MRCA29112019
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MRCA29112019
CENTRO DE EDUCAÇÃO
CURSO DE GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES
ESPIRITUALIDADE DO CORPO:
A DANÇA COMO FIO CONDUTOR PARA A
TRANSCENDÊNCIA CORPORAL
JOÃO PESSOA
2018
MAURA RAHIANNY CARDOSO ARAUJO
ESPIRITUALIDADE DO CORPO:
A DANÇA COMO FIO CONDUTOR PARA A
TRANSCENDÊNCIA CORPORAL
João Pessoa
2018
Catalogação na publicação
Seção de Catalogação e Classificação
UFPB/BC
Dedico àqueles que não me deixaram desistir
e me incentivaram a chegar até aqui.
AGRADECIMENTOS
Trago em mim a eterna gratidão a todos os professores que me ajudaram a chegar até
aqui, pois sem o conhecimento que vocês transmitiram, sem o apoio e incentivo para
continuar nutrindo a minha e a todas as mentes por mais e mais conhecimento, jamais teria
tido a capacidade de pensar e desenvolver meu intelecto.
Em especial agradeço a minha orientadora Maria Lúcia Abaurre Gnerre, que aceitou
me nortear nessa incrível experiência, assim como também a professora Fernanda Lemos e o
professor Matheus Zica que durante todo curso me apoiaram de forma fantástica, inspiraram-
me e geraram oportunidades que me fizeram admira-los muito mais. A vocês três minha
eterna gratidão, não apenas por serem profissionais excepcionais, não apenas por aceitarem
estar junto comigo nessa conclusão, mas principalmente por serem pessoas esplendorosas, por
inspirarem tantos seres humanos e por terem marcado tanto minha vida.
Agradeço também a minha mãe que, embora não tenha tido a oportunidade de chegar
até aqui comigo, até o momento que foi silenciada, gritou seu apoio ao meu crescimento
intelectual e como ser humano o que foi um grande encorajamento a escolher esse curso.
Agradeço também a minha família, de modo geral, que me estimulou e me apoiou, a seu
modo, meu trajeto acadêmico.
Gostaria também de dizer aos meus amigos que não desistiram de acreditar em mim,
de acreditar que eu chegaria a concluir o curso que a fé que vocês depositaram em mim
quando eu já não tinha estimulo para isso foi um dos gestos mais amorosos e encorajadores
que vocês puderam demonstrar, a vocês minha eterna gratidão. Destaco entre eles Alberlene e
Thayse que formaram junto comigo um trio inseparável, uma sempre ajudando a outra,
sempre incentivando, muito obrigada.
Agradeço a todos que não me deixaram desistir dessa caminhada acadêmica, que me
influenciaram da maneira mais linda a prosseguir para realizar meu sonho.
“Feliz o bailarino que dispõe da ferramenta
mais eloquente e milagrosa de todas: o corpo
humano”.
José Elimón
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo central analisar a Espiritualidade não-religiosa e,
mais especificamente, a Espiritualidade do Corpo, ponderando as teorias direcionadas ao
movimento corporal através da dança moderna e sua influência na espiritualidade individual e
coletiva do ser, correlacionando essas teorias ao sentido de movimento e a vitalidade do eu
abstrato. Para isso, utilizaremos estudos de autores como Laban, Le Breton e Eliade, com
intenção de desenvolver uma percepção mais concreta dos conceitos envolvendo
espiritualidade, corpo, movimento, sagrado, profano e assim produzir um estudo mais
específico na área entrelaçando as observações feitas acerca dos autores e temas supracitados.
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................09
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................27
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFIACAS...............................................................................28
8
INTRODUÇÃO
9
Para uma melhor compreensão e analise das temáticas supracitadas utilizaremos estudos
de autores como Laban, Le Breton e Eliade, para correlacionar a conceituação de
espiritualidade, corpo, movimento, sagrado e profano e assim desenvolver os objetivos.
Segundo Philippe Julien (2010), o homem da antiguidade buscava nas identidades
culturais e religiosas referências para respostas perante situações problemáticas, enquanto na
modernidade, com a globalização e todo contexto que está sendo vivido atualmente o ser
humano tem ficado perturbado e confuso. Sendo assim entende-se que a procura por bem-
estar mental e física não cessa e algumas vezes são encontradas em meio ao âmbito religioso.
Contudo, a religiosidade, embora estabeleça parâmetros para a relação do indivíduo com
sua essência, não é o único meio para o autoconhecimento nem para a relação com aspectos
divinos. Os ritos e mitos, por exemplo, do cristianismo, coloca o corpo como um instrumento
fundamental da religiosidade e da ritualística, a própria paixão é evidenciada através das
flagelações que o Cristo se submeteu. “Enquanto comiam, Jesus tomou um pão e, tendo-o
abençoado, partiu-o e, distribuindo-o aos discípulos, disse: “Tomai e comei, isto é o meu
corpo””. (BÍBLIA DE JERUSALÉM, Mt 26:26).
Para Lemos e Bezerra (2015) a religião olha para o corpo como um objeto sagrado que
está ligado diretamente ao processo de ritos sacrificais:
“Para a religião o corpo desempenha um papel na manifestação de sacrifícios
e é por meio dele que as pessoas expressão sua devoção fundamental na
realidade concreta da carne e do sangue humano. Pois ele carrega as
simbologias que evocam nele a conexão com o sagrado”. (LEMOS,
BEZERRA, 2015, p. 77).
Elas ainda afirmam que “o corpo na sociedade cristã é visto como um espaço
teologizado”, ou seja, o corpo é sacralizado e é por onde Deus experimenta a humanidade e,
portanto, o corpo é ao mesmo tempo matéria e espírito.
