O Crime de Burla Comum
O Crime de Burla Comum
O Crime de Burla Comum
A. Generalidades
I. O modelo napoleónico
No que diz respeito ao crime de burla, o actual CP distanciou-se significativamente do
anterior (Código de 1852/1886) que se inspirara no código francês de 1810.
Segundo o artigo 451º do CP português de 1886, era punido quem defraudasse a outrem,
fazendo que se lhe entregasse dinheiro ou móveis, ou quaisquer fundos ou títulos, “por
algum dos seguintes meios: 1º — Usando de falso nome ou de falsa qualidade; 2º —
Empregando alguma falsificação de escrito; 3º — Empregando artifício fraudulento para
persuadir a existência de alguma falsa empresa, ou de bens, ou de crédito, ou de poder
supostos, ou para produzir a esperança de qualquer acidente”.
O artigo 313-1 do CP francês (“De l’escroquerie”), na linha do desenho da burla dos
tempos napoleónicos e a exemplo do que acontecia com o anterior artigo 405, continua
ainda hoje a referir o uso de falso nome ou de uma falsa qualidade, o abuso de uma
qualidade verdadeira, ou o emprego de manobras fraudulentas. O agente engana, por esses
meios, outra pessoa, “determinando-a a entregar fundos, valores ou um bem (…), em seu
prejuízo ou de um terceiro”.
M. Miguez Garcia. Direito penal — Parte especial, § 16º (burla comum). Porto, 2009
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2. Estabeleceu-se assim uma distinção entre a mentira verbal, que não deveria ser
punida, e a manobra fraudulenta como "obra" material e exterior, de carácter
positivo
Acrescentava-se ainda a necessidade da constatação do engano, que será mais fácil de
obter quando o agente se serve de actos exteriores que aparentam uma falsa realidade pois,
neste caso, a possibilidade de verificar o engano fica facilitada pela sua produção material
no mundo exterior. Deste modo, será responsável por "escroquerie" o indivíduo que criou
sociedades fictícias e que, para persuadir terceiros a comprar partes dessas sociedades,
recorreu a uma publicidade intensiva e mentirosa destinada a convencer os eventuais
subscritores da realidade e da prosperidade dessas sociedades. Mas as simples afirmações
mentirosas não constituem, por si só e desacompanhadas de qualquer outra circunstância,
as manobras fraudulentas previstas no art. 405. Além disso, a "escroquerie", só podendo
resultar de um acto positivo, não se coaduna com a simples omissão, pelo que não comete
o crime quem se abstém de revelar a sua situação de insolvência à pessoa a quem solicita
um empréstimo ( ). 2
No nouveau Code Pénal, a simples mentira só integrará um meio fraudulento (art. 313-1)
se consistir no uso de falso nome ou de falsa qualidade. E do mesmo modo que no antigo
art. 405, não há manobras fraudulentas por simples omissão, nem por simples mentira. Se
alguém cala os defeitos ou os gravames da coisa não faz mais que omitir algo, sem
reflexos externos, que também não existem nos enganos implícitos, quando se adopta uma
conduta ou atitude que leva implícita a ideia do cumprimento de uma contrapartida. Só
haverá manobra fraudulenta se à mentira do agente se associar, por ex., a intervenção de
um terceiro destinada a dar-lhe crédito, como já pretendia Carrara no seu tempo. A mentira
tem que sair reforçada por um facto exterior que a ratifique, o qual consistirá, na maior
parte das vezes, ou numa mise-en-scène (v. g., se o burlão começa pela instalação fictícia
de escritórios, encenando a existência duma actividade comercial), no uso dum
documento, em actos publicitários ou na já sublinhada intervenção de um terceiro que
corrobora ou ampara o discurso mentiroso. ( ) 3
As objecções que se fazem a estas posturas radicam especialmente no facto de que, mesmo
a simples mentira, desvinculada de qualquer aparato ratificante, pode ser perigosa para
alguém facilmente sugestionável. A questão estará então em saber se, de um ponto de vista
de política criminal, deverão punir-se unicamente as fraudes de maior gravidade ou as
mais perigosas.
2 Code Pénal. Nouveau Code Pénal. Ancien Code Pénal, Dalloz, 93ª ed., 1995-96, p. 1981.
3 J. Larguier / A-M. Larguier, Droit pénal spécial, 9ª ed., p. 158; G. Giudicelli-Delage, Droit pénal des
affaires, 2ª ed., 1994, p. 92.
M. Miguez Garcia. Direito penal — Parte especial, § 16º (burla comum). Porto, 2009
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carácter fraudulento de uma qualquer conduta a partir dos meios empregados — seria o
mesmo que definir as lesões pela natureza da arma com que o agressor as produz.
Por ex., no Código Penal alemão (§ 263), a conduta supõe um engano sobre factos por
meio de uma afirmação mentirosa do burlão ou através de qualquer outro procedimento
com o valor de uma determinada declaração e que sirva para induzir alguém em erro. É
pelo engano que se provoca ou mantém um erro na outra pessoa e este erro deve prejudicar
o património do enganado ou de terceiro. O engano é um comportamento dirigido a
provocar um erro e tanto pode ser manifestado por declarações verbais como por
manipulações enganosas (apresentação de documento falso; manipulação do contador da
água, gás ou electricidade; troca da etiqueta com o preço de uma mercadoria), sendo
sempre necessária no agente a consciência de que entre o facto praticado e a realidade
existe uma discrepância. Há quem afirme que, nessa medida, o engano envolve já um
factor de ordem subjectiva. Tratando-se de factos ou procedimentos concludentes —
inequívocos—, o agente tem consciência, não obstante a via mediata ou oblíqua por que se
exterioriza a vontade, de que o seu comportamento corresponde a um determinado
conteúdo declarativo. Dispondo-se no § 263 que o objecto do erro podem ser apenas
factos, sejam eles internos ou externos, nega-se virtualidade típica aos meros juízos de
valor, às simples incorrecções e aos comportamentos usualmente permitidos no tráfico
jurídico e económico, com especial incidência na actividade comercial.
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é crime previsto no artigo 222º. O agente deve actuar com intenção de obter para si ou
para terceiro enriquecimento ilegítimo, causando a outra pessoa prejuízo patrimonial
através de aliciamento ou promessa de trabalho ou emprego no estrangeiro, aplicando-se
tanto à emigração legal como à clandestina. Sempre que o aliciamento não implique o
abandono do país da residência, o agente preenche, consoante os casos, os tipos legais dos
artigos 217º ou 218º, mas não este.
O bem jurídico protegido é exclusivamente o património (o património como um todo,
não é a boa fé nas trocas negociais; nem é simplesmente a protecção da vítima). Para a
doutrina tradicional, tutela-se o património, globalmente considerado, enquanto conjunto
de utilidades com expressão económica, cujo exercício ou fruição a ordem jurídica não
desaprova. Adiante nos confrontaremos com as limitações impostas por este entendimento
e com a maneira de as ultrapassar.
A tentativa é punível, mesmo na burla (simples) do artigo 217º, nº 1, ficando o
procedimento criminal, neste caso, mas não no de qualquer das hipóteses de burla
agravada, dependente de queixa.
O artigo 206º contém agora dois regimes distintos de privilegiamento para situações de
furto ou de apropriação ilegítima de coisa alheia.( ) 6
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O regime do nº 1 é aplicável aos casos previstos nas alíneas a), b) e e) do n.º 1 e na alínea
a) do n.º 2 do artigo 204.º e no n.º 4 do artigo 205.º, tendo como pressupostos:
— A restituição da coisa furtada ou ilegitimamente apropriada ou a reparação integral
dos prejuízos causados; e
— A concordância do ofendido e do arguido, sem dano ilegítimo de terceiro, até à
publicação da sentença da 1.ª instância.
Verificados todos estes pressupostos, o arguido vê a sua responsabilidade criminal extinta.
O regime do nº 2, já em vigor antes das alterações de 2007, leva à atenuação especial da
pena, desde que:
— A coisa furtada ou ilegitimamente apropriada seja restituída ou tiver lugar a
reparação integral do prejuízo causado;
— A restituição ou reparação se façam sem dano ilegítimo para terceiro até ao início
da audiência de julgamento em 1ª instancia.
