Introdução Ao Islão - Apontamentos Do Pe. Peter Stilwell

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Islão

«A Igreja olha também com estima para os Muçulmanos que adoram o Deus único, vivo
e subsistente, misericordioso e omnipotente, criador do céu e da terra, que falou aos
homens e a cujos desígnios ocultos eles procuram com toda a alma submeter-se, assim
como a Deus se submeteu Abraão, cujo nome a fé Islâmica com agrado pronuncia.
Veneram a Jesus como profeta, embora o não reconheçam como Deus, honram a Maria
sua Mãe virginal e até algumas vezes a invocam com devoção. Esperam também o dia
do Juízo, no qual Deus há-de remunerar todos os homens ressuscitados. Pelo que têm
em consideração a vida moral e prestam culto a Deus, sobretudo com a oração, esmolas
e jejum.
Embora ao longo dos séculos não poucos desencontros e inimizades tenham surgido
entre Cristãos e Muçulmanos, o Santo Concílio exorta a todos a que, esquecendo o
passado, pratiquem sinceramente a mútua compreensão, defendam e promovam em
comum a justiça social, os bens morais, a paz e a liberdade para todos os homens.»

CONCÍLIO VATICANO II, Nostra aetate, n. 3

BIBLIOGRAFIA:
Alcorão, trad. de José Pedro MACHADO e prefácio de Suleiman Vali MAMEDE, Junta de
Investigações Científicas do Ultramar, 2ª ed., Lisboa 1980.
ARMSTRONG, Karen, Muhammad. A Biography of the Prophet, Phoenix Press, London 2001.
BLACHÈRE, Régis, O Corão, Rés Editora, Lisboa, s.d. (trad. de Le Coran, col. «Que sais-je?»)
GUELLOUZ, Azzedine, «L‘Islam», in Le fait religieux, ed. Jean DELUMEAUX, Fayard, Paris 1993,
pp. 265-350 (trad. port. As Grandes Religiões do Mundo, Presença, Lisboa, 1997).
NICHOLSON, Reynold A., The Mystics of Islam, (col. Arkana), Penguin, London, 1989.
RODINSON, Maxime, Muhammad, Penguin, London, 21996.
SMART, Ninian, The Religious Experience of Mankind, Fontana, London 1971, pp. 474-542.
STIERLIN, Henri, Islão, de Bagdade a Córdova. A arquitectura primitiva do século VII ao século
XIII, Taschen, Köln / Lisboa / London / New York / Paris / Tokyo, 1997.
TAWFIK, Younis, Islam (trad. fr.), Ed. Liana Levi, Verona, 1997.

O Islão tem a sua origem na vida e obra de MUHÂMADE BEN ABDULLAH BEN ABDUL
MUTLIB BEN HÁXIME.
«Em português, além da forma «Muhâmade», que, até na pronúncia, corresponde ao
árabe Muhammad (esta proferida por todos os muçulmanos de hoje) existe uma outra,
também usual, mas não para fins religiosos — ―Mafoma‖ —, que se lê nos mais antigos
textos da língua portuguesa, e certamente corresponde ao que diziam na Idade Média os
crentes do Islão no Andaluz, antes e depois do rei D. Afonso Henriques, que reconheceu
o seu culto e privilégios em foral. Esta última forma tem origem na vocalização que se
espalhara em alguns países árabes, com a lição Mahommad, que os clássicos do idioma
arábico procuravam corrigir, mas que explica certas formas hoje desusadas como
«Mafomede» e «Mafamede», e o turco Mahomet, que passou ao francês (italiano:

