Ondjaki
Ondjaki
Ondjaki
SÃO PAULO
2006
1
São Paulo
2006
2
Folha de aprovação
Banca Examinadora
____________________________________________
Profa. Dra. Maria Rosa Duarte de Oliveira
Orientadora/ PUC-SP
___________________________________________
___________________________________________
DEDICATÓRIA
Aos meus avós, que primeiro ensinaram-me as letras, através de pedaços de jornais e estórias
de um tempo que será sempre presente.
4
AGRADECIMENTOS
RESUMO
ABSTRACT
This dissertation analyses the metaphor dimensions of the word chão/xão in the literary work
"Há prendisajens com o xão " (2002) from the Angolan writer Ondjaki, with the goal to
summarize the author s poetic and makes clear how the corpus of the poems are inserted in a
literary system of countries with Portuguese language and also dialogues with others writers.
The investigation had developed in four chapters. In chapter 1, we established how Ondjaki
production is inserted in a literary system, seen as a macro system (Abdala, 1989), we
attempted to point out some authors and the theme 'land' to locate the work in a time-space of
the Angolan Literature History, that is, showing who are the "others" that precede him. In the
chapter 2, was delicated for the analysis of the corpus, epigraphs and dedicatories in view of
the construction of the metaphoric though of word "xão", based on studies of Valèry (1999)
Fenollosa (1994) and Pound (1997). In chapter 3, " Learning to be ground: the language", we
attempted to reveal the poet procedures to build up a crioulè language and its malleabilities,
making evident the aspects of the orality (quimbundu subtract, for instance) used as resources
for the construction of paronomasia, alliteration and works-assembly. In chapter 4, The
others of the land , we used Glissant concept of rhizome (2005) to conclude how the
resources raised previously lead to the construction of identities, of a "xão" as a poetic land
without frontiers, through the relationship with the contemporary poetry universe in
Portuguese Language.
SUMÁRIO:
1. Introdução ...................................................................................................................9
2. Cap. 1 :Aprender é prender-se....................................................................................12
3. Cap.2: A aprendizagem do eu-chão: a natureza.........................................................22
4. Cap.3: A aprendizagem do eu-chão: a língua ............................................................41
5. Cap. 4: Os outros do chão: .........................................................................................60
6. Considerações finais ..................................................................................................76
7. Bibliografia ................................................................................................................78
8. Anexo A......................................................................................................................85
9. Anexo B......................................................................................................................94
10. Anexo C.....................................................................................................................105
9
INTRODUÇÃO
1
A teoria glissantiana do rizoma versa sobre as relações entre cultura, identidade e língua, dentro de um
contexto de crioulização no Caribe. Acreditamos que essa teoria seja uma das formas possíveis para refletir sobre
o universo que compõe o corpus escolhido para este projeto.
12
O início da literatura angolana teve suas raízes na oralidade como nos adverte Ervedosa
(1979) em seu Roteiro da literatura angolana; entretanto, partiremos de um recorte datado
de 1849, quando da publicação de Espontaneidades da Minha Alma às Senhoras
Africanas , de José Maia Ferreira.
Apesar da obra de Maia Ferreira ainda demonstrar pequenas marcas da angolanidade
(MATA, 2001), o que é possível verificar através da escolha de uma musa européia, a
publicação da obra vem nos mostrar o aparecimento de um público leitor, muito ao gosto do
Romantismo importado das leituras portuguesas.
Iniciado, então, o período de constituição da gênese da literatura angolana, vários
escritores se destacam, entre os quais: Cordeiro da Matta, Paixão Franco e Assis Júnior.
Nestes, nota-se já um desejo de autonomia para Angola (ERVEDOSA,1979, p.55), já que,
durante o séc. XIX, um período de tensões latentes se inicia entre os muitos imigrantes
portugueses e uma pequena burguesia intelectual já formada.
Mário Pinto de Andrade (1975), na Antologia temática da poesia africana, situa esse
grupo de escritores como parte de um período inicial, o das correntes de formação duma
consciência que se fazia presente, principalmente, através dos jornais. Sobre isso, o escritor
angolano Pepetela observa que
Segundo Hamilton (1981, p.55), obras como Segredo da Morta - Romance de costumes
angolenses (1925) de Assis Jr. mostram a dualidade cultural que a sociedade angolana levará
para a literatura do séc. XX, misturando provérbios em quimbundu com o modelo narrativo
europeu, o que caracterizou o primeiro momento do cenário angolano.
Contudo, a partir de 1926, com a ditadura do Estado Novo de Oliveira Salazar, a
imprensa angolana passa a não ter tanta liberdade para continuar com o mesmo processo de
14
produção literária. O período apresenta autores como Óscar Ribas e Castro Soromenho. Em
ambos, temos fases distintas de produção: em Ribas, faz-se o primeiro contato com a tradição
angolana, preenchido, depois pela experimentação no universo da linguagem portuguesa; já
em Soromenho, que começa a escrever em Portugal, temos um escritor que se concentra
sobre temas peculiares ao universo africano, mesmo que muitas vezes note-se o
distanciamento , como neste trecho de Calenga (1945):
As mulheres bateram palmas e riram alto. Elas sabiam (grifo nosso) que o
nome daquela árvore vem de cuangana receber e que os homens só a
plantam no lugar onde se encontram com uma mulher, quando ela é eleita.
(p.196)
2
chefe de povo ou de pequeno Estado africano, esp. na costa ocidental, ao sul de Angola; soma, de etimologia
quimbundu.Fonte: Houaiss eletrônico.
15
Entre outros, divulgam-se os poemas de Agostinho Neto, que será mais tarde o primeiro
presidente de Angola, com forte tendência ideológica, tendo em vista a luta anticolonialista
que se acirra.Isso, como podemos notar na parte final do poema Aspiração:
E nas sanzalas
nas casas
nos subúrbios das cidades
para lá das linhas
nos recantos escuros das casas ricas
onde os negros murmuram: ainda
O meu Desejo
transformado em força
inspirando as consciências desesperadas. (NETO,1976,p.33)
um factor que pode ter marcado uma diferença entre as duas gerações é o das
influências externas. Enquanto a elite do século XIX era muito marcada pela
literatura portuguesa da época, oscilando entre o chamado romantismo e o
realismo, que fazia gala em conhecer e que muitas vezes se gabava de
dominar tão bem como os portugueses, a geração de 1950 tinha outras
leituras e mais universais. Assim, um Agostinho Neto por exemplo
reconhecia ser grande admirador do afro-americano Langston Hughes ou do
cubano Nicolas Guillén e um Mário Pinto de Andrade ou um Viriato da Cruz
eram profundos conhecedores da literatura brasileira de então e da que
começava a fazer-se em África. (PEPETELA, 2003,p.3)
(...)
Eu ainda não sei nem posso escrever o meu poema
O grande poema que sinto já circular em mim
(...)
3
árvore sagrada e simbólica, associada à ligação entre vivos e mortos.
4
danças.
5
alma de outro mundo.
17
A guitarra
é som antepassado.
Partiram-se as cordas
esticadas pela vida.
18
Chorei fado.
Após a retirada portuguesa, inicia-se, entre 1975 e 2002, uma busca constante de
definição para cada produção literária, sem abandonar um projeto estético maior, que pudesse
traduzir a cor local 7, :
É esta visão que percorrerá a literatura angolana até aos finais da década
de 70: a utopia de um país novo que, aprisionado, não pôde realizar-se(...)
Era uma visão alicerçada na pujança virtual edénica da terra, pelo que
também a literatura foi actuante na imposição de padrões culturais e modelos
ideológicos, de que a década seguinte acordará, dilacerada por uma intensa
consciência da uma realidade pragmática e obsessiva. ( MATA,2001, p. 81)
6
tambor.
7
expressão utilizada por Machado de Assis em Instinto de Nacionalidade (1997,p.22), mas aqui queremos nos
referir ao sentido de formação e não ao exotismo.
19
Não se trata, porém, da poesia de combate das décadas anteriores; mas sim de
metapoesia, em suas nuances intricadas entre o fazer poético e as imagens da natureza pátria.
Apesar desses contornos metapoéticos também se realizarem em Há prendisajens com
o xão, a idéia da dinamização identitária se manifesta, mais fortemente, pelo diálogo com a
terra e seus desdobramentos. O mesmo ocorre com outros poetas como Arlindo Barbeitos,
por exemplo, cuja busca para representar o imaginário angolano não abandonou o sonho, e
apurou, esteticamente, a palavra:
Vasconcelos, por sua vez, em Breve olhar sobre os fazedores de nossa literatura
(2003), explica-nos que a literatura contemporânea angolana:
coloca em num só palco três grandes gerações (de Pepetela, Jorge Macedo,
Manuel Rui ao João Tala, Ondjaki e Abreu Paxe), dezenas de actores que
vão poder explorar melhor a interioridade humana. Os defensores da
proposta de divisão em dois grandes tempos da literatura da pós-
independência, certamente procuram ainda identificar as grandes alterações
temáticas, depuração de universos, mitos, isto é, analisar autor por autor,
seus manifestos, dialécticas e pujança de conteúdos. Outro exercício penoso
e necessário será a «verificação» da crítica que corre à volta das referidas
obras e se «em número» correspondem já a uma grande substância literária.
São razões suficientes que devem provocar a divisibilidade do actual
panorama literário angolano e neste exercício encontraremos vários nomes,
diversas origens sociais e até regionais. (VASCONCELOS, 2003,p. 5)
estou a dizer que sou poeta, simplesmente porque sou uma pessoa...
agüentas, muadiê?, diz lá se isso não é já uma frase pra mandar esses gajos irem um mês pra casa
pensarem que a poesia não se faz, se vive; a poesia não se procura tipo diamante, se encontra tipo
arco-íris: ou há ou não há - sorte e azar dos olhos no depois da chuva
(ONDJAKI. Quantas madrugadas tem a noite)
Do chão da poesia
Sobre o fazer poético é que gostaríamos de discutir neste segundo capítulo. Para tal
reflexão, abordaremos alguns ensaios de Paul Valéry incluídos na obra Variedades (1999)
analisando como se dá o pensamento analógico dentro do corpus escolhido; bem como os
conceitos de Fenollosa (1994) quanto à investigação dos elementos universais da forma e sua
contribuição para o funcionamento do mecanismo poético; e de Pound (1997) demonstrando
como se concretiza a metáfora chão, enquanto fundação do eu- poético, ou melhor, uma de
suas dimensões .
Teremos, então, este capítulo composto de análises textuais que exemplificarão
como a palavra chão na sua diversidade de poemas e paratextos do corpus, fazendo um
percurso que partirá do título para o subtítulo, epígrafes, dedicatórias, poemas e verbetes de
dicionários; já que o fazer poético é, também, um exercício de transformar signos, criando
ícones que pincelam universos. A leitura da obra, em questão, não se faz de forma linear, mas
sim de forma simultânea, pois há nela uma reunião de gêneros textuais, que produzem uma
teia de imagens verbais e não-verbais, que colocam o leitor como tecedor desse fio, aquele
que preencherá os espaços em branco, como explica-nos Zumthor:
Embora não seja o viés principal de nossas análises, cabe advertir que essa leitura,
proposta por Zumthor, a que vai além do código verbal, é necessária para Há prendisajens
com o xão, devido à forma gráfica com que os poemas são impressos: todos os versos
23
começam em minúsculas como pequenas raízes fincadas à margem esquerda das folhas, em
uma sugestão de plantas-verso crescendo no chão das folhas-livro9. Diante dessa interação,
onde os códigos se comunicam e se explicam mutuamente (FERRARA, 1986, p.36) exige-
se do leitor um olhar atento, pois os gêneros distribuídos pela obra pedem que o penetremos e
força-nos ao movimento de ir e vir pelas páginas, criam imagens, espaços, cruzamento entre
linguagens, de modo que o livro-objeto também é uma dimensão da metáfora, se o
pensarmos como o chão que sustenta os recursos gráficos que o compõem.
Para observarmos como o eu cria uma correlação com o vocábulo chão -escolhemos
dentre os inúmeros conceitos de metáfora, o que pudesse esclarecer que a função poética
projeta o princípio de equivalência do eixo de seleção sobre o eixo de combinação ,
(JAKOBSON, 1997, p.130) e que este princípio de similaridade é que domina a poesia , já
que, o paralelismo métrico dos versos ou a equivalência fônica [...] impõe o problema da
similitude e do contraste semântico (JAKOBSON,1997,p.62)
Podemos dizer, então, que a metáfora é a substituição do sentido de uma palavra (chão)
por outro significado segundo (como o eu assume o chão), quando entre o seu sentido básico
(terra) e os acrescentados há uma relação de intersecção e analogia (as suas dimensões como
identidade e nação literária).
Ao elaborarmos a pergunta-problema em relação ao nosso objeto- como sistematizar
o fazer poético através das dimensões da metáfora chão -, deparamos-nos com a questão do
fazer poético que para Paul Valèry é o ponto-chave para qualquer reflexão sobre o ser
poético :
A idéia de Fazer é a primeira e mais humana. Explicar nunca [...] é mais
que descrever uma maneira de Fazer: é apenas refazer através do
pensamento. O porquê e como, que são apenas expressões do que é exigido
por essa idéia, inserem-se a todo instante, ordenando que os satisfaçamos a
qualquer preço.(1999, p.98).
9
Em virtude disso, preferimos manter os poemas alinhados à esquerda da folha e não com recuo à direita, como
será utilizado para outras citações, conforme as normas técnicas.
24
do corpus delineado, já que da palavra xão (como um x assinalado na capa feito um mapa)
estabelece-se um liame com a geo-grafia de língua portuguesa, sem deixar de lado os estatutos
da tradição africana através do tema terra como imagem simbólica.
Ao pensarmos por que o título resiste à compreensão imediata, ficamos entre a
estranheza provocada pela grafia das palavras, sua forma e Voz no sentido valeryano e o
pensamento; somos provocados a continuar buscando qual é a fonte dos sentidos, oscilando
entre o valor da palavra escrita como variante oral e os sentidos que podem estar presentes
nos vocábulos xão e prendisajens.
Se entendermos, conforme Valèry, que: a Poesia é uma arte de linguagem; certas
combinações de palavras podem produzir uma emoção que outras não produzem, e que
denominamos poética. (1999,p.197), estaremos, então, inclinados a ler o título da obra por
meio dessa emoção que nos impulsiona a tentar compreendê-la.Ao enunciar a emoção, Valèry
nos ensina, através de sua própria prática, que
Ao confrontarmos com o que Valèry teoriza, notamos que a metáfora chão dentro do
corpus escolhido assume o que ele chama de valores da moeda fiduciária, que ora pela
boca do povo, ora pelas necessidades imprevistas da técnica, ora sob a pena hesitante do
escritor, dá origem a essa variação da língua que a torna diferente (1999, p.175), é a mesma
palavra do cotidiano, mas que vai assumindo valores diferentes.
É nessa medida que a metáfora, sendo pensamento por similaridade traz a correlação
som-sentido entre xão e chão: de um lado a terra, a raiz; de outro o chão poético; a palavra
na sua dimensão de palavra-coisa , de corpo e presença.