Gnerre (2011), expressa no livro Religiões orientais que a intenção da prática do Ioga é
elevar a inteligência do corpo para alcançar o nível da mente e assim tornarem-se um junto à
alma.
Para Storni (2013) o corpo é um conjunto de elementos simbólicos e, portanto, lhe são
atribuídos significados conforme a sua linguagem. Sendo assim, o corpo é necessário tanto
para estabelecer parâmetros sobre aspectos transcendentes, quanto para desenvolver uma
espiritualidade que independe dos padrões conservados pelas religiosidades.
Ainda de acordo com Storni (2013) o corpo não é meramente físico nem meramente
profano, mas é inteiramente a ligação entre o lado físico e espiritual, profano e sagrado.
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Bezerra (2016) alinha perfeitamente esse pensamento quando coloca a dança como
instrumento de associação de todas as partes do corpo, seja energético, espiritual, físico.
Bezerra cita Laban e relaciona o “cuidado de si” ao “domínio do movimento” e
caracteriza o mundo espiritual como sendo uma parte desconhecida do próprio ser que precisa
ser “enxergada” e a dança é um meio para esse fim.
Roger Garaudy (1980) coloca a dança como parte fundamental para a vida. Ao abordar
uma perspectiva espiritualizada através da dança moderna ele traz a noção de que a dança se
torna algo essencial para a vitalidade do corpo e do espírito, ele coloca a dança como “um
modo de existir”: “A expressão, através de movimentos do corpo organizados em sequências
significativas, de experiências que transcendem o poder das palavras e da mímica. A dança é
um modo de existir”. (GARAUDY, 1980, p. 13).
Dessa forma podemos enxergar o corpo como parte fundamental do processo para
alcançar a transcendência. É no corpo que ciência, arte e espiritualidade se fundem e acabam
se tornando algo único.
No livro Leituras do corpo (2010), é expressa a importância da arte no mundo humano
como ferramenta fundamental para a diferenciação entre as espécies. A linguagem do corpo,
as expressões através dos movimentos seriam uma forma de comunicação.
Num estudo sobre expressão e linguagem em Merleau-Ponty Reinaldo Furlan e Josieane
C. Bocchi (2003) colocam o corpo exatamente como meio de comunicação, eles dizem: “Eu
só consigo compreender a intencionalidade do outro – e sua atitude para comigo – porque
através do meu corpo posso torná-la minha”. (FURLAN, BOCCHI, 2003, p. 449).
Ao analisar essa conceituação e desenvolverem essa temática analisando um profundo
estudo das obras de Merleau-Ponty eles afirmam que embora o ser humano consista em
matéria da mesma substância que outro ser humano, não é apenas a fisiologia que garante
uma interação, mas a capacidade do ser unir as expressões ao movimento:
“Não basta que dois sujeitos conscientes tenham os mesmos órgãos e o
mesmo sistema nervoso para que em ambos as mesmas emoções se
representem pelos mesmos signos. O que importa é a maneira pela qual eles
fazem uso de seu corpo (...). O uso que um homem fará de seu corpo é
transcendente em relação a esse corpo enquanto ser simplesmente biológico.
Gritar na cólera ou abraçar no amor não é mais natural ou menos
convencional do que chamar uma mesa de mesa”. (FURLAN, BOCCI, 2003,
p. 448 apud MERLEAU-PONTY, 1995/1994, p. 256-257).
11
Sendo assim, o corpo, assim como a dança, é ferramenta para comunicação, arte,
espiritualidade, ou seja, é fundamental para alcançar a vitalidade, é colocar-se no centro da
experiência e da formulação do futuro em vivência consigo mesmo e as realidades que
perpassam o ser humano.
O presente trabalho tem como objetivo analisar a relação do corpo e da dança com a
espiritualidade para compreender os benefícios gerados através do elo que possa existir entre
eles. A análise será exclusivamente bibliográfica, por atribuir uma necessidade de
interdisciplinaridade e interculturalidade entre os conceitos de corpo e dança, religiosidade e
espiritualidade.
A interdisciplinaridade aplicada a presente pesquisa busca entender o conceito de
coletividade e individualidade do corpo, baseado em Mircea Eliade, Laban e Le Breton
atrelando os aspectos sociais, coletivos e individuais, assim como aos aspectos da psique
humana e da razão, centralizando o corpo como ferramenta principal para a espiritualidade
e/ou transcendência.
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1. COMPREENDER O CORPO COMO MEIO DE
ESPIRITUALIDADE
Neste primeiro momento teremos a exposição do corpo como ferramenta essencial para a
espiritualidade, de maneira que faça o leitor refletir sobre a importância de avaliar o corpo não
apenas como massa e um conjunto de órgãos ou meio de existência, mas que compreenda o
corpo como essência e ligação “extraindividuo”, ou seja, que o corpo torna-se meio de
comunicação e ligação com a sociedade, culturas e até mesmo como meio de inteligência
emocional, pois ele é canal imediato de expressões.
1.1 Corpo e Corporeidade
O corpo não é apenas corpo na sua dimensão fisiológica. Além de ser um conjunto de
órgãos, é também um meio de comunicação, ele é a noção de vida entre espaço e tempo;
afinal um ser não pode existir nesse mundo a menos que tenha um meio material. Segundo Le
Breton a existência é, antes de tudo, corporal, ele diz:
“Do corpo nascem e se propagam as significações que fundamentam a
existência individual e coletiva; ele é o eixo da relação com o mundo, o lugar
e o tempo nos quais a existência toma forma através da fisionomia singular
de um ator. Através do corpo, o homem apropria-se da substância de sua
vida traduzindo-a para os outros”. (LE BRETON, 2012, p. 7).