1
Maometto), e que se aportuguesou, entre nós, por ―Maomé‖, sem necessidade, como se
viu.»1

Muhâmade

No séc. VI EC, as culturas urbanas outrora florescentes na Península Arábica haviam


entrado num período de estagnação. A população encontrava-se em grande parte remetida ao
nomadismo e a uma economia de subsistência. Mantinham-se, no Noroeste da Península, três
cidades de alguma importância: Taif, Meca e Medina. Das três, Meca destacava-se como centro
comercial e entreposto de abastecimento para as caravanas que atravessavam o deserto.
Foi em Meca que nasceu Muhâmade, provavelmente no ano 570 EC.
As práticas religiosas da época divergiam pouco das que Abraão terá conhecido dois
milénios antes e encontravam formas diversas de se manifestar:
Havia um culto relativamente difundido de pedras sagradas, que se afirmava
possuírem poderes divinos. Esfregando-as, tocando-as, beijando-as, o crente pensava
aceder a um pouco desse poder. Árvores e fontes eram igualmente objecto de veneração,
como acontece em tantas culturas pouco sofisticadas. Mas mais importante do que os
espíritos do deserto e dos oásis eram os deuses celestes. Acima de todos os deuses estava
Alá, deus por excelência (como sugere o nome, [derivado do artigo definido, O]), criador
do universo. A deusa da lua, Alat, era também importante. O seu culto foi,
provavelmente, introduzida a partir da Síria e era análogo ao da grande Deusa Mãe
largamente difundido por todo o Médio Oriente. Outras deusas incluíam Uzza, o planeta
Vénus, e Manat, a misteriosa deusa do Destino, que controlava a sorte. Al-Uzza,
sobretudo, tinha um importante culto sacrificial. Os arqueólogos descobriram traços dos
sacrifícios humanos que lhe eram oferecidos em épocas remotas. Encontra-se associada à
veneração de pilares de pedra que simbolizavam, seguramente, o poder regenerador da
natureza. Os Coraxitas, a tribo a que pertencia Muhâmade, prestava uma reverência
especial a Al-Uzza. Das divindades associadas à Caaba – grande centro de peregrinação
– era das deusas mais proeminentes.
A Caaba é uma estrutura em forma de cubo, sem ornamentação exterior, construída
em torno da Pedra Negra, de grande valor sagrado. Nela se encontravam imagens de
muitas divindades, embora nenhuma de Alá – talvez por ser o deus superior e distante.
Todos os anos proclamava-se um período de tréguas de quatro meses em ordem a
permitir o acesso de devotos das tribos circundantes e de habitantes de outras terras. Os
ritos implicavam circular em torno da Caaba e uma corrida sagrada entre dois montes
vizinhos à cidade – elementos que passaram para o Islão, depois do estabelecimento do
monoteísmo por Muhâmade.
Para além das influências desta cultura politeísta, a região encontrava-se exposta ao
Cristianismo e ao Judaísmo. Desde o séc. VI aEC (= antes da Era Comum), que havia
colónias judias a norte. A partir do séc. IV EC passou a haver também uma grande
comunidade judaica no Iémen, a sul. Talvez metade da população de Medina era judia, e
uma parte considerável da terra, assim como da indústria, estava nas mãos de judeus. Os
judeus ocupavam um lugar de grande relevo na vida económica da zona, e a sua
prosperidade contrastava de modo flagrante com a relativa pobreza dos árabes. Os
cristãos eram activos em Meca e tanto a Igreja Monofisita como a Igreja Nestoriana
tinham sido relativamente bem sucedidos na evangelização dos povos no norte da
Arábia. Mas os cristãos árabes de inclinação monofisita eram muitas vezes perseguidos
em nome da ortodoxia cristã. Terá, provavelmente, sido este um factor importante para o
seu afastamento da Igreja e adesão ao Islão. De certo modo, os árabes amorteciam o
choque entre os impérios Bizantino e Persa, e viram-se envolvidos nas guerras entre os
dois, umas vezes de um lado, outras vezes do outro. [...]
Foi neste contexto de religião pagã entremeada de Judaísmo e Cristianismo que
Muhâmade iniciou a sua missão. Nascido c. 570 EC, pertencia à tribo dos Coraxitas. O
pai de Muhâmade, Abd Allah (ou Abdullah, que significa «escravo de Alá»), morreu

