Vários Poemas Gregório de Matos

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GREGÓRIO DE MATOS GUERRA – Seleta

(1636-1695 )

Biografia

Foi tão tumultuada a vida do poeta baiano que um biógrafo


chamou-a de “vida espantosa”.

Como filho de senhor de engenho, Gregório pôde estudar em


Portugal,para onde se mudou aos 14 anos de idade. Lá passou
32 anos, prósperos e tranqüilos.

Retornou ao Brasil, em 1682, nomeado para funções na


burocracia eclesiástica da Sé da Bahia. Durou pouco no cargo,
do qual foi destituído em 1683. Iniciou-se, então, a última fase de
sua vida. O casamento com Maria dos Povos, a quem dedicou
belíssimos sonetos, não impediu a decadência, social e
profissional, do Dr. Gregório. Ficou famoso em suas andanças e
pândegas pelos engenhos do Recôncavo.

Mais famosas ainda eram suas sátiras. Talvez por causa delas,
foi deportado para Angola, em 1694. Pôde retornar ao Brasil, no
ano seguinte, mas para o Recife, onde morreu aos 59 anos de
idade.

Gregório de Matos Guerra ficou conhecido na história da


literatura como “o Boca do Inferno”, por causa de suas sátiras e
de sua poesia. Mas sendo um autor barroco e, portanto
surpreendente e contraditório, esse mesmo Boca do Inferno
também disse coisas belíssimas sobre o amor.

Comentário

Podemos incluir o soneto de Gregório de Matos na tendência


conceptista do Barroco, graças ao engenhoso desenvolvimento
de uma única imagem, a da mariposa atraída pela chama que
deverá matá-la. O sujeito lírico desdobra a comparação entre a
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sua situação e a da mariposa, explorando as semelhanças, para,
na última estrofe, ponto culminante do soneto, estabelecer a
grande diferença: seu sacrifício é mais terrível do que o dela, por
que inútil.

Nosso poeta baiano merece que lhe dediquemos uma atenção


especial.

Para muitos historiadores, ele é o iniciador da literatura


brasileira. Mas é interessante observar que permaneceu inédito
até meados do século XIX. Sua produção poética sobreviveu,
até então, em livros manuscritos, colecionada por admiradores.
As duas tentativas de publicação completa ocorreram já no
nosso século XX: a edição da Academia Brasileira de Letras, em
6 volumes (1923-1933), e a edição de James Amado, em 7
volumes (1968).

Gregório recebeu influências tanto do Cultismo de Góngora


quanto do Conceptismo de Quevedo. Seu espírito
profundamente barroco pode ser percebido na contraditória
diversidade dos temas que desenvolveu em sua obra:

a. poesia sacra (temática religiosa) Como autor barroco, não


poderia faltar a poesia religiosa em sua obra. Essa temática
abrange um amplo conjunto, desde os poemas circunstanciais
em comemoração a festas de santos até os poemas de contrição
e de reflexão moral.

b. lírica amorosa A lírica amorosa na obra de Gregório de Matos


abrange um amplo leque temático. Às vezes é a mais pura
idealização do amor:

De acordo com Manuel Pereira Rebelo, seu primeiro biógrafo


(início do século XVIII), o poeta teve uma paixão não
correspondida pela filha de um senhor engenhoso, D. Ângela de
Sousa Paredes Rabelo, organizou um ciclo dos poemas que

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seriam expressão desse caso amoroso. Entre eles estão alguns
dos mais belos da obra de Gregório de Matos.

c. poesia satírica O “Boca do Inferno” não perdoava ninguém:


ricos e pobres, negros, brancos e mulatos, padres, freiras,
autoridades civis e religiosas, amigos e inimigos, todos, enfim,
eram objeto de sua “lira maldizente”.

Contudo, o melhor de sua sátira não é esse tipo de zombaria,


engraçada e maldosa, mas a crítica de cunho geral aos vícios da
sociedade. Sua vasta galeria de tipos humanos contribui para
construir sua maior e principal personagem - a cidade da Bahia..
Mas nem sempre o poeta é rancoroso com sua cidade. No
famoso soneto “Triste Bahia”, já musicado por Caetano Veloso,
Gregório identifica-se com ela, ao comparar a situação de
decadência em que ambos vivem. O poema abandona o tom de
zombaria das sátiras para tornar-se um quase lamento:

d. poesia burlesca É a poesia mais circunstancial de Gregório de


Matos. De modo sempre galhofeiro, o poeta registra em versos
sempre pequenos acontecimentos da vida cotidiana da cidade e
dos engenhos. Segundo James Amado, a poesia burlesca é a
“crônica do viver baiano seiscentista”.