O trânsito entre som e sentido nos vocábulos do título, por exemplo, entre
prendisajens e xão requer um exercício do pensamento analógico, porque opera com o som e
o efeito psíquico, gerando o que Valèry chama de irregularidade, embora nos advirta que essa
irregularidade é que traz a condição de fecundidade, ou melhor, as várias formas do chão.
Algo similar nos diz Jakobson sobre o agenciamento fônico na linguagem poética: a escolha
e a constelação de fonemas e de seus componentes (1997, p.114) teriam um poder evocador
de sentidos.
A poesia de Ondjaki, além de prender-se aos elementos naturais como vê-se
em: Há prendisajens com o xão (O segredo húmido da lesma & outras descoisas),
apresenta uma presença forte da oralidade que se agarra à ortografia de determinados
fonemas, criando uma multiplicidade de sentidos: o som provocado pelo há, verbo haver em
terceira pessoa do presente, com sentido de existir, acontecer ou ocorrer funciona como
prefixo para o substantivo prendisajens, temos então: há prendisajens enquanto som-
sentido ao invés de termos apenas a forma escrita aprendizagens. Isso nos leva a uma outra
possibilidade de leitura do título, aliado ao verbo prender, significando comunicar-se, ligar-se
com, embaraçar-se, atar..., ou seja, aprender leva a prender e prender leva a
aprender.Cria-se, assim, um círculo sonoro que evoca o contato entre o chão/ xão para
espalhar-se pelo campo semântico de, praticamente, todos os poemas do corpus,
trapaceando no sentido barthesiano da língua .
Além disso, ganhamos outra possibilidade ao ler o título pensando em sua disposição
gráfica na página ou na capa: a preposição com unida ao artigo o provoca a sonoridade do
verbo comer, em sua primeira pessoa /como/ , come-se o chão, tal qual nos esclarece um
verbete sobre a palavra terra de Chevalier :
26
Visto dessa forma, devemos também pensar como nos aconselha Melo e Castro que
a poesia da África em português,[...] não pode abdicar da sua congênita
oralidade e são, por isso, imagens orgânicas totais e metáforas [...]
consubstanciais (1998,p.137)
pois, uma das peculiaridades do corpus é realizar um trabalho em que existe a possibilidade
de inumeráveis ocorrências de sons semelhantes dentro do sistema língua [nos referimos aqui
à dicção angolana] que cria condições para o surgimento de fenômenos como a paronomásia
e a aliteração( PIGNATARI, 2005,p.17),ou seja, já que opera por semelhança seus efeitos
estão correlacionados.
Temos, então, o que Pound chamou de logopéia, a poesia que ao produzir ambos os
efeitos [fanopéia e melopéia] estimula as associações (intelectuais ou emocionais) que
permaneceram na consciência do receptor (2001,p.61). No que diz respeito aos sentidos do
chão, a linguagem carregada de significado até o máximo grau possível (2001,p.32), cria
um processo tal que a cada vez que a metáfora chão insere-se em um poema ou verbete estará
irradiando para novas forças e tropos.
Há prendisajens com o xão, desde o título, vincula-se, assim, à vivência afetiva, a um
saber-sentir territorializado cuja inscrição se faz com barro, areios, grãos; em uma semântica
de fertilização, como veremos a seguir.
CHÃO
apetece-me des-ser-me;
reatribuir-me a átomo.
cuspir castanhos grãos
mas gargantadentro;
isto seja: engolir-me para mim
poucochinho a cada vez
um por mais um: areios.
10
ONDJAKI. Há prendisajens com o xão. Lisboa: Caminho, 2002. A partir daqui, usaremos a referência
abreviada para a obra ( Há prendisajens) acrescida do número da página .
27
11
Em Actu sanguíneu (2000), seu primeiro livro de poesias, Ondjaki já deixava uma semente do poema Chão,
em um verso do poema II da série Azul chama-me átomo e cospe-me (p.54).
12
Glissant chama isto de multilingüismo, pois invoca também um imaginário da língua; sabemos que
escrevemos na presença de todas as línguas do mundo,(...) o que não significa conhecer todas as línguas do
mundo. Significa que no contexto atual das literaturas e da relação poética com o caos-mundo, não posso mais
escrever de maneira monolingüe (p.49)
28
aminúsculo: sensação inexplicável e também inexplicada.só pode ser sentida por voadores ou por
quem já saiba praticar voolêncio. ( Há prendisajens, p.65)
voolêncio: um voo munido de silêncio. vivência intensa de um silêncio.acto mais alcançável para
quem saiba fornicar com pele libertando sêmen que grita de estar sozinho.(Há prendisajens, p.61)
como se adormecidamente.
para saber silêncios
o mosquito voa acontrário
soprando para frente.
assim toda locomoção perde o segredo
todo o vento se desmistifica.
como se antecipadamente.
para domar zumbidos
o mosquito faz andamentos na pluma do ar:
usa pata, patinhas, patitas.
sons enveludados
_repletos de aminúsculo.
mas! o segredo:
mais que asa
para deslocamentos
o mosquito usa alma.
borbulha _ é um resultacto de fornicação.
comichão _ é um sêmen denunciando solidões.
como se amosquitadamente.
...
para voar com(o) mosquito
somente use um voolêncio.(Há prendisajens, p.26-7)
dentro de seu projeto literário, uma entrada para a palavra escrita em termos de
13
instrumental de sobrevivência (SÁ,2004, p.238).
Sabemos que uma das abordagens possíveis para a obra de Clarice é o uso das figuras
de linguagem, como a metáfora insólita, arquitetando o texto e provocando no leitor a
estranheza. Diante da expectativa da dedicatória, Silêncio no voo dos mosquitos é fruto de
uma estratégia subvertida, o mosquito aqui voa acontrário , em silêncio, considerando que
mosquitos são incômodos e antagônicos ao silêncio; já que o zunido é um ruído irritante e o
vôo, sempre provocativo, veloz, muitas vezes não nos dá chances de conseguirmos alcançá-
los e eliminá-los como desejamos.
Lembramos, aqui, da barata na obra de Clarice, o desejo de exterminá-la, em A quinta
história, a impossiblidade do mesmo ocorrer, pois está entranhada na massa do mundo, assim
como os mosquitos que segundo o verbete do dicionário, é um símbolo de agressividade.
Ele procura obstinadamente a vida íntima de sua vítima e se alimenta de seu sangue
(CHEVALIER,p.623),o que nos remete à palavra voolêncio . São seres alados e minúsculos,
que por vezes nos repugnam, nos deslocam de nossa rotina, incomodando, zoando,
multiplicando-se.
O recurso do estranhamento, utilizado por Ondjaki, revela-nos a idéia de continuidade,
de infinitude, de experimentação formal em poemas que se imiscuem em outros gêneros, em
especial, nos verbetes presentes na obra, tecendo diálogos com a nação literária. A escolha
deste poema, no qual o vocábulo chão não está presente, tem como objetivo demonstrar
que, mesmo quando a palavra chão não ocorre enquanto metáfora ( embora esteja no campo
semântico pelo termo aterrizagens em verbete) está representada pela construção labiríntica
que os termos criam, ao enraizarem-se por toda a obra:
mosquito: primo da abelha no que toca à surdez. pratica aterrizagens em humanos ouvidos, onde às
vezes acaba por falecer. de nascer em charcos, ganha dependências para a sede, mas enquerendo
sangue. biologicamente foi autorizado a praticar fornicação com a pele, lém de com sua respectiva
mosquita.domina o dom alquímico nominado aminúsculo . (há prendisajens, p.58)
13
Trata-se da interpretação que Olga de Sá faz em Travessia do Oposto ao abordar a maiêutica da linguagem
de Clarice Lispector.
31
portanto o poeta, ao utilizar-se de tal gênero, como especialista e leitor, procura atribuir
sentido poético a um discurso não-poético.
Percebemos a postura metapoética, quando lemos que o primeiro dicionário intitulado
-BICHOS CONVIDADOS ( DE A A Z)- possui uma ordem alfabética, situando a natureza
dentro de um círculo previsto de acontecimentos, enquanto as expressões poéticas do
segundo dicionário OUTROS CONVIDADOS OU DESCOISAS ( DE Z A A) - precisam
estar fora da ordem, em alinhamento com o que diz, ou melhor, com o que faz a poesia.
Um primeiro olhar mostra-nos uma espécie de caos, o verbete que ali está não basta, é
preciso desconstruí-lo. Temos novamente o que Barthes (2002) chama de função utópica , a
língua não foi suficiente para abarcar todos os sentidos dentro do poema, este precisou
expandir-se em outras formas, marcando então uma das peculiaridades do corpus: desdobrar-
se em outros gêneros além do verso para permitir-se mais diálogos, mais vôos.
Retomemos a capa da obra, agora no seu subtítulo: (O segredo húmido da lesma &
outras descoisas). Ao lermos a palavra segredo temos a impressão de que prender- aprender
é uma revelação a ser garimpada no caracol (eterno retorno em sua forma) carregado pelo
molusco que se arrasta pelo chão. Do subtítulo ao verbete poético, dentro do próprio livro,
temos o movimento metalingüístico:
lesma: mestre em tudo que acuse molhadez, é a dona de uma vivência lentadinosa _ o que produz
intimidade com o conhecimento.consegue alcançar tacto íntimo com todiqualquer chão.de tanto
imitar a noite ficou negra.(Há prendisajens, p.58)
Como quem ouve o mestre experiente lhe contar um segredo, Ondjaki leva ao
subtítulo da obra a lição: a saliva úmida caracteriza a Voz, o que dá consistência aos
deslocamentos entre a palavra vocalizada, grafada e transformada em elementos da
natureza.
O mistério da lesma14 está na sua umidade e lubricidade, na maneira manoelina
de farejar o chão e criar por meio das palavras úmidas do poeta, a gosma que prende os
sentidos. Arrastando a casa, sua concha, a lesma desloca-se lentamente em sua forma
produtriz (VALÉRY, p.96). A lição transformada em segredo por Ondjaki está na
idéia de progressão do pensamento analógico quando o eu se transfigura em elementos
da natureza, gerando o poema SEGREDOS:
chovo-me em folhas
em abano de árvore
banho-me de pingos
com picos chuviscados.
cuspo pés de relva
mas abocanho terras
bitroncalizo galhos
para manusear estalidos.
atropelo-me por bichinhos
para xinguilar15-me em cócegas.
salivo sóis
pondo língua em estendal.
furo peles
para o chão sanguenhecer-me
desatribuo vestes
chibatando-me de ventos.
desorbito olhos
e reorbito-me em luas.
para fraldas
uso nuvens.
14
A imagem da lesma perpassa muitas obras de Ondjaki de forma recorrente como ocorre em Há prendisajens
e Bom dia camaradas (2000), em uma passagem em que o narrador descreve o jardim de sua casa: No jardim
havia umas lesmas que deviam ser mais velhas porque acordavam sempre cedo.Eram muitas. Depois do
matabicho, ficar assim ali na varanda com aquele fresquinho, ver as lesmas irem não sei aonde, aquilo dava-me
sono outra vez. Adormeci mesmo. (p.24)
15
estremecer,termo usado em Angola, quando se está sob influência dos espíritos, em transe.
33
afogueiro-me fumos
desumanizando cheiros.
para iluminar mundos
invoco pirilampos
enquerendo saltitar
apulgo-me.
em comichões
aguardo terramotos.
para paz
prescrevo assilêncios.
para repaz
procuro âmagos.
chovo-me em lágrimas
em sacudir de mins.
para segredos húmidos...
só respeito a lesma. ( Há prendisajens, p.18-9)
ser que alumia um mundozito de cada vez e ajuda poetas a encontrar iluminossílabos desprovidos de
grande significação. ( sabe por que minha luz é tão mínima? é que estou procurar coisas dentro de
mim mesmo... )( Há prendisajens, p.59)
desorbito-me olhos/e reorbito-me luas: assim todo noitidia é uma lua cheia. para ver desumanidades -
isto seja, em exemplo a guerra uso o lado escuro da lua. (Há prendisajens, p. 65)
Apesar do reticente isto seja, em exemplo , notamos que o eu lança seu olhar para o
céu na busca da repaz , procurada noitidia , mas há a desumanidade da guerra até mesmo
na lua, elemento constante em vários poemas da obra, e como a lua em fases o eu- chão
prescreve para a fase- nação16 uma receita de paz em forma de silêncio; suspende a palavra,
pondo a língua em estandal17 .
Ao trazer a natureza para o universo poético de Há prendisajens com o xão, os versos
de Ondjaki parecem evocar, também, outra teoria que julgamos complementar ao pensamento
valeryano: a concepção de metáfora de Ernest Fenollosa que a vê como a utilização de
imagens materiais para sugerir relações imateriais (CAMPOS, 1994, p.127), já que as
metáforas originais se dispõem como uma espécie de fundo luminoso, emprestando-lhes cor e
vitalidade, forçando-as a se aproximarem da concretude dos processos naturais. (CAMPOS,
p.128). Por meio disso, o pensamento poético trabalha por sugestão, acumulando o máximo
de significado numa única frase replena, carregada de brilho interior (CAMPOS, p.132);
portanto como recurso, a metáfora dissolve a indiferença em milhares de matizes de verbos.
Suas imagens derramam sobre as coisas jatos de luz variada, com o irromper súbito de
fontes. (CAMPOS,p.135)
16
Vale ressaltar que Há prendisajens com o xão é editado em 2002, no mesmo ano do acordo de paz em
Angola entre MPLA e UNITA.
17
Varal.
35
Há aí um diálogo com o que Valéry chama de pêndulo poético (1999, p.205), ou seja,
o pensamento poético faz com que tomemos a parte pelo todo em processo metonímico (a
lesma e a umidade), a imagem pela realidade abarcada pelas metáforas (o chão nos poemas).
A metáfora chão trabalha ao longo do corpus como esse pêndulo, ora transferindo sua
força aos elementos da natureza, ora transferindo sua força para o diálogo com outros
escritores. Nas duas situações, o que impulsiona o ato poético é a forma com que a linguagem
se manifesta: o termo chão está sempre reclamando uma forma que transfira a força para um
outro termo que lhe dê suporte. Em Segredos e Silêncio no voo dos mosquitos, vimos que o
chão revela o sangue , tal umidade abaixo do chão-corpo, apenas se conhece pelo toque,
por isso acreditamos que chão evoca, além da identidade como ser social18, o reconhecimento
por parte de um outro. O eu transfere-se na gosma da lesma para a língua de Manoel de
Barros; bem como o mosquito, bebedor de sangue, atravessa o silêncio de Clarice Lispector.
18
Para Pound : A literatura não existe num vácuo. Os escritores (...) têm uma função social definida,
exatamente proporcional à sua competência como escritores. Essa é sua principal utilidade (2001,p.36).
36
humanidade: embora arreceado, convidei. estou assim adoentada... me avisou. assim mesmo,
venha.[veio] por isso lhe prescrevi mais aproximação ao cheiro da terra. o homem é uma catinga da
natureza; esta devia desafastar-se dele ou atentar a correção. mas!, essa, difícil...., difícil...(Há
prendisajens, p. 64)
de tanta risada
a hiena ganhou vício
de lacrimealeijar.
porque um dia
exercitei-me de raiz,
compus-me de lamas.
19
refere-se ao título da obra de Angel Rama, A cidade das letras. Trad. Emir Sader.São Paulo: Brasiliense,
1985.
37
a hiena passante,
desconhecendo.
e, quando parante, irrisonha.
