Artigo Ilha Do Desterro
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É ISTO UM ROMANCE?
Resumo
Propomos, neste trabalho, uma análise de Eles eram muitos cavalos
(2001/2006), do escritor contemporâneo brasileiro Luiz Ruffato.
Procuramos problematizar a discussão sobre a possível configuração
desta obra sob a forma, denominada pelo próprio autor, de uma
“instalação literária”. Ao apresentar este modo de fazer literário, Ruffato
propõe uma reflexão relacionada a diversas mazelas sociais brasileiras sob
uma perspectiva crítica descentrada, afastada de qualquer viés ufanista.
Herdeiro de poéticas modernas, como a mallarmeana e as vanguardistas
europeias, o autor configura uma poética, estruturada em um mosaico de
gêneros textuais, capaz de apreender e refratar a atmosfera de dinamicidade
do mundo contemporâneo. Para desenvolvermos esta análise, atenta
sobretudo às proposições estéticas da obra, recuperamos o conceito de
instalação, utilizado nas Artes Visuais, bem como determinados textos
teóricos voltados à análise da relação entre a literatura e outras linguagens,
desenvolvidos por autoras como Marjorie Perloff, Márcia Arbex e Maria
Adélia Menegazzo.
Palavras-chave: Luiz Ruffato; Instalação Literária; Literatura
Contemporânea; Eles Eram Muitos Cavalos; Interartes.
IS THIS A NOVEL?
Abstract
We propose, in this work, an analysis of Eles Eram Muitos Cavalos
(2001/2006), by the contemporary Brazilian writer Luiz Ruffato. We
try to problematize the possible configuration of the work as a “literary
installation”, a term used by the author himself. By presenting this way
of doing literary work, Ruffato proposes a reflection on Brazilian social
ills from a decentered critical perspective, far from any nationalistic bias.
Heir to modern poetics, such as Mallarmean and European avant-gardes,
*
Desenvolve, atualmente, um Estágio Pós-Doutoral no Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira da
Universidade de São Paulo, sob a supervisão do Professor João Adolfo Hansen. É Doutora em Estudos Literários
(UFMS), Mestre em Estudos de Linguagens (UFMS) e Licenciada em Letras (UFMS). Atua como Professora
Temporária na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul e Pesquisadora das seguintes áreas: Teoria da
Literatura, Literatura Brasileira e Literatura Comparada. E-mail: [email protected] ORCID: Orcid:
https://orcid.org/0000-0002-1128-3670
Lançada em 2001, a obra Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, costuma
desencadear um efeito de inquietação em seus leitores, seja pela atualidade de
sua crítica, relacionada às mazelas vivenciadas pela sociedade brasileira, seja pela
sua estética, muito distante de qualquer forma narrativa convencional. Nota-se,
por exemplo, que embora seja vendido há mais de vinte anos como romance, não
há entre seus especialistas um consenso quanto à categoria deste texto literário.
Partindo desta inquietação, propomos neste estudo a problematização da seguinte
questão: como conceber esta materialidade artística?
Para darmos início a esta discussão, é interessante levarmos em conta
algumas reflexões propostas pelo escritor a respeito de sua própria poiesis. Um
dos aspectos a serem considerados aqui, retirados de entrevistas concedidas por
Ruffato, é o desafio explicitado por ele ao cogitar uma possível forma literária
para dar cor à inapreensível cidade de São Paulo.
De acordo com o escritor, a recordação de sua experiência em meio à
instalação artística Ritos de Passagem, de Roberto Evangelista, surgiu-lhe como
uma resposta às suas inquietações. Movido pelo desejo de levar ao museu uma
alusão às inúmeras vidas anônimas que permeiam as metrópoles brasileiras,
Evangelista reuniu, na 23ª Bienal de São Paulo (1996), mil caixas de sapatos, dois
mil sapatos e grandes blocos de pedras em referência às calçadas de Manaus.
A proposta do artista plástico era conduzir o público a uma reflexão sobre a
invisibilidade das histórias, carregadas em cada um daqueles calçados, vivenciadas
por milhares de pessoas que circulam pelos grandes centros urbanos brasileiros.
Bem como Evangelista, Ruffato desejava configurar uma metrópole sob o
viés de seus habitantes pobres e prosaicos: “Para mim, aquilo significava que
aqueles calçados tinham uma história. Percebi que no meu livro eu teria que
percorrer esse caminho, em uma tentativa de reconstruir a história de pessoas
que são invisíveis” (RUFFATO, 2017, p. 1). Ao compor Eles eram muitos cavalos,
o escritor propôs um diálogo com a instalação de Evangelista desde a capa de
seu livro. Assinada por Antonio Kehl, a capa deste texto literário é composta
pela imagem de um sapato desgastado em meio a um ambiente aparentemente
abandonado. No decorrer da obra de Ruffato, no entanto, os sapatos da instalação
de Evangelista são transfigurados em personagens que circulam anonimamente
em diversas paisagens de São Paulo.
O compromisso de Ruffato para com a base da pirâmide social brasileira
é um aspecto continuamente evidenciado em sua poética, em seus discursos
234 Carolina Barbosa Lima e Santos, É isto um romance?
Só que achava, ainda acho, São Paulo uma cidade inapreensível. Ela cresce
desordenadamente e a paisagem muda da noite para o dia, literalmente.
Não podia então usar as formas convencionais do romance burguês para
tentar captar essa dinâmica. Então, busquei maneiras alternativas de
compreendê-la, trazendo para as páginas do livro as várias linguagens em
que a cidade pode ser traduzida: a publicidade, o jornalismo, o teatro, o
cinema, a música, as artes plásticas, a descrição, a narração, a poesia...
