A Mina Dos Mapas (MárcioFerrari, 2011)

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PESQUISA FAPESP 183
[ biblioteca digital ]

A mina dos mapas

U
m precioso material cartográfico vem ga- Material cartográfico
nhando visibilidade irrestrita graças ao
trabalho do grupo de pesquisadores da revela imaginário
Universidade de São Paulo (USP) respon-
sável pela construção da Biblioteca Digital
colonial português
de Cartografia Histórica. O acesso on-line
é livre no endereço <http://www.cartogra- Márcio Ferrari
fiahistorica.usp.br>. Fruto de um conceito desen-
volvido pelo Laboratório de Estudos de Cartografia
Histórica (Lech), o site não só oferece a apreciação de
um acervo de mapas raros impressos entre os séculos
XVI e XIX, mas também torna possível uma série de
referências cruzadas, comparações e chaves interpreta-
tivas com a pluralidade e a rapidez da internet. Afinal,
“um mapa sozinho não faz verão”, como diz uma das
coordenadoras do projeto, Iris Kantor, professora do
Departamento de História da USP. O conjunto revela
muito mais do que informações geográficas. Permite
também perceber a elaboração de um imaginário ao
longo do tempo, revelado por visões do Brasil conce-
bidas fora do país. O trabalho se inseriu num grande
projeto temático, denominado Dimensões do Impé-
rio português e coordenado pela professora Laura de
Mello e Souza, que teve apoio da Fapesp.
Até agora o acervo teve duas fontes principais. A
primeira foi o conjunto de anotações realizadas ao
longo de 60 anos pelo almirante Max Justo Lopes, um
dos principais especialistas em cartografia do Brasil.
A segunda foi a coleção particular do Banco Santos,
recolhida à guarda do Estado durante o processo de
intervenção no patrimônio do banqueiro Edemar Cid
Ferreira, em 2005. Uma decisão judicial transferiu a
custódia dos mapas ao Instituto de Estudos Brasilei-
ros (IEB) da USP – iniciativa louvável, uma vez que
esse acervo, segundo Iris Kantor, “estava guardado em
condições muito precárias num galpão, sem nenhu-
ma preocupação de acondicionamento adequado”.
Foram recolhidos cerca de 300 mapas. Sabe-se que
o número total da coleção original era muito maior,
mas ignora-se onde se encontram os demais.
O primeiro passo foi recuperar e restaurar os itens
Visão do recolhidos. Eles chegaram à USP “totalmente nus”,
Brasil que sendo necessário todo o trabalho de identificação,
revela a datação, atribuição de autoria etc. Durante os anos
exploração de 2007 e 2008, o Laboratório de Reprodução Digital
divulgação

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Fizeram parte dessa manipulação
os interesses geopolíticos e comer-
ciais da época determinada e daqueles
que produziram ou encomendaram o
mapa. O historiador Paulo Miceli, da
Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), que no início da década
passada havia sido chamado pelo Ban-
co Santos para dar consultoria sobre a
organização do acervo, lembra que o
primeiro registro cartográfico daquilo
que hoje se chama Brasil foi um mapa
do navegador espanhol Juan de la Cosa
(1460-1510), datado de 1506, que mos-
tra “a linha demarcatória do Tratado de
Tordesilhas, a África muito bem dese-
nhada e, à sua esquerda, um triângulo
bem pequeno para indicar a América
do Sul”. “O Brasil foi surgindo de uma
Mapa
espécie de nevoeiro de documentos,
holandês a
partir de Jean
condicionado, entre outras coisas, pe-
de Léry lo rigor da coroa portuguesa sobre o
trabalho dos cartógrafos, que estavam
sujeitos até a pena de morte.” Essa “apa-
rição” gradual do Brasil no esquema


do IEB pesquisou, adquiriu e utilizou geopolítico imperial é o tema da tese
a tecnologia adequada para reproduzir de livre-docência de Miceli, intitula-
em alta resolução o acervo de mapas. da, apropriadamente, de O desenho do
Foram necessárias várias tentativas até Os mapas eram Brasil no mapa do mundo, que sairá em
se atingir a precisão de traços e cores livro ainda este ano pela editora da Uni-
desejada. Em seguida, o Centro de In- objetos de camp. O título se refere ao Theatrum
formática do campus da USP em São orbis terrarum (Teatro do mundo), do
Carlos (Cisc/USP) desenvolveu um ostentação, com geógrafo flamengo Abraham Ortelius
software específico, tornando possível (1527-1598), considerado o primeiro
construir uma base de dados capaz de
interagir com o catálogo geral da bi-
valor de fruição e atlas moderno.

