9 Direito Criança Do Adolesc-Explora - Trabalho - Infantil
9 Direito Criança Do Adolesc-Explora - Trabalho - Infantil
9 Direito Criança Do Adolesc-Explora - Trabalho - Infantil
“Desde muito cedo o jovem era separado de sua família e colocado sob um sistema
rígido de educação, no qual desenvolvia, por meio de exercícios coletivos, suas
aptidões físicas e intelectuais para compor o corpo e alcançar o status do cidadão
grego. Esta condição representava, na época, a possibilidade de participar das
atividades sociais da cidade, de construir uma família e de vir a ser um mestre na arte
de guerrear”.1 4
1 VERONESE, Josiane Rose Petry. Papel da criança e do adolescente no contexto social: uma reflexão
necessária. [S.l.: s.n.], 2000.
2 Ibidem.
Como vimos, quando falamos em trabalho infantil contra crianças e adolescentes, vem-
nos à cabeça, por exemplo, o trabalho na agricultura ou nas carvoarias e acabamos nos
esquecendo da prostituição infantil. No Brasil, atualmente, as crianças brasileiras são “objeto” de
oferecimento no mercado nacional e internacional para a prática de atos sexuais. O Brasil –
principalmente o Rio de Janeiro e o Nordeste – é mundialmente conhecido como polo de turismo
sexual.
3 ARIÉS, Phillippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1981. 156 p.
prol do senhor. Com o início das corporações romanas, os filhos dos trabalhadores livres
laboravam como aprendizes para, no futuro, exercer o mesmo ofício paterno.
Na Idade Média, com o surgimento das corporações de ofício, o menor laborava sem
qualquer salário ou proteção, durante anos a fio. Já no Brasil, com o predomínio do trabalho
escravo, não havia qualquer proteção legal. Os filhos dos escravos eram utilizados em atividades
domésticas, agrícolas ou nas indústrias rudimentares.
França. Inicia a assistência à infância, com as Leis de 1.841 e 1.848, assegurando aos
menores trabalhadores, com a lei datada de 19/03/1874, a idade de admissão ao emprego, o
tempo máximo da duração do trabalho, a proibição do serviço noturno e nas minas subterrâneas.
Inglaterra. Desde 1802, por iniciativa de Roberto Peel, existia uma lei de proteção aos
menores trabalhadores nas indústrias têxteis.
A Europa toda escureceu e não foi apenas pela fumaça liberada por suas chaminés,
10
mas principalmente pelo pensamento obscurecido dos homens fascinados pelo ouro, que não
hesitaram em submeter crianças de até 7 anos a uma vergonhosa escravidão, somente para
garantir a edificação de fortunas que em tempo algum jamais foram garantidoras de paz e da
felicidade pessoal.6
A diferença reside no fato de que a sociedade brasileira estava marcada tanto pela
variação etária como pelo acentuado desnível social.6 O patrão de hoje, seja usineiro, o dono de
olarias, o produtor de carvão vegetal, em relação à criança e ao adolescente, parece ter-se
inspirado nos abastados patrões da Europa do Estado Liberal do século XVIII. Não nos
esqueçamos que o século XIX também foi cenário de verdadeira era da escravidão de crianças e
mulheres, com a submissão a trabalhos no interior da minas de carvão e na indústria têxtil.
Na cidade e no meio rural, mostrar os problemas da infância e da juventude
desassistidas, pequenos seres sem perspectivas, cujo número populacional aumenta ao longo
do tempo, implica basicamente tratar do destino do país e de seus percalços na ordem
econômica internacional.
Mesmo sendo proibido em vários países, no Brasil o trabalho infantil conta com mais
de três milhões de crianças e adolescentes menores de 14 anos, os quais, em vez de participar
de atividades de socialização, de brincadeiras e de ter tempo para o estudo e outras atividades
inerentes às crianças, passam o dia laborando para garantir seu sustento e/ou o de sua família,
e esse fato traz consequências danosas para seu desenvolvimento físico e psicológico.
Uma sociedade que exclui suas crianças do convívio familiar e comunitário e impede o
acesso a seus direitos fundamentais está plantando a violência que colherá mais tarde, criando,
assim, um círculo vicioso com graves consequências sociais. A situação em questão decorre, em
parte, da baixa renda de muitas famílias, para as quais o trabalho infantil é uma questão de
sobrevivência. Os organismos sindicais se omitem por se tratar de setores não-organizados da
economia. E, muitas vezes, os próprios pais ou responsáveis consideram o trabalho preferível à
6 Ibidem.
escolarização, por ser mais “educativo e rentável”. Primeiro, a sociedade dita organizada e legal
escreve uma Constituição e uma lei específica que não cumpre.
Pelo que examinamos da Lei 8.069/90, está-se cumprindo tão-somente a parte em que
os deveres das crianças são cobrados. Segundo Siro Darlan, ex-juiz da Vara da Infância e da
Juventude, o diretor da Biblioteca Nacional assiste diuturnamente, do alto de seu gabinete, ao
desfile de crianças, sem teto, sem escola, sem alimentação, cheirando cola para matar a fome.
Podia fazer algo para mudar essa situação, mas nada faz. Poderia ter aberto um espaço na
Biblioteca Nacional para realizar com elas um trabalho de escolarização. De acordo com a 12
Organização Internacional do Trabalho, “a criança e o adolescente não podem esperar. Eles só
têm uma única oportunidade de crescimento e desenvolvimento, ou seja: eles têm direito à
infância”.
No Brasil, é possível dividir a evolução histórica dos direitos das crianças e dos
adolescentes em quatro grandes períodos, dos quais se destacam alguns fatos marcantes:
Durante esse período, qualquer tipo de assistência dada às crianças órfãs ou expostas
ocorria como prática da piedade católico-cristã. Em 14 de janeiro de 1738, no Rio de Janeiro, foi
fundada por Romão de Mattos Duarte a primeira Casa dos Expostos do Brasil, uma instituição
em que eram acolhidas as crianças abandonadas por seus pais (os quais permaneciam no
anonimato).
Com a Constituinte de 1823, José Bonifácio defendeu um projeto em que a escrava,
após o terceiro mês de gravidez, não poderia trabalhar e, após o parto, teria um mês de
convalescença; passado este, durante um ano, não poderia trabalhar longe de seu filho. Apesar
de ter sido outorgada em 25 de março de 1824, a primeira Constituição do Brasil, promulgada
por Dom Pedro I, não trazia qualquer menção, em seu texto, à criança e ao adolescente.
Em 1830, o Código Penal Imperial do Brasil estabeleceu que os menores infratores
entre 14 e 18 anos deveriam ser considerados criminosos, tendo, no entanto, a pena atenuada.
Em relação aos menores infratores abaixo de 14 anos, estes deveriam ser considerados
inimputáveis; contudo, se fosse constatado terem agido com discernimento na prática do ato
criminoso, seriam encaminhados pelo juiz a tratamento nas Casas de Correção, não
ultrapassando a idade de 16 anos. Predominava, neste caso, a teoria da ação, na qual a
imputabilidade se baseia na condição pessoal de maturidade do agente frente ao ato ilícito
praticado.
O Senado, em 12 de julho de 1862, aprovou a Lei de Silveira da Mota, que proibia a
venda de escravos sob pregão e exposição pública, bem como a proibição de, em qualquer
venda, separar o filho do pai e o marido, da mulher. 13
Em 28 de setembro de 1871, a Princesa Isabel aprovou a Lei do Ventre Livre, que
concedia liberdade às crianças nascidas de mães escravas. Contudo, havia restrições legais: o
menor deveria permanecer sob a autoridade do proprietário de escravos e de sua mãe, que,
juntos, deveriam educá-lo até os oito anos de idade. Completado este período, o proprietário da
escrava-mãe teria duas opções: poderia receber uma indenização estatal de 600 mil réis pagos
em títulos do governo, no prazo de trinta anos, ou se utilizar dos serviços do menor até que este
completasse 21 anos.
7 MENDES, Emílio Garcia e COSTA, Antônio Carlos Gomes da. Das necessidades aos direitos. São Paulo:
Malheiros, 1994, 127 p.
8 Idem, 132 p.
políticas (instrumentos criados), que deveriam atuar sobre a problemática, apenas resultaram em
uma cristalização ainda maior dessas desigualdades sociais.
16
Com a edição da Lei 8.069/90 (ECA), de 13/07/90, a qual entrou em vigor em 12/10/90,
o Brasil mostra maturidade legislativa na questão da dignificação da pessoa humana desde a
tenra idade, com a valorização do ser, em condição peculiar de desenvolvimento, marco para a
construção de uma sociedade organizada, mais justa e capacitada a vencer os entraves
discriminatórios e de violência que ainda estão expostas as crianças e adolescentes. A
interpretação do Estatuto leva em conta os “fins sociais a que se dirige”:
Do final do século XIX até 1945, muitos países industrializados lutaram para limitar ou
impedir o trabalho infantil, além de garantir as mínimas condições de escolaridade e atendimento
médico. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, teve início uma conscientização, em nível
mundial, de proteção às crianças.
Em 1946, a Assembleia Geral da ONU criou a Organização das Nações Unidas para a
Infância (UNICEF), iniciando um amplo programa de auxílio aos novos países. A mesma
Assembleia, já em 1948, inseriu na Declaração Universal de Direitos Humanos, a garantia à
educação, à saúde e à limitação do trabalho. Esses princípios, embora com algum atraso, estão
presentes no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Será que, algum dia, os adultos compreenderão a importância de dar amor, carinho,
compreensão e apoio às crianças e aos adolescentes? Infelizmente não podemos responder a
18
essas perguntas com certeza, mas esperamos sinceramente que sim, pois essa é uma tarefa
muito importante e – por que não? – até vital.
Universalização
São sujeitos de direito perante o ECA todo e qualquer menor, independentemente de
faixa social ou econômica. Abandonou-se, assim, a distinção que fazia o Código de Menores,
voltado basicamente para aqueles que se encontrassem em situação irregular.
Humanização
O art. 5° do ECA dispõe que nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer
forma de negligência/discriminação/exploração/violência/crueldade e opressão, sujeito a punição
qualquer atentado de tais direitos, em outras palavras, humanizou o tratamento aos menores.
Desjudicialização
Para a administração da justiça de menores dispõe que deve-se procurar o tratamento
adequado ao infrator menor, sem recorrer ao processo judicial.
19
Despolicialização
Em regra, problemas de menores não é caso de polícia, mas sim questão social. Por
isso, antes de qualquer envolvimento policial, deve-se procurar resolver por intermédio de
Conselhos da Criança, Conselho Tutelar, Comissário da criança e do adolescente e outros.
Participação coletiva
É dever da família/comunidade/sociedade em geral e do Estado assegurar; com
absoluta prioridade, a efetivação dos direitos fundamentais da C. A.
2 PROTEÇÃO SOCIAL E JURÍDICA DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NO BRASIL
Outras obras relativamente recentes têm fornecido subsídios acerca da relação familiar
ao longo da história.2 Sem dúvida foi a partir do século XVIII que surgiram na Europa mudanças
radicais que influíram na história da criança. Levantamentos demográficos realizados naquele
período levaram a considerar as crianças abandonadas e as prostitutas como forças de
produção potenciais, visando, sobretudo, à promoção de colônias. Chamousset esclarece que
“as crianças abandonadas não conhecem outra mãe senão a pátria; daí a importância do Estado
em conservá-las”.3
1 MARTINS, Anísio Garcia. Direito do menor. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Universitária de Direito, 1988, 26 p.
2 ARIÉS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. SHORTER, E. La
naissance de la famile modeme. Paris: Seuil, 1977.
3 CHAMOUSSET, H. apud BADINTER, Elizabeth. Um amor conquistado – o mito do amor materno. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1988, pp. 12 e ss.
Elucida ainda que o Estado deve esforçar-se para manter vivas essas crianças
abandonadas, cuidar de sua higiene e do aleitamento artificial para que sobrevivam. Seria
inclusive isenta do serviço militar a aldeia que quisesse cuidar dessas crianças até que
entrassem para o exército, quando seriam obrigadas a servir até 25 ou 30 anos, substituindo o
marinheiro e o soldado, que custavam mais para o Estado do que o custo anual de uma criança.
Como se vê, a criança era um valor mercantil em potencial.4
O discurso da igualdade e da felicidade de Rousseau, nessa época, ressaltava a
preocupação em relação à criança e ao poder dos pais, a partir da ideia da família como única 21
sociedade natural. Já Voltaire demonstrava o interesse do homem pela felicidade; não se
esgotava como uma questão individual, mas diante da possibilidade de vivê-la na coletividade.
