XVI até o PB de hoje, mas é difícil dizer como
isso ocorreu em maiores detalhes. Conforme Silva (1986:234) o
aumento foi relativamente modesto, indo de uns 30% no século
XVI até 40% hoje (em média) mas, dadas as freqüências altas no
nosso corpus literário do século XIX e no material analisado na
seção 4, sugerimos que o aumento tenha sido mais forte neste
século. De qualquer forma, é evidente que há bastante diferença
dependendo do corpus analisado; os dados apresentados nesta
seção mostram que na língua literária o uso do artigo varia
bastante de escritor para escritor, tanto no século XIX como no
final do século XX, e os dados sincrônicos apresentados na seção
2 indicam que a freqüência varia também entre outros gêneros de
língua escrita, assim como entre diferentes corpora falados.

4. O artigo definido antes de possessivo em


cartas e anúncios de jornais do século XIX

Vejamos, por fim, o artigo definido antes de


possessivo no corpus do Projeto para a História do
Português Brasileiro; faremos uma breve descrição de
anúncios e cartas de leitores em jornais dos seguintes
estados: Pernambuco, Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro,
São Paulo e Paraná. Também há anúncios de Santa
Catarina.

275
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

Como já foi dito, há alguns casos em que não se usa o


artigo, e esses serão examinados à parte. Se consultarmos
algumas gramáticas da língua portuguesa, encontramos listas um
pouco diferentes sobre quais são esses casos, mas tanto Cunha &
Cintra (1991:217) como Neves (2000:425-426) mencionam os
seguintes:

✓ em fórmulas de tratamento ou expressões como Sua Excelência,


Nossa Senhora
✓ quando faz parte de um vocativo: Meu filho!
✓ em certas expressões feitas, p.ex. em minha opinião, em seu
poder
✓ quando vem precedido de um demonstrativo: esse teu silêncio

Outras gramáticas mencionam também os seguintes


casos:

✓ nomes de parentesco (Said Ali 1964b:190; Cuesta & Luz


1980:465)
✓ a palavra casa (Cuesta & Luz 1980:466)
✓ no sentido de ‘alguns’: “Os Lusíadas têm suas dificuldades de
interpretação” (Bechara 1999:157)
✓ “na expressão de um ato usual, que se pratica com freqüência
[...]: ‘Às oito toma seu café’” (Bechara 1999:157)

Com exceção do último caso de Bechara, ‘um ato usual’,


examinamos as ocorrências desses tipos nos nossos corpora, e
podemos constatar que, de fato, o artigo é raro nesses casos.
Como acima vimos, Silva (1982) constata que com os apostos
também não se usa o artigo, e o mesmo se verifica no nosso
material. Vejamos alguns exemplos.

expressão:

(1) Lendo a Gazeta da Bahia Número 40, encontrei n’ella hum


avizo feito por Manoe l | Ferreira Oliveira Guimarães á meo
respei- | to, em que em suma diz, que ninguem fa- | ça
commigo negocio, nem tranzação | alguma com huma

276
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

(2) Letra passada por | Lourenço Luiz Pereira de Souza da


quan- | tia de 245$, a vencer-se á quatro me- | zes;
(BA/Salvador, Gazeta da Bahia, 26 de maio de 1830, carta de
leitor)

a palavra casa:

(2) e quando a musica veio á frente de sua casa, | elle deo os vivas
ao memoravel dia 7 de setembro,
(MG/Ouro Preto, Correio Official de Minas, 7 de outubro de
1858, carta de leitor)

nome de parentesco:

(3) Nos meus negocios todos andei a quatro pés; fui mais | feliz
do que uma besta, segundo diz minha mulher.
(SP/São Paulo, Correio Paulistano, 1 de janeiro de 1865, carta
de leitor)

A análise a seguir não incluirá os casos acima


mencionados, mas só aqueles em que a variação é ‘livre’.
Primeiro apresentamos alguns exemplos:

(4) aluguel | Uma casa em Olinda para qualquer Senhor


Estudante, que nella quiser morar para estudar, a qual o seo
proprietario aluga-a por menos de seu valor toda a vez que se lhe
dê adiantado um, ou dous annos de seu aluguel.
(PE/Recife, A Quotidiana Fidedigna, 7 de fevereiro de 1835,
anúncio)

(5) QUERENDO o Doutor Herman Blume|nau e Fernando


Haweradt dissol|[v]er a sociedade que existio até agora | entre os
mesmos com estabelecimento | rural no Rio Itajahy, e proceder a
li|quidação final de suas contas, rogão | a seus credores nesta
cidade de entre|gar as suas contas,

277
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

fechadas, na casa do | Senhor Verico Haeberle, com loja de


fa|zendas na rua do Principe número 30; | assim como aos seus
devedores de sa|tisfazeremos seus debitos na mesma casa,
(SC/Florianópolis, O Novo Iris, 12 de novembro de 1850,
anúncio)

Vejamos primeiro as cartas de leitores. Se observarmos


primeiro tabela 7, em que apresentamos separadamente os
estados analisados, vemos que a variante com artigo é a mais
comum em todos menos o Paraná e que, com exceção do Paraná,
há pouca variação: 59-66%.

Estado total com artigo sem artigo


Pernambuco 167 98 (59%) 69 (41%)
Bahia 323 193 (60%) 130 (40%)
Minas Gerais 99 61 (62%) 38 (38%)
Rio de Janeiro 138 91 (66%) 47 (34%)
São Paulo 222 139 (63%) 83 (37%)
Paraná 114 39 (34%) 75 (66%)
Total 1063 621 (58%) 442 (42%)

Tabela 7. Século XIX, jornais, cartas de leitores.

Dividindo o material em dois períodos, primeira e


segunda metade do século, obtemos tabela 8, em que
apresentamos apenas a freqüência relativa dos casos com artigo.

Estado 1ª metade 2ª metade


Pernambuco 62% (43/69) 56% (55/98)
Bahia 60% (62/103) 60% (131/220)
Minas Gerais 76% (28/37) 53% (33/62)
Rio de Janeiro 58% (42/72) 74% (49/66)
São Paulo 49% (21/43) 66% (118/179)
Paraná 25% (18/73) 51% (21/41)
Total 54% 61%
(214/397) (407/666)

Tabela 8. Século XIX, jornais, cartas de leitores: freqüência com artigo,


1ª e 2ª metade do século.

Verifica-se que em alguns estados a freqüência da forma com


artigo é mais baixa na segunda metade do século do que na primeira,
enquanto em outros estados é mais alta. A média geral indica um
aumento modesto da primeira metade do século para a segunda. Nesta
tabela verifica-se também que é só na primeira metade que a freqüência
do uso do artigo é muito mais baixa no Paraná do que nos demais estados;
na segunda metade não há diferenças grandes entre o Paraná e os demais.

278
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

Estado 1ª metade 2ª metade


Pernambuco 73% (8/11) 50% (3/3)
Bahia 26% (7/27) 49% (72/147)
Minas Gerais 41% (7/17) 29% (18/63)
Rio de Janeiro 64% (9/14) 62% (31/50)
São Paulo 29% (18/62) 46% (65/142)
Paraná - 44% (18/41)
Santa Catarina - 53% (31/58)
Total 37% (49/131) 47%(238/504)

Tabela 9. Século XIX, jornais, anúncios: freqüência com artigo,


1ª e 2ª metade do século.

Se passarmos aos anúncios, vemos na tabela 9 que,


quanto à média geral, o artigo é menos freqüente do que nas
cartas de leitores. Verifica-se também que há diferenças entre os
estados, mas é difícil tirar conclusões, dado que o número de
ocorrências é muito baixo em alguns casos. Convém notar que o
uso do artigo poderia ter sido afetado pelo fato de os anúncios às
vezes usarem formas mais o menos fixas que se repetem
freqüentemente (p.ex. tratar do seu ajuste, levar/entregar a seu
senhor), ou seja, a língua dos anúncios talvez seja mais regida
por fórmulas feitas do que a língua das cartas. Verifica-se de
novo um ligeiro aumento na segunda metade do século em
relação à primeira.

Em resumo, essa breve descrição do corpus do Projeto


para a História do Português Brasileiro indica que o uso do artigo
antes

279
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

de pronome aumentou um pouco durante o século XIX. No


entanto, para melhor entendermos a evolução diacrônica do
fenômeno em questão é necessário analisar mais
aprofundadamente o material, assim como outros corpora. Essa
análise poderá se basear no modelo de Silva (1982), em que a
autora estuda a influência de variáveis como ‘especificidade’,
número, parentesco, e outras.

5. Palavras finais
Resumindo, enquanto o PE praticamente
generalizou o uso do artigo definido antes de possessivo, no PB
o artigo é usado com menos freqüência, apesar de seu emprego
ter aumentado também nesta variante da língua portuguesa desde
o século XVI. No entanto, não ficou claro como se deu a
mudança no PB; o que é o ‘normal’ hoje em dia, e como
chegamos até aqui? Precisa-se de mais estudos para melhor
podermos detectar como tem sido a evolução diacrônica, e
também quais são as diferenças regionais dentro do Brasil.

Bibliografia
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BECHARA, Evanildo (1999). Moderna gramática portuguesa, 37ª ed., revista
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Ataliba Teixeira de, Gramática do português falado, vol III. Campinas: Editora
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Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007

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SILVA, Giselle Machline de Oliveira e (1986). “Artigo frente a possessivos e
nomes próprios”. Projeto subsídios sociolingüísticos do projeto censo à
educação, vol II. Universidade do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, pp.
232-255

281
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

O objeto nulo nas cartas de leitores


publicadas na imprensa brasileira do século
XIX
por
Sonia Maria Lazzarini Cyrino
Universidade Estadual de Campinas/CNPq

Introdução

Muitos estudos já foram realizados sobre o objeto nulo no


português brasileiro. Este trabalho retoma algumas questões
acerca do estatuto teórico para o fenômeno, reafirmando a análise
em Cyrino (1994, 1997) de que se trata de um caso de elipse de
sintagma nominal.

Além disso, o estudo apresenta uma análise das ocorrências


desse fenômeno em textos escritos da imprensa brasileira do
século XIX. São analisados os resultados obtidos a partir de um
corpus constituído de cartas de leitores e cartas de redatores em
jornais de vários estados brasileiros, e uma comparação é feita
com os resultados já encontrados para o corpus de anúncios de
jornais do século XIX (Cyrino, 2002).

Finalmente, considerações concernentes à análise teórica


são retomadas e outras questões são propostas para a
continuidade da investigação.

283
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

1. Retomando o objeto de estudos: o objeto nulo


no PB

Como visto em Cyrino (2002) o objeto nulo no PB tem


sido alvo de alguns estudos recentes, dentre eles minha tese de
doutorado (Cyrino 1994/1997) e outros trabalhos recentes. A
principal constatação diz respeito à natureza do objeto nulo. É
constante o resultado de que o objeto nulo é possível, na maioria
dos casos, com antecedentes inanimados e com antecedentes
sentenciais.

Na teoria gerativa, algumas explicações acerca da


possibilidade do objeto nulo têm sido dadas, através da proposta
de uma categoria vazia pronominal ou de uma variável, tentando
explicar essa assimetria animado/inanimado.

Notando que os objetos nulos no PB são [-animado], ao


contrastar sentenças como (1a-b) com (1c-d), Bianchi e Figueiredo
(1994) propõem a análise bipartida para a categoria vazia, que
poderia ser uma variável ou um pro, dependendo da animacidade
do antecedente:

(1) a. *O Joséi impediu a esposa de matar ___i


b. *O Joséi sabe que a Maria gostaria de conhecer ___i
c. Esse tipo de garrafai impede as crianças de abrirem
___i sozinhas.
d. Esse pratoi exige que o cozinheiro acabe de preparar
___i na mesa.

Como um teste para essa hipótese, as autoras mostram que


o fato de não se poder ter um objeto nulo [+animado] em
sentenças como (2a) poderia estar relacionado ao fato de que
essas estruturas são ilhas (2b):

(2) a. *O Joséi conheceu a mulher que beijou ___k


b. *Quemk o Joséi conheceu a mulher que beijou ___k?

284
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

As autoras também corretamente predizem que uma


sentença como (3) é agramatical, contrastando com as sentenças
em (2):

(3) a. O Joséi conheceu a mulher que comprou ___k

Porém, as autoras não usam o mesmo teste aplicado em (2),


isto é, não é feito um contraste com a sentença em uma estrutura
de ilha. Se fizermos isso, veremos que também, apesar de termos
um antecedente animado, temos uma sentença agramatical:

(4) *O quek o Joséi conheceu a mulher que comprou ___k?

Portanto, em minha conclusão acerca desses fatos, parece


que é o próprio traço [-animado] que permite objetos nulos em
PB.

Mais recentemente, Barra Ferreira (2000) propõe que o


objeto nulo em PB é um pro sem traços de Caso, e, para dar conta
do traço [-animado] característico do objeto nulo do PB, o autor
estipula que esse pro não admite antecedentes animados em PB.
Tendo em vista sentenças como (5a), ele propõe que esse
pronome nulo pode ser ligado A-barra e assume que o PB
também pode ter uma estrutura de movimento como (5b), já que
também propõe um traço forte no núcleo de Top:

(5) a. Esse livroi, a Maria conhece o cara que escreveu ___i

b. [Top P [ esse livro ]i Top [TP a Maria disse que o


João comprou ti em Paris ]].

Em PB, em sentenças como (5), a posição de objeto seria


ambígua entre um vestígio e um pro sem Caso. O autor considera
que qualquer que seja a natureza da categoria vazia em PB, ainda é
diferente do que ocorre para o PE, porque uma sentença como
(5a) seria agramatical em PE. Para Barra Ferreira, sentenças com
elementos topicalizados em PB seriam obtidas através do

285
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

movimento de um elemento para TopP, mas também poderiam


ter um pro sem Caso na posição de objeto:

(6) a. *O João precisa esse livro

Esse livro, o João precisa.

b. Esse livro, o João precisa pro.

Assim, já que vestígios de movimento seriam impossíveis


em ilhas, uma sentença como (7) somente poderia conter um pro –
não teríamos ambigüidade aqui:

(7) Esse alunoi, eu ainda não consegui um professor que


elogiasse ___i

Barra Ferreira afirma que, já que em PE a topicalização é


sempre o resultado de movimento, sentenças como (7) seriam
impossíveis em PE por causa da estrutura de ilha e a falta de um
objeto nulo do tipo pro.

Contudo, em Raposo e Kato (2000) ((8 a-c)) e Kato (2000)


((8a-b)) encontramos exemplos de sentenças sendo consideradas
gramaticais tanto em PB como em PE:

(8)a. Este livroi, Maria acha que ele decepcionou o


público quando a editora pôs ___i à venda.

b. Este autori, Maria acha que ele decepcionou a


todos que cumprimentaram ___i

c. O teu artigoi, o aluno que tem ___i em casa


devolve ___i ainda hoje.

Com esses exemplos, vemos que não podemos tomar as


sentenças em (5) e compará-las com sentenças de objetos
anafóricos nulos em PB. Se o fizermos, estaremos considerando o
objeto nulo um pro sem Caso; no PE o objeto nulo, uma variável.
Desse modo, a generalização e o contraste entre essas línguas,

286
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

apontados por Barra Ferrreira em sua análise, ficam perdidos, já


que as sentenças em (8) parecem ser gramaticais nas duas línguas.

Por esses problemas, e também por outros já referidos em


Cyrino (2000), não podemos propor que o objeto nulo seja um pro
ou uma variável, porque a evidência empírica contesta as duas
análises.

No entanto, se levarmos em conta a hipótese em Cyrino


(1994, 1997)1 de que o objeto nulo seria semelhante ao processo
de elipse de VP, e a hipótese adicional da Hierarquia da
Referencialidade proposta em Cyrino, Duarte e Kato (2000),
muitos fatos acerca do objeto nulo em PB podem ser explicados.

Abaixo, retomo brevemente essa proposta, primeiramente,


acerca da Hierarquia da Referencialidade e, em seguida, acerca da
proposta do objeto nulo como resultado de um processo
semelhante ao de elipse de VP.

1 Num estudo diacrônico, Cyrino (1994, 1997) mostra que o objeto nulo
no português brasileiro surgiu de uma série de fenômenos.
Primeiramente, é assumida a hipótese de mudança de cliticização no PB
apresentada em Nunes (1993). Essa mudança é proposta para o século
XVII e impossibilitaria a ocorrência de clíticos de 3a pessoa em certas
estruturas, como, por exemplo, início de sentença. Sendo possível dizer a
mesma coisa com o clítico ou sem o clítico em contextos de elipse
sentencial, o falante escolhe a opção "elipse", pois assim evita os
contextos onde a próclise seria impossível para o novo sistema de
cliticização fonológica do PB. Realmente, como Cyrino (1993) já mostra,
o clítico neutro é o primeiro a desaparecer no PB, e essa mudança já
pode ser detectada a partir do século XVIII. No século XIX há um
maior número de objetos nulos com o traço [-animado] e [-específico]
como resultado de uma reanálise por parte da criança. Finalmente no
século XX, os resultados para o objeto nulo são comparáveis aos de
Duarte (1986).

287
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

1.1 O objeto nulo e a Hierarquia da


Referencialidade

De acordo com essa hierarquia, a referencialidade é


altamente relevante para a pronominalização em várias línguas. Os
argumentos [+N,+humano] estão na posição mais alta na
hierarquia, e os não-argumentos, na posição mais baixa. Em
relação a pronomes, o falante (=eu) e o ouvinte (=você), sendo
inerentemente humanos, estão na posição mais alta da hierarquia e
o pronome de 3ª pessoa que se refere a uma proposição (o
“neutro”) estaria na posição mais baixa, com a entidade [-humano]
no meio. Os traços [+/- específico] interagem com todos esses
traços. Assim, para uma língua que tem uma opção interna para
categorias vazias ou preenchidas, um dos fatores que influenciam
nessa escolha é o estatuto referencial do antecedente.

HIERARQUIA DE REFERENCIALIDADE

Não-argumentos proposições

[-humano] [+humano]

3ª p. 2ª p. 1a p.

[-específico] [+específico]

[-referencial]← ------------------------------------------ →[+referencial]

As línguas então variam no spell out dos pronomes: em


algumas, se o pronome é de 3ª pessoa e [-animado] pode ser nulo.
De fato, em Cyrino (1994, 1997), proponho que certos pronomes
poderiam ser o resultado da reconstrução do antecedentes e
seriam elididos em FF porque sua referencialidade seria muito
baixa.

De acordo com essa hierarquia, em PB, quando o


antecedente está em uma posição muito baixa na hierarquia da
referencialidade, isto é, a) se o antecedente é [-animado] e b) se o

288
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

antecedente é [-específico], temos o objeto nulo (Omena, 1978;


Pereira, 1981; Duarte, 1986, entre outros).

Além disso, deveríamos dizer que a hierarquia da


referencialidade funciona de maneira inversa para o pronome ele,
que é usado para antecedentes [+animado], algumas vezes
também para antecedentes [-animado], mas nunca para
antecedentes proposicionais (agradeço a Uli Reich por ter me
apontado esse fato).

Assim, podemos explicar os aparentes problemas


apresentados acerca da assimetria animado/inanimado, como a
seguir (sentenças de Kato, 2000):

(9) a. Este livroi decepcionou o público quando a


editora pôs ___i à venda.

b. *Este autori decepcionou o público quando a editora


apresentou ___i na cerimônia de lançamento.

Se propomos que, tendo o antecedente [-animado],


podemos ter um objeto nulo em PB, o contraste em (9) fica
explicado.

Podemos também observar o mesmo nas sentenças em


(10). Se mudarmos o antecedente para [+animado] a sentença fica
agramatical:

(10) a. João descascou a bananai, mas Pedro não comeu


___i

*João trouxe a Mariai, mas Pedro não beijou ___i

Por outro lado, o objeto nulo com antecedente [+animado]


pode ser possível, se:

a) está em uma estrutura de elipse de VP, como mostrado


no exemplo de Farrell (1990):

289
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(11) a. *O Pedro disse que a Mariai beijou ___i

b. João disse que a Maria não beijou o Pedroi na


festa, mas [o Pedroi disse que ela beijou ___i]

em (11a) temos uma sentença agramatical, devido ao


antecedente ser [+animado, +específico]. Nesse caso, o objeto
nulo não seria a opção privilegiada. Em (11b), contudo, temos
uma estrutura de elipse de VP (de acordo com os requisitos para
elipse de VP em Matos, 1992), e não um objeto nulo.

b) tem um antecedente [-específico]. Nesse caso, a


Hierarquia da Referencialidade estaria em jogo novamente. É o
que temos, por exemplo, em uma das sentenças em Duarte (1986):

(12) A FEBEM é um dos elos dessa corrente que cria


[o menor infrator]i, não é ela o único responsável, o único
elo que cria ___i, e como tal ela não consegue recuperar
___i.

1.2 O estatuto teórico do objeto nulo

Como vimos anteriormente, as análises para o estatuto


sintático do objeto nulo variam; alguns autores propõem uma
categoria vazia de tipo pronominal (pro), enquanto outros sugerem
que uma variável seria uma proposta mais adequada.

Minha proposta para o objeto nulo no PB como resultado


de elipse (e reconstrução em FL) surge devido aos argumentos
históricos (já vistos em Cyrino 1994, 1997, 2000; Cyrino e Reich,
no prelo), mas também devido a fatores internos à sintaxe.

O argumento principal é que o objeto nulo em PB suscita a


mesma ambigüidade de leituras (estrita e imprecisa) que
encontramos nos casos de elipse de VP, que não existem quando
o pronome que retoma o antecedente está presente.

Argumento que alguns pronomes que estão em uma


posição baixa na Hierarquia da Referencialidade, como it (em

290
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

inglês) e o (neutro) em português, podem ser nulos, ou seja,


elididos e, portanto, são reconstrução em FL (porque são
interpretados, mesmo não sendo ouvidos). Um pronome desse
tipo depende de seu antecedente para seu conteúdo – é por isso,
também, que argumento que são casos de reconstrução em FL (cf.
Cyrino 1994, 1997, capítulo 5). Na sentença (13) a seguir,
podemos entender que Maria negou que ela é culpada (leitura
imprecisa), ou que ele, Pedro, é o culpado (leitura estrita):

(13) (houve um acidente provocado por Pedro e Maria)

Pedro disse que ele é culpado, mas Maria negou-o.

Se temos uma elipse, o mesmo ocorre:

(14) Pedro disse que ele é culpado, mas Maria negou ___.

A reconstrução em FL é necessária para dar conta da


interpretação (e concordância) do gênero. O exemplo em (14)
demonstra que não temos aqui um objeto nulo do tipo pro, ou se
temos, deveríamos explicar por que um pro se comporta
exatamente como estruturas elípticas nesse caso. De maneira geral,
um pro precisa ser licenciado e identificado, e é justamente na
formulação desses requisitos que as propostas do objeto nulo
como pro diferem.

O uso do tipo de objeto nulo em (13), chamado por mim


como “elipse proposicional“ sempre foi possível em português
(cf. Cyrino 1994, 1997). Porém, se fosse apenas uma opção, não
esperaríamos mudanças no tempo. De fato, dados atuais do PE
ainda apontam para a presença e ausência desse clítico (cf. Matos,
1985). No PB, no entanto, sabemos de sua queda, substituída pela
elipse. Minha hipótese para o objeto nulo do PB é a reanálise
diacrônica ocorrida, em que estendeu-se a possilidade da elipse
para as estruturas com clíticos cujos antecedentes se assemelham
ao clítico neutro, ou seja [-animado] e [-específico] (cf. nota 1
deste trabalho).

291
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Dessa forma, o objeto nulo do PB é elipse de NP (e não


um simples pro ou variável), o que se pode confirmar pela
existência da ambigüidade de leituras, como por exemplo, em (15):

(15) Ao dormir, João desliga a televisão, mas Maria


liga ___

Nesta sentença a primeira interpretação é a imprecisa, em


que Maria liga a televisão dela mesma. A interpretação estrita, em
que Maria liga a televisão de João, também é possível, mas não é a
preferida.

Essa ambigüidade, no entanto, desaparece quando não


temos o objeto nulo:

(16) Ao dormir, João desliga a televisão, mas Maria a liga.

Neste caso, a intepretação imprecisa desaparece, e temos


somente a interpretação estrita. Se afirmamos que o objeto nulo é
pro não podemos explicar a diferença entre o pronome nulo e o
pronome aberto sem entrar em estipulações que comprometem a
própria formulação de pro, inclusive como categoria vazia para o
sujeito nas línguas de sujeito nulo.

Na próxima seção, analisamos o resultado da pesquisa


acerca da ocorrência do objeto nulo em cartas de leitores em
jornais do século XIX, e, em seguida, retomamos a discussão a
respeito das ocorrências do objeto nulo no PB.

2- Análise de cartas de leitores em jornais do


século XIX

2.1. Metologia

O corpus utilizado para a análise do objeto nulo neste


estudo foi constituído por cartas publicadas em jornais de vários
estados brasileiros, no século XIX, divididos em três fases,

292
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

conforme publicação a sair em Barbosa e Lopes (no prelo), que


reúne a seguinte documentação:

Documentos: Cartas de leitores e de redatores

Estados: Pernambuco, Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro,


São Paulo, Paraná

Periodização: 1a fase – 1808-1840

2a fase – 1841-1870

3a fase – 1871-1900

Este estudo ficou restrito à análise das cartas de leitores por


dois motivos: a) para que pudesse haver uma comparação com os
anúncios de jornal, supostamente enviados por leitores; b) para
que a análise pudesse ser feita sobre um corpus de linguagem
supostamente menos formal do que a linguagem do jornalista
“profissional”.

Uma primeira coleta foi feita pela bolsista Jerusa de Paula


Barrichelo, em que se separavam as sentenças com verbos
transitivos e se analisava a ocorrência do complemento. No
entanto, para a análise deste estudo e sua comparação com os
resultados em Cyrino (2002), considerei somente os casos de
complementos de verbos em que se retomasse algo dito
anteriormente, ou presente de alguma forma no contexto das
cartas.

Os fatores a serem identificados foram baseados naqueles


já utilizados no estudo acerca dos anúncios de jornal, a fim de que
uma visão mais uniforme fosse possível entre os dois estudos.
Portanto, os fatores usados para a quantificação dos objetos nulos
neste corpus são os seguintes:

293
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

A) preenchimento

sim

(17) A divisão, que eu tenho a honra de commandar he o


exemplo de subordinação e disciplina; os soldados que a
compõe são vossos irmãos...” (carta de leitor, Bahia, fase 1)

não

(18) “Estou certo que esta commissão não examinou o


caminho como devia examinar, apenas chegou á fazenda do
dito Victoriano, e do terreiro olharam para o logar por onde
devia passar o caminho, e deram ___ por examinado.”
(carta de leitor, São Paulo, fase 2)

B) flexão verbal

verbo flexionado simples

(19) “E sobre a lousa fria que o encerra tambem deposito


os protestos da minha eterna e sincera saudade” (carta de
leitor, Bahia, fase 3)

subjuntivo

(20) “Vossos filhos vos pedem não os esqueçais em suas


orações e que os abençois todos os dias, ...”(carta de leitor,
São Paulo, fase 2)

(AUX + infinitivo)

(21) “Esperando tirar algumas inducçoens de sua historia,


util, segundo creio, eu vou percorrer ___ rapidamente para
ao depois passar á outras consderaçoens.” (carta de leitor,
Bahia, fase 1)

infinitivo (preposição + infinitivo)

294
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(22) “Os estados podem legislar sobre leis federaes não


para mutilal-as, mas sim para solidifical-as ainda mais”
(carta de leitor, Bahia, fase 3)

infinitivo (verbo flexionado + infinitivo)

(23) “Se contra toda a esperança houver algum individuo da


divisão, que esquecendo se dos seus deveres, commetta
algum ultrage, eu saberei castigal-o com todo rigor das leis.”
(carta de leitor, Bahia, fase 1)

querer/pretender/desejar, etc. + infinitivo)

(24) “Não intento tecer elogios ao Senhor Rego e


Alguquerque, pois que he elle bem conhecido em
Pernambuco, seu paiz natal; e menos pretendo apresental-o
ao Publico... (carta de leitor, Pernambuco, fase 2)

gerúndio

(25) “Os nossos commerciantes apenas o que fazem é


melhorar o genero, fazendo diversas misturas, e porisso,
variando-o, tudo em beneficio do povo.” (carta de leitor,
São Paulo, fase 2)

infinitivo

(26) “...como os labios das feridas contuzas se entumecem


sempre mais ou menos, é preciso, reunindo-os, não apertar
muito um contra o outro, fazel-o de sorte que os meios de
reunião possão prestar-se ao entumecimento que deve
sobrevir.” (carta de leitor, Rio de Janeiro, fase 2)

outros

(27) “Tenham pois as quintadeiras muita cautella com as


suas aves; sobre tudo não as deixem passeiar em dias
ventosos.” (carta de leitor, São Paulo, fase 2)

295
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

C) animacidade do antecedente

animado

(28) “Vejamos agora qual tem sido a conducta do Senhor


Olanda depois que entrou para o Ministerio. A Aurora o
elogia por ter mandado publicar todos os Actos do seo
governo; ...” (carta de leitor, Pernambuco, fase 1)

não-animado

(29) “... este Soneto he extrahido fielmente das Obras


Poeticas, que este Senhor mandou imprimir em Lisboa em
1806, he extrahido dessa famosa Obra, que tanto honra ao
insigne Poeta que o compôz, ...” (carta de leitor, Minas
Gerais, fase 1)

D) especificidade do antecedente

específico

(30) “Os informantes do Excelentíssimo. Senhor Doutor chefe


de policia não lhe disseram a verdade quando o induziram a
crer que Bento de Paula Dias, recebera voz de prisão e
refugiara-se depois em minha casa.” (carta de leitor, Paraná,
fase 3)

não-específico

(31) “...tem ella feito beneficios, sem que os tivesse


comprado; tem os feito gratuitamente, para supprir as
necessidades da vida; porque céga desde que nasceo não
póde trabalhar.” (carta de leitor, Rio de Janeiro, fase 2)

E) tipo de preenchimento

clítico

296
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(32) “Como póde essa censura diminuir o conceito de que é


digno um funccionario publico tão zeloso no cumprimento
de seos deveres, no entender d’aquelles que não o
conhecem” (carta de leitor, Minas Gerais, fase 2)

pronome reto

(33) “Tenho viso varias correspondencias desta villa, e


tenho lido ellas afim de ver se deparo em algumas dellas a
noticia de um grande pagode que houve há dias na fazenda
do senhor Victoriano José Lemes, ...” (carta de leitor, São
Paulo, fase 2)

pro-forma FAZER + clítico acusativo

(34) “Sou forçado a escrever estas linhas, e ainda o faço


debaixo de pensamentos...” (carta de leitor, Rio de Janeiro,
fase 3)

clítico acusativo “o” neutro

(35) “Homens ha que, não tendo importancia, proamam


tel-a, fazendo bulha; - assim o disse V. Ex. na resposta que parece
ser sua, com quanto nas a tivesse assignado...” (carta de leitor, Rio
de Janeiro, fase 2)

F) tipo de não-preenchimento

ausência de clítico acusativo “o” neutro

(36) “... mas assevero (porque ___ vi), que offerecião


bordas regulares, ...” (carta de leitor, Rio de Janeiro, fase 2)

ausência de outro clítico acusativo de 3ª pessoa

(37) “1o Quem foi que pedio a Vossa Senhoria para assignar
como testemunha a dita declaração, e onde; 2o Se Vossa
Senhoria estava presente quando o mesmo Damaso assignou

297
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

___, e, se ahi se achava Aniceto de Paulo;...” (carta de leitor,


Paraná, fase 3)

ausência de pro-forma FAZER + clítico acusativo

(38) “Ora, meu pedaço d’asno, nenhuma auctoridade,


quando lavra uma ordem, tem obrigação de dizer o motivo
por que ___ faz: ella não está argumentando, meu caro; se
há abuso, a auctoridade superior corrige” (carta de leitor,
São Paulo, fase 2)

objeto nulo em oração coordenada com clítico na outra


oração

(39) “Com mais intelligencia, e prudencia, não podia ser


comprehendida, e desempenhada a difficil tarefa de
administrar ___ e encaminhal-a em seus negocios,
approximando-a de seo risonho futuro, do que tem feito o
excelentíssimo. Conselheiro Zacarias de Goes e Vasconcellos.
(carta de leitor, Paraná, fase 2)

O estado do Paraná, por ser um “estado novo” (cf. Cyrino,


Barrichello & de Paula, 2002) somente apresenta dados para as
fases 2 e 3. Os outros estados apresentam dados de todas as fases;
porém, tivemos somente um dado da fase 2 do estado de Minas
Gerais.

2.2- Resultados

Os resultados mostraram a ocorrência de objetos nulos em


todas as regiões, mas com predominância em São Paulo, da
mesma forma como ocorreu nos anúncios de jornal:

298
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Tabela 1. Objeto nulo vs. preenchimento em todas as


regiões

Estado Objeto nulo Preenchimento TOTAL


N. % N. % N. %
BA 12 8 132 92 144 100
MG 6 17 29 83 35 100
PE 6 11 48 89 54 100
RJ 9 10 85 90 94 100
SP 24 28 62 72 86 100
PR 10 20 39 80 49 100
TOTAL 67 15 395 85 462 100

Porém, diferentemente do que ocorre nos anúncios de


jornal, o estado da Bahia aparece com menor porcentagem de
objetos nulos. Nos anúncios de jornal, Minas Gerais tinha a
menor ocorrência, o que foi justificado pelo fato da grande
quantidade de anúncios de escravos foragidos, sendo que os
outros estados apresentavam outros tipos de anúncio onde se
pôde detectar de forma mais abrangente a ocorrência do objeto
nulo..

Quando analisamos a ocorrência dos objetos nulos de


acordo com as fases do século XIX, não percebemos a diferença
ao juntar todos os estados:

Tabela 2. Objetos nulos vs. preenchidos nas diversas fases


do século XIX

FASE 1 FASE 2 FASE 3


N % N % N %
Nulo 14 13 31 14 22 16
Preenchido 94 87 182 86 119 84
TOTAIS 108 100 213 100 141 100

Em todas as fases, embora haja um aumento, a


porcentagem é praticamente a mesma: 13%, 14%, 16%.

299
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Porém, se detalharmos a Tabela 1, acima, começaremos a


perceber uma diferença:

Tabela 3. Objeto nulo vs. preenchimento em todas as


regiões, por fases

Estado Objeto nulo Preenchimento TOTAL


N. % N. % N. %
BA fase 1 3 6 44 94 47 100
BA fase 2 3 8 33 92 36 100
BA fase 3 6 9 55 91 61 100
MG fase 1 0 0 1 100 1 100
MG fase 2 3 13 20 87 23 100
MG fase 3 3 27 8 73 11 100
PE fase 1 2 28 5 72 7 100
PE fase 2 2 5 34 95 36 100
PE fase 3 2 18 9 82 11 100
RJ fase 1 5 13 33 87 38 100
RJ fase 2 2 5 38 95 40 100
RJ fase 3 2 12 14 88 16 100
SP fase 1 4 26 11 74 15 100
SP fase 2 18 33 35 67 53 100
SP fase 3 2 11 16 89 18 100
PR fase 2 3 12 22 88 25 100
PR fase 3 7 29 17 71 24 100
TOTAL 67 15 395 85 462 100

Observamos que São Paulo, fase 2; Paraná, fase 2;


Pernambuco, fase 1; Minas, fase 3 e São Paulo, fase 1 apresentam
as maiores porcentagens de objeto nulo, acima de 20%. Porém
não se nota um aumento gradativo em todos os estados, embora
isso aconteça para Bahia, Minas e Paraná. São Paulo, por exemplo,
apresenta uma diminuição de objetos nulos na fase 3, enquanto
mantém um patamar mais alto para as outras fases. A explicação
para o fato deve-se ao tipo de assunto, pelo qual se pode
hipotetizar acerca do tipo de escritor dessas cartas. Em algumas
cartas de alguns estados, podemos perceber que o escritor é culto,
politizado, e tem domínio da língua escrita.

Exemplos:

300
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

1) Bahia, fase 1

(40) “Permittindo a liberdade da imprensa, fructo precioso


do seculo XIX, que cada um possa dar livre curso aos seos
pensamentos, conceda-me que lhe communique os que
occupam o meo espirito, à respeito de um objecto, que ha
longo tempo des- | perta dolorosamente a attenção publica,
persuadido, como estou, de que Vossa Senhoria se dignarà
dar-lhe um lugar nas columnas da sua util e interessante
folha: | he da Cholera morbus, que vou tratar.”

O autor discorre acerca da doença desde suas origens,


fazendo reflexões a respeito do tratamento a ser dado. Assina com
iniciais, mas podemos entender tratar-se de um médico.

2) Pernambuco, fase 2

(41) “Tendo no dia 5 de dezembro do anno


proximopassado, servido de examinador das alumnas do
collegio de Nossa Senhora da Divina providencia, situado
no aterro da Boa Vista n.8, e derigido pela Excelentíssima
Senhora Dona Candida rosa Mc. Dermol da Costa, não posso
deixar de levar ao conhecimento do publico, o elevado gráo
de aproveitamento, que mostraram as alumnas do mesmo
collegio nas materias, que alli se ensinam, e que são: leitura,
escripta, grammatica portugueza, arithmetica, geographia e
francez, ao que optimamente responderam. Deixando
inteiramente satisfeitos, não só a mim, como aos demais
senhores examinadores.”

O autor, sendo examinador, tem domínio da linguagem


mais formal, que emprega em sua carta.

3) Rio de Janeiro, fase 2

(42) “Rogo-lhes o favor de inserirem no seu interessante e


muito lido Jornal a resposta oral que, na sessão da I.A. de
Medicina, de 26 de Outubro do corrente anno, dei aos
escriptos dos Srs. Drs. T. da Costa e Saboia, lidos na

301
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

mesma sessão, acerca do proce- dimento do cirurgião em


um caso de ferida consideravelmente contusa, e do curativo
das feridas contuzas.”

O autor é um médico, portanto, culto, e escreve uma longa


carta explicando os procedimentos que um cirurgião deve seguir
ao tratar de feridas.

Por outro lado, se observarmos os dados que estão sendo


coletados para este V seminário, cartas familiares, podemos
perceber o tom mais informal. Citamos alguns exemplos extraídos
do corpus que está sendo coletado no Paraná (exemplos com
ocorrências objetos nulos e preenchimento por pronome lexical),
“Cartas ao sr. Loureiro escritas por familiares e amigos”:

(43) A Violeta morreu no dia 23 de Agosto deu uma


molestia tão forte que não houve nada que __ fizesse sarar.

(44) ...chega lá no escriptorio e diz titio (chama titio ao


Manoel,) puxa elle e manda abrir a burra para dar dinheiro
a ella,

(45) assim que elle ___ dâ ella quer ir logo comprar doce
em casa do Assis Teixeira.

(46) mandei 100:000 em moeda fraca por entremedio do


Senhor Valle para Vocemece | __ entregar amamai quando
Vocemece estever para vir |

(47) temos feito tudo que podemos pela familia e havemos


de ___ fazer;

(48) Quanto ao pagamento da compra já ___ tinha pago –


os Torres vao pagar ___ este mez

(49) Agora lhe pesso para me mandar um sobretudo feito


em Lisbôa, de uma fazenda pelluda ondiada de quadrinhos,
e mandar ___ por algum conhecido ou quando vierem.

302
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(50) No domingo passado houve baile no Clube o Dr.


Doria quiz entrar, mas a directoria não ___ consentiu em
virtude de outro baile enterior elle se portar mal;

Em relação ao tipo de flexão verbal, obtivemos o seguinte


resultado:

Tabela 4. Objeto nulo vs. preenchimento e flexão verbal

Objeto Preenchimento TOTAL


Flexão verbal nulo
N. % N. % N. %
Infinitivo (P+ INF) 7 8 84 92 91 100
Subjuntivo 13 30 30 70 43 100
v. flexionado 35 18 158 82 193 100
Infinitivo (compl. de V) 0 - 1 100 1 100
Querer,etc + INF 3 9 32 91 35 100
AUX + INF 1 25 3 75 4 100
Gerúndio 0 - 19 100 19 100
Infinitivo 3 9 29 91 32 100
Outros 5 11 39 89 44 100
TOTAL 67 15 395 85 462 100

Da mesma forma como ocorreu nos dados de anúncio de


jornal, a ocorrência do objeto nulo se dá com verbos flexionados,
mas também nos casos em que é complemento de verbos com o
traço [-T] (infinitivos, gerúndio e subjuntivo). Porém, como
podemos ver na Tabela 5, a ocorrência do objeto nulo independe
do traço [T]:

Tabela 5. Ocorrência de objetos nulos vs. preenchimento


quanto ao traço [T]

Flexão Objeto nulo Preenchimento TOTAL


verbal N. % N. % N. %
[-T] 27 12 198 88 225 100
[+T] 40 17 197 83 237 100

Novamente, esse resultado está de acordo com os


resultados de Duarte (1986: 22), que mostra que o objeto nulo

303
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

ocorre independentemente da forma em que se encontra o verbo.


Já distribuição das realizações não nulas de objeto direto exibem
diferenças:

tempo simples, 76%;

tempo composto, 90%;

infinitivo, 71,4%;

locução verbal com infinitivo, 75,1%;

gerúndio, 50%.

Os resultados de Duarte (1986) são semelhantes aos deste


trabalho quanto à distribuição do objeto nulo, mas, obviamente,
em termos de quantificação, o objeto nulo no século XIX, em
cartas de leitores assim como em anúncios de jornal, ainda não se
compara ao objeto nulo do século XX, que é de linguagem oral.

Em relação à animacidade, o objeto nulo encontrado nesses


dados segue a tendência já citada acima: é predominantemente
inanimado - resultado esse que não foi obtido no corpus dos
anúncios de jornal. Conforme analisado em Cyrino (2002),
observamos que a maioria de objetos nulos (93%) estava em um
anúncio de escravo foragido, e, portanto, tinha um antecedente
[+animado], o escravo. Também foi observado que, quando os
antecedentes eram humanos, mas não escravos, não se encontrou
nenhum exemplo de objeto nulo, porém sempre o
preenchimento.

A Tabela 6, a seguir, mostra o resultado para as cartas de


leitores:

304
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Tabela 6. Objeto nulo vs. preenchimento quanto ao traço


[animacidade]
Animacidade Objeto nulo Preenchimento TOTAL
N. % N. % N. %
[+a] 7 4 162 96 169 100
[-a] 60 20 233 80 293 100

Com esses totais, podemos também observar que, do total


de 67 objetos nulos, 60 (90%) são [-animado], enquanto dos 395
preenchimentos, temos 233 (59%) com o mesmo traço.

Enquanto esse corpus confirmou o que sempre se soube a


respeito da animacidade de objetos nulos, não apresentou muitos
resultados em relação à especificidade, já que a quase totalidade de
dados apresentava antecedentes específicos.

No entanto, os dados trouxeram alguns resultados acerca


do tipo de objeto nulo, que valem a pena observar. A Tabela 7
apresenta esse resultado:

Tabela 7. Tipos de objetos nulos


TIPO DE OBJETO NULO N %
Ausência do “o”neutro 24 35
Ausência de outro clítico 38 57
Ausência de “fazer + o” 3 5
Objeto nulo em coordenada 2 3
Total 67 100

Observamos que já no século XIX, nesse corpus, a


ocorrência do objeto nulo é maior do que a ocorrência da elipse
proposicional, embora esta também apresente uma porcentagem
considerável (38% vs. 24 %). Por outro lado, ao contrário do que
ocorre nos dados de anúncios de jornal, há poucas ocorrências de
objetos nulos em coordenadas, embora, quando ocorram, já são
característica do PB (cf. exemplo (39) citado anteriormente).

Mas é também interessante observar o que ocorre quando


comparamos a ocorrência desses tipos de nulos com sua
contraparte preenchida:

305
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Tabela 8. Ocorrência ou ausência de clíticos e pro-forma


Tipo de ocorrência Ausência Presença TOTAL
N. % N. % N. %
Clítico “o” neutro 24 41 35 59 59 100
Outro clítico acusativo 38 10 331 90 369 100
Pro-forma “fazer+o” 3 10 28 90 31 100

Nestes dados, percebemos que, no século XIX, a elipse


proposicional já apresenta uma maior porcentagem na ocorrência
em relação ao clítico neutro “o”. Hoje, como visto em Cyrino
(1994, 1997), esse clítico raramente ocorre na língua escrita e já
não faz mais parte da intuição do falante – tanto é que a coleta
desses dados ofereceu dificuldade à bolsista PIBIC que auxiliou
neste projeto.

Embora a ocorrência do objeto nulo como ausência de


outro clítico diferente do neutro seja bastante elevada em dados
de cartas de leitores de jornal do século XIX (cf. Tabela 7), fica
evidente a variação entre o uso do clítico neutro e da sua elipse
(cf. Tabela 8), também já classificada por mim como objeto nulo.
O presente estudo sobre o século XIX fornece, como se pode ver,
uma evidência considerável de que já estava disponível na língua a
possibilidade de ocorrência de objeto nulo.

Uma questão que retomo, portanto, é a possibilidade da


existência do objeto nulo estar ligada à possibilidade da elipse
“proposicional”, ou seja, à elipse do pronome clítico neutro “o”.
Um ponto ainda a pesquisar é a relação entre essa elipse, o objeto
nulo e a chamada Anáfora do Complemento Nulo.

A Anáfora do Complemento Nulo (ACN) é um fenômeno


que ocorre em algumas línguas como o espanhol, o italiano e o
inglês, e, segundo os autores que a estudaram (Zubizarreta, 1982;
Radford 1977; Bosque 1984, entre outros - apud Depiante 2000;
Brucart 1999), ocorre com alguns verbos, de reestruturação ou
não, sempre deixando elíptica uma oração infinitiva, cujo
conteúdo está presente no contexto anterior, como mostram os
exemplos (Brucart 1999: 2838):

306
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(51) a. Luis fue al acto; María, en cambio, no pudo ___.

b. Le pedí a mi madre ir a la excursión, pero no me dejó


___.

c. La invitaron a visitar la exposición y rehusó ____.

d. Le gusta bailar el charlestón, pero su marido no sabe


___.

e. Empezó a escribir aquella novela, per nunca acabó ___.

Porém, Bosque (1984, apud Brucart, 1999) assinala que, em


espanhol, os predicados que admitem a ACN são os mesmos que
aceitam a elipse de um objeto direto oracional em orações
encaixadas introduzidas por cuando, si, como, donde ou porque
(Brucart 1999: 2839):

a. El chico estudia porque su madre quiere ___. [ ___ =


que estudie] (Bosque, 1984:176).

b. Vendrá si puede ___. [ ___ = venir]

c. No tiene tantos años como parece ____. [ ___ = tener]

d. Iremos donde tú nos digas ____. [ ___ = que vayamos]

e. Iremos cuando a ti te parezca bien ____. [ ___ = que


vayamos]

Assim, em espanhol, em alguns casos, a entidade elidida


não equivale a uma oração infinitiva, mas a uma subordinada com
o verbo flexionado.

Em estudo recente, Cyrino & Matos (2002) ilustram as


diferenças existentes entre elipse de VP e Anáfora do
Complemento nulo em português, em dois aspectos:

307
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

a) a elipse de VP tem verbos idênticos a licenciarem a


lacuna, enquanto esse não é o caso da Anáfora do Complemento
Nulo;

b) a elipse de VP não admite a alternância com um


pronome clítico neutro, enquanto, a Anáfora do Complemento
Nulo aceita o clítico com alguns verbos.

O exemplo em (53) ilustra as duas propriedades:


(53) a. Ainda que queiras ___ 2/ Ainda que o queiras,3
não podes resolver esse problema.
b. Nosso time é superior aos adversários. Sei ___.
/ Eu sei isso.

No entanto, Brucart (1999) afirma que, em espanhol, o


modo mais confiável de se predizer se um predicado seleciona
ACN é vendo se é possível que ele tome a forma nula da pro-
forma (pronome clítico) “lo”. Sua generalização é que um
predicado que seleciona ACN não costuma permitir que seu
objeto proposicional seja representado pelo pronome clítico lo.

Depiante (2000), baseada em Bosque (1984) e Brucart


(1999), mostra que o fenômeno de Anáfora do Complemento
Nulo é selecionado por certos verbos (em espanhol e inglês):
modais (deber, poder, querer, should, could, want to), aspectuais (acabar
de, comezar a, empezar a, soler, terminar de) e verbos que expressam
predisposição, atitude ou propósito (aceptar, aprender a, dudar de,
rehusar, renunciar a, saber, estar, refuse, approve, volunteer). Brucart
(1999) acrescenta verbos causativos que expressem permissão,
colaboração ou influência sobre a atitude de outros (autorizar
ayudar a, dejar, incitar a, invitar a, obligar a, entre outros) e verbos
pronominais (absternese de, decidirse a, enfadarse por, negarse a, olvidarse
de, quejarse de, e outros, cf. Brucart 1999: 2839).

2 PE e PB
3 PE

308
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Em português, não há, que eu saiba, nenhum estudo


detalhado da ocorrência da Anáfora do Complemento Nulo, com
exceção de algumas características apontadas em Matos e Cyrino
(2001) e Cyrino e Matos (2002). Como não temos mais o clítico
neutro “o”, não temos como destacar os casos de ACN, já que
não podem ser comparados com a presença/ausência do clítico.

No entanto, se o objeto nulo também surgiu a partir da


possibilidade da Anáfora do Complemento Nulo em português, é
uma hipótese que ainda está sendo investigada (Cyrino, em
andamento). Nos dados de cartas de leitores de jornais do século
XIX, observamos que o objeto nulo ocorre com verbos que não
são necessariamente verbos de ACN (se considerarmos a
definição para o espanhol). Sem esse estudo preliminar fica difícil
identificar o que seria uma elipse proposicional e o que seria
conseqüência de ACN, se essa estrutura existe para o português,
como podemos ver nos exemplos abaixo, retirados do corpus:

Ouvir

(54) “Ninguém ___ ouvio, nem ousará affirmal-o que Luiz


Fernandes requeresse protesto algum, que para tanto não
chegaria o seo discernimento” (carta de leitor, Bahia, fase 1)

Obter

(55) “Não sejas tôlo... não te mettas a tomar partido,


unicamente com o fim de teres ingresso, para seres
nomeado mordomo do serralho, por que não obtens ___;
esses lugares estão ocupados... e ...” (carta de leitor, Minas
Gerais, fase 3)

Saber

(56) “e destacando logo da minha columna 180 praças,


remetti-as, sob o commando do capitaõ Paulino, ao
sobredito commandante superior, o qual de intelligencia
com o mesmo capitaõ bateo os rebeldes, e os fez fugir
precipitadamente, ficando desde esse dia o arraial da Lagoa

309
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Sancta em poder da legalidade, como ___ sabe todo o


mundo, e nem serà capaz de o negar o proprio senhor
Latalisa, se por accaso naõ for um ente filho da
immaginaçaõ do padre Marinho, assim como o foi a minha
debandada. ” (carta de leitor, Minas Gerais, fase 2)

(57) “Senão ___ sabe, eu lhe conto” (carta de leitor, São


Paulo, fase 2)

(58) “E isto será verdade, Senhor Redactor? Não ___ sei,


mas o povo nomêa esses atravessadores,...” (carta de leitor,
São Paulo, fase 1)

Provar

(59) “... eu vos empraso para isso, mostrai os procesos que


fisemos, os recrutamentos perseguiçoens, as bacchanaes
orgias de vivas e morras, as forças que emballamos ... provai
___, provai ___ se tendes honra, ou se a presaes. (carta de
leitor, Minas Gerais, fase 2)

(60) “... no qual este Senhor possuído de um zelo alias muito


louvável, para acautelar a fortuna de seu próximo, pede que
ninguém faça transacção com uma obrigação firmada pelo
mesmo Verneck em favor de José Perpetuo, morador da
villa da Palmeira; dizendo mais que tal documento está pago
por elle como ___ provará com o mesmo Perpetuo;” (carta
de leitor, Paraná, fase 3)

Contestar

(61) “Senhores Redactores, eu conheço, que o que acabo de


expor não está documentado, masi eu dezafio dos meus
inimigos, para que contestem ___;” (carta de leitor,
Pernambuco, fase 2)

Responder

310
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(62) “... O que são as nossas liberdades individuaes se


audaciosos agentes do poder judiciario pódem impunimente
confundir o vicio e o crime com a innocencia e a virtude?
Respondam ___ aquelles que teem com o mais frio e cruel
indifferentismo assistido impassíveis a marcha d´esse
attentado, em que quer immolar a innocencia.” (carta de
leitor, Pernambuco, fase 3)

Dizer

(63) “O milho e feijão produzem ordinariamente de 80 a


100 por 1, (*) Me disse ___ em Castro um lavrador do
Assunguy –“ (carta de leitor, Paraná, fase 2)

(64) “... é muito atrevimento, é até muita relaxação se quer


que ___ diga: parece que elles não tem commandante pr’a
os reprehender!” (carta de leitor, São Paulo, fase 2)

(65) “Quanto á casa, comadre, ainda não há por aqui vaga;


assim que haja lhe ___ mandarei dizer.” (carta de leitor, São
Paulo, fase 2)

Crer

(66) “Ora, Sr. Redactor, a ser isto verdade (o que ora não
___ creio)” (carta de leitor, Rio de Janeiro, fase 1)

Ver

(67) “mas assevero (porque ___ vi), que offerecião bordas


regulares, ...” (carta do leitor, Rio de Janeiro, fase 2)

Merecer

(68) “A camara dos srs. deputados já o ouviu, e forçoso é


confessar, que se não o applaudiu como ___ mereceu...”
(carta de leitor, Rio de Janeiro, fase 3)

311
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(69) “... quando esse procedimento foi, pela maior parte dos
portuguezes daqui, reprovado como ___ merecia?” (carta
de leitor, São Paulo, fase 2)

Querer

(70) “Aqui fico por ora (se assim __ quiserem) ...” (carta de
leitor, São Paulo, fase 2)

Contar

(71) “Senão sabe eu lhe __ conto” (carta de leitor, São


Paulo, fase 2)

Descrever

(72) “Quanto ao vinho e ao chá, isso nem é bom fallarmos,


há tal abundancia, e variedade que eu iria longe, se ___
quizesse descrever-lhe.” (carta de leitor, São Paulo, fase 2)

Publicar

(73) “Embirro muito com certos sujeitos que com a maior


facilidade pegam na penna, escrevem tudo que lhes vem á
cabe;cam e sem mais preambulos, manda publicar ___
pouco importando-lhe que seja verdadeiro ou falso, justo
ou injusto aquillo que avançam.” (carta de leitor, São Paulo,
fase 2)

Observar

(74) “Os estrangeiros são, em geral, amigos do Brazil, e


alguns até mais amigos do que muitos nacionaes, como eu
tenho tido occasião de ___ observar...” (carta de leitor, São
Paulo, fase 2)

O mesmo estudo (Cyrino, em andamento) também


investiga o papel da categoria Aspecto no licenciamento de elipses
em PB. No caso da ACN, parece ser relevante o fato de que

312
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

ocorra com aspectuais e modais, pois temos já uma indicação de


que no PB, a categoria que licencia elipses de VP é do tipo
aspectual (cf. Cyrino & Matos, 2002).

Conclusão

Neste estudo, analisamos as ocorrências do objeto nulo em


cartas de leitores de jornais e comparamos os resultados com os
obtidos na análise de anúncios de jornal, todos do século XIX.
Observamos evidências que nos levam a aprofundar no estudo da
ocorrência do objeto nulo como conseqüência da queda do clítico
neutro “o” (um demonstrativo, conforme Matos, 1985)

No entanto, muitas questões ainda permanecem e são alvo


de nossas pesquisas. Primeiramente, encontramos, algumas vezes,
o objeto nulo com antecedente animado. Em Cyrino (2002),
obtivemos uma alta incidência desse tipo de objeto nulo, que foi
relacionado à existência de um alto número de anúncios de jornal
acerca de escravos foragidos (cf. também abaixo).

Mas nos dados deste tudo, também encontramos exemplos


de antecedente animado [+específico] para o objeto nulo, como:

“... depois de mil soffrimentos, vem a descarnada morte,


descarregar o golpo fatal sobre o fio de sua existencia, d’esta
existencia tão preciosa, e arrãncou-o d’entre os braços de
seus extremosos pais. Porem que importa que tenha
roubado ____ d’entre seus braços?” (carta de leitor, Paraná,
fase 2)

São casos numericamente mais raros, mas podem ocorrer, e


a questão é determinar a razão dessa possibilidade, dados os
resultados mais robustos para antecedentes inanimados,
apontados por todos os estudos a respeito do objeto nulo.

313
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Uma outra questão é a impossibilidade da ocorrência de


objeto nulo em certas estruturas, mesmo tendo um antecedente
inanimado. Veja-se, por exemplo, a sentença:

*De acordo com a leii, não se pode alegar que ignoramos


___i na ocorrência de um crime.

Neste exemplo, temos um objeto nulo com um antecedente


e uma posição de anti-c-comando, o que seria possível segundo
Kato (1993). Mas, a interpretação indicada não é possível para essa
sentença. Obviamente não encontramos dados desse tipo no
corpus, mas temos também que explicar a impossibilidade de sua
ocorrência.

A resposta para essas questões, a meu ver, dependem da


investigação acerca dos requisitos para o licenciamento da
categoria vazia. Se levarmos em conta a hipótese em Cyrino
(1994/1997) de que o objeto nulo seria semelhante ao processo de
elipse, e observamos os casos de ACN, podemos chegar a uma
hipótese sobre o papel das categorias funcionais no licenciamento
das elipses. No caso do PB, observamos que Aspecto parece ser
importante. Como exemplo, temos a seguinte sentença, perfeita
em PB, encontrada na reportagem de um jornal acerca da
expansão da culinária japonesa em Londrina:

(77) Tenho vendido muitos sushis, porque os dekassegui


querem continuar comendo ___ depois que voltam ao
Brasil. (Jornal de Londrina, 2002)

O exemplo é um exemplo claro de objeto nulo, pois não


podemos aceitar a interpretação de “comer” como intransitivo
nesta sentença. No caso, além de o antecedente ser [-animado, -
específico] temos um verbo aspectual durativo (“continuar”)
selecionando um gerúndio que licencia a lacuna.

Outros aspectos a respeito do objeto nulo, portanto, ainda


necessitam de uma pesquisa mais detalhada, e o presente trabalho
é uma contribuição para o desenvolvimento dessas investigações.
A partir de dados diacrônicos, podemos chegar a conclusões que

314
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

nos permitem avançar no entendimento desse aspecto do


português brasileiro.

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316
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Algumas diretrizes para uma abordagem


formal da gramaticalização
por
Lorenzo Vitral
Universidade Federal de Minas Gerais
e
Jânia Ramos
Universidade Federal de Minas Gerais

Introdução

Neste artigo, trazemos alguns pontos de reflexão no intuito


de mostrar que os fenômenos de gramaticalização podem receber
uma abordagem formal. Embora ainda não se disponha de um
quadro teórico homogêneo para tratar formalmente a
gramaticalização, conforme assinalam Bybee e Hopper (2001) e
Newmeyer (2000), formulamos algumas diretrizes para uma
abordagem dessa natureza, que são, na verdade, reflexões acerca
de propriedades atribuídas aos fenômenos de gramaticalização,
normalmente encontradas na literatura dessa área. O que fizemos
então foi “interpretar” propriedades da gramaticalização a partir
de pressupostos de um modelo formal que, no nosso caso, é o da
gramática gerativa, em sua fase mais atual, o Programa
Minimalista.

Nos processos de gramaticalização, afirma-se que as


alterações da natureza dos itens incidem sobre três aspectos
gramaticais, que tornam os fenômenos de gramaticalização distintos
ou, ontologicamente, identificáveis. Assim, quando um item se
gramaticaliza, sofre alterações sintáticas, muda de classe de palavra;
semânticas: “esvazia-se” semanticamente ou “perde conteúdo”; e
morfofonéticas: ocorre “redução” ou “diminuição” de sílabas, sons
e/ou acento.

317
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Como se sabe, essas alterações são previstas por meio de


um ciclo que é formulado da seguinte maneira, de acordo com
Hopper e Traugott (1993: 7):

(1) a. item lexical > b. item gramatical > c. clítico > d. afixo

A alteração da etapa (a) para a (b) diz respeito a uma


alteração da classe de palavra do item e é acompanhada por uma
alteração relacionada com o significado, ou seja, tornar-se um item
gramatical traz certas conseqüências do ponto de vista do
conteúdo do item. As etapas (c) e (d) prevêem alterações do item
do ponto de vista morfofonético. Cada etapa levaria, como
corolário, a modificações da distribuição sintática do item,
tornando-a mais restrita, à medida que caminha para a direita no
ciclo. Essa distribuição sintática faz prever, pelo menos à primeira
vista, que haveria gradualidade entre as etapas do ciclo, em relação
ao significado. Isto é, quanto mais à direita, maior o esvaziamento
semântico. Outra expectativa seria a de que os processos podem
se tornar concomitantes: quanto maior o esvaziamento semântico,
maior a perda de substância fônica. Essas expectativas,
explicitadas em Lehmann (1982), entretanto, não se confirmam,
conforme veremos nas duas próximas seções, que tratam,
respectivamente, da gradualidade e da concomitância.

1. Gradualidade

É possível um item apresentar estatutos sintáticos distintos,


tal como ocorre com a forma verbal pode no exemplo abaixo:

(2) Ele pode comprar um carro novo.

De acordo com a extensa literatura sobre os verbos modais


(cf., por exemplo, Pontes, 1973; Perini, 1977; Lightfoot, 1979;
Vitral, 1987; Vianna, 2000), a oração acima pode ser analisada
como um período composto — neste caso o item pode é analisado
como um verbo lexical — ou como um período simples — neste
caso pode deverá ser analisado como um tipo de verbo auxiliar.
Assim, cabe fazer a hipótese de que o item poder está se
gramaticalizando, isto é, passou de verbo a auxiliar. Como esse

318
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

processo atingiu, no máximo, as etapas (a) e (b) citadas em (1), é


pertinente dizer que as etapas de (1) são etapas em potência, isto é,
não implicam que, em todo processo de gramaticalização, haja
todas as “mudanças” de todos os aspectos gramaticais previstos;
ou, ainda, que na ocasião da identificação de um dado processo de
gramaticalização num dado recorte de tempo pode não ter
ocorrido ainda todas as etapas previstas em (1).

Por outro lado, a afirmação de que a forma poder “passou


de verbo a auxiliar” carece de explicitação e requer que sejam
respondidas três questões: (i) o que é verbo? (ii) o que é auxiliar?
(iii) o que significa “passar a”?

Em primeiro lugar, torna-se necessária uma teoria


gramatical que nos forneça critérios consistentes, de modo a
permitir demonstrar que um determinado comportamento
sintático de um item atesta sua condição de membro pertencente a
uma determinada categoria lexical ou gramatical. A Teoria
Gerativa –– que desenvolveu, como continuadora da tradição
gramatical, uma teoria robusta das categorias sintáticas, sobretudo
no que se refere à distinção crucial entre as categorias lexicais e
gramaticais (estas últimas são chamadas de funcionais pelo
gerativismo) –– pode, dessa forma, servir como quadro teórico
para o diagnóstico da natureza lexical ou gramatical dos itens. Para
ilustrar este ponto, observemos, por exemplo, os contrastes
seguintes:

(3) a. ? Carlos a podia encontrar

b.* Carlos a disse encontrar.

c. Carlos a tinha encontrado.