1 S. V. MAMEDE, loc. cit., VII–VIII.

2
antes do nascimento do filho, tendo este sido entregue à responsabilidade do avô. O avô
era guardião da fonte sagrada de Zamzam, junto à Caaba, onde os peregrinos se vinham
dessedentar, e que, segundo a tradição, surgira por ordem de Alá2. Estes dois elementos
indicam que a devoção ao deus superior do panteão árabe fazia parte da tradição familiar
de Muhâmade. O rapaz viveu dois anos em casa do avô, até à morte deste, tendo sido
depois transferido para os cuidados de um tio. Jovem ainda, empregou-se na casa de uma
viúva rica, de nome Cadija, onde lhe foi entregue a responsabilidade dos camelos que
transportavam mercadorias para Damasco. Aos vinte e cinco anos de idade, casou com
Cadija, quinze anos mais velha, e tiveram ao todo seis filhos. Se pusermos de lado as
muitas lendas que se ligaram à sua pessoa, pouco mais sabemos destes primeiros anos da
sua vida — a não ser que a determinada altura as suas práticas idolátricas foram
duramente criticadas por um certo Zaid. É possível que Zaid fosse um convertido cristão
ou judeu, embora as fontes árabes tendam a negar qualquer dessas hipóteses. Seja como
for, representou uma influência marcante na vida de Muhâmade, e provavelmente
precipitou o seu afastamento do politeísmo dominante.
Depois de casado, Muhâmade revelou uma predisposição religiosa muito acentuada.
Era hábito seu retirar-se para as montanhas para rezar e meditar. Aos quarenta anos, a sua
inquietação espiritual e os seus anseios profundos culminaram numa experiência em que
se sentiu, a contra gosto, chamado por Deus à vida de profeta. 3

As revelações divinas testemunhadas por Muhâmade tiveram início no ano 610 EC e só


ocorreram em certos momentos privilegiados da sua vida. O profeta morreu em 632, ou seja,
vinte e dois anos depois da primeira revelação. Reunidas em volume, estas mensagens recebidas
de fonte divina compõem o Alcorão (árabe al-Qur’an = «a proclamação»)4.
A mensagem do profeta dirigia-se, antes de mais, aos povos árabes. Com o tempo, porém,
foi sendo feita uma leitura mais universal, e Muhâmade passou a ser encarado como portador de
uma palavra que supera as revelações anteriores. O monoteísmo, ponto fulcral da mensagem,
deparou com grandes resistências em Meca, onde se multiplicavam as devoções religiosas e as
respectivas divindades ou potências espirituais. Obrigado a retirar-se, com os seus discípulos, na
chamada Hégira (árabe Hijira = «fuga ou emigração»), o profeta refugiou-se na cidade de Iatrib,
que passou a chamar-se a Cidade do Profeta, Medina-t-Anabi, ou, por antonomásia, só Medina
(Cidade) ou Almedina (a Cidade) 5. Esta Fuga, que ocorreu a 16 de Julho de 622 CE, passou a
marcar o início da Era Muçulmana e o primeiro dia do ano islâmico (note-se que o ano islâmico
é lunar e não o solar, pelo que o desfasamento em relação à Era Comum não se mantém
uniforme).
Em Medina, Muhâmade organizou os discípulos num movimento político-religioso e
manifestou grandes dotes de diplomata e político, que se reflectem nas mensagens do Alcorão
deste período. Gradualmente foi alargando a influência e domínio até que regressou a Meca em
força, impondo o monoteísmo na cidade. Quando morreu, em 632, a sua autoridade estendia-se
à maior parte da Península Arábica.
A expansão do Islão nos trinta anos que se seguem à morte de Muhâmade é um dos
acontecimentos espantosos da história da humanidade. Em três décadas o domínio dos califas
(sucessores do profeta) alargou-se até ao Mar Cáspio e ao Cáucaso, a norte, à Líbia, a ocidente,