A maior parte foi escrita na última fase da vida do poeta, período


de decadência pessoal e profissional. O doutor deixara de
advogar e perambulava pelos engenhos do Recôncavo, levando
sua viola de cabaça, freqüentando festas de amigos e
namorando as mulatas, muitas delas prostitutas, com tom
brincalhão podem freqüentemente tornar-se obscenos. “Daí, o
‘populismo’ chulo que irrompe às vezes e, longe de significar
uma atitude aristocrática, nada mais é que válvula de escape
para velhas obsessões sexuais ou arma para ferir os poderosos
invejados” (Alfredo Bosi)

01 - A Nosso Senhor Jesus Christo com actos de


arrependimento e suspiros de amor
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Ofendi-vos, Meu Deus, bem é verdade,
É verdade, meu Deus, que hei delinqüido,
Delinqüido vos tenho, e ofendido,
Ofendido vos tem minha maldade.

Maldade, que encaminha à vaidade,


Vaidade, que todo me há vencido;
Vencido quero ver-me, e arrependido,
Arrependido a tanta enormidade.

Arrependido estou de coração,


De coração vos busco, dai-me os braços,
Abraços, que me rendem vossa luz.

Luz, que claro me mostra a salvação,


A salvação pertendo em tais abraços,
Misericórdia, Amor, Jesus, Jesus.

02 - A Jesus Cristo Nosso Senhor


Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado,
Da vossa piedade me despido,
Porque quanto mais tenho delinqüido,
Vos tenho a perdoar mais empenhado.

Se basta a vos irar tanto um pecado,


A abrandar-nos sobeja um só gemido,
Que a mesma culpa, que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.

Se uma ovelha perdida, e já cobrada


Glória tal, e prazer tão repentino
vos deu, como afirmais na Sacra História:

Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada


Cobrai-a, e não queirais, Pastor divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória.
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03 - Inconstância dos bens do mundo
Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.

Porém se acaba o Sol, por que nascia?


Se formosa a Luz é, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no Sol, e na Luz, falte a firmeza,


Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.

Começa o mundo enfim pela ignorância,


E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância.

04 - À cidade da Bahia (2) (soneto)


Triste Bahia! Oh quão dessemelhante
Estás, e estou do nosso antigo estado!
Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,
Rica te vejo eu já, tu a mi abundante.

A ti tocou-te a máquina mercante,


Que em tua larga barra tem entrado,
A mim foi-me trocando, e tem trocado
Tanto negócio, e tanto negociante.

Deste em dar tanto açúcar excelente


Pelas drogas inúteis, que abelhuda
Simples aceitas do sagaz Brichote.

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Oh se quisera Deus, que de repente
Um dia amanheceras tão sisuda
Que fora de algodão o teu capote!

05 - A Maria dos povos, sua futura esposa


Discreta, e formosíssima Maria,
Enquanto estamos vendo a qualquer hora
Em tuas faces a rosada Aurora,
Em teus olhos, e boca o Sol, e o dia:

Enquanto com gentil descortesia


O ar, que fresco Adônis te namora,
Te espalha a rica trança voadora,
Quando vem passear-te pela fria:

Goza, goza da flor da mocidade,


Que o tempo trota a toda ligeireza,
E imprime em toda a flor sua pisada.

Oh, não aguardes, que a madura idade


Te converta em flor, essa beleza
Em terra, em cinza, em pó, em sobra, em nada.

06 - Epílogos (Juízo anatômico dos achaques que padecia o


corpo da república)
Que falta nesta cidade?... Verdade.
Que mais por sua desonra?... Honra.
Falta mais que se lhe ponha?... Vergonha.

O demo a viver se exponha,


Por mais que a fama a exalta,
Numa cidade onde falta
Verdade, honra, vergonha.

Quem a pôs neste rocrócio?... Negócio.


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Quem causa tal perdição?... Ambição.
E no meio desta loucura?... Usura.

Notável desaventura
De um povo néscio e sandeu,
Que não sabe que perdeu
Negócio, ambição, usura.

Quais são seus doces objetos?... Pretos.


Tem outros bens mais maciços?... Mestiços.
Quais destes lhe são mais gratos?... Mulatos.

Dou ao Demo os insensatos,


Dou ao Demo o povo asnal,
Que estima por cabedal,
Pretos, mestiços, mulatos.