O ator tem consciência de existência porque através de si comunica-se com o outro e
interage com o meio por movimentos e sensações; a comunicação é baseada, segundo Le
Breton, pelo corpo, ou seja, o ator apodera-se de simbologias físicas que são aprendidas no
meio social onde está inserido e dessa forma decodifica movimentos dos quais caracterizam
uma forma de diálogo corporal, pois as experiências podem ser partilhadas visivelmente e
sentidas através da percepção.
“Existir significa em primeiro lugar mover-se em determinado espaço e
tempo, transformar o meio graças à soma de gestos eficazes, escolher e
atribuir significado e valor aos inúmeros estímulos do meio graças às
atividades perceptivas, comunicar aos outros a palavra, assim como um
repertório de gestos e mímicas, um conjunto de rituais corporais implicando
a adesão dos outros. Pela corporeidade, o homem faz o mundo a extensão de
sua experiência; transforma-o em tramas familiares e coerentes, disponíveis
à ação e permeáveis à compreensão. Emissor ou receptor, o corpo produz
sentidos continuamente e assim insere o homem, de forma ativa, no interior
de dado espaço social e cultural”. (LE BRETON, 2012, p. 8).
13
Já Merleau-Ponty, outro autor fundamental para compreendermos melhor as dimensões
do corpo, faz menção de ser no mundo, isto é, para o mesmo a percepção não é uma visão
sobre o mundo, mas um sentir o mundo, um viver o mundo, como se o mundo e o ser
estivessem em mútua comunicação.
“No presente, na percepção, meu ser e minha consciência são um e o mesmo,
não que meu ser se reduza ao conhecimento que dele tenho e esteja
claramente exposto diante de mim – ao contrário, a percepção é opaca, ela
põe em questão, abaixo daquilo que conheço, meus campos sensoriais,
minhas cumplicidades primitivas com o mundo, mas porque aqui “ter
consciência” [...] é comunicando-nos com o mundo que indubitavelmente
nos comunicamos com nós mesmos. Nós temos o tempo por inteiro e
estamos presentes a nós mesmo por que estamos presentes no mundo”.
(MERLEAU-PONTY, 2011, p. 569).
Dentro dessa ótica de Merleau-Ponty entende-se que para conhecer a si mesmo é
necessário interagir com o universo, com o cosmos, e o corpo é o meio através do qual se dá
esta interação. Mircea Eliade, por sua vez, coloca o corpo não apenas como objeto de
comunicação social, mas também como detentor da comunicação entre o micro e o
macrocosmos. Segundo ele o corpo humano faz parte do ritual sagrado, o corpo deixa de ser
apenas algo fisiológico e passa a ser “templo” da sacralidade.
“Em resumo, ao se instalar conscientemente na situação exemplar a que está
de certo modo predestinado, o homem se “cosmiza”; em outras palavras, ele
reproduz, em escala humana, o sistema dos condicionamentos recíprocos e
dos ritmos que caracteriza e constitui um “mundo”, que define, em suma,
todo universo. A correspondência também atua no sentido contrário: o
templo ou a casa, por sua vez, são considerados como um corpo humano. [...]
É importante, contudo, enfatizar que cada uma dessas imagens
equivalentes – Cosmos, casa, corpo humano – apresenta ou pode apresentar
uma “abertura” superior que possibilita a passagem para um outro mundo”.
(ELIADE, 2013. P. 142).
Dessa forma, podemos afirmar que o corpo não é apenas objeto, como não o deixa de ser,
não é apenas fisiológico, como também não deixa de ser e, além disso, torna-se canal de
comunicação entre a variedade de cosmos envolto ao ser quanto organismo espiritual.
Sendo assim, é natural indagar-se sobre os diferentes papéis da interação do corpo com o
meio. O ser humano passa por diferentes fases em sua vida, há o ciclo natural dos
acontecimentos, sendo eles a vida enquanto criança, adulto e a velhice, ou seja, o nascer
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sempre caminha para a mortalidade, não obstante, o corpo passou também por variações
conceituais sociais.
Le Breton, em um estudo do corpo no discurso cientifico contemporâneo, nos mostra
exatamente a variação de conceito do corpo frente à sociedade. Ele mostra a desvalorização
do corpo no meio científico e principalmente entre aqueles mais mecanizados, ou seja,
aqueles que não tem movimentação livre, que se movimentam apenas para a realização de
algo específico, que não usufruem de sua liberdade corporal. O corpo nesse contexto é
visualizado como máquina onde cada membro e órgão tem sua função para desempenho,
porém o corpo é ao mesmo tempo uma máquina defeituosa, pois está sujeita a dores,
imperfeições e mortalidade.
Sobre esse estudo ele observa o corpo como uma matéria insuficiente que aprisiona a
essência humana. “O corpo encarna a parte ruim, o rascunho a ser corrigido”. (LE BRETON,
2013, p. 16). Ele prossegue na observação em que há uma constante necessidade de melhorar
o corpo, como se houvesse sempre algo a ser modificado, a ser melhorado; o corpo em si
nunca é suficiente e isolam-se as necessidades especificas da espiritualidade e até fisiológicas
para chegar a uma perfeição física.
É evidenciada ainda a desvalorização do corpo frente à ligação com o transcendente. A
intensidade da ligação do corpo com sua vitalidade é desprezada pela matéria ser finita e sua
vitalidade, assim como a intelectualidade e todas as formas extracorpóreas, não serem
palpáveis, levando a um olhar de repulsa ao corpo, como se este fosse objeto de
aprisionamento.
