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Conrado Paulino da Rosa

GUARDA
COMPARTILHADA
COATIVA
A efetivação dos direitos
de crianças e adolescentes

PREFÁCIO
Ministra NANCY ANDRIGHI 5ª
edição
revista
atualizada

2023
2
“Não é bem isso”:
a implementação da
guarda compartilhada
e as dificuldades de
sua compreensão pela
sociedade

A família, elencada no artigo 226 da Constituição Federal brasileira,


enquanto base da sociedade constitui célula de caráter dinâmico1 e plural,
de modo que sua caracterização necessita de uma análise interdisciplinar.
O presente capítulo inicia por uma breve análise histórica da família a
partir da legislação brasileira atentos à posição outorgada ao gênero femi-
nino na família contemporânea. Na sequência, investigaremos as vicissitudes
da transição do instituto do pátrio poder até a recente positivação enquanto
poder familiar e, também, os desafios da sua execução após a ruptura conju-
gal ou convivencial dos genitores.
Posteriormente, averiguaremos o percurso do instituto da guarda no
direito brasileiro e a presença da questão de gênero em seu exercício para, ao

1
Para Regina Célia Mioto, a família é uma instituição social historicamente condicio-
nada e dialeticamente articulada com a sociedade na qual está inserida. Isto pressu-
põe compreender as diferentes formas de famílias em diferentes espaços de tempo, em
diferentes lugares, além de percebê-las como diferentes dentro de um mesmo espaço
social e num mesmo espaço de tempo. Esta percepção leva a pensar as famílias sem-
pre numa perspectiva de mudança, dentro da qual se descarta a ideia dos modelos
cristalizados para se refletir as possibilidades em relação ao futuro. (MIOTO, Regina
Célia Tamaso. Família e Serviço Social: contribuições para o debate. In: Serviço Social
e Sociedade, n.º 55, São Paulo: Cortez, 1997).
26 G U A R D A C O M P A R T I L H A D A C O A T I V A

final, apresentarmos o compartilhamento como regra geral enquanto novo


paradigma da parentalidade e das dificuldades de compreensão de sua real
finalidade. Nesse espaço é que reside o título do presente capítulo: “não é
bem isso” haja vista que, normalmente, é a expressão recorrente quando se
explica a guarda compartilhada para a população em geral.

2.1 “Lugar de mulher é na cozinha”: uma breve análise histórica


da família a partir das legislações brasileiras
O Brasil, desde o seu descobrimento, já contava com codificações escri-
tas. As Ordenações Afonsinas, criadas em Portugal em 1446, vigoraram até
serem substituídas pelas Ordenações Manuelinas em 1512. Em 1603, foram
instituídas as Ordenações Filipinas, que tiveram vigência até a promulgação
do Código Civil de 1916.
Em relação ao descobrimento e o período colonial, interessante destacar
a pesquisa realizada por Reinaldo Lindolfo Lohn e Vanderlei Tais Machado
a partir da análise das imagens a respeito desse período que ilustram vários
livros de história avaliados pelo Programa Nacional do Livro Didático
(PNLD). Segundo os autores, as “imagens são visões europeias, produzidas
por homens, sobre o Brasil, tomado por aqueles artistas como o ‘outro’, o
diferente em relação aos seus valores e à sua sociedade”. No levantamento
realizado pelos pesquisadores, fica clara a sujeição do gênero feminino retra-
tada nas gravuras, pois em muitos casos, as mulheres são vistas como frágeis,
complementos e, principalmente, como objetos passivos no curso dos gran-
des eventos narrados. Aos homens, cabem as grandes decisões e a definição
dos rumos da sociedade2.
Outrossim, ainda partindo de uma análise iconográfica, imperioso refe-
rir o fato de que, desde a Colônia, durante todo o Império e mesmo após
a República, a família brasileira sempre se caracterizou por um profundo
sentimento de coesão, inexistente em terras europeias. Eduardo de Oliveira
Leite relata que toda a iconografia do século XVIII, no Brasil, retrata a pre-
sença constante das crianças na vida da família brasileira: “Embora os artis-
tas tenham sido enviados ao Brasil com a finalidade de reproduzirem a fauna
e a flora do país, não se limitaram aos encantos da paisagem e acabaram
rendendo-se à afabilidade de nossos costumes, tão contrários aos do mundo
europeu.” Ao contrário da experiência e dos registros da Europa, na mesma
época, a criança era retratada em interação com os demais integrantes da

2
LOHN, Reinaldo Lindolfo; MACHADO, Vanderlei. Gênero e imagem: relações de
gênero através das imagens dos livros didáticos de história. Revista Gênero, Niterói,
v. 4, n. 2. p. 119-134, 2. sem. 2004, p. 122.
“Não é bem isso” 27

família. “Nos alpendres das casas grandes ou no terreiro das senzalas, sobre o
chão corrido de tabuado brilhante ou sobre a rudeza dos caminhos de barro,
nas salas, nos quartos, nas cozinhas e nas oficinas, no interior das igrejas, ou
na procissão das ruas, a criança sempre se mistura inevitavelmente aos gran-
des, aos adultos, com uma naturalidade real, espontânea, verdadeira, com ar
de bem-vinda, bem-querida e desejada, como componente fundamental do
patrimônio afetivo da família brasileira”3.
O processo de introdução da chamada norma familiar burguesa para
os diferentes grupos sociais do país tomou vulto a partir do final do século
XIX. Esse movimento, no Brasil, está inserido em um contexto mais amplo,
em que verificamos a emergência de relações capitalistas no âmbito da eco-
nomia, com ênfase na implementação do trabalho assalariado, no advento
do Estado republicano e na urbanização.
No plano das práticas e dos valores, esse arranjo familiar caracteriza-
-se, em apertada síntese, pela composição pai, mãe, filhos; pela presença de
um conjunto de representações que conformam o chamado amor român-
tico entre os cônjuges, bem como o amor materno e paterno em relação
aos filhos; a criança e o jovem passariam a ser considerados como seres em
formação, que necessitam de cuidados materiais e afetivos; a sexualidade do
casal deveria ser pautada pela prática da monogamia e do heteroerotismo;
à mulher caberia a administração do mundo doméstico enquanto que o
homem se tornaria o provedor, atuando no âmbito do público; as relações
de parentesco entre os membros da família seriam construídas a partir de
dois eixos, isto é, a consanguinidade e afetividade.4

3
LEITE, Eduardo de Oliveira. Tratado de direito de família: origem e evolução do casa-
mento. Curitiba: Juruá, 1991, p. 299.
4
AREND, Silvia Maria Fávero. Paradoxos do direito de família no Brasil. Uma análise
à luz da História Social da Família. In: SOUZA, Ivone M.C. Coelho de. Casamento:
uma escuta além do Judiciário. Florianópolis: VoxLegem, 2006, p. 105.
Interessante referir que a Lei das Doze Tábuas, uma das primeiras codificações que se
tem notícia, redigida por volta de 450 a.C e, também, o jus civile romanorum (direito
civil dos romanos), ao qual somente o civis romanus (o cidadão romano) tinha
acesso, originariamente, vez que os membros das gentes não-romanas relacionavam-
-se pelo jus gentium (o direito das gentes) reforçaram o papel de cada um dos gêneros
– masculino e feminino – ao designarem as figuras do patrimônio (patrimonium) e
do matrimônio (matrimonium). Isso porque aparece na designação de ambos o ele-
mento vocabular monium, variação fonética de munus, que significa missão, função,
ocupação. Daí, patrimonium era a missão do pai: gerar e manter os bens de Roma no
ager romanus (campo romano) sem desvio algum. E matrimonium era a missão mãe:
gerar e criar na domus romana (casa romana), também sem desvio algum, os futu-
ros cidadãos e chefes das famílias e gentes romanas, herdeiros das coisas romanas,
28 G U A R D A C O M P A R T I L H A D A C O A T I V A

No Brasil oitocentista, a honra feminina possuía uma forte conotação


sexual e não era só um valor social. Era, antes de tudo, um bem partilhado
entre a mulher, a família e a sociedade, tornando-a um critério muito mais
público que privado. A desonra feminina era uma ação da vida privada que
refletia diretamente no viver em sociedade. Sendo assim, não bastava ser vir-
gem para ser honesta. Era preciso portar-se como honesta, ou seja, não sair
desacompanhada, evitar conversações públicas com figuras do sexo mascu-
lino, não se entregar aos prazeres da carne, entre outras posturas.5
No Brasil, de acordo com Marilda Iamamoto, o ideário liberal incor-
porado na Constituição de 1824 chega de braços dados com a escravidão e
com a prática geral do favor que, embora contrapostos, se unem na história
política brasileira.6
Além disso, mundialmente o século XIX é demarcado pela “publiciza-
ção da família”, concretizada pela política estatal sempre pronta a assumir
e proteger a infância, vigiando-a estreitamente, substituindo o patriarcado
familiar por aquilo que passou a ser chamado de “patriarcado do Estado”7.
A partir de então, o Estado passou a interferir de modo direto e crescente no
dia a dia das entidades familiares, atingindo seu apogeu.

a dar continuidade à civitas romana. Para isso, segundo Sérgio Resende de Barros,
enquanto o pai saía para a vida fora de casa, a mulher – atual ou futura mãe – ficava
em casa. Na origem primária, tanto o patrimônio quanto o matrimônio romanos
corresponderam a funções sociais, bem definidas, do homem e da mulher. (BAR-
ROS, Sérgio Resende de. Matrimônio e patrimônio. Revista Brasileira de Direito de
Família, Porto Alegre: IBDFAM/Síntese, n. 8, p. 8, jan.-mar. 2001).
5
A autora Renata Valéria Lucena relata que os “raptos” de mulheres eram práticas
reiteradas por parte daqueles que desafiavam a ordem imposta pelas famílias de casa-
mentos forçados. “Desde o século XVI o raptor foi criminalizado e ocupou a pauta
nos discursos do Concílio de Trento que, ao legislar sobre o matrimônio, deliberou
pela aplicação de punições aos desvios contra o sétimo sacramento, o casamento.
Dentre tais desvios, destacou-se o rapto, concebido não apenas como um crime indi-
vidual, que atingia física e moralmente a moça, mas toda a família e, especialmente,
a figura do pai. (...) No Código Criminal do Império de 1830, que foi reeditado nos
anos de 1877 e 1884, o rapto está inscrito nos “Crimes contra a honra”, comparti-
lhando o espaço com os crimes de estupro. O Estado brasileiro entendia o rapto
como o ato de “Tirar para fim libidinoso por violência qualquer mulher de casa ou
lugar que estiver” (LUCENA, Renata Valéria. Os afetos proibidos: os raptos e as rela-
ções de gênero no Recife oitocentista (1860-1890), Gênero, Niterói, v. 17, n. 1, p. 171
– 189, 2. sem. 2016).
6
IAMAMOTO, Marilda. Serviço social em tempo de capital fetiche. 4. ed. São Paulo:
Cortez, 2010, p. 137.
7
LEITE, Eduardo de Oliveira. Tratado de direito de família: origem e evolução do casa-
mento. Curitiba: Juruá, 1991, p. 301.
“Não é bem isso” 29