Consideremos aqui três formas: podia, disse e tinha. Importa-


nos saber qual delas é verbo, qual é auxiliar. Para isso podemos
contar com critérios sintáticos, no caso, o alçamento do clítico,
isto é, o deslocamento do clítico da posição objeto do verbo que
está numa das formas nominais para uma posição junto ao verbo
que carrega as marcas de tempo e concordância. Como se sabe,

319
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

apenas quando se tem uma locução verbal, é admitido o


alçamento. Diante disso, o fato de (3b) ser impossível e (3a)
aceitável, embora marginal, mostra que podia se comporta como
um auxiliar ou, pelo menos, tem um estatuto categorial difícil de
ser precisado. A Teoria Gerativa pode, portanto, participar desta
análise na medida em que dispõe de meios para explicitar o
comportamento sintático dos itens, tal como o alçamento, e ainda
oferece uma justificativa teórica desse comportamento, por meio,
neste caso, da teoria de fronteiras.1 Esta distingue dois tipos de
categorias: aquelas que permitem ou impedem o movimento de
constituintes.

Torna-se crucial, na nossa perspectiva, a análise dos dois


grupos de categorias sintáticas, isto é, as categorias lexicais e as
categorias gramaticais, desenvolvidas pela Teoria Gerativa; o que
inclui (i) uma descrição das funções dos dois grupos na gramática
interna; (ii) o rol das categorias que são lexicais e gramaticais; e (iii)
o conjunto de traços que define, primeiro, a distinção gramatical e
lexical, e, segundo, que caracteriza o conteúdo de cada categoria
prevista pela gramática interna.

É preciso agora ter em conta uma restrição. A etapa a > b


de (1) tem sido descrita como recategorização. Sob o rótulo da
gramaticalização, têm sido tratados dois tipos distintos de
processos: aquele em que um item lexical é recategorizado como
gramatical e aquele em que um item lexical ou permanece como
item da mesma categoria lexical ou passa a funcionar como um
item de uma outra categoria também lexical. Este último processo
é representável como: lexical > lexical. Trata-se de casos, por
exemplo, como o seguinte:

(4) a. redondo (adjetivo) > redondo (advérbio)2

b. braço (substantivo)> braço de cadeira (substantivo)

1 Ver Chomsky (1986).


2 Comparem-se os exemplos: (i) A terra é redonda; e (ii) A cerveja que

desce redondo. Para uma discussão, consultar Reis (1997).

320
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

No caso de fenômenos como (4), é bastante relevante a


discussão acerca do papel de mecanismos cognitivos subjacentes à
metáfora e à metonímia e da dicotomia concreto/abstrato na sua
criação e descrição semântica. Tais casos são certamente mais bem
nomeados de processos de lexicalização, devendo, portanto, ser
distinguidos dos processos de gramaticalização nos quais, como
dissemos, um item pertencente a uma das categorias lexicais passa
a funcionar como um item de uma das categorias gramaticais.

Voltemos ao percurso a > b de (1), em que uma categoria


lexical é recategorizada como gramatical (ou funcional). O que
significa recategorização de (a) neste contexto? Do nosso ponto de
vista, recategorização constitui um epifenômeno no qual é
possível “visualizar” a atuação das operações do sistema
computacional, no sentido de Chomsky (1995). Isto é, existem
mecanismos que colhem os itens no léxico e os alocam, formando
com eles arranjos sintáticos. Ou, dito mais explicitamente, a
gramática interna, ou sistema computacional, “enxerga” itens
distintos, isto é, pertencentes a categorias distintas, e forma
arranjos sintáticos com eles por meio de suas operações que os
inserem e os movimentam. O sistema computacional não
“enxergaria”, portanto, o processo de recategorização. Este, na
realidade, seria um epifenômeno captado pelo lingüista quando
compara estágios diferentes de uma língua. Para esclarecer o papel
do sistema computacional, consideremos ainda os seguintes
exemplos:

(5) a. Eu tenho dez vira-latas.

b. Eu tenho conhecido muita gente boa.

No estágio atual da língua portuguesa, o verbo tenho, em


(5a), indicando posse, coexiste com o auxiliar tenho em (5b).
Vamos supor, assim, que se trata de dois itens diferentes que
pertencem ao componente lexical. O primeiro deles é
categorizado como pertencente à classe dos verbos e o outro, à da
classe dos auxiliares. Quando o sistema computacional, através de
suas operações, insere esses dois itens em arranjos sintáticos, ele
“enxerga” os traços categoriais que definem a classe sintática dos

321
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

dois itens e os alocam de acordo com esses traços. Assim, em (5),


tenho [lexical] é inserido no ambiente __NP e tenho [gramatical]
encontra-se no ambiente __VP. Em nossa ótica, portanto, a
gradualidade identificada nos trabalhos sobre gramaticalização não
tem a ver com a possibilidade de indefinição da classe de um item.
Para nós, ou o item é de uma classe ou de outra. Em outras
palavras, quando o item é inserido numa estrutura oracional, ele já
tem sua classe sintática definida. Diferentemente das outras
abordagens, não estamos focalizando aqui as potencialidades do
item, mas sua presença em um contexto específico, o que acarreta
a necessidade de um estatuto categorial definido, não ambíguo.
Deve-se ressaltar aqui que o que dá a impressão de gradualidade
categorial do item é o “olhar” externo sobre a língua. Dentro de
uma estrutura, um item nunca tem estatuto categorial indefinido
ou mesmo ambíguo.3

Essa descrição dos fatos permite-nos também esclarecer


por que utilizamos, neste texto, o termo ‘mudança’ entre aspas.
Como vimos, tanto no caso do verbo modal quanto no caso de
ter, não se trata de substituição de uma forma por outra, e sim de
diferentes estatutos sintáticos atribuídos a uma mesma forma
fonética, o que resulta em duas ou mais entradas lexicais distintas.
Para explicitar essa nossa proposta, as diferentes entradas serão
descritas como itens “homônimos”. Contudo, a literatura sobre
gramaticalização, que prioriza o aspecto semântico do processo,
trata, normalmente, os itens, aos quais estamos nos referindo,
como polissêmicos. Entretanto, na nossa visão, embora do ponto
de vista diacrônico seja possível falar de polissemia — já que uma
acepção de um item é gerada a partir de outra, no que concerne a
uma dada sincronia —, vale mais a pena considerar que as duas
acepções de um item, para um dado falante ou numa gramática

3 A propósito da reconhecida ambigüidade sintática de certos


enunciados, é importante ressaltar que esta resulta da atribuição de mais
de uma estrutura pelo falante e não do fato de o item não ter estatuto
categorial claro nas diferentes estruturas atribuídas por ele.

322
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

particular, encontram-se numa relação de homonímia, isto é,


como propomos, trata-se de duas entradas lexicais distintas.

Na nossa perspectiva, portanto, a noção de


gramaticalização é vista como um artefato descritivo que nos
permite identificar e coletar certos tipos de fenômenos lingüísticos
de natureza diacrônica. Estamos propondo aqui que a descrição a-
teórica, em termos de perda de substância fônica e esvaziamento
de conteúdo, observadas nas línguas, no eixo diacrônico, seja
consubstanciada através de metodologia objetiva de base
quantitativa. Assim, as generalizações acima poderão ser
traduzidas em questões:

(6) Por que um item lexical perde substância fônica?

(7) Por que um item perde significado?

(8) Por que um item lexical passa a item gramatical?

(9) Por que alguns entram em processo de gramaticalização


e outros não?

Desse modo, o “diagnóstico” do processo de


gramaticalização teria como suporte recursos objetivos de análise,
de forma a minimizar o caráter assistemático das descrições,
evitando críticas do tipo “os estudos de gramaticalização dão
impressão de unidirecionalidade porque apresentam lacunas”4. A
metodologia de base quantitativa é um caminho promissor, capaz
de evitar que etapas de gramaticalização sejam omitidas. Através
deste procedimento visamos a tornar mais objetiva a nossa análise
e também alcançar um grau de detalhamento superior ao das
análises correntes.

Identificar a noção de gramaticalização como um artefato


descritivo, tal como estamos assumindo aqui, significa sustentar
que os estudos sobre gramaticalização formam um corpo de

4 JANDA, Richard D. (2001: 265-340).

323
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

conhecimento no qual respostas para as questões (6-9) não


poderão ser respondidas, porque não oferecem um quadro teórico
no qual os conceitos de item lexical e item gramatical possam ser
satisfatoriamente descritos. Por esta razão, fizemos opção pela
Teoria Gerativa como quadro teórico onde buscar descrições
adequadas.

2. Concomitância

Tenhamos em conta a expectativa, decorrente do ciclo da


gramaticalização em (1) e explicitada por Lehmann (1982), de que
haveria concomitância entre perda de complexidade semântica e
perda de substância fonética.

Vários fatos do português brasileiro nos quais a


concomitância não se verifica podem ser apontados. Conforme
veremos, no eixo diacrônico, o item ter, que expressava posse, passa
a também expressar existência.5 A perda de informação semântica,
acrescida do ganho da acepção existencial, ocorreu sem a
correspondente perda de substância fonética, embora, neste caso,
possa ser alegado que o ter existencial é uma acepção lexical do
verbo ter, ou seja, a acepção existencial não define uma categoria
gramatical:

(10) a. Ele tem um apartamento.

b. Tem muita gente na sala.

Um outro caso seria o de perda de substância fonética, sem


perda de informação semântica, como é o caso de tá e está, os dois
itens manifestam verbo indicador de estado. Veja-se que tá é
semanticamente idêntico a está 6, podendo ser usados tanto numa

5 Cf. VIOTTI (1999).


6 FUNDO, K. H do (1994).

324
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

função lexical, como em (11), como numa função gramatical,


como em (12).

(11) a. Ele tá bem.

b. Ele está bem.

(12)a. Ele está correndo agora.

b. Ele tá correndo agora.

Note-se, portanto, que, nesse caso, a redução fonética não é


exclusiva do uso do item numa função gramatical.

Há ainda casos em que ocorrem os dois processos, a perda


de substância fonética e enfraquecimento semântico
simultaneamente, embora o processo semântico teria afetado, ao
mesmo tempo, as formas que perderam substância fonética e as
que não perderam. Vejamos, como exemplo, as formas você e cê,
nos enunciados a seguir.

(13) a. Cê pode visitar sempre esse local. (referência [-


específica])

b. Quando você chega em Paris (...). (referência [-específica])

c. VOCÊS cês aprontam a maior bagunça. (E1) (referência


[+específica])

Os enunciados de (13) mostram que tanto a forma reduzida


quanto a forma plena do pronome você são usadas com dois tipos
de referência. Em (a-b) esses itens podem ser substituídos pelo
pronome indeterminador se, sem que isso afete o conteúdo da
sentença. Já em (c) esta substituição não é possível, pois o
referente é o próprio interlocutor. O processo manifestado como
[+específico] > [–específico] configura o que Lehmann (1982)

325
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

chama de “esvaziamento semântico” e o que Heine e Reh (1984)


descrevem como “perda de complexidade semântica”.

Os dados apresentados em (10-13) mostram que não há


concomitância entre os processos semânticos e morfossintáticos,
contrariando Lehmann (1982).

Conclusão

O detalhamento e explicitação do ciclo apresentado no


início deste texto, em (1), é, assim, necessário para uma
abordagem formal do que tem sido rotulado como
gramaticalização. Além disso, contribuem para uma melhor
compreensão dos fenômenos com os quais estamos lidando.

Para efetivar tal detalhamento com objetividade e


sistematicidade, a quantificação constitui um procedimento
adequado e satisfatório. Para tanto, é necessário identificar as
formas foneticamente plenas e reduzidas, compará-las, identificar
sua categoria gramatical e diferenças semânticas. E cada uma
dessas possibilidades pode ser codificada separadamente, de modo
a torná-las explícitas e passíveis de quantificação, utilizando um
programa de análise variável. Esse quadro, assim tão favorecedor
ao tratamento quantitativo, permite verificar se as etapas em
potência, previstas em (1), realmente se efetivaram e em que
ritmo, datando seu percurso.7 Uma proposta concreta nesta
direção pode ser consultada em Vitral e Ramos (2006).

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CHOMSKY, N. Barriers. MIT Press: Cambridge, 1986.
CHOMSKY, N. The Minimalist Program. MIT Press: Cambridge, 1995.

7 Uma aplicação da análise propriamente laboviana a dados de

gramaticalização encontra-se em Naro e Braga (2000). Para uma crítica


quanto à falta de informações sociolingüísticas no tratamento dispensado
à gramaticalização, ver Janda (2001).

326
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

FUNDO, K. H do (1994) Distribuição e interseção das novas variáveis.


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Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

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Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia, 2006, v. 6, p. 107-
133

328
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Notícias sobre o tratamento em cartas


escritas no Brasil dos séculos XVIII e XIX
por
Célia Regina dos Santos Lopes
Universidade Federal do Rio de Janeiro
e
Maria Eugênia Lamoglia Duarte
Universidade Federal do Rio de Janeiro/CNPq

1. Introdução

Importantes diferenças entre as vertentes brasileira e


portuguesa relativas ao quadro pronominal e suas conseqüências
para a gramática de uma e outra variedade têm sido apontadas em
pesquisas recentes elaboradas a partir de amostras sincrônicas e
diacrônicas. Entre essas diferenças, destaca-se o quadro relativo à
segunda pessoa. No que diz respeito à forma você, originada do
pronome de tratamento Vossa Mercê,1 o que se ressalta atualmente
como diferença relevante é o seu emprego na interlocução. Em
português europeu você está em distribuição com o(a) senhor(a) e tu,
segundo o grau de intimidade estabelecido entre os interlocutores,
o que revela que você ainda guarda traços de forma de tratamento.
No português do Brasil, ao contrário, você já está perfeitamente
integrado ao sistema de pronomes pessoais, substituindo tu em
grande parte do território nacional ou convivendo com tu sem que
o verbo traga a marca distintiva da chamada “segunda pessoa
direta”. A implementação da forma você, em referência à segunda
pessoa, principalmente no português do Brasil, acarretou um
rearranjo no sistema pronominal com a fusão do paradigma de 2ª

1Sobre a inserção de Vossa Mercê no sistema de tratamento


em substituição a vós, veja-se Oliveira e Ramos (2002).

329
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

com o de 3ª pessoa do singular e com a eliminação do paradigma


de 2ª pessoa do plural, por conta das possibilidades combinatórias
de você com te~lhe, teu~seu/tua~sua, etc. e de vocês com lhes~vocês,
seus~deles, etc. (cf. Faraco, 1996: 65-70; Oliveira, 1996; Menon,
1995: 103). Embora ainda condenada pela gramática, a
famigerada “mistura de tratamento” atingiu também o imperativo
com o “crescimento do uso da forma de imperativo referente ao
sujeito tu, mesmo quando o tratamento do ouvinte se faz com
você” (Paredes Silva et al, 2000: 116, Scherre et al., 2000),
evidenciado no recorrente exemplo “Vem para a Caixa você
também”.

Na verdade, a variação tu/ você no Brasil não é uma questão


simples. Peças de teatro escritas no Rio de Janeiro, ao longo dos
séculos XIX e XX, revelam que, por volta dos anos 20-30 do
século XX, a coexistência das duas formas desaparece, sendo
quase exclusivo o uso de você (Duarte, 1993). No entanto, no
último quartel desse mesmo século, nota-se no mesmo tipo de
texto um retorno do pronome tu, desta vez sem a forma verbal
com a flexão de segunda pessoa (Paredes Silva, 2000). Com base
numa amostra controlada de língua oral,2 Paredes Silva (2003)
confirma esse retorno de tu à fala carioca, com a forma verbal não
marcada. Segundo Menon (1997) e Menon e Loregian-Penkal
(2002), pesquisas realizadas nas três capitais do sul indicam a
ausência de tu em Curitiba, sua concorrência com você em
Florianópolis e Porto Alegre, com uma interessante
particularidade: em Florianópolis, tu é menos freqüente que você,
mas tende a aparecer mais com a flexão verbal marcada, enquanto
em Porto Alegre, tu é mais freqüente, mas a flexão verbal é mais
rara.3 Mais recentemente, Amaral (2003) mostra que em Pelotas

2 Segundo a autora, as entrevistas sociolingüísticas não são o contexto

ideal para o uso da segunda pessoa, daí a necessidade de amostras


controladas, que apresentem conversas naturais entre duas pessoas.
3 Ana Zilles (comunicação pessoal) lembra que as Cartas do ALERS
(Atlas Lingüístico e Etnográfico da Região Sul) mostram que há áreas de
uso exclusivo de 'tu', áreas de uso exclusivo de 'você' e áreas em que as

330
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(RS) a presença da marca de concordância com tu atinge apenas


7%, confirmando os resultados para Porto Alegre. Falta-nos,
infelizmente, uma descrição mais detalhada dessa variação nas
regiões norte e nordeste.4

O certo é que, além da referência definida, o uso de você se


expandiu para os contextos de referência indeterminada (também
em concorrência com tu em várias regiões do país) e já aparece em
construções existenciais, com um possível valor expletivo (Duarte,
1995, 1999, 2003; e Avelar 2003). No plural, pode-se dizer que você
acabou por substituir a forma pronominal vós.

Partindo dos resultados obtidos no estudo de Lopes &


Duarte (no prelo), que se baseia em uma amostra constituída por
peças teatrais portuguesas e brasileiras escritas no mesmo período,
pretendemos:

a) levantar as formas nominais e pronominais de


tratamento mais freqüentemente utilizadas em cartas não-
oficiais escritas no Brasil dos séculos XVIII e XIX;
b) verificar se as formas nominais e pronominais de
tratamento identificadas no teatro são as mesmas que se
utilizam nas cartas escritas no Brasil nos séculos XVIII e
XIX;
c) identificar os fatores lingüísticos e extralingüísticos que
aceleraram o processo de gramaticalização de Vossa Mercê >
você no português do Brasil, ocasionando sua inserção no
nosso sistema pronominal.

duas formas se alternam. Lembra ainda que fatores de natureza


extralingüística são extremamente relevantes nessa alternância.
4 Lemos Monteiro (1997) destaca o baixo uso de tu nas cinco capitais
contempladas pelo Projeto NURC, mas chama a atenção para o fato de
que em Fortaleza o uso de tu é semelhante ao de Porto Alegre, sem a
marca de concordância, independentemente da classe social ou do nível
de escolaridade. É possível que a quase ausência de tu nas entrevistas do
NURC se deva ao estilo próprio das entrevistas, como apontado por
Paredes Silva (2003) (cf. nota 1)

331
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

2. Um pouco de história

Cintra (1972) mostra que o atual sistema de tratamento


difere daquele encontrado nos primórdios de nossa língua em que
não havia tratamentos do tipo nominal — pelo menos não
localizáveis nos textos. A oposição se estabelecia basicamente
entre tu/vós (plano da intimidade) versus vós (plano de cortesia ou
distanciamento), como até hoje em francês.

As formas nominais de tratamento sofrem um processo de


especialização já nos fins do século XIV. O autor descreve esse
processo de mudança, correlacionando-o a um processo de
hierarquização cada vez maior da sociedade. Vossa mercê, que
aparece como tratamento para o rei por volta de 1460, deixa de
sê-lo em 1490. A degradação hierárquica — ou a ascendência da
nobreza? — é progressiva e a expressão passa a referir-se a
duques, depois a infantes, a fidalgos e, no século XVI, já é usada
por Gil Vicente para patrões burgueses. Vossa Senhoria também
sofre, em menor escala, o mesmo processo de perda gradativa de
reverência. Começa como tratamento ao rei, passa a ser
empregado para fidalgos da nobreza e se estabelece num nível
superior a Vossa Mercê. Vossa Alteza se especializa como
tratamento ao rei no século XV. Felipe II, em 1586, na Espanha e,
em 1597, em Portugal, estabelece legalmente como devem ser
empregadas as expressões de tratamento. Tal postura pode nos
sugerir, em princípio, duas hipóteses: i) havia uma grande
flutuação no emprego dessas formas de tratamento entre as
pessoas da época; e ii) a sociedade tinha uma grande preocupação
em determinar os papéis sociais desempenhados pelos membros
que a constituíam.

No século XVIII, vós, empregado para um único


interlocutor, tido como traço arcaizante praticamente cai em
desuso.

Para o lugar que o vós deixou vago no sistema, apresentou-


se o você (...) semelhante pelas origens às referidas fórmulas,
mas muito mais evoluído dos pontos de vista semântico e

332
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

fonético, estava o caminho aberto para a progressiva


invasão e expansão das outras formas substantivas que
levam o verbo para a 3a pessoa. (Cintra, 1972: 35-38)

Faraco (1996) afirma que a progressiva alteração do valor


social da forma Vossa Mercê (e variantes) é resultante da rápida
multiplicação dessas formas em Portugal. Inicialmente utilizada
como tratamento ao rei, a forma Vossa Mercê (além de Vossa
Senhoria) se estende ao tratamento não íntimo entre iguais na
aristocracia e começa, aos poucos, a ser utilizada por pessoas de
status social inferior (criados, subordinados etc.) ao se dirigirem a
membros da aristocracia. Numa etapa final de decréscimo de
formalidade, vamos encontrar Vossa Mercê e Vossa Senhoria sendo
utilizados como diferentes variantes sociais em oposição a tu, que
era de uso comum no tratamento íntimo. Comparativamente, a
segunda estratégia manteve-se em uso, por mais tempo, com um
status socialmente superior em relação à primeira, sobrevivendo no
Brasil, ao lado de Vossa Excelência “como formas artificiais
utilizadas na correspondência oficial e em alguns contextos muito
formais nos altos escalões da administração pública.” (Faraco,
1996: 65). A partir do século XVI, período em que o processo de
ocupação do Brasil teve início, a degradação semântica sofrida por
vós, a simplificação fonética de Vossa Mercê e o seu uso
generalizado como você estavam em etapa bastante avançada.

3. O quadro teórico

Nos estudos funcionalistas sobre gramaticalização,


revigorados nas décadas de 80 e 90, autores como Lichtenberk
(1991) retomam a discussão sobre o problema da transição
(Weinreich, Labov e Herzog, 1968) e defendem ser o gradualismo
inerente aos fenômenos de gramaticalização estudados. Postula-se,
inclusive, que, por ser um fenômeno contínuo, a gramaticalização
não é um processo que possa se extinguir. Assim como ocorreu
com a gente (cf. Lopes 1999, 2003a), a gramaticalização, ou mais
especificamente, a pronominalização de Vossa Mercê > você

333
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

acarretou perdas e ganhos em termos de suas propriedades


formais e semânticas por conta da mudança categorial de nome
para pronome. Nem todas as propriedades formais nominais
foram perdidas, assim como não foram assumidas todas as
propriedades intrínsecas aos pronomes pessoais. Assim como
mostra Lopes (1999, 2003a), no mapeamento diacrônico
delineado na gramaticalização de a gente, a gramaticalização de
Vossa Mercê não foi um processo isolado, mas conseqüência de
uma mudança encaixada lingüística e socialmente. Há uma
emergência gradativa de formas nominais de tratamento que
passam a substituir o tratamento cortês universal vós a partir do
século XV, num primeiro momento pela ascensão da nobreza e
mais tarde da burguesia que exigia um tratamento diferenciado.
Essa propagação, que começa de cima para baixo, se dissemina pela
comunidade como um todo e as formas perdem sua concepção
semântica inicial, gramaticalizando-se — algumas de forma mais
acelerada que outras, como é o caso de Vossa Mercê > vosmecê >
você.

Cabe ainda discutir alguns aspectos lingüísticos que


delimitam entre fins do século XVIII o início do processo de
pronominalização de Vossa Mercê e a efetiva gramaticalização de
você a partir do século XIX. Levam-se em conta, principalmente,
os 5 princípios propostos por Hopper (1991): estratificação (layering),
divergência, especialização, persistência e decategorização.

Como discutido em Hopper (1991) e em outros trabalhos


que reinterpretam os princípios propostos à luz da teoria da
variação (Omena e Braga, 1986; Lopes, 1999, 2003a; Naro e Braga
2000; Lopes e Duarte, 2002a, b e (no prelo); Rumeu, 2001), o
princípio da estratificação (layering) estipula a coexistência entre o
novo e o velho em um domínio funcional amplo. Não há o
descarte imediato das formas mais antigas, no caso vós/tu, em
detrimento das formas emergentes vocês/você, mas um período de
transição que configuraria uma fase de convivência nas diversas
estratégias de referência ao interlocutor. Com relação ao princípio
da divergência, postula-se a permanência do item lexical original
(Vossa mercê) convivendo de forma autônoma ao lado da forma
gramaticalizada (você), embora divirjam funcionalmente. O

334
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

substantivo mercê conserva ainda hoje sua integridade fonológica e


até, de certa forma, semântica: Estamos à mercê de bandidos. A forma
gramaticalizada você, por sua vez, sofreu perda gradual de
substância fonológica (erosão) — Vossa mercê > vosmecê5 > você > cê6
— e semântica (dessemantização) — perda do caráter de reverência e
cortesia original — nos termos de Lehmann (1982).

Outro princípio, a especialização, associa-se à limitação das


opções, que ocorre quando há um estreitamento da variedade de
escolhas, fazendo com que uma das formas se torne, em alguns
contextos, praticamente obrigatória. Pressupõe-se, pois, que a
forma emergente (você) passe paulatinamente a ocorrer em
contextos lingüísticos específicos e diferentes dos contextos
favorecedores de Vossa mercê. A conservação de alguns traços do
significado original, aderindo-se à nova forma gramaticalizada,
remete-nos ao princípio da persistência. Como aponta o autor, nos
processos de gramaticalização, detalhes da história lexical do item
podem se refletir na forma gramaticalizada durante estágios
intermediários.

Por fim, o princípio da de categorização (ou descategorização)


proposto por Hopper (1991) consiste na neutralização das marcas
morfológicas e propriedades sintáticas da categoria-origem (nome
ou sintagma nominal) e adoção dos atributos da categoria-destino
(forma pronominal).

5 Foram localizadas em algumas peças teatrais portuguesas dos séculos


XVIII e XIX as seguintes representações gráficas: Vossé(s), Você(s),
Boixê(s), Vossa(s) Mercê(s), V. M., Boxa Mercê (Lopes, 2001, 2003b). A
incerteza e a diversidade de grafias evidencia a produtividade do uso de
tal forma de tratamento no período, o que pode ser uma tentativa de o
escritor deixar transparecer, mesmo que de forma caricatural, a alta
freqüência da forma sincopada na fala de pessoas do povo.
6 Ver ainda Ramos (1997), para um estudo sincrônico do processo de
cliticização de você.

335
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Ao mesmo tempo que acompanhamos o processo de


gramaticalização de Vossa Mercê, interessa-nos observar o
comportamento da forma de tratamento (categoria-origem) e do
pronome (cetegoria-destino), particularmente na função sintática
de sujeito. Se o português dos séculos XVIII e XIX apresenta
características de língua de sujeito nulo (cf. Duarte, 1993), espera-
se que o comportamento da forma de tratamento seja o de uma
forma nominal — preferencialmente expresso; o da forma
gramaticalizada/pronominalizada, por outro lado, deve espelhar o
comportamento dos pronomes nos períodos em questão, que
obedecem ao Princípio “Evite Pronome”, sendo usualmente
nulos. Essa perspectiva, associada ao quadro de Princípios e
Parâmetros (Chomsky, 1981), está em perfeita consonância com o
princípio da de categorização anteriormente mencionado.

A análise quantitativa será feita com base na


Sociolingüística Variacionista laboviana, através da aplicação do
programa VARBRUL (cf. Mollica e Braga, 2003), que calcula as
freqüências e o peso relativo de cada fator lingüístico ou
extralingüístico postulado. Como se vê, o trabalho busca integrar a
perspectiva variacionista, discutida em Weinreich, Labov e Herzog
(1968) e Labov (1994), a outros modelos formais e funcionais.

4. O Corpus

A partir dos corpora compartilhados do projeto Para a


História do Português Brasileiro — PHPB,7 utilizou-se uma amostra
constituída por cartas — do Brasil setecentista e oitocentista —
escritas em quatro localidades distintas: Paraná, Rio de Janeiro,
Minas Gerais e Bahia.8 A dificuldade de localizar documentos
escritos não-literários de priscas eras não nos permitiu constituir
uma amostra completamente homogênea se levarmos em conta o
conjunto de documentos reunidos. Para algumas localidades

7 Parte do corpus do Rio de Janeiro pode ser localizada na página do


projeto (cf. Barbosa, A. G.; Callou, D.; Lopes, C. R. S., 2000) ou em
Lopes, C. R., 2001b.
8 Abreviaturas utilizadas PR, RJ, MG e BA, respectivamente.

336
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

foram localizadas cartas pessoais, como é o caso do Rio de


Janeiro, Paraná e Minas Gerais; para outras só há cartas do século
XVIII, como é o caso de Minas Gerais; ou somente do século
XIX, como é o caso do Paraná; e há ainda as cartas não
particulares localizadas no Hospital da Santa Casa de Misericórdia
em Salvador, Bahia. Se, em nível nacional, a amostra é
heterogênea, as amostras locais, resguardadas as características
particulares, são localmente homogêneas.

O conjunto de cartas do Paraná está distribuído em dois


blocos de cartas não-oficiais da família Loureiro. O primeiro deles
é constituído por quinze cartas particulares de familiares do
Senhor José Loureiro escritas, entre 1888 e 1893, em Curitiba-PR.
Os remetentes foram identificados e são brasileiros, naturais, em
sua maioria, de Curitiba. O segundo conjunto de documentos,
também do final do século XIX, constitui-se de nove cartas
comerciais dirigidas a um único destinatário, Senhor Fernandes
Loureiro, assumindo, nesse caso, o papel de “pessoa jurídica” —
representante de um estabelecimento comercial.

As vinte e três cartas de Minas Gerais do século XVIII


(1777-1782) também foram destinadas a uma mesma pessoa, uma
mulher, Senhora Clara Felicia da Roza, e tratam de temas variados
(agradecimentos, cobranças de dívidas, encaminhamentos de
encomendas etc.); os remetentes são homens e mulheres com
diferentes graus de amizade e parentesco com a destinatária,
oriundos de localidades também distintas.

Semelhantes às outras amostras por sua homogeneidade e


diferentes pelo caráter não-pessoal, as 41 cartas-ofício da Bahia
foram escritas em 1862 e localizadas no Hospital de Caridade da
Santa Casa da Misericórdia em Salvador. As cartas, com temática
diversificada, foram endereçadas, na maioria dos casos, ao
provedor ou ao mordomo da Instituição por remetentes distintos
(do chefe de polícia aos clínicos internos e externos).

O material do Rio de Janeiro configura-se pela diversidade,


seja em relação aos diferentes remetentes, seja em relação aos
destinatários. Embora todas sejam cartas particulares e tenham

337
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

sido escritas no Rio de Janeiro dos séculos XVIII e XIX, há três


grupos distintos, tomando-se como critério a identificação dos
remetentes como i) naturais do Rio de Janeiro; ii) naturais de
outros estados e iii) de naturalidade desconhecida.

Os resultados apresentados aqui nos darão, pois, um


panorama geral das principais formas nominais e pronominais de
tratamento utilizadas na posição de sujeito em cartas não-oficiais
que eram remetidas e recebidas pelos que viviam no Brasil dos
séculos XVIII e XIX.

5. Análise de alguns resultados:

5.1 - As estratégias mais freqüentes nas cartas

Foram identificadas diferentes formas nominais e


pronominais de tratamento na posição de sujeito nas cartas que
constituem o corpus de análise. A Tabela 1 apresenta a distribuição
dos dados segundo as estratégias mais freqüentes de se dirigir ao
interlocutor, seja ele filho, neto, tio, pai, amigo, médico, mordomo
hospitalar, padre ou mesmo o próprio Rei, na documentação
privada não-oficial que circulava no Brasil dos séculos XVIII e
XIX.

Tabela 1: formas nominais e pronominais utilizadas nos


séculos XVIII e XIX: todos os dados (sujeitos plenos e nulos)

Formas Outras
utilizadas/ Você V.M. Tu formas de Total
localidades tratamento
19 - 71 -
RJ 0,1 - 1% 52 - 34% 153
19% 46%
05 -
BA - - 36 - 88% 41
12%
70 -
MG - - - 70
100%
09 - 34 -
PR 03 - 6% 06 - 12% 52
17% 65%
Total 38 - 110 - 74 - 91 - 30% 316

338
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

12% 35% 23%

Observa-se, a partir da análise da Tabela 1, que a


distribuição dos dados é irregular em cada uma das amostras
analisadas, o que não nos permite o estabelecimento de
generalizações descritas, dada a própria natureza do corpus
utilizado. As amostras do Rio de Janeiro e do Paraná apresentam
maior diversidade de formas nominais e pronominais de
tratamento na posição de sujeito, predominando, nas cartas
cariocas, um emprego significativo de tu (46%), forma de
tratamento íntimo, que se opõe às outras estratégias identificadas:
você com 19%, outras formas de tratamento (Vossa Majestade, Vossa
Excelência, Vossa Senhoria, pai e amigo) com 34% e Vossa Mercê com
1% apenas. O caráter tipológico do texto determinou essa alta
freqüência de tu que predomina nas cartas particulares trocadas
entre amigos e entre familiares (avô para neto) no século XIX. Na
amostra relativa ao Paraná, Vossa mercê — forma mais produtiva -
aparece com 65% de freqüência, seguida por você (17%), outras
formas (Senhor e Vossa Senhoria) com 12% e tu (6%). Nas duas
outras amostras — Bahia e Minas Gerais — a polarização se dá,
no primeiro caso, entre Vossa mercê e outras formas nominais
(Vossa Senhoria e Vossa Excelência), e em Minas só foram
localizados dados de Vossa Mercê. Novamente aqui há outras
questões em jogo, uma vez que as cartas da Bahia não são
documentos pessoais, mas de Administração privada (Hospital
Santa Casa de Misericórdia), o que levou ao emprego de uma
estratégia formal de distanciamento e cortesia. Em Minas Gerais,
as cartas, embora pessoais, foram destinadas a um só remetente e
escritas no século XVIII. Ressalte-se ainda que não foram
localizados, em todo o corpus de cartas, dados de vós: forma tida
como arcaizante e utilizada por pessoas provincianas, já no século
XVIII, segundo Faraco (1996).

Em síntese, nota-se o emprego de Vossa Senhoria na


correspondência não-particular (Bahia) e Vossa Mercê e você, além
de tu, na correspondência particular (Rio de Janeiro, Minas e
Paraná), embora, muito excepcionalmente, Vossa Senhoria apareça
em documentos particulares e Vossa Mercê na documentação
oficial.

339
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Observem-se alguns exemplos das diferentes estratégias


localizadas nas cartas:

(1) "Voce e Juvelina recebão lembranças de todos e um


apertado abraço d´esta tua irmã que muito te estima”. (Carta
de Julieta F. L. Ascencao à sua irmã Josephina, Curitiba,
26/08/1888-PR).

(2) "Minha madrinha e senhora vão onze alqueires de fubá 3


demilho dois defeyjam estimarey que vossa mercê etoda
anobre caza passem livre demoslestiar que nos ca eimos
passando com muito frio ainda muito mas porem detoda
asorte rezestindo com muito apessoa de vossamercê
emais...” (Carta Joaquim Teyxeira a Senhora Dona Clara Felicia
da Roza, São Thiago, 24/08/1777-MG).

(3) “Vocemece faça o que entender, muitas |


recomendações a tia Mecias e as meninas aseite um abraço
deste seu sobrinho agradecido”(Carta de Manoel Ascenção
Fernandes ao seu tio José, Curitiba, 03/02/1889).

(4) "Tu sabes, que, alem de teu irm- | mão, sou realmente
teu amigo, e portanto consternei-me em demazia, pensando
no que terás sofrido.” (Carta de Martim ao irmão Senhor Jozé
Bonifácio de Andrade e Silva, Rio, 16/01/1810-RJ).

(5) "Veja Vossa Maggestade com quanto, o querem


comtentar os Povos secomtrinta arrobas que dam: pagam
os dizimos dos quintos de Vossa Maggestade ." (Carta de
Felix Gusman M. Bueno a Sua Majestade, Rio, 02/08/1720-RJ).

(6) "Restame pois, que Vossa Excelência queira dispor do


meu animo agradecido, e que se digne Recebe os tributos de
minha Cordial amizade, permitindo me oportunidades, em
que servindo-o como devo, mostre quanto sou || De Vossa
Excelência || Amigo muito fiel, emuito obrigado” (Carta de
Joaquim José de Souza Lobato ao Senhor Conde de Palma, Rio,
13/02/1811-RJ).

340
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(7) “e | outro dos Clinicos Cirurgicos sobre os


melhoramentos e necessidades do Hos- | pital (faltando a
dos Clinicos medicos que não se dignarão remetter-mo) | a
os quaes tambem julguei ouvir por sua competencia, para
melhor satisfa- | zer quanto Vossa Senhoria me ordenou
em seo officio de 5 do passado, attento o curto es- | paço
de trez meses somente que conto de inspecção”. (Carta do
Mordomo Doutor Marcellino Antonio de Mello Albuquerque Pitta
ao Senhor Irmão Provedor Manuel José de Figueredo Leite, Salvador,
Hospital da Misericórdia, 31/10/ 1862-BA).

(8) “Presado Pai_ || _ Recebi hontem a sua presada car |


ta de 1o do corrente, e procurarei conformar-me com o que
| n’ella me diz, e espero poder com applicação vencer a es-
| pecie de repugnancia instinctiva que até hoje tenho tido |
ao commercio.” (Carta de Casimiro de Abreu a seu pai, Rio de
Janeiro, 12/10/1857-RJ).

As formas nominais de tratamento identificadas nas


diferentes localidades controladas reforçam a distinção tipológica
das cartas. Na amostra de cartas cariocas, foram identificadas as
formas Vossa Majestade, especificamente para se dirigir ao Rei,
além de Vossa Excelência e Vossa Senhoria. Identificou-se ainda a
presença do tratamento pai, como vocativo que vinha seguido de
sucessivos sujeitos nulos de 3ª pessoa do singular, exclusivamente
nas cartas de Casimiro de Abreu. Na Bahia, identificaram-se Vossa
Senhoria e Vossa Excelência nas cartas de caráter não-pessoal: cartas
e/ou ofícios encaminhados aos mordomos e provedores do
Hospital da Santa Casa de Misericórdia. No Paraná, além das
formas localizadas nas outras amostras, como Vossa Senhoria,
localizou-se a forma Senhor(es).

Diferentes formas de tratamento nominal, como aponta


Faraco (1996), eram habituais no tratamento não-íntimo e
aparecem nas cartas que circulavam no Brasil como formas
artificiais empregadas na correspondência oficial ou como uma
estratégia que marca um tratamento diferenciado entre pessoas
que pertenciam a grupos sociais distintos.

341
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

A tabela a seguir evidencia as freqüências de uso das formas


de tratamento em função do destinatário da carta na totalidade
dos dados levantados.

342
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Tabela 2: Uso das formas pronominais e de tratamento em


função do destinatário da carta

Outras
Destinatário
Você V.M. Tu formas de Total
da carta
tratamento
Para o Rei - - - 7 - 100% 7
Para
09 - 46 -
amigos, 01 - 2% 08 - 13% 64
14% 72%
primos
19 -
Para tios - - - 19
100%
17 -
Para filhos - - 1 - 6% 18
94%
12 - 28 -
Para netos - - 40
30% 70%
10 -
Para pais - - 26 - 72% 36
28%
Sem 80 -
- - 52 - 39% 132
intimidade 61%

Observa-se na Tabela 2 que são utilizadas formas de


tratamento diferenciadas entre si a depender do tipo de relação
social estabelecida entre o emissor e o destinatário das cartas. Nos
documentos destinados ao Rei, aos tios, aos pais e entre pessoas
não íntimas, ou seja, nas correspondências nas quais as relações
interpessoais são assimétricas, o emprego de formas nominais de
tratamento é categórico, seja com a forma Vossa Mercê, seja com o
uso de outras formas: Vossa Majestade, Vossa Excelência, Vossa
Senhoria e pai. Como discutido em Rumeu (2001: 25), "o exercício
do poder conduz a uma assimetria nas relações interpessoais que,
por sua vez, acarreta uma assimetria no tratamento entre os
falantes". Nota-se que nas cartas dirigidas aos amigos e primos
(relações simétricas) há uma maior variação quanto à distribuição
das formas, predominando o uso de tu — forma de tratamento
íntimo — sobre as demais. É interessante notar que nas cartas
familiares mais íntimas (aos netos) as formas você (30%) e tu (70%)
estão em concorrência com o predomínio da segunda sobre a

343
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

primeira. Você é praticamente categórico nas cartas remetidas aos


filhos (94%).

5.2 – As diferentes estratégias em função das


relações interpessoais estabelecidas

Caberia, neste momento, distinguir o tipo de relação —


simétrica ou assimétrica — estabelecida entre o remetente e
destinatário das cartas, levou-se em conta, por essa razão, a
clássica dicotomia entre “poder e solidariedade” proposta
inicialmente por Brown e Gilman (1960). Seguindo tal perspectiva,
o parâmetro do poder refere-se ao controle que umas pessoas
exercem sobre outras em uma determinada situação interativa.
Esse controle do comportamento de um sobre o outro
desemboca numa assimetria no tratamento. A relação de poder
entre duas pessoas não é recíproca, pois ambos não têm poder na
mesma área de comportamento e a conseqüência disso é a eleição
de certas formas de tratamento diferentes em função da hierarquia
que se estabelece entre os interlocutores numa situação interativa.

A oposição em geral apresentada é estabelecida entre o TU


[+ familiar] e VOUS [+polido] ou T/V, utilizando o francês como
padrão, embora em outras línguas exista o mesmo tipo de
tratamento, com estratégias diferenciadas.

Segundo Brown e Gilman (1960), a oposição T/V


começou como diferença entre singular e plural. Na Idade Média
o uso de V se estendeu, saindo da esfera do Imperador para
outros níveis hierárquicos, embora continuasse indicando respeito
mútuo e polidez. As classes altas usavam V mútuo e as classes
baixas o T mútuo. Nas relações entre as classes, havia uma
assimetria que simbolizava poder: a classe alta para se dirigir à
baixa usava T e a classe baixa para se dirigir à alta usava V. Tal
assimetria se estendeu a outras relações: patrão-empregado, Deus-
anjos, ou ainda o poder de velhos sobre jovens, de pais sobre
filhos etc. (Wardhaugh, 1998: 256). O uso simétrico de V
estabelecia, pois, polidez.

344
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

O segundo parâmetro, o da Solidariedade, estabelece forças


iguais, o mesmo nível na hierarquia social, a igualdade entre as
pessoas. Nesse tipo de relação, em geral, se outorga o uso mútuo e
simétrico do T, recíproco ou igualitário, que configura intimidade
(sentimento de solidariedade entre os participantes da situação
comunicativa). Wardhaugh (1998: 255-279) descreve os usos das
formas de tratamento em diversas línguas. Para o autor a evolução
desse esquema conceptual T/V se dá do assimétrico T/V, para o
polido V/V e finalmente para o mútuo T/T, por conta da
importância da solidariedade nas sociedades em geral. Em síntese,
o autor conclui que a força (o poder) determina o uso T/V e que a
mudança para o simétrico T/T solidário é recente, com variações
locais. Na maior parte dos casos, o simétrico T/T ocorre quando
as classes baixas ou as classes altas querem parecer democráticas,
como ocorreu, por exemplo, na sociedade francesa a partir da
Revolução. Na realidade, as sociedades têm diferentes maneiras de
utilizar a distinção entre T/V e nem sempre a evolução é para
solidariedade, pois a força também faz parte da estrutura social
moderna.

Estabeleceram-se, a partir dos pressupostos apresentados,


alguns níveis hierárquicos nas relações pessoais estabelecidas que
podem ser sumarizadas na tabela a seguir:

Tabela 3: Uso das formas pronominais e de tratamento nas


relações hierárquicas emissor-destinatário:

Tipo de relação entre Outras formas


Você V.M. Tu Total
informantes de tratamento
De superior para inferior
29 - 50% - 28 - 48% 1 - 2% 58
(avô-neto, pai-filho)
De inferior para superior
(dirigida ao rei, tio, pai, - 78 - 68% - 36 - 32% 114
etc)
Membros de um mesmo
grupo social (entre 09 - 6% 32 - 22% 46 - 32% 57 - 40%- 144
amigos, primos, etc)

345
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Os resultados apresentados na Tabela 3 mostram um uso


mais freqüente de formas nominais — Vossa Majestade, Vossa
Excelência, Vossa Senhoria e também Vossa Mercê — nas relações
hierárquicas assimétricas de inferior para superior, evidenciando a
manutenção de um caráter de distanciamento e cortesia nas
formas nominais de tratamento.

Observa-se também o predomínio do emprego da forma


vulgar você (50%), seguida pelo pronome tu (48%), marcando
relações assimétricas de superior para inferior, o que confere a
dessemantização da variante você em processo de gramaticalização.
Essa coexistência de formas num mesmo domínio funcional (tu-
você) vem exemplificar o princípio da estratificação (layering),
mencionado na seção anterior.

Nas relações simétricas, entre membros de um mesmo


grupo social, detectou-se uma ampla diversidade de estratégias,
com produtividade significativa para as formas nominais de
tratamento (40%) — Vossa Senhoria, Vossa Excelência —, seguida
por Vossa mercê (22%) e tu (32%). Nota-se que, apesar de a forma
emergente você apresentar índices baixíssimos — 09 dados (6%)—,
o fato de co-ocorrer como estratégia de tratamento, neste tipo de
relação, ao lado de sua contraparte desenvolvida Vossa Mercê, pode
evidenciar um comportamento semelhante no continuum da
gramaticalização, persistindo, nos termos de Hopper (1991), alguns
traços do significado original na nova forma gramaticalizada.
Como aponta o autor, nos processos de gramaticalização, detalhes
da história lexical do item podem se refletir na forma
gramaticalizada durante estágios intermediários.

Nestes resultados, com base em cartas pessoais escritas no


Brasil nos séculos XVIII e XIX, a distribuição das formas de
tratamento em função do tipo de relação hierárquica estabelecida
é mais nitidamente delineável se comparada com a distribuição
observada nos resultados das peças teatrais (Silva e Barcia, 2002;
Lopes, e Duarte, no prelo). Para efeito de ilustração, podemos
citar as cartas do século XVIII produzidas no Brasil pelo Marquês
de Lavradio. Nessas cartas é notório que a escolha do Marquês
por uma determinada forma de tratamento dependia das

346
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

diferentes relações sociais estabelecidas com seus destinatários. Ao


escrever para seu filho, por exemplo, utilizava a forma você, mas
quando se tratava de seu tio, a sua forma de tratamento preferida
era Vossa Excelência, como mostram os exemplos a seguir:

(9) “Por diferente vezes depois que V. Exª partiu desta


Capital, tenho procurado a honra do modo que me é
possível de segurar a V. Exª, o meu profundo respeito e
pedir-lhe a certeza de V. Exª se achar inteiramente
convalescido dos incomodados da sua viagem, porém
depois da primeira carta que recebi de V. Exª não tornou
mais a ter a fortuna da repetição deste favor, o qual deseja
que V. Exª sempre me permita a certeza de se achar
inteiramente restituído a sua perfeita saúde.” (Carta de
Marquês do Lavradio ao Conde de Azambuja, seu tio, RJ, 1770 )

(10) “Permita-me você agora o grandíssimo gosto de servi-lo.


Aceite a minha bênção, e a Deus fico pedindo lhe dê
sempre as maiores felicidades. Deus guarde a você muitos
anos como muito desejo e hei mister” (Carta de Marquês do
Lavradio ao seu filho Conde de Vila Verde, RJ, 1775)

5.3 Alguns aspectos estruturais e os indícios da


inserção de você no sistema pronominal

Levando-se em conta o fato de que o português do Brasil


dos séculos focalizados tem o comportamento de língua de sujeito
nulo no que se refere à realização (nula ou plena) das formas de
tratamento pronominais (cf. Duarte, 1993; e Lopes e Duarte, no
prelo), seria natural esperar um comportamento diferenciado
desses em relação às formas nominais de tratamento. Veja-se a
distribuição das ocorrências quanto à realização (nula vs plena) e à
ordem:

Tabela 4: Sujeitos de 2ª pessoa: forma de expressão e


ordem

Período Nulo Expresso (SV) Expresso (VS) Total

347
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Séc. XVIII 27 (28%) 51 (53%) 18 (19%) 96 (100%)


Séc. XIX 147 (68%) 52 (24%) 18 (8%) 217 (100%)
Total 174 (55,5%) 103 (33%) 36 (11,5%) 313 (100%)

Como mostra a tabela, no século XVIII o índice de sujeitos


expressos (antepostos e pospostos ao verbo) supera amplamente o
de sujeitos nulos, que alcançam apenas 28%. Esse quadro se
inverte no século XIX, quando o percentual de nulos atinge 68%.
A que atribuir tal inversão de valores percentuais? O exame das
formas de segunda pessoa utilizadas pode nos ajudar na resposta a
essa questão. Veja-se a Tabela 5 a seguir:

348
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Tabela 5: Sujeitos de 2ª pessoa: formas nominais e


pronominais vs. expressão e ordem

Nulo Expresso (SV) Expresso (VS) Total


Período
FNom Pron FNom Pron FNom Pron FNom Pron
Séc
23 4 43 8 13 5 79 17
XVIII
Séc XIX 69 78 39 13 17 1 125 92
Total 92 82 82 21 30 6 204 109

O número de ocorrências de formas nominais no século


XVIII é superior ao de formas pronominais. São 79 (82%) contra
17 (18%) formas pronominais. Dessas formas pronominais, todas
são representadas por você. Note-se que apenas 4 (23,5%) são nulas
e 13 (76,5%) são expressas (antepostas e pospostas ao verbo).
Esse comportamento da forma você, predominantemente expressa,
tal como uma forma nominal, é evidência de que ela ainda não se
encontra plenamente inserida no quadro pronominal. As formas
você e Vossa Mercê não são ainda completamente divergentes, pois
propriedades nominais persistem na forma vulgar você.

No século XIX, por outro lado, as formas nominais são


125 (58%) e as pronominais 92 (42%). Dessas formas
pronominais, 78 ocorrências (ou 85%) são nulas. No entanto, o
pronome mais utilizado é tu, e seu comportamento é o esperado
numa língua de sujeito nulo, como é o caso do português
brasileiro do século XIX. As ocorrências de você ainda são
preferencialmente expressas, ou seja, ainda revelam traços de
forma nominal.

Há, entretanto, um interessante aspecto relativo à ordem


que pode ser levado em conta no processo de gramaticalização de
você. Enquanto no século XVIII, essa forma aparece nos contextos
de VS, juntamente com as formas nominais, no século XIX não
há uma só ocorrência de você em VS ou AUX SV. São todas pré-
verbais. Tais resultados anunciam que a forma você, em vias de se
pronominalizar, apresenta um comportamento diferente se
comparado com sua contraparte desenvolvida, pois começa a ter

349
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

uma mobilidade estrutural mais restrita em termos de sua posição


com relação ao verbo. Croft (1993) rotula esse tipo de
comportamento de rigidificação da ordem da palavra e Lehmann
(1982) o cunhou de fixação, argumentando que há gramaticalização
‘forte’ quando um item que se podia mover livremente nas
estruturas passa a ocupar lugares gramaticais fixos. Em síntese,
tem-se a fixação da posição sintática de um elemento que era
formalmente livre (Croft, 1993). Para Hopper (1991) teríamos
evidências do princípio da especialização que está associada à
limitação das opções. Postula-se que, em processos de
gramaticalização, ocorre um estreitamento da variedade de
escolhas, fazendo com que uma das formas, no caso você, se torne,
em alguns contextos, praticamente obrigatória.

A propósito das ocorrências de sujeitos pós-verbais, pode-


se dizer que as cartas deixam clara a presença de vestígios da
restrição V2, que, segundo Kato e Duarte (1998), entre outros,
permanece nas interrogativas qu- até a primeira metade do século
XX. Examinemos as 36 ocorrências na amostra analisada (V S e
Aux S V):

Tabela 6: Sujeitos expressos e ordem

SV VS (X) Aux. VS
Ordem
FNom Pron FNom Pron FNom Pron
Séc XVIII 43 8 8 4 5 1
Séc XIX 39 13 9 1 8 -
Total 82 21 17 5 13 1

A distribuição das 36 ocorrências confirma o predomínio


de VS e Aux V S com formas nominais, tendo ocorrido apenas 5
estruturas com pronomes no século XVIII e apenas uma no
século XIX. Vejam-se alguns exemplos abaixo:

(11) A vista do que ponderou Vossa Mercê no officio, que


hontem dirigiu-me a companhando o do Provedor da Santa
Casa | de Mizericordia (...) (Carta da Santa Casa de
Misericórdia, Palacio do Governo da Bahia, 25/09/1862-BA)

350
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(12) (...) declaro-lhe que pode Vossa Mercê dar-lhe


permissão para deixar o Hospital, no caso de o querer (...)
(Carta da Santa Casa de Misericórdia, Palacio do Governo da
Bahia, 27/01/ 1862-BA)

(13) (...) devendo você persuadir-se da grandíssima vontade


com que sempre lhe desejo dar gosto (...) (Carta do Marquês
do Lavradio ao seu filho, Conde de Vila Verde, 20/02/1770-RJ)

Outras evidências da decategorização (Hopper, 1991) — perda


ou neutralização das marcas morfológicas e propriedades
sintáticas da categoria-origem — no caso de Vossa Mercê, um
nome — e na assunção dos atributos da categoria-destino —
pronome de 2a pessoa — ainda podem ser apontadas.

Como se observou a partir da análise de alguns resultados


estruturais, a gramaticalização de VM > você não levou à perda
completa e imediata dos traços nominais originais e muito menos
à adoção definitiva das propriedades pronominais. Criaram-se
algumas incompatibilidades entre propriedades formais e
semântico-discursivas. Com a inserção de você no quadro
pronominal do português, percebe-se a persistência da especificação
original de 3a pessoa, ou [φeu] nos termos de Lopes (1999, 2003a),
embora a interpretação semântico-discursiva passe a ser de 2a
pessoa [-EU]. Em uma frase como Vocêi disse que eu tei encontraria
aqui para pegar o seui/teui/ livro a interpretação semântica é
inegavelmente de 2a pessoa [-EU], mesmo que o pronome você
esteja correlacionado a formas de 2a [-eu] ou de 3a [φeu] pessoas.
Apesar de ainda ser condenada pelo ensino tradicional, a
combinação de você com formas de 2ª pessoa já era comum no
início do seu processo de gramaticalização. Se os homens e
mulheres do século XIX refletem tão bem isso em suas cartas
quando escrevem “Recebi ontem a sua cartinha que muito me
alegrou ver a tua letra e vejo que estás muito adiantado” e logo
depois “(...) lembrei de quanto você gostava de ver desembarcar
os animais”, imaginem o que não saía de suas bocas! Na análise da
amostra, já identificamos, em duas cartas do Paraná escritas em
1888 e outras duas escritas no Rio de Janeiro, também em fins do

351
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

século XIX (1880-1881), indícios da “mistura de tratamento”


ainda repudiada, no século XX, pelos manuais escolares.
Verificou-se a possibilidade de co-referência ou combinação de
você com formas pronominais de 2ª pessoa (te/teu), exemplicada a
seguir (14-16), ou ainda a variação entre formas verbais na 2ª
pessoa e o imperativo de 3ª pessoa numa mesma carta em (17):

(14) Dizes que tens muita saudade de teu papai que


morreu e de todos nos de ca nos tambem temos muitas
saudades delle de ti, de teu irmão, de tua mamae, de Thia
Paulina e Thio Julio; bem desejo que venhão todos e estou
fazendo uma casa em Botafogo, onde caberemos todos
melhor do que na rua do Conde. Bebê me diz que voce
come bem e esta engordando muito; e como ninguem de
la me diz - Tichet fes tolices - estou acreditando que és um
menino de juiso” (Carta de Christiano Ottoni ao neto Misael,
carta 2, Fevereiro de 1880-RJ)

(15) Has de notar que a cartinha que eu escrevo a


Christiano é mais comprida do que esta: a razão é que elle
escreveu, e eu tive de fallar da carta delle. Mas não deixo de
escrever-te tambem, não so porque quero bem a ambos,
mas para que voce tambem va adquirindo gosto por estas
comunicações, que servem de exercício para vir a escrever
bem. (Carta de Christiano Ottoni ao neto Misael, carta 3,
18/12/1881-RJ)

(16) "Voce e Juvelina recebão lembranças de todos e um


apertado abraço d´esta tua irmã que muito te estima”.
(Carta de Julieta F. L. Ascencao à sua irmã Josephina, Curitiba,
26/08/1888-PR)

(17) Com praser li tua estimada carta de 12 Setembro


ultimo, e por ela comprehendi que frues vigorosa saude 31,
bem assim tua família. (...) A leitura que fiseste dos jornaes
da terra, e o que a “Gaseta” verberou sobre a policia é a
expressão da verdade. (...) Recommende-nos a sua mulher
e filhas. Quando vier me traga um bom sobre tudo: receba
um saudoso abraço do teu velho amigo (Carta 12 de

352
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Francisco de Paula França ao amigo José, Curitiba 02/11/1888-


PR)

Nas cartas de Bárbara Ottoni aos netos9 (Rio de Janeiro —


finais do século XIX) a combinação de formas pronominais de
segunda com formas de terceira pessoas ocorre de maneira
sistemática, principalmente, nos fechamentos de suas cartas. Tais
resultados referendam a hipótese de que a integração da forma você
no quadro de pronomes pessoais ocasionou a reestruturação do
sistema pronominal em termos das variadas possibilidades
combinatórias ou de correspondência que você passou a assumir,
seja em relação aos pronomes possessivos você — teu-seu, seja no
rearranjo causado também nos pronomes oblíquos (dativos ou
acusativos (de) você – te ~ lhe ~ o/a):

(18) Meo Querido Neto Mizael. Recebi a sua cartinha, que


me-deo muito prazer, ver que voce se-tem adiantado
muito. Fiquei muito contente quando sua Mae me-disse que
em principio de Maio estarão cá, pois estou com muitas
saudades de voces todos. Vóvó te-manda muitas
lembranças.a menina de Zulmira está muito engraçadinha ja
tem 2 dentinhos. Com muitas saudades te abraça Sua
Dindinha e Amiga. (Carta de Bárbara ao neto Misael, carta 28,
1883- RJ)

(19) Com muitas saudades te abraça Sua Dindinha do


Coração. (Carta de Bárbara ao neto Misael, carta 30,
26/01/1885-RJ)

(20) Da muitas lembranças a tio Lulu e a Christiano. Luiza


manda lembranças para voces e dis que não respondeo a
carta de Christiano por-que ella não sabe mais escrever.
Com muitas saudades te-abraça Sua Dindinha e Amiga.
(Carta de Bárbara ao neto Misael, carta 31, 05/05/1887-RJ)

9 Algumas cartas de Cristiano Ottoni e Bárbara Ottoni foram incluídas

na amostra compartilhada do Rio de Janeiro, embora estejamos


preparando uma edição fac-similada dessa documentação.

353
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

6. Considerações finais

Embora não possamos estabelecer ainda generalizações


descritivas em função da heterogeneidade da amostra, foi-nos
possível, em síntese, levantar os seguintes aspectos que confirmam
as conclusões obtidas em trabalhos com outros corpora:

a) Nas relações simétricas [+ íntimas] (entre amigos e


primos), predominou, nas cartas brasileiras setecentistas e
oitocentistas, o mútuo tu (T/T) com 72%, ao passo que nas cartas
em que, apesar da simetria, as relações eram [- íntimas], identifica-
se uma freqüência maior para das formas nominais de tratamento,
principalmente, Vossa Mercê com 61% e outras estratégias
nominais (Vossa Senhora, Vossa Excelência) com 39%.

b) Como se observou nas peças teatrais, com o gradativo


desbotamento semântico sofrido por Vossa Mercê, a forma vulgar
você tornou-se mais produtiva nas relações assimétricas de superior
para inferior, principalmente nas cartas pessoais, ao passo que
V.M., ainda em uso nos séculos XVIII-XIX, conservou-se como
forma mais produtiva nas relações assimétricas de natureza
oposta: de inferior para superior.

c) Certas restrições sintáticas como a rigidificação da ordem


SV, a mistura de tratamento nas cartas pessoais e a presença de
co-referentes de segunda pessoa dão indícios de que a
gramaticalização de Vossa Mercê para você começa timidamente no
século XVIII e se implementa de forma mais acelerada no final do
século XIX, principalmente, em substituição ao pronome vós.

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358
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Por uma história social do português no


Brasil
por
Renato Pinto Venâncio
Universidade Federal de Ouro Preto

O Brasil foi colonizado por portugueses. Como


conseqüência disso, a língua portuguesa tornou-se o idioma
nacional. Nenhuma pessoa em sã consciência deixará de
reconhecer a validade dessa afirmação. No entanto, ela pode, de
certo modo, ser relativizada. Por volta de 1500, o atual território
brasileiro era povoado por vários povos indígenas, falantes de
idiomas distintos. Como se não bastasse isso, a adoção da
escravidão implicou a transferência de milhões de africanos – em
90% dos casos provenientes da África Atlântica, compreendida
grosso modo entre Angola e Senegâmbia.

Portanto, não só a língua portuguesa, mas também


indígenas e africanas estiveram presentes no processo de
formação da sociedade brasileira. No entanto, a primeira foi a que
criou raízes, afirmação ainda mais surpreendente tendo em vista a
situação minoritária da população européia no Brasil até fins do
século XIX.

Vejamos essa questão em mais detalhes. O leitor deve se


lembrar que, no século XVI, foi dado início ao povoamento do
Novo Mundo. Nessa época, porém, o interesse comercial
português voltava-se para as regiões asiáticas; procurava-se então
o acesso direto aos mercados de especiarias, como pimenta, cravo,
canela e noz-moscada.

359
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Pouca gente tinha interesse em vir para as terras


americanas, preferindo aventurar-se nas feitorias portuguesas,
estabelecidas principalmente na Índia. Com o passar do tempo, a
situação começou a ficar delicada. Se pelo menos parte do
território recém-descoberto não fosse povoado, haveria chance de
os rivais de Portugal, como era o caso da França, apossarem-se
dele. Ciente desse risco, a Coroa portuguesa tratou de criar
incentivos à colonização. Que incentivos eram esses? Ora, na
época, eles consistiam em conceder terras a quem tivesse recurso
para ocupá-las; daí a política de doação de capitanias hereditárias,
sesmarias e a formação de fazendas açucareiras ao longo da costa
brasileira.

