De Finibus

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SIDNEY CALHEIROS DE LIMA

Aspectos do gênero dialógico


no De finibus de Cícero

Tese apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem, da


Universidade Estadual de Campinas, para a obtenção do Título
de Doutor em Lingüística, na Área de Letras Clássicas.

Orientador: Prof. Dr. Paulo Sérgio de Vasconcellos

Campinas
2009
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca do IEL - Unicamp

Lima, Sidney Calheiros de.


Aspectos do gênero dialógico no De finibus de Cícero / Sidney
Calheiros de Lima. -- Campinas, SP : [s.n.], 2009.
L
Orientador : Paulo Sérgio de Vasconcellos.
628a Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto
de Estudos da Linguagem.

1. Cícero. De finibus - Tradução e interpretação. 2. Filosofia


helenística. 3. Filosofia romana. 4. Ética. 5. Retórica. I. Vasconcellos,
Paulo Sérgio de. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de
Estudos da Linguagem. III. Título.

oe/iel

Título em inglês: Aspects of the philosophical dialogue in Cicero’s De finibus.


Palavras-chaves em inglês (Keywords): Cícero. De finibus - Translation and interpretation;
Hellenistic philosophy; Roman philosophy; Ethics; Rhetoric.
Área de concentração: Letras clássicas.
Titulação: Doutor em Linguística.
Banca examinadora: Prof. Dr. Paulo Sérgio de Vasconcellos (orientador), Prof. Dr. Marcos
Martinho dos Santos, Prof. Dr. Adriano Machado Ribeiro, Prof. Dr. Roberto Bolzani Filho e
Prof. Dr. Pablo Schwartz Frydman.
Data da defesa: 27/02/2009.
Programa de Pós-Graduação: Programa de Pós-Graduação em Linguística.
2
Resumo

Os cinco livros do De finibus bonorum et malorum de Cícero, obra publicada em 45 a.C., constituem três
diálogos em que são discutidas as doutrinas morais de três escolas filosóficas da época helenística. O primeiro
diálogo trata do pensamento de Epicuro; no segundo, discute-se o pensamento dos estóicos; o terceiro, por fim,
contempla a filosofia moral de Antíoco, pensador grego contemporâneo de Cícero cujo nome está ligado à
Academia. No presente trabalho, nós apresentamos a tradução dessa obra em Português acompanhada de notas
explicativas que tratam de alguns aspectos dramáticos, históricos, culturais e filosóficos que nos pareceram
pertinentes a uma boa compreensão das discussões que são representadas em cada um dos diálogos. Para introduzir o
texto da tradução, nós apresentamos um estudo, que se divide em dois capítulos. No primeiro capítulo, nós nos
propomos investigar o gênero literário a que pertence o De finibus, isto é, o diálogo filosófico, dando uma especial
atenção a seu estatuto mimético e às relações que esse gênero mantém com outras formas de discurso que foram
cultivadas na Antigüidade. No segundo capítulo, foi nosso objetivo analisar o caso específico do De finibus. Dessa
forma, nós estudamos a maneira como o autor unifica os três diálogos sob a forma de um tratado e analisamos as
relações que existem entre o gênero dialógico e o método de investigação que consiste em in utramque partem dicere
com vistas a descobrir aquilo que é mais probabile no que diz respeito a uma quaestio. Por fim, nós examinamos a
composição mimética dos diálogos particulares para propor algumas interpretações a respeito da maneira como a
utilização das diferentes cenas e das personagens e também a organização da obra sob a forma de um tratado
puderam servir à argumentação do autor.

Résumé

Les cinq livres du De finibus bonorum et malorum de Cicéron, oeuvre publiée en 45 avant J.C., constituent
trois dialogues dans lesquels l’on discute les doctrines morales de trois écoles philosophiques de l’époque
hellénistique. Dans le premier dialogue, il s’agit de la pensée d’Épicure ; le deuxième expose la pensée des stoïciens ;
et enfin, le troisième traite de la philosophie morale d’ Antiochus, penseur grec contemporain de Cicéron dont le
nom est rattaché à l’Académie. Dans le présent travail, nous présentons la traduction de cette oeuvre en portugais
avec des notes explicatives qui traitent de quelques aspects dramatiques, historiques, culturels et philosophiques qui
nous ont semblé pertinents à une bonne compréhension des discussions qui ont lieu dans chaque dialogue. Pour
introduire le texte de la traduction, nous présentons une étude qui se divise en deux chapitres. Dans le premier, nous
nous proposons à investiguer le genre littéraire auquel appartient le De finibus, c’est à dire, le dialogue
philosophique, en donnant une attention toute particulière à son statut mimétique et aux relations que ce genre
maintient avec d’autres formes de discours qui ont été cultivés dans l’Antiquité. Dans le deuxième chapitre, notre but
a été d’analyser le cas spécifique du De finibus. Ainsi, nous avons étudié la façon dont l’auteur unifie les trois
dialogues sous la forme d’un traité et nous analysons les rapports qui existent entre le genre dialogué et la méthode
d’investigation qui consiste à in utramque partem dicere pour découvrir ce qu’il y a de plus probabile dans une
quaestio. Enfin, nous examinons la composition mimétique des dialogues particuliers pour en proposer quelques

3
interprétations quant à la façon dont l’utilisation des différentes scènes et des personnages, ainsi que l’organisation
de l’oeuvre sous la forme d’un traité, ont pu servir à l’argumentation de l’auteur.

4
5
In memoriam patris

7
Agradecimentos

À minha família. Em especial a Lurdes, mãe querida, a meu irmão, Erick, aos sobrinhos
Heloísa e André e ao tio Lotinha.
Aos caros Bia, Sophie, Maria Clara, Dani, Bi, João “Damião” Miguel, Célia, Érica, Paulão,
Cris, Lolô, Laura, Charlie, Gabi, Gustavo “Coalhada”, Musa, Carol, Jo, Pat Prata, Alex
“Marrocos”, Marta, Fabinho Mota, Etienne Diemert, Adriano Scatolin, Elaine Sartorelli, Ricardo
Lima, ao Clube de Regatas do Flamengo, aos camaradas de copo, aos de campo, aos amigos
todos, enfim, aos quais agradeço afetuosamente, porque contribuíram de forma direta ou indireta
para a realização deste trabalho.
Ao Paulo, amigo, além de professor e orientador, todo o reconhecimento pela ajuda e pela
atenção, por seu conhecimento e por sua generosidade, por sua amizade.
Ao professor doutor Carlos Lévy, por ter me franqueado o acesso às excelentes bibliotecas
parisienses; por seus cursos, por sua atenção, pela cordialidade com que me recebeu em Paris.
Aos membros da banca, os professores doutores Adriano Ribeiro, Marcos Martinho, Pablo
Schwartz, Roberto Bolzani, pela disponibilidade em ajudar, pelas críticas e sugestões, francas,
ainda que cordiais, que livraram o trabalho de não poucos problemas. Os que restaram, todavia,
são de minha inteira responsabilidade.
Aos colegas da USP e da UNICAMP.
À CAPES, pelo auxílio financeiro, fundamental para a realização de um ano de pesquisa no
exterior.

9
Sumário

Apresentação...................................................................................................................... p. 13

Primeiro capítulo
O diálogo filosófico como gênero poético........................................................................ p. 15

Segundo capítulo
Os diálogos sobre os fins: gênero e elementos da composição....................................... p. 125
I – Visão geral sobre a matéria....................................................................................... p. 128
II – In utramque partem dicere: um método de investigação filosófica....................... p. 136
III – O método ciceroniano e o diálogo........................................................................... p.158
IV – O projeto ciceroniano de formação de uma filosofia em latim............................ p. 197
V – Diálogos e tratado: a composição do De finibus..................................................... p. 204

Tradução do De finibus bonorum et malorum de Cícero

Sobre os fins dos bens dos males...................................................................................... p. 247

Livro I .............................................................................................................................. p. 249


Notas ao livro I................................................................................................................. p. 273
Livro II ............................................................................................................................. p. 329
Notas ao livro II ................................................................................................................p. 373
Livro III ........................................................................................................................... p. 421
Notas ao livro III ............................................................................................................ p. 447
Livro IV ........................................................................................................................... p. 513
Notas ao livro IV ............................................................................................................. p. 543
Livro V ............................................................................................................................. p. 569
Notas ao livro V .............................................................................................................. p. 607

Bibliografia ...................................................................................................................... p. 641

11
Apresentação

O texto de nossa tese de doutorado, Aspectos do gênero dialógico no De finibus de Cícero, divide-
se em duas partes. A primeira consiste em um estudo a respeito do gênero dialógico, gênero no qual se
insere o De finibus. A segunda é formada pela tradução dos cinco livros dessa obra de Cícero e por notas
que acompanham a tradução. Faz-se necessário, entretanto, dizer algumas palavras a respeito da
organização de cada uma dessas partes.
Antes de qualquer outra coisa, porém, uma breve menção à organização geral da obra que
estudamos, para que se façam claras as discussões que apresentamos a seguir. O De finibus é composto
por cinco livros que constituem, na verdade, três diálogos: no primeiro diálogo, livros I e II, discute-se a
filosofia moral de Epicuro; no segundo, livros III e IV, a questão gira em torno do pensamento moral dos
estóicos. O último livro, o quinto, constitui sozinho um diálogo. Nele se discute o pensamento moral de
Antíoco, expoente da Academia da passagem do século II ao I a.C..
No estudo que apresentamos, pretendemos investigar o modo como Cícero se apropria da expressão
dialógica neste conjunto de diálogos filosóficos composto e publicado no ano de 45 a.C. O texto do
estudo, por sua vez, divide-se em dois capítulos.
No primeiro capítulo, partimos das declarações feitas pelo próprio autor do De finibus, que podemos
colher de sua correspondência, a respeito da maneira como ele segue, na composição de suas obras
dialógicas, os modelos de Platão Aristóteles. Tendo essa informação, e levando em consideração o fato de
não conhecermos, modernamente, os diálogos de Aristóteles, senão por meio de testemunhos de outros
autores, empreendemos uma investigação a respeito do modo como o diálogo filosófico poderia ser
contemplado à luz da teoria poética exposta por Aristóteles em sua Poética. Por outro lado, tendo à
disposição toda a produção dialógica de Platão, selecionamos, para um exame, alguns trechos de diálogos
do autor ateniense, dando preferência, sempre, àqueles que nos pareceram mais pertinentes para a
compreensão da forma como, posteriormente, Cícero viria a cultivar esse gênero de escritos na Roma do
século I a.C.. Ao longo da discussão, servimo-nos ainda – uma vez que a leitura tanto de Aristóteles
quanto de Platão nos exortava a isto – de comparações entre o gênero dialógico e outros gêneros de
escritos dos quais, julgamos, o diálogo parece por vezes se aproximar e, por outras, afastar-se.
No segundo capítulo, investigamos mais especificamente o caso do De finibus, isto é, o modo como
o autor lida com os elementos do gênero na composição da obra que estudamos e traduzimos. Discutimos,
então, em um primeiro momento, a organização dessa obra de Cícero; a seguir, a matéria de que ela trata.
Mais adiante, apresentamos algumas considerações acerca do método segundo o qual a matéria é tratada
ao longo dos cinco livros que compõem a obra, que consiste em in utramque partem dicere. A discussão

13
sobre o método nos leva a refletir, então, sobre o modo como a expressão dialógica se relaciona com o
procedimento de investigação.
As últimas seções do segundo capítulo se servem do aparato teórico que desenvolvemos no capítulo
I, para discutir a composição do tratado Sobre os fins em seus elementos miméticos. Discutimos, então, a
tensão que se estabelece entre a forma de tratado e os diálogos particulares. O tratamento do formato de
tratado nos impele, então, a expor o projeto educacional ciceroniano, de que fazem parte as obras de
filosofia. Esse projeto se expressa claramente em seus proêmios. Por outro lado, é também nos proêmios,
por meio dos quais Cícero organiza os diálogos em forma de um tratado, que se estabelece um diálogo,
mais abrangente, entre o autor e o destinatário, Marco Júnio Bruto, a quem a obra é dedicada. A figura do
destinatário é, então, discutida. Depois, tomando trechos da obra que traduzimos, bem como declarações
retiradas da correspondência e de outras obras do autor, observamos a composição das cenas de cada um
dos diálogos. Examinamos o significado dos lugares e do tempo em que o autor representa as discussões;
depois, estudamos as personagens que aparecem representadas como interlocutores nos três diálogos; por
fim, refletimos sobre a complexa presença de Cícero, autor da obra, ora como persona que fala nos
proêmios, ora como narrador que introduz os diálogos particulares e, finalmente, como personagem que
participa das discussões representadas.

Quanto à tradução dos livros Sobre os fins dos bens e dos males, são também necessárias algumas
informações preliminares. Tentamos deixar o corpo do texto da tradução, o quanto pudemos, livre de
notas de rodapé, para que a leitura pudesse se seguir fluentemente. Entretanto, cientes de que nem sempre
é fácil seguir o texto do De finibus sem o apoio de notícias a respeito do contexto cultural em que a obra
se insere, ou a respeito dos personagens históricos, dos autores e dos mitos que são citados por Cícero e,
além disso, sem qualquer reflexão sobre as doutrinas que são discutidas ao longo dos diálogos, buscamos
aparelhar nosso texto com considerações que versam sobre os aspectos mencionados acima; essas
informações, então, vêm dispostas como notas finais ao texto de cada um dos livros particulares.
Nessas notas, serão encontradas ainda reflexões a respeito dos problemas que algumas passagens
impõem ao tradutor. Apresentamos ainda, sempre que julgamos ser necessário, discussões a respeito do
estabelecimento do texto do De finibus, sobretudo quando nos deparamos com passagens que, difíceis ou
corrompidas, prestaram-se a leituras diferentes nas diversas edições do De finibus consultadas. Vale dizer,
no entanto, que o texto que seguimos regularmente, salvo quando indicamos expressamente em notas, é
aquele estabelecido por Reynolds, na edição de Oxford do De finibus bonorum et malorum, que é citada
na bibliografia.

14
Primeiro capítulo

O diálogo filosófico como gênero poético

15
Primeiro Capítulo
O diálogo filosófico como gênero poético

“De todas as coisas, o mais absurdo, fui transformado em uma


mistura surpreendente: não caminho normalmente, nem marcho
sob uma cadência, mas, à maneira de um centauro, pareço,
àqueles que me ouvem, um tipo de composto, um estranho
prodígio” (fala da personagem Diálogo na Dupla acusação de
1
Luciano).

Ao apresentar seu De finibus bonorum et malorum, obra constituída por um conjunto de três
diálogos em que são tratadas questões morais, Cícero está ciente de que se insere, como escritor,
numa tradição de produção textual cujas origens remontam ao ambiente cultural da Grécia do
final do século V e, mais fortemente, do século IV a.C.2. Por outro lado, o autor reconhece que,
com a composição de obras de filosofia em latim, empreendimento a que se dedicava há já algum
tempo, ele participa de um amplo movimento artístico, que se desenvolve no mundo romano – e
que se manifestou inicialmente, no que diz respeito à arte da palavra, no âmbito da poesia épica e
da poesia dramática3 –, no qual os autores latinos se servem, em alguma medida, de obras gregas
para a confecção de suas próprias obras de arte.
De fato, é isso que podemos observar no proêmio do primeiro livro, em que, defendendo a
obra que publica em 45 a.C.4, refere-se assim o autor ao trabalho que realizou: “Ora, se nós não
desempenhamos a função de tradutor, mas observamos o que disseram aqueles que aprovamos e
a isso acrescentamos nosso julgamento5 e nosso modo de escrever, que motivo têm eles6 para

1
To; ga;r pavntwn ajtopwvtaton, kra'sivn tina paravdoxon kevkramai kai; ou[te pezov" eijmi ou[te ejpi; tw'n mevtr
wn bevbhka, ajlla; iJppokenauvrou divkhn suvnqetovn ti kai; xevnon favsma toi'" ajkouvousi dokw' (Luciano de
Samosata, Div" kathgorouvmeno", 33). As traduções de textos antigos, gregos ou latinos, salvo quando é
expressamente indicado, são de nossa autoria.
2
Sobre a época em que começaram a ser compostos diálogos filosóficos na Antigüidade, discutiremos mais adiante.
3
Os inícios da literatura latina estão relacionados ao nome de Lívio Andronico. Esse homem, nascido no ambiente
grego do sul da Itália, veio para Roma como cativo na época da guerra contra Tarento, terminada em 272 a.C.. Teria
composto uma Odussia (cf. Horácio, Ep. II, 1, 69 e ss.), adaptação da Odisséia de Homero em uma cadência itálica,
o verso satúrnio. Foi também o responsável, segundo uma notícia dada por Tito Lívio (Ab urbe condita, VII, 2, 1),
pela primeira representação, em Roma, de uma peça de teatro composta segundo os moldes gregos, por volta do ano
240 (cf. ainda Cícero, Brutus, 72 e ss.).
4
Cf. Woolf, R., “Introduction” In: CICERO. On moral ends. Cambridge: CUP, 2001, p. ix.
5
Refletindo sobre a nossa tradução, hesitamos quanto ao sentido preciso de iudicium. Segundo Reid (1925, ad
locum), o termo se refere ao gosto literário. No entanto, indagamo-nos se não há referência aqui a uma das operações

16
antepor o que foi dito em grego ao que esplendidamente foi dito e sequer foi vertido do grego?”7
E, mais adiante:

“No entanto, se eu vertesse Platão ou Aristóteles exatamente assim como nossos poetas
verteram as peças de teatro, estaria, creio, servindo mal a meus concidadãos, se eu
apenas trouxesse a seu conhecimento aqueles intelectos divinos. Mas, até aqui, não o
fiz nem me considero proibido de fazê-lo. Algumas passagens, certamente, caso me
pareça bem, transportarei para minha obra, e sobretudo dos que há pouco mencionei,
quando houver ocasião em que possa se dar de modo bem ajustado (apte), como Ênio8
costuma fazer com Homero e Afrânio9 com Menandro”10.

Nesse trecho bastante significativo, faz-se evidente que Cícero concebe a composição de
seu tratado Sobre os fins como uma atividade que leva em consideração uma tradição anterior de
produção de textos. Cícero dispõe seus escritos ao lado de outros textos latinos que, assim como a
obra que agora apresenta, relacionam-se com obras gregas, anteriores, com as quais eles
dialogam e cujos passos eles tentam seguir, ainda que não de maneira passiva11. Associada à idéia
de imitatio, que leva os autores latinos a olharem para trás, está a preocupação em tentar superar
aquilo que eles tomam como modelo. Algumas passagens do próprio De finibus fazem alusão a
essa relação tensa que autores como Cícero estabelecem entre suas obras e as dos gregos:

em que consiste a inuentio, isto é, decidir sobre que argumentos (ou que matéria, em geral) utilizar em um discurso
(cf. Cícero, Orator, 44). Nesse sentido, Cícero já aponta para o seu processo de criação, negando de antemão (como
fará mais adiante, só que expressamente) que esteja desempenhando papel de mero tradutor.
6
Aqueles cujas críticas ele pretende antecipar. Vejam-se nossos comentários à passagem.
7
Quid? Si nos non interpretum fungimur munere, sed tuemur ea quae dicta sunt ab iis quos probamus eisque
nostrum iudicium et nostrum scribendi ordinem adiungimus, quid habent cur Graeca anteponant iis quae et
splendide dicta sint neque sint conuersa de Graecis? (De finibus I, 6).
8
Ênio retomou Homero em seus Annales, poema épico em que se celebrava a história romana, desde sua mítica
fundação, até, provavelmente, os acontecimentos contemporâneos ao poeta (cf. Conte, 1994, p. 79). Apenas
fragmentos restaram.
9
Lúcio Afrânio, comediógrafo latino que viveu de 155 a 90 a.C., aproximadamente. Como outros comediógrafos
latinos, tomava obras de Menandro como modelo para suas composições. Contudo, foi autor de comédias em que se
representavam personagens e cenários tipicamente romanos (as chamadas fabulae togatae). Deve-se notar, portanto,
através dos exemplos de Ênio e Afrânio, o desejo de Cícero de compor uma filosofia voltada para o cidadão romano
(cf. Conte, 1994, pp. 125-126).
10
Quamquam si plane sic uerterem Platonem aut Aristotelem ut uerterunt nostri poetae fabulas, male, credo,
mererer de meis ciuibus si ad eorum cognitionem diuina illa ingenia transferrem. Sed id neque feci adhuc nec mihi
tamen ne faciam interdictum puto. Locos quidem quosdam, si uidebitur, transferam, et maxime ab iis quos
modo nominaui, cum inciderit ut id apte fieri possit, ut ab Homero Ennius, Afranius a Menandro solet (De finibus I,
7).
11
Auvray-Assayas, C., 2001, pp. 241-242.

17
“A língua latina não só não é pobre, como de ordinário consideram, mas é ainda mais
rica que a grega. Quando, com efeito, pelo menos depois que houve um modelo a que
imitássemos, faltou a nós, bons oradores e poetas, algum ornato para um discurso
copioso ou elegante?”12.

O autor do De finibus julga ter realizado em sua obra, portanto, algo semelhante ao que
fizeram determinados poetas latinos ao criarem poemas que, de alguma forma, relacionam-se
com exemplares gregos.
Ora, a menção a Platão e Aristóteles já se apresenta como um indício da participação do De
finibus no gênero dialógico13. Se, no entanto, a questão do gênero não é tratada no prefácio à
obra, ela está presente em diversos momentos da correspondência de Cícero. Uma carta, em
especial, a respeito da conclusão da composição do De finibus, deve ser citada, uma vez que nela
o autor romano compara os diálogos que rematara com obras semelhantes de Aristóteles: “por
outro lado, o que escrevi nestes últimos tempos tem um modo aristotélico, em que, de tal forma é
introduzido o diálogo entre os demais, que nas mãos dele próprio esteja o papel principal. Dessa
forma, compus cinco livros Sobre os fins...”14. Com relação a Platão, quando discute com seu
amigo, Ático, respeito do De oratore, Cícero afirma que, em um elemento particular da
composição, seguiu o grego, autor da República15.
Voltando ao prefácio do De finibus, cabe notar que Cícero professa que lhe é permitida, ao
seguir os passos dos autores gregos que compuseram diálogos, toda a liberdade de que
dispunham os poetas latinos que produziram obras semelhantes às de poetas épicos e dramáticos

12
Latinam linguam non modo <non> inopem, ut uulgo putarent, sed locupletiorem etiam esse quam Graecam.
Quando enim nobis, uel dicam aut oratoribus bonis aut poetis, postea quidem quam fuit quem imitarentur, ullus
orationis uel copiosae uel elegantis ornatus defuit? (De finibus I, 10). Quanto à exigência de se superar os gregos nas
artes que eles próprios criaram, cf. ainda De finibus III, 5: “nós não apenas não somos vencidos pelos gregos em
abundância de palavras, mas somos mesmo superiores nessa característica; devemos nos esforçar para que não só em
nossas artes, mas inclusive nas deles próprios, nós realizemos isso” / nos non modo non uinci a Graecis uerborum
copia, sed esse in ea etiam superiores, elaborandum est ut hoc non in nostris solum artibus, sed etiam in illorum
ipsorum adsequamur. O tema reaparece em outras obras ciceronianas.
13
Evidentemente, no caso de Aristóteles, cabe dizer que Cícero conheceu os diálogos publicados pelo filósofo de
Estagira, cujo valor artístico é mais de uma vez exaltado.
14
Quae autem his temporibus scripsi !Aristotevleion morem habent, in quo ita sermo inducitur ceterorum ut penes
ipsum sit principatus. Ita confeci quinque libros peri; telw''n... (Ad Atticum, 13, 19, 4). Carta do fim de junho de 45
a.C..
15
Sed feci idem quod in politeiva/ deus ille noster Plato (Cícero, Ad Atticum, IV, 16, 3). O importante trecho de onde
tomamos essa frase é traduzido e comentado mais adiante.

18
da Grécia. Quando nega desempenhar a função de tradutor (interpres)16, o escritor romano indica
que se apropriou da forma dialógica de forma criativa. Ainda que ele admita que vá tratar de
assuntos antes desenvolvidos por autores gregos, sua obra não será de forma alguma a reprodução
de uma obra grega. E isso mesmo no que diz respeito à própria matéria tratada, que, em grande
parte proveniente do pensamento grego, passará pela seleção do autor romano. Ademais, a
disposição do assunto e a elocução serão também criação sua.
Conforme se diz no trecho I, 7, citado há pouco: se a obra como um todo não é tradução ou
adaptação de uma obra grega, o autor poderá, vez por outra, introduzir em seus diálogos trechos
tomados dos filósofos gregos mencionados17, desde que tais passagens se ajustem a sua própria
composição. Novamente sua atividade é comparada à dos poetas, mas, aqui, de modo ainda mais
significativo. O fato é que tanto Ênio quanto Afrânio são, reconhecidamente, poetas que, tendo
produzido obras que se inserem em gêneros já cultivados na Grécia, criaram obras de teor
nitidamente romano. O primeiro, que viveu nos séculos III e II a.C., tomou, em seus Annales, a
poesia épica de Homero como modelo. Sua obra, contudo, celebra a história romana desde a
mítica fundação da cidade até a sua própria época. Ora, já a partir do título percebe-se que o autor
concebe sua obra como herdeira, de algum modo, da tradição mais original da historiografia
romana, a dos Annales Maximi. O caso de Afrânio é um pouco mais complexo; diz-se que esse
poeta, que viveu no século II a.C., de tal modo se excedeu nos empréstimos que fez da obra de
Menandro, que foi censurado por seus contemporâneos (cf. Macróbio, Saturnalia VI, 1, 4 apud
Reid, 1925, p. 10). De qualquer modo, uma vez que esse comediógrafo se serviu de Menandro na
composição de suas fabulae togatae, deve-se admitir uma grande independência de sua poesia
com relação à de autores gregos que ele possa ter tomado como modelo. Recordemos que as

16
Cumpre dizer que o termo interpres em Cícero, em certos contextos, refere-se mesmo ao tradutor literal, ao
tradutor que, de modo servil, submete-se ao texto original vertendo palavra a palavra. É o caso dos intepretes
indiserti de De finibus III, 15. No contexto do proêmio do livro I, no entanto, a idéia não pode ser essa, visto que o
termo se aplica a poetas dramáticos que traduziram para o latim exemplares da poesia dramática grega. Parece
evidente que, nesse caso, falaríamos mais facilmente em uma adaptação, ou em tradução poética, do que em uma
tradução nos moldes das praticadas pelos indiserti do livro III. A questão, contudo, não é simples. Pode ocorrer que
Cícero pense a fidelidade ao original de maneira bem mais ampla do que nós a pensamos, quando falamos em
tradução literal. O filósofo romano, como vimos acima, pretende retomar os autores gregos, mas não recriar em latim
um texto a partir de um único texto grego. Ao que parece, ele busca, além disso, compor segundo seu próprio modo
de escrever (scribendi ordinem) e não conforme a maneira de um determinado autor grego. Recordemos que os
poetas que seguiam Homero, por exemplo, imitavam mesmo a elocução homérica, servindo-se de epítetos, fórmulas
e etc. Se Virgílio não traduz Homero, por exemplo, segue de maneira muito próxima a elocução do autor da Ilíada e
da Odisséia.
17
Na passagem aqui omitida e que se interpõe entre os dois trechos citados, Cícero menciona Crisipo, Diógenes da
Babilônia, Antípatro de Tarso, Mnesarco de Atenas, Panécio, Posidônio, Teofrasto, Epicuro e, sem maiores
especificações, os discípulos de Epicuro. Sobre esses filósofos, vejam-se as notas à tradução.

19
togatae eram comédias com cenas, personagens, figurino etc. que representavam ambientes
romanos ou itálicos18. Ora, com a menção a esses dois autores, Cícero mostra precisamente a
maneira como concebe a obra a cuja leitura ele nos convida. Trata-se de um conjunto de diálogos
e, portanto, pertence a essa tradição de escritos filosóficos iniciada na Grécia. No entanto, a cena
se desenvolve em ambiente romano; as personagens são romanas. Mais que isso, a obra se dirige
a leitores romanos, não apenas por conta do idioma em que é escrita, mas porque se volta a
questões que são do interesse dos romanos19, ainda que em grande parte tenham sido inicialmente
tratadas em obras gregas.20
Neste ponto, uma imagem criada por Cícero no De inuentione, obra de juventude, é muito
proveitosa para a compreensão de seu projeto de composição de um corpo de textos de filosofia
em Roma. Ao falar a respeito da maneira como poderia se servir de elementos tomados das obras
de outros autores, ele compara a atividade que realiza em seu tratado Sobre a invenção com
aquilo que fizera Zêuxis, célebre pintor do fim do século V a.C.21, quando, contratado pelos
habitantes de Crotona para adornar um templo Juno, buscava reproduzir na pintura a verdadeira
beleza feminina22. Pois bem, Para realizar a bela pintura, o artista selecionou, dentre muitas
moças, as cinco que julgou mais belas. Para representar sua Juno, ele iria se servir do que de mais
belo houvesse em cada uma das jovens, pois cada uma possuía partes de beleza extrema e
incomparável; outras partes, porém, menos formosas. Sua obra tomaria de cada uma aquilo que

18
Quanto à comparação com Afrânio, temos que fazer algumas ressalvas. Por um lado, mesmo a palliata, comédia
com personagens e ambientação grega, tinha de, em grande medida, ser o resultado de uma grande reformulação de
um exemplar grego (ora, as que nós possuímos de fato mostram isso), pois que eram representadas diante de
romanos. Os assuntos, o humor e outros elementos tinham de tocar o espectador romano. Por outro lado, a togata do
ponto de vista do tipo de enredo, do argumentum, não devia ser (embora seja mais difícil constatar) tão distante das
obras da Comédia Nova de um Menandro, por exemplo.
19
Não estamos, de qualquer modo, argumentando a partir de uma comparação entre o tipo de público que devia
freqüentar os teatros para assistir às obras de Afrânio, por exemplo, e o público a que Cícero destinava suas obras. O
argumento não depende de que seja o mesmo público, ou um público completamente distinto. O fato é que,
diferentes que sejam, são públicos formados por romanos. Mas, ainda se pensarmos na diferença, a questão não deixa
de ser delicada. Poderíamos inferir, a partir do fracasso de público de algumas peças de Terêncio, de que somos
informados em seus prefácios, que o público de teatro era bem pouco afeito ao humor mais sóbrio deste autor que se
associa ao Círculo dos Cipiões e cujas obras pouco se serviam de um humor mais baixo. A obra de Cícero, por outro
lado, dirige-se, é verdade, aos optimates, à elite da sociedade romana que tinha possibilidade de se encarregar da
administração da cidade. No entanto, seu projeto de educação filosófica, que é claramente expresso em diversos de
seus proêmios, almeja uma divulgação ampla da filosofia aos romanos, mesmo aos que não conheçam os temas da
filosofia grega e que não sejam sequer versados na língua grega (cf. De finibus I, 10, por exemplo).
20
A operação criativa de Cícero pode ser ainda mais realçada se levarmos em consideração o fato de que ele discute,
neste conjunto de diálogos, as doutrinas morais dos estóicos e epicureus, filósofos que, pelo que se sabe, não se
serviram do diálogo na exposição de seus pensamentos.
21
Cf. Oxford Classical Dictionnary.
22
Cf. De inuentione II, 2.

20
era excelente e rejeitaria o que fosse menos formoso. Seu tratado Sobre a invenção, se ele fosse
tão bom autor quanto Zêuxis fora pintor, diz o humilde Cícero (cf. II, 5), teria ainda mais
condições de atingir o ideal buscado por Zêuxis, “pois ele pode escolher dentre as donzelas que
viviam em uma só cidade e naquela época”23, Cícero teve a possibilidade de selecionar preceitos
de todos autores de artes retóricas, diz ele, que produziram desde o mais remoto início dos
estudos nessa arte. Ênfase à parte, parece haver uma íntima relação entre o modo como o autor
deseja se inserir na produção de textos sobre arte retórica, tão bem expresso no De inuentione, e o
modo como pensa suas obras de filosofia: no De finibus, é fácil notar a presença de uma longa
tradição de autores aos quais a obra se refere a todo instante.
Nessa rápida apreciação que fizemos da maneira como Cícero introduz o De finibus
bonorum et malorum, nós acabamos nos servindo de terminologia tanto poética quanto retórica
de que ainda não demos tratamento suficiente. De fato, como primeiro passo de nosso estudo,
pretendemos investigar de modo mais aprofundado como alguns pensadores antigos que
refletiram sobre a arte verbal conceberam o diálogo filosófico. Dois autores nos norteiam, ainda
que de maneira diferente. Justamente aqueles cujos modelos Cícero parece seguir na composição
de seus diálogos filosóficos: Platão e Aristóteles. Vale dizer que não pretendemos dar à questão
um tratamento exaustivo, o que seria extremamente dispendioso e que, em si, já constituiria
matéria para toda uma pesquisa de Doutorado. Buscaremos tão somente chegar a uma
compreensão suficiente, direcionada a nosso estudo do De finibus, do que seja, para um homem
antigo como Cícero, o diálogo filosófico. Com esse fim, colheremos testemunhos, diretos ou
indiretos, provenientes de obras de natureza diferente, a respeito dessa forma de expressão.
Dizemos “de natureza diferente”, porque pretendemos analisar, por um lado, o que disseram
sobre o diálogo alguns teóricos da poesia e alguns retores e, por outro lado, observar trechos
tomados de diálogos filosóficos sob um duplo aspecto: de uma parte, considerar que elementos,
presentes nas obras, constituem essa forma literária como gênero poético (sobretudo os elementos
que estarão presentes no modelo ciceroniano); de outra, refletir sobre a maneira como os próprios
autores de diálogos representaram a sua arte.
Julgamos que, para a discussão que pretendemos apresentar, esse método de investigação é
o mais apropriado e, talvez, mesmo necessário, quando observamos os acordos e desacordos que
existem entre os autores modernos que já intentaram encontrar na Antigüidade uma teoria do

23
Ille una ex urbe ex eo numero uirginum quae tum erant eligere potuit (De diuinatione II, 5).

21
diálogo filosófico. Michel Ruch, no estudo que consagrou justamente à gênese e à arte da
composição do diálogo, indica em que consiste a dificuldade inicial da pesquisa: “nenhum tratado
nos dá informação, na Antigüidade, sobre a origem, sobre a natureza do diálogo, sobre o gênero
literário ao qual ele se liga”24. Esse autor cita, como apropriadas à sua reflexão sobre o diálogo,
palavras de um estudioso de Eurípides que, discutindo o uso dos monólogos na poesia do
dramaturgo, diz:

“Apenas a análise de suas obras nos permite conhecer a técnica literária dos antigos.
Nenhuma tradição nos informa sobre os conhecimentos do métier que devia adquirir o
poeta grego ou o poeta romano antes de enfrentar seu público. Nós não sabemos nada
da gênese de um poema. O único gênero literário cuja técnica foi apresentada ao uso
do público e consignada nos Manuais foi a retórica. É por isso que nós só conhecemos
a técnica poética na medida em que ela foi influenciada pela arte oratória”25.

Compreendemos que Leo desconsidere textos tais qual a Poética de Aristóteles como
instrumental para, ao menos em parte, concebermos a técnica de composição de um poema
trágico, pelo fato de que a reflexão feita pelo estagirita é posterior às tragédias áticas, aquelas dos
três grandes autores que costumamos estudar. Discutir esse ponto, de qualquer forma, não é nosso
objetivo. Aplicada ao diálogo filosófico a afirmação, contudo, merece uma ressalva: a partir da
correspondência de Cícero, como bem mostra Ruch26 (e como nós apontaremos mais adiante),
nós podemos formar uma boa idéia do procedimento de composição de um diálogo na
Antiguidade. O que permanece, entretanto, sem ressalva, é o fato de que não nos chegou da
Antiguidade qualquer obra teórica que se tenha proposto analisar o diálogo filosófico. Não
obstante, o texto da Poética de Aristóteles nos parece importante para que compreendamos os
conceitos de que Cícero se utiliza em sua correspondência para discutir a composição de seus
diálogos. Tenhamos sempre em mente, além do mais, que o próprio autor do De finibus se refere
a Aristóteles como um de seus modelos na composição de suas obras.

24
Cf. Ruch, M., 1958, p. 17.
25
LEO, F. Der Monolog im Drama, p. 43 apud RUCH, M., 1958, p. 17.
26
É estranho, portanto, que ele inicie seu trabalho com tal afirmação. Poderíamos compreender todo esse problema,
se aceitássemos que tanto a Poética de Aristóteles, com relação à tragédia, quanto as reflexões de Cícero, em sua
correspondência, com relação ao diálogo que compôs, foram influenciadas pela retórica. No caso de Cícero essa
hipótese, parece-nos, pode ser acolhida com maior facilidade.

22
A inexistência (ou a não transmissão) de um tratado sobre o diálogo filosófico leva o
estudioso francês citado acima a afirmar que os antigos sequer conheciam uma técnica do
diálogo. Para sustentar seu argumento, Ruch cita uma célebre passagem de Cícero, em torno da
qual se instalou, recentemente, uma grande polêmica: contentionis praecepta rhetorum sunt,
nulla sermonis (De officiis I, 132). E conclui: “Cada autor cria, então, suas próprias leis,
conformando-se, é verdade, a uma determinada tradição, isto é, a modelos preexistentes”27 e,
mais adiante, “a Antigüidade não nos deixou nenhum preceito válido para a composição de um
diálogo”28. Se, entretanto, lermos um pouco mais atentamente o trecho do De officiis de onde se
extraiu a citação, reconheceremos o equívoco do autor francês:

“E uma vez que grande é a força da palavra [ou, do discurso] e que ela é dúplice, uma é
a da contenda (contentionis), outra a da conversação (sermonis); seja a contenda
atribuída aos debates dos julgamentos, das assembléias, do senado; a conversação, que
se dê habitualmente nas reuniões, nas discussões, nos encontros entre íntimos e
acompanhe, inclusive, os banquetes”.29

Por fim, a frase citada por Ruch: “para a contenda os preceitos são do âmbito dos retores,
não há nenhum para a conversação”. Não há como negar que o termo sermo pode se referir ao
diálogo, entendido como obra pertencente a determinado gênero de escritos. Os diálogos de
Platão são chamados sermones Platonis, por exemplo, em De oratore III, 60. Mas parece claro
que na passagem acima mencionada o filósofo romano utiliza sermo com o sentido de
conversação, diálogo real que pode ocorrer em diversas situações da vida30. Ainda que ele afirme
que essa uis orationis é apropriada às discussões (disputationes), que são as situações que vemos
representadas nos diálogos filosóficos, o trecho trata claramente de situações da vida e não de
regras de composição de um gênero literário. Além do mais, nem mesmo a associação entre
contentio e eloqüência, por um lado, e sermo e discussão filosófica, por outro, é estabelecida de

27
Ruch, M., 1958, p. 18.
28
Ruch, M., 1958, p. 18.
29
Et quoniam magna uis orationis est eaque duplex, altera contentionis, altera sermonis, contentio disceptationibus
tribuatur iudiciorum, contionum, senatus, sermo in circulis, disputationibus, congressionibus familiarum uersetur,
sequatur etiam conuiuia (De officiis I, 132).
30
Cf. Lévy, C., 1993, passim e, especialmente, pp. 400-403; e Pernot, L., 1993, pp. 424-425. Aygon, J-P., 2002,
criticando Ruch, afirma: “é sem dúvida excessivo tirar de uma passagem do De officiis a conclusão de que ‘o próprio
Cícero confessa que não conhece uma técnica do diálogo’”, p. 197.

23
modo tão simples no pensamento de Cícero, como ainda veremos no segundo capítulo deste
estudo.
Goldschmidt, que é citado por Laborderie em seu estudo sobre o diálogo platônico, também
vai contra a idéia de que os antigos desconheciam preceitos para a composição de diálogos e que
cada autor seguia as leis que bem entendesse. Na verdade, o desconhecimento de leis que
regessem as linhas gerais desse gênero literário seria um traço, sim, do estado atual dos estudos
sobre o diálogo filosófico:

“Apesar de vários estudos de valor, pode-se dizer que o diálogo, como gênero literário,
permanece ainda a ser definido. Nós não conhecemos com certeza nem a pré-história,
nem a meta, ou as metas (escolar, literária, quiçá política), nem as leis de composição,
nem o vocabulário nem o estilo em sua relação com o pensamento e menos ainda os
procedimentos dialéticos, todos pontos de grande envergadura para a interpretação
filosófica. O que é certo, em todo caso, é que os Diálogos entram em um gênero
literário que, provavelmente, comporta espécies diferentes. Ora, esse gênero obedecia a
normas cuja aplicação pode ter sido completamente independente do autor que o
praticava”.31

Tendo em vista, portanto, o desacordo que se pode observar entre os estudiosos modernos
que tentaram dar conta do problema que envolve a concepção dos antigos a respeito do diálogo
(que foi apenas esboçado acima) e, por outro lado, considerando que, independentemente de
quem esteja com a razão nesse ponto, não é numa só obra antiga, e sequer num só autor, que
iremos encontrar uma teoria do diálogo ou uma coletânea de preceitos a respeito de sua
composição, tentaremos, nas páginas que seguem, construir uma imagem do diálogo filosófico a
partir dos discursos que sobre ele nos chegam, mesmo que de modo difuso, da Antigüidade. Cabe
salientar, novamente, que o nosso propósito central é compreender o diálogo ciceroniano. Desse
modo, selecionaremos, dentre os diferentes testemunhos antigos, especialmente aquilo que nos
possibilite entender a maneira como o autor romano cultivou essa forma literária. Será pertinente
ainda, nesse sentido, estabelecer uma comparação entre o gênero dialógico e outros gêneros com
os quais ele guarde alguma semelhança.

31
Goldschimdt, V. “Sur le problème du Système de Platon”. Rivista critica di storia della filosfia, 1950, p. 173 apud
Laborderie, J., 1978, p. 2.

24
Não resta dúvida de que, na época em que Platão escreveu, já havia, estabelecida, uma
tradição de textos que reproduziam ou representavam conversas tidas entre Sócrates e outros
personagens de seu tempo. Em nossa reflexão sobre o gênero, entretanto, não trataremos, por
questões práticas, de autores como Alexâmenos, Zenão, considerados, por vezes, como os
inventores do gênero, ou Antístenes, Aristipo e Esquines, contemporâneos, provavelmente
precursores de Platão. Fédon e Euclides, por outro lado, serão mencionados rapidamente, mas
apenas porque, a partir desses indivíduos históricos, Platão forjou personagens que figuram em
seus diálogos. De Xenofonte, falaremos um pouco mais, mas tão somente como termo de
comparação com a obra de Platão.32
Acreditamos que podemos proceder assim sem conseqüências prejudiciais a nosso texto. Na
verdade, comparada às obras de Xenofonte e, sobretudo, de Platão, é ínfima a literatura socrática
que se preservou. Além do mais, não resta dúvida de que, para Cícero, dentre os autores
mencionados acima, o grande modelo é Platão. A própria filiação do filósofo romano à Academia
(o que ele professa, com orgulho, em muitas de suas obras) é um índice da influência que exerceu
sobre ele a obra de Platão. No segundo capítulo, veremos que o modelo aristotélico também foi
importante para as composições de Cícero, mas, da obra dialógica do fundador do Liceu, não
temos senão exíguos vestígios. Parece-nos, portanto, adequado, uma vez que desejamos
investigar esse modo peculiar de expressão de que se serve Cícero no De finibus, tomarmos
Platão como um dos pontos de partida.
No livro que consagra à vida e ao pensamento de Platão, Diógenes Laércio (Vita
philosophorum, III), após assinalar o fato de que Platão não menciona o próprio nome em seus
escritos, senão na Apologia e no diálogo Sobre a alma33, cita um interessante testemunho de
Aristóteles que pode muito bem dar início a nossa discussão sobre o diálogo platônico:
Fhsiv d! !Aristotevlh" th;n tw'n lovgwn ijdevan aujtou' metaxu; poihvmato" ei\nai kai; tou' pez
34
ou' lovgou . Dessa citação ocupam-se quase todos estudiosos modernos que discutem sobre o
gênero dialógico. Alguns, como Ruch, parecem ver aqui um testemunho de que, para Aristóteles,
o diálogo consistiria em um gênero substancialmente híbrido, que se encontraria no meio do
caminho entre aquilo que o estagirita concebe como poesia, em sua Poética, e a prosa. Ao que

32
Para uma maior compreensão a respeito da literatura socrática, veja-se, na obra de Charles Kahn, a parte que lhes é
consagrada e os estudiosos modernos que são ali mencionados (Kahn, C. H., 1996, pp. 1-35). Cf. ainda Laborderie, J,
1978, pp. 43-51.
33
Cf. Diógenes Laércio III, 37. Sobre a alma é como o biógrafo se refere ao Fédon.
34
Diógenes Laércio, III, 37.

25
parece, para esse estudioso, com aujtou', deve-se subentender “diálogo”, o que faz com que ele
entenda assim a passagem: “Aristóteles afirma que a forma dos discursos do diálogo se encontra
entre a do poema e a do discurso pedestre” 35. O mesmo caminho segue Laborderie (que, aliás,
fundamenta-se em Ruch), ao afirmar que esse e outros testemunhos (de que trataremos mais
adiante) indicam que “os Antigos consideravam o diálogo como um gênero poético”36. Aygon,
mais apegado à letra do texto, julga que a afirmação de Aristóteles não pode versar sobre a
matéria do diálogo, mas, sim, sobre a elocução. Mais que isso, esse autor avança a possibilidade
de que a afirmação de Aristóteles se refira não ao estilo de todo e qualquer diálogo, mas ao estilo
de Platão. Para ele, aujtou' retomaria Platão37. Uma tradução que seguisse sua leitura ficaria
assim: “Aristóteles afirma que a forma dos discursos38 de Platão se encontra entre a do poema e a
do discurso pedestre”. A interpretação de Aygon soa-nos mais aceitável, uma vez que as
expressões lovgwn ijdevan, poihvmato" e, sobretudo, pezou' lovgou, relacionadas como estão, não
poderiam se referir senão à elocução39. Todo seu artigo consiste em uma tentativa de demonstrar
que é por meio da elocução que os antigos concebem uma distinção entre o gênero dialógico e
outros que lhe são limítrofes. Eis uma questão, entretanto, que não aparecerá senão de modo
marginal em nosso estudo. De qualquer modo, pelo contexto em que a citação se insere no texto
de Diógenes Laércio, no qual se diz que Platão não costumava mencionar o próprio nome em
seus diálogos, é difícil não pensar, como fazem Ruch e Ladorderie, que o biógrafo esteja, de
alguma forma, fazendo um comentário também a respeito da natureza poética, ou melhor
dizendo, mimética dos diálogos filosóficos. É bem verdade que falar em contexto na obra de
Diógenes Laércio é por vezes complicado, dada a enorme facilidade com que o escritor salta de
um assunto a outro sem grandes cuidados com relação à coesão de seu discurso. Desse modo,
ainda que concordando com Aygon, e julgando que o comentário de Aristóteles versa sobre a
elocução própria de alguns diálogos, não podemos deixar de notar que, no contexto da obra de
Diógenes Laércio, esse comentário, relacionado à menção da ausência do próprio autor, Platão,

35
Cf. Ruch, op. cit., pp. 18-19. O autor não traduz o trecho e também não o comenta de modo minucioso, daí a
dificuldade de estabelecer como ele compreende cada um dos decisivos termos da citação, senão a partir de sua
argumentação.
36
Cf. Ladorderie, op. cit., pp. 53-54.
37
Cf. Aygon, op. cit. pp. 203-204.
38
Ou “a elocução”.
39
Dupont-Roc, R. & Lallot, J. (1980, p. 153), entretanto, analisando este trecho, afirmam que ijdeva é um termo muito
vago, de modo que, no contexto, admite tanto a tradução por “style”, quanto por “genre”.

26
de seu texto nos aponta para uma das características fundamentais que tanto Aristóteles quanto
Platão enxergam naquilo que eles chamam poesia: a mivmhsi".
Talvez a confusão estabelecida por Diógenes se deva ao fato de que, para os antigos, a
composição textual envolva, necessariamente, uma relação íntima entre forma e substância (que
pode ser até mesmo deliberadamente conflituosa), que é o que confere em grande parte o sentido
a uma obra de arte verbal. O leitor (ouvinte ou espectador), quando se depara com uma dessas
obras de arte, forçosamente a coloca em relação com toda uma série de obras que tenham com ela
traços semelhantes e é por meio dessa relação que ele a compreende como obra de arte. Além do
mais, no caso do diálogo filosófico, seja o de Platão, seja o de Cícero, a matéria parece estar de
tal modo constituído pela forma, que alguns estudiosos chegam mesmo a cometer o equívoco,
sintomático, de que essa é a forma natural pela qual se pôde exprimir tal conteúdo.40
Mas essa questão da relação entre res e uerba no diálogo filosófico é um problema que
devemos deixar de lado, por ora. Voltando a nosso propósito (que visa ao aspecto mimético do
gênero), se não podemos afirmar que, na passagem citada por Diógenes Laércio, Aristóteles
confere ao diálogo um caráter mimético, por outro lado, na Poética, a breve menção que ele faz
aos swkratikoi; lovgoi parece relacionar obras como as de Platão ao tipo de poesia que o
estagirita pretende investigar em seu tratado. Citamos:

“Pois não temos termo comum para denominar os mimos de Sófron, de Xenarco e os
discursos socráticos, nem se alguém realizar mímesis por meio de trímetros iâmbicos,
ou de algum outro metro qualquer”.41

Convém observar, em primeiro lugar, o termo utilizado para se referir a diálogos,


presumimos, como os de Platão: lovgoi42. Laborderie informa, com efeito, que a expressão
swkratiko;" diavlogo" aparece pela primeira vez na literatura grega em Ateneu (Deipnosophistae

40
É o caso, por exemplo, de K. Joël, autor de Zur Erkenninis des geistigen Entwicklung und der Schriftstellerischen
Motive Platos, obra citada por Laborderie (cf. Laborderie, J. op. cit., p. 61 e, especialmente, nota 9). Esse tipo de
equívoco advém, provavelmente, de uma leitura pouco crítica e da adoção automática de noções apresentadas nas
artes poéticas antigas. De fato, Horácio, por exemplo, cristaliza a idéia de que cada tema deva ser tratado sob uma
cadência adequada.
41
Oujde;n ga;r a[n e[coimen ojnomavsin koino;n tou;" Swvfrono" kai; Xenavrcou mivmou" kai; tou;" Swkratikou;" lovg
ou", oujde; ei[ ti" dia; trimevtrwn h] ejlegeivwn h] tw'n a[llwn toiuvtwn poioi'to th;n mivmhsin. (Aristóteles, Poética
1447b10-14).
42
Se o termo parece geral e comporta homonímia, pois lógos se aplica a modalidades diferentes da expressão verbal,
o contexto, contudo, indica que o autor se refere algo bem preciso: representações de conversas tidas entre Sócrates e
outros, conforme pensa Kahn, cf. infra.

27
XI, 505c)43 e julga, de maneira convincente, que Aristóteles atesta, a partir da passagem da
Poética, a existência de uma importante tradição de escritos, em que aparece Sócrates, da qual a
obra de Platão faria parte. É importante notar que a menção aos discursos socráticos44 se dá num
momento do raciocínio em que se pretende estabelecer um novo critério para a classificação e
análise da arte verbal, o qual deverá, ao longo da obra, substituir o tradicional critério métrico. As
composições do gênero das de Platão são postas lado a lado com a epopéia, o ditirambo, a
tragédia e a comédia. São formas de mimese.
Faz-se necessário, portanto, investigarmos o que vem a ser a mivmhsi" na Poética de
Aristóteles.45 Curiosamente, porém, tal investigação nos leva à obra de Platão, que em mais de
um de seus diálogos refletiu sobre a poesia e que, para abarcá-la, desenvolveu o conceito de
mímesis, o qual seria, posteriormente, na Poética, reformulado por Aristóteles.
Voltemos, portanto, nossa atenção para uma reflexão que encontramos na República de
Platão a respeito da produção e performance da arte verbal, tomada de modo geral, conforme ela
ocorria em seu tempo. No passo em questão, Sócrates, conversando com Glauco, estabelece uma
distinção entre as formas de léxis do poeta, que, a partir de então, fundamentaria a divisão da
poesia em gêneros:

“Considero que agora está claro para ti aquilo que, há pouco, não pude fazer claro: que,
no que diz respeito à poesia e à narrativa mítica, uma se dá inteiramente por meio da
imitação, assim como, tu dizes, a tragédia e a comédia; uma outra, por meio da
narrativa do próprio poeta: encontrarias essa sobretudo, creio eu, nos ditirambos.
Aquela, por seu turno, que se dá por meio de ambos, encontrarias na poesia épica e em
muitos outros lugares, se é que me compreendes”.46

Distinguem-se três formas de levxi" que podem ser utilizadas pelo poeta. Numa delas,
representada pelo ditirambo, ele é apenas narrador. Os poetas cômicos e trágicos, por sua vez,

43
Cf. Laborderie, op. cit. p. 53. Se bem que cabe a ressalva: na literatura grega que chegou até nós.
44
Interpretar swkratikoi; lovgoi como “conversations with Socrates” é a opção adotada por Charles Kahn (cf. Kahn,
1996, p. 36).
45
A questão, nós sabemos, é ingente. Nossa intenção é explorar os aspectos do conceito que se mostrem mais
pertinentes a nossa discussão.
46
oi\maiv soi h[dh dhelou'n o} e[mprosqen oujc oi|o"v t j h\, o{ti th'" poihvsewv" te kai; muqologiva" hJ me;n dia; mim
hvsew" o{lh ejstivn, w{sper su; levgei", tragw/diva te kai; kwmw/diva, hJ de; di a j jpaggeliva" aujtou' tou' poihtou'
- eu{roi" d aj ]n aujth;n mavlistav pou ejn diquravboi" - hJ d j au\ di j ajmfotevrwn e[n te th'/ tw'n ejpw'n poihvsei, pol
lacou' de; kai; a[lloqi, ei[ moi manqavnei". (Platão, República III, 394b-c).

28
utilizariam a mímesis. A poesia dramática seria a única completamente mimética. Uma terceira
forma de expressão seria aquela de que se serve o cantor de epopéias, nas quais haveria narrativa
e mímesis. Parece claro, portanto, que, no trecho citado, a preocupação de Sócrates consiste em
observar quem é que se serve da palavra na enunciação poética. Na medida em que há, no poema,
outras vozes que não a do poeta, encontramo-nos diante de uma obra mimética. A distinção entre
poeta e narrador, deve-se notar, não parece chamar a atenção do Sócrates da República.
No livro X da República, Sócrates volta a introduzir o termo mímesis em sua argumentação.
Agora, no entanto, a questão não é mais a léxis poética. Não se trata de discutir quem se serve da
palavra em um poema épico ou dramático. O problema desloca-se para o tipo de relação que pode
existir entre aquilo de que o poeta fala, portanto o objeto de sua enunciação, e a realidade47. Do
que se pode depreender da argumentação ali desenvolvida, é com vistas a atacar o conhecimento
produzido pelo discurso poético que Sócrates aponta para o problema ontológico da
representação poética.48
Recordemos, em linhas gerais, como se dá a argumentação nessa conhecida passagem. Em
595b-c, Sócrates chama de imitadores49 tanto os poetas dramáticos quanto os épicos,
representados todos, em última análise, por Homero, grande representante da épica e, conforme é
designado aqui, guia de todos os poetas trágicos. Conversando com Glauco, ele chama a atenção
de seu interlocutor para o caráter nocivo que tem essa poesia para a inteligência daqueles que a
ouvem, caso não estejam cientes do que realmente são o conhecimento, a poesia e a ignorância.
Ora, para compreendermos o peso das críticas desse Sócrates do livro X, não podemos
negligenciar o fato de que a poesia ainda desempenhava, na Grécia de então, um elemento de
suma importância na educação de toda a comunidade. Numa cultura que, conforme se julga
atualmente, não se servia da escrita de maneira difundida, a poesia de um Homero representava o
registro de conhecimento religioso, histórico, geográfico, moral e mesmo técnico, acumulado
durante alguns séculos, mantido e transmitido por meio da palavra melódica e ritmada.50 É nesse
sentido que podemos compreender que Sócrates encontre, dentre os encomiastas de Homero,
quem afirme que esse “poeta educou a Hélade e que é digno aprender com ele o que concerne à

47
“Realidade” que, no texto em questão, está longe de ser um conceito simples, como veremos a seguir.
48
A questão é largamente discutida. Veja-se, dentre outros, Havelock. E.A. A revolução da escrita na Grécia e suas
conseqüências culturais. São Paulo: Editora UNESP, 1994. Veja-se, especialmente, o capítulo seis: “A natureza e o
conteúdo do código”, pp. 119-145.
49
O adjetivo utilizado é mimhtikov".
50
Cf. Havelock, op. cit., especialmente o capítulo cinco: “A transcrição do código de uma cultura não letrada”, pp.
87-118.

29
administração e à educação dos assuntos humanos”51 e que sua crítica se dirija contra o alegado
conhecimento que está contido nos poemas homéricos. Esse conhecimento, como veremos, é
inadequado, segundo a concepção do Sócrates platônico.
Pois bem, esse Sócrates52, para tratar da poesia, serve-se de outras artes como termos de
comparação. Ele considera que, no mundo em que vivemos, existem, por exemplo, inúmeras
camas e mesas. Existe, entretanto uma só idéia (ijdeva) para cada um desses objetos53, uma única
forma invariável. O artesão que produz uma cama, então, para produzi-la, olha para a idéia de
cama, e, a partir dela, confecciona a sua cama de madeira, por exemplo. A idéia de cama, por
outro lado, seria produzida por um artífice natural, um artesão que, segundo Sócrates, produz
“todos os artefatos, como faz também tudo o que germina da terra e produz todos os seres
animados, as demais coisas e a si mesmo; e, além disso, produz a terra, o céu, os deuses, tudo
quanto existe no céu e no Hades subterrâneo”54.
Sócrates, então, exorta seu interlocutor a observar se não é possível a qualquer pessoa
realizar o mesmo que esse artífice natural. Introduz-se aí o símile do espelho, que servirá como
paradigma a partir do qual se chegará à compreensão do que seja a arte imitativa. Fazendo
passear um espelho por toda parte, diz a personagem, poderíamos criar todas aquelas coisas que o
artífice produziu. Essa asserção seu interlocutor admite-a parcialmente, pois, responde ele, se
assim fizerem, criarão as coisas como elas aparecem, não como verdadeiramente são. O passo
avançado pelo discípulo é, segundo Sócrates, o ponto crucial da argumentação55. De fato, é sob
esse aspecto que a arte imitativa vai ser criticada, pois, a seguir, o paradigma do espelho é
aplicado ao pintor. Quando ele, que é também um artífice, pinta uma cama, pergunta Sócrates,
produz uma cama como ela é no nosso mundo, ou como ela aparece? Da resposta, que é óbvia, a
persona do mestre chega à seguinte conclusão. Há três camas: a primeira, a cama que é por

51
Tradução de Daniel. R.N.Lopes. LOPES, D. R. N. Platão, República – Livro X. Estudo, tradução e notas.
Dissertação de Mestrado, UNICAMP, 2001.
52
Por prudência, assinalamos que aqui discutimos as idéias avançadas pela personagem Sócrates conforme a
representa Platão em um diálogo em questão. Por um lado, não queremos defender teses a respeito do Sócrates
histórico e de qual tenha sido o seu real pensamento; por outro, queremos evitar uma interpretação que faça de
Sócrates uma só e mesma personagem ao longo de todos os diálogos platônicos em que ela figura.
53
Cf. República X, 596b: ijdevai gev pou peri; tau'ta ta; skeuvh duvo, miva me;n klivnh", miva de; trapevzh".
54
República, X, 596c. Tradução de Daniel R.N. Lopes.
55
Muito interessante, portanto, do ponto de vista da composição, que o autor o delegue ao discípulo. Como veremos
no segundo capítulo de nosso estudo, a discussão em forma de diálogo é concebida pelo Sócrates do Górgias, por
exemplo, como parte de um método que visa a obtenção da verdade por meio da cooperação entre os participantes.
(Se o método não tem sucesso no Górgias, é uma outra questão...) De qualquer modo, não queremos com essa
reflexão parecer dizer que esse elemento seja algo universal nos diálogos de Platão.

30
natureza, criada por um deus; uma segunda, uma cama qualquer no mundo, produzida por um
carpinteiro. Por fim, a cama pintada, obra do artífice imitador. Esse artífice aparece como o
terceiro a partir do primeiro e divino artífice e sua obra estará dois graus afastada da verdade.
A isso se acrescenta o fato de que, quando o pintor imita uma cama e a representa em seu
quadro, além de partir da cama que já é cópia da idéia de cama, representa-a de modo parcial,
tomando-a por um só ângulo; ele representa apenas uma das manifestações possíveis de uma
cama qualquer produzida por um carpinteiro.
O conhecimento a que se tem acesso por meio da poesia imitativa, que é semelhante à arte
do pintor, é, portanto, precário; e se Homero parece conhecedor de tantas coisas, é porque ele,
como o pintor descrito na argumentação, cria, de tudo aquilo de que fala seu canto, essa
representação parcial e afastada da verdade:

“A arte de imitar está, portanto, muito longe da verdade e, como parece, se produz
tantas coisas, é porque atinge uma pequena porção de cada uma, que não passa de um
simulacro (... ) se for bom pintor, desenhando um carpinteiro e mostrando-o de longe,
poderá enganar, por fazer parecer que é um verdadeiro carpinteiro”.56

A crítica ao conhecimento proporcionado pela poesia não é, no entanto, a única repreensão


dirigida à arte representativa que encontramos na obra de Platão. Por motivos práticos, atenhamo-
nos apenas a esses dois modos de compreender a mimese que mencionamos acima. Eles parecem
ser os mais fundamentais para a compreensão da discussão encetada por Aristóteles em sua
Poética.
Nessa obra, Aristóteles se serve de parte da teoria desenvolvida na República de Platão. O
filósofo de Estagira recusa a classificação tradicional da poesia, que se fazia por meio de um
critério rítmico, e introduz como novo critério a mímesis. Se o conceito, de algum modo, retoma
o desenvolvimento que lhe é dado na obra de Platão, Aristóteles o reformula consideravelmente.
A relação entre a representação e a coisa que ela represente é reconsiderada. O valor atribuído à
poesia, conseqüentemente, é sensivelmente modificado.
Já desde o início da Poética, o estagirita lança mão do conceito de mímesis, elemento que
lhe permitirá abarcar, sob um mesmo título, produções (e manifestações) artísticas tais como a

56
República, X, 598b. Tradução de Daniel R.N. Lopes.

31
epopéia e a tragédia, a citarística e a aulética, a pintura, a dança, etc. Todas essas artes se
serviriam da mímesis, segundo a concepção do autor. Acarreta dificuldade, no entanto, que, em
um tratado no qual o autor parece decididamente tratar da arte poética por meio de um
procedimento filosófico, em nenhum momento sejamos agraciados com uma definição que nos
esclareça o que exatamente devemos entender por mímesis.57 Talvez isso se deva à natureza
peculiar desse texto. Alguns estudiosos defendem, como é bem sabido, que os textos de
Aristóteles de que dispomos não foram destinados à publicação. De acordo com essa concepção,
a Poética consistiria em uma série de anotações do autor (ou de discípulos que freqüentaram suas
conferências) que circulariam internamente no seu Liceu, em Atenas58. Se assim for,
compreende-se que certas noções, bem conhecidas de todos e em torno das quais não havia
dificuldade, pudessem ser tratadas sem maior desenvolvimento. No estado em que nos
encontramos, portanto, temos que colher, ao longo do texto, passagens que nos auxiliem na
compreensão desse conceito tão fundamental. São especialmente profícuas as comparações que o
autor estabelece entre o fazer do poeta mimético, por um lado, e o que realizam um poeta
didático, como Empédocles, ou um historiador, como Heródoto.
Em 1447b18-20, Aristóteles afirma que aqueles que expõem, em versos, matéria
relacionada ao estudo da natureza ou à medicina, são costumeiramente chamados “poetas”. No
entanto, “nada de comum há entre Homero e Empédocles, senão o metro. Por isso, é legítimo
chamar aquele ‘poeta’, este, porém, de preferência ‘físico’59 a ‘poeta’”60. O exemplo apresentado
na seqüência do texto justifica a recusa do nome de poeta a Empédocles. A poesia, conforme
Aristóteles a concebe, não requer como condição necessária a presença do discurso metrificado; o

57
O procedimento filosófico que o autor parece adotar se faz manifesto desde o início do texto:
Peri; poihtikh'" aujth'" te kai; tw'n eijdw'n aujth'", h{n tina duvnamin e{kaston e[cei, kai; pw'" dei' suniv
stasqai tou;" muvqou", eij mevllei kalw'" e{xein hJ poivhsi", e[ti de; ejk povswn kai; poivwn ejsti; morivwn, oJmoivw" d
e; kai; peri; tw'n a[llwn o{sa th'" aujth'" ejsti mevqovdou, levgwmen, ajrxavmenoi kata; fuvsin prw'ton ajpo; tw'n prwv
twn. “Falemos da poesia – dela mesma e das suas espécies, da efetividade de cada uma delas, da composição que se
deve dar aos Mitos, se quisermos que o poema resulte perfeito, e, ainda, de quantos e quais os elementos de cada
espécie e, semelhantemente, de tudo quanto pertence a esta indagação – começando, como é natural, pelas primeiras
coisas (1447a1-13)”. Tradução de Eudoro de Souza: Aristóteles, Poética. São Paulo: Ars Poetica, 1992.
58
Dupont-Roc e Lallot apresentam um resumo da discussão a respeito da composição, transmissão e estado atual da
Poética de Aristóteles (cf. Dupont-Roc, R. & Lallot, J. 1980, pp. 11-12). Veja-se ainda Halliwell, S., 1987, pp. 1-2.
A idéia de dois grupos diferentes de obras Aristóteles, dos quais apenas um era destinado à publicação, era
defendida, diga-se de passagem, por Cícero (cf., por exemplo, De finibus V, 12).
59
O termo utilizado por Aristóteles é fusiolovgo", isto é, aquele que apresenta uma reflexão ou discurso (lovgo")
sobre a natureza (fuvsi"). “Fisiólogo”, que é utilizado por alguns tradutores, como Eudoro de Souza, parece mais
aplicável, em português, ao estudo das naturezas particulares de alguns seres vivos.
60
Oujde;n de; koinovn ejstin @Omhvrw/ kai; !Empedoklei' plh;n to; mevtron: dio; to;n me;n poihth;n divkaion kalei'n, to;n
de; fusiolovgon ma'llon h] poihthvn (Aristóteles, Poética, 1447b17-18).

32
exemplo de Querêmon ilustra, mesmo que apenas parcialmente, a pouca importância que é dada
aqui ao critério métrico. Esse autor teria composto um canto constituído pelos mais variados
metros. Uma vez que realizou mímesis, deve ser considerado poeta. Ora, a partir de critérios
métricos, sua poesia dificilmente poderia ser classificada.61
O conceito, porém, ainda não está claro. Evidente apenas é que Empédocles não produziu
obra mimética. No capítulo II, entretanto, as coisas começam a se esclarecer. Aristóteles trata ali
de um dos critérios por meio dos quais a mímesis que se realiza pelo lovgo" pode ser dividida:
“uma vez que aqueles que representam, representam homens que agem, é necessário que estes
sejam ou graves, ou vis”62. Compreende-se, assim, que realizar mímesis por meio da palavra,
consiste em representar homens agindo. O que caracteriza a poesia conforme a concebe o autor é,
desse modo, o fato de ela representar ações de homens, é o fato de ela representar, de alguma
forma, a vida humana.
Se na Poética o diálogo platônico (considerado que foi, como estamos supondo, entre os
swkratikoi; lovgoi), ao lado dos mimos de Xenarco e de Sófron, é tido por obra mimética, isso se
dá pelo fato de Platão representar em suas obras homens agindo. Ao contrário da obra de
Empédocles, que, embora em verso, não representa ações humanas, mas faz considerações e tece
afirmações diretas acerca de fenômenos da natureza63, o diálogo filosófico é, para Aristóteles
(enquanto esse autor segue o critério distintivo da mímesis), obra poética, ainda que careça de
metro, isto é, ainda que se sirva do pezo;" lovgo"; pois nele, assim como na poesia dramática, ou
na épica, observamos, representadas pelo poeta, personagens que agem e falam. Por esse critério,
a obra de Platão é, para Aristóteles, poesia.
Antes de seguirmos nessa linha de raciocínio, é importante refletir um pouco a respeito do
que afirmam Dupont-Roc e Lallot ao comentarem essa passagem da Poética64. Para esses autores,

61
Podemos entender, seguindo o mesmo raciocínio, por que Quintiliano diz de Cornélio Severo (contemporâneo de
Ovídio, autor de um poema sobre a Guerra da Sicília) que ele foi melhor compositor de versos do que poeta:
Cornelius autem Seuerus, etiam si sit uersificator quam poeta melior (...); Institutio oratoria, X, i, 87-91.
62
!Epei; de; mimou'ntai oiJ mimouvmenoi pravttonta", ajnavgkh de; touvtou" h] spoudaivou" h] fauvlou" ei\nai (...)
(Aristóteles, Poética, 1448a1).
63
Cf. Halliwell, S., 1987, p. 71. O autor afirma que, além da asserção negativa que faz a respeito da insuficiência do
critério tradicional para sua concepção de poesia, “Aristóteles também argumenta positivamente, ao citar os escritos
versificados de Empédocles com vistas a representar o uso da linguagem para propósitos diretamente afirmativos –
isto é, qualquer uso da linguagem que intenta oferecer declarações verdadeiras ou proposições a respeito de algum
aspecto da realidade”. Quanto ao diálogo, será interessante notar, mais adiante, que, se o autor não oferece
“proposições a respeito de algum aspecto da realidade”, seus personagens não deixam de fazê-lo. É bem verdade que
personagens de tragédia ou de epopéias podem fazer a mesma coisa.
64
Dupont-Roc et Lallot, op. cit. pp. 151-155.

33
a posição de Aristóteles a respeito da poesia, mesmo na Poética, é mais nuançada do que se
apresenta aqui. O filósofo não trata como sinônimos “poesia” e “mimese”, dizem eles, e mantém
de algum modo o critério métrico, tanto é que ele não parece preocupado em estudar de fato na
Poética um “poème en prose”. Se Aristóteles, no início do tratado, insiste no critério mimético,
reconhece também outros traços distintivos da poesia que se manifestam na elocução. Na
Retórica, por exemplo, o filósofo reconhece que um certo uso da expressão (léxis) estabelece
uma comunicação entre prosa e poesia65. O uso imoderado de aposições, como os epítetos, por
exemplo, seria destoante no discurso em prosa; criaria uma léxis pouco usual, que é, segundo o
autor, um traço distintivo da poesia (cf. Aristóteles, Retórica III, 1406a10 e ss.). Curioso notar,
portanto, que haja momentos em que Empédocles é considerado poeta por Aristóteles. De acordo
com Diógenes Laércio (VIII, 57), “Aristóteles diz, em seu Sobre os poetas, que Empédocles é
seguidor de Homero (oJmhrikov") e brilhante na expressão”66. Nos capítulos da Poética dedicados
à levxi", o poeta siciliano será citado repetidas vezes (cf. capítulo XXI, 1057b23 e 1058a5 e
capítulo XXV, 1061a24). Parece ser decisivo, portanto, o uso do advérbio ma'llon na passagem
que citamos do capítulo I. Ora, Empédocles, é, com justiça, chamado “físico” de preferência a
“poeta”. Segundo o critério da mímesis, ele não seria poeta; por outro lado, dada sua elocução
(levxi") especial, ele poderia ser considerado poeta.
Resta indagar, dessa forma, se o diálogo filosófico, ainda que desprovido de metro, pode ser
considerado, também sob o critério da levxi", como poesia. Uma das interpretações dadas, acima,
à passagem de Diógenes Laércio em que Aristóteles trata da ijdeva dos discursos platônicos parece
apontar para o caráter parcialmente poético da elocução platônica. Não é essa, entretanto, nossa
principal preocupação67.

65
Cf. Dupont-Roc et Lallot, op. cit., p. 153.
66
!En de; tw/' Peri; poihtw'n fhsin o{ti kai; !Omhriko;" oJ !Empedoklh'" kai; peri; th;n fravsin gevgonen.
67
Ora, sendo obras miméticas, também os diálogos de Cícero poderão, por meio desse critério, ser considerados
como poesia. Evidentemente, assim como no caso da teoria aristotélica, Cícero também se serve de outros critérios
para compreender as diferentes modalidades de discurso. Desse modo, não é surpreendente que no Orator (cf. 62-
68), por exemplo, quando a questão gira em torno de outros elementos que não a representação, o discurso dos
poetas esteja separado do dos filósofos, do dos historiadores e, de modo mais problemático, do dos oradores. Nessa
passagem, a eloqüência é separada da filosofia e da história por conta do fim que cada um desses discursos parece
cumprir. A filosofia tem pouco vigor e antes aplaca os ânimos do que os excita. A história está mais preocupada em
delectare do que em persuadere. A relação eloqüência/ poesia é mais complexa. Se, por um lado, a poesia se
submete a uma cadência, também o orador se serve de um ritmo (cf. 67), ainda que de modo mais livre. Ademais,
quanto ao uso de clarissima uerborum lumina (figuras de palavras), o discurso de autores como Platão e Demóstenes
estaria mais próximo da poesia do que muitos poemas cômicos. Há segundo Cícero diferenças claras, mas só uma é
de fato apontada: à poesia é dada uma liberdade na seleção das palavras que não é adequada ao discurso do orador
(cf. 68).

34
Voltemos, portanto, à discussão a respeito do conceito de mímesis, cuja compreensão já se
tornou um pouco mais clara. Se utilizamos, há pouco, o verbo representar para traduzir as
ocorrências de mivmhsi" e seus cognatos e, por outro lado, se falamos de “personagens”, devemos
ter alguma cautela, pois novamente avançamos idéias que ainda não foram bem fundamentadas.
Para entendermos a maneira como o poeta imita, ou representa os homens que agem em seus
poemas, devemos agora recorrer ao capítulo IX do texto de Aristóteles, isto é, à célebre
comparação entre o poeta e o historiador.

“É evidente também, a partir do que foi dito, que o trabalho do poeta não é isto: dizer
coisas ocorridas, mas dizer coisas tais que poderiam ocorrer e coisas possíveis segundo
o provável ou o necessário. Pois o historiador e o poeta não se diferenciam pelo dizer
em verso ou em prosa (pois seria possível colocar a obra de Heródoto em metro e em
nada menos seria história a com verso do que a sem verso). Mas nisto há diferença: por
um dizer o ocorrido e o outro, coisas tais que poderiam ocorrer. Por isso, também mais
filosófica e mais elevada do que a história é a poesia. Pois a poesia exprime mais as
coisas segundo o universal, a história, segundo o particular. É do universal, por um
lado, a que tipo de homem cabe dizer ou fazer que tipo de coisa segundo o provável ou
o necessário, algo a que a poesia aspira, ainda que imponha nomes particulares. Do
particular, por outro lado, é o que Alcebíades fez ou o que sofreu”.68

Nesse trecho fundamental da Poética, vemos novamente que, para o autor, que segue
compreendendo a poesia como mímesis, o critério métrico se faz insuficiente. A obra de
Heródoto, compositor de narrativa histórica, mesmo que posta sob uma cadência específica do
discurso poético tradicional, não seria mimética, pelo fato de ele tratar do particular, daquilo que
ocorreu. A história, segundo pensa Aristóteles, trataria daquilo que realizou ou daquilo que
padeceu um indivíduo particular, como Alcebíades, ilustre político ateniense do fim do século V
a.C., envolvido na desastrosa campanha militar na Sicília, que representou a derrota de Atenas

68
Fanero;n de; ejk tw'n eijrhmevnwn kai; o{ti ouj to; ta; genovmena levgein, tou'to poihtou' e[rgon ejstin, ajll j oi\a
a]n genvoito, kai; ta; dunata; kata; to; eijko;" h] to; ajnagkai'on. @O ga;r iJstoriko;" kai; oJ poihth;" ouj tw'/ h] e[mmet
ra levgein h] a[metra diafevrousin (ei[h ga;r a]n ta; @Hrodovtou eij" mevtra: teqh'nai, kai; oujde;n h|ttona]n ei[h iJsto
riva tis meta; mevtrou h] a[neu mevtrwn): ajlla; tou;tw/ diafevrei, tw'/ to;n me;n ta; genovmenalevgein,to;n de; oi|a a]n g
evnoito. Dio; kai; filosofwvteron kai; spoudaiovteron poivhsi" iJstoriva" ejstivn: hJ me;n ga;r poivhsi" ma'llon ta;
kaqovlou, hJ d j iJstoriva ta; kaq j e{kaston levgei. #Esti de; kaqovlou mevn, tw'/ poivw/ ta; poi' j a[tta sumbaivnei lev
gein h] pravttein kata; to; eijko;" h] to; ajnagkai'on, ou| stocavzetai hJ poivhsi" ojnovmata ejpitiqemevnh: to; d
e; kaq j e{kaston, tiv !Alkibiavde" e[praxen h] tiv e[paqen. (Poética 1451b1-12).

35
frente aos espartanos. Ora, a menção a um homem conhecido de todo e qualquer ateniense do
século IV que fosse medianamente informado, é bastante pertinente. Com isso, Aristóteles indica
que a ação humana narrada pelo historiador é uma ação desempenhada por indivíduos
particulares, de carne e osso, como outros quaisquer que tenham vivido ou estejam vivos sobre a
terra.69
O poeta, por outro lado, fala de coisas que poderiam acontecer; ou, mais precisamente, de
coisas possíveis segundo o necessário ou o provável. Surge uma nova dificuldade: a arte do poeta
trata, de alguma forma, das coisas como elas existem, não de modo direto como a história, que
narraria os eventos tais quais o historiador pôde observar em ocorrências particulares, mas
através de uma submissão a uma forma geral segundo a qual as coisas ocorrem, isto é, através de
uma adequação àquilo que é possível. Essa forma geral segundo a qual as coisas ocorrem
ordinariamente, por sua vez, ganha ainda um significado especial, na teoria poética de
Aristóteles, já que é discutida por meio de dois critérios lógicos: o provável (ejikov") e o
necessário (ajnagkai'on). Os dois termos já haviam sido mencionados no tratado (em trecho que
não citamos), quando o filósofo falava de uma das partes qualitativas da tragédia: o mu'qo", que
fora definido como “representação da ação” e, logo depois, como “composição das
ações/eventos” e “agenciamento das ações/eventos”70 ou na tradução de Dupont-Roc e Lallot: “le
système des faits” e “l’agencement des faits en système”71.
Quando trata, portanto, da unidade do mu'qo", o filósofo toma, como exemplo de uma boa
organização das ações representadas, a Odisséia de Homero, afirmando que ali o poeta obteve
êxito porque selecionou da récita tradicional sobre Odisseu apenas as ações que pudessem estar
concatenadas de modo provável ou necessário. Assim, por exemplo, não representou Odisseu
tentando se passar por louco no momento em que o exército estava sendo reunido, nem o
ferimento que sofreu no monte Parnaso, porque de uma dessas ações não se seguia necessária ou
provavelmente (ajnagkai'on ... hj; eijkov") que a outra ocorresse. Em vez disso, Homero compôs a

69
Elemento importante, além disso, é o caráter recente que o exemplo utilizado parece conferir à matéria tratada pela
narrativa histórica. Essa característica reaparecerá em nossa discussão.
70
Cf.: evs j tin de; th'" me;n pravxew" oJ mu'qo" hJ mivmhsi" - levgw ga;r mu'qon th;n suvnqesin tw'n pragmavtwn e
hJ tw'n pragmavtwn suvstasi" (1450a1 e 1450a15 respectivamente).
71
Dupont-Roc & Lallot, op. cit., p. 55.

36
Odisséia em torno de uma ação una, isto é, uma ação cujas partes estão ligadas por meio de
probabilidade ou necessidade72.
O binômio provável/necessário aparece em várias passagens da Poética, de modo a
constituir quase uma expressão fixa: kata; to; eijko;" h] to; ajnagkai'on. Entretanto, ao defender
que o agenciamento das ações deve ter determinada extensão e formar um todo, no capítulo VII,
observamos que o autor se serve de uma formulação diferente. Para que haja um todo, as partes
(princípio, meio e fim) devem estar intimamente conectadas. Ao definir o que é o fim, diz o
autor: “o fim, ao contrário [do princípio] é aquilo que se segue naturalmente a alguma outra
coisa, ou por necessidade (ejx ajnavgkh"), ou como é na maior parte dos casos (wJ" ejpi; to; poluv),
e depois do que não há nada.”73 O texto da Poética, portanto, permite-nos uma aproximação entre
os conceitos de eijkov" e de wJ" ejpi; to; poluv.
Essa mesma aproximação pode ser observada em outras obras de Aristóteles. Na Retórica,
por exemplo, quando a questão é definir o que seja o provável no discurso74, já que é de
raciocínios formados a partir de premissas prováveis, sobretudo, que o orador vai se servir, o
filósofo define assim o eijkov":

“Pois o provável (eijkov") é o que ocorre na maior parte dos casos


(wJ" ejpi; to; polu; ginovmenon), não num sentido absoluto, como alguns o definem, mas
o que quer que, dentre as coisas que podem se dar de outra maneira, esteja relacionado

72
Cf. 1051a23-30. Ainda que nosso objeto último de estudo não seja a Poética, cabe notar que os exemplos
mencionados por Aristóteles geram alguns problemas. Se, por um lado, Homero não representou a loucura simulada
de Odisseu, evento que apareceria nos Cantos Cíprios (segundo Dupont-Roc e Lallot, cf. op. cit. p. 218), o ferimento
sofrido durante uma caçada no Parnaso, na infância de Odisseu, é representado, em forma de rememoração, no
momento em que a criada Euricléia reconhece o herói. Ora, a cicatriz é o elemento que permite o reconhecimento
(Odisséia, XIX, 392-466). Entretanto, tal evento aparece na passagem, argumentam Dupont-Roc e Lallot (p. 218),
em forma de episódio, “haveria falta contra a unidade se Homero tivesse apresentado este evento, que não tem nada a
ver logicamente com o retorno de Tróia, em uma vasta seqüência que pretendesse retraçar toda a história de Ulisses”.
Seja como for, toda a passagem da Poética parece se estabelecer em contrapartida a certos autores que, criando obras
a respeito de uma só personagem, negligenciaram a unidade de ação. A ação da Odisséia seria una porque giraria
toda em torno do regresso de Odisseu (cf. Poética, capítulo XVII, 1457b17 e ss.), de modo que os dois eventos
mencionados, um ocorrido antes da expedição, outro, quando o herói já regressara a Ítaca, dificilmente poderiam se
relacionar um com o outro de modo provável ou necessário. Ora, na expressão de Aristóteles, é a relação entre os
dois eventos que parece constituir o maior problema.
73
teleuth; de; toujnantivon o{ aujto; met j a[llo pevfuken ei\nai, h] ejx ajnavgkh" h] wJ" ejpi; to; poluv, meta; de; tou't
o a[llo oujdevn (1050b29-31).
74
Por enquanto, trataremos apenas do que é fundamental para a compreensão da probabilidade poética. Mais adiante,
no segundo capítulo, aprofundaremos a discussão a respeito do eijkov" na argumentação discursiva, quando tratarmos
da teoria do conhecimento exposta por Cícero nos Livros Acadêmicos, que torna próximos, no pensamento desse
autor, os discursos oratório e filosófico.

37
àquilo em relação a que é provável assim como um universal está relacionado a um
particular”75.

Como de costume, as afirmações de Aristóteles não são simples e requerem uma


interpretação cuidadosa que leve em conta o contexto de onde elas são extraídas. Trata-se aqui do
estudo do ejnquvmhma, um tipo de raciocínio dedutivo, isto é, raciocínio que parte do universal ao
particular, utilizado tanto pelo retórico, quanto pelo dialético. Ainda que ambos possam se servir
de premissas necessárias para construir suas deduções, ou seja, de premissas que afirmem coisas
que não podem se dar de outra forma, é mais freqüente, no entanto, que eles só tenham à
disposição premissas prováveis. Essas premissas versam, assim como as necessárias, sobre o
universal, mas afirmam algo que pode ocorrer de outra maneira, ainda que ocorra, na maior parte
dos casos, conforme afirma a asserção. Relacionadas a uma asserção particular, delas se pode
deduzir uma conclusão provável, ou seja, que coincide com o que ocorre na maior parte dos
casos. Um exemplo clássico de dedução que versa sobre a esfera humana e que parte de uma
premissa universal necessária é a seguinte formulação (pós-aristotélica, contudo)76: “Se todo
homem é mortal e Sócrates é um homem, logo, Sócrates é mortal”. A premissa, “todo homem é
mortal” é, assim, universal e necessária, ao passo que a conclusão, “Sócrates é mortal”, é
necessária, mas particular. O orador e o dialético, no entanto, terão como ponto de partida, mais
freqüentemente, premissas do tipo “os filhos amam seus pais”. Ainda que tenha a forma
universal, pois se aplica ao universo “filhos”, não é uma afirmação necessária, visto que um ou
mais filhos, particulares, podem não amar seus pais. É, ainda assim, provável, visto que, na
maioria dos casos, dá-se que os filhos amem seus pais. Desse modo, é possível, aplicando-a a um
caso particular, chegar a uma dedução provável: “se todo filho ama seu pai e Pedro é filho de
Paulo, logo Pedro ama Paulo”.
Nos Tópicos, obra a que, na Retórica, Aristóteles remete o leitor para esclarecimentos a
respeito dos meios de prova (pivstei") utilizados em um discurso voltado para uma grande
assembléia, a dedução provável (chamada, então, de “silogismo dialético”) é relacionada ainda a

75
To; me;n ga;r eijkov" to; wJ" ejpi; to; polu; ginovmenon, oujc aJplw'" de; kaqavper oJrivzontaiv tine", ajlla; to; per
i; ta; ejndecovmena a[llw" e[cein, ou{tw" pro;" ejkei'no pro;" o} eijko;" wJ" to; kaqovlou pro;" to; kata; mevro"
(Aristóteles, Retórica, 1357a34-1357b1).
76
Cf.: Kennedy, G.A., 1991, p. 33, nota 23.

38
outro conceito: o e[ndoxon. Vejamos a passagem, em que o autor contrasta a dedução necessária
com a dedução provável:

“Há demonstração (ajpovdeixi")77, quando um silogismo é tal, que é tomado a partir de


coisas que são verdadeiras e primeiras ou de coisas que são tais, que tomaram o
princípio de conhecimento por meio do que é primeiro e verdadeiro. Mas o silogismo é
dialético quando se faz a dedução (sullogizovmeno") a partir de opiniões geralmente
aceitas (ejx ejndovxwn)” e, mais adiante: “são, por outro lado, opiniões geralmente
aceitas (e[ndoxa) aquilo que parece ser (ta; dokou''nta), de maneira difundida, ou aos
muitos ou aos mais esclarecidos (sofoiv)78 e, nesse caso, ou aos mais numerosos, ou
aos mais conhecidos e mais bem considerados (ejndovxoi)”79.

Vimos, a partir das passagens citadas da Poética, que o eijkov" se relaciona àquilo que
acontece na maior parte dos casos. Essa relação foi corroborada pela definição de eijkov"
apresentada na Retórica, com o acréscimo da informação de que, para bem servir a uma dedução
dialética ou a um entimema oratório, o provável deve ter a forma de uma asserção universal cuja
verdade se comprove freqüentemente. Comprovar-se freqüentemente, por outro lado, relaciona-se
com se tratar de uma opinião geralmente aceita ou aceita pelos mais numerosos e bem reputados
dentre os sábios.
Neste ponto, devemos voltar nossa atenção para um outro aspecto da concepção aristotélica
de dedução. Quando ela é realizada de maneira adequada, o movimento que alcança a conclusão,
partindo da premissa, seja esta necessária ou provável, é um movimento que se dá de modo
necessário. Citamos novamente o início dos Tópicos:

“O silogismo é, assim, uma expressão (lovgo")80 na qual, tendo sido estabelecidas


certas coisas, algo diferente do que fora estabelecido resulta necessariamente
(ejx ajnavgkh") a partir do que foi estabelecido”81.

77
Demonstração logicamente válida e em seu sentido mais estrito, o de demonstração necessária.
78
Assim entende o termo no contexto Brunschwig (1967, p. 114).
79
!Apovdeixi" me;n ou\n ejstin, o{tan ejx ajlhqw'n kai; prwvtwn oJ sullogismo;" h/,\ h] ejk toiouvtwn a{ diav tinwn prwv
twn kai; ajlhqw'n th'" peri; aujta; gnwvsew" th;n ajrch;n ei[lhfen, dialektiko;" de; sullogismo;" oJ ejx ejndovxwn
sullogizovmeno" (...) e[ndoxa de; ta; dokou'nta pa'sin h] toi'" sofoi'", kai; touvtoi" h] pa'sin h] toi'" pleivtoi" h]
toi'" mavlista gnwrismoi" kai; ejndovxoi" (Aristóteles, Tópicos, 100a27-100b23).
80
Ou, talvez: “raciocínio”.

39
Pois bem, mas como poderíamos aplicar essas reflexões à operação realizada pelo poeta?
Não resta dúvida, parece-nos, de que há algumas semelhanças entre o fazer do poeta mimético e a
argumentação dedutiva conforme descrita em nossa interpretação das passagens tomadas da
Retórica e dos Tópicos.
Em primeiro lugar, o que confere unidade ao conjunto de ações organizadas por um poeta e
representadas por ele em seu poema é a forte ligação causal que deve existir entre elas. Há algo
de semelhante entre o agenciamento das ações representadas em um poema e o procedimento de
uma dedução lógica. A ação que se segue a uma outra, deve ocorrer por causa da anterior. O
leitor (ou o ouvinte, ou o espectador) admite a seqüência de ações representadas ou porque a
ligação entre elas lhe parece necessária, isto é, porque não poderia ser de outra forma; ou porque
aquela é a ligação que se observa na maior parte dos casos. No primeiro caso, por exemplo, um
homem que em uma ação representada destrói seus próprios olhos, deve aparecer cego em cenas
seguintes, porque isso é o que ocorre necessariamente a quem não possui olhos sãos. No segundo
caso, uma mulher se dá à morte, ao descobrir que desposou seu filho com quem teve filhos em
uma união impura. Admite-se que tal ação é uma conseqüência provável da ação anterior82.
É bem verdade que a dedução não comporta uma ligação provável entre as premissas e a
conclusão. A única probabilidade que pode existir no raciocínio dedutivo é a da premissa maior;
uma vez que ela é admitida (porque constitui a opinião geralmente aceita), presta-se à mesma
necessidade na dedução a que se prestaria uma premissa necessária. Mas, em certo sentido, a
operação dedutiva se assemelha à composição da ação representada (e, como veremos a seguir,
de outros objetos da representação) no que toca à relação que se estabelece entre ela e uma ação
qualquer da vida cotidiana da qual a representação pode ter sido tomada. A ação representada,
embora constitua, na representação, uma espécie de ação particular, é cunhada a partir de uma
forma geral da ação. Além de ser possível, elemento que ela partilha com a ação da vida
ordinária, a ação poética deve ser conforme, pelo menos, ao provável. Nesse sentido, a ação que

81
#Esti dh; sullogismo;" lovgo" ejn w|/ teqevntwn tinw'n e{terovn ti tw'n keimevnwn ajnavgkh" sumbaivnei dia; tw'n
keimevnwn (Aristóteles, Tópicos, 100a25-27).
82
Omitimos neste ponto, deliberadamente, as reflexões de Aristóteles a respeito do espantoso, daquilo que ocorre de
modo contrário à expectativa geral. Mesmo sabendo que esse elemento é essencial na tragédia, pois dele se pode
produzir as afecções essencialmente trágicas (terror e comiseração), julgamos que não é um elemento tão relevante
para a abordagem que pretendemos fazer do gênero poético do diálogo filosófico. Admitimos, porém, que a questão
não é simples, visto que os mitos contados tanto por Platão quanto por Cícero em passagens importantes de seus
diálogos comportam justamente esse elemento.

40
se desenvolve em um mu'qo" particular é concebida pelo poeta, no momento da composição da
obra, como uma ação de certo tipo. Assim, entre o tipo de ação concebida pelo poeta e a ação
representada e realizada por personagens há uma passagem do universal ao particular.
Neste ponto, vale a pena mencionar Wesley Trimpi83, que desenvolve uma interessante
argumentação que nos permite compreender um pouco mais a operação realizada pelo poeta
quando cria suas ficções prováveis. Trimpi, partindo de evidência que colhe de um texto de Sexto
Empírico, examina três usos diferentes que os antigos fizeram da hypothesis: uma, a utilizada na
verificação das teses em filosofia; uma segunda, relacionada com o estabelecimento da causa em
retórica; uma terceira, utilizada na poesia para a criação de mimeses plausíveis. Os três usos
estariam submetidos, em última análise, àquilo a que ele se refere, ainda que com hesitação,
como “hipótese científica”84.
De fato, Sexto Empírico, em Aduersus geometras (1-6), apresenta três sentidos para
uJpovqesi". O primeiro tem que ver com o enredo de um drama (o que Sexto chama
peripevteia85), trata-se da hypothesis trágica ou cômica. O segundo sentido está relacionado ao
discurso público: é aquela hypothesis que o orador estabelece e que consiste no debate de uma
circunstância particular. Esse uso também aparece nos discursos dos sofistas a respeito de
situações particulares imaginadas. O terceiro sentido é o de “ponto de partida de uma
demonstração” (cf. ajrch;n ajpodeivxeon); é aquilo que, no discurso científico, nós costumamos
chamar “hipótese”, ou “suposição”.
Interessante notar como esses três usos da hypothesis aparecem no pensamento de Cícero e
como o autor romano trata das três aplicações por meio de uma terminologia comum. Para
tratarmos do terceiro sentido de hypothesis, podemos ficar restritos ao De finibus. No livro V,
Pisão se refere à Carneadia diuisio, um procedimento por meio do qual o filósofo acadêmico, de
quem falaremos no segundo capítulo, chegou a compreender todas as concepções possíveis a
respeito do finis moral. Citamos:

“Devemos nos valer da divisão proposta por Carnéades, da qual nosso caro Antíoco
costuma se servir de bom grado. Aquele, portanto, viu não somente quantas tivessem

83
Trimpi, W. Muses of one mind, 1983.
84
Trimpi, op. cit., pp. 25-28.
85
Segundo Trimpi (cf. op. cit., p. 26), em Sexto o termo não conserva o valor aristotélico, que designava uma parte
do mu'qo", mas indica o próprio agenciamento das ações de um drama (trágico ou cômico) particular.

41
sido até aqui as concepções dos filósofos a respeito do sumo bem, mas quantas de
modo geral elas poderiam ser (quot omnino esse possent sententiae)”86.

Após apresentar as concepções a respeito do finis, Pisão distingue aquelas que de fato
foram sustentadas historicamente daquelas que não são senão hipóteses argumentativas (cf.
superiores tres erant, quae esse possent, isto é, “as três anteriores eram hipóteses”, De finibus V,
20).
Quanto ao uso da hypothesis em retórica, é conhecida a distinção entre quaestiones infinitae
e quaestiones finitas que aparece em diversas obras de Cícero. No De finibus, a divisão aparece
no livro IV, na seção 6, em fala da personagem de Cícero87. Citamos:

“Pois tudo aquilo que se põe sob questão, contém ou uma controvérsia sobre o que é
geral, sem os indivíduos e as circunstâncias temporais, ou, acrescentadas tais coisas,
contém uma controvérsia quanto ao fato, quanto ao direito, ou quanto à
denominação”88.

Por fim, no De inuentione, quando trata das formas de narratio no discurso do orador, ou
seja, em um tipo de discurso que debate a respeito de circunstâncias particulares, Cícero se refere
a uma narração que se vale da ficção e que é designada pelo nome de argumentum: “o
argumentum é a ação forjada que, todavia, pode ter acontecido”89. Ora a terminologia parece
indicar que o autor está pensando em algo muito próximo daquilo que Sexto chamaria,
posteriormente, hypothesis trágica ou cômica, mesmo se no De inuentione a questão gire em
torno do uso da narração ficcional em uma argumentação retórica. É que a retórica pode bem se
servir da ficção, já que trabalha com o provável.
Pois bem, tomando esse uso da hypothesis na mimese poética, Trimpi examina alguns
trechos da Poética de Aristóteles e defende que, nessa obra, o autor grego pensaria a composição
de uma ação dramática particular (o enredo da Ifigênia em Táuride, por exemplo) como um

86
Carneadea nobis adhibenda diuisio est, qua noster Antiochus libenter uti solet. Ille igitur uidit, non modo quot
fuissent adhuc philosophorum de summo bono, sed quot omnino esse possent sententiae (De finibus V, 16).
87
Para um apanhado geral das passagens da obra ciceroniana em que a doutrina é mencionada, ver nossa nota à
seção 6 do livro IV.
88
Nam, quicquid quaeritur, id habet aut generis ipsius sine personis temporibusque aut his adiunctis facti aut iuris
aut nominis controuersiam (De finibus, IV, 6).
89
Cícero, De inuentione, I, 27: argumentum est ficta res quae tamen fieri potuit. Mais adiante, discutiremos um
pouco mais sobre o argumentum conforme Cícero o concebe.

42
movimento que parte de uma concepção mais geral (ação de certo tipo, caracteres de certo tipo),
análoga a uma suposição argumentativa, ou não muito distante de uma quaestio infinita, com
vistas ao estabelecimento, agora no plano particular (hypothesis), de uma ação que passa a ser
determinada e individualizada, quando são acrescentados os lugares, o tempo e os nomes das
personagens; ora, o resultado final está próximo daquilo que o orador trata em uma quaestio
finita, ou causa. Mais próximo ainda estaria de uma narratio como a que Cícero chama
argumentum. Para defender sua idéia, Trimpi se baseia no comentário que Aristóteles faz, no
capítulo XVII da Poética, a respeito do enredo da Ifigênia; na passagem, o filósofo diz que o
poeta, ao compor o enredo (o termo utilizado é genérico: lógos), deve, de início, supor em termos
gerais (ejktivqesqai kaqovlou), para depois expandi-lo em episódios. Quando Aristóteles
apresenta, então, um esboço geral da Ifigênia, nenhuma circunstância particular é estabelecida.90
Com efeito, a argumentação do autor de Muses of one mind parece concertar com o que diz
Aristóteles, no capítulo IX, a respeito do ofício do poeta: ele lida com o universal, ainda que
imponha aos personagens nomes, que são marcas do que é particular.91
No que diz respeito ao nexo entre as ações, além do mais, a necessidade é pouco relevante
no que é do âmbito humano, justamente o espaço em que ocorre a representação poética. Na
verdade, Aristóteles parece mesmo reconhecer que nas ações ordinárias da vida as relações
causais são bem menos marcadas do que as de um silogismo ou de um mu'qo" poético92. Ao tratar
de como se atinge a unidade da ação poética, no já mencionado capítulo VII, Aristóteles nega que
seja suficiente, para isso, a restrição da representação a uma só personagem, uma vez que existem
inúmeros eventos que dizem respeito a um só indivíduo, mas que não se encontram ligados de
modo necessário ou provável93. Já no capítulo IX, por meio de um contraste entre história e
poesia representativa, conforme víramos, o autor volta a afirmar que os elementos da vida
ordinária não são suficientes para garantir a ordenação que ele espera encontrar no conjunto de
ações representadas. Em 1451b27, por exemplo, depois de dizer que o poeta é poeta não porque
compõe versos, mas porque compõe mitos, isto é, porque representa ação humana entrelaçada por
liames causais, ele consente que

90
A passagem da Poética é 1455b1-55b11. Quanto à análise de Trimpi, cf. op. cit., pp. 50-51.
91
Cf. Poética 1451b6-10.
92
Cf. Halliwell, S., 1987, p. 105.
93
Poética, VIII, 1451a17 e ss.

43
“se, por acaso, ocorrer de compor a respeito de coisas que tenham acontecido, em nada
menos ele é poeta; pois dentre as coisas que aconteceram nada impede que algumas
tenham ocorrido tais quais possíveis e conforme o provável, e precisamente por isso,
aquele [que as representa] é poeta”.94

Dessa forma, ainda que a poesia represente ações humanas, que mantêm, de algum modo,
uma relação de semelhança com ações que os homens praticam ordinariamente no dia-a-dia, as
ações poéticas não poderão jamais ser concebidas como mera reprodução da vida ordinária. Pois
no mundo em que vivemos, tão numerosos são os eventos e eles se produzem de modo tão
variado, que é difícil conseguir enxergar quais sejam os nexos que podem (e devem) haver entre
cada um desses eventos. Assim, a poesia representativa jamais poderia ser, na concepção de
Aristóteles, “imitação da realidade”, isto é, não poderia ser uma reprodução narrativa ou
dramática de eventos ocorridos; ela seria antes a representação de ações que guardariam, sem
dúvida, o aspecto geral dos eventos cotidianos (pois tanto os eventos de uma vida quanto os da
representação poética são igualmente possíveis) e que, além disso, estariam organizadas em
partes que, intimamente ligadas, constituiriam uma unidade. As ações assim organizadas como
um mu'qo" seriam, por conta de sua ordenação lógica, algo muito mais inteligível e compreensível
do que o conjunto desordenado de eventos que ocorrem na vida. Ora, diz-nos o autor, mesmo se a
matéria representada for tomada de eventos da vida, de acontecimentos históricos, ela não é
tomada tal e qual. Cabe ao poeta, querendo criar a partir de eventos, selecionar, dentre os fatos
ocorridos, aquilo de que ele vai se servir e conferir aos fatos – agora um mu'qo" – uma unidade,
que talvez não fosse anteriormente reconhecível e que ele construirá ao agenciá-los em uma
seqüência de ações regulada segundo o necessário ou o provável.
Essa interpretação – devemos dizer – é autorizada por Halliwell, que, ao comentar os
capítulos VIII e IX da Poética, afirma:

“Aristóteles considera que a unidade poética, em geral, é algo que o artista deve
incorporar em sua obra e não algo que ele encontra já pronto no mundo. Muito do que
acontece no mundo não possui a unidade intrínseca do tipo que se conformaria ao
padrão aristotélico: é por isso que é insuficiente dramatizar a vida de um indivíduo

94
Ka]n a[ra sumbh/' genovmena poiei'n, oujqe;n h|tton poihthv" ejstin: tw'n ga;r genomevnwn e[nia oujde;n kwluvei toia
u'ta ei\nai oi|a a]n eijko;" genevsqai kai; dunatav genevsqai, kaq j o} ejkei'no" aujtw'n poihthv" ejstin. (Aristóteles,
Poética, 1451b30-33).

44
particular. Esse ponto vai se ligar com a distinção estabelecida no próximo capítulo
[capítulo IX] entre a história, que trata de eventos contingentes e, até mesmo, muitas
vezes, incoerentes e as estruturas de universais que a poesia é capaz de dramatizar.
Assim, torna-se claro, gradualmente, que a mimese poética não é, certamente, para
Aristóteles, uma questão de realismo direto. A poesia deve, de algum modo, fazer mais
sentido do que muito do material cru da vida faz, e essa inteligibilidade mais elevada é
uma parte e uma parcela do que Aristóteles entende por unidade”.95

Passemos a tratar da maneira como Aristóteles concebe a composição dos agentes das
ações representadas, algo a que ele se refere no trecho que citamos do capítulo IX da Poética.
Antes, porém, voltemos a atenção para o capítulo VI e observemos como, ao distinguir as partes
constituintes da poesia trágica, ele se refere a essa parte que nós estamos chamando
“personagem”, a fim de que possamos decidir se podemos nos servir, no estudo do diálogo
filosófico, das idéias que são ali apresentadas.
A idéia que fazemos aqui de personagem advém das discussões apresentadas por
Aristóteles em torno dos agentes de uma ação dramática; é a categoria que Aristóteles esboça
quando reflete a respeito dos pravttonte"96 em 1450a17. Nessa passagem, um texto que para nós
soa extremamente redundante (o que é natural, uma vez que o autor pretende elucidar os
elementos primeiros da poesia, que hoje, afinal, representam o fundamento de toda teoria
poética), ele considera que,
“como a tragédia é representação de uma ação que é praticada por homens que agem
(uJtov tinwn prattovnton), os quais devem ser de certo tipo (poiouv" tina") conforme o
caráter (h\qo") e o pensamento (diavnoian) – pois é por causa disso que nós dizemos que
as ações são de certo tipo (poiav" tina") – dá-se, naturalmente, que duas são as causas
das ações: o pensamento e o caráter. E, de acordo com essas [as ações], todos têm boa
ou má fortuna”97.

Mais adiante, volta a tratar desses dois elementos:

95
Halliwell, op. cit., pp. 102-103.
96
No texto de Aristóteles, o termo vem no genitivo plural, como reproduzimos a seguir.
97
!Epei; de; pravxewv" ejsti mivmhsi", pravttetai de; uJpov tinwn prattovntwn, ou}" ajnavgkh poiouv" tina" ei\n
ai kata; te to; h\qo" kai; th;n diavnoian (dia; ga;r touvtwn kai; ta;" pravxei" ei\naiv famen poiav" tina"), pevfuke
n ai[tia duvo tw'n pravxewn ei\nai, diavnoian kai; h\qo", kai; kata; tauvta" kai; tugcavnousi kai; ajpotugcavn
ousi pavnte" (Aristóteles, Poética, 1449b35-1450a3).

45
“[chamo] de caracteres aquilo mediante o qual nós dizemos que os homens que agem
são de certo tipo e, de pensamento, quantas coisas por meio das quais aqueles que
falam demonstram algo ou manifestam uma reflexão”98.

Num primeiro momento, discutamos se a teoria exposta autoriza-nos a utilizar essas duas
categorias para tratar de personagens de poemas que não sejam dramáticos. A questão não é tão
simples, pois numa passagem anterior99, Aristóteles deduzira, a partir da presença de
pravttonte", a existência necessária de uma das partes da tragédia: o espetáculo (o[yi"). Ora, essa
parte se refere diretamente ao desempenho dos atores diante do público, o que acaba por conferir
a pravttonte", “homens que agem”, nessa ocorrência, o sentido de atores100. Entretanto, quando
considera os “homens que agem” mediante os conceitos de “caráter” e “pensamento”, e não mais
sob a dependência do “espetáculo”, o autor nos permite estender o conceito de pravttonte" aos
demais gêneros miméticos. De fato, quando volta a mencionar, retomando a exposição, o
espetáculo no fim do capítulo VI101, mesmo considerando-o um elemento que toca afetivamente o
público (yucagwgiko;n)102, Aristóteles o exclui daquilo que é próprio da arte poética, relega-o à
arte dos que trabalham materialmente a cena (skeuopoiou') e afirma que a tragédia conserva sua
potencialidade (duvnami") mesmo sem o concurso ou atores103. Com isso, parece-nos que aquilo

98
levgw (...) ta; de; h[qh, kaq j o} poiouv" tina" ei\nai famen tou;" pravttonta", diavnoian dev, ejn o{soi" levgo
nte" ajpodeiknuvasiv ti h] kai; ajpofainontai gnwvmhn (1450a5-7).
99
1149b31. Note-se, entretanto, que Dupont-Roc e Lallot traduzem prattovnte" nesta passagem por “personnages
en action”, provavelmente já interpretando o termo a partir do que se afirma ao longo do capítulo.
100
Uma vez que também a épica, por exemplo, representa homens que agem e nem por isso conta com o elemento do
espetáculo como uma de suas partes constituintes, ao menos na concepção que Aristóteles tem da épica.
101
1450b16-20.
102
E isso é fundamental, como sabemos, em sua concepção de tragédia.
103
O tratamento dado por Aristóteles ao espetáculo não deixou de surpreender os estudiosos da Poética. De fato, por
um lado, como elemento que define o modo de representação da tragédia (cujo estudo é objeto principal do tratado
no estado em que nos chegou), conforme afirma o autor em 1450a13, ele “implica tudo” (o[yi" e[cei pa'n), isto é,
todas as outras partes da tragédia (trata-se da leitura feita por Dupont-Roc e Lallot). Por outro lado, o filósofo
considera essa parte como a mais alheia à arte do poeta (ajtecnovtaton - 1450b19), considerando, por exemplo, que o
efeito de uma peça trágica, a excitação do terror e da comiseração, é independente da encenação; quem ouve a
história de Édipo se arrepia de terror da mesma forma que quem a vê (1453b1-11). Entretanto, como notam Dupont-
Roc e Lallot (op. cit., p. 210), toda reflexão a respeito do bom agenciamento dos elementos da representação que
encontramos no capítulo XVII (cf. especialmente 1455a22-25) se faz sob o crivo do espetáculo. Na passagem
1453b1-11, porém, a atenção de Aristóteles se volta para o mu'qo", elemento mimético por excelência que permite
tanto o prazer intelectual descrito no capítulo IV, quanto a mudança de fortuna que é condição para a moção dos
afetos próprios à tragédia. Halliwell (op. cit., pp. 7-9 e 97-98) tenta explicar a presença desse paradoxo por meio da
indicação de duas posturas presentes na investigação de Aristóteles. Por um lado, uma tendência que se ajusta mais
coerentemente à concepção teórica do tratado e que pretende afastar a tragédia de seu elemento performático.
Aristóteles, por razões que derivam de sua filosofia, considera que é o mu'qo", elemento primordial da mimese

46
que o autor diz sobre os “homens que agem”, considerados sob o ponto de vista do caráter e do
pensamento, pode ser – em grande medida – utilizado para a compreensão de gêneros miméticos
não dramáticos, como a epopéia (a que o próprio filósofo aplica os conceitos) e o diálogo
filosófico.
Não obstante, temos que nos acautelar e separar aquilo que pode ser restrito à tragédia (ou,
ainda que não seja restrito, não seja, por outro lado, diretamente aplicável ao diálogo filosófico).
Parece-nos, contudo, que o essencial pode se aplicado a outros gêneros miméticos. Se for assim,
temos a informação relevante de que é a partir do tipo de personagem e dos pensamentos que eles
manifestam por meio de suas falas que nós qualificamos a ação que é representada. Dupont-Roc e
Lallot (op. cit., p. 196) advertem que o uso do termo h\qo" para indicar o elemento que qualifica o
agente mimético como certo tipo de homem104, de uma parte, e também a afirmação de que a
ação só ganha seu valor moral a partir da disposição ética do indivíduo que a realiza, sobretudo a
partir da escolha deliberada (proaivresi"), que se manifesta na poesia, por meio do pensamento
(conforme se vê em 1050b9), de outra parte, fazem do agente da ação representada um homem do
mesmo tipo daquele que é estudado na parte ética da filosofia de Aristóteles (cf. Ética a
Nicômaco II, 1105a30 e ss.). Entretanto, conforme sublinham os autores franceses, a perspectiva
que aqui se apresenta é ligeiramente diferente do que encontramos na Ética: neste trecho da
Poética, o filósofo parece exigir uma qualificação dos agentes, porque as ações devem, elas
também, ser qualificadas. O foco se coloca, visivelmente, sobre as ações, não sobre os agentes.105

trágica, que proporciona o prazer intelectual descrito no capítulo IV e, por outro lado, que produz a mudança de
fortuna que é condição para a moção dos afetos próprios da tragédia. Por outro lado, percebe-se uma tendência
empírica, que concede ao espetáculo, como elemento presente na manifestação artística, que é essencialmente
performática, o valor mesmo de elemento provocador de afetos, mas, que deve estar subordinado à estória. A tudo
isso, liga-se um dado cultural, também apontado por Halliwell, que pode ter contribuído para a rejeição do
espetáculo como elemento próprio da arte do poeta. Há indícios de que, no século IV, a arte do ator e o ofício do
produtor de cena se desenvolviam em direção contrária aos valores dramáticos caros a Aristóteles, como a unidade
de ação (cf. Retórica III, 1, 4, em que o autor diz que os atores de sua época tinham mais poder do que os poetas).
Seja como for que se resolva a contradição no tratamento do espetáculo (se é que ela pode ser resolvida), o mais
importante para o nosso estudo é que, dando importância a outros elementos do drama que não a performance,
Aristóteles nos conferiu o aparato teórico apropriado também para o estudo dos gêneros miméticos não
performáticos.
104
Algo que faz referência à distinção estabelecida no capítulo II entre os dois tipos de homens que podem ser
representados: o grave (spou'daio") e o vil (fau'lo").
105
Dupont-Roc e Lallot, op. cit., p. 196: “Mais, à y regarder de près, on voit que, si les données fondamentales de
l’éthique sont effectivement prises en compte ici, la perspective où elles apparaissent est originale : la parenthèse, en
expliquant (gar 1449a31) la nécessité d’une qualification des actants selon le caractère et la pensée par la
qualification des actions en référence à ces mêmes données, renverse la perspective de l’éthique. Ce qui est au
premier plan ici, c’est non plus l’agent, mais l’action, et, parce que cette action doit être qualifié en termes éthiques,
les actants doivent l’être également”.

47
De fato, já desde o início do capítulo, podemos observar indícios de uma ênfase que, na tragédia,
será colocada na ação. A tragédia, por exemplo, é definida como “representação de uma ação
v tin ... tragw/diva mivmhsi" pravxew")”106; ora, de modo significativo, o mu'qo" é tratado como
(ejs
“representação da ação (e[stin de; th'" me;n pravxew" oJ mu'qo" hJ mivmhsi")”107. Se recordarmos
que, no início do tratado, na primeira frase do capítulo IV, quando se fala ainda da mimese em
geral, encontramos a seguinte expressão: “uma vez que aqueles que representam, representam
homens que agem (...)”, torna-se clara a mudança de foco que se dá quando se passa a investigar
especificamente o poema trágico. Essa ênfase na ação explica a imagem, estabelecida pelo autor,
que faz do mu'qo" como que a alma (yuchv) da tragédia (1050a38). Além disso, é a partir dessa
concepção que, no trecho em que Aristóteles novamente relaciona “ação” e “caráter” como partes
da mimese trágica, este último aparece completamente subordinado àquela.
Vejamos: é ainda o capítulo VI e o autor acaba de enunciar todas as seis partes constituintes
da tragédia:

“O elemento mais importante, porém, é a coordenação das ações; pois a tragédia é


representação não de homens, mas de ação e de vida; e tanto a felicidade quanto a
infelicidade se encontram na ação; e mesmo o fim (tevlo") é uma ação, não uma
qualidade. E, se por um lado, mediante os caracteres, os homens são de certo tipo, é
mediante as ações que eles são felizes ou o contrário. Portanto, não é com vistas a
representar caracteres que eles agem, mas assumem caracteres ao mesmo tempo
(sumperilambavnousi) [que agem] e por causa das ações [que praticam]. Desse modo,
as ações e o mito108 são o fim último (tevlo") da tragédia; e o fim é o mais importante
de tudo.”109
É evidente que, se o caráter aqui deve se manifestar pela ação, de modo que possamos
conhecer o agente e qualificar suas disposições morais à medida que ele age, essa é uma
exigência do gênero mimético de que se está tratando. É porque a tragédia deve ter como efeito

106
1449b24.
107
1450a3.
108
Isto é, as ações e a maneira como elas estão organizadas.
109
Mevgiston de; touvtwn ejsti;n hJ tw'n pragmavtwn suvstasi": hJ ga;r tragw/diva mivmhsi" ejstin oujk ajqrwvpwn ajll
a; pravxew" kai; bivou kai; eujdaimoniva" < kai; kakodaimoniva < ejn pravxei ejstiv, kai; to; tevlo" pra'xiv" ti" ejstiv
n, ouj poiovth". Eijsi; de; kata; me;n ta; h[qh poioiv tine", kata; de; ta;" pravxei" eujdaivmone" h] toujnantivon.
Ou[koun o{pw" ta; h[qh mimhvswntai pravttousin, ajlla; ta; pravgmata kai; oJ mu'qo" tevlo" th'" tragw/idi'a":to; d
e; tevlo" mevgiston aJpavntwn (1450a15-23).

48
próprio a excitação dos afetos de terror e comiseração110, que a ação se sobrepõe ao caráter. Pois
tal efeito é alcançado primordialmente por meio de elementos da ação, tais como a mudança de
fortuna (cf. 1452a16), o reconhecimento e a peripécia (cf. 1452a39-1452b2). Ora, não nos parece,
portanto, que a subordinação do caráter à ação deva ser um traço de todo poema mimético. Se
concebermos que a excitação dos afetos próprios à tragédia não faz parte da finalidade do diálogo
filosófico (o que nos parece aceitável), a relação entre caráter, ação e pensamento nesse gênero
deve ocorrer de outra maneira.
Pois bem, vejamos de que maneira, além dessas, estão relacionados esses elementos que
representam, no gênero trágico, os objetos representados. Em 1450b4, novamente o pensamento é
mencionado, ao longo de uma enumeração: “o terceiro111 é o pensamento: ele consiste na
capacidade de falar o que é pertinente (ta; ejnovnta) e o que é apropriado (ta; aJrmovttonta)”.112
De modo um pouco surpreendente, o autor volta, logo a seguir, a tratar do caráter e do
pensamento, em uma espécie de quiasmo:

“O caráter é aquilo que é de tal modo a manifestar um certo tipo de decisão; por isso,
não possuem caráter as palavras nas quais não se encontra absolutamente aquilo que
escolhe ou evita aquele que fala. Já o pensamento consiste naquelas coisas por meio
das quais se demonstra que algo é ou que não é, ou por meio das quais se manifesta um
enunciado universal”.113

Já havíamos nos referido à relação que existe entre o caráter do agente mimético, que
chamamos personagem, e a tomada de uma decisão que, em última instância, permite que nós
qualifiquemos a personagem e a ação. Num segundo movimento, víramos que, na tragédia, por
conta do fim almejado por esse gênero, a ação é mais importante do que o caráter e este se
manifestaria por meio das ações praticadas pela personagem. Caráter, refletindo segundo esse
ponto de vista, implica a manifestação da decisão tomada pela personagem na ação que ela

110
Como quer que eles venham a ser amplificados ou mitigados por algum tipo de purgação. Não entraremos aqui,
deliberadamente, na controversa questão da kavqarsi".
111
A enumeração, que segue em ordem decrescente de importância, já contara ação e caráter, mas o que se afirma
sobre o caráter não acrescenta nada ao que fora dito antes.
112
Trivton de; hJ diavnoia. Tou'to d j ejsti; to; levgein duvnasqai ta; ejnonta kai; ta; aJrmovttonta.
113
#Esti de; h\qo" me;n to; toiou'ton o{ dhloi' th;n proaivresin, oJpoi'a ti", ejn oi|" oujk e[sti dh'lon, h] pro
airei'tai h] feuvgei (diovper oujk e[cousin h\qo" tw'n lovgwn ejn oi|" mhd j o{lw" e[stin o{ ti proairei'tai h] feuvg
ei o levgwn). Diavnoia dev, en oi|" ajpodeiknuousiv ti wJ" oujk e[stin h[ wJ" oujk e[stin, h[ kaqovlou ti ajpofaivnont
ai (1450b8-13).

49
realiza. Já em 1450b4, tanto caráter quanto pensamento associam-se ao discurso. Nessa
passagem, Aristóteles diz que o caráter pode também se manifestar no discurso, isto é: nós
podemos qualificar a personagem quando somos informados do que ela almeja e daquilo que ela
rejeita, mesmo que nenhuma ação seja praticada.
Quanto ao pensamento, é bem verdade que desde a primeira menção ao conceito ele já
aparecera relacionado ao dizer. O que, convenhamos, não poderia ser diferente, quando se trata
de um gênero dramático, como a tragédia, em que a maior parte das informações que temos a
respeito dos movimentos psicológicos da personagem nos é proporcionada por suas falas114. De
qualquer modo, toda a parte final do capítulo VI associa de maneira extremamente íntima caráter
e pensamento, a ponto de fazer com que os dois por vezes se sobreponham como complementares
– ainda que se mantenham distintos – uma vez que ambos podem ser manifestações discursivas
de valores éticos (ora, há o discurso que manifesta o que se escolhe ou o que se evita) quer
pertinentes a uma situação particular (ta; ejnovnta), quer apropriados (ta; aJrmovttonta), ainda que
em forma de asserção universal (kaqovlou ti)115.
Dupont-Roc e Lallot (op. cit. pp. 199-208, especialmente notas 9 e 16) procedem mesmo à
distinção entre dois sentidos de “caráter”. Eles se servem da dupla forma de manifestação que
pode ter esse elemento (quer por meio da ação, quer por meio da fala), para tentar compreender o
que Aristóteles quer dizer quando afirma que pode haver tragédias sem caráter. Sob um de seus
aspectos, conforme pensam os autores citados, o caráter é essencial à concepção aristotélica de
tragédia: do caráter que se manifesta na ação e que nos permite qualificar o mu'qo", a tragédia não
pode estar privada. Por outro lado, não seria indispensável que as falas das personagens
evidenciassem suas decisões, desde que elas estivessem já claras nas ações praticadas. Sob esse
aspecto, a tragédia pode estar privada de caráter, pois ela, mesmo não sendo a forma mais
excelente de drama trágico, alcança seus efeitos pela ação, que se encontra, de todo modo,
qualificada116. Uma tragédia assim desprovida de discursos que manifestem o caráter, seria como
um desenho sem cores, o que, na concepção de Aristóteles, é o suficiente para proporcionar o
prazer mimético que consiste no reconhecimento da operação representativa, isto é, o

114
Outra fonte, sem dúvida, consiste nas falas de uma personagem que comentam o estado emocional de uma outra.
115
Dupont-Roc e Lallot, op. cit., p. 208: “on peut songer à mettre en rapport la démonstration avec les ennonta de
1450b5 désignant le contenu objectif de la situation, et la maxime avec les harmottonta, impliquant plus nettement
un jugement de valeur et, de ce fait, un engagement éthique; par ce dernier trait, la pensée se rapproche du caractère,
le choix de telle ou telle maxime ayant le double effet, dans une situation donnée, de manifester les dispositions
éthiques de celui qui parle et d’indiquer un point de vue sur la situation”.
116
Cf. Poética, 1450a29-35.

50
reconhecimento da relação que se estabelece entre o objeto representado e o que existe no mundo
(cf. capítulo IV)117.
Se nos alongamos na discussão a respeito dessas duas formas de manifestação do caráter,
isso se deve ao fato de considerarmos que o diálogo filosófico, que não parece ter como
finalidade primordial a moção de afetos como terror ou comiseração, e que, de modo não
surpreendente, tem um agenciamento de ações bem menos complexo do que um mu'qo" trágico,
parece, em contra partida, desenvolver, bem mais que a tragédia, o caráter, sobretudo se
entendermos esse elemento no sentido que é menos próprio ao da tragédia, isto é, como
manifestação das disposições éticas da personagem por meio de seus discursos, o que, como
vimos, aproxima-o do pensamento, sobretudo quando, por meio de discursos não apenas
pertinentes a uma situação particular, mas, sobretudo, apropriados e voltados ao universal,
manifesta-se aquilo que a personagem busca como meta e aquilo que ela evita. Não queremos,
com isso, relacionar diretamente o diálogo à espécie trágica que é a “tragédia ética”, mencionada
em 1056a1 e em 1059b9. Mesmo porque não é claro o que o autor da Poética entende exatamente
por isso e porque o tevlo" do diálogo, conforme discutiremos no segundo capítulo, ainda que nem
sempre seja facilmente apreensível, não é o mesmo da tragédia118. Queremos apenas sugerir que
esse elemento, que está presente em todas as formas miméticas de poesia, o caráter, e que na
tragédia se apresenta sob mais de uma forma, é especialmente desenvolvido do diálogo filosófico,
sobretudo nessa subespécie, já presente na tragédia, em que ele se associa intimamente ao
pensamento. Recordemos que o autor da Poética relega o estudo do pensamento à arte retórica
(cf. 1456a33-1456b2). Ora, se, por um lado, Aristóteles já reconhece nos tragediógrafos mais
recentes uma tendência a confeccionar os discursos das personagens de acordo com os preceitos
da arte retórica e da sofística (cf. 1450b4-8), não podemos ignorar a tensão, presente na obra de
Platão, entre essas modalidades de discurso e aquela que pretende estabelecer seu mais freqüente

117
A menção a uma tragédia sem caracteres é feita em 1450a23 e, logo após, estabelece-se uma comparação com a
arte da pintura, que é interpretada por Dupont-Roc e Lallot (op. cit.) na página 205, nota 12, que se conclui assim:
“mais le poète peut aussi donner la parole à des personnages qui ‘représentent des caractères’ (1450a20) directement,
par exemple dans de tirades (rhèseis èthikas, 1450a29) complaisamment travaillées pour elles-mêmes et mises bout à
bout (ephexès) ; or cette façon de ‘mettre du caractère’ n’a rien d’indispensable et c’est la tragédie qui n’y recourt
pas qui peut être dite ‘dépourvue de caractère’: les personnages y sont pourtant qualifiés, mais uniquement par
l’intermédiaire de leurs actions (dia tas praxeis, 1450a20).”
118
Defenderemos que o diálogo ciceroniano tem uma finalidade bem clara, sem querer estender, entretanto, a
conclusão para os diálogos platônicos, cujo contexto de composição é bem menos conhecido do que o das obras de
Cícero.

51
protagonista. Não deixa de ser interessante, diga-se de passagem, que esse protagonista seja, por
vezes, confundido com um sofista119.
Voltemos agora à questão que nos impeliu a percorrer essas passagens que falam do h\qo"
trágico, a saber: as reflexões sobre a matéria da poesia, sobre a tarefa maior do poeta e sobre a
relação que pode existir entre o objeto representado na poesia e os eventos de onde ele pôde ter
sido tomado. Tudo isso era tema do capítulo IX.
Recordemos que, na passagem citada (Poética, 1451b1-12), Aristóteles trata da composição
das personagens em termos que relacionam todos os elementos que são tidos como objetos da
representação e os submetem aos mesmos critérios lógicos que garantiam a unidade e a
inteligibilidade do mu'qo". O poeta, diferentemente do cronista histórico, lida com o universal, o
que, segundo o teórico, consiste em descobrir “a que tipo de homem (tw'/ poivw)/ cabe dizer ou
fazer que tipo de coisa (ta; poi'a a[tta) segundo o provável ou o necessário” e, a partir disso,
constituir a representação. É evidente a continuidade que existe entre essa afirmação e todo o
tratamento dado à ação, ao caráter, e ao pensamento que encontramos, há pouco, no capítulo VI.
Interpretando o texto por meio dos elementos que já temos, poderíamos dizer que tratar do
universal em poesia é reconhecer qual é o tipo de ação, por um lado, e que tipo de pensamento
convém ser atribuído a um determinado caráter de modo que todos esses elementos estejam bem
organizados e, assim, possamos admitir as relações que eles mantêm entre si ou porque elas não
poderiam ser de outro modo, ou porque elas parecem com aquilo que ocorre na maior parte dos
casos semelhantes que nós conhecemos e, por isso, são, ao menos, aceitáveis.
A discussão sobre a construção do caráter de uma personagem trágica é desenvolvida de
maneira mais extensa no capítulo XV da Poética. Ali, Aristóteles, analisando essa categoria em
seus elementos constitutivos, enumera aqueles que julga colaborarem para a obtenção do efeito
próprio da tragédia. Por conta disso, novamente temos de nos resguardar, a fim de não aplicarmos
à mimese em geral aquilo é particular de um gênero apenas. O primeiro elemento é a qualidade
moral120. O fato de que o caráter deva ser bom (crhstov")121 decorre diretamente do tipo de

119
Como na cômica passagem do Protágoras, em que Sócrates, batendo à porta da casa de Cálias, é de início
rechaçado pelo eunuco, guardião da entrada, que diz que ali já se encontravam sofistas demais.
120
Para evitar problemas, não se deve entender “qualidade moral” como “excelência moral”. A argumentação de
Aristóteles sugere que a personagem deve se aproximar mais da virtude do que do vício. Conforme diz o próprio
autor da Poética, a personagem excelente, quando sofre, não causa no público terror e comiseração, mas indignação.
121
O termo não tem uma tradução simples, pois recobre em grego um campo semântico que vai de “útil”, “aquilo de
que se pode servir”, a “o que é de boa qualidade” e, no sentido moral, que parece ser o caso aqui: “honesto,
virtuoso”. Devemos ter mente, entretanto, o que se disse na nota anterior.

52
objeto que é próprio da tragédia, a qual, como vimos, trata de uma ação grave, cujo agente, que a
qualifica, só poderia ser grave (spoudai'o"). Essa característica, na tragédia, parece consistir no
fato de os agentes estarem arduamente empenhados em buscar boas metas ao praticarem as ações
que são representadas. Na interpretação de Halliwell, as personagens trágicas agem na ação
representada, de forma análoga àquela que nós agimos em nossa vida cotidiana, isto é, almejando
alcançar a felicidade por meio de ações. Mas a qualidade moral da personagem é essencial nesse
gênero poético, sobretudo porque é ela que garante (cf. 1452b34-1453a16) que a ação perniciosa
de que padecerá a personagem excite no espectador (ou no leitor) os afetos de terror e de
comiseração. Ora, deixando de lado a moção desse gênero de afetos, que, conforme vimos
dizendo, não parece ser a finalidade do diálogo filosófico, julgamos que a qualidade moral do
caráter desempenha papel importante no diálogo. Esse elemento, contudo, é mais facilmente
reconhecível no diálogo ciceroniano. Pois, em Platão, o caso de Sócrates é complexo e envolve,
por vezes, a comunhão de elementos graves e baixos. A personagem, que tem como um de seus
traços mais marcantes a ironia e cujas atitudes muitas vezes se aproximam do cômico, serve-se
desses traços para discutir assuntos graves, como, por exemplo, o tipo de vida que os homens
devem seguir e que metas devem buscar. Muitas vezes, de modo hábil, um Sócrates cômico
(como o do Íon, por exemplo) parece ridicularizar a personagem grave. Dessa forma, ele parece
mesmo, ao fim da discussão, inverter os papéis, de modo a se mostrar mais grave do que a
personagem sóbria, que, por sua vez, termina exposta ao ridículo122.
Em segundo, Aristóteles considera que as personagens devem ser apropriadas
(aJrmovttonta). A explicação dada a esse elemento nos a leva a pensar justamente no que
Aristóteles afirmara no capítulo IX, isto é, que as ações da personagem e seus pensamentos

122
Conforme dissemos, causa problema atribuir de modo simples a gravidade às personagens dos diálogos
platônicos. Não é raro encontrarmos, mesmo quando as questões discutidas são as mais sérias, elementos do cômico.
Nos diálogos de Cícero, entretanto, o traço da gravidade, revestido de valores romanos, é elemento fundamental e
bem mais uniforme. Como se pode observar no De finibus, por exemplo, há em Cícero um menor espaço para o
elemento cômico e, quando ele aparece, trata-se de um cômico bem mais comedido do que aquele que podemos ver
em algumas passagens de um Protágoras, de um Banquete ou de um Górgias, para citar apenas alguns exemplos. O
humor ciceroniano, nos diálogos, é constituído de acordo com as exigências de urbanitas. Trata-se de uma graça
mais refinada e menos agressiva, adequada a esses encontros familiares entre cidadãos ilustres da república romana
que, mesmo isentos das obrigações públicas, jamais abandonam completamente sua dignitas de optimates. O riso e a
zombaria no diálogo ciceroniano não são jamais desenfreados, ao menos quando trocados entre as personagens
presentes. Entre si, elas sorriem levemente, sem perder o decoro e o respeito por seus interlocutores. Cf. De finibus I,
26: tum Triarius leniter arridens. Notem-se, ainda, os sorrisos cordiais de Torquato (II, 119) e de Pisão (V, 8 e 86).
Por outro lado, quando critica, em tom sarcástico, a obtusidade dos estóicos em De finibus IV, 50, a personagem de
Cícero faz questão de enfatizar que a censura não se aplica a Catão, com quem ele discute: illud uero minime
consectarium, sed in primis hebes, illorum scilicet, non tuum.

53
devem ser representados de modo ajustado a seu caráter. Não convém, por exemplo, que uma
personagem feminina seja viril. Esse elemento, a partir do que vemos no capítulo IX, pode ser
aplicado a outros gêneros que não a tragédia. Entretanto há que se fazer certa ressalva, pois o
gênero cômico pode se servir da inadequação de uma personagem para dela extrair o ridículo, de
modo que seria esse um traço mais importante nos gêneros sérios, sobretudo. Algo, portanto, que
devemos encontrar nas obras dialógicas de Cícero.
O terceiro elemento é controverso. Aristóteles não fala do que seja o caráter “semelhante”
v oion) senão negativamente, distinguindo a categoria das duas precedentes. Halliwell123
(oJm
considera que, se o autor não parece sentir a necessidade de tratar de modo mais extenso desse
elemento é porque ele se fundamenta nos critérios de probabilidade e necessidade, tratados no
capítulo IX, no passo que mencionamos anteriormente, mas, de qualquer modo, julga que é difícil
precisar qual seja o sentido de “semelhança”. Desse modo, em sua opinião, esse elemento diz
respeito ao que se discute, no capítulo XIII, sobre a necessidade de que a personagem seja,
moralmente, semelhante a nós: isto é, que não se exceda muito nem na virtude nem no vício,
característica que é necessária para a moção dos afetos próprios da tragédia. Existiria, dessa
forma, uma tensão entre semelhança e bondade, de modo que a personagem trágica, ainda que
deva tender ao bem, não pode se elevar extremamente em virtude, sob o risco de não provocar
terror e comiseração no público. Se a interpretação de Halliwell é a correta, trata-se, também
aqui, de um traço próprio da tragédia.124
O quarto elemento é a consistência. Ser homogêneo (oJmalovn), ou consistente, parece ser
um traço esperado na composição da personagem não apenas na poesia trágica. Interessante é a
célebre ressalva de que o objeto representado, portanto, o “homem que age”, ainda que seja
inconsistente, deve ser consistentemente inconsistente. Cabe notar que pode haver na passagem,
se seguirmos o texto com que trabalham Dupont-Roc e Lallot, uma referência, estabelecida pelo
particípio uJpotiqeiv", entre o objeto representado e algo que lhe serviria de modelo125. Isso faz os
autores franceses argumentarem que Aristóteles distingue aqui a exigência que se faria ao h\qo"
de um homem qualquer, a um tipo de homem, que deve ser moralmente consistente, da exigência

123
Halliwell, S. op. cit., p. 142.
124
Poderíamos mesmo observar em alguns diálogos de Platão o abandono completo desse tipo de princípio. Ao
representar por meio de Sócrates o homem moralmente excelente (mesmo quando se serve de elementos do cômico
para ridicularizar seus interlocutores) que padece de um sofrimento injusto, o autor poderia estar querendo suscitar
nos leitores justamente a indignação, de que Aristóteles pretende isentar a tragédia.
125
Recordemos ainda a argumentação de Trimpi (1983), exposta anteriormente.

54
poética que cobra do h\qo" fictício, aquele da personagem particular representada, uma coerência
interna. Ainda que ele seja moralmente inconsistente, mude de atitude ao longo do drama, ou
revele, por algum outro modo, um desacordo moral, as mudanças e a incoerência devem se
apresentar ao público de modo provável.
Tratemos mais, portanto, da relação que pode haver entre um tipo de caráter e o caráter
representado na personagem. O fato de atribuir nomes às personagens, que é uma operação de
particularização, não contradiz, segundo Aristóteles, o processo de representação tal qual descrito
no capítulo IX. A personagem particular que desempenha ações particulares é construída a partir
de formas gerais de caráter e, suas ações são compostas, pelo autor, segundo formas gerais de
ação. Mesmo que personagens e ações sejam tomadas de eventos acontecidos e, portanto,
particulares (pensemos numa tragédia que se serve de elementos históricos, como os Persas de
Ésquilo, por exemplo), elas serão organizadas arbitrariamente pelo autor, que deverá dispô-las de
modo que se desenhem, entre elas, relações causais claras e compreensíveis. Segundo entende
Aristóteles, a personagem, ou seja, a relação que se estabelece entre caráter, ação e pensamento, é
constituída, pelo poeta mimético, por meio de um conhecimento que é da ordem da filosofia
ética126. O poeta, assim concebido, poderia conhecer os diversos gêneros de caráter e as ações e
pensamentos que a eles podem ser atribuídos conforme o que é provável127.
Reencontramos esse tipo de raciocínio em um autor da tradição latina. Horácio, célebre
poeta da época de Augusto, refletiu sobre a composição poética na carta a que a tradição se refere
como Arte poética. Alguns pontos da teoria exposta pelo autor latino parecem estar em
concordância com o pensamento aristotélico. De fato, o texto de Horácio desenvolve o problema
com um maior recurso a exemplos. Citamos, primeiramente, um trecho em que a questão gira em
torno da adequação entre a fala e o caráter das personagens:

“Importância grande terá se é uma divindade quem fala, ou um herói,


se um velho, já maduro, ou homem no ardor

126
Outros conhecimentos serão também indispensáveis, como os que são do âmbito da física, visto que a poesia, na
concepção de Aristóteles, deve se ocupar do que é possível. Não queremos dizer com isso que o poeta, seja ele qual
for, deve ser, antes de poeta, estudioso da moral. Mas, na concepção que Aristóteles faz do poeta, parece que tanto o
poeta quanto o estudioso da moral (ora, e ainda o orador) levam em conta, de modo diferente, é certo, o estudo dos
tipos de caracteres humanos.
127
Façamos uma importante ressalva, entretanto: Aristóteles concebe a possibilidade de que o poeta não opere com
técnica, mas por natureza (dia; fuvsin). É o que se deduz da passagem em que se fala da excelência de Homero no
que diz respeito à unidade no agenciamento das ações (cf. 1451a23-24). Sabemos como é fecunda essa discussão,
retomada por Horácio, por exemplo, em sua Ars Poetica (cf. 408 e ss.).

55
de uma florescente juventude; uma matrona poderosa ou dedicada nutriz,
se mercador errante, ou cultivador de um terreninho verdejante,
homem da Cólquida ou da Assíria, de Tebas um rebento, ou de Argos.”128

Segundo a concepção de Horácio, portanto, o poeta deve conformar as falas de suas


personagens ao tipo de caracteres que elas representam. Veja-se que, para isso, o escritor deve
conhecer, de antemão, uma série de diferentes tipos humanos e de diferentes tipos de
expressão129. O ajuste que o poeta deve criar entre esses dois elementos da representação, caráter
e fala, está submetido, conforme se vê nos versos 113-114, à apreciação do público, isto é, à
opinião difundida entre todos com relação ao modo como se expressam cada um desses tipos
universais como velhos ajuizados, jovens impetuosos, etc. Se a composição não apresentar essa
qualidade, a reação do público é contrária à esperada pelo poeta.
Um esboço desse tipo de conhecimento, que, também tratado pela filosofia moral, pode
auxiliar o poeta, é feito por Horácio em um trecho da carta em que ele trata não mais da elocução
especificamente, mas de elementos da res do poema:130

“De cada idade o caráter (mores) tu deves assinalar,


e deves dar o que é conveniente às naturezas e aos anos, mutáveis.
O menino que já sabe repetir as palavras e que com pé seguro
marca o solo exulta por brincar com seus iguais; à ira
ele se livra e sem motivos a abandona; muda de uma hora para outra.
O jovem imberbe, enfim afastada a vigilância,
se diverte com cavalos e cães e com a grama do Campo, ensolarada;
128
“Intererit multum diuusne loquatur an heros, / maturusne senex an adhuc florente iuuenta / feruidus, et matrona
potens an sedula nutrix, / mercatorne uagus cultorne uirentis agelli, / Colchus an Assyrius, Thebis nutritus an Argis
(Horácio, Epistula ad Pisones, 114-118).” Apresentamos aqui, bem como nas citações seguintes, o texto estampado
na seguinte edição: Horace, Epistles – Book II and Epistles to the Pisones (Ars Poetica). Edited by Niall Rudd.
Cambridge: CUP, 1989.
129
Não podemos defender, entretanto, nem é nosso intuito, que um determinado poeta tenha chegado a conhecer
muitos caracteres por meio da observação; ou que ele tenha se servido do compêndio de um moralista, estudioso dos
caracteres, ou da observação e do reaproveitamento de personagens antigas, ou ainda, como parece ser o caso da
Comédia Nova, que ele tenha se servido dos códigos e convenções que o próprio gênero desenvolveu em forma de
máscaras, figurino e personagens típicas. O fato é que, de alguma forma, o poeta tem que lidar com a passagem
desde o éthos universal (tomado do compêndio de caracteres, ou do rol de personagens consagradas, ou das
convenções do gênero), para a composição do caráter particular da personagem que ele põe em cena desempenhando
a ação particular que constitui aquela peça, aquele diálogo.
130
Trata-se de uma questão que autores como Cícero, valendo-se de terminologia da arte retórica, vão tratar por meio
de to; prevpon, ou, como ele próprio traduz, decorum. Aplicada à composição de representações miméticas, veja-se
Ad Atticum XIII, 17, 18, que citamos mais aditante.

56
é maleável a se curvar ao vício, áspero com quem o repreende,
do útil é vagaroso em se ocupar, pródigo com dinheiro,
altivo, ávido, pronto a deixar para trás o que amava.
Mudados os interesses, a idade e o espírito adulto
buscam o poder e as amizades, são escravos das honrarias,
Cuidam em realizar de antemão o que, depois, penariam para alterar.
Muitas desvantagens assaltam o velho, seja quanto a
acumular e, infeliz, abster-se do que adquiriu e recear consumir,
seja quanto a tudo dispor com receio e sem ardor;
ele guarda para outro dia, tardo em esperança e temeroso
[quanto ao futuro;
é difícil, queixoso, inativo, louvador dos tempos de outrora,
de quando era criança, emenda e censura os mais novos.
Muitas vantagens trazem consigo os anos que vêm,
Muitas, os que partem, levam embora. Que, ao acaso,
não seja confiado a um jovem o papel de um velho, nem ao menino
[o de um adulto.”131

Em outra passagem, que segue o primeiro trecho da Arte poética que citamos, Horácio
comenta o uso de personagens tradicionais: aquelas tomadas dos mitos e/ou de obras compostas
por poetas anteriores.

“Como escritor, ou segue a tradição, ou forja o que guarde acordo


consigo mesmo. Se, por acaso, o glorioso Aquiles tu trazes de volta,
seja ele infatigável, iracundo, inexorável, áspero,
que as leis ele negue que lhe digam respeito, que nada deixe
[de confiar às armas.

131
“Aetatis cuiusque notandi sunt tibi mores, / mobilibusque decor naturis dandus et annis. / Reddere qui uoces iam
scit puer et pede certo / signat humum, gestit paribus colludere, et iram / concipit ac ponit temere et mutatur in
horas. / Imberbis iuuenis, tandem custode remoto, / gaudet equis canibusque et aprici gramine Campi, / cereus in
uitium flecti, monitoribus asper, / utilium tardus prouisor, prodigus aeris, / sublimis cupidusque et amata relinquere
pernix. / Conuersis studiis aetas animusque uirilis / quaerit opes et amicitias, inseruit honori, / commisisse cauet
quod mox mutare laboret. / Multa senem circumueniunt incommoda, uel quod / quaerit et iuuentis miser abstinet ac
timet uti, / uel quod res omnes timide gelideque ministrat, / dilator, spe lentus, iners, pauuidusque futuri, / difficilis,
querulus, laudator temporis acti / se puero, castigator censorque minorum. / Multa ferunt anni uenientes commoda
secum, / multa recedentes adimunt. Ne forte seniles / mandentur iuueni partes pueroque uiriles (Horácio, Epistula ad
Pisones, 153-178).”

57
Seja Medéia selvagem e indomável, chorosa Ino,
pérfido Íxion, Io, errante, sombrio Orestes.”132

Assim como na argumentação de Aristóteles no capítulo IX da Poética, Horácio considera


que há duas opções quanto à composição de personagens. O poeta pode criar caracteres
completamente novos (como nas tragédias de Ágaton, mencionadas na Poética de Aristóteles).
Nesse caso, eles devem ser coerentes, devem estar de acordo consigo mesmos (cf. sibi
conuenientia). Caso represente personagens conhecidos de todos, o poeta deve ainda harmonizar
sua composição com aquilo que os poetas costumam falar a respeito dessas personagens (cf.
famam sequere). Em operação semelhante, embora isso não seja contemplado por Horácio,
poderíamos incluir também as personagens compostas a partir de indivíduos históricos, que
devem guardar o mesmo acordo com a fama, isto é o conhecimento prévio do público.
Na composição de caracteres, portanto, o poeta, partindo de seu conhecimento a respeito de
tipos de caráter, realiza uma operação cujo movimento parte do universal ao particular. Se ele
impõe nomes, como diz Aristóteles, na Poética, ele cria personagens particulares; essas,
entretanto, são forjadas a partir de categorias universais, como “o homem velho”, “o jovem” etc.
Cabe ao poeta confeccioná-las de maneira coerente e, por outro lado, atribuir-lhes ações,
pensamentos e elocução que condigam, de acordo com a opinião geralmente aceita, com as
categorias gerais a que eles pertencem.
É nesse sentido – acreditamos – que a poesia pode ser mais filosófica do que a história.
Parece ser essa também a opinião de Halliwell, que, ademais, confronta a argumentação feita pelo
autor da Poética no capítulo IX, que diz respeito especialmente à composição da ação mimética,
com toda a discussão a respeito da inteligibilidade do poema, desenvolvida nos capítulos VII e
VIII mediante a exigência de unidade. A unidade da ação e o uso de universais são, para ele,
traços indissociáveis na concepção aristotélica de poesia representativa.

“Aristóteles estabeleceu a clareza causal ou explanatória como uma exigência


primordial para que uma tragédia produza efeito, de modo que todos os seus elementos
constitutivos (suas ações e caracteres) não serão apenas individualmente críveis, mas

132
“Aut famam sequere aut sibi conuenientia finge, / scriptor. +Honoratum+ si forte reponis Achillem, / impiger,
iracundus, inexorabilis, acer, / iura neget sibi nata, nihil non arroget armis. / Sit Medea ferox inuictaque, flebilis
Ino, / perfidus Ixion, Io uaga, tristis Orestes (Horácio, Epistula ad Pisones, 119-124).”

58
também compreensíveis como partes de uma totalidade unificada. Tal clareza, e a
unidade que caminha a seu lado, exigem os critérios de ‘probabilidade ou necessidade’,
e esses trazem consigo o apelo implícito aos universais. De acordo com Aristóteles,
nós tiramos sentido de ficções poéticas ao interpretá-las à luz de conceitos gerais ou
universais que derivam de nossa experiência acumulativa e da compreensão da vida
humana.”133

Sem insistirmos na instigante questão do valor da poesia em Aristóteles, que faria da


Poética uma resposta à concepção de conhecimento poético apresentada pelo Sócrates do livro X
da República, observemos apenas que, segundo o critério mimético utilizado pelo estagirita,
Platão é um poeta. Nós vimos, acima, que o autor da Poética classificou obras como os
swkratikoi; lovgoi entre outras formas de arte representativa. Não é nosso escopo, tampouco,
tratar da alegada incoerência que poderia haver entre o posicionamento teórico de Platão frente à
poesia, sobretudo no que diz respeito à mimese, e toda sua obra que é, afinal de contas, mimética.
A questão é controversa e termina por colocar em xeque a própria finalidade da obra escrita por
Platão. Levanta mesmo a polêmica discussão que envolve uma possível doutrina não escrita do
fundador da Academia. Cabe dizer apenas, tomando Laborderie como guia, que o problema da
rejeição da poesia na obra de Platão é muito mais complexa do que normalmente se acredita134.
Segundo o estudioso francês, há muitos e importantes momentos em que o autor parece reabilitar
a poesia sob diferentes pontos de vista. Acreditamos, entretanto, que estudar o diálogo filosófico
a partir de uma reflexão poética, pode auxiliar futuros estudos que queiram tratar dessa e de
outras importantes questões que surgem da leitura de autores densos como Platão ou Cícero.
Enxergar a obra do fundador da Academia como poesia representativa, em que as ações são

133
Halliwell, entretanto, dá um passo que não nos parece adequado, quando associa de modo muito fácil a operação
de representação realizada pelo poeta com a observação direta de série de indivíduos reais que, compreendidos pela
razão, seriam, então, submetidos a uma categorização: “uma vez que essa experiência se assenta, em última
instância, em particulares verdadeiros, que estão no mundo, Aristóteles não negaria que nós regularmente
empregamos universais (ou, ao menos, probabilidade) em nossa resposta cognitiva a eventos reais. Mas o que ele
nega, nos capítulos 8 e 9 da Poética, é que a vida crua possa freqüentemente produzir estruturas completas de ação
capazes de satisfazer a probabilidade de uma maneira inteiramente unificada. Assim, na contemplação da poesia (ou
de outras obras de arte miméticas) nós recorremos a nossa experiência do mundo, mas nós fazemos isso a fim de
entender eventos que possuem um grau especial de coerência e, portanto, de significação.” (Halliwell, S., op. cit., p.
107). A argumentação de Halliwell, entretanto, visa tornar coerente a interpretação, polêmica, que ele propõe para a
catarse trágica (cf. op. cit., pp. 88-92).
134
Laborderie, J., 1978. Ver especialmente os dois primeiros capítulos da segunda parte: “Les critiques adressées à la
littérature et à la poésie”, pp. 71-89 e “Le dialogue ne tombe pas sous le coup de ces condamnations”, pp. 91-114.

59
desempenhadas por personagens, rechaça, por exemplo, a facilidade com que alguns atribuem as
idéias avançadas por Sócrates, ou por quem quer que seja, ao próprio autor135.
De outra parte, definir as ações representadas nos diálogos em contraste com a
historiografia permite afastar também os que queiram, com facilidade semelhante à dos
anteriores, conferir realidade histórica a muitas das teses que são defendidas pelo Sócrates de
Platão, ou os que queiram imputar a Cícero toda e qualquer afirmação feita em um diálogo seu136.
Além do mais, ainda que nosso objetivo central seja outro, não podemos negligenciar o quanto
um estudo do diálogo ciceroniano, em especial, poderia vir em auxílio de uma apreensão poética
da obra de Platão e até mesmo, ainda que em caráter hipotético, de uma compreensão dos
propósitos que motivaram Platão a compor seus diálogos. Cícero, como já mostramos, está ciente
de que compõe obras semelhantes às de Platão. Ora, o autor romano é um acadêmico: conviveu
com os escolarcas de seu tempo, conheceu a instituição a partir de seu interior. De sua obra
dialógica nós podemos indicar, com muito mais precisão, qual seja o objetivo. Por conta da
preservação de grande parte de sua correspondência, temos mesmo acesso a informações e
reflexões a respeito da composição de seus diálogos. De modo significativo, Cícero os aproxima,
por vezes, da obra de Platão e, por outras, de obras de Aristóteles137. Será que uma análise desse
tipo de material, além da importância que tem por si mesma, não poderia lançar uma nova luz
sobre a composição desse gênero poético na Antigüidade e, por isso mesmo, contribuir para os
estudos da obra platônica? Acreditamos que sim, desde que não se apresse em conferir à obra do
fundador da Academia todo e qualquer traço que se possa ver claramente na obra do acadêmico
romano. O movimento que propomos aqui, entretanto, é justamente o contrário: queremos ver em
Platão aqueles elementos que, ainda que não sejam universais em sua obra, tornaram-se quase
que regras genéricas no modelo ciceroniano.
Julgamos necessário fazer essas observações porque, neste ponto, passamos a analisar
alguns trechos selecionados da obra de Platão, para que possamos observar a pertinência de
classificá-la como poesia mimética e, de outra parte, caso seja conveniente essa classificação,
para aplicarmos ao diálogo filosófico os elementos que emprestamos à teoria aristotélica. Se, para
tratarmos de Platão, talvez incorramos em anacronismo, o problema não será tão grave, visto que

135
Daí a temeridade em se afirmar que Platão condena a poesia, ou que ele, eventualmente a reabilite.
136
Em nosso segundo capítulo, discutimos a complexa personagem do próprio Cícero
137
Dos diálogos de Aristóteles, evidentemente: obras que conhecemos por poucos fragmentos e, indiretamente, por
comentários ou adaptações realizadas por autores posteriores. Veja-se o caso do Hortensius de Cícero, composto sob
a influência do Protrepticus do estagirita.

60
almejamos entender Cícero que conheceu uma teoria poética derivada de Aristóteles e, como ele
próprio afirma, seguiu elementos do modelo aristotélico em suas obras dialógicas. Tomaremos
como objeto de nossa análise as passagens iniciais do Fédon e do Teeteto: aquilo que muitos
costumam chamar de “diálogo introdutório” ao diálogo principal. A escolha desses dois textos se
fez sem grandes preocupações com a ordem de composição das obras de Platão. A cronologia do
trabalho do ateniense, diga-se de passagem, já constitui um grande problema que não deveremos
tratar aqui. Há que se dizer, também, que Platão cultivou, ao longo de sua carreira de escritor,
espécies diferentes de diálogo; a distinção referida por Diógenes Laércio entre diálogos
narrativos e dramáticos é apenas um indício da diversidade que os antigos observavam na obra
platônica. Citamos Diógenes Laércio, III, 50:
Ouj lanqavnei d j hJma'" o{ti tine;" a[llw" diafevrein tou;" dialovgou" fasiv < levgousi ga;r aujt
w'n tou;" me;n dramatikouv", tou;" de; dihghmatikouv", tou;" de; meiktouv" / “não nos escapa o
fato de que alguns distinguem os diálogos de outra maneira – pois eles chamam alguns diálogos
de dramáticos, outros, narrativos e outros, ainda, mistos”. O biógrafo, que já havia proposto uma
divisão que seguia critérios filosóficos, na seqüência do texto reconhece que este é um critério
que se aplica mais especialmente à poesia dramática. Interessante notar que a distinção se faz por
meio dos critérios estabelecidos pela personagem de Sócrates no passo do livro III da República
de Platão que citamos anteriormente. Quanto a nosso método de investigação, queremos deixar
claro que não é nosso objetivo dar conta de todas as formas da produção dialógica de Platão.
Tampouco pretendemos fazer daquilo que afirmamos a respeito do Fédon e do Teeteto verdades
gerais para todas as espécies cultivadas por Platão. Parece-nos apenas que, por se mostrarem, sob
o ponto de vista da composição, obras mais complexas do que outras que são desprovidas de um
diálogo introdutório, esses dois diálogos (bem como outros que contêm o mesmo elemento)
podem nos dar valiosas informações a respeito do modo de composição adotado por Platão e das
relações que sua obra mantém com outras formas de expressão da arte verbal. Ora, a obra
dialógica de Cícero toma como modelo justamente esse tipo de diálogo que conta com um
prólogo.
Esse movimento introdutório ao diálogo principal, em nossa opinião, direciona muito do
significado da conversa que será representada mais adiante. Com função semelhante, veremos o
prólogo ser utilizado por Cícero no século I a.C., ainda que com importantes variações e outras
funções acrescentadas. Selecionamos, por fim, esses dois textos especificamente, por

61
acreditarmos que deles podemos extrair elementos pertinentes à argumentação que
desenvolvemos aqui. Acreditamos que as relações existentes entre a historiografia e a poesia
mimética do diálogo filosófico vão além do que discutimos acima, quando tratamos do capítulo
IX da Poética de Aristóteles. É esse ponto que queremos, agora, aprofundar mais um pouco.
Vejamos, então, o princípio do Fédon:

“Equécrates: Estiveste tu mesmo, Fedão, junto de Sócrates no dia em que ele tomou
veneno na prisão, ou ouviste de alguém?
Fedão: Não, eu mesmo, Equécrates.
Equécrates: Então, que disse o homem antes de morrer? E como foi sua morte?
Gostaria de saber tudo o que se passou. (...) E as condições em que morreu, Fedão?
Quais foram suas palavras? Como se houve tudo? Quais dos seus familiares se
encontravam ao seu lado? Ou as autoridades não permitiram que entrassem, vindo ele a
morrer privado da assistência dos amigos? (...) procura contar-nos com a maior
exatidão possível como tudo se passou, no caso de dispores de folga.138
Fedão: Disponho, sim, e vou tentar expor-vos o que se deu139. Para mim, nada é tão
agradável como recordar-me de Sócrates, ou seja quando falo nele, ou quando ouço
alguém falar a seu respeito140.
Equécrates: Pois podes ter certeza, Fedão, de que teus ouvintes estão nessas mesmas
condições. Esforça-te, portanto, para contar o caso com todas as minúcias141 (...) E
quem se achava lá, Fedão?
Fedão: Se não me engano, Platão se achava doente (...) Vou esforçar-me para contar
tudo do começo142 (...) Sócrates, de seu lado, sentado no catre, dobrou a perna sobre a

138
Tau'ta dh; pavnta proqumhvqhti wJ" safevstata hJmi'n ajpaggei'lai, eij mhv tiv" soi ajscoliva ou\sa. Notemos que
o verbo utilizado por Equécrates para se referir à ação que desempenhará Fédon, ajpaggevllw, isto é, “reportar”,
“anunciar” como um mensageiro, é o termo utilizado, nas teorias poéticas tanto de Platão (cf. República, III, 394b-c)
quanto de Aristóteles (cf. Poética, capítulo III, 1448a21) em referência à “narrativa”. Por outro lado, o superlativo
safevstata, modificado por wJ", indica, mais exatamente, o pedido da reprodução dos fatos com a maior clareza
possível. Por derivação, contudo, pode-se chegar ao sentido de “precisão”, ou “exatidão”, conforme informa Bailly
em seu dicionário.
139
“Expor-vos” traduz dihghvsasqai, forma do verbo diegevomai, termo também utilizado para designar a narração.
140
Kai; ga;r to; memnh'sqai Swkravtou" kai; aujto;n levgonta kai; a[llou ajkouvonta e[moige ajei; pavntwn h{di
ston.
141
“Com todas as minúcias” traduz wJ"...ajkribevstata. Novamente um superlativo modificado pela partícula modal
wJ". O advérbio ajkribw'" tem o sentido próprio de “com exatidão”, “com precisão”.
142
A narrativa proposta por Fédon, que deve dar conta do que disse o mestre antes de morrer, pretende tomar os
eventos ejx ajrch'", como diz Nunes, “desde o começo”.

62
coxa e começou a friccioná-la duro com a mão, ao mesmo tempo em que dizia: Como
é extraordinário, senhores, o que os homens denominam prazer (...)”143.

O texto se inicia em meio a uma conversa. Não há, como em outros diálogos144, fórmulas
de saudação que indiquem que aqueles que falam acabaram de se encontrar. Os interlocutores são
Equécrates e Fédon145. Ambos tomam diretamente a palavra. Não há um poeta, como diriam
Platão ou Aristóteles, que se sirva, em seu próprio nome, da palavra: os homens representados
agem e falam por si mesmos146. Nesse sentido, são semelhantes às personagens trágicas de que
trata Aristóteles na Poética147. O tema da conversa é apresentado já desde a primeira questão
avançada por Equécrates: as circunstâncias que envolveram a morte de Sócrates. Já em sua
segunda fala, a personagem revela, em forma de pedido, sua intenção e, em seguida, revela os
motivos que tornam plausíveis o pedido que faz. Equécrates quer um relato a respeito dos últimos
momentos de Sócrates. Ele desconhece como se deu precisamente a morte do filósofo, porque,
estando em Fliunte (somos, portanto, informados sobre o local em que se dá a ação representada),
não teve acesso ainda ao que se passara em Atenas. Nenhum conhecido seu fizera, ultimamente,
uma viagem à cidade em que viveu e morreu Sócrates, para que, de lá, trouxesse informações
precisas do que se passou. Tampouco os estrangeiros que de lá vieram puderam dar notícias
precisas. Apenas sabiam dizer vagamente que ele morreu depois de ter tomado veneno. Desenha-
se assim a ocasião que agora se apresenta: é plausível que Fédon faça o relato: é um estrangeiro

143
Platão, Fédon, 57a-60b. Citamos a tradução de Carlos Alberto Nunes que se encontra em PLATÃO, Diálogos –
Protágoras, Górgias, Fedão. Belém: Editora Universitária UFPA, 2002.
144
O Íon ou o Fedro, por exemplo.
145
Apesar de adotarmos a tradução de Nunes, preferimos esta forma para o nome da personagem e da obra.
146
Aquele que é reconhecidamente o autor da obra, Platão, não é mencionado senão para, logo depois, ser excluído
da cena. Não esteve presente no momento da morte do mestre porque “talvez” estivesse doente. Há já nesse “talvez”
um excelente exemplo do modo como Platão elabora suas personagens de modo provável. A personagem do
narrador, Fédon, afirma não saber com precisão algo que o autor (é notório a todos) sabe. Ora, é interessante notar
ainda – e é algo que discutiremos mais adiante – como, com sua ausência, o autor se afasta da posição de fiador da
récita que apresenta em seu texto. É como se o autor do relato fosse Fédon. Vale lembrar que essa personagem,
tornada célebre pelo diálogo platônico que leva seu nome, baseia-se em um personagem histórico: Fédon de Élida, a
quem são atribuídos diálogos socráticos e a fundação de uma escola em sua cidade, no Peloponeso. Sêneca cita uma
breve passagem do filósofo de Élida em suas Epístolas a Lucílio (cf. 94, 41). Para outras considerações a respeito do
Fédon histórico, figura em torno da qual muitas dúvidas permanecem, consulte-se a introdução de Léon Robin ao
Fédon na edição das “Belles Lettres”, citada na bibliografia, especialmente páginas de ix a xiii.
147
Ora, a questão do espetáculo, que poderia tornar os dois modos poéticos distintos é, como vimos, parcialmente
negligenciada por Aristóteles, algo que nos permite considerar a mimese que vemos aqui como composta segundo o
mesmo modo que o da representação trágica, ou cômica: o modo dramático. Se, como querem alguns, os textos de
Platão eram lidos em voz alta por mais de um leitor, tendo cada um deles a função de executar as falas das diferentes
personagens, mesmo do ponto de vista da performance teríamos uma forte semelhança com a poesia dramática
propriamente dita.

63
que, mais do que informações que possuísse por ter ouvido alguém contar o sucedido, esteve, ele
próprio, presente no dia da execução da sentença. O relato será feito por alguém que esteve lá e
viu o que aconteceu. O interlocutor tem a garantia, que parece se estender ao leitor, de que vai
ouvir uma narrativa confiável dos últimos momentos da vida de Sócrates.
Da parte daquele que pretende ouvir, a ausência de informações precisas, aliada ao desejo
de saber o que ocorreu estabelece a necessidade do relato. Se, por um lado, esse desejo se explica
por razões filosóficas148, ele é também justificado, sob outro aspecto, em uma passagem cuja
importância para nossa discussão gostaríamos de enfatizar. Quando Equécrates pede que o relato
seja feito com a maior exatidão possível (58d), Fédon revela o enorme prazer que tem em se
recordar de Sócrates, o que se produz tanto quando fala sobre o mestre, quanto quando ouve falar
sobre ele. De fato, o prazer em ouvir sobre Sócrates, e, presumimos, de preservar sua memória, é
atestado a seguir por Equécrates, que estende o sentimento a todos os ouvintes que ali se
encontram. Ora, o desejo do ouvinte se justifica pelo prazer de preservar a memória do filósofo,
prazer que ele divide com as outras pessoas que – só então sabemos – compõem a cena. Toda a
situação parece mesmo cativar o leitor, que, aludido por meio dessas personagens silenciosas,
poderia desfrutar do mesmo prazer que move os interlocutores.
A recordação de Sócrates, por sua vez, não é prazerosa apenas pela amizade que Fédon, por
exemplo, manteve com ele. Parece haver algo de mais importante e geral que torna a memória
desse homem digna de preservação:

“Fedão: Era por demais estranho o que eu sentia junto dele. Não podia lastimá-lo,
como o faria perto de um ente querido no transe derradeiro. O homem me parecia
felicíssimo, Equécrates, tanto nos gestos quanto nas palavras, reflexo exato da
intrepidez e da nobreza com que se despedia da vida149. Minha impressão naquele
instante foi que sua passagem para o Hades não se dava sem disposição divina, e que,
uma vez lá chegando, sentir-se-ia tão venturoso como os que mais o foram (58e)”.

148
Também Equécrates é construído a partir de um personagem histórico. Ele é tido como seguidor da filosofia de
Pitágoras (cf. Diógenes Laércio, VIII, 46), filósofo cujas idéias são de suma importância na concepção da morte que
apresentará Sócrates no relato de Fédon.
149
Sócrates partia feliz (eujdaivmwn), segundo a impressão (oJ ajnh;r ejfaivneto) do narrador, e “de modo impávido e
nobre”: ajdew'" kai; gennaivw".

64
A descrição do estado em que se encontrava o condenado à morte já introduz a grande
questão tratada no diálogo que, em seguida, será narrado. Deixando isso de lado, porém, importa-
nos observar, sobretudo, que a memória de Sócrates parece digna de recordação graças ao tipo de
homem que ele foi, ou melhor, ao tipo de homem segundo o qual ele é representado: trata-se de
alguém que se apresenta extremamente nobre e impávido diante da morte. Parece-nos lícito
sugerir que o tratamento recebido pela personagem de Sócrates na passagem, assim como, em
parte, a afecção que move aqueles que dele se recordam, aproxima sensivelmente essa passagem
da obra de Platão de formas bastante conhecidas do gênero grave de poesia, como a epopéia150.
Por outro lado, a maneira como a narrativa é introduzida, com apelo à veracidade do que
será apresentado, que é garantida pelo fato de o “autor” da narrativa ter estado presente aos
eventos que ele refere, faz-nos pensar justamente no gênero de escrito que Aristóteles estabelece
como antípoda da poesia mimética: a historiografia.
Neste ponto, em que gêneros diversos parecem vir à mente quando analisamos o trecho de
um diálogo filosófico151, cabe recordar que, sob certo aspecto, essa associação entre os discursos
da epopéia e da historiografia não foi alheia ao pensamento antigo. Quintiliano, por exemplo, em
sua Institutio oratoria, quando trata das leituras que podem ser profícuas na formação do orador,
julga que o futuro orador pode tomar, ainda que com cautela, certo proveito da leitura dos
historiadores. Citamos:

“Pois ela [a história] está próxima dos poetas e é, de certo modo, um poema em prosa
(carmen solutum); é escrita com vistas a narrar (ad narrandum) e não com vistas a
provar (ad probandum), é uma obra composta, em seu todo, não para o tratamento de

150
A apresentação da personagem do velho filósofo e, sobretudo, as idéias por ela avançadas ao longo do diálogo
narrado por Fédon, criarão, é certo, uma importante distância entre o h\qo" de Sócrates e o de personagens conhecidas
da poesia heróica. A intrepidez que demonstra diante da morte não se dá sob a perspectiva de obtenção de glória
imorredoura, explica-se, sim, por toda a concepção de felicidade e de permanência da alma no post mortem que a
personagem defende ao longo da récita. Notemos que tais idéias já se anunciam pela felicidade que revelam suas
palavras e gestos, conforme são descritos por Fédon. O narrador, inclusive, diz que essa disposição peculiar de
Sócrates, justamente, impedia que os presentes sentissem comiseração (59a) que, como sabemos, é um dos afetos
suscitados, segundo os antigos, pela poesia heróica, tanto trágica, conforme vimos, quanto épica (cf. Platão, Íon,
535b-c). Entretanto, mesmo que o efeito patético seja diferente, o tom laudatório com que se fala de Sócrates e a
intenção de preservar sua memória por parte das personagens são evidentes.
151
Interessante refletir sobre a maneira como a personagem do Diálogo, na acusação que lança contra Luciano,
apresenta a si mesma no Div" kathgorouvmeno" (cf. 33): trata-se do texto que utilizamos como epígrafe deste
capítulo. Evidentemente, a acusação se fundamenta nas alterações a que, segundo a personagem, o autor teria
submetido o gênero. Mas boa parte de suas alegações poderia ser lançada também contra Platão (que, no entanto, não
alterou o gênero, mas, de certo modo, estabeleceu-o): o uso de um discurso misto, com versos que são introduzidos
em meio ao discurso pedestre da prosa, uma oscilação entre o grave e o cômico etc.

65
uma causa (ad actum rei) e para um combate presente, mas para a memória da
posteridade e para a fama do engenho [de quem escreve]; por isso, tanto com palavras
pouco usuais quanto com figuras mais ousadas, ela evita o tédio da narrativa”152.

A diferença com relação à argumentação aristotélica é radical: Quintiliano julga que a


semelhança entre historiografia e poesia é tal (seguramente ele pensa na epopéia), que o discurso
do historiador seria como que um poema, ainda que desprovido de metro (solutum). Acreditamos
que são muitos os fatores que levam o rhetor romano a pensar dessa forma153; num primeiro
momento, entretanto, gostaríamos de observar alguns pontos que essas duas formas de expressão
sempre mantiveram em comum e que vêm aqui mencionados por Quintiliano: tanto a
historiografia quanto a poesia épica constituem-se por discursos narrativos (ad narrandum), têm
em vista a preservação da memória (ad memoriam posteritatis) e buscam agradar os ouvintes ou
leitores (et uerbis remotioribus et liberioribus figuris narrandi taedium euitat), algo que fazem
com mais liberdade do que o orador.
Pois bem, mas de que trata a epopéia? Mesmo deixando um pouco de lado os teóricos,
podemos colher algumas informações dos dois grandes épicos atribuídos a Homero. No canto IX
da Ilíada, por exemplo, o narrador representa Aquiles, retirado da guerra, sentado em sua tenda,
cantando e acompanhando a si mesmo com um instrumento musical. Nessa passagem, em que
nós poderíamos entender o canto da personagem como uma representação do canto do próprio
poeta, vemos o herói celebrando em canto os kleva andrw''n154, isto é, “o renome, a glória dos
homens”, a partir do que ele experimenta certo prazer155. Na Odisséia, por outro lado, logo no
primeiro canto, o poeta representa um aedo, Fêmio, que canta diante dos pretendentes reunidos na
casa de Odisseu, cantando o “retorno funesto” dos aqueus156. A reação de Penélope ao canto do
aedo parece estabelecer uma tensão entre duas modalidades de canto épico:

152
“Est enim proxima poetis, et quodam modo carmen solutum est, et scribitur ad narrandum, non ad probandum,
totumque opus non ad actum rei pugnamque praesentem sed ad memoriam posteritatis et ingenii famam componitur:
ideoque et uerbis remotioribus et liberioribus figuris narrandi taedium euitat (Quintiliano, Institutio oratoria, X, 1,
31).”
153
Uma concepção da historiografia como modo discurso submetido à inuentio retórica, expressa, por exemplo, no
De oratore de Cícero (como veremos mais adiante) pode ter contribuído para a posição adotada por Quintiliano. Por
outro lado, não podemos perder de vista o fato de que o grande contraponto no contexto da Instiutio é o discurso
oratório, que busca a persuasão (ad probandum). Dessa forma, a poesia épica e a historiografia podem figurar, lado a
lado, como representantes do discurso narrativo e que busca simplesmente o agradável.
154
Ilíada, IX, 190.
155
Ilíada IX, 189. Cf. qumo;n e[terpen.
156
Odisséia, I, 326-7: !Acaiw'n novston ... lugrovn.

66
“Fêmio, canções diferentes tu sabes, que os homens encantam,
gestas de heróis e de deuses, que os vates gloriosos propagam157.
Dessas, lhes canta qualquer, e que todos te escutem silentes,
vinho a beber.”158

Conforme representado em Homero, portanto, o canto épico parece ter como uma de suas
funções a celebração dos grandes homens: ele ofereceria aos ouvintes um relato das grandes
ações realizadas por homens do passado. O aedo é aquele que possibilita a manutenção e a
transmissão do klevo" dos grandes homens. Mesmo na modalidade que se expõe à repreensão de
Penélope (aquela que trata do retorno dos heróis que participaram do cerco a Tróia) e que
representaria, plausivelmente, a matéria da Odisséia, está implicada a manutenção do klevo".159
Se observarmos, rapidamente, a maneira como Heródoto (que poderíamos tratar, por
motivos práticos, como o primeiro historiador da tradição grega), introduz a sua obra, veremos
que, quanto à finalidade, ele não a concebe de modo muito diferente do discurso do aedo épico.
Ele diz que sua investigação pretende que “nem os acontecimentos provocados pelos homens,
com o tempo, sejam apagados, nem as obras grandes e admiráveis, trazidas à luz tanto pelos
gregos quanto pelos bárbaros, se tornem sem fama (ajkleva)”160. Embora adotando um
procedimento diferente do utilizado pelo poeta épico (conforme veremos mais adiante), Heródoto
professa que sua obra almeja a manutenção da memória das grandes ações dos homens que, sem
o seu discurso, correriam o risco de serem olvidadas, de se encontrarem sem klevo". Talvez nesse
sentido possamos compreender algo que diz o autor do De sublimitate (13, 3):
movno" @Hrovdoto" @Omhrikwvtato" ejgevneto_ isto é: “foi Heródoto o único grande continuador de
Homero?”
A preservação de uma memória do passado e a celebração das grandes ações e dos grandes
homens de outrora são, portanto, elementos partilhados pela poesia épica e pela historiografia.
Pois bem, vejamos como esses mesmos elementos, presentes na cena introdutória do Fédon,

157
No original: e[rg j ajndrw'n te qew'n te, tav kleivousin ajoidoiv, que, poderíamos traduzir assim: “ações de homens
e de deuses, as quais os aedos glorificam”.
158
Odisséia I, 337-340. Tradução de Carlos Alberto Nunes (Rio de Janeiro: Ediouro, 2002).
159
Cf., por exemplo, Duarte, A.S. “As relações entre retorno e glória na Odisséia”. In: Letras Clássicas, ano 5,
número 5, pp. 89-98.
160
Heródoto, Histórias, I, proposição. A tradução é a que se encontra na obra de François Hartog (cf. Hartog, F.
2001, p. 43).

67
aparecem também na introdução do Teeteto, ainda que com variações importantes e, a nosso ver,
bastante pertinentes a nossa discussão.161

“(...)
Terpsião: Pelo que dizes, estamos na iminência de perder um homem e tanto!162
Euclides: De muito merecimento163, Terpsião. Agora mesmo, ouvi fazerem-lhe os
maiores elogios, pelo modo como se houve na batalha. (...) Por isso, o acompanhei; e,
ao retornar, lembrei-me, com admiração, de como Sócrates foi bom profeta a respeito
de muita coisa e também de Teeteto. Se mal não me lembro, pouco antes de morrer ele
encontrou Teeteto, que ainda era adolescente. Ambos a se conhecerem, e logo a
conversar, tendo ficado Sócrates encantado com a natureza do rapaz. Quando estive em
Atenas, Sócrates me falou pormenorizadamente da conversa que então mantiveram164,
muito digna de ouvir, tendo acrescentado que, se ele chegasse a ser homem, facilmente
se tornaria célebre.
Terpsião: Só falou a verdade, como parece. E a respeito de que conversaram, poderias
dizer-me?
Euclides: Não, por Zeus! Assim, de improviso, não me seria possível165. Porém logo
que cheguei a casa, tomei alguns apontamentos sobre o que mais me impressionara166,
havendo posteriormente redigido mais de estudo o que me acudia à memória167. Além
do mais, sempre que ia a Atenas, interrogava Sócrates acerca do que não me recordava

161
Seguimos a tradução de Carlos Alberto Nunes (Platão, Diálogos – Teeteto, Crátilo. Belém: Editora Universitária
UFPA, 2001). Reservamo-nos, entretanto, a licença de apresentar, em notas, alternativas de tradução, mais próximas
à letra do texto, do trecho que mais importa à nossa discussão.
162
No original: Oi\on a[ndra levgei" ejn kinduvnw/ ei\nai, que poderíamos traduzir assim “De que qualidade é o homem
que tu dizes estar em perigo!”. Note-se que o pronome oi\o" é o correlato de toiou'to", de que se serve Aristóteles,
como vimos, para tratar do caráter da personagem, isto é, de sua qualidade. Na passagem do Teeteto, evidentemente,
o sentido é ético, não poético.
163
O original diz: kalovn te kai; ajgaqovn, isto é, “um homem belo e bom”. Essa importante expressão platônica, que
a tradução de Nunes, neste ponto, esconde, exalta a excelência moral do homem que está para morrer, louvado,
segundo a personagem, por seu comportamento na guerra. Ele terá, a seguir, suas ações do passado e sua natureza
louvadas no diálogo principal.
164
O texto original é menos enfático: touv" te lovgou" ou}" dielevcqh aujtw/' dihghvsato, algo como “ele me reportou
as palavras que eles trocaram em diálogo”. O “pormenorizadamente” utilizado por Nunes não está, portanto,
expresso no texto.
165
ou[koun ou{tw ge ajpo; stovmato": em grego, diz-se literalmente: “não assim a partir da boca, ao menos”. Nós
diríamos, com sentido próximo: “não assim de memória, ao menos”.
166
ajlla ejgrayavmhn me;n tovt v eujqu" oi[k[ ad j ejlqw;n uJpomnhvmata. Poderíamos traduzir: “mas, tendo retornado à
minha casa, de imediato lancei por escrito, então, anotações”.
167
u{steron de; kata; scolh;n ajnamimnh/skovmeno" e[grafon, ou seja, literalmente: “posteriormente, no entanto, em
meu ócio, recordando-me, escrevia”.

68
com minúcias e, de regresso, corrigia meu trabalho168. Foi assim que, praticamente,
consegui reproduzir todo o diálogo169 (...) Aqui tens, Terpsião, o livro. Porém redigi de
tal modo o diálogo, que em vez de Sócrates me relatar o ocorrido, como o fez,
entretém-se com os que ele próprio declarou terem tomado parte na conversação.
Referia-se ao geômetra Teodoro e a Teeteto. Para não sobrecarregar o escrito com
tantas fórmulas intercaladas no discurso, sempre que Sócrates fala: Digo, ou Afirmo,
ou, com referência aos interlocutores: Concordou, Não concordou, dei ao trabalho
feição de um diálogo direto170 entre ele e os dois opositores, com exclusão de tudo
aquilo”171 (Segue-se uma fala da personagem de Sócrates).

Assim como no Fédon, temos aqui um diálogo inicial, de que tomam parte dois
interlocutores, que introduz o diálogo principal em que Sócrates, Teodoro e Teeteto serão as
personagens.
Também como no caso anterior, não há uma voz que seja do próprio poeta: as personagens
do diálogo introdutório tomam a palavra e são representadas agindo por si sós. A cena inicial tem
lugar em Mégara (142c). Euclides, que aparece como uma das personagens representadas, é
conhecido, historicamente, por ter mantido uma escola de filosofia, de influência socrática, nessa
cidade. Sobremaneira interessante é o fato de Euclides, que teria sido o fundador da escola
megarense, ser tido como autor de swkratikoi; lovgoi, algo que é, de fato, sugerido na
passagem172. Embora não haja fórmulas de saudação, a conversa se inicia como se as
personagens tivessem acabado de se encontrar. O ensejo para a recordação da conversa tida entre
Sócrates e Teeteto se dá a partir do encontro fortuito que Euclides, tendo descido ao porto, teve
com uma dessas personagens. Teeteto, segundo a descrição de Euclides, encontrava-se em estado
crítico, ferido e doente, entre a vida e a morte, carregado, desde um acampamento militar, em
Corinto, para sua cidade, Atenas. A situação e os comentários a respeito da natureza
(fuvsi") desenham para a personagem um caráter heróico: diz-se que ela se portou de modo

168
kai; oJsavki" !Aqhva
v ze ajfikoivmhn, ejpanh/rwvtwn to;n Swkravth oJ; mh; ejmemnhvmhn, kai; deu'r' o ejlqw;n ejp
hnorqouvmhn: Traduzimos: “além disso, todas as vezes que eu ia a Atenas, novamente perguntava a Sócrates sobre o
que eu não recordava e, voltando para cá, corrigia [as anotações]”.
169
w[ste moi scedovn ti pa'" ' oJ lovgo" gevgraptai. Nossa versão: “De maneira que, toda a conversa, de certo modo,
eu escrevi”.
170
No original: wJ" aujto;n aujtoi'"' dialegovmenon e[graya, ou seja, algo como: “escrevi assim como ele próprio
dialogou com eles próprios”.
171
Platão, Teeteto, 142a-143c.
172
Sobre o Euclides histórico, veja-se Diógenes Laércio, II, 106 e ss., onde se diz que Euclides escreveu seis
diálogos socráticos. Veja-se, ainda, Laborderie, J. op. cit., p. 46 e Kahn, C. op. cit., pp. 12-15.

69
admirável na batalha em que recebeu esses ferimentos que agora põem em risco sua vida. A
iminência da morte do ateniense e o seu valor, recentemente posto à prova na guerra, fazem com
que Euclides se recorde de como Sócrates já havia preconizado uma vida ilustre para Teeteto,
quando este era ainda um jovenzinho173. A lembrança da opinião que tinha Sócrates sobre o
jovem Teeteto conduz Euclides, de modo plausível, à recordação de uma conversa específica que
ambas as personagens mantiveram pouco tempo antes da morte do velho filósofo. Interessante
notar que, assim como no Fédon, o diálogo introdutório faz com que a morte de Sócrates paire
sobre toda a obra. No Teeteto, entretanto, ela se apresenta como uma certeza que o leitor divide
apenas com as personagens do diálogo inicial e que, por outro lado, não possuem as personagens
do drama principal. As personagens do diálogo principal sabem apenas da acusação que pesa
sobre Sócrates.
Mas, diferentemente de Fédon, que na obra que leva seu nome é quem detém o
conhecimento sobre o diálogo principal, Euclides não esteve presente à conversa que constitui a
seqüência do texto do Teeteto. As informações de que dispõe, ele as recebeu de um relato do
próprio Sócrates que, assim, é representado como a testemunha ocular do diálogo principal,
ocupando, sob esse aspecto, posição análoga à de Fédon na passagem que analisamos
anteriormente. Entretanto, apesar de não ter tido acesso diretamente ao evento de que pretende
informar seu interlocutor, podemos notar em Euclides, a partir de 143a, quando a ação começa de
fato a preparar o leitor para o diálogo que vem a seguir, esforço semelhante ao que notáramos em
Fédon, com vista a conferir credibilidade à informação de que dispõe. Mas, uma vez que a
informação requerida por Terpsião repousa sobre a responsabilidade de alguém que não esteve
presente aos eventos de que ele pretende ser informado, os meios pelos quais tal informação pode
se tornar digna de fé são, forçosamente, mais complexos do que os que víramos serem
empregados no Fédon.
Euclides não se sente capaz de reproduzir, de memória, o relato que Sócrates outrora lhe
confiou. De fato, há motivos para crer que um longo tempo separa o diálogo inicial do diálogo
principal do Teeteto. A cena introdutória se passaria, segundo pensam alguns estudiosos, em 369

173
Seria interessante notar se na seqüência do diálogo Teeteto se mostra de fato digno da previsão feita por Sócrates.
O Prof. Dr. Adriano Machado Ribeiro, membro de nossas bancas de qualificação e de defesa, chamou-nos a atenção
para o fato de que a doença que acomete o matemático, a disenteria, pode ter conotações cômicas e e de que Teeteto,
no andamento da discussão sobre o conhecimento, parece aquém das esperanças que sobre ele depositara Sócrates.
Deixemos essa questão, entretanto, apenas sugerida e reservemo-la a uma investigação posterior.

70
a.C174., ao passo que, para o processo de Sócrates, costuma-se atribuir o ano de 399. Teriam
decorrido, então, trinta anos desde a última possibilidade que Sócrates teria tido, pois depois
estaria morto, de narrar a Euclides a conversa que tivera com Teodoro e Teeteto.
Independentemente, porém, de quaisquer datas precisas, o texto do diálogo introdutório dá
indicações seguras da existência de um grande lapso temporal entre as duas cenas. Na do diálogo
principal, conforme diz Euclides (142c), Teeteto seria um jovenzinho. Por outro lado,
transportado a Atenas, à beira da morte, teria cumprido a profecia socrática de que, se atingisse a
idade madura, tornar-se-ia célebre (142d). De um relato, feito de memória, de um evento assim
tão antigo, dificilmente se poderia esperar credibilidade, sobretudo no que diz respeito às
minúcias e sutilezas do raciocínio, tão importantes na discussão, que é a ação representada.
Entretanto, a personagem que representa o fundador da escola megarense, logo depois de ter
obtido o relato de Sócrates, pôde, daquilo que ouvira, transcrever, num primeiro momento, suas
memórias imediatas. Procurando, porém, conferir maior precisão a seus registros, sempre que
voltava a Atenas, e podia ter com Sócrates, perguntava sobre os detalhes que lhe tinham escapado
e, voltando a Mégara, emendava seus escritos, chegando, por fim, a uma reprodução completa do
diálogo175.
A personagem vai mais além e tece até mesmo comentários formais a respeito do texto que
compôs, texto que, diga-se de passagem, já era do conhecimento de seu interlocutor, que, numa
clara menção à atividade literária do filósofo megarense, afirma que há muito tinha vontade de
ver tais escritos. Pois bem, com vistas à maior fruição daqueles que vão ouvir uma leitura do
texto176, Euclides, após ter reproduzido fielmente a conversa que ouviu de Sócrates, diz ter
suprimido as fórmulas pelas quais reportava as falas de cada um dos interlocutores,
transformando o relato em um diálogo direto. Na ilusão criada pela mimese, o texto que o
escravo lerá às duas personagens que, descansando, ouvem, é o mesmo que se inicia em 143d,
com uma fala direta de Sócrates. É o mesmo, ainda, a que terá acesso todo leitor que busque
saber como se deu a célebre conversa entre o jovem e promissor matemático e o velho filósofo.

174
São eles Uberweg, Ed. Meyer, C. Ritter e U. von Willamowitz, todos citados por Auguste Diès no texto com que
introduz o Teeteto na edição das “Belles Lettres”, citada na bibliografia, pp. 119-123.
175
Notemos que a expressão scedovn ti pode introduzir certo grau de imprecisão no texto confeccionado por
Euclides. Se a interpretação estiver correta, mesmo com todo o trabalho de correção realizado pelo autor fictício, ele
parece estar ciente da impossibilidade de reproduzir a conversa tal qual Sócrates a reportara. A tipo semelhante de
problema – veremos a seguir – estará sujeito também o historiador.
176
Seria esse um uso comum dos diálogos socráticos na Antigüidade?

71
Se, conforme argumentamos acima, elementos como a preservação da memória, aliada ao
tom laudatório com que se fala dos grandes indivíduos, e, evidentemente, a narrativa, entremeada
de discursos dos indivíduos envolvidos na ação, permitem-nos associar essas obras de Platão a
formas de expressão tais quais a poesia épica e a historiografia, a maneira como as personagens
responsáveis pela récita pretendem, conforme representadas nos diálogos introdutórios,
estabelecer a credibilidade de suas narrativas, ou das representações de diálogos diretos (como no
Teeteto), parece afastar o diálogo filosófico da poesia épica e fazer dele um gênero bem mais
próximo da historiografia.
A poesia épica tem um modo peculiar de reclamar a credibilidade para o seu canto. Para
evitarmos equívocos, tomemos o caso específico dos dois grandes poemas atribuídos a Homero.
No momento em que anuncia a matéria de sua narrativa, o aedo invoca uma divindade. A partir
de então, a Musa, filha de Memória, torna-se responsável por aquilo que será cantado. De acordo
com a expressão do próprio aedo, o conhecimento a respeito de todos os eventos que serão
narrados, do lugar em que eles se produziram, dos indivíduos envolvidos, das falas de cada um
deles, torna-se acessível, tanto ao aedo quanto ao ouvinte, graças à presença da divindade. Mais
que isso, a invocação à Musa, feita por meio de imperativos de segunda pessoa, o que a coloca
como sujeito gramatical da ação de “cantar”, estabelece a divindade como a própria autora do
canto. Parece bastante claro que, se, para os ouvintes, as narrativas parecem dignas de fé, é a
divindade, em última instância, quem lhes garante essa qualidade177.
De tal modo a divindade está relacionada ao conhecimento acerca dos eventos e ao acesso
que deles nós podemos ter, que a invocação pode se repetir em diversos momentos da narrativa,
sobretudo quando a matéria cantada parece, ao aedo, particularmente difícil178. É assim que, na
Ilíada, antes de apresentar o famoso catálogo das naus, o cantor se dirige às divindades, pedindo-
lhes o auxílio necessário para a boa recordação daquilo que ele pretende apresentar179. A

177
Sócrates, tal qual representado no Íon de Platão, chega mesmo a sustentar a tese de que o canto poético, em geral,
poderia ser o resultado de uma possessão divina.
178
Quintiliano comenta esse tipo de procedimento. “E se ninguém se admira de os mais excelentes poetas terem
amiúde agido de modo que não apenas nos inícios de suas obras invocassem as Musas, mas, tendo avançado mais
adiante, ao chegarem a algum ponto mais importante, repetissem os votos e se servissem igualmente de uma nova
súplica (...) / Quod si nemo miratur poetas maximos saepe fecisse ut non solum initiis operum suorum Musas
inuocarent, sed prouecti quoque longius, cum ad aliquem grauiorem uenissent locum, repeterent uota et uelut noua
precatione uterentur (...) (Institutio oratoria, IV, proêmio, 4).
179
Homero não é sistemático nas referências que faz às divindades que garantem o canto. Por vezes utiliza o termo
Mou'sa, “Musa”, no singular, por vezes, no plural; no início da Ilíada, aliás, serve-se do termo genérico qea; (cf.
verso 1), “deusa”, no singular.

72
passagem é extremamente interessante, visto que estabelece uma distinção radical entre o tipo de
conhecimento que é possível aos humanos e aquele que lhes provém da divindade.
“Ó Musas, me dizei, moradoras do Olimpo,
Divinas, todo-presentes, todo-sapientes180
(nós, nada mais sabendo, só a fama ouvimos),181
quais eram, hegemônicos, guiando os Dânaos,
os príncipes e os chefes. O total de nomes
da multidão, nem tendo dez bocas, dez línguas,
voz inquebrável, peito brônzeo, eu saberia
dizer, se as Musas, filhas de Zeus porta-escudo,
olímpicas, não derem à memória ajuda,
renomeando-me os nomes. Só direi o número
das naves e os navarcas que assediaram Tróia.182

A tradução de Haroldo de Campos, ainda que de forma condensada (provavelmente por


exigência métrica), consegue manter a importante contraposição que se estabelece nos versos 485
e 486. Poderíamos, entretanto, propor a seguinte tradução, que não tem pretensão poética, mais
próxima à letra do texto: “Pois vós sois deusas, tudo presenciais e tudo sabeis / Nós, por outro
lado, a fama apenas ouvimos e de nada sabemos”. Cabe ressaltar que as formas verbais que
estamos aqui traduzindo por meio do verbo “saber” têm em grego um valor especial. O verbo
oi\da traz em si a idéia de visão. Trata-se de uma antiga forma de perfeito do hipotético ei[dw, cujo
sentido é “ver”. A forma oi\da, portanto, significaria originalmente algo como “eu vi, por isso
sei”, ou “eu conheço por ter visto”. Ora, é justamente esse o conhecimento que possuem as
musas; é graças a elas, que estiveram presentes a todos os eventos narrados, que puderam ver, por
exemplo, a reunião das naus dos Dânaos diante das praias de Tróia, que o aedo, que não viu nada
disso, pode, ainda assim, cantar a respeito. Na perspectiva da épica antiga, portanto, o
conhecimento que é possível aos homens, quando se trata de um evento ocorrido em lugares
distantes, é um conhecimento que se dá apenas “por ouvir dizer”. Assim, a narrativa oferecida
pelo poeta arcaico (representado na figura do narrador épico) dos acontecimentos grandiosos,

180
Em grego: uJmei'" ga;r qeaiv ejste, pavrestev te, i[stev te pavnta.
181
No original: hJmei'" de; klevo" oi\on ajkouvomen oujdev ti i[dmen.
182
Homero, Ilíada II, 484-493. Adotamos a tradução de Haroldo de Campos (Campos, H. Ilíada de Homero. São
Paulo: Mandarim, 2001).

73
cuja memória é digna de preservação, não se constitui a partir de um conhecimento que seja do
âmbito dos homens, mas que tem origem no dom das divindades que, onipresentes, têm acesso a
tudo o que acontece.
Entretanto, os cantos de Homero não lidam apenas com essa forma de conhecimento que
provém das divindades. Há também narrativas que se efetuam por meio de um conhecimento
puramente humano. Por vezes, aliás, encontramos, sobretudo na Odisséia, momentos em que
essas duas formas de conhecimento se colocam lado a lado, de modo que, em uma relação tensa,
uma passa a valorar a outra. Quando Odisseu, no poema que lhe é consagrado, encontra-se entre
os Feácios, logo após sobreviver a um naufrágio, temos a oportunidade de ver um aedo,
Demódoco, narrar acontecimentos a que não esteve presente e dos quais, por outro lado, tomou
parte Odisseu, um dos comensais que frui do canto.

“Todos as mãos estendiam, visando a alcançar as viandas.


Tendo assim, pois, a vontade da fome e da sede saciado,
vira-se para Demódoco o astuto Odisseu e lhe fala:
‘Mais do que a todos os outros mortais, te venero, ó Demódoco!
Foste discíp’lo das Musas, as filhas de Zeus, ou de Apolo?
Tão verazmente cantaste as desgraças dos homens Aquivos,
Quanto fizeram, trabalhos vencidos, e o mais que sofreram,
Como se o visses tu próprio, ou soubesses de alguém fidedigno.
Ora começa de novo, e o cavalo de pau nos invoca,
que por Epeio foi feito com a ajuda de Palas Atena,
esse, que o divo Odisseu com astúcia pôs dentro de Tróia,
cheio de heróis destemidos, que os muros sagrados saquearam.
Caso consigas cantar isso tudo de acordo com os fatos,
Logo darei testemunho perante o universo dos homens
que recebeste de um deus benfazejo a divina cantiga.’
Disse. O cantor, por um deus inspirado, dá logo começo (...)”.183

Nesse ponto do poema, Odisseu ainda não revelou sua identidade. Depois de ouvir do
cantor feácio duas narrativas184, o herói lhe rende homenagem, pedindo a um escravo que lhe leve

183
Homero, Odisséia VIII, 487-499. Tradução de Carlos Alberto Nunes (Rio de Janeiro: Ediouro, 2002).

74
postas de carne de porco, servida no banquete; faz isso, diz ele, porque reconhece que os cantores
são favorecidos pelas musas. Na passagem citada, voltando-se diretamente ao aedo, Odisseu
indica as razões que possui para admitir a origem divina dos cantos de Demódoco. Tendo sido
objeto de um de seus cantos, cuja narrativa representava de modo veraz os eventos que ele
próprio, Odisseu, presenciara, o herói confere, inicialmente, a responsabilidade do canto às
divindades: as musas, ou o próprio Apolo. Num segundo momento (verso 491), serve-se do
critério humano para julgar a capacidade poética de Demódoco: ele cantou como se tivesse visto
com seus próprios olhos, ou como se tivesse recebido as informações de alguém digno de fé. Na
passagem final do trecho citado (vv. 492-498), Odisseu pede-lhe ainda uma outra narrativa de
eventos dos quais, novamente, ele próprio tomou parte. O herói está disposto a proclamar a
origem divina do canto (e do conhecimento) de Demódoco, caso ele possa narrar, tal qual
aconteceu, o estratagema do cavalo de madeira. Ora, é novamente por meio de um critério
humano que será aferido o conhecimento de Demódoco a respeito dos fatos que narra, a partir do
que se reconhecerá, ou não, seu dom divino.
A presença do aedo nesse canto VIII da Odisséia é emblemática, pois nós sabemos, por
meio de informação que nos foi dada pelo narrador, que o cantor é cego e, portanto, não pôde ter
acesso visual a nenhum daqueles eventos que narra com a precisão que impressiona Odisseu, a
testemunha ocular: “Já pelo arauto trazido o cantor divinal se aproxima,/ que tanto a Musa
distingue, e a quem males e bens concedera:/ tira-lhe a vista dos olhos, mas cantos sublimes lhe
inspira (vv. 61-63)”. De modo que, de antemão, o narrador já excluiu as duas outras
possibilidades de acesso ao conhecimento dos fatos por meio das quais Odisseu, que representa a
perspectiva humana, julga a fidedignidade do relato do aedo cego: ele não esteve presente e nem
viu com os próprios olhos; também, distante como é o país dos feácios, não ouviu de alguém
fidedigno, senão das próprias divindades (cf. v. 491). E é justamente Odisseu, que encarna na
passagem a modalidade humana de conhecimento, que instaura, após revelar sua identidade, toda
uma passagem do poema em que o canto é humano, feito em primeira pessoa por alguém que
esteve presente, viu e participou dos eventos que são apresentados185.

184
Na primeira, o aedo cantara certa rixa que opusera Aquiles a Odisseu. Na segunda, os amores adúlteros de dois
deuses: Ares e Afrodite
185
É bem verdade que, do ponto de vista da matéria narrada, toda a passagem que se estende do canto IX ao canto
XII contém acontecimentos fantásticos que dificilmente poderiam ser considerados como do âmbito puramente
humano. O que defendemos, entretanto, é que a narrativa contida nesses cantos, do ponto de vista da origem e da
responsabilidade, é toda humana: seu autor é Odisseu.

75
Esse é um dos motivos que levam autores como François Hartog, por exemplo, a considerar
Odisseu como uma espécie de proto-historiador186. O herói é o homem que viajou e conheceu
muitas cidades e diferentes costumes dos homens (Odisséia I, 3) e que, por isso, pode fazer
(como de fato faz) um relato em primeira mão daquilo que viu.
Ademais, a obra de Homero nos confere ainda outras informações importantes a respeito da
historiografia. Em sua interessante publicação a respeito do desenvolvimento do discurso
historiográfico na Antigüidade e da própria noção de “história”, François Hartog observa que o
termo que por vezes designa a atividade do historiador, iJstoriva, encontra em Homero um
interessante antepassado. Em duas ocasiões, ambas na Ilíada, nós encontramos a figura do
i[stwr187. Nas duas ocorrências, uma personagem assume a função de i[stwr no contexto de uma
disputa. Observemos essas passagens, para que, por meio de uma comparação, possamos chegar a
compreender o valor que tem o termo no contexto homérico.
No canto XVIII, faz-se a descrição do admirável escudo de Aquiles, forjado por Hefesto.
Em uma de suas partes, onde se veria representada uma cidade bem organizada, os homens,
reunidos na praça pública, discutem a respeito de um crime. Citamos:

“Mais além, perante


o povo, na ágora, dois homens litigando
em torno de um delito; a lide (nei'ko"): a morte de outrem
e o resgate a ser pago em reparo do dano;
um jurava ter pago o débito; afirmava
o outro que nada recebera; um árbitro, (i[stori) ambos
pediram, que julgasse o pleito; divididos
os cidadãos, aos gritos, tomavam partido;
os arautos continham o povo; os gerontes

186
Hartog, F., 2001, pp. 36-37: “Solicitado por Ulisses, o aedo canta a queda de Tróia. É a primeira narração do
‘acontecimento’ – e, sobretudo, a presença de Ulisses atesta que ‘isso’ realmente teve lugar. Aí se encontra, portanto,
a primeira narrativa ‘histórica’. Mas com esta diferença que muda tudo: Demódoco não esteve lá e não viu nada,
enquanto Ulisses ocupa, ao mesmo tempo, a função de objeto da narrativa e de testemunho (o superstes latino, o
sobrevivente). Daí a espantosa (falsa) questão dirigida por Ulisses ao aedo: tua narrativa não é demasiadamente exata
para não provir de uma visão direta? A visão humana (historiadora avant la lettre: ver com seus próprios olhos ou
ouvir de alguém que viu) torna-se, por um instante, o padrão da visão divina”. A imagem de Odisseu como homem
que personifica os começos do procedimento histórico aparece, de fato, em historiadores antigos, como Políbio
(Histórias XII, 27) e Diodoro da Sicília (Biblioteca Histórica I, 1, 2). As duas passagens são citadas por Hartog nas
páginas 123 e 127-8, respectivamente.
187
A forma jônica, utilizada por Homero, é i[stwr, ao passo que a forma ática é i{stwr.

76
sentavam-se nas sedes de pedra polida,
sacro círculo; arautos portavam seus cetros,
voz-sonora; tomando-os, erguiam-se e ditavam
suas sentenças: dois áureos talentos, no solo
postos, prêmio ao melhor juiz.”188

Já no canto XXIII, são representados os jogos, oferecidos por Aquiles como parte das
celebrações funerais em honra de Pátroclo. Dá-se uma corrida de carros puxados por cavalos. Ao
fim da competição, há uma disputa entre Ájax e Idomeneu para saber quem estava à frente na
corrida, após os competidores terem feito a volta no marco estabelecido. Para a resolução do
problema, Idomeneu propõe tomar Agamêmnon como i[stwr.

“Ájax, és em querelas (nei'ko") ótimo, no mais,


um mente-obtuso, em tudo o pior entre os Argivos,
pois tens cabeça dura. Apostemos, então,
algo de preço, trípode ou caldeira! Por
árbitro (i[stora), tomaremos Agamêmnon. Cabe-lhe
dizer que corcéis vêm à frente. Aprenderás
pagando.”189

As duas passagens que se referem ao i[stwr não tornam claro, num primeiro momento, qual
seja a função por ele desempenhada. Nesta, em que se dá a disputa a respeito da corrida de
cavalos, Agamêmnon não chega a atuar: a disputa é resolvida por Aquiles. Aquela, que descreve
uma imagem representada num objeto, pela própria natureza da representação, não permite o
desenvolvimento da ação que poderia exercer o tal i[stwr. Se tomarmos como base o estudo
lingüístico de Émile Benveniste, o termo designa, etimologicamente, aquele que vê. O estudioso
recorda fórmulas de juramento, como i[stw Zeu;", “que Zeus veja!”, para argumentar que o
sentido inicial do termo é o de “testemunha”, aquele que sabe por ter visto. Entretanto,
Benveniste se refere justamente à representação do escudo de Aquiles190, dizendo que, ali, o
sentido não pode ser exatamente o de “testemunha”, pois, a presença de alguém que tivesse

188
Homero, Ilíada XVIII, 496-509. Tradução de Haroldo de Campos.
189
Homero, Ilíada XXIII, 482-488. Tradução de Haroldo de Campos.
190
Cf. Benveniste, E., 1995, pp. 174-175.

77
presenciado o crime, dirimiria a discussão. Sendo assim, o lingüista aproxima o termo do latim
arbiter, como aparece na expressão iudex arbiter, que é aquele que, como terceiro, assistindo a
uma disputa entre duas partes, decide-a191. Esse sentido, para Benveniste, é derivado; ele o
explica: “é exatamente porque ístor é [originalmente] a testemunha ocular, a única a decidir a
discussão, que se pôde atribuir a ístor o sentido de ‘quem decide por um julgamento inapelável
sobre uma questão de boa fé’”. Hartog192 aproveita parte da explicação de Benveniste. No caso da
corrida de cavalos, está claro que Agamêmnon não pôde ter visto nada do que gerou a discussão
e, se é chamado a desempenhar alguma função, isso se dá por seu poder de chefe da expedição.
Na passagem do escudo, por outro lado, Hartog observa que são os anciãos que de fato
pronunciam as sentenças e que, ademais, recebem mesmo prêmios pela qualidade de suas
decisões. Ele propõe, assim, como hipótese interpretativa, que a personagem a ser invocada
desempenharia a função de uma espécie de fiador, uma testemunha, para agora e para o futuro, da
decisão tomada pelos velhos que julgam. “Seu papel se aproximaria então do que era atribuído ao
mnémon, homem-memória ou ‘recordação viva (L.Gernet) – como acontecia, particularmente, na
cidade cretense de Gortina. O mnémon é uma sorte de testemunha pública ‘que guarda a
lembrança do passado em vista de uma decisão judicial’”.193 Da mesma forma, não caberia a
Agamêmnon efetuar uma investigação – é esse o sentido que iJstoriva tem, por exemplo, em
Heródoto – das ações dos competidores, para descobrir quem venceu, ou se houve fraude de
alguma das partes. Ele seria tão somente o fiador da aposta que Idomeneu pretende estabelecer
(cf. Ilíada XIII, 485-6).
Pois bem, como quer que se decida a disputa entre Benveniste e Hartog, mais importante
para a nossa discussão é justamente o ponto sobre o qual os dois estão de acordo: o termo que
aparece em Homero e que, etimologicamente, relaciona-se com a atividade que Heródoto
professa desempenhar, envolve, necessariamente, a presença de uma testemunha ocular; exige a
presença de alguém que possa se estabelecer como fiador daquilo que é narrado em forma de
récita histórica.
Não é nossa intenção, evidentemente, atribuir a Heródoto a mesma função que tem o i[stwr
homérico. Mas, quando esse autor, designado pela tradição como “pai da história”, refere-se à sua

191
Essa é a interpretação adotada também por Edwards, em nota a Ilíada, XVIII, 501 (Edwards, M.W. The Illiad: a
commentary. Volume V: Books 17-20. General editor G.S. Kirk. Cambridge: CUP, 1991, p. 216).
192
Cf.: Hartog, op. cit. pp. 34-35.
193
Gernet, L. Anthropologie de la Grèce antique. Paris: Maspero, 1968, p. 286 apud Hartog, op. cit. p. 35.

78
obra por meio da expressão iJstorivh" ajpovdexi" (traduzida normalmente por “exposição da
investigação”), ele indica que constrói sua narrativa a partir de uma pesquisa crítica das
informações que pode colher a respeito dos eventos que expõe. Essas informações dependem, em
última análise do testemunho de alguém que assistiu aos eventos. O próprio historiador pode ser a
testemunha de parte importante do que ele narra; segundo diz Hartog, iJstorei'n pode implicar
viajar ao local dos acontecimentos e constatar por si mesmo o que se passa ou se passou. É esse o
sentido do verbo em um fragmento de Clemente de Alexandria em que se faz referência à
atividade “científica” de Demócrito de Abdera:

“Isto diz Demócrito... sem dúvida é sobre si mesmo que escreve, quando fala em
algum lugar, gloriando-se da amplitude de seu saber: ‘eu sou, dentre os homens de
minha época, o que mais navegou, investigando (iJstorevwn) o mais longe possível – e
muitíssimos homens sábios ouvi e, na composição de escritos com demonstração,
ninguém ainda me ultrapassou, nem mesmo, dentre os egípcios, os chamados
Arpedonaptas, com os quais, durante oitenta anos ao todo, estive no estrangeiro.’ Pois
ele viajou à Babilônia, à Pérsia e ao Egito para ser discípulo dos magos e dos
sacerdotes.”194

Heródoto, embora, segundo se diz, tenha viajado bastante, não pôde ter sido testemunha
ocular, evidentemente, dos eventos que narra. De qualquer forma, podemos perceber de que
modo se constitui a sua investigação já na passagem introdutória de sua obra. O trecho é bastante
pertinente à nossa discussão; ali, o autor pretende dar conta, racionalmente, de eventos que,
tradicionalmente, eram divulgados pelos cantores épicos. A investigação de Heródoto tenta,
então, dar conta dos eventos, como a guerra de Tróia, e de suas causas, sobretudo, por meio da
análise de versões que são dadas pelos homens: testemunhos humanos que não dependem da
intervenção dos deuses.

“E dizem [os persas] que, na segunda geração subseqüente, Alexandre, filho de


Príamo, tendo ouvido falar disso [dos raptos de Medéia e Io], quis ter uma mulher da

194
Trata-se do fragmento 299 (Diels-Kranz). A tradução é a que se encontra na versão brasileira da obra de Hartog
(2001, p. 41). Hartog traz também o texto original.

79
Grécia por rapto, sabendo que não haveria absolutamente de reparar sua injustiça, pois
os gregos também não a haviam reparado.”195

Mas note-se que a investigação do autor impõe uma segunda versão, contraditória, para os
mútuos raptos de mulheres que teriam disposto gregos e bárbaros hostis uns aos outros:
“Sobre Io, os fenícios não concordam com os persas no seguinte: dizem que não a
conduziram ao Egito usando de rapto, mas que, em Argos, ela teve relações com o
capitão do navio. Tão logo percebeu que estava grávida, ficou com medo de seus pais e
partiu, por sua própria vontade, com os fenícios, para não ser descoberta.”196

Importante notar que a narrativa resultante da investigação dependerá da confrontação entre


versões diferentes; quando não houver fundamento para que se escolha uma versão e se pretira a
outra, a récita guarda indistintamente as duas versões. Nesse sentido, diz Hartog, o saber do
historiador “se encontra inteiramente por construir.”197 A distância com relação ao conhecimento
do aedo, recebido como um dom das divindades, é enorme:

“Isso é o que tanto os persas quanto os fenícios dizem. Eu, sobre essas coisas, não irei
dizer que aconteceram assim ou assado. Aquele que eu próprio sei (oi[da) ter sido o
primeiro a começar as ações injustas contra os gregos, indicarei e prosseguirei a
seqüência da narrativa (...)”198

Se já era enorme a distância que observamos entre o conhecimento estabelecido pela


investigação de Heródoto e o que é proporcionado pelo canto inspirado do poeta épico, parece ser
um abismo o que o segundo grande historiador grego, Tucídides, interpõe entre a sua obra e a
poesia épica. É bem verdade que Tucídides não se refere jamais à sua empresa por meio do termo
iJstoriva, mesmo assim, poderíamos dizer que ele desempenha, com relação aos eventos
apresentados em sua narrativa, uma posição semelhante ao do ijstwr homérico, ao menos em um
dos sentidos nos quais esse termo pôde ser, acima, compreendido: o de fiador.
195
Heródoto, Histórias, I, 3. A tradução que aqui apresentamos foi tomada da versão brasileira da obra de Hartog
(2001, p. 45).
196
Heródoto, Histórias, I, 5. A tradução que aqui apresentamos foi tomada da versão brasileira da obra de Hartog
(2001, p. 47).
197
Hartog, F. op. cit., p. 51.
198
Heródoto, Histórias, I, 5. A tradução que aqui apresentamos foi tomada da versão brasileira da obra de Hartog
(2001, p. 45). O verbo oi[da sublinhado não implica, obviamente, que o autor “viu”.

80
Conforme ele próprio informa no início de sua, assim chamada, História da Guerra do
Peloponeso, Tucídides iniciou a narrativa “logo a partir da eclosão da guerra”199. A matéria
escolhida pelo historiador é constituída por eventos que se desenvolveram no tempo de sua
própria vida. Se é visível o esforço do autor em estabelecer a grandeza da guerra que pretende
narrar, que, em sua opinião, é a maior e mais importante que já aconteceu, a escolha da matéria
também parece depender do fato de que apenas desse tipo de evento, contemporâneo do
historiador, ele pode oferecer uma narrativa veraz e segura:
“No que diz respeito às ações realizadas ao longo da guerra, eu não decidi escrever
sobre elas a partir do primeiro que encontrei, nem conforme minha própria opinião,
mas aquelas que eu próprio presenciei e, [as que aprendi] junto a outros, depois de ter
inquirido com a maior exatidão possível a respeito de cada uma delas”200.

Além disso, o autor reclama para si outro aspecto da função desempenhada pelo hístor,
segundo a discussão que apresentamos anteriormente. Por conta de determinada conjuntura,
Tucídides, que é ateniense, esteve em condições (conforme ele informa, ao menos) de
acompanhar todos os eventos com certa isenção, podendo declarar-se quase como um arbiter
imparcial que tem acesso às razões das duas partes.

“Vivi-a [a guerra] inteiramente, compreendendo-a graças à minha idade e nela pondo


minha atenção, a fim de saber alguma coisa exata: aconteceu-me ficar exilado de
minha pátria durante vinte anos, depois de exercer o cargo de estratego em Anfípolis,

199
Cf. I, i. A tradução é de Ana Lia Amaral de Almeida Prado, conforme se encontra em Tucídides, História da
Guerra do Peloponeso, São Paulo: Martins Fontes, 1999.
200
Cf. I, xxii, 2. Neste ponto, apresentamos nossa própria tradução, que diverge daquela apresentada por Ana Lia
Prado. Do modo como o texto de Prado está construído (“mas somente aquelas que eu próprio presenciara e depois
de ter pesquisado a fundo sobre cada um junto de outros”), exclui-se a possibilidade de que o autor tivesse narrado
eventos que se passaram em lugares nos quais ele não se encontrava; ora, se observarmos as ações narradas na obra,
essa interpretação se torna insustentável (cf. V, xxvi, citado abaixo). O texto é, contudo, difícil; a brevidade de
Tucídides torna a leitura sustentada pela tradutora sintaticamente possível. Para chegarmos à nossa, temos que supor
termos que sejam subentendidos entre as expressões kai; e para; tw'n a[llwn. Ora, o estilo de Tucídides,
desarmônico, permite esse tipo de irregularidade. Por outro lado, como dissemos, o contexto exige que a tradução
seja conforme a que propusemos. Veja-se como faz Jacqueline de Romilly, na edição da Belles-Lettres: “d’autre part,
en ce qui concerne les actes qui prirent place au cours de la guerre, je n’ai pas cru devoir, pour les raconter, me fier
aux informations du premier venu, non plus qu’à mon avis personnel : ou bien j’y ai assisté moi même, ou bien j’ai
enquêté sur chacun après d’autrui avec toute l’exactitude possible”. Outra forma de resolver os problemas da
passagem seria supor que a forma verbal parh'n indicasse não o fato de estar presente fisicamente, mas o de ser
contemporâneo. Nesse caso, não seria necessário supor nenhum termo.

81
e, assistindo de ambos os lados os empreendimentos – não menos os dos peloponésios,
por causa do exílio – compreendi-os mais à vontade”201.

Essa circunstância, aliada à pesquisa zelosa das fontes, permitiu-lhe estabelecer, ainda que
com dificuldade, a narrativa com a maior exatidão possível.

“Muito penoso era o trabalho de pesquisa, porque as testemunhas de cada uma dessas
ações não diziam o mesmo sobre os mesmos fatos, mas falavam segundo a simpatia
por uma ou outra parte ou segundo as lembranças que guardavam.”202

A exatidão assim garantida por esse historiador no que diz respeito às ações que se
passaram em seu tempo e que constituem, como sabemos, a matéria principal de sua obra,
contrasta com a precisão almejada e considerada pouco possível quando ele pretende tratar de
eventos de tempos remotos. Como a escolha da matéria principal se deu também em termos da
grandeza inédita da guerra entre atenienses e lacedemônios, Tucídides percebe a necessidade de
demonstrar que as ações bélicas anteriores foram menores do que se costuma crer. É isso o que
ele pretende realizar na chamada Arqueologia. Nessa passagem (I, i – xxi), que Jacqueline de
Romilly considerou como um “verdadeiro manifesto” da razão humana203, o historiador, que,
evidentemente não pode se declarar como testemunha ocular dos eventos que expõe, demonstra
toda sua capacidade em trabalhar criticamente as fontes. Ao considerar a guerra de Tróia, por
exemplo, o autor não pode prescindir do testemunho dos poetas, mas não se serve deles senão
após aplicar um exame crítico àquilo que eles dizem e tomar como indícios justamente aquelas
informações que eles apresentam de modo mais ou menos involuntário204. Uma das razões para
esse cuidado se dá porque o autor reconhece que os poetas, mais preocupados com agradar o
auditório do que com a busca do verdadeiro, terminam por engrandecer, por meio de adornos, os
eventos que narram205. Desse modo, ele toma, por exemplo, o fato de que Homero não utilize o
termo “helenos” para designar senão os companheiros de Aquiles, originários da Ftiótida, como
indício de que nos tempos do poeta os gregos não tinham unidade social ou política, o que

201
Cf. V, xxvi. Adotamos, neste ponto, a tradução apresentada na versão brasileira da obra já citada de Hartog (2001,
p. 85).
202
Cf. I, xxii, 4. Tradução de Ana Lia Prado, já mencionada.
203
Romilly, J. , 1998, p. 157.
204
Romilly, J., op. cit., p. 158.
205
Cf . I, xxi.

82
demonstraria – o que é seu objetivo maior – a pouca importância que deve ter tido a guerra de
Tróia se comparada à guerra entre atenienses e peloponésios (cf. I, iii). De qualquer forma, o
autor parece se mostrar bem consciente de que não pode fazer uma reconstituição segura de
eventos tão distantes no tempo. O que ele pretende é apenas uma visão suficiente para assegurar a
tese de que a guerra atual é maior e mais importante do que qualquer outra já foi.

“De fato, os acontecimentos anteriores e os mais antigos ainda, dado o recuo do tempo,
era-me impossível estabelecê-los com clareza, mas, pelos indícios, a partir dos quais,
num exame de longo alcance, cheguei a uma convicção, julgo que não foram
importantes, nem quanto às guerras nem quanto ao mais.”206

Para Tucídides, portanto, uma narrativa histórica só pode ser verdadeira e exata se o
historiador aplicar seu exame crítico, racional, a eventos que se desenvolvam em seu próprio
tempo207. Entretanto, não basta apenas que ele presencie os acontecimentos, ou, se isso não é
possível, que ele se informe sobre os eventos, o historiador deve ter ainda maturidade intelectual
para compreendê-los e certa isenção, para se esquivar das versões parciais que ele possa colher
das diversas testemunhas e fontes.
A partir da consideração dessa diferença que parece ser fundamental entre o discurso do
poeta épico, por um lado, e o discurso do historiador, por outro, como podemos conceber os
diálogos filosóficos com os quais vínhamos lidando?208 Vimos que os trechos iniciais tanto do
Fédon quanto do Teeteto pretendiam conferir credibilidade ao relato do diálogo principal
justamente por fundamentar a narrativa, ou no caso do Teeteto, o “texto” de Euclides, sobre uma
testemunha ocular das conversas tidas por Sócrates e seus interlocutores. Conforme se declara
nos textos, Fédon esteve ao lado de Sócrates no dia da morte do velho filósofo e Euclides, no

206
Cf. I, i. Tradução de Ana Lia Prado.
207
Cf. Hartog, F. op. cit., p. 11.
208
Cenas como as do Parmênides, por exemplo, ou do Banquete, afastam-se do modelo que observamos no diálogo
ciceroniano. Nessas obras de Platão, a récita depende de uma transmissão que, num determinado ponto, baseia-se
numa personagem que apenas ouviu a cena que narra. Por outro lado, tanto no Fédon quanto no Teeteto, que por isso
tomamos como bons exemplares para refletir sobre Cícero, o relato, na representação, está fundamentado na
presença de ao menos uma testemunha ocular. É o caso do diálogo ciceroniano, em que, por vezes, como no De
finibus, a testemunha é o próprio autor, que, além disso, toma parte na discussão como personagem principal. Nesse
sentido, há textos de Platão que poderiam ser ainda mencionados, como o Protágoras, em que a personagem de
Sócrates narra o diálogo de que ela própria participou.

83
Teeteto, obteve do próprio Sócrates o relato da conversa que este último teve com o jovem
Teeteto, a partir do que compôs o seu “diálogo”.
A ação desempenhada por Euclides, ademais, revela semelhanças sensíveis com a atividade
do historiador. Em primeiro lugar, ele lança por escrito, com vistas à preservação, o diálogo
narrado por Sócrates. Ora, o ato de escrever define, em grande parte, a empresa de Tucídides (cf.
I, i: xunevgraye), que concebe sua obra como uma aquisição para sempre (cf. I, xxii:
kth'ma te ej" aijei;), de que poderão se servir os homens do futuro. Por outro lado, a insistência
com que, após o primeiro relato, Euclides viaja a Atenas, para encontrar Sócrates e corrigir as
anotações que, num primeiro momento fizera de memória, que não visa outra coisa senão obter a
maior exatidão possível na reprodução do diálogo, guarda certa semelhança com o cuidadoso
tratamento das fontes professado por Tucídides (cf. I, xxii).
Mas há elementos, porém, que são claramente distintos. Observamos tanto em Heródoto
quanto em Tucídides um confronto entre diferentes versões dos fatos narrados que não encontra
qualquer paralelo nos trechos iniciais das obras de Platão com que trabalhamos. Sobre a questão
dos raptos, causa suposta para a hostilidade entre europeus e asiáticos, Heródoto faz questão de
registrar o que pensavam os diferentes povos envolvidos. Tucídides, que indica, na exposição do
método, utilizar procedimento semelhante com relação aos relatos que toma de atenienses e
lacedemônios (e, supomos, outros participantes do conflito), afirma que sua intenção é eliminar
as distorções que se criam a partir do sentimento de simpatia ou inveja que as fontes utilizadas
poderiam nutrir por uma das duas partes principais envolvidas na guerra. Em Platão, nos dois
trechos que analisamos, uma só testemunha é apresentada como garantia da veracidade do relato.
Num deles, o fiador é Fédon, discípulo que, segundo o relato que lhe atribui Platão, mantinha
com Sócrates uma relação de calorosa amizade.209 No outro, a única fonte do relato, registrado
para sempre por Euclides, como se fosse uma obra de história, é o próprio Sócrates! O mesmo
acontece em outros diálogos em que, de maneira menos complexa, a ação principal é narrada pelo
próprio Sócrates, que aparece como personagem do diálogo introdutório e do diálogo principal. É
o caso, por exemplo, da República210. Além disso, devemos recordar que quase todas as obras de
Platão apresentam relatos de eventos que são do âmbito privado211. As conversas de Sócrates com

209
Veja-se a cena (Fédon, 89b) em que o mestre afaga o discípulo, brincando com seus cabelos que, depois da
execução da sentença, serão cortados e depostos em sinal de luto.
210
E também do Protágoras, que mencionamos acima em nota.
211
Uma importante exceção é a Apologia, que será mencionada a seguir.

84
seus interlocutores acontecem, muitas vezes, na casa de um ou de outro ateniense ilustre, num
encontro entre um círculo restrito de pessoas. Mesmo quando tudo se dá na praça pública, a cena
tem número reduzido de participantes. É constrangedor, mas, de tal tipo de ação, não poderíamos
mesmo ter fontes múltiplas.
Mas nos seria permitido pensar, até aí, que essas obras de Platão poderiam ser obras
historiográficas (apesar do juízo de Aristóteles), muito embora escritas sem o menor cuidado com
a imparcialidade. Mas não parece ser esse o caso. Um outro elemento, bastante discutido pelos
estudiosos de Platão, afasta radicalmente o diálogo do discurso historiográfico, trazendo-o,
indubitavelmente, para o domínio da mímesis: a ausência deliberada do autor.
Tanto Heródoto quanto Tucídides iniciam suas obras nomeando-se a si próprios,
declarando-se responsáveis pelo escrito e por toda a narrativa que nele está contida. Platão,
entretanto, jamais fala por si. Menciona o próprio nome duas vezes em toda sua obra. Em uma
ocasião, na Apologia, Sócrates menciona a presença do jovem Platão em meio à assembléia que
assiste a seu processo. Na outra, que citamos acima, Fédon, questionado sobre os que estavam na
prisão, no dia da morte de Sócrates, informa que Platão, talvez doente, não comparecera. É
notável, para nossa discussão, o fato de que Charles Kahn se sirva justamente da única obra em
que o autor está presente, a Apologia, como o documento mais confiável, quase histórico (sic),
para a tentativa que faz de reconstituição do pensamento do Sócrates histórico212. Ora, o
argumento decisivo utilizado por esse estudioso para defender a veracidade das idéias que são ali
atribuídas a Sócrates gira em torno da natureza da ação representada: trata-se de um processo
jurídico, público, evento, portanto, ao qual estivera presente boa parte dos cidadãos ilustres da
Atenas da época. Ora, a presença de Platão é justamente um índice do caráter público da cena.
Conforme vimos anteriormente, no livro III da República, Platão considera que é a ausência
de uma voz que seja do próprio poeta que, permitindo a presença de personagens, define a
expressão mimética. E mesmo Aristóteles, que considera a narrativa simples dos ditirambos, por
exemplo, como uma forma de mimese, parece conceber que a representação criada pelo poeta é

212
Cf. Kahn, C., 1996, pp. 88-95. Não há, contudo, consenso a respeito desse ponto. Nesse sentido, pode ser
interessante observar a discussão que apresenta Slings a respeito da historicidade da Apologia (cf. Slings, S.R.
Plato’s Apology of Socrates, Brill, 1994, pp. 1-13), com a menção dos principais estudiosos envolvidos na
discussão. Para nossos propósitos, entretanto, importa menos decidir a respeito de qualquer uma das opiniões a
respeito do valor histórico do texto. Julgamos importante indicar que o problema surge justamente em torno de um
texto que, histórico ou não, partilha alguns elementos com o gênero historiográfico, como o caráter público da ação e
a presença do autor como testemunha do relato.

85
tanto mais eficiente quanto menos ele toma a palavra por conta própria213. Assim, o elemento da
criação poética por excelência, que é a mimese, ainda que diga respeito a outras coisas, como
vimos anteriormente, realiza-se sobremaneira por meio do apagamento do autor enquanto
enunciador direto da mensagem textual. De fato, aquilo que parece claro para quem faça uma
leitura mais atenta das obras de Platão, submete-se aqui aos elementos teóricos e se realça a partir
de uma comparação entre o diálogo e alguns dos gêneros com os quais ele guarda semelhança:
quem garante a credibilidade do relato em obras como o Fédon ou o Teeteto, não é o autor, que,
também por isso, não é historiador, mas uma personagem forjada, mimeticamente, pelo autor,
que é, justamente por isso, poeta.
O diálogo filosófico praticado por Platão, talvez com exceção da Apologia214, insere-se,
como já notara Aristóteles, nas formas miméticas de discurso. De qualquer forma, tendo em vista
o esforço com que o autor, construindo personagens a partir de indivíduos históricos215,
estabelece credibilidade às conversas de Sócrates, ao traçar uma linha de transmissão fiável dos
eventos que são relatados, baseada apenas no conhecimento humano, o tipo de mimese realizado
por Platão (nos textos com que trabalhamos) parece guardar certa roupagem de historiografia.
Poderíamos dizer que esse tipo de diálogo filosófico toma emprestado à historiografia a técnica
pela qual ela confere credibilidade a suas narrativas. O autor realiza, assim, uma representação
que cria um novo tipo de ilusão de realidade, de uma maneira que outras poesias representativas
ainda não haviam feito, pois ela cria a ilusão de um discurso historiográfico.216
Neste ponto, gostaríamos de refletir, em caráter de especulação, sobre o contexto cultural e
intelectual em que esse novo tipo de poesia mimética surgiu. Para isso, lancemos mão,
primeiramente, de um texto bem posterior à época de composição dos diálogos de Platão. A

213
Cf. Aristóteles, Poética, capítulo 24, 1460a5-11.
214
Texto que, para Kahn, ademais, não deve ser contado entre os swkratikoi; lovgoi, pois que representaria um outro
gênero: o do “discurso de tribunal revisado para a publicação (cf. Kahn, op. cit., p. 88)”. Ainda que literário, esse
texto não conteria grandes alterações do autor com relação ao pensamento do mestre. A discussão, evidentemente, é
concomitante à questão a respeito da historicidade do relato, sobre a qual não pretendemos decidir.
215
Há um grande número deles: Sócrates, Górgias, Alcibíades, Protágoras, Parmênides etc.
216
É no desenvolvimento dessa nova forma poética que Charles Kahn considera estar a grande realização literária de
Platão: “a criação do diálogo histórico ‘realístico’, um trabalho de imaginação designado a dar a impressão de um
registro de eventos verdadeiros, como um bom romance histórico.” Cf. Kahn, op. cit., p. 35. Se a comparação como
o romance histórico é inadequada, pois que toma como termo de comparação um gênero moderno, é interessante ao
menos por ressaltar os dois aspectos do diálogo a respeito dos quais discutimos: por um lado, a presença de
elementos históricos e de uma preocupação com a credibilidade do relato, por outro, a ficção, as personagens criadas
segundo tipos de caracteres, a organização provável das ações, etc.

