Ondjaki

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 113

Andrea Cristina Muraro

As prendisajens poéticas em Ondjaki:


dimensões da metáfora xão

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS


EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA
PUC-SP

SÃO PAULO
2006
1

Andrea Cristina Muraro

As prendisajens poéticas em Ondjaki:


dimensões da metáfora xão

Dissertação apresentada como


exigência parcial para obtenção do
grau de Mestre em Literatura e Crítica
Literária à Comissão Julgadora da
Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, sob a orientação do Profa. Dra.
Maria Rosa Duarte de Oliveira.

São Paulo
2006
2

Folha de aprovação

Andrea Cristina Muraro

As prendisajens poéticas em Ondjaki: dimensões da metáfora xão

Dissertação apresentada à Banca


Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para
a obtenção do título de Mestre em
Literatura e Crítica Literária, sob a
orientação do Profa. Dra. Maria
Rosa Duarte de Oliveira.

Banca Examinadora

____________________________________________
Profa. Dra. Maria Rosa Duarte de Oliveira
Orientadora/ PUC-SP

___________________________________________

___________________________________________

São Paulo, dezembro de 2006.


3

DEDICATÓRIA

Aos meus avós, que primeiro ensinaram-me as letras, através de pedaços de jornais e estórias
de um tempo que será sempre presente.
4

AGRADECIMENTOS

À Secretaria da Educação do Governo de Estado de São Paulo, pela concessão da Bolsa


Mestrado.
À minha orientadora, professora doutora Maria Rosa Duarte de Oliveira, que acompanhou-me
desde a entrevista.
Ao professor Dr. Fernando Segolin, pela poesia da Aula .
À professora Dra. Maria Aparecida Junqueira, por me ensinar a Crítica com tanta ternura.
A todos os professores, com quem tive o privilégio de conviver, principalmente os que
gentilmente participaram da banca de qualificação e defesa.
À minha família, pela compreensão.
À Gláucia Luiz, Cida Bosco e Cristina Borella, pelas conversas e revisões.
À Crisolde Homet, pelas traduções.
À secretária Ana Albertina, pela paciência.
Ao Ondjaki, pelas aprendizagens.
5

tudo aliás, é a ponta de um mistério.(...)


Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo
(Guimarães Rosa)
6

RESUMO

MURARO, Andrea Cristina. As prendisajens poéticas em Ondjaki: dimensões da


metáfora xão . 2006. 111f. Dissertação Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São
Paulo, 2006.

Esta dissertação analisa as dimensões da metáfora xão na obra Há prendisajens com o


xão (2002) do escritor angolano Ondjaki, com o objetivo de sistematizar o fazer poético do
autor e explicitar como o corpus de poemas insere-se em um sistema literário de países de
língua portuguesa e dialoga com outros escritores. A investigação desenvolveu-se em quatro
capítulos. No cap. 1, estabelecemos como a produção de Ondjaki insere-se dentro de um
sistema literário, visto enquanto macrossistema (Abdala, 1989), para situar a obra em um
tempo-espaço na História da literatura angolana.O cap.2 foi dedicado à análise do corpus,
epígrafes e dedicatórias, à luz da construção do pensamento metafórico da palavra chão,
fundamentado em estudos de Valèry (1999), Fenollosa(1994) e Pound( 1997). No cap. 3,
Aprendizagem do eu-chão: a língua , procuramos revelar procedimentos do poeta para
construir uma língua literária e suas maleabilidades, evidenciando aspectos da oralidade (
substrato quimbundu, por exemplo) usados como recursos para a construção de trocadilhos e
palavras-montagem. No cap. 4, utilizamos o conceito de rizoma de Glissant ( 2005) para
concluir como os recursos levantados anteriormente levam à construção da identidade, de um
chão como nação poética sem fronteiras, por meio das relações com o universo da literatura
contemporânea em língua portuguesa.

Palavras- chave: literatura angolana Ondjaki poesia - metáfora


7

ABSTRACT

MURARO, Andrea Cristina. The poetics learning in Ondjaki: dimensions of metaphor


xão . 2006.111f. Dissertation Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo,
2006.

This dissertation analyses the metaphor dimensions of the word chão/xão in the literary work
"Há prendisajens com o xão " (2002) from the Angolan writer Ondjaki, with the goal to
summarize the author s poetic and makes clear how the corpus of the poems are inserted in a
literary system of countries with Portuguese language and also dialogues with others writers.
The investigation had developed in four chapters. In chapter 1, we established how Ondjaki
production is inserted in a literary system, seen as a macro system (Abdala, 1989), we
attempted to point out some authors and the theme 'land' to locate the work in a time-space of
the Angolan Literature History, that is, showing who are the "others" that precede him. In the
chapter 2, was delicated for the analysis of the corpus, epigraphs and dedicatories in view of
the construction of the metaphoric though of word "xão", based on studies of Valèry (1999)
Fenollosa (1994) and Pound (1997). In chapter 3, " Learning to be ground: the language", we
attempted to reveal the poet procedures to build up a crioulè language and its malleabilities,
making evident the aspects of the orality (quimbundu subtract, for instance) used as resources
for the construction of paronomasia, alliteration and works-assembly. In chapter 4, The
others of the land , we used Glissant concept of rhizome (2005) to conclude how the
resources raised previously lead to the construction of identities, of a "xão" as a poetic land
without frontiers, through the relationship with the contemporary poetry universe in
Portuguese Language.

Keywords: Angolan literature Ondjaki - poetry - methapor


8

SUMÁRIO:

1. Introdução ...................................................................................................................9
2. Cap. 1 :Aprender é prender-se....................................................................................12
3. Cap.2: A aprendizagem do eu-chão: a natureza.........................................................22
4. Cap.3: A aprendizagem do eu-chão: a língua ............................................................41
5. Cap. 4: Os outros do chão: .........................................................................................60
6. Considerações finais ..................................................................................................76
7. Bibliografia ................................................................................................................78
8. Anexo A......................................................................................................................85
9. Anexo B......................................................................................................................94
10. Anexo C.....................................................................................................................105
9

INTRODUÇÃO

O objeto deste trabalho, as dimensões da metáfora chão na obra Há prendisajens


com o xão (2002) de Ondjaki, está situado em um campo bastante peculiar: apesar das raízes
culturais de tradição oral, essa poética se funda sobre uma língua européia - a portuguesa.
No entanto, o espaço lusófono é um aspecto que se transforma em linguagem poética ao
longo da escritura de seus textos, como afirma o próprio Ondjaki,

[é uma] relação libertina com as palavras e com a língua portuguesa em


geral. [Penso] que devemos mexer na língua, tendo em conta os referentes
gramaticais, mas dando-nos a liberdade de exercer uma certa pressão
cultural à língua.(...)É a própria língua e a sua estrutura multi-cultural que
permite um trabalho de intervenção plástica. (CORI, 2005.)

Sendo assim, a recombinação de determinados aspectos lingüísticos, bem como a


mistura de gêneros ao longo da obra, acaba por conferir nova força poética para a
escritura,dando novos matizes e incorporando as articulações semânticas feitas por meio da
metáfora chão, que percorre Há prendisajens com o xão desde o seu título.
A análise do percurso dessa metáfora pela obra se fará a partir da seguinte hipótese: a
metáfora chão implica uma aprendizagem poética do eu , em termos de identidade poética e
de uma aprendizagem em ser outro , em termos de constituição de uma nação literária, por
meio de diálogo com outras poéticas angolanas e brasileiras.
A investigação se desenvolverá em 4 capítulos centrais.Os dois primeiros Aprender
também é prender-se e Aprendizagem do eu-chão: a natureza centrar-se-ão na
fundação poética do eu, suas identidades, enquanto os outros dois se concentrarão sobre o
modo como esse eu se coloca diante dos outros , construindo, então, a idéia de nação
literária. É na junção destes dois planos que pensamos estar a senha para futuras conclusões.
Dessa forma, no capítulo 1, organizaremos como a produção de Ondjaki insere-se
dentro de um sistema literário, visto enquanto macrossistema (ABDALA,1989). Para isso,
procuraremos pontuar alguns autores angolanos que considerarmos importantes para situar a
obra em um espaço-tempo da História da literatura angolana, de maneira diacrônica, ou seja,
com quem o eu-lírico identifica-se, quem são os outros que o precedem.
10

O capítulo 2 será dedicado à análise de parte do corpus, fazendo um percurso que


partirá do título Há prendisajens com o xão, para o subtítulo (O segredo húmido da lesma
& outras descoisas), epígrafe da obra, dedicatórias, poemas: Chão, Prendisajem, Quando
fui chão para lágrimaterrizagem, Cada chão uma unicidade, Para pisar um chão com
estrelas, Silêncio no voo dos mosquitos, Segredos; alguns verbetes dos dicionários: bichos
convidados (de a a z) e outros convidados ou descoisas (de z a a) ; à luz da construção do
pensamento metafórico fundado em estudos teóricos de Valèry (1999), Fenollosa (1994) e
Pound (1997).
O capítulo 3 Aprendizagem do eu-chão: a língua , centrar-se-á no uso da língua em sua
textualidade, pensando em revelar outros procedimentos do poeta para construir uma língua
híbrida por meio de palavras- montagem e trocadilhos, irradiando-se para a metáfora chão
.Utilizaremos, para isso, outros elementos do corpus não analisados no capítulo dois: os
poemas Penúltima vivência, Pastor de estrelas, Tu que viste tantas estrelas,
Borboletabirinto e Quinto mim guante, além de verbetes dos dicionários relacionados a
estes poemas. A construção dessas maleabilidades escritas caminham do eu-chão para o
outro-chão, através da

enunciação do legado oral [feito] através do enunciado, que acumula e


concentra, numa geologia estratificada que atinge a sintaxe, os ritmos
híbridos [....].É neste trabalho da língua como texto [...] que se desvelam as
tradições traídas , e reformuladas, e se recuperam os traços genológicos de
variadas formas ou géneros orais africanos, e outros gêneros provenientes
da literatura escrita.(LEITE,1998, p.33)

No quarto capítulo, Os outros do chão , abordaremos, à luz da reflexão de Glissant (


2005) sobre as relações rizomáticas entre cultura, identidade e língua, os recursos utilizados
pela metáfora chão que levam à constante reconstrução da identidade de um chão como
lugar do pensamento poético em que as relações dialogam com o mundo da literatura
contemporânea em língua portuguesa, expandindo-se,também, para literaturas de outras
línguas; cumprindo-se, assim, o papel do escritor que

irriga a escrita na delicada busca do deciframento do real, tanto no campo


estético, quanto nos campos histórico, político e ideológico.[...] Com isso as
fronteiras entre os gêneros e a tipologia textual são deslocadas, abolidas e o
11

pensamento poético [...] procura traçar um rizoma com o


mundo1 (ROCHA, In: GLISSANT, 2005, p.11).

1
A teoria glissantiana do rizoma versa sobre as relações entre cultura, identidade e língua, dentro de um
contexto de crioulização no Caribe. Acreditamos que essa teoria seja uma das formas possíveis para refletir sobre
o universo que compõe o corpus escolhido para este projeto.
12

CAPÍTULO 1 - APRENDER TAMBÉM É PRENDER-SE

Yá, mudiê, me deu saudade disso tudo.