“O último volta-se com ressentimento para o corpo marcado pelo pecado
original de não ser um objeto de pura criação tecnocientífica. O corpo é
doença endêmica do espírito ou do sujeito. [...] o modelo do corpo é a
máquina, o corpo humano é uma mecânica discernível das outras apenas
pela singularidade de suas engrenagens. Não passa, no máximo, de um
capítulo particular da mecânica geral do mundo. Consideração fadada a um
futuro próspero no imaginário técnico ocidental dedicado a consertar ou a
transfigurar essa pobre máquina. [...] o corpo não passa do invólucro
mecânico de uma presença; no limite poderia ser intercambiável, pois a
essência do homem reside, em primeiro lugar, no cogito. Premissa da
tendência “dura” da Inteligência Artificial, o homem não passa de sua
inteligência, o corpo nada é a não ser entrave”. (LE BRETON, 2013, p. 16,
18).
15
Ainda segundo o autor supracitado, o homem da atualidade possui o mesmo corpo que o
homem do neolítico, ele caminha com as mesmas necessidades fisiológicas. O autor detalha a
relação do ser com o mundo em que a troca de energia do indivíduo com o meio externo não é
a mesma do homem do neolítico, isto é, o homem em sua essência, assim como a sua parte
física, sofreu modificações. Se no início de sua evolução ele utilizava do corpo para todos os
aspectos de sua vivência, ou seja, para caça, comunicação, procriação, espiritualidade, e etc,
diante de sua adaptação com o meio a parte física do ser tornou-se ferramenta mecânica que
mal é utilizada para a transcendência de sua essência.
“Certamente nunca como hoje em nossas sociedades ocidentais os homens
utilizaram tão pouco seu corpo, sua modalidade, sua resistência. O consumo
nervoso (estresse) substituiu o consumo físico. Os recursos musculares caem
em desuso, a não ser nas academias de ginástica, e toma seu lugar a energia
inesgotável fornecida pelas máquinas. [...] A ancoragem corporal da
existência perde seu poder”. (LE BRETON, 2013, p. 20).
Ainda acompanhando as observações desse autor, é notório o quanto o corpo perdeu ao
longo dos muitos anos da existência humana. Reconhecemos a intensa busca pela estética,
mas em pouca escala a busca por um melhoramento e sacralização do corpo. O abandono com
os cuidados da matéria, e principalmente de modo conjunto o eu abstrato, foi sendo alastrado
ao logo dos tempos.
“O corpo é uma carga tanto mais penosa de assumir quanto seus usos se
atrofiam. Essa restrição das atividades físicas e sensoriais não deixa de ter
incidências na existência do individuo. Desmantela sua visão do mundo,
limita seu campo de iniciativas sobre o real, diminui o sentimento de
constância do eu, debilita seu conhecimento direto das coisas e é um móvel
permanente de mal-estar. [...] O desabono do corpo, [...], é também um fato
vivido em seu nível por milhões de ocidentais que perderam sua relação de
evidencia com um corpo que só utilizam parcialmente. No limite, esse sonho
de uma humanidade livre do corpo é lógica nesse contexto em que o veículo
é rei e o ambiente é excessivamente tecnicizado, e no qual o corpo não é
mais o centro irradiante da existência, mas um elemento negligenciável da
presença”. (LE BRETON, 2013, p. 21).
Ao longo do estudo Le Breton (2013) vai fazendo diversos apontamentos ao descaso que
o corpo foi tendo na visão social e a diminuição conceitual que o mesmo sofreu, pois o corpo
acabou por ser reduzido a uma máquina que precisa constantemente de modificações não para
alcançar um desenvolvimento melhor quanto a desempenho de ligação entre carne e
16
vitalidade, mas de modo mais pejorativo, como se o corpo não estivesse ligado
ininterruptamente a essência. Portanto, ele acrescenta:
“Mas a teimosia do sensível permanece. Abandonar a densidade do corpo
seria abandonar a carne do mundo, perder o sabor das [...] O homem está
enraizado em seu corpo para o melhor e para o pior. [...] Mas o desmentido
do real diante desses discursos exaltados sobre o fim necessário do corpo é
em geral vigoroso, lembra a infinita fragilidade da condição humana. Até os
imaginários mais autoritários e mais bem armados não conseguem dissolver
a morte na admiração de seus discursos. Felizmente, continuamos a ser de
carne para não perder o sabor do mundo”. (LE BRETON, 2013, p. 221, 226).
Essa crise de significações e de valores desenvolvida desde a modernidade e a busca
constante de modificações do corpo tem enaltecido o físico como objeto simbólico de
vaidades quando na verdade o corpo está sob a luz constante da humanidade, da relação entre
o palpável e o inacessível materialmente.
Também se caracteriza o corpo como o meio de individualização, de certa forma ele é o
que determina a existência do ser humano, cada ser possui seu próprio corpo, seu conjunto de
massa e órgãos e toda conceituação existencial envolvida dentro da fisiologia, mas busca-se
um meio de transcender a essa unidade, sendo assim um elo entre o meio externo e o ator.
Le Breton faz um estudo sociológico em que “a preocupação social com o corpo”
especifica brevemente os agravantes da percepção do mesmo em âmbito social e visualiza o
eu material como inevitável objeto de individualização, mas não anula a capacidade de
interação com outros seres, com o meio.
“Já que o corpo é lugar do rompimento, da diferenciação individual, supõe-
se que possua a prerrogativa da possível reconciliação. Procura-se o segredo
perdido do corpo. Torná-lo não um lugar da exclusão, mas o da inclusão, que
não seja mais o que interrompe, distinguindo o indivíduo e separando-o dos
outros, mas o conector que o une aos outros. Pelo menos este é um dos
imaginários sociais mais férteis da modernidade. [...] Assim o corpo não é
somente uma coleção de órgãos arranjados segundo leis da anatomia e da
fisiologia. É, em primeiro lugar, uma estrutura simbólica, superfície de
projeção passível de unir as mais variadas formas culturais”. (LE BRETON,
2012, p. 11, 29).