86
seguir, lancemos um olhar retrospectivo a essa época que viu o surgimento do diálogo como
gênero literário.
Quando em seu primeiro texto teórico, o De inuentione, obra de juventude, publicada na
década de 80 a.C., Cícero disserta a respeito da narratio oratória, estabelece uma interessante
distinção entre formas diferentes da expressão narrativa, segundo a relação que se estabelece
entre o relato e os eventos. Citamos De inuentione I, 27:

“A narratio é a exposição de ações realizadas ou como que realizadas217: a fabula é


aquela que não contém nem ações verdadeiras nem semelhantes ao verdadeiro; a
história é uma ação realizada, distante da memória de nosso tempo, o argumentum é a
ação forjada que, todavia, pode ter acontecido.”218

Esses três modos diferentes de narrar estão associados, na concepção ciceroniana, a gêneros
literários distintos. A fabula é a narrativa que se encontra nos mitos tradicionais, de que se serve
freqüentemente a epopéia219. Para a historia, a relação é direta com o gênero historiográfico,
embora estabeleça alguns problemas, conforme veremos mais adiante. O argumentum encontra-
se em algumas formas de poesia dramática220. Ao orador, será interessante se servir tanto da

217
A expressão ut gestarum traz algum problema de versão. Resolvemos permanecer próximos ao texto original.
Cabe dizer, entretanto, que a idéia é de ações que são semelhantes às ações realizadas, isto é, eventos que, mesmo
que não tenham acontecido, poderiam, contudo, ter acontecido. Woodman (1988, p. 86), que comenta a passagem,
traduz assim: “an exposition of events that have occurred or are supposed to have occurred”
218
Cícero, De inuentione, I, 27: narratio est rerum gestarum aut ut gestarum expositio: fabula est in qua nec uerae
nec ueri similes res continentur; historia est gesta res ab aetatis nostrae memoria remota; argumentum est ficta res
quae tamen fieri potuit.
219
Cícero parece, por vezes, designar a tragédia como ficta fabula, isto é, “estória forjada, imaginada”, mas
acreditamos que, quando faz isso, ele se refere sobretudo à narrativa mitológica, não ao agenciamento entre as ações
representadas. Assim, no De finibus (V, 64), por exemplo, ele evoca o Orestes de Pacúvio, para falar da amizade que
não busca interesses pessoais. A estória de Orestes, chamada ficta fabula, é confrontada com exemplos tomados da
história de Roma. Ora, a estória, aqui, não se refere à organização das ações em uma representação trágica, mas ao
elemento mitológico que seria comum à tragédia e à epopéia. A tragédia é assim associada, sob esse ponto de vista, à
epopéia e à narrativa legendária em geral, por conta da dessemelhança entre a matéria de que essas narrativas tratam
e os eventos que acontecem na vida.
220
Para outra interpretação a respeito da relação entre as formas de narratio e os gêneros literários, cf. Ruch, op. cit.,
pp. 24-25. Ruch, entretanto, parece se equivocar quando relaciona o plasmatikovn com o drama em geral. O autor
francês não revela a fonte antiga em que se baseia, mas sua argumentação parece semelhante a algo que diz Sexto
Empírico, que propõe uma distinção entre iJstoriva, relacionada diretamente à história; mu'qo", relacionado à narrativa
de eventos que nunca aconteceram e que são falsos; e plavsma, relacionado à narrativa de eventos que não
aconteceram, mas que são semelhantes aos eventos que aconteceram. Os exemplos dados para o plavsma são as
situações “hipotéticas” da comédia e do mimo. A perspectiva de Sexto é, entretanto, diferente do que apresenta
Ruch; o filósofo cético parece, assim como Cícero no De inuentione, mais preocupado com a relação entre a
representação e os eventos, do que com as relações internas que possa haver entre as ações representadas em uma
narrativa qualquer. Assim, onde Sexto classificaria a tragédia? Como mu'qo" ou plavsma? O problema não é simples,

87
historia quanto do argumentum221; quanto à fabula, em mais de uma passagem o pensador
romano vai considerá-la como ineficiente para o estabelecimento da auctoritas e da fides222, que
são elementos essenciais para o sucesso do orador nas causas que sustenta. Pois bem, para chegar
à narratio mais apropriada ao discurso público, Cícero leva em consideração inicialmente os três
modos possíveis do discurso narrativo; e eles se distinguem a partir da relação que há entre as
ações que representam ou reproduzem, e os eventos que ocorrem da vida223.
Ora, de tudo que observamos no texto de Aristóteles sobre a composição representativa, não
vimos nada que se relacione diretamente com aquilo que no século I a.C., Cícero chamaria de
fabula. Concordamos que a perspectiva de Aristóteles seja outra. Ele não parece se preocupar
tanto com a matéria em si quanto com a organização que deve haver entre as ações representadas.
De qualquer modo, ao tratar da representação poética, no século IV a.C., Aristóteles parece
desconsiderar quase que completamente qualquer tipo de narrativa a que poderíamos chamar
fantástica, isto é, que não guarde sequer uma semelhança com o que costuma ocorrer
ordinariamente. No capítulo IX da Poética, como vimos, o filósofo oferece uma visão clara do
que seja a mimese, ao contrapô-la à maneira como os historiadores lidam com os eventos.
Mimese, ali, diz respeito a uma construção representativa que opera por meio de universais. Mais
que isso, Aristóteles afirmara que o ofício do poeta é “dizer coisas que poderiam ocorrer”,
representar, portanto, “coisas possíveis segundo o provável ou o necessário.”224 Assim, o autor
exclui da consideração que faz do que seja a poesia representativa todas aquelas modalidades de
narrativa que, numa teorização posterior, Cícero classificaria sob o título de fabulae.
Duas razões, ao que nos parece, podem explicar essa suposta negligência de Aristóteles. Em
primeiro lugar, ainda que trate de gêneros diferentes de poesia, o foco central da teoria do
filósofo de Estagira é, sem dúvida alguma, a tragédia, em que ele se ocupa, sobretudo, do
agenciamento interno entre as ações.
Em segundo lugar, conforme pensam alguns comentadores, a abordagem que ele faz da
tragédia é eminentemente racionalista. O prazer próprio da mimese é, em última análise, um

pois, afinal, o autor não se refere à tragédia. Por outro lado, não existem tragédias que se servem de eventos
históricos? (cf. Sexto Empírico, Aduersus Mathematicos I, 263-264). O exemplo dado por Sexto para as narrativas
que se servem do mu'qo" não ajuda muito. Ele se refere a récitas completamente fantásticas, como o Pégaso surgindo
da cabeça cortada da Górgona.
221
Recordemos que o termo argumentum pode ter, em retórica, o sentido técnico de “prova discursiva”.
222
Cf., por exemplo, De senecute, 3.
223
Cf. oJmoivw" de; toi'" genomevnoi" (Sexto Empírico, Aduersus Mathematicos I, 263).
224
Aristóteles, Poética, capítulo IX, 1451a39-1451b1.

88
prazer racional, alcançado pelo reconhecimento da operação representativa. O efeito específico
da tragédia, ainda que afetivo, só é possível graças a elementos que são do mu'qo", que, para ser
eficaz, deve ser bem organizado logicamente. De fato, em uma das únicas referências que faz ao
uso de representações pouco prováveis (e até mesmo irracionais), a reflexão é feita com relação à
epopéia e, claramente, o discurso de Aristóteles visa a afastar do uso do poeta trágico tal tipo de
representação. Falamos de uma passagem que se encontra no capítulo XXIII. Ali (1460a11-18), o
filósofo diz que, na epopéia, porque não vemos as ações desempenhadas por atores diante de
nossos olhos, chega a ser admissível o irracional (to; a[logon). Ilustra o argumento, então, com a
cena de perseguição de Aquiles a Heitor, que seria pouco convincente em uma representação
dramática. Aquiles, perseguindo o herói troiano diante das muralhas da cidade, faz um sinal com
a cabeça, indicando a seus companheiros que eles não devem abater Heitor com dardos225.
Mas há ainda outra referência na Poética à representação do irracional. Numa passagem um
tanto desconcertante do capítulo IX, Aristóteles revela o quanto o nexo causal é importante na
representação trágica, mesmo quando ela trata de evento maravilhoso (to; qaumasto;n) e
dificilmente explicável racionalmente. Trata-se da representação de ações que vão contra o
esperado (para; th;n dovxan), que, segundo ele, são importantes para a moção dos afetos próprios
à tragédia. Tal ação é mais maravilhosa, contudo, quando “parece ter acontecido como se fosse
em vista de algo (w{sper ejpivthde" faivnetai genonevnai)”226. Ilustra-se tal tipo de uso do
maravilhoso com o caso de uma estátua que, representando certo Mítis, cai em cima do assassino
do verdadeiro Mítis227. O maravilhoso recomendado pelo filósofo é aquela representação que
consegue suscitar uma tentativa de explicação racional, ainda que fantástica e aparente.
Por fim, quando trata das formas de resolução dos eventos “narrados” na tragédia,
Aristóteles condena o uso de soluções fáceis como as que são introduzidas pelo deux ex machina

225
Cf. Ilíada XXII, 131 e ss. O gesto referido por Aristóteles se encontra nos versos 205 e 206. O exemplo dado pelo
teórico é, deve-se dizer, um tanto desajeitado, visto que ele contempla um evento pouco verossímil, não irracional
(cf. Lallot & Dupont-Roc, op. cit., p. 381). Vale a pena recordar, aqui, a passagem inicial da Arte Poética de
Horácio. Poderíamos conjeturar que a defesa da unidade do poema, que se faz por meio da construção da figura
quimérica da moça de belo rosto, pescoço de cavalo e cauda de peixe, fundamenta-se na inadequação de uma tal
personagem à poesia dramática. Se o exemplo se constrói no domínio da pintura (pictor, v. 1), aqueles que
contemplam o quadro, e que não conseguem conter o riso, parecem evocar os espectadores de um teatro (spectatum,
v. 5). Em outra passagem, entretanto, a exigência de verossimilhança na poesia dramática é defendida de modo
inequívoco. No trecho 179-188, o poeta augustano afirma que certas ações ficam melhores antes narradas do que
representadas no palco. Assim, Medéia assinando os filhos, ou a transformação de Procne em ave, ações que
pareceriam pouco críveis em uma representação direta, não devem se passar diante dos olhos do espectador. São
adequadas à narrativa, não ao drama.
226
Cf.: 1452a6.
227
Cf.: 1452a6-10.

89
e argumenta “que os desenlaces devem ocorrer a partir do próprio agenciamento das ações
(ta;" luvsei" ... ejx aujtou' dei' tou' muvqou sumbai'nein)”.228
Ora, parece evidente que, ao exigir da representação que ela lide com ações possíveis, esse
teórico espera do bom poema trágico, ou seja, daquele que possa cumprir a finalidade própria da
tragédia, um comprometimento com o racional. As ações devem ser admissíveis segundo a
opinião comum dos espectadores e devem estar agenciadas de modo lógico, com exclusão de
soluções que prescindam dos nexos causais que entrelaçam as ações realizadas. Mesmo aquilo
que é irracional deveria criar, no espectador, certa aparência de lógica e racionalidade.
Assim, sem desconsiderar o fato de que Aristóteles desenvolve as idéias que se tornaram
conhecidas em sua Poética somente após a época em que se deu a composição da obra dialógica
de Platão, julgamos que o caráter racionalista que nela observamos, e que impõe valores estéticos
à composição da poesia trágica, pode ser compreendido como uma manifestação, ainda que
posterior, do amplo movimento intelectual, de tendência nitidamente racionalista, que tomou o
mediterrâneo grego desde o século VI a.C., e que, em Atenas, teve notável desenvolvimento a
partir, sobretudo, do século V.229
Ora, os dois grandes historiadores, que, embora de maneira diferente, buscaram dar conta,
racionalmente, das narrativas tradicionais a respeito do passado remoto, são grandes
representantes desse racionalismo a que nos referimos. Acreditamos que, após o advento do
método historiográfico e do estabelecimento de um novo tipo de abordagem dos eventos do
passado, deve ter se criado no homem grego uma nova expectativa com relação aos discursos
representativos. Se, de qualquer forma, essa hipótese não for aceitável, o certo é que se criou uma
nova possibilidade para a composição desse tipo de discursos.
O que sugerimos, portanto, a guisa de especulação, é que a nova forma poética que,
segundo Kahn, é desenvolvida por Platão230, talvez seja a resposta a uma espécie de exigência
tácita de um novo tipo de público, que já não aceitava como provável o discurso a respeito do

228
Cf.: 1454b1.
229
Não é nosso objetivo discutir as importantes transformações culturais que tiveram lugar em Atenas no século V.
O tema é, ademais, ingente. Uma interessante análise da questão encontra-se na obra que Bernard Knox dedica ao
estudo do Édipo Rei de Sófocles. (Knox, B. Édipo em Tebas. São Paulo: Perspectiva, 2002). Dessa obra, veja-se
especialmente o capítulo três, “o homem” (pp. 93-119), em que o autor compara a linguagem da peça de Sófocles a
expoentes da literatura técnico-científica do século V, como, por exemplo, os tratados da medicina empírica,
relacionados a Hipócrates. Para Knox, a peça trata, dentre outras coisas, do crescimento do cientificismo, manifesto
no século de Péricles, na perspectiva do pensamento religioso.
230
Sem desconsiderar, evidentemente que, anteriores e contemporâneos a Platão, outros autores compuseram
diálogos socráticos.

90
passado que não se baseasse na sólida garantia de uma testemunha ocular, quer fosse, ela própria,
responsável pelo relato, quer fosse a fonte última das informações que permitiram o relato. Ou,
de outro modo, numa hipótese menos ousada: o advento do método e do discurso historiográficos
ofereceu aos poetas uma nova possibilidade no tratamento da representação provável. Enquanto
para a epopéia arcaica era a presença das musas o que conferia credibilidade ao relato e, de outra
forma, na tragédia, a utilização de mitos tradicionais, conhecidos de todos, muitas vezes, através
das epopéias231, diálogos como o Fédon e o Teeteto estabelecem a fé por meio de uma simulação
de discurso historiográfico232.
No contraste que estabelece entre poesia representativa e historiografia, Aristóteles – como
vimos – confere a esta última a capacidade de falar sobre eventos particulares e que de fato
aconteceram. Embora sua preocupação maior não seja compreender o acesso que tem aos eventos
o discurso historiográfico, a imagem que o autor faz dessa modalidade de discurso não propõe
nenhum problema nesse sentido. Ora, em que medida a historiografia é capaz de registrar e
reproduzir os eventos particulares com os quais ela lida? Eis uma questão que não é colocada. Se
nos detivermos um pouco e observarmos as reflexões que outros autores antigos fizeram a
respeito da relação entre o discurso historiográfico e os eventos que ele pretende relatar,
poderemos entender melhor, e sob novos aspectos, a estreita afinidade que os antigos enxergavam
entre história e epopéia (conforme vimos em Quintiliano, por exemplo). Se os limites entre essas
duas formas de discurso não estiverem assim tão claros para os antigos, evidentemente, isso vai

231
É assim que entendemos a maneira como Aristóteles reflete sobre o uso do mito tradicional na poesia trágica no
capítulo IX (cf. Poética, 1451b15-27). Nessa passagem, ele afirma que a tragédia mantém os nomes já existentes;
isto é, diferentemente da comédia, que por vezes cria personagens completamente fictícios, ela se serve de
personagens tradicionais. A razão apontada por Aristóteles é a seguinte: “o possível é persuasivo
(piqanovn ejsti to; dunato;n).” As pessoas estariam mais dispostas a acreditar (pisteuvomen) que são possíveis as
coisas que aconteceram, “pois não teriam acontecido, caso não fossem possíveis
(ouj ga;r a[n ejgevneto, eij h\n ajduvnata).” O que é notável é que o autor parece considerar que o mito tradicional
contém elementos históricos. Ora, nós vimos que os próprios historiadores reconheciam certo valor factual nos
mitos, mesmo quando criticam a precisão das informações que eles veiculam. O autor da Poética considera, ao
menos, que o mito tradicional provoca efeito semelhante ao da representaçõa de eventos históricos no público, que
toma tais eventos como história de tempos remotos. De qualquer forma, na seqüência do texto o autor nega que seja
essencial o uso do mito tradicional na tragédia, bem como dos sucessos reais, pois, como vimos (1451b29-31), mais
importante é que o poeta represente o que poderia acontecer, segundo o provável ou o necessário.
232
Na verdade, o mesmo raciocínio vale para diálogos em que Sócrates é o fiador da narrativa, como o Protágoras,
ou mesmo para os que, como o Banquete e o Parmênides, estabeleçam uma linha de transmissão oral (humana, no
entanto!) que permite a récita. Não são facilmente abarcados pela primeira hipótese, porém, diálogos completamente
dramáticos, tais como o Górgias ou o Íon. A segunda hipótese, por outro lado, defende apenas que a argumentação
que, no discurso historiográfico, gera a credibilidade do relato estava criada e à disposição de poetas como Platão,
que, não há dúvidas, serviu-se dela, ao menos parcialmente, em sua poesia mimética.

91
repercutir na análise que fazemos aqui do diálogo filosófico e daquela espécie de ilusão histórica
que ele parece oferecer ao leitor.
Vimos como Herótodo, confrontando diversas fontes, trata criticamente dos relatos
tradicionais, conhecidos de todos através da epopéia. Cícero, entretanto, com o olhar do século I
a.C., tem uma visão peculiar da obra desse historiador grego, de quem ele eternizou a alcunha:
“pai da história”. É conhecida essa passagem do De legibus, em que vemos a cena de uma
conversa entre a personagem que representa o autor e a personagem de seu irmão, Quinto, que
diz:

“Compreendo, meu irmão, que tu consideras que certas leis devem ser observadas na
história, outras na poesia” E Cícero: “Certamente, uma vez que, naquela, todas as
coisas se referem à verdade, Quinto, nesta, a maior parte se refere ao agradável. Muito
embora também na obra de Heródoto, o pai da história, e na obra de Teopompo233, haja
incontáveis fabulae.”234.

Recordemos que, para Cícero, a fabula é a narrativa que não contém nada de verdadeiro ou
de semelhante ao verdadeiro! A matéria com que lida, em determinados momentos, o discurso de
Heródoto é idêntica à da poesia épica. Em outra obra, Cícero volta a comparar essas duas formas
de expressão. Numa passagem do De diuinatione em que fala de uma resposta que o rei do Epiro,
Pirro, teria recebido de um oráculo durante a guerra que travou contra os romanos, a personagem
coloca lado a lado a autoridade de um poeta e a de um historiador: “por que eu consideraria
Heródoto mais veraz do que Ênio? Por acaso pode ele menos criar ficções (fingere) a respeito de
Creso do que Ênio a respeito de Pirro?”235
Tucídides, por outro lado, cujo rigor metodológico, já referido anteriormente, almejaria um
relato o mais exato possível, faz uma declaração surpreendente a respeito dos discursos236, que
ele reporta em sua narrativa, daqueles que participaram dos eventos:

233
Historiador de Quios, bastante apreciado por Cícero, que, segundo o pensador romano, teria sido discípulo de
Isócrates de Atenas (cf.: De oratore, II, 57).
234
Q. “Intellego te, frater, alias in historia leges obseruandas putare, alias in poemate” M. “Quippe cum in illa ad
ueritatem, Quinte, quaeque referantur, in hoc ad delectationem pleraque. Quamquam et apud Herodotum, patrem
historiae et apud Theompompum sunt innumerabiles fabulae (Cícero. De legibus. I, 5)”.
235
“(...) Herodotum cur ueraciorem ducam Ennio? Num minus potuit ille de Croeso quam de Pyrrho fingere Ennius?
(Cícero, De diuinatione, II, 116)”.
236
Vimos, anteriormente, os problemas que implica a narração dos e[rga; trata-se agora dos lovgoi, cuja tentativa de
“reprodução” traz também dificuldade ao historiador.

92
“Quanto aos discursos que cada uma das partes pronunciou, quer nas vésperas da
guerra, quer no seu decorrer, reproduzir-lhes as palavras exatamente era difícil, para
mim quando os ouvira pessoalmente, para os outros quando me transmitiam o que
tinham ouvido de qualquer outra fonte; como me parecia que cada orador teria falado o
que cabia sobre as situações sucessivas, atendo-me o mais possível do sentido geral das
palavras realmente pronunciadas, assim vão formulados.”237

Não parece se tratar de uma negligência a seu método de pesquisa, que, assim como em
relação às ações realizadas, busca sempre a maior exatidão possível. Muito pelo contrário, parece
mesmo ser uma exigência do método, que visa a maior precisão possível. Entretanto, dada a
dificuldade de reproduzir com toda exatidão mesmo os discursos que ele próprio ouvira, a
decisão do historiador é por uma recomposição que se submete a um critério que está bem
próximo ao da probabilidade poética238. Ora, composição do discurso de um general qualquer
parece depender da apreensão que o historiador tem do h\qo" daquele que fala e da situação em
que suas atitudes se inserem. O historiador, então, tentará conferir ao agente as palavras que mais
condizem ao tipo de orador e ao tipo de ação praticada. A precisão historiográfica aqui está
recheada daquilo que nós, de acordo com Aristóteles, vimos chamando de mimese, ou
representação poética.
Digamos que Aristóteles, quando fala da história, esteja antes pensando no que ela deve ser,
do que no que ela de fato foi até os seus dias. Algo que, evidentemente, não passa de conjectura.
Que seja: não importa muito. Não se pode negar, entretanto, que a história praticada mesmo por
Tucídides guarda certa semelhança com a composição poética verossímil239. Mas se é assim, no

237
Tucídides, I, xxii. A tradução, já mencionada anteriormente, é de Ana Lia Prado.
238
Interessante notar que historiadores posteriores mantêm esse procedimento com relação aos discursos que
reportam. Vemos Salústio, por exemplo, introduzir assim um discurso: orationem huiuscemodi habuit (De coni.
Catilinae, XX, 1). Ao lado da exigência metodológica, talvez esse procedimento aponte para uma decisão tomada
pelo historiador em conferir homogeneidade à sua expressão. Assim, mesmo o discurso reportado passa pelo crivo da
elocução do autor. Recordemos que os antigos distinguiam de maneira bem nítida a elocução do orador público
daquela do historiador (cf. Cícero, Orator, 65-66). De qualquer modo, é pertinente contrastar essa maneira de
introduzir discursos com algo que se vê, nesta mesma obra de Salústio, quando o autor introduz uma espécie de
bilhete que foi endereçado a Catilina: Ipse Volturcio litteras ad Catilinam dat, quarum exemplum infra scriptum est
(XLIV, 6). O termo exemplum parece indicar que o autor reproduziu o texto mesmo do bilhete.
239
Nesse sentido, veja-se, por exemplo, o capítulo que Woodman consagra a Tucídides em seu Rhetoric in classical
historiography, 1988, pp. 1-69, em que o autor mostra quanto Tucídides se serve dos recursos da eloqüência de seu
tempo. A perspectiva de Woodman é corroborada pela digressão de Antônio no De oratore, de que nos ocuparemos
a seguir, que defende a importância da inuentio na narratio retórica de autores como Heródoto e Tucídides.

93
que diz respeito à relação que se estabelece entre narrativa, lato sensu, e os eventos, não haveria
diferença alguma entre a obra de Tucídides, a poesia dramática de Ésquilo, nos Persas, por
exemplo, e diálogos como o Fédon, o Teeteto, ou a República de Platão? Acreditamos, muito
pelo contrário, que até aqui já apresentamos alguns elementos que marcam bem a diferença entre
essas três formas de narrativa. No último passo dessas considerações comparativas, lançaremos
mão de um importante texto de Cícero a respeito da historiografia antiga que, por esclarecer um
pouco mais a idéia que os antigos faziam da veracidade histórica, vai nos permitir separar
definitivamente a história da poesia representativa.
É sempre problemático utilizar juízos posteriores, como os que se podem colher da obra de
Cícero, para dar conta da produção literária dos gregos. Mas, ainda que – como veremos – a
historiografia seja ali tratada como uma tarefa própria do orador e, por isso, esteja subordinada à
arte retórica, parece-nos que as considerações que são feitas sobre a narrativa histórica na célebre
digressão do De oratore (livro II, 51-64), que é atribuída à personagem de Antônio, apresentam
importantes semelhanças com o procedimento adotado por Tucídides com respeito aos discursos
que ele oferece em sua obra.
O De oratore é constituído por uma série de três diálogos, mantidos em dias sucessivos,
cuja cena remonta ao ano de 91 a.C. e se passa na casa de campo de Licínio Crasso. De modo
geral, nessas conversas, as personagens buscam definir o campo de atuação do orador e aquilo
que é necessário à sua formação. Crasso e Marco Antônio representam os oradores mais
prestigiados da época em que se passa a cena representada, à qual estão presentes ainda C. Júlio
César Estrabão, Quinto Lutácio Cátulo, dentre outros. A digressão a respeito da historiografia se
insere, portanto, na discussão a respeito do domínio que é próprio do orador. Em um trecho
anterior ao que nos interessa especialmente, Antônio dissera: “nada do que deve ser dito de modo
grave e ornado escapa ao que é próprio do orador”240; e a história, citada dentre outras formas de
discursos próprios ao orador, é tratada dessa forma em II, 36 : “E quanto à história, testemunha
dos séculos, luz da verdade, que dá vida à memória, mestra da vida, mensageira da antigüidade,
por qual voz, senão a do orador, deveria ser confiada à imortalidade?”241

240
“Neque ulla non propria oratoris est res, quae quidem ornate dici grauiterque debet (Cícero, De oratore, II, 34).”
241
Historia uero testis temporum, lux ueritatis, uita memoriae, magistra uitae, nuntia uetustatis, qua uoce alia nisi
oratoris immortalitati commendatur? (Cícero, De oratore II, 36). Veja-se como se encontra, incorporado ao texto de
Cícero, a idéia que surge com a expressão kth'ma em Tucídides (I, xxii): a história tem utilidade para os homens do
futuro, uma vez que registra, como testemunha, acontecimentos do passado.

94
No trecho que vai de 51 a 54 (sempre De oratore II), os interlocutores discutem sobre a
historiografia antiga latina, que é comparada às produções de mesmo gênero realizadas pelos
gregos. Citamos:

“‘Dize-me, então’, falou Antônio, ‘consideras que escrever uma obra de história é
próprio de que tipo de orador e de um homem com que grandeza de expressão?’
‘Se da maneira como os gregos escreveram, é próprio do mais excelente’, disse Cátulo,
se da maneira dos nossos, não é absolutamente necessário ser um orador, basta não ser
mendaz.’
‘Ora, não desprezes os nossos’, disse Antônio, ‘também os próprios gregos, no início,
escreveram assim como nosso Catão, como Pictor, como Pisão. A história não era,
então, outra coisa senão a composição de anais; para este fim, para conservar as
memórias públicas, desde o início dos acontecimentos de Roma até a época do
pontífice máximo Públio Múcio, todos os acontecimentos, de cada ano separadamente,
o pontífice máximo confiava às letras e registrava em uma tábua de cor branca e a
expunha em casa, a fim de que o povo pudesse tomar conhecimento. São os até hoje
chamados Anais Máximos. Muitos seguiram maneira semelhante de escrever: os que
deixaram, sem nenhum ornamento, apenas registro242 do tempo, dos homens, dos
lugares e das ações realizadas. E assim, do mesmo modo que entre os gregos houve
Ferecide, Helânico, Acusila e muitíssimos outros, assim também nossos Catão, Pictor e
Pisão, que não têm à disposição algo com que se ornamente o discurso (pois só há
pouco essas coisas foram trazidas para cá), mas que consideram que o único mérito na
expressão é a brevidade, contanto que se entenda o que dizem. Sobressaiu-se um pouco
e acrescentou à história um tom mais grandioso de discurso Antípatro243, homem
ilustríssimo, freqüentador da casa de Crasso. Os demais não se ocuparam em dar
beleza aos acontecimentos, mas foram tão somente narradores.’244
‘É assim como afirmas’, disse Cátulo. ‘Mas nem o próprio Célio tornou distinta a
história por uma variação de tonalidades, nem pela disposição das palavras e por um
curso suave e constante do discurso deu polimento a sua obra. Mas, não sendo um

242
Expressa-se aqui uma importante dicotomia entre ornamenta e monumenta. Monumenta seriam os meros registros
de fatos ocorridos, que o historiador, segundo a concepção de Antônio, deveria modelar por meio dos ornamenta
(que são até mesmo da ordem das res) próprios da eloquentia, tornando-os mais vividos.
243
Trata-se de Célio Antípatro, a quem é atribuída a composição de uma obra sobre a Segunda Guerra Púnica.
244
Difícil encontrar uma tradução concisa para este trecho. Antônio estabelece uma a diferença entre os narratores,
que deixam apenas monumenta dos acontecimentos e os exornatores rerum, historiadores que elaboram
retoricamente o que se tem nos registros de acontecimentos (rerum).

95
homem douto, nem sobremaneira hábil no discurso, da maneira que pôde, aperfeiçoou-
a. Mesmo assim, superou, como dizes, os anteriores.’”245

Conforme já referimos anteriormente, a personagem Antônio insinuara (cf. De oratore, II,


36) que cabe ao orador escrever obras de história. Questionando seu interlocutor a respeito da
capacidade de expressão que é necessária ao historiador (início do trecho 51), estabelece uma
distinção entre o tipo de história praticado pelos primeiros historiadores latinos, por um lado, e as
grandes narrativas historiográficas da tradição grega. Os primeiros latinos a escrever história
teriam como que continuado a tradição analítica, que, segundo a notícia da personagem,
remontaria a uma função do pontífice máximo, representante maior da religião romana, que, a
cada ano, confiava à escrita os registros (monumenta) dos acontecimentos importantes para a
comunidade. Autores como Marco Pórcio Catão, Quinto Fábio Pictor e Lúcio Calpúrnio Pisão
Frugi246 teriam criado obras que se assemelhariam aos Anais. Nelas, eles teriam se ocupado
apenas de registrar os acontecimentos, primando pela brevidade, negligenciando qualquer tipo de
ornamentum247.

245
“Age uero, inquit Antonius, qualis oratoris et quanti hominis in dicendo putas esse historiam scribere?
Si, ut Graeci scripserunt, summi, inquit Catulus; si, ut nostri, nihil opus est oratore; satis est non esse
mendacem.
Atqui, ne nostros contemnas, inquit Antonius, Graeci quoque ipsi sic initio scriptitarunt, ut noster Cato, ut
Pictor, ut Piso. Erat enim historia nihil aliud nisi annalium cofectio; cuius rei memoriaeque publicae retinendae
causa ab initio rerum Romanarum usque ad P. Mucium pontificem maximum res omnis singulorum annorum
mandabat litteris pontifex maximus efferebatque in album et proponebat tabulam domi, potestas ut esset populo
cognoscendi: ei qui etiam nunc annales maximi nominantur. Hanc similitudinem scribendi multi secuti sunt, qui sine
ullis ornamentis monumenta solum temporum, hominum, locorum gestarumque rerum reliquerunt. Itaque qualis
apud Graecos Pherecydes, Hellanicus, Acusilas fuit aliique permulti, talis noster Cato et Pictor et Piso, qui neque
tenent quibus rebus ornetur oratio – modo enim huc ista sunt importata – et, dum intellegatur quid dicant, unam
dicendi laudem putant esse breuitatem. Paulum se erexit et addidit maiorem historiae sonum uocis uir optimus,
Crassi familiaris, Antipater; ceteri non exornatores rerum, sed tantummodo narratores fuerunt.
Est, inquit Catulus, ut dicis. Sed iste ipse Caelius neque distinxit historiam uarietate colorum neque uerborum
collocatione et tractu orationis leni et aequabili perpoliuit illud opus; sed ut homo neque doctus neque maxime aptus
ad dicendum, sicut potuit, dolauit; uicit tamen, ut dicis, superiores (Cícero, De oratore, II, 51-54).”
246
Márcio Pórcio Catão, o censor, nascido em 234 a.C, cônsul em 195, escreveu as Origines (escritas na velhice; sua
morte ocorreria em 149), dando início à historiografia latina. Quinto Fábio Pictor foi o autor de uma obra
historiográfica que registrava os acontecimentos desde a fundação de Roma até a Segunda Guerra Púnica (201 a. C.).
Ao que parece, muito se atinha às linhagens de famílias nobres. Lúcio Calpúrnio Pisão Frugi foi cônsul em 133 a.C..
Célebre inimigo dos Gracos, ele escreveu Annales, que desfrutaram de grande sucesso entre os historiadores
posteriores, como Lívio e Dioniso de Halicarnasso.
247
Note-se que tais autores latinos são comparados a historiadores gregos, como Ferecide, Acusilas e Helânico. Com
isso, Antônio estabelece uma analogia entre os desenvolvimentos da narrativa histórica no mundo grego e,
posteriormente, no mundo romano. Também os gregos alcançaram a história que ele considera “retórica” após
inícios pouco elaborados, que visariam apenas ao registro.

96
Podemos observar, claramente, que os monumenta formariam a matéria, ou a res, dos
registros analíticos e desses autores da historiografia latina incipiente, uma vez que eles dizem
respeito ao tempo, aos homens, aos lugares e às ações realizadas (monumenta... temporum,
hominum, locorum gestarumque rerum). A partir disso, poderíamos ser levados a supor que a
dicotomia que se desenha entre monumenta e ornamenta se alinharia de modo direto aos dois
elementos que, segundo os teóricos latinos do discurso, compõem toda e qualquer expressão: res
e uerba248. Se fosse assim, o mérito dos historiadores gregos, considerados por Cátulo como
oradores em mais alto grau, teria sido apenas o de elaborar o estilo, coisa que os analistas latinos
não teriam feito. Trata-se, entretanto, de uma interpretação equivocada.
Se examinarmos cuidadosamente a menção feita a Célio Antípatro, chegaremos à conclusão
de que, neste contexto, ornamenta não diz respeito apenas à expressão verbal (uerba); a atividade
do historiador que “se ergueu um pouco” com relação à tradição iniciada por Catão, compreende,
na verdade, uma elaboração retórica do conteúdo da narrativa, uma elaboração que diz respeito às
res. Isso se faz bastante claro, quando vemos Antípatro ser considerado por Antônio um
exornator rerum, em contraposição a todos os que vieram antes dele, ditos meros narratores
rerum. Ao juízo de Antônio se acrescenta a crítica feita por Cátulo: ainda que ele tenha superado
os demais, não deu polimento à elocução de sua narrativa e, assim, não atingiu um estilo
sofisticado: neque distinxit historiam uarietate colorum neque uerborum collocatione et tractu
orationis leni et aequabili perpoliuit illud opus. Ora, o fato de ser exornator rerum não se
relaciona, portanto, com a elocutio apenas, mas diz respeito também à inuentio.
No trecho que segue o que foi citado, em que ainda fala Antônio, faz-se uma retrospectiva
dos grandes autores da historiografia grega. São mencionados, como representantes de
exornatores rerum, autores como Heródoto (considerado o primeiro a ter embelezado o
gênero)249, Tucídides, Filisto de Siracua, Teopompo, Éforo (os últimos dois, presumidos
discípulos de Isócrates), Xenofonte250, discípulo de Sócrates e Calístenes, discípulo de
Aristóteles. Convém notar, portanto, que, para o Antônio de Cícero, os grandes historiadores da

248
Cf., por exemplo, Quintiliano, VIII, pref. 6, 5, onde o retor pretende mostrar que “orationem porro omnem
constare rebus et uerbis: in rebus intuendam inuentionem, in uerbis elocutionem, in utraque conlocationem”, isto é,
“que todo discurso, além disso, é constituído por coisas e palavras: nas coisas, deve-se observar a inuentio, nas
palavras, a elocutio, em ambas, a conlocatio.”
249
Cf. II, 55: qui princeps genus hoc ornauit.
250
Que além de autor história, compôs também diálogos socráticos.

97
tradição grega e, dentre eles, os dois de que nos ocupamos na argumentação que desenvolvemos
anteriormente, teriam composto suas obras de acordo com os princípios da arte retórica.
Após argumentar a respeito do quanto pode ganhar o orador com a leitura da obra desse tipo
de historiador (II, 60), Antônio volta à questão principal, a saber: que tipo de orador deve
escrever história. Na importante passagem (II, 62-64), que citamos a seguir, a personagem
oferece uma visão ainda mais clara da sua concepção retórica da historiografia.

“Mas, volto àquele ponto: vedes quão importante tarefa do orador é a história? Não sei
se não é a tarefa que envolve o discurso mais torrencial e mais repleto de variações. E
sequer a encontro disposta separadamente em alguma parte nos preceitos dos retores.
Pois dela os preceitos estão diante dos olhos. Ora, quem ignora ser a primeira lei da
história que não se ouse dizer algo falso? E, além disso, que não se ouse não dizer algo
verdadeiro? E que não haja, ao escrever, alguma suspeita de favorecimento? Nem
alguma suspeita de malquerença? Estes fundamentos são, sem dúvida, do
conhecimento de todos. Por outro lado, a construção, em si, consiste na matéria e na
expressão. Quanto à matéria, exige-se a seqüência dos tempos, a descrição de regiões;
requer-se ainda, uma vez que se lida com coisas grandiosas e dignas de memória,
primeiramente as resoluções, em seguida, as ações, depois, as conseqüências; que se dê
a entender como o autor julga as intenções e, nas ações realizadas, que se deixe claro
não apenas o que se fez ou o que se disse, mas ainda de que modo; e, ao se falar das
conseqüências, que se explicitem as causas todas, quer relativas ao acaso, quer à
sabedoria, quer ao desatino; e dos próprios homens não apenas as realizações, mas
ainda, sobre a vida e o caráter de cada um que se alçar pela fama e pelo renome.
Quanto à expressão, deve-se perseguir um gênero de discurso profuso e extenso e que
flua com certa suavidade, sem aquela aspereza judicial e sem a agudeza de
pensamentos própria ao fórum. De todas essas coisas, tão importantes, vedes que não
há preceito algum que se encontre nas obras dos retores?”251

251
“Sed illuc redeo: uidetisne quantum munus sit oratoris historia? Haud scio an flumine orationis et uarietate
maxumum; neque eam reperio usquam separatim instructam rhetorum praeceptis; sita sunt enim ante oculos. Nam
quis nescit primam esse historiae legem, ne quid falsi dicere audeat? deinde ne quid ueri non audeat? ne quae
suspicio gratiae sit scribendo? ne quae simultatis? Haec scilicet fundamenta nota sunt omnibus. Ipsa autem
exaedificatio posita est in rebus et uerbis. Rerum ratio ordinem temporum desiderat, regionum descriptionem; uolt
etiam, quoniam in rebus magnis memoriaeque dignis consilia primum, deinde acta, postea euentus expectentur, et de
consiliis significari quid scriptor probet, et in rebus gestis declarari non solum quid actum aut dictum sit, sed etiam
quo modo, et quom de euentu dicatur, ut causae explicentur omnes uel casus uel sapientiae uel temeritatis
hominumque ipsorum non solum res gestae, sed etiam, qui fama ac nomine excellant, de cuiusque uita atque natura.

98
Como conciliar a contradição que parece haver entre uma composição retórica da história
defendida pela personagem e as leis que ela reconhece como próprias ao gênero e que, além
disso, seriam conhecidas de todos? Ora, o próprio Antônio, em uma passagem anterior do De
oratore, afirmara que a retórica depende da falsidade (mendacio nixa, cf. II, 30).252 De fato, de
acordo com as leis formuladas em 62, entretanto, o historiador não poderia, em sua obra, servir-se
da falsidade e sequer poderia omitir a verdade. Sendo assim, ou admitimos que há uma grande
contradição no que diz Antônio ao longo do livro II, ou temos de buscar, como faz Woodman253,
um modo de conciliar essas afirmações aparentemente conflitantes. A própria metáfora avançada
por Antônio, por meio da contraposição entre fundamenta (os fundamentos) e exaedificatio (a
construção em si, a construção que pode ser vista) parece indicar que há diferentes níveis de
verdade no discurso do historiador.
As leis mencionadas por Antônio nessa passagem do De oratore já deram azo a que muitos
estudiosos modernos, sem compreendê-las em seu contexto, considerassem que o próprio Cícero
teria uma idéia de historiografia muito próxima da concepção moderna. Kelley, autor citado por
Woodman, afirma, por exemplo:

“A veracidade é a qualidade essencial (...) a precisão é a própria essência da história.


Foi estabelecido como uma lei fundamental por Antônio no De oratore que o
historiador deve ser, acima de qualquer outra coisa, verdadeiro ao relatar os fatos (...)
Cícero tinha um grande interesse na precisão histórica”254.

Verborum autem ratio et genus orationis fusum atque tractum et cum lenitate quadam aequabiliter profluens sine
hac iudiciali asperitate et sine sententiarum forensibus aculeis persequendumst. Harum tot tantarumque rerum
uidetisne nulla esse praecepta quae in artibus rhetorum reperiantur?”(Cícero, De oratore, II, 62-64).
252
Na passagem em questão, Antônio argumenta, mais precisamente, que, uma vez que os oradores lidam com
opiniões e não com ciência, e muitas vezes tratam, na causas, de coisas das quais nem os ouvintes têm certeza, nem
eles próprios, sua atuação se apóia, muitas vezes, na falsidade.
253
Woodman, A.J., 1988.
254
Kelley, A.P. Historiography in Cicero, Pensilvânia, 1962 (dissertação), pp. 42 e 101 apud Woodman, op. cit., p.
81. Além dos problemas desse tipo de interpretação, que indicaremos adiante, cabe observar a atribuição
problemática das idéias defendidas por uma personagem do diálogo a Cícero, o autor da obra.

99
Outro autor, Brunt, que tomamos da mesma fonte, argumenta ainda: “Cícero não está
defendendo expressamente um tipo de exposição histórica diferente da comumente empregada
pelos historiadores políticos modernos”255.
Ora, esse tipo de interpretação parece negligenciar o fato de que Antônio compreende a
história como um munus (uma tarefa) próprio para o orador. Com efeito, a veracidade defendida
por Antônio não parece depender assim tão profundamente da noção de precisão do relato, isto é,
da maneira como a narrativa possa reproduzir exatamente (se é que pode)256 aquilo que de fato
aconteceu. Woodman observa, de maneira bastante hábil, que a concepção de verdade na
historiografia antiga está muito freqüentemente associada não ao acuro no relato, mas ao
favorecimento ou à má-disposição que o historiador possa ter com respeito aos indivíduos que
realizam as ações narradas. De fato, na nossa passagem, relacionadas às fórmulas que prescrevem
o comprometimento do historiador com a verdade, vêm as determinações de que o historiador
deve cuidar para que não pareça estar nem favorecendo (cf. suspicio gratiae) nem
desfavorecendo (cf. suspicio... simultatis) alguém.
A própria obra de Cícero nos oferece outra interessante visão do que seja a obra de história.
Em uma carta de abril de 55 a.C., Cícero se dirige a Lúcio Luceio, que prepara uma obra de
historiografia (Ad familiares, V, 12). O célebre orador, de maneira pouco pudica, como ele
próprio reconhece, desejando ter seu nome celebrado pelo amigo historiador, oferece alguns
conselhos a respeito de como Luceio deveria abordar os eventos do ano de 63 a.C., em que
Cícero desempenhara papel importante na repressão à conjuração chefiada por Catilina, ação pela
qual ele deseja ser imortalizado. Nessa epístola, composta quase na mesma época da publicação
do De oratore257, Cícero diz:

“Mas, quem uma vez ultrapassou os limites do comedimento, deve ser bem e
resolutamente impudente. Assim, peço-te francamente, outra e outra vez, que não só as
[as ações realizadas por Cícero] elabores até mesmo mais intensamente do que talvez
tenhas em mente, mas que, ao fazê-lo, desconsideres as leis da história; e aquele
favorecimento, sobre o qual tu tão saborosamente escreveste em algum de teus

255
Brunt, P.A. “Cicero and Historiography” In: Miscellania di studi classici in onore di Eugenio Manni, 1, p. 318
apud Woodman, op. cit., p. 80.
256
A questão nos levaria, em última instância, à problemática relação entre a própria linguagem e aquilo que ela
representa, de que não pretendemos tratar.
257
Cf. Woodman, op. cit., p. 74.

100
proêmios, o qual, tu revelas, não seria capaz de te dobrar mais do que o Prazer poderia
dobrar o Hércules de Xenofonte; bem, não o evites caso ele te recomende mais
intensamente em meu proveito e permitas à nossa amizade um pouco mais do que
concede a verdade.”258

Cícero, agora como autor, parece compreender a noção de verdade histórica como
intimamente dependente das disposições que tenha o historiador com relação aos agentes das
grandes ações que aparecem nos relatos. O pedido para que Luceio deixe de lado as leis da
história (leges historiae neglegas) ganha significado a partir de sua associação com a noção de
amizade (cf. amori) que une remetente e destinatário. De modo deliberadamente impudente259, o
orador romano pede que Luceio não leve em consideração aquilo que defende em seus proêmios,
em que, presumimos, o autor declararia sua intenção de narrar os eventos de modo imparcial,
caso a disposição afetiva (cf. gratiam) daquele que vai tratar de suas ações lhe seja favorável.
Não pretendemos discutir em termos morais o pedido de Cícero, tendo como critério aquilo
que se defende no De oratore. Mais importante para a nossa discussão é reconhecer que, em sua
concepção de historiografia, o autor romano, bem como sua personagem, Antônio, relaciona
veracidade à imparcialidade do historiador. As leges historiae são explicadas em termos de
suspicio gratiae e amor, por um lado, e de suspicio simultatis, por outro.
Mais interessante ainda é o fato de tal concepção da verdade histórica não permanecer
restrita a Cícero, mas se mostrar recorrente em outros autores da tradição greco-romana260. Antes
de iniciar a narrativa histórica da Conjuração de Catilina, justamente o evento que Cícero
desejava ver celebrado por Luceio, o historiador Salústio professa a sua imparcialidade de um
modo que nos faz pensar no que Cícero diz a respeito dos proêmios de Luceio: “(...) sobre as
ações realizadas pelo povo romano, ainda que parecessem todas dignas de memória, eu decidi

258
“Sed tamen, qui semel uerecundiae finis transierit, eum bene et nauiter oportet esse impudentem. itaque te plane
etiam atque etiam rogo ut et ornes ea uehementius etiam quam fortasse sentis et in eo leges historiae neglegas
gratiamque illam de qua suauissime quodam in prohoemio scripsisti, a qua te flecti non magis potuisse demonstras
quam Herculem Xenophontium illum a Voluptate, eam, si me tibi uehementius commendabit, ne aspernere amorique
nostro plusculum etiam quam concedet ueritas largiare (Cícero, Ad familiares, V, 12, 3).”
259
O autor parece se livrar à impudência em um tom jocoso de formalidade em uma carta que é endereçada a um
amigo. A mesma opinião tem Woodman (op. cit. p. 73, nota 4).
260
De acordo com Woodman (op. cit., p. 73), “como leitores e críticos modernos, nós fomos condicionados, tanto
por uma visão equivocada de Tucídides quanto pelas convenções da historiografia moderna, a esperar que os escritos
antigos de história estejam preocupados com a verdade no nosso sentido do termo; mas, se olharmos mais de perto
para o que os antigos de fato dizem, ao invés de para aquilo que nós pensamos que eles deveriam estar dizendo, nós
veremos que a visão que tem Cícero da verdade não lhe é de modo algum peculiar”.

101
escrever separando-as em partes, tanto mais que meu espírito se encontrava livre da esperança,
do medo, das facções políticas. Portanto, a respeito da conjuração de Catilina, com a maior
veracidade possível, eu tratarei.”261 Associando a veracidade à sua imparcialidade, à isenção com
relação a qualquer proveito, ou prejuízo, que a narrativa possa lhe ocasionar, Salústio parece
antecipar as críticas daqueles que julgam que, quando o historiador repreende os erros cometidos
pelos homens cujas ações são narradas, ele o faz por inveja ou por malquerença (cf. maleuolentia
e inuidia em 3, 2). Se Salústio realiza ou não o que ele professa em tom programático no seu
prefácio, é outra discussão. Posteriormente, tanto Tito Lívio quanto Tácito manifestam um
espírito imparcial em termos de ausência de disposições afetivas favoráveis ou desfavoráveis com
relação aos indivíduos e ações de que eles tratam.262 Mesmo Tucídides, de que tratamos
anteriormente, tão celebrado pelo método que utiliza no tratamento das fontes e pelo apego aos
fatos que lhe são contemporâneos, já relacionava, de modo semelhante, verdade e
imparcialidade.263
Woodman (op. cit., p. 74) aventa uma interessante discussão a respeito dessa intimidade
que parece haver, na mentalidade antiga, entre a verdade do relato histórico e a imparcialidade do
historiador. Esse estudioso relaciona a atividade do historiador, cuja posição delicada ele enfatiza,
à distribuição da timhv ou gloria entre os homens que participavam dessas sociedades gregas e
romanas antigas em que a coletividade é definidora do indivíduo. O historiador é um dos
responsáveis pela atribuição da honra, ou da glória, aos homens por meio de seu discurso, isto é,
por meio de um registro bem elaborado, destinado a perpetuação. Ora, tal concepção corrobora a
interpretação, que apresentamos anteriormente, na qual associávamos a historiografia, a poesia
épica e diálogos como o Fédon e o Teeteto, do ponto de vista da celebração que em tais obras se
faz dos grandes homens do passado, remoto ou recente. Sob esse aspecto, Woodman, que
pretende compreender em que termos Antônio e Cícero concebem a historiografia como munus
do orador, pode estabelecer uma ligação entre a obra do historiador e o gênero epidítico de
discurso264.

261
“(...) statui res gestas populi Romani carptim, ut quaeque memoria digna uidebantur, perscribere, eo magis quod
mihi a spe metu partibus rei publicae animus liber erat. Igitur de Catilinae coniuratione quam uerissume potero
paucis absoluam (Salústio, De Catilinae coniuratione, 4, 2-3).”
262
Cf. Tito Lívio, Ad urbe condita, I, 5 e Tácito, Historiae, I, 1, 3.
263
Cf. Tucídides, I, xii, 3 e V, xxvi, 5.
264
Quanto a esse ponto, cf. Woodman, op. cit., especialmente pp. 95-98.

102
Ora, se os fundamenta da história, bem como suas leis, são, conforme o Antônio do De
oratore, do conhecimento de todos, a exaedificatio, isto é, aquilo da obra que nós podemos ver,
precisa ser preceituada pelos retores265. A metáfora introduzida pela personagem do grande
orador parece retomar o que ele dissera sobre os monumenta e os ornamenta. Podemos, de fato,
inferir que há uma relação direta entre os ornamenta e a exaedificatio a qual, pelas afirmações de
Antônio, não diz respeito apenas ao estilo, ou à elocução. Ora, se recordarmos um pouco mais o
contexto da passagem 51-54, em que os interlocutores criticavam os primeiros historiadores
latinos em termos de uma ausência de elaboração da res266, somos autorizados a supor que esses
historiadores não desconheciam os fundamenta da história que são, nas palavras de Antônio,
“conhecidos de todos”. Faltava-lhes trabalhar a exaedificatio. Antônio propõe que o
conhecimento para isso deve ser dado pela arte retórica. O historiador-orador ocupar-se-ia,
portanto, da construção do relato histórico por meio de uma arte que envolve duas operações:
uma elaboração técnica da matéria (rerum ratio) e uma elaboração técnica da expressão
(uerborum ratio).
Deixando de lado o que é da elocução, voltemos nossa atenção à matéria. Ora, na
exaedificatio histórica o tipo de matéria é, de modo geral, semelhante àquela que aparecera
tratada sob o nome de monumenta. O historiador-orador (que, não esqueçamos, representa aos
olhos de Antônio um historiador como Heródoto ou Tucídides) deve lidar com a seqüência dos
tempos, com a descrição dos lugares, com o relato das ações, e com o retrato dos homens que ele
torna ilustres. Se analisarmos atentamente o que Antônio apresenta como pertinente à rerum ratio
na história, notaremos uma grande semelhança com o que prescrevem os teóricos do discurso
quando tratam da narratio oratória.
No De inuentione, por exemplo, Cícero afirma que

“A narração poderá ser clara, por sua vez, caso se exponha primeiramente aquilo que,
da mesma forma, tiver sido realizado primeiramente e caso se conserve a seqüência das

265
Cf. Woodman, op. cit., p. 84.
266
Também se faz, evidentemente, uma crítica ao estilo desses autores, mas, para a argumentação que sustentamos,
importa deixar claro que o elemento da matéria está sempre presente.

103
ações e dos tempos, de modo que as ações sejam narradas assim como tiverem sido
realizadas ou como parecerão poder ter sido realizadas.”267

Além disso, a narração retórica será provável (probabilis)

“Se nela parecer estar aquilo que costuma ocorrer na realidade (in ueritate), se forem
conservadas as qualidades reconhecidas das personagens, se estiverem manifestas as
causas das ações, se parecer que houve meios para que fossem realizadas, se for
demonstrado que a ocasião foi propícia, o espaço suficiente, o lugar apropriado à ação
que é objeto da narrativa, se a matéria estiver em conformidade tanto com a natureza
daqueles que agem quanto com o costume geral e, ainda, com a opinião daqueles que
ouvem.”268

Essas considerações dizem respeito à narrativa oratória cuja exposição se situa, sobretudo,
no domínio das ações (ea quae in negotiorum expositione posita est)269 Ora, nesse mesmo
tratado, Cícero apresenta alguns preceitos para um outro tipo de narratio, aquela que lida mais
especificamente com a representação de indivíduos (altera in personis maxime uersatur)270. No
trecho da fala de Antônio (De oratore, 63), vimos que, por tratar de grandes homens, a
historiografia requer um desenvolvimento a respeito do caráter dos indivíduos cujas ações são
celebradas. As semelhanças com a narratio oratória são, novamente, consideráveis: “aquela
narração, por outro lado, que lida com a representação de indivíduos (in personis) é de tal tipo,
que, nela, concomitantes às próprias ações, podem ser percebidas as falas e a alma dos indivíduos
representados.”271

267
“Aperta autem narratio poterit esse, si, ut quidque primum gestum erit, ita primum exponetur, et rerum ac
temporum ordo seruabitur, ut ita narrentur, ut gestae res erunt aut ut potuisse geri uidebuntur (Cícero, De
inuentione, I, 29)”
268
“Probabilis erit narratio, si in ea uidebuntur inesse ea quae solent apparere in ueritate; si personarum dignitates
seruabuntur; si causae factorum exstabunt; si fuisse facultates faciundi uidebantur; si tempus idoneum, si spatii
satis, si locus o<p>portunus ad eandem rem, qua de re narrabitur, fuisse ostendetur; si res et ad eorum qui agent
naturam et ad uulgu morem et ad eorum qui audient opinionem accomodabitur (Cícero, De inuentione, I, 29).”
269
Cícero, De inuentione, I, 27.
270
Idem, ibidem, I, 27.
271
“Illa autem narratio quae uersatur in personis eiusmodi est ut in ea simul cum rebus ipsis personarum sermones
et animi perspici possint (Cícero, De inunetione, I, 27).” Traduzimos persona por “indivíduo representado” para nos
mantermos próximos do contexto da oratória jurídica e da filosofia moral. O termo persona fará parte, no De officiis,
por exemplo, de uma longa exposição sobre psicologia. Entretanto, note-se que Cícero não hesita em associar as
reflexões que faz sobre a narratio à representação teatral, que é, afinal, o contexto original de persona. Após
estabelecer a existência dessa narratio in personis, o autor cita versos de Terêncio para ilustrar seu argumento.

104
A partir das citações, podemos ver que os preceitos com os quais os oradores trabalhavam
habitualmente para a composição de uma parte importante de seus discursos, a narratio,
envolviam preocupações semelhantes às do Antônio ciceroniano, que almeja, para a cultura
latina, uma historiografia retórica. Resta discutir, entretanto, a questão central: em que medida
uma narrativa que não pode dizer algo de falso (De oratore, II, 62) pode se servir da probabilitas
requerida numa narração retórica? A hipótese ventilada por Woodman (op. cit., pp. 88-95)
parece-nos, nesse sentido, bastante convincente. Para esse estudioso, os relatos construídos pelos
antigos historiadores latinos, que reproduziriam as técnicas e convenções dos Anais, sem
qualquer elaboração retórica (sine ullis ornamentis, De oratore, II, 53) seriam semelhantes aos
breves registros de triunfos tais quais se podem encontrar reproduzidos na obra de Tito Lívio. Em
XXXVI, 40, 11, por exemplo, lemos: P. Cornelius consul triumphauit de Bois, isto é: “O cônsul
Públio Cornélio celebrou um triunfo sobre os boios”. Mesmo ciente do caráter hipotético de sua
afirmação272, o estudioso aponta que o registro apresentado por Tito Lívio contém a brevidade
referida por Antônio e, quanto à matéria, todos os elementos presentes nos monumenta. O tempo
e a pessoa: indicados pelo consulado273; o lugar: a Bóia; o evento: um triunfo pressupõe a vitória
em uma batalha com o massacre de pelo menos cinco mil inimigos.
Essa informação material básica poderia, então, ser elaborada por meio da técnica retórica.
Digamos que a vitória envolvesse o saque de uma cidade; o tipo de historiador almejado pela
personagem ciceroniana poderia se servir de preceitos da narratio oratória como os que podemos
encontrar em um autor como Quintiliano274. Citamos:

“Sem dúvida, quem diz que uma cidade foi tomada de assalto inclui toda e qualquer
coisa que tal fortuna admite, mas pouco atinge as afecções este breve comunicado, por
assim dizer. Mas caso franqueies aquilo que estava encerrado em uma única palavra,
mostrar-se-ão, espalhadas por casas e templos, as chamas e, dos tetos que caem, o
estrépito e, composto de gritos diversos, uma espécie de som uniforme; alguns em fuga
incerta, outros agarrados aos seus, no último abraço, e o choro das crianças e das

272
Woodman, diz, de fato: “enquanto tais notícias correspondem bem de perto, quanto ao formato geral, aos fasti
triumphales (‘registros de triunfos’) que foram organizados no fim do primeiro século a.C. por Augusto, os
estudiosos modernos não têm certeza quanto à relação (e dependência) que eles têm com qualquer categoria de
registro mais antigo, como os anais, que se sabe ou se presume terem existido.” (op. cit., pp. 88-89)
273
É bem conhecida a maneira romana de marcar os anos por meio da referência à dupla de cônsules.
274
Não há anacronismo aqui. Basta levarmos em conta que muitas das idéias expostas pelo autor do século I d.C. já
constavam de manuais de retórica que remontam a época helenística, isto é, anteriores a Cícero. É o caso, julgamos,
da passagem que citamos a seguir.

105
mulheres e, cruelmente preservados pelo fado até aquele dia, os velhos. (...) Com
efeito, ainda que, como disse, a palavra ‘devastação’ inclua todas essas coisas, dizer o
todo é menos, contudo, do que dizer todas as coisas. Conseguiremos, porém, fazer com
que as coisas estejam manifestas, se elas forem semelhantes ao verdadeiro.”275

Com esse tipo de procedimento, Quintiliano está buscando a ejnavrgeia (euidentia ou


repraesentatio)276, virtude do discurso que dispõe as ações como se elas estivessem acontecendo
diante dos olhos do ouvinte. Ora, é esse um tipo de técnica que alguns antigos costumavam
atribuir à composição de Tucídides277; é também desse tipo a narrativa que Cícero parece pedir a
seu amigo Luceio278.
Dessa forma, a distinção efetuada pela personagem de Antônio entre monumenta e
ornamenta indica uma relação complexa entre o que é narrado pelo historiador tal qual ele
concebe e a verdade dos fatos. Há, por um lado, um núcleo material, semelhante ao registro de
triunfo que nos apresenta Tito Lívio. Sobre esse tipo de informação, operaria a técnica retórica,
que buscaria criar uma narrativa vívida, que pudesse seduzir e deleitar o ouvinte, ou leitor. Esse
tipo de efeito seria alcançado por meio de uma elaboração da matéria da narrativa, em que o
historiador se serviria da arte retórica. É por meio da inuentio que ele vai constituir o relato
daquilo que soube, talvez, por meio de um registro breve como o do triunfo em Tito Lívio. A
exaedificatio da res do discurso se realizaria, então, de modo semelhante ao que prescreve
Quintiliano no trecho em que discute a narrativa sobre uma cidade devastada. O núcleo material é
a tomada da cidade. A narrativa historiográfica, no entanto, com base na probabilidade, isto é,
refletindo sobre o que cabe à situação, às pessoas e o que pode ser admitido pelos ouvintes,
desenvolverá tudo aquilo que o mero comunicado contém potencialmente.

275
“Sine dubio enim qui dicit expugnatam esse ciuitatem complectitur omnia quaecumque talis fortuna recipit, sed in
adfectus minus penetrat breuis hic uelut nuntius. At si aperias haec, quae uerbo uno inclusa erant, apparebunt
effusae per domus ac templa flammae et ruentium tectorum fragor et ex diuersis clamoribus unus quidam sonus,
aliorum fuga incerta, alii extremo complexu suorum cohaerentes et infantium feminarumque ploratus et male usque
in illum diem seruati fato senes (...) Licet enim haec omnia, ut dixi, complectatur 'euersio', minus est tamen totum
dicere quam omnia. Consequemur autem ut manifesta sint si fuerint ueri similia (Quintiliano, Institutio oratoria,
VIII, 3, 67-70).”
276
São as opções preferidas de Quintiliano para traduzir o termo, cf. VIII, 3, 61.
277
Por exemplo, Plutarco (De gloria Atheniensium, 347a-347c). Woodman cita e traduz a passagem, cf. op. cit., p.
25.
278
Cf. Cícero, Ad familiares, V, 12, 4-5. Note-se ainda, em um historiador latino, Salústio (um exemplo dentre
muitos), a realização dessa historiografia patética (cf. De coniuratione Catilinae, XXX).

106
Ora, ao que parece, é nesses termos que Tucídides comenta o seu procedimento com relação
aos discursos que “reporta” em sua obra. Não há neles senão uma espécie de substrato da
verdade; os eventos narrados e que constituem, nos termos de Antônio, a exaedificatio de sua
obra, são construções do autor. Não é, entretanto, uma invenção completa e sem qualquer critério
racional, visto que há algo de verdadeiro e visto que o historiador compõe seus discursos em
conformidade com o conhecimento que tem dos eventos da guerra e de seus principais atores. Os
discursos seguem, portanto, o critério do “provável”, uma vez que buscam se ajustar àquilo que,
segundo o autor, cada orador deve ter dito em cada uma das ocasiões.
Assim, a verdade prescrita pelas leis da história, tais quais preceituadas pela personagem
ciceroniana, está bem distante da noção de verdade histórica que cultivamos modernamente. Se,
por um lado, ela está subjugada à imparcialidade do historiador, que deve se resguardar de nutrir,
ou ao menos de manifestar, qualquer sentimento de afeição ou de animosidade com relação aos
agentes das ações que relata; por outro lado, a exigência de exatidão na narrativa não se dá, para
os antigos, de modo semelhante ao que se pensa hoje por precisão histórica. É verdade que o
núcleo dos acontecimentos deve ser preservado, mas a narrativa que se sobrepõe a esse núcleo se
vale muito mais do provável do que do verdadeiro.
Se compor uma narrativa a partir das convenções da arte retórica não é, portanto, violar as
leis da história, em que consistiria uma tal violação? Segundo nos parece, consiste em alterar o
que quer que seja do âmbito do núcleo material. Assim, Cícero pode se queixar de alguns elogios
fúnebres, prática comum da sociedade romana, nos seguintes termos:

“Pois as próprias famílias conservavam seus ornamenta e monumenta, por assim dizer,
tanto para os ritos, caso morresse alguém da mesma estirpe, quanto para a memória das
honras domésticas e para ilustrar a própria nobreza. Entretanto, por meio desses
elogios, a história dos eventos romanos tem se tornado repleta de erros. Pois muitas
coisas, nas quais não há fatos, foram escritas: falsos triunfos, múltiplos consulados e
até mesmo falsas genealogias (...) como se eu dissesse que provenho de M. Túlio,
patrício, que com Sérvio Sulpício foi cônsul dez anos após a expulsão dos reis.”279

279
“Ipsae enim familiae sua quasi ornamenta ac monumenta servabant et ad usum, si quis eiusdem generis
occidisset, et ad memoriam laudum domesticarum et ad illustrandam nobilitatem suam. quamquam his laudationibus
historia rerum nostrarum est facta mendosior. multa enim scripta sunt in eis quae facta non sunt: falsi triumphi,
plures consulatus, genera etiam falsa (...) ut si ego me a M. Tullio esse dicerem, qui patricius cum Ser. Sulpicio
consul anno X post exactos reges fuit (Cícero, Brutus, 62).”

107
Ora, novamente, a veracidade do relato histórico, que, nesse caso, falta a algumas
laudationes, parece estar ligada à imparcialidade. Julgamos que não é o fato de as famílias terem
incluído ornamenta em suas laudationes o que dificulta a precisão quanto à história romana, mas
sim o fato de que cada família se responsabilizou pelo registro das ações de seus próprios
membros. A parcialidade distorceu substancialmente os registros. A ênfase da expressão (cf.
ipsae enim familae sua ... ad nobilitatem suam) parece reforçar essa interpretação e a genealogia
falsa que é aventada hipoteticamente por Cícero a comprova.
Vimos, anteriormente, que as definições de narratio e de historia estão bem próximas no
De inuentione, obra de juventude de Cícero. Se esta é a “exposição das ações realizadas ou como
que realizadas (ut gestarum)”, aquela “é uma ação realizada, distante da memória de nosso
tempo”. Ambas são exposições de res gestae, narrativas de ações. A definição da narratio
oratória introduz, entretanto, um elemento importante, o orador pode narrar o que ocorreu, mas
pode também, construir uma narrativa que se assemelhe simplesmente ao que ocorre
ordinariamente (ut gestarum; cf. ainda ut potuisse geri uidebuntur, I, 29). Para a história, a
definição é aparentemente mais simples: a história é res gesta, ou seja, parece ter relação direta
com o ocorrido. A segunda parte da definição, entretanto, introduz um grau de incerteza que pode
ser o território propício para a atuação do orador: a ação está afastada da memória de nosso
tempo (ab aetatis nostrae memoria remota). Conhecer bem as circunstâncias que envolveram a
realização dessas ações seria, sobretudo nas condições da cultura antiga, extremamente difícil.
Ora, se refletirmos bem, embora seja recorrente a declaração, por parte do historiador antigo, de
que esteve presente aos eventos narrados, ou de que viajou aos lugares em que as ações se
desenvolveram, a fim de conhecê-los pessoalmente, dificilmente poderíamos aceitar, mesmo para
aqueles que narram eventos que lhes são contemporâneos, a possibilidade de que tal declaração
corresponda à maneira como de fato eles realizaram suas investigações. Sendo assim, se, como
argumentamos, a construção retórica do relato histórico tinha como objetivo tornar a narrativa
mais vívida, por outro lado, em muitos casos, talvez fosse esse o único tipo de narrativa que um
historiador antigo podia compor. O caso de Tucídides, que, embora tenha vivido a época que
relata em sua narrativa, professa a dificuldade que tem em lidar com parte importante de sua
matéria, é, nesse sentido, emblemático.

108
Pois bem, sendo a história devedora da arte retórica, grande parte da credibilidade do relato
que ela oferece é, portanto, alcançada por meio de uma preocupação com a probabilidade das
ações narradas e da adequação entre os elementos, tais quais o tempo, o lugar, os tipos de
pessoas, e as ações, que compõem a matéria da narrativa. Mas também participa da construção da
credibilidade da narrativa histórica, conforme vimos anteriormente, a demonstração, construída
por meio do discurso, de que o historiador teve acesso direto aos eventos, ou a testemunhas dos
eventos.
Com relação à veracidade, entretanto, a discussão se faz em outros termos. De acordo com a
concepção antiga, ela não parece depender da extrema precisão da narrativa, que pode, enfim,
conter elementos criados pela inuentio do historiador. Mas, de qualquer modo, ela se fundamenta
na manutenção do núcleo básico dos acontecimentos. Ora, segundo o Antônio ciceroniano, a
historiografia trata de ações grandiosas e dignas de memória (cf. De oratore, II, 63), isto é,
eventos cujo conhecimento, mesmo que vago, alcança um grande número de pessoas. Assim, ao
tratar de eventos públicos (o que ocorre em grande parte dos casos), sobretudo dos mais recentes,
o discurso do historiador não pode se afastar da memória que as pessoas em geral têm desses
eventos que estão sendo narrados. O núcleo básico das ações, a que a população tem acesso, não
pode ser alterado, sob o risco de que o relato seja tomado como substancialmente falso e,
portanto, como um relato que não é histórico.
Voltando, enfim, a nosso objetivo principal, que é estudar o diálogo filosófico, podemos
perguntar: como relacioná-lo à historiografia, agora que ela ganhou, para nós, esses novos
contornos? Vimos como nos trechos iniciais do Fédon e do Teeteto as personagens que são
responsáveis pelo relato do diálogo principal se esforçam, à maneira de um historiador, para
estabelecer a credibilidade da narrativa e declaram, também como geralmente faz o historiador, a
intenção de apresentar um relatório preciso dos eventos que narra. O relato está fundamentado na
presença de uma testemunha ocular da conversa que Sócrates teve com outras personagens. A
narrativa, diferentemente do que ocorre na epopéia, repousa num conhecimento que é do âmbito
humano. Por outro lado, o responsável pela narrativa não é jamais o próprio autor, Platão, que,
como vimos, nunca toma a palavra em suas obras. Portanto, o relato se sustenta numa
representação mimética do procedimento histórico, à qual, no entanto, falta um elemento
importante do discurso historiográfico: não há a polifonia que observamos, por exemplo, em

109
Herótodo, nem, evidentemente, uma investigação crítica das fontes que, porventura, pudessem
apresentar versões diferentes dos eventos que são relatados.
Quanto à imparcialidade apregoada pelo Antônio ciceroniano, e que tem importância
fundamental, como mostramos, na concepção antiga de história, temos dados importantes para
afirnar que ela não está presente em muitos dos diálogos platônicos. De fato, toda a literatura
socrática que floresceu no século IV a.C. na Grécia, e que encontra em Platão seu expoente mais
importante, foi produzida por autores que formavam em torno de Sócrates um círculo de
discípulos. É difícil, nesse caso, não supor que, assim como as laudationes falaciosas que de
falava Cícero no trecho do Brutus citado acima, os autores de swkratikoi; lovgoi, tenham
favorecido Sócrates de alguma forma280.
Deixando o terreno da suposição, poderíamos refletir um pouco sobre o outro aspecto da
veracidade histórica e observar se há na obra de Platão a manutenção de um núcleo material
básico que lhe conferisse algum valor de narrativa histórica. A primeira coisa que nos chama a
atenção é o fato de a grande maioria dos diálogos platônicos apresentar situações que se
desenrolam na esfera privada. Como já mencionamos anteriormente, as conversas entre Sócrates
e outras personagens geralmente ocorrem na casa de algum particular, num círculo de amigos ou,
ainda que na praça pública, em torno de uma reunião restrita de pessoas. Sob esse aspecto, o
relato se afasta da concepção de história expressa por Antônio e difundida entre outros autores, a
saber: que o discurso historiográfico trate de ações grandiosas, que dizem respeito a toda uma
comunidade e que, de alguma forma, já participam do conhecimento geral da população, ainda
que de modo vago. No caso de muitos dos diálogos socráticos, portanto, simulando o
procedimento da historiografia, o autor tem a possibilidade de apresentar ações que, por serem
privadas, não estão expostas à verificação por parte do grande público. Não é, por exemplo, como
tratar da tentativa de invasão persa, ou do choque entre atenienses e espartanos, eventos que, de
algum modo, eram do conhecimento da maior parte dos gregos.
A Apologia, entretanto, uma vez que apresenta uma ação pública, torna-se um caso
extremamente interessante. Ora, não parece se submeter à contestação a existência histórica de
Sócrates. Além disso, o processo em que o velho filósofo foi condenado à morte é tido, de fato,
como um evento histórico e, mais do que isso, um evento público a que estiveram presentes

280
É bem verdade que, atualmente, estamos bastante inclinados a considerar que a objetividade é impossível em
qualquer tipo de texto. Mas estamos tratando aqui, sobretudo, de uma tentativa de objetividade (ou de ausência de
parcialidade) que parece ser requerida no ofício do historiador conforme o concebe o Antônio ciceroniano.

110
centenas de atenienses, entre os quais, muito provavelmente, o próprio Platão que, como
mencionamos, representa a si mesmo assistindo ao julgamento em meio à assembléia281. Desse
modo, mesmo supondo que Platão tenha elaborado os discursos de defesa que são atribuídos a
Sócrates nessa obra, o caráter público do evento deixaria pouca liberdade para o autor alterar
substancialmente o evento que ele relata. Se, além disso, sua intenção era, como concebem
alguns, defender a memória de Sócrates e mostrar a todos que ele fora injustamente condenado
(que é a opinião de Charles Kahn282), uma representação inautêntica da personagem e do evento
seria reconhecida como inverídica por seus contemporâneos e não alcançaria o efeito desejado.
Poderíamos pensar, portanto, que o tratamento dado aos discursos de Sócrates na Apologia seria
semelhante àquele de que se servira Tucídides, segundo ele próprio informa, na composição dos
discursos de seus atores históricos. É o que pensa Kahn, que toma a Apologia como o documento
mais importante para qualquer tentativa de restituir o pensamento próprio do Sócrates histórico.
Citamos uma passagem em que o estudioso moderno compara a Apologia com as demais obras
platônicas:

“A situação é bem diferente com relação à Apologia. Como versão literária de um


discurso público, composto não pelo orador, mas por um membro da audiência, a
Apologia pode ser considerada, com propriedade, como um documento quase-
histórico, assim como a versão de Tucídides do Discurso Fúnebre de Péricles.”283
Ainda seguindo a opinião desse autor, as demais obras de Platão, mesmo quando
representam eventos tidos como históricos, como, por exemplo, a morte de Sócrates, por
apresentarem um caráter privado, poderiam conter menos elementos factuais do que a Apologia,
ou, nos termos que estamos utilizando, poderiam manter um menor apego ao núcleo material
básico dos eventos, os monumenta do texto ciceroniano.284

281
Indícios da historicidade do processo se encontram em muitos autores antigos. Recordemos, por exemplo, que
também Xenofonte tratou do evento e, ao introduzir o relato que dele faz em sua Apologia, afirma que vários autores
já escreveram a respeito do assunto e defende o maior acuro da versão que ele próprio apresenta (cf. Xenofonte,
Apologia, 1).
282
Kahn, C. op. cit., pp. 88-89.
283
Kahn, C. op. cit., p. 88.
284
Uma objeção a esse tipo de argumentação, no entanto, pode se basear nos inúmeros depoimentos que podemos
colher em autores antigos a respeito da recepção dos leitores aos diálogos de Platão. Parece haver certa consciência
do caráter fictício dessas obras. Veremos isso a seguir. A Apologia resta, entretanto, como um caso problemático, por
conta do caráter público da cena.

111
Opinião semelhante tem, sobre esse ponto, Laborderie, que aponta a pressão que a obra de
Platão, embora fictícia, devia sofrer, em termos de uma exigência de verossimilhança por parte
dos homens da época. A preocupação desse autor, bem como de muitos outros modernos, gira em
torno do acesso que podemos ter, a partir da obra de Platão, tanto ao pensamento do próprio
autor, quanto ao pensamento do Sócrates histórico. Ainda que não seja esse, evidentemente, o
nosso propósito, a opinião que tais autores apresentam sobre a natureza da obra de Platão está em
concordância com o que argumentamos a respeito do gênero dialógico. Citamos:

“Qualquer que seja a solução adotada a respeito do caráter autenticamente socrático


das teorias que Platão empresta a Sócrates, causa embaraço imaginar que, quando o
autor faz uma alusão de maneira precisa a episódios bem conhecidos da vida de seu
mestre, ele possa ter desejado falsificar a figura histórica deste último. É possível que o
Fédon seja ‘a exposição de Platão de suas próprias concepções sobre a morte e sobre a
imortalidade da alma’ (L. Robin, introdução ao Phédon, “Belles Lettres”, p. xxi), mas
resta que Sócrates certamente demonstrou à sua maneira a imortalidade da alma. Os
fatos eram recentes demais para que Platão pudesse desfigurá-los sem incorrer em
reprovações, e, por conseguinte, sem que nós soubéssemos (...). Nós conservamos
anedotas sobre Platão e sobre a Academia de maneira suficiente para que se pudesse
argumentar a partir do silêncio geral sobre esse assunto.”285

Seguindo essa interpretação, o diálogo filosófico se constitui como relato confiável ao se


servir de elementos recorrentes do discurso historiográfico. Seria, portanto, um gênero de poesia
que buscaria, de alguma forma, assemelhar-se à história. Entretanto, como vimos anteriormente,
o procedimento historiográfico não ocorre senão no âmbito da mimese poética: é a personagem e
não o autor quem se apresenta como historiador. Mesmo assim, parece haver algum tipo de
comprometimento entre a representação e alguns aspectos da verdade histórica que se explica em
termos de probabilidade. A ação deve ser admitida pelo público como possível e provável de
acordo com os dados que ele possui a respeito da realidade das figuras históricas de que o poeta
se serviu na composição dos diálogos. Nossa argumentação encontra, de fato, interessante
sustentação, quando observamos alguns problemas de composição na obra de Platão, que criam
impossibilidades cronológicas e, por outro lado, quando levamos em conta algumas notícias,

285
Laborderie, J. op.cit., p. 50, nota 5. Entretanto, veja-se nossa nota anterior.

112
ainda que anedóticas, que nos chegam da Antigüidade, a respeito da recepção a algumas das
obras de Platão.
Diógenes Laércio apresenta uma dessas saborosas anedotas. “Contam ainda que Sócrates,
ao escutar Platão lendo o Lísis, disse: ‘Por Héracles, quantas afirmações falsas me atribui esse
jovem.’ Pois não poucas coisas escreveu esse autor que Sócrates jamais disse.”286 A possibilidade
de que a anedota relate um evento real é bem pequena. Conforme sustentam alguns estudiosos de
Platão, o autor ateniense só teria começado a escrever os seus diálogos após a morte de
Sócrates287. De qualquer modo, o relato do biógrafo preserva, em nossa opinião, alguns traços da
recepção antiga da obra de Platão, a qual reconhecia o caráter fictício dos escritos do ateniense e
que os criticava segundo uma perspectiva historicista. Esse tipo de compreensão dos diálogos
platônicos é bastante acentuado na obra de Diógenes. Ora, é por meio desse mesmo autor que nos
chega a curiosa anedota acerca do primeiro encontro entre Sócrates e seu jovem discípulo.
Diógenes, no início do relato que faz da vida de Platão, diz que o ateniense, quando jovem,
dedicava-se à poesia. Isso até os vinte anos de idade. Esteve mesmo próximo de participar de um
concurso trágico, no entanto, passou a ouvir Sócrates e, como resultado, lançou às chamas seus
poemas288. Diógenes nos apresenta um Platão, portanto, dedicado à arte poética. Mas a
associação que ele estabelece entre a obra de Platão e a poesia mimética vai mais longe. O
biógrafo atribui grande importância à influência que o autor ateniense teria sofrido da tradição
cômica da Magna Grécia, isto é, de autores como Epicarmo289; por outro lado, reconhece também
no escritor ateniense certa herança da tradição dos mimos, como os de Sófron, cuja obra teria sido
introduzida em Atenas pelo próprio Platão. Quanto a Sófron, o biógrafo diz ainda que Platão teria
286
Fasi; de; kai; Swkravthn ajkouvsanta to;n Luvsin ajnagignwvkonto" Plavtwno", “@Hravklei"”, eijpei'n,“wJ" poll
av mou katayeuvdeq j oJ neanivsko".” Oujk ojlivga ga;r w|n ojuk ei[rhke Swkravth" gevgrafen aJnhvr. (Diógenes
Laércio, III, 35).
287
Charles Kahn, falando da literatura antiga a respeito de Sócrates diz: “não há evidência de que qualquer um desses
escritos tenha sido composto durante a vida de Sócrates. Houve, sem dúvida, as representações caricaturais de
Sócrates apresentadas nAs nuvens de Aristófanes e em outras comédias do século V agora perdidas. Com exceção
desse material cômico, entretanto, os escritos socráticos que conhecemos (incluindo os diálogos de Platão)
pertencem todos ao século IV a.C., após a morte de Sócrates (Kahn, C. op. cit., p. 2).” Laborderie, que discute, na
introdução de sua obra, a questão da cronologia dos diálogos de Platão, apresenta como primeiros diálogos a
Apologia e o Críton, ordem que ele informa ser admitida por “presque tous les spécialistes”. De fato, a disputa recai
sobre a datação de outros textos. Ora, a composição dessas duas obras, dadas as cenas representadas, não pode ter
sido realizada, na pior das hipóteses, antes da morte de Sócrates, no caso do Críton, ou antes da condenação, no caso
da Apologia (cf. Laborderie, J. op. cit. pp. 3-4). De qualquer forma, cabe dizer que o próprio Laborderie não descarta
uma tradição de escritos socráticos que remonte ao século V. Um indício dessa atividade seria a menção feita no
Teeteto (conforme vimos acima) a reproduções estenográficas de conversas entre Sócrates e outros (cf. idem, ibidem,
p. 44; ver especialmente a nota 7).
288
Diógenes Laércio, III, 5.
289
Diógenes Laércio, III, 9-17.

113
utilizado de suas obras para a composição de algumas personagens290. Por fim, Diógenes se serve
de uma tradição de gramáticos que agrupavam as obras de Platão por meio de critérios tomados à
poesia trágica; ele afirma, além do mais, que segundo esses gramáticos, o próprio autor teria
composto seus diálogos para que eles formassem tetralogias291. A Aristófanes de Bizâncio, por
outro lado, é atribuída uma divisão dos diálogos em trilogias292.
Valor semelhante tem uma notícia que encontramos em Ateneu. Em Depinosophistae,
reporta-se a reação de Górgias após a leitura do diálogo platônico que leva seu nome: “Como
Platão sabe bem zombar das pessoas!”293. É bem verdade que o verbo ijambivzw relaciona-se à
poesia de invectiva pessoal, que se servia do verso iâmbico, e que, assim, pode se referir ao
tratamento ridículo de indivíduos reais, isto é, daquilo que é particular, para recuperarmos os
termos de Aristóteles. Mas com essa fala, Górgias parece insinuar que não reconhece como
totalmente autênticas as afirmações atribuídas por Platão às personagens que tomam parte em
suas representações. Novamente, parece-nos que a discussão quanto à autenticidade da anedota é
menos importante do que o que ela representa da leitura da obra de Platão que fizeram os antigos.
Deixemos de lado Platão, por um instante, e observemos a obra de seu contemporâneo que
também cultivou o gênero dialógico, a saber: Xenofonte. Charles Kahn, em sua obra já citada,
dedicada ao uso platônico do diálogo socrático, em uma passagem que pretende demonstrar que a
obra de Platão é a mais importante fonte para o conhecimento do Sócrates histórico, esforça-se
por revelar o caráter fictício dos diálogos de Xenofonte e, o que é para ele mais importante, a
dependência de seu relato com relação à tradição de escritos socráticos que lhe são anteriores,
como os de Platão. Segundo Kahn, Xenofonte deixou Atenas, ainda jovem, em 401 a.C., isto é,
dois anos antes da morte de Sócrates, para seguir carreira militar na Ásia. Retornaria a Atenas em
394 para logo ser exilado no oeste do Peloponeso até pelo menos 370 a.C..294 No relato que nos
oferece do processo de Sócrates, ele próprio declara que apresenta informação de segunda mão.
Sua fonte é Hermógenes, que é apresentado como a testemunha ocular do evento. Cabe notar que,
diferentemente do que faz Platão, Xenofonte, em primeira pessoa, é quem reporta as informações
que obteve da testemunha ocular. Nesse texto, Xenofonte se preserva de problemas cronológicos

290
Diógenes Laércio, III, 18. Talvez a afirmação feita por Aristóteles, no início da Poética (1447b10-14), em que os
diálogos socráticos são mencionados ao lado dos mimos de Sófron indique a familiaridade que o estagirita
reconhecia haver entre esses dois gêneros poéticos.
291
Diógenes Laércio, III, 57-61.
292
Diógenes Laércio, III, 61-62.
293
@W" kalw'" oi\de Plavtwn ijambivzein (cf. Ateneu, Deipnosophistae, XI, 505d).
294
Kahn, C. op. cit., p. 30.

114
(ora, ele não se encontrava em Atenas em 399 a.C.), dos quais não escapa no Banquete. Se ele
inicia o seu Banquete com a afirmação de que esteve presente aos eventos que narra295, tal
participação é bem pouco provável. A data da cena representada é 422 a.C.. Ora, nessa época,
Xenofonte não teria mais do que dez anos!296 Por conta disso, Kahn não hesita em comparar as
obras socráticas de Xenofonte à sua Ciropedia, tratada por esse estudioso moderno como uma
obra de “biografia imaginária”297 em que o autor descreve de modo fictício a educação do jovem
rei persa Ciro. Se a comparação com o diálogo, quanto ao caráter ficcional, é pertinente – o que
nos parece ser o caso –, nossa discussão ganha bastante se recordarmos alguns juízos antigos a
respeito dessa obra de Xenofonte.
Na própria obra de Platão, encontramos algo que poderia ser considerado uma alusão ao
caráter imaginativo da Ciropedia. Nas Leis, por exemplo, a personagem do Ateniense afirma que
o rei Ciro, ainda que tenha sido um grande general e tenha demonstrado amor por seu país, foi
completamente desprovido de uma educação adequada (cf. Leis 694c). Diógenes Laércio, no
relato que faz da vida de Platão, compara a carreira desses dois escritores socráticos (Platão e
Xenofonte) em um trecho em que se refere assim à passagem das Leis que parafraseamos acima:
“em seguida, um deles escreveu a República, o outro, a Educação de Ciro; e nas Leis, Platão diz
que a Educação daquele é uma ficção (plavsma); que, com efeito, Ciro não é tal qual (toiou'ton)
[Xenofonte representou]”298. Recordemos o sentido que terá termo plavsma, posteriormente na
obra de Sexto Empírico299, muito próximo do que Cícero trata por fabula. A crítica gira em torno
do fato de que Xenofonte não descreveu o caráter de Ciro como ele de fato era, mas plasmou uma
personagem que não guarda com o modelo uma correspondência direta. Recordemos também que
o pronome toiou'to" é largamente utilizado por Aristóteles, na Poética, para tratar da
composição das personagens da poesia mimética, sobretudo, evidentemente, das personagens
trágicas.
Esse juízo a respeito da Ciropedia reaparece em Cícero, numa carta que ele dirige a seu
irmão Quinto, na qual traça o perfil do chefe político justo, que concentra o poder em suas mãos
295
Cf. I, 1. Também nesta obra, o relato se faz numa primeira pessoa que representa o autor. Com isso, ele se afasta,
como dissemos, da mimese platônica, em que o autor nunca fala em primeira pessoa e, por outro lado, abre espaço
para o modelo de que se servirá Cícero em seus diálogos, como veremos a seguir. Vale lembrar que esse tipo de
procedimento aproxima o seu Banquete, ao menos quanto à expressão, do discurso historiográfico.
296
Extraímos informações cronológicas, como essa, da obra de Kahn, já citada (cf. p. 32).
297
Cf. Kahn, C. op. cit., p. 30, onde o autor compara os escritos socráticos de Xenofonte à Ciropedia, que seria uma
“imperial fiction”.
298
Diógenes Laércio, III, 34.
299
Sexto Empírico, Aduersus mathematicos I, 263, já citada.

115
não apenas porque possui, por natureza, a virtude da moderação, mas também porque é versado
nos estudos das artes mais elevadas, “como é aquele Ciro, descrito por Xenofonte não conforme a
credibilidade (fidem) histórica, mas conforme a imagem (effigiem) do poder justo, de quem a
suma gravidade é associada, por aquele filósofo, a uma singular afabilidade”300. Provavelmente,
Cícero se vale de uma tradição que remonta a Platão, mas cabe observar o que seu comentário
acrescenta a nossa discussão. A representação de Ciro, composta por Xenofonte, não tem
preocupação com a credibilidade histórica porque não consiste no mero registro de um homem
particular. O caráter da personagem é criado a partir da idéia de governo justo, isto é, por meio do
procedimento que parte do universal, que é, conforme a teoria aristotélica, a própria essência da
composição mimética301. Note-se que ao Xenofonte da Ciropedia é atribuído não o título de
historiador, mas o de filósofo. Desse modo, sendo sua Educação de Ciro uma obra que
representa, por meio de uma personagem, a própria imagem do poder justo, não nos surpreende a
notícia dada por Cícero na seqüência do texto de que “esses livros, ao menos, não sem razão,
nosso célebre Cipião Africano costumava sempre ter em mãos”302.
Isso quanto à opinião dos antigos sobre a relação que os objetos representados pelos
diálogos filosóficos (e obras afins) mantinham com os eventos e outros aspectos da verdade
histórica. Por outro lado, atestam também o caráter fictício dessas obras as inconsistências
cronológicas e mesmo certas falhas na composição do probabile que nós podemos apontar em
algumas delas, não obstante o esforço de composição dos autores. Reunimos aqui alguns casos
apenas. No prólogo do Teeteto, que estudamos acima, vimos Euclides dizer que obteve do
próprio Sócrates o relato da conversa entre este último e o jovem Teeteto. Esse relato possibilitou
a composição de um primeiro registro (os uJpomnhvmata de 143a). Euclides, buscando aperfeiçoar
a primeira composição, feita de memória, diz, a seguir, que por muitas vezes esteve em Atenas
para corrigir, junto a Sócrates, os apontamentos que havia feito. Recordemos que a cena do

300
“<ut est> Cyrus ille a Xenophonte non ad historiae fidem scriptus sed ad effigiem iusti imperi, cuius summa
grauitas ab illo philosopho cum singulari comitate coniungitur (Cícero, Ad Quintum, I, 1, 23).”
301
O pensador romano revela habitualmente um cuidado em não confundir personagem forjada a partir de indivíduo
histórico e o próprio indivíduo histórico. Poderíamos até mesmo supor que ele está atento às variações a que Platão
submete sua personagem principal. No início do De oratore, por exemplo, Cévola diz: “por que não imitamos,
Crasso, aquele Sócrates que se vê no Fedro de Platão? / Cur non imitamur, Crasse, Socratem illum qui est in
Phaedro Platonis”. O mesmo pronome ille que marca, na carta citada anteriormente, a distância entre o Ciro real e
aquele de Xenofonte, é utilizado no De oratore para designar a personagem de Sócrates tal qual é representada em
um diálogo particular.
302
Quos quidem libros non sine causa noster ille Africanus de manibus ponere non solebat (Cícero, Ad Quintum, I,
1, 23).

116
diálogo principal situa-se, segundo os estudiosos desse texto, às vésperas do processo de
Sócrates303. Ora, é difícil aceitar que Euclides tenha podido viajar por diversas vezes a Atenas,
para visitar Sócrates, e, voltando sempre a Mégara, tenha podido corrigir seus apontamentos.
Ainda que, durante o cárcere, que, segundo a obra de Platão, não foi tão curto304, os amigos
pudessem visitar o velho filósofo, dentro de poucos dias e nos anos seguintes, as visitas seriam
impossíveis, dado que Sócrates já estaria morto. É interessante, portanto, que o elemento que,
semelhante ao procedimento historiográfico, garante a Terpsião e ao leitor em geral a exatidão do
relato esteja fundamentado em última instância em um problema cronológico criado pela ficção
do poeta.
O caso do Teeteto levanta ainda outra questão sobre a composição da obra. Somos
informados, por um comentário anônimo do texto, de que esse diálogo contava com um prólogo
alternativo e bem menos complexo do que aquele que é mais conhecido e que figura nas nossas
edições. Nessa outra versão, o texto começava assim: “Traz-me, escravo, a conversa relativa a
Teeteto?”305. Ora, toda a passagem concernente à composição de Euclides estaria, dessa forma,
excluída. O autor do comentário julga que essa versão é a primitiva, abandonada, posteriormente
por Platão306. Baseado nessa notícia, Ruch argumenta que Platão compusera inicialmente o
diálogo em forma direta, forma que era justificada pela menção a um escrito. Num momento
posterior, “circunstâncias pessoais e ‘históricas’ o incitaram a acrescentar um prólogo; ele não
havia, sem dúvida, publicado ainda. Assim, pôde erigir um monumento comemorativo a Teeteto
e pôde também testemunhar publicamente sua consideração ao amigo Euclides”.307 Ruch, no
entanto, não parece fazer qualquer reflexão crítica a respeito da notícia dada pelo comentador
anônimo. Diès, por outro lado, é mais cuidadoso, e põe sob suspeita a notícia e, sobretudo, a
conclusão, a que chegam alguns estudiosos, de que, primitivamente, o Teeteto fosse um diálogo
dramático308. Deixando de lado o fato de que a versão alternativa já pressupõe a ficção da

303
Cf. Diès, A. op. cit., p. 119 e Ruch, M. op. cit., p. 36. O texto do prólogo diz simplesmente que a conversa
aconteceu pouco antes da morte de Sócrates, mas a passagem final do diálogo (210c) indica a iminência do processo.
Sócrates menciona a obrigação que tem de se dirigir ao “Pórtico do Basileu”, onde se defenderá das acusações
intentadas por Meleto, mas promete ainda a Teodoro um encontro para o dia seguinte.
304
Cf. Fédon, 58a-c.
305
Eis a tradução que Ruch faz do trecho (Ruch, op. cit., p. 35): “M’apportes-tu, esclave, l’entretien relatif à
Théétète?”. O autor não traz, contudo, o texto original.
306
Cf. Diès, A. op. cit., pp. 121 e 122. Esse autor traduz assim o início da versão primitiva: “Apportes-tu, jeune
homme, le dialogue qui concerne Thééthète?”, cujo texto original ele também não apresenta. A referência, no entanto
é dada: Anon. Komm. zu Platons Theaetet (Diels-Schubart), p. 4, linhas 34-36.
307
Cf. Ruch, M., op. cit., p. 36.
308
Cf. Diès, A. op. cit., pp. 121 e 122.

117
existência de um texto (e, portanto, que a hipótese de um diálogo dramático não se sustenta), para
a nossa discussão, valem os indícios (ainda que, nesse caso, sujeitos a controvérsia) das
oscilações do autor no momento de composição de sua obra mimética e da natureza artificial de
toda a passagem inicial do Teeteto. “Artificial” porque criada de modo semelhante à da arte dos
poetas.
O Parmênides também implica problemas cronológicos; e esses, mais graves que os do
Teeteto e, por outro lado, emblemáticos por ilustrarem o uso que faz o autor da personagem de
Sócrates. O encontro de Sócrates, ainda jovem, com os eleatas Parmênides e Zenão não pode ser
senão uma ficção.309 Ora, nesse texto, em controvérsia com Parmênides, Sócrates se serve de uma
teoria (a teoria das Formas) que, segundo os testemunhos antigos, jamais havia sido avançada por
ele. Aristóteles, distinguindo o Sócrates histórico da personagem platônica, na Metafísica, afirma
que o Sócrates real buscava os universais e que foi o primeiro a se preocupar com definições, mas
as utilizava no domínio da filosofia moral. Foi Platão quem teria aplicado o procedimento
socrático ao estudo da natureza e que, assim, teria chegado à conclusão de que as definições
universais se referiam a algo diferente das coisas sensíveis, uma vez que estas últimas se alterem
constantemente. Platão criaria assim certas entidades separadas do mundo sensível, as Formas
(ijdevai), das quais as coisas sensíveis participariam e de onde elas tomariam seus nomes310.
Charles Kahn, que é um severo crítico do retrato de Sócrates traçado por Aristóteles, reconhece,
ainda assim, elementos verídicos em algumas dessas afirmações. Comentando a passagem, ele
diz:

“A única informação histórica que é sólida aqui é a de que a teoria das Formas
pertence a Platão, não a Sócrates. Mas isso devia ser, presumivelmente, um fato bem
conhecido de todos na Academia. (Ninguém na Antigüidade tomou como histórico o
proêmio do Parmênides, no qual a teoria das Formas é consignada ao jovem Sócrates.
O resto do relato de Aristóteles representa mais provavelmente suas próprias
especulações, baseadas em suas leituras dos diálogos (...)”311.

309
Cf. Séguy-Duclot, A. 1998, pp. 11-13. Diès, em sua edição do Parmênides, discute pormenorizadamente os
problemas cronológicos que envolvem a representação. O comentador defende a impossibilidade de que tal diálogo
entre o velho eleata e Sócrates possa ter algum fundamento histórico. (cf. Platon, Oeuvres complètes. Tome VIII –
première partie, Parménide. Texte établi et traduit par Auguste Diès, Paris, Belles-Lettres, 1950, pp. 6-11).
310
Cf. Aristóteles, Metafísica, A, 987a32-b12.
311
Kahn, op. cit., p. 82.

118
Ora, esses elementos do Parmênides corroboram nossa interpretação do diálogo como
ficção, ainda que construída nos moldes da historiografia. Ora, se o encontro entre Sócrates e
Parmênides jamais aconteceu e, além disso, os membros da Academia de Platão podiam
reconhecer como pertencentes a Platão as idéias atribuídas a Sócrates nesse diálogo, pouco
restaria ali daquilo que designamos anteriormente por núcleo material histórico. Por mais que o
narrador do diálogo se esforce por apresentar uma série de testemunhos em cuja extremidade está
uma testemunha ocular do encontro, o problema cronológico e a ficção completa quanto ao
pensamento socrático podiam ser percebidos pelos leitores do Parmênides e, o que é mais
notável, eles estariam, ao que parece, prontos a aceitar esses elementos como próprios do gênero.
Quanto aos eventos, quanto ao tempo, quanto ao lugar, quanto às falas, enfim, o Sócrates do
Parmênides não representaria qualquer elemento do Sócrates histórico, visto que a conversa entre
os interlocutores jamais ocorreu. Poderíamos dizer que, nesse texto, a personagem serve muito
mais como a representação de uma figura respeitável do passado que, no entanto, trata de
problemas do conhecimento que são do tempo da composição da obra. Mas, será que, ainda
assim, a personagem guarda algo da figura histórica? Um estudioso citado por Kahn parece ter
tido a impressão de que sim:

“Os socráticos fizeram experiências no domínio da biografia, e as experiências


estavam direcionadas a capturar antes as potencialidades do que as realidades das vidas
individuais. Sócrates, o objeto principal de suas considerações... não era tanto o
Sócrates real quanto o Sócrates potencial. Ele era o guia para territórios ainda não
explorados, por assim dizer.”312

Ora, mas falar da captura da potencialidade de certo indivíduo histórico parece bem
próximo do que discutíramos, seguindo a Poética de Aristóteles, a respeito da composição
mimética que pode se valer de dados históricos. Parece-nos que compor o Sócrates potencial não
é outra coisa senão conceber que tipo de homem deve dizer que tipo de coisa em determinada
situação.
Apesar disso, há autores, que argumentam que Platão, mesmo ao construir ficções, esforça-
se por não eliminar completamente o substrato histórico a partir do qual forja as ações de suas

312
Momigliano, A. The development of Greek biography. Cambridge, 1970, p. 46 apud Kahn, C. op. cit., p. 34.

119
personagens. Michel Ruch, por exemplo, julga que um indício dessa preocupação, por exemplo, é
o fato de no Sofista, ao superar, na argumentação, a concepção parmenídica do não-ser (o célebre
parricídio), Platão atribuir o passo argumentativo ao Estrangeiro de Eléia e não representar
Sócrates chegando a conclusões a que, notadamente, ele não chegou313. Ora, o desaparecimento
da personagem de Sócrates dos diálogos considerados como obras de velhice, como o Sofista, as
Leis e outros, pode ser compreendido sob esse prisma. Talvez o último pensamento de Platão
estivesse já muito distante do pensamento do Sócrates histórico. Ainda no terreno da hipótese,
pode ser que o Parmênides tenha sido uma das últimas experiências platônicas em que ele se
servia da personagem socrática que já não pareceria adequada (em sua opinião e na dos leitores)
às idéias que lhe eram atribuídas. Seja como for, temos de admitir que a perspectiva de Ruch não
dá conta do caso do Parmênides conforme vimos acima. Talvez a argumentação do autor francês
seja influenciada neste ponto por algumas reflexões de Cícero que, como veremos, apega-se mais
fortemente que Platão ao modelo histórico de diálogo filosófico e que é, evidentemente, o objeto
principal de Le préambule dans les oeuvres philosophiques de Cicéron.
Se os antigos, quando refletiram sobre o diálogo, não exigiram desse gênero de escrito um
apego total à veracidade histórica, uma vez que parecem ter permitido aos autores certa liberdade
para a ficção quer no que toca à personagem, como no caso da Ciropedia, quer no que diz
respeito tanto à personagem quanto aos eventos representados, como no Parmênides de Platão, o
mesmo não se pode dizer da exigência de probabilidade, que, ademais, é a exigência mesma do
mu'qo" poético na concepção de Aristóteles, ou do argumentum, nos termos de Cícero.
O próprio Cícero, quando discute com Ático a respeito da decisão que tomara, na
composição do De oratore, de suprimir dos encontros representados nos livros II e III a
personagem Cévola, que participa do livro I, argumenta justamente a partir de um elemento da
República de Platão que ele julga bem estabelecido do ponto de vista da probabilidade. Citamos a
carta do orador romano que preserva essa discussão:

“Quanto ao fato de lamentares a ausência da personagem de Cévola naqueles livros


que tu elogias, não a demovi inadvertidamente; fiz, sim, o mesmo que nosso caro
Platão, aquele ser divino, fez em sua República. Uma vez que viesse Sócrates até o
Pireu para ter com Céfalo, um rico e espirituoso ancião, enquanto se dá o início da

313
Cf. Ruch, M. op. cit., p. 33.

120
conversação, está presente à discussão o ancião; em seguida, uma vez que também ele
próprio tivesse se expressado de modo muito apropriado, diz que deseja partir, para
tratar de um assunto relacionado aos deuses, e não retorna mais. Creio que Platão
pensou que dificilmente seria apropriado se ele mantivesse um homem dessa idade por
muito tempo em uma conversação tão longa. Muito mais ainda, com relação a isso, eu
pensei que devia, de minha parte, ter cuidado quanto a Cévola, que tanto pela idade
quanto pela saúde era como tu te lembras, e de tão ilustre carreira pública, que
dificilmente pareceria conveniente que ele estivesse por muitos dias na propriedade de
Crasso em Túsculo. Além disso, a conversação do primeiro livro não era alheia aos
interesses de Cévola; os demais livros contêm uma τεχνολογία. Dessa, eu não quis,
decididamente, que aquele ancião gracejador – tu o conhecias – participasse.”314

Ao pretender traçar, de modo geral, uma biografia intelectual de Platão, Charles Kahn
afirma:

“No caso dos autores antigos, nós não temos qualquer documentação séria concernente
ao contexto pessoal de seus trabalhos literários. Para Platão, entretanto, há uma
exceção. Sua Carta Sétima oferece um breve esboço de sua juventude, vista do ponto
privilegiado de sua velhice”315.

Entretanto, ainda que na Carta VII – que, diga-se de passagem, tem sua autenticidade
contestada por muitos316 – o autor ateniense trate de seus escritos, não há qualquer discussão

314
“Quod in iis libris quos laudas personam desideras Scaeuolae, non eam temere dimoui, sed feci idem quod in
politeiva/ deus ille noster Plato. cum in Piraeum Socrates uenisset ad Cephalum, locupletem et festiuum senem,
quoad primus ille sermo habe[re]tur, adest in disputando senex; deinde, cum ipse quoque commodissime locutus
esset, ad rem diuinam dicit se uelle discedere neque postea reuertitur. credo Platonem uix putasse satis consonum
fore si hominem id aetatis in tam longo sermone diutius retinuisset. multo ego magis hoc mihi cauendum putaui in
Scaeuola, qui et aetate et ualetudine erat ea qua esse meministi et iis honoribus ut uix satis decorum uideretur eum
pluris dies esse in Crassi Tusculano. et erat primi libri sermo non alienus a Scaeuolae studiis; reliqui libri
τεχνολογίαν habent, ut scis. huic ioculatorem senem illum, ut noras, interesse sane nolui (Cícero, Ad Atticum, IV, 16,
3)” Decidimos manter a expressão τεχνολογία com vistas a preservar esse interessante elemento da epistolografia
ciceroniana que é a inserção de expressões estrangeiras. O sentido é de “discussão técnica”. Evidentemente, trata-se
de um traço que demonstra o grau de influência da cultura helênica entre os romanos cultivados do fim do século I
a.C., como Bruto, Ático, Varrão, Quinto Cícero e outros com os quais Cícero manteve correspondência. Nessa
passagem, em especial, acreditamos que o termo grego, que faz referência à exposição técnica dos elementos da
retórica, é bastante significativo por indicar aquilo que poderia ser objeto dos gracejos do espirituoso Cévola: o
tecnicismo excessivo dessas disciplinas de origem grega. Ora, o velho jurista, conforme o representa Cícero, é um
expoente de uma geração em que as doutrinas gregas eram vistas com reserva pelos homens ilustres de Roma.
315
Kahn, C. op. cit., p. 48.
316
Cf. Kahn, C. op. cit., pp. 48-49; especialmente nota 22.

121
direta a respeito de seu modo de composição. Sob esse aspecto, Cícero constitui, para a
composição de diálogos na Antigüidade, uma exceção (para nos servirmos do termo de Kahn)
maior e mais importante. Em sua correspondência, ele faz comentários bastante ricos a respeito
do tratamento que dá à sua obra mimética. Em alguns casos, como veremos mais adiante, é
possível até mesmo acompanhar o processo de composição de uma obra quase dia após dia.
Na carta que apresentamos acima, seguimos uma discussão travada entre Cícero e Ático a
respeito do De oratore. Não temos a carta de Ático, mas o contexto da resposta torna claro que o
amigo de Cícero aprovou a leitura dos diálogos Sobre o orador, embora tenha feito uma ressalva:
gostaria que a personagem de Cévola estivesse presente nas discussões do segundo dia. A
justificativa de Cícero revela alguns aspectos da sua preocupação na composição de um diálogo.
Chama atenção, num primeiro momento, a expressão exagerada e, poder-se-ia pensar, pedante,
com que ele se refere a Platão: deus ille noster Plato. Recorde-se, entretanto, que amiúde Cícero
se declara acadêmico; freqüentou, como se sabe, os grandes representantes da Academia de seu
tempo, instituição outrora fundada por Platão: os filósofos Fílon e Antíoco317. Tratar de filosofia
sob a forma dialógica é para ele, portanto, se inserir numa tradição que tem em Platão o seu mais
elevado, e quase divino, expoente. Aqui, a qualidade de Platão é realçada do ponto de vista
artístico. Em primeiro lugar, Cícero refere-se à capacidade do autor ateniense em atribuir às
personagens discursos que lhes são extremamente apropriados (cum ipse quoque commodissime
locutus esset). Trata-se aqui da participação de um velho, Céfalo, que, por suas expressões, pode
ser dito festiuus, jovial e espirituoso. O advérbio quoque parece estender à composição da
personagem de Cévola, de seu De oratore, o mesmo ajuste entre caráter e pensamento presente
no Céfalo de Platão. Talvez um comentário a respeito da qualidade da personagem estivesse
presente na carta de Ático, que, conforme se lê no trecho citado, louvara os livros e, em especial
– supõe-se – a personagem de Cévola. De fato, mesmo alguns traços dos dois caracteres
coincidem, o velho ciceroniano é dito ioculator: zombeteiro, gracejador.
Mais adiante, a mesma idéia de ajuste, ou de boa acomodação (cf. commodissime, usado
anteriormente, e commodum, usado aqui), é aplicada à relação que se estabelece entre
personagem e ação. Trata-se da justificativa para a ausência de Cévola das discussões travadas
nos livros II e III do De oratore. Cícero, raciocinando por analogia, tece um juízo (cf. credo

317
Sobre esses filósofos, falaremos ainda na segunda parte de nosso estudo e nos comentários à tradução do De
finibus.

122
Platonem ... putasse) a respeito do modo de composição platônico. Para ele, Platão não teria
utilizado Céfalo como personagem ao longo de todo o diálogo da República, porque não lhe
parecera suficientemente apropriado (satis commodum) que um velho, isto é, um tipo de
personagem, estivesse presente a uma discussão tão longa, isto é, realizasse uma ação de
determinado tipo. Cícero atribui a Platão a preocupação, que ele próprio experimenta, em
estabelecer relações prováveis entre os elementos da representação. No caso do De oratore, à
velhice vem se acrescentar a condição de saúde da personagem (et aetate et ualetudine).
Para Cícero, romano, para quem a atividade política se coloca como o que há de mais
importante na vida humana, a construção da probabilidade, no caso de Cévola, implica ainda
outra exigência. Personagem cunhada a partir de um indivíduo histórico, Cévola seria
reconhecido pelo leitor de Cícero (cf. ut noras) como uma figura pública de destaque (cf. iis
honoribus). Mesmo desfrutando do ócio, por conta dos dias festivos dos Ludi Romani318, não
pareceria conveniente (uix satis decorum uideretur) que ele participasse de seguidos dias de
discussão, subtraindo-se assim, por tanto tempo, às questões concernentes à direção do Estado.
Cícero toca ainda em um aspecto funcional da partida de Cévola que repercute, de fato, na
seqüência da discussão. A partir do segundo livro, Antônio e, sobretudo, Crasso, podem falar
com maior liberdade a respeito da técnica dos gregos.319 Ora, a matéria tratada nos livros II e III,
demasiado técnica, não representaria o campo de interesse dessa personagem que guarda um quê
dos romanos mais tradicionais, desconfiados dos saberes que vinham sendo importados da
Grécia. Nesse ponto, a personagem forjada a partir do Cévola real deve estar em harmonia com o
que os leitores conhecem do homem histórico (cf. ut noras), isto é, deve estar em conformidade
com elementos externos à obra, e, por outro lado, não tomar parte em ações ou expressar
sentimentos que não concertem com o tipo de caráter que lhe é atribuído. Também a condição
física da personagem, velho e doente, realiza essa dupla forma de ajuste: por um lado, com
relação ao indivíduo histórico (ea qua esse meministi), por outro, como vimos, com relação às
ações e pensamentos representados.

318
Celebrados, na época em que se passa a cena (91 a.C.) entre 4 (ou 5) e 18 de setembro. Cf. a edição do De oratore
(Cicero, On the ideal orator) de James M. May and Jakob Wisse, citada na bibliografia.
319
Também esse elemento funcional parece ter sido tomado da partida de Céfalo na República de Platão.

123
Ora, concebendo a si mesmo, em sua empresa literária, como um continuador da obra de
Platão320, o autor romano julga a qualidade da composição do diálogo filosófico tendo como
critério o commodum, ou o decorum. Por um lado, uma adequação entre os elementos
representados; isto é, entre aquilo que Aristóteles tratava como “o que é representado”, os objetos
da representação: ações, caracteres, pensamentos. Por outro lado, um ajuste entre os objetos
representados e os elementos históricos a partir dos quais eles foram forjados. Esse último ajuste
contém semelhanças com o discurso historiográfico, conforme o estabelecemos anteriormente,
mas guarda certa licença que o historiador não pode se permitir. Em última análise, também o
ajuste entre representação e elementos históricos é do âmbito da arte poética, que lida com um
material, seja histórico, seja mitológico, que preexiste, em grande parte, ao trabalho do poeta e
que é do domínio do conhecimento das pessoas em geral.321 Para Cícero, tanto o que ele faz no
De oratore, quanto o que na República fazia Platão, seu grande modelo, é do domínio do
argumentum: trata-se de ficção.
Após termos traçado uma imagem do diálogo filosófico a partir de testemunhos de autores
da Antigüidade, passaremos, no próximo capítulo, a investigar especificamente a composição do
De finibus bonorum et malorum.

320
Na segunda parte de nosso estudo, veremos que, também no plano do pensamento, Cícero se considera um
herdeiro de Platão. Na verdade, expressão verbal e método de investigação, nos diálogos de ambos os autores, são
complementares. A forma dialógica, ainda que sensivelmente diferente em cada um deles, relaciona-se intimamente
com os métodos filosóficos utilizados nos momentos da história da Academia refletidos nas obras de um e de outro.
321
Recordemos o que Aristóteles fala da composição de personagens a partir de indivíduos históricos e a partir de
personagens tradicionais. A composição desse último tipo, conforme vimos, é discutida também por Horácio.

124
Segundo Capítulo

Os diálogos sobre os fins: gênero e


elementos da composição

125
Segundo Capítulo
Os diálogos sobre os fins: gênero e elementos da composição

No fim do capítulo anterior, discutimos alguns aspectos do diálogo filosófico, sobretudo no


que diz respeito à sua composição mimética. Para isso, tomamos como ponto de partida algumas
afirmações feitas por teóricos do discurso da Antigüidade. Concentramo-nos, a seguir, na análise
de determinados diálogos de Platão, cujos modelos nos pareciam pertinentes para uma
compreensão do diálogo ciceroniano. A partir de agora, nosso objetivo é tratar da composição
dialógica em Cícero e, de modo mais especial, da composição deste exemplar cuja tradução nós
propusemos, isto é, o De finibus bonorum et malorum.
Se passarmos à análise do De finibus, veremos que há nesta obra diversos elementos que
não encontramos naqueles diálogos platônicos de que nos ocupamos anteriormente. Alguns
elementos, inclusive, são completamente estranhos a todo o corpus platônico. A obra com que
trabalhamos não é constituída por um diálogo apenas: trata-se de um conjunto de três diálogos
organizados na forma de tratado da seguinte maneira: nos livros I e II, Cícero, que se representa
como uma personagem (algo sem paralelo na obra de Platão), discute com Lúcio Torquato a
respeito da filosofia moral de Epicuro. Outra personagem, de reduzida participação, Triário,
também está presente. No segundo diálogo, formado pelos livros III e IV, a cena se passa em
lugar e época diferentes dos representados nos dois livros anteriores; vemos Cícero, novamente
representado como personagem, discutindo com Catão, o jovem, a respeito do sistema moral
estóico. O último livro, o quinto, constitui sozinho um diálogo. Numa cena que recua no tempo,
encontramos a personagem de Cícero, ainda jovem, estudante de filosofia em Atenas,
conversando com Pisão, na presença de outras personagens, como Ático, Quinto Cícero e Lúcio
Cícero, este último a representação de um primo do autor. O tema: o finis segundo a concepção
de Antíoco, filósofo acadêmico do século I a.C., de quem falaremos mais adiante.
Mas como o autor confere unidade a sua obra, uma vez que essa é constituída por diálogos
quanto ao tempo, quanto ao lugar e quanto a algumas das personagens? Na verdade,
diferentemente do que acontece, em geral, nos diálogos de Platão, nos quais a unidade é garantida
por meio de uma característica que é da ação322 (o que também ocorre na poesia épica ou na

322
Evidentemente isso não nega o fato de haver nos diálogos de Platão uma unidade que seja do âmbito da
argumentação, sem o que eles seriam ininteligíveis.

126
poesia trágica, conforme discutimos anteriormente), no De finibus, do ponto de vista da
organização geral do tratado, a unidade é lógica: é alcançada por meio da unidade temática,
garantida pela persistência da matéria sob discussão, que é comum aos três diálogos, a
controvérsia sobre os fins dos bens e dos males, que, no entanto, é tratada segundo diferentes
perspectivas em cada um dos diálogos particulares. Trata-se de uma unidade, poderíamos dizer,
que está mais próxima daquela que encontramos nos discursos públicos ou na poesia didática.323
No caso do De finibus, o autor não apenas se representa como personagem que tem papel
importante em todos os três diálogos; é também ele que, falando em primeira pessoa, introduz
cada um dos diálogos particulares, em proêmios que antecedem as ações representadas. Além
disso, basta lermos o início da obra para reconhecermos outro elemento que não encontrávamos
nos modelos platônicos: non eram nescius, Brute, cum quae summis ingeniis... A obra toda, como
se fosse uma espécie de epístola, é endereçada a um destinatário: Marco Bruto (de quem
falaremos mais adiante). A dedicatória estabelece, com efeito, um diálogo entre o autor e a figura
do destinatário. Esse diálogo, por sua vez, engloba e organiza os três diálogos particulares. A
unidade se constitui, em última instância, na discussão que o autor enceta com aquele a quem a
obra é dedicada.
Feitas essas observações introdutórias, vejamos, de modo mais minucioso, como se
organizam as relações que se estabelecem entre Cícero e sua obra, entre Cícero e seu destinatário,
entre Cícero, por fim, e as personagens que aparecem representadas ao longo dos três diálogos.
Evidentemente, a questão que apresentamos é, de fato, um pouco mais complexa, pois estamos
cientes de que o que chamamos aqui “Cícero” recobre, na verdade, realidades diferentes:
designamos por meio desse nome tanto o autor da obra, que poderemos conhecer talvez por meio
de sua correspondência; por outro lado, diferente do autor, há essa espécie de orador, essa
persona que vemos falar em primeira pessoa na introdução a cada um dos diálogos; há, além
disso, a personagem por meio da qual ele se representa como interlocutor nos diálogos.
Tentaremos, ao longo de nossa exposição, marcar bem a distinção entre essas formas sob as quais
Cícero aparece, ainda que, em diversos momentos, seja forçoso reconhecer uma superposição de
elementos que lhes são comuns.

323
Cabe dizer que em Cícero, em obras como o De oratore ou o De re publica, estas duas formas de unidade por
vezes se encontram sobrepostas. Nestas duas obras, os livros em que a obra se divide muitas vezes marcam
momentos sucessivos de uma mesma discussão que se desenrola continuamente. No De finibus, a cada diálogo
particular, a cena se altera. A relação entre livros, diálogos particulares e organização da obra voltará a ser evocada
em nosso texto.

127
Numa carta datada de 29 de junho de 45 a.C., Cícero escreve a seu amigo Ático324:
“Por outro lado, o que escrevi nestes últimos tempos tem um modo aristotélico, em
que, de tal forma é introduzido o diálogo entre os demais, que nas mãos dele próprio
esteja o papel principal. Dessa forma, compus cinco livros Sobre os fins, de modo que
o que é de Epicuro eu confiasse a Lúcio Torquato, o que é dos estóicos, a Marco Catão,
o dos peripatéticos, a Marco Pisão”325.

Já nos referimos, anteriormente, à parte inicial desse texto, quando fundamentávamos nosso
método de buscar em Aristóteles elementos para entender o modo de composição ciceroniano326.
Agora, entretanto, a questão gira em torno da organização específica do De finibus. Comecemos
pelo tema.

I – Visão geral sobre a matéria

Referências à questão tratada no De finibus aparecem em diversas obras de Cícero. O


prefácio ao segundo livro do De diuinatione, por exemplo, obra de 44 a.C., antes de introduzir a
cena do diálogo, apresenta, numa espécie de testamento intelectual do autor, uma lista das obras
que até então ele compusera acerca de filosofia e de arte retórica. Eis como aparece o De finibus:

“Estando o fundamento da filosofia estabelecido nos fins dos bens e dos males, esse
tema foi por nós exaustivamente tratado em cinco livros, de modo que se pudesse
compreender o que disse cada um dos filósofos e o que foi dito contra cada um
deles”327. Observemos três aspectos muito significativos desse trecho: em primeiro
lugar, Cícero parece identificar uma das partes da filosofia, a ética, com a própria
filosofia. Em segundo, a discussão moral é concebida mediante o conceito de ‘fim’, ou
finis. Em terceiro lugar, a passagem aponta para o procedimento utilizado ao longo da

324
Dado que Ático figura como personagem no livro V do De finibus, falaremos tanto do indivíduo histórico quanto
da personagem, quando tratarmos, mais adiante, de todos os interlocutores.
325
Quae autem his temporibus scripsi !Aristotevleion morem habent, in quo ita sermo inducitur ceterorum ut penes
ipsum sit principatus. Ita confeci quinque libros peri; telw''n ut epicurea L. Torquato, stoica M. Catoni,
peripathtikav M. Pisoni darem (Ad Atticum, 13, 19, 4).
326
Cf. página 14.
327
Cumque fundamentum esset philosophiae positum in finibus bonorum et malorum, perpurgatus est is locus a
nobis quinque libris, ut, quid a quoque, et quid contra quemque philosophum diceretur, intellegi posset (De
diuinatione II, 2).

128
obra no tratamento das questões morais, que consistiu em considerar “o que disse cada
um dos filósofos e o que foi dito contra cada um deles”.

Tratemos, primeiramente, da maneira como a filosofia moral se destaca em relação às


demais áreas da filosofia no pensamento do autor que estudamos, a partir do que poderemos fazer
uma idéia do modo como o De finibus se insere na vasta produção filosófica de Cícero.
Milton Valente inicia seu célebre estudo sobre o pensamento moral ciceroniano com a
seguinte afirmação: “De todos os assuntos que trata a Filosofia, as preferências de Cícero vão,
incontestavelmente, para a Moral. Com efeito, a sua concepção peculiar da Filosofia tem mais
relações com a Moral que com a Metafísica”328. Cícero teria, na concepção desse estudioso329,
um temperamento (sic) mais afeito à ação do que à reflexão, e a uma reflexão antes relacionada à
ação do que a raciocínios abstratos. Mesmo reconhecendo o caráter temerário dessa última
asserção330, consideramos que Valente reúne habilmente, a partir da análise da produção
filosófica de Cícero, argumentos que buscam defender seu julgamento a respeito das
preocupações que aparecem na obra do pensador romano e de sua predileção pela moral.
Há, de fato, na obra de Cícero, inúmeros depoimentos acerca dessa prioridade conferida à
filosofia moral. No livro II do De finibus, a personagem que representa o autor chama Sócrates de
parens philosophiae331. Ora, sabemos bem que a filosofia grega não se iniciou com Sócrates.
Como poderia ele ser designado, então, “pai da filosofia”? A resposta pode estar em algo que o
pensador romano nos indica, através da personagem de Varrão, em Academica I, 15:

“Sócrates me parece, o que é tido como certo entre todos, ter sido o primeiro a chamar
a filosofia para longe das coisas ocultas e escondidas pela própria natureza, nas quais
todos os filósofos antes dele estiveram ocupados, e à vida comum tê-la trazido, de

328
Cf. Valente, 1984, p. 19.
329
Valente afirma seguir Pierre Boyancé (cf. Boyancé, 1936, p. 74 et sqq).
330
Valente fundamenta-se, sem dúvida, na leitura da correspondência de Cícero e das declarações sobre seus
propósitos, oferecidas, vez por outra, em suas obras. Todavia, mesmo com evidências acerca de seus projetos
filosóficos, consideramos precipitado traçar, a partir delas, o temperamento do autor. Grande parte do problema está
no termo utilizado pelo estudioso. Mas não é só isso, Valente se serve de uma divisão da filosofia que não se aplica
adequadamente ao pensamento de Cícero, que não reconhece na filosofia uma parte metafísica. A tripartição
proposta mais de uma vez pelo autor compreende uma lógica, uma física e uma moral. Julgamos acertado, de
qualquer forma, reconhecer no autor romano uma preocupação especial pela discussão acerca dos mores.
331
Socrates, qui parens philosophiae iure dici potest (De finibus II, 1).

129
modo a investigar sobre as virtudes e os vícios e sobre as coisas boas e más em
geral”332.

Poderíamos sugerir, então, que é o fato de ter trazido a filosofia, que antes se preocupava
apenas com as questões naturais, questões às quais os homens têm difícil acesso, para o campo da
ação das pessoas no dia-a-dia de suas vidas, que garantiria tal título a Sócrates. Se a interpretação
estiver correta, torna-se evidente a importância que o autor do De finibus atribui à parte moral da
filosofia.
O mesmo podemos apreender a partir do célebre elogio endereçado à filosofia no livro V
das Tusculanae:

“Ó filosofia, guia da vida, ó perseguidora da virtude, exterminadora dos vícios! O que


poderíamos ter sido, sem ti, não apenas nós, mas, de modo geral, a vida dos homens?
Tu geraste as cidades, tu chamaste os homens dispersos para a vida em sociedade, tu os
reuniste entre si pelos domicílios, primeiramente, depois, pelos matrimônios, e então,
pela comunidade de letras e línguas, tu foste a inventora das leis, tu, a mestra dos
costumes e dos princípios333. Junto de ti nos refugiamos, a ti pedimos auxílio, a ti nós,
assim como antes: em grande parte, agora total e completamente nos entregamos. Ora,
um só dia bem vivido e segundo teus preceitos é preferível a uma imortalidade de mau
proceder”334.

332
Socrates mihi uidetur, id quod constat inter omnes, primus a rebus occultis et ab ipsa natura inuolutis, in quibus
omnes ante eum philosophi occupati fuerunt, auocauisse philosophiam et ad uitam communem adduxisse, ut de
uirtutibus et uitiis omninoque de bonis rebus et malis quaereret (Academica I, 15).
333
Valente traduz disciplina por “Civilização”. Já King, tradutor do texto na edição Loeb, traduz o termo por
“order”. Com efeito, o substantivo disciplina, da mesma raiz que disco, diz respeito a tudo o que é ensinado, daí a
amplitude de significados que pode expressar, dentre os quais o de “organização política”, “ordem, organização de
governo”, por serem estas coisas preservadas pelo ensino, por assim dizer, de geração a geração. Neste contexto,
entretanto, por conta da coordenação sintática com morum, julgamos que aqui se trata de ensinamentos que têm que
ver com os costumes, com o proceder dos homens em suas vidas e com o modo como tais coisas são transmitidas de
um a outro. Nossa interpretação é corroborada por outras passagens da obra de Cícero, como esta do pro rege
Deiotaro, 28: aui mores disciplinamque imitari, isto é: “imitar o proceder e os princípios do avô”. Além do mais,
pensamos que pode haver uma hendíade em magistra morum et disciplinae, de modo que poderíamos até traduzir o
trecho por “mestra dos princípios dos costumes”.
334
O uitae philosophia dux, o uirtutis indagatrix expultrixque uitiorum! Quid non modo nos, sed omnino uita
hominum sine te esse potuisset? Tu urbis peperisti, tu dissipatos homines in societatem uitae conuocasti, tu eos inter
se primo domiciliis, deinde coniugiis, tu litterarum et uocum communione iunxisti, tu inuentrix legum, tu magistra
morum et disciplinae fuisti: ad te confugimus, a te opem petimus, tibi nos, ut antea magna ex parte, sic nunc penitus
totosque tradimus. Est autem unus dies bene et praeceptis tuis actus peccanti inmortalitati anteponendus
(Tusculanae V, 5).

130
Tudo o que se atribui nessa passagem à filosofia, e pelo que ela é tida em tão alta estima,
diz respeito à vida das pessoas, aos vícios e às virtudes, às formas de proceder, à organização da
vida humana em sociedade, em cidades regidas por leis; tudo, enfim, refere-se à parte moral da
filosofia.
Contudo, devemos deixar claro que essa prioridade dada à ética, ou moral, não exclui, de
maneira alguma, as outras duas partes da filosofia. Basta ler a passagem 66 do Orator (apenas
como um exemplo, dentre outros) para perceber o quão importante são a lógica e a física para a
formação do orador, ou, em outras palavras, para a formação do homem público:335

“Nem, de fato, sem os ensinamentos dos filósofos podemos distinguir o gênero e a


espécie de cada coisa, nem, por uma definição, explicitá-la, nem dividi-la em partes,
nem decidir quais são verdadeiras e quais são falsas, nem perceber os conseqüentes,
ver as contradições, distinguir as ambigüidades. E que dizer da natureza das coisas [ou
física], cujo conhecimento fornece grande copiosidade ao discurso...?”336

Mesmo assim – pensa Valente –, esses saberes são importantes na medida em que apontam
para as questões morais, uma vez que contribuem à formação do homem público. E esse
estudioso vai mais longe. No proêmio do De officiis, por exemplo, obra endereçada a seu filho,
Cícero, preocupado com a formação filosófica do jovem Marco, afirma que, dentre todos os
assuntos tratados pelos filósofos, “parece mais amplamente se estender o que foi por eles
ensinado e preceituado acerca dos deveres”337. De tudo que trata a filosofia, o que teria maior
abrangência seria a parte mais prática da moral, a parte mais voltada à ação: a teoria dos deveres,
que pretende estabelecer a tarefa concreta e presente que a vida impõe a cada um de nós em cada
circunstância particular338.

335
Veremos, mais adiante, como Cícero concebe sua philosophica como um projeto educacional que visa formar o
homem público romano. Suas obras de arte retórica, evidentemente, fazem parte desse programa educacional. Mais
adiante trataremos de alguns aspectos da relação entre filosofia e retórica no pensamento ciceroniano.
336
Nec uero sine philosophorum disciplina genus et speciem cuisque rei cernere neque eam definiendo explicare nec
tribuere in partes possumus nec iudicare quae uera quae falsa sint neque cernere consequentia, repugnantia uidere,
ambigua distinguere. Quid dicam de natura rerum, cuius cognitio magnam orationis suppeditat copiam, (...)?
(Orator 16).
337
Latissime patere uidentur ea quae de officiis tradita ab illis et praecepta sunt. (De officiis, I, 4).
338
Cf. Valente 1984, p. 24.

131
Ademais, suas primeiras obras a versarem sobre temas filosóficos339 são o De republica e o
De legibus340, diálogos em que se discutem, respectivamente, a organização da res publica e as
leis sob as quais ela deve ser dirigida, assuntos inegavelmente voltados para a ação. No entanto,
em meio às discussões sobre as leis, defendendo que o direito se funda sobre a lei divina, a lei
natural e a lei moral, Cícero, como personagem de seu diálogo, parece perceber que suas
reflexões carecem de um embasamento teórico mais sólido:

“Mas percebeis quão grande é a série de assuntos e de pensamentos e como um se liga


ao outro, e que eu me deixaria ir mais longe, se não tivesse me detido?” Responde-lhe
seu irmão, Quinto: “Até onde? De bom grado me deixarei ir contigo nesse discurso,
meu irmão, até onde ele persista.” E Cícero, novamente: “Em tua companhia, até o fim
(finis) dos bens, ao qual se referem e para cuja obtenção devem ser realizadas todas as
coisas, assunto controverso e pleno de discordância entre os mais doutos, mas que
algum dia há de ser posto em julgamento”341.

Eis a perspectiva de Valente: sendo Cícero um homem público, atuando ora como
senador342, ora como advogado, suas primeiras reflexões foram, naturalmente, acerca dos
problemas políticos e jurídicos, e teriam partido de sua experiência como homem de leis e
estadista. A uma certa altura de sua produção filosófica, ele percebeu que erguera o teto do
edifício sem lhe ter escavado suficientemente os fundamentos. “A sua reflexão política fez nascer
a reflexão ética, e esta aparece como uma prolongação, um aprofundamento, uma exigência
daquela”343.
Uma ressalva deve ser feita, entretanto. Se o movimento descrito por Valente pode ser
observado, não podemos negligenciar um elemento importante, do contexto histórico da
produção filosófica de Cícero, que motivou – acreditamos – essa tendência em direção à
discussão mais teórica. A porção final da produção filosófica de Cícero, na qual se insere o De
finibus, foi realizada quando o autor tinha pouca ou nenhuma esperança de regressar à vida

339
Consideramos aqui apenas os textos filosóficos stricto sensu, ou seja, deixando de lado as obras de arte retórica.
340
Powell propõe os intervalos de 54 a 51 a.C. para o De republica e de 52 a 51 a.C. para o De legibus.
341
M.: (...) Sed uidetisne, quanta series rerum sententiarumque sit, atque ut ex alio alia nectantur? Quin labebar
longius, nisi me retenuissem. Q.: Quo tandem? Lubenter enim, frater, quo[d] ad <duret, in> istam orationem tecum
prolabar. M.: Ad finem [tecum] bonorum, quo referuntur et quoius apisciendi causa sunt facienda omnia,
controversam rem et plenam dissensionis inter doctissimos, sed aliquando iam iudicandam (De legibus I, 52).
342
Cícero foi, inclusive, cônsul durante o conturbado ano de 63 a.C.
343
Cf. Valente, 1984, p. 28.

132
pública. Veremos, mais adiante, como o elemento do otium forçado pela tirania de César está
presente de modo especial no contexto da composição da obra que estudamos.
De fato, quer tivesse temperamento afeito aos raciocínios abstratos, quer não, lançou-se à
investigação sobre os fundamentos da ação e, em 45 a.C., publicou o De finibus. Vejamos um
trecho do proêmio:

“Pois o que se deve de tal modo buscar na vida senão o que se busca tanto na filosofia
em seu todo, quanto nestes livros sobretudo: qual é o fim, o que é extremo, o que é
último, para onde se deve reportar todo desígnio de viver bem e agir com retidão; o que
a natureza persegue como o supremo dentre as coisas a serem buscadas e o que ela
evita como o extremo dos males? E uma vez que a respeito desse assunto há entre os
mais sábios enorme discordância, quem consideraria impróprio do prestígio que a mim
cada qual atribui investigar o que é o melhor e o mais verdadeiro em todas as
ocupações da vida?”344

Cícero se esforça por fazer com que o leitor romano, pouco acostumado à terminologia
filosófica345, compreenda qual é o assunto de sua presente obra. A dificuldade gira em torno do
significado do termo finis, que ele tenta tornar claro através dos acréscimos de extremum e
ultimum.
Para que compreendamos o conceito de finis, é fundamental que lancemos mão do
pensamento de Aristóteles, filósofo que já tratara das questões morais por meio da consideração a
respeito dos fins a que visam nossas ações346. Na Ética a Nicômaco, o raciocínio de Aristóteles
parte da premissa de que tudo o que fazemos, toda arte347, toda ação, toda escolha, tem em mira

344
Quid est enim in uita tantopere quaerendum quam cum omnia in philosophia, tum id quod his libris quaeritur, qui
sit finis, quid extremum, quid ultimum, quo sint omnia bene uiuendi recteque faciendi consilia referenda, quid
sequatur natura ut summum ex rebus expetendis, quid fugiat ut extremum malorum? Qua de re cum sit inter
doctissimos summa dissensio, quis alienum putet eius esse dignitatis quam mihi quisque tribuat quid in omni munere
uitae optimum et uerissimum sit exquirere? (De finibus I, 11).
345
Cícero traz aos romanos idéias que antes só haviam sido expressas em grego. É o que se pode inferir do início da
obra: “confiar às letras latinas assuntos de que haviam tratado, no idioma grego, os filósofos de mais sublime
engenho (...)” De finibus I, 1.
346
Na verdade, a discussão moral fundamentada em uma questão acerca da finalidade da ação é algo que já se
encontra em Platão. No Górgias, quando discute com Polo, Sócrates se serve da expressão ou| e{neka, “em vista de
quê”, quando pergunta a Polo se o homem, quando faz algo, deseja aquilo que faz, ou aquilo a que visa quando
realiza a ação (cf. Platão, Górgias 467d. Ver também a edição desse diálogo feita por Dodds, 1990, pp. 235-237,
citada na bibliografia). No entanto, o conceito de tevlo", como nós o conhecemos, foi formulado por Aristóteles.
347
Entendida como o conjunto de conhecimentos e procedimentos que podem ser ensinados a fim de se obter algum
resultado, que seria o fim da arte. Trata-se do conceito que em grego se exprime por tecnhv.

133
um fim. É o que ocorre, por exemplo, com a arte da medicina, que tem como fim a saúde, e com
a arte da construção naval, que tem por fim o navio. No entanto, segundo Aristóteles, deveria
haver, por necessidade lógica, um fim último, tevlo", que seria desejável por si mesmo, um fim
para o qual apontariam todas nossas ações, mas que, ele mesmo, não visaria a nenhum outro fim.
Eis como argumenta o filósofo:

“Se (...) para as coisas que fazemos existe um fim que desejamos por ele mesmo e tudo
mais é desejado no interesse desse fim; se é verdade que nem toda coisa desejamos
com vistas a outra (porque, então, o processo se repetiria ao infinito, e inútil e vão seria
o nosso desejar), evidentemente tal fim será o bem, ou antes, o sumo bem.”348

Assim, a saúde, por exemplo, deveria ser buscada pela arte médica, porque, em última
análise, seria buscada com vistas ao fim último, o sumo bem. O termo “fim”, neste contexto,
traduz o grego tevlo", que no pensamento aristotélico reúne dois sentidos: o de meta, por um
lado, e de remate ou perfeição, por outro lado. De modo que a saúde é o “fim” da arte médica
tanto porque é sua meta, quanto porque é a realização completa dessa arte. Daí a complexidade
que adquire o conceito de sumo bem no pensamento ético desse filósofo349, cuja compreensão
total não é nosso objetivo aqui. Uma vez que trata, ao longo do De finibus, de três sistemas éticos
distintos, o conceito de finis vai ganhar valores diferentes em cada um dos diálogos particulares.
Para as especificidades, recomendamos ao leitor que busque informações nas notas explicativas
que se encontram ao fim de cada livro. Por outro lado, numa abordagem mais geral, poderíamos
entender o finis, ou tevlo", como o último termo na série de bens a serem almejados. Explicamos:
a partir da noção de bem último, a que se referem todos os outros bens, devemos conceber a idéia
de uma série de vários bens intermediários em cuja extremidade estaria o sumo bem, aquele bem
em vista do qual almejamos tudo o mais.350
Com efeito, se, por um lado, os filósofos posteriores a Aristóteles continuaram a refletir
sobre as questões éticas levando em conta o ‘fim’, ou o bem supremo, para o qual se inclinam as

348
Cf. Aristóteles, Ética a Nicômaco, 1094a18. Tradução de Vallandro e Bornheim da versão inglesa de Ross.
349
A concepção aristotélica do sumo bem para o homem é tratada no livro V do De finibus, ainda que numa
exposição que tem inspiração no sincretismo de Antíoco de Ascalona e que busca unificar os pensamentos dos
antigos acadêmicos e dos peripatéticos.
350
O problema maior, de fato, é com relação ao pensamento estóico, que não considera como bem senão o “belo”
moral, que no De finibus aparece como honestum. Assim, para os representantes do Pórtico, é inconcebível uma série
de bens.

134
nossas ações, por outro lado, eles não chegavam a um acordo sobre qual seria o sumo bem. É o
que revela Cícero, na passagem já citada – “(...) uma vez que a respeito desse assunto há entre os
mais sábios enorme discordância (...)”351 – e é o que vemos ocorrer ao longo do De finibus, onde
três grandes soluções para a questão do finis são apresentadas (daí a divisão da obra em três
diálogos) e um grande número de soluções de menor importância são mencionadas352.
Apresentar e refutar diferentes soluções para a questão do finis moral: é essa a proposta de
Cícero na obra que estudamos. Trata-se de um método de investigação que o pensador romano
herdou da Academia. Temos informações, dadas pelo autor do De finibus, de que pensadores
como Carnéades (filósofo acadêmico do século II a.C., de quem ainda falaremos mais), diante da
dissensão que imperava entre os filósofos, dispunha-se a examinar e a combater as diferentes
soluções apresentadas para a questão ética.353 Filósofos posteriores, como Antíoco de Ascalona
(de quem Cícero foi auditor), teriam discutido a questão em tratados intitulados peri; telw''n
(equivalente grego de De finibus)354. É o que sugere Martha, por exemplo, que, prudentemente,
entretanto, deixa a afirmação no terreno da hipótese355. Muitos quiseram ver no De finibus
(sobretudo nos livros IV e V) uma reprodução desse suposto tratado de Antíoco.356 Jonathan
Barnes, que trata de modo mais minucioso da vida e da obra do filósofo de Ascalona, mostra que
não há qualquer evidência da existência de tal tratado.357 Quanto às informações dadas no De
finibus, Barnes argumenta que, ainda que se afirme que a personagem de Pisão apresenta a
sententia Antiochi, não há qualquer referência a uma obra escrita em que pudesse se basear a
exposição. De qualquer modo, o pensamento do filósofo de Ascalona teve, sem dúvida alguma,
enorme influência sobre pensadores romanos do primeiro século a.C., entre eles, Cícero e Varrão,
cujas obras supérstites atestam essa influência. A grande freqüência de romanos nos cursos dados
por Antíoco é, além do mais, sugerida pela cena representada no livro V do De finibus. Por outro
lado, mesmo que não tenha deixado um texto escrito sobre o tema, o método segundo o qual
Antíoco tratava da questão dos fines, conforme indica o texto ciceroniano, estava em grande

351
Cf. De finibus I, 11.
352
Cf. De finibus II, 9; II, 19; II, 35; II, 42.
353
Cf. De finibus V, 16, onde há uma referência à Carneadea diuisio, que, de certa forma, é o princípio diretor da
investigação proposta por Cícero ao longo do tratado.
354
Expressão que já encontramos na carta de 29 de junho de 45, citada anteriormente (Ad Atticum, 13, 19, 4).
355
Veja-se a introdução à sua tradução do De finibus. Cf. Martha, 1995, p. xv.
356
Veja-se, por exemplo, Hutchinson (1909), que afirma que nos livros IV e V Cícero “relies entirely upon
Antiochus” e “closely... copies him” em diversas passagens (p. xxxii).
357
Barnes (“Antiochus of Ascalon”, 1989, pp. 59-68) lista quatro escritos de Antíoco atestados na literatura e é
especialmente relutante quanto à existência de um Sobre os fins.

135
medida fundamentado no pensamento de Carnéades358. Ora, uma vez que Antíoco foi mestre de
Cícero, é evidente que a presença de seu pensamento é marcante na obra que estudamos. A
atitude do autor romano não é, entretanto, passiva, dado que mesmo a sententia Antiochi é
refutada, pela personagem de Cícero, ao final do livro V. Ademais, como vimos anteriormente, o
próprio Cícero, no proêmio do livro I, afirma que não realiza obra de interpres.
É o bastante, por ora, a respeito do tema que une os três diálogos que compõem o tratado.
Apresentamos, nas notas à tradução, informações mais específicas a respeito das discussões
particulares representadas em cada um dos três diálogos. Voltemo-nos, agora, à questão do
método.

II – In utramque partem dicere: um método de investigação filosófica

Vimos, mais acima, que o projeto de Cícero em seu De finibus é o de considerar, no que diz
respeito à questão dos fundamentos da moral, “o que disse cada um dos filósofos e o que foi dito
contra cada um deles”. Já é tempo de nos determos no exame desse procedimento adotado pelo
pensador romano em diversas de suas obras e que, como veremos, é atribuído ora aos filósofos da
Academia, ora a Aristóteles.
O texto do De finibus traz importantes considerações a respeito do modo como os
acadêmicos trataram da questão moral. No livro II, por exemplo, ao tratar de diferentes soluções
para a questão do finis, apresentadas por diversos filósofos, a personagem de Cícero diz:

“De fato, é incerta a luta com os acadêmicos, que não afirmam nada e, perdida a
esperança, por assim dizer, no conhecimento de algo certo, desejam seguir aquilo que,
o que quer que seja, pareça semelhante à verdade”359.

A dificuldade em rechaçar o pensamento dos acadêmicos, segundo a personagem, advém do


fato de eles não afirmarem nada. Cabe então, precisar o que seja não afirmar nada e quem são
esses aos quais a personagem se refere na passagem. O termo ‘acadêmico’ é vago; tomado fora
de contexto, poderia englobar qualquer filósofo, desde os tempos de Platão até os pensadores dos

358
Cf. De finibus V, 8 e V, 16.
359
Cum Academicis incerta luctatio est, qui nihil adfirmant et quasi desperata cognitione certi id sequi uolunt
quodcumque ueri simile uideatur (De finibus II, 43).

136
dias de Cícero, agrupados sob uma mesma denominação, pelo fato de pertencerem àquela escola
fundada por Platão no século IV a.C.. A declaração, entretanto, de que estes de que ele trata aqui,
estão “certos” de que o conhecimento da verdade é impossível e, por isso, buscam o que seja
semelhante à verdade, permite-nos compreender que ele se refere aos acadêmicos posteriores a
Arcésilas e que foram influenciados por seu pensamento. Filósofos que, segundo a denominação
de alguns360, pertencem à Nova Academia.
O próprio Cícero é reputado, por seus interlocutores, em alguns diálogos, como um neo-
acadêmico. Assim, no livro V do De finibus, a personagem Pisão, antes de começar sua
exposição do pensamento de Antíoco, filósofo acadêmico que em certo momento rejeitou os
ensinamentos dos mestres mais recentes em favor de um dogmatismo que estaria presente na
Academia dos tempos de Platão, dirige-se à personagem de Cícero desta forma:
“Todavia ousarei te fazer vir desta Nova Academia àquela Antiga, na qual, como
ouvias dizer Antíoco, não se contam apenas os que são chamados acadêmicos,
Espeusipo, Xenócrates, Pólemon, Crantor e os demais, mas também os antigos
peripatéticos, dentre os quais vem em primeiro lugar Aristóteles, que, com exceção de
Platão, não sei se não chamaria corretamente de primeiro dentre os filósofos.”361.

De acordo com o pensamento de Antíoco, portanto, há duas Academias: uma delas, a


antiga, reuniria os primeiros escolarcas, posteriores a Platão no comando da Academia, e os
peripatéticos, dentre eles Aristóteles.
Trata-se, como vemos, de uma concepção de Antíoco, que, deve-se dizer, não é aceita pela
personagem de Cícero. Ao que parece, Antíoco defende a existência de uma Academia antiga e
de uma Academia nova porque pretende uma conciliação, no campo do pensamento, entre a
Academia, o Liceu e o Pórtico. Ele fora, outrora, conforme informação dada por Cícero, um
adepto das idéias professadas por Arcésilas, ou seja, um adepto da Nova Academia, e, assim
como defendia Arcésilas, acreditava não ser possível ao homem chegar a um conhecimento
seguro de qualquer coisa. Em sua maturidade, contudo, abandonou essas idéias em favor de uma
tentativa de aproximação entre o pensamento dogmático dos estóicos e o dos antigos acadêmicos

360
Esta divisão da Academia, na verdade proposta por Antíoco, voltará a ser discutida.
361
Tamen audebo te ab hac Academia noua ad ueterem illam uocare, in qua, ut dicere Antiochum audiebas, non ii
soli numerantur qui Academici uocantur, Speusippus, Xenocrates, Polemo, Crantor ceterique, sed etiam Peripatetici
ueteres, quorum princeps Aristoteles, quem excepto Platone haud scio an recte dixerim principem philosophorum
(De finibus, V, 7).

137
(entre os quais, como vimos, ele contava os peripatéticos)362. Observemos mais atentamente a
questão concernente à história da Academia de Platão e seus reflexos na concepção de filosofia
que tem Cícero. Para isso, é oportuno nos referirmos à Academica363, obra cuja versão final,
inclusive, foi publicada no mesmo ano em que o De finibus.
Antes, porém, devemos tecer alguns comentários acerca do texto da Academica que chegou
até os nossos dias. Quem tiver em mãos uma edição moderna dessa obra, perceberá que ela é
composta por dois livros. No entanto, trata-se de livros provenientes de duas versões diferentes
concebidas por Cícero364: o que nós chamamos de livro I provém da segunda versão, que
constava de quatro livros, dos quais apenas esse, que era mesmo o primeiro, restou. Já o segundo
livro que temos, compunha a primeira versão, na qual era, de fato, o segundo livro dentre dois. O
outro não foi conservado.
Essa obra é fundamental para que compreendamos em que consiste, para Cícero, o
pensamento da Academia de seu tempo e a divisão que para ela propôs Antíoco. De fato,
apresenta-se nesse diálogo a contundente querela filosófica que houve entre Fílon e Antíoco,
depois que o último abandonou os ensinamentos de seu antigo mestre: o próprio Fílon365. Na
segunda versão366, à personagem Varrão cabe fazer a exposição das idéias de Antíoco; a Cícero,
criticá-las a partir das concepções de Fílon367. Vejamos como se dá o início da discussão acerca
da Academia. Varrão se dirige a Cícero: “Mas, a respeito de ti próprio, o que é que eu ouço?”.
Retruca Cícero: “A respeito de quê?” Novamente Varrão: “Que abandonaste a antiga Academia e
tratas da nova”, e Cícero:

“Como é? A Antíoco, nosso amigo íntimo, mais se permitiria isto: retornar à casa
antiga, vindo da nova, do que a mim à nova, vindo da antiga? Pois, certamente, tudo o
que é mais recente é aperfeiçoado e sobretudo corrigido; ainda que Fílon, mestre de
Antíoco, um grande homem, como tu próprio estimas, negue em seus livros, coisa que

362
A respeito da conversão de Antíoco, ver Academica II, 63-64 e 69-70. Cf. Barnes, 1989, pp. 68-70.
363
Ou, de acordo com a nomenclatura dada por Cícero em De diuinatione II, 2: Libri Academici (cf. quattuor
Academicis libris)
364
Cf. The composition of the Academica – motives and versions de M. Griffin (1997) e a introdução de H. Rackham
ao texto da Academica na edição Loeb.
365
Cf. Academica I, 13-14.
366
Portanto, Academica I.
367
Cf. Ad familiares IX, VIII, 1 (carta endereçada a Varrão): tibi dedi partes Antiochinas, quas a te probari
intellexisse mihi uidebar, mihi sumpsi Philonis.

138
inclusive ouvíamos dele próprio em pessoa, que existam duas Academias e demonstre
o erro dos que dessa forma pensaram”368.

É claro que toda a discussão filosófica entre Fílon e Antíoco não está apenas em considerar
se há uma só ou duas Academias. O problema que subjaz a essa discussão é o da possibilidade de
um conhecimento certo. Portanto, percorrer a concepção de um e de outro acerca da história da
Academia é, na verdade, discutir como cada um dos filósofos eminentes da Academia do
primeiro século a.C. se posicionou com relação à possibilidade de conhecimento. Tomemos,
então, com mais cuidado, primeiramente, a exposição das idéias de Antíoco apresentada por
Varrão.
Para Antíoco, Sócrates foi o primeiro filósofo a deixar de lado os mistérios da natureza, que
até então haviam ocupado as discussões de seus antecessores, para tratar das questões que dizem
respeito ao dia-a-dia das pessoas e do procedimento dos homens, tendo em vista as coisas boas e
as más. Sócrates teria abandonado as investigações acerca dos assuntos celestes, por exemplo,
que seriam de difícil acesso a nosso conhecimento e que nada trariam ao bem viver. Seu modo de
proceder nas conversações, que viriam a ser reportadas por seus discípulos, consistia em nada
afirmar, mas tão somente refutar os outros. A única coisa que afirmava era que nada sabia369 e,
justamente por isso, excederia aos demais homens, pois estes julgavam saber aquilo que não
sabiam, enquanto Sócrates se atinha à sua única certeza: a própria ignorância. Para ele, a
verdadeira e única sabedoria consistia justamente em “que não se julgue saber o que não se
sabe”370 Ainda assim, sem que afirmasse saber algo, Sócrates, em suas conversações, louvava a
virtude e exortava os outros homens a buscá-la. É o que se pode ler, diz Varrão, nos textos de
Platão.
Depois da morte de Sócrates, a partir de Platão, formou-se uma filosofia que, ainda que
tivesse duas denominações, era de fato uma só: a filosofia dos acadêmicos e dos peripatéticos.
(Que fossem um só pensamento, com dois nomes diferentes, é a opinião da personagem de

368
“Sed de te ipso quid est” inquit “quod audio?” ”Quanam” inquam “de re?” ”Relictam a te ueterem
Academiam,” inquit “tractari autem nouam” ”Quid ergo?” inquam “Anthioco id magis licuerit nostro familiari,
remigrare in domum ueterem e noua, quam nobis in nouam e uetere? Certe enim recentissima quaeque sunt correcta
et emendata maxime; quamquam Anthioci magister Philo, magnus uir ut tu existimas ipse, negat in libris, quod
coram etiam ex ipso audieabamus, duas Academias esse, erroremque eorum qui ita putarunt coargui.”(Academica I,
13).
369
Ita disputat ut ... nihil se scire dicat nisi id ipsum (Academica I, 16).
370
Non arbitrari se scire quod nesciat (Academica I, 16).

139
Varrão!371) Deram-se nomes diferentes para cada um desses grupos de filósofos, conta Varrão,
porque uns, os seguidores de Platão, se reuniam para suas discussões em um ginásio chamado
Academia, e os seguidores de Aristóteles, por sua vez, discutiam caminhando pelo perivpato"372
do Liceu, outro ginásio de Atenas. Citamos:

“De fato, não havia nenhuma diferença entre os peripatéticos e aquela antiga
Academia: destacava-se, por certa abundância de intelecto, como a mim ao menos
parece, Aristóteles, mas uma mesma fonte havia para um e outro”373.

Mas, ainda que não diferissem entre si, conforme nos refere Varrão, houve radical mudança
em seus procedimentos com relação ao de Sócrates: “aquele costume socrático, no entanto, de,
duvidando, discorrer a respeito de todas as coisas, sem admitir nenhuma afirmação, eles
abandonaram”374. A partir disso criou-se algo que Sócrates teria desaprovado absolutamente: um
corpo de conhecimentos de filosofia determinado (ars quaedam philosophiae) com ordenação de
assuntos (rerum ordo) e repartição do que devia ser ensinado (descriptio disciplinae). Dessa
época provém a repartição da filosofia em três partes, divisão que teria sido admitida pelo próprio
Platão: a primeira parte versaria sobre a vida e o proceder das pessoas (de uita et moribus), a
segunda, sobre a natureza e as coisas ocultas (de natura et rebus occultis), a terceira, sobre a
argumentação e sobre o julgamento entre o que fosse verdadeiro ou falso, correto ou errado,
coerente ou contraditório no discurso (de disserendo et quid uerum, quid falsum, quid rectum in
oratione prauumue, quid consentiens, quid repugnans esset iudicando).
Segundo a exposição de Varrão, o pensamento da Academia conservou-se basicamente o
mesmo até que, nos tempos de Pólemon, dois discípulos notáveis, Zenão e Arcésilas, tomassem
posições radicalmente opostas entre si, originando a cisão entre a antiga e a nova Academia.

371
Long discute cuidadosamente o contraste entre a maneira como nós concebemos os pensamentos platônico e
aristotélico e a maneira como os concebiam os contemporâneos de Cícero (Long, 1995, p .37-61). Cabe dizer, no
entanto, que Varrão admite que essa comunhão de pensamentos não se dá em todos os campos do conhecimento,
uma vez que afirma que Aristóteles combatera a teoria platônica das Idéias (cf. Academica I, 33). De qualquer modo,
devemos recordar que muitos textos de Aristóteles de que não dispomos hoje em dia circulavam nos últimos séculos
antes de Cristo, dentre eles, os diálogos de que Cícero fala em algumas de suas obras.
372
A palavra pode significar tanto o ato de passear, quanto o lugar em que se dá o passeio.
373
Nihil enim inter Peripateticos et illam ueterem Academiam differebat: abundantia quadam ingenii praestabat, ut
mihi quidem uidetur, Aristoteles, sed idem fons erat utrisque (...) (Academica I, 18).
374
Illam autem Socraticam dubitanter de omnibus rebus et nulla adfirmatione adhibita consuetudinem disserendi
reliquerunt (Academica I, 17).

140
Zenão, que era um sutil dialético, de pensamento agudíssimo375, pôs-se a corrigir a doutrina dos
antigos.
Deixemos de lado as correções que introduziu Zenão nas primeiras duas partes da filosofia,
ou seja, na ética e na física: para nosso propósito é fundamental observarmos suas idéias com
relação à lógica. Pois é justamente a lógica estóica que Arcésilas combaterá, como veremos,
buscando uma retomada dos procedimentos filosóficos de Sócrates.
A respeito das sensações (ou percepções sensíveis) 376, Zenão trouxe algumas novidades.
Elas seriam uma combinação de duas coisas: uma espécie de choque recebido de fora (e quadam
quasi impulsione oblata extrinsecus377), ao qual ele chamou fantasiva e que Varrão traduz por
uisum378 (para o português, poderíamos verter o termo como “o visto”, ou “visão” a partir do
latim, ou como “aparição” a partir do grego379), e um movimento interno, o assentimento
(adsensio) da alma (animus), algo que estaria em nós e que seria voluntário380.
No entanto, nem todas as “visões”, ou “aparições”, seriam dignas de crédito (fides): nem
todas poderíamos reconhecer como verdadeiras, mas apenas as que trouxessem em si uma
manifestação própria, peculiar daquilo que é visto (quae propriam quandam haberent
declarationem earum rerum quae uiderentur381). A esse tipo de uisum que traz consigo a marca
própria dos objetos de que é “aparição” e que, por isso, pode ser discernido como verdadeiro por
si só (id autem uisum cum ipsum per se cerneretur), ele chamou de comprendibile, ou seja, “que
pode ser agarrado”, “que pode ser compreendido”. Note-se que nossa tentativa de traduzir
comprendibile por “que pode ser agarrado” tenta justamente fazer menção à novidade do conceito
que, segundo Varrão, foi pela primeira vez empregado, referindo-se ao ato do conhecer, por
Zenão. A expressão de Zenão, na verdade, katalhptovn, é tomada a partir da comparação com
algo bem concreto, o ato de agarrar alguma coisa com a mão. Citamos:

375
Cf. Academica I, 35.
376
Sensus.
377
Cf. Academica I, 40.
378
Notemos que o conceito de Zenão, embora pelo termo usado (tanto o grego, quanto o latino) pareça se restringir
ao sentido da visão, refere-se, de fato, a todas as demais sensações de igual maneira.
379
Deve-se dizer que no conceito grego, fantasiva, não está explícita a idéia de um sujeito que vê tais “aparições”.
A raiz da palavra fantasiva é a mesma de fw'" ' , que significa luz. Assim, o conceito refere-se antes ao “brilhar” da
coisa do que à percepção de um sujeito. O termo usado por Cícero, contudo, torna inevitável a pressuposição de um
sujeito que apreende aquilo que vem de fora, uma vez que a raiz indo-européia que se encontra em uisum refere-se ao
sentido da visão, ou seja, a alguém que vê. A tradição francesa costuma traduzir o conceito por “representações”,
algo que nos parece inadequado, visto que o termo poderia indicar uma operação que parte do sujeito, ao passo que o
movimento se dá a partir do objeto.
380
Adsensio pretende traduzir o termo grego sunkatavqesi" (cf. Academica II, 37).
381
Cf. Academica I, 41.

141
“Mas, quando já tivesse sido recebida [a visão] e aprovada, chamava de compreensão
(comprehensionem), semelhante às coisas que tivessem sido agarradas (prenderentur)
pela mão”382.

Na primeira versão da Academica, da qual nos chegou o livro II, a personagem Luculo
assim define a “aparição” que pode ser agarrada:

“Uma visão (uisum), portanto, marcada (impressum) e figurada (effictum) a partir


daquilo de onde provém, de um tipo (quale) que não poderia ser a partir daquilo de
onde não provém”383.

A “aparição” verdadeira, dessa forma, seria inteiramente distinta da “aparição” falsa, pois
traria consigo, infalivelmente, as características do objeto do qual é uma representação, traria
consigo a marca da verdade. Se não fosse possível uma tal distinção, ou seja, se não houvesse na
“aparição” uma marca da verdade (ueritatis nota), diz Luculo em 33, não haveria um critério
(regula) para ordenar os juízos e assim, não só o conhecimento estaria em dificuldades, mas até
mesmo o proceder dos homens. A essa qualidade de certas “aparições”, pela qual as distinguimos
de “aparições” falsas e que, por isso, as torna comprendibilia, Zenão chamou ejnargeiva. Cícero,
através da personagem Luculo, propõe traduzir o conceito por perspicuitas, ou euidentia.
Aquilo que fosse “agarrado” de modo que a razão (ratio) não o pudesse refutar, Zenão
chamava conhecimento (scientia). Pelo contrário, o que a razão pudesse afastar, seria chamado de
insciência (inscientia), a partir do que surgiriam, caso isso não fosse afastado, as opiniões: débeis
e semelhantes à falsidade e ao desconhecimento.
Para o conhecimento verdadeiro, então, haveria quatro estágios: primeiro, a “visão”
recebida pelos sentidos, à qual se seguia, em segundo lugar, o assentimento da alma. A esse
conjunto, terceiro passo, chamou-se compreensão. Depois o raciocínio agiria, afastando ou não o
que tivesse sido compreendido, ou “agarrado”. Caso o raciocínio mantivesse a comprehensio, o

382
Sed cum acceptum iam et approbatum esset, comprehensionem appelabat, similem iis rebus quae manu
prenderentur (Academica I, 41).
383
Visum igitur impressum effictumque ex eo unde esset quale esse non posset ex eo unde non esset (Academica II,
18).

142
384
homem chegaria ao conhecimento certo daquilo que vira, ouvira, etc. A realização desse
último passo garante o que Zenão chama de ejpisthvmh.
Ao fim de sua exposição das idéias da velha Academia e das correções propostas por
Zenão, Varrão dirige-se a Cícero:

“Agora é teu papel, tu que te apartas do pensamento dos antigos e aprovas (probas) as
inovações feitas por Arcésilas, apresentar qual é a cisão e por que motivo ela se deu,
para que vejamos se essa separação é suficientemente justa”385.

Cícero argumenta, então, sob a autoridade de Fílon, que toda a polêmica criada por
Arcésilas a respeito do conhecimento era dirigida contra Zenão. Arcésilas não criara, portanto,
uma doutrina, mas apenas buscara combater as afirmações dogmáticas a que chegava o estóico. A
questão da possibilidade do conhecimento ocorrera, segundo Arcésilas, já para Sócrates, o qual,
em decorrência da obscuridade das coisas, fora levado à confissão de sua própria ignorância. E,
mesmo antes de Sócrates, diversos pensadores, como Demócrito, Anaxágoras e Empédocles,
teriam afirmado que nada pode ser conhecido, nada pode ser percebido. Esses antigos
sustentavam suas idéias a partir da concepção de que os sentidos são restritos, as almas são
débeis, o tempo da vida curto. Uma frase de Demócrito, inclusive, diria que a verdade está imersa
em um abismo386. Tudo em nossas vidas manter-se-ia graças às opiniões e aos costumes
estabelecidos, pois a verdade não seria acessível, já que todas as coisas estariam rodeadas de
trevas.
Ao longo de sua exposição, Cícero reúne uma série de argumentos, utilizados tanto por
Arcésilas quanto por um sucessor seu, Carnéades387, que visam a derrubar a teoria do
conhecimento de Zenão (sustentada, como vimos, por Antíoco)388. Os erros a que estão sujeitos
os nossos sentidos, em primeiro lugar, seriam suficientes para demonstrar que as “aparições”, ou
fantasivai, verdadeiras não têm nenhuma marca que as distinga das falsas. Um desses erros, por

384
Cf. Academica I, 42.
385
Tuae sunt nunc partes – inquit – qui ab antiquorum ratione desciscis et ea quae ab Arcesila nouata sunt probas,
docere quod et qua de causa discidium factum sit, ut uideamus satisne ista sit iusta defectio (Academica I, 43).
386
Vt Democritus [scil. dixit], in profundo ueritatem esse demersam (Academica I, 44).
387
Carnéades foi o quarto escolarca a partir de Arcésilas (cf. Academica I, 46). Devido à sua importância essencial
para a filosofia de Cícero, voltaremos a falar dele mais adiante.
388
Conta-nos Cícero, em Academica II, 75 e 87, que foi o estóico Crisipo quem reuniu inumeráveis argumentos
contra os sentidos e contra os raciocínios, com o fim de desarmar seus adversários de antemão. No entanto, essa
compilação acabou servindo de arma para os filósofos de outras escolas, como Carnéades.

143
exemplo, é o de confundirmos duas pessoas, quando as vemos de longe, por serem muito
semelhantes entre si389. Outro exemplo é o erro em que nossos olhos incorrem, quando vemos um
remo íntegro, que está em parte submerso na água, e dele recebemos uma “aparição” de um remo
quebrado390. Há uma série de outros argumentos contra o testemunho dos sentidos, entre eles o do
sonho e o da loucura. Omitimos, no entanto, tais argumentos, pois acreditamos que os
mencionados acima são suficientes para que se compreenda o desenvolvimento da argumentação
de Cícero.
A compreensão de qualquer coisa seria, assim, impossível, uma vez que não haveria na
“aparição” verdadeira nenhuma marca que a diferencie da falsa, ou seja, não haveria “aparição”
que possa ser compreendida. Mas as idéias de Arcésilas avançariam ainda mais. Nem mesmo os
raciocínios por conclusão, ou seja, movimentos realizados pela mente sem a necessidade de
referência a sensações, estariam isentos da incerteza.391
Para os estóicos (e também para Antíoco), a dialética teria sido criada para servir como um
instrumento que permitiria a distinção entre o verdadeiro e o falso, afirma Cícero (Acedemica II,
91). No entanto, há certos raciocínios que, por serem ambíguos ou capciosos, deixam os
dialéticos em situação embaraçosa. Segundo a concepção de Cícero, é um fundamento da
dialética que tudo aquilo que é enunciado, o que os dialéticos gregos chamariam de ajxivwma392,
deve ser ou verdadeiro ou falso. Certos enunciados, contudo, os dialéticos não conseguiriam
decidir se são verdadeiros ou falsos. É o caso do seguinte conjunto de enunciados: “Se dizes que
estás mentindo e dizes a verdade, estás mentindo. Ora, dizes que estás mentindo e dizes a
verdade, portanto, estás mentindo”393. O simples fato de existirem raciocínios como o citado
acima, subtrai à dialética, na opinião dos neo-acadêmicos, sua capacidade de distinguir o
verdadeiro do falso. Pois tal raciocínio é, como todos os outros, composto por enunciados e, do
ponto de vista formal, não contém problemas; no entanto, os dialéticos o relegam como uma
exceção, como algo que não pode ser considerado nem falso, nem verdadeiro, pois qualquer

389
Cf. Academica II, 84.
390
Cf. Academica II, 79.
391
Cf. Academica II, 92-98.
392
Cícero explica a expressão com a perífrase quod est quasi effatum, literalmente, “o que é, por assim dizer,
pronunciado”. Rackham, tradutor da Academica na edição Loeb, verte o termo effatum por proposition. Contudo,
deve-se observar que a expressão de Cícero é bem menos técnica. O pensador romano serve-se de um termo
(effatum) que não é próprio da linguagem da dialética (até porque ele está criando tal linguagem em latim) e, por
isso, antepõe o advérbio quasi que marca o uso especial do termo.
393
‘Si dicis te mentiri uerumque dicis, mentiris; dicis autem te mentiri uerumque dicis; mentiris igitur’ (Academica
II, 96).

144
escolha que se faça quanto a isso, traz consigo contradição. Além do mais, classificar tais
raciocínios como exceções seria quase como se abster de proferir um juízo, coisa que, veremos,
os estóicos, e com eles Antíoco, reprovam nos neo-acadêmicos.394
Através desse tipo de argumentação, Arcésilas abandonara até mesmo a única certeza de
Sócrates: o saber que nada sabe. Nem mesmo isso seria possível saber. Citamos:

“Dessa forma, Arcésilas negava haver algo que se pudesse conhecer, nem mesmo
aquilo que Sócrates havia deixado para si; assim, considerava que tudo estava
escondido na obscuridade, e que nada havia que pudesse ser discernido ou
entendido”395.

Ao homem, portanto, não seria recomendável afirmar coisa alguma, nem aprovar algo
através de um assentimento. Ele deveria, sim, conter sua temeridade, sua precipitação, evitando,
dessa forma, o erro. Na concepção de Arcésilas, nada seria mais vergonhoso do que antecipar o
assentimento e a aprovação. Para a personagem de Cícero, o pensamento desse filósofo está em
conformidade com o que professava o próprio Platão. Assim, aqui estaria o erro de considerar a
existência de duas Academias, uma vez que o próprio fundador da escola teria sustentado que o
conhecimento é impossível. Citamos:

“Esta Academia chamam nova, a qual me parece antiga, se ao menos Platão contarmos
entre os daquela antiga, em cujos livros nada é afirmado, e a favor de uma e de outra
parte muito se argumenta, a respeito de tudo se investiga, nada de certo é dito”396.

Novamente chamamos a atenção para a interpretação peculiar que os pensadores da Nova


Academia faziam dos textos de Platão397. Na verdade, essa interpretação atribui a Platão um
posicionamento cético. Recordemos que o verbo grego skevptomai significa “investigar,
examinar com cuidado” e, justamente por isso, alguns séculos mais tarde, filósofos como Sexto

394
Outros conjuntos de enunciados são apresentados por Cícero como exemplo de raciocínios que trazem
dificuldades aos dialéticos. Por questões práticas, apresentamos apenas esse.
395
Itaque Arcesilas negabat esse quidquam quod sciri posset, ne illud quidem ipsum, quod Socrates sibi reliquisset:
sic omnia latere censebat in occulto, neque esse quidquam quod cerni aut intellegi posset (Academica I, 45).
396
Hanc Academiam nouam appellant, quae mihi uetus uidetur, si quidem Platonem ex illa uetere numeramus, cuius
in libris nihil affirmatur et in utramque partem multa disseruntur, de omnibus quaeritur, nihil certi dicitur
(Academica I, 46).
397
Cf. Long (1995).

145
Empírico chamariam a si mesmos “céticos”: o cético seria aquele que segue sempre investigando
e procurando a verdade398. Voltaremos ainda a falar de Sexto, quando tratarmos das diferentes
correntes céticas do período helenístico.
A concepção de Arcésilas acerca do conhecimento terá, é óbvio, conseqüências
fundamentais em seu modo de filosofar. Ele agia, diz Cícero, de modo coerente com o que
professava: fazia com que a maioria de seus ouvintes aceitasse suas idéias de que nada poderia
ser conhecido, ao se pronunciar contra o pensamento de todos que lhe apresentassem uma
afirmação. Pois, uma vez que, em um mesmo assunto, fossem encontradas, nas partes contrárias,
razões de pesos iguais, estaria demonstrado que não se deveria assentir em nenhuma das duas
partes399.
Vimos, até aqui, serem expostos alguns argumentos contrários à concepção de Antíoco
acerca do processo pelo qual o homem pode adquirir conhecimento. Mas, se, conforme pensam
Arcésilas e seus discípulos, não é possível que haja “compreensão”, se até mesmo com relação a
alguns raciocínios não é possível decidir se são verdadeiros ou falsos, como, então, será possível
ao homem, conforme o concebem esses filósofos, pensar sobre aquilo que recebem dos sentidos,
formar o seu discurso, tecer juízos acerca de proposições ou, ainda, acerca das ações que deve ou
não praticar? Arcésilas, como vimos, recomendava que o homem se abstivesse de assentir
naquilo que tivesse a favor de si e contra si argumentos de mesmo peso. Todavia, com relação à
ação, em especial, esse filósofo estabelece um certo critério que o homem pode seguir: o
eujlovgon, que seria aquilo a respeito do que nós podemos dar uma justificativa razoável.400
Baseado nisso, o homem poderia tomar as decisões e agir.
Já Carnéades, ao que parece, teria introduzido um novo modo de conceber o processo do
conhecimento, derivado, sem dúvida, das idéias de Arcésilas, que permite ao homem assentir em
certas proposições e a agir de modo prudente, ainda que não tenha acesso a “aparições”
distintamente verdadeiras.

398
Cf. Sextus Empiricus. Outlines of pyrrhonism I, 1.
399
Cf. Academica I, 45.
400
Cf. Lévy, 1997, p. 194. O conceito é referido por Sexto Empírico, em Contra os matemáticos, VII, 158. Deve-se
dizer, contudo, que há controvérsia quanto ao valor que Arcésilas dava a tal conceito. Alguns estudiosos, como o
citado acima, consideram a hipótese de que ele possa ter sido usado apenas no contexto da polêmica com os estóicos,
na tentativa de levá-los à contradição, e que não teria um valor positivo no pensamento do acadêmico. De fato, os
estóicos desenvolvem o conceito de eujlovgon quando definem o dever, ou “ação apropriada”, isto é, o kaqh'kon. Veja-
se Diógenes Laércio, VII, 107 e De finibus III, 58, onde o conceito é vertido como ratio probabilis.

146
A personagem de Cícero afirma, em Academica II, 98, que se utiliza, para tratar do
pensamento de Carnéades, da obra de um discípulo seu: Clitômaco, filósofo natural de Cartago.
Para Carnéades, haveria duas classificações para as fantasivai: uma delas diria respeito ao fato
de poderem ser percebidas401 ou não. Na outra classificação, algumas “aparições” são
consideradas persuasivas (probabilia) e outras não. Tudo aquilo que pode ser dito contra os
sentidos e contra a evidência (perspicuitas) refere-se à primeira divisão. Com relação à segunda,
por outro lado, tais argumentos não são válidos. Ora, Carnéades considera, assim como já fazia
Arcésilas, que não pode haver “aparições” inteiramente evidentes, ou seja: nenhuma poderá ser
percebida e compreendida, uma vez que não há nada nas “aparições” ditas verdadeiras que seja
de um tal tipo, que não possa estar também em uma falsa de modo a distingui-las402. No entanto,
ainda que não as compreendamos, há “aparições” que são admitidas por uma aprovação
(probatio) nossa por serem persuasivas (probabilia). Ao conceito de perspicuitas, criado por
Zenão e sustentado por Antíoco, Carnéades sobrepõe o conceito de probabilitas, ou como
traduzimos aqui: “caráter persuasivo”403. A partir disso, o sábio neo-acadêmico terá um modo de
regular sua conduta, quer nas investigações intelectuais, quer nas ações cotidianas: “Assim, o que
quer que se tenha apresentado de persuasivo em seu aspecto, se nada se oferecer contrário a seu
caráter persuasivo, dele há de se utilizar o sábio, e todo o proceder de sua vida será assim
dirigido”404. Devemos notar que está presente no raciocínio de Carnéades a idéia, proposta por
Arcésilas, de observar, por assim dizer, a outra parte da questão. Algo que se apresente como
persuasivo não deve ser aprovado imediatamente (da mesma maneira que os estóicos assentiam
em algo que se mostrasse evidente), mas apenas depois que se observe se nada se coloca contra a
sua probabilitas.
O modo de proceder que recomenda Carnéades ao seu homem sábio está belamente
ilustrado no passo 100 do livro II da Academica. Trata-se do célebre exemplo da viagem
marítima:

401
O verbo percipere, nesse contexto, tem sentido mais preciso do que simplesmente “perceber”. Ele se refere, sem
dúvida, ao perceber de modo a ser possível a comprehensio.
402
Cf. Academica II, 99.
403
Devemos dizer que o conceito de probabilitas relaciona-se de modo íntimo com o conceito de ueri similitudo, de
modo a, certas vezes, Cícero os tratar como sinônimos (cf. Academica II, 107: praesertim cum possit sine adsensione
ipsam ueri similitudinem non impeditam sequi?).
404
Sic quidquid acciderit specie probabile, si nihil offeret quod sit probabilitati illi contrarium, utetur eo sapiens, ac
sic omnis ratio uitae gubernabitur (Academica II, 99).

147
“Vê bem! Acaso o sábio, ao embarcar em um navio, tem compreendido em sua alma e
percebido que navegará conforme seu projeto? Como pode ter? Mas se agora ele partir
daqui a Puteolos, uma distância de trinta estádios405, em um navio de qualidade, com
um bom piloto, neste mar plácido, parecer-lhe-á persuasivo que ele chegará com
segurança ao seu destino. Desse modo, portanto, por meio das aparições, ele tomará a
decisão tanto de agir quanto de não agir (...); e qualquer coisa que a ele se apresente, de
modo que seja aquela uma aparição persuasiva e à qual nada se coloque como
obstáculo, ele se colocará em movimento. Pois ele não foi esculpido em pedra, ou
talhado em carvalho; ele tem um corpo, tem uma alma, é movido pela mente, é movido
pelos sentidos, de modo que muitas coisas lhe parecem verdadeiras, todavia, não têm
aquela marca, insigne e característica, que permite a percepção, e, por isso, o sábio não
assente, porque pode ocorrer algo falso do mesmo tipo daquilo que é verdadeiro”406.

Não procederiam, portanto, as críticas de Antíoco, que dizia407 que as idéias da Nova
Academia fariam o homem sábio entregar-se à inação. O sábio de Carnéades, ao menos, não está
condenado a não agir, pois ainda que ele não julgue ter um conhecimento certo e não considere as
coisas evidentes, ele pode agir de acordo com o caráter persuasivo daquilo que toca seus sentidos,
desde que nada se coloque de contrário a essa probabilitas.
Outra crítica de Antíoco que deve ser rechaçada é a de que os filósofos neo-acadêmicos
rejeitariam os sentidos. Contra isso Cícero afirma408 que a Nova Academia nunca disse que a cor,
o sabor, o som e outros elementos recebidos pelos sentidos não existem. O que ela realmente
discutiu e rebateu foi a concepção de que “haveria neles uma marca peculiar do certo e do
verdadeiro que não haveria em nenhuma outra parte”409, ou seja, que cada coisa que nos venha
aos sentidos traga impressa em si a marca da verdade, de modo que não a poderíamos confundir
com algo falso.

405
Ou seja, 5.520 metros, aproximadamente.
406
Quid enim? Conscedens nauem sapiens num comprehensum animo habet atque perceptum se ex sententia
nauigaturum? Qui potest? Sed iam ex hoc loco proficiscatur Puteolos stadia triginta, probo nauigio, bono
gubernatore, hac tranquillitate, probabile uideatur se illuc uenturum essem saluum. Huius modi igitur uisis consilia
capiet et agendi et non agendi (...) et quaecumque res eum sic attinget, ut sit uisum illud probabile neque ulla re
impeditum, mouebitur. Non enim est e saxo sculptus aut e robore dolatus; habet corpus, habet animum, mouetur
mente, mouetur sensibus, ut ei multa uera uideantur, neque tamen habere insignem illam et propriam percipiendi
notam; eoque sapientem non adsentiri, quia possit eiusdem modi exsistere falsum aliquod, cuius modi hoc uerum
(Academica, II, 100-101).
407
Cf. Academica II, 19.
408
Cf. Academica II, 103.
409
Inesse in iis propriam quae nusquam alibi esset ueri et certi notam (Academica II, 103).

148
Com relação à suspensão do assentimento (sustinere adsensus410), Carnéades afirmaria411
que ela deve ser considerada de duas maneiras. De acordo com a primeira, diz-se que “ele [o
sábio] não assente de maneira absoluta em nenhuma coisa”412. Conforme a segunda, diz-se “que
[o sábio] se abstém de responder, de modo que nem afirme nem negue algo”413. Com isso,
Carnéades distinguiria seu modo de conceber a suspensão do assentimento do modo como o
concebiam, em sua opinião, outras formas de pensamento cético414.
A primeira maneira de definir a suspensão do assentimento é a do sábio “probabilista”:
seguindo o caráter persuasivo de uma “aparição”, onde quer que ele ocorra, ou deixe de ocorrer,
nós podemos aprová-la ou não. Podemos também responder ‘sim’ ou ‘não’ para alguma pergunta
que nos seja proposta, conforme nossa aprovação, de modo a podermos agir. Mas que fique claro:
quando respondemos ‘sim’ ou ‘não’, podemos fazer isso de acordo com o que nos tenha parecido
mais persuasivo, mas o faremos sem assentir de modo absoluto. A certeza nós não temos, mas, de
acordo com o caráter persuasivo das coisas, somos levados a agir.
De acordo com a segunda acepção do que seja a suspensão do assentimento, o sábio
guardaria o silêncio diante daquilo que a ele se apresenta. Carnéades buscaria, por meio dessa
distinção, afastar-se de uma outra corrente de pensamento cético, que vigorou na época
helenística, que defendia que a ejpochv implicaria a ajfasiva, ou seja, o silêncio415. Tal forma de
ceticismo, cujo maior expoente foi Pirro, natural de Élida, propunha como fim último a
ajtaraxiva, ou seja, a imperturbabilidade e até mesmo, segundo outras fontes, como o próprio
Cícero416, a ajpavqeia, isto é, a impassibilidade. Pirro experimentaria, diante da equivalência
absoluta entre aparências, que constituiria o mundo, uma indiferença absoluta diante da vida. A
respeito desse filósofo, foram preservadas interessantes anedotas que ilustram a impassibilidade

410
No passo 59 do livro II, Luculo dá-nos o termo grego que teria sido utilizado por Carnéades: ejpochv. Nessa
passagem, contudo, a tradução latina é adsensionis retentio. Cícero parece usar indistintamente as formas adsensio e
adsensus (cf. o mesmo tipo de oscilação entre adpetitio e adpetitus nos livros III, IV e V do De finibus).
411
Cf. Academica II, 104.
412
Omnino eum rei nulli adsentiri (Academica II, 104).
413
Se a respondendo sustineat, ut neque neget aliquid neque aiat (Academica II, 104). Seguimos a lição de Lévy
(1992, p. 269), que não se utiliza da emenda ut aut adprobet quid aut improbet proposta pelos editores modernos.
414
Cf. Lévy, 1992, p. 269, nota 80. Mais adiante, tentaremos contextualizar, apenas de modo panorâmico, o
pensamento neo-acadêmico em meio às diferentes formas do pensamento cético da Antigüidade.
415
Cf. Lévy, 1992, p. 269-270. Para uma discussão detalhada a respeito das relações entre o pensamento de Pirro e o
ceticismo da Nova Academia, veja-se a Tese de Bolzani Filho, R. Acadêmicos versus Pirrônicos. Tese –
FFLCH/USP, 2003.
416
Cf. Academica II, 130. Cícero jamais trata Pirro como uma autoridade com relação ao ceticismo. Não fala senão
de sua concepção moral. Em moral, ele é referido como um autor que considera todas as coisas como indiferentes,
com exceção da virtude e do vício. O pensamento moral de Pirro serve a Cícero nas refutações contra os estóicos. Cf.
De finibus III e IV em que o autor provoca Catão quando iguala o pensamento dos estóicos ao de Pirro.

149
segundo a qual ele vivia. Narra Diógenes Laércio (IX, 63) que, certa vez, estava caminhando com
Anaxarco e este caiu em um pântano. Pirro seguiu seu caminho impassível. O mesmo Diógenes
reporta (IX, 67) que, quando era submetido a procedimentos médicos dolorosos, como
cauterizações ou o uso de medicamentos corrosivos sobre feridas, mostrava-se impassível e não
contraía sequer as pálpebras. Costuma-se dizer que o contato que o filósofo de Élida travou com
sábios indianos, por ocasião de uma viagem em que acompanhou Alexandre ao oriente, teria
influenciado sua concepção de fim moral em termos de imperturbabilidade e impassibilidade.417
Carnéades, por sua parte, pretende apresentar um critério que fundamente as ações do homem na
vida cotidiana. Voltaremos a tratar, mais adiante, do pensamento de Pirro, quando faremos
comparações, ainda que de modo panorâmico, entre o ceticismo que ele defende, o ceticismo da
Nova Academia e o ceticismo inaugurado por Enesidemo e reformulado por Sexto Empírico.
Pois bem, no pensamento de Carneádes, mesmo o conhecimento está de certa forma
assegurado, apenas ele não terá o caráter de certeza absoluta, como no pensamento dogmático
dos estóicos e de Antíoco. Citamos Cícero:

“Estas coisas [que dissemos], se não vos fazemos aprová-las, sejam falsas, tudo bem;
odiosas, contudo, não são; nem, de fato, levamos embora a luz418, mas, aquilo mesmo
que vós dizeis ser percebido e compreendido, nós, se ao menos for persuasivo, dizemos
que ‘nos parece’”419.

O sábio neo-acadêmico, dessa forma, não está privado de nada: terá ele as mesmas
impressões que os sábios das demais escolas e poderá tomar decisões e agir. Apenas não terá a
certeza, vã, na opinião da Nova Academia, de que possui um conhecimento seguro e absoluto.420
Com relação a essa questão do conhecimento, resta deixar claro que, para os neo-
acadêmicos, a verdade existe de fato, mas nós, seres humanos, não temos acesso a ela. Tudo a
que temos acesso é aquilo que nos é mostrado, ou seja, as “aparições”. A partir do aspecto
(species) dessas, podemos considerá-las persuasivas ou não. Então, a questão da probabilitas diz
respeito, como já expusemos antes, à aparência dos uisa: elas podem nos parecer verdadeiras; é aí
417
Cf. Diógenes Laércio IX, 61; Lévy, 1997, p. 14.
418
Acusado de ser uma forma de ceticismo, o pensamento de Carnéades, de acordo com o filósofo de Ascalona,
lançaria tudo nas trevas, roubaria a luz das coisas.
419
Haec si uobis non probamus, sint falsa sane, inuidiosa certe non sunt, non enim lucem eripimus, sed ea qua uos
percipi comprehendique, eadem nos, si modo probabilia sint, uideri dicimus (Academica II, 105).
420
Cf. Academica II, 105-107.

150
que reside seu caráter persuasivo. O que não temos é um sinal (signum) pelo qual possamos
perceber e reconhecer a verdade de maneira absoluta.421 O sábio, conforme o concebe Carnéades,
poderá, então, tecer opiniões. No entanto, ele terá sempre consciência de que está opinando. Ele
saberá que aquilo em que ele assente (de modo não absoluto) não é compreendido e nem pode
ser, mas, por assim dizer, ele emprestará seu assentimento, o que garantirá suas ações422.
Faz-se oportuno, contudo, diante do que expusemos acerca do pensamento neo-acadêmico,
que nos remetamos a outras correntes do pensamento grego que também negam a possibilidade
de conhecimento. Dessa forma, poderemos compreender um pouco melhor como a filosofia de
Arcésilas e Carnéades estão inseridas no contexto filosófico helenístico, revelando suas
semelhanças com outras formas de ceticismo e os pontos em que divergem delas. Como, no
entanto, este está longe de ser o propósito central de nosso estudo, trataremos dessa questão
brevemente, atendo-nos apenas às características mais gerais dos três modos de ceticismo
helenístico.
O primeiro filósofo a organizar sistematicamente as inclinações à dúvida, que sempre
fizeram parte do pensamento filosófico, defendendo um posicionamento amplamente cético
diante do mundo, foi Pirro de Élida, que viveu, aproximadamente, de 360 a 250 a.C. Entretanto,
durante muito tempo, afirma Lévy (1997, p. 14), os estudiosos nutriram uma opinião um tanto
equivocada a respeito de Pirro, sobretudo por conta de uma confusão que se estabeleceu entre o
pensamento de Pirro e o do neopirronismo, filosofia que se desenvolveu no século I a.C., sob a
autoridade de Enesidemo, e que foi reformulada e propagada por Sexto Empírico, autor do século
I da era cristã.
Segundo a exposição de Lévy (p. 17), o texto mais importante para o conhecimento do
pensamento original de Pirro é uma citação de um discípulo seu, Tímon, reportada por Aristocles
de Messena, filósofo peripatético que teria vivido no século I a.C. Apresentamos aqui o referido
texto, traduzido da versão francesa de Lévy (o qual, é bom que se diga, adverte o leitor da
dificuldade da passagem e das discussões que elas geraram no meio acadêmico):

“Seu discípulo Tímon diz que aquele que quer ser feliz deve considerar os três pontos
seguintes: primeiramente, qual é a natureza das coisas; em seguida, qual deve ser nossa
disposição com respeito a elas; por fim, qual será o resultado para os que procedem

421
Cf. Academica II, 111.
422
Cf. Academica II, 148.

151
dessa forma. Com relação às coisas, ele diz que elas são, segundo Pirro, igualmente
indiferentes, instáveis e indeterminadas e que, conseqüentemente, as nossas sensações
e as nossas opiniões não são nem verdadeiras nem falsas. Por esta razão, ele diz que
não devemos nos fiar nelas, mas permanecer sem opinião, sem inclinações, sem
agitações (...) Para aqueles que estão em uma tal disposição, Tímon diz que resultará
primeiramente o silêncio, depois, a ausência de perturbação.”423

De acordo com Pirro, portanto, o mundo é constituído por aparências que se impõem da
mesma maneira sobre nós. Elas são igualmente indiferentes e o homem não pode decidir quais
delas sejam verdadeiras e quais sejam falsas. Na verdade, para alcançar a felicidade, o homem
deve, sabendo que assim é a natureza das coisas, adequar-se a essa condição de indiferença
absoluta e se tornar, ele também, indiferente. No plano teórico, ele deverá permanecer sem
opinião (ajdovxasto"). No plano das ações, ele deverá não ter inclinações, isto é, não preferir uma
coisa a outra, e não ter agitações, ou seja, não se abalar por coisa alguma.
O fim ético do pirronismo, aquilo que garantiria a felicidade do homem, seria a ajtaraxiva.
Algo que resultaria do silêncio, do abster-se de opinar, ou seja, do abster-se de formar juízo.
Muito do que sumariamente observamos no pensamento de Pirro é semelhante ao que
defendem os neo-acadêmicos. No que diz respeito a Arcésilas, sobretudo, as semelhanças são
gritantes. Para ambos, as coisas se apresentam de tal forma para o homem, que não podemos
decidir se são verdadeiras ou falsas, pois elas se impõem com o mesmo peso. Assim, para os dois,
no plano teórico, há a suspensão do juízo. Aqui cabe dizer, contudo, que a expressão ejpochv,
utilizada posteriormente pelos neopirrônicos, parece ter sido cunhada por Arcésilas, em sua
polêmica com os estóicos424. O conceito seria expresso por Pirro pelo termo ajdovxasto" apenas.
Com relação a Carnéades, entretanto, há muita diferença. Como vimos, este filósofo criara
um critério pelo qual podia escolher uma coisa em detrimento da outra. Para ele, as aparências
não se impõem de maneira igual, pois algumas nós consideramos mais parecidas com a verdade
e, por conta disso, as escolhemos.
Por fim, se os procedimentos teóricos pirrônico e neo-acadêmico têm alguma semelhança,
no campo moral são inteiramente distintos. Nem Arcésilas, nem Carnéades defendiam

423
Cf. Lévy, 1997, p. 17.
424
Cf. Reale, 1998, p. 423. O termo, na verdade, faz parte do vocabulário estóico. Consta que os neo-acadêmicos se
serviam de termos da filosofia estóica, com sentido subvertido, para refutar-lhes os dogmas.

152
positivamente algum fim moral. Tais filósofos apenas discutiam diferentes soluções para a
questão do finis. Carnéades, sobretudo, podia escolher uma em detrimento da outra, mas, para
ambos, a felicidade não se encontrava na ausência de perturbação e, o que é mais importante, a
suspensão do juízo não era meio para alcançá-la.
Além disso, deve-se notar que os filósofos acadêmicos que defenderam, de alguma forma, a
impossibilidade do conhecimento, fizeram isso fundamentando sua postura sempre no
pensamento de Platão. Para Arcésilas, por exemplo, a decisão de suspender o juízo diante da
dificuldade de distinguir o verdadeiro do falso é um procedimento que retoma e radicaliza o
pensamento socrático. Lévy (1997, p. 187) aponta, inclusive, elementos do pensamento de
Arcésilas que demonstram uma continuidade com a filosofia de Platão, mesmo onde ela é
dogmática, que nos levariam a afastá-lo ainda mais do pirronismo. Para Arcésilas, a suspensão do
juízo seria conseqüência de uma observação transcendente (ou seja, que considera uma instância
além do homem) que conceberia o homem como incapaz de apreender a verdade. O fato de as
coisas se mostrarem confusas e rodeadas de trevas, na concepção de Arcésilas, seria decorrência
da finitude do homem, do fato de sua vida ser breve, sua alma débil e seus sentidos
imperfeitos425. Para Pirro, pelo contrário, a equivalência absoluta entre todas as aparências seria
uma característica da própria natureza, como vimos no trecho citado da obra de Aristocles. De
qualquer forma, as semelhanças entre essas duas formas de ceticismo sempre foram sentidas e, já
na antigüidade, Tímon teria acusado Arcésilas de ter plagiado o pensamento de Pirro426.
Não obstante, alguns estudiosos modernos discutem427o real estatuto das posturas céticas de
Arcésilas e Carnéades. Há quem julgue que conceitos como a equivalência entre contrários, a
suspensão do juízo e a “aparição persuasiva” não têm valor positivo, isto é, não constituíram uma
doutrina própria desses filósofos acadêmicos, mas seriam apenas argumentos, utilizados
dialeticamente, na intensa controvérsia que ambos mantiveram com os estóicos. De fato, muitas
das expressões utilizadas pelos neo-acadêmicos provêm do jargão estóico e os conceitos que eles
expressam no pensamento neo-acadêmico parecem ser reformulações de conceitos estóicos
utilizados para levar estes últimos à contradição e ao silêncio. Sob esse ponto de vista, os
pensamentos de Arcésilas e Carnéades seriam exclusivamente negativos e estariam, assim, em

425
Cf. Academica I, 44.
426
Cf. Lévy, 1997, p. 184.
427
Cf. Lévy, 1997, p. 190, 192, 199 e 200 e Reale, 1998, p. 424-428.

153
perfeita harmonia com o procedimento dialético socrático de apontar as contradições no discurso
do interlocutor, mesmo sem alcançar, depois, qualquer certeza.
No século I a.C.428, contudo, um filósofo da tradição acadêmica, Enesidemo, de cuja vida
temos poucas informações, reprovou veementemente a postura dos neo-acadêmicos, acusando o
pensamento de filósofos como Carnéades e Fílon de ser tão dogmático quanto o dos estóicos.
Para ele, construções teóricas como as “aparições persuasivas” haviam concedido muito terreno
aos estóicos e defendê-las seria, em última instância, o mesmo que aceitar a noção de katalhvyi",
ou compreensão429.
Dessa forma, buscando reformular o pensamento cético, que teria sido corrompido pelos
acadêmicos mais recentes, Enesidemo busca em outros filósofos, alheios à tradição platônica, a
autoridade para fundamentar seu pensamento. São eles Pirro430 e Heráclito. Foi Enesidemo quem
por primeiro expôs a célebre lista de tropos (posteriormente retomada por Sexto Empírico) que
fundamentaria a suspensão radical do assentimento. No plano moral, Enesidemo retoma Pirro e
considera que o fim último para o homem é a ajtaraxiva. Diferentemente de Pirro, contudo, e,
neste ponto mostrando uma preocupação talvez derivada da Academia, estabelece modos de o
sábio se guiar na vida cotidiana. Sobre esses modos, falaremos em seguida, pois só os
conhecemos graças a Sexto Empírico.
Autor do século I d.C., Sexto reformulou algumas das idéias de Enesidemo431, mas
continuou a se considerar um herdeiro do pensamento de Pirro. A obra filosófica de Sexto é, de
fato, não só importante para o conhecimento do pensamento pirrônico, como também
fundamental para a compreensão dos movimentos céticos da Academia, pois o autor faz questão
de distinguir sempre esses dois tipos de ceticismo. É sobretudo oportuno o comentário que faz a
respeito de Arcésilas. Sexto começa por afirmar432 que a postura teórica do acadêmico é quase
que idêntica à que ele defende, pois aquele defenderia também a suspensão do juízo. No entanto,

428
Lévy (1997, p. 216) informa-nos a respeito de uma obra de Enesidemo endereçada a um amigo de Cícero, Lúcio
Élio Tuberão, por volta do ano 80 a.C.
429
Lévy, 1997, p. 217.
430
Neste ponto, é interessante observar que, se alguns estudiosos argumentam que o pensamento de Pirro teve
influência sobre Arcésilas (Lévy, 1997, p. 184), o filósofo de Élida jamais é referido como autoridade por autores
acadêmicos (Cícero, por exemplo). As autoridades céticas para a Nova Academia são Platão, Sócrates e Demócrito,
como vimos mais acima.
431
Sexto diferencia, por exemplo, o ceticismo que defende da filosofia de Heráclito (Outlines of Pyrrhonism I, 210-
212). Advertimos o leitor de que, por questões práticas apenas, reunimos os pensamentos de Enesidemo e de Sexto
sob uma mesma categoria, pois as críticas que este faz àquele demonstram o quanto essses autores, distantes
temporalmente, distinguem-se também quanto às idéias.
432
Cf. Outlines of Pyrrhonism I, 232.

154
Sexto introduz, em seguida, de forma por vezes irônica, uma série de dúvidas quanto ao fato de
tal postura ser verdadeira, ou apenas um procedimento argumentativo433. Quanto ao fim moral,
também o pensamento cético seria diferente do de Arcésilas. Este defenderia como fim, nas
palavras de Sexto, a suspensão do assentimento, e Sexto, a imperturbabilidade.
No que concerne às ações do dia-a-dia, as idéias de Sexto, que já haviam sido defendidas
por Enesidemo434, afastam-se do antigo pirronismo. Quanto a isso, é interessante que vejamos
como argumenta o próprio filósofo:

“Além disso, no que diz respeito ao fim (tevlo"), nós diferimos da Nova Academia,
pois, enquanto os homens que afirmam serem regidos por esta doutrina servem-se do
persuasivo (tw/' piqanw')/ para guiar suas vidas, nós vivemos de maneira não dogmática,
seguindo as leis, os costumes e os afetos naturais”435.

Como o trecho deve ter tornado evidente, Sexto condena o “persuasivo” como critério para
tomar decisões na vida prática, julgando tal conceito como um elemento dogmático. Em vez
disso, pretende que o homem deve reger sua vida pelas instituições já estabelecidas e por certas
indicações da nossa própria natureza, os afetos, como a fome, a sede, etc.
É o bastante com relação às outras correntes helenísticas de tendência cética. Voltemos
nossa atenção ao pensamento neo-acadêmico, de que Cícero é um expoente, e ao método de
investigação que tal pensamento motiva.
Podemos, agora, ter uma idéia um pouco mais clara a respeito do tipo de conhecimento a
que terá acesso o filósofo neo-acadêmico. A tudo que lhe ocorrer, quer sejam “aparições”
recebidas pelos sentidos; quer sejam proposições enunciadas sob a forma de raciocínios por
conclusão, quer sejam opiniões, quer sejam, enfim, afirmações de qualquer natureza, o sábio,
observando o aspecto daquilo que lhe vem ao encontro, deverá se esforçar por tentar encontrar
tudo o que possa vedar o caráter persuasivo do que chega até ele. Em outras palavras, o sábio
deverá encontrar argumentos contrários àquilo que se lhe apresenta, num primeiro instante, como
persuasivo, para se resguardar de tomar decisões que se baseiem em aparições falsas.

433
Eis o que dá origem às discussões mantidas pelos estudiosos modernos sobre o pensamento dos neo-acadêmicos,
a que já nos referimos.
434
Lévy, 1997, 219.
435
Outlines of Pyrrhonism I, 231. Traduzimos a partir da versão inglesa de Bury, tradutor da edição Loeb.

155
A discussão nos trouxe de volta à questão do método utilizado pelos filósofos seguidores
dessa escola em suas pesquisas: ora, como procederá um filósofo neo-acadêmico em suas
investigações filosóficas? Uma boa maneira de responder a essa pergunta é, talvez, observar
como procede Cícero, que, como seu mestre Fílon, defende as concepções de Carnéades e
Arcésilas, baluartes da Nova Academia. Citamos:

“Este modo de proceder [ratio] em filosofia, o de discorrer contra tudo e de coisa


alguma decidir abertamente, proveniente de Sócrates, retomado por Arcésilas,
confirmado por Carnéades, vigorou até a nossa geração, o qual, agora, entendo estar
quase privado de discípulos na própria Grécia”436.

Ora, Cícero foi discípulo do próprio Fílon437 em Roma, quando o grego lá se refugiara, no
ano de 88 a.C., depois de ter deixado Atenas por conta do cerco de Mitridates à cidade. Já
mencionamos, quando tratamos da Academica, o fato de Fílon ter se mantido fiel aos
ensinamentos de seus antecessores438. Antíoco, discípulo de Fílon e mestre de Cícero, no entanto,
abandonou os procedimentos acadêmicos. Eis aí um indício do esvaziamento que sofria a
Academia nos tempos de Cícero e que vimos referido na citação.
Quanto a Cícero, fiel à Academia, considerando que o único conhecimento possível é o
gerado pela aprovação do que se mostre persuasivo e que não tenha contra si nada que o impeça
de ser aprovado, em obras como o De finibus, procederá da seguinte forma: com relação a cada
questão tratada, reunirá argumentos em favor de cada uma das partes. Tal procedimento que
podemos observar na obra que estudamos, estende-se também a outros textos. Vejamos uma
declaração tomada do De officiis:

“O que há, então, que me impeça de seguir aquilo que a mim parece persuasivo e
desaprovar o contrário e, evitando a arrogância de afirmar, fugir da temeridade, que
muitíssimo diverge da sabedoria? Pelo contrário, os nossos [os neo-acadêmicos]

436
Haec in philosophia ratio contra omnia disserendi nullamque rem aperte iudicandi profecta ab Socrate, repetita
ab Arcesila, confirmata a Carneade usque ad nostram uiguit aetatem; quam nunc prope modum orbam esse in ipsa
Graecia intellego (De natura deorum I, 11).
437
Cf. Tusculanae II, 9.
438
E como Cícero, por sua vez, toma a defesa do filósofo de Larissa com relação à impossibilidade de conhecimento.

156
discutem acerca de tudo, porque aquilo que de fato é o persuasivo não poderia mostrar
sua luz, se a partir de ambas as partes das causas não fosse feita a contenda”439.

O procedimento no De finibus, contudo, é um pouco diferente. Aqui, Cícero, em três


diálogos, discute sob três pontos de vista a questão do bem supremo, “de modo que se pudesse
compreender o que disse cada um dos filósofos e o que foi dito contra cada um deles”. Dessa
forma, cada diálogo separadamente funciona como uma disputatio in utramque partem. A obra,
como um todo, busca saber qual é o finis, o bem supremo, mais próximo da verdade, ou, em
outras palavras, qual o bem supremo que tem maior caráter persuasivo e, por isso, deve ser
aprovado e buscado pelo sábio (ainda que esse tenha consciência de que o seguirá na sua vida,
mesmo sem considerá-lo absolutamente seguro). Cada um dos diálogos tenta responder a uma
questão. No primeiro, a questão poderia ser: o prazer de Epicuro é o bem supremo? O livro I
reunirá os argumentos que levarão o sábio a responder ‘sim’; o livro II, os argumentos que o
farão negar a concepção de bem supremo de Epicuro. O mesmo se dará, analogamente, nos dois
outros diálogos.
Por isso, ao encerrar seu discurso no livro V do De finibus, a personagem Pisão pode
perguntar ao jovem Lúcio Cícero se ele aprovou as idéias que acabou de ouvir. Eis como se dá o
diálogo. Diz Pisão:

“E então, concedes isso ao jovem? Ou preferes que aprenda coisas que, depois de ter
perfeitamente aprendido, ele não tenha nenhum conhecimento?” E Cícero responde:
“Eu, de minha parte, dou-lhe permissão. Mas não te lembras de que me é lícito aprovar
essas coisas que foram ditas por ti? Pois quem pode não aprovar aquilo que lhe pareça
persuasivo (probabile)?”440.

É evidente que Pisão, defensor das idéias de Antíoco, ironiza o pensamento filoniano de
Cícero. É a mesma discussão que vimos há pouco nos Livros Acadêmicos. A resposta de Cícero é

439
Quid est igitur, quod me impediat ea, quae probabilia mihi uideantur, sequi, quae contra, improbare atque
adfirmandi arrogantia uitantem fugere temeritatem, quae a sapientia dissidet plurimum? Contra autem omnia
disputatur a nostris, quod hoc ipsum probabile elucere non posset, nisi ex utraque parte causarum esset facta
contentio (De officiis II, 8). Guardemos na lembrança que Cícero refere-se à discussão filosófica, conforme a
concebe nesse trecho, comparando-a a uma contentio. A discussão que daí surge será tratada mais adiante.
440
Quid ergo? Inquit; dasne adulescenti ueniam? An eum discere ea mauis quae cum plane perdidicerit nihil sciat? /
Ergo uero isti, inquam, permitto; sed nonne meministi licere mihi ista probare quae sunt a te dicta? Quis enim potest
ea quae probabilia uideantur ei non probare? (De finibus V, 76).

157
oportuna, pois corrige a concepção que Antíoco tem da nova Academia: Cícero pode aprovar
tudo o que lhe pareça persuasivo e isso basta, no contexto do De finibus, para que possa chegar a
uma concepção do que seja o finis moral e, com isso, regular sua conduta por meio de uma
justificativa razoável.

III – O método ciceroniano e o diálogo


A discussão acerca do método de investigação adotado ao longo do De finibus, que consiste
na busca do ueri simile ou do probabile por meio do confronto entre discursos contraditórios,
engendra uma nova questão. Que relação poderia haver entre o método e a forma dialógica sob a
qual o autor concebeu cada uma das discussões particulares? A resposta a essa indagação nos
conduz novamente aos diálogos de Platão.
Há, de fato, na obra do fundador da Academia, diversos momentos em que a personagem
que mais freqüentemente tem a função de protagonista, Sócrates, reflete sobre seu modo peculiar
de proceder em uma discussão. Isso acontece – e não são poucos os casos – quando essa
personagem se vê diante de alguém que utiliza uma modalidade de discurso diferente da sua e
que preza um tipo de conhecimento diferente daquele que a personagem de Sócrates defende e
busca. O filósofo, nessas ocasiões representadas por Platão, confronta o seu modo de discutir e de
construir conhecimento, com os discursos utilizados pelo poeta, por exemplo, pelo orador ou pelo
sofista.
Pois bem, em busca de entender o modo como se relacionam entre si, no De finibus, método
de investigação e expressão em forma de diálogo, pareceu-nos pertinente lançar mão de algumas
passagens do Górgias de Platão. Interessou-nos especialmente os momentos desse diálogo em
que Sócrates contrapõe seu método, sua modalidade de discurso e o gênero de conhecimento que
almeja ao modo de expressão próprio da retórica sofística, representado, nas passagens
selecionadas, pelas personagens de Górgias e de Polo.
Em 457c, Sócrates, que extraíra de Górgias informações a respeito do tipo de arte exercida
pelo pensador de Leontinos, julga ter reconhecido uma incoerência naquilo que afirmara seu
interlocutor. Receoso com relação à reação de Górgias, Sócrates volta-se para ele e diz:

“Creio que também tu, Górgias, és experiente em inúmeras discussões e já observaste


nelas o seguinte: não é fácil que os homens consigam encerrar seus encontros depois

158
de terem definido entre si o assunto a respeito do qual intentam dialogar, aprendendo e
ensinando mutuamente; pelo contrário, se houver controvérsia em algum ponto e um
deles disser que o outro não diz de forma correta ou clara, eles se enfurecem e
presumem que um discute com outro por malevolência, almejando antes a vitória do
que investigar o que propuseram discutir; alguns inclusive se separam depois de darem
cabo aos mais vergonhosos atos, e, em meio a ultrajes, falam e escutam um do outro
coisas tais que até os ali presentes se enervam consigo mesmos, porque acharam digno
ouvir homens como esses. Em vista de que digo isso? Porque o que me dizes agora não
parece conforme nem consoante ao que primeiramente disseste sobre a retórica; temo
te refutar de modo a supores que eu, almejando a vitória, não fale para esclarecer o
assunto em questão, mas para te atacar (...) Mas que tipo de homem sou eu? Aquele
que se compraz em ser refutado quando não digo a verdade, e se compraz em refutar
quando alguém não diz a verdade, e deveras aquele que não menos se compraz em ser
refutado do que refutar”441

A passagem citada apresenta uma interessante reflexão da personagem de Sócrates a


respeito do seu método de discussão. Antes de proceder à refutação propriamente dita442, o
filósofo mostra o que motiva a refutação, indica qual é sua pertinência, a que ela visa e, fazendo
isso, ele traça, por outro lado, uma espécie de regra de conduta da discussão filosófica. Na
perspectiva da personagem, a refutação é necessária para dirimir a inconsistência que ela julga
haver na posição defendida por Górgias a respeito da arte retórica. Ao apontar as contradições no
discurso de seu interlocutor, Sócrates não estaria interessado em vencer a discussão: não é isso,
diz ele, o fundamental. Ele próprio gostaria de ser refutado, caso um interlocutor seu
reconhecesse que ele sustenta opiniões que não concertam umas com as outras. A meta é alcançar
a verdade. Livrar o discurso e o espírito das contradições.443 Numa discussão desse tipo, pensa
Sócrates, os interlocutores devem estar de acordo a respeito do objeto da discussão, para que
possam, numa sorte de cooperação, ensinar e aprender, avançar em direção à verdade. Sendo

441
Platão, Górgias, 457c5-458a5. Tradução de Daniel R.N. Lopes, conforme se apresenta em O filósofo e o lobo.
Filosofia e retórica no Górgias de Platão. Tese de Doutorado. IEL/UNICAMP, 2008.
442
Trata-se de um dos pontos fundamentais do método socrático, conforme é representado por Platão, o e[legco"; o
procedimento é referido, em nossa passagem, por meio de formas como dielevgcein (457e4), ejlegxavntwn (458a4 e
5) e ejlegcqevntwn (458a3 e 5). Esse procedimento, que assume aspectos distintos em diferentes obras de Platão e
que, mesmo no Górgias, apresenta nuances diferentes, é analisado por inúmeros estudiosos. Atemo-nos sobretudo à
discussão apresentada por Charles Kahn (cf. Kahn, 1996, pp. 133-142).
443
Cf. 458a6-8.

159
assim, não cabem aqui ultrajes e exasperações. Pois a discussão é uma obra comum e a
controvérsia deve permanecer no âmbito do discurso, das opiniões a respeito daquilo que se
discute.
Estamos longe de julgar que as declarações de Sócrates sejam límpidas e cristalinas
representações de um posicionamento de Platão. A visão do diálogo platônico como obra
mimética, que apresentamos no capítulo anterior, afasta-nos desse tipo de apreciação. Além do
mais, o projeto de uma cooperação entre interlocutores, defendido por Sócrates na passagem
citada, não parece encontrar êxito ao longo do Górgias. Mas esse não é o ponto em questão.
Importa pensar a maneira como tais declarações refletem sobre o gênero dialógico. De fato, na
obra de Cícero que estudamos, autor que, como vimos, insere-se na tradição acadêmica, podemos
perceber inúmeros ecos das afirmações feitas por Sócrates no texto citado.
No primeiro diálogo do De finibus, que trata, conforme dissemos, da filosofia moral de
Epicuro, ao introduzir, no proêmio, o diálogo em que, representando-se como uma personagem,
ele vai discutir com Torquato a respeito da doutrina do prazer, Cícero diz:

“Para começarmos pelo mais fácil, que se apresente, em primeiro lugar, o sistema de
Epicuro, que é o mais conhecido da grande maioria; tu perceberás que nós o
expusemos de um modo tal, que nem mesmo aqueles que aprovam tais ensinamentos
costumam desenvolvê-lo de forma mais acurada. Pois é a verdade que queremos
alcançar e não refutar alguém tal qual um adversário”444.

Antes de permitir à personagem de seu interlocutor, Torquato, a exposição da doutrina de


Epicuro, Cícero se defende, de antemão, de possíveis críticas a seu procedimento. O autor é
avesso às idéias do mestre do Jardim, algo que, dentre outras passagens, o início do livro III do
De finibus deixa bem claro.445 Mas, segundo afirma, pretende apresentar uma exposição acurada
da teoria do prazer446, para que ao epicureu seja dada a oportunidade de expressar aquilo que
realmente pensa. A expressão tamquam aduersarium aliquem conuincere nos remete claramente

444
Vt autem a facillimis ordiamur, prima ueniat in medium Epicuri ratio, quae plerisque notissima est. Quam a
nobis sic intelleges expositam ut ab ipsis qui eam disciplinam probant non soleat accuratius explicari; uerum enim
inuenire uolumus, non tamquam aduersarium aliquem conuincere (De finibus I, 13).
445
Voluptatem quidem (...) concessuram arbitror, conuictam superiore libro, dignitati (De finibus, III, 1). Cf. ainda o
início dos livros De re publica.
446
Na verdade, ele pretende expor a doutrina de modo mais acurado do que costumam os epicureus! Sobre o caráter
especial da personagem de Torquato e de sua exposição, discutiremos mais adiante.

160
ao contexto dos discursos públicos, aos debates entre advogados em um processo jurídico, por
exemplo. Conuincere é rebater a argumentação do oponente e alcançar a vitória na causa. Ora, no
trecho do Górgias de Platão, Sócrates busca se isentar justamente de agir como quem almeja
apenas a vitória numa discussão447. Assim como fizera a personagem representada por Platão, o
prefácio da obra de Cícero estabelece uma distinção entre o procedimento do filósofo, que busca
a verdade, daquele utilizado pelo orador (ou pelo sofista), que busca antes a vitória.448
Um pouco mais adiante, ainda no De finibus, mas agora na parte dialogada, há outro trecho
que parece evocar as idéias sustentadas por Sócrates na passagem tomada do Górgias.449
Citamos:

“De modo algum, Triário” – diz a personagem de Cícero – “pode ocorrer que não digas
o que não aprovas naquele de quem discordas. Ora, o que me impediria de ser
epicureu, se aprovasse o que ele dizia? Ainda mais que aprofundar-se em tais coisas
seria divertido. Por isso, as críticas dos que discordam entre si não devem ser
censuradas; as ofensas, os ultrajes, assim como os arrebatamentos, as contendas e
altercações encarniçadas em uma discussão costumam me parecer indignas da
filosofia.” E Torquato responde: “concordo inteiramente, pois não se pode bem discutir
sem críticas, nem com iracúndia ou obstinação discutir adequadamente”450

A personagem de Cícero estabelece, assim como fizera o Sócrates do Górgias, um elemento


central do método de investigação e uma espécie de código de conduta da conversação filosófica.

447
Cf. filonikou'nta" (Górgias, 457d4). Com isso, Sócrates se afasta da oratória pública preceituada pelos retores e
sofistas. Por outro lado, mesmo que não expressamente, indica a distância que existe entre o seu tipo de discussão e
aquela que é tida entre os erísticos, como são representados por Platão no Eutidemo. Cf., dentre outras passagens,
272b9-10, 275d3-4 e 275e3-6.
448
Em Cícero, como veremos mais adiante, a distinção, que em alguns momentos é proclamada, em outros parece
não se aplicar. Mas veremos que também no Górgias as coisas não são tão simples assim.
449
É difícil defender com segurança que Cícero esteja dialogando com o Górgias platônico, embora alguns indícios,
sobretudo colhidos do livro II, permitam-nos pensar que pode bem ser o caso. Afirmar que ele conhecia bem a obra,
parece-nos ser algo bastante aceitável, visto que no De oratore (I, 47) ele faz a personagem de Crasso dizer que,
tendo lido atentamente o Górgias de Platão (diligentius legi Gorgiam), admirava-se de que, ridicularizando os
oradores, Platão (sic) parecia se servir de uma eloqüência extrema (ipse esse orator summus uidebatur). Seja como
for, é difícil também não admitir que as idéias expressas nas passagens que selecionamos do Górgias e do De finibus
guardam uma estreita semelhança.
450
“Fieri”, inquam, “Triari, nullo pacto potest ut non dicas quid non probes eius a quo dissentias. Quid enim me
prohiberet Epicureum esse, si probarem quae ille diceret, cum praesertim illa perdiscere ludus esset? Quam ob rem
dissentientium inter se reprehensiones non sunt uituperandae: maledicta, contumeliae, tum iracundiae contentiones
concertationesque in disputando pertinaces indignae philosophia mihi uideri solent.” Tum Torquatus: “Prorsus”,
inquit, “assentior; neque enim disputari sine reprehensione, nec cum iracundia aut pertinacia recte disputari
potest” (De finibus I, 27-28).

161
Em primeiro lugar, havendo dissensão entre aqueles que discutem, os pontos de discordância
devem ser esclarecidos. A personagem de Cícero estabelece uma dicotomia entre dois termos de
sentido bem próximo: uituperatio e reprehensio451: a reprehensio, nessa passagem, designa antes
a crítica ao pensamento, às idéias apresentadas pelo interlocutor, que, se discordantes daquilo que
sustenta o outro interlocutor, devem ser refutadas. Esse tipo de procedimento, em filosofia, não é
merecedor de uma uituperatio, isto é, não é criticável, ou repreensível do ponto de vista do mos
da discussão, do código que garante o seu bom desenvolvimento, que é fruto de uma obra
comum.
Tudo estaria muito claro e seria aceito sem maiores problemas, não fosse o contexto em que
se insere a declaração de Cícero. Na verdade, a defesa de uma discussão que se afaste dos ataques
pessoais, sobretudo dos ultrajes e das difamações, aparece logo depois do tratamento introdutório,
feito pela personagem que representa o autor, do pensamento e da pessoa do mestre do Jardim. A
personagem acabara de tecer duras críticas a Epicuro, e nem todas se concentravam
exclusivamente no terreno das idéias. Epicuro fora acusado de plágio. Na física, por exemplo, ele
afirmaria o mesmo que Demócrito (cf. De finius I, 17) e, no entanto, em vez de louvar aquele que
é seu modelo, Epicuro o detrataria (cf. I, 21). Em I, 26, a conhecida doutrina epicurista que prega
a negação da educação tradicional transforma-se numa acusação ao próprio filósofo, que seria
privado de instrução (eruditio), como observa Torquato, descontente, em I, 26.
Vejamos, entretanto, antes de avançarmos temerariamente qualquer conclusão, mais alguns
pontos de contato entre o Górgias e o De finibus. Há, de fato, passagens dessas obras que
apontam de modo ainda mais contundente a diferença que poderia haver entre o procedimento
adotado em uma discussão filosófica e aquele de se servem os participantes de um debate
jurídico, por exemplo.

451
Interessante notar que a dicotomia apontada entre uituperatio e reprehensio só é de fato aplicada nesta passagem
em que a personagem defende o método. Charles Kahn aponta certo aspecto do elenchus socrático que pode nos
ajudar a compreender essa tensão entre a crítica à argumentação e a repreensão moral: para ele (cf. Kahn, 1996, p.
95-96), a refutação socrática comporta nitidamente não apenas um teste a respeito das teses defendidas por um
interlocutor seu, mas também um teste acerca da própria pessoa daquele que defende essas teses. Esse aspecto da
refutação, que poderíamos chamar ad hominem, além do mais, não está de modo algum ausente do Górgias (cf.
1996, pp. 133-137). Pois bem, se lermos atentamente o texto de Cícero, podemos sustentar que o estabelecimento do
método de investigação e da necessidade da refutação em casos de controvérsia não exclui completamente os
argumentos ad hominem. A expressão vaga quid non probes eius a quo dissentias não deixa claro se a discordância
é, afinal, apenas quanto às idéias, ou se é também quanto ao homem. Por outro lado, que Cícero se serve
abundantemente de argumentos ad hominem (como já fazia o Sócrates platônico) é algo evidente. A questão, no que
diz respeito a Cícero, deve reaparecer em nosso estudo. Quanto à análise desse tipo de estratégia no Górgias,
remetemos o leitor à Tese de Daniel Lopes (já citada), em que o autor lida com a questão fundamentado em vasta
bibliografia crítica.

162
No Górgias, a partir de 470d5, Polo, personagem que representa um seguidor de Górgias,
trata de um tal Arquelau, soberano na Macedônia que teria ascendido ao poder de forma injusta.
Polo pretende que Arquelau é feliz, algo que Sócrates nega. Não é nosso intuito aprofundar a
questão moral que está aí implicada. Nossa discussão é outra. Polo, após narrar os eventos que
levaram Arquelau ao poder na Macedônia, pergunta a Sócrates se há algum dentre os atenienses,
o próprio filósofo incluído, que preferiria ser qualquer outro macedônio a ser o injusto e poderoso
Arquelau. A resposta de Sócrates é oportuna:

“No começo da discussão, Polo, eu te elogiei porque me pareces ter sido bem educado
na retórica, porém ter descuidado do diálogo”. E mais adiante: “venturoso homem,
tentas me refutar retoricamente, como quem presume refutar os outros nos tribunais.
Com efeito, nestes lugares os homens crêem refutar uns aos outros quando apresentam,
aos discursos que proferem, grande número de testemunhas de boa reputação, ao passo
que o contra-argumentador apresenta apenas uma ou mesmo nenhuma. Essa refutação
não tem mérito perante a verdade, pois pode acontecer de várias pessoas, que pareçam
ser alguma coisa, prestarem contra alguém falso testemunho. E no presente momento,
concordarão plenamente contigo quase todos os atenienses e estrangeiros (...) Todavia,
eu, sendo um só, contigo não concordo, pois não me constranges a isso, embora te
empenhes, apresentando contra mim falsas testemunhas em profusão, para expulsar-me
do meu patrimônio e da verdade. Mas se eu não te apresentar, sendo tu apenas um,
como testemunha concorde ao que digo, não terei chegado, julgo eu, a nenhuma
conclusão digna de menção sobre o que versa a nossa discussão”452.

Dois procedimentos de refutação são claramente contrapostos. De um lado está aquele que,
segundo Sócrates, Polo estaria utilizando. Ele é dito retórico (cf. rJhtorikw'"... ejlevgcein, 471e1):
é o procedimento utilizado corriqueiramente dos tribunais. Querendo demonstrar que o rei
Arquelau era feliz, mesmo após ter cometido injustiça, Polo chama como testemunhas todos os
atenienses. Para Sócrates, isso é semelhante ao que fazem os oradores no tribunais, quando
pretendem bater o seu oponente por meio da quantidade de testemunhas de grande reputação que
reúnem a favor de sua causa. Mas esse tipo de refutação não diria respeito à verdade. A reputação
das testemunhas, nesse caso, não garante que elas estejam do lado da verdade. Haveria,

452
Górgias, 471d2-472c1. Tradução de Daniel, R.N. Lopes, mencionada acima.

163
entretanto, um procedimento de discussão cujo avanço e possível êxito dependeria da
concordância das partes que discutem (cf. oJmologou'nta, 472b7). Apenas esse tipo de
procedimento, em que as partes, sem o constrangimento de nada que fosse externo, chegassem a
concordar a respeito daquilo que dizem, teria alguma relação com a verdade e com o progresso da
discussão que fora estabelecida. O trecho final da fala de Sócrates traz inclusive uma imagem
incisiva, que é do âmbito dos tribunais, para ilustrar a posição que defende. Ora, se nos tribunais
um sujeito pode perder os seus bens, caso sua causa seja batida por um orador que se sirva do
procedimento descrito anteriormente, no caso da discussão que propõe Sócrates, as testemunhas,
inúmeras que sejam, não conseguirão lhe privar de seu patrimônio, daquilo que ele julga ser a
verdade, a não ser (inferimos) que consiga apontar uma contradição em seu lovgo" e assim refutá-
lo adequadamente. A discussão só avança, e talvez chegue a um termo, mediante o ato voluntário
dos interlocutores, quando, por moto próprio, concordam a respeito do ponto controverso.
O segundo livro do De finibus é, sem dúvida alguma, a porção em que se encontra a mais
importante refutação do tratado: a refutação da filosofia moral de Epicuro. Do ponto de vista da
organização geral da obra, terminado o livro II, a doutrina do prazer deverá ser considerada
completamente rechaçada. Pois bem, depois de encerrado o discurso de Torquato (que constitui
grande parte do livro I), a personagem de Cícero toma a palavra para contra-argumentar. É
notável, para a nossa discussão, que sua fala se desenvolva à sombra de nomes como os de
Górgias, de Sócrates, de Platão e de Arcésilas.
O refutador, que fala para dois jovens, exime-se da pretensão de apresentar uma schola453.
Não é, de fato, o procedimento que a personagem julga o mais adequado em filosofia. Jamais
teria sido utilizado por Sócrates, o parens philosophiae. Na perspectiva da personagem, é um
procedimento que surgiu entre os denominados sofistas. Era, notadamente, o mos de Górgias,
que, diante de uma audiência, exortava seus ouvintes a que lhe propusessem uma quaestio, isto é,
pedia “que alguém lhe dissesse a respeito de que assunto gostaria de ouvir”454. Ora é justamente
esse tipo de situação que é representada no início do Górgias de Platão e que permite que a
personagem de Sócrates, chegando atrasada para a epideixis do grande retor, proponha a pergunta
a respeito da técnica do pensador de Leontinos. No De finibus, lemos: “Mas, tanto esse que
mencionei quanto os demais sofistas, como se pode perceber a partir de Platão, vemos terem suas

453
Quanto a essa modalidade do discurso filosófico, veja-se nota ao livro II.
454
Dicere qua de re quis uellet audire (De finibus II, 1).

164
pretensões frustradas por Sócrates”455. A schola, portanto, relaciona-se ao sofista Górgias. Esse
procedimento, condenável, fora, no entanto, informa-nos a personagem que representa o autor,
retomado por Arcésilas, com certa alteração.456 O acadêmico não se dispunha a responder
qualquer pergunta, mas, deixando que seu interlocutor emitisse uma opinião (cf. sed ipsi dicerent
quid sentirent, II, 2), ele contra-argumentava (cf. ille contra, II, 2).
O método atribuído a Sócrates, por outro lado, consistiria em arrancar, por meio de
perguntas, as opiniões de seus interlocutores e discutir, caso lhe parecesse adequado, a respeito
daquilo que eles lhe haviam respondido: is enim percontando atque interrogando elicere solebat
eorum opiniones quibuscum disserebat, ut ad ea quae ii respondissent si quid uideretur diceret
(De finibus II, 2). O procedimento socrático é contrastado com aquilo que ocorreria, de modo
geral, nas escolas de filosofia do tempo de Cícero. Segundo a personagem que o representa, em
sua época predominava a exposição filosófica em forma de monólogo, ainda que suscitada por
uma questão: “entre os demais filósofos, porém, quem pergunta algo, cala-se em seguida; o que
agora se dá, é certo, até mesmo na Academia”457
Apresentados esses diferentes gêneros de discussão, a personagem comenta de modo
surpreendente a maneira como procedera Torquato em sua exposição, em que, como sabemos, o
patrono do epicurismo se serviu de um longo discurso: “Quanto a nós, agimos de modo mais
vantajoso; pois não apenas Torquato disse o que pensava, mas também as razões por que assim
pensava”458.
Ora, podemos recordar algumas passagens do Górgias de Platão em que um importante
contraponto é feito entre o lovgo" do filósofo e o do orador no que diz respeito à extensão. Trata-
se da célebre distinção entre a braculogiva e a makrologiva. Embora o elemento não seja decisivo
para diferenciar as duas modalidades de discurso, ele aparece, ainda assim, como um importante
traço distintivo, visto que, ordinariamente, cada uma dessas modalidades (retórica e investigação
sobre a verdade) se desenvolveria de modo diferente no que diz respeito ao tempo e à posse da
palavra na discussão. Assim, em 449b, eis como transcorre a conversa entre Sócrates e Górgias:
455
Sed et illum quem nominaui et ceteros sophistas, ut e Platone intellegi potest, lusos uidemus a Socrate (De finibus
II, 2). Gostaríamos de sugerir que há aqui um aceno ao Górgias de Platão. Entretanto, na falta, por enquanto, de
indícios mais concretos, seguimos apontando ao menos a semelhança entre as argumentações de uma e outra obra.
Analisar mais de perto a relação entre o De finibus e o Górgias é uma tarefa que reservamos para o futuro.
456
Audax negotium, dicerem impudens, nisi hoc institutum postea translatum ad philosophos nostros esset (De
finibus II, 1).
457
Apud ceteros autem philosophos qui quaesiuit aliquid tacet; quod quidem iam fit etiam in Academia (De finibus
II, 2).
458
Nos commodius agimus; non enim solum Torquatus dixit quid sentiret, sed etiam cur (De finibus II, 3).

165
“Porventura desejarias, Górgias, assim como agora dialogamos, terminar a conversa
um interrogando e o outro respondendo, e esses discursos extensos, como Polo
principiou a fazê-lo, deixá-los para outra ocasião?” E Górgias, mais adiante: “Há certas
respostas, Sócrates, que nos obrigam a elaborar longos discursos. Todavia, tentarei
responder o mais breve possível. Ademais, uma das coisas que professo é que ninguém
diz as mesmas coisas da maneira mais breve do que eu”. E, novamente, diz Sócrates:
“Eis o que é preciso, Górgias, e exibi-me justamente isto, um discurso breve; um
discurso longo, deixemos para outra ocasião!”459

É evidentemente necessário contextualizar essa troca de palavras entre as duas personagens


na situação dramática (ou mimética, para ser mais preciso) criada por Platão em seu diálogo.
Górgias se encontra em Atenas, na casa de uma personagem que representa um aristocrata local,
Cálicles, onde há uma reunião de pessoas às quais Górgias exibe seus talentos de orador.
Sócrates, segundo diz, pretende saber qual é a arte em que Górgias é versado e que ele pretende
ensinar a outros. Para investigar isso, julga a personagem, discursos como o de Polo em 448c5-
d1, que se estendem e tergiversam, não são os mais apropriados para se alcançar uma
compreensão do que seja a arte retórica. Por isso, Sócrates propõe uma conversa cerrada,
conduzida por meio das perguntas de um deles e de respostas breves do outro. Górgias aceita a
proposta (e aqui Platão se serve bem da situação dramática), até porque está ali para falar sobre
qualquer assunto, para responder a qualquer pergunta e, por outro lado, já que, mestre dos
discursos que é, julga dominar tanto o discurso extenso, quanto o breve.
Entretanto, há a inquietante ressalva feita por Górgias: algumas questões precisam de um
maior desenvolvimento, não podem ser respondidas de modo breve. A respeito disso, nenhum
comentário é feito por Sócrates na passagem citada. Mas, em 465e, o filósofo reconhece que se
serviu precisamente da modalidade de discurso que vedara a Górgias no início da conversa.
Citamos:

“Talvez eu tenha incorrido em um absurdo, porque, não permitindo que tu fizesses


longos discursos, eu mesmo acabei me prolongando em um discurso extenso. Contudo,

459
Górgias, 449b5-c8. A tradução é de Daniel R. N. Lopes, já mencionada anteriormente.

166
mereço teu perdão, pois quando eu falava brevemente, tu não me entendias e nem eras
capaz de fazer uso das respostas que te endereçava, carecendo de explicação”460.