Hoje eu sei de onde eu venho é muito longe,
me doem os pés da memória
(ONDJAKI, Quantas madrugadas tem a noite)

Neste primeiro capítulo, traçaremos um pequeno percurso através do sistema literário


angolano, quanto ao aspecto histórico-crítico para que possamos estabelecer lastros e
contemporaneidades da poesia de Há prendisajens com o xão (2002).
Ao pensar sobre as dimensões da metáfora chão, percebemos que ela pode nos levar à
questão da dinamização identitária que se manifesta pelo diálogo com a terra e seus
desdobramentos, o que requer que observemos o passado da literatura angolana, tendo em
vista que

dentro [...] da comunicação em português, que envolveu historicamente


constantes semelhantes da série ideologia,[...] podemos apontar para a
existência de um macrossistema marcado como um campo comum de
contatos entre os sistemas literários nacionais. Quando aproximamos os
sistemas nacionais é por abstração que chegamos a esse macrossistema que
se alimenta não apenas do passado comum, mas também do diverso de cada
atualização concreta das literaturas de língua portuguesa. E, num movimento
inverso, à diferenciação mais específica de cada nacionalidade nas
atualizações desse macrossistema mais abstrato, correspondem fatores
históricos de convergência (da tradição e também de modelos culturais de
ruptura). (ABDALA, 1989, p.17)

Apesar do foco neste capítulo ser especificamente o contexto angolano, citamos o


conceito de macrossistema por entendermos que para efetuar qualquer busca de um contexto
sobre literatura angolana, acabaríamos sempre por nos depararmos com um sistema que
carrega em seu lastro uma história de contatos, traz a dimensão do passado como uma de
suas matrizes de significado .(CHAVES, 2005, p.45).
Tal idéia, a de identidade com outros autores dentro do sistema, tem aparecido com
freqüência na literatura angolana, como forma do sujeito poético posicionar-se em termos de
anseio por libertação. Sob essa marca se fizeram os sistemas de literaturas africanas e em
virtude disso, faz-se necessário contextualizar a produção de Há prendisajens com o xão,
pois
ninguém cria do nada. Há a matéria da tradição literária que o escritor
absorve e metamorfoseia nos processos endoculturais, desde a apreensão
mais espontânea dos pequenos causos populares, ditos populares, canções
13

etc., da chamada oralitura ( literatura oral) até os textos mais auto-


reflexivos da literatura erudita. Ocorre, nesse sentido, uma apropriação
natural das articulações literárias sem que o próprio futuro escritor se
aperceba de sua situação de ser social e de porta-voz de um patrimônio
cultural coletivo. Quando o escritor escreve, pode julgar que o texto é apenas
seu, não tendo consciência de que na verdade é a sociedade que se inscreve
através dele. (ABDALA, 1989, p.23)

O início da literatura angolana teve suas raízes na oralidade como nos adverte Ervedosa
(1979) em seu Roteiro da literatura angolana; entretanto, partiremos de um recorte datado
de 1849, quando da publicação de Espontaneidades da Minha Alma às Senhoras
Africanas , de José Maia Ferreira.
Apesar da obra de Maia Ferreira ainda demonstrar pequenas marcas da angolanidade
(MATA, 2001), o que é possível verificar através da escolha de uma musa européia, a
publicação da obra vem nos mostrar o aparecimento de um público leitor, muito ao gosto do
Romantismo importado das leituras portuguesas.
Iniciado, então, o período de constituição da gênese da literatura angolana, vários
escritores se destacam, entre os quais: Cordeiro da Matta, Paixão Franco e Assis Júnior.
Nestes, nota-se já um desejo de autonomia para Angola (ERVEDOSA,1979, p.55), já que,
durante o séc. XIX, um período de tensões latentes se inicia entre os muitos imigrantes
portugueses e uma pequena burguesia intelectual já formada.
Mário Pinto de Andrade (1975), na Antologia temática da poesia africana, situa esse
grupo de escritores como parte de um período inicial, o das correntes de formação duma
consciência que se fazia presente, principalmente, através dos jornais. Sobre isso, o escritor
angolano Pepetela observa que

havia uma intensa actividade jornalística, com periódicos de vida efémera,


sobretudo em língua portuguesa, mas também utilizando alguns deles as
línguas kikongo, kimbundu e umbundu, da grande família das línguas banto
do centro e sul de África. Uma característica desta imprensa angolana,
centralizada quase exclusivamente em dois centros urbanos da costa
atlântica, Luanda e Benguela (...)( 2003, p.1)

Segundo Hamilton (1981, p.55), obras como Segredo da Morta - Romance de costumes
angolenses (1925) de Assis Jr. mostram a dualidade cultural que a sociedade angolana levará
para a literatura do séc. XX, misturando provérbios em quimbundu com o modelo narrativo
europeu, o que caracterizou o primeiro momento do cenário angolano.
Contudo, a partir de 1926, com a ditadura do Estado Novo de Oliveira Salazar, a
imprensa angolana passa a não ter tanta liberdade para continuar com o mesmo processo de
14

produção literária. O período apresenta autores como Óscar Ribas e Castro Soromenho. Em
ambos, temos fases distintas de produção: em Ribas, faz-se o primeiro contato com a tradição
angolana, preenchido, depois pela experimentação no universo da linguagem portuguesa; já
em Soromenho, que começa a escrever em Portugal, temos um escritor que se concentra
sobre temas peculiares ao universo africano, mesmo que muitas vezes note-se o
distanciamento , como neste trecho de Calenga (1945):

As mulheres bateram palmas e riram alto. Elas sabiam (grifo nosso) que o
nome daquela árvore vem de cuangana receber e que os homens só a
plantam no lugar onde se encontram com uma mulher, quando ela é eleita.
(p.196)

Soromenho deu os primeiros contornos para a ficção angolana anticolonialista, na obra


Terra morta (1949), que representa uma nova realidade social: brancos e mestiços passam a
estabelecer diálogos nos romances, o que provocou a proibição da obra pelo regime
salazarista.
Tomás Vieira da Cruz, no seu livro de poemas Tatuagem (1941), investe nesse
conhecimento das sociedades tradicionais; no trecho abaixo, em que Buzi é retirada de seu
meio social, afastada do amor e entregue a um europeu , o soba2 anuncia à Buzi que para
esse mal a magia não tem cura, para isso o poeta entremeia a sintaxe portuguesa e o
vocabulário nativo:

Buzi, ó flor do Songo,


Para males de muxima
Kimbanda não tem milongo!(VENÂNCIO, p.62)

Diante deste panorama, temos o início do Movimento dos Novos intelectuais de


Angola , em que se destacam nomes como o de Agostinho Neto, Antonio Jacinto e Viriato
da Cruz. Essa geração ficou conhecida como Mensagem, nome também da revista de 1951,
que trouxe um projeto com propostas para divulgação da cultura literária angolana.

2
chefe de povo ou de pequeno Estado africano, esp. na costa ocidental, ao sul de Angola; soma, de etimologia
quimbundu.Fonte: Houaiss eletrônico.
15

Entre outros, divulgam-se os poemas de Agostinho Neto, que será mais tarde o primeiro
presidente de Angola, com forte tendência ideológica, tendo em vista a luta anticolonialista
que se acirra.Isso, como podemos notar na parte final do poema Aspiração:
E nas sanzalas
nas casas
nos subúrbios das cidades
para lá das linhas
nos recantos escuros das casas ricas
onde os negros murmuram: ainda

O meu Desejo
transformado em força
inspirando as consciências desesperadas. (NETO,1976,p.33)

Entretanto, o lema Vamos descobrir Angola! , de 1948, segundo Hamilton (1983,p.79),


teve em Viriato da Cruz seu primeiro representante no que diz respeito às vozes vindas de
Angola, já que uma peculiaridade desta fase é o fato de parte desses intelectuais estarem em
Luanda ( representada pela Associação dos Naturais de Angola, promovendo o primeiro
número da revista Mensagem) e a outra parte em Lisboa ( ligados à Casa dos Estudantes do
Império que edita a revista Mensagem em sua segunda fase) embora com um mesmo desejo-
o de ser nação-, mote que passa a ser um elemento fundador de temas dentro da literatura
angolana:

um factor que pode ter marcado uma diferença entre as duas gerações é o das
influências externas. Enquanto a elite do século XIX era muito marcada pela
literatura portuguesa da época, oscilando entre o chamado romantismo e o
realismo, que fazia gala em conhecer e que muitas vezes se gabava de
dominar tão bem como os portugueses, a geração de 1950 tinha outras
leituras e mais universais. Assim, um Agostinho Neto por exemplo
reconhecia ser grande admirador do afro-americano Langston Hughes ou do
cubano Nicolas Guillén e um Mário Pinto de Andrade ou um Viriato da Cruz
eram profundos conhecedores da literatura brasileira de então e da que
começava a fazer-se em África. (PEPETELA, 2003,p.3)

Viriato da Cruz é o ponto de ruptura com a literatura portuguesa: os temas são


inegavelmente angolanos, assim como as figuras humanas e o resgate de expressões
originárias das línguas africanas, conforme poderemos observar no trecho a seguir de Serão
do menino (1961):
Mas quando lá fora
O vento irado nas frestas chora
16

E ramos xuaxalha de altas mulembas3


E portas bambas batem em massembas4
Os meninos se apertam de olhos abertos:
_ Eué
_ É casumbi5...( FERREIRA,1976, p.169)

Ao lado do engajamento de Agostinho Neto e a ruptura de Viriato da Cruz, podemos


elencar também a poesia de Antonio Jacinto, fonte de imagens de identidade angolana em
construção através do cotidiano e da denúncia social.O Poema da alienação problematiza
uma nação que se estranha e se hibridiza entre o rural e o urbano, entre o quimbundo e o
português:

(...)
Eu ainda não sei nem posso escrever o meu poema
O grande poema que sinto já circular em mim
(...)

O meu poema corre nas ruas


com um quibalo podre à cabeça
oferecendo-se
oferecendo
carapau sardinha matona
jiferrera jiferrerééé...
(...)
O meu poema é contratado
ainda nos cafezais a trabalhar
O contrato é um fardo
que custa a carregar
monangambééé
(...)

O meu poema anda na praça trabalha na cozinha


vai à oficina
enche a taberna e a cadeia
é pobre roto e sujo (...) (FERREIRA, 1976,p.138)

No ensaio O projeto literário angolano: a identidade a contrapelo , Chaves(2005)


nos lembra do papel da literatura brasileira como interlocutora da produção literária em
Angola por meio de nomes como: Jorge Amado, Graciliano Ramos e Manuel Bandeira

[o] modernismo brasileiro, definido por Mario de Andrade como a fusão de


três princípios fundamentais a estabilização de uma consciência nacional, a
atualização da inteligência artística [...] e o direito permanente a pesquisa-

3
árvore sagrada e simbólica, associada à ligação entre vivos e mortos.
4
danças.
5
alma de outro mundo.
17

surge como um espelho em que os angolanos gostavam de se mirar,


procurando, contudo, sua própria face. (CHAVES, 2005,p.71)

Um exemplo disso é a preocupação de alguns periódicos como Cultura, editado em


Angola entre 1945 e 1951, no qual se demonstrava uma preocupação crítica diante da
literatura produzida em Angola, no sentido de um duplo comprometimento: os ideais
políticos e a dependência de formas literárias européias. Dentro deste período, temos ainda
vozes como a do poeta Antonio Cardoso que em Poesia Angolana ou Poesia de Angola
discute sobre este trânsito freqüente de produções em poetas metropolitanos ou doutras
partes do território nacional que, por acidente, passaram, vivem ou se fixaram em Angola [...]
e que procuram na sua poesia uma consciência local, não limitada, como humana que
pretende ser e por tal universal. (HAMILTON,1983,p.86).
Para esclarecer esse intrincado jogo de relações do segundo momento da literatura
angolana, Chaves, ao comentar o projeto de angolanização da literatura, dá-nos o que são as
suas três principais fases: um primeiro momento que se marca pelo Movimento dos Novos
Intelectuais de Angola; um segundo que emerge no período da guerrilha; e um terceiro que se
dimensiona já com a perspectiva da libertação. ( 2005, p.71)
A segunda geração, chamada de Resistência (1961-1974), será acompanhada por um
tumultuado processo histórico, devido à guerra pela independência. É durante este período
que despontam nomes como: Pepetela, Costa Andrade, Uanhenga Xitu, Mário António,
Arnaldo Santos, Henrique Abranches, António Cardoso, Ruy Duarte de Carvalho, Jorge
Macedo, Boaventura Cardoso, Luandino Vieira, Manuel Rui e David Mestre.
Dentre os autores citados acima, Luandino Vieira merece especial atenção por
constituir, a nosso ver, um elo entre as gerações: passado-presente-futuro da literatura
angolana que correspondem às três condições, concretas ou imaginadas, de Angola: colônia-
guerra- nação soberana (CARELLI, 2003,p. 195). Em seu percurso literário, há a busca da
coletividade de uma nação que nos é apontada pelas vozes do eu-lírico ou do narrador e
construída em um idioleto poético que luta esteticamente ora para enriquecer a língua
portuguesa, ora para silenciar o discurso do outro , exemplo disso é o poema Sons (publicado
no Jornal de Angola em 1963),

A guitarra
é som antepassado.

Partiram-se as cordas
esticadas pela vida.
18

Chorei fado.