“A família perde seu caráter de entidade particular, com existência própria


e se converte num ente jurídico, numa realidade normativa, subordinada ao
império dos regulamentos e das leis”. Os dispositivos empregados pelo Estado
interagem na família, em um movimento duplo: ao mesmo tempo em que a
norma opõe os membros da família à autoridade patriarcal, desestruturando o
poder paterno, reforçando e reafirmando a tutela econômica e moral do grupo
familiar, ela organiza a família em torno de uma maior autonomia, apoiando-
-se numa liberação das relações infrafamiliares. “O Estado dá e tira, reforma e
estrutura, destrói e reorganiza a partir de sua ótica e de seus interesses”8.
O patriarcado – entendido como o poder que o homem exerce por meio
dos papéis sexuais – se constitui junto com as sociedades de classes, o que sig-
nifica dizer que precede o modo de produção capitalista, e nele assume formas
singulares de existência9. Segundo Carole Pateman, o patriarcalismo se baseia
no apelo à natureza e no argumento de que a função natural da mulher de
procriar prescreve seu lugar doméstico e subordinado na ordem das coisas.10
O Estado Social desenvolveu-se ao longo do século XX, caracterizando-
-se pela intervenção nas relações privadas e no controle dos poderes econô-
micos, tendo como objetivo a proteção dos mais fracos. Sua nota dominante
é a solidariedade social ou a promoção da justiça social. O intervencionismo
também alcança a família, com o intuito de redução do quantum despótico
dos poderes domésticos, da inclusão e da equalização de seus membros e da
compreensão de seu espaço para a promoção da dignidade humana.11
É tão notável a influência do Estado na família que se cogitou a subs-
tituição da autoridade paterna pela estatal: o Estado social assumiria, tam-
bém, a função de pai.12

8
Ibid., p. 319.
9
SOUZA, Terezinha Martins dos Santos. Patriarcado e capitalismo: uma relação sim-
biótica. Temporalis, Brasília, ano 15, n. 30, jul./dez. 2015, p. 476.
10
PATEMAN, Carole. Críticas feministas à dicotomia público/privado. Tradução de
Verso Tradutores do original “Feminist critiques of the public/private dichotomy –
The disorder of women: democracy, feminism and political theory”. Disponível em:
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/1844681/mod_resource/content/0/Pate-
man%2C%20C_Cr%C3%ADticas%20feministas%20%C3%A0%20dicotomia%20
p%C3%BAblico-privado.pdf. Acesso em 31. Jul. 2017.
11
LÔBO, Paulo Luiz Netto. A repersonalização das relações de família. In: Revista Brasi-
leira de Direito de Família, Porto Alegre: IBDFAM/Síntese, n. 24, p. 141, jun.-jul. 2004.
12
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 17. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2009, p. 27. v. 5. Segundo Margareth Rago, nessa mesma época surge “um
modelo imaginário de mulher, voltada para a intimidade do lar, e um cuidado espe-
cial com a infância, redirecionada para a escola ou para os institutos de assistência
social que se criam no país fundam a possibilidade do nascimento da intimidade
30 G U A R D A C O M P A R T I L H A D A C O A T I V A

Nessa linha, nas primeiras décadas do século XX, observamos uma sig-
nificativa transição de valores, passando-se da estrutura patriarcal para uma
nova estrutura econômica e social, marcada pelas ideologias de cunho indi-
vidualista. O casamento e a família também expressaram essas mudanças em
suas estruturas e novos valores vão sendo assimilados, sem, contudo, desfa-
zer-se dos velhos costumes. Segundo Eliana Piccolli Zordam, Denise Falke e
Adriana Wagner, o surgimento da psicanálise e de outras teorias psicológicas
apresentou “novas possibilidades de convivência e repressões inculcadas, espe-
cialmente pelos valores religiosos. Nesse novo contexto, começam a permear
nas relações a ideia de que, para se casar, um homem e uma mulher deveriam
sentir uma certa atração e ter a sensação de que poderiam combinar.”13
Em descompasso com isso, o Código Civil brasileiro de 1916, vigente
até janeiro de 2003, retratou a realidade de uma família patriarcal, mantendo
a posição do homem como chefe da família, possibilitou o tratamento desi-
gual da filiação, voltado mais ao patrimônio do que ao verdadeiro sentido da
família. Dos 290 artigos da parte destinada ao direito de família, 151 trata-
vam de relações patrimoniais, e 139, de relações pessoais.
A edição da norma civilista foi, de forma inconteste, uma demonstra-
ção de dominação sobre o gênero feminino e da afirmação da vontade do
marido de modo praticamente despótico e desarrazoado. Prova disso é que,
em seu artigo 6º, o Código Civil de 1916 arrolava a mulher casada como
relativamente incapaz, ao lado das pessoas entre dezesseis e de vinte e um
anos, os pródigos e os silvícolas.
Como acima adiantamos, o esposo era considerado pela legislação
(artigo 233 do Código Civil de 1916) o chefe da sociedade conjugal, com-
petindo-lhe (I) a representação legal da família, ou seja, a representação da
família em juízo; (II) a administração dos bens comuns e, inclusive, dos bens
particulares da mulher (III); direito de fixar e mudar o domicílio da família;
(IV) o direito de autorizar a profissão da mulher e a sua residência fora do
teto conjugal e, por último, (V) prover a manutenção da família. Destarte,
flagrante o espaço de subjunção feminina haja vista que sua vontade se mos-
trava secundária, inclusive, para determinar seu futuro profissional, a admi-
nistração de seus bens e local de moradia da entidade familiar.

operária, para o que engenheiros e autoridades competentes sugerem a construção


de habitações higiênicas e confortáveis”. (RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a uto-
pia da cidade disciplinar. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p. 12).
13
ZORDAN, Eliana Piccoli; FALCKE, Denise; WAGNER, Adriana. Copiar ou (re)
criar? Perspectivas histórico-contextuais do casamento. In: WAGNER, Adriana.
Como se perpetua a família? A transmissão dos modelos familiares. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2014, p. 55.
“Não é bem isso” 31

Ainda, de acordo com o artigo 240 do Código civilista de 1916, a mulher


assumia, pelo casamento, com os apelidos do marido, a condição de sua
companheira, consorte e auxiliar nos encargos da família. Por outro lado, de
acordo com o artigo 324, a mulher condenada na ação de desquite perderia
o direito a usar o nome do marido.
Nessa mesma linha, consagrando as perdas sempre destinadas ao gênero
feminino, o artigo 234 do Código Civil de 1916 estabelecia que a obrigação
do marido de sustentar a mulher cessaria quando ela abandonasse sem justo
motivo a habitação conjugal. No mesmo dispositivo existia ainda a possibi-
lidade que o juiz, segundo as circunstâncias, poderia ordenar, em proveito
do marido e dos filhos, o sequestro temporário de parte dos rendimentos
particulares da mulher.
Afora tal quadro, imperioso destacar a absurda redação do artigo 219
da codificação civil de 1916 que considerava erro essencial sobre a pessoa do
outro cônjuge o “defloramento da mulher, ignorado pelo marido”, ou seja,
o conhecimento posterior às núpcias de que a mulher não era virgem pos-
sibilitava o pedido de anulação por parte do marido que se encontrava em
estado de erro.
Tal circunstância seria justificada vez que o erro é uma falsa representa-
ção da realidade e faz com que uma pessoa acabe por manifestar uma von-
tade diferente daquela a ser realmente externada se tivesse conhecimento
exato da situação.14 Dessa forma, o exercício da sexualidade antes do casa-
mento era possível apenas ao gênero masculino pois, caso a mulher tivesse
alguma experiência preexistente à celebração das núpcias, a própria legisla-
ção referendava atitudes discriminatórias.
Em relação aos filhos, com fundamento no artigo 358, o Código Civil
delegava o exercício do pátrio poder apenas ao marido e, excepcionalmente,
com a sua morte ou impedimento, à mulher. Assim, a gestão da família era
unilateralmente realizada pelo marido – de maneira quase despótica –, reto-
mando comportamentos similares aos que experimentávamos na Roma
Antiga em razão da verticalização de poder existente entre os cônjuges. Isso
porque, no berço da civilização contemporânea, união conjugal era algo mais
do que “união de sexos ou afeto passageiro, ao unirem-se dois esposos pelo
laço poderoso do mesmo culto e das mesmas crenças”. A autoridade máxima
era atribuída ao pai, que tinha poder ilimitado, tendo como fundamento o
culto religioso, uma vez que esse é o “primeiro junto ao fogo sagrado; é ele que
o acende e o conserva; é o seu pontífice”. Somente ao pai era possibilitado o

14
MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013,
p. 113.
32 G U A R D A C O M P A R T I L H A D A C O A T I V A

acesso à Justiça (inclusive sendo responsabilizado pelos delitos cometidos por


todos os membros da entidade familiar). No seio familiar, o “juiz era o chefe
da família, sentenciando em tribunal por virtude da sua autoridade conjugal
ou paterna, em nome da família e sob a proteção das divindades domésticas”.
A jurisdição era absoluta e irrecorrível, podendo inclusive condenar à morte,
e “nenhuma autoridade tinha o direito de modificar sua sentença”.15
Além disso, as relações sem casamento eram moral, social e civilmente
reprovadas, atingindo diretamente os filhos que eram classificados e conse-
quentemente discriminados em função da situação jurídica dos pais.16