Ora, parte das razões alegadas por Sócrates para ter recorrido à makrologiva são justamente
as que o próprio Górgias previra, quando era instado a falar brevemente, na passagem citada
anteriormente.461 As respostas breves nem sempre permitem tornar claras as teses defendidas.
Dessa forma, na opinião de Sócrates, o discurso longo que proferiu foi utilizado em favor da
busca da verdade, já que o breve havia se mostrado pouco eficaz, pouco afeito à audiência. O
critério da extensão do discurso não parece ser suficiente, portanto, para distinguir o modo de
proceder que busca a verdade, daquele que busca a vitória na discussão, ainda que um tempo
esteja mais próximo do procedimento socrático e outro mais próximo do procedimento da
retórica sofística.
Observemos como essa tensão reaparece no texto do De finibus. Na seqüência do texto que
comentávamos acima (isto é, a partir de II, 3), a personagem de Cícero, dirigindo-se às duas
outras personagens, refere-se assim ao extenso discurso de Torquato sobre o prazer de Epicuro:

“Eu, de minha parte, ainda que tenha apreciado bastante seu discurso contínuo, julgo
ser mais adequado, contudo, quando te detenhas em cada coisa particularmente e
entendas com o que cada qual concorda, o que não admite, partindo de coisas
admitidas, concluíres o que desejas e alcançares o termo da discussão. Quando o
discurso é proferido como uma torrente, por assim dizer, por mais que muitas coisas e
de todo tipo arrebate consigo, nada, contudo, deténs, nada agarras, em parte alguma
fazes parar o discurso arrebatado”462.

460
Tradução de Daniel R.N. Lopes.
461
Devemos fazer, entretanto, uma ressalva. Sócrates, de fato, introduz o discurso mais longo após algumas trocas de
palavras com Górgias. Mas, no meio do discurso, ele se volta a Polo. Na verdade, é com relação a Polo que se
constrói parte das razões alegadas por Sócrates para o uso do discurso longo. Polo, conduzindo a discussão (462b2-
463d3), não conseguira, na opinião de Sócrates, perguntar de modo adequado (cf. a “sugestão” de pergunta feita por
Sócrates em 463c4-5), nem se servir das respostas de Sócrates para chegar a conhecer sua opinião a respeito da arte
retórica. É por conta da inépcia do interlocutor, em última análise, que Sócrates justifica o uso do discurso longo.
462
Ego autem arbitror, quamquam admodum delectatus sum eius oratione perpetua, tamen commodius, cum in rebus
singulis insistas et intellegas quid quisque concedat, quid abnuat, ex rebus concessis concludi quod uelis et ad
exitum perueniri. cum enim fertur quasi torrens oratio, quamuis multa cuiusque modi rapiat, nihil tamen teneas,
nihil apprehendas, nusquam orationem rapidam coerceas (De finibus II, 3).

167
Em seguida, para dar início a um tratamento mais cerrado da questão em pauta, a doutrina
do prazer, a personagem de Cícero se refere (aqui expressamente) a outro texto de Platão, o
Fedro. Faz-se referência ao princípio da oJmologiva463, concordância que deve se estabelecer entre
os interlocutores a respeito do objeto sobre o qual se discute (ut inter quos disseritur conueniat
quid sit id de quo disseratur). Tal princípio, que Cícero diz tomar do Fedro (cf. 237b), torna
necessária, no contexto do De finibus, uma definição do prazer. É isso que a personagem que
representa o célebre orador busca com as perguntas que faz a Torquato entre as seções 6 e 17 do
segundo livro. A intenção professada por Cícero ao longo da série de perguntas pode ser ilustrada
por afirmações como “direi, mas, sem dúvida, mais com o fito de aprender do que por querer
criticar a ti ou a Epicuro.”; e o modo como o interlocutor assevera estar engajado na obra comum,
em frases como “Eu também: mais gosto teria em aprender, se apresentares algum argumento, do
que em te criticar.”464
Interessante observar, no entanto, como vem comentado em latim esse procedimento que
estabelece a discussão filosófica. Talvez tentando tornar o passo claro ao leitor pouco afeito aos
métodos e ao jargão da filosofia465, a personagem de Cícero, no momento mesmo em que se trata
de estabelecer e fundamentar o método de investigação filosófico por excelência, serve-se de uma
fórmula do direito. Ele diz que, nas discussões filosóficas, devemos proceder como recomendam
certas fórmulas, tais como ea res agetur, isto é, ‘esta será a matéria tratada’. Ora, a aproximação
entre filosofia e retórica neste passo da obra é significativa. Faz-nos pensar em quão próximos
estariam, enfim, o discurso do orador e o do filósofo.
A conversa, então, desenvolve-se por meio de perguntas e respostas. Ao longo da discussão,
a personagem de Cícero estabelece uma distinção entre três estados diferentes: o daquele que
sente prazer, o daquele que sente dor e, um estado intermediário, o daquele que não sente nem
dor nem prazer466. Essa tripartição cria problemas para a tese, defendida por Torquato, que,

463
Deve-se dizer, entretanto, que, embora guarde semelhanças com o que diz Sócrates no Górgias em 472b7, nesta
passagem específica do De finibus, a homologia tem um sentido um pouco diferente. É a condição necessária ao
estabelecimento adequado da discussão: que ambas as partes concordem, não em opiniões (o que aponta para a
solução do problema e que é o sentido na passagem do Górgias), mas sobre o objeto mesmo da discussão. No caso
do De finibus, que eles estejam de acordo sobre o que é o prazer. Esse procedimento aponta, como a seqüência do
texto de Cícero torna claro, para a necessidade da definição daquilo que é objeto da discussão.
464
Dicam, inquam, et quidem discendi causa magis quam quo te aut Epicurum reprensum uelim. / Ego quoque,
inquit, didicerim liberius, si quid attuleris, quam te reprehenderim (De finibus II, 8).
465
Veja-se, ao fim do livro II, nossa nota à seção 3. Mais adiante, tratando do proêmio do tratado, falaremos do
projeto filosófico de Cícero.
466
Para os pormenores da discussão, remetemos o leitor às notas ao livro II.

168
seguindo Epicuro, afirma que o prazer supremo é não sentir dor. O momento de impasse de
Torquato (ou, antes, de receio de se deparar com um impasse) cria uma ruptura no procedimento
que vinha sendo adotado pela personagem de Cícero. Observemos como tudo acontece no texto:

“Então, é o mesmo prazer o daquele que para um outro mistura o vinho ao mel,
estando ele próprio sem sede e o daquele que, tendo sede, bebe-o?”, pergunta Cícero. E
Torquato responde: “Dá fim às perguntas, se estiveres de acordo, pois assim, ao menos
eu, desde o princípio dissera preferir, prevendo exatamente isto: as armadilhas
dialéticas.”

Temendo cair em contradição, Torquato pede a Cícero que abandone o mos atribuído a
Sócrates. De fato, a própria personagem, antes de dar início a sua longa exposição, já dissera
preferir a oratio perpetua (cf. I, 29) a perguntas e respostas. Aqui, afinal, ela revela seus temores:
as perguntas, conduzidas pelo interlocutor que exige respostas breves, podem fazer com que
aquele que responda seja apanhado em uma espécie de armadilha e, posteriormente, veja-se
obrigado ou a se contradizer ou a guardar silêncio.
A desistência de Torquato bem poderia ser compreendida como um traço da composição da
personagem, que, como epicureu, que, portanto, desprezaria o treinamento dialético, seria incapaz
de manter por muito tempo uma discussão cerrada sem que, num impasse, fosse apanhado e
reduzido ao silêncio.467 É uma forma interessante de interpretar a passagem468, com a qual,
entretanto, não estamos completamente de acordo. Há mais coisa em jogo aqui, como a seqüência
do texto torna claro. Depois do pedido de Torquato para que seu interlocutor abandone o
procedimento dito socrático, assim responde a personagem que representa o autor da obra:
“Preferes, então, que nós discutamos ao modo retórico a discutirmos ao modo dialético?”.
Torquato responde: “Ora, como se o discurso contínuo fosse dos retores apenas e não dos
filósofos também”469.

467
Nesse sentido, a personagem guardaria semelhança com personagens como o Górgias ou o Polo do Górgias de
Platão, que, desenvoltos na oratória, mas pouco afeitos ao jogo estabelecido por Sócrates, são facilmente apanhados
pelas perguntas do filósofo (cf. 460e, para Górgias e 480e, para Polo).
468
É de fato a interpretação apresentada por Brad Inwood, em “Rhetorica disputatio: the strategy of De finibus II”,
1990, especialmente nas páginas 145 e 146.
469
Rhetorice igitur, inquam, nos mauis quam dialectice disputare? / Quasi uero, inquit, perpetua oratio rhetorum
solum, non etiam philosophorum sit (De finibus II, 17).

169
Há uma referência clara à distinção entre makrologiva e braculogiva. Esta modalidade de
discurso é relacionada, num primeiro momento, ao mos socraticus que procede por meio de
perguntas e respostas e que é tratado pela personagem de Cícero como discussão segundo o
costume dialético (cf. dialectice disputare). Aquela outra modalidade é referida, na fala de
Torquato, por meio do termo perpetua oratio, isto é, discurso contínuo, ou que se estende no
tempo. A questão proposta por Cícero é, na verdade, uma provocação. O discurso contínuo
parece ser considerado como próprio do domínio da filosofia apenas. A resposta de Torquato
aponta para a insuficiência do critério da extensão para distinguir as modalidades de discurso do
orador e do filósofo. Com a resposta, a personagem não apenas justifica a sua escolha inicial, no
livro I, de tratar do pensamento de Epicuro por meio de um discurso contínuo, mas possibilita
que a personagem de Cícero se sirva também da makrologiva ao longo da refutação. Mas, mais do
que isso, essa passagem do diálogo entre Cícero e Torquato justifica, em última análise, a
organização de cada um dos diálogos particulares, em que, em lugar de empregarem o
procedimento aqui atribuído a Sócrates, veremos cada um dos interlocutores ter direito a um
longo discurso construído more rhetorico, ainda que de alguma forma engajado na obra comum
que é a busca da verdade.
O comentário da personagem de Cícero a essa questão demonstra o quanto de provocação
havia na identificação que propusera entre troca rápida de perguntas e dialética, por um lado, e
oratio perpetua e retórica, por outro. Pois Cícero reconhece que existe uma rhetorica
philosophorum. Para ilustrar como essas disciplinas e seus modos de expressão não estão assim
tão distantes e que, na verdade, filosofia e retórica não são substancialmente diferentes, o
refutador se serve de uma imagem criada, segundo nos informa, por Zenão, o fundador do
estoicismo:

“É de Zenão, o estóico, isto que refiro: toda a faculdade de expressão, como já


antes dissera Aristóteles, está distribuída em duas partes; a retórica ele dizia ser
semelhante à palma da mão, a dialética, ao punho, porque os retores falassem
mais amplamente, os filósofos, por seu turno, de modo mais cerrado. Seguirei
tua vontade e me expressarei, se puder, ao modo retórico, mas com esta retórica

170
dos filósofos, não com aquela nossa forense, que às vezes deve ser, quando se
fala ao gosto do povo, um pouco mais embotada”470.

Ora, a imagem é de uma pertinência admirável. A uis loquendi, comparada à mão, não é
substancialmente diferente na retórica e na dialética. Trata-se sempre do uso da palavra, assim
como a mão é sempre a mesma. As modalidades são compreendidas como estados diferentes da
mão, assim como dialética e retórica são modalidades diferentes de uma só coisa: a expressão
verbal471. A personagem do autor, então, arroga a si o direito de se servir de uma retórica
filosófica que, nesta passagem, não é qualificada senão negativamente. Ela não é “popular” (cf.
cum populariter loquatur), talvez porque trate de matéria pouco conhecida e se sirva de
terminologia que não é acessível a todos. Ela também não é hebes. Ora, esse adjetivo é aplicado
mais propriamente a objetos cortantes e/ou penetrantes; mas indica justamente o fato de tais
objetos terem perdido o fio, ou a agudeza. No contexto da teoria do discurso o seu contrário mais
corriqueiro, em Cícero, é acutus. De modo que a diferença entre a retórica filosófica e a retórica
pública consistiria, de acordo com essa passagem do De finibus, no fato de aquela tratar de modo
mais preciso e agudo, por meio de terminologia não tão acessível, de matéria também pouco
acessível.
Há mais coisa, entretanto, a se considerar na passagem citada. Cícero dispõe a imagem
criada por Zenão sob a autoridade de outro filósofo: Aristóteles. Devemos, então, buscar entender
por que o filósofo de Estagira é invocado aqui como auctor de uma concepção que apresenta
retórica e dialética como partes de um mesmo todo. É algo que vai nos fazer avançar mais um
passo na compreensão do diálogo ciceroniano, especialmente no que diz respeito à escolha feita
pelo autor desse gênero que é como que a cristalização de seu método de investigação e de sua
expressão filosófica.
Pois bem, não é difícil inferir que Cícero se refere aqui aos primeiros capítulos do livro I da
Retórica de Aristóteles. Na verdade, não é nem mesmo necessário fazer tal inferência. Em outra
obra sua, o pensador romano cita a mesma imagem criada por Zenão. Na passagem, o mesmo
Aristóteles é mencionado e, nessa ocasião, Cícero se refere expressamente ao texto da Retórica.

470
Zenonis est, inquam, hoc Stoici: omnem uim loquendi, ut iam ante Aristoteles, in duas tributam esse partes,
rhetoricam palmae, dialecticam pugni similem esse dicebat, quod latius loquerentur rhetores, dialectici autem
compressius. Obsequar igitur uoluntati tuae dicamque, si potero, rhetorice, sed hac rhetorica philosophorum, non
nostra illa forensi, quam necesse est, cum populariter loquatur, esse interdum paulo hebetiorem (De finibus II, 17).
471
Sobre a imagem da mão de Zenão, cf. Moretti, G: Acutum dicendi genus, 1990, pp. 19-23.

171
“E, ainda antes dele [isto é, de Zenão], no princípio da Arte Retórica, diz Aristóteles que essa arte
corresponde como que simetricamente à dialética”472. A expressão quasi ex altera parte
respondere tenta traduzir (e o quasi aponta para a dificuldade que o autor tem para encontrar
bons termos) o adjetivo ajntivstrofo" da primeira e extremamente polêmica frase da Retórica de
Aristóteles.
Dizer que a “retórica é ajntivstrofo" da dialética”473 é rebater de início a concepção de
retórica que Sócrates apresenta no Górgias de Platão. Nesse diálogo, que por diversos aspectos –
temos visto – está ligado ao De finibus, Sócrates nega à retórica o estatuto de arte. Reproduzindo
de modo resumido a perspectiva do Sócrates do Górgias, a retórica não é tevcnh porque não visa
ao sumo bem, mas, antes, ao prazer (cf. o{ti tou' hJdevo" stocavzein a[neu tou' beltivstou, 465a1-
2). Conforme a concebe Sócrates, a retórica constitui, então, uma das partes da lisonja (cf.
kolakeivan, em 463b1 e
ouj gavr pw pevpustai oJmoi'ovn fhmi ejgw; th'" kolakeiva" movrion ei\nai th;n rJhtorikhvn, em
463c1-2). Por outro lado, por ser uma mera experiência (cf. ejmpeiriva ti", 462d9), “ela não
possui nenhuma compreensão racional da natureza daquilo a que se aplica e daquilo que aplica, e,
conseqüentemente, não tem nada a dizer sobre a causa de cada um deles”474. Assim, organizando
sua argumentação, Sócrates pode dizer o que ele pensa ser, afinal, a retórica: “a contraparte
(ajntivtrofon) da culinária na alma, assim como a culinária é sua contraparte no corpo”475. Com
isso, Sócrates quer dizer que a retórica age na alma assim como a culinária age no corpo. A
retórica seria uma prática, ou experiência (desprovida de uma fundamentação racional com
relação a método e a objetos), que buscaria agradar à alma sem levar em consideração aquilo que
de fato é o melhor para a alma. Ainda sob esse aspecto, mas agora divida em partes (oratória
deliberativa e oratória judiciária, poderíamos dizer) ela seria como que um simulacro das artes
que se ocupam de fato com sumo bem da alma: a legislação e a justiça (cf. 464b-d).
Por outro lado, o caráter problemático da retórica parece estar relacionado com o tipo de
conhecimento que, segundo o Sócrates do Górgias, ela é capaz de produzir. Em um passo que é
fundamental para a concepção que fazemos do método investigativo utilizado por Cícero no De

472
Atque etiam ante hunc Aristoteles principio Artis rhetoricae dicit illam artem quasi ex altera parte respondere
dialecticae (Orator 114).
473
Aristóteles, Retórica, 1354a1: @H rJhtorikhv ejstin ajntivstrofo" th'/ dialektikh'./ O adjetivo vem do jargão
técnico da poesia e, qualifica, originalmente, um trecho cantado que se sobreponha a outro de modo simétrico.
474
Górgias, 465a3-6. A tradução é de Daniel Lopes. O trecho tem problemas de estabelecimento de texto. Mas uma
outra passagem (501a) ajuda a dirimir os problemas de interpretação desse importante texto.
475
465e1-2. Tradução de Daniel Lopes.

172
finibus, Sócrates, conversando com Górgias, chega à compreensão de que haja, de fato, duas
espécies de persuasão. Nesse momento do diálogo, os interlocutores chegaram a um acordo a
respeito do produto final da retórica, que seria a persuasão (cf.
levgei" o{ti peiqou'" dhmiourgov" ejstin hJ rJhtorikhv, 453a2). No entanto, procedendo por meio
de perguntas, Sócrates, observando que muitas outras artes também produzem persuasão476,
estabelece uma distinção entre duas formas de persuasão que se fundamenta, na verdade, numa
contraposição entre o aprendizado (cf. kalei'" ti memaqhkevnai; Em 454e7), por um lado, e a
crença, por outro (cf. tiv dev pepisteukevnai; em 454e8). Conclui-se, a respeito da retórica, que,
quando, nos tribunais, ela persuade a respeito do justo e do injusto, ela produz uma persuasão que
é do âmbito da crença, mas que nada ensina aos ouvintes (cf.
hJ rJhtorikhv... peiqou'" dhmiourgov" ejstin pisteutikh'" ajlla; ouj didaskalikh'", 455a1).
Incapaz de ensinar o que quer que seja, mas hábil apenas em criar persuasão entre os
ouvintes, a retórica não poderia jamais ser a modalidade empregada por pessoas que, numa
conversa, estivessem dispostas a aprender e ensinar mutuamente e, chegando a um acordo com
relação às opiniões, avançar em direção à verdade. Isso, evidentemente, quando se trata da
retórica cultivada por Górgias e Polo, pois, como vimos, o discurso extenso de Sócrates, na
passagem 464b-466a, encontrou uma justificativa no fato de que, por conta da inabilidade
dialética de Polo, aquele fora o único meio encontrado pelo filósofo para se fazer entender, isto é,
para tornar clara a opinião que defendia.
Parece-nos evidente que, para um pensador como Cícero, que se julga continuador da
tradição cética da Academia (tendência inaugurada por Arcésilas) e que não concebe a
possibilidade de qualquer conhecimento absolutamente seguro, a distinção entre uma persuasão
que ensine e uma persuasão que gere crença não é pertinente e dificilmente poderia ser aplicada à
discussão filosófica. Vimos que toda a investigação filosófica de Cícero se baseia na busca do
probabile, ou piqanovn, isto é, do persuasivo, daquilo que gera pivsti". O filósofo neo-acadêmico
se esforça em direção à verdade, mas reconhece, de antemão, que não poderá atingi-la. Tudo a
que ele chegará, depois de analisadas todas as razões que apontem para um e para outro lado, é a
algo que terá a aparência de verdade (ueri simile) e que será capaz de persuadir o sábio.477 Na

476
Até este ponto, deve-se dizer, Sócrates ainda não colocou em xeque o estatuto artístico (ou técnico) da retórica.
477
Nós nos eximimos, deliberadamente, da ingente tarefa que consistiria em analisar, na obra de Platão, o êxito de
estratégias investigativas como a do Górgias. Nesse diálogo especificamente, o acordo que é o elemento que garante

173
verdade, ciente da impossibilidade de conhecimento, o filósofo neo-acadêmico, deverá
estabelecer sua discussão por meio de discursos (breves ou extensos) que não têm senão um
caráter persuasivo. O método investigativo, portanto, estará mais próximo do tipo de
procedimento que Aristóteles julga ser o da retórica e do da dialética. Esta última, deve-se dizer,
de acordo com a concepção particular que dela tem Aristóteles.
Voltemos, portanto, ao pensamento de Aristóteles, cuja menção nos conduziu a essa
digressão a respeito do estatuto artístico da retórica e do conhecimento que ela é capaz de
produzir segundo o Sócrates do Górgias.
Pois bem. Para Aristóteles, retórica e dialética operam com o mesmo tipo de matéria. A
discussão sob a forma de perguntas e respostas não é encarada pelo filósofo de Estagira como
método de investigação que possibilite o alcance de um conhecimento firme e irrevogável. Na
verdade, basta tomarmos o livro oitavo dos Tópicos de Aristóteles para perceber que, na
perspectiva desse filósofo, a dialética pode inclusive ter um fim em si mesma, isto é, pode ser
apenas um ajgwvn, uma sorte de disputa esportiva semelhante a tantas outras praticadas pelos
antigos gregos.478
Eis, portanto, a primeira maneira de compreender por que a retórica pôde ser considerada a
contra-parte da dialética. Pois no ajgwvn dialético, assim como no debate jurídico, ou deliberativo,
o objetivo de cada um dos participantes, que se enfrentam em uma contenda, é a vitória. Ainda
que no debate retórico a questão seja mais séria, visto que estão em jogo ali decisões graves que
afetam a própria vida das pessoas, como o confisco dos bens de alguém, seu exílio, na contenda
jurídica, ou a construção de um muro de proteção e a resolução de entrar em guerra contra uma
outra cidade, no embate deliberativo.
Tentemos, entretanto, compreender outros aspectos dessa relação que sejam mais
pertinentes ao entendimento do método e da expressão do De finibus. Na Retórica, Aristóteles
afirma que tanto a retórica quanto a dialética podem apresentar, sobre um mesmo assunto,
conclusões contrárias (cf. oJmoivw" gavr eijsin ajmfovterai tw'n ejnantivwn, 1355a35). Na verdade,
elas são as únicas artes capazes de fazer isso (cf. 1355a34), uma vez que ambas se servem de um
mesmo tipo de demonstração: o silogismo dialético, ou demonstração retórica, ou entimema (cf.
1355a6). O método da técnica retórica, diz o filósofo, opera por meio de provas (cf.

o êxito da discussão, não ocorre em nenhum dos embates particulares que Sócrates trava com seus interlocutores,
Górgias, Polo e Cálicles.
478
Cf. Moraux, P., 1968, p. 277-311.

174
hJ me;n e[ntecnon mevqodo" peri; ta;" pivstei" ejstin, 1355a3). A prova lógica, uma das espécies
de provas utilizadas pela retórica479, é, conforme concebe Aristóteles, um tipo de demonstração
(cf. hJ de; pivsti" ajpovdeixi" ti", 1355a5), uma vez que nós acreditamos em algo (pisteuvomen)
sobretudo quando supomos que esse algo foi demonstrado (o{tan ajpodedei'cqai uJpolavbwmen,
1355a5-6).
Nitidamente, Aristóteles retoma parte da argumentação socrática que dispunha como coisas
completamente diferentes a crença (pivsti") e o aprendizado. Para o autor da Retórica, há certo
tipo de raciocínio demonstrativo que opera justamente no domínio da pivsti" e que persuade por
deixar ver ao ouvinte (ou ao interlocutor) que algo foi demonstrado. Essa demonstração,
entretanto, não constrói um conhecimento absolutamente seguro; e isso por conta do tipo de
premissa de onde ela parte. Mas que tipo de premissa é esse, que constitui o entimema? Eis algo
que o texto da Retórica começa responder – são premissas baseadas nas noções comuns
(dia; tw'n koinw'n, 1355a27) –, mas que o primeiro capítulo do livro I dos Tópicos vai esclarecer
de modo mais eficaz. Ademais, é o próprio texto da Retórica que nos remete ao livro que estuda
mais de perto a dialética e no qual Aristóteles já tratara desse tipo de premissas (cf.
w{sper kai; ejn toi'" topikoi'" ejlevgomen, 1355a28).
Vejamos a abertura do livro I dos Tópicos:

“É propósito do presente tratado encontrar um método (mevqodo") por meio do qual


sejamos capazes de raciocinar dedutivamente (sullogivzesqai), a respeito de todo
problema proposto, a partir de opiniões geralmente aceitas (ejx ejndovxwn)”480.

Aqueles elementos que na Retórica aparecem tratados como “noções comuns” e que seriam
o ponto de partida da demonstração retórica, aparecem agora sob a denominação de “opiniões
geralmente aceitas”, ponto de partida de raciocínios dedutivos que possam tratar de qualquer
questão proposta. Mais adiante, o autor afirma que o seu objeto de investigação no tratado é o
silogismo dialético. Por isso, atribui-se como primeira tarefa definir o que seja o silogismo; em
seguida, distingue os diversos gêneros de silogismo; dentre esses, surge o raciocínio dedutivo
próprio da dialética.
Seque-se, então, a definição de silogismo:

479
No primeiro capítulo do livro I da Retórica, na verdade, a prova lógica é a prova retórica.
480
Aristóteles, Tópicos, 100a20.

175
“O silogismo é, portanto, um raciocínio (lovgo") no qual, tendo sido estabelecidas
certas coisas (teqevtwn tinwvn), algo diferente (e{teron ti) do que fora estabelecido
resulta necessariamente (ejx ajnavgkh") a partir do que foi estabelecido”481.

A seqüência do texto dos Tópicos, que trata da demonstração apodítica e do silogismo


dialético, já foi citada no primeiro capítulo de nosso estudo, quando tomamos essa passagem
como uma espécie de pedra de toque com vistas à compreensão do eijkov" poético482. Remetemos
o leitor a esse texto que, nesta passagem, apenas parafraseamos.
Distinguindo as formas de demonstração, o autor observa que há uma forma de raciocínio
dedutivo que é capaz de chegar a conclusões necessárias e verdadeiras, pois que suas premissas
são verdadeiras e necessárias. Esse tipo de raciocínio, e apenas esse, garante a construção de um
conhecimento absolutamente seguro, desde que o raciocínio que o construa seja formalmente
perfeito, o que garante a necessidade da conclusão. A esse raciocínio Aristóteles reserva o nome
de ajpovdeixi"; é como se ele fosse a demonstração por excelência.
Há, por outro lado, um raciocínio de mesma forma geral, também capaz de construir de
modo necessário as conclusões. Essas, no entanto, não são necessárias, porque também não o são
as premissas das quais ele parte. As premissas desse tipo de raciocínio são as opiniões geralmente
aceitas (e[ndoxa) que, por sua vez, são explicadas como as opiniões mais difundidas entre os
homens mais esclarecidos, ou, ainda, como as opiniões geralmente aceitas pelos mais conhecidos
e mais bem considerados (ejndovxoi) dentre os homens mais esclarecidos.
É desse tipo de premissa que se formam, na opinião de Aristóteles, os raciocínios utilizados
tanto pelo orador, quanto pelo dialético. Para que concluamos esse passeio pela introdução dos
Tópicos, porém, vejamos uma passagem, fundamental para nossa investigação, em que
Aristóteles fala das utilidades da dialética. Citamos:

481
Cf. a concepção ciceroninana de silogismo em Acad. I, 26, que parece uma tradução dessa passagem dos Tópicos
de Aristóteles.
482
Cf . pp. 33-34.

176
“A dialética é útil sob três aspectos: para o treinamento intelectual (gumnasivan), para a
conversação séria (e[nteuxi")483, e para as ciências conformes à filosofia
(kata; filosofivan ejpisthvmh). Que ela é útil para o treinamento intelectual, fica claro
por si mesmo, pois, possuindo um método, nós somos capazes de mais facilmente
argumentar (ejpiceirei''n) a respeito daquilo que é proposto
484
(peri; tou'' proteqevnto")” .

Por meio de gumnasiva, Aristóteles se refere aos exercícios que seus estudantes de filosofia
praticavam: uma espécie de disputa, em que um perguntava e outro respondia, a respeito de um
problema proposto, naturalmente da ordem das “opiniões geralmente aceitas”. Um deles, o que
responde, defenderia uma tese qualquer, como, por exemplo: “o prazer é o sumo bem”, ou “a
morte não é um mal”. O questionador, tecendo perguntas que deveriam ser respondidas por
“sim”, ou “não”, buscaria refutar essa tese, quando conseguisse fazer com que seu oponente se
encontrasse em um impasse, ou em contradição.
Passemos à segunda utilidade:

“[É útil] para a conversação séria, porque, depois de ter enumerado as opiniões dos
muitos, nós nos dirigimos a eles não a partir de convicções que lhes são alheias, mas de
suas próprias convicções, alterando o que quer que eles tenham dito e que não nos
pareça ter sido bem dito”485.

Sob esse aspecto, a dialética se aproxima da retórica. Não é propriamente a retórica, uma
vez que não se trata necessariamente de um discurso dirigido a muitos. Pode se tratar de uma
conversa acerca de um assunto sério da vida, travada entre duas pessoas, ou em uma reunião
reduzida. De qualquer modo, o treinamento dialético confere àquele que deve falar sobre um
assunto grave (referente a uma decisão política ou jurídica) a condição de conceber de antemão as
diversas opiniões e, assim, compor uma argumentação que se valha das opiniões sustentadas por
aqueles que ouvem e, por ventura, de uma argumentação que aponte as contradições que essas
opiniões comportam.

483
Literalmente, “ação de se encontrar, encontro, entrevista, conversa’ ou ainda, “discurso, discurso diante de
multidão”. Seguimos a interpretação de Kennedy (1991, p. 291) tanto para esse termo, quanto para o termo
gumnasiva
484
Aristóteles, Tópicos 101a26-30.
485
Aristóteles, Tópicos 101a30-34.

177
A terceira utilidade, por fim:

“[Ela é útil] para as ciências conformes à filosofia, porque, sendo capazes de


apresentar dificuldades (diaporevw) em ambas as direções (pro;" ajmfovtera)486,
mais facilmente em cada questão enxergaremos (kaqoravw) o verdadeiro e o
falso”487.

Aristóteles aponta ainda a importância da dialética para o estabelecimento dos princípios de


cada ciência, que não podem ser, evidentemente, demonstrados apoditicamente. De todo modo,
trata-se de um elemento que não diz respeito diretamente ao que estudamos aqui. É pertinente,
sim, por outro lado, a capacidade que tem o dialético de criar impasses, de supor dificuldades
para cada uma das teses sustentadas quando se discute uma questão qualquer. A partir da busca
de argumentos contrários a cada uma das possíveis soluções para um problema, pensa Aristóteles,
nós podemos enxergar qual dessas soluções é verdadeira, qual é falsa.
Segundo nos parece, guarda uma semelhança enorme com essa terceira utilidade da
dialética, apontada por Aristóteles, o método utilizado por Cícero ao longo do De finibus e em
outras obras que compõem a sua philosophica. De fato, é a esse tipo de procedimento que ele
parece se referir quando diz, na Academica, que as discussões que apresenta não visam outra
coisa senão alcançar o verdadeiro, ou aquilo que dele mais se aproxime, a partir de uma
argumentação in utramque partem (cf. Academica, II, 7-8):

“(...) as nossas discussões não buscam outra coisa senão, argumentando em favor de
ambas as partes (in utramque partem dicendo), fazer brotar e como que extrair algo
que seja verdadeiro ou dele se aproxime o mais possível”488.

No De finibus, a investigação não se dá de modo muito diferente, embora comporte mais


passos do que uma simples discussão in utramque partem. É interessante notar como Cícero,

486
Isto é, ser capaz de levantar dificuldades contra qualquer uma das partes da questão. Em outros termos: refutar
uma opinião e sua contrária.
487
Aristóteles, Tópicos 101a35-37.
488
Neque nostrae disputationes quidquam aliud agunt nisi ut in utramque partem dicendo eliciant et tamquam
exprimant aliquid quod aut uerum sit aut ad id quam proxime accedat (Academica II, 7-8). Vale entretanto uma
importante ressalva que decorre de tudo que estudamos sobre o probabilismo de Cícero: a verdade não será
alcançada, mas apenas o probabile.

178
além do mais, mostra conhecer (seja diretamente, seja por meio de fontes secundárias) a relação
que Aristóteles estabelece, tanto nos Tópicos quanto na Retórica, entre a dialética e a oratória. No
livro V, ou seja, justamente no diálogo em que, sob a autoridade de Antíoco, Pisão busca
conciliar os pensamentos da Academia Antiga, do Liceu e do Pórtico, podemos ler:

“Da exposição, eles mesmos489 transmitiram os preceitos, e não apenas os da exposição


dialética, mas também da oratória, e, por Aristóteles, em primeiro lugar, foi
estabelecido o exercício de, a respeito de cada coisa, discursar em favor de ambas as
partes, não a fim de sempre contradizer tudo, como no caso de Arcésilas, mas sim para
que, em todos os assuntos, colocasse à mostra o que quer que se pudesse dizer de uma
e de outra partes”490.

Nessa passagem, podemos reconhecer referências àquelas utilidades que, nos Tópicos, o
estagirita atribuía à dialética. Ela aparece, por um lado, como um exercício (exercitatio) que
consiste em argumentar em favor de ambas as partes de uma questão e, sob esse aspecto,
aproxima-se do “treinamento intelectual” a que se referia Aristóteles. Esse exercício permitiria
encontrar pontos fracos na argumentação de um possível oponente. Ou seja, nesse sentido,
aproximar-se-ia também da segunda utilidade enumerada por Aristóteles.
Em outros textos, Cícero também alude a essas utilidades apontadas por Aristóteles e, por
vezes, indica como teria tomado conhecimento a respeito desse modo de proceder. É o que ocorre
nas Tusculanae, onde, no prefácio do livro II, ele diz:

“Assim, sempre me agradou o costume dos peripatéticos e da Academia de, a


respeito de todas as questões, discorrer em favor das partes contrárias; e não por
esta razão apenas: porque de outra maneira não seria possível em cada questão
encontrar o que fosse parecido com a verdade, mas inclusive porque seria ele o
mais importante exercício para o discurso”491.

489
Fala-se de Teofrasto e Aristóteles.
490
Disserendique ab isdem non dialectice solum, sed etiam oratorie praecepta sunt tradita, ab Aristoteleque principe
de singulis rebus in utramque partem dicendi exercitatio est instituta, ut non contra omnia semper, sicut Arcesilas,
diceret, et tamen ut in omnibus rebus, quidquid ex utraque parte dici posset, expromeret (De finibus V, 10).
491
Itaque mihi semper Peripateticorum Academiaque consuetudo de omnibus rebus in contrarias partis disserendi
non ob eam causam solum placuit, quod aliter non posset quid in quaque re ueri simile esset inuenire, sed etiam
quod esset ea maxuma dicendi exercitatio (Tusculanae II, 9).

179
Aqui, as três utilidades parecem contempladas, ainda que não sob a forma nítida de uma
tripartição. Note-se, entretanto, que de modo um tanto desconcertante, o mos é atribuído aos
peripatéticos e acadêmicos, e não especificamente a Aristóteles. O primeiro motivo alegado para
a utilização desse tipo de procedimento aponta para a terceira utilidade destacada por Aristóteles;
mas o uso de discursos contraditórios é interpretado segundo o ceticismo (ou, antes, o
probabilismo) acadêmico. Encontrar argumentos a favor e contra determinada asserção é, no
dizer de Cícero, o melhor meio de se aproximar da verdade, ainda que ela seja inalcançável. É o
modo, de fato, de se descobrir o probabile. Por outro lado, afirma-se que a consuetudo de
acadêmicos e peripatéticos é o mais importante exercício de preparação para o discurso público,
algo que alude às duas primeiras utilidades enumeradas por Aristóteles nos Tópicos.
Na seqüência do texto das Tusculanae, o autor romano parece justificar a atribuição do
método a duas escolas distintas, além de indicar o modo como tal consuetudo chegou a ser algo
familiar em sua vida:

“Desse exercício, o primeiro a fazer uso foi Aristóteles; em seguida, os que


vieram depois dele. Em nossa geração, Fílon, a quem nós ouvimos com
freqüência, instituiu ensinar, em um período do dia, os preceitos dos retores, no
outro, os dos filósofos”492.

A expressão quem frequenter audiuimmus se refere ao ano de 88 a.C., quando Cícero


estudou com Fílon em Roma. Foi nesse contexto, ainda muito jovem, que o pensador romano foi
introduzido no método de in utramque partem dicere, estabelecido, de fato, segundo a notícia da
passagem, por Aristóteles. Ao tratar do conhecimento que teve do filósofo acadêmico por meio
da expressão nostra memoria, o autor parece de alguma forma indicar que, mesmo na Academia,
em tempos anteriores aos de Fílon, o método já era utilizado. É, de fato, de conhecimento
universal a performance de Carnéades em 155 a.C., quando, na função de embaixador ateniense
em Roma, apresentou, em dois dias seguidos, discursos a favor e contra a importância da justiça
no governo das cidades.

492
Qua princeps usus est Aristoteles, deinde eum qui secuti sunt. nostra autem memoria Philo, quem nos frequenter
audivimus, instituit alio tempore rhetorum praecepta tradere, alio philosophorum (Tusculanae II, 9).

180
Mas, no uso do método contraditório entre os acadêmicos, Fílon parece ter dado um passo
adiante, pois, ainda que acadêmico, ensinava aos seus discípulos tanto filosofia quanto retórica.
As obras de Cícero foram bastante influenciadas pelo pensamento de Fílon. Em sua obra
filosófica, por exemplo, o romano não apenas vai se servir do método contraditório, mas vai
aplicá-lo por meio do modo de expressão próprio da oratória pública. Em Cícero, poucas vezes
veremos a disputa filosófica ser travada segundo o mos socrático. A passagem inicial da refutação
de Torquato no livro II do De finibus, é uma das grandes exceções493. (E na verdade, segundo
interpretamos, tem sobretudo a função de justificar a oratio perpetua como veículo da
disputatio). A investigação filosófica, desse modo, aproxima-se sensivelmente do procedimento
geral de um debate jurídico. A respeito de cada questão, longos discursos, proferidos por patronos
e acusadores, testarão a probabilitas de uma tese qualquer. Nesse sentido, as imagens tomadas do
tribunal, com as quais Cícero ilustra a disputatio filosófica, não podem ser encaradas apenas
como uma maneira de tornar o método filosófico mais acessível ao leitor romano.494 A associação
entre o debate público e a discussão filosófica é, de fato, íntima, e deriva da própria natureza do
método contraditório.
Em uma das passagens do Górgias que citamos, vimos que a discussão filosófica se
estabelece por meio de um acordo entre as partes. A homologia é a condição necessária para o
diálogo que busca a verdade, pois é ela que o estabelece como uma obra comum, cujo êxito
depende da cooperação entre as partes que discutem. Também no debate jurídico é necessário o
estabelecimento da matéria a respeito da qual há controvérsia; é o que indica a fórmula evocada
por Cícero (ea res agetur). Mas, se, de acordo com Cícero, o discurso cerrado do filósofo tem
como virtude avançar de modo seguro, apenas quando as partes estiverem de acordo a respeito de
determinado ponto; por outro lado, esse método que procede por meio de perguntas, pode
permitir que uma das partes, interessada apenas em vencer a discussão, tente enredar a outra por
meio de artimanhas dialéticas.
Desejo de vencer a discussão versus interesse em alcançar a verdade: é a tensão mesma do
De finibus. Embora as personagens professem estar dispostas a discutir com vistas a chegar a um
consenso, isto é, para que possam descobrir qual seja o verdadeiro finis, ao fim de cada discussão
particular, depois que ambas as partes puderam expor suas razões a respeito de determinado finis,

493
Veja-se também o início da primeira das Discussões tusculanas.
494
Essas imagens são analisadas, em cada ocorrência, nas notas à tradução, que se encontram ao fim de cada livro
particular.

181
nenhum dos oradores/filósofos aceita a refutação da parte de Cícero; nenhum deles admite a
derrota de sua causa.495
Os casos mais emblemáticos dizem respeito aos patronos do epicurismo e do estoicismo.
No livro IV, a discussão se encerra com o crepúsculo e a necessidade de Cícero retornar a sua
quinta. A personagem que representa o autor, após ter concluído seu longo discurso, convida
Catão a repetir o tipo de discussão que acabaram de ter. O defensor do estoicismo responde:

“Mas faremos, pois o que podemos fazer de melhor? Mas eis a primeira coisa que
exigirei de ti: que me ouças refutar as coisas que disseste. Lembra-te, porém, que tu
aprovas todos os nossos pensamentos, a não ser quanto a nos servirmos diferentemente
das palavras, quanto a mim, porém, não aprovo nenhum dos vossos.”496

Catão não apenas afirma sua intenção de rebater a refutação de Cícero, como revela ainda
que discorda do argumento principal utilizado no discurso que acabou de ouvir, a saber: que o
estoicismo fosse a reprodução, ainda que com nova terminologia, do pensamento dos antigos
acadêmicos e peripatéticos. A personagem de Cícero reconhece que não houve acordo, mesmo se
encerra o diálogo sob o signo da urbanitas: “um pequeno embaraço para quem parte”497.
Também o diálogo epicureu se encerra com o fracasso da tentativa de consenso. No fim do
livro II, o movimento é semelhante ao do fim do quarto livro, mas, no quadro da organização
geral da obra, há certa diferença. Torquato, após ouvir a refutação da personagem que representa
o autor, diz: “tenho a quem reportar esses teus argumentos e, ainda que eu próprio pudesse dizer
algo, prefiro, contudo, encontrar pessoas mais bem preparadas”498. O patrono do epicurismo se
refere a dois filósofos em especial, Síron e Filodemo. Desse modo, a personagem não admite a
derrota da doutrina, mas apenas sua incapacidade, ao menos momentânea, de rechaçar a contra-
argumentação apresentada por Cícero.

495
Nesse sentido, mais uma vez encontramos semelhanças com o Górgias de Platão, diálogo em que nenhuma das
discussões particulares de Sócrates, seja com Górgias, com Polo, ou com Cálicles, permite o estabelecimento de
algum consenso.
496
Nos uero, inquit ille; nam quid possumus facere melius? et hanc quidem primam exigam a te operam, ut audias
me quae a te dicta sunt refellentem. sed memento te, quae nos sentiamus, omnia probare, nisi quod uerbis aliter
utamur, mihi autem uestrorum nihil probari (De finibus IV, 80).
497
Scrupulum, inquam, abeunti (De finibus IV, 80).
498
Habeo, inquit Torquatus, ad quos ista referam, et, quamquam aliquid ipse poteram, tamen inuenire malo
paratiores (De finibus II, 40).

182
Também aqui o diálogo se encerra sob o signo da urbanitas, quando a discussão é
comparada a um debate jurídico. A personagem de Cícero chama Triário, a terceira personagem,
praticamente muda, que deve exercer a função de juiz. Torquato, em tom jocoso, protesta como
um advogado. Citamos: “’Protesto!’ Disse ele sorrindo. ‘É injusto. Ao menos quanto a esta
matéria, pois teu discurso foi em tom bem ameno, ele nos acomete com violência, à maneira dos
estóicos’”499. Mas, se Torquato veta a participação de Triário como juiz da contenda, Cícero,
falando como autor no prefácio do livro III, dá o veredicto. O prazer foi derrotado: não serve
como fundamento para ação humana. Para o autor, se Torquato não se deu por vencido, faltou-lhe
cumprir o código de conduta da discussão filosófica: ele foi obstinado demais. Citamos: “Se o
prazer, Bruto, falasse ele próprio em seu favor e não tivesse patronos tão obstinados, julgo que
(arbitror), refutado no livro anterior, haveria de ceder ao mérito”500.
Para encerrarmos essa discussão a respeito do método de investigação representado por
Cícero na organização dos três diálogos do De finibus, resta-nos tratar, ainda que de modo rápido,
de uma última questão. A associação que se estabelece na obra do pensador romano entre
filosofia e retórica parece conferir ao discurso dos expositores e refutadores de cada uma das
teses que são discutidas em um diálogo a possibilidade de se servir de todo e qualquer recurso
oferecido pela técnica retórica. Vejamos como a questão se apresenta do ponto de vista teórico.
Nenhum texto de Cícero aponta de modo mais direto a relação íntima que têm essas duas
disciplinas, por assim dizer, de que estamos tratando do que o De fato; nessa obra, a personagem
que representa Cícero assim se defende da reprovação de Hírtio, que o criticara por ter deixado de
lado o estudo da eloqüência:

“Com esse gênero de filosofia que nós seguimos, grande aliança (societatem) tem o
orador: pois toma emprestado da Academia a sutileza e, por sua vez, devolve-lhe a
fecundidade de expressão e os ornamentos do discurso”501.

499
Eiuro, inquit adridens, iniquum, hac quidem de re; tu enim ista lenius, hic Stoicorum more nos uexat (De finibus
II, 119).
500
Voluptatem quidem, Brute, si ipsa pro se loquatur nec tam pertinaces habeat patronos, concessuram arbitror
conuictam superiore libro dignitati (De finibus III, 1).
501
Cum hoc genere philosophiae, quod nos sequimur, magnam habet orator societatem: subtilitatem enim ab
Academia mutuatur et ei uicissem reddit ubertatem orationis et ornamenta dicendi (De fato, 3).

183
O termo que marca a relação no texto latino é societas. Ora, socius é o aliado de guerra. A
relação entre a filosofia acadêmica (hoc genere philosophiae, quod nos sequimur) com a retórica,
portanto, consiste numa espécie de aliança, em que ambas se auxiliam mutuamente.
Para entender como a filosofia ajuda na formação do orador, basta recordar, dentre outros
textos, a introdução do Orator.

“Esteja estabelecido primeiramente o que depois será mais bem compreendido, sem a
filosofia não se pode formar o eloqüente que buscamos, não que tudo esteja, todavia,
nela, mas que ela assim o auxilie, como a ginástica ao histrião”502.

A sutileza que a filosofia empresta à retórica é ilustrada na seção 16 do mesmo Orator,


passagem que já citamos anteriormente.
A contrapartida, entretanto, isto é, a maneira como a retórica pode auxiliar a filosofia é o
que sobretudo nos interessa agora. A retórica traz à filosofia ubertatem orationis et ornamenta
dicendi. Como entender isso? Em alguns momentos de sua obra, o autor romano indica que não
julga como essencial, na expressão do filósofo, qualidades de estilo, tais como a presença de
orationis ornamenta. Uma declaração desse tipo ocorre no contexto da polêmica contra os
epicureus, no livro I do De finibus. Torquato considera que Cícero desaprova Epicuro justamente
porque o filósofo do Jardim não se preocupara em conferir uma expressão ornada a seu discurso.
Eis o que responde a personagem que representa o autor:

“O discurso desse filósofo não me desagrada, pois tanto exprime com palavras o que
deseja, como se expressa claramente de modo a que eu o compreenda; e eu, todavia,
não desprezaria a eloqüência de um filósofo, caso ele a apresentasse; caso ele não a
possuísse, não a exigiria excessivamente”503.

Não parece ser um traço essencial, portanto, no discurso do filósofo a utilização dos
recursos próprios da eloqüência. Mas é um traço fundamental, sim, do gênero mais excelente de

502
Positum sit igitur in primis, quod post magis intellegetur, sine philosophia non posse effici quem quaerimus
eloquentem, non ut in ea tamen omnia sint, sed ut sic adiuuet ut palaestra histrionem (Orator 14).
503
Oratio me istius philosophi non offendit; nam et complectitur uerbis quod uult et dicit plane, quod intellegam; et
tamen ego a philosopho, si adferat eloquentiam, non asperner, si non habeat, non admodum flagitem (De finibus I,
15).

184
filosofia. Vejamos um trecho das Discussões tusculanas em que a filosofia perfeita é
compreendida novamente sob a autoridade de Aristóteles e de seu método de exposição in
utramque partem: “pois esta eu sempre estimei ser a filosofia perfeita, a que fosse capaz de se
pronunciar a respeito das mais importantes questões de modo copioso e ornado”504. Ora, a
filosofia realizada em sua completude (cf. perfectam philosophiam) é aquela em que o filósofo é,
ao mesmo tempo, eloquens, pois que é capaz de tratar de toda questão copiose et ornate.
Desse tipo de filosofia, estão muito afastados tanto os epicureus quanto os estóicos. Na
verdade, a menção à perfecta philosophia no livro I das Tusculanae se insere nitidamente na
polêmica contra a oratio dos filósofos do Jardim e que nos remete à discussão entre Torquato e
Cícero.

“A filosofia esteve desprezada até esta geração e não recebeu nenhum lume das letras
latinas; nós devemos abrilhantá-la e reavivá-la, de modo que, se em nossas ocupações
servimos a nossos concidadãos, sirvamos ainda, se pudermos, em nosso ócio. Nisso
tanto mais nós devemos empregar nosso esforço, pelo fato de que muitos já são os
livros latinos escritos de maneira inconsiderada, dizem, por homens excelentes, sem
dúvida, mas não instruídos o bastante. Pode ocorrer, contudo, que alguém pense com
correção e aquilo que pense não consiga dizer de modo esmerado, mas confiar alguém
às letras suas reflexões, sem que possa bem dispô-las, nem abrilhantá-las, nem seduzir
o leitor por meio de algum deleite, é próprio de um homem que abusa de modo
intemperante tanto do ócio quanto das letras”505.

Trata-se de uma declaração da qual muito se pode extrair para a nossa discussão. Ela deve
ser cotejada, contudo, com outros textos do autor que estudamos. Cícero considera-se, de certo
modo, no âmbito dos escritos filosóficos, como um pioneiro em Roma. Isso se relaciona,
evidentemente, com o projeto educacional que é evocado em diversos de seus proêmios e que,
figurando também no De finibus, deverá ser discutido mais diante. Pois bem, apenas o tipo de

504
Hanc enim perfectam philosophiam semper iudicaui quae de maximis quaestionibus copiose posset ornateque
dicere (Tusculanae, I, 7).
505
Philosophia iacuit usque ad hanc aetatem nec ullum habuit lumen litterarum Latinarum; quae inlustranda et
excitanda nobis est, ut, si occupati profuimus aliquid ciuibus nostris, prosimus etiam, si possumus, otiosi. In quo eo
magis nobis est elaborandum, quod multi iam esse libri Latini dicuntur scripti inconsiderate ab optimis illis quidem
uiris, sed non satis eruditis. Fieri autem potest ut recte quis sentiat et id quod sentit polite eloqui non possit; sed
mandare quemquam litteris cogitationes suas, qui eas nec disponere nec illustrare possit nec delectatione aliqua
adlicere lectorem, hominis est intemperanter abutentis et otio et litteris (Tusculanae I, 6).

185
filosofia que ele cultiva é capaz de dar lustre à filosofia em língua latina. Os autores criticados
aqui são, muito provavelmente, autores epciureus a que Cícero se refere em mais de uma
passagem de sua obra e sempre com o mesmo tom. No início da segunda versão da Academica,
conversando com seu interlocutor, o polígrafo Varrão, a personagem que representa o autor se
refere a esses escritos de pouca qualidade mencionados nas Tusculanae. Citamos:

“Vês, porém, que nós não podemos ser (pois tu aprendeste as mesmas coisas)
semelhantes a Amafínio e a Rabírio, que, sem aplicar qualquer arte, discutem, por meio
de uma linguagem vulgar, a respeito de coisas que se colocam diante dos olhos, nada
definem, nada dividem, nada concluem por meio de uma investigação apropriada e, por
fim, afirmam que não existe uma arte do discurso nem uma arte da argumentação”506.

Os dois autores citados por Varrão, que apresentam diversas características que Cícero
reprova no epicurismo, são, de fato, referidos como epicureus algumas linhas mais abaixo507.
Quanto ao modo de expressão, ao menos, crítica semelhante pode ser feita contra os
estóicos. No segundo diálogo do De finibus, por exemplo, Cícero critica o discurso dos
seguidores dessa filosofia em mais de uma passagem. No prefácio a esse diálogo (III, 3), por
exemplo, a argumentação dos estóicos é dita “espinhosa” (cf. uel spinosum potius disserendi
genus). Já na refutação, em IV, 6, ao modo de expressão dos estóicos, chamado de “desleixado”
(cf. squalidius), é comparado aquele dos antigos acadêmicos e peripatéticos: “um modo de
expressão que não é de homens que arrancam espinhos, como os estóicos, ou que desnudam
ossos, mas de homens tais, que desejem se expressar de modo ornado sobre as grandes
questões”508. Mais adiante, as Artes Retóricas escritas pelos estóicos são consideradas eficientes
na formação de oradores mudos (cf. IV, 7).
Pois bem, apenas a expressão do filósofo acadêmico é a apropriada à perfecta philosophia.
Apenas ele, porque busca sempre expor os dois lados da questão, fala de modo copioso. Apenas
ele tem como uma preocupação a elaboração estética do discurso que pode dar lustre às questões
filosóficas. Provavelmente porque sabe que não é possível alcançar a verdade, mas apenas dela se

506
Vides autem (eadem enim ipse didicisti) non posse nos Amafini aut Rabiri similes esse, qui nulla arte adhibita de
rebus ante oculos positis uulgari sermone disputant, nihil definiunt, nihil partiuntur, nihil apta interrogatione
concludunt, nullam denique artem esse nec dicendi nec disserendi putant (Academica I, 5).
507
Cf. Academica I, 6. Veja-se ainda a referência aos inculta quaedam et horrida... scripta de De finibus I, 8.
508
Hominum non spinas uellentium, ut Stoici, nec ossa nudantium, sed eorum, qui grandia ornate uellent... dicere
(De finibus IV, 6).

186
acercar, por meio da confrontação entre discursos contraditórios, o filósofo acadêmico, conforme
a concepção de Cícero, estará preocupado também com a impressão que seu discurso irá causar
no ouvinte. É o que se disse na passagem das Tusculanae citada anteriormente: “mas confiar
alguém às letras suas reflexões, sem que possa bem dispô-las, nem abrilhantá-las, nem seduzir o
leitor por meio de algum deleite, é próprio de um homem que abusa de modo intemperante tanto
do ócio quanto das letras”509.
Ora, nesse trecho, o autor se refere claramente às três principais partes da retórica. As
reflexões (cogitationes) se relacionam à inuentio, isto é, aos argumentos de que o filósofo dispõe,
ou, antes, que ele busca encontrar. Disponere diz respeito claramente à maneira como os
argumentos devem estar organizados ao longo do discurso, ou seja, diz respeito à dispositio.
Illustrare se refere à escolha das palavras que devem servir para exprimir de modo adequado e
belo os argumentos encontrados. Mas, até aqui, nada de muito inusitado. Cícero concebe o
discurso do filósofo, como qualquer outro discurso, por meio do instrumental da arte retórica. O
mais notável, é o fato de nosso autor conferir ao filósofo, de modo inequívoco, uma das tarefas
próprias do orador, o delectare.
É mais do que conhecido o passo do Orator em que o autor romano indica aquilo a que
deve visar o orador: “Será então eloqüente (...) aquele que no fórum e nas causas civis discurse de
tal forma, que prove (probet), que agrade (delectet), que comova (flectat)”510. Ora, é justamente
essa tarefa, a qual, no âmbito do orador, ele trata por meio do verbo delectare, que ele enumera
como um dos traços constituintes da filosofia perfeita, quando sugere que o filósofo deve
“seduzir o leitor por meio de algum deleite” (cf. delectatione aliqua adlicere lectorem, Tusc. I,
6). À necessidade de probare, que se faz evidente por conta da própria concepção que a filosofia
acadêmica tem do conhecimento511, vem se unir uma exigência pelo delectare; essa tarefa se
efetiva por meio da utilização de ornatus, que podem ser de dois tipos: as figuras de pensamento,
ou ornamenta sententiarum, e as figuras de palavras, ornamenta uerborum512. Buscamos, ao
longo das notas que acompanham o texto da tradução, apontar, ainda que não de modo exaustivo,

509
Cf. Tusculanae I, 6.
510
Erit igitur eloquens (...) is qui in foro causisque ciuilibus ita dicet ut probet, ut delectet, ut flectat (Orator 69). É
difícil traduzir o verbo flectere nesse contexto. A idéia é de “dobrar”. No que se refere ao ânimo do ouvinte, demovê-
lo do seu modo de pensar, convencê-lo, sobretudo por meio do uso do pathos.
511
Vimos que o filósofo acadêmico não acredita poder atingir a verdade, mas tão somente o probabile, que se
constrói, do ponto de vista lógico, por meio do choque entre discursos contraditórios.
512
Cf. Orator 80.

187
as figuras de que se servem os diversos oradores que, como expositores ou refutadores de
sistemas filosóficos, atuam no De finibus. A essas notas nós remetemos o leitor.
Resta saber, entretanto, se ao filósofo ciceroniano será permitido ainda o flectere. Em outras
palavras, seria adequado a uma discussão filosófica a utilização de elementos que suscitem a
emoção do interlocutor ou do leitor? Vejamos, num primeiro momento, como Cícero discute a
questão em um texto teórico. Trata-se do passo 62-64 do Orator, em que o autor pretende
estabelecer uma diferença entre a oratio própria do orador e aquela de que se serve o filósofo:

“Ainda que, de fato, alguns filósofos tenham se expressado de modo ornado (...)” São
citados, então, Teofrasto, Aristóteles, Xenofonte e Platão, além de Isócrates. “todavia,
o discurso desses não possui nem os nervos nem os aguilhões próprios ao fórum: falam
com doutos, de quem mais querem aliviar as almas do que incitá-las (...) é brando, de
fato, o discurso dos filósofos e fica à sombra, não é armado nem de palavras nem de
pensamentos voltados para o povo, nem encerrado em uma cadência, mas solto mais
livremente, nada de colérico tem, nada de odioso, nada de violento, nada de miserando,
nada de astuto: casta, respeitável, uma donzela de algum modo intocada, e, dessa
forma, antes conversação (sermo) do que discurso (oratio) é chamado”513.

Trata-se de um texto importante e polêmico. O autor do Orator parece reconhecer uma


diferença fundamental entre os discursos de filósofos e oradores no que diz respeito, dentre outras
coisas, à utilização de elementos patéticos, isto é, de recursos que toquem afetivamente os
ouvintes ou leitores. Ainda que alguns filósofos tenham se expressado de modo divino, o tipo de
discurso que utilizam não é apropriado ao fórum. As expressões neruos e acueleos referem-se à
capacidade que tem o discurso do orador de mover as almas dos ouvintes. Estão, portanto,
relacionadas àquilo que no discurso excita as emoções. Os filósofos buscariam, muito pelo
contrário, tranqüilizar os espíritos, não colocá-los em movimento. O discurso dos filósofos é dito
mollis e umbratilis. Ele é pouco enérgico. Fica à sombra: é o discurso próprio às questões que se

513
Quamquam enim et philosophi quidam ornate locuti sunt – si quidem et Theophrastus diuinitate loquendi nomen
inuenit et Aristoteles Isocraten ipsum lacessiuit et Xenophontis uoce Musas quasi locutas ferunt et longe omnium
quicumque scripserunt aut locuti sunt exstitit et grauitate <et suauitate> princeps Plato – tamen horum oratio neque
neruos neque aculeos forenses habet: loquuntur cum doctis, quorum sedare animos malunt quam incitare (...) mollis
est enim oratio philosophorum et umbratilis, nec sententiis nec uerbis instructa popularibus, nec uincta numeris sed
soluta liberius; nihil iratum habet, nihil inuidum, nihil atrox, nihil miserabile, nihil astutum: casta, uerecunda, uirgo
incorrupta quodammodo, itaque sermo potius quam oratio dicitur (Orator 62-64).

188
discutem em pequenos círculos, nos pórticos cobertos. Não é o discurso do homem que se expõe,
em praça pública, ao juízo da multidão. As palavras utilizadas na filosofia seriam pouco afeitas
ao gosto popular. Por fim, o autor nega, de modo enfático, a presença de qualquer elemento
afetivo no discurso da filosofia: ele não desperta ódio, cólera ou comiseração. A imagem final é
contundente: inocente, sem qualquer astúcia, a oratio philosophorum é como uma virgem
intocada...
Dificilmente, entretanto, após termos lido uma obra filosófica de Cícero, poderíamos
encontrar coerência entre esta caracterização que ele faz do discurso filosófico e as orationes que
ele de fato atribui a cada uma das personagens que tomam a palavra nessas obras. Nesse ponto,
concordamos com Phillipa R. Smith514: as afirmações feitas nessa passagem não podem ser
encaradas como prescritivas. Não podemos pensar que é isso que Cícero preconiza como discurso
ideal, uma vez que não é esse tipo de discurso que ele finalmente utiliza em suas obras
filosóficas. A passagem parece antes fazer comentários a respeito da elocução comum dos
filósofos, sobretudo daqueles (cf. tamen horum oratio) que são citados nominalmente na
passagem. Além do mais, talvez a diferença entre o discurso desses filósofos e aquele que é
apropriado à oratória pública tenha sido aqui realçada, justamente porque, ainda que alguns
filósofos – aqueles citados – tenham se expressado “de modo ornado”, há algo próprio desse tipo
de discurso que não pode ser utilizado no fórum. O objetivo no Orator é tratar do discurso
especial do orador, não caracterizar aquele dos filósofos.
Seja como for que se resolva a controvérsia, importa-nos observar que no discurso
filosófico de Cícero podem ser observados elementos patéticos, ainda que utilizados com mais
parcimônia do que em um discurso público. É interessante recordar, nesse sentido, o que diz
Carlos Lévy a respeito da diferença entre sermo e contentio. A distinção entre essas duas
modalidades de expressão não coincide com a distinção entre diálogo e eloqüência. A diferença
entre as duas consiste na presença ou não de tensão no discurso daquele que fala. Assim, mesmo
um diálogo, se ele recai em confrontação, é para um romano mais próximo de um período
oratório do que de uma conversação entre amigos515.
E, de fato, encontramos nas obras filosóficas de Cícero diversos exemplos de argumentos
que se servem de elementos afetivos. Contam-se entre esses, por exemplo, as difamações

514
Smith, P.R., 1995, cf. especialmente páginas 308-311.
515
Lévy, C., 1993, p. 402.

189
lançadas por Cícero contra o filósofo cujo pensamento é exposto por seu interlocutor.516 Há
diversos exemplos no que diz respeito a Epicuro nos livros I e II, como os já citados na página
147. No livro IV, por outro lado, quando acusa Zenão, o estóico, de ter plagiado o pensamento de
Pólemon e disfarçado o plágio por meio da utilização de uma nova terminologia, Cícero brinca
maliciosamente com a origem do fundador da Stoa (cf. IV, 56: tuus ille Poenulus – scis enim
Citieos, clientes tuos, e Phoenica profectos), servindo-se da opinião que atribui aos cartagineses
um caráter pouco confiável. No livro V, Pisão, utilizando argumento semelhante, trata os
expoentes do estoicismo como ladrões astutos e dissimulados:

“Restam os estóicos. Mas esses, não foi uma ou outra parte que de nós eles tomaram,
mas toda a nossa filosofia transladaram à sua escola; e, assim como os demais ladrões
alteram os traços distintivos das coisas que tomaram, da mesma forma eles, para que se
servissem de nossos pensamentos como se fossem seus, os nomes, que são como que
as marcas das coisas, eles alteraram”517.

A mais longa e exasperada invectiva contra um filósofo que podemos encontrar na obra de
Cícero, no entanto, é aquela dirigida a Antíoco na parte central do livro II da Academica. Nessa
versão da obra, Cícero, representado como personagem, é o defensor do probabilismo de Fílon e,
no momento em questão, prepara-se para refutar a exposição feita por Luculo, que apresentara as
idéias de Antíoco sobre o conhecimento. Antes de passar à observação pontual dos argumentos
utilizados por Luculo, a personagem de Cícero dirige duras críticas à pessoa de Antíoco, como se
desejasse, assim como num tribunal, enfraquecer, por meio da reprovação moral, a autoridade de
uma testemunha. Aqui, no entanto, não se trata de uma testemunha, mas do próprio auctor das
idéias professadas por Luculo. 518
A personagem de Cícero, além do mais, não dissimula o fato de se servir de argumentos ad
hominem que, na expressão de Philippa Smith, se mostram no more rational than appeals to pity

516
Ora, nós vimos, acima, como personagem de Cícero, no De finibus (II, 27-28), ao estabelecer uma espécie de
código de conduta da conversação filosófica, condena os ultrajes e as difamações. Será, entretanto, que o princípio só
se aplica aos interlocutores, que não poderiam então trocar insultos entre si?
517
Stoici restant. Ei quidem non unam aliquam aut alteram <rem> a nobis, sed totam ad se nostram philosophiam
transtulerunt; atque ut reliqui fures earum rerum, quas ceperunt, signa commutant, sic illi, ut sententiis nostris pro
suis uterentur, nomina tamquam rerum notas mutauerunt (De finibus V, 74).
518
Nesse sentido, devemos reconhecer que a difamação de Antíoco, ainda que pretenda tocar o interlocutor com o
sentimento de vergonha, ou seja, provoque efeito patético, tem também importante efeito ético, já que almeja,
segundo pensamos, diminuir a autoridade do filósofo que é reprovado.

190
(1995, p. 312). Assim, os limites da invectiva são marcados por expressões bastante claras, que
manifestam a escolha deliberada da personagem de se servir de tais argumentos. No início: sed
prius pauca cum Antiocho, isto é, “mas, antes, algumas palavras com Antíoco”519. Ao final: sed
cum hoc alio loco plura, nunc ad ea quae te, Luculle, dicta sunt, isto é, “mas, com ele, falarei
mais em outro momento, agora, volto-me àquilo que tu disseste, Luculo”520. A própria
personagem, portanto, reconhece o caráter exclusivamente ad hominem de sua argumentação
nesse trecho que ocupa três seções do livro (de 69 a 71). Na invectiva, Antíoco é acusado de
inconstância (cf. quamuis igitur fuerit acutus, ut fuit, tamen incosntantia leuatur auctoritas:
“portanto, por mais que tenha sido agudo, como de fato foi, sua autoridade perde peso por causa
de sua inconstância”, II, 69). A personagem de Cícero zomba da mudança de convicção de
Antíoco em termos que nos fazem pensar quase em uma conversão religiosa: “Quando raiou esse
tal dia, eu gostaria de saber, que lhe mostrou a marca do verdadeiro e do falso que ele negara por
tantos anos?”521 Já que pensava o mesmo que os estóicos, por que hesitou em se juntar a eles?
Teve vergonha de admitir que era estóico? Ou, desejoso de glória, quis criar uma escola sua, de
modo que seus discípulos fossem chamados Antiochii? (cf. Academica II, 70) Por que abandonou
o ceticismo acadêmico? Na perspectiva da personagem de Cícero, porque não pode fazer frente
às críticas de todos os outros filósofos. Não há dúvida de que, com esse tipo de estratégia, Cícero
prepara o terreno para a refutação da argumentação que fora apresentada por Luculo.
Outro tipo de argumento que suscita o pavqo" e que o autor romano emprega de modo
copioso é o exemplo histórico. Ao evocar os grandes homens do passado, sobretudo os romanos,
o discurso filosófico de Cícero se enche de um sentimento de admiração. Tais exempla, que são
utilizados por todas as personagens, têm claramente uma função afetiva, pois que tentam
despertar no interlocutor e no leitor, muitas vezes, um desejo de imitação dos homens lembrados
através dos tempos. Em outras ocasiões, os exempla servem para rechaçar, não sem grande dose
de apelo ao pathos, as doutrinas que não se ajustam ao mos maiorum, notadamente o
epicurismo.522

519
Academica II, 69.
520
Academica II, 71.
521
Quis enim iste dies inluxerit quero qui illi ostenderit eam quam multos annos esse negauisset ueri et falsi notam ?
Academica II, 69.
522
Também com relação aos exempla históricos devemos reconhecer um importante efeito ético. Com os exemplos o
orador investe a sua persona da autoridade dos grandes homens do passado.

191
No livro II, ao rebater a doutrina do prazer, há um momento em que a personagem de
Cícero recorre a dois exemplos de atos heróicos do passado romano, a fim de demonstrar como o
mos dos antepassados reconhecia na virtude um valor próprio, uma vez que os heróis nacionais
foram felizes mesmo na austeridade, sem nada referirem ao prazer. Citamos: “Desonrada, com
violência, pelo filho do rei, Lucrécia, tomando os cidadãos por testemunhas, deu fim a si própria.
Tal sofrimento do povo romano, que teve em Bruto seu líder e representante, foi a causa da
libertação da cidade, e, em memória a esta mulher, no primeiro ano, seu marido e seu pai foram
feitos cônsules. O modesto Lúcio Virgínio, um dentre muitos, sessenta anos após a conquista da
liberdade, matou com suas próprias mãos a filha virgem, de preferência a entregá-la ao capricho
de Ápio Cláudio, que detinha então sumo poder”523. Após ter mencionado Lucrécia e Virgínio524,
a personagem de Cícero conclui: “Tu deves, Torquato, ou repreender tais ações, ou repudiar a
defesa do prazer”525.
Na refutação de Torquato, no entanto, tem ainda mais peso os exempla tomados da própria
família do interlocutor, dos quais trataremos ao falar do éthos do patrono do epicurismo. Neste
ponto, entretanto, vale a pena recordar um exemplo histórico que vem do mundo grego. Trata-se
da morte de Epaminondas, em batalha, próximo a Mantinéia. O general tebano é citado mais de
uma vez no De finibus, mas, em uma ocasião em especial, sua morte é celebrada com grande
apelo emocional. Cícero conta que Epamindondas,

“Vencendo os lacedemônios em Mantinéia e vendo a si próprio esvair-se por uma


grave ferida, logo que se apercebeu do que se passava, quis saber se estava a salvo o
escudo. Ao lhe responderem, em prantos, que estava a salvo o escudo, perguntou se os
inimigos tinham sido desbaratados. Tendo ouvido, também nesse caso, o que desejava,

523
Stuprata per uim Lucretia a regis filio testata ciuis se ipsa interemit. hic dolor populi Romani duce et auctore
Bruto causa ciuitati libertatis fuit, ob eiusque mulieris memoriam primo anno et uir et pater eius consul est factus.
tenuis Lucius Verginius unusque de multis sexagesimo anno post libertatem receptam uirginem filiam sua manu
occidit potius, quam ea Ap. Claudii libidini, qui tum erat summo <cum> imperio, dederetur (De finibus II, 66).
524
Sobre as narrativas envolvendo essas personagens, vejam-se as notas ao livro II.
525
Aut haec tibi, Torquate, sunt uituperanda aut patrocinium uoluptatis repudiandum (De finibus II, 67). Para
entender a importância que têm os exempla históricos, sobretudo de eventos romanos, no projeto filosófico de
Cícero, basta observar uma afirmação feita pela personagem que representa o autor, após Catão ter mencionado os
exemplos dos Africanos e dos Máximos como testemunho do valor absoluto da virtude. Por meio desses
testemunhos, Catão estaria conferindo à filosofia a cidadania romana (cf. De finibus III, 40).

192
mandou que lhe retirassem a haste que o trespassava. Assim, vertido muito sangue,
alegre e vitorioso morreu”526.

A narrativa excita admiração e comiseração pelo general que, mesmo moribundo, preocupa-
se com a própria honra, representada pelo escudo, e com a vitória de seu exército. Seria, na
verdade, apenas mais um exemplo dentre vários do mesmo tipo, não fosse o fato de o próprio
Cícero, em uma carta que envia ao amigo Luceio, historiador, mencionar justamente esse
episódio, quando trata do poder que a narrativa histórica tem de tocar emocionalmente os
ouvintes. Citamos:

“Ora, a quem dentre os nossos o célebre Epaminondas, morrendo próximo a Mantinéia,


não deleita com alguma sorte de comiseração? Ele, na ocasião, somente ordenou que
lhe arrancassem a lança depois que lhe disseram (pois ele perguntava) que o escudo
estava salvo, de modo que, tomado pela dor do ferimento, espírito tranqüilo, com
honra, viesse a morrer (...) as difíceis circunstâncias, imprevisíveis e volúveis, que
envolvem um grande homem, trazem consigo admiração, expectativa, alegria, pesar,
esperança, medo; e caso se concluam com um desfecho memorável, preenche-se a
alma do leitor com o mais delicioso prazer”527.

Pois bem, se Cícero fala, no segundo livro do De finibus, de uma rhetorica philosophica,
nós a podemos ver efetivada por meio dos discursos de cada uma das personagens que o autor
põe em cena. Se o procedimento dos oradores do De finibus não é exatamente o mesmo de
oradores que se pronunciam diante da multidão, uma vez que a matéria é pouco acessível e, por
outro lado, uma vez que a controvérsia constitui uma quaestio e não uma causa, não podemos
526
Cum uicisset Lacedaemonios apud Mantineam atque ipse graui uulnere exanimari se uideret, ut primum dispexit,
quaesiuit saluusne esset clipeus. cum saluum esse flentes sui respondissent, rogauit essentne fusi hostes. cum id
quoque, ut cupiebat, audiuisset, euelli iussit eam, qua erat transfixus, hastam. ita multo sanguine profuso in laetitia
et in uictoria est mortuus (De finibus II, 97).
527
Habet enim praeteriti doloris secura recordatio delectationem; ceteris uero nulla perfunctis propria molestia,
casus autem alienos sine ullo dolore intuentibus, etiam ipsa misericordia est iucunda. quem enim nostrum ille
moriens apud Mantineam Epaminondas non cum quadam miseratione delectat? qui tum denique sibi euelli iubet
spiculum postea quam ei percontanti dictum est clipeum esse saluum, ut etiam in uulneris dolore aequo animo cum
laude moreretur (...) at uiri saepe excellentis ancipites uariique casus habent admirationem, exspectationem,
laetitiam, molestiam, spem, timorem; si uero exitu notabili concluduntur, expletur animus iucundissima lectionis
uoluptate (Cícero, Ad familiares, V, 12, 5). Cabe notar, de todo modo, que, nessa carta, lado a lado com o que é do
domínio da emoção, vem a capacidade de deleitar os leitores ou ouvintes. Certos afetos, quando gerados pela
narrativa, parecem ser assim produtores de prazer. Não é surpreendente que muitos estudiosos tenham tomado a carta
como uma espécie de teorização de uma historiografia trágica.

193
deixar de notar que o orador filósofo tem à sua disposição todos os recursos da oratória pública e,
de fato, utiliza-os com vistas a defender sua tese ou a criticar a de seu oponente. Talvez uma
análise mais minuciosa, tomando como instrumental, por exemplo, as divisões do discurso sobre
as quais teoriza Cícero em suas obras de arte retórica, pudesse mostrar, de modo diferente do que
propusemos, o quão próximos estão os discursos das personagens de Cícero e os discursos
públicos que o próprio Cícero legou à posteridade. Não foi nosso propósito, entretanto, fazer isso.
Defendemos, entretanto, que conferir a cada uma de suas personagens todos os recursos da
oratória para que cada uma delas possa tornar probabile o sistema que expõe e, por outro lado,
apresentar, servindo-se dos mesmos recursos, um discurso que contradiga a exposição, enquadra-
se perfeitamente no método de investigação que Cícero, como adepto do probabilismo
acadêmico, sustenta. O gênero diálogo conforme foi cultivado pelo autor romano é, portanto, uma
representação do método que ele julga ser o mais eficiente na busca da verdade e no alcance do
probabile.
Não é por acaso que Philippa Smith, em seu artigo já citado528, defende a metodologia
ciceroniana aproximando o in utramque partem dicere529 do procedimento legal adotado, por
exemplo, nos tribunais britânicos530 que garante a cada advogado envolvido na causa o direito de
utilizar todos os recursos possíveis para defender a sua parte. A estudiosa julga que, apesar das
críticas da parte de alguns, que consideram que o advogado não poderia se servir de falsidades e
artimanhas, uma vez que o que se busca no tribunal é alcançar a verdade sobre o fato ocorrido, o
sistema é, ainda assim, justificável, precisamente porque não é ao advogado que cabe julgar o que
é verdadeiro ou falso, mas ao júri. Ela cita um estudioso do sistema jurídico americano:

“Muitos advogados (...) pensam que a melhor maneira de um júri descobrir os fatos em
um processo é que cada parte lute do modo mais intenso que possa, num espírito
francamente partidário, para trazer à atenção do júri as evidências favoráveis a essa
parte (...) nós obtemos a decisão mais justa ‘quando dois homens argumentam o mais

528
Smith, P.R, 1995.
529
Ora, não podemos esquecer o sentido forte que tem, em Cícero, o verbo dicere, que designa nas obras de retórica,
o falar em pública, o discursar.
530
Smith, P.R, 1995, pp. 318-323. O procedimento é, no entanto, empregado em outros países também.

194
injustamente possível, em lados opostos’, pois, então, ‘é certo que nenhuma
consideração importante vai deixar de ser levada em conta’”531.

A estudiosa, ainda que sem afirmar, prudentemente, que o sistema jurídico romano
funcionasse ou fosse justificado exatamente nesses termos, aponta indícios, na obra do próprio
Cícero, de uma nítida separação entre os papéis dos juízes e dos oradores; esses indícios nos
fazem pensar que o sistema romano continha alguns elementos semelhantes aos daquele que ela
chama adversarial system, conforme é utilizado na Inglaterra e em outros países. Os trechos
examinados são do Pro Fonteio: 21-22 e 25.532 Deste último, bastante significativo, apresentamos
uma tradução:

“Houve, senhores juízes, houve, de fato, para os juízes daquele tempo, uma capacidade
de deliberação singular e divina, eles que consideravam julgar não apenas a respeito do
réu, mas ainda a respeito do acusador, a respeito da testemunha, o que lhes parecesse
forjado, o que lhes parecesse produzido pelo acaso e pela oportunidade, o que
corrompido por suborno, o que distorcido pela esperança ou pelo medo, o que
motivado pelo interesse ou pela inimizade”533 (os juízes mencionados são os do tempo
de Lúcio Crasso).

Voltando ao De finibus, não é difícil observar como Cícero se mostra preocupado com esse
tipo de questão. Ele parece tentar se esquivar de qualquer suspeita de favorecimento a uma das
partes. Os dois oradores que devem defender os sistemas filosóficos cuja capacidade retórica ele
põe em xeque, isto é, Torquato, patrono do epicurismo, e Catão, patrono do estoicismo, são
caracterizados, enquanto oradores, não como típicos epicureus ou estóicos, mas como homens
que cultivam um tipo de discurso que está mais próximo do orador eloquens teorizado por
Cícero. Assim, criticando o preceito epicurista que prescreve que o sábio deva se afastar de toda a
educação tradicional, a personagem de Cícero faz uma ressalva com relação a Torquato: “É bem

531
Frank, J. “The ‘Fight Theory’ versus the ‘Truth Theory’”, In: Courts on trial: myth and reality in American
Justice (Princeton, 1949), pp. 80-102. apud Smith, P.R., 1995, p. 318.
532
Cf. Smith, P.R., 1995, p. 320.
533
Fuit, fuit illis iudicibus diuinum ac singulare, iudices, consilium, qui se non solum de reo sed etiam de accusatore,
de teste iudicare arbitrabantur, quid fictum, quid fortuna ac tempore adlatum, quid pretio corruptum, quid spe aut
metu deprauatum, quid a cupiditate aliqua aut inimicitiis profectum uideretur (Pro Fonteio, 25).

195
verdade que, tu, ao menos, não penso teres sido afastado absolutamente”534. De modo
semelhante, criticando a esterilidade da retórica dos estóicos, aquela que formaria oradores
mudos, a personagem do autor elogia a expressão de seu interlocutor e conclui o elogio com uma
ressalva: “pois, sem dúvida, tu tens conhecimentos provenientes dos retores; da parte deles,
porém, em formulações semelhantes, quanta esterilidade (...)”535.
Observando seus discursos, devemos reconhecer que a ambas as personagens é permitida,
por exemplo, uma grandiloqüente representação de seus homens sábios. Para Torquato, cf. I, 65;
para Catão, III, 75. Nessas passagens, os oradores falam muito mais como representantes de uma
oratória que agrada a Cícero do que como representantes típicos de suas correntes filosóficas.
Nesse sentido, poderíamos dizer que o método é conduzido, pelo autor, de modo justo, uma vez
que ele confere às personagens (e o caso do epicureu é emblemático, já que representa a filosofia
que, dentre as expostas no De finibus, tem a menor aprovação da parte do autor) os mesmos
recursos retóricos, permitindo-lhes tornar suas teses persuasivas.
Entretanto, esse seria, a nosso ver, um juízo precipitado536. Não podemos esquecer que a
obra dialógica ciceroniana se insere num projeto de educação filosófica que é defendido de modo
bastante claro pelo autor em diversas de suas obras. Por outro lado, os diálogos não representam
situações reais em que indivíduos históricos defenderam suas teses, tampouco, segundo nos
parece, situações ideais em que cada sistema pôde ser apresentado da melhor maneira possível, a
despeito do que afirma por vezes o autor; são, antes, obras de ficção, em que o autor representa, à
sua maneira, uma discussão possível que determinadas pessoas (por vezes ele próprio incluído
como personagem) poderiam ter travado algum dia, ainda que ela nunca tenha de fato ocorrido.
Ora, a ficção é obra do autor, que pode ter pretendido de alguma forma favorecer as idéias que
lhe eram caras. No caso específico do De finibus, podemos de certa forma entrever a atuação do
autor uma vez que é ele quem organiza as três situações miméticas em forma de tratado; forma à
qual ele parece impor um direcionamento argumentativo.

534
Quamquam te quidem uideo minime esse deterritum (De finibus I, 26).
535
Habes enim a rhetoribus; illorum uero ista ipsa quam exilia (De finibus IV, 7).
536
O tom otimista com que se encerra seu artigo parece mostrar que Philippa Smith não atentou para problemas que
vão além do embate entre os oradores que são colocados em cena. Citamos: “E, dessa maneira, talvez, com uma
retórica aberta e não dissimulada, com a persuasão que vem de ambas as partes, não de uma só, é possível, ao final
das contas, alcançar aquela louvável meta da Academica: ‘deixar o juízo da audiência puro e livre’”.

196
É hora, portanto, de tratar do projeto filosófico de Cícero. Em seguida, da maneira como a
mimese dos diálogos particulares é constituída e do modo como as representações miméticas são
organizadas sob a forma de tratado.

IV – O projeto ciceroniano de formação de uma filosofia em latim


O que Cícero pretende com suas obras de filosofia, ou ao menos aquilo que ele professa ser
seu objetivo, é algo a que temos acesso, sobretudo, por meio dos proêmios de seus diálogos
filosóficos. É aí que podemos ouvir o que o autor tem a dizer a respeito de sua obra. É onde
Cícero defende o trabalho que apresenta ao público. É nessa parte da obra, também, que o autor
introduz a representação mimética e, em casos como o do De finibus, organiza os diferentes
diálogos em torno de uma só questão, o que lhes confere unidade.
Já nos referimos ao importante prefácio do segundo livro do De diuinatione, em que Cícero
apresenta uma lista de suas obras até então publicadas. Após elencar as obras que escrevera, o
autor nos revela um projeto audacioso:

“Até aqui: essas obras. Ao que restava, com ardor nós nos dirigíamos, com tal
disposição de ânimo, que, se nenhuma causa mais grave tivesse se colocado como
obstáculo, não deixaríamos remanescer nenhum tópico de filosofia que não se tornasse
acessível, abrilhantado em letras latinas. Pois que maior serviço ou mais excelente
podemos realizar em favor da república, do que ensinar e instruir a juventude?”537.

Ora, trata-se de um projeto de educação. Se, por um lado, por conta de suas razões estéticas
e filosófica, Cícero pretende illustrare a filosofia na língua latina, por outro lado, o
empreendimento tem como finalidade franquear esse tipo de conhecimento aos seus concidadãos
(cf. pateret). O autor considera sua obra, portanto, uma espécie de serviço público (cf. munus rei
publicae), como aquele que poderia prestar a seus concidadãos um sujeito que ocupasse um cargo
na administração da cidade, das províncias, ou na gerência de uma campanha militar.
A expressão desse projeto de confiar à língua latina os ensinamentos que até então só
estavam disponíveis em grego é algo bastante presente nos textos filosóficos compostos por

537
Adhuc haec erant; ad reliqua alacri tendebamus animo sic parati, ut, nisi quae causa grauior obstitisset, nullum
philosophiae locum esse pateremur, qui non Latinis litteris inlustratus pateret. Quod enim munus rei publicae
adferre maius meliusue possumus, quam si docemus atque erudimus iuuentutem? (Diuinatione II, 4)

197
Cícero a partir de 45 a.C, como a Academica, o De finibus, as Tucsuclanae, o De natura deorum,
etc. Entretanto, nos proêmios de duas dessas obras, o De finibus bonorum et malorum e a versão
final dos Academici libri, a questão da produção de uma filosofia em latim surge de maneira mais
pungente e complexa. Provavelmente porque com esses conjuntos de diálogos Cícero inaugure,
em sua obra, a discussão de partes mais teóricas da filosofia e cuja aplicação na vida cotidiana
poderia não parecer tão evidente. Até então, obras como o De re publica e o De legibus, ainda
que tratassem de filosofia, ainda que fossem discussões teóricas, tratavam de assuntos
diretamente voltados para a ação, para o negotium; ora, discutiam a melhor maneira de gerir uma
cidade e as leis que a devem reger. O mesmo se pode dizer com relação às obras sobre arte
retórica. Com os livros do ano de 45 a.C., Cícero daria início ao tratamento de questões
aparentemente afastadas da vida prática, algo que, como tarefa empreendida por um ex-cônsul,
exigiria, no contexto cultural da Roma republicana da segunda metade do século I a. C, uma boa
justificativa. Sabemos por inúmeros testemunhos (veja-se, por exemplo, os prefácios do
historiador Salústio), que, nesse contexto, dentre todas as ocupações humanas, eram mais bem
vistas aquelas que se voltassem para a coletividade e para a vida prática, de modo que
especulações sobre temas mais teóricos da filosofia poderiam não ser bem recebidas por todos.
Aqui, entretanto, cabe um parêntese: é bem verdade que já no Hortênsio, também de 45 a.C.,
Cícero fizera uma exortação ao estudo de filosofia, mas, infelizmente, isso é algo que só podemos
inferir das outras obras538, pois esse diálogo, tão admirado por Santo Agostinho, por exemplo,
não chegou até nós.
Nos proêmios dessas duas obras, é dada voz aos que se contrapõem à composição de obras
filosóficas em latim, e isso de duas formas: Na Academica, sob a forma de um diálogo entre duas
personagens: Cícero, defensor da filosofia em latim e Varrão, que entende que seria um trabalho
vão empreender tal tarefa. No De finibus, através de uma figura de pensamento que consiste em
antever os argumentos de possíveis opositores e rebatê-los de antemão (a anteoccupatio, como é
chamada no De oratore III, 205.)
Do ponto de vista da argumentação, porém, os dois proêmios parecem caminhar lado a
lado. De modo geral, os mesmos argumentos são utilizados, com poucas variações, nos dois
prefácios. Por vezes, ademais, determinado argumento, da forma como é apresentado em um,

538
Cf. De finibus I, 2: “naquele livro em que, acusada e detratada por Hortênsio, a filosofia foi defendida e louvada
por nós.” / eo libro quo a nobis philosophia defensa et conlaudata est, cum esset accusata et uituperata ab
Hortensio.

198
acaba por completar ou elucidar um argumento utilizado no outro. Três aspectos parecem nortear
a questão da produção de textos filosóficos em latim nesses prefácios: um, mais geral, decorre da
necessidade de justificar o projeto, demonstrando sua importância político-pedagógica; os outros
dois surgem ao longo dessa justificativa: as preocupações estéticas do autor e as dificuldades
inerentes à língua latina. Neste ponto, devemos nos ater ao primeiro aspecto. O segundo,
entretanto, já foi discutido no fim da seção que tratava do método de investigação filosófica e de
sua afinidade com a retórica. Quanto à dificuldade inerente à língua latina para o tratamento de
questões filosóficas, trata-se de um problema que aparece em nossas notas às traduções, sempre
que, em seu texto, Cícero comenta suas opções de tradução e, em especial no início do livro III
do De finibus, quando ele expõe um projeto de tradução.
No prefácio de Academica I, as personagens Cícero e Ático, que se encontram na quinta de
Cícero em Cumas539, vão ao encontro de Varrão, recém-chegado de Roma para sua quinta, que
não ficava muito longe da de Cícero. O encontro se dá na propriedade do autor do De lingua
latina (eis um importante elemento dos diálogos ciceronianos: eles se dão, geralmente, nas casas
de campo das personagens, espaço em que, afastados da vida pública, esses homens podem
dedicar seu ócio a discussões que não se voltam diretamente para a ação política)540. Após uma
breve conversa, Cícero, negando-se, cortesmente, perguntar sobre o De lingua latina, que sabe
estar tomando muito tempo do amigo, volta-se a Varrão dizendo:

“No entanto, eis uma pergunta que, antes desta ocasião, jamais me veio à mente te
fazer, mas agora, depois que me lancei a confiar aos textos aquilo que em tua
companhia aprendi e a abrilhantar em letras latinas aquela antiga filosofia que se
originou em Sócrates, pergunto por que, embora muito escrevas, deixas de lado este

539
No litoral da região da Campânia, ao sul de Roma.
540
É um traço da representação mimética das obras de Cícero que está de acordo com o ambiente cultural em que ele
viveu. Nesse ponto, suas obras representam um elemento importante do momento histórico em que ele as compôs.
Michel Ruch, que estudou a composição mimética dos diálogos ciceronianos, dedica uma seção para tratar do papel
das uillae na composição cênica. O autor colhe evidências tomadas da correspondência de Cícero para defender o
quanto a representação das conversas que podemos ler nos diálogos são ficções bastante calcadas em costumes de
sua vida cotidiana (cf. Ruch, 1958, pp. 80-85). Essas propriedades de campo representavam para os optimates
romanos o lugar consagrado ao ócio. Nelas, eles passavam temporadas, quando estavam livres das ocupações da vida
pública. Note-se que outro traço fundamental na mimese ciceroniana, que está ligado ao ambiente das uillae, é o fato
de a grande maioria das discussões representadas acontecerem em períodos de feriados, quando, na cidade, por conta
das celebrações religiosas, as atividades do fórum e do senado ficavam suspensas.

199
gênero de assuntos, sobretudo uma vez que nele tu próprio te destaques e uma vez que
esse estudo e toda essa matéria estejam muito à frente dos demais estudos e artes?”541

E Varrão responde:

“Perguntas algo sobre o que amiúde deliberei e muito refleti, de modo que não
hesitarei ao responder, mas direi coisas que me vêm de imediato, pois precisamente a
respeito desse assunto pensei muito, como eu disse, e por muito tempo. Pois vendo que
a filosofia foi exposta em grego da forma mais cuidadosa possível, considerei que, se
alguns dentre os nossos fossem cativados por tal estudo, se já fossem instruídos nos
ensinamentos gregos, leriam as obras gregas de preferência às nossas; se, por outro
lado, tivessem aversão pelas artes e doutrinas gregas, não se ocupariam, por certo, de
coisas que, sem uma educação grega, não se podem compreender, de modo que não
quis escrever o que nem os que não fossem doutos poderiam compreender nem os
doutos se ocupariam de ler”.542

Após criticar alguns textos de filosofia escritos em latim que circulam em Roma, obras de
epicureus como Amafínio e Rabírio, Varrão retoma:

“Nós, contudo, aos preceitos dos dialéticos e também dos oradores obedecendo assim
como às leis, já que os nossos [isto é, os acadêmicos] julgam ser uma virtude estas
duas faculdades, somos levados a utilizar inclusive palavras novas, que os doutos,
como disse, preferirão buscar nos gregos, e que os não doutos não acolherão, nem
mesmo vindas de nós, de modo que em vão nos encarregaríamos de todo o
trabalho”543. E, um pouco mais adiante, conclui seu raciocínio: “mas os meus amigos

541
Illud autem mihi ante hoc tempus numquam in mentem uenit a te requirere. sed nunc postea quam sum ingressus
res eas quas tecum simul didici mandare monumentis philosophiamque ueterem illam a Socrate ortam Latinis litteris
illustrare, quaero quid sit cur cum multa scribas genus hoc praetermittas, praesertim cum et ipse in eo excellas et id
studium totaque ea res longe ceteris et studiis et artibus antecedat (Academica I, 3).
542
Rem a me saepe deliberatam et multum agitatam requiris. itaque non haesitans respondebo, sed ea dicam quae
mihi sunt in promptu, quod ista ipsa de re multum ut dixi et diu cogitaui. nam cum philosophiam uiderem
diligentissime Graecis litteris explicatam, existimaui si qui de nostris eius studio tenerentur, si essent Graecis
doctrinis eruditi, Graeca potius quam nostra lecturos, sin a Graecorum artibus et disciplinis abhorrerent, ne haec
quidem curaturos, quae sine eruditione Graeca intellegi non possunt. itaque ea nolui scribere quae nec indocti
intellegere possent nec docti legere curarent (Academica I, 4).
543
Nos autem praeceptis dialecticorum et oratorum etiam, quoniam utramque uim uirtutem esse nostri putant, sic
parentes ut legibus uerbis quoque nouis cogimur uti, quae docti ut dixi a Graecis petere malent, indocti ne a nobis
quidem accipient, ut frustra omnis suscipiatur <labor> (Academica I, 5).

200
nos quais há esse interesse, mando-os à Grécia, isto é, exorto-os a irem aos gregos,
para que bebam antes das nascentes do que andem à procura de pequenos regatos
(...)”544.

A questão se coloca com a clareza típica do discurso ciceroniano: para que escrever
filosofia em latim se já a temos em grego e de tal forma exposta que, imitá-la em latim seria
como que criar uma pálida imagem do que já existe em grego? Quem se interessa por filosofia,
não é mais proveitoso que busque as obras originais dos filósofos gregos? Aqueles que, por outro
lado, não têm interesse no assunto, vão se ocupar em ler as obras filosóficas latinas, uma vez que
sequer quiseram ler as gregas? A resposta é dada pela personagem que representa o autor, num
trecho em que ele defende seu empreendimento tendo em vista a sua situação política e pessoal.
Citamos:

“Apresentas, por outro lado, um argumento que é, sem dúvida, persuasivo, pois ou
preferirão ler as obras gregas os que forem instruídos, ou nem mesmo estas obras [as
escritas em latim] os que aquelas desconhecem; mas, agora, diz-me: suficientemente
provas? Muito pelo contrário: não só lerão estas obras os que não podem ler aquelas,
como os que podem ler as gregas não desprezarão as suas. Que motivo há para que os
instruídos nas letras gregas leiam os poetas latinos e não leiam os filósofos? Acaso
porque agradam Ênio, Pacúvio, Ácio e muitos outros que expressaram não as palavras,
mas o sentido dos poetas gregos? Quanto mais agradarão os filósofos, se, assim como
aqueles imitaram Ésquilo, Sófocles, Eurípides, da mesma forma façam com Platão,
Aristóteles e Teofrasto. Entre os nossos oradores, ao menos, eu vejo serem louvados os
que tenham imitado Hiperides ou Demóstenes. De minha parte (falarei pois
francamente) enquanto a ambição, enquanto os cargos públicos, enquanto as causas,
enquanto da república não só a preocupação mas ainda alguma sorte de ocupação
mantinham-me atado e preso a muitos deveres, conservava esses estudos em meu
íntimo e, para que não se perdessem, renovava-os, quando era possível, pela leitura;
agora, porém, não só ferido por tão grave golpe da fortuna, como desobrigado da
administração da república, busco na filosofia a cura para minha dor e julgo ser esse o
mais honroso deleite para meu ócio. Pois, ou isto é o mais apropriado para a minha

544
Sed meos amicos in quibus est studium in Graeciam mitto id est ad Graecos ire iubeo, ut ex [a] fontibus potius
hauriant quam riuulos consectentur (Academica I, 8).

201
idade, ou, se algumas coisas realizamos dignas de louvor, isto está sobretudo em
harmonia com aquelas, ou ainda, nada de mais útil fizemos para a instrução de nossos
concidadãos, ou, se as coisas não são assim, não vejo nada mais que possamos
fazer”545.

O que vemos é um Cícero bastante lúcido e consciente da dificuldade de sua empresa


(assim como, também, ao início do De finibus, cf. I, 1). O autor latino está bem ciente de que sua
obra não vai agradar a uma boa parcela dos leitores romanos, sobretudo aos que conhecem a
filosofia grega; está bem ciente de que sua obra pode ser preterida à dos gregos, mas essa
preocupação é posta de lado, diante da importância que teria esse seu trabalho para a formação
dos romanos que não têm acesso à literatura grega. O autor confere assim à sua obra o valor de
um verdadeiro serviço público, no mesmo sentido do exercido por um magistrado que ocupa um
cargo na administração, algo que também ele poderia e desejaria fazer, não fosse a atual
conjuntura da república. Impedido de se dedicar ao bem comum em uma função pública, o que já
fizera, segundo sua opinião, durante o tempo em que servira à república, Cícero passa a se
dedicar da única maneira que lhe é possível agora: provendo à instrução de seus concidadãos. Na
verdade, ele se serve dessa inatividade forçada para confiar às letras aqueles estudos que fizera
desde a juventude e que guardava, ao longo de sua carreira política, para os momentos íntimos. A
parte final de sua resposta a Varrão, com os membros do discurso coordenados por meio de uma
acumulação da conjunção aut (parafraseando: ou isso que agora fazemos é adequado à nossa
idade, ou está em harmonia com o que até aqui fizemos, ou até mesmo, é o que de mais útil
fizemos, ou, por fim, se eu estou errado, não há mais nada que possa fazer), cria a forte impressão
de que a personagem que representa o autor, reconhecendo a força da opinião de seu interlocutor,
busca, ainda assim, um alento para a situação política a que foi reduzido. É como se ele dissesse:

545
Causam autem probabilem tu quidem affers: aut enim Graeca legere malent qui erunt eruditi, aut ne haec quidem
qui illa nescient. sed eam mihi non sane probas; immo uero et haec qui illa non poterunt, et qui Graeca poterunt non
contemnent sua. quid enim causae est cur poetas Latinos Graecis litteris eruditi legant, philosophos non legant? an
quia delectat Ennius Pacuuius Accius multi alii, qui non uerba sed uim Graecorum expresserunt poetarum ?
Qquanto magis philosophi delectabunt, si ut illi Aeschylum Sophoclem Euripidem sic hi Platonem imitentur
Aristotelem Theophrastum. oratores quidem laudari uideo si qui e nostris Hyperidem sint aut Demosthenem imitati.
Ego autem Varro (dicam enim ut res est), dum me ambitio dum honores dum causae, dum rei publicae non solum
cura sed quaedam etiam procuratio multis officiis implicatum et constrictum tenebat, animo haec inclusa habebam
et ne obsolescerent renouabam cum licebat legendo; nunc uero et fortunae grauissimo percussus uulnere et
administratione rei publicae liberatus doloris medicinam a philosophia peto et otii oblectationem hanc
honestissimam iudico. aut enim huic aetati hoc maxime aptum est, aut his rebus si quas dignas laude gessimus hoc in
primis consentaneum, aut etiam ad nostros ciues erudiendos nihil utilius, aut si haec ita non sunt nihil aliud uideo
quod agere possimus (Academica I, 10-12).

202
“mas alguma utilidade tem de haver para esse trabalho”. Em outras palavras, alguma utilidade
deve haver para o homem livre e culto na esfacelada república romana. À preocupação com os
seus concidadãos, vem se juntar um motivo de ordem inteiramente pessoal: a filosofia lhe serve
como consolação para a dor que sente pela perda recente de sua filha (cf. fortunae grauissimo
percussus uulnere). A maneira como Cícero dá novo valor ao estudo de filosofia e à vida
contemplativa é notável: de atividade sem honra, relegada a homens retirados da vida pública,
como era considerada até então por alguns, ela passa a ser, pelas circunstâncias, a única atividade
digna de louvor para um homem culto na Roma de César.
No De finibus, esse desejo de ainda fazer parte, de alguma forma, da vida pública, está
também presente na justificativa que se dá à obra. De modo semelhante, o ócio dedicado à
filosofia é equiparado às funções desempenhadas por alguém que participa da administração do
Estado. Citamos:

“Eu, de minha parte, uma vez que em meio aos trabalhos, às fadigas, aos processos do
fórum, não me parece que tenha abandonado o posto em que fui colocado pelo povo
romano, devo daqui por diante, sem dúvida, quanto mais puder, nisto também me
empenhar: que, com o meu trabalho, dedicação e esforço, tornem-se mais instruídos
meus concidadãos”546.

Nessa passagem, a sua condição de autor de filosofia é comparada às suas antigas funções
de advogado e de homem da administração pública. O termo praesidium (que tem forte
conotação militar, significa “força armada encarregada de guardar ou defender”, “guarda,
guarnição” e, por extensão, “posto, ou presídio” em que se estabelece uma força de proteção) cria
uma clara conexão entre a sua atual atividade de escritor e as funções de defensor da república
que teria desempenhado quando cônsul547. A mesma salvaguarda que garantira à república,
quando ameaçada por Catilina e seu seguidores, o autor julga garantir às futuras gerações de
romanos, que poderão, através de seu texto, ter acesso ao estudo da filosofia. E seu juízo foi
546
Ego uero, quoniam forensibus operis, laboribus, periculis non deseruisse mihi uidear praesidium in quo a populo
Romano locatus sum, debeo profecto, quantumcumque possum, in eo quoque elaborare ut sint opera, studio, labore
meo doctiores ciues mei (De finibus I, 10).
547
Ora, retomando a crítica que fizéramos a Philippa Smith, parece evidente que um autor que concebe sua obra
como uma espécie de serviço público, isto é, que não admite estar completamente retirado da vida política, será
sempre adversário do pensamento de Epicuro (cf. Ad familiares IX, 20); o filósofo do Jardim prescreve ao sábio que
ele se afaste da vida pública. O modo como ele trata do pensamento do filósofo, portanto, e a representação que nos
oferece dos patronos desse pensamento devem ser sempre objeto de cuidadosa observação.

203
acertado. Pois isso ocorreu não só entre os romanos, mas ainda entre os leitores de latim dos
séculos posteriores. O já citado Agostinho lançou-se à filosofia após ter sido “persuadido” por
Cícero, depois de ter lido o Hortênsio548.
Pois bem, se o prefácio das obras filosóficas de Cícero serve, como vimos agora, para
justificar sua atividade, isto é, seu ócio dedicado aos estudos, serve também, como vimos
anteriormente, para apresentar ao leitor o assunto sobre o qual trata sua obra. Por fim, o que já se
pôde entrever a partir da análise do proêmio do livro I de Academica, o prefácio tem a função de
introduzir a situação mimética. No caso de Academica I, na verdade, o próprio proêmio tem uma
forma dialogada (como acontece, aliás, no livro V do De finibus).
Tratemos, a seguir, da maneira como Cícero discute a respeito da composição de seus
diálogos. Em primeiro lugar, vejamos, a partir de depoimentos tomados de sua correspondência,
quais são as questões que, para ele, estão envolvidas na concepção das personagens e das cenas
que ele representa nos diálogos. Em segundo lugar, vejamos como se dá a passagem, nos
proêmios, da argumentação à representação mimética.

V – Diálogos e tratado: a composição do De finibus

Uma interessante maneira de compreender o modo como Cícero compunha seus diálogos é
observar as declarações que ele faz a respeito disso em sua correspondência. Ao longo do tempo
em que, retirado em suas uillae, ele escreveu as obras de filosofia do fim de sua vida, uma densa
correspondência se estabeleceu, sobretudo entre nosso autor e Ático; essa coleção de cartas nos
mostra os andamentos do trabalho e, muitas vezes, os problemas que se apresentam na
composição de determinadas obras. Nenhum caso é sem dúvida mais notável, nesse aspecto, do
que o da composição da Acadêmica. Isso ocorre porque nós conhecemos duas versões distintas
dessa obra, ainda que as conheçamos apenas parcialmente. Conhecemos também, a partir das
cartas, alguns dos motivos que levaram o autor a mudar de idéia durante a realização de seu
trabalho. Devemos recordar, antes de passar à análise do problema, que a composição da
Acadêmica é quase que simultânea à do De finibus, de modo que é difícil mesmo precisar qual
obra tenha sido concluída antes. Devemos imaginar, e a correspondência nos dá elementos para

548
O Hortesius de Cícero é citado em diversas passagens da vasta obra de Agostinho. Uma passagem é, contudo
capital: trata-se de Confissões III, 4, 7, em que o autor revela a importância da obra de Cícero para sua devoção à
sapientia e para sua conversão espiritual.

204
isso, um período de trabalho febril do pensador romano, retirado da vida pública e tomado ainda
por outra grande tristeza de ordem familiar: a morte de sua filha549.
A primeira versão da Academica, de que conhecemos o Lucullus, já estava praticamente
concluída em maio de 45. A obra contava com dois livros e, entre os interlocutores, Cátulo e
Luculo550. Em determinado momento, por volta de 20 de junho de 45, Cícero percebe uma grave
falha na composição: as personagens não eram adequadas ao assunto tratado. A solução: alterar
as personagens, substituí-las por outras, também baseadas em indivíduos históricos, que fossem
mais apropriadas. Dessa mudança decorre que tenham chegado até nossos dias duas versões da
obra. Em carta endereçada a Ático em 22 de junho, diz Cícero:

“Aquela sýntaxis acadêmica, transferimos inteiramente a Varrão. Primeiramente, foi


de Cátulo, de Luculo e de Hortênsio; em seguida, porque parecia de acordo com o
decoro, pelo fato de que era conhecida, não por certo a falta de instrução desses
homens, mas a falta de manejo com esses assuntos, assim que cheguei à quinta551,
passei aqueles mesmos diálogos a Catão e a Bruto. Eis, então, tua carta sobre Varrão!
A ninguém pareceu ser mais apropriado o pensamento de Antíoco”552.

Essa significante declaração de Cícero mostra três momentos diferentes da composição: no


primeiro, o diálogo sobre a questão do conhecimento estava dividido entre quatro personagens553.
Mas, percebendo um problema de adequação, de decoro, que lançaria por terra a credibilidade da
obra toda – os outros interlocutores eram reconhecidamente pouco acostumados às discussões
filosóficas e não poderiam figurar em uma discussão tão sutil –, a primeira decisão do autor é a
de utilizar Catão e Bruto554 como novos interlocutores, dois homens versados em filosofia. No

549
Ruch estuda, com pertinente análise da correspondência, o período de composição do De finibus e da Academica,
no capítulo V de sua obra. Nesse, veja-se especialmente as seção “Chronologie comparée” (Ruch, 1958, pp. 152-
161).
550
Cf. Ad Att. XII, 45, 1. Quanto aos interlocutores: Cátulo, filho homônimo de Quinto Lutácio Cátulo (interlocutor
do De oratore e que pertencia à geração anterior à de Cícero) era um pouco mais velho do que Cícero: foi cônsul em
78 e morreu em 60 a.C.. Conviveu politicamente, portanto, com Cícero. Luculo, general célebre pelas campanhas
vitoriosas contra Mitridates, era quatro anos mais velho que Cícero e morreu em 57 a.C..
551
A propriedade de campo, ou uilla, de Arpino.
552
Illam totam !Akadhemikh;n suvntaxin ad Varronem traduximus. Primo fuit Catuli, Luculli, Hortensi; deinde, quia
para; to; prevpon uidebatur, quod erat hominibus nota non illa quidem ajpaideusiva, sed in rebus ajtriyiva, simul ac
ueni ad uillam eosdem illos sermones ad Catonem Brutumque transtuli. Ecce tuae litterae de Varrone: nemini uisa
est aptior Antiochia ratio (Ad Atticum XIII, 17-18).
553
Devemos incluir Cícero.
554
Cícero teria então de sacrificar o seu preceito de não introduzir pessoas vivas como personagens dos diálogos.

205
entanto, o pedido de Ático, feito na carta a que Cícero se refere, em favor de Varrão, é bem
acolhido por Cícero: Varrão poderia desempenhar bem a função de patrono das teses de Antíoco.
Autores como Griffin555 julgam que não houve uma versão em que Bruto e Catão atuassem como
interlocutores, Cícero a teria concebido apenas em projeto. Essa discussão, contudo, importa-nos
pouco; o que é mais pertinente é a constatação do cuidado que tem o autor da Academica em criar
uma obra que possa se sustentar como uma ficção plausível. As personagens devem ser
adequadas às questões tratadas. Se Cátulo e Luculo, que, talvez por serem de uma geração em
que certos temas filosóficos não eram costumeiramente tratados entre os intelectuais romanos,
eram reconhecidamente (ora o juízo é do autor e dos leitores que conheciam os indivíduos
históricos) pouco versados na questão extremamente técnica do conhecimento humano, sua
participação traria problemas à obra: a representação não guardaria ajuste e adequação com
elementos da res a partir da qual se faz a representação. A preocupação de Cícero indica que ele
pretende que seu diálogo seja tomado como uma ficção provável – como algo que poderia ter
acontecido, pois que se parece com o que acontece – não como uma fabula completa.
Mas há outras exigências que o autor parece fazer com relação à escolha das personagens.
A discussão é encetada por uma carta endereçada a Ático alguns dias antes da que citamos acima.
Nesse momento, Cícero ainda vai efetuar a substituição de personagens. Ele diz:

“Portanto, aquela [scil. sýntaxis] acadêmica, em que homens ilustres por certo, mas de
modo algum eruditos, conversam de maneira excessivamente aguda, transfiramos a
Varrão; de fato, é o pensamento de Antíoco, que ele aprova veementemente”556.

Além de outros elementos que ilustram a preocupação com o decoro, essa declaração
aponta ainda uma característica que Cícero busca em suas personagens: o interlocutor de seu
diálogo deve ser nobilis; alguém da elite, da aristocracia romana, alguém que, ainda que não
exerça ou tenha exercido funções públicas, seja romano e tenha relação íntima com a elite
governante da cidade557. Essa preocupação parece estar atrelada ao projeto de educação que

555
Cf. Griffin (1997a, p. 1-35).
556
Ergo illam !Akadhmikhvn, in qua homines nobiles illi quidem, sed nullo modo philologi nimis acuti loquuntur, ad
Varronem transferamus; etenim sunt Antiochia, quae iste ualde probat (Ad Atticum XIII, 12).
557
Cf. Ruch (1958, p. 156).

206
Cícero concebe com suas obras de filosofia, de que tratamos acima. Para que o homem público
romano seja versado em filosofia, deve-se antes conceber cidadania romana à filosofia558.
Vejamos ainda um depoimento a respeito da composição da Acadêmica; nele o autor reflete
de maneira extremamente clara sobre o gênero diálogo conforme ele o concebe e cultiva. Trata-se
de um trecho da carta que o autor envia a Varrão e em que dedica a versão final da obra ao
amigo:

“Para ti eu dei as partes antioquianas, as quais entendi, segundo me parecia, que tu


aprovavas, para mim tomei as de Fílon. Penso que, depois que leres, ficarás admirado
de nós termos falado entre nós aquilo que nunca falamos, mas tu conheces a maneira
dos diálogos”559.

A afirmação parece conter certa hesitação com relação à verdadeira filiação filosófica de
Varrão. Cícero demonstra ainda se preocupar com uma possível incongruência entre a
personagem e a matéria560. Quanto à representação da conversa particular entre as personagens,
Cícero recorda qual é o mos dos diálogos: as conversas representam eventos possíveis que, no
entanto, podem nunca ter ocorrido de fato. Para que sejam possíveis, é importante que haja
adequação entre os seus elementos: assuntos, personagens, lugares e tempo. Ora, a própria
existência dessa dedicatória que não é feita em forma de proêmio à obra (no proêmio a cena é
introduzida sem grande discurso da parte do autor) é o indicativo dos elementos do gênero que,
poderíamos dizer, quer guardar a ilusão de realidade. Seria inadequado reportar a alguém uma
conversa de que ele próprio participou!
Pois bem, se não temos informações desse tipo a respeito da composição específica do De
finibus, parece-nos bastante admissível presumir que preocupações como essas conduziram
também o autor a chegar à forma final do tratado moral que publicou no início de julho de 45
a.C..

558
A imagem é do próprio Cícero (cf. De finibus III, 40).
559
Tibi dedi partes Antiochinas, quas a te probari intelexisse mihi uidebar, mihi sumpsi Philonis. Puto fore ut cum
legeris mirere nos id locutos esse inter nos quod numquam locuti sumus; sed nosti morem dialogorum (Ad
familiares, IX, VIII, 1).
560
Em carta que vimos acima, contudo, Cícero declara de modo seguro que Varrão é seguidor de Antíoco (cf. Ad
Atticum XIII, 12). A hesitação poderia ser reflexo da polidez. Da correspondência de Cícero, aliás, aprendemos que
Varrão era um sujeito difícil.

207
Para Michel Ruch561 e James S. Reid562, o De finibus deve ser incluído no gênero das
syntaxeis563. O termo syntaxis é controverso, mas designaria uma obra (ou corpus564) composta
por diversos libri (ou syntagmata, na opinião de Reid) que estariam reunidos ou por tratarem de
uma questão comum, ainda que em diálogos distintos, ou por, tratando ainda de uma só e ampla
questão, representarem etapas diferentes (dias, por exemplo) de um mesmo encontro565. Esse tipo
de consideração se fundamenta em cartas como a que Cícero envia a Ático em 13 de maio de 45
a.C.. Na ocasião, o autor se encontra em sua uilla em Austura, para onde ele havia se retirado
após a morte de sua filha, Túlia. Citamos: “Aqui eu concluí dois grandes suntavgmata; com
efeito, de nenhum outro modo consigo me afastar da tristeza”566. O termo syntagma (que Reid
considera ser um sinônimo de suvggrama)567 designa, provavelmente, cada um dos libri que
compõem uma syntaxis. Eis como Reid agencia sua argumentação: numa carta endereçada ao
mesmo Ático, Cícero indica, nos seguintes termos, a influência que o diálogo aristotélico teve no
modo como ele próprio cultivou o gênero em Roma: “Era assim que eu pensava, uma vez que,
para cada um dos livros, eu utilizo proêmios distintos, assim como Aristóteles naqueles que ele
chama exotéricos”568. A obra cuja composição Cícero discute com a expressão itaque cogitabam
é, como o contexto da carta torna evidente, o De re publica. Se essa afirmação for comparada
com o que o autor diz em outra carta ao amigo Ático, chegamos à conclusão defendida por Ruch
e Reid:

“A ti eu dediquei o livro Sobre a glória. No entanto, nele o proêmio é o mesmo


que o do terceiro livro acadêmico. Eis o acontece: é que tenho uma coleção de

561
Ruch, M., 1958, pp. 154-155.
562
Reid, J.S., 1984, pp. 30-35.
563
De fato, por meio do termo suvntaxi", Cícero se refere ao De finibus em uma carta: “aquela Syntaxis sobre os fins,
com a qual estou bastante satisfeito, eu a prometi a Bruto, conforme teu conselho, algo a que, tu me escreveste, ele
não se opõe”. Trata-se de Ad Att. XIII, 12, 2: illam peri; telw'n suvntaxin sane mihi probatam Bruto, ut tibi placuit,
despondimus, idque tu eum non nolle mihi scripsisti. O mesmo termo designa, em outra carta, a primeira versão da
Academica: Ad Att. XIII, 16, 1: illa !Akadhmikh;n suvntaxin totam ad Varronem traduximus (trecho traduzido
anteriormente).
564
Cf. Ad familiares V, 12, 4.
565
Hirzel, citado por Ruch, apresenta a seguinte explicação para o termo syntaxis: “discussão exaustiva de um grande
problema filosófico”, Der Dialog, I, p. 514 apud Ruch, M., 1958, p. 155.
566
Ego hic duo magna suntavgmata absolui; nullo enim alio modo a miseria aberrare possumus (Ad Att. XII, 45, 1).
567
Cf. Reid, 1984, p. 31, nota 11.
568
Itaque cogitabam, quoniam in singulis libris, utor prohemiis ut Aristoteles in iis, quos ejxwterikou;" uocat (Ad Att.
IV, 16, 2).

208
proêmios569. Dessa coleção costumo escolher um, assim que começo algum
syngramma”570.

Pois bem, por motivos cronológicos, a carta de 13 de maio não pode designar o De finibus
como uma das syntagmata, já que a obra só estaria completa em junho do mesmo ano. Os dois
grandes livros podem ser, como apontam Reid e Ruch, aqueles que compunham a primeira
versão da syntaxis Academica, isto é, o Lucullus e o Catulus. Ruch, entretanto, desconsidera uma
hipótese de modo equivocado: um dos dois syntagmata referidos nessa carta pode bem ser o
Torquatus, que, de acordo com a correspondência de Cícero, já se encontraria em Roma no fim
de maio de 45 a.C., para que fosse copiado (cf. Ad Att. XIII, 32, 2, datada pelo próprio Ruch
como sendo do dia 29 de maio). Explicamos: em um primeiro momento, os dois primeiros livros
do De finibus deveriam formar, separados dos demais que compõem a obra que conhecemos, um
diálogo à parte sobre a ética de Epicuro. Mesmo tendo enviado a obra para que fosse copiada,
Cícero, depois, abandonou essa idéia e decidiu compor outros livros sobre o sumo bem e
organizá-los sob a forma que conhecemos hoje em dia.
Na verdade, é difícil chegar a uma conclusão segura a respeito de termos como syntagma,
syngramma, ou syntaxis. Ora, observando o De finibus, faz-se evidente que syngramma e
syntagma não podem ser sinônimos, como queria Reid. Na obra que estudamos, os proêmios não
introduzem livros, mas diálogos. Poderíamos sugerir, então, que syngramma constitui um
conjunto de syntagmata que, entrando na composição de uma obra completa, encerram uma
situação mimética particular, isto é, um diálogo que se dá em lugar e tempo determinados. Tudo
não passaria de hipótese, entretanto, visto que esse tipo de classificação não se aplica a obras
como o De re publica ou o De natura deorum. Ora, foi justamente falando do De re publica que
Cícero se referiu ao costume aristotélico de introduzir cada livro com um proêmio.
De qualquer modo, deixemos de lado os termos e passemos a observar a coisa. Em obras
como o De re publica, o De oratore ou, ainda, o De natura deorum, é fácil reconhecer a
continuidade temporal da representação; mesmo que a obra esteja dividida em livros diferentes, a
situação cênica, em termos gerais, no que diz respeito ao lugar e ao tempo, por exemplo,

569
A menção a um uolumen de proêmios revela muito da composição ciceroniana. Mostra-nos, por exemplo, como
toda sua philosophica era pensada como um só e grande projeto.
570
De gloria librum ad te misi. At in eo prohoemium idem est quod in Academico tertio. Id euenit ob eam rem, quod
habeo uolumen prohoemiorum. Ex eo eligere soleo, cum aliquod suvggrama institui (Ad Att. XVI, 6, 4).

209
permanece a mesma, ou melhor, desenvolve-se de modo contínuo. No caso do De oratore, os
livros marcam os dias distintos em que ocorreram as conversas.571 Ainda que haja a saída e a
chegada de algumas personagens, o lugar é o mesmo, o tempo da representação avança de modo
regular e as personagens remanescentes, como Crasso e Antônio, garantem a unidade da
argumentação.
O caso do De finibus é diferente (assim como devia ser também o da primeira versão da
syntaxis Academica). Cada diálogo ocorre em uma época e em lugares distintos dos
representados nos demais. O autor, antes de cada um dos diálogos, falando em primeira pessoa,
dialoga com o destinatário e introduz as cenas em que são representadas as conversas.
A presença de Marco Júnio Bruto é marcante nos três prefácios que amarram, por assim
dizer, os diálogos particulares. A obra é dedicada a esse jovem e promissor aristocrata. Nenhum
outro nome do fim por período republicano, com exceção de Júlio César, é tão conhecido do
grande público quanto o de Bruto. Seguramente porque seu nome está para sempre associado ao
do tirano, de quem era filho adotivo e em cujo assassinato esteve envolvido. Bruto pertencia a
uma das famílias mais eminentes da cidade: era herdeiro do nome daquele que todos tinham
como salvador da res publica: segundo a tradição romana, foi um antepassado seu de mesmo
nome quem liderou os romanos contra a dominação da realeza etrusca. O destinatário nasceu em
85 a.C. e era parente, por parte de mãe, de Catão, o jovem572, o interlocutor de Cícero nos livros
III e IV e que, em 46, ou seja, um ano antes da publicação do De finibus, cometera suicídio na
cidade africana de Útica, vislumbrando a tirania de César.
A Bruto Cícero dedica outras obras além do De finibus, como, por exemplo, o Orator, os
Paradoxa Stoicorum, as Tusculanae disputationes, dentre outras. Nós julgamos ter mostrado,
anteriormente, como o De finibus se insere em um amplo projeto de educação da juventude
romana que Cícero concebe como sua tarefa no ócio forçado pelo regime de César. No entanto, a
relação que se estabelece entre o autor e Bruto, seu destinatário, não é tal qual a que une um
mestre e um discípulo. Bruto não representa a juventude que necessita de uma formação
filosófica, pois, como veremos, é representado pelo autor, talvez com certa dose de lisonja, como
alguém já dotado de profundos conhecimentos da filosofia grega. Assim, o autor declara, mais de
uma vez, que não é sua intenção instruir aquele a quem dedica sua obra. Nesse sentido, estamos

571
Na verdade, o livro I coincide com o primeiro dia. O segundo e o terceiro representam, respectivamente, a manhã
e a tarde do segundo dia.
572
Cf. De finibus III, 6.

210
distantes daquele traço comum da literatura didática em que um “eu” se dirige a um “tu” com
vistas a lhe ensinar algo, como, por exemplo, nOs trabalhos e os dias, Hesíodo, ou no Da
natureza das coisas, Lucrécio. Nessas obras, Perses e Mêmio, respectivamente, recebem lições e
exortações de um “eu” que está, de alguma forma, relacionado ao autor. De fato, Cícero também
estabelece esse tipo de relação com um destinatário, mas em outra obra, o De officiis, em que, sob
a forma de uma epístola, ele busca orientar seu próprio filho, Marco, a quem a obra é dedicada573.
Bruto aparece, na verdade, como o inspirador do trabalho que Cícero lhe dedica. Os dois
estão unidos pelo interesse comum pelos problemas filosóficos. Foi Bruto que, com o seu De
uirtute, exortou o autor do De finibus a discutir a questão do bem supremo (cf. prouocatus
gratissimo mihi libro quem ad me de uirtute misisti, I, 8). A dedicatória se mostra ser, então, uma
espécie de retribuição a uma cortesia do amigo, pois que Bruto, como a passagem indica, teria
dedicado o seu Sobre a virtude ao autor do De finibus.
Na mesma passagem, diz-se que Bruto não é em nada inferior aos gregos no âmbito da
filosofia (cf. ne Graecis quidem cedentem in philosophia, I, 8). No terceiro livro, quando a
questão gira em torno da ética estóica, e quando Cícero renova a dedicatória, uma vez que uma
nova situação cênica se estabelece, a persona do autor aponta claramente que não se coloca como
um mestre com relação a seu destinatário.

“Ora, se agora agisse como se estivesse te instruindo, com justiça seria criticado. Mas
estou muito longe disso e nem é para que conheças o que te é tão conhecido que te
dedico esta obra, mas porque muito facilmente me atenho a teu nome e porque te
considero o mais equânime avaliador e juiz desses estudos que contigo tenho em
comum. Darás, portanto, como de costume, diligente atenção e, tal qual um juiz,
decidirás sobre a controvérsia que houve entre mim e teu tio, homem divino e
singular”574.

O destinatário é chamado a desempenhar a função de juiz, que deve avaliar o andamento do


processo que é o método de argumentar in utramque partem. Ele pode desempenhar esta função

573
Cf. Ruch (1858, p. 338) que associa o modelo de dedicatória do De officiis aos praecepta de Catão, o antigo,
também endereçados ao filho do autor.
574
Quod si facerem quasi te erudiens, iure reprehenderer. Sed ab eo plurimum absum neque, ut ea cognoscas, quae
tibi notissima sunt, ad te mitto, sed quia facillime in nomine tuo adquiesco, et quia te habeo aequissimum eorum
studiorum, quae mihi communia tecum sunt, existimatorem et iudicem. attendes igitur, ut soles, diligenter eamque
controuersiam diiudicabis, quae mihi fuit cum auunculo tuo, diuino ac singulari uiro (De finibus III, 6).

211
porque tem uma profunda formação filosófica, como deixa claro o proêmio do livro V. Além do
mais, na representação de Catão nos livros III e IV, que não deixa de ser uma espécie de laudatio
funebris, o autor faz questão de associar o nome dos dois homens, unidos pelo parentesco e pelos
ideais republicanos.
No proêmio do livro V, que mencionamos acima, novamente se renova a dedicatória.
Agora, quando o assunto é o pensamento de Antíoco, Bruto é, mais do que nunca, o juiz mais
indicado para avaliar qual seja o discurso mais probabile e mesmo para avaliar o acuro da
exposição composta por Cícero e conferida a Pisão, pois, assim como o autor do De finibus,
Bruto seguiu cursos de Antíoco em Atenas e, sobretudo, tornou-se discípulo do irmão do filósofo
de Ascalona, chamado Aristo. Nessa ocasião, a interpelação a Bruto se faz, já depois de
estabelecida a cena, no momento em que Pisão está prestes a dar início a seu discurso sobre o
finis de Antíoco:

“Então (...) Pisão começou. Seu discurso, Bruto, considera atentamente se ele parece
ter abarcado satisfatoriamente o pensamento de Antíoco, pensamento que por ti, que
ouviste com freqüência Aristo, irmão dele, é absolutamente aprovado, penso eu”575.

Dito isso sobre a relação que se estabelece entre o autor e o destinatário e sobre a maneira
como essa relação, que está presente ao longo de toda obra, organiza os três diálogos sob a forma
de um tratado, passemos a investigar as cenas de cada um dos diálogos particulares bem como as
personagens que nelas são representadas.
A primeira cena se passa em Cumas, na casa de campo de Cícero; seus dois interlocutores
são apresentados por meio das seguintes expressões: Lúcio Torquato, “homem versado na
totalidade da doutrina” (homine omni doctrina erudito, cf. I, 13), e Caio Triário, “jovem
sobremaneira grave e bem instruído” (in primis grauis et doctus adulescens, cf. I, 13). Ao
primeiro, Cícero confere competência para expor a sententia de uoluptate Epicuri de modo
acurado (accurate); com relação ao segundo, chama-nos atenção sua qualificação de grauis, que
quase nos garante que não se trata de um seguidor de Epicuro, pois a grauitas dificilmente se
aliaria ao prazer, ao menos segundo a conotação que ganha o termo na boca dos detratores de
Epicuro. É bem verdade, entretanto, que Torquato, na seção 37, pretende deixar claro o que ele

575
Tum (...) Piso exorsus est. cuius oratio attende, quaeso, Brute, satisne uideatur Antiochi complexa esse
sententiam, quam tibi, qui fratrem eius Aristum frequenter audieris, maxime probatam existimo (De finibus V, 8).

212
julga ser um equívoco desses detratores. De qualquer forma, pelo que se pode observar neste
passo, bem como no livro II do De finibus (21)576, Triário não aprova, de fato, as idéias de
Epicuro. Surpreende-nos, por outro lado, a qualificação de doctus que recebe o adulescens.
O próprio autor da obra se apresenta como narrador do diálogo; ele é extremamente
econômico ao oferecer os elementos que compõem a situação mimética. O motivo do encontro
das personagens é resumido em uma breve expressão, salutandi causa, que é, no entanto, densa
de significados. A menção à salutatio indica a posição de prestígio da personagem de Cícero. Os
interlocutores, mais jovens, vão até a quinta de Cícero para saudar esse homem importante, que
guarda a dignitas de sua condição de consular. Cria significado semelhante a consideração com
que o jovem Torquato pede a opinião de Cícero a respeito do mestre do Jardim. É desejo de
Torquato ouvir o célebre orador que, além de possuir o prestígio de ex-chefe de estado, é
representado como alguém capaz avaliar doutrinas filosóficas (cf. 15: te... iudicem aequum puto).
A introdução da discussão propriamente filosófica é feita também de modo econômico,
embora de uma maneira que revela o cuidado com a probabilidade: os dois amigos estão em
visita a Cícero, que desfruta de período de poucas obrigações (nacti te ... sumus aliquando
otiosum), começam a conversar sobre obras literárias (de litteris) e, de modo admissível, a
conversa dirige-se para a filosofia de Epicuro. O fato de a discussão sobre Epicuro partir,
inicialmente, de considerações sobre o estilo desse filósofo (cf. ab eo delectari, quod ista...
orationis ornamenta neglexerit), confere um desenvolvimento provável à ação. Tudo é rápido e
apresentado de forma bastante concisa, mas os elementos essenciais da representação mimética
estão presentes.
Outro elemento importante, a que já nos referimos antes, faz parte da composição da cena.
A frase quoniam nacti te sumus aliquando otiosus indica a condição para a discussão inicial sobre
literatura e a posterior sobre filosofia. Devemos dizer que a cena se dá no ano de 50 a.C., algo
que podemos inferir a partir da menção, feita no livro II, ao fato de Torquato ser praetor
designatus (cf. II, 74). Ora, Torquato ocupou o cargo em 49 a.C.577 Pois bem, na época da cena
do diálogo, Cícero cumpria funções públicas e suas temporadas em casas de campo estariam
condicionadas aos recessos das atividades que ele desempenhava em Roma, tanto no fórum

576
Nesse passo do livro II, Triário se surpreende com uma máxima de Epicuro.
577
Cf. Marinone, 1976, p. 19.

213
quanto no senado. O advérbio aliquando, de modo bem conciso, faz menção ao caráter quase
extraordinário do otium de que desfrutava a personagem que representa o autor.
Para tratarmos das personagens de Torquato e Triário, faz-se necessário um breve
parêntese. Ao compor um diálogo em que representa a si próprio como protagonista, Cícero
declara que está seguindo o modelo aristotélico578. Adotando esse modelo, o autor abandona, em
obras como o De finibus e a Academica, a representação dos tempos grandiosos da Roma de
Cipião e Lélio, representados no De re publica, ou da Roma de Crasso, representados no De
oratore. Para que o autor possa participar da mimese, as ações representadas não podem ocorrer
senão durante o tempo de sua própria vida; é uma exigência de sua concepção de diálogo, que
não pode ser tomado por fabula. Se a representação de tempos mais remotos requeria uma
pesquisa minuciosa a respeito da época que é representada579, por outro lado, trazer a cena dos
diálogos para tempos mais recentes acarreta outros sérios riscos no que diz respeito à
verossimilhança: há a necessidade de um tratamento mais cauteloso dos elementos fictícios, ou o
autor poderia ser criticado por pintar cenas que o leitor contemporâneo consideraria como mera
farsa. O problema pode ser tornar ainda mais grave quando o leitor, um amigo do autor, por
exemplo, é uma das personagens representadas.
Uma das medidas que Cícero utiliza para garantir mais liberdade a sua composição580 é
ilustrada no princípio de “não incluir nos diálogos ninguém dentre os que estivessem vivos”581.
Deve ter havido também, na adoção dessa postura, motivos de ordem particular: alguns
conhecidos de Cícero teriam cobiçado a participação em uma obra sua. A participação de Varrão
na Academica, por exemplo, o que o levou a abandonar tal princípio, relaciona-se a um pedido
feito por Ático582. De qualquer modo, esse princípio gera um novo problema: como representar
discussões filosóficas em que ele próprio apareça como um pensador maduro, tomando mesmo
ares de mestre, ou seja, em que as cenas se desenrolem em época recente e, ao mesmo tempo, em
que seus interlocutores sejam pessoas já mortas?583

578
Cf. Ad Atticum, 13, 19, 4, carta já citada.
579
Veja-se a análise que faz Michel Ruch da correspondência ciceroniana que revela uma intensa pesquisa histórica
no momento em que o autor romano prepara a composição de um diálogo cuja cena se passa no passado distante
(1958, pp. 45-55).
580
Cf. Ad Atticum 13, 12, 3.
581
Neminem includere in dialogos eorum qui uiuerent (Ad Att. 13, 19, 3).
582
Cf. Ecce tuae litterae de Varrone (Ad Att. 13, 17-18).
583
Ademais, discussões a respeito da filosofia de Antíoco, por exemplo, não poderiam ser representadas num
passado remoto, visto que o filósofo de Ascalona foi contemporâneo de Cícero.

214
No De finibus a dificuldade é resolvida de forma bastante hábil: são chamados a atuar
personagens que perderam suas vidas em decorrência dos eventos da guerra civil entre César e
Pompeu584. Ora, como esses haviam se enfileirado ao lado dos republicanos, a obra ganha cor de
elogio ao regime anterior à tirania de César. As representações das personagens de Torquato,
Triário e Catão ganham, sem sombra de dúvidas, o caráter de uma laudatio funebris. Nesse
sentido, o De finibus recupera um elemento que fez parte da composição do Brutus, em que a
discussão sobre a história da eloqüência romana se dá à luz da figura de Hortênsio, que acabara
de morrer. Devemos recordar, além do mais, que, no contexto da composição do De finibus (na
verdade desde 46 a.C., a partir do suicídio de Catão), desenvolveu-se em Roma uma literatura de
caráter panfletário que tinha uma postura contrária à tirania de César. Esses textos podem ter, de
alguma forma, influenciado as obras de Cícero.585 No De finibus, de qualquer modo, é sensível a
exaltação do regime republicano e nós podemos mesmo ver, na crítica à moral de Epicuro,
repreensões veladas sobre a política de César. Quanto a isso, veja-se nossa nota à passagem II,
57.
Lúcio Mânlio Torquato, que como personagem defende a filosofia de Epicuro no livro I,
por exemplo, viria a ser assassinado em 46 a.C.586, na África, após ser derrotado em batalha pelas
forças de César. O outro interlocutor, Triário, companheiro de Pompeu em Farsália, morreu,
também em batalha, em 48 a. C. No Brutus, a que nos referimos acima, publicado em 46 a.C., os
dois jovens tomados para interlocutores no De finibus são assim lembrados587:

“Restam a ser mencionados os que morreram, L. Torquato, a quem não tão


rapidamente chamarias retor, ainda que não lhe faltassem as palavras, quanto, como
dizem os gregos, politikov"588. Havia nele abundante instrução, e não essa de todo
mundo, mas uma mais aprofundada e recôndita, uma memória sobre-humana, extrema
gravidade e elegância nas palavras. E a tudo isso tornavam mais belo o prestígio e a
integridade de sua vida. Agradavam-me imensamente, sem dúvida, os discursos de
Triário, plenos que eram, naquela idade, de uma velhice letrada. Quanta austeridade

584
Não se inclui aqui Pisão, interlocutor no livro V, a quem coube, talvez, uma morte natural.
585
Cf. Ruch, 1958, p. 153.
586
Julia Annas, contudo, assinala o ano de 48 a.C. para a morte de Torquato (Cicero. On moral ends, p. xvi).
587
É interessante o fato de os dois aparecerem lado a lado tanto no Brutus quanto no De finibus.
588
Designando um cidadão que, ainda que não seja orador profissional, participa ativamente da vida política da
cidade (cf. Martha, 1923, p. 96).

215
em seu rosto! Quanto peso nas palavras! Como nada de inconsiderado saía de sua
boca!”589

Não obstante o louvor aos interlocutores do primeiro diálogo, notemos que, estudando a
exposição do pensamento de Epicuro no livro I e a refutação apresentada no livro II, pareceu-nos
que o êxito que o autor, no prefácio do livro III, reconhece ter havido na argumentação da
personagem que o representa se deve, em grande medida, ao uso que se fez da personagem de
Torquato como patrono do epicurismo. Não resta dúvida de que a refutação do livro II é a mais
importante refutação do De finibus. A composição da personagem de Torquato, o orador que
defende Epicuro, na medida em que concede terreno para a refutação, revela a habilidade com
que Cícero se serve da forma dialógica com vistas à construção do finis mais persuasivo.

Para que se torne claro o que queremos dizer, devemos observar alguns elementos do éthos
de Torquato, personagem/orador que apresenta a doutrina ética de Epicuro. Feito isso,
examinemos, em seguida, os problemas que decorrem da adequação desse éthos ao auditório, por
um lado, e ao pensamento de Epicuro, por outro.
Em seguida, lancemos nosso olhar sobre o próprio discurso, a fim de observar se a doutrina
é exposta com correção, ou seja, se as idéias que o orador apresenta em seu discurso são mesmo
de Epicuro, e para que vejamos, de outra parte, se a elocução de Torquato é adequada a um
discípulo do Jardim.
Conforme já se discutiu ao longo deste estudo, a exposição da doutrina do prazer, realizada
por Torquato, pode e deve ser entendida como um discurso de orador que tem como objetivo
persuadir o leitor de que o finis defendido por Epicuro é, de fato, o fundamento das ações que
conduzem o homem à felicidade. Sendo, pois, um discurso, essa exposição pode ser examinada
por meio de categorias presentes nas obras de arte retórica.
Tratemos rapidamente, então, do conceito de h\qo" na Retórica de Aristóteles. Nessa obra,
o autor fala assim do caráter do orador: “Há persuasão pelo caráter quando o discurso é
pronunciado de modo a tornar digno de crédito aquele que fala”590. Para o estagirita, o orador

589
Relicui sunt, qui mortui sint, L. Torquatus, quem tu non tam cito rhetorem dixisses, etsi non deerat oratio, quam,
ut Graeci dicunt politikovn. Erant in eo plurima litterae nec eae uulgares, sed interiores quaedam et reconditae,
diuina memoria, summa uerborum et grauitas et elegantia. Atque haec omnia uitae decorabat dignitas et integritas.
Me quidem admodum delectabat etiam Triari in illa aetate plena litteratae senectutis oratio. Quanta seueritas in
uultu! Quantum pondus in uerbis! Quam nihil non consideratum exibat ex ore! (Brutus 265).
590
Retórica, 1356a 5: dia; me;n ou\n tou' h[qou" ou{tw lecqh'/ oJ lovgo" w{ste ajxiovpiston poih'sai to;n levgonta.

216
deve mostrar-se, através do seu discurso, um homem de bem, pois uma pessoa que pareça
virtuosa teria maior capacidade de inspirar a confiança dos ouvintes a respeito daquilo que fala.
Esse é, segundo Kennedy (1991, p. 38, nota 42), o sentido mais restrito de éthos. Ao longo do
tratado, contudo, Aristóteles desenvolve o conceito mais amplamente, defendendo que o orador
deve adaptar seu caráter aos caracteres daqueles que ouvem591. O orador deveria conhecer,
portanto, os diversos caracteres humanos, de acordo com a faixa etária, posição social etc. e, ao
compor um discurso, criar um caráter adequado a persuadir certo tipo de auditório.
Cícero, no Orator, refere-se apenas a esse sentido mais amplo e de maneira muito ligeira:
“Duas são as coisas que, bem empregadas pelo orador, podem tornar admirável a eloqüência.
Uma delas, que os gregos chamam ético, é adequada às naturezas, aos modos de proceder e a
todos os costumes da vida”592. Para Cícero, que retoma aqui as idéias de Aristóteles, o orador,
além de cuidar da parte racional do discurso, ou seja, da argumentação demonstrativa, deve
elaborar os aspectos do discurso (tanto do que se diz, quanto da ação de pronunciar o discurso)
que movem os afetos dos ouvintes e leitores. Um desses aspectos é o éthos, que, como a
passagem de Cícero sugere, é a manifestação do caráter (natura / mores) do orador através de
seu discurso. Para garantir o sucesso de seu discurso, o orador deve manifestar um caráter
adequado às circunstâncias do discurso, isto é, apropriado à causa e aos ouvintes. Há que se
observar a dificuldade que tem o pensador romano para traduzir o conceito grego. Cícero faz
referência a natura e mores para explicá-lo, provavelmente por julgar que o éthos, de modo
geral, seria a manifestação da natureza do indivíduo (natura) por meio de seu modo de proceder
(mores). Com relação ao orador, tal manifestação deve se dar no discurso. É o que já adverte
Aristóteles: “Mas é necessário que isso [i.e. inspirar confiança nos ouvintes] seja efeito do
discurso, e não de uma opinião prévia de que o falante seja um certo tipo de pessoa”593.
Há, no entanto, uma maneira de pensar esse conceito (que encontramos na obra de
Quintiliano) que pode nos ajudar na discussão que fazemos a respeito da personagem que
defende o epicurismo no De finibus; a passagem que citamos da Institutio oratoria parece
relacionar as acepções poética e retórica de éthos.

591
Cf. Retórica, 1366a 8-16.
592
Duo sunt enim, quae bene tractata ab oratore admirabilem eloquentiam faciant. Quorum alterum est, quod
Graeci hjqiko;n uocant, ad naturas et ad mores et ad omnem uitae consuetudinem accomodatum (Orator 128).
593
Dei' de; kai; tou'to sumbaivnein dia; tou' lovgou, ajlla; mh; dia; tou' prodedoxavsqai poiovn tina ei\nai to;n lev
gonta, Aristóteles, Retórica, 1356a8-10.

217
“Não é de modo pouco expressivo que chamaríamos de éthos aqueles exercícios
escolares, nos quais representamos, na maioria das vezes, camponeses, supersticiosos,
avarentos e temerosos, de acordo com a condição do que se propôs. Pois se éthos é o
proceder, ao imitá-los, deles tomamos o discurso”594.

De fato, podemos observar a exposição de Torquato sob esse prisma595. Seu discurso não é
um discurso de um orador real, no sentido de que não é um discurso proferido por alguém em
uma determinada ocasião: em uma assembléia ou diante de um júri. É, sim, um discurso criado
por Cícero para compor um diálogo filosófico, no qual o autor representa uma personagem de
uma determinada condição, ou seja, pertencente a uma determinada família, a uma ordem social
e seguidor de uma determinada corrente de pensamento. Ora, para representar de maneira
adequada e convincente um epicureu, Cícero terá de apresentar uma personagem que manifeste
um éthos próprio de um seguidor de Epicuro, assim como deveriam fazer os jovens nos
exercícios escolares mencionados por Quintiliano.
Aqui, no entanto, chegamos ao que pensamos ser um grave problema do livro I do De
finibus. Se, por um lado, o autor deve criar uma personagem que manifeste em seu discurso um
caráter que inspire a confiança dos leitores romanos, que são, por assim dizer, seu auditório, por
outro lado, a personagem deverá ter o éthos típico de um epicureu, isto é, deverá parecer, através
de seu discurso, um seguidor do epicurismo, sem o que a exposição não seria convincente.
Veremos, a seguir, que as duas características exigidas do defensor de Epcicuro são dificilmente
conciliáveis.
Também é Quintiliano quem nos informa que o éthos é algo contínuo, que está presente
durante todo o discurso596. No entanto, para os nossos propósitos, será suficiente indicar apenas
alguns pontos do discurso de Torquato. Além disso, extrapolando o conceito retórico de éthos,
que deve ser algo criado pelo próprio discurso597, tomaremos alguns dados sobre a personagem
também das partes dialogadas do livro I e de fontes externas ao De finibus, a partir do que

594
Non parum significanter etiam illa in scholis h[qh dixerimus, quibus plerumque rusticos, superstitiosos, auaros,
timidos secundum condicionem propositionum effingimus. Nam si h[qh mores sunt cum hos imitamur, ex his ducimus
orationem (Institutio oratoria VI, 2, 17).
595
No que concordamos com a argumentação de Trimpi (1983) que vimos acima.
596
Cf. Institutio oratoria VI, 2, 10.
597
Cf. Aristóteles, Retórica, 1356a8-10. Segundo Kennedy (1991, p. 38, nota 43), há elementos do caráter da pessoa
que discursa que são alheios à arte retórica, tais quais a fama e o prestígio, e, portanto, não fazem parte do éthos
retórico.

218
poderemos estimar a obra de Cícero, pois, como sabemos, Torquato foi um indivíduo histórico.
O leitor contemporâneo a Cícero seguramente o conhecia. E Cícero, como sabemos, preocupava-
se com a adequação entre a personagem e o homem histórico que ela representa.
O discurso de Torquato está repleto de elementos que manifestam sua adesão à escola que
segue. Entre esses, chamam atenção as passagens em que se refere ao fundador da doutrina com
reverência extrema. Na seção 14, por exemplo, afirma que Epicuro foi o único filósofo a ter
enxergado a verdade e a ter livrado as almas dos homens dos mais graves erros. Já em 32, chama-
o de “descobridor da verdade e como que arquiteto da vida feliz”. Sabemos que os discípulos de
Epicuro nutriam, com efeito, enorme devoção pelo mestre. O próprio Cícero, no livro II, refere-se
ao fato de que os epicureus costumavam celebrar com um banquete os aniversários do mestre,
após a sua morte 598. A mesma devoção podemos observar em um ilustre expositor da filosofia do
Jardim contemporâneo a Cícero. Em seu poema, Lucrécio, através dos elogios feitos a Epicuro,
faz desse filósofo um homem com estatuto quase divino, um homem que, quase como um deus
benévolo aos homens, teria livrado a todos da terrível ameaça dos deuses tradicionais:

“Quando a vida humana jazia torpemente diante dos olhos,


Na terra, oprimida sob uma grave religião,
Que mostrava a cabeça desde as regiões do céu,
Do alto intimidando os mortais com seu aspecto horrível,
Primeiramente um grego, um homem, ousou erguer-lhe contra
Os olhos mortais, e contra ela por primeiro resistir.
A ele nem a fama dos deuses, nem os raios, nem o céu,
Com seu estrondo ameaçador, reprimiu; mas tanto
Mais estimulou a acre força de sua alma, que foi o primeiro
A desejar romper as travas cerradas das portas da natureza”599.

598
Cf. De finibus II, 101-103. O autor afirma que este costume persistira até os seus dias, portanto, por pelo menos
duzentos anos! No entanto, Cícero insinua que os epicureus de seu tempo entregavam-se aos prazeres de maneira
intemperante nesses banquetes. Mas, deve-se dizer, a doutrina de Epicuro prega, antes sim, uma alimentação
moderada e frugal e, se alguns agiam de modo diferente, não seguiam de fato o mestre (cf. Diógenes Laércio, X,
132).
599
Humana ante oculos foede cum uita iaceret / in terris oppressa graui sub religione, / quae caput a caeli
regionibus ostendebat / horribili super aspectu mortalibus instans, / primum Graius homo mortalis tollere contra /
est oculus ausus primusque obsistere contra, / quem neque fama deum nec fulmina nec minitanti / murmure
compressit caelum, sed eo magis acrem / inritat animi uirtutem, effringere ut arta / naturae primus portarum
claustra cupiret (De rerum natura I, 62-71).

219
É adequado, portanto, na criação da personagem do patrono da doutrina de Epicuro incluir
em seu discurso elogios ao fundador da doutrina. Mas há outros elementos do discurso de
Torquato que expressam a reverência ao mestre e o seu desejo, adequado em um epicureu, de
seguir ortodoxamente as idéias de Epicuro. Ao começar sua exposição, por exemplo, Torquato
diz: “procederei da forma como ao próprio fundador da escola parece bem”. Evidenciam também
esse desejo as diversas alusões e, por vezes, traduções de textos de Epicuro600, freqüentes no
discurso do jovem epicureu.
Quanto a essa ortodoxia, há, contudo, ressalvas a serem feitas. Quando trata da amizade,
por exemplo, ao invés de seguir o pensamento de Epicuro apenas, Torquato propaga duas outras
explicações que não teriam sido criadas pelo mestre. É certo que a doutrina de Epicuro não exclui
a diversidade de explicações para um mesmo fato e, por outro lado, teve um desenvolvimento
posterior à morte do mestre, mas a maneira como as explicações são apresentadas acabam por
diminuir a autoridade da doutrina. As duas novas soluções teriam sido criadas por epicureus
recentes, receosos quanto às críticas das demais escolas. Em outras palavras: os próprios
epicureus teriam reconhecido a inconsistência da explicação de Epicuro. Nesse ponto, julgamos,
a exposição de Torquato revela o quanto está a serviço dos objetivos do autor do De finibus.
Outro elemento importante do éthos do expositor que está em conformidade com a doutrina
de Epicuro é o esforço do jovem em desfazer qualquer confusão que possa haver entre o bem
supremo epicureu e o defendido por Aristipo e outros cirenaicos. Em 39, por exemplo, Torquato
distingue o pensamento de Epicuro do de Aristipo por meio de uma brincadeira que seu pai
dirigia aos estóicos, que argumentavam sobre o prazer servindo-se de uma estátua de Crisipo. A
mesma preocupação está presente na Epístola a Meneceu, em que o autor da doutrina já
menciona o fato de ser mal compreendido por certas pessoas, que julgam que o prazer que
defende é aquele dos intemperantes, o do gozo dos sentidos601.
Há, entretanto, no tom com que Torquato tenta desfazer esse tipo de má compreensão da
doutrina, algo que parece dirigido aos romanos em especial. Em 37, por exemplo, assim fala o
jovem:

“Agora, porém, tornarei explícito o que em si próprio e de que tipo é o prazer, para que
se suprimam todos os erros dos que não conhecem a doutrina e que se compreenda

600
Ver notas à tradução.
601
Cf. Diógenes Laércio X, 131.

220
quão grave, quão continente, quão severa é esta que é tida como uma doutrina
voluptuosa, sensual e licenciosa”602.

O pensamento expresso por Torquato está, sem dúvida, em total conformidade com a
doutrina de Epciuro, mas o modo como fala e as palavras escolhidas revelam a preocupação do
orador com a audiência romana. Torquato pretende mostrar que a doutrina do Jardim, ao
contrário do que muitos pensam, é grave e severa. Ora, a grauitas é uma das virtudes que o
romano tradicional considera como distintiva de seu povo. Rocha Pereira (1984, p. 343-344)
afirma que tal virtude relaciona-se à seriedade moral que se espera do homem romano maduro
que goza da posse plena de suas faculdades. Mais importante é notar, além do mais, que o termo
aparece primeiramente, na literatura latina, relacionada à atividade política e, só depois, passa a
designar um modo de proceder semelhante ao dos mais sérios homens públicos romanos em
outras esferas da atividade humana.
Problemática, também, é a maneira como a personagem se apresenta no que diz respeito à
educação almejada por Epicuro. O veemente fim de seu discurso, em que fala sobre o
menosprezo à eruditio, está em concordância com o que professa o mestre. Torquato defende o
filósofo das acusações, feitas por Cícero e Triário, de que o grego desprezaria saberes como a
lógica, a retórica, o conhecimento dos poemas etc., argumentando que, para ele, tais
conhecimentos seriam inúteis à aquisição da vida feliz603. Contudo, antes de se iniciar
propriamente o diálogo, o narrador nos conta que as três personagens estavam conversando sobre
obras literárias, coisa que era do interesse de todos, até que a discussão dirigiu-se a Epicuro604.
Não bastasse isso, Cícero, após ironizar a falta de instrução de Epicuro e o fato de ele ter afastado
seus discípulos dos estudos tradicionais, dirige-se cortesmente a seu interlocutor, dizendo: “Muito
embora, tu, sem dúvida, não penso teres sido afastado absolutamente”605. Com efeito, isso
poderia ser apenas um juízo irônico de seu adversário, não fosse o fato de ele próprio se servir de
exemplos tirados da poesia, como os de Orestes e Teseu, para ilustrar seu discurso606. É bem
verdade que, nesse ponto, o problema talvez fosse comum a toda uma corrente de epicureus

602
Nunc autem explicabo, uoluptas ipsa quae qualisque sit, ut tollatur error omnis imperitorum intellegaturque ea
quae uoluptaria, delicata, mollis habeatur disciplina quam grauis, quam continens, quam seuera sit (De finibus I,
37).
603
Cf. De finibus I, 71-72.
604
Cf. De finibus I, 14.
605
Cf. De finibus I, 26.
606
Cf. De finibus I, 65.

221
italianos que, seguidores de Filodemo, dedicavam-se a disciplinas da educação tradicional, como
a poesia. Sobre Filodemo, ver nota à seção II, 119. Por outro lado, nós vimos como Cícero, para
cumprir seu método, precisa permitir a todas as personagens um discurso ornado. Mas isso não
aponta para uma contradição nos seguidores de Epicuro?
Também é problemático o posicionamento de Torquato com relação à participação política.
Já nos referimos, mais acima, ao preceito epicurista que reza o afastamento do sábio das
atividades políticas. Novamente o discurso de Torquato conforma-se ao pensamento de Epicuro.
“Ora, as doenças da alma são os desejos desmesurados e vãos de riquezas, de glória, de poder e,
ainda, de prazeres libidinosos”607. O jovem epicureu reconhece, portanto, que a atividade política,
representada em seu discurso pelos desejos de glória e poder, é causadora de inquietações.
Sabemos, contudo, que o homem histórico Lúcio Torquato, sobre o qual se constrói a
personagem, desempenhou intensa atividade política na Roma da época de Cícero. No Brutus,
nós vimos, Cícero refere-se a ele por meio do termo politikov"608. Ora, na época em que se
desenvolve a cena do primeiro diálogo do De finibus, 50 a.C., Torquato fora eleito para o cargo
de pretor, o segundo mais importante posto na organização política da cidade. Vale dizer que o
fato de ser um homem político e, ao mesmo tempo, defender as idéias de Epicuro, será utilizado
por Cícero, no livro II, para refutar sua exposição609. Pois bem, de que discurso ele deverá se
servir no momento em que for investido da magistratura? Daquele que prega o afastamento da
vida pública?
Chama a atenção, ainda com relação às atividades políticas, uma afirmação do jovem
expositor da doutrina epicurista. No momento em que deseja explicar o comportamento de seu
antepassado Tito Mânlio Torquato, chamado de Imperiosus, utilizando-se do pensamento moral
de Epicuro, o jovem Torquato justifica a severidade do antepassado, que ordenara a execução do
próprio filho por desobediência ao comando militar, dizendo que, agindo assim, ele conseguira
“louvor e afeição, que são as mais sólidas fortalezas para uma vida a ser vivida sem medo”610.
Nesse trecho, de maneira inadequada, segundo pensamos, o expositor ajunta à afeição, que está
em conformidade com a amizade, ideal epicureu da vida em sociedade, a noção de laus no
contexto de uma campanha militar, algo que é totalmente estranho ao sistema. De fato, aqui o

607
De finibus I, 59.
608
Cf. Brutus 265.
609
Cf. De finibus II, 74.
610
Cf. De finibus I, 35.

222
discurso de Torquato entra em contradição consigo mesmo, pois, como vimos, ele afirma mais
adiante que o desejo de glória política e militar é fonte de inquietações. Ora, como observamos a
seguir, o conceito de gloria tem ligação estreita com o de laus.
O que ocorre, em nossa opinião, é a justaposição de dois sistemas éticos distintos, o de
Epicuro e o do mos maiorum romano, devida, diga-se de passagem, à aproximação entre o éthos
próprio do epicureu e a busca de um procedimento adequado, no discurso, ao auditório romano.
Rocha Pereira (1984, p. 331-336), ao examinar o conceito de gloria, relaciona-o, de várias
formas, com a idéia expressa por laus. A estudiosa toma como ponto de partida trechos do poema
épico de Ênio, os Anais, em que esses conceitos se relacionam. Citamos:

“Todos os mortais desejam ser louvados”611.

Em outra passagem, um general desconhecido exorta suas tropas à batalha dessa forma:

“É agora aquele dia em que a nós se apresenta


A máxima glória, quer vivamos, quer morramos”612.

Afastando-nos do contexto da epopéia de Ênio, vemos Cícero relacionar os mesmos


conceitos. Ao defender o poeta Árquias, por exemplo, e, portanto, adequando seu caráter ao do
auditório, formado por cidadãos romanos, diz Cícero: “somos todos arrastados por uma
inclinação ao louvor, e cada qual dentre os melhores é conduzido sobretudo pela glória”613. No
De inuentione, por fim, o autor nos mostra como os dois conceitos são indissociáveis: “glória é o
falar-se correntemente de alguém com louvor”614.
Parece-nos, portanto, que a evocação de laus como umas das coisas mais importantes para a
aquisição de uma vida sem medos é de todo inadequada. De acordo com a filosofia de Epicuro, o
homem deve encontrar a felicidade em si mesmo. O sábio de Epicuro basta-se a si mesmo. Tal
princípio é o que se costuma chamar de autarquia615. É bem verdade que esse modo de pensar

611
Omnes mortales sese laudarier optant. Fragmento 549 de Warmington.
612
Nunc est ille dies quom gloria maxima sese / nobis ostendat, si uiuimus siue morimur. Fragmento 378-9 de
Warmington.
613
Trahimur omnes studio laudis et optimus quisque maxime gloria ducitur (Pro Archia 11, 26).
614
Gloria est frequens de aliquo fama cum laude (De inuentione II, 166).
615
Tal princípio é mencionado em algumas passagens da fala de Torquato, dentre outras, em 45 e em 53, quando se
trata da divisão dos desejos e de como os naturais e necessários são facilmente satisfeitos.

223
traz sérios problemas à fundamentação da amizade, a qual parece ser uma negação desse
princípio. Contudo, há na doutrina de Epicuro um importante espaço para se explicar a amizade
(como vemos na exposição de Torquato), mas em parte alguma se admite a necessidade de
louvores como um meio para a vida feliz. Poderíamos pensar, todavia, que no binômio laus e
caritas, o louvor não seria outra coisa senão a admiração que liga os amigos. Tudo bem se o
contexto em que a expressão é apresentada não fosse o de uma campanha militar, no qual laus só
pode ser entendido como o louvor a uma pessoa prestado por uma mutlidão, por um exército, por
um povo, ou seja, de forma muito próxima à que aparece naquelas citações de Ênio.
Se no Pro Archia Cícero trata de um tipo um pouco diferente de laus, pois ali não se
apresenta nada do contexto militar, em outro discurso, o Pro Marcello, o orador romano nos
indica que em seu tempo, embora outros motivos existissem, distantes do contexto bélico, para se
elogiar alguém, uma das facetas da laudatio era o louvor pelas glórias militares. Nesse contexto,
Cícero está exaltando a clemência do tirano César:

“Assim, Caio César, os louvores de teus feitos bélicos serão certamente celebrados,
não só em nossas letras, mas nas letras e línguas de quase todos os povos e jamais
época alguma silenciará sobre teus louvores”616.

Exatamente como ocorre na fala de Torquato, o louvor de que se fala aqui é o que um povo
presta a um general por sua conduta nas campanhas militares. É uma idéia que não faz, de modo
algum, parte da doutrina de Epicuro.
Quanto à elocução da personagem Torquato, ela é inequivocamente ciceroniana. Já
mencionamos o fato de que o debate travado no De finibus se inicia com a discussão sobre o
estilo de Epicuro. Agora, citamos o trecho: “Na verdade, estimo que tu, assim como nosso
Triário, menos te agradas dele [i.e., de Epicuro] pelo fato de ter negligenciado esses ornamentos
de discurso presentes em Platão, Aristóteles e Teofrasto”617. A despeito das considerações de
Schenkeveld (1997), que observa elementos retóricos na Epístola a Meneceu, o próprio epicureu
Torquato afirma que Epicuro não cuidou muito da apresentação de suas idéias. O discurso que
pronuncia para apresentar a ética de Epicuro, contudo, revela um cuidado extremo de quem o

616
Itaque, C. Caesar, bellicae tuae laudes celebrantur illae quidem non solum nostris, sed paene omnium gentium
litteris atque linguis, neque ulla umquam aetas de tuis laudis contiscet (Pro Marcello 3, 9).
617
Cf. De finibus I, 14.

224
compôs. Nos comentários à tradução, fazemos questão de apontar alguns dos ornamenta dicendi
utilizados por Torquato ao longo da exposição. Em sua apresentação, em sua forma, portanto, o
discurso de Torquato se distancia do de Epicuro. O jovem que, como vimos, nutre interesse pela
poesia, pela história618, está mais próximo do ideal de educação defendido por Cícero do que da
rejeição por tudo que não diga respeito à busca da felicidade que caracteriza o pensamento de
Epicuro.
Entretanto, recordando o que já dissemos sobre a Epístola a Meneceu, a elocução bem
elaborada da parte do epicureu pode se justificar se levarmos em conta que o objetivo final do
discurso de Torquato é cativar seus leitores e persuadi-los a seguir as idéias do mestre. Portanto,
em última análise, a eruditio demonstrada pelo expositor serviria à obtenção da vida feliz. Nossa
maneira de pensar é sugerida pela célebre argumentação de Lucrécio em favor de uma exposição
da filosofia de Epicuro que se utilize de um tom poético elevado e que seja repleta de elementos
mitológicos como um meio de convidar os leitores para o conhecimento e a prática da doutrina.
Vale dizer que o autor do De rerum natura é, por vezes, criticado por se servir de um expediente
que em princípio não devia ser aceito pelo criador da doutrina619. Citamos:

“Também isso não parece injustificado:


Mas assim como aos meninos quando tentam os médicos
Dar o negro absinto, primeiramente as bordas ao redor das taças
Tocam com o doce e louro fluir do mel,
Para que a idade imprevidente dos meninos se iluda
Nos lábios e, enquanto isso, beba inteiramente o amargo
Líquido do absinto e, enganada, não tenha perda,
Mas antes por tal meio restabelecida, recobre a saúde,
Assim agora, uma vez que este pensamento parece em geral
Muito desagradável para quem não o tratou e o vulgo
Para longe dele se afaste horrorizado, eu quis a ti nosso pensamento
Expor num dulciloqüente canto piério e,
Por assim dizer, tocá-lo com o doce mel das Musas (...)”620

618
Cf. De finibus I, 25.
619
Não podemos esquecer, contudo, que também Lucrécio deve ter sido influenciado por pensadores como
Filodemo.
620
Id quoque enim non ab nulla ratione uidetur; / sed ueluti pueris absinthia taetra medentes / cum dare conantur,
prius oras pocula circum / contingunt mellis dulci flauoque liquore, / ut puerorum aetas improuida ludificetur /

225
Quanto às idéias apresentadas, devemos apontar dois problemas na exposição de Torquato.
Em primeiro lugar, de acordo com Gosling & Taylor (1982, p. 398-399), o expositor parece se
equivocar com relação à distinção que Epicuro estabelecera entre ‘bem’ e ‘apetecível’. Para
Epicuro, todo prazer é um bem (to; ajgaqovn) por ter uma natureza conforme à nossa, mas, apesar
' a aijrethv). Raciocínio análogo deve ser aplicado às
disso, nem todos são escolhidos (ouj pa's
dores621. Cícero, através de Torquato, distorce um pouco o raciocínio. Segundo as palavras do
expositor, todos os prazeres (uoluptates) são, por si, dignos de serem buscados (expetendae) e
todas as dores (dolores), dignas de serem evitadas (fugiendi)622. De acordo com os autores de The
Greeks on pleasure, Torquato utiliza, ao longo da exposição, expetenda e fugiendus, muitas
vezes, onde deveria usar bonum e malum. Contudo, se faltou a Cícero623 sutileza para
compreender a distinção de Epicuro, a maneira como apresenta a questão não é incompatível com
as idéias do filósofo do Jardim. É o que afirmam os mesmos autores. De fato, o que é mais
importante no raciocínio, ou seja, o cálculo hedonístico, é apresentado de maneira adequada por
Torquato. Vale dizer que, uma vez que o projeto de Cícero, como se pode observar no proêmio
do De finibus e em outras obras, é divulgar entre os romanos, desconhecedores da filosofia, as
idéias dos filósofos gregos, é justificável que o autor não se prenda demasiadamente às sutilezas
do raciocínio que poderiam, afinal de contas, dificultar o acesso do público às idéias que
apresenta.
Outro ponto discutido nos estudos modernos é a confusão que Cícero parece estabelecer
entre dois conceitos que seriam distintos no pensamento de Epicuro: prazer cinético, ou prazer
em movimento, por um lado, e prazer sensorial, ou prazer que move os sentidos, por outro. Não
obstante a dificuldade de chegar a uma conclusão a respeito da real importância que devia ter tal
distinção no pensamento de Epicuro, uma vez que Lucrécio não parece dar muito valor a ela e
Diógenes Laércio apenas a mencione, algo que Stokes (1995, p. 153-170) procura investigar em
seu artigo (“Cicero on epicurean pleasures”), o problema não aparece no livro I, surgindo apenas
na argumentação da personagem Cícero no livro II. E, se tal problema só aparece na crítica de

labrorum tenus, interea perpotet amarum / absinthi laticem deceptaque non capiatur / sed potius tali pacto recreata
ualescat, / sic ego nunc, quoniam haec ratio plerumque uidetur / tristior esse quibus non est tractata, retroque /
uolgus abhorret ab hac, uolui tibi suauiloquenti / carmine Pierio rationem exponere nostram / et quasi Musaeo dulci
contingere melle (...) (De rerum natura I, 935-947).
621
Cf. Diógenes Laércio X, 129.
622
Cf. De finibus I, 30-31.
623
Ou foi Cícero que fez, deliberadamente, Torquato assim se expressar?

226
Cícero, pode bem ser apenas uma estratégia de argumentação dialética e não uma má
apresentação de algo substancial (e pouco conhecido!) na doutrina de Epicuro, como argumenta o
próprio Stokes.
Torquato, portanto, aparece-nos como uma personagem extremamente complexa. Se, por
um lado, apresenta com fidelidade as idéias de Epicuro, ainda que com alguma falta de sutileza, e
expresse, diversas vezes, admiração pelo mestre, por outro lado, representa, sem dúvida, o ideal
ciceroniano de filósofo que sabe tratar de maneira bem elaborada, ou seja, copiosa e
ornadamente, questões importantes e, mais que isso, representa o ideal de cidadão romano que o
autor do De finibus considera dever ser seguido: respeitoso com relação às tradições, interessado
em educar-se na história e costumes romanos e nos saberes gregos e, sobretudo, preocupado com
a res publica.
Chama-nos a atenção, na construção da personagem e de seu discurso, o fato de que, devido
a seu éthos, Torquato mais parece um simpatizante das idéias do Jardim do que um epicureu de
fato. Ele demonstra conhecer a doutrina de Epicuro com propriedade, mas, estranhamente, não a
pratica. Ora, se lembrarmos que no pensamento epicureu todo o sistema converge para a ação no
dia-a-dia e na busca da felicidade, Torquato não pode ser considerado um epicureu completo.
Não obstante, Cícero utiliza-o como expositor da doutrina do Jardim em detrimento de outras
opções de que podia dispor. Ora, o grande amigo de Cícero, Ático, com quem o filósofo romano
manteve intensa correspondência, era adepto do epicurismo e demonstrava, em alguns aspectos
da vida prática, maior fidelidade à doutrina do que Torquato. Ático, por exemplo, sempre se
ausentou de uma participação direta na vida política. Portanto, a utilização de Torquato como
personagem do diálogo epicureu não é de modo algum fortuita. Deve ter sido, sim, fruto de uma
decisão bem refletida por parte do autor do De finibus. Se pensarmos que a família a que pertence
o jovem Torquato era renomada pelo severo apego ao interesse público e em vários momentos de
sua história forneceu exemplos de ações heróicas em favor do bem comum, a escolha de Cícero
em utilizá-lo como expositor do epicurismo já indica, por si só, os propósitos do autor.
Julgamos que, dentro do método de argumentar em favor de ambas as partes para que se
chegue ao que é mais persuasivo e próximo da verdade, a utilização de uma tal personagem, que
tenta reunir em si dois modos de proceder inconciliáveis, parece servir para rechaçar a doutrina
do Jardim como um sistema filosófico que não pode ser seguido por um cidadão romano sem que
isso acarrete grandes contradições. Apontar tais contradições entre o pensamento e a ação de

227
Torquato, o que Cícero não deixará de fazer no livro II, serve à demonstração de que a doutrina
de Epicuro é incompatível como sistema ético para a sociedade romana.
O segundo diálogo (livros III e IV) também se passa fora do espaço da Vrbs e, como é
bastante comum nos sermones de Cícero624, tem lugar em uma uilla. A cena é anterior àquela
representada no primeiro diálogo. Trata-se do ano de 52 a.C., data que podemos determinar por
conta de uma alusão, feita no início do livro IV, a uma lei, recentemente promulgada por
Pompeu, que redefinia o tempo de duração de um debate jurídico (cf. nota a IV, 1). Assim como
ocorre no primeiro diálogo, só em meio à ação temos condições de precisar a data em que se
passa a conversa. Por outro lado, de modo diferente do que ocorrera no livro I, aqui o encontro
entre os interlocutores é completamente fortuito (cf. quod cum accedisset ut alter alterum
necopinato uideremus). O local é bem escolhido pelo autor. Para tratar da “espinhosa” doutrina
estóica, que lugar mais apropriado do que uma abastada biblioteca? Na introdução à discussão
filosófica propriamente dita, Cícero se estende muito mais, em uma conversação preliminar, do
que fizera no livro I, em que se diz apenas que as personagens conversavam sobre literatura.
Vejamos como tudo acontece.
Cícero se encontrava em sua casa de campo em Túsculo, onde tinha chegado já no começo
da noite anterior. Localizada em sítio de relativa altitude (cerca de setecentos metros acima do
nível do mar), Túsculo era um lugar escolhido por muitos romanos que buscavam tratar da saúde.
Não apenas para fins médicos, muitos aristocratas da Vrbs tinham ali casas de campo, para onde
se deslocavam em período de inatividade política (cf. Wrigth, p. 118). Lá, Cícero possuía uma
belíssima uilla, pela qual tinha especial apreço; nela, conforme aprendemos de sua
correspondência, o autor romano compôs grande parte de sua philosophica. Recordemos ainda
que essa quinta é utilizada como cenário para os diálogos conhecidos como Discussões
tusculanas.
Pois bem, no dia seguinte ao de sua chegada a Túsculo, Cícero decide ir até à casa de um
antigo amigo, já falecido, Luculo, e que, por herança, pertencia agora ao órfão designado aqui
como puer Lucullus (cf. III, 7). Trata-se de Marco (ou Lúcio, segundo alguns) Licínio Luculo,
órfão de Lúcio Licínio Luculo, que já fora mencionado no primeiro diálogo (cf. livro II, 107).
Catão, como será dito a seguir, era tutor legal do pequeno Luculo, embora Cícero aluda ao fato de
que também tinha obrigações, mesmo que informais, com relação ao menino. Cabe dizer que o

624
Veremos, a seguir, a importante exceção que é o livro V.

228
jovem Luculo viria a morrer em 42 a.C., na batalha de Filipos, cidade da Macedônia, na qual
Bruto e Cássio, principais lideranças, na época, dos republicanos e envolvidos no assassinato de
Júlio César em 44 a. C., foram derrotados e mortos pelas forças dos triúnviros, Lépido, Marco
Antônio e Otávio César. Não pretendemos, evidentemente, atribuir a Cícero qualquer virtude
profética. Mas é sempre importante recordar, entretanto, a maneira como os valores republicanos
são amiúde exaltados pelo autor através de suas personagens. Catão, à época da composição do
diálogo, já estava morto, tendo se suicidado diante da vitória de César. Os jovens aqui
mencionados (Bruto, o destinatário, e Luculo, proprietário da quinta em que ocorre a cena) eram,
claramente, cidadãos devotados ao regime republicano. Cícero devia conhecer, ainda em 45, a
atividade política desta última geração de republicanos. É evidente também que, para um leitor
romano de 42 a.C. em diante, o início do diálogo ganharia contornos ainda mais patéticos, uma
vez que, então, já estariam mortos, como heróis da República, tanto o jovem órfão, detentor da
rica biblioteca, quanto o tiranicida a quem a obra é dedicada. Woolf (2001, p. 67) salienta o tom
patético da introdução ao diálogo, mas parece fazer certa confusão com relação às datas numa
formulação que decididamente confere a Cícero o dom da profecia: “this underlines the pathos of
the fact, which Cicero assumes that his readers will know, that the younger Lucullus was
killed in the civil war in 42, fighting against Caesar – as was Cato”. Ora, a informação é
completamente equivocada, já que a obra é de 45 a.C., César seria assassinado em 44 e Cícero
morreria em 43.
O narrador diz que decidira ir à uilla de Luculo a fim de consultar alguns livros. Enfatiza a
possibilidade que tinha de ele próprio retirar os livros diretamente das estantes. A cena ganha ares
de um ambiente familiar. Esse elemento da composição parece ser um aceno do autor para o fato
de que ele pôde se servir de fontes importantes para a composição de suas obras de filosofia.
Mais adiante, ele dirá que veio consultar commentarios quosdam Aristotelios (cf. III, 10 e nota à
passagem), que lerá – ele enfatiza – enquanto estiver livre das obrigações públicas (cf. quos
legerem dum essem otiosus, III, 10).
Assim como no diálogo anterior, o espaço da uilla marca o tempo do otium. Na seção 8, ele
representa Catão in summo otio. De fato, é justamente por conta da suspensão das atividades
civis, marcada pelo início de jogos na cidade, que Cícero se encontra em Túsculo. O mesmo,
presumimos, acontece com Catão. Com a expressão ludis commissis, a personagem de Cícero se
refere, provavelmente, aos Ludi Romani, jogos realizados em honra de três divindades: Júpiter,

229
Juno e Minerva. Instituídos, segundo a tradição, por Tarquínio, o antigo, duravam, na época de
Cícero, quinze dias: de 5 a 19 de setembro. Livres das obrigações funcionais, figuras como
Cícero e Catão, senadores, podiam se ausentar da cidade.
O momento do encontro das personagens apresenta elementos interessantes. Ao se verem,
por acaso, Catão, que estava sentado em meio aos livros que consultava, de imediato se levanta.
Novamente Cícero marca sua dignitas, a condição de prestígio que tinha por ter sido cônsul da
república. Na verdade, ambas as personagens desfrutam de prestígio político, e a cordialidade, a
urbanitas com que se tratam mutuamente, o respeito que têm um pelo outro, são marcados pelas
fórmulas de saudação que, se não são reportadas, são ao menos referidas (cf. deinde prima illa
quae in congressu solemus).
A conversação preliminar, que se estende da seção 8 à seção 10 apresenta um assunto
interessante. De fato, ela nos remete à função do próprio tratado. Sendo ambos amigos do
falecido Luculo, e preocupados com o futuro do jovem órfão, a conversa se dirige à educação do
menino, sobretudo à sua formação filosófica: é necessário que o menino possa bem se servir da
vasta biblioteca que possui e que, na opinião de Cícero (cf. nam his libris eum malo quam reliquo
ornatu uillae delectari) é a riqueza, dentre todas que a quinta abriga, de que o jovem mais deve
desfrutar.
Quando, por fim, Catão pergunta a razão de Cícero ter ido até a casa de Luculo, dá-se o
ensejo à discussão filosófica. Cícero, como vimos, responde que busca certos textos de
Aristóteles (assim interpretamos: cf. nota a III, 10). Já que Catão não consegue entender por que
Cícero prefere os peripatéticos aos estóicos, as personagens passam a discutir sobre filosofia. Há
um elemento da ação que marca o início da conversação mais técnica, quando o assunto passa a
ser filosofia: trata-se do momento em que Catão volta a se sentar e convida o amigo a fazer o
mesmo (cf. sed residamus... si placet). Toda a discussão a respeito da difícil doutrina dos estóicos
vai prosseguir, portanto, com as personagens sentadas na biblioteca e envoltas em livros.
Com relação ao primeiro diálogo, nós defendemos que Cícero se serve da composição do
éthos de Torquato para preparar a refutação que apresenta no livro II e, assim, tornar a causa do
patrono do epicurismo pouco plausível. Pois bem, embora Cícero não experimente uma aversão
tão radical ao pensamento estóico, há certo aspecto do estoicismo que será rechaçado de modo
mais veemente. Parece-nos que o autor se serve da composição mimética para lançar luz sobre

230
esses traços do estoicismo que ele não julga adequados. Vejamos, de modo um pouco mais breve
do que no caso de Torquato, como isso acontece.
Após ter feito a Bruto o elogio do “divino e singular” Catão, parente do destinatário, Cícero
introduz seu interlocutor em cena de uma maneira um tanto ambígua. Cícero encontra Catão
mergulhado em livros. A frase “havia nele... uma avidez pela leitura e ele não conseguia se
saciar” (cf. erat enim... in eo auiditas legendi, nec satiari poterat, III, 7) parece apontar para algo
de vicioso no caráter da personagem. Há algo de excessivo no interesse de Catão pela leitura.
Mais adiante, o autor representa o rigoroso estóico, que, na exposição da doutrina, defenderá o
valor absoluto da virtude, em uma espécie de devassidão intelectual: ele “parecia como que se
empanturrar dos livros, se tal palavra se deve usar para tão ilustre atividade” (cf. quasi helluari
libris, si hoc uerbo in tam clara re utendum est, uidebatur, III, 7). O verbo helluor, segundo
Madvig625, é coloquial e tem tom cômico. O advérbio quasi, por seu turno, é utilizado por conta
da aplicação pouco usual do verbo a libros. A ressalva, introduzida pela oração condicional, é
como que uma justificativa para o uso de uma expressão baixa para uma atividade nobre; de
qualquer forma, em nossa opinião, ela não anula a representação da personagem de Catão como
um glutão de livros. Do ponto de vista filosófico, então, podemos observar que, mesmo que o
desejo tenha como meta uma atividade nobre, trata-se, ainda assim, de um excesso. A construção
de um tal éthos para o patrono da filosofia do Pórtico parece já salientar certas contradições entre
a filosofia que defende a extirpação de todo desejo e os excessos a que se livram não só os
seguidores da doutrina, como também a própria doutrina.
De fato, a linha principal da argumentação da personagem de Cícero na refutação do livro
IV e que já começou a se desenhar no prefácio do livro III (cf. seção 5) consiste em apontar os
excessos dos estóicos no que diz respeito à terminologia. Esses filósofos teriam tomado conceitos
dos antigos acadêmicos e dos peripatéticos e, por desejo de glória, teriam atribuído a esses
conceitos novos termos (cf. IV, 60 e IV, 68: “uma ostentação ávida de glória ao se estabelecer o
sumo bem”).
Semelhantemente ao que ocorre no primeiro diálogo, Cícero busca mostrar, em
determinada passagem de sua refutação no livro IV, que os excessos com relação à terminologia
fizeram com que os estóicos chegassem a defender teses que ninguém mais poderia aceitar e,
desse modo, teses que os sábios estóicos, caso tivessem que participar da vida pública, jamais

625
Madvig, 1869, nota ad locum.

231
poderiam sustentar diante de uma assembléia ou de um corpo de juízes: “É essa, sem dúvida, a
correção da filosofia dos antigos, a retificação, que não pode ter absolutamente nenhuma
admissão na cidade, no fórum, na cúria”626. Desse modo, também a filosofia estóica será
rechaçada porque, dentre outras coisas, não cumpre as exigências do projeto educacional de
Cícero. O homem formado pelo estoicismo, assim como o formado pelo epicurismo, deverá, na
vida pública, ou esconder suas convicções (e assim, viver em contradição consigo mesmo), ou
entrar em contradição com o senso comum e, principalmente, com o mos maiorum. Um romano
que seja um seguidor dessas escolas é, em última análise, alguém que carrega dentro de si uma
incoerência insanável.
O quinto livro, que, sozinho, constitui um diálogo completo, possui um proêmio diferente
daqueles que introduzem o livro I e o livro III. Aqui, o autor introduz de início a representação
mimética e o proêmio se desenvolve sob a forma de um diálogo preliminar, o que nos faz
recordar alguns dos diálogos platônicos. A dedicatória a Bruto, entretanto, renova-se: o
destinatário é interpelado duas vezes neste último diálogo. A primeira, logo no início do texto,
quando o narrador já estabelece a cena. A segunda, já depois de concluída a conversa preliminar,
quando Pisão vai dar início a sua exposição do pensamento de Antíoco.
Novamente a cena recua no tempo. Agora, entretanto, o recuo é muito maior. A cena se
passa em 79 a.C., em Atenas. Podemos determinar a data por meio da correspondência de Cícero,
a partir da qual aprendemos que nesse ano o orador, ainda muito jovem, encontrava-se na cidade
grega, estudando filosofia com Antíoco. Foi a época em que Cícero fez um giro pelo oriente
buscando estudar com os grandes pensadores de Atenas e de Rodes. De fato, é com informação
ajustada ao que conhecemos das cartas que se abre a cena do terceiro diálogo, que representa uma
tarde que poderia ter acontecido durante essa temporada de estudos. A ficção, portanto, se ajusta
ao que nós conhecemos e, evidentemente, o leitor contemporâneo a Cícero também, a respeito da
vida do autor do De finibus:

“Depois de ter ouvido, Bruto, as lições de Antíoco, como era meu costume, juntamente
com Marco Pisão627, naquele que é chamado Ginásio de Ptolomeu, e como estivessem

626
Haec uidelicet est correctio philosophiae ueteris et emendatio, quae omnino aditum habere nullum potest in
urbem, in forum, in curiam (De finibus IV, 21).
627
Trata-se de Marcus Pupius Piso Calpurnianus, já mencionado no diálogo anterior (IV, 73). Nascido na gens
Calpurnia, foi adotado, como seu nome indica, por Marco Pisão, da gens Pupia. Teve notável carreira como homem
político. Foi questor em 83 a.C., o que o torna a personagem mais velha dentre as que são representadas na cena

232
em nossa companhia meu irmão Quinto, Tito Pompônio e Lúcio Cícero628, nosso primo
por parte de pai...”629.

Saímos, portanto, do ambiente das requintadas uillae itálicas. Há algo de diferente quanto
ao otium de que desfrutam esses romanos em Atenas. Pois o otium, como é estabelecido em
outros diálogos, pressupõe a suspensão temporária das atividades públicas. Nesses diálogos,
normalmente as personagens representam homens de Estado, que não podem se afastar
longamente de seus afazeres. Aqui, as personagens são estudantes de filosofia e de retórica. Toda
a cena inicial representa-as como que vivendo intensamente a filosofia e a cultura grega em geral.
É esse tipo de impressão que dá ao leitor o tópos introduzido por Pisão: há nos lugares em que
viveram homens importantes que admiramos, como artistas, pensadores, uma certa capacidade de
nos afetar emocionalmente. Somos tomados de uma emoção que por vezes não experimentamos
ao lermos a obra de um desses homens ou ao ouvirmos falar de suas realizações. Esse tópos é
introduzido de modo muito hábil pelo autor, uma vez que, como sabemos já a partir da abertura
da cena, as personagens decidiram fazer, no fim da tarde, um passeio pela célebre Academia de
Platão. Difícil pensar em local mais apropriado para representar a cena desse último diálogo do
que o sítio onde se desenvolveu, segundo pensa Cícero, o próprio método que aplica em seu
tratado Sobre os fins. A cena, portanto, desenrola-se à sombra de Antíoco e de Platão e, desde
início, o narrador apresenta aqueles que serão as personagens principais do drama: ele próprio e
Marco Pisão. A expressão ut solebam, cum M.Pisone indica o interesse especial e a freqüência
com que os dois interlocutores principais ouviam as lições do filósofo de Ascalona.

deste livro V. Foi ainda procônsul na Spania e, de retorno, celebrou um triunfo em 69. Apoiado por Pompeu (cf.
Marinone, op.cit., p. 24), obteve o consulado em 61, quando, aliado a Clódio, mostrou-se hostil a Cícero. No Brutus,
Cícero louva a capacidade retórica que Pisão demonstrava em sua juventude, mas afirma que, em um determinado
momento, ele desistiu da eloqüência (cf. Brutus, 236). Ver ainda Ad Atticum XIII, 19, 3-4 que parece indicar que
Pisão já estava morto na época da composição do De finibus.
628
Sobre Tito Pompônio Ático, já se falou anteriormente (cf. I, 16), em passagem em que a personagem que
representa o autor ressaltou a adesão do amigo ao epicurismo. Esse traço de seu caráter será reforçado adiante.
Quinto Cícero é o irmão de Marco Túlio, quatro anos mais novo que o nosso autor. Já aparecera como personagem
no De legibus e voltaria a aparecer no De diuinatione. A ele foram dedicados ainda os livros De oratore. Quanto a
sua carreira literária, falaremos um pouco mais logo adiante. Lúcio Cícero era um primo de Marco e Quinto que,
tanto aqui quanto em outros textos, é sempre tratado com grande afeição. Historicamente, temos notícia de que era
bastante próximo de Marco Túlio. Partiu com o primo, por exemplo, à Sicília, durante o processo contra Verres.
Morreu bastante jovem em 68 a.C..
629
Cum audissem Antiochum, Brute, ut solebam, cum M.Pisone in eo gymnasio, quod Ptolomaeum uocatur, unaque
nobiscum Q. frater et T.Pomponius Luciusque Cicero, frater noster cognatione patruelis (De finibus V, 1).

233
No entanto, ainda que não estejamos no costumeiro ambiente das uillae, há algo que
recupera um traço comum aos diálogos ciceronianos. Também o terceiro diálogo do De finibus se
passa em um lugar retirado; estamos longe da agitação da vida pública, que é o lugar da retórica,
não da filosofia. O passeio que fazem pela Academia se dá à tarde e a escolha do horário tem
seus motivos:

“Decidimos entre nós que faríamos, à tarde, um passeio pela Academia, sobretudo
porque, nessa hora, o lugar estaria livre de toda a agitação (...) ao chegarmos aos pátios
da Academia, célebres não sem motivo, achamos-nos sozinhos, como queríamos”630.

Quando já estão na Academia, é por meio do tópos da emoção que os lugares despertam
nos homens que o narrador apresenta cada uma das personagens secundárias. De certo modo, elas
são representadas por meio de suas reações durante o trajeto que acabaram de fazer.
Dentre as personagens secundárias, há duas que não respeitam aquele princípio
estabelecido por Cícero de não representar homens ainda vivos: Quinto e Pompônio. A primeira a
tomar a palavra é a personagem que representa Quinto Cícero, irmão do autor. Quatro anos mais
novo que Marco Túlio, Quinto já aparecera como personagem no De legibus e voltaria a aparecer
no De diuinatione. A ele foram dedicados ainda os livros De oratore. Neste último diálogo do De
finibus, a personagem se mostra especialmente emocionada com a visão que teve do sítio de
Colono, depois de ter atravessado os portões da cidade no caminho que leva à Academia. Quinto
se refere claramente ao célebre Edipo em Colono de Sófocles, em que o exilado herói, outrora rei
de Tebas, cego, amparado por uma filha, busca refúgio nas proximidades de Atenas. O irmão de
Cícero foi autor de quatro poemas trágicos e de um breve poema épico que cantava a expedição
de César na Britânia631. Muito pouco de sua obra poética, entretanto, foi preservado. Notemos
que a expressão quaenam essent haec... loca parece evocar de maneira bem próxima algumas
passagens do poema de Sófocles (cf., por exemplo,
tevknon tuflou' gevronto", !Antigovnh, tivna" / cwvrou" ajfivgmeq j h] tivnwn ajndrw'n povlin, ou

630
Constituimus inter nos ut ambulationem postmeridianam conficeremus in Academia, maxime quod is locus ab
omni turba id temporis uacuus esset (...) cum autem uenissemus in Academiae non sine causa nobilitata spatia,
solitudo erat ea, quam uolueramus (De finibus V, 1).
631
Cf. Marinone, op. cit. p. 25.

234
seja: “filha de um velho cego, em que lugares, Antígona, / nós chegamos, ou na cidade de que
homens?”632)
Em seguida, toma a palavra a personagem que representa Tito Pompônio Ático, o grande
amigo de Cícero, com quem o orador romano manteve longa correspondência. Nessa
correspondência, Ático aparece como o grande confidente de Cícero no que diz respeito às
questões políticas, pessoais e mesmo no que toca à atividade de escritor. Nós vimos algumas
cartas dessa correspondência em que Cícero expõe ao amigo suas preocupações e hesitações no
momento da composição de um diálogo filosófico.
Pompônio, já desde a época em que se passa a cena do livro V, havia se instalado em
Atenas. A personagem de Cícero, aliás, brinca com o fato numa passagem em que joga com a
onisciência que detém por ser também o autor da obra. É um momento em que a ilusão da ficção
mimética sofre um pequeno abalo. A personagem considera que Pompônio de tal forma se
encontrava integrado ao ambiente ateniense, que, talvez um dia, viesse a ser chamado de “ático”.
Sabemos que Pompônio foi seguidor do epicurismo. É assim que ele é lembrado, por exemplo,
em De finibus I, 16. No terceiro diálogo também, ele fala da emoção que experimentou ao passar
diante dos jardins de Epicuro (cf. V, 3). Cabe dizer ainda que Pompônio figura como personagem
em outros diálogos de Cícero, como no Brutus, por exemplo. Além disso, a ele é dedicado, de
modo pouco surpreendente, o De amicitia. Quanto a sua carreira de escritor, sabemos que se
dedicou intensamente a uma obra sobre a história da civilização romana, a qual, infelizmente, não
foi preservada.
Por fim, a palavra é dada ao jovem Lúcio Cícero, primo de Marco Túlio e de Quinto, com
quem, nas palavras do narrador, eles eram afeiçoados com a um irmão (cf. V, 1). De fato,
historicamente, temos notícia de que era bastante próximo de Marco Túlio. Partiu com o primo,
por exemplo, à Sicília, durante o processo contra Verres. Morreu bastante jovem em 68 a.C.633.
No presente diálogo, ele é representado como um jovem bastante interessado por arte retórica e
por política. Na discussão sobre a emoção suscitada pelos lugares que visitamos, o jovem se diz
especialmente tocado com a oportunidade de conhecer o porto Falero, em que, diz-se,
Demóstenes se exercitava; revela ainda o impulso a que se submeteu ao se afastar do caminho
que seguiam para ver de perto o túmulo de Péricles.

632
Oedipus Coloneus, 1-2.
633
Cf. Giambelli, op. cit., nota à passagem V, 1.

235
Do ponto de vista da discussão filosófica tal qual representada neste diálogo, Lúcio tem
uma importância enorme. Assim como o jovem Luculo, mencionado no livro III, Lúcio Cícero é
a própria cristalização do projeto de educação filosófica que motiva, como vimos, o autor do De
finibus. Ainda que o debate se dê entre Pisão e Cícero, os discursos de ambos são dirigidos ao
jovem Lúcio, que cada uma das personagens principais quer trazer para junto de si como um
discípulo. Outro elemento em comum com Luculo é o fato de representar um jovem promissor,
em que já se podem ver os indícios de uma boa natureza (sobre o pudor e o ingenium do pequeno
Luculo, cf. III, 9; quanto a Lúcio Cícero, veja-se, dentre outras passagens, o recato com que
responde a Pisão, homem mais velho, em V, 5. Note-se, entretanto, o espírito e a urbanitas da
resposta).
E quanto à personagem de Marco Pisão, responsável pela exposição das idéias de Antíoco,
as quais já orientaram a refutação de Cícero no livro IV? Podemos observar na sua composição
elementos de que o autor possa ter se servido para facilitar a argumentação da personagem que
representa a si próprio? Alguns indícios nos levam a pensar que sim, embora aqui a questão seja
mais difícil do que no caso de Torquato e Catão, pois se trata de um indivíduo que nos é,
historicamente, menos conhecido do que os outros dois. O que é certo, entretanto, é que manteve
com Cícero uma relação problemática. Em determinado momento de suas vidas, houve uma
ruptura na amizade que, quando mais jovens, nutriam um pelo outro. Mas será que isso já não é
um elemento importante? Observemos mais atentamente o homem histórico e a personagem.
Marcus Pupius Piso Calpurnianus já fora mencionado no diálogo anterior (IV, 73). Nascido
na gens Calpurnia, foi adotado, como seu nome indica, por Marco Pisão, da gens Pupia. Teve
notável carreira como homem político. Foi questor em 83 a.C., o que o torna a personagem mais
velha dentre as que são representadas na cena deste livro V. Foi ainda procônsul na Spania e, de
retorno, celebrou um triunfo em 69. Apoiado por Pompeu (cf. Marinone, op.cit., p. 24), obteve o
consulado em 61. É o ano do processo contra Clódio, perseguido por sacrilégio, em que Cícero
foi o acusador. Sabemos que, no contexto do processo, Pisão aliou-se a Clódio e se mostrou
hostil a Cícero. Ora, a desavença com Clódio foi o móbile para o processo contra Cícero, em 58,
em que, perseguido pela execução sumária dos conjurados do ano de 63, o autor do De finibus foi
condenado a deixar a cidade. A relação entre Cícero e Pisão, desde então, parece ter ficado
abalada634.

634
Cf. Marinone, op. cit., p. 25 e Woolf, 2001, p. xvi.

236
Em sua correspondência, ao menos desde os acontecimentos narrados acima, Cícero se
serve muitas vezes de palavras de escárnio para falar de Pisão635. Nós nos indagamos, portanto,
em que medida o autor poderia se servir do caráter volúvel de seu antigo amigo, com quem
compartilhou parte de sua formação filosófica, para fazer um alerta com relação aos princípios
morais e à argumentação utilizada por Antíoco. Não podemos avançar senão no terreno da
hipótese, mas devemos recordar que quando o intuito de Cícero é instruir seu filho na questão dos
deveres, ele não hesita em descartar o probabilismo acadêmico e tomar o estoicismo como
fundamento de sua exposição. Cícero pode ter julgado, por exemplo, que no contexto da disputa
que teve com Clódio, Pisão foi oportunista. Com sua utilização no De finibus, Cícero poderia
estar tentando apontar os riscos de uma filosofia que, ao lado da virtude, colocasse bens do corpo
e bens externos como elementos essenciais para o gênero de vida mais feliz que o homem pode
alcançar. De novo, é mera hipótese. Mas acreditamos que essa personagem merece um estudo
mais aprofundado, fundamentado inclusive nos dados históricos que temos a respeito da relação
entre o indivíduo histórico que ela representa e Cícero. É algo, porém, que reservamos para o
futuro. De qualquer modo, qualquer apreciação a respeito da personagem de Pisão, depende, em
última análise, de uma reflexão, que faremos a seguir, a respeito da personagem de Cícero.
Ainda sobre o expositor do livro V, mais algumas palavras. No Brutus, Cícero assim se
refere à eloqüência de Pisão e a sua carreira como orador:

“Qualquer que seja a qualidade que Pisão possuía, ele a adquiriu por meio do
aprendizado e ele foi mais versado nos conhecimentos dos gregos do que todos aqueles
que vieram antes dele. Ele possuía uma espécie de agudeza natural, que, além disso,
ele havia limado com a técnica e que era hábil e solerte em criticar o uso dos termos;
amiúde, contudo, ela se enchia de raiva; algumas vezes, era pouco graciosa; por vezes,
mesmo espirituosa. As fadigas do fórum, comparáveis a uma corrida, ele não as
suportou por muito tempo, pois não só tinha o corpo fraco como também porque não
tolerava a inépcia e a estupidez dos homens, que nós temos de engolir (...) Tendo,
ainda jovem, uma carreira de sucesso, começou a ser menos estimado depois”636.

635
Cf., por exemplo, Ad Att. I, 13, 2 e Marinone, op. cit., p. 24.
636
M. Piso quicquid habuit, habuit ex disciplina maxumeque ex omnibus qui ante fuerunt Graecis doctrinis eruditus
fuit. Habuit a natura genus quoddam acuminis quod etiam arte limauerat, quod erat in reprehendendis uerbis
uersutum et sollers sed saepe stomachosum, non numquam frigidum, interdum etiam facetum. Is laborem quasi
cursum forensem diutius non tulit, quod et corpore erat infirmo et hominum ineptias ac stultitias, quae deuorandae
nobis sunt, non ferebat (...)Is cum satis floruisset adulescens, minor haberi est coeptus postea(Brutus, 236).

237
Cícero conta ainda que Pisão voltou a ter um sucesso temporário, quando teve êxito em um
processo envolvendo virgens vestais, mas, depois, parece ter deixado de se esforçar tanto e, por
isso, perdeu prestígio (cf. Brutus 236).
Uma carta que Cícero envia a Ático, que trata do De finibus, implica o fato de que Pisão já
estaria morto na época da composição da obra, isto é, em 45 a.C. Já citamos essa carta, que indica
a distribuição dos papéis entre as personagens (cf. Ad Att. XIII, 19, 3-4). Na seqüência do texto,
Cícero diz que sua decisão não despertaria inveja em ninguém, uma vez que todos já estavam
mortos637. As circunstâncias de sua morte, no entanto, não são claras. Uma morte natural não está
excluída. Pisão é, portanto, o único dos oradores representados no De finibus que não representa
um reconhecido mártir da república.
Quanto ao que Cícero fala de sua eloqüência, de sua penetração, do apego que tinha ao uso
rigoroso dos termos, de seu espírito sarcástico e espituoso, pois bem, tudo isso parece entrar na
composição da personagem conforme ela é representada no De finibus. De fato, nesse sentido, é
notável o modo como a personagem guarda um acordo profundo com o homem histórico, ao
menos segundo o registro que dele nos deixou Cícero no Brutus. Esses traços do caráter da
personagem já começam a ser desenhados no fim no livro IV. Argumentando contra a
terminologia viciosa (segundo ele pensa) dos estóicos, a personagem de Cícero se refere a uma
brincadeira que Pisão costumava fazer ao comparar os termos bona e praeposita, que servem à
exposição do pensamento estóico que Catão apresenta no livro III.638
No livro V, a competência filosófica de Pisão só é comparável à de Cícero. Suas
personagens, como vimos, representam assíduos auditores de Antíoco. Pisão, por sua vez, faz
questão de louvar as idéias dos peripatéticos com relação à arte retórica. Louva-os por não terem
separado a tópica da retórica (cf. IV, 10). Ora, no Brutus, grande parte de sua eloqüência aparece
como resultado da exercitação que está, por sua vez, relacionada às doctrinae gregas.
No que diz respeito ao seu apego rigoroso ao uso dos termos, vale recordar que a linha
mestra de sua argumentação consiste justamente em demonstrar que toda a querela que envolve
estóicos e acadêmicos antigos (inclusos aqui, ainda, os peripatéticos) não é senão uma questão de

637
!Azhlotuvphton id fore putaram, quod omnes illis decesserant (Ad Att. XIII, 19, 4).
638
A brincadeira de Pisão ocupa a seção 73 do livro IV.

238
terminologia. Pisão não faz outra coisa senão criticar (sob a autoridade de Antíoco,
evidentemente) o uso pouco apropriado que os estóicos fazem dos termos.
Resta-nos falar um pouco, entretanto, da personagem que é como que onipresente no De
finibus, pois que participa, de modo decisivo, dos três diálogos. Ela só deixa a cena, quando quem
toma a palavra é a persona que fala pelo autor nos três prefácios que introduzem os diálogos.
Trata-se da personagem por meio da qual o autor se representa como um interlocutor dos
diálogos que compõe.
No artigo que consagra à recepção ciceroniana dos diálogos de Platão e à maneira como o
autor romano se apropria do gênero utilizado pelo fundador da Academia de forma criativa, Clara
Auray-Assayas tece interessantes considerações acerca deste elemento que, estranho ao diálogo
platônico, é constitutivo do diálogo ciceroniano, a saber, a presença do “autor” como personagem
de suas representações639. Já vimos, no primeiro capítulo de nosso estudo, que o afastamento do
narrador/poeta da representação, quando ele concede a voz às personagens, é um dos traços mais
fortemente associados, tanto por Platão quanto por Aristóteles (ainda que para Aristóteles não
seja um critério suficiente), à idéia que esses autores fazem de poesia mimética. Mas, nos
diálogos de Platão, a ausência completa do autor, que, ainda que se nomeie, jamais fala por sua
própria voz, tem uma decorrência filosófica. Nós jamais somos capazes de precisar quais dentre
as idéias expressas nos diálogos, ainda que sustentadas por Sócrates, representam de fato
convicções do próprio Platão.
É notável, aliás, o fato de Cícero parecer estar ciente desse problema que envolve a obra do
fundador da Academia. A leitura peculiar que o filósofo romano, seguindo seus mestres
acadêmicos, faz das obras de Platão é um indício disso. Já citamos este trecho, que, no entanto,
merece ser recordado:

“Esta Academia chamam nova, a qual me parece antiga, se ao menos Platão contarmos
entre os daquela antiga, em cujos livros nada é afirmado, e a favor de uma e de outra
parte muito se argumenta, a respeito de tudo se investiga, nada de certo é dito”640.

639
Auray-Assayas, C., 2001.
640
Hanc Academiam nouam appellant, quae mihi uetus uidetur, si quidem Platonem ex illa uetere numeramus, cuius
in libris nihil affirmatur et in utramque partem multa disseruntur, de omnibus quaeritur, nihil certi dicitur
(Academica I, 46).

239
Nós defendemos, ao longo deste segundo capítulo, que Cícero se serve do diálogo filosófico
como a própria representação do método de investigação e de busca da verdade (ou ao menos do
ueri simile) que julga, em última análise, ter-se originado na Academia. Entretanto, como
personagem que atua em seus próprios diálogos, Cícero não estaria traindo o probabilismo
acadêmico e negando, de certa forma, a virtude que ele próprio parece reconhecer no diálogo
platônico, isto é, o fato de deixar a investigação inacabada, o fato de não apresentar nada como
definitivo e seguro641, uma vez que ele próprio se representa defendendo teses, avançando
argumentos?
Parece-nos que não. Se, de fato, representar-se como personagem é um elemento que o
autor romano tomou dos diálogos aristótelicos642, cuja forma exata, infelizmente, não podemos
conhecer, julgamos que ele se serve de elementos diversos da composição mimética643 e mesmo
da organização dos diálogos em forma de tratado para conferir às discussões que representa em
suas obras dialógicas algo semelhante àquele caráter inacabado que ele reconhece ser a marca das
obras do fundador da corrente filosófica que ele professa seguir.
Para sustentarmos nossa argumentação, gostaríamos de cotejar as representações que Cícero
faz de si mesmo em duas obras: o De natura deorum e o De finibus. A presença de Cícero em
cada uma delas é sensivelmente diferente, mas parece servir a uma mesma preocupação do autor.
No De natura deorum, Cícero não desempenha a função de protagonista. A obra é também
organizada de maneira diferente daquela que vimos para o De finibus. O confronto entre as
doutrinas a respeito dos deuses, sustentadas por três escolas (a epucurista, a estóica e a
acadêmica), acontece em um só e longo diálogo. A divisão em três livros não marca a introdução
de três cenas distintas, mas apenas a seqüência das três exposições, que são apresentadas por
Veleio, o epicureu; Balbo, o estóico; e Cota, o acadêmico. A Cícero, fica reservado antes o papel
de auditor; ele, entretanto, professa seguir determinada tendência filosófica e, ao final, como
narrador, apresenta seu juízo a respeito das exposições que presencia.
Vejamos um trecho significativo em que a personagem que representa o autor da obra
comenta sua participação na discussão. A cena se desenvolve na casa de Cota, o pontífice; A
chegada de Cícero interrompe a exposição de Veleio. Pede-se ao epicureu que ele retome o

641
Que fique bem claro, não estamos defendendo que nada é jamais afirmado na obra de Platão. Não é essa a nossa
questão. Queremos dar conta apenas da concepção que Cícero faz do diálogo platônico.
642
Cf. Ad Att. XIII, 19, 4.
643
Que conforme pensam alguns estudiosos, era um elemento pouco elaborado nos diálogos aristotélcios (cf. Ruch,
1958, 39-43).

240
discurso. Antes de retomá-lo, porém, o patrono do epicurismo se dirige a Cota dizendo: “‘Sim, eu
retomarei, ainda que este aqui chegue em auxílio a ti, não a mim; pois ambos’, disse ele sorrindo,
‘aprenderam do mesmo Fílon a não saberem nada’”644.
A afirmação de Veleio destaca a adesão de Cícero à Nova Academia. Na concepção do
epicureu, a personagem que chega necessariamente trará seu apoio a Cota, representante, como
ele, da escola que negaria o conhecimento, representada na figura de Fílon. Veleio se refere, em
tom jocoso, ao ensinamento que ambos obtiveram do chefe da Academia. Na verdade, um “não-
conhecimento”, dado que tudo que eles aprenderam foi a nada saber. A resposta da personagem
de Cícero corrige a concepção reducionista do epicureu, que concebe a Academia como uma
escola dogmática, como o Jardim ou o Pórtico. A filosofia acadêmica constitui antes um método
de investigação do que um corpo de doutrinas. Vejamos a espirituosa resposta da personagem que
representa o autor:

“Cabe a Cota ver o que aprendemos; tu, por outro lado, não quero que estimes que eu
vim em auxílio a Cota, mas como um ouvinte e, sem dúvida, imparcial, com a
capacidade de julgamento isenta, sem estar submetido a qualquer necessidade que me
faça sustentar, quer eu queira, quer não, uma determinada concepção”645.

A personagem defende a sua postura filosófica por meio de um hábil jogo entre duas
palavras: adiutor e auditor. Ter estudado com Fílon não faz de Cota e Cícero concordes com
relação a tudo que pensam. A afirmação de Cícero é, de fato, uma declaração sobre a liberdade de
pensamento que a Academia garante a seus partidários. Se Cícero está presente à discussão, ele
não veio como um adiutor, mas como auditor. Ele veio apenas ouvir e, a partir disso, tirar suas
próprias conclusões, sem estar constrangido a ter de defender, de antemão, qualquer ponto de
vista. Com efeito, por meio desse comentário a respeito de sua participação na conversa, a
personagem do autor parece apontar para sua isenção com relação ao que se discute. De certo
modo, a presença da personagem do autor, depois que nuançada por meio de declarações como
essa, garante ao diálogo um aspecto de investigação inacabada semelhante àquele que o próprio

644
“Repetam uero, quamquam non mihi sed tibi hic uenit adiutor; ambo enim' inquit adridens 'ab eodem Philone
nihil scire didicistis.” (De natura deorum I, 17).
645
Tum ego: “Quid didicerimus Cotta uiderit, tu autem nolo existimes me adiutorem huic uenisse sed auditorem, et
quidem aecum, libero iudicio, nulla eius modi adstrictum necessitate, ut mihi uelim nolim sit certa quaedam tuenda
sententia.” (De natura deorum I, 17).

241
Cícero reconhece em Platão, que atingia tal efeito, entretanto, por meio da ausência absoluta de
sua voz como personagem.
Até onde, porém, vai a isenção e imparcialidade de Cícero? O modo como o diálogo se
encerra é, sob esse aspecto, significativo. É de novo uma declaração da liberdade de pensamento
da Academia:

“Ditas essas coisas, nós nos despedimos; de modo que, para Veleio, a argumentação de
Cota parecia ser mais verdadeira, para mim, a de Balbo, mais próxima do que é
semelhante à verdade”646.

Admitindo a refutação de Cota, o epicurista Veleio considerou os argumentos de um de


seus interlocutores e sua concepção a respeito dos deuses verdadeiros647. A postura final da
personagem de Cícero, porém, é emblemática: ainda que acadêmico, como Cota, Cícero não se
portou, de fato, como adiutor. Terminadas as exposições, foi aquela apresentada por Balbo, o
estóico, a que mais lhe agradou. A ela a personagem concede seu assentimento, que não é,
contudo, absoluto: Cícero não julgou a exposição verdadeira, mas tão somente “inclinada em
direção à semelhança da verdade”, para utilizarmos uma tradução ainda mais literal. A
investigação continua, de alguma forma, aberta. O acadêmico jamais poderá julgá-la, além do
mais, concluída. Se apontá-la como ueri similis direciona a interpretação do leitor, não podemos
fechar os olhos para ênfase que se dá à opinião da outra personagem, que optou por uma solução
diferente daquela adotada pela personagem que representa o autor. Excluídas completamente,
apenas as teses sustentadas por Veleio, o epicureu, em sua exposição.
No De finibus, a presença da personagem de Cícero é muito mais marcante. A estratégia de
composição adotada pelo autor é bastante diferente dessa que observamos no De natura deorum.
O encontro entre as três escolas não acontece em uma só cena, em um só tempo. Cada discussão
se dá em um tempo diferente. Acreditamos que o autor se serve dessa separação temporal entre
cada uma das discussões particulares para apontar soluções possíveis para a questão do sumo

646
Haec cum essent dicta, ita discessimus, ut Velleio Cottae disputatio uerior, mihi Balbi ad ueritatis similitudinem
uideretur esse propensior (De natura deorum III, 95).
647
Perceba-se que Veleio representa um epicureu bem menos obstinado do que Torquato. Sendo assim, a discussão
representada no De natura deorum, enquanto obra comum, alcança êxito relativo, o que, por outro lado, não pode ser
observado no De finibus.

242
bem sem que, no entanto, esteja obrigado a defender uma delas como a verdadeira e definitiva
solução, o que, ademais, contrariaria suas idéias acerca do conhecimento humano.
Não há dúvida de que, assim como no Sobre a natureza dos deuses, a tese epicurista é
absolutamente rechaçada. É a persona do autor, no prefácio do livro III, quem atesta a derrota do
prazer. No entanto, a acrior contentio (cf. III, 2) entre estóicos e acadêmicos, que se desenvolve a
partir do livro III e segue até o final da obra, não recebe, diretamente do autor, qualquer
valoração. Por outro lado, a perspectiva da personagem que representa o autor oscila entre o
segundo e o terceiro diálogo. Na disputa contra os estóicos, Cícero toma a palavra e se serve do
pensamento de Antíoco para rechaçar a concepção que faz da virtude o único e exclusivo bem.
Sua estratégia consiste em mostrar que a doutrina entra em contradição consigo mesma, uma vez
que parte dos impulsos naturais (aqueles que levam o homem a buscar a autopreservação) para
fundamentar o sumo bem. Pois bem, quando os estócios definem o finis para o homem de idade
adulta, julga a personagem, não levam mais em conta o que exige a natureza humana, composta
de corpo e alma, e pensam apenas no que é exigido no âmbito da alma, isto é, excelência
intelectual e moral, ou, em outros termos, as virtudes. A contradição no sistema deriva de um uso
vicioso e equivocado dos termos que desvirtua o pensamento que, na verdade, é a base do sistema
estóico, a saber: a filosofia dos antigos acadêmicos e peripatéticos.
Pois bem, no livro V, quando cabe a Pisão defender, de modo geral, as mesmas teses que a
personagem de Cícero sustentara na refutação estóica do livro IV, resta-lhe combater justamente
aquilo que expusera no diálogo anterior. Na verdade, a última fala da personagem de Cícero na
obra rebate os critérios que ele utilizara na refutação do finis estóico. Seria isso, portanto, uma
demonstração da virtude dialética da Academia de Arcésilas e Carnéades? A demonstração de
que todas as doutrinas podem ser rechaçadas por meio de uma contra-argumentação persuasiva?
Em parte, sim. Mas outros elementos estão em jogo.
Em primeiro lugar, a refutação da exposição de Pisão não tem início senão após a
personagem admitir que ele pode muito bem acolher as teses de Antíoco, uma vez que pode
emprestar seu assentimento a tudo aquilo que pareça probabile (cf. V, 76). A refutação é
necessária, mesmo assim. Ela faz parte do método. Pois o sábio só pode assentir em algo após
fazer o teste, por assim dizer, de sua probabilitas, algo que se faz por meio da contra-
argumentação. A personagem indica estar propensa a aceitar as teses de Antíoco, mas reconhece
que a posição desse filosófo com relação à felicidade do sábio é problemática, pois, contando

243
entre os bens o que é da ordem do corpo e ainda os bens externos, Antíoco deixaria o sábio à
mercê da fortuna e sua felicidade seria uma condição precária e preocupante. O diálogo final se
encerra com uma vitória pouco convincente da doutrina de Antíoco. Houve o que fosse aprovado,
mas alguns problemas restaram.
Mas outros problemas se somam a isso. Se agruparmos os três diálogos dispondo-os em
uma linha temporal, observaremos que o terceiro diálogo, na verdade, é anterior aos outros dois.
Cícero, no livro V, é um jovem estudante de filosofia. Ora, a preocupação que tem o autor em
compor personagens que estejam de acordo com os indivíduos históricos a partir dos quais elas
são forjadas é bem conhecida. A última palavra de sua personagem no tratado pode não ser,
portanto, condizente com as opiniões que defende o velho Cícero no momento de maturidade
intelectual em que escreve a obra. Qual seriam as opiniões do velho Cícero? Difícil precisar. Do
ponto de vista de uma narrativa geral (referimo-nos à linha temporal que une os três diálogos
como se representassem três momentos da vida de Cícero), porém, a última palavra de Cícero é a
refutação da doutrina estóica, isto é, o que lemos no livro IV. Na organização dada ao tratado, por
outro lado, a última valoração das doutrinas expostas feita pelo próprio autor consiste na negação
absoluta do epicurismo: o início do livro III.
Ao fim do De finibus, portanto, Cícero está propenso a aceitar as teses de Antíoco? É algo
sobre o que não podemos de fato decidir. A oscilação de opinião (ou apenas de postura
argumentativa) entre as personagens que representam o autor no segundo e no terceiro de diálogo
torna-se mais complexa e difícil de precisar por conta do recuo temporal que a cena final
estabelece. Desse modo, ainda que esteja presente, ou mesmo onipresente, em sua obra como
personagem, Cícero agencia a composição de modo a não permitir que o leitor chegue a uma
conclusão absolutamente segura a respeito de suas convicções próprias. Para concluirmos essa
discussão, citemos uma passagem inicial do já mencionado De natura deorum, cuja publicação é
posterior à do De finibus, em que o autor faz uma clara alusão a essa característica de suas obras
e de seu método filosófico. É um trecho do proêmio do livro I:

“No entanto, vejo que a respeito de nossos livros que, tão numerosos, nós publicamos
em breve intervalo, discute-se de modo variado e profuso; em parte, há os que se
perguntam, admirados, de onde surgiu esse nosso súbito interesse pela filosofia; em
parte, há os que desejam saber que convicções nós temos a respeito de cada assunto; a
muitos, inclusive, percebi que pareceu surpreendente que nós aprovássemos sobretudo

244
essa filosofia que subtraísse a luz e como que vertesse sobre as coisas uma espécie de
noite e que nós tivéssemos nos encarregado, irrefletidamente, da defesa de uma escola
já há algum tempo abandonada e deserta”648.

O De natura deorum pode ser encarado como uma tentativa de resposta às críticas que o
método acadêmico utilizado recebia da parte de seus leitores contemporâneos. Ao longo da obra,
o autor mostra, como já fizera na Academica e no De finibus, de que modo o método de in
utramque partem dicere e o gênero literário que o representa de maneira tão apropriada estão a
serviço da busca da solução mais provável e mais próxima da verdade em cada uma das questões
mais importantes para o homem. A própria impossibilidade de se alcançar o verdadeiro torna
necessário que a investigação, ainda que avance em direção a uma solução, não pareça jamais
estar concluída.

648
Multum autem fluxisse uideo de libris nostris, quos compluris breui tempore edidimus, uariumque sermonem
partim admirantium unde hoc philosophandi nobis subito studium extitisset, partim quid quaque de re certi
haberemus scire cupientium; multis etiam sensi mirabile uideri eam nobis potissimum probatam esse philosophiam,
quae lucem eriperet et quasi noctem quandam rebus offunderet, desertaeque disciplinae et iam pridem relictae
patrocinium necopinatum a nobis esse susceptum (De natura deorum I, 6).

245
Sobre os fins
dos bens e dos males

247
Sobre os Fins dos Bens e dos Males
Livro I

1 Eu não ignorava, Bruto, que, ao confiar às letras latinas assuntos de que haviam tratado,
no idioma grego, os filósofos de mais sublime engenho e de requintada doutrina, este nosso
trabalho ficaria sujeito a diversas críticas. Pois a alguns, e estes por certo não inteiramente
incultos, desagrada por completo a filosofia. Já alguns outros, se ela for realizada de maneira
menos diligente, não criticam tanto, mas julgam que não se deve a ela aplicar tamanho zelo e tão
intensa atividade. Haverá também uns, e estes por certo versados nas letras gregas, que,
menosprezando as latinas, dirão preferir ocuparem-se com a leitura dos gregos. Finalmente,
suponho que haverá alguns que me convidarão a outros tipos de obras, e este gênero de escrito,
ainda que seja de bom gosto, eles negarão, todavia, ser próprio do papel que desempenho e do
meu prestígio. 2 Julgo que contra todos eles deverei falar brevemente.
De resto, sem dúvida respondeu-se satisfatoriamente aos detratores da filosofia naquele
livro em que, acusada e detratada por Hortênsio, a filosofia foi defendida e louvada por nós.
Tendo tal livro parecido aprovado tanto por ti quanto pelos que eu entendia serem capazes de
julgar, agora me encarreguei de mais coisas, receoso de que parecesse mover o interesse dos
homens sem poder satisfazê-lo.
Os que, por outro lado, mesmo sendo muitíssimo agradável filosofar, todavia querem que
isto se faça mais moderadamente, exigem uma difícil temperança em algo que, uma vez incitado,
não pode ser reprimido nem contido, de modo que tomaremos por mais justos – poderíamos dizer
– aqueles que queiram nos afastar completamente da filosofia do que estes que queiram
estabelecer um termo para coisas infinitas e desejem uma moderação em algo que é tanto mais
louvável quanto mais amplo for. 3 De fato, se, por um lado, é possível alcançar-se a sabedoria,
nós não somente devemos procurá-la, como devemos ainda dela desfrutar; por outro lado, se isto
é difícil, não há termo, contudo, para a investigação da verdade, a não ser que a encontres, e a
desistência de buscá-la é vergonhosa, já que aquilo que se busca é o que há de mais belo. Ora, se
nos apraz escrever, quem é tão invejoso que queira nos afastar disso? E se nos custa, quem há que
queira estabelecer um termo para a atividade alheia? Com efeito, assim como não é desumano o
Cremete de Terêncio, que não quer o seu novo vizinho

249
“a escavar, ou a arar, ou a carregar algo, enfim”

(pois não o afasta da atividade, mas do trabalho indigno de um homem livre), são zelosos em
excesso esses aos quais ofende esta nossa pena, que não nos é em absoluto desagradável.
II 4 É, portanto, mais difícil satisfazer os que dizem menosprezar os escritos em latim. E é
disto, primeiramente, que neles me admiro: por que não lhes agrada a língua materna nos mais
graves assuntos, embora eles próprios leiam, de bom grado, peças de teatro vertidas literalmente
do grego? De fato, quem é de tal modo quase que hostil ao nome romano, que despreze, ou não
tolere, a Medéia de Ênio, ou a Antíopa de Pacúvio, porque diga se deleitar com as mesmas peças
de Eurípides e deteste o que se escreve em latim? Diria ele: que eu leia as Sinefebos de Cecílio,
ou a Ândria de Terêncio, de preferência a ambas de Menandro? 5 Desses eu discordo de tal
modo que, muito embora Sófocles tenha escrito a Electra da maneira mais excelente possível,
julgo, contudo, que eu devo ler a versão ruim de Atílio, a respeito de quem disse Licino:

“escritor de ferro; todavia, penso que é, na verdade, um escritor


Que se deve ler.”

Ora, ser inteiramente ignorante de nossos poetas é próprio da mais inerte indolência ou do gosto
mais delicado e difícil de contentar. A mim, ao menos, não parecem instruídos o bastante aqueles
que desconhecem o que é nosso.

“Quem dera que em bosque...”

Acaso deixamos de ler algo do que há no original grego? E, por outro lado, o que foi discutido
por Platão a respeito de viver bem e feliz, não seria apreciável expor em latim?
6 Ora, se nós não desempenhamos a função de tradutor, mas observamos o que disseram
aqueles que aprovamos e a isso acrescentamos nosso julgamento e nosso modo de escrever, que
motivo têm eles para antepor o que foi dito em grego ao que esplendidamente foi dito e sequer foi
vertido do grego? Pois se disserem que estes temas foram tratados por aqueles, nem ainda assim
há motivo para que leiam tão maior número de gregos do que os que devem ser lidos. Ora, o que,
dentre os pensamentos dos estóicos, é omitido por Crisipo? Lemos, porém, Diógenes, Antípatro,

250
Mnesarco, Panécio, muitos outros e, em primeiro lugar, Posidônio, nosso amigo íntimo. Que
dizer de Teofrasto? Agrada ele medianamente quando trata de temas antes tratados por
Aristóteles? O quê? Os discípulos de Epicuro porventura se abstêm de escrever, segundo seus
próprios arbítrios, sobre os mesmos assuntos a respeito dos quais escreveram tanto Epicuro
quanto os antigos epicureus? Ora, se os gregos são lidos pelos próprios gregos a respeito dos
mesmos assuntos, rearranjados de outra maneira, que motivo há para que os nossos não sejam
lidos pelos nossos? III 7 No entanto, se eu vertesse Platão ou Aristóteles exatamente assim como
nossos poetas verteram as peças de teatro, estaria, creio, servindo mal a meus concidadãos, se eu
apenas trouxesse a seu conhecimento aqueles intelectos divinos. Mas, até aqui, não o fiz nem me
considero proibido de fazê-lo. Algumas passagens, certamente, caso me pareça bem, transportarei
para minha obra, e sobretudo dos que há pouco mencionei, quando houver ocasião em que possa
se dar de modo bem ajustado, como Ênio costuma fazer com Homero e Afrânio com Menandro.
Nem de fato recusarei, como nosso Lucílio, que me leiam todos. Quem dera houvesse para
mim alguém como o célebre Pérsio! Na verdade, Cipião e Rutílio muito mais ainda! Lucílio,
receoso quanto ao juízo daqueles, diz escrever para os tarentinos, os consentinos e os sículos. Por
certo, de maneira espirituosa, assim como em outras passagens, mas nem havia, na época,
pessoas tão doutas por cujos juízos ele se empenhasse em ser aprovado, e seus escritos são
demasiadamente frívolos, de modo que deixam à mostra a mais elevada graça, mas medíocres
ensinamentos. 8 Quanto a mim, que leitor deveria eu temer, já que ouso escrever a ti, que não
cedes nem mesmo aos gregos em conhecimentos filosóficos? Faço-o, todavia, certamente por ter
sido estimulado por ti próprio com o livro sobre a virtude que me dedicaste e que muito me
agradou.
Mas, creio que é por isto que sucede a alguns desgostar dos textos latinos: o fato de que
conheceram ao acaso alguns de estilo rude e grosseiro, escritos a partir de textos gregos de má
qualidade, de um modo ainda pior em latim. Com esses eu concordo, contanto que julguem que
nem sequer os textos gregos se devam ler a respeito desses mesmos assuntos. Entretanto, quem
não leria coisas bem ditas, grave e elegantemente, por meio de palavras seletas? A não ser quem
deseja ser considerado perfeitamente grego, assim como foi saudado Albúcio pelo pretor Cévola
em Atenas. 9 E esse episódio o mesmo Lucílio contou com muito encanto e todo seu sarcasmo;
em sua obra Cévola diz brilhantemente:

251
“Grego ser chamado, Albúcio, tu preferiste a romano e a sabino,
A compatriota de Pôncio e de Tritânio, dos centuriões,
Dos mais ilustres varões, dos primeiros soldados, dos que levam
[as insígnias.
Em grego, então, eu, o pretor em Atenas, porque preferiste,
Ao te aproximares de mim, assim te saúdo:
‘Cai're ,’ digo eu, ‘Tito!’ Os litores, todo o batalhão e a coorte:
‘Cai're , Tito!’ Desde então meu inimigo, Albúcio, desde então
[meu desafeto!”

10 E Múcio tinha razão. Quanto a mim, não posso deixar de indagar com espanto de onde poderia
vir esse desdém tão excessivo pelas coisas domésticas. Esta não é, absolutamente, ocasião para se
demonstrar, mas penso desta forma e muitas vezes argumentei a respeito: a língua latina não só
não é pobre, como de ordinário consideram, mas é ainda mais rica que a grega. Quando, com
efeito, pelo menos depois que houve um modelo a que imitássemos, faltou a nós, bons oradores e
poetas, algum ornato para um discurso copioso ou elegante?
IV Eu, de minha parte, uma vez que em meio aos trabalhos, às fadigas, aos processos do
fórum, não me parece que tenha abandonado o posto em que fui colocado pelo povo romano,
devo daqui por diante, sem dúvida, quanto mais puder, nisto também me empenhar: que, com o
meu trabalho, dedicação e esforço, tornem-se mais instruídos meus concidadãos. E não me
digladiar de tal modo com esses que preferem ler os gregos (contanto que leiam, que não finjam),
mas sim servir aos que assim queiram se utilizar de ambas as línguas, ou, se só possuem a sua
própria, não tenham necessidade daquela.
11 Os que, por outro lado, preferem que escrevamos coisa diversa, devem ser razoáveis,
pois muito foi escrito por nós, assim como ninguém dentre os nossos escreveu e, talvez, mais será
escrito, se nossa vida for suficiente. Todavia, aquele que se habituar a ler cuidadosamente o que
acerca da filosofia confiamos às letras, julgará não haver leitura alguma preferível a esta. Pois o
que se deve de tal modo indagar na vida senão o que se investiga tanto na filosofia em seu todo,

252
quanto nestes livros sobretudo: qual é o fim649, o que é extremo, o que é último, para onde se
deve reportar todo desígnio de viver bem e agir com retidão; o que a natureza persegue como o
supremo dentre as coisas a serem buscadas e o que ela evita como o extremo dos males? E uma
vez que a respeito desse assunto há entre os mais sábios enorme discordância, quem consideraria
impróprio do prestígio que a mim cada qual atribui investigar o que é o melhor e o mais
verdadeiro em todas as ocupações da vida? 12 Se o filho de uma escrava deve ou não ser contado
entre os bens que foram produzidos será discutido pelos homens mais eminentes desta cidade, P.
Cévola e M. Manílio, dos quais Marco Bruto discordará (gênero de assunto que não só é
profundo como de não pouca utilidade para o proceder dos cidadãos; e nós lemos e leremos de
bom grado tais escritos e outros do mesmo gênero). Mas e quanto a estes assuntos que abrangem
toda a vida, deveríamos deixá-los de lado? Ora, ainda que aqueles estejam em maior conta, estes
são certamente mais fecundos. No entanto, é a quem tiver lido, por certo, que será deixado avaliar
tal coisa. Quanto a nós, consideramos que a questão sobre os fins dos bens e dos males, nós a
desenvolvemos quase que completamente nestas páginas, onde, tanto quanto pudemos, não
somente buscamos expressar nosso modo de pensar, mas ainda o que foi dito por cada escola de
filosofia.
V 13 Mas, para começarmos pelo mais fácil, que se apresente, em primeiro lugar, o sistema
de Epicuro, que é o mais conhecido da grande maioria; tu perceberás que nós o expusemos de um
modo tal, que nem mesmo aqueles que aprovam tais ensinamentos costumam desenvolvê-lo de
forma mais acurada. Pois é a verdade que queremos alcançar e não refutar alguém tal qual um
adversário. Ora, acuradamente, certo dia, L. Torquato, homem versado na totalidade da doutrina,
defendeu o pensamento de Epicuro acerca do prazer, e eu lhe respondi, estando presente à
discussão C. Triário, jovem sobremaneira grave e bem instruído. 14 Pois tendo ambos vindo a
Cumas, para me visitar, primeiramente conversamos um pouco a respeito de obras literárias, cujo
interesse era imenso em ambos; em seguida, Torquato disse: “Já que enfim te encontramos
desfrutando do ócio, certamente gostaria de ouvir por que é que nosso Epicuro tu, por certo, não
abominas, como de costume fazem os que dele discordam, mas certamente não o aprovas, ele que
eu julgo ser o único a ter visto a verdade e ter libertado as almas dos homens dos maiores erros e
ter ensinado tudo que diz respeito a viver bem e feliz. Na verdade, estimo que tu, assim como

649
Conceito central na discussão do De finibus. Refere-se ao que o homem deve almejar como fim último da vida, o
bem supremo, em vista do que tudo o mais deve ser buscado. Ver comentários à tradução e o estudo que acompanha
a tradução.