Infelizmente, porém, sabemos muito pouco a respeito


desse período, a tal ponto de qualquer estimativa de povoamento
ser temerária. Mesmo em relação aos escravos africanos, em geral
bem documentados pelos traficantes e cobradores de impostos, os
dados mais confiáveis começam a surgir apenas em fins do século
XVI. No que diz respeito à migração portuguesa, a situação é
ainda mais delicada. A documentação fundamental para esse
estudo, como a de concessão de passaporte, só aparece na
segunda metade do século XVIII, tornando-se regular apenas nas
primeiras décadas do século XIX. Durante todo o período
colonial são desconhecidos os percentuais de portugueses
retornados, havendo assim o risco de assimilarmos os “viajantes”
aos grupos de colonizadores efetivos.

Apesar desses problemas, vários historiadores avançaram


estimativas de população para as primeiras épocas da colonização.
A Tabela 1 indica alguns dos valores relativos ao mundo indígena.
Conforme é possível perceber, os dados demográficos
corroboram com a noção de que as línguas indígenas declinaram
em razão do avanço do processo colonizador. Por volta de 1500,
tal população correspondia à totalidade dos habitantes do atual
território brasileiro. Mesmo cem anos após o início da
colonização, portugueses e africanos, frente aos índios,
representavam menos de 5%. Na época da Independência, a

360
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

situação era inversa. Os povos indígenas haviam se tornado


minoritários. Quando é proclamada a República, a população
indígena passou a ser residual.

Tabela 1: Estimativas de população no Brasil

% de
População popula
População População
Período européia e ção
indígena Total
africana indíge
na
c.1500 4.000.000 – 4.000.000 100,0
c.1822 800.000 3.596.132 4.396.132 18,1
13.948.91
c.1889 215.000 13.733.915 1,5
5

Fonte: MARCILIO, 1986, p. 11-27; KENNEDY &


PERZ , p. 306; e IBGE, 1990, p. 32.

Nesse sentido, é possível afirmar que o processo de


colonização foi uma invasão, uma invasão de povos europeus e
uma invasão forçada de povos africanos. Quanto a isso, as
estimativas minimamente confiáveis datam de meados do século
XVII. Em relação ao período anterior, podemos apenas fazer
suposições. Os dados mostram que inicialmente o Brasil atraiu
poucos colonizadores portugueses.

Até o século XVIII, tal situação permanece pouco alterada.


A exploração do ouro em Minas Gerais reverte abruptamente essa
tendência. Pelo menos em seus primeiros tempos, tal atividade
não exigia grandes investimentos. O mais importante deles
consistia na compra da passagem de navio para o Rio de Janeiro.
Uma vez no Novo Mundo, o português rico seguia em direção às
minas; os que não tinham recursos se tornavam mascates, e, após
conseguir algum dinheiro, partiam para a Capitania do Ouro.

361
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Tabela 2: Estimativas de Migração para o Brasil

Período Portugueses Africanos


1651-1700 100.000 360.000
1701-1800 800.000 1.700.300
TOTAL 900.000 2.060.300

Fontes: ALENCASTRO, 2000, p. 69; SERRÃO, 1982, p.


105-115; e GODINHO, 1975, p. 57.

O aumento do número de imigrantes chegou a ser tão


abrupto que preocupou as autoridades metropolitanas. Leis foram
feitas no sentido de controlar ou até mesmo impedir o fluxo
desordenado de portugueses (Serrão, 1982, p. 110). Temia-se que
o reino se despovoasse, temia-se mais ainda que tal povoamento
estimulasse o contrabando do ouro, e que, dessa forma,
diminuísse o valor dos impostos enviados para Portugal.

No entanto, o esforço de conter a onda migratória teve


fraco efeito. A produção de ouro, por sua vez, permitiu que fosse
intensificada a compra de escravos africanos. Assim, durante o
século XVIII, as duas correntes migratórias aumentaram
intensamente, embora a proveniente do continente negro tenha
predominado sobre a portuguesa. Na Tabela 2 comparamos esses
dois fluxos migratórios. O resultado é revelador: mesmo se
dobrássemos as estimativas relativas à imigração branca, ela
continuaria sendo inferior ao número de africanos para aqui
enviados. Do ponto de vista da formação da população colonial, a
América portuguesa deveria se chamar América africana. E não pense
o leitor que isso se tratava de uma experiência restrita aos
primeiros tempos de nossa história; o contrário, aliás, seria mais
acertado afirmar.

362
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Conforme é sabido, nossa independência política coincide


com a expansão da lavoura cafeeira. Primeiramente nos arredores
do Rio de Janeiro, depois pelo Vale do Paraíba fluminense, em
seguida nas províncias de São Paulo e Minas Gerais, o café se
alastra, levando à multiplicação de fazendas que utilizavam a mão-
de-obra escrava. O efeito disso sobre o tráfico foi intenso,
ampliando-o ainda mais.

As experiências no sentido de reverter a africanização, pelo


menos durante os trinta anos posteriores à Independência,
resultaram quase sempre em tremendos fracassos. Os sobrenomes
italianos, espanhóis e alemães, comuns a muitos brasileiros de
nossos dias, só começaram a ser generalizados nas décadas de
1870 e 1880. Na época de consolidação do Estado nacional, o
contrário aconteceu: paralelamente ao aumento da migração
forçada de africanos, registrou-se o declínio da vinda de
portugueses e demais europeus.

Quanto a essa última corrente migratória, o leitor deve se


lembrar que, em 1808, a Abertura dos Portos não foi somente em
relação aos produtos importados, mas também frente aos povos
amigos. Tratava-se de uma mudança profunda. Até então as
pessoas não provenientes de áreas de domínio português eram
proibidas de desembarcar no Brasil. Independente da
nacionalidade, o estrangeiro era visto como um inimigo em
potencial, um espião ou contrabandista. Os raríssimos relatos de
ingleses ou franceses do período colonial quase sempre são
referentes às cidades portuárias, onde, para abastecerem os navios,
comandantes conseguiam autorizações especiais de governadores
locais.

Eventualmente, a metrópole portuguesa também concedia


licenças para comerciantes estrangeiros atuarem na Colônia, mas,
quase sempre, não era permitido que os mesmos adquirissem
terras, transformando-se em colonizadores efetivos. A partir de
1808, vale repetir, essa situação muda radicalmente. É autorizada a
abertura de consulados e de representações diplomáticas. Mais

363
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

ainda. Novas leis possibilitaram a concessão de lotes de terras a


estrangeiros. O Estado tolera a presença desses grupos e, em
determinadas áreas, a incentiva.

Ao longo da primeira metade do século XIX, os emigrantes


europeus foram dirigidos para São Paulo, Minas Gerais, Espírito
Santo e Bahia. A geografia da imigração era ampla. E não era para
menos, pois tratados diplomáticos então firmados com a
Inglaterra previam a restrição e, a médio prazo, o fim da
importação de escravos africanos. Embora na prática nem sempre
aplicados, esses acordos mostravam a necessidade de se criar
alternativas em termos de mão-de-obra. Os núcleos coloniais da
década anterior à independência procuravam dar os primeiros
passos nesse sentido. Eles seriam, por assim dizer, viveiros de
trabalhadores livres. Também esperava-se que a forma camponesa
em que se organizavam favorecesse a produção de alimentos mais
baratos e de melhor qualidade do que os das fazendas escravistas.

As experiências, realizadas no período colonial com


açorianos, são estendidas a suíços e alemães. Antes mesmo da
Independência criam-se colônias em Ilhéus e Friburgo. Após a
Independência, núcleos semelhantes a esses se multiplicam. Entre
1824 e 1878, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Minas
Gerais e Espírito Santo recebem povoadores alemães (Gregory,
2000, p. 143-145) Os imigrantes eram seduzidos por promessas do
governo. Além do apoio no pagamento de passagens, ofereciam-
se a eles recursos financeiros, terras, gado e sementes.

Porém, as primeiras experiências não deram certo. As terras


ofertadas, em geral, eram pouco férteis. A promessa de auxílio
financeiro, de sementes e gado em pouco tempo deixava de ser
cumprida. Além disso, a falta de experiência dos funcionários
encarregados de organizar as colônias acabava gerando problemas
suplementares. Um desses expedientes consistia, conforme J. J.
Tschudi registrou para o caso de Friburgo, em criar “famílias
artificiais”. Tal procedimento resumia-se em conceder lotes a
grupos de mais ou menos duas dezenas de indivíduos; agrupavam-

364
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

se dessa maneira, na mesma terra, famílias distintas ou mesmo


indivíduos vinculados por laços de amizade ou proteção.

Tão logo os conflitos surgiam, muitos resolviam abandonar


as terras, engrossando a lista dos que assim tinham agido em razão
da pobreza e falta de apoio. Mas não só o lado brasileiro foi
responsável pelo fracasso dos núcleos. A origem urbana de muitos
colonos contribuía para dificultar a adaptação ao meio rural. Havia
emigrantes inexperientes no trabalho agrícola: desempregados
urbanos, ex-soldados e até mesmo criminosos.

Uma experiência limite quanto a isso foi a que envolveu os


mercenários, principalmente alemães e irlandeses. Vindos após a
Independência, em pouco tempo eles haviam se transformado em
um fator de instabilidade no interior do exército e até mesmo de
conspiração contra o Império. Em 1830, quando esses batalhões
são dissolvidos, muitos rumam para o Sul, procurando se
estabelecer na colônia de São Leopoldo. No entanto, sua
inadaptação ao trabalho agrícola acabou transformando-os em
salteadores e bandoleiros na região da Bacia do Prata (Lemos,
1996, p. 469).

Assim, de agentes civilizadores, os novos povoadores


passaram a ser vistos como elementos de instabilidade e de
desordem. Talvez por isso mesmo, em 1830, uma lei proíba gastos
públicos com o financiamento da emigração européia (Ribeiro,
2002, p. 160 passim). Durante um largo período, a vinda
“espontânea” – ou seja, com recursos próprios – ou então a vinda
financiada por fazendeiros e comerciantes tornam-se as únicas
fontes de europeização da população brasileira.

Além dos portugueses, observou-se a chegada espontânea


de italianos, ingleses, franceses, holandeses, belgas, austríacos,
russos, dinamarqueses, poloneses, húngaros, romenos – somente
para mencionarmos os principais grupos. Contudo, seria arriscado
considerar esses imigrantes como povoadores. Muitos deles
vinham em missões artísticas ou científicas devendo ser, por isso

365
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

mesmo, considerados como viajantes, que permaneciam na


maioria das vezes por curtos períodos ou alguns anos, para em
seguida retornarem a Europa.

Suspeita semelhante pesa sobre os portugueses que para


aqui migraram após a independência. Consistia em prática comum
a vinda deles, bastante jovens, para se empregarem como caixeiros
– ou seja, como empregados em casas de comércio ou balconistas.
Não raras vezes, vendiam-se os serviços pessoais em troca do
pagamento da passagem atlântica. Após vários anos de trabalho,
os que conseguiam enriquecer, ou pelo menos reunir alguns
recursos, tratavam de retornar à terra natal. Em algumas regiões
portuguesas, esses retornados tornam-se bastante comuns, quase
um tipo social, sendo denominados como brasileiros.

Aos poucos, porém, a colonização européia ganha outros


estímulos. Associa-se, cada vez mais, a presença de homens
brancos e livres à constituição de uma nação civilizada. Assim, em
fins dos anos 1830 e, principalmente na década seguinte, surgem
companhias de imigração. Nesse caso, o responsável pelo
empreendimento reunia recursos de acionistas, que eram
investidos no transporte marítimo e terrestre, assim como na
compra de alimentos e de ferramentas (Stolcke, 1986, p. 20
passim). Os trabalhadores contratados podiam ser destinados tanto
a núcleos coloniais isolados como ao trabalho em fazendas;
também era permitido montar empresas de “colonização” para
outros fins, tais como aquelas encaminhadas às obras e
melhoramentos urbanos ou à abertura de estradas.

Em todos esses casos, nenhum fator contribuiu mais para o


fracasso das experiências de colonização européia do que a
existência da escravidão. Ao longo de séculos, nas regiões mais
prósperas da sociedade brasileira, foi cristalizado o conceito de
que o trabalho manual era ocupação de escravos. Se em algumas
experiências – como eram os casos das registradas no Sul do país
– o isolamento criava condições para a reprodução do

366
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

campesinato e do trabalho livre europeus, tudo se alterava quando


o imigrante e o escravo eram colocados lado a lado.

Um exemplo desse convívio problemático foram as colônias


de parceria que surgiram em São Paulo. A primeira experiência
ocorreu em 1847, por iniciativa do Senador Vergueiro, rico
proprietário paulista. O empreendimento consistia em fundar uma
companhia, cujo objetivo era recrutar famílias de suíços e alemães
para trabalharem na lavoura de café. Os interessados financiavam
o transporte do imigrante, tanto em relação à viagem marítima,
quanto no deslocamento do porto até a fazenda. Os recém-
chegados também recebiam instrumentos de trabalho e alimentos,
além de uma casa para residirem, devendo, ao longo do tempo,
pagar as dívidas contraídas.

De imediato pôde-se perceber um dos problemas desse


sistema: os imigrantes, antes mesmo de começarem a trabalhar, já
estavam endividados. Esse pagamento era feito com trabalho.
Homens, mulheres e crianças cuidavam de um determinado
número de pés de café, parte do rendimento era destinada a eles e
ao pagamento ao proprietário da fazenda. O mesmo critério era
empregado em relação às pequenas criações ou as plantações – as
roças – que os trabalhadores fizessem por conta própria.

Como as dívidas estavam submetidas a juros e o imigrante


não tinha direito a vender livremente o café produzido, com o
tempo sua condição foi se aproximando à de um escravo, um
escravo branco, como se dizia na época. Assim, não só o fato de
trabalharem ao lado de cativos africanos, mas também o de não
poderem deixar a fazenda, fazia com que eles se afastassem da
condição de homem livre. Eis o testemunho de Thomas Davatz,
suíço que conheceu de perto essa situação:

Os colonos que emigraram, recebendo dinheiro adiantado


tornaram-se, pois, desde o começo, uma simples
propriedade de Vergueiro & Cia. E em virtude do espírito
de ganância, para não dizer mais, que anima numerosos

367
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

senhores de escravos, e também da ausência de direitos em


que costumam viver esses colonos na província de São
Paulo, só lhes resta conformarem-se com a idéia de que são
tratados como simples mercadorias, ou como escravos.

Apesar de mal-sucedidas, essas experiências revelam um


aspecto importante das mudanças que estavam se processando na
sociedade local. Ao longo da primeira metade do século XIX, a
pressão inglesa pelo fim do tráfico só fez dificultá-lo, até, por fim,
suprimi-lo. Ora, à medida que as leis restringido o tráfico
internacional de escravos eram promulgadas, o preço dos escravos
aumentava, atingindo valores elevadíssimos. Tal situação
estimulou constantemente experiências de migração internacional
destinadas ao Brasil.

Por outro lado, o aumento do preço dos cativos também


implicou a transferência de muitos deles da cidade para o campo.
Dessa forma, o número de trabalhadores urbanos foi diminuindo.
Onde era possível, procurava-se sanar o problema da falta de
mão-de-obra através da utilização de prisioneiros. Porém, os então
denominados galés quase sempre consistiam em trabalhadores não
especializados e que, na primeira oportunidade, tratavam de fugir.

Nesse contexto, criava-se espaço para a contratação de


pedreiros e carpinteiros de procedência européia. Apesar dos
esforços feitos, na maioria dos casos, a história desses
empreendimentos é uma crônica de fracassos. E isso não diz
respeito somente às experiências nas fazendas de café ou no meio
urbano. Houve casos, como o da região mineira do Vale do
Mucuri, em que o núcleo colonial foi instalado no meio rural
isolado, em região de mata virgem, mesmo assim os resultados
foram negativos: distribuídos em áreas insalubres, infestada por
doenças endêmicas e animais selvagens, tendo de enfrentar grupos
indígenas resistentes à ocupação, os alemães e suíços do Mucuri
faleceram ou abandonaram o empreendimento colonial (Otoni,
1858).

368
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Assim, dependendo da região, o imigrante podia ser


atacado por animais selvagens, morrer de malária, ser vitimado em
conflitos indígenas ou se tornar escravo de fazendeiros.
Convenhamos, o quadro não era muito animador. Não demorou
muito para essas informações começarem a circular no mundo
europeu, através de livros de memórias ou de depoimentos e
denúncias publicados em jornais. Por influência da opinião pública
dos países de origem, comissões são criadas para avaliar as
condições de vida dos trabalhadores no Brasil. Quase sempre
essas avaliações eram as piores possíveis, levando, como fez a
Alemanha, a não autorizar, por alguns anos, a vinda de novos
imigrantes.

A comparação entre os dados de povoamento é reveladora


do fracasso dos primeiros projetos de europeização da população
brasileira. Se, durante o período colonial, os escravos africanos
vieram em uma proporção duas vezes mais intensa do que a dos
homens livres portugueses; após a Independência, essa
desproporção – mesmo se adicionarmos a ela imigrantes de
diversas nacionalidades –, havia se tornado três vezes mais
elevada.

Tabela 3: Estimativas de Migração para o Brasil

Procedência do
Período Total
imigrante
Européia 1820-1876 350.117
Africana 1821-1860 1.150.500
TOTAL 1.500.617

Fontes: ALENCASTRO, 2000, p. 69; KLEIN, 1989, p. 20.

Dessa forma, ao longo dos quatro primeiros séculos de


nossa formação, assiste-se a um declínio acentuado dos grupos
indígenas paralelamente a uma africanização crescente da

369
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

população brasileira. Em fins do século XIX, registra-se uma


reversão desse processo, não em função do crescimento da
população nativa, mas sim pela intensa chegada de povos
europeus e asiáticos. O levantamento dos dados dessa migração
revela, porém, um quadro surpreendente: entre 1887 e 1930, os
portugueses não foram o grupo de imigrante predominante,
representando bem menos do que a metade dos imigrantes
europeus que no período vieram para o Brasil.

Tabela 4: Principais grupos de imigrantes estrangeiros


vindos para ao Brasil, 1887-1930

Nacionalidade N. Abs.
Italiana 1.341.649
Portuguesa 1.097.809
Espanhola 560.539
Japonesa 100.653
TOTAL 3.100.650

Fonte: KLEIN, 1989, p. 20.

Como se vê, desde o início da formação da atual sociedade


brasileira, a língua portuguesa teve de conviver com outras rivais.
No século XVI conviveu com diversas línguas indígenas, que
contavam com um número bem mais elevado de falantes se
comparadas ao idioma metropolitano. Do século XVII ao XIX,
foi a vez do imigrante forçado africano, que em terras coloniais
disseminou novas formas de falar. No século XX, assiste-se à
chegada em massa de europeus e asiáticos, com predominância do
italiano.

Diante desse contexto, como foi possível o português ter se


tornado a língua dominante? Ora, os dados apresentados sugerem
que a representatividade social – do ponto de vista demográfico -
não é o elemento determinante na expansão de um idioma. Caso
fosse assim, a língua portuguesa nunca teria conseguindo atingir a
importância que efetivamente atingiu na sociedade brasileira. Isso

370
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

só foi possível pelo fato de este idioma refletir simbolicamente as


hierarquias econômicas, sociais e políticas. O português foi a
língua do poder e como tal garantiu sua hegemonia mesmo em
situações que aparentemente lhes eram desfavoráveis.

Referências
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil
no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
DAVATZ, Thomas. Memórias de um colono no Brasil (1850). São
Paulo:Edusp; Belo Horizonte:Itatiaia, 1980.
GODINHO, Vitorino Magalhães. Estrutura da antiga sociedade portuguesa. 2.
ed. Lisboa: Arcádia, 1975.
GREGORY, Valdir. Imigração Alemã: a formação de uma comunidade
teuto-brasileira. In: IBGE. (Org.) Brasil: 500 anos de povoamento.Rio de
Janeiro: IBGE, 2000.
IBGE. Estatísticas históricas do Brasil: séries econômicas, demográficas e
sociais de 1550 a 1988. 2. ed. Rio de Janeiro, 1990.
KENNEDY, David P. e PERZ, Stephen G. Who are Brazil's indigenas?
Contributions of census data analysis to anthropological demography of
indigenous populations. Human Organization, Vol 59 (3), 2000.
KLEIN, Herbert S. A integração social e econômica dos imigrantes
portugueses no Brasil no fim do século XIX e no século XX. Revista
Brasileira de Estudos de População, v. 6, n. 2, 1989.
LEMOS, Juvêncio Saldanha. Os mercenários do imperador: a primeira
corrente migratória alemã no Brasil (1824-1830). Rio de Janeiro:
Biblioteca do Exército, 1996.
MARCILIO, Maria Luíza. A população do Brasil em perspectiva
histórica. In: COSTA, Iraci del Nero da (Org.). Brasil: história econômica
e demográfica. São Paulo: IPE-USP, 1986.
OTONI, Teófilo. Notícia sobre os selvagens do Mucuri (1858). Belo
Hortizonte: Editora da UFMG, 2002.
RIBEIRO, Gladys Sabina A liberdade em construção: identidade nacional e
conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado. Rio de Janeiro: Relume-
Dumará, 2002
SERRÃO, Joel. A emigração portuguesa: sondagem histórica. 4. ed. Lisboa:
Livros Horizontes, 1982.
STOLCKE, Verena. Cafeicultura: homens, mulheres e capital(1850-
1980). São Paulo: Brasiliense, 1986.
TSCHUDI, Johann Jakob von Viagem às províncias do Rio de Janeiro e São
Paulo (1866). Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo: Edusp, 1980.

371
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Panorama preliminar da história do


letramento de negros na Bahia.
por
Rosa Virgínia Mattos e Silva
Universidade Federal da Bahia /CNPq

Klebson Oliveira
Universidade Federal da Bahia /CNPq

e
Tânia Lobo
Universidade Federal da Bahia

Parte I. Das luzes da Metrópole às sombras da


Colônia: indícios de letramento de africanos e
afro-descendentes na segunda metade do século
XVIII*

“Julgamento é sempre
defeituoso, orque o que a gente
julga é o passado”
Guimarães Rosa

* A Parte I é de autoria de Rosa Virgínia Mattos e Silva, UFBA/CNPq.

373
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Introdução

Na primeira parte de nosso trabalho, utilizarei apenas


fontes indiretas (historiadores da história, da cultura, da educação
e da língua portuguesa no Brasil, também dicionários de história
sobre o Brasil colonial). Tratarei primeiro da instrução em espaços
institucionais (no item 1) e, em seguida, mais uma vez, buscarei
indícios para o letramento em espaços extra-institucionais na
segunda metade do século XVIII (item 2).

Relembrarei que, em nosso III Seminário do PHPB, o de


1999, ao sugerir pautas de pesquisa para a reconstrução do
passado do português vernáculo brasileiro, disse,
metaforicamente, que esse percurso seria um rastreio de natureza
arqueológica. Nesse mesmo trabalho, destaquei, em citação de
Afrânio Gonçalves Barbosa (1998), que o tipo de fonte ideal
dificilmente chegaria às nossas mãos: um Appendix Probi dos
colonos brancos e pardos. Como veremos na segunda parte deste
trabalho, temos em mãos não um Appendix Probi, mas um arquivo
particular, o da hoje designada Sociedade Protetora dos
Desvalidos. Trabalho de muitas mãos e cabeças, o rastreio do
passado do vernáculo brasileiro está gerando resultados que, ao
iniciarmos o nosso Projeto nacional, não suspeitávamos.

1. A instrução em espaços institucionais: um


breve traçado

Vale lembrar, para iniciar, que, entre as quatro vias


propostas por Antônio Houaiss para tentar explicar o português
do Brasil, a quarta é a “penetração da língua escrita no Brasil (...)
não numa leitura estética (...) mas essencialmente lingüística”
(1985: 127-128). Relembrando ainda, e para homenagear o nosso
filólogo, é ele quem afirma: “os letrados que falavam ou
escreveram no Brasil sobre o Brasil dos dois ou três primeiros
séculos representariam algo como 0.5% a 1% da população (...) o

374
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

resto da população era não-letrada, iletrada, iliteratada, analfabeta”


(1985: 88-89).

Embora oponha letrados a iletrados, Houaiss não define o


que seria um letrado. Segundo Ronaldo Vainfas (2000), “no
mundo luso-brasileiro [o termo letrado] designava comumente os
detentores de um saber específico, ligado ao uso da escrita, que os
tornava aptos ao exercício das chamadas profissões nobres,
distintas dos ofícios mecânicos”. No império português, os
letrados ocuparam funções distintas: juízes de fora, ouvidores,
desembargadores, secretários e demais funcionários,
indispensáveis à administração do Império. Juntamente com o
clero “contribuíram para a difusão, embora muito limitada, de
uma cultura letrada na colônia” (s.v.: Letrados).

Como é sabido, de 1549 a 1759, foi a Companhia de Jesus


– ‘Companhia’ aqui no seu sentido original militar – o braço forte
religioso no império português. Iniciada a Companhia, em
Portugal, por D. João III, em 1532, foram os jesuítas os
responsáveis quase que exclusivos pela instrução em espaços
institucionais, em todo o império luso e, conseqüentemente,
também aqui na colônia brasileira. Mas já então pude rastrear,
utilizando fontes históricas secundárias, alguns indícios de
letramento de africanos e afro-descendentes no Brasil.

Segundo o historiador da educação Nelson Piletti, ao serem


expulsos em 1759, os jesuítas mantinham:

36 missões, escolas de ler e escrever, em quase todas as


povoações e aldeias onde se espalharam 25 residências,
além de dezoito estabelecimentos de ensino secundário,
entre colégios e seminários localizados na Bahia, São
Vicente, Rio de Janeiro, Olinda, Espírito Santo, São Luís,
Ilhéus, Recife, Paraíba, Santos, Pará, Colônia do
Sacramento, Florianópolis (Desterro), Paranaguá, Porto
Seguro, Fortaleza, Alcântara, Vigia (Piletti, 1995: 33).

375
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

A história da Companhia de Jesus é muito conhecida.


Quero, contudo, destacar o seguinte: é no ensino das primeiras letras
que os jesuítas melhor mostraram a sua capacidade de adaptação,
para atingirem os seus fins. Segundo o mesmo historiador,
“penetravam com igual facilidade na casa grande dos senhores, na
senzala dos escravos e nas aldeias indígenas” (Piletti, 1995: 33, grifos
nossos).

Se os jesuítas penetravam nas senzalas dos escravos, com a


intenção missionária, não é de se descartar a possibilidade de
alguma semente, ou apenas de algum desejo de letramento, entre
algum ou alguns escravos.

É outro historiador da educação no Brasil, agora uma


mulher – Maria Luísa Santos Ribeiro –, que apresenta outro
indício de letramento de afro-descendentes. Como a procura pela
escola era maior que a capacidade dos colégios da Companhia,
“chegou a causar problemas, como a Questão dos moços pardos,
resolvida em 1689” (1995: 24).

Em nota, esclarece a autora que essa Questão surge da


“proibição, por parte dos jesuítas, da matrícula, por serem muitos
e provocarem arruaças. Como eram escolas públicas, pelos
subsídios que recebiam, foram obrigadas a readmiti-los”. Não
indica, contudo, a autora em que local do Brasil ocorreu essa
Questão.

O fruto proibido sempre foi objeto de desejo. Esse


episódio dos moços pardos certamente indica que a busca pela escola
não teria sido apenas essa. É ainda a Antônio Houaiss que recorri.
Ao afirmar, como se sabe, que os jesuítas foram os únicos agentes
“culturalizadores” no Brasil do século XVI aos meados dos
XVIII, diz que “houve pessoas avulsas, de vária natureza, como
preceptores, os filhos-famílias, o que se estendeu até o século XX”
(1985: 131) e eu diria que até os nossos dias, com os professores
leigos dos interiores pobres brasileiros.

Em Formação do Brasil Colonial, os historiadores Arno


Wehling e Maria José Wehling, ao tratarem da educação na

376
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

colônia, dizem que os jesuítas não deveriam discriminar os alunos


ou candidatos por suas origens sociais ou étnicas; existiram,
contudo, casos de discriminação, como o que foi censurado pelo
governo português em 1686, em carta ao governador-geral
Marquês das Minas, por parte dos moços pardos, com o argumento
de que “nas escolas de Évora e Coimbra eram admitidos” (1994:
287-288). Não dizem os autores se os moços pardos ganharam a sua
questão. Outras certamente terá havido.

Assim, já no século XVII, os pardos, pelo menos, buscavam


tornar-se letrados.

Expulsos os jesuítas do Brasil pelo primeiro ministro do


Monarca Ilustrado, D. José I – a controvertida figura do Marquês de
Pombal (Sebastião José de Carvalho e Melo) –, por alvará de 28 de
junho de 1759, mudam-se as orientações sociopolíticas da
metrópole e se refletem na Colônia. Interessam-nos aquelas
medidas que se referem à educação.

Segundo a historiadora da educação, já mencionada, Maria


Luísa Ribeiro, o referido alvará criou cargos, proibiu o ensino sem
licença, designou comissários para verificarem o estado das
escolas e dos professores (cf. p. 33) e apresentou os novos
objetivos para a educação, obviamente, distintos da pedagogia
jesuítica e sua Ratio Studiorum. Desses objetivos, a meu ver, o mais
significativo é o que se refere a diversificar o conhecimento,
incluindo o de natureza científica. As diretrizes pombalinas para a
educação foram baseadas no Verdadeiro método de estudar de Luís
Antônio de Verney, na Educação para a mocidade de Antônio Ribeiro
e na Gramática latina, da ordem dos Oratorianos, ordem a que
pertencia Verney.

O plano pombalino, contudo, fracassou, tanto na


metrópole como nas colônias, por falta de mestres preparados
para substituírem a longa rede escolar jesuítica e também pela falta
de dinheiro, apesar do subsídio literário, título criado pela lei de 10
de novembro de 1772 e instrumento das reformas pombalinas
para a instrução (cf. Nizza da Silva, 1994, s. v.: Subsídio literário).
Teve de positivo, entretanto, o fato de terem existido ‘ilustrados’

377
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

no Brasil que, ao retornarem do exterior, tiveram grande atuação,


como, por exemplo, Alexandre Rodrigues Ferreira, médico e
naturalista, autor da grande obra Viagem Filosófica pelas Capitanias do
Grão Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá em 1783-1792 (editada
em 4 volumes em 1971 pelo Conselho Federal de Cultura) e José
Joaquim de Azeredo Coutinho, fundador do Seminário de Olinda
(cf. Gilberto Luis Alves, 2000: 62-78). Segundo Nelson Piletti, o
Seminário de Olinda, criado em 1798, tornou-se centro de difusão
de idéias liberais (1995: 37).

É o mesmo Piletti que informa sobre as aulas régias:

a partir de 1772 graças ao subsídio literário foram dezessete


aulas de ler e escrever, quinze aulas de Gramática latina, seis
aulas de Retórica, três aulas de língua grega e três de
Filosofia, em vários pontos do país (1995: 37).

Ao todo, portanto, quarenta e quatro aulas régias no


território brasileiro ao finalizar o século XVIII. Enquanto isso
ocorria na colônia, na metrópole, em 1772, foram designados
“quatrocentos e quarenta ‘mestres de ler, escrever e contar’ e
duzentos e cinco professores de latim, isto falando apenas do
território do continente” (Marquilhas, 1991: 14).

Para finalizar esse breve traçado da instrução em espaços


institucionais, nada melhor que o depoimento vivido e relatado,
sob a forma de 24 cartas, de Luís dos Santos Vilhena, escritas na
Bahia, ao findar o século XVIII, e só publicadas cem anos depois,
com o título de Recopilação de Notícias Soteropolitanas e Brasílicas e que
tinham como destinatário o regente D. João. Em 1787, Vilhena,
um dos três mestres de grego que vieram para o Brasil, foi
designado para o lugar de mestre régio de grego na Bahia (cf.
Vainfas, 2000, s.v.: Luís dos Santos Vilhena).

Na Carta V, diz Vilhena sobre o iletramento na Bahia de


então:

(...) são uns mulatos ou negros tão estúpidos, que eu não


conheci ainda um que soubesse ler, ou escrever o seu

378
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

nome, e se algum branco exercita a arte, nada difere


daqueles quanto à instrução (1969: 189).

O depoimento de Vilhena deve ser verdadeiro, já que suas


Cartas são consideradas “a mais importante obra de descrição e
análise da América portuguesa no final do século XVIII” (cf.
Vainfas, 2000: s. v.: Luís dos Santos Vilhena).

Em face do exposto, concordo com Nelson Piletti que “o


ensino no Brasil, ao findar o século XVIII, estava reduzido a
pouco mais que nada” (1995: 37).

Do que pude ler sobre a instrução em espaços


institucionais, na segunda metade do século XVIII, não depreendi
nenhum indício da participação nas aulas régias pombalinas de
africanos e afro-descendentes. Nesse sentido, no período jesuítico,
a questão dos pardos, já no século XVII, e a ‘penetração’ dos jesuítas
nas senzalas são indicadores de que, no tempo da Companhia de
Jesus, teria havido a possibilidade de menos discriminação para os
segmentos menos privilegiados da sociedade colonial.

2. A busca de indícios de letramento em espaços


extra-institucionais: o papel significativo das
irmandades

Subdividirei este item em dois. No primeiro, tento rastrear,


em historiadores do Brasil colonial, indícios de instrução em
espaços extra-institucionais e, no segundo, vou centrar-me no
papel das irmandades, em função da aquisição da escrita e leitura
por africanos e afro-descendentes.

2.1. Rastreando indícios em espaços extra-


institucionais

Os historiadores Arno e Maria José Wehling, ao tratarem


da mobilidade social na colônia, afirmam que foi na região das
minas que ocorreu no século XVIII a mobilidade mais intensa,
tanto pela atividade mineradora, como pelos demais

379
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

empreendimentos econômicos, em torno das e nas cidades, centro


da exploração de ouro e diamante, nessa época. Concluem com a
seguinte afirmação:

Aí, como nas cidades portuárias, é difícil precisar quando


um artesão bem-sucedido deixava de ser “homem livre e
pobre” para tornar-se elemento do setor intermediário
(1994: 230)

Cruzando essa informação com a oposição entre letrados,


profissões nobres, e ofícios mecânicos, profissões, portanto, não-
nobres, poder-se-ia inferir da afirmativa acima que, entre os
“homens livres e pobres”, poderiam estar libertos africanos e/ou
afro-descendentes que, ao alçarem-se ao “setor intermediário”,
poderiam adquirir alguma forma de instrução. Fica a hipótese a ser
debatida e pesquisada.

Os mesmos autores, ao tratarem de Sentimentos religiosos e


crenças, referem-se ao fato de que o comportamento religioso
ultrapassava as fronteiras sociais, “revelando-se comum a
senhores e escravos no momento da morte” (cf. p. 245) e relatam
o seguinte fato ocorrido em 1782, portanto na segunda metade do
século XVIII, que afirmam ser “um, entre muitos”:

A liberta Antônia Rodrigues Correa, mãe de uma freira em


Portugal, determinou que se rezassem por sua alma cem
missas de 320 réis no Rio de Janeiro e 120 réis em Portugal,
o que custou muito mais do que seu túmulo (1994: 245).

Esse trecho, provavelmente, pinçado do testamento da


liberta, portanto ex-escrava, fez com que eu levantasse a hipótese
de que a referida liberta teria algum letramento ou convívio com
“letrados”, pelo menos para se comunicar com a filha,
inevitavelmente de ascedência africana e possivelmente com
algum letramento, na metrópole. A lição que pude tirar desse fato
é de que, certamente, os testamentos serão fontes diretas para
recompor vários aspectos da história social lingüística ou
sociolingüística do Brasil colonial e pós-colonial, como, por

380
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

exemplo, demonstrou Tânia Lobo, na sua tese de doutoramento,


ao identificar os remetentes das Cartas que editou (cf. Lobo, 2001).

Os historiadores da cultura no Brasil colonial apresentam


outros indícios e alguns fatos:

Leila Mezan Algranti, em Famílias e vida doméstica (1997: 83-


154), mostra como era impreciso o que continha o “espaço do
domicílio”, constituído desde “apenas pessoas de uma família
nuclear e um ou dois escravos; em outras somaram-se a essa
composição agregados e parentes próximos (...) isso sem falar nos
filhos naturais e ilegítimos que, muitas vezes, eram criados com os
legítimos” (p. 86-87). Em Formas de sociabilidade no ambiente doméstico
(p. 113-119), destaca, entre essas formas de sociabilidade, a prática
da leitura em voz alta ou silenciosa como uma forma de se
desfrutar a intimidade e o convívio familiar. Como vimos que
eram imprecisas as delimitações dos que ocupavam os domicílios,
pode-se inferir que escravos, pelo menos os domésticos, e libertos
participariam da prática de ouvir a leitura em voz alta, o que muito
provavelmente despertaria o desejo de ler e, quem sabe, o de
escrever. Para afirmar o hábito da leitura em voz alta, a autora
fundamenta-se em inventários paulistas. Além dos inventários, são
outras fontes citadas pela autora os Livros de Razão e Livros de
Assentos (ou Assentamentos) para uma reconstituição da
“sociabilidade no ambiente doméstico”, entre esses hábitos o da
leitura. Do conjunto dos livros de Assentos, destaca Laura de Mello e
Souza o do coronel Costa Aguiar (1997: 443). É ainda Laura de
Mello e Souza que afirma:

Os domicílios dos mais bem situados socialmente foram


talvez o espaço privilegiado da intimidade [no Brasil
colonial]: boa parte da população doméstica costurava,
produzia farinha de milho ou de mandioca, fabricava
aguardente, trançava cestos (...) (cf.. p. 441).

E já vimos que também havia o hábito de ler em voz alta


ou silenciosa. Conclui a autora referida que é “a onipresença da
escravidão que impunha o convívio estreito, em cada domicílio,
entre homens livres e cativos mais europeizados e negros

381
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

africanos” (cf. p. 442). Esse fato, por todos conhecido, leva a


inferir que esse “convívio estreito em cada domicílio” terá sido
um fator favorecedor ao letramento de africanos e afro-
descendentes em espaços não-institucionais.

É outro historiador da cultura, Luís Carlos Villalta, em O


que se fala e o que se lê: língua, instrução e leitura (1997: 332-385), que
afirma que “foram múltiplos os lugares da educação e,
inversamente, estreitos os espaços da instrução escolar e dos
livros” (cf. p. 334).

Já vimos, no item 1 deste trabalho, a questão ou as questões


dos pardos no século XVII. O historiador Villalta relata que em
1721, século XVIII:

o governador de Minas, d. Lourenço de Almeida, recebeu


ordem de d. João V para que, em cada vila, se pagassem
mestres para ensinar a ler e escrever, a contar e ainda o
latim à metade de ilegítimos da capitania. Embora dissesse
que cumpriria a determinação, acabou por não tomar
qualquer iniciativa (p. 350).

Logo em seguida, narra Villalta que, quase quarenta anos


depois, em Mariana, o juiz de fora e de órfãos arbitrou à viúva de
Manuel Pimenta, mulher parda, valor menor que o por ela pedido
para sustentar, educar e instruir seus filhos, sugerindo-lhe que “os
colocasse para servir” (cf. p. 350-351).

Esses fatos históricos ocorridos na primeira metade do


século XVIII, somados às questões dos pardos no século XVII,
demonstram que, desde o segundo século da colonização, os
africanos e afro-descendentes buscavam instrução – escrita, leitura
etc.

Pelos indícios e fatos aqui reunidos, vemos que há ainda


muita pesquisa a fazer para compor a história do letramento dos
ditos “ilegítimos” – negros, pardos, pobres – no Brasil colonial e
pós-colonial.

382
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

2.2 O papel significativo das irmandades na questão


do letramento de africanos e afro-descendentes

As Irmandades remontam à Europa medieval. No mundo


colonial português, estão situadas na base da pirâmide social as
irmandades negras, sobretudo as de escravos (Vainfas, 2000). Através
das irmandades, os negros conseguiam encontrar o seu lugar no
sistema social religioso, apesar da escravidão, e davam elas aos
escravos e forros um instrumento de ação social (Nizza da Silva,
1994).

É a reconhecida especialista na história do Brasil colonial e


pós-colonial, Kátia Mattoso, que, no seu Ser escravo no Brasil,
informa ser a educação escolar proibida no Brasil para os
escravos, como sabemos, mas até os forros não tinham direito de
freqüentar aulas e afirma:

Senhores e curas que resolvem ensinar a leitura e a escrita a


escravos transgridem as regras estabelecidas e são poucos.
Eis porque o escravo brasileiro é um desconhecido, sem
arquivos escritos (1990 [1982]: 113).

Mais adiante acrescenta:

A partir do fim do século XVII, quando o número de


escravos e forros se multiplica, aparecem as primeiras
confrarias de gente de cor. Elas reagrupam homens livres,
forros e escravos de acordo com suas origens étnicas (1990
[1982]: 148).

João José Reis, historiador da escravidão no Brasil, que, no


seu livro Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês - 1835,
ao historiar a rebelião, apresenta muitas informações sobre os
escravos islamizados, entre elas a de que malê e haussá eram
sinônimos; entre outros relatos, destaco parte do Relatório do chefe
de polícia sobre o levante malê de 1835 (outros houve antes e
depois desse) e sobre os rebeldes:

383
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Em geral vão todos eles sabendo ler e escrever em


caracteres desconhecidos, que se assemelham ao árabe
(1986: 116).

Sabe-se que qualquer muçulmano deve, pelo menos,


aprender a ler a fim de meditar sobre o seu livro sagrado. O
mesmo ocorria em Salvador nos inícios do século XIX, entre os
malês, embora, na interpretação de João José Reis, os papéis
escritos tivessem um caráter simbólico, como outros símbolos
malês que enumera e explica (id. ibid.: 199 e ss.). Vale também
ressaltar, seguindo Reis, que não só os haussás eram
muçulmanizados, mas também os nagôs, ou iorubás, e os
mandingas (1986: 111-118). O mais interessante para o nosso
objetivo, que é a aquisição da escrita em espaços não-
institucionais, é o fato de que o “primeiro grande contingente de
africanos muçulmanos chegou a Bahia na passagem do século
XVIII para o XIX” (cf. p. 111). Note-se que, conforme o mesmo
autor, havia, entre os malês, os mestres e os discípulos aprendizes.

Que posso eu inferir disso tudo, em função de meu foco?


Se os malês escreviam em caracteres árabes algo que fosse da
língua árabe, não será de supor que, pelo menos os mestres,
soubessem ou desejassem saber ler e escrever nas suas línguas de
origem e também em português? Fica mais essa cogitação a ser
pesquisada.

Para não me alongar mais, é nas confrarias ou irmandades, já


referidas em Kátia Mattoso, que João Reis vai mostrar – no seu
artigo Identidade e diversidade étnicas nas irmandades negras no tempo da
escravidão, depois de historiar essas instituições no Brasil e rastrear
seu percurso desde 1685 em Salvador – que:

a importante Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos


Pretos das Portas do Carmo (...) provavelmente fundada
por negros de Angola, no final do século XVIII já contava
entre seus membros com crioulos, jejes e outros africanos
(1986: 14).

384
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Muito significativo para o nosso objetivo é o episódio


seguinte historiado por João Reis, que vale transcrever:

Em 1789, data inaugural da Revolução Francesa, os irmãos


de São Benedito [do Convento de São Francisco em
Salvador] pediram permissão para reformar o compromisso
de 1730, excluindo os brancos dos cargos de escrivão e
tesoureiro. Em 1730, argumentaram, não havia negros
letrados, mas agora, escreveram, a iluminação do século
[nos] tem feito inteligentes da escrituração e contadoria
(1986: 22).

Ainda sobre irmandades no século XVIII, veja-se o trabalho


pioneiro, apresentado no II Seminário do PHPB, pelo historiador
Renato Pinto Venâncio – Migração e alfabetização em Mariana colonial
(2001: 391-399).

Assim as luzes da metrópole já iluminavam as sombras da


colônia, pelo menos, desde 1789, ao findar o século XVIII, e o
rico arquivo da Sociedade Protetora dos Desvalidos, antes
Irmandade de Nossa Senhora da Soledade do Amparo dos
Desvalidos, não terá sido a estréia da escrita por africanos e afro-
descendentes.

A lição que podemos tirar dessa busca de indícios de


letramento na segunda metade do século XVIII é que as sombras
da colônia ocultaram muitos desejos, que se realizaram ou não, e
que poderão ser desvelados, pesquisando-se arquivos públicos e
particulares; neles será documentação privilegiada pelo menos:
testamentos, inventários, cartas em geral e, em especial, cartas de
assentos ou assentamentos, e os estatutos ou compromissos das
Irmandades do Brasil colonial.

385
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Parte II. A cor falou mais alto: prevalências e


preferências no letramento de negros na Bahia
de oitocentos*

Na Bahia do século XIX, segundo Mattoso (1992), as


instituições religiosas monopolizavam, até a Independência, a
instrução, sobretudo no nível secundário. Só a partir do primeiro
Império, surgiram, timidamente, cátedras – gramática, latim, grego
e francês – desvinculadas do comando eclesiástico. No ano de
1834, no segundo império portanto, um ato adicional autorizou as
assembléias legislativas das províncias a elaborar leis referentes ao
ensino primário e secundário, entretanto, somente em 22 de abril
1862 definiu-se a estrutura escolar. Na Bahia, foram criadas duas
escolas normais: uma para moços e outras para moças.

Apesar dessa tentativa de laicizar o ensino, só conseguiam


vagas nessas novas escolas os filhos da classe abastada que tinham
nos seus horizontes o ingresso no curso superior de Direito.
Sendo assim, a entrada nas escolas públicas ou particulares que
começaram a surgir na Bahia oitocentista continuava restrita.
Contrariamente ao que seria esperado, a população baiana, e mais
especificamente a soteropolitana, não atravessa o século XIX
imersa no analfabetismo. Será no primeiro censo oficial de 1872,
referente à cidade de Salvador, que encontraremos, no rastro de
Mattoso (1992), números que reforçam essa afirmação.

A cidade de Salvador, no século XIX, dividia-se em 11


paróquias. Os dados do censo de 1872 apresentam a vantagem de
distribuírem os números de alfabetizados por paróquia, o que nos
possibilita desenhar um perfil quanto a esse aspecto em cada uma
delas. Na primeira tabela, apresentam-se os números referentes ao
conjunto da população da cidade, distinguindo-se os homens das
mulheres.

* A Parte II é de autoria de Klebson de Oliveira, UFBA/CNPq.

386
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Tabela 1
Homens Mulheres
Paróquias
Sim Não Total Sim Não Total
Sé 2629 3245 5874 2922 4217 7139
São Pedro 1921 4068 5989 642 5766 6408
Sant’Anna 3427 6020 9447 2820 5227 8047
Conceição da
2630 700 3330 651 359 1010
Praia
Vitória 2041 3452 5463 1843 2092 3935
Paço 525 1077 1602 137 1459 1596
Pilar 1627 2241 3868 722 2847 3569
Santo Antônio
2529 4728 7257 2119 6127 8246
Além do Carmo
Brotas 3090 400 3490 806 200 1006
Mares 500 1328 1828 224 1526 1750
Penha 842 1499 2341 604 1808 2412
Total 21761 28758 50519 13490 31628 45118

Reestruturamos essa tabela fornecida por Mattoso de modo


a tornar explícitos os percentuais de alfabetizados sobre o total de
habitantes de cada paróquia:

Tabela 2
Homens Mulheres
Paróquias
Total Alfab. % Total Alfab. %
Sé 5874 2629 44,8 7139 2922 40,9
São Pedro 5989 1921 32,1 6408 642 10,0
Sant’Anna 9447 3427 36,3 8047 2820 35,0
Conceição da
3330 2630 80,0 1010 651 64,5
Praia
Vitória 5463 2041 37,2 3935 1843 46,8
Paço 1602 525 32,8 1596 137 8,8
Pilar 3868 1627 42,1 3569 722 20,2
Santo Antônio
7257 2529 34,8 8249 2119 25,7
Além do Carmo
Brotas 3490 3090 88 1006 806 80,1
Mares 1828 500 27,4 1750 224 12,8
Penha 2341 842 36,0 2412 604 25,0
Total 50519 21761 43,1 45118 13490 29,9

387
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

De acordo com esses dados do censo de 1872, a média de


escolarização entre os homens se situava em torno de 43.1%, ao
passo que, para as mulheres, a média se mantinha em 29.9%.
Esses números refletem a tendência geral de, naquela altura, os
homens terem mais possibilidades de se letrarem do que as
mulheres1. Contudo, é na observação dos percentuais em cada
paróquia que se observam aspectos interessantes que os índices
totais escondem.

Em primeiro lugar, há de se notar as disparidades entre as


paróquias quando comparadas entre si. Dentro da população
masculina, as paróquias de Brotas e da Conceição da Praia
surpreendem pelos altíssimos índices de alfabetização (88.5% e
80.0%, respectivamente). Sendo assim, estariam essas localidades
em um extremo, ao passo que, no outro, se localiza a paróquia de
Mares. Se a média de alfabetização entre os homens, no conjunto
da população, era de 43.1%, três paróquias estavam acima dessa
média: Brotas, Conceição da Praia e Sé; sete se aproximavam
desse percentual: Pilar, Vitória, Santana, Penha, Santo Antônio,
Paço e São Pedro; e apenas uma paróquia possuía média na casa
dos 20%: Mares. Desconsiderando-se os extremos citados acima,
percebemos que, na maioria das paróquias, os índices de
alfabetização entre a população masculina não destoavam muito
da média geral.

Quanto às mulheres, as paróquias de Brotas e Paço


constituem os extremos em um continuum sobre as taxas de
alfabetização (80.1% e 8.8%, respectivamente). Em relação à
média geral, cinco paróquias ultrapassavam-lhe: Brotas, Conceição
da Praia, Vitória, Sé e Santana; três estavam perto dessa média:
Santo Antônio além do Carmo, Penha e Pilar; apenas três
apresentaram índices abaixo da metade da média geral: Mares, São
Pedro e Paço.

1 Para uma discussão mais detalhada do assunto, remetemos a Lobo

(2001), v. 2, p. 157-169.

388
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Quando se comparam os números entre a população


masculina e feminina, prevalece a tendência de os homens
apresentarem maiores índices de alfabetização em relação às
mulheres: em algumas paróquias, há um relativo equilíbrio, como,
por exemplo, em Brotas e Sé. As maiores discrepâncias são
encontradas nas paróquias de São Pedro, Paço, Pilar e Mares. Em
apenas uma localidade, Vitória, as mulheres se mostram mais
alfabetizadas.

O que mais surpreende nesses dados, segundo Mattoso


(1992), quando se comparam os índices de alfabetização com a
população geral de Salvador à época, é que eles sugerem que 37%
dos habitantes da cidade eram alfabetizados, o que, ainda
consoante a historiadora, parece bastante alto para o período.
Dessa maneira, postula Mattoso que, talvez, fossem assim
considerados os que apenas assinavam o próprio nome. De
qualquer sorte, as tabelas 1 e 2 mostram os números de
alfabetização para o conjunto geral da população soteropolitana.
Em outra, Mattoso apresenta dados das várias paróquias,
baseando-se também no censo de 1872, sobre a distribuição por
cor da população livre e o percentual dos que sabiam ler e
escrever:

389
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

TABELA 3
Homens Mulheres
Paróquias N. N.
Branc. Alfab. Branc. Alfab.
br. br.
Sé 36,3 63,7 44,8 34,7 65,3 40,9
São Pedro 35,6 64,4 32,0 24,8 75,2 10,0
Sant’Anna 40,5 59,5 36,3 37,1 62,6 35,
Conceição da
61,7 38,3 79,0 41,0 59,0 64,4
Praia
Vitória 35,6 64,4 37,1 28,9 71,1 46,8
Paço 23,4 76,6 33,0 10,9 89,1 8,6
Pilar 41,5 58,5 42,0 38,3 61,7 20,2
Santo Antônio
31,0 69,0 34,8 27,2 72,8 25,7
Além do Carmo
Brotas 54,8 45,2 88,5 37,6 62,4 80,1
Mares 36,1 63,9 27,3 36,3 63,7 12,8
Penha 33,6 66,4 36 26,8 73,2 25,0

Fonte: Mattoso (1992), tabela 50, p. 202.

Essa tabela nos mostra que, entre a população livre,


predominavam, em quase todas as paróquias, tanto entre homens
como entre mulheres, os não-brancos, exceções feitas, quanto à
população masculina, às paróquias da Conceição da Praia e Brotas.
No que toca às mulheres, em todas as paróquias o contingente
não-branco se fazia em maior número.

De maneira geral, os dados demonstram ainda que havia


maior número de alfabetizados nas paróquias em que
predominavam os brancos. Contudo, quando se cotejam os
índices de alfabetizados com a composição de brancos nas
paróquias é que indícios interessantes surgem. Façamos uma
pequena análise desses indícios.

Observando-se os números atinentes à população


masculina, em algumas paróquias os índices de alfabetizados se
encontram abaixo dos índices da população branca, seria o caso
das seguintes paróquias: São Pedro, Sant’Anna e Mares, seria o
esperado, portanto. Nas demais, o número de alfabetizados
ultrapassa os índices desse contingente, o que significa dizer,

390
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

segundo o censo, que a prática da escrita e da leitura se espraiava


também entre os homens designados de não-brancos. Essa
situação varia de acordo com cada paróquia, a de Brotas, mais
uma vez, surpreenderá, uma vez que os alfabetizados atingem o
percentual de 88.5%, quando a sua população masculina de
origem branca se situava em torno de 54.8%.

Entre as mulheres, a situação volta a se repetir: nas


paróquias de São Pedro, Sant’Anna, Paço, Pilar, Santo Antônio
além do Carmo, Mares e Penha, o número de alfabetizadas se
encontra aquém dos índices dos percentuais das não-brancas. Nas
demais, alfabetizar-se se estendia também às mulheres de cor.

Disso, dois indícios aparecem como de interesse para o


fator letramento na Bahia do século XIX: entre a população livre,
os não-brancos também estão inclusos entre os alfabetizados e,
entre eles, os homens pareciam ter mais possibilidades para isso.

Há de se observar que o censo em questão foi feito ainda


em tempos de escravidão e diz respeito somente à população livre.
Ficaram de fora, portanto, os escravos. Esses, como se sabe, não
podiam freqüentar instituições de ensino até 1888, data da
Abolição do tráfico. Para legitimar essa proibição na Bahia, ao
longo do século XIX, o governo da Província cria uma série de
leis expressando esse intento, como, por exemplo, o Regulamento
de 22 de abril 1862, em que aparece:

O presente Regulamento estabeleceu normas a serem


aplicadas ao ensino na Província. Na parte concernente à
instrução primária e intermediária (Título II), tratando das
escolas (Cap. II), proibiu, em seu art. 46, § 3º., o ingresso de
escravos nas escolas primárias

Em 5 de janeiro de 1881, sete anos antes da abolição da


escravatura, o não ingresso de escravos às escolas ainda estava nos
horizontes das leis do governo provincial, conforme se pode
depreender de um regulamento dessa data:

391
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

O art. 10, incluído no Cap. II (Da matrícula escolar e das


penas disciplinares) do Título I (Do ensino público
primário), determinou que a matrícula do aluno seria feita
pelo professor mediante a guia do pai, tutor ou protetor,
em que se declararia, além da naturalidade e filiação, sua
condição de não escravo, ter de cinco a quinze anos de
idade, estar vacinado e não sofrer de doença contagiosa

Diante disso, não causa espanto o fato de que, entre a


população escrava, o índice de analfabetismo chegasse aos 99.9%
(Mattoso, 2001). É interessante notar, porém, que no censo de
1872 os escravos na Bahia estavam à volta de 167.824. Desses, 63
sabiam ler e escrever. Dos homens que ainda se mantinham no
cativeiro, 98.094 pessoas, 47 foram declarados como
alfabetizados. Só três, contudo, viviam na cidade de Salvador (na
Paróquia do Pilar), os demais estavam assim localizados: 4 em
Camamu, dois em Caravelas, um em Viçosa, dois em Entre Rios,
um em Purificação, um em Itapicuru, um em Pombal, um em
Santa Isabel do Paraguaçu, três em Caetilé, dois em Monte Alto,
um em Rio de Éguas, um em Xique-Xique, um no distrito de
Cachoeira, três no de Santo Amaro, sete no de Tapera e treze no
de Nazaré. Entre as mulheres escravas, recenseadas em torno de
78.730, quinze eram alfabetizadas: uma em Itapicuru, duas em
Xique-Xique e doze no distrito de Nazaré. É nesse último local,
como se pode observar, que se concentrava o maior número de
escravos letrados: treze homens e doze mulheres. Mattoso (1992)
aventa a possibilidade de esse aprendizado ter se efetuado na casa
do senhor, pelos motivos já citados em relação ao ingresso de
escravos à escola.

Situavam, então, entre os libertos as maiores possibilidades


de a população não-branca alfabetizar-se. Um questionamento,
entretanto, se impõe a essa altura: o que significava ser liberto na
cidade de Salvador no século XIX.

Mattoso (1992) propõe para a cidade no século citado uma


estratificação social que se dividia em quatro níveis, caracterizados
da maneira que se segue.

392
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

No primeiro grupo, situavam-se altos funcionários


graduados da administração real (governador geral, chanceler e
desembargadores do Tribunal da Relação, ouvidor geral do crime,
ouvidor geral do cível etc.), oficiais das patentes mais elevadas
(coronéis, tenentes-coronéis, sargentos-mores), o alto clero secular
(arcebispo e membros do alto clero), os grandes negociantes e os
grandes proprietários de terras, senhores de engenho ou
pecuaristas. Esse primeiro grupo compunha a elite baiana da
época.

Integravam o segundo grupo funcionários de nível médio


(juiz e procurador da Coroa e Fazenda, escrivães de agravos e
apelações, tabeliães etc.), oficiais de nível médio (capitães, tenentes
e suboficiais), membros do baixo clero (párocos, vigários etc.),
lojistas (representantes de casas portuguesas, distribuidores de
mercadorias importadas por negociantes baianos etc.), alguns
proprietários rurais (produtores de cana, de tabaco e de
alimentos), profissionais liberais (advogados e médicos
diplomados, não sendo, porém, oriundos dos estratos mais
elevados) e, ainda, mestres-artesãos em ofícios considerados
nobres.

No terceiro grupo, encontravam-se funcionários públicos e


militares de baixo escalão, integrantes de profissões liberais
secundárias (sangradores, barbeiros, pilotos de barcos etc.),
artesãos e os que comerciavam frutas, legumes e doces nas ruas.
Entre esses últimos, os que estavam inseridos no comércio,
predominavam os ambulantes e, como nos diz a autora, os
alforriados compunham a sua maioria.

Por fim, no quarto grupo, localizavam-se os escravos, os


mendigos e os vagabundos, compondo o estrato mais baixo da
hierarquia social.

Através dessa pirâmide desenhada por Mattoso, vemos que


os libertos se localizariam no terceiro grupo, estariam, então,
separados dos escravos pelo fato de terem “conseguido” a
liberdade, uma vez que, no tocante ao exercício da atividade
profissional, escravos e libertos estavam, conforme Oliveira

393
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(1988), ocupando os mesmos espaços de trabalho na cidade de


Salvador. Esse fato, segundo essa historiadora, não poderia ser
diferente, pois o que restaria ao liberto, depois do cativeiro, era
realizar as mesmas tarefas de quando era escravo, competindo
com os demais pelas escassas chances oferecidas, ou seja:

Continuar como estivador, abarrotando os navios de


gêneros de exportação e os armazéns de produtos
importados aos quais nunca teria acesso. Continuar
carregando homens e mulheres livres em “cadeirinhas de
arruar”, tal qual besta humana. Continuar como “negro de
ganho”, a viver de expedientes ou de pequeno comércio
ambulante, comprando aqui, vendendo ali, para um
mercado de baixo poder aquisitivo. Continuar como
barbeiro e nas horas vagas, músico. Continuar, em roças na
periferia da cidade, a plantar gêneros de subsistência para
vender os minguados excedentes para um mercado sempre
mais carente de alimentos

Além disso, se a alforria garantia ao liberto seu direito à


família, à propriedade, à disposição dos seus parcos bens, no
âmbito político, seus direitos eram limitados. Aqueles designados
de crioulos – nascidos no Brasil – eram elevados à condição de
cidadão, os nascidos em África continuavam estrangeiros, para
uns e outros eram vetados o acesso às dignidades eclesiásticas, ao
poder judiciário, o direito ao porte de arma e até a livre
locomoção.

Disso parece-nos que a liberdade adquirida não garantia ao


contingente populacional dos libertos, sobretudo aos africanos e
crioulos, o acesso às instituições, pelo menos oficiais, de ensino,
uma vez que o maior preço da liberdade, como informa Oliveira
(1988), era a própria sobrevivência. Por isso, não causa espanto o
fato de que a autora, trabalhando com testamentos de 482 libertos
situados entre 1790 e 1890, encontre, entre eles, apenas 22 que
sabiam assinar o nome e somente 3 que sabiam também escrever.
Esses números ganham maior dimensão para o que estamos
buscando mostrar quando se leva em consideração que esses
libertos constituem uma categoria especial, ou seja, a daqueles que

394
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

tinham algo para testar, que estavam, digamos, “em melhores


condições socioeconômicas”, não são, por conta disso,
representativos da categoria dos libertos em geral.

Qual seria, então, o perfil geral dos libertos?

O trabalho de Fraga Filho (1996) nos aponta alguma pista.

Intitulado Mendigos, moleques e vadios na Bahia do século XIX, o


autor traça o perfil desses contingentes quanto à cor da pele. Em
tabela referente aos mendigos recolhidos em uma das casas de
caridade, entre 1847 e 1856, apresenta os seguintes dados:

TABELA 4
Cor Total %
Branco 104 14,8
Preto 266 37,8
Crioulo 150 21,3
Pardo 142 20,2
Cabra 34 4,8
Cabloco 1 0,1
Ignorada 7 1,0
TOTAL 704 100

Como se pode observar, esses dados se referem à


população livre, uma vez que o escravo, pela sua condição, era
mercadoria apreciada e, além do mais, se mantinha sob a tutela do
senhor.

Analisando os dados da tabela, percebemos que, nessa


instituição, mais da metade dos mendigos, ou seja, 51.1%, era de
cor negra, ou seja, era composta pelos pretos – os africanos – e
pelos crioulos – negros nascidos no Brasil. Se somarmos essa
porcentagem às relativas aos mestiços, pardos e cabras, o
contingente não-branco, descendentes de africanos, chegava a

395
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

85.1%. Esse retrato se repete em outras instituições de caridade


pesquisadas pelo autor, o que significa que o perfil geral dos
libertos, sobretudo os de descendência africana, se delineava entre
os mendigos, entre os vadios ou, como designa Mattoso (1992),
entre os vagabundos. Portanto, era no último estrato social da
Salvador oitocentista em que predominavam os libertos; “é o
reflexo claro de uma sociedade cuja estrutura social era bem
menos aberta à ascensão de pessoas de cor”, nas palavras de Fraga
Filho.

Mesmo entre essas pessoas de cor, o olhar da sociedade


não parecia ser igualitário com todos os que as compunham. Não
parece ser à toa o fato de que, entre os mendigos, os pretos e os
crioulos ultrapassem mais da metade dessa população,
aparecendo, em índices menores, mas não menos representativos,
também os pardos e os cabras. Talvez fossem dadas a esses
últimos maiores oportunidades de ascensão social e, em
conseqüência, seria plausível a hipótese de que se situariam entre
os pardos e cabras as maiores chances de afro-descendentes se
alfabetizarem. Esse indício se tornou para nós bastante arrazoado
a partir do trabalho de Matta (1999).