15
Interessante referir que, na Roma Antiga, a cerimônia do casamento não tinha lugar
no templo, mas em casa, sendo o deus doméstico quem presidia o ato. Com o obje-
tivo de dar publicidade ao enlace, tal qual atualmente utilizam-se os proclamas de
casamento, o conhecimento social do estado de casados era realizado por meio da
marcha nupcial onde, caminhando no meio da aldeia juntamente com familiares e
demais convidados, o casal passava a ser reconhecido enquanto marido e mulher.
A marcha nupcial tinha como destino a nova residência do casal, todavia, a jovem
não entrava por si mesma na nova habitação: mostrava-se preciso que o marido
simulasse um rapto e, após alguns gritos e uma “tentativa” de defesa das mulheres
que a acompanham, o esposo adentrasse a residência. Tal atitude possuía o signi-
ficado de que, no novo lar, essa mulher não teria por si própria nenhum direito,
estando sujeita à vontade do senhor do lugar e do deus que lá a introduziu à força.
No momento da entrada no lar, o esposo era obrigado a ter uma iniciativa que, até
os dias atuais, é repetida: o nubente erguia a mulher em seus braços para atravessar
a porta da casa. Contemporaneamente, essa atitude representa romantismo e, em
média, faz parte do sonho de 10 em cada 10 daqueles que ainda não celebraram as
bodas. Por outro lado, poucos sabem que, na verdade, o ato tem em sua origem a
representação da dominação do homem. Como a casa era uma religião doméstica,
a jovem, enquanto não fosse finalizada a cerimônia, não possuía dignidade para que
seus pés tocassem aquele chão, que era sagrado.
Logo após, diante do fogo sagrado, era aspergida com a água lustral e tocava o fogo
sagrado. Após orações, o final da celebração ocorria no momento em que os dois
esposos dividiam entre si um bolo, um pão e algumas frutas, o que os colocava em
comunhão religiosa entre si e em comunhão com os deuses domésticos.
Do ponto de vista prático, o casamento se assentava em um acordo formal entre o
noivo e o pai da noiva, que incluía o pagamento de um dote por parte do pai. Essa
forma de união conjugal não levava em consideração a vontade da noiva nem depen-
dia de seu consentimento para ser celebrada. Em outras palavras, a mulher era dada
pelo pai ao marido, representando, consequentemente, uma simples transferência de
casa e, sem dúvida, de senhor. (COULANGES, Fustel. A cidade antiga. Tradução de
Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. 6. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996, p. 33).
16
RAMOS, Patrícia Pimentel de Oliveira Chambers. Poder familiar e guarda comparti-
lhada: novos paradigmas do direito de família. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 34.
“Não é bem isso” 33

Era época de valor exclusivo da família formada a partir do casamento


e filhos gerados das justas núpcias gozavam da presunção absoluta de sua
paternidade marital. Além desse privilégio legal, a prole concebida na cons-
tância do casamento ainda adquirira estratificação social, ao ser qualificada
como filiação legítima, constatando num degrau nitidamente degenerativo
com a chamada filiação ilegítima ou simplesmente biológica.17
Na segunda Constituição da República, em 1934, a família passou a ter
espaço também nas Cartas Constitucionais brasileiras onde lhe foi dedicado
um capítulo exclusivo, destacando a indissolubilidade do casamento.
A Constituição Brasileira de 1937 (conhecida como Polaca por ter sido
inspirada no modelo semifascista polonês), outorgada pelo presidente Getú-
lio Vargas em 10 de novembro de 1937, no mesmo dia em que implantou a
ditadura do Estado Novo, o casamento permaneceu indissolúvel18 e a educa-
ção surgiu como dever dos pais. Além disso, os filhos naturais foram equipa-
rados aos legítimos e, por fim, o Estado assume a tutela das crianças em caso
de abandono pelos pais.
Foi em meio a esse complexo quadro que o Serviço Social iniciou a
trajetória em direção à sua profissionalização no Brasil. Até 1930, o País se
caracterizava por uma economia agrário exportadora. As transformações
na estrutura econômica e política do País foram aceleradas com a Revolu-
ção de 30 e permitiram uma intensificação no processo de industrialização
nacional. A classe operária começava apenas a se organizar para reivindicar
melhores condições de vida e de trabalho.19
O interesse marcadamente utilitarista da burguesia e a ética reificada
que lhe dava sustentação tornavam justificada a atitude da classe dominante

17
MADALENO, Rolf. Novas perspectivas no direito de família. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2000, p. 120.
Nas palavras de Giselda Hironaka: “Nessas sociedades, o homem, pai e marido,
ocupa a figura central do núcleo, da autoridade e do poder, a ele competindo, exclu-
sivamente, a direção da família. Este homem, com este perfil sociológico, orgulha-se
de reconhecer a criança como sua semente, o que dá azo a um sentimento de pater-
nidade efetivamente biologizado, ou seja, originando um afeto que tem como fonte
o fato da certeza fisiológica da paternidade”. (HIRONAKA, Giselda Maria Fernandez
Novaes. Família e casamento em evolução. Revista Brasileira de Direito de Família,
IBDFAM, Porto Alegre, v. 1, n., p. 11, abr./jun. 1999).
18
Art. 124: “A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção
especial do Estado. Às famílias numerosas serão atribuídas compensações na pro-
porção dos seus encargos.”
19
BULLA, Leonia Capaverde. O contexto histórico da implantação do Serviço Social
no Rio Grande do Sul. Textos & Contextos, Porto Alegre, v. 7, n. 1, p. 4, jan./jun. 2008.
34 G U A R D A C O M P A R T I L H A D A C O A T I V A

de se apropriar dos trabalhos desenvolvidos pelos filantropos e pelos agentes


sociais, conferindo-lhes uma conotação política e ideológica, em termos de
controle e repressão. Através do processo de reificação20, fortemente impreg-
nado na estrutura da sociedade burguesa, forjava-se uma perspectiva de prá-
tica social moldada para responder às exigências do capitalismo.21
Nessa esteira, em 1942 foi criada a Legião Brasileira de Assistência
(LBA) para colaborar com o Estado na prestação de serviços assistenciais,
ocupando-se, nos primeiros anos, com a assistência às famílias dos brasi-
leiros que combatiam na Segunda Guerra Mundial. Com o final da guerra,
voltou-se para a atuação beneficente junto à população “mais necessitada”,
especializando-se mais tarde no atendimento à maternidade, à infância e à
família. A LBA tornou-se, em âmbito nacional, e no Rio Grande do Sul, um
importante campo de prática do Serviço Social.22
Com o final da Segunda Guerra Mundial, em 1945, o Serviço Social
americano abriu possibilidades de realização de programa de intercâmbio
cultural com o Brasil, recebendo assistentes sociais para treinamento, insta-
lando-se um canal que permitiu repassar a metodologia existente no conti-
nente americano em relação ao Serviço Social.23
Em 1945, no Brasil, vivia-se a redemocratização do País. Os partidos
políticos, dissolvidos desde 1937, reorganizavam-se, juntamente com toda
a sociedade. Os católicos lançaram o “Manifesto pela Ordem Social Cristã”,
orientando seus seguidores sobre a organização dos partidos, incluindo nos
seus programas os princípios da Doutrina Social da Igreja, propondo solu-
ções para as problemáticas sociais. Nesse manifesto, encontravam-se várias
referências à liberdade, à democracia e à participação na vida social.24

20
Segundo Marilia Lucia Martinelli, reificação é “o ato (ou o resultado do ato) de trans-
formação das propriedades, relações e ações humanas em propriedades, relações e
ações de coisas produzidas pelo homem, que se tornaram independentes (e que são
imaginadas como originalmente independentes) do homem e governam sua vida.
Significa igualmente a transformação dos seres humanos em seres semelhantes a coi-
sas. A reificação é um caso ‘especial’ de alienação, sua forma mais radical e generali-
zada, característica da moderna sociedade capitalista”. (MARTINELLI, Maria Lucia.
Serviço social: identidade e alienação. São Paulo: Cortez, 2011, p. 125)
21
MARTINELLI, Maria Lucia. Serviço social: identidade e alienação. São Paulo: Cortez,
2011, p. 125-126.
22
BULLA, Leonia Capaverde. O contexto histórico da implantação do Serviço Social no
Rio Grande do Sul. Textos & Contextos, Porto Alegre, v. 7, n. 1, p. 10, jan./jun. 2008.
23
MARTINELLI, Maria Lucia. Serviço social: identidade e alienação. São Paulo: Cortez,
2011, p. 133.
24
BULLA, Leonia Capaverde. O contexto histórico da implantação do Serviço Social no
Rio Grande do Sul. Textos & Contextos, Porto Alegre, v. 7, n. 1, p. 20, jan./jun. 2008.
“Não é bem isso” 35

A Constituição Federal de 1946, que teve vigência entre as ditaduras do


Estado Novo (1930-1945) e do Regime Militar (1964-1985) também man-
teve a indissolubilidade do matrimônio25, estimulou a prole numerosa26 e
assegurou assistência à maternidade, à infância e à adolescência.
A Constituição de 1967 cuidou, no Título IV, da família, educação e cul-
tura, sem, contudo, separar as matérias em capítulos.27 No tocante à família,
foi destinado apenas um artigo, dividido em quatro parágrafos, os quais dis-
punham que a mesma era constituída pelo casamento civil ou religioso com
efeitos civis, calcada na indissolubilidade da união matrimonial28, sendo essa
lógica mantida na Constituição de 1969.29
Na Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada
pela resolução 217, A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10
de dezembro de 1948, a família foi também uma das áreas a ser protegida
pela nova visão dos Direitos Humanos. O artigo XVI trouxe, em primeiro
lugar, que os “homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição
de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e
fundar uma família”, gozando de iguais direitos em relação ao casamento,
sua duração e sua dissolução. Em segundo lugar, o documento estabeleceu
que o casamento somente seria válido com o livre e pleno consentimento
dos nubentes. Por fim, a Declaração elencou a família como “núcleo natu-
ral e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do
Estado”, previsão essa que influenciou a Constituição Federal de 1988.
A partir da década de 1960, com a revolução sexual, passou a ser des-
construído o imaginário anteriormente imposto de que o sexo feminino
estava “à mercê de seu aparelho reprodutivo que, segundo se acreditava, tor-
nava seu comportamento emocional errático e imprevisível”.30 Roudinesco,
analisando as mudanças ocorridas na família francesa no pós-guerra, aponta
“um fosso irreversível parece ter se cavado, pelo menos no Ocidente, entre o