253
nosso Triário, menos te agradas dele pelo fato de ter negligenciado esses ornamentos de discurso
presentes em Platão, Aristóteles e Teofrasto. Pois isto, ao menos, com dificuldade posso ser
levado a considerar: que seus pensamentos não te pareçam verdadeiros.”
15 “Vê, Torquato”, disse eu, “o quanto te enganas. O discurso desse filósofo não me
desagrada, pois tanto exprime com palavras o que deseja, como se expressa claramente de modo
a que eu o compreenda; e eu, todavia, não desprezaria a eloqüência de um filósofo, caso ele a
apresentasse; caso ele não a possuísse, não a exigiria excessivamente. É com relação ao conteúdo
que ele não me satisfaz completamente e, por certo, em diversos pontos. Mas, ‘cada cabeça, uma
sentença’; então, podemos estar enganados.”
“Por que razão, enfim”, disse ele, “Epicuro não te satisfaz? Considero-te um juiz imparcial,
contanto que o que ele diz tu conheças bem.”
16 “A não ser”, disse eu, “que consideres que Fedro e Zenão, aos quais ouvi, mentiram para
mim. Uma vez que a mim eles não demonstravam absolutamente nada senão aplicação, são-me
conhecidos de modo satisfatório todos os pensamentos de Epicuro. E esses que mencionei,
freqüentemente eu os ouvi em companhia de nosso Ático, uma vez que, por certo, ele admirava
ambos; para com Fedro, no entanto, tinha inclusive afeição pessoal. E todos os dias, cotejávamos
entre nós aquilo que ouvíamos, e jamais havia controvérsia quanto ao que eu compreendia, mas
sim quanto ao que aprovava.”
VI 17 “Qual é, portanto, a razão?”, disse ele, “Desejo, sem dúvida, ouvir o que não
aprovas”.
“Quanto ao que é primeiro”650, disse eu, “na física, da qual ele sobretudo se vangloria, em
primeiro lugar, tudo vem de outrem. Diz coisas de Demócrito, com pouquíssimas alterações, mas
de um tal modo que aquilo que ele quer corrigir, parece, ao menos a mim, distorcer. O que aquele
chama de átomos, isto é, corpos indivisíveis por causa de sua solidez, considera que, em um
vazio infinito, no qual não haveria nada nem mais alto, nem mais baixo, nem médio, nem mais
interno, nem mais externo, de tal modo são levados, que pelo encontro entre si se uniriam, a partir
do que seriam produzidas as coisas que existem e tudo o que se vê; e este movimento deve-se
entender que não tem um princípio, mas é de existência eterna. 18 Quanto a Epicuro, naquilo que
segue Demócrito, quase não comete deslize. Embora eu não aprove muitas coisas de ambos,

650
A expressão deve se referir à primeira parte da filosofia: a física (ver as notas que se encontram no final do texto
do livro I).

254
sobretudo isto eu desaprovo: uma vez que dupla é a investigação com relação à natureza das
coisas – por um lado, buscar qual seja a matéria a partir da qual cada coisa é produzida; por outro,
qual seja a força que produz cada uma –, discorreram a respeito da matéria, com a força e com a
causa eficiente não se importaram. Mas esse é o defeito comum aos dois; eis a ruína que é só de
Epicuro: ele considera, de fato, que aqueles mesmos corpos sólidos e indivisíveis são levados
para baixo por seu próprio peso segundo uma linha perpendicular, e que este é o movimento
natural de todos os corpos. 19 Em seguida, então, quando lhe ocorreu que, se todas as coisas
deixam-se levar para baixo em linha reta e, como ele disse, perpendicularmente, jamais um átomo
haveria de poder tocar um outro, o homem agudo criou um expediente fantasioso e, assim,
afirmou que o átomo sofre um desvio pequeníssimo, em relação ao qual nada poderia ser menor,
e assim se produziriam as associações, os ajuntamentos e conglomerados de átomos entre si, a
partir do que se produziria o mundo e todas as partes do mundo e aquilo que nele se encontra.
Coisa que, uma vez que foi toda inventada de maneira pueril, nem mesmo produz o que ele
deseja. Pois também o próprio desvio é inventado a seu capricho (ele afirma, de fato, que o átomo
se desvia sem uma causa, e nada é mais vergonhoso a um físico do que dizer que algo acontece
sem uma causa), e aquele movimento natural de todos os corpos pesados, como ele próprio
estabeleceu, em linha reta e tendendo ao lugar mais baixo, arrebatou aos átomos sem uma causa
e, todavia, não alcançou aquilo para cujo fim inventara tais coisas. 20 Ora, se todos os átomos se
desviarem, nenhum jamais se unirá a outro; por outro lado, se uns se desviarem e outros, por sua
tendência natural, deixarem-se ir em linha reta, primeiramente isto seria conceder como que
privilégios aos átomos: uns deixar-se-iam ir em linha reta, outros obliquamente. Além disso (e
nisto também Demócrito se embaraça), aquele mesmo turbulento concurso dos átomos não seria
capaz de produzir esta bela ordenação do mundo. Nem mesmo isto de acreditar que haja algo
mínimo é próprio de um físico, o que jamais teria pensado, sem dúvida, se de Polieno, seu amigo,
tivesse preferido aprender geometria a fazer com que inclusive ele próprio a desaprendesse. O Sol
é grande na opinião de Demócrito, este certamente um homem instruído e excelente em
geometria; para Epicuro, teria talvez um pé de diâmetro; considera-o, então, ser do tamanho que é
visto, ou um pouco maior ou menor. 21 Dessa forma, o que ele altera, estraga, o que segue, é
tudo de Demócrito: os átomos, o vazio, as imagens, que denominam ei[dwla, por cujo choque não
só podemos ver, mas ainda pensar. A própria extensão infinita, que chamam ajpeirivan, vem toda
daquele; além disso, os inumeráveis mundos que se originariam e pereceriam todos os dias. E

255
embora tais coisas não me pareçam prováveis de modo algum, contudo não desejaria que
Demócrito, louvado pelos demais, fosse detratado por quem seguira somente a ele.
VII 22 Já na outra parte da filosofia, que é a do investigar e do argumentar e que é chamada
de logikhv, esse vosso filósofo, como a mim ao menos parece, está completamente inerme e
indefeso. Ele suprime as definições; nada ensina sobre o dividir e o dispor em partes; não dá
lições sobre o modo pelo qual se produz e se conclui um raciocínio, não mostra por que método
se resolvem os argumentos capciosos e se distinguem as ambigüidades. A capacidade de julgar as
coisas ele a fundamenta nos sentidos, e se por eles alguma vez algo falso for aceito como
verdadeiro, considera estar suprimida toda a capacidade de julgar entre verdadeiro e falso.
[...] provável lacuna
23 Por outro lado, assegura isto como o mais firme, o que a própria natureza, como ele diz,
estabelece e demonstra, isto é: o prazer e a dor. A estes ele refere não só tudo o que devemos
perseguir, como tudo o que devemos evitar. O que, embora venha de Aristipo e pelos cirenaicos
seja mais bem e mais abertamente defendido, julgo ser de uma tal sorte que nada parece mais
indigno do homem, pois para certas coisas maiores a natureza nos gerou e nos deu forma, como a
mim ao menos parece. E pode até ser que eu esteja enganado, mas é precisamente assim que
penso: o Torquato que por primeiro ganhou esse sobrenome não arrancou o célebre colar ao
inimigo a fim de que com isso experimentasse algum prazer corporal, nem, em seu terceiro
consulado, confrontou-se com os latinos junto ao Vésere com vistas ao prazer. Quanto, de fato, a
ter golpeado seu filho com a machadinha, parece inclusive ter se privado de muitos prazeres,
quando à própria natureza e ao amor paterno antepôs os direitos da autoridade civil e do comando
militar.
24 O quê? Tito Torquato, que foi cônsul juntamente com Gn. Otávio, ao ter empregado
célebre exemplo de severidade contra esse filho que emancipara para ser adotado por D. Silano,
quando, estando a acusarem-no os embaixadores da Macedônia, inculpando-o de ter se apoderado
de somas de dinheiro quando era pretor na província, ordenou que a causa fosse defendida junto a
si e, do que ouvira de ambas as partes, declarou que ele não parecia ter se portado na magistratura
tal qual seus antepassados e proibiu-o de vir a sua presença, acaso te parece que ele pensou em
seus próprios prazeres?
Mas, deixando de lado os riscos, as fadigas e até a dor que cada um dos melhores homens
toma sobre si em favor da pátria e dos seus, a ponto de não apenas não lhe apetecer algum prazer,

256
mas inclusive preterir todos e, por fim, preferir suportar dores, quais sejam elas, a abandonar
alguma parte de seu dever, passemos a coisas que não menos tornam isso manifesto, mas que
parecem ser menos importantes: 25 o que para ti, Torquato, o que para este Triário as obras
literárias, o que as obras de história e o conhecimento das coisas, o que a leitura de poetas, o que
tão vasta memória de tantos versos traz de prazeroso? E não me digas isto: ‘Ora, tais coisas são
em si mesmas um prazer para mim, e aquelas o eram para os Torquatos’. Jamais defendeu tal
idéia Epicuro, nem Metrodoro ou algum dentre os que ou tivessem algum tino, ou tivessem
aprendido a doutrina. E quanto ao que amiúde se pergunta: por que há tantos epicureus, há outras
causas também, mas esta sobretudo alicia a multidão: pensam que ele disse que o que é reto e
honroso produz por si próprio a alegria, ou seja, o prazer. Essa boa gente não compreende que
todo o sistema cai por terra caso se tome a questão dessa forma. Pois, caso se concedesse que tais
coisas são espontaneamente e por si agradáveis, ainda que em nada se refiram ao corpo, tanto a
virtude quanto o conhecimento das coisas deveriam ser buscados por si mesmos, que é o que ele
menos pretende. 26 Eis, então, o que não aprovo em Epicuro. Quanto ao mais, gostaria, sem
dúvida, ou que ele próprio tivesse sido mais bem provido de instrução (pois ele, é forçoso que
reconheças, não se aperfeiçoou no conjunto de conhecimentos por cuja posse alguém é chamado
erudito), ou que não tivesse afastado os outros dos estudos. É bem verdade que, tu, ao menos, não
penso teres sido afastado absolutamente.”
VIII Tendo eu dito isso mais a fim de provocá-lo, do que para que falasse por mim mesmo,
então Triário, com leve sorriso, disse: “Tu, por certo, subtraíste Epicuro quase que
completamente do coro dos filósofos. O que deixaste a ele senão que, qualquer que seja o modo
pelo qual se expressa, tu o compreendes? Na física enunciou idéias alheias e nem essas próprias
coisas que tu poderias aprovar; se algo nela quis corrigir, tornou pior. A arte da exposição, ele
absolutamente não a possuía; o prazer, ao afirmar que é o sumo bem, primeiramente, mesmo aí
enxergou bem pouco; por fim, também isso vem de um outro, pois Aristipo o dissera antes, e
melhor. Acrescentaste, ao fim, que era inclusive falto de instrução.”
27 “De modo algum, Triário”, disse eu, “pode ocorrer que não digas o que não aprovas
naquele de quem discordas. Ora, o que me impediria de ser epicureu, se aprovasse o que ele
dizia? Ainda mais que aprofundar-se em tais coisas seria divertido. Por isso, as críticas dos que
discordam entre si não devem ser censuradas; as ofensas, os ultrajes, assim como os

257
arrebatamentos, as contendas e altercações encarniçadas em uma discussão costumam me parecer
indignas da filosofia.”
28 Então, disse Torquato: “concordo inteiramente, pois não se pode bem discutir sem
críticas, nem com iracúndia ou obstinação discutir adequadamente. Mas quanto a isto, se não for
inoportuno, tenho algo a dizer.”
“Porventura”, disse eu, “se não quisesse te ouvir, pensas que teria dito tais coisas?”
“Então”, disse ele, “desejas percorrer rapidamente toda a doutrina de Epicuro, ou investigar
unicamente sobre o prazer, em que está toda a peleja?”
“Como achares melhor”.
“Assim farei, então”, disse ele. “Desenvolverei uma questão apenas, a principal; quanto à
física, em outra ocasião, e, por certo, demonstrar-te-ei tanto esse desvio dos átomos quanto a
grandeza do Sol e os erros de Demócrito, que são muitos, criticados e corrigidos por Epicuro.
Agora não falarei sobre o prazer nada de novo, sem dúvida, contudo, coisas que, estou certo, tu
próprio hás de aprovar.”
“Certamente”, disse eu, “não te serei obstinado demais. Se aprovar o que disseres,
assentirei de bom grado.”
29 “Obterei tua aprovação”, disse ele, “contanto que te mantenhas com essa eqüidade que
ora demonstras. Mas prefiro fazer uso de um discurso contínuo a perguntas e respostas.
“Como queiras”, disse eu.
Então, deu início ao discurso:
IX “Primeiramente, então”, disse ele, “procederei da forma como ao próprio fundador da
escola parece bem: estabelecerei o que e de que tipo seja isto sobre o que investigamos, não
porque vos julgue ignorá-lo, mas para que o discurso avance com razão e método. Investigamos,
portanto, qual seja o extremo e último dos bens; o qual, segundo o pensamento de todos os
filósofos, deve ser tal que a ele tudo deve referir-se, mas ele próprio a nada. Esse, Epicuro o faz
consistir no prazer, o que ele pretende que seja o sumo bem, e o sumo mal, a dor, e isso ele
empreendeu demonstrar assim: 30 todo ser animado, logo que nasce, tende ao prazer e dele goza
como sumo bem; a dor ele enjeita como sumo mal e, o quanto pode, afasta-a de si, e o faz
enquanto ainda não foi pervertido e estando sua própria natureza a julgar de maneira não
corrompida e íntegra. E assim, afirma que não há necessidade de raciocinar nem de discutir qual
o motivo para que o prazer deva ser buscado e a dor evitada. Considera que isso nós sentimos,

258
como o fogo ser quente, a neve ser branca, o mel doce; coisas que não é necessário sustentar por
raciocínios refinados, é suficiente apenas aplicar-lhes a mente. Pois há diferença entre uma
argumentação com conclusão por raciocínios e meramente dirigir a alma, ou aplicar a mente: pela
primeira revelam-se coisas ocultas e como que enoveladas, pela outra indicam-se coisas dadas e
patentes. Com efeito, uma vez que subtraídos do homem os sentidos, nada há de resto, é forçoso
que o que seja conforme ou contra a natureza seja julgado pela própria natureza. E ela, o que
percebe, ou o que julga que a faça buscar ou evitar algo senão o prazer e a dor? 31 Há, por um
lado, alguns dos nossos, que essas coisas mais sutilmente desejem expor e que neguem ser
suficiente julgar pelos sentidos o que seja bom ou o que seja mau, mas ser possível compreender,
com a alma inclusive e pela razão, tanto que o prazer é por si próprio algo a ser buscado, quanto a
dor por si própria algo a ser evitado. Dessa forma, afirmam haver em nossa alma esta noção, por
assim dizer, natural e implantada, de modo a sentirmos que a uma coisa devemos tender e da
outra fugir. Outros, porém, com os quais eu concordo, uma vez que por numerosos filósofos
muitíssimas razões sejam dadas para que nem o prazer seja contado entre os bens, nem a dor
entre os males, não estimam que devamos nos fiar demasiadamente em nossa causa, mas
consideram que se deve argumentar, expor de modo acurado e, por meio de raciocínios
cuidadosamente elaborados, discutir acerca do prazer e da dor.
X 32 Mas, para que entendais de onde nasceu todo esse engano dos que reprovam o prazer
e exaltam a dor, tornarei tudo patente e as próprias coisas que foram ditas pelo descobridor da
verdade e como que arquiteto da vida feliz eu exporei. Ninguém, de fato, recusa, abomina ou
evita o próprio prazer, porque seja prazer, mas porque resultam grandes dores àqueles que não
sabem perseguir o prazer com cálculo; nem, ademais, há alguém que à própria dor, porque seja
dor, ame, persiga, queira alcançar, mas porque, por vezes, apresentam-se circunstâncias tais, que
é pela fadiga e pela dor que ele busca algum grande prazer. Ora, para que me volte a coisas
menores, quem dentre nós se submete a algum exercício corporal fatigante, senão a fim de que
dele obtenha algum proveito? Quem, por outro lado, repreenderia com justiça um homem que
deseje encontrar-se em um estado de prazer ao qual nada de pesaroso sobrevenha, ou aquele que
evite uma dor da qual nenhum prazer se possa originar? 33 No entanto, reprovamos e temos
como os mais merecedores de justa repugnância os que, seduzidos e corrompidos pelos deleites
dos prazeres presentes, não prevêem que dores e que males hão de sofrer, cegos que estão pelo
desejo; incorrem em falta semelhante os que abandonam os deveres por frouxidão de alma, isto é,

259
por uma fuga das fadigas e dores, e nestes casos é certamente fácil e sem empecilhos a distinção.
Pois, em situação de liberdade, quando isenta está nossa faculdade de escolha e quando nada nos
impede que façamos aquilo que mais nos agrada, todo prazer deve ser acolhido, toda dor repelida.
Mas em certas ocasiões, ou por obrigação aos deveres, ou pelas necessidades das circunstâncias,
muitas vezes ocorre que não só prazeres devam ser repudiados, como os pesares não devam ser
recusados. E assim, nestes casos, deve se ater o sábio a este critério: que, rejeitando os prazeres,
outros maiores ele alcance ou, suportando até o fim as dores, repila as mais ásperas.
34 Atendo-me eu a este modo de pensar, que motivo há para que eu receie não poder a ele
conformar o exemplo dos nossos Torquatos, que tu, agora há pouco, não só com fiel memória,
como também com amizade e afeto para conosco, evocaste? Todavia, louvando meus ancestrais,
não me corrompeste nem me tornaste mais remisso em responder. As ações deles, de que modo,
eu te pergunto, tu interpretas? Acaso consideras que eles se arrojaram contra o inimigo armado,
ou tão cruéis foram contra os filhos – ora, contra seu próprio sangue – sem pensar em seus
interesses, sem pensar no proveito próprio? Ora, nem mesmo os animais de tal maneira se lançam
e de tal maneira se agitam em confusão, que seus movimentos e arrebatamentos não
compreendamos a que visam; tu consideras que homens tão egrégios realizaram tão grandes atos
sem uma causa? 35 Qual teria sido a causa, logo examinarei; por enquanto, sustentarei isto: se
por alguma causa essas ações, que sem dúvida são preclaras, eles realizaram, a virtude por si
própria não foi a causa para elas. ‘Arrancou o colar ao inimigo’. Mas, por certo, protegeu-se para
não perecer. ‘E se expôs a um grande risco’. Mas sob o olhar do exército. ‘O que ele conseguiu
com isso?’ Glória e afeição, que são as mais sólidas fortalezas para uma vida a ser vivida sem
medo. ‘Ao filho puniu com a morte’. Se foi sem causa, não desejaria ser descendente de um
homem tão intolerante e cruel; mas se para que com sua dor firmasse a disciplina do comando
militar e contivesse pelo medo do castigo o exército em uma guerra extremamente dura, proveu à
salvação dos concidadãos, da qual compreendia depender a sua. 36 E esse raciocínio se estende à
larga. Aquilo que vosso discurso principalmente habituou-se a freqüentar, particularmente o teu –
tu que com zelo persegues o passado, rememorando homens célebres e valorosos e seus feitos
sem pensar em vantagem, mas exaltando-os pela beleza da própria honradez moral –, cai
completamente por terra, estando estabelecido este critério das coisas que há pouco mencionei:
que se deixem prazeres de lado com vistas a adquirir prazeres maiores, ou que se suportem dores
com o fim de evitar dores maiores.

260
XI 37 Mas, sobre as ações ilustres e gloriosas de homens célebres, é o bastante por ora, pois
logo haverá lugar apropriado para se tratar acerca do curso de todas as virtudes em direção ao
prazer. Agora, porém, tornarei explícito o que em si próprio e de que tipo é o prazer, para que se
suprimam todos os erros dos que não conhecem a doutrina e que se compreenda quão grave, quão
continente, quão severa é esta que é tida como uma doutrina voluptuosa, sensual e licenciosa.
Pois não seguimos apenas este prazer que com alguma doçura move a própria natureza e com
certo agrado é percebido pelos sentidos, mas o máximo prazer reputamos ser aquele que é
percebido quando toda dor é subtraída. Com efeito, uma vez que, quando estamos privados da
dor, pela própria libertação e pela ausência de todo incômodo, nós nos alegramos e, por outro
lado, tudo aquilo com que nos alegramos é prazer, assim como tudo com que nos afligimos é dor,
a privação de toda dor foi corretamente denominada prazer. Assim, quando pela comida e pela
bebida a fome e a sede são eliminadas, a própria subtração dos incômodos traz consigo o prazer,
da mesma maneira, em toda circunstância, o afastamento da dor produz como conseqüência o
prazer. 38 Dessa forma, não aprouve a Epicuro que houvesse algo de intermediário entre a dor e
o prazer, pois precisamente aquilo que a alguns pareceria intermediário, quando há ausência de
toda dor, não apenas é prazer, mas ainda o sumo prazer. Pois quem quer que se dê conta da
maneira como foi afetado, é forçoso que ele esteja ou em prazer, ou em dor. Por outro lado, pela
privação de toda dor, Epicuro pensa ser delimitado o sumo prazer, de modo que, depois, o prazer
pode se matizar e se diversificar, crescer e aumentar-se não pode.
39 Há, inclusive, em Atenas, conforme ouvia de meu pai651, que zombava dos estóicos de
maneira espirituosa e refinada, no Cerâmico, uma estátua de Crisipo sentado com a mão
estendida, mão essa que simbolizaria o prazer que ele experimentava com esta pequena questão:
‘Porventura tua mão, afetada da maneira pela qual agora é afetada, tem necessidade de algo?’ –
‘De nada, absolutamente’ – ‘Mas, se o prazer fosse um bem, ela teria necessidade?’ – ‘Confio
que sim’ – ‘Não é um bem, portanto, o prazer’. Isto nem mesmo a estátua diria, se pudesse falar,
acrescentava meu pai. Concluiu-se, de fato, de modo suficientemente agudo contra os cirenaicos,
nada com respeito a Epicuro. Pois se apenas houvesse este prazer que fizesse como que cócegas
nos sentidos, por assim dizer, e a eles afluísse com doçura e ali se introduzisse, nem a mão nem
alguma outra parte do corpo poderia se contentar com a ausência de dor, sem um agradável
movimento de prazer. Mas se, por outro lado, o sumo prazer é, como quer Epicuro, não sentir

651
Lúcio Mânlio Torquato, cônsul em 65 a. C. Para mais informações, vejam-se as notas ao fim do texto do livro I.

261
nenhuma dor, em primeiro lugar a ti, Crisipo, corretamente se concedeu nada desejar tua mão,
uma vez que estivesse assim afetada; em segundo lugar, incorretamente se concederia que, se o
prazer fosse um bem, ela não o desejaria. Precisamente por isto não desejaria: porque aquilo que
está privado de dor, encontra-se no prazer.
XII 40 Ora, que o prazer é o extremo dentre os bens facilmente se pode depreender disto:
suponhamos alguém que frui de grandes, muitos e duradouros prazeres tanto da alma quanto do
corpo, sem dor alguma o importunando ou o ameaçando. Que estado, por fim, superior a esse ou
mais desejável podemos mencionar? É forçoso, de fato, em quem de tal forma esteja afetado,
haver também a firmeza de uma alma que não teme nem a morte nem a dor, pelo fato de que a
morte é privada de sensação, e a dor, se de longa duração, costuma ser leve, se forte, breve, de
modo a sua ligeireza compensar a intensidade, e a sua mitigação, a duração. 41 A isso, quando se
acrescenta que nenhum nume divino ele tema, nem permita escapar a si os prazeres passados e
com a assídua recordação deles se alegre, o que existe que a isso se possa acrescentar para que
seja melhor? Concebe, pelo contrário, alguém acabrunhado por tamanhas dores de alma e corpo,
as maiores que possam recair sobre um homem, sem se apresentar esperança alguma de haverem
de se tornar mais brandas algum dia, sem nenhum prazer passado, nem presente, nem por esperar:
o que mais infeliz do que isso pode-se mencionar ou imaginar? E se a vida repleta de dores é a
que mais se deve evitar, o sumo mal, com certeza, é viver com dor. É conseqüente com esse
modo de pensar que o último dos bens seja viver com prazer. Ora, por um lado, não há nenhum
outro estado em que nossa mente poderia deter-se como se fosse um estado extremo652, por outro
lado, todos os medos e inquietações referem-se à dor e não existe coisa alguma senão ela que por
sua própria natureza seria capaz de atormentar ou angustiar.
42 Além disso, os primeiros movimentos tanto do apetecer quanto do evitar e, em geral, do
realizar ações têm origem ou do prazer ou da dor. Sendo assim, é evidente que todas as ações
retas e louváveis referem-se a isto: que se viva com prazer. Ora, uma vez que este é o sumo, ou
último, ou extremo dos bens (que os gregos denominam tevlo"), que não se refere, ele próprio, a
nenhuma outra coisa, mas a ele se referem todas as coisas, deve-se reconhecer que o sumo bem é
viver agradavelmente.
XIII Os que o fazem consistir em uma só virtude e, tomados pelo brilho da expressão, não
compreendem o que a natureza exige, do maior erro serão livrados, se se dispuserem a ouvir

652
“Estado extremo” refere-se ao conceito de finis, que será novamente explicado na seção 42.

262
Epicuro. Pois essas vossas virtudes, notáveis e belas, se não produzissem o prazer, quem as
julgaria dignas de louvor ou apetecíveis? De fato, assim como o saber dos médicos, não pela arte
em si, mas por causa de uma boa saúde nós aprovamos, e a arte do piloto, porque possui os
preceitos do bem navegar, pela utilidade, não pela arte é louvada, assim também a sabedoria, que
deve ser considerada a arte de viver, não seria buscada se nada produzisse; ora, ela é buscada
porque é como que uma artífice em buscar com zelo e produzir o prazer. 43 (De que prazer,
porém, eu falo, agora vislumbrais, a fim de que pela odiosidade em torno desse termo não se
arruíne meu discurso.) Pois uma vez que é sobretudo pela ignorância acerca das coisas boas e das
más que se aflige a vida dos homens, e por causa desse erro eles não só se privam amiúde dos
maiores prazeres, como se inquietam pelas mais duras dores da alma, deve-se acolher a
sabedoria, pois que, tendo sido subtraídos os terrores e os desejos, e tolhido o desatino das falsas
opiniões, ela se nos apresenta como a mais segura condutora ao prazer. A sabedoria, de fato, é a
única que rechaça a tristeza das almas, que não nos deixa tremer de medo; sendo ela a mestra, é
possível viver em tranqüilidade, extinto o ardor de todos os desejos. Pois os desejos são
insaciáveis, eles que não somente indivíduos, mas famílias inteiras deitam por terra e, muitas
vezes, fazem ruir até mesmo toda uma república. 44 Dos desejos nascem os ódios, as rupturas, as
discórdias, as sedições, as guerras, e eles não se agitam apenas externamente, nem apenas
investem com cego ímpeto contra as outras pessoas, mas internamente, encerrados na alma, entre
si divergem e discordam. A partir do que forçosamente se produz a mais amarga das vidas, de
modo que apenas o sábio, contido pelos limites da natureza, tendo sido desbastada e cerceada
toda inconsistência e o erro, pode viver sem aflição e sem medo.
45 O que é, com efeito, mais útil, ou mais apropriado ao bem viver do que aquela partição
de que se serviu Epicuro? Que propôs um gênero de desejos que seriam naturais e necessários;
outro, os que seriam naturais, mas não necessários; e um terceiro, os que não seriam nem
naturais, nem necessários. Eis o raciocínio para esses desejos: os necessários se satisfazem sem
muito empenho e sem dispêndio; nem mesmo os naturais exigem muito, porque a própria
natureza tem, alcançáveis e limitadas, as riquezas com as quais ela própria se contenta; dos
desejos vãos, por outro lado, medida alguma nem termo pode-se encontrar. XIV 46 E se vemos
toda a vida transtornar-se pelo erro e pelo desconhecimento, e haver somente a sabedoria que nos
defenda do ímpeto dos desejos frívolos, do terror e dos temores, que nos ensine a suportar com
moderação as injúrias e indique todos os caminhos que nos levem à quietude e à tranqüilidade,

263
que motivo há para hesitarmos em dizer que não só a sabedoria por causa dos prazeres deve ser
buscada, como ainda que a insensatez, por causa dos pesares, deve ser evitada?
47 Por raciocínio semelhante, nem mesmo a temperança dizemos dever ser buscada por si
mesma, mas porque traz paz às almas e as acalma e as torna serenas por meio de uma certa
concórdia, por assim dizer. É a temperança, de fato, que, com relação às coisas a serem buscadas
ou evitadas, adverte-nos a que sigamos um cálculo racional. Nem, de fato, é suficiente julgar
sobre o que se deve ou não se deve fazer, mas ainda é necessário deter-se firmemente no que se
tenha ajuizado. A maior parte dos homens, porém, porque não consegue sustentar e conservar o
que eles próprios decidiram, vencidos e abatidos pela visão de um prazer que se apresente diante
dos olhos, entregam-se como prisioneiros aos prazeres frívolos e não prevêem o que há de
ocorrer e, assim, por causa de um prazer sem importância, não necessário, que até de outro modo
se alcançaria e do qual até mesmo poderiam estar privados sem dor, não só a graves doenças,
como a prejuízos e a atos desonrosos, ficam sujeitos; amiúde, inclusive, tornam-se culpados
perante as penas da lei e dos tribunais. 48 Os que, por outro lado, de tal forma querem fruir dos
prazeres, que nenhuma dor deles resulte, e os que mantêm sua própria decisão, para não fazer,
vencidos pelo prazer, aquilo que pensam não dever ser feito, o maior prazer eles obtêm,
renunciando ao prazer. Do mesmo modo, também a dor amiúde eles suportam, para que não
recaiam em dor maior, caso não façam isso. Donde se compreende que nem a intemperança por si
deve ser evitada, e que a temperança deve ser buscada, não porque evite os prazeres, mas porque
alcance os maiores.
XV 49 O mesmo raciocínio encontrar-se-á para a coragem. Pois nem o cumprimento árduas
tarefas, nem a capacidade de suportar as dores são por si próprias atraentes, nem a capacidade de
tolerar, nem a perseverança, nem as vigílias, nem essa determinação, que é especialmente
louvada, nem mesmo a coragem. Mas essas coisas nós perseguimos a fim de que, sem
preocupação e sem medo, vivamos e o corpo e a alma, o quanto possamos, livremos do que é
nocivo. Pois assim como, pelo medo da morte, perturba-se todo repouso de uma vida de quietude,
e já que sucumbir às dores e suportá-las com alma vil e débil é deplorável, e por causa dessa
fraqueza de alma muitos arruinaram os pais, muitos os amigos, alguns a pátria, e a maioria, por
sua vez, a si próprios e completamente, do mesmo modo a alma robusta e elevada está livre de
toda preocupação e angústia, depois que não só desprezou a morte, pela qual os que foram
afetados estão na mesma condição em que estavam antes de terem nascido, como também de tal

264
forma se dispôs para as dores, que se lembra que as maiores findam com a morte, que as
pequenas têm muitos intervalos de quietude, e das moderadas nós somos senhores, de modo que,
se são toleráveis, suportemos, se não, de boa mente da vida, quando ela não nos agrade, tal qual
do teatro saiamos. A partir disso se entende que não se repreendem o temor e a covardia, nem se
exaltam a coragem e a firmeza por seus nomes, mas aquelas se rejeitam porque produzem dor,
estas se desejam porque produzem prazer.
XVI 50 Resta a justiça, para que se fale de todas as virtudes; mas dela se pode dizer
praticamente o mesmo. De fato, assim como a sabedoria, a temperança e a coragem eu
demonstrei estarem unidas ao prazer, de forma que por modo algum podem ser quer apartadas,
quer arrancadas dele, o mesmo juízo deve ser feito acerca da justiça, a qual não apenas nunca
causa dano a ninguém, mas, pelo contrário, sempre proporciona algo que tranqüiliza as almas,
seja graças a sua própria característica e natureza, seja pela esperança de que nada faltará dentre
as coisas que poderia desejar uma natureza não pervertida. E do mesmo modo que tanto a
temeridade quanto o desejo frívolo e a covardia sempre torturam a alma e sempre a atormentam e
são tempestuosos, da mesma forma a improbidade, se se assenta na alma de alguém,
precisamente por isto, porque lá se encontra, é tempestuosa. Se, com efeito, ela maquinou algo,
por mais que tenha agido às ocultas, jamais, contudo, confiará que isso ficará para sempre oculto.
As ações da maioria dos ímprobos, persegue-as, primeiramente, a suspeita, depois o rumor e a
difamação, então, o acusador, e então, o juiz; muitos até, como em teu consulado, denunciam-se a
si próprios. 51 E se alguns parecem ter se protegido e munido contra o conhecimento dos
homens, o dos deuses, porém, eles temem, e aqueles mesmos tormentos, pelos quais suas almas
‘por noites e dias’ são devoradas, pensam terem sido suscitados pelos deuses imortais com o fito
de castigá-los. Ora, quão grande contribuição pode haver para a redução dos males da vida, vinda
das ações ímprobas, comparada à que há para o seu aumento, não só por causa da consciência de
tê-las praticado, como da pena das leis e do ódio dos cidadãos? E, mesmo assim, entre alguns,
nem com relação ao dinheiro há moderação, nem com relação aos cargos públicos, nem ao poder,
nem ao apetite sexual, nem aos banquetes ou aos demais desejos, aos quais nenhuma presa
conseguida de modo ímprobo aplaca, antes acende, de modo que esses homens parecem dever ser
mais reprimidos do que reeducados. 52 Convida, portanto, o raciocínio verdadeiro, os muito
sensatos à justiça, à eqüidade e à boa-fé, e sequer ao desprovido de eloqüência ou de recursos são
vantajosas as ações praticadas injustamente, pois ele não é capaz de realizar facilmente o que

265
tenta, nem de mantê-lo, caso realize. Além disso, os recursos, quer os da riqueza, quer os da
inteligência, mais convêm à generosidade; quem a pratica chama para si a bem-querença e, o que
é o mais apropriado para viver em quietude, a afeição, sobretudo uma vez que não há motivo para
mal proceder. Pois os desejos que provêm da natureza são facilmente satisfeitos sem qualquer
injustiça, já aos que são vãos não se deve se sujeitar. Nada de imprescindível, de fato, eles
almejam, e mais desvantagem há no próprio ato injusto do que emolumento nessas coisas
alcançadas por meio de um ato injusto. Assim, nem mesmo que a justiça é por si própria
apetecível poderia alguém dizer com correção, mas porque traz consigo a maior satisfação
possível. Pois ser amado e querido é agradável, já que torna a vida mais segura e mais repleta de
prazeres. Assim, não é somente por causa desses infortúnios que acontecem aos ímprobos que
consideramos que a improbidade deve ser evitada, mas muito mais ainda porque aquele em cuja
alma ela reside, ela nunca o permite recobrar o fôlego, nunca alcançar a quietude.
54 E se nem mesmo o louvor às próprias virtudes, em que o discurso dos filósofos corre a
rédeas soltas (especialmente o dos demais filósofos), pode encontrar êxito, caso não seja dirigido
ao prazer, e, por outro lado, se o prazer é o único que nos chama para junto de si e nos atrai por
sua própria natureza, não pode haver dúvida de que ele é o sumo e extremo de todos os bens e de
que viver feliz não é outra coisa senão viver com prazer.
XVII 55 O que está ligado a esse pensamento seguro e firme apresentarei brevemente. Não
há nenhum erro nos fins dos bens e dos males em si mesmos, isto é, no prazer ou na dor, mas
procede-se mal com relação a essas coisas quando se ignora a partir do que elas são produzidas.
Ora, os prazeres e dores da alma nós reconhecemos que nascem dos prazeres e das dores do
corpo (e assim, admito o que há pouco dizias: que nossa causa vem abaixo se alguns dentre os
nossos estimarem ser de outra maneira, os quais vejo serem muitos, sem dúvida, mas não
versados na doutrina); mas, embora tanto o prazer da alma nos traga a alegria, quanto a dor, a
inquietação, um e outra todavia têm origem no corpo e ao corpo se referem, nem, por causa disso,
deixam de ser muito maiores os prazeres e dores da alma do que os do corpo. Pois com o corpo,
nada podemos sentir senão o presente e o que está próximo, já com a alma, tanto o que passou,
quanto o que virá. Pois ainda que, ao sofrermos com o corpo, igualmente sintamos dor na alma,
pode, contudo, ocorrer um acréscimo muito grande, caso algum mal eterno e infinito
consideremos pairar sobre nós. O que igualmente se pode transferir ao prazer: que tanto maior
seja, caso não temamos nada desse tipo. 56 Torna-se evidente, então, que o maior prazer ou a

266
maior inquietação da alma tem mais peso para uma vida feliz ou infeliz do que qualquer um
dentre esses dois que esteja no corpo durante um mesmo tempo. Não pensamos, no entanto, que,
subtraído o prazer, a aflição segue-se imediatamente, a não ser que em lugar do prazer suceda
talvez a dor, mas, pelo contrário, que nós próprios gozamos, quando as dores são deixadas de
lado, ainda que aquele prazer, que move o sentido, não suceda, e por isso pode-se entender quão
grande prazer seja o não-sofrer. 57 Mas, assim como pelos bens que esperamos somos
estimulados, alegramo-nos também com os que recordamos. Os tolos, no entanto, atormentam-se
com a lembrança dos males; aos sábios, os bens passados, renovados por uma agradável
recordação, trazem deleite. Entretanto, está a nosso alcance que, por assim dizer, sepultemos o
que nos é adverso em um esquecimento perpétuo e do favorável nos lembremos agradável e
docemente. Mas, quando examinamos o que passou com a mente aguda e atenta, segue-se, então,
naturalmente a aflição, caso aquilo seja mau; alegria, caso seja bom.
XVIII Ó radiante e amplo, sem desvios e direto o caminho da vida feliz! De fato, uma
vez que nada, certamente, pode ser melhor para o homem do que estar isento de toda dor, de toda
inquietação, e fruir inteiramente dos maiores prazeres da alma e do corpo, percebeis como não é
omitido nada que possa favorecer a vida, a fim de que mais facilmente alcancemos o nosso
propósito: o sumo bem? Declara em alto e bom som Epicuro (ele, que vós dizeis ser
excessivamente entregue aos prazeres) que não é possível se viver agradavelmente, se não se vive
sábia, honrada e justamente; nem sábia, honrada e justamente, senão agradavelmente. 58 Ora,
nem uma cidade em sedição pode ser feliz, nem em discórdia entre os senhores, uma casa; quanto
menos a alma de si própria divergente e de si discordante pode saborear alguma parte de um
prazer límpido e desimpedido. Além disso, quem sempre se vale de interesses e tendências
conflitantes e contrários, não pode experimentar nenhuma quietude, nenhuma tranqüilidade.
59 Pois se as mais graves doenças do corpo são obstáculo para uma vida agradável,
quanto mais é forçoso que as doenças da alma o sejam! Ora, as doenças da alma são os desejos
desmesurados e vãos de riquezas, de glória, de poder, e ainda, de prazeres libidinosos. Vêm
acrescentar-se as aflições, as inquietações, as tristezas que carcomem e acabrunham de
preocupações as almas dos homens que não compreendem que a alma nada há de sofrer que
esteja separado de uma dor corporal presente ou futura. Nem, de fato, algum tolo deixa de
padecer de alguma dessas doenças; nenhum, portanto, deixa de ser infeliz. 60 Vem ainda se
acrescentar a morte, que, assim como o rochedo sobre Tântalo, está sempre iminente, e também a

267
superstição, da qual quem está impregnado jamais pode se encontrar em quietude. Ademais, dos
bens passados não se lembram, dos presentes não fruem; quanto aos futuros apenas os esperam,
e, porque esses não podem ser seguros, consomem-se tanto pela angústia quanto pelo medo e,
principalmente, atormentam-se quando, já tarde, percebem que em vão ao dinheiro aspiraram, ou
ao poder, ou às riquezas, ou à glória. De fato, não alcançam nenhum prazer que, pela esperança
de ser obtido, tenha-os inflamado e sobrecarregado de muitas e grandes fadigas. 61 Vede, por um
lado, uns de alma mesquinha e estreita, ou que sempre desesperam de tudo, ou mal-
intencionados, invejosos, intratáveis, furtivos, difamadores, rabugentos; outros ainda, por sua vez,
entregues às volubilidades dos amores, uns insolentes, outros atrevidos, impudentes, e ainda
intemperantes e covardes, de pensamento jamais constante, pelo que em suas vidas nenhum
intervalo há entre os males. Portanto, nem dentre os tolos algum é feliz, nem dentre os sábios, não
feliz. E isso muito melhor nós sustentamos e mais verdadeiramente do que os estóicos. Pois eles
negam haver algum bem senão aquela não sei que sombra a que chamam de honroso, termo não
tão bem fundamentado quanto cheio de brilho; a virtude, por outro lado, apoiada nesse honroso,
dizem que não busca prazer algum e que é suficiente, por si própria, para se viver feliz.
XIX 62 Entretanto, podem-se dizer tais coisas, de certo modo, não apenas sem nossa
recusa, mas até mesmo com nossa aprovação. Pois assim o sábio é sempre apresentado como
feliz por Epicuro: limitados ele tem os desejos, da morte não se ocupa, a respeito dos deuses
imortais sem medo algum pensa coisas verdadeiras, não hesita, se assim for melhor, em deixar a
vida. Assim armado, encontra-se sempre no prazer. De fato, não há ocasião alguma em que não
tenha mais prazeres do que dores. Pois não só se lembra das coisas do passado com agrado, como
se apodera de tal forma das do presente, que se apercebe de quão importantes e quão prazerosas
são; e não depende das coisas do futuro, mas as espera, frui das do presente; e desses vícios que
ainda há pouco eu mencionei, afasta-se o quanto pode e, ao comparar a vida dos insensatos com a
sua, é tomado por grande prazer. Dores, de outra parte, se algumas o acometem, nunca têm
tamanha força, que o sábio não tenha mais motivos de alegria do que de angústia. 63 Muito bem
se expressou Epicuro, ao dizer que insignificante é a fortuna como empecilho ao sábio e que as
maiores coisas são por ele dirigidas e as mais importantes, por sua decisão e cálculo; e que não é
possível perceber-se prazer maior em um tempo de duração infinita do que o que se percebe neste
que observamos ser finito.

268
Em vossa dialética, porém, nenhum método estimou haver para que se viva melhor nem
para que mais oportunamente se discorra sobre algo. Na física fez consistir o mais importante.
Por esse conhecimento, tanto o significado das palavras quanto a natureza da linguagem e a
relação entre conseqüentes ou entre contraditórios podem ser bem compreendidos. Ora,
conhecida a natureza de todas as coisas, aliviamo-nos do peso da superstição, livramo-nos do
medo da morte, não nos perturbamos com a ignorância acerca da realidade, precisamente de onde
surgem amiúde os mais horríveis medos; por fim, teremos um melhor proceder, quando tivermos
aprendido o que a natureza deseja. Só então, se um firme conhecimento acerca da realidade
tivermos à disposição, sendo observada aquela regra que, por assim dizer, caiu do céu para o
conhecimento de tudo, segundo a qual serão dirigidos todos os juízos acerca das coisas, jamais,
vencidos pelo discurso de alguém, renunciaremos ao nosso pensamento. 64 Se, porém, a natureza
das coisas não tiver sido bem compreendida, de modo algum poderemos defender os juízos dos
sentidos. Ademais, o que quer que na alma divisemos tem origem nos sentidos, e se esses forem
todos verdadeiros, como ensina o sistema de Epicuro, então, conseqüentemente, será possível que
se conheça e se apreenda algo. Aqueles que os suprimem e dizem que não é possível apreender
nada, não podem, eliminados os sentidos, sequer desenvolver o que expõem. Além disso,
subtraídos o intelecto e o conhecimento, suprime-se todo o critério tanto do conduzir a vida
quanto do agir. Assim, da física toma-se não só a coragem diante do temor da morte, como
também a constância diante do medo causado pela religião; não só o sossego da alma, depois de
subtraída toda a ignorância acerca de todas as coisas ocultas, como também a moderação, depois
de bem expostos a natureza dos desejos e seus gêneros e, como há pouco demonstrei, pela regra e
pelo critério do conhecimento por ele estabelecidos, é ensinada a distinção entre o verdadeiro e o
falso.
XX 65 Resta um tópico, fundamental para esta discussão, sobre a amizade, que, se o
prazer for o sumo bem, afirmais que absolutamente não existiria. Já Epicuro, trata dela assim:
dentre todas as coisas que a sabedoria dispôs para a vida feliz, nada é mais importante do que a
amizade, nada é mais fecundo, nada mais agradável. E, sem dúvida, não o comprovou apenas
com o discurso, mas muito mais com sua vida, suas ações, seu proceder. Fato realçado pelo que
manifestam as estórias forjadas pelos antigos, em que, dentre as tão numerosas e tão diversas que
remontam à mais remota antigüidade, com dificuldade se encontram três pares de amigos, de
modo que chegarias a Orestes, tendo partido de Teseu. Quanto a Epicuro, porém, em uma só

269
casa, e ainda por cima pequena, quão grandes grupos de amigos manteve e com que cumplicidade
de um amor harmônico! O que até hoje se dá entre os epicureus. Mas voltemos ao pensamento,
sobre os homens não é necessário falar.
66 Ora, de três modos eu vejo que os nossos discutiram sobre a amizade. Uns, negando
serem os prazeres que interessam aos nossos amigos, por si próprios, tão apetecíveis quanto nos
apetecem os nossos, argumento pelo qual parece a alguns cambalear a amizade, defendem,
contudo, o argumento e, facilmente, como a mim parece, saem do embaraço. De fato, assim como
as virtudes, de que antes se falou, também a amizade negam poder ser separada do prazer. Pois,
uma vez que a solidão, a vida sem amigos, é repleta de ciladas e de medo, a própria razão nos
adverte a granjear amizades, pelas quais, obtidas, ganha firmeza a alma e não pode ser arredada
da esperança dos prazeres a serem alcançados. 67 E, assim como os ódios, as invejas e o desdém
são adversos ao prazer, também as amizades não apenas são as mais fiéis protetoras, como ainda
produtoras de prazeres tanto para os amigos quanto para si, e dentre esses prazeres, não fruem os
amigos apenas dos presentes, mas inclusive da esperança do tempo subseqüente e futuro. E uma
vez que de nenhum modo podemos, sem a amizade, manter de forma sólida e duradoura uma
vida agradável, é certo, nem mesmo guardar a própria amizade a não ser que estimemos nossos
amigos assim como a nós mesmos, por essa mesma razão, também isso se produz na amizade, e a
amizade está atada ao prazer. Pois tanto nos alegramos com a alegria de nossos amigos da mesma
forma que com a nossa, quanto semelhantemente nos condoemos das suas angústias. 68 Por
causa disso, o sábio será afetado com relação ao amigo do mesmo modo que para consigo
próprio, e as fadigas que sustentaria em favor de seu prazer, as mesmas sustentará em favor do
prazer do seu amigo. E o que se disse sobre as virtudes, de que modo estariam elas sempre
entrelaçadas ao prazer, o mesmo deve-se dizer sobre a amizade. Pois Epicuro, brilhantemente,
com estas palavras, mais ou menos, diz: ‘O mesmo pensamento que deu firmeza à alma para que
não temesse algum mal eterno ou duradouro, percebeu que, neste curso mesmo da vida, a mais
firme fortaleza é a amizade’.
69 Há alguns epicureus, porém, um pouco receosos diante de vossas invectivas, todavia
bastante agudos, que temem que, se consideramos deva ser buscada com vistas a nosso prazer,
toda a amizade pareça como que perder o passo. Assim, dizem que as primeiras aproximações, os
primeiros encontros e a vontade de estabelecer relações dar-se-iam com vistas ao prazer; mas,
depois que o hábito, seguindo sua marcha, tenha estabelecido uma familiaridade, então floresce o

270
amor com tal intensidade que, ainda que nenhuma seja a utilidade da amizade, os amigos amam a
si próprios por causa de si próprios. E, de fato, se os locais, se os templos, se as cidades, se os
ginásios, se o campo, se os cães, se os cavalos, se os jogos usualmente nós passamos a amar, nos
combates que envolvem ou homens, ou animais, graças ao costume, quanto isso poderá ocorrer
mais facilmente e com mais justiça graças às relações costumeiras entre os homens?
70 Há, porém, quem diga haver entre os sábios um pacto: não estimar os amigos menos
do que a si próprios. O que não só entendemos ser possível acontecer, como, amiúde, também o
vemos; e é evidente que nada pode se encontrar mais apropriado para uma vida agradável do que
uma tal ligação.
A partir disso tudo, pode-se chegar à conclusão de que não apenas não se embaraça a
teoria da amizade, caso o sumo bem consista no prazer, mas, sem isso, não se pode encontrar, de
modo algum, o fundamento da amizade.
XXI 71 Por isso, se o que eu disse é mais luminoso e mais claro do que o próprio sol, se
foi tudo haurido da fonte da natureza, se o nosso discurso, do início ao fim, assegura todo crédito
para si graças aos sentidos, isto é, graças a incorruptas e íntegras testemunhas, se as crianças
ainda sem a fala e até os animais mudos quase afirmam que, sendo mestra e guia a natureza, nada
há de próspero senão o prazer, nada de áspero senão a dor, a respeito do que não se pronunciam
de modo pervertido nem corrompido, acaso não devemos ser gratos a quem, ouvida esta voz, por
assim dizer, da natureza, de tal forma a apreendeu, com firmeza e gravidade, que todos os
sensatos trouxesse para o caminho plácido, tranqüilo, quieto da vida feliz? Ele, que a ti parece
pouco instruído pelo fato de não ter acolhido como instrução nada senão o que ajudasse no
aprendizado da vida feliz. 72 Será que ele, como fazemos eu e Triário sob teu estímulo,
consumiria o tempo em ler os poetas, nos quais não há nenhum seguro proveito e tudo é um
deleite pueril, ou, como Platão, na música, na geometria, nos números, nos astros se esgotaria,
coisas que, por um lado, derivadas de falsos princípios, não podem ser verdadeiras e, por outro
lado, se fossem verdadeiras, nada nos trariam que nos possibilitasse viver mais agradavelmente,
isto é, que nos possibilitasse viver melhor? Essas artes, então, deveria perseguir, e a arte de viver,
tão importante e tão dificultosa e, por isso, frutuosa, deveria deixar de lado? Então, Epicuro não é
pouco instruído, mas sim esses indoutos, que consideram dever ser aprendido até a velhice aquilo
que é vergonhoso não terem aprendido quando meninos”.

271
Dito isso, “Apresentei”, falou, “meu pensamento e, certamente, com o desígnio de conhecer
teu juízo; a possibilidade de que eu assim fizesse, segundo minha vontade, antes dessa ocasião,
nunca me foi dada”.

272
Notas ao livro I

I, 1 A obra é dedicada a Marco Júnio Bruto, jovem muito aplicado aos estudos filosóficos e que,
algum tempo depois da publicação do De finibus, viria a ser um dos líderes da conspiração contra Júlio
César. Mais informações sobre Bruto são dadas no segundo capítulo do estudo que acompanha a tradução.
Toda a seção 1 anuncia uma das figuras de pensamento (ornamenta sententiarum) expressas no
Orator. Citamos ut ante occupet quod uideat opponi (138). Tal figura, chamada anteoccupatio no De
oratore, III, 205, consiste em antecipar os argumentos de possíveis opositores e tentar rebatê-los de
antemão. Aqui, norteia grande parte do proêmio do primeiro diálogo (I, 1-12). Interessante observar que,
em termos gerais, a discussão que aqui se desenha, é tratada de modo dramático no proêmio ao livro I da
segunda versão dos Academici, em que discutem as personagens Cícero e Varrão.
Requintada doutrina traduz exquisita doctrina. Vale dizer que o verbo exquiro tem o sentido de
procurar com diligência. Aplicado a doctrina, dá idéia de uma pesquisa zelosa, através de reflexões
minuciosas, que têm como resultado a formação de um conjunto de ensinamentos (doctrina) requintados,
bem elaborados.
No idioma grego traduz Graeco sermone. O substantivo sermo, que tem como sentido primeiro
“conversa”, pode significar, por extensão, “língua”, ou “idioma”, ou seja, o modo de conversação de que
se serve um grupo humano. Contudo, não podemos perder de vista que é esta uma maneira de se referir ao
modo de expressão que é próprio dos filósofos acadêmicos: o diálogo (cf. De officiis I, 132). A expressão
pode ainda designar, embora não seja o caso aqui, uma obra que pertence ao gênero dialógico (cf. De
oratore, III, 60).
O termo dignitas, de que deriva nosso substantivo “dignidade”, expressa no contexto cultural
romano, segundo afirma Rocha Pereira653, muito mais o prestígio de que se desfruta junto à opinião
pública, muitas vezes devido a cargos públicos, ou a ações ilustres. Poder-se-ia pensar em uma hendíade
em persona et dignitas: “o prestígio pelo papel que desempenho”.
I, 2 Eo libro faz referência ao Hortensius, diálogo hoje perdido.
Tendo tal livro parecido aprovado tanto por ti quanto pelos que eu entendia serem capazes de
julgar. A forma verbal probatus evoca o modo de filosofar peculiar do autor do De finibus. Suas obras
filosóficas, que buscam alcançar o que pareça probabile, através da discussão em favor de ambas as
partes, permitiriam ao leitor decidir (iudicare) qual seja a solução mais plausível. Aqui, contudo, o sentido
do verbo é mais geral: quer-se dizer, simplesmente, que Bruto apreciou o Hortênsio de Cícero.
Estes que queiram estabelecer um termo para coisas infinitas. Dá-se uma resposta, neste ponto, à
posição daqueles que não julgam adequado um estudo muito aprofundado da filosofia. Dentre esses

653
Cf. Pereira, M.H.R. 1984, p. 339.

273
críticos, poderíamos contar o polígrafo Varrão, que teria composto algumas obras, na opinião da
personagem de Cícero, em Acad. I, 9, ad impellendum satis, ad edocendum parum, isto é, “suficientes
para incitar [à filosofia], parcas para instruir”. A referência é, provavelmente, às Satiras Menipéias de
Varrão (cf. Acad. I, 9: atque ipse uarium et elegans omni fere numero poema fecisti; “e tu próprio
compuseste um poema variado e elegante constituído por quase todo tipo de cadência”).
I, 3 Se isto é difícil, não há termo, contudo, para a investigação da verdade, a não ser que a
encontres. Faz-se alusão à postura dos neo-acadêmicos que, céticos, não concedem total assentimento a
nada, mas prosseguem sempre com a investigação. A posição de Cícero é, entretanto mais complexa.
Influenciado por Antíoco, acadêmico que promove uma retomada do pensamento da Antiga Academia, o
autor do De finibus parece admitir a possibilidade de encontrar a verdade. Resolvemos manter a segunda
pessoa em a não ser que a encontres por julgar que a construção é mais expressiva, mesmo sabendo que
se trata de uma segunda pessoa com valor de indeterminação. É importante, para entendermos a
concepção filosófica do autor, notarmos a afirmação de que a verdade é o que há de mais belo. Seu
método busca se aproximar o mais possível da verdade, atingindo o probabile. Para alcançá-lo, o autor se
serve de discursos persuasivos e contraditórios, elaborados segundo os preceitos da arte retórica. O
elemento estético, na construção da verdade, tem, desse modo, um enorme peso.
E se nos custa traduz o original sin laboramus, ou seja, “mas se nos causa fadiga”. Optamos por
essa tradução para que se mantenha a coordenação entre os verbos delectamur e laboramus com a mesma
concisão do original.
A escavar, ou a arar, ou a carregar algo, enfim. A passagem é uma citação da comédia
Heautontimoroumenos de Terêncio, comediógrafo latino, provavelmente natural de Cartago, que viveu de
190 a 159 a.C. aproximadamente. Trata-se do verso 69 da referida obra: fodere aut arare aut aliquid ferre
denique. O título da peça, tomado de obra de Menandro, pode ser traduzido como “aquele que puniu a si
mesmo”. A personagem Cremete, cuja fala é aqui citada, dirige a palavra a Menedemo, seu vizinho que,
por ter castigado o filho, fazendo-o se alistar para uma expedição militar à Ásia, pretende se punir,
cultivando suas terras com as próprias mãos, até que seu filho volte da guerra. No trecho da peça de onde
se tomou a citação, Cremete, observando a dedicação de seu vizinho a um trabalho que não lhe é
prazeroso, tenta demovê-lo de tal ocupação. Deve-se notar os elementos textuais da aproximação que o
autor do De finibus estabelece entre a postura de Cremete e a de seus possíveis críticos. Na peça de
Terêncio, após Menedemo perguntar ao vizinho se ele tem tanto ócio com relação aos seus assuntos, que
pode até se ocupar de alguém que não lhe diz respeito, Cremete pronuncia a célebre frase: homo sum:
humani nil a me alienum puto (Heaut. 77), “sou um homem, nada do que é humano eu considero ser
alheio a mim”. Cícero está atento ao que se diz na peça, tanto que qualifica Cremete por non inhumanus.
A aproximação entre os dois contextos se dá por contraste: Cremete quer afastar seu vizinho de uma

274
ocupação que julga não ser prazerosa (haec non uoluptati tibi esse satis certo scio, Heaut. 71), já os
adversários de Cícero querem demovê-lo de um trabalho que não lhe é nem um pouco desagradável
(noster minime nobis iniucunde labor).
II, 4 Nos mais graves assuntos traduz in grauissimis rebus. Vale notar que se tivéssemos utilizado o
termo ‘peso’ para traduzir a idéia de grauis, correríamos o risco de passar ao leitor a idéia de que se trata
simplesmente de assuntos “mais importantes”, quando o adjetivo grauis traz, além desse sentido, uma
ligação estreita com a virtude da grauitas. Seriam, então, assuntos a serem tratados com uma seriedade
extrema, como a esperada nas instituições políticas romanas, por exemplo, e que Marco Túlio tenta
conferir aos estudos de filosofia. Se pensarmos que a grauitas é tida por Cícero como uma virtude
nacional romana (como se pode verificar em Pro Sestio 67, 141) e que não seria, em sua opinião, de tal
forma reverenciada entre os gregos, o argumento do nosso autor ganha nova cor: como a língua latina
poderia não ser apropriada a tratar com seriedade de assuntos importantes, se a grauitas é a virtude do
ciuis Romanus?
Interpretamos o termo nomen, aqui, como uma metáfora para aquilo que é legítimo, o que é próprio
de cada um, tendo a expressão nomen Romanum, no contexto, a conotação de “aquilo que é próprio dos
romanos”. Reid (ad locum) pensa de modo diferente: entende que a expressão não é figurada e julga que
nomen Romanum queira dizer “the very name of Roman”, isto é, “o próprio nome romano” ou, “a própria
designação de romano”. Baseia sua interpretação da ocorrência de expressão semelhante em V, 62, cui
Tubuli nomen odio non est?, “A quem o nome de Tubulo não é motivo de ódio?”, com o sentido, como se
vê, que ele considera haver nesta passagem do livro I.
Ênio: Quinto Ênio (239-169 a.C.), poeta de cuja obra restam apenas fragmentos. Sobre esse
importante poeta da tradição latina há mais informações no primeiro capítulo do estudo que acompanha a
tradução.
Pacúvio: Marco Pacúvio (220-130 a.C.) era neto de Ênio. Foi autor de várias tragédias, das quais
poucos versos restaram.
Eurípides (480-406 a. C.), terceiro dos grandes autores trágicos gregos. Das duas tragédias suas
mencionadas, restou-nos a Medéia, na íntegra; da Antíopa, poucos fragmentos.
Cecílio: Cecílio Estácio, poeta cômico que viveu de 230 a 168 a.C., aproximadamente.
Menandro: comediógrafo de Atenas, viveu de 342 a 291 a.C. aproximadamente. Parece ter sido o
modelo preferido para os comediógrafos latinos Cecílio e Terêncio.
II, 5 Sófocles (496-406 a. C), segundo dos grandes autores trágicos gregos. Dele nos restam, na
íntegra, sete tragédias, dentre as quais a citada Electra.
Licino: provavelmente Pórcio Licino, autor de uma história latina, da qual pouquíssimo restou.

275
Escritor de ferro disse Licino, querendo indicar que Atílio teria um estilo áspero e rude. Pouco se
sabe sobre esse Atílio.
Vtinam ne in nemore... Trecho tomado da Medéia de Ênio. Citamos, a partir de Warmington. E. H,
Remains of old Latin. I Ennius and Caecilius, o verso completo e o subseqüente: “Vtinam ne in nemore
Pelio securibus / caesae accidissent abiegna ad terram trabes”. Em uma tradução sem pretensões
literárias: “Quem dera que em bosque do Pélio, cortados por machadinhas, / não tivessem caído por terra
os troncos de abeto (...)”.
II, 6 Não desempenhamos a função de tradutor... Expressa-se aqui a natureza da presente obra de
Cícero (cf. capítulo I do estudo que acompanha a tradução). Ele não pretende meramente traduzir textos
gregos para o latim, mas criar um texto seu que se insira na tradição de escritos filosóficos. Ainda que ele
se sirva, em seu texto, de idéias tomadas de autores gregos, o escrito é obra de sua inuentio. O sentido de
iudicium deve ser precisado. Segundo Reid (1925, ad locum), o termo se refere ao gosto literário. Nós
discordamos, não se trata apenas de gosto literário; julgamos que há aqui uma clara referência a das
operações em que consiste a inuentio, isto é, decidir sobre que argumentos (ou que matéria, em geral)
utilizar em um discurso (cf. Cícero, Orator, 44). A maneira como está associada à expressão ordinem
scribendi, que alude outra tarefa do orador, parece corroborar nossa interpretação.
Modo de escrever tenta traduzir ordinem scribendi. A expressão original refere-se a uma
disposição organizada (ordo) dos elementos (argumentos, palavras e frases) do texto, ou seja, refere-se
diretamente a uma das preocupações do orador, a dispositio e, indiretamente, a outra: a elocutio. No
Orator 43, diz Cícero: tria uidenda sunt oratori, quid dicat et quo quidque loco et quo modo, isto é: “três
coisas devem ser observadas pelo orador: o que dizer, em que lugar cada coisa e de que modo”. Com
relação à inuentio654, ou “o encontrar o que dizer”, o filósofo romano se utiliza de idéias que provêm de
outros autores, as quais, contudo, ele apresenta à sua maneira, organizando-as ao longo do texto segundo
seus propósitos, com palavras e ornatus que ele julga adequados.
Rearranjados de outra maneira traduz alia ratione compositis. Nova referência à dispositio.
Notemos ainda como Cícero defende que sua obra filosófica se insere na tradição filosófica. Para ele, a
discussão filosófica se estabelece como uma espécie de diálogo entre as diferentes escolas e entre mestres
e discípulos dentro de uma mesma escola. Isso que ele agora pretende realizar em latim, ou seja, retomar,
em um discurso novo, idéias já tratadas pelos antigos, não é em nada diferente do que os filósofos gregos
já faziam uns com os outros: os gregos são lidos pelos próprios gregos a respeito dos mesmos assuntos.

654
Martha, na introdução à edição da “Belle Lettres” (p. x), pensa de modo um pouco diferente: considera que o
trabalho do pensador romano não exige muito da inuentio. O autor parece entender que exigir muito da inuentio seria
utilizar argumentos próprios. Devemos lembrar, contudo, que inuenire, na arte retórica, não é necessariamente criar
argumentos (ainda que possa ser), mas sobretudo encontrá-los. Não é o próprio Cícero quem afirma que muitos dos
argumentos de que o orador se utiliza ele traz das discussões dos filósofos? (cf. Orator 12).

276
Para uma discussão mais ampla sobre a maneira como Cícero concebe a inserção de sua obra na tradição
de literatura filosófica, veja-se o primeiro capítulo do estudo que acompanha a tradução.
Crisipo: filósofo estóico natural de Solos, na Cilícia, na Ásia Menor, viveu de 280 a 207 a. C.,
aproximadamente. Foi discípulo de Zenão e sucedeu Cleantes na direção da escola do Pórtico. De tal
forma teria fundamentado os ensinamentos de Zenão, dando importância especial aos desenvolvimentos
da lógica, que a tradição o reputa como o segundo fundador do estoicismo. De sua extensa obra só
restaram poucos fragmentos.
Diógenes: filósofo estóico natural de Selêucia, na Babilônia, viveu de 240 a 152 a. C.,
aproximadamente. Foi discípulo de Crisipo e sucessor de Zenão de Tarso na direção da escola. Participou
da célebre comitiva de filósofos a Roma no ano de 155 a. C. Poucos fragmentos de sua obra restaram.
Antípatro (séc. II a. C.), filósofo estóico natural de Tarso, na Cilícia, foi discípulo de Diógenes de
Babilônia e seu sucessor na direção da escola.
Mnesarco (séc. I a. C.) de Atenas, filósofo estóico de quem se tem poucas informações. Sabe-se que
foi discípulo de Panécio (cf. De oratore I, 45).
Panécio: filósofo estóico natural de Rodes, viveu de 185 a 109 a. C. aproximadamente. Sua
doutrina é conhecida sobretudo atrvés do De officiis de Cícero. Buscava adaptar o rigoroso estoicismo de
seus antecessores às exigências da vida prática. Quando residiu em Roma, esteve em estreito contato com
Cipião Emiliano, a quem acompanhou em um viagem ao oriente entre 140 e 138 a. C. Em 129 a. C.,
sucedeu a Antípatro na direção da escola estóica.
Posidônio: filósofo estóico natural de Apaméia, na Síria, fora discípulo de Panécio e, por volta do
ano 78 a.C., mestre de Cícero em Rodes. Sua vastíssima obra, que versava sobre diversos campos do
saber, como história, física, lógica e moral, perdeu-se quase completamente. Viveu de 135 a 50 a.C.,
aproximadamente.
Teofrasto, natural de Eresso, na ilha de Lesbos, viveu de 370 a 186 a.C., aproximadamente. Foi
discípulo e sucessor de Aristóteles à frente da escola peripatética. Sua obra extensa, da qual pouco restou,
desfrutou de grande prestígio na antigüidade, sobretudo, mas não exclusivamente, graças a seu estilo.
III, 7 Estaria, creio, servindo mal a meus concidadãos traduz male, credo, mererer de meis ciuibus.
O verbo mereor significa, primeiramente, “merecer, ser merecedor”. A idéia expressa no texto é a de que
Cícero é merecedor, tem méritos, por estar prestando um serviço aos seus concidadãos (tal tipo de
construção, mereor de aliquo, tem esse sentido registrado nos dicionários). Deve-se notar a preocupação
de Cícero em evidenciar a utilidade pública de seu trabalho. A mesma preocupação orienta sua defesa
contra os que consideram a filosofia contrária a sua dignitas.
Vt ab Homero Ennius, Afranius a Menandro solet. Sobre as relações entre Ênio e Homero, por um
lado, e Afrânio e Menandro, por outro, veja-se o primeiro capítulo do estudo que acompanha a tradução.

277
Lucílio: Caio Lucílio (148-102 a.C.), poeta latino, autor de obras satíricas.
Pérsio: Caio Pérsio foi orador e retor. Na época de Lucílio, era reputado como o mais sábio dos
romanos. De acordo com o que se lê no De oratore II, 25, Lucílio dizia que não desejaria que sua obra
fosse lida nem pelos ignorantes, nem pelos muito sábios. Os primeiros não seriam capazes de entender
nada; já os outros, entenderiam mais coisas do que ele próprio.
Cipião: trata-se de Públio Cornélio Cipião, (185/4-129 a.C.), chamado Cipião Emiliano, filho
adotivo de Cipião Africano. Estadista e general de prestígio, Cipião Emiliano comandou a tomada e
destruição de Cartago em 146 a.C. Bastante interessado no conhecimento e nas artes gregas, a tradição
costuma reputá-lo como figura central de um grupo de romanos ilustres, simpáticos à cultura helênica, o
chamado “círculo de Cipião”. Cícero representa-o como personagem de seu diálogo De re publica.
Rutílio: Públio Rutílio Rufo, cônsul no ano de 105 a.C., homem letrado e de intensa atuação
política, foi banido de Roma em um processo de concussão, vindo a morrer no exílio, no ano de 92 a. C.
Foi discípulo do filósofo estóico Panécio.
Lucílio escreve de maneira espirituosa (facete), que é sem dúvida uma característica que Cícero
admira e que aqui, como em passagem mais adiante, ele relaciona com urbanitas, que traduzimos por
graça. Não podemos deixar de notar, contudo, que o termo tem a mesma raiz de urbs e que, assim, a idéia
de um pensamento gracioso tem que ver com civilidade, ou seja, polidez, refinamento, em oposição ao
rústico. De acordo com Reid (ad locum) não se deve relacionar a expressão com um estilo fácil ou
extremamente polido; seria antes um traço do pensamento repleto de chistes e de ditos espirituosos. De
qualquer modo, pensando que expressão e pensamento não se manifestam senão em sua relação de
reciprocidade e, além do mais, observando que Cícero contrapõe a obra de Lucílio (cf. infra) com certos
escritos grosseiros, acreditamos que o traço de urbanitas, atribuído ao autor de sátiras possa estar
desligado de sua elocução.
Ele diz escrever para os tarentinos, os consentinos e os sículos, uma vez que temia a crítica dos
romanos mais doutos (cf. De oratore II, 25), Lucílio teria dito que escrevia suas sátiras para os
provinciais. Não se deve, no entanto, considerar tais povos ignorantes, dado o desejo de Lucílio, citado
acima, de não ser lido nem pelos muito doutos, nem pelos completamente ignorantes.
Sed neque tam docti tum erant. Particípio do verbo doceo, a forma docti refere-se, neste contexto,
ao fato de que, na época referida, o chamado século de Cipião, os romanos ilustres não possuíam, na
opinião do autor, um conhecimento muito aprofundado das doctrinae gregas.
Medíocres ensinamentos. Assim traduzimos o adjetivo mediocris que, neste contexto, ganha sentido
pejorativo: indica que os escritos de Lucílio, apesar de serem refinados na expressão, não têm um
ensinamento nem grandioso, nem desprezível, mas mediano. Comparado à suma graça da expressão, o
que eles nos ensinam é pouco. De modo bastante significativo, portanto, Cícero contrapõe a leveza da

278
matéria tratada (leuiora) com a graça própria da vida urbana romana à gravidade (cf. in grauissimis rebus
de 4) que marca a matéria da filosofia.
III, 8 Estimulado por ti próprio com o livro sobre a virtude que me dedicaste. Essa passagem
explicita os laços intelectuais e de amizade que unem o autor do De finibus e aquele a quem a obra é
dedicada. Segundo o discurso ciceroniano, a idéia de compor esta obra de filosofia moral nasceu da leitura
do De uirtute de Bruto, obra que o jovem filósofo lhe havia dedicado (obra citada por Sêneca na
Consolatio ad Heluiam 9, 4). É esse o sentido do verbo misisti. Em retribuição, Cícero agora dedica ao
jovem este conjunto de diálogos sobre os princípios da ação humana.
Textos de estilo rude e grosseiro traduz inculta et horrida ... scripta. Vale dizer que tais adjetivos se
opõem a facete e urbanitas (cf. supra). Incultus, que vem do vocabulário agrícola, designa aquilo que é
deixado em seu estado intocado, o que não se cultivou, daí a designar, no plano do discurso, a expressão
sem muito cuidado, sem refinamento. Horridus significa, primeiramente, “arrepiado, eriçado”; aplicado às
coisas, “áspero, acre, grosseiro”.
Albúcio: Tito Albúcio, condenado por concussão após ter governado a Sardenha, exilou-se em
Atenas a partir de 133 a.C. Dizia-se grego por escolha. Consta que foi seguidor do epicurismo (cf.
perfectus epicureus, Brutus, 131). Uma passagem do De natura deorum parece indicar, inclusive, que ele
teria composto obra de filosofia (I, 93).
Cévola: trata-se de Quinto Múcio Cévola, famoso jurisconsulto, mestre de Cícero, que foi cônsul
em 117 a.C.
III, 9 E esse episódio o mesmo Lucílio contou. Julgamos que locum se refere precisamente à
saudação de Cévola a Albúcio; é o que parece indicar o relativo de ligação quem e o partícula restritiva
quidem. Reid pensa de modo diverso: considera que o uso do termo locus é técnico, isto é, ele indicaria
que o tema da “grecomania” fora tratado ao longo de todo o poema de Lucílio do qual Cícero extraíra a
passagem referente ao encontra entre os dois personagens históricos aqui citados.
Pôncio: Tito Pôncio, um centurião, era renomado por sua força física (cf. De senectute 33). Tritânio
foi um gladiador.
A expressão em grego, Cai're, significa literalmente “alegra-te”. Trata-se de uma maneira bastante
corriqueira de saudação entre os gregos.
III, 10 E Múcio tinha razão. A tradução não dá conta, entretanto, de um dado do texto que nos
parece importante. A fala atribuída a Cévola termina com uma espécie de declaração de guerra contra
Albúcio, cidadão romano que é considerado um hostis. Ora, nosso autor parece brincar com o fato dizendo
que, de alguma forma (sed), Cévola agia segundo o direito (iure), já que Albúcio escolhera ser tratado por
grego. Reid (ad locum), entretanto, não considera que sed possa ter aqui valor adversativo, dado que é
contraposto a autem, que marca o período seguinte.

279
A língua latina não só não é pobre... mas é ainda mais rica que a grega. A idéia aqui expressa é
retomada mais adiante no De finibus (III, 5) e ainda em outras obras de Cícero (como em De nat. deor. I,
8; Tusc. II, 35; III, 10; IV, 10). No segundo diálogo (cf. III, 51), o autor atribui à personagem de Catão a
opinião contrária. Essa opinião, aliás, é defendida também pelo célebre poeta e filósofo contemporâneo de
Cícero, o epicureu Lucrécio, que a sustenta em mais de uma passagem (cf. I, 139: propter egestatem
linguae et rerum nouitatem; I, 832: patrii sermonis egestas, dentre outras). Convém observar que, embora
Cícero afirme aqui que a riqueza da língua latina é uma tese que ele já defendeu muitas vezes, não a
encontramos em nenhuma obra anterior ao De finibus (cf. Reid, ad locum). Ora, temos que supor ou que
ele a defendeu em obras perdidas, como o Hortensius, ou em conversas que manteve com seu interlocutor,
Bruto, a quem ele envia o livro em dedicatória. Quanto à controvérsia sobre as possibilidades da língua
latina, conforme ela aprece em outros autores, veja-se a nota de Reid.
Faltou ... algum ornato para um discurso copioso ou elegante. Notamos que, para Cícero, o
discurso deve ser, dentre outras coisas, copioso. Essa qualidade está associada à abundância material, ou
seja, à riqueza de argumentos expressos. Já os ornatus são os recursos pelos quais o orador embeleza seu
discurso. No orator 80, lemos supellex est enim quodam modo nostra, quae est in ornamentis, alia rerum,
alia uerborum, ornatus autem uerborum (...), ou seja “recursos, de certo modo, nós os temos, que
consistem nos ornamentos, uns de conteúdo, outros de palavras. Os ornatos de palavra, por sua vez...”.
IV, 10 Em meio... aos processos do fórum traduz forensibus ... periculis. O substantivo periculum,
da mesma raiz que o verbo experior, refere-se ao perigo a que alguém está sujeito, ou experimenta. No
contexto jurídico, faz menção ao risco que se corre com relação ao resultado do processo, às punições
legais, ou seja, ao risco que se corre durante o processo.
O posto em que fui colocado pelo povo romano traduz praesidium in quo a populo Romano locatus
sum. O substantivo praesidium remonta à linguagem militar: designa um lugar guardado e defendido por
guarnição militar, um posto militar. Por extensão, pode significar “defesa, salva-guarda, etc.”. Cícero
alude aqui, muito provavelmente, à sua condição de consular, ou seja, de quem já foi cônsul, responsável
pela integridade da res publica. O ex-cônsul se orgulha de, na conjuração comandada por Catilina, ter
garantido a salvação de Roma. É interessante notar que, com essa referência, estabelece-se uma
comparação entre seu atual serviço e aqueles prestados à pátria no ano de 63 a.C., algo que acaba por
engrandecer seu projeto de divulgar a filosofia entre os cidadãos romanos.
Tornem-se mais instruídos meus concidadãos, no original: sint ... doctiores ciues mei. O particípio
doctus, em grau comparativo, neste ponto, é uma forma do verbo doceo que significa “ensinar, instruir”.
Da mesma raiz é também doctrina, que no contexto da filosofia ganha o sentido de conjunto de
conhecimentos professados por uma escola. Desse modo, o desejo de Cícero é o de que seus concidadãos
se tornem mais instruídos não em quaisquer matérias, mas precisamente naquelas que são tratadas pelos

280
filósofos. A partir disso, compreende-se por que, em algumas ocasiões, possamos traduzir doctus por
“sábio”, pois quem se torna completamente conhecedor e praticante de certa doctrina é assim reputado, já
que, para as doctrinae helenísticas, a ética é a parte para a qual converge todo o sistema filosófico; todo o
conjunto de conhecimentos visa à ação, e não meramente às especulações do intelecto. Do contexto,
podemos ainda observar que a instrução dos romanos, tratados como ciues, é entendida como uma
continuação das funções públicas que o ex-cônsul exerveu outrora. Ver o segundo capítulo de nosso
estudo.
IV, 11 Devem ser razoáveis traduz aequi esse debent. A idéia que traz o adjetivo aequus nesse
contexto é a de alguém que age de maneira imparcial, eqüitativa, ponderando bem as circunstâncias que se
apresentam. Não se pode deixar de dizer que, de acordo com a concepção filosófica de Cícero, que
pretende alcançar o mais probabile graças ao exame de todas as razões pertinentes, a aequitas no
julgamento final das razões deve ser característica essencial do sábio. Veremos que essa idéia tornará à
baila mais adiante, onde se aplicará diretamente ao método investigativo seguido por Marco Túlio.
Pois muito foi escrito por nós. Segundo Reid (ad locum), devemos entender que esses muitos
escritos são os discursos publicados. De fato, a apresentação do tema do livro e a defesa de sua grandeza
se fazem, a seguir, por meio de uma comparação com a discussão de uma causa jurídica.
O que acerca da filosofia confiamos às letras traduz haec quae de philosophia litteris mandamus.
Notamos que este trecho faz ressoar o início do tratado (seção 1).
Qual é o fim, o que é extremo, o que é último. Tentamos traduzir literalmente a passagem qui sit
finis, quid extremum, quid ultimum. A questão que se apresenta é o fio condutor de toda a obra. Como
vimos no nosso estudo, se a obra é composta de diálogos independentes, Cícero lhe confere unidade por
meio dos proêmios, que organizam a discussão geral a respeito do tevlo". Observemos, ainda, o tino do
autor com relação ao seu auditório, por assim dizer. Seu projeto de divulgação da filosofia prevê leitores
que não estão habituados aos conceitos filosóficos; assim, acrescenta ao conceito de finis, que em última
análise já seria suficiente, os adjetivos neutros substantivados extremum e ultimum, ou seja, “aquilo que é
extremo” e “aquilo que é último”. Com isso evidencia para um grande número de leitores não
especializados que a idéia de finis refere-se ao termo extremo de uma série de bens, ou seja, o bem
supremo, que faz com que todos os intermediários devam ser buscados.
Para onde se deve reportar todo desígnio... as coisas a serem buscadas. O verbo referre é utilizado
para traduzir ajnafevrein ou ejpanafevrein, verbos que, no contexto da filosofia helenística, significam
referir alguma coisa a um critério, ou parâmetro, por meio do qual ela poderá ser avaliada. Expetendum
verte aiJretovn, que traz a idéia daquilo que nós devemos tomar, pegar, escolher. O termo latino, entretanto,
guarda relação com a raiz peto, de indica um movimento em direção de algo. Em 23, o conceito é
explicado por meio da perífrase quae sequamur. No contexto da filosofia helenística, expetendum designa

281
aquilo que se considera fazer parte do sumo bem; como veremos no desenvolvimento: aquilo que devemos
buscar por si só. O seu contrário é o que em grego é tratado pelo conceito de feuktovn, aquilo de que se
deve fugir, aquilo que se deve evitar. Aqui em nossa passagem: quid fugiat ut extremum malorum. Mais
adiante (I, 30), a dor é dita fugiendus. O procedimento da uariatio sermonis, termo utilizado por Alain
Michel (1974, p. 142), que é reflexo do projeto de divulgação da filosofia de que faz parte o De finibus,
será teorizado pelas personagens de Cícero e Varrão no início do segundo diálogo.
Quem consideraria impróprio do prestígio que a mim cada qual atribui. O autor segue com a
refutação do argumento daqueles seus hipotéticos opositores que não considerariam o genus scribendi da
filosofia próprio de uma figura política como ele (cf. 1). O que se vê aqui e será exemplificado no passo
12 é que as questões da vida prática estão contidas na discussão filosófica, que trata de questões
universais: investigar o que é o melhor e o mais verdadeiro em todas as ocupações da vida (quid in omni
munere uitae optimum et uerissimum sit exquirere). Desse modo, Cícero defende que sua ocupação atual
tem uma função pública ainda maior do que a atividade que normalmente era exercida, na velhice, pelos
antigos oradores, a consultoria em problemas de jurisprudência. O autor tenta recuperar, de alguma forma,
o ócio com prestígio social (cum dignitate otium) que lhe foi negado pelo regime unitário de César.
IV, 12 Se o filho de uma escrava deve ou não ser contado entre os bens que foram produzidos:
Públio Múcio Cévola, cônsul em 133, e Mânio Manílio, cônsul em 149 a.C., teriam escrito sobre questões
jurídicas obras hoje perdidas. Já Marco Júnio Bruto (personagem do início do século I a.C.), que teria
escrito sobre direito textos que também não foram conservados, é homônimo daquele a quem é dedicado o
De finibus. A questão aqui apontada se fundamenta sobre o princípio de que o escravo não tem
personalidade jurídica. Eis o problema (cf. Annas & Woolf. On moral ends, 2001, p. 7): se uma escrava
que pertence a certo proprietário é alugada por um outro e, durante o período de vigência do contrato, tem
um filho, este filho deve ser contado entre os bens produzidos, ou seja, deve pertencer a quem usufrui da
escrava (assim como uma ânfora de azeite que se tenha produzido, por exemplo), ou deve pertencer ao
proprietário original? Cévola e Manílio sustentariam a primeira alternativa e Bruto, a segunda (cf.
Marinone. I termini estremi del bene e del male, 1976, nota ad locum).
Estes assuntos que abrangem toda a vida. A filosofia, que trata de quaestiones, é mais abrangente
do que a discussão de uma causa jurídica. A reflexão filosófica é mais fecunda (uberiora) Em tratados de
arte retórica, como o Orator, vemos como a filosofia se faz importante numa das partes da atividade do
orador, a inuentio. O orador vai alcançar a fecundidade em seu discurso a partir das discussões dos
filósofos, que são como que a floresta de onde ele vai extrair a matéria de sua argumentação (cf. “pois
toda a fecundidade e, por assim dizer, a ‘floresta’ da argumentação, nós buscamos nelas [nas discussões
filosóficas]”. Omnis enim ubertas et quasi silva dicendi ducta ab illis est [scil. philosophorum
disputationibus]. Orator, 12).

282
Não somente buscamos expressar nosso modo de pensar, mas ainda o que foi dito por cada escola
de filosofia. Novamente o autor manifesta a natureza de sua obra, que já havia mencionado na seção 7.
Vale dizer que quid nobis probaretur evoca o método seguido pelos acadêmicos de buscar o mais
probabile através da ponderação de todas as razões que se apresentem.
V, 13 Prima ueniat in medium Epicuri ratio. Cabe notar as primeiras qualificações que recebe a
doutrina de Epicuro. Ela é considerada fácil e, por isso, a mais difundida. Ela é tratada do mesmo modo
mais adiante, como na seção 27 (cf. ainda Acad. I, 6 e Tusc. IV, 6). É bem verdade que, mais adiante, a
personagem de Cícero dirá que a grande difusão da doutrina do Jardim é resultado da má compreensão
que dela têm alguns. Isso é, de alguma forma já contemplado neste ponto com a crítica à falta de acuro
com que os epicureus costumam apresentá-la. Traduzimos ratio, neste ponto, por sistema, pois será
tratado, a seguir, o conjunto dos ensinamentos de Epicuro, ainda que pouco se fale da física e da lógica.
Do ponto de vista da organização geral do De finibus, esse trecho serve como proêmio do primeiro
diálogo, em que se discutirá a teoria do prazer. Sob esse aspecto, uma interessante tensão se estabelece
entre a voz do autor e a ficção que se inicia logo a seguir: Cícero reclama para si (a nobis) a autoria da
exposição da doutrina do Jardim, mas, como vemos, ela é exposta por Torquato. O formato de tratado, que
envolve os três diálogos, de alguma forma se sobrepõe à representação mimética. A expressão ueniat in
medium parece-nos também sugerir uma situação teatral: os leitores vão acompanhar a discussão que se
desenvolve diante deles.
Que nem mesmo aqueles que aprovam tais ensinamentos costumam desenvolvê-lo de forma mais
acurada. Ora, se a exposição, atribuída a Torquato, é acurada, essa personagem vai representar um tipo
pouco habitual de epicureu. A passagem alude ao fato de que os seguidores de Epicuro (e até o próprio
mestre, cf. 22) não seriam muito zelosos, nem formalmente rigorosos ao apresentarem seus pensamentos
e, por outro lado, ao fato de que Cícero, como acadêmico professo, mesmo não concordando com a
doutrina de Epicuro, pretende mostrar adequadamente o pensamento do filósofo do Jardim. Tal declaração
remete à discussão que encetamos, no segundo capítulo de nosso estudo acerca do éthos de Torquato.
Pois é a verdade que queremos alcançar e não refutar alguém tal qual um adversário. Se há algo
de comum entre o procedimento jurídico e o método filosófico adotado por Cícero, o autor procura
salientar o que haveria de diferente. Aqui, Marco Túlio declara que na discussão filosófica deve-se tentar
alcançar a verdade e não apenas a vitória na discussão. Essa relação entre o contexto jurídico e o
filosófico, que, em última instância, recai na relação entre orator e philosophus, é discutida no nosso
estudo.
V, 14 Gostaria de ouvir por que é que nosso Epicuro tu, por certo, não abominas, como de costume
fazem os que dele discordam, mas certamente não o aprovas. Muito se evidencia aqui: no contexto da
filosofia helenística, grande era a rusga entre epicureus e estóicos, de modo que estes tinham aversão total

283
às idéias daqueles. Torquato, no entanto, reconhece no amigo uma característica diferente: ele discorda
(certe non probes) de Epicuro, mas não de maneira absoluta e irrefletida. É sem dúvida um aspecto da
formação acadêmica de Cícero.
O único a ter visto a verdade e ter libertado as almas dos homens dos maiores erros e ter ensinado
tudo que diz respeito a viver bem e feliz. Torquato é apresentado como seguidor de Epicuro, e o tom com
que fala do mestre é adequado a uma tal personagem (cf. De rerum natura III, 1 e seguintes, por
exemplo). Além disso, algo se nos mostra de totalmente distinto entre o procedimento filosófico adotado
por Cícero, conforme discutimos em nosso estudo, e o de Epicuro: este enxerga a verdade, aquele,
seguindo os passos dos acadêmicos Fílon, Carnéades e Arcesilau, esforça-se por chegar à verdade através
da ponderação, mas contenta-se com o que, em sua opinião, o homem pode alcançar, ou seja, o probabile.
Dois aspectos mais da filosofia de Epicuro tornam-se claros: ela serve à alma dos homens e à aquisição de
uma vida feliz.
Além do tom laudatório com que Torquato se refere aqui a Epicuro, que remete à discussão sobre o
éthos da personagem, deve-se notar a tradução que adotamos para o termo animus. Quanto a isso,
devemos nos referir às considerações feitas por Lucrécio, no livro III do De rerum natura, sobre animus,
anima e mens. Em 161-162, por exemplo, o poeta afirma a materialidade de animus e anima: haec eadem
ratio naturam animi atque animai / corpoream docet esse, isto é: “este mesmo raciocínio [que ele
desenvolvera acima] demonstra que a natureza do animus e da anima é corpórea”. Sobre a anima, ela é
algo que se distribui ao longo dos membros (117-120): Nunc animam quoque ut in membris cognoscere
possis / esse (...) principio fit ut detracto corpore multo / saepe tamen nobis in membris uita moretur, ou
seja, “agora, para que possas saber que também a anima encontra-se nos membros (...), primeiramente
ocorre que, subtraída grande parte do corpo, muitas vezes, entretanto, em nossos membros permanece a
vida”. Ambas as realidades corpóreas estão unidas e formam, em última análise, uma só natureza, ainda
que certa função principal caiba ao animus (136-140): Nunc animum atque animam dico coniuncta teneri /
inter se atque unam naturam conficere ex se, / sed caput esse quasi et dominari in corpore toto / consilium
quod nos animum mentemque uocamus. / idque situm media regione in pectoris haeret. “Agora digo que
animus e anima mantêm-se em uma união entre si e formam, a partir de si, uma só natureza, mas é
principal, por assim dizer, e domina por todo o corpo a reflexão, a que nós chamamos animus e mens. E
esta se acha situada na região média do peito”. O poeta epicureu, portanto, declara que essas duas
realidades são, de fato, uma só coisa, que tem sede no peito, onde se originam os pensamentos e onde se
tomam as decisões, e, dali, propaga-se para todas as partes do corpo. A parte principal, caput, é chamada
de animus, a parte que se dissemina pelo corpo, anima. Não podemos deixar de perceber que alguns
tradutores de Lucrécio, como, por exemplo, Agostinho da Silva, traduzem animus por “espírito” e anima,
por “alma”. Não nos agrada o termo “espírito”, que, mais ainda do que “alma”, parece trazer consigo

284
conotações religiosas que não cabem bem no contexto. Contudo, poucas são as opções que não se tenham
desgastado pelo uso peculiar feito pela doutrina cristã e tão largamente difundido. Nossa situação,
entretanto, é mais fácil do que a de Agostinho, pois Cícero não se utiliza senão de animus. Traduzimos o
termo, dessa forma, por alma, mas devemos prevenir o leitor de que, aqui, tal termo se refere
indistintamente tanto à noção de sede do pensamento e das afecções quanto à de fluxo corpóreo que
preenche de sensação todos os membros. Consideramos que nossa opção é aceitável, até porque Cícero
não faz tal distinção e, por outro lado, a autoridade de Lucrécio permite-nos considerar animus e anima
um conjunto indissociável.
Estimo que tu... menos te agradas dele pelo fato de ter negligenciado esses ornamentos de discurso
presentes em Platão, Aristóteles e Teofrasto. Essa passagem permite uma seqüência provável à ação
representada. O epicureu Torquato quer conhecer o juízo de Cícero a respeito da filosofia de Epicuro. Os
três amigos reunidos falavam de literatura, a discussão sobre Epicuro toma como ponto de partida uma
discussão sobre o estilo desse autor. Na opinião de Torquato, o descuido estilístico deve ser o motivo pelo
qual os outros dois desgostam de Epicuro, uma vez que a paixão pela literatura é um traço comum aos três
interlocutores.
V, 15 O discurso deste filósofo não me desagrada... Vemos que, segundo o autor, a qualidade
necessária a um discurso filosófico parece ser a clareza na expressão. Por outro lado, diz Cícero: não
desprezaria a eloqüência de um filósofo, caso ele a apresentasse; caso ele não a possuísse, não a exigiria
excessivamente (ego a philosopho, si adferat eloquentiam, non asperner, si non habeat, non admodum
flagitem); ou seja, a eloqüência é qualidade que Cícero aprova no discurso filosófico, embora não a
considere essencial. Importante ainda considerar, que Cícero se serve de terminologia idêntica para tratar
da expressão do filósofo e da do orador (cf. oratio e eloquentiam).
Não me satisfaz completamente. Já que, embora não seja condição necessária, a eloqüência de um
filósofo parece ser bem vista pela personagem de Cícero, poderíamos traduzir non aeque satisfacit
alternativamente por “igualmente não me satisfaz”.
‘Quot homines, tot sententiae’. Frase de tom proverbial que aparece também em Terêncio (cf.
Phormio, 454).
Considero-te um juiz imparcial, contanto que o que ele diz tu conheças bem. Eis uma alusão ao
procedimento filosófico de Cícero vinda da boca de Torquato. O estudioso de filosofia, de tendência
acadêmica, deve se portar com eqüidade diante das partes que se apresentam e, além disso, conhecer a
matéria de que se trata para poder dar seu parecer. Notamos, todavia, que tal alusão vem da boca de
Torquato, o que confere a ela isenção, pois se trata de um elogio; por outro lado, escapa à suspeita de
adulação, graças à sutil insinuação expressa na subordinada concessiva de que Cícero talvez sequer
conheça aquilo de que discorda. Importante ainda considerar que imagens do procedimento jurídico,

285
presentes aqui em aequum iudicem, povoam as obras filosóficas de Cícero e nos remetem à aliança que o
autor estabelece entre filosofia e debate oratório.
V, 16 A não ser (...) que consideres que Fedro e Zenão, aos quais ouvi, mentiram para mim. Cícero
chama a autoridade dos mestres epicureus a quem ouviu em Atenas para garantir sua condição de iudex.
Esse passo pretende conferir à personagem que representa o autor a competência para tratar da filosofia de
Epicuro.
Fedro, filósofo epicureu, provavelmente natural de Atenas, viveu de 138 a 70 a. C.,
aproximadamente. Cícero ouviu-o em Roma por volta do ano 88 a. C. É mencionado, no De natura
deorum (I, 59), como profundo conhecedor e excelente expositor da doutrina do Jardim.
Zenão, filósofo epicureu natural de Sídon, viveu de 150 a 70 a. C., foi discípulo de Apolodoro e
chefe da escola em Atenas, onde Cícero o ouviu entre 79 e 78 a. C. Diferentemente de outros epicureus,
Zenão é elogiado por sua clareza e elegância (cf. De natura deorum I, 59). Filodemo, importante
personagem do epicurismo em território italiano (mencionado por Torquato em II, 119), cujos textos,
ainda que em fragmentos, foram descobertos nas escavações de Herculano, foi discípulo desse Zenão.
Ático: Tito Pompônio Ático, grande amigo de Cícero. Residindo em Atenas, manteve com o autor
do De finibus extensa correspondência. A ele Cícero dedicou seus De senectute e De amicitia.
VI, 17 Quanto ao que é primeiro traduz principio. Não há redundância nas expressões principio e
primum. A primeira se refere à divisão da filosofia em partes. Principio se refere àquela que, nessa
introdução do sistema de Epicuro feita pela personagem de Cícero, vem em primeiro lugar: a física. O
início do parágrafo, portanto, está em contraposição a in altera parte philosophiae (cf. 22), sendo a
primeira parte a física e a segunda a lógica (ou dialética). Primum, por outro lado, introduz a série de
objeções que serão feitas à física de Epicuro (cf. Reid, ad locum). A expressão que introduzia a terceira
parte, a ética, devia estar na lacuna entre as seções 22 e 23.
Tudo vem de outrem traduz totus alienus. Notamos que, no original, a expressão está no
nominativo, e assim, concorda com o sujeito de gloriatur, o qual, subentende-se, é Epicuro. Portanto, não
conseguimos manter a mesma expressividade do original, onde, quem é apresentado como “alheio,
estranho, de um outro” é o próprio filósofo, e não sua física. Mesmo que se pensasse em um tradução
como “não é completamente original”, não se manteria a expressividade do texto latino.
Coisas de Demócrito traduz o adjetivo Democritea, formado a partir do nome do célebre pensador
pré-socrático. Demócrito, natural de Abdera, cidade da Trácia, viveu 460 a 350 a. C., aproximadamente.
Como se pode ler no texto de Cícero, mais abaixo, explicava a natureza por meio de unidades materiais
indivisíveis, os átomos.
Atomos se encontra no acusativo plural. Atomus, que Cícero utiliza como feminino, é simples
transliteração da palavra grega a[tomo". Como é seu costume, a transliteração vem explicada por um

286
circunlóquio: corpora indiuidua propter soliditatem (cf. ainda 18: illa indiuidua et solida corpora).
Segundo Reid (ad locum), Demócrito se servia do neutro to; a[tomon. Um autor epicureu que é criticado
diversas vezes por Cícero, Amafínio, traduzira o conceito por corpusculum, de que Cícero se serve, como
em Acad. I, 6. De modo diferente, Lucrécio, célebre poeta e expositor da doutrina de Epicuro, prefere
utilizar-se de perífrases explicativas para tratar dos átomos a transliterar a palavra grega, como faz Cícero.
Lucrécio serve-se de expressões como genitalia corpora (I, 167), corpora prima (I, 171), semina rerum (I,
176), communia corpora (I, 196), primordia rerum (I, 210) etc. Sobre os procedimentos de tradução
adotados por Cícero, veja-se De finibus III, 5, 14-16 e 39-40 e nossos comentários a essas passagens.
Vazio infinito traduz infinito inani. Vê-se que na física de Epicuro o universo consiste em realidades
corpóreas, os átomos, e em uma realidade incorpórea, o infinito, onde se encontram, espalhadas, as
realidades corpóreas. Cf. De natura deorum, I, 54 e Lucrécio, I, 958 e ss.
As coisas que existem e tudo o que se vê. Importante notar que, por causa de sua pequenez, os
átomos não podem ser vistos por nós (cf. Lucrécio, IV, 111-112: primordia...sunt infra nostros). Nós
apenas podemos ver os conglomerados formados por uma infinidade deles.
VI, 18 Quanto a Epicuro... quase não comete deslize traduz Epicurus autem... non fere labitur. O
verbo labor comporta o sentido de “cometer erro”, mas que provém de sentido mais concreto, “escorregar,
cair, etc”. Optamos por manter o sentido mais concreto para não perdermos o efeito cômico que se
estabelece através da associação com ruinae, que ocorre mais adiante.
Com relação à natureza das coisas. A expressão rerum natura é utilizada largamente, pelos autores
latinos, para designar a parte da filosofia que estuda a fuvsi", ou seja, a natureza. Não podemos deixar de
recordar o título do poema de Lucrécio: De rerum natura.
São levados para baixo por seu próprio peso segundo uma linha perpendicular. A expressão ad
lineam, segundo Félix-Gaffiot, viria de ad lineam et perpendiculum, que se reporta a um instrumento
usado na construção civil, por exemplo, que consistiria em um fio ligado a um peso de chumbo. Algo
semelhante ao instrumento a que chamamos prumo.
VI, 19 O homem agudo criou um expediente fantasioso. Tratar Epicuro por acutus neste contexto é
evidente ironia. Já commenticiam, que provém do verbo comminiscor, é um adjetivo, flexionado no
feminino acusativo, que significa “imaginada, inventada”, daí, em sentido pejorativo, querer dizer
“mentirosa, fingida, falsa”.
Afirmou que o átomo tem um desvio pequeníssimo traduz declinare dixit atomum perpaulum. O
advérbio perpaulum alude, de algum modo, ao conceito de to; ejlavciston655, que é a menor quantidade
que pode haver na natureza, segundo a física de Epicuro. Novamente, sentimos o esforço de Cícero em se
fazer compreender pelos leitores não familiarizados com a filosofia, pois a oração seguinte quo nihil

655
Cf. Diógenes Laércio, X, 58 e ss.

287
posset fieri minus, literalmente “em relação ao qual nada poderia haver de menor”, explicita a idéia
contida no conceito.
As associações, os ajuntamentos e conglomerados de átomos entre si, a partir do que se produziria
o mundo e todas as partes do mundo e aquilo que nele se encontra. O termo que o autor pretende verter
por meio de vários outros latinos é o grego periplokhv (cf. Diógenes Laércio, X, 43) que se relaciona com
o verbo periplevkw: “dobrar-se ao redor, abraçar”. Do encontro dos átomos (plhghv) forma-se o mundo. A
descrição vai do geral ao particular: as partes mundi referem-se às grandes divisões, como mar, terra e
céu. Quae in eo essent, as coisas mais particulares, como os animais, plantas e etc.
Coisa que, uma vez que foi toda inventada de maneira pueril...Retoma-se a idéia que se apresentara
com a expressão rem commenticiam.
Desvio traduz declinatio. O conceito de Epicuro teria sido expresso por parevgklisi"; ao menos é
assim que aparece em um texto de Filodemo (cf. Reid, ad locum) e encontra em Lucrécio a tradução
clinamen. Citamos: exiguum clinamen principiorum / nec regione loci certa nec tempore certo, “o exíguo
desvio dos átomos, nem em parte certa do espaço, nem em tempo certo” (De rerum natura II, 292-293).
Interessante notar que o verbo utilizado por Cícero para depreciar o raciocínio de Epicuro, fingo, é o
mesmo utilizado por Lucrécio, quando ele, cuidadosamente, explica que o desvio é mínimo, para que
pareça que os epicureus estão inventando um movimento oblíquo (cf. II, 243-4: ne fingere motus /
obliquos uideamur).
Pois ele afirma que o átomo se desvia sem uma causa. Aqui se expressa a principal crítica
ciceroniana à física de Epicuro. O expediente da declinatio arruinaria toda sua física, e por duas razões:
porque não se fundamenta em uma causa e nada mais vergonhoso a um físico do que dizer que algo
acontece sem causa; e porque, como se verá adiante, seria incapaz de explicar aquilo para que foi criada, a
saber: a possibilidade de encontro entre os átomos. Além de tentar explicar a produção de todas as coisas
que existem, a teoria do clinamen buscava explicar ainda a liberdade de escolha que possuem os homens.
Em De fato, 23, por exemplo, apresenta-se o raciocínio que associa o movimento dos átomos que
consituem o animus do homem à decisão livre. Na mesma obra, em 22, desenvolve-se de modo mais
generoso a crítica à falta de fundamentação para o desvio sofrem os átomos. Nesse passo, confere-se,
assim como no De finibus, certa superioridade à teoria de Demócrito, que consideraria que o desvio dos
átomos se dá por causa do choque entre eles. Para o pré-socrático, segundo afirma Cícero, a diferença de
peso entre os átomos faria com os de cima tocassem os de baixo, durante a queda no infinito. Um átomo
ao cair mais rápido que outro, poderia tocar de leve o outro lateralmente. Esse choque provocaria uma
alteração no movimento retilíneo. As críticas ao esquema de Epicuro são apresentadas abaixo.
VI, 20 Se uns se desviarem e outros, por sua tendência natural, deixarem-se ir em linha reta,
primeiramente isto seria conceder como que privilégios aos átomos. A única possibilidade de os átomos

288
se encontrarem seria que alguns se desviassem e outros não. Mas, segundo Epicuro, ainda que os átomos
possam ter tamanhos diferentes, estão sujeitos aos mesmos movimentos; assim, dar certo tipo de
movimento a uns e a outros não, seria um contra-senso. A crítica é colorida por certo sarcasmo: Cícero
utiliza um termo que não é próprio do vocabulário da física: prouincias. Evidencia isso o fato de que a ele
antepõe quasi. Era comum, na época de Cícero, a disputa entre as personagens políticas eminentes para
obter o governo das províncias mais lucrativas. Conta Maffii656 que, antes de assumir o cargo de cônsul
em 63 a.C, Cícero, a quem tocara, por sorteio, governar a Macedônia ao fim do mandato, preferiu negociá-
la com seu colega de consulado, Caio Antônio, reservando para si a Gália Cisalpina, para onde jamais foi
como governador. Antônio, ambicioso, contentar-se-ia com o governo de tão promissora província e
Cícero, com isso, ganhava a benevolência do colega e a possibilidade de não se afastar muito de Roma em
época de tamanhos problemas políticos, quando se desenhava o conflito entre César e o senado. Dar
características particulares a certos átomos seria como que conceder a eles atribuições especiais, como a
um governador de províncias.
Eadem illa atomorum ... turbulenta concursio hunc mundi ornatum efficere non poterit. Eis uma
crítica dirigida também à física de Demócrito (in quo etiam Democritus haeret). Note o leitor que
traduzimos mundi ornatum por bela ordenação do mundo mais para evidenciar o sentido de “bem
disposto, regulado” que há no substantivo ornatus e que é fundamental para a compreensão da crítica: um
movimento desordenado não poderia criar um mundo bem ordenado. A expressão traduz o grego kovsmon.
Por outro lado, deve-se ter em mente que ornatus é conceito que permeia o pensamento de Cícero e,
mesmo em retórica, tem relação direta com a idéia de “boa disposição”. Essa crítica ao atomismo,
tradicionalmente feita na Antigüidade (cf. Reid, ad locum), alude à ausência de um princípio ordenador da
natureza, como um intelecto divino (cf., por exemplo, Acad. II, 125).
Que haja algo mínimo traduz aliquid esse minimum. Optamos, aqui, por uma tradução literal.
Anteriormente aludido, quando se tratava do desvio dos átomos, o conceito epicureu to; ejlavciston é
agora traduzido por minimum.
Polieno, geômetra de Lâmpsaco, teria declarado, sob a influência do pensamento de Epicuro, que a
geometria é falsa. Citamos Academica, II, 106: Polyaenus, qui magnus mathematicus fuisse dicitur, is
posteaquam Epicuro adsentiens totam geometriam falsam esse credidit, ou seja, “Polieno, que, dizem, foi
um grande matemático, depois que passou a concordar com Epicuro, acreditou ser a geometria
inteiramente falsa”.
VI, 21 O que ele altera, estraga. Assim como em 17 (deprauare), diz-se que Epicuro deturpa o
pensamento do filósofo que segue: Demócrito. Ora, é interessante notar como Cícero joga com a noção de
“distocer” ao longo do diálogo. Mais adiante, na exposição de Torquato, haverá uma alusão à maneira

656
Cf. Maffii, 1948, p. 75.

289
como a educação tradicional perverte a capacidade de escolha dos homens (cf. 30: non dum deprauatum).
No segundo livro, isto é, na refutação da personagem de Cícero, é a educação proposta por Epicuro,
segundo o orador, que é uma doutrina “pervertida”, não no sentido de ser uma distorção do pensamento de
um autor anterior, mas porque apresente uma imagem distorcida do que seja a natureza humana (cf. II, 58:
rationem prauam).
As imagens... por cujo choque, não só podemos ver, mas ainda pensar. Como se percebe, a
psicologia de Epicuro, por assim dizer, é um ramo da física; uma vez que além dos corpos nada mais
existe (a não ser o vazio), tudo que diz respeito à alma é mecânico, dá-se por choques, movimentos, etc. A
maneira como o epicureu Lucrécio concebe a alma foi exposto acima (cf. 14). Quanto à tradução do termo
ei[dwla, vale dizer que Cícero se serve ainda de simulacrum. Os dois termos, aliás, são usados também por
Lucrécio. A partir de uma carta de Cícero endereçada a um amigo, Cássio (cf. Ad Fam. XV, 16, 1),
sabemos que este serviu-se de spectrum para tratar do conceito. Segundo a física de Epicuro, de todos os
objetos que se submetem a apreensão de nossos sentidos, emanam como que decalques (tivpoi), que são
também materiais, mas de composição extremamente sutil. Essas emanações guardariam a mesma forma
do objeto do qual elas emanam e se movimentariam em todas as direções e com grande velocidade (cf.
D.L., X, 46 e 49). Chocando-se contra os nossos órgãos do sentido, elas colocariam em movimento os
átomos de nossa alma, dando origem as percepções e aos pensamentos (D.L., X, 50). Cícero trata da teoria
das imagines ainda em De natura deorum I, 107 e 108.
A própria extensão infinita. O uso do pronome ipsa, segundo Reid (ad locum) indicaria o apreço de
Epicuro por essa teoria, para cuja originalidade ele reclamaria especialmente. Na carta endereçada a
Heródoto, conservada por Diógenes Laércio, Epicuro se serve do serve do neutro a[peiron (cf. X, 41) para
designar o conjunto formado por todas as coisas que existem. Para comportar a infinidade de átomos que
existem, o vazio no qual eles se movem deve ser também infinito. A doutrina é tratada por Lucrécio em I,
1008 e ss.
Os inumeráveis mundos. Essa consideração é, para Epicuro, uma decorrência lógica da infinidade
de átomos e da extensão infinita do vazio (cf. DL. X, 45). Uma vez que nada impede a expansão dos
átomos pelo espaço vazio e infinito, nada impede que haja incontáveis mundos, formados pelo encontro
dos átomos, que seriam semelhantes ou não com relação a este nosso. A formação e a destruição de tudo
que existe explica-se pela agregação e desagregação dos átomos que formam as coisas. A mesma idéia de
mundo que se formariam e se destruiriam de modo rápido está expressa em De natura deorum, I, 67.
Demócrito, louvado pelos demais, fosse detratado por quem seguira somente a ele. Segundo Usener
(Epicurea, p. 97), Epicuro teria criticado Demócrito em um tratado especial. Em D.L., X, 24-25, podemos
observar a existência de uma literatura epicurista (os autores citados são Metrodoro e Hermarco) em que
se fazia a crítica de outros filósofos. Ainda na obra do biógrafo, conta-se que Epicuro costumava alcunhar

290
os antigos filósofos. Demócrito ele chamava, em jogo de palavras: Lhrovkrito", querendo significar,
provavelmente, algo como “o expositor de coisas sem sentido”. Entretanto, da literatura que provém
diretamente da escola de Epicuro, as menções feitas a Demócrito são respeitosas. Plutarco cita Leonteu
(Aduersus colotes, cf. Reid ad locum), que viveu em companhia de Epicuro e Metrodoro, que dizia que
Epicuro se intitulava um seguidor de Demócrito e que a teoria atomística sempre foi vista, na escola do
Jardim, como uma criação de pré-socrático. Quanto à afirmação que dá conta do louvor dos demais
filósofos a Demócrito, vale recordar que o ceticismo acadêmico, instaurado por Arcésilas, servia-se de
Demócrito como uma espécie de autoridade (cf. Acad. I, 43).
VII, 22 Que é a do investigar e do argumentar traduz quae est quaerendi ac disserendi. Tentamos
nos manter próximos ao original por julgar que neste ponto, novamente o estranhamento com relação aos
termos técnicos da filosofia por parte de seu auditório, faz com que Cícero utilize expressões mais
explicativas. Esse procedimento – temos visto – é uma diretriz de seu projeto de divulgação da filosofia
em Roma. Na verdade, Cícero ainda remete a expressão ao termo grego logikhv. É comum, no entanto, que
se refira à lógica, ou dialética, como ratio disserendi ou ratio quaerendi ac disserendi. Em Academica I,
19, a personagem Varrão refere-se a essa parte da filosofia (seguindo uma divisão que atribui a Platão)
como sendo aquela que trata do discorrer a respeito de algum assunto e do julgamento entre o que seja
verdadeiro ou falso, correto ou errado, coerente ou contraditório no discurso (de disserendo et quid uerum,
quid falsum, quid rectum in oratione prauumue, quid consentiens, quid repugnans esset iudicando).
Completamente inerme e indefeso. A seqüência do capítulo, composta por críticas à lógica de
Epicuro, remete-nos à alusão feita em 13 de que os seguidores dessa filosofia não se atêm muito ao
rigorismo formal na exposição de suas doutrinas. Interessante notar que parece haver aqui um eco de uma
passagem de Lucrécio (V, 1291-1292): nam facile ollis / omnia cedebant armatis nuda et inerma, isto é,
“pois todas as coisas, desnudas e inermes, cediam a eles, que estavam armados”. O trecho trata do
domínio do homem sobre a natureza.
Suprime as definições. A crítica feita pela personagem é injusta. Ela se repete ainda em II, 4.
Notemos que em I, 29, entretanto, Torquato oferece uma definição de tevlo", algo que a própria
personagem que representa o autor admite em II, 4, ainda que diga ela tenha sido feita de modo
inadvertido (imprudens). Vale dizer ainda que em textos de outros autores, vemos, com efeito, definições
serem atribuídas a Epicuro. É o caso de uma definição de filosofia, reportada por Sexto Empírico
(Aduersus Mathematicos, II, 169). O que parece ocorrer, portanto, é que Cícero, criticando o modo como
Epicuro apresenta suas definições, acaba por considerar que o mestre do Jardim negligenciasse
completamente o procedimento (cf. Reid, ad locum).
Nada ensina sobre o dividir e o dispor em partes. No De finibus, Cícero critica especialmente (II,
26) a divisão dos desejos que é proposta por Epicuro (I, 45 e D.L. X, 127).

291
Não mostra por que método se resolvem os argumentos capciosos. Captiosa é tradução de
sofivsmata. Assim se compreende que, quando no início do livro II, a personagem de Cícero propõe uma
discussão segundo o costume socrático, isto, por perguntas e respostas, o epicureu Torquato, em aporia,
peça um discurso contínuo, por temer as “armadilhas dialéticas” (cf. II, 17: dialecticas captationes).
Recordemos, entretanto, que, como acadêmico, Cícero critica por vezes a dialética, afirmando que alguns
sofismas são insolúveis (cf. Acad. II, 91-95).
A capacidade de julgar as coisas, ele a fundamenta nos sentidos. Eis expresso o princípio de
validade absoluta das sensações como critério para se julgar todas as coisas, conforme se pode observar na
Máxima 23657, citada mais adiante. O termo iudicium traduz krithvrion. Para Epicuro, três são os critérios:
aijsqhvsei", prolhvyei", pavqh, isto é, as sensações, as noções e as afecções (cf. D.L., X, 31). Mas os dois
últimos são completamente dependentes do primeiro que é a única testemunha da verdade. O erro, na
filosofia de Epicuro, provém da inferência equivocada a partir dos sentidos. O sentido, em si, não pode
jamais mentir (cf. Acad. II, 79).
Lacuna: as edições consultadas consideram haver uma lacuna, talvez de uma página, que suprimiu
o restante da crítica à canônica de Epicuro e o início da crítica à ética. Reid (ad locum) menciona um
estudioso (Allen) que propôs, entretanto, que não lacuna alguma. Para ele, illud poderia retomar iudicium.
Desse modo, o critério de discernimento entre o verdadeiro e o falso estaria intimamente ligado a
percepção ética, também fundamentada nos sentidos, que dá conta de que o bem seja o prazer e, por outro
lado, a dor, o mal. Essa associação, entretanto, não é atestada por nenhum outro texto antigo que trate da
filosofia de Epicuro ou de um discípulo seu (cf. Reid, ad locum). A proposta feita por Allen, nota ainda
Reid, torna a sintaxe um tanto desajeitada, já que nos faz supor que um id, que seria o antecedente de
illud, fosse o sujeito de confirmat. No contexto, entretanto, nós temos verbos em terceira pessoa do
singular (tradit, putat) tendo sempre lógico Epicuro.
Prazer e dor traduz uoluptatem et dolorem. Os termos gregos são respectivamente hJ hJdonhv e
hJ ajlghdwvn.
O que, embora venha de Aristipo e pelos cirenaicos seja mais bem e mais abertamente defendido.
Aristipo, que viveu no século IV a. C., teria travado contato com Sócrates em Atenas. Era natural da
cidade de Cirene, no norte da África; por isso, a escola que fundou é denominada “cirenaica”. Há dúvida,
todavia, quanto a se foi ele mesmo ou um neto, homônimo seu, quem fundou tal escola. De qualquer
forma, os cirenaicos defendiam que o homem deve buscar, em suas ações, o prazer que move os sentidos,
o prazer imediato, sem levar em conta as conseqüências que dele decorrem. O argumento usado aqui
antecipa, de certo modo, uma das estratégias utilizadas na refutação do livro II: que Epicuro seria na

657
Seguimos, por questões práticas, a mesma numeração que utiliza Marcel Conche para as Máximas e as Sentenças
Vaticanas (cf. Épicure. Lettres et maximes, 1987). O texto em grego é também o mesmo que se encontra na edição
mencionada.

292
verdade sensualista, mas encobriria sua devoção ao prazer do tipo que move os sentidos, dissimulando-o
em privação de dor. Aristipo de Cirene, por outro lado (o que fica mais claro em 39), defende como bem
supremo o prazer que impressiona os sentidos, ou seja, o prazer em sua acepção mais usual.
Indigno do homem: Em Acad. I, 6, por exemplo, afirma-se que os epicureus pecudis et hominis idem
bonum esse censent, isto é, “consideram que é o mesmo o bem para o homem e para o animal”. A opinião
que defende a personagem de Cícero nesta passagem do De finibus não é necessariamente estóica. Tanto a
doutrina exposta no livro III (a estóica), quanto o pensamento que reúne Academia e Liceu (atribuído a
Antíoco e apresentado no livro V) julgam que, tendo naturezas diferentes, animais e homens não podem
ter o mesmo tevlo".
VII, 23 O Torquato que por primeiro ganhou esse sobrenome. Tito Mânlio Torquato, chamado de
Imperiosus, foi cônsul três vezes no século IV e era renomado por sua extrema severidade e pelo extremo
rigor com que impunha a disciplina. Ganhou o sobrenome Torquatus por ter arrancado o colar (torquis),
como troféu, a um gaulês inimigo que matou em uma luta homem-a-homem no ano de 361 a. C., fato que
é aqui mencionado por Cícero.Seguindo suas preferências estilísticas, Cícero evoca exemplos ilustres do
passado romano para dar mais beleza e autoridade à sua argumentação e, neste caso, com um trunfo a
mais, o fato de que os exemplos são de antepassados de seu interlocutor. Tornar a filosofia parte da
educação dos romanos, além do mais, passa por refletir a respeito das ações dos homens do passado
romano à luz das doutrinas gregas.
No ano de 340 a. C, em seu terceiro consulado, o antigo Torquato comandou a vitória dos romanos
sobre os latinos próximo ao rio Vésere. Nessa campanha, ordenou a execução de seu próprio filho, que
desobedecera a suas ordens e aceitara um duelo contra um soldado da cavalaria. A expressão “golpear
com a machadinha”, remete a um dos símbolos do poder coercitivo das autoridades romanas, a
machadinha (securis), para se referir à execução do réu por decapitação. O exemplo de Torquato é tão
impressionante e deve ter-se fixado de tal modo no imaginário romano, que no mundo dos mortos, no
livro VI da Eneida de Virgílio, podemos ver a personagem com seu célebre atributo (cf. VI, 825). O
episódio é ainda relatado por Lívio (cf. VIII, 7).
Os direitos de autoridade civil e do comando militar traduz ius maiestatis atque imperi.
Concebemos que, nessa passagem, o ius maiestatis diz respeito aos direitos de autoridade do poder
executivo de que usufrui Tito Torquato Imperiosus, por ser magistrado eleito da república. Em seu caso, o
grau máximo dessa autoridade, uma vez que era, na ocasião, cônsul. Já o ius imperi, refere-se mais
especificamente ao imperium, que designa, na época republicana, uma soma de poderes de que estão
investidos apenas alguns dos magistrados romanos, dentres os quais, os cônsules, os pretores e eventuais
ditadores. Constituíam tal poder o direito de recrutar e comandar exércitos, o direito de coerção sobre os

293
cidadãos e o direito de encarcerar e condenar à morte, dentre outros658. A expressão se refere, então, à
condição de chefe militar que exercia o antigo Torquato na referida campanha, e aos demais poderes que
decorrem de sua detenção do imperium.
VII, 24 Do que ouvira de ambas as partes traduz ex utraque parte audita. Para tomar uma decisão
sobre a acusação que recaía sobre o próprio filho, Tito Torquato, no ano de 141 a.C., agiu como se espera
de alguém que julga algum acontecimento: ouviu ambas as partes antes de tomar alguma decisão. Vale
novamente notar que esse procedimento, fundamental para as decisões jurídicas, aproxima-se, conforme
observamos em nosso estudo, do método de investigação filosófica defendido por Cícero.
T. Torquatus, is qui consul cum Cn. Octauio fuit... D. Silano. Tito Mânlio Torquato e Gneu Otávio
foram cônsules em 165 a. C. A severa atitude de Tito, mencionada por Cícero, ocorreu em 141 a. C. Após
a acusação feita contra o filho, que se tornara, por conta da adoção, Décio Júnio Silano, Tito obteve do
senado permissão para conduzir pessoalmente o processo. Fiel à tradição de severidade herdada de seus
antepassados, após a condenação, declarou o filho indigno de sua família. O filho suicidou-se em seguida
e o pai recusou-se a assistir ao funeral. Cf. Reid, ad locum. O comentador toma essas informações do
relato de Valério Máximo (V, 8, 3, apud Reid) que, segundo pensa, tem como fonte texto de Tito Lívio
que não se conservou.
Na magistratura traduz in imperio. O substantivo imperium, neste contexto, refere-se
inequivocamente a um cargo civil: o cargo de pretor. Conforme o que dissemos em 23, o imperium é um
conjunto de direitos de que dispõe os mais importantes cargos do poder executivo da república romana,
por sinédoque, o termo pode designar o exercício de poder nas magistraturas de cônsul, pretor e ditador,
mesmo quando não se refere a nenhuma das prerrogativas que o ius imperi comporta. Devemos lembrar
que, na república romana, um mesmo magistrado, por exemplo o cônsul, uma vez que detinha o imperium,
acumulava legalmente as funções de autoridade do poder executivo, de autoridade militar, de autoridade
jurídica e, até mesmo, a de autoridade religiosa, visto que essa esfera era também compreendida pelo
poder público.
VII, 25 O que para ti, Torquato, o que para este Triário as obras literárias, o que as obras de
história... Optamos por uma tradução literal neste ponto para tentar manter o efeito de ritmo e de ênfase
criado pela repetição de quid no início de cada cólon. Eis mais um exemplo de ornatus: aqui um
ornamentum uerborum, a anáfora, a que Cícero, no De oratore III, 206, assim se refere: eiusdem uerbi
crebra tum a primo repetitio, ou seja, “a repetição freqüente da mesma palavra no começo”.
Conhecimento das coisas: a vaga expressão utilizada por Cícero, cognitio rerum, faz menção,
provavelmente, à física. Reid (ad locum), porém, pensa que a menção é, de fato, a algo vago como o
“conhecimento dos fatos”.

658
Cf.: Giordani, 1965, p.91.

294
O que para ti... traz de prazeroso? A questão da motivação que há no homem para os estudos
acarreta embaraço para a doutrina do Jardim. Em V, 57, por exemplo, a personagem de Pisão se serve do
fato de que também os epicureus se aplicaram aos estudos para demonstrar que vem da natureza do
homem esse impulso em direção ao conhecimento: “tão grande é a força que se encontra nesse tipo de
estudos que mesmo aqueles que para si propuseram outros fins dos bens, que eles regulam pelo proveito
ou pelo prazer, nós os vemos despender suas vidas em investigar os eventos e explicar a natureza”.
Sabemos que, para Epicuro, como desenvolverá Torquato, o conhecimento da física é fundamental, pois é
por meio dele que nos livramos do medo, ou seja, adquirimos o prazer defendido por Epicuro. De
qualquer forma, a educação tradicional foi criticada por Epicuro como inútil. A discussão é fértil e
complexa, pois temos informações a respeito de um célebre epicureu, contemporâneo de Cícero, que se
dedicou à poesia e ao estudo da arte retórica: Filodemo, de que se falará no fim do livro II (cf. 119).
Metrodoro, natural de Lâmpsaco, viveu de 330 a 277 a. C. Discípulo e amigo querido de Epicuro,
teria escrito diversos tratados, a maioria em polêmica com outras escolas. Apenas fragmentos restaram.
O que é reto e honroso. Traduzimos o adjetivo honestus, empregado aqui no neutro plural, por
honroso. A razão de nossa escolha, que pode, sem dúvida, causar estranhamento ao leitor, está no fato de
o termo honestum evocar, ao falante de latim, imediatamente a noção de honor, que é fundamental no
tratamento que Cícero dá ao conceito, coisa que o português honesto não faz. Conforme podemos observar
em uma passagem do livro II, o autor romano toma um termo usual na linguagem ordinária, honestum, e o
utiliza para designar o termo chave da ética estóica: to; kalovn. Empregado na tradução do “belo moral”, o
termo latino tem seu sentido sensivelmente alterado, mas não deixa de guardar relação com o sentido que
é mais corriqueiro. Citamos: Vt enim consuetudo loquitur, id solum dicitur honestum, quod est populari
fama gloriosum, isto é, “Pois, de acordo com a expressão usual, apenas isto é chamado honroso: o que é
repleto de glória graças ao renome popular” (De finibus II, 48). Já o conceito estóico, fala de uma ação
cuja realização encerra, em si mesma, a honra, a glória, as recompensas por tê-la alguém realizado (cf. De
finibus II, 45). Neste caso particular, a tentativa de se fazer compreender por meio da utilização de um
termo já consagrado pelo uso faz com que o conceito seja designado por uma palavra que traz em si
justamente o elemento que, segundo a teoria, não está presente: o favor público. Mesmo cientes do
estranhamento que gera nossa tradução, quisemos manter esse dado peculiar do discurso ciceroniano.
Quanto a esta explicação para o grande número de seguidores de Epicuro, soa-nos um pouco estranha,
pois ao falar das virtudes (42-54), Cícero não nega que sejam produtoras de prazer: o que estará em jogo é
se elas são dignas de serem buscadas por si mesmas, ou se são dignas de serem buscadas pelo prazer que
proporcionam. Aqui, no entanto, nega às coisas retas e honrosas, ao menos na concepção de Epicuro, a
capacidade de produzir (facere) prazer. Cícero pretendeu dizer, provavelmente, que o reto e honroso não
seria prazeroso em si mesmo, mas o uso do verbo facere torna inequívoco o que ele disse de fato: que, na

295
opinião da multidão (que estaria errada) o reto e honroso produziria, por si próprio, prazer. Ora, isso se
choca com o que pensa Epicuro? Veja-se o que diz Reid da passagem: “substancialmente, a visão da
multitudo concernente ao ensinamento de Epicuro é correta” (ad locum).
Tanto virtude quanto o conhecimento das coisas deveriam ser buscados por si mesmos, que é o que
ele menos pretende. Esta conclusão está de acordo com o que se diz quando se está tratando das virtudes,
mas vai contra o que está dito acima. Ora, em 42 a sabedoria é tida por artifex conquirendae et
comparandae uoluptatis (artífice em procurar com zelo e produzir o prazer). A sabedoria é uma virtude,
ela produz prazer e por isso deve ser buscada (expetenda).
Essa boa gente traduz homines optimi. Tentamos manter o tom irônico com que Cícero se refere aos
que entendem de maneira equivocada a doutrina de Epicuro. Vale notar que a expressão homines optimi
ecoa optimus quisque de 24. Ali, tratava-se de pessoas que deixavam de lado os prazeres e suportavam
dores e fadigas em favor dos seus e da res publica, homens que Cícero, sem dúvida, considera optimi;
aqui, trata-se de pessoas que pensam que a virtude e o conhecimento são apetecíveis por si mesmos, pois
seriam por si só agradáveis.
VII, 26 Tendo eu dito isso mais para provocá-lo, do que para que falasse por mim mesmo. Cícero
confessa ter falou sobretudo com vistas a chamar seu interlocutor a uma discussão. Não teria expressado,
portanto, suas próprias opiniões. Assim, ao menos, interpretamos a passagem. No entanto, examinando
bem o que se disse, pouca coisa observamos que não vá retornar como crítica no livro II. Provavelmente,
Cícero se refere mais ao tom mais agressivo utilizado no início da seção 26 do que ao conjunto de críticas
que fizera até aqui. Vt ipse loquerer pode, contudo, ser diversamente interpretado e dar entender tão
somente que Cícero quisesse com suas críticas iniciais, não esgotar o assunto, mas encetar um diálogo:
“mais para chamá-lo à discussão, do que para que eu próprio me expressasse”. Uma afirmação de Cícero
em 28, entretanto, parece corroborar a primeira interpretação: an me... nisi te audirem uellem, censes haec
dicturum fuisse?
Então Triário, com leve sorriso disse. Triário faz a seguir um resumo das críticas de Cícero à ratio
Epicuri. A fala do jovem introduz a passagem das críticas preliminares de Cícero à defesa de Torquato.
Notemos que o leve sorriso da personagem reflete o excesso cometido por Cícero na apresentação
preliminar da filosofia de Epicuro.
A arte da exposição traduz disserendi artem. Eis outra expressão que designa a lógica, ou dialética.
O prazer, ao afirmar que é o sumo bem, primeiramente, mesmo aí enxergou bem pouco... Aristipo o
dissera antes. Parece haver aqui uma referência a asserções que foram feitas na lacuna em que se
encontraria o início do tratamento da ética.
VIII, 27 O que me impediria de ser epicureu, se aprovasse as coisas que ele diz? O método
filosófico de Cícero permite a adesão às opiniões de qualquer escola. Diferentemente das posições

296
inflexíveis de estóicos e epicureus, o sábio acadêmico pesa as razões de todas as partes em questão e adere
ao que lhe pareça mais probabile. Se o método se realiza com eqüidade, é algo que só poderemos analisar
tendo uma visão geral da obra. De resto, é difícil acreditar que possa existir de fato “objetividade” em
qualquer discussão.
Por isso, as críticas dos que discordam entre si não devem ser censuradas; as ofensas, os ultrajes...
costumam me parecer indignas da filosofia. Notamos uma distinção, neste contexto, entre duas palavras
que normalmente se tomam por sinônimos: reprehensio, por uma lado, parece dizer respeito à crítica feita
a idéias, pensamentos, raciocínios. É a crítica que fazem os que estão discutindo para indicar os pontos de
discordância e apontar falhas na argumentação do interlocutor; a uituperatio (aqui sob a forma
uituperandae), por outro lado, parece dizer respeito à crítica ao comportamento, à crítica que tem um
fundamento moral e que aponta o que é certo ou errado sob esse prisma. Estaria, assim, mais próxima do
português “repreensão”. Todo esse período apresenta a concepção de Marco Túlio acerca de como deve
caminhar uma discussão filosófica: nela não podem faltar as críticas, uma vez que consiste na defesa dos
pontos de cada uma das partes e no ataque aos pontos dos adversários, mas tudo no campo do pensamento.
Não há lugar para ultrajes, ira e, se uma das partes perceber ser melhor a posição contrária, não deve
obstinar-se em manter a sua própria. Eis parte da resposta de Torquato em 28: neque enim disputari sine
reprensione nec cum iracundia aut pertinacia recte disputari potest (pois não se pode bem discutir sem
críticas, nem com iracúndia ou obstinação discutir adequadamente). Toda a passagem, que estabelece
como que uma regra da discussão filosófica, completa-se com a discussão sobre o modo de expressão
mais adequado à filosofia, que acontece no início do livro II. Há semelhança é grande com algo que
vemos no Górgias de Platão, diálogo em que a personagem de Sócrates defende a diferença que existe
entre o seu modo de argumentar e aquele utilizado pelo célebre retor e seus seguidores (cf. Górgias 457c-
458c. A questão é tratada no estudo que acompanha a tradução). Não podemos deixar de notar, contudo,
que as uituperationes, tais quais concebidas aqui, ocorrem em bom número nas obras filosóficas de
Cícero. Remetamos o leitor ao passo 26 em que Cícero critica o homem Epicuro (ora, o próprio autor
confessa, conforme interepretamos, que tais críticas foram mais um modo de provocar Torquato, do que
argumentos que de fato aprovasse), para mostrar o quanto tais tipos de crítica se fazem presente no texto
ciceroniano. Na primeira versão dos Livros Acadêmicos, podemos ver também duros ataques que são
lançados contra Antíoco (cf. Acad. II, 69-71).
VIII, 28 Desejas percorrer rapidamente toda a doutrina de Epicuro, ou investigar unicamente
sobre o prazer, em que está toda a peleja? Os interlocutores decidem qual será o objeto da discussão.
Falar-se-á apenas sobre o prazer, como já nos antecipara Cícero, como autor, em 13 (a L. Torquato ...
defensa est Epicuri sententia de uoluptate).

297
Desenvolverei uma questão apenas, a principal. Toda doutrina de Epicuro dirige-se à questão ética,
ou seja, à questão do que o homem deve buscar como um bem. Para o filósofo do Jardim tal bem é o
prazer, definido, como se verá, de modo bastante peculiar. A questão do prazer, portanto, é o que há de
mais importante em sua filosofia, pois seria o alcance de tal estado o que proporcionaria ao homem a
felicidade.
VIII, 29 Obterei tua aprovação traduz probabo. Vale dizer, novamente, que o verbo probare tem
grande peso no pensamento de Cícero e que se liga ao conceito de probabile. Dessa forma, podemos
entender a passagem assim: “farei ser probabile a ti”. Quanto à personagem de Cícero, ela é representada
evidentemente sob a luz da Academia. A inspiração platônica de sua afirmação pertinax non ero tibique,
si mihi probares ea quae dices, libenter adsentiar é clara, e nos faz pensar no Sócrates que diz ter prazer
em ser refutado, no caso de sustentar algo falso (cf. Górgias 458a).
Eqüidade traduz aequitate. Notamos que o termo ecoa o iudicem aequum de 15, que traduzíramos
por juiz imparcial, por nos parecer, ali, a tradução mais espontânea para o português.
Mas prefiro fazer uso de um discurso contínuo a perguntas e respostas. A decisão, tomada por
Torquato, de se servir de uma oratio perpetua em detrimento da discussão cerrada por meio de perguntas
e respostas remete-nos novamente ao Górgias de Platão. Interessante notar que, no início do livro II,
quando o modo de expressão apropriado para a filosofia voltar à baila, pois que a personagem de Cícero
tomará a palavra, toda a discussão será conduzida sob a sombra da figura do Górgias histórico, inventor,
da concepção de Cícero, do método da schola. Remetemos o leitor ao estudo que acompanha a tradução.
Por ora, vale dizer que, dentro do método de in utramque partem dicere parece ser preferível o discurso
em que o filósofo, como orador, pode fazer uso de todos os recursos para atingir seu objetivo.
Estabelecerei o que e de que tipo seja isto sobre o que investigamos. O primeiro passo da
exposição, dessa forma, consiste em estabelecer o objeto da discussão: o que ele é e de que tipo é.
Surpreende, diante das críticas anteriores, que Torquato assim proceda para que o discurso avance com
razão e método (ut ratione et uia procedat oratio). Observamos, ademais, que mantivemos em nossa
tradução a hendíade ratione et uia.
Investigamos, portanto, qual seja o extremo e último dos bens; o qual, segundo o pensamento de
todos os filósofos, deve ser tal que a ele tudo deve referir-se, mas ele próprio a nada. Epicuro escrevera
um tratado, hoje perdido, intitulado, segundo Diógenes Laércio (X, 29), peri; tevlou", ou seja, Sobre o fim.
A investigação de Torquato, então, é conforme ao pensamento do mestre. Na verdade, a partir de
Aristóteles, o pensamento ético dos filósofos mais eminentes, até a época de Cícero, vai se nortear pelo
conceito de ‘fim’ (tevlo"). Assim, omnium philosophorum refere-se a filósofos posteriores a Aristóteles.
Isso ele empreendeu demonstrar assim: 30 todo ser animado, logo que nasce. Todas as exposições
dos fines das diferentes escolas feitas no De finibus se iniciam do mesmo modo. A discussão a respeito

298
dos princípios que norteiam a ação humana encontra nos animais recém-nascidos um testemunho daquilo
a que nos impulsiona primeiramente a natureza. Além de ser utilizado por Torquato, nesta exposição da
ratio Epicuris, o argumento reaparece refutação feita pela personagem de Cícero (II, 31-32). Argumento
de mesmo cunho será ainda utilizado, se bem que com resultado diverso, numa perspectiva neo-acadêmica
no livro IV (15, 16, 19, 25, 32, 34) e no quinto livro (23-24 e 61). O mais generoso tratamento do uso
desse argumento ao longo de todo o De finibus pode que encontramos foi o de BRUSNSCHWIG, J.
“L’argument des berceaux chez les Epicuriens et chez les Stoïciens”. In: BRUSNSCHWIG, J. 1995, pp.
69-112. Em primeiro lugar, devemos notar que, por conta desse procedimento, a discussão ética travada ao
longo dos três diálogos pretende estabelecer uma ética que se fundamente na natureza, isto é, pretende
fazer com que a ação humana apropriada decorra de uma exigência natural.
Vale dizer que não encontramos o argumento que tome os recém-nascidos como ponto de partida
da pesquisa ética em nenhum texto remanescente do próprio Epicuro. Na Carta a Meneceu, conservada
por Diógenes Laércio, o prazer é tido como o princípio e o fim da vida feliz, o primeiro bem congênito
(suggenikovn), primeiro e co-natural (suvmfuton), por causa de sua natureza apropriada (fuvsin oijkeivan). O
afeto (pavqo") que serve de critério (kanwvn) para medir todo o bem e todo o mal é o que nos faz chegar a
(katantw'men) identificar dessa forma o prazer (cf. X, 128-129).
Para Brunschwig (1995, p. 72), no entanto, não há como afirmar de modo seguro que Epicuro esteja
dando ao termo “primeiro” o sentido cronológico, de modo que pudéssemos considerar o prazer como o
primeiro bem que encontramos e que, por isso, ele serviria de guia para toda a nossa vida. O autor
considera ainda que a passagem da Carta a Meneceu indica que foram os epicureus que reconheceram
intelectualmente que o prazer é o primeiro dentre os bens. Trata-se, portanto, de uma observação de
adultos, que tem como ponto de partida suas próprias experiências, e que não parecem ter necessidade da
observação de nenhum animal num estágio original para compreender que o prazer é um bem co-natural.
Nada se fala, no texto que Diógenes atribui a Epicuro, de criança ou de animal659. Não há, por outro
lado, nenhuma justificativa para o uso do termo “co-natural”, ou qualquer antecipação à possível objeção:
como podemos ter certeza de que o prazer não é a escolha de adultos condicionados pela educação que ele
teve e dos sistemas de valores no qual ele vive660? Dessas observações, Brunschwig tira duas conclusões
(1995, p. 73): Epicuro, ao apresentar um resumo de sua ética, podia prescindir do argumento do berço; por
outro lado, sua argumentação deixa um espaço livre no qual poderia se insinuar tal argumento. Não há
razões, portanto, para reputar a exposição de Torquato como infiel à doutrina de Epicuro. Ele afirma, antes
da apresentação do argumento do berço, que está se servindo do procedimento do mestre (I, 29). O próprio

659
Em Diógenes Laércio, X, 137 há uma argumentação que leva em conta a observação do comportamento dos
animais e das crianças, mas ela não é atribuída ao próprio Epicuro.
660
Brunschwig cita um texto de Calcídio (in Tim. 165 = SVF III, 229) como exemplo dessa crítica que devia ser feita
à doutrina de Epicuro (cf. 1995, p. 73).

299
Cícero, como autor (I, 13), declara que está se conformando ao procedimento da escola, mesmo que de
modo mais acurado. Se em I, 31, o expositor se refere a grupos de epicureus distintos do mestre, o
contexto não parece implicar, entretanto, que sejam esses os inventores do argumento do berço. Na
verdade, a maneira como interpretaremos a passagem faz com que esses epicureus de que se fala devam
mesmo abandonar o argumento do berço.
IX 30 Enquanto ainda não foi pervertido traduz nondum deprauatum. É difícil traduzir essa
passagem sem cair em soluções inadequadas, pois o termo pervertido poderia trazer em português sentido
um tanto diferente do que aqui se entende. O verbo latino deprauo significa, primeiramente, “torcer,
entortar, tornar disforme, desfigurar”, daí “corromper, estragar”. Pensamos pervertido neste ponto no
sentido do verbo latino peruerto que tem como um dos sentidos “desviar, virar”. De qualquer forma, a
idéia trazida pela fala de Torquato é a do ser vivo que se encontre em estado ainda não alterado, logo
quando nasce, sem ter sido desviado de suas inclinações naturais por influência das opiniões erradas
acerca das coisas. É o que se explicita com a expressão seguinte: ipsa natura incorrupte atque integre
iudicante (estando sua própria natureza a julgar de maneira não corrompida e íntegra). Brunschwig
(1995, p. 78) nota que há aqui uma inovação, proporcionada pelo pensamento de Epicuro, que deve ter
chocado os antigos. Segundo esse estudioso, para autores como Aristóteles, por exemplo, o estado natural
não deve ser buscado na criança, mas no adulto (cf. Aristóteles, Política, 1254 a 36-37 e 1252b32-33,
apud Brunschwig, 1995, p.78).
Considera que isto nós sentimos traduz sentiri haec putat. Se antes se mencionara o caráter dos
sentidos como critério para se decidir entre o verdadeiro e o falso, aqui se revela que, através deles,
decidimos também acerca do que se deve e do que não se deve fazer. Entretanto, conforme vimos no
trecho da Carta a Meneceu, parafraseado acima, o critério por meio do qual valoramos o prazer e a dor
não é a percepção sensorial, mas a afecção (pavqo"). O texto de Cícero, neste ponto, cria uma ambigüidade
que pode desfavorecer o argumento, uma vez que sentire pode ser entendido tanto como sensação, quanto
como sentimento. Torquato diz: que a dor deve ser evitada e o prazer buscado, nós sabemos sem a
necessidade de exquisitis rationibus (raciocínios refinados). Ora, se não há necessidade de raciocinar ou
de investigar a respeito do valor do prazer, qual a necessidade da observação do estado natural e íntegro da
criança? Isso não é fazer com que aquilo que nos ensina a afecção esteja submetido à observação
empírica? O que parece ocorrer, nos termos de Brunschwig, é um equilíbrio delicado entre a afecção, que
é experiência própria, e a observação da experiência do outro (1995, p. 82). O adulto, reconhece que o
prazer é aquilo que deve ser buscado porque tem tal sentimento. Mas, poderia ocorrer que seu modo de
pensar estivesse condicionado por uma educação que deturpou sua opinião a respeito do que experimenta.
É aí que entra o argumento do berço: ele traz para o adulto a confirmação de que o julgamento que faz a
respeito do princípio natural, que se baseia na afecção que experimenta, é, de fato, uma opinião

300
verdadeira. A ambigüidade criada pelo discurso ciceroniano, entretanto, é autorizado pelo fato de que, em
última análise, o pavqo" está submetido à percepção sensorial. Ora, a afecção é comparada à percepção do
frio e do que quente. Seguindo o mesmo raciocínio, ele pode, um pouco adiante, apresentar um argumento
que busque demonstrar que os sentidos bastam para julgar a respeito das coisas: etenim quoniam detractis
de homine sensibus reliqui nihil est, necesse est, quid aut ad naturam aut contra sit a natura ipsa iudicari.
Aplicar a mente traduz admonere. O verbo admoneo tem na sua composição a mesma raiz de mens
e o prefixo ad, que dá a idéia de dirigir algo a alguma coisa. Desse verbo se forma o substantivo admonitio
que ocorre mais adiante. Como sinônimo de admonitio, Cícero menciona animaduersio, substantivo
composto por anim- (da raiz de animus e anima), a partícula ad e o elemento uers- do verbo uerto, “virar,
voltar”. O conceito, expresso de duas maneiras diferentes, estabelece uma clara distinção entre aquilo que
a mente alcança através de silogismos e aquilo a que, depois de apreendido pelos sentidos, ela só precisa
constatar diretamente. Nesse segundo caso está o movimento pelo qual a mente reconhece que o prazer
deve ser buscado e a dor, evitada.
IX, 31 Dessa forma, afirmam haver em nossa alma esta noção, por assim dizer, natural e
implantada. A expressão insitam é bem mais imprecisa do que a nossa inata, que já é do jargão filosófico.
Cícero marca essa imprecisão por meio da expressão quasi. Insitus é particípio perfeito do verbo insero,
da linguagem agrícola, que significa “semear”, ou até “enxertar”. A idéia expressa no uso figurado do
termo é a de que a noção de que o prazer deve ser buscado e a dor, evitada, foi como que semeada, ou
enxertada, em nós. A partir da coordenação com o adjetivo naturalis, compreendemos que a autora de tal
semeadura, por assim dizer, foi a própria natureza. (Veja-se no livro IV, seção 4, o uso que faz a
personagem de Cícero dos dois termos lado a lado: insitam quandam uel potius innatam... Torna-se
evidente, a partir dessa passagem, que innatus, a, um é termo mais apropriado que insistus, a, um). Pois
bem, tal noção nasceria conosco: não necessitaríamos senão de nossa própria natureza para sabermos o
que devemos buscar ou evitar. Esses epicureus mencionados por Torquato teriam se servido de um outro
critério do conhecimento, que sempre foi adotado, como vimos, pela escola do Jardim. Quasi naturalem
atque insitam ... notionem traduz aqui o grego provlhyi". Trata-se de uma forma de intuição intelectual.
Esse grupo não defenderia que precisemos de argumentos complicados para compreender que o prazer é
expetendum, uma vez que a notio tem o mesmo caráter imediato da sensação e da afecção. O que é
diferente, então, nesse argumento? Ocorre que a notio é anterior à qualquer experiência. Nós a detemos
desde o nascimento, o que faz com que “saibamos” que o prazer deve ser buscado independentemente de
termos experimentado algum dia algum prazer. Mesmo assim, trata-se de um critério que carrega um traço
racional e intelectual, ou seja, é do âmbito do adulto racional (cf. Brunschwig, 1995, p. 83). Esse
argumento, portanto, torna irrelevante a observação das tendências da criança. O adulto encontra a
justificativa para a escolha do bem numa pré-concepção que possui acerca do bem.

301
Há, por um lado, alguns dos nossos traduz sunt autem quidam e nostris. Torquato se refere ao
desenvolvimento dos ensinamentos de Epicuro, após a morte do mestre, por seus seguidores. Cabe
observar o uso da expressão accurate disserendum que evoca o que Cícero dissera a respeito da exposição
que ele, como autor, apresentaria e que nós vemos atribuída à personagem de Torquato. É bem verdade
que há outros importantes indícios de modificações sofridas pela doutrina do Jardim ao longo dos anos,
como o que se vê quase ao fim do primeiro livro (65-70), onde se trata da amizade. Mas, a exposição
acurada que Torquato propõe aqui, sobre a compreensão de que o prazer é expetendum, não se vale de
invenções de epicureus recentes. O patrono do epicurismo professa, com reverência, que vai se servir de
argumentos do descobridor da verdade e como que arquiteto da vida feliz. A motivação para esse
desenvolvimento mais discursivo da doutrina, porém, é devida à pressão exercida pela crítica de outras
escolas.
X, 32 Esse engano dos que reprovam o prazer e exaltam dor. Crítica aos estóicos. Considerada
excessivamente severa e rigorosa (sobretudo no que diz respeito aos mestres mais antigos, Zenão e
Crisipo), a doutrina do Pórtico era detratada pelos epicureus sob essa acusação.
Ninguém, de fato, recusa, abomina ou evita o próprio prazer, porque seja prazer, mas porque resultam
grandes dores... O expositor menciona aqui, pela primeira vez, o chamado “cálculo hedonístico”.
Enquanto professavam os cirenaicos que todos os prazeres devem ser buscados, a doutrina de Epicuro tem
compromisso com a vida humana em sua completude e na busca da felicidade; dessa forma, não se limita
em considerar apenas o presente e as escolhas imediatas, mas se atém também ao tempo subseqüente às
nossas escolhas. Assim ela estabelece o seguinte critério para as nossas ações: o sábio deve fazer um
cálculo (ratio) que leve em conta o que advém como conseqüência de cada coisa que ele busque ou evite.
Portanto, deverá ele buscar apenas os prazeres que não tragam consigo dores e, por outro lado, suportar
dores a que sucedam prazeres (cf. 33). O argumento, atribuído a Epicuro, procede assim: alguns homens
evitam certos prazeres e as pessoas costumam louvá-los por isso. No entanto, isso não é o suficiente para
dizer que o prazer não é um bem. Eles estão errados, pois nenhum prazer é evitado porque seja prazer,
mas porque traga consigo conseqüências dolorosas, que, ademais, podem ser racionalmente previstas. Ora,
se o prazer (uoluptas) nem sempre é assumenda, isso não quer dizer que ele não seja sempre expetenda
(cf. D.L., X, 129). Ao contrário, o adulto razoável recusa um prazer por hedonismo. Nesse sentido tal
argumento é mais acurado (accurate) do que o argumento do berço, pois ele reinterpreta em termos
hedonistas o comportamento do adulto razoável, que é o objeto pertinente, afinal de contas, da
investigação filosófica, que visa achar o télos do homem adulto (cf. Brunschwig, 1995, p. 84).
Ora, para que me volte a coisas menores traduz ut enim ad minima ueniam. Essa expressão serve
como anúncio de que o que se apresentará a seguir é exemplo do que se dissera antes. É um procedimento
comum em filosofia (e em outras formas de discurso) tomar coisas “menores”, ou de aparente menor

302
importância, como exemplo para coisas “maiores”, ou mais importantes. Em Orator 14, Cícero afirma,
após se utilizar de tal procedimento: parua enim magnis saepe rectissime conferuntur, isto é, “pois amiúde
as coisas pequenas são comparadas às grandes com muitíssima correção”.
Quem, por outro lado, repreenderia traduz quis autem ... reprehenderit. Vemos, aqui, que a
distinção que se estabelecera entre reprensio e uituperatio em 27 não tem validade universal. Pois, sem
dúvida, neste passo, o verbo diz respeito a uma crítica feita contra o procedimento de alguém.
X, 33 Cegos que estão pelo desejo traduz obcaecati cupiditate. Traduzimos por desejo o termo
latino cupiditas, que, por sua vez, é o escolhido para traduzir o grego hJ ejpiqumiva.661 Poderíamos pensar
em “paixão”, mas isso ocasionaria uma aproximação indesejável com pavqh, termo grego utilizado por
Epicuro para designar as afecções de dor e prazer.
Frouxidão de alma traduz mollitia animi. A frouxidão, ou fraqueza de alma, está em direta oposição
a uma das virtudes que se dirigem ao prazer, a saber: a coragem (fortitudo), que será tratada em 49.
E assim, nestes casos, deve se ater o sábio a este critério. Deve-se dizer que hic delectus rege o
genitivo plural earum rerum. Uma tradução literal para o sintagma seria: “esta escolha dentre essas
coisas”. Ou seja, com relação ao que fora dito antes: que alguns prazeres trazem dores, e algumas dores,
prazeres, o sábio deve tomar este tipo de decisão. Devemos advertir o leitor que não se trata aqui do
critério pelo qual se constitui o conhecimento, tratado pelo termo iudicium. Delectus se refere ao cálculo
hedonístico, é, portanto, um critério de escolha, ou de decisão com relação às ações.
Rejeitando os prazeres. O termo utilizado por Cícero nesta passagem é reicienda. Esse termo terá
grande importância em todo o segundo diálogo e, especialmente, em uma passagem em que a personagem
de Catão explica a teoria estóica dos indiferentes. Desse modo, em III, 50, o verbo reicio é utilizado para
verter a idéia de ejklevgw, isto é, “rejeitar” (cf. Diógenes Laércio, VII, 104-105). Sobre os indiferentes,
vejam-se nossas notas à passagem do livro III. Quanto ao tratamento do epicurismo, vale observar que, na
passagem da Carta a Meneceu em que se desenvolve o mesmo argumento apresentado aqui por Torquato,
Epicuro não utiliza, em nenhum momento, o verbo ejklevgw para se referir ao prazer que deve ser evitado
porque poderia ocasionar pesares futuros (cf. D.L., X, 129-131). O autor usa, por exemplo, o verbo
uJperbaivnw, quando diz que nós podemos deixar de lado alguns prazeres. Cícero traduz a idéia por meio
dos verbos omitto e praetermitto. Vale notar que a terminologia utilizada pelo mestre do Jardim é bem
mais flexível do que o jargão estóico, assim, ele pode mesmo afirmar, ao explicar o cálculo hedonístico,
que, por vezes, nós podemos tratar o mal como um bem e um bem como um mal (cf. D.L., X, 130). A
uariatio, neste trecho da exposição de Torquato pode mesmo apontar para essa flexibilidade: de uma
parte, adsumenda e non recusandae; de outra: depellendus, repudiandae e reiciendis. Outra coisa se passa
com o estoicismo. Basta ler os livros III e IV do De finibus para notar que a teoria estóica é cuidadosa em

661
Como vemos em Diógenes Laércio, X, 127.

303
não misturar não apenas bens com males, mas sequer bens com coisas preferíveis, isto é, que podem ser
acolhidas ainda que não sejam o bem! O uso de reicienda pelo expositor do epicurismo nos parece ser um
indício de que o autor romano, em sua empresa de tratar, num mesmo tratado, dessas duas doutrinas éticas
antagônicas, cria por vezes um vocabulário unificado, que termina por tornar mais próximo o tratamento
distinto que cada escola dá à sua teoria dos princípios da ação. Esse tipo de procedimento é, de fato,
coerente com o projeto de educar filosoficamente o cidadão romano. O caso de reicienda é mais
interessante ainda, pois, mesmo na exposição da ética estóica, ele vai proporcionar uma redução no
vocabulário ético dessa escola que tornará deliberadamente confusa (julgamos) a exposição (cf. nossa
discussão no livro III).
X, 34 Afeto para conosco. Reid (ad locum) considera, equivocadamente (segundo pensamos) que
nos queira dizer aqui “our school”. Significa antes “nossa família”.
Todavia, louvando meus ancestrais, não me corrompeste nem me tornaste mais remisso em
responder. Para a personagem Torquato, seu interlocutor se teria servido de exemplos tomados de
antepassados ilustres seus com o fito de constrangê-lo, de demovê-lo de sua concepção acerca das ações
das pessoas que é tão avessa ao modo de pensar tradicional romano. De fato, para um romano,
descendente de família tradicional, não seria fácil remeter as ações ilustres de seus maiores ao prazer. Do
ponto de vista da argumentação, contudo, essa ressalva feita por Torquato diferencia, de certo modo, a
discussão filosófica de uma contenda jurídica: a personagem Cícero lança mão de uma estratégia retórica,
mas Torquato, versado na oratória, percebe e avisa a seu interlocutor que, no contexto de uma discussão
filosófica, estratégias como essa não surtirão efeito. Como resposta, Lúcio Torquato tenta mostrar que são
adequadas as condutas dos antigos Torquatos às idéias que defende.
X, 35 Se por alguma causa essas coisas, que sem dúvida são preclaras, eles fizeram, a virtude por
si própria não foi a causa para elas. Nega-se de antemão a explicação estóica de que as ações são
reguladas por sua beleza moral própria. A repetição enfática do substantivo causa (que ocorre aqui quatro
vezes!), pode ser uma tentativa de resposta à crítica feita à física epicurista em 19 (cf. Reid, ad locum).
‘Arrancou o colar ao inimigo’. Mas por certo se protegeu para não perecer. ‘E se expôs a um
grande risco’. Mas sob o olhar do exército... Notamos a ocorrência de uma das figuras de pensamento
(ornamenta sententiarum) expressas no Orator. Citamos: ut saepe cum iis qui audiunt, nonnumquam cum
aduersario quasi deliberet / “Que amiúde com os que ouvem e algumas vezes com o adversário como que
delibere (Orator 138)”. Trata-se de simular um diálogo com o adversário (ou com o auditório), quando, na
verdade, o próprio orador que pronuncia o discurso desempenha o papel do opositor (ou de ouvinte). No
De oratore III, 204, Cícero designa tal figura por communicatio, quae est quasi cum iis ipsis, apud quos
dicas, deliberatio / “communicatio, que é, por assim dizer, uma deliberação com aqueles mesmos entre os
quais discursas”.

304
Louvor e afeição, que são as mais sólidas fortalezas para uma vida a ser vivida sem medo.
Antecipa-se aqui, de modo ligeiro, o tema da amizade: da idéia de caritas ressalta, sem dúvida, a noção de
amizade. Além do mais, para Epicuro, como se verá mais adiante, ela é a maior garantia de uma vida feliz,
mesma predicação que aqui se atribui a laus e caritas. Não podemos deixar de notar, contudo, que, se a
idéia de caritas é consoante ao que Epicuro pensa da amizade, a idéia de laus não parece adequada. É
certo que os dicionários registram o termo laus com o significado de “estima”, o qual cairia bem no
contexto da amizade epicurista, mas o substantivo traz consigo uma idéia de “renome, fama, louvor
público” que vai diretamente contra a doutrina do Jardim. Por fim, concebemos que Torquato não pode
estar se referindo, com o termo laus, a outra coisa senão o louvor público (e não à estima que une um
grupo de amigos), pois trata-se aqui da relação entre um general e seu exército. Essa distorção da doutrina
faz pensar em uma questão: até que ponto as ações de um general podem se justificar pelo pensamento de
Epicuro? Ou ainda, a conduta de um general é a que Epicuro espera de um homem? Poderia Torquato
chegar a uma caracterização positiva das ações de seu antepassado, mantendo-se fiel ao pensamento de
Epicuro? Decididamente, não. Será, então, que a estratégia ciceroniana de se utilizar de exemplos de
romanos ilustres, aparentados a seu interlocutor, não surtiu efeito?
X, 36 Exaltando-os pela beleza da própria honradez moral traduz ipsius honestatis decore
laudandis. Não se trata aqui de conferir a Cícero um comportamento estóico. Considerar que as ações
sejam honrosas por si próprias é algo que se ajusta tanto ao pensamento estóico quanto ao sincretismo de
Antíoco, como se verá nos dois diálogos seguintes. De qualquer forma, se, como afirma Guillén662, Cícero
toma algumas posições estóicas, isso não quer dizer que seja estóico. Pois que ele poderia se servir de
argumentos de qualquer escola com vistas a refutar uma doutrina que lhe parecesse pouco sólida. Por
outro lado, o autor se permite assentir em um ou outro ponto do pensamento de uma escola, caso lhe
pareça probabile. Milton Valente, entretanto, enxerga no pensador romano (sobretudo na esfera moral) um
estoicismo oculto sob o véu da Academia663.
XI, 37 Quão grave, quão continente, quão severa é esta que é tida como uma doutrina voluptuosa,
sensual e licenciosa. A definição de prazer como será dada a seguir garante à doutrina de Epicuro uma
grauitas que não se poderia esperar de um pensamento que defende o prazer como motor das ações (cf.
13). É verdade que podemos perceber nos textos do próprio Epicuro esse esforço por desfazer possíveis
enganos com relação à doutrina (cf., por exemplo, D.L., X, 131-132), mas o uso de grauitas pelo patrono
romano traz a discussão para o universo moral italiano e pode ser compreendido como uma tentativa de
angariar a aprovação dos homens romanos. O tratamento dos exempla, feito logo acima, corrobora essa
interpretação.

662
Cf. Guillén,1990.
663
Cf. Valente,1984, p. 71 et sqq.

305
Pois não seguimos apenas este prazer que com alguma doçura move a própria natureza e com
certo agrado é percebido pelos sentidos, mas o máximo prazer reputamos ser aquele que é percebido
quando toda dor é subtraída. Eis a oposição fundamental entre o hedonismo cirenaico, que julga ser o
bem supremo o prazer que tem um movimento e que traz agrado aos sentidos, e o hedonismo de Epicuro,
para quem o sumo prazer é a ausência de toda dor. A passagem é bem próxima do que lemos em Diógenes
Laércio X, 136, em que há uma distinção entre prazer ejn kinhvsei, isto é, “em movimento” e
hJdonhv katasthmatikhv, que se interpreta como “prazer em repouso”. A distinção aparece no texto
ciceroniano, sobretudo no segundo livro do De finibus, onde é estabelecida por meio de termos como in
motu, ou mouens, por um lado, e stans ou stabilis, por outro. A notícia dada por Diógenes é semelhante à
que vemos aqui: os cirenaicos só conceberiam o prazer que move, ao passo que Epicuro reconheceria as
duas formas. Mais importante, faria consistir o sumo bem no segundo tipo, aquele que é um estado de
repouso. Na expressão a própria natureza, deve-se entender natura como o nosso aparato natural, ou
físico, capaz de perceber, isto é, os sentidos (cf. Reid, ad locum).
Nós nos alegramos e, por outro lado, tudo aquilo com que nos alegramos é prazer. No livro II, a
personagem que representa o autor estabelece uma distinção entre gaudium e laetitia: o primeiro termo diz
respeito ao contentamento da alma, ao passo que o segundo trata da alegria relacionada ao corpo (cf. II,
13). É interessante, portanto, que ele, enquanto autor, faça com que sua personagem utilize gaudere, como
aqui, para se referir ao que é do âmbito do corpo. A confusão entre as duas formas de prazer (cinético e
estático) e a relação confusa entre os prazeres da alma e do corpo serão elementos criticados no segundo
livro.
A privação de toda dor foi corretamente denominada prazer. O trecho que se inicia em nam
quoniam serve como parêntese explicativo. Torquato parece sentir a necessidade de explicar por que a
doutrina de Epicuro chama prazer algo como a ausência de dor. Reid nota que, para demonstrar a
pertinência da nomenclatura, o patrono do epicurismo se serve de um sofisma (um sorites, tipo de
argumento por acumulação, que é criticado, por exemplo, em Acad. II, 49). Esse modo peculiar de
designar a ausência de dor é um dos elementos desaprovados pela personagem de Cícero no livro II.
XI, 38 Dessa forma, não aprouve a Epicuro que houvesse algo de intermediário entre a dor e o
prazer... O fato de que Epicuro não conceba algo de intermediário entre dor e prazer será motivo de
crítica, por parte da personagem de Cícero, no livro II. Ademais, cumpre dizer que esta é outra diferença
entre o pensamento de Epicuro e o de Aristipo. Para Aristipo (cf. D.L., II, 89), o tal estado intermediário
estaria mais próximo de uma insensibilidade, ou impassibilidade, ou seja, de um estado em que não se
experimenta sensação alguma, como o que experimenta quem dorme.
XI, 39 E patre audiebam. O pai da personagem é Lúcio Mânlio Torquato. Cônsul em 65 a. C., ele
manteve com o autor do De finibus grande amizade, de que deu provas em diversas ocasiões, sobretudo

306
durante a conjuração de Catilina e durante o exílio do amigo. Cícero presta-lhe homenagem no livro II, 62.
Na verdade, a própria introdução de seu filho como personagem deste diálogo não deixa de ser uma
grande homenagem à sua memória.
Há, inclusive, em Atenas... uma estátua de Crisipo...: ‘Porventura tua mão, afetada da maneira
pela qual agora é afetada, deseja algo?’ – ‘Nada, absolutamente’... Ocorre aqui outra figura de
pensamento, a prosopopéia. No Orator, assim se expressa Cícero: ut muta quaedam loquentia inducat /
“que introduza, como falantes, certas coisas mudas” (138). Consiste em atribuir discurso a objetos ou
seres vivos que são desprovidos de fala. No De oratore III, 205, Cícero refere-se à figura de modo menos
específico: personarum ficta inductio / “a introdução imaginada (ou fictícia) de personagens”. Há ainda
muito de humor na passagem, visto que a estátua representa ninguém menos do que Crisipo, um dos
principais expoentes do pensamento estóico. Do ponto de vista meramente teórico, todavia, há certa
impropriedade na brincadeira feita pelo pai de Torquato. O exemplo da estátua não é bom para
caracterizar o estado de prazer proposto por Epicuro como sumo bem. O fim moral para Epicuro requer a
ausência de dor, mas exige a presença de alguma sensação, sem o que não haveria vida. Ainda assim, o
exemplo é importante para ilustrar a diferença entre o sumo bem de Epicuro e o defendido por Aristipo.
Cerâmico: nome de duas localidades em Atenas. Uma delas era um bairro em que se encontrava um
mercado de louças de barro e onde se erigiam estátuas de pessoas ilustres. Na outra, que se situava fora
dos muros da cidade, na estrada para Elêusis, achavam-se monumentos sepulcrais dos homens mais
ilustres da cidade. Torquato refere-se à primeira.
XII, 40 Firmeza de alma traduz firmitatem animi, conceito oposto a mollitia animi de 33 e análogo
a fortitudo. Voltada para a vida feliz, a filosofia de Epicuro tem que dar conta dos temores humanos,
fontes das maiores infelicidades. Como tudo que o homem tem são as sensações, a morte não diz lhe
respeito. A morte seria um estado de ajpavqeia, pois se é um estado de privação de dor (e por isso poderia
se confundir com o prazer e ser considerada, portanto, desejável), é também um estado de privação de
sensações em geral e, por isso, é antes indiferente do que desejável. O prazer de Epicuro, ainda que não
seja meramente sensualista, ou seja, ainda que o sumo bem não seja o prazer que move os sentidos, ele
pressupõe, contudo, a sensação, que é inerente à vida humana664.
XII, 41 A isso, quando se acrescenta que nenhum nume divino ele tema. Uma das finalidades da
física de Epicuro é a de, através de explicações para os fenômenos naturais que não levem em conta as
forças divinas, livrar os homens do terror que os deuses podem ocasionar. Nesses fenômenos naturais
devem se incluir também os acontecimentos referentes às almas e aos corpos dos homens, que, afinal,
também são parte da natureza. Em toda essa passagem, que começa em 40 e se estende até accedere (em
41), Torquato parafraseia o texto das quatro primeiras Máximas de Epicuro.

664
Cf. Gosling & Taylor, 1982, p. 360-1.

307
Nec enim habet nostra mens quicquam <aliud> ubi consistat tamquam in extremo. A passagem é
de difícil compreensão, porque parece deslocada do contexto. Se a aproximarmos, entretanto, de um
trecho do livro V, podemos propor uma interpretação adequada. Em V, 44, diz-se: confitendum est, cum id
adepti simus quod appetitum sit, in eo quasi in ultimo consistere naturam atque id esse summum bonum,
isto é, “deve-se admitir que, uma vez que tenhamos adquirido aquilo que seria o objeto de nossa
tendência, nesse ponto, como que num termo último, deter-se-ia a natureza e seria isso o sumo bem”.
Desse modo, interpretamos que quicquam se refere a cum uoluptate uiuere e que o verbo habet tem aqui o
sentido de “achar-se em determinado estado”. A interpretação se ajusta bem no contexto, que tratava do
sumo bem em termos de ausência de dor, estado que, uma vez alcançado, não pode tornar-se mais intenso,
apenas se variar. O texto segue com a afirmação de que o medo e o sofrimento, portanto afecções que
dizem respeito à alma (cf. nostra mens), referem-se à dor, isto é, aquilo que aflige fisicamente. As duas
grandes afirmações feitas no período (nec enim habet... e omnesque metus...), portanto, servem como
constatação do que fora dito antes e, em quiasma, tratam de cum uoluptate uiuere e uiuere cum dolore,
que já apresentava essa estrutura de quiasma. Toda a construção, que opera por contrastes lógicos e
espaciais, reforça o modo dicotômico segundo o qual raciocina o expositor de Epicuro. A personagem de
Cícero, que defende a existência de um estado intermediário entre dor e prazer, vai criticar, na segunda
parte do diálogo, esse gênero de argumentação.
XII, 42 Os primeiros movimentos tanto do apetecer quanto do evitar. Appetendi initia traduz o
conceito estóico (cf. Reid, ad locum) de prw'th oJrmhv. Em outras ocorrências desse conceito, traduzimos
por “tendência”, para marcar a relação que appetitio (termo normalmente utilizado por Cícero) tem com o
verbo peto. Aqui, entretanto, dada a coordenação que se estabelece entre appetendi, refugiendi e rerum
gerendarum, optamos por uma tradução que mantivesse, sem perda de conteúdo, a mesma relação em
português. Vale dizer ainda que refugiendi initia deve traduzir ajformhv, que é o movimento de rejeição
com que a natureza nos afasta de algo que nos é nocivo. O uso de conceituação estóica por parte do
expositor de Epicuro é interessante. Parece dar mostras do intenso debate que mantinham as duas escolas.
Temos um exemplo semelhante desse tipo de fenômeno em Diógenes Laércio. Lá, entretanto, o biógrafo
nos mostra os estóicos aplicando seus conceitos na crítica que fazem de epicureus e ciernaicos (cf. VII,
85-86) os conceitos estóicos em sua crítica da filosofia de Epicuro. Aqui, é o próprio epicureu que se serve
de terminologia estóica. Nesse sentido, seu procedimento lembra a dialética acadêmica, que toma as
afirmações e conceitos dos oponentes e, subvertendo-os, lançam-nos contra os opositores. Se, por um
lado, podemos observar a partir do texto de Cícero como se influenciavam mutuamente as escolas
helenísticas, não poderíamos também pensar esse tipo de fenômeno como um indício de que o autor tenta
de alguma forma unificar os sistemas filosóficos em torno de uma conceituação homogênea com vistas se
tornar mais compreensível a seu auditório?

308
As ações retas e louváveis. Se esse tipo de expressão é de uso bastante corrente na ética estóica,
como veremos nos livros III e IV, não são, como pensa Madvig (cf. nota à seção 29), de uso exclusivo da
escola do Pórtico (cf. Reid, ad locum). O contexto do parágrafo, entretanto, tem nítido teor de resposta aos
estóicos.
Tomados pelo brilho da expressão. Interessante encontrar na fala de Torquato o esboço da crítica
que Cícero, como personagem, fará à filosofia estóica no segundo diálogo. O teor pouco consistente da
terminologia estóica será o alvo das repreensões, ainda que, como veremos, sob um ponto de vista um
pouco diferente.
Pois essas vossas virtudes... Ora, toda a argumentação parece dirigida contra os estóicos. Se Reid
(ad locum) considera que uestrae inclui todas as escolas que não a de Epicuro, ele parece negligenciar a
expressão in una uirtute ponunt, que, em nossa opinião, garante que a crítica seja especialmente dirigida
aos estóicos. Se é assim, o possessivo uestrae incluiria a personagem de Cícero entre os adeptos do
estoicismo. Esse tipo de argumento parece abonar interpretações, como a de Milton Valente (citado
acima), de que Cícero seria como que um estóico disfarçado de acadêmico. A “confusão” estabelecida por
Torquato, entretanto, serve à argumentação geral do tratado, que, com os livros III, IV e V, tentará
demonstrar que não há grande diferença, em termos éticos, entre Academia e Pórtico. De qualquer forma,
aqui se anuncia a subordinação de todas as virtudes ao prazer, tema que será tratado de agora em diante.
Assim como o saber dos médicos. Se a comparação entre filosofia e medicina remonta aos textos de
Platão, não é necessário supor aqui um uso direto de obras do fundador da Academia. De fato, o exemplo
da medicina é utilizado na obra de Diógenes Laércio justamente no momento em que se trata da
submissão de todas as virtudes ao prazer. O texto, entretanto, não é dado como uma citação de Epicuro
(cf. X, 138).
A sabedoria, que deve ser considerada a arte de viver. Arte deve ser entendida segundo o sentido
aristotélico de tecnhv, ou seja, conjunto de conhecimentos pelos quais se produz um certo fim: para a arte
médica, a saúde, por exemplo; para a sabedoria, a felicidade. Recordemos que é comum a todas as
filosofias pós-aristotélicas de que trata o De finibus a definição de filosofia como tevcnh tou' bivou
ou tevcnh peri; to;n bivon (cf. Reid, ad locum). Assim, Torquato define sapientia, tratada como uma
virtude, por meio da fórmula regularmente utilizada para designar a filosofia. Para Reid (ad locum),
sapientia é a tradução do grego frovnhsi", que é tida por Epicuro como a mais importante de todas as
virtudes. É ela, que consiste no logismov", isto é, num raciocínio, ou cálculo, que consegue estabelecer as
causas de toda escolha e, além disso, que permite rechaçar as falsas opiniões (cf. D.L., X, 132). A
supremacia que esse modo de argumentar confere à ética, com relação às demais partes da filosofia, é
evidente. É como se toda a filosofia consistisse na virtude da frovnhsi", isto é, na aplicação prática da
sabedoria.

309
XII, 43 Deve-se acolher a sabedoria, pois que, tendo sido subtraídos os terrores e os desejos, e
tolhido o desatino das falsas opiniões... Esse trecho ilustra os motivos que tem Torquato para se servir de
sapientia tanto para tratar do aspecto teórico da sabedoria, quanto para designar o seu aspecto prático. Na
verdade, a ignorância quanto ao que é bom ou mau é causa da infelicidade dos homens. É por meio do
conhecimento da física, por exemplo, que os homens conhecem o bem, livram-se dos medos,
compreendem os desejos e se protegem das opiniões falsas. Desse modo, garante-se a possibilidade de
agir de modo correto e alcançar a felicidade. Opinio traduz dovxa ou oi[hsi". Ambos os termos designam,
desde Platão (e guardam o sentido nos sistemas pós-aristotélicos) o conhecimento pouco seguro, resultado
de uma persuasão não-filosófica (cf. Reid, ad locum).
Traduzimos res publica por república por ter nos parecido ser essa, frente a “Estado”, a melhor
opção. Aproximar a filosofia da realidade romana tem sido uma constante nesta obra filosófica de Cícero.
É assim, julgamos, que ele tenta demonstrar a pertinência da filosofia na educação dos homens públicos
da cidade e dos territórios por ela dominados. Há que se dizer que a expressão res publica refere-se
particularmente à organização política da cidade de Roma (magistrados, senadores, assembléias do povo,
etc.) e de suas diversas províncias. À época de Cícero, a expressão se opõe a res priuata, referindo-se, pois
aos “assuntos públicos” e, particularmente, ao regime de governo em que as decisões governamentais são
públicas e em que o elemento coletivo deve estar à frente do individual e particular. De acordo com Rocha
Pereira665, Cícero associa a idéia de res publica à de res populi. A mesma estudiosa, remetendo a
discussão à tradição que está por trás de Cícero, cita um fragmento de um texto de Catão, o Velho, em que
se afirma: “O direito, a lei, a liberdade, a res publica devem pertencer ao uso comum; a glória e a honra,
ao que cada um acumulou para si”666. Se tal regime se realiza, ou se realizou de fato, não vem ao caso
aqui. De qualquer forma, mesmo depois da queda desse tipo de regime e com o início do chamado período
imperial, a nova organização política ainda será chamada (quiçá por razões ideológicas667) de res
publica668. O conceito que está sob o termo, então, é algo próprio do mundo antigo e, mais
especificamente, próprio de Roma. Já o termo Estado, que evoca os ‘Estados Modernos’ da Europa dos
séculos XIV, XV e seguintes, não consegue traduzir, senão imperfeitamente, seu sentido. Tendo sido
inclusive teorizado por autores como Hobbes, Rosseau e outros, o conceito de Estado é essencialmente
moderno e diferente do de res publica, embora aparentemente ambos se refiram a uma realidade
semelhante, a de uma organização política. O termo república, por sua vez, que volta a aparecer como
sinônimo de regime de governo comum na Revolução Francesa (de acordo com Rocha Pereira), tem a

665
Cf. Pereira, 1982, p. 373-379.
666
Fragmento 252 de Malcovati. A tradução é a que se encontra no texto de Pereira.
667
Rocha Pereira aponta que a expressão aparece nas Res gestae de Augusto.
668
Embora o próprio Cícero, no De officiis (I, 35), afirme que nada mais resta da res publica desde o início da tirania
de César.

310
desvantagem de guardar para nós, por conta do contexto cultural e histórico em que reapareceu, uma
proximidade com a idéia de república democrática. Quanto à res publica romana da época de Cícero,
embora tivesse mecanismos para uma participação mínima das ordens sociais não patrícias (como o
direito de veto, por parte dos tribunos da plebe, sobre as decisões do senado) era de fato regida por uma
aristocracia formada por homens “bem nascidos” e por uma parcela pequena, embora crescente, de
homens provenientes de famílias que apenas recentemente haviam adquirido riquezas por meio da
produção agrícola e pecuária.
XIII, 44 Dos desejos nascem os ódios, as rupturas, as discórdias, as sedições, as guerras. Se a
doutrina de Epicuro defende que o sábio deva se afastar da vida pública, como veremos mais adiante,
Torquato, que fala aos romanos, não deixa de notar que a filosofia do Jardim oferece um ensinamento
importante para a manutenção da boa organização social e política. A desordem política seria causada pela
incontinência. A desordem no âmbito social é o reflexo externo de uma desordem que se encontra no
indivíduo que não acolhe a sapientia (cf. 58). Em sua alma, tratada como uma associação política, os
desejos, quando não contidos, promovem sedições.
Inconsistência traduz inanitate. O termo parece referir-se, semanticamente, a temeritate omnium
falsarum opinionum, expressão que, como vemos, está associada a errore. A expressão amputata
circumcisaque introduz uma imagem da agricultura ou da jardinagem. As falsas opiniões são tratadas
como elementos da planta que devem ser eliminados para garantir o seu bom desenvolvimento.
Contido pelos limites da natureza traduz naturae finibus contentus. É o conhecimento da natureza
dos desejos (que é dado por uma parte da física) que garante ao homem manter-se dentro dos limites da
natureza, condição necessária para a felicidade.
XIII, 45 O que é, com efeito, mais útil, ou mais apropriado ao bem viver do que aquela partição.
Uma outra tradução possível, colocaria em relevo um dado importante da exposição que faz Torquato da
ratio Epicuri. Poderíamos ler assim: “que partição é mais útil ou mais apropriada ao bem viver do que
aquela...”. Como veremos a seguir, Epicuro desdenha da dialética, como sendo uma disciplina que não
traz nenhum auxílio à aquisição da felicidade. Essa parte da filosofia, que se ocupa da arte da exposição,
ensina, dentre outras coisas a partitio. É como se Torquato dissesse: esta é o mais útil emprego da
dialética, pois ele se volta para a moral.
Que propôs um gênero de desejos que seriam naturais e necessários... Essa partição dos desejos em
três gêneros encontramos também na Carta a Meneceu (cf. Diógenes Laércio X,127). Vale dizer que o
texto do biógrafo foi emendado a partir do texto ciceroniano, sobretudo a partir da versão dessa partição
que é apresentada (e criticada) em II, 26. Uma divisão dos desejos (ejpiqumivai) entre necessários
(ajnagkai'ai) e não necessários (oujk ajnagkai'ai) é recorrente em Platão. Ocorre, por exemplo, no livro
VIII da República.

311
Eis o raciocínio para esses desejos. O raciocínio que decorre da divisão, e que tem uma aplicação
moral, pois que nos ensina a lidar com os desejos, é exposto por Epicuro na Máxima 15 e na Carta a
Meneceu (D.L., X, 130). O adjetivo parabilis traduz eujporistov" que na passagem de Epicuro, na forma
neutra, qualifica o que é natural (to;... fusiko;n). O adjetivo Inanis traduz kenov". Vazio, aqui, ou
inconsistente, diz respeito ao erro da opinião, resultado de um juízo equivocado a respeito daquilo que
sentimos, isto é, um juízo sem fundamento. Aquilo que é vão é dito duspovristo", isto é, “aquilo cuja
aquisição é difícil”. Cícero explica a idéia por meio da perífrase inanium nec modus ullus nec finis
inueniri potest.
XIV, 46 Desejos frívolos traduz libidinum. Julgamos que Cícero pensa libido, nesse ponto e em
outros daqui para frente (como em 47 e em 50), como equivalente ao tertium genus cupiditatum. É
também a interpretação de Reid (ad locum).
A sabedoria por causa dos prazeres deve ser buscada. Conclui-se o raciocínio com relação à
frovnhsi". O mesmo será estendido à demais virtudes. Note-se que neste ponto o epicurismo se afasta dos
demais sistemas tratados no De finibus. Para estóicos e para o academicismo de Antíoco, a virtude, em
seus diversos aspectos, deve ser buscada por si mesma. Entre essas duas escolas, resta discutir se todo o
bem consiste apenas na virtude, ou se há algo mais que deva ser buscado.
XIV, 47 Por meio de uma certa concórdia, por assim dizer. Segundo Reid (ad locum) o advérbio
quasi deve marcar aqui a tradução de um termo grego, que o comentador supõe ser oJmonoiva ou aJrmoniva.
Se ele estiver correto, novamente chamamos a atenção para o modo como Cícero unifica o vocabulário
das diversas escolas. Quando trata do conceito estóico formulado pelo termo oJmologiva, a personagem de
Catão o traduz por conuenientia, mas explica o conceito por meio da expressão quasi concordia. Devemos
notar que o termo concordia por algum motivo não parece adequado, na opinião do autor, para a tradução
de termos filosóficos. O uso do advérbio quasi indica essa impropriedade. Qual seria o motivo? Talvez a
forte conotação religiosa do termo.
É a temperança que... adverte-nos a que sigamos um cálculo racional. Se a função da frovnhsi"
consiste no próprio cálculo pelo qual distinguimos o que deve ser buscado ou evitado, cabe à temperantia
(tradução de swfrosuvnh) manter-nos conscientes da necessidade de aplicarmos o cálculo. Pela seqüência
do texto, vemos ainda necessário que é que seja constante essa admonitio (sed stare etiam oportet), para
que possamos viver de acordo com as decisões que são racionalmente tomadas.
Entregam-se como prisioneiros aos prazeres frívolos. A imagem é a de prisioneiros de guerra, o
que se torna mais claro com a ocorrência de uoluptate uicti em 48. A expressão tradunt se... constrigendos
é retomada pela personagem de Cícero no livro II numa passagem em que se refuta a submissão das
virtudes ao prazer. Lá, é o prazer quem deve se entregar como prisioneiro às virtudes.

312
Não prevêem o que há de ocorrer. O mesmo raciocínio, com formulação bastante próxima do texto
ciceroniano encontra-se no fragmento 71 das Sentenças Vaticanas.
XV, 49 Perfunctio é palavra rara em Cícero. Em toda sua obra, aparece apenas uma outra vez (cf.
Reid, ad locum) no De oratore (III, 7), na expressão honorum perfunctio, que diz respeito ao
encerramento da carreira pública. Aqui, associada à fortitudo e formando a expressão laborum perfunctio,
deve se referir ao cumprimento de ações difíceis. Tratando da mesma virtude, ainda que no contexto do
estoicismo, Sêneca diz: fortitudo, cuius patientia et perpessio et tolerantia rami sunt, isto é, “a coragem,
da qual a capacidade de suportar, a capacidade de resistir e a tolerância são ramos” (Epist. ad Luc. 67, 10).
Os mesmos termos vêm associados no texto de Cícero, do qual Sêneca pode ter se servido. De qualquer
modo, deve-se notar que a coragem, segundo a concebe Epicuro, contrasta com a idéia tradicional de
capacidade de suportar. Em Diógenes Laércio (X, 120), por exemplo, diz-se que a coragem não se dá por
natureza, mas surge do cálculo a respeito do que é proveitoso
(th;n de; andreivan fuvsei mh; givnesqai, logismw'/ de; tou' sumfevronto").
Por causa dessa fraqueza de alma muitos arruinaram os pais, muitos os amigos, alguns a pátria.
Falando justamente do medo da morte, Lucrécio se serve de expressão bastante próxima da de Torquato:
nam iam saepe homines patriam carosque parentis / prodiderunt vitare Acherusia templa petentes, isto é,
“pois já muitas vezes os homens, buscando se esquivar aos templos aquerúsios, a pátria traíram e os pais
queridos”. Com base na semelhança entre as duas passagens, Reid (ad locum) julga que perdiderunt pode
ser um equívoco do autor ou de copistas.
Pela qual os que foram afetados estão na mesma condição em que estavam antes de terem nascido.
Em texto do próprio Epicuro, encontramos algo de semelhante, como o argumento que será tratado no
livro II (seção 100), passagem em que Cícero traduz a Máxima 2. Ali, diz-se que a morte não nos diz
respeito, pois o que está morto é privado de sensação. Torquato, no entanto, afirma que, mortos, estamos
na mesma condição em que estávamos antes de nascermos. O epicureu Lucrécio apresenta o mesmo
argumento em III, 866 e ss.
De boa mente da vida, quando ela não nos agrade, tal qual do teatro saiamos. Sêneca, que não
hesita em se servir do epicurismo, quando ele vem como um auxílio na moção das almas em direção à
sabedoria, condensa o argumento em uma bela sentença: contemnite dolorem: aut soluetur, aut soluet.
Difícil propor uma tradução que dê conta da expressividade do original. “Desprezai a dor: ela ou chega a
um termo, ou nos impõe um termo” (Sêneca, dialogi, I, 6). O suicídio também é visto como uma ação
aceitável pelo estoicismo. De acordo com a ocasião, ele pode ser mesmo a ação apropriada. Voltando à
exposição de Torquato, a idéia parece clara: saímos da vida como do teatro, quando a peça não nos agrada.
Veja-se, no diálogo estóico (livros III e IV) como é importante a metáfora do teatro. Só que lá o homem é
tratado como ator/personagem, não como espectador. Vale a pena recordar, uma outra bela imagem

313
oferecida por Cícero sobre o suicídio, embora no contexto estóico: mihi quidem in uita seruanda uidetur
illa lex, quae in Graecorum conuiuiis obtinetur: ‘aut bibat’, inquit, ‘aut abeat’. “A mim, ao menos, parece
que, na vida, se deve observar aquela lei que vigora nos banquetes gregos: ‘ou beba”, ela diz, “ou se vá’”
(Tusc., V, 117). O problema do suicídio para no pensamento de Epicuro (tratado novamente em 62: não
hesita, se assim for melhor, em deixar a vida), entretanto, não é simples. Se ele é aceitável, não parece ser
recomendado ao sábio. De acordo com a Sentença Vaticana 38, o sábio não encontrará numerosas razões
para se suicidar. Da mesma forma soa a crítica que, na Carta a Meneceu, Epicuro faz a alguns versos
(atribuídos a Teógenes), que dizem que o melhor, para o homem, seria não ter nascido, mas, uma vez que
naseceu, o melhor seria atravessar o mais rapidamente possível os portões do Hades (cf. D.L., X, 126).
XVI, 50 Mas, pelo contrário, sempre ocasiona algo ... traduz sed contra semper adfert aliquid ...
Há dois acréscimos que são atualmente consideradas pelos estudiosos do texto: addit ou adfert.
Sempre proporciona algo que tranqüiliza as almas. Clemente de Alexandria, citando Epicuro, diz:
dikaiosuvnh" karpo;" mevgisto" ajtaraxiva, isto é, “da justiça o mais belo fruto é a quietude” (cf.
Stromata, VI, 2, 24 apud Reid, ad locum). A mesma idéia é apresentada na Máxima 17. A ajtaraxiva
corresponde ao sumo bem, uma vez que diz respeito à ausência de toda e qualquer inquietação. Observe-
se que a justiça é benfazeja em dois aspectos. Por um lado, a ação justa em si mesma garante, ao agente, a
tranqüilidade, já que não tem punição a temer. Mas, ao que parece, há uma justiça que se aplica à
natureza. Essa porção do texto não encontra nada que lhe seja semelhante nos textos epicureus.
Poderíamos pensa, entretanto, que há justa medida na natureza e, por isso, ela garante que é alcançável
tudo o que buscamos instados por ela. Outra forma de interpretar, seguida por Reid (ad locum), é pensar
que o homem justo, já que é sábio, tem consciência de que muito pouca coisa é necessário para viver feliz.
Concordamos com a correção proposta por Madvig, que acrescenta o texto improbitas si. De fato,
seria estranho que, depois de utilizar verbos e adjetivos no plural com referência ao sujeito composto
(excruciant et... sollicitant turbulentaeque sunt), Cícero empregasse um verbo no singular, concordando
(digamos) com um dos núcleos do sujeito. A argumentação apresentada na seção 53 parece corroborar a
correção.
Jamais, contudo, confiará que isso ficará para sempre oculto. A oração anterior poderia nos levar à
interpretação equivocada de que os vícios enumerados devessem ser evitados por si mesmos. O expositor
diz apenas que eles causam grande perturbação (turbulentae sunt). O motivo é exposto aqui: a inquietação
nasce da possibilidade de que a ação injusta seja descoberta. Há grande semelhança com o que diz
Lucrécio (cf. V, 1152-1157. O verso 1157 diz: perpetuo tamen id fore clam diffidere debet; refere-se ao
homem que comete ação contrária às leis convencionadas pelos homens: “ele deve sempre ter pouca
confiança de que isso permanecerá para sempre secreto”). Além do mais, toda a argumentação a respeito
da justiça que Torquato apresenta aqui é congruente com o que se lê nas Máximas 31-39.

314
XVI, 51 Noctesque diesque ou ‘por noites e dias’: trecho de verso que, em De senectute 1,1, é
atribuído a Ênio.
Contribuição pode haver para a redução. A opção por “contribuição” elimina um pouco da
estranheza da expressão ad minuendas accessio. Conforme notou Madvig, se, por um lado, accessio ad
augendas se diz sem maiores problemas, ad minuendas accessio parece menos apropriado (cf. Madvig, ad
locum). Quanto à tradução do período todo, não pudemos ser concisos como o latim, pois as tentativas de
resolver com brevidade a correlação entre quae tanta e quanta resultaram em um português pouco claro.
Dever ser mais reprimidos do que reeducados. Idéia semelhante é expressa pela personagem de
Cícero em II, 30, quando critica o conteúdo da Máxima 10.
XVI, 52 Desprovido... de recursos. Reid (ad locum) observa que esta palavra traduz
indubitavelmente (sic) o grego ajsqenhv", que freqüentemente significa “pobre”. O comentador observa
ainda que Terêncio utiliza impotentia com o sentido de pobreza e que o sentido de “falta de poder” é raro
no latim republicano. Ora, a discussão anterior a respeito do desejo de dinheiro parece nos autorizar a
tradução do adjetivo por “pobre”, mas a seqüência do texto alude à incapacidade do impotens, ou seja, à
sua carência de poder. Mas as idéias não estão tão distantes e vêm mesmo unidas na expressão opes uel
fortunae que ocorre a seguir. Vale lembrar, aliás, que já o adjetivo grego (de que impotens seria a
tradução) oscila entre os sentidos de “débil, fraco” e de “sem recursos, pobre”. Tendo em vista esses
elementos, optamos por manter o tom vago do texto de Cícero.
XVI, 53 Mais desvantagem há no próprio ato injusto. Novamente a expressão utilizada por Cícero
pode trazer problemas para a compreensão do sistema. É bem verdade que o contexto dá conta de
apresentar a doutrina de modo correto, mas a expressão plusque in ipsa iniuria detrimenti poderia nos
levar a pensar que a ação injusta é em si mesma e por si mesma um mal. Do que se pode deduzir do
contexto, a desvantagem existente no próprio ato injusto diz respeito às aflições que se instauram na alma
de quem o comete: cuius in animo uersatur, numquam sinit eum respirare.
XVI, 54 O louvor às próprias virtudes, em que o discurso dos filósofos corre a rédeas soltas
(especialmente o dos demais filósofos). Conclui-se o raciocínio a respeito das virtudes. Os demais
filósofos podem ser acadêmicos, peripatéticos e estóicos. Para os epicureus, entretanto, as virtudes só têm
valor porque visam ao prazer, única coisa que atrai por si mesma. O raciocínio está em harmonia com o
que é expresso em um famoso passo citado por Ateneu669: “Deve-se honrar o belo [to; kalovn] e as virtudes
[tav" ajreta;"] e as coisas desse tipo, se preparam o prazer [paraskeuavzh]; se não o preparam, deve-se
deixá-las de lado”670. To; kalovn, o belo moral, é o conceito que Cícero traduz, por vezes, como decus ou
honestum. A metáfora criada por exsultat oratio pode ser realçada à luz de uma passagem dos Livros

669
Este fragmento da obra de Epicuro é citado por Ateneu em Deipnosophistae XII, 546.
670
Timhtevon to; kalo;n kai; tav" ajreta;" kai; ta; toioutovtropa, ejan hJdonhvn paraskeuavzh: eja;n de; mh; par
askeuavzh/, caivrein ejstevon.

315
Acadêmicos: cum sit enim campus in quo exsultare possit oratio (...); “uma vez que haja campo por onde
possa correr livre o discurso” (Acad. II, 112).
XVII, 55 Todo o capítulo XVII traz grandes problemas. O expositor trata de asserções que teriam
sido feitas pelo próprio Epicuro, critica epicureus que não compreendem a doutrina e teses defendidas por
outras escolas. Quanto ao atribui ao próprio Epicuro, nem sempre pode ser encontrado um raciocínio
idêntico nos textos que dele nos restaram. A passagem é extremamente importante, de qualquer forma, por
atestar as discussões que se mantiveram no seio mesmo da escola do Jardim na tentativa de interpretação
do pensamento do mestre em meio à polêmica com as outras escolas. Apontemos os problemas conforme
eles apareçam.
XVII, 55 Os prazeres e dores da alma, reconhecemos que nascem dos prazeres e das dores do
corpo. As considerações de Epicuro e de seus seguidores a respeito da relação existente entre prazeres do
corpo e da alma são contraditórias. Plutarco, por exemplo, explorou-as em seu tratado non posse suauiter
uiui secundum Epicurum (mencionado por Reid, ad locum). O problema se torna mais grave pelo fato de
que muito do que nos restou dessas discussões apareça em obras de autores que, como Plutarco e Cícero
(no livro II), preocupam-se sobretudo em apontar as inconsistências do sistema do Jardim. Da exposição
de Torquato, nós podemos conjeturar que a questão talvez não estivesse bem clara mesmo na obra de
Epicuro, uma vez que a idéia de que os prazeres da alma nasçam dos do corpo escapou a alguns dos
epicureus (qui e nostris aliter existimant... sed imperitos), que o expositor, é verdade, não considera bons
conhecedores da doutrina. Seja como for, não podemos negligenciar o fato de que Torquato é uma
personagem forjada por Cícero. Olhando para outros desenvolvimentos da doutrina de Epicuro, podemos
conceber algumas tentativas de sanar a inconsistência que foi atribuída ao autor. Se Epicuro não afirmou
de modo categórico (nos textos que temos) que o corpo é a origem dos prazeres da alma, disse ao menos
que, subtraídos os prazeres do corpo, não nos resta nenhum prazer (cf. Ateneu¸ Deipnosophistae, XII, 546
e, texto citado por Cícero em De finibus II, 7 e em Tusculanae, VII, 41-42). A afirmação pode parecer
contraditória, já que o sumo bem, chamado prazer, consiste antes na ausência de toda dor. A ausência de
prazeres do corpo implicaria a impossibilidade de se atingir o sumo bem, a ajponiva? Muito da contradição
deve-se, talvez, à ausência do contexto em que a afirmação aparecia. O texto, como nós o temos, aparece
sempre no contexto de uma crítica à inconsistência do pensamento do Jardim. Ora, não podemos esquecer
que, assim como tudo que existe, a alma é material671 e está mecanicamente ligada ao corpo; por isso, ela
se ressente de tudo o que afeta o corpo. Todo movimento da alma tem origem de um movimento sobre os
nossos órgãos dos sentidos, ainda que subsista por mais tempo na alma, que é dotada de memória. Por
isso, como se diz a seguir, as dores e prazeres da alma são maiores do que os do corpo. Sendo assim,
subtraídos os prazeres corporais que nos afetam em determinado momento, não se sucede necessariamente

671
Cf. Lucrécio, III.

316
a dor na alma, uma vez que podemos ter na alma a recordação dos prazeres passados que são acrescidos
pela ausência de qualquer temor com relação à morte ou aos deuses. Esse argumento vai ser desenvolvido
a seguir.
Mas não versados na doutrina traduz sed imperitos. Peritus, particípio passado do verbo desusado
perior, designa a pessoa que sabe por experiência, que conhece algo porque foi instruído a respeito. No
contexto da filosofia, o peritus é aquele que travou um bom conhecimento com a doutrina.
XVII, 56 Do que qualquer um dentre esses dois que esteja no corpo durante um mesmo tempo.
Passagem um tanto obscura. A tese defendida aqui é ligeiramente diferente da anterior. Antes se falava da
pessoa que experimentasse simultaneamente dor (ou prazer) na alma e no corpo. Aqui, defende-se que
uma dor ou um prazer da alma tem mais importância para a vida feliz do que seus análogos corporais que
sejam experimentados durante um mesmo período de tempo, mas não simultaneamente (cf. Reid, ad
locum).
XVII, 57 Entretanto, está a nosso alcance que... Para Epicuro, a memória seria algo que o sábio
pode e deve dominar. Assim, caberá a este recordar os bens passados e a partir deles ter novos prazeres na
alma, e esquecer os males para que eles não gerem aflições ou perturbações. É esse procedimento que
permite uma vida feliz mesmo quando não há nenhum prazer corporal que nos afete. A possibilidade de
dominar assim a memória será duramente criticada em II, 104.
Caminho da vida feliz traduz beate uiuendi ... uiam. Deve-se notar que a expressão uia, no contexto
filosófico, significa também “método”. De fato, o grego oJdov", de onde se compõe o termo mevqodo", tem
significado próximo do de uia.
Não é possível viver agradavelmente, se não... Esse passo é uma tentativa de tradução de parte da
Máxima 5: “não é possível viver prazerosamente [hJdevw"] senão prudentemente [fronivmw"], belamente
' ] e justamente [dikaivw"]; nem prudentemente, belamente e justamente senão prazerosamente...”672.
[kalw'"
Sobre a tradução de kalw'"
' , veja-se o comentário ao passo 54. Já fronivmw" poderia ser traduzido por “com
sabedoria”, como faz Cícero, utilizando sapienter. Essa opção de Cícero já foi discutida acima.
XVIII, 58 Prazer límpido e desimpedido traduz liquidae uoluptatis et liberae. Trata-se, conforme
pensamos, do prazer que é experimentado sem que haja nenhuma dor ou inquietação que pese sobre nós.
Sendo assim, é o prazer sensorial que se experimenta no estado de sumo prazer, ou seja, que matiza o
estado de tranqüilidade, ainda que não o torne maior. Expressão bem semelhante aparece em Lucrécio
(uoluptatem liquidam puramque: cf. III, 40).
XVIII, 59 As doenças da alma são os desejos desmesurados e vãos de riquezas, de glória, de
poder. Animi morbi traduz a expressão uJgiveia th'" yuch'" (cf. Carta a Meneceu, D.L., X, 122). Já, os

672
' kai; dikaivw", <oujde; fronivmw" kai; kalw'"
Oujk e[sti hJdevw" zh''n a[neu tou'' fronivmw" kai; kalw'" ' kai; dik
aivw"> a[neu tou'' hJdevw" (...).

317
estóicos, como se vê no livro III, tratam as afecções (pavqh) como doenças (cf. III, 35). Observa-se que,
entre os desejos do terceiro gênero, incluem-se os desejos de riquezas, glória e poder. Por isso, para
Epicuro, o homem deve se afastar daquilo que o romano chama negotium: os afazeres da vida privada e da
vida pública. Veja-se a Sentença Vaticana 58: “Há que se livrar das correntes das ocupações da vida
[ejgkuvklia] e dos afazeres políticos [politika;]; ”673.
Desejos desmesurados e vãos...e ainda, de prazeres libidinosos traduz cupiditates immensae et
inanes ... libidinosarum etiam uoluptatum. Conforme já notamos, Cícero parece tratar por libido o desejo
que não é natural nem necessário. Aqui, contudo, o adjetivo libidinosus, aplicado aos prazeres, parece se
referir aos prazeres sexuais. Ora, o desejo sexual estaria, de acordo com Epicuro, no gênero dos naturais e
necessários. Ocorre, no entanto, que há formas de desejo sexual que são desmesurados e vãos. Essas
formas, em particular, não são nem naturais nem necessárias.
XVIII, 60 Diz-se, usualmente, que Tântalo é filho de Zeus e Pluto (filha de Cronos ou Atlas).
Reinou na Frígia ou na Lídia, no monte Sipilo. Era muito rico e estimado pelos deuses que o convidavam
para seus banquetes. A personagem é célebre pelo castigo a que foi submetido nos infernos devido a um
crime que praticou. Os diversos autores que representam Tântalo não concordam com relação ao crime
que cometeu. Para alguns, ele foi acusado por ser muito orgulhoso: teria sido convidado a um banquete
divino em que os imortais conversavam livremente sobre segredos divinos e, depois, teria revelado tais
segredos aos amigos humanos. Ou, então, teria roubado néctar e ambrosia durante tal banquete e oferecido
aos mortais. Segundo outra versão, entretanto, ele teria sacrificado o filho Pélope, cortando seu corpo em
pedaços, cozinhando-o e servindo-o aos deuses para, segundo contam alguns, testar-lhes o paladar. Já
para o castigo a que foi submetido, há duas versões. De acordo com uma, a que aqui se vê, teria sido
condenado a ficar sob uma enorme pedra que estaria sempre prestes a cair sobre ele, mas que, por fim,
conservava o equilíbrio. Em outras palavras, estaria condenado a padecer de um medo eterno. A outra
versão para o castigo, o próprio Cícero menciona em Tusculanae I, 10: Tântalo teria sido condenado a
fome e sede eternas. Ficaria em um lago, com a água alcançando seu queixo e, sempre que tentava beber
daquela água, ela lhe fugia. Da mesma forma, haveria um galho, com alguma fruta, pendendo sobre sua
boca, mas que lhe escapava, sempre que ele tentava apanhá-lo (cf. Grimal, P. Dictionnaire de la
Mythologie Grecque et Romaine, 1951).
Está sempre iminente: o verbo impendeo significa tanto “estar suspenso, dependurado” quanto, por
extensão de sentido, “ameaçar”. Cf. “caso algum mal eterno e infinito consideremos pairar sobre nós”
(seção 55).
De fato, não alcançam nenhum prazer que, pela esperança de ser obtido, tenha-os inflamado e
sobrecarregado de muitas e grandes fadigas. Ao contrário dos desejos naturais, como a sede e a fome

673
!Eklutevon eJautou;" ejk tou'' peri; ta; ejgkuvklia kai; politika; desmwthrivou.

318
(que são ainda necessários, pois sua satisfação elimina incômodos), cuja satisfação exige pouco esforço,
os desejos de glória política e de riquezas, que não são nem naturais nem necessários, são vãos e sem
limites e, por isso, nem com grande empenho podem ser satisfeitos.
XVIII, 61 Uns de alma mesquinha. Nossa tradução deixa de lado um dado do texto que advém do
uso que dela fizeram os falantes de latim. No De oratore (III, 169), diz-se que é por catacrese (abutimur)
que dizemos que uma alma é minutus querendo dizer que ela é pequena: minutum animum pro parvo
dicimus. Segundo afirma Reid em nota à passagem II, 75 de sua edição de Academica, minuti se utiliza
propriamente para tratar daquilo que é pequeno porque é a fração de um todo.
Invejosos por inuidi. Epicuro condena a inveja na Sentença Vaticana 53.
Furtivos traduz lucifugi. Literalmente diríamos “lucífugos”, ou “que fogem da luz”. Interpretamos
que o autor se refere às pessoas que tramam coisas furtivamente. A nota de Reid (ad locum), que compara
o termo a certas expressões da comédia, confirma nossa interpretação.
Rabugentos por morosi, “hard to please” segundo o Oxford Latin Dictionary. Reid (ad locum),
entretanto, lê monstrosi (o mesmo que monstruosi) que ele diz traduzir de modo indubitável o adjetivo
qhriwvdh", que quer dizer “de natureza bestial, ou selvagem”.
Uns insolentes, outros atrevidos, desaforados. Seguimos a interpretação de Madvig (ad locum) que
julga petulantes, audaces e proterui como subgêneros dos amatoriis leuitatibus dediti. De fato, como nota
Reid (ad locum), Cícero por vezes contrasta pudor e petulantia e inclui petulans em enumerações de
vícios ligados aos prazeres sexuais, como em Philippicae, III, 35: libidinosis, petulantibus, impuris,
impudicis.
Pois eles negam haver algum bem senão aquela não sei que sombra a que chamam de honroso,
termo não tão bem fundamentado quanto cheio de brilho. A crítica à terminologia estóica será marcante
nos livros III (início), IV e V. Nesses diálogos, o estoicismo será acusado de ser uma mera repetição da
doutrina acadêmica com uma terminologia nova e bem mais complicada. Mas até o epicureu Torquato
zomba do honestum (honroso) estóico, idéia a que os discípulos dessa filosofia conferem tanta
importância, mas, segundo os epicureus, é pouco palpável, como uma sombra (recordemos que os mortos,
nos infernos, tornam-se sombras), é uma idéia sem fundamento, sem solidez, pois, como vimos, o
honestum só teria valor por evitar perturbações e dores. É bem verdade que a crítica aqui tem como função
refutar a possibilidade de um honroso por si mesmo, enquanto, nos livros posteriores, a crítica à
terminologia, sob a autoridade de Antíoco, pretende uma conciliação teórica entre o Pórtico e a Academia,
a partir do juízo de que ambas as escolas defendem as mesmas idéias, apenas com termos diferentes.
Como ilustração, veja-se o que diz Sêneca sobre o tratamento dado à virtude por Epicuro: Epicurus
quoque iudicat, cum uirtutem habeat, beatum esse, sed ipsam uirtutem non satis esse ad beatam uitam,
quia beatum efficiat uoluptas quae ex uirtute est, non ipsa uirtus. “Também Epicuro julga que o homem,

319
uma vez que possua virtude, é feliz, mas diz que a virtude em si não é suficiente para a vida feliz, já que o
homem feliz seria produzido pelo prazer, que provém da virtude, não pela própria virtude” (Epistulae ad
Lucilium, LXXXV, 18).
A virtude, por outro lado, apoiada nesse honroso. Torquato apresenta a doutrina estóica de modo
equivocado, uma vez que para os do Pórtico não há essa distinção entre honestum e uirtus.
XIX, 62 O sábio é sempre apresentado como feliz por Epicuro. O verbo induco cria aqui uma
metáfora teatral. Significa algo como “fazer entrar em cena”. A representação ideal do sábio, que se segue,
guarda grane correspondência com um trecho da Carta a Meneceu (D.L., X, 133).
Limitados ele tem os desejos. O homem, para ser sábio, deve aprender to; pevra" tw'n ejpiqumiw'n,
“o limite dos desejos” (cf. Máxima 10). Veja-se ainda Lucrécio (VI, 25), falando de Epicuro: finem statuit
cuppedinis atque timoris; “ele estabeleceu um limite para o desejo e para o medo”. Quanto a neglegit
mortem, cf. 40, 41 e 49. A libertação do medo com relação aos deuses, que já foi tratada na exposição de
Torquato, ocupa porções célebres e importantes do poema de Lucrécio.
Que se apercebe. Se apercebe traduz animaduertat. O verbo guarda o mesmo sentido do
substantivo animaduersio de 30. Novamente trata-se de um movimento de nossa alma pelo qual
constatamos, sem a necessidade de argumentação, coisas que nos são dadas pelos sentidos. A opção em
traduzir o verbo aqui por “aperceber-se” deve-se ao fato de que dificilmente poderíamos manter a
estrutura de subordinação, que há no original, através da expressão “dirigir a mente a”, a qual, no entanto,
quando usada em 30, tem a virtude de explicitar a composição com que se formam animaduertere e
animaduersio.
Ao comparar a vida dos insensatos com a sua, é tomado por grande prazer. Esta passagem nos faz
lembrar o início do livro II do De rerum naturae de Lucrécio: Suaue, mari magno turbantibus aequora
uentis / e terra magnum alterius spectare laborem; / non quia uexari quemquamst iucunda uoluptas, / sed
quibus ipse malis careas quia cernere suauest. Numa tradução sem pretensões poéticas: “É doce, quando
no mar imenso revolvem os ventos a superfície, / da terra contemplar a imensa fadiga de um outro; / não
porque [perceber] a aflição de alguém seja um delicioso prazer, / mas porque é doce perceber de que
males tu próprio careces.” Na seqüência do texto, há a célebre imagem do sábio epicureu, ocupando os
“templos serenos” erguidos e fortificados pela doutrina dos filósofos. Lá do alto, observar a errância dos
tolos, que faz o sábio perceber o próprio estado de quietude, é o que há de mais agradável: nihil dulcius
est. (cf. Lucrécio, II, 1-4, 7-8 e ss.).
XIX, 63 Que insignificante é a fortuna como empecilho... Trata-se quase de uma tradução do início
da Máxima 16: “A fortuna [tuvch] recai sobre o sábio de modo insignificante e as maiores coisas

320
[ta; mevgista] e as mais importantes [kuriwvtata], a razão [logismov"] as tem sob governo [diw/kv hke]
...”674.
Ora, conhecida a natureza de todas as coisas, aliviamo-nos do peso da superstição... O estudo da
natureza (fuvsi") na filosofia de Epicuro tem um fim moral, dentre outros motivos porque é produtor de
prazer, na medida em que nos livra dos medos mais terríveis. Podemos observar a mesma idéia na Máxima
12, por exemplo, cujo início poderíamos traduzir assim: “Não é possível dissipar [luvein] o medo
[tov fobouvmenon] com relação às coisas mais importantes [tw''n kuriwtavtwn] sem contemplar [kateidovta]
qual é a natureza [fuvsi"] de tudo...”675. Há que se observar, especialmente nesse tema, o De rerum natura
de Lucrécio. Além disso, conhecendo bem a natureza, conhecemos o que ela exige e, assim, nos
comportamos melhor (morati melius erimus): em consonância com a natureza.
Sendo observada aquela regra que, por assim dizer, caiu do céu para o conhecimento de tudo. Com
regula Torquato se refere à parte lógica, por assim dizer, da filosofia de Epicuro, que, no sistema epicureu
tem sentido um tanto peculiar. Essa parte é a que estabelece os cânones, ou critérios que nos permitem
alcançar a verdade. Como sabemos a partir de Diógenes Laércio (X, 27), a obra de Epicuro que tratava da
questão do conhecimento era o Sobre o critério, chamado também de Regra (Peri; krithrivou h] Kanwvn).
O termo regula, aqui, incontestavelmente pretende traduzir kanwvn que, para Epicuro, é sinônimo de
krithvrion. O que é estranho, no entanto, é o fato de Torquato dizer que tal regula caiu do céu. A
reverência a Epicuro, que poderia ser tomada como razão para esse tipo de expressão, é aqui inadequada e
induz à má compreensão da doutrina. Além do mais, tal expressão parece-nos aproximar-se mais do tom
irônico com que um acadêmico mencionaria a canônica de Epicuro do que retratar palavras com que um
epicureu se referiria ao critério do conhecimento. Nossa opinião é corroborada por Raphael Woolf,
tradutor da edição de Cambridge, editada por Annas (cf. On moral ends, p. 22). Neste ponto, por detrás do
discurso de Torquato, apresenta-se muito claramente a figura do autor.
XIX 64 O que quer que na alma divisamos, tem origem nos sentidos... O conhecimento para
Epicuro é algo possível, pois os sentidos nos informam sobre a realidade. Todo nosso critério acerca da
realidade, acerca do que é verdadeiro e do que é falso, é dado pelos sentidos. Por isso, diz Epicuro, na
Máxima 23: “Caso combatas todas as sensações [aijsqhvsesin], não terás nada com relação ao que te
reportes [poiouvmeno" thvn ajnagwghvn] e discirnas [krivvnh/"] quais dentre elas dizes serem enganadoras
' qai]”676. Há algo de semelhante na fala de Torquato um pouco mais adiante: Aqueles que os
[dieyeu's
suprimem e dizem que não é possível apreender nada, não podem, eliminados os sentidos, sequer
desenvolver o que expõem. A crítica é endereçada a pensadores como Arcésilas e Carnéades (e, é óbvio,

674
Braceva sofw''/ tuvch parempivptei, ta; de; mevgista kai; kuriwvtata oJ logismov" diwvk/ hke (...).
675
Oujk h\n to; fobouvmenon luvein uJpe;r tw''n kuriwtavton mh; kateidovta tiv" hJ tou'' suvmpanto" fuvsi" (...).
676
Eij mach''/ pavsai" aijsqhvsesin, oujc e{xei" oujd a
j "
J; aJ;n fh'"
'/ aujtw''n dieyeu's
' qai pro;" tiv poiouvmeno" th;n
ajnagwgh;n krivnh/".

321
ao próprio Cícero), que, como mencionamos no nosso estudo, julgam que nada pode ser conhecido ou
apreendido (nihil percipi potest). Para Epicuro, contudo, todo conhecimento tem como origem e
fundamento os sentidos, que serão chamados em 71 de incorruptas e íntegras testemunhas. A crítica ao
ceticismo acadêmico é apresentada também por Lucrécio (cf. IV, 469-470 e ss.)
Assim, da física toma-se não só a coragem diante do temor da morte... Expõe-se aqui a fundamental
importância que tem o conhecimento da natureza para a felicidade do homem. Com a física, o homem
dissipa o medo, pois passa a conhecer bem aquilo que antes, por ignorância, temia. Com ela, o homem
aprende a moderar seus desejos, uma vez que passa a conhecer, pela divisão proposta por Epicuro, a
natureza de cada gênero deles. Por fim, pelo testemunho dos sentidos, e mais ainda, pela constatação de
que eles sempre nos apresentam a verdade, o homem tem o critério para distinguir o verdadeiro do falso e
para se livrar as opiniões vãs.
XX, 65 Resta um tópico... sobre a amizade... A amizade, que Torquato já mencionou (mesmo que
indiretamente, através do termo caritas) tem lugar de destaque na exposição que lhe atribuída por Cícero.
Para o estudo do desenvolvimento da filosofia do Jardim após a morte de Epicuro, essa parte da exposição
é um testemunho valiosíssimo: traçam-se, a seguir, três soluções para a questão da amizade. Para outras
escolas helenísticas, sobretudo para os estóicos, a amizade não pode ter como fundamento o prazer. Tal
crítica parece ter sido um grande problema para os adeptos do Jardim (pelo que podemos observar no
texto de Cícero). Apenas a primeira solução é atribuída a Epicuro (é o que veremos adiante), o que sugere
que o intenso debate em torno da questão e, talvez, a consciência de que a solução proposta fosse pouco
sustentável, tenham levado os seguidores da doutrina a criar outras formas de adequar a amizade à sua
concepção de sumo bem.
Já Epicuro, trata dela assim: dentre todas as coisas que a sabedoria... O trecho é uma tradução
quase literal da Máxima 27, na qual Epicuro afirma: “Dentre todas as coisas que a sabedoria [sofiva]
dispõe [paraskeuavzetai] para a felicidade [makariovthta] da vida em sua totalidade, de longe a mais
importante é a obtenção da amizade [filiva"]”677.
As estórias forjadas. Para a concepção que tem Cícero do que sejam as fabulae, veja-se o primeiro
capítulo do estudo que acompanha a tradução. A expressão reaparece em V, 52 e 64.
Três pares de amigos. Além dos dois pares de amigos mencionados textualmente por Cícero, há
quem suponha que o terceiro par seria aquele formado por Aquiles e Pátroclo. A hipótese não deixa de ser
plausível, mas não há, no entanto, nada que a assegure como certa (cf. Marinone, 1976, p. 122). Reid (ad
locum) observa que no De amicitia (15), a mesma idéia aparece, mas a enumeração é menos precisa “três
ou quatro pares de amigos”. Mais adiante, no mesmo texto, faz-se referência a Damón e Fintíade, par de

677
$Wn hJ sofiva paraskeuavzetai eij" th;n tou'' o{lou bivou makariovthta, polu; mevgistovn ejstin hJ th'"
' fil
iva" kth's
' i".

322
amigos pitagóricos que serão mencionados também no livro II do De finibus (79). Veja-se nossa nota à
passagem. O De amicitia, vale dizer, vem consagrar um quinto par de amigos: Lélio e Cipião (cf. 15).
De modo que chegarias a Orestes. Torquato se refere à amizade de Orestes e Pílades. Orestes, filho
de Clitemnestra e Agamêmnon, teve a ajuda do amigo Pílades no assassínio da mãe adúltera e de seu
amante, Egisto, que matara Agamêmnon. Na versão que segue Cícero em De finibus II, 79, Pílades ajudou
Orestes no roubo de uma estátua de Ártemis (ou Diana), em Táuride, ilha próxima à Sicília. Ao serem
capturados pelo rei da ilha, Toante, que decidiu matar Orestes, Pílades mentiu, dizendo ser Orestes, para
que o rei o matasse em lugar do amigo. Em seguida, porém, o verdadeiro Orestes desmentiu Pílades. Os
dois amigos, então, pediram ao tirano para serem imolados juntos. Cícero não informa como teria
acabado essa aventura dos dois grandes amigos, mas, em outras versões do mito, os dois heróis
conseguem escapar, contando com a ajuda da deusa Palas Atena (cf. Grimal, P. Dictionnaire de la
Mythologie Grecque et Romaine, 1951).
Tendo partido de Teseu: o expositor menciona a amizade de Pirítoo e Teseu. Segundo algumas
versões do mito, Pirítoo, tendo ouvido falar das façanhas de Teseu, decidiu testá-lo, atribuindo a si mesmo
a tarefa de roubar-lhe alguns rebanhos. No momento em que os dois se encontraram, porém, ficaram
admirados pela beleza um do outro. Pirítoo, tentando se reparar, ofereceu-se como escravo por causa do
crime que estava cometendo. Na tentativa de se igualar ao outro em nobreza, Teseu perdoou o crime de
Pirítoo e os dois firmaram a amizade com um juramento. Após esse evento, os dois heróis juraram,
também, casarem-se com filhas de Zeus. Dessa forma, Pirítoo ajudou Teseu a raptar Helena e, de outra
parte, Teseu acompanhou Pirítoo ao Hades, a fim de que este tomasse para si Prosérpina. Segundo alguns
autores, Pirítoo foi morto por Cérbero e Teseu, feito prisioneiro. Segundo outros, ambos ficaram presos
até que Héracles os resgatasse (cf. Grimal, P. Dictionnaire de la Mythologie Grecque et Romaine, 1951).
Quanto a Epicuro, porém, em uma só casa, e ainda por cima pequena, quão grandes grupos de
amigos manteve e com que cumplicidade de um amor harmônico! Muito se fala dos argumentos ad
hominem (argumentos que deixam de lado o pensamento e atacam a pessoa com quem se discute)
utilizados por Cícero nas críticas que tece a respeito dos filósofos que não aprova678. Vemos, contudo, que
é dada, também ao defensor de Epicuro, a oportunidade de se utilizar de argumentos desse tipo em favor
do mestre. E, com efeito, para defender uma doutrina em que tudo converge para o modo de proceder e
que deseja apresentar um caminho para a felicidade através de preceitos sobre a maneira de agir (preceitos
morais), parece razoável tomar a vida do sábio (e autor da doutrina) como exemplo e justificativa para a
própria doutrina. Cabe notar, entretanto, que precisamente a natureza benévola de Epicuro vai ser tomada,
na segunda parte do diálogo, como uma demonstração da doutrina estóica. Segundo o argumento

678
Ver, por exemplo, Smith (1994), que investiga a questão dos tipos de argumento utilizados por Cícero e Rackham,
que, na edição Loeb das Academicae nomeia de argumentum ad hominem os ataques feitos contra a pessoa de
Antíoco (Academica I, 69-71).

323
defendido pela personagem de Cícero, Epicuro era, talvez, virtuoso moralmente, pois que tinha uma boa
natureza, ainda que defendesse uma doutrina equivocada.
Quão grandes grupos de amigos manteve e com que cumplicidade de um amor harmônico. Cf.
Diógnes Laércio, X, 9-10.
XX, 66 Ora, de três modos eu vejo que os nossos discutiram sobre a amizade. Como dissemos,
Torquato reúne três soluções para a questão da amizade. Reid (ad locum) reúne uma série de notícias a
respeito de obras de epicureus sobre a amizade.
De fato, assim como as virtudes, de que antes se falou, também a amizade negam poder ser
separada do prazer. A primeira solução: a amizade seria resultado da ação da sabedoria, definida em 42
como ars uiuendi e como artifex conquirendae et comparandae uoluptatis. Assim como as virtudes, que
só têm valor por nos livrar das dores e inquietações e que não são buscadas por si mesmas, mas porque
somos capazes de perceber, graças ao cálculo (ratio) que podemos fazer a respeito do que decorre de cada
coisa, que elas são produtoras do bem supremo, também as amizades não apenas são as mais fiéis
protetoras, como ainda produtoras de prazeres tanto para os amigos quanto para si.
67 E uma vez que de nenhum modo podemos, sem a amizade, manter de forma sólida e duradoura
uma vida agradável... A amizade é buscada porque de outro modo não é possível ter uma vida de prazer
sólido e duradouro (firmam et perpetuam iucunditatem). Por outro lado, a amizade só se mantém caso
amemos os nossos amigos da mesma forma que a nós próprios. Assim, novamente por um cálculo acerca
do proveito, acerca da vida tranqüila que a amizade nos proporciona, surgiria entre os amigos um amor
recíproco. É o que podemos entender a partir do que diz Torquato (idcirco et hoc ipsum efficitur in
amicitia). Só é amigo quem é sábio, e o sábio deve fazer o cálculo que o permite amar o amigo tanto
quanto a si mesmo.
Pois Epicuro, brilhantemente, com estas palavras, mais ou menos... Eis a Máxima 28, de que
Torquato oferece uma tradução: “O mesmo pensamento nos fez ter confiança em que nada eterno [ou seja,
os deuses], nada duradouro [os fenômenos naturais] deve ser motivo de temor [deinovn] e que, nas coisas
limitadas [na nossa existência], a segurança que vem da amizade se realiza no mais alto grau”679.
XX, 69 Há alguns epicureus, porém, um pouco receosos diante de vossas invectivas. Observamos
que, segundo diz Torquato, a apresentação de uma outra solução para a questão da amizade deu-se por
conta dos ataques que outras escolas faziam, alegando uma inadequação entre amizade e prazer. Hirzel,
autor citado por Reid (ad locum) supôs que esses epicureus fossem Síron e Filodemo, mencionados como
autoridades no final do livro II. A hipótese, porém, não pode ser comprovada.

679
@H aujth; gnwvmh qarrei''n te ejpoivhsen uJpe;r tou'' mhqe;n aijwvnion ei\nai deino;n mhde; polucrovnion kai; th;n
ejn aujtoi'"
' toi'"
' wJrismevnoi" ajsfavleian filiva" mavlista katei'd' e sunteloumevnhn.

324
E assim, dizem que as primeiras aproximações... dar-se-iam com vistas ao prazer... depois que o
hábito. A personagem de Cícero, no livro II, seção 82, critica a solução proposta por esses epicureus satis
acuti: pensando assim, diz Cícero, eles abrem uma brecha no sistema, permitindo que possa haver uma
ação moralmente direita, o amor recíproco, que não tem como fim o prazer. Tal tipo de explicação o
pensador romano declara que, pelo que sabe, nunca foi apresentada pelo próprio fundador do Jardim
(numquam dictum ab ipso illo, quod sciam), algo que nos permite tecer algumas considerações acerca de
um texto do próprio Epicuro que alguma dificuldade tem acarretado aos estudiosos dessa filosofia. Trata-
se da Sentença Vaticana 23: “Toda amizade é por si própria digna de ser buscada680 [aiJrethv], mas tem
princípio [ajrchvn] na utilidade [wjfeleiva"]”681. Sabemos que o termo ajrchv comporta dois sentidos, dentre
outros: o de princípio lógico, ou seja, fundamento; e o de princípio no tempo, ou começo. Ora, de acordo
com a primeira solução apresentada por Torquato (a que seria de Epicuro), devemos entender ajrchv como
fundamento. Mas, não podemos deixar de notar que, se por esse termo entendermos ‘começo’, a sentença
parece validar a solução apresentada por esses epicureus de época mais recente. A partir desse raciocínio,
duas hipóteses podem ser levantadas: (1) Cícero desconhece esse texto de Epicuro e, por isso, julga que a
solução é de epicureus recentes (Devemos ter em mente que, na física de Epicuro, por exemplo, o mesmo
fenômeno pode ter mais de uma explicação. Nada de incoerente se para a amizade se propusessem duas
explicações); (2) Cícero conhece o texto e percebe que a solução apresentada por esses epicureus ‘agudos’
deve-se a uma interpretação pelo menos questionável do pensamento de Epicuro. O próprio tratamento
irônico da questão (satis acuti / quod sciam) parece conferir mais plausibilidade à segunda hipótese, mas
nada podemos concluir em definitivo. Essa doutrina tem semelhança, mesmo textual, com o pensamento
que Diógenes Laércio apresenta como proveniente da escola, mas sem precisar quem o tenha concebido
(cf. X, 120). Depois de dizer que, para a escola do Jardim, a coragem não é natural, mas provém do
cálculo do proveito, diz que a amizade surge da utilidade, do interesse (dia; ta;" creiva"). Ainda que um
dos amigos tenha que dar o primeiro passo, ela se mantém, depois disso, por meio de uma partilha, ou
sociedade (kata; koinwnivan) na fruição dos prazeres. Notemos que essa noção de partilha, pode mesmo ter
fomentado a terceira explicação, que é apresentada a seguir.
Se os espetáculos... nas disputas quer entre homens, quer entre animais. O comentário de Reid à
passagem pareceu-nos bastante convincente. Esse estudioso nota que ludicra sempre se refere, direta ou
indiretamente, a espetáculos públicos. Com essa observação, ele se posiciona contra Madvig, que
considera (ad locum) que a expressão ludrica exercendi aut uenandi é como que um desenvolvimento da
série gymnasia, campum, canes, equos. Ora, sobretudo gymnasia indica atividades que, se não são

680
Mantemos aqui a tradução que propusemos para expetenda.
681
Pa's
' a filiva di j eJauth;n aiJrethv: ajrch;n de; ei[lhfen ajpo; th'"
' wjfeleiva".

325
estritamente privadas, não combinam com idéia de jogos públicos que ludicra contém. Mesma
interpretação que a nossa é a de Woolf, que traduz: “displays of fighting and hunting”.
XX, 70 Há, porém, quem diga haver entre os sábios um pacto... Como já deve estar claro, essa
solução também não é do próprio Epicuro. Na verdade, estudiosos como Duvernoy682, por exemplo,
consideram incongruente com a doutrina de Epicuro a idéia de um pacto pelo qual se realize a amizade683.
O único pacto (sunqhvkh) que se observa nos textos de Epicuro é o que se relaciona à não-agressão e que
fundamenta o direito, como vemos, por exemplo, na Máxima 32: “Quantos dentre os viventes não
puderam fazer pactos [sunqhvka"] em favor de não prejudicarem nem serem prejudicados, para esses nada
é justo ou injusto; do mesmo modo, também quantos dentre os povos que não puderam ou não quiseram
fazer pactos em favor de não prejudicarem nem serem prejudicados”684. Para Duvernoy, o pacto é
compreensível como fundamento das relações entre os não-sábios, mas não é concebível como instaurador
do círculo entre sábios que é a amizade epicurista. Sequer se pode conceber uma disposição contratual
entre amigos, pois o fundamento de todo pacto é a desconfiança. Esse autor defende sua idéia com uma
declaração tomada de Diógenes Laércio: “Epicuro não pensava que se devesse pôr as riquezas em comum,
como Pitágoras, que dizia que o bem dos amigos é comum; pois agir assim é desconfiar, e quem desconfia
não é amigo” (X, 11)685.
Cícero, no entanto, não faz crítica específica ao foedus. Sua refutação a essa terceira solução dirige-
se ao problema mais geral: a noção de proveito, que segundo ele é inconciliável com a verdadeira
amizade. É o que se vê em II, 83.
XXI, 71 Ele, que a ti parece pouco instruído por isto, porque não acolheu como instrução nada
senão o que ajudasse no aprendizado da vida feliz. Epicuro desdenha de tudo que não favorece uma vida
feliz, inclusive dos estudos de coisas que em nada nos melhoram a vida. Vimos, por outro lado, o papel da
física na construção da vida feliz. Ou seja, há estudos que contribuem para a felicidade do homem. Já o
que Torquato chama de eruditio é instrução ou educação nas áreas de conhecimento como as citadas a
seguir: música, geometria, a observação dos astros, etc. Tais artes não nos proporcionam a vida feliz:
quem o faz é somente a ars uiuendi, a verdadeira sabedoria. Cabe voltar a notar um elemento interessante
da personagem do patrono do prazer. Dissemos que ele é representado como um homem ilustrado, o que
parece estar de acordo com a tendência italiana da escola de Epicuro, representada por epicureus como
Filodemo, que escreveu poemas e tratou de artes como a retórica. A crítica final à educação tradicional

682
Cf. Duvernoy, 1993, p. 124-129.
683
Cícero, por certo, não está criando essa solução: o erro (se é que há) seria, na verdade, dos próprios epicureus.
684
$Osa tw''n zwvw/ n mh; ejduvnato sunqhvka" poiei's ' qai ta;" uJpe;r tou'' mhv blavptein ajlla; mhde; blavptesqai, pro;
" tau''ta oujqe;n h;Jn divkaion oujde; a[dikon: wJsauvtw" de; kai; tw''n ejqnw''n o{sa mh; ejduvnato hj; mh; ejbouvleto ta;" su
nqhvka" poiei's' qai ta;" uJpe;r tou'' mhv blavptein mhde; blavptesqai.
685
Vertido para o português a partir da tradução francesa de Duvernoy.

326
aponta para a contradição a que se submeteu esses epicureus recentes instados, talvez, pela pressão da elite
cultural romana, representada aqui por Cícero (cf. te hortatore), que julgava fundamentais formas de
expressão como a poesia ou a historiografia e começava a dar valor (em grande parte por obra de autores
como Cícero e Lucrécio) ao conhecimento da natureza.