Também esse autor focalizará o seu estudo em uma


instituição de caridade fundada em 1825 na cidade de Salvador:
trata-se da Casa Pia Colégio dos Órfãos de São Joaquim. Destaca-
se essa instituição pelo fato de que “desde o início, a preocupação
com as crianças não era somente dar-lhes abrigo e alimento, mas
também formação religiosa, alfabetizá-los e ensinar uma arte de
ofício” (p. 45, grifos nossos). O objetivo maior da Casa Pia era
qualificar menores abandonados, por motivos vários, em alguns
ofícios mecânicos de que carecia a cidade de Salvador nos inícios
do século XIX. Porém, de acordo com o programa de ensino da
instituição que, de fato, segundo o autor, foi aplicado, notamos
que, durante o tempo mínimo de permanência na Casa – 5 anos –,
os alunos estudavam, além de outras, disciplinas circunscritas à
leitura, escritura e gramática de língua portuguesa. Veja-se:

Os menores recolhidos na Casa Pia, portanto, na sua saída,


estavam, pelo que demonstra esse programa, alfabetizados.

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Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Estudando a origem dos órfãos ingressos, entre o período de 1825


e 1864, quanto à cor, o autor apresenta a sugestiva tabela que se
segue:

Não é difícil entrever que a Casa Pia utilizava como critério


de seleção a cor dos menores. Aos brancos, eram oferecidas as
maiores oportunidades de ingressarem no colégio. No período em
questão, eles ultrapassam a metade dos percentuais. Dentre os de
ascendência africana, notadamente os cabras e os pretos eram
preteridos em função dos pardos. Aliás, o primeiro preto só entra
no colégio no ano de 1855, 30 anos após a sua fundação, e o
primeiro cabra, em 1850. Quanto aos pardos, 12 deles já
ingressam no primeiro ano de funcionamento da Casa. Dessa
forma, pelo que se pode depreender dos dados, serão os pardos,
dentre os libertos de cor, os que tinham maiores chances de se
alfabetizar. Resta saber se esse critério utilizado pela Casa Pia se
estendia para a sociedade em geral.

Por fim, notamos que, se as oportunidades de alfabetização


entre os afro-descendentes se concentravam entre os libertos, não
eram os africanos e os crioulos os escolhidos. Elas se
encontravam, mesmo que minimamente, para aqueles nos quais a
sociedade branca visse de algum modo um pouco do seu reflexo:
os pardos.

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Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Parte III. Irmandades negras e letramento de


africanos e crioulos na Salvador do século XIX*

Em 2000, Klebson Oliveira (2001) localizou na Sociedade


Protetora dos Desvalidos (SPD), fundada em Salvador, em 1832,
um expressivo acervo de documentos escritos por ex-escravos. Os
fundadores da Sociedade Protetora dos Desvalidos – inicialmente
uma irmandade negra, designada Irmandade de Nossa Senhora da
Soledade de Amparo dos Desvalidos – são assim identificados,
com as suas respectivas ocupações, por Pierre Verger (1987: 517-
518)2:

Ela [a Sociedade Protetora dos Desvalidos] foi


fundada por iniciativa de Manoel Victor Serra,
africano, ‘ganhador’ no ‘canto’ chamado Preguiça

Dezenove3 africanos alforriados foram os


fundadores daquela instituição: Vítor Serra4 era
nomeado juiz fundador, Manoel da Conceição
(marceneiro) era tesoureiro e Luiz Teixeira Gomes
(pedreiro) era o encarregado da escrita (...)

Os outros membros fundadores eram Gregório M.


Bahia, marceneiro (...) Ignácio de Jesus e Barnabé Álvaro
dos Santos, cuja profissão não conhecemos; Bernardino
S. Souza e Fernando Fortunato de Farias, pedreiros;

* A Parte III é de autoria de Tânia Lobo, UFBa.


2 Verger não informa a fonte em que se baseou para a identificação dos
fundadores da SPD. Assim, não se pôde averiguar a veracidade das suas
informações.
3 Apesar de afirmar que foram dezenove os africanos alforriados

fundadores da SPD, efetivamente, quando a eles se refere, Verger só


apresenta dezessete indivíduos.
4 Apresentam-se, com destaque em itálico, os nomes dos fundadores.

398
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Gregório de Nascimento, carroceiro, que era rico;


Balthazar dos Reis e Manoel Sacramento Conceição Rosa,
marceneiros; Theotônio de Souza que fazia vinagre;
Francisco José Pepino, calafete5; Daniel Correa,
[ganhador] do “canto” do Pilar; Roberto Tavares, que
era carregador de água e possuía um asno para
transportá-la; José Fernandes do Ó, vendedor de
toucinho, e, enfim, Manoel Martins do Santo, que
trabalhava no “porto da lenha” (...).

Delineou-se, anteriormente, a hipótese de que, no século


XIX, na cidade do Salvador, os pardos seriam, dentre os libertos
de cor, os que apresentariam maiores chances de se alfabetizarem.
Dos dezessete africanos forros fundadores da Sociedade Protetora
dos Desvalidos, já se sabe, até agora, que, ao menos sete (41.2%) –
Manuel Vítor Serra, Manuel da Conceição, Luís Teixeira Gomes,
Gregório M. Bahia, Bernardino S. Souza, Manuel Sacramento
Conceição Rosa e José Fernandes do Ó – aprenderam a ler e
escrever, havendo, inclusive, entre esses indivíduos, graus bastante
distintos de letramento. Os demais (58.8%) – Inácio de Jesus,
Barnabé Álvaro dos Santos, Fernando Fortunato de Farias,
Gregório de Nascimento, Baltazar dos Reis, Teotônio de Souza,
Francisco José Pepino, Daniel Correa, Roberto Tavares e Manuel
Martins do Santo –, dada a grande variação observada na letra das
suas respectivas assinaturas nas atas das assembléias da Sociedade,

5 Houaiss (2001): “calafete (...) 1. aquele que trabalha ou é especializado

em calafetação (de tonéis, pisos de madeira etc.) 1.1 MAR operário


encarregado de calafetar, furar e encavilhar o costado e o fundo do
navio, bem como de preparar as bombas de esgoto (...).”

399
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

seriam analfabetos. Embora o fato de terem sido localizados


documentos escritos por africanos libertos não se contraponha à
hipótese geral levantada – a de que os pardos seriam, dentre os
libertos de cor, os que apresentariam maiores chances de se
alfabetizarem –, sem dúvida, faz levantar outra hipótese, a de que
“aos africanos e crioulos libertos e aos escravos, talvez fossem, por
razões excepcionais ainda desconhecidas, possíveis alguns meios
para que não caíssem em índices totais de analfabetismo”
(Oliveira, 2001b). O objetivo, a seguir, não é levantar e discutir
hipóteses sobre distintas possíveis condições que teriam
propiciado a escravos e a libertos – africanos e crioulos – o
letramento em língua portuguesa6, mas, tão-somente, buscar
avançar no entendimento de como a alfabetização de negros pode
ter sido favorecida no âmbito de um espaço específico – o espaço
da Sociedade Protetora dos Devalidos – e, sobretudo, traçar o
perfil social daqueles que foram se tornando membros da referida
instituição, perfil que, afinal, tornará mais visível a face de forros
que se letraram na Bahia do século XIX.

Fundadas no Brasil já desde o século XVI, as irmandades


serviram a interesses da Igreja e do Estado, pois, ao tempo em que
visavam à preservação da fé católica, também prestavam a seus
membros um certo tipo de assistência que o poder público muitas
vezes não lhes garantia. É apenas a partir da segunda metade do

6 Remete-se a Oliveira (2003), para o levantamento e discussão de

hipóteses sobre distintas condições que teriam propiciado a escravos e a


libertos – africanos e crioulos – o letramento em língua portuguesa.

400
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

século XIX que essas instituições entram em decadência. Segundo


Mattoso (1992: 400-401), “no início do século XIX, mais de 85%
da população adulta livre de Salvador pertenciam a, pelo menos,
uma irmandade. Noventa anos mais tarde, essa porcentagem era
de apenas 15%”. Ainda segundo a mesma autora, “no início do
século XIX, a cidade de Salvador tinha cerca de cem irmandades,
em princípio estritamente divididas entre brancos, mulatos e
negros. Essa característica se atenuou um pouco, na medida em
que algumas irmandades de brancos se tornavam mais
conciliadoras, os mulatos subiam na escala social e os negros
obtinham alforria. Mas, apesar desses fatores, as divisões
persistiram”. Em Reis (1997: 12), colhe-se ainda a informação de
que as irmandades “de branco podiam ser de portugueses ou de
brasileiros. As de preto se subdividiam nas de crioulos e africanos.
Estas podiam se fracionar ainda de acordo com as etnias de
origem – ou, como se dizia na época, as ‘nações’ – havendo as de
angolanos, benguelas, jejes, nagôs etc.”
Assim, tendo sido supostamente fundada por africanos
forros, as seguintes questões se podem colocar em relação à
Sociedade Protetora dos Desvalidos:

(i) Se, de acordo com Reis (1997), as irmandades de


africanos se distinguiam conforme suas etnias ou
“nações” de origem, teria a Sociedade Protetora
dos Desvalidos sido fundada por negros de uma
“nação” em particular? E, se assim o foi, essa

401
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

“nação” se terá destacado, dentre as demais, por


agenciar a alfabetização dos que a integravam?
(ii) Teria a Sociedade Protetora dos Desvalidos se
mantido exclusivamente como uma irmandade de
negros estrangeiros ou, posteriormente, a partir
de alianças interétnicas, a que também se refere
Reis, teria passado a aceitar entre os seus
membros negros brasileiros e/ou pardos?

A segunda das duas questões acima referidas será a única


abordada neste texto. Embora os membros fundadores da
Sociedade Protetora dos Desvalidos tenham sido identificados,
com as suas respectivas ocupações, a partir de uma fonte
secundária, conta-se, no arquivo da Sociedade, para a identificação
dos que se tornaram membros posteriormente aos fundadores,
com uma série documental que faz a alegria de qualquer
sociolingüista. Trata-se do que aqui será designado de requerimentos,
documentos através dos quais os candidatos a membros da
Sociedade se apresentavam e nos quais quase sempre informavam
a naturalidade, a ocupação, a idade, o estado civil e o número de filhos.
As tabelas a seguir foram elaboradas tomando-se como
base informações extraídas de 78 requerimentos que se encontram
no Livro de Registro de Pagamento dos Sócios, ano 1848. Esses
78 requerimentos cobrem o período que se estende de 1848 a 18597.

7Coube a José Mendes Filho, bolsista de Iniciação Científica –


CNPq/Balcão, o levantamento dos dados dos 78 requerimentos referidos.

402
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

TABELA 1:Origem
No. de
Origem %
indivíduos
Brasileira 63 80.8
Não declarada 15 19.2
TOTAL 78 100.0
Fonte: Requerimentos – Livro de Registro de Pagamento dos Sócios, ano
1848 – SPD.
Em 80.8% dos requerimentos analisados, pôde-se
identificar como brasileira a origem do aspirante a membro da
Sociedade Protetora dos Desvalidos. Nos 19.2% dos casos
restantes, não houve declaração quanto à origem e também não
houve qualquer informação que permitisse inferir sobre tal. O
primeiro aspecto relevante a se destacar aqui é que, mesmo que os
19.2% dos casos em que não houve declaração quanto à origem e
em que também não houve qualquer informação que permitisse
inferir sobre tal correspondessem a africanos, esses, que foram os
únicos fundadores dos Desvalidos, não apenas não se mantiveram
como os únicos a serem aceitos como membros, como também
devem ter-se tornado, já muito cedo, na história da instituição,
minoritários em relação aos brasileiros.
Note-se que, efetivamente, a palavra brasileiro não ocorreu
em nenhum dos 78 requerimentos levantados. Assim, pôde-se

O bolsista prosseguiu com o mesmo trabalho de levantamento de dados


em mais 36 requerimentos do Livro de Documentos – 1860 [a 1869], tendo
apresentado ao Seminário Estudantil de Pesquisa, realizado da
Universidade Federal da Bahia, em 2002, a comunicação intitulada
Investigação sobre o perfil social de negros forros na Bahia do século XIX: novos
dados.

403
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

concluir tratar-se de indivíduo brasileiro a partir de uma das duas


seguintes situações ou a partir de ambas:

(i) quando o local de nascimento era apresentado, o


que ocorreu em 60 dos 78 requerimentos;
(ii) quando o indivíduo se apresentava como crioulo, o
que ocorreu em 29 requerimentos.

Os escravos ou ex-escravos, no Brasil, eram classificados


segundo a cor e o local de nascimento. Segundo Schwartz (2001:
184), uma divisão tipartite os classificava nas categorias de africanos
– estrangeiros e, presumivelmente, negros –, crioulos – brasileiros e
negros – e pardos – brasileiros e mestiços8. Havendo, portanto, em
apenas 29 dos casos, referência à cor do indivíduo, pode-se
indagar se os demais não seriam pardos, e não crioulos. Segundo
Júlio Braga (1987) – antropólogo que estudou a história da
Sociedade Protetora dos Desvalidos –, em ata datada de 16 de
novembro de 1832, estaria registrada a seguinte decisão quanto à
cor dos membros da Sociedade:

Essa instituição será composta de número ilimitado


de sócios, que sejam exclusivamente de cor preta.

8 Schwartz observa: “Este último grupo [o dos pardos] não continha


apenas mulatos, mas também filhos de brancos com índios, que
recebiam denominações variadas como mestiços, mamelucos ou caboclos.
Também estão aqui inclusos os cabras (pessoas de ascendência mista,
porém indefinida).”

404
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Uma exigência explícita quanto à cor – preta –, mas não


quanto à origem – se brasileira ou africana. Oliveira (2001b),
consultando a referida ata posteriormente, não localizou nela a
informação a que se refere Júlio Braga e também não conseguiu
localizar a fonte de onde ele a teria retirado. Contudo, em ata
datada de 9 de março de 1835, localizou o registro da seguinte
decisão:
Etanto todos Corpos da Devoção Reonidos /
Aprovamos prunanamine Vontades o prez / ente
Comprimiço da nossa Devoção, da Santiçi / ma
Virginal Senhora da Sollidade dos Desvalid / os
pretencente Chiolos Liver de Cores pretas /
Nasçidos no Império do Barzilio (...)9.

Uma exigência explícita quanto à cor – preta –, quanto à


origem – brasileira – e quanto ao estatuto jurídico – livre. Oliveira
(2001b) também localizou em três atas posteriores o registro da
discussão sobre a admissão de três novos possíveis membros, os
quais não foram aceitos por apresentarem traços de mestiçagem.

9 Da comparação entre o trecho de uma ata transcrito por Júlio Braga


(1987) e o trecho de uma ata transcrito por Oliveira (2001b), fica claro
ter havido, no primeiro caso, modernização e correção do texto, o que,
certamente, despista um leitor interessado na história do português
brasileiro quanto à importância dos documentos localizados na SPD para
a escrita da história lingüística do mais expressivo segmento constitutivo
da população brasileira – os africanos e afro-descendentes.

405
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

TABELA 2: Local de nascimento


Local de nascimento No. de indivíduos %
Desta cidade/desta capital/da capital da 40 51.3
Bahia
Bahia de Todos os Santos 02 2.6
Bahia 12 15.4
Cachoeira 04 5.1
Desta Província 01 1.3
Província de Pernambuco 01 1.3
Não declarado 18 23.1
TOTAL 78 100.0
Fonte: Requerimentos – Livro de Registro de Pagamento dos Sócios, ano
1848 – SPD.

Em 75.7% dos requerimentos analisados, pôde-se


identificar como baiana a naturalidade do aspirante a membro da
Sociedade Protetora dos Desvalidos. Em 23.1% dos casos, não
houve declaração quanto à naturalidade e também não houve
qualquer informação que permitisse inferir sobre tal. Finalmente,
em apenas um caso – correspondente a 1.3% do total –,
observou-se ser o indivíduo natural de outra Província, no caso,
Pernambuco.
Quanto aos naturais da Província da Bahia,
correspondentes à quase totalidade dos casos em que a
naturalidade foi declarada (59/60), os que puderam ser
indubitavelmente considerados da cidade de Salvador
despontaram como a maioria (40/60) e apresentaram-se como
naturais “desta cidade”, “desta capital” ou “da capital da Bahia”.
Não houve sequer uma ocorrência da palavra Salvador para
designar a cidade, que, ao longo da sua história, foi

406
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

preferivelmente chamada de Bahia. É possível, então, que os 2 que


se apresentaram como naturais “da Bahia de Todos os Santos” ou
os 12 que se apresentaram como naturais da “Bahia” sejam
naturais da cidade de Salvador, o que faria elevar para 54, dentre
os 60 que declararam a sua naturalidade, o número dos que seriam
naturais da capital da Província. Para além de Salvador, a única
localidade da Província da Bahia indicada na apresentação da
naturalidade foi Cachoeira, vila de origem de apenas 4 dos
candidatos a membros dos Desvalidos. No único requerimento
em que o indivíduo se declara “natural desta Província”, parece
ser plausível supor que se trate de um local distinto da capital.

TABELA 3:Ocupação
Ocupação No. %
Pedreiro/Oficial de pedreiro/Ofício de pedreiro/Oficina de 21 26.9
pedreiro
Marceneiro/Oficial de marceneiro/Oficina de 17 21.8
marceneiro
Oficial de carpina/Ofício de carpina/Oficina de carpina 16 20.5
Alfaiate/Oficial de alfaiate 06 7.7
Sapateiro/Oficina de sapateiro 06 7.7
Torneiro10 02 2.6
Barbeiro 01 1.3
Embarcadiço11 01 1.3
Sirgueiro12 01 1.3
Surrador13 01 1.3

10 Houaiss (2001): “torneiro (...) 1. aquele que trabalha com o torno (...).”
Remete-se ao verbete torno do mesmo dicionário.
11 Houaiss (2001): “embarcadiço (...) o que habitualmente está

embarcado; marinheiro (...).”


12 Houaiss (2001): “serigueiro (...) pessoa que faz trabalhos com fios ou

cordões de seda; sirgueiro (...) ‘negociante de seda’ (...).”

407
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Latoeiro14 01 1.3
Oficial de cabouqueiro15 01 1.3
Professor (jubilado) 01 1.3
Não declarada 03 3.8
TOTAL 78 100.0
Fonte: Requerimentos – Livro de Registro de Pagamento dos Sócios, ano
1848 – SPD.

Em apenas 3 dos 78 requerimentos analisados, o que


corresponde a 3.8% do total, a ocupação do indivíduo não foi
declarada. Comparativamente ao percentual de 23.1% de casos em
que a naturalidade não foi declarada, o percentual de 3.8% de não
declaração da profissão é significativamente baixo, o que, muito
provavelmente, se explicará pelo fato de as irmandades terem tido
um forte papel de cunho assistencial que, para se cumprir,
dependia, necessariamente, da contribuição financeira dos seus
sócios. Apesar de 13 distintas ocupações terem sido declaradas,
três se destacaram diante das demais: em primeiro lugar, a de
pedreiro, com 26.9% das ocorrências; logo a seguir, a de
marceneiro, com 21.8%; e finalmente a de carpina, com 20.5%. A
seguir às três ocupações mais significativas numericamente, vêm,
com um percentual de 7.7% cada uma, as profissões de alfaiate e

13 Houaiss (2001): “surrador (...) 1. que ou o que surra; 2. que ou o que


curte (couro); curtidor (...).”
14 Houaiss (2001): “latoeiro (...) indivíduo que trabalha com (conserta),

fabrica ou vende objetos de lata (‘folha-de-flandres’) ou de latão; bate-


folhas, funileiro (...).”
15 Houaiss (2001): “cavouqueiro (...) 1. aquele que abre cavoucos;

cavoucador 2. trabalhador de minas ou pedreiras (...).”

408
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

sapateiro. Por fim, vêm 8 ocupações, todas com representação


inexpressiva – 1.3% cada – no âmbito da Sociedade: torneiro,
barbeiro, embarcadiço, sirgueiro, surrador, latoeiro, cabouqueiro e
professor.

Oliveira (1988), em capítulo intitulado “Da escravidão à


liberdade: as oportunidades do liberto”, afirma que “ultrapassar os
limites da sobrevivência e se integrar no mercado de trabalho livre
variavam na razão direta das oportunidades que lhe fossem
oferecidas durante o período da escravidão”. Partindo, então, de
tal pressuposto, a referida autora analisa as atividades exercidas
pelos escravos urbanos na Salvador do século XIX e identifica o
seguinte quadro ocupacional:

[Relações de trabalho]16 x Trabalho Trabalho Trabalho


Ocupações utilizado e apropriado apropriado pelo
apropriado pelo senhor e senhor e pelo
pelo senhor. por terceiro escravo.
Manutenção a que dele se Utilização de
seu cargo utiliza. terceiros.
Manutenção a Manutenção a
seu cargo cargo do senhor
ou do escravo

16 Apresentam-se entre colchetes algumas adaptações feitas ao quadro de

Oliveira.

409
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Manuais Despejadores Serventes, Carregadores,


Sem qualificação de dejetos, remadores, Estivadores,
Aguadeiros, Copeiros Despejadores de
Copeiros dejetos,
Aguadeiros,
Transportadores
de cadeirinhas,
Serventes,
Remadores,
Mendigos,
Prostitutas
Semiqualificad(as) Mucamas, Mucamas, Vendedores
Pajens, Pajens, ambulantes,
Cocheiros, Cocheiros, Quitandeiros
Amas-secas e Amas-secas e
de leite, de leite,
Cozinheiras, Cozinheiras,
Compradores Compradores
de Alimentos, de Alimentos,
Costureiras e Costureiras e
Rendeiras, Rendeiras,
Lavadeiras e Lavadeiras e
Engomadeiras Engomadeiras

410
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Qualificad(as) Carpinteiros, Carpinteiros, Carpinteiros,


Pedreiros, Pedreiros, Pedreiros,
Ferreiros, Ferreiros, Ferreiros,
Funileiros, Funileiros, Funileiros,
Caldeireiros, Caldeireiros, Caldeireiros,
Sapateiros, Sapateiros, Sapateiros,
Alfaiates, Alfaiates, Alfaiates,
Ourives, Ourives, Ourives,
Barbeiros, Barbeiros, Barbeiros,
Enfermeiros, Enfermeiros, Enfermeiros,
Artistas, Artistas, Artistas,
Mestres de Mestres de Mestres de
Embarcações, Embarcações, Embarcações,
Pilotos, Pilotos, Pilotos,
Padeiros, Padeiros, Padeiros,
Açougueiros, Açougueiros, Açougueiros,
Pescadores Pescadores Pescadores
Não Proprietários e Administradores de negócios próprios:
Manuais roças, tendas de barbeiros, quitandas
Fonte: Oliveira (1988), quadro 1, p. 15.

Note-se que o quadro apresentado não apenas informa


sobre quatro distintas categorias ocupacionais – ocupações
manuais não qualificadas, ocupações manuais semiqualificadas,
ocupações manuais qualificadas e ocupações não manuais –, mas
também trata da diversidade das relações de trabalho,
considerando questões tais como: quem se apropria do trabalho
do escravo, quem se utiliza do escravo e quem assume os encargos
do sustento do escravo. Oliveira (1988) distingue, a partir daí, três
situações: 1a) aquela em que o senhor se apropria do trabalho do
escravo, utiliza-se do escravo e assume os encargos do seu

411
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

sustento; 2a) aquela em que o trabalho é apropriado pelo senhor


(locador) e por terceiro que dele se utiliza (locatário), cabendo a
manutenção do escravo a quem o utiliza – nesta categoria estão os
chamados “escravos de aluguel”; e 3a) aquela em que o trabalho é
apropriado pelo senhor e pelo escravo, que presta serviços a
terceiros, podendo caber a manutenção do escravo tanto ao
senhor quanto ao próprio escravo; nesta categoria estão os
chamados “negros de ganho”.

Comparando-se o quadro ocupacional acima com o


quadro que apresenta as ocupações de negros livres candidatos a
membros da Sociedade Protetora dos Desvalidos, a mais
importante observação a ser feita é que praticamente todas as
ocupações referidas pelos candidatos se enquadram na categoria
das ocupações manuais qualificadas. A única e surpreendente
exceção é a relativa ao indivíduo que se identifica como professor.
Trata-se de um professor aposentado (jubilado), Faustino José de
Santana Gomes, brasileiro, natural de Salvador, 47 anos, casado e
com um filho. O seu requerimento, não datado, foi despachado em
28 de junho de 1857.

Apesar, como já se destacou, de os requerimentos serem


uma fonte de absoluta importância para a caracterização dos
candidatos a membros da Sociedade, informando sobre sua
naturalidade, ocupação, idade, estado civil e número de filhos, não fazem
qualquer referência quanto ao fato de o indivíduo ser ou não
alfabetizado. O objetivo, portanto, de buscar avançar no

412
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

entendimento de como a alfabetização de negros pode ter sido


favorecida no âmbito da Sociedade Protetora dos Desvalidos e de,
traçando-se o perfil social daqueles que foram se tornando
membros da referida instituição, tornar mais visível a face dos
negros livres que se alfabetizaram na Bahia do século XIX, é, sem
dúvida, difícil de se atingir através da fonte documental que aqui
se analisa. Uma via, ainda que bastante indireta, para se tentar uma
aproximação foi averiguar em que medida a ocupação exercida
pelo indivíduo poderia ser um indício de que soubesse ou não ler
e escrever. Com tal propósito, elaborou-se a tabela a seguir, na
qual se discriminam as ocupações dos fundadores da Sociedade,
informando-se ainda se o indivíduo tinha ou não domínio da
leitura e da escrita:

Para a História do Português Brasileiro. Volume V,226-253, 2007

TABELA 5:Fundadores: Ocupação x Domínio da leitura e da


escrita

Ocupação Domínio da leitura e da escrita No. %


Marceneiro 03 SIM; 01 NÃO 04 26.6
Pedreiro 02 SIM; 01 NÃO 03 20.0
Ganhador 01 SIM; 01 NÃO 02 13.3
Calafete NÃO 01 6.6
Fabricante de vinagre NÃO 01 6.6
Carroceiro NÃO 01 6.6
Carregador de água NÃO 01 6.6
Vendedor de toucinho SIM 01 6.6
Trabalhador no ‘porto NÃO 01 6.6
da lenha’
Total 07 SIM; 08 NÃO 15 100.0

413
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Tomando-se como referência o quadro ocupacional


proposto por Oliveira (idem, ibidem), observa-se – quanto aos 15
fundadores cujas ocupações são conhecidas17 – que todos
exerciam ocupações manuais, mas que nem todas as ocupações
dos fundadores se enquadram na categoria das ocupações manuais
qualificadas, diferentemente do que se atestou para os candidatos
a membros da Sociedade a partir dos 78 requerimentos analisados.
Seria este um indício de que a Sociedade passou por um processo
de elitização? Das ocupações acima referidas, consideram-se
ocupações manuais qualificadas as de marceneiro, pedreiro,
ganhador, calafete e fabricante de vinagre; portanto, 11
fundadores, do universo dos 15 considerados, aqui se incluem.
Merece algum comentário a inclusão da ocupação de ganhador na
categoria das ocupações manuais qualificadas exercidas por negros
livres. Note-se, conforme já se mencionou anteriormente, que,
segundo Oliveira (1988), chamados negros de ganho ou ganhadores são
definidos a partir de um tipo de relação em que o trabalho é
apropriado pelo senhor e pelo escravo, que presta serviços a
terceiros, podendo caber a manutenção do escravo tanto ao
senhor quanto ao próprio escravo. De acordo com tal definição,
portanto, um negro de ganho ou ganhador só poderia ser um escravo.

17 Dessa tabela foram excluídos dois fundadores cujas ocupações são,

segundo Verger, desconhecidas. Note-se, contudo, que ambos são


analfabetos.

414
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

O fato de se indicar a ocupação de ganhador para um negro livre


requer, assim, uma ampliação da definição proposta. Tratando-se,
no caso em questão, de ganhadores que fundaram a Sociedade
Protetora dos Desvalidos, sendo, inclusive, um deles – Manuel
Vítor Serra – juiz fundador, considera-se mais plausível que
desempenhassem ocupações manuais qualificadas ou, no máximo,
semiqualificadas. Atentando-se, finalmente, para a relação entre o
tipo de ocupação exercida e o domínio ou não da leitura e da
escrita, observa-se que, enquanto 54.5% (6/11) dos que exerciam
ocupações manuais qualificadas sabiam ler e escrever, apenas 25%
(1/4) dos demais apresentaram domínio da leitura e da escrita.
Portanto, apesar de serem bastante restritos os dados aqui
apresentados, parece ser possível confirmar se a hipótese de que o
tipo de ocupação exercida pelos negros terá sido fator favorecedor
ou inibidor da aprendizagem da leitura e da escrita. Ou, ainda, a
hipótese de que saber ler e escrever fosse fator diferenciador que
os capacitasse ao exercício de certas ocupações manuais
qualificadas. Como, no espaço da Sociedade, se atestou, a partir
dos requerimentos analisados para o período de 1848 a 1859, que,
para a totalidade dos que declararam as suas respectivas
ocupações, se tratava de ocupações manuais qualificadas e até, em
um caso, de um indivíduo que exerceu a profissão de professor,
supõe-se que também terá aumentado, relativamente ao que se
observou para os fundadores, o percentual dos sócios que sabiam
ler e escrever.

415
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

TABELA 6: Idade
Idade No. de indivíduos %
Abaixo de 20 anos 01 1.3
De 20 a 29 anos 31 39.7
De 30 a 39 anos 24 30.8
De 40 a 49 anos 17 21.8
Não declarada 05 6.4
TOTAL 78 100.0
Fonte: Requerimentos – Livro de Registro de Pagamento dos Sócios, ano
1848 – SPD.

Em apenas 6.4% dos requerimentos analisados, a idade


do indivíduo não foi declarada. Uma vez que os estatutos da
Sociedade proibiam a entrada de sócios com idade inferior a 20
anos (cf. Oliveira, 2003), era de se esperar que o candidato a sócio
informasse com precisão a sua idade.
Quatro faixas etárias foram consideradas para a análise da
variável idade. A mais representativa – correspondendo a quase
40% dos requerimentos analisados – é a integrada por indivíduos
entre 20 e 29 anos, justamente, portanto, por indivíduos cuja idade
vem imediatamente ou quase imediatamente a seguir ao limite
mínimo de 20 anos estabelecido para a admissão de um sócio. Não
houve, no conjunto dos 78 requerimentos, nenhum em que o
candidato apresentasse idade igual ou superior a 50 anos. Assim,
somando-se os percentuais correspondentes às faixas de 20 a 29
anos, de 30 a 39 anos e de 40 a 49 anos, obtém-se um percentual
de 92.3%, o que permite afirmar que eram admitidos como sócios
indivíduos que possivelmente estariam em sua plena ou quase
plena força de trabalho. Apenas em um caso se observou ser a

416
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

idade do candidato inferior a 20 anos. Trata-se de Gregório


Joaquim de Santana Gomes Ferrão – negro brasileiro, natural de
Salvador, torneiro mecânico, solteiro –, que entra na Sociedade
com apenas 17 anos, já sabendo ler e escrever. Ter sido Gregório
Joaquim de Santana Gomes Ferrão aceito como membro da
Sociedade aos 17 anos é uma situação excepcional, que talvez se
explique justamente pelo fato de tratar-se de um indivíduo que
sabia ler e escrever: aos 18 anos, Gregório Joaquim de Santana
Gomes Ferrão já estava ocupando o cargo de escrivão, cargo dos
mais elevados na hierarquia funcional da Sociedade.
Embora nada ainda se possa dizer sobre a possibilidade
de ter sido a Sociedade Protetora dos Desvalidos uma instituição
agenciadora da alfabetização dos seus membros, pode-se afirmar,
a partir da idade dos que nela ingressavam, que, se se incumbiu de
tal tarefa, terá sido, em todos os casos, uma tarefa de alfabetização
de adultos.

417
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

TABELA 7: Estado civil x Número de filhos


Solteiro Casado Viúvo Não Total
declarado
Sem filhos 11 – 03 – 02 – 2.6% 16 –
14.1% 3.8% 20.5%
1 filho 10 – 03 – 01 – 14 –
12.8% 3.8% 1.3% 17.9%
2 filhos 05 – 02 – 01 – 08 –
6.4% 2.6% 1.3% 10.2%
3 filhos 01 – 01 – 02 – 2.6%
1.3% 1.3%
4 filhos 01 – 01 – 1.3%
1.3%
5 filhos 01 – 01 – 1.3%
1.3%
Não 01 – 01 – 1.3%
apresentado18 1.3%
Não declarado 26 – 04 – 05 – 6.4% 35 –
33% 5.1% 44.9%
TOTAL 55 – 14 – 02 – 07 – 8.9% 78 –
70.5% 17.9% 2.6% 100.0%
Fonte: Requerimentos – Livro de Registro de Pagamento dos Sócios, ano
1848 – SPD.

Em 8.9% dos requerimentos, os candidatos não


declararam o seu estado civil. Dentre os que o declararam, os
solteiros, correspondendo a 70.5% do total, predominaram,
significativamente, em relação aos casados – 17.9% – e aos viúvos
– 2.6%. O percentual de 8.9% de não declaração do estado civil é
significativamente baixo quando comparado ao de 44.9% dos que
não declararam possuir ou não possuir filhos. Considerando-se
que 92.3% dos candidatos tinham idade variável entre 20 e 49

18Neste caso, o indivíduo declara que possui filhos, mas não diz quantos
são.

418
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

anos e, mais ainda, que 52.6% tinham idade variável entre 30 e 49


anos, o percentual de 44.9% causa estranheza, podendo levar a
supor que muitos possuíssem, mas não declarassem possuir filhos.
Considerando-se, porém, o já referido forte papel de cunho
assistencial que tinham as irmandades, papel que certamente
prevaleceria para os familiares dos sócios, também causaria
estranheza que o indivíduo, possuindo filhos, não os declarasse.
Portanto, ainda que estranhável, considera-se mais plausível a
hipótese de que, para a grande maioria dos casos, se o indivíduo
não o declara, é porque realmente não possui filhos. Parece ainda
corroborar essa hipótese o fato de 33% dos casos de não
declaração de filhos corresponderem a indivíduos solteiros e o
fato de a faixa etária predominante ser a de candidatos com idade
variável entre 20 e 29 anos. Assim, somando-se os 44.9% dos que
não declararam possuir filhos ou não possuir filhos aos 20.5% dos
que, expressamente, declararam não os possuir, atinge-se um total
de 65.4%.

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422
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Elementos para uma sócio-história do semi-


árido baiano
por
Zenaide de Oliveira Novais Carneiro
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
e
Norma Lucia F. Almeida
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

A área que compreende o semi-árido baiano, objeto deste


estudo, é bastante extensa, englobando atualmente 259 dos 418
municípios da Bahia e abrangendo 9 das suas 15 regiões
econômicas.1 Embora designada de forma geral como uma
unidade homogênea, a de região semi-árida, possui inúmeras
unidades geoambientais com grande diversidade edafoclimática
(Silva, 1993). Essa diversidade que inclui, por exemplo, áreas
extrativistas exploradas durante o período colonial, como as da
Chapada Diamantina e outras áreas do semi-árido consideradas de
baixa produtividade para culturas permanentes contrapõem-se
muito fortemente no que diz respeito ao padrão de urbanização.

No período colonial, o processo de expansão do


povoamento e criação de vilas na Bahia deu-se de modo pouco

1 A distribuição atual das regiões econômicas do semi-árido baiano é:


Nordeste, Paraguaçu, Sudoeste, Baixo Médio São Francisco, Piemonte
da Diamantina, Irecê, Chapada Diamantina, Serra Geral e Médio São
Francisco. Ficam de fora apenas seis regiões, a saber: Metropolitana de
Salvador, Litoral Norte, Recôncavo Sul, Litoral Sul, Extremo Sul e
Oeste. Para melhor visualização da região do semi-árido baiano, ver
Mapa 1, em anexo.

387
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

uniforme. O padrão apresentado por Sylvio C. Bandeira de Mello


e Silva et al. (1989: 94-97) destaca três características desse
processo: i) um povoamento no nordeste da capitania com
tendência à linearidade (devido às rotas de boiadas e das tropas);
ii) uma grande dispersão com vilas localizadas em pontos de
interseção das estradas que serviam de rotas para o gado, ouro etc;
e iii) um grande número de estradas nas áreas de pecuária e
mineração, ambas no sertão. Esse processo ocorreu, inicialmente,
a partir das entradas baianas2 em busca de metais preciosos, da
expansão pecuária exigida pela também expansão da economia
açucareira e a expulsão ou extinção dos índios ou o seu
aldeamento pelos jesuítas, franciscanos e capuchinhos. Tais
aldeamentos transformaram-se posteriormente em lugares e vilas3,

2 Na Bahia, as primeiras entradas datam de meados do século XVI,

como, por exemplo, a de Francisco Bruza Espinosa, em 1553, partindo


de Porto Seguro e chegando ao Rio São Francisco. A essas seguiram
várias outras. No século XVII, as primeiras foram feitas pelos Ávilas e as
dos chamados sertanistas de contrato, os bandeirantes paulistas, e, ainda,
a do baiano Pedro Barbosa Leal que explorou a famosa Serra de
Jacobina.
3 Spix e Martius (1916) descrevem um desses lugares, “...para visitar os
índios da Vila da Pedra Branca, légua e meia a S. S. O. de Tapera, onde
havíamos armado o nosso pouso. O dono dessa fazenda acompanhou-
nos até lá, por um caminho estreito, entre outeiros cobertos de mato.
Encontramos filas de palhoças baixas, de taipa, e, no meio delas, uma
igreja da mesma construção, distinguindo-se sòmente por um altar
pobremente ornamentado. Defronte desse templo, avistamos grande
parte dos índios e uns poucos colonos de outras raças, reunidos para
ouvir missa. Os silvícolas, que vivem aqui há uns trinta anos, reunidos
sob a direção de um juiz brasileiro e de um escrivão, pertencem às tribos
dos cariris e dos sabujás. Moram os primeiros na própria Vila da Pedra
Branca; os outros, num povoado, chamado Caranguejo, distante meia
hora mais ao sul. Antes de se estabelecerem sob o domínio brasileiro,
eles viviam dispersos nas matas dos montes vizinhos. Atualmente
formam um distrito de umas 600 almas. Ambas estas tribos entretêm
relações de recíproca boa harmonia, e não se distinguem uma da outra,
nem pela conformação do corpo, nem pelos costumes e hábitos, mas
apenas pela diferença das línguas. São de estatura mediana, bastante
esbelta, de compleição nada forte, de cor pardo-clara...” p. 145

388
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

dando, a partir daí, a uma das origens do processo de urbanização


do interior da Bahia.

Admitindo-se que na área de pecuária havia uma baixa


concentração populacional, pergunta-se se tais diferenças não
geraram implicações importantes no que concerne ao contato
lingüístico que ocorreu entre os europeus (principalmente os
portugueses), e seus descendentes, indígenas, escravos africanos e
brasileiros mestiços de modo geral. Um fato relevante é que o
processo de constituição histórico-demográfica da população não-
autóctone deu-se de forma bastante diferenciada nas áreas de
pecuária e mineração. Essas diferenças deram-se não somente na
própria região semi-árida, mas, entre essa e outras regiões da
Bahia, principalmente a região do Recôncavo, onde houve grande
concentração de escravos africanos e seus descendentes em
decorrência de ser uma reconhecida área de plantation.

Na Chapada Diamantina houve, por exemplo, durante o


século XVIII, um razoável contingente de escravos africanos e, já
na zona de pecuária, esse número era bastante reduzido, apesar do
crescimento e criação de novas vilas nesse período. Atribui-se a
isso o fato de que as fazendas de gado, principal atividade
econômica dessas regiões, não necessitavam de um grande
número de escravos. Tal fato leva a crer que, pelo menos no que
se refere ao Alto Sertão, as condições de contato lingüístico não
tenham sido propícias à formação de língua crioula. Além disso, o
contato inter-étnico parece ter sido bastante íntimo, favorecendo
muitas vezes a relação de compadrio. Segundo Erivaldo Neves
(1996: 38), “o trabalho compulsório desenvolveu-se no Alto
Sertão baiano, simultânea e articuladamente com a meação,
confundindo-se choupanas de agregados e casebres de escravos”.

Entretanto, a falta de dados ou dados incompletos sobre a


população da Bahia em períodos mais recuados de tempo impede-
nos de termos uma idéia exata desse contato.4 A busca de dados

4 As estimativas sobre a população da Bahia são incompletas. Alguns

dados, porém, permitem uma idéia aproximada. Vendo os dados de 1724

389
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

mais precisos levou-nos, nesse caso, a cruzar fontes históricas e


dados documentais, enfocando os fatores que motivaram o
processo demográfico da região como uma forma de melhor
visualizar o quadro de contato lingüístico daí decorrente.

1. Considerações histórico-demográficas

A título de exemplo vamos demonstrar como se deu o


processo de urbanização, com relação à presença de escravos
africanos, em três localidades do semi-árido baiano: Igaporã (Serra
Geral), no Alto Sertão da Bahia, séculos XVIII e XIX, com base
em um levantamento exaustivo feito por Erivaldo Neves e
Itapicuru (Região Nordeste), século XIX, zona de agropecuária,
com base na dissertação de Mestrado de Consuelo Pondé Sena.
Os dados da Chapada Diamantina, zona de mineração, foram
coletadas por nós no Arquivo Municipal de Rio de Contas.5 As
áreas provenientes de antigos aldeamentos serão abordadas mais
adiante.

O trabalho de Erivaldo Neves (1996), feito a partir de


inventários e testamentos entre outros, nos arquivos do Estado da
Bahia (APEB) e no Arquivo Municipal de Rio de Contas, fornece-
nos dados bastante precisos sobre a presença de escravos em

em Stuart Schwartz (1998: 87), observa-se que a situação da escravaria no


sertão era diferente do Recôncavo. Mesmo na região do Rio São
Francisco os 46% da população sendo de escravos, esses se distribuíam
por um largo território, enquanto que os 61% de escravos no Recôncavo
estavam concentrado em áreas bem menores. Já para o século XIX, o
senso de 1872, como indicado por Luiz Felipe de Alencastro, mostra que
a composição da população baiana de modo geral era de maioria preta e
parda, um índice que corresponde a 72,8%.
5Esses dados estão sendo retomados de uma comunicação feita por nós
no III Encontro Nacional de Língua Falada e Escrita, em 1999, em
Maceió, intitulada, “Constituição de um corpus lingüístico em
comunidades rurais do semi-árido baiano”. In: MOURA, Denilda. Os
múltiplos usos da língua. Maceió: Edufal, 1999. p. 397-401.

390
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Igaporã entre a segunda metade do século XVIII e durante o


século XIX, conforme está demonstrado na Tabela 1, a seguir.

Tabela 1: Origem, cor e gênero dos escravos, 1768-1883, Alto


Sertão da Serra Geral - Igaporã
não
ORIGEM/COR/SEXO H M TOTAL
identific.
AFRICANOS 64
Angolas 21 3 24
Minas 6 1 7
Benguelas 4 4
Hauçás 2 2
Nagôs 2 2
Congos 1 1
Rebolos 1 1
Sem identificação (africanos) 16 7 23
BRASILEIROS 395
Crioulos 113 103 1 217
Cabras 52 55 1 108
Mulatos 23 16 1 40
Pardos 16 12 28
Mestiços 2 2
Sem identificação 63
Não declarados 25 23 2 50
Pretos 9 4 13
TOTAL GERAL 293 224 5 522

Fonte: APEB. Seção do Judiciário. Série Inventários. In: NEVES,


Erivaldo Fagundes. Uma comunidade sertaneja: da sesmaria ao minifúndio (um
estudo de história regional e local).Feira de Santana/Salvador:
UEFS/EDUFBA, 1998. p. 268.

Como podemos observar acima, Igaporã apresenta, para o


período estudado, um total de 522 escravos registrados na região
entre 1768-1883. Desses 86,05% (395/459) do total de
identificados são de brasileiros e apenas 13,94% (64/459) de
africanos. No que se refere ao índice de concentração por

391
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

fazendas, em Igaporã, não há muitos escravos numa só unidade


produtiva.6

No município de Itapicuru, região Nordeste da Bahia, a


situação, no século XIX, é equivalente ao que ocorreu no
município de Igaporã. Há entre 1850 e 1870 uma maioria de
escravos brasileiros, 77,55% (152/196) e apenas 22,44% (44/196)
de africanos, conforme vemos na Tabela 2 a seguir.

Tabela 2: Origem, cor e sexo dos escravos, 1850-1870, Alto Sertão


– Região Nordeste – Itapicuru
ORIGEM/COR/SEXO H M TOTAL
AFRICANOS 44
Nagô 16 2 18
Angola 13 3 16
Jejê 1 2 3
Moçambique 1 1
BRASILEIROS 152
Crioulos 51 21 72
Cabras 24 12 36
Mulatos 24 18 42
Indígenas (vermelhos) 1 1
Cablocos 1 1
Sem identificação 14 3 17
Pretos 1 1
TOTAL GERAL 150 64 214

Fonte: APEB. Seção do Judiciário. Série Inventários. In: SENA,


Consuelo Ponde de. Introdução ao estudo de uma comunidade do agreste baiano –
Itapicuru, 1830-1892. Salvador: Fundação Cultural da Bahia, 1979.

Rio de Contas, região Centro-Oeste, na Chapada


Diamantina, apresenta um quadro diferente. No segundo quartel
do século XVIII há uma maior concentração de escravos

6 Segundo Erivaldo Neves (1998: 257), a partir dos inventários


consultados por ele para compor essa amostra, havia, apenas, uma média
de 18 escravos por unidade, considerando-se velhos e crianças.

392
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

africanos, com 88,11% (764/867) do total de identificados e


11,88% (103/867) de escravos brasileiros, conforme Tabela 3 a
seguir. Lembrando que os dados de Igaporã e Itapicuru abrangem
um período mais extenso do que os dados da matrícula em Rio de
Contas, que é de apenas dois anos.

Tabela 3: Origem, cor e gênero dos escravos, 1748-1749,


Chapada Diamantina - Rio de Contas
ORIGEM/COR/ 1748 1749
TOTAL
SEXO H M H M
AFRICANOS 764
Costa da Mina 174 32 152 25 383
Angola 150 54 118 34 356
Moçambique 4 8 12
Benguela 6 2 8
Cabo Verde 5 5
BRASILEIROS 103
Rio de Contas 21 13 26 5 65
Salvador 4 3 7 6 20
Vale dos Santos 1 1 5 7
Moragogipe 1 1 3 5
Minas Gerais 1 1 2
Cachoeira 1 1 2
Pernambuco 1 1
São Paulo 1 1
Sem naturalidade 1 13 5 19
TOTAL GERAL 367 103 329 87 886

Fonte: Matrícula dos escravos chegados em Rio de Contas


(Chapada Diamantina) entre 1748 e 1749 - Manuscrito incompleto do Arquivo
Municipal de Rio de Contas.7

Embora o sertão tenha sido mais densamente povoado no


século XIX, um fato que também precisa ser levado em conta é o

7 Além de essa matrícula estar incompleta na época da pesquisa


dispensamos algumas folhas porque estavam bastante apagadas. De
qualquer forma esses dados não comprometem o resultado geral,
conforme pudemos comparar com um levantamento feito por Albertina
Vasconcelos (2000).

393
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

de que essa parte da Chapada Diamantina e também parte do


Piemonte da Diamantina foram durante os séculos XVIII e XIX
muito transitadas com a abertura de estradas entre Jacobina e Rio
de Contas, desde 1725, apesar de ser uma região muito difícil —
como atestados por Spix e Martius8 e Felisberto Freire.9

Ao sair da vila10 passava por algumas fazendas de criação de


gado... atravessava o Rio Jacuípe e passava a leste de Morro
do Chapéu... vinha de Campestre11 passando por longas
travessias juncadas de ossos de animais e humanos e por
algumas fazendas de gado...e chegada ao arraial de Bom
Jesus da Lapa” indo dali alcançar “a vila do Rio de Contas,
entrocando com ela em Crioulos, a estrada que vai para a
Bahia e Minas Gerais.

A historiadora Maria Helena Ochi Flexor, no texto Criação


da rede urbana na Capitania da Bahia: século XVIII (2001), fala sobre
esse tipo de ocupação territorial brasileira que pode muito bem ser
aplicado ao interior da Bahia, principalmente sobre os transitados
caminhos entre o vastíssimo sertão, ainda pouco habitado em

8 Spix e Martius (1916), por outro lado, dá-nos ainda uma idéia sobre
essa região e sobre a sua importância econômica ainda no século XIX,
“A Vila de Rio das Contas deve ter 900 habitantes, e tôda a diocese,
governada pelo vigário-geral da comarca de Jacobina, aqui residente,
conta 9.000 almas. Como o clima pouco favorece a agricultura, a
exploração das minas e o comércio são as mais importantes indústrias da
população, que, pela educação e riqueza, se distingue dos outros
habitantes do interior da Bahia”. Inclusive, Luís Vilhena (A Bahia no século
XVIII...) dá um outro dado interessante sobre a região. Ao fornecer a
lista com os nomes de professores e povoações onde residem nesse
período, Rio de Contas e Jacobina são as únicas vilas que aparecem na
relação em um vastíssimo sertão onde o índice de escolarização ao que se
supõe tenha sido baixíssimo.
9 Cf. A História Territorial do Brasil de Felisberto Freire, publicada em

1906.
10 A vila de Jacobina.
11 Atual cidade de Seabra.

394
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

meados do século XVIII, e o litoral. “A ocupação do território


brasileiro foi feita por pedestres, pouco a pouco, passo a passo,
tanto no litoral quanto no sertão. Foram esses pedestres que
formaram a maior parte dos primeiros núcleos urbanos.”

Um outro aspecto a ser considerado é a presença indígena


no semi-árido baiano. Em 1500, essa região era habitada por
grupos indígenas da família lingüística Macro-Jê. Um dos mais
numerosos são os Kariris ou Kiriris, dos quais ainda sabemos
muito pouco. Sabe-se apenas que eles circularam pela extensa
região do Rio São Francisco na Bahia12, falantes do Kipeá, até o
Rio Salitre, Dzubukuá, no médio São Francisco e o Sapuyá, na
região dos rios Paraguaçu e Contas e falantes do Kamaru (Dantas
et al., 1992). 13

Estudos estimam a presença indígena na região há cerca de


cinco ou seis mil anos. E como já é sabida, a ocupação da região
por europeus, principalmente por portugueses, e da inserção de
africanos é recente e data a partir da segunda metade do século
XVI. E já nesse período foram formados os primeiros
aldeamentos na parte mais ao Norte e Nordeste do estado da
Bahia, iniciadas desde as primeiras entradas e através da abertura
de caminhos pelas boiadas, nos antigos domínios da Casa da
Torre. Para se ter uma idéia, no século XVIII, comparativamente
aos dados sobre escravos africanos de acordo em Alencastro
(1997), o percentual de índios aldeados sobre o total de escravos
era de 29,7%.

No século XVIII, esses aldeamentos foram dando lugar à


criação de freguesias, aldeias, arraiais e julgados, denominações
que estavam condicionadas à população preexistente. Entretanto,
a questão da integralização da população indígena com grupos
não-autóctones no semi-árido é ainda muito pouco estudada.

12 E também nos atuais estados de Sergipe, Alagoas e Pernambuco.


13 Cf. também AHU — Arquivo Histórico Ultramarino, 1758, Maio, 19,

Lisboa. AHU — Baía, cx. 144, doc. 26.

395
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Diversas vilas foram originárias de antigos aldeamentos, a


exemplo de Jeremoabo, índios Cariris (Jeremoabo), Bom
Conselho (Cícero Dantas), Santa Tereza de Canabrava, Pombal
(Ribeira do Pombal), aldeia de Tupinambás (Soure), Tucano, Saco
dos Morcegos/Mirandela, aldeia de índios Moritis e Cariris
(Ribeira do Pombal), Maçacará (Euclides da Cunha) e outra da
Região Norte como Pambu, Santo Antônio da Glória etc. nos
século XVII e XVIII.14

Maria Helena O. Flexor (2001), tratando da questão


indígena na região de Porto Seguro na Bahia, diz que: “o intuito,
na prática, era civilizar, educar e obrigar os índios a falar a língua
portuguesa e integrá-los na sociedade dos brancos, num núcleo
urbano para, assim, povoar e tomar conta do solo”. Em um outro
trabalho intitulado Aprender a ler, escrever e contar no Brasil, do século
XVIII (2000), a autora fornece um trecho extraído de um
documento do segundo ouvidor de Porto Seguro, José Xavier
Machado Monteiro, em 1773 falando do processo civilizatório dos
índios, especificamente sobre o hábito de tirar os índios ainda
pequenos do convívio familiar para que esquecessem a língua
materna.

No referido documento, o ouvidor de Porto Seguro ao


tratar da questão do uso da língua portuguesa diz: “reprimindo-lha
no publico o temor do castigo, mas praticando-a sempre no
particular e maiormente com os filhos, que tem na sua companhia,
porque dos lhes tirei para a dos mestres e mãos, tanto mais
pequenos, tanto mais se vêem esquecidos dela”.

Pensamos que, de certa forma, a criação de vilas dentro do


modelo organizado pelo Marquês de Pombal na Bahia,
principalmente na região de Porto Seguro, pode ter sido aplicado

14 Cf. dados de MATTOSO, Kátia M. Queirós de. Bahia, Século XIX: uma
província no Império. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1992; e de
VILHENA, Luís dos Santos A Bahia no século XVIII. Salvador: Editora
Itapuã , 1969. – Coleção baiana, v. 1 e 2.

396
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

também no semi-árido. Assim, acreditamos que o processo,


denominado pela autora de reurbanização e repovoamento, tenha
implicações também no processo que estamos chamando de
integralização entre as diversas línguas indígenas no sertão da
Bahia, hoje extintas, quando do contato, principalmente com o
português. Não há estudos que justifiquem essa posição, contudo,
pela forte influência cultural indígena em diversas partes do semi-
árido, acreditamos haver influências que vão além do léxico.

A título de ilustração e como uma motivação para estudos


nessa área, listamos abaixo, na Tabela 4, as localidades com
sobreviventes de índios falantes do português. Para melhor
visualização dessas áreas, ver o Mapa 2, em anexo.

Tabela 4: Povos e terras indígenas - Semi-árido baiano


Populaçã
Área Município
Povos Terras o Situação
total Aldeamento s
indígenas indígenas indígena jurídica
(HÁ) abrangidos
estimada
Sem
Tumbalal Tumbalal Abaré,
providência
á á Curaçá
s
Sem
Porto da
Truká providência Curaçá
Vila
s
Remanescen
te da Missão
Em
de São João
Tuxá Rodelas 7000 607 regularizaçã Ibotirama
Batista de
o
Rodelas, Séc
XVII
Em
Kantarur Kantatur
1695 287 regularizaçã Glória
é é
o
Adquirida
parcialment
Xukuru- e pela
Quixaba 39 54 Glória
Kariri FUNAI e
Diocese de
P. Afonso
Glória,
Em
Pankarar Pankarar 2959 Missão do Rodelas,
270 regularizaçã
é é 7 século XVII Paulo
o
Afonso
Em Glória,
Pankarar Brejo do 1770 Missão do
644 regularizaçã Rodelas,
é Burgo 0 século XVII
o P. Afonso

397
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Euclides
da Cunha,
Sem antiga
Tocas Tocas providência freguesia
s de
Geremoab
o
Em
Massacar Missão em Euclides
Kaimbé 8020 349 regularizaçã
á 1639 da Cunha
o
Sem
Euclides
Kaimbé Muriti Idem providência
da Cunha
s
Sem
Rodeado Cícero
Kiriri 50 providência
r Dantas
s
1230 Regularizad Banzaê,
Kiriri Kiriri 1350
0 a Quijingue
Barra K. Em Muquém
Kiriri Passage 62 94 regularizaçã do S.
m o Francisco
Sem
Aricobé Angical providência Angical
s
Ass. de R.
Atikúm Angical 400 50 Angical
Agrária
Pankaru Vargem Regularizad Serra do
981 90
(Kinâne) Alegre o Ramalho

Fonte: SEI/ANAI - Ba, 1999, GARCEZ, Angelina (1997). Em torno da


propriedade da terra. Salvador – Bahia.

No que concerne à questão da criação da rede urbana no


Brasil e na Bahia há informações sobre diversos núcleos criados a
partir de outras motivações, além dessas ligadas aos aldeamentos
durante o século XVIII. No caso da Bahia, essas motivações
foram principalmente àquelas ligadas à administração de serviços
religiosos, as áreas de plantation, as de fazendas de agropecuária e a
exploração mineral, como já referido.

2. Considerações lingüísticas

Segundo Mattos e Silva (2001), na cena lingüística do Brasil


Colônia, temos como atores principais o português geral brasileiro
contrapondo-se às línguas gerais indígenas e ao português culto. A
tentativa de aproximação do que seria essa “incomensurável

398
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

diversidade” pode ser feita, segundo a autora, através de indícios


históricos. E foi com o intuito de iniciar a tentativa de entender a
enorme diversidade lingüística, no que se refere ao português
popular, que deveria existir no semi-árido baiano nesse período, é
que apresentamos os dados histórico-demográficos acima
analisados. A partir desses indícios hipotetizamos que, em linhas
gerais, a dinâmica do contato lingüístico pode ter ocorrido nessa
região da Bahia a partir de diversos contextos.

I - Séculos XVII e XVIII

a) aldeamentos: tiveram um importante papel para a


posterior formação de vilas, lugares e morgados, mas a situação
lingüística no que diz respeito ao português ainda era muito
imprecisa, havendo pelo menos duas línguas de contato, a do
colonizador, uma ou mais línguas gerais de base indígena, e
línguas indígenas.

b) expansão da agropecuária: com os caminhos das boiadas


o processo da agropecuária deve ter sido um fator importante para
a difusão e propagação da língua portuguesa pelos sertões da
Bahia. Essa difusão inicialmente deve ter se dado através da boca
de brancos pobres e descendentes de índios e escravos brasileiros.

c) quilombos: uma situação bastante peculiar é a dos


quilombos. Surgidos a partir de grupos de negros fugidos, esses
locais eram propícios para o desenvolvimento de línguas crioulas.
No entanto, o sertão apresenta uma situação diferente do
Recôncavo e do sul do estado, onde está localizada Helvécia,
comunidade de afro-descendentes, alvo de importantes estudos de
Baxter e Lucchesi (1993 e 1996), no âmbito do projeto “Vestígios
de dialetos crioulos em comunidades afro-brasileiras isoladas”. No
semi-árido, como já dito, não há notícias da existência de muitos
deles e algumas vezes quando formados foram, às vezes,
“dizimados”.

Um fato ilustrativo extraído da documentação do Arquivo


Histórico Ultramarino (AHU) mostra a formação de um desses
núcleos quilombolas numa região de transição entre o Recôncavo

399
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

e o semi-árido, como o caso dos quilombos de Andrahi, de Tupim


e Crobó. Nesse documento15 consta que esses núcleos já
contavam com mais de 80 anos. Em um trecho do referido
documento há o relato da perseguição aos mesmos:

Diz Severino Pereira Capitão Mor das Entradas16 e Assaltos


do disctrito de S. José das Itapororocas, Capitania da Bahia,
que havendo na distancia de trinta ou quatro legoas da Villa
de Cachoeira dois formidáveis Quilombos denominados o
Andrahi, e Crobô, dos quais sahião os Escravos fugidos
para fazendo todo o gênero de hostilidades aos viajantes,
chegando a ponto de entrarem nelas Cazas, e levarem
violentamente as Escravas, Mulheres donzellas, e Cazadas,
roubando os gados, e vários gêneros, com que o povo se
via consternado, e afflicto, requereo por varias vezes aos
Ministros, e ao Governador...17

Se os núcleos quilombolas no semi-árido, salvo, algumas


exceções, foram dispersos, como estamos supondo, acreditamos
que não tenham criado condições para o desenvolvimento de
algum tipo de crioulo. Dessa forma, pensamos que o estudo de
situações individualizadas, como a realizada por Alan Baxter e
Dante Lucchesi com as comunidades remanescentes de

15 Documento com anexo sobre esses quilombos falam da intenção de

acabar com esses quilombos, AHU – Baía, cx. 212, doc. 14951. A
documentação que estamos utilizando são cópias fac-similadas que
foram trazidas de Portugal pelo Projeto “Resgate” com iniciativa do
Ministério da Cultura que contou com a participação do Prof. Onildo
Reis David entre outros a partir da intermediação da Universidade
Estadual de Feira de Santana.
16 Entrada nesse caso se refere a um tipo de milícia organizada e

executada como um serviço do Rei, passível de ser recompensada.


17 Outros documentos sobre a região do AHU se referem ainda à
presença africana em situações quilombolas e sobre a perseguição aos
índios, como o AHU – Arquivo Histórico Ultramarino. 23/04/1722 –
Carta patente assinada pelo vice-rei, sobre guerra ao gentio bárbaro e aos
negros fugidos -AHU – Baía, cx. 16, doc. 1420.

400
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

quilombos, são muito importantes para a compreensão dessa


diversidade.18 Entretanto, não podemos perder de vista a grande
variação nas formas de implantação e difusão do português, que
em uma mesma região, a semi-árida, apresenta pelo menos duas
situações que além de se oporem a do recôncavo se opõem entre
si, mineração versus agropecuária.

II- Século XVIII e XIX

Criação de vilas originárias de aldeamentos e grupos


indígenas sobreviventes, núcleos urbanos. A partir da
documentação analisada, podemos inferir que o século XVIII é
crucial para a dita vitória do português no Brasil, inclusive pela já
conhecida política lingüística implantada por Pombal. Além dessa
política lingüística, o anteriormente citado processo de
reurbanização e repovoamento dos antigos aldeamentos em muito
deve ter favorecido a “vitória” ou hegemonia de uma língua que
deveria estar próxima à norma de Portugal, já que os índios
aldeados e todos os outros eram obrigados a falar português.

III – Século XX, antes e depois da década de 40

Não entraremos muito nessa questão atual, pois ela será


tratada em um outro trabalho, mas queremos apenas chamar a
atenção para o fato de que os processos de industrialização,

18 Sobre comunidades de afro-descendentes ver Barra/Bananal,


comunidades gêmeas, localizadas ao sul da Chapada Diamantina, a 15
km do município de Rio de Contas, entre os vales da Serra das Almas e
da Serra do Malhado, na Bahia e a peculiar situação dessas com os
habitantes de uma localidade próxima, Mato Grosso, comunidade de
descendentes de brancos portugueses. E, ainda, Cinzento, localizado na
região sudoeste da Bahia, pesquisada por Graziele Novato, conforme sua
dissertação, intitulada Cinzento: memória de uma comunidade negra remanescente
de quilombo, Puc-SP, 1999 e Rio das Rãs, que é conhecida como “A
Fazenda Rio das Rãs”, situada a 70 km da cidade de Bom Jesus da Lapa,
no Estado da Bahia (cf. DORIA, Siglia Zambrontti; OLIVEIRA JR.,
Adolfo. O Quilombo do Rio das Rãs, história, tradição e luta. 1996).