Quem faz os círios mesquinhos?... Meirinhos.


Quem faz as farinhas tardas?... Guardas.
Quem as tem nos aposentos?... Sargentos.

Os círios lá vem aos centos,


E a terra fica esfaimando,
Porque os vão atravessando
Meirinhos, guardas, sargentos.

E que justiça a resguarda?... Bastarda.


É grátis distribuída?... Vendida.
Que tem, que a todos assusta?... Injusta.

Valha-nos Deus, o que custa


O que El-Rei nos dá de graça.
Que anda a Justiça na praça
Bastarda, vendida, injusta.

Que vai pela clerezia?... Simonia.


E pelos membros da Igreja?... Inveja.
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Cuidei que mais se lhe punha?... Unha

Sazonada caramunha,
Enfim, que na Santa Sé
O que mais se pratica é
Simonia, inveja e unha.

E nos frades há manqueiras?... Freiras.


Em que ocupam os serões?... Sermões.
Não se ocupam em disputas?... Putas.

Com palavras dissolutas


Me concluo na verdade,
Que as lidas todas de um frade
São freiras, sermões e putas.

O açúcar já acabou?... Baixou.


E o dinheiro se extinguiu?... Subiu.
Logo já convalesceu?... Morreu.

À Bahia aconteceu
O que a um doente acontece:
Cai na cama, e o mal cresce,
Baixou, subiu, morreu.

A Câmara não acode?... Não pode.


Pois não tem todo o poder?... Não quer.
É que o Governo a convence?... Não vence.

Quem haverá que tal pense,


Que uma câmara tão nobre,
Por ver-se mísera e pobre,
Não pode, não quer, não vence.

07- A uma dama


Vês esse Sol de luzes coroado,
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Em pérolas a Aurora convertida;
Vês a Lua, de estrelas guarnecida;
Vês o Céu, de planetas adornado?

O céu deixemos: vês, naquele prado,


A rosa com razão desvanecida,
A açucena por alva presumida,
O cravo por galã lisonjeado?

Deixa o prado: vem cá, minha adorada:


Vês desse mar a esfera cristalina
Em sucessivo aljôfar desatada?

Parece aos olhos ser de prata fina...


Vês tudo isto bem? Pois tudo é nada
À vista do teu rosto, Catarina.

08 - A instabilidade das cousas no mundo1


Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.

Porém se acaba o Sol, por que nascia?


Se formosa a Luz é, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no Sol, e na Luz, falte a firmeza,


Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.

Começa o mundo enfim pela ignorância,


E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância.
1 Apesar de um titulo diferente, trata-se do mesmo poema que aparece sob nome de
Inconstância dos bens do mundo.
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09 - A certa personagem desvanecida
Um soneto começo em vosso gabo:
Contemos esta regra por primeira;
Já lá vão duas, e esta é a terceira,
Já este quartetinho está no cabo,

Na quinta torce agora a porca o rabo;


A sexta vá também d'esta maneira:
Na sétima entro já com gran canseira,
E saio dos quartetos muito brabo.

Agora nos tercetos que direi:


Direi que vós, Senhor, a mim me honrais
Gabando-vos a vós, e eu fico um rei.

N'esta vida um soneto já ditei;


Se d'esta agora escapo, nunca mais:
Louvado seja Deus, que o acabei.

10 - Aos principais da Bahia chamados caramurus


Um calção de pindoba a meia zorra
Camisa de urucu, mantéu de arara,
Em lugar de cotó, arco, e taquara,
Penacho de guarás em vez de gorra.

Furado o beiço, e sem temer que morra


O pai, que lho envazou cuma titara,
Porém a Mãe a pedra lhe aplicara
Por reprimir-lhe o sangue que não corra,

Alarve sem razão, bruto sem fé,


Sem mais leis, que as do gosto, quando erra,
De Paiaiá tornou-se em Abaeté.

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Não sei onde acabou, ou em que guerra,
Só sei que deste Adão de Massapé,
Procedem os fidalgos desta terra.

11 - À procissão de cinza em Pernambuco


Um negro magro de sufulié justo,
Dois azorragues de um joá pendentes,
Barbado o Peres, mais dois penitentes,
Seis crianças com asas sem mais custo.

De vermelho o mulato mais robusto,


Três fradinhos meninos inocentes,
Dez ou doze brichotes mui agentes,
Vinte ou trinta canelas de ombro onusto.