Que importa hoje


se o recuso:

o ngoma6 é o som adivinhado! (FERREIRA, 1976, p. 238)

Outro dos autores representativos da consciência edênica da terra


(MATA,2001) e da geração Resistência que também irá enveredar para uma prosa de
proposta revolucionária, é o escritor Manuel Rui. No trecho, a seguir, percebemos a presença
do espaço angolano, não mais como a distância do intelectual, mas como parte integrante da
natureza:

(...)do frio. Em Julho e bem no alto


dos seios do Lubango os montes que o circundam
ainda se vê um cristo miradouro
saudoso saudosista a despedir-se
de um tempo que abraçou
e que findou.(...)
(DASKALOS, 2003,p.86)

Após a retirada portuguesa, inicia-se, entre 1975 e 2002, uma busca constante de
definição para cada produção literária, sem abandonar um projeto estético maior, que pudesse
traduzir a cor local 7, :

É esta visão que percorrerá a literatura angolana até aos finais da década
de 70: a utopia de um país novo que, aprisionado, não pôde realizar-se(...)
Era uma visão alicerçada na pujança virtual edénica da terra, pelo que
também a literatura foi actuante na imposição de padrões culturais e modelos
ideológicos, de que a década seguinte acordará, dilacerada por uma intensa
consciência da uma realidade pragmática e obsessiva. ( MATA,2001, p. 81)

Considerando que os poemas de Há prendisajens com o xão são editados em


2002 e Ondjaki nasce em 1977, passaremos a alguns exemplos dessas produções angolanas
do período pós-independência, com o objetivo de acrescentar um contexto de interlocutores
contemporâneos para o corpus deste trabalho.
Nos anos 80 e 90, em Angola, o lirismo cede lugar a um tom existencial, buscando
negar a dor e a morte; duvida-se da existência do amor, por exemplo, diante da guerra. Inicia-

6
tambor.
7
expressão utilizada por Machado de Assis em Instinto de Nacionalidade (1997,p.22), mas aqui queremos nos
referir ao sentido de formação e não ao exotismo.
19

se uma reorganização da linguagem numa tentativa de recriar as mutilações da guerra civil, a


geração das incertezas como nos exemplifica Secco (2004,p.192) por meio de um poema de
Fernando Kafukeno:

amar? tecer a teia da rede no mar


( da areia
amar?sonhar a teia desenhada de peixes nas
( nuvens da rede
amar?redes para coser o mar e a chuva no
(saco da lua
amar?suspiros sem teias
(SOARES, 2001, p. 221)

Não se trata, porém, da poesia de combate das décadas anteriores; mas sim de
metapoesia, em suas nuances intricadas entre o fazer poético e as imagens da natureza pátria.
Apesar desses contornos metapoéticos também se realizarem em Há prendisajens com
o xão, a idéia da dinamização identitária se manifesta, mais fortemente, pelo diálogo com a
terra e seus desdobramentos. O mesmo ocorre com outros poetas como Arlindo Barbeitos,
por exemplo, cuja busca para representar o imaginário angolano não abandonou o sonho, e
apurou, esteticamente, a palavra:

escuras nuvens grossas de outros céus vindas


entrançando-se por entre asas de pássaros canibais
e
chuva de feiticeiro
em sopro
de arco-íris dependurada (SECCO,2001, p.270)

Esse período pós-independência é marcado pelos ecos de um país em guerra civil e


sob o regime de um partido único. Também ganham voz, neste espaço, autores como: João
Maimona, João Melo, Maria Alexandre Dáskalos, José Luís Mendonça, Lopito Feijó, Paula
Tavares, Trajano Nankova , João Tala e John Bella .
É interessante ressaltar também um comentário de Pires Laranjeira, em um dos
ensaios da obra De letra em riste, que resume as idéias expostas pelos poetas do período
acerca da produção poética que adentra os anos 90:
O que distingue a nova geração é que, na poesia,[ há ]uma poética
[que]tende a subalternizar as evidências temáticas e a retórica ufanista,
acentuando o lado obscuro da vida e dos discursos, em sintonia com a
tendência universal moderna de pensar a poesia dentro da própria
poesia.(LARANJEIRA,1989, p.104)
20

Vasconcelos, por sua vez, em Breve olhar sobre os fazedores de nossa literatura
(2003), explica-nos que a literatura contemporânea angolana:

coloca em num só palco três grandes gerações (de Pepetela, Jorge Macedo,
Manuel Rui ao João Tala, Ondjaki e Abreu Paxe), dezenas de actores que
vão poder explorar melhor a interioridade humana. Os defensores da
proposta de divisão em dois grandes tempos da literatura da pós-
independência, certamente procuram ainda identificar as grandes alterações
temáticas, depuração de universos, mitos, isto é, analisar autor por autor,
seus manifestos, dialécticas e pujança de conteúdos. Outro exercício penoso
e necessário será a «verificação» da crítica que corre à volta das referidas
obras e se «em número» correspondem já a uma grande substância literária.
São razões suficientes que devem provocar a divisibilidade do actual
panorama literário angolano e neste exercício encontraremos vários nomes,
diversas origens sociais e até regionais. (VASCONCELOS, 2003,p. 5)

Na contemporaneidade, um trecho do prefácio de Há prendisajens com o xão, de


Ondjaki, pode nos esclarecer sobre certas nuances dessa atividade poética e de sua dialética
com autores do passado: aprendizagem é a palavra que, ela sim, ramifica e desramifica uma
pessoa; ela enlaça, abraça; mastiga um alguém, cuspindo-o a si mesmo, tudo para novas
gêneses pessoais. (ONDJAKI, Há prendisajens com o xão, 2002, p.7)
A palavra literária é necessariamente conduzida por aspectos interiores (mastigar-
prender) e exteriores (cuspir- aprender), o que nos dá alguns indícios deste fazer poético, já
que, segundo Glissant (2005), são os traços, o pensamento do rastro e resíduo que nos
colocam no mundo em relação, na trama com o lugar de onde vieram poesia e poeta, ou seja,
o xão poético.
Assim, pensamos que a construção da identidade literária de Ondjaki, vista de dentro do
contexto angolano que o precedeu8, dá-se não pela necessidade de manter-se fiel ao código
até então utilizado, mas em buscar comunicação com uma rede cultural ampla, sem deixar
de colocar-se como sujeito de voz própria: marcações perceptíveis na forma como a palavra
corporifica seu sentido fônico-semântico, organizado e grafado, em uma espécie de
hibridização poética.
Os poemas e os paratextos de Há prendisajens com o xão ramificam-se como
organismos alternados entre acentos e temas angolanos, obrigando o código a transformar-se,
escapando de um processo ideológico de dominação e mostrando a diferença em termos de
valor estético. Para Ondjaki, esse posicionamento parece se transformar em um método de
8
Não abordamos neste capítulo autores como Paula Tavares e Ruy Duarte de Carvalho, que são de profunda
importância para esta construção identitária, pois serão elencados em capítulos a seguir.
21

atravessar os outros , em uma aprendizagem (prendisajens) do ser xão em processo, como


denuncia o título da obra.
22

CAPÍTULO 2- A APRENDIZAGEM DO EU-CHÃO: A NATUREZA

estou a dizer que sou poeta, simplesmente porque sou uma pessoa...
agüentas, muadiê?, diz lá se isso não é já uma frase pra mandar esses gajos irem um mês pra casa
pensarem que a poesia não se faz, se vive; a poesia não se procura tipo diamante, se encontra tipo
arco-íris: ou há ou não há - sorte e azar dos olhos no depois da chuva
(ONDJAKI. Quantas madrugadas tem a noite)

Do chão da poesia

Sobre o fazer poético é que gostaríamos de discutir neste segundo capítulo. Para tal
reflexão, abordaremos alguns ensaios de Paul Valéry incluídos na obra Variedades (1999)
analisando como se dá o pensamento analógico dentro do corpus escolhido; bem como os
conceitos de Fenollosa (1994) quanto à investigação dos elementos universais da forma e sua
contribuição para o funcionamento do mecanismo poético; e de Pound (1997) demonstrando
como se concretiza a metáfora chão, enquanto fundação do eu- poético, ou melhor, uma de
suas dimensões .
Teremos, então, este capítulo composto de análises textuais que exemplificarão
como a palavra chão na sua diversidade de poemas e paratextos do corpus, fazendo um
percurso que partirá do título para o subtítulo, epígrafes, dedicatórias, poemas e verbetes de
dicionários; já que o fazer poético é, também, um exercício de transformar signos, criando
ícones que pincelam universos. A leitura da obra, em questão, não se faz de forma linear, mas
sim de forma simultânea, pois há nela uma reunião de gêneros textuais, que produzem uma
teia de imagens verbais e não-verbais, que colocam o leitor como tecedor desse fio, aquele
que preencherá os espaços em branco, como explica-nos Zumthor:

O olho percebe uma frase graficamente contorcida em forma de


rosa: simultaneamente ele a olha a flor e lê a frase. A percepção do texto se
desdobra. Da maneira mais banal, a maior parte dos poetas, hoje, imprime
seus poemas distribuindo na página espaços vazios e palavras em uma ordem
que é significativa, pois cria um ritmo visual, transformando o poema em um
objeto. A leitura se enriquece com toda a profundeza do olhar. ( 2000, p.86)

Embora não seja o viés principal de nossas análises, cabe advertir que essa leitura,
proposta por Zumthor, a que vai além do código verbal, é necessária para Há prendisajens
com o xão, devido à forma gráfica com que os poemas são impressos: todos os versos
23

começam em minúsculas como pequenas raízes fincadas à margem esquerda das folhas, em
uma sugestão de plantas-verso crescendo no chão das folhas-livro9. Diante dessa interação,
onde os códigos se comunicam e se explicam mutuamente (FERRARA, 1986, p.36) exige-
se do leitor um olhar atento, pois os gêneros distribuídos pela obra pedem que o penetremos e
força-nos ao movimento de ir e vir pelas páginas, criam imagens, espaços, cruzamento entre
linguagens, de modo que o livro-objeto também é uma dimensão da metáfora, se o
pensarmos como o chão que sustenta os recursos gráficos que o compõem.
Para observarmos como o eu cria uma correlação com o vocábulo chão -escolhemos
dentre os inúmeros conceitos de metáfora, o que pudesse esclarecer que a função poética
projeta o princípio de equivalência do eixo de seleção sobre o eixo de combinação ,
(JAKOBSON, 1997, p.130) e que este princípio de similaridade é que domina a poesia , já
que, o paralelismo métrico dos versos ou a equivalência fônica [...] impõe o problema da
similitude e do contraste semântico (JAKOBSON,1997,p.62)
Podemos dizer, então, que a metáfora é a substituição do sentido de uma palavra (chão)
por outro significado segundo (como o eu assume o chão), quando entre o seu sentido básico
(terra) e os acrescentados há uma relação de intersecção e analogia (as suas dimensões como
identidade e nação literária).
Ao elaborarmos a pergunta-problema em relação ao nosso objeto- como sistematizar
o fazer poético através das dimensões da metáfora chão -, deparamos-nos com a questão do
fazer poético que para Paul Valèry é o ponto-chave para qualquer reflexão sobre o ser
poético :
A idéia de Fazer é a primeira e mais humana. Explicar nunca [...] é mais
que descrever uma maneira de Fazer: é apenas refazer através do
pensamento. O porquê e como, que são apenas expressões do que é exigido
por essa idéia, inserem-se a todo instante, ordenando que os satisfaçamos a
qualquer preço.(1999, p.98).