Nesse passo, todas essas ideias – consideradas num apanhado superficial – impuseram
modificações políticas e sociais consideráveis na Europa daquele período.
“Na história do período colonial surgem, com algumas ideias adiantadas destoando
da absoluta apatia pela sorte da criança, os vultos memoráveis de Nóbrega,
Anchieta e tantos outros discípulos de Loyola, na esforçada empreitada de
catequese dos selvagens, tão criticada por Oliveira Martins e vários outros
escritores. Fundando, no entanto, em nosso território as primeiras escolas e
empenhando-se na civilização das populações embrutecidas, a catequese foi obra
de caridade dos jesuítas. Meio século ainda não se havia passado da chegada ao
Brasil da missão apostólica de Anchieta e já quase todo o litoral, desde
Pernambuco até São Vicente, estava povoado por índios domesticados e
convertidos, já havendo sacerdotes convertidos, deles, mais de cem mil. Eram
criadas aldeias e nelas se ensinava as crianças a ler e escrever, assim se
multiplicando as escolas [...]. Reza a história que aos jesuítas se deve a criação e,
por espaço de dois séculos, quase exclusivamente, a manutenção do ensino público
no Brasil [...]. Seu primeiro ato, ao aportar às nossas plagas, foi, como se sabe,
fundar em 1549, na Bahia, um colégio. Em 1551, esse colégio já funcionava com 20
4 Ibidem.
meninos. Foi aí que, em 1622, recebeu instrução o notável Padre Antônio Vieira [...].
Segundo dizem os historiadores, as congregações religiosas se constituíram as
grandes promotoras da instrução da mocidade e da educação da infância desvalida.
O ano de 1693 foi marcado pela demonstração oficial de proteção direta à infância.
Floro de Araújo Melo lembra este fato ao ressaltar que
5 MONCORVO FILHO, Arthur. Histórico da proteção da infância no Brasil. 1550/1922. Rio de Janeiro: Empresa
Gráfica Editora. 1923, p. 26-31.
6 MELO, Floro de Araújo. A história da história do menor no Brasil. [editora particular], 1986, 27 p.
7 Idem.
Irmã Rizzini, em recente e esplêndido trabalho de pesquisa, A assistência à infância na
passagem para o século XX – da expressão à educação, focaliza, sobretudo, o conflito entre as
forças da caridade e da filantropia como uma disputa econômica e política pela dominação sobre
o pobre. Ela diz:
8 RIZZINI, Irma. A assistência à infância na passagem para o século XX – da repressão à reeducação. Revista
Fórum Educacional, 02/90. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 80 p.
9 Idem.
10 Ibidem.
Ciências como a medicina, a psiquiatria, o direito e a pedagogia contribuíram com
teorias e técnicas para a formação de uma nova mentalidade de atendimento ao menor. A
mentalidade repressora começou a ceder espaço para uma concepção de reeducação, de
tratamento na assistência ao menor. Verificou-se o surgimento de um novo modelo de
assistência à infância, fundado não mais somente nas palavras da fé, mas também nas da
ciência, basicamente médica, jurídica e pedagógica.
A assistência caritativa e religiosa deu espaço ao desenvolvimento de um modelo de
assistência calçado na racionalidade científica, em que o método, a sistematização e a disciplina 24
têm prioridade sobre a piedade e o amor cristãos.11 Conclui Irmã Rizzini que “a luta de forças
entre a caridade e a filantropia foi antes de tudo uma disputa política e econômica pela
dominação sobre o pobre. Este, até o século XIX, pertencia ao domínio absoluto da Igreja. A
preocupação com a pobreza por parte das ciências, como a medicina, a economia, a sociologia,
a pedagogia e outras, permitiu tomarem para si diversos aspectos de pauperismos como objetos
de estudo. Dessa forma, forneceram às elites sociais e políticas os instrumentos que
possibilitavam a elas reclamarem entre si do domínio de uma situação que as ameaçaria
diretamente e que a Igreja mostrava-se incapaz de controlar”.12
Estudos revelam que, até 1930, as instituições educacionais tinham sua preocupação
voltada ao caráter moral e religioso. Mais uma vez, Irmã Rizzini, reportando-se aos
ensinamentos de Moncorvo Filho, lembra que os asilos “mantidos pela caridade religiosa e, em
menor escala, pelo Estado” passaram a sofrer críticas negativas ligadas à mortalidade infantil em
tais instituições, à educação “quase que exclusivamente religiosa, o tratamento repressivo e não
especializado dos menores e o não-respeito aos preceitos da higiene”.13
11 Ibidem.
12 Ibidem.
14 Idem, 85 p.
15 Ibidem.
16 Idem, 93 p.
Proteção jurídica da criança e do adolescente a partir das primeiras décadas do século XX
Embora pretendamos, neste item, manter a mesma linha de divisão histórica, ou seja,
uma análise do amparo e da assistência à criança sob o prisma da população desassistida pelas
instituições e pelo Estado, cabe abrir parênteses para elucidar alguns aspectos da lei civil em
relação à família e à criança no período em análise.
O Código Civil, que entrou em vigor em 1917, era fruto de uma realidade social e
jurídica do final do século XIX, influenciada pelas modificações estruturais introduzidas pelo 26
Código de Napoleão na França e em toda a Europa no início do mesmo século. Assim, também
a lei civil sofreu, naquela época, mudanças estruturais, modificando fundamentalmente a tutela
do Estado em relação à família.
Ao classificar e distinguir os filhos como naturais, adulterinos e incestuosos, adotados,
legítimos e ilegítimos, e valorizar sobremaneira o pai ou o marido, ao outorgar a essa figura total
poder de decisão na família e na vida de seus membros, o Código Civil já apontava para
algumas situações que demonstravam o interesse da sociedade em resguardar as relações
familiares contra a violência.
Assim, a punição no caso de abuso do pátrio poder, as limitações legais, as atribuições
do tutor, a fixação de obrigação dos pais para com a família e a possibilidade de propor
investigação de paternidade são algumas conquistas que demonstraram um grande avanço para
a época.
Porém, em 1917, a nova lei civil destinava-se a uma classe de cidadãos de certa
camada social. Na prática, a tutela jurídica não atingia as famílias dos “mendigos”, dos
“vagabundos”, das “prostitutas”, dos negros recém-libertados. Os índios foram considerados por
essa lei relativamente incapazes, equiparados aos maiores de 16 anos e menores de 21 anos,
às mulheres casadas e aos pródigos.
Clóvis Beviláqua, comentando o art. 69 do Código Civil, refere-se ao Marquês de
Pombal, como quem primeiro reagiu diante das variedades de tratamentos destinados aos
índios:
Em 1916, foi criado o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), substituído, em 1967, pela
Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Efetivamente, a sociedade de então valorizava a família
legítima, distinguindo-a, sobretudo, nos direitos patrimoniais, e o restante considerado como
enjeitados ou “párias” desta sociedade. “Perfilhar” um filho ilegítimo ou mesmo promover
geralmente uma adoção era privilégio jurídico de poucos.
Outros aspectos legais relativos à criança merecem igual análise, haja vista as 27
17 BEVILAQUA, Clovis. Código civil comentado. Rio de Janeiro: Rio, 1975. 192 p.
18 JASMIM, Marcelo Gantus. Para uma história de legislação sobre o menor. Revista de Psicologia, 4 (2), jul/dez
1986, 81 p.
Considerado como o “Apóstolo da Infância Abandonada”, deixou também um grande
acervo bibliográfico, além de ter criado alguns estabelecimentos de assistência e proteção à
infância abandonada e delinquente.19 Tal código representou uma iniciativa precursora dentro
da legislação brasileira, destacando-se pela assistência aos menores de 18 anos. Ao definir, no
Capítulo 1, o objeto e a finalidade da lei, o Código de Menores de 1927 teve uma visão
correspondente aos conceitos então vigentes, abrangendo em um mesmo entendimento o
“menor abandonado” e o “menor delinquente”, embora pretendendo oferecer a um e a outro
“assistência e proteção”. No art. 26, agrupou em oito situações os menores abandonados com 28
menos de 18 anos.
Ao atentar para as situações da criança de menos de dois anos “entregue para criar
fora da casa dos pais”, e dos menores “expostos até sete anos de idade em estado de
abandono”, apresentou uma primeira perspectiva de integração e acalentou o propósito de evitar
o abandono pela mãe, mediante conselho e, ao mesmo tempo, o sigilo que deveria revestir o
processo de recolhimento.
Além disso, ao voltar suas vistas para os menores abandonados (arts. 53 e seguintes),
o Código Mello Mattos estabeleceu medidas relativas a seu recolhimento e seu encaminhamento
a um lar, seja o dos pais, seja o de pessoa encarregada de sua guarda. No que se refere ao
menor delinquente (arts. 68 e seguintes) na faixa etária de 14 anos, proibiu que fosse submetido
a processo penal de qualquer espécie. Em um avanço para a sua época, mandou que se tivesse
em vista o estado físico, moral e mental da criança, bem como a situação social, moral e
econômica dos pais.
Legislou a propósito da “liberdade vigiada” (art. 92), que tinha em vista os casos de
menores delinquentes, que deveriam permanecer sempre em companhia dos pais, tutor ou
curador, ou ainda aos cuidados de um patronato, mas sob a vigilância do juiz.
Ao dispensar a “pesquisa de discernimento” da legislação penal anterior, em seu artigo
69, §2°, estabeleceu que, se o menor não fosse abandonado, nem pervertido, nem estivesse em
perigo de ser, a autoridade o recolheria a uma escola de reforma pelo prazo de um a cinco anos.
Em caso afirmativo, ou seja, se fosse abandonado, pervertido ou estivesse em perigo
de ser (art. 69, §3°), a internação seria por “todo o tempo necessário à sua educação entre três a
sete anos”. Portanto, ser abandonado ainda representava um agravamento da pena, impondo,
ao adolescente, até sete anos de reformatório.
19 GUSMÃO, Saul de. Assistência a menores. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1942. p. 208-14.
Sem descer às minúcias de cada caso, pode-se falar que o Código Mello Mattos
representou a abertura de uma visão legislativa sobre o problema da criança e do adolescente
em todos os seus aspectos. Antecedente das grandes medidas tomadas pelos Organismos
Internacionais, não obstante os defeitos naturais em um diploma pioneiro, é lícito apontá-lo como
código precursor, o qual colocou o Brasil na vanguarda dos países latino-americanos e preparou-
o para enfrentar a questão da infância desassistida, agravada pela problemática social, neste
último meio século.
Após a promulgação do Código Mello Mattos, inúmeros decretos e decretos-lei se 29
seguiram visando à proteção especialmente do “menor infrator”, e já aparecem leis especiais de
proteção ao trabalho na infância e na adolescência. Nesse momento, vale abrir parênteses para
complementar o que foi dito anteriormente: normalmente a legislação especial da época em
relação ao “menor infrator” o confundia com os menores abandonados em geral, a exemplo do
Decreto-lei 6.026, de 24 de novembro de 1943. Tal consideração decorria simplesmente da
inadaptação ou do desajuste social. Francisco Pereira Bulhões de Carvalho, ao comentar o
referido Decreto-lei, observa que:
“São três os defeitos apresentados neste sistema legal: a) classifica os ‘menores’
conforme tenham ou não praticado infração penal, quando os deveria distinguir apenas quanto
ao grau de desajuste; b) não coloca os infratores sem temibilidade entre os menores
abandonados; c) não inclui entre os menores que carecem de medidas especiais de reeducação
os gravemente desajustados, ainda que não infratores”.20
Também a preocupação com o trabalho do menor já aparecera no Código Mello
Mattos, limitando a idade mínima de trabalho aos doze anos, além de proibir o trabalho noturno
aos menores de 18 anos. O Decreto-lei n° 5.452, de 19 de maio de 1943, que aprovou a CLT,
nela incluiu as normas de proteção ao trabalho do menor. O Decreto-lei n° 31.546, de 06 de
outubro de 1952, mudou especialmente o conceito do empregado aprendiz.
Data de 5 de novembro de 1941 o Decreto n° 3.779, que criou o Serviço de
Assistência a Menores (SAM), em substituição ao Instituto Sete de Setembro, com atribuição de
prestar, em todo o território nacional, amparo social aos “menores desvalidos e infratores”. Por
seus métodos inadequados de atendimento e estrutura sem autonomia, o SAM ficou marcado
como um sistema caracterizado também pela repressão institucional.