Sem débita reverência seis andores,


Um pendão de algodão tinto em tijuco,
Em fileira dez pares de menores.

Atrás um cego, um negro, um mameluco,


Três lotes de rapazes gritadores:
É a procissão de cinza em Pernambuco.

12 - Milagres do Brasil São


Um branco muito encolhido,
Um mulato muito ousado,
Um branco todo coitado,
Um canaz todo atrevido;
O saber muito abatido,
A ignorância e ignorante
Muito ufana e mui farfante,
Sem pena ou contradição:
Milagres do Brasil são.

Quem um cão revestido em padre,


11
Por culpa da Santa Sé,
Seja tão ousado que
Contra um branco honrado ladre;
E que esta ousadia quadre
Ao bispo, ao governador,
Ao cortesão, ao senhor,
Tendo naus no maranhão:
Milagres do Brasil são.

Se este tal podengo asneiro


O pai o esvanece já,
A mãe lhe lembro que está
Roendo em um tamoeiro:
Que importa um branco cueiro,
Se o... É tão denegrido!
Mas se nomisto sentido
Se lhe esconde a negridão,
Milagres do Brasil são.

Prega o perro frandulário,


E como a licença o cega,
Cuida que em púlpito prega,
E ladra num campanário:
Vão ouvi-lo de ordinário
Tios e tias do Congo,
E se, suando o mondongo,
Eles só gabo lhe dão,
Milagres do Brasil são.

Que há de pregar o cachorro,


Sendo uma vil criatura,
Que não sabe de escritura
Mais que aquela o pôs forro?
Quem lhe dá ajuda e socorro
São quatro sermões antigos;
E se amigos tem um cão,
Milagres do Brasil são.
12
Um cão é o timbre maior
Da Ordem predicatória,
Mas não acho em toda a história
Que um cão fosse pregador,
Se nunca falta um senhor:
Que lhe alcance esta licença
De Lourenço por Lourença,
Que as pardas tudo farão,
Milagres do Brasil são.

Té em versos quer dar penada,


E por que o gênio desbroche,
Como é cão, a troche-moche
Mete a unha e dá dentada:
O Perro não sabe nada,
E se com pouca vergonha
Tudo abate, é porque sonha
Que sabe alguma questão,
Milagres do Brasil são.

Do Perro afirmam doutores


Que fez uma apologia
Ao Mestre da teologia,
Se da lua aos resplendores
Outra ao sol dos pregadores:
Late um cão a noite inteira,
E ela, seguindo a carreira,
Luz com mais ostentação,
Milagres do Brasil são.

Que vos direi do Mulato,


Que vos não tenha já dito,
Se será amanhã delito
Falar dele sem recato?
Não faltará um mentecapto,
Que como vilão de encerro
13
Sinta que dêem no seu perro,
E se porta como um cão:
Milagres do Brasil são.

Imaginais que o insensato


De canzarrão fala tanto
Porque sabe tanto ou quanto?
Não, se não porque é mulato;
Ter sangue de carrapato,
Seu estorraque de congo,
Cheirar-lhe a roupa amondongo,
É cifra da perfeição:
Milagres do Brasil são.

13 – Retrato / Dona Ângela


Anjo no nome, Angélica na cara
Isso é ser flor, e Anjo juntamente
Ser Angélica flor, e Anjo florente
Em quem, se não em vós se uniformara?

Quem veria uma flor, que a não cortara


De verde pé, de rama florescente?
E quem um Anjo vira tão luzente
Que por seu Deus, o não idolatrara?

Se como Anjo sois dos meus altares


Fôreis o meu custódio, e minha guarda
Livrara eu de diabólicos azares

Mas vejo, que tão bela, e tão galharda


Posto que os Anjos nunca dão pesares
Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda.

14 - Contemplando nas cousas do mundo


Neste mundo é mais rico, o que mais rapa:
Quem mais limpo se faz, tem mais carepa:
Com sua língua ao nobre o vil decepa:
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O Velhaco maior sempre tem capa.

Mostra o patife da nobreza o mapa:


Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa;
Quem menos falar pode, mais increpa:
Quem dinheiro tiver, pode ser Papa.

A flor baixa se inculca por Tulipa;


Bengala hoje na mão, ontem garlopa:
Mais isento se mostra, o que mais chupa.

Para a tropa do trapo vazio a tripa,


E mais não digo, porque a Musa topa
Em apa, epa, ipa, opa, upa.

15 - E pois coronista sou


E pois coronista sou.