327
Sobre os fins dos bens e dos males
Livro II

I 1 Então, já que um e outro me olhavam e davam a entender que estavam prontos para
ouvir, “em primeiro lugar”, disse eu, “peço que não penseis que eu, como se fosse um filósofo,
apresentarei diante vós uma conferência, coisa a que jamais, nem mesmo nos próprios filósofos,
eu dei grande aprovação. Pois, quando é que Sócrates, que pode ser chamado com justiça pai da
filosofia, fez algo assim? Esse era o costume dos que, então, denominavam-se sofistas, dentre os
quais, Górgias de Leontinos, o primeiro que ousou, em uma reunião de pessoas, pedir que lhe
propusessem uma questão, isto é, exortar que alguém lhe dissesse a respeito de que assunto
gostaria de ouvir. Ousado empreendimento, eu diria mesmo desavergonhado, se, estabelecido,
não tivesse, depois, passado aos nossos filósofos. 2 Mas, tanto esse que mencionei quanto os
demais sofistas, como se pode perceber a partir de Platão, vemos terem suas pretensões frustradas
por Sócrates. Esse, de fato, indagando e interrogando, costumava arrancar as opiniões daqueles
com os quais discorria, de modo a argumentar contra suas respostas, se assim lhe parecesse bem.
Tal costume, não tendo sido preservado pelos posteriores, Arcésilas trouxe-o de volta e
estabeleceu que aqueles que o quisessem ouvir, não lhe dirigissem perguntas, mas eles próprios
dissessem o que pensavam; e, ao dizerem, ele os contradizia. Mas os que o ouviam, tanto quanto
podiam, defendiam o próprio pensamento. Entre os demais filósofos, porém, quem pergunta algo,
cala-se em seguida; o que agora se dá, é certo, até mesmo na Academia. Pois, quando alguém que
quer ouvir, diz assim: ‘o prazer me parece ser o sumo bem’, é rebatido por um discurso contínuo,
de modo que facilmente se pode entender que aqueles que dizem que ‘algo lhes parece’, não
sustentam eles próprios tal pensamento, mas desejam ouvir a posição contrária. 3 Quanto a nós,
agimos de modo mais vantajoso; pois não apenas Torquato disse o que pensava, mas também as
razões por que assim pensava. Eu, de minha parte, ainda que tenha apreciado bastante seu
discurso contínuo, julgo ser mais adequado, contudo, quando te detenhas em cada coisa
particularmente e entendas com o que cada qual concorda, o que não admite, partindo de coisas
admitidas, concluíres o que desejas e alcançares o termo da discussão. Quando o discurso é
proferido como uma torrente, por assim dizer, por mais que muitas coisas e de todo tipo arrebate
consigo, nada, contudo, deténs, nada agarras, em parte alguma fazes parar o discurso arrebatado.

329
Ora, numa investigação, todo discurso que com algum método se faz e com razão, deve
indicar de antemão, como em algumas fórmulas do direito, ‘esta será a matéria tratada’, de modo
que àqueles, entre os quais se discorre, haja acordo quanto ao que seja aquilo sobre o que se
discorre. II 4 Esse princípio, estabelecido por Platão no Fedro, Epicuro aprovou-o e reconheceu
que em toda discussão é preciso que seja assim. Mas o que a isso imediatamente se seguia ele não
viu. Afirma ele, com efeito, que não lhe agrada definir o objeto, sem o que não é possível, muitas
vezes, que entre aqueles que disputam haja acordo sobre o que seja aquilo de que se trata, assim
como neste assunto precisamente, sobre o qual discutimos agora. Ora, investigamos o fim dos
bens. Podemos conhecê-lo, tal qual seja, se não compararmos entre nós, quando dissermos “fim
dos bens”, o que seja “fim” e até mesmo o que seja o próprio “bem”? 5 Na verdade, esse
franqueamento, por assim dizer, das coisas encobertas, quando se torna manifesto o que cada
coisa é, é a definição, de que tu também, inadvertidamente, serviste-te em alguns momentos. Pois
isso mesmo que chamavas ou fim, ou extremo, ou último, definias como aquilo a que se referiria
tudo o que fosse feito com retidão; e ele próprio não se referiria a nada. E, isso ao menos, fizeste
de modo brilhante. E mesmo o que seria o próprio bem, talvez tu terias definido, se necessário
fosse, como aquilo a que se deve tender por natureza, ou o que é proveitoso, ou o que favorece,
ou, somente, o que apraz. Agora, da mesma forma, se não for inoportuno, já que apresentar
definições não te desagrada completamente, e já que o fazes, quando queres, gostaria que
definisses o que é o prazer, em torno do que gira toda esta questão.”
6 “Ora, por favor!”, disse ele, “Quem é que não sabe o que é o prazer, ou que, para que
mais o entenda, precisaria de alguma definição?”
“Eu próprio, eu poderia dizer”, respondi, “se não me parecesse conceber o prazer, depois de
tê-lo bem aprendido e, de maneira suficientemente firme, concebido na alma e compreendido.
Agora, por outro lado, digo que o próprio Epicuro o ignora e, com relação a isso, se mostra
hesitante; ele, que em diversas ocasiões diz ser necessário extrair com diligência o significado
que subjaz às palavras, não entende muitas vezes o que quer dizer a palavra ‘prazer’, isto é, que
coisa subjaz a essa palavra.
III Ele, então, disse sorrindo: “Mas seria ótimo isto: que aquele que diz que o prazer é o
fim dentre as coisas a serem buscadas, esse extremo, esse último dentre os bens, isso justamente
ele não saiba o que e de que tipo é!”

330
“Mas então”, eu disse, “ou Epicuro não sabe o que é o prazer, ou não o sabem todos os
mortais que se encontram em toda parte.”
“Como assim?”, disse ele.
“Porque todos consideram que o prazer é aquilo que, quando os sentidos o acolhem, move-
os e, com certo agrado, inunda-os.”
7 “Mas o quê? Esse prazer”, disse ele, “Epicuro o desonhece?”
“Nem sempre”, disse eu, “pois algumas vezes o conhece até demais, visto que dê
testemunho de que não pode sequer entender de onde possa vir ou que bem possa existir,
qualquer que seja, além daquele que se obtém por meio da comida e da bebida, do deleite dos
ouvidos e do prazer obsceno. Ou essas não são palavras dele?”
“Ora, como se eu me envergonhasse delas”, disse ele, “ou não pudesse mostrar de que
modo elas são ditas!”
“Ora, mas eu não duvido”, disse eu, “de que poderias facilmente; e não há o que possa te
envergonhar em assentir ao sábio que foi o único, pelo que sei, a ter ousado declarar-se sábio.
Quanto a Metrodoro, não penso que tenha ele próprio se declarado sábio, mas, sendo assim
chamado por Epicuro, não quis repudiar tão importante nomeação. Os famosos sete, entretanto,
foram assim designados pelo sufrágio de todos os povos, não pelo seu próprio. 8 Mas, quanto a
esse ponto, eu suponho, a partir de suas palavras, que Epicuro conhece precisamente o mesmo
significado de prazer que os demais. Pois o agradável movimento pelo qual a sensação se
alegraria, todos o chamam hJdonhv em grego e uoluptas em latim.”
“O que é, então”, disse ele, “que ainda tens para investigar?”
“Direi”, eu respondi, “mas, sem dúvida, mais com o fito de aprender do que por querer
criticar a ti ou a Epicuro.”
“Eu também”, disse ele, “mais gosto teria em aprender, se apresentares algum argumento,
do que em te criticar.”
“Tu sabes bem, não é mesmo”, disse eu, “o que Hierônimo de Rodes afirma ser o sumo
bem, a que julga que tudo deve se referir?”
“Sei, sim”, disse ele, “o fim lhe parece ser não sentir dor alguma.”
“Não digas! E, ele ainda”, disse eu, “o que pensa do prazer?”
9 “Ele nega”, disse Torquato, “que deva ser buscado por si mesmo.”
“Portanto, ele considera que uma coisa é alegrar-se, uma outra não sentir dor.”

331
“E, de fato”, disse ele, “comete um enorme erro, pois, como ainda há pouco eu demonstrei,
o limite para o aumento do prazer é afastamento de toda dor.”686
“Esse ‘não sentir dor’”, disse eu, “que significado tenha eu observarei em seguida; mas, que
é necessário que um seja o significado de prazer, outro o de não sentir dor alguma, se não fores
muito obstinado, tu concederás.”
“Ora”, disse ele, “nesse ponto, ao menos, encontrar-me-ás obstinado; pois nada mais
verdadeiro pode ser dito.”
“Há porventura, vê se me responde”, disse eu, “para quem tem sede, prazer em beber?”
“Quem poderia negar isso?”, ele disse.
“O mesmo que tem depois de saciada a sede?”
“Para ser exato, de um outro gênero. Pois a sede, saciada, possui uma estabilidade de
prazer, já aquele prazer que há no próprio ato de saciar a sede se dá em movimento”
“Por que, então”, disse eu, “coisas tão diferentes tu chamas pelo mesmo nome?”
10 “Do que eu te disse ainda há pouco”, disse ele, “tu não te lembras? Tendo sido subtraída
toda dor, o prazer varia, não aumenta.”687
“Sim, eu me lembro”, disse eu. “Tu o disseste em bom latim, mas foste pouco claro. Pois
‘variação’ é uma palavra latina; em sentido próprio, ao menos, diz-se com relação a cores
diversas, mas, figuradamente, usa-se para muitas coisas diversas: um poema variado, um discurso
variado, formas de proceder variadas, fortuna variada, até mesmo o prazer costuma ser dito
variado, quando o experimentamos a partir de muitas coisas diferentes que produzem prazeres
diferentes. Se dissesses variação nesse sentido, eu entenderia, assim como entendo, ainda que não
digas nesse sentido. Essa tua variação, não vejo lá muito claramente o que seja, pois que tu
afirmas que, ao estarmos privados de toda dor, encontramo-nos no sumo prazer688, por outro lado,
ao nos nutrirmos daquelas coisas que provocam um delicioso movimento nos sentidos, então
temos um prazer em movimento, prazer esse que produziria a variação dos prazeres, mas tu
afirmas que não há aumento daquele prazer do não sentir dor689, o qual, não sei por quê, tu
chamas prazer.”
IV 11 “E porventura”, disse ele, “pode haver algo de mais doce do que não sentir dor?”

686
Cf. I, 37.
687
Cf. De fin. I, 38.
688
Cf. De fin. I, 38.
689
Cf. I, 56.

332
“Pois que seja assim, então: que não haja nada de melhor”, disse eu, “(ainda não é isso,
com efeito, que eu investigo); conseqüentemente, não seria então o prazer o mesmo que, por
assim dizer, o não-sofrer?
“Exatamente o mesmo”, disse ele, “e é, por certo, o prazer máximo, com relação ao qual
não pode haver nenhum maior.”
“Por que então”, disse eu, “tendo sido dessa forma estabelecido por ti o sumo bem, de
modo a consistir inteiramente em não sentir dor, tu hesitas em, como uma unidade, assim
sustentá-lo, assim guardá-lo, assim defendê-lo? 12 Ora, qual é a necessidade de, tal qual uma
meretriz numa reunião de senhoras de respeito, conduzir o prazer ao concílio das virtudes? É
odioso esse termo, infame, suspeito. E por isso vós costumardes dizer freqüentemente que nós
não entendemos de que prazer fala Epicuro. Coisa que, se em alguma ocasião me dizem (e
dizem-no, entretanto, não pouco amiúde), ainda que eu seja bastante sereno ao discutir, por vezes
costumo me irritar. Será que logo eu não entendo o que é hJdonhv em grego, em latim uoluptas?
Qual das duas línguas afinal eu desconheço? Além do mais, como se dá que eu as desconheça e
conheçam-nas todos os que, não importa quem sejam, quiseram ser epicureus? Algo que os
vossos, ao menos, afirmam, em discussões as mais excelentes, é que não tem necessidade de
conhecer as letras aquele que venha a se tornar filósofo. Dessa forma, assim como os nossos
antepassados tiraram do arado o célebre Cincinato, para que se tornasse ditador, vós reunis, de
todas as aldeias, homens que, sem dúvida, são homens de bem, mas, certamente, não
completamente instruídos. 13 Eles, então, entendem o que diz Epicuro; eu, de minha parte, não
entendo? Para que fiques sabendo que eu o entendo, digo em primeiro lugar, que é idêntico o que
eu chamo prazer e ele, hJdonhv. E amiúde, é verdade, buscamos uma palavra latina correspondente
a uma grega e que tenha o mesmo valor; neste caso, não houve por que buscarmos. Não é
possível encontrar nenhuma palavra que melhor dê a saber em latim o mesmo que em grego do
que dá a saber uoluptas. A essa palavra, todos, venham eles de qualquer parte, que sabem falar
latim fazem subjazer duas coisas690, alegria na alma, doce agitação de deleite no corpo. De fato,
também a célebre personagem de Trabéia chama de alegria ‘o desmedido prazer da alma’; a
mesma coisa que a personagem de Cecílio691, que conta ser ‘alegre com todas as alegrias’. Mas
há uma diferença aqui, pois prazer se diz também com relação ao corpo (algo pleno de vício,

690
Cf. II, 6.
691
Poeta já citado em I, 4.

333
conforme pensam os estóicos, que assim o definem: um arrebatamento sem razão de uma alma
que julga fruir de um grande bem); não se diz alegria nem contentamento com relação ao corpo.
14 Nisto, porém, empregam ‘prazer’ todos aqueles que falam latim: quando se percebe o deleite
que seja capaz de mover algum dos sentidos. ‘Deleite’ também, se o queres, aplica-o à alma
(‘deleitar’, com efeito, diz-se com relação a um e outro, e a partir disso, ‘deleitável’, contanto que
entendas que entre aquele que diz

De tamanha alegria fui tomado, que não posso me conter

e quem diz

Agora, precisamente, põe-se-me a alma em chamas,

Sendo que um exulta de alegria e o outro de dor se atormenta, há aquele intermediário,

[ainda que nos conheçamos há bem pouco tempo]

que nem se alegra nem se angustia, e, do mesmo modo, entre aquele que está na posse dos
almejados prazeres do corpo e aquele que se atormenta com as mais extremas dores, há aquele
que está privado de ambos.
V 15 De modo suficiente eu te pareço, então, dominar o significado das palavras, ou devo
ainda agora aprender a falar o grego ou o latim? No entanto, caso eu não entenda o que diz
Epicuro, conhecendo tão bem o grego, como tenho cá para mim, observa se não é por uma falta
dele, porque fale de modo a não ser entendido. Algo que de dois modos pode ocorrer sem
merecer crítica: ou se o fazes de propósito, como Heráclito, ‘que é proclamado com a alcunha
skoteinov", porque sobre a natureza escreveu de modo excessivamente obscuro’, ou quando a
obscuridade do assunto, não das palavras, faz com que não entendamos o discurso, tal como é o
Timeu de Platão. Epicuro, porém, conforme penso, nem deixa de querer, quando é possível, falar
clara e abertamente, e não fala de coisa obscura, como os físicos, ou demasiado técnicas, como os
matemáticos, mas de coisas manifestas e fáceis e já propagadas entre todos.

334
No entanto, vós não negais que nós entendemos o que é o prazer, mas negais que
entendemos o que ele diz, donde resulta não que nós não entendamos qual seja o significado
dessa palavra, mas que ele fale de um modo que é só seu e negligencie o nosso. 16 Pois se ele diz
o mesmo que Hierônimo, que considera que o sumo bem é viver sem nenhum pesar, por que
prefere dizer ‘prazer’ a ‘ausência de dor’, como faz aquele, que entende o que diz? Mas se, por
outro lado, ele julga que se deve acrescentar aquele prazer que se dá em movimento (pois assim
ele chama o prazer que é agradável: prazer em movimento; o de quem nada sofre, prazer em
estabilidade), aonde quer chegar, já que não é possível fazer com que alguém que conheça a si
próprio, isto é, que tenha chegado a ver claramente sua natureza e suas sensações, julgue ser
idênticos o prazer e a ausência de dor? Isso é fazer violência, Torquato, aos sentidos, arrancar das
almas, à força, os conhecimentos das palavras de que fomos imbuídos. Ora, quem é que não
consegue ver que há em nossa natureza estes três estados: um quando nos encontramos em
prazer, outro quando nos encontramos em dor, o terceiro aquele em que, quanto a mim, agora
estou – creio que o mesmo se dá convosco: nem em dor nem em prazer? De modo que se
encontra em prazer quem se banqueteia, em dor quem é torturado692. Tu, por tua vez, entre esses
estados, não vês, entreposta, uma imensa multidão de homens que nem se alegram nem sofrem?”
17 “Não, absolutamente”, disse ele, “e afirmo que todos que se encontrem sem dor,
encontram-se no prazer, e esse, por certo, é o sumo prazer.”
“Então, é o mesmo prazer o daquele que para um outro mistura o vinho ao mel, estando ele
próprio sem sede e o daquele que, tendo sede, bebe-o?”
VI Então, “Dá fim às perguntas”, disse ele, “se estiveres de acordo, pois assim, ao menos
eu, desde o princípio dissera preferir, prevendo exatamente isto: as armadilhas dialéticas.”
“Preferes, então”, disse eu, “que nós discutamos ao modo retórico a discutirmos ao modo
dialético?”
“Ora”, disse ele, “como se o discurso contínuo fosse dos retores apenas e não dos filósofos
também.”
“É de Zenão, o estóico”, respondi, “isto que refiro: toda a faculdade de expressão, como já
antes dissera Aristóteles, está distribuída em duas partes; a retórica ele dizia ser semelhante à
palma da mão, a dialética, ao punho, porque os retores falassem mais amplamente, os filósofos,
por seu turno, de modo mais cerrado. Seguirei tua vontade e me expressarei, se puder, ao modo

692
Cf. : I, 42 e 57.

335
retórico, mas com esta retórica dos filósofos, não com aquela nossa forense, que às vezes deve
ser, quando se fala ao gosto do povo, um pouco mais embotada. 18 Mas Epicuro, uma vez que
despreza a dialética, Torquato, ela que sozinha detém todo o saber que permite distinguir o que
há em cada coisa e julgar o que é e de que tipo é cada coisa e discutir com razão e método, faz
seu discurso desmoronar693 – como a mim, ao menos, parece – e nem divide, por meio de alguma
arte, o que deseja demonstrar, como aquilo mesmo sobre o que há pouco falávamos. O sumo
bem, vós o chamais prazer. Deve-se tornar manifesto, então, o que é o prazer, pois de outro modo
não se pode desenvolver aquilo que se investiga. Se o prazer Epicuro tivesse desenvolvido, não
titubearia. Pois ou asseveraria o prazer de Aristipo, isto é, aquele que move deliciosa e
agradavelmente os sentidos, que até os animais, se pudessem falar, chamariam prazer, ou, se mais
lhe aprouvesse falar a seu modo do que como

Todos os Dânaos e Micênicos,


Da Ática a juventude,

e os demais gregos que são convocados nesses versos em anapesto, apenas a este não-sofrer daria
o nome de prazer, o de Aristipo ele desprezaria; ou, se aprovasse um e outro, como aprova,
conjugaria a ausência de dor com o prazer e se serviria de dois termos últimos. 19 De fato, muitos
filósofos, e grandes, dispuseram jungidos estes bens últimos, assim, Aristóteles conjugou o
exercício da virtude com a prosperidade de uma vida em sua completude, Califón à honradez
jungiu o prazer, Diodoro à mesma honradez a ausência de dor acrescentou. O mesmo teria feito
Epicuro, se este modo de pensar, que atualmente é o de Hierônimo, tivesse conjugado com o
antigo pensamento de Aristipo. Mas esses discordam entre si pelo fato de que cada qual se serve
de um fim diferente, e, falando grego, ambos, de maneira notável, nem Aristipo, que chama de
prazer o sumo bem, faz consistir no prazer o não-sofrer, nem Hierônimo, que estabeleceu que o
sumo bem é não sentir dor, serve-se do nome prazer em lugar de seu ‘não-sofrer’, ele que nem
mesmo contaria o prazer entre as coisas a serem buscadas.
VII 20 São, sem dúvida, duas coisas também, e tu, não julgues que são apenas duas
palavras. Uma coisa é estar sem dor, outra, com prazer. Vós, a essas coisas tão diferentes, vos
esforçais não apenas por dar um só nome (pois isso eu toleraria mais facilmente), mas também

693
Cf. De fin. I, 18.

336
por fazer de duas coisas uma só, o que não pode se dar de modo algum. Epicuro, que aprova uma
e outra, de ambas deveria ter se servido, assim como na realidade faz, todavia, ele não as
distingue por meio de palavras. De fato, quando esse prazer justamente, que pelo mesmo nome
todos chamamos, ele louva em diversas passagens, ousa dizer que sequer conjectura haver algum
prazer à parte daquele gênero de prazer que é o de Aristipo, e isso ele diz em uma obra em que
todo o seu discurso é sobre o sumo bem. Já em outro livro, em que de maneira breve e por meio
de sentenças densas e de enorme peso proferiu – é o que dizem – como que oráculos de
sabedoria, escreve com estas palavras, que te são certamente conhecidas, Torquato (pois quem
dentre vós não aprendeu de cor as kurivai dovxai de Epicuro, isto é, sentenças as mais válidas, por
assim dizer, porque sejam os pensamentos de maior peso para a vida feliz enunciados com
brevidade?). Observa com atenção, portanto, se eu traduzo corretamente esta sentença: 21 ‘se
aquilo que produz prazeres aos dissolutos livrasse-os do medo dos deuses, da morte e da dor e
lhes ensinasse quais são os limites dos desejos, nada teríamos a repreender, uma vez que de todos
os lados se satisfariam com prazeres e não teriam de parte alguma algo causador de dor ou
aflitivo, isto é, algum mal.’”
Neste ponto, Triário não se pôde conter. “Ora, me diz, Torquato”, falou ele, “Epicuro
afirmou isso?” (algo que, uma vez que fosse de seu conhecimento – a mim ao menos pareceu –,
quis ouvir Torquato admitindo).
Mas aquele não se amedrontou e com plena confiança: “com essas exatas palavras, sem
dúvida”, disse ele, “mas o seu pensamento vós não enxergais”.
“Se pensa uma coisa”, eu disse, “e fala outra, nunca entenderei o que ele pensa. Mas ele diz
claramente aquilo que tem em mente. E isso, se diz dessa forma, que não devem ser repreendidos
os dissolutos caso sejam sábios, diz um absurdo; é semelhante a dizer que não devem ser
repreendidos os parricidas caso não estejam tomados por desejos nem temam os deuses nem a
morte nem a dor. Seja como for, qual o proveito em se conceder uma exceção aos dissolutos ou
imaginar alguns que, vivendo de modo dissoluto, não seriam repreendidos pelo maior dos
filósofos, ao menos sob tal denominação, caso se furtassem, cautelosos, às outras coisas? 22 Mas,
de outra parte, por acaso não repreenderias, Epicuro, os dissolutos precisamente por esta razão,
por viverem de modo a perseguirem os prazeres de toda sorte, uma vez que, como tu afirmas, o
sumo prazer seria sobretudo não sofrer nenhuma dor? Entretanto, encontraremos intemperantes,

337
em primeiro lugar, de tal forma não religiosos, que ‘comem da patela’, em seguida, uns que de tal
forma não temem a morte, que têm na ponta da língua os dizeres da Hymnis

A mim, seis meses bastam de vida, o sétimo ao Orco


Prometo.
Agora, remédios para a dor, aquelas palavras de Epicuro eles as retiram como se de uma
frasqueira: “Se grave, breve; se longa, leve”. Há só uma coisa que não sei: como pode alguém, se
é licencioso, ter desejos limitados.
23 A que vem, então, dizer: ‘nada eu teria a repreender, se eles tivessem desejos limitados?’
Isso é o mesmo que dizer: ‘não repreenderia os intemperantes, se não fossem intemperantes’.
Sendo assim, nem mesmo os ímprobos, se fossem homens de bem. Este homem severo não julga
que a luxúria deva ser por si própria repreendida e, por Hércules, Torquato, para falar a verdade,
se o prazer é o sumo bem, tem toda razão em não julgar. Pois eu não gostaria de formar em
minha mente a imagem de intemperantes, como vós costumais, que à mesa vomitem e que
tenham de ser carregados dos banquetes e, no dia seguinte, ainda sem terem digerido, mergulhem
de novo nos banquetes, que jamais tenham visto, como dizem, nem o sol nascente nem o poente,
que, depois de consumidos os patrimônios, passem necessidade. Nenhum dentre os nossos julga
que intemperantes desse gênero vivem agradavelmente. Os homens apurados, os de bom gosto,
com os melhores cozinheiros, com padeiros, com o produto da pesca, da caça com redes, da caça
com setas, tudo do mais refinado, aqueles que evitam a indigestão, ‘aos quais se tenha vertido de
ânfora cheia um vinho crusivzon694’, como diz Lucílio, vinho “ao qual de nada ainda despojaram
a tina e o saquinho”, os que a isso acrescentam jogos e as coisas que os seguem, aquelas que, se
subtraídas, Epicuro declara não saber o que seja o bem. Que haja ainda belos meninos que
cuidem de servir, que lhes corresponda a roupa, a prataria, os vasos de Corinto, o próprio lugar, a
construção da casa – pois bem, esses intemperantes, eu jamais diria, por certo, que vivem bem ou
de modo feliz. 24 Disso resulta não que o prazer não seja o prazer, mas que o prazer não seja o
sumo bem. Nem aquele que fora discípulo de Diógenes, o estóico695, quando era ainda jovem e,
depois, também de Panécio696, o célebre Lélio, foi chamado sábio porque não tivesse

694
Dourado.
695
Diógenes da Babilônia, já mencionado no livro I (6).
696
Filósofo estóico já mencionado no livro I (6).

338
conhecimento do que é o extremamente delicioso (pois não se segue que, àquele cujo coração é
sábio, não lhe saibam os temperos), mas porque fizesse pouco caso dele.

Ó labaça, como és enjeitada! E não és conhecida pelo que és!


Quanto a isso, o célebre Lélio, o sábio, aos brados costumava
declarar, argüindo nossos glutões um após outro.

Agia brilhantemente Lélio e com justiça chamavam-no sofov". E há razão também nisto:

Ó Públio Sorvedouro Galônio, és um homem infeliz! – disse –


Bem, nesta vida, jamais ceaste, já que tudo nessa
Lagosta despendes e com um avultado esturjão.

Fala assim ele que, dando ao prazer nenhuma importância, nega que ceie bem quem ao prazer dá
toda importância; e, todavia, não nega que tenha algum dia ceado a seu gosto Galônio (pois
estaria mentindo), mas nega que ele tenha ceado bem. Assim, de modo grave e austero, o prazer
ele discerne do bem. Donde resulta isto: todos aqueles que ceiam bem, ceiam com gosto, aqueles
que ceiam com gosto, não ceiam forçosamente bem. Sempre ceava bem Lélio. 25 O que é cear
bem? Lucílio dirá:
Com alimento cozido,
Temperado;

Mas vê com atenção o principal da ceia:

Com uma boa conversa;

Qual a conseqüência disso?

Se queres saber, com gosto;

339
de fato, vinha à ceia para que, com alma em quietude, saciasse as exigências da natureza.
Corretamente, portanto, nega ter jamais ceado bem Galônio, corretamente afirma que ele era
infeliz, tanto mais que nisso ele consumia todo o seu esforço. Que ceasse a seu gosto, ninguém o
nega. Por que, então, não ceava bem? Porque o que se faz bem, é o que se faz retamente,
frugalmente, honrosamente; aquele, no entanto, perversamente, vilmente, torpemente ceava;
portanto, não ceava bem. E Lélio sequer dizia ser mais deliciosa a labaça do que o esturjão de
Galônio, mas o sabor delicioso em si mesmo ele desprezava, o que não faria se considerasse o
prazer como sumo bem.
IX Deve ser afastado, portanto, o prazer, não apenas para que sigais o que é reto, mas ainda
para que vos caia bem vos expressar de modo frugal. 26 Podemos então dizer que na vida o
prazer é o sumo bem, quando nem mesmo na ceia parecemos podê-lo? Mas como é mesmo que
fala o filósofo? “Três são os gêneros de desejos, os naturais e necessários, os naturais e não
necessários e os nem naturais nem necessários.” Em primeiro lugar, foi negligente na divisão, dos
dois gêneros que havia, fez três. Isso não é dividir, mas despedaçar. Quem aprendeu o que ele
menospreza, costuma fazer assim: ‘Dois são os gêneros de desejos, os naturais e os vãos; dentre
os naturais, há dois subgêneros, os necessários e os não necessários.’ Estaria resolvida a questão.
Pois é errado, ao dividir, contar a espécie como um gênero. 27 Mas, tudo bem: façamos essa
concessão. Com efeito, ele menospreza a sutileza na exposição, fala confusamente; deve-se
admitir seu modo de proceder, conquanto pense de maneira correta. Já quanto a isto,
precisamente, eu lá não aprovo muito e tolero apenas: um filósofo que fala de desejos limitados.
Acaso podem os desejos ser limitados? Suprimidos eles devem ser e arrancados pela raiz. Há
alguém, com efeito, em quem se encontre o desejo, ou a cupidez, que não possa ser corretamente
chamado cúpido? Haverá, então, também o ávido, mas com limites, e o adúltero, mas ele terá
comedimento, e o licencioso do mesmo modo. Que tipo de filosofia é essa que não dá cabo da
depravação, mas se contenta com a moderação dos vícios? Ainda que nesta divisão eu aprove
inteiramente o substancial, tenho uma exigência de sutileza. Que chame tais coisas ‘exigências da
natureza’, o termo ‘desejo’ servirá a outro fim, para que, quando fale da avidez, quando fale da
intemperança e dos maiores vícios, possa acusá-los como de um crime capital.
28 Mas a verdade é que ele trata com muita liberdade dessas coisas e, isso, com muita
freqüência, o que de fato eu não critico, pois se espera de tão importante filósofo e tão notável
que com ousadia defenda seus dogmas. Mas, por outro lado, uma vez que aquele prazer que todos

340
os povos chamam por este nome ele pareça amiúde abraçar com muito ardor, em grandes apuros
por vezes se encontra, de modo que, estando afastados os olhares dos homens, não há nada de tão
vergonhoso que, com vistas ao prazer, ele não pareça estar pronto a fazer. Em seguida, depois
que enrubesceu (pois é enorme a força da natureza), fez de seu refúgio negar que se possa
acrescentar algo ao prazer de não sofrer. Mas o tal estado de não sofrimento não se chama prazer.
‘Não me importo’, ele diz, ‘com o termo’. Mas como?! Se são coisas totalmente diferentes? ‘Eu
encontraria muitas, ou melhor, incontáveis pessoas, não tão minuciosas e nem tão implicantes
quanto sois vós, aos quais facilmente persuadiria de tudo o que quisesse’. Ora, por que
duvidamos, se não sentir dor é o sumo prazer, de que não se encontrar em prazer é o a máxima
dor? Por que isso não se dá dessa forma? ‘Porque à dor opõe-se não o prazer, mas a privação de
dor.’
X 29 “Ora, e não enxergar que isso é o maior argumento contra aquele prazer que, se
subtraído, ele nega entender absolutamente o que seja o sumo bem (ele persegue, no entanto, o
prazer tal que se percebe no palato, nos ouvidos; acrescenta outros que, para que sejam
mencionados, deve-se pedir ‘com todo respeito’) – esse, por conseguinte, o único sumo bem que
conhece este filósofo severo e grave, ele não percebe que nem mesmo é algo que se deve buscar,
pois, segundo abona ele próprio, nós não teríamos necessidade desse prazer, uma vez que
estejamos privados de dor! Como isso é contraditório! 30 Se tivesse aprendido a definir, a dividir,
se detivesse a faculdade da expressão, se, por fim, mantivesse o uso das palavras, jamais teria se
sujeitado a semelhantes tropeços. Entretanto, tu vês o que ele faz. O que ninguém jamais chamou
de prazer, ele chama; de coisas que são duas, ele faz uma. E o prazer em movimento (pois assim
ele chama estes agradáveis e, por assim dizer, doces prazeres), de tal modo, por vezes, ele
deprecia que pensarias que é M. Cúrio quem fala, por vezes, de tal modo o louva que nega poder
sequer conjeturar o que, além disso, seja bom. Expressão que já não deve ser reprimida por algum
filósofo, mas por um censor, pois não há falta no discurso apenas, mas também nos modos. A
luxúria, ele não a repreende, conquanto esteja isenta de desejos ilimitados e de temor. É com este
argumento que ele parece buscar seus discípulos: que quem queira ser intemperante, torne-se
antes filósofo.
31 Faz-se derivar a origem do sumo bem, conforme me parece, do surgimento primeiro de
cada ser animado. Logo que nasce, o animal alegra-se com o prazer e a ele tende como a um bem,

341
enjeita a dor como um mal697. A respeito dos males, no entanto, e dos bens, ele afirma que os
animais, que não tenham sido pervertidos, decidem de modo excelente. Isso, tu também o
apresentaste dessa forma; mesmo as palavras são as de vossa escola. Quanto erro! Ora, entre o
sumo bem e o sumo mal, a criança que chora se decide por meio de qual dos dois prazeres, do
que é estável ou do que se move?698 Já que, se isso agrada aos deuses, aprendemos a falar com
Epicuro. Se por meio do que é estável, é isto que, sem dúvida, a natureza quer: estar a salvo, o
que aceitamos; se por meio do que se move, que é o que, entretanto, dizeis, não haverá nenhum
prazer torpe que deva ser deixado de lado e, além do mais, o tal animal, recém-nascido, não terá
como ponto de partida o sumo prazer, que tu fizeste consistir em não sofrer.
32 No entanto, Epicuro não foi buscar esse meio de prova nas crianças ou mesmo nos
animais selvagens, que ele julga ser o espelho da natureza, para que dissesse que, sendo guia a
natureza, eles buscam o prazer de não experimentar nenhuma dor. Pois nem esse prazer pode
mover a tendência da alma nem traz consigo alguma pulsação pela qual possa impelir a alma esta
disposição do não-sofrer (assim, comete esse mesmo erro Hierônimo), mas aquela disposição que
afaga os sentidos com prazer é capaz de impelir. Assim, Epicuro sempre se utiliza disso a fim de
provar que o prazer é almejado pela natureza, alegando que este prazer, que se dá em movimento,
atrai para si tanto as crianças quanto os animais selvagens, não aquele prazer estável, em que está
presente apenas o não sentir nenhuma dor. Como, então, há coerência em dizer que um prazer a
natureza toma como ponto de partida e em outro fazer consistir o sumo bem?
XI 33 Nos animais irracionais, contudo, não julgo haver qualquer faculdade de julgamento.
De fato, por mais que não tenham sido pervertidos, podem mesmo assim ser perversos. Da
mesma maneira que uma varinha foi dobrada e encurvada por ação humana, e outra assim é
naturalmente, também a natureza dos animais selvagens não é, na verdade, pervertida por uma
má educação, mas por sua própria natureza. E, na verdade, não é a buscar o prazer que a natureza
move o bebê, mas apenas a que ele ame a si próprio, a que ele queira estar íntegro e preservado.
Todo ser animado, logo que vem à luz699, a si próprio e a todas suas partes ama e a duas, que são
as mais importantes, o corpo e a alma, primeiramente ele se liga, em seguida, às partes de um e
de outra. Pois há na alma certos elementos principais, assim como no corpo, os quais, depois que

697
Cf. I, 30.
698
Cf. I, 37 e nota à passagem.
699
Cf. I, 30: simul atque natum sit que é retomado em II, 31.

342
ele700 chega a conhecer superficialmente, começa a distinguir, de modo a tender àquelas coisas
que tenham sido dadas como primeiras pela natureza e recuse o que é contrário. 34 Se nesses
primeiros elementos naturais encontra-se ou não o prazer, eis uma grande questão; mas pensar
que não há nada além do prazer, nem membros, nem sentidos, nem movimento do intelecto, nem
integridade do corpo, nem boa saúde, parece-me ser de uma ignorância extrema.
Ora, é dessa nascente que deve manar todo o raciocínio sobre os bens e os males. Por
Pólemon, e já antes por Aristóteles, foram levados em consideração esses elementos primeiros
que há pouco mencionei. Nasceu assim o pensamento dos antigos acadêmicos e dos peripatéticos,
de modo a afirmarem que o fim dos bens seria viver segundo a natureza, isto é, acolhida a
virtude, fruir do que a natureza dá como primeiro. Califón à virtude nada ajuntou senão o prazer,
Diodoro, a ausência de dor. *** Para todos esses que mencionei seguem de modo conseqüente os
fins dos bens: Para Aristipo, um prazer sem divisões; para os estóicos, estar de acordo com a
natureza, o que, querem eles, é viver consoante a virtude, isto é, honrosamente, coisa que eles
assim interpretam: viver com o entendimento das coisas que se sucedem por natureza, escolhendo
as que forem segundo a natureza e rejeitando o que for contrário. 35 Dessa forma, três são os fins
que não participam da honradez, um é o de Aristipo, ou de Epicuro, outro o de Hierônimo, de
Carnéades o terceiro701; três nos quais há a honradez com algum acréscimo, o de Pólemon, o de
Califón e o de Diodoro; uma só honradez é sem partes, da qual Zenão é o autor: repousa
totalmente no belo, isto é, no honroso. Pois Pirro, Aríston e Erilo já foram há muito tempo
abandonados. Os demais mantiveram-se coerentes consigo mesmos, de modo que os termos
extremos estivessem de acordo com os elementos iniciais; assim, para Aristipo, o prazer seria o
termo extremo, para Hierônimo, a ausência de dor; para Carnéades, fruir dos princípios naturais.
XIII Epicuro, porém, tendo dito que o prazer é nossa recomendação primeira, se fala do prazer de
Aristipo, deveria ter sustentado o mesmo bem último que esse, mas se fala do de Hierônimo,
agisse ele da mesma maneira, de modo a considerar esse prazer como nossa recomendação
primeira.
36 Pois, ao afirmar que por meio dos próprios sentidos julga-se que o prazer é um bem e a
dor é um mal, mais atribui aos sentidos do que nos concedem as leis, quando fazemos parte do
júri em um litígio de questões privadas. Ora, não podemos julgar nada senão o que é de nossa

700
O animal que acaba de nascer.
701
Cf. infra 38.

343
jurisdição702. Com relação a isso, em vão os juízes costumam, quando pronunciam sua sentença,
acrescentar “se isso é de minha jurisdição”; pois, se não era de sua jurisdição, mesmo sem
acrescentar a fórmula, a matéria não foi tratada segundo o direito de qualquer forma. Sobre o que
julgam os sentidos? Sobre o doce e o amargo, o liso e o áspero, o perto e o longe, o que está
parado ou em movimento, o quadrado e o redondo. 37 Justa sentença, portanto, pronunciará a
razão, tendo sido empregado, primeiramente, o conhecimento das coisas divinas e humanas, que
pode ser chamado devidamente sabedoria, acrescentadas, em seguida, as virtudes, que a razão
considera ser as soberanas de todas as coisas, e tu, por outro lado, subalternas e servidoras dos
prazeres. É, assim, por meio da sentença de todos esses que ela a razão se pronunciará sobre o
prazer: não há nenhum espaço para ele, não somente de modo a que não se ache sozinho na
morada do sumo bem, objeto de nossa investigação, mas a que nem mesmo, sob aquela outra
forma, esteja ligado ao honroso. Sobre a ausência de dor, idêntica será a sentença. 38 Será
rechaçado ainda Carnéades, e não será aprovado nenhum raciocínio sobre o sumo bem que
participe quer do prazer, quer do não-sofrer ou que esteja à parte do honroso. Assim, restarão dois
raciocínios a respeito dos quais outra e outra vez a razão poderia examinar. Pois ou estabelecerá
que nada é bom se não for honroso e que nada é mau se não for torpe, e que as demais coisas ou
não tem, em geral, nenhum peso, ou ao menos não tão grande a ponto de deverem ser almejadas
ou evitadas, mas apenas de modo a deverem ser escolhidas ou rejeitadas; ou, por outro lado, dará
preferência ao raciocínio que observar ser o mais bem ornado, não apenas pelo honroso, mas
também enriquecido pelos próprios elementos primeiros da natureza e pela completude da vida
em seu todo. Algo que a razão tornará tanto mais claro, caso chegue a perceber se entre eles há
uma controvérsia quanto às coisas ou quanto às palavras.
XIII 39 Seguindo agora a autoridade da razão, eu farei o mesmo. Pois, o quanto puder,
abreviarei as contendas e todos os pensamentos unitários703 daqueles autores, nos quais não haja
nenhum acréscimo de virtude, passo a julgar que devem ser absolutamente removidos da
filosofia; em primeiro lugar, o de Aristipo e de todos os cirenaicos, aos quais não houve receio de
fazer consistir naquele prazer que move o sentido com a mais extrema doçura o sumo bem,
desprezando essa tua ausência de dor. 40 Esses não viram que, assim como para a corrida, o
cavalo, para o arado, o boi e para seguir rastos, o cão, o homem, como diz Aristóteles, nasceu

702
No sentido de “competência jurídica”.
703
Em que o finis não seja duplo, composto, mas simples.

344
para duas coisas: para o entendimento e para a ação, como se fosse um deus mortal, e, pelo
contrário, eles quiseram que como uma sorte de gado vagaroso e lânguido voltado para o pasto e
para o prazer da procriação tenha surgido este animal divino, o que me parece o maior absurdo
que pode haver. 41 Mas isso se diz contra Aristipo, que considera esse não apenas o sumo prazer,
mas ainda o único, aquele que, sozinho, todos nós chamamos prazer. A vós, porém, agrada pensar
de outro modo. Mas ele, como eu disse, de modo equivocado. Pois nem a configuração do corpo
nem a razão superior da mente humana indicam que o homem nasceu para isto apenas: para fruir
dos prazeres. Nem, por outro lado, deve-se dar ouvidos a Hierônimo, para quem o sumo bem é o
mesmo que vós às vezes, ou melhor, com excessiva freqüência, dizeis ser: nada sofrer. Pois, se a
dor é um mal, estar isento desse mal não basta para viver bem. Diria antes isso Ênio:

Em excesso tem bem quem nada de mal tem;

Quanto a nós, julguemos que a vida é feliz não pela deposição do mal, mas pela aquisição do
bem, e não a busquemos na estagnação, quer no alegrar-se, como Aristipo, quer no não sofrer,
como esse, mas em alguma ação ou na reflexão sobre algo.
42 O mesmo se pode dizer contra aquele sumo bem de Carnéades, que ele não externou
tanto porque o aprovasse quanto para que o objetasse aos estóicos, contra os quais travava guerra.
Esse sumo bem, contudo, é de tal modo, que, somado à virtude, parece destinado a ter grande
peso e a satisfazer completamente a uma vida feliz, em torno do que gira toda esta discussão.
Com efeito, os que à virtude ajuntam ou o prazer, a única coisa à qual a virtude dá uma
importância mínima, ou a ausência de dor, que, ainda que esteja isenta de mal, não é o sumo bem,
servem-se de um acréscimo que não é lá muito persuasivo e, todavia, eu não entendo por que o
fazem de maneira tão parca e restrita. Pois, como se lhes parecesse uma correção aquilo que
acrescentem à virtude, em primeiro lugar acrescentam coisas de pouquíssimo valor, em seguida,
ajuntá-las-iam ao honroso uma a uma, ao invés de ajuntar todas as coisas que a natureza tivesse
aprovado como primeiras. 43 E uma vez que, para Aríston e Pirro, essas coisas parecem não ter
absolutamente nenhum peso, de modo a dizerem que entre gozar de excelente saúde e ser
acometido da mais grave doença não há absolutamente nenhuma diferença, corretamente deixou-
se de discutir contra eles há já muito tempo. Pois, enquanto pretenderam que tudo consistisse
apenas na virtude, a ponto de espoliá-la da capacidade de escolher entre as coisas e de não lhe dar

345
ou um ponto de origem, ou algo em que se apoiar, a própria virtude, a que se prendiam
fortemente, eles eliminaram. Erilo, por outro lado, referindo tudo ao conhecimento, chegou a
divisar um certo bem, mas não o bem extremo e nem um bem por meio do qual a vida pudesse se
nortear. Dessa forma, ele próprio há muito tempo foi rejeitado, pois, depois de Crisipo, a bem
dizer, não foi mais discutido.
XIV Restais, portanto, vós; de fato, é incerta a luta com os acadêmicos, que não afirmam
nada e, perdida a esperança, por assim dizer, no conhecimento de algo certo, desejam seguir
aquilo que, o que quer que seja, pareça semelhante à verdade. 44 Com Epicuro, porém, há mais o
que fazer, pelo fato de nele se conjugarem dois gêneros de prazer e também pelo fato de ele
próprio, seus amigos e, posteriormente, muitos defensores terem sido de mesmo parecer e, não
sei como, de este que tem a menor autoridade, e a maior força, o povo, alinhar-se com eles. A
eles, se não refutamos, toda virtude, todo belo, todo verdadeiro louvor deve ser abandonado.
Assim, afastados os modos de pensar dos demais, resta uma peleja não entre mim e Torquato,
mas entre a virtude e o prazer. Peleja que um homem agudo e cuidadoso, como Crisipo, não
despreza e o ponto decisivo de toda a questão do sumo bem ele considera repousar na
confrontação entre esses. Eu, de minha parte, estimo que, se mostrar que o honroso é algo que,
ele próprio, por sua própria essência e por sua própria causa, é digno de ser buscado, cai por terra
toda vossa teoria. Assim, tendo sido estabelecido o honroso – de que tipo seja –, de modo breve,
como exige o tempo, avançarei contra tudo o que disseste, Torquato, a menos, talvez, que me
falhe a memória.
45 O honroso, portanto, nós o entendemos como aquilo que é de tal tipo que, subtraído todo
o proveito, sem que haja alguma recompensa ou lucro, por si próprio possa ser com justiça
louvado. De que tipo seja isso é algo que pode ser entendido não tanto pela definição de que me
utilizei, embora o possa em certa medida, quanto pelo julgamento comum a todos e pelas
inclinações e ações de cada qual dentre os melhores, que muitas coisas fazem por esta única
razão: porque cai bem, porque é reto, porque é honroso, mesmo que não vejam nenhum ganho
que venha como conseqüência. Pois os homens, ainda que em muitos outros aspectos difiram dos
animais, diferem, em particular, sobretudo por terem razão, dada pela natureza, e uma mente
penetrante e vigorosa, e que lida com muitas coisas ao mesmo tempo com extrema presteza e, por

346
assim dizer, sagaz704, de modo a ver as causas das coisas e as conseqüências, a confrontar
semelhanças, a associar o que está separado, a atar com o presente o futuro e a abarcar toda
condição de vida ainda por vir. A mesma razão fez o homem tendente aos outros homens e a eles
consoante em natureza, linguagem e hábito, de modo a, partindo da afeição pelos de casa e pelos
seus, estender-se mais ao longe, pouco a pouco, e se entrelaçar primeiro na associação entre
cidadãos, em seguida, naquela entre todos os mortais e, como escreveu Platão a Arquitas,
lembrar-se que não nasceu para si só, mas para a pátria, mas para os seus, de modo que é ínfima a
parte que resta para si próprio. 46 E uma vez que essa mesma natureza gerou no homem um
desejo de ver o verdadeiro, o que facilmente se torna manifesto, quando, isentos de preocupações,
aspiramos até mesmo a conhecer o que se dá no céu, conduzidos por esse elemento original,
apreciamos todas as coisas verdadeiras, isto é, o que é leal, simples, constante, ao passo que
odiamos o que é vão, falso, enganador, como a fraude, o perjúrio, a maldade, a injustiça. A
mesma razão tem em si algo de grandioso e poderoso, mais adaptado a comandar do que a
obedecer, que considera tudo o que sucede ao homem não apenas tolerável, mas inclusive leve,
algo de elevado e excelso, que nada teme, a ninguém cede, sempre invencível. 47 E, distintas
essas três espécies do honroso, uma quarta se segue, não só de mesma beleza como também
intimamente ligada àquelas três, na qual reside ordem e moderação. Tendo sido observado algo
de semelhante a ela na beleza e na harmonia das formas, passou-se à honradez nas palavras e nas
ações. Pois, partindo destes três méritos que há pouco mencionei705, ela receia a temeridade e não
ousa, seja por dito desaforado, seja por ação, prejudicar alguém e teme fazer ou dizer algo que
pareça pouco viril.
XV 48 Tens realizada em todas as partes e completa, Torquato, a forma da honradez, que
consiste, em sua totalidade, nestas quatro virtudes, que também por ti foram recordadas706. Essa
forma, teu caro Epicuro diz ignorar absolutamente o que ou de que tipo pretendem que ela seja
aqueles que medem pela honradez o sumo bem. Pois caso refiram tudo à honradez e não digam
que há nela prazer, ele diz que aqueles fazem ressoar uma palavra vã (ele se serve, com efeito,
desses mesmos termos) e que não entende nem enxerga qual é o pensamento que deve subjazer à
palavra ‘honradez’. Pois, de acordo com a expressão usual, apenas isto é chamado honroso: o que

704
Difícil manter a impropriedade da expressão original, marcada por ut ita dicam. A questão é que sagax,
originalmente, refere-se àquele que é dotado de um bom faro.
705
Referência às virtudes.
706
Em I, 42-54.

347
é repleto de glória graças ao renome popular. ‘Algo que’, diz ele, ‘ainda que seja amiúde mais
agradável do que muitos prazeres, é almejado por causa do prazer’.
49 Tu vês quão grande é a dissensão?707 O reconhecido filósofo, que não apenas na Grécia
e na Itália, mas ainda em toda a barbaria causou comoção, diz não entender o que seja o honroso
se não for algo que esteja contido no prazer, a não ser, talvez, como aquilo que é louvado pelo
rumor da multidão. Eu, de minha parte, julgo que isso708 é, muitas vezes, inclusive torpe e, se em
alguma ocasião não for torpe, não é torpe justamente quando aquilo que for louvado pela
multidão for, por si próprio, reto e louvável; todavia, isso é dito honroso, não porque seja louvado
por muitos, mas porque seria de um tipo tal que, quer o ignorassem os homens, quer se
quedassem calados, por sua própria beleza, entretanto, e por seu aspecto, seria louvável. Assim,
vencido do mesmo modo pela natureza, à qual não pode fazer frente, diz, em outra passagem,
aquilo que também tu disseste um pouco antes709, que não se pode viver agradavelmente se não
se viver também honrosamente. 50 O que ele quer dizer aqui com ‘honrosamente’? O mesmo que
‘agradavelmente’? Dessa forma, então: não se pode viver honrosamente caso não se viva
honrosamente? Ou caso não se viva com renome entre o povo? Sem isso, portanto, ele nega
poder viver feliz? O que há de mais torpe do que a vida do sábio depender do que dizem os
insensatos? Então, o que neste ponto ele entende por honroso? Certamente nada senão aquilo que
por causa de si próprio pode ser com justiça louvado. Pois se o pode por causa do prazer, que
louvor é esse que se pode ir buscar no mercado? E este não é o tipo de homem que, ao considerar
a honradez, neste ponto, de modo que sem ela negue ser possível viver agradavelmente, pense
naquele honroso que tenha relação com o povo e negue que sem ele seja possível viver
agradavelmente, ou entenda o honroso como algo diferente daquilo que é reto e, por si próprio,
por sua essência, por moto próprio, por sua natureza, é louvável.
XVI 51 Dessa forma, Torquato, ao dizeres que Epicuro declara em alto e bom som que não
se pode viver agradavelmente caso não se viva honrosa, sábia e justamente, parecia-me que tu
próprio te jactavas. Tamanha força havia nas palavras, por causa da dignidade das coisas que
essas palavras significavam, que tomavas uma postura mais altiva, que, em determinados
momentos, tu te demoravas, que, com os olhos voltados para nós, tu, por assim dizer, davas
testemunho de que a honradez e a justiça recebiam por vezes o louvor de Epicuro. Como te

707
Entenda-se: entre os que pensam que o sumo bem é o honroso e Epicuro.
708
O que é louvado pela multidão.
709
Em I, 57.

348
convinha servir-te dessas palavras das quais, se os filósofos não se servissem, não sentiríamos
falta da filosofia! Pois, por amor a estas palavras, que muito raramente são mencionadas por
Epicuro, sabedoria, coragem, justiça, temperança, homens do mais excelente intelecto aplicaram
seu esforço à filosofia. 52 ‘Os olhos’, diz Platão, ‘com os quais não divisamos a sabedoria, são o
nosso sentido mais aguçado. Que amores ardentes ela despertaria para si!’ Ora, por quê? Acaso
porque é de tal modo hábil, que pode, da melhor maneira, arquitetar prazeres? Por que louvamos
a justiça? Ou ainda, qual a origem deste provérbio desgastado pelo tempo: ‘com quem no
escuro?’ Esse provérbio, que se diz de algo específico, tem ampla aplicação: em tudo que
fizermos, sejamos movidos pela ação em si, não por uma testemunha. 53 Tem, portanto, pouco
peso e mínima consistência aquilo que dizias: que os ímprobos se torturam por uma consciência
da alma, e ainda por medo da pena, à qual ou podem ser submetidos, ou sempre temer que sejam
submetidos algum dia. Não é necessário imaginar como um medroso ou alguém de ânimo débil
aquele homem não bom que, o que quer que tenha feito, a si próprio torture e tudo receie, mas
como alguém que, habilmente, tudo dirige ao proveito, agudo, manhoso, traquejado, que
facilmente descubra, pela reflexão, como, às escondidas, sem testemunha, sem nenhum cúmplice,
possa realizar suas fraudes. 54 Por acaso pensas que eu estou falando de L. Túbulo? Ele que, na
condição de pretor, ao se ocupar de um processo de homicídio, tão abertamente aceitou dinheiro
para julgar o caso que, no ano seguinte, P. Cévola, tribuno da plebe, consultaria o povo sobre o
desejo de se investigar o caso. A partir desse plebiscito, a questão foi, por decisão do senado,
encaminhada ao cônsul Gn. Cepião. Partiu imediatamente para o exílio Túbulo, sem ousar
responder às acusações, pois o fato estava patente.
XVII Não é, portanto, sobre o ímprobo que investigamos, mas sobre o ímprobo hábil, qual
foi Q. Pompeu, ao denegar o tratado que fizera com os Numantinos, nem, na verdade, sobre um
que tudo tema, mas daquele que, em primeiro lugar, não se inquiete com a má consciência da
alma, a qual, bem se sabe, não tem ele nenhuma dificuldade em conter. Pois aquele que é
chamado de dissimulado e fingido está tão longe de denunciar a si mesmo, que consegue até
mesmo parecer sofrer pela ação ímproba de um outro; ora, o que é ser manhoso senão isso?
55 Lembro-me de estar presente quando P. Sextílio Rufo apresentou aos amigos o seu caso
da seguinte forma: ele era herdeiro de Q. Fádio Galo, em cujo testamento estaria escrito que
aquele teria sido nomeado por este com a finalidade de que toda a herança chegasse à sua filha.
Mas, que isso tivesse sido feito, Sextílio negava. Podia negar, porém, impunemente, pois quem o

349
contestaria? Ninguém dentre nós acreditava, e era mais verossímil que estivesse mentido este,
para quem havia interesse, do que aquele, que teria feito por escrito uma nomeação que deveria
ter sido feita. Acrescentava ainda Sextílio que, tendo jurado pela lei Vocônia, não ousava agir
contra ela, a não ser que os amigos fossem de outro parecer. Estávamos lá presentes, quanto a
mim, é certo, jovenzinho, mas muitos homens ilustríssimos, dentre os quais nenhum considerou
que mais deveria ser dado a Fádia do que, de acordo com a lei Vocônia, pudesse lhe caber.
Obteve Sextílio uma enorme herança, da qual, se tivesse seguido o pensamento daqueles que
antepõem o que é reto e honroso aos ganhos todos e às vantagens, nenhuma moeda teria tocado.
E por acaso achas que, depois disso, ele ficou com alma angustiada ou atormentada?
Absolutamente, e, pelo contrário, com aquela herança, ficou rico e, por conta disso, alegre. De
grande valor, com efeito, ele estimava o dinheiro, que não apenas não fora alcançado contra as
leis, mas inclusive por meio das leis. O dinheiro que para vós, na verdade, ainda que com risco,
deve ser buscado, pois é produtor de muitos e grandes prazeres.
56 Logo, assim como, segundo a opinião daqueles que estabelecem que o que é reto e
honroso por si mesmo deve ser almejado, devem ser enfrentados, amiúde, quaisquer riscos, com
vistas ao belo e à honradez, da mesma forma, na opinião dos vossos, que tudo mesuram pelo
prazer, os riscos devem ser enfrentados para que grandes prazeres sejam obtidos. Caso se trate de
um grande bem, de uma grande herança, uma vez que por meio do dinheiro muitos prazeres são
alcançados, vosso caro Epicuro, caso queira seguir o seu fim dos bens, deverá fazer o mesmo que
Cipião, a quem se apresentava uma grande glória, se conseguisse arrastar Aníbal de volta à
África. Sendo assim, que grande risco ele enfrentou! Pois à honradez ele referia todo seu célebre
empreendimento, não ao prazer. Assim, vosso sábio, tendo sido arrebatado por algum grande
ganho, se houver necessidade, terá motivo para tomar parte num combate. 57 Se puder estar
oculta a má ação, ele se alegrará; tendo sido apanhado, toda pena ele desprezará. Pois estará
armado contra a morte, que ele desprezará, contra o exílio, e mesmo contra a própria dor. Dor que
vós, ao menos, quando a propondes como pena aos ímprobos, tomais por insuportável, quando o
sábio vós desejais sempre possuir bens em maior quantidade, tomais como tolerável.
XVIII Mas imagina um homem não apenas astuto, que faça algo de modo ímprobo, mas
ainda detentor de enorme poder, como foi M. Crasso, que, todavia, costumava se servir dos
próprios bens, e como é hoje o nosso Pompeu, a quem se deve reconhecer o modo reto de agir:
pois poderia ser injusto, o quanto quisesse, impunemente. Ora, quantas ações injustas podem ser

350
realizadas sem que ninguém as possa repreender! 58 Se a ti um amigo teu, moribundo, pedir que
repassasses a herança a sua filha, e não deixar por escrito em parte alguma, ao contrário do que
fez Fádio, e não o disser a ninguém, o que farás? Tu, ao menos, repassarás, o próprio Epicuro
talvez a repassasse, como Sexto Peduceu, filho de Sexto, que deixou, como uma imagem tanto de
sua humanidade quanto de sua probidade, este seu filho, nosso amigo. O pai, não apenas erudito,
mas também homem excelente e extremamente justo dentre todos, sem que ninguém soubesse
que fora nomeado por G. Plócio, ilustre cavaleiro romano, de Núrsia, voluntariamente foi até sua
mulher e a ela, que de nada sabia, expôs as instruções do marido e repassou-lhe a herança. Mas o
que eu busco saber de ti, uma vez que certamente tu terias agido da mesma forma, é se não
entendes que tanto maior é a força da natureza, que vós próprios, que tudo referis ao que vos é
vantajoso e, como dizeis vós próprios, ao prazer, agiríeis, contudo, de um certo modo, a partir do
qual se torna evidente que não é o prazer que vós seguis, mas o dever, e que a natureza tem mais
vigor do que um raciocínio torto. 59 Se tu souberes – afirma Carnéades – que uma serpente se
encontra escondida em algum lugar e alguém, cuja morte traria vantagem para ti, quiser se sentar
sobre ela, desprevenido, tu terás agido de modo ímprobo, se não o advertir de que não se sente.
Todavia, agirás impunemente. Pois quem poderia provar que tu o sabias? Mas isso já é bem mais
que o bastante. Pois é evidente que caso a eqüidade, a boa-fé e a justiça não tenham como ponto
de partida a natureza, e caso todas essas coisas se refiram ao proveito710, não se pode encontrar
um homem de bem; e, a respeito disso, muitas coisas disse Lélio, e de modo suficiente, em
nossos livros Sobre a República.
XIX 60 Aplica o mesmo raciocínio ao comedimento, ou temperança, que é a moderação
dos desejos submissa à razão. Porventura leva suficientemente em conta o pudor aquele que sem
testemunha se livra a um desejo desmesurado? Porventura existe algo por si próprio escandaloso,
mesmo que não lhe acompanhe nenhuma infâmia?
O quê? Homens corajosos lançam-se a uma batalha, vertem sangue pela pátria, depois de
realizado o cálculo dos prazeres711? Ou incitados por algum ardor, por algum impulso da alma?
Tu consideras, enfim, Torquato, que o célebre Imperioso712, se ouvisse nossas palavras, com mais
gosto teria ouvido o teu discurso sobre ele ou o meu, uma vez que eu dissesse que ele nada fez
por causa própria, mas tudo pela República e tu, pelo contrário, nada senão por causa própria?

710
Cf. I, 52.
711
Cf. I, 33.
712
Citado em I, 23.

351
Mas se tu desejasses ainda desenvolver o argumento e mais abertamente dissesses que ele não fez
nada senão com vistas ao prazer, como estimas, enfim, que ele o teria recebido? 61 Que seja! Que
tenha agido Torquato, se assim o queres, visando o proveito próprio (pois prefiro dizer isso a
prazer, sobretudo com relação a um tão grande homem). Mas também seu colega, P. Décio,
primeiro daquela família a alcançar o consulado, quando, após ter consagrado a si mesmo com
um voto, disparando a cavalo, precipitava-se em meio às fileiras dos latinos, algum pensamento
tinha com relação a seus próprios prazeres? Para que deles desfrutasse onde, quando? Já que ele
soubesse que morreria prontamente e buscasse aquela morte com maior empenho do que Epicuro
julga que se deva buscar o prazer. E essa sua ação, se não tivesse sido, com justiça, louvada, não
a teria imitado seu filho, no quarto consulado desse, nem, depois, o filho desse, travando guerra
contra Pirro, quando era cônsul, teria tombado em batalha e, como vítima, da terceira geração
seguida, tivesse se oferecido à República.
62 Eu me detenho nesses exemplos. Entre os gregos há poucos: Leônidas, Epaminondas,
uns três ou quatro. Quanto a mim, se começar a evocar os nossos, sem dúvida chegarei ao
seguinte resultado: que o prazer se entregue à virtude como prisioneiro; mas um dia há de me ser
pouco e, da mesma forma que Aulo Vário, que foi tido como um juiz muito rigoroso, costumava
dizer ao colega de júri, quando, depois de apresentadas as testemunhas, outras fossem, contudo,
convocadas, ‘ou isso é o suficiente quanto às testemunhas, ou eu não sei o que é “suficiente”’,
assim também eu apresentei o suficiente de testemunhas. E então? A ti próprio, tão digno de teus
antepassados, foi o prazer que conduziu a, ainda jovenzinho, arrebatar de P. Sula o consulado?
Consulado esse que tu fizeste chegar a teu pai, homem de extrema coragem? Que qualidades teve
sempre ele quer como cônsul, quer como cidadão comum, tanto antes quanto depois do seu
consulado! Tendo, sem dúvida, o seu amparo, nós próprios realizamos ações nas quais antes nos
ocupamos do interesse de todos do que do nossos próprios interesses.
63 Mas como me parecia belo o teu discurso, quando tu dispunhas, de uma parte, alguém
que acumulava em si numerosos e extremos prazeres, sem alguma dor presente ou por vir e, de
outra parte, alguém com os mais extremos tormentos por todo o corpo, sem nenhum prazer que se
lhe apresente ou de que ele tenha esperança, e perguntavas quem poderia ser mais infeliz do que
este ou mais feliz do que aquele e, em seguida, concluías que o sumo mal é a dor, o sumo bem, o
prazer!

352
XX Houve um certo L. Tório Balbo, de Lanúvio, de quem tu não podes lembrar. Esse
homem vivia de uma tal maneira, que nenhum prazer tão requintado poder-se-ia descobrir em que
ele não abundasse. Era não só desejoso dos prazeres como também conhecedor desse tipo de
coisa e fértil em recursos, de tal maneira alheio às superstições, que aqueles numerosos
sacrifícios e santuários de sua cidade natal ele desprezava, de tal maneira pouco temeroso face à
morte, que nas fileiras foi morto defendendo a República. 64 Os desejos não os limitava pela
divisão de Epicuro, mas por sua saciedade. Pensava contudo em sua saúde: praticava exercícios
tais, que chegava ao jantar com sede e com fome, servia-se daquele tipo de alimento que fosse o
mais saboroso e, igualmente, mais fácil de digerir e, de vinho, não só consoante seu prazer, mas
também de modo a não lhe fazer mal. E acolhia aquelas outras coisas que, se excluídas, Epicuro
diz não entender o que seja o bem. Não lhe havia nenhuma dor e se, de algum modo houvesse,
não apenas não as suportaria com alma frouxa, mas inclusive se serviria mais de médicos do que
de filósofos. Uma tez extraordinária, plena saúde, extremo carisma, a vida, enfim, transbordante
de uma variedade de todos os prazeres. 65 A esse vós chamais feliz: vosso raciocínio, ao menos,
obriga-vos a isso. Quanto a mim, não ouso dizer quem colocarei à frente dele; dirá em meu lugar
a própria virtude e não hesitará em colocar à frente desse vosso homem feliz M. Régulo, que, sem
dúvida, tendo deixado a pátria para retornar a Cartago por sua própria vontade, sem ter sido
coagido por nenhuma força além da palavra que empenhara ao inimigo, a virtude declara em alto
e bom som, no momento mesmo em que era torturado pela fome e pela vigília, ter sido mais feliz
do que Tório a beber em meio a rosas. Travava uma grande guerra, por duas vezes fora cônsul,
celebrara um triunfo e, todavia, aquilo que fizera anteriormente não considerava nem tão
grandioso nem tão preclaro quanto esse último infortúnio a que se submetera por causa da palavra
empenhada e da constância; infortúnio que para nós, que ouvimos, parece digno de comiseração,
para ele, que até o fim suportara, era prazeroso. Pois não é pela hilaridade, nem pela galhofa, nem
pelo riso ou pela brincadeira, companheiros da frivolidade; na verdade, muitas vezes, mesmo os
que são austeros, por sua firmeza e por sua constância, são felizes. 66 Desonrada, com violência,
pelo filho do rei, Lucrécia, tomando os cidadãos por testemunhas, deu fim a si própria. Tal
sofrimento do povo romano, que teve em Bruto seu líder e representante, foi a causa da libertação
da cidade, e, em memória a esta mulher, no primeiro ano, seu marido e seu pai foram feitos
cônsules. O modesto Lúcio Virgínio, um dentre muitos, sessenta anos após a conquista da

353
liberdade, matou com suas próprias mãos a filha virgem, de preferência a entregá-la ao capricho
de Ápio Cláudio, que detinha então sumo poder.
XXI 67 Tu deves, Torquato, ou repreender tais ações, ou repudiar a defesa do prazer. Mas
que causa é essa, da qual tu te fazes patrono, a do prazer, que não poderá convocar como
testemunhas nenhum dos homens ilustres nem pessoas que lhe façam o elogio? Pois se nós
podemos apresentar como testemunhas, a partir dos registros dos anais, aqueles cujas vidas foram
inteiramente dedicadas a gloriosas empresas, que não poderiam ouvir o nome prazer; em vossas
discussões, porém, a história é muda. Jamais ouvi serem mencionados, na escola de Epicuro,
Licurgo, Sólon, Milcíades, Temístocles, Epaminondas, que estão na boca de todos os demais
filósofos. Agora, entretanto, que nós também começamos a tratar disso, que homens, e de que
envergadura, há de nos fornecer, com grande abundância, nosso caro amigo Ático a partir de seus
tesouros! 68 Será que não é melhor falar algo a respeito desses homens do que de Temista, e em
tantos volumes? Façam isso os gregos! Ainda que tenhamos a partir deles a filosofia e todas as
artes liberais, há algo, contudo, que não nos é permitido, mas a eles, sim.
Lutam os estóicos com os peripatéticos. Uns negam que haja algum bem senão o que for
honroso, os outros dizem que atribuem o maior peso à honradez – que, de fato, atribuem-lhe de
longe o maior peso –, mas que também no corpo e nas coisas externas existem certos bens. É uma
batalha honrosa e uma discussão ilustre! Pois a contenda é toda a respeito do lugar que ocupa da
virtude. Mas com os teus, quando discorres, há que se ouvir muitas coisas até mesmo sobre
prazeres obscenos, sobre os quais muitíssimo amiúde fala Epicuro. 69 Não podes, portanto,
Torquato, observar tais coisas – crê em mim –, se examinares a ti próprio, teus pensamentos e
tuas inclinações; tu sentirás vergonha, eu te digo, daquele quadro que Cleantes costumava, de
modo bem conveniente, pintar com palavras. Ele convidava aqueles que o ouviam a imaginar
intimamente, representada em um quadro, @Hdonhv713, em um traje belíssimo, com ornamentos de
uma rainha, sentada em um trono; à sua disposição estariam as Virtudes, como pequenas
criadas714, que nada fariam, nenhum dever considerariam como seu, senão servir a @Hdonhv, e
apenas a aconselhariam ao pé do ouvido (se é que se pode depreender isso a partir de uma
pintura) a que tivesse cuidado para que nada fizesse de imprudente que pudesse afligir as almas

713
“Prazer” em grego. Nesta língua, trata-se de palavra do gênero feminino.
714
Cf. II, 37.

354
dos homens, ou qualquer coisa donde pudesse nascer alguma dor. ‘Nós, as Virtudes, não há
dúvida, nascemos para ser tuas escravas, não temos nenhuma outra ocupação’.
XXII 70 Mas nega Epicuro (ora, é este o lume em que vós vos fiais) que alguém que não
viva de maneira honrosa possa viver agradavelmente. Como se eu me preocupasse com o que ele
afirme ou negue; o que eu pergunto é: para quem faz consistir no prazer o sumo bem, o que é
conseqüente dizer? O que faz com que Tório715, com que Postúmio, com que o mestre de todos
eles, Orata, não tenha vivido da maneira mais agradável possível? Ele próprio nega, como disse
antes, que a vida dos licenciosos deva ser repreendida, se não forem completamente parvos, isto
é, se não tiverem desejos ou temores. E, para essas duas coisas, uma vez que propõe um remédio,
para a luxúria ele propõe uma concessão. Pois, tendo sido subtraídas tais coisas, ele nega
encontrar algo na vida dos intemperantes que ele poderia repreender.
71 Vós não podeis, portanto, regulando tudo por meio do prazer, seja observar, seja
conservar a virtude. Pois também não deve ser tido por homem bom e justo aquele que, para que
não sofra um mal, abstém-se de uma injustiça. Tu conheces, creio o verso:

Não é pio ninguém que a piedade...

E olha, não penses que há algo de mais verdadeiro. Pois nem é justo enquanto teme e, certamente,
se deixar de temer, também não o será. Por outro lado, não temerá, se for capaz de esconder, ou,
se com grande poder, for capaz de guardar o que tiver conseguido; e certamente preferirá ser
estimado como um homem de bem, sem que o seja, a ser, sem que seja considerado. Dessa
forma, em lugar de uma justiça firme e verdadeira, vós nos ofereceis um simulacro da justiça,
algo que é extremamente torpe, e prescreveis, de certo modo, que nós desprezemos nossa
consciência, estável, e andemos à espreita da opinião errante dos outros.
72 O mesmo pode ser dito das demais virtudes, cujos fundamentos vós, como se sobre a
água, colocais sobre o prazer. O que me dizes? Podemos chamar de corajoso aquele mesmo
Torquato? Pois tenho satisfação, ainda que não seja capaz de te corromper, como dizes716, tenho,
sim, satisfação em recordar tanto vossa família quanto vosso nome. E, por Hércules, um homem
excelente e de extrema afeição para comigo, A. Torquato, apresenta-se diante de meus olhos;

715
Cf. supra II, 63 e 65.
716
Cf. I, 34.

355
quanto empenho ele demonstrou em meu favor, e quão notável, naquele período que é do
conhecimento de todos, é necessário que vós dois sabeis. Algo de que eu próprio, que desejo não
apenas ser grato, como também o ser considerado, não me sentiria agradecido, se não percebesse
que ele se mostrou meu amigo por minha causa, e não por sua, a não ser que digas ‘por sua
causa’ pelo fato de que a todos toque agir retamente. Se é o que dizes, nós vencemos, pois é isso
que queremos, com esse fim contendemos, para que o fruto do dever seja o próprio dever. 73 É
algo que o teu filósofo não quer, e para todas as coisas ele exige o prazer como remuneração.
Mas volto àquele717. Se foi motivado pelo prazer que ele lutou contra o gaulês às margens do
Anieno e se dos espólios desse ele se revestiu com o colar e o sobrenome por nenhum outro
motivo, senão que tais ações lhe parecessem dignas de um homem, não o julgo corajoso. Agora,
se o pudor, se o comedimento, se a verecúndia se, em uma palavra, a temperança for contida pelo
temor ou pela infâmia da punição, e não forem velados por uma santidade que lhes é própria, que
adultério, que violação, que desmesura sexual não se arrojará e se projetará ao exterior, tendo
lhes sido oferecidos ou o acobertamento, ou a impunidade, ou a licença?
74 Pois bem, Torquato. De que modo, enfim, vês isto: que tu, com esse teu nome, teu
engenho e glória, o que fazes, o que pensas, a que referes tuas aspirações, com vistas a que queres
realizar o que pretendes, o que julgas, em suma, ser o mais excelente na vida, não ouses dizer em
uma assembléia? Que mérito queres alcançar, no momento mesmo em que te investires da
magistratura e subires à tribuna (pois tu deverás declarar publicamente o que observarás na
execução da justiça, e até mesmo, talvez, caso bem te pareça, tu dirás algo a respeito dos teus
antepassados e de ti próprio conforme o costume tradicional), que mérito alcançarias, portanto, ao
dizeres que nesta magistratura tu hás de tudo fazer com vistas ao prazer e que tu nada fizeste em
tua vida senão com vistas ao prazer? ‘Acaso tu me julgas’, tu dirias, ‘tão insano a ponto de falar
desse modo diante de ignorantes?’ Ora, diz essas mesmas coisas no tribunal ou, se temes o
círculo dos que assistem, diz no Senado. Jamais o farás. Por que razão, senão porque se trata de
um discurso torpe? E quanto a mim e Triário, tu estimas, portanto, que somos merecedores dessa
linguagem torpe?
XXIII 75 Mas, que seja! A própria palavra ‘prazer’ não tem prestígio e talvez nós não a
entendamos; pois é isso o que vós dizeis repetidas vezes: que nós não entendemos o que vós
chamais prazer. Coisa, sem dúvida, difícil e obscura! Os ‘indivisíveis’ e os ‘intermundos’, que

717
“Mas volto a falar do célebre Torquato”. O que se torna claro a partir do que se diz a seguir.

356
sequer são algo e nem podem existir, nós entendemos, o prazer, que é conhecido de todos os
pardais, não nos é possível entender? Mas o que dizer, se eu consigo fazer com que tu admitas
que eu não apenas sei o que é o prazer (de fato, é um agradável movimento nos sentidos), mas até
mesmo o que tu queres que ele seja? Pois ora tu queres que ele seja aquilo mesmo que eu acabo
de dizer e lhe confere um nome, de modo que seja ‘em movimento’ e opere alguma variação, ora
tu queres que seja outra coisa, um sumo prazer, ao qual nada se pode acrescentar; esse, tu dizes
que ele está presente precisamente quando toda dor está ausente e chama-o ‘estável’. Pois que
seja isso o prazer. 76 Que tu digas, em qualquer assembléia que quiseres, que tudo farás a fim de
que não experimentes dor. Se tu julgas que nem mesmo isso se diz com suficiente grandeza, com
suficiente honradez, diz que tudo, não só nessa magistratura quanto em toda tua vida, tu hás de
fazer com vistas a teu proveito, nada senão o que for vantajoso, nada senão em teu próprio
interesse: que clamor na tribuna ou que esperança com relação a esse consulado, cujo acesso está
totalmente a tua disposição, tu julgas que vai haver? Esse raciocínio, portanto, tu seguirás: dele tu
te servirás contigo mesmo e com os teus; admiti-lo em público e declará-lo tu não ousarias? Mas,
por outro lado, aquilo que dizem os peripatéticos, o que dizem os estóicos, sempre está na tua
boca nos tribunais e no senado. Dever, eqüidade, mérito, boa-fé, ações retas, honrosas, dignas de
quem comanda, dignas do povo romano, todos os riscos pela república, morrer pela pátria,
quando tu falas disso, nós, simplórios, quedamo-nos estupefatos, tu, por certo, ris contigo
próprio. 77 Pois em meio a essas palavras, tão magníficas e tão esplêndidas, não há lugar algum
para o prazer, não apenas para aquele que vós dizeis ser ‘em movimento’, que todos os citadinos
e campesinos, todos, digo, que falam latim, chamam prazer, mas nem mesmo para aquele
‘estável’ que, além de vós, ninguém denomina prazer.
XXIV Observa, portanto, se não deverias te servir de nossas palavras e de teus
pensamentos. Pois se forjasses um semblante, um andar, para que parecesses mais grave, não
serias semelhante a ti mesmo. Palavras tu forjarias e dirias o que não pensas? Ou ainda, assim
como roupas, tu terias um pensamento em casa e outro no fórum, de modo que teu semblante seja
uma aparência, no interior se oculte a verdade? Observa, eu te peço, se isso é correto. A mim ao
menos, parecem-me verdadeiras as opiniões que forem honrosas, as que forem dignas de louvor,
as que forem plenas de glória, as que no Senado, as que diante do povo, as que em toda reunião e
conselho devam ser proclamadas, para que não deixe de ser vergonhoso pensar o que é
vergonhoso dizer.

357
78 Para a amizade, porém, onde pode haver lugar, ou quem pode ser amigo de alguém a
quem não ame, nem a ele próprio nem por causa dele próprio? Ora, o que é amar, donde foi
tomado o termo amizade, senão querer que a alguém toquem os maiores bens possíveis, ainda
que para si mesmo não redunde nenhum deles? ‘É vantajoso, para mim’, tu dirias, ‘estar com a
alma assim disposta’ Na verdade, talvez ‘parecer estar’, pois ‘estar’, se não estiveres de fato, não
podes. Mas como poderás estar, se o próprio amor não tiver se apoderado de ti, algo que costuma
se produzir não depois de realizado um cálculo com relação ao proveito, mas que tem origem a
partir si próprio, nasce espontaneamente. ‘Ora, mas é o proveito o que eu persigo’. Subsistirá,
portanto, a amizade pelo tempo que durar o proveito, e, se o proveito estabelecer a amizade, é ele
mesmo quem lhe dará fim. 79 Mas o que farás, então, se, na amizade, não houver mais proveito,
como se dá muitas vezes? Vais abandoná-la? Que amizade é essa? Vais conservá-la? Onde está a
coerência? Pois tu vês o que tu estabeleceste a respeito da amizade [que deve ser almejada com
vistas ao proveito]718. ‘Conservá-la-ei para que eu não venha a ser odiado, se deixar de olhar por
um amigo.’ Em primeiro lugar, por que tal coisa é digna de ódio senão porque é torpe? Pois se,
para que não te sujeites a alguma desvantagem, tu não o abandonarás, para que não fiques,
todavia, sem ganho, preso a uma obrigação, tu desejarás que ele morra. Mas e se não apenas ele
não te trouxer nenhum proveito, mas se tu tiveres ainda de lançar mão de bens familiares,
suportar fadigas, correr risco de vida? Nem mesmo nesse caso tu olharás por ti mesmo e pensarás
que cada qual nasceu para si próprio e para seus próprios prazeres? Como fiança tu te
apresentarás a um tirano, para morrer em lugar de um amigo, como fez o célebre pitagórico
diante do tirano da Sicília, ou, sendo Pílades, dirás que tu és Orestes, para morrer em lugar do
amigo, ou, se fosses Orestes, desmentiria Pílades, denunciarias a ti mesmo e, se não o
persuadisses, não implorarias para que ambos fôsseis imolados juntos?
XXV 80 Tu por certo farias, Torquato, tudo isso; pois eu julgo que não há coisa alguma,
digna de grande louvor, da qual eu acredite que tu te omitirias por medo da morte ou da dor. Mas
eu não busco saber o que é conseqüente com a tua natureza, mas com essa tua doutrina. Esse
raciocínio que defendes, os preceitos que aprendeste, que aprovas, fazem tombar a amizade desde
os alicerces, por mais que Epicuro, como de fato faz, alce-a ao céu com louvores. ‘Mas cultivou
ele próprio amizades.’ Quem nega, eu pergunto, que ele tenha sido um homem de bem, afável e
humano? Sobre seu engenho nas discussões e não sobre seu modo de proceder é que se indaga.

718
O trecho entre colchetes é expurgado por Reynolds.

358
Haja tal perversão na frivolidade dos gregos, que perseguem com ultrajes aqueles dos quais
discordam quanto à verdade. Mas, por mais que tenha sido afável em lidar com os amigos, se isso
é verdade (pois eu não afirmo nada), não foi suficientemente agudo. ‘Mas de muitos ele
conseguiu a aprovação’. 81 Sim, e com fundamento, talvez, mas não é o de mais peso o
testemunho da multidão. Pois em toda arte, ou ocupação, ou em qualquer campo de
conhecimento, ou na própria virtude, tudo que há de mais excelente é muitíssimo raro. E a mim,
ao menos, pelo fato de não só ele próprio ter sido um homem bom, como também muitos
epicureus terem sido e serem hoje não só amigos fiéis como também constantes e graves na vida
em geral e regularem suas decisões não pelo prazer, mas pelo dever, parece maior a força da
honradez e menor a do prazer. Pois de tal modo vivem alguns, que por suas vidas são refutados
seus discursos. E, assim como de outros se estima que falem melhor do que agem, esses me
parecem agir melhor do que falam.
XXVI 82 Mas isso não tem nenhuma pertinência à matéria em questão: vejamos as coisas
que tu disseste a respeito da amizade. Dentre elas, uma só tive a impressão de reconhecer como
expressa pelo próprio Epicuro: que a amizade não pode ser apartada do prazer e apenas por esse
motivo deve ser cultivada, pois, <uma vez que> sem ela não se poderia viver em segurança e sem
temores, não se poderia nem mesmo viver agradavelmente719. A isso já se respondeu
satisfatoriamente. Avançaste outro argumento mais humano, de discípulos mais recentes, jamais
expresso, que eu saiba, pelo próprio Epicuro: em primeiro lugar, busca-se o amigo com vistas ao
proveito, uma vez, porém, que tenha se acrescido o hábito, então o amor dá-se por si próprio,
deixada à parte, inclusive, a esperança com relação ao prazer720. Ainda que isso possa ser
criticado de muitos modos, aceito o que eles oferecem, pois, para mim, isso basta, para eles
próprios, não. Ora, eles dizem que em algumas ocasiões pode-se agir retamente sem que se
espere ou se procure o prazer. 83 Atestaste ainda que outros dizem que os sábios fazem entre si
uma espécie de pacto: que, do modo como estejam dispostos, em suas almas, com relação a si
próprios, do mesmo modo estejam para com os amigos; e que isso não só pode acontecer, como
amiúde tem acontecido e que tem extrema pertinência para a fruição dos prazeres.721 Esse pacto,
se o puderam fazer, façam também este: que a eqüidade, o comedimento, todas as virtudes eles
amem por si próprias, gratuitamente. Entretanto, se com interesse nos lucros, nos ganhos e no

719
Cf. I, 66-67.
720
Cf. I, 69.
721
Cf. I, 70.

359
proveito nós cultivarmos as amizades, se não houver nenhuma afeição que faça da própria
amizade, por si mesma, por sua essência, a partir e por causa de si apetecível, há dúvida de que
preferiremos as propriedades rurais e as casas para aluguel aos amigos?
84 Se queres, recorda de novo, agora, o que disse Epicuro, por meio de palavras excelentes,
em louvor à amizade: não quero saber o que ele diz, mas o que pode dizer de modo coerente com
seu raciocínio e com seu pensamento. ‘Com vistas ao proveito é buscada a amizade’. Ora, tu
pensas, então, que Triário, que aqui está, pode te render mais proveito do que se forem teus os
celeiros de Putéolos? Evoca tudo aquilo que costumas evocar: ‘a proteção que vem dos amigos’.
Em tua opinião, há suficiente proteção em ti mesmo, suficiente nas leis, suficiente nos amigos
banais; já não poderás ser desprezado; o ódio, por outro lado, e a inveja facilmente evitarás722,
pois para essas coisas Epicuro oferece preceitos. E, todavia, servindo-te prodigamente de tão
grandes rendas, ainda que sem aquela amizade de um Pílades, com a benquerença de muitos tu te
resguardarás e dela te munirás perfeitamente. 85 ‘Mas com quem as brincadeiras e as coisas
sérias’, como se diz, ‘com quem os segredos, com quem tudo aquilo que silenciamos?’ Contigo
mesmo: é o melhor; depois, até mesmo com um amigo banal. Mas supõe que tais coisas723 não
sejam inoportunas: o que são elas em comparação às vantagens de tamanha fortuna? Tu vês,
portanto, que se medires a amizade pela afeição que lhe é própria, nada há de mais excelente, mas
se a medires pelo ganho, as mais estreitas camaradagens são vencidas pelas rendas provenientes
de propriedades lucrativas. Quanto a mim, é necessário que gostes de mim e não do que é meu, se
vamos ser amigos de verdade.
XXVII Mas, numa coisa tão óbvia, nós nos estendemos demais. Pois obtido e concluído
que, se tudo for referido ao prazer, não há em parte alguma lugar para as virtudes e para as
amizades, não há muito mais a dizer. Entretanto, para que não pareça não se ter respondido a
algum argumento, falarei um pouco a respeito do restante de teu discurso. 86 Uma vez, portanto,
que a filosofia se refira, em todo seu conjunto, ao viver feliz, e que, buscando apenas isso, os
homens tenham se dirigido a este estudo e, por outro lado, que cada qual faça consistir o viver
feliz em coisa distinta – vós o fazeis consistir no prazer e, do mesmo modo, mas inversamente,
fazeis consistir toda a infelicidade na dor – vejamos primeiramente de que tipo é o vosso viver
feliz. Ora, em minha opinião, vós aceitareis que, se ao menos existe algo que seja o ‘ser feliz’, é

722
Cf. despicationes em I, 67.
723
Os segredos que tu vais partilhar.

360
necessário colocá-lo inteiramente sob o poder do sábio. Pois caso se possa perder a vida feliz, não
pode ela ser feliz. Pois quem pode ter confiança que sempre há de ter como estável e firme o que
seja frágil e perecível? Por outro lado, quem não tiver confiança na perpetuidade de seus bens, é
forçoso que tema que, se algum dia eles forem perdidos, será infeliz. Feliz, porém, com medo em
relação às coisas mais importantes, ninguém pode ser. 87 Ninguém, nesse caso, pode ser feliz.
Pois a vida costuma ser considerada feliz não com respeito a uma parte da vida, mas à sua
completa duração, e não se chama vida, de modo absoluto, senão quando ela se concluiu e
alcançou seu termo, nem pode alguém ser ora feliz, ora infeliz, pois quem estimar que pode ser
infeliz, não será feliz. De fato, uma vez iniciada a vida feliz, ela se mantém por tanto tempo
quanto a própria produtora da vida feliz, a sabedoria, e não espera o último dos dias, assim como,
escreve Heródoto, Sólon recomendou a Creso.
Entretanto, como tu mesmo dizias724, Epicuro afirma que nem mesmo a longa duração da
vida pode oferecer algo ao viver feliz e que não é menor o prazer percebido em uma curta
duração do que se ele for eterno. 88 Dizer tais coisas é a mais extrema incoerência. Pois se faz
consistir o sumo bem no prazer, nega que numa vida de duração infinita possa se dar um prazer
maior do que numa de duração finita e modesta. Quem todo o bem faz consistir na virtude, este,
sim, pode dizer que a vida feliz se realiza na completa realização da virtude, pois nega que o
tempo traz acréscimo ao sumo bem. Quem, por outro lado, pensar que é pelo prazer que se
produz a vida feliz, como estará de acordo consigo mesmo, se negar que o prazer aumenta
conforme a duração? Nesse caso, nem mesmo a dor. Ora, a dor mais duradoura é a mais
lamentável, mas a longa duração não torna o prazer mais desejável? Por que é, então, que
Epicuro, dessa forma, sempre chama a divindade de feliz e eterna? Ora, retirada a eternidade, em
nada Júpiter é mais feliz do que Epicuro, pois um e outro fruem do sumo bem, isto é, do prazer.
‘Mas este tem também dores’. Mas ele não dá a elas nenhum valor, pois afirma que, se fosse
queimado, diria: “Que delícia!” 89 Em que, então, é vencido pela divindade se não o é em
eternidade? E nessa, o que há de bom senão o prazer supremo e, além disso, eterno? Que importa,
então, falar de modo glorioso se não falares de modo coerente? No prazer do corpo
(acrescentarei, se quiseres, o prazer da alma, desde que ele próprio, como vós desejais, derive do
corpo) repousa o viver feliz. Mas como?! Esse prazer perpétuo, quem o pode proporcionar ao
sábio? Ora, as coisas pelas quais se produzem os prazeres não estão sob o poder do sábio. Não

724
Em I, 63.

361
está fundamentado na própria sabedoria, então, ser feliz, mas nas coisas que a sabedoria dispõe
com vistas ao prazer. Isso tudo, porém, é externo, e o que é externo, é da ordem do acaso. De
modo que se torna senhora da vida feliz a fortuna, ela que Epicuro diz ser insignificante como
empecilho ao sábio.725
XXVIII 90 ‘Ora, vamos’, tu dirás, ‘são coisas pouco importantes. Ao sábio dá recursos a
própria natureza, cujas riquezas Epicuro demonstrou serem facilmente alcançáveis’. Palavras
bem ditas e às quais, de minha parte, eu não me oponho; mas elas próprias se opõem umas às
outras. Pois ele nega que com o mais simples alimento, isto é, com comidas e bebidas que têm o
menor apreço, experimente-se um prazer menor do que em um banquete das mais refinadas
iguarias. De minha parte, se ele negasse haver alguma importância, para o viver feliz, no tipo de
comida de que nos servíssemos, eu lho concederia; expressaria até mesmo meus louvores, pois
estaria dizendo a verdade, e é Sócrates quem ouço dizer – ele que não inclui o prazer em parte
alguma – que da comida o melhor tempero é a fome, da bebida, a sede. Mas quem vive a referir
tudo ao prazer, como Galônio e fala como o célebre Pisão, o Frugal, a esse não dou ouvidos e
tampouco estimo que ele diga aquilo que pensa. 91 As riquezas naturais ele disse serem
facilmente alcançáveis, porque se contentaria com pouco a natureza726. Tudo bem, se não
estimásseis tanto o prazer. ‘Não é menor’, diz ele, ‘o prazer que se experimenta a partir das coisas
mais ordinárias do que das mais preciosas’. Isso é não apenas não ter bom senso, mas nem
mesmo paladar. Ora, aos que desprezam o prazer em si mesmo, permite-se dizer que não
preferem o esturjão727 à anchova. Mas para quem o sumo bem está no prazer, esse deve tudo
julgar por meio dos sentidos, não da razão, e deve dizer que o que é melhor é o que é mais
delicioso.
92 Mas, que seja! Que ele alcance os mais extremos prazeres não apenas com pouco, mas
até mesmo – vá lá – , com nada, se for possível. Que não seja menor o prazer que há naquele
mastruz de que os persas costumam se nutrir, segundo escreve Xenofonte, do que nas mesas dos
siracusanos, que são tão duramente repreendidas por Platão; que seja, sim, tão fácil quanto
quereis a aquisição do prazer: o que diremos da dor, cujos tormentos são tão intensos que, na
presença deles, se ao menos a dor é o sumo mal, não pode a vida ser feliz? Ora, o próprio
Metrodoro, quase um segundo Epicuro, descreve, com mais ou menos estas palavras, que se é

725
Cf. I, 63.
726
Cf. I, 45.
727
Cf. II, 24.

362
feliz ‘quando o corpo estiver em uma boa disposição e que essa esteja assegurada para o futuro’.
Alguém pode, por acaso, assegurar a si mesmo do estado em que se achará seu corpo, não digo
daqui a um ano, mas ao cair da noite? A dor, portanto, isto é, o sumo mal, será sempre temida,
mesmo que não esteja presente; pois poderá estar de um momento a outro. Como pode, então,
encontrar morada na vida feliz o medo do sumo mal? 93 ‘Epicuro ensina’, dir-se-ia, ‘um método
de não levar em conta a dor’. O que já é, em si mesmo, um absurdo: não levar em conta o sumo
mal. Mas qual é, enfim, o tal método? ‘A dor mais intensa’, diz ele, ‘é breve’. Em primeiro lugar,
o que dizes tu por ‘breve’? E, além disso, que dor mais intensa é essa? Mas o quê? Uma dor
extrema não pode durar vários dias? Vê bem se ela não pode durar até mesmo meses! A não ser,
talvez, que tu te refiras àquela que assim que nos arrebata, logo mata. Quem teme tal dor? Queria,
sim, que tu mais leve tornasses aquela pela qual vi ser acabrunhado um homem excelente e de
extrema humanidade, Gn. Otávio, filho de Marco, meu amigo íntimo, e, na verdade, não uma vez,
nem por breve período, mas com freqüência e por bem muito tempo. Deuses imortais, quando
todos seus membros pareciam queimar, que suplícios ele suportava! E, contudo, não parecia
infeliz, pois não era aquilo o sumo mal, tinha apenas um ar de sofrimento; mas seria infeliz, se
em uma vida escandalosa e repleta de vícios transbordasse em prazeres.
XXIX 94 Quanto ao fato, porém, de afirmardes que a dor intensa é breve e a duradoura,
leve, não entendo como é isso. Pois eu vejo dores intensas e, ao mesmo tempo, bastante
duradouras, para as quais há outra forma de tolerância mais verdadeira, da qual vós, que não
amais a honradez por si própria, não podeis vos servir. Da coragem há certos preceitos, quase
leis, que vedam aos homens efeminarem-se diante da dor. Por essa razão, deve ser reputado torpe,
não digo sofrer (pois ao menos isso é às vezes incontornável), mas macular de modo funesto,
com clamores de Filoctetes, o célébre rochedo de Lemos,

Que, mudo, ao aulido, ao queixume, ao gemido,


aos frêmitos ressonando, flébeis vozes faz ecoar.

Que Epicuro, se puder, entoe seus encantamentos a quem

Por mordedura de víbora, as veias viscerais


de veneno embebidas, suscitam infectos tormentos.

363
Assim dirá Epicuro: ‘Ó Filoctetes, se é intensa a dor, ela é breve’. E já se vão dez anos desde que
ele jaz dentro da caverna. ‘Se é duradoura, é leve, pois concede intervalos e se abranda’728. Em
primeiro lugar, isso não se dá com freqüência; e depois, que abrandamento é esse, já que fresca é
a memória da dor passada e o temor da que está por vir, iminente, atormenta? ‘Que ele se dê à
morte’, diria. Talvez isso fosse o melhor, mas onde se encaixa esta afirmação: “sempre há maior
quantidade de prazeres”? Ora, se é assim, cuidado para não praticares má ação ao convenceres
alguém a se matar. De preferência, então, diga-se isto: é torpe, não é viril mostrar-se débil diante
da dor, abater-se, sucumbir. Pois vossas palavras, ‘se intensa, breve; se duradoura, leve’, são
fórmulas vazias. É com os lenitivos que vêm da virtude, da grandeza de alma, da capacidade de
tolerar, da coragem que a dor costuma mitigar-se.
XXX 96 Para que eu não me prolongue muito, ouve o que diz Epicuro no momento de sua
morte, a fim de que percebas a dissonância que existe entre suas ações e suas palavras. ‘Epicuro
saúda Hermarco. Ao vivermos’, diz ele, ‘um dia feliz de nossa vida, que é também o último,
escrevemos estas palavras. Tão enormes, porém, são os achaques da bexiga e as cólicas, que nada
se poderia acrescentar à sua intensidade’. Homem infeliz! Se a dor é o sumo mal, não se pode
dizer outra coisa. Mas ouçamos o próprio autor. ‘Tudo isso é compensado, todavia, pela alegria
de alma que alcanço a partir da lembrança de nossos raciocínios e descobertas. Mas tu, visto que
isto é digno da tua benquerença por mim e pela filosofia, que manténs desde muito jovem, faz
com que se olhe pelos filhos de Metrodoro’. 97 Quanto a mim, já não anteponho à sua morte a de
Epaminondas, nem a de Leônidas. Um deles, vencendo os lacedemônios em Mantinéia e vendo a
si próprio esvair-se por uma grave ferida, logo que se apercebeu do que se passava, quis saber se
estava a salvo o escudo. Ao lhe responderem, em prantos, que estava a salvo o escudo, perguntou
se os inimigos tinham sido desbaratados. Tendo ouvido, também nesse caso, o que desejava,
mandou que lhe retirassem a haste que o trespassava. Assim, vertido muito sangue, alegre e
vitorioso morreu. Leônidas, por seu turno, rei dos lacedemônios, quando, nas Termópilas, o que
se apresentava era a fuga torpe, ou a morte gloriosa, a si próprio e aos trezentos que desde
Esparta comandara colocou como entrave aos inimigos729. Preclaras são as mortes dos generais;
os filósofos, por outro lado, em seus acanhados leitos geralmente morrem. Mas o que importa é

728
Cf. I, 49.
729
Cf. nota a II, 62.

364
de que modo. Feliz ele próprio730 julga estar ao morrer. Grande motivo de louvor! “São
compensadas”, diz ele, “as dores extremas, pela alegria”. 98 Eu ouço por certo a voz do filósofo,
ó Epicuro. Mas o que tu deverias dizer tu esqueceste. Pois, em primeiro lugar, se são verdadeiras
aquelas coisas por cuja recordação tu dizes te contentar, isto é, se são verdadeiros teus escritos e
descobertas, não podes te contentar. Pois já não tens nada que possas referir ao corpo e tu, por
outro lado, sempre disseste que ninguém pode se contentar, nem ressentir dores, senão com
relação ao corpo. ‘Com os prazeres passados’, diz ele, ‘eu me contento’. Mas de que prazeres
passados? Se dos que dizem respeito ao corpo, vejo-te compensar teus raciocínios com essas
dores presentes, não a lembrança de prazeres experimentados pelo corpo; mas se pertinentes à
alma, é um equívoco, já que negas haver algum contentamento da alma que não se refira ao
corpo. Por que, enfim, recomendas os filhos de Metrodoro? O que nesse teu egrégio vínculo ao
dever e tão grande lealdade (pois assim eu os estimo) tu referes ao corpo?
XXXI 99 Mesmo que, Torquato, vós vos volteis para um ou para o outro lado, nada do que
escreveu Epicuro nesta brilhante epístola vós encontrareis que seja congruente e e que esteja de
acordo com seus dogmas. Dessa forma, ele é refutado por si próprio, e seus escritos são
contestados por sua probidade e por seu modo de proceder. Pois o fato de recomendar as
crianças, o afeto e a lembrança da amizade, a observação, no derradeiro suspiro, dos deveres mais
elevados, indicam ser inata ao homem uma probidade gratuita, não induzida pelos prazeres nem
provocada pelo ganho material advindo das recompensas. Ora, que maior testemunho buscamos
de que o que seja honroso e correto, é por si próprio desejável, ao vermos tão forte vínculo ao
dever da parte de alguém que está morrendo?
100 Mas, assim como julgo que deve ser louvada essa epístola que há pouco verti quase
que palavra por palavra, mesmo que de modo algum ela estivesse de acordo com o que é
fundamental em sua filosofia, penso que seu testamento destoa não apenas da gravidade esperada
em um filósofo, mas inclusive do seu próprio pensamento. Pois ele escreveu não só por meio, às
vezes, de muitas palavras, como também, naquele livro que há pouco mencionei731, de modo
breve e franco que ‘a morte em nada nos diz respeito, pois o que foi decomposto, não tem
sensação, e o que, por sua vez, não tem sensação, em nada absolutamente nos diz respeito’. Esse
mesmo argumento, ele poderia tê-lo apresentado melhor, de modo mais esmerado. Pois a maneira

730
Epicuro.
731
Nas kurivai dovxai, obra citada em II, 20.

365
como se apresenta, “o que foi decomposto, não tem sensação” é tal, que ele não diz claramente o
que é ‘decomposto’. 101 Todavia, entendo o que ele quer dizer. Eu me pergunto, porém, por que
é que, uma vez que com a decomposição, isto é, com a morte, toda sensação se extinga, e uma
vez que nada reste que absolutamente nos diga respeito, ele, de modo tão acurado e tão
diligentemente, toma providências e determina ‘que Aminomaco e Timócrates, seus herdeiros,
disponham, segundo as decisões de Hermarco, o que seja preciso para comemorar, todos os anos,
o dia de seu aniversário, no mês do Gamelião e, do mesmo modo, todos os meses, no vigésimo
dia da lua, disponham o que seja preciso para um banquete entre aqueles que em sua companhia
filosofaram, de modo que seja cultivada a sua memória e a de Metrodoro’. 102 Tais coisas eu não
posso dizer que não sejam próprias de um homem amável, o quanto queiras, e humano, mas, de
um sábio, de modo algum, muito menos de um físico, algo que ele pretende ser: pensar que pode
haver, para alguém, um dia de aniversário. O quê? Acaso um mesmo dia, que já se passou uma
vez, pode se passar outras tantas vezes? Certamente que não pode. Um dia semelhante, talvez?
Também não, a não ser que muitos milhares de anos se sucedam de modo que aconteça de todos
os astros regressarem, a um só tempo, ao mesmo lugar de onde partiram. Não há, portanto, para
ninguém, um dia de aniversário. ‘Mas é o que se considera!’ E eu, sem dúvida, não o sabia! Que
seja, então! Mas mesmo depois da morte será comemorado e, para isso, tomará providências em
testamento aquele que, por assim dizer, proferiu-nos um oráculo732: que nada após a morte nos
diz respeito? Isso não seria próprio daquele que, com a mente, teria percorrido inumeráveis
mundos e infinitas regiões, para as quais não haveria nenhuma margem, nenhuma extremidade.
Acaso faria algo semelhante Demócrito? Deixando de lado outros, menciono aquele que foi o
único que ele seguiu. 103 E se devia ter distinguido um dia, melhor o dia em que nasceu ou
aquele em que se tornou sábio? ‘Não poderia ter se tornado sábio’, tu dirás, ‘se não tivesse
nascido’ Desse modo, nem mesmo se sua avó não tivesse nascido. É a coisa como um todo,
Torquato, que não é própria de homens doutos, querer que após a morte seja celebrada em
banquetes a memória de seu nome. Sobre como vós comemorais tais dias e a quantos refinados
gracejos de homens espirituosos vós vos sujeitais, eu nada digo (não há o que discutir); digo
apenas que mais caberia a vós comemorar o dia do aniversário de Epicuro do que a ele, em
testamento, tomar providências para que se comemorasse.

732
Cf. II, 20.

366
XXXII 104 Mas, para voltarmos a nosso propósito (pois foi ao falarmos da dor que nós nos
desviamos para essa carta), podemos agora concluir todo o argumento da seguinte forma: quem
se encontra no sumo mal, no momento em que nele se encontra, não pode estar feliz; o sábio,
porém, é sempre feliz e, algumas vezes, experimenta dor. O sumo mal, portanto, não é a dor. E a
afirmação seguinte, o que significa? Que os bens passados não escapam ao sábio, mas que ele
não deve se lembrar dos males? Em primeiro lugar, temos poder sobre os objetos de nossas
lembranças? Temístocles, ao menos, ao lhe prometer Simônides, ou algum outro, a arte da
memória, disse: ‘preferiria a arte do esquecimento, pois lembro até do que não quero, e não posso
esquecer o que quero’ 105 Epicuro é dotado de grande engenho, mas a coisa se dá de tal forma,
que é excessivamente autoritário um filósofo que queira impedir as lembranças. Vê bem se
vossas ordens não são dignas de um Mânlio733, ou ainda mais intransigentes, quando me ordenes
fazer o que eu não posso. Mas, que dizer se é agradável a lembrança dos males passados? De
modo que alguns provérbios seriam mais verdadeiros que vossos dogmas. Pois em toda parte se
diz: ‘agradáveis as fadigas já enfrentadas’, e não se expressa mal Eurípides (refaço a cadência, se
puder, em latim, pois todos vós conheceis este verso grego):

Doce é das fadigas passadas a lembrança.

Mas voltemos aos bens passados, que, se vós considerásseis tais quais aqueles de que podia se
servir G. Mário para, banido, sem nada, mergulhado em um pântano, pela recordação dos troféus
aliviar sua dor, eu vos daria ouvidos e total aprovação. Pois não poderá ser completa a feliz vida
do sábio nem conduzida completamente a termo se cada uma, sucessivamente, de suas boas
deliberações e ações forem sepultadas em seu esquecimento. 106 Mas, para vós, a recordação dos
prazeres experimentados torna a vida feliz e, na verdade, daqueles que foram experimentados
pelo corpo. De fato, se existirem outros prazeres, é falso que todos os prazeres da alma derivam
de sua associação com o corpo. Se, porém, o prazer passado do corpo também é agradável, não
entendo por que Aristóteles tão intensamente escarnece do epitáfio de Sardanápalo, no qual o
célebre rei da Síria se enaltece de ter levado consigo todos os prazeres de seus desregramentos.
‘Ora, aquilo que, nem mesmo estando vivo’, diz ele, ‘podia sentir por mais tempo do que durante
a fruição, de que modo poder-lhe-ia persistir, estando morto?’São fugidios, portanto, os prazeres

733
Cf. II, 60 e I, 23.

367
do corpo e, alados, escapam uns depois dos outros e deixam mais freqüentemente motivo para
arrependimento do que para recordação. E assim, é mais feliz o Africano734 ao falar à pátria
daquele modo:

Cessa, ó Roma, de teus inimigos...

E o restante, brilhantemente:

Pois a ti geraram muralhas as minhas fadigas.

Com fadigas passadas ele se contenta, já tu, ordenas contentar-se com os prazeres; ele chama a si
próprio de volta para ações com relação às quais ele jamais poderia ter referido algo ao corpo, tu
te agarras por inteiro ao corpo.
XXXIII 107 Por outro lado, como se pode sustentar aquilo que vós dizeis, a saber: que
todos os prazeres e dores da alma dizem respeito a prazeres e dores do corpo? Acaso a ti nada
jamais agrada (eu sei com quem estou falando), a ti, então, Torquato, nada por si próprio agrada?
Deixo de lado o mérito, a honradez, a própria forma da virtude, coisas de que falamos antes, e
proponho estas menos importantes: um poema, um discurso, quando o escreves ou quando o lês,
quando procuras saber a história de todos os acontecimentos, das regiões, uma estátua, um
quadro, um lugar ameno, os jogos, uma caçada, a quinta de Luculo (pois, se eu dissesse a tua,
terias um refúgio: dirias que tem relação com o corpo); ora, as coisas que mencionei é ao corpo
que referes? Ou há algo que te agrade por sua força própria? Ou te mostrarás o mais obstinado
dos homens, se persistires em referir ao corpo tudo o que mencionei, ou abandonarás
completamente o prazer de Epicuro, se o negares.
108 Mas quanto a argumentares que são maiores os prazeres e dores da alma que os do
corpo, porque a alma tome parte em três tempos e o corpo, por seu turno, sinta apenas o que é
presente735, como se pode provar isso, de modo que aquele que se contente com algo por amor a
mim, alegre-se mais do que eu próprio? [pois na alma o prazer surge graças ao prazer do corpo, e
maior é o prazer da alma que o do corpo. Assim, dá-se que quem felicita tem maior alegria do

734
Cf. II, 56.
735
Cf. I, 55.

368
que aquele a quem ele felicita]. Mas, ao desejardes tornar feliz o sábio, uma vez que ele
experimente com a alma os mais extremos prazeres e, sob todos os aspectos, maiores do que com
o corpo, não percebeis o que se coloca como entrave. Ora, ele experimentará também dores da
alma sob todos os aspectos maiores que as do corpo. De modo que é forçoso que será infeliz
algumas vezes aquele que vós quereis que seja sempre feliz; e isso, na verdade, enquanto
continuardes a tudo referir ao prazer e à dor, é algo que não conseguireis realizar.
109 Por isso, Torquato, deve-se encontrar algum outro sumo bem para os homens, o prazer
concedamos aos animais, dos quais vós costumais vos servir como testemunhas do sumo bem736.
Mas e se até mesmo os animais, cada qual tendo sua natureza como guia, fazem muitas coisas,
em parte de modo zeloso ou com fadigas, de sorte que, ao gerarem, ao criarem seus filhotes,
torne-se facilmente manifesto que alguma outra coisa se lhes coloca como propósito e não o
prazer? Parte deles se alegra com corridas e grandes deslocamentos, outros, em aglomerações,
imitam de algum modo o ajuntamento que é próprio da cidade; 110 vemos em determinado
gênero de aves alguns indícios de dedicação, de conhecimento, de memória, em muitos vemos até
mesmo saudades. Haverá, então, nos animais, sem relação com o prazer, certas imagens das
virtudes humanas e nos próprios homens nenhuma virtude existirá senão com vistas ao prazer? E
ao homem, que imensamente excede os outros animais, diremos que a natureza nada deu de
excepcional?
XXXIV 111 No entanto, se de fato tudo consiste no prazer, nós estamos muito aquém dos
animais, para os quais, sem qualquer fadiga, a terra transborda por si mesma de alimentos vários
e abundantes; para nós, por outro lado, que com grande fadiga buscamos obtê-los, ou mal bastam,
ou nem mesmo bastam. De qualquer forma, não posso considerar de modo algum que haja, para
os bichos, o mesmo sumo bem que para os homens. Pois qual é a necessidade de tão grande
instrumental para aquisição das mais excelentes artes? Qual a necessidade de tão grande
cooperação entre os mais honrados estudos, de tão grande cortejo de virtudes, se tais coisas não
são procuradas com outro fito senão o prazer? 112 Assim como se Xerxes, com tão poderosas
frotas e tão grande poderio de cavalaria e infantaria, jungido o Helesponto, trespassado o Atos,
tivesse caminhado sobre os mares, navegado sobre as terras; se, com tão grande ímpeto tivesse
vindo à Grécia e alguém lhe perguntasse qual era a razão de tão poderosas forças e de tão grande
guerra e ele dissesse que queria levar para si mel do Himeto, por certo pareceria sem razão o fato

736
Cf. II, 32.

369
de ter se lançado a tão grande empreendimento; da mesma forma nós, se dissermos que o sábio se
armou e se adornou das mais numerosas e importantes artes e virtudes e que não fez como
aquele, que atravessa os mares a pé e com frotas os montes, mas todo o céu e a terra inteira, mais
o mar em sua totalidade, abarcou com a mente para buscar o prazer, diremos que foi com vistas
ao mel que realizou tão grande esforço.
113 Para algo de mais elevado e de mais grandioso, crê em mim, Torquato, nós nascemos;
e isso não decorre apenas das partes da alma, entre as quais está a memória de incontáveis coisas,
que em ti é, sem dúvida, infinita, está a conjectura do que vai se seguir, não muito diferente da
adivinhação, está o pudor, moderador dos desejos, está o constante zelo à justiça em favor da
associação humana, está o firme e sólido desprezo da dor e da morte em meio às fadigas que
temos de suportar e aos riscos que temos de enfrentar; isso, portanto, quanto à alma; por outro
lado, considera ainda os próprios membros e os sentidos, que te parecerão, assim como as demais
partes do corpo, não apenas como companheiros das virtudes, mas como seus servidores. 114 E
se no próprio corpo muitas coisas devem ser antepostas ao prazer, como o vigor, a saúde, a
velocidade, a beleza, o que pensas enfim com relação à alma, na qual os mais célebres e sábios
dentre os antigos julgaram haver algo de celeste e divino? Ora, se o sumo bem consistisse no
prazer, como dizeis, seria desejável achar-se no mais extremo prazer, sem nenhum intervalo de
permeio, por dias e noites, com todos os sentidos movidos e banhados, por assim dizer, por uma
doçura plena. Mas que homem, digno de ser assim chamado, desejaria encontrar-se por um só
dia, por um dia completo, em tal sorte de prazer? Os cirenaicos, é verdade, não o recusam, os
vossos são aqui mais pudicos, aqueles, talvez, mais coerentes. 115 Mas examinemos com atenção
não estas artes, as mais importantes, das quais quem estivesse privado era chamado ‘inerte’ por
nossos antepassados; pois bem, o que pergunto é se tu estimas que, não digo Homero, Arquíloco,
Píndaro, mas Fídias, Policleto, Zêuxis dirigiram suas artes tendo em vista o prazer. Portanto, o
artífice terá o seu propósito na beleza das formas mais do que um cidadão excelente o tem na
beleza das ações? Qual é, entretanto, a causa de tão grande erro, tão ampla e largamente
difundido, senão que aquele que determina que o prazer é o sumo bem delibera não com a parte
da alma na qual está a razão e o juízo, mas com o desejo, isto é, com a parte mais volúvel da
alma? Quero, então, te perguntar: se os deuses existem, como também vós pensais, como podem
ser felizes sem que possam com o corpo experimentar prazeres, ou, se são felizes sem esse tipo
gênero de prazer, por que vós não aceitais no sábio um uso semelhante da alma?

370
XXXV 116 Lê os elogios, Torquato; não daqueles que foram elogiados por Homero, nem
de Ciro, nem de Agesilau, nem de Aristides ou Temístocles, nem de Filipe ou Alexandre, lê os
dos nossos homens, lê os de vossa família: ninguém tu verás de tal modo ser elogiado, que seja
tratado como um artífice hábil na obtenção de prazeres. Não é isso que declaram as inscrições
tumulares, como esta diante de uma das portas da cidade.

Sobre este, um homem só, numerosas nações estão de acordo:


Foi do povo um homem de primeira ordem.

117 Nós julgamos que numerosas nações estão de acordo quanto ao fato de Calatino ter sido um
homem de primeira ordem em nossa pátria, porque fosse excelente em produzir prazeres?
Portanto, depositaremos uma grande esperança e diremos que têm índole elevada os jovens que
julgarmos escravos do que lhes traga vantagens e dispostos a fazer tudo aquilo que lhes seja
pessoalmente proveitoso? Porventura não vemos que grande e geral perturbação disso resulta,
que grande desordem? Elimina-se o benefício, elimina-se a gratidão, que são os vínculos da
concórdia. Pois, se tu te mostras prestativo para com alguém em teu interesse, não se deve
considerar isso um benefício, mas empréstimo a juros, e também não parece que se deva
agradecer a quem em próprio interesse foi prestativo. As mais importantes virtudes jazem por
terra, necessariamente, sendo o prazer o soberano. Há ainda muitíssimas torpezas que, caso a
honradez não tenha, por natureza, o mais alto valor, não é fácil defender uma razão por que não
recaiam sobre o sábio.
118 Mas, para que não me estenda a outros argumentos (pois eles são inumeráveis), é
forçoso que a virtude, tendo sido bem louvada, embargue o acesso ao prazer. Isso tu não deves
mais esperar de mim: olha tu mesmo para dentro de tua mente e, examinando-a, tu próprio,
cuidadosamente, por meio de todo pensamento, interroga, tu a ti mesmo, se preferes passar todos
os teus dias desfrutando plenamente de prazeres perpétuos, naquela tranqüilidade, de que muitas
vezes lançaste mão, livre da dor, admitido ainda aquilo que vós por certo costumais acrescentar,
mas que não pode acontecer: livre do medo da dor, ou, ao merecer, de modo excelente, o
reconhecimento de todas as nações e ao levar auxílio aos que precisam e salvação, suportar até o
fim as provações de um Hércules. Pois assim os nossos antepassados denominaram, com o
sombrio nome de ‘provações’ – é verdade – mesmo com relação a um deus, as fadigas às quais

371
não se deve fugir. 119 Eu próprio te obrigaria a dar uma resposta, arrancá-la-ia de ti, se não
receasse que tu dirias que foi com vistas ao prazer que o próprio Hércules realizou aquilo que
pela salvação dos povos ele realizou com fadiga extrema”.
Depois que eu disse isso, “Tenho”, disse Torquato, “a quem reportar esses teus argumentos
e, ainda que eu próprio pudesse dizer algo, prefiro, contudo, encontrar pessoas mais bem
preparadas”.
“A nossos amigos íntimos, Síron e Filodemo, creio, tu te referes, homens não só excelentes,
mas extremamente doutos”.
“Entendeste bem”, disse ele.
“Pois muito bem”, eu disse, “Mas seria mais justo se Triário tecesse algum juízo a respeito
de nossa dissensão.”
“Protesto!” Disse ele sorrindo. “É injusto. Ao menos quanto a esta matéria, pois teu
discurso foi em tom bem ameno, ele nos acomete com violência, à maneira dos estóicos”.
E então, disse Triário: “Daqui por diante, sem dúvida, serei mais ousado. Pois terei à minha
disposição isso que acabo de ouvir; mas não investirei antes que te veja bem armado por esses a
quem te referes”
Ditas tais coisas, chegamos ao fim da caminhada e da discussão.

372
Notas ao livro II

I, 1 Górgias: célebre pensador, natural de Leontinos, cidade da Sicília. Viveu por quase um século,
tendo nascido por volta do ano 485 a.C. É contado pelos antigos entre os sofistas (cf. seção 2), isto é,
intelectuais que andavam de cidade em cidade oferecendo seus ensinamentos (geralmente a respeito da
técnica oratória) em troca de dinheiro. Legou-nos importantes textos, dentre os quais o célebre Elogio de
Helena. Foi representado como personagem por Platão no diálogo Górgias, em que há referência, aliás, ao
procedimento aqui mencionado pela personagem de Cícero (cf. Górgias, 447 c-d).
Nossos filósofos: Os filósofos da Academia, como a seqüência do texto deixa claro. A personagem
que representa o autor associa o método de discussão adotado por alguns dos expoentes da Academia ao
pretensioso procedimento de Górgias. O livro II se inicia sob a sombra de duas importantes figuras do
pensamento antigo: Sócrates e Górgias. O confronto que o autor estabelece entre os dois pensadores e a
discussão que surge entre sua personagem e a de Torquato nos remetem inequivocamente ao Górgias de
Platão (cf. seção 2: ut e Platone intellegi potest).
I, 2 Terem suas pretensões frustradas por Sócrates. É o que pensa Reid (ad locum), que julga que o
particípio lusos, na passagem, significa antes “foiled” do que “mocked”, algo que, segundo ele, faria mais
justiça ao conjunto de diálogos de Platão. Para consguir esse valor, o editor propõe uma correção: elusos.
A opção é sustentada à revelia de passagens como Acad. II, 123 e De leg. II, 52, em que o verbo eludo tem
valor de “zombar de”. Será que, aplicado a Sócrates, célebre por sua ironia, lusos não poderia aliar aqui os
dois valores: “frustrar as pretensões de alguém por meio do cômico”?
Se assim lhe parecesse bem. O sentido mais preciso é: “se lhe parecesse que contra algo devia
argumentar”. Quanto à discussão socrática, conduzida por meio de perguntas e respostas, veja-se o estudo
que acompanha a tradução.
Sobre Arcésilas, veja-se o estudo que acompanha a tradução.
O que agora se dá... até mesmo na Academia. Discutimos no estudo que acompanha a tradução as
diferentes fases pelas quais passou a Academia fundada por Platão segundo a perspectiva ciceroniana.
Pois, quando alguém que quer ouvir... Relacionamos o procedimento mencionado nesta passagem à
schola (cf. seção 1), uma vez que a personagem afirma ser justamente o contrário daquilo que ela pretende
fazer. Corrobora esta interpretação o fato de nas Tusculanae disputaiones Cícero afirmar que aquilo que
representa nos cinco livros são scholae (ut iam etiam scholas Graecorum more habere auderemus, “que
até mesmo ousássemos apresentar conferências à maneira dos gregos”: Tusc. I, 7). Ora, o exemplo
aventado aqui (ubi enim is qui audire uult ita dixit: 'Voluptas mihi uidetur esse summum bonum', perpetua
oratione contra disputatur) remete-nos ao tema mesmo tratado na primeira das Discussões tusculanas. E
se num primeiro momento magister e auditor discutem por meio de perguntas e respostas, logo o

373
procedimento é preterido em favor de um discurso contínuo. A questão não é simples, porém, uma vez
que em De finibus II, onde a personagem de Cícero nega se servir da schola, o movimento será bastante
semelhante ao de Tusculanae I, isto é, do diálogo cerrado ao discurso contínuo. Mas devemos ter em
mente que, nas Tusculanas, o autor afirma que se vale de scholae; no De finibus, é a personagem que
parece tentar escapar a esse procedimento, algo que não consegue devido à desistência de seu interlocutor.
I, 3 De modo mais vantajoso: Poderíamos pensar ainda em “mais apropriado”, ou “mais
conveniente”, mas devemos lembrar que a raiz commod- passa a ser, a partir do livro III, utilizada em um
importante conceito da discussão entre estóicos, de um lado, e peripatéticos e acadêmicos, de outro: aquilo
que é apropriado à natureza e, portanto, aquilo que lhe é vantajoso.
Quanto a nós... Eu, de minha parte... O contraste entre nos e ego é aqui muito interessante. Com
nos, Cícero parece fazer alusão aos neo-acadêmicos, entre os quais ele se inclui de algum modo: seguindo
o método desses, permitiu que Torquato se exprimisse longamente, dando ainda os motivos pelos quais
sustenta a teoria do prazer. Com ego, entretanto, ele professa sua propensão a utilizar um outro tipo de
método, atribuído, na passagem, a Sócrates: examinar atentamente a argumentação do interlocutor por
meio de perguntas.
Como em algumas fórmulas do direito, ‘esta será a matéria tratada’. A menção ao princípio da
oJmologiva vem ilustrado por meio de uma fórmula do direito. Com isso, Cícero consegue se fazer entender
por boa parte do público romano que, versado no jargão dos tribunais, não foi ainda iniciado em filosofia.
Mais que isso, é notável a aproximação que se faz entre a discussão filosófica e o debate jurídico que vai
culminar, mais adiante, com a admissão do discurso contínuo, próprio do orador, como um meio adequado
à investigação filosófica, desde que inserido em determinado procedimento, o do confronto entre discursos
contraditórios: justamente o adotado nos processos jurídicos.
II, 4 Esse princípio, estabelecido por Platão no Fedro. Platão, Fedro 237b. Sobre essa mesma
necessidade de acordo entre os que dicutem, há ainda importantes considerações feitas no Górgias (cf.
oJmologou'nta em 472b7) e no Teeteto. Trata-se de um elemento necessário à discussão filosófica: a
oJmologiva (cf. Hutchinson, ad locum). Nesta passagem, Cícero exprime o princípio por meio do verbo
conuenio. Ora, no livro III, o conceito estóico de oJmologiva será vertido por conuenientia. Na tradução
que propomos para a oJmologiva estóica optamos por “acordo”, por acreditarmos que, ainda que
sensivelmente diferente do conceito socrático (ou platônico), que dá conta apenas do acordo discursivo, o
conceito estóico guarda algo desse valor anterior. O homem deve estar racionalmente em concordância
com a natureza: seu lovgo" deve estar em acordo com o lovgo" universal, que se propaga por tudo aquilo
que existe.

374
II, 5 Esse franqueamento, por assim dizer... Reid nota (ad locum) que esta é a única ocorrência do
substantivo patefactio na literatura clássica. Daí, nossa opção por um termo não muito corrente em
português. O quasi é marca, aliás, de que o estranhamento era um dado do próprio texto ciceroniano.
Inadvertidamente: Cícero parece esquecido do fato de que Torquato definiu o sumo bem não de
modo inadvertido, mas seguindo deliberadamente os preceitos de Epicuro (ver I, 29 e 42 e nota de Reid à
passagem).
Gostaria que definisses o que é o prazer. Reid observa (ad locum) que, na seção 45, ao tratar de
honestum, porém, a personagem Cícero afirma que o sentido de uma palavra é mais bem compreendido a
partir da opinião comum do que por meio de uma definição. Isto é, Cícero critica em Torquato um
procedimento que ele próprio adota quando se serve de um conceito que, diga-se de passagem, é
controverso.
II, 6 Bem aprendido e, de maneira suficientemente firme, concebido na alma e compreendido.
Traduzimos buscando realçar a nuance da expressão formada por habere seguido de particípio, que, em
Cícero, nem sempre é uma construção com uma espécie de verbo auxiliar (conforme sugere Reid, ad
locum). Notemos que a passagem apresenta importantes conceitos da teoria do conhecimento discutida
nos Livros Acadêmicos e que foram apresentados, ainda que sucintamente, no estudo que acompanha a
tradução.
Isto é: Veja-se a nota apresentada por Reid em sua edição da Academica (I, 8), a respeito das
cláusulas ciceronianas introduzidas por id est. Para esse autor, poucas vezes se trata de uma mera
repetição do que já foi dito. Aqui, de fato, a expressão introduz uma explicação a respeito da frase
anterior.
Que coisa subjaz a essa palavra. Cícero parece traduzir, nesta passagem, uma expressão de Epicuro
que nós podemos ver na Carta a Heródoto, citada por Diógenes Laércio (X, 37):
to; uJpotetagmevna tw/' fqovggw/ (cf. Madvig, ad locum). Haveria aqui, em conseqüência disso, uma
referência à teoria da prolhvyi". As prolhvyei" são as noções que são impressas na mente pelas
experiências das coisas; elas formam a base de todo raciocínio de acordo com a doutrina do Jardim (cf.
Reid, ad locum).
III, 6 Porque todos consideram: sentiunt não pode significar aqui outra coisa senão ter uma opinião
e expressá-la. Recordemos que esse é um sentido não raro, presente, por exemplo, em sententia. Não são
poucos os problemas, entretanto, para a expressão filosófica, que advêm do fato de o latim exprimir por
meio da raiz sent- tanto o que é da ordem do pensamento quanto o que é do âmbito da percepção.
III, 7 Ou essas não são palavras dele? Palavras atribuídas a Epicuro também por Ateneu
(Deipnosophistae, VII, 278f, VII, 280a e XII, 546e). Cícero retoma-as nas Tusculanae (III, 41-42), onde a
citação é mais longa, com o texto seguindo além do ponto em que se detém Ateneu.

375
Tão importante nomeação: beneficium pode ser “nomeação para um cargo”. A seqüência do texto,
com o uso de nominati, termo que evoca o contexto eleitoral, estende a imagem criada por Cícero.
III, 8 Epicuro conhece precisamente. Indagamo-nos se certe não poderia ter aqui valor restritivo:
“Epicuro conhece ao menos o mesmo sentido”. Outros tradutores interpretam que o advérbio modifica o
verbo sumo. Entretanto, parece-nos contraditório supor algo com certeza. Pela posição em que está,
colocado entre eadem e uim, chegamos à tradução proposta no corpo do texto, que decorre mais
naturalmente, segundo nos parece, da ordem das palavras.
Hierônimo de Rodes: filósofo de formação peripatética que viveu no século III a.C.. Dele nos
restam poucos fragmentos, de modo que, grande parte do que se sabe a respeito de sua filosofia é o que se
encontra aqui exposto. É fato que sua concepção de sumo bem é estranha para um seguidor de Aristóteles
(cf. De fin. V, 14). Marinone (ad locum) informa que teria deixado o Liceu, quando esse era dirigido por
Lícon, e teria fundado uma escola de tendência eclética.
III, 9 Alegrar-se traduz aqui gaudere. O dicionário de Félix-Gaffiot apresenta uma distinção entre o
verbo gaudere, que significaria experimentar uma alegria interior, íntima, e laetari, que indicaria uma
exteriorização dessa alegria; para sustentar a argumentação, cita-se uma passagem das Tusculanae (IV,
66): gaudere decet, laetari non decet. Devemos dizer, no entanto, que a passagem citada depende de uma
distinção feita antes (em Tusc. IV, 13) que põe de um lado o contentamento comedido, com fundamento
racional (gaudium) e a alegria excessiva (laetitia...nimia), ocasionada por erro de opinião e que se
manifesta de maneira indecorosa. Nesta seção 9 do livro II, a distinção não é, entretanto, o mais
importante. Quando Cícero a aplica, costumamos traduzir laetitia por “alegria” e gaudium por
“contentamento”. Devemos dizer que palavras desse campo semântico acarretam uma dificuldade ao
tradutor português, visto que muitos vocábulos, como “regozijar-se”, “jubilar-se”, etc. são termos bastante
marcados pela tradição religiosa cristã.
Obstinado: sobre a noção de pertinacia, cf. nota de Reid a Academica I, 44. Esse elemento que, se
presente em um dos debatedores, seria desvantajoso para discussão é contemplado no estudo que
acompanha a tradução.
III, 10 Mas [tu afirmas] que não há aumento. Julgamos que a oração infinitiva de que faz parte
augeri depende do verbo ais. As traduções consultadas parecem sugerir uma ligação entre faciat e augeri,
que, pensamos, não se sustenta na sintaxe latina.
IV, 11 Por assim dizer, o não-sofrer. Pela ressalva expressa por ut ita dicam, vemos que se trata de
um vocábulo pouco usual. Ele traduz a noção para a qual o grego tem ajoclhsiva, ajpavqeia, ou ajponiva (cf.
Reid, ad locum).
IV, 12 Uma meretriz numa reunião de senhoras de respeito. Sobre esse tipo de imagem injuriosa,
cf. André, J-M. “Les injures dans la controverse philosophique à Rome à la fin de la République”, p. 218.

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O célebre Cincinato: Lucius Quinctius Cincinnatus, ditador em 458 (ou 457), por ocasião de uma
invasão dos Équos. Segundo a tradição, sob o perigo da ocupação dos Équos, que era iminente, os
romanos concordaram em confiar a ditadura (poderes plenos delegados a alguém para cumprir uma
missão específica) a um ilustre patrício, Cincinato que, à época, estava reduzido à pobreza e cuidava de
suas terras, nos campos da margem direita do Tibre. Os delegados que lhe levavam a notícia, encontraram-
no arando a terra. O ditador conseguiu rechaçar o inimigo ao cabo de quinze dias. Depois de cumprida a
missão, deixou o poder e retornou às suas terras (cf. Oxford Classical Dictionnary).
IV, 13 Que é idêntico o que eu chamo prazer e ele, hJdonhv: Madvig (ad locum) critica o uso de esse
nessa passagem, uma vez que Cícero está se referindo não à coisa, mas às palavras que a designam. Reid
(ad locum) indica, no entanto, diversas outras passagens em que o romano se serve de esse mesmo quando
a questão é apenas com relação à terminologia. Apresenta, entretanto, passagens em que a expressão cria
ambigüidades, como em De finibus IV, 31 e V, 20 (rebus eis quas primas secundum naturam esse
diximus) em que o autor considera que o sentido é “esses objetos que nós consideramos ser os primeiros
que concordam com a natureza”.
Alegria na alma: cf. nota a II, 9. No entanto, na passagem das Tusculanae citada acima, o autor se
serve de uma argumentação diferente da que apresenta na seqüência deste texto.
A célebre personagem de Trabéia: Quinto Trabéia, autor de comédias que viveu no século II a.C.
Conhecemos apenas fragmentos de obras suas, a partir justamente de citações de Cícero (cf. Marinone, ad
locum).
‘O desmedido prazer da alma’. Há citação mais completa desta passagem em Tusculanae IV, 35:
ego uoluptatem animi nimiam summum esse errorem arbitror, cuja tradução poderia ser “quanto a mim, o
prazer desmedido da alma, eu julgo ser o erro supremo”.
Um arrebatamento sem razão de uma alma que julga fruir de um grande bem: cf. De finibus, III,
35; referindo-se a mesma definição: Tusc. IV, 13: nam cum ratione animus mouetur placide atque
constanter, tum illud gaudium dicitur; cum autem inaniter et effuse animus exultat, tum illa laetitia
gestiens uel nimia dici potest, quam ita definiunt: sine ratione animi elationem, isto é: “quando a alma é
posta em movimento pela razão, de modo plácido e coerente, então isso é chamado gaudium
[contentamento], mas, quando de modo vão e efusivo, a alma se enleva, então essa pode ser chamada de
alegria incontida e excessiva, a qual eles definem assim: o arrebatamento [elationem] da alma sem razão.
Para essa definição de prazer, ver ainda Diógenes Laércio VII, 114.
IV, 14 De tamanha alegria fui tomado... Nossa tradução desse verso desconhecido se afasta da letra
original, mas pensamos assim guardar parte do sentido e, por outro lado, dar conta do eco que se cria com
a doutrina estóica que serve à crítica ciceroniana, expressa por termos como constantia, constanter, etc, a
partir da ocorrência aqui do termo constet.

377
Agora, precisamente... O verso completo, que é de Cecílio, é citado por Cícero em seu discurso Pro
Caelio: nunc enim demum mi animus ardet, nunc meum cor cumulatur ira. Propomos a seguinte tradução:
“agora, precisamente, põe-se-me a alma em chamas; agora, o meu coração transborda de ira”.
[Ainda que nos conheçamos há bem pouco tempo]. Trata-se do primeiro verso do
Heautontimoroumenos de Terêncio. É uma fala de Cremete dirigida a seu vizinho, Menedemo. Os três
versos citados evocam personagens paternos de peças cômicas. Respectivamente eles representam o pai
satisfeito com o seu filho, o pai encolerizado e, por fim, no verso de Terêncio, que é, deve-se dizer,
expurgado do texto de Reynolds, o pai completamente indiferente (cf. Reid, ad locum).
V, 15 Como tenho cá para mim: Reid (ad locum escreve: “ut uideor = ut mihi uideor, as often”. Por
isso, optamos por essa tradução, pois “como pareço” exprimiria um sentido um tanto diferente.
V, 15 Heráclito: filósofo de Éfeso, especialmente preocupado com o estudo da natureza. Viveu no
fim do século VI e início do século V.
‘Que é proclamado com a alcunha skoteinov"... Julga-se que esta passagem seja uma citação,
provavelmente de Lucílio. Para Madvig, cognomentum “comicorum est et eorum scriptorum qui antiqua
aut obsolescentia retinuerunt, aut obsoleta revocarunt, Salustii, Messallae, Taciti (ad locum)”. Além disso,
Reid (ad locum) refere outra obra de Madvig em que o filólogo alemão diz que perhibere é poético e que
não é equivalente de dicere, mas significa “cum laude narrare et commemorare”; Opusc. I, 200, apud
Reid.
V, 16 Aonde quer chegar: para Reid, Cícero usa tendere aqui com o sentido de contendere. O
sentido seria então “Por que emprega tanto esforço?”, “Por que peleja?”; o que, de fato, vai bem com a
seqüência do texto. São citadas passagens de valor semelhante em outras obras de Cícero: quid pugnas?
em Acad. II, 54. Acreditamos ser uma hipótese engenhosa, já que, no sentido de “a que tende”,
deveríamos antes esperar quo tendit. Mas recordemos que contendo pode significar ainda “lançar, atirar,
arrojar” um dardo, ou uma flecha. Daí, a expressão poderia significar “qual sua meta?”, “o que pretende?”
Que tenha chegado a ver... Há aqui uma menção ao célebre preceito délfico do “conhece-te a ti
mesmo”, mas com uma interpretação bastante peculiar e, sobretudo, bastante diferente do uso que dele faz
o Sócrates de Platão, o fundador da Academia, de que Cícero professa ser seguidor.
Os conhecimentos das palavras. Para Hutchinson (ad locum), cognitiones uerborum é o mesmo que
notiones. O anotador nos remete a uma passagem de De natura deorum (I, 36): (Zeno) tollit omnino
usitatas perceptasque cognitiones deorum, neque enim Iouem neque Iunonem neque Vestam ... habet in
deorum numero, sed rebus inaminis et mutis per quandam significationem haec docet tributa nomina.
Explica assim. O hábito semeia dentro de nossa mente certas idéias, como o sentido de certas palavras.
Dizer, como Zenão, que Júpiter não se refere a uma pessoa, mas a uma coisa, o éter, ou, como Epicuro,
que o prazer não é o agradável movimento dos sentidos, mas a ausência de dor é ir contra os sentidos que

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guardamos internamente. Reid, por sua vez, remete-nos a uma passagem do livro III (17), ao mencionar o
uso pouco comum de cognitiones no plural, que ele interpreta aqui como “pedaços de conhecimento”.
Note-se ainda o malicioso jogo de palavras que Cícero estabelece: Torquate... extorquere. Poderíamos
tentar reproduzi-lo assim: “Isso, Torquato, é extorquir das almas o conhecimento (...)”. Mas o sentido seria
um tanto diferente.
VI, 17 Como se o discurso contínuo... Uma discussão a respeito dos pontos de contato, no
pensamento ciceroniano, entre a filosofia e a retórica é apresentada no estudo que acompanha a tradução.
É de Zenão, o estóico... Cf. Orator 113-114. Uma bela análise da imagem atribuída ao fundador do
estoicismo se encontra no livro de Gabriella Moretti (Acutum dicendi genus. Brevità, oscurità, sottigliezze
e paradossi nelle tradizioni retoriche degli stoici), citado na bibliografia deste trabalho.
VI, 18 Versos em anapesto: versos de uma tragédia desconhecida. Quanto ao verbo citantur, Reid
(ad locum) traz uma explicação cuja referência não é mencionada: “citantur ne hic quidem est ut in lexicis
explicari uideo, nominantur, sed fuit in illo cantico uocatio quaedam et citatio, ut adessent”.
VI, 19 Califón: pouco se sabe a respeito da vida e da corrente a que pertencia esse filósofo que é
citado ainda em Tusc. V, 85; De off. III, 119 e Acad. I, 131 e 139.
Diodoro: filósofo do século II a.C. de quem se sabe pouco mais do que é referido por Cícero: foi
peripatético, discípulo e sucessor de Critolau na direção do Liceu, cf. Tusc. V, 85.
VII, 20 Como que oráculos de sabedoria: cf. De fin. I, 63; II, 102 e Tusc. I, 48 e Lucrécio, De
rerum natura I, 738 e ainda V, 8.
Se eu traduzo corretamente esta sentença. O texto que segue é uma tradução da Máxima X, citada
por Diógenes Laércio em X, 142. Cícero deixa de lado, contudo, a expressão th'" dianoiva" e substitui
metewvrwn por deos. A substituição, como aponta Madvig (ad locum), não faz com que o tradutor se afaste
muito do conteúdo, já que o adjetivo grego significa “elevado, que está no alto”.
VII, 21 Aflitivo: um pouco estranho o uso de dolens com o sentido de “o que causa dor”, mas Reid
aponta uma outra ocorrência em Cícero: Tusc. I, 79.
Quis ouvir Torquato admitindo: nesta passagem, o procedimento de Triário, que desempenha, ao
longo do diálogo, como que a função de um juiz, aproxima-se, contudo, do de um orador que extrai do réu
a confissão em um tribunal.
Com plena confiança: note-se que essa grande confiança é um traço marcante das personagens
ciceronianas que defendem o epicurismo e, mais que isso, é um éthos que o pensador romano estende aos
seguidores de Epicuro em geral. Cf. De nat. deor. I, 18: tum Velleius fidenter sane, ut solent isti.
Se pensa uma coisa... e fala outra... Sobre essa disjunção entre a expressão verbal e a convicção
íntima, cf. Ad Fam. VIII, 1, 3 (em que Célio fala de Pompeu) e, mais interessante para nossa discussão,
Acad. II, 15: sobre a ironia socrática. Quanto ao pensamento de Epicuro, esse tema vai ser recuperado na

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discussão sobre a vergonha (uerecundia) a que François Prost (“Aspects de la critique cicéronienne de
l’épicurisme en De finibus 2”) confere muita importância na argumentação do livro II. Notemos que a
seqüência do texto distingue claramente o problema de expressão em Epicuro da ironia socrática: sed
plane dicit quod intellegit.
Conceder uma exceção: para Reid, a condicional na Máxima é comparada por Cícero a certas
cláusulas que operam ressalvas (tecnicamente exceptiones) nas fórmulas legais (cf. Acad. II, 97).
VII, 22 Intemperantes traduz asotos: cf. o grego a[swto". O dicionário de Bailly indica a relação
com o verbo swvz/ w, que significa “preservar, salvar”, mas também “conservar, guardar consigo” e reporta
a explicação apresentada por Aristóteles na Ética a Nicômaco IV, cap. 1, em que o termo é relacionado,
originalmente, à prodigalidade excessiva. Vale dizer, além do mais, que é esse o termo utilizado por
Epicuro em sua Máxima e traduzido como dissolutus por Cícero.
‘Comem da patela’: a forma arcaica de subjuntivo (edint) indica se tratar de expressão tomada ou de
um provérbio ou do teatro antigo. Cícero refere-se à prática sacrílega de tomar como alimento as
oferendas que estivessem depositadas no pequeno prato (patella) utilizado no ritual.
A mim, seis meses... Citação da Hymnis, peça de Cecílio Estácio que seria a adaptação de uma obra
homônima de Menandro. Reid (ad locum), a partir da informação de que nessa peça cabia a uma meretriz,
Hymnis, o papel principal, sugere que a fala aqui reportada seja a de seu amante, um asotus. Orcus é outro
nome para o deus Plutão, o deus que preside o mundo dos mortos; por extensão: a própria morte.
Remédios para a dor: faz-se alusão, ao que tudo indica, ao tetrafavrmako", que é uma
apresentação condensada das quatro primeiras Máximas, que, nos fragmentos de Herculano, traz esse
título (cf. Hutchinson, ad locum).
VIII, 23 Pois eu não gostaria de... Difícil manter a concisão conseguida com o simples uso do
dativo mihi. De qualquer modo, parece-nos que ele reforça o interesse pessoal do sujeito de não querer
imaginar, pois é repugnante, os exemplos de intemperantes que ele apresenta a seguir. Tendo em vista essa
interpretação, poderíamos pensar em algo como: “pois eu não gostaria de ter de imaginar”.
Caça com setas: cf. Rubrichi, ad locum.
‘Aos quais se tenha... a tina e o saquinho’: Passagens problemáticas tomadas da obra de Lucílio. De
início, Cícero parece ter remanejado os termos, de modo que não se pode reconhecer na seqüência citada a
cadência hexamétrica (cf. Marinone, ad locum). Algumas palavras foram, além do mais, corrigidas pelos
editores. Quanto ao sentido da segunda porção citada, situlus e sacculus referem-se ao processo de
filtragem do vinho que, por vezes, alterava-lhe parte do sabor ou outros elementos de sua degustação. Ver
ainda Petrônio, Satyricon 73 e Horácio, Sermones II, 4, 53.
VIII, 24 O célebre Lélio. Gaius Laelius (c. 190 a.C. – c. 129 a.C.), célébre homem público romano.
Foi pretor em 145 e cônsul em 140. Amigo íntimo de Cipião Emiliano (mencionado em I, 7), com ele

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compartilhava de interesses artísticos e filosóficos. Cícero faz dele uma das personagens de seu De
republica e a personagem principal de seu De amicitia. Sobre sua caracterização como sapiens, cf. De
amicitia 7: te autem alio quodam modo, non solum natura et moribus, uerum etiam studio et doctrina esse
sapientem, nec sicut uulgus, sed ut eruditi solent appellare sapientem, qualem in reliqua Graecia
neminem – nam qui septem appellantur, eos, qui ista subtilius quaerunt in numero sapientium non habent
–, Athenis unum accepimus et eum quidem etiam Apollinis oraculo sapientissimum iudicatum. Hanc esse
in te sapientiam existimant, ut omnia tua in te posita esse ducas humanosque casus uirtute inferiores
putes.
Àquele cujo coração é sábio... Reid (ad locum) afirma que, com exceção da expressão cordi est, o
termo cor, na prosa comum, é dificilmente encontrado com outro sentido senão o de “coração”, como
órgão corporal. Por isso, ele julga que Cícero aqui retoma alguma passagem de escritor antigo, talvez
Lucílio, em que se joga com os dois sentidos de sapere. Vale dizer que em latim antigo, cor pode se referir
à sede do entendimento. Cf. a outra ocorrência do termo cor no livro II, em 95, justamente quando se faz
comparação entre paladar e entendimento.
Públio Sorvedouro Galônio: Horácio se refere a essa passagem de Lucílio em Sermones II, 2, 46.
Quanto a gurges, Reid atesta que essa palavra se ligou a Quinto Fábio Máximo, cônsul em 292 e 276 a.C.,
como um cognome.
Esturjão: a forma que ocorre no texto é acupensere, cujo nominativo é acupenser ou acupensis. Os
dicionários consultados, no entanto, não são conclusivos quanto ao animal a que se refere Lucílio nessa
passagem. Reid (ad locum) menciona uma glosa em que o acupenser é dito ser um peixe nobre. O filólogo
reporta ainda um fragmento da Bacaria de Plauto em Macróbio (III, 16, 1).
O prazer ele discerne do bem. Devemos aproximar as idéias expressas pela personagem de Cícero,
e atribuídas a Lélio, do que discute Sócrates em certos diálogos de Platão. Novamente o Górgias, com sua
discussão sobre os fins (e a distinção entre o que é bom e o que parece bom), deve ser evocada. François
Prost, em “Aspects de la critique cicéronienne de l’épicurisme en De finibus 2”, argumenta que, para
Cícero, o epicurismo seria uma espécie de pensamento da aparência, de acordo com a tradição platônica.
VIII, 25 Com alimento cozido... Do que se lê em uma carta de Cícero (Ad Att. XIII, 52, 1), em que a
mesma passagem de Lucílio é citada, havia um bene antes de cocto. Reid (ad locum) informa que um
estudioso, L. Müller, afirma que Cícero entendeu mal as palavras de Lucílio, uma vez que sermone deve
depender de condito, isto é, o jantar de certa forma é temperado com a conversa. Ora, apesar de apresentar
o texto entrecortado, não nos parece que Cícero tenha excluído essa interpretação. De acordo com a carta
mencionada, Marinone (ad locum) reconstitui assim o fragmento na cadência hexamétrica: bene cocto et /
condito sermone bono et, si quaeris, libenter.

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As exigências da natureza: interessante como nesta frase Cícero se serve de uma expressão bem
próxima da utilizada pelo patrono do epicurismo, quando critica justamente algo que ele julga dever se
seguir da doutrina que eles defendem. Tal tipo de procedimento faz parte da estratégia de apontar as
contradições internas da filosofia do Jardim, que perpassa todo o livro II.
Vilmente: Rubrichi (ad locum), buscando simetria, sugere “con profusione” como tradução de
nequiter. Embora para o advérbio não haja esse sentido nos dicionários consultados, para o substantivo
nequitia o dicionário de Félix-Gaffiot registra “dérèglement, dissipation”. Esse sentido, entretanto, não é o
mais original, visto que nequam, adjetivo donde derivam as demais formas, significa “de baixa qualidade,
vil”. Num primeiro momento nos parece que a relação entre os dois sentidos só pode vir das críticas dos
moralistas (em discursos dos mais variados tipos) a certos comportamentos excessivos.
Vos expressar de modo frugal. A expressão loqui... frugaliter diz respeito à conveniência moral da
linguagem e se relaciona com a seção 90, em que se volta a tratar da incoerência entre o discurso e a
prática dos epicureus.
IX, 26 Negligente na divisão: Reid (ad locum) diz: “elegantia é freqüentemente usado com relação
à clareza e precisão em procedimentos lógicos”.
Dos dois gêneros que havia, fez três: cf. o procedimento de Epicuro na Epístola a Meneceu em
Diógenes Laércio X, 127.
Isso não é dividir, mas despedaçar: Cf. Sêneca, Ad Lucilium 89, 2.
É errado. Vitium aplicado a erros lógicos: De fin. IV, 50; Acad. II, 93.
Contar a espécie como um gênero traduz in diuidendo partem in genere numerare: para esse uso
especial de in, cf. Reid (ad locum).
IX, 27 O desejo, ou a cupidez: traduzimos, neste passo, cupiditas por “desejo, ou cupidez” e não
simplesmente por “desejo”, para mater a relação, clara em latim, entre cupiditas e cupidus. Observemos
que as traduções inglesa (Hack) e francesa (Martha) fogem do problema. A italiana (Marinone) o enfrenta,
embora se servindo de palavra diferente da utilizada para verter cupiditas regularmente. Passagem quase
idêntica aparece em Tusc. IV, 57.
Eu aprove inteiramente o substancial: pensamento próximo do expresso em Tusc. V, 93: uides ut
Epicuri cupiditatum genera diuiserit, non nimis fortasse subtiliter, utiliter tamen.
Que chame tais coisas... O descuido com relação ao uso dos termos, de que Cícero acusa Epicuro,
ocorre explicitamente no livro I. Veja-se, especialmente, o passo em que Torquato menciona, numa
prosopopéia, a estátua de Crisipo (I, 39).
Dogmas: é a opinião de Reid. Segundo Alain Michel (“Rhétorique et philosophie dans les traités de
Cicéron”, p. 176), os dovgmata são os princípios gerais de ação enunciados por uma escola. O latim

382
decretum vem da linguagem dos assuntos públicos, quer no âmbito dos tribunais quer no das assembléias,
onde se refere ao que foi decidido, resolvido.
Em grandes apuros por vezes se encontra: expressão ambígua de uma fineza incrível. O impasse no
raciocínio é tratado com termo que remete aos conflitos psicológicos, às aflições da alma que a própria
filosofia de Epicuro pretende sanar.
Estando afastados os olhares... Cf. De fin. II, 53-60; III, 38; De leg. I, 41 e De off. III, 77. Veja-se
ainda Plutarco, Contra Colotes, 1127d (citação de Epicuro).
X, 29‘Com todo respeito’. Seguimos, para esta tradução, a edição de Rubrichi, que afirma (em nota
ad locum) que honos praefari é expressão equivalente a “con rispetto o con licenza parlando”. Difícil,
porém, ignorar o fato de que o termo honos faz ecoar o sumo bem estóico, o honestum.
X, 30 Jamais teria se sujeitado a semelhantes tropeços: afastamo-nos um pouco da letra do texto
com vistas a guardar algo da imagem criada pelo autor. Salebra, ou mais comumente no plural, salebrae,
diz-se das asperezas do solo, ou do próprio solo irregular, em que é difícil caminhar. Incidere in salebras,
seria, portanto, algo como se deparar com as asperezas do solo. Cícero se serve de imagem semelhante no
livro V (84): haeret in salebra [oratio]; e no Orator (39).
Doces prazeres: as palavras suauis, dulcis e seus cognatos vêm sendo traduzidas por termos como
“agradável”, “doce” e “delicioso” segundo o contexto. Devido aos contextos em que são usadas e à falta
de mais termos em português que recubram o campo semântico original, que se refere ao sentido do
paladar, por vezes as traduzimos indistintamente por “doce”. Reid (em nota a I, 39) afirma que quasi,
muitas, vezes introduz uma tentativa de tradução de um termo grego. Em I, 39: titillaret (cf. De nat. deor.
I, 113: quasi titillatio, Epicuri enim hoc uerbum est), aqui, dulces, que, segundo o filólogo, poderia estar
por proshnei'" (proshnhv", hv", e") que significa “inclinado em direção a”, daí, no sentido figurado,
“favorável, agradável”.
M. Cúrio: Manius Curius Dentatus foi cônsul em três oportunidades: em 290, em 275 e em 274. Foi
um vitorioso general e um político de prestígio. É tomado aqui como representante da severidade e da
austeridade do mos maiorum, já que desfrutava de uma reputação de frugalidade e incorruptibilidade.
Celebrou triunfo sobre Pirro, o rei do Epiro, e os Samnitas (povo de uma região próxima ao Lácio). Em
luta contra estes, teria recusado uma grande quantidade de ouro com que os inimigos tentavam corrompê-
lo. Cf. Marinone e Woolf (notas ad locum).
Mas por um censor: os filólogos discutem sobre o uso de uma espécie de agente da passiva,
marcado pela preposição a, com o gerundivo opprimenda. Reid (ad locum), seguindo uma distinção de
Jordan (feita em um comentário ao In Caecilium.) diz que Cícero se serve do ablativo preposicionado com
o gerundivo quando deseja evitar ambigüidade, ou quando busca guardar simetria com uma oração em voz
passiva, ou, por fim, como no presente caso, quando deseja marcar enfaticamente o agente.

383
X, 31 tu também... vossa escola. Assim traduzimos por julgar que a mudança de número marca uma
leve distinção entre Torquato e os epicureus em geral.
Estar a salvo, o que aceitamos: idéia que coincide com a primeira tendência defendida pela filosofia
estóica; mas, como veremos nos livros seguintes, ela é acolhida também por outras escolas.
X, 32 Meio de prova: Reid (ad locum): “sempre ‘prova’ em bom latim, não ‘argumento’; mas não
prova que toma corpo a partir de algo externo, como uma evidência circunstancial, ou tangível, como um
instrumento legal”. Ora, poderíamos pensar, portanto, em “prova argumentativa”, sobretudo no contexto
da filosofia neo-acadêmica.
Espelho da natureza: O argumento que envolve as crianças e os animais recém-nascidos é utilizado
ao longo de todo o tratado. De fato, o De finibus apresenta para a questão do sumo bem uma resposta
naturalista. No que diz respeito ao primeiro diálogo, cf. especialmente I, 34, I, 71, para argumentação em
favor do Jardim; e II, 109, em que o argumento é utilizado contra Epicuro.
Tendência: appetitum é o termo usado, ao lado de appetitio, para traduzir o grego oJrmhv (cf. Off. I,
101). Reid argumenta que, no De finibus, Cícero utiliza appetitum especialmente na parte peripatética do
tratado, isto é, no livro V, ao passo que appetitio aparece duas vezes no livro III (23 e 49) e diversas vezes
no livro IV. Entretanto, pensamos que essa distinção que faz Reid é pouco aplicável, uma vez que o livro
IV, em que se faz a crítica do estoicismo, já se serve do sincretismo de Antíoco, que será exposto no livro
V. A variação nos termos utilizados para verter um conceito grego é uma marca do modus operandi de
Cícero como tradutor, conforme a personagem que o representa explicita na passagem inicial do livro III.
Pulsação: Julgamos que a personagem quer dizer que o prazer estático não é capaz de mover, com
uma espécie de golpe, os sentidos do homem. Veja-se, entretanto, a interpretação de Reid, que considera
(ad locum) que ictus aqui significa “alcance”, e oferece uma espécie de paráfrase: “não tem um alcance de
modo a golpear”. Ele aproxima sua interpretação de expressões como sub ictu esse e extra ictum positus,
respectivamente: “estar ao alcance” e “colocado fora do alcance”.
Aquela [disposição]... é capaz de impelir. Estranho o uso de status para se referir ao prazer em
movimento! A não ser que, como traduzimos, pensarmos em algo como a disposição da alma, o estado em
que se encontra a alma quando afetada por tais prazeres, esse uso parece introduzir um contra-senso.
Rubrichi, em nota ad locum, entretanto, traduz o termo por “stato” sem maiores explicações.
XI, 33 Faculdade de julgamento: Esta passagem nos remete a um passo do Filebo de Platão, em que
ao prazer é conferido o quinto lugar na escala dos bens (67b) e a uma carta de Sêneca (Ad Lucilium, 124,
I) em que o filósofo critica Epicuro. Iudicuium traduz krithvrion (cf. Reid, ad locum).
Por mais que não tenham sido pervertidos, podem mesmo assim ser perversos. Difícil dar conta da
relação entre os termos deprauatae e prauae sem chegar a uma tradução insatisfatória em português. Pois,
em nossa língua, “perverso” se liga à maldade, ao passo que, no discurso de Cícero, a idéia, como se faz

384
claro pelo símile que se segue, é, sobretudo, de desvio, de afastamento do que é correto. A idéia é a de
que, mesmo que os animais estejam, como pretendia Torquato, isentos de uma deformação operada por
uma má educação (a que estariam sujeitos os homens), eles podem ter uma natureza afastada da reta razão
desde o princípio.
Também a natureza dos animais selvagens... Período problemático. Ferarum natura… est
deprauata… natura sua. Reid (em nota à passagem) aponta negligência na composição, evidente na
repetição de natura. Madvig (ad locum) argumenta ainda que, a partir do que foi dito acima, deveríamos
esperar no segundo termo praua e não deprauata, que é subentendido. A crítica é justa, pois que
deprauata aparece modificado por mala disciplina, ou seja, refere-se ao desvio que é operado pela ação
humana, ao passo que, no segundo termo, trata-se do desvio que é natural.
Coisas que tenham sido dadas como primeiras pela natureza: Cícero está traduzindo aqui a
expressão grega ta; prw'ta kata; fuvsin, isto é, “as primeiras coisas segundo a natureza”, de cunho
estóico, ao que parece, mas utilizada, com sentidos variáveis, por pensadores pós-aristotélicos de
diferentes tendências. A idéia estóica, como veremos no livro III, é de que a natureza nos tenha imbuído
de certas tendências primeiras que, desde o estágio mais primordial da vida humana, manifestam-se na
inclinação que temos em direção a algumas coisas e na repulsa que temos com relação a outras.
XI, 34 Ignorância extrema: Reid (ad locum) aponta uma distinção que Cícero costuma fazer entre
inscitia, ignorância reprovável, vergonhosa, e inscientia, ignorância pura e simples.
É dessa nascente que deve manar... Para Reid (nota ad locum), caput significa aqui “nascente, fonte
principal”, como aparece em expressões como caput fluminis. De fato, o verbo fluere parece corroborar
sua interpretação. A mesma imagem aparece em V, 17.
O pensamento dos antigos acadêmicos e dos peripatéticos: reunir dessa forma a filosofia moral dos
sucessores de Platão à de Aristóteles é marca do pensamento de Antíoco, que domina, sobretudo, os livros
IV e V, mas que, de certo modo, tem influência notável na própria concepção do De finibus. A expressão
secundum naturam uiuere parece já aludir à esta argumentação, desenvolvida mais abertamente já desde o
livro III (pela personagem de Cícero), que defende uma semelhança entre as doutrinas morais estóica,
acadêmica e peripatética.
Todos esses que mencionei. Por conta dessa expressão e dos pensadores que são mencionados a
seguir, podemos admitir que muitos filósofos foram citados na lacuna. O texto torna claro que Aristipo e
os estóicos foram mencionados e, para Reid (ad locum), provavelmente, Carnéades, Hierônimo e Epicuro
também. Para esse filólogo, que aqui combate a interpretação de Madvig, a discussão não gira, neste
parágrafo, em torno dos prw'ta kata; fuvsin, mas sim em torno da adequação, na doutrinas morais dos
filósofos mencionados, entre o ponto de partida da investigação (os initia) e o fins propostos como sumo

385
bem (extrema) por cada um deles. Se Reid estiver certo, Cícero aqui concede aos estóicos uma
consistência que lhes será negada no livro IV.
XI, 35 No belo, isto é, no honroso: o termo decus aparece como tradução do to; kalo;n estóico.
Ainda que tenhamos optado por uma tradução que se serve diretamente do conceito grego, observemos
que a versão de Cícero acrescenta certa nuance à expressão grega, visto que decus em latim tem o sentido
primeiro de “adorno, ornamento” e, por analogia com o verbo de mesma raiz, decet, traz a idéia daquilo
que cai bem, que é adequado e, por isso, adorna, torna mais belo. Ora, se no termo grego a noção de
adequação não está necessariamente manifesta, na doutrina estóica o “belo” moral tem relação com a
adequação da ação do sábio à bela organização de todo o cosmos. A tradução alude, portanto, a maneira
como o conceito se agencia com o restante da doutrina. Por outro lado, cumpre dizer ainda que, assim
como honestum, o termo decus tem forte conotação moral, podendo ser sinônimo de gloria, isto é, daquilo
que torna belo o homem.
XII, 35 Recomendação primeira: assim como em II, 26 (in genere) in parece ligar aqui dois termos
que, na verdade, identificam-se (cf. nossa nota à passagem), uma vez que, no pensamento de Epicuro, o
prazer não faz parte da recomendação primeira, mas é justamente aquilo a que nos impulsiona a natureza,
ou seja, a própria prima commendatio. Commendatio traduz o termo grego oijkeivwsi". Esse conceito, cuja
origem gera grande discussão, é fundamental no estoicismo. Ele será tratado no contexto estóico em III,
16 e 23; e sob a autoridade de Antíoco, em V, 41. Em termos gerais, entende-se por oijkeivwsi" uma
espécie de movimento que nos é atribuído pela natureza que faz com que, desde o nascimento, nós
busquemos nos adaptar a nossa própria natureza. As dificuldades em torno do conceito serão tratadas, em
comentários, quando de seu desenvolvimento nos livros III, IV e V.
Se fala do prazer de Aristipo... Atenção às diferentes lectiones. Marinone acrescenta um ne antes de
fecisset e mantém, antes de in prima, Aristippi. Os demais editores suprimem a segunda ocorência do
nome deste filósofo.
XII, 37 Subalternas e servidoras dos prazeres: o uso do plural uoluptatum aproxima o prazer de
Epicuro dos prazeres sensuais. Cícero já procedera de modo análogo ao aproximar, por meio de um uel
(seção 35), os pensamentos de Epicuro e Aristipo.
Objeto de nossa investigação. Deixamos assim impreciso, tendo em vista a correção de Reid (ad
locum): quod quaerimus.
XII, 38 Será rechaçado ainda Carnéades... O finis de Carnéades é descrito em diversas passagens
como não incluindo a virtude (cf. II, 35; III, 30; IV; 49; V, 22). Em V, 18, entretanto, os prima secundum
naturam incluem quasi uirtutum igniculi et semina. Para concepções um pouco diferentes, cf. IV, 15 e
Tusc. V, 84. Cícero, em várias ocasiões (como mais adiante, em II, 42), enfatiza que essa concepção era
apresentada de maneira pouco séria por Carnéades, ou melhor, servia muito mais como arma

386
argumentativa em suas discussões com os estóicos (cf. Acad. II, 131; De fin. V, 20; Tusc. V, 84). Um
discípulo de Carnéades, Clitômaco, afirmava que jamais chegara a descobrir que finis defendia de fato seu
mestre. Em Acad. II, 139, diz-se que Carnéades por vezes defendia o finis de Califón com tanto zelo, que
parecia admiti-lo intimamente. Sobre sua tendência cética, cf. De leg. I, 39. Reid, analisando fragmentos
de sátiras menipéias de Varrão em nota a esta passagem do De finibus, argumenta que o finis de Carnéades
excluía a virtude, mas que seu sistema moral a levava em conta. Em seu pensamento moral, a virtude era
um meio, não um fim como na ética estóica. Não pretendemos apresentar nenhuma resposta conclusiva à
difícil questão que gira em torno do pensamento moral de Carnéades. Quisemos simplesmente apresentar
alguns dos problemas com que trabalham os estudiosos que se dedicam a tal questão.
... [a razão] poderia examinar: a construção é estranha. Se supusermos que o sujeito de consideret é
ratio, subentendido, teremos o substantivo ratio, com acepções diferentes, nas posições de sujeito e de
objeto (se de fato duas qualificar rationes). Reid critica (em nota ad locum) o pouco cuidado de Cícero
com a expressão. Parece pouco adequado, ainda, considerar que duas retome sententia, que ocorreu acima,
uma vez que o termo, tomando parte da metáfora jurídica iniciada em 36, refere-se à decisão que a razão
toma, enquanto juíza soberana, com relação ao sumo bem.
Ser escolhidas ou rejeitadas: esta alternativa se identifica bem com o sistema estóico, descrito por
Catão no terceiro livro.
Dará preferência ao raciocínio que observar... Esta alternativa é representada pelo sistema exposto
por Pisão no livro V e que tem como auctor Antíoco. Notemos que o pensamento desse filósofo, com
relação ao estóico, é mais rico, mais fecundo tanto do ponto de vista da maior abundância de elementos
substanciais (que constituem, por exemplo, o sumo bem) quanto do ponto de vista da expressão. A
discussão sobre a capacidade de expressão dos representantes das escolas citadas reaparecerá no diálogo
formado pelos livros III e IV.
Controvérsia quanto às coisas ou quanto às palavras: Antecipa-se, desse modo, a grande discussão
que será travada entre os representantes da ética acadêmico-peripatética, por um lado, e os defensores da
ética estóica, nos três livros seguintes. Antíoco, como se verá, defende que a controvérsia é apenas
terminológica. Passagens como esta desfazem de certa forma a ilusão criada pela representação mimética,
uma vez que nos permitem perceber a presença do autor, que conduz a discussão de modo a que os três
diálogos se organizem como um tratado.
XIII, 39 Abreviarei as contendas: expressão jurídica (cf. Reid, ad locum) que dá continuidade ao
tom da seção 37.
Aos quais não houve receio de... ueritum est: passiva impessoal arcaica e rara (cf. Rubrichi, ad
locum). Por isso, nossa opção por uma expressão não tão usual.

387
Como se fosse um deus mortal: Reid (ad locum) aponta a semelhança entre o argumento defendido
aqui e o que é apresentado em IV, 37. Do ponto de vista da linguagem, continua o filólogo, há muita
proximidade com a passagem II, 37 do De natura deorum. Hutchinson (ad locum) diz que tal passagem
não se encontra em nenhum texto remanescente de Aristóteles, mas reconhece que o conteúdo se
harmoniza com a distinção aristotélica entre virtudes éticas e intelectuais. A expressão quasi mortalem
deum, entretanto, teria origem em Heráclito, segundo afirma ainda Hutchinson.
XIII, 41 Não apenas o sumo prazer, mas ainda o único... Note-se o interessante contraste que se
estabelece com a aproximação entre os termos antitéticos omnes e unam. A construção lembra um célebre
verso do poema V de Catulo: omnes unius aestimemus assis (V, III). A formulação de Cícero, que retoma
a crítica ao princípio duplo de Epicuro e a sua falta de acuro lingüístico, enfatiza o fato de que “todos”
estão de acordo a respeito do “único” significado do termo uoluptas. O jogo reflete também na oração
anterior, já que esse que é, para todos, o único sentido de prazer é aquele que Aristipo, de modo mais
coerente do que Epicuro, estabelecera como único sumo bem, de acordo com a perspectiva da personagem
de Cícero.
A vós, porém, agrada pensar de outro modo: de modo menos carregado: “mas vós pensais de outro
modo”. Escolhemos essa tradução por pensar que palavras da raiz de plac- ganham em sentido quando
dirigidas a epicureus ou por eles utilizadas.
Nem a configuração do corpo... Argumento de que se servem usualmente os estóicos (cf. III, 23).
Em excesso tem bem... Citação de um verso da Hécuba de Ênio, em que o autor latino retoma peça
homônima de Eurípides. Na obra do tragediógrafo grego, trata-se do verso 627.
XIII, 42 Que ele não externou tanto porque o aprovasse... Sobre a concepção ciceroniana da
filosofia moral de Carnéades, cf. Acad. II, 131 e 139 (sobre a defesa do finis de Califón). Quanto à
tradução do primeiro ut como causal e do segundo como final, há controvérsia. Hutchinson (em nota ad
locum) informa que alguns estudiosos, mantendo o valor final das duas orações, julgam que probare tem
aqui o sentido de “tornar bom”, “tornar forte”, que poderia ser visto também em outras passagens sobre
Carnéades, como em De oratore II, 161: nullam unquam in illis suis disputationibus rem defendisse, quam
non probarit (em nota composta por Madvig, vemos mencionado Goerenz como patrono dessa
interpretação). O argumento é insatisfatório quando aplicado ao De finibus, pois que nos faria supor que
Carnéades, tentando vencer os estóicos em uma discussão, não se preocuparia em tornar forte o
argumento, o que é absurdo. A explicação apresentada por Madvig (ad locum) é a de que a construção,
originalmente, teria a primeira oração com valor causal e contaria com uma conjunção como quo; é, de
fato, a construção que aparece em Acad. II, 131: introducebat etiam Carneades, non quo probaret, sed ut
opponeret Stoicis, summum bonum esse frui iis rebus, quas primas natura conciliauisset. No De finibus,
buscando simetria na expressão (“trahente membrorum aequilitate” – Madvig), Cícero teria alterado a

388
construção para non ut com o sentido de “non tam ut haberet ipse quod probaret et in quo acquiesceret”
(Madvig), dando à oração valor final, mesmo que, segundo o mesmo Madvig, com essa construção a
argumentação se sirva de expressão menos própria. Rubrichi, sem maiores reflexões, dá à oração o valor
final, traduzindo: “non tanto per dare ad esso la sua approvazione”. Reid, a partir da argumentação de
Madvig, opta pelo sentido causal do primeiro ut e dá ao verbo probaret o sentido de “accept the view him
self”. Introduzimos a oração com “porque” em português, o que garante a apreensão mais correta do
conteúdo; além do mais, essa conjunção, em nossa língua, pode ter também valor final.
Esse sumo bem, contudo... A concisão torna obscuro o sentido do período. O particípio additum
parece esconder a idéia de uma condição cumprida no passado, o que só se torna claro a partir da reflexão
sobre o sumo bem atribuído a Carnéades. Como se sabe (e se pode ver pelo contexto), esse acadêmico não
levava em conta a virtude em sua concepção de sumo bem. O que Cícero diz, portanto, é que, se à fruição
das coisas a que a natureza nos recomenda como primeiras (o sumo bem defendido por Carnéades) fosse
acrescentada a virtude, chegaríamos a uma concepção definitiva e perfeita do sumo bem. Cabe notar que
tal concepção é, em linhas gerais, a defendida por Antíoco no livro V.
O [sumo] bem: Reid (em nota à passagem) vê em summum um acréscimo de copista. Diz ele que o
argumento de Cícero requer aqui meramente que a ausência dor seja considerada como algo que não é
nem um bem, nem um mal. Além disso, continua o filólogo, o fato de que ela não seja o sumo bem não é
razão suficiente para que não seja acrescentada à virtude. É, de fato, o que ocorre na doutrina que ajunta à
virtude os prima secundum naturam, aludida novamente a seguir.
Que não é lá muito persuasivo: ita faz referência ao que se disse do sumo bem de Carnéades, afirma
Rubrichi (ad locum). De modo diferente, Reid traduz por “not very”, interpretação que seguimos.
Coisas de pouquíssimo valor: para Rubrichi (ad locum), os prazeres sensoriais, por exemplo.
E uma vez que, para Aríston e Pirro... Linha de argumentação próxima à de IV, 40. Sobre Pirro e
Aríston, cf., dentre outras passagens, III, 12 e IV, 43.
Os acadêmicos, que não afirmam nada... Quanto ao ceticismo da Nova Academia, alguns de seus
aspectos são discutidos no estudo que acompanha a tradução. É pertinente notar que, citando os
acadêmicos nesta passagem, Cícero não se inclua expressamente entre eles. Na verdade, o modo como
fala parece mesmo indicar certa divergência de opinião.
Aquilo que, o que quer que seja, pareça semelhante à verdade: interessante o modo pouco preciso
como Cícero introduz, por meio da expressão quodcumque, o importante conceito, na teoria do
conhecimento da Nova Academia, de ueri simile que, como mostramos no segundo capítulo de nosso
estudo, relaciona-se ao probabile. Estaria ele fazendo aqui uma crítica ao pensamento neo-acadêmico?
Interpretando de outro modo a expressão quodcumque, entretanto, indagamos se há de fato aqui
imprecisão (para o que Cícero talvez usasse nescio quid) ou apenas a idéia de que os acadêmicos se

389
servem de toda e qualquer coisa que pareça semelhante à verdade. O que resta como dado importante, de
qualquer forma, é o fato de Cícero tratar do pensamento acadêmico com isenção, sem se apegar
automaticamente ao que defendem esses filósofos. Mas não é justamente isso a atitude acadêmica? Cícero
se mantém fiel ao método mesmo quando discorda dos “dogmas” da Academia.
XIV, 44 O povo, alinhar-se com eles. Discute-se se com isso Cícero estaria afirmando que o
epicurismo teria conquistado as camadas mais populares da sociedade romana, ou se, ao menos, teria
ganhado o favor da maioria. Se julgarmos a partir dos passos I, 25 e I, 42, haveria um favor da maioria ao
pensamento de Epicuro, mas porque as pessoas teriam compreendido mal o pensamento desse filósofo.
Deve ser abandonado: mantivemos o singular, por acreditarmos haver aqui uma identificação dos
três conceitos, mesmo no âmbito lingüístico, que termina por torná-los um só.
Um homem agudo e cuidadoso, como Crisipo: confrontar com a caracterização de Epicuro em I, 19.
XIV, 45 Pode ser entendido não tanto pela definição de que me utilizei... Se Cícero criticara
Torquato, que não teria procedido convenientemente, por não ter dado uma definição de prazer, agora, ao
definir o honestum, afirma que ele pode ser mais bem compreendido pelo julgamento comum aos homens
de bem. É verdade, como aponta Reid (ad locum), que com isso ele se afasta do que professara em II, 5,
mas parece também reforçar o argumento, por contraste com a doutrina estóica, de que a expressão de
Epicuro se afasta da linguagem comum e compreensível. Por outro lado, vale observar, como faz Reid, a
semelhança entre toda a passagem 45-47 e De off. I, 11-14, em que também há uma explicação a respeito
da origem das virtudes cardeais.
Cai bem: quisemos manter o sentido estético que há no verbo utilizado por Cícero; quid decet:
aquilo que se ajusta, que se harmoniza, que fica bem e, portanto, é belo.
Associação... entre todos os mortais: expõe-se aqui o desenvolvimento moral humano, como o vêem
os estóicos, no que diz respeito às relações sociais. O homem, desde sua origem ama a si próprio, estende
seu amor pelo próximo desde os círculos mais íntimos até abranger todo o gênero humano. As etapas
desse desenvolvimento aparecem como uma seqüência de círculos concêntricos que emanam do
indivíduo. Essa exposição reaparece no livro III, mas ganha sua forma mais bem acabada em V, 65.
Como escreveu Platão a Arquitas: Carta IX, da coleção atribuída a Platão. A mesma passagem
dessa carta (que Reid apresenta em nota ad locum) é mencionada de modo mais minucioso em De off. I,
12 e, de modo mais frouxo, em 22. Idéias semelhantes são defendidas no De re publica. Cf. ainda Sêneca,
Ep. 95, 51 e ss.
XIV, 46 Desejo de ver o verdadeiro: cf. Tusc. I, 44 e De off. I, 13. Passagens em que a expressão
reaparece em contexto bem semelhante.
Mais adaptado a comandar do que a obedecer. Bastante próximo de De off. I, 13.

390
XIV, 47 Intimamente ligada àquelas três: é o que sugere Ricardo Rubrichi (em nota à passagem).
Marinone e Martha têm interpretação semelhante à de Rubrichi. Já Woolf deixa de lado a expressão e não
a traduz.
Harmonia: talvez de modo exagerado, quisemos ver em dignitas algo do que registra o adjetivo de
mesma raiz, dignus, quando significa “digno de”, “conveniente a”. Se não for esse o caso, o sentido é mais
simples: “esplendor, distinção, etc.”. De qualquer modo, cabe notar o que parece ser uma hendíade em
formarum specie ac dignitate. Seguindo a primeira interpretação, que adotamos em nossa tradução,
poderíamos desenvolver a figura assim: “a harmonia do aspecto exterior das formas”.
Passou-se à honradez nas palavras e nas ações: cf. II, 115 e De off. I, 14. O argumento, que parece
derivar do pensamento estóico, considera que a idéia de beleza e harmonia nas ações, isto é, o belo moral,
advém da noção de harmonia e beleza nas formas exteriores.
Ela [a moderação] receia a temeridade: nisso ela segue a sabedoria; e não ousa... prejudicar
alguém: respeitando a justiça. Teme fazer ou dizer algo que pareça pouco viril: de acordo com a força, ou
coragem. A idéia apresentada é de que a moderatio, que é análoga à beleza das coisas externas, atua no
âmbito humano como um prolongamento e extensão, em direção ao exterior, das outras três virtudes
cardeais (cf. Marinone, ad locum).
XV, 48 O pensamento que deve subjazer à palavra ‘honradez’. A personagem parece ter em mente
uma passagem do peri; tevlou" que ele cita em Tusc. III, 42: saepe quaesiui ex eis qui appellabantur
sapientes, quid haberent, quod in bonis relinquerent si illa detraxissent, nisi si uellent uoces inanes
fundere; nihil ab eis potui cognoscere, qui si uirtutes ebullire solent et sapientias, nihil aliud dicent nisi
eam uiam qua efficiantur eae uoluptates quas supra dixi. Cf. ainda De fin. I, 61, Tusc. V, 119, Sêneca,
Dialogi, 7 (De uita beata), 9, 1 e Ad Luc. 123, 10.
‘Algo que’, diz ele... Marinone (ad locum) julga que esta fala, atribuída a Epicuro, seria proveniente
de seu peri; tevlou". Já Reid, Hutchinson e outros, por não fazerem referência alguma, parecem encarar a
passagem como um recurso retórico da personagem de Cícero.
XV, 49 Filósofo, que... causou comoção. Entretanto, veja-se passagem de Sêneca (Ad Luc. 79, 15)
em que o autor cita uma carta de Epicuro que afirma que, durante suas vidas, nem Epicuro nem Metrodoro
tiveram notoriedade na Grécia. Talvez a personagem de Cícero se refira à propagação do pensamento do
fundador do Jardim (cf. seção 44).
Vencido do mesmo modo pela natureza... Sobre esse argumento, que é aplicado contra os epicureus
naturalmente virtuosos, cf. II, 28, II, 58 e De off. I, 5.
XV, 50 Não se pode viver honrosamente caso não se viva honrosamente? Madvig e Hutchinson
criticam a expressão de Cícero e dizem que ele deveria ter escrito non posse iucunde uiui nisi iucunde.
Para Reid, a expressão está correta. Cícero, ao substituir iucunde por honeste, no segundo termo, buscaria,

391
num passo seguinte, substituir honeste por populari fama, uma vez que ele acabara de afirmar que, para
Epicuro, o honroso se definiria por uma espécie de favor público. Rubrichi acrescenta que, com a primeira
substituição, Cícero estaria simplesmente criticando a tautologia na expressão de Epicuro.
Com renome entre o povo: ou, como Hutchinson desenvolve: “to make public opinion one’s
standard of conduct”.
Que se pode ir buscar no mercado? Cf. De diu. II, 59: si Epicuri liber de uoluptate rosus esset,
putarem annonam in macello cariorem fore.
E este não é o tipo de homem... Argumento ad hominem que se serve da consideração do caráter de
Epicuro, que, sendo bom, é inconsistente com a doutrina que ele defende. A boa natureza dos epicureus
virtuosos serve, como vimos antes, para demonstrar a força da natureza conforme a concebem os estóicos.
XVI, 51 Que tomavas uma postura mais altiva... A idéia é de que, com a dignidade do pensamento
que expunha, Torquato se enchia de orgulho o que repercutia mesmo em sua postura, em seus gestos, que
se tornavam mais altivos. A disposição do corpo é tomada como índice do caráter natural da virtude.
XVI, 52 ‘Os olhos’, diz Platão... Cf. Platão, Fedro, 250d. Passagem mencionada ainda em De off. I,
15 e, por Sêneca, em Ad Luc. 89, 1 e 115, 3.
‘Com quem no escuro?’ O provérbio é apresentado de forma mais completa em De off. III, 77:
dignus est quicum in tenebris mices, “é digno de que com ele jogues no escuro”. Compreende-se que o
verbo micare faz parte de uma expressão em que se subentende digitis ou digitos; literalmente: “agitar os
dedos”, ou “com os dedos”. A referência é a um jogo, ainda jogado atualmente na Itália sob o nome de
“morra”, que consiste em dizer quantos dedos o outro jogador mostrou em um rápido movimento. No
provérbio, portanto, a personagem seria tão honesta, a ponto de nela podermos confiar para uma partida de
“morra” que se dê no escuro.
XVI, 53 Habilmente... manhoso: cf. a distinção proposta em De nat. deor. III, 25: uersutos eos
appello quorum celeriter mens uersatur; callidos autem quorum, tamquam manus opere, sic animus usu
concalluit. A partir disso, chegamos a nossa tradução. Pois, segundo a distinção, callidus tem relação com
uma qualidade que se adquire com a prática, ao passo que uersutus, com algo de que é naturalmente
dotado o espírito.
XVI, 54 L. Túbulo: Lúcio Hostílio Túbulo, pretor em 142 a.C., tornou-se célebre por sua iniqüidade.
Processo de homicídio: Reid (ad locum) discute a pertinência do relato de Cícero no que diz
respeito à existência, em 142 a.C., de uma quaestio inter sicarios com um magistrado designado
anualmente para presidi-la. A nota desse filólogo nos informa também que, sob Sula, havia uma lei que
tornava cúmplice de assassinato (e, portanto, sujeito à mesma punição) o juiz que se deixasse subornar em
um caso dessa natureza. De qualquer forma, Reid julga que Túbulo deve ter sido julgado por uma corte
instituída paralelamente ao caso de assassinato, como devia ser usual em sua época.

392
P. Cévola: Públio Múcio Cévola, jurista já citado em De fin I, 4, foi tribuno da plebe em 141 a.C.
Gn. Cepião: Gneu Servílio Cepião, formou com Quinto Pompeu, citado a seguir, a dupla de
cônsules do ano 141 a.C.
XVII, 54 Q. Pompeu. Em 140 a.C, depois de uma desastrosa campanha militar na Hispania, Quinto
Pompeu concluíra com a cidade de Numância um tratado de paz desvantajoso para Roma. Diante de seu
sucessor, o cônsul Marco Popílio Lenate, Pompeu negou ter firmado tal tratado e tentou, junto ao Senado,
sustentar a mesma mentira. Provou-se a sua falsidade e o senado propôs uma lei pela qual Pompeu devia
ser entregue aos numantinos. No entanto, defendendo-se diante do povo, o perjuro conseguiu com que a
lei não fosse aprovada. O episódio é narrado ainda no De re publica, III, 28 e no De off., III, 109.
Seguindo Madvig, Reid diz que o exemplo é mais apto a testemunhar a impudentia do que a calliditas.
XVII, 55 Lembro-me de estar presente quando P. Sextílio Rufo... Para que se possa compreender o
exemplo de Sextílio, deve-se ter em mente que, de acordo com a lex Voconia, promulgada em 174 a.C, por
Quinto Vocônio, não era permitido nomear uma mulher como herdeira da totalidade de um patrimônio.
Para alguém, portanto, que não tivesse senão uma filha como herdeira (ou, enfim, que quisesse deixar toda
herança a sua filha), restava se servir de um expediente como o mencionado por Cícero. Nomeava-se
alguém (um amigo, por exemplo) como herdeiro oficial. Intimamente, firmava-se um compromisso com
esta espécie de representante dos interesses da filha, a fim de que ele, posteriormente, repassasse toda a
herança à filha do autor do testamento. A partir das palavras de Cícero (quod debuisset rogare) podemos
pensar que esse tipo de expediente era usual. É claro que, como o acordo era privado e não era abonado
por nenhuma lei, um homem sem escrúpulo, como Sextílio, poderia negar ter assumido o compromisso e,
assim, receber toda fortuna que deveria caber à filha. Pode nos parecer estranho o fato de o pedido de
Fádio vir por escrito no testamento, algo que esta passagem parece indicar, mesmo que não
categoricamente (pois poderíamos também pensar em outra tradução: “ele era herdeiro de Quinto Fádio
Galo, em cujo testamento estaria citado, nomeado por este para que toda a herança chegasse à sua filha”),
mas é algo, com efeito, atestado mais adiante, em II, 58. Assim, Sextílio teria contra o que diz uma
evidência material. Será que mesmo com o documento escrito o acordo não seria considerado válido?
Woolf, em nota, diz que o texto do testamento traria o fideicommissum de Sextílio, isto é, a atestação do
compromisso, que, na época, não tinha força legal. Dessa forma, Sextílio pudera, impudentemente, negar
ter assumido o compromisso e, alegando não ousar violar a lei sobre a qual jurara, agir de modo imoral,
mas dentro da lei. Woolf se baseia em literatura especializada, que ele menciona e à qual não tivemos
acesso: DIXON, Suzanne. “Breaking the law to do the right thing: the gradual erosion of the Voconian
Law in Ancient Rome”. Adelaide Law Review, 9, 1985, p. 519-34.

393
Tendo jurado pela lei Vocônia... Segundo Madvig e Reid (notas ad locum), tal juramento não teria
ocorrido no contexto do caso da herança de Fádio, mas quando Sextílio exercia função de magistrado, isto
é, quando fazia aplicar as leis.
XVII, 56 Cipião... se conseguisse arrastar Aníbal de volta à África. Públio Conrnélio Cipião, o
Africano, viveu de 236 a 184/3 a.C. e foi cônsul em 205. Célebre como homem político, general e mesmo
como fomentador da cultura grega em Roma, teve participação fundamental na Segunda Guerra Púnica.
Diz-se que salvou o próprio pai numa batalha em 218. Tendo reunido os sobreviventes da derrota que os
romanos sofreram diante dos cartagineses em Canas (216) na Apúlia, conquistou, em campanha pela
Hispania, Cartagena, em 209, e derrotou o exército cartaginês próximo a Sevília, em 206. Depois disso,
com uma ousada estratégia militar, embarcou para a África, com o que forçou Aníbal a abandonar a Itália
(note-se a precisão do verbo utilizado por Cícero, retraho: “arrastar para trás”). Em território africano,
derrotou Aníbal em 202 a.C. em Zama.
Terá motivo: Seguimos a interpretação de Reid para a problemática expressão cum causa.
Insuportável: Reid e Rubrichi concordam ao dizer que o adjetivo impetibilis, formado a partir do
verbo patior, é criação ciceroniana.
XVIII, 57 M. Crasso: Os comentadores concordam quanto ao fato de que Cícero esteja se referindo aqui a
Lúcio Licínio Crasso, importante personagem político do fim do período republicano. Teve notável
participação na vitória sobre o exército de escravos comandado por Espártaco, em 71 a.C. Em 70, foi
cônsul juntamente com Pompeu e censor em 65. Em 60, constituiu ao lado de Pompeu (citado a seguir) e
Júlio César (que Cícero habilmente não menciona! Recordemos que em 45 a.C., ano de publicação do De
finibus, César governava sozinho a cidade) o primeiro triunvirato: uma aliança entre três poderosíssimos
generais em torno da qual se resolviam as questões importantes da República. Morreu em 55 a.C., numa
desastrosa campanha contra os Partos, de modo que já estava morto (fuit) na época em que a cena deste
diálogo se desenvolve (50 a.C.).
Se servir dos próprios bens: é como pensa Rubrichi. Para ele, a idéia de Cícero é a de que Crasso,
muito poderoso, contentava-se, mesmo assim, em desfrutar apenas dos bens que lhe cabiam. Madvig
também pensa bonum como sinônimo de pecunia. Reid, entretanto, diz que o singular suum bonum não
deve ser interpretado como sua bona (“seus bens, sua fortuna”). Para este filólogo, se pensarmos que suo
bono se refere à riqueza de Crasso, o texto torna-se incoerente, já que Cícero, por meio de tamen, faz uma
distinção entre o poder de Crasso e suo bono. Ora, Crasso era influente justamente por sua riqueza.
Argumenta-se, por fim, que bonum aqui se refere a uma qualidade da alma de Crasso, a um bonum animi,
hipótese que o autor sustenta com exemplos de passagens das obras de Cícero em que bonum tem esse
sentido. A partir disso, chegaríamos à seguinte tradução: “como foi Marco Crasso, que, todavia, dispunha
de uma boa natureza”.

394
Nosso Pompeu: Gneu Pompeu Magno (106 – 48 a.C.) foi, ao lado de Crasso e César, o mais
eminente político romano do final da República. Na época em que se passa a cena, ele aparece como o
homem poderoso que se atém escrupulosamente à ação reta, provavelmente porque, no terreno político,
ele representava, por volta de 50 a.C., o líder da República, que a defenderia contra a tentativa de César de
conquistar o poder de modo inconstitucional (na perspectiva de Cícero, evidentemente). Na época da
publicação do tratado, 45 a.C., Pompeu já estava morto e, com ele, a República. César, tirano, era o senhor
de Roma.
Pois poderia ser injusto... impunemente: Woolf (ad locum) julga estranho que nesta passagem
Cícero faça um elogio a Crasso, ao passo que, em III, 75, ele seja negativamente caracterizado por seu
apego aos bens materiais e pela enorme ambição que, aliás, teria causado sua morte. Se há inconsistência
da parte de Cícero, ela pode, de fato, não ser mero descuido do autor, ou uma oscilação na opinião que
tinha a respeito de Crasso no lapso de dois anos que separam as cenas do segundo e do primeiro diálogo
(respectivamente, 52 e 50 a.C.). Julgamos que menção a Crasso, aqui, faz parte de uma argumentação
delicada: parece-nos que o elogio a Crasso, neste ponto, ao lado do louvor a um de seus aliados no
triunvirato de 60, Pompeu, faz parte da crítica velada que é dirigida a outro praepotens uir, que foi
também um triúnviro, e que não é mencionado aqui: César. Segundo julgam alguns estudiosos (como
PROST, François. “Aspects de la critique cicéronienne de l’épicurisme en De finibus 2”. Júlio César,
ascendendo à tirania de modo impune, é o grande representante romano do homem callidus e praepotens
que Cícero aponta, indignado, como um produto possível da moral do Jardim. Ora, Cícero louva
abertamente dois dos triúnviros e se cala deliberadamente – julgamos – a respeito do terceiro, como se
dissesse: “a esse não cabe elogio”. Cf. ainda artigo de Carlos Lévy: “Rhétorique et philosophie: la
monstruosité politique chez Cicéron”, citado na bibliografia.
XVIII, 58 O próprio Epicuro talvez a repassasse... Novamente o homem Epicuro é confrontado
com sua doutrina. Aqui, com leve ironia, expressa pelo advérbio fortasse, Cícero hesita em atribuir ao
filósofo do Jardim uma índole naturalmente honesta.
Sexto Peduceu, filho de Sexto: o pai havia administrado a Sicília em 76 e 75 a.C., onde Cícero o
conheceu, quando lá esteve na condição de questor. Na mesma ocasião, conhecera o filho de Sexto, que se
tornaria seu amigo íntimo.
G. Plócio: nada se sabe a respeito deste Gaio Plócio, senão o que é relatado aqui.
Voluntariamente... repassou-lhe a herança: Este exemplo é construído como o oposto do de
Sextílio. Note-se que Sextílio contestara mesmo as instruções que Fádio deixara por escrito. Sexto
Peduceu, que poderia ter agido injustamente sem o menor risco, sem a necessidade de ser impudente, já
que seu amigo não deixara nenhum documento que expressasse sua vontade, preferiu agir de modo reto.

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Raciocínio torto: Com o adjetivo prauam, a doutrina de Epicuro é tratada da mesma forma pela qual
Epicuro trata a paideiva tradicional, que ele busca rechaçar justamente por julgar que ela corrompe o bom
julgamento dos seres animados.
XVIII, 59 Nossos livros Sobre a República: Referência ao livro III do De re publica, cujo texto não
sobreviveu integralmente. Ali, Filo defende um argumento que remonta a Carnéades, afirmando que a
justiça não é importante para o Estado e Lélio, seu opositor, argumenta em favor da justiça. Na verdade,
tanto a tese quanto a antítese, que no texto de Cícero são atribuídas a duas personagens diferentes, teriam
sido apresentadas por Carnéades, em dois dias seguidos, na ocasião da célebre embaixada de 155 a.C.
XIX, 60 Desejo desmesurado: a personagem de Cícero se serve da divisão entre os gêneros de
prazer proposta por Torquato no livro I, a partir do que a libido foi classificada entre os desejos que não
são nem naturais, nem necessários.
Escandaloso: Traduzir assim o termo flagitiosum, com vistas a guardar o valor da raiz flagitium,
parece gerar um problema na exposição do pensamento, uma vez que o “escandaloso” não é vergonhoso
senão por uma pressão social, externa, portanto. Mas, assim como faz com o termo honestum, Cícero
desvirtua o sentido mais comum de flagitiosum (neste caso pelo uso de per se), utilizando-o com o sentido
do que é em si mesmo torpe, independentemente da presença de uma testemunha. Resolvemos guardar
este dado do texto original.
XIX, 61 P. Décio: Públio Décio Mure, que foi colega de Tito Mânlio Torquato no consulado de 340
a. C.
Após ter consagrado a si mesmo com um voto... No ano de 340 a.C., em uma difícil batalha contra
os latinos, às margens do rio Vésere, quando o resultado do combate permanecia incerto, Públio Décio
devotou-se ritualmente à morte, lançando-se impetuosamente contra o inimigo, com vistas a, por meio
desse sacrifício, trazer a vitória aos romanos, coisa que de fato eles alcançaram. Esse tipo de ritual, em
que, no âmbito de uma batalha, um combatente devota-se, em sacrifício, com vistas à vitória de seu
exército, era chamado pelos romanos de deuotio; trata-se, de fato, de um ritual praticado não apenas pelos
romanos, mas também por outros povos indo-europeus, conforme indica Reid (ad locum). Note-se que a
própria temporalidade do ritual é aludida por Cícero através do agenciamento dos tempos verbais. Décio,
primeiramente, faz o voto (deuouerat), para depois se lançar contra o inimigo, efetuando o sacrifício
(irruebat). Interessante ainda o fato de que seu filho, de mesmo nome, que foi cônsul diversas vezes, tenha
realizado ritual semelhante em 295, em Sentino (na Úmbria), ocasião em que os romanos também
alcançaram a vitória. O filho deste segundo Décio, que recebera o mesmo nome e que foi cônsul em 279,
morreu em batalha contra as forças do Rei Pirro, do Epiro. Em seu caso, entretanto, não é certa a
ocorrência de uma deuotio. É verdade que o uso da palavra uictima pode ser um indício da ocorrência do

396
ritual, muito embora possa se tratar apenas de um uso figurado. De todo modo (o que não deixa de ser
irônico), nessa ocasião, os romanos foram derrotados.
XIX, 62 Entre os gregos há poucos... Leônidas: célebre rei de Esparta que, quando da invasão
persa, em 480 a.C., lutou até a morte ao lado de trezentos espartanos, em um desfiladeiro conhecido como
Termópilas. Contando com apenas mil homens, pois lutavam a seu lado setecentos téspios, os espartanos,
servindo-se da passagem estreita do desfiladeiro, conseguiram conter os milhares do exército persa por
muito tempo, até que, traídos por um dos seus, foram atacados pela retaguarda. Leônidas e seus trezentos
homens preferiram a morte gloriosa a uma fuga ignominiosa. Epaminondas: general tebano, célebre por
ter batido os espartanos em duas batalhas: em Leutras (371 a.C.) e em Mantinéia (362 a.C.), quando, já
afligido por vários ferimentos, continuou lutando, até que o golpe de uma lança, que se fincou em seu
peito, tirou-lhe do combate. Morreu, entretanto, logo após ter recebido a notícia da vitória de seu exército.
Cícero volta a tratar desses dois exemplos na seção 97. Note-se ainda que Cícero introduz aqui um tópos
que lhe é caro: a superioridade romana no que diz respeito aos valores morais e cívicos (cf. II, 67-68 e
Tusc. I, 2, dentre outros passos).
Que o prazer se entregue à virtude como prisioneiro: Cícero retoma expressão de Torquato (cf. I,
47: tradunt se libidinibus constrigendos).
Aulo Vário: além do que se diz aqui, nada se sabe desse personagem.
Arrebatar de P. Sula o consulado... Em 65 a.C., Torquato processou Públio Cornélio Sula (parente
de Sula, o ditador) por fraude na eleição em que fora eleito cônsul. Com a vitória no processo, novas
eleições foram organizadas, resultando da escolha do pai de Torquato como cônsul. Sobre o pai de
Torquato, cf. supra I, 39 e infra 72.
Nós próprios realizamos ações... Cícero se refere à supressão da conspiração comandada por
Catilina, ocorrida durante o seu consulado, em 63 a.C.
XX, 63 L. Tório Balbo: à parte o que aqui se encontra, praticamente desconhecido. Mommsen (apud
Reid), julga que este Tório mencionado aqui teria sido um tenente de Metelo numa guerra contra Sertório,
que se deu na Hispania, na qual teria encontrado a morte.
XX, 64 Suportaria com alma frouxa: Reid (ad locum) considera molliter sinônimo de molli animo,
ou seja, algo como “com alma frouxa”, “com espírito fraco”, assim como se pode ver em De off. I, 71.
Entretanto, ele chama a atenção para a ocorrência da expressão com sentido quase oposto em Catão:
gerendum est molliter sapienti, em que molliter seria sinônimo de aequo animo: “com o espírito
equilibrado”, “de modo plácido”, etc.
XX, 65 M. Régulo: Marco Atílio Régulo, cônsul em 267 e em 256 a.C. é um dos mais célebres
heróis nacionais de Roma. Tornou-se, nos tempos de Cícero, o representante emblemático da fides, tão
cara aos romanos. Os estudiosos contestam a veracidade dos relatos que se fazem sobre seu cárcere em

397
Cartago e sobre a embaixada de que participou em Roma, mas os romanos antigos viam esses fatos como
relato histórico. Durante a Primeira Guerra Púnica, os cartagineses, que levavam vantagem, foram
duramente derrotados pelo cônsul Lúcio Metelo em uma batalha que se deu perto de Palermo em 250 a.C..
Tentando, então, firmar um tratado de paz com os romanos, os africanos enviaram, juntamente com seus
embaixadores, o ex-cônsul Régulo, que se encontrava há já cinco anos como prisioneiro em Cartago. Caso
obtivesse, junto a seus concidadãos o tratado de paz almejado pelos inimigos, Régulo ganharia liberdade,
caso contrário – ele empenhara sua palavra – retornaria a Cartago como prisioneiro. Diante do senado
romano, Régulo, que reconhecia serem as condições de paz desfavoráveis à sua cidade, argumentou em
favor do interesse público e, mesmo sob insistentes pedidos de sua esposa, filhos e amigos, concedeu em
voltar a Cartago, cumprindo assim a palavra. De retorno ao cativeiro, teria sido exposto a terríveis
suplícios. Diz-se que os cartagineses prenderam-lhes as pálpebras, para que, de olhos abertos, ele jamais
conseguisse dormir e que o fizeram também passar fome até a morte. Régulo reaparece no De finibus, em
V, 82 e 88 e volta a ser importante exemplo no terceiro livro do De officiis.
Em meio a rosas: era sinal de grande delicadeza, comum em ambientes romanos de extremo
requinte, em banquetes, perfumar o ambiente com essências de rosas e forrar os leitos, em que se
reclinavam os convivas, com pétalas da flor (cf. Rubrichi, ad locum). O uso singular de rosa tem,
portanto, valor de coletivo.
Constância: note-se que constantia, em I, 64, tem outro sentido. Lá, o termo se refere à firmeza, à
coragem que se deve ter diante do medo. Aqui, o sentido, que vai reaparecer na seqüência da obra, é de
consistência e coerência. No caso presente, entre a palavra empenhada e a ação realizada.
Para nós... para ele... Rubrichi (ad locum) observa que o assíndeto reforça o contraste entre a
opinião dos que ouvem a narrativa sobre Régulo e à do próprio cônsul.
XX, 66 Lucrécia: O acontecimento teria se passado em 510 a.C. (cf. Tito Lívio, I, 57-60). Lucrécia,
violentada por Sexto Tarquínio, filho de Tarquínio, o Soberbo, suicidou-se com um punhal, após ter
narrado a seu marido e a seu pai o crime de que fora vítima. Conta-se que Bruto, brandindo o punhal
ensangüentado, liderou o povo, em revolta, contra a dominação da realeza etrusca. Assim foi instaurada,
segundo a narrativa tradicional, a República em Roma. Lucrécia aparece, portanto, como exemplo
eloqüente da fides matrimonial e da austeridade moral.
Sofrimento: as traduções de Martha e Woolf vertem dolor, aqui, por “indignação”. Ainda que não
tenha sido a dor física exatamente o que ressentiram os romanos na ocasião, é importante notar a
importância do termo dolor no diálogo em questão. “Sofrimento” parece uma alternativa interessante, por
guardar os sentidos de dor física e psicológica.

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L. Virgínio: Tito Lívio apresenta a narrativa desse evento em III, 47-58. Em 449 a.C., Lúcio
Virgínio era um centurião. Ápio Cláudio, um dos decênviros. Segundo a narrativa tradicional, esse evento
desencadeou uma rebelião que traria fim ao poder do decenvirato.
XXI, 67 Tu deves, Torquato... Na concepção da personagem de Cícero, admitir o epicurismo, para
um romano, implica colocar-se em contradição com os valores nacionais tradicionais. Quando
examinamos a personagem de Torquato, no estudo que acompanha a tradução, vimos como Cícero, na a
construção do éthos do expositor do epicurismo, joga com o choque entre um respeito ao mos maiorum e a
adesão à filosofia do Jardim.
Patrono: Nossa tradução que altera um pouco da construção original, busca manter um dado
importante da cultura romana, que repercute na própria organização da obra, a saber, a instituição do
patrocinium. Cf. nossa nota à passagem III, 1.
Homens ilustres nem pessoas que lhe façam o elogio: laudatores é termo do jargão jurídico romano
(cf. Madvig, ad locum). Homens dotados de grande prestígio, de grande autoridade, eram chamados a
atestar a honradez do acusado, de modo a dispor o júri favoravelmente com relação a quem estava sendo
julgado. A personagem de Cícero afirma, portanto, que o prazer não conta nem com exemplos tomados da
história da cidade, que seriam como que testemunhas, as quais, com suas ações, mostrariam que o prazer é
algo digno de ser buscado, nem com pessoas ilustres que poderiam defendê-lo com seu prestígio e que
seriam, assim, como os laudatores dos processos jurídicos.
Na escola de Epicuro: o uso de schola como “escola de filosofia” não é o mais comum para o termo
em Cícero (cf. supra, II, 1), mas conta com importantes ocorrências, como em De oratore I, 56, por
exemplo.
Licurgo, Sólon, Milcíades, Temístocles, Epaminondas: Licurgo, político que, julga-se, viveu no
século VIII a.C.. Segundo a tradição, foi ele quem estabeleceu a constituição espartana. Sólon, célebre
político de Atenas (séc. VI a.C.), foi responsável por uma reforma na constituição ateniense, tendo
dividido os cidadãos em classes, de acordo com a renda de cada um. Em alguns de seus poemas, podemos
ver elogios à boa organização da pólis. Milcíades foi um general ateniense, ilustre pela vitória contra os
persas em Maratona, na famosa guerra que se desenrolou no século V a.C.. Temístocles, outro ateniense, é
conhecido, sobretudo, por ter comandado a vitória obtida diante da frota de Xerxes numa batalha naval
próximo à ilha de Salamina, evento da guerra contra os persas que, assim como a batalha de Maratona,
simboliza a vitória dos gregos contra os invasores do oriente. Sobre Epaminondas, ver acima, II, 62.
Nós também começamos a tratar disso... Julgamos que nos não é um plural retórico, mas se refere
aos romanos, que só recentemente teriam começado a tratar de questões filosóficas (haec).
A partir de seus tesouros: ao que parece, Cícero faz alusão à obra de história, composta por Tito
Pompônio Ático, intitulada Annales, em que eram apresentados, cronologicamente, os eventos mais

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insignes da história dos romanos desde a fundação da cidade. Reid, entretanto, em nota à passagem,
considera que thesauris não se refere à obra de Ático, mas à coleção de livros que possuía esse romano
residente em Atenas (cf. Ad Att. 15, 27, 2: excudam H
J rakleivdeion quod lateat in thesauris tuis).
XXI, 68 Temista: mulher do filósofo Leonte de Lâmpaco (século III a.C.). A partir de outras fontes
(cf. Reid, ad locum), sabemos que Epicuro havia lhe dedicado uma obra e endereçado algumas cartas.
Desse modo, não podemos ter certeza quanto ao acuro da informação dada por Cícero por meio da
expressão tantis uoluminibus; talvez o romano tenha se valido aqui de uma hipérbole.
Há algo... que não nos é permitido, mas a eles, sim. Assim como acima (II, 62), a personagem
introduz o tema da superioridade moral dos romanos com relação aos gregos. Aqui, entretanto, a crítica é
mais especialmente direcionada ao mestre do Jardim, que, com sua concepção moral, que se afasta da
moral tradicional, preferiria louvar uma mulher quase anônima, cuja vida não tem nada de politicamente
ou socialmente preclaro, a louvar homens de grande estatura política. Rubrichi argumenta (ad locum) que
uma doutrina como a de Epicuro, que pregava a ajtaraxiva por meio do afastamento da atividade política,
dentre outras coisas, só podia ser aceita numa sociedade em que a atividade política, em última instância,
já não era livre, como a de Atenas desde o século IV. Seria inaceitável na cultura romana, cuja política, no
século I a.C., comandava boa parte do mundo. Interessante que, com o procedimento de apontar para o
caráter eminentemente privado da moral do Jardim, Cícero afasta, novamente, o epicurismo do mos
maiorum, aproximando este, por contraste, da moral estóica.
Os outros [dizem]: se tribuere é um infinitivo – e é o que parece, pois o sujeito se vem no acusativo,
como é costume em oração infinitiva – devemos supor um uerbum dicendi que o introduza. A construção
poderia ser coordenada à infinitiva anterior, mas, dessa forma, o verbo a ser subentendido seria negant, o
que alteraria fundamentalmente o teor do texto. A partir do contexto, devemos admitir um verbo como
aiunt.
Uma batalha honrosa: A controvérsia entre peripatéticos (associados aos da Antiga Academia) e
estóicos é questão central dos próximos dois diálogos. Interessante o fato de Cícero a qualificar de
honrosa, justamente porque ambas as escolas, não obstante as diferenças que porventura as separem,
consideram o honestum como um bem em si. O que lhes resta dicutir, entretanto, é o valor da virtude com
relação a outros bens que, porventura, possam existir. Desse modo, o termo dignitas, nesse contexto,
parece empregado de modo figurado e ter sentido derivado do uso, bastante concreto, que adquire no
jargão políltico romano, em que pode significar: “cargo público”. Assim, resta às duas escolas decidirem
qual é a função que a virtude desempenha no sistema moral.
XXI, 69 Crê em mim: a expressão nesta ordem, mihi crede, é comum aos discursos públicos e aos
diálogos filosóficos e, portanto, deve ser mais formal do que crede mihi, que só aparece nas cartas, cf.
Reid (ad locum). Por isso, nossa opção de tradução.

400
Se examinares a ti próprio... O argumento ad hominem é introduzido com expressões que nos fazem
lembrar o célebre preceito délfico do “conhece-te a ti mesmo”. Interessante o contraste (que nossa
tradução tenta manter) entre a adesão à doutrina de Epicuro e perscrutação interior a que Cícero convida
seu interlocutor. Ao olhar [tueri] para a doutrina e, depois, olhar [perspexeris] para dentro de si mesmo,
Torquato ficaria envergonhado. Para Prost (“Aspects de la critique cicéronienne de l’épicurisme en De
finibus 2”), é esse o sentimento que é resultado da incoerência interna a que está sujeito tanto o epicureu
virtuoso quanto o epicureu romano seguidor do mos maiorum. É bem verdade que podemos associar a
vergonha também à recordação do símile proposto por Cleantes, mencionado a seguir.
Representada em um quadro, @Hdonhv: já que não seria possível manter a imagem, criada por
Cleantes, por meio da tradução que vem sendo dada ao termo uoluptas ao longo deste primeiro diálogo,
uma vez que “prazer” em português é masculino, ao passo que tanto hJdonhv quanto uoluptas são femininos
e, além disso, dado que o termo é central em toda discussão, optamos por, ao invés de substituir “prazer”,
nesta passagem, por um sinônimo do outro gênero, utilizar diretamente o termo em grego (língua falada
por Cleantes), visto que, inclusive, ele já apareceu comentado pela própria personagem de Cícero em II, 8.
XXII, 70 O lume em que vós vos fiais: desenvolvemos a expressão para não perder a imagem. Reid
(ad locum) argumenta que lumen aqui é sinônimo de “argumento forte” (“strong point”), como em Acad.
II, 107, e julga estranho o uso do substantivo, nesse sentido, aplicado a um homem. Acreditamos que a
observação é pertinente, mas, também, que devemos levar em conta, na filosofia de Cícero – que, como
acadêmico, julga que a realidade está envolta em trevas – a importância que têm imagens que tragam a
idéia da luz, relacionada à argumentação, como uma espécie de guia ao conhecimento.
Postúmio: no problemático texto original, temos Chius Postumius, que muitos querem ler como G.
Hirrius Postumius (cf. Reid, ad locum), relacionando esta pessoa a um G. Hirrius P. mencionado por
Varrão e Plínio. A identificação é controversa, uma vez que nem Varrão nem Plínio referem o cognome
do tal Hirrius. De todo modo, são evidentes os problemas de transmissão desta passagem do texto, já que
a expressão omnium horum exigiria a menção a mais do que duas pessoas (cf. Madvig, ad locum).
Orata: identificado como Lúcio Sérgio Orata, contemporâneo do orador Crasso e famoso pelo
refinamento e por seu gosto pelo luxo (Reid, ad locum).
Ele próprio nega, como disse antes... O raciocínio de Cícero subverte o pensamento de Epicuro de
maneira extremamente hábil. A partir da Máxima 10 (supra II, 21), vemos que Epicuro afirma que se os
licenciosos não temessem a morte e os deuses e conseguissem pôr termo a seus desejos, não haveria nada
em suas vidas que poderia ser reprovado. Ora, Epicuro dá os meios, através do estudo da física, para que
os homens se libertem do medo da morte, da dor e dos deuses (já que estes em nada se ocupariam dos
assuntos humanos) e, por outro lado, para que conheçam quais são os tipos de desejos e, com isso, possam
se limitar ao que é exigido pela natureza. Sendo assim, dotados da doutrina de Epicuro, reflete Cícero,

401
todos poderíamos nos livrar à dissolução, à luxúria. Devemos observar, entretanto, que o que Epicuro
parece dizer é que os prazeres dos licenciosos não são males em si mesmos, mas que, de outra parte, não
são também bens em si. Não é pela fruição desses prazeres que nós alcançaríamos a felicidade, mas
justamente pelo afastamento dos temores e pela delimitação dos desejos.
XXII, 71 Não é pio ninguém que a piedade... Verso cuja proveniência é desconhecida,
provavelmente parte de um verso trocaico que teria se tornado proverbial (cf. Marinone, ad locum) e que
devia se completar com algo como metu colit (cf. nota de Rubrichi), donde a tradução: “não é pio ninguém
que a piedade por medo venera”. Entendemos “piedade” aqui no sentido da pietas latina, algo como
“respeito”, “apego” em diferentes âmbitos das relações sociais e religiosas, de que a comiseração é apenas
um dos aspectos.
Um simulacro da justiça traduz iustitia simulationem: há aqui, sem dúvida, uma apropriação de
idéias tais quais as desenvolvidas pelo Sócrates platônico em diálogos como o Górgias, para dar um
exemplo apenas. Cf. Prost, F. “Aspects de la critique cicéronienne de l’épicurisme en De finibus 2”, p. 95.
Para a distinção entre simulacrum e simulatio, ver nota a II, 110.
Que nós desprezemos... Interessante como a personagem que representa o autor opera uma
reviravolta na argumentação. Os epicureus criticavam os estóicos pelo fato de que, defendendo o
honestum, eles estariam buscando algo que fosse glorioso aos olhos da maioria (cf. II, 48: populari fama
gloriosum). Aqui, a personagem refuta a noção de justiça apresentada por Epicuro, que estaria baseada no
temor da descoberta da má ação e da conseqüente punição e, por isso, dependeria da opinião dos outros.
XXII, 72 Como se sobre a água... A imagem faz pensar no poema 70 de Catulo, que se encerra
assim: (...) sed mulier cupido quod dicit amanti, / in uento et rapida scribere oportet aqua, isto é, “mas o
que diz a mulher ao amante apaixonado, / no vento e na água ligeira convém escrever”. Essa imagem, que
ecoa ainda em um verso de Propércio (II, 28, 8) conta com antecedentes gregos (cf. a edição Teubner de
Catulo, feita por Kroll) e, segundo Reid (ad locum) era proverbial. Na construção ciceroniana, associa-se a
água ao prazer, tratado assim como algo efêmero, que não poderia fundamentar um sistema moral.
Aquele mesmo Torquato: O mesmo Tito Mânlio Torquato mencionado já mencionado no livro I, em
II, 60 e de quem se falará mais adiante (cf. ad illum redeo).
A. Torquato: há controvérsia quanto à identidade deste Aulo Torquato. Marinone (ad locum) julga
tratar-se de um Torquato que foi questor em 81 e pretor em 70 a.C. Já Rubrichi, em sua nota à passagem,
pensa que a referência é a Aulo Mânlio Torquato, que seria um irmão de Lúcio, interlocutor de Cícero
neste diálogo, e que foi pretor em 52 e que, em 50, ano da cena do diálogo, estaria exilado na Grécia. Reid
(ad locum) suspeita do grau de parentesco tão próximo atribuído por alguns comentadores. Ele pensa que,
se Aulo fosse de fato irmão de Lúcio, Cícero teria expressado o grau de parentesco. De qualquer forma, os
três autores citados concordam quanto ao fato de que o Torquato mencionado aqui, seja quem for ele,

402
mostrou-se particularmente amigo de Cícero entre 58 e 57 a.C., durante a disputa com Clódio que
culminou no exílio do cônsul de 63 a.C.
O fruto do dever seja o próprio dever. Caso se admita que as ações não têm como meta o prazer, ou
o interesse pessoal, ou, melhor ainda, que o verdadeiro interesse pessoal se concilia com o interesse de
todos e se expressa na necessidade de agir retamente, prova-se que as virtudes têm valor em si mesmas,
que elas não são meras produtoras de prazer. Reid, em nota à passagem, julga que o argumento ficaria
mais claro caso Cícero tivesse incluído uma expressão como sua ui na oração quod interest omnium recte
facere. Cabe dizer que a comunhão entre o dever e o proveito, expressa aqui por ut offici fructus sit ipsum
officium, é o tema do livro III do De officiis.
XXII, 73 Anieno: rio da região dos sabinos, afluente do Tibre.
Se o pudor... Reid (ad locum) observa que pudor e pudicitia ocorrem freqüentemente juntos em
textos de Cícero. Considera ainda que modestia é, mais propriamente, o sentimento de respeito à norma,
aos costumes, à lei, que o homem experimenta com relação aos outros em assuntos públicos e privados.
Em De off. I, 142 o termo traduz eujtaxiva. Temperantia é mais amplo e é tratado como equivalente mais
próximo de swfrosuvnh, como se vê em Tusc. III, 16: swfrosuvnhn... quam soleo tum temperantiam, tum
moderationem appellare, non umquam etiam modestiam. Dessa citação poderíamos concluir, ademais, que
modestia é o termo considerado menos satisfatório para verter o conceito grego.
Santidade: interessante o uso do substantivo sanctitas para caracterizar o valor próprio das virtudes.
Com esse termo, recorrente da linguagem religiosa, Cícero parece aludir à cosmologia estóica, que
considera haver, imanente no mundo, a divindade, que lhe infunde, por toda parte, o sopro racional,
tornando todas suas partes harmônicas entre si. Além disso, não podemos esquecer que o termo também se
aplica à inviolabilidade das leis romanas e das decisões tomadas por seus magistrados e que, em Roma, a
religião está intimamente ligada à gestão pública. Com esse tipo de expressão, Cícero parece estar
indicando a adequação que existiria entre o Estado Romano e as leis ditadas pela natureza, ou seja, pela
razão universal, cujo reflexo, no âmbito humano, encontra-se nas virtudes morais.
Desmesura sexual: cf. o tratamento dado a libido no livro I (46, 47 e 50), em que o termo é
associado ao tertium genus cupititatum de Epicuro, isto é, aos desejos que não são nem naturais, nem
necessários. Em outras passagens, como em I, 59, o sentido parece mais aplicado aos desejos sexuais. Ora,
admitindo que, na teoria de Epicuro, certas formas de desejo sexual são naturais, libido deve se referir,
mais exatamente, às formas de desejo sexual desmesuradas e consideradas não naturais.
XXII, 74 Te investires da magistratura... Na época em que se passa a cena do diálogo, Torquato era
praetor designatus, ou seja, havia sido eleito pretor, função que desempenharia no ano seguinte, 49 a.C.

403
Declarar publicamente... O pretor devia, no início de seu mandato, declarar eventuais novas leis,
que poderiam vir a ser utilizadas na administração da justiça. Tal publicação seria feita a partir dos rostra,
espécies de tribunas, localizadas no fórum, de onde eram feitos discursos.
Diante de ignorantes: mais do que ignorantes em geral, o termo imperiti se refere a pessoas não
versadas em algum tipo de saber. No caso, não versadas na filosofia de Epicuro.
Diz essas mesmas coisas... Em gradação, Cícero parte do auditório menos especializado, o do povo
reunido na praça do mercado, passando por um intermediário, pessoas que assistam a um julgamento, e
chega ao auditório mais especializado, o grupo de senadores, alguns deles que, nessa época, de fato,
tinham formação filosófica.
Discurso torpe: segundo o argumento da personagem de Cícero, o epicurismo não pode ser adotado
por um romano, portanto, a não ser que ele entre em contradição com a sociedade de que faz parte e, com
vergonha, esconda, ao exercer funções públicas, aquilo que ele pensa intimamente. Essas contradições que
Cícero aponta no epicureu, por meio de seu interlocutor Torquato são desenvolvidas por Prost, em artigo
já mencionado e aparecem tratadas também em nosso estudo.
XXIII, 75 Os ‘indivisíveis’: referência aos átomos, que já foram evocados no início do diálogo,
onde aparecem sob a expressão corpora indiuidua (I, 17). Segundo a física de Epicuro, todos os corpos
que ocupam o mundo são formados por corpúsculos indivisíveis, que, dispersos por todo o espaço, se
encontram fortuitamente.
Os ‘intermundos’: para Epicuro, além deste nosso mundo, existiram ainda outros vários, formados
também a partir do encontro fortuito dos corpúsculos indivisíveis. Entre um e outro mundo, nos
metakovsmia, haveria espaços vazios, que Epicuro julgava serem habitados pelos deuses, em serena
beatitude e completamente despreocupados dos assuntos humanos.
Que seja isso o prazer. Ou, como pensa Rubrichi (ad locum): “Admitamos que exista de fato esse
prazer”, isto é, o prazer estável. Ainda que o uso do pronome ista e a posição inicial do verbo sit pareçam
abonar a tradução de Rubrichi, julgamos que nossa interpretação, também possível a partir da sintaxe,
ajusta-se melhor ao contexto. A fórmula de Cícero introduz um raciocínio hipotético em que ele passa a
considerar uoluptas como sinônimo de “prazer estático”. O valor do verbo sit, portanto, não nos parece ser
existencial.
XXIII, 76 Admiti-lo em público e declará-lo tu não ousarias? Nova menção à posição problemática
que ocupa um epicureu em Roma. A doutrina que ele sustenta é diametralmente oposta aos valores da
sociedade em que vive e pela qual ele se define. A diferença é que aqui a personagem de Cícero toma o
prazer supremo conforme o concebem os epicureus, ou seja, como ausência de dor. Ao variar entre os dois
sentidos, a personagem pretende mostrar que, qualquer que seja o sentido que se dê ao prazer, ele não
pode servir como fundamento das ações, sobretudo em uma cidade como Roma.

404
Sempre está na tua boca nos tribunais e no senado: os pensamentos dos estóicos e dos discípulos de
Aristóteles, entretanto, apresentam diversos pontos comuns com os costumes tradicionais dos romanos.
Assim um epicureu, sendo homem público, quando deve discursar diante de seus concidadãos, se quiser
ter êxito em seu discurso, deverá abandonar suas convicções íntimas e se servir de doutrinas das quais ele
é adversário.
Simplórios: a palavra baro, que Reid considera “estranha”, ocorre em poucas passagens de textos de
Cícero, dentre elas, em De diu. II, 144, em que se refere a um atleta, e em Ad Att. V, 11, 6, em que a
referência é a um grupo de epicureus: apud Patronem et reliquos barones te in maxima gratia posui. O
sentido geral do termo é “tolo”, “estúpido”, etc. Isidoro, em Origines IX, 4, 31 (apud Reid), explica a
palavra relacionando-a a soldados mercenários, isto é que, que lutam por recompensa, e diz que o termo
vem do grego Baruv", que indicaria o peso e a força desses soldados. A partir disso, pensamos ainda na
tradução “bronco”, que, se não é exata, não é lá muito usual em português e aponta para uma característica
secundária do estereótipo da pessoa obtusa.
XXIV, 77 Te servir de nossas palavras e de teus pensamentos: A idéia, a partir do contexto, é a de
que Torquato deveria conciliar sua expressão pública e seu pensamento íntimo, declarando, em bom latim
(uerbis nostris), aquilo que de fato pensa.
Se forjasses um semblante... A inadequação entre palavra e pensamento, portanto, é tomada como
um movimento antinatural, como uma espécie de falsificação da natureza, de distorção da natureza que é
própria a cada um. Os livros seguintes, sobretudo o III e o V, mostram a importância da adequação do
movimento do corpo à natureza na doutrina estóica e no pensamento de Antíoco. Os movimentos
adequados do corpo indicam a adequação da alma à natureza.
Teu semblante seja uma aparência, no interior se oculte a verdade... Novamente o epicurismo é
interpretado como o pensamento da aparência. Antes, a justiça defendida pelo Jardim era vista como um
simulacro da verdadeira justiça, agora, o epicureu que se apresenta diante de assembléias, age como um
ator de teatro: cria uma aparência externa que não corresponde ao pensamento íntimo. Cf. II, 71 e Prost, F.
“Aspects de la critique cicéronienne de l’épicurisme en De finibus 2”, p. 95.
Para que não deixe de ser vergonhoso pensar o que é vergonhoso dizer. Interessante a relação que
este trecho estabelece entre a verdade de uma opinião e aquilo que é moralmente aceito, aquilo que é
louvável, aquilo que as pessoas têm em grande conta. Por outro lado, a vergonha é índice da inadequação
entre o discurso que alguém sustenta e aquilo a que o impulsiona sua natureza. A vergonha é a
manifestação natural da incoerência interna. Para não haver pudor em falar algo, em defender uma idéia,
esta idéia deve estar de acordo com a natureza, em outros termos, ela deve ser verdadeira.
XXIV, 78 Talvez ‘parecer estar’... Também a amizade epicurista é vista como um simulacro da
verdadeira amizade. Mais do que experimentar o sentimento verdadeiro da amizade, o sentimento de afeto

405
para com outrem, o epicureu julgaria proveitoso aparentar ter tal sentimento. Tendo em vista isso, cabe
aqui uma rápida ressalva à tradução que adotamos em II, 72, quando a personagem falava de Aulo
Torquato: “mostrou-se meu amigo” por mihi amicum fuisse. Acreditamos não haver problema, já que a
expressão que adotamos significa correntemente “agir como um verdadeiro amigo”.
XXIV, 79 Conservá-la-ei: deve-se se subentender uma resposta à pergunta: retinebis?
O célebre pitagórico diante do tirano da Sicília: trata-se de uma célebre narrativa acerca da
amizade, referida ainda em Tusc., V, 63 e De off. III, 45. O pitagórico Damón colocou-se como garantia
em favor de seu amigo Fintíade, também pitagórico, que, condenado à morte por Dioniso de Siracusa (o
mais antigo ou o jovem: as versões que nos chegam da Antigüidade falam ora de um, ora de outro. Cf.
Marinone e Woolf, nos comentários ad locum), precisava fazer uma viagem. Fintíade, após resolver o que
devia, regressou a Siracusa ainda a tempo de salvar seu amigo da condenação. Diz-se que Dioniso, por
fim, comovido pela amizade que ligava os dois homens, concedeu graça ao condenado.
Não implorarias para que ambos fôsseis imolados juntos? O uso de quominus é especial, em
Cícero, ao lado de verbos que não têm claramente a idéia de “impedimento” ou “proibição”, diz Reid (ad
locum). Tal idéia se encontraria, contudo no contexto: o fato de implorar para morrer indicaria a ausência
de resistência à morte, a não proibição da imolação. Sobre o mito de Orestes e Pílades, cf. nota a I, 65.
XXV, 81 Esses me parecem agir melhor do que falam. O modo de agir virtuoso de Epicuro e de
certos epicureus, portanto, no que diz respeito à amizade, especificamente, não demonstra, como querem
os epicureus, que sua doutrina seja capaz de fundamentar a vida virtuosa; mostraria, pelo contrário, que,
apesar de defenderem idéias equivocadas, eles agiriam de acordo com princípios naturais, que são mais
fortes do que os raciocínios equivocados e que ditariam um fim bastante diferente do prazer. A ação
virtuosa dos defensores do prazer é tomada como argumento para a comprovação de que virtude tem valor
por si própria.
XXVI, 82 Mas isso não tem nenhuma pertinência à matéria em questão. Esse tipo de afirmação
parece fazer parte de uma estratégia argumentativa de Cícero, que consiste em desviar a atenção do leitor
de certo tipo de prova. Julgamos evidente o peso que tem a denúncia de incoerência entre o discurso e a
prática dos seguidores de Epicuro para a refutação de sua doutrina moral e, de modo específico, para a
refutação da teoria da amizade, que é, neste ponto, a matéria em questão. Cícero se serve de argumentos
tipicamente retóricos, que atacam o homem, e que têm importância cabal no conjunto de sua refutação,
mas parece querer fazer crer a seu leitor que tal tipo de argumento não tem grande peso e que sua
refutação é tão somente dialética.
Aceito o que eles oferecem: frase proverbial de teor semelhante ao nosso “cavalo dado, não se olham
os dentes”. Expressão bastante semelhante aparece em Platão (Górgias, 499c) e é tratada como provérbio

406
por Cícero em Ad Att. XV, 17, 1. Para outras ocorrências em Cícero, com pequenas variações, veja-se a
nota de Reid à passagem.
Ora, eles dizem... Isto é, com o argumento do hábito, os epicureus introduziriam uma falha na teoria
do prazer. Se algumas ações podem ser corretas mesmo que não tenham o prazer como meta, o prazer não
poderia ser o finis de acordo com o que exige a definição desse conceito.
XXVI, 84 Os celeiros de Putéolos: Putéolos, localidade próxima à atual Nápoles, era, à época, um
importante porto para o comércio marítimo. Ali se comercializavam produtos com a África e a Sicília,
donde a necessidade de grandes celeiros para o armazenamento de produtos agrícolas.
‘A proteção que vem dos amigos’: Desenvolvemos a expressão por meio de oração relativa para
evitar a ambigüidade própria do genitivo. Talvez, para manter mais fortemente imagem militar: “a
salvaguarda que vem dos amigos”, ou “a fortaleza que são os amigos”. Cf. expressão semelhante,
relacionada à doutrina de Epicuro no De amicitia (46) e citação de uma carta de Epicuro em Sêneca (Ep.
IX, 8).
Amigos banais: a amizade do dia-a-dia, dos amigos banais, é contrastada à verdadeira amizade.
Trata-se de um tema também desenvolvido no De amicitia (cf. 22).
XXVI, 85 ‘Mas com quem as brincadeiras...’ Trata-se de uma possível objeção de Torquato,
tomada, como sugere ut dicitur, de uma formulação familiar aos epicureus. Para os seguidores de Epicuro,
somente com o verdadeiro amigo nós poderíamos falar de toda e qualquer coisa. De fato, a doutrina de
Epicuro levava em consideração isso pelo que ela é criticada aqui, isto é, que a única conversa realmente
franca que se pode ter é com um amigo. A questão, para Cícero, entretanto, é que, se o prazer é o
fundamento da amizade, não pode haver uma amizade verdadeira. No plano da vida pessoal, era
justamente uma amizade de total cumplicidade que Cícero julgava ter com seu amigo Ático (um
epicureu!); cf. Ad Att. I, 18, 1: nihil mihi scito tam deesse quam hominem eum quocum omnia, quae me
cura aliqua afficiunt, una communicem, qui me amet, qui sapiat, quicum ex animo loquar, nihil fingam,
nihil dissimulem, nihil obtegam. Cf. ainda o que diz Carlos Lévy a respeito das modalidades de
conversação em seu artigo “La conversation à Rome à la fin de la République: des pratiques sans
théorie?”. Rhetorica, 1993, volume XI, p. 399-420.
XXVII, 86 Do mesmo modo, mas inversamente... É importante notar que a personagem que
representa o autor, por meio da expressão item contra, parece reconhecer no procedimento adotado por
Torquato em I, 41 (summum profecto malum est uiuere cum dolore; cui sententiae consentaneum est
ultimum esse bonorum cum uoluptate uiuere) um raciocínio ejk tou' ejnantivou, isto é, “a partir do
contrário” (cf. Reid, ad locum).
XXVII, 87 À sua completa duração: parece haver aqui reminiscências dos argumentos de
Aristóteles sobre o bivo" tevleio" (cf. Ética a Nicômaco, I, 7, 16).