Dessa forma, o corpo deixa de ser apenas objeto de individualização, passa a ser uma
ponte entre culturas e comunicação não apenas do ser com o mundo, como também do mundo
com o ser. Sendo assim, a união entre as sensações e a percepção obtida pelo corpo, o
17
movimento e os fenômenos da expressão corporal formam a corporeidade e interage com o
universo e objetiva a transcendência corporal.
“O homem e o corpo são indissociáveis e, nas representações coletivas, os
componentes da carne são misturados ao cosmo, à natureza, aos outros. A
imagem do corpo é aqui a imagem em si, alimentada pelas matérias
simbólicas que matem sua existência em outros lugares e que cruzam o
homem através de uma fina trama de correspondências. O corpo não se
distingue da persona e as mesmas matérias-primas entram na composição do
homem e da natureza que o cerca. Nessas concepções da pessoa, o homem
não é separado do corpo, como normalmente considera o senso comum
ocidental. Em sociedades que permanecem relativamente tradicionais e
comunitárias, o “corpo” é o elemento de ligação da energia coletiva e,
através dele, cada homem é incluído no seio do grupo. Ao contrário, em
sociedades individualistas, o corpo é o elemento que interrompe, o elemento
que marca os limites da pessoa, isto é, lá onde começa e acaba a presença do
indivíduo”. (LE BRETON, 2012, p. 30).
Sendo assim, o movimento pode ser a conexão entre o órgão e o abstrato, trazendo uma
conexão da transcendência com o mundo físico em que as partes se unem e forma o canal de
comunicação do êxtase, dando a oportunidade da presença do espírito na carne.
“Em cada um dos nossos gestos, toda a palpitação do mundo, todas as suas
interações estão presentes, refletem-se e se repetem, concentram-se como em
um espelho convergente. Neste diálogo de movimento entre nosso ser ínfimo
e o todo, é a invisível e incessante vida do todo que respira com nosso alento
e pulsa com o nosso sangue. Viver é, antes de mais nada, participar desse
fluxo e dessa pulsação orgânica do mundo que está em nós, desse
movimento, desse ritmo, dessa totalidade, porque, mesmo durante nosso
sono, vela em nosso peito a lei da dupla batida, a da nossa respiração e a do
nosso coração”. (GARAUDY, 1980, P. 26).
Por consequência, vimos a necessidade que o corpo tem de estar em constante
movimento, em que para um maior desenvolvimento transcendente é necessário utilizar de
sua totalidade, tanto acreditando no órgão-corpo quanto no órgão-vital.
No capitulo seguinte, analisaremos a dança moderna como conector desses órgãos
buscando ter uma compreensão mais corpórea do que seja abstrato, ou seja, examinando a
união do ser humano de maneira integral.
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2. A INTEGRALIDADE DO CORPO E A UNIÃO COM O EU
ABSTRATO
Neste capítulo analisaremos a integridade do meio físico com o meio abstrato do ser
humano, tendo uma atenção especial ao movimento promovido pelo corpo que, embora possa
ser individual, esteja correlacionado a uma sociedade, cultura e história. Iremos analisar aqui
a necessidade do corpo com seu abstrato de serem unidos através de um mecanismo maior
que a própria carne e a intensa procura por autoconhecimento.
Para tanto, a dança se enquadra bem diante desse dever em juntar as partes fundamentais
do eu, ela torna-se um instrumento capaz de unir integralmente o sujeito em si, isto é, o ser
como um todo, tanto sua parte mortal, quanto o abstrato do ser, contudo, analisaremos essa
relação de meteria/essência e dança mais detalhada no próximo capítulo.
2.1 A correlação do eu abstrato e do corpo
Um corpo sem energia vital, sem essência com o tempo vai se degradando. Segundo a
anatomia humana, ciência que estudar estruturas e sistemas do corpo humano, o corpo é uma
substância física ou estrutura, de cada animal. A biologia por sua vez descreve o corpo como
um organismo vivo composto por diversas células, a química apresenta o corpo como matéria.
Diversas filosofias e religiões tem o corpo como cárcere da alma, como se o meio físico
precisasse de uma iluminação para poder transcender as estruturas terrenas. Maria Lúcia A.
Gnerre na coletânea de Ciências das Religiões publicada na Universidade Federal da Paraíba
(2011), ao abordar o Ioga, identifica essa prática como um meio viável a transcendência,
segundo o Bhagavadgita, um dos textos mais importantes do hinduísmo, observa a
importância do corpo para essa reconexão com o sagrado, com o religare; tendo como fonte a
prática do Hatha-Yoga para aluminação do corpo.
“os sentidos corpóreos percebem uma fatia minúscula de um mundo muito
maior. Existem outros planos de existência mais sutis, que são compostos de
outras ondas de frequências vibracionais. São diferentes aspectos de um
mesmo cosmo que vibra em diferentes frequências. A partir desta
constatação, o tantra começa um trabalho com os corpos sutis que é o
fundamento da Hatha-Yoga”. (GNERRE, 2011, P. 107).
Durante seu estudo Gnerre demarca a importância do corpo para a tradição da prática do
Ioga; em uma de suas analises ela cita o mestre de Kundalini Yoga, Bhogar, ela faz essa
evidenciação, pois ele eleva o significado do corpo e sua importância; nessa citação ele diz
que começou a valorizar seu corpo quando percebeu que Deus habitava ali.