25
Art. 163: A família é constituída pelo casamento de vínculo indissolúvel e terá direito
à proteção especial do Estado.
26
Art. 164: É obrigatória, em todo o território nacional, a assistência à maternidade, à
infância e à adolescência. A lei instituirá o amparo de famílias de prole numerosa.
27
Art. 167: A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Poderes
Públicos. § 1º O casamento é indissolúvel.
28
WELTER, Belmiro Pedro. Teoria tridimensional do direito de família. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2009, p. 45.
29
Art. 177: A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Poderes
Públicos. § 1º O casamento é indissolúvel. (modificado pela EC n. 9/77).
30
RAGO, Elisabeth Juliska. Higiene, feminismo e moral sexual. Revista Gênero, Niterói,
v. 6., n. 1. p. 105-107, 2. sem. 2005, p. 107.
36 G U A R D A C O M P A R T I L H A D A C O A T I V A

desejo de feminilidade e o desejo de maternidade, entre o desejo de gozar e


o dever de procriar”.31
As transformações ocorridas, segundo Caio Mário da Silva Pereira,
“teriam sido maiores e mais avançadas do que em dois milênios de civili-
zação romano-cristã”32. Com isso, ocorre uma independência do homem,
que não está mais submetido aos “grilhões do pecado”, gerando, inclusive,
a revisão da doutrina e da atuação da própria Igreja, pois “o puritanismo
judaico, fruto talvez da doutrina de São Paulo, censurou os costumes, pro-
curando alinhar os homens dentro de estritos limites morais. O resultado,
como podemos nós mesmos verificar, foi o império absoluto da hipocrisia”.33
O relacionamento conjugal se tornou mais transparente e, consequen-
temente, mais exposto às mudanças. Homens e mulheres não aceitam mais
jogar fora suas vidas em uma relação que se tornou sem prazer ou que empo-
breceu, sob o ponto de vista afetivo.34
Aliado a esse novo momento, surge o movimento hippie e a pílula anti-
concepcional e, além disso, articulado ao crescimento da antropologia e da
história das mentalidades, incorporando as contribuições da história social
e dos aportes das novas pesquisas sobre memória popular, as universidades
abrem-se aos grupos de pesquisas sobre o tema, reconhecendo seu valor e
encorajando trabalhos e temas e iniciando momento de grande produção
intelectual sobre o feminismo.35 O surgimento dessa consciência feminista,
por sua vez, foi um processo coletivo que se deu no interior das relações de
gênero, materializando-se nas práticas sociais.36
Nessa linha, o século XX funcionou como um ácido. Os princípios de
sentido e de valor que formavam os quadros tradicionais da vida humana,
em sua maioria, desmoronaram ou, no mínimo, apagaram-se bastante.37

31
ROUDINESCO, Elisabeth. A família em desordem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
p. 146.
32
Ibid., p. 169.
33
FIUZA, César Augusto de Castro. Mudança de paradigmas: do tradicional ao
contemporâneo. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coord.). Anais do II Congresso
Brasileiro de Direito de Família. A família na travessia do milênio. Belo Horizonte:
IBDFAM/OAB-MG/Del Rey, 2000, p. 35.
34
COSTA, Gley P. O amor e seus labirintos. Porto Alegre: Artmed, 2007, p. 25.
35
SOIHET, Rachel; SOARES, Rosana M. A.; COSTA, Suely Gomes. A história das
mulheres. Cultura e poder das mulheres: ensaio de historiografia. Revista Gênero,
Niterói, v. 2, n. 1. p. 7-30, 2. sem. 2001.
36
WELTER, I. et al. Gênero, maternidade e deficiência: representação da diversidade.
Revista Textos & Contextos, Porto Alegre, v. 7, n. 1, p. 101, jan./jun. 2008.
37
FERRY, Luc. Famílias, amo vocês: política e vida privada na época de globalização.
Tradução de Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, p. 13.
“Não é bem isso” 37

As bases tradicionais começaram a ser abaladas com o advento de nova


legislação emancipadora das relações familiares, que desmontaram as estru-
turas centenárias ou milenares do patriarcalismo.38
Em 1962, o Estatuto da Mulher Casada (Lei n. 4.121/62) devolveu a plena
capacidade à mulher casada e deferiu-lhe bens reservados, que asseguravam a
ela a propriedade exclusiva dos bens adquiridos com o fruto de seu trabalho.
Foi um passo significativo para que o gênero feminino pudesse sair do “plano
das coisas”, quando nosso ordenamento jurídico a colocava como uma espécie
de propriedade do marido, que dela podia fazer o que bem entendesse.39
Na economia, o final dos anos de 1960 culmina com o término do perí-
odo consagrado na literatura como “anos dourados do capitalismo”. Sem
dúvida que se trata de uma época gloriosa em que tudo vai muito bem em
relação à lógica da reprodução do capital. Produção, circulação e realização
combinam uma trajetória ascendente da acumulação por um período de
trinta anos. No entanto, no final da década de 1960 e início da de 1970, este
ciclo de crescimento se encerra e o sistema mergulha em uma crise estru-
tural. Crise que combina queda generalizada da taxa de lucro, estagnação
econômica, elevação generalizada dos preços e esgotamento das ferramentas
tecnológicas da Segunda Revolução Industrial, caracterizando o fenômeno
definido na literatura econômica como stagflação.40
Na década de 1970, produziram-se obras ancoradas num espírito sepa-
ratista, ressentido, que ficou conhecido como feminismo radical. Lamen-
tavelmente, não se tratava de movimento radical no sentido político, mas
no sentido sexista. Embora esta corrente do feminismo nunca tenha sido
expressiva, fez ruído. Ainda, segundo Saffioti, a perspectiva feminista toma
o gênero como categoria histórica, portanto substantiva, e também como
categoria analítica, por conseguinte, adjetiva. Não existe um modelo de aná-
lise feminista. Rigorosamente, o único consenso existente sobre o conceito
de gênero reside no fato de que se trata de uma modelagem social, esta-
tisticamente, mas não necessariamente, referida ao sexo. Vale dizer que o

38
LÔBO, Paulo Luiz Netto. A repersonalização das relações de família. Revista Brasileira
de Direito de Família, Porto Alegre: IBDFAM/Síntese, n. 24, p. 145, jun.-jul. 2004.
39
DELGADO, José Augusto. Estatuto da mulher casada: efeitos da lei 4.121/62. Revista
dos Tribunais, São Paulo, v. 69, n. 539, p. 20-24, set. 1980.
40
Segundo Paulo Roberto Wünsch e Carlos Nelson dos Reis tal terminologia é “utilizada
para caracterizar a crise econômica dos anos de 1970. Em síntese, trata-se de uma situ-
ação típica de recessão, ou seja, diminuição das atividades econômicas e aumento dos
índices de desemprego, além da inflação”. (WÜNSCH, Paulo Roberto; REIS, Carlos
Nelson dos Reis. O trabalho e o Minotauro: as constantes metamorfoses de um conflito
permanente. Textos & Contextos, Porto Alegre, v. 9, n. 1, p. 14, jan./jun. 2010)
38 G U A R D A C O M P A R T I L H A D A C O A T I V A

gênero pode ser construído independentemente do sexo. Existem, também,


feministas que ainda trabalham com o conceito de sexo/gênero, outras que
se apegam às diferenças sexuais para explicar o gênero, resvalando, às vezes,
pelo essencialismo biológico, e outras, ainda, que afirmam de tal modo o
primado do social que acabam por negar ou, pelo menos, a ignorar o corpo,
abraçando o essencialismo social.41
Ainda sob o olhar inquisidor da ditadura militar, foi, nos anos 1970, que
surgiram as primeiras manifestações do feminismo de “segunda onda”. O
contexto de lutas por liberdades individuais na Europa e nos Estados Unidos
e a influência que o contato dos grupos de exilados, principalmente das exi-
ladas, com essas novas ideias sobre a condição das mulheres na família e na
sociedade, de maneira mais ampla, foram fortes impulsionadores de novos
debates e questionamentos. Para o regime militar, qualquer manifestação
das feministas era vista com desconfiança, já que o mesmo as entendiam
como política e moralmente perigosas.42
A presença das mulheres na luta armada, no Brasil dos anos 1960 e
1970, implicava não apenas se insurgir contra a ordem política vigente, mas
representou uma profunda transgressão ao que era designado à época como
próprio das mulheres.43
O ano de 1975 foi decisivo para as reivindicações dos movimentos femi-
nistas entrarem na agenda da discussão pública. A Organização das Nações
Unidas (ONU) instituiu 1975 como o Ano Internacional da Mulher e o perí-
odo de 1975 a 1985 como a Década da Mulher. Além disso, ficou estabele-
cido o dia 8 de março como o Dia Internacional da Mulher.
A aprovação do divórcio do Brasil, em 1977, também representou um
grande passo na autonomia do gênero feminino. A caminhada por sua apro-
vação iniciou antes mesmo da edição do Estatuto da Mulher Casada, lide-
rada pelo deputado Nelson Carneiro.
Sua consolidação aconteceu por meio da Emenda Constitucional n. 944 e
pela Lei do Divórcio (6.515/77), onde substituiu-se do ordenamento jurídico

41
SAFFIOT, Heleieth I.B. Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero.
Cadernos Pagu, Campinas, 2001. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?s-
cript=sci_arttext&pid=S0104-83332001000100007. Acesso em 31 jul. 2017.
42
FREITAS, Viviane Gonçalves. Mulheres, Mulherio e família: críticas, direitos e novas
perspectivas no Brasil dos anos 1980. Gênero, Niterói, v. 16, n. 1, p. 186, 2. sem. 2015.
43
SARTI, C. A. O feminismo brasileiro desde os anos 1970: revisitando uma trajetória.
Revista de Estudos Feministas, v. 12, n. 2, 2004, p. 37.
44
Art. 1º O § 1º do artigo 175 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte
redação:
“Art. 175 – (...)
“Não é bem isso” 39

brasileiro a expressão “desquite” por “separação judicial”. “Ao contrário do


argumento sentimental dos oponentes, o divórcio não destrói a família, mas
apenas admite que se regularize a situação dos que já estão separados”.45
Outra alteração promovida pela Lei n. 6.515, de 1977, foi na redação do
parágrafo único do artigo 240 do Código Civil de 1916, onde a inclusão do
sobrenome do marido pela mulher passou a ser facultativa e não mais de
caráter obrigatório.
Com o aprimoramento científico dos métodos anticoncepcionais e, no
campo jurídico-político, com o avanço da legislação, o casamento deixa de
ser uma instituição para se converter numa formalidade. Os jovens conquis-
taram uma grande independência dentro da família, pois já não precisam
casar para manter relações sexuais regulares com um(a) parceiro(a), já que a
gravidez só ocorrerá se assim o quiserem.46
A partir da Constituição Federal de 1988, uma nova visão do direito
privado foi criada “a partir de uma despatrimonialização e de ênfase na pes-
soa humana, isto é, na compreensão da dignidade como cerne do sujeito
e, consequentemente, das relações jurídicas. Nesse sentido, ampliou-se o
campo de aplicação da autonomia privada, que também se curva, sobretudo
no âmbito das relações familiares”.47
Em seu artigo 226, a Constituição elencou a família como base da
sociedade, merecendo assim especial atenção do Estado. A própria Cons-
tituição veio romper com o preconceito legal, instalando, no texto jurí-
dico, uma nova concepção de família, pois, além de inaugurar a igualdade
entre o homem e a mulher, ampliou o conceito de família, reconhecendo
a união estável e as famílias monoparentais. Consagrou a igualdade dos
filhos, havidos ou não do casamento, ou por adoção, garantindo-lhes os
mesmos direitos.