2 Nota de P. Stilwell – O poço de Zamzam (ou Zemzem) terá sido, segundo a tradição, a fonte que
o anjo do Senhor levou a escrava Agar a descobrir quando esta se preparava para morrer de sede com o
seu filho Ismael (Gn 21,14-19). No decorrer dos séculos, o poço desapareceu. A culpa, ainda segundo a
tradição, foi de uma tribo originária do Iémen que controlou Meca durante uns tempos. Ao perder o
domínio da cidade, escondeu no poço parte do tesouro do santuário da Caaba e cobriu-o de areia. Certa
noite, o avô de Muhâmade, Abd al-Mutalib, que dormia na Hijr Isma‘il — local junto à Caaba, do lado
nordeste, onde se dizia estarem sepultados Agar e Ismael — teve a visão de uma criatura angélica que lhe
mandou abrir o poço de Zamzam. O tesouro do santuário foi recuperado e o clan de Abd al-Mutalib
tornou-se guardião do poço (cfr. Younis TAWFIK, op. cit., p. 21-23).
3 Cf. Ninian SMART, The Religious Experience of Mankind, London 1984, 475–478.
4 Sobre o Alcorão, ver Régis BLACHÈRE, O Corão, Rés Editora, Lisboa, s.d.
5 S. V. MAMEDE, loc. cit., VIII.

3
a todo o território controlado pelo Império Persa, a leste. Fora deste bloco geográfico
permanecia só a Ásia Menor, controlada ainda por Binzâncio.

A experiência de Deus testemunhada por Muhâmade

Tudo indica que as experiências vividas por Muhâmade foram de uma grande densidade
emocional. Convulsionavam-no, punham-no «fora de si». Daí a impressão de se ter tornado
«poeta ou possesso» que testemunha no hadite incluído adiante entre os textos de apoio. Pelo
menos nos primeiros tempos as palavras da revelação impunham-se à sua consciência de uma
forma que o deixava extenuado. Vibravam nele como um doloroso dobrar de sinos no interior
da cabeça 6. E os resultados ainda hoje acessíveis no Alcorão manifestam a força da inspiração
sentida. «O espantoso poder da linguagem árabe do Alcorão [...] é um claro indício dos dons
poéticos e religiosos invulgares de Muhâmade» 7. Diz-se que a experiência de ouvir bem
recitado o Alcorão em árabe chega a comover quem nem sequer conhece a língua.
O temperamento do profeta era rico de feições complementares. Terrível na ira contra a
blasfémia ou a traição, era também um homem com sentido de humor, capaz de gestos de
ternura e de compaixão. Feroz na guerra, agia com grande tacto e diplomacia na paz.
Embora a tradição tenha evoluído no sentido de o considerar sem marca de pecado, tudo
indica que ele próprio não partilhava dessa opinião.
O impacto da sua personalidade está à vista de todos no modo como conseguiu, em tão
pouco tempo, congregar a multidão de tribos árabes e incutir nelas um sentido de destino
histórico e de autoconfiança, e a noção de que a vida social deve organizar-se segundo
parâmetros de justiça acima das circunstâncias sempre volúveis e dos interesses pessoais e
políticos.
Em menos de 100 anos a sua mensagem e o domínio dos seus sucessores estendia-se de
Gibraltar aos Himalaias, do Oceano Índico ao Mediterrâneo ao Mar Cáspio e ao Cáucaso.
«Muhâmade fundiu de forma singular a fé num Deus único, clemente e misericordioso com
um sentido de destino político universal. O Islão combinou a força do monoteísmo judaico, sem
as suas limitações nacionalistas, com a fraternidade do Cristianismo, sem a sua indefinição
política, e irrompeu num mundo em que as divisões e perseguições entre cristãos tornavam
atraente essa alternativa.» 8
A questão que se coloca a quem está de fora é saber se Muhâmade era ou não profeta de
Deus. O problema pode ser discutido em duas vertentes: se o seu comportamento e a sua
personalidade foram consentâneas com uma vocação tão elevada; se a sua mensagem transmite
ou não uma «verdade religiosa». A segunda vertente é sem dúvida a mais importante e aplica-se
a todas as grandes figuras da História das Religiões, mas talvez só no final de uma análise de
cada uma seja possível sistematizar alguns critérios. Quanto ao comportamento e personalidade
do profeta, parece-me menos significativo o que se possa aduzir. Não vejo que o poder de Deus,
tal como é concebido dentro e fora da tradição islâmica, possa ser limitado pela dignidade ou
não das suas criaturas (recorde-se a história da burra de Balaão, ou o poder de profetizar que S.
João reconhece ao Sumo Sacerdote em vésperas da Paixão de Jesus). Contudo, este aspecto tem
sido aproveitado pela apologética anti-islâmica para denegrir a figura de Muhâmade. Assim, por
exemplo:
Uma geração anterior de arabistas [...] levantou a hipótese de Muhâmade ter sido um
epiléptico. A acusação remontava a um escritor bizantino. Tal hipótese, porém, carece de
fundamento e pode ser atribuída a preconceitos anti-muçulmanos. O estudo dos
fenómenos da experiência religiosa tornam muito improvável que o tenha sido. Os
profetas não são pessoas normais, mas isso não nos autoriza a concluir que o seu
comportamento pouco habitual se deva a uma condição mórbida. Muhâmade foi um