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Por sua vez, a autora faz seu próprio apontamento acerca da importância do corpo a partir
da ótica dos mestres fundadores do Hatha-yoga, embasada nos seus conhecimentos, estudos e
trabalhos; ela narra: “Para os mestres tântricos, assim como o sal está dissolvido na água e nós
não o vemos, Deus está disperso pelo corpo, que é também a morada de Deus”. (GNERRE,
2011, P. 131).
Não obstante, deve-se considerar a energia vital como uma parte do corpo, pois o ser
humano sem corpo não pertence a esse plano e sem sua vitalidade também não fará parte de
uma sociedade. Dessa forma, sabendo que o homem, religioso ou não, sente seu corpo como
mais que simples matéria e conjunto de órgão, como vimos através de Le Breton, Gnerre,
Elide e os autores aqui supracitados, a busca por autoconhecimento é mais que imediata,
dessa forma o ator busca conhecer a si mesmo para poder se entregar ao palco da vida.
Mais adiante iremos perceber que o homem busca através de si o contato com o sagrado e
a interação do todo utilizando sua própria carne como meio de comunicação entre o espaço
sagrado e profano, coletivo e individual.
2.2 O corpo como espaço sagrado e profano
Ora, se o ator sabe que ele é mais do que as ciências tecnicistas dizem, é natural que
busque por respostas que a mesma ciência não seja capaz de responder. Elide (2013) diz que
mesmo o homem mais descentralizado de religiosidade ainda assim é fruto e herdeiro de uma
religiosidade.
“Mas o homem a-religioso descende do homo religiosus e, queira ou não, é
também obra deste, constitui-se a partir das situações assumidas por seus
antepassados. Em suma, ele é o resultado de um processo de dessacralização.
Assim como a “Natureza” é o produto de uma secularização progressiva do
Cosmos obra de Deus, também o homem profano é o resultado de uma
dessacralização humana. Isto significa que o homem a-religioso se contitui
por oposição a seu predecessor, esforçando-se por se “esvaziar” de toda
religiosidade e de todo significado trans-humano. Ele reconhece a si próprio
na medida em que se “liberta” e se “purifica” das “superstições” de seus
antepassados. Em outras palavras, o homem profano, queira ou não,
conserva ainda os vestígios do comportamento do homem religioso, mas
esvaziado dos significados religiosos”. (ELIADE, 2013, p. 166).
Para Eliade o homem, por mais descentralizado que esteja de uma religiosidade, ainda
possui estruturas as quais se assemelham a rituais que podem ser considerados um modelo de
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religiosidade própria, mesmo que não “cultue” um deus abstrato, mas estaria elegendo em si
mesmo arcabouços divinizados elegendo o eu como modelo central de seu culto.
Desse modo, pode-se identificar também o corpo como objeto simbólico do ser, ao qual
vai interagir com seu próprio eu abstrato, ou seja, sua forma imaterial de vida elencando suas
próprias necessidades e se autodescobrindo.
Enquanto um homem condicionado a uma religiosidade estruturada busca sua
completude unindo seu eu individual (atman) com seu divino universal (brahman), como
narrado por Gnerre, o homem profano busca em si mesmo sua totalidade.
Para tanto, pode-se comparar o corpo como uma casa cósmica, um templo, onde o
próprio eu é o senhor e ao mesmo tempo o servo de si. Ao falar sobre templo para o homem
religioso, Eliade (2013) observa que o contato com o sagrado transforma um pequeno centro
de comunicação entre o sagrado e o profano no meio do caos.
“Mas a irrupção do sagrado não somente projeta um ponto fixo no meio da
fluidez amorfa do espaço profano, um “centro”, no “caos”; produz também
uma rotura de nível, quer dizer, abre comunicação entre níveis cósmicos
(entre Terra e o Céu) e possibilita a passagem, de ordem ontológica, de um
modo de ser a outro”. (ELIADE, 2013, p. 59)
Ou seja, a partir do templo o homem pode interagir com o espaço sagrado, ele ainda diz:
“A manifestação do sagrado no espaço tem, como consequência, uma
valência cosmológica: toda hierofania espacial ou toda consagração de um
espaço equivalem a uma cosmogonia. Uma primeira conclusão seria a
seguinte: o mundo deixa-se perceber como mundo, como cosmos, à medida
que se revela como mundo sagrado”. (ELIADE, 2013, p. 59)
Dessa forma, pondera-se que o próprio corpo seja o templo do homem e de seu deus, seja
ele próprio seu deus, evidenciando seu eu abstrato, ou seja, um deus de origem exterior a si
mesmo. Sendo assim, pode-se aferir que à medida que o ser enquanto matéria vai descobrindo
seu potencial divino a relação entre seu corpo torna-se tanto sagrado como profano, isso quer
dizer que a partir da consciência divina da matéria o homem faz de si espaço ambíguo diante
de todo cosmo; podendo transpassar a simples ideia anatomofisiológica.
2.3 O movimento do corpo em conjunto com a vitalidade do ser
Para o ator chegar a essa noção de que é mais do que a anatomofisiologia ele precisa,
antes de tudo, de algo que o faça mais observador de seu eu, seja físico, seja imaterial. Diante
disso surge à dança moderna, como veremos no capítulo posterior, a dança moderna vem para
elencar o ator em seu conteúdo integral, isto é, a dança moderna tem a intenção de trazer ao
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homem uma autoanálise, um conhecimento mais específico do eu, uma interação completa do
ser abstrato enquanto ser material.
O movimento, a interpretação, o anseio para progredir e aperfeiçoar o órgão material
eleva a consciência corpórea, tanto em individualidade quanto em coletividade. Le Breton,
como já mencionado anteriormente, observa exatamente essa relação do corpo coletivo em
uma sociedade comunitária em que o corpo não é apenas órgão delimitador, mas uma forma
de interagir e viver em coletividade, em contra partida, em uma sociedade individualista ele
existe com o objetivo de demarcar o espaço individual.