blioteca da USP (Dedalus), assim como Navegadores - Ao contrário do que se


colher e transferir dados de outras bases ornamentação, para pode imaginar, os mapas antigos não
disponíveis na internet. Uma das fon- tinham a função principal, e prática, de
tes inspiradoras dos pesquisadores foi nobres e eruditos, orientar exploradores e navegadores.
o site do colecionador e artista gráfico Estes, até o século XIX, se valiam de
inglês David Rumsey, que abriga 17 diz Iris Kantor roteiros escritos, as “cartas de marear”,
mil mapas (http://www.davidrumsey. registrados em “pergaminhos sem be-
com). Outra foi a pioneira Biblioteca leza nem ambiguidade, perfurados
Virtual da Cartografia Histórica, da por compassos e outros instrumentos,
Biblioteca Nacional, que reúne 22 mil e que viraram invólucros de pastas de
documentos digitalizados (http://bndi- documentos em acervos cartográfi-
gital.bn.br/cartografia). Futuramente, o explicativos que procuram contextuali- cos”, segundo Miceli. “Os mapas eram
acervo cartográfico da USP deverá inte- zar o processo de produção, circulação objetos de ostentação e prestígio, com
grar a Biblioteca Digital de Cartografia e apropriação das imagens cartográ- valor de fruição e ornamentação, para
Histórica. Foi dada prioridade aos ma- ficas”. “Não existe mapa ingênuo”, diz nobres e eruditos”, diz Iris Kantor.
pas do Banco Santos porque eles não Iris Kantor, indicando a necessidade “Um dos tesouros do Vaticano era sua
pertencem à universidade, podendo a dessa reunião de informações para o coleção cartográfica.” Já os roteiros de
qualquer momento ser requisitados entendimento do que está oculto sob navegação eram apenas manuscritos e
judicialmente para quitar dívidas. a superfície dos contornos geográficos não impressos, processo que dava aos
Hoje estão disponíveis na Biblioteca e da toponímia. “O pressuposto do his- mapas status de documentos privile-
Digital “informações cartobibliográfi- toriador é que todos os mapas mentem; giados. As chapas originais de metal,
cas, biográficas, dados de natureza téc- a manipulação é um dado importante com as alterações ao longo do tempo,
nica e editorial, assim como verbetes a qualquer peça cartográfica.” duravam até 200 anos, sempre nas mãos

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Carte tres
Curiese,
de “famílias” de cartógrafos, editores e de 1719 gue a professora da USP. “Pelo estudo da
livreiros. Às vezes essas famílias eram cartografia brasileira pós-independên-
mesmo grupos consanguíneos com cia, por exemplo, chama a atenção nossa
funções hereditárias, outras vezes eram visão de identidade nacional baseada
ateliês altamente especializados. Os contrainformação, chamado por Miceli numa cultura geográfica romântica, li-
artistas, com experiência acumulada de “adulteração patriótica”. Como os beral e naturalista, que representa o país
ao longo de décadas, não viajavam e mapas que falsificam a localização de como um contínuo geográfico entre a
recolhiam suas informações de “na- recursos naturais, como rios, para fa- Amazônia e o Prata. No mesmo perío-
vegadores muitas vezes analfabetos”, vorecer portugueses ou espanhóis na do, a ideia do povo não era tão homogê-
segundo Miceli. Para dar uma ideia divisão do Tratado de Tordesilhas. nea. Não é por acaso que os homens que
do prestígio atribuído à cartografia, ele Uma evidência da função quase fizeram a independência e constituíram
lembra que o Atlas maior, do holandês propagandística da cartografia está no o arcabouço legal do país fossem ligados
Willem Blaue (1571-1638), pintado com mapa Brasil, de 1565, produzido pela às ciências naturais, à cartografia etc.
tinta de ouro, foi considerado o livro escola veneziana, que ilustra a abertura A questão geográfica foi imperativa na
mais caro do Renascimento. desta reportagem. Nele não se destaca criação da identidade nacional.”
Um dos critérios de busca da Biblio- exatamente a precisão geográfica. “A Um exemplo bem diferente de uti-
teca Digital de Cartografia Histórica é toponímia não é muito intensa, em- lização de recursos digitais na pesquisa
justamente por “escolas” de cartógra- bora toda a costa já estivesse nomeada com mapas está em andamento na Uni-
fos, entre elas a flamenga, a francesa e nessa época”, diz Iris Kantor. “É uma camp, derivado do projeto Trabalhado-
a veneziana – sempre lembrando que obra voltada para o público leigo, tal- res no Brasil: identidades, direitos e polí-
o saber fundamental veio dos navega- vez mais para os comerciantes, como tica, coordenado pela professora Silvia
dores e cosmógrafos portugueses. Iris indicam os barquinhos com os brasões Hunold Lara e apoiado pela Fapesp.
Kantor considera que elas se interpene- das coroas da França e de Portugal. Ve- Trata-se do estudo Mapas temáticos
tram e planeja, futuramente, substituir mos o comércio do pau-brasil, ainda de Santana e Bexiga, sobre o cotidiano
a palavra “escola” por “estilo”. Também sem identificação da soberania política. dos trabalhadores urbanos entre 1870
está nos planos da equipe reconstituir Parece uma região de franco acesso. A e 1930 (http://www.unicamp.br/cecult/
a genealogia da produção de mapas ao representação dos indígenas e seu con- mapastematicos). Segundo a professo-
longo do período coberto. No estudo tato com o estrangeiro transmite cor- ra, pode-se reconstituir o cotidiano dos
desses documentos se inclui a identi- dialidade e reciprocidade.” moradores dos bairros, “não dissocia-
ficação daqueles que contêm erros vo- “No fundo, os mapas servem como dos de seu modo de trabalho e de suas
luntários como parte de um esforço de representação de nós mesmos”, prosse- reivindicações por direitos”. n

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