Do chão-título e seus seres mínimos

Se a questão da poesia é fazer e não dizer, é preciso partir do universo de relações do


como, já que a Idéia reivindica sua Voz (VALÉRY,1999,p.165). Nesse sentido, ao nos
depararmos com o título da obra que traz a palavra chão - Há prendisajens com o xão -,
temos o método a ser utilizado na leitura do corpus, isto é, um dos procedimentos de análise

9
Em virtude disso, preferimos manter os poemas alinhados à esquerda da folha e não com recuo à direita, como
será utilizado para outras citações, conforme as normas técnicas.
24

do corpus delineado, já que da palavra xão (como um x assinalado na capa feito um mapa)
estabelece-se um liame com a geo-grafia de língua portuguesa, sem deixar de lado os estatutos
da tradição africana através do tema terra como imagem simbólica.
Ao pensarmos por que o título resiste à compreensão imediata, ficamos entre a
estranheza provocada pela grafia das palavras, sua forma e Voz no sentido valeryano e o
pensamento; somos provocados a continuar buscando qual é a fonte dos sentidos, oscilando
entre o valor da palavra escrita como variante oral e os sentidos que podem estar presentes
nos vocábulos xão e prendisajens.
Se entendermos, conforme Valèry, que: a Poesia é uma arte de linguagem; certas
combinações de palavras podem produzir uma emoção que outras não produzem, e que
denominamos poética. (1999,p.197), estaremos, então, inclinados a ler o título da obra por
meio dessa emoção que nos impulsiona a tentar compreendê-la.Ao enunciar a emoção, Valèry
nos ensina, através de sua própria prática, que

todos os objetos possíveis do mundo comum, externo ou interno, os seres, os


acontecimentos, os sentimentos e os atos, permanecendo o que são
normalmente quanto às suas aparências, encontram-se de repente em uma
relação indefinível, mas maravilhosamente ajustada ao gosto de nossa
sensibilidade geral. Isto significa que transformam-se em algum tipo de
valor. Eles se chamam entre si, associam-se de forma completamente
diferente dos meios normais; acham-se musicalizados, tendo se tornado
ressonantes um pelo outro e como que harmonicamente correspondentes.
(p.197-8)

A experiência do poeta se transforma naquilo que chama de estado poético; em


contrapartida, cede ao leitor a função de inspirado porque este seria transformado pelo seu
poeta ao lê-lo e relê-lo; um xão pedindo por formas de prendisajens.
O que quis fazer, e não o que quis dizer, essa é uma das premissas da teoria valèryana,
que coloca a forma sensível - a palavra em correspondência o pensamento como o objetivo
fundamental da necessidade poética, como potências criadoras de presença apenas pelo ato de
nomear. A isso, o poeta-crítico francês chama de universo poético (1999, p.165), que solicita
por método a arquitetura de uma linguagem dentro da linguagem (1999, p.200).
Para esclarecermos melhor como este discurso se concretiza enquanto modelo de
sensibilidade,tomemos as palavras de Pignatari:

Em poesia, você observa a projeção de uma analógica sobre a lógica da


linguagem, a projeção de uma gramática analógica sobre a gramática
lógica[...] Um poema cria sua própria gramática. E o seu próprio dicionário.
Um poema transmite a qualidade de um sentimento. (2005,p.18)
25

Ao confrontarmos com o que Valèry teoriza, notamos que a metáfora chão dentro do
corpus escolhido assume o que ele chama de valores da moeda fiduciária, que ora pela
boca do povo, ora pelas necessidades imprevistas da técnica, ora sob a pena hesitante do
escritor, dá origem a essa variação da língua que a torna diferente (1999, p.175), é a mesma
palavra do cotidiano, mas que vai assumindo valores diferentes.
É nessa medida que a metáfora, sendo pensamento por similaridade traz a correlação
som-sentido entre xão e chão: de um lado a terra, a raiz; de outro o chão poético; a palavra
na sua dimensão de palavra-coisa , de corpo e presença.
O trânsito entre som e sentido nos vocábulos do título, por exemplo, entre
prendisajens e xão requer um exercício do pensamento analógico, porque opera com o som e
o efeito psíquico, gerando o que Valèry chama de irregularidade, embora nos advirta que essa
irregularidade é que traz a condição de fecundidade, ou melhor, as várias formas do chão.
Algo similar nos diz Jakobson sobre o agenciamento fônico na linguagem poética: a escolha
e a constelação de fonemas e de seus componentes (1997, p.114) teriam um poder evocador
de sentidos.
A poesia de Ondjaki, além de prender-se aos elementos naturais como vê-se
em: Há prendisajens com o xão (O segredo húmido da lesma & outras descoisas),
apresenta uma presença forte da oralidade que se agarra à ortografia de determinados
fonemas, criando uma multiplicidade de sentidos: o som provocado pelo há, verbo haver em
terceira pessoa do presente, com sentido de existir, acontecer ou ocorrer funciona como
prefixo para o substantivo prendisajens, temos então: há prendisajens enquanto som-
sentido ao invés de termos apenas a forma escrita aprendizagens. Isso nos leva a uma outra
possibilidade de leitura do título, aliado ao verbo prender, significando comunicar-se, ligar-se
com, embaraçar-se, atar..., ou seja, aprender leva a prender e prender leva a
aprender.Cria-se, assim, um círculo sonoro que evoca o contato entre o chão/ xão para
espalhar-se pelo campo semântico de, praticamente, todos os poemas do corpus,
trapaceando no sentido barthesiano da língua .
Além disso, ganhamos outra possibilidade ao ler o título pensando em sua disposição
gráfica na página ou na capa: a preposição com unida ao artigo o provoca a sonoridade do
verbo comer, em sua primeira pessoa /como/ , come-se o chão, tal qual nos esclarece um
verbete sobre a palavra terra de Chevalier :
26

Algumas tribos africanas têm o hábito de comer a terra: símbolo de


identificação. O sacrificador prova a terra; dela, a mulher grávida come. O
fogo nasce da terra comida. Diz-se então que o Ventre se ilumina...(2001,
p.879)

Visto dessa forma, devemos também pensar como nos aconselha Melo e Castro que
a poesia da África em português,[...] não pode abdicar da sua congênita
oralidade e são, por isso, imagens orgânicas totais e metáforas [...]
consubstanciais (1998,p.137)

pois, uma das peculiaridades do corpus é realizar um trabalho em que existe a possibilidade
de inumeráveis ocorrências de sons semelhantes dentro do sistema língua [nos referimos aqui
à dicção angolana] que cria condições para o surgimento de fenômenos como a paronomásia
e a aliteração( PIGNATARI, 2005,p.17),ou seja, já que opera por semelhança seus efeitos
estão correlacionados.
Temos, então, o que Pound chamou de logopéia, a poesia que ao produzir ambos os
efeitos [fanopéia e melopéia] estimula as associações (intelectuais ou emocionais) que
permaneceram na consciência do receptor (2001,p.61). No que diz respeito aos sentidos do
chão, a linguagem carregada de significado até o máximo grau possível (2001,p.32), cria
um processo tal que a cada vez que a metáfora chão insere-se em um poema ou verbete estará
irradiando para novas forças e tropos.
Há prendisajens com o xão, desde o título, vincula-se, assim, à vivência afetiva, a um
saber-sentir territorializado cuja inscrição se faz com barro, areios, grãos; em uma semântica
de fertilização, como veremos a seguir.

CHÃO

palavras para manoel de barros10

apetece-me des-ser-me;
reatribuir-me a átomo.
cuspir castanhos grãos
mas gargantadentro;
isto seja: engolir-me para mim
poucochinho a cada vez
um por mais um: areios.

10
ONDJAKI. Há prendisajens com o xão. Lisboa: Caminho, 2002. A partir daqui, usaremos a referência
abreviada para a obra ( Há prendisajens) acrescida do número da página .
27

assim esculpir-me a barro


e re-ser chão. Muito chão.
apetece-me chãonhe-ser-me.( Há prendisajens,p.11)

Ao metamorfosear-se em chão11, ao trocar as máscaras, o eu parece criar uma


intricada série de relações entre o título e a composição dos versos, mantendo-nos atentos à
construção física do poema ao engolir os grãos cor de terra que vai constituir o próprio ser, a
areia que compõe o barro e que volta para o chão são formas de conhecer, de aprendizagem,
moldando-se em uma espécie de esculpir interminável. Simultaneamente, temos uma
movência de sentidos da metáfora chão que por analogia esbarra no sobrenome do autor
citado na dedicatória - barros-, como se ao provar deste barro passasse a ser parte dele, a
pertencer a algum chão, algum lugar como pensamento poético. Em suma, identifica-se ao
conhecer, incluindo-se em uma rede mais ampla da língua portuguesa, atravessando as formas
estéticas presentes nas obras do poeta brasileiro, o que pode ser melhor definido nas palavras
de Glissant:
Atravessada e sustentada pelo rastro/resíduo, a paisagem deixa de ser um
cenário conveniente e torna-se um personagem do drama da Relação,(...) a
dimensão mutante e perdurável de toda mudança e de toda troca. Esse
imaginário do pensamento do rastro nos é consubstancial quando vivemos
uma poética da Relação no mundo atual. (2005,p. 30)

Percebemos, acima, a estreita ligação entre a escritura da palavra chãonhe-ser-


me do último verso e as relações estabelecidas pelas marcas da oralidade: poucochinho,
areios; a renovação através do neologismo que será interiorizado pela gargantadentro,
procurando o espaço onde nasce a voz e entra o alimento. A horizontalidade da forma
gargantadentro causa-nos o que Valèry chama de impressão (1999, p.196-7), isto é, a
ressonância, o efeito que há em uma palavra justaposta com cinco sílabas, provocando a
aproximação de significados dos dois radicais: a garganta como caminho para o interior, o
dentro do ser, sua verticalidade.
A língua, enquanto sistema no poema, passa a ser tratada como linguagem
poética e ganha forma difratada, pois pressupõe a presença das línguas do mundo na prática
de sua própria língua12 (GLISSANT, p.31); por isso situa-se entre um poucochinho

11
Em Actu sanguíneu (2000), seu primeiro livro de poesias, Ondjaki já deixava uma semente do poema Chão,
em um verso do poema II da série Azul chama-me átomo e cospe-me (p.54).
12
Glissant chama isto de multilingüismo, pois invoca também um imaginário da língua; sabemos que
escrevemos na presença de todas as línguas do mundo,(...) o que não significa conhecer todas as línguas do
mundo. Significa que no contexto atual das literaturas e da relação poética com o caos-mundo, não posso mais
escrever de maneira monolingüe (p.49)
28

coloquial e popularesco em Angola e um conhecimento intelectualizado, presente na palavra


átomo, espelhos da fala e conhecimento.Vale ressaltar as marcas lingüísticas do português em
Angola: a ausência de preposição a em locuções verbais com infinitivo (CANIATO, 2005
p.80)denunciam a descolonização da linguagem, que devorou a preposição da língua
portuguesa para marcar o chão angolano como voz e presença.
O mesmo processo ocorre no plano da idéia, de identidade chão por meio da formação
que as palavras tendem a tomar durante a construção do poema, pautando-se sempre pelos
prefixos e sufixos, que deslocam a classe gramatical em des e res, numa espécie de poética
dos mínimos, gerando símbolos nos quais a natureza se une e se funde, num corpo só, como
matéria xão .
Essa gramática é que esculpe, a partir de elementos metonímicos, uma imagem que na
literatura angolana, é constante: a terra que se metamorfoseia em nação e vivifica o poeta-
semeador da palavra, cuspindo castanhãos-grãos, lançando saliva ao mundo, em busca do
ramifica/desramifica do prefácio( Há prendisajens, p. 7) que é acolhido. Embora
conflituosamente, as relações entre chão e eu-poético não se contentam, apenas, em
coexistirem, precisam refazer-se (terra em poeta); para que haja o conhecimento inscrito no
último verso é necessário o apetecer do primeiro verso: ter apetite/desejar ser.
Atentemos, novamente, sobre a disposição gráfica do poema com a ausência de iniciais
maiúsculas, motivando a criação de um verbete no segundo dicionário, ao final da obra:

aminúsculo: sensação inexplicável e também inexplicada.só pode ser sentida por voadores ou por
quem já saiba praticar voolêncio. ( Há prendisajens, p.65)

Nomear o dicionário com a ordem alfabética invertida - outros convidados ou


descoisas (de Z a A) - faz com que o leitor procure novamente seu primeiro verbete:

voolêncio: um voo munido de silêncio. vivência intensa de um silêncio.acto mais alcançável para
quem saiba fornicar com pele libertando sêmen que grita de estar sozinho.(Há prendisajens, p.61)

Estando sozinho, o vocábulo voolêncio, como palavra-montagem no sentido joyceano,


pede outro diálogo que nos conduz ao poema:
29

SILÊNCIO NO VOO DOS MOSQUITOS

palavras apontadas para Clarice Lispector

como se adormecidamente.
para saber silêncios
o mosquito voa acontrário
soprando para frente.
assim toda locomoção perde o segredo
todo o vento se desmistifica.
como se antecipadamente.
para domar zumbidos
o mosquito faz andamentos na pluma do ar:
usa pata, patinhas, patitas.
sons enveludados
_repletos de aminúsculo.
mas! o segredo:
mais que asa
para deslocamentos
o mosquito usa alma.
borbulha _ é um resultacto de fornicação.
comichão _ é um sêmen denunciando solidões.
como se amosquitadamente.
...
para voar com(o) mosquito
somente use um voolêncio.(Há prendisajens, p.26-7)