(mas: para testemunhá-la
há que ser existido anedoticamente.)
enraizado pelas espreitações
- subhienado
vitimizei-me de sua goticulares esferas,
íris desfalecendo humidades,
na provação, soube-me:
de tanto risar tanto
a hiena lacrimealeija é sementes.
sementes de flores salinas. (há prendisajens, p.21)
A hiena20, entre risos e lágrimas, não reconhece o poeta exercitando-se em aprender, ser
raiz coberta de lama, não percebe suas lágrimas- risadas umedecerem o poeta, que, de um
ângulo privilegiado, debaixo da lama, espreita...
A forma anedoticamente lúdica, com a qual compõe a cartilha poética do eu postulado
para ser e não ter, desarticula a habitual construção sintática: no interior da palavra-
montagem lacrimealeijar - lágrimas que me aleijam; dessa perspectiva, sendo marcado pelas
gotas, é que se aprende enquanto lágrimas- água propagadoras de sementes; aprende-se
deslocando-se da lágrima da hiena até a semente-flor, tornando-se ciclo, assumindo-se como
planta que precisa do sal lacrimal, dando-nos a importância de cada elemento na concepção
do espaço.Aí o chão é também pista para aterrar lágrimas.
Como em outros poemas, este também é um organismo vivo intra-livro e pode nos
conduzir ao verbete para hiena no qual encontramos uma adivinha, por meio de um jogo de
palavras típico da oralidade; caracterizado pela paronomásia ( em anagrama chora/ri e
chorar/rir) que possibilita o trocadilho (PIGNATARI, 2005,p.17) e nos remete ao eco inicial
(hi-hi-hi/ri):
hi-hi-hi-hi-hiena: no estado em que o mundo está, a hiena já só tem vontade para risos, no entanto,
ponho dúvida: ela ri para não chorar ou chora de tanto rir? ( Há prendisajens, p.57)
20
De acordo com Chevalier, a hiena, ao mesmo tempo um animal necrófago e noturno, representa na África
uma ambivalência pela voracidade e faculdades de adivinhação, constituindo-se numa alegoria do conhecimento,
do saber e da ciência. (p.492)
38
Mas, o fundo do mar que também pode ser chão, como ocorre no poema CADA CHÃO
UMA UNICIDADE no qual há um deslocamento inverso: embaixo do mar também há terra e
um cenário que reflete o mundo acima da água:
21
água-viva.
22
em jogo, em ilusão,em logro.
39
Entretanto no último verso do poema, o só ganha valor de apenas chão, o solo que basta ao
eu- lírico .
Em PARA PISAR UM CHÃO COM ESTRELAS, observamos outro deslocamento do
eu que da terra, agora parte para o céu:
imitando-me ao morcego
intimidei o dia a ser mais vertical
assim o céu ganhou pés
a terra experimentou alturas.
apressas, pedi:
uma noite se antecipasse.
transfigurando conceitos
o palco do mundo vincava-se
de nova encenações.
estrelas chegaram.
lua teve dúvidas para posicionar-se.
encaminhando
andei sobre o céu sob meu pés.
assim revelei-me:
nunca é impossível
pisar um chão de estrelas.
...
logo-logo:
um grilo atirou-se a sorrisos.(Há prendisajens, p.34)
Trava-se um discurso com o dia a quem se pede pressa, pois, ao ganhar o céu, o chão
antecipa a noite. O valor de chão invertido aprende com o morcego, que em verbete:
conhece, na terra, o lado escuro da lua.vive também de gritar mas é grande prescrevedor de
silêncios.pratica desde a infância a arte de pendurar-se ao contrário.conhece o lado avesso do mundo
de tanto olhar para de olhos fechados.(Há prendisajens, p.58)
23
Para Glissant, em sua definição da noção de crioulização: elementos heterogêneos, os mais distantes um dos
outros, são colocados em presença uns dos outros e produzem um resultado imprevisível (2005,p.31)
41
com asa de borboleta se construiu a primeira palavra amarela.essa certeza me aquece muito o coração
e por aí posso emprestar-me a cor do sol _ que inventa o calor. palavra amarelada ou ainda não, é
uma explosão inofensiva, para isso haja um vulcão em cada ser. oiçamos: manga de tão doce já
causa arrepios, mesmo só escutada; avermelhamento _ pode ser de cara ou coração, mas remete para
encabulações amorosas; supremaproximação _ de tom inventoado, pode acusar erotismos ou suados
contactos. ora oiçamos combinações: beijo alinguado logo se prevê humidades, tudo fugindo para
degustação; mão na mão _ nasça assim um novo calor, uma amizade também; desconstruir um
chão que pode ser interno, assim dificílimo de esculpir ao contrário, dada a dureza.
42
comecei assim: como asa de borboleta nasceu a primeira palavra amarela. ( mas) para dizer amarela
convém ter a boca suja com terra. para assistir ao nascimento de uma palavra convém esperar dentro
do chão. para esperar dentro de um chão convém já conhecer uma borboleta _ para perguntar o
caminho das suas asas. (Há prendisajens, p.41-2)
24
Segundo Glissant: não somos praticantes da escrita; somos praticantes da oralidade.Nós nos esquecemos
sempre deste dado banal, conhecido e tão evidente. O contador de histórias crioulo chama-se, literalmente, um
mestre da fala. Mas havíamos esquecido isso. E quando fomos obrigados a realizar a passagem à escrita
(...)fomos confrontados com essa ausência de balizas, de tradições, de continuum da escrita (p.140)
25
Também, sobre as marcas da oralidade para o texto escrito, Ong pontua que: Uma vez que o desvio da fala
para a escrita constitui essencialmente um desvio do universo sonoro para o espaço visual, aqui os efeitos da
impressão no uso do espaço visual podem constituir o foco da atenção, embora não o único .(1998, p.135)
43
26
Já que a origem da palavra latina derivada para o português permite o trocadilho: manus é do mesmo radical
de manga .
27
Para complementar a imagem da borboleta amarela dimensionada para a metáfora chão, citamos a seguir, um
trecho em diálogo com outra obra de Ondjaki, O assobiador (2002) na descrição de um sonho do personagem
Padre: O recinto tornara-se um recanto( ou encanto?) de amarelecidas borboletas infinitesimais, que
desarrumavam o ar, incomodavam a luz, sujavam os bancos e o chão, assassinavam o silêncio, provocavam uma
débil ventania e enchiam o ambiente com a maciez sacudida das suas asas. (p.75) e mais adiante, ao fim do
sonho: O corpo da borboleta e a restante asa definhavam, na dificuldade de manter o voo, e tombavam.No chão
o corpo da ex-voante desaparecia-se, fumechãote. (p.76)
44
Esse é o único dos poemas da obra, mas também do corpus escolhido, em que Ondjaki
não recorre à textualidade africana, quanto ao uso de prefixos e sufixos, ou na recriação de
palavras-montagem. Prefere a imagem da bengala interseccionada ao nome do tigre: tigre-de-
Bengala; dando força à imagem do felino que caça durante à noite, como na escuridão da
cegueira de Borges, em suas últimas décadas de vida. Provavelmente, para alargar a
homenagem, já que Borges é reconhecido pelo apurado uso que fez da normatização
lingüística e de suas formalidades, o eu, em mesuras, faz uso da segunda pessoa28.
Ao reportar-se à cegueira e ao labirinto, temos o segredo do Minotauro29 revelado, nesta
referência intertextual com o conto de Borges; o posicionamento das estrelas dava ao
Minotauro o segredo da saída do labirinto, ou seja, o céu resolve a desorientação do mundo-
chão.
Retomemos, então, a concepção do texto labiríntico e sua ascensão por meio das asas da
invenção30, que segundo Benjamin Abdala,
não se trata de visualizar na volta da estrutura o modelo cíclico ou retilinear
da representação do tempo, mas de reconfigurá-la conforme o movimento
dialético da espiral, que retoma, interfere e projeta essa forma. A forma
artística, embalada por gestos similares, retoma então o modelo e
impulsiona-o, não permitindo assim que ele se petrifique. ( ABDALA, 2003,
p.240)
28
Entretanto, façamos a seguinte ressalva: em Angola, o tom mais formal de tratamento não é o tu, e sim o você,
o contrário do que ocorre no Brasil. Indicamos o não uso da variante angolana de tratamento porque o eu posta-
se, neste momento, em uma forma mais próxima da variante de Portugal.
29
Naquela noite, o céu estava cheio de estrelas. Com insônia, Minos se levantou e foi passear no labirinto que
mandara construir para encerrar o Minotauro. O silêncio tomava conta do mundo. De repente, Minos foi tomado
por uma visão: o Minotauro deitado na relva, contando estrelas com os olhos. Quase que Minos sentia a solidão
que o Minotauro sentia. Quando voltou para o palácio pois ele tinha o mapa do labirinto as estrelas não o
deixavam dormir. ( BORGES, 1998, p.606.)
30
Neste caso, especificamente, Abdala analisa as imagens de ascensão das personagens e dos narradores em
dois romances : Geração Utopia (1992) e Mayombe (1982) do escritor angolano Pepetela, situando-os em
paralelo ao mito de Ícaro.
31
negação da medida metrificada (Glissant,p.111). Para a teoria glissantiana, a vocação da literatura hoje é
corresponder a esta desmedida, através de ritmos e imbricamento de gêneros.
45
toupeira: abandona escuridões apenas para reuniões florestais.nunca quis intimidade com a luz sendo
amante de labirintos obscuros. de tanta pacatez, a toupeira é por vezes esquecida pelos próprios
familiares, não se importando com isso.( Há prendisajens, p. 60)
ter a boca suja com terra: uma das vias é discipular-se à toupeira, ela querendo ou permitindo, senão:
vasculhar um chão como quem busca um cheiro com violência na vontade -, e lhe abocanhe. depois
de sorrir.( Há prendisajens, p. 61)
32
preferimos usar o termo estória como neologismo popular (p.17), e não conto, pelo formato curto
apresentado em Borboletabirinto, assim como explica-nos Rónai, no prefácio de Primeiras estórias (2001), de
Guimarães Rosa.
33
O próprio Ondjaki usa o termo estória ao iniciar Momentos de aqui (2001): E eu mesmo gostava de fazer
colagens das estórias dos mais velhos meu barro prematuro. (p.9) e quase ao terminar a introdução recria o
termo: Nunca mais deixámos de nos boleiar mutuamente, estóriasieu. (p. 10)
34
Ao prefaciar o livro de contos Momentos de aqui (2001), de Ondjaki, o escritor moçambicano Mia Couto
também usa o vocábulo estória, entretanto com outro tom: A literatura é o território sagrado onde se inventa um
chão e nos sentamos com os deuses. O lugar onde, também nós somos deuses. (...)É isto que torna um momento
divino esse pequeno delírio que é o acto de inventar.Este jovem, este Ondjaki, experimentou muito cedo essa
embriaguez. Bebeu dessa poção e agora se tornou em estório- dependente .... ( p.13)
46
Como exemplificaremos a seguir em um trecho do conto Vavó Xixi e seu neto Zeca Santos,
de Luuanda (1964)35 36:
Sorriu; era bom sentir essas falas assim, as festas, o calor das mãos dela na
pele toda, nada que ficava no corpo: nem a fome na barriga; nem o vinho a
pôr as coisas brancas e leves; só um quente novo, um fresco bom, melhor
que o vento que soprava xaxualhando as pequeninas folhas verdes das
acácias, empurrando as flores, algumas deixavam cair as suas folhas
vermelhas e amarelas, parecia era mesmo uma chuva de papel de seda em
cima deles.(VIEIRA, 2004, p. 42)
Na sintaxe, temos alguns indícios, neste discurso indireto livre, de construções com
palavras do vocabulário quimbundu: xaxualhando ; pequenas frases afirmativas típicas da
fala em Angola: parecia era mesmo ; inversões quanto ao uso do adjetivo e do substantivo:
um quente novo e um fresco bom e o deslocamento do valor semântico de festas
significando carinhos dão contornos e ritmos novos à sintaxe portuguesa, sem renegar o
substrato oral: era bom sentir as falas assim .
São estes aspectos que o eu-chão nomeia como despalavreação , momentos em que
inscreve a língua cotidiana ao discurso literário reforçado pelo uso do sufixo -ação e do
prefixo de-, também presente nas palavras desaprendizagem e desmomento que ganham valor
de aumento, de reforço e não de oposição ou separação. Os trocadilhos, com os nomes de Mia
Couto e Guimarães Rosa, ajudam a compor este cenário de aprendizagem com a língua
poética de outros prosadores, que se intertextualiza e aponta para o outro-chão da língua,
aquele que estabelece contatos através das várias formas do registro, dialogando com a
tradição literária dentro de seu próprio corpo comunicativo, neste caso o verbete, revela a
transgressão do discurso literário em relação ao já dicionarizado, pois cria uma nação literária
que se reúne em torno da despalavreação , numa atitude de desautomatização do uso
cotidiano e automático da língua.
35
título abocanhado por Ondjaki35 e recriado em verbete com o nome de Luandino: luuandino vieira.
36
Na obra Quantas madrugada tem a noite (2004), de Ondjaki, temos mais uma referência destes diálogos em
paratextos: o romance é dedicado à personagem- título do romance de Luandino Vieira: João Vêncio, os seus
amores ( 1987).
47
veremos que o valor impresso por Ondjaki para a metáfora chão, a começar pelo título do
livro, é o seu modo de operar o contexto histórico em que vive, uma forma de pensar o
mundo literário e seu funcionamento através do diálogo com outros autores de um
macrossistema literário em língua portuguesa. No poema, a seguir, o sujeito poético dialoga
com o caboverdiano Carlos Barbosa37
PASTOR DE ESTRELAS
para o marinheiro carlos barbosa
companheiro Barbosa
me atraz novidades:
o grilo é um pastor de estrelas...
entorno enternecitudes, assim em
emochões.
o grilo é rasante, gritante, em negrecido.
um bicho do chão, concluímos.
mas aí está , diz-me.
por via do chão ele despe distâncias;
está mais próximo de estrelas, pois...
37
Sobre o autor, vale dizer que Carlos Alberto Lopes Barbosa ou Kaka Barbosa (músico e compositor, criador
do ritmo funanbá - mescla do tradicional funaná em Cabo Verde -com semba e rumba) nasceu em primeiro de
maio de 1947, em S. Vicente, filho de pais foguenses, e cresceu na Assomada, cidade que elege como terra mãe.
Foi militar do exército português em São Vicente, empregado de Agência de Navegação Casa Madeira e
marinheiro de barco alemão.Filiado no Partido Africano para a Independência de Cabo Verde e Guine Bissau
(PAIGC) de 1974 a 1984 rompe com a militância partidária. Hoje, é assessor de gabinete da prefeitura da Ilha de
Sta. Catarina. Também, poeta e escritor, com obras publicadas em crioulo: Vinti Xintidu Letradu na
Kriolu(1984), Son di Virason (1996) e Konfison na Finata(2003) pela Artiletra . Em português, sob o
pseudônimo de Albely Bakar publicou Chão Terra Mai Amo(2001) e ainda Cântico às tradições(2002), uma
coletânea de contos tradicionais.
Disponível em http://kakabarbosa.blogspot.com/2006/09/kaka-barboza-universalista-e-popular.html .Acesso em
30 de agosto de 2006.