Quanto a estas situações de privilegiamento, veja-se, através das devidas remissões (nºs 4
doa artigos 217º e 218º), o que se escreveu atrás, no parágrafo sobre crimes patrimoniais.
7 A consumação do crime depende da verificação do prejuízo. "O prejuízo patrimonial representa o centro
dogmático da burla moderna" (Kienapfel, BT II, 3ª ed., 1993, p. 227). Como já noutro lugar acentuámos,
na sua conformação actual, a burla é produto de uma sociedade evoluída, “é filha do século dezanove”.
Desprendeu-se a certa altura de uma específica actuação (por ex., a falsificação de um documento) e fixou-
se num resultado — o prejuízo patrimonial. Reconheceu-se que era essencial agir “con altrui dano” (cf.,
por ex., o artigo 640 do Código Penal italiano de 1930). Quando, a seguir, se chegou à conclusão de que “il
danno deve avere indole economica”, o ilícito passou a situar-se inequivocamente na órbita dos crimes
patrimoniais.
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enriquecimento ilegítimo não tem de ser realizada, embora o seja muitas vezes. ( ) Entra na 9
8Costa Andrade, “A Fraude Fiscal — Dez anos depois, ainda um crime de resultado cortado?”, RLJ ano
135º, nº 3939, Julho – Agosto 2006.
9 Esta intenção de obter um enriquecimento ilegítimo é um dos conceitos de disposição
(Dispositionsbegriffe) de que fala Hassemer: não se revelam por si mesmos, é necessário deduzi-los de
outros dados. Estes é que são empiricamente verificáveis, funcionam como indicadores da existência dos
primeiros.
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Almeida Costa, Comentário Conimbricense ao Código Penal, tomo II, pág. 306). Só haverá burla se a
disposição patrimonial toda ela, ou uma disposição patrimonial para além de certo montante, tiverem por
única causa o erro ou engano, por sua vez provocado pela astúcia do agente (cf. Ac. do STJ de 21-05-1998,
Proc. n.º 179/98). Por último, o crime de burla é um crime de resultado «parcial ou cortado», porque não se
exige o enriquecimento efectivo do agente, antes sendo suficiente o empobrecimento do burlado ou
terceiro (cf. Ac. do STJ de 04-06-2003, Proc. n.º 1528/03).
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10 “[A palavra] não permite apenas a dissimulação (a omissão ou a mentira ingénua), mas também a
dissimulação da dissimulação (a mentira hábil, a manha). Não se limita a fazer acreditar, faz dizer ao outro
a sua verdade: abandona-o ao que ele toma pelo que não é. (…) Não há engano que não procure ter a
aparência da verdade e da boa-fé. Estas constituem uma condição sine qua non da astúcia. (…) Se posso
acreditar no outro mais sob palavra do que sob prova, é apenas na medida em que a relação de posições
que nos liga faz parte das nossas representações partilhadas: dado o que ele é para mim e o que eu sou para
ele, a sua palavra não me pode enganar sem que ele se veja, ao mesmo tempo, diminuído aos meus olhos.
Na medida em que a colocação do seu ser implica que eu o reconheça (ou seja, que as nossas posições
respectivas estejam ligadas e que formulemos algo a partir daí), existe entre nós uma garantia de boa-fé.
Que eu possa acreditar no outro sob palavra supõe o seguinte: que a formulação da relação posicional que
nos liga (na medida em que acedemos a essa formulação) seja o garante que transforma em confiança a
necessidade inelutável que o meu próprio ser dependa do ser do outro. Esta formulação — admitindo que
seja verídica, que seja uma palavra verdadeira — vale ao mesmo tempo como fundamento da ordem
simbólica, ou seja, como único apoio contra a desmesura do desejo, e abismo da falta. Todavia, a boa-fé
não se deve confundir com uma utópica transparência; não exclui o engano: paradoxalmente, coexistem. A
palavra abre-se à violência, à confusão e à morte, só quando a astúcia deixa de ser possível”. Roland
Barthes e François Flahault, Palavra, Enciclopédia Einaudi, 11, p. 131.
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mas deformados, ou ao uso de falso nome ou de falsa qualidade. Pode ser a utilização de
documentos falsos ou falsificados ou de qualquer comportamento em que a mentira sai
reforçada por um facto exterior.
Tudo expressões cuja descrição ou enumeração a lei portuguesa economiza.
Pode inclusivamente dar-se relevância a comportamentos omissivos, como guardar
silêncio — e aqui sempre teria de intervir a possibilidade de o crime ser cometido por
omissão imprópria, nos termos do artigo 10º.
Contudo, na burla "há que notar uma sensível descriminalização, na medida em que o
mero aproveitamento do erro deixou de ser elemento típico suficiente para a sua
verificação”. ( ) 12
Ponto é que a conduta astuciosa, que na lei portuguesa é elemento típico imprescindível, se
possa então caracterizar.
Caso nº 3 A, que negoceia em viaturas usadas e tem, inclusivamente, uma oficina especialmente
apetrechada para proceder a qualquer tipo de reparações, recebe a visita de B, interessado num
determinado automóvel usado. No meio da conversa, A aponta para o automóvel, esclarecendo
o cliente que aquela viatura interviera uns seis meses antes num acidente sem gravidade, mas
que fora integralmente reparada nas suas próprias instalações. Tal informação era exacta.
11Sobre a viabilidade de a emissão de cheque constituir meio fraudulento do crime de burla, o acórdão do
STJ de 21 de Abril de 1999, BMJ 486 p. 128.
12 Eduardo Correia, As grandes linhas da reforma penal, Jornadas de direito criminal, CEJ 1983.
13 Ebert, p. 163; Haft, p. 206.
14 Ebert, p. 163: A cláusula de equivalência tem a ver com o modo de produção do resultado, diz respeito
somente àqueles tipos que não se limitam a sancionar a simples causação do resultado (desvalor do
resultado), mas que, para além disso, exigem uma determinada modalidade de acção (desvalor da acção). A
equivalência da omissão à acção assenta, nestes tipos de ilícito, na circunstância de a omissão não estar em
relação somente com a produção do resultado, mas também com o modo típico da sua produção. Na burla
exige-se, não uma qualquer causação dum dano mas um dano por erro ou engano; a omissão deverá incluir
portanto a não evitação de um erro.
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Todavia, A omitiu que o anterior proprietário tinha tido um outro acidente com o mesmo carro
que então sofreu graves danos.
Perante condutas exteriormente equívocas ou ambíguas, suscitam-se por vezes questões de
distinção prática entre crimes de acção e de omissão. A solução está ligada à circunstância
de saber se o agente criou ou potenciou o perigo para o bem jurídico ameaçado (conduta
activa) ou antes se não diminuiu ou eliminou um tal perigo (conduta omissiva). A
distinção tem um grande significado porque só nos crimes omissivos impróprios se
pressupõe um “especial dever jurídico de pessoalmente evitar o resultado” no sentido do
dever de garantia (artigo 10º).
No caso anterior pode muito bem ter acontecido que das circunstâncias em que a conversa
ocorreu, o cliente tenha interpretado as palavras do A como querendo significar que o
carro só tinha tido aquele acidente e mais nenhum. A declaração, se bem que em si
correcta, é no entanto incompleta e, inclusivamente, quando conjugada com o
efectivamente acontecido ao carro, falsa. Mas sendo assim o que estará em causa é um
engano na forma activa, o que logo exclui a intervenção da disciplina contida no artigo
10º. ( ) Por outro lado, cumpriria certamente ao cliente certificar-se do estado real da
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viatura, dada a secura da afirmação produzida pelo dono da oficina, com que de modo
nenhum se deveria contentar.