Se souberas falar também falaras


também satirizaras, se souberas,
e se foras poeta, poetaras.

Cansado de vos pregar


cultíssimas profecias,
quero das culteranias
hoje o hábito enforcar:
de que serve arrebentar,
por quem de mim não tem mágoa?
Verdades direi como água,
porque todos entendais
os ladinos, e os boçais
a Musa praguejadora.
Entendeis-me agora?

Permiti., minha formosa,


que esta prosa envolta em verso
de um Poeta tão perverso
15
se consagre a vosso pé,
pois rendido à vossa fé
sou lá Poeta converso
Mas amo por amar, que é liberdade.

16 - Ao padre Lourenço Ribeiro, homem pardo que foi


vigário da freguesia do Passé2
Um branco muito encolhido,
Um mulato muito ousado,
Um branco todo coitado,
Um canaz todo atrevido;
O saber muito abatido,
A ignorância e ignorante
Muito ufana e mui farfante,
Sem pena ou contradição:
Milagres do Brasil são.

Quem um cão revestido em padre,


Por culpa da Santa Sé,
Seja tão ousado que
Contra um branco honrado ladre;
E que esta ousadia quadre
Ao bispo, ao governador,
Ao cortesão, ao senhor,
Tendo naus no maranhão:
Milagres do Brasil são.

Se este tal podengo asneiro


O pai o esvanece já,
A mãe lhe lembro que está
Roendo em um tamoeiro:
Que importa um branco cueiro,
Se o... É tão denegrido!
Mas se nomisto sentido
Se lhe esconde a negridão,
2Apesar de um titulo diferente, trata-se do mesmo poema que aparece sob nome de Milagres
do Brasil São
16
Milagres do Brasil são.

Prega o perro frandulário,


E como a licença o cega,
Cuida que em púlpito prega,
E ladra num campanário:
Vão ouvi-lo de ordinário
Tios e tias do Congo,
E se, suando o mondongo,
Eles só gabo lhe dão,
Milagres do Brasil são.

Que há de pregar o cachorro,


Sendo uma vil criatura,
Que não sabe de escritura
Mais que aquela o pôs forro?
Quem lhe dá ajuda e socorro
São quatro sermões antigos;
E se amigos tem um cão,
Milagres do Brasil são.

Um cão é o timbre maior


Da Ordem predicatória,
Mas não acho em toda a história
Que um cão fosse pregador,
Se nunca falta um senhor:
Que lhe alcance esta licença
De Lourenço por Lourença,
Que as pardas tudo farão,
Milagres do Brasil são.

Té em versos quer dar penada,


E por que o gênio desbroche,
Como é cão, a troche-moche
Mete a unha e dá dentada:
O Perro não sabe nada,
E se com pouca vergonha
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Tudo abate, é porque sonha
Que sabe alguma questão,
Milagres do Brasil são.

Do Perro afirmam doutores


Que fez uma apologia
Ao Mestre da teologia,
Se da lua aos resplendores
Outra ao sol dos pregadores:
Late um cão a noite inteira,
E ela, seguindo a carreira,
Luz com mais ostentação,
Milagres do Brasil são.

Que vos direi do Mulato,


Que vos não tenha já dito,
Se será amanhã delito
Falar dele sem recato?
Não faltará um mentecapto,
Que como vilão de encerro
Sinta que dêem no seu perro,
E se porta como um cão:
Milagres do Brasil são.

Imaginais que o insensato


De canzarrão fala tanto
Porque sabe tanto ou quanto?
Não, se não porque é mulato;
Ter sangue de carrapato,
Seu estorraque de congo,
Cheirar-lhe a roupa amondongo,
É cifra da perfeição:
Milagres do Brasil são.

17 - Define a sua cidade


De dois ff se compõe
esta cidade a meu ver:
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um furtar, outro foder.

Recopilou-se o direito,
e quem o recopilou
com dous ff o explicou
por estar feito, e bem feito:
por bem digesto, e colheito
só com dous ff o expõe,
e assim quem os olhos põe
no trato, que aqui se encerra,
há de dizer que esta terra
de dous ff se compõe.

Se de dous ff composta
está a nossa Bahia,
errada a ortografia,
a grande dano está posta:
eu quero fazer aposta
e quero um tostão perder,
que isso a há de perverter,
se o furtar e o foder bem
não são os ff que tem
esta cidade ao meu ver.