401
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

escolarização e urbanização em muito vão contribuir para firmar a


dita unidade lingüística brasileira, pois passamos rapidamente de
um país rural para um país urbano, tendo tudo isso implicações
lingüísticas importantes.

Dessas considerações podemos deduzir que, no geral do


sertão, como atestam os dados de Neves (op. cit.), havia um
contato mais ou menos íntimo entre os senhores e escravos, o que
facilita a integração lingüística, fazendo com que a língua de um
influencie rapidamente a língua do outro, havendo provavelmente
uma maior vontade do criado em se aproximar da língua do
senhor, pelas já conhecidas questões de prestígio lingüístico.

Como conclusão generalizada sobre a expansão e difusão


da língua portuguesa pelo semi-árido, naquele período, podemos
dizer que a população de origem africana pode ter exercido um
maior papel (cf. Matos e Silva, 1995 e 2000) nessa região quando
parte do contingente de escravos e seus descendentes tanto a que
trabalhou nas minas quanto no recôncavo passa a migrar para a
zona de pecuária, no século XIX, período em que o semi-árido
baiano é mais densamente repovoado. Esse fato pode explicar a
existência de algumas comunidades, existentes no sertão, de
maioria negra, mas que não parecem ter origem quilombola, como
é o caso de Piabas19, Alto do Capim (ambos no Piemonte da
Diamantina), Matinha (Paraguaçu) etc.

Para finalizar e a título de agradecimento, gostaríamos de


dizer que, de modo geral, este trabalho inspira-se nas preciosas
lições de Rosa Virgínia Mattos e Silva sobre sócio-história do
português brasileiro, nossa principal incentivadora nessas nossas
investidas exploratórias na área. Queremos agradecer também a
Maria Helena Ochi e a Ilza Ribeiro.

Referências

19 Comunidades que fazem parte do projeto coordenado pelas autoras

desse artigo. As amostras de duas delas estão em vias de publicação: de


Piabas (região de Jacobina) e Matinha (região de Feira de Santana).

402
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

AHU – Arquivo Histórico Ultramarino. 1710, Junho, 21, Bahia. Letra de


Câmbio passada pelo escrivão do Tesouro Real da Bahia Antonio Alves,
referente aos escravos vindos da Costa da Mina. AHU — Baía, cx. 6,
doc. 35.
AHU – Arquivo Histórico Ultramarino. 1770, Maio, 8, Porto Seguro.
Ofício do desembargador ouvidor do Porto Seguro, José Xavier
Machado Monteiro, ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar,
Francisco Mendonça Furtado], referente à medida que tomou
relativamente aos índios mais jovens, tirando-as da companhia dos pais,
obrigando-os a conviver com os brancos, bem como às vilas que erigiu e
ao pedido de sucessor para seu cargo. AHU — Baía, cx. 169, doc. 41.
AHU – Arquivo Histórico Ultramarino. 1758, Maio, 19, Lisboa. Carta
Régia (minuta) do rei [D. José] ao arcebispo da Bahia [José Botelho de
Matos] e vice-rei e governador-geral do Brasil, conde dos Arcos, [Marcos
de Noronha], comunicando a instituição do tribunal da Relação da Bahia
para averiguar os bens dos religiosos jesuítas e a criação de vilas nos
antigos aldeamentos. AHU – Baía, cx. 144, doc. 26.
AHU – Arquivo Histórico Ultramarino. 2 de janeiro de 1799,
documento com anexo sobre quilombos denominados de Andrahi, de
Tupim e Crobó, falam da intenção de acabar com esses quilombos -
AHU – Baía, cx. 212, documento 14951.
AHU – Arquivo Histórico Ultramarino. 23/04/1722 – Carta patente
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405
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Aspectos da história demográfica e social do


Rio de Janeiro: Escolarização, norma e
nacionalidade
por
Dinah Callou
Universidade Federal do Rio de Janeiro
e
Carolina Serra
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Relembrando alguns dados sobre o Rio de


Janeiro

Não se pode compreender o falar carioca atual sem antes


analisar o modo pelo qual cresceu e se diversificou a pequena
povoação de 150 habitantes, fundada por Mem de Sá no morro do
Castelo.

A fundação do Rio de Janeiro se deveu, ao que parece, a


imperativos de ordem estratégico-militar. Não há, contudo, dados
históricos que permitam estabelecer as circunstâncias precisas da
chegada dos portugueses à baía do Rio e, também, o número
exato de habitantes da cidade do Rio de Janeiro, nos fins dos anos
quinhentos. Até hoje a estimativa feita se baseia no quadro do
barão do Rio Branco, que, por sua vez, se inspirou na Informação...,
no ano de 1585, do padre José de Anchieta:

BRANCOS ÍNDIOS NEGROS


750 3000 100 escravos

407
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Entre 1585 e 1600, pode-se pensar que a população branca


do Rio de Janeiro já contava com 1.000 almas, em decorrência do
incremento comercial da cidade. Esse número de habitantes já
impunha uma estratificação social, em função de ofícios diversos
desempenharem um papel importante na relação entre os
habitantes (Linhares e Lévy, 1971). A mestiçagem está presente
desde a sua fundação, mas sua valorização é muito mais tardia e
nem sempre reflete, como esperado, a realidade social. Segundo
Enders (2002: 6): “Não se pode negar [...] que a antiga capital do
Brasil foi de fato o cadinho de uma nação mestiça [...] Em vários
domínios, como a escravidão, a imigração, a industrialização, [...] o
Rio de Janeiro apresenta uma trajetória singular e se distingue
especialmente de São Paulo”. E de muitos outros estados.

No século XVII, o Rio de Janeiro passou a desempenhar o


papel de porto marítimo para o escoamento da produção
açucareira. Serviu, também, como ponto forte para a conquista e
defesa do sul. A partir dos últimos anos do século XVII, com a
descoberta do ouro, o Rio de Janeiro torna-se o intermediário
entre a área de mineração e a metrópole. Durante o ciclo do ouro,
a cidade adquire projeção sem precedentes, expressa em sua
expansão urbana: desenvolvimento de novas áreas, subdivisão das
freguesias urbanas, entre outros fatores. Em 1763, ocorre a
transferência da capital para o Rio de Janeiro e, ao longo do século
XVIII, o centro de gravidade da América portuguesa passa do
Nordeste para o Sudeste, tornando a cidade do Rio de Janeiro a
principal cidade brasileira. De todo modo, em 1799, 34,6% dos
habitantes da cidade do Rio de Janeiro são escravos; em 1821,
45,6%; até meados do século, o total de escravos não é inferior a
40%. Desse último percentual, 55% a 66% são do sexo
masculino.1 Com o declínio do ouro, o café afirma-se como novo

1 Os “africanos” do Rio de Janeiro têm as mais variadas origens, sendo,


no início do século XIX, 2/3 dos escravos originários da África central e
austral. Depois de 1830, a costa oriental da África fornece 1/4 dos
escravos, que recebem o nome genérico de “moçambiques”. A maioria
pertence ao grupo lingüístico banto.

408
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

produto básico de exportação, entre 1830 e 1840, e é por essa


época que se dá o empobrecimento de largas camadas da
população urbana e a urbanização das áreas suburbanas. A relativa
proletarização de São Cristóvão e da Zona Norte vai acentuar-se
com a proclamação da República, que expulsa dali a família real, e
sua crescente industrialização. Os “barões do café” e as elites
sociais da capital passam a residir nas proximidades da baía da
Guanabara. O Palácio do Catete, por exemplo, foi construído por
um desses “barões” para sua residência. A rua São Clemente, em
que ainda se pode visitar a casa de Rui Barbosa, palacete
neoclássico erguido em 1850, conserva até hoje vestígios do gosto
da alta sociedade carioca. Em 1865, a princesa Isabel e família
muda-se para o “Palácio Isabel”, entre Flamengo e Botafogo. Em
1892, é aberto um túnel entre Botafogo e a praia deserta de
Copacabana.

O mundo social carioca tende a tornar-se, na primeira


metade do século XIX, cada vez mais heterogêneo. Às diferenças
culturais, ligadas às origens variadas dos escravos, vêm juntar-se as
funções que lhe são atribuídas, o estatuto social de seus donos e o
conhecimento da língua portuguesa.

2. Alguns dados demográficos e sociais

As transformações do Rio de Janeiro estão relacionadas ao


seu crescimento espacial e demográfico. Em 1824, cria-se um
município neutro da Corte, destacado da Província do Rio de
Janeiro, separando-se cariocas e fluminenses. Entre 1838 e 1920, o
número de cariocas passa de 137.000 a 1.150.000, a urbanização
atinge regiões rurais, e subúrbios se tornam bairros. A urbanização
avança, sobretudo, em direção ao norte e à Baixada Fluminense.
São Cristóvão não é mais considerado uma paróquia rural por
volta de 1870 e perde seu cunho aristocrático para o balneário de
Botafogo, ligado ao largo do Paço em 1844 por um serviço de
barcos. Em 1890, o recenseamento indica que 54% dos habitantes
da capital nela nasceram, 1/4 é de imigrados estrangeiros e 1/5 de
outras províncias.

409
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Os resultados dos censos estatísticos revelam o retrato do


país e podem ser considerados como a principal fonte de
informações para a análise e o aprofundamento do conhecimento
sobre a realidade nacional. Até um determinado momento de
nossa história, contudo, só podem ser feitas aproximações, gerais
e específicas, para cada estado e cidade.

Revendo algumas informações, pode-se chegar ao seguinte


quadro geral da população no Rio de Janeiro até a chegada da
Corte portuguesa.

Total da população
1585 3850
1710 12000
1799 43376
1808 50144
.

Os censos de 1872, 1890 e de 1900 mostram o aumento


progressivo de habitantes.

Total da população (RJ)


1872 1890 1900
819.604 876.884 926.035

Em 1900, já se estabelece uma diferença entre o estado do


Rio de Janeiro e o Distrito Federal, que correspondia antes ao
chamado município neutro.

410
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Distrito Federal (1900)


Homens Mulheres Total
419.569 327.180 766.749

É relevante do ponto de vista sociolingüístico observar as


sucessivas distribuições demográfico-lingüísticas ocorridas no
território fluminense no período em questão.

Segundo Alencastro (1997: 16), “a vida privada brasileira


confunde-se, no Império, com a vida familiar”. Mais
especificamente, essa ordem privada correspondia à escravista, e é
essa mesma ordem que vai marcar o cotidiano, a sociabilidade, a
vida familiar e a vida pública brasileira. É nessa esteira de
condições que se pode pensar a leitura no século XIX: como se
dava o ler nessa sociedade de ordem escravista, ou, em outras
palavras, o que era a leitura no Império, considerando-se que se
tratava de uma época marcada por tal ordem. Retomando
Alencastro (1997: 18), “o escravismo entranhava nos lares, no
âmago da vida privada, um elemento de instabilidade que carecia
ser estritamente controlado”.

A leitura pode ser pensada em um âmbito ainda mais


particular, que poderia definir – e definiu –, ao que parece, o seu
futuro na nação recém-independente: se pensarmos, conforme
Alencastro, que o escravismo não se configura, no Império, como
um vínculo com o passado colonial, mas como um “compromisso
para o futuro”, para o qual a escravidão é reconstruída como um
projeto sobre a contemporaneidade, então poderíamos considerar
que a produção do texto no século XIX teve por impulso esse
projeto, ou seja, conduzir o país para o futuro, conduzi-lo ao
patamar das grandes nações européias, mas com vistas, ainda, à
manutenção do escravismo.

A mudança por que passaria o Brasil já era entrevista,


quando da chegada de D. João VI, pelo padre Perereca, que
afirmou já “sentir os saudáveis efeitos da paternal presença de tão

411
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

ótimo príncipe”. Mas seria ainda preciso mover mundos para que
o Rio se tornasse o centro ideal do tão sonhado Novo Império.
Um deles seria, conforme veremos adiante, implementar um
projeto educacional que viabilizasse os serviços do Reino e fosse
de encontro à já citada ordem escravista, lembrando que tal
ordem, no Rio, ganharia a maior oposição do Reino na segunda
metade do século.

Já antes da chegada de D. João VI, o Rio ocupava uma


posição privilegiada na vida econômica brasileira. Constituindo-se
como principal porto do Brasil, promovia a articulação da
metrópole com o litoral nordestino, o sul e a região do Prata. Para
o interior, comunicava-se com as regiões mineiras; para o norte,
com as tradicionais regiões açucareiras do litoral nordestino. Com
isso, devia, também, já se configurar como um pólo de mistura
lingüística, conforme Alencastro prevê para meados do século
XVIII.

Mas, conforme assinalam Neves e Machado (1999: 30)


[falta completar referências], apesar dessa posição de destaque, “a
cidade ainda se mostrava tipicamente colonial”. Com menos de
sessenta mil habitantes, espremidos entre quatro freguesias – Sé,
Candelária, Santa Rita e São José –, a cidade assistiu ao transtorno,
em meio ao deslumbramento, causado pela chegada da comitiva
real.

É dessa época que se originam as profundas diferenças


sociais que marcam o espaço urbano da cidade dos dias atuais: a
diferença entre zona sul e as demais áreas. A nobreza abarcou os
chamados “novos subúrbios”, como as áreas do Catete, de
Botafogo e da Lagoa, regiões comparadas aos mais belos sítios da
Itália ou da Suíça. No centro, concentraram-se os comerciantes
miúdos, os artesãos e os pequenos funcionários régios. A
população mais carente ia ocupando as áreas mais ao norte,
próximas ao mercado de escravos, ou aquelas ainda cobertas de
manguezais, mais a oeste.

Em números, a transformação sofrida pelo Rio de Janeiro,


nos últimos séculos, pode ser assim ilustrada: entre 1799 e 1821,

412
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

desconsiderando as freguesias rurais, a população urbana do


município subiu de 43 mil para 79 mil habitantes. Entre os
habitantes livres, o contingente salta de 20 mil para 46 mil
indivíduos.

Aumento médio da população (%)


Período Urbana Suburbana Total
1821-1838 13,23 11,53 12,73
1838-1872 40,35 3,39 29,59
1872-1890 48,04 60,38 50,04
1890-1906 29,35 61,97 35,15

Aumento percentual da população em zonas urbanas entre 1890 e


1906
Região Percentual
Candelária 54,09
Santa Rita 4,85
Sacramento 19,73
São José 12,16
Glória 34,0
Lagoa/ Gávea 81,5
São Cristóvão 88,3
Engenho Velho/ 147,3
Andaraí/
Tijuca
Engenho Novo/ 125,3
Méier

413
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

População das áreas suburbanas entre 1821 e 1906


ANNO TOTAL
1821 112.695
1838 137.078
1849 266.466
1856 151.766
1870 235.381
1872 274.972
1890 522.651
1906 811.443

Quanto à percentagem de cativos, o número salta de 35%


para 46%, de uma para outra data, já que o Rio torna-se, no
período, o maior terminal negreiro da América.

Callou (1999) afirma que, segundo o Relatório da Directoria


Geral de Estatística de 1873, o chamado município neutro contava
com uma população de 226.033 homens livres e 48.939 escravos,
num total de 274.972 habitantes. Pelo Recenseamento do Estado
do Rio de Janeiro feito em 30 de agosto de 1892, a população do
Rio de Janeiro, não incluída aí a do Distrito Federal, era de
490.087 homens livres e 292.637 escravos.

3. O fator escolarização

A taxa de alfabetização é um indicador utilizado não só


para caracterizar a situação educacional do país, mas também suas
condições sociais. Se não é tarefa simples caracterizar a instituição
do ensino de língua portuguesa nos dias atuais, que dirá no século
XIX, porque essa atividade abarca, além da lingüística, outras
dimensões, a social, a cultural, a histórica, a econômica (Gallo,
1999). A instituição de ensino da língua materna gera a ilusão, para

414
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

a época, de uma unidade lingüística inexistente, ilusão essa


justificada pelo fato de a língua portuguesa, no período pós-
independência, apresentar-se como “nacional” e ao mesmo tempo
como “normativa”. A identidade nacional se fixa lingüisticamente
sobre a portuguesa, ocorre uma normatização, por vezes contrária
ao sistema lingüístico local, e o surgimento de uma relação
paradoxal, que perdura até nossos dias: quanto mais de acordo
com as normas da língua disciplinar, a portuguesa, mais brasileiro.

Parece que o Rio de Janeiro, por ter sido a sede da Corte,


veio a ser o carro-chefe desse paradoxo, já que aqui o governo
fixou suas amarras sobre a educação e oficializou mais fortemente
que nas outras regiões do país essa identidade nacional. A
“democratização do ensino” jamais poderia ser uma ameaça à
ordem estabelecida, sob o risco de danos irreparáveis. No que se
refere à instrução, 65.164 homens (de um total de 173.880) e
33.992 mulheres (de um total de 92.153) sabiam ler e escrever, o
que equivale a dizer que a metade da população masculina e mais
de 60% da feminina eram analfabetas, embora a escolarização
apresente uma distribuição irregular pelas freguesias existentes,
urbanas e não-urbanas. A questão de haver uma ordem escravista
no período do Brasil Império é crucial para a compreensão do
contexto familiar e, de certa forma, do contexto de fomento da
leitura.

No século XIX, já existe uma produção brasileira escrita em


língua portuguesa, produzida, normalmente, por indivíduos
nascidos aqui, mas formados nas academias européias. No ensino,
é essa produção que será apresentada como modelo, e as aulas de
língua materna serão entendidas como reprodução desse modelo.
O que vai reforçar o referido paradoxo é o fato de, a partir da
segunda metade do século XIX, os estudos serem implementados
na direção de “demonstrar que o português que aqui se falava e
escrevia era diferente do português de Portugal”. Muitas
gramáticas, sobretudo a partir de 1880, estão atentas a essa
diferença.

parece todavia incrível que a nossa Independência ainda


conserve essa algema nos pulsos, e que a personalidade de

415
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

americanos pague tributo à submissão das palavras [...].


Estamos, assim, caminhando [...] entre duas forças que nos
solicitam para rumos diversos: o “americanismo”,
espontâneo, incoercível, natural e o “portuguesismo”
afetado e artificioso. Em tempo, o povo que é o maior de
todos os clássicos [...] dirá a última palavra. (Ribeiro,
1933:15)

Levar em conta a escolarização no Rio de Janeiro do século


XIX se justifica na medida em que se poderá observar a
constituição de uma norma lingüística, padrão, no âmbito escolar
daquele período. Contudo, repetimos, a tarefa não é simples,
mesmo porque não há garantias de que a observação da
escolarização e da norma nos levariam a um perfil próximo do que
seria o Rio lingüístico no século XIX. Daí, talvez, a necessidade de
esboçar a ideologia pedagógica e, no interior dessa ideologia, a
questão da gramaticização e da norma lingüística, no século XIX,
no contexto da Corte.

Além disso, se pensarmos em definir ou dividir realidades


lingüísticas mais ou menos próximas à norma, teremos de
caracterizar a instituição do ensino de língua portuguesa nos
planos ideológico e cultural, filosófico-histórico e político, sob o
risco de a caracterização não ser completa e não apontar
resultados que se aproximem da verdade, dentro da ars interpretandi
que vimos esboçando nos trabalhos anteriores.

Arno e Maria José Wehling (1994: 225), chegam a afirmar


que

[...] a vinda para o Brasil, atraídos pelas minas, de cerca de


800 mil portugueses certamente contribuiu para consolidar
a língua do colonizador. [...] Mas o fator decisivo parece ter
sido a firme determinação do governo pombalino de impor
o português como língua falada no país, extinguindo o
bilingüismo existente até então.

Essa supervalorização dos efeitos das Leis Pombalinas


merece ser revista e avaliada à parte. Há uma grande distância

416
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

entre o ato da lei e os atos que a implementam. É preciso


considerar a estrutura educacional, no Brasil Colônia, para
compreender seu real peso na substituição das Línguas Gerais
indígena e de preto das quais, na prática, não vingaram línguas
crioulas autônomas como em outras ex-colônias de Portugal. De
todo modo, para observar mais claramente a formação das
normas brasileiras e portuguesas, é preciso remontar, como já se
disse, à estrutura educacional do Brasil Colônia.

Como demonstrou Barbosa (1999), a sobreposição da


língua portuguesa sobre as demais línguas faladas no Brasil
oitocentista está ligada a fatores demográficos, à aculturação e
genocídio de negros e ameríndios, de quase nada tendo valido as
leis de ensino pombalinas. De fato, o ensino das primeiras letras
se fez na colônia graças às aulas particulares e à rede semipública,
ou seja, os seminários e colégios religiosos e ao ensino militar.
Note-se que, geralmente, vem sendo localizada a criação não só de
uma primeira academia militar, mas também de outras instituições
de ensino profissional, em torno da chegada da Família Real
Portuguesa ao Brasil, no início do século XIX.

Com a vinda da Corte para o Brasil e a instituição das Aulas


de Comércio, uma no Rio de Janeiro em 1810 e outra na Bahia em
1811, os negociantes e seus caixeiros passaram a dispor de uma
formação profissional até então inexistente.

Décadas após a época pombalina, o sistema de ensino


criado no Brasil ainda não era capaz de cumprir a determinação
régia de ensinar a Língua Portuguesa de maneira a extinguir as
línguas gerais de índios e de pretos.

Não se pode negar a importância da política pombalina


para a educação na América portuguesa. Deve-se, contudo,
entender a exata dimensão e o alcance de sua ação. As aulas de
língua portuguesa, fossem públicas ou semipúblicas, somente
atingiram um percentual mínimo de homens brancos e pardos
socialmente aceitos. A grande maioria de mestiços sofreria de uma
forte resistência das autoridades em aceitá-los nas aulas. De
qualquer maneira, o alcance da estrutura de ensino do português,

417
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

entre os habitantes brancos e pardos, se comparado ao total de


população encerrado nesse grupo social, foi mínimo. É certo que,
àquela altura, a exemplo de Portugal, a maior parte dos habitantes
tenha permanecido analfabeta.

Para compreender a política de Pombal como um fator da


vitória da língua portuguesa no Brasil, é preciso levar em
consideração que ela definiu uma mudança na opção lingüística da
minoria branca e parda livre que falava uma das línguas gerais
daquela época. Com o passar das gerações, a língua geral, usada na
intimidade, é substituída pela língua portuguesa, primeiramente na
vida pública, depois na familiar.

Para a análise do movimento contínuo das mudanças que a


permanência da Corte portuguesa promoveu, ressalte-se ainda a
criação de outras cátedras de ensino, além da ampliação da
Academia Militar, que constituem, sem dúvida, um passo cultural
decisivo que culmina com o processo de implantação da
Imprensa, tornando possível a circulação, de 1808 a 1821, do
primeiro periódico, a Gazeta do Rio de Janeiro.

Vale relembrar que, até meados do século XX, autores


como Serafim da Silva Neto defenderam a unidade da língua
portuguesa no Brasil, afirmando ter sido isto possível pelo fato de
todos aqueles que “puderam adquirir uma cultura escolar” e
“possuíam o prestígio da literatura e da tradição” terem reagido à
“linguagem adulterada de negros e índios”.

Desde o descobrimento, a língua portuguesa entra em


nosso território sob o cunho da legitimidade e da unidade. Tanto
que, até o século XVII, a relação entre o tupi-jesuítico e o
português se deu no sentido de permitir – o que se fez com
sucesso – a domesticação de um conflito social que estava latente.
Consistiu, portanto, num instrumento do colonizador para
facilitar o domínio sobre a terra.

Na criação da Academia Militar, por exemplo, em


dezembro de 1810, está patente a restrição dos que deveriam
entrar à escola: “nestas escolas militares não deve ser admitido

418
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

aluno algum de duas outras cores; porque eles não devem passar
além de saberem bem obedecer e bem executar o que lhes for
ordenado pelos homens brancos seus oficiais”. Assim, o
distanciamento das classes menos favorecidas do que se pode
chamar de norma padrão já se prenuncia.

Se partirmos do pressuposto de que é possível, para o


século XIX, estabelecer um falar carioca mais próximo à norma, e
outro mais distante, e, ainda, de que tais falares distribuem-se de
forma diversa em termos sociais e geográficos em função de sua
própria história, será necessário caracterizar o processo de
normatização da língua materna, no Brasil, mais especificamente,
naquele século, e, por outro lado, relacionar esse processo à
mobilidade social. Para validar essa proposta, em trabalho
anterior, (Callou e Avelar, 2002: 101-103), tentou-se apresentar
um esboço do que poderia ser a configuração sociolingüística do
Rio de Janeiro, com base em dados referentes ao processo de
mobilidade, ao longo de todo o século XIX.

Existem inegavelmente questões de fundo que merecem


atenção redobrada, pois as respostas concorrerão para a validade
do trabalho. Em que sentido a depreensão de processo de
normatização da língua, em conjunto com a observação da
mobilidade social, nos permitiria conduzir, ou, pelo menos,
facilitar uma visão do Rio lingüístico-geográfico no século XIX?
Em que sentido há garantias de que isso seja viável numa
observação do século retrasado, se nem mesmo para o Rio de
século XIX existe uma análise mais sistemática que permita
caracterizar a capital fluminense em tal instância? Partindo do
pressuposto de que tais assertivas sejam possíveis, faltaria apenas
o “como” da resposta, ou seja, de que forma comunidades com
mais acesso à norma veiculada pelo sistema educacional teriam um
falar mais próximo do português europeu, no século XIX.

Com a independência, a educação passa a ser vista como


um elemento indispensável para que a nova nação alcance mais
rapidamente a civilização e o progresso. Neves e Machado (1999:
270) assinalam que “a aprendizagem de ler e escrever, escolas
primárias, ensino gratuito constituíam elementos indispensáveis

419
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

para alcançar o nível de desenvolvimento econômico das nações


civilizadas”, o que, para o estado – e, é claro, para a elite que
forjou a independência – firmava-se como algo decisivo,
correspondente a uma “fonte de patriotismo, representando a
possibilidade de ‘fabricar o cidadão’”.

É claro que esse “fabricar o cidadão” antevia, ainda que


implicitamente, um projeto lingüístico que permitisse
individualizar ainda mais o Brasil como nação, sobretudo em
relação a Portugal. O que vai ser marcante para esse projeto é o
fato de ter sido forjado dentro de um projeto educacional pensado
pelas elites, cujo objetivo era promover a “homegeneização futura
da própria elite”. Disso vem a ser a maior prova a fundação, em
1837, e sua posterior organização, do Imperial Colégio de Pedro
II, que, sempre atendendo às necessidades dos futuros bacharéis,
constituiu-se como garantia à ascensão social para aqueles que, em
geral, já as possuíam.

O projeto lingüístico, embutido nesse contexto maior de


um projeto educacional, era, em si, um projeto de normativização.
É daí que abrimos espaço para unir o ideológico ao
eminentemente social, já que a constituição de uma norma
nacional vai se dar, paradoxalmente, como já referido, no sentido
de negar o uso lingüístico da maior parte da população brasileira.

Na apresentação do texto Estatística da Instrução, publicado


no Brasil pela Typographia de Estatística, em 1916, lê-se:

Na monografia que serve de prefácio ao inquérito


censitário sobre o ensino, está comprovada por algarismos
irrefutáveis a precária situação da maioria dos habitantes do
Brasil quanto ao grau de instrução, tornando-se evidente a
necessidade da interferência dos poderes públicos nacionais
no provimento do ensino elementar. [ ... ] Só de 1870 em
diante, com a subseqüente criação da Directoria Geral de
Estatística em janeiro de 1871, começaram a ser divulgados,
com mais ordem, clareza e uniformidade, embora

420
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

incompletos e muito deficientes, os algarismos relativos ao


ensino público, primário e secundário em todo o Império. [
... ] Até 1907, não se obtém o desejado êxito, isto é,
apreender de modo aproximado o estado de instrução no
país.

Ensino Público Primário e Jardins de Infância


ANOS Total Escolas Escolas Jardins Freqüência
diurnas noturnas de total
Infância
1916 72.423 64.199 7.753 471 44.635

1918 76.615 69.087 7.051 477 48.510

1921 81.696 73.688 7.616 392 51.598

1923 80.988 73.404 7.175 409 51.010

1926 69.169 64.331 4.407 431 54.759

1928 76.959 71.820 4726 413 59.332

1930 85.022 78.104 6.187 731 64.900

Fonte: (Médias Annuaes da matrícula e da freqüência entre


1916 e 1930)

Não é novidade que a vinda da família real promoveu uma


espécie de revolução no processo da prática de leitura. Isso
porque, socialmente, também houve uma revolução. Ampliou-se o
público leitor, não necessariamente o leitor literatizado, mas o
leitor de uma forma geral, o leitor de documentos, de notícias, de
leis. O leitor forjado na burocracia da metrópole, que aqui chegou
inserido no aparato administrativo de D. João VI. Vários autores,
como Alencastro, situam em torno de 15 mil pessoas o total de

421
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

transferidos de Portugal para o Rio no período. Acrescente-se o


fato de parte dos interesses lusitanos ter se concentrado aqui até
meados do século XIX, diante da instabilidade política e
econômica em que Portugal se encontrava.

A publicação da Directoria Geral de Estatística sobre Sexo,


raça e estado civil, nacionalidade, fliação, culto, analphabetismo, da
população recenseada em 31 de dezembro de 1890, publicada em
1898, apresenta a seguinte distribuição da população do Distrito
Federal, isto é, da cidade do Rio de Janeiro:

Branco Preto Caboclo Mestiço Total


Homens 300049 29530 8830 55248 293657
Mulheres 127740 35008 8615 57631 228994

O total de habitantes, sem levar em conta a variável gênero,


é de 522.651 habitantes. O percentual de homens brancos é de
10%, no universo dos homens, e de mulheres brancas é de 56%,
no universo das mulheres. Essa distribuição pode ser analisada
internamente, em cada uma das paróquias/freguesias, para que se
possa verificar em que locais há maior concentração de brancos e
negros: na Candelária, freguesia mais antiga, criada em 1634, a
proporção é de 7.342 homens brancos para 185 homens negros
(3%), distribuição que se inverteu, como se pode ver, se
compararmos com a situação vigente em 1821, quando a
população escrava chegava a ultrapassar a livre. Nas freguesias de
Santa Rita, criada em 1731, e na de Sant'Anna, criada em 1814,
freguesias urbanas que concentravam uma população de baixa
renda, com reduzido poder de mobilidade, a relação é de 17.395
para 3.707 (18%) e de 27.413 para 3.806 (12%), respectivamente.
Em relação às mulheres, o quadro é também diferenciado. Se
compararmos, por exemplo, o total de homens e mulheres,
brancos e negros, na paróquia de Sant’Anna, é possível concluir
que o percentual de homens negros é menor que o de mulheres
negras: a relação para a mulheres é de 17.348 brancos para 4.162
negros, o que corresponde a 19%, enquanto a de homens é de
12%, como se viu acima.

422
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

No que se refere à distribuição de brasileiros e estrangeiros,


o quadro é o que segue:

População recenseada no Distrito Federal quanto à


nacionalidade em 1890

NACIONALIDADE PopulaçãoTotal
Brasileiros Estrangeiros
Homens Mulheres Homens Mulheres
204996 193536 88661 35458 522651

No correr dos séculos XIX e XX, o número de brancos e


pardos cresce em todo o país, sendo quase equivalentes hoje,
como se pode ver no quadro a seguir, retirado de Reis (2000), a
partir de dados do IBGE, indicando alta miscigenação.

Esse quadro, é necessário observar, é diferenciado de região


para região e, pelo censo de 1991, a maior concentração de negros
está na região sudeste e de pardos, na nordeste. Não se pode
desvincular a questão racial e de sexo da do analfabetismo, já que
negros e mulheres foram durante muito tempo excluídos do
sistema educacional brasileiro. Segundo Ribeiro (2000: 79), “tanto
as mulheres brancas, ricas ou empobrecidas, como as negras
escravas e as indígenas não tinham acesso à arte de ler e escrever”,
pelo menos até 1822. A esse propósito, que extrapola o Rio de
Janeiro, leia-se uma carta de redator (apud Leite e Callou, 2002:
35), publicada, em 1833, no Jornal da Sociedade de Agricultura,
Comércio e Indústria da Província da Bahia:

[...] O destino das mulheres [...] he differente do dos


homens, quer na Ordem Social, quer na da natureza. Seja
qual for sua pozição, e o lugar, que tenhão de occupar um
dia, a sua condicção na Sociedade não he a de comparecer
em publico, exercer empregos, prehencher cargos, tomar
assento nas Assembleas, marchar contra o inimigo, cultivar
as Artes mecanicas, exercitar trabalhos exteriores: mas o
viver na familia, o cuidar do arranjo domestico, por que ahi
he que as mulheres se fazem estimaveis. Sendo pois a sua

423
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

educação de deveres a cumprir no interior, deve a sua


instrucção conformar-se toda á este fim; e portanto a
instrucção recebida na casa paterna he a que mais lhes
convem; pois que tem a vantagem de formal-as logo da
infancia ás minuciosas circunstancias da economia
domestica, e de lhes imprimir o espirito de modestia, de
paciencia, de ordem, e a doçura de caracter, principios
fecundos de todas as suas boas qualidades, bem como de
sua felicidade [...]

Enfocando a cidade do Rio de janeiro, o quadro referente à


instrução é o seguinte, sempre segundo dados do IBGE:

Quanto à instrução (Distrito Federal/1890)


Sabem ler e escrever
Brasileiros Total
homens Mulheres
109.318 80.625 189.943
Estrangeiros Total
homens Mulheres
60.642 19.745 80.387
Não sabem ler e escrever
brasileiros e estrangeiros Total
homens Mulheres
123.697 128.624 252.321
Total Geral: 522.651

Se compararmos esses dados do Distrito Federal com os


relativos aos do Estado do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia e
Ceará, pode-se verificar que o Distrito Federal, que corresponde
hoje à cidade do Rio de Janeiro, apresenta um índice de
analfabetismo muito mais baixo que o das outros municípios. É
possível observar por sua vez que a cidade de Salvador apresenta
o índice mais baixo em relação aos outros estados.

424
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Estado Total de Total de habitantes que %


habitantes não sabem ler e
escrever (brasileiros e
estrangeiros)
RJ 876.884 743.425 85
DF 522.651 252.321 48
BA 1.919.802 1.752.921 91
SSA 174.412 132.170 76
MG 3.184.099 2.852.695 90
CE 805.687 697.561 87

Essas diferenças regionais ainda permanecem, mas são


menos flagrantes, pelo menos nas capitais. Pelo Censo Demográfico
de 2000, a taxa de alfabetização da população do município do Rio
de Janeiro é de 95,8% e de Salvador de 93,8%. As proporções de
pessoas não-alfabetizadas continuam sendo mais significativas nas
regiões Nordeste e Norte: o Nordeste apresentou o pior
desempenho, apenas 75,4% de pessoas de 10 anos ou mais se
consideraram alfabetizadas. Significativo é o fato de as mulheres
apresentarem hoje uma taxa ligeiramente superior à dos homens,
tendo em conta a posição que ocuparam na sociedade durante
muitos séculos.

4. Tentando interpretar os dados

As informações reunidas nos itens anteriores sugerem que


não se pode deixar de relacionar a história lingüística à história
social. Três fatores devem ser observados, de início, mais de perto:

O primeiro é o da época em que se definiu uma chamada


variante culta, questão levantada por Mattos e Silva (2001: 278):

o português brasileiro culto só começará a definir-se da


segunda metade do século XVIII para cá, uma vez que essa

425
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

variante culta passa necessariamente por questões relativas


à escolarização, ao uso escrito e sua normatização;

O segundo diz respeito ao fato de não se poder considerar


a formação do português brasileiro como um processo único,
tendo em vista as características sociais e demográficas
diferenciadas, de lugar para lugar, à época em que se definiu
aquela variante;

O terceiro é o de o primeiro contato do indivíduo com a


língua se dar no âmbito familiar e o de as mulheres serem, de um
lado, em geral, segundo Labov (2001), as transmissoras das
mudanças lingüísticas e, por outro lado, terem ficado durante
muito tempo afastadas do sistema educacional regular.

Referências
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ALENCASTRO, L. F. (Org.). História da vida privada no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1997. v. 2, p. 11-93.
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Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeio, 1999.
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brasileiro: novos estudos. São Paulo: Humanitas, 2002. v. III, p. 281-292.
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carioca: mobilidade social no Rio de Janeiro do século XIX. In:
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Centre Nacional de la Recherche Scientifique, Paris, n. 543, p. 11-15, octobre
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MATTOS e SILVA, R. V. De fontes sócio-históricas para a história
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DIRECTORIA GERAL DE ESTATÍSTICA. SEXO, RAÇA E
ESTADO CIVIL, NACIONALIDADE, FILIAÇÃO, CULTO E
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Rio de Janeiro: Officina da Estatística, 1898.
ESTATÍSTICA DA INSTRUÇÃO. Primeira parte. Estatística escolar.
Brazil. Typographia de Estatística, 1916. v. 1.
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30/08/1892. Rio de Janeiro: Companhia Typographica do Brasil, 1893.
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Prefeitura do Distrito Federal. Directoria de Estatística e Archivo. Rio de
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ARQUIVO GERAL DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO.
ARQUIVO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO.

427
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Os escravos e a língua:
em busca de bases históricas para uma
reflexão
por
Tânia Alkmim
Universidade Estadual de Campinas

A ausência de dados históricos sobre a realidade lingüística


dos escravos brasileiros é um fato bastante conhecido. A
historiografia relativa à escravidão vem desenvolvendo um
extensivo e criterioso trabalho de pesquisa, que tem contribuído
para um conhecimento cada vez maior do sistema escravista
brasileiro e sobre a condição escrava (aspectos da vida social,
religiosa e cultural, movimentos de resistência etc.). O silêncio
sobre a história lingüística de negros e escravos brasileiros causa
uma certa perplexidade: como interpretar a ausência de registro
histórico? Por que cronistas, viajantes, historiadores, ao longo do
período colonial, pouco ou quase nada relataram a respeito dos
usos lingüísticos de uma parcela tão significativa da população do
Brasil? Devemos ver, nessa atitude, a manifestação de um
absoluto desinteresse pela questão, ditada pelo preconceito em
relação às línguas africanas e aos usuários africanos da língua
portuguesa? Ou não teria havido, efetivamente, nada de
excepcional a registrar? Essa última hipótese é dificilmente
sustentável. Deslocados à força de suas diferentes regiões de
origem e reduzidos à dura condição de escravos no Brasil, os
africanos devem ter tido uma experiência lingüística bem
particular. A atuação de intérpretes e, posteriormente, o uso de

429
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

escravos aculturados no trato com os recém-chegados deve ter


sido uma prática usual. Mas como se deu o contato entre africanos
de distintas línguas e culturas? Como foi o processo de aquisição
do português pelos escravos? Por que não foi possível manter o
uso das línguas africanas ao lado do português? É fato que as
línguas africanas trazidas pelos escravos desapareceram, mas há
alguns registros de seu uso, como, por exemplo, informa
Alencastro (1997: 34): “Num discurso no Parlamento, um
deputado baiano declarou, em 1851, que na Bahia ‘entre a
população preta, não se fala a língua do país’.”. De modo mais
preciso, Nina Rodrigues (1945) documentou a presença de línguas
africanas em Salvador, nos finais do século XIX, tendo destacado
a amplitude de uso da língua iorubá (Cf., a propósito, Yeda Pessoa
de Castro (2001)). Cabe assinalar também que as religiões afro-
brasileiras — com suas línguas rituais — representam evidências
muito concretas da forte presença das línguas africanas na vida
dos escravos. Com relação à aquisição do português, encontramos
em Serafim da Silva Neto (1950) duas informações significativas
dadas por viajantes, relativas às primeiras décadas do século XIX:

(i) “Em três meses, [os africanos] podem, em geral, se


fazerem mais ou menos entender. Só o grupo st e o r oferecem
muita dificuldade. Pronunciam o primeiro como t e o segundo
como l. Por exemplo: tá bom em lugar de está bom; dalé ao invés de
darei. (Do viajante alemão Schlichthorst, que esteve no Rio de
Janeiro em 1824).

(ii) “Ao chegar à fazenda, confia-se o escravo aos cuidados


de outro mais velho e já batizado. Este o recebe na sua cabana e
procura fazê-lo, pouco a pouco, participar de suas próprias
ocupações domésticas; ensina-lhe também algumas palavras em
português. É somente quando o novo escravo se acha
completamente refeito das conseqüências da travessia que se
começa a fazê-lo tomar parte nos trabalhos agrícolas dos outros.
É então o seu primeiro protetor que o instruiu.” (Do viajante João
Maurício Rugendas).

Dada a ausência de informações, como pensar a questão da


realidade lingüística dos escravos? Talvez algumas pistas possam

430
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

ser buscadas no mundo de vida, trabalho e morte, gerado pelo


sistema escravista brasileiro, no ventre do qual se forjou um
quadro de interação social, que definiu as escolhas dos escravos.
Queremos, aqui, reunir um conjunto de informações históricas
que, em nossa avaliação, podem fornecer uma base para o
exercício de reflexões pertinentes sobre a questão da realidade
lingüística dos escravos brasileiros. O presente trabalho se propõe
a apresentar dados históricos relativos à condição escrava no
Brasil, que nos parecem relevantes para, de um lado, identificar
quadros interacionais possíveis entre escravos, entre escravos e
livres, e, de outro lado, obter uma visão de conjunto da população
escrava, a partir de sua origem e composição, de suas
características demográficas e de suas condições de vida e
trabalho. Tomaremos, por base, duas obras do reconhecido
estudioso norte-americano Stuart Schwartz: Segredos internos.
Engenhos e escravos na sociedade colonial. 1530-1835, de 1985, e
Escravos, roceiros e rebeldes, de 1992. Os dados apresentados
focalizam a escravidão na Bahia durante o período colonial. A esse
respeito, e a título de justificativa, tomo a liberdade de reproduzir
um trecho do prefácio de Schwartz (1985: 9):

Concentrei minha atenção na Bahia por ser uma das


principais áreas de grande lavoura e um importante ponto
terminal do tráfico atlântico de escravos, embora
fragmentária e irregular em comparação com a norte-
americana do período anterior à Guerra de Secessão, é
melhor que as demais regiões de grande lavoura no Brasil
colonial. (...) Apesar de minha análise limitar-se à Bahia,
acredito plenamente que o processo e os padrões aqui
descritos foram, em essência, os mesmos nas outras áreas
brasileiras produtoras de açúcar.

1) O mundo dos engenhos

Como bem aponta Celso Cunha (1977: 5), “O Brasil, o


verdadeiro Brasil, não estava nas cidades. Estava, então, como
esteve, sem dúvida, até meados do século XIX, no campo, na
zona rural.”. No centro desse Brasil rural, o mundo dos engenhos

431
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

— a fábrica de açúcar e a lavoura de cana — concentrava a


principal atividade econômica, sustentada pela mão-de-obra
escrava. É fato que, a partir dos meados do século XVII, ocorre
uma queda nos preços de açúcar e observa-se um início de
urbanização, com o crescimento de atividades comerciais
(pequenos comércios, prestação de ofício mecânicos, comércio de
escravos, por exemplo), ao lado do grande comércio de
exportação e importação. Segundo Reis Filho (1964: 65): “Ao se
iniciar o século XVIII, as atividades econômicas e as camadas
sociais urbanas estavam constituídas.” Mas, ao longo do período
colonial, o mundo dos engenhos seguiu sólido, ancorado nos dois
grupos sociais antagônicos: os proprietários rurais e os escravos.

A produção de açúcar envolvia a combinação de atividades


agrícolas – a lavoura de cana — e atividades industriais — a
fabricação do açúcar. A força de trabalho era constituída por
escravos e trabalhadores assalariados. Embora a economia
açucareira se baseasse no trabalho escravo, a categoria de
trabalhadores assalariados sempre fez parte da atividade de
produção de açúcar. Nos engenhos, havia quatro categorias de
trabalhadores assalariados: (i) profissionais, prestadores periódicos
de serviço como advogados, médicos, capelães; (ii) trabalhadores,
contratados anualmente, como os especialistas no fabrico de
açúcar (por exemplo, os mestres de açúcar, os caixeiros do
engenho, os purgadores etc.) e os feitores do campo e da fábrica;
(iii) os artesãos, trabalhadores contratados por tarefa, como os
ferreiros, os carpinteiros, os pedreiros etc.; e, por fim, (iv) os
trabalhadores contratados em bases ocasionais ou de curto prazo,
para a realização de tarefas não especializadas, como cavar valas,
cortar árvores, levar mensagens, capturar escravos fugidos ou
trabalhar em tempo parcial nos campos. Segundo Schwartz (1985:
261):

Os trabalhadores do campo eram quase sempre escravos,


em geral negros e predominantemente africanos; os senhores de
engenho invariavelmente livres e brancos. Porém, nas funções
intermediárias — administrativas, técnicas e artesanais — havia
indivíduos livres, libertos e cativos, brancos, pardos ou negros.
Bem no coração da economia açucareira existia um grupo de

432
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

trabalhadores que, por sua existência, corroborava o sistema


escravista sobre o qual a indústria açucareira se alicerçava,
constituindo-se um exemplo de mobilização e progresso aos
cativos.

A maioria dos engenhos baianos tinha entre 60 e 80


escravos, embora houvesse grandes engenhos com mais de 300
escravos. O tamanho médio de um engenho girava em torno de
80 a 120 escravos. Concentrados na zona do Recôncavo, os
engenhos localizavam-se próximos uns dos outros.

1.1. O trabalho no engenho e no canavial

O trabalho na fábrica do engenho era uma combinação de


tarefas especializadas e semi-especializadas, executadas sob
constante supervisão de homens livres ou mesmo escravos. A
propósito, vale conferir o quadro a seguir, relativo à organização
da mão-de-obra em um engenho baiano.

Quadro I: Organização da mão-de-obra em um engenho


baiano
Proprietário: senhor de engenho. Administrador geral: feitor-mor
Hierarquia Processo produtivo
da mão- Casa do Casa das Casa de Encaixota-
Campo
de-obra Engenho Caldeiras Pugar mento
Feitor de
Mestre de
Moenda -
Açúcar
Feitores dia
Superviso-
de Feitor da Purgador Caixeiro
res Banqueiro
Fazenda Moenda ou
Soto-
Guarda-
banqueiro
noite
Caldeireir
os
(caldeireir
o de
Carreiros
Especializ melar, Purgadeir Mães de
Barqueir Moedoras
a-dos caldeireiro as balcão
os
de
escuma,
escumeiro
)

433
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Arrais Tacheiros
De Metedores Massador
Calumbá
Semi- enxada de lenha de barro
especializa Tangedor
-dos ou Guincadeir
sem a Carregador
Boleiro Calcanha
especializa Carregador es
-ção es de
bagaço
Fonte: Schwartz (1985: 135)

Algumas tarefas eram preferencialmente realizadas por


mulheres, como o de guindadeiras, moedeiras; outras eram
próprias aos homens, como o de alimentar a fornalha e o
transporte de formas de açúcar. As tarefas de supervisão e as
especializadas, como a de mestre de açúcar, foram, inicialmente,
exercidas apenas por brancos. Mas na passagem do século XVII
para o XVIII, tais trabalhadores assalariados foram substituídos
por trabalhadores negros livres e libertos, o que provocou um
rebaixamento considerável dos salários da categoria. E, em um
crescente processo de redução de gastos operacionais, os escravos
foram também sendo cada vez mais utilizados em atividades
administrativas, especializadas e de supervisão.

O trabalho relativo à lavoura e à produção do açúcar se


estendia por quase um ano ininterrupto: o período da safra durava
de 8 a 9 meses e o plantio, 2 meses.

A maioria dos escravos das propriedades trabalhava na


lavoura. No canavial, o plantio em cada campo, feito por escravos,
era supervisionado por feitores (muitas vezes, escravos). Os
escravos, homens e mulheres, trabalhavam em grupos, como
informa Schwartz (1985: 127):

Os escravos postavam-se lado a lado. Cada um cavava a


terra a sua frente, formando uma pequena trincheira. A
seguir, toda a fileira de escravos recuava e repetia o
processo até que o campo fosse todo revolvido. A labuta
era às vezes acompanhada por cantos, para manter o ritmo
do grupo... .

434
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

O corte da cana era feito em duplas, homem e mulher: ele


cortavas as canas e ela as amarrava em feixes. Além desse
tipo de serviço, outras tarefas eram acrescentadas aos
escravos, como construir cercas, cortar lenha, cavar fossos
etc. No período da safra, o ritmo do trabalho escravo,
organizado em turnos, tornava-se intenso. As tarefas do
canavial (corte, transporte etc.) eram feitas durante o dia, e
o trabalho no engenho, no período da noite (em geral,
atravessava a noite).

Parece possível supor que, em um primeiro momento, o


mundo do trabalho para a produção do açúcar assentava-se em
dois grupos básicos e polares: um grupo integrado por indivíduos
livres e brancos, culturalmente homogêneo, falante de variedades
de português, ligado às atividades profissionais especializadas, de
administração e de supervisão, que dominava um grupo
numericamente superior, constituído por escravos, cultural e
lingüisticamente heterogêneo (algumas línguas e culturas
próximas, outras bem distintas, certamente), responsável pela
execução das atividades efetivamente produtivas no campo e na
fábrica. Dentro desse quadro, alguns fatos chamam a atenção.
Inicialmente, o fato de as atividades de livres e escravos serem
absolutamente interligadas e complementares. Assim é que o
trabalho escravo era supervisionado por indivíduos livres e a base
para a atuação destes. Embora cindido no plano social, o mundo
da produção do açúcar amarrava seus integrantes em situações de
contato constante e necessárias. O contato dos escravos com a
língua portuguesa, nesse primeiro momento, deve ter sido
intermediado por intérpretes, como atestam as informações
históricas sobre a presença de línguas nos navios negreiros, nos
mercados de vendas e nas fazendas, mas a natureza das relações
postas pelas atividades de trabalho nos leva a supor a necessidade
de uma interação direta e continuada. Naturalmente, o processo
de exposição e a intensidade da exposição à língua portuguesa
deve ter-se dado de maneira diferenciada, segundo a inserção dos
escravos na cadeia produtiva. Nesse sentido, escravos ligados à
fabricação do açúcar, trabalhando lado a lado de assalariados
brancos, tinham um acesso à língua distinto daqueles que

435
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

permaneciam a maior parte do tempo nas lavouras, locais em que


a presença de brancos era bem reduzida. Mas sendo constante e
inevitável o contato com a língua portuguesa, sua aquisição e uso
pode ter-se tornado impositiva, independente da possibilidade de
os escravos manterem suas línguas de origem ou adquirido
outra(s) no contato com seus pares.

Chama também a atenção o eixo que opunha a


homogeneidade lingüística e cultural do grupo dominante à
diversidade do grupo dos escravos — ainda que esse último fosse
numericamente superior. Nesse contexto, a situação de extrema
assimetria posta pela relação de escravidão pode ter favorecido a
imposição (total ou parcial) de padrões de comportamento do
grupo socialmente controlador. Nessa ordem de idéias,
poderíamos levantar a hipótese de que o sucesso da ordem social
baseada na escravidão no Brasil, isto é, seu funcionamento e
rentabilidade, foi secundado por um bem sucedido processo de
aculturação lingüística dos escravos africanos. Caberia ainda
considerar que, para além do mundo da produção açucareira (e
mesmo da produção da lavoura de subsistência), os escravos
participavam de todas (ou da quase totalidade) as esferas do
cotidiano dos senhores e brancos livres em geral, sob a forma de
prestação de serviços de toda ordem. O português, língua do
senhor branco, dominador — com tudo que essa condição
implicava — poderia, assim, ser visto como o código que se
impôs, desde o início, à diversidade das línguas e dos povos
africanos trazidos como escravos para o Brasil.

1.2. As condições de vida escrava: miséria, castigos e


incentivos

Os escravos eram submetidos a duríssimas condições de


vida: as habitações, as senzalas, eram precárias; a alimentação era
deficitária, insuficiente e de má qualidade; a vestimenta reduzida
era oferecida uma ou duas vezes por ano, nenhum tipo de calçado;

436
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

longas jornadas de trabalho; disciplina rígida, castigos, em geral,


cruéis.

Do ponto de vista da utilização da força de trabalho, os


escravos eram expostos à produção máxima ao menor custo
possível, em regime de trabalho intensivo. Segundo Schwartz
(1992), os escravos conseguiam produzir, num período de 14 a 24
meses, o açúcar suficiente para igualar seu valor de compra. Logo,
não interessava ao senhor fazer qualquer tipo de investimento na
melhoria das condições de vida dos escravos, com preocupações
voltadas para sua saúde, alimentação, moradia, relações familiares,
por exemplo. Evidentemente, a existência do tráfico contínuo,
com a conseqüente possibilidade de reposição da mão-de-obra,
sustentava tal postura dos senhores.

Dadas as severas condições de vida e de trabalho dos


escravos, os senhores encontraram formas de garantir a qualidade
e a quantidade do trabalho dos escravos, e de combater as
doenças simuladas, a resistência e a sabotagem. Ao lado das
punições e castigos, foi fundamental o estabelecimento de um
sistema de incentivos. Assim, era comum, por exemplo, a
distribuição de aguardente aos trabalhadores livres e escravos com
recompensa pelo serviço. Mas havia três formas de incentivo
muito mais eficientes para obter a cooperação dos escravos,
habilmente manipuladas pelos senhores: (i) a alocação de escravos
em funções especializadas e como feitores, que alimentava a ilusão
de mobilidade social; (ii) a permissão para os escravos cultivarem
roças pessoais e de dispor livremente dos produtos obtidos, que
possibilitava a melhoria da alimentação e, especialmente, a
obtenção de dinheiro, usado para a compra da própria liberdade
ou de um membro da família, que promovia a sensação de
independência; e (iii) o mecanismo da alforria, liberdade que
podia, com muito sacrifício, ser comprada pelo escravo, e
também, ser concedida pelo senhor, por bom comportamento ou
em razão de algum tipo de reconhecimento. Se as más condições
de vida e de trabalho e as punições revelavam a face agressiva do
sistema escravista, a política de incentivos funcionava como um
mecanismo de cooptação e de integração dos escravos. Mais do
que isso, procurar a obtenção de “regalias” era uma forma de agir

437
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

para garantir a sobrevivência em melhores condições. Fora dessas


alternativas, restavam a fuga e o suicídio (como mostram as
pesquisas sobre esses temas). Consideremos, a propósito o
comentário de Schwartz (1992: 99) sobre a alforria:

Os estudos de manumissão baiana demonstram que cerca


de metade das manumissões da Bahia no período entre
1680 e 1750 foram compradas, em geral, pelos próprios
escravos, ou por algum membro da família do escravo. A
Bahia não estava sozinha nesse aspecto, e foram
observados padrões semelhantes em outras partes do Brasil.

Seria possível gozar dos incentivos sem uma demonstração


ostensiva de cooperação e de integração sem o uso do português?

2. A população escrava na Bahia: instável,


africana e diversificada

A escravidão brasileira teve com uma de suas características


essenciais a importação contínua de escravos. A Bahia, nas
palavras de Schwartz (1985: 280):

tornou-se e permaneceu um grande terminal do tráfico


atlântico de escravos, desenvolvendo-se ali uma classe local
de traficantes e de produtos como o fumo e a aguardente,
usados no comércio com a costa africana.

O fluxo contínuo de africanos tinha respaldo, de um lado


no intenso tráfico que tornava relativamente fácil o acesso a novos
escravos, e, de outro, no regime demográfico negativo da
população escrava. Quais os efeitos dessa dinâmica de importação
e substituição de escravos? Um desses efeitos, certamente, foi a
constituição de uma comunidade instável: uma comunidade que se
expandia e se retraía por determinações externas a ela, ditadas
pelas crises e ajustes da economia açucareira. Parece razoável
supor que, tanto do ponto de vista global como no plano de cada
engenho ou fazenda, a comunidade escrava vivia em contínua e
constante instabilidade, seja na sua dimensão, quanto na origem e

438
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

classe (sexo e idade) de seus membros. Nesse sentido,


consideremos alguns aspectos ligados à questão do tráfico.

2.1 O tráfico de escravos: volume, etnias

Ao longo do período colonial, o tráfico centralizou suas


atividades em certas regiões da África, em função de razões
variadas (guerras locais, conflitos armados entre países envolvidos
no tráfico, relacionamento com populações locais, entre outras).
Quanto ao volume do tráfico de africanos para o Brasil, inexistem
números definitivos: na ausência de registros históricos efetivos,
fazem-se cálculos estimativos, baseados em distintos critérios,
segundo as fontes disponíveis (listas de entradas de navios
negreiros em portos brasileiros, relação entre produção anual
média de açúcar e o número de escravos necessários etc.). Para
Kátia Mattoso (1982:53): Entre a segunda metade do século XVI e
1850, data que assinala a abolição definitiva do tráfico brasileiro, o
número de cativos importados é avaliado entre 3.500.000 e
3.600.000. Estas cifras baseiam-se em dados incompletos, mas têm
unanimidade entre os que se voltam para o problema. O Brasil
teria, pois, importado 38% dos escravos trazidos de África para o
Novo Mundo. Maurício Goulart (1950), em seu clássico trabalho,
estima que foram trazidos para o Brasil entre 3.500.000 e
3.600.000 escravos africanos, até 1850, e apresenta os seguintes
cálculos:

(i) ao longo do século XVI, é possível supor existência de


cerca de 12 a 15 mil escravos;

(ii) durante o século XVII, importou-se entre 500 e 550 mil


africanos;

(iii) no século XVIII, desembarcaram cerca de 1.700.000


escravos nos portos brasileiros;

(iv) no século XIX, a importação de africanos alcançou a


cifra de 1.350.000 indivíduos.

439
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Com exceção do período da exploração das regiões de


mineração, as zonas açucareiras (Bahia e Pernambuco,
especialmente) receberam os maiores contingentes de escravos
durante a época colonial (embora tenha havido momentos de
declínio nas fases de crise do setor).

Na Bahia, a origem da maioria dos escravos variou segundo


a concentração da atividade do tráfico. Segundo Yeda P. de Castro
(2000), durante o século XVI, foram trazidos escravos da chamada
Costa da Guiné, correspondente a toda costa atlântica africana; no
século XVII, predominaram os africanos das regiões do Congo e
de Angola; no século XVIII, veio um maior número de negros da
região conhecida como Costa da Mina (ao longo das costas de
Gana, Togo e Benim); no século XIX, a captura de africanos visou
às regiões da baía de Benim, de Angola e da Contra-Costa (no
cone sul-africano). Mas a mistura de povos de diferentes regiões
africanas sempre caracterizou a população escrava baiana, segundo
Schwartz (1985: 282):

Mesmo no auge do tráfico no golfo de Benin, por volta de


1780 a 1820, quando os jejes, nagôs (iorubás), tapas (nupês)
e outros povos “sudaneses” predominavam entre os cativos
baianos, cerca de 1/3 dos escravos nascidos na África
provinham de povos bantos de Angola e da África central.

Qual a dimensão da população escrava na Bahia? Qual a


proporção desta em relação ao total da população residente na
Bahia? Não há respostas definitivas para essas questões.
Dispomos de alguns poucos dados, que indicam que o percentual
da população escrava foi alto na Bahia, ao longo do período
colonial. Segundo Azevedo (1956:29), na segunda metade do
século XVII, Salvador, o maior centro urbano do Brasil, tinha 8
mil brancos “além de milhares de negros e índios, cerca de 2 mil
1
casas.” Quanto ao século XVIII, Schwartz (1985) aponta, como

1 Segundo Azevedo (1956), o Rio de Janeiro tinha uma população


semelhante a de Salvador; Recife, em 1654, provavelmente, entre 3 e 4
mil habitantes e Olinda, mais de 2 mil.

440
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

um panorama representativo do início do período, os dados


contidos na dissertação do Padre Gonçalo Soares França,
apresentada em 1724, à Academia dos Esquecidos, sociedade
intelectual baiana. Vemos, aí, que a população da Bahia chegava a
80 mil pessoas, concentrada em Salvador e no Recôncavo — mais
de 80%. Salvador tinha, então, em torno de 25 mil habitantes,
quase metade destes era de escravos. Na zona do Recôncavo, a
mais densamente povoada desde os finais do século XVI, a
população chegava a quase 40 mil indivíduos, sendo constituída
por mais de 60% de escravos (em algumas paróquias, como
Matoim, Santiago de Iguape e Santo Amaro da Purificação, a
população escrava perfazia 70%). Nos inícios do século XIX, a
Bahia tinha 500 mil habitantes, sendo 1/3 deles escravos. Na zona
dos engenhos, o Recôncavo, os escravos constituíam, como no
período anterior, 70% da população.

A escravaria baiana, ao longo do período colonial, foi


predominantemente africana. Segundo Schwartz (1985), os
mestiços, rotulados como pardos, sempre foram minoritários na
Bahia, não tendo, provavelmente, nunca ultrapassado 10% da
população escrava. Considerando-se, como um todo, os escravos
nascidos no Brasil, negros e mestiços, no período compreendido
entre 1600 e 1820, vê-se que os escravos crioulos (negros e
mestiços), provavelmente, não chegaram a representar 1/3 do
conjunto da população escrava baiana. Em outras regiões do
Brasil, com menor dependência do tráfico, as taxas relativas a
crioulos devem ter sido mais elevadas.

O panorama sugerido até aqui pode ser resumido pelas


seguintes palavras de Schwartz (1985: 286):

Em síntese, durante toda a era colonial, o tráfico


permaneceu relativamente aberto e atendeu às necessidades
dos senhores de engenho, apesar das vicissitudes da guerra
e da política do Atlântico. Assim, esses proprietários
puderam, em geral, contar com a reposição suficiente da
mão-de-obra a preços acessíveis, embora, às vezes,
houvesse períodos de alta muito acentuada. Abastecendo-se
em pontos diversos, da Senegâmbia a Angola e

441
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

ocasionalmente, Moçambique, o tráfico negreiro para a


Bahia introduziu uma variedade de povos, de modo que,
mesmo sendo predominantemente africana, a população
cativa da capitania apresentou grande diversidade de
culturas.

É fato que o peso da população escrava foi considerável na


Bahia. Mas supomos aqui que esse fator numérico, ainda que
respeitável, pode ser relativizado diante das duas características
apontadas: a instabilidade e a diversidade cultural e lingüística,
particularmente no espaço dos engenhos e das fazendas de cana.
Não teriam tais características contribuído para que a população
escrava adotasse português, língua do grupo socialmente
dominante, mais estável e homogêneo, como língua comum?

3. Uma comunidade desigual

Uma outra conseqüência da existência do tráfico contínuo


na Bahia, e no Brasil em geral, está na base de duas características
demográficas marcantes da população escrava: desequilíbrio
sexual e etário.

Os dados históricos apontam que, desde o início do tráfico


para a Bahia e para o Brasil, foram trazidos mais homens do que
mulheres — provavelmente, em função da atividade açucareira. É
fato também que a importação de crianças foi muito reduzida.
Schwartz (1985) estima que o tráfico transportou para a Bahia 2 a
6% de crianças menores de 13 anos e de 30 a 40% de mulheres.