Caso nº 4 Burla por omissão. J é jogador reputado mas já com 35 anos. Pertence aos Panteras Negras e
interessa aos Panteras Brancas, ambos da primeira liga de futebol. Era sabido que J se tinha
lesionado, de forma que os Panteras Brancas não estavam na disposição de largar mão de um
milhão de euros pela sua contratação por um ano. O jogador concordou por isso que o seu
médico, M, atestasse a sua capacidade para jogar a temporada inteira na primeira liga, tendo-
se ademais combinado que sem isso o ajuste não se faria. M passou o atestado, dando o J como
fisicamente apto e capaz de aguentar o ano inteiro sem problemas. Estes dados todavia não
diziam respeito a J, mas a um outro jogador dos Panteras Negas, o P, de 25 anos. O médico
recorreu ao computador mas, por engano, trabalhou com os dados do P, que havia observado
quando este ingressara no seu actual clube. Acontece que o médico se apercebeu do seu erro,
sem dúvida devido a uma mera desatenção, ainda antes do fecho da contratação do J. Apesar
disso, nada fez no sentido de repor a verdade dos factos, porque tinha interesse próprio na
contratação do J por um novo clube, o que lhe dava a garantia de voltar a ganhar uns largos
milhares como acontecera várias vezes nos anos em que o J era mais jovem e cobiçado no
mundo do futebol. Logo no primeiro jogo pelo seu novo clube se manifestou no J uma lesão
anterior que o pôs no "estaleiro" por toda a temporada. (Adaptado de Mitsch, Strafrecht, BT II,
p. 430).
Responsabilidade penal do médico?
No caso de anterior intervenção geradora de perigos o sujeito é obrigado, como garante, a
impedir a produção do correspondente resultado de dano. Quem cria o perigo tem o dever
de impedir que este venha a converter-se em dano (ingerência). O médico redigiu o seu
relatório baseado em informações falsas de que, por engano, se socorrera, cumprindo-lhe
por isso desfazer o engano, actuando positivamente, explicando o que acontecera (o que só
não terá feito em vista de um enriquecimento da sua parte, que de resto sabia ilegítimo).
Todavia, omitiu esse dever jurídico de pessoalmente evitar o resultado que acabou por se
produzir no património dos Panteras Brancas. Sabia, além disso, que com a verdade
reposta, o clube não teria assinado o contrato. Sendo a omissão dolosa, parece indubitável
a existência de um engano causal do erro em que o clube caiu e igualmente causal da
disposição patrimonial que levou ao prejuízo sofrido. A omissão do médico é punível
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como burla, faltando aferir do valor para eventualmente qualificar o crime. Note-se por
último que para a formação do erro em que se envolveu, o clube não deu qualquer
contributo. ( ) 16
Caso nº 4-B: Factos concludentes. Crime de burla qualificada dos artigos 217º e 218º, nº, 2, a), com
referência ao art. 202º, b). A, agindo sempre em nome da sociedade CC, tinha celebrado, como
locatário, um contrato de locação financeira sobre um determinado prédio rústico.
Posteriormente celebrou com a assistente um contrato-promessa de compra e venda,
prometendo vender-lhe o referido prédio, ao qual se previamente deslocou acompanhado do
gerente da assistente e do advogado desta. Nunca o arguido referiu que o prédio estava sujeito
àquele contrato de locação financeira e que, portanto, a firma por ele representada não era
proprietária do mesmo. Por conta do preço estipulado, o arguido recebeu 47 500 000$00.
Cerca de dois meses depois da celebração do contrato-promessa, a assistente, que celebrou
esse contrato na convicção de serem verdadeiras as disposições nele contidas, veio a saber que
o prédio não era propriedade da firma representada pelo arguido. Tentou então que o arguido
celebrasse a prometida venda ou, ao menos, cedesse a sua posição no contrato de locação, mas
o arguido inviabilizou tal negócio.
Disse o acórdão do STJ, CJ 2008, tomo II, p. 255: "Desta matéria de facto não consta
quem tomou a iniciativa do negócio, nem como foram iniciados os contactos entre as
partes. Certo é, porém, que a assistente outorgou o contrato-promessa de compra e venda
na convicção de que o A representava a proprietária do prédio; e que este, mesmo depois
de se deslocar ao local com o promitente-comprador e o seu advogado, nunca o (ou os)
esclareceu que era apenas locatário financeiro do mesmo. O A sabia que o promitente-
comprador estava agindo de boa-fé, ou seja, estava convencido de que ele representava a
proprietária do prédio, tendo ocultado sempre que o verdadeiro proprietário era outro,
facto que veio a ser conhecido pela assistente de outra fonte (ignora-se qual), já depois da
celebração do dito contrato-promessa. A má-fé negocial do A é, a todos os títulos,
evidente. Ele comportou-se activamente como proprietário (melhor, como representante da
proprietária), iniciando e intervindo activamente nas negociações para a venda do prédio,
ajustando o preço, deslocando-se mesmo ao local acompanhado da outra parte, e
finalmente celebrando o contrato-promessa, como sócio-gerente da sociedade CC, que
declarou então ser proprietária do prédio em referência. E recebendo logo uma primeira
fatia do preço, a que outras se seguiram, até ao montante de 47 500 000$00. Esta sucessão
de actos, embora nunca envolvendo uma declaração expressa por parte do A arrogando-se
ou admitindo a qualidade de proprietário do prédio, constitui sem qualquer dúvida um
conjunto de actos concludentes, pois deles o representante da assistente, na sua boa-fé, só
poderia depreender e concluir que o arguido era de facto o gerente da proprietária do
prédio e consequentemente tinha poderes para o vender, de forma que esses actos encerram
uma idoneidade em tudo idêntica à das declarações expressas para enganar a assistente,
isto é, para a manter na convicção errada de que o prédio pertencia à sociedade gerida pelo
arguido. Aliás, o comportamento subsequente do A, inviabilizando qualquer hipótese de
negociação e composição de interesses (nomeadamente com a transmissão da posição de
locatário do prédio) e apropriando-se das diversas quantias recebidas por conta do
contrato, é demonstrativo de que ele nunca realmente quis celebrar aquele negócio, mas
apenas apropriar-se ilicitamente de valores através de engano ou erro da assistente.
Acresce que é incontestável que foi o erro mantido pelo A que levou a assistente a celebrar
o negócio e a entregar-lhe as quantias referidas. Estão, assim, verificados todos os
elementos típicos do crime de burla (cometido por acção): um prejuízo patrimonial
M. Miguez Garcia. Direito penal — Parte especial, § 16º (burla comum). Porto, 2009
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motivado por erro astuciosamente provocado (por meio de actos concludentes) pelo
agente".
17 Alguns são de opinião que se deverá excluir da tutela penal quem não pôs um mínimo de cuidado na sua
própria protecção, por não merecerem protecção aquelas situações em que o erro podia ter sido evitado
com um mínimo de atenção, empenho ou diligência próprias do homem médio. Não basta assim para haver
burla, que alguém se apresente com um automóvel visivelmente amolgado e a revelar bastantes anos de
uso e o venda “como novo”. A ultima ratio do direito penal começa por valer logo em relação às
possibilidades de auto-tutela ao dispor de uma vítima “normal”, não chocantemente crédula ou ingénua
(Costa Andrade). A postura restritiva baseada na necessidade de um engano objectivo materializado e
capaz de induzir um “homem médio” em erro é hoje em dia recusada, por ex., por Conde-Pumpido, para
quem, objectivamente, a conduta deverá valorar-se em função do âmbito da confiança ou boa fé em que se
desenrola. Subjectivamente, entram em jogo quer as condições pessoais do sujeito enganado — que pela
sua falta de cultura, situação, idade, ou défice intelectual, é mais sugestionável ou aparece mais indefeso
relativamente e enganos grosseiros — quer as relações em que o ofensor desperta a confiança da vítima
determinando o enfraquecimento do cuidado habitual. Nesta perspectiva, as condições de suficiência do
engano devem ser valoradas intuitu personae, fazendo-se uso de critérios pessoais individualizadores, e em
função do caso concreto
M. Miguez Garcia. Direito penal — Parte especial, § 16º (burla comum). Porto, 2009
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podem ser apenas factos, sejam eles externos ou internos: o agente comete o crime "[...]
por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou [...]", diz-se no
artigo 217º, nº 1. O convencimento sobre o que vai acontecer no futuro, por ex., que o
preço de umas acções na Bolsa vai subir, não é um facto, independentemente do grau de
certeza que se ponha na afirmação. Também não é um facto a solvabilidade futura de
quem consegue um empréstimo, não obstante o convencimento empenhado do mutuante.