407
E não se chama vida... A passagem traz problemas textuais e já foi submetida a correções. Reid (ad
locum) julga esta frase sem sentido. Algo semelhante expressa Madvig em seu comentário à passagem.
Para ele, Cícero se expressa de modo pouco acurado, pois também são louvadas e criticadas as vidas
daqueles que ainda estão vivos e, além disso, a vida pode ser julgada a partir de suas partes: dos dias
felizes, etc. Nós nos indagamos se a expressão de Cícero não tem sentido mais profundo do que julgaram
os comentadores. O advérbio omnino é importante aqui e parece indicar que o sentido que Cícero dá a
vida, nesta frase, não é o sentido corriqueiro, mas um sentido filosófico, que levaria em consideração a
totalidade da existência. Nesse ponto, ao que parece, Cícero se serve de um argumento que se afasta do
estoicismo: o de que a felicidade depende da duração completa da vida e de que a vida só pode ser julgada
após seu arremate. Ora, para o Pórtico, a felicidade é adquirida tão somente pela retidão na intenção e na
ação. Por outro lado, a concepção de que vida é apenas vida concluída se aproxima das idéias
desenvolvidas no livro V, e atribuídas a Teofrasto, de que a fortuna desempenharia papel importante na
felicidade. De qualquer modo, essa hipótese é problemática, na visão de Cícero, uma vez que, se levarmos
em conta a fortuna, a vida feliz será dependente dos bens externos (ou seja, de bens provisórios, instáveis),
posição que é criticada na passagem anterior. Ao que parece, Cícero, serve-se dialeticamente dessa
doutrina (e o verbo solet nos indicaria que é uma posição tradicional), para demonstrar que a vida feliz não
pode depender da duração ou do arremate. Ele aponta a contradição interna de um pensamento que faz a
felicidade depender do tempo e da fortuna, pois, segundo pensa, não poderia haver felicidade, diante da
mera possibilidade de infelicidade (qui enim existimabit posse esse miserum esse beatus non erit).
Assim como, escreve Heródoto, Sólon recomendou a Creso. O parágrafo apresenta problemas. A
passagem final, introduzida por nam (que tem valor explicativo!) parece contradizer o que fora afirmado
anteriormente. Aqui, a sapientia é causa suficiente para a felicidade, que não depende da duração da vida
ou de que ela chegue a seu termo. Só podemos compreender a passagem se pensarmos que Cícero se
serve, dialeticamente, de teses que não são estóicas para que, expostas suas contradições, a tese estóica
reste como a única aceitável. Vale observar, ainda, que as palavras de Cícero lembram bastante a
participação final do coro do Édipo Rei de Sófocles (como aliás, aponta o próprio Madvig); as palavras
que fecham a tragédia: “Olhai o grão-senhor, tebanos, Édipo, / decifrador do enigma insigne. Teve / o bem
do Acaso – Týkhe –, e o olhar da inveja / de todos. Sofre à vaga do desastre. / Atento ao dia final, homem
nenhum / afirme: eu sou feliz!, até transpor/ – sem nunca ter sofrido – o umbral da morte.” (vv. 1524-
1530: tradução de Trajano Vieira. Édipo Rei de Sófocles. São Paulo: Perspectiva, 2001). A narrativa da
história de Creso, apresentada por Heródoto em Historia I, 32, traz o mesmo tipo de idéia. Creso,
riquíssimo rei da Lídia, recebendo Sólon como hóspede, pergunta ao estrangeiro quem seria o homem
mais feliz do mundo, esperando que a resposta indicasse a ele próprio. Sólon indica duas outras pessoas
como as mais felizes e, para explicar sua escolha, distingue feliz de afortunado, dizendo que bens como

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riqueza são pouco seguros e que o homem, sujeito que estava ao acaso, não poderia julgar se era feliz ou
não antes que chegasse ao derradeiro dia de sua vida. Vê-se, portanto, que também no caso de Creso, a
felicidade está intimamente relacionada com a fortuna. De qualquer modo, a felicidade defendida pela
personagem de Cícero não poderia estar fundamentada na fortuna, isto é, não poderia ser dependente de
algo instável e mutável. É esse traço, ademais, que ele observa no prazer, a que os epicureus atribuem o
valor de sumo bem e que, instável, como todo bem externo (na opinião da personagem de Cícero), não
garantiria uma felicidade sólida e duradoura.
XXVII, 88 Quem todo o bem faz consistir na virtude... Quanto a essa concepção estóica, cf. III, 47.
Em nada Júpiter é mais feliz do que Epicuro... A equivalência entre a felicidade do sábio e da
divindade é de fato defendida por Epicuro, mas ele parece ter admitido certa diferença de grau: cf.
Diógenes Laércio X, 121.
‘Mas este tem também dores’... O discurso de Cícero, desde o início do parágrafo (em 87-88) trata
do finis de Epicuro como se ele dissesse respeito ao prazer em movimento. Daí, a inconseqüência que é
apontada entre a concepção que faz da dor mais duradoura a mais lamentável e a que diz que o prazer não
aumenta com a duração. Ora, se o prazer de Epicuro fosse o prazer cinético, tudo bem: ele aumentaria com
a duração. O que Epicuro defende é que o prazer que consiste na ausência de dor, uma vez que é atingido,
não pode aumentar, mas apenas variar e, além disso, uma vez adquirido, não pode ser arrebatado nem
mesmo pela dor física. Diógenes Laércio (apud Woolf, ad locum. O autor não dá a referência do texto de
Diógenes) reporta, entretanto, que se alguém, tendo adquirido a felicidade de Epicuro, for torturado, ele
mantém a felicidade, mas gritará de dor e gemerá. A afirmação contrária, de Cícero, reaparece em V, 80.
Sobre o fato de o sábio ser feliz mesmo quando torturado, trata-se de idéia bem mais antiga do que
Epicuro. Cf. Platão, República 361e e Aristóteles, Ética a Nicômaco, VII, 13, 3 (em que se faz uma alusão
aos cínicos).
XXVII, 89 Falar de modo glorioso... A personagem de Cícero novamente faz recair sobre o
epicurismo (cf. II, 77) as críticas feitas por Torquato à linguagem estóica (cf. I, 42 e II, 48).
XXVIII, 90 Com comidas e bebidas que têm o menor apreço... Cf. Diógenes Laércio, X, 130.
De que nos servíssemos: resolvemos traduzir por uma primeira pessoa do plural o que julgamos ser
uma terceira pessoa impessoal. Já Reid (ad locum), embora admitindo a interpretação que seguimos (que
ele observa em traduções alemãs), pensa que o sujeito de uteretur é o mesmo de negaret.
É Sócrates quem ouço dizer... Nas Memoráveis de Xenofonte, I, 3, 5 e I, 6, 5.
Pisão, o Frugal... Lúcio Calpúrnio Pisão, cônsul em 133 a.C., foi orador e autor de Anais. Por sua
moderação, foi dito frugi, isto é, “frugal, comedido, sóbrio”. Não podemos deixar de observar a
argumentação de Cícero que insiste em confundir, deliberadamente, a doutrina de Epicuro com um
hedonismo mais típico de um Aristipo. A personagem do orador acaba de se referir à frugalidade que

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prega Epicuro e, ao representar sua prática alimentícia, o exemplo dado é o do glutão Galônio,
personagem das sátiras de Lucílio (cf. De fin. II, 24). É como se ele dissesse: “mesmo que ele se expresse
como Frugi, se ele defende o prazer como sumo bem, seu modo de vida deve ser como o de Galônio” sem
levar em consideração o tipo de prazer que é próprio à doutrina do Jardim.
XXVIII, 91 Não apenas não ter bom senso, mas nem mesmo paladar: difícil manter a imagem do
original non modo cor no habere, sed ne palatum quidem. Cf. II, 24.
Anchova: Os dicionários consultados não são conclusivos quanto ao termo maena. Saraiva e Gaffiot
dizem ser a maena um pequeno peixe do mar, bastante ordinário, de que se alimentavam os mais pobres,
temperado com bastante sal. Relacionam o termo ao grego maivnh, que Bailly traduz por “mendole”, com
descrição semelhante às dos dicionários latinos e com acréscimo de uma informação: que esse peixe era
preparado assim como as anchovas. Se pensássemos no contraste, fazendo uma analogia com o mundo
moderno, poderíamos dizer: “sardinha”.
XXVIII, 92 Segundo escreve Xenofonte... Alude-se à passagem I, 2, 8 da Ciropedia, obra em que se
representa a educação de Ciro, o antigo, fundador do Império Persa. A passagem reaparece em Cícero nas
Tusculanae: V, 99.
Repreendidas por Platão: cf. Platão, República 404d e Górgias 518b. Nas Tusculanae (V, 100) há
nova referência às mesas dos siracusanos, numa passagem em que Cícero cita a carta VII (326b) da
coleção de epístolas atribuídas a Platão tradicionalmente.
O próprio Metrodoro... descreve, com mais ou menos estas palavras... Reid (ad locum) reconhece a
passagem em Clemente de Alexandria (Stromata, II, 21, p. 179). Cícero cita-a também em Tusc. II, 17,
atribuindo-a novamente a Metrodoro. Reid diz que em outros autores antigos a passagem é atribuída aos
epicureus de modo geral (como na obra do astrônomo Cleomedes: II, 1, 87 e II, 1, 91 apud Reid).
XXVIII, 93 Em primeiro lugar... Mais presos ao texto, teríamos: “Em primeiro lugar, a que te
referes com ‘breve’? Em seguida, a que dor mais intensa [te referes]?”
Gn. Otávio: Gneu Otávio, cônsul em 76 a.C., sofria de gota, doença que provoca dores lancinantes
nas articulações (cf. Marinone, ad locum).
XXIX, 94 Que, mudo, ao aulido... Versos que são atribuídos ao Filoctetes de Ácio (tragédia
desaparecida), citados ainda em Tusculanae II, 33, passagem em que Cícero cita também o fim do verso
que precede o primeiro aqui apresentado: in lecto umido, ou seja, “no úmido leito”. Editores como Madvig
(cf. seu comentário à passagem) corrigem a lição e propõem in tecto umido, algo como “na úmida
morada”, de modo que a expressão possa se referir diretamente à caverna na qual vivia Filoctetes, evocada
em nossa passagem por saxum. Quanto ao mito, Filoctetes fora abandonado pelos aqueus na ilha de
Lemos, gravemente ferido, após ter sido picado por uma serpente. Após obterem informação (a partir de
Heleno, troiano feito prisioneiro) de que Tróia só cairia se os aqueus contassem com as flechas de

410
Héracles, Odisseu e outro herói (na versão de Sófocles: Diomedes; na de Eurípedes: Neoptólemo),
retornaram à ilha para tentar trazer de volta à campanha Filoctetes, que portava o arco de Héracles (cf.
Grimal, P. Dictionnaire de la Mythologie Grecque et Romaine, 1951).
Encantamentos: praecento se refere ao uso de fórmulas mágicas com fins médicos. Assim, temos
praecantatrix em Plauto (Miles gloriosus, 693) com referência à profissional que curava por meio de
encantos.
Por mordedura de víbora... Versos atribuídos ao Filocetes de Ácio, citados ainda em Tusculanae II,
19.
XXIX, 95 Fórmulas vazias traduz dictata. As palavras de Epicuro são vistas aqui como frases que,
depois de memorizadas, são repetidas automaticamente por seus discípulos e assim transmitidas a novos
discípulos. Cf. II, 22, em que as máximas do mestre do Jardim são tratadas como espécie de oráculos, ou
seja, expressões que são tomadas como verdadeiras e a respeito das quais não se faz nenhuma reflexão
crítica.
XXX, 96 Ouve o que diz Epicuro no momento de sua morte... Sêneca se refere a esta carta em Ad
Luc. 92, 25 e Diógenes Laércio (X, 22) cita coisa bastante semelhante a partir de uma carta escrita a
Idomeneu. Nota-se, porém, na citação de Diógenes, que boa parte da carta é endereçada a mais de uma
pessoa (ejgravfomen uJmi'n), apenas a parte final, que em Cícero se inicia em sed tu, dirige-se
especificamente a Hermarco, discípulo ilustre que sucedeu o mestre na direção da escola. No texto de
Cícero, entretanto, não há esse “vós” que aparece em Diógenes Laércio e a carta em sua íntegra é tida
como endereçada a Hermarco. Diógenes também faz uma descrição dos últimos momentos de Epicuro em
X, 15 e em X, 7; citando Timócrates, diz que Epicuro esteve tão doente no fim de sua vida, que por vários
anos não foi capaz de se levantar do leito. Cícero, por sua vez, em Ad fam. VII, 26, 1, menciona que os
estóicos atribuíam a doença que trouxe a morte a Epicuro a uma vida repleta de vícios.
Tão enormes, porém, são os achaques... De acordo com Diógenes Laércio (X, 15), Epicuro morreu
por causa de um cálculo na bexiga que o impedia de urinar e que lhe causou dores extremas por catorze
dias. Antes de morrer, imergiu-se em água quente e pediu uma taça de vinho puro. Morreu após ter
exortado os amigos a não esquecerem seus ensinamentos.
Homem infeliz! “Pobre homem!”, mais natural, não mantém tão bem a irônica alusão à doutrina.
Pensamos também na alternativa “que triste fim!”.
XXX, 97 Logo que se apercebeu do que se passava: alternativas: “logo que recobrou os sentidos”,
ou, “logo que conseguiu perceber o que se passava”. Reid (ad locum) diz que o verbo dispico significa,
primeiramente, “conseguir vislumbrar (catch a glimpse) algo através de uma abertura estreita”, daí o
sentido de conseguir ver as coisas, mesmo com dificuldades. O mesmo comentador nota uma
inconsistência na passagem, devida ao fato de que primeiro se enuncia a ação de uidere, que exige a noção

411
de que o agente detinha pela consciência (sic), depois é descrita a ação do recobro de consciência (ut
primum dispexit).
Quis saber se estava a salvo o escudo: isto é, perguntou se seu escudo ficara em posse dos seus ou
se caíra em mãos inimigas, o que seria motivo de desonra.
Alegre e vitorioso morreu: o episódio mencionado pertence à guerra entre tebanos, comandados por
Epaminondas, e espartanos, que se passou no ano de 362 a.C. (cf. nota a II, 62).
XXX, 98: Eu ouço por certo a voz do filósofo... A personagem de Cícero contrapõe o discurso que
Epicuro sustenta em suas obras e ensinamentos a respeito da morte ao discurso que ele deveria sustentar se
quisesse ser coerente com os princípios que estabelece. Reid, no entanto, interpreta diferentemente e julga
que audio aqui quer dizer “desejo ouvir”. Assim: “eu quero de fato ouvir a voz do filósofo”, em tom de
provocação, ao que parece, pedindo a Epicuro que tente explicar suas contradições (cf. sua nota à
passagem).
E tu, por outro lado, sempre disseste que... Se Epicuro diz que todos os prazeres da alma, dentre
eles a alegria (ou contentamento, gaudium), advêm de prazeres do corpo e, enfim, tudo que se passa na
alma tem relação com afecções corporais; tomado que está, no momento de sua morte, das mais intensas
dores, ele não poderia, pensa a personagem de Cícero, estar contente, visto que não haveria nenhum prazer
corporal, presente naquele momento, a que sua alegria pudesse se referir. Notemos que nesta passagem,
Cícero esquece qualquer distinção entre laetitia e gaudium. Na tradução da carta ele se serve de laetitia,
mas na crítica utiliza gaudere e cognatos.
Mas de que prazeres passados... Seguindo a crítica, Cícero diz que Epicuro, moribundo, não pode
desfrutar dos prazeres passados, pois, se eles forem provenientes do corpo, isso criaria uma inconsistência
no que escreve o filósofo em sua carta, em que ele diz que o motivo de sua alegria é a recordação de
prazeres que advêm, no entanto, de coisas que nada tem a ver com o corpo, como as discussões filosóficas
que ele mantinha com seus amigos e discípulos. Se, por outro lado, os prazeres passados forem prazeres
da alma, Epicuro negaria o princípio que estabelecera, a saber: que todo prazer da alma se refere a um
prazer do corpo. Cícero parece esquecer (e o faz deliberadamente, julgamos) o fato de que os prazeres que
advêm das discussões e descobertas, isto é, prazeres passados e anímicos, referem-se a prazeres passados
(e presentes!) do corpo, como a liberação do medo da morte e da dor.
XXXI, 99 Mesmo que... vós vos volteis para um ou para o outro lado. Trecho de difícil tradução. A
expressão, nesta passagem, parece indicar o fato de que, escolhendo qualquer uma das alternativas
(voltando-se para qualquer um dos lados) propostas por Cícero, os epicureus não conseguirão resolver a
incoerência que foi apontada na carta mencionada. Expressão semelhante aparece em V, 86 com a mesma
idéia de decisão entre duas alternativas. Observemos ainda que o verbo uerso acompanhado de um
pronome reflexivo e a forma depoente uersor podem trazer a idéia de buscar, por meio de torneios, a

412
solução para uma situação dificultosa. Recordemos, a guisa de curiosidade, que o célebre Lívio
Andronico, que trouxe para o latim a Odisséia de Homero, serviu-se de uersutus para verter o epíteto dado
a Odisseu na abertura do poema: poluvtropo".
O fato de recomendar as crianças: o termo commendatio vem aqui utilizado em seu sentido mais
próprio, mas reaparecerá como parte importante da doutrina estóica no segundo diálogo, como uma das
traduções de oijkeivwsi". Cf. a imagem da carta de recomendação por meio da qual se ilustra o conceito em
III, 23.
XXXI, 100 Que ‘a morte em nada nos diz respeito... Cícero traduz aqui a Máxima 2. Idéia
semelhante pode ser encontrada também na Epístola a Meneceu, citada por Diógenes Laércio (X, 124).
Usamos “decomposto” para verter dissolutus que retoma o grego dialuqe;n. Se a tradução do texto nesta
passagem resta um pouco obscura, devemos observar que este é um dado mesmo do texto grego que
Cícero verte aqui, elemento de que ele vai se servir na crítica ao pensamento de Epicuro.
Ele não diz claramente o que é ‘decomposto’. Seguimos a interpretação de Reid (cf. sua nota à
passagem). A personagem de Cícero critica a obscuridade da expressão de Epicuro, que não define o que é
“decomposto”. Informa-nos, ainda, que Plutarco fizera crítica semelhante, a partir do que se pode ver em
uma passagem de Aulo Gélio (II, 8), à argumentação desta Máxima 2. Plutarco diz, mais precisamente,
que Epicuro não definira adequadamente a morte (como a diavlusi" da alma e do corpo), para que pudesse
chegar à conclusão que chega. Já Madvig (ad locum), baseando-se em uma passagem de Alexandre de
Afrodísias (In Aristotelis Topicorum libros octo commentaria, I, p. 7, apud Madvig), diz que tanto
Plutarco quanto Cícero compreenderam apenas parcialmente algo que teriam colhido de uma fonte grega
comum. A crítica original seria a de que Epicuro parte do fato de que o que se encontra decomposto
(dialuqe;n) não tenha sensação, para concluir que a morte, que é o processo de separação (diavlusi") entre
alma e corpo, seja também privada de sensação.
XXXI, 101 No mês do Gamelião. Trata-se do sétimo mês do ano ático que corresponde à última
metade de janeiro e a primeira de fevereiro.
De modo tão acurado e tão diligentemente, toma providências e determina. Cf. o testamento de
Epicuro referido por Diógenes Laércio em X, 16. A versão apresentada por Cícero deixa de lado alguns
dos elementos que se podem ver no texto do biógrafo.
XXXI, 102 Que pode haver, para alguém, um dia de aniversário... Deve-se dizer que a expressão
dies natalis pode significar tanto “dia do nascimento”, quanto “data de nascimento”, isto é, o dia em que
se comemora, de acordo com o calendário, o dia do nascimento de alguém, ou seja, o dia de aniversário.
De modo que aconteça de todos os astros... O texto alude aqui à teoria antiga do magnus annus ou
annus maximus, tratada por Aristóteles (apud Marinone, ad locum) sob o nome de ejniauto;" mevgisto" e,
por Platão, com a expressão tevleo" ejniautov" (Platão, Timeu 39d; cf. Cícero, Timaeus 33), ou seja, “ano

413
perfeito”, ou “ano completo”. Segundo a astronomia dos antigos, esse ano acontece quando os astros,
tendo completado suas revoluções, retornam todos à posição de partida. O tempo estimado para que isso
aconteça varia na concepção de cada autor (cf. Marinone, ad locum).
Que, com a mente, teria percorrido inumeráveis... É tão notável a semelhança desta passagem com
o que se vê em Lucrécio (I, 74 e ss.), que se costuma supor uma alusão direta ao texto do De natura
deorum: extra / processit longe flammantia moenia mundi / atque omne immensum peragrauit mente
animoque. Mas Reid, por exemplo, julga (ad locum) que esse tipo de asserção pode ter sido um lugar
comum dentro da escola de Epicuro, assim como, aliás parece ter acontecido em outras seitas. Cf. Sexto
Empírico, Aduersus Mathemathicos I, 305, onde há uma citação na qual Tímon se refere a Pirro em tom
semelhante.
XXXII, 104 Pois foi ao falarmos da dor que nós nos desviamos para essa carta. Em II, 92, após
argumentar que o prazer não é o sumo bem, a personagem de Cícero busca demonstrar que, se a dor for o
sumo mal, não há possibilidade de felicidade para o sábio, pois ele sempre receará o fato de que possa
estar sujeito a esse mal. Em seguida, ela passa a apontar inconsistências no conjunto de preceitos
apresentados por Epicuro com a finalidade de nos livrarmos do medo da dor. Para tornar evidente, enfim,
que as ações de Epicuro contradizem sua doutrina e seus preceitos, ela se vale da última carta de Epicuro.
Temístocles, ao lhe prometer Simônides... Simônides: poeta da ilha de Céo, célebre por suas elegias
e poesias corais. É reputado, tradicionalmente, como o inventor da arte da memória. Segundo se conta (cf.
De oratore II, 351 e ss.), tendo sobrevivido ao desabamento do teto do lugar em que se passava um
banquete, ajudou no reconhecimento dos cadáveres por se lembrar exatamente do lugar ocupado por cada
um dos comensais. Tanto essa anedota, quanto o episódio envolvendo Temístocles parecem pouco
confiáveis, visto que Cícero hesita, tanto aqui, como em De oratore II, 299, sobre quem tenha sido o
doctus homo que ofereceu a Temístocles as técnicas mnemônicas.
XXXII, 105 Dogmas: Latiniza-se aqui o termo grego dovgma (dovgmata, no plural), que, em outras
ocorrências, é vertido por decretum (decreta); cf. II, 23.
Pois todos vós conheceis... Reid (ad locum) critica o uso de omnes, uma vez que apenas Torquato e
Triário estão presentes. No entanto, bem que omnes poderia se referir não aos interlocutores presentes,
mas ao conjunto de epicureus, de que Torquato se faz o patrono, que, entretanto, em não poucas passagens
de Cícero (como se verá mesmo a seguir), são representados como pouco preocupados com a poesia e
outras modalidades da educação tradicional.
Doce é das fadigas passadas a lembrança: verso da Andrômaca de Eurípedes, tragédia não
conservada. Esse verso, porém, encontra-se na coletânea de fragmentos organizada por Nauck (cf. Nauck,
Fragmenta tragicorum graecorum, p. 317, apud Rubrichi).

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G. Mário: Gaio Mário (153 – 86 a.C.), famoso homem público romano. Cícero escrevera um poema
épico (hoje perdido) a respeito desse personagem, que era conterrâneo seu, da cidade de Arpino. Foi sete
vezes cônsul e, como general, alcançou diversas e importantes vitórias. Uma das mais célebres, sem
dúvida, contra Jugurta, rei da Numídia eternizado por Salústio. Celebrou ainda dois triunfos (em 102 e 101
a.C.). De tudo isso ele podia se lembrar em 88 a.C., quando, durante as guerras sociais, em batalha contra
as forças de Sula, foi obrigado a se refugiar num pântano em Minturnas, cidade do Lácio, onde passou
uma noite inteira com água até o pescoço. Tendo conseguido alcançar o mar, pela manhã, foi surpreendido
e capturado pelos soldados inimigos (cf. Marinone, ad locum).
XXXII, 106 Aristóteles... escarnece do epitáfio de Sardanápalo... Trata-se do rei Assurbanipal
(Sardanavpallo" na historiografia grega), na verdade, rei da Assíria (que foi muitas vezes, como aqui,
confundida com a Síria, cf. Marinone, ad locum), célebre por, ao se dar à morte pelo fogo, ter feito o
mesmo com toda a sua riqueza e suas mulheres. Há discussão quanto a sua cronologia, mas se aceita que
tenha reinado em meados do século VIII a.C.. Cícero traduz parte dos dois últimos versos de seu epitáfio
em Tusc. V, 101: haec habeo, quae edi quaeque exsaturata libido / hausit: at illa iacent multa et
praeclara relicta. Nessa mesma passagem, Cícero cita Aristóteles, que diz que tal epitáfio é mais digno de
um boi do que de um rei. Mesmo que Sardanápalo apareça em um texto remanescente de Aristóteles
(Ética a Nicômaco I, 5, 3) não há nada, na obra do estagirita, de correspondente à citação de Cícero.
Alados, escapam uns depois dos outros: difícil verter a expressão prima quaeque auolat. Note-se a
ocorrência de si prima quaeque logo acima (II, 105), em que seguimos a interpretação de Reid, que é,
nesta passagem, ratificada por Rubrichi (ad locum).
Cessa, ó Roma, de teus inimigos... Madvig (ad locum) considera que se deve subentender no
primeiro fragmento um verbo como timere. Assim: “cessa, ó Roma, de teus inimigos temer”. Trata-se de
parte de um verso atribuído, por esse comentador, aos Annales de Ênio. Madvig, aliás, rejeita a atribuição
do fragmento ao Scipio de Ênio, argumentando que esse poema fora todo escrito em tetrâmetro trocaico e
que o fragmento provém de um hexâmetro. Em De oratore III, 167, Cícero cita o mesmo fragmento e um
outro: testes sunt campi magni. A ocorrência de reliqua na passagem do De finibus, parece garantir a
mesma procedência aos dois fragmentos aqui citados.
XXXIII, 107 Os jogos, uma caçada: Reid (ad locum) considera que, assim como uenandi em I, 69,
esta expressão se refere aos espetáculos em que se podia observar a luta entre animais selvagens.
Preferimos ser mais prudentes, uma vez que, se em I, 69 uenandi dependia de ludicra, aqui há apenas uma
coordenação entre ludi e uenatio.
A quinta de Luculo: Lúcio Licínio Luculo, que foi cônsul em 74 a.C. Tendo alcançado também
algum êxito militar (iniciou, por exemplo, a campanha contra Mitridates e Trigane, que foi, entretanto,
concluída vitoriosamente por Pompeu), retirou-se, nos úlimos anos de sua vida, em sua uilla em Túsculo,

415
reputada pelo luxo e refinamento e por uma excelente biblioteca. Nessa uilla, inclusive, dar-se-á a cena
representada no segundo diálogo do De finibus (livros III e IV). Cícero foi amigo e admirador de Luculo,
que parece ter sido homem de grande cultura e que é introduzido como interlocutor na primeira versão dos
Livros Acadêmicos.
XXXIII, 108 Como se pode provar isso... Em I, 66 e ss., o patrono do epicurismo defende que nós
nos alegramos com a alegria de nossos amigos assim como se fosse nossa alegria. Cícero distorce o que
disse Torquato, alegando que este afirmara que nós experimentamos mais alegria com o prazer do amigo
do que o próprio amigo pode experimentar. Além disso, com a aproximação das duas linhas
argumentativas, Cícero cria uma relação direta, que não existe no discurso de Torquato, entre os prazeres
da alma e a amizade.
[Pois na alma o prazer surge graças ao prazer do corpo... O trecho entre colchetes é considerado
por todos os editores consultados como uma interpolação. O teor explicativo e, mais que isso, meramente
repetitivo, é, de fato, evidente.
XXXIII, 109 Em parte de modo zeloso ou com fadigas... Reid (ad locum) discorda da leitura
indulgenter, por julgar que, no contexto da argumentação, dizer que os animais realizam ações de modo
complacente não contribui para o que pretende demonstrar a personagem Cícero. Ele propõe a correção
diligenter, julgando que o prefixo in- pode ser proveniente da palavra anterior: partim. Nessa
interpretação, uel cum labore reforçaria diligenter. Além disso, o comentador diz que o único sentido
aceitável para indulgenter aqui seria uma espécie de caráter desinteressado da afeição. Não concordamos
com isso, tendo em vista que os dicionários registram para o verbo indulgeo o sentido de “ocupar-se com,
cuidar de, tratar de, entregar-se a”, etc. Desse modo, seguimos o texto de Reynolds, mas consideramos
indulgenter na acepção que mencionamos acima com relação ao verbo de mesma raiz.
Grandes deslocamentos: Madvig (ad locum) julga que peregrinatio faz referência não às migrações
realizadas por alguns animais, mas ao fato de viverem afastados uns dos outros, sem se associarem. Se
isso é correto, pode-se mesmo interpretar de outro modo o termo indulgenter, pois que Cícero poderia
estar afirmando que alguns animais, de fato, não apresentam qualquer outro móbile que não o prazer, mas
outros – e são esses que servem a seu argumento – em suas associações, apresentariam mesmo
comportamentos semelhantes aos comportamentos virtuosos dos seres humanos.
XXXIII, 110 Indícios de dedicação: parece-nos que pietas, neste contexto, refere-se bem
precisamente aos laços de dedicação e respeito que unem as pessoas de uma mesma família. De acordo
com o argumento, certas aves teriam como que germes de um sentimento afetuoso de dedicação como os
que unem os homens num círculo familiar.
Certas imagens das virtudes humanas: o termo simulacrum aparece aqui com uma conotação
claramente positiva, bastante diferente daquela que é mais comum em nossa língua e que provém, muito

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provavelmente, de seu uso em traduções do ei[dwlon platônico. A idéia aqui não é o de imagens falsas da
virtude, mas, ao contrário, de elementos que, nos animais, ainda que não completos, são semelhantes às
verdadeiras virtudes. Ao tratar, por outro lado, da justiça falsa que a doutrina do Jardim criaria, a
personagem do orador utilizara simulatio (cf. II, 71).
XXXIV, 111 Para os bichos, o mesmo sumo bem que para os homens. Esta maneira de argumentar
anuncia uma idéia, proveniente do aristotelismo e retomada pelos estóicos, que vai ser desenvolvida nas
discussões seguintes desta mesma obra, a saber: que, visto que cada ser tem uma natureza que é sua, o
sumo bem, para cada ser, deve ser viver de acordo com a sua própria natureza.
XXXIV, 112 Assim como se Xerxes... Faz-se referência à famosa campanha que o rei da Pérsia,
Xerxes (485 – 465 a.C.), realizou em 481, quando, narra-se, contando com um exército de mais de um
milhão de homens, fez atravessar a infantaria e a cavalaria por meio de duas pontes, formadas pelos navios
da armada que se dispuseram ao longo de todo o Helesponto. Depois, para fazer passar toda a armada sem
que houvesse perigo de ser surpreendido no istmo do monte Atos (entre a Macedônia e a Trácia), escavou-
o e construiu um canal por onde passassem os navios (cf. Isócrates, Panegírico, 86). Apesar dos enormes
recursos militares, a expedição foi frustrada pela ação comum dos vários povos gregos. São eventos
importantes da derrota dos Persas as já mencionadas batalhas de Salamina e das Termópilas, dentre outros.
Interessante notar, portanto, que isso que não deixa de ser uma hipálage (maria ambulauisset terra
nauegauisset) e que retoma algo do texto de Isócrates, referido acima, mantém, segundo as informações
históricas, uma relação muito mais próxima com o evento descrito do que se poderia imaginar. É claro que
o encontro de uma forma de expressão tão elaborada, utilizada para dar maior relevo à narrativa, com um
aspecto que é da própria realidade, confere ainda maior grandeza à expedição persa comandada por
Xerxes.
XXXIV, 113 A memória... que em ti é, sem dúvida, infinita: no Brutus (265), Cícero louva a diuina
memoria de Torquato. Observe-se que, nesta passagem, Cícero enumera três virtudes do intelecto
(dianohtikai; ajretaiv) e três das virtudes cardeais. Omite-se a frovnhsi".
XXXIV, 115 Artes, as mais importantes, das quais quem estivesse privado era chamado ‘inerte’. O
termo, formado por um prefixo negativo (in) e pela raiz de ars, significa originalmente “desprovido de
arte”, “sem técnica”. No entanto, Cícero considera aqui especificamente as maximae artes. Segundo pensa
Rubrichi (ad locum), estariam incluídos aí a arte de bem falar e o conhecimento jurídico, artes que devia
deter quem participasse da vida pública. Já Reid (ad locum), considera que as maximae artes são as
virtudes e argumenta a partir de uma passagem das Partitiones oratoriae, 35: animi autem aut
quemadmodum affecti sint uirtutibus, uitiis, artibus inertiis aut quemadmodum commoti cupiditate, metu,
uoluptate, molestia.. Essa passagem apresenta de fato uma nítida separação, no que diz respeito às
disposições da alma, entre artes e uirtutes, de um lado, e inertiae e uitia, de outro. No entanto, não nos

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parece haver aqui uma identificação entre os membros de cada par. Ao que é do âmbito moral (uirtutes,
uitia), contrapõe-se o que é do âmbito do conhecimento (artes, inertiae). De modo que a interpretação de
Rubrichi, embora não esteja apoiada em indício textual, parece-nos apontar para algo de mais provável.
Não digo Homero, Arquíloco, Píndaro, mas Fídias, Policleto, Zêuxis... Ao lado de três poetas:
Homero (presumido autor da Ilíada e da Odisséia), Arquíloco (célebre poeta de Paros, que viveu no
século VII a.C., autor de iambos e elegias) e Píndaro (um dos grandes expoentes da lírica grega e que
viveu na passagem do século VI ao V), o texto apresenta três artistas plásticos do século V: os escultores
Fídias, de Atenas (responsável pelas esculturas do Partenón) e Policleto, de Sicione; e o pintor Zêuxis, da
cidade de Heracléia, na Itália meridional. De acordo com o contexto, para a personagem que argumenta, o
artista plástico não regula sua arte pelo prazer, mas impõe-se como meta a beleza das formas. Mas como a
beleza das formas não teria ligação com o prazer sensorial? Entenderíamos melhor a passagem se a
confrontássemos com um trecho do Orator (9), que, deve-se dizer, tem enorme influência platônica. Ali, o
artista, quando esculpe ou pinta, dirige sua mão de acordo com uma forma (species), ou idéia de beleza,
que estaria separada de toda beleza empírica: nec uero ille artifex cum faceret Iouis formam aut Mineruae,
contemplabatur aliquem e quo similitudinem duceret, sed ipsius in mente insidebat species pulchritudinis
eximia quaedam, quam intuens in eaque defixus ad illius similitudinem artem et manum dirigebat. Cabe
dizer que o artista em questão é o mesmo Fídias, citado nesta passagem De finibus II.
O desejo, isto é, com a parte mais volúvel da alma: note-se o tom platônico dessa passagem. É mais
um indício que nos permite defender a aproximação entre o que se diz do artista plástico aqui e no trecho
citado do Orator.
Se os deuses existem... Reid (ad locum) diz, entretanto, que não é certo que os epicureus pensavam
que os deuses não podiam experimentar prazeres corporais.
Ciro: a referência é feita, provavelmente, a Ciro, o antigo, fundador do Império Persa, conquistador
da Lídia e da Ásia Menor.
Agesilau: rei de Esparta que venceu, em 394 a.C. as forças aliadas de Atenas, Corinto e Tebas em
Coronéia, localidade da Beócia. Depois, em Mantinéia, foi batido por Epaminondas em 362 a.C.
Aristides, Temístocles: dois dos mais ilustres homens públicos atenienses da primeira metade do
século V a.C.. Aristides celebrizou-se por sua justiça, tendo sido mesmo alcunhado como “justo”. Foi
ainda um dos dez generais que, na batalha de Maratona (490 a.C.), bateram os persas. Adversário político
de Temístocles, foi banido de Atenas em 483; retornando, contudo, alguns anos depois, participou ainda
das batalhas de Salamina (480) e Platéia (479), que representaram a vitória grega contra o invasor persa.
Temístocles, por sua vez, é o nome sempre lembrado quando se trata da batalha de Salamina, emblemática
por estabelecer a soberania naval dos atenienses ao longo de grande parte do século V.

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Filipe, Alexandre: dois célebres reis da Macedônia. Filipe foi o responsável pelo fortalecimento do
exército macedônio e pela invasão dos territórios gregos, que culminaria com a submissão da Grécia à
Macedônia. Seu filho, Alexandre, talvez o mais notável general que já houve, estendeu o domínio
macedônio até a Índia e é um dos grandes responsáveis pela disseminação da cultura grega pelo oriente.
Por conta de suas conquistas, recebeu a alcunha de “grande”.
XXXV, 116 Inscrições tumulares, como esta diante de uma das portas da cidade... Trata-se da
Porta Capena, de onde partia a via Ápia, ao longo da qual se erguiam diversos monumentos sepulcrais de
cidadãos ilustres. Cícero refere-se a essa porta, ao mencionar túmulos familiares dos Calatinos, dos
Cipiões, dos Servílios e dos Metelos, em Tusc. I, 13.
Sobre este, um homem só... Esta inscrição aparece também no De senectute (61) atribuída ao mesmo
Calatino, de quem se fala a seguir.
XXXV, 117 Calatino: Aulo Atílio Calatino foi cônsul em 258 e em 254 a.C.. Durante a Primeira
Guerra Púnica, era pretor na Sicília, quando rechaçou as tropas cartaginesas da ilha. Por esse feito, obteve
o direito de celebrar um triunfo.
Que grande e geral perturbação disso resulta, que grande desordem... O resultado do epicurismo é,
portanto, o esfacelamento completo da ordem moral e social estabelecida. Afirma-se o mesmo em De
natura deorum I, 3-4. A idéia é desenvolvida por François Prost em “Aspects de la critique cicéronienne
de l’épicurisme en De finibus 2”.
XXXV, 119 Síron e Filodemo foram renomados epicureus do século I a.C., que, vindos do mundo
grego, instalaram-se em cidades italianas. Diz-se que Síron foi mestre de Virgílio e de Varrão. Filodemo
estava ligado à casa de Lúcio Calpúrnio Pisão Caesonino (sogro de Júlio César). Cícero, ao atacar esse
Pisão em um célebre discurso (In Pisonem) faz referência a Filodemo (68-72). Em Herculano, o filósofo
manteve uma escola, ou um círculo de amigos estudiosos do epicurismo. Parte de sua obra, que contava
ainda com epigramas eróticos, foi há não muito tempo descoberta em uma propriedade de Herculano. A
partir dos estudos da obra desse autor, descobriu-se que ele ensinava em Roma o epicurismo com algumas
importantes modificações. Ora, a mera menção ao fato de que esse filósofo compunha poemas, leva-nos a
pensar que a condenação feita por Epicuro à educação tradicional não era completamente acolhida pelo
círculo epicureu italiano liderado por Filodemo. É significativo, portanto, o modo como, no presente
diálogo, o patrono do epicurismo, Torquato, que ao longo dos dois primeiros livros foi representado como
um jovem conhecedor da arte do discurso e que nutre interesse por outras artes desprezadas pelo
epicurismo tradicional, é construído, pelo autor, à sombra da autoridade de um pensador como Filodemo.
Protesto... É injusto: fórmulas de protesto como esta (eiuro iniquum) põem em xeque o juramento
legal e apontam para problemas no processo. Nesse tipo de situação, o réu poderia protestar com vistas à

419
mudança de acusador ou de juízes (cf. Rhetorica ad Herenium I, 22). O chiste de Torquato faz com que a
discussão filosófica se encerre sob o signo do debate jurídico.

420
Sobre os fins dos bens e dos males
Livro III
I 1 Se o prazer, Bruto, falasse ele próprio em seu favor e não tivesse patronos tão
obstinados, julgo que, refutado no livro anterior, haveria de ceder ao mérito. Portanto, ele seria
impudente se por mais tempo resistisse à virtude, ou antepusesse o agradável ao honroso, ou
sustentasse com afinco que mais vale a doçura no corpo, ou a alegria que dela tem origem, do que
a gravidade e a constância da alma. Sendo assim, a ele, sem dúvida, renunciemos, e ordenemos
que se mantenha em seu território, para que suas carícias e atrativos não impeçam a austeridade
da discussão. 2 Deve-se, então, investigar em que consiste esse sumo bem que desejamos
encontrar, já que não só o prazer foi dele apartado, mas, também, já que quase as mesmas coisas
podem ser ditas contra os que quiseram que a ausência de dor fosse o fim dos bens; na verdade,
que não se aprove nenhum sumo bem que careça de virtude, à qual nada pode haver de superior.
Dessa forma, ainda que naquela conversa, tida com Torquato, não tenhamos sido remissos,
com os estóicos é mais áspera esta contenda que se prepara. Pois no que se diz sobre o prazer não
se argumenta nem de modo muito agudo, nem de modo profundo, pois nem os o que o defendem
são versados na arte da argumentação nem os que contra ele discursam refutam uma causa difícil.
3 O próprio Epicuro diz, inclusive, que nem mesmo há necessidade de se argumentar a respeito
do prazer, pelo fato de que estaria colocada nos sentidos a faculdade de julgá-lo, de modo que
seria suficiente que nós aplicássemos a atenção a eles, não haveria nenhuma relevância em
demonstrar737. Por esse motivo, foi simples para nós aquela discussão em que se argumentou em
favor de um e de outro lado da questão. Pois, na fala de Torquato não houve nada de complicado
ou tortuoso, e foi claro, como me parece, o meu discurso. Dos estóicos, por outro lado, tu não
ignoras quão sutil, ou melhor, espinhoso, é o modo de exposição, e isso não só para os gregos,
mas mais ainda para nós, que devemos mesmo criar palavras e atribuir a coisas novas termos
novos. Algo, sem dúvida, de que ninguém medianamente instruído vai se admirar, ao refletir que
em toda arte cujo uso não seja comum a todos grande é a novidade dos termos, uma vez que se
estejam constituindo palavras para designar aquelas coisas sobre as quais versa toda e qualquer
arte. 4 Dessa forma, tanto os dialéticos quanto os físicos servem-se de tal tipo de palavras, que
mesmo na Grécia não são conhecidas, os geômetras, ademais, e os músicos, e ainda os
gramáticos, falam de um modo que lhes é particular. As próprias Artes dos retores, que são

737
Cf. I, 22.

421
completamente voltadas para o fórum e para o povo, no âmbito do ensino, todavia, servem-se de
palavras privadas, por assim dizer, e que lhes são próprias.
II Mas, para deixar de lado essas artes liberais e de bom gosto, nem mesmo os artífices
poderiam manter suas técnicas de produção se não usassem termos, para nós, desconhecidos,
usuais para eles. Além do mais, até mesmo a agricultura, que se afasta de todo gosto mais
refinado, as coisas sobre as quais versa ela marcou com termos novos. Quanto mais deve fazê-lo
o filósofo! Pois a filosofia é a arte da vida, para cuja discussão não se pode lançar mão de
palavras vindas do fórum. 5 Ademais, dentre todos os filósofos, os estóicos foram os que mais
inovaram e Zenão, primeiro dentre eles, não foi tanto um inventor de conceitos quanto de novas
palavras. Pois, se nessa língua, que a maioria considera a mais fecunda, concedeu-se que os mais
doutos homens a respeito de coisas não triviais usassem palavras inusitadas, quanto mais se deve
conceder a nós que, agora, primeiramente, ousamos tocá-las? E uma vez que amiúde dissemos, e
com alguma queixa – é verdade – não apenas da parte dos gregos, mas também daqueles que
querem ser tidos mais por gregos do que por gente nossa: nós não apenas não somos vencidos
pelos gregos em abundância de palavras, mas somos mesmo superiores nessa característica;
devemos nos esforçar para que não só em nossas artes, mas inclusive nas deles próprios, nós
realizemos isso. Ainda que essas palavras, que por convenção dos antigos usamos em lugar de
palavras latinas, como a própria palavra “filosofia”, como “retórica”, “dialética”, “gramática”,
“geometria”, “música”, ainda que essas palavras pudessem ter sido expressas em latim, uma vez
que foram acolhidas pelo uso, consideremos nossas.
6 Isso, sem dúvida, a respeito dos nomes aplicados às coisas. A respeito das próprias coisas,
por outro lado, Bruto, repetidas vezes eu temo que venha a ser criticado, uma vez que escrevo a
ti, que, não apenas em filosofia, mas – o que é importante – no mais excelente gênero de
filosofia, foste tão longe. Ora, se agora agisse como se estivesse te instruindo, com justiça seria
criticado. Mas estou muito longe disso e nem é para que conheças o que te é tão conhecido que te
dedico esta obra, mas porque muito facilmente me atenho a teu nome e porque te considero o
mais equânime avaliador e juiz desses estudos que contigo tenho em comum. Darás, portanto,
como de costume, diligente atenção e, tal qual um juiz, decidirás sobre a controvérsia que houve
entre mim e teu tio, homem divino e singular.
7 Pois bem, estando eu em minha quinta de Túsculo, e querendo me servir de certos livros
da biblioteca do pequeno Luculo, fui até sua quinta a fim de que eu próprio, como de costume, os

422
retirasse. Lá chegando, M. Catão, que eu não sabia que ali se encontrava, vi sentado dentro na
biblioteca, envolto em uma profusão de livros estóicos. De fato, havia nele, como tu sabes, uma
avidez pela leitura e ele não conseguia se saciar, ele que, nem mesmo temendo uma repreensão
descabida do vulgo, na própria Cúria, muitas vezes, costumava ler, até que se reunisse o senado,
sem nada subtrair de sua atenção à questão pública. Quanto mais nessa ocasião, absolutamente
livre das ocupações e na mais extrema abundância, parecia como que se empanturrar dos livros,
se tal palavra se deve usar para tão ilustre atividade. 8 Assim, por acaso, ao nos vermos um ao
outro de improviso, de imediato ele se levantou. Em seguida, aquelas primeiras palavras, que
num encontro costumamos dizer: “Mas o que fazes por aqui?” Disse ele. “Vens de tua quinta,
creio. Se soubesse que estavas lá, eu próprio teria ido te ver”.
“Tendo ontem começado os jogos”, eu disse, “deixei a cidade e cheguei ao fim da tarde.
Vim até aqui, entretanto, para retirar alguns livros. E, de fato, Catão, será necessário que todo
esse rico acervo seja logo conhecido por nosso pequeno Luculo. Pois prefiro que ele se deleite
mais com estes livros do que com os restantes ornatos da quinta. É para mim, de fato, motivo de
grande preocupação (ainda que seja essa por certo uma tarefa propriamente tua) que ele se instrua
de tal modo que corresponda não só ao pai, como a nosso Cepião e a ti, que lhe é tão próximo.
Mas eu me esforço não sem razão, pois, por um lado, sou movido pela memória de seu tio (pois
não ignoras quanto apreço eu tinha por Cepião, que, em minha opinião, entre os primeiros estaria
agora se estivesse vivo), por outro, tenho sempre diante de meus olhos [L.] Luculo, homem em
tudo excelente e que está unido a mim não só por amizade, como por todo tipo de aspiração e
pensamento.
9 “É notável”, disse ele, “o modo como ages, quando não apenas guardas a memória desses
dois que a ti, por testamento, confiaram seus filhos, mas também amas o menino. O que, por
outro lado, tu afirmas ser minha tarefa, de minha parte eu não recuso, mas te associo como
companheiro. Acrescento ainda isto: já me dá muitos sinais o menino de pudor e de engenho; tu
vês, no entanto, sua idade”.
“Sim, eu vejo”, disse eu, “todavia ele já deve se imbuir daquelas artes que, se enquanto
ainda está em formação tiver absorvido, ao que é mais importante chegará mais preparado”.
“De fato. Sobre isso nós conversaremos com mais atenção e com mais freqüência e
agiremos conjuntamente. Mas, vamos voltar a nos sentar”, disse ele, “se te agrada”. E assim
fizemos.

423
III 10 Então, ele disse: “Quanto a ti, uma vez que possuis, tu mesmo, tamanha quantidade
de livros, quais buscas aqui afinal?”
“Certas anotações aristotélicas”, eu disse, “que eu sabia haver aqui; vim para levá-los, a fim
de lê-los, enquanto estiver livre de obrigações, o que, por certo, não nos sucede com freqüência.”
“Como eu queria”, disse ele, “que tu tivesses te inclinado em direção aos estóicos! Pois se
de alguém se poderia esperar não considerar outra coisa entre os bens senão a virtude, era de ti”.
“Vê se não é de ti”, disse eu, “uma vez que, quanto à coisa, temos eu e tu o mesmo parecer,
que se deveria esperar não atribuir novos nomes às coisas. Pois nosso raciocínio concorda, opõe-
se o discurso.”
“Não concorda de forma alguma”, disse ele. “Pois o que quer que, com exceção do que for
honroso, tu afirmares que deve ser buscado e contares entre os bens, o próprio honroso, que é
como que a chama da virtude, tu terás extinguido e terás derruído a virtude, solapando-a em seus
fundamentos.”
11 “Isso que dizes, Catão, é magnífico”, eu falei, “mas tu percebes que a glória dessas
palavras tu a partilhas com Pirro e com Aríston, que fazem de todas as coisas iguais? Desejo
saber o que pensas deles.”738
“O que eu penso”, disse ele, “tu perguntas? Os homens que nós ouvimos terem sido, na vida
pública, bons, corajosos, justos, moderados, ou os que nós próprios vimos, e que, sem qualquer
doutrina, seguindo a própria natureza, realizaram muitas coisas louváveis, foram mais bem
formados pela natureza do que poderiam ter sido formados pela filosofia, caso houvessem
aprovado alguma outra, senão aquela que não tivesse outra coisa entre os bens que não o honroso,
nada que não o torpe entre os males; os demais ensinamentos dos filósofos, de modo geral uns
mais que os outros, mas todos aqueles que contem entre os bens ou os males alguma coisa que
não tem parte com a virtude, não apenas eles em nada contribuem – conforme penso – ou sequer
asseguram que sejamos melhores, mas, sim, pervertem a natureza. De fato, caso não se tenha
firme que só é bom o que for honroso, de modo algum pode-se provar que a vida feliz é
produzida pela virtude; e, se assim for, não sei por que se deve dar atenção à filosofia. Pois, caso
algum sábio possa ser infeliz – muito bem739 – eu não julgaria que a essa virtude, repleta de glória
e digna de menção, deva-se atribuir grande valor.

738
Pirro e Aríston já foram mencionados em II, 35 e 43.
739
Estrangeirismo: veja-se nota ao fim do texto.

424
IV 12 “Do que disseste até agora, Catão, o mesmo”, disse eu, “tu poderias dizer se
seguisses Pirro ou Aríston. Pois tu não ignoras que, para eles, esse honroso não somente parece
ser o sumo bem, mas, como tu pretendes, o único bem. E, se é assim, segue-se exatamente aquilo
que, conforme observo, tu pretendes: que todos os sábios são sempre felizes. Esses, portanto, tu
louvas e o pensamento deles”, disse eu, “tu consideras que nós devemos seguir?”
“Mas de modo algum! Não o deles, ao menos”. Ele disse. “Pois, uma vez que seja próprio
da virtude fazer a escolha daquelas coisas que forem segundo a natureza, aqueles que de tal forma
tomaram todas as coisas como iguais de modo a tornarem-nas assim idênticas para um e para
outro lado, de modo a não se servirem de nenhuma seleção, esses, a própria virtude eles
suprimiram.”
13 “Quanto a isso”, repliquei, “tu te exprimes muito bem; mas pergunto se por acaso tu não
deverias fazer o mesmo, tu que dizes que nada que não seja reto e honroso é bom e que suprime
toda distinção entre as demais coisas.”
“Se eu a suprimisse, sim”; ele disse, “mas eu a preservo.”740
14 “Mas de que modo?” Eu disse. “Se uma só é a virtude, um só isso que chamas honroso,
reto, louvável, adequado (de fato, designado por vários termos que declarem a mesma coisa,
conheceremos melhor de que tipo seja), se esse, portanto – como eu dizia – é o único bem, o que
terás, além dele, que poderias seguir? Ou, se nada é mal senão o que é torpe, desonroso,
inadequado, perverso, escandaloso, feio (que isso também nós distingamos com muitos nomes), o
que, além dele, dirás que deve ser evitado?”
“A ti, que não desconheces o que direi,” disse ele, “mas, conforme eu cá suspeito, desejas
arrancar, furtivamente, algo de minha resposta breve, não responderei a cada questão: antes
exporei, uma vez que estamos livres de obrigações, se não julgas descabido, de forma completa o
pensamento de Zenão e dos estóicos.”
“De modo algum”, eu disse, “é descabido, e será muito proveitosa, para o que estamos
investigando, essa tua exposição”.
15 “Vamos tentar, portanto”, disse ele, “mesmo que o sistema dos estóicos tenha algo de
muito difícil e obscuro. Pois, uma vez que na própria língua grega, outrora, estes termos
aplicados a coisas novas pareciam novidades, termos que agora o uso continuado tornou
correntes, o que consideras que vai se passar em latim?”

740
Cf. III, 50-51.

425
“Isso, ao menos, não apresenta a mínima dificuldade”, disse eu. “Pois se foi permitido a
Zenão, tendo inventado alguma coisa inusitada, atribuir a essa coisa um nome também inédito,
por que não seria permitido a Catão? Nem será necessário, todavia, que se verta palavra por
palavras, como costumam os tradutores sem arte, quando houver uma palavra, mais usual, que
declare o mesmo; quanto a mim, costumo até mesmo, se de outro modo não posso, aquilo que era
expresso, em grego, com uma só palavra, expressá-lo com muitas. E, todavia, julgo que se deva
nos conceder que nos sirvamos de palavra grega, no caso de não se apresentar uma latina, e que
isso não se conceda mais para ‘ephippia’ e ‘acratophora’ do que para ‘proegmena’ e
‘apoproegmena’; muito embora quanto a estas últimas, será possível dizer, corretamente,
‘preferíveis’ e ‘rejeitáveis’”.
16 “Fazes bem”, disse ele, “em me ajudares. E dentre essas palavras ao menos, que acabas
de mencionar, vou utilizar de preferência as latinas; com relação a outras, tu virás me acudir, se
me vires hesitante.”
“Com zelo”, respondi, “eu o farei. Mas, ‘a fortuna os bravos’, por isso, tenta com empenho:
é o que te peço. Pois o que podemos realizar de mais divino?”
V “Pensam aqueles, cujo sistema eu aprovo”, disse ele, “que o ser animado, assim que
nasce (pois é daqui que se deve partir), torna-se caro a si próprio e se recomenda a si próprio com
vistas a sua conservação e à de seu estado e a amar aquelas coisas que concorram à conservação
desse estado; e, por outro lado, a se tornar avesso à própria destruição e àquelas coisas que
pareçam provocar a destruição. E que assim é, eles provam desta forma: antes que lhes tenha
sobrevindo prazer ou dor, os pequenos tenderiam ao salutar, o prejudicial eles evitariam, algo que
não se daria se não amassem seu estado e nem temessem a destruição. Não poderia se dar, por
outro lado, que tendessem a algo se não tivessem percepção de si e por isso se amassem. Donde
se deve entender que o elemento primeiro é decorrente do amor a si mesmo. 17 Entre os
princípios naturais, a maior parte dos estóicos pensa que não se deve incluir o prazer. Com esses
eu concordo veementemente, para que não se sigam, caso se considere que a natureza incluiu o
prazer entre as coisas que são buscadas primeiramente, muitas coisas torpes. Parece haver, por
outro lado, prova suficiente de que amamos aquilo que é admitido pela natureza como primeiro,
pois não há ninguém que, quando seja possível um e outro, não prefira ter todas as partes do
corpo apropriadas e íntegras a, para o mesmo uso, mutiladas e disformes. As cognições das
coisas, por sua vez, que nos seja lícito chamar compreensões, ou percepções ou, se essas palavras

426
não agradam ou são pouco inteligíveis, catalepses; elas, portanto, julgamos que devem ser
admitidas por si próprias, porque possuem algo em si que abraça, por assim dizer, e guarda
consigo a verdade. Isso, por sua vez, pode ser entendido ao considerarmos os pequenos, porque
os vemos se comprazerem, se, com a razão, por si próprios descobrem algo, ainda que isso em
nada lhes interesse. 18 As artes, também, pensamos que por si só devem ser admitidas, tanto
porque haja nelas algo cuja admissão é digna, quanto por dependerem de conhecimentos e
encerrarem em si algo pela razão construído e com método. Ao assentimento falso, porém, eles
julgam que somos mais avessos do que às demais coisas que seriam contrárias à natureza.
[Já dentre os membros, isto é, as partes do corpo, alguns parecem terem sido dados pela
natureza, por causa de seu uso, como as mãos, as pernas e os pés, como aqueles que estão no
interior do corpo, cuja utilidade os médicos ainda discutem qual seja, outros, entretanto, sem
nenhuma utilidade, servem como que de ornato, como a cauda ao pavão, e as penas furta-cor às
pombas, e, aos homens, as mamas e a barba.]741
19 Isso talvez tenha sido dito de maneira muito árida; pois são como que os primeiros
elementos da natureza, aos quais dificilmente se pode aplicar um discurso copioso e, por certo,
nem penso em atingir isso. No entanto, ao falares de coisas mais grandiosas, as próprias coisas
arrastam consigo as palavras; assim, torna-se não apenas mais grave o discurso, como também
mais brilhante.”
“É como dizes”, respondi, “contudo, tudo o que, a respeito de uma coisa boa, é dito com
clareza, parece-me ser dito de modo excelente. Por outro lado, querer falar de modo ornado a
respeito de coisas desse tipo é pueril, mas, ser capaz de desenvolvê-las de modo inteiramente
acessível e evidente é próprio do homem douto e inteligente.”
20 “Continuemos, então”, disse ele, “dado que nos afastamos desses princípios da natureza,
com os quais deve estar de acordo o que se segue. Segue-se esta divisão primordial: estimável
eles dizem ser (assim pois, na minha opinião, poderíamos denominar) aquilo que ou seja, ele
próprio, segundo a natureza, ou produza algo assim, de modo que seja digno de escolha porque
tenha algum peso digno de estima, que aqueles denominam ajxiva, e, contrariamente, não-
estimável, o que seja contrário ao anterior. Tendo as coisas primeiras sido assim estabelecidas, de
modo que aquelas que são segundo a natureza devam ser acolhidas por causa de si próprias e as
contrárias, de modo idêntico, devam ser rejeitadas, o primeiro dever (assim, com efeito, chamo

741
A passagem destacada entre colchetes se ajusta melhor à seção 63. Veja-se nota ao fim do texto.

427
kaqh'kon) é que a si mesmo se conserve no estado natural, em seguida, que se atenha às coisas
que são segundo a natureza e que repila as contrárias. Tendo sido encontrado esse critério de
escolha e, do mesmo modo, de recusa, segue-se, depois, a escolha unida ao sentimento de dever;
em seguida, ela é contínua, por fim, ela é constante e está em consenso com a natureza. É nessa
escolha que, por primeiro, começa a estar contido e a ser entendido o que seja aquilo que pode,
verdadeiramente, ser chamado de bem.
21 É primeira, pois, a conciliação do homem em favor daquilo que é segundo a natureza.
Mas, assim que ele se apossa da inteligência, ou, de preferência, do entendimento (que eles
chamam e[nnoia), e vê, entre as ações que ele realiza, uma ordenação e, por assim dizer, uma
concórdia, ele a estima de muito maior valor do que tudo aquilo que amara em primeiro lugar e, à
luz do conhecimento e da razão ele de tal forma reflete, que conclui que nessa ordem está
colocado aquilo que há de mais elevado para o homem, o bem que por si só deve ser louvado e
buscado. E, uma vez que ele consista naquilo que os estóicos chamam oJmologiva, e que nós
poderíamos chamar ‘acordo’, caso agrade – uma vez, portanto, que nisso esteja aquele bem a que
tudo deve se referir, as ações honrosas e o próprio honroso – que é a única coisa que se considera
entre os bens, ainda que se origine posteriormente – mesmo assim, isso apenas, por sua
característica própria e dignidade deve ser buscado. Dentre aquelas coisas que são primeiras por
natureza, entretanto, nada deve ser buscado por causa de si mesmo. 22 Mas, uma vez que aquilo
que eu denominei dever tem origem nos princípios naturais, é necessário a estes ele se refira, de
modo que se poderia afirmar corretamente que todos os deveres têm como meta isto: que nós
admitamos os princípios naturais; mas não que seja isso o último dos bens, pois que ação honrosa
não se conta entre as primeiras coisas a que nos concilia a natureza; pois ela é uma conseqüência
e, como eu disse, nasce posteriormente. Ela é, todavia, segundo a natureza e nos exorta a
buscarmos muito mais a si própria do que a todas as coisas anteriores.
Mas disso surge um erro que se deve, antes de mais nada, suprimir, para que ninguém
estime que, como conseqüência, haja dois bens últimos. Pois assim como se alguém tiver o
propósito de com uma haste ou com uma seta atingir um alvo, do mesmo modo nós consideramos
o último dentre os bens; assim, para aquele, o bem último é fazer tudo o que possa para atingir o
alvo. Este homem, em tal símile, tudo deve fazer para que atinja o alvo e, no entanto, que tudo ele
faça a fim de que realize seu propósito é o seu termo último (tal qual nós consideramos na vida o

428
sumo bem); que ele acerte o alvo, por outro lado, seria algo digno de ser, por assim dizer,
escolhido, não de ser buscado por si mesmo.
VII 23 Uma vez, entretanto, que todos os deveres têm origem nos princípios naturais,
também neles é necessário que tenha origem a própria sabedoria. Mas, do mesmo modo que,
como acontece amiúde, aquele que foi recomendado a alguém tenha mais em conta aquele a
quem foi recomendado do que aquele por quem foi recomendado, não causa nenhum espanto que
os elementos primeiros da natureza nos recomendem à sabedoria, em primeiro lugar, e que
depois, no entanto, a própria sabedoria se nos torne mais cara do que são aquelas coisas a partir
das quais nós a alcançamos. E, assim como os membros nos foram dados de modo que se faz
manifesto que foram dados em vista de um certo modo de vida, da mesma forma a tendência da
alma, que em grego se chama oJrmhv, não com vistas a um gênero qualquer de vida, mas a uma
certa forma de viver nos parece ter sido dada e, de modo idêntico, a razão e a razão perfeita. 24
Pois, assim como é dada para o histrião uma ação e, para o dançarino, um movimento que não é
qualquer um, mas de um tipo determinado, da mesma forma, deve-se, na vida, agir de um modo
determinado, e não de qualquer maneira. Esse modo, nós dizemos que ele está de acordo e é
apropriado. De fato, nem à navegação ou à medicina julgamos ser semelhante a sabedoria, mas
antes àquela performance que há pouco mencionei e à dança, de modo que o termo último, isto é,
a realização, não seja buscado fora, mas esteja contido nela. E, todavia, mesmo entre essas artes e
a sabedoria há ainda alguma diferença, porque nessas, as ações corretamente realizadas não
contêm todas as partes das quais elas se constituem; essas que, entretanto, nós poderíamos
chamar ações retas, ou corretamente realizadas, caso pareça bom, os gregos, por sua vez,
denominam katorqwvmata, contêm todas as divisões da virtude. Pois apenas a sabedoria está
completamente voltada para si mesma, algo que não ocorre do mesmo modo nas demais artes. 25
Ora, ineptamente o termo último da medicina e da navegação foi comparado com o termo último
da sabedoria. Pois a sabedoria abarca tanto a grandeza de alma quanto a justiça e é tal, que julga
tudo o que ocorra ao homem como inferior a si, o que não sucede às outras artes. Estar em posse
de todas as virtudes, porém, daquelas mesmas às quais há pouco fiz menção, ninguém poderá, se
não tiver estabelecido que não há nada que distinga ou torne diferente uma coisa de outra senão o
honroso e o torpe.
26 Vejamos agora como são notáveis as conseqüências do que já estabeleci. Uma vez que o
termo extremo (com efeito, tu percebes, creio eu, que eu já há muito tempo denomino ora

429
extremo, ora último, ora sumo o que os gregos denominam tevlo", será possível, ainda, dizer
‘fim’ em lugar de extremo ou último) – uma vez que o termo extremo seja viver em concordância
e em conformidade com a natureza, segue-se necessariamente que todos os sábios vivem sempre
de modo ditoso, auto-suficiente, bem-afortunado, sem que nada os estorve, nada os impeça, nada
lhes falte. Mas, aquilo que fundamenta não mais esse ensinamento de que falo do que a nossa
vida e nossa sorte, isto é, o fato de julgarmos que só é bom o que é honroso, pode ser profusa e
copiosamente, com todas as palavras mais bem escolhidas, com os pensamentos mais graves,
ampliado e ornado ao modo retórico; mas são os raciocínios conclusivos dos estóicos, breves e
agudos, que me agradam.
27 Eles chegam a uma conclusão argumentando assim: tudo o que é bom, é louvável; ora,
tudo o que é louvável, é honroso; o que é bom, portanto, é honroso. Não parece essa uma
conclusão satisfatória? Certamente. Pois o que resultava das duas asserções que se assumiram, tu
percebes ter-se concluído nesse raciocínio. Contra a primeira das duas, porém, das quais resultou
a conclusão, costuma-se dizer que nem tudo que é bom é louvável; pois que o que é louvável é
honroso, isso se concede. É, porém, completamente absurdo que haja algo bom que não seja
digno de ser buscado, ou algo digno de ser buscado que não agrade, ou, se o faça, que não seja
ainda digno de ser amado; e, portanto, que não deva ser também aprovado e, assim, que não seja
ainda louvável e, por outro lado, que não seja honroso. Dessa forma, dá-se que o que for bom é
também honroso.
28 Eu gostaria de saber, em seguida, quem é que pode se orgulhar de uma vida desgraçada
ou de uma vida não feliz. Apenas de uma vida feliz, portanto. De onde resulta que a vida feliz é
digna desse ‘poder se orgulhar’, por assim dizer, o que não poderia caber com justiça senão à
vida honrosa. Dessa forma, dá-se que a vida feliz seja uma vida honrosa. E já que aquele a quem
cabe com justiça o louvor possui algo que o distinga em proceder decoroso e glória, de modo que
por causa dessas coisas, que tão importantes são, possa ser com justiça chamado feliz, o mesmo a
respeito da vida de um tal homem se dirá com a maior correção possível. Assim, se a vida feliz é
discernida graças à honradez, apenas o que é honroso deve ser considerado bom.
29 Pois bem. Poder-se-ia de algum modo negar que alguém com uma alma inabalável,
firme e grande, que nós chamamos de homem corajoso, pode jamais se produzir, caso não
estabeleçamos que a dor não é um mal? Da mesma forma que aquele que conta a morte entre os
males não pode não temê-la, ninguém, em qualquer circunstância, pode não se inquietar e, assim,

430
desprezar, aquilo que ele tenha determinado ser um mal. Estando isso assentado e aprovado pelo
assentimento de todos, eis o que se admite: aquele que possui uma alma grande e corajosa
desdenha de todas as coisas que possam recair sobre o homem e toma-as por nada. E, sendo
assim, o resultado é que nada é mau se não for torpe. E esse homem, elevado e superior,
magnânimo, verdadeiramente corajoso, que considera que todas as coisas humanas estão abaixo
de si, esse, digo, que queremos formar, que buscamos, deve, seguramente, não só se fiar em si
mesmo e na sua vida, tanto na passada, quanto na que está por vir, como também ter um bom
juízo a respeito de si próprio, tendo firmemente estabelecido que nada de mal pode recair sobre o
sábio. Do que se faz entender aquela mesma conclusão: só é bom o que for honroso, e viver de
modo feliz é viver de modo honroso, isto é, viver com virtude.
IX 30 Não ignoro, contudo, que variados foram os pensamentos dos filósofos, dentre os
quais – a estes me refiro – fizeram consistir o sumo bem, que eu venho chamando termo último,
na alma. E ainda que alguns tenham seguido isso de maneira equivocada, não apenas àqueles três
que apartaram a virtude do sumo bem, ao fazer consistir ou no prazer, ou na ausência de dor ou
nos princípios da natureza os seus sumos bens, mas ainda aos outros três que consideraram que,
sem algum acréscimo, a virtude restaria mutilada e, por causa disso, ajuntaram, cada qual a seu
modo, uma das três coisas que mencionei acima – a esses todos eu anteponho aqueles que, não
importa de que modo, fizeram consistir o sumo bem na alma e na virtude. 31 Mas são
completamente disparatados tanto os que disseram que viver com conhecimento é o último dos
bens quanto os que disseram que nenhuma diferença há entre as coisas e que, assim, o sábio seria
feliz, sem antepor nenhuma coisa a outra em importância <e os que>, como certos acadêmicos,
diz-se, estabeleceram que o extremo dos bens e a mais elevada tarefa do sábio é a de fazer frente
ao que se vê e suspender firmemente o assentimento. A cada um deles costuma-se responder
copiosamente, mas o que é evidente não deve tomar muito tempo. Ora, o que pode ser mais
patente do que isto: se não houver nenhuma escolha entre aquelas coisas que forem contrárias à
natureza e as coisas que forem segundo a natureza, segue-se a supressão de toda a prudência, ela
que é almejada e louvada?
Excluídas, portanto, essas concepções que apresentei e as que porventura lhes sejam
semelhantes, resta que o sumo bem seja aplicar à vida um conhecimento das coisas que ocorrem
por natureza, escolhendo as que são segundo a natureza e, as contrárias à natureza, rejeitando,
isto é, viver em concordância e em conformidade com a natureza.

431
32 [[Mas, nas demais artes, quando se diz ‘artisticamente’, deve-se pensar em algo que é
posterior, de certo modo, e que vem como conseqüência, o que os gregos chamam
ejpigennhmatikovn; quando, porém, dizemos ‘sabiamente’ com relação a algo, diz-se isso desde o
princípio, e com extrema correção. Pois o que quer que tenha origem na sabedoria, deve
imediatamente estar completo, com todas suas partes; pois nisso reside o que dizemos que é
digno de ser buscado. Pois assim como é uma falta trair a pátria, agredir os pais, pilhar santuários,
coisas que são do âmbito da efetivação, também ter medo, também se afligir, também ter desejo
excessivo são faltas, ainda que sem efetivação. Mas, assim como essas não são faltas que se
manifestam no que é posterior e conseqüente, mas existem, de imediato, desde o princípio, da
mesma forma, aquilo que tem origem na virtude deve ser julgado como correto, não pela
realização completa, mas pelo primeiro empenho. ]]
X 33 O bem, por outro lado, que em nosso diálogo tantas vezes tem sido empregado,
também ele é desenvolvido por uma definição. Mas as definições que eles oferecem têm
pequenas diferenças entre si; ainda que se voltem para a mesma direção. Eu estou de acordo com
Diógenes, pois que ele definiu o bem como o que é absoluto por natureza. Seguindo isso, ele
disse que o que fosse favorável (pois assim poderíamos dizer wjfevlhma), é um movimento ou um
estado que provém do que é absoluto por natureza. E uma vez que ocorram nas almas noções das
coisas, se o conhecimento se dá ou por experiência, ou por composição, ou por semelhança, ou
por comparação entre relações, foi por esse quarto modo, que por último apresentei, que se
produziu a noção de bem. Pois, quando, partindo das coisas que são segundo a natureza, a alma
se eleva por meio de uma comparação entre relações, então ela alcança a noção do bem. 34 Esse
bem, porém, ele próprio, não é por um acréscimo, nem por um ampliação, ou por uma
confrontação com as outras coisas, mas é por sua própria característica que nós o percebemos e o
chamamos bem. É assim como o mel: ainda que seja o que há de mais doce, é pelo seu gênero
próprio de sabor, não pela comparação com outros, que se percebe que ele é doce; da mesma
forma, este bem de que se trata aqui é sem dúvida aquilo que se deve estimar como o mais
valioso, mas essa estima vale por seu gênero, não por sua grandeza. Pois uma vez que a estima
(que se denomina ajxiva) não seja contada nem entre os bens, nem, de outro modo, entre os males,
o quanto quer que se lhe acrescente, ela permanecerá em seu próprio gênero. É diferente,
portanto, a estima que é própria da virtude, que vale pelo gênero e não pela ampliação.

432
35 Mas, nem as perturbações da alma, que tornam a vida dos insensatos infeliz e amarga (as
quais os gregos chamam pavqh; eu poderia, traduzindo a própria palavra, chamar ‘doenças’, mas
não conviria a todos os casos, pois quem costuma dizer da comiseração ou da própria ira que são
doenças? Mas eles dizem pavqo"; seja, portanto, perturbação, que pelo próprio nome parece
significar algo de vicioso [e essas perturbações não se movem por alguma força natural]742) –
elas, diversas quanto às espécies, são quanto ao gênero, quatro no total: a aflição, o medo, o
desejo desmesurado e aquilo que os estóicos chamam, com termo que se aplica ao corpo e à alma,
hJdonhv, quanto a mim, prefiro chamar alegria, um arrebatamento aprazível da alma que se exalta,
por assim dizer. Ora, as perturbações não se põem em movimento por nenhuma força da
natureza, são todas elas opiniões e juízos de pouca firmeza. Assim, delas o sábio sempre estará
isento.
XII 36 Que tudo que é honroso, entretanto, é por si próprio digno de ser buscado é algo que
temos em comum com o pensamento de muitos outros filósofos. Pois, com exceção das três
doutrinas que excluem a virtude do sumo bem743, todos os demais filósofos julgam que essa
máxima deve ser observada, sobretudo estes que não quiseram contar nada entre os bens senão o
honroso744. Mas esta é sem dúvida uma defesa sem qualquer dificuldade ou embaraço. Pois quem
é que experimenta, ou quem alguma vez experimentou tão ardente avidez ou desejos tão
desenfreados, que aquela mesma coisa que deseje adquirir por meio de um crime qualquer, não
preferiria, sob muitos pontos de vista, ainda que se lhe apresente toda impunidade, alcançar sem
má ação a alcançá-la daquele modo?
37 Mas, buscando que proveito ou que lucro nós desejamos conhecer aquilo que nos é
oculto, conhecer de que modo e por quais causas se movem aqueles corpos que giram no céu?
Ora, quem vive sob costumes tão agrestes ou quem se fez tão veementemente empedernido
contra os estudos da natureza de modo a ter aversão a coisas que são dignas de conhecimento e
não buscar saber delas sem algum prazer ou proveito e julgá-las de todo insignificantes? Ou,
quem é que, conhecendo as ações, as palavras, as decisões dos Máximos ou dos Africanos ou
desse a quem tu sempre te referes, meu antepassado, e de outros homens corajosos e superiores
em todas as virtudes, não teria a alma tomada por algum prazer? 38 Ora, quem, em família
honrada formado e educado como homem livre, não se ofende com a própria torpeza, ainda que

742
O trecho entre colchetes foi expurgado do texto de Reynolds.
743
Cf. seção 30.
744
Isto é, os estóicos.

433
ela não o lese? Quem vê, com tranqüilidade na alma, aquele que ele julgue viver de modo impuro
e escandaloso? Quem não detesta os sórdidos, os presunçosos, os frívolos, os fúteis? O que se
poderá dizer, por outro lado, se não estabelecermos que a torpeza deve ser evitada por si própria,
a fim de que os homens, depois de ganharem as trevas e se encontrarem sós, não deixem de se
abster de algo indecoroso, se a própria torpeza, por sua fealdade própria, não os afastar disso?
Incontáveis coisas podem ser ditas em favor desse modo de pensar, mas não é necessário; pois
não há nada que poderia ser menos duvidoso do que isto: o honroso deve ser buscado por si e, do
mesmo modo, o torpe por si deve ser evitado.
39 Mas, estabelecido aquilo de que antes falamos, que só o que é honroso é bom, é
necessário entender que o que é honroso deve ser estimado de maior valor do que aquelas coisas
intermediárias que a partir dele são adquiridas. Ora, a insensatez, assim como a covardia e
também a injustiça e a intemperança, quando dizemos que devem ser evitadas por causa das
coisas que delas próprias resultam, não o dizemos de modo que este discurso pareça entrar em
contradição com o que foi posto, isto é, que só é mal aquilo que é torpe, visto que tais resultados
não se referem a uma má disposição do corpo, mas às más ações que nascem dos vícios (que os
gregos chamam kakivai, e que eu prefiro denominar vícios a maldades).
XII 40 “Muito bem, Catão”, disse eu, “tu te serves de palavras claras e que declaram o que
desejas! De modo que me pareces ensinar a filosofia a falar latim e a lhe conferir, por assim
dizer, a cidadania; ela que, até hoje, parecia estar em Roma como uma estrangeira e não se
prestar às nossas conversações; especialmente a tua filosofia, por conta de uma esmerada fineza
tanto de coisas quanto de palavras. (Pois sei que há alguns que poderiam filosofar em qualquer
língua; de nenhuma partição eles se servem, de nenhuma definição; e dizem ainda que aprovam
somente aquilo a que a natureza, tácita, dá seu assentimento. De modo que, em coisas tão pouco
obscuras, não é muito, entre eles, o empenho na exposição). Por isso, estou atento a ti, com
diligência, e todos esses termos que atribuis às coisas sobre as quais conversamos eu confio à
memória, pois desses mesmos, talvez, eu logo deverei me servir. Das virtudes, portanto, de
maneira extremamente correta e de acordo com o uso de nossa expressão tu me pareces ter
colocado os vícios como contrários. Ora, o que é vituperável por si próprio, por isso mesmo,
julgo, é denominado vício, ou ainda: de ‘vício’ se diz ‘vituperar’. Mas, se tivesses dito ‘maldade’
por kakiva, o uso latino nos remeteria a uma outra coisa, a um vício determinado; agora, à virtude
como um todo, ‘vício’ se opõe como termo contrário”.

434
41 Então, ele disse: “Tendo sido tais coisas, portanto, assim estabelecidas, segue-se um
grande debate, que, tratado de modo bem pouco rigoroso pelos peripatéticos (pois é próprio deles
um uso da expressão que não é bastante agudo, por causa de um desconhecimento da dialética);
Carnéades, a quem tu segues, de egrégia experiência em dialética e de suma eloqüência, tornou a
questão um ponto capital, pois que não se furtou a defender, em tudo o que concerne esta
questão, dita dos bens e dos males, que não é quanto às coisas a controvérsia entre estóicos e
peripatéticos, mas quanto às palavras. Para mim, porém, nada parece mais evidente do que isto:
os pensamentos desses filósofos divergem entre si mais com relação à coisas do que às palavras;
muito maior, entre estóicos e peripatéticos, eu afirmo ser a dissonância quanto às coisas do que
quanto às palavras, visto que, ao passo que os peripatéticos dizem que tudo o que eles próprios
chamam bem é pertinente ao viver feliz, os nossos consideram que não é por meio de tudo aquilo
que é digno que alguma estima que a vida feliz se torna completa.
XIII 42 Há, por acaso, algo mais seguro do que isto: que de acordo com o raciocínio
daqueles que colocam a dor entre os males não é possível que o sábio seja feliz quando seja
torturado no cavalete? Daqueles, por outro lado, que não têm a dor entre os males, o raciocínio
torna obrigatório que em todos os tormentos se conserve ao sábio a vida feliz. Com efeito, se as
mesmas dores com maior tolerância padecem os que as suportam em favor da pátria do aqueles
que o fazem por motivo menos importante, é a opinião, e não a natureza, que faz da intensidade
da dor ou maior ou menor. 43 E nem mesmo isto decorre conseqüentemente: que, uma vez que
sejam três os gêneros de bens, que é como pensam os peripatéticos, se tanto mais feliz for
alguém, quanto mais estiver repleto de bens do corpo, ou externos, que também isto nós
deveríamos aprovar: que aquele que possuir muitas daquelas coisas que, no que diz respeito ao
corpo, são estimados de grande valor é mais feliz. Pois eles pensam que a vida feliz se torna
completa por meio das vantagens do corpo, os nossos, de forma alguma. Pois, uma vez que, em
nossa opinião, nem mesmo pela múltipla ocorrência daqueles bens que nós verdadeiramente
poderíamos chamar de bens torna-se a vida mais feliz ou mais digna de ser buscada ou mais
estimável, certamente diz menos respeito à vida feliz uma grande afluência de vantagens do
corpo. 44 De fato, se tanto ser sábio quanto estar saudável forem coisas que devemos buscar, um
e outro, reunidos, seriam mais dignos de serem buscados do que a sabedoria sozinha; todavia, se
um e outro são dignos de estima, não serão, reunidos, dignos de maior estima do que a própria
sabedoria separadamente. Pois nós, que julgamos a saúde digna de alguma estima, mas que,

435
entretanto, não a colocamos entre os bens, consideramos, igualmente, que não existe nenhuma
estima tão grande, que se anteponha à virtude. O que não é o mesmo que os peripatéticos
sustentam; eles devem dizer que uma ação que for honrosa e isenta de dor é mais digna de ser
buscada do que se fosse a mesma ação acompanhada de dor. Nós pensamos de outro modo, se
corretamente ou não, veremos em seguida; mas pode haver maior dissensão com relação às
coisas?
XIV 45 Pois, assim como se obscurece e se eclipsa pela luz do sol o lume de uma lanterna,
e assim como se perde na grandeza do Mar Egeu uma gota de mel, e assim como nas riquezas de
Creso, o acréscimo de um terúncio745 e um único passo, na estrada que vai daqui à Índia, da
mesma forma, sendo o fim dos bens esse que os estóicos afirmam, é forçoso que toda essa estima
que têm as coisas corporais, diante do esplendor da virtude e de sua grandeza, obscureça-se, seja
encoberta e se perca. E do mesmo modo que a oportunidade (pois assim poderíamos dizer
v ) não se torna maior com a prolongação do tempo (pois tem uma medida que lhe é
eujkairiva
própria o que é chamado de oportuno), também a reta realização da ação (pois assim chamo
katovrqwsi", já que chamo de katovrqwma a ação reta) – portanto, a reta realização da ação, do
mesmo modo o acordo, o próprio bem, por fim, que consiste em que haja consenso com a
natureza, não comporta nenhum acréscimo de extensão. 46 Pois assim como a oportunidade,
também estas outras coisas de que falei não se tornam maiores com a prolongação do tempo; e
por essa razão, aos estóicos não parece mais desejável nem mais digna de ser buscada a vida
feliz, se ela for longa, do que se for breve; e eles se servem de um símile: se o mérito do coturno
fosse o de se ajustar convenientemente ao pé, nem numerosos coturnos seriam preferidos a
poucos, nem os maiores aos menores; da mesma forma, para aquelas coisas nas quais todo o bem
é determinado pelo acordo e pela oportunidade, nem as mais numerosas seriam preferidas às
menos numerosas, nem as mais duradouras às mais breves. 47 E, na verdade, os peripatéticos não
se expressam com suficiente precisão: caso a boa saúde, sendo longa, deva ser mais estimada do
que se breve, a prática da sabedoria também, se for de longuíssima duração, deveria ser estimada
no mais alto grau. Eles não compreendem que a estima que tem a saúde é avaliada pela extensão
temporal, a da virtude, pela oportunidade, de modo que, em nossa opinião, os que dizem isso
dirão da mesma forma que uma boa morte e um bom parto são melhores, se duradouros, do que
se forem breves. Não percebem que algumas coisas são estimadas de maior valor pela brevidade,

745
Moeda de valor quase insignificante. Veja-se nota ao fim do texto.

436
outras pela duração. 48 E assim, daquilo que dissemos, decorre conseqüentemente, de acordo
com a teoria dos que consideram que o fim dos bens, que nós chamamos termo extremo, último,
pode se aumentar – que esses mesmos devem admitir que um sábio é mais sábio que o outro e
que, do mesmo modo, que um homem pode cometer uma falta mais grave do que uma outra, ou
praticar uma ação com maior retidão do que outra, o que não nos é possível dizer, nós que não
pensamos que o fim dos bens se aumente. Pois assim como os que estão submersos na água não
podem, de modo algum, respirar mais se não estiverem muito longe da superfície, de modo a
poderem muito em breve emergir, do que se ainda estivessem, então, no fundo, e nem aquele
cachorrinho, que logo alcançará a capacidade de ver, não enxerga mais do que aquele que nasceu
há pouco, da mesma forma, aquele que avançou um pouco em direção ao modo de ser da virtude
de modo algum se encontra em menor infelicidade do que aquele que não fez nenhum avanço.
XV Compreendo que isso parece difícil de acreditar, mas, sendo seguramente firmes e
verdadeiras as afirmações feitas anteriormente e, por outro lado, sendo isso decorrência e
conseqüência delas, nem mesmo a respeito da veracidade disto haverá dúvida. Mas, ainda que
neguem que tanto as virtudes quanto os vícios se aumentem, todavia pensam que ambos ganham
maior alcance, de certo modo, e, por assim dizer, se alargam.
49 Ora, as riquezas, Diógenes746 considera que elas possuem não apenas a capacidade de,
por assim dizer, guiar-nos ao prazer e à boa saúde, mas ainda que elas lhes são fundamentais: elas
não fazem o mesmo com relação à virtude nem às demais artes, para as quais o dinheiro pode ser
um guia, mas não pode lhes ser fundamental. E assim, se o prazer, ou a saúde, estiver entre os
bens, também as riquezas devem ser colocadas entre os bens; mas, se a sabedoria for um bem,
não se segue dizermos que também as riquezas são um bem. Ora, o que estiver entre os bens não
pode depender de alguma coisa que não esteja entre os bens e, por esse motivo, já que os
conhecimentos e compreensões das coisas, das quais se produzem as artes, movem a tendência da
alma, se as riquezas não estiverem entre os bens, nenhuma arte pode ter as riquezas como
fundamentais. 50 E se concedermos no que diz respeito às artes, quanto à virtude, contudo, não
seria idêntico o raciocínio, pois que esta teria necessidade da mais longa reflexão e prática, coisa
que não se dá do mesmo modo nas artes, e porque a virtude abarca a estabilidade, a solidez e a
constância da vida em seu todo, e tais coisas não poderíamos ver de modo idêntico nas artes.

746
Diógenes da Babilônia, de quem já se falou antes.

437
Em seguida, expõe-se a diferença entre as coisas, a qual, se nós disséssemos que não existe,
a vida se tornaria um caos completo, como a tornou Aríston, e não se encontraria qualquer função
ou ocupação para a sabedoria, uma vez que entre as coisas que dizem respeito à condução da vida
não haveria absolutamente nenhuma distinção e nem a necessidade de se realizar alguma escolha.
E assim, uma vez que estivesse suficientemente estabelecido que só é bom o que é honroso, e que
só é mal o que é torpe, então, entre aquelas coisas que de nada valessem para viver de modo feliz
ou de modo infeliz, eles quiseram, entretanto, que houvesse alguma diferença, de modo que,
dentre essas, umas fossem estimáveis, outras, o contrário, outras, nem uma coisa nem outra. 51
Em algumas das coisas, porém, que deveríamos estimar, haveria motivo suficiente pelo que
fossem preferidas a outras, como na saúde, como na integridade dos sentidos, como na ausência
de dor, como a glória, as riquezas e coisas semelhantes, outras, entretanto, são de outro modo e,
da mesma maneira, dentre as coisas que não fossem dignas de nenhuma estima uma parte teria
motivo suficiente para serem rejeitadas, como a dor, a doença, a perda dos sentidos, a pobreza, a
ignomínia, e coisas semelhantes, outra parte, não do mesmo modo. Daqui teve origem aquilo que
Zenão denominou prohgmevnon, e, seu contrário, ajpoprohgmevnon, servindo-se, numa língua
fecunda, de termos, entretanto, que ele criou, de termos novos, algo que não nos é concedido
nesta língua parca, ainda que tu costumes dizer que ela é ainda mais fecunda. Mas não é
descabido, com vistas a entender mais facilmente o significado da palavra, apresentar o modo
segundo o qual Zenão a criou.
XVI 52 Pois, afirma ele, assim como ninguém diz que num reinado o próprio rei, com
relação a seu cargo de prestígio foi, por assim dizer, colocado à frente (pois isso é prohgmevnon),
mas sim aqueles que detêm algum cargo, cuja posição se aproxima muito da primazia real, ainda
que venha em segundo lugar, da mesma forma, na vida, não são aquelas coisas que estão em
primeiro lugar, mas aquelas que ocupam o segundo lugar que seriam denominadas prohgmevna,
isto é, ‘que foram colocadas à frente’, coisas que poderíamos chamar ou assim (trata-se de uma
tradução literal), ou ‘que foram movidas para adiante’, e ‘que foram movidas para trás’, ou, como
pouco antes dissemos, ‘preferíveis’, ou ‘tomadas antes’, e aquelas outras, ‘rejeitáveis’. Ora,
entendida a coisa, devemos ser flexíveis no uso das palavras.
53 Uma vez, porém, que dissemos que tudo que é bom deve ocupar o primeiro lugar, é
necessário que não seja nem bom nem mau isso que denominamos ‘preferível’ ou ‘tomado antes’.
E nós o definimos assim: o que é indiferente e tem um valor mediano; pois o que eles chamam

438
ajdiavforon – acabou de me ocorrer – eu poderia dizer indiferente. Pois não podia acontecer, de
modo algum, que entre os intermediários nada restasse que fosse ou segundo a natureza, ou que
lhe fosse contrário, nem, restando isso, que não se incluísse aí o que fosse suficientemente
estimável, nem, estabelecido isso747, que não houvesse algumas coisas preferíveis. 54
Corretamente, portanto, fez-se essa distinção e, inclusive, para que se possa perceber mais
facilmente a coisa, eles propõem um símile: se, dizem eles, imaginarmos que é como que o fim e
termo último jogar um dado de modo que ele termine de pé, aquele dado que for lançado de
modo que caia de lado, deitado, terá algo de preferível, próximo ao fim, o que cair de outra
maneira, pelo contrário748, e, todavia, aquilo que é preferível no dado não constitui o fim que
mencionei; da mesma forma, aquelas coisas que são preferíveis referem-se, por certo, ao fim, mas
não constituem sua natureza e a sua essência.
55 Vem em seguida esta divisão: que alguns dentre os bens seriam constitutivos do termo
último (pois assim chamo os bens que são denominados telikav; ora, façamos uso daquela
decisão sobre a qual concordamos: expressar com várias palavras o que com uma não
conseguirmos, a fim de que se compreenda o conceito), outros, por sua vez, seriam produtores,
aqueles que os gregos chamam poihtikav, outros, dos dois gêneros. Dos que constituem o bem,
nada é bom senão as ações honrosas, dos que produzem, nada senão o amigo, mas tanto
constitutivos quanto produtores, querem eles, é a sabedoria. Pois já que a sabedoria é uma ação
harmônica, encontra-se naquele gênero dos constitutivos, de que eu falei; por outro lado, porque
ações honrosas ela acarreta e produz, pode ser dita produtora.
XVII 56 Essas coisas que dizemos serem preferíveis são, em parte, por si mesmas
preferíveis, em parte, porque produzem algo preferível, em parte, participam dos dois gêneros;
por si mesmas, como certo aspecto da boca e do rosto, como a postura, o modo de andar, com
relação a que há tanto coisas a serem preferidas quanto a serem rejeitadas; outras seriam
chamadas preferíveis porque produziriam algo a partir de si mesmas, como o dinheiro, outras, por
outro lado, por um e outro motivo, como os sentidos íntegros, como a boa saúde. 57 A respeito da
boa reputação (pois o que eles chamam eujdoxiva é mais apropriado chamar boa reputação, neste
ponto, do que glória) Crisipo, por certo, e Diógenes diziam que, subtraído o proveito, nem
mesmo um dedo se deveria mover com vistas a ela; com eles eu concordo veementemente. Os

747
Isto é, que não houvesse nada de suficientemente estimável.
748
isto é, terá algo de rejeitável.

439
que, porém, vieram depois deles, não podendo fazer frente a Carnéades, disseram que isso que
denominei boa reputação devia ser preferido e acolhido por causa de si próprio e que é próprio do
homem bem-nascido e educado como homem livre querer que de si falem bem seus pais, seus
próximos e também os homens de bem, e isso pela coisa em si mesma, não por causa de uma
utilidade; e dizem que, assim como queremos que se olhe por nossos filhos por causa deles
próprios, ainda que nasçam depois de já estarmos mortos, também pelo renome que teremos,
mesmo depois da morte, devemos olhar, pela coisa em si, ainda que subtraída toda utilidade.
58 Mas, ao dizermos que só é bom o que é honroso, é coerente, mesmo assim, que se
cumpra o dever, ainda que nós não contemos esse dever nem entre os bens nem entre os males.
Pois dentre coisas desse tipo749 existe algo que é persuasivo, de tal modo, que, para ele, uma
explicação racional pode ser apresentada; e, portanto, de modo que uma explicação racional pode
ser apresentada também para uma ação realizada de modo persuasivo. O dever é, então, aquilo
que é realizado de tal forma, que uma explicação persuasiva para sua realização pode ser
apresentada; donde se compreende que o dever é um intermediário, que não se coloca nem entre
os bens, nem entre seus contrários. E uma vez que entre essas coisas que não estão nem entre as
virtudes, nem entre os vícios existe, todavia, algo que possa ser de alguma utilidade, não se deve
suprimi-lo. Há, entretanto, também desse gênero, uma determinada ação, e ela é de tal tipo, que a
razão requer sua performance e sua realização dentre as que são desse gênero; ora, aquilo que é
realizado por meio da razão nós chamamos dever; é de tal gênero, portanto, o dever, que não se
conta nem entre os bens nem entre seus contrários.
XVIII 59 E ainda isto é evidente: o sábio pratica algumas dentre essas ações intermediárias;
ele julga, portanto, ao agir, que aquilo é um dever. E já que ele jamais falha em seus juízos, estará
entre as coisas intermediárias o dever. Chega-se a essa conclusão também por meio do seguinte
raciocínio: ora, uma vez que vemos que existe algo que chamamos ação reta e, por outro lado,
isso é o dever em sua perfeição, existirá o dever incompleto; de modo que, se restituir um
depósito de modo justo está entre as ações retas, entre os deveres se deveria colocar a simples
restituição do depósito; pois por esta adição: “de modo justo” faz-se a ação reta, a própria
restituição, entretanto, por si, encontra-se no dever. E já que não há dúvida de que entre as coisas
que denominamos intermediárias há algo que se deve acolher e algo que se deve rejeitar, o que
quer que seja realizado ou descrito dessa maneira está completamente fundamentado no dever.

749
Entenda-se: “dentre as coisas que não são nem bens nem males”, isto é, “dentre os indiferentes”.

440
De onde se entende que, uma vez que todos amam a si próprios por natureza, tanto o insensato
quanto o sábio hão de acolher o que for segundo a natureza e rejeitar o que lhe for contrário.
Assim, existe um certo dever que é comum ao sábio e ao insensato, de onde resulta que o dever
reside nessas ações que denominamos intermediárias.
60 Mas uma vez que delas tomam origem todos os deveres, não é sem motivo que se diz
que a elas se referem todas as nossas reflexões; dentre essas, tanto deixar a vida quanto nela
permanecer. Pois, para quem são mais numerosas as coisas que são segundo a natureza, desse o
dever é permanecer na vida; para quem, porém, ou mais numerosas são as coisas contrárias à
natureza, ou, segundo lhe parece, elas virão a ser, desse o dever é deixar a vida. A partir disso,
faz-se manifesto que tanto é dever do sábio, por vezes, deixar a vida, ainda que seja feliz, quanto
do tolo, permanecer na vida, ainda que seja infeliz. 61 Pois o bem e o mal, conforme os
consideramos, vêm como uma conseqüência posterior, algo que já foi dito muitas vezes;750 as
primeiras inclinações naturais, entretanto, se elas são favoráveis ou contrárias, é algo que cabe ao
juízo e à escolha do sábio decidir; e elas são como que a matéria que se submete à sabedoria751. E
assim, toda a razão tanto de permanecer na vida quanto de se retirar deve ser medida por aquelas
coisas que mencionei acima. Pois nem pela virtude <aquele que é provido de virtude> se mantém
na vida, nem aqueles que vivem sem virtude devem ir ao encontro da morte. E é amiúde dever do
sábio abandonar a vida, ainda que seja feliz em grau extremo, caso possa fazê-lo de modo
oportuno. De fato, eles pensam assim: viver feliz, que consiste em viver de acordo com a
natureza, é do âmbito da oportunidade. Dessa forma, a sabedoria prescreve que o sábio, se houver
vantagem, deixe mesmo a sabedoria para trás. Por essa razão, uma vez que não haja nos vícios
uma força capaz de motivar a morte voluntária, é evidente que também para os tolos, que são,
eles mesmos, infelizes, é um dever permanecer na vida, caso possuam em maior parte essas
coisas que dizemos ser segundo a natureza. E já que, deixando a vida, ou nela permanecendo, ele
é igualmente infeliz, e já que a duração não torna sua vida mais digna de ser evitada, não é sem
fundamento que se diz que aqueles que podem fruir de mais coisas conformes à natureza devem
permanecer na vida.
XIX 62 Relaciona-se com essa questão, por outro lado – julgam eles –, a compreensão de
que é por natureza que os pais amam os filhos; partindo desse princípio, do qual ela tem origem,

750
Cf. III, 21-22.
751
Cf. III, 50.

441
nós acompanhamos o desenvolvimento da sociedade comum do gênero humano. Algo que deve
ser compreendido, em primeiro lugar, a partir da configuração dos membros do corpo, que por si
próprios revelam que existe, por natureza, uma disposição ordenada para a procriação. E, na
verdade, não seria coerente que a natureza desejasse a procriação e não cuidasse para que
tivéssemos afeição por nossos rebentos. Mas até mesmo nos animais pode-se ver claramente a
força da natureza; nesses, quando observamos a dificuldade no parto e na criação, da natureza a
própria voz parecemos ouvir. Por isso, <assim como> é evidente que a natureza nos faz ter
aversão à dor, da mesma forma é manifesto que pela própria natureza nós somos impelidos a
amar aqueles que geramos. 63 Disso deriva que também seja natural a conciliação comum dos
homens com os homens, o que faz necessário que um homem não seja visto como estranho por
um outro homem, pelo fato mesmo de ser um homem. Pois assim como, dentre os membros,
alguns surgiram como que para si mesmos, como os olhos, os ouvidos, e outros estão a serviço
dos demais membros, como as pernas, a mão, da mesma forma alguns animais, imensos,
surgiram para si mesmos, mas aquele animal que vive numa ampla concha, chamado pina, e
aquele outro, que nada para fora da concha (que é chamado pinoteres porque a guarda) e que,
depois de ter retornado, dentro dela se encerra, como se tivesse dado um aviso para que o
molusco estivesse atento, e, do mesmo modo, as formigas, as abelhas e as cegonhas fazem certas
coisas também em vista dos outros. Muito mais estreitos são os laços entre os homens. Dessa
forma, somos por natureza dispostos a agrupamentos, assembléias e cidades.
64 O mundo, por sua vez, eles consideram que é regido pelo nume dos deuses, e que é
como que a cidade comum e a associação política dos homens e dos deuses e que cada um de nós
faz parte desse mundo; donde se segue, por natureza, que o interesse comum nós anteponhamos
ao nosso. Pois assim como as leis antepõem o bem-estar de todos ao bem-estar dos indivíduos, da
mesma forma o homem bom e sábio, obediente às leis e não desconhecedor do dever cívico, olha
mais pelo interesse de todos do que pelo de uma só pessoa ou pelo seu próprio. E não se deve
repreender mais o traidor da pátria do que quem deserta o interesse ou do bem-estar comum com
vistas a seu próprio interesse ou bem-estar. Disso decorre que deva ser louvado aquele que vá ao
encontro da morte em favor da causa pública, pois é adequado que a pátria nos seja mais cara do
que nós próprios. E uma vez que se considerem desumanas e abomináveis as palavras daqueles
que não se abstêm de consentir que, estando mortos eles próprios, poderia se seguir a destruição
de toda a terra pelo fogo (algo que, em verso grego, bastante propagado, costuma-se recitar); a

442
verdade, porém, é que mesmo por aqueles que algum dia virão a existir deve-se olhar, e isso por
causa deles próprios.
XX 65 Dessa disposição afetiva da alma nasceram os testamentos e as recomendações dos
moribundos. E já que ninguém deseje levar a vida em solidão extrema, nem mesmo com uma
abundância infinita de prazeres, facilmente se compreende que nós nascemos para a relação e
união com os homens e para a comunidade natural. Ora, impele-nos a natureza a desejarmos ser
úteis à maior quantidade possível de pessoas, sobretudo ensinando e transmitindo os preceitos da
prudência. 66 Dessa forma, não é fácil encontrar quem não transmita a outrem o conhecimento
que guarda consigo; e assim, não apenas somos propensos a aprender, mas ainda a ensinar. E
assim como a natureza concedeu aos touros que pelos novilhos eles se batam contra os leões com
suma violência e ímpeto, da mesma forma aqueles que excedem pela força e que podem fazer
isso752, como ouvimos a respeito de Hércules e Líber, são incitados pela natureza a proteger o
gênero humano. E mesmo Júpiter, quando o chamamos Ótimo e Máximo e quando, a ele ainda,
chamamos Salvador, Hospitaleiro, Stator753, queremos que se entenda isto: que sob sua tutela está
a salvação dos homens. Não é nem um pouco coerente, por outro lado, que nós, sendo
insignificantes e desprezados entre nós mesmos, reclamemos ser caros aos deuses imortais e por
eles benquistos. Do mesmo modo que, portanto, servimo-nos de nossos membros antes de termos
aprendido qual seja a utilidade por que os tenhamos, assim, por natureza, fomos reunidos e
associados para formar uma comunidade civil. Ora, se não fosse assim, não haveria espaço algum
nem para justiça, nem para a bondade.
67 Mas, assim como eles julgam que existem vínculos de direito que ligam os homens entre
si, por outro lado, o homem não partilha com os animais direito algum. Com efeito, diz de forma
brilhante Crisipo que os demais nasceram com vistas aos homens e aos deuses e que estes, por
sua vez, com vistas a sua sociedade e a sua comunidade, de modo que os homens possam se
servir dos animais para seu próprio proveito sem injustiça. E uma vez que a natureza do homem
fosse tal, que se interpusesse entre ele e o gênero humano uma sorte de direito civil, quem o
conservasse, seria justo, quem o abandonasse, injusto. Mas, do mesmo modo que, sendo o teatro
um bem comum, pode-se, todavia, dizer com correção que o lugar que cada qual tenha ocupado é
seu, também na cidade, ou no mundo comum, o direito não se põe contra a que seja seu o que é

752
Isto é, lutar em favor dos iguais, como no exemplo dos touros e, especialmente, em favor dos mais fracos.
753
Ou seja: “que faz parar os que fogem”.

443
de cada qual. 68 Mas, uma vez percebemos que o homem nasceu para guardar e olhar pela
preservação dos homens, está de acordo com sua natureza que o sábio queira gerir e administrar a
república e, para que viva conforme a natureza, unir-se a uma mulher e dela querer filhos. E nem
mesmo outros amores, se veneráveis, eles julgam estranhos ao sábio. Alguns, entretanto, dizem
que cabem bem ao sábio os princípios e a vida dos cínicos: se houver, por acaso, ocasião em que
ele deva agir dessa forma; outros dizem que de modo algum.
XXI 69 Mas, para que se mantenha toda a sociedade, a união e a afeição do homem para
com o homem, eles sustentaram que tanto os benefícios quanto os prejuízos, que eles chamam
wjfelhvmata e blavmmata, são comuns a todos; dentre esses, uns trazem proveito, outros são
nocivos; e eles disseram que não são apenas comuns, mas, além disso, iguais. Já as vantagens e as
desvantagens (é assim, com efeito, que chamo eujcrhsthvmata e duscrhsthvmata), sustentaram
que fossem comuns, mas não iguais. Pois aquilo que traz proveito, ou o que é nocivo, é ou um
bem, ou um mal: que sejam iguais é necessário. As vantagens e desvantagens estão naquele
gênero do que denominamos preferíveis e rejeitáveis: esses não podem ser iguais. Mas os
benefícios <e os danos> são considerados comuns, as ações retas e as faltas não são tidas por
comuns.
70 Quanto à amizade, eles consideram que ela deve ser cultivada, pois faz parte do gênero
das coisas que trazem proveito. Mas, ainda que alguns digam que, na amizade, igualmente caro
ao sábio é o desígnio do amigo e o seu e outros, por sua vez, digam que cada um tem para si
como mais caro o seu desígnio, estes últimos declaram, entretanto, que é alheio à justiça, para a
qual, ao que parece, nós nascemos inclinados, subtrair algo a alguém e tomá-lo para si. Mas o que
esta doutrina de que falo não aprova de modo algum é que ou a justiça, ou a amizade, sejam
admitidas ou aprovadas por causa da utilidade. Pois essa mesma utilidade poderá fazê-las ruir e
subvertê-las completamente. De fato, nem a justiça nem a amizade poderão absolutamente existir
se não forem buscadas por si próprias.
71 Quanto ao direito, ou melhor, aquele que de fato pode ser chamado e denominado
‘direito’, eles dizem que existe por natureza e que é estranho ao sábio não apenas cometer uma
injustiça, mas também prejudicar alguém. E, na verdade, não é correto associar-se e reunir-se
com amigos e com aqueles a quem se é grato, para uma ação injusta; eles sustentam, com
extremo apego à gravidade e à verdade, que a eqüidade jamais pode se separar da utilidade e, em

444
qualquer coisa em que houver equidade e justiça, há também honradez e, de modo recíproco, em
qualquer coisa em houver honradez, haverá também justiça e eqüidade.
72 E a essas virtudes, sobre as quais discutimos, a dialética eles ainda acrescentam e a física
e ambas designam pelo nome de virtudes; a primeira, porque possuiria um método para não
darmos assentimento a algo falso ou não sermos enganados por alguma forma de persuasão
capciosa e para podermos guardar conosco e defender aquilo que a respeito dos bens e dos males
tivermos aprendido; pois, sem essa arte, julgam que qualquer um pode ser enganado e desviado
do que é verdadeiro. Se a temeridade e a ignorância a respeito de todas as coisas são repletas de
vício, a arte que as suprime, portanto, é com correção denominada virtude.
XXII 73 À Física também, não sem justificativa, é atribuída a mesma honra, visto que,
quem há de viver de acordo com a natureza, deve ter como ponto de partida o mundo em sua
totalidade e a maneira como ele é governado. E, na verdade, não é possível que alguém possa
decidir de modo verdadeiro sobre os bens e os males se não for conhecida em sua totalidade a
razão da natureza e também da vida dos deuses e se não se souber se a natureza do homem está
de acordo ou não com a natureza universal. Quanto aos preceitos dos sábios antigos, que
aconselham a “obedecer ao tempo”, “seguir a divindade”, “conhecer a si mesmo” e “nada em
excesso”, quanta força tenham tais coisas (e têm força extrema), sem a física, ninguém pode
perceber. E até mesmo que valor tenha a natureza para o cultivo da justiça, para a conservação
das amizades e demais formas de afeição só este conhecimento pode ensinar. Na verdade, não se
pode entender nem a reverência aos deuses, nem quão enorme graça se lhes deva render sem uma
exposição sobre a natureza.
74 Mas percebo agora que me deixei levar muito além do que exigiria o plano proposto.
Arrastou-me, porém, o admirável arranjo entre os ensinamentos e a incrível ordenação dos
argumentos; tal ordenação, pelos deuses imortais, tu não a admiras? Ora, o que se pode encontrar,
quer na natureza, com relação à qual nada é mais bem proporcionado, nada é mais bem
distribuído, quer nas realizações humanas, que seja tão bem arranjado, tão bem amarrado, tão
bem concatenado? O que vem ao fim não está de acordo com o que é primeiro? Alguma
conseqüência não corresponde ao que lhe é anterior? Que elemento não está de tal forma atado a
outro fazendo, se alterares uma letra, tudo cair por terra? E, todavia, não há nada que poderia ser
alterado.

445
75 Mas como é grave, como é magnífica, como é sólida a figura do sábio assim formada!
Pois ele, depois que a razão ensinou que apenas o que fosse honroso seria bom, é sempre,
necessariamente, feliz e de modo verdadeiro possui todos aqueles títulos que costumam ser
ridicularizados pelos ignorantes. Mais corretamente será chamado rei do que Tarquínio, que não
foi capaz de governar nem a si mesmo nem aos seus, mais corretamente será chamado mestre do
povo (ora, é isso o ditador) do que Sula, que de três vícios perniciosos foi mestre: da luxúria, da
avidez, da crueldade; mais corretamente será chamado rico do que Crasso, que, se não tivesse
carência de algo, jamais teria desejado atravessar o Eufrates por uma guerra sem motivos754.
Corretamente se dirá que todas as coisas são dele, que é o único que sabe se servir de todas,
corretamente também será chamado belo (pois da alma as feições são mais belas que as do
corpo), corretamente, o único que é livre e que não se sujeita a nenhuma dominação e nem
obedece ao desejo, corretamente, invencível: ainda que seu corpo seja amarrado, sua alma,
porém, grilhão algum poderia prender.
76 E nem esperaria o passar do tempo para que, então, enfim, julgue-se se foi feliz, quando o
derradeiro dia de sua vida tiver concluído com a morte – conselho que um dentre os sete sábios,
célebre, deu, sem sabedoria, a Creso;755 pois se ele o tivesse sido em algum momento, teria
carregado a felicidade até aquela pira que lhe foi erguida por Ciro. Ora, se é assim, se ninguém
senão o homem bom é feliz e todos os bons o são, o que se deve mais cultivar do que a filosofia,
ou o que há de mais divino do que a virtude?

754
Cf. II, 57.
755
Cf. II, 87, onde se fala de Creso e Sólon e em que argumento bem semelhante é utilizado.

446
Notas ao livro III
I, 1 Patronos: interessante o uso do termo patronus para se referir aos interlocutores que defendem
uma determinada doutrina. Em II, 17, o termo patrocinium já fora utilizado em referência à ação de
Torquato. Isso nos remete à estreita relação que se estabelece, no pensamento ciceroniano, entre filosofia e
retórica. Não devemos esquecer que o primeiro diálogo se encerrara sob o signo do debate jurídico (cf.
Eiuro... iniquo, II, 19). Além do mais, há um dado interessante, do ponto de vista cultural, do uso deste
termo, que é bastante relevante para o nosso estudo. O patronus é alguém que empresta sua autoridade em
favor da defesa da causa de outrem. É aquele que fala em nome de um cliens que, por vezes, na condição
de réu, já perdeu um pouco de sua dignidade de cidadão. Segundo Michel (Michel, A. Rhétorique et
philosophie chez Cicéron, 1960, pp. 22-23, 28 e 36), um uso mais antigo deste termo, evocado por Cícero
em alguns textos (cf. Pro Quinctio 22, 72 ; In Verrem actio secunda III, 18, 45 ; IV, 41, 90) refere-se ao
patrício que, diante do senado romano, defende os interesses de habitantes de municípios e províncias
romanas. Nesses casos, o orador empresta sua dignitas, sua auctoritas e sua condição de cidadão, para
garantir que seus clientes provincianos obtenham o privilégio da justiça romana. Ora, é algo semelhante o
que fazem os interlocutores de Cícero ao longo do De finibus, visto que eles defendem, num ambiente
romano, causas estrangeiras, importadas da Grécia: os diferentes sistemas filosóficos. Interessante,
portanto, observar, como tentamos fazer no estudo que acompanha a tradução, a maneira como Cícero
constrói essas personagens. Nessa operação ficcional reside grande parte da força argumentativa de
Cícero, ao menos no que diz respeito à pertinência ou não de determinada doutrina à realidade romana.
Tão obstinados: Quando, no diálogo anterior, os interlocutores estabelecem uma espécie de código
de conduta na discussão filosófica, a obstinação (pertinacia) é um dos vícios que, segundo eles, impedem
o desenvolvimento adequado da investigação. Cf. I, 27-28. A personagem de Cícero já fazia alusão, em II,
9, à obstinação dos epicureus, que não reconheceriam serem coisas diferentes sentir prazer e estar isento
de dor. É relevante ainda o fato de que, no fim do primeiro diálogo, Torquato, ao invés de se dar por
vencido, encerre a discussão dizendo que poderia até mesmo contra-argumentar (embora não o faça!), mas
que prefere levar as críticas de Cícero a seus mestres. É bem verdade que tal atitude deixa transparecer de
certa forma o reconhecimento da derrota na discussão, mas apenas em nível pessoal. É como se a doutrina
estivesse assegurada, caso fosse defendida por um verdadeiro mestre epicureu.
Haveria de ceder ao mérito: dignitas aqui não em seu sentido sócio-político de “prestígio”, mas em
relação à ação que tem em sua própria realização o mérito, a recompensa para quem a realiza, isto é a ação
honesta que já começou a ser desenhada no livro II (cf. II, 45). De qualquer maneira, deve-se observar
como vêm carregados da ideologia tradicional romana os termos de que o autor se serve para tratar de
conceitos da filosofia moral grega.

447
Ele seria impudente... O tema da impudência foi importante, no livro II, na argumentação que
buscava apontar a incoerência (inconstantia) presente na alma dos seguidores de Epicuro, caso fossem
virtuosos. Observe-se que Cícero resume de modo bastante preciso os elementos que foram rebatidos no
livro anterior. Iucunda, termo geral, se contrapõe a honesta. Dulcedinem corporis refere-se ao prazer
cinético, donde se originaria a laetitia, estado em que se encontra a alma quando isenta de qualquer dor ou
aflição. Na leitura ciceroniana do epicurismo, o prazer da alma se origina do prazer do corpo. Note-se
ainda que a personificação do prazer nesta passagem retoma um elemento já utilizado no livro II. Wright
(Cicero – on stoic good and evil, 1991, p. 113) considera que a derrota do prazer para a virtude pode fazer
alusão a uma famosa alegoria, atribuída ao sofista Pródico por Xenofonte (cf. Memorabilia II, 1, 23) que
representava Hércules, tendo diante de si duas mulheres, a lasciva @Hdonhv e a sóbria !Arethv, dentre as
quais deveria escolher uma. Vale lembrar que Hércules é um herói de que muito se serviram os estóicos.
Mesmo na argumentação do livro anterior, Cícero o menciona como exemplo de herói que se expõe
altruisticamente à dor em favor da humanidade (cf. II, 118).
A austeridade da discussão: com uso do termo seueritas, qualidade importante no quadro do mos
maiorum e no contexto das instituições públicas romanas, atribui-se um valor à discussão filosófica que a
aproxima dos debates e ações que se realizam (ou que se realizavam, quando, antes da tirania de César, a
possibilidade havia) em favor da res publica. A discussão a respeito da relevância pública da atividade
filosófica é apresentada no prefácio ao primeiro livro.
I, 2 Esta contenda que se prepara: Carlos Lévy (“La conversation à Rome à la fin de la République:
des pratiques sans théorie?”), que estudou as formas sob as quais a conversação foi representada nas obras
de Cícero (e de outros autores), nota que esse autor não define o sermo pela presença de um interlocutor,
mas pela ausência de tensão que se observa nesta modalidade de enunciação, em contraste com a palavra
tensa do confronto (cf. De off. I, 132 e ss.). Embora o sermo, de modo geral, esteja relacionado ao diálogo
filosófico (é com esse termo que Cícero se refere às obras de Platão, por exemplo) e a contentio ao
enunciado oratório, as duas modalidades não parecem se excluir completamente. No que diz respeito ao
De finibus, entretanto, há algo de inquietante na afirmação feita nesta passagem. Cícero trata o diálogo
anterior como um sermo (mesmo que negue que tenha sido remissus, um dos elementos do sermo
conforme definido na Rhetorica ad Herennium; apud Lévy, 401-402). O discurso de Torquato é também
caracterizado (infra, seção 3) como sermo. Ora, se pensarmos na organização total da obra, é justamente
com os epicureus que o confronto é mais sério. É essa doutrina, sobretudo, que Cícero pretende rechaçar
completamente. Já a discussão com os estóicos, que, como veremos, será, em muitos momentos,
considerada como fruto de uma mera diferença terminológica, é nomeada contentio. Na seqüência de
nosso texto, como que justificando a distinção proposta, Cícero afirma que refutar o prazer não traz muita

448
dificuldade, já que os que defendem tal causa não o fazem de modo muito rigoroso ou profundo e nem são
muito versados na arte da discussão.
De modo profundo: todas as traduções com que trabalhamos dão a abscondite um sentido
relacionado a profundidade. No entanto, tendo em vista que se fala aqui da arte dialética e, além do mais,
dado o sentido mais usual da raiz desse advérbio (cf. o verbo abscondo: “esconder, ocultar”), nós nos
indagamos se Cícero não está aqui se referindo ao procedimento dialético de esconder a real meta de uma
linha argumentativa, com vistas a dificultar a ação do opositor. Se assim fosse, poderíamos traduzir nec
abscondite por “nem de modo dissimulado”.
Nem são versados na arte da argumentação... O pouco acuro dos epicureus com relação à dialética
(assim como às diversas disciplinas da educação tradicional) é tema bastante desenvolvido no primeiro
diálogo.
I, 3 Aquela discussão em que se argumentou em favor de um e de outro lado da questão. Assim
Cícero qualifica seu diálogo com Torquato: uma in utramque partem disputatio.
Foi claro... o meu discurso: Wright (p. 115) vê aqui um provável uso técnico do adjetivo dilucida
que qualifica a oratio de Cícero. Haveria referência ao estilo baixo (tenue genus) do discurso utilizado
pela personagem que representa o autor. Esse genus dicendi tem, de fato, a clareza como uma de suas
virtudes principais.
Atribuir a coisas novas termos novos: interessante como se constrói a crítica ao estoicismo (que será
feita, sobretudo, no livro IV) já na introdução do livro III. A primeira menção ao pensamento estóico no
presente diálogo já anuncia um dos argumentos principais da personagem que representa o autor no debate
contra a filosofia do Pórtico, a saber: os excessos técnicos na terminologia estóica.
I, 4 As próprias Artes dos retores... Rhetorum artes são os tratados escritos pelos rhetores, em que
eram transmitidos preceitos da arte de discursar. Cícero considera que, mesmo que tais tratados ensinem
ao orador o modo de se dirigir ao grande público, ou seja, dentre outras coisas, o emprego de uma
linguagem acessível e agradável a todos os ouvintes, os preceitos que permitem o aprendizado da técnica,
no entanto, vêm formulados em expressões especiais, que não são acessíveis a todos, mas apenas àqueles
que foram introduzidos na técnica.
II, 4 Para cuja discussão não se pode lançar mão de palavras vindas do fórum. Estabelece-se,
assim, uma tensão entre a elocutio do orador e a do filósofo. O orador, que fala a muitos, deve se servir de
palavras usuais, caso contrário seu discurso pode ser mal compreendido ou simplesmente soar mal aos
ouvidos do público. O filósofo, que, na discussão, fala em um círculo íntimo e de matéria especial, pode se
livrar a um uso de termos mais sofisticados e mesmo inéditos. Interessante notar, entretanto, que o caráter
público do discurso oratório confere-lhe, de um modo geral, um registro mais formal do que a da conversa
entre íntimos, representada nos diálogos. Esse, em muitos aspectos, se aproxima do tom coloquial (cf. Von

449
Albrecht, M. Cicero’s style. A synopsis, 2003, pp. 30, 38-40, 49). Estudiosos do estilo de Cícero
argumentam que, em sua filosofia, ao tratar em latim as idéias provindas dos sistemas gregos, o pensador
romano dá preferência ao uso de termos usuais da língua latina, algo que, para alguns, se relaciona com
seu projeto educacional de divulgação da filosofia (cf. Lévy, C. “Cicéron créateur du vocabulaire latin de
la connaissance: essai de synthèse”; Von Albrecht, M. citado acima; Powell, J.G.F. “Cicero’s translations
from Greek”). A defesa de uma terminologia específica para a filosofia, que soa como uma justificativa,
ou um pedido de desculpas antecipado, é importantíssima nesta passagem da obra, pois ela prepara o leitor
para os termos pouco usuais que fazem parte do jargão estóico. Cícero se afasta de seu estilo mais usual na
prosa filosófica para dar conta da terminologia especial do estoicismo. Entretanto, vale lembrar que
grande parte da crítica ciceroniana à ética do Pórtico vai se concentrar na questão da terminologia. Com
isso, Cícero repreenderá, a um só tempo, a inocuidade da terminologia estóica e a elocutio dos
representantes dessa escola.
Zenão, primeiro dentre eles, não foi tanto um inventor de conceitos quanto de novas palavras.
Note-se que esta é a primeira menção feita ao fundador do estoicismo neste diálogo que trata
especificamente do pensamento do Pórtico. Desde já, é apresentado o ponto de vista de que o estoicismo
apenas aplicaria novos termos a conceitos já forjados pelos antigos acadêmicos e peripatéticos. Trata-se de
um argumento que provém de Antíoco e que será desenvolvido tanto neste quanto no terceiro diálogo.
II, 5 A respeito de coisas não triviais... Segundo Rubrichi (ad locum), o pronome neutro ea referir-
se-ia a rebus non peruagatis. É, de fato, uma interpretação que se ajusta bem ao contexto. Note-se,
entretanto, o uso de um neutro para retomar um sintagma que vinha no feminino. Sendo res o núcleo
significativo, entretanto, trata-se de uma variação compreensível e não tão inusitada na prosa filosófica
ciceroniana. Quanto ao conteúdo, é interessante o fato de Cícero se considerar o primeiro romano a tratar
das questões filosóficas, não muito difundidas entre seus concidadãos. Não há menção a Lucrécio, que já
fizera isso em seu poema didático. Entretanto, note-se que Lucrécio é justamente um representante da
opinião de que a língua latina seria inapta à expressão das idéias filosóficas. Por outro lado, a expressão
rebus non peruagatis, no contexto em que aparece, pode se referir mais especificamente ao pensamento
estóico. Ora, nós temos visto como a filosofia de Epicuro é tratada como uma doutrina fácil e bastante
difundida (mesmo que de maneira pouco precisa) entre a população em geral. De qualquer modo, há
também em Lucrécio alegação semelhante com relação ao pioneirismo no tratamento da filosofia em latim
(cf. I, 922-50 e IV, 1-25). Em De fin. V, 57, Cícero faz menção a epicureus que, apesar da doutrina que
seguem, teriam se dedicado ao estudo, diz Wrigth (p. 117), tentando apontar uma passagem no texto na
qual Cícero poderia estar se referindo a Lucrécio, mesmo que indiretamente. Pode bem ser o caso, mas é
preciso fazer uma ressalva à afirmação de Wright: o estudo aludido na referida passagem do livro V não é
o de qualquer disciplina, mas da física, um dos únicos saberes tradicionais acolhidos pela filosofia do

450
Jardim (ao menos no estágio original do epicurismo). Recordemos que o livro II apresenta um epicureu,
Torquato, que não negligencia a educação tradicional, elemento que parece estar presente no epicurismo
italiano de um Filodemo, por exemplo.
E uma vez que amiúde dissemos... O argumento é o seguinte: a língua latina é potencialmente mais
rica do que a grega. Resta agora aos romanos tornarem efetiva essa superioridade por meio do tratamento,
em latim, das grandes artes gregas.
Por convenção dos antigos verte instituto ueterum. Há que se defender a tradução de institutum por
“convenção”. De fato, esse termo parece indicar uma decisão tomada pelos antigos. De qualquer forma, se
a idéia de uso é clara a partir do termo latino usu, não podemos deixar de notar que o termo institutum traz
certa idéia de algo que se estabeleceu não necessariamente pela decisão de um indivíduo, mas, como
parece ser o caso, por uma espécie de decisão difusa de um grupo de pessoas: o grupo de falantes de latim
que estabeleceram o uso de empréstimos gregos. A solução adotada pela maioria dos tradutores é algo
como “costume”, mas, conforme pensamos, ela não parece assinalar esta espécie de acordo difuso que
forma uma língua.
Ainda que... ainda que... Por estranha que seja a repetição da expressão concessiva, preferimos
construir assim o nosso período, tendo em vista que a repetição de quamquam, no original, parece criar
uma espécie de descontinuidade no texto que o aproxima do discurso oral. Ainda que fosse mais esperado
encontrar tal tipo de construção na parte dialogada da obra, vale dizer que Von Albrecht (Cicero’s style –
a synopsis, 2003) considera a ocorrência desse tipo de parênteses na prosa de Cícero como uma marca da
criação artística de um efeito de espontaneidade. Quanto à questão do uso da língua latina para o
tratamento dos conceitos filosóficos reaparece, é tema que reaparece em III, 15-16.
II, 6 No mais excelente gênero de filosofia, foste tão longe: ao que parece, “gênero de filosofia”,
nesta passagem, quer dizer “parte da filosofia”, a saber, a ética. Bruto compusera, segundo notícia dada
por Cícero, um tratado De uirtute (cf. livro I, 8). Dificilmente admitiríamos genus aqui como referência a
uma escola de filosofia, visto que Cícero, mais ligado ao pensamento de Fílon, não consentiria à filosofia
de Antíoco, de que Bruto era adepto, a palma da excelência filosófica. Uma solução conciliatória,
entretanto, pode se apresentar: que, se o termo designa corrente filosófica, que ele se refira à Academia em
geral.
Teu tio, homem divino e singular: Marco Pórcio Catão, dito o Uticense, de quem falamos no estudo
que acompanha a tradução.
II, 7 Sem nada subtrair de sua atenção à questão pública: esta ressalva tem sabor particularmente
romano e se insere no contexto da crescente entrada de cultura grega no ambiente da Vrbs. A tensão entre
a atividade política e a vida contemplativa, associada à filosofia grega, é elemento presente em diversos
diálogos ciceronianos e demais obras da literatura da época. Recordemos que a própria atividade

451
intelectual de nosso autor é muitas vezes concebida, numa tentativa de justificação, como uma espécie de
serviço público (cf. I, 7, por exemplo).
II, 8 Nosso Cepião: Quinto Servílio Cepião era tio materno do pequeno Luculo. Sabe-se que ele foi
tribuno militar na campanha contra o exército de gladiadores comandado por Espártaco, entre 73 e 71 a.C.
e que morreu jovem e em batalha, provavelmente na Ásia, combatendo Mitridates, na década de 60 a.C.
(cf. Marinone, ad locum).
A ti, que lhe é tão próximo: as relações de parentesco que aqui se desenham não são simples, pois
que muitos dos personagens são homônimos; de qualquer forma, tentaremos resumir: Lívia, filha de
Marco Lívio Druso, casou-se duas vezes. Na primeira, com Quinto Servílio Cepião. Juntos tiveram três
filhos: Quinto Servílio Cepião, o jovem, que é o personagem mencionado no texto de Cícero, e duas
filhas. A primeira, chamada Servília, casou-se com Marco Júnio Bruto, pai do homônimo a quem a obra é
dedicada; a segunda, também nomeada Servília (costume não raro entre os romanos), casou-se com Lúcio
Luculo, pai deste homônimo que é tratado aqui como o pequeno Luculo. Com isso, Cepião, o jovem, era
tio materno do jovem Luculo. Os editores em notas ad locum (cf. Rubrichi, Marinone e Martha) afirmam
que o termo aui (auus) que aparece em nosso texto é, portanto, mal empregado. Trata-se de um equívoco
ou de Cícero, ou de um copista, uma vez que ali deveríamos esperar auunculus, isto é, tio materno (é, de
fato, o termo que Reynolds traz em sua edição). Num segundo casamento, Lívia uniu-se a Marco Pórcio
Catão, o antigo, do qual descendia Catão, o jovem, interlocutor do presente diálogo. Catão e o pequeno
Luculo tinham laços de parentesco, portanto, por parte de Lívia (cf. Rubrichi, Woolf, Martha, Marinone e
Wrigth, notas ad locum).
Homem em tudo excelente: ou “superior a todos”? A primeira interpretação é sustentada por
Marinone, a segunda por Rubrichi. Martha, por fim, julga omnibus um dativo de opinião: “que foi, para
todos, um homem excelente”.
II, 9 Sinais... de pudor e de engenho: a maneira como Catão trata do desenvolvimento do jovem
Luculo já aponta uma nítida conotação filosófica. Pudor refere-se àquelas virtudes que, desde Aristóteles,
são chamadas “éticas”; já ingenium se aplica às virtudes “intelectuais”.
Tu vês, no entanto, sua idade: Catão quer com isso dizer que, embora seja bem dotado pela
natureza, Luculo é ainda muito jovem para se lançar aos estudos e, portanto, poder desfrutar da vasta
biblioteca que herdou. Há um aceno, entretanto, a uma doutrina que será desenvolvida mais adiante e que
defende que o ser humano, já desde a mais tenra idade, tem em si os germes da virtude, que, afinal,
fundamenta-se na natureza.
Já deve se imbuir daquelas artes que... Acreditamos que, com essa afirmação, a personagem de
Cícero salienta a importância que têm as ingenuae artes para a formação do homem público, aquele que

452
deverá se ocupar dos assuntos mais importantes (maiora). Dentre tais artes, a filosofia, especialmente sua
parte moral, teria papel fundamental.
Agiremos conjuntamente: entende-se a partir do texto que o jovem Luculo e um filho
(desconhecido) de Cepião foram recomendados a Cícero, isto é, que caberia ao famoso orador velar
também pela educação dessas crianças. É interessante notar a pertinência da discussão a respeito da
maneira como se deve educar um jovem aristocrata romano, de importante família, de muitas posses, com
uma carreira política promissora, na introdução a um diálogo em que se buscará definir qual deve ser a
meta nas ações humanas. Além disso, o vínculo de amizade e de responsabilidade comum que se
estabelece entre Cícero e Catão, por conta da criação do pequeno Luculo, aponta para a comunhão de
certos valores entre os dois interlocutores, não obstante a diferença de suas inclinações filosóficas. Esse
tipo de elemento, que provém da composição ficcional da obra, contribui sem dúvida alguma, para a tese
que a personagem de Cícero pretende demonstrar sobretudo na segunda parte do diálogo (livro IV): que
entre a ética do Pórtico e a ética da Academia e do Liceu, a diferença é mais terminológica do que
substancial.
Vamos voltar a nos sentar... A discussão mais técnica, presente nesse diálogo estóico, não se dá ao
longo de uma caminhada, como no diálogo epicureu, ou no acadêmico (livro V). Aqui, as personagens
permanecem dentro da vasta biblioteca da vila dos Luculos, rodeados de beleza e erudição.
III, 10 Certas anotações aristotélicas: commentarii é um termo pouco preciso, mas a respeito do
qual podemos tecer algumas considerações. Etimologicamente, o termo se relaciona ao grupo mens,
comminiscor, memoria etc. Se a raiz em questão refere-se de modo geral às atividades da mente,
commentarius, aplicado a um texto, refere-se a um escrito ao qual alguém confia suas reflexões. Pode se
tratar de uma espécie de caderno de notas, em que são registrados eventos, idéias, etc. É assim que são
compreendidos os commentarii escritos por Júlio César, espécies de diários de campanha do general que
poderiam, num momento posterior, ser utilizados para a composição de uma obra historiográfica.
Qualificados pelo adjetivo Aristotelii, julgamos que os textos em questão seriam anotações, feitas pelo
mestre ou por seus discípulos, de aulas ou conferências pronunciadas pelo filósofo de Estagira. Assim
pensamos, pois, ao falar do pensamento de algum discípulo de Aristóteles, Cícero geralmente se serve do
adjetivo peripateticus. Wrigth (op. cit.) traduz por “some treatises of Aristotle” e julga que Cícero poderia
estar se referindo aqui ao texto que nós conhecemos como Política, uma vez que, no ano seguinte ao da
cena do diálogo, o filósofo romano estaria ocupado com a composição de seu De re publica. Ainda que
não se possa confirmar a hipótese de Wright, é interessante o fato de que as teorias que levam em conta a
distinção entre os textos esotéricos e exotéricos de Aristóteles (que encontram respaldo no De finibus, cf.
livro V, 12) dão conta de que as obras desse filósofo de que dispomos hoje em dia seriam conjuntos de
notas tomadas ou pelo próprio filósofo, ou por seus alunos, e que circulavam internamente no Liceu. Com

453
relação à construção de nosso diálogo, é pertinente a menção do autor (se nossa interpretação estiver
correta) ao acesso que tinham os romanos letrados a obras de primeira mão da tradição aristotélica. Além
do mais, a fala de Catão enaltece a cultura literária de Cícero. Como tratará, no livro V, da unidade que ele
julga existir entre as éticas da Academia e do Liceu, Cícero parece estar construindo textualmente, com a
referência a esses textos, sua filiação filosófica (ora, os mestres acadêmicos fomentavam o estudo até
mesmo dos textos de filósofos de escolas adversárias) além de abonar sua capacidade em tratar de pontos
da filosofia peripatética.
Pois o que quer que, com exceção do que for honroso... Segundo argumenta Catão, a diferença entre
a ética que ele próprio sustenta e a defendida por Cícero é substancial, e não meramente terminológica.
Para os estóicos o belo moral, tratado por Cícero por meio do termo honestum, é o único bem. A
consideração de qualquer outra coisa como meta e guia da ação humana, visão que Catão atribui a Cícero,
retira da virtude o seu caráter especial e absoluto e arruína todo o sistema moral estóico.
III, 11 Sem qualquer doutrina, seguindo a própria natureza... Para Catão, o estoicismo se identifica
com o mos maiorum. Os grandes homens de Roma, do passado e do presente, teriam o honestum como
bem supremo porque, mesmo sem formação filosófica, seguiriam a natureza. Ora, é justamente o tipo de
vida que a moral estóica defende. Do ponto de vista da argumentação, notemos que Catão tergiversa, e
ainda que repita a questão proposta por seu interlocutor, ele não lhe responde. Apenas depois da
insistência da outra personagem, que pretende que sejam idênticos os pensamentos morais de Pirro,
Aríston e dos estóicos, é que Catão será levado a expor a doutrina do Pórtico.
Não tem parte com a virtude... Era de se esperar aqui a contrapartida uiti. Marinone (ad locum)
aponta passagem em que Cícero utiliza virtude e vício, porém, em um contexto onde apenas o uso de
virtude seria apropriado: livro IV, 47: nisi in uirtute aut uitio.
Asseguram: O texto de Rubrichi traz afferre, que é a leitura de um dos manuscritos; outro
manuscrito traz affirmare, lição que adota parcialmente Madvig (julgando afferre muito fraco após
adiuuare), corrigindo por confirmare ou firmare, com o sentido de “dar força”, “tornar firme” (cf. Wrigth,
p. 122). Firmare é a opção de Marinone e Wright; Martha estampa confirmare, assim como Reynolds,
cujo texto seguimos correntemente.
Muito bem: segundo pensam os comentadores (cf. Rubrichi, ad locum e Wright, p. 122), trata-se da
transliteração da partícula grega nhv, que tem valor afirmativo e significa algo como “por certo,
seguramente”. Cabe dizer que, com exceção das cartas, não é muito comum o uso de estrangeirismos na
prosa de Cícero (sem contar, é claro, os termos técnicos que são, quase sempre, vertidos e explicados em
latim). Duas hipóteses podem ser aventadas para justificar esse uso, as quais podem mesmo ser
complementares. Por um lado, pode-se pensar que no contexto de uma discussão filosófica entre romanos,
que geralmente iam buscar no mundo grego uma formação mais aprofundada, o uso de certas expressões

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gregas podia ocorrer, mesmo, como aqui, sem qualquer proveito substancial para a exposição. Por outro
lado, pode ser essa uma maneira de que se serve Cícero para apontar certo traço de pedantismo da
personagem de Catão, que, tão absorto pela filosofia estóica, incorporaria até mesmo os trejeitos da fala
grega. Essa interpretação pode ser exagerada, uma vez que a personagem que representa o autor se serve
da mesma expressão na seção 40, numa passagem em que comenta a tradução adequada, apresentada por
seu interlocutor, para certo termo grego (ali, talvez Cícero pretenda indicar, com o uso da expressão grega,
o domínio que tem do idioma da Hélade). De qualquer forma, deve-se salientar que aqui, justamente,
Catão defende que o costume tradicional romano prescinde de qualquer ensinamento filosófico que não o
estoicismo. Ora, será que Cícero não está sutilmente apontando uma contradição no modo de proceder da
personagem, que defende o mos romano, mas se rende à fala grega? Poderíamos ver ainda no uso feito
pela personagem de Cícero na seção 40 uma leve ironia dirigida a Catão?
IV, 12 Não o deles, ao menos: Catão sustenta a tese de que não são idênticos o pensamento moral
estóico e as doutrinas de Pirro e Aríston. Por isso, faz-se necessária uma exposição da ética estóica.
A escolha daquelas coisas que forem segundo a natureza: na ética estóica, é uma função essencial
da sabedoria prática, frovnhsi", que é uma das virtudes, escolher aquilo que é conforme a natureza e
rejeitar o que lhe é contrário. Um exemplo de tal tipo de escolha é a primeira a ser tomada por todo ser, a
escolha pela autopreservação e pela sobrevivência (cf. III, 20 e 60).
Idênticas para um e para outro lado: No sentido de “para o bem e para o mal”, isto é, para Catão,
filósofos como Pirro e Aríston negariam às coisas qualquer traço que pudesse fazer delas mais próximas
dos bens ou dos males.
IV, 14 Adequado: julgamos que “decoroso” e seus cognatos portugueses são insuficientes para
verter decorus e seus cognatos latinos. Em português, tal termo tem uma acepção claramente moral. É
usado mais propriamente em sentido moral. Ainda que em latim o termo seja utilizado no jargão da
discussão sobre os mores, em Cícero, decus tem uma nítida conotação estética, tanto que é utilizado para
verter to; kalovn, expressão de conotação originalmente estética; ambos ganham valor moral apenas na
medida em que são aplicados, por extensão, no contexto da ética. Decus, em latim, tem relação com o
verbo decet, e indica aquilo que vai bem, que cai bem, que se ajusta e, por isso, embeleza, orna etc.
Wright, por exemplo, comenta assim o par decorum, indecorum (p. 123): “‘fine’ and ‘disgraceful’ with
reference to inner beauty”. Observe-se que, nos tratados de retórica, nosso autor se serve por vezes da
mesma raiz para traduzir a noção de prevpon, que indica a adequação, dentre outras coisas, entre o assunto
e a expressão em um discurso, em contextos nos quais nenhuma noção ética está originalmente envolvida.
Designado por vários termos que declarem a mesma coisa... Este modo de proceder, que será
defendido mais adiante no que diz respeito especificamente à tradução, faz com que Cícero seja criticado
por alguns estudiosos, como, por exemplo, Poncelet, autor de Cicéron traducteur de Platon, de 1957).

455
Para ele, a abundância ciceroniana redundaria em falta de precisão, pois, com vistas à uariatio, ele de fato
emprega, ao longo de suas obras, indiscriminadamente os sinônimos que lista para determinados
conceitos. Outros autores, como, por exemplo, Albrecht e Lévy) têm defendido Cícero. Eles levam em
consideração, dentre outras coisas, a meta de suas traduções: tornar acessível – e compreensível – a
filosofia ao público romano. Ora, é justamente com vistas à melhor compreensão dos conceitos que, neste
contexto, é utilizado tal procedimento.
Desejas arrancar, furtivamente: arripio traz a idéia de “arrebatar”, “tomar rapidamente”, daí o
sentido de “surpreender”, “apanhar de surpresa”, que julgamos ser o mais adequado ao contexto.
Recordemos que, no primeiro diálogo, Torquato fizera queixa semelhante, quando, reduzido ao silêncio
por causa das perguntas incisivas de Cícero, ele dizia temer as armadilhas da dialética (cf. II, 17).
Exporei... de forma completa o pensamento de Zenão e dos estóicos. Catão é representado aqui
como um bom sequaz da doutrina estóica, pois, segundo Goldschmidt (Le système stoïcien et l’idée de
temps, 1979, p. 61), a noção de suvsthma (conceito introduzido na filosofia pelos estóicos) implica a
exposição completa e bem ordenada de uma das partes da filosofia. A ética estóica, por exemplo, não pode
ser compreendida se o expositor apresentar teses deslocadas do todo (o que Goldschmidt julga estar
indicado pela recusa de Catão: non respondebo ad singula). Apenas a exposição do sistema como um todo
(o que o referido autor considera ser contemplado com totam... sententiam) tornaria compreensíveis e
irrefutáveis as teses particulares que estariam perfeitamente concatenadas. O sistema estóico, cuja coesão
perfeita representa a própria organização do mundo, acarreta além do mais uma completa solidariedade
entre todos os dogmas, e não apenas aos que dizem respeito a uma mesma parte da filosofia (cf.
Goldschmidt, p. 64).
IV, 15 Estes termos aplicados a coisas novas pareciam novidades... Passagem em que há problemas
no texto. Madvig (ad locum) afirma haver aqui uma lacuna, e acrescenta, antes de non, a expressão noua
erant, ferenda. Admitido esse acréscimo, teríamos algo como: “Pois, uma vez que mesmo na língua grega,
outrora, estes termos novos, aplicados a coisas novas, não pareciam aceitáveis, termos que agora...”.
Wrigth, por sua vez, aceita uma correção feita por um antigo editor (Minutius, apud Wrigth, p. 123), da
qual nos servimos em nossa tradução, que substitui non por noua. Quanto ao verbo tero, é difícil manter a
imagem.
Pois se foi permitido a Zenão... Eis um parágrafo importantíssimo para que possamos discutir o
modus operandi de Cícero como tradutor da terminologia filosófica grega. Inicia-se com uma defesa do
uso de neologismos (que retoma a fala de Catão), algo que, no âmbito do discurso oratório nosso autor não
aceitava e nem empregava comumente. Aqui, no entanto, como se trata de expor em latim um pensamento
filosófico que, criando (supostamente – o subjuntivo inuenisset não garante que Cícero esteja assumindo
tal opinião) conceitos, precisou se servir de termos novos. A seguir, faz-se uma crítica a tradutores, pouco

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hábeis na arte de verter, que traduziriam um texto palavra por palavra. (Note-se, entretanto, que no livro I,
a expressão ad uerbum, que traduzimos por “literalmente” – cf. I, 4 – se refere à adaptação, feita por
poetas, de peças de teatro gregas. Ali, segundo pensamos, a expressão é usada enfaticamente e, até
mesmo, de modo exagerado, em um contexto em que o autor pretende distanciar o sua composição
filosófica – que seria mais livre – das adaptações teatrais que já ocorriam em língua latina, cf. Powell,
1995, p. 277). Para a personagem que representa o autor, o tradutor pode se servir de uma palavra mais
usual em seu idioma, para verter uma idéia da língua de partida, desde que a palavra indique a mesma
idéia. É evidentemente impossível que, em língua diferentes, que são utilizadas por falantes que pertencem
a realidades culturais necessariamente diferentes e em que as palavras de cada uma delas ocupam posições
bem específicas, dadas as relações que mantêm com todas as outras palavras do léxico, haja uma tal
correspondência de sentido entre dois termos. Pode haver alguma correspondência, o que termina por
fazer com que o texto aponte, na língua de chegada, para valores e idéias que são próprias (e, por vezes,
mesmo específicas) da cultura dos falantes da língua de chegada. Cícero se serve desse tipo de
procedimento ao utilizar termos como honestum, uirtus, sapiens e muitos outros. Trata-se de um modo de
traduzir que é bastante eficaz para as pretensões de Cícero, que busca tornar a filosofia grega acessível ao
público romano e, mais que isso, julga que o homem público romano deve ser formado por uma educação
filosófica. Deve-se levar em consideração ainda que, pelo fato de a personagem defender que o tradutor se
utilize, em latim, de um termo que é mais usual do que o seu análogo grego, é tendência da prosa
filosófica de Cícero tornar a filosofia mais próxima da linguagem comum das pessoas letradas. Há, sem
dúvida, na defesa desse tipo de tradução uma espécie de aversão ao jargão técnico filosófico, algo que
repercutirá mesmo na crítica que será feita ao estoicismo. O procedimento apresentado a seguir pode ser
interpretado de duas maneiras. Pode ser, em primeiro lugar, o caso de verter por uma perífrase aquilo que
em grego vinha tratado por uma só palavra. Ora, também esse modo se insere no projeto educacional
ciceroniano: trata-se de uma tradução que é, ao mesmo tempo, uma explicação, e de que nosso autor se
serve em casos como disserendi ratio ou philosophiae pars, quae est quaerendi ac disserendi para traduzir
logikhv, e tantos outros (cf. Powell, 1995, p. 293). Por outro lado, podemos pensar que Cícero esteja se
referindo ao procedimento segundo o qual ele oferece diversos sinônimos para traduzir um só termo
grego, como vimos acima, em II, 17. Por fim, retomando idéia que já fora expressa anteriormente, ele
defende que o tradutor continue a se servir de empréstimos gregos que o uso dos falantes já consagrou. É
o caso, por exemplo, de termos que nomeiem objetos do ambiente cultural grego, presentes agora no
mundo romano como ephippium (de ejpiv, sobre e iJvppo", cavalo), uma sela para cavalos, ou acratoforum
(de ajkv rato", não misturado, e fevrw, portar), um vaso utilizado para o vinho puro. Note-se que o uso
desse tipo de palavras é aceitável até mesmo na prosa oratória, em casos como os dos discursos contra
Verres, em que os termos que se referem a objetos de arte gregos são abundantes (cf. Albrecht, 2003,

457
p.18). É interessante, ainda, o comentário que a personagem de Cícero faz com relação aos termos
prohgmevna e ajpoprohgmevna, que, por não contarem com termos latinos correspondentes, seriam
aceitáveis nessa forma mesmo, ou ao menos transliterados. Com uma ressalva, Cícero faz questão de
vertê-los, como que de improviso (poderíamos dizer). É uma forma, pensamos, de Cícero mostrar o vigor
da língua latina e, por outro lado, de assinar a autoria da cunhagem desses termos que, acolhidos
prontamente por Catão, vão servir à tradução dos conceitos estóicos. Quanto aos conceitos, trataremos
deles no momento da exposição propriamente dita.
IV, 16 ‘A fortuna os bravos’: subentende-se a forma adiuuat, do verdo adiuuo, que, aliás, fora
utilizado pela personagem de Catão (cf. bene facis quod me adiuuas). O autor serve-se aqui de uma
expressão proverbial, que já se encontra em Terêncio (cf. Phormio, 203).
V, 16 Pensam aqueles, cujo sistema eu aprovo... que o ser animado: Catão inicia a exposição do
sistema de modo ordenado. Ele deixa muito claro que é o método dos estóicos que prescreve, na exposição
do finis, que se deve começar com a consideração das primeiras tendências do ser vivo (hinc enim est
ordiendum). Já vimos como o argumento é desenvolvido no diálogo epicureu. Na exposição do livro III,
cabe notar que Catão não distingue qualquer autor estóico em particular (placet his quorum ratio mihi
probatur). Sabemos, entretanto, a partir de Plutarco, que o estóico Crisipo introduzia o argumento dos
recém-nascidos em todos os seus estudos de física e de ética (cf. De Stoicorum repugnantibus, 1038b5-8).
Diógenes Laércio, por sua vez, transmite o modo como Crisipo argumentava (VII, 85). O biógrafo diz
que, para Crispo, a primeira tendência do ser vivo é a conservação de si mesmo (cf. Diógenes Laércio,
VII, 85: th;n de; prwvthn oJrmhvn fasi to; zw'o/ n i[scein ejpi; to; threi''n eJautov). Isso se dá porque, desde o
princípio, a natureza lhe é apropriada (oijkeiouvsh" aujto; th'" fuvsew" ap a
j rj ch'"). É justamente a noção
de oijkeivwsi" de que trata aqui Catão. O conceito deriva do adjetivo oijkei'o" (relacionado a oi\ko", “casa,
habitação”), que significa, primeiramente, “relativo à casa, que pertence à casa, ou à família”, daí o
sentido de oijkeivwsi" como “ligação familiar, apego”. No jargão filosófico, é oijkei'o" aquilo que mantém
uma relação de familiaridade; no contexto, aquilo que é apropriado, que pertence ao indivíduo como
próprio. Note-se que, no texto de Cícero, a noção de “ser apropriado” vem vertida por meio de dois
verbos: concilior (voz média de concilio) e commendor (de commendo). Como vimos, trata-se de um
procedimento autorizado por sua “teoria da tradução”, quando há dificuldade na tradução de algum termo.
Os verbos latinos advêm da esfera política (dado que não é tão evidente na expressão original). Concilio,
por um lado, significa “associar, unir” e mesmo “angariar a simpatia de alguém”. Commendo, por outro
lado, significa “recomendar algo/ alguma pessoa a alguém”, é o verbo utilizado, por exemplo, para se
referir à prática política da commendatio, isto é, tornar alguém aceito por uma terceira pessoa. Com as
formas médias, o autor consegue que aquilo que, no domínio político, expressava uma ação que se dá
entre dois ou mais atores políticos, passe a designar um movimento que é interno ao indivíduo, operado

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pela própria natureza. A commendatio será então a tendência de que nos imbui a natureza conciliando
nosso esforço em favor de nós mesmos, ou, recomendando nossa existência a nós mesmos. Mais adiante,
o conceito será ilustrado por meio de uma metáfora, a da carta de recomendação (cf. III, 23). Podemos
conceber a tradução ciceroniana como a tentativa de dar ao conceito, mais abstrato na origem, uma
formulação mais concreta em latim e, o que não deixa de ser notável, mais próximo da realidade cultural
(e política) do público a que dirige sua obra. Se a imagem da carta de recomendação for de autoria de um
filósofo grego, poderíamos até mesmo conjecturar que teria sido ela o ensejo para tradução proposta pelo
autor. Se, então, a natureza nos recomenda a nós mesmos, e isso se manifesta na tendência à
autoconservação, num movimento contrário, ela nos torna avessos (alienari) à morte e àquilo que a pode
causar. O verbo alieno traduz aqui a idéia expressa, no pensamento de Crisipo, por ajllotriovw (cf. D.L
VII, 85: ajllotriw'sai), isto é, no sentido mais concreto: “tornar estranho, fazer passar a outras mãos,
alienar” e, no jargão filosófico, “tornar avesso”. Veja-se que a idéia é como que uma contra-partida da
imagem do que é próprio, porque é da casa, porque é “propriedade” do indivíduo. Cícero aqui apenas
distorce a noção de alienare, que é jurídica, para o campo da ética, movimento que já se apresenta na
expressão grega.
Os pequenos tenderiam ao salutar, o prejudicial eles evitariam... Esse texto encontra
correspondência no trecho de Diógenes Laércio (já mencionado acima) que trata do pensamento de
Crisipo. Diz-se que o ser vivo tav te blavptonta diwqei'tai kai; ta; oijkei'a prosivetai (D.L. VII, 85),
isto é: “as coisas que são nocivas ele rejeita e as coisas próprias (ou favoráveis) ele acolhe”. Cabe notar a
uariatio do autor do De finibus na tradução dos termos gregos relacionados ao adjetivo oijkei'o". Ele já se
servira dos verbos commendo e concilio. Depois, utilizou conseruantia. Por fim, salutaria, no sentido
daquilo que traz salus: a salvação, ou conservação. Trata-se, novamente, de emprego (ainda que atribuído
à personagem de Catão) de seu método de tradução exposto anteriormente.
Se não amassem seu estado... percepção de si: no trecho de Laércio, referido acima, ele afirma que
Crisipo, no tratado Sobre os fins, disse “que a coisa mais própria para todo ser vivo é a sua constituição e a
consciência de sua constituição”; cf. VII, 85:
prw'ton oijkei'on levgwn ei\nai panti; zw'w
/ / th;n suvstasin kai; th;n tauvth" suneivdhsin. Em nossa
passagem do De finibus, o termo utilizado para traduzir suvstasi" é status, que resolvemos verter por
“estado”, uma vez que o texto de Cícero apresenta também o termo constitutio como opção de tradução. A
questão do sensus sui é um pouco mais complicada. No texto de Crisipo, vemos que um dos elementos
primeiros do ser vivo é a consciência de sua própria constituição (th;n tauvth" suneivdhsin). Cícero fala
de uma “percepção de si próprio”, sem deixar claro, neste passo, por tratar o ser de modo geral, qual seria
o objeto de sua própria e mais original percepção. O problema que envolve a consideração de uma forma
de conhecimento na criança recém-nascida será tratado mais adiante. Na ocasião, compararemos a

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exposição feita no texto ciceroniano com a realizada por Sêneca em uma de suas Epistulae ad Lucilium
(121).
Donde se deve entender que... O texto é obscuro por conta da concisão. Note-se que nada qualifica
principium, de modo que, apenas a ocorrência, na frase seguinte, da expressão principiis...naturalibus,
permite-nos entender principium como “aquilo que ocorre em primeiro lugar conforme à natureza”. Trata-
se de uma referência ao conceito de prwvth oJrmhv, “o primeiro impulso”, ou “a primeira tendência”. Como
o texto, contudo, não revela ainda aqui o que se entende por principium, adotamos a tradução “elemento
primeiro”, imprecisa como o original.
V, 17 Que não se deve incluir o prazer... Cf. Diógenes Laércio, VII, 103, em que o biógrafo
distingue as posições de alguns estóicos com relação ao prazer. A Posidônio ele atribui a inclusão do
prazer entre os bens. Crisipo, por outro lado, diria que existem prazeres que são vergonhosos
(ei\nai... kai; aijscra;" hJdonav") e que o que é vergonhoso não pode ser bom. Nesse ponto, portanto, Catão
parece seguir os estóicos mais antigos.
Parece haver... prova suficiente... A tendência inicial de buscar a preservação é demonstrada a partir
de uma constatação que se serve do senso comum. Assim, o desejo de possuir uma íntegra constituição
física é prova de que a natureza nos imbui de um impulso de auto-preservação. Cabe notar, no entanto,
que o verbo malit parece já insinuar um desenvolvimento posterior do raciocínio estóico, pois, como
veremos a seguir, ainda que a busca da saúde participe dos principia naturalia, a saúde, em si, não será
considerada como um bem, mas tão somente um “preferível” (cf. III, 51).
As cognições das coisas traduz rerum cognitiones. O fato de que os elementos fundamentais do
conhecimento sejam admitidos desde o início pela natureza humana tem uma grande importância no
pensamento estóico. Como veremos mais adiante, a ação reta, honesta, pressupõe um conhecimento. Ela
deve ser realizada deliberadamente. Alguns manuscritos trazem a forma katalhvyei". O texto estabelecido
por Reynolds, entretanto, indica não apenas uma transliteração, mas uma adaptação da palavra grega à
morfologia latina (acusativo plural em –is). A ação de Catão é conforme à discussão anterior a respeito da
tradução de termos gregos. O texto representa o esforço do patrono do estoicismo em tratar em latim do
conceito grego. Ele tenta dar conta do termo grego por meio de várias palavras latinas. Temendo não ter
alcançado sucesso, uma vez que a palavra se refere a uma realidade nova, serve-se por fim da palavra
latinizada. Quanto ao conceito de comprehensio, veja-se o que dizemos em nosso estudo, no qual
apresentamos, ainda que brevemente, a teoria do conhecimento conforme o pensamento dos estóicos.
Cabe apenas dizer que optamos por “cognição” e não por “conhecimento”, por julgar que o conceito
estóico trata especialmente do processo de conhecer. O termo cognição nos parece registrar em português
essa idéia da ação realizada por nosso intelecto.

460
Isso... pode ser entendido ao considerarmos os pequenos... O argumento utilizado aqui por Catão
traz alguns problemas. Em 16, o expositor dissera que, antes de ter experiência de qualquer prazer ou de
qualquer dor, o ser vivo buscaria o que é favorável à conservação de sua constituição (cf. salutaria). Aqui,
não mais falando do recém-nascido, ele parece tomar o prazer, que ele negara se achar entre os princípios
naturais, como indício de que o conhecimento se encontra entre os elementos naturais, justamente porque
o prazer viria como resultado de conhecimentos que, entretanto, não são necessariamente úteis ao
indivíduo. Com base nessa passagem, Brunschwig (“L’argument des berceaux...”, p. 99) reconhece que os
estóicos defendem paradoxalmente que um comportamento é natural quando ele produz prazer sem ser
útil. De fato os estóicos não negam que o prazer possa ser um efeito secundário da obtenção daquilo que é
conforme a natureza (cf. Diógenes Laércio, VII, 86). Mas, no exemplo dado por Catão, como saber se o
conhecimento não é, na verdade, buscado pelo prazer que proporciona? O argumento não nos parece
adequado. Mais interessante seria encontrar exemplos que demonstrassem que a oijkeivwsi", isto é, o
processo pelo qual a natureza nos torna apropriados a nós mesmos, realiza-se independentemente dos
efeitos secundários. Um exemplo dado por Sêneca na Carta 121 (Epistulae Ad Lucilium, 121, 8) é, nesse
sentido, bastante significativo. O filósofo do século I d.C. trata ali da criança que aprende a dar seus
primeiros passos. Novamente tratamos não do recém-nascido, mas, de qualquer forma, da criança que
ainda não atingiu a idade racional. “Desse modo, o bebê que se prepara para ficar de pé e ensaia caminhar
por si próprio, logo que começa a experimentar suas forças, tomba e, a cada vez, em meio ao choro,
reergue-se até que, através da dor, se tenha tornado hábil naquilo que a natureza demanda / Sic infans, qui
stare meditatur et ferre se adsuescit, simul temptare uires suas coepit, cadit et cum fletu totiens resurgit
donec se per dolorem ad id quod natura poscit exercuit”. Eis um exemplo que serve à demonstração de
que o processo de desenvolvimento da criança, regido pela commendatio, exerce-se mesmo tendo a dor
como adversária. Da confrontação entre os dois exemplos, conclui Brunsschwig (op. cit. p. 100): “a
natureza atinge seus fins, e ela obtém aquilo que ela quer obter, tanto no caso em que suas exigências são
recompensadas pelo prazer, quanto no caso crucial em que elas não o são”.
V, 18 As artes, também... As artes devem ser admitidas porque são formadas por elementos que
devem, por si sós, ser admitidos. As artes são sistemas de katalhvyei" (cf. Sexto Empírico, Aduersus
Mathematicos, II, 10), que, como vimos, são elementos naturais. Além disso, tais elementos estão
organizadas entre si, nas artes, de modo lógico, e assim procedem em suas aplicações práticas.
Assentimento falso: tecnicamente, a adsensio é uma das etapas do processo do conhecimento. É o
resultado da aplicação sobre os sentidos daquilo que nos vem das coisas (os uisa). Veja-se o estudo que
acompanha a tradução. Wrigth (op. cit. p. 129) julga que as crianças podem ser tomadas, pelos estóicos,
como testemunhas da nossa predileção pelo verdadeiro e aversão ao falso. Mas notemos que nesta
passagem da exposição Catão não ilustra a afirmação com qualquer dado observável na criança.

461
[Já dentre os membros... A passagem destacada entre colchetes não deve pertencer, segundo
Reynolds, a este passo do texto. Wrigth (op. cit. p. 129) acolhe a leitura de Reynolds (também adotada por
Woolf), dizendo que a discussão teleológica a respeito das partes dos animais que aqui se apresenta
deveria ser deslocada para a seção 63, onde o assunto é tratado.
V, 19 Como que os primeiros elementos da natureza... O uso de quasi introduz muitas vezes um
termo utilizado com certo grau de imprecisão, geralmente por vir em sentido diverso do que lhe é mais
comum. É esse o caso de elementa aqui. Os elementa referem-se, geralmente, aos rudimentos de uma
determinada arte. Designando os rudimentos da leitura ou da escrita, Horácio, por exemplo, utiliza a
expressão elementa prima (Sermones, I, 1, 26). Elementa traduz o grego stoicei'a, que pode designar
também os rudimentos de uma arte qualquer. Pode significar “letra” enquanto elemento primeiro da
escrita, que compõem sílabas e palavras. A idéia, portanto é que a tendência primeira nos seres vivos e o
processo cognitivo são os princípios fundamentais da natureza humana, comparáveis às letras na formação
de palavras e aos rudimentos de qualquer arte. Se elas são apresentadas em um discurso pouco fecundo,
isso se dá, na opinião de Catão, porque a matéria, elementar, é por si mesma simples.
Tudo o que, a respeito de uma coisa boa, é dito com clareza... Discute-se aqui a adequação entre o
discurso e matéria tratada. Note-se que quando se trata dos princípios elementares (istius modi... res), não
é adequada a elocução grandiosa (puerile est); a virtude essencial desse tipo de discurso é a clareza na
exposição da matéria. A questão desenvolvida pelos interlocutores tem relação com a distinção, proposta
por Zenão, o estóico, entre dialética e retórica, conforme vimos em II, 17 (cf. ainda Orator 113). A
dialética, semelhante à mão fechada em punho, requer uma discussão cerrada, pouco fecunda, ela almeja
mais a precisão e a clareza do que o discurso do orador, que, semelhante à palma da mão, busca maior
amplitude e brilho. A posição adotada pela personagem de Cícero, nesta passagem, não parece, no
entanto, decorrer de uma franqueza completa. Pois, aqui, ele admite e mesmo encoraja a expressão de
Catão. Veremos que no livro IV (cf. seção 5, por exemplo) que a expressão dos estóicos vai ser criticada
também sob o prisma da aridez. Esse tipo de discussão nos faz pensar em uma das obras mais
interessantes de Cícero, os Paradoxa Stoicorum. Aqui a posição do autor parece mais nuançada. Logo no
início do texto, ele louva a capacidade de Catão, em discursos públicos, de tomar argumentos da árida
filosofia estóica e torná-los acessíveis ao público presente nas assembléias. Como sabemos, é esse o
sentido do exercício a que se aplica Cícero nos Paradoxa. Ele julga inclusive que a tarefa seria mais fácil
se pretendesse tratar de temas da filosofia acadêmica, à qual se filiam ele próprio e Bruto, a quem a obra é
dedicada; isso “uma vez que nós”, diz ele, “mais nos servimos de uma filosofia que engendra um discurso
copioso, e na qual se dizem coisas que não destoam muito da opinião popular. Já Catão, completo estóico,
em minha opinião, não só defende um pensamento que não se faz absolutamente aprovar pelo povo, como
pertence a uma escola que não busca as flores do discurso e nem torna mais ampla a argumentação; por

462
meio de interrogações diminutas, que são como que ferrões, ele realiza o que propôs / quia nos ea
philosophia plus utimur quae peperit dicendi copiam, et in qua dicuntur ea quae non multum discrepant
ab opinione populari. Cato autem, perfectus mea sententia Stoicus, et ea sentit, quae non sane probantur
in uulgus, et in ea est haeresi, quae nullum sequitur florem orationis neque dilatat argumentum; minutis
interrogatiunculis, quasi punctis, quod proposuit efficit (Paradoxa Stoicorum, prooemim, 2)” Desse
modo, poderíamos propor que a personagem de Cícero julga adequado o modo de se exprimir de seu
interlocutor, por ser esse o modo utilizado pelos estóicos, dos quais Catão é um representante perfeito,
quando expõem sua doutrina. A personagem deseja uma exposição da doutrina estóica que siga
estritamente o método estóico, não apenas do que diz respeito à ordenação lógica, mas também no que se
refere à expressão verbal. Só assim sua crítica será possível no livro IV.
VI, 20 Dado que nos afastamos: O verbo discessimus refere-se à digressão sobre a adequação entre
matéria e expressão. A discussão é retomada do ponto em que foi interrompida, isto é, quando se falava
dos principia naturalia. Note-se a ordenação lógica que busca Catão na exposição do sistema estóico.
Interrompeu-se a discussão com uma digressão: a exposição é retomada, no entanto, e o que se segue é
decorrência lógica (congruere) do que já fora exposto.
Divisão primordial: prima no sentido temporal e lógico (cf. Wright, op. cit. p, 129-130). Ela decorre
do princípio básico de autopreservação. Veremos mais adiante que é nela que, na moral do homem adulto,
estará fundamentada a diferença entre aquilo que não é nem bom nem mau.
Estimável ... não-estimável: A construção do verdadeiro e único bem moral segue etapas bem
precisas. Por enquanto, não se trata ainda do honestum, a única coisa que tem um valor absoluto. Nesta
passagem a questão gira em torno das coisas que têm um valor relativo e que, no primário estágio da vida,
que é ainda irracional, dirigem os nossos impulsos. Esse valor é atribuído às coisas a partir da divisão,
fundamental, provocada pelo princípio de autopreservação. Os estóicos diziam que possuíam valor
(aestimabilia na tradução ciceroniana, ajxivan e[conta em grego) aquelas coisas que se ligam diretamente à
manutenção da existência e da constituição natural do ser vivo ou aquilo que concorre à produção de
coisas que mantenham a vida e o estado natural do ser. Tais coisas, tendo importância para a preservação
do ser, são objetos de sua escolha, ainda que não sejam o bem em si. O bem é expetendum propter se
(digno de ser buscado por causa de si mesmo); elas são propter se sumenda (dignas de serem acolhidas
por causa de si mesmas). Por outro lado, há coisas que são objeto de uma escolha negativa, isto é, que são
rejeitadas (reicienda) porque, ainda que não sejam o mal em si (que é fugiendum, “deve ser evitado”),
põem em risco a preservação do indivíduo ou concorrem para a produção de coisas que coloquem em
risco a preservação do indivíduo. Essas os estóicos diziam que possuíam um valor negativo
(inaestimabile, na expressão da personagem, ajpaxivan e[conta em grego, cf. Rubrichi, ad locum). Haveria
ainda coisas sem valor (os neutra de 50-54) frente à nossa escolha. Daí decorre uma dificuldade de

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tradução, para o português, para o termo inaestimabile. Não seria o ‘inestimável’ que é aquilo a que não se
atribui valor, ou aquilo cujo valor não pode ser estimado, mas antes o “desestimável”, se a palavra
existisse e indicasse o que as pessoas desestimam. De modo mais comedido, preferimos dizer “não-
estimável”. Uma solução menos ousada seria traduzir o par aestimabile/ inaestimabile por “valorizado” e
“desvalorizado”. Entretanto, dada a estranheza da terminologia estóica, assinalada pelo próprio autor,
somos tentados a manter uma expressão menos usual.
As coisas primeiras: initia é uma alternativa para principia naturae, expressão que, como vimos,
refere-se à prwvth oJrmhv.
O primeiro dever: na teoria estóica, o kaqh'kon é a ação apropriada. Algumas traduções são
propostas para o conceito, como “obrigação” e “função apropriada” (cf. Wrigth, op. cit. p. 130). Trata-se
de um conceito-chave para o estoicismo, cujo sentido será discutido mais adiante, na seção 58. Nossa
opção por “dever” decorre da escolha ciceroniana, que trata o conceito grego, complicado, por um termo
mais acessível em latim. É, ademais, a tradução mais corrente do termo latino officium, com que Cícero
trata o conceito grego. Note-se, entretanto, que, quando da composição de sua célebre obra sobre o
problema, o De officiis, o próprio Cícero ainda discutia com seus próximos a respeito da melhor opção de
tradução: “Não tenho dúvida de que aquilo que os gregos chamam kaqh'kon, nós chamamos dever. Mas
por que tu tens dúvida de que o termo pudesse caber de modo excelente no que diz respeito à política?
Então nós não dizemos dever dos cônsules, dever do senado, dever do general? Convém de modo
excelente! Se não, apresenta algo melhor.” (Mihi non est dubium quin quod Graeci kaqh'kon, nos
'officium'. id autem quid dubitas quin etiam in rem publicam praeclare caderet? nonne dicimus consulum
officium, senatus officium, imperatoris officium? praeclare convenit; aut da melius. Cf. Ad Atticum, XVI,
14, 3).
Escolha unida ao sentimento de dever: a passagem é obscura no texto latino. A expressão vaga cum
officio selectio não marca de modo claro a relação que se estabelece entre officium e selectio. Para tornar a
leitura menos difícil interpretamos officium aqui por “sentimento de dever”.
... em seguida, ela é contínua, por fim... Tentemos interpretar a passagem. O problema aqui é que,
de modo pouco preciso, Catão parece lidar com estágios diferentes do desenvolvimento humano. Ora, o
bem verdadeiro só pode ser compreendido a partir da ação que é realizada de modo deliberado, isto é,
racionalmente, em conformidade com a natureza. Portanto, a última frase do parágrafo deve contemplar ao
menos o início da idade racional do ser humano. Retomando desde o começo, no estágio em que a criança
não desenvolveu ainda a razão, a ação apropriada (o dever) corresponde à ação provocada pelo instinto de
preservação. Aos poucos, a criança passa a escolher, segundo o instinto, o que está de acordo com a
preservação e a rejeitar o que lhe é contrário. Essa escolha é condicionada pelo sentimento de dever, que é,
entretanto, resultado do impulso natural. Mas note-se que aqui a criança parece ter certa noção de seu

464
critério de escolha (cf. quae inuenta selectione et item reiectione). Em seguida, a escolha, unida ao
sentimento de dever, torna-se contínua e constante. A escolha assim feita marca os primórdios da vida
racional, pois que o homem passa a conseguir discernir, por meio da operação de acolher ou rejeitar,
aquilo que é o verdadeiro bem, isto é, agir de acordo com a natureza de modo racional.
VI, 21 Eis uma passagem fundamental da exposição, que explica a passagem da primeira tendência
ao verdadeiro e único bem. Em uma idade ainda não racional, a natureza impele o homem à
autopreservação, fazendo com que ele busque o que é salutar e rejeite o nocivo. Reconhecendo esse
critério, o homem mune-se de um sentimento de dever. Com o tempo, a busca pelo que é conforme a
natureza se torna contínua e constante (cf. 20). Em determinado momento, quando adquire a capacidade
de compreensão (e[nnoia ou notio), o homem é capaz de conceber que há uma ordenação entre as ações
que ele realiza de maneira apropriada. Quando percebe essa bela relação que existe entre as ações, ele
passa a julgá-la infinitamente mais valorosa do que aquilo que, até então, ele buscava seguindo a
tendência natural. Aqui, a escolha se torna completamente racional. O homem reconhece que se há valor
relativo no que concorre à sua preservação, a concórdia que existe entre tudo aquilo que ele escolhe e
realiza segundo o dever, isto é, de modo apropriado, possui um valor absoluto. A compreensão dessa
ordem e a conseqüente ação em concordância com ela é o verdadeiro e único bem para o homem. A
questão da terminologia não é simples aqui. Notemos que o autor novamente procede por meio de um
acúmulo de termos latinos. Para a noção de oJmologiva ele dá, em primeiro lugar, ordo. Em seguida,
oferece concordia, que vem, entretanto, nuançada por meio da expressão ut ita dicam. Isto é, na
concepção do nosso autor, é um termo que se acerca do sentido do original, mas que, por algum motivo,
não dá conta de seu sentido preciso, ou, talvez, esteja aqui deslocado de seu valor mais próprio em latim.
Por fim, ele chega a conuenientia, tradução que a personagem propõe, mesmo que com alguma hesitação
(si placet). Devemos dizer que o termo grego tem uma história importante em textos filosóficos. Muito
antes do desenvolvimento do estoicismo, o termo aparece em diálogos de Platão. Cf. o Fedro 237b, em
que se usa o verbo correspondente a homologia para tratar do acordo entre os interlocutores em torno do
assunto de discussão. Cf. ainda o Górgias, 457c-d, em que a idéia reaparece ainda que sem uso do termo.
A discussão sobre o termo já apareceu em nossas notas ao livro II (cf. nota à seção 4).
VI, 22 Mas, uma vez que aquilo que eu denominei dever... Passagem complicada da exposição de
Catão. O trecho necesse est ea ad haec referri, ut recte dici possit omnia officia eo referri é pouco claro e
soa um tanto repetitivo. Tentemos interpretar: o dever é a ação apropriada, mas não num sentido
estritamente moral. A moralidade só existe no homem racional, consciente da ordenação que existe entre
as coisas. A ação apropriada determinada pela razão que é capaz de conceber a harmonia entre todas as
coisas é o officium perfectum, que será tratado mais adiante. Por outro lado, pode-se falar de ação
apropriada, como vimos, mesmo entre as crianças, que a realizam mesmo sem consciência da harmonia

465
entre as coisas. A criança realiza a ação apropriada (que, no sábio, será honesta ou moral, porque será
consciente e deliberada) graças ao impulso que recebe da natureza, pelo qual ela busca o que é salutar e
repele o que é prejudicial. É assim que devemos entender que o dever tenha como ponto de partida a
primeira tendência e que ele nos conduza a acolher o que é primeiro segundo a natureza, isto é, tudo o que
diz respeito à autopreservação. Entretanto, acolher tais coisas não é o sumo bem do homem que, uma vez
que é, por natureza, racional, só alcança o sumo bem quando toma racionalmente decisões que impliquem
ações conformes à natureza. Conhecendo a harmonia entre todas as coisas, o homem age, ele também, de
modo harmônico. É isso, enfim, o sumo bem: adequar-se racionalmente à natureza. Ocorre que também a
ação honrosa é conforme a natureza. Isso porque ela se desenvolve em um estágio maduro do homem, em
que a natureza é plenamente racional. A carta 121 de Sêneca contém uma bela exposição da maneira como
a natureza nos concilia a nós mesmos de modo diferente ao longo de nosso desenvolvimento.
Que ninguém estime que... haja dois bens últimos: A afirmação de Catão se relaciona com a crítica,
feita pela personagem de Cícero, de que entre a doutrina estóica e a peripatética houvesse apenas diferença
terminológica. O patrono do estoicismo esforça-se (e para isso vai se servir de diversos símiles) por
explicar que as coisas que buscamos por causa da primeira tendência não são o bem em si, ainda que
sejam coisas preferíveis.
O bem último é: Deve-se subentender esta expressão, de acordo com a leitura de Rubrichi (ad
locum).
Pois assim como se alguém tiver o propósito de com uma haste ou com uma seta atingir um alvo:
Note-se que quasi marca a estranheza da expressão técnica seligendum, que é aplicada, sem
correspondência completa, ao símile do arqueiro. Na Ética a Nicômaco (1094a24), Aristóteles explica o
télos por meio do mesmo símile. Para o estagirita, atingir a meta é, de fato, o fim (cf. Wright, op. cit. p.
133). O argumento estóico introduz uma sutileza. Mais importante do que atingir o alvo é proceder de
modo adequado ao mirar, isto é, mirar bem, realizar os movimentos de acordo com a técnica, é o que deve
ser buscado por si mesmo; é isso o essencial. Atingir o alvo, ainda que seja preferível a errar, não é o
fundamental. O símile é bastante pertinente, pois que na imagem do arqueiro que mira o alvo nós podemos
reconhecer a concentração e o controle constantes que deve possuir o sábio estóico na busca da ação reta.
O controle do arqueiro é assim correspondente à harmonia psíquica do sábio, isto é, à virtude (cf. Wright,
op. cit. p. 113). Na esfera da vida, as coisas a que nos dirige a tendência primeira são como o alvo
almejado pelo arqueiro, elas dirigem a nossa ação, mas não são desejáveis por si mesmas. Elas têm valor
com relação ao bem, mas este se encontra, de fato, no modo como agimos quando tentamos alcançá-las.
VII, 23 Aquele que foi recomendado a alguém... Para explicar o fato de que, na idade madura, a
sabedoria se torne mais valiosa para o homem do que a tendência primeira, a personagem se serve do
símile da recomendação. A comparação recoloca a idéia de commendatio (que, como vimos, fora o termo

466
utilizado pela personagem para tratar da oijkeivwsi") em seu campo semântico mais próprio. A idéia do
símile é a de que aquele que é introduzido, por recomendação de um amigo, digamos, a uma terceira
pessoa, muitas vezes passa a dar mais valor a essa terceira pessoa, a quem, afinal, ele deve responder, do
que à primeira, que o recomendou. Ora, o desenvolvimento da razão humana é decorrência do processo de
adaptação do homem a si mesmo (a commendatio). Nesse processo, o homem tende à idade racional.
Assim, a sabedoria, que é o estágio da razão em que o homem é capaz de conceber a harmonia entre todas
as coisas, resulta da oijkeivwsi". Quando o homem atinge a sabedoria, entretanto, ele a reconhece como
mais valiosa do que o princípio diretor da commendatio, isto é, a autopreservação. Note-se que o bem, a
reta ação, e a sabedoria, são encarados como aspectos diferentes de uma mesma coisa: a conuenientia.
Da mesma forma a tendência da alma... Recordemos que, como parte das coisas primeiras segundo
a natureza, Catão já contava uma certa percepção que a criança tem de si mesma. Além disso, falou-se que
também o conhecimento se encontra entre os impulsos iniciais. Ora, aqui o expositor volta a falar
especificamente desses impulsos anímicos, por meio da expressão appetitio animi. A oijkeivwsi" humana
faz com que o homem se torne aquilo que ele é de fato em sua idade madura e pelo que ele se distingue de
todos os outros seres: um animal racional. Alguns, os sábios, desenvolvem essa característica de modo a
compreenderem plenamente o funcionamento harmônico do mundo e a ele se ajustarem completamente.
Esses, atingem a ratio perfecta.
VII, 24 Pois, assim como é dada para o histrião... Outro símile. A comparação da ação do homem
na vida à de um ator ou de um dançarino numa performance artística é muito fecunda na teoria estóica.
Por enquanto, nós a vemos em apenas um aspecto. Assim como, numa peça de teatro, cabe a cada ator
desempenhar uma ação diferente, dada pelo autor do texto dramático, na vida, a natureza, autora do
enredo da existência, confere a cada ser uma maneira específica de atuar. Ao homem, cabe a atuação
racional, visto que lhe foi dado esse papel. Mais importante ainda, exige-se do ator, assim como a natureza
exige do homem, que ele não aja de modo caótico, ou segundo sua própria vontade, mas de uma maneira
determinada, isto é, que ele se submeta e ajuste a sua atuação à ordenação que foi criada pelo autor do
texto dramático. O homem deve agir de modo a tornar apropriada a personagem que lhe foi dada pela
natureza. Nós vimos, de fato, no primeiro capítulo de nosso estudo, de que maneira termos como
conueniens, aptus etc. são importantes na teoria da composição ficcional que pudemos extrair de alguns
textos de Cícero. Vale dizer que o uso, no discurso moral, da comparação entre a ética e formas diversas
de arte nos remete ao pensamento de Platão e a toda discussão da ética como conhecimento técnico e da
virtude como algo que pode, assim como outras técnicas, ser ensinado.
Nem à navegação ou à medicina julgamos ser semelhante a sabedoria... Dessa forma, as artes do
ator e do dançarino são exemplos especiais no estoicismo. Notemos que as duas artes citadas como
modelos pouco aplicáveis à sabedoria são quase que idênticas às artes utilizadas por Aristóteles, no início

467
da Ética a Nicomaco, no momento em que ele estabelece o conceito de tevlo" (1094a18: Aristóteles fala
da medicina e da construção naval). Mas à sabedoria estóica cabem melhor outros exemplos, pois, ao
passo que saberes técnicos como os da navegação ou da medicina têm o resultado da realização da arte
como algo externo à própria operação técnica (isto é, no caso da navegação, a viagem segura até o destino;
no caso da medicina, a cura do doente), a arte do ator e a do dançarino têm o fim na própria realização da
arte, isto é, na dança e na performance do ator.
E, todavia, mesmo entre essas artes e a sabedoria há ainda alguma diferença... Como vemos, a
comparação é, ainda nesse caso, imperfeita. O período não é de fácil compreensão. Para Wright (op. cit.
pp. 135-136), as diferenças consistem em que, na arte do ator, a performance não é contínua como na vida,
pois que o espetáculo sempre termina e o ator, em outro dia, desempenhará outro papel. Além disso, as
artes dramáticas pressupõem elementos externos, tais como o autor/diretor de cena, a audiência, o
acompanhamento musical, etc. E, talvez mais importante, na atuação do ator em determinado gênero, não
estão incluídos todos os gêneros. Assim, numa comédia, é provável que não se exija de um ator a
habilidade da atuação trágica. A sabedoria, no entanto, é completa, auto-suficiente, está voltada sobre si
mesmo. Isto é, ela não visa à audiência como algo essencial, ou a qualquer coisa que lhe seja externa (cf.
Goldschmidt, op. cit. p. 130), assim como o arqueiro visava o alvo apenas como algo preferível. Ela
contém, além do mais, todas as outras formas (numeros, assim compreendemos) da virtude, que são
desdobramentos da sabedoria em contextos específicos. Quanto à terminologia, cabe observar que recta
facta traduz katorqwvmata, expressão também vertida por perfecta officia. Trata-se da ação que é
conforme à natureza e que é realizada pela razão plenamente consciente dessa conformidade (cf. Wrigth,
op. cit. pp. 132 e 135).
VII, 25 E é tal que julga... Há aqui um problema no texto. A oração introduzida por ut não parece
bem ajustada na sintaxe do período. Seguimos Rubrichi, que a interpreta como consecutiva e subentende
algo como ita que precedesse ut (cf. Rubrichi, ad locum). Quanto ao conteúdo, volta-se a se falar da
unidade da virtude. A discussão já aparecia em Platão (cf. Protágoras, 329c-334c). No estoicismo, ela
ganha novos contornos, que dependem da concepção que essa escola faz da natureza da alma. Sendo a
virtude uma disposição harmônica da alma (uma diavqesi", segundo Rubrichi, ad locum), que, por sua vez,
é una, a virtude era, para os estóicos, uma só, ainda que tomasse diversos aspectos. Aqui são mencionadas
duas das virtudes cardeais platônicas: a sabedoria e a justiça. A grandeza de alma pode ser ainda associada
à coragem. A última qualidade, porém, parece ser um acréscimo estóico. Consiste na capacidade de
desprezar aquilo que é pouco importante. Cabe ainda notar que, para alguns editores (cf. Wright, op. cit. p.
136), a seção 32, na verdade, deveria ser deslocada para este trecho e consistiria na seqüência do texto,
logo após a expressão ceteris artibus non contigit.

468
VII, 26 Uma vez que o termo extremo seja viver em concordância e em conformidade com a
natureza. Catão trata da definição de tevlo" sem atribuí-la a qualquer expoente da escola do Pórtico. No
livro IV, a partir da seção 14, a personagem de Cícero discutirá a definição de Zenão comparando-a ao
pensamento de Pólemon.
Todos os sábios vivem sempre de modo ditoso, auto-suficiente, bem-afortunado... Na doutrina
estóica, portanto, a felicidade não é a meta do sábio, mas a conseqüência necessária do tipo de vida que
ele leva. Acreditamos que absolute diz respeito ao fato de que, uma vez que a sabedoria está voltada sobre
si mesma, o sábio está isento da preocupação com qualquer coisa que lhe seja externa. Sua felicidade
resulta da compreensão que tem da natureza e da ordenação que existe entre as coisas. Essa compreensão,
a sabedoria, faz com que ele aja de modo apropriado. Assim, sua felicidade não depende de nada que seja
externo, pelo que ele é afortunado, pois que a fortuna não lhe toca.
Pode ser profusa e copiosamente... ampliado e ornado ao modo retórico... Podemos dizer que Catão
apresenta um tratamento mais profuso do sábio estóico na seção 75. A precisão, a aridez e a sofisticação
técnica da expressão dos estóicos, por outro lado, já foram mencionadas anteriormente, como nas seções 3
e 19.
VIII, 27 Eles chegam a uma conclusão argumentando assim: Cf. Acad. II, 26, em que o grego
ajpovdeixi" é vertido pela expressão argumenti conclusio e é assim definido: ratio, quae ex rebus perceptis
ad id, quod non perciebatur, adducit, isto é: “um raciocínio que, partindo de coisas conhecidas, chega
àquilo que não era conhecido”. Nesta passagem da exposição de Catão, o silogismo é apresentado como a
demonstração da afirmação feita acima: id est ut quod honestum sit id solum bonum iudicemus.
Não parece essa uma conclusão satisfatória? Certamente... O silogismo apresentado a seguir é
perfeito do ponto de vista formal. Catão reconhece isso, pois julga que a conclusão é satisfatória uma vez
que ela se produz a partir das premissas. Mas, como vemos em Tusc. V, 49, a validade da conclusão
depende da verdade das premissas. Assim, Catão passa a julgar as premissas individualmente. Para o
expositor, a premissa maior, quod est bonum, omne laudabile est poderia não ser aceita. De fato, a
personagem de Cícero combaterá a veracidade dessa premissa em IV, 48-50, passagem em que critica o
procedimento vicioso pelo qual Catão pretende tornar aceitável a premissa. Trata-se de um sorites, uma
cadeia de silogismos em que a conclusão de um serve como premissa para o seguinte. Todo o raciocínio se
faz de modo rápido, por conta da omissão de membros do silogismo. Interpõem-se entre os termos da
primeira premissa maior (bonum e laudabile) quatro novos termos: expetendum, placens, diligendum e
probandum. Tal tipo de procedimento busca tornar difícil, ao opositor, a percepção de um passo
inaceitável. Uma argumentação bastante semelhante a essa se encontra em um fragmento atribuído a
Crisipo (cf. Stoicorum Veterum Fragmenta, III, fr. 29).

469
VIII, 28 Quem é que pode se orgulhar... Embora a idéia de gloria pressuponha a atribuição de valor
a alguém por parte de outras pessoas, o sentido do verbo glorior nesta passagem relaciona-se com o
reconhecimento íntimo que tem o indivíduo do seu mérito e que ele pode proclamar diante dos outros (cf.
Wrigth, op. cit. p. 138).
Uma vida desgraçada... uma vida não feliz... uma vida feliz... Se seguirmos a argumentação, não
poderemos confundir (como faz Wright, op. cit. p. 138) a misera uita com a non beata uita. Ainda que, no
pensamento estóico, as duas idéias se confundam, nesta passagem, para fins de argumentação, Catão
parece considerar a primeira como uma vida completamente desgraçada, e a segunda, uma vida que, ainda
que não completamente infeliz, não seria, entretanto feliz (Cf. Rubrichi, ad locum). Apenas da vida feliz,
em sua opinião, alguém pode se orgulhar. A distinção se faz importante, pois, para o sincretismo de
Antíoco, tratado nos livros IV e V, há diferentes de graus de felicidade.
‘Poder se orgulhar’, por assim dizer: O substantivo gloriatio é de autoria ciceroniana (cf. Rubrichi,
ad locum) e ut ita dicam marca a estranheza da expressão. Como julgamos que “orgulho” em português
não causaria estranhamento, decidimo-nos por uma tradução que de alguma forma recuperasse esse dado
do texto.
Dessa forma, dá-se que a vida feliz seja uma vida honrosa. Este parágrafo comporta, ainda que de
modo menos explícito que o anterior, um outro silogismo. Aqui, a premissa maior seria: “apenas a vida
feliz é digna de orgulho”. A menor: “a vida honesta é digna de orgulho”. Donde resulta que: “apenas a
vida honesta é uma vida feliz”.
VIII, 29 ...homem corajoso, pode jamais se produzir, caso não estabeleçamos que a dor não é um
mal? Ora, essa crítica se dirige aos epicureus e aos cirenaicos, que julgam ser a dor o sumo mal, e a
Hierônimo, que considera a ausência de dor o sumo bem. Ela é válida ainda contra todos os filósofos que
consideram a dor como um mal, ainda que não o sumo mal. Livram-se dela, portanto, apenas Aríston,
Pirro e os estóicos. À relação entre a dor e a vida feliz, Cícero dedica a segunda de suas Discussões
Tusculanas.
Da mesma forma que aquele que conta a morte entre os males... O argumento é engenhoso: se a
morte e a dor forem consideradas como males, será impossível que alguém consiga desprezá-las e não
temê-las. Com esse temor, não pode haver jamais um homem corajoso. Mas, na verdade, temos diversos
exemplos de homens corajosos que desprezaram a dor e a morte; logo, dor e morte não podem ser
considerados males.
Toma-as por nada: referência à teoria dos indiferentes, que será mais desenvolvida a seguir e que,
na verdade, deu ensejo a toda esta discussão entre as personagens de Cícero e Catão. Para os estóicos, tudo
aquilo que não é belo ou torpe, é indiferente.

470
E esse homem, elevado e superior, magnânimo... No início de sua exposição, Catão se ocupa em
compreender o desenvolvimento do ser vivo, mais especificamente do ser humano, desde a tenra infância,
no que diz respeito tanto ao corpo quanto à mente, quando não há nenhum impedimento para que a vida
transcorra de acordo com a natureza. Nas seções 28 e 29, entretanto, o objeto de pesquisa deslocou-se para
a perfeição no desenvolvimento humano, representada na figura do sábio estóico. A argumentação reúne
idéias que remontam ao pensamento socrático com elementos que advêm da tradição romana. A idéia de
que nenhum mal recai sobre o homem bom (ou sábio, diria o pensamento estóico) é uma afirmação que
vemos atribuída a Sócrates na passagem final de sua defesa no tribunal ateniense (cf. Platão, Apologia,
41c).
IX, 30 A esses todos... Catão acaba de expor, de modo bastante sucinto, algumas idéias que foram
avançadas pela personagem de Cícero no diálogo anterior (do qual, evidentemente, Catão não fizera
parte). Na passagem em questão, II, 35, são enunciados nomes de filósofos aos quais são atribuídos sumos
bens que não contam com a virtude: um grupo é formado por Aristipo r Epicuro. De outra parte, há
Hierônimo. Para esses filósofos, o sumo bem está ou no prazer (os dois primeiros), ou na ausência de dor.
Há ainda Carnéades, cujo sumo bem consistiria nas primeiras coisas segundo a natureza (cf. II, 38).
Aqueles que acrescentaram à virtude alguma outra coisa são: Pólemon, que acrescentou os prima
naturalia; Califón, que acolheu o prazer; e Diodoro, que levou em conta a ausência de dor (cf. II, 34).
Essa classificação das diversas teorias acerca do sumo bem é atribuída a Carnéades e volta a ser tratada no
terceiro diálogo que compõe a obra: livro V (16-23). À posição de Pólemon, que representa, na ótica
ciceroniana, o pensamento da Antiga Academia e coincide com a doutrina peripatética, será dado maior
tratamento na seção 41. É, de fato, o ponto central sobre o qual deve recair a crítica de Catão, uma vez que
ele pretende mostrar que o pensamento dos estóicos é substancialmente diferente do pensamento que
Cícero, seguindo Antíoco, pretende atribuir aos antigos acadêmicos e ao Liceu.
Não importa de que modo: a expressão cuicuimodi não se refere a uma filiação filosófica (cf.
Marinone, ad locum), mas ao fato de que aqueles que consideraram que o sumo bem é do âmbito da alma
trataram do assunto com fundamentação e acuro diferente. Mesmo assim, pensa Catão, são superiores aos
que levaram em conta, na concepção de sumo bem, aquilo que é corporal ou externo.
IX, 31 Mas são completamente disparatados... Entre os primeiros está Erilo (cf. II, 43; V, 73 e DL,
VII, 165); entre os segundos, Aríston e Pirro (cf. II, 43; III, 12; V, 20-23).
Como certos acadêmicos... Entre esses, devem-se contar Arcésilas, Carnéades (veja-se nota a II, 38
em que discutimos a atribuição de um finis a Carnéades) e Fílon, que foi mestre de Cícero. Vale a pena
recordar a importância do conceito de uisum ou uisio nas epistemologias estóica e neo-acadêmica,
conforme discutimos no nosso estudo.

471
Segue-se: estranho o uso do subjuntivo tollatur e a ausência de uma conjunção completiva. Há uma
correção, proposta por Madvig, que consiste no acréscimo de sequi ut. Seguimos sua leitura.
A supressão de toda a prudência: pois a função da prudentia, a sabedoria prática, é justamente guiar
nossas escolhas no dia-a-dia, de modo a que nossas ações sejam apropriadas (isto é, sejam officia), uma
vez que estejam de acordo com a natureza. Se não há nenhuma diferença entre as coisas, não há uso para a
prudência.
Resta que o sumo bem seja... Este parágrafo resume as idéias que foram até aqui avançadas sobre o
sumo bem estóico. Ele consiste em uma forma de conhecimento. Consiste em reconhecer o funcionamento
da natureza. Esse conhecimento, aplicado à escolha entre as coisas que estão em conformidade com a
natureza, é a prudentia. É sua aplicação que coloca a vida do homem em harmonia com a ordem que rege
toda a natureza. Podemos confrontar essa fórmula àquela que é consignada a Zenão em Acad. II, 131:
honeste autem uiuere, quod ducatur a conciliatione naturae, Zeno statuit finem esse bonorum, qui
inuentor et princeps Stoicorum fuit, isto é: “viver de modo honroso, por outro lado, algo que seria
conduzido por uma conciliação da natureza, estabeleceu que é o fim dos bens Zenão, ele que foi o
fundador e os primeiro dos estóicos”. Recordemos ainda que, na teoria de Epicuro, o conhecimento da
natureza também era indispensável, uma vez que era por meio dele que o homem se livrava dos temores
da morte e dos deuses e, além disso, que ele reconhecia quais dentre os seus desejos eram naturais e/ou
necessários. Por outro lado, como aponta Wrigth (op. cit. p. 143), o sumo bem estóico retoma um
princípio atribuído a Sócrates desde a tradição platônica, a de que a boa ação é resultado de um
conhecimento do que seja bom e mal. Para aquele que age mal, dessa forma, caberia antes a educação do
que a punição.
IX, 32 Alguns editores, como Wrigth (op. cit), por conta da mudança brusca de assunto nesta seção
32, deslocam-na para o fim da seção 25, após a frase quod idem ceteris artibus non contigit. Quanto a nós,
reconhecemos a pertinência da alteração, mas preferimos manter a ordem apresentada pelos manuscritos,
ainda que apresentando a informação a respeito dessa possível falha da transmissão da obra. Note-se que
já Madvig (em nota ad locum) reconhecia um problema de continuidade nesta passagem.
O que os gregos chamam ejpigennhmatikovn: podemos de fato reconhecer aqui uma seqüência do
que era discutido na seção 25; ejpigennhmatikovn é um termo técnico da medicina (cf. Wright, op. cit. p.
136) que serve para designar aquilo que se refere ao pós-parto. Utilizado pelos estóicos com relação às
artes (artifciose), trata daquilo que é resultado final da operação realizada pelo artista ou artesão. Para as
artes que vinham sendo tratadas na seção 25, cujos fins eram externos, o resultado final é posterior e vem
como conseqüência da realização adequada da técnica.
Quando, porém, dizemos ‘sabiamente’ com relação a algo... Não há para a sabedoria, a arte da vida,
divisões cronológicas. Aquilo que se faz sabiamente, não é o resultado exterior e posterior de uma

472
operação realizada pelo homem. Na sabedoria, todas as partes são simultâneas. Para que uma ação seja
correta, portanto, não é suficiente que sua realização seja correta, mas que desde o seu primeiro impulso o
agente esteja em harmonia com a ordem da natureza. Ainda que nenhuma ação venha a ser realizada, a
mera disposição desarmônica é já uma falta. Citamos Wrigth (op. cit. p. 136): “ações viciosas são
erupções de uma alma consistentemente desordenada, e ações direitas são manifestações externas de uma
harmonia psicológica interna”. Esse autor nota ainda que as faltas mencionadas por Catão são os três
crimes mais hediondos segundo a concepção antiga: eles vão contra os fundamentos da cidade, da família
e da religião.
X, 33 Pequenas diferenças: a maior parte do editores interpreta a expressão paulum oppido como
“muitíssimo pouco” (cf. Rubrichi, Martha, Marinone etc.). Wrigth traduz de modo mais livre: “differ a
little in precise detail”, o que, em nossa opinião, não se pode ler na expressão. O sentido geral de sua
oração, contudo, parece-nos aceitável, e julgamos que podemos chegar até ele, respeitando a letra do
texto, se tomarmos tamen como concessivo.
Diógenes... definiu o bem como o que é absoluto por natureza. Essa definição é atribuída ao chefe
da escola entre 170 e 150 a.C., aproximadamente: Diógenes da Babilônia. Uma fórmula um pouco
diferente é dada por Diógenes Laércio, que não indica precisamente qual seja seu autor (cf. DL., VII, 94):
to; tevleion kata; fuvsin logikou' wJ" logikou', isto é: “o que é perfeito segundo a natureza para o ser
racional enquanto racional”. A idéia contida em to; tevleion vem sendo tratada no texto ciceroniano por
meio de diversas expressões, como expletum, perfectum e, como neste caso, absolutum.
Ele disse que o que fosse favorável... Esta asserção tem relação direta com duas passagens que
encontramos em Diógenes Laércio. Em uma delas (VII, 104), afirma-se que
wjfelei'n dev ejsti kinei'n h] i[scei'n kat j ajrethvn (...), isto é, “ser favorável, por um lado, é colocar em
movimento ou manter em um estado de acordo com a virtude (...)”. Já em VII, 94, o biógrafo relaciona o
bem ao favorável, dizendo que o primeiro é fonte do segundo.
Se o conhecimento se dá ou por experiência... Para os estóicos, a base inicial do conhecimento é a
experiência (cf. Rubrichi, ad locum, que parece tirar essa conclusão a partir da exposição que encontramos
no Aduersus mathematicos de Sexto Empírico). É por meio dos sentidos, inicialmente, que nossa alma é
marcada por impressões (tupwvsei") que nos chegam das coisas. Essas marcas são o fundamento de todos
os processos pelos quais nós adquirimos algum conhecimento. Ele pode se dar, em primeiro lugar,
inteiramente por meio da impressão sensível (kata; perivptwsin), processo que Catão designa pelo termo
usu (por meio da experiência). É assim que chegamos a conhecer muitas das coisas que existem no mundo
exterior. No entanto, esse primeiro tipo de conhecimento, construído a partir da impressão sensível, pode
sofrer, em nossa alma, uma alteração por meio de três outros processos: ou por meio da semelhança, ou
por meio da composição, ou por meio da analogia. (cf. passagem de Sexto Empírico, em Aduersus

473
mathematicos, III, 40: kai; tauvthn [scil.
metavbasin] trisshvn: h] ga;r oJmoiwtikw'" h] episunqetikw'" h] ajnalogistikw'"). Seguindo a ordem da
exposição que se encontra no texto ciceroniano, explicamos cada um deles: por meio da composição
(coniunctio), podemos formar a noção de centauro, que é a síntese das noções de cavalo e de homem, que
tínhamos por experiência. Por semelhança (similitudo), podemos formar a noção de Ciclope, por exemplo,
a que chegamos, por aumento, a partir da noção de homem; por diminuição, podemos construir a noção de
pigmeu (tomado como ser fantástico). Há ainda a semelhança que se dá por comparação entre dois
elementos parecidos, como ao imaginarmos alguém a partir de um parente seu ou de uma representação
artística. Para tratar do último processo de formação de uma notio, o autor romano se serve de um
circunlóquio bastante elucidativo: a analogia é dita collatio rationis, isto é, uma comparação entre
relações. Um exemplo de uma operação desse tipo é “o pastor está para o rebanho, como o rei está para o
povo”. O exemplo utilizado por Catão na seqüência de sua exposição ilustra esse procedimento, que é o
que nos permite formar a idéia de “bem”: assim como o mel está para a doçura, assim está a virtude para o
bem.
Foi por esse quarto modo... que se produziu a noção de bem. Difícil manter a variação do texto
ciceroniano e, ao mesmo tempo, a relação entre as raízes. O autor se serve de notio e notitia como
sinônimos. Poderíamos pensar que notio se refira à noção adquirida pela experiência apenas e notitia, por
outro lado, ao resultado da alteração operada por nossa alma. Mas, no período seguinte, o texto traz
notionem boni.
X, 34 É assim como o mel... Esta passagem pode trazer problemas de compreensão. De acordo com
a interpretação que apresentamos acima, julgamos que o expositor trata, por exclusão, do processo de
aquisição da noção de bem. Accessione parece aludir à coniunctio; crescendo e ceteris comparando
referem-se aos subgêneros da similitudo. Por fim, dá-se o raciocínio por analogia. Só assim se pode chegar
ao bem, uma vez que ele está sozinho em seu gênero, dado que é absoluto. Não podemos compreendê-lo
por meio do acúmulo entres diversos bens menores; tampouco podemos entendê-lo a partir da comparação
com outros tipos de bem. O bem é um só. Assim, só podemos acessá-lo por meio de um raciocínio por
analogia. Nós percebemos o bem assim como percebemos que o mel é doce. Devemos recordar que, para
os antigos, que não conheciam o açúcar, o mel podia ser encarado como a própria essência da doçura. Para
perceber que o mel é doce, não há necessidade de comparar o mel com outros alimentos doces. A sua
doçura própria é suficiente. Do mesmo modo o bem: é por uma característica sua própria (ui sua,
poderíamos dizer: “por sua essência”) que nós o percebemos. De qualquer modo, não podemos deixar de
notar que o uso de sentimus, depois de uma distinção feita entre o processo empírico de aquisição de
conhecimento e as operações mentais, torna pouco precisa a exposição.

474
Pois uma vez que a estima (que se denomina ajxiva)... Completa-se o raciocínio: há duas formas de se
entender o valor, ou estima (aestimatio ou ajxiva). Trata-se na verdade de um conceito que serve
especialmente para o tratamento do que é indiferente, ou seja, daquilo que ganha valor pelo grau de
conformidade à natureza. O bem, por outro lado, tem valor absoluto: não é comparável a qualquer outra
coisa. O bem é sui generis. Àquilo que é indiferente, como a saúde e a doença, a riqueza e a pobreza,
aplica-se com maior proveito a teoria do valor, dado que, nesse caso, ele é relativo. Assim, a saúde é
preferível à doença, uma vez que possui mais valor, tendo como parâmetro aquilo a que nos impele
inicialmente a natureza. Desse modo, a riqueza material, por exemplo, pode aumentar e, com, isso, o valor
que lhe conferimos. É ainda assim um indiferente, pois, ao lado do bem e do mal, isto é, da virtude e do
vício, absolutos que são, ela não tem nenhum real valor.
X, 35 As quais os gregos chamam pavqh; eu poderia... chamar ‘doenças’... Esta interessante
reflexão a respeito da tradução de pavqo" nos indica o real valor do termo na teoria estóica. O termo
provém do jargão médico e em grego se refere à alteração do estado regular do corpo. Referido às
disfunções da alma, seu uso provavelmente remonta ao pensamento de Pitágoras (cf. Wright, op. cit. p.
146). Um desenvolvimento posterior (que deve ter sido influenciado pelo pitagorismo) pode ser visto no
Górgias de Platão (cf. 524e-525b). Nesse contexto, em que a filosofia encontra como sua contraparte a
medicina, o ofício do filósofo é tratar das almas dos homens que, quando más, acham-se, como na imagem
criada pelo mito final, marcadas pelas cicatrizes das injustiças cometidas. No estoicismo, tudo aquilo que
nós convencionamos chamar paixões, são disfunções de uma alma que não se encontra em conformidade
com a natureza. Na psicologia dessa escola, a alma, que é um sopro (pneu'ma), deve guardar uma tensão
adequada, em harmonia com a natureza. A virtude, no agente, consiste em uma disposição saudável de
seus movimentos internos que, se externados, dão origem à ação reta, como vimos anteriormente (seção
32). O autor romano reconhece a dificuldade, imposta pelo uso romano, de tratar o medo ou o desejo
excessivo como doenças, mas seu comentário oferece esse dado a seus leitores. De qualquer modo, vale
dizer que o uso aplicado às disposições viciosas da alma só se tornou corrente, mesmo em grego, graças à
comparação tradicional, tão bem expressa em Platão, entre moral e medicina.
As perturbações não se põem em movimento por nenhuma força da natureza. Essa afirmação parece
fazer referência a uma das definições de pavqo" dadas por Zenão (cf. Diógenes Laércio, VII, 110): “o
movimento irracional e não natural na alma, ou um impulso desmesurado”;
e[sti de; aujto; to; pavqo" kata; Zhvnwna hJ a[logo" kai; para; fuvsin yuch'" kivnhsi" h] oJrmh; ple
onavzousa. Recordemos que oJrmhv é o termo que na obra de Cícero vem vertido por appetitio ou appetitus
e que, pela relação com o verbo peto, nós traduzimos por “tendência”. Em outra obra, Cícero retoma a
definição de Zenão e a desenvolve: ita enim definit, ut perturbatio sit aversa <a> ratione contra naturam
animi commotio, vel brevius, ut perturbatio sit adpetitus vehementior, vehementior autem intellegatur is

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qui procul absit a naturae constantia; “de fato, ele define a perturbação de modo que ela seja uma
agitação da alma, extraviada da razão e contra a natureza, ou, de modo mais conciso, que ela seja uma
tendência demasiado violenta; ‘demasiado violenta’, por sua vez, deve-se entender aquela tendência que
esteja muito distante da harmonia da natureza” (Tusc. IV, 47).
São todas elas opiniões e juízos de pouca firmeza. Os quatro gêneros de paixões são considerados
como juízos equivocados, aplicados ao presente, ou voltados para o futuro, a respeito do que seja bom ou
mau (cf. Diógenes Laércio, VII, 111 e Wrigth, op. cit. pp. 146-147). Importante dirimir certa dificuldade
quanto à primeira: aegritudo traduz o grego luvph, que não é exatamente o sofrimento causado pela dor,
dado que esse, enquanto afecção, não pode ser evitado. Trata-se, sim, de um assentimento equivocado
com relação ao sofrimento físico ou mental, quando o homem julga que tal sofrimento é um mal em si.
Como subgênero dessa perturbação, acha-se ainda, dentre outras paixões, a comiseração (citada acima),
que é o sofrimento equivocado com relação ao suposto mal que sofre outrem. O medo é a expectação
equivocada daquilo que se julga ser um mal. Volta-se, portanto, para o futuro, assim como o desejo
desmesurado, que é a expectativa com relação a algo que julgamos, erroneamente, ser um bem. O prazer é
o julgamento equivocado a respeito de um suposto bem que está presente. Em De finibus II, 13 a
personagem de Cícero já definira o prazer nesses termos e o associara à idéia de laetitia, que, segundo
dizia, é o prazer experimentado pela alma. Vimos, em nota a passagens do livro II (13 e 14) que, no
pensamento estóico, essa alegria exultante e equivocada da alma é condenável. Ao sábio caberia uma sorte
de contentamento, que é um movimento plácido e coerente da alma, provocado pela razão (cf. Tusc. IV,
13). Trata-se de gaudium, que traduz o grego carav. Laetitia, por outro lado, parece estar em relação com
tevryi" (cf. D.L., VII, 114).
Delas o sábio sempre estará isento. O sábio, que tem o conhecimento do que seja o único e
verdadeiro bem, não corre o risco de sucumbir às perturbações da alma. O estoicismo, entretanto, não
defende uma exclusão total das paixões, mas antes uma submissão de algumas paixões, adequadas, ao
controle da razão. Assim, como vimos em nota anterior, há uma alegria racional que é adequada ao sábio:
carav, ou gaudium. Além disso, existe uma espécie de precaução, que é a contraparte adequada do medo, a
eujlavbeia, que é o cuidado que se tem com respeito aos verdadeiros males presentes. Há, por fim, a
bouvlhsi", uma espécie de desejo racional, que se volta para os bens futuros (cf. D.L., VII, 116). Ora, todas
essas “paixões” são, na verdade, aspectos da sabedoria!
XII, 36 Pois quem é que experimenta... A demonstração da máxima estóica ataca uma das posições
do epicurismo, que é uma das doutrinas que exclui a virtude de sua concepção do sumo bem. Para o
pensamento do Jardim, o homem evita as más ações porque teme o castigo. Mesmo que não consumado o
castigo, a possibilidade de ser punido tortura a alma do malfeitor. Ora, os estóicos pretendem provar que a

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ação reta (o honestum) é desejável por si mesmo porque, mesmo o malfeitor que se soubesse protegido de
qualquer possibilidade de ser apanhado, preferiria agir em conformidade com a justiça.
XII, 37 Ora, quem vive sob costumes tão agrestes... O conhecimento da natureza é essencial para
uma filosofia que defende que o sumo bem se encontra na vida racional em conformidade com a natureza.
O tema será mais amplamente desenvolvido na seção 73. Aqui, entretanto, a referência é ao conhecimento
da astronomia, que, sem dúvida alguma, é umas das ciências que possibilitam de modo mais evidente ao
homem a percepção da ordenação da natureza, à qual ele deve se adequar. Recordemos, de qualquer
forma, que se encontra no homem uma disposição mesmo para o conhecimento que não seja
imediatamente útil. Essa disposição, como vimos (cf. seção 18), é algo que possuímos desde a infância.
Mesmo assim, o conhecimento não é um bem em si mesmo (cf. seção 31). Cabe ainda dizer que, nesta
passagem, o louvor à ciência natural é especialmente voltado para os romanos, que a viam com certa
reserva. Ora, em grande parte de seu De re publica, Cícero tenta mostrar como o conhecimento das coisas
ocultas está próximo do conhecimento moral e político. Aqui, a física será colocada ao lado da história,
tipo de conhecimento aprovado tradicionalmente pelo mos maiorum.
Quem é que, conhecendo as ações, as palavras, as decisões... Evidentemente, o prazer de que se
fala aqui não tem nenhuma relação com o prazer corporal (cf. animo adficiatur uoluptate). A exposição de
Catão nos permite observar qual seja o prazer de que desfruta o sábio. Trata-se, neste caso, do prazer que
advém da contemplação das ações retas praticadas pelos homens do passado. Interessante notar como o
prazer racional do sábio estóico se reveste de sentimento nacional, na exposição do romano, com o uso
dos exempla históricos. Cabe dizer que alguns editores corrigem Maximorum por maiorum. Parece-nos
pouco provável uma coordenação alternativa disjuntiva entre maiorum e Africanorum. Quanto aos
Africanos, são os dois grandes generais envolvidos na guerra contra os africanos de Cartago, de que já se
falou no primeiro diálogo. O mais antigo (Cf. De finibus II, 56), bateu Aníbal em Zama (em 202 a.C.), o
mais jovem (cf. De finibus I, 7) invadiu e destruiu Cartago (em 146 a.C.). São os duo fulmina belli na
expressão de Virgílio (Eneida VI, 842), isto é, “os dois raios da guerra”. Segundo Woolf (ad locum), a
famíla dos Máximos produziu diversos homens ilustres. O mais famoso Quintus Fabius Maximus
Verrucosus Cunctator foi cônsul em 233 e 228. Morreu em 203 a.C. e esteve envolvido na contenção da
invasão de Aníbal à Itália. Por fim, observemos que Catão coloca lado a lado, como exemplos de virtude,
personagens históricos como seu antepassado, o antigo Catão, e o mais velho dos Cipiões, que, na
realidade, nutriram uma disputa política que resultou no exílio do último (cf. Wrigth, op. cit. pp. 149-150).
Não há dúvida de que Cícero oferece uma visão idealizada desse passado glorioso de Roma de que ele se
serve como exemplo do mos maiorum em alguns de seus diálogos, como no De re publica, que tem no
Cipião mais jovem seu personagem principal, ou no De senectute, que gira em torno de Catão, o censor.