Uma das primeiras indagações é o porquê de apontadas, ou melhor, o signo poético


aponta para dentro e não para fora; teríamos, então, a palavra como mira e o todo da obra de
Clarice como alvo, querendo ao que nos parece estabelecer um contato com o leitor.
Isto nos leva, também, a reflexão sobre os procedimentos poéticos nos paratextos
(epígrafes, dedicatórias...), que são uma amostragem de como esse poeta deglute autores
considerados transgressores, e ainda, como isto é uma estratégia para criar uma identidade
30

dentro de seu projeto literário, uma entrada para a palavra escrita em termos de
13
instrumental de sobrevivência (SÁ,2004, p.238).
Sabemos que uma das abordagens possíveis para a obra de Clarice é o uso das figuras
de linguagem, como a metáfora insólita, arquitetando o texto e provocando no leitor a
estranheza. Diante da expectativa da dedicatória, Silêncio no voo dos mosquitos é fruto de
uma estratégia subvertida, o mosquito aqui voa acontrário , em silêncio, considerando que
mosquitos são incômodos e antagônicos ao silêncio; já que o zunido é um ruído irritante e o
vôo, sempre provocativo, veloz, muitas vezes não nos dá chances de conseguirmos alcançá-
los e eliminá-los como desejamos.
Lembramos, aqui, da barata na obra de Clarice, o desejo de exterminá-la, em A quinta
história, a impossiblidade do mesmo ocorrer, pois está entranhada na massa do mundo, assim
como os mosquitos que segundo o verbete do dicionário, é um símbolo de agressividade.
Ele procura obstinadamente a vida íntima de sua vítima e se alimenta de seu sangue
(CHEVALIER,p.623),o que nos remete à palavra voolêncio . São seres alados e minúsculos,
que por vezes nos repugnam, nos deslocam de nossa rotina, incomodando, zoando,
multiplicando-se.
O recurso do estranhamento, utilizado por Ondjaki, revela-nos a idéia de continuidade,
de infinitude, de experimentação formal em poemas que se imiscuem em outros gêneros, em
especial, nos verbetes presentes na obra, tecendo diálogos com a nação literária. A escolha
deste poema, no qual o vocábulo chão não está presente, tem como objetivo demonstrar
que, mesmo quando a palavra chão não ocorre enquanto metáfora ( embora esteja no campo
semântico pelo termo aterrizagens em verbete) está representada pela construção labiríntica
que os termos criam, ao enraizarem-se por toda a obra:

mosquito: primo da abelha no que toca à surdez. pratica aterrizagens em humanos ouvidos, onde às
vezes acaba por falecer. de nascer em charcos, ganha dependências para a sede, mas enquerendo
sangue. biologicamente foi autorizado a praticar fornicação com a pele, lém de com sua respectiva
mosquita.domina o dom alquímico nominado aminúsculo . (há prendisajens, p.58)

O gênero verbete, segundo Brait ,


é específico da esfera da divulgação científica, não muito longo, organizado
por um especialista no campo, que visa transmitir conceitos de diversas áreas
do conhecimento humano.[...]Logo, os temas dos verbetes são os conceitos
elaborados pelas ciências, mas simplificados.(2004, p.25)

13
Trata-se da interpretação que Olga de Sá faz em Travessia do Oposto ao abordar a maiêutica da linguagem
de Clarice Lispector.
31

portanto o poeta, ao utilizar-se de tal gênero, como especialista e leitor, procura atribuir
sentido poético a um discurso não-poético.
Percebemos a postura metapoética, quando lemos que o primeiro dicionário intitulado
-BICHOS CONVIDADOS ( DE A A Z)- possui uma ordem alfabética, situando a natureza
dentro de um círculo previsto de acontecimentos, enquanto as expressões poéticas do
segundo dicionário OUTROS CONVIDADOS OU DESCOISAS ( DE Z A A) - precisam
estar fora da ordem, em alinhamento com o que diz, ou melhor, com o que faz a poesia.
Um primeiro olhar mostra-nos uma espécie de caos, o verbete que ali está não basta, é
preciso desconstruí-lo. Temos novamente o que Barthes (2002) chama de função utópica , a
língua não foi suficiente para abarcar todos os sentidos dentro do poema, este precisou
expandir-se em outras formas, marcando então uma das peculiaridades do corpus: desdobrar-
se em outros gêneros além do verso para permitir-se mais diálogos, mais vôos.

Do chão-subtítulo e seus segredos

Retomemos a capa da obra, agora no seu subtítulo: (O segredo húmido da lesma &
outras descoisas). Ao lermos a palavra segredo temos a impressão de que prender- aprender
é uma revelação a ser garimpada no caracol (eterno retorno em sua forma) carregado pelo
molusco que se arrasta pelo chão. Do subtítulo ao verbete poético, dentro do próprio livro,
temos o movimento metalingüístico:

lesma: mestre em tudo que acuse molhadez, é a dona de uma vivência lentadinosa _ o que produz
intimidade com o conhecimento.consegue alcançar tacto íntimo com todiqualquer chão.de tanto
imitar a noite ficou negra.(Há prendisajens, p.58)

O verbete intertextualiza um pequeno poema de Manoel de Barros, da obra


Retrato do artista quando coisa:
Caracol é uma casa que se anda
E a lesma é um ser que se reside.(2004, p.69)

Da mesma forma, a palavra lesma remete a obra de Ondjaki para a de Manoel de


Barros, que nos confessa que:
Vou ter que encostar o meu ventre no chão para o desvio rastejo.Terei que
produzir em mim a gosma dela a fim de lubrificar os caminhos da terra. Para
percorrer uma lesma terei de exercitar o esterco com lubricidade.Terei que
aprender a marcar com minha saliva o chão de poemas. E terei que aprender
por final a arte de ser invadido ao mesmo tempo pelo orvalho e pela espuma
dos sapos.[...] (BARROS,2004, p.69)
32

Como quem ouve o mestre experiente lhe contar um segredo, Ondjaki leva ao
subtítulo da obra a lição: a saliva úmida caracteriza a Voz, o que dá consistência aos
deslocamentos entre a palavra vocalizada, grafada e transformada em elementos da
natureza.
O mistério da lesma14 está na sua umidade e lubricidade, na maneira manoelina
de farejar o chão e criar por meio das palavras úmidas do poeta, a gosma que prende os
sentidos. Arrastando a casa, sua concha, a lesma desloca-se lentamente em sua forma
produtriz (VALÉRY, p.96). A lição transformada em segredo por Ondjaki está na
idéia de progressão do pensamento analógico quando o eu se transfigura em elementos
da natureza, gerando o poema SEGREDOS:

chovo-me em folhas
em abano de árvore
banho-me de pingos
com picos chuviscados.
cuspo pés de relva
mas abocanho terras
bitroncalizo galhos
para manusear estalidos.
atropelo-me por bichinhos
para xinguilar15-me em cócegas.
salivo sóis
pondo língua em estendal.
furo peles
para o chão sanguenhecer-me
desatribuo vestes
chibatando-me de ventos.
desorbito olhos
e reorbito-me em luas.
para fraldas
uso nuvens.

14
A imagem da lesma perpassa muitas obras de Ondjaki de forma recorrente como ocorre em Há prendisajens
e Bom dia camaradas (2000), em uma passagem em que o narrador descreve o jardim de sua casa: No jardim
havia umas lesmas que deviam ser mais velhas porque acordavam sempre cedo.Eram muitas. Depois do
matabicho, ficar assim ali na varanda com aquele fresquinho, ver as lesmas irem não sei aonde, aquilo dava-me
sono outra vez. Adormeci mesmo. (p.24)
15
estremecer,termo usado em Angola, quando se está sob influência dos espíritos, em transe.
33

afogueiro-me fumos
desumanizando cheiros.
para iluminar mundos
invoco pirilampos
enquerendo saltitar
apulgo-me.
em comichões
aguardo terramotos.
para paz
prescrevo assilêncios.
para repaz
procuro âmagos.
chovo-me em lágrimas
em sacudir de mins.
para segredos húmidos...
só respeito a lesma. ( Há prendisajens, p.18-9)

O chão dos poemas traduz-se em segredos da singularidade metafórica, presente


nos versos acima. É a lucidez em tê-la como fator de renovação do mundo que singulariza a
identidade do texto de Ondjaki, feita por um processo contínuo de inferências analógicas que
o eu-lírico experimenta ao deslocar-se de folhas de uma árvore, em forma de pingos que
banham a relva, descer ao chão e resvalar o úmido de lágrimas que os versos proporcionam.
Guiado pelo chão, terra que lhe dá sustentação, o eu envolve-se de uma umidade sangüínea,
sanguenhecer-se e deixa um lastro sobre a terra; isto é, para aprender, o eu marca sua
identidade com sangue. A dor de rasgar a pele, pelo chão, transfere-se para lágrimas, águas do
eu, natureza fluida traduzida em vários eus/ mins, projetando objeto chão na fanopéia.
Permanece, também, neste poema, o trabalho com os mínimos tal qual ocorreu no poema
Chão, mote do livro. Através do plano fônico, percebemos a constante nasal m/n,( chovo-me
...em abano...banho-me....abocanho... sanguenhecer...) unida ao encontro nh com ou sem o
sufixo do diminutivo (bichinhos) e associada ao som do x/ch ( chão, chovo, xinguilar,
chibatando, comichões) criando um espetáculo estilhaçado da melopéia. Por meio dos
encontros consonantais predominantes em lh/l, o eu tenta, pelo verso livre, reconstruir-se
abaconhando terra , em comichões ; ao mesmo tempo que aguarda terremotos provocadores
de mudança e, para isso, evoca o pequenino pirilampo:
34

ser que alumia um mundozito de cada vez e ajuda poetas a encontrar iluminossílabos desprovidos de
grande significação. ( sabe por que minha luz é tão mínima? é que estou procurar coisas dentro de
mim mesmo... )( Há prendisajens, p.59)

Na busca de monossílabos iluminados para compor o mundo de palavras, o eu almeja a


reconstituição de si, por meio de um determinado grupo de vocábulos: bi- troncalizo, des-
atribuo, des-orbito, re-orbito, a-fogueiro, en-querendo, a-pulgo-me, as-silêncios, re-paz.
Quanto ao campo semântico destas sílabas (na verdade prefixos com valor negativo), é
inevitável a referência anterior ao sangue , bem como a presença da guerra civil em
Angola, exposta também na palavra estalido : o som das minas plantadas no chão angolano
reverbera no chão poético que toma a sua dimensão social em verbete:

desorbito-me olhos/e reorbito-me luas: assim todo noitidia é uma lua cheia. para ver desumanidades -
isto seja, em exemplo a guerra uso o lado escuro da lua. (Há prendisajens, p. 65)

Apesar do reticente isto seja, em exemplo , notamos que o eu lança seu olhar para o
céu na busca da repaz , procurada noitidia , mas há a desumanidade da guerra até mesmo
na lua, elemento constante em vários poemas da obra, e como a lua em fases o eu- chão
prescreve para a fase- nação16 uma receita de paz em forma de silêncio; suspende a palavra,
pondo a língua em estandal17 .
Ao trazer a natureza para o universo poético de Há prendisajens com o xão, os versos
de Ondjaki parecem evocar, também, outra teoria que julgamos complementar ao pensamento
valeryano: a concepção de metáfora de Ernest Fenollosa que a vê como a utilização de
imagens materiais para sugerir relações imateriais (CAMPOS, 1994, p.127), já que as
metáforas originais se dispõem como uma espécie de fundo luminoso, emprestando-lhes cor e
vitalidade, forçando-as a se aproximarem da concretude dos processos naturais. (CAMPOS,
p.128). Por meio disso, o pensamento poético trabalha por sugestão, acumulando o máximo
de significado numa única frase replena, carregada de brilho interior (CAMPOS, p.132);
portanto como recurso, a metáfora dissolve a indiferença em milhares de matizes de verbos.
Suas imagens derramam sobre as coisas jatos de luz variada, com o irromper súbito de
fontes. (CAMPOS,p.135)

16
Vale ressaltar que Há prendisajens com o xão é editado em 2002, no mesmo ano do acordo de paz em
Angola entre MPLA e UNITA.
17
Varal.
35

Há aí um diálogo com o que Valéry chama de pêndulo poético (1999, p.205), ou seja,
o pensamento poético faz com que tomemos a parte pelo todo em processo metonímico (a
lesma e a umidade), a imagem pela realidade abarcada pelas metáforas (o chão nos poemas).
A metáfora chão trabalha ao longo do corpus como esse pêndulo, ora transferindo sua
força aos elementos da natureza, ora transferindo sua força para o diálogo com outros
escritores. Nas duas situações, o que impulsiona o ato poético é a forma com que a linguagem
se manifesta: o termo chão está sempre reclamando uma forma que transfira a força para um
outro termo que lhe dê suporte. Em Segredos e Silêncio no voo dos mosquitos, vimos que o
chão revela o sangue , tal umidade abaixo do chão-corpo, apenas se conhece pelo toque,
por isso acreditamos que chão evoca, além da identidade como ser social18, o reconhecimento
por parte de um outro. O eu transfere-se na gosma da lesma para a língua de Manoel de
Barros; bem como o mosquito, bebedor de sangue, atravessa o silêncio de Clarice Lispector.