Em relação aos fins do século XVI, Schwartz (1985), com


base em alguns documentos, aponta os seguintes dados, relativos
a alguns dos primeiros engenhos baianos:

442
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Quadro II: Seis engenhos baianos: 1591-1631


Crianças Idosos Adultos TO-
Localidades Ano H M H M H M TAL
1) Engenho
1591 43 64 39 146
Sergipe
1626 5 3 28 18 23 12 89
1638 5 6 41 25 2 3 82
2) Engenho Sá
1662 5 2 23 10 40
Dória
3) Engenho São
1666 15 11 48 41 115
Bento
4) Engenho do
1666 13 9 21 43
Mato
5) Fazenda
1685 37 11 48
Matos de Aguiar
6) Fazenda
1631 2 2 7 3 1 2 17
Querado
Obs: 1. Este Quadro se baseia na Tabela 34 de Schwartz (1985:
286); 2. No Engenho Sergipe, em 1591, a população escrava era,
predominantemente, indígena.

Quanto ao século XVIII, os dados relativos a nove


engenhos baianos, em que se pode observar um relativo
desequilíbrio entre os sexos, são ilustrativos do período:

Quadro III: Nove engenhos baianos em 1739: sexo


ENGENHO HOMENS MULHERES
São Brás 33 29
Pitanganha 65 47
Acotinga 30 28
Matoim 50 38
Pindobas 42 53
Sapucaia 19 24
Caboto 24 33
Pojuca 45 22
Cornubucu 321 285
Obs.: Quadro baseado na Tabela 35 de Schwartz (1985: 287)

Os dados históricos apontam, também, que a


predominância masculina era mais acentuada nos grandes

443
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

engenhos do que nas fazendas de cana. Os grandes engenhos, que


cultivavam sua própria cana, apresentavam um coeficiente de
homens duas vezes maior que de mulheres, enquanto nas fazendas
de cana, a predominância masculina girava em torno de 20 a 30%.
Schwartz (1985) apresenta as seguintes informações sobre
engenhos e fazendas de cana na Bahia, relativas ao período de
1710 a 1827:

Quadro IV: Engenhos e fazendas de cana na Bahia: 1710-


1827
HOMENS MULHERES TOTAL
Engenhos 922 453 1375
Fazendas de
292 230 522
cana
Obs.: Quadro baseado na Tabela 36 de Schwartz (1985 :287)

Para os inícios do século XIX, Schwartz (1985) assinala que


a desproporção sexual e etária tornou-se ainda maior do que em
períodos anteriores. Com base em dados de 1816, relativos a seis
engenhos baianos, o referido autor informa que havia 275 homens
para cada 100 mulheres, e uma estrutura etária em que apenas
14% dos escravos eram crianças com menos de 8 anos.

De um modo geral, no Brasil quanto maior o número de


africanos em uma propriedade, menor o número de mulheres e de
crianças. Quanto à Bahia, pode-se afirmar que a população
escrava, ao longo da maior parte do período colonial,
caracterizou-se pela predominância de indivíduos do sexo
masculino e por um baixo número de crianças.

Vida e morte

Em algumas regiões, a importação contínua de escravos era


baixa em função do tipo de atividade econômica (regiões de
economia mista), a população escrava foi capaz de manter
estruturas familiares estáveis e também de alcançar uma
expectativa de vida mais próxima dos grupos livres. Mas segundo
Schwartz (1992: 93):

444
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

A maioria dos agricultores, por exemplo, não via motivo


para incentivar a constituição de famílias estáveis a fim de
promover o crescimento natural da população. Já que os
escravos conseguiam produzir num período de 14 a 24
meses açúcar suficiente para igualar seu valor de compra,
contanto que o tráfico continuasse aberto, os agricultores
acreditavam que não valiam os riscos e as despesas da
manutenção de crioulos (negros nascidos no Brasil) durante
14 anos, até poderem tornar-se trabalhadores completos.
(...). Para que o agricultor dobrasse o investimento, o
escravo adulto só precisava viver 5 anos em tais condições.

Acrescente-se, também, que a população escrava brasileira


se caracterizou por uma baixa fecundidade e por um alto índice de
mortalidade. Para a Bahia, Schwartz (1985: 297) destaca a
incapacidade de auto-reprodução da população escrava:

As escravas não davam à luz a um número suficiente de


filhos para que aquela população crescesse ou mesmo se
mantivesse estável sem consideráveis acréscimos por meio
do tráfico.

Embora não haja dados completos, as evidências indicam


que a mortalidade infantil e de crianças com menos de um ano era
muito alta — fato muito provavelmente relacionado às difíceis
condições de vida das mães escravas (alimentação, possibilidade
de amamentação, períodos de trabalho etc.). Quanto aos adultos,
há vários fatores relacionáveis à mortalidade: doenças
desconhecidas dos africanos, regime de trabalho, insalubridade e
alimentação são alguns dos mais óbvios. O fato é que, apesar das
dificuldades de obter informações exatas, estima-se que a
expectativa de vida dos escravos baianos, em geral, era de 23 anos
para os homens e de 25 anos para as mulheres. Nos engenhos e
canaviais, a expectativa de vida era mais baixa.

Comentários finais

445
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Não queremos, aqui, caracterizar a população escrava como


uma comunidade socialmente patológica pelo contraste flagrante
com a comunidade de brancos e livres: dominada em grau
extremo pela condição escrava, étnica, cultural e lingüisticamente
heterogênea, desequilibrada em termos sexuais e etários, sem
esperança de vida e de reprodução. A história dos escravos
brasileiros, ao contrário, tem mostrado sua vitalidade, sua
capacidade de resistência e suas ações concretas no sentido de
criar e recriar tradições que os singularizaram no conjunto da
sociedade colonial. Mas gostaríamos de fazer, apenas, uma
observação final, que nos parece decisiva no que diz respeito à
questão lingüística: o constante controle exercido sobre a vida dos
escravos, que redundava na exposição permanente aos padrões
culturais da sociedade branca. Se os escravos puderam construir e
manter, ainda que sob condições adversas, espaços físicos e
simbólicos exclusivos (ou quase), o mundo dos brancos raramente
pode dispensar a presença e o trabalho daqueles no seu cotidiano.
Não teriam as fragilidades e as especificidades da comunidade
escrava criado condições favoráveis para uma adesão, imediata ou
gradual, ao modelo do grupo dominante? Avaliamos que sim. As
línguas africanas, com certeza, não foram abandonadas
abruptamente, mas acabaram por desaparecer do repertório verbal
dos escravos. E esse processo de abandono deve ter sido paralelo
à ampliação de uso da língua portuguesa em espaços
originalmente reservados às línguas étnicas.

O presente trabalho apoiou-se em dados históricos para


formular questões de natureza lingüística — que, talvez, não
tenham sido as mais adequadas. Esperamos, no entanto, ter
contribuído para a discussão de um tema de interesse para o
conhecimento da nossa história social e lingüística: a relação dos
escravos com a língua portuguesa no contexto da sociedade
colonial brasileira.

Referências
ALENCASTRO, Luís Felipe de. Vida privada e ordem privada no
Império. In: História da vida privada no Brasil. Império: a corte e a
modernidade nacional. São Paulo: Cia. das Letras, 1977. v. 2.

446
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

AZEVEDO, Aroldo de. Vilas e cidades do Brasil colonial. Ensaio de


geografia urbana retrospectiva. São Paulo, Boletim n. 208, Geografia n. 11,
USP/Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, 1956.
CASTRO, Yeda Pessoa de. Falares africanos na Bahia. Um vocabulário
afro-brasileiro. Rio de Janeiro: Topbooks/Academia Brasileira de Letras,
2001.
CUNHA, Celso. Para uma caracterização lingüístico-social do Nordeste .
2º Seminário de Estudos sobre o Nordeste. Salvador: UFBA, 1977.
GOULART, Maurício. A escravidão negra no Brasil. 3. ed. São Paulo: Alfa,
1950.
MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. 3. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1990.
RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. 5. ed. Rio de Janeiro: Cia. Ed.
Nacional, 1933.
SCHWARTZ, Stuart. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: Editora da
Universidade do Sagrado Coração, 2001.
_____. Segredos internos. Engenhos e escravos na sociedade colonial (1550-
1835). São Paulo: Cia das Letras/CNPq, 1995. (1985).
SILVA NETO, Serafim da. Introdução ao estudo da língua portuguesa no
Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro: Presença, 1977 [1950].

447
Para a História do Português Brasileiro. Volume V , 2007.

Escravos em anúncios de jornais brasileiros


do século XIX. Discurso e ideologia
por
Helena Hathsue Nagamine Brandão
Universidade de São Paulo

Introdução

É do conhecimento de todos que os anúncios têm um


caráter documental: eles retratam, pelas informações que fazem
circular, pelas ofertas de produtos e serviços, o universo dos
objetos e as preocupações presentes num determinado grupo
social de uma dada época. Por ser um discurso corrente no dia-a-
dia do cidadão e estar presente desde que os primeiros jornais
impressos começaram a circular, esse gênero do discurso torna-se
material interessante para apreender aspectos da vida social de
uma determinada comunidade discursiva.

O presente trabalho analisa anúncios de jornais paulistas


coletados por pesquisadores do projeto coletivo Para uma História
do Português Brasileiro e publicados sob a organização de Guedes e
Berlinck (2000).

A análise desses anúncios será feita tendo em vista os


pressupostos teóricos da Análise do Discurso que trabalha o
embricamento do lingüístico e do histórico, e visa a traçar
aspectos da história social do português de São Paulo,
apreendendo as formas textuais-enunciativas pelas quais o
discurso se concretiza. O corpus é constituído por anúncios
coletados em seis jornais paulistanos que circularam no século
XIX.

449
Para a História do Português Brasileiro. Volume V , 2007.

Partindo do conceito de gênero de discurso (caracterizado


por Bakhtin pela presença de três fatores: tema, composição,
estilo), elegemos como primeiro critério para a abordagem dos
anúncios o conteúdo neles veiculado. O levantamento apontou
uma heterogeneidade de objetos tematizados (oferta de produtos,
animais, serviços, negócios, comunicados de caráter social e
institucional, educação, cultura); chamou-nos a atenção a
quantidade de anúncios relativos à escravidão: mais de um quarto
do total coletado. Como parte do dizível, do “narrável” e
“argumentável” das práticas discursivas de uma comunidade de
falantes do século XIX, a tematização da escravidão nos anúncios
emerge como objeto de discurso e representação sígnica de um
modo de viver e pensar o mundo, refletindo e refratando não só o
quotidiano, o universo das pequenas informações que circulam na
rede tecida pelas práticas de linguagem, mas também todo um
quadro social, político e ideológico de um período de nossa
história.

Datados de 1828 a 1879, esses anúncios abrangem um


período nuclear no embate político travado entre discurso
escravista e discurso abolicionista.

1. Das condições históricas de produção dos


enunciados

Quais as circunstâncias que possibilitaram a emergência


desses tipos de enunciados? Com vistas a desenhar as condições
de produção desse discurso, apresentaremos, de forma breve, um
panorama histórico do quadro social, político e econômico
vigente no século XIX.

Temos uma longa tradição escravista, pois, segundo Costa


(1998), “a escravidão marcou os destinos da nossa sociedade”,

450
Para a História do Português Brasileiro. Volume V , 2007.

pois ela foi implantada no nosso país já no século XVI, logo após
os descobrimentos.1 A respeito, Novais (1998: 27) afirma:

A implantação da exploração colonial da Época Moderna,


em função de seus determinantes políticos e econômicos,
trazia no seu bojo a compulsão do trabalho como um de
seus componentes estruturais; e a América portuguesa foi,
como se sabe, uma daquelas áreas onde esse componente
foi levado ao limite, configurando o escravismo. As
populações aparecem, pois, clivadas em dois estratos: os
que são compelidos ao trabalho e aqueles que os
compelem, os dominadores e os dominados, os senhores e
os escravos.

Foi, portanto, instituída uma tradição escravista já no


sistema colonial como forma de o colonizador explorar as terras
descobertas; obrigando primeiro os índios a trabalhos forçados e,
depois, os negros:

Durante mais de três séculos utilizaram eles o trabalho


escravo com maior ou menor intensidade, em quase toda a
faixa colonial. Quando não escravizaram o negro,
encontraram uma forma de obrigar os índios a trabalhos
forçados. Nas zonas de mineração, nas plantações, nos
portos, o escravo representou, em muitas regiões, a
principal força de trabalho. (Costa, 1998:17).

1 Aliás, a escravidão é uma instituição que acompanha toda a história da


humanidade. Aristóteles, uma das grandes fontes da cultura ocidental, na
sua obra Política já afirmava que há homens que nascem naturalmente
para serem escravos: “La intención de la naturaleza, por tanto es hacer
también los cuerpos de los libres y de los esclavos distintos: los ultimos
fuertes para el servicio necesario; los primeros, eretos e inservibles para
tales ocupaciones, pero útiles para la vida de la ciudadania (...) Es
evidente, portanto, son libres y otros esclavos por naturaleza, y para esas
personas la esclavitud es una institución conducente y justa”.
(Aristóteles, 1964: p. 1418)

451
Para a História do Português Brasileiro. Volume V , 2007.

O século XIX, bafejado por uma nova ordem econômica


provocada sobretudo pela Revolução Industrial e pelo
aparecimento de novas formas de capitalismo em países da
Europa ocidental, vai assistir a “profundas modificações no
sistema colonial”, com a independência jurídica das colônias
americanas:

Mas, na sua grande maioria, permaneceram subordinadas


economicamente aos países mais desenvolvidos e
continuaram presas, em grande parte, a soluções
econômicas tradicionais. A liquidação do sistema colonial
na América é um longo processo que, sob certos aspectos,
prossegue ainda em nossos dias.2 O desaparecimento do
sistema escravista é uma das etapas desse processo (Costa,
1998:18).

No início do século XIX, sob o influxo de idéias liberais e


liderado pela Inglaterra, desenvolveu-se o movimento

2 Corroborando essa afirmação da autora, ainda hoje encontramos nos


jornais denúncias da prática da escravidão entre nós, herança da cultura
colonial, como a que se segue: “Ministério liberta 38
trabalhadores no PA. Fiscais do Grupo Móvel do Ministério
do Trabalho libertaram ontem 38 trabalhadores mantidos
em regime análogo à escravidão (...) O caso acontece dois
dias depois que o ministro da Justiça Paulo Tarso Ribeiro
anunciar que o Brasil tem 2.500 pessoas submetidas ao
trabalho escravo e cobrar o aperfeiçoamento na legislação
sobre o assunto. Apenas três fazendeiros foram condenados
pela justiça até hoje por empregar trabalho escravo.” (Folha
de S. Paulo, 27/09/2002 – A6). “Governo combate trabalho
escravo. A abolição da escravidão no Brasil aconteceu em
1888, mas, de acordo com a Comissão Pastoral da Terra
(CPT), 25 mil pessoas estão submetidas a condições análogas
ao trabalho escravo no País.”
www.brasil.gov.br/noticias/em_questao/.questao, acessado
em 24/09/2003.

452
Para a História do Português Brasileiro. Volume V , 2007.

antiescravista com fortes ressonâncias no Brasil, que acabou por


proibir o tráfico de escravos em 1831. Mas necessitando de mão-
de-obra nas lavouras de café, o tráfico continuou sob “a forma de
contrabando até 1850 quando nova legislação veio interrompê-lo
definitivamente”. A luta antiescravista prosseguiu com acirradas
disputas no âmbito político-econômico-ideológico, conseguindo,
paulatinamente, conquistas parciais como, em 1871, a
promulgação da lei do Ventre Livre, em 1884, a lei dos
Sexagenários e finalmente, em 1888, a abolição total com a lei
Áurea.

Tecido esse breve panorama e ancorados por essas balizas


históricas e culturais, vejamos como o real da História se
apresenta no real da língua, isto é, como os anúncios relativos à
escravidão produzem sentidos, fazem circular discursos sociais, na
sua compatibilidade ou incompatibilidade, nas suas relações de
aliança ou antagonismo, seus efeitos de hegemonia, de consenso
ou de heterogeneidade.

2. Das instâncias enunciativas

Todo enunciado mostra um mundo cuja representação se


faz adequadamente ao ritual discursivo do gênero em que se
inscreve. Isto é, o dizer e o dito (o modus e o dictum dos antigos), a
temática e o regime enunciativo devem se constituir em gestos
solidários que se legitimam reciprocamente. Assim, enquanto
anúncios veiculados em jornais, esses enunciados obedecem às
coerções do gênero tal como se fazia uso na época: visavam a
informar um determinado acontecimento (fuga/oferta/aluguel de
escravos) e objetivavam um efeito perlocucionário
(captura/compra). Mas, no âmbito do espaço social, quem fala
está autorizado a falar da forma como fala o que fala? Lembremos
Foucault (1969: 65) referindo-se ao discurso médico:

Quem fala? Quem, no conjunto de todos os indivíduos


falantes, tem a autoridade de exercer esta espécie de
linguagem? (...) A fala médica não pode vir de qualquer um,
seu valor, sua eficácia, seus próprios poderes terapêuticos e,

453
Para a História do Português Brasileiro. Volume V , 2007.

de forma geral, sua existência como fala médica não são


dissociáveis do personagem estatutariamente definido que
tem o direito de articulá-la.

E quem é o outro a quem falo dessa forma? Em que lugar


discursivo o eu-tu da dêixis discursiva se posicionam? Esses
anúncios são redigidos, quase na sua totalidade, no plano
enunciativo do relato (Benveniste, 1966), com estrutura
semelhante à da notícia: o eu do locutor se apaga e dá-se ênfase ao
evento. No entanto, o locutor é aquele que mandou pôr o anúncio
e vem nomeado: Reverendíssimo Doutor Joaquim Manoel Gonçalves
de Andrade, Capitão José Pereira de Queiroz, Alferes X, Sargento
Mór Y etc. Como se vê, figuram não apenas o nome completo mas
também os títulos ou tratamentos honoríficos que os distinguem
socialmente: são os proprietários dos escravos, os que estão do
lado do poder instituído, do poder dominante. Suas falas são,
portanto, autorizadas e legítimas. Elas só emergem na rede do
discurso social vigente porque emanam do poder instituído pela
sociedade escravocrata. É esse poder que dá a esses atores sociais
a competência para capturar o escravo que lhes fugiu, denunciar e
encaminhar o fujão encontrado, apelar para as autoridades
policiais. Por exemplo:
(1) Ao Tenente Luiz Francisco da Costa,| morador no Rio
de Janeiro, na rua de São| Francisco de Paula número 90,
desappareceo| sem motivo algum no 1o. de Julho do
cor|rente anno, um seo escravo ladino de no|me
Francisco, de nação Benguella, de eda|de de 19 a 20 annos,
com principio de bu|ço de barba, desdentado da parte
superior;| porém só com um dente a diante da mes|ma
parte, nariz chato, beiços grossos, at|tacado de corpo, bem
feito de pés, e perna,| todo magro, e as maçães altas, no
canto| da testa um calombinho da expecie de| um
carocinho de feijão movido: roga-se a| qualquer pessôa, que
delle der noticia, ou| o levar á casa de seo Senhor, ou na
Cidade| de São Paulo a Manoel Gonçalves Pereira| na Villa
de Sanctos a João da Monte Bastos,| na de Ytú ao Padre
Felis do Amaral Gru|gel, e na de Sorocaba a Bento José

454
Para a História do Português Brasileiro. Volume V , 2007.

Ribeiro| não só leh67 pagará as despezas, como gra|tificará


o seo trabalho.
O Farol Paulistano, 16 de fevereiro de 1828
(2) No dia 1º do corrente, fugio ao Capitão José| Pereira de
Queiroz da Villa de Jundiahy, um escra|vo crioulo de nome
João Pedro, Carpinteiro, altu|ra ordinaria, delicado do
Corpo, bem barbado, e| na mão esquerda levou um golpe
em dois dedos, que| ficou com as unhas desmanchadas,
cujos dedos são| vizinhos do dedo grande. _ Da se 25$600
réis a quem| o entregar n’esta Cidade ao Capitão Jose
Rodrigues| Pereira, ou na Villa de Jundiahy a seu Senhor.
O Farol Paulistano, 13 de dezembro de 1828.
(3) No principio de Fevereiro d’este anno de 1841, fugirão|
da fazenda de Sua Excelência Reveremdíssima dois escravos.
Um chamado Eleuthe|rio, crioulo, casado, e que foi
escravo de Francisco Rodrigues,| morador no Bom-
Successo, Freguezia de Nossa Senhora da Conceição dos|
Guarulhos: signaes: alto, magro, cara comprida, um pouco
de ca|bello na ponta da barba, pescoço comprido, com um
papo não sen|do muito grande, dentes podres, na frente,
pernas delgadas, e| finas, pés grandes, e em uma das mãos
tem um dedo rachado, é| negro que trabalha em roça, mas
muito bom valleiro, terá de idade| 40 annos, pouco mais ou
menos. Joaquim, nação-Congo, estatura| ordinaria, cara
muito bexigosa e por isso o chamão Joaquim Bexi|ga, as
pernas e os pés grossos, sem serem inchados, não tem
barba,| e terá de idade 30 annos pouco mais ou menos, e
n’outro tempo tra|balhou no Jardim Botanico d’esta cidade.
Ambos levárão calça e| camiza de algodão grosso. A toda a
pessoa que os prender, alem| das despezas que se fizerem
com a prizão, promette-se 12$ réis de| gratificação por cada
um, e igualmente se protesta proceder, se|gundo a lei,
contra quem os acoitar, ou retiver em seu poder.| N’esta
cidade os poderáõ entregar ao Reverendíssimo Doutor Joaquim
Manoel| Gonçalves de Andrade, e na fazenda a quem
estiver dirigindo a| mesma.
A Phenix, 13 de março de 1841

455
Para a História do Português Brasileiro. Volume V , 2007.

(4) 100$000 de gratificação|A quem apprehender, der


noticia certa,|ou entregar nesta cidade na rua Direita can|to
da do Rozario, na loja de ferragens por|baixo da caza do
Senhor Commendador José|Manoel da Silva ao abaixo
assignado, um|molecote de nome Jacinto, de idade de 19|a
20 annos, bem preto, com ponta de busso,|reforçado e
bem feito de corpo, menos|dos pés, os quaes são mal
feitos, com os|dedos polegares dos mesmos abertos,
para|dentro, com unhas estragadas de bixos|que teve em
pequeno, e em um d’elles tem| um signal de ferida que teve
á tempos, é|muito ladino e intelligente, falla
muito|apressado e gagueja, e algumas vezes custa-|lhe
soltar a falla, e porisso falla de sopetão e|com muita
rapidez, tem o nariz bem chato,|olhos avermelhados, e
mostra algumas ve|ses uma espécie de panos sobre as
maçãs|do rosto; acha-se fugido desde dia 13|de dezembro
do anno de 1851 desconfi|a se que está acoutado em algum
sitio nas|immediações d’esta cidade, ou que se alon|gou
para longe por não ter havido noti|cia: quem d’elle souber e
noticiar com|exatidão, ou entregar a seu Senhor nesta
ci|dade receberá a gratificação acima dita.|—Fortunato
José Bulcão.
O Constitucional, 04 de junho de 1853
(5) Gratifica-se|Fugiu da fazenda - Morro Azul, o mula|to
claro, de nome Paulo, pertencente a Silve|rio Rodrigues
Jordão, o qual tem os seguintes|signaes: cabello liso, orelhas
repulegadas,|maus dentes, buço, pouca barba no
queixo,|cicatriz de corte no pescoço, outra de macha|do
em um dos pés, estatura baixa e pés es|parramados,
desconfia se achar-se nesta cida|de. Quem o apprehender e
levar ao abaixo| assignado será bem gratificado.| Luiz
Pinto Homem de Menezes.
Correio Paulistano, 21 de fevereiro de 1879
(6) Achão se recolhidos na Cadeia da Villa de Sanc|tos, as
escravas seguintes, capturadas no Quilombo| ultimamente
batido, cujos nomes, e Senhores vão decla|rados conforme a
confissão das mesmas. = Maria de| nação benguella escrava
de Bernardo Guedes: Eva| crioula, escrava do Alferes

456
Para a História do Português Brasileiro. Volume V , 2007.

Antonio Galvão, Anna| crioula, escrava de Francisco


Pereira Mendes: Do|mingas, angola, escrava do Capitão
Joaquim, (vulgo Inhoquim.)
O Farol Paulistano, 7 de junho de 1828
(7) Existe na Villa de Parahibuna, d’esta|provincia um
escravo que diz ser de um|Senhor Doutor Penteado,
morador em Casa-|Branca ou Mogy - mirim, se este Senhor
Doutor|tem com effeito algum escravo fugido
póde|dirigir-se n ‘aquella villa ao commenda|dor
Marcellino José de Carvalho.
O Constitucional, 23 de junho de 1854
(8) Um appello á policia|Fugiram ao abaixo assignado, da
sua fa|zenda das Piteiras em Mogy-mirim, na noite|de 18
para 19 do corrente mez, dois escravos,|cujos nomes e
signaes são os seguintes:|Miguel, preto, de 30 á 40 annos de
idade,|estatura e corpo regular, barbado, creoulo do|Rio
Grande do Sul, falla com sotaque de afri|cano e inculca-se
como pedreiro.| Segismundo, pardo, de 20 annos
pouco|mais ou menos, estatura baixa, corpo grosso|e
reforçado, pés e mãos chatos com dedos cur|tos, está
buçando, veste roupa fina e levou| um relogio de prata.|Á
quem os apprehender se gratificará com| 50$000 réis por
cada um; protestando-se com-tra quem os acoutar.|Mogy-
mirim, 29 de Maio de 1879.| Antonio Joaquim de Freitas
Leitão.
Correio Paulistano, 1o de junho de 1879

O estatuto do discurso dominador só pode ter como


interlocutor alguém que pertença ao próprio círculo social,
político, econômico; é um discurso monológico, hegemônico,
excludente, que só dialoga com seus pares. O alocutário são os
outros proprietários de escravos (ou seus representantes, como o
feitor, o capitão do mato), os que têm acesso ao jornal (aos bens
culturais), as autoridades instituídas.

O escravo é o referente, o objeto da tematização desse


discurso. É o ele, a não-pessoa a que se refere Benveniste.
Excluído da relação de pessoa, está fora de toda interlocução
possível e, conseqüentemente, de toda relação de

457
Para a História do Português Brasileiro. Volume V , 2007.

intersubjetividade. Nesse regime enunciativo dominador o escravo


é objetualizado, isto é, refletindo e refratando a realidade, a
linguagem denuncia a sua condição de não sujeito.

Segundo (Castro, 1997: 341),

(...) a continuidade da escravidão na jovem monarquia se


fez fundamentada no direito positivo: o direito de
propriedade dos senhores sobre seus escravos, assimilados
estes, juridicamente, a simples mercadorias. Do ponto de
vista legal, portanto, esvaziava-se a relação escravista de seu
liame senhorial para enfatizar seu sentido comercial. Ao
fazê-lo, a monarquia exacerbava –em princípio – o poder
privado dos senhores sobre seus cativos, transformado em
simples direito de propriedade.

O anúncio abaixo, sob a forma de carta, é bastante


ilustrativo da condição de coisa a que estavam submetidos os
escravos:
(9) Hontem pela manhãa se me enviou| um negro do
gentio de Guinè, muito boçal, e| trajado à maneira dos que
vem em comboi, e se| me dice, foi pegado, vagando como
perdido. Por intérprete apenas pude colher, que ainda não
era| baptisado, e que saindo a lenhar, se perdeu: quei|ra
por tanto Vossa mercê inserir este annuncio em sua fo|lha, a
fim de apparecer dono, sobre o que de|claro, que se não
apparecer por 15 dias, conta|dos da publicação da folha,
heide remetel-o á Pro|vedoria dos Residuos; a quem
pertence o conheci|mento das coisas de que se não
sabe dono. – São| Paulo 9 de Abril de 1830. – O Juiz de
Paz Sup|plente da Freguezia da Sè. – José da Silva
Mer|ceanna.3
O Farol Paulistano, 24 de abril de 1830

Como objeto de uso e determinado pela “compulsão do


trabalho” (de que fala Novais), o escravo torna-se um produto,

3 Grifo meu.

458
Para a História do Português Brasileiro. Volume V , 2007.

um bem necessário da sociedade escravocrata, chegando a índice


de status social e econômico dos proprietários. É nessa condição
de objeto, de mercadoria em que se investiu um capital, cujo
retorno se esperava sob a forma do lucro, que os escravos deviam
ser capturados quando fugiam ou que podiam ser vendidos,
alugados, como atestam os enunciados abaixo:
(10) Vende-se uma Negra ladina, que sabe cozinhar| o
ordinario de uma Casa, lava, engoma muito bem,| e costura
soffrível. Quem a pertender dirija se á rua| da Quitanda
Casa de Domingos José Vieira; para| á ver e a justar, e mais
seis Negros de nação Ban|guela, e na mesma Casa se acha
uma porção de| Passas chegadas proximamente muito boas
e por| preços commodos.
O Farol Paulistano, 20 de setembro de 1828
(11) ALUGA-SE uma mulher parda|para qual|quer
serviço|de casa, sabendo|bem engommar e cosinhar.
Trata-se na rua|do Ypiranga número 2.
Correio Paulistano, 12 de fevereiro de 1879

Inscrito na linguagem como ele, referente, portanto, fora


do circuito da interlocução eu-tu, a língua denuncia o estatuto do
escravo como não-pessoa. Em oposição ao locutor, que vem
identificado pelo nome completo e, geralmente, acompanhado do
título, indiciando sua condição de cidadão e seu lugar social, o
escravo, quando é nomeado, o é apenas pelo que se costuma
chamar de prenome: “fugiu um escravo de nome Alexandre,
Francisco, Maria, Eva, Domingas, Benedito etc”. O nome é o
primeiro passo de um processo simbólico de construção da
identidade: o nome distingue, singulariza, individualiza, confere
estatuto de existência ao ser designado. Mas como objeto
reduzido à condição de simples mercadoria o prenome bastava.

Esse imenso contingente anônimo de Marias, Joaquins,


Beneditos, Franciscos etc. tinham, entretanto, que ser
identificados quando fugiam. Como? Pela descrição dos sinais que
traziam no corpo, pela roupa que portavam; isto é, a identidade
enquanto signo que individualiza e confere cidadania é substituída
pela sinalidade, para usar os termos bakhtinianos. Para esse autor,
o signo é vivo, dialético, dinâmico e exige para ser compreendido

459
Para a História do Português Brasileiro. Volume V , 2007.

uma atitude responsiva ativa, enquanto que o sinal é inerte, e só


serve para ser reconhecido. Transferindo esses conceitos para o
nosso caso, o escravo, enquanto objeto, não é lido pelo agente
desse discurso dominador como pessoa de uma interlocução, mas
como mercadoria, elemento de transação comercial, investimento
para obtenção do lucro, e o que o distingue dos outros são as
marcas do corpo. Daí a presença das descrições, geralmente
bastante detalhadas desses sinais; além dos anúncios já citados,
vejamos estes:

(12) Ao Coronel Ignacio de Sá da Villa de Cori|ba lhe fugio


um escravo preto, de nome João, de| boa vista, estatura,
olhos grandes, e a leijado da| mão esquerda por causa de
dois golpes que levou na| junta da dicta mão, que quaze
ficou a leijado de trez| dedos que não os pode governar (...)
O Farol Paulistano, 8 de novembro de 1828
(13) Fugio no dia 2 de Setembro de 1829 um ne|gro de
nome Antonio, de nação Congo, estatura| ordinaria, cheio
de corpo, representa 20 annos de| edade, com pouca barba
pés delgados, tem no| peito direito, ou esquerdo carimbada
a lettra B;| foi vestido de camisa de riscado escuro, e calças
de| pano azul (...)
O Farol Paulistano, 24 de outubro de 1829
(14) 100$000 de gratificação|A quem apprehender, der
noticia certa,|ou entregar nesta idade (...)ao abaixo
assignado, um|molecote de nome Jacinto, de idade de 19|a
20 annos, bem preto, com ponta de busso,|reforçado e
bem feito de corpo, menos|dos pés, os quaes são mal
feitos, com os|dedos polegares dos mesmos abertos,
para|dentro, com unhas estragadas de bixos|que teve em
pequeno, e em um d’elles tem| um signal de ferida que teve
á tempos, é|muito ladino e intelligente, falla
muito|apressado e gagueja, e algumas vezes custa-|lhe
soltar a falla, e porisso falla de sopetão e|com muita
rapidez, tem o nariz bem chato,|olhos avermelhados, e
mostra algumas ve|ses uma espécie de panos sobre as
maçãs|do rosto; acha-se fugido desde dia 13|de dezembro
do anno de 1851 (...)

460
Para a História do Português Brasileiro. Volume V , 2007.

O Constitucional, 4 de junho de 1853


(15) (...) fugirão dous escravos|de nomes José na noite de
16 para 17 de|fevereiro do corrente anno de 1853; e
são|seus signaes:|Um de nação Moçambique, idade
mais|ou menos 46 annos estatura menos que|regular, cheio
de corpo, rosto redondo,|dentes apontados, barbado, calvo,
e com|uma excrescencia elevada na calva (o que | é muito
característico) ladino e activo.|Tem nas costas alguns
signaes de castigo,|e os hade ter tambem nas
nadegas.|Outro crioulo, idade mais ou menos|20 annos,
estatura regular, cheio de cor|po, rosto redondo, testa,
orelhas, e boca|pequenas, sem barba, preto e côr
luzente:|parece a primeira vista abobado,
fallando|pausadamente, mas o não é, e sim ladino.|Tem os
pés e principalmente um, algum|tanto inchado e quasi
sendo os dedos sem|unhas, parecendo ser isto proveniente
de|bôbas. Não anda desembaraçado, e sim|meio
cambaliando, e quasi não corre. (...)
O Constitucional, 2 de julho de 1853
(16) ESCRAVO FUGIDO|400$000 de gratificação|Ao
abaixo assignado fugiu o seu escravo de nome Vicente, cor
parda, idade|32 annos, cabeilos crespos mas não
carapinhados: boa figura, peito e hombros largos, mas estes
um pouco levantados; no andar tem o corpo direito, mas
com mao pisar por Ter os pés um pouco achatados e
virados como quem soffreu cravos boubaticos; monta bem
á cavallo, pode inculcar-se como campeiro por que sabe
laçar; pode tambem apresentar-se como boleeiro; levou
roupa boa para andar bem trajado, falla regularmente e com
sotaque provinciano, lê e escreve um pouco e usa
“dentadura postiça” por faltarem lhe os dentes do queixo
superior. Pode apresentar-se por livre e ser facilmente
acreditado (...).
Correio Paulistano, 22 de julho de 1879
(17) A Dom Jeronymo Rabassa, fugio uma| escrava cabra,
de nome Iria, edade de trinta e qua|tro annos mais ou
menos, já sem dentes alguns em| cima, e em baixo com
poucos e roidos: tem o pé| direito mais enchado que o

461
Para a História do Português Brasileiro. Volume V , 2007.

esquerdo, e na testa uma| sicatriz. Pede a quem souber


onde ella existe, diri-|ja-se a rua do Rosario na casa número
29, que sendo| viridica a noticia receberá boas alviçaras.
O Farol Paulistano, 11 de abril de 1829

O que “dizem” essas descrições? A população escrava mais


freqüente que aparecia nesses anúncios era constituída: a) por
homens, que constituíam a maioria do contingente escravo
justamente pelo trabalho pesado que deveriam executar – segundo
Costa (1998), a proporção entre escravos e escravas era de quatro
para uma; b) por adultos entre 20 a 35 anos, por serem a força de
trabalho mais produtiva.

A descrição dos sinais indicia ainda uma população


constantemente atacada por problemas de saúde, precocemente
envelhecida, com defeitos físicos que sugerem ser provenientes de
castigos corporais.

No regime da escravidão, em que o trabalho se desmoraliza


e é resultante de uma imposição, o grupo dominante vê-se
freqüentemente obrigado a recorrer à violência física,
quando queira alcançar seus desígnios. Para manter o ritmo
de trabalho, impedir atitudes de indisciplina ou reprimir
revoltas, para atemorizar os escravos, mantê-los humildes e
submissos, evitar ou punir fugas, os senhores recorriam aos
mais variados tipos de castigo, pois os acordos e
reprimendas pouco valiam. Não se concebia outra maneira
de regular a prestação de serviços e a disciplina do escravo.
O que se podia condenar era o excesso, o abuso cometido
por alguns senhores ou seus mandatários: feitores ou
cabras. O castigo físico impunha-se, na opinião do tempo,
como única medida coercitiva eficaz. Generalizara-se a
convicção de que muitos escravos não trabalhavam se não
fossem devidamente espancados (Costa, 1998: 337).

O anúncio (13) mostra uma prática não rara entre os


proprietários: marcar a ferro no corpo do escravo as sua iniciais.

462
Para a História do Português Brasileiro. Volume V , 2007.

3. Da composição textual-discursiva dos


anúncios

3.1 Características formais

Observa-se certa homogeneidade em relação às formas de


textualização desses anúncios cuja estrutura pode ser assim
esquematizada:
(a) X fugir de Y;
características de X;
gratificação (pode vir no início do texto)
(Função: informar para capturar) 4

(b) Y vende/ aluga X;


características de X;
onde; quanto
(Função: informar para vender/alugar)

Os anúncios do primeiro tipo (a) são caracteristicamente


informativos, com foco no ele – o escravo, objeto tematizado –,
enquanto que os do segundo tipo (b) acrescem à função
informativa, índices da função persuasiva, com foco no tu – o
comprador; buscam promover, qualificar positivamente o produto
(escravo) à venda ou a alugar. Ao contrário destes, os anúncios do
tipo (a) não selecionam os elementos descritivos do objeto com
vistas a um determinado efeito de sentido, isto é, procuram
apresentá-lo na sua aparência real, com os traços mais objetivos
possíveis, necessários à sua imediata identificação. Os anúncios do
tipo (b) já contêm embrionariamente algumas características que
os anúncios vão assumindo posteriormente até a máxima
sofisticação de hoje: deslocamento da função estritamente

4 Costa (1998: 371) aponta outra função das denúncias: “Às vezes,
diziam-se a serviço dos patrões e continuavam a fazer pedidos e a tirar
outras vantagens usando o nome do senhor. Daí o cuidado que tinham
os proprietários, ao denunciar a fuga, em declarar simultaneamente que
se eximiam de qualquer responsabilidade por atos que os escravos
viesem a cometer em seu nome.”

463
Para a História do Português Brasileiro. Volume V , 2007.

referencial para a função persuasiva (do ele para o tu), adotando-


se estratégias argumentativas e de sedução.

(18) ESCRAVOS|Quem pretender comprar; 1 pardo,


idade 16 annos, nas melhores con|dições para pagem.|1
crioulo, 22 annos, cosinheiro, sabendo la|var e engommar
roupa, e que, praticamente,|falla muito bem o allemão.|1
dito de 10 annos, todos sadios e bonitos.|Quem os
pretender, dirija-se á rua da Impe|ratriz, ao Grande Hotel
da Europa, para ver|e tratar com seu dono, que, em rasão
de ser-|lhe necessario tomar passagem no vapor que|a 30
do vigente deve de Santos seguir para|o sul, por isso não
deixará de fazer negócio|vantajoso ao comprador.
Correio Paulistano, 23 de janeiro de 1879

(19) ESCRAVA|Vende-se uma bonita mucama, sem


defeito|algum, de idade de 16 annos, o motivo da|venda há
de agradar ao comprador.|Rua do Seminario dos
Educandos número 4.
Correio Paulistano, 24 de junho de 1879

(20) É PECHINCHA!|Vende-se um escravo proprio para


todo serviço de roça, robusto e sadio, ver e tratar a rua da
Imperatriz número 52.
Correio Paulistano, 20 de setembro de 1879

(21) VENDE-SE 14 escravos de ambos os sexos, tendo um


bonito crioulo copeiro, e uma crioula de 15 annos, que lava,
engomma e cozinha.|Para tratar na rua da Constituição
número 14.
Correio Paulistano, 22 de novembro de 1879

(22) ESCRAVAS|NA TRAVESSA de Paisandù|número


1-existem 25 escravas sa|dias e robustas-para vender|por
preços razoaveis; quem pre|tender procure na mesma casa.
A Constituinte, 17 de outubro de 1879

464
Para a História do Português Brasileiro. Volume V , 2007.

3.2 A heterogeneidade discursiva: sob o “um”, o


“outro”

A homogeneidade estrutural não esconde, entretanto, uma


característica fundamental da linguagem, a sua constituição
heterogênea. Para a Análise do Discurso, em decorrência do
princípio do dialogismo proposto por Bakhtin, toda palavra é
pluriacentuada, é atravessada pelo outro; isto é, uma formação
discursiva não é um bloco homogêneo, estável, mas um domínio
aberto e inconsistente. Essa orientação dialógica não está limitada
aos enunciados que trazem a marca da citação, da alusão etc., nem
a um outro redutível a uma figura de interlocutor.

No espaço discursivo, o Outro não é nem um fragmento


localizável, nem uma citação, nem uma entidade exterior;
não é necessário que ele seja atestável por alguma ruptura
visível da compacidade do discurso. Ele se encontra na raiz
de um Mesmo sempre já descentrado em relação a ele
próprio, que não é em nenhum momento localizável sob a
figura de uma plenitude autônoma. Ele é o que
sistematicamente falta num discurso e lhe permite fechar-se
em um todo. Ele é esta parte do sentido que foi preciso que
o discurso sacrificasse para constituir sua identidade
(Maingueneau, 1984: 31).

A relação com o outro deve ser percebida, portanto,


independentemente de qualquer forma de alteridade marcada.
Leva-se a questão mais adiante ainda, na medida em que se
concebe esse outro não como uma presença que se manifesta quer
explícita quer implicitamente, mas como uma ausência, como uma
falta, como o interdito do discurso. Isto é, toda formação
discursiva, no universo do gramaticalmente dizível, circunscreve a
zona do dizível legítimo, definindo o conjunto de enunciados
possíveis de serem atualizados em uma dada enunciação a partir
de um lugar determinado. Ao fazer isso, ela circunscreve também
uma zona do não-dizível, definindo o conjunto dos enunciados
que devem ficar ausentes do seu espaço discursivo; delimita dessa

465
Para a História do Português Brasileiro. Volume V , 2007.

forma o território do outro que lhe é incompatível, excluindo-o do


seu dizer.

Os enunciados apresentam, dessa forma, uma dupla face:


um “direito” e um “avesso”, que são indissociáveis; ao analista
cabe decifrá-los não só no seu “direito”, relacionando-os a sua
própria formação discursiva, mas também no seu “avesso”,
perscrutando aquela face oculta em que se mascara a rejeição do
discurso do outro. O que equivale a dizer que ao analista cabe
apreender não só uma formação discursiva, mas também a
interação entre formações discursivas, uma vez que a identidade
discursiva se constrói na relação com um outro presente
lingüisticamente ou não no intradiscurso.

Voltando aos textos sob análise, o que é que se oculta na


aparente homogeneidade da superfície lingüística? Qual é o outro,
o não dito que se insinua na formação discursiva escravista de que
esses anúncios são a materialização? O interdito é a fala do
escravo que, não podendo manifestar-se discursivamente, faz do
silêncio a sua arma, ou da fuga, uma das formas de resistência à
dominação.

Insurreições, crimes, fugas, suicídios, trabalhos mal ou


lentamente cumpridos, a obstinação em resistir a ordens
dadas eram os meios de que dispunha o escravo para
manifestar-se contra a situação em que era mantido (...) De
todos os mecanismos de protesto, o mais freqüente foi a
fuga. (...) Quando apanhado, o fugitivo era recambiado ao
senhor e severamente castigado para que servisse de
exemplo aos demais. Amarrado ao tronco e açoitado,
passava depois a carregar pesadas argolas nos pés e mãos
ou, mais raramente, gargalheiras. Nada disso bastava para
sustar as fugas. Havia escravos que se evadiam duas, três
vezes e repetiam sempre que possível a façanha (Costa,
1998: 367-368).

466
Para a História do Português Brasileiro. Volume V , 2007.

No semantismo da palavra fugir (“desviar-se ou retirar-se


apressadamente para escapar a alguém ou a algum perigo, retirar-
se em debandada, livrar-se de”, conforme Dicionário Aurélio),
encontra-se o sentido da ação dos escravos: ao mesmo tempo em
que fogem para escapar ao perigo também manifestam com esse
ato uma forma de resistência; resistência primitiva, é verdade,
instintiva, animal, mas a única possível para escapar ao sistema
opressor. A impressão que se tem é a de um cotidiano conflituoso
em que proprietários e escravos estão em constante estado de
alerta: um procurando manter o sistema pelo uso da repressão e
da violência; e outro, mais fraco, procurando, sob a forma de
microrresistências (Michel De Certeau), vazar, minar esse sistema
opressor.

Quanto maior fosse a agitação social, quanto maior a


confusão reinante - os choques entre senhores e escravos,
a agitação nas senzalas, as fugas de escravos -, tanto mais se
forçava a mudança da situação e se preparava o clima para a
medida decisiva que resultaria na supressão definitiva da
escravidão (Costa, 1998: 347).

Assim, à sua maneira, e com as armas de que dispunham,


os escravos criavam formas de resistência ao sistema opressor,
ajudando a miná-lo e obrigando-o a mudanças.5 E, dentre os
anúncios coletados, alguns6 já eram sintomas das mudanças que

5 Sobre a polêmica trabalho escravo x trabalho livre, Costa (1998: 37)


diz: “a maioria (dos fazendeiros) continuava a acreditar, até a década de
1880, que era difícil, se não impossível, substituir o escravo (isso a
despeito do número crescente dos que argumentavam em favor da
imigração e do trabalho livre). Se somarmos a isso o fato de que, para a
grande maioria dos fazendeiros, os escravos representavam capital já
investido, que eles não gostariam de ver desaparecer da noite para o dia,
será possível entender por que mesmo os que estavam convencidos da
superioridade do trabalho livre continuavam a se opor à abolição, ou só a
aceitavam com a condição de que os fazendeiros fossem indenizados
pela perda de sua propriedade.”
6 TRABALHADORES!|Acabam de chegar da Allemanha e desejam

empregar-se, aqui ou em outra qualquer parte,|2 Padeiros|2 Caixeiros|1

467
Para a História do Português Brasileiro. Volume V , 2007.

uma inevitável abolição da escravatura iria operar no universo do


trabalho e, conseqüentemente, no panorama social: a contratação
da mão-de-obra livre sob a forma da imigração (européia e
asiática). Mas, na prática, a tradição escravista continua entre nós
como mostram as freqüentes denúncias da imprensa.

Referências
ANGENOT, Marc. Le discours social: problématique d’ensemble. In:
BOURQUE, Gilles et al. (Org.). Le discours social et ses usages. Cahiers de
Recherche Sociologique. Vol.2, no.1. Québec, Montreal. Avril 1984.
ARISTÓTELES. Política. In: OBRAS. Trad. Francisco Saramanch.
Madrid: Aguilar Ed., 1964.
BAKHTIN, M. Gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M. Estética da
criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
BENVENISTE, Émile. (1966) Problèmes de linguistique générale. Paris:
Gallimard.
BRANDÃO, Helena H. N. Introdução à Análise do Discurso. 8. ed.
Campinas: Editora UNICAMP, 2002.
CASTRO, Hebe M. M. de. Laços de família e direitos no final da
escravidão. In: ALENCASTRO, Luiz F. de (Org.). História da vida privada
no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. v. 2.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. de
E. Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1994.
COSTA, Emília V. da. Da senzala à colônia. 4. ed. São Paulo: Fundação
Editora da UNESP, 1998.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Trad. L. F. Baeta Neves.
Petrópolis: Vozes, [1969]1971.

Serrador|7 Mineiros os quais não duvidam aceitar outro qualquer que


lhe offereça.|Quem do seu prestimo quizer utilizar-se dirija-se ao
Consulado, Rua de São Bento número 53.
Correio Paulistano, 27 de julho de 1879
COLONOS PORTUGUEZES|Rua da Boa Vista 47A - Escriptorio
Menezes & Companhia|Encarregam-se de mandar vir colonos
portuguezes para a lavoura, garantindo|o maximo cuidado na escolha e
responsabilisando-se por contracto.|Em nosso escriptorio encontrarão
os interessados todas as informações que precisem.
Diário Popular, 12 de novembro de 1884

468
Para a História do Português Brasileiro. Volume V , 2007.

GUEDES, Marymarcia; BERLINCK, Rosane de A. (Org.). E os preços


eram commodos... Anúncios de jornais brasileiros - Século XIX. São Paulo:
FFLCH/USP/Humanitas, 2000.
MAINGUENEAU, Dominique. Genèses du discours. Bruxelles: Mardaga,
1984.
MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em Análise do Discurso.
Trad. Freda Indursky. Campinas: Editora da UNICAMP, 1989.
NOVAIS, Fernando. Condições da privacidade na colônia. In: MELLO
E SOUZA, L. (Org.). História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida
privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

469
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

Marcas de interação na correspondência


publicada em jornais
por
Maria Lúcia da Cunha Victório de Oliveira Andrade
Universidade de São Paulo

Considerações Iniciais

O objetivo deste trabalho é focalizar a questão da interação


social a partir da análise das marcas lingüísticas encontras nas
Cartas publicadas em jornais paulistas do século XIX. Nesses
jornais, havia uma seção de cartas enviadas pelos leitores da
época, cujo propósito era, em certos casos, pedir ajuda para
resolver algum problema ou contar um episódio particular que
precisava de uma solução. Podemos dizer que essa seção seria
uma espécie de consultório de reclamações, pedidos ou mesmo
para estabelecimento de contato com parentes ou amigos. É
interessante observar que algumas cartas são enviadas ao Redator,
já outras são diretamente endereçadas para amigos ou parentes.

O corpus é constituído de 62 cartas publicadas entre os anos


de 1828 e 1893, nos seguintes jornais paulistas: Farol Paulistano,
Diário de São Paulo, A Província de São Paulo, Cidade de Santos, Correio
Paulistano e A Phenix.

O contexto de situação em que as cartas se efetivam está


revelado no próprio texto. Tal revelação não se dá de uma forma
mecânica, mas por meio de um relacionamento sistemático entre o
meio social, de um lado e a organização funcional da língua, de
outro. Na visão de Maingueneau (2001: 54), a interação –
denominada por ele de interatividade - é elemento fundamental do

471
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

discurso/texto, ou seja, é constitutiva, “é uma troca explícita ou


implícita, com outros enunciadores, virtuais ou reais, e supõe a
presença de uma outra instância de enunciação à qual se dirige o
enunciador e com relação à qual constrói seu discurso”.

1. Conceito de Interação

A interação é considerada um dos componentes do


processo de comunicação, isto é, faz parte de toda atividade de
linguagem, construindo efeito de sentido nesse processo. Para
Bakhtin (1929), ela “é a realidade fundamental da linguagem”.
Segundo Brait (2002:194), “é um fenômeno sociocultural, com
características lingüísticas e discursivas passíveis de serem
observadas, descritas, analisadas e interpretadas”.

Ao estudar um texto através da perspectiva interacional,


pode-se observar as relações interpessoais veiculadas pela maneira
como a situação comunicativa está organizada. Isso significa que o
texto deve ser observado não apenas em relação ao que está dito,
mas também as formas da maneira de dizer, pois estas permitem
uma leitura dos implícitos que se revelam e evidenciam a interação
“como um jogo de subjetividades, um jogo de representações em
que o conhecimento se dá através de um processo de negociações,
de trocas, de normas partilhadas, de concessões” (Brait, 2002:194).

Em toda interação, os interlocutores estão reunidos sob


determinadas condições “contratuais”, que estão diretamente
ligadas ao contexto situacional e aos papéis sociais dos
participantes dessa interação.

Uma análise textual deve, portanto, levar em conta os


traços lingüísticos que permitem reconhecer a intencionalidade do
enunciador, os efeitos de sentido construídos por esse enunciador
ou pelo locutor por ele instaurado/instituído, e a persuasão ou
manipulação que o enunciador busca exercer sobre o eunciatário
(leitor).

Conforme aponta Bakhtin (1927: 9):

472
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

“O significado e a importância de um enunciado (seja qual


for a espécie particular deste enunciado) não coincide com
a composição puramente verbal do enunciado. Palavras
articuladas estão impregnadas de qualidades presumidas e
não enunciadas (...) A vida, portanto, não afeta um
enunciado de fora; ela penetra e exerce influência num
enunciado de dentro, enquanto unidade e comunhão de
existência que circunda os falantes e unidade e comunhão
de julgamentos de valor essencialmente sociais, nascendo
deste todo sem o qual nenhum enunciado inteligível é
possível. A enunciação está na fronteira entre a vida e o
aspecto verbal do enunciado: ela, por assim dizer, bombeia
energia de uma situação da vida para o discurso verbal, ela
dá a qualquer coisa lingüisticamente estável o seu momento
histórico vivo, o seu caráter único. Finalmente, o enunciado
reflete a interação social do falante, do ouvinte e do herói
como o produto e a fixação, no material verbal, de um ato
de comunicação viva entre eles”.

Segundo o autor, todas as línguas possuem meios


gramaticais de expressão dos aspectos das diferentes atividades
humanas e os papéis que os interlocutores desempenham em tais
atividades: “primeira, segunda, terceira pessoas e estrutura de
sentença variável de acordo com a pessoa do sujeito (“eu” ou
“você” ou “ele). A forma de uma proposição sobre uma terceira
pessoa, a forma de um tratamento de uma segunda pessoa, a
forma de um enunciado sobre si próprio (e suas modificações) já
são diferentes em termos de gramática. Assim, aqui a própria
estrutura da língua reflete o evento da inter-relação entre os
falantes”(p. 16).

Desse modo, o conceito de interação é parte integrante da


concepção de linguagem que orienta a linha de pesquisa da Análise
Dialógica do Discurso. Linha essa que busca olhar para a
materialidade lingüística e para a situação comunicativa
constitutivas de uma enunciação e de um enunciado concreto,
visando a observar as condições de produção, de circulação e de
recepção de uma determinada situação comunicativa: em nosso
corpus, as cartas do leitor.

473
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

Para discutir a questão do interlocutor, ou como dizia


Bakthin, para tratar do conceito do outro, é preciso considerar o
papel do ouvinte/leitor, visto que :

“(...) a enunciação é o produto da interação de dois


indivíduos socialmente organizados e, mesmo que não haja
um interlocutor real, este pode ser substituído pelo
representante médio do grupo social ao qual pertence o
locutor. A palavra dirige-se a um interlocutor; ela é função da
pessoa desse interlocutor: variará se se tratar de uma pessoa
do mesmo grupo social ou não, se esta for inferior ou
superior na hierarquia social, se estiver ligada ao locutor por
laços sociais mais ou menos estreitos (pai, mãe, marido,
etc.). Não pode haver interlocutor abstrato: não teríamos
linguagem comum com tal interlocutor, nem no sentido
próprio nem no figurado”(Bakthin, 1927:112).

A relação dialógica ou dialogismo é, portanto, condição de


linguagem. No texto escrito, há o estabelecimento de uma relação
dialógica ou diálogo, em sentido amplo, entre o enunciador
(autor/escrevente) e o enunciatário (leitor). Cabe lembrar que a
atividade verbal sob a forma escrita também é orientada em
função de intervenções anteriores da mesma natureza. Ao analisar
o texto escrito é necessário levar em conta não só o conteúdo e a
relação do enunciador com esse conteúdo, mas principalmente a
relação do enunciador com o outro e com os discursos desse
outro, explicitados ou presumidos (cf. Brait, 2002:155).

Em relação às cartas do leitor, importa dizer que estão


relacionadas a assuntos vividos pela sociedade da época e
noticiados nos jornais ou a aspectos pessoais. Daí a motivação
para escrever no jornal, tendo a possibilidade de o leitor publicar
sua crítica, opinião ou pedido pessoal.

474
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

2. Caracterização do Gênero Carta1

Na visão de Bakhtin (1997), as sociedades e culturas são


várias, assim como suas atividades, cuja mediação é feita pela
linguagem. Os usos dessa linguagem são tão variados quanto
variadas forem as atividades humanas, que moldam a linguagem
por meio de enunciados relativamente estáveis, garantindo a
comunicação verbal. Esses enunciados constituem os chamados
gêneros discursivos.

Os gêneros discursivos são textos empiricamente


realizados, encontrados na sociedade de forma materializada, tais
como: notícia, artigo, entrevista, carta, bilhete, crônica, romance,
receita culinária, situados no espaço e no tempo.

Para Marcuschi (2001a: 43), a definição dos gêneros é de


natureza sócio-comunicativa, baseada em parâmetros pragmáticos
e discursivos, visto que sua sedimentação se dá por meio de
práticas sociais que visam a determinados propósitos
comunicativos.

Ao analisar o gênero carta, Silva (1997) afirma que esse


gênero discursivo permite uma variedade de tipos de
comunicação, tais como: pedido, agradecimento, conselho,
congratulações, desculpas, informações, intimação, prestação de
contas, notícias familiares, etc. A autora acrescenta que, embora
sendo cartas, não são da mesma natureza, pois circulam em
campos de atividade diversos, apresentando funções
comunicativas variadas: nas relações pessoais, nos negócios, entre
outras. Desse modo, esses tipos de cartas podem ser considerados
subgêneros do gênero maior “carta”, pois todos apresentam traços
comuns, sua estrutura básica: a seção de contato, o núcleo da carta
e a seção de despedida; mas são classificados quanto à forma de
realização e suas intenções. Assim, encontramos carta pedido,

1 O uso da designação gênero carta, em vez de gênero epistolar , busca dar


ênfase ao sentido de unidade de comunicação construída em contextos
funcionais específicos, evitando conotações literárias.

475
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

carta resposta, carta pessoal, carta programa, carta circular, carta


do leitor, carta ao leitor, etc.

2.1 Carta do leitor

Levando em conta a perspectiva funcional-interativa,


verificamos que a carta do leitor é um texto que circula no
contexto jornalístico em seção fixa de jornais e revistas,
denominada comumente de cartas, cartas à redação, carta do
leitor, painel do leitor, destinada à correspondência dos leitores.
Em outras palavras, a carta é utilizada em situação de ausência de
contato imediato entre remetente e destinatário, que não se
conhecem (o leitor e a equipe editorial do jornal ou da revista)
visando a atender vários propósitos comunicativos: opinar,
agradecer, reclamar, solicitar, elogiar, criticar, entre outros. É um
gênero de domínio público, de caráter aberto, com o objetivo de
divulgar seu conteúdo e possibilitando a sua leitura ao público em
geral.

Na atualidade, as cartas do leitor são divulgadas em jornais


e revistas de grande circulação e tratam de notícias ou reportagens
de temas de interesse nacional, publicadas nesses veículos de
comunicação, ou de solicitações feitas pelos leitores, pois é de fácil
acesso, demonstra um contato, por parte deles, com os fatos
importantes e recentes da sociedade e está escrito em registro
formal ou semi-formal do Português.

Sabemos que nem toda carta do leitor é publicada. Segundo


Melo (1999: 28-29), há sempre uma triagem para a seleção das
cartas a serem efetivamente publicadas e entre aquelas que são
selecionadas para publicação pode haver ainda uma edição, como
ocorre normalmente no Jornal Folha de S. Paulo ou na Revista Veja,
por exemplo. Por razões de espaço da seção ou por
direcionamento argumentativo, as cartas podem ser resumidas,
parafraseadas ou mesmo ter informações eliminadas. O que acaba,
segundo Bezerra (2002: 211), “por configurar-se como uma carta
com co-autoria: o leitor, de quem partiu o texto original, e o
jornalista, que o reformulou”.

476
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

Entretanto, nos jornais do final do século XIX não é bem


isso o que se vê. Na verdade, nos jornais selecionados as cartas
são colocadas integralmente e versam sobre os mais variados e
distintos assuntos: pedidos, reclamações, comentários, busca de
contato com parentes ou amigos, entre outros.

Seguindo a perspectiva teórica de Silva (1997: 119), que em


suas considerações sobre o gênero em questão leva em conta as
atividades comunicativas em que se dá o discurso, sem deixar de
lado seu aspecto formal, passamos a apresentar sua proposta
teórica para a análise das cartas do leitor.

Essa proposta engloba aspectos formais e funcionais que se


associam na classificação do gênero carta. Assim, distinguem-se
três níveis:

1) estruturas discursivas: a partir das propriedades


formais do texto, observamos o modo de organização da
informação, isto é, as rotinas retóricas ou formas convencionais
que o enunciador tem a sua disposição na língua quando quer
organizar o discurso. Para cada uma dessas estruturas há um
conjunto de traços lingüísticos característicos, que, em linhas
gerais, identificamos como: tempo/aspecto/modo verbal, tipo de
predicado, unidade semântica básica, pessoa do discurso referida,
unidade semântica básica.

Esta perspectiva valoriza as estruturas discursivas


disponíveis na língua que correspondem, genericamente, ao que
tradicionalmente se identifica com os gêneros discursivos:
estruturas narrativas, descritivas, expositivas, expressivas,
procedurais, dialógicas.

Um estrutura narrativa, por exemplo, caracteriza-se por


apresentar o verbo no pretérito perfeito em predicados de ação,
em torno de acontecimentos referentes à primeira ou à terceira
pessoa, sintaticamente organizada em orações com juntura
temporal. Por outro lado, uma estrutura descritiva tem o verbo
num forma não perfectiva, num predicado formado por verbos de

477
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

estado em torno de entidades, freqüentemente na terceira pessoa,


sintaticamente elaborada a partir de estruturas nominais.

Nas cartas sob análise, encontramos um exemplo


significativo em que o escrevente faz uso da estrutura narrativa
para contar um diálogo que ouvira, quando estava descansando na
ponte do ferrão, entre um senhor português e um estudante
brasileiro. Esta carta foi publicada no Farol Paulistano, em 15 de
março de 1828. Vejamos um pequeno trecho:

(1 ) “Senhor Redactor – Depois de cessar um pouco essa


abundante chuva, que desde o anno passado tem caído
todos os dias sem interrupção, quis ver o estado da varzea
do Carmo, e se com effeito tinha-se conseguido o fim
d’esgotá-la, dirigi-me até a chamada ponte do ferrão, que foi
entulhada e vi o pêso das aguas, que não respeita grandes
barreiras (...)De volta sentei-mea descançar na ponte fraca e
aí estavão talvez ao mesmo fim dois sugeitos, um dos quaes
era um Portuguez velho, e Brasileiro novo, (...) Logo que
cheguei encetavão elles uma conversação,e por me parecer
interessante apenas voltei a casa tracteri d’escrevê-la para
me não esquecer, e suppondo que possa alguem julgá-la
tambem interessante lh’a envio para que se digne publicar
no seu Farol.”

Quanto ao uso de estrutura descritiva, a carta selecionada


no exemplo (2) - publicada no Correio Paulistano, em 22 de julho
de 1893 - é construída com base na descrição de um indivíduo.
Observemos:

(2) Estado/Cidade: SP/São Paulo

Tipo de Texto: Carta de Leitor

Título de Jornal: Correio Paulistano

Data/Edição: São Paulo, 22 de julho de 1893/Sessão:


Secção Livre

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Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

Fonte/Cota: Arquivo do Estado de São Paulo

Observações:

Rio Verde

Ha mezes que appareceo nesta cidade um individuo alto,


corcunda, espadaúdo, meio careca; ao longe parece com
corvo mestre e outros disem que com o abestruz e eu me
inclino para quaesquer das duas aves. Disem chamar-se
“Cruz”, este antigo pa- tibole de malfeitores, emfim pelo
nome não se perca.