48
Novamente, quando do discurso do eu, há uma inversão semântica que recria o uso do
prefixo en-. Na segunda vez, em que o vocábulo entorno é usado, seu valor altera-se
para em torno, com o sentido de estar em volta; assim como encantos altera-se para
em cantos, que pode ser lido como enfeitiçar ou acuar-se, em ambos os casos ocorre
um anagrama sonoro.
Já com em negrecido, o valor semântico não se altera - tornar-se escuro- mas outro
procedimento para a montagem da palavra é utilizado: a preposição em media o som
na parassíntese entre a preposição em e o adjetivo negro, o que não ocorre na
disposição gráfica, embora ocorra no plano fônico.
chãotoria: quando encostando ouvido no chão. que é dizer. quando emprestando ouvido para chão,
assim ouve-se uma ópera-de-chão, à qual também se chama chãotoria. ( Há prendisajens, p. 65)
grilo; de novo é advertido : não queira indagar mistérios./ somente dê-se a ouvitudes:
ausculte o grilo. Nestes versos da fala do marinheiro, os procedimentos lingüísticos
alternam-se entre o culto ( dê-se e ausculte) e a criação da voz popular em ouvitudes,
junção novamente do verbo ouvir e o sufixo para substantivos abstratos tude.
O sujeito poético desloca-se para aprender, esvazia-se das crenças antigas e passa a
olhar para dentro si, como recomenda o mais-velho. Tal gesto materializa-se na expressão
arre e pio-me de silêncios , que pode tanto demonstrar uma inquietude, um enfado por
detrás da interjeição arre, como ser usada para tocar os animais em pastos. O valor
semântico de pio-me também recebe uma carga dupla de significados, pois encerra junto com
arre, o verbo piar, que pode significar dar voz aos animais, ou conter alguém que quer falar,
como em não dê nem um pio . Preferimos lê-las, na sua forma dupla, ao mesmo tempo em
que inquieta-se com as palavras, também imita o gesto do pastor, e no retorno do verso quer
indagar sobre a voz do grilo.
Além deste ir e vir de sentidos, o plano fônico de arre e pio-me carrega a semântica do
verbo arrepiar( espantar, ondular-se, desviar-se do caminho comum); o eu dá-se conta da
transformação, do evento que não é explicado pelo mundo racional, por meio da voz
ascultada ,
ouvitudes: não carece de ouvidos para este estado; implica uma sensibilização de pele apenas _ em
desmultiplicação de poros. ( Há prendisajens, p. 63)
grilo: pastor de estrelas. embalador de noites. de tanto grilar seus sons, conhece cada curva de um
silêncio. bichinho quase inencontrável de dia. ( Há prendisajens, p.57)
E como nos épicos - cessa o canto, o encanto -, a voz do poeta encerra um ciclo, o
eu aceita a máxima final em paráfrase; estabelecendo uma relação com o imaginário do
sendo, de todos os sendo possíveis do mundo (GLISSANT,p. 81), através de outros poetas-
marinheiros: Camões, Eugênio de Andrade e no Cancioneiro de Fernando Pessoa:
Cessa o teu canto!
Cessa, que, enquanto
O ouvi, ouvia
Uma outra voz
Como que vindo
Nos interstícios
Do brando encanto
52
(...) foi também partindo dessa crença que me iniciei nestas prendisajens . barbosa, com sua força
revolta de mar, ele todo é uma calema38 voadora.39e, na mesma alma, uma criança franca. para
existenciar-se escolheu somente ser boa pessoa, daquelas que dão para aninhar amizades. (Há
prendisajens, p.55)
38
Arrebentação, tempestade.
39
Em outro momento e em outra obra, Ondjaki renova o diálogo com Kaká Barbosa através do conto Jangada
pra longe do livro Se amanhã o medo (2005).
53
PENÚLTIMA VIVÊNCIA
quero só
o silêncio da vela.
o afogar-me
na temperatura
da cera.
quero só
o silêncio de volta:
infinituar-me
em poros que hajam
num chão de ser cera. ( Há prendisajens, p, 48)
Temos, no poema acima, uma analogia entre o eu-lírico e um dos elementos da metáfora
chão. A medida em que deseja o silêncio de uma chama, seu calor, o eu quer tornar-se
infinito, quer preencher com cera os espaços deixados no chão. Deseja ser cera porque é ela
quem cobre o chão, os espaços; indica-nos a perpétua ação da chama, derretendo a vela para
que o eu retorne ao chão, ao estado de cera. Ao preencher os poros, reivindica o aspecto táctil
e estabelece novas relações, dando-nos um caráter sinestésico. O título do poema - penúltima
vivência - como um verso, infinituar-se pode nos indicar o desejo de não ser o último, fazer
parte de uma seqüência acesa de vida, fora do texto e dentro da obra, num exercício
metalingüístico, já que este poema é o penúltimo do livro. Se é que podemos dizer que há um
último, pois Geadações & Orvalhamentos recolhe versos espalhados por toda a obra,
insinuando uma idéia de construção constante do universo poético.
Ao transpor para a palavra chão, o silêncio da cera derretida, o poeta nos indica um
dos percursos da metáfora chão, quando ganha sentido de silêncio, o que segundo Ruy Duarte
40
de Carvalho, sempre está na tradição oral da poesia e é ele quem a pontua . Entendido o
silêncio como uma das dimensões da metáfora chão, passamos a vê-lo como signo poético-
40
Poeta, antropólogo, trabalhou como regente agrícola no Sul de Angola, ex-cineasta angolano, é professor da
Universidade Pública de Luanda, foi professor convidado da USP e da Universidade de Coimbra. Em
04/06/2004 esteve na PUC-SP para uma palestra intitulada Travessias da oralidade, Veredas da Modernidade ,
o trecho entre aspas acima é parte de sua fala sobre o silêncio na poesia africana .
54
ideológico, na medida em que busca uma filiação para Ondjaki dentro da literatura angolana,
por exemplo. Para exemplificar esta ligação com o lastro dentro do sistema, mostramos, a
seguir, alguns trechos da obra Hábito da terra (1988), de Ruy Duarte de Carvalho, nas
seqüências Aprendizagem de um dizer festivo e Noções geográficas,
Há um lugar que invade outro lugar e esse lugar estará presente noutro. Não há lugar sem lugar
perdido. (...) De que adianta iluminar-lhe o chão? (p. 10)
Partir de uma palavra. Partir numa palavra. Confirmações possíveis. Fidelidade a quê? Texto, lugar
do encontro (....) (p.11)
Ou uma cratera, uma boca de morna ebulição aonde o mosto amargo das perguntas virasse calda
espessa de respostas, onde ocorresse essa memória funda, a que transmuta o encontro em geração.
Que garantisse o fogo e o espírito do fogo... (p. 18)
Além do formato gráfico bastante diferenciado, ora em prosa poética ora em versos
livres, a obra de Ruy Duarte percorre a tematização lingüística da terra, bem como abraça o
silêncio como marca de contenção com o qual intercala cenas da grandiosidade dos elementos
da natureza - savanas, desertos, grutas- sem deixar de aproximar o texto da vida,
transformando seu chão em matriz de sentidos. ( CHAVES, 1991,p.198).
desertos41 ou o fogo na chama da vela revelam um espaço do texto em que o silêncio aloja-se
para que se transmut[e] o encontro em geração (LEITE, p.140), inscrevendo o espaço
cultural do livro no espaço geográfico. Neste exercício de deslocamento de espaços, seguem
seus textos emudecidos diante da impossibilidade do eu-poético em abarcar, no papel, a
infinitude entre uma palavra e o pensamento, entre um sopro e o corpo do poema, que
encerra o verbete:
quero só/ o silêncio da vela: experimente soprar uma vela ao contrário, e engolir a luz da chama ou a
chama da luz, por instante seu coração resvalará para ceras, só assim se experimenta o poro da vela.
ora, o poro da vela é que emite um silêncio de cada vez. (Há prendisajens, p. 62)
desmiragens;
para não mirar o amor então
estou pedir a cegueira.
aviragem;
uma lua de cera
assinonima-se
a uma luz que era.
implumagem;
na língua de um pássaro
41
Em Quantas madrugadas tem a noite (2004), Ondjaki através de seu narrador- personagem Adolfodido,
revela-nos Ruy Duarte em um parágrafo extenso, mas exemplificador destes diálogos intratextuais que suas
obras apresentam. Transcrevemos a seguir o trecho em que refere-se ao livro Hábito da terra : Qual mata
essa nos desertos lindos da Namibe?, o outro mais-velho que fala nos livros dele, esse com nome de ipslon
Ruy, todos kuvales e leites de cabra (...) que nem sei se tem aquela beleza toda nesses desertos kuvalares de leite
e cabras nos hábitos da terra, ou se é mesmo nos olhos dele que a beleza aplacou e ele depois entorna assim,
falésias, textos dele que vão até lá fora, nos estrangeiros, e lhe convidam depois pra ele ir falar lá, ao vivo e na
voz, os sonhos que ele sentou pra poder escutar... (p.103).
56
Parte da visualidade deste poema dá-se nas três primeiras etapas do texto como se
fossem fases lunares, dinamizando a paisagem junto à linguagem literária para que o poeta
possa recorrer à re-construção estética dos seguintes termos em itálicos:
42
Em Particularidades morfossintáticas do Português , há uma nota explicativa sobre a recorrente
omissão da preposição a diante de locuções perifrásticas (GARTNER, p. 39), explicada pelo autor, pela falta
de processo análogos nas línguas banto (p. 43) referindo-se às particularidades das estruturas subordinadas, no
caso acima, há também a ausência do conectivo que diante do verbo pedir; embora tratemos da língua literária,
a nota visa esclarecer como a oralidade do substrato banto está recriada no verso; procedimento retomado no
verbete deste poema em está poder receber
57
3.implumagem: nesta construção, a mais intricada do poema, as plumas ganham o prefixo in-
, não em seu sentido negativo e excludente, mas naquele que inclui a língua de um pássaro
que alça vôos ao céu lunar, na umidade da saliva. Buscando uma lua cheia, o eu pede luz
reiterando, entre parênteses, não bastar apenas o amor da primeira cena, mas o amor voraz
que preencha os poros do eu-chão-lua, cimentagem; assim o eu como um astronauta ao
avesso em missão exploratória cumpre sua desmissão, não apenas daquele que mira e
observa, mas daquele que dá novos contornos, o eu- tapador- de- buracos .
Com esta imagem, do tapador, um trabalhador braçal, interseccionada ao poeta erige-
se o lúdico com a palavra guante (que em espanhol e em português significa luva ou mão-de-
ferro), da qual o eu ri (riso) surpreso pelo trocadilho, que quebra o tom existencialista do
texto.
A expressão escrevi assim revela novamente, como em Borboletabirinto e
Penúltima vivência, um percurso metalingüístico da palavra poética, a geografia do eu-chão-
lua, que não quer afastar-se do satélite ( na palavra popularesca que o prefixo a- doa ao termo
alongínquo), criando um triângulo amoroso de correspondências em que : eu está para
quinto, mim para chão e guante para lua.
Nesta quarta fase, o poema ganha uma visualidade condensada, quando o eu transmuta-
se em um quinto mim guante numa alusão à lua intercalar43, concebendo uma espécie de
jogo entre o minguar das pequenas palavras, como denunciam os três últimos versos, em que
desintegra o título, distribuído sobre o espaço em branco da página, assim a vista isola
(ONG, p.85) e
os sons intuídos pelas letras devem estar presentes na imaginação,[...] na
sua presença [que] não é meramente auditiva: eles interagem com o espaço
visual e cinestesicamente percebido que os circunda.(ONG, p. 147)
Simultaneamente, há uma alusão à lua minguante (entre as fases cheia e nova), quando
sua parte visível está gradativamente diminuindo, como também exemplifica o verbete:
quinto mim guante: missão de tapar todos os buracos esotéricos da lua. para tal, um sujeito
simplesmente entulha cada cova encontrada com quantidades maleáveis de poesia. exige, ainda,
manuseamentos de poeiras cósmicas. ou: presente que a lua oferece a pessoas da terra, mas apenas
uma minguante multidão está poder receber44. sinónimo de satisfação lunar. mistério. fenónemos
43
a décima terceira do ano (fato que só ocorre de três em três anos). Fonte: Hoauiss eletrônico.
44
Novamente, o procedimento sobre o qual comentávamos na nota 14, retomado no verbete deste poema em
está poder receber em que o poeta faz uso de dois infinitivos sem a mediação da preposição a , para cadenciar
os sufixos verbais -er como rimas internas pelas palavras terra e presente que os antecede no período.
58
acessível ao órgão coração [ também conhecido como cesto-sentido. (...) ou será ressentido?] (Há
prendisajens, p. 62)
Mais do que isso, nas dimensões da metáfora chão, entre labirinto e silêncio, estrelas e
luas, Ondjaki procura traçar seu rizoma com o mundo , criando um maqui47 no título: Há
prendisajens com o xão, ao abarcar vários valores semânticos para a palavra xão. Da
sonoridade quimbundu resgata a forma contraída na palavra terra como lugar, naturalidade48
45
Ana Mafalda Leite, analisa algumas obras do poeta, em Oralidades & escritas(1998). Acima, cito
especificamente um trecho em que ele mesmo pronuncia-se sobre a questão, num fragmento da introdução (p.70)
de Angola Angolê Angolema (1975).
46
Termo utilizado por ONG (1998), ao longo do subcapítulo Oralidade, escrita e ser humano onde o teórico
afirma que tanto a oralidade quanto o desenvolvimento da cultura escrita baseado nela são necessários à
evolução da consciência. (p.195)
47
Segundo a etimologia da palavra: fr. maquis (1775) 'conjunto de arbustos e plantas diversas, característico
dos bosques da Córsega, usado como refúgio pelos marginais por ter uma vegetação densa', (1944) 'lugar em que
os membros da Resistência Francesa se reuniam', de um uso figurado do corso macchia 'mancha', pelo fato de a
vegetação formar como que manchas nas encostas das montanhas, der. do lat. macùla,ae 'id.'; nas acps.
relacionadas a 'membro da Resistência Francesa', esp. a partir de uma expressão corsa prende (ou gagner, ou
tenir) . Fonte: Houaiss eletrônico.
48
Segundo QUINTÃO, 1934, p.208.
59
( xi ) e em seu uso como verbo defectivo (ixi) que significa dizendo49, sem deixar a
reentrância da terminação latina ão, de expansão. Nesta acumulação de valores semânticos e
sonoros, o termo xão faz-se e refaz-se na aprendizagem do dizer, mostra os traços que o
colocam no mundo em relação, em trama poética, camuflando-se na auto-reflexividade textual
e no movimento perpétuo da interpenetrabilidade cultural e lingüística (GLISSANT,p. 147).
49
Também , segundo a gramática do quimbundu, Quintão explica que este verbo serve para introduzir uma
citação textual e equivale ao português dizendo, e não se emprega, senão no Pres. Fut. (p.93)
60
É a maneira opaca de aprender o galho e o vento, ser um si que deriva do outro, a areia na verdadeira
desordem da utopia, aquilo que não foi sondado, o obscuro da corrente no rio liberado. As paisagens
determinam as outras ao longe(...) correm, frágeis,e obstinam-se essas ramificações de linguagens
interpelando-se.