6 As suras mais tardias, que reflectem as crescentes responsabilidades políticas do profeta, são mais
formais e sem a frescura e espontaneidade das primeiras.
7 Ninian SMART, op. cit., 495.
8 Ibid., 496.

4
homem a quem nunca faltou o bom senso. Os que negam a sua estabilidade psíquica só o
podem fazer se ignorarem os inúmeros testemunhos da sua perspicácia na avaliação dos
outros e na apreciação do que se passava no mundo do seu tempo; e a sua persistência
frente a uma constante oposição até unir o seu povo na mesma religião, o Islão. Se
tivesse alguma vez sofrido uma crise nos momentos de tensão, quer na guerra quer nas
controvérsias, ou desmaiado quando sujeito às exigências de uma actuação vigorosa, a
acusação talvez fosse defensável. Mas todos os elementos disponíveis apontam no
sentido contrário, e a sugestão de epilepsia é tão falha de fundamento aos olhos deste
escritor como é ofensiva para os muçulmanos. Poderá acrescentar-se que a maior parte
dos autores modernos, ao invés da geração anterior, partilham desta opinião. 9

Algumas doutrinas fundamentais do Alcorão

A simplicidade e a clareza doutrinal são dos elementos mais atraentes da proposta religiosa
do Alcorão. No essencial, resumem-se à conhecida frase que atesta a adesão ao Islão, a
confissão de fé: «Não há deus senão Deus e Muhâmade é o enviado de Deus» (La ilaha illa
Allah: Muhammad rasul Allah). Quem efectua um tal acto de adesão é um muslim — de que o
plural é muslimûn ou muçulmanos10. Muhâmade é visto não como o único mas como o último
de uma longa linhagem de profetas, que na tradição judaica e cristã vai de Moisés a Jesus mas
que na perspectiva muçulmana não se restringe a essa tradição. Ele próprio é o «selo dos
profetas»; aquele com quem a revelação de Deus atinge o seu fim. Note-se que Jesus é
entendido como o maior dos profetas antes de Muhâmade e o «selo da santidade».
A estes artigos básicos da profissão de fé muçulmana, a primeira das «Cinco Colunas do
Islão», acrescenta-se, necessariamente, o reconhecimento da inerrância do Alcorão, cuja origem
é divina.
Abaixo de Alá há uma multidão de anjos. Mas são criaturas de Deus, como na doutrina
cristã. Entre os anjos houve um que caiu, Iblis (nome derivado do grego diábolos), que procura
obstruir, com os seus agentes, a obra dos fiéis. Mas só pode agir dentro dos limites estabelecidos
por Alá.
A omnipotência de Alá é de tal modo vincada no Alcorão que se levanta o problema da
predestinação. O tema não é explorado a fundo no livro sagrado e tornar-se-á motivo de
divergências teológicas posteriores. Todavia parece evidente que Alá permite a condenação
eterna de alguns.
Tal como no Judaísmo tardio e no Cristianismo, o Islão crê no Juízo Final e na existência
de um Céu e de um Inferno.
A defesa da unidade de Deus contra todo o politeísmo levou Muhâmade a encarar Jesus de
uma forma que contradiz a fé cristã ortodoxa. Nenhum muçulmano pode considerar Jesus um
ser divino. Seria, na perspectiva do profeta, colocar alguém a par de Alá. Também a filiação
divina de Jesus é negada no Alcorão. O conceito de filiação no contexto da cultura árabe
implicava uma relação física de geração, incompatível com a transcendência divina. No entanto,
Jesus é considerado um profeta, e afirma-se a sua concepção por iniciativa divina no seio da
virgem Maria. Quanto à sua morte: não morreu na cruz. Na altura da paixão, foi substituído por
uma aparência e levado para o céu (o texto do Alcorão é ambíguo neste ponto, mas a leitura
aqui apresentada corresponde à mais frequente entre os muçulmanos). O mesmo Jesus virá de
novo antes do Juízo Final, mas não como Juiz, pois esse será o próprio Deus. O Alcorão afirma