Não é nenhum facto a futura capacidade de pagar de quem compra a crédito ou pede
dinheiro emprestado (em tais casos, facto será o convencimento actual de quem compra a
crédito ou do mutuário sobre a sua capacidade de vir a pagar ou a intenção de o fazer no
futuro). Na prática, surgem porém dificuldades. No exemplo de Stratenwerth, se alguém
diz falsamente que um empresário acaba de realizar um importante invento que vai fazer
com que suas acções subam em flecha, engana a respeito de um facto. Facto é, por ex., “o
conjunto das características de uma máquina, bem como o modo por que ela é fabricada, o
conteúdo duma conversa da véspera ou a ideia que alguém hoje faz de algo determinado”
( ), o preço ou a data de fabrico de uma mercadoria. A razão da burla não é o facto
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enquanto tal mas a afirmação do facto (suposto). Esta afirmação é descrita na norma alemã
como a referência a “factos falsos ou alteração ou dissimulação de factos verdadeiros”.
actividade que baste para enganar — seriam condutas atípicas. A menos que a actividade
reflicta um processo astucioso, montado para levar a uma disposição patrimonial que
produza um prejuízo, estando presentes os restantes elementos objectivos e subjectivos.
Por idênticas contas, também não haverá burla quando alguém solicita um empréstimo
com a simples afirmação de ser proprietário de imóveis, ou no caso da obtenção de
dinheiro com a promessa de enriquecimento por meios sobrenaturais. Aliás, sempre se
poderia acrescentar que o erro não é produto da actividade do curandeiro ou da bruxa, mas
de crenças prévias e irracionais do suposto enganado. Ou que quando o sujeito passivo
leva a cabo a disposição patrimonial sem qualquer erro, conhecendo a mentira ou por puro
passatempo ou liberalidade, também não existe burla: videntes, falsos adivinhos, etc., não
enganam ninguém mas obtêm proveitos deste modo.
Cabem aqui os enganos em que caem pessoas especialmente indefesas, como os incapazes
(incapazes de conhecer e de entender): alguns menores ou deficientes mentais. Tratando-se
de um doente mental, o facto de se determinar uma pessoa nesta situação a entregar uma
coisa constitui furto, segundo uma parte da doutrina. O engano, diz-se, não é meio idóneo
para influenciar uma vontade inexistente no âmbito jurídico, sem que esta conclusão
implique a impunidade da conduta. O caso seria de subtracção, na impossibilidade de se
afirmar um verdadeiro acto de disposição. Tratando-se duma pessoa parcialmente incapaz,
a burla é contudo possível.
18 A afirmação de que um determinado produto "lava mais branco" não integra um facto mas tão só um
juízo de valor.
19 Blei, p. 221.
20 Bajo Fernández.
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A burla do mendigo é um tema debatido na doutrina alemã que alguns autores introduzem
no âmbito dos enganos socialmente tolerados. Na medida em que o dador procede de
forma completamente indiferente quanto às supostas necessidades de quem pede e só quer
livrar-se deste o mais depressa possível, o facto deverá ficar impune, mesmo quando na
mendicidade se alegam necessidades ou situações que podem ser fictícias ou exageradas.
d) O aproveitamento do erro
Quase seria desnecessário insistir em que a conduta enganosa deverá anteceder o erro —
só quando forem prévias é que as actividades do burlão poderão declarar-se causais ou
motivadoras do erro em que a vítima caiu. É neste quadrante que convirá rever aspectos
das implicações penais de certas atitudes omissivas, sabendo-se que alguns ordenamentos,
como o suíço, contam expressamente com o aproveitamento dum erro preexistente da
vítima entre as modalidades da burla. Pode certamente falar-se de casos de erro
preexistente noutra pessoa, mas dificilmente se justificará que esse erro seja causado ou
induzido por um nada fazer ou por um continuar calado — como quando um comerciante,
no exercício da sua actividade, não desfaz determinado equívoco, embora se aguardasse
dele outro procedimento. Há, no entanto, autores (por ex., Conde-Pumpido) que apontam
uma concausa para o erro quando a conduta do agente se dirige à confirmação ou à
reafirmação do erro preexistente, maxime se o sujeito passivo está numa posição em que é
de confiar que o agente desfaça qualquer equívoco sobre o tema — quem, no acto da
compra, exprime a sua equivocada crença de que o objecto que lhe interessa é de prata, ou
que as pedras que o adornam são autênticas, tem o direito a confiar em que, se assim não
for, o comerciante vendedor lho esclareça. E conclui. “Estamos de novo no terreno das
omissões e das acções esperadas: estando o agente obrigado, juridicamente ou por um uso
social, a clarificar a situação, se assim não fizer estará a determinar a actuação em erro do
sujeito passivo”. Mas esta é uma conclusão muito discutível e em todo o caso de dimensão
e alcance reduzidos.
Entre nós, logo na discussão do Projecto Eduardo Correia se considerou que a solução
proposta ("quem, com intenção de obter (…) um enriquecimento, através de erro ou
engano sobre factos que astuciosamente provocou ou aproveitou…") "levaria a um
alargamento excessivo do tipo" (Actas, p. 139). O termo "aproveitou" não chegou a ser
introduzido na redacção final do preceito, pelo que a possibilidade de um crime por
omissão ficou reduzida à articulação com o artigo 10º do CP, ainda que, também aqui, haja
quem se oponha à sua aplicação, a nosso ver sem razão, como vimos supra, em 2 a). ( ) 21
21 Uma exposição sucinta mas clara sobre o assunto pode ser vista em Helena Moniz, O Crime de
Falsificação de Documentos, 1993, p. 81, nota 144.
M. Miguez Garcia. Direito penal — Parte especial, § 16º (burla comum). Porto, 2009
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4. A deslocação patrimonial
Como consequência do erro, a vítima deverá realizar o outro requisito da burla: um acto
de disposição. Os actos de disposição são o elemento do tipo que em pertinente relação
causal estão em contacto, dum lado, com o elemento intelectual que é o erro ou engano de
quem os pratica; do outro, com a consequência exterior — patrimonial — da burla, que é o
prejuízo do enganado ou de terceiro. Esse nexo causal “deve essere concretamente
accertato”, avisa Delpino.
O desenho da burla, que é crime de relação, envolve dois comportamentos, mas só se
pune o do burlão. A figura da vítima é certamente imprescindível no iter criminis da burla
mas nunca se assume como punível. A própria actividade do enganado não se segue de
modo necessário à actividade do burlão: este pode ter praticado todos os actos tendentes ao
fim em vista, sem que rigorosamente se possa afirmar que vai ter lugar o acto de
disposição pretendido, ou que este vai gerar, de forma inelutável, um prejuízo patrimonial.
No desenvolvimento do processo defraudatório, esta dupla circunstância repercute-se na
questão da tentativa acabada e na definição da desistência activa (artigo 24º, nº 1, do
Código Penal), como de forma pertinente observam Fernanda Palma-Rui Pereira.
Referindo-se ao papel da vítima — ao modo como a vítima “participa” no processo
executivo — a lei limita-se à expressão "determinar outrem à prática de actos que lhe
causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial". O prejuízo, a lesão do bem
jurídico tutelado, será produto de uma actuação do próprio sujeito induzido em erro. É
aqui que reside o que de essencial tem esta matéria: a conduta do sujeito passivo, omissiva
ou comissiva, de simples permissibilidade ou de tolerância, deverá ser consequência do
erro — de forma que “o erro deverá ser analisado como motor do acto de disposição da
vítima” (Pérez Manzano). É o erro que deverá provocar no sujeito passivo uma vontade de
disposição, sendo indiferente que tal vontade se traduza num comportamento activo ou
passivo. No fundo, é indiferente a modalidade da conduta. Trata-se de qualquer
comportamento voluntário (por conseguinte: com carácter de autorização ou mesmo só
omissivo do enganado) que provoca uma diminuição patrimonial ao próprio ou em
património alheio. Deste modo, representa uma disposição patrimonial a renúncia a um
crédito por parte do credor que a isso é induzido enganosamente.