Do chão-poema: entre céu e mar

O deslizamento da metáfora chão concretiza-se, a partir de prendisajens poéticas no


seu percurso pelo livro,como ocorre no poema cujo título é PRENDISAJEM:

o tomate avermelha mundos


o cheiro da terra perdoa constipações.
folha é parede verde
para sol chegar.
flor é uma outra narina da abelha.
alcunha de qualquer jardim
é biolabirinto.
a mosca exagera em
amizades com a merda.
o pirilampo é a lanterna do poeta.
o porco-espinho exagera em
modos de precaução e
a mandioca tuberculiza o chão.
....
o cheiro da terra rejuvenesce a humanidade.( Há prendisajens, p.19)

18
Para Pound : A literatura não existe num vácuo. Os escritores (...) têm uma função social definida,
exatamente proporcional à sua competência como escritores. Essa é sua principal utilidade (2001,p.36).
36

Ao formar mundos de sensações a partir da terra-chão, sem deixar de ter referências


intelectualizadas como constipações ou biolabirinto , o poema se constrói por imagens,
algumas já bastante tradicionais como a do poeta com a luz, numa referência metalingüística.
A dinâmica da natureza contamina a vivência através do tato e do olfato... aprender é situar-
se no mundo, sem deixar de integrar elementos do mundo letrado : folha enquanto fusão
natural-artificial (o papel onde se formará o poema). A cidade-letrada19 levanta paredes em
cima da terra, embora sempre haja o alimento original, neste caso a mandioca, que sustenta
boa parte do povo angolano, enraizada em uma espécie de nação das letras.
Ao verificarmos o plano fônico, percebemos dois procedimentos para o verso livre. Um
deles, a aliteração/coliteração (folha/flor, amosca/amizades, opirilampo/oporco) como forma
de estabelecer o retorno do verso, ao invés de uma rima que marque o fim do verso.
Especificamente, neste poema, ocorre por meio do jogo sinestésico, o que Cohen (1966)
definiu como missão para a linguagem na sua função poética: forçar a alma a sentir aquilo
que geralmente ela se limita a pensar (1966,p.179).
Outro procedimento desse fazer poético está ligado mais ao corpo do poema como um
todo: o espaço deixado no verso, por meio das reticências, acumula sentidos que
desembocarão no último verso, feito uma máxima para ser apreciada e que leva ao verbete.
Entretanto, aqui o eu assume a postura não de aprendiz, mas de mestre:

humanidade: embora arreceado, convidei. estou assim adoentada... me avisou. assim mesmo,
venha.[veio] por isso lhe prescrevi mais aproximação ao cheiro da terra. o homem é uma catinga da
natureza; esta devia desafastar-se dele ou atentar a correção. mas!, essa, difícil...., difícil...(Há
prendisajens, p. 64)

Projetando a metáfora chão , em sua transferência de sentidos poema- natureza,


temos o eu-lírico que, agora, se inscreve no espaço poético a partir do título do poema
QUANDO FUI CHÃO PARA LÁGRIMATERRIZAGEM :

de tanta risada
a hiena ganhou vício
de lacrimealeijar.

porque um dia
exercitei-me de raiz,
compus-me de lamas.

19
refere-se ao título da obra de Angel Rama, A cidade das letras. Trad. Emir Sader.São Paulo: Brasiliense,
1985.
37

a hiena passante,
desconhecendo.
e, quando parante, irrisonha.
(mas: para testemunhá-la
há que ser existido anedoticamente.)
enraizado pelas espreitações
- subhienado
vitimizei-me de sua goticulares esferas,
íris desfalecendo humidades,
na provação, soube-me:
de tanto risar tanto
a hiena lacrimealeija é sementes.
sementes de flores salinas. (há prendisajens, p.21)

A hiena20, entre risos e lágrimas, não reconhece o poeta exercitando-se em aprender, ser
raiz coberta de lama, não percebe suas lágrimas- risadas umedecerem o poeta, que, de um
ângulo privilegiado, debaixo da lama, espreita...
A forma anedoticamente lúdica, com a qual compõe a cartilha poética do eu postulado
para ser e não ter, desarticula a habitual construção sintática: no interior da palavra-
montagem lacrimealeijar - lágrimas que me aleijam; dessa perspectiva, sendo marcado pelas
gotas, é que se aprende enquanto lágrimas- água propagadoras de sementes; aprende-se
deslocando-se da lágrima da hiena até a semente-flor, tornando-se ciclo, assumindo-se como
planta que precisa do sal lacrimal, dando-nos a importância de cada elemento na concepção
do espaço.Aí o chão é também pista para aterrar lágrimas.
Como em outros poemas, este também é um organismo vivo intra-livro e pode nos
conduzir ao verbete para hiena no qual encontramos uma adivinha, por meio de um jogo de
palavras típico da oralidade; caracterizado pela paronomásia ( em anagrama chora/ri e
chorar/rir) que possibilita o trocadilho (PIGNATARI, 2005,p.17) e nos remete ao eco inicial
(hi-hi-hi/ri):

hi-hi-hi-hi-hiena: no estado em que o mundo está, a hiena já só tem vontade para risos, no entanto,
ponho dúvida: ela ri para não chorar ou chora de tanto rir? ( Há prendisajens, p.57)

20
De acordo com Chevalier, a hiena, ao mesmo tempo um animal necrófago e noturno, representa na África
uma ambivalência pela voracidade e faculdades de adivinhação, constituindo-se numa alegoria do conhecimento,
do saber e da ciência. (p.492)
38

Mas, o fundo do mar que também pode ser chão, como ocorre no poema CADA CHÃO
UMA UNICIDADE no qual há um deslocamento inverso: embaixo do mar também há terra e
um cenário que reflete o mundo acima da água:

aqui só sei paz.


fundo do mar
são montanhas que dançam,
alforrecas21 viram estrelas
já afogadas.
polvo é um sinaleiro em batota. 22
aqui sei só carcerias.
água não é uma acumulação de mundos?
linha de água é espelho
para céu narcisar- se?
respiração aquática
não é função de guelras?
aqui sei só chão.( Há prendisajens, p.33)

Na pergunta a um hipotético leitor, temos a inversão do olhar: descemos até as


profundezas, entretanto, o que encontramos é reflexo do que há acima. A referência ao mito
de Narciso é o mundo acumulado, embora rarefeito de sentido diante do incomunicável
mítico: prisões proporcionadas pela linha de água, o céu-narciso de si reflete mundos
duplicados e fluidos que o discurso poético não atravessa.
Atentemos, também, para o verbo saber presente no primeiro e no último verso desse
poema: aqui só sei paz e aqui sei só chão ; há uma escolha semântica bastante incomum,
não se tem paz, admite-se a posse e o domínio, conhecer a paz é fundamental, o mesmo com
o chão encerrando um círculo, marcado pelo vocábulo carcerias ao meio do poema.O
poeta-narciso está preso em seu reflexo - aqui sei só carcerias -, no jogo de imagens que
acompanha as três perguntas do poema, refletidas ou não.
Os elementos da natureza vão recebendo funções humanas e o poeta-ser transforma-se
em natureza, remetendo-nos à idéia de chão existencial , quando utiliza a palavra só , no
primeiro verso entre sei e paz , ou ainda entre sei e carcerias , aponta para a solidão.

21
água-viva.
22
em jogo, em ilusão,em logro.
39

Entretanto no último verso do poema, o só ganha valor de apenas chão, o solo que basta ao
eu- lírico .
Em PARA PISAR UM CHÃO COM ESTRELAS, observamos outro deslocamento do
eu que da terra, agora parte para o céu:

imitando-me ao morcego
intimidei o dia a ser mais vertical
assim o céu ganhou pés
a terra experimentou alturas.
apressas, pedi:
uma noite se antecipasse.
transfigurando conceitos
o palco do mundo vincava-se
de nova encenações.
estrelas chegaram.
lua teve dúvidas para posicionar-se.
encaminhando
andei sobre o céu sob meu pés.
assim revelei-me:
nunca é impossível
pisar um chão de estrelas.
...
logo-logo:
um grilo atirou-se a sorrisos.(Há prendisajens, p.34)

Trava-se um discurso com o dia a quem se pede pressa, pois, ao ganhar o céu, o chão
antecipa a noite. O valor de chão invertido aprende com o morcego, que em verbete:

conhece, na terra, o lado escuro da lua.vive também de gritar mas é grande prescrevedor de
silêncios.pratica desde a infância a arte de pendurar-se ao contrário.conhece o lado avesso do mundo
de tanto olhar para de olhos fechados.(Há prendisajens, p.58)

O processo metafórico, aqui, vincula a natureza ao espetáculo, a poética assiste-se


enquanto metalinguagem teatral: estrelas, encenações, posicionar-se, revelei, pisar são
vocábulos recorrentes de quem está no palco do mundo . Um chão de estrelas revela os
elementos da natureza contracenando com a poesia, por isso transfigurando conceitos diante
40

do grilo-platéia do último verso, bichinho quase inencontrável durante o dia .( Há


prendisajens, p.56)

Do chão- epígrafe às aprendizagens

Ao analisarmos algumas das dimensões da metáfora chão, procuramos mostrar como


ocorre a construção do chão poético no diálogo com elementos da natureza, de forma a
caracterizar a fundação desse eu-poético, por meio da própria aprendizagem do fazer poesia.
O tom didático, que, muitas vezes assumem os títulos - Quando fui chão para
lágrimaterrizagem e Para pisar um chão de estrelas -, ou as definições em versos finais dos
poemas - polvo é um sinaleiro em batota, linha de água é espelho, o homem é catinga da
natureza, pirilampo é lanterna do poeta - , ou ainda a forma como as perguntas são feitas
dentro dos poemas, revelam um poeta que, ao mesmo tempo em que aprende com os
exercícios de linguagem, procura, também, ensinar outras formas de ler poesia, como
acontece com os verbetes que são novos chãos para o poético.23
Deste modo é que a palavra chão vai inscrevendo ao longo dos poemas, verbetes e
títulos analisados que se sinaliza uma identidade fundada na inter-relação poesia- natureza. É
daí que advém a fluidez e a nutrição para prender-se, comunicar-se com outros chãos, como
Manoel de Barros e Clarice Lispector, no interior das palavras do eu e dos outros,
confirmando que o ato poético é um elemento de conhecimento do real .(GLISSANT,p.31)
Nesta busca, o eu-chão desautomatiza-se e autoriza-se a constantes aprendicismos , já
que aprendizar não é repessoar-se? ( Há prendisajens, p.7) .Dentro da pergunta posta em
epígrafe para a obra, vemos os sinais do tornar-se vários, conceber-se pessoa, como Fernando
Pessoa e seus heterônimos, na sua busca de um mundo palpável que reconcilia homem e
natureza ( na citação de Ionesco, também na epígrafe). As perguntas poderiam multiplicar-se,
pois, o olhar do eu-chão dissocia, revela, sonda, descontrói, reconstrói em uma
aprendizagem de desaprender (PESSOA,2001,p.60), mesmo em mínimo olhar
(PESSOA,p. 40) como nos diria o mestre Caeiro.