(Glissant)
Nos capítulos anteriores, tentamos evidenciar três aspectos: no primeiro deles, o lugar
com o qual Ondjaki estalabelece as relações de traço50 e lastro que é Angola, através de
autores representativos da literatura deste país. No segundo aspecto, discutimos o caráter
específico das dimensões da metáfora chão por meio de seus desdobramentos na natureza. E
no terceiro, buscamos demonstrar os procedimentos adotados pelo autor, ainda sob à luz da
palavra chão, no que concerne ao uso da língua como matéria literária e a renovação de
gêneros na passagem da oralidade à escrita. Nos dois últimos casos, foi necessário ressaltar
a auto-reflexividade textual para que pudéssemos dar um valor à obra no seu corpo como
livro, expandido enquanto diálogo com outros autores.
Neste capítulo, já a título de conclusão, buscaremos discutir como tais pontos
anteriormente vistos convergem e divergem para compor as aprendizagens do eu-poético.
Para tal análise, recorreremos à teoria glissantiana com cujos conceitos procuramos dialogar
ao longo das análises de dois poemas Que sabes tu do eco do silêncio? e Mas existe?, bem
como seus paratextos em forma de agradecimento, nota do autor e verbete.
50
Ao longo deste capítulo, preferimos citar os conceitos da teoria glissantiana em itálico, para que não
confundam-se com trechos de poemas que foram sendo citados em negrito em meio às análises.
61
Desta forma, entendemos que o diálogo que Ondjaki estabelece com outros autores é uma
dessas formas de viver a cultura, através de um rizoma criado pelos textos e paratextos que
envolvem Há prendisajens com o xão, no aparente caos que essa produção demonstra
enquanto forma. Embora, fique evidente, em alguns poemas a sintonia do poeta com esta
totalidade-mundo, verificamos também que há, parafraseando o que diz Glissant, uma certa
angústia criativa, como ser si mesmo sem fechar-se ao outro; e como consentir na existência
do outro, na existência de todos os outros, sem renunciar a si mesmo? Essa é a questão que
perturba o poeta (...) (GLISSANT,p.46)
Diante de tal pergunta, procuraremos refletir, como essa angústia criativa encontra lugar
nos ecos que perpassam o primeiro dos poemas escolhido para exemplo:
62
um só olhar
bastou um desamor.
sei: a solidão
pode reciprocar
um só silêncio
já silenciar um eco
Este poema formula uma resposta, por meio da dedicatória e do título, a um poema
de Paula Tavares 51, cuja poesia caracteriza-se pela delicadeza de imagens compostas por
51
Ana Paula Tavares nasceu na Huíla, Sul de Angola, em 1952.É historiadora, mestre em Literaturas Africanas
de Língua Portuguesa. Em Angola, publicou Ritos de Passagem (poemas) UEA, 1985. Em Cabo Verde, Praia, O
Sangue da Buganvília em 1998. Na Editorial Caminho publica em 1999 O Lago da Lua (poemas), seguido de
Dizes-me Coisas Amargas como os Frutos (poemas) em 2001 ( Prémio Mário António de Poesia 2004 da
Fundação Calouste Gulbenkian), em 2003 Ex-Votos (poemas) , em 2004 A Cabeça de Salomé (crônicas) e Os
olhos do homem que chorava no rio (2005). Tem participação com poesia e prosa em várias antologias em
Portugal, Brasil, França, Alemanha, Espanha. Publicou alguns ensaios sobre História de Angola.
63
mundos povoados de mulheres que trabalham no campo ao ritmo das estações do ano, recria
também a mitologia angolana através de uma lírica que ora usufrui da discursividade ora
manipula os esteios da linguagem pela síntese de palavras, valendo-se da intertextualidade e
da oralidade, para bordejar aspectos da existência humana e da realidade de seu povo.
No seu O lago da Lua (1999), temos uma seqüência intitulada Terracota, em que a
imagem da terra cozida em tons diversos funde-se ao diálogo com o homem amado que vem
de terras distantes, trazendo em suas sandálias de couro um pouco das areias do mundo,
criando um intertexto com o Cântico dos Cânticos, para encontrar a massambala52 que
cresce a olhos nus nos campos férteis de alimento. Ao fechar o ciclo, retoma o diálogo com
o homem amado:
Pergunta-me do silêncio
eu digo
do eco do silêncio
e tempo
se só o silêncio permite
erguer a voz
Neste diálogo entre eus- poemas, vemos no de Ondjaki o resgate de alguns elementos do
tecido poético de Paula Tavares, ou seja, a acumulação como procedimento estético, abrindo-
se para o outro do pensamento, com o cuidado de associar a sibilância dos fonemas /s/ às
trocas propostas nos sufixos da palavra silêncio: silencioso, numa referência táctil ao rumor
dos corpos; silenciosidade como ruído de resposta na voz não dita e contida no olhar do
primeiro verso, fazendo o eco reciprocar e silenciar. Entre este jogo de ruídos /r/ e silêncio
/s/, dançam as palavras amor/desamor/solidão, caladas pelas intervenções de um sei que
52
Milho de sorgo ou milho miúdo, que serve para fazer fubá, mas também para alimentar aos animais.
64
responde à própria pergunta, título do poema. Com esta dialética entre o silêncio e o dizer
temos a poesia-texto do saber em palavras, comunicando-nos que repensar a própria
existência-texto é uma das formas do viver-texto.
Além do que a voz de um poema responde à voz do outro, recolhe-se nelas,também, o
tempo do eco, assim como todas as imagens do chão angolano que a poesia de Paula Tavares
carrega. Neste poema de Ondjaki, a palavra chão não é grafada, mas os ecos da terracota
estão depositados por todos os lados, pois é preciso atravessar o universo de O lago da lua
para ouvi-lo.
Pensando o eco como uma repetição e o associando ao conceito de Glissant, que explica
as repetições como uma forma de conhecimento de mundo, vemos que a poesia de Ondjaki
assume a forma da repetição (como poema-resposta) levando ao conhecimento do mundo,
pois sob o poema, pulsa em surdina uma visão de mundo , bem como o praticar uma
poética da totalidade-mundo é unir de maneira remissível o lugar, de onde uma poética ou
uma literatura é emitida à totalidade-mundo, e inversamente. (GLISSANT, p. 42)
Esse diálogo poético estabelece o que anteriormente citamos como a angústia criativa: o
poeta não pode escrever em voz única, apenas o faz diante das outras línguas do mundo, na
presença desse drama (GLISSANT, p.52), portanto a repetição e o lugar comum encenam
uma noção de tempo contínuo, reivindicada pelo eu-poema de Paula Tavares em sua relação
com o mundo53.Desta forma, esse diálogo poético determina a identidade como o valor do
poema resultante da busca errante e inquieta de formas e estruturas com as quais uma idéia de
mundo, emitida do seu lugar, encontra ou não outras idéias do mundo, reivindicando a
relação, que Ondjaki acaba por criar, quando as vozes de ambos confluem para uma
totalidade na interdiscursividade dos poemas.
53
Não só em Há prendisajens com o xão, Ondjaki estabelece um diálogo com Paula Tavares ao fim da
novela O assobiador (também de 2002) temos a resposta dela a uma carta enviada por ele cujo conteúdo fala de
um sonho que originou o livro: E acho que, por agora e em matérias de cartas, está tudo escrito no Vou lá
visitar pastores do Ruy Duarte. Não percas esse hábito saudável que adquiriste ultimamente, que é o de praticar
Manoel de Barros, que tão carinhosamente desarruma [ênfase nossa] a linguagem para livrar as palavras do seu
estado de dicionário e escrever de novo partituras para pássaros em vôo rasante pela vida. Assim falava, como
sabes João Vêncio, segundo o kota Luandino e o nosso mais-velho o Seu Vieira , para os amigos, Pe. Antonio
Vieira, para os menos íntimos.(...)Detive-me a escutar este silêncio tão secreto que dá vontade de escutar lá
dentro, agora que começo a ficar com saudades do futuro. Encontro os sentidos das coisas e sua primeira forma,
como fermento e massambala. Podes sentar-te em ti , pois teus búzios , tuas conchas estão cheios desses
segredos de cartas feitas literatura, que é como quem diz, escrever orações em silêncio que, uma vez lidas, nos
deixam espantalhos onde pousam os pássaros. (TAVARES, Ana Paula.in.:O assobiador, 2002,p.116-7)
65
Importante é ainda observar que, é através de Paula Tavares, como notamos nos
agradecimentos ao início da obra, que Ondjaki toma contato com a obra de Manoel de Barros,
conforme o fazer poético inscrito neste paratexto-poema-agradecimento:
agradecendo:
começa por Paula Tavares é abafado por Manoel de Barros ao ser interseccionado pela
palavra almofada.
Na Nota do autor, ao final do livro temos a resposta de Manoel de Barros a uma carta de
Ondjaki. O poeta brasileiro, num simplicíssimo papel branco recortado à mão , pronuncia-
se da seguinte forma:
há exageros (...) não vou nomeá-los (...) há em você a consciência plena de que a poesia se faz
abandonando as sintaxes acostumadas e criando outras. São as palavras que guardam a poesia, não
os episódios. Palavra poética não serve para expressar idéias serve para cantar, celebrar. ( Há
prendisajens, p. 67-8.)
e a seguir a citação de uma conversa telefônica em que Ondjaki lhe pede uma nota de
abertura; Manoel de Barros lhe responde o seguinte:
você me desculpe, mas eu não sou crítico literário... , camarada angolano (Há prendisajens, p.68)
54
Sobre esta sensibilidade de Manoel de Barros, Luis Henrique Barbosa, ao compará-lo a Haroldo de Campos,
no seu Palavras do chão (2003), explica que: em Manoel de Barros, teremos a manipulação do código mais
humanizada: há em sua poesia um aproveitamento de sintaxes tortas produzidas pela linguagem popular, pois,
para ele, essa linguagem está mais próxima de uma linguagem adâmica .(p.41)
67
profética dos espaços longínquos, é, em toda parte, a única forma que temos de nos inserir na
imprevisibilidade da relação mundial .(GLISSANT, p. 107)
Se lermos outras obras do poeta angolano ou mesmo suas conferências55, veremos
como tais exageros citados por Manoel de Barros, muitas vezes, são retomados e outras vezes
estão abrandados56. Todavia, em Há prendisajens justificam-se dado o teor de construção e
desconstrução que os poemas e paratextos criam, já que para criar esse caos-mundo em
formato poético, é necessário perpassar a condição dimensionada da metáfora. Quanto a isso,
o pensamento glissantiano, mais uma vez, auxilia-nos, pois explica que o caos é belo
somente se tentarmos através do imaginário seguir-lhe a pista, traçar-lhe os invariantes, e não
suas leis. Assim como os físicos e os cientistas da ciência do caos tentam conceber o universo
físico. Há invariantes e são belos. (GLISSANT,p. 157).
É nesse sentido que podemos dizer que Há prendisajens é uma invariante dentro do
próprio universo poético de obras de Ondjaki, pois ao exacerbar a manipulação lingüística
acaba por transbordar temas e textualidades, os lugares comuns de Há prendisajens para
todas as suas outras obras, os outros dele mesmo. Visto que,
Sobre esta errância, Eunice Rocha em Utopia do diverso, faz o seguinte comentário:
55
Vide anexo C.
56
Ao inserirmos notas de rodapé com trechos de outros livros de Ondjaki, ao longo deste trabalho, nossa
intenção foi de exemplificar este caráter de constante mudança e diálogo que o poeta opera ora abrandando os
procedimentos de linguagem ora dimensionando-os na construção dos temas; em suma, há um constante refazer-
se em gêneros e procedimentos, como no exemplo a seguir em que o narrador do romance comenta um encontro
imaginário no Brasil com Manoel de Barros e discute sobre o seu fazer poético: Nós íamos mais dizer quê?,
hoje vou te dizer: a língua poesia!, mudaiê, eu num sou escrevedor de poemas, vivo isso, sou pura poesia sonora,
mas aquilo!, aquilo era poesia a sério, sabes o quê, aproveitar a lágrima da tibaria pra não dizer que aquela
lágrima afinal era do puro poema? Isso me aconteceu, avilo.
Aquela poesia tava então a me aguar, palavras do chão, como ele dizia, o kota era dado a uns bichismos, é isso
mesmo, não tem outro termo, aí entendi: combustível do lápis dele era baba de lesma. Tás a rir? , é porque não
tavas lá (ONDJAKI,Quantas madrugadas tem a noite, p.119)
68
Com estas reflexões sobre a errância pelo chão da língua da poesia, pensamos que um
dos aspectos de suas aprendizagens poéticas é o que vários desses outros do pensamento em
diversos momentos de suas escritas e depoimentos chamam de desarrumar a palavra . Nessa
tentativa, na repetição de um conceito poético, renova-se o imaginário da língua portuguesa,
que ganha corpo cultural através dos ecos, das vozes da literatura contemporânea: Luandino
Vieira, Guimarães Rosa, Mia Couto57, Manoel de Barros58; pois cada vez que um deles ou a
comunidade inscreve-se para desarrumar o que poderia ser ao menos estável, estabelece uma
identidade rizoma, isto é, raiz, mas que vai ao encontro das outras raízes (GLISSANT, p.37),
por meio da movência de sentidos e formas; como o próprio Ondjaki diz no título de uma de
suas conferências: dançar com as palavras quietas é a identidade da relação em um mesmo
palco, em um mesmo lugar, esperando o retorno do eco no seu próprio chão, estabelecendo
uma poética de relações.
57
Em entrevista,dada em Moçambique, à revista Thot nº 80, em abril de 2004, São Paulo: Palas Athena, ao ser
questionado por Marilene Felinto sobre a influência de Guimarães Rosa em suas obras, Mia Couto responde da
seguinte maneira: primeiro tenho que falar de Luandino Vieira, que é outro contato que tenho com alguém que
escreve um português que é arrevesado, que está misturado com a terra. Foi o primeiro sinal de autorização de
como eu queria fazer (...) mas precisava de uma credencial do mais velho que dissesse este caminho é
abençoado . E ele confessa que foi autorizado, também ele, por outro, um tal João Guimarães Rosa . (...)Então eu
tinha essa fascínio.Tinha que conhecer este João, este tal Rosa. E de fato foi uma paixão.Foi de novo alguém que
dizia isto pode-se fazer literariamente . (...)porque eu já estava contaminado por este processo que não é
literário, é um processo social das pessoas que vêm de outra cultura, pegam o português, renovam aquilo, tornam
a coisa plástica e fazem do português o que querem. É um processo muito livre aqui. As pessoas misturam
português e , como dizia uma camponesa da Zambézia, eu falo português corta-mato , uma prova de atletismo
que se faz através do mato, de trilhas. E pronto ( p. 50)
58
Manoel de Barros em entrevista concedida a Lucia Castelo Branco e Luis Henrique Barbosa, em 1994,
declara-se sobre a leitura de Guimarães Rosa. Reli toda a obra de Guimarães Rosa e ele me anulou. Propunha-
me a dizer frases minhas sobre o Pantanal e frases à maneira de Rosa sobre o sertão mineiro. Mas a linguagem
de Rosa tomou conta. Escrevi 6 capítulos e vi que era tudo Rosa. Fui anulado inteiramente. O homem tem um
feitiço...Em estado rosal eu não podia continuar. Rasguei os capítulos. Caspité! Assim não dá. Vai ser gênio pra
lá. (BARBOSA, p. 128)
69
MAS EXISTE?