M. Miguez Garcia. Direito penal — Parte especial, § 16º (burla comum). Porto, 2009
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Para negar a burla, aponta-se o exemplo do médico que alta noite é chamado à residência
distante de um paciente mediante telefonema falso, aproveitando os delinquentes a sua
ausência provocada para lhe pilharem a casa. Na hipótese, não houve qualquer disposição
patrimonial do médico, não obstante a tramóia em que caiu: os ladrões é que subtraíram as
coisas e cometeram um furto.
Esta característica de ser a disposição patrimonial voluntária deixa à vítima a possibilidade
de escolha, de forma que se M se intitula falsamente funcionário do tribunal e consegue
que F lhe entregue alguns bens, alegadamente “penhorados”, dir-se-á que este acto só foi
voluntário na aparência, na medida em que ao pretenso executado "só" restava entregar os
bens. Terá havido furto, ainda que a solução seja discutível. A diferença entre a burla e os
crimes de apropriação estriba-se em que, na burla, o prejuízo resulta do acto de disposição
realizado pelo próprio sujeito passivo voluntariamente, ainda que com a vontade viciada.
Decisiva é aqui a margem de liberdade de que a vítima dispõe e não a forma como
exteriormente se molda a actuação (subtracção, entrega).
É este elemento estrutural da burla, a disposição patrimonial, que permite distingui-la, já
se vê, de outros ilícitos vizinhos, por ex., do abuso de confiança. Desde logo: no abuso de
confiança, a entrega da coisa não ocasiona nenhum dano ao disponente, o acto de entrega
obedece aos seus próprios interesses, como reflexo de uma relação contratual determinada,
assente numa relação de fidúcia, de empréstimo, de depósito, etc. O resultado prejudicial
não deriva da disposição prévia mas de uma apropriação posterior do sujeito activo do
delito. Observe-se ainda que no abuso de confiança a detenção da coisa é originariamente
lícita e só depois surge a respectiva apropriação ilegítima — falta, por isso, o engano
prévio que é essencial na burla. Quanto à distinção com o furto, citam-se alguns casos de
fronteira, nomeadamente aqueles em que o crime aparece associado a um engano ou à
astúcia do sujeito activo, que, ainda assim, subtrai uma coisa ao seu legítimo dono. Mas o
nervo distintivo estará porventura em que, na burla, a diminuição patrimonial típica é
consequência directa da própria disposição patrimonial realizada pelo enganado — entre
esta conduta e o resultado não deverá mediar uma actividade do agente que se possa
classificar como de subtracção, o dano é dano provocado pelo próprio agente. O prejuízo
patrimonial tem lugar directamente, sem outra actuação delituosa do burlão. ( ) No furto, o
22
dano do lesado ocorre a arbítrio do ataque do ladrão sobre a coisa, isto é, através da
subtracção. Se um falso empregado da empresa fornecedora da luz eléctrica bate à porta e
a pretexto de ter de consultar o contador no interior da habitação aproveita para fazer mão
baixa de alguns objectos, do que se trata é de furto, não obstante o erro em que foi
induzido quem lhe facultou a entrada.
Geralmente há duas pessoas envolvidas no crime consumado, o burlão e a vítima, mas
podem envolver-se três e até quatro. O burlão é sempre uma pessoa física determinada,
sendo errado afirmar que alguém foi “burlado” por um Banco ou por uma companhia de
seguros. Por outro lado, não se duvida hoje da burla a favor de terceiro, nem
legitimamente se colocam problemas a propósito da falta de coincidência entre a
identidade do enganado e a do prejudicado. A disposição patrimonial tem que ser feita
pelo enganado (sem o que faltaria a necessária relação causal) mas pode prejudicar o
património de terceiro, quiçá uma pessoa colectiva (burla em triângulo; Dreiecksbetrug).
Ainda aqui podem colocar-se questões de autoria mediata e problemas de fronteira com o
furto, inclusive porque a subtracção de uma coisa pode ser acompanhada de processos
22 Wessels, p. 143.
M. Miguez Garcia. Direito penal — Parte especial, § 16º (burla comum). Porto, 2009
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a faculdade jurídica de dispor. Essas relações podem ser apenas fácticas. Se uma
empregada doméstica entrega uma coisa valiosa a quem diz falsamente vir de mando do
dono da casa, não haverá um acto dispositivo juridicamente entendido, nem sequer o acto
de entrega constitui um negócio jurídico. Os penalistas resolveram adoptar por isso um
conceito amplo de acto dispositivo, sem que seja necessário que a transferência ocorra
conforme o modelo do negócio jurídico patrimonial. Por conseguinte, não se exige que o
disponente tenha juridicamente a faculdade e a capacidade para dispor — mas então
podem surgir problemas.
Caso nº 5 A sublocou um dos quartos da sua casa a B. Durante uma ausência de B, A entrega a chave do
carro deste a C, que falsamente se lhe apresenta como vindo a mando do inquilino.
Caso nº 6 Alguém convence astuciosamente o encarregado de uma garagem de recolhas a entregar-lhe a
chave do carro de um terceiro (Parkgaragenfall); ou convence a encarregada do vestiário de
uma casa de espectáculos a deixar-lhe levar o sobretudo de outrem.
Caso nº 7 Alguém, dizendo-se falsamente dono de umas toneladas de lenha que se encontram à beira da
estrada convence outrem a transportá-las para um seu armazém.
O tratamento destes casos é discutível. ( ) Podemos partir da ideia de que só haverá burla
24
M. Miguez Garcia. Direito penal — Parte especial, § 16º (burla comum). Porto, 2009
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uma disposição patrimonial induzido directamente pelo erro, sem minimamente se ter
apercebido do que acontecera, mas ainda assim há burla. Quando alguém assina sem ler
um documento de assunção de dívida, cujas características nem sequer conhece, por lhe ter
sido apresentado como uma petição para melhoria das condições prisionais, procede
inconscientemente, sem saber que se vincula a uma disposição patrimonial com o
correspondente prejuízo. Para que se possa afirmar a burla em casos com esses, basta, no
entanto, quanto a nós, que o sujeito esteja consciente da realidade material do seu acto, da
simples materialidade do mesmo.
A burla em triângulo convoca igualmente a chamada burla processual (Prozeßbetrug):
casos em que a parte num processo, com a sua conduta enganosa, realizada com ânimo de
lucro, induz o juiz em erro e este, em consequência do erro, dita uma sentença injusta que
causa um prejuízo à parte contrária ou a terceiro. Uma parte no processo provoca o erro do
juiz apresentando conscientemente dados ou meios de prova falsos para conseguir uma
decisão desfavorável à outra parte. Quem procede à disposição de um valor patrimonial é
quem labora em erro (o juiz), o prejudicado é outra pessoa, por exemplo, o fisco. Na maior
parte das vezes, os factos integrarão uma falsificação de documentos ou falso testemunho.
Muñoz Conde (p. 280) admite que o tribunal é utilizado em certos casos como um
instrumento de comissão do crime de burla, em autêntica autoria mediata; se não se
admitir a “estafa procesal” haverá factos que ficariam impunes, como quando se trata de
cobrar dívidas já cobradas ou se fingem incapacidades para alcançar uma indemnização
maior. Existe um princípio de boa fé processual que se impõe às partes, mas devem estar
presentes todos os elementos da burla, incluindo a finalidade patrimonial da actuação. Na
Suíça, a jurisprudência entende que não comete o crime de burla aquele que induz o juiz
em erro e consegue por isso uma decisão prejudicial à parte que se lhe opõe ( ). Também 25
actividade judicial não pode ser considerada meio idóneo para o cometimento do crime de
burla (ac. do STJ de 6 de Outubro de 1960, BMJ 100, p. 449).
