Estudo Da Crônica Um Caso de Burro - Machado de Assis

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ÍCARO PEDRO

ANDRÉ GUSTAVO
Um caso de burro
Machado de Assis
Quinta-feira à tarde, pouco mais de três horas, vi uma coisa tão interessante, que determinei
logo de começar por ela esta crônica. Agora, porém, no momento de pegar na pena, receio achar no
leitor menor gosto que eu para um espetáculo, que lhe parecerá vulgar, e porventura torpe. Releve a
importância; os gostos não são iguais.
Entre a grade do jardim da Praça Quinze de Novembro e o lugar onde era o antigo passadiço,
ao pé dos trilhos de bondes, estava um burro deitado. O lugar não era próprio para remanso de burros,
donde concluí que não estaria deitado, mas caído. Instantes depois, vimos (eu ia com um amigo),
vimos o burro levantar a cabeça e meio corpo. Os ossos furavam-lhe a pele, os olhos meio mortos
fechavam-se de quando em quando. O infeliz cabeceava, mais tão frouxamente, que parecia estar
próximo do fim.
Diante do animal havia algum capim espalhado e uma lata com água. Logo, não foi
abandonado inteiramente; alguma piedade houve no dono ou quem quer que seja que o deixou na
praça, com essa última refeição à vista. Não foi pequena ação. Se o autor dela é homem que leia
crônicas, e acaso ler esta, receba daqui um aperto de mão. O burro não comeu do capim, nem bebeu
da água; estava já para outros capins e outras águas, em campos mais largos e eternos. Meia dúzia
de curiosos tinha parado ao pé do animal. Um deles, menino de dez anos, empunhava uma vara, e se
não sentia o desejo de dar com ela na anca do burro para espertá-lo, então eu não sei conhecer
meninos, porque ele não estava do lado do pescoço, mas justamente do lado da anca. Diga-se a
verdade; não o fez – ao menos enquanto ali estive, que foram poucos minutos. Esses poucos minutos,
porém, valeram por uma hora ou duas. Se há justiça na Terra valerão por um século, tal foi a
descoberta que me pareceu fazer, e aqui deixo recomendada aos estudiosos.
O que me pareceu, é que o burro fazia exame de consciência. Indiferente aos curiosos, como
ao capim e à água, tinha no olhar a expressão dos meditativos. Era um trabalho interior e profundo.
Este remoque popular: por pensar morreu um burro mostra que o fenômeno foi mal entendido dos que
a princípio o viram; o pensamento não é a causa da morte, a morte é que o torna necessário. Quanto à
matéria do pensamento, não há dúvidas que é o exame da consciência. Agora, qual foi o exame da
consciência daquele burro, é o que presumo ter lido no escasso tempo que ali gastei. Sou outro
Champollion1, porventura maior; não decifrei palavras escritas, mas ideias íntimas de criatura que não
podia exprimi-las verbalmente.
E diria o burro consigo:
“Por mais que vasculhe a consciência, não acho pecado que mereça remorso. Não furtei, não
menti, não matei, não caluniei, não ofendi nenhuma pessoa. Em toda a minha vida, se dei três coices,
foi o mais, isso mesmo antes haver aprendido maneiras de cidade e de saber o destino do verdadeiro
burro, que é apanhar e calar. Quando ao zurro, usei dele como linguagem. Ultimamente é que percebi
que me não entendiam, e continuei a zurrar por ser costume velho, não com ideia de agravar ninguém.
1
Champollion: arqueólogo francês (1790-1832), que foi o primeiro a decifrar os hieróglifos do antigo Egito.
Nunca dei com homem no chão. Quando passei do tílburi ao bonde, houve algumas vezes homem
morto ou pisado na rua, mas a prova de que a culpa não era minha, é que nunca segui o cocheiro na
fuga; deixava-me estar aguardando autoridade.”
“Passando à ordem mais elevada de ações, não acho em mim a menor lembrança de haver
pensado sequer na perturbação da paz pública. Além de ser a minha índole contrária a arruaças, a
própria reflexão me diz que, não havendo nenhuma revolução declarado os direitos do burro, tais
direitos não existem. Nenhum golpe de estado foi dado em favor dele; nenhuma coroa os obrigou.
Monarquia, democracia, oligarquia, nenhuma forma de governo, teve em conta os interesses da minha
espécie. Qualquer que seja o regime, ronca o pau. O pau é a minha instituição um pouco temperada
pela teima que é, em resumo, o meu único defeito. Quando não teimava, mordia o freio dando assim
um bonito exemplo de submissão e conformidade. Nunca perguntei por sóis nem chuvas; bastava
sentir o freguês no tílburi ou o apito do bonde, para sair logo. Até aqui os males que não fiz; vejamos
os bens que pratiquei.”
“A mais de uma aventura amorosa terei servido, levando depressa o tílburi e o namorado à
casa da namorada – ou simplesmente empacando em lugar onde o moço que ia ao bonde podia mirar
a moça que estava na janela. Não poucos devedores terei conduzido para longe de um credor
importuno. Ensinei filosofia a muita gente, esta filosofia que consiste na gravidade do porte e na
quietação dos sentidos. Quando algum homem, desses que chamam patuscos, queria fazer rir os
amigos, fui sempre em auxílio deles, deixando que me dessem tapas e punhadas na cara. Enfim…”
Não percebi o resto, e fui andando, não menos alvoroçado que pesaroso. Contente da
descoberta, não podia furtar-me à tristeza de ver que um burro tão bom pensador ia morrer. A
consideração, porém, de que todos os burros devem ter os mesmos dotes principais, fez-me ver que
os que ficavam não seriam menos exemplares do que esse. Por que se não investigará mais
profundamente o moral do burro? Da abelha já se escreveu que é superior ao homem, e da formiga
também, coletivamente falando, isto é, que as suas instituições políticas são superiores às nossas,
mais racionais. Por que não sucederá o mesmo ao burro, que é maior?
Sexta-feira, passando pela Praça Quinze de Novembro, achei o animal já morto.
Dois meninos, parados, contemplavam o cadáver, espetáculo repugnante; mas a infância, como a
ciência, é curiosa sem asco. De tarde já não havia cadáver nem nada. Assim passam os trabalhos
deste mundo. Sem exagerar o mérito do finado, força é dizer que, se ele não inventou a pólvora,
também não inventou a dinamite. Já é alguma coisa neste final de século. Requiescat in pace2 (ASSIS,
Machado de. 8 de abril de 1892. In: ____. A semana. São Paulo: W. M. Jackson, 1946. v. 2, p 77-82)