Eu não nomeio Eles eram muitos cavalos como “romance”, mas sim como
“instalação literária”. (RUFFATO, 2008, p.1)
É esse esforço da obra de arte para assimilar o que não é arte e reagir a isso
que caracteriza o momento futurista. Ele representa uma breve fase em
que a vanguarda se define pela sua reação com o público de massa. Como
tal, o seu extraordinário interesse para nós reside em ser o momento
climático de ruptura, o momento em que a integridade do medium, do
gênero, de categorias tais como “prosa” e “verso” e, o mais importante,
“arte” e “vida” foram questionadas. É o momento em que a colagem, a
mise em question da pintura como uma representação da “realidade”, faz
seu primeiro aparecimento, quando o manifesto político é percebido
esteticamente, da mesma forma que o objeto estético — pintura, poema,
drama — é politizado. As mídias — verbal, visual, musical — são cada
vez mais utilizadas em conjunção: o futurismo é a época da arte da
performance, da chamada poesia do som e do livro de artista (PERLOFF,
1993, p. 83).
Todo dia às cinco horas da tarde toma rumo de casa, no Boi Molhado,
a pé, porque nem trocado pra passagem do ônibus tem. Já acompanhou
uma montoeira de curso, Senac, Senai, Central do Trabalhador, nenhum
asfaltou estrada prum bom emprego. Tudo, mero pretexto para a consentida
escravidão, oito horas de suador diário, duzentos paus no fim do mês, ô!,
preferível a atoíce, ao menos pagar não paga pra trampar. E vagueia para
a casa do sogro, onde se empilham, três anos já, num quartículo, cama de
casal, penteadeira, guarda-roupa, bercinho, sufoco danado, mas não é de-
favor que moram não, têm orgulho, ara!, a mulher dirige a perua escolar
que o pai pôs pra rodar [...] (RUFFATO, 2006, p. 95).
Há, porém, enredos narrados em primeira pessoa, tal como podemos observar
a partir deste trecho do episódio 20, no qual o leitor é conduzido ao pensamento
de uma personagem que reflete sobre seu vizinho, recentemente assassinado:
“Mas nós não nos conhecíamos. Nos vimos algumas vezes no elevador de serviço,
a caminho da garagem do prédio, uma ou outra vez na piscina, ele lendo a Veja,
eu nadando com a Joana e o Afonsinho” (RUFFATO, 2006, p. 46).
Tal como a cidade metropolitana de São Paulo, o macroespaço das narrativas
é composto por um mosaico de cenários e atmosferas. As cenas apresentadas na
obra são desenroladas isoladamente umas das outras, cada qual em seu respectivo
Ilha do Desterro v. 75, nº 2, p. 231-245, Florianópolis, mai/ago 2022 241
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A vibração do número de hoje estimula a realização dos aspectos materiais
da vida
Ao propor uma arte que se apresenta como uma forma de resistência a uma
estética dominante, isto é, à forma romanesca, o autor expressa um posicionamento
comprometido com a liberdade de ler e se expressar no mundo. É por meio de
uma poética revolucionária — um caos discursivo composto por fragmentos que
dão forma a um universo metropolitano subalterno — que Ruffato traz à tona,
em Eles Eram Muitos Cavalos, algumas questões emudecidas pela historiografia
oficial brasileira.
244 Carolina Barbosa Lima e Santos, É isto um romance?
Vale notar, por exemplo, que uma das passagens mais longas e significativas
d’Eles eram muitos cavalos apresenta a figura de um indígena, na condição de
morador de rua, habitando a cidade de São Paulo. No trecho citado a seguir é
possível observar uma das humilhações vivenciadas por esta personagem:
De tal maneira que o que toda gente sabe é que um final de tarde o bugre
apareceu no boteco, encostou a pança careca no balcão de fórmica vermelha
ensebado, pediu uma cachaça na língua enromeilada dele, alguém viu
graça, bancou o prejuízo, e o selvagem, noite adentro, tornando-se alegre,
foi para o meio do asfalto dançar, e os sem-juízo cercaram ele numa roda
batendo palmas, o bicho se entusiasmou, arrancou a roupa sob aplausos
do povaréu, e ficou balangando os negócios, crianças e mulheres passando,
e juntou vagabundo e trabalhador, a arruaça contagiou aquele canto do
bairro, uma esbórnia. Até que alguém, sempre um desmancha prazeres,
convocou a polícia (RUFFATO, 2006, p. 31).
Notamos, assim, que o escritor toma “a palavra ainda quente de uma luta
não resolvida” (BAKHTIN, 1998, p. 133) para apresentar uma reflexão, livre de
qualquer viés ufanista, sobre o cenário contemporâneo brasileiro. Dialogando
com diversas poéticas que compõem o repertório da tradição literária ocidental,
Luiz Ruffato propõe uma compreensão de mundo desautomatizada por meio de
uma estética fragmentária.
Considerações Finais
Referências
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(Org.) Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte:
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RUFFATO, Luiz. (2001) Eles Eram Muitos Cavalos. São Paulo: Boitempo Editorial,
2006
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org/web/20160304030703/http://rinaldofernandes.blog.uol.com.br/arch2008-
04-27_2008-05-03.html. Acesso em: 20 mai. 2022.
RUFFATO, Luiz. Literatura em diálogo. Revista E. n. 250, 30 mar. 2017. Disponível
em: https://portal.sescsp.org.br/online/artigo/10813_LITERATURA+EM+DIAL
OGO. Acesso em: 20 mai. 2022.
Recebido em: 01/02/2022
Aceito em: 03/05/2022