9 Alfred GUILLAME, Islam, Penguin, London 1956, pp. 25-26 (cit. por N. SMART, op.cit., p. 497).
10 «[...] particípio activo do verbo aslama, palavra especializada no árabe moderno no sentido de
―se tornar muçulmano‖, ―converter-se ao Islão‖. É costume atribuir ao verbo aslama o sentido
etimológico de de ―submissão‖, e dizer que muslim significa literalmente ―submetido (a Deus)‖. Na
realidade, a verdadeira etimologia introduz uma diferença subtil: a raiz slm tem significado primordial de
―ausência de contestação‖, donde o sentido bem conhecido da palavra salâm, ―paz‖, ―saúde‖; o verbo
derivado aslama deveria significar, portanto, ―pôr-se de paz com‖ ou ―fazer a paz‖. O muçulmano é
portanto, antes de mais, aquele que se põe de paz com Deus, que coloca a existência de Deus e o seu
poder fora de toda a contestação» – Azzedine GUELLOUZ, loc. cit., p. 263.

5
ainda que Jesus recebeu do alto a força do Espírito Santo, e o Espírito Santo é mencionado
várias vezes ao longo do livro sagrado, mas nunca é encarado como uma Pessoa no seio da
Divindade.
Este quadro dá-nos uma ideia de como Muhâmade se distanciou da fé cristã. Não negou
abertamente a doutrina da Santíssima Trindade, mas sim um determinado entendimento da
filiação divina de Jesus — que o Cristianismo ortodoxo também rejeitaria.

As Cinco Colunas do Islão

O Islão é uma religião sobretudo balizado por práticas determinadas. Destacam-se as


chamadas «Cinco Colunas do Islão».
1. Shahada – a repetição do brevíssimo credo muçulmano atrás referido;
2. Salat – a oração, realizada cinco vezes por dia, é feita com a face orientada para a
Caaba, em Meca (numa mesquita, um nicho, chamado o mihrab, indica a orientação
correcta, a quibla); nos primeiros tempos, Muhâmade estabeleceu Jerusalém como
referência, mas a ruptura com a comunidade judia em Medina levou-o a fixá-la
definitivamente na Caaba;
3. Sawm – o jejum (nem comida nem bebida, nem intimidade sexual), praticado do
nascer ao pôr do sol durante o mês do Ramadão — e, noutras ocasiões, como
expressão de penitência por algum crime, como o homicídio; o Ramadão termina
com o ‗Id al-Fitr, a Festa da Quebra do Jejum, em que se fazem orações
comunitárias e se trocam presentes; note-se que o ano islâmico é lunar, pelo que,
com a passagem do tempo, o Ramadão percorre as várias estações do ano solar.
4. Zakat – a esmola (2,5 % sobre o remanescente do rendimento no final do ano, e uma
esmola obrigatória no final do Ramadão) a distribuir pelos pobres;
5. Hajj – a peregrinação a Meca, feita no 12.º mês, caso o crente tenha possibilidades
materiais para a realizar; representa um regresso às origens e uma experiência viva
da unidade do Islão; peregrinos que visitem Meca noutros meses realizam a ‘umra,
ou peregrinação menor, que é menos exigente.