23
Para Glissant, em sua definição da noção de crioulização: elementos heterogêneos, os mais distantes um dos
outros, são colocados em presença uns dos outros e produzem um resultado imprevisível (2005,p.31)
41

CAPÍTULO 3 A APRENDIZAGEM DO EU-CHÃO: A LÍNGUA

O caracol se parece com o poeta: lava a língua no caminho da sua viagem


(Mia Couto, Mar me quer)
Do labirinto da língua às estrelas

Como vimos no capítulo anterior, a metáfora chão inter-relaciona-se com a


natureza e por meio dela faz suas aprendizagens, portanto procuramos tratar do pensamento
analógico do eu-chão. Neste capítulo, procurar-se-á analisar os laços entre a oralidade e
escrita no sistema poético do corpus escolhido.
Cabe, então, demonstrar como se articula a língua do eu-chão que dá concretude e
imagem escrita à materialidade da metáfora chão por meio da manipulação lingüística,
concebendo um universo oral [...], salvo como uma variante de um universo letrado .(ONG,
1998, p.10)
Segundo Leite (1998), diferentes modos de apropriação da língua simulam e
executam diferentes registos de textualização das oralidades (LEITE, 1998,p.35). No caso de
Ondjaki, o modo de relacionar-se com essa textualidade dá-se por meio da recriação sintática,
semântica e fônica. Como exemplo disto, temos a utilização recorrente das palavras-
montagem, assim como o uso do trocadilho e da aliteração, como suportes para a construção
da linguagem literária.
Embora se instrumentalize por meio da língua portuguesa, o eu-chão obriga-nos a não
só lê-la, mas também a traduzi-la, já que a textualidade lusófona não ignora seu tecido
cultural; portanto, o uso da língua no corpus integra um sistema de identidades com dicção
angolana, isto é, fala com a mesma língua do lastro (como Luandino Vieira e Ruy Duarte de
Carvalho).
Na prosa poética de BORBOLETABIRINTO, podemos observar essa aprendizagem entre
as diferentes facetas lingüísticas:

com asa de borboleta se construiu a primeira palavra amarela.essa certeza me aquece muito o coração
e por aí posso emprestar-me a cor do sol _ que inventa o calor. palavra amarelada ou ainda não, é
uma explosão inofensiva, para isso haja um vulcão em cada ser. oiçamos: manga de tão doce já
causa arrepios, mesmo só escutada; avermelhamento _ pode ser de cara ou coração, mas remete para
encabulações amorosas; supremaproximação _ de tom inventoado, pode acusar erotismos ou suados
contactos. ora oiçamos combinações: beijo alinguado logo se prevê humidades, tudo fugindo para
degustação; mão na mão _ nasça assim um novo calor, uma amizade também; desconstruir um
chão que pode ser interno, assim dificílimo de esculpir ao contrário, dada a dureza.
42

comecei assim: como asa de borboleta nasceu a primeira palavra amarela. ( mas) para dizer amarela
convém ter a boca suja com terra. para assistir ao nascimento de uma palavra convém esperar dentro
do chão. para esperar dentro de um chão convém já conhecer uma borboleta _ para perguntar o
caminho das suas asas. (Há prendisajens, p.41-2)

Ao recuperar o legado24 oral do griot, através da escrita pontuada de um fôlego só entre


minúsculas iniciais25, com marcações da respiração: a primeira palavra , aquela que
quebra o silêncio dando início à contação tradicional; oiçamos , no imperativo afirmativo; o
doce do som no doce da fruta; o lúdico comecei assim ; o eu-chão revela-nos gestos da
construção de uma estória em labirinto. Para ouvir os sons da língua (aqui poética) temos as
cavidades internas da orelha, que se assemelha a um labirinto edificado subterraneamente
ou à superfície do chão, de tal maneira que se torna difícil encontrar a saída do texto
Borboletabirinto, visto que o segundo e último parágrafo têm o tom inventoado , que nos
chama para a invenção de estórias-sem-fim.
Da supremaproximação entre os aspectos semânticos de borboleta e labirinto, a
palavra em casulo ganha asas metafóricas ao alçar vôo pelo texto.Lançada à superfície pelo
eu-chão interno vulcão , através do magma composto de som e calor, ganha, também,
poeticidade condensada, mostrando-nos o nascimento do vocábulo. Entretanto, não se perde
a aprendizagem da estória: convém esperar dentro do chão para entender que a partir
de suas asas podem ser construídas palavras amarelas (Há prendisajens, p.56).
Assim, como a borboleta liberta-se do casulo e ganha novo corpo para outros
caminhos , o procedimento metafórico pode ser lido pela imagem do vulcão em explosão,
labirinto de lava, provocando a descontrução do chão e a construção de uma nova
matéria vivificada pela palavra em relação com o vôo da borboleta.
Não é apenas o legado oral do griot, cantando a terra, que se impõe em
Borboletabirinto, mas também o narrador moderno,via prosa poética, que nos permite
entrever algo além da asa de borboleta construindo a primeira palavra: concede-nos
vislumbrar o amor pela língua e pela poesia sonora e vocal, enquanto se desenha o
pensamento ao contrário, dada a dureza de ver nascer uma palavra. Entre os acentos
nasais angolanos e seu percurso visual imagético, exemplificados pelos batimentos do
coração , a sonoridade das palavras -entre aspas- evoca cenas da terra africana: manga ,

24
Segundo Glissant: não somos praticantes da escrita; somos praticantes da oralidade.Nós nos esquecemos
sempre deste dado banal, conhecido e tão evidente. O contador de histórias crioulo chama-se, literalmente, um
mestre da fala. Mas havíamos esquecido isso. E quando fomos obrigados a realizar a passagem à escrita
(...)fomos confrontados com essa ausência de balizas, de tradições, de continuum da escrita (p.140)
25
Também, sobre as marcas da oralidade para o texto escrito, Ong pontua que: Uma vez que o desvio da fala
para a escrita constitui essencialmente um desvio do universo sonoro para o espaço visual, aqui os efeitos da
impressão no uso do espaço visual podem constituir o foco da atenção, embora não o único .(1998, p.135)
43

a cor do sol matizando-se em avermelhamentos e combinada com o beijo


26
preposicionado no substrato quimbundu de alinguado , o calor da mão na mão .
Tais pontos de intersecção são o fundamento da construção da estória, com momentos
de impaciência protagonizados pela frase: ora oiçamos combinações , inquietude que ao
meio do texto, põe em funcionamento a microscópica máquina narrativa em posso
empresta-me a cor do sol cifra-se o amadurecimento da palavra em poesia subterrânea,
potencializada pela metáfora chão27 na sua dimensão de vulcão, como explosão
inofensiva .
Embora seja inofensiva, a explosão não é arbitrária, posto que é conhecido os conflitos
que sofreram (e sofrem) os falantes da língua portuguesa em África, diante dos resquícios da
colonização portuguesa. Entretanto, preferimos ver inferida, em Borboletabirinto, a
passagem da oralidade para a escrita (...), a continuidade entre a tradição oral e a literatura
(LEITE, p. 14); quando Ondjaki, meticulosamente, digere os ritmos internos do griot através
do labirinto, à maneira de Borges.
Além disso, Ondjaki convoca o autor argentino em uma sutil dedicatória abreviada em
outro poema, mas como as tradições são traídas , os versos revelam o homenageado:

TU QUE VISTE TANTAS ESTRELAS


para ti, b.
cegueira é um ganho.
em ti
labirinto é rebanho.
teu chão é o mundo.
para nós, deixas sempre:
sorriso deformado com amor.
poesia em forma líquida:
deve ser bebida ou respirada
em momentos com vagar.
para palavrear prosas, imitas oxigênios:

26
Já que a origem da palavra latina derivada para o português permite o trocadilho: manus é do mesmo radical
de manga .
27
Para complementar a imagem da borboleta amarela dimensionada para a metáfora chão, citamos a seguir, um
trecho em diálogo com outra obra de Ondjaki, O assobiador (2002) na descrição de um sonho do personagem
Padre: O recinto tornara-se um recanto( ou encanto?) de amarelecidas borboletas infinitesimais, que
desarrumavam o ar, incomodavam a luz, sujavam os bancos e o chão, assassinavam o silêncio, provocavam uma
débil ventania e enchiam o ambiente com a maciez sacudida das suas asas. (p.75) e mais adiante, ao fim do
sonho: O corpo da borboleta e a restante asa definhavam, na dificuldade de manter o voo, e tombavam.No chão
o corpo da ex-voante desaparecia-se, fumechãote. (p.76)
44

entras aderindo nos corações.


a bengala quiseste para afastar teus tigres.
o mundo é que foi teu chão.
em vida chegou-te uma cegueira.
teu segredo eu sei:
em cegueira chegou-te uma tanta vida. (Há prendisajens, p. 35)

Esse é o único dos poemas da obra, mas também do corpus escolhido, em que Ondjaki
não recorre à textualidade africana, quanto ao uso de prefixos e sufixos, ou na recriação de
palavras-montagem. Prefere a imagem da bengala interseccionada ao nome do tigre: tigre-de-
Bengala; dando força à imagem do felino que caça durante à noite, como na escuridão da
cegueira de Borges, em suas últimas décadas de vida. Provavelmente, para alargar a
homenagem, já que Borges é reconhecido pelo apurado uso que fez da normatização
lingüística e de suas formalidades, o eu, em mesuras, faz uso da segunda pessoa28.
Ao reportar-se à cegueira e ao labirinto, temos o segredo do Minotauro29 revelado, nesta
referência intertextual com o conto de Borges; o posicionamento das estrelas dava ao
Minotauro o segredo da saída do labirinto, ou seja, o céu resolve a desorientação do mundo-
chão.
Retomemos, então, a concepção do texto labiríntico e sua ascensão por meio das asas da
invenção30, que segundo Benjamin Abdala,
não se trata de visualizar na volta da estrutura o modelo cíclico ou retilinear
da representação do tempo, mas de reconfigurá-la conforme o movimento
dialético da espiral, que retoma, interfere e projeta essa forma. A forma
artística, embalada por gestos similares, retoma então o modelo e
impulsiona-o, não permitindo assim que ele se petrifique. ( ABDALA, 2003,
p.240)

Visto que anteriormente na poesia predominava o Universal, o Absoluto, a noção


medida contrapõem-se à desmedida31.Diante do caos-mundo dos verbetes, que não deixam a

28
Entretanto, façamos a seguinte ressalva: em Angola, o tom mais formal de tratamento não é o tu, e sim o você,
o contrário do que ocorre no Brasil. Indicamos o não uso da variante angolana de tratamento porque o eu posta-
se, neste momento, em uma forma mais próxima da variante de Portugal.
29
Naquela noite, o céu estava cheio de estrelas. Com insônia, Minos se levantou e foi passear no labirinto que
mandara construir para encerrar o Minotauro. O silêncio tomava conta do mundo. De repente, Minos foi tomado
por uma visão: o Minotauro deitado na relva, contando estrelas com os olhos. Quase que Minos sentia a solidão
que o Minotauro sentia. Quando voltou para o palácio pois ele tinha o mapa do labirinto as estrelas não o
deixavam dormir. ( BORGES, 1998, p.606.)
30
Neste caso, especificamente, Abdala analisa as imagens de ascensão das personagens e dos narradores em
dois romances : Geração Utopia (1992) e Mayombe (1982) do escritor angolano Pepetela, situando-os em
paralelo ao mito de Ícaro.
31
negação da medida metrificada (Glissant,p.111). Para a teoria glissantiana, a vocação da literatura hoje é
corresponder a esta desmedida, através de ritmos e imbricamento de gêneros.
45

estrutura da estória petrificar-se , temos a imagem da toupeira, que percorre o interior da


terra:

toupeira: abandona escuridões apenas para reuniões florestais.nunca quis intimidade com a luz sendo
amante de labirintos obscuros. de tanta pacatez, a toupeira é por vezes esquecida pelos próprios
familiares, não se importando com isso.( Há prendisajens, p. 60)

ter a boca suja com terra: uma das vias é discipular-se à toupeira, ela querendo ou permitindo, senão:
vasculhar um chão como quem busca um cheiro com violência na vontade -, e lhe abocanhe. depois
de sorrir.( Há prendisajens, p. 61)

Ao buscar traçar um paralelo entre a identidade literária de Ondjaki e outras produções


em Angola, quanto à questão da língua literária, percebemos que o eu-chão evoca um autor
e uma obra, bastante representativos desse abocanhar da linguagem poética, como ocorre no
verbete anterior e no que segue:

despalavreação: é um ensinamento uma desaprendi-zagem. um desmomento. e tem outros nomes:


guimarães prosa32, manoel de barro33, luuandino vieira, mia conto34, ou qualquer ser humano que
sorria no gigantesco significado das coisas insignificantes.( Há prendisajens, p. 64)

A brincadeira desse verbete remete-nos às edições de obras de língua portuguesa em


África, as quais, quando editadas carregam um glossário explicativo de seus termos.
Intencional ou não, demonstra um agrupamento de autores significativos por seus processos
de manipulação inventoada da palavra e sistematizá-los em um glossário foi um recurso
também utilizado por Luandino Vieira com o propósito de ordenar a linguagem de seus
narradores e personagens, quando do uso de gírias ou incorporações do quimbundu
(CARELLI, p.109), por exemplo.