Diante do clamor público, em 1964 foi criada a Fundação Nacional de Bem-Estar do
Menor (Funabem), pela Lei n° 4.513, de 19 de dezembro de 1964, com o objetivo de fixar as
20 CARVALHO, Francisco P. Bulhões de. Direito do menor. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 40-41.
diretrizes fundamentais da política nacional do bem-estar do menor. O novo sistema,
subordinado moralmente à presidência da República, propunha substituir a repressão e a
segregação por programas educacionais. Fundada como uma entidade normativa previa
ramificações nos estados e municípios por meio das Febem’s.
Em 1974, com o advento do Decreto n° 74.000, de 1° de maio de 1974, vinculou-se ao
Ministério da Previdência e Assistência Social. Escapando, porém, das propostas originalmente
previstas, outras agravantes, decorrentes da política administrativa e social, levaram a Funabem
a atuar diretamente, como agente, desviando-se das políticas de atendimento inicialmente 30
previstas.
Com a entrada em vigor do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 12 de outubro de
1990 (Lei n° 8.069/90), a Funabem foi transformada em Fundação Centro Brasileiro para a
Infância e Adolescência (FCBIA).
21 NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Comentários ao código de menores. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 13-4.
2.3 Princípio constitucional de proteção
Os direitos e garantias individuais foram ganhando cada vez mais espaço desde a
Revolução Francesa. Como dito anteriormente, o art. XVI da Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão, trazendo um freio ao poder absolutista do Estado, trouxe a previsão de que
“qualquer sociedade na qual a garantia dos direitos não está em segurança, nem a separação
dos poderes determinada, não tem Constituição”.
Os primeiros a surgir foram os relacionados às liberdades básicas, como o direito à
vida e o direito de ir e vir, que são os direitos de primeira geração, ou de primeira dimensão. Os
direitos de primeira geração exigem principalmente atitudes negativas do Estado, um não fazer,
uma abstenção (status negativus). Não se pode, por exemplo, punir um criminoso com a pena de
morte porque estaria ferindo o direito básico da vida. Esses direitos são os direitos civis e
políticos.
Logo após esse primeiro movimento, com a emergência de revoltas sociais dos
trabalhadores, surgiram os direitos sociais, econômicos e culturais, que são os direitos de
segunda geração, ou de segunda dimensão. Tais direitos, ao contrário dos primeiros, exigem
uma prestação positiva do Estado, um fazer, uma ação.
Por fim, com o fortalecimento das instituições democráticas e da sociedade sugiram os
direitos relativos a um meio ambiente equilibrado, à qualidade de vida, à paz e outros interesses 32
difusos que são os de terceira geração, ou seja, direitos pertencentes à sociedade como um todo
(direitos coletivos em sentido lato). Para fins didáticos, as três gerações de direitos e garantias
fundamentais podem ser relacionadas, respectivamente, com os três direitos reivindicados pela
Revolução Francesa: Liberdade - 1ª geração, Igualdade - 2ª geração e Fraternidade - 3°
geração.
Para alguns, os direitos de quarta geração seriam aqueles relacionados à engenharia
genética e aos seus avanços. Para outros, esses direitos seriam os nascidos com a
globalização. Por fim, parte da doutrina identifica nos direitos de quarta geração, direitos
republicanos, que traduzem a capacidade de o indivíduo atuar de forma ativa na construção das
políticas públicas, por meio, por exemplo, dos conselhos.
Em suma, o artigo 5° da Constituição Federal e outros, como, por exemplo, o artigo
227, diz que a criança e o adolescente devem receber um tratamento especial e prioritário, até
chegar aos 18 anos, com socorro em primeiro lugar, ser atendido primeiro pelos órgãos públicos
de qualquer poder. Ela fala em absoluta prioridade. Claro, o direito penal não podia ficar de fora;
trata-se de um direito que surge quando se faz necessária uma maior proteção a bens jurídicos
que são importantes para viver em sociedade.
Entre estes bens jurídicos temos a vida, o patrimônio e, atendendo ao preceito
constitucional, a criança e o adolescente, que merece receber proteção: a tutela do direito penal.
Ou seja, é um bem tão importante que não só a Constituição Federal dedica um artigo e impõe a
absoluta prioridade, mas o direito penal é chamado para intervir no sentido de dar a essa criança
ou adolescente uma proteção mais efetiva, mais eficaz.
Como vocês sabem, o direito penal não atua onde não se faz necessário, e é claro que
se viu a necessidade de reforço à criança e ao adolescente. No ponto de vista da sua integridade
física, moral, da honra, da saúde, no ponto de vista dos seus bens mais importantes.
O princípio da não discriminação, por sua vez, determina que o pleno exercício de
todos os direitos e garantias fundamentais pertence a todas as pessoas, independentemente de
raça, sexo, cor, condição social, genealogia, credo, convicção política, filosófica ou qualquer
outro elemento arbitrariamente diferenciador. Para Flávia Piovesan:
35
23 HERKENHOFF, João Baptista. Direitos humanos – a construção universal de uma utopia. São Paulo:
Santuário, 1997.
24 HERKENHOFF, João Batista. Curso de direitos humanos – gênese dos direitos humanos. São Paulo:
Acadêmica, 1994.
25 Cito alguns, como Norberto Bobbio (A era dos direitos); Ivo Lesbaupim (As classes populares e os direitos
humanos); João Ricardo Dornelles (O que são direitos humanos?); José Maria Gomes (Direitos humanos,
política e autoritarismo no cone sul).
Culturais, apesar de não aceitar ainda a competência da Corte Interamericana para julgar os
casos de violações cometidas no país.26
No entanto, pouco se vê de sua aplicabilidade na realidade social da maioria dos
brasileiros, como se estivéssemos a falar de duas espécies de ser humano: um abstrato, ao qual
se referem os documentos, e outro, real, ao qual tais preceitos não se aplicam.
Ao longo da história de nosso país, a solução para os problemas sociais sempre
esbarrou em um sistema político autoritário de manutenção de privilégios, que tem raízes na
própria formação de nossa sociedade.27 37
Nesse sentido, “todas as opções concretas enfrentadas pelo Brasil, direta ou
indiretamente ligadas à transição para o capitalismo (desde a independência política ao golpe de
64, passando pela Proclamação da República e pela Revolução de 30), encontraram uma
solução ‘pelo alto’, ou seja, elitista e antipopular”,28 que não escondeu a intenção explícita de
manterem subalternizadas e reprimidas – de qualquer modo, fora do âmbito das decisões – as
classes e camadas sociais “de baixo”.
No Brasil, como em outros países colonizados, a transição para o capitalismo não se
deu pelas “vias clássicas”, ou seja, não conheceu insurreições populares hegemonizadas por
uma burguesia liberal, nem a extinção radical das antigas instituições políticas e sociais ou das
velhas formas de apropriação e exercício do poder.
26 Norberto Bobbio, em A era dos direitos, traduz muito bem a posição de diversos países neste trecho: “quando se
trata de anunciá-los, o acordo é obtido com relativa facilidade, independente de maior ou menor poder de convicção
de seu fundamento absoluto; quando se trata de passar à ação, ainda que o fundamento seja inquestionável,
começam as reservas e as oposições” (24 p.).
27 Ver em COUTINHO, Carlos N. e NOGUEIRA, Marco A. (org.). Gramsci e a América Latina. São Paulo: Paz e
Terra, 1993.
28 Idem, p. 106-7.
Sempre vivemos processos de modernização
excludentes, que consistem essencialmente em arranjos entre
frações de classes dirigentes e na permanente tendência a
excluir grande massa da população de uma participação tanto
das decisões políticas quanto dos benefícios da
modernização e do processo econômico. Esse tipo específico
de capitalismo brasileiro gerou um fenômeno extremamente
perverso de exclusão das grandes maiorias da vida 38
nacional.29
Na realidade brasileira, verifica-se o injusto contraste entre a
miséria absoluta da maioria dominada e a total riqueza da
minoria dominante, em um processo constante de violação dos direitos desta maioria.
Inicialmente, esse injusto contraste pode ser constatado no relatório entregue pelo
Itamarati à ONU para a Reunião da Cúpula sobre o Desenvolvimento Social, em Copenhague,
em março de 1995, que revela um quadro estarrecedor para um país que é o oitavo PIB do
mundo: na década de 1960, os 10% mais ricos da população ainda ganhavam 34 vezes mais do
que os 10% mais pobres. Hoje, esta diferença é multiplicada por 78 vezes, o que significa que os
10% mais pobres têm direito a apenas 0,8% do bolo nacional.30
Em um breve olhar, pode-se apontar um quadro marcado pela desigualdade em seus
aspectos fundamentais, com uma enorme distância entre o ideal do estado democrático e a
realidade brasileira. No sistema representativo, são muitas as distorções, os abusos de poder
econômico nas eleições, a desconformidade entre os programas partidários e as práticas
políticas, a infidelidade partidária e as “legendas de aluguel”, fatos que comprometem e frustram
o exercício dos direitos civis do cidadão, que acabam por desacreditar no processo eleitoral. Por
outro lado, a participação do cidadão nas decisões políticas tende a se resumir apenas a este
momento, pois, uma vez eleito, o representante se distancia do povo que o elegeu.
A aplicabilidade dos direitos humanos na realidade brasileira passa por estas relações
sociopolíticas entre cidadãos. Sua não-realização revela uma democracia sem concretização e
acirra as diferenças sociais e de classes existentes nessa sociedade. Ao estender a análise dos
aspectos sociais, políticos e econômicos que determinam a realização dos direitos humanos no
29 ABREU, Haroldo de. A trajetória e o significado das políticas públicas: um desafio democrático. [S.l.: s.n],
[20--].
40
3 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Em sua obra Curso de direitos humanos – gênese dos direitos humanos (vol. 1), João
Baptista Herkenhoff ensina que, utilizando-se a expressão direitos humanos como quaisquer
direitos atribuídos ao homem, pode-se encontrar o reconhecimento de tais direitos até mesmo na
Antiguidade. E cita, como exemplos, o Código de Hamurabi, no século XVIII a. C., na Babilônia;
os pensamentos do imperador do Egito, Amenófis IV, no século XIV a. C.; as ideias de Platão, na
Grécia, no século IV a. C.; o Direito romano, e várias outras civilizações e culturas ancestrais.
No entanto, o próprio Herkenhoff salienta que, não obstante já haver uma preocupação
com tais direitos, estes não possuíam uma “garantia legal”, de forma que eram bastante
precários em sua estrutura política, já que o respeito a eles dependia da sabedoria dos
governantes. Apesar desses fatos, tal contribuição não deixou de ser relevante na criação da
ideia dos direitos humanos. 44
Solicitamos a devida vênia para concordar apenas em parte com o autor supracitado,
quando este afirma não estar de acordo com a posição de certos doutrinadores em afirmar que a
história dos Direitos Humanos começou com “balizamento do poder do Estado pela lei”, por
entender que essa posição “obscurece o legado de povos que não conheceram a técnica de
limitação do poder mas privilegiaram enormemente a pessoa humana em seus costumes e
instituições sociais”.31
De fato, a preocupação com a proteção à integridade da pessoa humana remonta a
muitos e muitos séculos e faz parte da própria natureza humana, que busca o reconhecimento
de suas necessidades em prol de uma sociedade que garanta uma distribuição igualitária e justa.
Não se pode vincular algo que faz parte da natureza humana com as determinações da lei, que,
muitas vezes, nada têm a ver com justiça e muito menos com as limitações do poder estatal,
uma vez que a preocupação humana em relação à proteção de suas necessidades básicas
existe até mesmo antes de tais limitações legais. Além do mais, como bem enfatiza Herkenhoff.
31 Ibidem.
32 Ibidem.
que são os aplicados em hipóteses de guerra, tendo como escopo impor limites à atuação do
Estado e assegurar, dessa forma, a observância dos direitos fundamentais, de modo a proteger,
nesses casos, os militares fora de combate e as populações civis, regulando juridicamente o
emprego da violência no âmbito internacional e limitando, com isso, a liberdade e a autonomia
dos Estados.
Não estamos dizendo que a história dos Direitos Humanos tenha iniciado com a
limitação, pela lei, da autonomia estatal. O que ora afirmamos é que um dos primeiros marcos da
internacionalização dos Direitos Humanos constituiu-se nas limitações dos poderes do Estado, 45
de forma a assegurar o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana.