Recentemente, porém, o Supremo ocupou-se dum caso de burla processual. ( ) A e B 27
usaram um contrato de promessa de compra e venda numa acção cível destinada a obter de
C a entrega dos bens, falsamente prometidos vender e falsamente já pagos. Da parte de A e
B nunca houve vontade de realizar o negócio correspondente, mas antes tão só uma
decisão pré-concebida de não cumprir o contrato de promessa, utilizando-o exclusivamente
na acção judicial, como elemento do engano.
Ainda quanto à litigância de má fé em processo penal e os outros meios de que os tribunais
penais podem e devem usar quando os sujeitos processuais e os advogados usam de
M. Miguez Garcia. Direito penal — Parte especial, § 16º (burla comum). Porto, 2009
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5. O prejuízo
A burla completa-se, quanto aos seus elementos objectivos, com o prejuízo — prejuízo
patrimonial, já se vê. Sem prejuízo, poderá haver burla, mas só na forma tentada. Já
anteriormente vimos que a disposição patrimonial estabelece o cordão umbilical entre erro
e prejuízo patrimonial e releva como causa do dano patrimonial. De forma que o prejuízo,
seja ele do enganado ou de terceira pessoa, há-de ser consequência desse acto dispositivo.
O princípio fundamental para a determinação de qualquer prejuízo patrimonial consiste, de
acordo com o que é corrente na Alemanha, na comparação da situação patrimonial da
vítima antes e depois do acto de disposição efectuado. Haverá prejuízo patrimonial se, na
sequência dessa disposição, o património, encarado como um todo, se mostrar diminuído.
Se utilizarmos a noção jurídico-económica de património, como conjunto de bens e
interesses económicos juridicamente protegidos, haverá prejuízo sempre que se verifique
diminuição do activo, aumento do passivo ou perda do ganho devido. Pode até o prejuízo
consistir na privação duma vantagem económica certa, a qual teria permitido um aumento
patrimonial ou evitar que a vítima sofresse uma diminuição do passivo. ( ) 28
O acórdão do STJ de 7 de Outubro de 1991, CJ 1991, tomo 4, p. 34; BMJ 410, p. 305,
entendeu que a determinação do valor do prejuízo do burlado é feita pelo valor do dano no
momento da prática do facto.
Caso nº 8 No exemplo (adaptado) de Wessels, um marroquino aparece à porta da senhora A, propondo-se
vender-lhe um tapete persa com o valor de venda de 500 euros por esses mesmos 100 contos.
Afirma a pés juntos, mas mentirosamente, que se trata de um preço especial, apenas possível
porque a sua firma está a fazer uma promoção, mas só durante mais uma semana. O preço
normal do tapete, afiança o vendedor, é de mil e cem euros. A, para não perder a oportunidade
de comprar o tapete, que lhe é útil, mas perfeitamente dispensável, paga por ele os 500 euros
pedidos. Se não tivesse sido enganada, A não teria comprado o tapete.
A questão que se põe é a de saber se A sofreu um prejuízo patrimonial. No domínio dos
contratos sinalagmáticos torna-se difícil a definição dum prejuízo por a diferença entre a
prestação devida e a realmente executada ser praticamente inexistente. A disposição
patrimonial realizada pela A vem na sequência de um erro produzido na conclusão de um
contrato mediante o qual se obrigou a pagar o preço acordado. Esta prestação tem, porém,
valor idêntico ao da contraprestação.
A posição que proclama a inexistência da burla em casos como estes remete para a
aplicação de critérios objectivos, pondo-se de lado a avaliação da situação feita pela
própria vítima. Se esta pretendia uma camisa de seda natural e acaba por levar uma camisa
de seda artificial, mas paga por ela o preço justo, não poderá contabilizar-se um prejuízo.
Há circunstâncias, porém, em que não será desajustado contar com factores individuais,
rejeitando-se a ideia abstracta do “homo oeconomicus” e operando-se com critérios de
razoabilidade, como no caso do jardineiro que, enganado, aceita pagar o preço de uma
enciclopédia sobre jardinagem mas acaba por receber uma outra sobre a agricultura nas
28 Este tipo de considerações leva à discussão sobre se a compensação patrimonial afasta o prejuízo
enquanto elemento da burla. Se considerarmos o património como um todo, é justo atender não só às
desvantagens, mas também às vantagens resultantes. No entanto, só haverá compensação quando a perda
da coisa, como valor económico, se compense com outro valor económico.
M. Miguez Garcia. Direito penal — Parte especial, § 16º (burla comum). Porto, 2009
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regiões alpinas que para nada lhe serve. “A maior parte dos objectos não têm o mesmo
valor patrimonial para toda a gente, porque não servem para todos de igual maneira.
Portanto, avaliação objectiva, mas olhando-se às relações individuais do património
concretamente afectado”. ( ) Em suma, deverá ter-se em conta a finalidade patrimonial
29
pretendida pelo titular que se for frustrada gera um prejuízo patrimonial, de forma que
quem recebe uma coisa que não reúne as condições prometidas e que estão na base da
realização do correspondente negócio jurídico, sofre um prejuízo, mesmo que o valor da
coisa seja equivalente ao despendido. A quem compra um livro pelo preço justo, é
indiferente saber se o dinheiro pago é efectivamente para obras de caridade.
Mas até onde poderá ir a protecção do património por intermédio da incriminação da burla
quando estão em causa actividades ilícitas? Farão parte do património os objectos que
alguém obteve por forma criminalmente ilícita?
O prejuízo patrimonial, que é elemento de outros tipos de crime, suscita um elevado
número de questões, a maioria delas conexionadas com a noção de património. A
disposição patrimonial deverá conduzir à diminuição do património do enganado ou de
terceiro, deverá ser razão de um dano patrimonial. O conceito de património tem aqui a
sua principal área de intervenção. Uma coisa é certa: a doutrina maioritária considera o
património como o bem jurídico protegido no crime de burla e define-o de acordo com as
suas características mistas: “soma dos bens economicamente valiosos que uma pessoa
detém com a aprovação do ordenamento jurídico”.
A noção mista de património é afeiçoada por A. M. Almeida Costa, Conimbricense, p.
282, com “correctores” tendentes a compaginá-la com a teleologia do direito penal”,
adoptando-se um procedimento que conduz “a um específico conceito jurídico-criminal de
património”. “Quer dizer, a um conceito aberto, cuja determinação compete à
jurisprudência e à doutrina ao nível das decisões concretas”. Com efeito, a aplicação pura e
simples da noção mista de património, abrangendo o conjunto dos valores ou utilidades
económicas “protegidas pela ordem jurídica”, suscita “algumas reservas”, determinantes de
“correcções” excepcionais. Por ex., “à semelhança do que sucede noutros ordenamentos,
de harmonia com o disposto no art. 280º do CC, a orientação em análise terá de excluir do
conceito de património as pretensões ou posições económicas decorrentes de negócios cujo
fim se revele contrário à “moral social”, rectius aos “bons costumes”. Trata-se, porém, no
entender do mesmo autor, “de uma consequência inadmissível” em face da ideia
(subjacente ao próprio art. 18º, nº 2, da CRP) de que, num Estado de direito democrático, a
intervenção penal não se dirige à tutela de pressupostos de carácter ideológico-político,
moralista (aí incluídos os da moral social e dos bons costumes) ou religiosos”.
Caso nº 9 Burla do conto do vigário: B procedeu à entrega, aos arguidos, de uma mala contendo doze mil
contos, no pressuposto de que receberia como contrapartida notas falsas de grande qualidade,
enquanto muito idênticas às notas verdadeiras e, por isso, susceptíveis de passar com
facilidade como estas. Os 12 mil contos, de que o ofendido ficou desapossado, não tiveram
qualquer contrapartida. Verifica-se então que os arguidos agiram com intuito de enriquecerem
à custa do património do requerente (desiderato que alcançaram); por outro lado, que o
requerente praticou actos que se repercutiram negativamente no seu património, determinando
uma perda. Acórdão do STJ de 23 de Maio de 2002, CJ 2002, tomo II, pág. 212.