Percebe-se, ao lermos o poema no seu todo, que há uma divisão pontuada por
reticências; além do mais, o título do poema pergunta-nos e incita-nos a outra pergunta: mas
existe o quê? Diante do eu que interrompe-se admirado, fica insinuado um pretenso leitor de
espaços nas marcas lingüísticas deixadas pela conjunção adversativa mas e uma oração sem
complemento para o verbo existir.
Parece-nos que no quesito aprendizagens, Ondjaki ouve aqui a palavra poética de Ruy
Duarte de Carvalho, partir de uma palavra e de Manuel Rui, ou a palavra é o princípio e
negação da eternidade ou o eterno só terá começado sem ter sido concluído - com a
59
palavra ; que neste caso é pássaro60.
Para isto, o poeta estabelece algumas estratégias de construção, de vôo. Na primeira
parte do poema, construída em meio a seis perguntas, há três corpos fônicos:
sons fricativos e vibrantes : /s/ e /r/ ;
sons nasais vinculados ao sufixo de diminutivo;
sons oclusivos /p/,/t/ e /d/;
Tais recursos sonoros dão movência ao campo semântico das palavras:
piar, pio, passarada, passar ar,pássaro,passeia,asa, criam uma linguagem
lúdica;
num,aninho,mãezinha,filhinho,minhoca,transição,alimentação,incesto,
ganhou, enjoo, chão, sugerem uma linguagem terna e infantil.
Os sons do terceiro grupo fônico espalham-se pelos dois campos semânticos, dando-nos
a sugestão do bater de asas e do piar dos pássaros. Há, também, duas palavras compostas,
uma por derivação prefixal - desinstante- e outra por justaposição de dois substantivos
(palha e intimidade) palhintimidade-, ligadas ambas ao sentido de pássaro, antes e depois
de iniciar-se à arte de vôo.
59
Parágrafo inicial da conferência (separata) Da escrita à fala , no Congresso Internacional de Teoria
Literária e Literaturas Lusófonas, em Coimbra (2005).
60
De acordo com Chevalier, o pássaro como símbolo pode representar, nas mais variadas culturas: as relações
entre o céu e a terra(...) a forma de aves a leveza, a liberação do peso terrestre(...), guardam entre nós alguma
coisa do canto da criação, (...) na arte africana simboliza a força e a fecundidade. (p.689)
71
Após as reticências, que anunciam uma possível resposta às perguntas, temos as mesmas
recorrências sonoras retomadas, embora estejam misturadas, pois começam a ganhar novos
formatos com valores semânticos diferenciados:
renominada, através da prefixação do verbo;
arredonda, pelo elemento de composição a unido ao adjetivo;
percursação, pela sufixação do substantivo
além da regência pronominal irregular para o verbo: discipular-se.
passipiência, em uma justaposição de dois substantivos: pássaro e sapo,
terminada com o sufixo -ência, resultando em um anagrama sonoro da palavra
sapiência.
Se pensarmos os itens acima, como um conjunto,veremos que a sexta pergunta: o
pássaro/ganhou enjoo para chão?,além de encerrar o primeiro grupo de versos, destoa
porque acaba por funcionar como resposta, ou seja, uma pergunta retórica. Vale ressaltarmos
o jogo entre os níveis de linguagem: inicia-se por uma linguagem prazeirosa do simples
trocadilhar com os sons dos pássaros: desinstante; atravessa uma linguagem infantilizada
pelos diminutivos: palhintimidade; e caminha para uma linguagem com vocabulário
acadêmico marcados pelas palavras discipular-se e sapiência.
Nesta segunda parte do poema, temos um grupo de palavras que acabam por levar-nos
aos verbetes, como que pedissem para serem ampliadas, são elas: entrada e saliência, porta
e janela:
desinstante: tem pouco a ver com instante; é somente o conhecimento prazeiroso que vai de um
batimento de asa ao seu sucedente. (Há prendisajens, p. 65)
sapo: vive em ânsias de ser beijado por princesas. acredita em vidas passadas, onde julga ter sido
príncipe. mestre de cantoria e sapiência. pratica a perigosa arte de encher balões em suas próprias
bochechas. gosta de quebrar silêncios da noite.( Há prendisajens, p. 60)
61
Segundo diversas tradições, o óleo de sapo perfura a pedra. Ao discípulo que pergunta como passar da
ignorância ao saber, o mestre da iniciação responde : Transforma-te em óleo de sapo. O que equivale a dizer que
o homem, sem deslocar as coisas, pode penetrar nelas profundamente pela fluida finura do seu
espírito (CHEVALIER, p. 804)
72
pássaro: doutorado em voo e liberdade. tem domínio absoluto da poesia eólica. de sua autoria ,
destacam-se: o velho e o pássaro62; assim falava passatustra63; cem anos de provisão64; dom
passarote de la avoança65 e grande passarão: penedas66. ( Há prendisajens , p. 59)
Notamos que, nos verbetes, ocorre novamente um pacto lúdico67 entre os níveis de
linguagem e o vocabulário, enquanto o verbete sapo revela-nos apenas um mestre que pode
significar tanto o título acadêmico quanto o conhecedor popular, embora penda seu sentido
mais para o segundo, já que temos a palavra cantoria, com uma sufixação indicadora de tom
popularesco; o mesmo não ocorre com o verbete pássaro, anunciado com o título acadêmico
62
O velho e o mar , do escritor americano Ernest Hemingway (1899-1961)conta a história de um homem que
convive com a solidão do alto-mar, com seus sonhos e pensamentos, sua luta pela sobrevivência e sua inabalável
confiança na vida. Esse é o fio do enredo tenso como o que prende na ponta da linha o grande peixe que acaba
de ser pescado com o qual arma uma das mais belas obras da literatura contemporânea. Há 84 dias que Santiago,
um velho pescador, não apanhava um único peixe. Por isso já diziam se tratar de um salão, ou seja, um azarento
da pior espécie. Mas Santiago possui têmpera de aço, acredita em si mesmo, e parte sozinho para o mar alto,
munido da certeza de que, desta vez, será bem-sucedido no seu trabalho.
63
Assim falou Zaratustra,do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, escrita entre 1883 e 1885, na qual
desenvolve sua doutrina do super-homem e do eterno retorno. Zaratustra é apresentado como um herói, como um
anunciador do super-humano e da morte de Deus , ao qual pode converter-se o homem quando libertar-se de
tudo que o mutila. O eterno retorno é outra face do super-humano, outro da vontade de potência, desta vontade
de libertar-se de todas as determinações para só obedecer ao princípio Tornar-te o que tu és , assumindo a gaia
ciência que lhe confere a liberdade. (JAPIASSU, 1996, p.18-9)
64
Cem anos de solidão, do colombiano Gabriel Garcia Marquez, cuja leitura está ordenada fundamentalmente
sobre dois eixos; as relações de parentesco e o mito de Édipo, uma espiral que condensa o conjunto dos enigmas.
O romance narra a incrível e triste história dos Buendía - a estirpe dos solitários em sete gerações para a qual não
será dada uma segunda oportunidade sobre a terra. Toda a narrativa passa-se na fictícia cidade colombiana de
Macondo, que se parece muito com Aracataca, cidade onde o autor nasceu. O livro também pode ser entendido
como uma autêntica enciclopédia do imaginário; escrito na década de 60, publicado pela primeira vez em 1967, é
considerado um marco da literatura de realismo fantástico. Prêmio Nobel de Literatura em 1982.
65
O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha, obra-prima de Miguel de Cervantes Saavedra ( (1547 -
1616), é o romance mais importante da literatura em língua espanhola. Grandes críticos, historiadores e leitores
fizeram dele a segunda obra mais traduzida e editada do mundo, depois da Bíblia. Dom Quixote, entregue ao
delírio causado pela leitura excessiva de livros de cavalaria, sai pelas planícies espanholas para impor justiça, na
companhia de seu fiel escudeiro Sancho Pança. A dupla então vive uma variada seqüência de aventuras e
confrontos no limite entre a realidade e a fantasia, confunde moinhos com gigantes, monges com feiticeiros
diabólicos, rebanhos de carneiros com exércitos inimigos. Dom Quixote e Sancho Pança encarnam o próprio ser
humano, oscilando entre o ridículo e o sublime, o ideal e o pragmático, o poético e o prosaico, o riso e a lágrima.
66
Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa.
67
Expressão utilizada e analisada por Melo e Castro em O próprio poético: o lúdico permanece no transfundo
dos fenómenos culturais é a tese fundamental do ensaio Homo ludens de Huizinga e mais adiante: Esse
excesso tem nome: escrita. A [escrita como] atividade lúdica é justamente um dos meios desse exceder
(CASTRO, 1973, p. 111 e 113).
73
Em o velho e o pássaro, há uma troca sêmica de mar (do original) para pássaro
(no verbete), mantém-se o vocábulo velho, numa referência à tradição do mais-
velho contador em África; bem como ao mar como espaço de percursação,
transição, alimentação, já que a narrativa transcorre em uma fase da vida do
velho (em que vai ele não consegue um peixe, o alimento, há 84 dias e toda a
comunidade duvida de seu percurso marítimo).
porque nos faz retornar para a pergunta inicial, além do vocábulo exista que nos
envia às questões de essência e existência discutidas pela filosofia.
Em cem anos de provisão, há uma troca de solidão (do original) para provisão,
fazendo uma referência indireta ao poema através da palavra alimentação.
Quanto à narrativa de Garcia Márquez, aproveita-se do tema da família em
gerações que se alimentam da solidão, como o filhote no ninho espera a minhoca
da terra.
68
Etimologia: port. ant. pena 'rocha' (penna ou pinna,ae 'ameia; pluma') + -edo; ver pin(i). Fonte: Hoauiss
eletrônico.
75
Não me surpreende que elas renunciem à voz épica, que em nossos dias
pronuncia a comunhão, a dispersão da Narrativa e, contra a História,
reivindica, finalmente, o encontro das histórias dos povos. (GLISSANT,
p.95)
Outra faceta deste pensamento poético situa-se entre os vocábulos: pássaro, chão, sapo
e a questão utópica com a qual as personagens das obras-títulos estão envolvidas: Santiago, o
velho, confronta-se com sua comunidade; Zaratustra andarilha por aldeias entorno do além-
homem; a família Buendía vaga durante sete gerações lutando contra a solidão; D. Quixote,
inocentemente, duela com seu próprio imaginário em busca de justiça; Riobaldo atravessa e
extravasa a dureza de seu sertão. Em todos os casos, as personagens buscam romper limites,
encontram-se divididas em seu interior, em exílio interior, o que faz com que busquem em
suas raízes (comunidade, aldeia, escudeiro, família,bando) a memória, através da viagem
percorrida na paisagem que cabe a cada um.
É nesta imagem metafórica do pássaro que enjoa do chão, que o poeta situa seu verbete,
incluindo-se na paisagem que conhece: o chão. Assim, como os outros de seu pensamento,
liberta-se em vôo pela linguagem literária, embora, diante da dimensão de seus interlocutores,
divida-se e recolha-se no sapo ingênuo e irônico, com suas pequenas utopias: beijos de
princesas evocadas de contos de fadas infantis; de passipiência apenas a sapiência e a
cantoria dos versos; balões de ar, como uma criança, que brinca com palavras no silêncio de
sua própria noite. Prefere a deriva das minúsculas coisas de seu chão onde experimenta a
errância diante destas línguas do Todo-o-mundo.
76
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Assim sendo, esperamos que este trabalho contribua para o que é vital em literatura:
fazer o presente da linguagem.
78
BIBLIOGRAFIA
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2006.
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SARAMAGO, José. Manual de Pintura e caligrafia.São Paulo: Cia. das Letras, 1992.
ANEXO A
Apresentação do autor
não nos parece gratuito o fato de pelo menos três dos maiores poetas
angolanos da contemporaneidade também se destacarem no campo de outras
artes. Costa Andrade, Henrique Abranches e Ruy Duarte de Carvalho trazem
para o domínio da literatura o legado da aprendizagem proveniente do
exercício de outras linguagens, notadamente artes plásticas e cinema.(...) No
momento, arriscamo-nos a dizer que o senso do concreto, plasmado pela
corporeidade do signo visual, pode contribuir de modo mais explícito para
que a poesia resista melhor à tentação de se reduzir a um mero exercício
metalingüístico que, muitas vezes, faz do poema uma ilha(...) (CHAVES,
2005, p.67)
Faremos um breve percurso por sua produção, para que em outros tópicos dessa
dissertação possamos traçar possíveis ligações com o projeto artístico e não só literário de
Ondjaki. Algumas informações foram tiradas dos catálogos de suas publicações ou sites das
editoras www.editorial-caminho.pt e www.bandaoriental.com.uy que o publicam, do site do
autor http://groups.msn.com/ONDJAKI/apoesia.msnw vem a maioria das imagens; outros
dados foram fornecidos por ele mesmo em entrevista69 feita por email. 70
69
Mantivemos nos anexos, quando a escrita é de Ondjaki, letras minúsculas diante de ponto final, por exemplo,
com o objetivo de ser fiel ao texto que nos foi enviado.
70
contos e crônicas do autor também podem ser lidos na íntegra em revistas digitais:
http://www.bestiario.com.br/9_arquivos/Amarela.html ,
http://www.bestiario.com.br/maquinadomundo/ed5/ondjaki.htm,
http://www.bestiario.com.br/3_arquivos/libelula.html e
http://www.revistavisaoonline.pt.
86
71
SINOPSE : Angola, 30 anos de independência. Três anos de paz. Capital, Luanda. Cidade construída para
600 000 habitantes. Actualmente com cerca de 4 milhões. Cruzamento de várias realidades e gente de todas as
províncias. A vida desta cidade são as pessoas. Que pessoas?Através de 10 personagens, mostrar formas
diferentes de viver e interpretar a cidade. Oxalá Cresçam Pitangas histórias de Luanda revela a realidade por
detrás da permanente fantasia luandense.10 vozes vão expondo com ritmo, dignidade e coerência, um espaço
ocupado por várias gerações e dinâmicas sociais complexas. Luanda ainda não havia sido filmada sob esta
perspectiva realista e humana: conflitos entre a população e a esfera política, a proliferação do sector informal,
as desilusões e as aspirações, o questionamento do espaço urbano e do futuro de uma Angola em acelerado
crescimento.10 personagens falam também das suas vidas, do seu modo de agir sobre a realidade, da música que
não pode parar. Aparece uma Luanda onde a imaginação e a felicidade defrontam as manobras de sobrevivência.