A expansão do Islão

A morte súbita de Muhâmade, em Medina, na sequência de uma dor de cabeça e febre


repentina, introduziu um elemento de perturbação no desenvolvimento do Islão. Ocorrida a uns
escassos dez anos da hégira para Medina e a dois da tomada de Meca, colocou aos seguidores
do Profeta o problema delicado da sucessão. Talvez por a morte o ter surpreendido, Muhâmade
não deixou indicações nem quanto à pessoa nem quanto ao modo de escolha do seu sucessor (=
khalifa ou califa). Em sentido próprio, um profeta não tem sucessor. Cada profeta é chamado
pessoalmente e de forma exclusiva por Deus, e a vocação não é transmissível. Mas Muhâmade
tinha acumulado funções de dirigente político, e se ninguém assumisse essa função a frágil
unidade tecida entre as tribos árabes ameaçava romper-se.
Recorreu-se então ao método do consenso (ijma) seguido tanto em Medina como em Meca
para a tomada das decisões que a todos diziam respeito, e convocou-se a Nidwa (Assembleia),
composta de representantes dos vários clãs e tribos convertidos. Entre os elementos que se
reuniram contavam-se os primeiros discípulos: Ali, primo do profeta, casado com Fátima, sua
filha favorita, e Abu-Bakr al-Sadiq, amigo fiel do profeta e homem desde sempre amado e
respeitado pela sociedade de Meca. Na altura em que Muhâmade faleceu, Omar, outro discípulo
da primeira hora, proclamou na mesquita de Medina que o profeta se tinha retirado no Espírito,
mas que em breve voltaria a aparecer. Abu-Bakr não estava presente. Regressou, no entanto, de
imediato, e apresentou-se na mesquita onde, depois de louvar a Deus, proclamou com

6
autoridade: «Ó povo, quem adorava Muhâmade, que saiba que Muhâmade morreu
verdadeiramente! Quem adorava Deus, que saiba na verdade que Deus está vivo e não morrerá
jamais!»
Os primeiros quatro califas têm um estatuto especial na história do Islão. Chamados os
«quatro califas bem-guiados», o seu exemplo, junto com o de Muhâmade, é recordado como
suna (costume ou tradição).
ABU-BAKR (632-634) foi o primeiro califa escolhido. Conseguiu impor de novo a unidade
às tribos — que após a morte do profeta tinham entrado num processo de ruptura — e
empreendeu um conjunto de campanhas militares coroadas de sucesso. Nos dois anos da sua
chefia o domínio político e religioso do Islão estendeu-se ao Sul da Síria e à margem ocidental
do Golfo Pérsico, mas não à Palestina.
UMAR, ou Omar (634-644), homem de Estado e personalidade enérgica que propusera a
eleição de Abu-Bakr, foi a escolha natural para o suceder. Continuou as campanhas militares e,
numa incursão fulminante, o seu general, Khalid ben al-Walid conquistou Damasco a Bizâncio,
infligindo pouco depois uma derrota estrondosa às tropas do Imperador Heraclito. O seu
domínio alargou-se rapidamente à Palestina, a parte dos territórios do Império Persa e ao Delta
do Nilo.
Umar foi assassinado por um escravo cristão. Após a sua morte foi escolhido para califa
um aristocrata de Meca, UTHMAN, ou Otman (644-656), da família dos Omíadas e genro do
profeta. Criou mal-estar ao promover familiares a cargos de poder, ao mesmo tempo que
afastava discípulos do profeta do tempo do exílio deste em Medina. Durante seu mandato,
vibrou-se o último golpe que fez ruir o Império Persa. O Islão passou a estender-se do Alto
Egipto ao Cáucaso, da Líbia a Isfahan. Mas, em breve, as reacções de Medina à ascensão dos
arrivistas de Meca culminou no assassinato de Uthman.
ALI (656-661) foi eleito para suceder a Uthman, mas contra uma forte oposição liderada
por um omíada, Muawiya ibn Abu Sufyan, sobrinho de Uthman e governador da Síria. Ali
deslocou o centro do seu governo para o Iraque e, a partir daí, enfrentou com os seus exércitos
os que se lhe opunham. Mas as forças sírias de Muawiya afixaram versículos do Alcorão nas
lanças e os exércitos de Ali tiveram receio de atacar. Ali aceitou então negociar e viu a sua
causa derrotada. Em 661, foi assassinado por um dos seus próprios partidários que se opusera às
negociações. A dinastia omíada firmou-se no poder — do qual só se veria apeado quase um
século depois pela dinastia abássida (750-1258) — mas estavam lançadas as sementes das
divisões no interior do Islão que marcá-lo-iam até aos nossos dias, pois um grupo de partidários
de Ali formou o «partido de Ali», xi’at Ali (ou chi’at Ali), conhecido mais tarde simplesmente
como xi’a, cujos adeptos se chamam xiitas.
Depois dos ―califas bem-guiados‖, o califado transformou-se numa instituição dinástica,
vista como guardiã da Sharia, ou lei corânica. Em 1924, o califado foi abolido por Ataturk e o
consenso (ijma) do Islão sunita parece ser, actualmente, que, «se a Sharia é respeitada pelos
governos nacionais dos países muçulmanos, então não há necessidade de restaurar a posição
transnacional do califa»11.