Além do direito humanitário, outro importante marco foi a Liga das Nações, criada após
a Primeira Guerra Mundial, com o intuito de promover a cooperação, a paz e a segurança
internacional, de forma a condenar as agressões externas contra a integridade territorial e a
independência política de seus membros.
Por meio de uma convenção da Liga das Nações, os Estados tinham o compromisso
de assegurar condições justas e dignas de trabalho para homens, mulheres e crianças, sendo
estabelecidas sanções econômicas e militares contra Estados que, porventura, viessem a violar
seus preceitos. Seu principal objetivo era “promover a cooperação internacional e alcançar a paz
e a segurança internacionais.
Junto com tais organizações estava, também, a Organização Internacional do Trabalho
(OIT), que deixou importantes contribuições para o chamado processo de internacionalização
dos direitos humanos. Criada após a Primeira Guerra Mundial para promover parâmetros
básicos de trabalho e bem-estar social tem entre um de seus objetivos regular a condição dos
trabalhadores em âmbito mundial.
Foi em meados do século XX, em decorrência da Segunda Guerra Mundial e com o
intuito de proteger os seres humanos das atrocidades do holocausto e das barbaridades
cometidas pelos nazistas contra os judeus, na Alemanha, que surgiram as mais profundas
preocupações no que concerne à proteção internacional dos direitos humanos. Preocupações
estas que consistiam em afirmar que a soberania estatal encontra-se limitada pelo respeito aos
direitos humanos, não sendo, portanto, totalmente absoluta.
E foi justamente essa preocupação que acabou por impulsionar o processo de
internacionalização dos direitos humanos, culminando com a criação de normas de proteção
internacional que possibilitaram a responsabilização do Estado no domínio internacional quando
as instituições nacionais se mostrarem falhas ou omissas na tarefa de proteção dos direitos
humanos.
Podemos afirmar, portanto, que foi a Carta das Nações Unidas de 1945 que
internacionalizou os Direitos Humanos. No entanto, apesar de conter, em seu bojo, normas que
determinavam a importância de se defender, promover e respeitar os direitos humanos e as
liberdades fundamentais, ela não definiu o conteúdo dessas expressões, que só vieram a ser
deliberadas com precisão com o advento da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em
1948.
46
3.2 A história dos direitos humanos no Brasil
33 Ibidem.
A Constituição de 1934 ainda inovou ao insculpir normas de proteção social ao
trabalhador, com proibição da diferença de salário para um mesmo trabalho em razão de idade,
sexo, nacionalidade ou estado civil; proibição do trabalho para os menores de 14 anos, trabalho
noturno para os menores de 16 anos e trabalho insalubre para os menores de 18 anos e para as
mulheres; determinou a estipulação de um salário-mínimo capaz de atender às necessidades
básicas do trabalhador, o repouso semanal remunerado e a limitação de trabalho a oito horas
diárias, que só poderiam ser prorrogadas nos casos legalmente previstos, entre outras garantias
sociais. 48
A Constituição de 1934 também não excluiu os direitos culturais. Tratava-se de uma
Constituição que tinha como objetivo primordial o bem-estar geral. Com o estabelecimento da
Justiça Eleitoral e do voto secreto, essa Carta Magna abriu os horizontes para o
constitucionalismo brasileiro, como ensina Herkenhoff,34 para os direitos econômicos, sociais e
culturais. Ela, ainda, teve por preocupação respeitar os direitos humanos. Perdurou até a
introdução do chamado Estado Novo, em 10 de novembro de 1937, que introduziu o
autoritarismo no Brasil.
Durante o regime do Estado Novo, houve a criação dos polêmicos tribunais de
exceção, que tinham a competência para julgar crimes contra a segurança do Estado. Naquela
época, foi declarado estado de emergência no país, com a suspensão de quase todas as
liberdades a que o ser humano tinha direito, incluídos o direito de ir e vir, o sigilo de
correspondência e a liberdade de todos os outros meios de comunicação, orais ou escritos, além
da liberdade de reunião, entre outras. Pode-se afirmar, sem dúvida alguma, que os direitos
humanos foram quase inexistentes durante o período em que vigorou o Estado Novo.
Com a Constituição de 1946, o país foi, como diz Herkenhoff, “redemocratizado”, já
que a nova Carta Magna restaurou os direitos e garantias individuais e os direitos sociais. Houve
até mesmo uma ampliação, nesse sentido. Citam-se como exemplos a proibição do trabalho
noturno a menores de 18 anos, o estabelecimento do direito de greve, a estipulação de um
salário mínimo capaz de atender às necessidades do trabalhador e de sua família, entre outros.
Também houve ampliação dos direitos culturais e a referida Constituição vigorou até o
surgimento da Carta Maior de 1967. Porém, a Lei Maior de 1946 sofreu várias emendas, com a
suspensão da vigência de inúmeros artigos, via de regra, por força dos Atos Institucionais (AI-1 e
AI-2), durante o golpe denominado “Revolução de 64”. A despeito de tudo isso, contudo,
podemos asseverar que a Constituição de 1946 garantiu muitos direitos humanos.
34 Ibidem.
A Constituição de 1967, contudo, trouxe inúmeros retrocessos, como a supressão da
liberdade de publicação, a restrição ao direito de reunião, o estabelecimento de foro militar para
os civis, a manutenção de todas as punições e arbitrariedades decretadas pelos Atos
Institucionais. De maneira hipócrita, a Constituição de 1967 continha em seu texto o respeito à
integridade física e moral do detento e do presidiário, preceito que, na prática, não existia.
No tocante aos demais direitos, os retrocessos continuaram: redução da idade mínima
de permissão para o trabalho para 12 anos; restrição ao direito de greve; fim da proibição de
diferença de salários por motivos de idade e de nacionalidade; restrição da liberdade de opinião 49
e de expressão; retrocesso na esfera dos chamados direitos sociais, etc.
Essa Constituição vigorou, formalmente, até 1969, quando foi promulgada nova Carta
Magna, mas, na prática, a Constituição de 67 vigorou apenas até 13 de dezembro de 1968,
quando foi baixado o mais conhecido Ato Institucional, aquele que faltou com o respeito aos
direitos humanos no país e foi causa de revolta e medo de toda a população, causando a ruína
da então Carta Magna: o AI-5.
O temido AI-5 recuperou todos os poderes discricionários do presidente estabelecidos
pelo AI-2. Também ampliou arbitrariedades, dando ao governo a prerrogativa de confiscar bens.
Para se ter ideia, houve até mesmo a suspensão do habeas corpus nos casos de crimes
políticos contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular.
Período conhecido como de arbitrariedades e corrupções, houve inúmeros casos de
tortura e assassinatos políticos. A imprensa, por sua vez, nada podia fazer, eis que se
encontrava literalmente “amordaçada”. Havia “proteção legal” do AI-5. Registre-se que a
Constituição de 1969 somente começou a vigorar em 1978, com a queda do AI-5.
Observou-se um amplo retrocesso na nova Constituição, eis que incorporou ao texto
legal medidas previstas nos Atos Institucionais, com o desrespeito aos direitos humanos. Para
João Baptista Herkenhoff35 e inúmeros brasileiros, a luta pela anistia representou “uma das
páginas de maior grandeza moral escrita na História contemporânea do Brasil”, juntamente com
a convocação e o funcionamento da Constituinte.
A Constituição de 1988 veio para proteger, talvez tardiamente, os direitos do homem.
Isso porque as mudanças poderiam ter ocorrido na Constituição de 1946 a qual, embora
reconhecida sua relevância para o cenário nacional, logo em seguida foi derrubada pela ditadura
estado-novista. Ulisses Guimarães denominava a Constituição de 1988 de “Constituição cidadã”.
35 Idem, p. 98.
A questão da dignidade da pessoa humana é abordada na Constituição de 1988 já em
seu preâmbulo, quando anuncia a inviolabilidade à liberdade e, depois no artigo primeiro, com os
fundamentos e, ainda, no inciso terceiro (a dignidade da pessoa humana); mais adiante, no
artigo quinto, quando menciona a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e à
igualdade.36
Mas o que representa essa dignidade? Significa que o homem não pode ser tratado
como um ser qualquer, como um animal irracional, pois ele tem sua individualidade. Apresenta
uma essência, que é própria da pessoa humana. Cada indivíduo é totalmente diferente do outro 50
e o que nos identifica é essa essência de ser pessoa.
A única coisa capaz de garantir a dignidade da pessoa humana é a justiça. A dignidade
é um valor supremo. Flávia Piovesan ensina que “a ordem constitucional de 1988 apresenta um
duplo valor simbólico: é ela o marco jurídico da transição democrática, bem como da
institucionalização dos Direitos Humanos no país. A Carta de 1988 representa a ruptura jurídica
com o regime militar autoritário que perpetuou no Brasil de 1964 a 1985”.37
Com a Constituição de 1988, houve uma espécie de “redefinição do Estado brasileiro”,
bem como de seus direitos fundamentais.
36 Preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos
em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos
direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade, a justiça
como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e
comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a
proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil” (grifos ora apostos).
37 Idem, p. 177.
É integral, primeiro, porque assim diz a Constituição Federal em seu artigo 227,
quando determina e assegura os direitos fundamentais de todas as crianças e adolescentes,
sem discriminação de qualquer tipo; segundo, porque se contrapõe à Teoria do Direito Tutelar do
Menor, adotada pelo Código de Menores revogado, Lei n° 6697/79.
O Código revogado não passava de um Código Penal do Menor, disfarçado em
sistema tutelar; suas medidas não iam além de verdadeiras sanções, ou seja, penas disfarçadas
de medidas de proteção. Não relacionava qualquer direito, a não ser aquele sobre a assistência
religiosa; não trazia qualquer medida de apoio à família; tratava da situação irregular da criança 51
e do jovem, que, em resumo, eram seres privados de seus direitos.
Na verdade, em situação irregular está a família, pois não possui estrutura e abandona
a criança; o pai, que descumpre os deveres do pátrio poder; o Estado, que não cumpre suas
políticas sociais básicas; nunca a criança ou o jovem podem ser culpados de irregularidade.
A nova teoria, baseada na total proteção dos direitos infanto-juvenis, tem seu alicerce
jurídico e social na Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, adotada pela
Assembleia Geral das Nações Unidas, no dia 20 de novembro de 1989. O Brasil adotou o texto,
em sua totalidade, pelo Decreto n° 99.710, de 21/11/1990, após ser ratificado pelo Congresso
Nacional, Decreto Legislativo n° 28, de 14/09/1990.38
Dessa forma, o novo instrumento legal volta-se ao desenvolvimento da população
jovem do país, garantindo proteção especial àquele segmento pessoal e socialmente mais
sensível. O art. 5° do Estatuto da Criança e do Adolescente regulamenta a última parte do art.
227 da Constituição Federal, que visa proteger todas as crianças e adolescentes de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade, opressão e todos os atentados aos seus
direitos, quer por ação ou omissão.
O mandamento constitucional e estatutário tem sua fonte no nono princípio da
Declaração dos Direitos da Criança da ONU, que disciplina, em seu bojo, que a criança gozará
de proteção contra quaisquer formas de negligência, crueldade e exploração. A utilização do
direito pelas crianças e pelos adolescentes torna-se um projeto de educação para as novas
gerações e um investimento social de autoproteção para o homem. Com essa lei civilizatória, as
crianças e os jovens passam a ser sujeitos de direitos e deixam de ser objetos de medidas
judiciais e sociais decorrentes da omissão da sociedade e do poder público, pela inexistência ou
insuficiência de políticas sociais básicas.
38 Extraído de pt.wikipedia.org/wiki/Estatuto_da_Criança_e_do_Adolescente.
Nas décadas de 1970 e 1980 teve início uma nova etapa da luta política pelos direitos
da criança e do adolescente. Os programas envolvidos eram numerosos, com identidade
ideológica e composição social das mais diversas; no entanto, o compromisso político com a
promoção e a defesa dos direitos da infância e da juventude era o mesmo em todos eles.
A Comissão Nacional da Criança e do Adolescente realizou um amplo processo de
sensibilização, conscientização e mobilização da opinião pública e dos constituintes. A iniciativa
privada também participou deste esforço nacional; surgiram entidades não-governamentais de
grande expressão, que realizaram movimentos de alternativas comunitárias de atenção à criança 52
de rua.