Onde a Língua é mexida para se adaptar às necessidades criativas de tantas pessoas e tantas linguagens.Este é um
filme sobre uma Luanda que recria constantemente a sua identidade: os dias, as noites e todos os ritmos da
cidade que não sabe adormecer.Luanda mistura fenómenos urbanos e rurais. O sector informal, sendo a grande
alternativa, agita o país e dinamiza as relações. Os jovens colocam diariamente a imaginação ao serviço da
sobrevivência e da felicidade, inventando formas de viver e sobreviver por necessidade e pelo gosto de se
sentirem vivos.Palco de arte, festa e alegria, em Luanda a tristeza e a felicidade convivem com a euforia. Os
casamentos são sempre festivos; os funerais nem sempre são tristes. Há um substracto intencional de felicidade
nas acções e intenções dos luandenses.A linguagem falada traduz um modo de pensar mais local e típico. Num
português carregado de calões e de adaptações, reflecte-se o modo interventivo de as pessoas agirem sobre a
realidade. Nos gestos e nas falas, aparece, pois, a fantasia que acompanha os ritmos do quotidiano.A cidade vive,
noite e dia, com música nos lares, nas viaturas, nas ruas. É possível ter uma vivência rítmica do quotidiano pela
importância que se dá à música e ao convívio.Com uma visão que acentua a esperança no futuro, Oxalá Cresçam
Pitangas histórias de Luanda é uma viagem pelas pessoas, pelas ruas e pelas histórias de Luanda.
"Eu considero Luanda a melhor cidade do mundo. Sempre desejei ter o meu filho aos 25 anos." Joel Dorivaldo.
"Todas as comunidades, por questões de conflito armado, estão aqui. Mas as pessoas ainda vivem, cada uma, a
sua Luanda. E isto por circunstâncias de sobrevivência."Cornélio Caley.
"Eu sou fortemente influenciado pela música dos anos 60, aqueles kotas desafinados mas que tinham uma coisa
sempre para dizer. Havia sempre uma mensagem."Mc K.
"Os adultos daqui todos os dias a partir das 4 da manhã saem. Vão para a cidade. Vão para as praças. As crianças
87
entendo que o inevitável é o que acabou por acontecer. estas imagens são um
pouco assim: nasceram em desmomentos, sentadações.
há um fio entre elas: o pastel em si, alguns tons, alguns traços. de resto, o que
aqui se encontra são pedaços do lado avesso de um sonho. há, pois, imagens
obscuras, fortes, confusas até. quanto a isso, a pintura (ou o borranço) revela-se
um escape de libertação; uma oportunidade de auto-revelação.
algumas imagens vêm irmanadas com palavras. (...) também isso me foi
inevitável."
[ Ondjaki/dez/1999]
as línguas do escorpião
ou proclamar
poesia.
um quarto
só os bichos.
(ondjaki)
89
Silêncio
eu disse palavra-paz?
adesculpe.
(ondjaki)
Já em 2000, publica oito poemas sob o título Palavras desaguadas em uma antologia
bilíngüe chamada Agua en el tercer milenio, edições Pilar e Bianchi Editores, pela mesma
editora na Antologia Multilingue, publica o conto A freira.
90
Bom dia camaradas (2000), editado pela Chá de Caxinde em Angola, é a primeira
experiência em prosa ficcional,editado em Portugal pela Caminho ( 2003), seguida de
tradução para o francês ( pela editora suíça La Joie de Lire, 2004) e em espanhol ( pela
uruguaiana Ediciones de la Banda Oriental, 2005), está em curso uma tradução para o alemão.
Em 2006, a editora Agir publicou a edição brasileira, já em segunda edição. Um dos
aspectos da obra é o término de uma situação política: o fim da guerra - que nas últimas
páginas nos é anunciada pela Rádio Nacional. Ao som da chuva-renovação, a personagem-
menino-narrador vê cair as águas da fecundação sobre o quintal- jardim de sua casa,e
mesmo diante da solidão de quem tenta construir e sorrir sozinho, dá-se conta do ser-
identidade cujas raízes já são profundas; com esse espírito, ao terminarmos a leitura de Bom
dia Camaradas temos a impressão de que o título grita um imenso vocativo à nação por
meio da ficção.
91
Obra coletiva em que está presente é Tração a Poemas e uma Corda , edição
bilíngüe lançada na Espanha em 2003, junto com Nina Reis (Brasil), Roberto Bianchi
(Uruguai), Ángela Ibáñez (Espanha)
92
Em 2004, lança o romance Quantas madrugadas tem a noite, que também tem em
curso traduções para o italiano e inglês. É uma obra divisória e marcante na produção de
Ondjaki. A estória se passa em uma noite, em um bar de Luanda, nos dias de hoje; é
permeada por tipos construídos com excelente humor, dentre eles um morto que não
consegue morrer em paz. O trabalho com a linguagem coloquial, que pode à primeira vista
nos confundir, junto às marcações de falas das personagens, é um bordado minucioso,
artesanal, que exige fôlego. Há de imediato, para o leitor brasileiro, grandes identificações
pelas referências que o narrador faz, desde personagens de TV até situações culturais.
Luanda-Minas-Luanda
Anotações de uma viagem feita por dois barcos a certa região secreta do Atlântico,
entre Brasil e Angola, entre Minas Gerais e Luanda. Um barco (de nome Estrela-do-
Mar) partiu da África, o outro (chamado Euzebel) partiu da América.
93
ANEXO B
Ondjaki- Mastigar um alguém é mastigar todo o passado e o presente dessa pessoa. Há uma
nota no início que refere que o livro é para quem se autoriza a repessoar-se, redescobrir-se;
mastigar seria deglutir, destruir o já feito, o já visto, e o resto é descoberta; cuspir é o
resultado dessa ruminação.
Se eu tivesse que me descrever para uma identidade literária, seria uma aflição. há pistas, há
coisas que vamos vendo em nós, e sobretudo no nosso trabalho, mas sei pouco disso que seria
a minha identidade literária. é uma descoberta constante, e não sei se quero chegar a descobrir
isso, é um trabalho constante, refazemo- nos; vamo-nos refazendo...
72
Três outras entrevistas com o autor, uma do Jornal das Letras :MARTINS, Maria João. Revista Visão on line,
Lisboa, julho de 2004. Disponível em <http://visaoonline.clix.pt/default.asp?CpContentId=35163>. Acesso em
30 de junho de 2006;
as duas outras, feitas para publicação durante o lançamento da edição brasileira de Bom dia Camaradas,
durante a FLIP/2006, por : BRASIL, Ubiratan. As diversas vozes libertárias. O Estado de São Paulo, São
Paulo, 13 de ag. de 2006, e por: MILLEN, Manya. Contar histórias ajuda a lamber feridas. O Globo, Rio de
Janeiro, 27 de jul. de 2006.
95
O- Não diria que foi necessidade... Foi poesia também. e a brincadeira de pôr uma espécie de
diccionário, permitia-me estender um pouco mais a poesia, explicá-la, sim, mas ainda em
poesia. e pôr o diccionário por ordem alfabética contrária era a rebeldia que aquele
diccionário me permitia. não o fiz para me posicionar nalguma postura geracional, nem para
me opôr a outra. Na verdade, foi uma coisa só minha, inerente ao próprio processo de
construção (e descoberta) do livro.
A- Observando sua trajetória nos últimos dois anos, é possível perceber que suas
experiências além- literatura: teatro, aquarelas ,e principalmente cinema já devem ter criado
raízes em suas imagens poéticas;além disso, tua formação em Sociologia e o fato de sair
de Angola e retornar com uma certa freqüência. Tudo isso somado ao fato de que também
discorre pela Internet, como no blog Luandaminasluanda . Essas simultaneidades são um
xão , estratégia, engajamento artístico?
será uma espécie de textura da nação ainda por alguns anos, e é forçoso que saibamos
cicatrizar essa ferida sem fingimentos e sem pressas de anunciar, a nós ou aos outros, que
toda a dor já passou. Qualquer nação, enquanto corpo social, leva décadas a sarar e se
recuperar de um conflito com a multiplicidade e a dimensão que o nosso teve.
A- A ordem de lançamento dos teus livros é a ordem de escritura? Alguns foram escritos
simultaneamente?
O- Infelizmente não tenho tudo apontado. O prendisajens seguramente que terá sido
escrito em simultâneo com outros projectos, pois os poemas e os contos são coisas que
vão acontecendo, saindo.
A- Como, quando e onde foi o tal curso de escrita criativa que fizeste?
O- Foi em Lisboa, num Instituto, num ano em que devido a extravios de processos, fiquei
sem estudar. Fui avisado desse curso e fui fazê-lo.
Durava 2 meses, e foi uma maravilha. O professor, formado em antropologia, mas que
dominava bem os grandes autores do conto (desde Poe a Borges ), disse-nos que não nos
ia ensinar a escrever. Se fosse possível, o que nos queria transmitir eram técnicas de
constrangimento . Foi a ferramenta que alguma vez me deram para lidar com o universo
conto. Evoluí muitíssimo nesses dois meses. Eu já escrevia e até já sabia escrever, mas os
constrangimentos mostraram-me caminhos e soluções. Deve ter acontecido em fevereiro
de 1996.
97
Resposta - Ondjaki é o meu pseudónimo literário, e escolhi-o porque era para me chamar
Ondjaki. A dada altura, os meus pais mudaram de ideias e deram-me outro nome. Quando
comecei a aparecer publicamente optei por esse pseudónimo.
R - Penso que despertar para a criatividade literária é um processo gradual, e, na maioria das
vezes, um processo dependente de outros processos internos que têm a ver com a criatividade,
a maturidade emocional, a sensibilidade, etc. É difícil, portanto, apontar um momento
concreto. Parece-me que sempre fui uma pessoa fascinada por estórias, sempre gostei de as
ouvir e de as recriar. Mais tarde, talvez aos 17 anos, descobri que me dava prazer dar-lhes um
formato escrito, reinventá-las com alguma coerência.
P - Quais foram (são) as leituras que se terão revelado decisivas na sua formação cultural e
artística?
R - Fica difícil citar nomes, no entanto é importante referir que as leituras são muito
importantes, muito mais do que aquilo que se usa imaginar. E digo isto não só porque as
leituras nos permitem em certa maneira interagir com os textos de outros, como nos dão ainda
acesso ao seu imaginário. E frequentar livros é frequentar mundos, é viajar. E a diversidade
faz crescer, se bem apreendida. Penso que hoje em dia se descura um pouco a importância da
leitura na formação pessoal do indivíduo. Parece que os escritores e os estudiosos é que
devem ler livros. Não concordo com esta visão, penso até que faz parte da "boa educação" ter-
se em atenção os hábitos e os tipos de leitura. Isto para dizer que praticamente toda a leitura é
decisiva na formação cultural das pessoas. Mesmo aquilo que não se quer mais ler, mas para
rejeitar é preciso ter experimentado. Pessoalmente, todos os autores com acentuado estilo
próprio e sem medo de "voar" me foram muito importantes. Por exemplo, Gabriel García
Márquez, Guimarães Rosa, Kazantzakis, Luandino. Mas também Clarice, Manoel de Barros,
Manuel Rui Monteiro, Mia Couto, Paul Celan. Ficam muitos por dizer.
P - Um facto marcante da sua escrita, tanto na prosa como na poesia, é o gozo, o prazer
mesmo de escrever, mais do que a veiculação de mensagens, como se o acto de escrever, para
si, fosse sobretudo uma via para a descoberta de novos modos de dizer. É, realmente, assim
que concebe o exercício da escrita?
R - Não, não é realmente assim, porque a veiculação de mensagens preocupa-me e, penso eu,
é quase inerente ao acto da escrita. E uma escrita que contenha em si determinado tipo de
mensagens não anula o "prazer de escrever", ou o exercício da escrita enquanto desfrute do
potencial das palavras. Sem dúvida que tenho uma relação "libertina" com as palavras e com a
língua portuguesa em geral. Penso que devemos mexer na língua, tendo em conta os
referentes gramaticais, mas dando-nos a liberdade de exercer uma certa "pressão cultural" à
língua portuguesa. A língua portuguesa já é também língua angolana, brasileira, cabo-
verdiana, etc. O "portuguesa" é já o nome, a designação desta língua. Portanto, também
73
disponível em < www.uea-angola.org/entrevistas
98
P - Você pertence a uma geração que nasceu já no pós-independência. Digamos que você é,
inteiramente, fruto da independência. Ou o período anterior à independência ainda teve ecos,
ressonâncias, na sua educação e na sua mundividência?
R - Eu, pessoalmente, não me considero fruto da independência, nem sei se isso existe
enquanto designação para um grupo de pessoas. Nasci de facto após a data da independência,
e sim, julgo que isso tem implicações na minha formação e no meu processo de crescimento.
Contudo, sinto que nós, os angolanos, vivemos ainda inseridos num ciclo que é muito vasto
no tempo, para frente e para trás, e que engloba uma série de eventos por sua vez
influenciados ainda pelo processo de colonização, pela inexistência de um correcto processo
de descolonização, pela guerra anti-colonial e pelas nossas guerras internas. Nascer antes ou
depois da independência é apenas falar de uma data, pois todos somos ainda influenciados por
todos os eventos relacionados com a independência. Devo dizer que o período antes da
independência, na minha opinião, tem grande influência na educação e na formação das
pessoas da minha geração.
P - A sua geração nasceu e ganhou a maioridade em pleno estado de guerra. Agora veio a paz.
Que significado profundo tem, para si, o alcance da paz no país?
R - Tem o significado que eu julgo que terá para qualquer cidadão que gosta do seu país e da
sua gente, é um momento magnífico, principalmente para aqueles que há anos vêm sofrendo
na pele os efeitos de todas estas guerras. É uma oportunidade de pensar que a realidade
angolana finalmente está dissociada da guerra e que isto vai propiciar que as pessoas cresçam
(as crianças e os adultos) num ambiente diferente, e que a política do país se ajuste e se regule
por outros índices que não os da guerra. Penso ainda que a ausência de um clima de guerra
permitirá o surgimento de diferentes "movimentações sociais", o que permitirá o combate à
desorganização e à corrupção. Mas, acima de tudo, estou contente porque as pessoas estão
livres de um mal terrível que nunca é opção para ninguém. A guerra é uma tempestade que
99
nunca ninguém quer e que todos desejam que passe o mais rapidamente possível. A nossa
tempestade durou tempo demais.
R - Não estou certo. Os escritores podem ser vistos como seres lúcidos e intelectualizados
(supostamente...), mas é preciso não esquecer que são cidadãos comuns com um certa
habilidade artística. Os escritores devem desempenhar o mesmo papel que qualquer cidadão
angolano, neste momento preciso da História do país: esforçar-se por contribuir para a
evolução e melhoramento da sociedade. Sei que é uma visão utópica, pouco realista se calhar,
mas é a minha opinião. Estamos numa fase crítica, do pós guerra, em que é preciso muito
empenho individual de modo a que um eventual empenho colectivo seja posto em prática.
R - O meu "projecto literário" é escrever enquanto fizer sentido, isto é, enquanto eu acreditar
que tenho uma boa estória para contar, e que a escrevi bem, que vale a pena ser publicada.
Julgo que é muito difícil fazer isto, ao longo do tempo, com clareza e humildade, com justeza
e sentido crítico, mas vou tentar. Tenho algumas ideias pensadas, para romances e para
contos. Continuo a escrever poesia, embora não saiba ainda se a vou publicar ou não. E
continuo interessado em escrever livros que sejam interessantes. O resto, só o tempo dirá.
P - Já disse publicamente da sua propensão para o cinema. Já terá alguma coisa em mão?