Então, o movimento desse corpo pode irromper aspectos pré-estabelecidos socialmente
caso o ser doe seu ser material para interação coletiva, ou seja, o contato de um ator com
outro ator, ou até mesmo a coletividade de um único ator - pois “o corpo é também uma
construção simbólica” (LE BRETON, 2018, p. 33) - pode levar os espectadores a se tornarem
atores e conhecedores de si.
Laban (1978) diz que o ator pode se mover para dois diferentes objetivos, ou restringir
seus gestos para aspectos exteriores a vida ou refletir aspectos interiores ao eu, mas para todos
os efeitos o ator tem o objetivo de fazer a comunicação da vida.
“O ator que tenta fazer mais do que representar a vida, de modo habilidoso,
usa os movimentos de seu corpo e das cordas vocais com o interesse
centrado naquele ponto que deseja transmitir para sua plateia e menos nas
formas e ritmos externos de suas ações”. (LABAN, 1978, p. 27)
E a vida só pode ser comunicada com vida, isto quer dizer que para a mensagem do ator
ser compreendida ele tem que movimentar o corpo com entusiasmo, pois movimentos
mecânicos não traduziriam o sentido da existência de um indivíduo para uma sociedade.
No próximo capitulo iremos analisar esse movimento, essa dança moderna com realce a
espiritualidade corpórea; iremos observar à relação do corpo em sua integralidade no tocante a
dança moderna e como o ser individual pode interagir coletivamente e como a dança pode
integralizar o ser.
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3. A DANÇA MODERNA E A INTEGRALIDADE DO SER
Neste capítulo abordar-se-á a dança moderna como conector do ego com a matéria do ser
e, para tanto, precisamos conhecer um pouco sobre o que é a dança moderna, seus
encantamentos, seus objetivos.
3.1 A dança moderna
A historicidade aqui narrada sob a dança moderna, embora resumida, tem a intenção de
fazer conhecidas as intenções dessa arte, a razão de sua criação e dessa forma tornar
entendível o motivo da analise dessa dança como ferramenta para unir o corpo e a alma,
fazendo assim do indivíduo um ser integral.
Nascida e propagada no início do século XX, a dança moderna tem como pioneiros e
criadores destaques os bailarinos e professores: Isadora Duncan, Ruth Saint Denis, Ted
Shawn, Martha Graham, Mary Wigman, Rudolf Von Laban e Doris Humphrey.
Cada um com seu estilo próprio e defendendo seus próprios ideais, são caracterizados
dentro da dança moderna por romperem com o tecnicismo do balé clássico, por exemplo, pois
tinham como objetivo a transcendência corporal e espiritual e uma interação que não estivesse
presa e designada por técnicas engessadas.
Roger Garaudy (1980) rebusca a ideia, motivos e adesão a esse novo estilo de dança
demarcando o posicionamento de cada contribuinte para o nascimento dessa nova arte. Mas
de forma mais generalizada, a principal intenção de romper com as técnicas pré-estabelecidas
pelo balé surgiu da necessidade de ajudar o homem a formar um conceito mais elaborado de
si mesmo.
Caracterizado por Garaudy (1980) como “uma pagã que sentia intensamente a presença
do sagrado”, Isadora Duncan buscou na própria natureza a inspiração para estilizar sua dança,
fazendo dos movimentos das árvores, nuvens, das águas dos rios e mares, sua fonte de
observação e equilíbrio. Tendo similaridade com alguns de seus colegas como Ruth Saint
Denis e Ted Shawn, por seus conceitos mais espiritualizados, teve como opositora as suas
técnicas e ideias Martha Graham, pois esta estava mais interessada na integralidade do
homem pelo homem, rompendo com as ideias do homem refletir a natureza.
Martha Graham defendia a ideia de que era necessária uma dança que expressasse o
espírito de sua época, que irrompesse com o medo e conseguisse paz em si mesmo. Ela não
buscava apenas uma arte, ela queria fundir a arte e a vida para que uma falasse da outra não
tivesse que imitá-las. “A dança não é, para Martha Graham, um espelho da vida, mas sim uma
participação na vida, uma libertação da vida pelo movimento”. (GARAUDY, 1980, p. 92)
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A base da dança moderna de maneira mais generalizada, pois existem várias técnicas e
conceitos, cada um seguindo uma vertente de seus fundadores; é a fluidez de seus
movimentos e a integralidade do ser tanto como indivíduo, coletividade e como ser espiritual.
Laban em seu estudo sobre o domínio do movimento (1978) começa dizendo que “o
movimento pode ser influenciado pelo meio ambiente do ser que se move”, ou seja, o
movimento além de necessário ao ser vivo é intrínseco a cultura social ao qual o ser está
envolvido.
Pode-se concluir a respeito da dança moderna que não há uma técnica homogenia, que o
principal intuito da mesma é tornar o homem conhecedor de si mesmo e traçar uma
comunicação não apenas do ser com outros seres, mas também com a cultura, os movimentos
sociais, políticos e espirituais e principalmente um diálogo do ser com ele mesmo. Ou seja, a
dança moderna tem como finalidade permitir ao ator expressar não apenas suas emoções
como também transcrever as experiências envoltas ao ser que as sente e busca integrar o ator
com sua essência e sua matéria.