A partir de todas essas articulações, organizou-se o Fórum Permanente de Entidades
Não-Governamentais de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Fórum DCA), que
conseguiu arregimentar igualmente movimentos internacionais de defesa da criança.39
O Fórum DCA assumiu contornos de um movimento social nacional, com propostas e
alternativas nos planos legal e processual. No plano legal, introduziu duas emendas de iniciativa
popular – “Criança e Constituinte” e “Criança Prioridade Nacional” –, e seus textos foram
fundidos e acabaram constituindo o art. 227 da Constituição da República Federativa do
Brasil.40
Esse artigo constitucional é reconhecido na comunidade internacional como uma
síntese da Convenção da ONU de 1989, pois declara os direitos especiais das crianças e dos
adolescentes como dever da família, da sociedade e do Estado: direito à vida, à alimentação, ao
esporte e lazer, à profissionalização e à proteção no trabalho, à cultura e educação, à dignidade,
ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de
toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.41
A Constituição de 1988 consagra a doutrina da proteção integral, ou seja, os direitos
inerentes a todas as crianças e adolescentes possuem características específicas, por causa da
peculiar condição de pessoas em vias de desenvolvimento, e políticas básicas voltadas para a
juventude devem agir de forma integrada entre a família, a sociedade e o Estado.
39 Idem, ibidem.
40 SANTOS, Elbe Campinha dos. Direitos humanos: representações no campo da defesa dos direitos infanto-
juvenis no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 1999.
41 PEREIRA, Tânia da Silva. Direito da criança e do adolescente: uma visão interdisciplinar. Rio de Janeiro:
Renovar, 1996, 335 p.
A Carta Magna reafirmou também, conforme princípio do interesse maior da criança,
que é dever dos pais e responsáveis garantir proteção e cuidados especiais e, na falta do núcleo
familiar, é obrigação do Estado assegurá-los. Reconheceu a família como grupo social primário e
ambiente natural para crescimento e bem-estar de seus membros, especificamente das crianças,
ressaltando o direito de receber proteção e assistência necessária a fim de poderem assumir
plenamente suas responsabilidades dentro da comunidade.42
O parágrafo 3°, V, do art. 227 da Constituição Federal traz uma nova visão quanto à
criança e ao adolescente. Estes passaram à condição peculiar de pessoas em desenvolvimento, 53
segundo Antônio Carlos Gomes da Costa.43
Elas desfrutam de todos os direitos dos adultos e que sejam aplicáveis à sua idade e
ainda têm direitos especiais decorrentes do fato de: não terem acesso ao conhecimento pleno de
seus direitos, não terem atingido condições de defender seus direitos frente às omissões e
transgressões capazes de violá-los, não contarem com meios próprios para arcar com a
satisfação de suas necessidades básicas, não poderem responder pelo cumprimento das leis,
deveres e obrigações inerentes à cidadania da mesma forma que o adulto, por se tratar de seres
em pleno desenvolvimento físico, cognitivo, emocional e sociocultural.
A prioridade absoluta constitucional determinada no artigo acima citado foi
posteriormente regulamentada no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – Lei n° 8.069/90
– instituto que será estudado a posteriori), no artigo 4°, parágrafo único, entendida como:44
1) Primazia em receber proteção e socorro em qualquer circunstância;
2) Precedência no atendimento por serviço ou órgão público de qualquer parte;
3) Preferência na formulação e execução das políticas sociais públicas;
4) Destinação privilegiada de recursos públicos às áreas relacionadas com a
proteção da infância e da juventude.
42 Idem, p. 26.
43 COSTA, Antônio Carlos Gomes da. Natureza e implantação do novo direito da criança e do adolescente. In:
PEREIRA, Tânia da Silva (org.). Estatuto da Criança e do Adolescente: estudos sociojurídicos. Rio de Janeiro:
Renovar, 1992, p. 17-33.
Para melhor compreender a amplitude da Doutrina da Proteção Integral, que tem por
objeto prático a concretização dos direitos enumerados no art. 4° do Estatuto da Criança e do
No século XIX, com a Revolução Industrial, além dos trabalhos em minas de carvão,
desempenhavam funções em moinhos e fiações. Depois, com as fábricas de tecidos e
manufaturas, as crianças também trabalhavam com suas famílias, em casa, nos acabamentos
da produção. Em muitos casos, crianças de cinco ou seis anos de idade eram forçadas a
trabalhar entre 13 e 16 horas por dia.
Condições péssimas como essas, impostas a crianças pobres, rapidamente se
estenderam às empresas, que passaram a contratar mão de obra infantil a salários menores.
Logo, as famílias passaram a depender do ganho das crianças para sobreviver. No século XIX,
tiveram início as primeiras manifestações do povo contra a exploração das crianças no trabalho,
em face do enriquecimento dos exploradores da modalidade de trabalho infantil.
Em nosso país observamos que o aprendizado nas fábricas era admitido desde os 8
anos de idade, durante três horas diárias. No entanto, a Organização Internacional do Trabalho,
59
em 1919, formulou uma medida voltada à limitação em 14 anos, como idade mínima para a
contratação de jovens pela indústria.49 Ao longo do século, essa organização promulgou 17
normas, entre convenções e recomendações. As medidas tinham caráter apenas “limitante” e
reguladora de alguns aspectos do trabalho, não tratando a fundo da problemática, que era tida
como um fato “natural” da economia.
48 SUSSEKIND, Arnaldo et al. Instituições de direito do trabalho. São Paulo: LTr, 1996, v. II, p. 963.
49 Hoje, a idade de 14 anos é referida no art. 7° da Lei Maior, em seu inciso XXXIII.
50 Idem, p. 963.
define “a base de toda política da OIT sobre a eliminação gradual do trabalho infantil e a
proteção contra as reações adversas que o agravam” (OIT, 1993).
Apoiado no atual significado de trabalho precoce e em conceitos de infância e
adolescência, seus direitos, limites psíquicos e físicos para a realização de determinadas
atividades e o impacto que produzem em sua trajetória de vida, o tema da exploração alcançou,
então, notória visibilidade. Tal cenário – de resgate da criança a atividades próprias à sua idade
– desenvolve-se lentamente. É de amplo conhecimento – porque divulgado pela mídia – que,
ainda hoje, há exploração do trabalho infantil, com várias denúncias de crianças que, em idade 60
muito tenra, ajudam suas famílias em lavouras. É certo que essa esfera da atividade humana
necessita de ajustes e não podemos furtar-nos a enfrentar as exigências do momento histórico.
O jovem a partir dos 16 anos pode iniciar vida profissional com todas as garantias
trabalhistas e previdenciárias estabelecidas na Consolidação das Leis do Trabalho – CLT,
respeitando sempre sua condição de pessoa em desenvolvimento. Ao adolescente trabalhador-
aprendiz é assegurada a bolsa de aprendizagem e ao portador de deficiência é garantido
trabalho protegido.
A própria Organização Internacional do Trabalho, através do Programa Internacional
para Eliminação do Trabalho Infantil, busca erradicar o trabalho infantil e todo aquele prejudicial
à saúde, moral ou segurança dos adolescentes. Para o governo brasileiro, o combate ao
trabalho infantil está na esfera dos direitos humanos, encontrando-se, inclusive, na agenda de
nossa política social. Trata-se, sem dúvida alguma, de um desafio tanto para o governo quanto
para a sociedade. Não se deve olvidar a complexidade da questão do trabalho infantil. O
problema está associado, embora não esteja restrito, à pobreza, à desigualdade e à exclusão
social. 61
Ao Estado, portanto, cabe zelar, prioritariamente, pela defesa destes direitos. Todavia,
esse papel a ele não está restrito, pois também é dever da família e de toda a sociedade
(Constituição Federal, art. 227) assegurar à criança e ao adolescente o respeito aos seus direitos
garantidos em lei. Em matéria de legislação vigente em nosso país acerca dos direitos de
crianças e adolescentes, citam-se: a Constituição Federal (basicamente em seu Capítulo VII –
Da Família, da Criança, do Adolescente e do Idoso); o ECA (Lei n° 8.069/90); a Declaração
Universal dos Direitos Humanos; e a Convenção sobre os Direitos da Criança (Decreto nº
99.710/90).
51 Extraído do site
http://www.agata.ucg.br/formularios/ucg/institutos/nepjur/pdf/erradicacaodaexploracaodotrabalho.pdf.
A disposição do art. 402 da Consolidação das Leis Trabalhistas foi superada e o artigo
seguinte (403) da CLT regulamenta a nova disposição constitucional quando declara a proibição
de qualquer vínculo empregatício a menores de 16 anos de idade, salvo na condição de
aprendiz, nos termos da Lei n° 10.097, de 19.12.2000.
53 Art. 7°, XXXIII: “[...] proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer
trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos” (grifos ora
apostos)
55 TAVARES, José de Farias. Direito da Infância e da Juventude. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 107-108.
rescisão de contrato trabalhista, como disposto no art. 349 da CLT. A partir daí, a autorização
para o contrato de trabalho é presumida.56
56 Interessante observar que, segundo o disposto no art. 440 da CLT, contra o adolescente não
corre qualquer prazo prescricional.
57 TAVARES, José de Farias. O Código Civil e a Nova Constituição. Rio de Janeiro: Forense, Rio, 1990, 4 p.
58 CARRION, Vicente.
Na prática, observa-se que há uma
aprendizagem informal, assistemática, exercitada no
âmbito familiar, sem relação de emprego, em que os
mais idosos transmitem aos mais novos, na prática
direta, as regras de seus ofícios, seus conhecimentos e
suas habilidades profissionais, preparando a futura mão
de obra. Esse ensinamento, ministrado com respeito à integridade da pessoa e à sua
escolarização, sem ilicitude, apesar de não previsto em lei, é proveitoso para o aprendiz de fato. 64
Art. 62. A lei criará o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR) nos
moldes da legislação relativa ao Serviço Nacional de Aprendizagem
Industrial (SENAI) e ao Serviço Nacional de Aprendizagem do Comércio
(SENAC), sem prejuízo das atribuições dos órgãos públicos que atuam na
área.
59 Decretos n°s 31.546-52 e 66.280-70, “Conceituação de Aprendiz” (In: Comentários à Consolidação das leis do
Trabalho. 17 ed. São Paulo: RT, 1990, 125 p.).
60 A respeito, alude-se aos arts. 403-405 e 424-427, todos da Consolidação das Leis do Trabalho.
Emenda n° 20, de 15/12/1998, como já exposto anteriormente. Hodiernamente, a aprendizagem
regular, formal, somente poderá ter início aos 14 anos de idade.
Regula a garantia constitucional (Constituição Federal, art. 227, § 3°, II) o direito à
previdência social e à proteção trabalhista devida ao aprendiz, cuja idade terá de ser entre 16 e
menos de 18 anos, por força da Emenda Constitucional n° 20, de 15/12/1998, que alterou a
redação do art. 7°, XXXIII.
A Constituição Federal, em seu art. 7°, XXIII, e no art. 227, caput, assegura proteção
especial ao adolescente trabalhador, seja o empregado já profissional (maior de 16 anos), seja o
empregado-aprendiz, aquele que exercita a prática orientada na própria empresa do patrão, seja
o que faz aprendizagem informal em trabalho exercitado no âmbito doméstico ou o aluno de
curso regular de escola profissionalizante.61 Ou ainda aquele que desempenha o trabalho
educativo em regime de ensino prático assistemático ministrado em órgão do Poder Público, ou
mesmo em instituição privada de finalidade não-lucrativa direcionada à preparação de mão de
obra.
A idade mínima está fixada na legislação: 14 anos para aprendizes. Em qualquer caso,
com todos os direitos trabalhistas e previdenciários assegurados, aos maiores de 16 anos. Por
outro lado, há uma proibição expressa ao trabalho noturno, de risco e agressão à saúde, ou
cujos turnos e ambientes sejam nocivos à condição da pessoa em desenvolvimento,
empregados ou aprendizes. É a legislação trabalhista a responsável pela conceituação desses
tipos de atividades. Observe-se, no anexo, ao final deste trabalho, as disposições contidas na
CLT, em seus arts. 403 e seguintes.
Registre-se que a aprovação dessa Emenda ocorreu dentro do contexto das votações
pela aprovação da reforma da Previdência (Seguro Social). O objetivo do aumento da idade
mínima para o trabalho foi adequar a idade e a aposentadoria às novas regras da reforma, uma
vez que uma pessoa que inicia suas atividades laborativas aos 14 anos de idade, ao fim de 35
anos de trabalho se aposentaria aos 49 anos, ficando fora, portanto, das novas determinações. A
solução encontrada pelo governo foi alterar a idade mínima para o ingresso no mercado de
trabalho de 14 para 16 anos de idade.