R - Tenho algumas coisas pensadas para cinema, coisas próprias e ideias para adaptações de
materiais de outros autores. E estou, neste momento concreto, Setembro de 2003, a receber
formação na área do cinema. O que tenho em mão são ideias para documentários. Seria
importante documentar uma série de coisas que já se passaram e outras ainda que hão-de
passar-se no domínio social e político de Angola. E os documentários são menos dispendiosos
que os filmes, são mais acessíveis de serem produzidos. Espero pelo menos vir a fazer alguns
documentários interessantes.
100
-Na epígrafe do teu livro dizes que aprendizagens é uma palavra que ramifica e
desramifica uma pessoa Foi para te ramificares ou desramificares que escreveste esse
livro?
Acho que foi para entender se era mesmo possível desramificar. Devo esclarecer que escrevi
essa nota de abertura, muito depois de o livro estar concluído. Mas não era para mim esse
alerta, era para outros. Os eventuais leitores.
-Na mesma página citas (outra vez ) o Ionesco, dizendo sei porque escrevo . Posso
perguntar o porquê dessa afirmação emprestada a outro autor?
É um pouco verdade que nessa altura descobri o prazer de escrever como bem me apetecia.
Fui muito livre e solto ao escrever esse livro. Corrigi-o, como faço com as outras obras, mas o
processo de criação foi muito espontâneo, por se tratar de poesia, e por se tratar daquele tipo
de poesia.
-Que tipo?
Uma poesia que não era tão interna quanto a do livro actu sanguíneu .
-No poema reencontro com gotas , afirma que sofrimento é uma inexplicabilidade .
solidão é uma esteira onde se evite cochilar . E mais: paz é uma sapiência . São recados
que escreve para si, para os outros?
Não penso que sejam recados. Não se escrevem recados nos poemas. Para mim a poesia
continua a ser feita a partir de momentos. Poderão ser momentos mais ou menos instintivos,
mas gosto de sabê-los mais espontâneos que planificados. Já a correcção do poema é um
pouco mais racional. É a reconstrução do texto no seu ritmo, na sua lógica, na sua estética.
Mas um recado,penso que não.
-existe um influência, até assumida por ti, das obras de Manoel de Barros. Como foi ter de
reconhecer isso?
Foi muito rápido. Porque tudo aconteceu com ampla simplicidade, isto é, não foi nada
complexo o processo. Tinha uma coisa muito nítida ao longo desses dias: escrevi como se
fosse uma urgência, e o que saiu, foi sincero. Então o que saía tinha aquela textura do mais
velho Manoel, e eu aceitei isso. Não me intimidou, na altura. Não parei de escrever. Não
parei, sobretudo de sentir. É que estes são poemas sentidos, suados, acontecidos. E mal pude,
enviei-lhe todo o material.
-porquê?
Posso ter sido indelicado, não sei. Mas não resisti.
-como assim?
A Ana Paula tinha-me avisado: não escrevas poesia enquanto descobres Manoel de Barros. E
eu tentei.
-há poemas com uma experimentação um pouco exagerada, eu diria, e outros em que vais a
uma simplicidade muito interessante, estou-me a lembrar do poema penúltima vivência .
Sentias esse contraste?
Como te disse, eu não quis, nunca, avaliar muito aquela poesia. Mas, como sabes, gosto de
poemas simples. Esse que referes é o meu poema preferido desse livro. Se os outros versos
fossem assim, teria um livro muito melhor.
-não o publicarias?
Se pensasse muito sobre ele, acho que não. Estaria ainda hoje na gaveta. Mas aconteceu ser
publicado e assumo-o. Assumo-o como um exercício espontâneo, e de muita sinceridade. Não
queria trabalhá-lo muito mais, porque alterá-lo demasiado também seria fazer um outro livro.
-o livro está cheio de dedicatórias pessoalíssimas, não sei se te incomoda falar sobre isso.
Escritores, amigos, duas sobrinhas, uma irmã e até uma estorinha dedicada a ti. Tinha de ser
assim?
Não sei. Mas foi assim. Os escritores, alguns deles também amigos, outros por saudade
impossível: tenho muitas saudades da Clarice, do Richard Bach, e nunca os conheci. Da
família também é usual ter saudades. E essa estorinha, não é dedicada a mim, é para eu
adormecer .
-no poema mosca espera o terceiro pensamento há uma certa pacatez que incomoda o
homem. Não era suposto o pacato ser tranquilizador?
Sim, e a mosca desse poema, ela incomoda a pessoa por ser assim parada. Há ali um desafio,
tanto quanto entendi da mosca e da pessoa que ela incomodou. A pacatez das moscas, dos
bichos, às vezes faz-nos lembrar que somos intranquilos. Tantas vezes matamos um bicho que
está somente parado
-muitos dos poemas aparecem como fórmulas . Como ser formiga, como ser chão, como
aquecer os ouvidos, como perseguir um bicho no seu trajecto íntimo. São poemas para
sugerir caminhos?
Não foram concebidos com esse pecado (risos), mas é possível que sirvam para isso. Mas
acho que poderemos chamar a isso de descaminho , gosto mais. Mas deixa-me lembrar aqui
uma frase do Alexandre O Neill quando dizia que era necessário fazer bom e expressivo .
Acho que é isso que eu gosto de encontrar num poema: que seja um pouco expressivo
também.
-vais publicá-lo?
Primeiro vou enviar aos amigos e corrigi-lo eternamente
105
ANEXO C
Conferências do autor
Seguem duas conferências do autor, cujo tema principal circula entre a construção da
língua e o diálogo com autores de língua portuguesa:
[texto poético-dependente, com tendência para ser mais "instalação" que "texto" ]
Ondjaki
Porque a História também se faz ao contrário, o caçador quando pressente o perigo é tarde
demais e saiu já caçado, num golpe de futura sorte ou carnaval linguístico; e o oceano, quintal
vasto e multiplicador de margens, convida a viagens com direito a retorno melhorado e
banquete renovador. Depois dos gestos, a linguagem falada é a boca sincera dos sentimentos e
a cultura apanha boleia para ir mais longe, enfeitiçar outros mundos e mascarar-se de novos
conteúdos.
"( ) Ela não voltou a falar. Lava as chávenas com espantável lentidão. Suas mãos
acariciavam o vidro por onde eu havia bebido. Senti como se ela me tocasse os lábios e me
retirei nesse embalo de ilusão.
Me dirigi para casa, sem vontade de caminho. Demorei em coisas nenhumas.
Nisto, uma estrelícia, simples flor, me deflagra os olhos. O vendedor me cativa a atenção
agitando a crista laranja da flor. ( ) As mãos se ridicularizam com a intransitiva flor. Chego
a casa e a flor se extravaganta ainda mais. Nunca eu tinha encenado flor em jarra.
Sentado, frente a uma cerveja deixo entrar em mim a voz: preciso é de mulher. Necessito de
um acontecimento de nascência, uma lucinação. Careço de um lugar para esperar, sem
tempo, sem mim. Devia haver um feminino para ombro. Porque ombra era o nome único que
merecia o encosto daquela mulher."1
"Naquela hora em que os pescadores atravessavam o canal com seus apetrechos tão
74
comunicação lida na conferência, "A Língua Portuguesa: Presente e Futuro", realizada na Fundação
Calouste Gulbenkian, dias 6 e 7 de Dezembro de 2004, em Lisboa .
106
resumidos para virem fazer a aguada, o mar abria boca-réstia de sono ainda em maré baixa
a espreguiçar-se, sonolentamente, sob o sol sem nuvem. Esteira de dormir qualquer liturgia
mesmo de difícil, um esse porém afofalhado imenso de se apresentar sem vaga, na areia da
beira-praia, em desinteresse de pureza pisada de ilusão. Pois só a linha trémula, tão
empoucada de suave movimento, demarcava a aparente separação de diferença entre a terra
e o mar. ( ) Cheiros retirados à noite. Misturados. Essências de peixe. Néctares de algas,
plantas e coisa no ar como aroma de árvore e fruto da beira rio, amadurecido. Rascaldo ou
quê."2
Porque a História também dá golpes num corpo linguístico que, lá longe, é a sombra de
uma mesma imagem. As investidas políticas, e as de letras, e as sociais, e as mundanas, e as
imprevistas, numa dança alargada - e mesmo que controlada - libertam-se das correntes pré-
concebidas e o inesperado vence. O Kinaxixi com as crianças e os pássaros luandinizados,
vencem; um santo de pessoa como o Arnaldo Santos vence; o Pepe solta um cão entre os
caluandas e o cão morde a realidade; assim o cão do Honwana tomba mas a Isaura segue nos
nossos sonhos de criança; as crianças do Manuel Rui, depois da fogueira e das estrelas do
povo, só querem ser ondas; as mumuílas fazem transumância num poema da Paula; os olhos
do Mia brilham à passagem dos flamingos e o leite de cabra lá do Sul se entorna meio azedo
nas palavras do Ruy Duarte de Carvalho. E mesmo assim ficam nomes por celebrar.
A Língua, à velha maneira de Brecht, retira passividade às margens e intimida o rio a ser mais
plural; o rio que corria estreito e manso, agora caudaloso faz uso de uma rebeldia saudável.
Porque a natureza da água (da cultura) é mover-se, descendo o vale ou trepando a montanha,
em luta de vaivém ternurento com a vã pressão dos homens. E se a margem toca o rio, o rio
beija a margem numa dúvida aquática sem limite de exactidão.
As Línguas faladas e escritas, e as sonhadas, e as censuradas, nunca foram pertença de
ninguém. Afinal, o maleável não pode ser amarrado, e à força de tanto contacto, o original fez
da sombra verdade, e o resto também.
"O que ainda que ninguém que falou, ainda não existiu. ( ) O homem ainda não
descobriu a morte, muadiê. Se nem ainda chegou na lua, coisa-de-ver, quanto mais Com
morte eu dou-me bem, afirmei e não regresso. A senhora tumbandala não me assusta. O meu
medo só é o que o senhoro bem sabe - voz, cara e alma de gente não encontrar, o deserto
desumano, solidão de sozinho. Eu chego de dormir de luz acesa para fingir sol em meu
quarto. As trevas danam a alma."3
Nesse refluxo musical vindo de outras margens, há uma coloração que no tempo se espalha
devolvendo à Língua uma faceta adequada para enfrentar futuros.
À mistura estão as pessoas - que são as margens da cultura, e os destinos da Língua
revistos por aqueles que a manejam como utensílio quotidiano. Que esta linguagem seja, pois,
ferramenta e prazer, veículo seguro mas maleável; que as gerações vindouras nela vejam
molde aberto para memória e labor criativo. Porque bonitas são as Línguas depois de
manejadas e celebradas pelas pessoas.
José Saramago diz, no seu mais recente romance, «saberemos cada vez menos o que é
um ser humano»; eu gostaria de apostar que saberemos cada vez menos sobre aquilo que uma
vez julgámos ser uma Língua pura. Assistimos, presentemente, à mestiçagem da Humanidade,
em todos os seus sectores, mais ou menos políticos, mais ou menos culturais, e as Línguas de
falar e de escrever não fogem a isso.
Assim é que as manobras e investidas sobre as Línguas, dando-lhes um sentido e até
uma textura de plasticidade, vão ganhando mais respeito e coesão. A fuga à norma, ao sentido
clássico de produção literária, é vista como caminho possível, nem mais nem menos válido
que as outras opções estéticas. Uma destas vias, é a escrita que se revê num registo muito
próximo daquilo que se poderia chamar de oralidade, ou o uso quotidiano da Língua, das
Línguas, quando as pessoas se expressam num sentido mais criativo. As palavras do poeta
brasileiro Manoel de Barros apontam para isso mesmo:
Respeito as oralidades.
76
Eu escrevo o rumor das palavras.
75
Conferência proferida pelo autor no Rhode Island College, EUA, em abril de 2006.
76
Manoel de Barros, in «Livro das Ignorãnças», Record, 1993.
108
teatro da vida. Estes escritores buscam, arriscaria dizer, mexer no corpo da Língua ,
procurando dar-lhe novos sentidos, imprevisíveis sonoridades, pressentindo nos parágrafos
uma voz que também seja a sua, a do escritor.
Vinda assim, directamente da vida mundana, esta escrita quase falada traz em si uma
força oral, quase sempre sugerindo um ritmo e um tom musical:
Não se trata porém, de fixar materiais da oralidade. Talvez, isso sim, se trate de
reinventar essa oralidade, fixando em texto algumas das suas energias de coisa para ser
falada , imprimindo nessa escrita plástica a textura de quem a produz, ou seja, demarcando
esses materiais legitimamente literários com formatos personalizados. Nestes formatos,
aparece uma estética que se afasta das regras e cede aos instintos e vontades do escritor. Este,
mais do que planificar um resultado, quer ser seduzido por hesitações estéticas e libertinagens
acontecidas. Partindo do que é quotidiano e colectivo, o escritor quer, talvez, descobrir um
pouco de uma verdade que de tão interna seja só sua. Como diria, em versos, o mestre
Guimarães Rosa
77
Manuel Rui, in «O manequim e o piano», Cotovia, 2005.
78
João Guimarães Rosa, in Magma , Nova Fronteira, 1997.
109
uma linguagem mais cuidada. Nesse belo descuido , o improviso ganha força e valor. O
texto não busca perfeição mas sinuosidade:
81
arquitecto do simbólico e mestre de símbolos antes de mestre de técnicas .
Poderá também ser visto como um arquitecto dos sentires e, assim, uma escrita que
viva de coisas sentidas, ouvidas, assimiladas para aparecerem sob novos formatos, pode
resultar extremamente verdadeira. Porque o uso da oralidade na escrita literária resulta não
como uma bengala ou mera ferramenta , mas sim quando constitui uma sugestão tão
interna que se transforma numa urgência da estética literária. Isto é, a oralidade e a
79
Manuel Rui, in «O manequim e o piano», Cotovia, 2005.
80
Manuel Rui Monteiro, in «Da escrita à Fala», texto escrito especialmente para o Ciberdúvidas, 2004.
81
Ruy Duarte de Carvalho, in «A câmara, a escrita e a coisa dita », INALD, 1997.
110
um livro eu gostava de escrever como a gente se fala sem essa porra das pontuações
aliás imagina eu a conversar contigo e dizer vírgula ou fim de comunicação ou
parágrafo sabes que para mim um livro devia ser falado! 82
Será este um dos sonhos ou pesadelos de quem escreve num registo que sugere e
rectifica a oralidade? Um livro falado? Fica a questão.
Na verdade, as Línguas Portuguesas faladas e escritas nos mais variados pontos do
planeta o que fazem é, a partir de uma matriz que ainda está muito clara e presente,
transformar uma Língua em várias. As tendências, os regionalismos que se vão adicionando à
Língua-padrão, os refluxos de mestiçagem linguística e sonora, todos estes fenómenos estão a
transformar a Língua Portuguesa em variadas Línguas Contemporâneas, mais permissivas,
mais plásticas, mais irreverentes. Talvez mais adaptadas ao decurso da parte da humanidade
que vive e sonha em Português livre. Vai havendo e é assim o fluir da História um
desaperfeiçoamento da norma, mas poderá ser verdade que
Quando a ponte entre oralidade e escrita é feita com seriedade e sentido estético, mas
também criativo, o resultado é um desaperfeiçoar aperfeiçoante da Língua escrita. Porque as
Línguas fazem-se a caminho do futuro. Porque o caminho para o futuro descobre-se no
decurso de múltiplos quotidianos.
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