§ 1º – O casamento somente poderá ser dissolvido, nos casos expressos em lei, desde
que haja prévia separação judicial por mais de três anos”.
Art. 2º A separação, de que trata o § 1º do artigo 175 da Constituição, poderá ser de
fato, devidamente comprovada em Juízo, e pelo prazo de cinco anos, se for anterior à
data desta emenda.
45
GLANZ, Semy. A família mutante: sociologia e direito comparado. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005, p. 124.
46
ZORDAN, Eliana Piccoli; FALCKE, Denise; WAGNER, Adriana. Copiar ou (re)
criar? Perspectivas histórico-contextuais do casamento. In: WAGNER, Adriana.
Como se perpetua a família? A transmissão dos modelos familiares. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2014, p. 58.
47
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores do direito de
família. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 154.
40 G U A R D A C O M P A R T I L H A D A C O A T I V A

As mudanças foram tão paradigmáticas que, tal como um divisor de


águas, podemos dividir o Direito de Família em antes e depois do advento
da Constituição Federal.48
O objeto da norma é valorizar a pessoa humana, não como antes, quando
a finalidade era reprimir ou inibir as “famílias ilícitas”, compreendidas como
aquelas que não fossem constituídas pelo casamento.49
Em 1990, surge na academia a categoria “gênero” consolidando os
“estudos de gênero” em substituição a “estudos feministas” ou “da condição
feminina”. Aproximando-se dos movimentos feministas, a partir de 1990, o
Serviço Social passa a aderir às lutas das chamadas minorias, inserindo-se
nas questões relacionadas à violência contra mulheres, discriminação étnica,
racial e cultural, homofobia e outras.50
Visando regulamentar o direito às famílias convivenciais estabeleci-
dos pela Constituição Federal de 1988 houve, em 1994, a Lei n. 8.971/1994,
onde alguns elementos eram estabelecidos, como necessários às uniões
entre o homem e a mulher para ensejar o direito a alimentos, os quais
foram estendidos para originar direitos sucessórios: a) condição de com-
panheiros dos conviventes; b) estado de solteiro, separado judicialmente,
divorciado ou viúvo; c) convivência há mais de cinco anos ou o surgi-
mento de prole.
Em 1996, adveio a modificação trazida pela Lei n. 9.278/1996, nos
requisitos para a configuração de união estável, impondo como condição a
convivência duradoura, pública e contínua.
O Código Civil de 2002, apesar da apregoada mudança de paradigma,
do individualismo para a solidariedade social, manteve forte presença dos
interesses patrimoniais sobre os pessoais, em variados institutos do Livro
IV, dedicado ao direito de família. Uma das possíveis consequências para
tal fato pode ser atribuído que seu projeto fora redigido na década de 1970.
Como consequência da igualdade entre os gêneros, o instituto do
pátrio poder foi, nos artigos 1.630 ao 1.638 da codificação civilista, subs-
tituído pelo poder familiar. Durante a vigência do diploma revogado, o
instituto, certamente, ainda carregava muito de sua origem centrada no

48
LIMA, Ana Cristina Quint de; ROSA, Conrado Paulino da; FREITAS, Douglas
Phillips. Adoção por casal homoafetivo. Florianópolis: Vox Legem, 2012, p. 27.
49
IBIAS, Delma Silveira. Famílias simultâneas e efeitos patrimoniais. In: SOUZA, Ivone
M. Candido Coelho de. (org.) In: Família contemporânea: uma visão interdisciplinar.
Porto Alegre: IBDFAM, 2011, p. 197.
50
LISBOA, Teresa Kleba Lisboa. Gênero, feminismo e Serviço Social – encontros e
desencontros ao longo da história da profissão. Rev. Katál. Florianópolis v. 13 n. 1 p.
66-75 jan./jun. 2010, p. 71.
3
“Mas isso é difícil na prática”:
a compulsoriedade da
guarda compartilhada em
casos de litígio como forma
de prevenção da alienação
parental à luz da parentalidade
responsável e da doutrina da
proteção integral

A partir das alterações legislativas a respeito do instituto da guarda,


principalmente após 2014, houve o conhecimento social acerca das mudan-
ças em seu exercício e do novo paradigma existente nas rupturas conjugais
ou convivenciais. Mesmo assim, seja por parte dos profissionais do Direito,
Serviço Social e Psicologia que atuam nos processos familistas, seja pela
população em geral, é costumeiro o descrédito de que, na prática, o compar-
tilhamento poderá ser efetivo.
Dessa forma, no presente capítulo, analisaremos a presença frequente
de alienação parental nos processos de família e o papel da guarda compar-
tilhada nesse quadro. Em seguida, investigaremos o papel da intervenção
do Poder Judiciário na órbita privada. Por fim, consideraremos a imposição
da guarda compartilhada à luz do princípio da parentalidade responsável e
da doutrina da proteção integral de crianças e adolescentes e, também, rea-
lizaremos proposições de ferramentas para a manutenção de um ambiente
igualitário na gestão parental.
108 G U A R D A C O M P A R T I L H A D A C O A T I V A

3.1 “Quem não aprende no amor, aprende na dor”: a alienação parental


como realidade presente nas dissoluções conjugais
A idealização da família embala, desde há muito, os sonhos da socie-
dade contemporânea. Desde as primeiras brincadeiras, estar vinculado a
alguém parece ser uma necessidade acima de todos os anseios de que aquela
criança pudesse ter ao longo da vida.
Na idade adulta, quando o brincar de “casinha” passa a ter caráter de
seriedade e consequências jurídicas, seja no casamento ou em uma união
estável, sempre o início é repleto de promessas de felicidade infinita e com-
panheirismo para além da existência humana.
Todavia, quando algo sai do percurso inicialmente projetado, o final de
um relacionamento, de modo constante, pode atiçar em um ou em ambos os
cônjuges ou companheiros o desejo inconsciente de, a qualquer preço, vin-
gar-se pelo fato de que o anel anteriormente dado “era vidro e se quebrou”.
Nesse momento, visualiza-se a antítese de tudo que outrora havia sido
experienciado. Eles, até então perdulários em elogios, transformam-se em
mesquinhos em sua essência. Tudo que lhes era positivo se torna – na mesma
intensidade do início –, invariavelmente, negativo. No ápice das emoções,
até porque existe uma linha muito tênue entre amor e ódio, qualquer forma
de retaliação será muito bem arquitetada.
Os requintes de crueldade do estágio pós ruptura são marcados pela
utilização da intimidade como forma de munição. As boas lembranças são
deturpadas pelos óculos escuros do sentimento de abandono e a vitimização
empodera algozes que usarão o discurso da raiva como forma de vingança.
Nesse ambiente insalubre é que surge a alienação parental e a sua, no
mínimo, tortuosa e ardilosa prática de diuturna desqualificação do outro
progenitor com um claro objetivo: o de criar um filho órfão de um pai e/ou
mãe vivos.
Sem medir consequências, o outro genitor passa a ser uma espécie de
“vodu” de bruxaria e as agulhas que o perpassam são os filhos. Custe o que
custar, buscar a infelicidade do outro passa a ser o principal objetivo de vida
mesmo que, para isso, custe a vida da própria prole.
Dessa forma, entendemos a alienação parental como uma espécie de
patologização do amor. Destaca-se que, em nosso juízo, o desamor não
necessariamente precisa ser transformado em doença, mas sim, a sua má
gestão tem um grande potencial para sua disseminação.
A temática da alienação parental tem previsão legislativa desde 2010 por
meio da Lei n. 12.318. Segundo acepção da normativa em comento,
“Mas isso é difícil na prática” 109

considera-se ato de alienação parental a interferência na formação psico-


lógica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos
genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a
sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause
prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este.
A legislação, no parágrafo único do artigo 2º da Lei n. 12.318/2010,
apresenta ainda as formas exemplificativas de alienação parental, “além dos
atos assim declarados pelo juiz ou constatados por perícia, praticados direta-
mente ou com auxílio de terceiros”, entre elas, a realização de uma campanha
de desqualificação da conduta do genitor no exercício da paternidade ou
maternidade e o obstáculo ao exercício do direito regulamentado de convi-
vência familiar.
Ainda, no artigo 3º, a normativa assevera que a prática de ato de aliena-
ção parental fere direito fundamental da criança ou do adolescente de con-
vivência familiar saudável, “prejudica a realização de afeto nas relações com
genitor e com o grupo familiar, constitui abuso moral contra a criança ou o
adolescente e descumprimento dos deveres inerentes à autoridade parental
ou decorrentes de tutela ou guarda”.
Carlos Montaño provoca o pensamento de imaginarmos que uma
pessoa estar sendo assaltada e não perceber que foi vítima. Assim como
um indivíduo ser alvo de discriminação homofóbica ou racial e não ter
consciência desse ato. Ainda, o mesmo autor, nos incita a pensarmos na
situação de uma mulher ser objeto de assédio ou discriminação sexual e
não notar o fato. Para ele, “é impossível conceber como poderia o ofendido
/ discriminado / agredido não ter alguma percepção de ter sido alvo desses
atos. Há, no entanto, um caso em que o ofendido e agredido, a quem lhe é
furtada parte essencial da sua vida, não tem como perceber-se objeto dessa
violação: as crianças e adolescentes vítimas de alienação parental”.1
Em geral, a prática da alienação parental será realizada por algum fami-
liar, denominado como agente alienador (que pode ser qualquer dos pais,
mas também outros parentes) em relação a um dos genitores, que é o sujeito
alienado, conforme pode ser visualizado no desenho a seguir2:

1
MONTAÑO, Carlos. Alienação parental e guarda compartilhada. Um desafio ao Ser-
viço Social na proteção dos mais indefesos: a criança alienada. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2016, p. 5.
2
ROSA, Conrado Paulino da. Curso de direito de família contemporâneo. 2. ed. Salva-
dor: Juspodivm, 2017, p. 512.
110 G U A R D A C O M P A R T I L H A D A C O A T I V A

Gravura n. 4: Conceito da prática de alienação parental


praticada por um dos genitores ou parentes

Alertando, igualmente quanto aos agentes alienadores, Cristiana San-


chez Gomes Ferreira, assevera que pode ser todo e qualquer indivíduo res-
ponsável pela prole em dado e pontual momento, tal como uma babá ou
qualquer parente, bastando estabelecer-se uma verdadeira campanha com o
intuito de usurpação da inocente vontade da criança, dificultando o contato
e/ou exercício da autoridade parental do genitor alienado, independente-
mente de estarem alienante e alienado sob o mesmo teto ou não.3
Infelizmente, até mesmo educadores, médicos ou psicólogos podem,
consciente ou inconscientemente, estabelecer alianças com o genitor alie-
nador, criando um perigoso “front” de batalha em face do núcleo alienado,
onde podem surgir atestados, declarações e laudos altamente parciais e de
perigosas consequências no percurso de alienação.
Em alguns casos, embora a Lei da Alienação Parental não trate dessa
possibilidade, pode existir um quadro ainda mais complexo de alienação
parental bilateral, ou seja, ambos os genitores são agentes alienadores e
alienados, assim como seus familiares. Também para facilitar a compre-
ensão, o quadro abaixo demonstra sua aplicação, onde também a criança
ou adolescente servirá como o instrumento de ataque em relação ao outro
núcleo familiar4:

3
FERREIRA, Cristiana Sanchez Gomes. A síndrome da alienação parental (SAP) sob
a perspectiva dos regimes de guarda de menores. In: ROSA, Conrado Paulino da;
THOMÉ, Liane Maria Busnello. O papel de cada um nos conflitos familiares e sucessó-
rios. Porto Alegre: IBDFAM, 2014, p. 70.
4
ROSA, Conrado Paulino da. Curso de direito de família contemporâneo. 2. ed. Salva-
dor: Juspodivm, 2017. 512 p.
“Mas isso é difícil na prática” 111

Gravura n. 5: Conceito da alienação parental quando ela


é praticada por ambos os núcleos familiares

Nessas hipóteses, a identificação da prática alienadora torna-se ainda


mais complexa e, como saída mais cautelosa, a guarda do filho pode ser
determinada a um terceiro, ainda que de forma temporária, como instru-
mento de proteção da prole.
Na verdade, o que se vê, costumeiramente, nos processos em que se esta-
belece a prática da alienação parental é que “os filhos são cruelmente pena-
lizados pela imaturidade dos pais quando estes não sabem separar a morte
conjugal da vida parental, atrelando o modo de viver dos filhos ao tipo de
relação que eles, pais, conseguirão estabelecer entre si, pós-ruptura”.5
Segundo a moderna doutrina familista de Dimas Messias de Carva-
lho , a implantação paulatina e constante na memória do filho, pelo geni-
6

tor que possui a guarda, de falsas verdades acaba por causar na criança ou
adolescente a sensação de que foi abandonado e não é querido pelo outro,
causando um transtorno psicológico que o leva a acreditar em tudo que foi
dito em desfavor do outro genitor e passa a rejeitá-lo, dificultando as visitas
e tornando-o cada vez mais distante até aliená-lo, tornando-se órfão de pai
vivo, o que é extremamente prejudicial para ambos.
A síndrome de alienação parental deve ser compreendida como uma
patologia jurídica caracterizada pelo exercício abusivo do direito de guarda,
vitimando especialmente o filho, que vive uma contradição de sentimentos

5
SOUZA, Rachel Pacheco Ribeiro de; Terezinha Feres; MOTTA, Maria Antonieta
Pisano. Síndrome da Alienação Parental e a Tirania do guardião. Porto Alegre: Equi-
líbrio, 2008, p. 7.
6
CARVALHO, Dimas Messias de. Adoção e guarda. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 66.
112 G U A R D A C O M P A R T I L H A D A C O A T I V A

até chegar ao rompimento do vínculo de afeto com o genitor não guardião.


O guardião passa a manipular o filho com o uso de táticas verbais e não ver-
bais, distorcendo a realidade para que passe a acreditar que foi abandonado
pelo outro genitor, acabando por perceber um dos pais totalmente bom e
perfeito (o alienador) e o outro totalmente mau.
É frequente, ainda, o genitor alienador colocar-se em posição de vítima,
perpetrando chantagem emocional para sensibilizar a criança e tê-la só para
si. A criança é induzida a acreditar que, ao se encontrar com o genitor viti-
mado, estará traindo quem realmente dela se ocupa. Trata-se de mais uma
manobra ardilosa para excluir o genitor vitimado. O alienante não imagina
o sofrimento a que a criança é submetida ao ter que escolher entre as duas
pessoas que mais ama na vida, ou se disso tem ideia, a crueldade da atitude
revê-las ainda maior.7
A Lei n. 12.318/2010, em seu artigo 2º, parágrafo único, apresenta formas
exemplificativas de alienação parental, além dos atos assim declarados pelo juiz
ou constatados por perícia, praticados diretamente ou com auxílio de terceiros.

Quadro n. 10:
Apresenta de forma sistemática os comportamentos indicados como indícios
de práticas alienadoras pela Lei da Alienação Parental (Lei 12.318/2010).8
Inciso do
art. 2º §
Atitude Explicação e exemplos
único da
Lei 12.318

Realizar campanha de I O alienador não necessariamente inicia a sua verdadeira


desqualificação da conduta “cruzada” em face do genitor alienado após o final do
do genitor no exercício da relacionamento afetivo. É muito comum, ainda durante a
paternidade ou maternidade convivência sob o mesmo teto, que a postura abusiva do
alienante tenha seu começo por meio de uma campanha
de desqualificação do outro progenitor.
Esse comportamento pode ocorrer de maneira sutil, por
exemplo, referindo-se ao núcleo do pai ou mãe alienado
com piadas pejorativas e desqualificadoras. É frequente,
nessa mesma toada, que os defeitos e/ou dificuldades
que a prole enfrente – até mesmo de cunho acadêmico –
sejam atribuídos à ancestralidade do genitor alienado.

7
WANDALSEN, Kristina Yassuko Iha Kian. Direito e psicologia: um diálogo neces-
sário em direção à justiça nos conflitos familiares. Dissertação de mestrado apresen-
tada na PUCSP. São Paulo, 2009. p. 82.
8
ROSA, Conrado Paulino da. Curso de direito de família contemporâneo. 4. ed. Salva-
dor: Juspodivm, 2017, p. 407-410.
“Mas isso é difícil na prática” 113

Inciso do
art. 2º §
Atitude Explicação e exemplos
único da
Lei 12.318

Dificultar o exercício da II Autoridade parental é o termo que a doutrina contempo-


autoridade parental rânea vem utilizando como sinônimo do poder familiar.
Dessa forma, o obstáculo ao exercício desse múnus é,
também, indicativo de práticas alienadoras.
Tendo como norte que a gestão do poder familiar importa
na participação ativa de ambos os pais na vida dos filhos,
qualquer óbice imposto indicará indícios de alienação.
Um exemplo recorrente é deixar de consultar um dos
genitores para questões acadêmicas ou escolha de
profissional de saúde para o filho.

Dificultar contato de criança III O embaraço do contato com o filho pode ser materializa-
ou adolescente com genitor do pela atitude do alienador em não atender as ligações
do genitor alienado, mas também, em mudar o número
de telefone, não carregar a bateria do celular ou deixar
o fixo desligado (antigamente isso aconteceria deixando
fora do gancho).
A criatividade do progenitor em sua campanha de afasta-
mento é tamanha que, muitas vezes, é arquitetada com o
bloqueio do genitor alienado nas redes sociais do filho e,
até mesmo, estragando o celular ou escondendo o carre-
gador para que obstaculize o contato com a prole.

Dificultar o exercício do IV Considerando que o alienador pretende afastar o vínculo


direito regulamentado de da prole, a qualquer custo, o obstáculo à convivência
convivência familiar estabelecida com o alienado possibilita um importante
capítulo do caminho que ele pretende percorrer. É fre-
quente a desculpa de viagens previamente agendadas,
aniversários de amigos e, até mesmo, de doenças inven-
tadas para dificultar a convivência estabelecida em favor
do núcleo familiar alienado.
Outra prática comum é o agendamento de consultas de
tratamentos contínuos justamente no dia de convivên-
cia do outro genitor. Afinal, como, normalmente, aquele
que possui a base de residência fica mais tempo com
o filho, a supressão de duas horas na convivência já
apresenta obstáculo ao estreitamento de vínculos com
o outro progenitor.

Omitir deliberadamente a V A alteração de endereço é uma das práticas escolhidas


genitor informações pes- para criar o afastamento do filho com o genitor alienado.
soais relevantes sobre a Assim, no mesmo sentido, a omissão desse fato e de
criança ou adolescente, outras questões importantes para a prole tem o escopo
114 G U A R D A C O M P A R T I L H A D A C O A T I V A

Inciso do
art. 2º §
Atitude Explicação e exemplos
único da
Lei 12.318

inclusive escolares, médicas de transformar um dos pais como um sujeito acessório.


e alterações de endereço Normalmente, a omissão sobre questões pessoais rele-
vantes sobre a vida da prole é justificada pelo alienador
como “esquecer de avisar”. Na verdade, ao fim e ao
cabo, trata-se de opção consciente e ardilosa a qual o
Juízo precisa repelir de imediato.
A inserção do § 6º no artigo 1.584 de nossa codificação
civil, por meio da Lei 13.058/2014202, tem como objetivo
minimizar esse quadro de omissões irresponsáveis que
tem finalidade alienadora.