No art. 64 do ECA está previsto: “Ao adolescente até 14 anos de idade é assegurada
bolsa de aprendizagem”. Isto significa que a criança impedida de trabalhar por idade, mesmo
67
que não tenha salário como direito trabalhista, terá uma bolsa de aprendizagem, dentro da
legislação educacional, que deverá durar enquanto o adolescente estudar, ou seu trabalho tiver
cunho educativo, respeitando a condição peculiar de seu desenvolvimento (art. 69).
Pode-se afirmar, sem sombra de dúvidas, que todos os instrumentos de proteção aos
direitos da criança se encontram elencados no ECA. Ressalta-se a evolução legislativa
brasileira, na garantia dos direitos da criança e do adolescente, na Constituição Federal, na CLT
e no Estatuto da Criança e do Adolescente, no que tange à exploração do trabalho infantil.
Apesar de haver legislações brasileiras e internacionais reguladoras do trabalho infantil, existem
grandes falhas em matéria de proteção das crianças e dos adolescentes.
64 Do site http://www.legislacaomunicipal.com/gedocnet/redacoes/06054817000129/Lei01397.doc.
Programas que visem oferecer acesso efetivo à cultura e suas diversas manifestações,
desenvolvimento dos talentos artísticos e possibilidade de trocas.68 O trabalho socioeducativo
com famílias baseia-se no tripé: sujeito, família e rede e constitui-se de ações que oferecem
oportunidades de desenvolvimento pessoal e social visando à socialização, ampliação do campo
de conhecimentos, dos vínculos relacionados e da convivência comunitária.69
A relação do PETI com o PRONAGER (Programa Nacional de Geração de Emprego e
Renda): este é um programa que visa gerar ocupação produtiva e renda para os chamados
“excluídos” sociais, potencializando todos os recursos e vocações econômicas da comunidade a
partir da capacitação de pessoas desempregadas e ou subempregadas para sua organização
68 Idem, ibidem.
Com isso, espera-se a inserção social da imensa parcela da população excluída dos
mecanismos comuns de formação profissional, do acesso ao crédito e do processo de produção
e consumo de bens, contribuindo para a redução das desigualdades sociais, passo importante
na construção de uma sociedade democrática.
A metodologia utilizada gera a capacitação de centenas de pessoas em um só evento
70
(o Laboratório Organizacional) e permite ainda a participação de pessoas com baixo nível de
escolaridade e qualificação profissional. A ampliação do universo cultural das crianças e
adolescentes e o desenvolvimento de suas potencialidades com vistas à melhoria de seu
desempenho escolar e inserção no circuito de bens, serviços e riquezas sociais, deverão ser
trabalhados nas atividades da jornada ampliada, tendo sempre o núcleo familiar, a escola e a
comunidade como referências.71
As ações desenvolvidas na jornada ampliada deverão estar de acordo com o contido
na proposta pedagógica. Em hipótese alguma poderão ser desenvolvidas atividades
profissionalizantes, ou ditas semiprofissionalizantes, “com as crianças e adolescentes do PETI. A
jornada ampliada deverá funcionar em perfeita sintonia com a escola, devendo ser elaborada
uma proposta pedagógica, sob a responsabilidade do setor educacional”.72 O monitor da
jornada deve tentar estabelecer vínculos com as crianças e os adolescentes, de modo a
despertar o autoconhecimento como sujeito social e estimular a autoestima.
Além das atividades ligadas ao cotidiano comum, os monitores deverão ver as crianças
e os adolescentes do PETI como seres em particular, com uma história própria, carência e
problemas peculiares, pois algumas delas, mais vulneráveis, poderão demandar atendimentos
específicos (assistência à saúde, terapias, etc). O contato entre os professores e monitores deve
ser regular, para que haja harmonia nas ações desenvolvidas e para que se possa realizar um
acompanhamento mais eficiente dos avanços e dificuldades no processo de aprendizagem das
crianças e adolescentes.73
71 Idem, ibidem.
72 Idem, ibidem.
73 Idem, ibidem.
As instalações físicas devem ser compatíveis com o número de crianças e
adolescentes a serem atendidos pelo PETI, dispondo de espaços apropriados para refeições,
estudos, recreação ao ar livre, dinâmica de grupos, atividades artísticas, culturais e
desportivas.74 Poderão ser aproveitadas estruturas físicas já existentes para realização da
Jornada Ampliada, desde que obedeçam aos padrões definidos pelo programa, as instalações
não poderão oferecer risco à saúde e à segurança das crianças e adolescentes, devendo
apresentar boa iluminação e ventilação e condições higiênicas e sanitárias adequadas, as
instalações deverão estar sempre limpas e organizadas, principalmente as cozinhas, caso 71
funcionem no mesmo local onde se dá a Jornada Ampliada. A elaboração de cardápio alimentar
semanal, fixado em local visível.75
Espaços alternativos poderão ser utilizados ou adequados, desde que respeitados os
padrões mínimos de qualidade aqui estabelecidos. As instalações já existentes poderão ser
melhoradas buscando atingir tais padrões. Os locais de realização da jornada ampliada deverão
estar equipados com cadeiras e mesas que atendam crianças e adolescentes, permitindo um
espaço razoável para que eles possam se mover tranquilamente. As mesas e cadeiras deverão
estar sempre limpas, principalmente se também forem utilizadas para as refeições.76
80 www.promenino.org.br/Portals/0/Biblioteca/.../PAPEIS%20E%20ATRIBUICOES%20DAS%20COMI.
81www.social.rj.gov.br/trab_infantil/pdf/diretrizes_normas.pdf e
www.portaltransparencia.gov.br/aprendaMais/documentos/curso_PETI.pdf.
- Recomendar a adoção de meios e instrumentais que assegurem o
acompanhamento e a sustentabilidade das ações desenvolvidas no âmbito do Programa;
- Denunciar aos órgãos competentes a ocorrência do trabalho da criança e do
adolescente;
Como qualquer outro fenômeno social existem aqueles indivíduos que, por
misoneísmo, ainda não se alinharam ao espírito da sociedade global, e, consubstanciaram a
margem do direito, transgridem em benefício próprio ou de outras barreiras morais. Sempre é
denunciada pelos órgãos de comunicação a utilização do trabalho infantil nas lavouras e minas
de carvão. Porém, a transgressão das normas jurídicas não é privilégio do Brasil rural, mas
também de grandes centros urbanos, como o Rio de Janeiro.
82 Idem, ibidem.
promulgação da Lei n° 8.069/90, o Estatuto da Criança e do Adolescente. O ECA elenca uma
série de atributos legais e concretiza uma mudança no paradigma sociojurídico brasileiro,
tornando o “menor” sujeito de direito, merecendo, por parte da família e do poder público, toda
forma de proteção, assegurando-lhe as oportunidades e facilidades, a fim de lhe facultar o
desenvolvimento físico, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade (art.
3° ECA).
Como vimos, apesar da existência de vasta legislação trabalhista em prol da proteção
do menor, é impossível não verificar a ineficácia da mesma face ao crescimento da pobreza, à 75
falta de fiscalização do poder público e à triste tradição brasileira do uso da mão de obra infantil,
seja para complementar o orçamento da família ou em outros campos.
5 POSSIBILIDADES E DESAFIOS
5.1 Possibilidades
Entre esses quatro mitos levantados pelo relatório do Unicef, o último merece reflexão
mais demorada. É inegável que a pauperização das famílias faz com que os pais necessitem dos
filhos para garantir a subsistência,84 tanto que, em regiões com maior taxa de desemprego, há
um elevado número de crianças trabalhadoras. Porém, é preciso ter em mente o fato de que o
próprio trabalho infantil reforça o vínculo vicioso da pobreza, na medida em que essas crianças,
mesmo que frequentem a escola, apresentam um rendimento escolar baixo, sem possibilidade
de se tornarem adultos com qualificação profissional. Por fim, mas não menos importante, como
salienta o Unicef:
83 Veiga (1989) afirma que o trabalho infantil ocorre em toda parte do globo; porém, ressalta que a maioria das
crianças que trabalha está nos países em desenvolvimento.
84 No Norte de Minas Gerais e no Vale do Jequitinhonha – onde foi feita a pesquisa –, foram ouvidas várias mães
que afirmaram preferir que os filhos não trabalhassem, mas precisavam daquele dinheiro, algumas vezes, a única
fonte de renda da família.
“[...] sempre que uma criança é envolvida em trabalhos perigosos, alguém – um
empregador, um cliente ou um pai – se beneficia de seu trabalho. É este elemento
de exploração que é omitido por aqueles que veem o trabalho infantil como um fator
inseparável da pobreza”.85
É necessário deixar claro, contudo, que um pai ou uma mãe que envia seu filho menor
de 16 anos ao trabalho não é individualmente desobediente, mas está inserido em um processo 77
social que o obriga a usar esse trabalho como estratégia de sobrevivência.
Dito isso, pode-se perceber o quão complexa é a questão do trabalho infantil. Sua
solução também não é simples, exigindo mobilização não só do Estado, mas de toda a
sociedade civil. No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente representa um avanço nesta
direção, pois criou um sistema de defesa dos direitos da infância e da adolescência que abrange
a sociedade como um todo. A aprovação do texto trouxe mudanças fundamentais no tratamento
da exposição da mão de obra infantil. A respeito, relata Schwartzman:
86 Idem, 27 p.
“A prática do trabalho infantil não é um fenômeno recente. Sendo
assim, somente a continuidade do movimento em defesa dos direitos
da criança e do adolescente, por meio de uma ação integrada, capaz
de mobilizar toda a sociedade no combate ao trabalho precoce, será capaz de
proteger a população infanto-juvenil contra qualquer tipo de negligência, exploração,
violência, crueldade e opressão”.87
78
No entanto, para que essa proteção venha a se concretizar, é necessário que o ataque
à pobreza seja sério e contundente, com programas de geração de empregos e renda para as
famílias pobres, segurança social, educação e serviços básicos de saúde. É fundamental, ainda,
desnaturalizar a ideia de que o trabalho infantil é cultural e de que é uma forma de etnocentrismo
tentar erradicá-lo.
O respeito por culturas diversas não pode justificar desvios em nossa determinação de
utilizar todos os meios disponíveis para fazer com que todas as sociedades, todas as economias,
todas as empresas admitam que a exploração da criança constitua um procedimento
inadmissível.88
87 SCHWARTZMAN, Simon. Organização Internacional do Trabalho. Trabalho Infantil no Brasil, [S.I.: s.n.],
2001.
88 UNICEF, 31 p.
Como já apontado, o Relatório Sobre a Situação Mundial da Infância (Unicef, 1997)
sinaliza para algumas assertivas conservadoras acerca do debate relativo ao trabalho infantil que
devem ser desmistificadas. Além do fato – já discutido – de a exploração da mão de obra infantil
resultar unicamente da pobreza, outro mito é o de que crianças trabalhadoras são encontradas
especialmente em indústrias de exportação. Na verdade, de acordo com a OIT, os três setores
que mais concentram esse tipo de trabalho são a agricultura, o serviço doméstico e o setor
informal, os quais estão alocados em um setor obscuro, revelando sua face mais perversa.
79
Na agricultura, por exemplo, é comum o fato de alguns adultos só serem admitidos se
seus filhos também participarem do trabalho (OIT, 1989). Além da relação informal de trabalho,
há sua face clandestina: as crianças trabalham muitas vezes sem qualquer remuneração e
aprendem a se esconder da fiscalização. Por seu turno, o trabalho doméstico ainda é mais
invisível e de difícil regulamentação.
5.2 Desafios
Tárcio Vidotti conta que, em alguns processos judiciais, “existem sentenças em que o
80
juiz dá autorização para que as crianças trabalhem e nada faz contra o empregador”. Para evitar
esse tipo de equívoco, a Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho e a Ordem dos
Advogados do Brasil querem formar uma rede de irradiação do conceito de “trabalho infantil
doméstico” para quem lida com a lei. Uma tarefa que o juiz Vidotti classificou como lenta: “É
difícil mudar conceitos. E como a atuação dos juízes é limitada, queremos capacitá-los também
como cidadãos, para que vejam uma situação de trabalho infantil doméstico e denunciem”,
explica.