Provo a conjetura já,


prontamente como um brinco:
Bahia tem letras cinco
que são B-A-H-I-A:
logo ninguém me dirá
que dous ff chega a ter,
pois nenhum contém sequer,
salvo se em boa verdade
são os ff da cidade
um furtar, outro foder.

18 - Descreve a vida escolástica


Mancebo sem dinheiro, bom barrete,
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Medíocre o vestido, bom sapato,
Meias velhas, calção de esfola-gato,
Cabelo penteado, bom topete;

Presumir de dançar, cantar falsete,


Jogo de fidalguia, bom barato,
Tirar falsídia ao moço do seu trato,
Furtar a carne à ama, que promete;

A putinha aldeã achada em feira,


Eterno murmurar de alheias famas,
Soneto infame, sátira elegante;

Cartinhas de trocado para a freira,


Comer boi, ser Quixote com as damas,
Pouco estudo: isto é ser estudante.

19 - À cidade da Bahia (2)


A cada canto um grande conselheiro.
que nos quer governar cabana, e vinha,
não sabem governar sua cozinha,
e podem governar o mundo inteiro.

Em cada porta um freqüentado olheiro,


que a vida do vizinho, e da vizinha
pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha,
para a levar à Praça, e ao Terreiro.

Muitos mulatos desavergonhados,


trazidos pelos pés os homens nobres,
posta nas palmas toda a picardia.

Estupendas usuras nos mercados,


todos, os que não furtam, muito pobres,
e eis aqui a cidade da Bahia.

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20 - Aos vícios
Eu sou aquele que os passados anos
Cantei na minha lira maldizente
Torpezas do Brasil, vícios e enganos.

E bem que os descantei bastantemente,


Canto segunda vez na mesma lira
O mesmo assunto em plectro diferente.

Já sinto que me inflama e que me inspira


Talia, que anjo é da minha guarda
Dês que Apolo mandou que me assistira.

Arda Baiona e todo o mundo arda


Que a quem de profissão falta à verdade
Nunca a dominga das verdades tarda.

Nenhum tempo excetua a cristandade


Ao pobre pegureiro do Parnaso
Para falar em sua liberdade.

A narração há de igualar ao caso


E se talvez acaso o não iguala
Não tenho por poeta o que é Pegaso.

De que pode servir calar quem cala?


Nunca se há de falar o que se sente
Sempre se há de sentir o que se fa1a.

Qual homem pode haver tão paciente,


Que, vendo o triste estado da Bahia
Não chore, não suspire e não lamente?

Isto faz a discreta fantasia:


Discorre em um e outro desconcerto
Condena o roubo, increpa a hipocrisia.

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O néscio, o ignorante, o inexperto
Que não elege o bom, nem mau reprova
Por tudo passa deslumbrado e incerto.

E quando vê talvez na doce trova


Louvado o bem e o mal vituperado
A tudo faz focinho, e nada aprova.

Diz logo prudentaço e repousado:


-Fulano é um satírico, é um louco,
De língua má, de coração danado.

Néscio, se disso entendes nada ou pouco,


Como mofas com riso e algazaras
Musas, que estimo ter, quando as invoco.

Se souberas falar, também falaras


Também satirizaras, se souberas
E se foras poeta, poetizaras.

A ignorancia dos homens destas eras


Sisudos faz ser uns, outros prudentes,
Que a mudez canoniza bestas feras.

Há bons, por não poder ser insolentes,


Outros há comedidos de medrosos,
Não mordem outros não? -por não ter dentes.

Quantos há que os telhados têm vidrosos,


E deixam de atirar sua pedrada,
De sua mesma telha receosos?

Uma só natureza nos foi dada


Não criou Deus os naturais diversos;
Um só Adão criou e esse de nada.

Todos somos ruins, todos perversos,


22
Só nos distingue o vício e a virtude,
De que uns são comensais, outros adversos

Quem maior a tiver do que eu ter pude,


Esse só me censure, esse me note,
Calem-se os mais chitom, e haja saúde.

21 -Descreve a confusão do festejo do Entrudo


Filhós, fatias, sonhos, mal-assadas,
Galinhas, porco, vaca, e mais carneiro,
Os perus em poder do pasteleiro,
Esguichar, deitar pulhas, laranjadas;

Enfarinhar, pôr rabos, dar risadas,


Gastar para comer muito dinheiro,
Não ter mãos a medir o taverneiro,
Com réstias de cebolas dar pancadas;

Das janelas com tanhos dar nas gentes,


A buzina tanger, quebrar panelas,
Querer em um só dia comer tudo;

Não perdoar arroz, nem cuscuz quente,


Despejar pratos, e alimpar tijelas:
Estas as festas são do Santo Entrudo.