Disem tambem ser amphibio, porem não parece pela pelle;


que é orgam hoje e outros que é Realejo por ter manivella.
Ja ouvi tratal-o de ganso e doutor Scismado, mas não sei se
attende por esses nomes. O que sei é que ja foi juiz, cujas
bravatas existem em cartorio onde exerceo esse cargo,
despachando em um inquerito onde disem, era indiciado e
hoje é representante da so ciedade.

Sei mais que scisma soffrer dos pulmões e nem as pedras o


convencem do contrario. No jury tem voz aflautada e as
vezes parece guincho de vehiculo de duas rodas, e me
affirmam mesmo que toca flauta e flautim. Pretende,
havendo mudança de situação ser nomeado juiz de direito
de uma Comarca visinha. O seu ar é de bôbo e por isso
muito esquivo. Advinhem: quem é o biographado ?

Rio Verde, 15 de Julho de 1893.

joão caldas.

2) unidades comunicativas: este nível diz respeito ao uso


das estruturas em situações concretas de comunicação. É a
atualização do primeiro nível apresentado por meio de unidades
bem delimitadas, em contextos específicos. Esses tipos de
enunciados associam-se às diversas atividades que desenvolvemos,
por isso o número de possibilidades é bastante amplo, segundo

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Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

Silva (19970, e podem ser: editorial, reportagem policial, piada,


carta, conferência, conto, romance, novela, etc.

Segundo a autora, quando fazemos uma diferenciação entre


os dois níveis apresentados, estabelecemos critérios formais,
internos (para as estruturas discursivas do nível 1) e funcionais
para as unidades comunicativas (do nível 2).

A título de ilustração, podemos relacionar os dois níveis


acima propostos e verificar que temos estruturas do tipo narrativo
realizando-se em unidades como: contos, novelas; estruturas
procedurais ocorrendo em receitas, manuais de instrução;
estruturas expositivas aparecendo em artigos científicos, editoriais,
e assim por diante.

3) função comunicativa/interativa: neste nível


observamos como dada unidade comunicativa é empregada, sua
força ilocucionária ou a variedade de eventos comunicativos a que
se associa. Por exemplo, uma unidade comunicativa como uma
crônica pode ser utilizada para aconselhamento; ou uma lista pode
ser útil para destacar o ponto principal de um conto. Nessa
perspectiva, dificilmente encontramos um gênero que possa ser
considerado “puro”. Como se viu quando da exemplificação das
estruturas narrativa e descritiva, a carta pode ser usada para contar
um episódio ou mesmo para fazer uma pequena biografia de um
indivíduo.

A seguir, buscaremos relacionar as cartas e, em especial as


cartas do leitor, a essa proposta teórica . O gênero carta é uma
unidade comunicativa, pois apresenta uma estrutura de
informação a partir de uma organização típica, para uso em
contextos específicos. A carta é uma unidade funcional da língua,
utilizada em situações específicas: ausência de contato imediato
entre o emissor e o destinatário. Entretanto, esta é uma categoria
bastante ampla, apresentando uma diversidade de textos e
propósitos.

480
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

Na visão de Swales (1990), o termo carta faz referência ao


meio de comunicação, mas carece, como categoria, de uma
indicação de propósito suficiente para alcançar o status de gênero.

Realmente o termo carta é abrangente e, segundo Silva,


“pouco esclarecedor: com exceção do formato externo -
cabeçalho, data, assinatura - e algumas expressões formulaicas
freqüentes em suas seções iniciais e finais, o corpo da carta
permite qualquer tipo de comunicação: desde as vantagens de um
determinado cartão de crédito até informações sobre o
condomínio, passando pelas esperadas novidades do amigo que
mora no exterior. Todas são cartas, mas não devemos colocá-las
na mesma categoria” (p. 121)

As várias possibilidades de uso das cartas remetem a


distintos campos de atividades: a propaganda, os negócios, a
correspondência pessoal. Essas categorias suscitam o papel que a
carta representa na interação social. Nessa perspectiva, podem ser
analisados como subgêneros do gênero carta. De acordo com
Swales, o termo carta é uma espécie de rótulo conveniente para
reunir, supragenericamente, os discursos

Se observarmos o terceiro nível da proposta apresentada


anteriormente, podemos classificar as cartas a partir do propósito
comunicativo, do objetivo do emissor ao escrevê-las. Assim, no
âmbito das cartas do leitor, podemos estabelecer categorias que se
relacionam à intenção do emissor, ou seja, ao propósito
comunicativo que a carta estabelece: pedido, agradecimento,
informação, reclamação, entre outros.

Os enunciadores das cartas são pessoas que vivem na


cidade de São Paulo (há somente duas cartas de moradores da
cidade de Santos e publicadas no jornal Cidade de Santos) e
procuram, através do jornal, atingir propósitos bem específicos e
variados. Dentre as cartas levantadas até o momento, destacam-se:
pedido; reclamação; desabafo; comentário sobre matéria
publicada, comentário ou crítica a políticos, sobre as escolas
públicas, as condições das estradas, iluminação pública, limpeza
urbana; biografia; confissão.

481
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

Em algumas correspondências o propósito é explicitado


pelo enunciador, aparecendo em posição de destaque logo no
início do texto. Com freqüência, o objetivo da carta não é
indicado tão claramente, devendo ser inferido. Vejam-se alguns
exemplos:

(3) Estado/Cidade: SP/São Paulo

Tipo de Texto: Carta de Leitor

Título de Jornal: Diario de São Paulo

Data/Edição: São Paulo, 23 de maio de 1874/Sessão:


Publicações pedidas

Fonte/Cota: Arquivo do Estado de São Paulo

Observações:

Escola do Arujá

Passando pela freguezia do Arujá, tive occasião de ver ali


funccionando a escola publica regida pelo senhor Caetano
Nunes de Siqueira, ha pouco para ali removido. Tem o |
distincto professor matriculados sessenta e tantos alumnos
em lugar tão insignificante, que muito têm aproveitado, e
de entre os quaes alguns ja estão bem adiantados,
comquanto para a mesma escola entrassem sem
conhecimento algum das materias que ali se ensinão. (...)

(4) Estado/Cidade: SP/São Paulo

Tipo de Texto: Carta de Leitor

Título de Jornal: A Provincia de S. Paulo

Data/Edição: São Paulo, 12 de março de 1875/Sessão:


Secção Livre

482
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

Fonte/Cota: Arquivo do Estado de São Paulo

Observações:

A Companhia de Navegação Paulista

Senhores Redactores. - Li por duas vezes, no jornal de


vv.ss., reclamações sobre a irregularidade dos vapores desta
companhia e da desconsideração com que se tratava os
Paulistas, deixando de os avisar das trasnferencias por meio
de annuncios, etc. (...)

Quanto ao nível de sua estrutura discursiva, a carta do leitor


não apresenta um tipo específico e, nesse sentido, se diferencia do
conto ou da receita, considerados textos prototípicos das
respectivas estruturas que representam. Na carta, seqüências
narrativas, descritivas, argumentativas convivem
harmoniosamente, como já apontamos anteriormente. Por isso,
muitas vezes, é difícil delimitar as porções de cada tipo textual,
que se sucedem numa progressão/transição quase imperceptível.
Cabe lembrar que o estudo dessa mescla dos tipos de estruturas
textuais não pode ser desvinculado do estudo da organização
tópica.

A carta é sem dúvida um gênero discursivo, porém é tida


como um gênero complexo. Trata-se, como já se viu, de uma
correspondência em que diversas estruturas podem estar na base
de sua composição. Talvez para melhor analisar e compreender
esse gênero discursivo seja necessário observar o propósito de
cada carta, qual a sua função enquanto atividade social, que papéis
sociais são desempenhados pelos interlocutores.

3. Papéis Sociais e Formas de Tratamento nas


Cartas do Leitor

Neste momento, importa observar a relação entre os papéis


sociais estabelecidos nas cartas sob análise e as formas de
tratamento da língua.

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Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

O conceito de papel social refere-se, segundo Preti (2000,


p. 85-86), à participação do homem no grupo social. Na visão do
autor, “cada indivíduo tem uma posição dentro de um grupo (seja
ele um grupo restrito ou primário, como a família; ou um grande ou
secundário, como o Estado, por exemplo). Mas, podendo
pertencer a vários grupos sociais, pode ocupar também várias
posições sociais, Poderá, por exemplo, ao mesmo tempo, ser o
pai, na família; o professor, na escola; o jogador na equipe
esportiva; o pregador, na Igreja etc. A essas posições sociais
definidas do indivíduo no grupo costuma-se chamar status”.

O papel social é, portanto, a maneira de o indivíduo


estabelecer sua correlação vital com outras pessoas. Para Preti,
(op.cit), o locutor precisa desempenhar seu papel adequadamente,
e isso necessita de um certo esforço consciente para poder
produzir a impressão almejada. Desse modo, “a conduta é
regulada não apenas conforme o requisitos do papel funcional,
mas também de acordo com o que o público espera” (p. 89).

A linguagem é um componente essencial no desempenho


do papel social. Ainda conforme Preti, “ao falarmos, podemos
refletir o tempo em que vivemos (variação diatópica); nossa
condição sociocultural, profissão, grau de escolaridade (variação
diastrática); nosso sexo, faixa etária, ou aspectos de nossa
personalidade, como timidez, agressividade (variação psicofísica);
a situação de comunicação de que participamos, a forma verbal de
interagirmos, decorrente do grau de intimidade que temos com
nossos interlocutores, do tema que tratamos, da menor ou maior
formalidade exigida, que resultará em registros diferentes, numa fala
tensa ou distensa (variação diafásica)” (p.89).

Quando se analisa a relação entre os papéis sociais e a


variação lingüística adequada para representá-los, merece um olhar
especial o estudo das formas de tratamento, ou seja, a maneira por
meio da qual os interlocutores se tratam e o que pode representar
na interação a escolha de uma forma ao invés de outra disponível
na língua.

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Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

O uso das formas de tratamento liga-se a fatores diversos,


como: intimidade, polidez, afetividade, poder, hierarquia,
reverência, solidariedade. Ocorre, normalmente, nos diálogos ou
nos vocativos e, nestes últimos, apresentam uma variedade devida
à situação comunicativa. Nas cartas do leitor, de modo geral, os
vocativos são: Senhor Redactor, Ilustríssimo Senhor Redactor,
Senhores Redactores; mas há casos em que o leitor escreve
diretamente para um parente, amigo ou conhecido, ou ao público:
Querido esposo (carta dirigida a um voluntário da Pátria), Ao
Chico Salles, Ao Compadre do Monge, Compadre Pancracio,
Comadre Chiquinha, Amigo Antonio Nardi Vasconcellos Junior,
Aos fazendeiros e possuidores de escravos, Ao público, etc.

Na língua portuguesa, o sistema de tratamento pode se


representado por:

a) formas pronominais: os pronomes pessoais (tu, vós);

b) formas pronominalizadas: termos com valor de


pronomes pessoais (você, o senhor, Vossa Excelência, Vossa
Senhoria e suas variações;

c) formas nominais: nomes próprios, prenomes, nomes de


parentesco ou equivalemtes, ou uma variedade de nomes
empregados como vocativos ou formas de chamamento.

O uso de qualquer uma dessas possibilidades depende das


relações entre os diversos status sociais e os papéis para
desempenhá-los. Entretanto, alguns usos podem-se fixar por mais
tempo do que outros, em virtude da dinâmica das transformações
sociais. Cabe observar que, nas relações entre status, não é
possível passar, de repente, de um tratamento mais formal como o
senhor (que implica autoridade, poder) para você (que implica
intimidade, solidariedade), sem marcar a mudança de papéis
sociais.

De acordo com Robinson (1977), pode-se estabelecer uma


norma de status ao se estudar as variações de tratamento, para
demonstrar as convenções sociais que orientam o uso das formas

485
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

de nos dirigirmos a um interlocutor, no desempenho de nosso


papel social,

Com base nos trabalhos de Brown e Gilman (1960), pode-


se analisar uma semântica do poder e outra da solidariedade, separando
os dois grupos de tratamento que servem para evidenciar as
posições manifestadas nas diversas relações sociais:
patrão/empregado (status ocupacional), jovem/idoso (status
etário), entre outros.

Segundo Robinson (op.cit, p. 126), sociedades que


apresentam uma hierarquia muito forte, com manifestações de
status atribuído (nobre/plebeu, em séculos passados), possuem
uma série de formas de tratamento discriminativas, graduadas e
co-ocorrentes com outros traços lingüísticos. Esse fato caracteriza
a semântica do poder. Ainda hoje, em sociedades modernas,
encontram-se resquícios fortes dessa presença, com a permanência
da classe nobre com status e papel social definidos.

Em sociedades com status social adquirido, os tratamentos


apresentam variações e, conforme Preti, as formas de tratamento
indicam aproximação maior e intimidade entre os interlocutores, o
que constitui a semântica da solidariedade.

Em tais sociedades, como ocorre em muitos países da


América, onde há menos formalidade, o sistema de tratamento
apresenta-se mais simétrico, cujas variantes antes indicativas de
graduação de poder expressam também intimidade e solidariedade
(você/tu). Assim, muitos traços diferenciadores acabam,
gradativamente, perdendo esse emprego.

Na atualidade, há a tendência a um progressivo


desaparecimento de formas de tratamento indicativas de poder.
No Brasil, um traço característico dessa mudança está em algumas
formas de tratamento, como você e seu uso ampliado em relação a
o senhor, conforme Preti, evidenciando uma “quebra de
formalismo” (p.94).

486
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

Talvez a transformação mais relevante das formas de


tratamento no Português do Brasil diga respeito ao uso de tu e você.
O sistema reduziu-se ao uso de você, tanto para indicar intimidade
como cortesia, deixando a maior ou menor intimidade para a
oposição tu/o senhor, o que não ocorre no Português Europeu em
que tu (forma pronominal)/você (pronome de tratamento) indicam
intimidade/igualdade.

Entretanto, no século XIX é difícil distinguir com rigor o


uso das duas formas tu e você. Pode-se afirmar que ambos os
tratamentos se integram na semântica da solidariedade. Já para o
plural ficou somente a forma vocês, visto que vós desapareceu da
língua falada no Brasil, sendo utilizado apenas na oratória pública.

Em nosso corpus, porém encontramos uma carta publicada


no jornal Correio Paulistano, em que o remetente trata seu
interlocutor por vós:

(5)“Para que vos metteis a tralhão, meu rabula quadrado? Já


que fallasteis em uso fazendo lei, pergunto-vos, com que
condição ouso faz lei?” e mais adiante alterna o uso de
vós/tu ao usar o imperativo: “Ora ide plantar batatas. Se
reincidirdes chamo-vos á palmatoria (...) Ande, vai para
escola orelhudo” (22 de junho de 1854).

Neste exemplo, observa-se uma crítica bastante violenta


por parte do escrevente, que se dirige a seu interlocutor como:
parvo, bolonio, meu pedaço d’ asno, rabula, entre outros.

Entretanto, há outro exemplo em que a esposa escreve para


o jornal, dirigindo uma carta a seu esposo: um voluntário da
pátria, empregando o pronome vós.

(6)Estado/Cidade: SP/São Paulo

Tipo de Texto: Carta de Leitor

Título de Jornal: Correio Paulistano

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Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

Data/Edição: São Paulo, 26 de setembro de 1865/Sessão:


A pedido

Fonte/Cota: Arquivo do Estado de São Paulo

Observações:

Carta dirigida a um Voluntario da Patria

Querido esposo.

Embaú 10 de Setembro de 1865.

Tive o delicioso prazer de receber a vossa prezada carta,


com data de 18 do proximo passado mez, a qual me
encheu de orgulhoso prazer por ter certeza de que vos
achavas gosando perfeita saude, e as rogativas que faço a
bem aventurada virgem é que ao receberes esta vos acheis
no goso da mesma. Eu me acho com saude, graças a Deus,
assim como todos os nossos filhinhos, no numero dos
quais podeis contar mais um, que hontem veio à luz,
scientificando-vos que fui muito feliz e até o presente
acho-me sem alteração em minha saúde.

Caro esposo, não sei como vos possa relatar as


amarguradas saudades que de ti tenho, não sei como
exprimir-vos, as grandes angustias que soffre o meu
coração! a vossa estada nessa capital me enche de prazer, e
ao mesmo tempo de tristeza, pois que ahi estaes isento de
soffreres os asares que a guerra occasiona aos soldados que
correm em defeza de sua patria ultrajada, porém mais
retardada a vossa tão desejada vinda

(...)

Quanto a mim só vos posso protestar os mais sinceros


votos de estima amisade e fidelidade, e vos envio o
saudoso e fiel coração, e um apertado abraço, por ser como
sempre serei

488
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

Vossa estremosa, constante, e fiel esposa.

Eulalia Maria Silveria

O uso de vós para a segunda pessoa do singular, antes


mesmo do século XIX, é considerado um arcaísmo que se
mantém em situações de reverência e prestígio, constituindo um
exemplo de semântica do poder; entretanto no exemplo citado (5)
o uso de vós cria um efeito de sentido de ironia e descaso em
relação ao interlocutor, uso esse que se mescla com o de tu, já que
o poder e o prestígio são trocados pelo descrédito e pela
inferioridade.

Quanto às expressões utilizadas nas relações de poder,


incluem-se todas as formas pronominalizadas, com exceção de
você: vossemecê, o senhor, a senhora, a senhora Dona, o senhor Dr., o
cavalheiro, V. Exa. V. Sª. , entre outras. Tais formas indicam
respeito, hierarquia e são usadas de acordo com o status atribuído
ou adquirido dos interlocutores. Observemos alguns exemplos:

Para dirigir-se ao redator do jornal, o interlocutor usa


formas diversificadas. Há casos em que emprega Vossa Senhoria,
como no exemplo (7), escrito por uma lavadeira. Já há outros, em
que o escrevente utiliza a forma Vossa Mercê, alternando com o
senhor como no segmento (8) e outros ainda, em que o
interlocutor usa o pronome de tratamento você, como em (9),
embora o vocativo empregado seja o senhor. Nesses exemplos,
verifica-se uma variação no uso da forma para dirigir-se ao
redator, interlocutor conhecido apenas por intermédio do jornal,
sem caráter íntimo ou de grande conhecimento partilhado.

(7) Estado/Cidade: SP/São Paulo

Tipo de Texto: Carta de Leitor

Título de Jornal: Correio Paulistano

Data/Edição: São Paulo, 12 de agosto de 1865/Sessão: A


pedido

489
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

Fonte/Cota: Arquivo do Estado de São Paulo

Observações:

Consequencias da nova numeração.

Senhor redactor.

Sou lavadeira e engommadeira, e tenho sempre exercido as


minhas modestas profissões com applauso do Senhor
publico e dos meus freguezes da academia. Morei d’antes
no becco do inferno e ha cousa de 3 mezes mudei-me para
esta sua casa, onde vivia tranquillamente em quanto na
cimalha da porta se lia o NUMERO 20, mas o proprietario
querendo embellezar o front-spicio do seu predio entendeu
que devia mandar caial-o, o que fez, empregando em tal
obra um senhor pintor muito chué que borrou-me o 2 do
vinte, e ficou minha casa com o numero – 0 – !

Ora, eu sou muito procurada pelos meus freguezes e por


isso quando elles indagão da minha casa preciso dizer-lhes
o nome da rua e numero da porta, para que eles vão lá
direitos.

(...)

Ora, como conto a vossa senhoria já tudo isto erão tristezas


para a minha alma e por isso tencionava mudar-me do meu
cazebre.

(...)

Vossa senhoria que é muito perspicaz hade notar os meus


prejuizos e em virtude delles espero que reclamará em |
meu favor, afim de que me seja restituída a cifra no seu
lugar, ao contrario eu pinto na porta o que me parecer e não
dou cavaco á nação. Eu não vivo de borrões na porta,
entenda-se.

490
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

Estou zangada e não quero articular mais. Peço-lhe que me


olhe pela cifra como cousa sua.

Até a primeira.

Sua criada

Apollinaria Gerundia de Mattosinhos

(8) Estado/Cidade: SP/São Paulo

Tipo de Texto: Carta de Leitor

Título de Jornal: Correio Paulistano

Data/Edição: São Paulo, 25 de agosto de 1865/Sessão: A


pedido

Fonte/Cota: Arquivo do Estado de São Paulo

Observações:

Lembranças minhas

Senhor redactor.

Sou uma assignante das suas folhas por minha conveniencia


e das meninas, que gostão de ler os romances e as pilherias
que o snr bota todos os dias.

Na realidade são muito bonitas.

Vmc. é muito espirituoso, e aquella sua cousa do jry já me


arrebentou os cordões às saias de tanto rir. | (...)

O senhor bota sempre nos jornaes os preços dos


comestiveis e etc; mas não falla do preço das costuras, nem
do valor dos ovos. Isso é uma falta, perdoe-me.

491
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

Olhe, se não se costurasse, nós andavamos nús. Credo, que


vergonha! Não acha?

E os ovos são muito peitoraes. Se em vez do expediente do


thesouro vmc. pozesse o custo destas cousas, olhe que
havia de ter mais assignantes.

(...)

Conforme fôr, se eu vir que o negocio deixa, dou mais


elasticidade ao estabelecimento e o snr. ha de ter um
interesse sacudido!

Faça alguma cousa neste assumpto que não hade perder


comigo.

Desculpe o bote de rapé Princeza, que envio para consolo


dos seus narizes.

Sua predilecta

Generosa Maxima

(9) Estado/Cidade: SP/São Paulo

Tipo de Texto: Carta de Leitor

Título de Jornal: Correio Paulistano

Data/Edição: São Paulo, 01 de janeiro de 1865/Sessão: A


pedido

Fonte/Cota: Arquivo do Estado de São Paulo

Observações:

Quero mais “Correios”

Senhor redactor. – Findou-se hontem o bixesto de 1864.

492
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

Segundo os annuncios que você fez no seu jornal a cousa


não correu lá muito agradavel.

Quebras, guerras, chuvas de pedra e outras polemicas tudo


incommodou os nossos cidadãos.

A mim, graças a São Benedicto, de que Sou irmão, não me


chegou mal. Só tive augmentos; e senão veja;

A minha Eva deu à luz um pequeno, que se chama Juca, e


já tem dous dentes.

As galinhas pozeram ovos como nunca se vio.

Nasceu-me um bezerro e as cabras pariram todo o anno


que foi o diabo.

(...)

De forma que, pelo que lhe digo, fique você sciente que
nada me falta e tenho mais do que preciso. |

Nas horas vagas leio o seu Correio Paulistano que traz


sempre bem boas pêtas, e depois embrulho queijo no
papel.

Agora, como o tal anno acabou-se, a mulher disse-me que


escrevesse ao homem das folhas para tornar a ser
assignante.

Eu não queria mais saber de historias; mas emfim mande


você outra vez o papelucho, e ahi vai o cobre para 6 mezes.

Ponha este anno cousas bem engraçadas; quero-me rir a


custa dos tolos; senão dou com o jornal nas ventas do
folheiro e leva tudo o diabo.

Por oras, adeos e sou

493
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

O Seu freguez das folhas

Mendo Paes

Biderman (1972-73: 358-359) apresenta os usos das formas


de tratamento no mundo de fala portuguesa na Idade Média e
afirma que o tu era marca de intimidade, afeto, emotividade ou
ainda de inferioridade. Já o vós indicava não-intimidade, distância
ou respeito e superioridade. No mesmo uso de vós, encontramos
as formas Vossa Mercê, vossa Senhoria e Senhor.

A forma você aparece, provavelmente, no século XVIII


como tratamento intermediário entre tu e Vossa Mercê. Para
Biderman, você e Vossa Mercê coexistem nesse século e como
apresentam valores ligeiramente diferentes, a autora não sabe se
teria derivado da evolução de Vossa Mercê como afirmam alguns
estudiosos, dentre eles José Pedro Machado:

“Quando se considera as inúmeras variantes de Vossa Mercê


levantadas por Plà Cárceres na literatura dos séculos XVI,
XVII e XVIII, outra hipótese pode ser aventada. O
tratamento de Vossa Mercê deve ser importado da Espanha.
Ao, no final do século XVI e primeira metade do século
XVII, Portugal estava sob o domínio espanhol. Além disso,
as relações entre as sociedades portuguesa e espanhola
sempre foram muito intensas e estreitas desde os tempo
medievais. Compare-se agora variantes espanholas como:
voaçed, vueçed, vassuncê, vuaçed, voazé, vuazé, vuezé, todas
registradas por Cárceres. Note-se quão vizinhas se
encontram foneticamente de você. Vassuncê do repertório de
Cárceres também se encontra nos meios rurais portugueses
e brasileiros, a par com Vosmecê e ocê. Essa última freqüente
na fala urbana brasileira de vários níveis. Talvez você
simplesmente represente uma daquelas variantes que
corriam na Espanha senão em toda a Pensínsula Ibérica”(p.
363).

Cabe apontar ainda que no Brasil a substituição de tu por


você, como forma de tratamento familiar e íntima, deve ter

494
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

ocorrido na passagem do século XIX para o XX. Por isso no


corpus sob análise a forma você é a menos encontrada, há poucas
ocorrências e uma delas já foi comentada no exemplo (9), outra
está no exemplo (10), no qual o escrevente dirige-se à mãe,
empregando a forma Vossa mercê; já para interagir com o irmão,
usa o pronome você.

(10) Estado/Cidade: SP/São Paulo

Tipo de Texto: Carta de Leitor

Título de Jornal: Correio Paulistano

Data/Edição: São Paulo, 28 de março de 1865/Sessão: A


pedido

Fonte/Cota: Arquivo do Estado de São Paulo

Observações:

Minha mãe, hoje 25 do corrente de 1865. – Cidade de São


Paulo. – Corpo de Voluntarios da Patria.

Oh! que satisfação para mim em saber que estas miseraveis


lettras vão achar a v.mc. com feliz saude em companhia de
toda nossa familia; vou por meio d’esta pedir-lhe sua
benção, e participar-lhe os successos de minha vida, hoje
25 de março, para mim um dia festivo, foi hoje que vi sahir
o batalhão dos voluntarios da patria, acompanhado pela
musica voluntaria; ia então adiante do batalhão o
commandante do corpo volunta- rio commandando todo
aquelle exercito no largo do paço ao encontro do presidente

(...)

Oh! minha mãe lembre-se de mim, porque de vossa mercê


não me esqueço; acceite um louvado meu, não repare na
nota da carta porque, ah! esta carta foi notada com
lagrimas;... pois adeus mamãe, oh! meu pae lance-me

495
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

tambem sua benção, Joãozinho lembrai-vos de mim, que


eu logo vou para a batalha, n’essas cam- panhas do
Paraguay. Tive 200$000 de gratificação, mas nada posso
mandar, nada para você nem para nossa mãe, o que
confesso com pezar. Adeos, Joãozinho, de vosso irmão que
muito vos estima o

Felix de Amaral Gurgel.

Para ilustrar a fase de uso de formas variantes de Vossa


Mercê, encontramos cartas em que uma senhora dirige-se a uma
comadre, empregando a forma mecê, como no exemplo (11). Há
outra em que o escrevente emprega a forma vocemecê e vossa mercê,
indistintamente para interagir com o redator (12); e outra em que
usa a forma voçunce para dirigir-se ao redator (13)

(11) Estado/Cidade: SP/São Paulo

Tipo de Texto: Carta de Leitor

Título de Jornal: Correio Paulistano

Data/Edição: São Paulo, 20 de agosto de 1865/Sessão: A


pedido

Fonte/Cota: Arquivo do Estado de São Paulo

Observações:

Comadre Chiquinha

Muito estimarei que ao receber estas mal traçadas regras, se


ache já quasi boa do seu romatismo.

Eu, louvado seja Deus, vou indo boa de saude, andando


somente tresnoitada, porque, além de estranhar a casa, que
não é como aquella em que morei na Luz, não tenho
podido mais pregar olho com a gritaria das sentinellas da
cadêa, que tem garganta como esses barcos que os

496
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

estrangeiros inventarão pr’a bala não furar. Olhe, nha


Chiquinha, berrão, berrão os taes como as vaccas na porta
do quintal, chamando as cria.

Mariquinha, que mecê sabe que soffre muito das lombrigas,


leva a noite inteira se acordando assustada com |
semelhantes berros.

(...)

Arrematando esta, peço-lhe o favor de ver se por ahi ha


alguma casinha vaga, porque quero me safar daqui como o
diabo da - cruis.

Adeus; espero sua resposta

Sou sua comadre

Tudinha

(12) Estado/Cidade: SP/São Paulo

Tipo de Texto: Carta de Leitor

Título de Jornal: Correio Paulistano

Data/Edição: São Paulo, 24 de abril de 1865/Sessão: A


pedido

Fonte/Cota: Arquivo do Estado de São Paulo

Observações:

O feijão e os atravessadores

Senhor Redactor:

Vocemecê é homem da imprensa, vive sempre


preoccupado com as poesias e não ha de saber do que se

497
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

passa no mundo de chilra prosa em que eu e minhas


comadres vivemos. Pois, eu quero sempre dar-lhe uma
prosinha do meu mundéo para que vmc. faça uma pequena
idéa dos transtornos em que vivemos.

(...)

Em fim de contas eu o que quero é providencias sérias. A


minha e a barriga de minha familia, não póde estar exposta
aos botes dos atravessadores; e por isso - rogo a vossa mercê
que atice a policia nesses miliantes e dê com elles no
chelindró.

Eu prometto-lhe um balainho de óvos frescos se vossa


mercê fizer com que os taes vendeiros dêem o feijão por
uma continha que não aleije os pobres.

Sou uma sua creada

Balbina Rosa.

(13) Estado/Cidade: SP/São Paulo

Tipo de Texto: Carta de Leitor

Título de Jornal: Correio Paulistano

Data/Edição: São Paulo, 24 de junho de 1865/Sessão: A


pedido

Fonte/Cota: Arquivo do Estado de São Paulo

Observações:

Duas regras

Senhor redactor.

498
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

Ha muito tempo que andava com ganas de dar uma


pennada na imprensa de voçuncê; mas entonces como não
sei retolica, tinha scismas que vonçuncê havia-se pôr com
partes. Mas já hoje vi no seu pharol annun- ciada uma
descomponenda de nha Amalia, cosinheira que foi do
defundo senhor conego meu padrinho, que Deus haja, e
isso me pissui de animo para botar nas folhas umas regras.

Eu conheço voçuncê de outras eras; voçuncê é que não se


lembra de mim; eu estava alugada na casa do seu bispo
Dom Matheus, no tempo em que voçuncê foi lá botar a
Chrisma em voçuncê mesmo. Eu bem me lem- bro disso.

Mas saiba voçuncê, que eu sempre fui muito faceira e


gostei de me aceiar, quando veio a lei da gente varrer a sua
testada eu varria a minha á missa das armas, e quando os
homens da carroça passavão no meu bequinho já achavam a
lixarada n’uma montoeira.

Vai agora apparece um dia destes um velhote com uma


espada grande e pistola na mão e manda que eu metta a
montoeira para dentro. Isto, senhor redactor, não se faz a
uma viuva honrada.

(...)

Nas suas folhas argumente em meu beneficio, e eu fico


rezando por sua alma ao Senhor São João no meu rosario,
que me deixou minha avó.

Se lá apparecer a nha Amalia voçuncê dê-lhe lembranças


minhas.

Uma sua serva.

Nicota Gertrudes.

Por meio dos exemplos, verifica-se que as formas - Vossa


Senhoria, Vossa Mercê, o senhor- usadas pelo escrevente para dirigir-se

499
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

ao redator ou a um parente denota respeito em relação ao papel


social desempenhado pelo interlocutor, entretanto revela também
que a forma Vossa Mercê está passando por uma fase de
transformação devido à variação com que é empregada,
dependendo de quem é o escrevente e a que classe social pertence.

4. Interatividade nas Cartas do Leitor

A interatividade é definida, por Marcuschi (1999: 143),


como “o movimento típico e explícito do escrevente direcionado
a um leitor prentendido”. Desse modo, as marcas de
interatividade são constituídas por expressões ou formas
lingüísticas que subentendem a presença de um leitor a quem o
escrevente se refere de modo claro e sem qualquer ambigüidade
em determinado contexto situacional.

A relação dessas marcas com a gramática evidencia-se pelo


fato de essas formas lingüísticas serem usuais na língua, ou seja,
são empregadas de acordo com as possibilidades que o sistema de
língua portuguesa permite.

Tal uso faz parte de um movimento próprio do processo de


textualização cuja presença do interlocutor evidencia-se na própria
construção textual. As cartas são casos típicos de textos que
permitem um uso intenso de marcas de interação, mas isso não
quer dizer que outros gêneros não o permitam.

Observemos a carta (14), na qual destacamos algumas


dessas marcas:

(14) Estado/Cidade: SP/São Paulo

Tipo de Texto: Carta de Leitor

Título de Jornal: Correio Paulistano

Data/Edição: São Paulo, 21de janeiro de 1864/Sessão: A


pedido

500
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

Fonte/Cota: Arquivo do Estado de São Paulo

Observações:

Cartas familiares

IV

COMPADRE PANCRACIO. –

Não começo por perguntar- lhe noticia de sua saude,


porque pela ultima que me escreveo fiquei sabendo que está
rijo como um cerne, fresco como uma alface, e alegre
como um medico em tempo de epidemia. Tambem pudera
não ser assim. O compadre passa um vidão, mora no meio
da abundancia, sente o aroma das flores, e das arvores,
bebe boa e cristalina agua (Não repare, poetissimo
compadre), neste estylo que é muito geral nesta cidade).

Como ia dizendo, come boa carne de porco, ou de gorda


vitella, passeia no seu pomar, colhe e engole por desfastio
um suculento pecego, ou uma tenra banana, dorme a sesta
na sua rede, a noite toma o saudavel e puro café, e quando
tem mais apetite manduca o seu prato da nutriente cangica,
e dorme o sonno do justo depois de ter resado o infallivel
terço com a familia. E deixe correr 365 dias por um anno.

Ora realmente felicissimo compadre, uma vidinha destas é


para chegar com certeza á idade do defunto Mathuzalen,
que nem eu, nem o compadre conhecemos.

É verdade que o anasphaltissimo compadre por isso


mesmo anda no mundo da lua, a respeito de progresso
progressante não encherga um palmo adiante do nariz; e para
de todo não ficar obtuso é mister que eu o vá, com estas
minhas cartas burnindo, e tirando-o do estado quasi natural
em que se acha.

501
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

Tenha paciencia, compadre, Deus me defenda de deixa-lo


(o compadre, não a Deus) fazer figura ridicula; tenha
paciencia, heide dezabuzal-o.

Aqui corre o rio por outra fórma. Levanta-se a gente pela


volta das 8 horas, toma o seu café, mas um café, compadre,
todo adubado com milho, e outras coisitas mais, coisa boa;
lê o Correio Paulistano, faz o seu toilette, isto é, lava o rosto,
pentea-se, calça as chinela, veste a ceroula, a calça, o casaco,
etc., fuma o seu charutinho; e assim chega até as 10 horas,
que é a hora do almoço, já se sabe, coisa fina, carne quasi
sempre de boi pesteado, dizem que está reconhecida que é
mais saborosa, assim como a carne de dois e tres dias, por
que fica mais macia; não sabia desta, compadre, pois [v]á
aprendendo, que muito tem que aprender.

O leite aqui compra-se já adubado com agua e polvilho, que


lhe dá um sainete excellente. O pão, isso então, compadre
de uma figa, é coisa grande; temos pão de todas as nações;
pão francez, italiano, hespanhol, portuguez, allemão, e não
sei se até o pão turco; cada um com seu differente feitio, e
alguns bem engraçados; e quanto ao sabor, isso nem
fallemos, é comer e gritar por mais; uns tem um gostinho
de azedo, qne é um regalo, outros com uns longes de môfo
que o torna verdadeiramente apetitoso, estes claros, aquelles
de uma côr mais trigueira, outros ainda mais, que até fazem
uma vista agradavel na mesa. Dizem-me que este ge- nero
está n’uma tal perfeição, que emprega-se na sua
manipulação todas as farinhas conhecidas e desconhe-
cidas, e é isto que o torna cada vez melhor. A respeito de
pão dir-lhe-hei, impertinentissimo compadre, que só não
temos o - Pão nosso de cada dia.

O jantar tem sempre lugar a hora da sua merenda,


frugalissimo compadre, compõe-se de - todas las cosas e
algumas cositas mais, tudo iguarias papafina.

Quanto ao vinho e ao chá, isso nem é bom fallarmos, ha


tal abundancia, e variedade que eu iria longe, se quizesse

502
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

descrever-lhe. Que perfeição ! que gosto! O compadre


póde comprar uma garrafa de vinho de 640 ou de 800 rés,
que com essa só garrafa terá vinho, aguardente, licor,
rozasolis, cognac, cerveja, etc. Faz pra- zer ainda ao paladar
mais estragado.

O chá antigamente era uma bebida desenxabida, hoje não


senhor, principia pela côr que é de um amarello
requeimado, e tem um gostinho de sassuaiá com seus longes
de sabugueiro, que melhor não póde ser.

Compadre, ha hoje uma transformação em tudo isto que


aposto o que quizer em como se o compadre viesse comer
um dia ás nossas mesas, não saberia o que estava comendo,
talvez cuidasse que estava saboreando os celebres bicos de
rouxinol, e o manjar dos anjos, com que nos regalão os
ouvidos quando somos crianças.

Agora do que o compadre mais se havia de admirar seria


do preço de tudo isto. O’he, com qualquer 8$ rs. por dia o
compadre póde almoçar, jantar e ceiar! Realmente é de
graça.

Uma coisa que não temos nesta nossa boa cidade do


Apostolo das gentes, quem o acreditaria! é agua. Mas
declaro-lhe, sequiozissimo compadre, que não faz falta.
Temos tanto liquido de diversas naturesas que realmente a
agua deve ser banida de uma vez; não deve servir nem para
a lavagem do corpo. E que bom não será banharmo-nos
em caninha, cerveja, cognac, ou Cliquot? Que aroma
delicioso não exhalará uma cidade que adopte este
hygienico, e agradavel costume?!

Agora, aceiadissimo compadre, á noite quando depois de


repletos de tantas delicadas, e variadissimas iguarias,
sahimos a dar o nosso passeio hygienico, que prazer
sentimos, quando ao passarmos por uma esqui- na, vemos
correr della uma agua grossa com forte cheiro de sal
amoniaco, ou quando encontramos um grande e alto carro

503
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

conduzindo grande quantidade do verdadeiro patcholly,


que deixa evaporar o mais ex- quisito aroma conhecido!
Que bem estar não sente um filho de Deos ao passar pela
rua do Rosario, em frente a casa que pertenceu ao seu
velho amigo capitão Severino! Oh compadre de um dardo,
é que é o verdadeiro viver no seio de Abrahão; agora é que
se póde dizer com verdade - esta vida não chega a netos,
nem a filhos com barbas.

Affirmão-me, compadre, que a policia tem ultimamente


visitado as casas de negocio, e inutilisado muitos generos
deteriorados, falsificados, etc.. mas realmente, austerissimo
compadre, acho que a policia não tem ra- são, e que de
alguma fórma vae contra a plena liberdade do commercio.
Os nossos commerciantes apenas o que fazem é melhorar
o genero, fazendo diversas mis turas, e porisso, variando-o,
tudo em beneficio do povo. E o compadre sabe
perfeitamente que a variedade deleita, como dizia o outro.

Era o que faltava que homens que vivem só pensando no


modo de nos ser util e agradavel soffressem nos seus
interesses. Nada, não admitto, e para enristar a lança por
elles estará sempre prompto o seu velho compadre

O Zé da Vestia.

Na carta sob análise, todas as partes destacadas com


sublinhado apresentam uma relação interpessoal direta do
escrevente (O Zé da Vestia) com seu destinatário (Compadre
Pancracio). Tudo transcorre como se ele estivesse na presença de
seu interlocutor (Tenha paciência compadre; não sabia desta
compadre; Agora aceiadissimo compadre). Evidencia-se,assim,
que o gênero carta pessoal tem um interlocutor definido, único,
bem delineado e íntimo. Além disso, há uma suposição de
conhecimentos partilhados que sustenta uma série de afirmações
ou comentários que escapam aos demais leitores do jornal.

Quanto a elementos característicos da interatividade, veja-


se a própria construção de vários trechos da carta no estilo de atos

504
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

ilocutórios (Não repare; Tenha paciência; vá aprendendo, que


muito tem que aprender), perguntas (não sabia desta, compadre)
Outro indício de relação direta com o interlocutor são os
vocativos (poetíssimo compadre; felicíssimo compadre,
anasphaltissimo compadre, compadre de uma figa; adeiadissimo
compadre, austerissimo compadre, Oh compadre de um dardo,
impertinentissimo compadre, etc). Há ainda o uso de marcadores
discursivos - agora, então, assim, mas realmente, acho que, olhe
– que encadeiam as seqüências textuais e estabelecem um
envolvimento com o interlocutor.

Considerações Finais

Essas marcas de interação revelam que o


enunciador/escrevente age visando a um envolvimento
multiorientado (cf. Marcuschi 1999), dado que se envolve:

a) com seu interlocutor (o leitor a quem a carta está dirigida


e aos prováveis leitores do jornal);

b) com o tópico discursivo em desenvolvimento (o assunto


tratado na referida carta);

c) consigo mesmo;

d) com práticas sociais específicas (na carta, o contato


pessoal).

Desse modo, tais marcas são uma característica primordial


do processamento lingüístico oral ou escrito. Numa perspectiva
cognitiva, podemos dizer – em conformidade com Marcuschi
(1999) que o processamento textual, enquanto
atividade/movimento de produção e recepção de texto apresenta
aspectos comuns na fala e na escrita, ou seja, a interatividade não é
uma estratégia típica da fala e pode ocorrer na textualização da
escrita. A interatividade é uma característica que está relacionada
ao escrevente/locutor e sua ação com a língua, e não apenas um
aspecto da modalidade (oral/escrita). Assim, a dialogicidade será
tanto maior quanto mais definido for o interlocutor.

505
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

Em síntese, as marcas de interatividade nas cartas atuam


como operadores de orientação cognitiva, evidenciando
perspectivas de interpretação preferencial por parte do
escrevente/locutor. Além de marcas estilísticas, são formas de
ação com a linguagem (atos de fala) que estabelecem contratos,
fazem negociações, propostas e definem posicionamentos para
uma relação intersubjetiva eficaz.

Referências Bibliográficas
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sociológica) Trad. Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza, a partir da
tradução inglesa de I. R. Titunik “Discourse in life and discourse in art –
concerning sociologial poetics”. In: Freudism. New York: Academic
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BAKHTIN, M. (1929) Marxismo e Filosofia da Linguagem. Trad. M. Lahud,
Y. F. Vieira e outros. São Paulo: Hucitec, 1979.
BAKHTIN, M. (1997) Estética da Criação Verbal. 2.ed., São Paulo:
Martins Fontes.
BIDERMAN, M. T. C. (1972-73) Formas de tratamento e estruturas
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507
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

O gênero notícia no Brasil: notas para uma


história
Marlos de Barros Pessoa
Universidade Federal de Pernambuco

O objetivo deste trabalho é reunir informações importantes


sobre a mudança que a concepção de notícia experimentou desde
a introdução dos jornais até o surgimento do lide no Brasil, mas
sem deixar de entremear essa reconstrução com exemplos de
outras culturas. Proponho, enfim, uma história da notícia como
gênero jornalístico, levando em consideração conteúdo, técnica e
forma.

Para o historiador da língua do século XIX e de séculos


anteriores é a língua escrita que serve de investigação para se
detectar fenômenos dessa história. Buscam-se, entretanto, textos
que se apresentem de forma mais próxima da oralidade.1 Essa não
será minha preocupação. Como os jornais representam uma
história que atravessa séculos, desde as suas formas embrionárias
até os dias atuais, é evidente que eles constituem bases concretas
para se escrever essa história.

1Não pode-se, entretanto, negar a relação entre a circulação dos jornais e


a conversação. V., sobre isso, Pallares-Burke (1995). Também é
conhecida a relação do manuscrito com a cultura oral. Mcluhan (1972)
enfatizou essa relação; Zumthor (1993) também destacou a presença da
voz no texto escrito medieval.

509
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

Pode-se grosso modo dizer que até 1808 a produção escrita no


Brasil era manuscrita.2 É com o surgimento da tipografia que os
jornais passam a existir, inicialmente em 1808 e depois
progressivamente. Quer dizer, há uma divisão nítida entre um
período de produção manuscrita e outro em que, ao lado desta,
aparece o escrito impresso. Dessa forma, pode-se hipotetizar que
no início deveria haver alguma diferença entre o manuscrito e o
impresso.3 Para se entender, então, a transformação histórica do
gênero notícia, é preciso em primeiro lugar, apresentar as fases do
jornalismo, que trazem subjacente a preocupação com informação
versus opinião e, em segundo lugar, traçar as diferentes concepções
do gênero notícia ao longo de sua história no Brasil.4

Parte I: Fases do jornalismo no Brasil

A introdução do jornalismo no Brasil no começo do século


XIX é bastante tardia em relação a muitas outras nações, por
causa da proibição das atividades de impressão imposta pela
metrópole. Para se entender melhor a história da imprensa, vou
resumir a opinião de alguns autores. Marcondes Filho (2000: 11-
28) destaca três épocas do jornalismo, antecedendo a sua
introdução no Brasil. O primeiro jornalismo destacado pelo autor vai
de 1789 à metade do século XIX, chamado de jornalismo da
“iluminação”. É a época do jornalismo político-literário, quando
se impõe o artigo de fundo e a autonomia redacional,
prevalecendo os jornais eruditos, as revistas moralistas,
produzidos por escritores e políticos; o segundo jornalismo, o do
jornal como empresa capitalista, na segunda metade do século

2 Este é um tema que tem sido esquecido dentro da história da língua

portuguesa no Brasil. Antes da chegada da imprensa ao Brasil, havia uma


vasta produção manuscrita, que remonta aos séculos XVI, XVII e
XVIII. No âmbito do PIBIC na UFPE nossos alunos têm levantado um
corpus dividido entre manuscritos e impressos para deixar clara a
consciência entre supostas diferenças entre os textos aí incluídos.
3 V. Eisenstein (1998)
4 Estou considerando a notícia tal qual se concebe hoje. É claro que no
plano oral havia os boatos, tal como refere Darnton (2002).

510
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

XIX. A gradual implantação dessa imprensa se inicia depois de


1830 na Europa e nos Estados Unidos e se estabiliza por volta de
1875. Nesse período a publicidade passa a ser prioridade; por fim,
o século XX assiste ao surgimento do terceiro jornalismo, o dos
monopólios.

No período que antecede o primeiro jornalismo, conta ainda


Marcondes Filho (2000: 15-17), o jornalismo está muito associado
ao correio e o homem que fazia o jornal era uma espécie de
carteiro. No século XVII a Gazette de Théophraste Renaudot,
sucedânea dos avvisi ou Zeitungen – manuscritos enviados e
recebidos pelos banqueiros – ainda se parece com o livro. Outros
jornais da época ainda dão ênfase aos feitos militares e atitudes
dos reis e de sua corte.

No Brasil, como se verá abaixo, o jornalismo se encaixa


ainda na primeira fase com atraso, claro. Bahia (1971: 117)
apresenta três fases de tendências de especialização jornalística:

No Brasil, as tendências de especialização jornalística, que


extrapolam o jornal especificamente, têm três idades principais: na
primeira fase do jornal impresso, emergente do estabelecimento
tipográfico, que vai de 1808 a 1880, com a crônica (de costumes) e
o ensaio (político e literário) em lugar da reportagem, o
comentário em lugar da notícia, tudo num conceito de
comunicação mais opinativo, doutrinário e filosófico do que
informativo...

Na segunda fase, de 1880 a 1930, em que o jornalismo — o


jornal impresso e, depois o rádio — aspira à emprêsa e busca a
identificação industrial, a reportagem substitui a crônica e o
ensaio, da mesma forma como a notícia começa a predominar
sobre o comentário, dando evidência à informação. Já na terceira
fase, que começa em 1930 e se revitaliza com o nôvo jornalismo, a
partir de 1950, por via de transformações na sociedade e na
empresa, afetando a organização dos meios de comunicação de
massa...

511
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

Seabra (2002: 32), por outro lado, divide a história do


jornalismo no Brasil em cinco fases:

1) jornalismo literário, que vai do surgimento da imprensa no


Brasil até o final do século XIX, aproximadamente; 2)
jornalismo informativo estético, que compreende o período de
transição entre o fim do século XIX e o fim da Primeira
Guerra Mundial; 3) jornalismo informativo utilitário, que
abrange todo período do entreguerras e se estende pelas
décadas de 1950 e 1960; 4) jornalismo interpretativo, fase que
corresponde ao período que vai dos anos 1970 até a última
década do século; e o modelo atual, que começa a substituir
o paradigma anterior, o qual denominamos 5) jornalismo
plural.

Dessa periodização interessam apenas as três primeiras


fases, pela delimitação em que este trabalho se insere. Para se
entender a história do gênero notícia e sua relação com
determinados gêneros textuais ou com a tecnologia de difusão de
textos, é preciso associar às fases três aspectos dessa história, que
podem ser assim delineados:

1) As notícias se difundiam por cartas, período em que a


eloqüência tinha muita importância e a retórica era disciplina de
grande prestígio;

2) As notícias eram transmitidas por telegramas e surge a


reportagem;

3) As notícias se deixam influenciar pelo rádio e surge o lide.

Lingüisticamente, pode-se deduzir, desse conjunto de


influências e de alterações, o seguinte: No primeiro período,
quando os jornais se referem a cartas, correspondências, correio,
tem-se o peso dos editoriais e da opinião, com subsídios para
estudar os processos argumentativos, tais como o papel da

512
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

adjetivação5 e a modalização. Claro que os textos têm outro


formato, pois as colunas prevalecem e os períodos e parágrafos
são longos. Quanto ao período dos telegramas, surge um estilo
telegráfico, em que a pontuação é nitidamente diferenciada. Vê-se
surgir nos jornais sobretudo do Rio de Janeiro as crônicas em que
se comentam os telegramas, como faz Machado de Assis, a ser
comentado adiante.

O lide aparece na terceira fase e a racionalização assume


grande peso. Há a clara concorrência do rádio. Interessante é
observar que se está diante do que se chama oralidade mediatizada6,
em que a oralização do material escrito desempenha grande papel,
caracterizando-se a leitura em voz alta ou leitura oral, num primeiro
instante, obedecendo-se a uma tradição das sociedades imersas na
cultura oral.

Se no primeiro momento o jornalismo impresso é


considerado tribuna ampliada7, numa nítida associação com o
exercício da retórica, tem-se ao que parece o texto escrito, mas
com a intenção de servir ao discurso pomposo pronunciado na
tribuna, no púlpito, tal como faziam padres, políticos e advogados;
no segundo, que coincide com as idéias românticas em curso, tem-
se uma preocupação com o leitor, como reflexo da melhora dos
níveis de alfabetização da população urbana; vê-se Machado de
Assis, jornalista por excelência, dirigir-se ao “leitor”
explicitamente. No terceiro momento, a notícia tem uma forma

5 A importância da adjetivação na época do jornalismo literário se revela


na referência feita por alguns autores. Por exemplo, Burnett (1976:67-8)
“nos tempos do adjetivo”; Noblat (2002:87-8) escreveu o seguinte: “Foi
a revista Veja, quando começou a circular no final dos anos 60, que
reintroduziu o adjetivo no jornalismo brasileiro. Ele tinha sido
expurgado do texto com o início da reforma dos jornais no final dos
anos 50.”
6 Silva (1999:48).
7 A expressão foi cunhada por Benjamin Constant, de acordo com Bahia

(1971:47).

513
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

própria para o leitor apressado, em que a objetividade passa a ser


considerada, o que explica o surgimento do lide.

Primeira fase

Esta fase, que dá início à atividade jornalística no país,


apresenta inicialmente o aparecimento em 1808 da Gazeta do Rio de
Janeiro, de iniciativa oficial. Em seguida aparece em 1811 a Idade do
Ouro na Bahia, que vai existir até 1823, quando a resistência
armada portuguesa é expulsa da Bahia. É um período inicialmente
áulico da imprensa brasileira,8 em que servidores do governo,
homens de letras da época, colaboravam nos jornais. Percebe-se
ainda uma certa relação, por causa dos panfletos, com o livro.9 É
um período em que a censura10 se manifesta em face da
contestação do regime. O ano de 1827, quando se iniciam as
faculdades de Direito no Recife e em São Paulo, o que favorece a
constituição de um ambiente propício à difusão de um jornalismo
literário,11 parece representar o início de uma subfase deste
primeiro período. Delineiam~se assim duas tendências no
período. Uma dos pasquins; e outra de inspiração literária e da
polêmica.

Os pasquins

8 Na obra de Sodré (1999: 51) encontra-se referência ao primeiro

periódico identificado com os interesses brasileiros. Trata-se de O Diário


Constitucional, surgido na Bahia a 4 de agosto de 1821. O interessante, do
ponto de vista lingüístico, seria compará-lo com o Semanário Cívico ou A
Idade do Ouro, também da Bahia, identificados com interesses
portugueses.
9Bom exemplo disso é jornal Thyphis Pernambucano, publicado por Frei
Caneca, em 1821.
10 O tema da censura reflete a proibição da palavra escrita, um assunto
ligado à história social da língua.
11 V. Lima (1960).

514
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

Há um contexto histórico que favorece obviamente o


surgimento dos pasquins. Sodré (2000: 157) sintetizou esse
conjunto de fatores da seguinte forma:

Num meio em que a educação, em seu estágio mais


rudimentar, o ensino, estava pouquissimamente difundida,
em que a massa de analfabetos era esmagadora, em que os
que sabiam ler não tinham atingido o nível necessário ao
entendimento das questões públicas, e em que os que
haviam freqüentado escolas superiores se deliciavam em
estéril formalismo e no abuso da eloqüência vazia, a única
linguagem que todos compreendiam era mesmo a da
injúria...

Com a rotulação “linguagem da injúria”, o autor resume de


forma clara uma característica do período. É inclusive para abrigar
esse tipo de comportamento lingüístico que aparece a seção
correspondência, onde os mais ferrenhos ataques aos adversários. É,
pois, de forte interesse para os pesquisadores da história dos usos
da língua o estudo desses jornais. Sodré, na obra citada, alude a
essa peculiaridade da língua dos pasquins e se refere à sua
incompreensibilidade dos leitores de hoje em contraste com o
“entendimento fácil” dos leitores da época. Caberia aos
historiadores da língua explicitarem a que se deve essa diferença
no plano da compreensão.12

Essa era uma época em que um indivíduo sozinho fazia o


jornal. Desde o fim da primeira metade do século XIX começam a
surgir indícios de uma nova época, em que se prepara o caminho
da República e os folhetins dão surgimento aos romances

12 Um gênero jornalístico, se assim se puder chamar, que se solidifica


pelo final do século XIX e continua até o fim da Primeira Guerra
Mundial, são os “a pedidos”, que compõem os chamados ineditoriais,
seções pagas. São uma espécie de continuação do estilo violento dos
pasquins, escritos por ‘testas-de-ferro” profissionais e muitas vezes
ditados por analfabetos. (Freyre, 1990:219).

515
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

românticos. Pompeu de Souza define esse período, quando


afirma:

...Fazia-se primeiro um artigo para depois, no fim, noticiar


que um garoto tinha sido atropelado defronte a um hotel.
Isso era uma remanescência das origens do jornalismo, pois
o jornal inicial foi um panfleto em torno de dois ou três
acontecimentos que havia a comentar, mas não noticiar,
porque já havia a informação de boca ao vivo, a informação
direta (Souza, 1992: 24)13.

Segunda fase

Para mostrar a essência desta segunda fase, começo


apresentando uma passagem de Sodré (1999: 215), que capta a
entrada do telégrafo na transmisssão da informação. Esse
momento tem todas as características de uma fase de transição
para aquilo que vai se constituir no século XX:

Até 1874 as notícias do exterior chegavam por cartas.


Nesse ano a agência telegráfica Reuter-Havas instalou, no Rio, sua
primeira sucursal, dirigida pelo francês Ruffier. Em seguida aponta
1877 como o ano em que o Jornal do Comércio publicava os
primeiros telegramas por ela distribuídos: “Londres, 30 de julho às
dez horas da noite – Foi malograda a tentativa feita em Millwal
para lançar ao mar a fragata de guerra independência,
recentemente construída por conta do governo brasileiro. –
Londres, 30 de julho às 2 horas da manhã – Faleceu ontem M.
Christie, antigo ministro da Inglaterra junto ao governo

13 Esta afirmação se coaduna com a inspiração do período, em que a

retórica exercia grande força e os jornais serviam a interesses de grupos


políticos.

516
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

brasileiro”. Esse noticiário passou logo a ser utilizado por todos


os jornais...14

O mesmo autor, adiante, resume as alterações que


caracterizam esta segunda fase:

Tais alterações serão introduzidas lentamente, mas


acentuam-se sempre: a tendência ao declínio do folhetim,
substituído pelo colunismo e, pouco a pouco, pela
reportagem; a tendência para o predomínio da informação
sobre a doutrinação; o aparecimento de temas antes
tratados como secundários, avultando agora, e ocupando
espaço cada vez maior, os policiais com destaque, mas
também os esportivos e até os mundanos. Aos homens de
letras, a imprensa impõe, agora, que escrevam menos
colaborações assinadas sobre assuntos de interesse restrito
do que o esforço para se colocarem em condições de
redigir objetivamente reportagens, entrevistas, notícias...15

Dessa forma, na segunda fase da história do jornalismo


brasileiro, cresce o interesse pela informação, como reflexo
também do crescimento da leitura16, perdendo os textos de

14 Também Sodré, numa aparente contradição, afirma que “foi A Notícia


que primeiro utilizou o serviço telegráfico, em 1895, com as informações
sobre a luta em Cuba; o público só acreditou quando, no dia seguinte, o
Jornal do Comércio confirmou aquelas informações”. (Sodré,1999:267).
15 Sodré (1999:296-7).
16Esta fase parece ter na base o aumento do interesse pela leitura, entre
o final do século XIX e início do século XX, como destaca Freyre: “...
período que foi também de muita leitura de jornais e revistas pela
burguesia – a burguesia do fim do Império e do começo da República”
(Freyre, 1990:232). Isso pode ser comprovado também pelo número de
membros dessa classe social que entram no processo regular de
escolarização, como demonstrado pelo próprio Freyre nas entrevistas
com vários deles. Quanto aos estudos lingüísticos, não de deve esquecer
que foi nesse período que surgiram as primeiras discussões públicas

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Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

opinião o peso que detinham na época anterior, como relata


Medina (1978: 61):

Na segunda fase de modernização de 1900 em diante, os


jornais, sem desprezarem a colaboração literária, iam
tomando um caráter cada vez menos doutrinário,
sacrificando os artigos em favor do noticiário e da
reportagem. As notícias de polícia, particularmente, que
outrora, mesmo quando se tratava de um crime
rocambolesco, não mereciam mais do que algumas linhas,
agora passavam a cobrir largo espaço; surge o noticiário
esportivo, até então inexistente. E tudo isso no sentido de
servir o gosto sensacionalista do público que começava a
despertar...17

Pode-se, lendo-se os textos de jornalistas nos anos 50, fazer


uma reconstituição do jornalismo do início do século, ainda
fortemente influenciado pela primeira fase. Aníbal Fernandes e
Gilberto Amado deixam importantes informações sobre isso.
Ainda na província Fernandes, numa conferência pronunciada em
Campina Grande/PB em 1953, se refere ao “longínquo 1914”,
quando entrou para a redação do Diário de Pernambuco. Na
passagem abaixo fica clara uma característica da imprensa
pernambucana do período rememorado:

A polêmica sempre fora, aliás, do gosto do jornalismo


pernambucano: e terríveis foram as discussões, em que se
empenharam José Maria de Albuquerque Melo, Mário
Rodrigues, Baltazar Pereira, Gonçalves Maia e outros. Dir-
se-ia que a polêmica era a nota dominante do jornalismo
pernambucano. Nessa época, a imprensa do Recife era

difundidas pelo Diário Oficial sobre o assunto. Me refiro à polêmica entre


Rui Barbosa e Ernesto C. Ribeiro sobre a redação do código civil.
17Sintoma desse despertar pode-se apontar o espaço “queixas do povo”,
inserida no Jornal do Brasil, por volta de 1900, que atraía o interesse de
camadas simples da população, já que 1º) eram publicadas gratuitamente;
2º) não era necessário saber escrever, já que os interessados podiam
queixar-se pssoalmente...(Silva, 1988:50).

518
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

muito mais de opinião do que de informação. Grande


polemista fora Franklin Távora, sustentando na “Verdade”
a campanha contra D. Vital. Parece até que o nosso
Franklin melhor se movimentava no debate das idéias do
que mesmo no romance. (Fernandes, 1982: 146).

A oscilação entre opinião e informação vai pender para o


lado da informação com o advento do telégrafo. Como a opinião
varia de realidade histórica para realidade histórica e a notícia
internacional tem mais possibilidade de se veicular universalmente,
fica claro que as notícias ganharam mais força a partir de então,
ganhando em volume, como afirma Mcluhan abaixo:

Em 1848, o Chefe Geral dos Correios escreveu, em seu


relatório, que os jornais “sempre têm sido considerados de
primordial importância para o público, como o melhor
meio de disseminar a inteligência no povo, e por isso são
onerados com as mais baixas tarifas possíveis, de modo a
propiciar o aumento de sua circulação”. O telégrafo logo
enfraqueceu esta estrutura centro-margem e, o que é mais
importante, tirou muito da fôrça representada pelas
opiniões editoriais, intensificando o volume das notícias. As
notícias superaram claramente os pontos de vista nas
modelagens de atitudes públicas, embora poucos exemplos
desta mudança sejam tão notáveis como o súbito
agigantamento da imagem de Florence Nightingale no
mundo britânico... tôdas as pessoas letradas, portanto,
sentem o desejo de ver estendidas às “regiões mais
atrasadas” e às mentalidades menos letradas os benefícios
das opiniões iluminadas — e dentro de um padrão
horizontal, uniforme e homogêneo. O telégrafo acabou
com essa esperança. Descentralizou o mundo do jornal de
maneira tão completa que as visões nacionais uniformes se
tornaram impossíveis, mesmo antes da Guerra Civil.
Conseqüência talvez de maior importância, o telégrafo, na
América, atraiu os talentos literários mais para o jornalista
do que para o livro. Pöe, Twain e Hemingway são exemplos
de escritores que não podiam encontrar nem experiência
nem saída, a não ser no jornal. Em contraposição, na

519
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

Europa, os numerosos e pequenos grupos nacionais


estavam organizados num mosaico descontínuo que o
telégrafo não fêz senão intensificar. O resultado foi que, na
Europa, o telégrafo reforçou a posição do livro e obrigou
mesmo a imprensa a assumir um caráter literário. (
Mcluhan, 1969: 288).

A parte final dessa passagem aponta dois caminhos


distintos da imprensa na Europa e nos Estados Unidos. O
desenvolvimento do lide, décadas depois, vai fazer prevalecer a
hegemonia jornalística norte-americana.