11 David KERR, «A unidade e variedade no Islão», in AA.VV., As Religiões do Mundo, São Paulo,
1996, p. 332.

7
Os ramos do Islão

SUNITAS XIITAS

Maioria de 90%. Governo por Minoria de 10%. Dirigidos por um «imã» sucessor de Ali. Ali
consenso comunitário, liderado herdou a «wilaya» de Muhâmade, os seus dons espirituais, o que
por um califa. levava a que a sua interpretação do Alcorão fosse infalível, e
passou esse carisma aos filhos do seu casamento com Fátima,
Hassan e Hussein, e estes a seus descendentes.

SAIDIS IMAMIS ISMAELITAS


(do décimo segundo)
Nizaris (imã = Aga
Kahn)

Musta’lis, ou
muçulmanos
Bohora (imã oculto,
não descende de
Hassan e Hussein)

SUFIS – Muçulmanos que procuram uma experiência directa e pessoal de Deus. Por isso,
muitas vezes classificados de místicos. Têm sido particularmente importantes na difusão do
Islão. Nos séculos XVIII e XIX, pelo menos metade, se não três quartos dos muçulmanos
masculinos tinham uma ligação com uma tariqa (ordem) sufi. O aparente contraste entre esta
procura de uma relação vivenciada com Deus e o cumprimento da lei corânica, ou Sharia, foi
resolvida pelo grande mestre indiano, Ahmad Sirhindi (m. 1625, AH 1034): afirmava que,
embora a experiência de estar em Deus seja real, não é toda a religião nem o seu fim; a vida
moral e virtuosa é igualmente importante. A experiência sufi da realidade absoluta (haquiqa)
não se opõe à Sharia. Pelo contrário, representa o acesso existencial ao seu fundamento.
A origem do sufismo ainda não é clara. Parece ter surgido a partir da determinação de
alguns muçulmanos dos primeiros tempos de não se deixarem distrair pela rápida expansão do
Islão, e o desejo de se fixarem na visão e na prática de Muhâmade, deixando que se realizasse
nas suas vidas a soberania absoluta de Deus. É possível que esta aspiração se tenha visto
reforçada pelo contacto com o monaquismo cristão da Síria.12

A Lei Corânica

Ao longo do tempo, a tradição sunita desenvolveu um sistema completo de leis


comunitárias, a Sharia (semelhante, portanto, ao Direito Canónico da Igreja Católica). Há
quatro escolas de direito corânico: os malikis, os hanafis, os shafi’is e os hanbalis. Na
interpretação, mantém-se o princípio do ijma, o consenso da comunidade (na prática, dos
estudiosos).
Sharia significava, originalmente, «o caminho para o poço da água». Baseia-se, enquanto
lei corânica, no Alcorão, na suna, no ijma, e nas quiyas — deduções analógicas das três
primeiras fontes. Desdobra-se em cinco categorias: aquilo que Deus ordenou; o que Deus
recomendou, mas não tornou obrigatório; no que Deus deixou como legalmente indiferente; o
que Deus censurou, mas não proibiu; o que Deus proibiu expressamente.

12 Um curioso testemunho clássico da literatura sufi é a obra de Farid ud-Din ATTAR, The
Conference of the Birds (1177), (col. Classics), Penguin, London, 1984 (existe trad. brasileira, não muito
boa).

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