22 - Solitário em seu mesmo quarto à vista da luz


Ó tu do meu amor fiel traslado
Mariposa entre as chamas consumida,
Pois se à força do ardor perdes a vida,
A violência do fogo me há prostrado.

Tu de amante o teu fim hás encontrado,


Essa flama girando apetecida;
Eu girando uma penha endurecida,
No fogo, que exalou, morro abrasado.

23
Ambos de firme anelando chamas,
Tu a vida deixas, eu a morte imploro
Nas constâncias iguais, iguais nas chamas.

Mas ai! que a diferença entre nós choro,


Pois acabando tu ao fogo, que amas,
Eu morro, sem chegar à luz, que adoro.

23 - Aos afetos e lágrimas derramadas


Ardor em firme coração nascido;
Pranto por belos olhos derramado;
Incêndio em mares de água disfarçado;
Rio de neve em fogo convertido:

Tu, que um peito abrasas escondido;


Tu, que em um rosto corres desatado;
Quando fogo, em cristais aprisionado;
Quando cristal, em chamas derretido.

Se és fogo, como passas brandamente,


Se és neve, como queimas com porfia?
Mas ai, que andou Amor em ti prudente!

Pois para temperar a tirania,


Como quis que aqui fosse a neve ardente,
Permitiu parecesse a chama fria.

24 - Admirável expressão que faz o poeta de seu atencioso


silêncio
Largo em sentir, em respirar sucinto
Peno, e calo tão fino, e tão atento,
Que fazendo disfarce do tormento
Mostro, que o não padeço, e sei, que o sinto.

O mal, que fora encubro, ou que desminto,


Dentro no coração é, que sustento,
24
Com que para penar é sentimento,
Para não se entender é labirinto.

Ninguém sufoca a voz nos seus retiros;


Da tempestade é o estrondo efeito:
Lá tem ecos a terra, o mar suspiros.

Mas oh do meu segredo alto conceito!


Pois não me chegam a vir à boca os tiros
Dos combates, que vão dentro no peito.

25 - Definição do amor – romance


Mandai-me, Senhores, hoje,
que em breves rasgos descreva
do Amor a ilustre prosápia,
e de Cupido as proezas.

Dizem que da clara escuma,


dizem que do mar nascera,
que pegam debaixo d’água
as armas, que Amor carrega.

Outros, que fora ferreiro


seu pai, onde Vênus bela
serviu de bigorna, em que
malhava com grã destreza.

Que a dois assopros lhe fez


o fole inchar de maneira,
que nele o fogo acendia,
nela aguava a ferramenta.

Nada disto é, nem se ignora,


que o Amor é fogo, e bem era
tivesse por berço as chamas
se é raio nas aparências.

25
Este se chama Monarca,
ou Semideus se nomeia,
cujo céu são esperanças,
cujo inferno são ausências.

Um Rei, que mares domina,


Um Rei, o mundo sopeia,
sem mais tesouro que um arco,
sem mais arma que uma seta.

O arco talvez de pipa,


a seta talvez de esteira,
despido como um maroto,
cego como uma toupeira.

Um maltrapilho, um ninguém,
que anda hoje nestas eras
com o cu à mostra, jogando
com todos a cabra-cega.

Tapando os olhos da cara,


por deixar o outro alerta,
por detrás à italiana,
por diante à portuguesa.

Diz que é cego, porque canta,


ou porque vende gazetas
das vitórias, que alcançou
na conquista das finezas.

Que vende também folhinhas


cremos por coisa mui certa,
pois nos dá os dias santos,
sem dar ao cuidado tréguas;

E porque despido o pintam


é tudo mentira certa,
26
mas eu tomara ter junto
o que Amor a mim me leva.

Que tem asas com que voa


e num pensamento chega
assistir hoje em Cascais
logo em Coina, e Salvaterra.

Isto faz um arrieiro


com duas porradas tesas:
e é bem, que no Amor se gabe,
o que o vinho só fizera!

E isto é Amor? é um corno.


Isto é Cupido? má peça.
Aconselho que o não comprem
ainda que lhe achem venda.