A noção de património assume aqui especial relevo. Tenha-se em conta, sobretudo, a
natureza ilícita do negócio (artigos 265º e 266º do Código Penal). Os arguidos foram
M. Miguez Garcia. Direito penal — Parte especial, § 16º (burla comum). Porto, 2009
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Fala-se por vezes, e ainda a propósito, em burla sobre negócio com causa ilícita,
acrescentando-se o exemplo da cobrança por um aborto ilegal que acabou por se não
realizar por não se encontrar grávida a mulher. Explica Pérez Manzano que a valoração
penal do facto como burla, por realizar um engano e produzir um prejuízo, não depende do
carácter lícito ou não da prestação pretendida pela vítima.
O Supremo Tribunal espanhol condenou por burla um médico que aceitou praticar um
aborto mas, estando a mulher já anestesiada, descobriu que o aborto era afinal
desnecessário por não haver gravidez. Mesmo assim, o médico cobrou o preço, fingindo
ter levado a cabo o acto abortivo ilegal. É uma posição que no país vizinho tem os seus
adeptos incondicionais, afirmando-se que sempre que mediante engano se produza uma
diminuição patrimonial com ânimo de enriquecimento haverá burla, mesmo que o
enganado se proponha também obter um benefício ilícito ou imoral.
Não falta quem sustente que igualmente há burla no caso do burlão burlado, parente
próximo do ladrão que rouba a ladrão. Afirma-se que se incluem no património as coisas
que alguém possui ilicitamente (apesar de as ter obtido pela prática de um crime anterior),
em primeiro lugar, porque as mesmas têm valor económico, e em segundo lugar porque a
sua detenção está juridicamente protegida, no sentido de que seu possuidor não pode ser
privado delas a não ser por meios lícitos (cf., por ex., Valle Muñiz, p. 228). Outros
M. Miguez Garcia. Direito penal — Parte especial, § 16º (burla comum). Porto, 2009
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autores, contudo, não aceitam que estes casos se adaptem ao conceito de burla, uma vez
que a coisa ou o valor detidos não contam com a aprovação ou a tolerância do direito, não
havendo lugar à afirmação de um prejuízo patrimonial. A. M. Almeida Costa propende no
sentido de tratar a hipótese dentro dos quadros da burla, procedendo à análise do sentido
que reveste a detenção do valor ou coisa pelo autor do primeiro delito. Não exclui,
inclusivamente, a possibilidade de a conduta do agente lesar o próprio património do
titular originário dos bens ou valores.
M. Miguez Garcia. Direito penal — Parte especial, § 16º (burla comum). Porto, 2009
23
C. A burla qualificada
I. Linhas gerais
Rege, para a burla qualificada, o artigo 218º.
A qualificação começa por assentar (nº 1) em ser o prejuízo patrimonial de valor elevado.
De acordo com o nº 2, a burla será qualificada se: a) o prejuízo patrimonial for de valor
consideravelmente elevado; b) o agente fizer da burla modo de vida; c) o agente se
aproveitar de situação de especial vulnerabilidade da vítima, em razão da idade,
deficiência ou doença; ou d) a pessoa prejudicada ficar em difícil situação económica.
“Fazer da burla “modo de vida” é a entrega habitual à burla, que se basta com a pluri-reincidência,
devendo ser tomadas em consideração, não as anteriores condenações do agente constantes do seu registo
criminal, mas também as denúncias ou participações policiais existentes, o conteúdo dos ficheiros policiais
e todos os outros elementos testemunhais ou documentais” - Simas Santos e Leal Henriques, p. 567. Sendo
assim, pouco importa que as penas tenham sido de prisão ou de multa, suspensas ou não suspensas,
perdoadas ou não perdoadas, amnistiadas ou não amnistiadas. Embora tenha desaparecido o conceito
normativo de delinquente habitual, mantém-se, no entanto o conceito jurisprudencial e vulgar ou do
conhecimento público consistente na existência de delinquentes especialmente propensos para o crime ou
certos crimes - Acórdão do STJ de 16 de Setembro de 1992, proc. nº 42500. ( 34)
33Jescheck, AT, 4ª ed., p. 651. Veja-se a habitualidade como elemento agravativo no nº 6 do artigo 368º-
A: "se o agente praticar as condutas de forma habitual".
34O acórdão do STJ de 9 de Janeiro de 1992, BMJ 413, p. 182, oferece pertinentes informações sobre os
conceitos de "habitualidade", "profissionalidade", "modo de vida", "plurirreincidência", etc. Cf. também,
quanto ao tratamento da habitualidade, a anotação ao acórdão do STJ de 7 de Fevereiro de 1996, BMJ-454-
368. Cf., ainda, Beleza dos Santos, O fim da prevenção especial das sanções criminais - valor e limites,
BMJ-73, esp. p. 16. E Eduardo Correia, Unidade e Pluralidade, p. 22. Beleza do Santos. Delinquentes
habituais, vadios e equiparados, RLJ, anos 70 a 73. J. Seabra Magalhães e F. Correia das Neves, Lições de
Direito Criminal, segundo as prelecções do Prof. Doutor Beleza dos Santos, Coimbra, 1955, p. 35 e ss.
M. Miguez Garcia. Direito penal — Parte especial, § 16º (burla comum). Porto, 2009
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A propósito da difícil situação económica em que a vítima fica: "exige-se que o resultado
seja imputável ao agente, pelo menos a título de mera culpa, e que haja nexo de
causalidade entre o comportamento do autor e o resultado — a difícil situação económica
em que a vítima fica” (Maia Gonçalves). Trata-se de um critério material de valoração, em
que se atende às circunstâncias do sujeito passivo, não se exigindo um prejuízo de especial
gravidade. Mas podem produzir-se importantes prejuízos sem que a vítima fique em grave
situação económica.
Para que o crime de burla possa ser agravado por a pessoa prejudicada ficar em difícil situação
económica, é necessário que o arguido haja previsto que o lesado fique nessa situação e que, mesmo assim,
agisse com intenção de o conseguir, aceitasse tal situação como consequência necessária da sua conduta ou
que a admitisse como possível e com ela se conformasse (acórdão do STJ de 19 de Janeiro de 1995, CJ, III,
tomo 1, 183).
Pratica o crime de burla agravada a arguida que, através de estratagema por si montado, obteve 19 contos
da ofendida, a qual ficou em precária situação económica, pois tinha como única fonte de rendimento a
pensão mensal de 15 contos (acórdão do STJ de 27 de Junho de 1996, CJ, ano IV (1996), t. 2, p. 202).
D. Consumação e tentativa
Tratando-se de um crime material ou de resultado, o prejuízo patrimonial é indispensável à
consumação. Com a produção do dano patrimonial do sujeito passivo do crime ou de
terceiro, fica o ilícito completo. A produção do dano é o elemento fundamentador da
irreversibilidade da burla punível na forma consumada, podendo, ainda assim, extinguir-se
a responsabilidade criminal, nas condições e por força do disposto nos artigos 206º e 217º,
nº 4, e 218º, nº 4.
O enriquecimento é que não tem de ser efectivamente alcançado ou produzido, bastando a
“intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo". Todavia, se esta
intenção logra êxito, se além do prejuízo patrimonial o agente consegue igualmente (com
êxito) o enriquecimento, o crime, além de juridicamente (formalmente) consumado está
também materialmente consumado (exaurido).
Se o património do enganado ou da outra pessoa não fica minimamente afectado, se as
coisas ou os valores não chegam a sair da esfera de "disponibilidade fáctica" do sujeito
passivo ou da vítima ( ), o facto não passa da tentativa.
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E. Casos especiais
I. Burla e conta bancária
Trata-se de matéria controvertida. Cf., por exemplo, o acórdão do STJ de 20 de Maio de 1992, BMJ-417-
367, com vários votos de vencido. O acórdão da Relação de Évora de 19 de Julho de 1984, CJ, 1984-IV, p.