89 UNICEF, 1997, 27 p.
crianças e adolescentes a salvo de todas as formas de negligência, exploração, violência,
crueldade e opressão”, analisa Neide Castanha, consultora da OIT e autora de vários estudos
sobre as políticas públicas de combate ao trabalho infantil.90
A exploração da mão de obra de criança e adolescente não deve ser tratada como
uma questão isolada. Ainda para Neide Castanha, ela é parte e resultado de contextos culturais,
econômicos, sociais e políticos. Segundo Neide Castanha, mesmo com toda a articulação dos
Ministérios, Poder Legislativo e organizações da sociedade civil para propor mudanças na base
jurídica e na formulação e gestão de políticas sociais, na prática tais políticas governamentais
encarregadas da erradicação ou da solução parcial do problema são basicamente de assistência
social, como o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI).
Além disso, ainda que o serviço doméstico apareça em todos os indicadores que
problematizam o trabalho de crianças e adolescentes, ele não é atendido pelas categorias
prioritárias do PETI. “Isso revela incoerência por parte dos executores do programa”, alerta
Neide Castanha em seu estudo “Políticas sociais e oferta institucional frente ao trabalho infantil
doméstico no Brasil”.
A gerente do PETI, Milda Moraes, conta que no final de 2001 a então Secretaria de
Assistência Social, atual Ministério da Assistência Social, solicitou aos municípios a relação
90 Neide Castanha é assistente social, especialista em políticas sociais, coordenadora do Centro de Referência,
Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes (Cecria) e do Comitê Nacional de Enfrentamento da Violência
Sexual contra Crianças e Adolescentes. Atua como consultora do Projeto Regional para a Prevenção e Erradicação
do Trabalho Infantil em Casa de Terceiros na América do Sul, da OIT.
nominal de crianças que recebiam bolsa e as atividades que exerciam, para detectar o real foco
das ações. Hoje, dos cerca de 160 mil registros de meninos e meninas, 13 mil estão associados
ao trabalho infantil doméstico. “Descobrimos que os municípios nem sempre fazem um
diagnóstico quando pedem as bolsas. Então, quando sobram vagas, elas são preenchidas com
crianças que desempenham outros tipos de trabalho ou, muitas vezes, com crianças que nem
trabalham”, admite Milda.91
A primeira iniciativa foi oficializada em abril de 2002, com a criação de uma comissão
82
técnica composta por representantes de instâncias governamentais, de organizações não-
governamentais, da Federação Nacional dos Trabalhadores Domésticos (Fenatrad) e do
Conanda. A Comissão Especial do Trabalho Infantil Doméstico teve a função de discutir e
levantar estratégias de intervenção.
Para a ampliação do número de crianças atendidas pelo PETI, seria preciso esperar
por decisões governamentais sobre o orçamento. Em 2003, quando da votação para o
orçamento de 2004, Regina Teixeira, diretora do Departamento de Desenvolvimento de Política
de Assistência Social do Ministério da Assistência Social, anunciava que “o trabalho infantil
doméstico estaria incluído como uma das formas de trabalho infantil a serem atendidas pelo
programa”. “Esse é um compromisso de Estado que foi ratificado pelo novo governo em época
de eleição”, apontava ela, acreditando que, diversamente do que aconteceu na votação do
orçamento para 2003, seriam liberados recursos para a criação de vagas.
Fica aqui registrado um pedido: cabe aos jornalistas – como profissionais que trazem
informações à população – acompanhar de perto essa discussão orçamentária, verificar se as
promessas estão sendo cumpridas e se realmente o trabalho infantil doméstico será
contemplado nos próximos anos.
91 MORAES, Milda. Soluções para o trabalho infantil doméstico, 2002. Pesquisa “Crianças Invisíveis”. [S.I.: s.n.],
20--.
De acordo com Carlos Amaral, pode-se questionar, por exemplo, a eficácia da jornada
ampliada como elemento inibidor do trabalho infantil em uma situação na qual o trabalho de
crianças ocorre frequentemente no período noturno, como acontece nas grandes cidades.
Outro ponto questionável se refere ao valor atual das bolsas pagas pelo programa,
que, na maioria das cidades grandes, corresponde a uma pequena fração da remuneração
mensal obtida pelas crianças trabalhadoras. “Além da adequação do valor da bolsa (R$ 40,00
nas zonas urbanas e R$ 25,00 nas zonas rurais), serão necessárias estratégias específicas para
lidar com esses segmentos de crianças trabalhadoras e a inserção de novos agentes com maior
interação com esse público, principalmente no campo cultural”, adverte Amaral.
1) De escala: atingindo pelo menos 50% das crianças trabalhadoras em uma primeira
fase;
3) Das faixas de idade: incluindo adolescentes entre quinze e dezessete anos que não
concluíram o ensino fundamental.93
93 Idem.
Para Volpi, a existência de crianças e adolescentes explorados no trabalho em casas
alheias é reveladora das necessidades de suas famílias. “A eliminação do trabalho infantil
depende do fortalecimento da família como unidade autônoma de subsistência e garantia de
direitos”, defende. Por isso, acredita que programas, serviços e benefícios nesse sentido são
fundamentais para que os pais possam manter seus filhos convivendo com a própria família,
frequentando a escola e participando ativamente da comunidade.
Nesse quadro, o grande dilema é a discussão de quais políticas sociais devem ser
ofertadas a todas as crianças e os adolescentes durante o processo de desenvolvimento, e a
necessidade de que, efetivamente, assumam o recorte de gênero e de raça como articulações
concretas da construção de identidades sociais.
O balanço dos últimos dez anos sobre as políticas sociais para a infância e a
adolescência indica que, no campo da institucionalização jurídico-formal, estão assegurados
direitos iguais para todas as crianças e adolescentes. Entretanto, o trabalho infantil doméstico é
emblemático para elucidar as contradições entre a lei e a efetivação do direito. Não basta ter
uma legislação protetora; é preciso contar com um Estado protetor.
Uma das promessas para se resolver o problema em âmbito nacional foi à formação da
parceria entre a Secretaria Especial de Direitos Humanos e o Banco do Brasil, que pretendem
ajudar os municípios a equiparem seus Conselhos Tutelares. Como irá trocar todo o seu parque
tecnológico, o BB prometeu doar cinco mil computadores aos conselhos de todo o país.
Empresas como a Telemig Celular, por exemplo, estão engajadas nessa causa.
“Queríamos atuar na área do direito das crianças e dos adolescentes e a melhor maneira de unir
esta proposta ao nosso público-alvo é fortalecendo os Conselhos Tutelares e apoiando a criação
de Conselhos Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente”, explica Francisco Azevedo,
diretor-executivo do Instituto Telemig.94
Ministério Público do Trabalho (MPT), está fazendo a sua parte no que se refere à
fiscalização, decidiu apertar o cerco aos clubes de futebol do Paraná, em uma tentativa de
regulamentar a participação de crianças e adolescentes nas categorias de base das
agremiações. Em uma reunião feita este ano, com representantes dos clubes, o MPT abriu uma
discussão e estabeleceu um prazo de 60 dias para estes aderirem a um Termo de Ajustamento
de Conduta (TAC) que preserva os direitos dos futuros jogadores.
94 COSTA, Antônio Carlos Gomes da. É possível mudar. A criança, o adolescente e a família na política social
do município. São Paulo: Malheiros, 1997. 16 p.
por isso. Se houver um contrato, o clube estará automaticamente obrigado a acompanhar a
frequência do adolescente na escola, dar alimentação e condições de moradia”.
Entre outras questões correlatas, o TAC estabelece a idade mínima de 14 anos para o
ingresso do atleta nas categorias de base; proíbe a ação de empresários e procuradores, obriga
os clubes a facilitar o acesso à escola e determina regras para os alojamentos dos centros de
treinamentos.
Segundo o MPT, “os menores de 14 anos não podem permanecer em treinamento nas 87
categorias de base nem participar de testes ou peneiras; podem fazer testes nos clubes, mas
devem ter autorização dos pais ou responsáveis”. O período de teste não pode ultrapassar uma
semana e deve ser gratuito; quando aprovado, o atleta deverá assinar um contrato formal de
aprendizagem, com período mínimo de seis meses e máximo de dois anos, com a fixação de
uma bolsa não inferior a um salário mínimo; a assinatura do contrato deve ser acompanhada
exclusivamente pelos pais ou responsáveis pelo adolescente. É vedada a participação de
agentes, representantes ou procuradores; após o fim do período de aprendizagem, deverá ser
assinado um contrato de trabalho profissional, como prevê a Lei Pelé.
Buscar uma solução para toda a problemática que envolve a exploração do trabalho
infanto-juvenil e a estrutura precária de fiscalização dos direitos das crianças e dos adolescentes
não é algo utópico. Contudo, vai além da simples exposição do problema em si. Para que se
alcancem resultados positivos, é necessário que se trabalhe, que se modifique toda a estrutura 88
social e política que envolve a criança e o adolescente.
Como já visto, a responsabilidade não pode ser dividida quando o tema é a criança e o
adolescente. O Estado não pode afirmar ser exclusivamente da família a responsabilidade,
tampouco a família pode atribuir ao Estado toda a culpa que leva à exploração. A sociedade, de
igual forma, não deve considerar que está totalmente livre de qualquer reflexo desse contexto.
É dever do Estado, e de forma primordial, reprimir e coibir qualquer medida que vá
contra os direitos das crianças e dos adolescentes consagrados pela Constituição da República
Federativa do Brasil e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Segundo Antônio Carlos
Gomes da Costa,95 para se alcançar uma política vitoriosa, três componentes devem atuar
juntos: descentralização, participação e mobilização.
A descentralização se baseia em uma divisão de trabalho entre a União, estados e
municípios, em que estes respondem pela formulação, pela organização e pela implementação
das ações, sem abrir mão do apoio técnico-financeiro dos níveis supramunicipais de governo
sempre que for necessário.
A participação significa o compartilhamento de responsabilidades entre o Poder
Público e as entidades não-governamentais na formulação das políticas, devendo tais ações
serem transparentes e de controle por parte das organizações representativas da população.
A mobilização implica a sensibilização, a conscientização, a organização e o
comprometimento ativo dos diversos segmentos da vida municipal no trabalho e na luta em favor
dos direitos da infância e da juventude.
A participação da sociedade civil no contexto de decisões políticos sociais, para Tânia
da Silva Pereira, está presente nos diversos cenários de convivência coletiva e, ao constatar que
nem sempre ela é organizada de maneira uniforme, será decisiva a participação popular na
95 Idem.
gestão do Poder Público.96 Logo, tanto quanto uma atuação ofensiva da justiça da criança e do
adolescente é necessária uma gestão das políticas sociais, na qual o município assuma as
decisões relativas à população infanto-juvenil, definindo os programas peculiares a essa parcela.
Quando se fala em município, pretende-se demonstrar as razões que levam a salientar
a importância da participação do nível municipal de poder, pois é aí, de fato, que os problemas
ocorrem. Os dirigentes estão mais perto da população e sua abordagem é menos complexa do
que nas esferas do estado e da União.
Tão evidente é a maior facilidade de atuação dos municípios que a proposta 89
constitucional, contida nos arts. 227, §7°, e 204 – e estatutária, no art. 88, incisos do Estatuto da
Criança e do Adolescente –, prevê, entre as diretrizes da política de atendimento à criança e ao
adolescente, a municipalização, que significa que a União e o estado abrem mão de parcela de
poder correspondente às questões de pertinência local, permitindo ao município viver o exercício
de direitos e deveres públicos para com as crianças e os adolescentes.
Inicialmente, o município deve fazer um diagnóstico sobre a situação, a fim de poder
intervir, buscando alternativas e soluções que contemplem a legislação em vigor. Feita a
avaliação, a prefeitura deve buscar parcerias. Além das secretarias que atuam diretamente com
crianças e adolescentes do município, devem ser chamados os Conselhos Tutelar e da Criança
e do Adolescente, os empresários, os sindicatos, os meios de comunicação os representantes
dos diversos grupos organizados para, por meio da constituição de um fórum, ser viável o
estabelecimento dos passos necessários a serem trilhados para uma mudança da lamentável
realidade.
96 PEREIRA, Tânia da Silva. Direito da criança e do adolescente: uma visão interdisciplinar. Rio de Janeiro:
Renovar, 1996. 584 p.
Uma vez concluída a análise do problema, deve-se realizar um planejamento em que
as deficiências e as lacunas apontadas pelo diagnóstico sejam refletidas nos objetivos e metas
desse planejamento. E, como meta principal, deve-se enfrentar a realidade de que a exploração
começa dentro de casa. Grande parte das crianças não é abandonada e, por isso, não vai para
as ruas, com a consequente exploração por terceiros, sem que ao menos os pais conheçam
essa situação e concordem com ela. Na maioria dos casos, não é a omissão dos pais que se
estampa, e sim a ação direta deles, obrigando os filhos a irem para as ruas.