Isto, que o Amor se chama,


este, que vidas enterra,
este, que alvedrios prostra,
este, que em palácios entra:

Este, que o juízo tira,


este, que roubou a Helena,
este, que queimou a Tróia,
e a Grã-Bretanha perdera:

Este, que a Sansão fez fraco,


este, que o ouro despreza,
faz liberal o avarento,
é assunto dos poetas:

Faz o sisudo andar louco,


faz pazes, ateia a guerra,
o frade andar desterrado,
endoidece a triste freira.
27
Largar a almofada a moça,
ir mil vezes à janela,
abrir portas de cem chaves,
e mais que gata janeira.

Subir muros e telhados,


trepar cheminés e gretas,
chorar lágrimas de punhos,
gastar em escritos resmas.

Gastar cordas em descantes,


perder a vida em pendências,
este, que não faz parar
oficial algum na tenda.

O moço com sua moça,


o negro com sua negra,
este, de quem finalmente
dizem que é glória, e que é pena.

É glória, que martiriza,


uma pena, que receia,
é um fel com mil doçuras,
favo com mil asperezas.

Um antídoto, que mata,


doce veneno, que enleia,
uma discrição, sem siso,
uma loucura discreta.

Uma prisão toda livre,


uma liberdade presa,
desvelo com mil descansos,
descanso com mil desvelos.

Uma esperança, sem posse,


28
uma posse, que não chega,
desejo, que não se acaba,
ânsia, que sempre começa.

Uma hidropisia d’alma,


da razão uma cegueira,
uma febre da vontade,
uma gostosa doença.

Uma ferida sem cura,


uma chaga, que deleita,
um frenesi dos sentidos,
desacordo das potências.

Um fogo incendido em mina,


faísca emboscada em pedra,
um mal, que não tem remédio,
um bem, que se não enxerga.

Um gosto, que se não conta,


um perigo, que não deixa,
um estrago, que se busca,
ruína, que lisonjeia.

Uma dor, que se não cala,


pena, que sempre atormenta,
manjar, que não enfastia,
um brinco, que sempre enleva.

Um arrojo, que enfeitiça,


um engano, que contenta,
um raio, que rompe a nuvem,
que reconcentra a esfera.

Víbora, que a vida tira


àquelas entranhas mesmas,
que segurou o veneno,
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e que o mesmo ser lhe dera.

Um áspide entre boninas,


entre bosques uma fera,
entre chamas salamandra,
pois das chamas se alimenta.

Um basalisco, que mata,


lince, que tudo penetra,
feiticeiro, que adivinha,
marau, que tudo suspeita.

Enfim o Amor é um momo,


uma invenção, uma teima,
um melindre, uma carranca,
uma raiva, uma fineza.

Uma meiguice, um afago,


um arrufo, e uma guerra,
hoje volta, amanhã torna,
hoje solda, amanhã quebra.

Uma vara de esquivanças,


de ciúmes vara e meia,
um sim, que quer dizer não,
não, que por sim se interpreta.

Um queixar de mentirinha,
um folgar muito deveras,
um embasbacar na vista,
um ai, quando a mão se aperta.

Um falar por entre dentes,


dormir a olhos alerta,
que estes dizem mais dormindo,
do que a língua diz discreta.

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Uns temores de mal pago,
uns receios de uma ofensa,
um dizer choro contigo,
choramingar nas ausências.

Mandar brinco de sangrias,


passar cabelos por prenda,
das palmitos pelos Ramos,
e dar folar pela festa.

Anal pelo São João,


alcachofras na fogueira,
ele pedir-lhe ciúmes,
ela sapatos e meias.

Leques, fitas e manguitos,


rendas da moda francesa,
sapatos de marroquim,
guarda-pé de primavera.

Livre Deus, a quem encontra,


ou lhe suceder ter freira;
pede-vos por um recado
sermão, cera e caramelas.

Arre lá com tal amor!


isto é amor? é quimera,
que faz de um homem prudente
converter-se logo em besta.

Uma bofia, uma mentira


chamar-lhe-ei, mais depressa,
fogo selvagem nas bolsas,
e uma sarna das moedas.

Uma traça do descanso,


do coração bertoeja,
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sarampo da liberdade,
carruncho, rabuge e lepra.

É este, o que chupa, e tira,


vida, saúde e fazenda,
e se hemos falar verdade
é hoje o Amor desta era.

Tudo uma bebedice,


ou tudo uma borracheira,
que se acaba co’o dormir,
e co’o dormir começa.

O Amor é finalmente
um embaraço de pernas,
uma união de barrigas,
um breve tremor de artérias.

Uma confusão de bocas,


uma batalha de veias,
um reboliço de ancas,
quem diz outra coisa, é besta.

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