Apresentar falsa denúncia VI O pedido de uma medida protetiva de urgência (artigo 22


contra genitor, contra fami- da Lei Maria da Penha – 11.340/2006), baseado em fatos
liares deste ou contra avós, que jamais aconteceram, tem se apresentado como meio
para obstar ou dificultar a reiterado de buscar afastar o genitor do filho.
convivência deles com a Na mesma linha, um fenômeno presente na alienação pa-
criança ou adolescente rental é a existência de cenas, paisagens, conversas e ter-
mos que o filho adota como próprios ou vividos na primeira
pessoa, mesmo que nunca tenha estado presente quando
ocorrerem ou sejam incoerentes com a sua idade.203
No mesmo sentido, a definição de Jorge Trindade204 que
a Síndrome das Falsas Memórias traz em si a conotação
das memórias fabricadas ou forjadas, no todo ou em
parte, na qual ocorrem relatos de fatos inverídicos205.

9
Artigo 1.584 § 6º CC: Qualquer estabelecimento público ou privado é obrigado a
prestar informações a qualquer dos genitores sobre os filhos destes, sob pena de
multa de R$ 200,00 (duzentos reais) a R$ 500,00 (quinhentos reais) por dia pelo não
atendimento da solicitação.
10
CUENCA, José Manuel Aguilar. Síndrome de alienação parental: filhos manipulados
por um cônjuge para odiar o outro. Coimbra: Caleidoscópio, 2008, p. 45.
11
TRINDADE, Jorge Trindade. Manual de psicologia jurídica para operadores do
Direito. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 221.
12
O mesmo autor, que é Procurador de Justiça aposentado e Psicólogo, em conjunto
com Elise Trindade (Psicóloga) e Fernanda Molinari (Advogada, mediadora de con-
flitos e Doutora em Psicologia) desenvolveram a Escala de Indicadores Legais de
Alienação Parental. A ferramenta é composta por um questionário digital de autor-
resposta, que visa mensurar a presença de fatores de alienação parental, para fins de
conhecimento pessoal e científico. Trata-se de um material riquíssimo e inédito no
mundo, disponível no site www.escaladealienacaoparental.com.
“Mas isso é difícil na prática” 115

Inciso do
art. 2º §
Atitude Explicação e exemplos
único da
Lei 12.318

Em seu fluxo de alienação, de forma inconsequente e


altamente danosa, o alienador busca de qualquer forma
atingir seu objetivo de afastamento do outro progenitor.
Nesse momento a produção das falsas memórias13
surge como seu principal aliado por meio de uma falsa
denúncia de abuso sexual. A partir desse momento o
alienador procura suspender a convivência com o filho e
inicia uma verdadeira via crucis onde, mesmo expondo o
filho a exames constrangedores e traumáticos, o alienan-
te continua sua peregrinação de ódio e vingança.
Não bastasse a produção de falsas memórias e todas as
consequências desse grave ato, infelizmente, não são
poucas as situações em que o próprio alienador se trans-
forma em abusador do próprio filho para tentar imputar
ao outro genitor, a violência realizada.

Mudar o domicílio para VII A mudança de domicílio para cidade distante é uma das
local distante, sem justifi- formas de obstaculizar o regime de convivência já regu-
cativa, visando a dificultar lamentado pelo Juízo ou qualquer pretensão nesse sentido.
a convivência da criança Com a transferência, o alienador busca impedir o per-
ou adolescente com o outro noite semanal e, também, criar empecilhos de ordem
genitor, com familiares deste financeira e temporal para que a convivência dos finais
ou com avós de semana não seja efetivada.

Além dos atos relatados no quadro acima, os estudos realizados em


âmbito mundial a respeito da alienação parental detectaram que, dentro de
sua campanha de desqualificação do genitor, o alienador passa a destruir qual-
quer objeto que tenha ligação com o genitor alienado. Com a chamada “con-
taminação dos objetos” provenientes deste, a animosidade estende-se a tudo
o que, de um modo ou de outro, possa ter relação com o progenitor odiado.
Nessas práticas, é comum o alienador esconder brinquedos que a criança rece-
beu no lar alienado ou desqualificar roupas que ganhou do outro progenitor.

13
As falsas memórias definem-se por lembranças de situações que não ocorreram como
se de fato tivessem ocorrido. A mesma memória que é responsável pela nossa qua-
lidade de vida, uma vez que, é a partir dela que nos constituímos como indivíduos;
sabemos nossa história, reconhecemos nossos amigos, apresenta erros e distorções que
podem mudar o curso de nossas ações e reações, e até mesmo ter implicações sobre a
vida de outras pessoas. (STEIN, Lilian Milnitsky et al. Falsas Memórias: Fundamentos
científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas. Porto Alegre: Artmed. 2010, p. 22).
116 G U A R D A C O M P A R T I L H A D A C O A T I V A

Considerando que as hipóteses descritas no artigo 2º da Lei n. 12.318/2010


não são taxativas, no caso concreto, independente de perícia e até mesmo de ofí-
cio, o juízo de família poderá detectar outras atitudes como práticas alienadoras.
Destaca-se que a Lei n. 13.058/2014, embora tenha sido reconhecida social-
mente apenas por estabelecer o compartilhamento da guarda enquanto via
preferencial, trouxe alterações significativas nos dispositivos do Código Civil
que tratam do poder familiar com o sentido de obstaculizar a campanha de
alienação parental. Para destacar essas mudanças, mais uma vez, utilizaremos a
análise de conteúdo como forma de análise dessas transformações legislativas:

Quadro n. 11:
Comparativo entre a redação originária do artigo 1.634 do Código Civil de 2002
(Lei 10.406/2002) em relação as alterações implementadas pela Lei 13.058/2014.
Código Civil 2002 Código Civil 2002
(redação originária) (após 13.058/2014)

Art. 1.634. Compete aos pais, quanto à pessoa dos Art. 1.634. Compete a ambos os pais, qualquer
filhos menores: que seja a sua situação conjugal, o pleno exer-
cício do poder familiar que consiste em, quanto
aos filhos:

I – dirigir-lhes a criação e educação; Sem alteração

II – tê-los em sua companhia e guarda; II – exercer a guarda unilateral ou compartilhada


nos termos do art. 1.584;

III – conceder-lhes ou negar-lhes consentimento Sem alteração


para casarem;

IV – conceder-lhes ou negar-lhes consentimen-


to para viajarem ao exterior;

V – conceder-lhes ou negar-lhes consentimento


para mudarem sua residência permanente para
outro Município;

IV – nomear-lhes tutor por testamento ou docu- Sem alteração


mento autêntico, se o outro dos pais não lhe so-
breviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder
familiar;

V – representá-los, até aos dezesseis anos, nos VII – representá-los judicial e extrajudicialmente
atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, até os 16 (dezesseis) anos, nos atos da vida civil,
nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o e assisti-los, após essa idade, nos atos em que
consentimento; forem partes, suprindo-lhes o consentimento;

VI – reclamá-los de quem ilegalmente os detenha; Sem alteração

VII – exigir que lhes prestem obediência, respeito e Sem alteração


os serviços próprios de sua idade e condição.
“Mas isso é difícil na prática” 117

No quadro acima, fundado na análise do avanço legislativo, denotam-se


três alterações significativas: a uma, o caput do artigo 1.634 de nossa codi-
ficação civil, reforçando o disposto no artigo 1.63214, passa a estabelecer
que as prerrogativas inerentes ao poder familiar competem a ambos os pais,
qualquer que seja a sua situação conjugal.
Dessa forma, a repetição existe justamente como forma de que não
podemos cogitar qualquer diferenciação no exercício do poder familiar,
mesmo após o final do casamento ou união estável dos genitores.
Em ambas, foi inserido um novo inciso, exigindo a dupla autorização
para o consentimento para viagem ao exterior (artigo 1.634, IV do Código
Civil). Até sua inserção no Código a matéria era tratada exclusivamente no
Estatuto da Criança e do Adolescente. De acordo com o artigo 84 do micros-
sistema, a criança ou adolescente pode viajar ao exterior, sem nenhuma res-
trição, se estiver acompanhado de ambos os pais ou responsável. Todavia,
para viajar na companhia de apenas um dos pais, é imperiosa a autorização
expressa pelo outro através de documento com firma reconhecida (artigo
84, II ECA). Tal medida tem o escopo de evitar o rapto internacional da
criança ou do adolescente, medida que, flagrantemente, induz a caracteriza-
ção de alienação parental.
Sobre a temática importante consignar que, desde o Decreto n. 8.374,
de 11 de dezembro de 2014, a autorização de viagem ao exterior em com-
panhia de apenas um dos genitores já pode constar no próprio passaporte
da criança e do adolescente, dispensando nova expedição de documento de
autorização a cada saída do país.
A três, no inciso V do artigo 1.634 de nossa codificação civil, foi inserida
a necessidade de autorização conjunta para mudança de residência perma-
nente para outro Município. Independentemente da modalidade de guarda,
seja unitária ou conjunta, a inserção dessa previsão serve como empecilho
da mudança abusiva de endereço que é, infelizmente, conduta reiterada
daqueles que buscam afastar a prole do outro progenitor.
Outros dois parágrafos inseridos ao Código Civil em 2014, por meio
da Lei n. 13.058, também tem o sentido profilático de práticas alienadoras,
quais sejam, o novo § 5º do artigo 1.583 e, também, o § 6º do artigo 1.584 de
nossa codificação civil.
O genitor não guardião deve supervisionar os interesses dos filhos,
“sendo parte legítima para solicitar informações e/ou prestações de contas,