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XI, 38 Em família honrada: note-se o uso do adjetivo honestus, a, um em seu sentido mais próprio,
relacionado a um elemento que é do âmbito social, a atribuição do honos. Não resta dúvida que por conta
de seu procedimento de tradução, o texto de Cícero aproxima de modo sensível o conceito estóico de
“beleza moral” de elementos bastante peculiares da cultura romana, relacionados a sua estrutura
aristocrática.
Não se ofende com a própria torpeza... Catão continua a desenvolver o argumento que apresentou
acima. Se, por um lado, mesmo o homem que age mal preferiria agir de modo correto, se pudesse assim
obter o objeto de seus desejos, o que dizer do homem de bom nascimento, educado de modo adequado?
Esse homem, que tem boa natureza e a quem a educação apenas desenvolveu o que a natureza lhe dera de
bom, sentirá uma repulsa natural por tudo aquilo que é mau.
... a fim de que os homens, depois de ganharem as trevas e se encontrarem sós... O argumento
continua tendo, como pano de fundo, a crítica à moral do Jardim. O homem que na escuridão e na solidão
se livra às maldades é a representação daquilo que permitiria o pensamento de Epicuro, para quem a
maldade está no resultado da ação, assim como na punição que pode tocar ao malfeitor. Devemos lembrar
que Epicuro também trata de uma punição que está dentro do sujeito, que é uma espécie de tortura interna
que ele experimenta quando comete ações vis. Mas mesmo essa aflição repousa na possibilidade de ser
apanhado ou na crença de um castigo no post mortem, ou seja, em última análise, ela se refere a algo que é
externo ao sujeito. De certo modo, esse tipo de discussão remonta ao pensamento platônico. O livro II da
República, por exemplo, traz o exemplo de Giges, antigo rei da Lídia e do célebre anel por meio do qual
ele podia se fazer invisível. Sócrates tenta mostrar por que, mesmo isento da possibilidade de qualquer
punição, o homem deve agir de maneira justa. Para os estóicos, a ação reta é uma conseqüência da ação da
natureza sobre os homens, que dela fazem parte. As leis humanas, nesse sentido, são formulações
imperfeitas das leis divinas, isto é, das leis que regem a natureza. No De legibus, por exemplo, a
personagem de Cícero, tomando como fundamentação a teoria estóica, diz que os homens mais doutos
definem assim a lei: “a lei é a razão suprema, imanente à natureza, que ordena o que se deve fazer e proíbe
o contrário. Essa mesma razão, quando, na mente do homem, está consolidada e completamente
desenvolvida, é a lei. Desse modo, eles [os mais sábios] julgam que a lei é a prudência, cuja força consiste
em ordenar ações retas e em vedar crimes.”; lex est ratio summa, insita in natura, quae iubet ea quae
facienda sunt, prohibetque contraria. Eadem ratio, cum est in hominis mente confirmata et <per>fecta,
lexest. Itaque arbitrantur prudentiam esse legem, cuius ea uis sit, ut recte facere iubeat, uetet delinquere
(De legibus, I, 18-19). Ou seja, a lei pode ser entendida de mais de uma forma. Há a lei humana, escrita,
que, sendo justa, provém da lei natural. No sábio, porém, cuja razão está em conformidade com a ordem
da natureza, a razão é idêntica à lei natural. Na mesma obra, mais adiante, a personagem diz “que os
comandos e proibições dos povos não possuem a força de nos chamar às ações retas e de nos arredar das

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faltas; essa força não apenas é mais antiga do que a idade dos povos e das sociedades, mas é coeva
daquele deus que rege e conserva o céu e as terras.”; iussa ac uetita populorum <non> uim habere ad
recte facta uocandi et a peccatis auocandi, quae uis non modo senior est quam aetas populorum et
ciuitatium, sed aequalis illius caelum atque terras tuentis et regentis dei (De legibus, II, 9). Ainda no De
legibus (II, 11), a mesma personagem afirma que a lei humana deriva da natureza das coisas (profecta a
rerum natura) e começou a ser lei mesmo antes de ser escrita.
XI, 39 É necessário entender que... Passagem obscura devido à concisão e à dificuldade do
contexto. Os estudiosos não estão de acordo sobre qual seja o termo retomado por eo. O editor Riccardo
Rubrichi explica: “isto é, de tudo aquilo que é mediato e que se segue da aplicação de tal princípio” (ad
locum). Rubrichi, portanto, interpreta que o neutro eo se refere ao raciocínio quod honestum esset, id esse
solum bonum e não a id quod honestum sit. No entanto, tendemos a concordar com Wrigth, que concebe
que eo se refere ao que é honroso; para ele, os media são os resultados do que é honroso, como o prazer
racional, por exemplo (“those neutral effects wich result from it”). Tentando, por fim, tornar a afirmação
coerente com o sistema estóico, ele diz que ela é feita no sentido de que “a prudência exerce uma contínua
seleção em um nível não moral” (cf. Wrigth, op. cit. p. 151) com relação àquilo que é segundo a natureza.
De fato, em algumas ocasiões Catão se serve da teoria do valor para falar do bem, mas isso se dá
geralmente em termos de hipótese, em que o bem é comparado aos indiferentes apenas para que se veja
quão grande é o abismo que se coloca entre aquele e estes (cf. seção 44).
Ora, a insensatez, assim como a covardia... Mais um período complicado. Trata-se da contrapartida
do raciocínio anterior. Catão afirma que não é contraditório dizer que os vícios devem ser evitados por
causa de seus resultados. Pois o que ele trata por resultados de vícios como a intemperança ou a covardia
não são males referentes ao corpo, mas as ações que são a forma como se exteriorizam essas disfunções da
alma que são os vícios. Quanto à tradução proposta por Catão para kakiva, veja-se nossa nota ao
comentário que dela faz Cícero.
XII, 40 tu te serves: deve-se subentender algo como uteris (cf. Rubrichi, ad locum).
Me pareces ensinar a filosofia a falar latim... O elogio feito pela personagem de Cícero à exposição
de seu interlocutor poderia valer como um comentário à obra filosófica do próprio autor do De finibus. Se
o comentário gira em torno da aptidão lingüística que se conferiu à filosofia, que agora sabe falar latim,
parece-nos que a menção à cidadania latina também alude ao uso dos exemplos históricos dos grandes
homens romanos como ilustração do princípio moral defendido pela filosofia dos gregos. É de certa forma
o prestígio oferecido por testemunhas tão ilustres que possibilita à filosofia sua nova posição de prestígio
entre os homens de Roma.
Por conta de uma esmerada fineza tanto de coisas quanto de palavras. Note-se que Cícero aqui
louva a fineza dos estóicos também no que diz respeito ao conteúdo. Ora, não é justamente esse traço da

479
filosofia do Pórtico que, já tendo sido mencionado no início do diálogo, vai ser especialmente criticado no
livro IV? Tal atitude de Cícero nos faz indagar se não há elementos irônicos nessa passagem. Se assim for,
nossa interpretação de que o uso de ne seja irônico ganha mais força. O que é sincero, de qualquer modo, é
o elogio ao tratamento adequado da filosofia na língua dos romanos.
Pois sei que há alguns que poderiam filosofar em qualquer língua... Referência clara aos epicureus.
Já desde o proêmio deste segundo diálogo Cícero deixara claro que se opõe à filosofia do Jardim. As
críticas ao pouco cuidado dos representantes dessa filosofia com relação à arte da exposição e à sua
credulidade, sem qualquer juízo crítico, na informação que advém dos sentidos já foram feitas pela
personagem de Cícero ao longo do primeiro diálogo.
De ‘vício’ se diz ‘vituperar’. De fato, o dicionário de Ernout e Meillet atesta o parentesco entre as
duas palavras e a derivação proposta pelo texto ciceroniano.
Se tivesses dito ‘maldade’ por kakiva... Outro precioso comentário (mesmo que feito pela
personagem) ao modo de traduzir do autor do De finibus. A tradução mais direta, aquela de que se
serviria, poderíamos supor, o indisertus interpres, consistiria em utilizar malitia como versão de kakiva,
uma vez que substantivo grego se relaciona ao adjetivo kakov", assim como malitia guarda parentesco com
malus. Mas o uso próprio da língua latina faz de malitia não o oposto ao termo geral uirtus, mas entende o
termo como algo particular, a “maldade” que, segundo o pensamento estócio, é apenas um dos aspectos
particulares de kakiva, que se refere, como já dissemos, a uma desorganização ou desarmonia da alma do
indivíduo, que resulta tanto em maldade quanto em covardia, medo ou outros tantos defeitos morais. Na
verdade, Cícero prefere se servir de um termo já consagrado pelo uso dos falantes para designar a má
qualidade moral. Trata-se de uma marca de sua philosophica a tentativa de tornar as idéias acessíveis ao
público romano. Um dos meios para alcançar isso, no presente caso, isto é, na discussão ética do De
finibus, é se servir da linguagem corrente para o que é do âmbito dos costumes humanos, aquilo de que
trata a filosofia moral.
XII, 41 Tornou a questão: a anáfora é interessante aqui. Dada a proximidade, difícil não admitir que
quam retome contentio como pronome relativo. Entretanto, o verbo transitivo de que quam deveria ser o
complemento liga-se também a outro acusativo: rem. Editores como Madvig julgam que a passagem se
faz de modo desajeitado e defendem a supressão de rem. O que parece ocorrer, entretanto, é uma espécie
de anacoluto (cf. Wrigth, op. cit. p. 153) que, aliás, não deixa de ser apropriado ao elemento oral e pouco
tenso da conversação entre os interlocutores. O substantivo rem, dessa forma, retoma contentio que, é bem
verdade, já fora retomado por quam.
Não é quanto às coisas a controvérsia... mas quanto às palavras: assim como teria feito o
acadêmico Carnéades, também Cícero vai se servir desse argumento como um dos pontos principais de
sua crítica ao estoicismo. Ele o desenvolverá na segunda parte deste diálogo (IV, 19-41). O mesmo

480
argumento reaparece no último diálogo (V, 15-20) e é recorrente em outras obras do filósofo romano (cf.
De natura deorum, I, 16 e Tusculanae, V, 24 e 32). Em um texto que tem, professamente, inspiração
estóica, o De officiis, Cícero declara que sua posição não é muito diferente da dos peripatéticos e que, em
última análise remonta a Sócrates (Off. I, 2). Se tomarmos as palavras atribuídas a Catão nesta passagem
do De finibus, seremos levados a pensar que o argumento que reúne, sob o mesmo crivo, estóicos e
peripatéticos tem origem em Carnéades. Por outro lado, quando uma tese semelhante é apresentada no
livro V, somos informados de que seu auctor é Antíoco, acadêmico dos tempos de Cícero. Como
solucionar essa incoerência? Tomando como base o que Cícero nos diz de cada um desses filósofos,
poderíamos pensar que Carnéades aproximou as duas escolas filosóficas para fins dialéticos, com vistas
sobretudo a rebater o pensamento estóico (cf., nesse sentido, De finibus, II, 42). A empresa de Antíoco
teria sido diferente: ele pode ter se servido do argumento de Carnéades de modo positivo. Reconhecendo
as semelhanças entre a Stoa e o Liceu e, por outro lado, valendo-se de uma autoridade acadêmica, o
filósofo de Ascalona pôde propor um pensamento moral que agenciasse as doutrinas das três escolas e
excluísse o princípio moral de Epicuro. É justamente esse pensamento que será exposto no livro V e que,
de alguma maneira, perpassa todo o De finibus. Em última análise, a menção de Carnéades como o autor
dessa tese sincrética pode mesmo ter sido uma estratégia adotada por Antíoco para lhe conferir mais
legitimidade.
Visto que, ao passo que os peripatéticos dizem... A diferença principal entre as duas doutrinas, na
opinião de Catão, é com relação ao que seja o bem. Para os peripatéticos, algumas coisas dentre as que os
estóicos chamam indiferentes seriam bens e, dessa forma, concorreriam para vida feliz que, sem eles, não
seria a mais feliz possível. Para os estóicos, só há um bem e apenas ele torna a vida completamente feliz: a
virtude.
XIII, 42 O raciocínio daqueles que colocam a dor entre os males... Se podemos contar, entre os
filósofos aqui mencionados, epicureus e cirenaicos, é evidente que o argumento se volta principalmente
contra os peripatéticos. Esses últimos, ainda que não considerando, como os anteriores, a dor como o
sumo mal, julgavam que ela era, ainda assim, um mal. Sendo a dor um mal, argumenta Catão, quem a
experimentar, durante o tempo em que a experimentar, não poderá ser feliz. Quanto à tortura
especificamente mencionada nesta passagem, a tortura do “cavalete”, cabem algumas informações. O
eculeus, ou “pequeno cavalo”, era um artefato de madeira utilizado normalmente para torturar escravos e
deles extrair confissões. A tortura consistia, provavelmente (diz Wrigth, op. cit. p. 154) em empalar o
torturado, que era forçado a se sentar sobre um pedaço pontiagudo de madeira com o peso do corpo
aumentado por pesos extras que pendiam de suas pernas e braços.
Daqueles, por outro lado, que não têm a dor entre os males, o raciocínio... Os representantes do
Pórtico, que defendiam que apenas o vício é um mal, tinham de admitir (e mesmo defender) a afirmação

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feita aqui. No segundo dos Paradoxa Stoicorum, Cícero desenvolve justamente a tese estóica de que a
virtude é suficiente para a vida feliz. Na quinta das Tusculanae disputationes, o tema volta a ser tratado,
mas com mais rigor filosófico do que nos Paradoxa (cf. especialmente Tusc. V, 12 e 14). Esse tópos
filosófico provém, em última análise, da filosofia platônica (cf. Platão, República, 361e).
É a opinião, e não a natureza, que faz da intensidade da dor ou maior ou menor. O argumento
pretende demonstrar que a dor não é um mal. Aqueles que a julgam um mal, detêm uma opinião, e não um
conhecimento do que seja o mal e, por isso, sofrem de modo desmedido. De fato, pensa Catão, se, para
quem realiza ações retas, a dor parece mais facilmente suportável, isso acontece porque esses têm um
conhecimento mais seguro do que é realmente o mal, ou seja, a ação desonrosa.
XIII, 43 E nem mesmo isto decorre conseqüentemente... A dificuldade da passagem, além de
sintática, dá-se pela variação da terminologia, que oscila entre os jargões peripatético e estóico. Para os
representantes do Liceu, haveria três gêneros de bens, os da alma (os mais importantes, dentre os quais
estaria a virtude), os do corpo (como a saúde e a beleza), e os externos (como a riqueza e o prestígio). Para
os estóicos – temos visto – apenas o honestum é um bem. Aqueles que os peripatéticos chamam bens
corporais e externos, para os estóicos são “preferíveis” que dizem respeito ao corpo ou às coisas externas,
ou seja, coisas que têm valor, mas não um valor absoluto.
Vantagens do corpo: é difícil traduzir o termo commodum sem cair em expressões muito estranhas
em português e, por outro lado, sem trair a importante distinção que se estabelece entre bona e commoda.
A idéia, trazida pela raiz commod- é de algo que se acomoda, que se ajusta e, por isso, é favorável, é
vantajoso.
Em nossa opinião, nem mesmo pela múltipla ocorrência daqueles bens... No estoicismo, o bem é a
realização racional da ação apropriada. Cada ação reta, realizada deliberadamente e em conformidade com
a natureza, isto é, o perfectum officium, é uma manifestação perfeita da virtude e, assim, é uma efetivação
da felicidade completa. O acréscimo de bens do corpo ou de bens externos não aumenta em nada o valor
da ação assim deliberada e realizada, visto que seu valor é absoluto, é um reflexo da harmonia universal.
Nem mesmo uma série de ações assim realizadas pode aumentar o valor da virtude (cf. quae nos bona
uere appellemus). Não obstante, é bom que se diga, o sábio, cuja prudência é um reflexo da lei natural,
sempre agirá de modo virtuoso, isto é, de acordo com a harmonia universal e, por isso, vivendo por muito
tempo, acumulará uma série de ações apropriadas.
XIII, 44 Se tanto ser sábio quanto estar saudável forem coisas que devemos buscar... A primeira
hipótese é radicalmente descartada pelo estoicismo. O único expetendum para os filósofos dessa escola é a
virtude. “O que deve ser buscado” deve ser entendido como aquilo que buscamos por si próprio, isto é,
que tem valor absoluto. Para os peripatéticos, porém, tanto sabedoria quanto saúde seriam bens e, por isso,
a vida que contasse com ambos seria mais feliz do que a contasse com apenas um deles. A segunda

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hipótese é problemática, pois não poderíamos admitir que Catão pense na sabedoria como um preferível,
visto que ela é um dos aspectos da virtude. Novamente se aplica a teoria do valor em uma comparação
entre o bem e um preferível. Conforme pensa Wrigth (cf. op. cit. p. 155), a sabedoria é tratada
hipoteticamente como um preferível, para que, no momento seguinte, demonstre-se que, entre ela e a
saúde a distância é incomensurável. A sabedoria tem valor absoluto. Assim, estando ligada à saúde, ela
terá o mesmo valor que teria sozinha.
XIV, 45 Pois, assim como se obscurece e se eclipsa pela luz do sol o lume de uma lanterna... Estas
imagens que ilustram a grandeza absoluta da virtude com relação a tudo aquilo que outras tradições
filosóficas contam entre os bens podem ser criações ciceronianas, visto que não se conhecem fontes,
conforme afirma Writgh (op. cit. p. 156), das quais Cícero pudesse ter se servido. Essa comentadora
inglesa, entretanto, nos parece querer extrair mais do que as imagens podem oferecer. Ela afirma que, ao
passo que os peripatéticos (louvados por Cícero em outras passagens, como, por exemplo, Tusc. II, 30 e
em grande parte do livro IV do De finibus) consideram que tão grandiosa é a virtude, que os demais bens,
ao final das contas, são quase insignificantes, os estóicos, por sua vez, defendem uma diferença de
qualidade entre o bem e os preferíveis. Até aí, tudo bem. Mas a autora considera que isso está ilustrado
nos exemplos. De fato, o primeiro parece dizer o que pensa a estudiosa: mesmo reunindo inúmeras
lanternas, jamais teríamos uma luz como a do sol. Mas ela parece desconsiderar os exemplos que dizem
respeito à fortuna de Creso e à viagem à Índia. Não podemos admitir que esses dois, ao menos,
estabeleçam uma diferença de qualidade.
Nas riquezas de Creso, o acréscimo de um terúncio Creso foi um rei da Lídia, cuja riqueza era
proverbial. O teruncius era uma moeda que valia o quarto de um asse: o equivalente a três onças de cobre
(ter e uncia: três doze avos da libra). Se o asse já é utilizado para designar o pequeno valor, terúncio aqui
dá a entender um valor insignificante.
E do mesmo modo que a oportunidade (pois assim poderíamos dizer eujkairiva
v ) não se torna maior
com a prolongação do tempo... Talvez um dos temas mais instigantes do estoicismo seja a questão do
tempo. É central, na concepção estóica de ação reta, isto é, de katovrqwma, a idéia de eujkairiva
v . O termo
deriva de kairov", noção que tem uma importante fortuna na história do pensamento antigo. Uma aplicação
importante se encontra na medicina, em que o kairov" representa o tempo apropriado para a intervenção do
médico durante o tratamento (cf. Wrigth, op. cit., p. 156). Outro importante uso pode ser observado na arte
retórica, em que o kairov" se refere à sensibilidade que deve ter o orador para se adequar ao que exige a
situação em que profere seu discurso e, assim, dizer o que é oportuno no tempo oportuno (nesse sentido,
veja-se, dentre outros textos, Platão, Fedro, 272a). Aplicada à moral, como no sistema estóico, a
v diz respeito à necessidade de se atualizar a virtude em cada uma das ações que se pratica. Para o
eujkairiva
estóico, a felicidade se adquire no instante, com a realização racional da ação apropriada. Se a virtude é

483
uma disposição constante da alma, cuja matéria sutil se coloca em harmonia com a natureza, é no instante
da ação que ela se efetiva. Desse modo, pode afirmar Goldschmidt (op. cit. p. 204): “Como o katovrqwma
manifesta uma potência de todos os deveres possíveis, ainda que ele o faça na ocasião de um dado tipo de
dever, da mesma forma a eujkairiva
v da felicidade é potência infinita se manifestando em uma dada
ocasião”. Compreende-se, assim, por que a felicidade na vida não se torna maior com a prolongação do
tempo. A felicidade se encontra no tempo oportuno, em que a iniciativa do indivíduo se encontra e
concorda perfeitamente com o evento que se coloca diante dele. A felicidade seria como que uma
“oportunidade permamente” (Goldschmidt, op. cit. p. 203), ou seja, estaria na capacidade do sábio de
tomar a decisão correta e se adequar à natureza em cada uma de suas ações. Entretanto, como o momento
oportuno não surge segundo o nosso desejo, o sábio deve, no momento em que a ocasião se apresenta,
agarrar a oportunidade de agir de modo apropriado. É nesse sentido que podemos entender a sentença de
Sêneca que diz que “a calamidade é a ocasião para a virtude”; calamitas uirtutis occasio est (Sêneca, De
prouidentia, IV, 6, cf. ainda Goldschmidt, op. cit. p. 124). Só assim o sábio pode se dispor em harmonia
com a ordem universal e se tornar como que um parceiro do destino. É por isso, julgamos, que tanta
ênfase é colocada por Catão no aspecto quase que pontual (em contraposição a uma conduta duradoura) da
realização racional da ação apropriada. É assim que entendemos o termo recta effectio: ele marca o
processo de deliberação e efetuação de uma ação apropriada. Nossa interpretação é, neste ponto, contrária
tanto à de Rubrichi (op. cit. ad locum), que entende recta effectio como “intenção reta”, quanto à de
Wrigth (cf. op.cit. p. 157) que entende “conduta reta”, no sentido de uma somatória de ações apropriadas.
Julgamos que isso é incoerente com a argumentação apresentada no texto ciceroniano, que desconsidera o
prolongamento no tempo como dado relevante para a grandeza da virtude. Esse último estudioso
argumenta que substantivos gregos terminados em –sis tendem a indicar uma condição ou estado
resultante da ação do verbo correspondente, enquanto que os terminados em –ma geralmente se referem a
um exemplar particular. Parece-nos, entretanto, que substantivos diversos terminados em –sis podem
enfatizar o processo pelo qual uma ação se realiza, assim como o fazem levxi", poihvsi", eu{resi" etc. Ora,
alguns desses termos, justamente, foram vertidos em latim por substantivos semelhantes a effectio, tais
como elocutio e inuentio! Mais atento à argumentação parece estar Marinone, que verte a expressão
problemática por “realizzazione della rettitudine”.
XIV, 46 Se o mérito do coturno fosse... O símile do coturno pretende mostrar que para o bem não
importa a quantidade. Notemos que a laus do coturno, ou seja, aquilo pelo que louvamos um coturno e,
portanto, aquilo em que consiste o seu bem, é formulado de modo semelhante ao bem do homem, consiste
em apte conuenire. Trata-se de uma qualidade. O calçado deve estar adaptado ao tamanho do pé, como a
ação deve estar adaptada à natureza e à circunstância que se apresenta ao agente. Àquele que calça o
coturno bem adaptado, pouco importa que haja muitos ou de tamanhos diferentes. Da mesma forma é a

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virtude, que se realiza na conuenientia e na opportunitas, ou seja, na ação correta realizada no tempo
oportuno. Interessante notar, portanto, que a ação apropriada não tem uma determinação fixa, não é
sempre a mesma em todo caso. Ela é, sim, ajustada a cada evento particular. O traço que é comum a todos
os deveres, portanto, é o ajuste (a conuenientia) que ele deve ter com a ordem natural. O dever, no sábio, é
perfeito, como veremos adiante, porque nele a ação é completamente racional. O símile nos faz ainda
antecipar o argumento de que a virtude não pode ser aumentada. Pois, assim como o calçado, ela se
encontra no ajuste perfeito. Tanto o sapato um pouco maior do que o pé quanto o que é um pouco menor
estão mal ajustados: não são bons. Vale recordar que o termo cothurnus aplica-se especialmente ao
calçado, de origem grega (o covqorno"), utilizado pelos atores que representam uma tragédia: uma botina
de sola alta, em plataforma, que conferia maior altura aos atores. Desse modo, o símile aqui expresso
novamente se insere no contexto da arte dramática, que já fora evocado para ilustrar a ação apropriada.
XIV, 47 Os peripatéticos: a mudança brusca de sujeito pode causar dificuldade de compreensão. A
terceira pessoa do plural de utuntur (cf. 46) refere-se aos estóicos, autores do símile do coturno. Quanto à
terceira pessoa de dicunt, a partir do contexto, temos que reconhecer que ela se refere aos peripatéticos,
que são os que sustentam a tese que é expressa a seguir e que são o alvo de toda a discussão que, neste
ponto, visa justamente provar a distinção substancial que haveria, segundo Catão, entre as duas escolas.
Eles não compreendem que a estima que tem a saúde é avaliada pela extensão temporal...
Novamente o que é preferível é avaliado segundo a quantidade. Nesse caso, o spatium, ou seja, o intervalo
de tempo, ou o tempo enquanto duração contínua. A saúde, de fato, é tanto melhor quanto mais durável
for. Coisa distinta se dá com a virtude. A sabedoria não é maior ou mais valiosa caso sua prática seja mais
extensa no tempo. O bem está na efetivação racional da conuenientia. Ele consiste na aplicação da
sabedoria (sapientiae usus), isto é, na capacidade de perceber qual seja a ação adequada em determinada
situação e, conseqüentemente, na sua realização no tempo oportuno. Por isso, bem e preferíveis são
incomensuráveis. O primeiro é do âmbito da qualidade: está sozinho em seu gênero. Os outros têm relação
com a grandeza (cf. a dicotomia genus / magnitudo na seção 34). Os exemplos da boa morte e do bom
parto parecem-nos, assim, muito significativos: eventos pontuais que são, não podem ser avaliados pela
duração, mas pela qualidade apenas.
XIV, 48 Esses mesmos devem admitir... que um homem pode cometer uma falta mais grave do que
uma outra... A teoria da conuenientia aliada à opportunitas traz como conseqüência o paradoxo que
afirma que todas as faltas são iguais e, por outro lado, que todas as ações retas são iguais. Como quer que
se critique esse princípio, deve-se admitir que ele decorre de modo lógico do que foi exposto. O bem não
tem que ver com grandeza da ação em si, ou com sua extensão no tempo. Uma ação, dissociada do
contexto, não é nem boa nem má. A virtude é capacidade de ajuste e a efetivação do ajuste. Se a ocasião
se apresenta, qualquer que seja, e nós agimos racionalmente de modo conveniente, a ação é boa, qualquer

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que ela seja. Se, apresentada a ocasião, não agimos em conformidade com a natureza, cometemos uma
falta. O mal está em não aplicar a lei natural, inscrita na prudência, em qualquer situação que se apresente.
O mal é errar, falhar, destoar da natureza. Ora, vejamos como Cícero trata desse princípio no terceiro dos
Paradoxa Stoicorum, em uma passagem em que reencontramos a metáfora do teatro: “O histrião, se ele se
move um pouco fora da cadência, ou se o verso foi pronunciado mais breve ou mais longo por uma única
sílaba, é vaiado e expulso. Tu, na vida – que deve ser mais regulada quanto a todo gesto, quanto a todo
verso, mais ajustada – dirás que errou por uma sílaba? Um poeta, no que são bagatelas, eu não ouço, na
organização social da vida eu deveria ouvir um cidadão que mede as suas faltas com os dedos?” Histrio si
paulum se mouit extra numerum, aut si uersus pronuntiatus est syllaba una breuior aut longior,
exsibilatur, exploditur; in uita tu, quae omni gestu moderatior, omni uersu aptior esse debet, in syllaba te
peccasse dices? Poëtam non audio in nugis; in uitae societate audiam ciuem digitis peccata dimetientem
sua? (P.S. III, 26). A imagem é elucidativa. A ação apropriada, na vida, é semelhante à atuação adequada
do ator, que deve agir de acordo com a personagem que representa e executar dança, falas e cantos na
cadência correta. Ora, se, nas nugae do teatro, não suportamos um ator que desempenhe mal o seu papel,
ainda que por conta de um erro mínimo, como poderíamos tolerar os erros, ainda que pequenos, na vida
cotidiana, que é tão mais importante? (Notemos que essa imagem, contudo, pode conferir um caráter
pouco tolerante ao sábio estóico. A discussão reaparecerá em nosso texto). Quanto aos peripatéticos, pensa
Catão, que avaliam alguns bens em termos de grandeza, eles devem sustentar, logicamente, que há sábios
mais sábios que os outros (talvez pelo acúmulo de ações retas) e que o bem pode sempre se tornar maior,
desde que a ele se acrescentem coisas que, para esses pensadores, são bens, como a saúde e a riqueza.
Pois assim como os que estão submersos na água não podem... Mais dois símiles bastante
sugestivos. Em decorrência do paradoxo que iguala todas as boas ações entre si, e, por outro lado, todas as
faltas, tem-se que a diferença entre o sábio e o não sábio é absoluta. Pois um modo de ser e agir conforme
à virtude (a expressão uirtutis habitus traduz ajreth'" e{xi", cf. as notas de Hutchinson e Rubirchi, ad
locum) é algo que se possui ou não. O processo que consiste em se tornar sábio, portanto, comporta, em
algum momento um salto. Símile que pretende ilustrar o mesmo pode ser visto em Diógenes Laércio (cf.
VII, 120) atribuído a Crisipo. Diz-se que um homem que se encontra a um estádio de distância de certa
cidade, está tão fora da cidade quanto aquele que se encontra a cem estádios de distância. O símile do
cachorrinho, apresentado por Catão, deve-se observar, contém um elemento bastante interessante, pois
trata do desenvolvimento moral em analogia com o desenvolvimento do ser vivo. Também o homem,
como o cachorrinho que ainda não pode ver, tem um estágio inicial em que não possui a razão plenamente
desenvolvida e que, assim, não pode perceber a ordem que governa o mundo. É claro que todo
cachorrinho, normalmente, vai chegar a ver, ao passo que o desenvolvimento completo e perfeito da razão
no homem restará como uma aquisição para poucos. Pensadores estóicos posteriores à primeira Stoa,

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como Panécio, vão, de alguma forma, tratar diferentemente desse problema, dado que seus pensamentos
voltam-se sobretudo ao dever do homem comum e que avança em direção à virtude (cf. Wright, op. cit. p.
159). Os pensamentos tanto de Cícero, que critica o rigor estóico, quanto o de Sêneca, que enfatiza o
processo de avanço em direção à sabedoria, serão influenciados pelas idéias de Panécio.
XV, 48 Compreendo que isso parece difícil de acreditar... O trecho é difícil em latim por conta do
excesso de neutros que se referem aos diferentes passos da exposição. Tentamos apresentar uma
formulação mais clara em português. Caso ainda restem dúvidas, entenda-se: se a virtude não é maior caso
se lhe acrescente tempo ou qualquer outra quantidade, segue-se necessariamente que as faltas são todas
iguais entre si e que as boas ações são, entre si, também iguais.
Pensam que ambos ganham maior alcance, de certo modo, e, por assim dizer, se alargam. Outra
sutileza do pensamento estóico. Ainda que não haja diferença de grandeza entre as ações virtuosas,
algumas têm um alcance maior do que outras. Algo que ocorre por conta do evento que se apresenta para a
realização de uma ação honrosa ou da condição social daquele que a realiza. É nesse sentido que Sêneca
fala de uma virtude que latius funditur (“se estende mais largamente”) em oposição à virtude que artius
circundatur (“que fica restrita de modo mais estreito”) em Epistulae ad Lucilium, 74, 28. Um rei virtuoso
não é mais virtuoso do que um camponês virtuoso, mas as ações que o primeiro realiza atingem mais
pessoas e, muitas vezes, todo o Estado. A riqueza do rei dá oportunidade maior a sua generosidade e seu
poder, à distribuição da justiça. A mesma idéia é desenvolvida por Cícero em De officiis (II, 52-53). Em
contrapartida, com relação ao vício, um malfeitor tem maior possibilidade de cometer injustiças caso
ocupe uma função pública.
XV, 49 Ora, as riquezas... Wrigth considera toda a passagem que vai do início da seção 49 até in
artibus esse uideamus como um longo parêntese (cf. op. cit. p. 159). Para essa editora, o argumento a
respeito do sumo bem é aqui interrompido por uma discussão sobre a riqueza material. De fato, em
deinceps explicatur etc., volta-se ao argumento principal, quando se desenvolve a teoria a respeito dos
indiferentes. De qualquer forma, pode-se argumentar, como faz Martha, que a exposição prossegue de
modo ordenado e que não há nada a se alterar na ordem do texto, uma vez que primeiro se tratou do bem
em si, depois discutiu-se o que os peripatéticos consideram como bens corporais e, agora, analisam-se os
bens externos (cf. Martha, op. cit., ad locum). Quanto à argumentação sobre a riqueza, ela procede da
seguinte forma. A riqueza é necessária para o prazer e a saúde. Se estes são bens, também aquela seria.
Mas nem saúde nem prazer são bens, logo, a riqueza também não é. Só a virtude é um bem e não necessita
da riqueza. Por outro lado, se a virtude é uma arte e as artes necessitarem de riqueza, então a virtude terá
necessidade de riqueza. Mas a arte não tem ligação de dependência com a riqueza, uma vez que tem
origem na percepção e compreensão das coisas. Assim, se a virtude é uma arte, também não tem
necessidade da riqueza. De qualquer forma, ainda que a virtude tenha semelhança com a arte, pois

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depende do conhecimento das coisas, ela é diferente pelo fato de que necessite não de um conhecimento
qualquer, mas de uma reflexão e de uma prática extremas. Ela é completamente racional e age de modo
firme e constante em todo momento da vida (cf. Wright, op. cit. p. 160). Resta, porém, uma dificuldade.
Ad quas retoma artibus ou artibus e uirtute? No segundo caso, teremos que admitir que a riqueza, ainda
que não essencial, conduz à virtude. Wrigth tenta resolver o problema dizendo que, como se pode ver em
DL. VII, 189, os estóicos admitiam como atitude aceitável fazer corte aos ricos. Ora, nesse caso, a riqueza
conferiria um maior alcance à virtude. Mesmo assim, como entender que um indiferente possa conduzir à
virtude? Como vemos na seção 56, a riqueza é um preferível que produz outros preferíveis. Ela é digna de
escolha por conta de sua capacidade de estender a possibilidade do benefício. Nesse sentido, talvez, Catão
a considere dux ad uirtutes. A expressão, entretanto, não parece ser a mais apropriada.
XV, 50 A vida se tornaria um caos completo traduz, de modo livre, confunderetur omnis uita. A
idéia introduzida por confunderetur é a de que tudo esteja misturado, sem determinação alguma, isto é,
sem que haja qualquer traço distintivo entre as coisas.
Em seguida, expõe-se a diferença entre as coisas... Faz-se a transição para o tratamento das ações
que não dizem respeito diretamente ao bem, ou, em outros termos, que não são estritamente morais. Como
vimos na seção 31, a aplicação prática da sabedoria (que é a compreensão a respeito da ordenação do
universo e conseqüente adaptação à ordem), é a prudência, que nos faz agir de acordo com a natureza, mas
na esfera das decisões que não dizem respeito estritamente à busca do bem absoluto (cf. Wrigth, op. cit.,
pp. 143 e 161), mas àquilo que não é nem bom nem mau.
Umas fossem estimáveis, outras, o contrário, outras, nem uma coisa nem outra. Essas divisões,
feitas aqui e na seção 56, são complexas por mais de um motivo. Em primeiro lugar, por conta de uma
dificuldade do próprio estoicismo, que concebe uma mudança de perspectiva, na escolha feita pelo
homem, correspondente a seu desenvolvimento moral (cf. seções 20 e 21). Em segundo lugar, porque são
divisões sucessivas em que Catão (ou o autor, Cícero), por vezes se serve de um mesmo termo para tratar
do gênero e da espécie (sobre esses problemas, cf. MICHEL, Alain, 1974, pp. 146-151). Vejamos como se
dá a exposição seguindo o texto passo a passo. Há uma distinção fundamental que determina o que é do
âmbito estritamente moral. São três elementos: o bem (o honestum, que é dito expetendum, isto é, deve ser
buscado com vistas à felicidade), o mal (torpe, que é dito fugiendum: que deve ser evitado com vistas à
felicidade) e aquilo que não diz respeito à vida feliz (illa quae nihil ualerent ad beate misereue
uiuendum). Em grego, os indiferentes são tratados como ajdiavfora (cf. Diógenes Laércio, VII, 104). Esse
terceiro termo dessa divisão é, então, repartido em três, num processo que segue bem de perto a prima
diuisio da seção 20. Lá, entretanto, tratava-se do estágio inicial da vida humana! Aqui, a divisão incide
sobre aquilo que não é bom nem mau, mas que comporta algum marca distintiva que deve conduzir a
nossa escolha. Assim, as coisas que não são nem boas nem más são divididas em aestimabilia

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(estimáveis), contra, (isto é, “de modo contrário”, ou seja, “não-estimáveis”) e neutra (nem uma coisa,
nem outra: neutras).
XV, 51 Em algumas das coisas, porém, que deveríamos estimar... Algumas coisas são dignas de
nossa estima. Mais adiante, Catão irá designá-las por meio do termo praeposita, termo forjado pela
personagem de Cícero para verter o grego prohgmevna (cf. seção 15). Se recordarmos a divisão proposta
na seção 20, podemos dizer que têm maior valor aquelas coisas que, ainda que não sejam o bem, estão em
conformidade com a natureza. Interessante notar que, ainda que, com o desenvolvimento moral, o homem
reconheça que tem valor absoluto a harmonia entre as coisas, ele continua a se servir da tendência
primeira, que o impele em direção daquilo que produz a autopreservação. No livro VII da obra já referida
de Diógenes Laércio, define-se assim o valor:
ajxivan de; th;n mevn tina levgousin suvmblhsin prov" to;n oJmologouvmenon bivon, isto é: “o valor eles
dizem ser uma contribuição para a vida em harmonia”; (D.L., VII, 105). O expositor divide ainda os
prohgmevna entre os que são do âmbito da alma, os que são corporais e os externos. Dentre os primeiros,
um bom engenho (eujfui?a), habilidade (tevcnh), etc. Dentre os corporais, a vida (zwhv), a saúde (uJgiveia), a
força (rJwm
v h) etc. Dentre o que é externo, a riqueza (plou'to"), a reputação (dovxa), o nascimento nobre
(eujgevneia) etc. (cf. D.L., VII, 106). A lista de exemplos dada por Catão, mesmo sem apresentar essa
subdivisão, contempla os três gêneros de preferíveis.
Outras, entretanto, são de outro modo: a expressão non esse eius modi é vaga e traz problemas à
compreensão do conteúdo. Pelo contexto, devemos admitir que não se trata daquilo que é completamente
indiferente. Catão parece antes indicar uma subdivisão no gênero dos preferíveis. Os primeiros nos dariam
motivo suficiente para que os escolhêssemos (satis esse causae); para a escolha dos segundos teríamos
razões menos fortes, mas eles seriam ainda assim preferíveis. Dentre os preferíveis parece haver, portanto,
uma escala de valores, mas Catão não nos dá detalhes a respeito.
Dentre as coisas que não fossem dignas de nenhuma estima... A apresentação dos exemplos
daquelas coisas que possuem um valor negativo se dá de modo simétrico à exposição dos aestimabilia (cf.
item). Trata-se aqui dos ajpoprohgmevna, cuja tradução, proposta pela personagem de Cícero na seção 15, é
reiecta. Diógenes Laércio, em VII, 106, serve-se novamente da subdivisão entre o que é da alma, o que é
do corpo e o que é externo. Os exemplos dão conta do que é contrário aos prohgmevna. Assim, para os
primeiros, há, dentre outros, as faltas de engenho e de habilidade (ajfui?a e ajtecniva); para os segundos,
morte e doença (qavnato" e novso"); para os externos: pobreza e má reputação (peniva e ajdoxiva). A
exposição de Catão negligencia a subdivisão, mas dá exemplos pertencentes às três esferas.
Outra parte, não do mesmo modo traduz partim non item. A brevidade da exposição e a repetição
dos mesmos termos para marcar etapas distintas do raciocínio (cf. itemque e non item: o primeiro marca a
divisão entre preferíveis e rejeitáveis, o segundo, a subdivisão dentro do gênero dos rejeitáveis), tornam

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esta passagem obscura. O raciocínio, entretanto, é compreendido por meio de uma comparação com o que
se disse dos preferíveis. Haveria, dentre as coisas que rejeitamos, uma escala de valores. Com relação a
alguns, temos motivos mais fortes para rejeitá-los, ainda que não sejam males. Outros, nós rejeitaríamos
de modo mais brando. Com base nisso, Wrigth (op. cit., p. 162), propõe uma escala com cinco graus de
valores para os indiferentes: os de maior valor, os de valor suficiente, os completamente indiferentes, os
de pouco valor e, por fim, os de nenhum valor. O raciocínio nos parece correto, a formulação, entretanto, é
imperfeita, pois os ajpoprohgmevna, conforme os apresenta Diógenes Laércio, contêm como que uma carga
de valor negativo (cf. ajpoprohgmevna de; ta; ajpaxivan e[conta, VII, 105). Por mais que soe pedante, os
dois últimos graus seriam mais bem representados por “de valor negativo” e “de muito valor negativo”.
Que tu costumes dizer que ela é ainda mais fecunda: o tema da riqueza da língua latina foi tratado
no primeiro diálogo (cf. I, 10) e no livro III (cf. seção 5). Vejam-se nossas notas a essas passagens.
XVI, 52 A seção 52 traz alguns problemas para a nossa tradução. Isso geralmente acontece quando
Cícero (mesmo que por meio de personagens) comenta suas estratégias de tradução, cria (ou reporta)
imagens para tornar mais concretos os conceitos e multiplica as opções de tradução em latim. A idéia
expressa pelo símile da corte real não é, entretanto, de difícil compreensão. O rei é comparado ao bem, ao
passo que os seus súditos que ocupam funções públicas são confrontados com os preferíveis. Numa
monarquia (in regia), a posição social e política mais elevada é a do rei. Não há como ele ser promovido,
ou como diz Catão de modo menos apropriado (quasi productum esse), “ser posto à frente”, uma vez que
o seu cargo é mais prestigiado que existe. As demais funções públicas se encontram num degrau inferior.
Ainda que próximas à função desempenhada pelo rei, elas lhe são necessariamente inferiores. O prestígio
que alguém alcança ao deter um desses cargos de segunda ordem é sempre relativo, uma vez que todos
devem sempre se submeter às decisões do rei, o único que toma decisões de modo absoluto. A imagem se
torna ainda mais apropriada se levarmos em conta que em uma monarquia geralmente a sucessão se dá por
meio da linhagem, do parentesco. O modelo imaginado por Zenão é muito provavelmente o das
monarquias do oriente, representadas, por exemplo, pela realeza persa (cf. Wrigth, op. cit., p. 163). Desse
modo, não apenas o rei ocupa uma posição mais elevada do que os demais homens públicos, como só ele,
por natureza, pode legitimamente ocupar tal posição. O termo prohgmevnon é um particípio do verbo
prohgevomai, composto de hJgevomai. O verbo simples pode significar algo como “conduzir, guiar,
comandar”, ou seja, recobre parte das acepções do verbo duco latino. Daí a idéia do composto
prohgevomai (e da tradução proposta pelo texto ciceroniano: produco): fazer avançar, conduzir adiante,
fazer passar à frente. Note-se que mesmo o termo praepositum guarda a imagem, bem concreta, daquilo
que, em nossa escolha, colocamos antes de outras coisas, ou, seja, que antepomos, mas, como o termo é
corriqueiro em latim com o sentido de “preferido” ou “preferível”, temos sempre traduzido dessa forma.
Parece um modo que se conforma à expressão ciceroniana. Cabe ainda observar a afirmação final de

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Catão. Ao se permitir certa flexibilidade com relação à terminologia, sob o pretexto da falta de recursos da
língua latina, Catão parece dar armas à crítica da personagem de Cícero. Como sabemos, a linha mestra da
refutação do livro IV consiste em considerar o estoicismo como uma mera renovação (desnecessária, diga-
se de passagem) da terminologia acadêmico-peripatética.
XVI, 53 Chega-se aos praeposita por meio de um processo de divisões que retoma o raciocínio que
já fora apresentado. Tudo o que não é nem bom nem mau é indiferente. Mas, dentre os indiferentes, deve
haver o que seja conforme a natureza e o que lhe seja contrário. Uma vez que haja coisas desse tipo,
dentre elas deve-se achar aquilo que tenha valor suficiente para que nós o escolhamos. Admitido isso (hoc
posito), deve-se admitir que há coisas preferíveis, isto é, indiferentes dignos de serem escolhidos.
XVI, 54 Eles propõem um símile... O talus é uma espécie de dado, feito de osso (talum, em sentido
primeiro, é o osso do tornozelo, ou do calcanhar), de forma alongada, com duas faces extremas circulares,
e outras quatro retangulares, estas marcadas com os números 1, 6, 3, 4, de modo que as faces opostas
somassem sete. O lance de maior sorte era quando o jogador conseguia que o dado caísse sobre uma das
faces circulares, de modo que o dado ficasse como que de pé (assistere rectus); outro lance seria aquele
em que o dado caísse sobre uma das faces marcadas com números: cadere rectus (cf. Rubrichi, p. 64).
Difícil imaginar, todavia, uma terceira opção de posição final do dado, algo que a fala de Catão parece
sugerir com qui aliter. A nota de Martha, que entende o símile de modo diverso, representa um dado
semelhante a um paralelepípedo, com quatro das seis faces representativas para o jogo, duas mais largas,
outras duas mais estreitas. O lance de maior sorte, seria, então, quando o dado caísse sobre uma das faces
mais estreitas. Um terceiro lance, então, diferente de assistere rectus e cadere rectus, seria aquele em que
o dado cairia sobre uma das faces não representativas. A expressão contra, dessa forma, indicaria que não
houve nada de preferível. Para Marinone, a expressão cadere rectus não se refere à posição final, mas
apenas ao modo como o dado toca primeiramente a superfície sobre a qual é lançado. O argumento,
entretanto, é compreensível. Apenas o lance de maior sorte é o objetivo final do jogo. Outro lance de
sorte, porém, ainda que não seja o melhor, é relevante, na medida em que se aproxima da meta. Mas há
uma diferença fundamental entre o lance máximo e qualquer outro que dele se aproxime. É análoga a
relação que existe entre preferíveis e o bem. Os preferíveis estão em conformidade com a natureza e, por
isso, são antes escolhidos do que rejeitados. Mas, se eles são auxiliares na condução à felicidade, a
essência da felicidade é outra: consiste em se servir desses indiferentes de modo reto. Diógenes Laércio
atribui a Crisipo um raciocínio que pode ajudar a esclarecer essa questão. Crisipo diria que coisas como a
vida, a saúde, a riqueza, o prazer e coisas afins não são bens em si, mas indiferentes, ainda que preferíveis.
Pois assim como a propriedade do que é quente é aquecer, a propriedade do bem é o trazer benefício
(wjfelei'n) e não prejudicar (blavptein). Já a saúde e a riqueza, por exemplo, não produzem, por si, nem
benefício, nem prejuízo. Para ele, não deve ser considerado um bem aquilo que pode ser usado de modo

491
bom e mau (cf. D.L., VII, 102-103). Desse modo, sem a riqueza o homem pode ser feliz, mas se ela for
utilizada de certo modo, ela pode tender à felicidade (cf. VII, 104).
XVI, 55 Vem em seguida esta divisão: telikav... poihtikav... Catão apresenta de modo resumido a
argumentação que encontramos em Diógenes Laércio (cf. VII, 96 e ss.). Essa seção interrompe a
explicação da teoria da diferença, mas não deve se tratar de interpolação, já que o símile do dado
reintroduzira a noção de tevlo". De qualquer modo, para tratar dos bens que são da própria natureza do
finis, Catão designa as actiones honestae. Como temos visto na exposição, o tevlo" dos estóicos consiste
na realização deliberada de uma ação que esteja em harmonia com a ordem universal. A exposição de
Diógenes Laércio apresenta uma lista de bens telikav que inclui diversas virtudes, ao passo que a de Catão
trata apenas da sapientia. Ora, já vimos que todas as virtudes são aspectos diferentes do honestum. A
sabedoria resume o honestum de modo especial, uma vez que, como observamos anteriormente, a ação só
é perfeitamente apropriada quando o agente percebe a ordem do mundo e, por isso, age de acordo com ela.
É a sabedoria que assegura a retidão da ação (cf. Wrigth, op. cit., p. 165). Quanto aos bens que produzem
o tevlo", Catão menciona apenas o amigo, enquanto Diógenes fala do amigo e dos benefícios, ou
vantagens, que advêm do amigo (ta;" ajp j aujtou' ginomevna" wjfeleiva", cf. VII, 96). A questão da
amizade retornará à exposição de Catão na seção 70. Por fim, como podemos entender a sapientia como
constituinte e produtora, a um só tempo, do finis? Por um lado, porque ela se confunde com a ação
harmônica, que é o sumo bem. Ou, como diria Diógenes Laércio, com relação a todas as virtudes, uma vez
que ela torna a felicidade completa e é uma parte da felicidade, ela é constitutiva do fim (VII, 97). Por
outro lado, porque a sapientia é causa de ações honrosas. Ora, trata-se aqui não tanto do aspecto teórico da
sabedoria, que contempla a ordem do universo, mas de seu aspecto prático, que nos faz agir de modo
apropriado. O caráter duplo da sabedoria se deve ao fato de que a própria ação honrosa é constituída em
grande parte por contemplação.
XVII, 56 Essas coisas... preferíveis são, em parte, por si mesmas preferíveis, em parte, porque
produzem algo preferível, em parte, participam dos dois gêneros... Argumentação semelhante à de
Diógenes Laércio em VII, 107. Note-se ainda que esta divisão se serve de parte do raciocínio utilizado na
divisão entre os bens, feita anteriormente. No primeiro gênero de preferíveis, estão aqueles que são por si
mesmo preferíveis. Na exposição de Catão, enumeram-se coisas pouco precisas que dizem respeito à
disposição do corpo. A exposição de Diógenes fala do bom engenho, já mencionado anteriormente como
preferível no âmbito da alma, e diz que tais coisas são por si mesmas preferíveis porque estão de acordo
com a natureza. Podemos comparar essa menção ao semblante, ao modo de andar aos gestos, com algo
que se vê no quinto livro, em parte da exposição do pensamento de Antíoco, atribuída a Pisão (cf. V, 35).
Ali, observa-se que os movimentos do corpo são o reflexo da disposição da natureza do indivíduo. Assim,
um modo de andar, um modo de gesticular, quando adequados, refletem a harmonia interna do sujeito e

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seu ajuste com a natureza que lhe é própria. Nesse sentido, podemos pensar, o expressão facial, o andar
etc. são preferíveis por si mesmos, uma vez que indicam uma conformidade com a natureza. Já a riqueza é
antes produtora de outros preferíveis. Isso porque o uso justo e sábio da riqueza pode estender benefícios a
muitas pessoas. Assim, a riqueza, se não é um bem, uma vez que pode trazer prejuízos, nem preferível por
si mesmo, pois não está em conformidade com a natureza, é, de qualquer forma, produtor de preferíveis, já
que permite a extensão do benefício, isto é, da virtude (cf. seção 49). Quanto a outros aspectos da
disposição corporal, como a saúde, o vigor, a integridade dos sentidos, são desejáveis por si mesmos (cf. o
argumento que demonstrava a primeira tendência na seção 17) e, como a riqueza, se bem usados, podem
produzir preferíveis e permitir a extensão da virtude.
XVII, 57 A respeito da boa reputação... Para esses estóicos mais antigos, portanto, a boa reputação
seria completamente indiferente. Diógenes Laércio (VII, 115) apresenta a seguinte afirmação a respeito da
boa reputação: “e assim como se diz que existem certas debilidades no corpo
(tina ejpi; tou' swvmato" ajrrwsthvmata), como a gota e a artrite, da mesma forma há na alma o amor à
fama (filodoxiva), o amor ao prazer e coisas que tais”. Note-se que o biógrafo não atribui essa asserção a
nenhum autor em particular. Quanto à utilidade da boa reputação, ela deve estar associada à teoria da
extensão, de forma análoga ao que acontece com a riqueza.
Não podendo fazer frente a Carnéades... Wrigth (op. cit., p. 166) informa que não há documentação
que nos indique o teor dessa discussão entre Carnéades e os estóicos a respeito da boa reputação. A
comentadora considera, além disso, que a concepção da fama como um indiferente preferível foi
defendida por Panécio no contexto das alterações que o sistema estóico sofreu na divulgação da doutrina
que este filósofo promoveu entre os romanos. Interessante notar, portanto, a representação, criada pelo o
autor do De finibus, para a personagem de Catão: ele se volta ao estoicismo mais rigoroso de autores como
Zenão e Crisipo, com os quais concorda veementemente. A defesa da boa reputação como um preferível é
uma posição que encontramos em outras obras de Cícero, o que mostra como o nosso autor pôde ter sido
influenciado pelo estoicismo moderado de autores como Panécio. No livro I das Tusculanas, por exemplo,
a boa reputação é vista como uma espécie de consolação diante da morte (algo que parece ser aludido
também nesta passagem do De finibus). Citamos Tusculanae, I, 109: “Mas a condição em que se enfrenta
a morte com maior serenidade na alma é quando a vida, que se acaba, consola-se com os louvores que
recebeu (...) Pois, embora a sensação desapareça, os mortos, por mais que não tenham sensação, não estão
privados dos bens, louvores e glórias que lhes pertencem como próprios. Pois, ainda que a glória não traga
em si nenhum motivo para que seja buscada, tal qual uma sombra ela segue a virtude” / Sed profecto mors
tum aequissimo animo oppetitur, cum suis se laudibus uita occidens consolari potest (...) quamquam enim
sensus abierit, tamen suis et propriis bonis laudis et gloriae, quamuis non sentiant, mortui non carent. etsi
enim nihil habet in se gloria cur expetatur, tamen uirtutem tamquam umbra sequitur. Em outra passagem

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da mesma obra, Cícero distingue duas formas de glória: uma aparente, que depende da instabilidade da
opinião popular; a ela se opõe uma glória que é sólida e verdadeira, “ela é o louvor concorde feito pelos
homens bons, a voz incorruptível daqueles que julgam de modo justo a respeito da virtude superior, ela
repercute a virtude como um reflexo; já que a maior parte das vezes ela é companheira das ações retas,
não deve ser repudiada pelos homens bons” / ea est consentiens laus bonorum, incorrupta uox bene
iudicantium de excellenti uirtute, ea uirtuti resonat tamquam imago; quae quia recte factorum plerumque
comes est, non est bonis uiris repudianda (Tusc., III, 4). Notemos a semelhança entre a concepção de boa
reputação apresentada por Catão (e atribuída aos estóicos mais recentes) e a de gloria solida expressa por
Cícero (ou melhor, pelo Magister) nas Tusculanas.
XVII, 58 O dever é, então... O conceito de officium (tradução de kaqh'kon, ou, mais precisamente,
de kaqh'kon me;son, cf. Wrigth, op. cit., p. 168) foi apresentado na seção 20, onde se discutia a primeira
tendência do ser humano. Ali, Catão dissera que a primeira ação apropriada (isto é, conforme a natureza) é
a preservação de si mesmo. A segunda, o acolhimento daquilo que promovia a preservação de si. Agora, já
definido o que é o bem, a noção de officium volta a ser tratada. Trata-se de um conceito que se aplica às
escolhas que não dizem diretamente respeito ao bem, isto é, promove a regulação daquelas ações que não
são propriamente honrosas. Desse modo, ainda que o officium represente uma ação apropriada, não se
trata necessariamente do bem, uma vez que o bem consiste ainda na compreensão plena da organização do
mundo. O raciocínio a respeito do dever é bastante próximo daquele que se utilizou para a definição dos
indiferentes preferíveis: ambos são escolhidos porque estão de acordo com a natureza (cf. De finibus, IV,
48). Acontece que o officium não é uma disposição (como a saúde, por exemplo), mas uma ação. O
critério para a sua realização, portanto, é a ratio probabilis. Vimos, no nosso estudo, que probabilis, no
pensamento ciceroniano, refere-se àquilo que pode ser aprovado mediante uma demonstração persuasiva.
É justamente o caso aqui. Se nos servirmos de uma passagem de Diógenes Laércio, veremos que termos
do grego a expressão procura verter: “eles [os estóicos] afirmam que o kaqh'kon é aquilo que, praticado, é
sustentado por uma defesa razoável”: kaqh'kovn fasin ei\nai o} pracqe;n eu[logovn i[scei ajpologismovn
(D.L., VII, 107). Ratio probabilis portanto designa a justificativa razoável que pode ser apresentada para a
realização dessas ações que, ainda que não representem honesta, estão em harmonia com a natureza. A
seqüência da passagem citada por Diógenes revela a insuficiência da tradução proposta por Cícero e
mesmo da tradução ordinária do termo em português (dever), pois o kaqh'kon designa também a ação
apropriada no que diz respeito ao comportamento de animais e plantas.
Dentre as que são desse gênero: estranha a inclusão desse anafórico no plural (cf. eorum). Julgamos
que ele se justifica pela idéia coletiva que há em genus (ou seja, trata-se de uma silepse de número); do
contexto, compreende-se que a razão exige a realização de determinadas ações (os deveres) dentre as que
são do gênero das ações indiferentes.

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É de tal gênero, portanto, o dever... Wrigth argumenta (op. cit., p. 168) que a passagem que se inicia
em quoniamque in iis rebus e segue até o fim da seção 58 é, talvez, uma versão alternativa do início desse
parágrafo. De fato, pouca informação se acrescenta e a última frase, em especial, é quase uma recuperação
total de expressão utilizada acima.
XVIII, 59 O sábio pratica algumas dentre essas ações intermediárias... Começa a se desenhar aqui
a distinção entre officium medium (kaqh'kon me;son) e officium perfectum (katovrqwma, também vertido por
rectum factum, recte factum e actio recta). Em certo sentido, pode-se dizer que o officium medium é uma
espécie de ação moralmente correta, mas de um nível inferior. É dessa forma que o conceito é tratado em
um passo do De officiis, bastante semelhante ao que vemos na exposição de Catão: “Portanto, estes
deveres, de que tratamos nestes livros, eles [os estóicos] dizem que são como que um tipo de ação honrosa
de segundo nível, próprio não apenas dos sábios, mas comum a todo o gênero de homens”. Haec igitur
officia, de quibus his libris disserimus, quasi secunda quaedam honesta esse dicunt, non sapientium modo
propria, sed cum omni hominum genere communia (De officiis, III, 15). Assim, também o sábio realiza
ações que se fundamentam em justificativas racionais. Sob um aspecto, a ação apropriada (ou dever)
realizada pelo sábio é média, porque diz respeito àquilo que é intermediário, isto é, que não é nem bom
nem mau. Mas, como veremos mais adiante, para o sábio, os deveres são, sob outro aspecto, ações retas
no sentido estrito, uma vez que o juízo que eles fazem de todas as situações é sempre infalível, já que
compreendem a harmonia que existe entre todas as coisas. Essa harmonia se manifesta neles próprios. A
alma dos sábios se move em harmonia com a natureza. Esse movimento se manifesta no desejo, ou na
intenção reta, que é o verdadeiro critério pelo qual a ação é dita verdadeiramente honrosa. Assim, Bevan,
estudioso do estoicismo, pode afirmar: “os kathekonta que se apresentam ao homem comum não são um
conjunto de obrigações diferente, um esquema de ações diferente daqueles que se apresentam ao sábio (...)
são neutros que se tornam bens apenas quando preenchidos pelo espírito que neles é colocado pelo sábio”
(Bevan, E., 1913).
Chega-se a essa conclusão também por meio do seguinte raciocínio. Recordemos que a expressão
argumenti conclusio (cf. Acad. II, 26 e De finibus III, 26) refere-se à demonstração silogística. É o mesmo
caso da expressão que ocorre aqui: conclusione rationis.
Dever incompleto: o officium medium, tratado aqui como inchoatum, portanto, pode ser encarado
como uma etapa do desenvolvimento moral do ser humano. Trata-se da ação apropriada, mas não perfeita
do ponto de vista moral. Recordemos que o sentimento de dever ocorre no ser humano desde a infância, já
que o impulso à autopreservação, que se ajusta à natureza, pode ser entendido como um dever, uma ação
apropriada (cf. seção 20). Entretanto, apenas com a consciência da harmonia que existe entre todas as
coisas, a ação apropriada se torna moralmente perfeita. O homem sábio, então, decide agir de modo
apropriado com pleno conhecimento do que seja apropriado, pois ele reconhece a conuenientia, que se

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manifesta mesmo em seu equilíbrio anímico. Desse modo, a mesma ação pode ser um dever médio, ou um
dever perfeito. A diferença está na sabedoria daquele que a pratica. É justamente o que o exemplo seguinte
expressa.
Se restituir um depósito de modo justo está entre as ações retas... A mesma ação, a restituição de
uma soma de dinheiro, pode ser compreendida como reta, ou como simplesmente preferível. A ação em si
é neutra: não é boa nem má. Ocorre que, enquanto o homem que faz progressos em direção à virtude
simplesmente restitui o dinheiro, porque isso é preferível e apropriado, o sábio o faz com o conhecimento
da justiça, ou seja, com sabedoria.
De onde resulta que o dever reside nessas ações que denominamos intermediárias. A demonstração
de que o dever é um intermediário e um tipo de ação comum a todos os homens parte da retomada da
teoria da conciliatio. Se a ação apropriada é assim considerada porque está de acordo com a natureza e,
por outro lado, se há uma tendência universal entre os homens (e mesmo entre todos os seres vivos) que
consiste em acolher o que é segundo a natureza, é necessariamente comum a todos os homens a realização
das ações apropriadas. Para alguns, como temos visto, essas ações não passam de ações neutras, visto que
o bem está na sabedoria.
XVIII, 60 A questão do suicídio é bastante importante no contexto da filosofia helenística. Vimos,
no primeiro diálogo, a maneira como os epicureus lidam com esse tema. Nos livros III e IV do De finibus,
ele é também importante do ponto de vista dramático. Todo leitor romano da época conhecia a história
particular de Catão. Essa personagem, que vem sendo representada como um estóico que se mantém fiel à
doutrina e sobretudo ao pensamento dos autores mais antigos do Pórtico, é forjada a partir do homem que,
após a derrota das forças republicanas, na batalha de Tapso, havia tirado a própria vida na cidade africana
de Útica, (que desde então se associa a seu nome), em repúdio ao novo regime político que se desenhava
com a ascensão de César, desde então chefe único do poder militar e político. Catão preferiu morrer a se
submeter ao tirano. Do ponto de vista histórico, portanto, o tópico do suicídio, sobretudo na discussão
entre Cícero e Catão, é extremamente fecundo. A posição do Cícero histórico não é simples. Por um lado,
ele louva a ação de Catão, que lhe parece apropriada. Por outro, ele deve, de alguma forma, justificar a
decisão que ele próprio, defensor dos valores republicanos, tomou no contexto do fim da guerra civil.
Cícero preferiu se submeter à clemência do novo tirano. Com relação à doutrina, que aparece exposta em
Diógenes Laércio, VII, 130, recordemos que tanto a vida quanto a morte são indiferentes de acordo com o
sistema estóico. É verdade que a vida, que está em conformidade com a natureza, é um indiferente
preferível. De qualquer modo, se uma decisão deve ser tomada entre a ação reta e a vida, o sábio vai
escolher se adequar à virtude e, desse modo, não hesitará em morrer. Segundo o mesmo princípio, pode-se
compreender a ação heróica que termina com a morte honrosa, quando ela favorece a pátria ou os amigos.
Se, por outro lado, não está em jogo uma ação virtuosa ou viciosa, a decisão se dá em termos de

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intermediários. Nesse caso, a escolha entre a vida e a morte se reduz a uma espécie de cálculo. É a isso
que se refere aqui Catão: se um homem tem mais coisas segundo a natureza (tais como saúde, riqueza,
etc.) do que coisas que lhe são contrárias (doenças, e rejeitáveis em geral), ele pode escolher o suicídio. O
tema do enfretamento virtuoso da morte, em filosofia, tem um antecedente ilustre: o caso de Sócrates. Sob
certo aspecto, sua morte pode ser vista como um suicídio. Em primeiro lugar, porque ele próprio é o
agente último, já que, pela lei ateniense, teve de tomar a cicuta que causaria sua morte. Por outro lado,
mesmo que o Sócrates do Fédon afirme que nós só podemos tirar nossa própria vida, uma vez que a
divindade nos tenha dado um sinal para que o façamos (Platão, Fédon, 62a), o discurso provocativo que
lhe é atribuído na Apologia representa uma personagem que não parece obstinada em se subtrair à
condenação e à execução, que, diga-se de passagem, ele julga injustas. Talvez tenha sido esse o sinal dado
pelo seu deus. Ele morreu como um homem justo, vítima da injustiça dos outros. Cabe lembrar que,
segundo a récita de Plutarco (Vidas Paralelas, Catão, 67-70), antes de se golpear com um punhal, Catão
teria lido o Fédon de Platão. Encontramos narrativas interessantes também a respeito da morte de alguns
dos antigos estóicos. Diógenes Laércio (VII, 28) transmite a versão tradicional da morte de Zenão: o
filósofo, já bem velho (a idade é controversa), passeava, quando tropeçou e quebrou um dedo do pé.
Percebeu que havia chegado sua hora e, prendendo a respiração, morreu. A anedota, que beira o cômico,
por conta do aspecto corriqueiro da situação, indica a indiferença com que o fundador do estoicismo
olhava a morte. A morte de Cleantes, outro importante expoente do estoicismo é também narrada por
Diógenes (VII, 176). Já bem velho, o filósofo se submeteu a um tratamento médico, no qual lhe foi
prescrito um jejum de dois dias. O tratamento deu resultado e os médicos o autorizaram a retomar sua
dieta regular. Cleantes, entretanto, julgando que já havia vivido o suficiente, decidiu seguir com o jejum
até a morte.
Por fim, devemos dizer algo ainda a respeito de nossa opção de tradução para o termo stultus.
“Tolo”é a tradução mais corriqueira. Note-se, entretanto, que, no contexto da filosofia estóica, stultus é
sinônimo de insipiens, uma vez que apenas todo aquele que não é sábio (insipiens) é tolo, ou louco (cf. o
quarto dos Paradoxos dos estóicos: omnem stultum insanire).
XVIII, 61 Deixe mesmo a sabedoria para trás. A vida do sábio é a sabedoria. É somente nesse
sentido que podemos entender que o sábio possa abandonar a sabedoria, quando seu julgamento, depois de
feito o cálculo a respeito dos indiferentes, impele-o ao suicídio.
XIX, 62 Relaciona-se com essa questão... À questão dos deveres está ligada a reflexão sobre os
princípios da sociedade humana. Seguindo o mesmo raciocínio, deve-se entender que a afeição que os pais
dirigem aos filhos é uma ação apropriada, já que é conforme à natureza. O argumento será desenvolvido a
seguir.

497
Configuração dos membros. Assim traduzimos, por julgarmos que há uma hendíadis na expressão
figura membrisque (cf. Rubrichi, ad locum).
E, na verdade, não seria coerente que a natureza... O primeiro argumento (cf. quod primum
intellegi debet) que busca demonstrar que o amor pelos filhos é algo que acontece naturalmente leva em
consideração a configuração do nosso corpo. Ele tem tal disposição que se torna evidente que é uma meta
da natureza a procriação. Por outro lado, não seria coerente que a natureza, que nos impele à procriação,
negligenciasse os pequenos seres que nascem. (Essa visão teleológica da natureza já apareceu na seção 16,
que tratava da tendência primeira). Dessa forma, é também ela que nos imbui de amor por nossos filhos,
para garantir a procriação e o desenvolvimento dos novos seres. Wrigth (op. cit., p. 172), argumentando a
partir da teoria da oijkeivwsi" (que de fato reaparece aqui com uma aplicação sociológica), diz que, quando
nasce, a criança tem como primeira tendência o amor a si e, do mesmo modo, a autopreservação. Num
primeiro momento, entretanto, a relação imposta pela natureza entre mãe e filho é tão íntima, que um
compreende o outro como uma extensão de seu próprio ser. Aqui, contempla-se o sentimento que a mãe
experimenta. Da expansão dessa afeição inicial entre mãe e filho forma-se a comunidade humana, num
movimento que pode ser descrito como uma sucessão de círculos concêntricos. Em primeiro lugar, um
círculo que representa a conciliatio do indivíduo consigo mesmo. A seguir, um círculo que representa a
relação entre os da família (como a descrita aqui, entre mãe e filho). Depois, a relação entre os próximos,
entre os de uma mesma cidade e, por fim, o círculo que representa a comunidade universal de todos os
homens, a humanidade (cf. Estobeu, IV, 27, 23). Essa tese que defende que o homem está naturalmente
voltado para a vida em sociedade, o estoicismo a divide com o aristotelismo (cf. Aristóteles, Política
1253a3, em que o homem é definido como “animal político por natureza”,
oJ a[nqrwpo" fuvsei politiko;n zw'o/ n). De fato, idéias semelhantes reaparecem no livro V do De finibus,
em que se faz a exposição do pensamento sincrético de Antíoco (veja-se, por exemplo, V, 65).
Da natureza a própria voz parecemos ouvir. A imagem é interessante. O grito dos animais dando à
luz os seus filhotes é como a voz da natureza.
Por isso, <assim como> é evidente que a natureza nos faz ter aversão à dor... O segundo
argumento para demonstrar o amor pelos filhos se fundamenta na observação do que se passa entre os
animais. Eles sofrem com o parto e com a criação de seus filhotes. Ora, é evidente que a dor é algo
contrário à natureza. Mas ela é suportada por conta de um impulso natural mais forte que é o amor que os
genitores sentem pelas crias. Alguns interessantes exemplos do cuidado dos animais com suas crias são
apresentados no De natura deorum (II, 129).
XIX, 63 A conciliação comum dos homens com os homens: resolvemos traduzir commendatio como
que a partir de seu sinônimo, conciliatio, por julgarmos que a expressão ficaria mais compreensível sem
que fosse necessário nos afastarmos muito da expressão ciceroniana. Desenha-se aqui a teoria da

498
oijkeivwsi" social. Análogo ao movimento pelo qual o homem, enquanto indivíduo, se concilia consigo
mesmo, ou seja, torna-se próprio a si mesmo, há um movimento, também de origem natural, que torna os
homens familiares uns aos outros. É essa a base da organização dos homens em sociedade. Idéia
semelhante é expressa, por exemplo, no De officiis, em que o ponto de partida é também o amor entre pais
e filhos. “Essa mesma natureza, por meio da força da razão, concilia o homem com o homem na direção
de uma associação tanto de linguagem quanto de vida e, em primeiro lugar, faz nascer dentro dele um
amor especial por aqueles que foram gerados e o impele a desejar que haja encontros e agrupamentos de
homens e a deles participar”. Eademque natura ui rationis hominem conciliat homini et ad orationis et ad
uitae societatem ingeneratque inprimis praecipuum quendam amorem in eos, qui procreati sunt
impellitque, ut hominum coetus et celebrationes et esse et a se obiri uelit (De officiis, I, 12). Também a
fundamentação que faz das leis tem elementos dessa teoria estóica. O trecho que citamos a seguir, do De
legibus, vem da fala da personagem de Cícero: “mas dentre todas as coisas que freqüentam as discussões
dos homens doutos, nada sem dúvida tem mais valor do que a plena compreensão de que nós nascemos
inclinados à justiça e de que o direito não foi estabelecido pela opinião, mas pela natureza. Isso logo será
evidente, se observares com atenção a sociedade e a comunidade que os homens mantêm entre si. Pois não
há nada que seja tão semelhante a outra coisa, nada que seja tão parecido, quanto nós somos entre nós
mesmos”. Sed omnium quae in hominum doctorum disputatione uersantur, nihil est profecto praestabilius,
quam plane intellegi, nos ad iustitiam esse natos, neque opinione sed natura constitutum esse ius. Id iam
patebit, si hominum inter ipsos societatem coniunctionemque perspexeris. Nihil est enim unum uni tam
simile, tam par, quam omnes inter nosmet ipsos sumus (De legibus, I, 28). Vale a pena recordar ainda um
célebre verso do Heautontimoroumenos de Terêncio, que condensa essa parte da doutrina estóica. Trata-se
do verso 77 dessa comédia, já citado e discutido em comentário à seção 3 do livro I. Sabemos como o
pensamento de Panécio influenciou os homens da geração de Terêncio.
Aquele animal que vive numa ampla concha, chamado pina, e aquele outro... Rubrichi (ad locum)
pensa que o sujeito lógico tanto de monuisse quanto de caueret é o pinoteres. Sua tradução fica mais ou
menos assim: “de modo a parecer que tenha dado um aviso de que está de guarda”. Já Wright, interpreta
desta forma em sua tradução: “so that it seems to have given a lock-out warning”. Ao que parece, julga
que caueret tem pina como agente lógico. A opção de Wright, que coincide ainda com a tradução de
Marinone, parece mais razoável, pois representa de modo mais preciso a relação que os antigos julgavam
haver entre os dois animais. Cícero provavelmente reproduz o raciocínio de Crisipo a respeito da relação
entre esses dois animais (transmitido por Ateneu, III, 89d e que é também mencionado por Plínio, o
antigo, em Nat. Hist., IX, 142). Pinoteres ou pinnoteres é termo composto de pivnnh, que designa o
molusco (pina ou pinna), e threvw, verbo que significa “guardar, vigiar”. Os dois animais se alimentam e
se protegem em uma relação de simbiose. O molusco abre sua concha e, com isso, permite que pequenos

499
peixes entrem nela. O crustáceo, com a abertura da concha, pode nadar para fora dela e proteger o
molusco de predadores. Havendo perigo, ele pode retornar e, com uma pinçada, advertir o molusco que,
então, fecha a sua concha. Desse modo, ambos se protegem mutuamente. O aviso serve também para a
obtenção de alimentos. O crustáceo pode, ao ver a concha repleta de peixinhos, dar o sinal ao molusco.
Fechada de repente a válvula, ambos garantem seu alimento. A versão de Cícero, por conta do uso do
verbo caueo, parece dar maior ênfase à proteção, que, aliás, é o elemento que serve para denominar um
dos animais. Vale dizer, contudo, que essa simbiose não é atestada pela biologia moderna (cf. Rubrichi, ad
locum).
As cegonhas: o exemplo das cegonhas é menos evidente do que o das abelhas e formigas, mais
tradicionais. Mas, porque elas constroem ninhos comuns e migram juntas, são também representantes de
uma vida comunitária no reino animal (cf. Wright, op. cit. p. 270).
Muitos mais estreitos são os laços entre os homens: entre os homens, as relações solidárias são mais
intensas porque não se restringem apenas ao âmbito da alimentação e da proteção mútua. Eles regem, sob
a forma das assembléias e dos Estados, grande parte de nossas vidas. Vimos, em nota anterior, como essa
concepção do homem como animal essencialmente político está presente em outras obras de Cícero.
XIX, 64 O mundo... é regido pelo nume dos deuses. A tese da providência divida é central no
sistema estóico. Atravessa toda a história da doutrina do Pórtico e tem expoentes importantes no Hino a
Zeus de Cleantes e, já na época imperial romana, no De prouidentia de Sêneca. Cícero também lhe dá
tratamento mais extenso na parte teológica de sua obra. No De natura deorum (II, 75), fala assim Balbo, o
expositor do pensamento estóico: “Eu afirmo que o mundo e todas as partes do mundo foram
estabelecidos, desde o início, e são governados durante todo tempo pela providência divina.” Dico igitur
providentia deorum mundum et omnes mundi partes et initio constitutas esse et omni tempore
administrari. Mais adiante, ele volta a tratar do assunto, (em II, 133), servindo-se de argumentos
semelhantes ao que vemos aqui. A organização de tudo que a natureza produz, manifesta na configuração
dos corpos dos animais e nas relações harmônicas que existem entre eles é uma prova de que há um
intelecto que rege a natureza de modo racional. Esse intelecto, o desejo coletivo dos deuses (cf. Wright,
op. cit, p. 175), uma vez que é sábio, assegura que tudo tende em direção ao melhor. Sistemas que, por
outro lado, descartam a intervenção dos deuses no mundo, apontam justamente como prova uma
desorganização que eles julgam haver na natureza (cf. Lucrécio, II, 181).
O mundo é... como que a cidade comum e a associação política dos homens e dos deuses. Outra tese
importante. Esta, muito provavelmente, foi influenciada pela filosofia cínica (cf. Laurand, V., 2005, pp.
59-69). Diógenes Laércio alude às raízes cínicas do cosmopolitismo estóico quando diz que, segundo
algumas pessoas do tempo de Zenão, o fundador da Stoa teria escrito a sua Politeiva “sobre a cauda do
cachorro”, ejpi; th'" tou' kuno;" oujra'", o que faz alusão ao fato de que Zenão fora discípulo do cínico

500
Crates (cf. D.L., VII, 4). O mesmo biógrafo atribui a Diógenes, o cínico, a afirmação de era um cidadão do
mundo, que teria sido pronunciada em resposta a uma questão sobre sua procedência,
(ejrwthqei;" povqen ei[h, kosmopolivth", e[fh. Cf. D.L., VI, 63). Em sua República, Zenão teria dito que
todos os homens que não são bons são escravos, inimigos e avessos aos outros homens e que apenas os
homens bons seriam verdadeiros cidadãos, amigos e benévolos com relação aos outros homens (cf. D.L.,
VII, 32-33). Se essa afirmação se distancia um pouco do que é defendido na exposição de Catão, a
incoerência é apenas aparente. Catão considera que o mundo todo é como que uma cidade comum a
deuses e homens, isto é, que todos os homens se submetem às mesmas leis, que são naturais (às quais já
nos referimos, cf. comentário à seção 38), estabelecidas desde sempre pelos deuses. Os insensatos, embora
devessem estar submetidos à lei natural (que se manifesta em cada homem por meio da razão), dela se
afastariam, tornando-se estrangeiros a todo o gênero humano. Nesse sentido, o sábio estóico é
kosmopolivth", é um cidadão do mundo, no sentido de que é compatriota de todo e qualquer ser humano,
com o qual ele compartilha a mesma lei: a razão. Essa mesma doutrina já aparecera em outras obras da
filosófica de Cícero. Quando o autor trata de organização política e das leis que a regem, as teorias do
cosmopolitismo e do direito natural estão juntas (cf. Del Re, R, 1978). Assim, no De re publica, Filo
defende que o conhecimento da natureza é pertinente à discussão política: “Acaso tu não consideras que
interessa a nossos lares saber o que se passa e o que acontece em nosso lar? Lar que não é aquele que as
nossas paredes e muros cingem, mas este mundo como um todo, que os deuses nos deram como um
domicílio, como uma pátria que nós temos em comum com eles? Sobretudo uma vez que, se ignorarmos
tais coisas, muitas coisas, e importantes, nós necessariamente ignoraremos”. An tu ad domos nostras non
censes pertinere scire, quid agatur et quid fiat domi? quae non ea est, quam parietes nostri cingunt, sed
mundus hic totus, quod domicilium quamque patriam di nobis communem secum dederunt, cum
praesertim, si haec ignoremus, multa nobis et magna ignoranda sint (De re publica, I, 19). Esse duplo
sentido de domus reflete o duplo uso que os estóicos faziam da palavra povli". Havia uma verdadeira
“cidade”, aquela que é regida pela lei natural, pátria de deuses e homens. As “cidades” reais, criadas pelos
homens, seriam manifestações imperfeitas da verdadeira cidade, que é a comunidade formada por toda a
humanidade. Veja-se também, com relação à lei natural, a citação que apresentamos do De legibus no
comentário à seção 38. Cabe ainda dizer que muitos quiseram ver nessa doutrina uma influência da
conjuntura política em que nasceu o estoicismo, que é posterior à expansão do império de Alexandre,
política que, alargando as fronteiras do mundo grego, apagaria gradualmente a dicotomia entre gregos e
bárbaros (cf. Wright, op. cit., p. 175). Devemos recordar, entretanto, que elementos dessa teoria devem
remontar mesmo ao pensamento de Sócrates. Cícero preserva uma saborosa anedota de que participa o
ilustre filósofo. “Quanto a Sócrates, ao lhe perguntarem qual era sua pátria, ‘o mundo’, diz-se, ele teria
respondido, pois se considerava habitante e cidadão do mundo todo”. Socrates quidem cum rogaretur,

501
cuiatem se esse diceret, 'mundanum' inquit; totius enim mundi se incolam et ciuem arbitrabatur
(Tusculanae, V, 108). Interessante notar a semelhança dessa anedota com aquela, citada acima, que, na
obra de Diógenes Laércio, trata do cínico Diógenes.
E não se deve repreender mais o traidor da pátria do que quem deserta o interesse ou do bem-estar
comum com vistas a seu próprio interesse ou bem-estar. Afirmações como essa, que atacam o mal
político, assim como o tirano, devem ser contextualizadas historicamente. Já falamos antes da morte de
Catão, que suicidou-se para não sobreviver à tirania. Dissemos também que, na época da publicação do De
finibus, César governava Roma como senhor único. Evidentemente que as críticas ao tirano transcendem o
tempo, mas devemos considerar a importância que elas têm no contexto em que Cícero escreve sua obra.
Em verso grego, bastante propagado, costuma-se recitar: referência provável ao verso citado por
Dio Cássio que diz ejmou' qanovnto" gai'a meicqhvtw puriv (Nauck, fragmento 513, citado por Wright, op.
cit., p. 176) que é, talvez, do Belerofonte de Eurípides. Uma tradução prosaica seria: “estando eu morto,
que a terra se misture ao fogo”. O célebre verso, que resume o sentimento de desdém pelo restante da
humanidade, encontrou uma variação engenhosa na boca de Nero (segundo Suetônio, ao menos). O
imperador, na ocasião do incêndio de Roma, cuja culpa a tradição lhe atribui, teria corrigido o verso:
‘immo’ inquit, ‘ejmou' zw'nto"’. “‘ou melhor’, disse ele, ‘estando eu vivo’” (Suetônio, Vita Caesarum, Vita
Neronis, 38). Parece haver nessa passagem uma referência à expressão naturae ipsius uocem uidemur
audire. Se o sofrimento dos animais na hora do parto representa a voz da natureza, versos como o citado
acima representariam uma uox inhumana et scelerata, contrária à natureza humana e às leis que unem a
humanidade. Além disso, deve-se notar que os laços que unem a humanidade se expandem também no
tempo. Se os limites de nossas cidades reais não os detêm, tampouco o faz o tempo. Estamos unidos pela
razão aos homens do futuro.
XX, 65 Os testamentos e as recomendações dos moribundos. Recordemos que a acusação de
incoerência que a personagem de Cícero fazia a Epicuro, por achar que sua doutrina destoava de sua ação,
no final do livro II (96-99), ao comentar sua última carta, partia desse tipo de consideração, que, agora,
aparece desenvolvida na exposição sistemática do estoicismo.
Ora, impele-nos a natureza a desejarmos ser úteis... sobretudo ensinando e transmitindo os preceitos
da prudência... A presença de uma tendência primeira em direção ao conhecimento já foi demonstrada
quando se fez a exposição da teoria da conciliatio (ver seções 16 e 17). O outro aspecto da conciliatio, que
nos inclina em direção aos outros, com um afeto semelhante ao que temos por nós mesmos, desenvolvido
neste ponto da exposição, implica a propensão ao ensino. Notemos como essas afirmações da personagem
de Catão servem para justificar a pertinência do projeto educacional de Cícero que se manifesta em toda
sua philosophica.

502
XX, 66 Hércules: herói cujo ciclo de mitos é vastíssimo, Héracles, ou Hércules, segundo a forma
latina, era cultuado em boa parte do mundo mediterrâneo (cf. Grimal, 1951). Suas célebres ações, em que
muitas vezes o semideus, filho de Alcmena e Zeus, livra a terra de monstros, foram interpretadas por
alguns filósofos como imagens dos princípios da civilização. Já os cínicos o tomavam como favorito (cf.
Wright, op. cit, p. 178), procedimento que foi adotado também pelos estóicos. Ao lado de sua devoção ao
gênero humano, os estóicos louvavam (como mostra Cícero no De officiis, III, 25 e nas Tusculanae, II, 22)
ainda sua capacidade de suportar o sofrimento.
Líber: há um deus Liber, divindade antiga, que é originalmente italiano. Mas, a partir de uma outra
obra de Cícero, aprendemos que os romanos designam por esse nome dois deuses. O Liber cultuado pelos
antigos romanos é o filho de Ceres; chama-se Liber também, por outro lado, o filho de Sêmele e Zeus, isto
é, Baco. Na passagem do De natura deorum (II, 62), a que nos referimos, a explicação vem como um
parêntese, que busca especificar quem é o Liber de que se trata na exposição: hunc dico Liberum Semela
natum, isto é, “eu me refiro àquele Liber que é filho de Sêmele”. A associação entre os dois deuses pode
ter surgido por motivos lingüísticos, uma vez que Dioniso tinha como um de seus nomes de culto Luai'o",
isto é, o que liberta, o que livra das aflições. Do deus original italiano, pouco se sabe. Com relação a esta
passagem do De finibus, admitimos, por comparação com o De natura deorum, e uma vez que o deus
Liber foi mencionado ao lado de Hércules, que Catão se refere aqui a Baco. Se for esse o caso, vale
lembrar que também Baco é um semideus, filho de Zeus com uma mortal, mas que detém um estatuto
especial, uma vez que parte de sua gestação teria transcorrido dentro da coxa de Zeus. Seu mito é também
vastíssimo e conta com importantes elementos que fazem dele um paladino da humanidade. Dentre esses,
o ensino da cultura da uva e da produção do vinho, que livra os homens das aflições. Sob sua tutela
nascem também as representações dramáticas. Para mais informações, ver Grimal, 1951.
Uma comunidade civil. Talvez soe estranha a expressão utilizada no texto ciceroniano (cf. ciuilem
communitatem) para tratar, neste passo, do cosmopolitismo. Fala-se de uma comunidade de cidadãos, e
não de homens! Note-se que quando se fala do vínculo legal que o une os homens, o texto traz ciuile ius,
que vem, entretanto, marcado por um quasi, que indica a impropriedade relativa da expressão (cf. 67).
Evidentemente, podemos entender que os homens sejam aqui tratados como ciues no sentido lato, de
homens submetidos à lei natural, promulgada pela providência divina. A expressão communitas ciuilis,
entretanto, parece trazer consigo a concepção, que pode ser verificada em outros textos de Cícero (cf. De
re publica I, 70-71), de que a res publica romana estivesse, de alguma forma, realizando historicamente o
regime ideal da ciuitas omnium gentium construída teoricamente pela doutrina dos estóicos.
Não haveria espaço algum nem para justiça, nem para a bondade. Esta afirmação tem relação com
a teoria da extensão da virtude, exposta na seção 48.

503
XX, 67 De modo que os homens possam se servir dos animais para seu próprio proveito sem
injustiça. Em VII, 129, Diógenes Laércio, servindo-se da autoridade de Crisipo (a obra citada é um Sobre
a justiça) e Posidônio (Sobre o dever), afirma que, para a Stoa, nós não devemos nada legalmente aos
animais por causa da dessemelhança entre nós e eles
(mhde;n ei\nai hJmi'n divkaion pro;" ta; a[lla zw/a
' , dia; th;n ajnomoiovthta). Se, num sentido, o sopro
racional está presente em todas as partes do mundo, já que ele é regido pela providência divina, apenas o
homem, dentre os animais, tem-no como traço distintivo de sua natureza e pode desenvolvê-la de modo
perfeito. Já que a lei que une todos os homens é a razão, homens e animais irracionais não pertencem à
mesma comunidade. Sendo, portanto, o animal que traz em si a marca da racionalidade que permeia todo
o universo, o homem é o animal mais importante e toda natureza se coloca a sua disposição.
O direito não se põe contra a que seja seu o que é de cada qual. A propriedade privada, então, é
garantida pela doutrina estóica. Seu caráter é, entretanto, precário. Novamente aparece a metáfora do
teatro. O lugar que ocupamos durante o espetáculo pode ser considerado, sob certo aspecto, nosso, mas,
terminada a apresentação (entenda-se, a vida), deixamos o assento, que não é de fato nosso mais do que é
de todos os outros homens. Em certo sentido, a propriedade privada tem existência semelhante à das
cidades reais. Por natureza, todos os bens são comuns aos sábios, isto é, àqueles que se submetem
totalmente à lei natural (cf. D.L., VII, 125). Em termos práticos, a riqueza obtida de modo merecido
poderia ser considerada como um preferível, digno de estima (cf. 49-50).
XX, 68 Está de acordo com sua natureza que o sábio queira gerir e administrar a república.
Também a participação política decorre da natureza. Uma vez que ela nos impele em direção aos outros e
nos faz olhá-los com afeição e, assim, nos impulsiona a formar associações com os outros homens, cabe
àquele que tem acesso, por meio da razão, à lei divina, prestar seus serviços à organização de cidades que
se assemelhem, o quanto possam, ao mundo, conforme ele é regido pela providência. É nesse sentido que
o poder político é uma oportunidade para o sábio estender a virtude. Sob esse aspecto, o estoicismo se
distancia radicalmente da concepção epicurista, que, como vimos no primeiro diálogo, prega a não
participação política. Evidentemente, uma doutrina que fundamenta a participação dos melhores na
condução dos interesses da cidade é bem interessante à formação da aristocracia governante romana e, em
muitos aspectos, está em conformidade com os valores tradicionais da sociedade romana. É assim que no
De republica, obra em que o autor professa se afastar da doutrina dos gregos, com vistas a mostrar que a
tradição romana foi capaz de estabelecer o mais excelente regime de governo sem a ajuda de teorias
estrangeiras, podemos ler a seguinte afirmação: “uma coisa eu estabeleço: tamanha é a necessidade de
virtude e tamanho o amor que visa defender o bem-estar comum, ambos dados ao gênero humano pela
natureza, que essa força venceu toda a sedução do prazer e do ócio”; unum hoc definio, tantam esse

504
necessitatem uirtutis generi hominum a natura tantumque amorem ad communem salutem defendendam
datum, ut ea uis omnia blandimenta uoluptatis otiique uicerit (De re publica I, 1).
E nem mesmo outros amores, se veneráveis, eles julgam estranhos ao sábio. Wright traduz de modo
interpretativo, para, como ela própria diz (op. cit., p. 181), tornar clara a afirmação: “even homosexual
love if pure”. A expressão corre o risco, entretanto, de ser lida de maneira anacrônica pelo leitor
desavisado. De fato, utilizado logo depois da relação conjugal entre homem e mulher com vistas à
procriação, que, para a doutrina estóica, é afinal uma meta da natureza, o termo amores deve se referir a
outro tipo de relação amorosa. O amor entre filósofo e jovens discípulos é muitas vezes representado na
obra de Platão (como no Fedro, no Banquete e no Alcibíades). O amor do filósofo pelos discípulos não é
jamais, entretanto, sexual, ele visa à alma e, nela, à virtude e ao bem. É nesse sentido, muito
provavelmente, que a personagem de Catão qualifica os amores de sanctos. Devemos recordar que, para o
Sócrates platônico, E
[ rw" é uma divindade importantíssima, que impulsiona o filósofo em direção ao belo
em si, à verdade, ao bem. No que diz respeito aos estóicos, em VII, 129, Diógenes Laércio informa que
essa escola autoriza a relação amorosa entre o filósofo e jovens discípulos que demonstrassem, por meio
de sua aparência, uma propensão à virtude. Cf. ainda Cícero, De natura deorum, I, 79.
Dizem que cabem bem ao sábio os princípios e a vida dos cínicos... O modo de vida dos filósofos
cínicos, os filósofos “cães”, é conhecido por meio das inúmeras e saborosas anedotas sobre eles
transmitidas por autores como Diógenes Laércio (cf. livro VI). Os cínicos, que também queriam
fundamentar a ação humana em princípios naturais, defendiam que o homem se desapegasse de todas as
convenções sociais. Viviam pelas ruas, sem preocupação com estarem vestidos; sem demonstrarem o
menor pudor, faziam sexo pelas ruas à luz do dia, bem como suas necessidades fisiológicas. Ao que
parece, o estoicismo inicial (como já vimos) foi muito influenciado pelo cinismo. Na menção que faz à
República de Zenão (VII, 34), Diógenes Laércio diz que, nessa obra, o estóico defendia que os sábios
partilhassem suas mulheres e que não se preocupassem em cobrir seus corpos. Em VII, 121, o biógrafo diz
que, para Zenão e Crisipo, o sábio devia viver como um cínico, ou como um cão. Outros expoentes da
escola, posteriores, como Panécio, por exemplo, negaram o modo de vida dos cínicos. Apresentando esse
ponto de vista, diz Cícero no De officiis (I, 148): Cynicorum uero ratio tota est eicienda, isto é, “os
princípos dos cínicos devem ser completamente rejeitados”.
XXI, 69 Tanto os benefícios quanto os prejuízos... são comuns a todos... Em primeiro lugar,
devemos entender o que Catão quer dizer aqui por communia. Como vimos, é dever do sábio participar da
vida política. Os wjfelhvmata são os efeitos das ações retas realizadas pelos sábios. De acordo com a
concepção do cosmopolitismo, beneficiar uma pessoa é beneficiar a todas, assim como prejudicar alguém
é como fazer mal a todos, inclusive a si mesmo (cf. Wright, op. cit. p. 182). Desse modo, os benefícios são
comuns a todas as pessoas, ou seja, alcançam toda a humanidade. Por outro lado, como são efeitos da ação

505
reta, ou seja, do único e verdadeiro bem, do ponto de vista do agente, os benefícios devem ser todos iguais
entre si, já que uma ação reta não pode ser mais reta do que outra. O bem, recordemos, tem valor absoluto.
O raciocínio análogo vale para os prejuízos, que são os resultados dos peccata. Como todas as faltas têm o
mesmo peso, do ponto de vista do agente todos os prejuízos têm o mesmo peso.
Já as vantagens e as desvantagens... sustentaram que fossem comuns, mas não iguais... Como
entram no gênero dos praeposita e dos reiecta, ou seja, como são indiferentes, os eujcrhsthvmata não
podem ter o mesmo peso entre si, pois a eles se aplica propriamente a teoria do valor, que torna mais
estimável o que for mais conforme à natureza. Assim, alguém pode ser mais rico, ou mais pobre, mas não
pode ser mais virtuoso ou menos. O mesmo raciocínio se aplica aos duscrhsthvmata. Vale dizer que essa
distinção entre eujcrhsthvmata e duscrhsthvmata não foi registrada pela tradição estóica grega
conservada (cf. Marinone, ad locum). Madvig (ad locum) interpreta o par como efeitos das ações
preferíveis ou rejeitáveis. Sendo assim, têm também alcance universal.
Mas os benefícios <e os danos> são considerados comuns, as ações retas e as faltas não são tidas
por comuns. Há oscilações quanto à interpretação desta afirmação. Para Martha, a ação reta, benéfica por
seu efeito, é, enquanto ação, própria ao sujeito e, por isso, não pertence senão a ele mesmo. O mesmo se
dá com a falta (cf. Martha, p. 182, nota c à página 46). Wright, sem contradizer o que defende Martha,
interpreta de modo um pouco diferente. Pensa que as ações retas e as faltas não são universais porque as
ações retas são restritas a alguns sábios e as faltas estão restritas aos muitos insensatos. Os emolumenta (e,
por analogia, os detrimenta), sendo preferíveis, são comuns (como já vimos antes) a sábios e insensatos.
XXI, 70 Quanto à amizade, eles consideram que ela deve ser cultivada, pois faz parte do gênero
das coisas que trazem proveito. Desta simples afirmação decorre um elemento importante a respeito da
amizade. Se ela se conta entre os wjfelhvmata, é um efeito da ação reta, ou seja, do bem e, portanto, quanto
ao agente, restringe-se ao sábio. De fato, cf. Diógenes Laércio, VII, 124. Nesse sentido, parece haver uma
distinção entre as noções de societas e caritas, citadas acima, e amicitia. As primeiras seriam comuns a
todos os homens. A amizade seria uma espécie de afeição partilhada apenas pelos sábios. É o que parece
julgar também Wright (op. cit., p. 183).
Caro ao sábio é o desígnio [rationem] do amigo... Wright (p. 183) chama atenção para o uso, não
raro em Cícero (diz ela) de ratio com sentido de “business” ou “affairs”. Nossa tradução tenta apontar
para esse sentido, que o contexto parece requerer, sem abandonar totalmente o âmbito da reflexão do
indivíduo. Apresentamos, a partir de Diógenes Laércio, definição estóica de amizade:
fasi; d j aujth;n koinwnivan tina; ei\nai tw'n kata; to;n bivon, crwmevnwn hJmw'n toi'" fivloi" wJ" eJau
toi'"; “eles dizem que ela [a amizade] é a partilha comum de tudo o que diz respeito à vida em que
tratamos nossos amigos como a nós mesmos” (cf. VII, 124). Interessante como no De amicitia Cícero
recupera, ainda que não numa só fórmula, essa concepção: “A amizade não é outra coisa senão uma

506
harmonia, com afeição e benquerença, a respeito de todas as coisas divinas e humanas”. Est enim amicitia
nihil aliud nisi omnium divinarum humanarumque rerum cum benivolentia et caritate consensio (De
amicitia, 20). Em outras passagens da obra, abundam fórmulas que tratam o amigo como um “segundo
eu”, cf. alter idem (80) e exemplar sui (23). Essa completa identificação entre os amigos é idéia que já
aparece, é bom que se diga, no tratamento que dá à amizade Aristóteles (cf. Ética a Nicômaco VIII e IX;
em especial, IX, 4).
Subvertê-las completamente: peruertere traz a idéia de inverter completamente o valor da amizade,
colocá-la, por assim dizer, de cabeça para baixo. Note-se que é a tese criticada é justamente aquela
defendida por Epicuro e que foi exposta por Torquato e rechaçada pela personagem de Cícero no primeiro
diálogo.
XXI, 71 Aquele que de fato pode ser chamado e denominado ‘direito’... A oração relativa quod ita
dici appellarique possit torna preciso o sentido em que se utiliza aqui o termo ius. Não se trata do direito
estabelecido pelos homens: aquele que se aplica numa cidade qualquer que exista no mundo. Esse ius
natural é aquele estabelecido pelas leis eternas dos deuses, que rege a ciuitas omnum gentium e que faz de
todos homens cidadãos de um mesmo Estado, o mundo. Citamos Diógenes Laércio:
fuvsei te to; divkaion ei\nai kai mh; qevsei, wJ" kai; to;n novmon kai; to;n ojrqo;n lovgon, isto é: “[eles
dizem] que o justo se dá por natureza e não por convenção, assim como também a lei e a reta razão”;
(VII, 128). Vejamos como Cícero trata da lei natural em outras obras. No De re publica, podemos ler: “a
verdadeira lei é a razão reta, congruente com a natureza, difundida entre todos os homens, constante,
eterna”: est quidem uera lex recta ratio naturae congruens, diffusa in omnes, constans, sempiterna (III,
33). Uma importante passagem do De legibus estabelece a relação entre o direito natural e o direito
humano: “a lei é, portanto, a distinção entre os justos e os injustos, expressa em conformidade com aquele
que é o mais antigo princípio de todas as coisas, a natureza, segundo a qual se regulam as leis dos homens,
as quais afligem com suplício os ímprobos, defendem os bons e por eles velam”; ergo est lex iustorum
iniustorumque distinctio, ad illam antiquissimam et rerum omnium principem expressa naturam, ad quam
leges hominum diriguntur, quae supplicio improbos adficiunt, defendunt ac tuentur bonos (II, 13). Esse
tipo de discussão, quanto ao caráter convencional ou natural das leis remonta ao século V ateniense e à
dicotomia entre novmo" e fuvsi", explorada pela sofística (cf. Wright, op. cit., p. 184). Retomando a antiga
questão, o estoicismo e o epicurismo defendem posições completamente antagônicas.
A eqüidade jamais pode se separar da utilidade. A eqüidade, qualidade daquele que julga de modo
imparcial e justo, jamais se dissocia da utilidade. Se a afirmação parece paradoxal, isso se dá pela
concepção particular de bem que sustentam os estóicos. Recordemos que o único bem é o honestum.
Sendo assim, uma punição, qualquer que ela seja, se é conforme à lei natural, isto é, se é justa, sempre
trará benefícios, pois esse é o único efeito da ação reta. A demonstração de que o honestum e o verdadeiro

507
utile coincidem é uma das importantes tarefas do De officiis (sobretudo do livro III). Um interessante
exemplo da impossibilidade de conciliar a ação desonrosa ao utile se encontra em III, 46: trata-se de uma
ação cruel, cometida pelos atenienses contra os habitantes de Egina. Aparentemente era uma ação útil, já
que os homens de Egina, com poderosa frota, poderiam ameaçar o poderio ateniense. Mas, a ação cruel é,
em si, inhonesta e, portanto, nociva. E isso não apenas para quem a sofre. A retomada de teses como as
defendidas por Sócrates no Górgias de Platão parece evidente.
XXI, 72 E a essas virtudes, sobre as quais discutimos, a dialética eles ainda acrescentam... Na
história da escola do Pórtico, foi sobretudo Crisipo quem desenvolveu a dialética, que, neste sistema,
confunde-se com a lógica. A importância da dialética é atestada também por Diógenes Laércio (cf. VII,
47), que a trata como virtude e se serve de argumentação muito semelhante à que é aqui atribuída a Catão.
Cabe notar que, já que o impulso em direção ao conhecimento é natural no homem e uma vez que a recta
actio exige o conhecimento, é forçoso que a dialética, a arte que nos permite um conhecimento seguro a
respeito das coisas, seja contada entre as virtudes, isto é, que ela seja considerada como um dos aspectos
do honestum. Nós discutimos a dialética estóica, especialmente sob o prisma da crítica que dela fez a
Nova Academia, no estudo que acompanha a tradução do De finibus.
XXII, 73 À Física também, não sem justificativa, é atribuída a mesma honra... Para doutrinas éticas
que pretendem fundamentar o princípio da ação na natureza, é imprescindível (e vimos no primeiro
diálogo o caso do epicurismo) o conhecimento da natureza. Nos livros seguintes (IV e V), com recurso ao
pensamento de Antíoco, o conhecimento que têm os estóicos do que seja a natureza humana vai ser
questionado.
Quanto aos preceitos dos sábios antigos... Os dois últimos preceitos citados advêm do santuário de
Apolo em Delfos. Eram divisas do culto que celebrava esse deus. O preceito que exorta o homem ao
autoconhecimento (em grego: gnw'qi seautovn, cf., por exemplo, Platão, Fedro 230a) foi tomado pelo
Sócrates platônico como um princípio diretor de sua filosofia. Já o vimos ser utilizado no primeiro
diálogo, na refutação da doutrina de Epicuro (cf. II, 16); ele voltará a aparecer, com uma aplicação
bastante particular e mesmo polêmica com relação ao pensamento do Sócrates de Platão, no terceiro
diálogo (cf. V, 44). Sequi deum deve traduzir ejpou' qew'/ que, segundo Wright (p. 186) pode advir do
pitagorismo. A idéia, entretanto, deve ter sido difundida de modo geral no mundo grego. O que a
argumentação de Catão faz é apenas interpretá-lo sob o ponto de vista do sistema estóico. Parere tempori
não encontra qualquer correspondente grego (ainda segundo Wright). Quanto aos sapientes a que são
atribuídos esses uetera praecepta, são os chamados tradicionalmente de “sete sábios”: homens gregos que
viveram nos séculos VII e VI a.C. e que estão implicados na organização de diversas cidades da Hélade.
Dentre eles, Sólon, de Atenas, e Periandro, de Corinto.

508
... só este conhecimento pode ensinar. Se, como vimos, a justiça é natural, só o conhecimento da
natureza possibilita o que é necessário para a justa administração de uma cidade qualquer e, no âmbito
privado, para a criação e a manutenção de laços de verdadeira amizade.
A reverência aos deuses traduz pietas aduersus deos. A filosofia estóica, embora discorde da
religião tradicional, não a descarta completamente. De modo preciso, a divindade é una, singular. É o
intelecto que se infunde em todas as coisas e que rege o universo: a prouidentia. O uso do plural é
regularmente metafórico ou, para ser mais exato, é alegórico. No De natura deorum (cf. II, 60-71)
podemos ver como a exposição de Balbo pretende mostrar que os deuses tradicionais representam,
figuradamente, diversos aspectos do deus uno que é o lovgo". Dessa forma, o culto à figura de Zeus, por
exemplo, é possível, uma vez que ela seja reinterpretada e tratada como uma força que é sempre boa e que
rege o universo sempre com vistas ao que é melhor. Nesse sentido, o sábio pode “seguir o deus”, quando
ele se coloca como parceiro (pois partilha com a divindade a razão, que lhes é comum) de tudo o que
acontece como plano da providência divina. Também por isso, ele se permite cultuar os deuses
tradicionais, já que, profundamente, ele reconhece seu caráter figurativo.
XXII, 74 O admirável arranjo entre os ensinamentos e a incrível ordenação dos argumentos... Este
louvor à exposição não deve ser entendido como mera vaidade de Catão com relação a sua habilidade ou à
beleza do sistema. O que ele manifesta aqui é precisamente a idéia de sistema que, em filosofia, é algo que
tem origem no pensamento estóico. Já nos referimos a isso em comentário à passagem inicial da
exposição, quando Catão diz que vai proceder de modo ordenado, começando por aquilo que é primeiro.
Goldschmidt (1979, p. 62) aponta algumas das expressões por meio das quais Catão marca a rigorosa
ordenação que segue em sua exposição: hinc enim est oriendum (16); sequitur autem haec prima diuisio
(20); sequitur illa diuisio (55) etc. Para os estóicos, a exposição da doutrina não pode se fazer de modo
parcial e tampouco de modo desordenado. O raciocínio pelo qual eles expõem sua doutrina tem uma
ordenação que coincide, de modo não acidental, com a ordem e a harmonia segundo a qual se organizam
todas as coisas do mundo. A exposição sistemática é como que um reflexo da organização perfeita do
mundo. Notemos que o mesmo termo designa o bem supremo, que repousa na conuenientia e a maneira
como as partes da exposição concertam umas com as outras: quid posterius priori non conuenit? (74). Se
na exposição da ética (isto é, de uma parte apenas da filosofia) é fundamental o acordo entre todas as
partes, a solidariedade entre todas as partes do sistema é tão marcante, que, antes de fazer o louvor da
admirável organização da exposição da ética, Catão fez questão de lembrar a importância orgânica da
física e da dialética. De fato, as três partes da filosofia, ainda que possam ser apresentadas separadamente,
formam um todo coeso e bem organizado que é, na forma de sistema, a imagem mesma da razão perfeita e
acabada. Com efeito, os estóicos se serviram de diversas imagens para representar o modo como as três
partes da filosofia estão essencialmente unidas. Uma das mais eloqüentes é apresentada por Diógenes

509
Laércio (VII, 40) que trata a filosofia, em sua totalidade, como um organismo vivo, de modo que a lógica
estaria representada pelos ossos e nervos (ou tendões), a física seria a carne e o sangue e a ética, a alma.
Essa imagem nos ajuda a compreende o que se diz a respeito do caráter imprescindível de cada uma das
partes da exposição que, se alterada, faz ruir todo o sistema.
XXII, 75 Mas como é grave, como é magnífica, como é sólida a figura do sábio assim formada!
Vale notar que, a partir deste ponto, Catão deixa de lado seu estilo sóbrio e agudo, observável durante toda
a exposição, e parte para uma peroração mais ousada em que elementos usuais do discurso público são
bastante evidentes. Um deles se manifesta no recorrente uso de anáforas (quam...quam...etc;
rectius...rectius...etc e recte...recte), que pontuam ritmicamente o discurso; por meio desse procedimento,
as linhas mestras da argumentação são apresentadas, de modo gradativo, até que se atinja a pungente
conclusão: quid est uirtute diuinius? Temos visto que, sobretudo no movimento final, os discursos dos
patronos representados por Cícero (inclusive os de sua própria personagem) se aproximam sensivelmente
do tom mais veemente dos discursos públicos. Quanto ao panegírico do sábio, veja-se Diógenes Laércio,
VII, 117 e 122. Note-se, porém, que o discurso de Catão se serve de diversos elementos romanos.
Mais corretamente será chamado rei do que Tarquínio... Trata-se de Tarquínio, chamado Superbus,
“soberbo, orgulhoso”, o último rei de Roma, cuja queda deu início ao regime republicano. Os
desregramentos do rei e, sobretudo, de seu filho, já foram mencionados no livro II (66), quando a
personagem de Cícero fez menção à violação de Lucrécia.
Sula, que de três vícios perniciosos foi mestre: da luxúria, da avidez, da crueldade: trata-se de
Lucius Cornelius Sulla, general tornado dictator em 81 a.C.. Se até então o termo dictator se referia muito
especificamente a uma função temporária, Sula consegue, por uma lei extraordinária, que o senado o
designe ditador perpétuo. No contexto específico do título de Sula, a palavra se aproxima muito, quanto ao
sentido, de seu cognato português e designa o governante que concentra na sua mão apenas o poder e que,
muitas vezes, se estabelece pela violência. A crueldade sem freios, que é ordinariamente associada a seu
nome, está bem representada nos episódios da guerra itálica (chamada também guerra social), dos anos 80
a.C., que teve, como episódio final, o massacre, a sangue frio, de oitenta mil samnitas prisioneiros de
guerra (cf. Oxford Classical Dictionary).
XXII, 76 Ciro: trata-se do rei Persa que derrotou o lídio Creso. O rei da Lídia teria invadido o
império persa iludido pela consulta que fizera a Apolo, em Delfos. O deus lhe disse que, se ele invadisse a
Pérsia, um grande império iria cair. A narrativa é dada por Heródoto: Histórias, I, 29 e ss.; 86-87.
O que há de mais divino do que a virtude? Do ponto de vista da organização do tratado, o livro III
tem uma estrutura bastante interessante. Ele se inicia com a derrota do prazer, que o autor, em sua própria
voz, anuncia no proêmio. Fecha-se, por outro lado, com a vitória completa e absoluta da virtude, de

510
origem natural e divina. Os livros seguintes, sem negá-la de modo completo, vão tentar, entretanto,
demovê-la de seu caráter absoluto.

511
Sobre os fins dos bens e dos males
Livro IV

I 1 Tendo dito isso, ele deu fim a seu discurso. Eu, de minha parte, respondi: “Pois bem,
Catão, essas coisas, ainda que tão numerosas, tu as expuseste com notável memória, ainda que
tão obscuras, com notável clareza. Assim, ou nós devemos deixar de lado qualquer desejo de
apresentar algum contra-argumento, ou devemos tomar algum tempo para refletir; pois de modo
tão diligente, mesmo se pouco assentado na verdade (isso, com efeito, ainda não ouso afirmar),
ora, de modo <tão> acurado tendo sido, não apenas fundamentada, mas até mesmo construída
esta doutrina, não é fácil nela se instruir completamente”.
Então, ele disse: “Mas o que dizes? Uma vez que te vejo, sob esta nova lei, num mesmo dia
responder ao acusador e concluir o discurso em três horas, tu pensas que nesta causa eu hei de
prorrogar o teu tempo? Esta de que tu vais te ocupar, entretanto, não é melhor do que aquelas
que, por vezes, tu obténs. Por isso, enfrenta também essa, tratada que foi, sobretudo, tanto por
outros quanto por ti próprio, de modo que não poderia te faltar um discurso.
2 Então: “Não, por Hércules”, eu disse, “não costumo ser temerário contra os estóicos, não
porque lhes dê inteiramente o meu assentimento, mas porque me detém o pudor; eles dizem
muitas coisas e, de tal forma, que eu tenho dificuldade em entender”.
“Há alguns pontos obscuros”, disse ele, “eu admito, todavia eles não se expressam assim de
propósito, é inerente às coisas, isso sim, a obscuridade.”
“Por que, então”, disse eu, “ao dizerem as mesas coisas os peripatéticos, não há uma só
palavra que não se entenda?”
“As mesmas coisas?” Disse ele: “não argumentei, há pouco, que não é quanto às palavras
que discordam os estóicos dos peripatéticos, mas quanto à coisa em sua totalidade e quanto ao
pensamento inteiro?”
“Ora, Catão”, disse eu, “se obtiveres isso, tu não terás problemas em me fazer passar
completamente para o teu lado.”
“Eu pensava”, disse ele, “que minha argumentação fora suficiente. Assim, vejamos
primeiro isso, se te parece bem; mas se desejares outra coisa, veremos isso depois.”
“Na verdade, será conforme a segunda opção”, disse eu, “em que lugar discutirei cada
coisa, se não é pedir demais, cabe a mim decidir”

513
“Como queiras”, disse ele, “ainda que da outra forma fosse mais apropriado, é justo
conceder a cada um o seu.”
II 3 “Estimo, portanto”, eu disse, “Catão, que aqueles antigos discípulos de Platão:
Espeusipo, Aristóteles, Xenócrates e os que vieram em seguida, discípulos desses, Pólemon e
Teofrasto, possuíam um corpo de ensinamentos estabelecido de maneira suficientemente copiosa
e bem elaborada, de modo que não haveria motivo para que Zenão, discípulo de Pólemon que foi,
passasse a divergir do próprio mestre e dos anteriores. Com relação a esta doutrina que eles
estabeleceram, gostaria que tu aplicasses tua atenção àquilo que pensas que deveria ser alterado e
que tu não esperasses que eu tenha algo a dizer contra todas as coisas que tu disseste; pois é no
conjunto que o sistema deles deve ser confrontado com a totalidade do vosso. 4 Esses, ao verem
que nós fomos de tal modo formados pela natureza, que teríamos uma comum disposição a essas
virtudes que são conhecidas e ilustres, refiro-me à justiça, à temperança e às demais desse gênero
(as quais, todas, semelhantes às demais artes, diferem apenas quanto à matéria, que diz respeito a
nossa melhor parte, e pelo tratamento que fazem dessa matéria), e ao verem que a essas virtudes
nós tenderíamos com maior intensidade e de modo mais ardente, e que teríamos também,
implantado em nós, ou, de preferência, inato, um certo desejo de conhecimento e que nós
nascemos para a reunião entre os homens e para a sociedade e comunidade do gênero humano, e
que isso resplandece de forma mais excelente nos engenhos mais excelentes, a filosofia, em seu
todo, eles a dividiram em três partes, partição que vemos ter sido conservada por Zenão. 5 Sendo
uma dessas partes aquela pela qual – considera-se – são formados os modos de proceder, eu a
deixo para depois, ela que é, por assim dizer, a raiz desta questão; qual seja, com efeito, o fim dos
bens, veremos em breve; neste ponto, digo apenas que os antigos peripatéticos e acadêmicos, que,
concordes quanto à coisa, afastavam-se quanto aos termos, já trataram desse tópico – que
chamaremos de modo correto, segundo nos parece, de ‘civil’ (politikovn para os gregos) – de
modo grave e copioso.
III Quanta coisa eles escreveram sobre a gestão pública, quanta coisa sobre as leis! Quantos
preceitos da boa expressão eles deixaram em suas Artes Retóricas! Quantos exemplos também
em seus discursos! Pois, primeiramente, eles expuseram de maneira elegante e conveniente até
mesmo aquelas coisas que necessitam de um desenvolvimento sutil, ora definindo, ora repartindo,
assim como também os vossos; mas vós, de modo mais desleixado; neles, tu vês como brilha a
expressão. 6 Além disso, aqueles assuntos que requeriam um discurso ornado e grave, com que

514
grandeza são tratados por eles, com que esplendor! Sobre a justiça, <sobre a temperança>, sobre
a coragem, sobre a amizade, sobre a condução da vida, sobre a filosofia, sobre a administração da
cidade; um modo de expressão que não é de homens que arrancam espinhos, como os estóicos,
ou que desnudam ossos, mas de homens tais, que desejem se expressar de modo ornado sobre as
grandes questões, de modo desembaraçado sobre as menos importantes. Dessa forma, que
consolações são as suas, que exortações e, além disso, que admoestações e conselhos, escritos aos
homens de posição mais elevada! Havia, pois, para eles, de acordo com a natureza da própria
matéria, um dúplice exercício da expressão. Pois tudo aquilo que se põe sob questão, contém ou
uma controvérsia sobre o que é geral, sem os indivíduos e as circunstâncias temporais, ou,
acrescentadas tais coisas, contém uma controvérsia quanto ao fato, quanto ao direito, ou quanto à
denominação. Então, eles se exercitavam em um e outro gênero, e esse aprendizado produziu
enorme fecundidade em um e outro gêneros de discurso. 7 Esse gênero756, em sua totalidade,
Zenão e os que vieram depois dele ou não foram capazes <de conservá-lo> ou não o quiseram; o
certo é que o deixaram de lado. Ainda que tenha escrito uma Arte Retórica Cleantes, e até mesmo
Crisipo. Mas escreveram de um modo que, se alguém desejasse quedar mudo, não deveria ler
outra coisa. Assim, tu vês de que modo eles se expressam: forjam palavras novas e abandonam as
usuais. E como eles se esforçam! ‘Este mundo todo é nossa cidadela!’ Tu vês a dimensão do que
discute quem diz isso; desse modo, quem habita em Circeios estima que todo este mundo é seu
município. Ele incendeia, portanto, aqueles que ouvem. O quê? Que um estóico incendeie? Ele
antes extinguirá o ardor de um discípulo que, porventura, tenha acolhido. E mesmo aquelas tuas
breves fórmulas, que apenas o sábio seria rei, ditador, rico, às quais tu, ao menos, deste forma
ajustada e bem acabada; pois, sem dúvida, tu tens conhecimentos provenientes dos retores; da
parte deles, porém, em formulações semelhantes, quanta esterilidade a respeito da força da
virtude, que eles pretendem ser tão grandiosa, que pode, por si mesma, tornar o homem feliz!
Com efeito, suas pequenas interrogações, pontiagudas, picam como se fossem ferrões; mesmo os
que dão seu assentimento a elas, em nada mudam sua alma e vão embora idênticos a como
chegaram. Pois, coisas que talvez sejam verdadeiras, certamente importantes, não são tratadas
com se deve, mas de um modo apegado demais às minúcias.
IV 8 Vêm em seguida o método de argumentação e o conhecimento da natureza; pois, como
eu disse, a respeito do sumo bem veremos em breve e à sua exposição dirigiremos toda a

756
Isto é, esse gênero de estudos, ou seja, o estudo da expressão verbal como um todo.

515
discussão. Nessas duas partes, portanto, não havia nada que fizesse Zenão arder em desejo de
alterar. Pois tudo se dispunha perfeitamente, e isso em ambas as partes. De fato, o que foi
negligenciado pelos antigos naquele gênero que serve à argumentação? Eles que não só
apresentaram muitíssimas definições, mas também legaram tratados sobre a arte de definir; e o
que se acresce à definição: que haja uma divisão em partes, isso eles praticam e o modo como
isso deve ser feito eles transmitem; semelhantemente sobre os contrários, a partir dos quais eles
chegaram aos gêneros e às formas dos gêneros. Já para o argumento concluído por raciocínio,
eles tomam como premissa maior aquelas afirmações que eles chamam evidentes, depois, seguem
um ordenamento, então, o que existe de verdadeiro em cada um dos casos é a conclusão final. 9
Que enorme variedade eles apresentam de argumentos que se concluem por raciocínio e que
diferença entre esses e as interrogações capciosas! Devo ainda dizer que em diversas passagens
eles fazem como que uma declaração para que não busquemos certeza no testemunho dos
sentidos sem a razão, nem no da razão sem os sentidos, e para que não os separemos um da
outro? E que dizer disso que hoje em dia transmitem e ensinam os dialéticos? Por acaso não foi
estabelecido por eles? E mesmo se a respeito disso trabalhou ao extremo Crisipo, bem menos o
fez Zenão com relação aos antigos; este, entretanto, a respeito de algumas coisas, não fez melhor
que os antigos, outras foram completamente deixadas de lado. 10 E uma vez que duas sejam as
artes pelas quais se cumprem de modo perfeito a razão e o discurso, uma a de encontrar, outra a
de expor, esta última tanto estóicos quanto peripatéticos transmitiram, a primeira, por outro lado,
estes o fizeram de maneira extraordinária, aqueles, de um modo geral, nem sequer a tocaram.
Pois aqueles lugares, que são como que depósitos de onde se extraem argumentos, os vossos
sequer imaginaram, os anteriores, porém, transmitiram-nos com técnica e método. Dessa arte
resulta que não seja necessário recitar, por assim dizer, sempre a respeito das mesmas coisas, o
que foi ditado por um mestre, sem se afastar das próprias anotações. Pois quem souber onde se
encontra cada argumento e por onde se chega até ele, mesmo se houver algo escondido, ele será
capaz de desenterrá-lo e de ser sempre o mestre de si mesmo ao discutir. Pois mesmo se alguns,
dotados de grande engenho, alcançaram a fecundidade de discurso mesmo sem um método
racional, a arte, entretanto, é um guia mais seguro do que a natureza. Pois uma coisa é verter
palavras, em profusão, ao modo dos poetas, outra é selecionar o que dizes por meio da razão e da
arte.

516
V 11 Coisas semelhantes podem ser ditas sobre a exposição da natureza, de que se valem
tanto estes quanto os vossos, e isso, na verdade, não por duas causas apenas, como pensa Epicuro,
a fim de que se arrede o medo da morte e da religião, mas até mesmo um certo senso de medida
traz o conhecimento das coisas celestes àqueles que observem quão grande moderação existe
também entre os deuses, que grande ordem, e aos que percebem a grandeza de alma dos deuses e
suas obras e realizações e ainda a justiça, uma vez que te seja conhecido qual é o poder divino
daquele que governa e que é o senhor, qual é seu plano, qual sua vontade; à sua natureza a razão
está ajustada, razão que pelos filósofos é chamada de suma lei, a verdadeira lei. 12 É intrínseca a
essa mesma exposição da natureza uma espécie de prazer insaciável pelo conhecimento das
coisas, e nele apenas, depois de cumprido o que é necessário, estando isentos de ocupações,
poderíamos viver honrosa e nobremente. Assim, em todo esse domínio757, quanto a quase tudo
que é mais importante, os estóicos seguiram os antigos, de modo a dizerem que deus existe e que
todas as coisas existem por composição a partir de quatro elementos. Por outro lado, ao se
investigar uma coisa bastante difícil: se haveria talvez uma quinta essência, da qual se
originariam a razão e a inteligência, passo em que se investigaria também de que gênero seria a
alma, Zenão disse que tal elemento é o fogo; algumas coisas, além dessa, tratou de modo
diferente, mas elas foram poucas, do que era mais importante, tratou do mesmo modo: que por
uma mente e por uma natureza divinas o mundo como um todo e suas partes mais importantes
são governados. Mas a matéria dos assuntos e a abundância, nestes as encontraremos estéreis,
naqueles, extremamente fecundas. 13 Quantas investigações fizeram, quanta informação foi
reunida por eles a respeito do gênero de todos os seres animados, da geração, de suas partes, da
duração de suas vidas, quanta informação a respeito das coisas que nascem da terra; e a respeito
de tão variadas coisas, quantas causas pelas quais cada coisa se produz e quantas descrições do
modo como cada coisa se produz! De toda essa abundância de estudos, muitíssimos argumentos,
e os mais seguros, são acolhidos com vistas à exposição da natureza de cada coisa. Assim, até
este ponto, não parece ter havido motivo – o quanto eu possa entender – para uma mudança de
terminologia, pois, se Zenão não seguia tudo, nem por isso deixou de tomar dali sua origem. De
fato, mesmo Epicuro, na física, ao menos, eu considero um mero repetidor de Demócrito. Faz
poucas alterações; ou até muitas, que seja; mas não só a respeito de muitíssimas coisas ele diz o

757
Isto é, na física.

517
mesmo, como, certamente, a respeito das mais importantes. Quanto aos vossos, fazendo o
mesmo, não pagam grande tributo aos inventores.
VI 14 Mas, quanto a isso, é o bastante. Agora, eu proponho, vejamos, a respeito do sumo
bem, questão central da filosofia, o que enfim ele alegou como motivo para que dos inventores,
como que de seus pais, dissentisse. Esse tópico, portanto, Catão, embora tu o tenhas desenvolvido
de modo diligente: qual fosse considerado pelos estóicos o fim dos bens e de que modo eles o
considerassem, eu, de minha parte, também vou expô-lo, a fim de enxergamos distintamente, se
pudermos, o que porventura Zenão trouxe como novidade. Pois, uma vez que os anteriores
tivessem dito, dentre os quais Pólemon, com extrema clareza, que o sumo bem é viver segundo a
natureza, os estóicos dizem que dessas palavras três podem ser os significados. Deste modo, o
primeiro: viver aplicando o conhecimento a respeito das coisas que ocorrem por natureza; este
eles afirmam que é o próprio fim de Zenão, o qual exprime aquilo que tu disseste: viver de acordo
com a natureza.
15 O segundo significado seria o mesmo que dizer: viver observando todos os deveres
médios ou a maior parte deles. Assim exposto, é diferente do anterior. Pois aquela ação (que tu
chamavas katovrqwma) é reta e toca ao sábio apenas, essa, porém, é do âmbito de um dever
incompleto, não acabado, que pode caber a alguns insensatos. O terceiro, por sua vez: viver
fruindo de todas as coisas, ou das mais importantes, que sejam segundo a natureza. Isso não se
encontra na nossa ação; pois se faz pleno a partir daquele gênero de vida que frui da virtude e
daquelas coisas que são segundo a natureza, mas que não estão sob nosso poder. Mas esse sumo
bem que se faz entender pela terceira significação, e essa vida que se realiza a partir do sumo
bem, porque está unida à virtude, ao sábio somente cabe, e esse fim dos bens, tal qual vemos nos
escritos dos próprios estóicos, foi estabelecido por Xenócrates e por Aristóteles. Dessa forma,
aquela constituição primeira da natureza, da qual tu também começavas, eles a expõem mais ou
menos com estas palavras.
VII 16 Toda natureza quer conservar a si própria, de modo a estar em segurança e a se
conservar em seu próprio gênero. Para isso, eles afirmam que também algumas artes, que
ajudassem a natureza, foram requeridas, entre as quais se contaria, em primeiro lugar, aquela que
é a arte de viver: que se guarde o que tenha sido dado pela natureza; que se busque adquirir o que
falta. Além disso, dividiram a natureza humana em alma e corpo; e uma vez que dissessem que
ambos deviam ser buscados por si mesmos, também as virtudes de ambos diziam dever ser

518
buscadas por si mesmas; <e> como a alma, a que atribuíam louvor infinito, antepusessem ao
corpo, as virtudes da alma também antepuseram aos bens do corpo. 17 Mas, uma vez que
pretendessem que a sabedoria fosse guardiã e administradora do homem como um todo, ela que
seria companheira da natureza e sua ajudante, diziam que era esta a função da sabedoria: que,
<uma vez que> observasse que o homem é formado por composição de alma e corpo, ajudasse-o
com relação a ambos e que o mantivesse em seu estado. Colocada assim a questão, de modo
simples, primeiramente, e prosseguindo mais sutilmente com relação ao restante, eles
consideravam que, para os bens do corpo, o raciocínio é fácil; quanto aos bens da alma, eles
investigavam de modo mais acurado e, em primeiro lugar, descobriam que entre esses se
encontram germes da justiça; e eles foram os primeiros, dentre todos os filósofos, a ensinar que é
uma atribuição da natureza que faz com que os rebentos sejam amados por seus genitores e, o que
é anterior na ordem do tempo, que as uniões entre maridos e esposas sejam uniões naturais e que
dessa raiz têm origem as amizades nas relações de parentesco. E, partindo desses estágios
iniciais, eles acompanharam a origem e o desenvolvimento de todas as virtudes. Disso surgia
também a grandeza de alma, pela qual se poderia facilmente resistir e fazer frente à fortuna, pois
que as coisas mais importantes estariam sob o poder do sábio; as variações e os golpes da fortuna,
entretanto, uma vida estabelecida pelos preceitos dos antigos filósofos facilmente as superava. 18
Mas, dos princípios dados pela natureza, construíam-se bens de maior dimensão, em parte tendo
como origem a contemplação das coisas ocultas, pois que havia, implantado na mente, um amor
pelo conhecimento, do qual se seguia ainda, como conseqüência, o desejo de esclarecer as razões
e de as expor por argumentação; e porque somente este animal nasceu partícipe do pudor e da
vergonha e inclinado ao convívio dos homens e à sociedade e aplicando a atenção, com relação a
todas as coisas, a que ações realizasse ou ao que dissesse de modo a que nada fizesse senão de
modo honroso e belo, a partir desses elementos iniciais <e>, como disse antes, dos germes dados
pela natureza, a temperança, a moderação, a justiça e a honradez como um todo se faz
perfeitamente completa.
VIII 19 “Eis aí, Catão”, disse eu, “a forma geral desses filósofos de que falo. Apresentado
isso, desejo saber por que motivo Zenão abandonou o sistema estabelecido pelos antigos, que
pensamento deles, enfim, ele não aprovou. O fato de dizerem que toda natureza é conservadora
de si mesma, o fato de todo animal recomendar-se a si próprio de modo a desejar se encontrar em
segurança, em seu próprio gênero e incólume, ou, uma vez que o fim de todas as artes fosse

519
sobretudo aquele que a natureza buscaria, o fato de ser necessário concluir o mesmo com respeito
à arte de viver em seu todo, ou, uma vez que fôssemos formados por composição de alma e
corpo, o fato de que estas coisas, elas mesmas, e suas virtudes devam ser buscadas por elas
mesmas; ou, na verdade, desagradou-lhe aquela tão grande supremacia que se atribuiu às virtudes
da alma? Ou o que se disse da prudência, do conhecimento das coisas, da união do gênero
humano, o que, pelas mesmas razões, foi dito da temperança, da moderação, da grandeza de
alma, da honradez como um todo? Admitirão os estóicos que tudo isso foi dito de modo brilhante
e que não foi essa a causa para o abandono de Zenão. 20 Eles dirão ser outros, eu creio, os
grandes erros do antigos, que ele, desejoso de ir no encalço da verdade, não pode de modo algum
suportar. Mas que contra-senso maior existe, o que é mais insustentável, o que é mais insensato
do que a boa saúde, do que a ausência de todas as dores, do que a integridade dos olhos e dos
demais sentidos serem colocados entre os bens? De preferência deveriam dizer que não há
absolutamente nenhuma diferença entre essas coisas e as que lhes são contrárias? Pois tudo
aquilo que eles diriam serem bens, Zenão disse serem preferíveis758; e, do mesmo modo, aquilo
que no corpo seria superior os antigos afirmaram, de modo insensato, que deveria ser buscado por
si mesmo; antes acolhido do que buscado disse Zenão759; com relação, enfim, a toda vida que
estivesse fundamentada na virtude apenas, aquela vida que abundasse ainda nas demais coisas
que fossem segundo a natureza não seria mais digna de se buscar, mas de se acolher; e uma vez
que a própria virtude produza a vida feliz, de uma forma tal que ela não poderia ser mais feliz, ele
disse, entretanto, que certas coisas faltariam então aos sábios, ainda que eles fossem felicíssimos;
e assim, que eles agiriam de modo a repelir as dores, as doenças e as deficiências.
IX 21 Que poderoso intelecto! Que motivo justo para o surgimento de uma nova doutrina!
Mas vamos em frente. Segue-se, com efeito, aquilo de que tu trataste com total conhecimento de
causa: que a insensatez, a injustiça e todos os outros vícios são semelhantes, e que todas as faltas
são iguais e que aqueles que pela natureza e pelo aprendizado tivessem feito um longo avanço em
direção à virtude, se não a tivessem atingido completamente, seriam infelizes ao extremo, e que
entre a vida deles e a dos mais ímprobos não haveria absolutamente nenhuma diferença, de modo
que Platão, homem tão grande que foi, caso não tenha sido sábio, em nada teria vivido melhor, ou
de modo mais feliz, do que qualquer um dos mais ímprobos. É essa, sem dúvida, a correção da

758
Ver De finibus, III, 15-17 e 51-56.
759
Ver De finibus, III, 20.

520
filosofia dos antigos, a retificação, que não pode ter absolutamente nenhuma admissão na cidade,
no fórum, na cúria. Pois quem poderia tolerar um homem que de tal forma se expressasse, que
declarasse ser o propositor de uma vida a ser vivida sábia e gravemente e, tendo o mesmo parecer
de todos e atribuindo às mesmas coisas o mesmo significado, impusesse-lhes outros nomes,
alterasse apenas os termos, nada subtraísse das opiniões? 22 O patrono de uma causa, no epílogo,
discursando em favor do réu, diria que não é um mal o exílio, ou a confiscação pública dos bens?
Que coisa desse tipo deveria ser rejeitada, mas não evitada? E que não é necessário que o juiz
seja misericordioso? Ora, e se falasse em uma assembléia, caso Aníbal tivesse chegado às portas
da cidade e a muralha com uma lança ultrapassasse760, ele diria que não se contam entre os males
tornar-se cativo, ser vendido, ser assassinado, perder a pátria? Ou o senado, ao decretar a
celebração de um triunfo em favor do Africano, poderia dizer: ‘por sua virtude’, ou ‘ventura’, se
não se pode dizer verdadeiramente que haja virtude nem ventura em algum homem senão no
sábio? Que filosofia é essa, portanto, que fala no fórum segundo o costume comum e, nos
tratados, segundo um costume próprio? Sobretudo uma vez que naquilo que eles dão a entender
com suas palavras não haja nenhuma inovação, mas persistam as mesmas coisas de outro modo?
23 Pois que diferença há entre dizeres que as riquezas, o poder, a saúde são bens e dizeres que
são coisas preferíveis, uma vez que aquele que as chama bens não lhes atribua nada mais do que
tu que denominas as mesmas coisas preferíveis? Dessa forma, um homem antes de tudo nobre e
grave, digno da intimidade que teve com Cipião e Lélio – refiro-me a Panécio –, ao escrever a Q.
Tuberão sobre a capacidade de suportar a dor, jamais apresentou aquele que devia ser o
argumento principal, se pudesse ser aprovado: que a dor não é um mal; mas o que fosse a dor e de
que qualidade, e quanto nela haveria de avesso à natureza e, por fim, qual seria o método para
tolerá-la; por seu modo de pensar, já que foi um estóico, julgo que foram condenadas como um
discurso vazio vossas palavras.
X 24 Mas, para que aborde mais de perto, Catão, o que tu disseste, tratemos disso mais
detidamente e confrontemos teu discurso de agora há pouco com o que a ele eu anteponho.
Daquilo, portanto, que é comum a vós e aos antigos, sirvamo-nos assim como se de algo já
acordado; o que recai em controvérsia, se te parece bem, desenvolvamos.”

760
Isto é, tivesse lançado uma lança através da muralha.

521
“Quanto a mim”, disse ele, “parece bem que as coisas sejam tratadas mais sutilmente e,
como tu próprio disseste, mais detidamente. Pois o que até aqui avançaste é do senso comum;
ora, eu espero de ti algo de mais bem elaborado”
“De mim, então, tu esperas?” Disse eu. “Mas eu vou me esforçar e, se não me ocorrerem
muitas coisas, não me furtarei a isso que é do senso comum. 25 Ora, esteja estabelecido, em
primeiro lugar, que nós fomos recomendados a nós próprios e possuímos como primeira
tendência, proveniente da natureza, que conservemos a nós próprios. Quanto a isso, há acordo;
segue-se isto: que apliquemos a mente em saber o que nós próprios somos, a fim de que nos
preservemos tais quais nós devemos ser. Pois bem, nós somos homens, somos compostos de alma
e corpo, os quais são de um certo modo, e que nos é necessário, conforme requer a primeira
tendência natural, amar essas coisas761 e a partir delas estabelecer aquele fim do sumo e último
bem, que, se o que disse em primeiro lugar for verdadeiro, é necessário que seja assim
estabelecido: alcançar o maior número de coisas e as mais importantes dentre aquelas que sejam
segundo a natureza. 26 Esse fim, portanto, eles sustentaram, e o que eu disse com muitas
palavras, eles, de modo mais breve: viver segundo a natureza. Isso lhes parecia o termo extremo
dentre os bens.
XI Pois muito bem, que esses762 agora demonstrem, ou de preferência tu (pois quem
poderia fazê-lo melhor?), de que modo, tendo partido dos mesmos princípios, vós chegastes ao
resultado de que viver honrosamente (pois é isso viver conforme a virtude, ou ainda, de acordo
com a natureza) seria o sumo bem e de que modo ou em que momento vós subitamente
abandonastes o corpo e todas aquelas coisas que, mesmo sendo segundo a natureza, não estão sob
nosso poder, e, em seguida, o próprio dever. O que quero saber, portanto, é como estas
recomendações tão importantes, que tiveram origem na natureza, foram subitamente deixadas de
lado pela sabedoria. 27 Pois se investigássemos o sumo bem não do homem, mas de algum ser
animado, e esse, por sua vez, não fosse nada senão uma alma (seja-nos permitido imaginar algo
assim, para que mais facilmente encontremos a verdade), todavia, para aquela alma, o fim não
seria esse vosso. Ora, ela sentiria necessidade de saúde, de ausência de dor, tenderia ainda à
conservação de si e a guardar essas coisas, e o fim para ele estabelecer-se-ia como viver segundo
a natureza, que é, como eu disse, possuir aquelas coisas que são segundo a natureza; ou todas, ou

761
Isto é, o corpo e a alma.
762
Os estóicos.

522
na maior quantidade possível, ou as mais importantes. Pois, como quer que concebas um ser
animado, ainda que ele seja desprovido de corpo, como nós imaginamos, é forçoso, entretanto,
que haja na alma algo semelhante àquilo que há no corpo, de sorte que de nenhum outro modo,
senão conforme eu expus, poderia se estabelecer o fim dos bens. Crisipo, porém, apresentando as
diferenças entre os animais, afirma que alguns dentre eles são superiores quanto ao corpo, outros,
por sua vez, quanto à alma, nenhuma espécie se prevalece de um e outra; em seguida, ele discute
o que e de que gênero convém ser o termo extremo estabelecido para os seres animados. E, uma
vez que tivesse colocado o homem em um gênero tal, que lhe atribuísse a excelência quanto à
alma, estabeleceu assim o sumo bem, não de modo a parecer que a alma é no homem superior,
mas que não há outra coisa senão uma alma.
XII De um modo apenas, porém, colocar-se-ia, de maneira correta, o sumo bem na virtude
somente: se existisse algum animal que fosse, todo ele, formado apenas de mente, e mesmo
assim, de modo que essa mente não tivesse em si nada que fosse segundo a natureza, como é a
saúde. 29 Mas de que tipo seria tal animal não se pode nem mesmo pensar sem que haja nisso
uma contradição interna.
Mas se ele diz que certas coisas763 se obscurecem e não se manifestam porque seriam muito
pequenas, nós também o concedemos; algo que até mesmo Epicuro diz sobre os prazeres, que,
sendo muito pequenos, são obscurecidos amiúde e encobertos. Mas não são desse gênero as
vantagens corporais, elas que são tão grandes, que se prolongam tanto no tempo e que são tão
numerosas. Dessa forma, com relação a essas coisas que, por causa de sua exigüidade, tornam-se
obscurecidas, é comum declararmos que, de nossa parte, não há diferença nenhuma em que elas
existam ou não, assim como – conforme tu disseste – lançar mão de uma lanterna sob o sol não
faz diferença alguma, ou lançar mais um terúncio ao dinheiro de Creso.764 30 Mas, naquelas
coisas em que não ocorre tão grande obscurecimento, pode ocorrer, contudo, que a própria
diferença não seja grande. Como se a quem tenha vivido agradavelmente por dez anos, seja
oferecido mais um mês de uma vida igualmente agradável; porque o acréscimo teria algum peso
em favor do agradável, seria bom. Se, por outro lado, isso não lhe seja concedido, não se suprime,
conseqüentemente, a vida feliz. Ora, os bens do corpo são semelhantes ao que acabo de
apresentar. Pois trazem um acréscimo digno de nosso esforço, de modo que me parecem por

763
Subentende-se: “que são segundo a natureza”.
764
Referência a III, 45.

523
vezes brincar os estóicos, quando dizem assim: se àquela vida que decorre com virtude for
acrescentado um frasquinho765 ou uma escova de banho766, o sábio há de acolher de preferência
essa vida à qual tais coisas foram adicionadas, todavia, não há de ser mais feliz por esse motivo.
31 Mas há alguma semelhança? Não deve essa comparação ser rechaçada antes com o riso do que
com um discurso? Pois caso alguém se esforce por que haja ou não um frasquinho, não será
ridicularizado com toda a justiça? No entanto, se da deformidade dos membros e do tormento das
dores alguém aliviar outrem, receberá enorme gratidão;767 e se aquele sábio768 fosse obrigado, por
um tirano, a se dirigir ao cavalete do torturador769, não teria um semblante semelhante ao que
teria se tivesse perdido seu frasquinho, mas, como quem entra em um grande e difícil combate, ao
ver que deverá se bater contra um adversário mortal, contra a dor, lançaria mão de todos os
raciocínios sobre a coragem e a capacidade tolerar e, valendo-se deles como de uma fortaleza,
entraria naquela difícil, como disse, e grande batalha. Ademais, nós não buscamos o que se
obscurece ou se apaga porque seja excessivamente pequeno, mas o que seja de tal qualidade, que
complete a soma total. Um único prazer dentre muitos obscurece-se numa vida voluptuosa;
todavia, ele é, por mais que seja pequeno, parte dessa vida que repousa no prazer. Uma moeda se
obscurece em meio às riquezas de Creso; todavia, é parte de sua riqueza. Por isso, que se
obscureçam também, numa vida feliz, essas coisas que dizemos ser segundo a natureza; sejam,
contudo, partes da vida feliz.
XIII 32 Mas se – ora, sobre isto devemos estar de acordo – existe certa tendência natural e
se ela tende àquelas coisas que são segundo a natureza, deve-se fazer uma soma geral de todas
essas coisas. Estabelecido isso, será possível, então, livre de obrigações, investigar a respeito da
importância das coisas, a respeito de quanta excelência exista em cada coisa que contribua à vida
feliz, a respeito mesmo desses obscurecimentos que, por causa da exigüidade, mal se fazem
manifestos ou nem mesmo se manifestam. Ora, a respeito disso não há nenhuma dissensão? Com
efeito, não há ninguém que poderia afirmar outra coisa senão que aquilo a que tudo se refere,
aquilo que é o objeto último de nossa tendência é análogo para todas as naturezas. Pois toda
natureza tem afeição por si mesma. Pois qual é a natureza que em algum momento abandonaria a
si mesma, ou alguma parte sua, ou, dessa parte, o modo de ser ou a capacidade, ou que

765
Ampulla: pequeno frasco para óleo ou perfume.
766
Strigilis: espécie de almofaça, utensílio de esfregar, usado nos banhos.
767
Cf. II, 33; III, 17; V, 18 e 46.
768
Isto é, conforme o concebem os estóicos.
769
Cf. III, 42.

524
abandonaria o movimento, ou o estado de alguma dessas coisas que são segundo a natureza? Ora,
que natureza se encontra esquecida de sua constituição primeira? Não há nenhuma, sem dúvida,
que não mantenha sua essência do início ao fim. De que modo sucedeu, portanto, que apenas a
natureza do homem fosse tal, que deixasse de lado o homem, que se esquecesse do corpo, que
não fizesse residir o sumo bem no homem como um todo, mas em uma parte do homem? 33 Ora,
de que modo – algo que até mesmo eles admitem e que é consenso entre todos – sustentaremos
que seja análogo, para todas as naturezas, aquele termo último em torno do qual se dá a
investigação? Pois seria análogo, somente se, também nas demais naturezas, fosse o termo
último, para cada uma delas, aquilo que fosse superior em cada uma. Pois é desse tipo, temos
visto, o termo último dos estóicos. 34 Por que tu hesitas, então, em pensar de modo diferente os
princípios naturais? Ora, por que tu dizes que todo ser animado, desde sua origem, dedica-se a
amar a si mesmo e se ocupa com se conservar? Por que não dizes antes isto: que todo animal se
dedica àquilo que nele é melhor e se ocupa com guardar isso apenas, e que as demais naturezas
não tratam de nada senão de conservarem o que em cada qual for melhor. Mas como assim
melhor? Se além desse não há nenhum bem? Mas se, de outra parte, outras coisas são também
objeto de nossa tendência, por que aquela que é a última das coisas às quais tendemos não se
define por meio da tendência ou em direção a todas as coisas, ou às mais numerosas e mais
importantes? Assim como Fídias pode confeccionar uma escultura desde o início e perfazê-la,
pode também receber o esboço de outro escultor e rematá-lo; a isso é semelhante a sabedoria:
pois ela própria não gerou o homem, mas o recebeu esboçado pela natureza; observando-a,
portanto, a sabedoria deve rematar sua confecção como se fosse uma escultura.
35 De que tipo é, portanto, o homem que a natureza esboçou? E qual é a função, qual é a
obra da sabedoria? O que é que ela deve rematar e perfazer? Não haja, naquilo que se deve
perfazer, nada além de um certo movimento do engenho, isto é, a razão, faz-se necessário que,
para ele, o termo último seja agir consoante a virtude, pois a perfeição da razão é a virtude. Não
haja nada senão o corpo, estes serão os sumos bens: a saúde, a ausência de dor, a beleza, etc. XIV
36 Agora, a questão é sobre o sumo bem do homem; ora, por que hesitamos em indagar o que foi
executado em sua natureza como um todo? Pois, uma vez que é consenso entre todos que todo
dever e toda função da sabedoria estão ocupados com o modo de vida do homem, alguns (que tu
não julgues que eu falo apenas contra os estóicos) avançaram teorias tais, que colocam o sumo
bem naquele gênero de coisas que estão fora do nosso poder, como se falassem de algum ser

525
desprovido de alma, outros, ao contrário, como se não houvesse para o homem um corpo, não
cuidam, dessa forma, de nada além da alma, e isso, justamente, ainda que a própria alma também
não seja algo de imaterial, seja o que for, (eis algo, com efeito, que eu não consigo entender), mas
certo gênero de corpo, de modo que nem mesmo ela estaria satisfeita com a virtude apenas, mas
buscaria a ausência de dor. Por esse motivo, ambos fazem a mesma coisa: se negligenciam o
flanco esquerdo, guardam o direito, ou, como fez Erilo, se levam em consideração o
conhecimento, próprio da alma, negligenciam a ação.770 Com efeito, ao pensamento desses todos,
que deixam de lado muitas coisas, até que escolham algo que possam seguir, falta, por assim
dizer, um pedaço; mas, perfeito e inteiro é o daqueles que, ao investigar o sumo bem do homem,
não lhe deixaram, nem na alma, nem no corpo, nenhum flanco desprovido de proteção.
37 Quanto a vós, Catão, já que a virtude, como todos nós admitimos, detém no homem o
lugar mais elevado e excelente em maior grau, e porque consideramos os que são sábios como
completos e perfeitos, vós ofuscais o discernimento de nossa almas com o esplendor da virtude.
Pois, em todo ser animado, existe algo de mais elevado e de melhor, como nos cavalos e nos
cães, que têm necessidade, entretanto, de estar isentos de dor e com boa saúde; do mesmo modo,
então, no homem, uma tal perfeição, naquilo que é, acima de tudo, melhor, isto é, na virtude,
recebe elogios. Dessa forma, parece-me que vós não vislumbrais com toda clareza que caminho
segue a natureza e como ela avança. Pois o que ela faz com relação às searas, quando, depois de
tê-las conduzido de erva a espiga, deixa de lado a erva sem lhe dar valor algum, não é o mesmo
que faz com relação ao homem, depois que o conduziu até o modo de ser racional. Pois ela
sempre realiza alguma aquisição, de modo a não abandonar aquilo que dera em primeiro lugar. 38
Dessa forma, aos sentidos ela acrescentou a razão e, produzida a razão, não deixou de lado os
sentidos. Assim como se a cultura das vinhas, cuja função é a de produzir como resultado que a
vinha, com todas as suas partes se ache no melhor estado possível – ora, podemos entender assim
(pois é lícito, como é também vosso costume, criar imagens com vistas à demonstração) – se,
portanto, a cultura das vinhas se encontrar dentro da própria vinha, ela desejará, creio eu, outras
coisas que dirão respeito ao cultivo da vinha; assim como no caso anterior, por outro lado, ela se
colocará à frente de todas as partes da vinha e estabelecerá que nada existe na vinha que seja
melhor do que ela própria; de modo semelhante, a percepção sensível, depois de adicionada à
natureza, sem dúvida olha por esta natureza, mas olha também por si mesma; quando, por sua

770
Sobre o sumo bem de Erilo, ver De finbus II, 43.

526
vez, a razão é adquirida, ela toma uma posição de tamanha soberania, que todos aqueles
primeiros elementos naturais submetem-se à sua proteção. 39 E assim, ela não se aparta do
cuidado com esses elementos; ocupando a primeira posição com relação a eles, ela deve dirigir
toda a vida, de modo que não posso me admirar suficientemente da incoerência desses teus
filósofos. Pois a tendência natural, que eles chamam oJrmhv, e, de modo idêntico, o dever, e até
mesmo a própria virtude eles pretendem que estejam dentre as coisas que são segundo a natureza.
Quando, porém, querem chegar até o sumo bem, atropelam tudo e legam-nos duas tarefas em
lugar de uma: que algumas coisas nós acolhamos, que outras nós busquemos, de preferência a
encerrar ambas em um só fim.
XV 40 Pois bem, vós dizeis que a virtude não terá um fundamento firme, se aquilo que
estiver fora da virtude for pertinente ao viver feliz. É justamente o contrário: pois não se pode de
modo algum atribuir um papel à virtude, a não ser que tudo o que ela escolher ou rejeitar se refira
a um todo único. Com efeito, se negligenciarmos +completamente a nós mesmos+, recairemos
nos vícios e faltas de Aríston e esqueceremos que princípios tínhamos atribuído à própria virtude;
se, porém, não negligenciarmos tais coisas e nem as referirmos ao fim do sumo bem, não nos
arredaremos muito do desatino de Erilo; deveremos então aceitar os propósitos de dois tipos de
vida. Pois ele cria, distantes um do outro, dois últimos bens, que, para que fossem verdadeiros,
deveriam ter sido unidos: pois bem, eles estão tão afastados, que sequer se tocam: não pode haver
contra-senso maior. 41 Dessa forma, é o contrário do que vós dizeis, pois a virtude não pode de
modo algum ter um fundamento firme, se ela não abranger aquelas coisas que são primeiras por
natureza como pertinentes à soma total da felicidade. Buscou-se, assim, uma virtude, não que
deixasse de lado a natureza, mas que olhasse por ela; mas aquela, a que vos agrada, olha por
determinada parte, mas abandona o restante.
Ora, a própria constituição do homem, se ela falasse, diria que os primeiros ensaios, por
assim dizer, de sua tendência consistiram em que ele se conservasse naquela natureza na qual
viera ao mundo. Contudo, ainda não havia sido suficientemente esclarecido o que a natureza
desejaria acima de tudo. Esclareceremos, portanto. Mas compreenderemos outra coisa diferente
disto: que não se negligencie alguma parte da natureza? Nela, se nada há além da razão, que
esteja na virtude apenas o fim dos bens; mas, se há ainda o corpo, essa vossa exposição da
natureza terá alcançado, sem dúvida, o seguinte resultado: que aquilo que já detínhamos antes da
exposição, nós deixemos de lado. Viver de acordo com a natureza, portanto, será apartar-se da

527
natureza! 42 Assim como certos filósofos que, partindo dos sentidos, teriam visto algumas coisas
maiores e mais divinas, deixaram de lado os sentidos, da mesma forma esses771, que, apoiados na
tendência que temos em direção às coisas, teriam divisado a beleza da virtude, tudo o que viam
além da própria virtude rejeitaram, esquecidos de que a natureza das coisas às quais tendemos,
em sua totalidade, estende-se tão amplamente, que seria a mesma desde os princípios até os fins,
e não percebem que demovem os fundamentos daquelas coisas que julgam admiráveis e belas.
XVI 43 Dessa forma, segundo me parece, erraram todos aqueles que disseram que o fim
dos bens é viver honrosamente, mas uns mais que os outros; Pirro, é bom que se diga, mais que
todos, ele que, estabelecida a virtude, não preserva nada absolutamente a que deveríamos tender;
em seguida, Aríston, que não ousou não preservar nada, mas introduziu coisas pelas quais o
sábio, movido, tenderia a algo, como: ‘o que quer que se apresente ao espírito’ e ‘o que quer que,
por assim dizer, se coloque diante dele’. Esse é superior a Pirro, pois que ofereceu algum gênero
de tendência, inferior aos que faltam ser mencionados, pois que se afastou completamente da
natureza. Os estóicos, por sua vez, porque fazem consistir o fim dos bens na virtude apenas, são
semelhantes a esses dois; quanto, porém, a buscarem um princípio para o dever, fazem melhor
que Pirro; por não inventarem ‘o que se coloca diante’, vencem Aríston; quanto a não unirem ao
fim dos bens aquelas coisas que eles dizem ser apropriadas e por si mesmas dignas de serem
acolhidas, apartam-se da natureza e, de certo modo, não são diferentes de Aríston. Pois ele
forjava não sei que coisas ‘que se colocam diante’, aqueles, por outro lado, é certo que
apresentam princípios naturais, mas os dissociam dos fins e da soma total dos bens; quando eles
julgam ser ‘preferíveis’ esses princípios naturais, de modo que haja alguma escolha com relação
às coisas, parecem seguir a natureza; mas quando negam que eles digam algum respeito à vida
feliz, novamente deixam de lado a natureza.
44 Mas, até aqui, eu defendi por que não houve motivo para que Zenão se apartasse da
autoridade de seus antecessores: agora vejamos o que resta, a não ser, Catão, que quanto a isso tu
queiras dizer algo, ou se nós já tivermos nos prolongado demais.”
“Nem um coisa nem outra”, disse ele, “pois, por um lado, quero que tu concluas tua
argumentação e, por outro lado, um discurso teu a mim não pode parecer longo”.
“Excelente”, disse eu. “Pois o que pode me ser mais desejável do que, com Catão, um
modelo de todas as virtudes, sobre as virtudes discutir? 45 Mas, em primeiro lugar, repara nisto,

771
Os estóicos.

528
esta que é a mais grave de vossas sentenças, que vem à frente de vossa escola: que o que é
honroso é o único bem e que viver honrosamente é o fim dos bens, sentença que vós tereis em
comum com todos que na virtude apenas fundamentam o fim dos bens, e quanto a dizerdes que
não se pode dar forma à virtude, caso se conte entre os bens algo senão o que for honroso, o
mesmo dizem aqueles que há pouco eu mencionei. Quanto a mim, porém, parecia-me mais justo
que Zenão, que debatia com Pólemon, de quem ele tomara aqueles que seriam os princípios da
natureza, e que avança a partir de elemento iniciais que lhes são comuns, observasse onde é que
ele se deteve pela primeira vez e de onde é que nasceu o motivo para a controvérsia, e não,
enfileirando-se ao lado daqueles que nem mesmo diziam que seus sumos bens tiveram como
ponto de partida a natureza, servir-se dos mesmos argumentos de que esses se serviam e das
mesmas sentenças.
XVII 46 Mas algo que não aprovo de modo algum é que, de uma parte, vós demonstreis, ao
menos conforme vossa opinião, que só é bom o que for honroso e que então, de modo contrário,
afirmeis que é necessário que os elementos iniciais, apropriados e ajustados à natureza, sejam
‘preferidos’ e que a partir de uma escolha que se aplica a tais elementos a virtude poderia ganhar
existência. Pois não é na escolha que se devia colocar a virtude, de modo que aquilo que fosse o
próprio termo último dos bens buscasse obter alguma outra coisa. Com efeito, é necessário que
esteja incluído na soma total dos bens tudo aquilo que se deve acolher, tudo o que se deve
escolher ou o que se deve almejar, de modo que aquele que a tenha alcançado não sentiria
necessidade de nada mais. Para aqueles que fazem consistir no prazer a soma total, tu percebes
como é claro o que eles devem fazer ou o que não devem fazer, de modo que nenhum deles teria
dúvida quanto àquilo a que visam todos os deveres, quanto ao que devem buscar e quanto ao que
devem evitar? Vamos supor que o último dos bens seja este que eu defendo agora: torna-se
imediatamente manifesto quais sejam os deveres, quais sejam as ações. Quanto a vós, porém,
para quem não há outro propósito senão o que o que é reto e honroso, vós não encontrareis uma
origem para o princípio dos deveres e das ações. 47 Os que investigam esse princípio, portanto,
não somente aqueles que dirão seguir ‘o que quer que se apresente à mente’ ou ‘o que quer que se
coloque diante’, mas também vós, todos vos voltais à natureza. A todos a natureza responderia,
com justiça, que não é correto que seja buscado em outra parte o fim da vida feliz e que nela
própria sejam buscados os princípios para a realização de ações; pois – diria ela – há um
raciocínio que, sozinho, é capaz de abarcar tanto o princípio da realização de ações quanto os

529
bens últimos, e assim como seria rechaçado o pensamento de Aríston, que diz que não há
nenhuma diferença entre uma coisa e outra e que não existem, além das virtudes e dos vícios,
quaisquer outras coisas entre as quais haveria, de todo, alguma distinção, da mesma forma erra
Zenão, que diria que em nada, senão na virtude, haveria uma propensão, nem mesmo de menor
peso possível, que nos inclinasse a alcançar o sumo bem e que, ainda que as demais coisas não
tivessem qualquer peso para a vida feliz, diria que elas impõem peso à tendência que temos em
direção às coisas; como se, na verdade, esta tendência não dissesse respeito à aquisição do sumo
bem. 48 Mas o que é menos coerente do que o fato de afirmarem que, conhecido o sumo bem,
eles se voltam à natureza para que dela busquem o princípio do agir, isto é, do dever? Pois não é
o raciocínio a respeito da ação ou do dever que nos impele às coisas às quais devemos tender
segundo a natureza, mas a partir delas é que se põem em movimento tanto a tendência quanto a
ação.
XVIII Passo, agora, àquelas tuas breves formulações, que tu dizias serem conclusivas772, e,
em primeiro lugar, aquela com relação à qual nada pode haver de mais breve: “Tudo o que é
louvável é bom; por outro lado, tudo o que é honroso, louvável; portanto, tudo o que é honroso,
bom”. Um punhal de chumbo!773 Pois quem poderia te conceder esta primeira premissa? (é
verdade que, concedida essa, não há necessidade da segunda; pois se tudo que é bom é louvável,
tudo que é bom é honroso); 49 ora, quem te cederá essa premissa, além de Pirro, de Aríston, ou
dos que lhes são semelhantes, aos quais tu não aprovas? Aristóteles, Xenócrates, toda essa escola
não cederá, visto que eles digam serem bens a saúde, as riquezas, o poder, a glória e muitas
outras coisas, mas não digam serem louváveis. Estes últimos, ao menos, pensam que o fim dos
bens não se fundamenta na virtude apenas, de uma maneira tal, que, ainda assim, anteponham a
virtude a todas as coisas. O que tu consideras que hão de fazer aqueles que apartaram
completamente a virtude do fim dos bens, Epicuro, Hierônimo e quem quer que deseje sustentar o
fim proposto por Carnéades? 50 Já quanto a Califón, ou Diodoro, de que modo poderão te
conceder essa premissa, eles que à honradez uniriam algo que não seria do mesmo gênero?774
Parece-te bom, portanto, Catão, que tu, tendo admitido premissas que não são concedidas, retirar
delas o resultado que queiras? Agora, este é um sorites, raciocínio que vós considerais como o
mais vicioso: o que for bom é desejável, o que for desejável, deve ser buscado; o que deve ser

772
Cf. III, 27.
773
Isto é, uma arma pouco efetiva.
774
Cf. De finibus, II, 19, 34-35.

530
buscado é louvável; e, depois, os passos restantes. Mas, quanto a mim, eu me detenho neste
ponto, pois, do mesmo modo, ninguém te cederá que o que deva ser buscado é louvável. O
argumento seguinte, porém, é o que há de menos conclusivo, na verdade, é, antes de tudo, obtuso
(da parte deles, sem dúvida, não da tua): que a vida feliz é digna de orgulho, uma vez que, sem a
honradez, não seria possível ocorrer que alguém, com justiça, se orgulhe. 51 Cederá isso a Zenão
Pólemon, e ainda seu mestre e toda aquela linhagem e os demais que, antepondo em muito a
virtude a todas as coisas, unem a ela algo, contudo, ao definirem o sumo bem. Pois se a virtude é
digna de orgulho, como é, e se é tão superior às demais coisas que mal se poderia dizer, e se o
homem puder ser feliz dotado apenas da virtude, carente de outras coisas, mesmo assim, ele não
te concederá isto: que além da virtude nada seja considerado bom. Aqueles, porém, para os quais
o sumo bem não conta com a virtude, não concederão, talvez, que a vida feliz possua algo de que
ela poderia, com justiça, orgulhar-se, ainda que eles próprios tenham, por vezes, até mesmo os
prazeres como motivos de grande orgulho.
XIX Tu percebes, portanto, que ou tu pressupões o que não seria concedido, ou mesmo
aquilo que é concedido em nada te ajudaria.
Com relação a todas essas conclusões, sem dúvida, eis o que eu consideraria como digno da
filosofia e de nós, sobretudo ao buscarmos o sumo bem: que nossa vida, nossas decisões e
vontades, e não as palavras, sejam corrigidas. Ora, quem pode, com essas formulações breves e
agudas, que, como tu afirmas, te agradam, abandonar seu modo de pensar? Pois quando os
homens nutrem esperança e ardem em desejo de ouvir por que a dor não é um mal, dizem os
estóicos que é acerbo sentir dor, molesto, detestável, contra a natureza, difícil de tolerar, mas, já
que não haveria na dor nenhum dolo, nem improbidade, nem maldade, nem torpeza, ela não seria
um mal. Tais coisas, quem as ouvir, ainda que não se ponha a rir, não partirá, entretanto, nem um
pouco mais capaz de suportar a dor do que chegara. 53 Tu negas, porém, que possa haver alguém
corajoso que considere a dor um mal. Por que ele será mais corajoso se considerar, algo que tu
mesmo admites, que ela é acerba e dificilmente tolerável? Pois é das coisas que nasce o temor,
não das palavras.
E tu afirmas que, se uma só letra for alterada, há de tombar toda a doutrina. O que eu te
pareço alterar, então: uma letra, ou páginas inteiras? Pois, ainda que em suas obras (algo que tu
elogiaste) tenha sido observada a ordenação entre os argumentos e todas as coisas estejam bem
ajustadas e bem atadas entre si (pois era isso o que dizias), não devemos prosseguir até o fim, se,

531
depois de terem partido de princípios falsos, elas estão em acordo consigo mesmas e não se
afastam do que foi proposto. 54 No que diz respeito ao fundamento primeiro, portanto, o teu
Zenão se afastou da natureza, e uma vez que colocou o sumo bem na excelência do intelecto, que
nós chamamos virtude, e disse que não haveria nenhum outro bem senão o que fosse honroso e
que a virtude não poderia subsistir se, dentre as demais coisas, houvesse alguma que fosse melhor
do que outra, ou pior; postas tais premissas no início, ele sustentou até o fim as conseqüências.
Tu te exprimes corretamente; não posso negar. Mas são de tal modo falsas as conseqüências, que
aquelas premissas de onde elas nasceram não poderiam ser verdadeiras. 55 Pois, como tu sabes,
os dialéticos nos ensinam que, se aquilo que se segue de algum argumento é falso, é falso
também o próprio argumento do qual aquilo se segue. Donde resulta o seguinte raciocínio por
conclusão, não apenas verdadeiro, mas de tal modo evidente, que os dialéticos não julgam
necessário nem mesmo apresentar um prova: se isto se dá, então aquilo; mas se isto não se dá;
nem mesmo aquilo, portanto. Suprimidas assim vossas conseqüências, suprimem-se as premissas.
E o que se segue, então? Que todos que não forem sábios são igualmente infelizes, e os sábios
todos são sumamente felizes; que as ações retas são todas iguais, todas as faltas, de mesmo
peso:775 afirmações que, mesmo se tivessem, num primeiro momento, uma aparência magnífica,
depois de examinadas, persuadiam bem menos. Pois a percepção de cada um, a natureza das
coisas e até a própria verdade proclamavam que por modo algum podiam ser convencidas de que
não haveria nenhuma diferença entre essas coisas que Zenão tornava iguais.
XX 56 Em seguida, o teu cartaginesinho (pois tu sabes que os citienses, teus clientes,
provêm da Fenícia), um homem agudo, portanto, não obtendo vitória em sua causa (a natureza
resistia), pôs-se a revirar as palavras e, em primeiro lugar, àquelas coisas que nós chamamos bens
ele concedeu serem consideradas ‘estimáveis’ e ajustadas à natureza, e pôs-se a declarar que ao
sábio, isto é, ao homem sumamente feliz, é todavia mais vantajoso que ele possua também
aquelas coisas que ele não ousa denominar bens, mas que ele concede que são ajustadas à
natureza; e ele nega que Platão, caso não seja sábio, esteja na mesma condição em que está o
tirano Dioniso: para este, o melhor seria morrer, por causa da falta de esperança em relação à
sabedoria; para aquele, viver, por causa da esperança. Das faltas, por outro lado, parte seria
tolerável, outra parte, de modo algum, pelo fato de que algumas faltas ultrapassariam como que
os limites do dever, umas, em maior, outras, em menor extensão. Já entre os insensatos, alguns

775
Referência a alguns dos paradoxa dos estóicos.

532
seriam tais, que de modo algum poderiam chegar à sabedoria, outros poderiam, se sentissem
necessidade disso, alcançar a sabedoria. 57 Ele se expressava de modo diferente de todos,
pensava o mesmo que os demais. E, na verdade, ele não considerava que deviam receber menor
estima aquelas coisas que ele próprio negava serem bens do que consideravam aqueles que
diziam que tais coisas eram bens. Qual foi o seu propósito, então, em realizar tais alterações? Ao
menos tivesse suprimido uma parte do peso e tivesse estimado tais coisas um pouco menos do
que os peripatéticos, de modo que parecesse também pensar de modo diferente, não apenas se
exprimir. Pois bem. Sobre a vida feliz, justamente, à qual tudo se refere, o que vós dizeis? Vós
negais que ela, tal como é, torne-se completa por meio daquelas coisas de que teria necessidade a
natureza, e a fazeis repousar inteiramente sobre a virtude apenas; e uma vez que todas as
controvérsias costumam girar ou em torno da coisa ou em torno do nome, uma e outra delas
nascem caso se desconheça a coisa ou caso se erre quanto ao nome. Se não é nem um caso nem
outro, devemos atentar em utilizarmos as palavras as mais usuais e as mais apropriadas possíveis,
isto é, que dêem a conhecer claramente a coisa. 58 Ora, por acaso há dúvida de que, se quanto à
própria coisa não houve falta da parte de vossos predecessores, eles utilizam as palavras de modo
mais ajustado? Vejamos, portanto, seus pensamentos e, então, retornemos às palavras.
XXI Eles dizem que a tendência da alma é posta em movimento quando algo lhe pareça
estar em conformidade com a natureza, e que tudo o que for conforme à natureza é digno de
alguma estima e que essas coisas devem ser estimadas de acordo com quanto peso haja em cada
uma; e que, dentre essas coisas que são segundo a natureza, uma parte nada teria em si mesma
dessa tendência de que já falamos muitas vezes, as quais não seriam ditas nem honrosas, nem
louváveis; em outra parte, aquelas que vão juntas com o prazer em todo ser animado, mas que, no
homem, vão também juntas com a razão; dependentes dela776, as que forem apropriadas, essas
serão honrosas, essas serão belas, essas serão louváveis, aquelas anteriores, por outro lado, são
chamadas naturais, as quais, unidas às honrosas, perfazem e tornam completa a vida feliz. 59 Em
comparação com todas aquelas vantagens às quais aqueles que dizem que elas são bens não
rendem maior tributo do que Zenão, que nega que são bens, de longe seria o que há de mais
excelente aquilo que fosse honroso e louvável; mas se duas coisas honrosas forem propostas, uma
acompanhada de saúde, outra, de doença, para qual das duas a própria natureza nos conduziria é
algo sobre o que não há dúvida; todavia, tão grande seria a força da honradez e ela seria tão

776
Da razão.

533
superior a todas às coisas e tão excelente, que nenhum suplício ou recompensa poderia nos
demover daquilo que tenha sido resolutamente considerado reto, e tudo o que parecer duro, difícil
e adverso, tudo isso, por meio das virtudes com que teríamos sido belamente armados pela
natureza, nós poderíamos calcar sob nossos pés; +não são fáceis tais coisas, nem desprezíveis+
(pois qual seria a importância da virtude?), de modo que chegaríamos ao seguinte juízo: não
reside nelas a parte principal de uma vida feliz ou o seu contrário. 60 Em suma, aquelas coisas
que Zenão considerou dignas de serem estimadas e acolhidas e apropriadas à natureza são as
mesmas que os antigos chamam bens, já a vida feliz, eles consideram ser aquela que constaria
dessas coisas que eu mencionei, ou de todas, ou de um grande número delas e das de maior peso.
Zenão, por outro lado, chama bem apenas o que possua uma forma que é sua, própria, aquilo a
que, por isso, deveríamos tender, e a vida feliz, por outro lado, apenas aquela que é vivida com
virtude.
XXII Se é quanto à coisa que devemos debater, Catão, não pode haver dissensão entre mim
e ti; pois não há nada a respeito do que tu penses diferentemente de mim, contanto que, alteradas
as palavras, nós comparemos as próprias coisas. E ele não deixou de perceber isso, mas foi
seduzido pela grandiosidade e pela glória das palavras; e, se pensasse aquilo que disse assim
como dão a entender as palavras, que diferença haveria entre ele e Pirro, ou Aríston? Mas se, por
outro lado, ele não os aprovava, de que lhe serviu destoar quanto às palavras daqueles com os
quais concertava quanto à coisa? 61 E se voltassem à vida aqueles discípulos de Platão e aqueles
que, em seguida, foram discípulos deles e falassem contigo desta forma? ‘Nós, ao te ouvirmos,
M. Catão, grandíssimo estudioso de filosofia, homem extremamente justo, excelente juiz,
testemunha do maior escrúpulo, perguntamos, admirados, qual seria o motivo para que
preferisses a nós os estóicos, que sobre as coisas boas e más apresentariam os pensamentos que
Zenão conhecera deste Pólemon aqui e que se serviriam de termos que, à primeira vista,
suscitariam admiração, depois de desenvolvida a idéia, suscitariam o riso. Mas tu, se a ti elas
parecem persuasivas, por que não as sustentavas com as palavras que lhes são próprias? Mas se
era a autoridade o que te tocava, a nós todos e ao próprio Platão tu antepunhas um completo
desconhecido? Especialmente porque desejavas ser na república o primeiro homem, a fim de
olhar por ela com teu sumo prestígio, com nosso auxílio, sobretudo, tu poderias te ornar e te
aparelhar. Pois fomos nós que investigamos tais coisas, fomos nós que as dispusemos em partes,
que as delimitamos, que formulamos regras, e sobre os gêneros de governo de todos os regimes

534
políticos, sobre a estabilidade, as mudanças, as leis também e as convenções e costumes das
cidades nós escrevemos extensamente. À eloqüência, por outro lado, que é para os primeiros
homens o maior ornamento e na qual nós ouvimos dizer que é imensa tua capacidade, quanto em
teu favor tu terias acrescentado a partir de nossas obras!’ Ao dizerem isso tais homens, o que
enfim tu lhes responderias?”
62 “Eu te pediria”, disse ele, “que tu mesmo falasses por mim, já que foste tu quem lhes
ditaste o discurso, ou, antes, que me desses algum tempo para que eu lhes respondesse, se não
fosse por eu preferir te ouvir agora e em outra ocasião responder-lhes; aliás, justamente quando
respondesse a ti.”
XXIII “Pois bem, se desejasses responder a verdade, Catão, eis o que deverias dizer: que,
quanto a ti, tu não os reprovas, homens de tão grande engenho e de tão grande autoridade, mas
que tu tomaste consciência dessas coisas que, por terem vivido em tempos remotos, eles não
enxergaram bem, mas que foram percebidas pelos estóicos, e que estes a respeito das mesmas
coisas não só argumentaram mais agudamente, como também apresentaram pensamentos mais
graves e mais sólidos, visto que, em primeiro lugar, eles neguem que a boa saúde seja algo que
devamos buscar, e chamem-na digna de ser escolhida, não porque estar de boa saúde seja um
bem, mas porque seja digno de alguma estima (entretanto, não de maior estima do que parece
àqueles que não hesitam em chamar isso de bem); que tu, porém, não pode suportar isto em que
aqueles antigos, espécie de barbados (assim como nós costumamos falar dos nossos), teriam
acreditado, que a vida de quem vivesse honrosamente, se ele mesmo estivesse de boa saúde,
ouvisse bem, fosse abastado, seria mais desejável, melhor, mais digna de ser buscada, do que a
daquele que, igualmente um homem bom, fosse ‘em grande medida’, como o Alcméon de Ênio,

‘Assaltado, de todos os lados, pela doença, pelo exílio, pela indigência.’

63 Os antigos, portanto, sem tanta agudeza, julgam mais desejável aquela vida, superior,
mais feliz; os estóicos, por outro lado, julgam-na tão somente preferível quando de uma escolha,
não porque ela seja mais feliz, mas por ser mais ajustada à natureza; e que aqueles que não forem
sábios são todos igualmente infelizes. Os estóicos, sem dúvida, perceberam isto; aos anteriores,
porém, tal coisa havia escapado: que os homens poluídos por crimes, parricídios, em nada são
mais infelizes do que aqueles que, vivendo de modo puro e íntegro, não tivessem ainda alcançado

535
a dita sabedoria completa. 64 E, neste ponto, tu citavas aqueles símiles dos quais os estóicos
costumam se servir – inteiramente inapropriados à comparação. Pois quem é que ignora que, se
diversos homens quiserem emergir do fundo do mar, mais próximos estarão de respirar, sem
dúvida, aqueles que já se aproximam da superfície da água, mas que eles não podem de modo
algum respirar, assim como aqueles que se encontram em grande profundidade? Portanto, de
nada adianta fazer avanços e progressos na virtude, para não ser o mais infeliz antes de tê-la
alcançado, já que, dentro d’água, de nada adianta; e já que os cachorrinhos que se esforçam para
ver algo são tão cegos quanto os recém-nascidos, é necessário também que Platão, já que ainda
não era capaz de enxergar a sabedoria, tenha sido, tanto quanto Fálaris, cego na alma.
XXIV 65 Não são semelhantes, Catão, esses exemplos em que, por mais que tenhas feito
grande avanço, a condição da qual tu queres te afastar permanece a mesma até que tenhas
conseguido escapar completamente; pois aquele homem não respira antes de ter emergido e os
cachorrinhos são tão cegos antes de terem começado a enxergar quanto se assim forem para
sempre. Estes são exemplos semelhantes: alguém tem sua vista embotada, um outro perde as
forças de seu corpo; estes, aplicados os cuidados, restabelecem-se em alguns dias; um deles, dia
após dia, recupera o vigor, o outro, a visão. Semelhantes a esses são todos aqueles que se
esforçam em vista da virtude: restabelecem-se dos vícios, restabelecem-se dos erros. A não ser
que consideres, talvez, que Tibério Graco, o pai, foi mais feliz do que o filho, uma vez que um
tivesse se esforçado por tornar sólida a República, o outro, por deitá-la por terra. E, entretanto,
não era ele um sábio (pois quem foi sábio, ou quando houve um, ou onde, ou como?), mas,
porque se esforçava em favor do louvor e do mérito, muito avançou na virtude. 66 Compara o teu
avô, Druso, com C. Graco, de idade quase igual à dele: as feridas que este infligia à República, as
mesmas aquele sanava. Se não há nada que torne os homens tão infelizes quanto a impiedade e o
crime, tendo como certo que todos os insensatos sejam infelizes – o que sem dúvida são –, não
são igualmente infelizes, entretanto, quem se ocupa da pátria e aquele que a deseja aniquilada.
Restabelece-se sensivelmente, portanto, do estado de vícios aquele que realiza algum progresso
em direção à virtude. 67 Os vossos, porém, afirmam que ocorre o progresso em direção à virtude,
mas negam que ocorra um restabelecimento do estado de vícios. Mas o argumento de que se
servem esses homens agudos para provar tal coisa vale a pena examiná-lo. Àquelas artes – é o
que se afirma – cujos conteúdos totais podem se ampliar, também as que são contrárias têm
conteúdo que poderá ser aumentado; ao conteúdo total da virtude, porém, nada pode ser

536
acrescentado; nem mesmo os vícios poderão se ampliar, eles que são os contrários das
virtudes.777 Qual das duas opções, então: o que é dúbio se torna manifesto por meio do que é
evidente, ou o que é evidente é destruído pelo que é dúbio? Ora, mas isto é evidente: que alguns
vícios são maiores que outros, e isto, dúbio: se por acaso pode se dar algum acréscimo àquilo que
vós dizeis ser o sumo bem. Mas vós, devendo esclarecer o que é dúbio por meio do que é
evidente, vós vos empenhais em, por meio do que é dúbio, destruir o evidente. 68 Dessa forma,
vós sereis apanhados pelo mesmo raciocínio de que me servi agora há pouco. Pois, se é porque
alguns vícios não são maiores do que outros que não se pode acrescentar nada àquele fim dos
bens que vós estabeleceis, uma vez que é evidente que os vícios não são iguais entre si, vós
deveis alterar vosso fim dos bens. Atenhamos-nos pois à necessidade disso: uma vez que for falso
algo que se segue, aquilo de onde ele se segue não pode ser verdadeiro.
XXV Qual é, então, a causa desses embaraços? Uma ostentação ávida de glória ao se
estabelecer o sumo bem. Pois quando se insiste que o único bem é o que for honroso, suprime-se
o cuidado com a saúde, a diligência com relação à propriedade familiar, a administração pública,
o ordenamento na gestão dos negócios, os deveres da vida; em seguida, mesmo o tal honroso, no
qual vós pretendeis que esteja tudo, deve ser abandonado; coisas que foram ditas por Crisipo,
com extrema diligência, contra Aríston. Dessa dificuldade nasceram aquelas ‘maliciosas
expressões falazes’, como diz Ácio. 69 E uma vez que, subtraídos todos os deveres, a sabedoria
não teria onde firmar os pés, e, por outro lado, os deveres seriam suprimidos, se toda a escolha e
todo o critério de distinção fossem eliminados, pois esses critérios não poderiam existir, se todas
as coisas fossem de tal modo igualadas, que entre elas não houvesse nenhuma diferença, as
concepções que vós sustentais acabaram saindo piores do que as de Aríston. As dele, entretanto,
são simples, as vossas, astuciosas. De fato, perguntes a Aríston se lhe parecem bens estas coisas:
ausência de dor, riquezas, saúde. Ele diria que não. ‘Pois bem, e as que lhes são contrárias?’
‘Tampouco’. Perguntes a Zenão: Sua resposta não seria diferente. Admirados, nós buscaríamos
saber, de um e de outro, de que modo poderíamos conduzir a vida, se não julgarmos haver
qualquer diferença entre aquelas coisas que nos dizem respeito: que estejamos com saúde ou
doentes, que sejamos poupados ou afligidos pela dor, que possamos rechaçar o frio e a fome ou
que não o possamos. ‘Tu viverás’, diria Aríston, ‘com grandeza e lustre; o que quer que parecer

777
Para a relação entre ars e uirtus, veja-se o discurso de Catão: III, 24-25.

537
bom, tu farás, jamais terás angústias, jamais terás desejos, jamais terás temores’778. 70 E quanto a
Zenão? Diz que isso é fantasioso e que, por meio desse raciocínio, não se pode viver e que ele
próprio diz que entre o honroso e o torpe há uma diferença extremamente grande, algo de
incomensurável; entre as demais coisas, não há nenhuma absolutamente. Até aqui, diz o mesmo;
ouve o resto e contém o riso, se puderes. ‘Os intermediários’, diz ele, ‘entre os quais nenhuma é a
diferença, são de tal modo, entretanto, que dentre eles alguns devem ser escolhidos, outros
rejeitados, outros absolutamente negligenciados, isto é, que dentre eles alguns tu desejarias,
outros, tu não desejarias, com os outros, tu não te preocuparias’. Ora, mas há pouco tu disseras
que não havia nada em tais coisas que as fizesse diferentes. ‘E digo o mesmo agora’, ele afirmará,
‘mas é com relação às virtudes e aos vícios que não há nelas nenhuma diferença.’
XXVI 72 Quem é que ignorava esse ponto, eu pergunto? Mas, sigamos ouvindo. ‘Essas
coisas’, diria ele, ‘que tu mencionaste: estar bem de saúde, ser abastado, não as chamo bens, mas
chamaria, em grego, prohgmevna, em latim, por outro lado, ‘coisas que vêm à frente’ (mas gosto
mais de ‘preferíveis’ ou de ‘tomadas antes’; seria mais aceitável e menos duro); aquelas, porém,
como a doença, a indigência, a dor, não denomino males, mas, caso agrade, ‘repudiáveis’. E
assim, as primeiras, não digo que a elas eu tendo, mas que as escolho, não que desejo, mas que
acolho; as contrárias, por sua vez, não que as evito, mas que, por assim dizer, deixo-as de lado.’
O que têm a dizer Aristóteles e todos os outros pupilos de Platão? Que tudo o que é segundo a
natureza eles denominam bem, o que é contrário: mal. Tu vês, portanto, o teu Zenão concertar
com Aríston quanto às palavras, dissentir quanto à coisa; com Aristóteles e os demais, estar em
consenso quanto à coisa, em dissonância quanto às palavras? Por que, então, uma vez que haja
acordo sobre a coisa, não preferimos nos expressar de modo usual? Ou então, que ele demonstre
que eu estarei mais bem preparado a desprezar o dinheiro se o contar entre as coisas preferíveis
do que se entre os bens, e mais firme para suportar a dor, se disser que ela é acerba, difícil de
suportar e contrária à natureza, do que se disser que ela é um mal.
73 De modo espirituoso M. Pisão, nosso amigo íntimo, assim como de muitas outras coisas,
zombava dos estóicos nesse ponto: ‘Pois bem’, dizia ele, ‘tu negas que seja um bem a riqueza, e
dizes que é preferível: em que isso ajuda? Diminuis a cobiça? Como? Se nos ativermos à palavra,
em primeiro lugar “preferível” é uma palavra mais longa que “bem” – ‘Isso não tem relação
alguma com a coisa!’ – ‘Que seja, tudo bem; mas certamente é uma palavra mais grave. Pois não

778
Sobre o critério para a ação de acordo com o pensamento de Aríston, cf. supra, seção 43.

538
sei de onde provém a expressão “bem”, mas “preferível” creio que vem do fato de que seja
preferido a outras coisas: isso me parece algo grande’. Dessa forma, ele dizia que mais valor dava
às riquezas Zenão, que as colocaria entre as coisas preferíveis, do que Aristóteles, que admitiria
que as riquezas são um bem, mas que não apenas não são um grande bem, como ainda, que, em
comparação ao que é reto e honroso, devem ser menosprezadas e desmerecidas e que a elas não
se deve tender com grande intensidade; e, de modo geral, a respeito de todas essas palavras
alteradas por Zenão, ele discutia assim, dizendo que aquelas coisas que ele negava serem bens, e
as que negava serem males, as primeiras eram tratadas por ele com termos mais positivos do que
por nós, as outras, por termos mais negativos. Desse modo, então, falava Pisão, um homem
excelente e que, como sabes, tem por ti muita estima. Que nós, poucas palavras acrescentadas ao
que dissemos, enfim terminemos; pois toma muito tempo responder a tudo o que disseste.
XXVII 74 Com efeito, desse mesmo tipo de ilusões criadas com as palavras não apenas
reinos vos surgiram, como também poder e riquezas, e tão grandes, que vós afirmais que tudo o
que existe em toda parte é do sábio. Além disso, vós pretendeis que só ele é belo, que só ele é
livre, só ele, cidadão, <os tolos>, que são tudo o contrário, além de insanos. Tais coisas eles
chamam paravdoxa, nós poderíamos chamar de afirmações que causam espanto. Mas o que elas
têm de espantoso, uma vez que as viste de perto? Que nós examinemos juntos que coisa subjaz a
cada palavra: não haverá nenhuma controvérsia. Vós dizeis que todos as faltas são iguais. Eu não
brincarei contigo aqui assim como fiz a respeito do mesmo assunto, ao defender L. Murena, que
tu acusavas. Em meio a pessoas sem experiência dialética eu proferi aquele discurso, algo
inclusive destinado à assembléia. Agora, deve-se proceder mais sutilmente. 75 ‘As faltas são
iguais’. Ora, de que modo? ‘Porque não há nada mais honroso que o honroso, nem algo mais
torpe que o torpe.’ Segue adiante, pois, quanto a isso, grande é a dissensão; vejamos mais de
perto aqueles argumentos que defendem que todas as faltas são iguais. ‘Assim como’, dir-se-ia,
‘entre diversas liras, se nenhuma delas estiver com as cordas entesadas de modo que possa
manter a harmonia, todas estariam igualmente desafinadas, da mesma forma as faltas, uma vez
que dessoam, dessoam de modo igual; são, portanto, iguais’. Somos aqui iludidos pela
ambigüidade. Pois ocorre igualmente a todas as liras que estejam desafinadas; não se dá,
automaticamente, que estejam igualmente desafinadas. Essa comparação não te ajuda em nada,
nem, com efeito, se nós dissermos que toda cobiça é igualmente cobiça, seguir-se-á dizermos que
são todas iguais. 76 Eis aqui outro símile dessemelhante. ‘Com efeito, assim como’, dir-se-ia,

539
‘um piloto comete igualmente falta se fizer virar um barco carregado de palha e se fizer virar um
carregado de ouro, da mesma forma comete igualmente falta quem açoita o pai e quem açoita um
escravo injustamente.’ Não se enxerga que, qual seja o gênero de carga que o barco transporte,
isso não diz nenhum respeito à arte do piloto! E assim, transporte ouro ou palha, é absolutamente
indiferente à boa ou à má pilotagem; no entanto, que diferença existe entre um pai e um
escravinho pode-se e deve-se entender. Portanto, na pilotagem não há nenhuma importância, no
dever é que há a maior importância quanto ao gênero da falta. E se na própria pilotagem foi por
negligência que o barco virou, maior é a falta no caso do ouro, do que no da palha. Pois a todas as
artes nós queremos que seja atribuído aquilo que por todos é chamado prudência; algo que todos
aqueles que são responsáveis por alguma ação que dependa de técnica devem possuir. Assim,
nem mesmo sob esse ângulo são iguais as faltas.
XXVIII 77 Eles insistem, contudo, e não cedem em nada. ‘Já que’, dizem eles, ‘todo
pecado é do âmbito da fraqueza e da incoerência e tais vícios, por sua vez, são grandes em todos
os tolos, é necessário que sejam iguais as faltas.’ Ora, como se se concedesse que em todos os
não-sábios são igualmente grandes os vícios e que a mesma fraqueza e a mesma inconstância
caracterizasse L. Tubulo e o célebre P. Cévola, que propôs a lei pela qual o outro foi
condenado;779 e como se também entre as próprias coisas com relação às quais se comete falta
não houvesse nenhuma diferença, de modo que, conforme fossem aquelas maiores ou menores,
as faltas cometidas com relação a essas coisas não fossem ou maiores ou menores! 78 Dessa
forma (pois já passo à conclusão do meu discurso) deste único vício, sobretudo, parecem-me
carregar o peso os teus estóicos: o fato de pensarem que possam sustentar duas proposições
contrárias. Pois o que é tão contraditório quanto a mesma pessoa dizer que somente aquilo que
for honroso é bom, enquanto diga que a tendência às coisas ajustadas à vida tem sua origem na
natureza? Assim, quando eles querem manter aquilo que está de acordo com a primeira
proposição, recaem em Aríston; quando fogem disso, defendem, substancialmente, o mesmo que
os peripatéticos, às palavras eles se atêm com unhas e dentes. Por outro lado, ao se oporem a que
as palavras sejam arrancadas da ordem de sua exposição, terminam por se tornar mais hórridos,
mais ásperos, mais duros, tanto na expressão quanto no modo de proceder. 79 Fugindo desse
aspecto sombrio deles, dessa aspereza, Panécio não aprovou nem a acrimônia do pensamento
nem da argumentação os espinhos e foi, naquele aspecto, mais suave, neste, mais claro, e sempre

779
Sobre esses dois homens, veja-se II, 54 e nossa nota à passagem.

540
teve à boca Platão, Aristóteles, Xenócrates, Teofrasto, Dicearco, como declaram seus próprios
escritos. Autores esses de que tu deves te ocupar, tenho a convicção, com ardor e diligência. 80
Mas, já que cai a noite e, quanto a mim, tenho de voltar a minha quinta, paremos neste ponto, ao
menos por agora; mas que façamos o mesmo mais vezes.”
“Mas faremos”, disse ele, “pois o que podemos fazer de melhor? Mas eis a primeira coisa
que exigirei de ti: que me ouças refutar as coisas que disseste. Lembra-te, porém, que tu aprovas
todos os nossos pensamentos, a não ser quanto a nos servirmos diferentemente das palavras,
quanto a mim, porém, não aprovo nenhum dos vossos.”
“Um pequeno embaraço para quem parte”, disse eu, “mas nós veremos isso.”
Ditas tais coisas, nós nos despedimos.

541
Notas ao livro IV

I, 1 Não apenas fundamentada, mas até mesmo construída esta doutrina... A imagem criada aqui
pela personagem de Cícero está bem próxima da metáfora utilizada pela personagem de Antônio na
digressão a respeito do discurso historiográfico do De oratore (II, 51-64), de que tratamos no primeiro
capítulo de nosso estudo. Se a fundamentação da doutrina estóica é o princípio de onde parte todo o
raciocínio, o sistema seria como que a exaedificatio, tornada manifesta pela exposição que procede com
rigor lógico desde os fundamentos. Não obstante, podemos dizer que o elogio feito por Cícero não é
franco. Na verdade, o parêntese que interrompe a sintaxe, criando um leve anacoluto (cf. Giambelli, ad
locum), já aponta para a crítica que será feita mais adiante, a qual imputa aos estóicos uma má
compreensão da natureza humana, fundamento de toda a doutrina moral dessa escola.
Se instruir completamente: o uso do verbo perdiscere já ocasionou grande discussão entre os
filólogos que trabalharam com o texto do De finibus. Madvig (ad locum) cita Lambino e Davis como
estudiosos que pretenderam, por conta da imagem da construção, substituir o verbo por subuertere ou
peruertere. Entretanto, o próprio Lambino já reconheceria (apud Madvig) que perdiscere aqui poderia se
aproximar do valor técnico que tem este verbo no jargão jurídico. Nós temos visto como a linguagem dos
tribunais está presente nos diálogos filosóficos de Cícero. Segundo Madvig, então, a personagem que
representa o autor quer dizer, nesta passagem, que a complexidade e a boa organização do sistema estóico
trazem grande dificuldade para aquele que queira refutá-lo. O verbo perdiscere apontaria para a tarefa
inicial do orador que deve refutar o discurso de seu adversário: estar bem instruído na matéria de que
tratou seu oponente. A interpretação avançada por Lambino e reformulada por Madvig parece plausível,
uma vez que, na resposta de Catão, é evidente a referência ao contexto forense.
Sob esta nova lei: referência a uma lei promulgada por Pompeu, em 52 a.C. (ano de seu terceiro
consulado, cf. Madvig, ad locum), para restringir a duração dos processos jurídicos. Segundo essa lei, a
acusação e a defesa deveriam se pronunciar no mesmo dia. A primeira parte tinha a sua disposição duas
horas, a segunda, três.
Não é melhor... A expressão non melior, com que Catão se refere à causa estóica, que acabou de
defender, parecerá contraditória caso não seja compreendida segundo o jargão jurídico. A causa é boa
quando o orador pode sustentá-la ou refutá-la com facilidade (cf. Madvig, ad locum). Ou seja, ela é boa de
acordo com o objetivo de quem vai tratá-la. Se ela não é “melhor” do que outras que Cícero costuma
vencer, é porque ela comporta um grau de dificuldade semelhante ao daquelas de que ele se ocupa no
fórum, onde além do mais, como diz o patrono estóico, ele está sujeito à lei promulgada no consulado de
Pompeu.

543
I, 2 Não costumo ser temerário contra os estóicos... Eis uma importante afirmação da personagem
de Cícero, que revela o cuidado com que ela pretende enfrentar as teses estóicas. Ainda que não concorde
com a totalidade do sistema estóico, ele não o rechaça de modo absoluto. O pudor, elemento importante
na refutação do pensamento de Epicuro, é justamente o que impede a personagem do orador de atacar de
qualquer modo a doutrina do Pórtico. Ora, o pudor, ao longo do primeiro diálogo, é o que indica a
contradição entre a natureza benigna de Torquato e a doutrina que ele defende. Trata-se de um elemento,
além disso, que tornaria manifesta a presença de uma motivação para a ação honrosa que se encontra
dentro do agente e não nas conseqüências externas que possam provocar suas ações. Nesse sentido, o
pudor é um traço que, na perspectiva do De finibus, une a doutrina do Pórtico e os pensamentos da
Academia e do Liceu, uma vez que as três escolas defenderiam que a virtude tem valor por si mesma. O
fim da fala da personagem acena para a crítica que será feita à linguagem dos estóicos. Essa doutrina,
bastante próxima dos pensamentos dos antigos acadêmicos e dos peripatéticos, recorreria a tantas sutilezas
e a uma terminologia tão complexa, que se tornaria pouco compreensível. Não acreditamos, porém, que
quae uix intellegam reflete um julgamento verdadeiro da personagem. Pelo contrário, isso faz parte de sua
estratégia argumentativa, que consiste em mostrar que o estoicismo é como que a retomada confusa e
dissimulada do pensamento de filósofos anteriores (cf. Lévy, C. “La dialectique de Cicéron dans les livres
II et IV du De finibus”, cuja referência completa é dada na bibliografia).
Se obtiveres isso... Giambelli (ad locum) julga haver um deslocamento do verbo obtineo desde seu
sentido forense (de vencer uma causa) para o sentido filosófico de demonstrar uma tese. A distinção,
julgamos, é artificial, uma vez que, como temos visto, o método filosófico de Cícero, que se reflete no uso
do gênero dialógico, aproxima sensivelmente a discussão filosófica do debate jurídico.
Na verdade, será conforme a segunda opção... Neste passo, bastante discutido pelos estudiosos do
texto, afastamo-nos da lição de Reynolds, que julga haver uma lacuna entre quidque e nisi. Acreditamos
que a sintaxe se sustenta sem a necessidade qualquer acréscimo. Conforme bem argumenta Giambelli (ad
locum), tem sido normal na elocução ciceroniana, sobretudo nas trocas de réplicas breves, a omissão de
termos que possam ser facilmente subentendidos. Assim, julgamos que immo istud quidem indica uma
escolha entre as duas opções apresentadas por Catão: Cícero pretende tratar da suposta diferença
substancial entre estóicos e acadêmicos, mas não neste ponto. Ou seja, istud faria referência a sin aliud
quid uoles. Desse modo, immo não seria uma correção absoluta do que diz Catão (como parecem
interpretar Martha e Woolf), o que, além do mais, não faria sentido, visto que a personagem apresenta
alternativas. A resposta de Cícero claramente indica a admissão de uma delas (cf. quid uoles e arbitratu
meo): quem fala agora é Cícero, a dispositio é uma tarefa sua. A réplica de Catão, a seguir, corrobora esta
interpretação. Em sua fala, illud erat aptius faz referência à primeira opção: tratar agora da diferença (ou
identidade) entre estóicos e acadêmicos.

544
II, 3 Não haveria motivo para que Zenão... As expressões constitutam disciplinam e institutio dizem
respeito não apenas à ética, mas à totalidade dos ensinamentos dos filósofos aqui mencionados. A
concepção de que Zenão não teria feito senão alterar elementos da doutrina estabelecida por seu mestre,
Pólemon, aparece também nas Academica (cf. I, 35).
As quais, todas, semelhantes às demais artes... A respeito da semelhança entre as artes, em geral, e
as virtudes no pensamento estóico, ver, no livro III, as seções 49, 72 e 73. Com a expressão ceteras
generis eiusdem, faz-se referência, muito provavelmente, a uma divisão entre as virtudes, que remonta a
Aristóteles, que as classifica como hjqikaiv, por um lado, e dianohtikaiv, por outro. O gênero contemplado
aqui é o das virtudes éticas.
III, 5 Em suas Artes Retóricas: O termo artibus refere-se sem dúvida às Artes Retóricas, como a de
Aristóteles (cf. De finibus III, 4: rhetorum artes). Interessante como, neste passo, a personagem que
representa o autor associa a arte da palavra com a política, tipo de concepção de que o autor se serve em
obras como o De oratore. A retórica está ligada à ética e à política na medida em que dela se serve o
homem público nas assembléias. No livro V do De finibus, a retórica é tratada, sob outro aspecto, como
um ramo da lógica (cf. V, 10).
Ora repartindo... Hutchinson (ad locum) considera haver uma distinção importante que se manifesta
aqui: partientes diria respeito à divisão retórica de um assunto em pontos principais (“heads”), em
contraposição à divisão lógica, ou dialética, de que se falará na seção 8 e a que o autor se refere pelo verbo
diuido. No entanto, lembremos que, acima (seção 4), Cícero se refere à partição da filosofia em três partes,
ou gêneros, isto é, uma operação lógica, por meio do termo partitio e do verbo diuido. As raízes presentes
nos dois verbos foram utilizadas indistintamente, no diálogo epicureu, para tratar da operação analítica. É
verdade que, neste contexto, o autor acaba de falar de tratados de retórica, mas não devemos esquecer que,
para Cícero, filosofia e retórica não são disciplinas separadas de modo absoluto. Há entre elas uma espécie
de aliança (cf. De fato, 3); quanto ao assunto tratado aqui, vale a pena lembrar o passo do Orator em que o
pensador romano sustenta a importância do conhecimento lógico para a formação do orador (cf. 16). São
grandes, com efeito, as semelhanças textuais entre as passagens mencionadas do De fato e do Orator e
este passo do De finibus.
...desleixado; neles, tu vês como brilha a expressão: A forma adverbial squalidius se contrapõe, no
contexto, ao verbo niteat. Squalidus em latim é aquilo que é deixado em estado inculto, que não foi
submetido a um tratamento elaborado. Falta à expressão dos estóicos os ornamenta por meio dos quais
brilha o discurso, por meio dos quais ele se torna luminoso, claro. Interessante notar que os ornamentos do
discurso estariam, então, a serviço da clareza, da inteligibilidade do discurso.
III, 6 Pois tudo aquilo que se põe sob questão... Trata-se da distinção entre quaestio infinita e
quaestio finita que encontramos também nos tratados de retórica de Cícero. No De oratore, por exemplo,

545
afirma-se “que todo discurso se dá ou a respeito de uma questão em que a matéria não é delimitada, sem
indicação de indivíduos e de circunstâncias temporais, ou a respeito de uma matéria que gira em torno de
indivíduos e circunstâncias temporais determinados”; (...) esse omnem orationem aut de infinitae rei
quaestione sine designatione personarum et temporum aut de re certis in personis ac temporibus locata
(De oratore, I, 138). Em seu tratado de juventude, o De inuentione, Cícero, sob a autoridade do retor
Hermágoras, trata da mesma distinção e designa a quaestio finita por causa e a quaestio infinita por
quaestio, simplesmente (cf. I, 8). No Orator, fazendo referência a Aristóteles, Cícero diz que com
quaestio infinita pretende traduzir qevsi" (cf. 46). Nos Tópicos, o romano apresenta a distinção e faz
menção aos dois conceitos gregos: “dois são os gêneros de questões: um, não delimitado, o outro,
delimitado. O delimitado é o que os gregos chamam uJpovqesi" e nós, causa; o não delimitado é o que eles
chamam qevsi" e que nós podemos denominar propositum.”; quaestionum duo genera sunt: alterum
infinitum, definitum alterum. Definitum est quod uJpovqesin Graeci, nos causam; infinitum quod qevsin illi
appellant, nos propositum possumus nominare (Topica, 79). A questão que trata do geral é mais comum
nas discussões dos filósofos, embora o orador possa (e mesmo deva) dela se servir, quando for adequado
(cf. Orator, 45). Para a quaestio finita, aplica-se ainda a doutrina do status causae, que é aludida, ainda
que de modo resumido, nesta passagem do De finibus: quando a discussão se dá a respeito de eventos
particulares, há diversos níveis em que pode ocorrer o debate: quanto ao fato (facti), isto é, se ocorreu ou
não (um crime, por exemplo); quanto ao direito (iuris) e à denominação, isto é: de que tipo é a ação que
foi cometida, como ela tratada pela lei?
III, 7 Esse gênero: genus refere-se aqui não a um dos gêneros de quaestio, mas gênero de estudo
que se ocupa, como um todo (cf. totum), da expressão verbal. Pode trazer problemas de compreensão, no
entanto, que o autor tenha se servido do mesmo termo, genus, para se referir a etapas diferentes da divisão
lógica.
<de conservá-lo>: tueri foi acrescentado ao texto por um filólogo chamado Cobet (cf. Giambelli, ad
locum). Vimos como a elipse de certos termos tem sido comum na elocução ciceroniana. Mas, se algum
verbo deve ser subentendido, trata-se de um verbo do campo semântico de tueor.
Se alguém desejasse quedar mudo, não deveria ler outra coisa. A obra retórica de Crisipo é
criticada também em uma passagem do De oratore (I, 50). Nessa obra, confere-se ao orador uma
capacidade de discutir de modo extremamente agudo (eum quem acutissimum ferunt, Chrysippum,
disputauisse), ou seja, diz-se que foi um sutil dialético; entretanto, a respeito da expressão verbal, tratou
de modo árido e estéril (eisdem de rebus ieune... et exiliter).
E como eles se esforçam! Quer-se dizer que, apesar de defenderem uma expressão sóbria, os
estóicos por vezes parecem se esforçar por atingir uma expressão elevada.

546
Quem habita em Circeios estima que todo este mundo é seu município. Cidade situada em um
promontório do Lácio. Toma-se como exemplo ridículo do cosmopolitismo estóico esta cidade pouco
significante. O modo como Cícero retoma a expressão de Catão é também bastante significativo. Oppidum
refere-se, mais especificamente, à cidade fortificada. A idéia da cidade pronta para a defesa em caso de
uma tentativa de invasão aponta para o absurdo da concepção estóica de que os homens formem todos, em
comunhão com os deuses, uma só associação política. Na oração seguinte, a ciuitas omnium gentium é
ridicularizada por meio do termo municipium que pode designar, mais precisamente, uma cidade cujos
habitantes, ainda que cidadãos romanos, não têm direito de voto. Este tipo de cidade possui, entretanto,
certos direitos que lhe garantem relativa autonomia com relação a Roma.
Com efeito, suas pequenas interrogações, pontiagudas... Os raciocínios dedutivos feitos pelos
estóicos ganham muitas vezes forma de pequenas interrogações. A imagem representada por Cícero neste
ponto é de uma concretude tal, que pode mesmo gerar algum estranhamento. O exemplo também é de uma
situação para lá de banal. Pelo contexto, julgamos que o autor compara os silogismos dos estóicos,
pontiagudos que são (recordemos que essa filosofia fora tratada como “espinhosa” no início do livro III),
com picadas de insetos, como das abelhas, por exemplo. Seus ferrões, ainda que firam e penetrem nossa
pele, não vão muito além. Da mesma forma os silogismos, que, ainda que causem algum efeito, não são
capazes de alterar substancialmente nosso modo de pensar: têm pouco poder persuasivo. É interessante
notar, todavia, que o mesmo termo aculeus é utilizado no Orator, por exemplo, para se referir a um
elemento que o discurso do orador deve conter, mas que falta à expressão do filósofo: a capacidade de
causar impressão, de “aguilhoar” o ouvinte (cf. Orator, 62), impressioná-lo afetivamente e, com isso,
persuadi-lo.
De um modo apegado demais às minúcias. Expressar-se minute tem, em Cícero, duplo sentido:
expressar-se com precisão, de modo detalhado. Entretanto, pode significar, como aqui, expressar-se com
estreiteza. Isso, conforme julgamos, justamente quando aquele que se fala se apega demais às minúcias.
Cf. ainda nossa nota a I, 61.
IV, 8 ...a partir dos quais eles chegaram aos gêneros e às formas dos gêneros. Formas generum
refere-se àquilo que nós chamamos “espécies”. O método de divisão relacionado à definição pode ser
visto, por exemplo, na passagem inicial do Sofista de Platão. Um gênero se constitui por meio de uma
característica comum entre os elementos que o compõem. Aplicando o processo de divisão, seleciona-se
uma característica especial, que não esteja presente em todos os elementos do conjunto (trata-se, em latim,
da differentia). Os elementos que possuem tal característica formam uma espécie. Essa pode ser tratada
como um novo gênero e submetida ao mesmo processo. Quando se chega a uma espécie que contenha um
só elemento, a diferença específica indicará a definição do elemento (cf. Hutchinson, ad locum). Ao
método de divisão liga-se ainda o princípio dos contrários. Trata-se de um dos três princípios

547
fundamentais do pensamento, proeminentes na teoria da predicação aristotélica. De uma mesma coisa não
pode ser predicada, ao mesmo tempo, uma característica P e o seu contrário: não-P. Assim, elementos
quaisquer sempre podem ser divididos em gêneros conforme possuam as características P ou não-P. Os
grupos formados constituem espécies.
Argumento concluído por raciocínio: trata-se da ajpovdeixi", cf. Acad. II, 26.
Premissa maior: é o sentido técnico de caput de acordo com Giambelli (ad locum). Podemos
relacionar esse uso do termo com outros dois, bastante comuns. Chamam-se capita as divisões principais
de um escrito, como de uma carta, de acordo, por exemplo, com os tópicos tratados. Por outro lado, caput
pode fazer referência, de modo bem mais concreto, a nascente de um rio, seu ponto de origem (cf. O
Oxford Latin Dictionary registra a expressão caput fluminis e, em De finibus, II, 34, encontramos ab isto
capite fluere necesse est). Essas duas idéias parecem estar juntas no uso de caput no jargão técnico da
dialética.
O que existe de verdadeiro em cada um dos casos é a conclusão final. Isto é, em cada uma das
diferentes combinações de premissas, conforme pensa Hutchinson (ad locum). De fato, in singulis não
pode se referir às próprias premissas, pois isso tornaria incoerente a argumentação da personagem de
Cícero.
IV, 9 Interrogações capciosas: já vimos que interrogatio pode se referir ao silogismo, sobretudo na
forma que lhe dão os estóicos. Agora, graças ao adjetivo captiosa, as deduções dos estóicos são
comparadas aos silogismos sofísticos.
IV, 10 Uma a de encontrar, outra a de expor... O par ratio / oratio deve traduzir o grego lovgo". A
inuentio, como se sabe, é normalmente tratada dos textos retóricos, como uma das tarefas do orador.
Provavelmente por se relacionar à arte retórica, ela foi negligenciada pelos estóicos (cf. Giambelli, ad
locum). Nos Tópicos, encontramos uma argumentação bem próxima desta que vemos aqui, embora haja
certa divergência quanto aos termos empregados na distinção: “uma vez que o diligente método (ratio) da
exposição tenha duas partes, uma que consiste em encontrar, outra que consiste em julgar, em ambas foi o
maior de todos, como a mim ao menos parece, Aristóteles. Os estóicos, por sua vez, aplicaram esforço em
uma delas, pois os métodos (uias) do julgamento eles perseguiram diligentemente por meio daquela
ciência que eles chamam ‘dialética’, a arte de encontrar, que se denomina ‘tópica’, que não só é mais
importante para o uso, mas também é, certamente, primeira na ordem da natureza, eles a deixaram de lado
completamente”; Cum omnis ratio diligens disserendi duas habeat partis, unam inueniendi alteram
iudicandi, utriusque princeps, ut mihi quidem uidetur, Aristoteles fuit. Stoici autem in altera
elaborauerunt; iudicandi enim uias diligenter persecuti sunt ea scientia quam dialektikh;n appellant,
inueniendi artem quae topikh; dicitur, quae et ad usum potior erat et ordine naturae certe prior, totam
reliquerunt (Topica, 6).

548
Pois aqueles lugares, que são como que depósitos de onde se extraem argumentos... Diversas
imagens bem concretas são utilizadas por Cícero para explicar a idéia de locus ou tovpo" da
argumentação. Nos Topica, eles são chamados, sob a autoridade de Aristóteles, quasi sedes e quibus
argumenta promuntur: “as moradas (ou sedes) das quais são tomados os argumentos” (cf. Topica, 8). Já
no Orator, ainda sob a sombra de Aristóteles, os lugares são tratados assim: quasi argumentorum notas ...
unde omnis oratio traheretur, isto é: “como que marcas distintivas (ou rótulos) de argumentos, de onde se
extrai todo o discurso” (Cf. Orator, 46). A teoria dos lugares não é simples. De modo geral, poderíamos
dizer que Cícero os entende como uma coletânea de formas gerais de argumentos de que o orador se serve
no momento que compõe seu discurso (cf. Hutchinson e Giambelli em suas notas ad locum).
Sem se afastar das próprias anotações: a expressão vaga commentariolis suis pode designar tanto as
notas de curso feitas ao se freqüentar um retor quanto as anotações que o orador faz para organizar seu
discurso antes que o pronuncie.
Onde se encontra cada argumento... Percebe-se novamente como a teoria dos loci é apresentada por
meio de elementos bem concretos. É como se eles se organizassem (positum) em um thesaurus, um
depósito de bens valiosos, dispostos, cada qual, em sua prateleira, marcada com uma etiqueta (nota)
adequada.
V, 11 Àqueles que observem quão grande moderação existe também entre os deuses... Esse
parágrafo, como bem aponta Hutchinson (ad locum), faz com que a cosmologia estóica, desenvolvida no
livro III (cf., por exemplo, 64 e 73) apareça como uma retomada da cosmologia desses que são chamados
aqui de filósofos antigos. Tudo faz parte da estratégia ciceroniana de demonstrar a identidade que existe
entre a doutrina que os estóicos julgam ter criado e aquilo que já haviam exposto os expoentes da Antiga
Academia e do Liceu.
V, 12 É intrínseca a essa mesma exposição da natureza uma espécie de prazer insaciável... Vimos
na exposição de Catão que, para os estóicos, o conhecimento das coisas traz consigo um tipo de prazer (cf.
III, 17-18) e, o que é mais notável, o prazer intelectual é uma das afecções apropriadas a que pode se livrar
o sábio (cf. nota a III, 35).
Se haveria talvez uma quinta essência... Este passo contém algumas dificuldades. Há outras
referências, na obra de Cícero, a essa quinta essência de que se fala aqui. Em Academica I, 26, após terem
sido tratados os quatro elementos, podemos ler: quintum genus, e quo essent astra mentesque, singulare
eorumque quattuor, quae supra dixi, dissimile Aristoteles quoddam esse rebatur, isto é: “um quinto
elemento, a partir do qual teriam existência os astros e as mentes, Aristóteles considerava ser algo distinto
e diferente dos quatro que mencionei acima”. Em nota a essa passagem dos Academica, Reid diz que foi
Filolau, provavelmente, quem primeiramente avançou a doutrina do quinto elemento. Dele, ela chegou a
Espeusipo, Xenócrates e Aristóteles. O comentador aponta ainda que, embora a tradição por vezes atribua

549
a Platão tal doutrina, ela não aparece na cosmologia exposta no Timeu, por exemplo. Ainda nos
Academica, há outra menção à doutrina (I, 39) em que ocorre a mesma expressão que vemos no De
finibus: quintam hanc naturam. Não é nosso propósito discutir o acuro da interpretação que faz Cícero da
física aristotélica, cabe dizer, no entanto (como faz Hutchinson em nota à passagem do De finibus) que
não é simples relacionar a quinta essência, tratada por Aristóteles como aijqhvr, à alma ou à inteligência. As
passagens da obra do estagirita em que os conceitos vêm relacionados são controversas. Hutchinson
argumenta que uma identificação entre éter e alma é impossível, uma vez que Aristóteles defenderia em
diversas passagens o caráter imaterial da alma. Se os peripatéticos posteriores realizaram tal identificação,
fizeram-no por terem sofrido influência do pensamento estóico. Que desse quinto elemento tenham se
formado os corpos celestes é uma afirmação que aparece nas obras de Aristóteles (cf. De caelo, I, 2-3 e II,
7 apud Giambelli, ad locum).
Zenão disse que tal elemento é o fogo. Também traz problemas essa afirmação da personagem de
Cícero (coisa semelhante se lê em Tusc. I, 19), uma vez que, nos textos mais difundidos que tratam do
pensamento estóico, normalmente se menciona o pneu'ma (sopro) como elemento material de que é
formada a alma. Giambelli, entretanto, em nota à passagem, apresenta um texto que trata do pensamento
do Pórtico (de Cornuto, De nat. deor., p. 8, Osan.) em se diz que as almas são ígneas:
kai; hJmevterai yucai; pu'r eijsi, o que legitimaria a exposição ciceroniana. No De natura deorum
ciceroniano, explica-se tal concepção, quando se diz que o fogo elementar (diferentemente do fogo
artístico) é de onde se originam todos os elementos. Na mesma passagem, o fogo elementar é comparado
ao calor que percorre os animais vivos (cf. De natura deorum, II, 23-24).
V, 13 Das coisas que nascem da terra traduz de rebus iis quae gignuntur e terra, perífrase que faz
referência aos vegetais, tratados em grego por futav. A mesma expressão aparece em De finibus, V, 26 e
em Academica, I, 26.
Quanto aos vossos, fazendo o mesmo, não tecem pagam grande tributo aos inventores. Encerra-se a
parte consagrada ao tratamento da física, em que aparecem, como vimos, certos elementos da metafísica.
Alguns estudiosos apontam para a falta de acuro na exposição ciceroniana, que negligencia as diferenças
importantes que existiram, nesses domínios, entre os pensamentos acadêmico, peripatético e estóico (cf.
Woolf, ad locum). É difícil sustentar a hipótese de que Cícero desconhecesse as doutrinas dessas escolas
com profundidade, uma vez que sua formação filosófica é atestada em diversas passagens de seus diálogos
e, principalmente, de sua correspondência. Julgamos que a negligência é deliberada e faz parte da
estratégia argumentativa da personagem que representa o autor neste diálogo em particular e mesmo da
estratégia do próprio autor ao longo do tratado. Guarda-se como comum às três escolas aquilo que a
personagem julga ser o mais importante: o fato de elas tratarem a natureza segundo uma concepção
teleológica (de maxima autem re eodem modo, diuina mente atque natura mundum uniuersum ...

550
administrari). Deixar de lado os detalhes, que Cícero parece reconhecer serem diferentes, auxilia sua tese
que aponta para uma semelhança geral também no que diz respeito à questão moral. A diferença é
sobretudo terminológica, algo que vai se manifestar como um vício na expressão dos estóicos. Para as três
escolas, a virtude tem um valor próprio: é digna de ser buscada por si mesma. O grande adversário, que
será batido pelo consenso entre essas três escolas é o hedonismo epicureu.
VI, 14 Dentre os quais Pólemon... Madvig (ad locum) julga improvável que Cícero cite Pólemon a
partir de uma leitura direta de seu texto. O filólogo alemão fundamenta sua afirmação em uma passagem
de Academica: ut indicant scripta Polemonis, quem Antiochus probat maxime, isto é: “conforme indicam
os escritos de Pólemon, a quem, sobretudo, Antíoco dá aprovação” (cf. Acad., II, 131). Difícil chegar a tal
conclusão a partir da passagem citada. Mas parece ser bastante plausível que, tenha tido ou não acesso
direta ao texto de Pólemon, a argumentação de Cícero se baseie nas idéias de Antíoco. É prudente, no
entanto, como já advertia Madvig, não tomar como uma citação exata a definição de sumo bem que Cícero
atribui a Pólemon. O estudioso alemão critica ainda a atribuição das três interpretações distintas aos
estóicos. Com isso, diz ele, os estóicos admitiram ambigüidade em sua própria definição de sumo bem.
Para ele, trata-se de argumentação de Antíoco. Giambelli (ad locum) critica Madvig e considera que a
atribuição é pertinente. Para o italiano, as interpretações dão conta de estágios diferentes do
desenvolvimento moral humano, que são contemplados pela doutrina estóica (como vimos no livro III). O
primeiro sentido diz respeito à conuenientia, ou homologia. O segundo, ao officium medium. O terceiro,
ao officium perfectum. Parece haver um equívoco, pois o terceiro sentido não trata do dever perfeito da
parte de Giambelli. De qualquer modo, devemos salientar que, ainda que se possa explicar a distinção de
modo ajustado com o sistema estóicos, isso não veda que a argumentação seja de Antíoco, já que, na
exposição da doutrina estóica, nenhuma menção se faça a essas três formas de interpretar a definição do
finis.
Viver aplicando o conhecimento a respeito das coisas que ocorrem por natureza. Uma fórmula bem
próxima, diz Diógenes Laércio, encontrar-se-ia no primeiro livro do Peri; telw'n de Crisipo (D.L., VII,
87): kat j ejpeirivan tw'n fuvsei sumbainovntwn zh'n, isto é, “viver conforme a experiência daquilo que
ocorre por natureza”. No livro II do De finibus, por outro lado, uma fórmula diferente é utilizada para
tratar do finis dos antigos acadêmicos: “viver segundo a natureza, isto é, acolhida a virtude, fruir do que a
natureza dá como primeiro” (II, 34).
Viver de acordo com a natureza: segundo algumas fontes, observa Hutchinson (ad locum), a
fórmula de Zenão não conteria a expressão naturae (ou fuvsei), que teria sido, de fato, acrescentada por
Cleantes. Zenão diria que o sumo bem é simplesmente viver oJmologoumevnw", isto é, simplesmente, viver
“em concordância”, “em harmonia”.
VI, 15 Insensatos. Como vimos no livro III, todos os não-sábios são insensatos. Cf. nota a III, 60.

551
O terceiro, por sua vez... Esse gênero de vida só seria pleno mediante a presença de bens do corpo e
de bens externos. Ora, essa terceira interpretação, ao menos, não pode ter sido de autores estóicos (ao
menos não do estoicismo original), uma vez que ela implica a insuficiência da virtude como produtora de
felicidade. Ora, é justamente esse modo de interpretar a fórmula que permite a ligação, na seqüência do
texto, com a tradição acadêmico-peripatética.
VII, 17 Que é uma atribuição da natureza... que as uniões entre maridos e esposas sejam uniões
naturais... O período tem problemas sintáticos. Para Madvig (ad locum), é evidente que o ut depende da
expressão natura tributum esse docuerunt. Mas, se for assim, como o próprio filólogo alemão observa, a
expressão se torna viciosa: deveríamos entender que a natureza teria dado como atribuição que os
filósofos dissessem que as uniões conjugais fossem naturais. Poderíamos, para contornar o problema,
julgar que o ut introduz uma oração consecutiva: “de modo a afirmarem ...”. Hutchinson (ad locum),
porém, concorda coma explicação sintática de Madvig e, reconhecendo o raciocínio circular criado pela
expressão de Cícero, propõe a substituição de esse dicerent por algo como inirentur. Como, segundo nos
parece, a idéia é clara, optamos por seguir, de modo geral, a interpretação de Hutchinson, mas preferimos
supor uma forma verbal essent em lugar de esse dicerent.
Construíam-se bens de maior dimensão. Assim traduzimos amplitudinem quaedam bonorum
excitabantur, pois se trata de uma imagem, segundo Madvig (ad locum), tomada da construção civil, onde
excito tem o sentido de erigir desde os fundamentos.
VI, 18 Mas, dos princípios dados pela natureza... A partir da exposição da constituição primeira do
ser humano, explica-se a divisão das virtudes em duas grandes categorias (divisão à qual já se aludira na
seção 4): uma delas tem relação com o conhecimento, outra, com as disposições de alma que criam o
sentimento moral.
VIII, 19 O fim de todas as artes fosse sobretudo aquele que a natureza buscaria... Hutchinson (ad
locum) aponta certa imprecisão nesta afirmação de Cícero. A natureza não buscaria o fim almejado pelas
artes. Para ele, Cícero quer dizer que o fim de cada arte é suprir uma necessidade natural. Na verdade, esse
estudioso retoma a argumentação desenvolvida por Madvig (cf. ad locum).
IX, 21 Que não pode ter absolutamente nenhuma admissão na cidade, no fórum, na cúria.
Concebendo a filosofia, inclusive a parte moral, elemento fundamental na formação do orador, isto é, do
homem político, Cícero pode criticar, como já fizera com o epicurismo, uma filosofia que não se expresse
de modo tolerável no espaço público. Devemos relacionar esta passagem às críticas feitas contra Catão no
Pro Murena, discurso proferido por Cícero em um processo em que tinha o uticense como adversário (cf.
Pro Murena, 61-63).

552
De uma vida a ser vivida sábia e gravemente e... Há aqui passagem expurgada do texto estabelecido
por Reynolds, que ordinariamente seguimos. Na opinião de Madvig (ad locum), a expressão nomina
rerum commutantem é uma interpolação.
IX, 22 ‘Por sua virtude’, ou ‘ventura’: a conjunção aut aqui não implica duas fórmulas alternativas
de decreto de triunfo, que deveria ser, antes, algo como quod eius uirtute ac felicitate, ou seja “por sua
virtude e ventura”. A alternativa disjuntiva ajusta-se, sim, à sintaxe da argumentação ciceroniana (cf.
Hutchinson, ad locum): se o senado seguisse a doutrina estóica, poderia usar a expressão uirtute, ou, ao
menos felicitate?
Que filosofia é essa... Vimos crítica de mesmo teor ser dirigida aos epicureus. As idéias professadas
por estas filosofias, na opinião da personagem de Cícero, não podem participar da vida pública; ficam
restritas aos círculos particulares formados por aqueles que as seguem. Veja-se, por exemplo, II, 74.
Não haja nenhuma inovação... Segue-se passagem expurgada do texto de Reynolds.
Mas persistam as mesmas coisas de outro modo? Há certa imprecisão – deliberada, julgamos – na
argumentação. Se os estóicos dizem as mesmas coisas, ainda que de outro modo, por que não poderiam se
expressar livremente, como adeptos de outras escolas, nas assembléias públicas? Cícero parece
reconhecer, ainda que de modo dissimulado, que há diferença substancial entre o pensamento do Pórtico e
o do Liceu, por exemplo. Isso vai ficar mais patente com a seqüência do texto. Ocorre, entretanto, que a
diferença substancial advenha de um rigor excessivo (e vicioso!) com relação à terminologia. Querendo
distinguir as coisas de modo muito sutil, os estóicos chegam a concepções que são inaceitáveis na
perspectiva do senso comum.
IX, 23 Panécio –, ao escrever a Q. Tuberão... Há referências, em outras obras de Cícero, a escritos
que Panécio dedicou a Quinto Tuberão (cf. Acad. II, 135 e Tusc. IV, 4). Com base nos textos, porém, é
difícil afirmar categoricamente que as referências digam respeito a um mesmo texto que seria um tratado
De dolore patiendo, como quer Hutchinson (ad locum). Quinto Tuberão foi sobrinho de Cipião Africano.
Cícero celebra sua memória em diversas passagens e o representa como um estudioso e praticante da
doutrina estóica (cf. Madvig, ad locum).
Jamais apresentou aquele que devia ser o argumento principal... Faz-se alusão a uma opinião,
propagada também por outros autores, que dá conta de que o pensamento de Panécio era mais brando e
conciliador do que o do estoicismo mais antigo, talvez por conta do ambiente romano em que o filósofo
divulgou o pensamento do Pórtico (cf. Diógenes Laércio, VII, 128 e Aulo Gélio, XII, 5, 10).
X, 24 De mim, então, tu esperas? Eis como Madvig (ad locum) interpreta a irônica tirada da
personagem que representa o autor: “A me (qui haec mediocriter scio) tu (qui tenes et pertractasti)?”, ou
seja, “De mim (que conhece apenas medianamente estas coisas) tu (que as dominas e as estudaste
profundamente)?”. Interessante notar como, na perspectiva da personagem estóica, toda a tentativa,

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empreendida por Cícero, de identificar o estoicismo e o pensamento dos peripatéticos e acadêmicos, soa
como um discurso voltado para pessoas não versadas em filosofia. Após a crítica, Cícero passa a discutir a
partir da noção de oijkeivwsi" e dá um tratamento mais técnico a seu discurso. De todo modo, vale a pena
sublinhar a importância que tem essa primeira parte do discurso da personagem de Cícero para a
demonstração de sua tese, uma vez que ela prepara terreno para o que vem a seguir e, por outro lado, para
a realização de seu projeto maior de filosofia que consiste, como sabemos, em divulgar a filosofia com
vistas à educação dos futuros homens públicos de Roma. Assim, a réplica A mene tu? concentra, com uma
saborosa dose de ironia, uma das grandes tensões que existem entre as personagens de Cícero e Catão e,
conseqüentemente, entre o academicismo tardio e o estoicismo. Cícero critica no Pórtico justamente o
excesso de rigor técnico, que gera mesmo contradições, e a falta de uma capacidade de tocar os ouvintes
comuns (não sábios) que, afinal, são os que mais precisam da filosofia moral.
X, 25 Que nós fomos recomendados a nós próprios. Recordemos que a oijkeivwsi" foi exposta em
latim (por Catão, no livro III, 16) por meio dos termos conciliari e commendari. Remetemos o leitor às
notas do livro III.
Segue-se isto: que apliquemos a mente em saber o que nós próprios somos... Esta afirmação, que,
ainda que não tenha sido formulada pelos estóicos, é algo que eles provavelmente aceitariam, já que
estudam também a natureza do homem, permitirá apontar uma contradição no pensamento moral do
Pórtico. Vale dizer, entretanto, que ela traz problemas à compreensão da oijkeivwsi" na perspectiva
utilizada pela personagem de Cícero. Ora, esse conceito diz respeito à maneira como a natureza nos
recomenda, desde o nascimento, com vistas a que nos amemos e nos preservemos. Poderia parecer difícil
que uma compreensão do que seja a natureza humana fosse possível nos estágios iniciais da vida. Ora, a
própria personagem de Cícero vai se servir, mais adiante, do preceito délfico para conduzir seu
interlocutor (e os leitores) à reflexão a respeito da natureza humana. Ou seja, a compreensão da natureza
humana seria algo que nós alcançaríamos por meio do lovgo", da investigação e da argumentação racional.
Se, por outro lado, recordarmos que o verbo animaduerto fora utilizado, no diálogo epicureu, para
designar uma espécie de intuição intelectual imediata (a provlhyi" epicurista), poderemos conceber que,
segundo a teoria aqui exposta, o homem teria, em seu estágio inicial, condições de, de alguma forma,
reconhecer sua natureza composta de corpo e alma. De modo análogo, vimos, na exposição da conciliatio
estóica, que, como condição do amor a si próprio, devia haver no ser animado uma percepção de si próprio
(cf. sensus sui, em III, 16), ainda que não completamente racional.
XI, 27 Algum ser animado, e esse, por sua vez, não fosse nada senão uma alma... A hipótese
aventada pela personagem de Cícero busca mostrar que o erro dos estóicos vai além da incompreensão a
respeito da natureza humana. Se eles desconsideram a natureza mista do homem e, por isso, não dão
importância aos bens do corpo, por outro lado, mesmo com relação aos bens da alma eles se equivocam.

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Na opinião da personagem, para que se mantenha a coerência com relação à tendência primeira, que é a
autopreservação, mesmo um ser animado desprovido de corpo, deveria buscar a saúde da alma e aquelas
coisas que promovem a manutenção de seu bom estado como fins.
XI, 28 animantium... alias: cria alguma dificuldade que Cícero retome animantium por meio da
forma feminina alias, sobretudo porque isso poderia nos fazer pensar que a anáfora é com relação a
differentias. O contexto, entretanto, nos afasta dessa interpretação. Somos levados a pensar que Cícero
teria em mente, ao usar alias, um dos substantivos por meio dos quais ele costuma se referir aos que
chama aqui animantes, ou seja, ferae ou bestiae.
XII, 29 Uma contradição interna: esta contradição é o que a personagem pretende ter demonstrado
com a hipótese do ser animado desprovido de corpo.
Se obscurecem e não se manifestam porque seriam muito pequenas... Cf. As imagens utilizadas por
Catão em De finibus, III, 45. Há controvérsia quanto à forma correta do verbo dicere, a partir das
alternativas apresentadas pelos manuscritos. Alguns estudiosos, como Madvig (ad locum), julgam que se
trata de uma terceira do plural (dicunt) que estenderia a argumentação aos estóicos em geral. Outros,
como Giambelli (ad locum) e o próprio Reynolds, cujo texto regularmente seguimos, julgam que Cícero
continua a falar de Crisipo.
Algo que até mesmo Epicuro diz sobre os prazeres... Como já notara Madvig (ad locum), Cícero
parece se referir ao cálculo hedonístico (tratado por Torquato em I, 32 e ss. e em I, 47), que recomenda
deixar de lado pequenos prazeres, que tragam porventura dores, com vistas à fruição de prazeres maiores.
Interessante notar o modo como Cícero reúne sob uma mesma perspectiva diferentes doutrinas filosóficas
(ora, é esse o projeto mesmo do De finibus). Neste passo, a personagem do autor trata do cálculo de
Epicuro por meio do conceito de ea quae secundum naturae sunt, utilizado por estóicos e pelos ueteres
filósofos.
Mas não são desse gênero as vantagens corporais... Hutchinson (ad locum) parafraseia: “a
importância, permanência e multiplicidade dos bens físicos colocam-nos em uma categoria diferente
daqueles bens que são intrinsecamente negligenciáveis”.
XII, 31 Ser rechaçada antes com o riso do que com um discurso... Na opinião de Madvig (ad
locum), “in eiciendi verbo imaginem a scaena ductam esse”, isto é, “na palavra eiciendi, a imagem é
tomada do teatro”.
Uma moeda se obscurece em meio às riquezas de Creso; todavia, é parte de sua riqueza...
“Ademais”, que traduz deinde, introduz um argumento que se acrescenta ao que se inicia com non sunt in
eo genere. Para a personagem de Cícero, é um erro dos estóicos considerar que aquilo que eles chamam de
preferíveis e os bens não sejam de mesma natureza. O bem do corpo, como a saúde, por exemplo, ainda
que fosse como uma moeda em meio à riqueza do rei da Lídia, é parte constituinte da vida feliz.

555
XIII, 32 A respeito mesmo desses obscurecimentos que... Madvig (ad locum) aponta a estranheza da
expressão ciceroniana e diz que esperaria antes algo como: de obscurationibus earum rerum, quae (...) uix
aut ne uix quidem appareant, ou seja, “a respeito do obscurecimento daquelas coisas que, por causa de sua
exigüidade etc.”, pois, como nota Giambelli (ad locum) não são as obscurationes que são exiguae, mas as
coisas. O filólogo italiano concede a Cícero certas “negligenze dell’arte” que demonstrariam que a
natureza do discurso se afasta da precisão matemática.
Para todas as naturezas: omnium naturarum refere-se a todos os seres existentes. Julgamos que
esse genitivo se relaciona não a simile, mas ao anafórico id, que se refere, no contexto, à idéia de finis. A
idéia é a seguinte: ainda que cada ser tenha um finis próprio, há semelhança entre todos os fines
particulares, uma vez que, como vemos na oração seguinte, todos seres partiriam de uma mesma tendência
primeira: o amor por si mesmo.
XIII, 33 Pois é desse tipo, temos visto, o termo último dos estóicos. Já que, para os estóicos,
(conforme pensa a personagem de Cícero) o termo último do homem compreenderia apenas os bens da
alma, parte superior da natureza humana, para que os fines de cada natureza fossem de fato análogos (algo
que, conforme se afirmou, é consenso entre os interlocutores), em cada um dos seres o finis deveria dizer
respeito a sua parte mais excelente apenas.
XIII, 34 Em pensar de modo diferente [mutare] os princípios naturais... Giambelli (ad locum),
mais ousado, julga que a passagem é irônica: tendo em vista as contradições que observa no sistema
estóico, Cícero perguntaria a Catão por que os estóicos não mudam os princípios da natureza. A idéia
seria, portanto, não a de alterar a concepção a respeito da primeira tendência, mas alterar a própria
realidade das coisas. A seqüência do texto, entretanto, parece favorecer a interpretação mais usual.
Assim como Fídias... a isso é semelhante a sabedoria... A inconcinnitas é do original. Giambelli
nota a ocorrência de um anacoluto, algo que não é raro nos diálogos de Cícero e lhes confere certa cor de
discurso oral e improvisado. O italiano se baseia em Madvig que, em nota à passagem, conjectura como
seria a expressão sem a figura sintática: sic sapientia hominem, quem a natura inchoatum accepit,
absoluere debet, qualis instiutus est. Sobre Fídias, veja-se De finibus, II, 115 e nossa nota à passagem.
XIII, 35 Não haja, naquilo que se deve perfazer... O texto de Reynolds traz aqui a lição sit nihil, ao
passo que o seguido por Martha : si est nihil ; o de Hutchinson estampa si nihil. Optamos, assim como
Reynolds, pela lectio difficilior. Não é estranho em latim, de fato, a ocorrência de orações como esta:
subordinadas condicionais assindéticas. Se houver dificuldade na leitura, entenda-se: “se não houver,
naquilo que se deve perfazer, nada que se deva perfazer ou rematar senão...”. O mesmo tipo de construção
ocorre mais adiante: sit nihil nisi corpus...
XIV, 36 Por que hesitamos em indagar o que foi executado em sua natureza como um todo? A idéia
é ainda a do esboço realizado pela natureza, como já notava Madvig (ad locum). O filólogo alemão

556
percebe bem que effectum sit corresponde a inchoatum sit a natura: “quod antea inchoatum dixit, nunc
effectum dicit”. In tota eius natura faz referência, evidentemente, à natureza composta do homem,
formada por corpo e alma. A questão é, então, qual deve ser o sumo bem se levarmos em consideração a
natureza composta do homem.
Como se falassem de algum ser desprovido de alma... A teoria dos epicureus, de que se trata aqui,
aparece de modo bastante interessante como uma espécie de antípoda da hipótese, aventada na seção 28, a
respeito do ser que fosse constituído apenas por alma. Na crítica da personagem de Cícero, a doutrina do
Jardim conceberia o homem como um corpo apenas e, assim, teria definido que seu bem é o prazer. A
leitura do livro I do De finibus mostra, entretanto, quão distorcida é a imagem que a personagem apresenta
aqui do pensamento de Epicuro.
Mas certo gênero de corpo... Mais uma incoerência que a personagem de Cícero julga haver no
sistema estóico. Se, para os filósofos do Pórtico, a alma é corpórea, formada por uma substância sutil (em
latim, cf. Madvig, ad locum, uma espécie de aeris igneus, isto é, “um sopro ígneo”), ela deveria estar
sujeita aos apetites próprios do corpo. Mas, de modo extremamente incoerente, esses filósofos atribuiriam
à alma a virtude como sumo bem, tratando-a como algo de imaterial.
Falta, por assim dizer, um pedaço. Conforme a glosa de Madvig (em nota à passagem), “curtum
dicitur, cui pars aliqua ablata et detracta ad integritatem deest”: “chama-se curtum aquilo para cuja
integridade falta alguma parte, que lhe foi retirada ou arrancada”. Quasi, como de costume, marca o uso
pouco próprio da expressão.
XIV, 37 Vós ofuscais o discernimento de nossa almas com o esplendor da virtude. Difícil verter
esta oração que se vale de uma metáfora que é toda da ordem da visão. Acies oculorum (cf. Giambelli, ad
locum) é expressão que designa o vigor do sentido da visão. Na nossa passagem, refere-se ao vigor da
mente, sua capacidade de ver e penetrar as coisas. Os estóicos, dando à virtude um brilho absoluto,
acabam por ofuscar a capacidade de “visão” da alma, isto é, todo o seu vigor.
XIV, 38 Assim como se a cultura das vinhas... A mesma imagem aparece na exposição de Pisão, no
livro V (39-40). De acordo com ela, a razão é comparada a uma arte. A razão cuida do desenvolvimento
do homem como a técnica agrícola cuida da vinha. Mas, no homem, todo o sistema que permite o seu
completo desenvolvimento lhe é interno, cultiva-o a partir do interior.
A percepção sensível, depois de adicionada à natureza... quando, por sua vez, a razão é adquirida.
O texto reproduz uma escala de seres vivos que vai desde o reino vegetal, passa ao animal (com o
acréscimo dos sentidos) e chega ao reino animal (com a aquisição da razão).
Primeiros elementos naturais. A partir do que o contexto nos permite compreender, a expressão illa
prima naturae designa aqui os elementos que marcam os estágios anteriores ao do homem na escala dos

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seres vivos. Note-se a semelhança com as expressões ea prima secundum naturam e principia naturae,
que, por outro lado, designam as primeiras tendências naturais no indivíduo.
XIV, 39 o dever, e até mesmo a própria virtude... as coisas que são segundo a natureza. É um
equívoco, tendo como base o pensamento estóico, considerar que a virtude e o dever (ou ação apropriada)
sejam “coisas segundo a natureza”. Nenhum dos dois designa objetos da tendência natural. Na verdade, as
“coisas segundo a natureza” são o campo de atuação da virtude e da ação apropriada (cf. Hutchinson, ad
locum).
XV, 40 Atribuir um papel à virtude: assim traduzimos por julgar que a imagem criada por introduci
pertence à esfera do teatro.
+completamente a nós mesmos+ O texto aqui apresenta problemas. Se pensarmos nos como sujeito,
neglegemus fica sem uma objeto direto expresso. Se considerarmos nos objeto, poderíamos atribuir-lhe o
sentido de “nossa própria constituição”, como procederia Reid (apud Hutchinson, ad locum). O problema
é que a questão, neste ponto, é a constituição corporal, à qual, diz Hutchinson, nos não poderia ser
aplicado. Por outro lado, esperaríamos que o objeto de neglegemus e de non neglegemus, que ocorre
depois, fosse o mesmo, mas falta-nos o antecedente de ea. Madvig (ad locum) supõe que o texto original
deve ter sido algo como si omnino omnia praeter animos neglegemus, algo que, ainda que não passe de
hipótese, reconstrói bem a provável argumentação: “se nós negligenciarmos completamente todas as
coisas que não a alma”.
Não nos arredaremos muito do desatino de Erilo... Erilo, filósofo original de Cartago, já foi
mencionado algumas vezes anteriormente. Em uma dessas ocasiões (II, 43), informou-se que, para ele, o
sumo bem consistia no conhecimento. A mesma idéia aparece em Diógenes Laércio (VII, 165), numa
passagem que nos traz ainda algumas informações pertinentes para a atual passagem do De finibus.
Afirma-se que Erilo considerava que, por vezes, não existia um só tevlo", mas que este podia variar de
acordo com as circunstâncias, assim como o mesmo bronze pode se tornar uma estátua de Sócrates ou de
Alexandre. Erilo proporia, então, uma distinção entre tevlo" e uJpoteliv". Algo que Goold (tradutor de
Diógenes na edição da Loeb) interpreta como “end-in-chief” e “subordinate end”. A idéia parece dizer
respeito a uma divisão bastante utilizada pelos estóicos, mas que já aparecia (ainda que não aplicada à
moral) no pensamento de Aristóteles. Se recordarmos o símile do arqueiro, de que se serviu Catão no livro
III (22), poderíamos julgar que uJpoteliv" corresponde ao fato de atingir o alvo, ao passo que o
tevlo" corresponderia a adotar a atitude correta, fazer todos os esforços com vistas a atingir o alvo, ainda
que, por qualquer motivo, este propósito não venha a ser alcançado (cf. Giambelli, ad locum). Uma
excelente discussão da maneira como os estóicos parecem ter se servido, no âmbito da moral, desse
raciocínio que Aristóteles aplica, por exemplo, à arte retórica e à medicina, encontra-se em Irwin, T.H.
“La conception stoïcienne et la conception aristotélicienne du bonheur”, citado na bibliografia.

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XV, 41 A própria constituição do homem: Institutio hominis refere-se à prima institutio da seção 32,
isto é, ao habitus e à constitutio dada pela natureza (cf. Madvig, ad locum).
Os primeiros ensaios, por assim dizer, de sua tendência. A expressão primos suos quasi coeptus
retoma aquilo que Cícero vem tratando por initia, ou principia. Aqui, utiliza-se expressão que ele julga ser
menos própria, coeptus, daí o uso do advérbio quasi. Os coeptus appetendi são, em outras palavras, os
primeiro movimentos do homem em direção a alguma coisa.
XV, 42 Teriam visto algumas coisas maiores e mais divinas, deixaram de lado os sentidos. A
referência é especialmente feita aos filósofos da Antiga Academia. Maiora quaedam et diuiniora são
aquelas realidades que só podem ser “vistas” (uidissent) por meio dos olhos da razão, isto é, as formas (ou
idéias), sobretudo as do Belo em si, do Bem em si, etc.
Daquelas coisas que julgam admiráveis e belas. Acrescentamos, em nossa tradução, a expressão
“que julgam” para reproduzir mais claramente o argumento utilizado pela personagem. Os estóicos,
maravilhados com a visão da virtude, negligenciaram todas as outras coisas que também seriam objetos de
nossa tendência. Com essa atitude, tornaram frágeis os fundamentos sobre os quais se apóiam as próprias
virtudes, que eles julgam tão belas.
XVI, 43 Esse é superior a Pirro... Aríston, que já apareceu anteriormente, vem normalmente
relacionado, nas obras de Cícero, ao cético Pirro. Trata-se, porém, de um discípulo de Zenão, dissidente,
entretanto, do estoicismo. A argumentação de Cícero é sutil e parece estar em consonância com as
informações dadas por Sexto Empírico a respeito de Aríston (cf. Aduersus Mathematicos, XI, 64-65).
Segundo diz a personagem de Cícero, Aríston não ousou afirmar que não haveria nada além da virtude.
Mas, ao tratar do que estivesse fora da virtude, afastou-se da natureza. Sexto nos informa que, para
Aríston, haveria, dentre o que não fosse nem bom, nem mau, coisas que o sábio preferiria ou rejeitaria,
mas (e aqui ele difere de Zenão) tais coisas não seriam preferíveis ou rejeitáveis por natureza
(mhde; tina; me;n ei\nai fuvsei prohgmevna, tina; de; ajpoprohgmevna); o sábio as escolheria segundo a
oportunidade: elas seriam preferíveis, ou não, de acordo com as diferentes circunstâncias que se
oferecessem à oportunidade do sábio. É a seqüência do texto citado:
ajlla; para; ta;" diafovrou" tw'n kairw'n peristavsei".
Os estóicos, por sua vez, porque fazem consistir... Assim como já ocorrera na argumentação contra
o epicurismo, a personagem de Cícero faz com que o sistema estóico pareça ser a síntese confusa de dois
sistemas diferentes. Conforme argumenta Carlos Lévy (“La dialectique de Cicéron dans les livres II et IV
du De finibus”), é por um mau uso da linguagem que, na ótica de Cícero, ambos os sistemas criticados no
De finibus (o do Jardim e o do Pórtico) chegam a conclusões confusas.