REFERÊNCIA

KÖCHE, Vanilda Salton et al. Estudo e produção de textos: gêneros textuais do relatar, narrar e
descrever. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
***
Estudo do texto

2
Requiescat in pace: frase em latim que significa descanse em paz.
1) As hipóteses que você levantou sobre a temática do texto se confirmam após a leitura?
Explique.
Nossas hipóteses eram que estava havendo alguma festança, não um burro que
estava a divagar sobre a consciência humana e seus julgamentos.
2) Reescreva a oração, substituindo as palavras ou expressões em negrito por sinônimos.
Faça os ajustes necessários.
“Agora, porém, no momento de pegar na pena, receio achar no leitor menor gosto que eu
para um espetáculo, que lhe parecerá vulgar, e porventura torpe. Releva-me a
impertinência; os gostos não são iguais” (parágrafo 8).
“Agora, porém, no momento de escrever, temi que o leitor não tivesse tamanho gosto
para tal ocorrido, que lhe parecerá banal, possivelmente asqueroso.”
3) Qual o acontecimento que originou a crônica?
A aparição de um burro moribundo no jardim da praça.
4) Por que o narrador justifica a escolha do fato que deu origem à crônica?
A atitude das pessoas ao redor do burro e a própria atitude do burro quanto a essas
pessoas.
5) Em que espaço ocorrem os fatos narrados? Como ele é caracterizado?
Ele ocorre no jardim da praça Quinze de Novembro.
6) Qual é o período de duração dos fatos?
Poucos minutos.
7) Que indícios revelam que o burro estava próximo da morte?
A descrição do burro, por exemplo, o fato de que estava sem comer e que os ossos lhe
furavam a carne.
8) Como você interpreta a afirmação O burro não comeu capim, nem bebeu da água; estava
para outros capins e outras águas, em campos mais largos e eternos (parágrafo 3)?
Ele já aceitou a morte, o burro.
9) Qual é a descoberta que o narrador faz ao observar o burro? Que indícios o conduzem a
essa conclusão?
Que o burro está avaliando a multidão ao seu redor, antes de partir. Isto pode ser
deduzido através de seus pensamentos.
10) Segundo o narrador, o pensamento não é a causa da morte, a morte é o que o torna
necessário (parágrafo 5). Explique essa afirmação.
Pelo que pudemos entender, a morte é justamente o que torna pensar, refletir,
necessário.
11) Sintetize o teor do exame de consciência que o burro realiza, na visão do narrador.
É a questão da inocência dos animais comparada com a falta de empatia que os
homens podem exercer.
12) O que você entende por a infância, como a ciência, é curiosa sem asco (parágrafo 12)?
A infância é inocente, mas essa inocência torna a curiosidade um tanto cruel algumas
vezes. Da mesma forma que a ciência pode fazer tantas coisas ruins em nome de descobrir.
13) Qual é o sentido que pode ser depreendido da afirmação: se ele [o burro] não inventou a
pólvora, também não inventou a dinamite. Já é alguma coisa neste final de século (parágrafo
12)?
Que basicamente a morte do burro não teve importância alguma.
14) De acordo com o narrador, seria o burro superior ao homem? Por quê?
No quesito de nobreza de atos, sim. Pois o narrador afirma a gentileza dos burros
através de seus pensamentos.
15) Qual é a finalidade da crônica em estudo? Justifique.
a) ( ) Informar.
b) ( X ) Levar o leitor a refletir sobre um fato do cotidiano.
c) ( ) Criar humor.
Ele busca refletir sobre a empatia com o próximo, com os animais e em como o povo
se comporta quando acontece alguma tragédia, especialmente por alguém que não se tem a
história conhecida, como o tal burro.
16) A crônica emprega a linguagem conotativa ou denotativa? Aponte elementos do texto que
comprovem sua resposta.
Conotativa. Visto que busca apelar também para o emocional no leitor, como a
revelação dos pensamentos do burro, do comportamento das pessoas de seus arredores,
entre outros.
17) Observe o narrador da crônica de Machado de Assis.
a) Qual é a pessoa do discurso que ele emprega para narrar os fatos? Justifique sua resposta
com elementos do texto.
Primeira pessoa. É possível saber isso a partir de “ Quinta-feira à tarde, pouco mais de três
horas, VI uma coisa tão interessante,”
b) Estamos diante de um narrador-observador ou de um narrador-testemunha? Em que isso
contribui para a construção do sentido do texto?
Narrador-testemunha. Ele não está apenas narrando o texto, ele esteve na cena. Isto
afeta a forma como o texto é escrito por ser ele atribuindo o significado na morte do burro.
c) A crônica de Machado de Assis é literária ou não literária? Explicite sua afirmação.
Literária, mas com uma estrutura que pode aparentar não-literária. Visto que ele fala
de forma explicativa.

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