14
Art. 1.632 do Código Civil: A separação judicial, o divórcio e a dissolução da união
estável não alteram as relações entre pais e filhos senão quanto ao direito, que aos
primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos.
118 G U A R D A C O M P A R T I L H A D A C O A T I V A

objetivas ou subjetivas, em assuntos ou situações que direta ou indireta-


mente afetem a saúde física e psicológica e a educação de seus filhos”.
Da leitura do artigo, constata-se que, ainda que a guarda seja unilateral,
do outro genitor não foi excluído o exercício do poder familiar, restando
configurado o interesse em verificar e fiscalizar a administração dos gastos
realizados para a manutenção da prole comum. A partir da publicação da
referida lei, legítima é a ação de prestação de contas para buscar salvaguardar
o interesse da criança e adolescente à luz da doutrina da proteção integral.15
Considerando que a omissão das informações a respeito da vida dos
filhos é um dos instrumentos utilizados pelo genitor alienador, a alteração
legislativa ao reforçar o papel do outro progenitor de fiscalizar as questões
atinentes à saúde física e psicológica da prole apresenta, de uma vez por
todas, o exercício da coparentalidade.
Na mesma esteira, em 2014, a alteração promovida pela Lei n. 13.058, ao
inserir um novo § 6º ao artigo 1.584 do Código Civil, para obrigar qualquer
estabelecimento público ou privado a prestar informações a qualquer dos geni-
tores sobre os filhos destes, sob pena de multa de R$ 200,00 (duzentos reais)
a R$ 500,00 (quinhentos reais) por dia pelo não atendimento da solicitação.
O artigo 1.634 do Código Civil, entre outros fatores, preceitua no inciso
I que é dever dos pais dirigir a criação e a educação dos filhos, em consonân-
cia com o artigo 229 da Constituição, bem como com o artigo 33 do Estatuto
da Criança e do Adolescente. Essa nova previsão, que se aplica não apenas a
estabelecimentos educacionais, mas sim, todo e qualquer lugar que os filhos
possam frequentar (escoteiro, ballet, por exemplo), consolida esse dever de
criação e educação e, ao fim e ao cabo, possibilita a fiscalização e participa-
ção conjunta de ambos os genitores na vida da prole.
A prática da alienação parental, nos termos do artigo 3º da Lei n.
12.318/2010, constitui um abuso moral realizado de forma inconsequente
pelo alienador. Ainda, o mesmo artigo prevê que o causador está descum-
prindo seus deveres inerentes à autoridade parental ou decorrentes de tutela
ou guarda, se for o caso.
A Lei da alienação parental, em seu artigo 4º, tem questões processuais
muito interessantes:

a) A alienação parental poderá ser declarada de ofício pelo magis-


trado, independentemente de provocação das partes, aplicando-se
de pronto as medidas previstas no artigo 6º da Lei n. 12.318/2010. O

15
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das Famílias. 2. ed. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2015. p. 790.
“Mas isso é difícil na prática” 119

mundo ideal seria que, em havendo primeiras manifestações de prá-


ticas alienadoras, o Juízo pudesse advertir a ocorrência e, também,
que outras medidas poderão ser aplicadas.
b) A declaração poderá ser realizada em qualquer momento processual,
ou seja, o processo pode estar em grau de recurso e ser suscitada a
ocorrência de alienação.
c) O pedido pode ser feito em ação autônoma ou incidentalmente, a
depender do caso concreto. Exemplo: existindo em tramitação ape-
nas uma execução de alimentos, tendo em vista sua cognição restrita,
o interessante seria o ajuizamento de ação autônoma denominada
como “ação declaratória de alienação parental” que poderá ser cumu-
lada com alteração de guarda e/ou regulamentação de convivência
familiar. Todavia, se já estiver em curso uma ação cujo objeto seja um
destes temas, nesse caso, o pedido pode ser de caráter incidental.
d) Deve ser determinada a tramitação prioritária do feito. Considerando
que, nas Varas de Família, a grande maioria dos processos envolve
urgências, em se tratando de campanha de alienação, esses autos deve-
rão ter preferência de tramitação. Qualquer pensamento em sentido
contrário poder-se-ia representar a morosidade processual como
aliada do genitor alienador.
e) O juiz determinará, em caráter de urgência após intervenção do
Ministério Público, as medidas provisórias necessárias para pre-
servação da integridade psicológica da criança ou do adolescente,
inclusive para assegurar sua convivência com genitor ou viabilizar a
efetiva reaproximação entre ambos, se for o caso.

Mesmo existindo denúncia de abuso sexual, conforme o artigo 4º, pará-


grafo único da Lei n. 12.318/2010, assegurar-se-á à criança ou adolescente e
ao genitor garantia mínima de visitação assistida.16 Dessa forma, ainda que

16
A convivência assistida deverá no fórum em que tramita a ação ou em entidades
conveniadas com a Justiça, ressalvados os casos em que há iminente risco de prejuízo
à integridade física ou psicológica da criança ou do adolescente, “atestado por pro-
fissional eventualmente designado pelo juiz para acompanhamento das visitas”, de
acordo com a redação do parágrafo único do artigo 4° da Lei 12.318/2010, que teve a
redação modificada pela Lei 14.340/2022, de 18 de maio de 2022.
Trata-se, inclusive, de uma possibilidade em que, em um ambiente normalmente
impessoal e pouco acolhedor, possamos criar um refúgio para que esse momento
seja vivenciado de maneira mais humanizada. Além disso, a modificação realizada
no ano de 2022 também qualificou a rede de proteção da criança. Infelizmente, não
eram raros os deferimentos de convivências assistidas sob supervisão de algum inte-
grante do outro núcleo familiar. Imaginemos, nessa linha, alguém que esteja sendo
120 G U A R D A C O M P A R T I L H A D A C O A T I V A

a notícia de abuso deva ser analisada com atenção pelo juízo, haja vista a
gravidade das consequências para a vítima, o magistrado deverá, por outro
lado, determinar que a convivência seja mantida, pelo menos, de forma
assistida por profissional do Serviço Social ou Psicologia. Essa cautela, de
caráter temporário, mostra-se necessária para que a demora processual não
sirva como uma aliada para o genitor alienador.17
“Uma mentira dita mil vezes torna-se verdade”. Você pode não saber o
autor dessa frase, mas, certamente, já a ouviu algumas vezes na vida. A asser-
tiva de Joseph Goebbels, ministro da propaganda na Alemanha Nazista,
denota o poder decorrente da repetição desenfreada de uma informação
equivocada, que, no momento presente, é potencializado pelo dinamismo
de sua disseminação em ambiente virtual.
Em se tratando dos direitos das crianças e adolescentes, nos últimos anos,
vivenciamos uma campanha de desqualificação da nociva prática da aliena-
ção parental. Desde alegações de que a Lei 12.318/2010, que trata da matéria,
serviria para proteger abusadores, passando, até mesmo, por discursos de que
sua revogação seria necessária, vez que era contra o gênero feminino.
A boa notícia que a Lei 14.340 apresentou, em maio de 2022, é a de que,
apesar das inúmeras inverdades direcionadas à prática alienadora, as altera-
ções promovidas na Lei 12.318/2010 possibilitaram uma melhora na garantia
dos direitos daqueles a quem a Constituição Federal destina proteção especial.
A primeira delas diz respeito justamente à execução das convivências
familiares assistidas, tão importantes em situações de risco, principalmente

acusado ou acusada de abusar sexualmente da prole e, no tempo escasso de convívio,


é fiscalizado(a) pelo acusador ou por alguém de sua confiança. Essa opção acarre-
taria, invariavelmente, um elemento de estresse e verdadeira deturpação do direito
da criança. Com essa convivência ocorrendo em ambiente forense ou em entidades
conveniadas com a Justiça, sendo essa última uma ótima oportunidade de, fora do
espaço jurídico, termos uma inteiração mais adequada, assegura melhores potencia-
lidades de proteção à integridade emocional da criança. (ROSA, Conrado Paulino
da. Direito de família contemporâneo. 10.ed. São Paulo: Juspodivm, 2023, p. 667).
17
O objetivo da alienação parental é eliminar os vínculos afetivos entre o progenitor e seu
filho. Os progenitores alienadores precisam de tempo para completar a sua manipulação
mental dos seus filhos. Por conseguinte, obter o maior tempo possível a sós com os filhos
será inicialmente uma necessidade, para passar depois a ser uma arma. A usurpação do
tempo do outro progenitor permite a sua campanha de difamação, tal como impedir o
contato com o progenitor alienado, de modo a impossibilitar o contraste das expressões
difamatórias depositadas ao filho, ao mesmo tempo que se debilita a criação de vínculos
afetivos saudáveis. É então que o tempo se transforma numa arma nas mãos do aliena-
dor, ao permitir que o filho se converta num membro ativo da campanha de difamação.
(CUENCA, José Manuel Aguilar. Síndrome de alienação parental: filhos manipulados
por um cônjuge para odiar o outro. Coimbra: Caleidoscópio, 2008, p. 53).
Apêndice A

ROTEIRO DE ANÁLISE DE DOCUMENTOS

Fontes:
– Legislações, normativas e resoluções.
– Relatórios de dados governamentais a respeito de crianças e ado-
lescentes no Brasil e do Poder Judiciário quanto aos processos em
tramitação.

Descrição das Fontes:


– Legislações, normativas e resoluções.
Constituições Federais existentes na história do Brasil:
Código Civil de 1916 (Lei 3.071/1916)
Estatuto da Mulher Casada (Lei 4.121/1962)
Emenda Constitucional n. 9/1977
Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990)
Código Civil de 2002 (Lei 10.406)
Lei 11.698/2008
Lei 12.318/2010
Lei 13.058/2014
Código de Processo Civil de 2015 (Lei 13.105)
– Relatórios de dados governamentais a respeito de crianças e ado-
lescentes no Brasil e do Poder Judiciário quanto aos processos em
tramitação.
Estatísticas do Registro Civil relativas ao ano de 2002 e 2015, resultado
da coleta das informações prestadas pelos Cartórios de Registro Civil de
204 G U A R D A C O M P A R T I L H A D A C O A T I V A

Pessoas Naturais, Varas de Família, Foros ou Varas Cíveis e os Tabelionatos


de Notas do País.

Aspectos a serem sistematizados e analisados:


Modificações quando as diferenças de gênero nos cuidados parentais
Direitos e deveres dos genitores
Exercício dos deveres inerentes à parentalidade após ruptura conjugal
ou convivencial
Direitos das crianças e dos adolescentes
Melhor interesse da criança e do adolescente
Proteção integral da criança e do adolescente
Parentalidade responsável
Apêndice B
Quadro modificado pelo autor a partir dos dados das Estatísticas do Registro
Civil relativas ao ano de 2019, resultado da coleta das informações prestadas
pelos Cartórios de Registro Civil de Pessoas Naturais, Varas de Família, Foros
ou Varas Cíveis e os Tabelionatos de Notas do País.

Divórcios concedidos em 1ª instância, a casais com filhos menores de idade

Lugar
da Responsáveis pela guarda dos filhos
ação do
processo Total
Ambos os Sem
Marido Mulher Outro
cônjuges declaração

Sul 19 790 4,6% 928 61,4% 12 152 31,1% 6 156 1,2% 242 1,5% 312

Paraná 10 466 4,4% 466 56,9% 5 963 34,7% 3 640 1,4% 155 2,3% 242

Santa
5 216 5,5% 289 64,4% 3 360 28,18% 1 470 1,03% 54 0,82% 43
Catarina

Rio
Grande 4 108 4,2% 173 68,8% 2 829 25,4% 1 046 0,8% 33 0,65% 27
do Sul

Brasil 161 907 4% 6 601 62,4% 101 048 26,7% 43 367 1,2% 2 029 5,4% 8 862

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