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Pois ele forjava não sei que coisas ‘que se colocam diante’: Forjava traduz comminiscebatur.
Recordemos que em I, 19, Epicuro é criticado por ter criado “um expediente fantasioso”, attulit rem
commenticiam.
XVI, 45 Vossa escola. É bem romano tratar de uma escola de filosofia sob o nome de familia, termo
que pode designar corporações de profissionais de diversos métiers. Cf. ainda IV, 49.
XVII, 46 Mas algo que não aprovo de modo algum... Objeção que Catão previra em III, 22.
Evidentemente, a personagem de Cícero não leva em consideração a distinção que propôs seu interlocutor
por meio do símile do arqueiro. A virtude, que consiste em agir adequadamente com vistas a atingir o alvo
é, de fato, o fim para os estóicos, ainda que ele se aplique a elementos preferíveis. No caso: atingir o alvo.
XVII, 47 Todos vos voltais à natureza. O juízo da personagem é equivocado. Está, além do mais,
em contradição com o que se disse acima (seção 43). Nas próprias palavras da personagem que representa
o autor, Aríston, na discussão sobre a ação humana, afastou-se completamente da natureza.
Pois – diria ela – há. Assim traduzimos, pois o infinitivo esse depende ainda da resposta hipotética
dada pela natureza, introduzida pelo verbo responderit.
Quanto: O texto de Reynolds traz ut. Provável erro tipográfico, visto que todos os outros textos
consultados trazem et e que não há qualquer variante nos aparatos críticos.
XVIII, 48 Tuas breves formulações, que tu dizias serem conclusivas. A expressão consectaria
Stoicorum breuia aparece em III, 26. O raciocínio é apresentado em 27.
Um punhal de chumbo! Arma pouco efetiva; no contexto da argumentação: “Que argumento
fraco!”. Recordemos ainda o que se dissera a respeito dos argumentos conclusivos dos estóicos na seção 7:
pungunt quasi aculeis interrogatiunculis angustis. Hutchinson (ad locum) considera haver uma petição de
princípio na argumentação apresentada por Catão: a premissa maior: “tudo o que é bom é louvável” já
pressupõe a conclusão final. Conforme nota ainda o filólogo, a premissa menor apenas atestaria uma
identidade (“tudo o que é louvável é honroso”); com isso, o silogismo seria defeituoso, pois que lhe
faltaria um termo.
XVIII, 50 este é um sorites, raciocínio que... De acordo com a interpretação de Madvig (ad locum),
que seguimos aqui, ille se refere ao argumento que será apresentado a seguir e não à conclusão anterior.
Mas, quanto a mim, eu me detenho neste ponto... Cícero parece distorcer o pensamento dos estóicos
neste ponto. A personagem chama de sorites um tipo de argumento que não era condenado pelos estóicos.
Este consiste em um silogismo acumulativo, que pode ser representado da seguinte forma (cf. Hutchinson,
ad locum): Todo A é B; todo B é C; todo C é D; todo D é E. Conclusão: todo A é E. Esta série de
afirmações, por mais prolongada que seja, é válida, desde que válidas sejam cada uma das asserções e que
a forma seja mantida. O argumento falacioso que era criticado pelos estóicos, chamado sorites, é algo de
diferente. Trata-se de um sofisma que opera por meio de um questionamento contínuo e que se baseia na

560
noção de quantidade. O adjetivo swrivth", do verbo swreuvw, designa “aquele que acumula”. (cf. Soritas
hoc uocant, quia aceruum efficiunt uno addito grano, isto é, “eles o chamam sorites, porque, com a adição
de um grão, formam um amontoado”, em Acad. II, 49, em que se trata do sorites criticado pelos estóicos).
Por exemplo, pergunta-se se é careca um homem que possui alguns milhares de fios de cabelo. O
adversário responderá que não. Aquele que interroga repetirá a questão diversas vezes, diminuindo a
quantidade de fios de cabelo a cada vez. Por fim, aquele que responde deverá admitir ou que a perda de
um fio de cabelo torna o homem careca ou será obrigado a negar que, mesmo sem nenhum fio de cabelo, o
homem seja careca. A solução dada por Crisipo a esse tipo de sofisma consistiria em se calar em um
determinado momento, escolhido arbitrariamente (ejpevcein ou hJsucavzein seriam os verbos utilizados pelo
estóico segundo Hutchinson, ad locum). A personagem de Cícero parece fazer uma alusão à solução
adotada por Crisipo (cf. ego in hoc resisto). Com isso, estaria se servindo das armas dos próprios estóicos
para apontar os vícios de seus argumentos. No entanto, como dissemos, a personagem confunde (talvez
deliberadamente) duas foras distintas de raciocínio acumulativo e, além do mais, ele não se detém
arbitrariamente em um ponto (como faria Crisipo), mas nega conceder uma asserção que ninguém mais
concederia.
Que a vida feliz é digna de orgulho, uma vez que, sem a honradez, não seria possível ocorrer que
alguém, com justiça, se orgulhe. O passo é problemático. Discute-se o valor do quod. Seria causal ou
relativo? A sintaxe não se ajusta facilmente e o argumento, obscuro, não ajuda muito. Editores como
Hutchinson, por exemplo, expurgam do texto a oração ut iure quisquam glorietur. Nossa tradução leva em
consideração a argumentação apresentada pela personagem de Catão em III, 28: ex quo efficitur
gloriatione, ut ita dicam, dignam esse beatam uitam, quod non possit nisi honestae uitae iure contingere.
Tendemos a concordar com Hutchinson, que julga (ad locum) que a conclusão não é dignam esse beatam
uitam, mas algo que Cícero omite e que foi dito por Catão: ita fit ut honesta uita beata uita sit (cf. III, 28).
Julgamos, entretanto, que não há necessidade de retirar do texto a oração expurgada pelo filólogo
mencionado. Outro modo de pensar, entretanto, seria considerar o quod relativo e que a oração por ele
introduzida seria já uma crítica à asserção anterior. Assim, teríamos: “que a vida feliz é digna de orgulho,
algo que, sem honradez, não poderia fazer com que alguém, com justiça, se orgulhe”. Giambelli considera
que o quod é causal.
XVIII, 51 Ele não te concederá isto... Martha traz aqui uma forma passiva: concedetur. Já
Hutchinson se serve da forma ativa e considera que o sujeito lógico é Polemo.
XIX, 52 Essas formulações breves e agudas, que, como tu afirmas, te agradam... Volta-se à crítica
da linguagem estóica. Técnica demais, ela altera a terminologia, mas não muda em nada a substância da
argumentação. Mais grave, ela é incapaz de persuadir. Se as alterações propostas por Zenão corrigem a
terminologia utilizada pelos filósofos antigos (algo com que a personagem de Cícero, como podemos ver,

561
não concorda), ela não é capaz de corrigir os mores das pessoas, o que, na perspectiva da personagem de
Cícero, é a grande tarefa da filosofia ética.
XIX, 54 No que diz respeito ao fundamento primeiro... É problemático o uso da expressão in prima
constitutione nesta passagem. Na seção 15, ela se referia à condição primeira do ser humano, em que
poderíamos perceber a tendência primeira do homem. O mesmo conceito vem mais freqüentemente
tratado por meio do termo institutio, como acontece na seção 32 (primae institutionis) e na seção 41
(hominis institutio). No argumento que se desenvolve a partir da seção 16, Cícero parece considerar que,
de modo geral, Zenão defendia o mesmo que os antigos filósofos da Academia e do Liceu, isto é, que a
tendência primeira do homem é o impulso de autopreservação e de conservação de seu melhor estado.
Nesse sentido, os três sistemas estariam de acordo e tomariam a natureza como fundamento de sua
reflexão ética. Aqui, no entanto, prima constituitio parece se referir a uma doutrina (sem dúvida,
fundamental) do estoicismo que defende que o sumo bem do homem se encontra na virtude, que é uma
disposição especial do intelecto, ou da alma. Considerada assim, a constitutio da argumentação estóica
parece se afastar da natureza, uma vez que, no homem, ela é dupla, composta de corpo e alma. Constitutio
aqui só pode ser entendida no sentido de fundamentação do argumento.
XX, 56 Em seguida, o teu cartaginesinho (pois tu sabes que os citienses, teus clientes, provêm da
Fenícia). Habitantes de Cício, cidade na ilha do Chipre. Sobre a origem de Zenão, a mesma informação é
dada por Diógenes Laércio (cf. VII, 1). De acordo com esse biógrafo, Cício, cidade grega, acolhera
colonos fenícios. Dirigindo-se a um público romano, a argumentação de Cícero ganha contornos
interessantes a partir do momento em que Zenão é associado aos cartagineses. Vem do contexto das
importantes guerras que Roma travou contra a cidade da África a imagem que o romano fazia do
cartaginês: dissimulado, perjuro. Por fim, salientemos que Cícero alude ainda ao fato de Catão, à época da
cena representada, defendia os interesses da ilha de Chipre, que viria a se tornar uma província romana.
Um homem agudo, portanto. No primeiro diálogo, Tanto Epicuro (I, 19) quanto Crisipo (II, 44)
foram caracterizados como acuti. O primeiro, entretanto, de modo irônico, por parte da personagem de
Cícero, quando se dizia que, para não cair em contradição em sua física, ele teria inventado o expediente
do desvio dos átomos. A estratégia com relação a Zenão, nesta passagem do livro IV, não deixa de ser
semelhante, pois a perspicácia de Zenão se confunde com dolo, uma vez que, segundo a personagem que
fala, ele tomara o pensamento dos antigos filósofos e, com astúcia, jogando com as palavras, fizera-o
passar por um sistema novo e original.
Pelo fato de que algumas faltas ultrapassariam... Cf.: Crisipo em S.V.F. III, p. 141, 30 e S.V.F, p.
142, 5. Cícero, Paradoxa 25. Conforme pensa Hutchinson (ad locum), a personagem de Cícero faz aqui
alusão à doutrina da extensão da virtude, exposta por Catão no final da seção 48 do livro III.

562
XXI, 58 uma parte... em outra parte... Giambelli (ad locum) aponta sérias dificuldades nesta
passagem. Uma partição é proposta pela personagem de Cícero. Em primeiro lugar, afirma-se que todas as
coisas que são segundo a natureza são dignas de estima. Logo depois, porém, afirma-se que, dentre essas
coisas que são segundo a natureza (e que, portanto, teriam algum valor) algumas não movem a tendência
primeira. Essas não são consideradas nem honrosas, nem louváveis. Um segundo gênero de coisas
contemplaria aquelas que provocam prazer em todos os seres animados e que, no homem, são objeto ainda
da razão. Hutchinson, por outro lado, busca contornar a inconsistência (ou ao menos a obscuridade da
passagem) por meio de algumas correções: in stirpe no lugar de in sese e uoluntatem no lugar de
uoluptatem (cf. additional notes, iv, p. 236). Com essas alterações, o editor pretender aproximar a divisão
proposta aqui da célebre divisão entre os reinos vegetal, animal e humano. Em nossa opinião, essa
proposta de correção, no entanto, cria problemas de coesão no discurso da personagem que representa o
autor.
As que forem apropriadas... Uma subdivisão é proposta para o segundo gênero contemplado acima.
Aquelas coisas que são objeto de uma contemplação racional são consideradas honrosas, louváveis. As
que produzem prazer, por outro lado, são apenas conforme à natureza, ainda que se juntem aos bens
racionais (que são os bens morais) para que a vida feliz se torne completa.
XXI, 59 Em comparação com todas aquelas vantagens... A expressão omnium eorum commodorum
deveria, para manter a coerência (como nota Hutchinson, ad locum), vir no ablativo como segundo termo
de uma comparação que deveria ter sido estabelecida por praestantius, visto que o honestum não é um dos
commoda.
+não são fáceis tais coisas, nem desprezíveis+ Trecho cuja leitura é problemática, devido a
problemas de transmissão. O sentido geral, contudo, é bastante claro.
XXI, 60 Zenão... chama bem apenas o que possua uma forma que é sua, própria. Concordamos
com Giambelli, que afirma (ad locum) que species aqui pretende traduzir ijdeva. O bem, para os estóicos, é
aquilo que é único em seu gênero, que possui uma forma única, a qual não é comum a nenhuma outra
coisa.
XXI, 61 aqueles discípulos de Platão e aqueles que, em seguida, foram discípulos deles... Entenda-
se Platonis illi auditores et... eorum auditores. Entre os primeiros, poderíamos contar Espeusipo e
Aristóteles. Entre os outros, Pólemon e Teofrasto. Interessante que, seguindo o pensamento sincrético de
Antíoco, a personagem de Cícero considere de tal forma concordante o pensamento moral desses autores,
que não hesite em fazê-los cantar em coro.
XXIII, 62 Espécie de barbados. Quasi barbati estabelece uma relação entre os antigos filósofos
mencionados e os romanos antigos. Nos tempos de Cícero, como podemos inferir a partir de alguns textos,
os homens não usavam senão uma barba rente ao rosto. O costume mais comum, entretanto, era deixar o

563
rosto sem barba alguma (cf. Woolf, ad locum). Uma passagem do discurso Pro Caelio corrobora a
interpretação: (...) aliquis mihi ab inferis excitandus est ex barbatis illis, non hac barbula (...) sed illa
horrida quam in statuis antiquis atque imaginibus uidemus, isto é: “Dos infernos eu fiz vir algum dentre
aqueles barbados, não com esta barba rente (...) mas com aquela eriçada, que vemos nas estátuas e nos
retratos antigos.” (Pro Caelio, 33). A argumentação visa especialmente à personagem de Catão, cuja
história pessoal e familiar dava exemplos de apego aos mores dos romanos antigos. Ora, no que diz
respeito aos costumes, o que é antigo é louvável, quanto à filosofia, por outro lado, dar-se-á preferência a
um sistema novo, espécie de plágio, ao pensamento dos antigos filósofos?
‘Assaltado, de todos os lados... O verso, de uma tragédia de Ênio, é citado também no De oratore
(III, 218).
XXIII, 64 Fazer avanços e progressos na virtude. Conforme aponta Madvig (ad locum), Cícero,
quando trata de um progresso que se dá in uirtute, distorce sensivelmente a expressão dos estóicos. Para os
representantes do Pórtico, não há graus de virtude; portanto, um sábio não pode ser mais virtuoso do que
outro sábio. Entretanto, o homem insensato pode avançar ad uirtutem. Para isso é pertinente o estudo da
filosofia. Sabemos como em Sêneca (nas cartas dirigidas a Lucílio, em especial) é importante a figura do
proficiens, aquele que avança em relação à virtude. Ele se destaca da multidão dos stulti, embora ainda
não seja sapiens. Ora, a possibilidade da existência do sábio, conforme o concebem os estóicos, é
discutida até mesmo entre os estóicos.
Se esforçam para ver algo... Dispicere significa, mais propriamente, olhar para cá e para lá. O
particípio futuro parece indicar o esforço dos filhotes de cachorro que, com o sentido da vista já quase
formado, tenta discernir algo com os olhos.
Fálaris: tirano de Agrigento, cidade da Sicília, que foi célebre por sua crueldade. Volta a ser
referido em V, 85, passagem em que há referência a um suplício com que costumava castigar as pessoas: o
touro de Fálaris.
XXIV, 65 Tibério Graco, o pai: Tibério Semprônio Graco, referido como o “pai”, foi tribuno da
plebe, cônsul e censor. Notabilizou-se ainda como general (cf. Woolf, ad locum) Sua carreira política se
desenrolou ao longo da primeira metade do século II a.C.. Trata-se do pai dos dois célebres Gracos
(Tibério e Caio), que promoveram, apoiados pelo povo, diversas reformas políticas na república romana
ao longo da segunda metade do século II. O mais velho, Tibério, foi responsável por uma reorganização
da ocupação agrária que gerou diversos impasses constitucionais e muito descontentamento da parte da
aristocracia. Segundo algumas fontes (cf.: Marinone, ad locum), teria sido assassinado por um grupo de
senadores. É sempre complexa a maneira como Cícero trata desses dois homens. Em algumas de suas
obras de arte retórica, a eloqüência desses dois políticos populares é louvada, por ter a virtude de mover a
multidão. Nos escritos políticos e filosóficos em geral, no entanto, a ação dos dois representantes antigos

564
do partido popular é vista com bastante reserva. Aqui, a política popular de Tibério Graco, o filho, é
considerada como uma ameaça à segurança do regime político romano.
Como? Há controvérsia, entre os tradutores, com relação ao sentido deste unde. Martha traduz: “de
quel pays?”, enquanto Woolf, por exemplo, diz “how”. Acreditamos ser esta última opção a mais acertada.
Literalmente, pergunta-se “a partir do que”, “de onde” surgiu o sábio, ou “por quais meios” alguém pôde
se tornar sábio? A tradução de Martha, entretanto, parece reforçar a idéia, que é defendida pelo discurso
da personagem, de que o sábio estóico não é possível: jamais existiu de fato em tempo algum e em parte
alguma.
XXIV, 66 Compara o teu avô, Druso, com C. Graco... O irmão mais novo de Tibério, Caio Graco,
teria dado continuidade às reformas do irmão, como tribuno da plebe em 123 e 122 a.C.. Teve fim
semelhante ao do irmão (cf. Woolf, ad locum). Marco Lívio Druso, como tribuno em 122, opôs-se à
política reformista de Caio. Seria ainda cônsul em 109. Sua filha era a mãe de Catão (cf. Marinone, ad
locum).
Tendo como certo que: Madvig (ad locum) arrola diversos exemplos de usos de ut iam com o
seguinte valor: “ut significemus nos, omissis iis, quae aliter dici statuive possint, longius procedere, isto é,
“de modo a indicarmos que, deixadas de lado coisas que possam ser ditas ou estabelecidas de outra
maneira, nós avançaremos”. Ou seja, a expressão toma como estabelecida uma hipótese argumentativa.
Nesse caso, de modo eficaz, por se tratar de uma tese estóica, com a qual o interlocutor tem de concordar.
XXIV, 67 Vícios: o texto de Reynolds traz a lição uita, evidente erro de tipografia.
XXV, 68 Pois quando se insiste que o único bem é o que for honroso... Hutchinson (ad locum)
indica que Cícero não leva em conta o que disse Catão em III, 69. De fato, a exposição do patrono do
estoicismo buscou mostrar que o sistema do Pórtico, por meio da doutrina dos indiferentes, contemplava
as ações da vida e as vantagens do corpo que não tivessem relação com a virtude. A personagem de
Cícero, que levara em conta a doutrina dos indiferentes, quando pretendia demonstrar que o pensamento
estóico era idêntico ao dos antigos, com mudança apenas na terminologia, nesta passagem aproxima o
estoicismo do pensamento de autores como Pirro e Aríston. Na seqüência da argumentação, veremos que a
personagem tem, entretanto, argumentos para justificar a omissão, neste ponto, da doutrina dos
indiferentes preferíveis.
‘Maliciosas expressões falazes’, como diz Ácio traduz ‘fallaciloquae’ ut ait Accius... malitiae’.
Poderíamos dizer, de modo mais livre: “artimanhas verbi-falazes”. Por meio da citação do verso, a
personagem que representa o autor aponta para os vícios de que se serviriam os estóicos. Recordemos que
como, anteriormente, considerou-se fraudulenta a alteração proposta por Zenão, o “pequeno cartaginês”,
na moral dos filósofos antigos. O verso aqui citado, conforme pensa Hutchinson (ad locum), é o mesmo
mencionado em De oratore III, 154: num non uis huius me uersutiloquas malitias . . . Como na passagem

565
do De oratore discute-se o termo uersutiloquas, que é tratado como palavra composta (cf. ex coniunctione
facta esse uerba), é bem provável que a citação aqui no De finibus seja fruto de um lapso de memória. A
tragédia da qual foram tomadas essas palavras é desconhecida.
XXV, 69 Pois esses critérios não poderiam existir... O período não é simples e tem ocupado as
discussões daqueles que estabeleceram o texto do De finibus. Conforme julgamos, quae retoma delectu e
discrimine e não officia. A argumentação procede assim: se não existem ações apropriadas, não há espaço
de atuação para a sabedoria. Ora, os deveres não existiriam, caso não houvesse algum modo de escolher
entre as coisas, algum critério de seleção, pois, sem isso, não poderíamos julgar que uma ação está de
acordo com a natureza. Por outro lado, se as coisas fossem todas iguais entre si, não haveria critério de
distinção. Considerando toda essa dificuldade, argumenta a personagem de Cícero, os estóicos propuseram
a doutrina dos preferíveis, que seria um expediente astucioso, com vistas a assegurar a coerência do
sistema.
XXV, 70 Diz que... ele próprio diz... Embora haja disputa quanto ao estabelecimento do texto nesta
passagem, de acordo com a lição que acolhemos (a de Reynolds), a desarmonia é do próprio autor: dicit...
se dicere. Madvig (ad locum) já notava que o período se inicia com uma oratio obliqua e que se fecha
com um oratio recta. Giambelli (ad locum), por sua vez, considera haver um tom cômico na maneira
como é tratado o discurso reportado de Zenão. De fato, a seqüência do texto parece apontar para um
tratamento ridículo das expressões estóicas.
XXVI, 72 ‘Repudiáveis’. Hutchinson (ad locum) diz que o termo é cunhado aqui, por assim dizer,
com vistas a conotar uma característica permanente, que estaria presente neste tipo de coisas. De fato, o
termo utilizado anteriormente, reiecta, preserva a forma do particípio grego ajpoprohgmevna, ao passo que
reiectanea serve-se de um sufixo de adjetivo. Entretanto, reiecta já indica este valor de qualidade
permanente de que fala o comentador. Difícil perceber qual seja a variação que propõe a personagem de
Cícero na passagem. Difícil também encontrar em português um par que dê conta da variação reiecta e
reiectanea.
‘Deixo-as de lado’: secernere, de acordo com Madvig (ad locum) é utilizado para verter o verbo
ajpeklevgesqai, isto é “rejeitar em uma escolha”.
XXVI, 73 M. Pisão: trata-se do Marco Pisão que, como personagem, no último diálogo (livro V),
expõe o finis de Antíoco.
Por nós: mais uma passagem em que a personagem que representa o autor se inclui entre os
partidários da Academia.
XXVII, 74 L. Murena, que tu acusavas: a ocasião referida é a do processo de Lúcio Murena, de que
podemos ter uma representação a partir do discurso que Cícero teria proferido em defesa de Murena (o
Pro Murena). É importante fazer é a ressalva, uma vez que, como se sabe, Cícero por vezes trabalhava

566
seus discursos, após terem sido proferidos, para uma publicação por escrito. De qualquer modo, o
tratamento do paradoxo em questão ocorre na versão do discurso que chegou até nós (cf. especialmente
61-63).
Em meio a pessoas sem experiência dialética... Caberia uma investigação mais aprofundada a
respeito desse tipo de afirmação de Cícero. Em que medida os procedimentos adotados por ele no tribunal
e nos diálogos filosóficos são completamente distintos, como ele nos faz crer. Notemos que no Pro
Murena Cícero se dirige ao júri dizendo non est nobis oratio habenda apud imperitam multitudinem, isto
é, “nosso discurso não se dá em meio a uma multidão ignorante quanto à filosofia” (61). É claro que, no
discurso, tudo pode não passar de uma tentativa de seduzir a boa-vontade dos juízes. Mas, e no diálogo?
Cícero deixa de se servir de argumentos que seriam mais esperados no discurso de um orador. A discussão
que desenvolvemos no segundo capítulo de nosso estudo parece indicar que não.
XXVII, 75 ‘As faltas são iguais’: trata-se de uma dos paradoxos desenvolvidos retoricamente por
Cícero nos Paradoxa Stoicorum (III, 20-26).
Prossegue adiante traduz perge porro: a expressão utilizada por Cícero é vaga. Os tradutores
interpretam diversamente. Martha, por exemplo, entende algo como, “passa a outro ponto”. Já Woolf
pensa: “explica mais extensamente”. A segunda interpretação nos parece mais convincente. Servimo-nos,
entretanto, de uma expressão vaga; ainda que ela dê a entender que a doutrina deve ser mais bem
explicada.
Harmonia: Entenda-se harmonia não como a organização, ao longo de uma música ou canção, entre
grupos de notas executadas simultaneamente. Harmonia aqui, como pensa também Hutchinson (ad
locum), diz respeito à relação apropriada entre as notas que ressoam quando se golpeia cada uma das
cordas da lira: “concentum seruare, i.e. to maintain the proprer intervals between its strings”. Ou seja, a
idéia é que cada nota produza o tom que lhe é próprio.
XXVII, 76 Eis aqui outro símile dessemelhante. Difícil manter a ênfase da expressão (que une
idéias contrárias numa espécie de oximoro) e, ao mesmo tempo, o sentido. Quer-se dizer: eis aqui outro
exemplo que, embora aparentemente semelhante, não serve de fato à comparação.
XXVIII, 77 E como se também entre as próprias coisas... A personagem do autor parece se servir
aqui da mesma idéia que os estóicos defendem com a doutrina da extensão da virtude.
XXVIII, 79 Dicearco: único dos filósofos que ainda não fora mencionado ao longo do De finibus,
Dicearco foi um discípulo de Aristóteles. Era natural de Messina e esteve ativo no fim do século IV a.C.
XXVIII, 80 Um pequeno embaraço para quem parte. Hutchinson (ad locum) julga que Cícero faz
alusão aqui a um provérbio ou uma frase cômica. Scrupulus é uma pedrinha afiada; a expressão scrupulum
homini inicere, literalmente “lançar ao homem uma pedrinha”, que ocorre em Terêncio (apud

567
Hutchinson), tem o sentido de incutir a alguém uma pequena preocupação. Mas o fato é que, ao partirem,
a personagem de Catão põe em xeque a tese central de seu interlocutor.

568
Sobre os fins dos bens e dos males
Livro V
I 1 Depois de ter ouvido, Bruto, as lições de Antíoco, como era meu costume, juntamente
com Marco Pisão, naquele que é chamado Ginásio de Ptolomeu, e como estivessem em nossa
companhia, meu irmão Quinto, Tito Pompônio e Lúcio Cícero780, nosso primo por parte de pai,
irmão pela afeição, decidimos entre nós que faríamos, à tarde, um passeio pela Academia,
sobretudo porque, nessa hora, o lugar estaria livre de toda a agitação. Assim, na hora marcada,
fomos todos ao encontro de Pisão. De lá, conversando sobre assuntos variados, percorremos
aqueles seis estádios desde a Porta Dupla. E, ao chegarmos aos pátios da Academia, célebres não
sem motivo, achamos-nos sozinhos, como queríamos.
2 Então, Pisão disse: “É algo que a natureza nos proporciona, eu poderia dizer, ou alguma
ilusão, que, ao vermos tais lugares, em que, nós sabemos, passaram muito tempo homens dignos
de memória, sintamos maior emoção do que quando ouvimos falar do que eles próprios fizeram
ou lemos algo do que escreveram? É essa emoção que eu agora sinto. Pois vem-me à mente
Platão, que, nós sabemos, por primeiro tomou o costume de aqui discutir, de quem, inclusive,
aqueles pequenos jardins, perto de nós, não apenas me trazem a lembrança como parecem colocá-
lo, ele próprio, diante de meus olhos. Aqui esteve Espeusipo, aqui Xenócrates, aqui seu discípulo,
Pólemon, de quem foi aquele assento ali, que estamos vendo. Sem dúvida, também a nossa cúria
(refiro-me à cúria Hostília, não a esta nova, que a mim parece menor, depois que foi tornada
maior), quando a contemplava, costumava pensar em Cipião, em Catão, em Lélio, e, na verdade,
sobretudo em meu avô; tamanha é a força de recordação que há nos lugares, de modo que não é
sem motivo que a partir deles provenha a arte da memória.”
3 Então, Quinto respondeu: “É exatamente como dizes, Pisão. Pois, agora há pouco, quando
vinha para cá, atraía-me em sua direção aquela localidade de Colono, cujo habitante, Sófocles,
passava e repassava diante de meus olhos; tu sabes quanto o admiro e quanto com ele me deleito.
A mim, de fato, remontando mais profundamente na memória, comoveu-me como que uma visão
de Édipo que para cá se dirigia e que, naquele versos tão doces, indagava que lugares eram esses
de aqui – é claro que sem um fundamento real, mas me comoveu, contudo.”

780
Sobre as personagens, veja-se o segundo capítulo de nosso estudo.

569
E, então, Pompônio: “Quanto a mim, que vós costumais perseguir, dizendo que sou
devotado a Epicuro, estou amiúde, é verdade, na companhia de Fedro781, que, como vós sabeis,
estimo de modo singular, nos jardins de Epicuro, diante dos quais passávamos há pouco; e
mesmo se sob o conselho do antigo provérbio: ‘lembro-me dos vivos’, não é possível, contudo,
esquecer de Epicuro, ainda que quisesse, cuja imagem não apenas em quadros, mas ainda em
taças e anéis, os da nossa escola preservam.”
II 4 Nesse ponto, eu disse: “Ora, nosso caro Pompônio parece estar brincando, e talvez
esteja em seu direito. Pois se estabeleceu de tal forma em Atenas, que é quase um ático, de modo
que – creio mesmo – há de um dia receber um tal cognome. Quanto a mim, concordo contigo,
Pisão: comumente acontece de pensarmos a respeito dos homens ilustres um pouco mais
intensamente e com maior atenção quando a recordação é avivada pelos lugares . Pois tu bem
sabes que eu, em certa ocasião, estive contigo no Metaponto, e não me dirigi até onde nos
hospedaríamos antes de ter visto o lugar mesmo em que Pitágoras expirou sua vida e de ter visto
a sua cadeira. Na presente ocasião, porém, ainda que em Atenas, por toda parte, muitos sejam os
indícios, nos próprios lugares, dos mais excelentes homens, comovo-me, entretanto, com aquela
sala de reunião. Pois, há não muito tempo, era de Carnéades, a quem pareço estar vendo (pois sua
aparência é conhecida), e a própria cadeira, órfã de tal grandeza de engenho, julgo que sente
saudades de sua voz.”
5 Disse, em seguida, Pisão: “Já que, portanto, com todos se passa alguma coisa, e quanto ao
nosso caro Lúcio? Acaso teve gosto em ir visitar aquele lugar em que Demóstenes e Esquines
costumavam combater um com o outro? Pois cada qual é especialmente conduzido por sua
própria paixão.”
E ele, enrubescendo, disse: “Não venhas perguntar a mim, que teria mesmo descido ao
porto de Falero, lugar em que, dizem, contra as ondas, Demóstenes costumava declamar, a fim de
que se habituasse a vencer com a voz o fremido. Há pouco, inclusive, desviei-me da estrada,
levemente, à direita, a fim de ir até o sepulcro de Péricles. Por mais que coisas desse tipo sejam
infinitas nesta cidade; pois, por onde quer que caminhemos, deixamos nossas pegadas sobre algo
de histórico.”
6 Então, disse Pisão: “Contudo, Cícero, tal paixão, se ela visa a imitar os mais excelentes
homens, é própria de homens plenos de engenho, mas, se tão somente a conhecer os elementos

781
Filósofo epicureu já mencionado em I, 16.

570
que nos revelam a memória do passado, é própria de homens curiosos. Assim, nós todos te
exortamos a que, diligente, por certo, como espero, aqueles que tu queres conhecer, tu queiras
também imitar.”
Nesse ponto, disse eu: “Mesmo se ele, Pisão, como tu percebes, faz justamente isso que tu
aconselhas, sou ainda assim grato à tua exortação.”
Ele, então, demonstrando extrema afeição, como de costume, disse: “Que, entretanto, nós
todos em tudo contribuamos para o seu desenvolvimento, e, em primeiro lugar, a fim de que ele
reserve uma parte de suas paixões também para a filosofia, quer para que ele imite a ti, a quem
ele ama, quer para que possa realizar aquilo mesmo pelo que ele se interessa, de modo mais bem
acabado.782 Mas, meu caro Lúcio”, continuou, “há necessidade de seres exortado por nós, ou tens
espontaneamente essa propensão? A mim, ao menos, tu pareces estar muito bem atento a
Antíoco, cujas lições tu estás ouvindo.”
Ele, então, timidamente, ou, antes, recatadamente: “É o que faço”, disse, “mas tu ouviste, há
pouco, a respeito de Carnéades? Em sua direção sou arrebatado, embora me chame de volta
Antíoco, e não há, além deles, algum outro de quem ouçamos as lições.”
III 7 Então, Pisão: “Mesmo que não seja possível, talvez, que a questão se resolva assim tão
facilmente, uma vez que este aqui esteja presente” (a mim ele se referia) “todavia ousarei te fazer
vir desta Nova Academia à aquela Antiga, na qual, como ouvias dizer Antíoco, não se contam
apenas os que são chamados acadêmicos, Espeusipo, Xenócrates, Pólemon, Crantor e os demais,
mas também os antigos peripatéticos, dentre os quais vem em primeiro lugar Aristóteles, que,
com exceção de Platão, não sei se não chamaria corretamente de primeiro dentre os filósofos. A
esses, portanto, volta-te, eu peço. Pois de seus escritos e do sistema que estabeleceram783, por um
lado, pode-se adquirir toda a educação liberal, toda a história, todo discurso elegante, por outro,
tão grande é a variedade de artes, que ninguém, sem esse instrumental, poderia aceder,
suficientemente aparelhado, a alguma coisa de mais ilustre. Deles surgiram os oradores, deles os
generais e, nas repúblicas, os homens que ocupam o primeiro lugar. Para que passe a coisas
menos importantes, os matemáticos, os poetas, os músicos, os médicos enfim, tomaram origem
dessa espécie de oficina de tudo que se faz com arte.

782
Isto é, para que, com o estudo da filosofia, desenvolva-se sua capacidade oratória.
783
Cf. IV, 3.

571
8 E eu, de minha parte, disse: “Tu sabes que eu penso o mesmo, Pisão, mas foi
oportunamente que tu mencionaste o assunto. Pois tem muito interesse o meu caro Cícero em
ouvir qual seria, então, o pensamento dessa Antiga Academia que tu aqui recordas e dos
peripatéticos acerca dos fins dos bens. Consideramos, ademais, que é algo que tu podes expor
com a maior facilidade, pois que tanto tiveste em tua casa, por muitos anos, Estáseas, o
napolitano, quanto há já diversos meses, em Atenas, vemos-te buscar saber de Antíoco
exatamente isso.”
E ele, sorrindo: “Tudo bem, tudo bem!”, disse, “(pois muito habilmente maquinaste para
que eu desse início a esta conversa entre nós) exponhamos ao jovem aquilo de que porventura
sejamos capazes. Dá-nos essa ocasião, de fato, a ausência de outras pessoas, coisa que, se um
deus dissesse, jamais imaginaria: que eu discutiria na Academia tal qual um filósofo. No entanto,
que, atendendo à vontade dele, eu não vos aborreça.”
“A mim”, disse eu, “que te pedi justamente a exposição?”
Então, dizendo Quinto e Pompônio que também a desejavam, Pisão começou. Seu discurso,
Bruto, considera atentamente se ele parece ter abarcado satisfatoriamente o pensamento de
Antíoco, pensamento que por ti, que ouviste com freqüência Aristo, irmão dele, é absolutamente
aprovado, penso eu.
IV 9 Foi assim, então, que ele falou: “Que belo aparato existe na doutrina dos peripatéticos
é algo sobre o qual me exprimi suficientemente, do modo mais breve que pude, agora há pouco.
Mas, quanto à organização, a doutrina deles, assim como quase todas as demais, é tríplice: uma
parte diz respeito à natureza; à exposição, uma outra; à vida, a terceira. A natureza foi de tal
modo investigada por eles, que nenhuma parte, e no céu e no mar e na terra, para que me exprima
em tom poético, foi deixada de lado. Além do mais, ao falarem dos princípios das coisas e do
mundo todo, de modo a concluírem muitas coisas não apenas por meio de uma argumentação
provável, mas ainda por meio do raciocínio necessário, próprio dos matemáticos, produziram, a
partir das coisas que investigaram, um imenso material para o conhecimento das coisas ocultas.
10 Aristóteles tratou minuciosamente da origem de todos os seres animados, de seus modos de
vida, de suas formas; Teofrasto, por sua vez, da natureza de todos os vegetais e das causas e
razões de quase todas as coisas que brotam da terra; a partir desse conhecimento, facilmente
decorreu a investigação das coisas mais ocultas. Da exposição, eles mesmos transmitiram os
preceitos, e não apenas os da exposição dialética, mas também da oratória, e, por Aristóteles, em

572
primeiro lugar, foi estabelecido o exercício de, a respeito de cada coisa, discursar em favor de
ambas as partes, não a fim de sempre contradizer tudo, como no caso de Arcésilas, mas sim para
que, em todos os assuntos, colocasse à mostra o que quer que se pudesse dizer de uma e de outra
partes. 11 Uma vez que, entretanto, a terceira parte buscasse os preceitos do bem viver, também
esses foram por eles mesmos referidos, não apenas para a regulação da vida privada, mas ainda
para a direção dos assuntos públicos. De quase todas cidades, não apenas da Grécia, mas ainda do
mundo bárbaro, conhecemos, por meio de Aristóteles, os costumes, as instituições, a organização
política; por meio de Teofrasto, até mesmo as leis. E uma vez que ambos tivessem ensinado de
que tipo conviria ser o líder da cidade, e, além disso, tivessem tratado em diversos escritos sobre
qual seria o melhor regime de governo, Teofrasto, indo mais além, sobre quais seriam as
oscilações de situação numa cidade e as ocasiões em que se devia tomar medidas como quer que
a situação exigisse. O modo de condução da vida que, sem dúvida, mais lhes agradou foi o da
vida em quietude, baseada na contemplação e no conhecimento das coisas, a qual, já que era a
mais semelhante à vida dos deuses, pareceu-lhes a mais digna do sábio. Ora, sobre tais coisas
seus discursos são brilhantes e célebres.
V 12 Quanto ao sumo bem, por outro lado, já que há dois gêneros de livros, um escrito com
vistas à publicação, que eles chamavam ejxwterikovn, um outro mais esmiuçado, que deixaram em
forma de anotações, eles nem sempre parecem dizer a mesma coisa; mas, quanto ao aspecto
geral, não há nenhuma variação nas obras desses ao menos que eu mencionei, ou, entre eles
próprios, alguma dissensão. Mas, uma vez que a questão gire em torno da vida feliz e que a única
coisa que a filosofia deve examinar e perseguir é se a vida feliz se encontra totalmente sob o
poder do sábio ou se ela pode ser derruída ou nos ser arrebatada por eventos adversos, nisso, por
vezes, parece haver variação entre eles e também oscilação. É o que sobretudo resulta do livro de
Teofrasto sobre a vida feliz, no qual importância demais é conferida à fortuna; pois, se for assim,
a sabedoria não será capaz de garantir a vida feliz. Para mim, tal ponto de vista parece mais
frágil, por assim dizer, e mais brando do que exigem a força e a gravidade da virtude. Por isso,
atenhamos-nos a Aristóteles e a seu filho, Nicômaco, cujos livros, escritos com muito acuro, sem
dúvida, a respeito dos modos de proceder, são atribuídos a Aristóteles, entretanto, não vejo por
que ao pai não poderia ter sido semelhante o filho. Quanto a Teofrasto, sirvamo-nos dele em
diversos pontos, conquanto conservemos mais firmeza e robustez na virtude do que ele
conservou. 13 Limitemos-nos a esses, portanto. Com efeito, seus sucessores, conforme penso,

573
estes são sem dúvida melhores do que os filósofos das demais doutrinas, mas de tal modo
degeneraram, que parecem ter nascido de si próprios. Primeiramente, Estrato, discípulo de
Teofrasto, quis ser físico; nesse estudo, ainda que seja importante, a maior parte do que disse é
novo e muito pouco sobre os modos de proceder. Discípulo deste, Lícon: rico quanto à expressão,
quanto às coisas, propriamente, muito árido. Bem proporcionado e de bom gosto foi, em seguida,
Aríston, seu discípulo, mas aquela gravidade que se espera de um grande filósofo não lhe houve;
escreveu muito – tudo bem – e de modo refinado, mas não sei por que motivo seu discurso não
tem autoridade.
14 Passo em silêncio sobre muitos, dentre os quais Hierônimo, homem douto e doce, a
quem já não sei por que chamo peripatético. Pois o sumo bem ele o explicou como a ausência de
dor; ora, quem discorda a respeito do sumo bem, discorda a respeito de todo o sistema
filosófico784. Critolau quis imitar os antigos, e, sem dúvida, é mais próximo em gravidade, e sua
expressão é transbordante, nem mesmo ele, contudo, permanece no que estabeleceram os
antepassados. Diodoro, discípulo seu, reuniu à honradez a ausência de dor. Também é
completamente independente este que, discordando a respeito do sumo bem, não pode
verdadeiramente ser dito peripatético. Mas, o pensamento dos antigos, nosso caro Antíoco me
parece ter seguido com extrema diligência, o qual ele demonstra ter sido o mesmo para
Aristóteles e para Pólemon.
VI 15 Portanto, age com prudência o nosso caro Lúcio, já que deseja ouvir, acima de tudo,
a respeito do sumo bem; pois, estabelecido isso na filosofia, todas as coisas estão estabelecidas.
De fato, no que tange às demais coisas, se algo é desconsiderado ou ignorado, o prejuízo não é
maior do que a importância de cada uma dessas coisas com relação às quais houve negligência; o
sumo bem, entretanto, se for ignorado, necessariamente se ignora o modo racional de se viver; de
onde provém uma errância tão grande, que não se pode saber em que porto encontrar refúgio.
Mas, conhecidos os fins das coisas, quando se compreende qual é o termo extremo dos bens e dos
males, encontra-se o caminho da vida e a forma geral de todos os deveres, 16 quando, portanto,
encontra-se aquilo a que se refere cada uma das ações; a partir disso, é possível descobrir e
realizar o modo racional de viver feliz, algo que todos buscam.
E uma vez que nisso reside uma grande dissensão, devemos nos valer da divisão proposta
por Carnéades, da qual nosso caro Antíoco costuma se servir de bom grado. Aquele, portanto, viu

784
Hierônimo, natural de Rodes, já foi mencionado anteriormente (cf. II, 8, 10, 19, 32 e 41).

574
não somente quantas tivessem sido até aqui as concepções dos filósofos a respeito do sumo bem,
mas quantas de modo geral elas poderiam ser. Negava, portanto, que houvesse alguma arte que
tomasse a si própria como ponto de partida; pois sempre é externo aquilo a que se aplica a arte.
Não há nenhuma necessidade de se prolongar esse ponto com exemplos, pois é evidente que
nenhuma arte versa sobre si mesma, mas que uma coisa é a própria arte, outra o que seja, para a
arte, seu propósito. Já que, portanto, assim como a medicina é a arte da saúde e, da navegação, a
pilotagem, da mesma forma a arte de viver é a prudência, é forçoso que também esta última a
partir de alguma coisa se estabeleça e tenha sua origem. 17 Ora, há consenso, entre quase todos,
que aquilo sobre o que versaria a prudência e o que ela desejaria alcançar é, necessariamente,
apropriado e ajustado à natureza; e que isso é de tal gênero, que ele próprio atrairia e seduziria a
tendência da alma, que os gregos chamam oJrmhv. Quanto ao que, porém, seria isso que causaria tal
tipo de movimento e a que a natureza, desde o momento do nascimento, tenderia de tal modo,
não há consenso, e é daí que surge entre os filósofos, quando se investiga o sumo bem, toda a
dissensão. Pois de toda esta questão que gira em torno dos fins dos bens e dos males, quando se
investiga o que neles seja extremo e último, deve-se chegar à fonte, em que se encontrariam os
primeiros chamados da natureza; descoberta ela, de lá prossegue, como que de uma nascente,
toda a discussão sobre o sumo bem e o sumo mal.
VII 18 Em direção ao prazer alguns pensam ser a primeira tendência; a primeira repulsa, da
dor. A ausência de dor outros consideram ser a primeira coisa almejada, e a primeira enjeitada, a
dor. Outros tomaram como ponto de partida aquelas que eles denominam ‘coisas primeiras
segundo a natureza’, entre as quais se contam a incolumidade e a conservação de todas as partes,
a saúde, os sentidos íntegros, a ausência de dor, o vigor físico, a beleza, e demais coisas do
mesmo gênero, semelhantes às quais são as coisas primeiras na alma: como que centelhas e
germes das virtudes. Uma vez que, desses três, apenas um é algo que, como primeiro, poderia
mover a natureza, quer como tendência, quer como repulsa, e uma vez que não poderia haver
absolutamente nada senão esses três, é absolutamente necessário que a ação apropriada – consista
ela em fugir ou em buscar – se refira a algum desses, de modo que a prudência, que dissemos ser
a arte da vida, sobre alguma dessas três coisas versaria e partir dela urdiria toda nossa vida. 19
Daquilo, entretanto, que a prudência tiver reconhecido mover inicialmente a natureza, surgirá
ainda uma concepção do reto e do honroso, que só poderia estar em consonância com um
daqueles três, de modo que ou será honroso praticar todas as ações com vistas ao prazer, ainda

575
que não o alcances, ou com vistas a não sofrer, ainda que não sejas capaz de alcançá-lo, ou com
vistas a adquirir aquelas coisas que são segundo a natureza, ainda que nada alcances. A
conseqüência é que, quão grande seja a diferença entre os princípios naturais, tão grande, a
respeito dos fins dos bens e dos males, será a dissensão. Outros, por sua vez, partindo dos
mesmos princípios, referirão toda ação apropriada à obtenção ou do prazer, ou do não-sofrer, ou
daquelas coisas que são segundo a natureza.
20 Foram apresentadas, portanto, seis concepções a respeito do sumo bem; das três últimas,
são estes os fundadores: do prazer, Aristipo, do não-sofrer, Hierônimo, do fruir das coisas que
nós dissemos ser segundo a natureza, Carnéades – este, sem dúvida, não como um propositor,
mas como defensor com vistas à discussão. As três anteriores eram hipóteses, das quais só uma
foi defendida e, esta, veementemente. Pois tudo fazer com vistas ao prazer, ainda que nada
alcancemos, sendo a própria decisão de agir de tal forma, entretanto, digna de ser buscada por si
mesma, honrosa e o bem único, isso ninguém afirmou. Nem mesmo evitar a dor por si próprio
considerou alguém como coisa digna de ser buscada, a não ser que também a pudesse evitar.
Mas, por outro lado, que tudo façamos a fim de adquirirmos o que for segundo a natureza, ainda
que não o alcancemos, e que isso não só é honroso, mas também a única coisa que por si só deve
ser buscada e o único bem, é o que dizem os estóicos.
VIII 21 São essas seis, portanto, as concepções simples sobre o mais elevados dos bens e
dos males, duas sem patrono, quatro defendidas. Compostas, por outro lado, e dúplices, houve, ao
todo, três exposições do sumo bem e, na verdade, caso observes profundamente a natureza das
coisas, não é possível que houvesse mais.785 Pois, ou se pode unir o prazer à honradez, como
quiseram Califón e Dinomaco, ou a ausência de dor, como Diodoro, ou os princípios da natureza,
como os antigos: os mesmos que denominamos acadêmicos e peripatéticos. Mas já que não é
possível tratar de tudo ao mesmo tempo, deveremos admitir, para a atual discussão, que o prazer
deve ser posto à parte, visto que para certas coisas mais importantes, como já se tornará
manifesto, nós nascemos. Sobre a ausência de dor costuma ser dito quase o mesmo que sobre o
prazer. [Visto que tanto sobre o prazer, com Torquato, quanto sobre a honradez, na qual, sozinha,
se acharia todo o bem, com Catão se discutiu, quase o mesmo que foi dito contra o prazer, em
primeiro lugar, cabe à ausência de dor.]786 22 E, na verdade, não se devem buscar outros

785
Cf. a argumentação semelhante de II, 35.
786
Passagem obviamente interpolada. Ver nota ao fim do texto.

576
argumentos contra aquela concepção de Carnéades, pois, como quer que seja exposto o sumo
bem, de modo que lhe falte a honradez, em um tal raciocínio, nem os deveres, nem as virtudes,
nem as amizades podem ter fundamento. Por outro lado, a união da honradez, quer com o prazer,
quer com o não-sofrer, algo que pretende abarcar o próprio honroso, termina por torná-lo torpe.
Pois referir as ações que pratiques a estas duas coisas, dentre as quais uma diria que se encontra
no sumo bem quem porventura estiver isento do mal, e a outra se acharia na parte mais volúvel da
natureza, é obscurecer, para não dizer poluir, todo o esplendor da honradez. Restam os estóicos,
que, tendo tudo trazido desde os peripatéticos e os acadêmicos, seguiram as mesmas coisas com
outros termos. O melhor a fazer é argumentar contra cada um desses; mas, por ora, o ponto em
discussão; tratemos deles quando assim quisermos.
23 Pois bem, a despreocupação de que fala Demócrito, que é [como que]787 a tranqüilidade
da alma, que ele chamou eujqumiva, foi necessário deixá-la de fora desta discussão justamente
porque essa tranqüilidade da alma é, ela própria, a vida feliz; ora, mas nós investigamos não qual
seja ela, mas de onde ela venha. Já rechaçadas e rejeitadas as concepções de Pirro, de Aríston e
de Erilo, pois que neste círculo que traçamos não podem entrar, não houve absolutamente
necessidade de que fossem levadas em conta.788 Com efeito, uma vez que toda esta questão sobre
os fins e, por assim dizer, termos extremos dos bens e dos males parte daquilo que dissemos ser
apropriado e ajustado à natureza e ao qual, por si próprio, primeiramente tendemos, suprimem-no
completamente tanto aqueles que negam haver nas coisas, em que nada haveria de honroso ou de
torpe, algum motivo pelo qual anteponham uma coisa a outra e que julgam que entre elas não há
absolutamente nenhuma diferença, quanto Erilo que, se pensa desta forma, isto é, que não há
nenhum bem senão o conhecimento, suprime todo motivo para se tomar uma decisão e a
faculdade de encontrar o dever. Excluídas assim as concepções dos demais, já que além dessas
não pode haver nenhuma, é forçoso que prevaleça esta dos antigos. É do método estabelecido
pelos antigos, portanto, de que também os estóicos se serviram, que partiremos.
IX 24 Todo ser animado ama a si próprio e, logo que nasce, age de modo a se conservar,
pois que esta é a tendência que lhe é dada em primeiro lugar pela natureza, a fim de que guarde
sua vida como um todo, que se conserve e que esteja em tal condição, que seja essa a melhor
condição possível segundo a natureza. Esta sua constituição lhe é confusa e incerta no início, de

787
O termo tamquam é expurgado do texto de Reynolds. Ver nota final.
788
Uma vez que tratavam, como vimos anteriormente, todas as coisas como indiferentes (cf., por exemplo, II, 35).

577
modo que tão somente ele se guarda, como quer que ele seja, mas não compreende nem o que é,
nem do que é capaz, nem qual é sua própria natureza. Depois, porém, que se desenvolveu um
pouco e que chegou a perceber até que ponto cada coisa lhe toque e lhe diga respeito, então,
paulatinamente, começa a fazer progressos, a tomar conhecimento de si, a compreender por que
motivo possui isso que nós chamamos tendência da alma; ele passa não apenas a tender àquilo
que percebe ser apropriado à natureza, como também a repelir o que percebe ser contrário.
Portanto, para todo ser animado, aquilo a que ele tende consiste no que é ajustado à natureza.
Desse modo, faz-se ver o fim dos bens: viver segundo a natureza, numa condição que seja a
melhor condição possível e do modo mais ajustado à natureza.
25 Mas, uma vez que cada ser animado tem uma natureza que é sua, é forçoso que também
o fim, para todos, seja este: que a natureza chegue à completude (pois nada impede que algumas
coisas os demais seres animados tenham em comum entre si e também os brutos com os homens,
uma vez a natureza de todos é comum), mas estas coisas extremas e supremas que nós buscamos,
é forçoso que sejam distintas e distribuídas entre os gêneros de seres animados e próprias a cada
qual e apropriadas àquilo que a natureza de cada um exija. 26 Pois, quando dizemos que para
todos os seres animados o termo extremo é viver segundo a natureza, não se deve tomar como se
disséssemos que um único termo extremo existe para todos; mas, assim como se pode dizer com
correção que é comum a todas as artes que elas versem sobre algum conhecimento, cada arte,
porém, tem um conhecimento que é seu, da mesma forma pode-se dizer que é comum a todos os
seres animados viver segundo a natureza, mas que as naturezas são diversas, de modo que, para o
cavalo, é uma coisa viver de acordo com a natureza, outra para o boi, outra para o homem, e,
todavia, em todos o elemento principal é comum e, sem dúvida, não apenas nos seres animados,
mas também em todas essas coisas que a natureza nutre, faz crescer e mantém; entre essas, vemos
as que nascem da terra produzirem, de certo modo, elas próprias, por si mesmas, muitas coisas
para si que são importantes para a vida e o desenvolvimento, de sorte a alcançarem o termo
extremo em seu próprio gênero; sendo assim, é possível agora que, tudo abarcando em uma só
proposição, sem hesitação eu afirme que toda natureza é conservadora de si própria e tem como
propósito, seu fim, por assim dizer, ou termo extremo, que se guarde no melhor estado possível
de seu próprio gênero; de modo que é forçoso que, para todas as coisas às quais confere vida a
natureza, seja análogo o fim, não o mesmo. Disso, deve-se compreender que, para o homem, o
último dentre os bens é viver segundo a natureza, que poderíamos interpretar assim: viver de

578
acordo com a natureza do homem, natureza completa em todas as suas partes e que não ressente
falta de nada. 27 É isso, portanto, que nós devemos desenvolver; mas, se o fizer com muita
minúcia, vós me perdoareis. Pois à idade deste, que agora pela primeira vez, quiçá, ouve tais
coisas, nós devemos ser solícitos.”
“Concordo plenamente”, disse eu, “ainda que o que disseste até aqui, do modo como o
fizeste, ao menos, ficaria bem a qualquer idade.”
X Expostos os limites que demarcam as coisas dignas de serem buscadas, o que devemos
demonstrar a seguir é por que isso se dá assim como eu disse. Sendo assim, comecemos por
aquilo que estabeleci em primeiro lugar (algo que, na realidade, vem de fato em primeiro lugar),
para que possamos compreender que todo ser animado ama a si próprio. Quanto a isso, não há
dúvida (pois está gravado na própria natureza e cada um compreende de tal modo por seus
próprios sentidos, que, se alguém quisesse contra-argumentar, ninguém daria ouvidos),
entretanto, para que nada passemos em silêncio, julgo que se devam dar as razões pelas quais isso
é assim. 28 E, no entanto, como se pode conceber ou pensar que exista algum animal que se
odeie? Entrechocam-se, com efeito, princípios contrários. Pois, quando aquela tendência da alma
começar a atrair para junto de si, deliberadamente, algo que lhe estorve, porque lhe seja adverso,
já que fará isso em seu interesse, terá, ao mesmo tempo, amor e ódio por si mesmo, o que não
pode acontecer. E se alguém for adverso a si próprio, é forçoso que ele pense serem males o que
são bens, e serem bens, pelo contrário, o que são males e que aquilo a que se deve tender ele
evite, ao que se deve evitar, ele tenda, o que, sem dúvida, é uma subversão da vida. Pois, caso se
encontrem alguns homens que busquem o enforcamento ou outro tipo de morte, ou mesmo aquele
que, em Terêncio, ‘considerou que causaria menos dano a seu filho enquanto’, como ele próprio
diz, ‘faça de si um infeliz’, deve ser reputado adverso a si próprio. 29 Mas alguns são movidos
pela dor, outros, pelo desejo; pela ira, ainda, muitos se deixam levar e, ao tombarem, conscientes,
em males, julgam, então, que tomam as melhores resoluções em seu favor. E dessa forma, dizem
sem hesitar:

‘Eu, de minha parte, tenho cá este jeito; tu, age lá como tu deves’

Esses, que teriam declarado guerra a si próprios, desejariam ser crucificados de dia, de noite
torturados, e, no entanto, não acusariam a si mesmos dizendo que tomaram más resoluções a

579
respeito de seus interesses; pois é esta a queixa daqueles que são caros a si mesmos e que se
amam. Por isso, todas as vezes que disser alguém que se porta mal para consigo mesmo e que é
de si próprio desafeto e inimigo, e, por fim, que se apressa em deixar a vida, entenda-se que
existe, subjacente, alguma razão desse tipo, de modo que se pode entender, a partir disso mesmo,
que cada qual é caro a si mesmo. 30 E, no entanto, não é suficiente que não haja ninguém que
odeie a si próprio, mas há que se ter em mente também isto: não há ninguém que considere que
não lhe importa absolutamente o estado em que se encontra. Pois será suprimida a tendência da
alma, se, assim como com relação a coisas entre as quais não há nenhuma diferença nós não
estamos mais propensos a nenhum dos dois sentidos, igualmente, com relação a nós mesmos,
julgarmos que não nos importa absolutamente a condição em que estamos.
XI E mesmo se alguém quisesse, seria completamente absurdo dizer que no amor que cada
um tem por si próprio, o ímpeto de amar se refira a alguma outra coisa qualquer e não a ele
próprio, àquele que se ama. Quando se diz isso com respeito às amizades, com respeito aos
deveres, com respeito às virtudes, como quer que se diga, é possível, ainda assim, entender o que
se está dizendo; com respeito a nós próprios, contudo, não se pode nem mesmo entender que é
por causa de alguma outra coisa, por causa do prazer, por exemplo, que nós nos amamos. Pois é
por causa de nós que o amamos, não por causa dele que nós amamos a nós mesmos.
31 Além do isso, o que seria mais evidente do que não apenas que cada qual seja caro a si
mesmo, mas ainda que cada qual seja intensamente caro? Pois são poucos aqueles, ou ainda,
existe alguém a quem, quando se aproxime a morte, não

Fuja o sangue, tomado de temor, e se empalideça de medo?

E se, sem dúvida, isto consiste em vício, aterrorizar-se tão intensamente diante da dissolução da
natureza (o que é igualmente repreensível no que diz respeito à dor), contudo, já que mais ou
menos assim são afetados todos os homens, há prova suficiente de que a natureza tem horror ao
desaparecimento; e quanto mais alguns ajam dessa forma, de modo a serem, com justiça, até
mesmo repreendidos, tanto mais se deve entender que essas mesmas coisas não estariam
presentes de maneira excessiva em alguns homens, a não ser que algumas existissem, por
natureza, sob uma forma moderada. E, na verdade, não me refiro ao medo da morte destes que,
porque julguem que se privam dos bens da vida ou porque têm receio dos pavores de depois da

580
morte ou, se tenham medo de morrer de forma dolorosa, por isso evitam a morte; pois amiúde, no
que diz respeito às crianças, que não pensam em nada disso, se alguma vez, brincando com elas,
ameaçamos lançá-las ao chão, a partir de algum outro lugar, elas se assustam. Além do mais, as
‘feras’, diz Pacúvio,

‘Às quais falta, para se precaverem, a sagacidade do intelecto’,

acometidas pelo medo da morte, ‘estremecem’789. 32 Ora, a respeito do próprio sábio, quem tem
outra opinião senão a de que ele, mesmo tendo decidido que deve morrer, comover-se-ia,
contudo, ao se separar dos seus e da própria luz do dia, deixada para trás? É neste tipo de
comportamento, porém, que a força da natureza se faz mais evidente, quando muitos, para
sobreviver, resignem-se à mendicância e quando se aflijam, com o aproximar-se da morte,
homens acabrunhados pela velhice e suportem aquilo que vemos suportar, nas peças de teatro,
Filoctetes, que, atormentado por dores insuportáveis, prolongava, contudo, sua vida com a caça
de aves, ‘lento, trespassava os ligeiros; imóvel, os que esvoaçavam’, como se encontra em Ácio,
e de um tecido de penas fazia uma cobertura para o corpo.
33 Eu falo do gênero humano, ou, de modo geral, do gênero dos seres animados, quando,
para as árvores e para os vegetais, a natureza seria quase a mesma? Com efeito, quer alguma
causa maior e mais divina tenha engendrado essa força, como pareceu aos homens mais doutos,
quer isso se dê assim por obra do acaso, nós vemos estas coisas que a terra produz conservarem-
se vigorosas por meio de cascas e de raízes, algo que sucede aos animais por meio da distribuição
dos sentidos e por certa concatenação entre as partes. Quanto a isso, ainda que esteja de acordo
com aqueles que pensam que todas essas coisas são regidas pela natureza, coisas que, caso a
natureza as negligencie, ela própria não poderia existir, concedo, entretanto, que tenham a
opinião que quiserem aqueles que disso discordam e até mesmo que entendam, se alguma vez eu
me referir à natureza do homem, que é ao homem que eu me refiro; pois não há nisso diferença
alguma. Pois antes será possível a alguém se afastar de si próprio do que perder a tendência em
direção àquelas coisas que concorram a seu favor. Com justiça, portanto, os mais graves filósofos
buscaram na natureza o princípio do sumo bem e aquela tendência em direção às coisas mais

789
Sobre Pacúvio, veja-se I, 4.

581
ajustadas à natureza julgaram que é inata a todos os seres, porque está fundamentada naquela
recomendação da natureza pela qual eles amam a si próprios.790
XII 34 Devemos examinar, a seguir, uma vez que já está suficientemente patente que cada
qual é, por natureza, caro a si mesmo, qual é a natureza do homem; pois é em torno disso que gira
a questão. Ora, é evidente que o homem é formado por composição de corpo e de alma, sendo as
partes da alma as primordiais, as do corpo, secundárias. Seguindo adiante, observamos também
que o corpo humano está de tal modo configurado, que é mais excelente que outros e, por outro
lado, que a alma tem uma constituição tal, que está aparelhada de sentidos e possui superioridade
graças à mente, à qual obedece toda a natureza humana, na qual reside certa capacidade
admirável não só para o raciocínio, mas também para o conhecimento, o saber e para todas as
virtudes. Ora, as partes que são do corpo, essas não possuem uma autoridade que seja comparável
com a das partes da alma e são mais facilmente conhecidas. Por isso, comecemos por elas.
35 As partes de nosso corpo, portanto, e toda sua a configuração, sua forma e seu tamanho,
é óbvio quão ajustados estão à natureza, nem há dúvida em se entender as qualidades particulares
que têm, no homem, a fronte, os olhos, as orelhas e as demais partes. Mas é certamente
necessário que elas estejam saudáveis e vigorosas e possuam o movimento e uso naturais, de
modo que nelas não falte nada nem haja algo doente ou debilitado; pois é isso que exige a
natureza. Existe ainda, por outro lado, certa atividade do corpo que mantém o movimento e a
postura em conformidade com a natureza; nesses, caso haja falha por algum desvio ou
deformidade, ou por uma alteração quer do movimento, quer da postura, como, por exemplo,
alguém que ande sobre as mãos ou para trás, em vez de para frente, pareceria que ele foge
completamente a si mesmo e que, despojando do homem o próprio homem, tem aversão à
natureza. Por esse motivo, também certas maneiras de se sentar e certos movimentos sinuosos e
afetados, tais quais costumam ser os de homens impudentes e efeminados, são contrários à
natureza, de modo que, ainda que provenham de um vício da alma, é no corpo, contudo, que se
mostra alterada a natureza do homem. 36 Assim, inversamente, o modo de ser do corpo, suas
disposições e hábitos, moderados e equilibrados, parecem ser apropriados à natureza.
Quanto à alma, não apenas ela deve existir, mas deve ainda ser de tal modo, que tenha todas
as suas partes incólumes e que não lhe falte nenhuma das virtudes. E, dentre os sentidos, cada
qual tem a sua virtude própria, de modo que nada impeça que cada sentido desempenhe sua

790
Para commendatio como tradução de oijkeivwsi", veja-se III, 16 e 23 e as notas a essas passagens.

582
função, percebendo de modo rápido e sem dificuldades as coisas que se submetem aos sentidos.
XIII Pois bem, da alma e desta parte da alma que tem a primazia, e que é denominada mente,
múltiplas são as virtudes, mas são, primeiramente, de dois gêneros: um, o daquelas que são inatas
por sua própria natureza e que são chamadas não-voluntárias; o outro, por sua vez, o daquelas
que, tendo fundamento na vontade, costumam ser chamadas virtudes em sentido mais próprio, às
quais pertence a mais alta excelência que se louva nas almas. Do primeiro gênero são a facilidade
de aprender e a memória e quase todas as coisas que, numa só palavra, são chamadas engenho;
essas virtudes, quem as possui, é dito ‘dotado de engenhoé. O outro gênero, entretanto, é o das
grandes virtudes, das verdadeiras, que chamamos voluntárias, como a prudência, a temperança, a
coragem, a justiça e as demais desse mesmo gênero.
37 Era isso o que havia para ser dito, de modo resumido, sem dúvida, a respeito do corpo e
da alma, com o que nós demos, de certo modo, uma forma para aquilo que demanda a natureza
humana. De onde se faz evidente que, uma vez que somos amados por nós próprios e que, tanto
na alma quanto no corpo, desejamos que todas as coisas sejam perfeitas, essas coisas nos são
caras por causa de si mesmas e que nelas está o que é mais importante para viver bem. Pois a
quem se coloque como propósito a própria conservação, devem-lhe ser caras também suas
próprias partes, e tanto mais caras quanto mais perfeitas sejam e mais dignas de louvor em seu
próprio gênero. De fato, busca-se uma vida que seja a mais completa em virtudes da alma e do
corpo, e é nisso que deve consistir o sumo bem, visto que esse deve ter a seguinte característica:
ser o termo extremo dentre as coisas que devem ser buscadas. Assentada essa idéia e
considerando que os homens sejam, por si mesmos e espontaneamente, caros a si próprios, não se
pode duvidar de que também as partes do corpo e da alma e as partes daquelas coisas que se
encontram no movimento e no estado de ambos recebem nossos cuidados por uma graça que lhes
é própria e de que, por si próprias, elas são objeto de nossa tendência. 38 Exposto isso, é fácil
inferir que, dentre o que é nosso, nós devemos buscar, acima de tudo, aquilo que possui o maior
mérito, de modo que nós devemos buscar, acima de tudo, a virtude de cada uma das melhores
partes que, por si próprias, nós devemos buscar. A conseqüência é que a virtude da alma se
antepõe à virtude do corpo e, na alma, as virtudes não voluntárias cedem às virtudes voluntárias,
as quais, de fato, são chamadas propriamente virtudes e que em muito se excedem justamente
porque têm origem na razão, com relação à qual nada é mais divino no homem. Pois de todos os
seres que a natureza cria e mantém, os que são desprovidos de alma ou não muito diferentes

583
disso, para eles, o sumo bem está no corpo, de modo que não parece insensata a afirmação que se
fez a respeito do porco: que a esse animal foi dada uma alma em lugar de sal, a fim de que não
apodrecesse. XIV Há, porém, certos animais, nos quais existe algo semelhante à virtude, como
nos leões, como nos cães, como nos cavalos, nos quais podemos observar não apenas, como no
caso dos porcos, movimentos do corpo, mas, em alguma medida, certos movimentos da alma. No
homem, por outro lado, tudo o que é essencial pertence à alma e, na alma, à razão, de onde se
origina a virtude, que é definida como a perfeição da razão791, a qual eles792 julgam que deve ser
explicada muitas e muitas vezes.
39 Também para essas coisas que a terra gera, existe um desenvolvimento e um arremate
não dessemelhantes dos que ocorrem com os seres animados. Dessa forma, dizemos da vinha que
ela vive e morre793, e, da árvore, tanto que ela é jovem, quanto que está ficando velha; tanto que
floresce, quanto que envelhece. Por isso, não é descabido, como para os seres animados, também
para aquelas pensar que existem certas coisas apropriadas à natureza e certas coisas avessas, e
que existe, cuidando do crescimento e da nutrição delas, uma espécie de cultivadora: a arte, o
saber dos agricultores, que as desbasta, poda, endireita, ergue e especa, para que possam avançar
até onde as conduza a natureza, de modo que as próprias vinhas, se elas pudessem falar,
declarariam que devem receber esse tipo de tratamento e cuidado. Pois bem, para falar
especialmente da vinha, isso que dela cuida é algo externo; com efeito, nela própria é pouco
importante a força que existe para que possa se achar no melhor estado possível, caso não seja
empregado nenhum cultivo. 40 Mas, na verdade, se à vinha forem acrescentados sentidos, de
modo que venha a ter uma espécie de tendência e que se mova por si própria, o que julgas que ela
faria? Daquilo que antes conseguia por meio do vinhateiro ela cuidará por si própria? Ora, tu
percebes que a ela será acrescentado o cuidado de olhar também por seus sentidos e por toda
tendência que deles provenha e pelos órgãos que eventualmente lhe tenham sido acrescidos?
Dessa forma, àquelas coisas que sempre possuiu ela reunirá o que for acrescentado
posteriormente, e não terá por fim o mesmo fim que tinha o seu cultivador, mas desejará viver
segundo essa natureza que lhe tiver sido acrescida posteriormente. Desse modo, o fim do bem
será análogo ao que fora anteriormente, todavia não será o mesmo; pois já não buscará o bem
próprio de um vegetal, mas o de um ser animado. E se não apenas sentidos lhe forem dados, mas

791
Cf. IV, 35: rationis enim perfectio est uirtus.
792
Os filósofos antigos.
793
O argumento da vinha foi utilizado em IV, 38 e ss.

584
também uma alma humana? Não é necessário que permaneçam aquelas coisas mais antigas e que
por elas se deva olhar, que sejam muito mais caras essas coisas que forem acrescentadas, que as
melhores partes da alma sejam o que há de mais caro e que o fim do sumo bem se fundamente
nessa completude da natureza, uma vez que de muito e de longe a mente e a razão são superiores?
Surge assim o termo extremo de todas as tendências que, estendendo-se desde a primeira
recomendação da natureza, por muitos passos ascendeu até chegar ao ponto mais elevado, que se
faz pleno pela integridade do corpo e pela absoluta racionalidade da mente.
XV 41 Sendo a forma da natureza, portanto, essa que acabo de expor, se cada ser, como eu
disse no início794, logo que nascesse, conhecesse a si mesmo e fosse capaz de julgar qual é a
essência de toda a natureza e de cada uma de suas partes, de imediato ele perceberia o que é
aquilo que nós buscamos, quais são, dentre todas as coisas, aquelas que desejamos como sumo e
último, e não poderia cometer falta em nenhuma circunstância. Na verdade, entretanto, a
natureza, ao menos no início, está admiravelmente oculta e não pode ser nem penetrada, nem
conhecida; com o avanço do tempo da vida, porém, pouco a pouco, ou antes, com tardar, nós
passamos a conhecer de certo modo a nós mesmos. E assim, aquela primeira recomendação que
nos é feita por nossa natureza é-nos incerta e obscura, e aquela primeira tendência da alma nos
impele tão somente a que possamos estar salvos e íntegros. Quando, porém, começamos a
enxergar com mais clareza e a perceber o que nós somos e aquilo pelo que nos distinguimos dos
demais seres animados, então nós nos pomos a perseguir aquilo para o que nascemos. 42 Algo de
semelhante nós observamos nos animais irracionais, que, de início, não se afastam do lugar em
que nasceram, em seguida, cada um deles é movido por sua própria tendência; serpear, as
pequenas cobras, nadar, os marrecos, revoar os melros, servirem-se dos chifres nós vemos o bois,
os escorpiões, de seus ferrões, para cada qual, vemos uma natureza que é sua guiá-los em suas
vidas. Processo semelhante também se faz ver no gênero humano. Pois os pequeninos, recém-
nascidos, permanecem deitados tais quais fossem de todo desprovidos de alma; quando lhes
advém, entretanto, um pouco de firmeza, não só da alma eles se servem, mas também dos
sentidos e se esforçam para se terem de pé e se servem das mãos e reconhecem aqueles por quem
são criados. Em seguida, eles se divertem com seus iguais e de bom grado com esses se reúnem,
entregam-se às brincadeiras e são seduzidos ao ouvirem historinhas; aquilo que eles próprios têm
de sobra eles querem ofertar aos outros; voltam sua atenção, com grande curiosidade, àquilo que

794
Cf. V, 24.

585
se passa em casa e começam a refletir sobre algumas coisas e a aprender e não querem ignorar o
nome do que vêem, e, naquilo que disputam com seus iguais, se obtiverem vitória, são tomados
de alegria; vencidos, esmorecem e perdem o ânimo. Dessas coisas, nenhuma deve-se julgar que
acontece sem motivo. 43 Pois, de tal forma foi gerada pela natureza a essência do homem, que
ela parece ter sido constituída para adquirir todas as virtudes, e, por esse motivo, os pequeninos
são movidos, sem aprendizagem, por imagens das virtudes, cujas sementes eles possuem dentro
de si; pois são esses os primeiros elementos da natureza795, pelos quais, após se desenvolverem,
produz-se como que o germe da virtude. Com efeito, uma vez que tenhamos nascido e tenhamos
sido constituídos de modo a carregarmos dentro de nós mesmos os princípios da prática de certas
ações, do amor por certas pessoas, da generosidade e da demonstração de agradecimento e a
termos as almas apropriadas ao saber, à prudência, à coragem e avessas às coisas que lhes são
contrárias, não é sem motivo que vemos, nas crianças, essas como que centelhas das virtudes que
eu mencionei; a partir delas, deve-se inflamar a razão do filósofo, de modo que, seguindo-a de
perto, como se um deus o guiasse, ele possa alcançar a realização extrema de sua natureza. Pois,
como já disse repetidas vezes, numa idade tenra e numa mente pouco sólida, a força da natureza é
divisada como que através de um nevoeiro; quando, porém, avançando, a alma ganha firmeza, é
verdade que ela reconhece a força da natureza, mas, de tal modo teria sido apenas esboçada por si
mesma, que poderia se desenvolver mais amplamente.
XVI 44 Devemos ingressar, portanto, na natureza das coisas e, com profundidade, examinar
bem o que ela exige, pois, de outro modo, nós não podemos conhecer a nós mesmos. Tal
preceito, porque era grande demais para que parecesse vir de um homem, foi, por isso,
consignado a um deus. Convida, portanto, Apolo Pítio, a conhecermos a nós mesmos; esse
conhecimento de nós, no entanto, é um só: que conheçamos a essência do corpo e da alma e
sigamos aquela vida que frua completamente dessas coisas.
Já que, porém, desde o princípio, a tendência da alma foi tal, que essas coisas, que
mencionei, nós as tivéssemos, por natureza, em seu estado mais perfeito, deve-se admitir que,
uma vez que tenhamos adquirido aquilo que seria o objeto de nossa tendência, nele, como que
num termo último, deter-se-ia a natureza e seria isso o sumo bem; algo que, certamente, como um

795
Cf. III, 19 e nossa nota à passagem.

586
todo, ele próprio, por si próprio, deve ser buscado, já que se demonstrou anteriormente que cada
uma de suas partes deve ser também buscada por si própria796.
45 Na enumeração das vantagens do corpo, porém, se alguém julgar que deixamos de lado
o prazer, seja essa discussão reportada a outra ocasião. Pois, se o prazer se acha ou não entre as
coisas que dissemos ser segundo a natureza, em nada diz respeito à questão de que estamos
tratando. Ora, se, como parece ao menos a mim, os bens da natureza não são completos com a
presença do prazer, com justiça foi deixado de lado; se, por outro lado, há nele aquilo que alguns
pretendem, isso não representa nenhum empecilho para a nossa compreensão do sumo bem. Pois,
se àquelas coisas que foram instituídas como primeiras segundo natureza se acrescentar o prazer,
apenas uma determinada vantagem corporal será acrescentada, mas não será alterada a
constituição do sumo bem que foi proposta.
XVII 46 Pois bem, até este ponto ao menos, o nosso raciocínio avançou de modo a que
tudo nele decorresse da recomendação primeira da natureza. Sigamos, agora, porém, um outro
tipo de argumentação: que não é apenas porque nós nos amamos, mas porque cada parte da
natureza, tanto no corpo quanto na alma, tem uma capacidade própria que, tanto em um como na
outra nós nos movemos do modo mais espontâneo. E, para começar com corpo, tu percebes que,
caso algum dentre seus membros seja deformado, ou deficiente, ou mutilado, os homens o
ocultam? De modo que até mesmo pelejam e se esforçam para que, se for possível, ou não
apareça o defeito do corpo ou para que apareça o mínimo possível; e suportam até mesmo muitas
dores, para fins de tratamento, com vistas a que, ainda que o próprio uso do membro não apenas
não se torne maior, mas até mesmo se torne mais reduzido, todavia seu aspecto volte a ser o
natural? E, com efeito, uma vez que todos os homens julguem que devem, por natureza, buscar a
si mesmos integralmente, e isso não por outro motivo, mas por amor a si próprios, é necessário
que também suas partes sejam buscadas por si próprias, já que a totalidade seria por si própria
buscada. 47 Pois então: no movimento e na postura do corpo não existe nada a que, segundo o
julgamento da própria natureza, devemos voltar nossa atenção? O modo de caminhar, de se
sentar, a expressão que se dê ao rosto, qual seja o semblante em cada ocasião, não há nada nisso
tudo que nós consideraríamos ser digno ou indigno de um homem livre? Não julgamos dignos de
ódio muitos que, por certa forma de se mover, ou por certa postura, parecem ter menosprezado a
lei e a medida impostos pela natureza? E já que tais coisas são expurgadas do corpo, qual é o

796
Em V, 37.

587
motivo para que não se considere, com correção, que a beleza deve ser buscada por si própria?
Pois se nós julgamos que a deformação e a mutilação do corpo devem ser evitadas por si
próprias, por que também não, e talvez até mais, perseguimos, por si própria, a boa proporção da
forma? E se a torpeza nós evitamos, na postura e no movimento do corpo, por que motivo não
perseguimos a beleza? E até mesmo a saúde, o vigor, a ausência de dor, não apenas com vistas ao
proveito, mas ainda elas próprias, por si próprias, nós buscaremos. Ora, já que a natureza quer
estar completa, com todas as suas partes, ela busca este estado do corpo por si próprio: o que está
mais de acordo com a natureza; ela entra em total desordem, se o corpo ou está doente, ou sofre,
ou carece de vigor.
XVIII 48 Vejamos as partes da alma, que são mais radiantes à nossa vista. Essas, porque
são mais elevadas, dão indícios mais claros da natureza. Tão grande é em nós, e inato, o amor
pelo conhecimento e pelo saber, que ninguém poderia duvidar de que em direção a ambos a
natureza dos homens, sem ter sido incitada por qualquer recompensa exterior, é arrebatada. Não
vemos como os meninos, nem mesmo ameaçados por castigos, são demovidos de contemplar as
coisas e de tudo querer saber sobre elas? Não vemos como, depois de apanharem, voltam
correndo? Como se alegram ao aprenderem algo? Como não se contêm em contá-lo aos outros?
Como por um cortejo, por jogos e espetáculos desse tipo se deixam tomar e por causa deles
suportam até a fome e a sede? Além do que, aqueles que se deleitam com os estudos e artes
liberais, por acaso não os vemos fazer pouca conta da saúde, dos assuntos domésticos e tudo
tolerar, quando tomados de assalto pelo próprio conhecimento, pelo próprio saber, e compensar
as maiores inquietações e esforços pelo prazer que alcançam com o aprendizado? 49 A mim, ao
menos, parece que Homero observou algo desse tipo naquilo que figurou a respeito do canto das
sereias. Pois nem com a delicadeza da voz, ou por certa novidade e variedade de canto, elas
parecem ter-se habituado a fazer retroceder os que, navegando, passavam, mas porque
declaravam saber muitas coisas, de modo que os homens, por desejo de aprender, detinham-se
diante de seus rochedos. É dessa forma que elas convidam Ulisses (com efeito, eu verti, assim
como certos versos de Homero, justamente essa passagem):

‘Adorno argivo, por que não voltas a popa, Ulisses,


Para que com os ouvidos possa conhecer nossos cantos?
Pois ninguém jamais estes plainos cerúleos atravessou,

588
Sem que antes se detivesse, tomado pela doçura da voz,
E depois, saciado, em seu ávido peito, por musas várias,
Mais sabido, as pátrias praias deslizando alcançasse.
Nós grave batalha de guerra e ruína retemos conosco,
Que Grécia a Tróia, sob nume divino, levou,
E todo traço de eventos advindos da ampla terra.’797

Percebeu Homero que a estória não seria convincente, se, por simples cantigas enleado, tão
grande homem se deixasse apanhar; o saber elas prometem, o qual não é de admirar que fosse
àquele, desejoso de sabedoria, mais caro do que a pátria. E na verdade, desejar saber todas as
coisas, não importa de que tipo sejam, deve ser considerado próprio dos curiosos, mas, ser
conduzido pela contemplação das coisas mais importantes ao desejo de saber, próprio dos
homens mais excelsos.
XIX 50 Ora, que ardor pelos estudos vós considerais ter havido em Arquimedes, que,
enquanto escrevia alguma coisa sobre a poeira do chão, muito concentrado, não teria sequer
percebido que sua pátria tinha sido tomada? Que grande engenho – nós vemos – Aristoxeno
dedicou completamente à música! Com que fervor consideramos que Aristófanes levou a vida em
meio aos textos! Que dizer de Pitágoras, que dizer de Platão, ou de Demócrito, que, por causa do
desejo de aprender, percorreram – nós sabemos – as terras mais longínquas? Aqueles que não
enxergam isso, jamais amaram algo de grandioso e digno de conhecimento.
Neste ponto, com efeito, aqueles que dizem que os estudos que mencionei são cultivados
com vistas aos prazeres da alma não entendem que é por isto que eles são, por si mesmos, dignos
de serem buscados: porque, sem que nenhum proveito se ofereça, as almas se deleitam e, com o
próprio saber, ainda ele que venha a ser desvantajoso, elas se alegram. 51 Mas, de que serve, a
respeito de assunto tão manifesto, buscar mais argumentos? Que nós perguntemos a nós mesmos
de que modo nos movem o movimento das estrelas, a contemplação dos eventos celestes e o
conhecimento de tudo aquilo que, pela obscuridade da natureza, está oculto; e que encanto a
história proporciona, a qual costumamos perseguir até o último detalhe; o que foi deixado de
lado, nós retomamos, o que esboçamos, seguimos até o fim. E, entretanto, não ignoro que há uma
utilidade na história, não apenas um prazer. 52 E que dizer das estórias forjadas, das quais não se

797
Odisséia, XII, 184-191.

589
pode extrair nenhuma utilidade, nós as lemos com prazer? E, no entanto, queremos que nos sejam
conhecidos os nomes daqueles que realizaram algum feito, seus pais, a pátria, e muitas coisas,
além dessas, nem um pouco necessárias? No entanto, homens de ínfima fortuna, sem qualquer
esperança de realizarem grandes ações, artesãos, enfim, deleitam-se com a história? E podemos
ver, desejosos de ouvir e ler sobre as ações realizadas, sobretudo aqueles que, acabrunhados pela
velhice, não têm mais esperança de as realizar. Por conta disso, é forçoso entender que nas
próprias coisas que se aprendem e se conhecem se encontram os atrativos pelos quais somos
movidos a aprender e a conhecer. 53 E os filósofos, ao menos os antigos, imaginam como seria,
nas ilhas dos bem-aventurados, a vida dos sábios, que, livres de toda inquietação, sem a exigência
de qualquer lavor necessário à vida, ou de qualquer aquisição, julgam que eles não fariam outra
coisa senão consumir todo o tempo investigando e estudando a respeito do conhecimento da
natureza. Quanto a nós, porém, não apenas percebemos que esse é o regalo de uma vida feliz,
mas ainda a mitigação das infelicidades; e foi dessa forma que muitos, uma vez que estivessem
sob o poder dos inimigos ou dos tiranos, muitos no cárcere, muitos no exílio, sua dor mitigaram
pela aplicação aos estudos. 54 Demétrio de Falero, primeiro homem desta cidade, tendo sido
expulso de sua pátria, injustamente, dirigiu-se a Alexandria, à corte do rei Ptolomeu. Porque
fosse notável precisamente nesta filosofia à qual nós te exortamos e fosse discípulo de Teofrasto,
muitas obras esplêndidas ele escreveu naquele ócio desventurado, não para algum uso seu, disso
estava privado, mas aquele cultivo do espírito era-lhe, por assim dizer, um alimento de
humanismo. De fato, amiúde ouvia Cn. Aufídio, outrora pretor, homem culto, privado da vista,
dizer que mais se ressentia pela falta da luz do que de sua utilidade. Mesmo o sono, se não
trouxesse repouso para os corpos e certo lenitivo à fadiga, pensaríamos que nos fora dado contra
a natureza; pois ele rouba-nos os sentidos e suprime toda nossa atividade. Assim, se a natureza
não procurasse o repouso, ou se o pudesse alcançar por algum outro modo, nós lidaríamos
facilmente com isso, já que, mesmo como as coisas são de fato, com vistas a realizar algo ou a
aprender, quase contra a natureza nós costumamos nos submeter a vigílias.
XX 55 Mas existem indícios da natureza que são ainda mais claros, ou completamente
evidentes, de que absolutamente não se pode duvidar, sobretudo, é verdade, no homem, mas em
todo ser animado, de que a alma tenha tendência a sempre realizar alguma coisa e de que, sob
nenhuma condição, possa suportar a quietude eterna. É fácil discernir isso nos primeiros anos de
vida das crianças. De fato, embora eu receie parecer excessivo neste gênero de argumentação,

590
todos os antigos filósofos, sobretudo os de nossa escola, acercam-se dos berços, por julgarem que
é na infância que mais facilmente eles podem reconhecer a vontade da natureza. Vemos, portanto,
como nem mesmo os bebês conseguem permanecer quietos; depois, entretanto, que cresceram
um pouco, divertem-se com brincadeiras, mesmo as fatigantes, de modo que nem mesmo
ameaçados por castigos podem ser dissuadidos; e esse desejo de agir desenvolve-se juntamente
com os anos. E assim, nem mesmo se considerarmos que vamos desfrutar do mais delicioso sono,
desejaremos que nos seja dado o sono de Endimião, e caso isso nos sobrevenha, consideraremos
semelhante à morte.
56 Além do mais, os homens mais inertes, tomados por não sei que forma singular de
indolência, nós vemos, entretanto, sempre estar em movimento tanto no corpo quanto na alma e,
sem que estejam impedidos por nenhuma necessidade, ou pedir um tabuleirinho ou buscar um
jogo qualquer ou procurar uma conversa e, como não dispõem dos nobres regalos que advêm do
aprendizado, ir atrás de certos círculos e de pequenas reuniões. Além disso, nem mesmo os
animais selvagens, que prendemos para nossa diversão suportam facilmente estarem confinados,
embora se alimentem com maior abundância do que se estivessem livres, no entanto sentem falta
dos movimentos desimpedidos e errantes que lhes foram atribuídos pela natureza. 57 De tal modo
que, todo aquele que nasceu e foi educado da melhor maneira, não desejaria absolutamente estar
vivo se, privado da realização de atividades, pudesse se nutrir dos prazeres mais disponíveis.
Pois, ou na esfera privada preferem realizar algo, ou, os que são de alma mais elevada, tomam em
mãos o negócio público, adquirindo honras e poderes, ou se voltam completamente à aplicação
ao estudo. Nesse tipo de vida, está muito distante a perseguição aos prazeres; mesmo
preocupações, inquietações, vigílias eles suportam e se valem da melhor parte do homem, que,
em nós, deve ser considerada divina: a agudeza do intelecto e da mente, sem irem em busca do
prazer ou fugirem da fadiga. Nem, de fato, eles cessam ou de admirar aquelas coisas que foram
descobertas pelos antigos, ou de ir no encalço de coisas novas. E não podendo se saciar com esse
estudo, esquecidos de todas as demais coisas, não pensam nada de abjeto, nada de vil; e tão
grande é a força que se encontra nesse tipo de estudos, que mesmo aqueles que para si
propuseram outros fins dos bens, que eles regulam pelo proveito ou pelo prazer, nós os vemos
despender suas vidas em investigar os eventos e explicar a natureza.
XXI 58 Logo, ao menos isto se torna manifesto: nós nascemos para a ação. Muitos são, por
outro lado, os gêneros de ação, de modo que os mais importantes são obscurecidos pelos menos

591
importantes; as mais importantes de todas, assim, formam o primeiro gênero – é ao menos o que
eu penso e também aqueles de cujo sistema agora tratamos: a observação e o conhecimento dos
eventos celestes e daquelas coisas que, latentes, ocultadas pela natureza, podem se submeter à
indagação racional; em seguida, a administração dos negócios públicos, ou a ciência da
administração; enfim, a prudente, temperada, corajosa e justa razão e as demais virtudes e as
ações congruentes com as virtudes, as quais, abarcando-as todas em uma só palavra, chamamos
honrosas e a cujos conhecimento e prática, agora fortalecidos, somos conduzidos pela própria
natureza, que vai à frente. Pois de todos os seres os começos são modestos, mas, efetuando o
desenvolvimento que lhes é próprio, eles crescem, e não sem uma razão; com efeito, logo após o
nascimento dos homens, há certa delicadeza, certa falta de fibra, de modo que eles não são
capazes nem de perceber as melhores coisas, nem de praticar as melhores ações. Da virtude e da
vida feliz, as duas coisas que devem ser buscadas acima de tudo o mais, só mais tarde aparece o
brilho, e muito mais tarde ainda é que se compreende completamente de que tipo sejam elas. De
fato, Platão se expressou perfeitamente: ‘Feliz aquele a quem, ainda que na velhice, suceder de
alcançar a sabedoria e as opiniões verdadeiras!’798 Sendo assim, uma vez que a respeito das
primeiras coisas que se acomodam à natureza já se disse o suficiente, examinemos agora as mais
importantes e que vêm como conseqüência disso.
59 A natureza, portanto, gerou e formou o corpo do homem de modo que arrematasse
algumas coisas logo no nascimento, forjasse outras com o avanço da idade, e sem que se servisse
de muitos auxílios externos e de acréscimos. Quanto à alma, de modo geral, ela arrematou assim
como o corpo; pois a aparelhou com sentidos aptos à percepção das coisas, de modo que não
precisassem de nada, ou de quase nenhum auxílio que os reforçasse; aquilo que no homem,
porém, é melhor e mais excelente, ela desamparou. Ainda que lhe tenha dado um tipo de mente
capaz de acolher todas as virtudes e tenha gerado dentro do homem, sem que fossem ensinadas,
pequenas noções das coisas mais importantes e tenha, por assim dizer, começado a ensinar e a
tenha introduzido nesses como que primeiros rudimentos da virtude que existiam dentro dela.
Mas a própria virtude, ela apenas a esboçou, nada além disso. 60 Dessa forma, cabe a nós (ao
dizer a nós, digo à arte799) extrair o que vem em conseqüência daqueles princípios que
recebemos, até chegarmos ao resultado que desejamos. Isso é algo de muito maior valor e, por si

798
Tradução de Leis II, 653a.
799
Evidentemente, trata-se da ars uiuendi, isto é, a filosofia.

592
mesmo, muito mais digno de ser buscado do que os sentidos ou aquelas partes do corpo que
mencionamos, com relação a que é tão superior a perfeição extrema da mente, que mal se poderia
imaginar que distância há entre eles. Assim, toda honra, toda admiração, toda aplicação refere-se
à virtude e a essas ações que estão em consenso com a virtude, e tudo aquilo que ou se encontra
desse modo na alma ou que é realizado desse modo é denominado, com um só termo, honroso.
Quais são as noções de todas essas coisas, que conceitos são indicados pelos vocábulos que
lhes são próprios, qual é a essência e a natureza de cada uma delas nós veremos em breve; XXII
61 que neste ponto, entretanto, expliquemos apenas que isso que chamo honroso deve ser
buscado não somente porque nós amamos a nós mesmos, mas por si mesmo e, além disso, por
sua própria natureza. Dão mostra disso as crianças, nas quais a natureza se vê como num
espelho.800 Quanto ardor entre os que contendem! Quão intensa a própria contenda! Como são
tomados pela alegria quando vencem! Vencidos, como se envergonham! Como desgostam de ser
incriminados! Como desejam serem louvados! Que fadigas eles não suportam para que sejam os
primeiros dentre seus pares! Que memória há neles das boas ações prestadas, que desejo em
agradecer! E tais coisas aparecem sobremaneira em cada uma das melhores índoles, nas quais
isso que entendemos por honroso é como que delineado pela natureza. 62 Mas isso, quanto às
crianças; é claramente expresso, por outro lado, nas idades que já estão mais robustas. Quem é
tão dessemelhante a um homem que não é movido tanto por repugnância à torpeza quanto por
aprovação à honradez? Quem é que não tem aversão a uma juventude libidinosa e desregrada?
Quem, de modo contrário, não amaria o pudor naquela idade, a constância, ainda que isso não
seja de seu interesse próprio? Quem é que a Pulo Numitório, de Fregelas, o traidor, por mais que
tenha sido útil à nossa república, não sente aversão? Quem a Codro, salvador desta cidade, quem
às filhas de Erecteu não rende os maiores louvores? A quem o nome de Tubulo não é motivo de
ódio?801 Quem não ama o finado Aristides?802 Acaso nos esquecemos de quão intensamente nos
comovemos, ouvindo e lendo, quando tomamos conhecimento sobre algo que foi realizado de
modo pio, afetuoso, com grandeza de alma? 63 Por que falo a respeito de nós, que para o louvor e
para o belo nascemos, fomos criados, fomos educados? Que clamores do vulgo e dos ignorantes
se provocam nos teatros, quando são pronunciados os célebres versos:

800
A mesma imagem é atribuída a Epicuro no livro II (32).
801
Sobre Tubulo, veja-se II, 54 e nota à passagem.
802
Sobre Aristides, veja-se II, 116 e nota à passagem.

593
‘Eu, eu sou Orestes’,

E pelo outro, em resposta:

‘Não, nada disso; eu, sim, é que sou Orestes!’

E ainda quando uma saída um e outro oferecem ao aturdido e hesitante rei,

‘Juntos, suplicamos, então, sermos a um só tempo imolados’

E todas as vezes em que isso é representado, porventura, de alguma feita deixa de causar extrema
admiração? Não há ninguém, portanto, que não aprove e louve essa disposição da alma, por meio
da qual não somente não se busca qualquer proveito, mas, contra o proveito, inclusive, a palavra
empenhada é mantida. 64 De exemplos tais, não apenas as estórias forjadas, mas mesmo os
relatos históricos estão repletos, e sobretudo, é claro, os nossos. Pois nós, para acolher a sagrada
Idea, delegamos o melhor dos homens; nós tutores enviamos aos reis; nossos generais, em favor
da salvação da pátria devotaram suas próprias vidas; nossos cônsules aconselharam o mais hostil
dos reis, que já se aproximava das muralhas, a se precaver contra um veneno; em nossa
República, encontram-se tanto uma mulher capaz de purgar uma desonra, perpetrada com
violência, por meio da morte voluntária, quanto um homem capaz de matar uma filha para que
não ficasse desonrada.803 Todas essas ações e outras além dessas, incontáveis, quem é que não
percebe que aqueles que as realizaram foram guiados pelo esplendor da dignidade, sem que se
lembrassem do interesse próprio e que nós, quando as louvamos, não somos guiados por
nenhuma outra coisa senão pela honradez?
XXIII Tais argumentos, expostos brevemente (pois não busquei a abundância que podia, já
que a matéria não apresentava qualquer dúvida); pois bem, de tais argumentos pode-se concluir
seguramente que tantos as virtudes, todas, quanto aquele honroso que delas tem origem e que lhes
é inerente devem ser buscados por si mesmos. 65 Mas em toda honradez de que estamos falando
não existe nada tão luminoso nem algo que se estenda mais amplamente do que a ligação dos
homens entre os homens e, por assim dizer, essa espécie de associação e partilha dos interesses e

803
Sobre Lucrécia e Virgínio, ver II, 65 e nota à passagem.

594
a própria afeição entre o gênero humano. Essa, surgindo no início da gestação, pois que os filhos
são amados por aqueles que lhes deram origem e que a casa, em seu todo, está ligada pelo
casamento e pela prole, pouco a pouco se difunde para fora de casa, pelo parentesco, em primeiro
lugar, então, pelas afinidades, em seguida, pelas amizades, depois pelos laços de vizinhança,
então, pelos cidadãos e por aqueles que, na esfera pública, são aliados e amigos, em seguida, pelo
vínculo entre todos da nação humana. Essa disposição da alma, que atribui o seu a cada qual e
que, com munificência e eqüidade, olha por isso que eu chamo associação e ligação humana, é
denominada justiça, à qual se ligam a devoção, a bondade, a generosidade, a afabilidade, a
gentileza e todas que são desse mesmo gênero. E essas são de tal forma próprias da justiça, que às
demais virtude elas são comuns. 66 Com efeito, uma vez que a natureza do homem foi gerada de
modo a possuir certo traço congênito civil e público, por assim dizer, algo que os gregos chamam
politikovn, seja qual for a ação de cada virtude, não será uma ação avessa ao sentimento de
comunidade e à afeição e à associação entre os homens que eu expus; a justiça, por seu turno,
assim como se difundirá entre as demais virtudes, da mesma forma ela as buscará. Pois a justiça
não pode ser observada senão pelo homem corajoso, senão pelo sábio. Portanto, toda esta
consonância, todo este consenso entre as virtudes de que estou falando é tal qual o próprio
honroso, visto que o honroso é ou a própria virtude ou a ação realizada com virtude; a vida que
está em consenso com isso e que corresponde às virtudes pode ser estimada reta e honrosa,
coerente e congruente com a natureza.
67 Nessa ligação e fusão entre as virtudes, no entanto, os filósofos fazem distinções por
meio de certo raciocínio. Pois, ainda que elas estejam unidas e amarradas de modo que todas
tomem parte umas das outras e que uma não possa ser separada da outra, há, contudo, uma
função própria para cada uma, de modo que a coragem é vista claramente nas provações e nos
perigos, a temperança, no menosprezo aos prazeres, a prudência, na escolha entre os bens e os
males, a justiça, na atribuição do seu a cada qual. Tendo em vista, portanto, que em todas as
virtudes se acha uma certa preocupação que, por assim dizer, olha para o exterior e que tende aos
outros e que os abarca, dá-se o seguinte: que os amigos, que os irmãos, que os próximos, que os
afins, que os cidadãos, que todos, enfim (já que sustentamos que a associação entre os homens é
uma só), por si mesmos devem ser buscados. Não obstante, dentre esses, nenhum é de um gênero
tal, que faça parte do fim e do extremo dos bens. De tal forma que se podem reconhecer dois
gêneros de coisas que devem ser buscadas por mi mesmas, um que é o daquelas coisas nas quais

595
se torna completo o termo extremo, que dizem respeito ou à alma ou ao corpo; estas, porém, que
se acham no exterior, isto é, que não estão nem na alma, nem no corpo, como os amigos, como os
pais, como os filhos, como os próximos, como a própria pátria, são, certamente, caras por uma
característica própria, mas não se acham no mesmo gênero que aquelas. E, na verdade, jamais
poderia alguém alcançar o sumo bem, se todas aquelas coisas que são externas, ainda que devam
ser buscadas, estivessem contidas no sumo bem.
XXIV 69 De que modo, então, tu dirás, poderá ser verdade que tudo se refira ao sumo bem,
se as amizades, se os laços de proximidade, se as demais coisas externas não estiverem contidas
no sumo bem? Por esta razão, evidentemente: porque essas coisas que são externas, nós as
observamos por meio dos deveres, que têm origem no gênero de virtude que é próprio de cada
um deles. Pois a dedicação tanto aos amigos quanto aos pais traz, no próprio cumprimento do
dever, proveito àquele que o cumpre, pelo fato de que cumprir de tal forma o dever se encontra
entre as ações retamente realizadas, que têm origem nas virtudes. E os deveres, ao menos os
sábios os seguem tendo a natureza como guia; os homens que não atingiram a perfeição, por
outro lado, mas que são dotados de engenhos elevados, são amiúde incitados pela glória, que tem
o aspecto da virtude e lhe é semelhante. E se a própria honradez, completa e perfeita em todas
suas partes, que resplandece sozinha em meio a todas as coisas e que mais que todas deve ser
louvada, eles a enxergassem profundamente, de que contentamento não seriam completamente
tomados, uma vez que tanto se alegram com uma opinião apenas esboçada sobre ela? 70 Pois
quem, dedicado aos prazeres, quem, abrasado pelas chamas dos desejos, ao ter à disposição o que
havia desejado com extremo ardor, nós julgamos ter sido banhado por tanta alegria quanto o
primeiro Africano, tendo sido vencido Aníbal, ou o segundo, arrasada Cartago?804 A quem a
descida do Tibre, no célebre dia festivo, proporcionou tanto contentamento quanto a L. Paulo, ao
trazer cativo o rei Perses, proporcionou a chegada pelo mesmo rio.
71 Pois bem, agora, meu caro Lúcio, afigura em tua mente a elevação e a excelência das
virtudes: já não terás dúvida de que os homens que estão de posse delas, que vivem com alma
grandiosa e altiva, são sempre felizes, pois que compreendem que todos os movimentos da
fortuna e as transformações das coisas e do tempo não hão de ter nem força nem energia, caso se
ponham em combate contra as virtudes. Pois aqueles que nós enumeramos como bens do corpo,

804
Sobre o primeiro Africano, que bateu Aníbal, ver II, 56 e nota à passagem. Quanto ao segundo, destruidor de
Cartago, busque-se a passagem I, 7, também anotada.

596
tornam completa, sem dúvida, a vida felicíssima, mas de um modo tal que, sem eles, é possível
subsistir a vida feliz. De fato, de tal modo são pequenos e insignificantes esses acréscimos de
bens que, ao modo das estrelas em meio aos raios de sol, tais bens, em meio ao esplendor das
virtudes, nem mesmo podem ser discernidos.
72 Mas, assim como se diz com acerto que, para viver bem, pequeno é o peso adicionado
pelas vantagens do corpo, da mesma forma é um grande exagero dizer que não há peso algum; de
fato, os que, numa discussão, argumentam assim me parecem ter esquecido o que eles próprios
haviam erigido como princípios da natureza. Deve-se, portanto, atribuir alguma importância a
essas vantagens, conquanto se compreenda quanta se deve atribuir. É, com efeito, próprio do
filósofo que busca, não tanto o que traz renome, mas o verdadeiro, não tomar por irrelevantes as
coisas que aqueles próprios, ávidos por renome805, admitem ser conformes à natureza, nem ver
tão grande poder na virtude e tão grande autoridade, por assim dizer, na honradez, que as demais
coisas se tornem, não inexistentes, mas tão insignificantes, que pareçam ser inexistentes. Esse é o
discurso de quem não repudia tudo com exceção da virtude e de quem engrandece a própria
virtude por meio dos louvores que cabem a ela; eis, enfim, completa em todas suas partes e
concluída, a exposição do sumo bem.
Outros tentaram se apoderar de pequenas partes dessa concepção e cada qual quis dar a
impressão de avançar seu próprio pensamento. XXV 73 Muitas vezes, Aristóteles e Teofrasto
louvaram o conhecimento das coisas por si próprio de um modo admirável. Seduzido por isso
apenas, Erilo defendeu que o conhecimento é o sumo bem e que nenhuma outra coisa, por si
mesma, deveria ser buscada806. Muito foi dito pelos antigos sobre desprezar as coisas humanas,
olhá-las com desdém; a isso apenas se ateve Aríston: com exceção dos vícios e das virtudes, ele
negou que houvesse alguma coisa que devesse ser evitada ou que devesse ser buscada.807 Os
nossos estabeleceram que entre as coisas que eram segundo a natureza estaria o não-sofrer; isso
Hierônimo disse ser o sumo bem808. Quanto a Califón, porém, e, depois dele, Diodoro, ainda que
um tenha se enamorado do prazer, o outro, da ausência de dor, nem um nem outro foi capaz de se
abster da honradez, essa que recebe de nós os maiores louvores. 74 Além do mais, mesmo os que
se dão ao prazer procuram outras trilhas e à boca têm as virtudes todos os dias, e o prazer, dizem

805
A crítica é claramente dirigida aos estóicos.
806
Cf. II, 35 e nota à passagem.
807
Cf. II, 35 e nota à passagem. Veja-se ainda o início do livro III.
808
Cf. II, 8 e nota à passagem.

597
que tão somente no início ele é buscado e que, em seguida, com o costume, como que uma outra
natureza se produz, pela qual, impelidos, muitas coisas fazem sem que busquem qualquer prazer.
Restam os estóicos. Mas esses, não foi uma ou outra parte que de nós eles tomaram, mas toda a
nossa filosofia transladaram à sua escola; e, assim como os demais ladrões alteram os traços
distintivos das coisas que tomaram, da mesma forma eles, para que se servissem de nossos
pensamentos como se fossem seus, os nomes, que são como que as marcas das coisas, eles
alteraram. Dessa forma, esta nossa doutrina sobra como a única digna dos que se aplicam às artes
liberais, digna dos homens cultos, digna dos homens ilustres, digna dos chefes políticos, digna
dos reis.”
75 Depois que disse tais coisas, deteve-se um pouco e disse: “O que é que há? Não vos
soaram bem as reflexões que fiz? Não agi de acordo com o que me foi concedido?
E eu respondi: “Tu, na verdade, Pisão, como em outras freqüentes ocasiões, também hoje de
tal modo mostrou conhecer essas coisas, que, se nos ocorresse mais freqüentemente te ter à nossa
disposição, não julgaria ser tão necessário pedir auxílio aos gregos. E tanto mais aprovei o que
disseste, por ter lembrado que Estáseas809, o napolitano, aquele que foi teu mestre, um notável
peripatético – não há dúvida – costumava dizer essas coisas de modo um pouco diferente,
concordando com aqueles que muita importância conferiam à fortuna, favorável ou adversa,
muita importância aos bens e aos males do corpo”.
“É assim como dizes”, respondeu, “mas tais coisas Antíoco, nosso amigo íntimo, diz muito
melhor e com muito mais vigor do que as dizia Estáseas. Quanto ao mais, eu não quero saber a
que, daquilo que eu falei, tu deste a tua aprovação, mas a que o nosso caro Cícero, que, como
discípulo, de ti desejo tomar.”
XXVI 76 Então Lúcio: “Quanto a mim, sem dúvida que aprovei tuas palavras, do mesmo
modo, penso, que meu primo.”
Então, disse-me Pisão: “E então, concedes isso ao jovem? Ou preferes que aprenda coisas
que, depois de tê-las perfeitamente aprendido, ele não tenha nenhum conhecimento?”
“Eu, de minha parte, dou-lhe permissão. Mas não te lembras de que me é lícito aprovar
essas coisas que foram ditas por ti? Pois quem pode não aprovar aquilo que lhe pareça provável?”
“Na verdade”, disse ele, “porventura pode alguém aprovar aquilo que não tem como
percebido, como compreendido, como conhecido?

809
Sobre esse filósofo, ver seção 8.

598
“Não é essa”, disse eu, “Pisão, a grande dissensão. Pois não é por nenhuma outra razão que
eu considero que nada pode ser percebido senão porque a capacidade de percepção é de tal modo
definida pelos estóicos, que eles negam que algo possa ser percebido a não ser que o que é
verdadeiro não possa ser tal qual o que é falso. Dessa forma, é com eles que há dissensão, com os
peripatéticos, absolutamente nenhuma. Mas deixemos essa questão de lado, pois há nela uma
discussão bem longa e bastante litigiosa. 77 Houve algo de que tu trataste de um modo – é o que
me parece – muito apressado: que todos os sábios são sempre felizes. Teu discurso passou sobre
isso voando, não sei de que modo. Ora, se isso não for demonstrado, receio que aquilo que
Teofrasto disse sobre a fortuna, sobre a dor, sobre o tormento do corpo (coisas que eu julgava que
não poderiam se conjugar com a vida feliz) seja verdadeiro.810 De fato, há aqui uma grave
contradição: que o mesmo homem seja feliz e sufocado por muitos males. De que modo tais
coisas poderiam se harmonizar, eu não entendo claramente.
“Qual das duas alternativas, então, não te agradam”, disse ele, “que da virtude seja tão
grande a força, que, para a vida feliz, ela bastaria a si própria, ou, pelo contrário, se é isto que
aprovas, negas que seja possível que aqueles que estejam de posse da virtude sejam felizes,
mesmo que afetados por alguns males?”
“Quanto a mim”, eu respondi, “defendo que há na virtude a maior força possível; mas, quão
grande seja, tratemos em outra ocasião; agora, tão somente, se pode ela ser tão grande, caso algo,
além da virtude, seja contado entre os bens”.
78 “Ora”, disse ele, “se aos estóicos tu concedes que a virtude, sozinha, caso esteja
presente, produz a vida feliz, concedes também aos peripatéticos. Pois aquelas coisas que eles
não ousam chamar males e que, no entanto, concedem serem acerbas e desvantajosas, rejeitáveis,
avessas à natureza, nós as denominamos males, mas exíguos e quase insignificantes. Sendo
assim, se pode ser feliz quem se encontra em meio a coisas acerbas e rejeitáveis, pode também
quem está em meio a pequenos males.
E eu disse: “Pisão, se há alguém que de modo agudo costuma ver, nas causas, qual seja o
ponto de que se trata, és tu, sem dúvida, esse alguém. Por isso, fica atento, eu te peço. Pois até
aqui, talvez por falha minha, o que eu busco saber tu não percebes.”
“Estou bem aqui”, disse ele, “esperando tua resposta àquilo que eu perguntava.”

810
A respeito da afirmação de Teofrasto, cf. seção 12.

599
XXVII 79 “Vou te responder”, eu disse, “que eu não busco saber, neste momento, o que a
virtude é capaz de produzir, mas o que se diz de modo coerente e o que comporta em si um
desacordo.
“Como assim?”, disse ele.
“Porque, uma vez que Zenão”, eu disse, “em tom grandioso, como se tomado a um oráculo,
profere isto: ‘A virtude basta a si própria para uma vida feliz’. ‘Por quê?’ Diria alguém; ele
responde: ‘Porque, com exceção do que é honroso, não há nenhum outro bem’. Não busco saber
agora se isso é verdadeiro; o que digo é que as coisas que ele diz se encadeiam perfeitamente. 80
Poderia dizer o mesmo Epicuro: ‘o sábio é sempre feliz’ (o que, de fato, ele às vezes costuma
dizer com vão fervor); esse, ainda que seja acabrunhado pelas dores mais intensas, Epicuro
afirma que ele diria: ‘Que delícia! Nada disso me aflige!’. Eu não me oporia ao homem, por ele
ter em tão alta conta a natureza do bem, mas insistirei nisto: que ele não percebe o que ele próprio
deveria dizer, uma vez que disse que a dor é o sumo mal. O mesmo discurso, agora, eu apresento
contra ti. Todas as coisas que tu denominas tanto bens quanto males são as mesmas coisas,
exatamente, que denominam aqueles que jamais viram, como se diz, um filósofo sequer pintado
em uma tela; a saúde, o vigor, o porte do corpo, a beleza, a integridade, até mesmo das unhas:
todos bens; a deformidade, a doença, a deficiência: males. 81 Já quanto às coisas externas, tu
foste, sem dúvida, comedido. Mas uma vez que aquelas coisas que acabo de citar são bens do
corpo, aquilo que ajuda a produzi-las tu certamente contarás entre os bens: os amigos, os filhos,
os próximos, as riquezas, as honras, o poder. Contra isso, fica atento, eu não digo nada; <digo
isto>: se são males essas coisas às quais pode estar sujeito o sábio, ser sábio não é suficiente para
viver feliz.”
“Não. Na verdade”, disse ele, “para viver a vida mais feliz possível, não basta, para a vida
feliz, porém, é o suficiente.”
“Eu percebi”, disse eu, “que tu argumentaste desse modo ainda há pouco, e sei que nosso
caro Antíoco assim costumava se expressar; mas o que é menos digno de aprovação do que dizer
que alguém é feliz, mas não suficientemente feliz? Ora, se àquilo que é suficiente acrescentou-se
o que quer que seja, torna-se excessivo; e ninguém é excessivamente feliz; logo, ninguém é mais
feliz do que alguém que é feliz.
82 “Então”, disse ele, “para ti, Q. Metelo, que viu três filhos cônsules e, dentre esses, um
ainda censor e condecorado com um triunfo, um quarto, por sua vez, pretor, e que os deixou em

600
segurança e as três filhas, casadas, tendo sido ele próprio cônsul, censor, áugure e condecorado
com um triunfo – digamos que tenha sido um sábio – por acaso não foi mais feliz do que aquele –
digamos que tenha sido igualmente um sábio – que, em poder dos inimigos, foi morto pela
privação de sono e de alimentos, o célebre Régulo?”
XXVIII 83 “Por que perguntas isso a mim?” Disse eu. “Pergunta aos estóicos.”
“O que achas, então”, disse ele, “que eles responderiam?”
“Que Metelo não é absolutamente mais feliz do que Régulo.”
“É desse ponto, portanto”, disse ele, que se deve começar.”
“No entanto”, eu disse, “nós nos afastamos do nosso propósito. Pois eu não busco saber o
que é verdadeiro no que cada um diz, mas o que cada um deve dizer. Quisessem os deuses, de
fato, que os estóicos dissessem que um homem é mais feliz do que outro! Logo tu verias cair por
terra seu sistema.811 Pois, uma vez que na virtude apenas e no próprio honroso se faça consistir o
bem, e uma vez que nem a virtude, como lhes parece bem, nem o honroso se tornem maiores, e
que seja esse o único bem e quem o possua seja necessariamente feliz, já que não é possível que
se aumente aquilo em que unicamente está fundamentada a felicidade, como pode alguém ser
mais feliz do que um outro? Tu vês como essas coisas estão em consonância? E, por Hércules
(devo, de fato, confessar o que penso) é admirável, no sistema deles, o enlace que é tecido entre
as coisas. Os fins correspondem aos princípios, o que está no meio, a ambos; todas as coisas, a
todas as coisas; o que vem como conseqüência, o que é contraditório eles vêem. Como em
geometria, se tiveres admitido os princípios, admite-se tudo. Concede que nada é bom, a não ser
o que for honroso: deve-se conceder que na virtude está fundamentada a vida feliz. Observa, por
outro lado, de modo inverso: admitido isto, deve-se admitir aquilo. Para os vossos, a coisa é
diferente. 84 ‘Há três gêneros de bens’: Corre fácil o discurso, como em declive. Chega ao fim,
detém-se atravancado; pois deseja dizer que, para a vida feliz, nada pode faltar ao sábio. Discurso
honroso, discurso de um Sócrates, de um Platão mesmo. ‘Eu ouso pronunciá-lo’, ele diz. Tu não
podes, a não ser que descosas o que havia tecido. Se a pobreza é um mal, sendo mendicante,
ninguém pode ser feliz, por mais que seja sábio. Quanto a Zenão, ousou dizer não somente que
esse seria feliz, mas ainda rico. Sentir dor é um mal: quem é levado à cruz não pode ser feliz. Um
bem os filhos: infeliz perdê-los; um bem a pátria: infeliz o exílio; um bem a saúde, infeliz a

811
Vimos, no diálogo anterior, que os estóicos não admitem graus diferentes no bem e na felicidade (cf. III, 34 e III,
42-48).

601
doença; um bem a integridade do corpo: infeliz a deficiência; um bem a vista incólume: infeliz a
cegueira. Coisas que, se ele pode, por meio de consolação, torná-las mais leves uma a uma, todas
juntas, de que modo ele poderá lhes resistir? Pois bem, que um mesmo homem seja cego,
deficiente, tomado por gravíssima doença, exilado, privado de filhos, indigente, seja ele torturado
ao cavalete812: a esse, como tu chamas, ó Zenão? ‘Feliz’, ele diz. E ainda o mais feliz?
‘Certamente’, ele dirá, ‘uma vez que eu demonstrei que a felicidade não tem mais graus do que a
virtude, na qual consiste justamente a felicidade’. 85 Para ti, Pisão, é inacreditável que seja essa a
maior felicidade possível? Pois muito bem: e naquilo que defendes, pode-se acreditar? Pois se tu
me fizeres vir diante do povo, nunca provarás que é feliz aquele que estiver em tal condição; se
diante de homens prudentes, talvez eles duvidem, ou parte deles, de que tanta força haja na
virtude, que os que estejam providos dela, ainda que no touro de Faláride813, sejam felizes;
quanto à outra parte, não duvidarão de que os estóicos dizem coisas que concordam consigo
mesmas e vós, coisas que se contradizem.”
“Agrada-te, então”, disse ele, “aquele livro de Teofrasto sobre a vida feliz?”
“Mas nós nos afastamos de nosso propósito; entretanto, para não irmos ainda mais longe,
Pisão, caso tais coisas sejam males, agrada-me de todo.” Eu disse.
86 “Por acaso, então”, disse ele, “não te parecem males?”
“A pergunta que fazes”, eu disse, “conforme eu lhe responda ‘sim’, ou ‘não’, tu terás de te
voltar para um ou para outro lado.”
“Ora, mas como assim?” Disse ele.
“Porque, se são males, aquele que se encontrar em meio a elas, não será feliz; se não são
males, cai por terra todo o sistema dos peripatéticos.”
E ele, sorrindo, disse: “Vejo o que pretendes; receias que eu tome o teu discípulo.”
“Mas que tu o leves, se ele te seguir; tudo bem. Pois ele estará comigo, se contigo estiver.”
XXIX “Ouve, portanto, Lúcio”, disse ele, “pois é a ti que devo dirigir meu discurso. O
princípio fundamental da filosofia, conforme afirma Teofrasto, consiste em preparar a vida feliz,
pois, pelo desejo de viver feliz, todos nós somos inflamados. Nisso concordamos eu e teu primo.
87 Por esse motivo, devemos observar se o sistema dos filósofos é capaz de nos proporcionar
isso. Certamente ele promete. Pois, se não o fizesse, por que Platão teria viajado ao Egito, para

812
Veja-se referência a este suplício em III, 42.
813
Trata-se de um suplício utilizado por Faláride, tirano de Agrigento, personagem já citado em IV, 64.

602
que de sacerdotes bárbaros se instruísse sobre os números e os eventos celestes? Por que, depois,
a Tarento, em visita a Arquitas? Por que a Locros, em visita aos demais pitagóricos, Equécrates,
Timeu, Aríon, para que, depois de ter representado Sócrates, ajuntasse o ensinamento dos
pitagóricos e aprendesse aquilo que Sócrates repudiava? Por que o próprio Pitágoras não só fez
um giro pelo Egito, como foi ter com os magos dos persas? Por que tão vastas regiões bárbaras
ele percorreu a pé, tantos mares atravessou? Por que fez o mesmo Demócrito? Que (se é
verdadeiro ou falso não buscamos saber), diz-se, privou-se dos olhos; de certo a fim de que a
alma se distraísse o mínimo possível dos pensamentos, ele deixou para trás os bens paternos,
campos abandonou incultos, buscando que outra coisa senão a vida feliz? A qual, se a fazia
consistir também no conhecimento das coisas, entretanto, a partir dessa investigação da natureza,
queria fazer com que fosse boa a alma. Pois o sumo bem ele chama eujqumiva e, muitas vezes,
ajqambiva, isto é: a alma livre do terror. 88 Mas tais coisas, se bem que brilhantemente ditas, não
chegaram a ser, entretanto, bem acabadas, pois, ao menos sobre a virtude, ele disse poucas coisas,
e nem mesmo essas de modo desembaraçado. Depois, com efeito, aqui nesta cidade, tais assuntos
começaram a ser investigados primeiramente por Sócrates; em seguida, foram trazidos para este
local814, e não houve dúvida em fazer repousar na virtude toda a esperança de viver bem, bem
como, ainda, de viver feliz. Tendo Zenão aprendido isso dos nossos, fez assim como se costuma
alegar nas ações do tribunal: ‘sobre a mesma matéria, de um outro modo’. É algo que tu agora
aprovas nele. É fácil de notar que, alterados os termos que designam as coisas, ele escapou à
acusação de incoerência; quanto a nós, não podemos escapar! Ele nega que a vida de Metelo
tenha sido mais feliz do que a de Régulo, entretanto, diz que seria preferível; e não mais
desejável, mas mais digna de ser acolhida; e, se houvesse opção, a de Metelo deveria ser
escolhida, a de Régulo, rejeitada; quanto a mim, aquela que ele chama preferível e mais elegível,
eu a chamo mais feliz, e a essa vida e não atribuo um mínimo peso a mais que os estóicos. 89
Que diferença há, senão que eu chame coisas conhecidas com palavras conhecidas e eles
busquem nomes novos para dizer o mesmo? Assim, do mesmo modo que no senado sempre há
alguém que solicite um intérprete, a esses nós devemos ouvir em companhia de um intérprete. Eu
chamo ‘bem’ o que quer que seja segundo a natureza, o que lhe é contrário: mal; e não sou
apenas eu, mas tu também, Crisipo, no fórum, em casa; na escola tu deixas de fazê-lo. Ora, por
quê? Julgas que de um modo devem falar os homens, de outro os filósofos? A importância dada a

814
A Academia.

603
cada coisa é diferente entre os cultos e os incultos, mas, uma vez que há consenso, entre os
cultos, sobre que importância tenha a coisa e o que ela seja – se fossem simples homens, falariam
de modo usual – que forjem eles as palavras segundo suas vontades, conquanto não mudem as
coisas.
XXX 90 Mas passo à acusação de incoerência, para que não digas, mais vezes ainda, que eu
me afasto do assunto. Essa incoerência, tu a fazes residir nas palavras, quanto a mim, julgava que
ela residia nas coisas. Nisso os estóicos podem nos dar uma excelente ajuda, pois, se houver uma
percepção suficiente de que tão grande é a força da virtude, que, se todas as coisas lhe forem
contrapostas, nem mesmo poderão ser vistas, quando todas aquelas coisas que eles dizem que são
certamente vantagens e dignas de ser acolhidas, de ser escolhidas, de ser preferidas (que eles
definem assim: que são dignas de uma estima suficientemente grande), quando eu, portanto, essas
coisas, chamadas por meio de tantos nomes pelos estóicos, em parte nomes novos e forjados, tais
quais ‘colocadas à frente’ e ‘colocadas atrás’, em parte nomes que significam a mesma coisa
(pois que diferença há, de fato, entre buscar e escolher? A mim, ao menos, parece mesmo mais
extremado aquilo que se escolhe e a que se aplica uma seleção), ora, quando todas essas coisas eu
as chamar bens, importa apenas quão importante eu as diga ser, quando as considerar dignas de
serem buscadas, com que intensidade devam ser. Mas, por outro lado, se eu não as considerar
mais dignas de serem desejadas do que tu, de tua parte, dignas de serem escolhidas, nem
considerar dignas de maior estima aquelas coisas que eu chamo bens e que tu chamas ‘colocadas
à frente’, é forçoso que todas essas coisas fiquem obscurecidas e não se mostrem à vista e que,
assim como aos raios do sol, fiquem sujeitas aos da virtude. 91 Contudo, a vida em que há algum
mal não pode ser uma vida feliz. Nem mesmo a colheita do trigo, portanto, de generosas e
copiosas espigas, é próspera se vires traço de joio em qualquer parte, nem uma negociação é
proveitosa, se em meio aos mais elevados lucros, ela contrair um pequeno prejuízo. E isso, que se
estende a tudo mais, é diferente com relação à vida? Também não a julgarás, em sua totalidade, a
partir da maior parte? Ou resta dúvida de que a virtude de tal modo obtém a maior parte no que
diz respeito aos assuntos humanos, que deixa encoberto o restante? Eu ousarei, portanto, chamar
bens outras coisas que são segundo a natureza e não despojá-las de seu antigo nome, de
preferência a ir buscar outro nome; por outro lado, ousarei colocar no outro prato da balança, por
assim dizer, a grandiosidade da virtude. 92 A terra, crê em mim, e os mares esse prato superará
em peso. É sempre, com efeito, a partir daquilo que contém a maior parte e que se estende de

604
modo mais amplo que uma coisa é designada em sua totalidade. Dizemos de alguém que ele vive
sorridente; então, se uma vez ele veio a estar mais triste, perdeu-se aquela vida risonha? Mas isso
não sucedeu no caso daquele M. Crasso, que Lucílio afirma ter rido uma só vez na vida, de modo
que, por esse motivo, deixasse de ser chamado ajgevlasto", como diz o mesmo autor. Policrates,
de Samos, era chamado afortunado. Nada lhe acontecia do que não quisesse, a não ser o fato de
ter lançado no mar o anel de que gostava. Portanto, desafortunado, por conta de um só pesar, e
afortunado outra vez, quando esse próprio anel, nas entranhas de um peixe, foi encontrado? Ora,
ele, se não foi sábio (o que é certo, já que tirano), jamais foi feliz; se sábio, não foi infeliz, nem
mesmo no momento em que, por Oretes, general de Dario, foi alçado à cruz. ‘Mas foi afligido por
muitos males’. Quem o nega? Mas tais males eram encobertos pela grandeza da virtude.
XXXI 93 Nem mesmo isto tu concedes aos peripatéticos: que eles digam que a vida de
todos os homens bons, isto é, dos sábios, daqueles que estão adornados por todas as virtudes,
sempre tem, em todas as suas partes, mais bens do que males? Quem diz isso? Os estóicos, sem
dúvida...815. De modo algum; mas precisamente aqueles que tudo medem pelo prazer e pela dor,
não declaram, para todos ouvirem, que ao sábio sempre advém mais aquilo que ele deseja do que
o que ele não deseja? Uma vez, portanto, que tanto caso façam da virtude aqueles que admitem
que, com vistas à virtude, caso ela não produzisse prazer, nem mesmo a mão moveriam, o que
devemos fazer nós, que, por menor que seja a excelência da alma, dizemos que ela vem à frente
de todos os bens do corpo, de modo que esses bens chegam mesmo a desaparecer de nossas
vistas? Pois quem é que ousaria dizer que, se fosse possível, o sábio renunciaria para sempre à
virtude a fim de se livrar de toda dor? Quem dentre os nossos diria (aos nossos não envergonha
chamar bens aquelas coisas que os estóicos denominam ásperas) que é melhor realizar alguma
ação torpe acompanhada de prazer do que uma ação honrosa acompanhada de dor? 94 Quanto a
nós, julgamos deplorável o fato de Dioniso, o de Heracléia, ter renegado os estóicos por causa de
dor nos olhos. Ora, como se de Zenão tivesse aprendido isto: não sentir dor, quando sentia! Já
isto ele tinha ouvido, e, todavia, não havia aprendido: que não era um mal o que não fosse torpe,
nem o que fosse suportável ao homem. Se ele tivesse sido peripatético, teria se guardado dentro
da doutrina, eu creio, pois que eles dizem que a dor é um mal; a respeito da bravura com que se
deve suportar sua severidade, no entanto, dão os mesmos preceitos que os estóicos. E mesmo o

815
Pisão se expressa em tom nitidamente irônico.

605
teu caro Arcésilas816, ainda que tenha sido muito pertinaz nas discussões, foi, contudo, um dos
nossos; pois era discípulo de Pólemon. Esse, uma vez que ardesse com as dores da gota, disse a
Cármides, o epicureu,817 que era muito seu amigo e ia embora entristecido depois de lhe fazer
uma visita: ‘Fica, por favor, meu caro Cármides; nada que vem dali chega até aqui’ – e mostrou
os pés e o peito. E todavia, ele preferiria não sentir dor.
XXXII 95 É esse, portanto, o nosso sistema, que a ti parece incoerente, uma vez que, por
que eu defenda um certo caráter celeste e divino da virtude e uma excelência tão grande, que,
onde houver virtude e ações grandiosas e, realizadas com virtude, dignas de extremo louvor, lá
não poderia haver infelicidade e provações, mas poderia haver fadigas, poderia haver pesares, eu
não hesito em dizer que todos os sábios serão sempre felizes; entretanto, pode ocorrer que seja
um mais feliz do que outro.”
“Ora, mas é esse ponto, Pisão, que tu deves tornar mais firme outra e outra vez”, disse eu;
“caso tu consigas sustentá-lo, não apenas a meu caro Cícero, mas mesmo a mim próprio tu
poderás levar para o teu lado”.
96 Então, Quinto: “A mim, ao menos”, disse, “essa posição parece suficientemente firme e
eu me alegro de que essa filosofia, cujos instrumentos eu tinha em maior estima do que as
aquisições das demais (de tal modo ela me parecia rica, que nela eu poderia ir buscar tudo aquilo
de que em nossos estudos eu poderia ter ambição), alegro-me, portanto, de que ela tenha se
revelado ainda mais aguda que as outras, coisa que alguns diziam que lhe faltava.”
“Não mais do que a nossa”, disse, brincando, Pompônio; ‘mas, por Hércules, agradou-me
muito o teu discurso. Pois coisas que eu julgava que não podiam ser expressas em latim, tu as
exprimiste por meio de palavras apropriadas e de modo não menos claro do que são expressas em
grego. Mas já é hora de irmos, se vos parece bem; e, por certo, diretamente para minha casa.”
Depois que ele disse isso e já que julgávamos ter discutido o bastante, para dentro da cidade
murada, para a casa de Pompônio, dirigimo-nos todos.

816
Cf. II, 2.
817
Filósofo desconhecido.

606
Notas ao livro V

I, 1 Porta Dupla. Trata-se do divpulon, um dos portões da cidade de Atenas. Esse portão, em duas
folhas, era também chamado de “Portas Triásias” (Qriavsiai puvlai), isto é, portas do demo de Tria.
Situava-se na parte noroeste da cidade de Atenas, no bairro conhecido como Cerâmico, que tinha uma de
suas porções aquém da porta e outra, além (cf. Plutarco, Péricles, 30). Saindo por essa porta e tomando à
esquerda, chegava-se à Academia. O demo de colono (que será mencionado adiante), então, poderia ser
visto de frente. Atravessado o portão, as personagens, segundo a descrição do autor, teriam de percorrer
cerca de setecentos e cinqüenta metros até alcançarem a Academia (cf. Giambelli, ad locum). Sobre a
Academia, tratava-se de um sítio extremamente ameno, próximo ao Cefiso, adornado por jardins e
dedicado, originalmente, ao culto do herói Academo (!Akavdhmo"). Platão adquiriu o lugar e ali
estabeleceu um local de ensino. A propriedade devia contar com palestras, banhos, além de biblioteca,
jardins destinados a caminhadas e discussões, etc. A influência que a cultura filosófica ateniense exerceu
sobre romanos como o autor do De finibus pode ser ilustrada por meio de um dado bastante interessante.
Em sua uilla de Túsculo, uma das preferidas de Cícero, porque destinada em grande parte ao estudo, o
pensador romano fez construir um ginásio a que deu o nome de Academia (cf. Tusculanae, II, 9; III, 7; IV,
7; De diuinatione, I, 8).
I, 2 Refiro-me à cúria Hostília... A curia Hostilia toma seu nome do rei Tulo Hostílio, que os
romanos consideravam o terceiro a ter governado a cidade. Recordemos que, situada no forum, a curia era
o edifício no qual se reunia o senado romano. A menção a uma nova cúria diz respeito, como argumenta
acertadamente Giambelli (ad locum), à ampliação e à nova decoração promovidas por Lúcio Sila por volta
do ano 80 a.C., isto é, bem pouco tempo antes da data em que se passa a cena do diálogo. Evocar um
exemplo romano em meio a uma exaltação da cultura grega nos parece bastante significativo. Além de
ilustrar o argumento avançado por Pisão, que afirma que a velha cúria, embora menor, possuía uma
grandeza diferente, uma vez que contava com a memória dos grandes homens que nela haviam deliberado
em favor da res publica, o exemplo da cúria sublinha fortemente o caráter dessas personagens que,
embora em uma temporada de estudos na Grécia, não esquecem de sua identidade e de seus valores
pátrios.
Meu avô: referência provável a Lúcio Pisão denominado Frugi, compositor de Anais (cf. II, 90 e
nossa nota à passagem).
A partir deles provenha a arte da memória. Alusão à anedota a respeito de Simônides de que já se
tratou em II, 104. Veja-se nossa nota à passagem.
I, 3 Nos jardins de Epicuro: o famoso jardim da casa que Epicuro adquiriu em Atenas por volta de
307 a.C. (cf. Marinone, ad locum). Nessa propriedade, Epicuro vivia com seus discípulos e amigos. Por

607
conta do khvpo", a escola ficou conhecida como a escola do Jardim e os seguidores de Epicuro como
oiJ ajpo; tw'n khvpwn, ou seja, “aqueles que vêm dos Jardins”.
‘Lembro-me dos vivos’. O mesmo provérbio aparece no Satyricon de Petrônio, sob a forma uiuorum
meminerimus (43 e 75), em contexto em que se pretende dissuadir personagens da inutilidade da tristeza
excessiva com que se pensa nos mortos.
Os da nossa escola... Se, como vimos no diálogo anterior, familia pode designar uma escola
filosófica, foi assim que intepretamos familiares (cf. IV, 45, 49 etc.).
II, 4 Há de um dia receber um tal cognome. Numa passagem em que quase vemos o sorriso do
autor, a personagem de Cícero como que profetiza a alcunha que, anos mais tarde, viria a ganhar
Pompônio, em 65 a.C., depois de ter vivido vinte anos em Atenas (cf. Woolf, ad locum). Ou seja, na data
da cena, Pompônio já residida em Atenas há cerca de cinco anos.
Metaponto... Pitágoras: cidade da Lucânia, região do sul da península italiana, situada no golfo de
Tarento. Natural da ilha de Samos, Pitágoras fundou na Itália, em Crotona, sua escola. Viria a morrer,
entretanto, em Metaponto.
Sala de reunião: vejamos o que Vitrúvio diz da exhedra quando fala da construção de palaestrarum
aedificationes: constituantur autem in tribus porticibus exhedrae spatiosae, habentes sedes, in quibus
philosophi, rhetores reliquique qui studiis delectantur, sedentes disputare possint, que poderíamos verter
assim: “ao longo de três pórticos, porém, estejam erigidas as vastas exhedras, contendo cadeiras nas quais
os filósofos, os retores e os demais que têm prazer nos estudos possam discutir sentados” (V, 11, 2). Ao
longo de três das faces que encerram o espaço interno da palaestra que nos descreve Vitrúvio (cf. Perrot,
nota e ilustração ad locum), encontrar-se-iam as salas em que se discutiria filosofia e outras matérias.
Há não muito tempo... Carnéades... Carnéades estava morto há apenas cinqüenta anos: sua morte
ocorrera em 129 a.C. Com a expressão parentética est enim nota imago, a personagem parece querer dizer
que conhecia a aparência física do filósofo por meio, provavelmente, de representações artísticas.
II, 5 Demóstenes e Esquines... Demóstenes (384-322 a.C.) e Esquines (390-315 a.C.) foram
importantes personagens políticas da Atenas do século IV. O mais célebre encontro entre os dois oradores
foi, talvez, o que se deu em 330 a.C., quando Demóstenes se defendeu contra Esquines, que o havia
declarado indigno da coroa de ouro que lhe fora ofertada pelos atenienses por conta dos benefícios
públicos por ele prestados. Cícero intentou uma tradução dos discursos pronunciados por Demóstenes
nessa ocasião, mas apenas a introdução foi preservada, na obra que conhecemos sob o título de De optimo
genere oratorum.
Demóstenes costumava declamar, a fim... Outras fontes também reportam os exercícios a que se
dedicou Demóstenes a fim de vencer suas debilidades físicas (cf. Plutarco, Demóstenes, 4, 6 e Quintiliano,
X, 3, 30).

608
II, 6 Tal paixão, se ela visa a imitar os mais excelentes homens... A fala de Pisão é bastante
interessante para que possamos compreender uma das facetas da história no pensamento ciceroniano.
Embora não se trate de juízo apresentado pelo próprio autor, é de se salientar a função moral que tem essa
disciplina, que não pode ser encarada, segundo a concepção da personagem, como um estudo meramente
especulativo. De tom semelhante é o louvor da história que faz Antônio no livro II do De oratore (cf. II,
36).
Como tu percebes... Vt uides faz referência a currentem. Segundo Giambelli (ad locum), a expressão
hortari aliquem currentem é proverbial (cf. Ad Atticum, II, 14, 2) e significa exortar alguém que já avança
de moto próprio.
Mas tu ouviste, há pouco, a respeito de Carnéades... Interessante esta afirmação com que a
personagem de Lúcio marca sua autonomia intelectual. Apesar de jovem e de estar seguindo cursos
ministrados por Antíoco, a personagem revela sua propensão em assentir no pensamento cético (ou
probabilista) de Carnéades. Não podemos deixar de notar que parece haver aqui uma espécie de aceno, da
parte do autor, para algo que ele professa a respeito de sua própria filiação filosófica. Embora tenha
escutado Antíoco, Cícero (como ele próprio se representa no De finibus e na Academica) sempre preferiu
seguir o pensamento do antecessor do ascalonita à frente da Academia, Fílon de Larissa, que se manteve,
bem mais do que Antíoco, próximo do probabilismo de Carnéades. Vale a pena confrontar a postura de
Lúcio com aquela do interlocutor do primeiro livro das Tusculanas, que admite que, enquanto lê obras
como o Fédon de Platão, por exemplo, se vê persuadido pelo que defende o autor, algo que deixa de
acontecer tão logo ele depõe o livro (I, 24).
III, 7 Assim tão facilmente... Juntamente com sic abire subentende-se algo como tam leuiter, ou tam
inulte, ou tam impune, conforme pensa Giambelli (ad locum). Ou seja, “que a coisa se resolva assim tão
facilmente”, “sem qualquer controvérsia”.
Crantor: único dos autores citados que não foi ainda mencionado no De finibus, Crantor era natural
da Sicília. Consta que foi discípulo de Xenócrates. Segundo notícia de Plínio, o antigo (Naturalis historia,
praef. 22), foi uma obra desse filósofo que teria inspirado a Consolatio que Cícero compusera após a
morte de sua filha.
Em primeiro lugar... primeiro... Eevidentemente, não em sentido cronológico, o que seria um
absurdo, mas do ponto de vista do valor. Em uma acepção semelhante, assim será chamado o líder político
em Roma a partir da época de Ausgusto: princeps: o primeiro cidadão.
Deles surgiram os oradores... Interessante concepção expressa pela personagem de Pisão, que
concorda com o que Cícero expõe, por exemplo, no Orator, a saber, que sem filosofia não se forma
orador, ainda que se possam formar homens versados no discurso por experiência [diserti]. Com relação a
si próprio, o pensador romano afirma que deve mais aos pátios da Academia do que às escolas dos retores

609
(cf. Orator, 12). Além disso, a afirmação guarda coerência com o registro que Cícero deixa de Pisão no
Brutus, como um orador cuja eloqüência, ainda que devida a dons naturais, devia seu maior
desenvolvimento ao exercício, à técnica (cf. Brutus, 236).
III, 8 Estáseas, o napolitano: trata-se de um filósofo peripatético citado também em De oratore I,
104. Também nessa obra de retórica, afirma-se que Estáseas viveu na casa de Pisão.
IV, 9 Quanto à organização, a doutrina deles... é tríplice... A divisão da filosofia nessas três partes
já ocorreu em outras exposições do De finibus e ocorre também nas demais obras de Cícero (cf., por
exemplo, Acad. I, 1). A mesma ordem na divisão é observada em De finibus I, 17, 25, mas é alterada, por
exemplo, em IV, 6-15, onde a física (explicatio naturae, cf. IV, 11) é colocada entre a dialética (cf. IV, 8)
e a moral (IV, 14-15).
E no céu e no mar e na terra... Difícil traduzir o elemento poético que há na expressão, que se dá
pela ausência da preposição in. Optamos pelo polissíndeto, que, em português, é, mais comumente, do
domínio da elocução poética.
De modo a concluírem... Giambelli, ad locum, diz: “cioè: locuti essent ita ut”. De fato, o ut parece
ter valor consecutivo, mas não é raro em Cícero que não haja, na oração à qual a cláusula com ut está
subordinada, qualquer partícula modal.
Argumentação provável... raciocínio necessário: no De inuentione, esta é vista como a partição
fundamental entre as formas de argumentação: omnis autem argumentatio... aut probabilis aut necessaria
debebit esse (...) necessarie demonstrantur ea quae aliter ac dicuntur nec fieri nec probari possunt (I, 44).
E, mais adiante: probabile autem est id quod fere solet fieri aut quod in opinione positum est aut quod
habet in se ad haec quandam similitudinem, siue id falsum est siue uerum (I, 45). “Toda argumentação
deverá ser ou provável ou necessária (...) demonstra-se de modo necessário aquilo que não pode ocorrer e
que nem se pode provar de modo diferente do que se diz”; “é provável, por outro lado, aquilo que costuma
ocorrer geralmente ou o que repousa sobre a opinião ou o que possui em si certa semelhança com relação
a essas coisas, quer seja falso, quer seja verdadeiro”. O mesmo tipo de distinção nós podemos encontrar
em Aristóteles, no capítulo primeiro do primeiro livro da Retórica e no primeiro capítulo de livro I dos
Tópicos. Cf. ainda Platão, Górgias 454b-455a e Sofista 265d.
IV, 10 Das causas e razões: poderíamos entender a expressão como uma hendíade, que
desenvolveríamos assim: “as causas racionais”. Entretanto, há quem interprete o termo rationes não como
ligado a causas, ou seja, às origens dos vegetais, mas a uma explicação de seu funcionamento (cf.
Marinone: “sulla natura delle piante e sulle cause e le proprietà ...”). A primeira interpretação parece-nos,
contudo, mais pertinente, visto que a expressão parece mesmo aludir ao título de uma obra de Teofrasto:
ai[tia futikav.

610
O exercício de, a respeito de cada coisa, discursar em favor de ambas as partes... Aparentemente, a
autoria do método de in utramque partem dicere é atribuída a mais de um autor nas obras de Cícero. Em
algumas passagens, diz-se que o procedimento foi inventado por Arcésilas; em outras, por Platão (ou até
pelo próprio Sócrates). Nos Livros Acadêmicos, por exemplo, podemos ler: hanc Academiam nouam
apellant, quae mihi uetus uidetur, si quidem Platonem ex illa uetere numeramus, cuius in libris nihil
affirmatur et in utramque partem multa disseruntur, de omnibus quaeritur, nihil certi dicitur; ou seja:
“Esta Academia chamam nova, a qual me parece antiga, se ao menos Platão contarmos entre os daquela
antiga, em cujos livros nada é afirmado, e a favor de uma e de outra parte muito se argumenta, a respeito
de tudo se investiga, nada de certo é dito”. Por fim, em determinadas passagens, a autoria é conferida a
Aristóteles. Talvez essa confusão seja fruto do pensamento de Antíoco, que é bastante recorrente nos
textos de Cícero, que busca estabelecer uma comunidade teórica entre o Liceu e a Academia. No De
finibus, entretanto, a confusão parece ser menor, uma vez que não se atribui a Aristóteles a invenção do
procedimento, mas (segundo julgamos) tão somente o estabelecimento do in utramque partem dicere
como um exercício filosófico, representado pela disputa dialética realizada entre os estudantes no Liceu.
Esse exercício, como podemos ver no texto da Retórica de Aristóteles (I, 1), tinha ainda uma aplicação na
arte da composição de discursos públicos, uma vez que possibilitava uma antecipação dos argumentos que
poderiam ser utilizados pelo adversário. De modo significativo, a retórica é considerada nessa obra a
“contraparte” da dialética. Vejamos como a argumentação desenvolvida aqui está muito próxima do que
se afirma em uma passagem das Tusculanas: Itaque mihi semper Peripateticorum Academiaeque
consuetudo de omnibus rebus in contrarias partis disserendi non ob eam causam solum placuit, quod
aliter non posset, quid in quaque re ueri simile esset, inueniri, sed etiam quod esset ea maxuma dicendi
exercitatio. qua princeps usus est Aristoteles, deinde eum qui secuti sunt. nostra autem memoria Philo,
quem nos frequenter audiuimus, instituit alio tempore rhetorum praecepta tradere, alio philosophorum,
que poderíamos traduzir assim: “Assim, sempre me agradou o costume dos peripatéticos e da Academia
de, a respeito de todas as questões, discorrer em favor das partes contrárias e não por esta razão apenas:
porque de outra maneira não seria possível em cada questão encontrar o que fosse parecido com a
verdade, mas inclusive porque seria ele o mais importante exercício para o discurso público. Desse
costume, Aristóteles foi o primeiro a se servir, em seguida, os seus seguidores. Em nossa época,
entretanto, Fílon, a quem ouvimos com freqüência, estabeleceu ensinar, num período, os preceitos dos
retores e, noutro, os dos filósofos” (Tusc. II, 9). Julgamos, portanto, que Cícero não pretende, de forma
alguma, que Aristóteles tenha sido o primeiro a argumentar a favor e contra uma mesma tese (o que,
historicamente, não se pode sustentar). Mas, ainda que esse procedimento tenha sido adotado por filósofos
como Sócrates (conforme é representado por Platão) e antes dele pelos sofistas, foi no Liceu que tal
procedimento ter-se-ia estabelecido como uma prática metodológica; esta poderia se resumir a uma

611
simples disputa entre interlocutores (que se exercitavam, como num exercício esportivo), mas podia
também resultar útil quer na investigação filosófica (onde ele ajudasse a dirimir as concepções
equivocadas), quer no processo de composição de um discurso público. Notemos que, a respeito de
Arcésilas, afirma-se tão somente que ele rechaçava, à maneira de Sócrates, as opiniões pouco firmes, não
que ele sistematicamente concebia dois discursos contraditórios. Se, na época de Fílon, a exercitatio do in
utramque partem dicere foi incorporada pela Academia, isso deve ter ocorrido por influência do Liceu,
ainda que houvesse o precedente acadêmico de Arcésilas e Sócrates. Nossa interpretação é corroborada
pelas seguintes passagens: De finibus II, 1-2 (em que se diz que Arcésilas buscava contradizer seus
oponentes) e De oratore III, 80, onde o in utramque partem é tratado como mos Aristotelius.
IV, 11 A organização política: o termo disciplina é vago e, por isso, tem sido interpretado
diferentemente pelos tradutores. Martha entende “sistemas políticos”, opção também seguida por Woolf.
Marinone se compromete menos ao dizer “cultura”. Ora, disciplina pode significar, em alguns contextos,
as regras de vida que são passadas de geração em geração, como na segunda actio in Verrem: eos (liberos)
ad ciuitatis disciplinam instituere (II, III, 161), isto é, “educar os filhos segundo as regras em vigor na
cidade”. Ora, é o sentido que segue Marinone. No entanto, se, no contexto das Verrinas, a idéia parece
próxima à de mos, na passagem do De finibus, parece-nos mais aceitável compreender ciuitatum
disciplinas como as regras que organizam o funcionamento institucional da cidade-estado.
E uma vez que ambos tivessem ensinado... Os comentadores observam que Pisão se refere aqui, de
modo bem preciso, a algumas obras de Aristóteles e de Teofrasto. De Aristóteles, por um lado, os oito
livros da Política e as Constituições (politei'ai) de mais de cento e cinqüenta cidades-estado, das quais
nos chegou apenas a de Atenas. De Teofrasto, alude-se a textos citados por Diógenes Laércio (cf. V, 44-
46), Sobre as leis (peri; novmwn), Sobre o melhor regime político (peri; ajrivsth" politeiva") e, por fim,
livros que tratam da ação política segundo a ocasião ou a oportunidade, os quatro livros
politikoi; pro;" tou;" kairouv" (cf. as notas ad locum de Hutchinson e Giambelli).
O modo de condução da vida que, sem dúvida, mais lhes agradou foi o da vida em quietude... A
afirmação feita aqui é controversa. Trata-se do confronto entre a vida contemplativa (qewrhtiko;" bivo") e
da vida de ação (praktiko;" bivo"). Entretanto, ainda que Aristóteles defenda, no último livro da Ética a
Nicômaco, a superioridade da vida contemplativa (X, 7, apud Giambelli), em outras passagens e,
notadamente, na Política, o filósofo se expressa de modo diferente e indica que a ação desempenha papel
importante na felicidade humana (Política, VII, 2 e 3, apud Giambelli). Há ainda que se levar em
consideração que o problema, que já existia no pensamento de Aristóteles, ganha contornos de
controvérsia entre seus discípulos. Uma carta de Cícero (Ad Atticum II, 16, 3) nos mostra que o autor
romano estava ciente da querela entre Teofrasto, que defendia a proeminência da vida contemplativa, e
Dicearco, que defendia a importância da vida ativa. A personagem forjada pelo autor, portanto, deixa de

612
lado deliberadamente o problema e apresenta uma versão simplificada da questão. Tanto mais nos parece
deliberada a decisão do autor, uma vez que, logo a seguir, Pisão dá conta de problemas de inconsistência
no pensamento dos peripatéticos.
V, 12 Um outro mais esmiuçado: no latim, limatius. Optamos por essa tradução por pensar que a
expressão se refere à res, e não à elocutio, como parece indicar a frase seguinte (cf. ainda Giambelli, ad
locum).
Quanto ao aspecto geral: Martha entende in summa como “pour le fond même”; o que parece criar
um contra-senso com o que se afirma a seguir. Não podemos conceber que summa aqui se refira ao
elemento principal do pensamento de cada um dos filósofos citados (Aristóteles e Teofrasto). O que a
expressão in summa ipsa nos parece indicar é que, num primeiro momento, Pisão trata do pensamento de
ambos sem entrar em detalhes. Quando toca em um ponto particular, entretanto, as diferenças aparecem.
Acreditamos que a expressão se ajusta ao propósito da personagem de tentar diminuir as diferenças que
existem nas minúcias em favor de uma visão mais geral e conciliadora do problema do princípio moral.
Entretanto, a estratégia não nos parece convincente, uma vez que o detalhe se mostra, na verdade, um
ponto fundamental, que torna incompatíveis as duas formas de pensar.
Do livro de Teofrasto sobre a vida feliz: o título em grego é peri; eujdaimoniva", conforme a menção
de Diógenes Laércio (V, 46). Esse livro é citado por Cícero também nas Tusculanae disputationes, V, 24:
in eo libro quem scripsit de vita beata.
Livros... a respeito dos modos de proceder, são atribuídos a Aristóteles... Faz-se referência aos
livros que conhecemos sob o nome de Ética a Nicômaco. Como vemos a partir da passagem, disputava-se,
à época de Cícero, a respeito da autoria dessa obra. Seria uma obra de Aristóteles dedicada a Nicômaco
(ou talvez organizada por ele), ou um escrito do próprio Nicômaco? O fato de ter morrido bastante jovem
em batalha (cf. Woolf, ad locum) torna improvável a hipótese de Nicômaco como autor. Cumpre dizer
ainda que há problemas no que diz respeito à apresentação que faz da obra Pisão (que, supomos, deriva do
pensamento de Antíoco). Há duas importantes passagens do tratado (cf. I, 7 e VII, 13) que negam a
suficiência da virtude para a aquisição da felicidade.
V, 13 Conforme penso, estes, são sem dúvida...mas... Conforme nota Giambelli (ad locum) o
período formado por illi quidem... sed tem um quê de concessivo: “ainda que, na minha opinião, sejam
superiores aos filósofos..., no entanto...”.
Estrato, discípulo de Teofrasto: Estrato era natural de Lâmpsaco e foi chefe da escola peripatética
por dezoito anos (de 286 a 268 a.C.) Podemos confrontar esta passagem do De finibus com algo que
encontramos na Academica. Nam Strato eius auditor quamquam fuit acri ingenio tamen ab ea disciplina
omnino semouendus est; qui cum maxime necessariam partem philosophiae, quae posita est in uirtute et
in moribus, reliquisset totumque se ad inuestigationem naturae contulisset, in ea ipsa plurimum dissedit a

613
suis; “Pois Estrato, discípulo dele [falava-se justamente de Teofrasto], ainda que tivesse um intelecto vivo,
afastou-se completamente, entretanto, desses estudos; uma vez que a parte mais essencial da filosofia,
aquela que se fundamenta na virtude e nos modos de proceder, ele abandonara e se dedicara inteiramente à
investigação da natureza e, nessa, justamente, afastou-se muitíssimo dos seus” (Academica I, 34). A
notícia, no entanto, parece estar em contradição com o que diz Diógenes Laércio, que atribui a Estrato seis
obras cujos títulos indicam uma investigação moral: peri; ajgaqou', peri; eujdaimoniva" etc. (V, 58-59).
Giambelli (ad locum) considera que talvez estas obras tratassem da moral sob a perspectiva da física.
Evidentemente, tudo não passa de hipótese. No que diz respeito à física, uma passagem do De natura
deorum (I, 35) parece indicar que Estrato negava que a criação fosse obra de uma divindade.
Lícon: Lícon era natural da Ásia Menor, da Trôade, e foi chefe da escola por quarenta anos: até o
ano de 225 a.C. (Giambelli, ad locum). De acordo com o testemunho de Diógenes Laércio (V, 16), esse
filósofo escreveu uma biografia de Aristóteles, ou, em algum de seus escritos pedagógicos (pois se
dedicou a essa área) teria recordado elementos da vida cotidiana do fundador do Liceu. O mesmo
Diógenes também se refere à facúndia de Lícon, quando o chama de frastiko;" ajnh;r na passagem já
mencionada.
Aríston, seu discípulo... Não se deve confundir este Aríston com seu homônimo estóico, natural de
Quios, que foi discípulo de Zenão e que esteve ativo na primeira metade do século III a.C.. O peripatético,
natural da ilha de Ceos, foi discípulo de Lícon e se tornou chefe da escola em 225 a.C. Em uma de suas
obras, que tinha forma dialógica, introduziu Titono, marido de Aurora, como personagem principal. No
De senectute, em que Cícero parece tomar elementos do Tithonos de Aríston, critica-se o fato de o
peripatético ter fundamentado seu diálogo em uma fabula. Citamos: Hunc librum ad te de senectute
misimus. Omnem autem sermonem tribuimus non Tithono ut Aristo Ceus (parum enim esset auctoritatis in
fabula), sed M. Catoni seni, quo maiorem auctoritatem haberet oratio. “Nós dedicamos a ti este livro
sobre a velhice. No entanto, todo o diálogo nós atribuímos não a Titono, como Aríston de Ceos (pois
pouca autoridade haveria em uma fabula), mas a Marco Catão, o antigo, para que o discurso tivesse maior
autoridade” (De senectute, 3).
V, 14 Critolau: proveniente de Fasélide, na Lícia, foi sucessor de Aríston como chefe da escola
peripatética. Formou, ao lado de Carnéades e do estóico Diógenes da Babilônia a célebre embaixada
ateniense que esteve em Roma no ano de 155 a.C. A esse filósofo é atribuída a imagem da balança, que
será desenvolvida nas seções 91 e 92 (cf. ainda Tusculanae, V, 51). Com ela, Critolau buscava indicar a
enorme superioridade dos bens da alma em relação aos do corpo e aos exteriores. Pensando dessa forma,
diz o Magister das Tusculanae, Critolau praticamente se iguala aos estóicos.
VI, 16 Quando, portanto, encontra-se... Há aqui um problema de estabelecimento de texto. Madvig
(ad locum) propõe substituir igitur pelo verbo exigitur. Marinone substitui igitur por quaeritur. Ambas as

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opções resultam em tradução semelhante: “quando se trata/ quando se discute...” Martha, por outro lado,
termina o parágrafo em officiorum e retoma o texto com est igitur etc. Traduz assim: “donc il y a quelque
chose...”. Já Giambelli (ad locum), julga que deve-se subentender algo como inuentum depois de cum.
Seguimos esta leitura. Vale ainda comentar o procedimento de Woolf, que elimina de seu texto todo este
passo problemático.
Da divisão proposta por Carnéades... A célebre Carneadea diuisio, que foi retomada, como vemos,
por Antíoco, é entendida por muitos como o núcleo teórico do De finibus. Por meio de um procedimento
que reúne os fines defendidos historicamente e, por outro lado, analisa as soluções que são possíveis, ainda
que não tenham sido utilizadas, Carnéades podia criticar sistematicamente qualquer sistema moral, depois
de ter reduzido todos os fines a um só modelo teórico.
Da qual... Antíoco costuma se servir de bom grado. O uso de libenter não deixa de ser significativo.
Antíoco, que pretendia conciliar o pensamento moral dos estóicos com as concepções dos antigos
acadêmicos e dos peripatéticos, serviu-se, para isso, de uma argumentação criada por Carnéades,
representante do momento cético da Academia, que se contrapunha, a um só tempo, aos dogmatismos do
Pórtico e dos sucessores de Platão.
Uma coisa é a própria arte, outra o que seja, para a arte, seu propósito. Notemos que, com esse
tipo de concepção, Carnéades desconsiderava um elemento essencial da doutrina estóica. No que diz
respeito à sabedoria, tratada como arte, os representantes do Pórtico defendiam, como vimos no livro III
(24-25 e 32), que o fim da arte se encontrava na própria arte. Recordemos ainda o símile do arqueiro,
desenvolvido em III, 22.
Quanto ao que, porém, seria isso que causaria tal tipo de movimento... Do ponto de vista teórico,
esta é a passagem central de todo o De finibus, em que se torna claro o ponto comum que Antíoco e, de
certo modo, o autor, considera haver entre os três sistemas tratados. Todos discutem o finis, ou seja, aquilo
a que se refere todas nossas ações sob uma perspectiva naturalista. Todos concordam que, se há alguma
coisa que devemos buscar pelo valor que lhe é próprio, esta coisa deve ser adequada à natureza. Mais que
isso, de alguma forma nós teríamos que reconhecer nesta coisa a capacidade de excitar a tendência
primeira do ser humano, ou seja, essa coisa deveria ser capaz de produzir em nós os primeiros
movimentos de busca. Se os sistemas são diferentes, isso se dá pelo fato de os filósofos discordarem
quanto à natureza disso que naturalmente provocaria em nós as primeiras tendências. De antemão,
devemos notar que igualar finis e appetitus animi (ou primus appetitus, ou prima appetitio) cria sérios
problemas, ainda que por motivos diferentes, para o epicurismo e para o estoicismo. A inconsistência que
esse tipo de argumentação aponta das doutrinas do Jardim e do Pórtico formam as bases teóricas das
refutações do livro II e do livro IV. Quanto à tradução, resolvemos manter a imagem que julgamos estar
expressa por fons e ab eo quasi capite que, dentre as traduções consultadas, foi preservada apenas por

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Marinone. Ela nos parece importante por ilustrar a idéia de um movimento necessário que se dá desde as
tendências primeiras até a concepção do sumo bem.
VII, 18 A ausência de dor outros consideram... Este período é expurgado do texto de Reynolds. No
entanto, tendo em vista que na seção 19 a uacuitas doloris é tratada como um dos três finis básicos,
julgamos que a passagem deve fazer parte do texto.
Outros tomaram como ponto de partida aquelas que eles denominam ‘coisas primeiras segundo a
natureza’. Equivoca-se Giambelli neste ponto (cf. nota ad locum), ao pensar que ab iis... profiscuntur diz
respeito ao fato de estes alii se afastarem dos hedonistas. Na verdade, segundo pensamos, estes “outros”
fazem das coisas segundo a natureza os objetos da tendência primeira. É o caso dos estóicos, por exemplo.
A partir dela urdiria toda nossa vida. O termo exordium parece ter aqui seu sentido mais próprio e
concreto. Refere-se ao estágio inicial da confecção de um tecido, a urdidura, o conjunto de fios, dispostos
longitudinalmente em um tear, que servem de apoio para os fios da trama. Trata-se de nova imagem para
tratar do objeto de nossa tendência inicial. As ações que realizamos em nossas vidas, para que sejam
apropriadas (officia) deveriam tomar aquilo que move primeiramente nossa tendência como um ponto de
apoio, como um fundamento. É função da prudência organizar nossas ações de acordo com tal parâmetro.
VII, 19 Daquilo, entretanto, que a prudência... Não há aqui repetição. As três primeiras hipóteses,
contemplavam filósofos que baseavam a ação em cada um dos princípios possíveis. Para eles, a ação era
reta se estivesse voltada ao objeto de nossa tendência natural, ainda que tal objeto não fosse alcançado.
Para as doutrinas tratadas aqui, o parâmetro não é somente a adequação, mas a obtenção daquilo que move
nossa natureza.
VII, 20 Os fundadores: principes significa aqui, segundo nos parece, não “principais
representantes”, como pensa, por exemplo, Martha, mas “primeiros a terem defendido”.
Não como um propositor... O termo auctor, nesta acepção, advém do jargão jurídico. Auctor, por
um lado, pode ser chamado aquele que ratifica uma decisão, uma nomeação, por exemplo. Em sentido
próximo, auctor legis é aquele que faz converter em lei uma proposta. Diz-se auctor ainda, no senado ou
nos comícios, aquele que tem poder de voto, de decisão. A idéia, portanto, é que Carnéades não aprovava
esse finis, não o apresentava como seu, mas o defendia apenas com vistas à discussão. Escapando à letra
do texto, poderíamos verter: “este, sem dúvida, não apresentou tal concepção como sua, mas defendeu-a
com vistas à discussão”. Com relação ao sumo bem desse filósofo, já houve referência em II, 35 e 42.
VIII, 22 Visto que tanto sobre o prazer, com Torquato... Passagem obviamente interpolada. Em
primeiro lugar, trata-se de fala de uma personagem, que não poderia se referir assim às outras discussões,
reunidas pelo autor em um mesmo tratado, às quais ela não esteve presente. Além do mais, o diálogo do
quinto livro, tem lugar em uma época anterior às dos dois diálogos representados nos quatro livros
anteriores. Não obstante, é interessante haver justamente nesta passagem uma interpolação. Trata-se de

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um momento em que podemos perceber a atuação do autor que, de algum modo, faz interferir na forma
dialógica a organização do tratado. Na discussão que se passa em 79 a.C., nada foi dito contra o prazer ou
contra a ausência de dor. A tese defendida aqui, portanto, tem que ser admitida sem grandes discussões
para que a exposição do pensamento dos antigos prossiga. Por outro lado, no tratado, o prazer e a ausência
de dor já foram longamente discutidos, de modo que o leitor não ressente qualquer empobrecimento na
discussão de 79 a.C., uma vez que já tem condições de admitir aquilo que o expositor não desenvolve. De
certa forma, esta passagem lança luz sobre o procedimento mimético, uma vez que o leitor percebe a
presença do autor, que organizou em forma de tratado estes três diálogos sobre os fins.
Pois referir as ações que pratiques a estas duas coisas... Não é fácil verter este período ao
português, sobretudo por conta da condicional si quis malo careat que parece pouco ajustada
sintaticamente. De fato, esse tipo de expressão nos faz recordar certas fórmulas legais romanas, que se
servem desse mesmo tipo de subordinação um tanto quanto duro. Para a compreensão do conteúdo,
entenda-se una como a ausência de dor e altera como o prazer.
VIII, 23 [como que] traduz tamquam, expurgado do texto de Reynolds. Martha o mantém. Se
Cícero de fato utilizou tamquam, talvez tivesse entendido tranquillitas em seu sentido mais próprio.
Originalmente, o termo parece ter relação com a placidez do mar, a qual se relaciona com a transparência
das águas quando estão calmas (cf. Ernout & Meillet, Dictionnaire étymologique de la langue latine).
A faculdade de encontrar o dever: inuentionem offici, isto é, a capacidade de se descobrir qual seja a
ação apropriada. A respeito de Pirro, Aríston e Erilo já se discutiu muito anteriormente. A primeira
menção a esses autores ocorre em II, 35. Parte importante da discussão do segundo diálogo (livros III e
IV) gira em torno das semelhanças e diferenças entre o pensamento de Pirro e Aríston, por lado, e a
doutrina moral estóica, por outro lado.
IX, 24 Com efeito, toma-se novamente como ponto de partida, para a exposição do finis, o
comportamento do animal recém-nascido. A dedução do sumo bem é feita a partir das tendências que se
apresentam primeiramente no ser vivo. Todo o passo é bastante semelhante à exposição da doutrina da
oijkeivwsi" feita por Catão no livro III (seção 16). Aqui, entretanto, indica-se de modo mais claro as etapas
do desenvolvimento. Num primeiro momento, o ser animado é levado, pela natureza, a amar a si próprio e
a guardar sua vida. Nesse estágio inicial, em que ainda não desenvolveu a razão, ele não tem uma noção
exata do que ele próprio seja e, no entanto, tende naturalmente à própria conservação. Tem, ainda assim,
algum tipo de conhecimento de sua própria constituição, ainda que vago e impreciso. Com o passar do
tempo, o ser animado começa a compreender que as coisas ao seu redor lhe dizem respeito de uma
determinada maneira e começa a ter um conhecimento mais preciso de si mesmo. Ele percebe (e aqui não
podemos precisar se se trata de uma compreensão completamente racional, visto que o autor utiliza o
ambíguo sensit) que certas coisas são conformes à natureza e que outras lhe são contrárias. Com isso, ele

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passa a buscar (agora de um modo mais racional e conhecendo um pouco mais a si próprio) aquilo que
contribui para sua conservação e a evitar o que lhe é nocivo. Nesse ponto, entretanto, a exposição se afasta
radicalmente da oijkeivwsi" estóica, pois, partindo diretamente da tendência primeira, Pisão chega a uma
definição do finis. Não há, no pensamento dos antigos acadêmicos e peripatéticos, nada que corresponda à
conuenientia estóica. O sumo bem não se desloca daquilo a que nos impele o appetitus, ele não se
fundamenta numa compreensão da ordem da natureza, mas se realiza na busca daquilo a que devemos
tender porque está de acordo com a natureza, ou seja, que contribui à manutenção do nosso melhor estado.
A noção desse melhor estado será desenvolvida a seguir por meio da argumentação acerca da realização
completa de nossa natureza. Desse modo, na seção 41, a commendatio volta a ser discutida, e algumas de
suas etapas se tornam mais claras. Notemos ainda que, segundo afirma Pisão, os estóicos teriam tomado
dos antigos a doutrina da oijkeivwsi". Eis uma afirmação que tem gerado muita polêmica entre os
estudiosos do pensamento helenístico. Poderíamos citar duas interpretações antagônicas de autores
recentes. Uma delas, a defendida por Carlos Lévy, em Cicero Academicus (pp. 377-387), que defende que
foram os estóicos que desenvolveram a teoria; a outra, sustentada por Giseppina Magnaldi em
L’oijkeivwsi" peripatetica in Ario Didimo e nel “De finibus” di Cicerone, que julga que já nos
peripatéticos, anteriores ao desenvolvimento do estoicismo, a noção aparecia.
IX, 25 [é forçoso] que sejam: seguimos Giambelli que, em nota ad locum, julga que o subjuntivo
sint se dá por contágio com expleatur e que a oração de que aquele participa seria a continuação da que
este participa, isto é, subordinada também a necesse est.
A natureza de todos é comum... Communis, aqui, vem num sentido bem próximo do de simile, que
ocorre em IV, 32 e que nós traduzíramos por “análogo”. De fato, as naturezas particulares, ainda que
diferentes, têm algo de comum, já que participam da natureza universal. Não é rara a oscilação do termo
natura entre esses dois sentidos (cf. Magnaldi, G. op. cit., pp. 6-7). Pisão distingue-os de modo bem
preciso a seguir.
De sorte a alcançarem o termo extremo em seu próprio gênero: neste sentido, tevlo" (vertido pelo
termo extremum) tem que ver com o desenvolvimento completo da natureza de um determinado ser.
Trata-se daquele estágio de acabamento e perfeição a que tende sua natureza.
Para o homem, o último dentre os bens é... A mesma definição de tevlo" utilizada antes pelos
estóicos é aqui retomada, mas recebe uma interpretação diversa: undique perfecta já aponta para a
necessidade de se levar em consideração os bens do corpo, que, segundo a argumentação das personagens
de Cícero (no livro IV) e de Pisão, neste livro V, foram negligenciados pelos representantes do Pórtico.
Nihil requirente, reforça a importância dos commoda corporis e implica ainda a relevância dos bens ditos
externos.

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IX, 27 Com muita minúcia traduz enodatius. Talvez a tradução portuguesa não dê a idéia exata.
Pisão, pensando no jovem Lúcio, pretende explicar o pensamento de Antíoco da forma mais clara
possível. O excesso de didatismo, entretanto, poderia enfadar as demais personagens que, sendo homens
mais velhos, já estão mais familiarizados com a discussão filosófica.
X, 28 Como se pode conceber ou pensar que exista algum animal que se odeie? A demonstração
procede, portanto, por meio de uma redução ao absurdo.
Deliberadamente: interessante o uso do advérbio consulto modificando uma ação desempenhada
pelo appetitus. Acena-se, de algum modo, para uma razão que existiria na natureza universal.
Ou mesmo aquele que, em Terêncio... Giambelli (ad locum) aponta para o leve (sic) anacoluto que
há neste período. De fato, no início do período as formas de nominativo e os verbos conjugados estão no
plural; depois que se menciona a personagem da comédia de Terêncio, o autor utiliza o singular. São
citados ainda que com leve adaptação, os versos 147 e 148 do Heautontimoroumenos. Trata-se de uma
fala de Menedemo.
IX, 29 E, ao tombarem, conscientes, em males, julgam... O argumento, que se faz mais claro a
seguir, dá conta de que, ainda que causem males a si mesmos, os homens sempre buscam fazer o que
julgam ser melhor. Ora, então quem provoca males a si, erra por ignorância.
Eu, de minha parte... Numa tradução mais literal: “Eu, de minha parte, assim procedo; tu, porém,
age como deves agir”. É ainda o Heautontimoroumenos de Terêncio, verso 80.
XI, 31 Pois são poucos aqueles, ou ainda, existe alguém... Traduzimos de modo um pouco mais
livre a passagem toda buscando manter mais próximo da letra do texto o verso citado do Alcméon de Ênio
(tragédia que tem outro verso citado em IV, 62). De fato, a expressão quotus quisque do original, ainda
que tenha forma singular, tem valor de plural e dificilmente é traduzida em português por um singular. O
verso de Ênio, entretanto, serve-se do singular. Manter uma ordem mais próxima do original acarretaria
um problema de concordância. Mesmo assim, a tradução do verso deixa de lado algo do sentido do
original, uma vez que timido se liga a cui e se refere ao sujeito do verbo exalbescat. Difícil encontrar uma
solução que dê conta de todos os aspectos da passagem. Se antecipássemos “tomado de temor”, por
exemplo, teríamos que introduzir, na citação do verso, a partícula negativa.
Alguns ajam dessa forma... Interessante a maneira como aquilo que acima era tratado como afecção
reaparece aqui como uma ação, isto é, algo de que o homem seria o autor.
Essas mesmas coisas não estariam presentes de maneira excessiva em alguns homens, a não ser
que algumas existissem, por natureza, sob uma forma moderada. Ou seja, Pisão toma o fato de que alguns
homens demonstrem afecções intensas, como o terror, diante da morte para provar que, por natureza, os
homens são avessos ao próprio desaparecimento. Ainda que esse tipo de afecção excessiva seja

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condenável, ele tem fundamento na tendência primeira. O vício está em se entregar ao excesso que,
deduzimos da passagem, ocorreria por desconhecimento do que seja a morte.
XI, 32 Lento, trespassava os ligeiros... O Philoctetes de Ácio, provavelmente baseado no drama
homônimo de Sófocles, já foi citado no primeiro diálogo, em II, 94. Sobre o enredo da peça e elementos
gerais do mito, veja-se nossa nota a essa passagem.
XI, 33 Concatenação entre as partes: segundo Giambelli (ad locum), compactione é um
a{pax legovmenon. Do fato de que o termo devia ser pouco usado, o uso do indefinido quadam. O verbo
compingo, de onde se forma o substantivo, tem a idéia de ligar, unir intimamente as partes na formação de
um todo, de uma unidade. Recordemos, além do mais, que membra pode se referir não apenas àquilo que
nós chamamos “membros”, mas também aos órgãos internos do corpo.
Aqueles que pensam que todas essas coisas são regidas pela natureza: ao que parece (cf. Giambelli,
p. 121), os filósofos que julgam haver uma providência divina imanente à natureza.
Pois não há nisso diferença alguma: os dois sentidos, antes distinguidos, aparecem unidos nesta
passagem: natureza como princípio universal, que, entretanto, se individualiza como a força organizadora
e conservadora de cada ser.
XII, 34 Qual é a natureza do homem; pois é em torno disso que gira a questão. De fato, é por meio
de uma definição acurada da natureza do homem que Pisão chega a um sistema ético distinto do defendido
pelos estóicos e aponta os equívocos que, segundo pensa, eles cometeram. A argumentação, recordemos,
já havia sido utilizada pela personagem de Cícero no livro IV. Tanto lá quanto aqui, o argumento é
atribuído aos ueteres philosophi. Mas, ao que tudo indica, trata-se de criação de Antíoco (autor que é
citado logo na apresentação deste diálogo). De fato, Santo Agostinho menciona que Varrão,
contemporâneo de Cícero e também expositor das idéias de Antíoco, valia-se da mesma argumentação (cf.
De ciuitate Dei, XIX, 3, passagem em que a argumentação de Varrão é mencionada Antiocho auctore, isto
é, trata-se de argumento criado por Antíoco).
XXII, 36 E, dentre os sentidos... percebendo de modo rápido e sem dificuldades as coisas que se
submetem aos sentidos. Ainda que possa parecer redundante, o expositor pretende deixar claro que, aos
sentidos, cabe perceber aquilo que é próprio de sua atribuição. Não se deve, por exemplo, fazer residir nos
sentidos (algo que, no livro II, Cícero imputara ao pensamento de Epicuro) o critério da verdade.
Do primeiro gênero... O outro gênero... A distinção entre virtudes morais, por um lado, e virtudes
intelectuais, por outro, já foi utilizada nos diálogos anteriores, mas, neste ponto, ela ganha uma exposição
sistemática. Essa partição, como já dissemos, remonta a Aristóteles, e pode ser vista em algumas
passagens da Ética a Nicômaco, como, por exemplo, em I, 13 (1103a4-10), cujo texto guarda semelhanças
com o desta passagem do De finibus. Na Academica de Cícero, também encontramos essa divisão. Em I,
20, ao lado da memoria, aparece a celeritas ad discendum, ambas tratadas como virtudes intelectuais.

620
Considera-se que elas são dadas pela natureza. As virtudes que têm relação com o modo de proceder (cf.
morum autem), por outro lado, estão submetidas à vontade e, além disso, podem ser adquiridas por hábito
e aplicação (cf. putabant studia esse et quasi consuetudinem). Hutchinson nota (ad locum) que a
exposição que aparece nos textos ciceronianos, entretanto, tem uma importante coloração estóica.
Recordemos que, em Cícero, prudentia traduz tanto sofiva quanto frovnhsi". Na passagem da Ética a
Nicômaco que mencionamos acima, Aristóteles dispõe as duas entre as virtudes intelectuais. Na exposição
de Cícero, prudentia se conta entre as virtudes éticas. Deve-se dizer, contudo, que o desacordo entre a
exposição ciceroniana e a aristotélica não é total, visto que, em outras passagens, o filósofo de Estagira
afirme que essas duas virtudes citadas estão necessariamente ligadas às virtudes éticas, de modo que
aquelas não poderiam de modo algum existir sem que estas existissem (cf. V, 13, 6:
oujc oi\ovn te ajgaqo;n ei\nai a[neu fronhvsew", oujde; frovnimon a[neu th'" hjqikh'" ajreth'"). Por fim,
Aristóteles dispõe sofiva como a mais importante, ao passo que, no texto de Cícero, a supremacia cabe às
virtudes morais.
XIII, 38 A virtude de cada uma das melhores partes... Notemos que uirtus aqui significa
“excelência” (não necessariamente “excelência moral”) que, na verdade, é o sentido que tem o termo
grego ajrethv, que uirtus pretende traduzir.
Têm origem na razão: para a idéia de que as virtudes voluntárias nasçam da razão, veja-se
Academica I, 20, passagem já comentada acima.
A afirmação que se fez a respeito do porco: que a esse animal foi dada uma alma em lugar de sal, a
fim de que não apodrecesse. Sobre esta passagem, devemos citar um artigo: Deschamps, L. “Un bon mot
de Cicéron en Fin., 5, 38?” de 1998, mencionado na bibliografia. Em outra obra de Cícero, este dito é
atribuído a Crisipo (De natura deorum, II, 160) Outros autores antigos, segundo Deschamps (cf. p. 191),
atribuem-no a Cleantes. A estudiosa, observando as formas diferentes sob as quais o provérbio aqui citado
aparece nas obras de autores gregos e romanos, indaga se em nosso texto Cícero (por meio de Pisão) não
joga com o duplo sentido de termos como sal, pecus e putiscere (que é como ela lê, seguindo alguns
manuscritos, a forma putesceret, que é adotada por Reynolds). Em nenhuma ocorrência do provérbio,
temos o termo animus que, como sede do pensamento (cita-se uma passagem de Nônio, 426M = 689L:
animus est quo sapimus, anima qua uiuimus, apud Deschamps, p. 193), não devia ser atribuído ao porco.
O mais comum é vir anima. Deschamps quer ver nesta passagem uma troça a Marco Pórcio Catão, que,
pelo nome de família (Porcius), seria facilmente associado ao sus. Eis o resultado final de sua
interpretação: Catão, rigoroso demais, a quem falta senso de humor (sal), seria considerado um sujeito
desagradável (é este um dos sentidos do verbo putisco, que, literalmente, significaria “cheirar mal”), mas,
por ter vigor intelectual (animus), mereceria indulgência. Evidentemente, a argumentação da autora

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permanece no terreno da especulação, mas a ousadia, o “sal” da interpretação e o cruzamento que ela
promove entre passagens de autores diversos, fazem de seu curto artigo uma leitura saborosa.
Certos movimentos da alma: Deschamps está correta ao afirmar que o provérbio citado
anteriormente recebe aqui uma formulação problemática. Logo após ter mencionado o provérbio, Pisão
nega a presença de um animus no porco. Concordamos com a autora que não deve se tratar, no entanto, de
equívoco da parte de Cícero, visto que ele distingue bem animus de anima (como nas Tusculanae, I, 19:
ipse autem animus a anima dictus est.). A variação deve ter sido deliberada, quiçá pelos motivos
apontados por ela (recordemos que Pisão é louvado por seus ditos espirituosos). Vale lembrar que Varrão,
por exemplo, cita o mesmo provérbio, mas utiliza anima. Res rusticae, II, 4, 10: itaque iis animam datam
esse proinde ac salem, quae seruaret carnem. O próprio Cícero, no De natura deorum (II, 160), serve-se
de anima. Ainda que a conclusão de Deschamps seja tão somente plausível, não podemos negar o fato de
que há problemas no uso que faz do provérbio a personagem de Pisão.
XIV, 39 Um desenvolvimento e um arremate... Discordamos de Marinone e de Martha que
entendem educatio e perfectio, respectivamente, por “educação” e “aperfeiçoamento”. Não é isso que
sugere a seqüência do texto.
Se elas pudessem falar, declarariam... O argumento pressupõe que o melhor estado possível para
vinha seja aquele em que ela se encontra quando bem cultivada pela técnica humana.
Se à vinha forem acrescentados sentidos... Assim como a personagem de Cícero fizera no livro IV
(38 e ss.), Pisão se serve, neste ponto, de uma gradação que vai desde a natureza vegetal, passa pela
natureza animal e chega, por fim, à natureza humana.
XIV, 40 Surge assim: texto corrompido. São diversas as correções propostas pelos editores.
Seguimos a modificação efetuada por Madvig, que lê sic extitit. O texto de Reynolds traz sitque.
XV, 41 Sendo a forma da natureza... Isto é, a idéia de natureza. Observemos que, neste ponto, a
natureza engloba apenas aquilo que é, por assim dizer, orgânico, ou seja, o conjunto de seres que possuem
uma semente (semen), que receberam de outro ser natural, a qual, encontrando matéria, pode se alimentar
e se desenvolver segundo uma ordem determinada (cf. De natura deorum, II, 81).
XV, 43 Foi gerada pela natureza a essência do homem: Novamente se associam os conceitos de
natureza universal e natureza singular. Aqui, no entanto, o texto ciceroniano trata este segundo por meio
da expressão uis hominis. É a natureza do homem, ou essa força que a natureza universal inseriu no
homem e que o conduz a seu tevlo". Sobre a relação entre os dois conceitos, veja-se ainda De natura
deorum II, 30.
Imagens das virtudes: para o uso que faz Cícero, no De finibus ao menos, de uma distinção entre
simulacrum e simulatio, veja-se nota ao livro II, seção 110.

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XVI, 44 Convida, portanto, Apolo Pítio, a conhecermos a nós mesmos. Interessante o uso que se faz
aqui do famoso preceito délfico que prega o conhecimento de si. Recordemos que o mesmo preceito já
fora utilizado na refutação da moral de Epicuro no livro II (16 e 69). Aqui, neste último diálogo, cumpre
perceber que a exposição do pensamento dos antigos acadêmicos e peripatéticos, apresentada por Pisão,
difere radicalmente, neste ponto, daquilo que defende Sócrates em uma célebre passagem da obra de
Platão. No Alcebíades (131a), a personagem de Sócrates se serve do preceito délfico com vistas a exortar
Alcebíades ao autoconhecimento. No entanto, o velho filósofo chega a uma concepção do homem em que
ele é definido por sua alma, não como um composto de alma e corpo.
XVI, 45 ...o prazer, seja essa discussão reportada a outra ocasião. A fala de Pisão novamente
alude à matéria tratada nos livros I e II. Outra vez sentimos a presença do autor, que submete as
representações miméticas de cada um dos diálogos individuais ao formato de tratado que garante a
unidade do De finibus.
XVII, 46 Um outro tipo de argumentação: Como se faz evidente na seqüência do texto, este aliud
argumentandi genus não se afasta da concepção de primeira recomendação da natureza. O argumento
procede, como se pode ver, do amor por si mesmo, mas estende o raciocínio a uma descrição das partes do
corpo e da alma até alcançar a parte mais excelente do homem, a razão perfeita. Nesta descrição, conforme
aponta Hutchinson (ad locum), o expositor tenta demonstrar a presença, em cada uma de nossas partes, de
uma força que a conduza à perfeição. Giambelli (ad locum) conjectura que essa forma de argumentar
tenha sido uma inovação de Antíoco. A passagem contém, entretanto, muitas dificuldades. White (“The
basis of Stoic ethics”, p. 325, nota 37) não entende uis como força que conduza à perfeição, mas como
característica ou faculdade que exista em cada uma das partes, ou seja, como função de cada uma das
partes. Esse autor argumenta que in his rebus se refere às faculdades de corpo e de alma e traduz assim a
cláusula: “when we exercise such faculties”. Essa leitura não nos seduz. Assim, preferimos seguir com
Giambelli. É bem verdade que uis pode se referir, mesmo nesta passagem, tanto a faculdade própria de
cada parte, quanto à força da natureza que a conduz à perfeição, mas acreditamos que a idéia de “mover-se
espontaneamente” diz respeito particularmente ao movimento promovido pela força da natureza, que se
estende a cada uma das partes. Por conta disso, nossa tradução reúne elementos de ambas as interpretações
que, julgamos, não são completamente antagônicas.
XVII, 47 E já que tais coisas são expurgadas do corpo... A idéia é a de que os homens preferem
eliminar tais tipos de vícios corporais. Hutchinson (ad locum) aponta o uso médico do verbo deduco, por
exemplo, em Horácio: aegroto domini deduxit febres (Ep. I, 2, 48). Registremos o jogo que se estabelece
entre deducantur e ducatur, ainda que não o tenhamos reproduzido em português.
Não apenas com vistas ao proveito... O termo utilitas nos leva à controvérsia com os epicuristas. Na
perspectiva de Pisão, saúde, forças físicas, a ausência de dor e outras vantagens corporais são buscadas por

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si mesmas, porque assim exige a natureza, não porque concorram à aquisição de outra coisa, como, por
exemplo, o estado de sumo prazer.
XVIII, 48 Toda a seção 48 destina-se a demonstrar que o impulso ao conhecimento é maior do que
qualquer preocupação com o sofrimento físico. Novamente o alvo principal é o epicurismo, que defende
que toda indagação tem como fim a eliminação das inquietações físicas e psicológicas.
XVIII, 49 Adorno argivo: Com decus, o texto ciceroniano traduz ku'do", que ocorre em Homero. A
escolha é bastante interessante para uma reflexão a respeito dos modos de tradução adotados por Cícero
no De finibus. O termo grego tem a idéia de “glória”, “renome” e pode, por extensão, designar aquilo que
traz glória. O termo latino, por outro lado, tem, originalmente, uso bem concreto e se refere, inicialmente,
a objetos que se destacam pela proporção e pela beleza. Notemos, de qualquer modo, que, no livro III, este
mesmo termo serviu, como um sinônimo de honestum, para tratar do sumo bem estóico, o “belo moral” ou
to; kalovn. Recordemos que há uma reflexão sobre a tradução no início do livro III. Vale dizer que, uma
vez que nada saibamos a respeito de uma possível tradução da Odisséia feita pelo Pisão histórico,
tendemos a considerar esta que aqui se apresenta como trabalho do próprio autor do De finibus. A
passagem traduzia vem da Odisséia, XII, 184-191. Os mesmos versos são citados por Sexto Empírico, em
Aduersus mathematicos, I, 42, quando o autor busca sustentar que o homem é, naturalmente, ávido por
conhecimento (o{ti fuvsei filopeuqhv" ejstin a[nqrwpo"). Quanto ao verso “nós grave batalha de guerra e
ruína retemos conosco”, entenda-se algo como mente tenemus, já que a forma traduz o grego i[dmen, isto é:
“sabemos”.
A estória não seria convincente: interessante essa afirmação no que diz respeito à discussão que
apresentamos no primeiro capítulo de nosso estudo. Há certa preocupação de probabilitas mesmo nas
narrativas que não têm nada de verdadeiro, como as fabulae.
XIX, 50 Arquimedes: célebre matemático de Siracusa, na Sicília, Arquimedes viveu no século III
a.C. Conta-se (cf. Woolf, ad locum) que, quando sua cidade foi invadida pelos romanos, ele foi
assassinado por um soldado que se impacientou com o fato de o estudioso não tirar os olhos do diagrama
que estava estudando.
Aristoxeno: Trata-se de Aristoxeno de Tarento, discípulo de Aristóteles, que esteve ativo, como
autor, nas últimas décadas do século IV a.C. A partir de algum momento de sua vida, entretanto,
aproximou-se das doutrinas pitagóricas e assim, unia o estudo da filosofia ao da música (cf. Giambelli, ad
locum). Cícero cita sua definição de alma nas Tusculanae (I, 1), a qual, entretanto, torna-o mais próximo
de um materialismo do que daquilo que se conhece da doutrina de Pitágoras.
Aristófanes: Aristófanes de Bizâncio, importante gramático do século III a.C., mestre de Aristarco.
Ocupou-se da biblioteca de Alexandria e foi responsável por extensos e importantes estudos sobre os
textos gregos antigos. In litteris, portanto: “nos estudos dos textos”, ou “na grammatica”.

624
XIX, 53 Nas ilhas dos bem-aventurados: é bem antiga a tradição de narrativas que dão conta de
uma condição de felicidade que alcançam alguns homens no post mortem. É célebre, em Homero, por
exemplo, a menção aos “Campos Elísios”, para onde os imortais teriam enviado Menelau, por conta do
prestígio que desfrutava pelo casamento com Helena (Odisséia, IV, 563-568). A imagem da ilha em que
viveriam os bem-aventurados, entretanto, aparece primeiramente em Píndaro (cf. Olympia, II, 70 e ss.:
makavrwn na'son), ao menos no que diz respeito aos textos preservados (cf. Giambelli, ad locum). Entre os
filósofos, podemos citar Platão como um importante continuador dessa tradição. Há diversas narrativas em
que é representada uma existência depois da morte, como na República, 519c e 540b, por exemplo, ou no
Górgias 526c, ou no Banquete, 180b. Marinone (ad locum) julga, entretanto, que Cícero deve ter se
inspirado em uma passagem que se encontraria no Protrepticus de Aristóteles para representar a condição
dos sábios na ilha e sua devoção aos estudos. Se isso não pode ser comprovado, há um indício importante
em favor da tese do italiano: Santo Agostinho cita um trecho do Hortensius de Cícero (diálogo composto à
luz do Protrepticus de Aristóteles) em que o romano se serve da narrativa a respeito da ilha dos bem-
aventurados (cf. De Trinitate XIV, 9, 12) em que, de modo geral, encontramos os mesmos elementos
citados aqui.
Qualquer aquisição: Paratus designa, em geral, qualquer artefato que o homem confeccione para
seu uso. Nesta passagem, de modo especial, como pensam alguns tradutores, talvez o termo se refira às
roupas.
XIX, 54 Demétrio de Falero... Recordemos que a cena se desenvolve em Atenas e, portanto, huius
ciuitatis, recorda o fato de Demétrio, natural de Falero, na Ática, ter governado Atenas entre 317 e 307
a.C., durante a dominação macedônia, na época em que disputavam entre si os sucessores de Alexandre.
Em 307, com a momentânea reestruturação da democracia, ele foi exilado. Buscou refúgio na Beócia e,
depois, na corte de Ptolomeu, no Egito. Lá, ele viveu a partir de 297, ocupando-se da famosa biblioteca de
Alexandria, dedicado aos estudos de filosofia, retórica, história e das letras em geral (cf. Marinone, ad
locum). Segundo Giambelli (ad locum), em sua estada no Egito, teria dedicado diversas obras ao estudo da
política. Nelas, tratava do governo de Atenas. A amplitude de seus interesses intelectuais é mencionada
por Pisão, que fala que seus estudos eram como que “um alimento de humanismo”. Recordemos que, no
pensamento ciceroniano, a humanitas designa, quando aplicada ao conhecimento, justamente esse
conjunto de saberes, o mais vasto possível, que deve cultivar o grande homem, para que possa se dedicar
adequadamente à vida pública. Não é pouco significativa, portanto, a ressalva que se faz ao fato de
Demétrio não ter aplicado os estudos que fazia, pois que estava impossibilitado. Cumpre notar ainda que
Cícero devia identificar sua própria experiência com aquela do grego: o exílio, em primeiro lugar, e o
afastamento compulsório da vida política, que ele viveu dedicado aos estudos. Nessas condições, afinal,

625
ele compôs o De finibus. Demétrio é citado diversas vezes na obra do autor romano, geralmente com
grande entusiasmo (cf. De off. I, 3; Brutus, 37-38 etc.).
Cn. Aufídio... mais se ressentia pela falta da luz do que de sua utilidade. Gneu Aufídio foi pretor no
fim do segundo século (em 107 ou 106) a.C. (cf. Marinone, ad locum). Ele é citado nas Tusculanae como
autor de uma história grega (V, 112). O argumento utilizado por Pisão se serve de uma expressão que não
é muito clara. Aufídio se ressentiria antes da privação da própria vista, do que do proveito que dela
poderia tirar para as ações cotidianas. Não concordamos com Giambelli que julga (em nota ad locum) que
lucis designaria antes a luz da razão, representada em sua obra historiográfica, ou em sua participação nas
decisões políticas, ao passo que utilitatis diria respeito à vista propriamente dita. Do ponto de vista da
composição, é interessante notar o respeito à probabilidade na ação representada. Pisão, que era mais
velho do que Cícero, poderia, de fato, ter ouvido com freqüência Aufídio. Cícero, por outro lado, era
apenas uma criança quando o mencionado historiador já era um velho (cf.: pueris nobis, Tusculanae, V,
112).
XX, 55 Acercam-se dos berços... Temos visto, ao longo do De finibus, a recorrência dos argumentos
que tomam como ponto de partida a observação das crianças recém-nascidas. No diálogo epicureu, ver I,
30-31 e II, 31-32. Para a discussão com os estóicos, ver III, 16. Com relação aos filósofos da tradição
acadêmico-peripatética, ver V, 24, 43 e 61. Para uma análise minuciosa da argumentação utilizada nos
dois primeiros diálogos, veja-se o artigo, já citado, de Jacques Brunschwig: “L’argument des berceaux
chez les Epicuriens et chez les Stoïciens”.
O sono de Endimião. Figura mitológica da Élida, região do Peloponeso, Endimião foi objeto dos
amores de Selene. Por um desejo dela, Zeus teria concedido um pedido a Endimião. Este escolheu como
presente a dádiva do sono eterno, o que lhe proporcionaria a juventude eterna. Outras versões do mito
contam que foi já durante seu sono que Selene o viu e por ele se apaixonou. Os amantes tiveram juntos
cinqüenta filhas (cf. Grimal, P. Dictionnaire de la Mythologie Grecque et Romaine). Quanto ao
argumento, cf. Aristóteles, Ética a Nicômaco, X, 8, 7, 1178b19, passagem em que se evoca o mesmo mito.
XX, 56 Certos círculos e de pequenas reuniões. Circulos aliquos e sessiunculas, sobretudo, têm
valor pejorativo. Estas reuniões pequenas, pouco importantes, de assuntos ligeiros, são postas em contraste
com as graves discussões filosóficas e a grandeza das assembléias políticas.
XX, 57 Se... pudesse se nutrir dos prazeres mais disponíveis. Embora se fale também da ocupação
privada, há uma evidente reprovação da abstinência da vida pública pregada pela filosofia do Jardim. Cf.
nota ao livro I, seção 59.
Pois, ou na esfera privada preferem realizar algo... A vida empregada na ação política é colocada
lado a lado, num primeiro momento, com a vida contemplativa. Ambas são atribuições de pessoas que

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possuem alma elevada. A seguir, porém, uma gradação será estabelecida de modo mais desenvolvido.
Mesmo entre as atividades contemplativas haverá diferenciação (cf. 58).
XXI 58 Conclui-se, portanto, a argumentação iniciada na seção 55.
Muitos são, por outro lado, os gêneros de ação... Esta divisão traz alguns problemas. Como a
exposição se fundamenta na doutrina dos antigos peripatéticos (iis quorum nunc in ratione uersamur),
costuma-se relacionar a argumentação com o distinção que propôs Aristóteles para os tipos de vida
humana (isto é, os bivoi). O primeiro tipo de atividade separado por Pisão, corresponderia à vida
contemplativa (qewrhtiko;" bivo") e o segundo, à vida política (politiko;" bivo"). Entretanto, o terceiro tipo
de atividade não encontra correspondência nessa divisão aristotélica, embora guarde semelhanças com
outra distinção, aquela que se propõe para os gêneros de zwaiv, isto é, de formas de existência. Estas
seriam a qreptikhv, ou “vegetativa”, aijsqhtikhv, ou “sensorial”, e praktikhv ti" tou' lovgon e[conto", ou,
“de ação, própria daquele que possui razão e linguagem” (cf. Hutchinson, ad locum). Essa terceira forma
de existência seria própria do homem. Na opinião do estudioso citado, Antíoco, autor da argumentação,
teria sobreposto as duas divisões, já que os bivoi são espécies da terceira forma de existência. O fato de
Pisão identificar uirtutes com ações faz com que Hutchinson considere que, neste ponto, o argumento de
Antíoco é devedor ainda do estoicismo. Que parece haver uma sobreposição das duas divisões é algo que
a seqüência do texto parece corroborar, uma vez que a partição entre as formas de existência é evocada
logo a seguir. De modo simples, entenda-se: um gênero de zwaiv, o humano, é tomado, em outra divisão,
como a espécie menos elevada dentre as formas de ação humana.
Pois de todos os seres... Omnium ... rerum refere-se, segundo Giambelli (ad locum), aos organismos
vivos, vegetais ou animais (cf. nota anterior). In primo ortu leva a discussão à esfera humana.
Os começos são modestos, mas, efetuando... Usa pode se referir tanto a rerum quanto a principia. A
ligação com principia seria a mais esperada gramaticalmente, já que usa vem no neutro plural. Entretanto,
já vimos Cícero fazendo concordar res com uma forma neutra. O contexto parece indicar que é justamente
o que ele faz aqui nesta passagem.
Das primeiras coisas que se acomodam. A expressão prima naturae commoda deve ser entendida
como sinônima de prima naturae ou principia naturae. A variação terminológica ao tratar de um mesmo
conceito traz problemas à compreensão de certos argumentos dos textos ciceronianos. O plural commoda,
até aqui, vinha designando as vantagens ou bens do corpo, como a saúde, o vigor, etc. Agora, o termo foi
deslocado para indicar os primeiros objetos de nossa tendência. Interessante notar, entretanto, que, no
sincretismo proposto por Antíoco, os conceitos de fato se aproximam.
XXI, 59 Nenhum auxílio que os reforçasse: os estudiosos do texto do De finibus não estão de
acordo quanto ao sentido de confirmationem que ocorre neste passo. Woolf, por exemplo, em sua
tradução, entende que o termo designe o desenvolvimento dos sentidos até que alcancem a maturidade.

627
Vem em auxílio dessa interpretação, uma passagem da seção 62: in iis aetatibus quae iam confirmatae
sunt. Seguimos, entretanto interpretação diferente, aquela utilizada por Martha, Marinone e por Giambelli
(em nota ad locum): argumenta-se que os sentidos não precisam de nenhuma ou de bem pouca ajuda
externa para bem desempenharem suas funções.
Rudimentos da virtude: cf. De legibus. I, 59. Para elementa no sentido de primeiros rudimentos de
uma arte ou de um saber, como as letras no processo de alfabetização, cf. De finibus, III, 19 e nota à
passagem.
XXI, 60 Que conceitos são indicados pelos vocábulos que lhes são próprios: a interpretação que
demos à passagem fundamenta-se na argumentação de Giambelli (ad locum). O filólogo italiano cita
passagem do De oratore que sustenta sua interpretação (De or. III, 149: quaeque propriae sunt et certe
quasi uocabula rerum, paene una nata cum rebus ipsis). Trata-se da noção de sentido próprio de uma
palavra. A questão que deve ser desenvolvida, então, gira em torno da explicação das realidades, ou coisas
que são designados propriamente pelos termos honestum, uirtus, etc, isto é, trata-se de estudar os
conceitos.
Delineado pela natureza. 62 Mas isso, quanto às crianças; é claramente expresso: As expressões
adumbrantur e expressa são metafóricas e pertencem, originalmente ao domínio das artes plásticas.
Expressa se diz especialmente da escultura, no estágio em que já ganhou forma, depois de ter sido retirada
do bloco de mármore (cf. Giambelli, ad locum). Adumbrantur, por outro lado, designa o estado inicial de
um desenho. Se pensarmos que a primeira etapa do trabalho de um escultor pode ser um desenho, a
gradação se estabelece sem a necessidade de pensarmos em ações separadas uma da outra.
Pulo Numitório, de Fregelas: Era o líder da cidade de Fregelas (constituída pela etnia dos volscos)
quando, em 125 a.C., revelou aos romanos a conjuração de seus concidadãos contra o pretor romano,
Lúcio Opímio. A cidade foi, então, sitiada e tomada pelos romanos. A filha de Numitório, posteriormente,
viria a ser esposa de Antônio, o pai do lugar-tenente de César (cf. Giambelli e Marinone, em notas ad
locum).
Codro, salvador de sua cidade: também citado por Cícero nas Tusculanae (I, 116), esse legendário
rei de Atenas, que teria vivido no século XI a.C., celebrizou-se por ter-se devotado à cidade por ocasião da
invasão dos dórios. Conta-se que os invasores, que vinham do Peloponeso, consultaram Apolo em Delfos
e foram informados de que teriam êxito na conquista, caso poupassem o rei de Atenas. Codro soube da
resposta do deus por meio de uma habitante de Delfos. Resolveu, então, sacrificar-se em favor da
preservação da cidade (cf. Grimal, P. 1951).
Erecteu: Trata-se de outro rei lendário da cidade de Atenas que é citado, ao lado de Codro, na
passagem das Tusculanae mencionada na nota anterior. Quando a cidade de Atenas estava ameaçada por
invasores trácios, Erecteu consultou o oráculo de Apolo em Delfos. Foi informado de que venceria a

628
guerra, caso sacrificasse uma filha. Quando Erecteu imolou sua filha Ctônia, as irmãs se suicidaram.
Eurípides compôs uma tragédia que se servia desse mito. O rei foi divinizado e um templo em sua
homenagem pode ser visto até hoje na acrópole ateniense, no sítio onde provavelmente se encontrava o
palácio da época micênica (cf. Grimal, 1951 e Marinone, ad locum).
XII, 63 Eu, eu sou Orestes... Os versos são tomados do Orestes de Pacúvio, tragédia cuja trama já
foi citada anteriormente (cf. I, 65 e II, 79). O texto de Reynolds traz um locus desperatus na terceira fala
reportada. Para as longas discussões a respeito da reconstituição desse último verso, veja-se nota ad locum
de Giambelli. Nós o traduzimos a partir da seguinte conjectura: ambo erga una necarier precamur.
XII, 64 Para acolher a sagrada Idea, delegamos o melhor dos homens. Referência a Públio
Cornélio Cipião Nasica, cônsul em 191. Bem antes de seu consulado, em 205 (segundo o relato de Tito
Lívio), considerado o melhor dentre todos os cidadãos, foi designado a conduzir um cortejo de mulheres
que receberia, no porto de Óstia, a imagem da Grande Deusa, Cibele. A imagem foi conduzida a Roma,
primeiramente colocada no templo da Vitória. No ano seguinte, um santuário seria erigido para abrigá-la.
Assim estabeleceu-se no Lácio um culto à deusa que antes era celebrada em localidades próximas ao
monte Ida, na Frígia (cf. Tito Lívio, XXIX, 14 e XXXVI).
Nós tutores enviamos aos reis. Alude-se ao envio de Marco Emílio Lépido ao Egito. Ao que parece,
por pedido dos próprios egípcios (cf. Giambelli, ad locum), Lépido foi enviado como protetor de
Ptolomeu V, de apenas dez anos, após o assassinato de seu pai. A ação se passou entre os anos de 205 e
200 a.C (cf. ainda Woolf e Marinone em suas notas à passagem).
Em favor da salvação da pátria devotaram suas próprias vidas. Apesar de vaga, a referência é,
muito provavelmente, aos Décios, citados em II, 60-61. Veja-se nossa nota à passagem.
Nossos cônsules aconselharam... a se precaver contra um veneno. Em 278 a.C., os cônsules Gaio
Fabrício Luscino e Quinto Emílio Pápio revelaram a Pirro, rei do Epiro, o estratagema do médico pessoal
do rei Pirro, que, traidor, pretendia envenená-lo (cf. Woolf e Giambelli, notas ad locum).
XXXIII, 65 A ligação dos homens entre os homens e... A exposição de Pisão (que, como já foi dito,
deriva do pensamento de Antíoco) apresenta neste ponto semelhanças interessantes com idéias expostas
nos textos de Platão e Aristóteles. Essa valoração da parte do honestum que diz respeito às relações sociais
pode ser compreendida à luz da tese (que aparece no Protágoras de Platão, por exemplo) que defende uma
supremacia da justiça sobre as demais virtudes. Na verdade, é como se todas as virtudes partissem da
justiça. A mesma idéia aparece na Ética a Nicômaco de Aristóteles, onde se afirma que a justiça não é
uma parte da virtude, mas a virtude em sua totalidade (1130a8). É bem verdade que o pensamento de
Antíoco deve ter sido influenciado também pela doutrina estóica que defende uma harmonia total entre
todas as virtudes, que seriam aspectos diferentes do belo moral. Quanto aos estóicos, cf. Diógenes
Laércio, VII, 125, passagem em que, sob a autoridade de Crisipo, o biógrafo explica que as virtudes estão

629
implicadas umas nas outras e que quem possui uma virtude, possui todas, pois que elas têm um princípio
comum. Note-se ainda que, no De finibus, a exposição da ligação que existe entre todos os participantes
do gênero humano estará fundamentada ainda na prima conciliatio, isto é, no amor que sentimos por nós
próprios. Para que esse amor se estenda aos demais, o expositor deverá demonstrar que o homem é
naturalmente social. Sob esse aspecto, a exposição guardará importantes semelhanças com a demonstração
dos laços sociais que vimos no livro III (62-63), em que a noção de humanidade fora também deduzida da
prima conciliatio, que, partindo do indivíduo, estendia-se, progressivamente, de uma esfera a outra das
relações sociais, até abranger a totalidade do gênero humano.
No início da gestação: ao utilizar satu e não ortu, acreditamos que se quis chamar a atenção para o
fato de que a afeição que os pais (sobretudo a mãe) sentem pelos filhos é anterior ao nascimento e já se
manifesta nos meses de gestação.
A devoção: Entretanto, pietas, neste ponto, não parece ter conotação religiosa. Deve-se entendê-la
como uma virtude social que não se refere (ao menos não exclusivamente) à reverência aos deuses.
XXXIII, 66 Traço congênito civil e público... que os gregos chamam politikovn: Preferimos
“público” a “popular” como tradução de populare, uma vez que a segunda opção traz conotações
indesejáveis ao contexto. É celebre o passo já citado da Politica de Aristóteles (1253a3), em que o homem
é definido como animal político por natureza (cf. nota a III, 62). O advérbio quasi marca a tentativa de
tradução do adjetivo grego por meio de duas formas latinas. Giambelli (ad locum) argumenta que o uso do
advérbio indicaria que a tradução proposta no De oratore (III, 109), em que ocorre a expressão politici
philosophi, não devia ser bem aceita ou muito divulgada. Acreditamos, por outro lado, que talvez a
perspectiva do autor tenha mudado, e aqui, no De finibus, como parte de seu projeto filosófico, ele tente se
servir, como defende na discussão sobre a tradução do início do livro III, de expressões mais usuais da
língua latina.
XXIII, 68 De tal forma que se podem reconhecer dois gêneros de coisas que devem ser buscadas
por mi mesmas... Este período é objeto de grande discussão entre os críticos. Giambelli e Hutchinson (em
notas à passagem) argumentam que, em primeiro lugar, a partir do que foi dito, apenas da justiça se pode
afirmar, sem maiores demonstrações, que ela se volta aos outros. Por outro lado, diz Giambelli, considerar
que amigos, irmãos etc. devem ser buscados por si próprios é algo que se choca com o fundamento da
exposição, isto é, que o sumo bem do homem estaria contido em sua natureza. Haveria aqui, segundo o
italiano, uma incoerência criada por uma formulação infeliz da parte de Cícero (ou de Pisão?) que trata os
bens externos não apenas por expetendi, mas por propter se expetendi. Mais adiante, veremos que os
amigos são buscados porque, sendo eles virtuosos, eles nos auxiliam na busca da própria virtude. Os
problemas do período, na opinião de Hutchinson, advêm do uso que Antíoco (auctor da exposição) faria
da distinção estóica, apresentada em III, 55, dos expetenda entre pertinentia e efficientia. Para os

630
representantes do Pórtico, apenas a ação reta é pertinentia, ou seja, constituinte do sumo bem. Na
concepção de Antíoco, que expõe pensamento dos peripatéticos por meio de um instrumental estóico,
também os bens corporais e externos seriam pertinentia. Daí Pisão poder afirmar que amigos e outros bens
externos sejam expetendi, ainda que eorum nihil est eius generis ut sit in fine atque extremo bonorum.
Dessa argumentação decorre outra distinção, que será apresentada mais adiante, entre a uita beata e a uita
beatissima. A primeira é alcançada simplesmente pela virtude, pela ação honrosa. A segunda, porém,
depende também dos bens do corpo e dos bens externos.
Cumprir... o dever se encontra entre as ações retamente realizadas, que têm origem nas virtudes...
A distinção tão radical, proposta pelo estóicos, entre recta actio (ou perfectum officium) e inchoatum
officium aparece bem menos marcada no pensamento de Antíoco. Ainda que ele distinga, a seguir, as
maneiras como o sábio e o homem comum cumprem o dever, Pisão não hesita em identificar aqui officium
e recta actio.
XXIV, 70 A quem a descida do Tibre, no célebre dia festivo... Pisão compara duas situações
semelhantes, embarcações que navegam pelas águas do Tibre; no entanto, as circunstâncias são diferentes.
O dia festivo aludido é a festa de Fors Fortuna (cf. Ovídio, Fasti, VI, 774 e ss). Essa celebração, instituída
pelo rei Sérvio Túlio (cf. ainda Varrão, De lingua latima, VI, 3), ocorria no mês de junho e consistia em
um cortejo que seguia pela terra, às margens do rio, e pelas águas, em pequenas embarcações. O festejo
era regado a muito vinho. À alegria fútil dessa celebração (tanta laetitia), Pisão contrapõe o
contentamento (tanto gaudio) do cônsul Lúcio Emílio Paulo, que, em 168 a.C., após vitória na guerra
contra os macedônios, aportou na cidade, trazendo cativo o rei Perses como troféu para a celebração de
seu triunfo. Consta que Emílio havia sido cônsul ainda em 182. Uma observação se faz pertinente. O
festejo citado é bastante significativo, uma vez que se trata de celebração à deusa que personifica a sorte, a
fortuna. Ora, desenha-se, na contraposição entre as duas formas de júbilo, a contraposição que será mais
desenvolvida ulteriormente entre o bem seguro que se identifica com a virtude e os bens precários que
estão sujeitos a circunstâncias externas. Cabe recordar a informação dada por Marinone (ad locum): o
cônsul perdeu um de seus filhos pouco antes da celebração de seu triunfo e, poucos dias depois, perdeu o
outro. A seqüência do texto nos faz pensar que dificilmente os exemplos foram escolhidos aleatoriamente.
Há ainda um elemento interessante: o cortejo festivo desce o rio, navegando calmamente com o favor da
correnteza (cf. Propércio, II, 4, 19: tranquillo tuta descendis flumine cymba); a honrosa chegada do
general vencedor se faz em sentido contrário ao da força das águas, já que ele chega a partir do mar.
XXIV, 71 Sem eles, é possível subsistir a vida feliz. Entretanto, em III, 41 (exposiçéao do estóico
Catão), atribui-se aos peripatéticos uma concepção diferente: a de que os bens do corpo são necessários
mesmo para a vida feliz.

631
É um grande exagero dizer que... Crítica aos estóicos que, partindo do princípio da auto-
preservação, negligenciariam, num segundo momento, a preservação do corpo.
XXV, 73 Desprezar as coisas humanas: Interessante maneira de tratar dos bens que não participam
da virtude. Parece haver na própria expressão, utilizada pelo expositor, o germe da refutação: uma vida
baseada apenas nas ações retas, nos deveres perfeitos, não é possível aos homens.
XXV, 74 Mas esses, não foi uma ou outra parte que de nós eles tomaram: o mesmo argumento fora
utilizado pela personagem de Cícero no diálogo anterior. Aqui, os estóicos são, sem hesitação, chamados
de ladrões que portam objetos alheios após terem-lhes alterado a aparência. No mesmo tom de invectiva,
recordemos a passagem em que a personagem de Cícero trata Zenão, fundador do Pórtico, por Poenulus
(IV, 56).
XXV, 75 Não agi de acordo com o que me foi concedido? Pro meo iure refere-se aos direitos
conferidos a ele por Cícero, quando lhe foi proposta a exposição do pensamento de Antíoco e quando lhe
foi concedida a oportunidade de trazer à sua causa o jovem Lúcio. De modo diferente, porém, Marinone
julga que a expressão diz respeito não ao “direito” de falar da personagem, mas à causa que ela defende.
Julgamos que com o verbo commentor Pisão alude mais precisamente (cf. Hutchinson, ad locum) ao fato
de ter-se lançado ao discurso de improviso e, por isso, ter refletido sobre o que diria à medida que falava.
E tanto mais aprovei o que disseste: Passo importante e cuja compreensão não é das mais fáceis.
Talvez, o que a personagem queira dizer é que aprovou a precisão da exposição, já que a matéria será
duramente criticada a seguir. A seqüência do texto, entretanto, parece indicar que Cícero quis dizer de fato
que aprovou as idéias expostas. Se é assim, sua afirmação é irônica e esconde sua convicção íntima, que
será explicitada a seguir? Ou a personagem teria motivos para aprovar ao menos parcialmente a exposição
de Pisão? É o que a resposta de Pisão parece sugerir, assim como o comentário do jovem Lúcio e mesmo
atitude ambígua da personagem de Cícero. Sobre alguns dos problemas que envolvem a personagem por
meio da qual o autor se representa, veja-se o segundo capítulo de nosso estudo.
Bens e... males do corpo: Os commoda são aqui tratados por bona, o que mostra a despreocupação
com relação à distinção proposta pelos estóicos.
XXVI, 76 Como percebido, como compreendido, como conhecido... Pisão enumera as três etapas da
aquisição do conhecimento, conforme foram estabelecidos pelos estóicos. O vocabulário utilizado aqui é o
mesmo de que se serve Cícero na Acadêmica. Com o primeiro termo, perceptum, contempla-se a
percepção sensorial, resultado do choque dos uisa contra o aparelho sensorial e, por outro lado, o
assentimento, movimento da mente que reconhece a pertinência do uisum. Sobre o assentimento, operaria
a alma, formando uma concepção daquilo que foi apreendido pelos sentidos. A alma como que agarra o
resultado do assentimento. Esse passo é chamado comprehensio. Por fim, a alma submete a comprehensio

632
a contraprovas, tentando testar sua veracidade. Caso a comprehensio se mantenha, chega-se à scientia. (cf.
Academica I, 41-42).
Pois não é por nenhuma outra razão que eu considero... Esse início de parágrafo parece corroborar
a concepção de estudiosos modernos que pensam que o probabilismo acadêmico é antes uma crítica ao
critério de verdade dos estóicos, tido por estes como infalível, do que uma filosofia positiva de fato. A
questão para Cícero (como podemos deduzir as discussões representadas na Academica) gira em torno do
rigor excessivo que os estóicos estabelecem para o critério de conhecimento. Para os estóicos, uma
percepção é verdadeira ser for causada por um uisum (ou fantasiva) que advenha de um objeto real e
represente esse objeto. Para que seja verdadeiro, o uisum deve carregar consigo a marca da verdade, isto é,
deve ser possível, àquele que percebe, reconhecer a necessidade de que aquilo que ele percebe seja
verdadeiro. Para os acadêmicos, porém, não pode haver uma ‘aparição’ que garanta infalivelmente a sua
veracidade. Uma alucinação, por exemplo, pode trazer em si todas as marcas da verdade; no entanto, não
representa um objeto real. Portanto, aqui, a personagem de Cícero afirma que estaria disposto a negar a
possibilidade de conhecimento, caso o critério seja o estabelecido pelos estóicos. Parece-nos, como
argumentamos acima, que a atitude busca, sobretudo, demonstrar a precariedade da teoria do
conhecimento estóica e sua inaplicabilidade.
Mas deixemos essa questão de lado, pois há nela uma discussão bem longa... O problema do
conhecimento conforme o estabelece o litígio entre estóicos e acadêmicos foi desenvolvido em uma obra
cuja composição é quase simultânea à do De finibus, a saber, os chamados Livros Acadêmicos, ou a
syntaxis Academica. Veja-se o segundo capítulo de nosso estudo.
XXVI, 77 Ou, pelo contrário, se é isto que aprovas, negas... O anafórico id não pode se referir,
como pensa Marinone, à primeira alternativa, sob o risco de que a tradução resulte incoerente, como, aliás,
ocorre com a do italiano.
XXVI, 78 Pois aquelas coisas que eles não ousam chamar males... Pisão defende, portanto (como
já fizera a personagem de Cícero no livro IV), que o desacordo entre os antigos e os estóicos é meramente
terminológico.
Qual seja o ponto de que se trata: Observe-se que a passagem retoma expressão jurídica
mencionada no início do livro II (3). Aqui, no entanto, o uso parece apontar não para a matéria em geral
(que é o valor da fórmula no livro III), mas o ponto nevrálgico, por assim dizer, de uma questão sobre a
qual se discute. Ou seja, Pisão seria perito em reconhecer o que numa causa é supérfluo e o qual seja o seu
ponto principal.
Estou bem aqui: literalmente: “estou aí”. O tom é nitidamente familiar, tendo em vista ser expressão
que se encontra em Terêncio (cf. Hecyra, 114), ou seja, que pertence ao registro da comédia, e, por isso, é
mais próxima da fala coloquial.

633
XXVII, 79 Como se tomado a um oráculo, profere isto... O dogmatismo de Zenão é comparado,
ironicamente, à fala da divindade, reveladora e indubitável. O mesmo recurso já fora utilizado, no livro II,
para tratar da presunção de Epicuro. As Máximas, por exemplo, foram comparadas a oráculos em II, 20 e
102.
XXVII, 80 Com vão fervor: em sentido próprio, ebullire é “ferver”. Em sentido figurado, o verbo se
refere àquilo que se diz em alto e bom som, com ênfase, mas de maneira vã, sem fundamentação.
Que delícia! Nada disso me aflige! O magister das Tusculanas satiriza Epicuro com expressões
muito semelhantes a respeito da negligência da dor por parte do sábio epicureu: quam suave est, quam hoc
non curo! (II, 17). Cf. ainda De finibus II, 88.
Por ele ter em tão alta conta a natureza do bem... Passagem que traz problema de leitura. Alguns
editores trazem aberret ou abeat em lugar de habeat (cf. Madvig, ad locum). Se tomarmos tais sugestões o
texto ficaria assim: “porque ele se afaste tanto no que diz respeito à natureza do bem” Ou seja, a crítica
não diria respeito à concepção que o filósofo tem acerca do sumo bem, mas, como se verá a seguir, à falta
de coerência em sua argumentação. Há uma possibilidade de leitura, porém, que prescinde de correção
textual. É essa, justamente, que nós seguimos. Ela se baseia na interpretação de Giambelli (cf. nota ad
locum): a idéia é que Epicuro dá tanto valor ao bem natural, que, mesmo em meio a tormentos, o homem
pode ser feliz. Ou seja, Cícero não criticaria Epicuro por este conferir tal valor ao bem, que lhe tornaria
suficiente para fazer o homem feliz. A crítica é quanto à incoerência, já que o bem que ele defende é
justamente a ausência de dor.
Até mesmo das unhas... Falar em integridade das unhas é, sem dúvida, ridicularizar o apego dos
peripatéticos aos bens corporais.
XXVII, 81 Quanto às coisas externas, tu foste... comedido... No sentido de não as ter considerado
tão importantes quanto os bens corporais (cf. Hutchinson, ad locum, que diz que devemos subentender
algo como laudasti nesta oração). No discurso de Pisão, o tratamento dos bens externos se encontra nas
seções 67 e 68.
XXVII, 82 Q. Metelo... o célebre Régulo... Dois paradigmas de felicidade são contrapostos.
Admitindo que ambos tenham sido sábios, o primeiro é aquele foi agraciado pela fortuna, tendo desfrutado
de todos os bens de uma vida de prestígio, de êxito militar, de sucesso político e de felicidade na esfera
familiar. O segundo representa o homem íntegro que, no entanto, viveu vida desafortunada, tendo morrido
torturado, cativo em país estrangeiro. Quinto Cecílio Metelo, dito Macedônio, por ter submetido essa
nação em 148 a.C., foi cônsul em 143. Teve quatro filhos cônsules. Três deles ocuparam o cargo maior da
República durante sua vida: Quinto, em 123; Lúcio, em 117 e Marco, em 115. Houve ainda Gaio, cônsul
em 113, depois da morte do pai. Duas de suas filhas tiveram casamentos com gente influente da cidade.
Uma com Gaio Servílio Vácia, pretor em 114; outra, com P. Cornélio Cipião Nasica, cônsul em 111. Não

634
há informação histórica sobre a terceira filha aqui mencionada (cf. Marinone, ad locum). Sobre Régulo,
que, poderíamos dizer, encarna no imaginário romano a virtude da fides, ver II, 20, bem como nossa nota à
passagem.
XXVIII, 83 É admirável, no sistema deles, o enlace que é tecido entre as coisas... O louvor feito
pela personagem de Cícero concerta com o passo final da exposição apresentada por Catão no livro III
(74). Mas, na verdade, o teor é mais próximo de uma passagem do livro IV (53), em que a personagem de
Cícero admite a coerência (como aqui) do sistema, mas desconfia da veracidade dos princípios que, sendo
falsos (como ele afirma lá), produzem conclusões falsas.
XXVIII, 84 Não tem mais graus... O texto de Reynolds, que seguimos, traz a correção <magis> e
expurga do texto tam, que aparece, segundo Giambelli (ad locum), nos piores códices.
XXVIII, 85 Pois se tu me fizeres vir diante do povo... Ou seja, se esta questão fosse resolvida diante
de um júri popular, tu não conseguirias provar que o homem virtuoso, mas acabrunhado por males, é feliz.
O senso comum não aceitaria, portanto, a tese de Pisão. Mais adiante, homens prudentes, designaria,
segundo pensa Giambelli (ad locum), os acadêmicos que mantêm a postura probabilista de um Fílon, por
exemplo.
XXVIII, 86 Por acaso, então”, disse ele, “não te parecem males?” Pisão reluta em entender a
posição adotada por Cícero. A aprovação do livro de Teofrasto não se faz de modo cabal. Cícero continua
a pensar na coerência da argumentação: se Teofrasto defende que a dor, a doença etc. são males, seu
pensamento é coerente e, sob esse ponto de vista, merece aprovação.
“Mas que tu o leves, se ele te seguir; tudo bem. Pois ele estará comigo, se contigo estiver.” Eis uma
importante e inquietante afirmação. Acreditamos que a personagem de Cícero queira dizer aqui que,
embora haja uma incoerência no sistema de Antíoco, isso se dá por conta de uma diferença terminológica.
O problema é mais quanto ao detalhe do que com relação ao fundamento do sistema moral. Em um e outro
sistema a virtude está assegurada. Se Lúcio decidir seguir Antíoco, não estará tão afastado da moral que
defende Cícero. Discordamos do que diz Marinone, em nota à passagem. Cícero não pode estar querendo
dizer aqui que, como acadêmico, é capaz de aceitar como prováveis algumas teses peripatéticas.
Poderíamos chegar a essa interpretação se a personagem que representa o autor tivesse dito: “se ele estiver
comigo, estará contigo”. Ora, estando ao lado de Antíoco, Lúcio poderá seguir dogmaticamente as teses
do filósofo de Ascalona. Se assim for, não será nem um pouco acadêmico. A posição de Cícero é, de fato,
acadêmica. Ele está mais interessado em mostrar as inconsistências do sistema e em apontar para as falhas
de cada uma das escolas que pretendem fundamentar a moral na natureza.
XXIX, 86 Conforme afirma Teofrasto... Provavelmente no peri; eujdaimoniva", citado acima.
Giambelli (ad locum) tem uma interessante interpretação, ainda que hipotética, para o termo auctoritas.
Ele significaria algo como “ponto de partida”, “princípio fundamental”. A sentença toda, em sua opinião,

635
seria uma tradução de frase grega do texto de Teofrasto. Recordemos que, de fato, o auctor pode ser
aquele que dá início a um processo qualquer: um processo legal, por exemplo. Assim, a auctoritas poderia
ser a prerrogativa daquele (ou daquilo) que põe em movimento alguma coisa. Ainda que não possamos
senão conjecturar a respeito do texto de Teofrasto, julgamos que o sentido do termo auctoritas neste
contexto é justamente o defendido pelo filólogo italiano. Outras interpretações menos ousadas,
consistiriam em pensar auctoritas como “peso”, ou “importância”.
XXIX, 87 Por que a Locros, em visita aos demais pitagóricos... depois de ter representado
Sócrates, ajuntasse o ensinamento dos pitagóricos e aprendesse aquilo que Sócrates repudiava?
Interessante notícia a respeito de viagens empreendidas por Platão em busca de conhecimento. Coisa
semelhante é afirmada no De re publica (I, 16). Mais interessante, porém, é a oração cum Socratem
expressisset. O uso do mais-que-perfeito nos indica que Platão já escrevera, antes das viagens, diálogos
em que Sócrates era representado. Talvez fossem diálogos em que Platão expunha de modo mais acurado
e dependente o pensamento de Sócrates. Num segundo momento, tendo retornado desse giro pelo oriente e
pela Itália, Platão já estaria influenciado por outras correntes filosóficas e, se seguiu utilizando a
personagem de seu mestre nos diálogos, já acrescentava ao pensamento de Sócrates idéias que lhe eram
estranhas. Evidentemente, não queremos defender aquilo que implica o texto ciceroniano. Chamamos
apenas a atenção para a importante notícia que nos dá Cícero (seja ela fundamentada ou não) de um
elemento importante da composição dos diálogos de Platão e do desenvolvimento do pensamento desse
pensador grego. Cabe, entretanto uma ressalva: se a viagem é um fato apresentado como certo pela
personagem (veja-se o uso do modo indicativo peragrauit), o mesmo não pode ser dito com relação às
implicações da viagem no pensamento do autor dos Diálogos. O uso dos subjuntivos adiungeret e
addisceret, ainda que numa oração final introduzida por ut, que exige, portanto, esse modo, deixa dúvidas
quanto ao comprometimento da personagem com a informação que ela oferece.
eujqumiva... ajqambiva... a alma livre do terror: o primeiro termo já foi vertido e explicado por Pisão na
seção 23. Já ajqambiva é um substantivo abstrato formado a partida da raiz de qavmbo", isto é: “medo, terror,
espanto”.
XXIX, 88 ‘Sobre a mesma matéria, de um outro modo’. Assim interpretamos praescribi. O verbo
praescribo, ainda que signifique literalmente “escrever no início, à testa”, tem aqui um uso específico do
jargão jurídico. Faz-se referência a uma fórmula de apelação por meio da qual o litigante (cf. Hutchinson,
ad locum) pedia a reabertura do processo, já julgado, por considerar que ele poderia ter sido conduzido de
outra maneira. A mesma fórmula é citada em uma carta: Ad familiares, XIII, 27, 1. No contexto do De
finibus, a fórmula serve para retomar a crítica usual a Zenão, que não teria senão alterado a terminologia
dos antigos acadêmicos e peripatéticos.

636
É algo que tu agora aprovas nele... Este tu só pode se referir a personagem de Cícero. Recordemos,
entretanto, que no início de sua réplica, Pisão se dirigira a Lúcio. Mas, tendo em vista o ponto discutido,
reconhecemos aqui uma crítica ao louvor feito por Cícero à coerência do sistema estóico. Cabe dizer,
entretanto, que Pisão distorce a fala de seu interlocutor, uma vez que Cícero não louvara exatamente o fato
de Zenão ter alterado a terminologia acadêmica.
XXIX, 89 No senado... um intérprete: quando havia, evidentemente, legados estrangeiros que
dirigiam discursos aos senadores.
Julgas que de um modo devem falar os homens, de outro os filósofos? Quando critica o estoicismo e
também o epicurismo, a personagem de Cícero, nos diálogos anteriores, chama a atenção para o fato de a
linguagem utilizada por essas escolas se afastar do uso corriqueiro da língua. Ambas as escolas, além do
mais, defenderiam teses no âmbito privado que não teriam coragem de sustentar diante de uma assembléia
pública. Tais doutrinas não poderiam, portanto, ser aplicadas de fato na organização da vida social. Cf. II,
74 e IV, 21.
Entre os cultos e os incultos... Giambelli interpreta, de modo convincente, que indocti aqui se refira
aos epicureus, os únicos, segundo a interpretação de Pisão, a se afastarem, de fato, da concepção de bem.
A dissensão entre estóicos, de um lado, e peripatéticos e acadêmicos, de outro, consistiria apenas na
terminologia.
XXX, 90 Essa incoerência, tu a fazes residir nas palavras, quanto a mim, julgava que ela residia
nas coisas. O modo como se exprime Pisão pode causar problema de compreensão. Não acreditamos que
ele admita uma incoerência no sistema que defende. Acima (seção 88), ele dissera apenas que Zenão,
porque alterou a terminologia, escapou à acusação de incoerência. Novamente ele distorce a argumentação
desenvolvida por seu interlocutor, pois as críticas apresentadas por Cícero não se colocavam no plano
terminológico apenas. A personagem do autor apontara a impossibilidade de se constituir a felicidade,
caso as vantagens corporais e externas fossem consideradas bens, uma vez que ambas se submetem à
fortuna.
XXX, 91 É próspera... Subentende-se aqui beata. Eis um problema de tradução difícil de contornar:
em latim, beatus pode ser tanto feliz quanto “próspero”, “rico”, “abundante”. Receamos soar estranho a
expressão “uma colheita feliz”. Outra opção é omitir o adjetivo quando aplicado à “colheita”, como, aliás,
ocorre no original. Quisemos, entretanto, em um texto em que a discussão muitas vezes traz problemas em
si mesma, garantir clareza à passagem.
Se vires traço de joio: optamos por uma tradução explicativa. Com o mesmo nome, o latim designa
a aveia, cereal comestível, utilizado à época, entretanto, sobretudo na alimentação de animais. Mas auena
designa outros tipos de planta também e, sobretudo acompanhado do adjetivo sterilis, designa uma erva
daninha que cresce, por vezes, em meio ao trigo (cf. Oxford Latin Dictionary, que cita Virgílio, Bucólicas,

637
V, 37). Devemos notar que Pisão se serve da ironia para introduzir este novo ponto. Ninguém julga
infrutífera uma colheita ou uma negociação se, em meio aos ganhos que ela promova, venha também
algum prejuízo. Do mesmo modo a vida, ele argumenta: se ela é, na maior parte, feliz, pequenos males
não a tornam infeliz.
XXX, 92 A terra, crê em mim, e os mares esse prato superará em peso. Novamente optamos por
uma tradução mais explicativa, pois pensamos que, mais literal, a imagem correria o risco de parecer
ilógica. Por conta do mecanismo da balança, se o prato em que se encontra a virtude pesar mais que o
outro, o prato da virtude descerá e puxará para cima (e não para baixo, cf. deprimet) o outro prato.
Giambelli, entretanto, apresenta uma interpretação que tenta resolver o problema. O prato em que se
encontra a virtude será tão mais pesado que o outro, em que se encontrariam terra e mar, que tombaria
pesadamente sobre a terra, na qual está apoiada a balança (deprimet), acabrunhando com seu peso tanto a
terra quanto o mar. Seja como for, a idéia mais simples, deixando de lado a precisão da expressão, é que a
virtude pesaria mais do que a terra e os mares juntos. Faz-se aqui referência a uma imagem utilizada por
Critolau (que já fora aludida em V, 14), cf. Tusc. V, 17, 51.
M. Crasso... ajgevlasto": identifica-se este Crasso com Marco Licínio Crasso, pretor em 127 (ou
126 a.C.), avô do triúnviro (citado em II, 57). O adjetivo grego que o poeta satírico Lucílio (cf. I, 7) lhe
deu como alcunha significa “que não ri”.
Policrates, de Samos: o tirano de Samos, que obtinha sucesso em tudo que empreendia, querendo se
resguardar da inveja dos outros, foi aconselhado a procurar um motivo qualquer de infelicidade. Decidiu
se desfazer, então, daquilo de que mais gostava, um anel de esmeralda e ouro. Lançou-o ao mar. Alguns
dias depois, um pescador presenteou-o com um peixe. Dentro da barriga do peixe ele encontrou o seu
anel. Cf. Heródoto, III, 40-42.
XXXI, 94 Dioniso, o de Heracléia, ter renegado os estóicos por causa de dor nos olhos. Trata-se de
um filósofo que viveu no século IV a.C., natural de Heracléia, no Ponto. Foi discípulo de Heraclides e
também de Zenão. Teria abandonado o estoicismo, como aqui se relata, por causa de uma doença nos
olhos (cf. também Diógenes Laércio, VII, 37 e 166. No entanto, em Tusculanae, II, 60, diz-se que sofria
dos rins). Passou a defender, então, que o prazer era o sumo bem (cf. Marinone, ad locum).
XXXII, 95 Provações: cf. o valor de aerumnae na passagem II, 118, em que, relacionadas a
Hércules, designam “provações”, trabalhos que devem ser suportados. O termo é, entretanto, qualificado
como uerbum tristissimum. Evidentemente, Pisão faz uma provocação contra os estóicos: o homem feliz
estará sujeito a certos males, mas não a provações como as de um Hércules. Pois, acabrunhados por
aflições extremas, ele não será feliz, como querem os estóicos, ainda que seja virtuoso.
XXXII, 96 Coisa que alguns diziam que lhe faltava. De modo bastante surpreendente para
nós, que conhecemos a amplitude e o vigor das obras lógicas de Aristóteles, a filosofia

638
peripatética era considerada (nos períodos helenístico e romano) como pouco desenvolvida no
que diz respeito à dialética. Cf. III, 41.

639
Bibliografia

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Tipografico-Editrice Torinese, 1980.

3. Outros autores antigos818:


ARISTOTE. La poétique. Texte, traduction, notes par Roselyne Dupont-Roc et Jean Lallot. Paris: Editions
du seuil, 1980.

818
Incluem-se aqui as coletâneas modernas de textos dos filósofos helenísticos e de outros autores antigos.

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ARISTOTELES. Ethica Nicomachea. Recognouit breuique adnotatione critica instruxit L. Bywater.
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