3.2 A dança moderna e união com o eu
Como dito anteriormente a dança moderna surgiu para mudar o modo como o mundo via
a dança e como a própria dança se manifestava no mundo. Dessa forma o homem passou a se
expressar não apenas com movimentos repetidos e arraigados a técnicas, mas com conceitos
que tendem a estabelecer uma ligação do corpo enquanto matéria e do corpo espiritual,
envolvendo e se deixando no cosmos.
“A dança é união. União do homem com seu próximo. União do indivíduo
com a realidade cósmica. A dança é um rito: ritual sagrado, ritual social.
Encontramos na dança essa dupla significação que está na origem de toda
atividade humana”. (GARAUDY, 1980, p. 8).
A dança é ainda o catalisador para melhorar a vida e a relação humana. Garaudy (1980)
interpreta a dança como um agregador de tudo que a sociedade ocidental deixou de analisar.
Ele diz que a solidão do homem moderno é devido à dissociação que a ciência faz entre corpo
e alma, pois as ciências físicas naturais nada querem saber da alma e do espírito e quanto à
religião ela não satisfaz as necessidades da inteligência. Portanto, resta à dança estabelecer
uma unidade entre o ser, não preenchendo as lacunas deixadas pela ciência ou pela religião,
mas de maneira integral elevar à capacidade do ator de encarar a vida, o mundo, a sociedade,
o cosmos.
“A dança é uma das raras atividades humanas em que o homem se encontra
totalmente engajado: corpo, espírito e coração. A dança é um esporte (só que
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completo). A dança é também uma meditação, um meio de conhecimento, a
um só tempo introspectivo e do mundo exterior”. (GARAUDY, 1980, p. 9).
Sendo assim, a dança moderna tem seus objetivos, não importa sob a luz de quais
conceitos estão sendo trabalhados, falando de forma mais generalizada, a interação do ser com
o próprio ser e a tudo que esteja envolto a ele; a natureza, a espiritualidade, a cultura, a
religiosidade, a sociedade, etc. “Dançar é vivenciar e exprimir, com natureza, com a
sociedade, com o futuro e com seus deuses”. (GARAUDY, 1980, p. 14).
No livro “Poética da dança contemporânea”, Laurence Louppe (2012) explana o corpo
como um órgão multifacetado, sendo e exercendo ao mesmo tempo a função enquanto órgão
vital, objeto, sujeito e ferramenta do seu próprio saber e que a partir dele “uma outra
percepção e uma outra consciência do mundo poderão emergir”, ela também diz que a dança
constitui, através da dedicação do bailarino, a “arte extraída da matéria”.
“é sobretudo na dança que a dupla presença do bailarino-espectador, também
ela um encontro de corpos, se actualiza num diálogo intensificado, diálogo
este tanto mais marcante para o nascimento das estesias por implicar um
encontro no tempo e no espaço. [...] É um modo de estudar experiências
partilhas e, através delas, a transformação do sensível tanto para o bailarino
como para aquele que testemunha a sua dança. Na dança, devido ao
compromisso do bailarino no seu gesto, a própria obra de arte é extraída da
sua matéria”. (LOUPPE, 2012, p. 29).
A autora ainda contextualiza a dança como meio que traduz tudo o que o corpo aprende e
diante disso toda obra produzida por ele deve ser analisada com mais características do que
apenas os conceitos sobre coreografia.
“A obra coreográfica já não deve ser analisada como simples objeto. Deve
ser considerada, pelo contrário, uma leitura do mundo em si, uma estrutura
de informação deliberada, um instrumento de esclarecimento sobre a
consciência contemporânea. [...] Por outras palavras, trata-se não tanto do
que trabalha a dança, mas do que a própria dança trabalha”. (LOUPPE, 2012,
p. 35).
Acerca dessa mesma concepção Le Breton (2012) diz:
“O corpo não é nunca um simples objeto técnico (nem mesmo objeto
técnico). Além disso, a utilização de certos segmentos corporais como
ferramenta não torna o homem um instrumento. Os gestos que executa, até
os mais elaborados tecnicamente, incluem significação e valor”. (LE
BRETON, 2012, p. 44).
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Por sua vez, Laban (1978) também fala a esse respeito: “O corpo é nosso instrumento de
expressão por via do movimento. O corpo age como uma orquestra, na qual cada seção está
relacionada com qualquer uma das outras e é uma parte do todo”. (LABAN, 1978, p. 67).
Dessa forma, pode-se concluir que não apenas o corpo tem sua sacralidade como à dança
pode auxiliar o ser a visualizar e sentir essa relação da matéria com seu abstrato, sua
espiritualidade e reconhecer a partir disso que todo ser tem o sagrado em si.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
O corpo é e faz parte da totalidade do ser, pois não há como dissociar o corpo de sua
forma abstrata, da sua alma, do seu espírito. A dança é um ato de conexão e comunicação que
o corpo pode usar para transcender seu conhecimento e seu contato com o sagrado.
A dança é ainda uma ferramenta de autoanálise e de autoconhecimento do qual o ser
humano pode utilizar, sem distinção. A dança não separa, não discrimina, não “pré-conceitua”
ninguém. Na dança o corpo e a alma estão em unidade para traduzir tudo o que perpassa o
outro, é dançando que o eu interage consigo mesmo, é dançando que o ser encontra liberdade.
Na dança o indivíduo se torna coletivo e a sociedade se torna uma, pois a cultura, o eu
individual e coletivo se mesclam, a transcendência corrobora com a matéria e juntos elevam
seu estado espiritual.
O presente trabalho analisou bibliografias que iluminasse essa relação que a dança
moderna tem com a espiritualidade e que esclarecesse essa dualidade do corpo. Para finalizar,
relembramos que a dança é um dos meios mais energéticos para elevar a espiritualidade do
corpo e o corpo só é a ferramenta mais importante para a dança quando este se une a alma e se
completam.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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