O telegrama: tecnologia e racionalização

Mas é necessário fazer entrar na história da notícia o papel


do telégrafo,18 que passa a exercer importante influência sobre o
modo de constituição do telegrama, alargando as possibilidades de
difusão de notícias junto com a carta. Esse acontecimento tem
uma data, 25 de maio de 1844, quando F. B. Morse transmitiu a
primeira mensagem em código. Foi o jornal Baltimore Patriot, que
publicou a primeira mensagem telegráfica naquele ano: “Uma hora
- acaba de ser apresentada uma moção na Câmara para ser
discutida em plenário a questão do Oregon. Rejeitada: votos a
favor, 79; votos, contra: 86”19. Isso representava, pois, um novo
sistema de comunicação. Além disso, o telégrafo impunha a

18 É curioso observar como Mcluhan distingue duas etapas na história do

jornalismo com a chegada do telégrafo: “Uma maneira de apreender a


passagem da era mecânica para a elétrica é a de observar a diferença
entre a diagramação de um jornal literário e de um jornal telegráfico,
digamos entre o Times, de Londres, e o Daily Express, ou entre o The New
York Times e o Daily News, de Nova Iorque. É a diferença que vai entre
colunas representando pontos de vista e um mosaico de recortes
desconexos num campo unificado por uma data. Num mosaico de itens
pode haver de tudo – menos o ponto de vista. (Mcluhan, 1969:279).
19 Emery (1965:271).

520
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

necessidade de maior concisão20 por causa das taxas, levando


muitas vezes à eliminação de opiniões e textos de natureza
literária21. Emery refere-se à diferença de atitude no que concerne
à especificidade da notícia:

Com a publicação desse tipo de impresso, nasceu o


incentivo de colhêr e manipular a informação de interesse
do público em geral – a notícia. A notícia, por conseguinte,
tornou-se, como alimento e mercadoria, produzido com a
finalidade de satisfazer a uma procura. É curioso que
houvesse pouco uso da palavra "notícia" até que a invenção
da imprensa tornasse possível o periódico das massas. Até
cerca de 1500, Tydings (novas) era a palavra comum para
descrever relatos de fatos correntes. A palavra "notícia" foi
empregada para diferençar a divulgação casual da
informação mais recente. (Emery, 1965: 16)

É interessante ver como Machado de Assis se utilizava dos


telegramas para escrever suas crônicas.22 Aliás, Corção (1978: 328),
referindo-se às crônicas de Machado de Assis, divide esse gênero
textual em duas espécies: “as crônicas que se submetem aos fatos,
e que pretendem fornecer material contemporâneo à peneira dos

20 Parece que este aspecto passou a caracterizar o estilo jornalístico. Lima

(1960:55), discorrendo sobre esse estilo, afirma o seguinte: “A concisão é


uma conseqüência da precisão. O modo melhor de ser preciso é ser
conciso: empregar o menor número de palavras...”
21 V. Emery (1965:334).
22 Nos escritos intitulados A Semana, vê-se Machado de Assis utilizando
os telegramas para escrever as crônicas: 'O ministério grego pediu
demissão. O Sr. Tricoupis foi encarregado de organizar o novo
ministério, que ficou assim composto: Tricoupis, presidente do conselho
e Ministro da Fazenda...' Basta! Não, não reproduzo este
telegrama..."(Assis, 1979:537). Vê-se como Machado não estava
interessado em dar uma informação meramente. Queria comentá-la. Mas
a matéria-prima, senão a própria notícia, já estava sendo dada. E essa
matéria-prima começou a surgir num certo modo com o concurso do
telegrama.

521
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

historiadores; de outro lado, teríamos aquelas crônicas que se


servem dos fatos para superá-los, ou que tomam os fatos do
tempo como pretextos para as divagações que escapam à ordem
dos tempos”.

Para Corção, Machado se encontra na segunda definição.


Ele recebe os telegramas como informações ou fatos transmitidos
e sobre eles divaga, transformando-os. Mas é claro que o
surgimento ou transformação dos gêneros não se pode atribuir
unicamente a sua manifestação lingüística absoluta. Há um
contexto histórico favorável, que pode ser social, tecnológico e
cultural.

Percebe-se, assim, a proximidade entre o telegrama —


enviado de longe, que apresenta bem a objetividade — e a notícia,
no tocante a sua estrutura interna, evitando-se certas construções
lingüísticas próprias, por exemplo, dos textos opinativos. Nesse
sentido, “João do Rio não se satisfaz com a notícia imediata, o
telegrama esqueleticamente informativo. Lança-se na
reportagem”23 (Medina, 1988: 62).

Ainda, na primeira metade do século XX, lê-se nos jornais


pernambucanos o “serviço telegráfico”, alguns inclusive com
tradutores de telegramas estrangeiros24. Aí parece ser o «telegrama»
uma primeira forma da notícia moderna e «notícia» parece ter uma
designação mais ampla.

23 É importante considerar o que diz Gilberto Freyre (1990:254) sobre o


papel de intelectuais da época para a história língua escrita: “Na época,
porém, João do Rio quase soçobrou sob a acusação de escrever
afrancesado; de nem sempre seguir os mestres da língua; de preferir aos
assuntos nobres os efêmeros. Para a época, foi ele um revolucionário,
embora já em Joaquim Nabuco e Aluísio Azevedo –– que foram homens
cosmopolitas e apegados à Província –– se notasse a tendência para se
libertarem do purismo lusíada, adotando de ingleses e franceses modos
de dizer atrevidamente novos....”.
24 Nascimento (1969).

522
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

Terceira fase

Esta fase, que embora se delineie pelos anos 20, começa ter
seu perfil definido pelos anos 30, coincidentemente no período
em que a Revolução acontece e o rádio vive sua “idade de ouro”.
Mas, como destaquei anteriormente, do ponto de vista dos
gêneros textuais, a influência do rádio e da concepção do lide
sobre a organização textual da notícia vai contribuir para a sua
caracterização entre 1950/60, respectivamente.

A influência do rádio

Não se pode deixar de estabelecer uma relação entre o


jornal e o rádio para entender o próprio desenvolvimento dos
textos por eles veiculados. Dessa forma, Medina (1988: 52-53)
aponta a influência do rádio para a constituição e prevalência do
gênero estudado nos jornais:

As transformações vividas pelo Rio de Janeiro na


virada do século e, a seguir, o impacto de uma Guerra
Mundial e invenção do rádio vieram abrir espaço para um
novo conteúdo jornalístico atual, universal e com
significação imediatamente referida a uma massa em
formação. A pressa em ficar sabendo o que ocorre em todo
o país, no mundo, começa a tomar corpo e cria um universo
de leitores até então inexistentes. A notícia empurra a
opinião de grande parte das páginas do jornal, a necessidade
de a cada dia conseguir levantar um novo mar de novidades,
via telegrama, vai montar a manifestação-núcleo do jornal-
notícia.

No início, o rádio, realizado pelo sonoro em que a voz é


seu diferencial, teve de se diferenciar do teatro, por um lado,
abandonando a memorização e, por outro, teve de se distinguir do
jornal, apelando para uma sintaxe mais simples. Mas esse veículo
não pôde fugir da grande influência ainda da cultura do período
marcada pela eloqüência:

523
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

A título de curiosidade, vale pinçar, como exemplo, o rádio


pernambucano onde se fez a primeira transmissão
radiofônica do Brasil em 1919: o 1º locutor do Brasil,
ABÍLIO LEÔNCIO DE CASTRO, ensinava Português em
escolas do Recife. E a 1ª voz feminina da Rádio Club de
Pernambuco, Maria Luiza de Albuquerque Maranhão,
pertencia à professora da Escola Normal que ensinava
didática às normalistas. O mesmo se pode afirmar em
relação a este símbolo do rádio paulista, César Ladeira que
chegou ao microfone quando ainda freqüentava uma
Faculdade de Direito ao tempo em que a Oratória era
matéria curricular. (Maranhão Filho, 1998: 32).

Passada essa fase experimental, acontece o ingresso do


jornalismo no rádio, quando surge o Jornal da Manhã, apresentado
por Roquettte Pinto na Rádio Educadora do Rio de Janeiro. O
apresentador selecionava matérias dos jornais do dia e as lia,
acrescentando comentários e interpretações num tom coloquial. É
uma espécie de submissão do rádio ao que se escrevia no jornal.
De acordo com Silva (1999: 45-46) “...a linguagem do rádio e,
portanto, sua organização sintática, advém da escritura, pois a
linguagem radiofônica nasce das Gazetas e Folhas da década de
30, dos romances distribuídos periodicamente pelos folhetins da
época, que eram lidos no rádio...”

Posteriormente, surge o Jornal Falado, com texto elaborado


para esse fim, com a chegada de profissionais da imprensa às
emissoras.25 Está evidente que o rádio passa a ser um grande
concorrente do jornal e este naturalmente terá de encontrar
formas de acompanhar a dinâmica da linguagem radiofônica.
Seabra assim define o novo momento por que vai passar o texto
jornalístico:

O surgimento do rádio forçou a imprensa escrita a se


modernizar, a adotar o uso de imagens (fotografia e
ilustrações) e a buscar um novo padrão visual que pudesse

25 Maranhão Filho (1998:36).

524
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

agregar ao veículo algo mais que o fato, a notícia, a


informação. As primeiras revistas (magazines) passam a
tratar a informação não apenas como acontecimento, mas
como algo que pode ser interpretado e oferecido ao leitor
num invólucro atraente. (Seabra, 2000: 37).

Na verdade, o rádio começa a mudar o conceito de notícia,


que passou a ser difundida pelo meio sonoro.26 Na medida, pois,
em que o rádio começa a ganhar projeção e autonomia, o texto do
jornal é forçado, por assim dizer, a adaptar-se a essa espécie de
modelo que surge, já que, segundo Seabra (2002: 39), citando
Breguez, o texto do rádio é menor do que o jornalístico de modo
a não cansar o ouvinte. Com isso, ficam dadas as condições para
que o texto da notícia, principalmente, se torne mais curto, mais
objetivo e a pontuação seja regida muito pela entonação.

É a fase que antecede o surgimento da instituição do lide,


que no Brasil passa a ser adotado na década de 50. Essa nova fase
significou mudança de natureza formal, que reflete a passagem de
um jornalismo literário para outro informativo, quando o
paginador é substituído pelo diagramador27 numa mudança de
natureza racional28, por assim dizer.

26 Seabra (2002:37).
27 Para se entender melhor esta alusão, leia-se: "Para transmitir
visualmente a mensagem da página, o artista diagramador conta com
quatro elementos básicos:
a) as letras, agrupadas em palavras, frases e períodos;
b) as imagens, sob forma de fotos ou ilustrações;
c) os brancos da página;
d) os fios tipográficos e vinhetas” (Silva, 1985: 43).
A possibilidade de manipular esses elementos, sobretudo as palavras e a
frase, além dos espaços em branco, somente com o advento da imprensa
se tornou possível.
28 Penso que uma fase intermediária entre a atuação dos dois
profissionais é caracterizada pela entrada da máquina de escrever na

525
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

O lide29

Depois disso, tem-se de considerar o lide, resumo que


aparece na primeira parte da notícia, tal como se desenvolveu nos
Estados Unidos por influência da Segunda Guerra Mundial.
Observe-se que se trata de um procedimento de organização
textual, que estabelece uma ordem para a proposição. O que
predominava antes era a notícia com uma seqüência cronológica
rigorosa, deixando para o fim o mais importante. Com o lide, esse
princípio mudou radicalmente, pois o mais importante passou
para o início do texto, evitando-se a prática de se cortar o final,
justamente onde se encontrava o mais importante. Isso dificultou
de certa forma a manipulação da informação, como foi prática do
nazismo no 3° Reich.30 Nesse sentido, a invenção do lide foi
determinante para estabelecer a especificidade da notícia.

As origens do lide

O lide é produto da telegrafia, que deu o telegrafês. Ele está


diretamente ligado à manchete, que põe em evidência uma espécie
de resumo e remonta aos sumários ou "comunicados em foco" da
época da Guerra Civil americana, quando os repórteres do campo
de batalha, receosos de que seus comunicados não pudessem ser
enviados de forma completa, começaram a pôr o principal aspecto
da informação no primeiro parágrafo. Fica claro que esse
procedimento é o princípio básico da organização do lide. Resta,

redação do Jornal do Brasil a partir de 1912. V. Sodré (1999:346). Além


disso, é importante destacar que, de acordo com Mcluhan (1969:290-7), a
máquina de escrever favoreceu a reprodução dos acentos orais, além do
efeito na uniformização da pronúncia e da gramática e da geração de um
novo gênero textual: o memorando.
29 Segundo Lage (1999), "O lead é o primeiro parágrafo da notícia em
jornalismo impresso, embora possa haver outros leads.... Em sua forma
clássica, e impressa, é uma proposição completa no sentido aristotélico;...
O lead, na síntese acadêmica de Laswell, informa quem fez o que, a quem,
quando, onde, como, por que e para quê...” (Lage, 1999:26-7).
30 Strassner (1997:50-51)

526
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

então, uma palavra sobre a manchete, parte da notícia moderna. É


importante compreender que o telegrafês31 estabeleceu uma
característica da língua da imprensa, isto é, o estilo simplificado,
cuja manifestação mais evidente é a manchete32:

...O telégrafo viria apartar novamente a linguagem da


palavra imprensa e começou a produzir estranhos ruídos
chamados manchetês, jornalês, telegrafês — fenômenos
que ainda hoje causam espécie à comunidade literária, com
seus maneirismos de tom único que imitam a uniformidade
tipográfica33.

No dia 10 de maio de 1864 o The New York Times utilizava


esse primitivo sistema de manchetes, como abaixo:

Vitória

"Avante sôbre Richmond"


---------------
Derrota e retirada de Lee confirmadas (Emery, 1965:
334)

Em 16 de abril de 1865, o mesmo jornal dá um passo à


frente em relação a esse estilo, aproximando-o da manchete
moderna:

Washington, sábado, 12 de abril – 12 horas - Andrew


Jonhson foi empossado hoje no cargo de presidente dos

31 “telegrafês”, do inglês telegraphese. Segundo Tesak / Libben (1994:115):

‘Telegraphese is the register that adult native speakers use when writing
telegrams”. O telegrafês , segundo ainda os autores, é um registro
especial com regras especiais.
32 No Brasil, no início do século XX, ainda era comum ‘o

desconhecimento das manchetes e de outros processos, que já são,


entretanto, conhecidos nas imprensas adiantadas do norte da Europa’.
(Sodré, 1999:282).
33 Mcluhan (1969:233).

527
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

Estados Unidos pelo juiz Supremo Chase, às 11


horas...(Emery, 1965: 334).

O lide e suas marcas lingüísticas

Conforme apontei acima, o lide tem sua inspiração mais


remota na manchete. No fundo, a notícia moderna é resultado da
combinação dos efeitos do telégrafo e do impresso. Com a
separação inevitável entre o impresso e o corpo, crescem as
possibilidades de racionalização da produção textual. Em outras
palavras, essa escrita não vai evidentemente ser a mesma que a
manual34 e pode, além disso, exercer influência sobre ela, mesmo
que nesta a proximidade com a experiência corporal35 seja
evidente. Por que na Antiguidade e na Idade Média a associação
entre leitura e voz era tão acentuada, exatamente numa época em
que a imprensa era desconhecida no mundo ocidental? Essa
associação revelava nitidamente a proximidade entre o manuscrito
e o corpo, o que outras tecnologias vão separar. Com o advento

34 Só para se ter uma idéia dessa especificidade do impresso, leia-se:


“Entretítulos de matéria constam de uma ou duas palavras e, na maioria
dos jornais, são previstos para ocupar uma linha de composição. O
primeiro lead de uma matéria tem, no padrão mais comum, tamanho que
corresponde a algo entre três e cinco linhas datilografadas, e, lauda de 70
toques de largura; o segundo parágrafo, ou sublead, acompanha
aproximadamente o primeiro em tamanho." (Lage, 1999:38). Essa
passagem mostra como o escrito impresso difere do escrito manual,
muito mais espontâneo, a começar pela caligrafia, marca da
individualidade.
35 Quando se lêem os trabalhos sobre escrita manual, percebe-se a
importância das partes do corpo na produção do manuscrito. Têm papel
importante os dedos, com todas as falanges, o punho, o braço, o tronco,
a cabeça. Em resumo, todo o corpo participa. Note-se como nesse
aspecto a escritura manual aproxima-se da oralidade, em que a boca
emite os sons, enquanto os gestos acompanham a fala. V., para a
produção manuscrita, Condemarín/Chadwick (1986) e
Ajuriaguerra/Colaboradores (1979).

528
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

da imprensa, cresce o papel do olho; a voz emudece; o texto passa


a ser um objeto externo, observável e manipulável, gerando maior
possibilidade de contemplação e, por conseguinte, uniformização.

Segundo lê-se em Lage (1999), a elaboração do lide


pressupõe uma análise dos componentes da proposição em que os
sintagmas são observados com um certo rigor até. Disso advêm
regras, tais como: "não se começa pelo verbo"; "começa-se pelo
sintagma nominal ou circunstancial mais importante", entre
outras. Essas preocupações exerceram outros efeitos, violando
construções gramaticais rígidas, como mostra Lage:

A necessidade de ordenar a frase a partir de notação mais


importante é tão marcante que levou, na prática, à
subversão de regras sintáticas aplicadas a verbos de regência
indireta, como assistir (O espetáculo foi assistido...), o que
seria gramaticalmente inaceitável (Lage, 1999: 32).

Noutra passagem, o autor alude à anteposição de um


sintagma circunstancial, fato que provoca construções causativas,
como descrito a seguir:

Mas nem sempre isto é possível, sem tornar o texto


rebarbativo. Por isso, é comum substituir a preposição que
estabelece a relação circunstancial por um verbo relacional, como
causou, provocou, resultou:

“O emperramento de uma comporta na barragem de Mato


Seco provocou a inundação de 1200 hectares de plantações
no município pernambucano de Exu, de anteontem para
ontem.” (Lage, 1999: 33).

Esses são alguns dos resultados produzidos pela técnica do


lide, que interfere diretamente em certas estruturas depois de
1945. É possível que alguns desses usos tenham de certa forma
alguma manifestação na língua falada, o que possibilitou a sua
experimentação (penso no caso, por exemplo, da voz passiva de
assistir a). A maioria é provável que tenha surgido como produto
do impresso.

529
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

Mas em 1971, no início da quarta fase da história do


jornalismo brasileiro, Juarez Bahia já detectava algo importante
sobre o lide:

As clássicas perguntas do “lead” — quê? quem? quando?


onde? como/ por quê? — já não constituem o segredo da
arte de informar...

O texto em jornal tende cada vez mais a ser elaborado sem


concessões exageradas à fórmula factual clássica, deve
desenvolver a sustentação de interêsse, a fluência e
acessibilidade do estilo, a lógica, a ponderação e a
objetividade, de modo a oferecer pormenores sem afetação,
rebuscamento ou prolixidade... (Bahia, 1971: 67)

A chegada do lide ao Brasil

Na primeira metade dos anos 50, o Diário Carioca passa por


importantes modificações editoriais, que vão influenciar
significativamente a maneira de escrever notícias. Nessa época o
estilo tinha que ser rebuscado. Duas influências marcantes
americanas entram em cena: o copy-desk e style-book. Vê-se, pois, o
interesse com uma certa uniformização da escrita jornalística no
Brasil.36 Os antigos jornalistas passam a ser substituídos por
novos, que incorporavam a nova mentalidade, ou seja, a de
introduzir o lide, recorrendo à objetividade e deixando de lado a
preferência pelo comentário.

O relato de Pompeu de Souza é significativo, já que ele foi


um precursor nessas mudanças. Dizia-se à época: “O Pompeu
acabou com o artigo, não existe mais O Brasil, A Argentina, é
Brasil, Argentina e que ele suprimiu os verbos, substituindo-os

36 No início do século XX, o noticiário dos jornais brasileiros “era

redigido de forma difícil, empolada. O jornalismo feito ainda por


literatos é confundido com literatura, e no pior sentido. (Sodré,
1999:283).

530
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

pelo ponto-e-vírgula e estava criando uma nova língua, não era


mais a língua portuguesa.” (Souza, 1992: 26).

A objetividade introduzida quebra o estilo pomposo. Os


títulos até então eram muito solenes, marcados pela influência da
eloqüência. Um título como “O Senhor General... demite-se do
Ministério da Guerra e é nomeado para substituição o Senhor
General Pedro Aurélio de Góis Monteiro” foi profundamente
modificado para o seguinte: “Sai Dutra, entra Góis”37.

Parte II: As concepções de notícia38

Percorrendo um pouco a história da palavra, encontra-se o


termo notitia39 do latim, mas com significado diferente do que se
entende hoje. No século XIII, conforme lê-se no texto Noticia de
torto, tem-se o termo empregado no sentido jurídico, indicando um
procedimento de elaboração textual, que antecede a redação do
documento oficial, que se daria em latim. É nesse sentido uma

37 Souza (1992:28).
38 Utilizo notícia segundo Lage (1999:16): "o relato de uma série de fatos a

partir do aspecto mais importante ou interessante". Não bastasse a


dinâmica do conceito de notícia, que muda ao longo do tempo, a sua
conceituação é de difícil apreensão. Ortriwiano (1985:91), depois de
tentar conceituá-la, diz que ela pode se apresentar: a) em sua forma pura,
limitada ao relato simples do fato em sua essência; b) em sua forma
ampliada, incluindo-se aí reportagens e comentários, tanto interpretativos
como opinativos.
39 Segundo o dicionário de Morais Silva (ed. Fac-similar da de 1813),

notícia quer dizer: Informação, conhecimento: nova (Silva,1922)

531
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

espécie de rascunho40. Em Portugal, quanto a sua utilização, pelo


menos para nomes de periódicos, o termo notícia só vai aparecer
em 1865 com o Diário de Notícias, embora Silva Túlio tenha
declarado ter inventado a palavra noticiário em 1851, quando
redigia A Semana41. Antes desse período, o termo gazeta fora mais
comum, do italiano gazzeta, no século XVI. Para efeito de
comparação com o que acontecia em Portugal, é interessante a
afirmação de Rodrigues: “Em Portugal, entretanto, ao lermos O
Diário de Notícias, no seu primeiro número, em 1865, percebemos
que o noticiário se recolhe na 'chronica' e que essa mesma ou
outra matéria com assinatura no final do rodapé, identifica o
folhetim, com que nascerá o moderno colunismo.”
(Rodrigues,1998: 88).

Essa passagem mostra o caráter da notícia antes do seu


desenvolvimento com a grande influência do telégrafo e
posteriormente com a invenção do lide. Mostra, por outro lado,
que da crônica nasce o colunismo social naquele país, mas parece
que no Brasil ela se especializa em gênero literário42 como produto

40 "Quanto ao valor ou à importância do documento, podemos distinguir

aqueles que apenas testemunham um fato jurídico sucedido ou ato


realizado, antes da sua documentação. É o que se denomina Notícia. Se o
documento, que registrou o fato, se constitui num testemunho autêntico
do mesmo fato, servindo como título e fundamento das conseqüências
que dele possam derivar, recebe o nome de Carta. Os documentos do 1°
tipo, as notícias, são chamados "documentos dispositivos". Na Idade
Média portuguesa a distinção era vigente: "a Notícia de torto", todos
conhecem, é um documento de princípios do século XIII, em redação
provisória, encontrado no mosteiro de Vairão, em que alguém se queixa
de espoliações e violência de que foi vítima a sua propriedade. (Spina,
1977:53).
41Tengarrinha (1968:189). Também no século XVII a palavra notícia, para

se referir a novas, parece já existir, mas curiosamente nenhuma folha a


utiliza como título.
42 Já sobre a natureza do folhetim no Brasil, assim se expressa Sá

(1998:8): ‘No tempo de Paulo Barreto (1881-1921), por exemplo, era


apenas uma seção quase que informativa, um rodapé onde eram
publicados pequenos contos, pequenos artigos, ensaios breves, poemas

532
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

dos jornais. Só com a nítida separação entre jornalismo e literatura


os dois gêneros se separam. Quero discutir, a seguir, a separação
do gênero notícia de outros gêneros, o que lhe garante autonomia,
paralelamente a sua transformação, até chegar ao que era no início
da década de 1960.

Da opinião à informação

Ao longo da história, encontramos duas tendências na


história do jornalismo, quais sejam, a informação e a opinião. Para
alguns autores, no início teria sido a opinião que prevalecia, mas
devido à censura, a informação começa a ganhar projeção. Para
alguns autores, o jornal começou como veículo de transmissão de
opinião. Para Beltrão (1980: 33-37), por exemplo, as folhas
volantes, que antecederam os jornais modernos, eram opinativas.
Somente depois com a influência e controle da Igreja passaram a
ser informativas. Lombardi confirma essa posição:

O jornal tinha, portanto, se transformado profundamente


não era mais unicamente uma folha de apelos dirigidos para
a consciência em rápido amadurecimento, não apenas
espaço para discussões literárias reservadas a círculos
culturais restritos, mas sim instrumento de divulgação de
novos conhecimentos através da notícia que chegava à
redação com o auxílio dos novos meios de comunicação
(Lombardi, 1987: 167-168).

Para outros autores, entretanto, parece que o jornal teve seu


início como imprensa de informação43, evoluindo para a de

em prosa, tudo, enfim, que pudesse informar os leitores sobre os


acontecimentos daquele dia ou daquela semana, recebendo o nome de
folhetim”.
43Segundo Sodré (199950), o primeiro jornal informativo a aparecer no
Brasil foi o Diário do Rio do Janeiro, de 1821: “...Inseria informaçôes
particulares e anúncios: aquelas tratavam de furtos, assassínios,
demandas, reclamações, divertimentos, espetáculos, observaçôes
meteorológicas, marés, correios. Estes tratavam de escravos fugidos,

533
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

opinião, como lê-se a seguir: “...assim que a imprensa de


informação evoluiu para uma imprensa de opinião e que um
jornalismo literário passou a concorrer com a mera redação de
avisos...” Os jornais passaram de meras instituições publicadoras
de notícias para serem porta-vozes da opinião pública, cheios da
luta política... (Habermas: 1998: 214).

Mas não se pode esquecer que no passado os gêneros


jornalísticos se misturavam, não se estabelecendo uma separação
nítida entre a informação e a opinião.44 Segundo Lage (1979: 33):
“Artesanal, a notícia incorporava, de início (e incorpora ainda, nos
testemunhos), crenças e perspectivas individuais. Impessoal,
tende, nos meios de comunicação social de agora, a produzir-se de
modo que aparentemente eliminam-se crenças e perspectivas...”

A concepção de notícia, tal como a entendemos até a


terceira fase proposta por Motta (2002), delineia claramente esse
gênero como sendo paulatinamente trabalhado para a produção
da informação. Não se deve também esquecer que, com a
transformação capitalista da informação em objeto de venda, o
texto noticioso passou a incorporar procedimentos e técnicas do
marketing, como mostra Lage (1979: 33):

As notícias eram, até à Revolução Industrial e suas


conseqüências para a indústria jornalística, relatos de
acontecimentos importantes — para o comércio, os meios
políticos, as manufaturas. Muito rapidamente, com a conquista do
grande público, passaram a ser artigos de consumo, sujeitos a
acabamento padronizado, embalados conforme as técnicas de
marketing.

leilões,compras, vendas, achados, aluguéis e, desde novembro de 1821,


preços de gêneros.”
44 Note-se com a opinião do autor que, apesar da objetividade que

adquiriu, a notícia ainda guarda marcas da subjetividade, porque, para


que os fatos ganhem maior credibilidade, se utiliza o discurso de outrem,
abrindo-se espaço conseqüentemente para a opinião pessoal.

534
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

O percurso de constituição do gênero notícia leva a uma


especialização ou racionalização que procura separar nitidamente
esses dois tipos de discurso. Esse percurso vai se traduzir na
escolha das formas lingüísticas. Para se entender a direção da
especialização que o gênero estudado tomou, devem ser
examinadas três perspectivas, a saber: o conteúdo, a técnica e a
forma.

Quanto ao conteúdo

Em plena era do lide, na década de 1960, a notícia tinha


passado por uma mudança de concepção. De acordo com Bradley
(1966: 93-100), o primeiro jornal americano, o Publick Ocurrencies,
de 1690, apresentava uma série de boatos como relatos dos
últimos acontecimentos. Mesmo depois, o interesse era orientar e
influenciar, enquanto as notícias eram um ingrediente
acrescentado. Na década de 60 do século XIX, a própria aparência
dos jornais era bastante diferente daquela dos anos 60 do século
XX. “A primeira página raramente ostentava grandes títulos mas quase
sempre continha anúncios”, segundo esse autor, enquanto se
transcreviam textos de outros jornais ou se publicavam cartas.
Ainda, acrescenta Bradley, havia muitos comunicados do
Governo, além de anúncios de morte e casamento, que hoje são
considerados notícias45.

Voltando ao Brasil, no Diário de Pernambuco, no seu primeiro


número, percebe-se que notícia equivale a anúncio e o anúncio de fugas
de escravos, por exemplo, é o gérmen da notícia policial de hoje,
porque a informação não tinha o objetivo de satisfazer uma
necessidade do público, mas oferecer uma recompensa. Esse
jornal é sabidamente na sua origem um diário de informações do
comércio. Por isso, tudo que aparece ali tem objetivo comercial,
como se lê na introdução do primeiro número: “Faltando nesta

45 Bradley faz também uma ressalva importante sobre o que estamos

apresentando:...”. Não é também exato dizer que não havia jornais que
pensassem da notícia o que pensamos hoje e a publicassem, pois
esforços nesse sentido começaram desde 1811...”(Bradley, 1966:95).

535
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

cidade assaz populosa um Diário de annuncios, por meio do qual


se facilitassem as transacções, e se communicassem ao público
notícias, que a cada um...” (Diário de Pernambuco, nº1,
07/11/1825).

Quanto à técnica

A notícia é sabidamente uma narrativa, mas atualmente o


objetivo do jornalista não é simplesmente narrar o acontecido,
mas expô-lo, segundo Lage (1999:16). Isso pressupõe a seleção e a
ordenação dos eventos, principalmente. É aí que reside a sua nova
técnica. É por isso que a notícia transcrita abaixo, aparecida na
Aurora Pernambucana em 182146, tem, contrastando-se os aspectos
acima destacados, uma caracterização bem diferente das notícias
de hoje:

Às oito e meia horas da noite, quando o Governador e


Capitão-General desta Província se ia recolhendo a pé à sua casa,
acompanhado de dois de seus amigos, entre os quais caminhava,
ao chegar ao extremo da ponte da Boa Vista, e entrando na rua
chamada o Aterro, um assassino disparou sobre êle, à queima-
roupa, um tiro de bacamarte, carregado de balas e metralha. S. Exª
ficou ferido de uma bala no lado esquerdo do corpo, e de
metralha por tôda a largura do costado. 47

No seguinte anúncio de 1848, vê-se ainda a permanência da


técnica utilizada:

Mais hum desgraçado acontecimento hontem. Pela manhã


um carro carregado de lenha, tendo-se espantado o boi,
passou por sima de um omem; e matou instantaneamente; é
falta do condutor que mete no carro um boi não manso: é

46Notícia informando o atentado sofrido pelo Governador Luiz do


Rego.
47 Texto transcrito de Nascimento (1967:23).

536
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

falta de policia, que consente carregar dentro da sidade sem


que o carreiro marxe em frente do boi para conduzil-o48.

Mas vê-se, com o New York Herald em 1835, que estava


emergindo um novo conceito de notícia, conforme destaca
Bradley (1966: 92-100):

James Gordon Bennett começa a publicar o seu famoso


New York Herald a 6 de maio de 1835, trazendo com êle um
novo conceito de notícia. Atribui-se em geral a Gordon
Bennett o mérito de haver “inventado” a notícia tal como a
conhecemos, porque começou a dar informações aos
leitores em muitas áreas que até então não eram
consideradas capazes de interessar para a publicação em
jornal...

Novos progressos nos transportes e nas comunicações


tornaram possível a transmissão rápida das notícias e cada
inovação era utilizada pelos jornais. Em 1849, foi aberto
um escritório ....a sede da Associated Press.

A notícia havia se tornado uma grande coisa... Os jornais


começaram a ser realmente veículos de notícias, como seu
nome em inglês implicava, e não transmissores de opiniões
pessoais ou políticas com algumas notícias esparsas.

Quanto à forma

Com estilo jornalístico quero designar a caracterização da


língua do jornal. Segundo Amaral (1997), ele se caracteriza por ser
claro, direto, conciso, fácil e acessível a qualquer leitor49. Para se

48Texto publicado em O Nazareno, de 27/03/1848 e coletado por


Quintas (1953:15).
49 Carvalho / Martins (1990:42-43) enfatizam a natureza do estilo

jornalístico e contam o caso de Ernest Hemingway e Graciliano Ramos,


que aprenderam a escrever redigindo notícias para os jornais, criando seu
próprio estilo.

537
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

alcançar uma boa redação no jornal, se recomendam frases breves,


palavras curtas, verbos de ação na ativa. Segundo ainda o autor, os
períodos longos devem ser evitados a todo custo. O sinal do
ponto é para o uso jornalístico de grande importância. O estilo
direto aludido se traduz pela construção de frases na ordem
sujeito, verbo, complemento. Nas redações dos jornais cabe ao
setor denominado de copy-desk colocar a notícia dentro de uma
forma e separar a informação da opinião50. Amaral (1997: 45)
refere-se a Joseph Folliet, que em 1961 defendia a separação entre
opinião e informação, apelando para os instrumentos lingüísticos
dessa separação: “o menos possível de adjetivos e advérbios que
seriam, já, comentários. O fato ou o acontecimento deve falar
sozinho. O leitor que o julgue”51.

Conclusão

Finalizando, fica a vontade de se questionar que tipo de


concepção de escrito se introduziu com a imprensa no século XV
e, posteriormente, com o telégrafo. Será que não se deve fazer
nenhuma diferença entre o manuscrito, que até o surgimento da
imprensa de Gutenberg era a única forma de se escrever, e os
produtos da era mecânica e elétrica? Parece que os estudiosos das
diferenças/semelhanças entre oral-escrito não levam em
consideração as diferenças básicas produzidas pelos
condicionantes manual, mecânico e elétrico. Como acabei de
mostrar, os resultados produzidos pelo telégrafo e a mudança do
caráter da pontuação produzida com o impresso apontam para
especificidades que, embora possam ser produzidas
posteriormente pela escrita manual, trazem consigo algo que tem a
ver com a natureza de cada um dos suportes.

Sob outro ponto de vista, a modificação dos gêneros


acontece sob forma de reorganização, na medida em que os

50 Caso pitoresco, sobre a rigidez na separação entre informação e


opinião, é relatado por Noblat (2002:89-90), ocorrido na redação do
Jornal do Comércio, do Recife, nos anos 60.
51 Amaral (1977:45).

538
Para a História do Português Brasileiro. Volume V 2007.

nomes permanecem, mas designando gêneros específicos.


Característico quanto a isso é o caso do anúncio52. Com o
desenvolvimento das relações capitalistas na imprensa, cresce a
influência da publicidade, que já na segunda metade do século
XIX adquire um caráter diferente. Também com crescimento da
alfabetização e da necessidade da informação, o anúncio passa a
designar o objeto de publicidade e o anúncio de fuga de escravo
passa a se transformar na notícia policial, um gênero que evidencia
sobretudo a importância dos jornais, sendo posteriormente
estimulado pela chegada do rádio. Há ainda que destacar o caso
do aviso, que, nas primeiras folhas da Europa, eram um tipo de
anúncio, aparecendo, inclusive, na primeira metade do século XIX
brasileiro, na seção correspondente. Posteriormente, perde essa
natureza, transformando-se no que é hoje.

Em síntese, a história da notícia desemboca na criação de


um modelo, o lide. Somente na década de 70 do século passado
esse modelo vai perder a sua rigidez, embora ainda hoje se
mantenha vivo. O que procurei mostrar foi o caminho percorrido
para a conquista desse modelo. Com isso, estou propondo uma
construção da história da língua na perspectiva dos gêneros
textuais, diferente, pois, da concepção vigente nos estudos
históricos, que, continuando a tradição começada com os
neogramáticos, a entende meramente como história das formas
gramaticais.

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542
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Registros rurais de tupinismos no Atlas Lingüístico do


Paraná e sua relação com a história social
paranaense
por
Vanderci de Andrade Aguilera
Universidade Estadual de Londrina/CNPq
e
Lídia Albino
Universidade Estadual de Londrina
e
Celciane Alves Vasconcelos
Universidade Estadual de Londrina/CNPq

1 - Introdução

Neste artigo, procuramos demonstrar, na perspectiva da história social


do Paraná, a concentração e expansão de alguns itens lexicais de base tupi
registrados nas cartas lexicais do Atlas Lingüístico do Paraná — ALPR —
(Aguilera, 1994). Selecionamos aqueles que se distribuem pelo espaço do
Paraná Tradicional, ou seja, o que abrange a região colonizada entre os séculos
XVII a XIX, segundo Cardoso e Westphalen (1986), e que no ALPR estão
assim representados: i) no século XVII – pontos 45 (Antonina), 46
(Guaraqueçaba), 54 (Curitiba) e 55 (Paranaguá); ii) no século XVIII — pontos
31 (Tibagi), 36 (Castro), 43 (Ponta Grossa), 44 (Rio Branco do Sul), 53

543
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

(Palmeira), 61 (União da Vitória), 62 (São Mateus do Sul) e 63 (Lapa); e iii) no


século XIX - pontos 6 (Jacarezinho), 12 (Jataizinho), 17 (São Jerônimo da
Serra), 18 (Ibaiti), 19 (Siqueira Campos), 20 (São José da Boa Vista), 25
(Ortigueira), 26 (Jaguariaíva), 37 (Cerro Azul), 38 (Adrianópolis), 41 (Pitanga),
42 (Prudentópolis), 50 (Laranjeiras do Sul), 51 (Guarapuava), 52 (Irati), 58
(Pato Branco), 59 (Mangueirinha), 60 (Palmas) e 64 (Rio Negro).

Essa divisão cronológica corresponde a três grandes movimentos sócio-


histórico-econômicos do Paraná. O primeiro estende-se da primeira metade do
século XVII até início do XVIII, marcado pela ocupação do litoral e Planalto
de Curitiba pelos vicentistas que adentraram o Paraná em busca de ouro e de
índios para a preação; o segundo segue até meados do século XIX,
caracterizado pelo movimento dos tropeiros que faziam o percurso Viamão-RS
a Sorocaba-SP, época em que o já escasso ouro das minas paranaenses leva os
moradores à fixação no campo e à criação de gado para abastecer as minas
gerais então em franco desenvolvimento; o terceiro, mostra a expansão rumo
ao centro-oeste, com a presença crescente dos imigrantes europeus,
principalmente italianos, alemães, poloneses e ucranianos; e ao norte e nordeste
com a chegada de famílias de fazendeiros mineiros dedicados à cafeicultura.

Convém lembrar que, neste texto, as expressões tupinismo, palavras do


tupi ou de base tupi não serão usadas inadvertidamente. Não ignoramos a fluidez
e a inadequação dessa nomenclatura — a de chamar de tupinismo, de forma mais
ou menos indiscriminada, a todo item lexical com características próximas de
nomes tupis. Nós o fazemos, porém, seguindo a denominação constante dos
dicionários da Língua Portuguesa mais conhecidos no Brasil (Caldas Aulete 1964;
Nascentes, 1943; Ferreira, 1986; Cunha, 1982 e 1994) e das obras de caráter
lingüístico-descritivo (Silva Neto, 1970; Melo, 1981; Houaiss, 1985).

Os casos aqui analisados, conforme explicitamos acima, referem-se aos


dados do Atlas Lingüístico do Paraná (Aguilera, 1994), elaborado a partir de
pesquisa direta in loco, entre os anos de 1985 a 1990, junto a comunidades rurais
distribuídas por todas as regiões do Estado. Um levantamento, mesmo superficial,
nas 92 cartas lexicais do ALPR permite identificar, em 40% delas, pelo menos um
item lexical de origem tupi. Esses nomes de base tupi estão cartografados, ou
registrados nas notas das cartas, ou ainda transcritos das entrevistas orais, e
recobrem, em sua maioria, conceitos de referentes da flora e da fauna, como é
544
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

comum nas demais regiões do Brasil, confirmando o que estabeleceram Amaral


(1920: 27-33); Nascentes (1922: 181); Marroquim (1996: 113-118); Melo (1983:
149), entre outros.

2 - A distribuição espacial de alguns tupinismos no Paraná

A freqüência e a distribuição dos tupinismos pelo território paranaense,


não sendo uniformes, estão relacionadas a fatores histórico-diatópicos,
diacrônicos e diastráticos. A diatopia recobre, pois, a história externa ou social
da língua, e as cartas geolingüísticas em estudo revelam que a presença mais
evidente de tupinismos no Paraná está diretamente relacionada à ocupação do
litoral e do Planalto de Curitiba. Este fator não atua isoladamente, mas se
intersecciona com o diacrônico, pois, localidades do litoral e do sul paranaenses
são as mais antigas do Estado, colonizadas nos séculos XVII e XVIII.

Em trabalho recente, Aguilera (2002), discorrendo sobre a concentração


e a expansão de alguns itens lexicais de base tupi registrados nas cartas do
ALPR e associando essa distribuição diatópica à história social do Paraná,
arrolou mais de meia centena deles. A autora fez, inicialmente, uma análise
descritiva das lexias nambeva e bapuíra/ pipuíra /picuíra (variedades de galinha), e
nhapacamim e nhapacaré (espécies de gavião), que serão retomadas a seguir.

Essas quatro lexias foram registradas apenas nos pontos do litoral, por
onde entraram os primeiros vicentistas (paulistas procedentes da então
Capitania de São Vicente), no final da primeira metade do século XVII:
Guaraqueçaba (nambeva), Antonina (nhapacamim e nhapacaré), Paranaguá e
Guaratuba (nambeva e bapuíra/ pipuíra/picuíra).

A lexia nambeva encontra-se registrada nas Notas da p. 138 e na carta 58,


p. 139 do ALPR, como resposta à questão sobre ‘a galinha que tem as pernas
curtas’. Não está dicionarizada em nenhum dos autores consultados (Caldas
Aulete, 1964; Cunha, 1982 e 1994; Ferreira, 1986; Nascentes, 1943), seja como
nambeva, seja com as possíveis variantes inambeva, inhambeva ou arambeva. Por
analogia com outras palavras do tupi, podemos ligá-la a inambu, ave, cujo
registro em Cunha (1994) data de 1574.

545
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Quanto às lexias bapuíra/pipuíra/picuíra, foram registradas como nomes


de uma espécie de galinha correspondente à garnisé, ou galisé, galinha de
pequeno porte, mais miúda que as demais. Constam das Notas da carta fonética
162, p. 346, do ALPR. Cunha apresenta o verbete piqüira, do tupi pï’kïra, como
sinônimo de peixe miúdo, datado de 1607; em 1842, consta como cavalo
pequeno, pônei. Tanto a qualidade ‘pequeno’, que se transpôs do peixe para a
ave e posteriormente para o cavalo, como a datação, sugerem tratar-se de
verbete inserido na fala paranaense, através da importação dos paulistas no
contato com os índios tupis, que os acompanhavam nas incursões pelo interior
do Brasil.

A palavra tupi original, pikira, apresentou na fala dos aloglotas uma


ditongação da vogal alta tônica, pelo contato com a surda velar /k/ dando
origem à forma piqüira, que, por sua vez, foi apreendida e reproduzida com a
assimilação do fonema /k/ à consoante surda inicial /p/ passando à pipuíra e,
desta, com dissimilação e sonorização da consoante surda bilabial (p>b) e
dissimilação da vogal alta posterior para a central (i>a), chegou à forma bapuíra.
Essas mudanças fonéticas que se operam lenta, constante e gradualmente,
sobretudo nas comunidades ágrafas ou pouco letradas, travestem as lexias
originais de tal modo que dificultam, e inviabilizam, não só a recomposição da
forma original como a sua busca em dicionários e glossários.

Nhapacamim e nhapacaré são nomes para variedades ou espécies de gavião,


registradas na carta 51 e nas Notas da p. 124. A primeira está lexicalizada em
Nascentes (1943), Aulete (1964), Ferreira (1986) e Cunha (1982 e 1994), sob os
verbetes japacani e japacanim como de origem tupi yapaca’ni e significando uma
espécie de gavião. Sobre as variantes gráfica e fônica de nhapacamim < japacani <
japacanim, Aguilera (2002: 31-32) comenta:

A mudança fônica da semivogal alta para a consoante palatal j ou nh está


relacionada ao fato de serem homorgânicas, isto é, palatais, o que leva o
ouvinte a reproduzir o y como fonema aproximado da forma original.
Também não é estranho na história interna da língua a alternância das
nasais m e n. Em Ferreira, japacanim é sinônimo de gavião-pega-pinto e
Cunha fixa seu primeiro registro em 1777, o que me leva a pensar na
hipótese de a lexia ser mais antiga, por já existir na linguagem oral tanto
de paranaenses como de paulistas que estiveram em contato com os
546
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

tupis, mas só incorporada posteriormente. Como a fala precede a escrita,


é normal que nem sempre o que existe na fala, principalmente rural,
passe para a literatura escrita. A ocorrência única no corpus indica uma
forma em extinção no Paraná.

Nhapacaré, por sua vez, registrado na fala litorânea paranaense como um


gavião de grande porte, não consta de nenhum dos dicionários pesquisados. A
massa fônica, entretanto, indica pertencer ao quadro de fonemas e de bases
lexicais do tupi seja com o segmento nhapa-, japa- ou yapa seja com a terminação
–caré. Esta terminação parece ter sido acrescida à forma nhapa por associação
fônica com o nome de outra espécie de gavião, porém menor que o nhapacaré, o
caburé, presente na fala de uns poucos informantes do ALPR. Cunha (1982)
traz, também, o verbete cauré, ave da família dos falconídeos, abonado com um
excerto da obra de Raimundo Morais, Os igaraúnas. Romance Amazônico. Costumes
Paraenses, publicada em 1938. Dois problemas se colocam nesta abonação em
relação à nossa pesquisa: um deles é o fato de a lexia constar de uma obra
literária amazônica e não do sul ou do sudeste brasileiro; outra a datação do
verbete, muito posterior em relação à criação do povoado que deu origem à
Antonina, no litoral paranaense. Isto nos leva a indagar: i) se haveria mais
semelhanças que diferenças entre o léxico do tupi do norte e o do tupi do sul
do Brasil; e ii) se a lexia registrada é produtiva na comunidade em questão ou se
trata de uma forma praticamente extinta, retida apenas por aquele informante.

Contrapondo-se a essas quatro lexias que se concentram no litoral,


temos um segundo grupo com nove lexias tupis (e variantes fônicas) que
conseguiram ampliar o seu raio de ação: saindo do litoral, chegaram ao Planalto
de Curitiba e acompanharam o homem na sua caminhada, primeiramente rumo
ao 2º Planalto e logo após seguindo a rota dos tropeiros, já no final do século
XVIII e início do XIX. São elas boitatá/baetatá/baitatá; caburé; curica; guamirim;
incõe/ inconha; jojoca, jejoca; peca/pequinha/guapeca/guapequinha; pinhé e urupê. Dentre
essas, destacamos para comentário a distribuição espacial de
boitatá/baetatá/baitatá e de urupê.

Sobre o mito ou lenda do baetatá no Paraná, Aguilera apresentou uma


comunicação durante o II Storytelling in the Americas, no Canadá, em 2001. O
texto completo foi publicado em 2003 e dele reproduzimos aqui algumas
547
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

considerações. Trata-se de uma lenda bastante disseminada no Estado,


sobretudo nas localidades do Paraná Tradicional que, na fala dos informantes, é
uma visagem em forma de bolas de fogo que aparecem se chocando ou se
‘pechando’ no ar, junto às árvores, principalmente pinheiros. No ALPR
(Aguilera, 1994) não está cartografada a distribuição lexical do boitatá/baetatá.
Para isso, elaborou-se, posteriormente, uma carta especificamente para o
Encontro acima referido. Os dados foram coletados das 130 entrevistas,
integralmente transcritas e digitadas. Compõem um conjunto de 13 volumes do
Atlas Lingüístico do Paraná (corpus), ainda inédito, mas disponibilizado para os
pesquisadores interessados.

A visagem é nomeada baetatá ou baitatá pelos informantes do ALPR, em


maior freqüência nos pontos mais ao sul e sudeste, onde a lenda é mais viva,
chegando muitos a afirmar terem visto o baetatá e sentido os efeitos de
queimaduras nas costas, embora “não tivessem abusado dele”.

Como já nos referimos em vários outros textos, a efetiva ocupação do


solo paranaense teve início no século XVII, pelo litoral, com a chegada dos
primeiros paulistas, e estendeu-se lenta e gradativamente, pelos séculos XVIII e
XIX, em direção ao norte, ao centro e ao sul, com a contribuição de brasileiros
e estrangeiros de várias procedências. Somente na primeira metade do século
XX é que se completou o povoamento das regiões Norte e Oeste.

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Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Mapa 1: Núcleos de povoamento nos séculos XVII, XVIII e XIX.

Fonte: Cardoso & Westphalen (1986), adaptado por Kika Milani.

O baetatá seguiu também a trajetória dos primeiros colonizadores:


concentra-se na região do Paraná Tradicional e rarefaz-se no Paraná Moderno,
conforme se verifica no Mapa 2, em que se apresenta, segundo a crença ou a
crendice de cada um, a distribuição espacial do baitatá no Paraná, conforme
tenha o informante relatado a história e descrito a visagem; ou relatado a
história que se passou com um terceiro; ou, ainda, relatado a experiência
pessoal com o baetatá.

549
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

Mapa 2: Distribuição espacial do baetatá no Paraná

Fonte: Aguilera (2003) elaborado por Kika Milani

Como se pode observar no mapa, a distribuição diatópica do baitatá no


Paraná está, igualmente, associada à história social: povoamentos antigos retêm
com maior vitalidade as lendas e mitos; comunidades modernas, formadas no
século XX, não preservam as narrativas orais que encantavam e amedrontavam
o imaginário dos antepassados. As experiências pessoais, mediante o contato
direto com o baitatá, ainda são bastante significativas se considerarmos o

avanço dos meios de informação e de comunicação nesse Estado nos últimos


40 anos.

550
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

O estudo sobre a lenda do boitatá demonstrou que, na prática, existem


duas formas da visagem: uma, que povoa, ou povoava, o extremo sul brasileiro,
pertencente ao folclore gaúcho, que se materializa numa cobra de fogo,
originária de uma lenda sobre o dilúvio. A outra, presente no Paraná, registrada
como baetatá/baitatá, e materializada em bolas, tochas, faíscas ígneas, vistas à
noite, entre os galhos dos pinheiros, a se ‘pecharem’ ou a se baterem
constantemente, em razão de castigo divino por transgressão a princípios
religiosos impostos pelos jesuítas, como o incesto biológico ou o incesto por
afinidade religiosa (compadre e comadre).

Assumimos, desta forma, que a boitatá e o baetatá são seres distintos no


imaginário popular, diferentes na origem, no aspecto, no habitat e na atuação
junto à natureza e aos homens, principalmente se considerarmos que o Pe. José
de Anchieta, numa de suas cartas, datada de 1560, conforme consta de Cascudo
(1972: 153-154), relatava que havia também outros fantasmas, sobretudo nas
praias, que vivem a maior parte do tempo junto do mar e dos rios e são
chamados baetatá, que quer dizer cousa de fogo, o que é o mesmo como se se
dissesse o que é todo fogo. Não se vê outra cousa senão um facho cintilante
correndo para ali; acomete rapidamente os índios e mata-os, como os curupiras;
o que seja isto, ainda não se sabe com certeza.

O lexicógrafo e folclorista cita também um trecho da Nova Floresta de


Manuel Bernardes, de 1706: “(...) e outro nas praias do mar e ribeiras dos rios,
que chamaõ Baetatá; estes levaõ diante de si fogo inquieto, que discorre a
huma, e outra parte”.

A lexia e a lenda predominam no litoral e nas cidades que compõem o


Paraná Tradicional. É provável que a variante fonética boitatá, de mboia, cobra e
ta’ta, fogo, seja posterior, registrada por Taunay, apud Cunha (1982), em 1872.

A trajetória do boitatá no Brasil é apresentada por Encina, num site


intitulado: Boitatá (Mboi-tatá, baitatá, bitatá, biatatá, batatão, João Galafuz...)
(2001: 1):

inicialmente vivia perto do mar e dos rios e matava os índios, conforme


relato do Pe. José de Anchieta; depois, segundo depoimento de Couto de
Magalhães, seria um gênio protetor dos campos contra os que
551
Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

provocavam incêndio nas matas e, finalmente, o cristianismo identificou-


o com as almas penadas que purgam pecados de incesto ou de relações
sacrílega.

Ao contrário do que afirma esse autor, verificou-se, pelas narrativas e


relatos coletados, que se mantiveram a forma ‘física’ e a denominação
primitivas do ente sobrenatural no Paraná, isto é, fixou-se como bolas de fogo e
manteve-se a variante fonética mais antiga, ‘baitatá’, trazida certamente pelos
paulistas e suas numerosas comitivas de índios tupis.

A segunda lexia, urupê, também discutida por Aguilera (2002: 35) foi
mapeada na carta 38 do ALPR, cujo tema é “outras denominações para o
cogumelo”. Esta variante concentra-se no litoral, no Planalto de Curitiba e nas
localidades que se situam ao longo do Caminho das Tropas, como Lapa, União da
Vitória, São Mateus do Sul, Irati, Palmeira, Ponta Grossa, Castro, Tibagi e
Jaguariaíva, estendendo-se também para o centro e oeste do Estado.

Monteiro Lobato, que se imortalizou como um dos maiores escritores


infantis do século XX, dá a uma de suas obras para adultos o título de Urupês. Na
crônica homônima faz uma crítica impiedosa ao povo brasileiro, principalmente ao
caboclo, que o autor compara ao “sombrio urupê de pau podre a modorrar
silencioso no recesso das grotas. Só ele não fala, não canta, não ri, não ama. Só ele,
no meio de tanta vida, não vive”. (Lobato, 1918: 237). Lexicalizado em Cunha
(1982) como forma tupi, as abonações são do Vocabulário da Língua Brasílica e a
de Lobato já citada. Nascentes (1943) afirma proceder do tupi u ‘ru’pewa, cesto
achatado, por alusão à forma.

Ainda no mesmo texto de Aguilera (2002: 36-37), a pesquisadora discute a


concentração e distribuição diatópica de outros tupinismos considerados pela
autora como especiais: beronha; butuca e a variante fônica mutuca; carijó e caturra.
Dentre eles, destacamos, para comentários neste trabalho, as lexias beronha e
butuca/mutuca, ambas como variantes léxicas regionais para o ‘mosquito que pica o
animal’, registradas na carta 150 do ALPR e Notas respectivas.

Beronha, consta de Cunha (1994) como procedente de meru ‘nome tupi da


mosca’ 1587 e, no mesmo verbete: meruanha ‘mosca-dos-estábulos’ muruanja
1587, do tupi meru’ãia < me’ru + ãia ‘dente’. Ferreira (1986) apresenta no verbete
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Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

beruanha: do tupi mbe’ru, ‘mosca’ + ãi ‘aguçada, com ferrão’, e as variantes: beronha,


bironha, meruanha, muruanha. No Paraná a única forma registrada foi beronha,
ficando ausente qualquer outra forma nasalizada, como meronha, por exemplo, que
seria de se esperar haja vista proceder do fonema tupi mb que em português ora
resulta em b, ora em m.

Beronha é recorrente nos pontos 28, 30, 34, 36, 39, 40, 49, 50, 51, de
colonização recente, portanto dentro dos limites do Paraná Moderno do Oeste.
Trata-se de região de forte concentração de migrantes ou reimigrantes gaúchos,
descendentes de italianos, alemães e poloneses. É também uma região rica em
reservas indígenas do grupo macro-jê, os kaingang, cuja língua não pertence ao
mesmo grupo do tupi. Minha hipótese sobre a introdução da lexia na fala
paranaense recai sobre a sua inserção por meio dos gaúchos vindos do sul na 1ª
metade do século XX. É possível que a região de que procedem esteja nos limites
das localidades que receberam forte influência das bandeiras dos séculos XVII e
XVIII, faltando-nos, porém, dados censitários, além da comprovação em atlas
regionais ou glossários específicos da fala gaúcha ou riograndense.

Quanto a butuca, registrada também na carta 150 do ALPR, vem do tupi


mu’tuka, e, ao contrário de beronha, apresenta as variantes butuca/bituca/botuco e
mutuca numa interessante distribuição diatópica. Nas localidades do Paraná
Moderno do Norte e Paraná Moderno do Oeste, de colonização recente,
predomina a forma nasalizada enquanto a desnasalizada concentra-se no Paraná
Tradicional. A única forma que recebe abonações de Cunha (1982) é mutuca que a
registra como de 1587. Por se tratar de formas paralelas, a presença de butuca nas
localidades do Paraná que estiveram em maior contato com os portugueses dos
séculos XVII e XVIII é desconcertante na medida em que leva ao questionamento
da possibilidade de esta variante ser ainda anterior à datação registrada por Cunha
(1982).

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Mapa 3: Zonas de isófonas de mutuca/butuca

Fonte: Aguilera (1994) adaptado por Kika Milani.

3 - Tupinismos paranaenses e os fatores diastráticos:


dados para uma futura pesquisa

Outro enfoque que pode ser dado, na análise da produtividade lexical de


base tupi, é a submissão do conjunto de lexias à variável sexo ou gênero. As
outras variáveis, escolaridade e faixa etária, dificilmente poderiam ser
mensuradas no nível do léxico por não apresentarem uniformidade numérica,
ou seja, 50% de ocorrências em cada uma das células sociais. Esclarecemos que,
quanto à escolaridade, a proposta do ALPR era entrevistar falantes, naturais de
cada localidade investigada, sem qualquer nível de escolaridade, isto é,
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Para a História do Português Brasileiro. Volume V, 2007.

analfabetos. No entanto, o desenvolvimento da pesquisa indicou ser um critério


impossível de ser atendido nas 65 localidades selecionadas. Quanto à faixa
etária, a proposta inicial estabelecia que o grupo dos 130 informantes deveria
estar na faixa de 30 a 55 anos, exigência que também teve que ser adaptada às
condições da realidade, principalmente quando se associavam os demais
critérios: sexo, faixa etária, escolaridade e ser natural da localidade em estudo. O
sexo ou gênero, conforme atestam estudos anteriores, nem sempre se mostrou
uma variável suficiente para distinguir as diferenças de fala. A maior ou menor
presença de tupinismos na fala de homens e de mulheres pode estar, muitas
vezes, associada às tarefas que cada um desses moradores rurais desempenha
dentro ou fora do núcleo familiar. É um dado interessante a ser discutido
futuramente.

4 - Considerações finais

Neste trabalho procuramos demonstrar a ocorrência, a recorrência e a


resistência de algumas lexias de base tupi inseridas na fala paranaense nos
primeiros séculos do povoamento do Estado, pelos grupos paulistas que se
estabeleceram no litoral e no Planalto de Curitiba a partir do século XVII, em
busca de ouro e de índios para o trabalho na lavoura. Esses paulistas, como
afirma a história, dominavam um dialeto ou variedade do tupi, ou língua geral,
usada na comunicação com os indígenas até meados do século XVIII. Este fato
sócio-histórico-diacrônico constituiu-se num fator relevante para a
concentração e disseminação de tupinismos no Paraná.

O repertório lexical de uma época, usado como instrumento de


comunicação e de interação social, constitui-se no reflexo das abstrações
conceituais, cristalizando os conceitos de várias gerações. Os nomes de base
tupi, transmitidos oralmente às sucessivas gerações por mais de três séculos,
perpetuaram a herança cultural através dos signos verbais e chegaram até
nossos dias por meio da fala de habitantes de comunidades rurais dos vários
pontos do Estado, dos quais a maioria não teve contato com o mundo da
escrita, preservando ou dando novas formas fônicas a palavras e coisas do
mundo rural.

Chamaram-nos a atenção, sobretudo, as lexias em via de


desaparecimento, como as denominações para algumas espécies de galinha e de
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gavião, como nambeva, piqüira, bapuíra, pipuíra, nhapacaré, nhapacamim, que ainda
resistem na linguagem oral de alguns poucos paranaenses do litoral. Outras
lexias distribuem-se uniformemente pelo caminho dos tropeiros, que
atravessavam o Paraná, vindos de Viamão-RS em direção às feiras de Sorocaba-
SP e que, na sua passagem e pouso, iam fundando povoados e deixando as
marcas de sua fala impregnada, ainda, de lexias de base tupi, herdadas de seus
antepassados. Muitas dessas variantes expandiram-se para as regiões vizinhas e
estão aí registradas nas cartas do ALPR. Algumas variantes fonéticas, como
mutuca/butuca, distribuídas pelo território paranaense com fronteiras bem
delimitadas, também são indícios da influência do momento histórico na
constituição do léxico de uma língua.

A presença, e principalmente resistência, de uns poucos tupinismos na


linguagem rural paranaense contemporânea revela, pois, o grau das relações
interpessoais entre o bandeirante, o minerador, o tropeiro, o fazendeiro e os
seus administrados, os migrantes e reimigrantes, nos primeiros séculos da
ocupação do solo paranaense por grupos exógenos.

Por outro lado, revela a fragilidade a que estão expostos, ora pela
crescente urbanização, devido ao êxodo rural, ora pelo desaparecimento do
referente — aquelas variedades de gaviões e de galinhas ainda existem? E o
baetatá, decorridos quase vinte anos desde a primeira recolha de dados do
ALPR, ainda povoa o imaginário dos paranaenses ou está apenas nas páginas
dos livros de folclore? — ora, ainda, pelo poder nivelador da escola e da mídia
na preferência de uma forma em detrimento de outra, considerada linguagem
arcaica, própria dos mais velhos e sem escolaridade, como o urupê, que agora
tem o nome de cogumelo, quando não é chamado até de champignon.

Esses três poderosos fatores podem minimizar e muito o acervo lexical


rural de origem tupi, conforme procuramos demonstrar com a distribuição
diatópica de determinadas lexias, muitas vezes rarefeita, deixando lacunas
irrecuperáveis na história da língua portuguesa falada no Brasil e em especial no
Paraná.

Referências
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Anexo 1: Relação de tupinismos registrados no ALPR

Anu, apixilim/pexurim, araçá, araguaí/araguari, arapuca,


araticum/articum, araticum/articum, aroeira, baitaca/maritaca, baitatá/baetatá,
beronha, birigui, bracatinga, butuca/ botuca, bituca/ mutuca, butuca/ bituca/
mutuca, caburé, caracará, carancho, carapinhé, carijó, caruncho, cipó, cuiuiú,
cupim, curica, embuá/ imbua, guapeca/ peca/ peva, imbé, incõe/inconha,
jabuticaba, jojoca/jejoca, juá, juquiá, juriú, mamangava/ mamangaba,
mandruvá/ mandarová, nacaré, nambeva, nhanguinho, nhapacamim/
iapacanim, nhapacaré, peroba/ perova, picumã, pinhé, piúca/pilhuca/pijuca,
quiriquiri/ quiquiri/quiliquili, saquarema, tauató/ taguató, tigüera, tiriba/tiriva,
urupê.

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