Assim, a estrutura familiar deve ser o norte, a base 90
de toda a reformulação que se busca. Sabe-se que as famílias
violentas e exploradoras são ecos da estrutura social, e
reproduzem as relações sociais permeadas de desigualdades,
injustiças e individualismo.
Muitas vezes os pais ou os responsáveis também
são vítimas, fazendo, por consequência, seus filhos serem
vítimas como eles. Não se pretende aqui retirar dos pais a
culpa pela exploração dos filhos, tampouco aceitar que não
devem ser punidos por serem vítimas sociais. Ocorre que é
notório o fato de que a maior parte da exploração e dos maus-
tratos cometidos contra as crianças e os adolescentes vem de famílias de menor condição
social. Na maioria dos casos, não há estrutura familiar estabelecida.97
A infância necessita de um ambiente favorável ao desenvolvimento peculiar daquele
ser; a adolescência necessita de um ambiente equilibrado, a fim de que o jovem possa
compreender as mudanças que começam a ocorrer em seu corpo, em sua vida, na transição
para a vida adulta. A família não deve utilizar o recurso violento da ameaça ou da imposição. Os
filhos têm de encontrar nos pais conselheiros, amigos. Não se pode amar a quem se teme e de
quem se tem terror.
Diante desses desvios, deve o município, por meio do Conselho Municipal – que é o
órgão com nítidas funções corretivas e que detém o controle de todas as ações desencadeadas
e programas de apoio às crianças e aos adolescentes –, criar um mecanismo eficaz contra todo
esse elenco de exploração.
97 MELLO, Sirley Fabian Cordeiro de Lima. Breve análise sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. Jus
navegandi. Teresina, n. 45, ano 4, set./2000.
E o melhor mecanismo que se pode vislumbrar é a ação conjunta entre o Conselho
Municipal e o Conselho Tutelar – eleito pelo Conselho Municipal, conforme processo
estabelecido no art. 139 do Estatuto da Criança e do Adolescente, composto por uma equipe de
cinco pessoas escolhidas pela comunidade local, para atender às crianças e aos adolescentes
sempre que forem vítimas de maus-tratos, se julgarem ameaçados, violados em seus direitos,
negligenciados e desatendidos em serviços públicos.
O Conselho Tutelar tem caráter essencialíssimo, pois é a representação direta da
sociedade. O cidadão tem no Conselho Tutelar um órgão que o ajuda a corrigir os efeitos de 91
toda ação ou omissão que ameace ou viole direitos das crianças e dos adolescentes, conforme
dispõe o art. 98 do Estatuto da Criança e do Adolescente. E, quando se fala em toda e qualquer
omissão, é no sentido lato da expressão, ou seja, omissão da sociedade, do Estado, dos pais ou
dos responsáveis.
A família tem o direito de receber do Estado apoio para cumprir adequadamente seu
dever constitucional de poder familiar. Sabe-se que é dever do Estado manter os serviços
públicos, por meio de políticas de educação, saúde, trabalho, habitação, entre outras, para
assistir às crianças desde seu nascimento.
Logo, a participação popular na formulação de políticas públicas e no controle das
ações governamentais – e incluem-se aqui as ações do Conselho Tutelar – é um fator de
fortalecimento, pois é por meio da participação da sociedade que as organizações
representativas “tomam pulso”, ao visualizar e discutir o que é necessário ser feito com os
recursos existentes.
A sociedade, uma vez conscientizada da real situação de suas lideranças, torna-se
mais controladora, exigindo transparência nas ações desenvolvidas, principalmente aquelas
relativas aos gastos públicos. E quando a lei investe de poderes o Conselho Tutelar, deve-se
evitar que pessoas desesperadas, oportunistas e irresponsáveis assumam o mandato de
conselheiro, pois tal investidura tem por finalidade atender aos fins sociais visados pelo Estatuto
da Criança e do Adolescente.
Tendo o Conselho Tutelar o agente legitimado para compelir o faltoso a cumprir seu
dever, a sociedade deve sempre, como forma de exercício da cidadania e de contribuição
inestimável, denunciar a esses órgãos as práticas de exploração e cobrar, de forma incessante,
para que essas denúncias não se circunscrevam a um mero procedimento administrativo.
Uma prática muito comum, e que surte efeitos excelentes, são as campanhas
publicitárias, pois, por meio delas o Poder Público consegue atrair a atenção da população para
o problema, sensibilizando e mostrando como a população pode ajudar no combate à exploração
do trabalho infantil.
Em razão da importância vital do combate à exploração, a responsabilidade para
erradicar o problema em questão cabe não somente ao Conselho Municipal e ao Conselho
Tutelar, mas a outras instituições que desempenham papel fundamental na luta contra a
exploração: as instituições policiais.
À polícia, não compete julgar a potencialidade ofensiva do tipo penal, mesmo porque
nem sempre os policiais que trabalham no cotidiano das ruas têm condições para avaliar todas 92
as circunstâncias a que são submetidas crianças e adolescentes. Nesse sentido, as autoridades
responsáveis pela dinâmica dos trabalhos desenvolvidos pela polícia devem cobrar uma atitude
mais austera da corporação diante dessa forma de exploração.
É fundamental a preparação adequada dos policiais para atuarem nessa área, com o
objetivo de zelar não só pela segurança pública de uma forma genérica, mas por um futuro mais
seguro, pois cada criança retirada da rua que deixa de ser explorada constitui menos um
criminoso, menos um traficante para a polícia combater.
Trata-se, pois, de uma medida preventiva. Nessa mesma linha de raciocínio, deve-se
ter no Poder Judiciário a eficácia esperada para fechar o ciclo de combate à exploração infantil,
pois em nada adianta políticas sociais, denúncias da população, apoio eficaz da polícia, se não
se obtiver um resultado positivo no sentido de penalizar devidamente o responsável pela
exploração de menores.
Em virtude dos fins a que se destina, a justiça deve ser rápida e eficaz, pois as
crianças e os adolescentes, explorados ou não, estão em uma posição que não lhes permite
esperar o respeito aos seus direitos. As grandes demandas e as burocracias excessivas não
podem emperrar a consolidação de direitos fundamentais e, em questões de justiça, a demora
passa a significar injustiça.98
Para complementar, uma forma de tornar esse setor da justiça eficaz, proposta pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente é, diante de ações judiciais que tenham por objeto uma
obrigação de fazer ou não fazer, o juiz conceder, mediante pedido do promotor de justiça, ou do
município, do estado, da União, ou da associação civil legitimada, tutela específica da obrigação
de fazer ou não fazer, determinando providências que assegurem o resultado prático equivalente
ao cumprimento daquela obrigação.
98 SÊDA, Edson. Construir o passado ou como mudar hábitos, usos e costumes, tendo como instrumento o
Estatuto da Criança e do Adolescente. São Paulo: Malheiros, 1999. 97 p.
Assim, diante de todo o contexto estudado neste capítulo, pode-se concluir que não
existe uma diretriz específica a ser adotada no combate à exploração da imagem da criança e do
adolescente por meio da prática da mendicância ou do abuso da mão de obra infanto-juvenil.
Devem-se adotar as políticas em conjunto. O Poder Público, a sociedade, a polícia, o Poder
Judiciário, cada um deve exercer seu papel com honestidade e humanidade, sem aquele típico
costume brasileiro de deixar para os outros fazerem o que você pode, mas não quer fazer.
Todos devem assumir suas responsabilidades frente à gravidade do problema da
exploração infantil. Caminhos, metas e diretrizes não faltam; o que carece é simplesmente a 93
vontade de amar e respeitar o próximo. Faltam olhos para ver que as vítimas de hoje serão os
vitimadores de amanhã.
Sendo assim, se desejarmos um Brasil forte e vigoroso, há que investir nas crianças e
nos nossos jovens. Precisamos denunciar não só as cidadelas da maldade que investem contra
a cidadania infanto-juvenil, mas também os administradores públicos que não respeitam a
Constituição e não priorizam as políticas públicas que assegurem aos jovens cidadãos a vida, a
saúde e a educação.
O trabalho infantil consiste em um dos maiores desafios enfrentados pelo Brasil, até
mesmo em razão de sua natureza social. As ONGS têm ainda desempenhado papel
preponderante ao despertar o espírito participativo na população, estimulando o exercício de
cidadania e a consciência dos direitos de cada cidadão. A prova desse avanço tem sido
evidenciada pelos movimentos fomentados pela sociedade civil organizada e a sua participação
nos movimentos políticos através dos conselhos, tais como o Conselho Estadual dos Direitos da
Criança e do adolescente.
O dramático problema do trabalho infantil é um dos temas que mais despontam na
agenda de reuniões da Conferência Internacional do Trabalho, que conta com a presença de
inúmeros delegados de governos, empregadores e trabalhadores.
Na América Latina e no Caribe o panorama é desolador. No Brasil, sete milhões de
crianças são obrigadas a trabalhar para subsistir. Em nosso país, na Colômbia e no Equador,
20% das meninas entre 10 e 14 anos trabalham como domésticas, sendo a porcentagem ainda
mais alta nas zonas rurais. Mais de dois milhões de crianças trabalham na agricultura na
Guatemala, em Honduras, na Nicarágua e no Panamá. Em atividades de mineração, trabalham
500 mil crianças no Peru e 13,5 mil na Bolívia. No Equador, aproximadamente 314 mil crianças
trabalham, parte considerável de uma população de doze milhões de habitantes.
A questão tem causas múltiplas e complexas, porém, em última instância, elas
apontam para as injustas estruturas sociais, econômicas e políticas. Infelizmente, tem-se visto
diuturnamente vários abusos e ilegalidades com relação à exploração do trabalho do menor. A
despeito disso, há farta legislação visando coibir tal prática, com a proteção do menor, que tem
sido “letra morta” em nosso país. Urge que a sociedade e o Ministério Público possam dar vazão
à sua missão, no sentido de evitar atrocidades e abusos que têm desafortunadamente se
tornado lugar-comum no país.
Este curso não teve por objetivo esgotar o tema do ponto de vista histórico, mas,
sobretudo, impulsionar um início de debate sobre a causa da questão catastrófica que se tornou
o trabalho infantil. Seria precário questionar o tema apenas para suscitar uma discussão sobre 94
os antídotos para esse problema. No Brasil, merecem especial atenção a própria estrutura
familiar, em flagrante evolução, as crianças de rua, as crianças trabalhadoras, as crianças
maltratadas (na família ou na sociedade) e aquelas institucionalizadas em internatos, orfanatos e
estabelecimentos congêneres.
Todavia, as estatísticas escondem a realidade. A falta de oportunidades de emprego
faz aumentar o chamado desalento e as perspectivas de curto prazo continuam desanimadoras.
Muito embora o Estatuto da Criança e do Adolescente esteja em vigor desde outubro de 1990 –
um dos diplomas reguladores da matéria –, não se muda a sociedade a toque de leis: elas
somente representam um meio de impor as modificações necessárias com maior eficiência. É
necessário, precipuamente, haver a vontade de mudar.
Lugar de criança não é na rua nem no trabalho, porque ambos negam e impedem o
direito de crescer como criança. Lugar de criança é na escola, mas não na escola da vida, como
muitos pensam; seu espaço é na escola do aprendizado, do conhecimento, para que haja uma
interação das crianças com sua cultura, com seu povo antepassado, com o conhecimento de sua
origem.
Imperativo se faz a justiça não mais fechar os olhos a uma realidade em que a
dignidade de milhões de crianças brasileiras está sendo solapada pelo desrespeito aos direitos
humanos fundamentais, que não lhes são reconhecidos por culpa do poder público, que,
infelizmente, não atua de forma efetiva; por culpa da sociedade, quando se omite diante do
problema; e por responsabilidade da família, que é forçada a escravizar seus filhos, em face de
não ter condições de sustentá-las.
Com vistas a essa urgente conscientização e tomada de atitude, e desejando que toda
criança possa conhecer e usufruir das leis que a protegem, poderemos transformar o futuro sem
esperança em uma sociedade digna e responsável. É certo que há um sistema organizado e
devidamente estruturado dentro de nosso ordenamento jurídico, o qual, contudo, por razões
políticas e sociais, não consegue sair da inércia e ser eficaz. Instrumentos e material para iniciar
a obra existem, mas falta o principal: operários, cidadãos dispostos a construir um futuro melhor.
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