150, entendeu que constitui a prática de um crime de abuso de confiança o levantamento para apropriação
do capital de uma conta bancária solidária feita por um dos seus co-titulares quando se demonstre que a
inclusão do seu nome nessa conta não corresponde a qualquer compropriedade do dinheiro e sim, apenas, a
um mero possibilitar da movimentação de tal conta, no exclusivo interesse, e ou por ordem do outro ou
outros titulares dela."
Acórdão do STJ de 23 de Janeiro de 1997, BMJ-463-276: A convence B, sua tia, a transferir todo o
dinheiro que a mesma tinha depositado em duas contas a prazo num banco para outro e a colocá-lo em
nome de ambos, A e B. Posteriormente, A apodera-se do dinheiro, através da execução de um plano, contra
a vontade de B. No caso discutia-se com especial acuidade a noção de "enriquecimento ilegítimo" como
imprescindível na burla.
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na boa fé dos ofendidos, são introduzidos outros elementos do engano próprio da burla,
caso em que terá lugar o concurso real entre aqueles crimes, como sucede quando é feito
uso de falsa identidade".
F. Casos práticos
Caso nº 10 Burla comum A, no propósito de não pagar aos vendedores a quantia que com eles acordou,
convence estes a declararem perante o notário que já receberam o preço do imóvel
transaccionado, para depois lhe pagar apenas a diferença entre o sinal entregue e o preço feito
constar da escritura de compra e venda.
A cometeu o crime de burla, confirmou o acórdão da Relação do Porto de 16 de Fevereiro
de 2005, CJ 2005, tomo I, pág. 219:
“Conforme resulta do teor literal do art. 217°, n° 1, do CP, o tipo legal de burla tipifica
aquelas situações em que o agente, com a intenção de conseguir um enriquecimento
ilegítimo (próprio ou alheio), induz outra pessoa em erro, fazendo com que a última, por
esse motivo, pratique actos que causam a si mesma (ou a terceiro) prejuízos de carácter
patrimonial. Tanto do seu enquadramento sistemático, como da sua concreta configuração
legal, depreende-se, de forma evidente, que a burla é um crime contra o património. O
bem jurídico protegido é o património, apontando a generalidade da doutrina
contemporânea no sentido da consagração de um específico conceito económico-jurídico
que reconduz o património ao conjunto de todas as “situações” e “posições” com valor
económico, detidas por uma pessoa e protegidas pela ordem jurídica ou, pelo menos, cujo
exercício não é desaprovado pela ordem jurídica patrimonial. Esta concepção implica a
limitação dos bens e direitos patrimoniais aos economicamente avaliáveis e exige, por
outro lado, que sejam possuídos pelo sujeito por causa de uma relação reconhecida pelo
ordenamento jurídico. Não se adere, portanto, às concepções que, de forma isolada ou em
conjunto com o património, reconduzem o bem jurídico da burla à lealdade, transparência,
boa fé ou verdade nas transacções ou, numa outra perspectiva, à confiança da comunidade
nessa mesma lealdade, transparência, boa fé ou verdade das transacções.
Determinados o conceito de burla e o bem jurídico protegido, há que acrescentar que a
burla não se reconduz a uma soma de componentes (ânimo de lucro, engano, erro e acto de
disposição que causa prejuízo) antes exige um nexo entre eles, comummente designado
como relação de causalidade. Tenha-se presente, porém, que o nexo de que se fala não é de
causalidade material, mas de causalidade ideal ou de motivação: o engano há-de motivar
(produzir) um erro que induza a realizar um acto de disposição que determina um prejuízo.
Por isso, também se afirma que a ‘consumação da burla passa por um duplo nexo de
imputação objectiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de actos
tendentes a uma diminuição do património [próprio ou alheio] e, depois, entre os últimos e
a efectiva verificação do prejuízo patrimonial’.
O engano é o mais significativo dos elementos definidores da burla porque é por ele que
se individualiza a burla frente às restantes figuras de enriquecimento ilícito. Na linguagem
comum, a expressão “engano” designa a acção e efeito de fazer crer a alguém, com
palavras ou de qualquer outro modo, algo que não é verdade. E é a este significado que a
doutrina e a jurisprudência se têm atido, precisando que a idoneidade do meio enganador
utilizado pelo agente se afere tomando em consideração as características do concreto
burlado. Tendo em conta a particular credulidade ou falta de resistência do burlado (v.g,
mercê de fragilidade intelectual, de inexperiência ou de especiais relações de confiança
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Crime de emissão de cheque sem provisão: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 9/2008:
Verificados que sejam todos os restantes elementos constitutivos do tipo objectivo e subjectivo do
ilícito, integra o crime de emissão de cheque sem provisão previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º
do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 316/97, de
19 de Novembro, a conduta do sacador de um cheque que, após a emissão deste, falsamente comunica
ao banco sacado que o cheque se extraviou, assim o determinando a recusar o seu pagamento com esse
fundamento.
Acórdão do STJ de 6 de Janeiro de 1993: abuso de confiança, burla, infidelidade ou furto? Comete algum
ilícito penal o co-titular de uma conta bancária (no caso o co-titular de diversas contas bancárias a
prazo), não proprietário das respectivas importâncias, que, sem autorização da co-titular proprietária,
levanta o respectivo montante e o dissipa em proveito próprio?
Acórdão do STJ de 23 de Maio de 2002, CJ 2002, tomo II, p. 212: noção de património, prejuízo
patrimonial que mereça a tutela do direito. Promessa de venda de notas falsas. Fraude bilateral.
Acórdão do STJ de 24 de Abril de 1997, BMJ-466: possibilidade de cometimento de burla por omissão.
Acórdão do STJ de 21 de Maio de 1998, processo n.º 179/98: para que o crime de burla se verifique, é
necessário que o agente, com intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo,
induza em erro ou engano outrem sobre factos que astuciosamente provocou, conseguindo por via da
criação desse erro ou do engendrar desse engano, que esse outrem pratique factos que lhe causem, ou
causem a mais alguém, prejuízo patrimonial. Assim, é imprescindível que a decisão factualize as
práticas integradoras ou inculcadoras da indução em erro ou engano (que não têm de radicar num
comportamento activo do agente, podendo ser passivo), pois que só da concretização dessa práticas e
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das suas cambiantes envolventes, é possível exprimir um juízo seguro sobre a vulnerabilidade do sujeito
passivo da infracção, e consequentemente, sobre a eficácia da relação entre os actos configurativos da
astúcia e do erro ou engano criados, e a cedência do lesado na comissão de actos a ele ou a outrem
prejudiciais, ou por outras palavras, é necessário que se comprove, que só a insídia do agente
determinou a atitude do lesado
Acórdão do STJ de 3 de Maio de 1961, BMJ 107, p. 363: em 1949, o réu dolosamente levou o credor à
convicção de que era suficiente garantia para o empréstimo de 115 contos um terreno que não tinha
valor superior a 8 contos, mostrando-lhe toda uma sua propriedade, de que aquele terreno era somente
uma pequena fracção, como sendo o que daria em hipoteca. Foi dito ao credor que o terreno tinha o
valor de 300 contos e que não existia qualquer hipoteca já constituída, quando o réu sabia que existia
uma anterior, que recaía na sua maior parte, e dizendo que o terreno se encontrava, na matriz e na
Conservatória como um terreno para construção urbana. O Supremo entendeu que o réu, tendo induzido
fraudulentamente o credor em erro sobre a extensão e o valor do terreno, objecto da garantia, assim o
determinando a entregar-lhe numerário, cometeu um crime de burla.
Acórdão da Relação do Porto de 16 de Fevereiro de 2005 CJ 2005, tomo I, p. 219. Comete o crime de
burla qualificada aquele que, no propósito de não pagar aos vendedores a quantia que com eles acordou,
convence estes a declararem perante o notário que já receberam o preço do imóvel transaccionado,
para, depois, lhe pagar apenas a diferença entre o sinal entregue e o preço feito constar da escritura de
compra e venda.
Acórdão da Relação do Porto de 15 de Outubro de 2007, proc. nº 0743325. No crime de burla a disposição
que o enganado deve fazer tanto pode consistir num fazer (realizar um pagamento) como num omitir
(renunciar a um crédito).
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