32
preferimos usar o termo estória como neologismo popular (p.17), e não conto, pelo formato curto
apresentado em Borboletabirinto, assim como explica-nos Rónai, no prefácio de Primeiras estórias (2001), de
Guimarães Rosa.
33
O próprio Ondjaki usa o termo estória ao iniciar Momentos de aqui (2001): E eu mesmo gostava de fazer
colagens das estórias dos mais velhos meu barro prematuro. (p.9) e quase ao terminar a introdução recria o
termo: Nunca mais deixámos de nos boleiar mutuamente, estóriasieu. (p. 10)
34
Ao prefaciar o livro de contos Momentos de aqui (2001), de Ondjaki, o escritor moçambicano Mia Couto
também usa o vocábulo estória, entretanto com outro tom: A literatura é o território sagrado onde se inventa um
chão e nos sentamos com os deuses. O lugar onde, também nós somos deuses. (...)É isto que torna um momento
divino esse pequeno delírio que é o acto de inventar.Este jovem, este Ondjaki, experimentou muito cedo essa
embriaguez. Bebeu dessa poção e agora se tornou em estório- dependente .... ( p.13)
46

Conforme esclarece-nos Ana Mafalda Leite, em Oralidades & Escritas (1998) a


tematização lingüística ganha especial relevo na literatura angolana (...) a
partir da obra de Luandino Vieira, (...) o legado oral faz-se através do
enunciado, que cumula e concentra, numa geologia estratificada que atinge a
sintaxe, os ritmos híbridos das oralidades .( p.33)

Como exemplificaremos a seguir em um trecho do conto Vavó Xixi e seu neto Zeca Santos,
de Luuanda (1964)35 36:

Sorriu; era bom sentir essas falas assim, as festas, o calor das mãos dela na
pele toda, nada que ficava no corpo: nem a fome na barriga; nem o vinho a
pôr as coisas brancas e leves; só um quente novo, um fresco bom, melhor
que o vento que soprava xaxualhando as pequeninas folhas verdes das
acácias, empurrando as flores, algumas deixavam cair as suas folhas
vermelhas e amarelas, parecia era mesmo uma chuva de papel de seda em
cima deles.(VIEIRA, 2004, p. 42)

Na sintaxe, temos alguns indícios, neste discurso indireto livre, de construções com
palavras do vocabulário quimbundu: xaxualhando ; pequenas frases afirmativas típicas da
fala em Angola: parecia era mesmo ; inversões quanto ao uso do adjetivo e do substantivo:
um quente novo e um fresco bom e o deslocamento do valor semântico de festas
significando carinhos dão contornos e ritmos novos à sintaxe portuguesa, sem renegar o
substrato oral: era bom sentir as falas assim .
São estes aspectos que o eu-chão nomeia como despalavreação , momentos em que
inscreve a língua cotidiana ao discurso literário reforçado pelo uso do sufixo -ação e do
prefixo de-, também presente nas palavras desaprendizagem e desmomento que ganham valor
de aumento, de reforço e não de oposição ou separação. Os trocadilhos, com os nomes de Mia
Couto e Guimarães Rosa, ajudam a compor este cenário de aprendizagem com a língua
poética de outros prosadores, que se intertextualiza e aponta para o outro-chão da língua,
aquele que estabelece contatos através das várias formas do registro, dialogando com a
tradição literária dentro de seu próprio corpo comunicativo, neste caso o verbete, revela a
transgressão do discurso literário em relação ao já dicionarizado, pois cria uma nação literária
que se reúne em torno da despalavreação , numa atitude de desautomatização do uso
cotidiano e automático da língua.

35
título abocanhado por Ondjaki35 e recriado em verbete com o nome de Luandino: luuandino vieira.
36
Na obra Quantas madrugada tem a noite (2004), de Ondjaki, temos mais uma referência destes diálogos em
paratextos: o romance é dedicado à personagem- título do romance de Luandino Vieira: João Vêncio, os seus
amores ( 1987).
47

Em torno do chão da língua

Se pensarmos a palavra chão no sentido de Bakhtin/ Voloshinov,


como um produto ideológico vivo, funcionando em qualquer situação social,
tornando-se signo ideológico porque acumula as entoações do diálogo vivo
dos interlocutores com os valores sociais, [...]expressando seu ponto de vista
em relação a esses valores[...] confirmados ou não pelo seu
interlocutor.(2002, p.36)

veremos que o valor impresso por Ondjaki para a metáfora chão, a começar pelo título do
livro, é o seu modo de operar o contexto histórico em que vive, uma forma de pensar o
mundo literário e seu funcionamento através do diálogo com outros autores de um
macrossistema literário em língua portuguesa. No poema, a seguir, o sujeito poético dialoga
com o caboverdiano Carlos Barbosa37

PASTOR DE ESTRELAS
para o marinheiro carlos barbosa

companheiro Barbosa
me atraz novidades:
o grilo é um pastor de estrelas...
entorno enternecitudes, assim em
emochões.
o grilo é rasante, gritante, em negrecido.
um bicho do chão, concluímos.
mas aí está , diz-me.
por via do chão ele despe distâncias;
está mais próximo de estrelas, pois...

37
Sobre o autor, vale dizer que Carlos Alberto Lopes Barbosa ou Kaka Barbosa (músico e compositor, criador
do ritmo funanbá - mescla do tradicional funaná em Cabo Verde -com semba e rumba) nasceu em primeiro de
maio de 1947, em S. Vicente, filho de pais foguenses, e cresceu na Assomada, cidade que elege como terra mãe.
Foi militar do exército português em São Vicente, empregado de Agência de Navegação Casa Madeira e
marinheiro de barco alemão.Filiado no Partido Africano para a Independência de Cabo Verde e Guine Bissau
(PAIGC) de 1974 a 1984 rompe com a militância partidária. Hoje, é assessor de gabinete da prefeitura da Ilha de
Sta. Catarina. Também, poeta e escritor, com obras publicadas em crioulo: Vinti Xintidu Letradu na
Kriolu(1984), Son di Virason (1996) e Konfison na Finata(2003) pela Artiletra . Em português, sob o
pseudônimo de Albely Bakar publicou Chão Terra Mai Amo(2001) e ainda Cântico às tradições(2002), uma
coletânea de contos tradicionais.
Disponível em http://kakabarbosa.blogspot.com/2006/09/kaka-barboza-universalista-e-popular.html .Acesso em
30 de agosto de 2006.
48

entorno espantos, encantos.


um pastor guiante? _ eu.
ah, pois e sim. o mais certo apastoreiro! _ ele.
e entrando em explicamentos:
no canto do grilo as estrelas rebrilham, acendidas.
comungam luz, iluminam poeiras, universais versos.
de tanto desconhecimento em medições
o grilo ganha é abraço com estrelas;
de tanta chãotoria
o grilo estréia é intimidade com a magia ;
mas elas altíssimas, despenduradas,
o grilo aquieto _ patas impostas em húmida terra.
mas barbosa:
estrela é brilho de sonho.
é rebanho manso, em simplicidades disponíveis.
não queira indagar mistérios.
somente dê-se a ouvitudes: ausculte o grilo,
esse pastor de estrelas...
entorno crenças, desfalências.
arre e pio-me de silêncios.
o grilo é um adormecedor de inquietudes.
cessa o canto, o encanto.
vincadas de negrume, as estrelas grilaram-se
para sonos.
adormecimentos provisórios. ( Há prendisajens, p. 12-3)

Ao iniciar o poema pedindo ao companheiro e marinheiro que conte-lhe novidades, o


vocábulo atraz indica-nos através de sua grafia os procedimentos para estabelecer a conexão
entre a fala e a escrita, unindo o verbo trazer com o advérbio atrás, mostrando o respeito pela
tradição do contar dos mais-velhos , no dizer angolano.
Na máxima de seu interlocutor, marcada por sons oclusivos e vibrantes - O grilo é um
pastor de estrelas. -, o eu recebe o mote para desdobrar-se em conversa de poesia para
expressar e produzir correlações por intermédio do som e do ritmo da fala.
Para isso, recorre ao uso do prefixo en- (com sentido de interioridade, sobreposição,
aproximação, introdução, transformação) e da preposição em ( com o sentido de lugar ou
modo, nestes casos) agrupando-as em um determinado grupo : entorno, enternecitudes,
49

emochões, em negrecido, espantos, encantos, entrando, em explicamentos, em medições,


que podemos ler da seguinte forma:

Para expressar aspectos emocionais provocados pela fala do outro, é possível a


invenção de um vocábulo a partir de outro, por exemplo enternecitudes - que
guarda, no seu corpo gráfico, as palavras terno e eterno aliadas ao sufixo -dade, ao
mesmo tempo em que incorpora o termo entorno, no sentido de preencher e
transbordar, resultando em uma palavra composta. O mesmo ocorre com emochões: o
substantivo emoções recebe a palavra chão em seu interior, na presença da letra h,
formando uma palavra em derivação.

Novamente, quando do discurso do eu, há uma inversão semântica que recria o uso do
prefixo en-. Na segunda vez, em que o vocábulo entorno é usado, seu valor altera-se
para em torno, com o sentido de estar em volta; assim como encantos altera-se para
em cantos, que pode ser lido como enfeitiçar ou acuar-se, em ambos os casos ocorre
um anagrama sonoro.

Já com em negrecido, o valor semântico não se altera - tornar-se escuro- mas outro
procedimento para a montagem da palavra é utilizado: a preposição em media o som
na parassíntese entre a preposição em e o adjetivo negro, o que não ocorre na
disposição gráfica, embora ocorra no plano fônico.

O mesmo não ocorre com a expressão em medições e em explicamentos, utilizadas


para marcar o ritmo interno dos versos, por meio da repetição da vogal e nasalisada,
sem alterar o valor semântico de seu emprego.

Ao interpretarmos esse campo semântico e fônico, também não podemos deixar de


pensar no fato de que a imaginária conversa tenha lugar em Cabo Verde; portanto, na primeira
parte do poema, a marcação da palavra entorno resvala para uma ilha, o mar entorno de tudo,
em diálogo com um marinheiro, alguém que por ofício conhece as estrelas da navegação -
um pastor, guiante -, projetando-se naquilo que Glissant chama de totalidade- mundo
desencadeando a anuência ao seu entorno (...) operantes como via e meio de conhecimento
desse entorno (GLISSANT,p.105)
50

A imagem do grilo é mediadora da conversa entre o eu e o marinheiro, pois como


bicho do chão eleva seu canto, do chão ao céu, diminuindo as distâncias tão comuns a
quem está em uma ilha no meio do Atlântico. Assim como a lesma e o mosquito, o grilo
conhece o segredo de encurtar distâncias através dos sons, segredo agora revelado ao sujeito
poético - o apastoreiro -, construído com o elemento de composição a- e o sufixo eiro
dão valor sonoro à palavra que nos lembra a voz popular dos pastores e boiadeiros no campo;
por isso o marinheiro adverte o sujeito poético ( ah pois e sim ) de que mais próximo do chão
(da língua) está o apastoreio , já que guiante enuncia, em seu sufixo, um tom culto
demais para um bicho do chão .
Enquanto o grilo canta e encanta a estrelas, percebemos que, em determinado momento,
há uma troca dos papéis, isto é, o eu- lírico faz uso de uma língua invencionada e o
marinheiro de uma variante padrão da língua, o que era, até então, desempenhado pelos
interlocutores e, depois, explicado em verbete:

chãotoria: quando encostando ouvido no chão. que é dizer. quando emprestando ouvido para chão,
assim ouve-se uma ópera-de-chão, à qual também se chama chãotoria. ( Há prendisajens, p. 65)

Percebe-se no jogo de palavras entre ópera-de-chão e chãotoria algo além dos


recursos imagéticos gerados pela metáfora chão; revela-se, também, a tensão entre o popular
e o erudito em um mesmo palco. Enquanto chãotoria, na voz do marinheiro, une o radical da
palavra chão com o sufixo do substantivo popularesco cantoria; o sujeito poético marca o
verbete através de um gênero musical bastante culto, a ópera; entretanto presenteia-nos com
uma inversão bastante irônica na forma de usar a linguagem no verbete: primeiro, um tom
coloquial no uso da língua; após, como a brincar com o termo que usará, passa a adequar-se a
uma variante mais próxima da norma culta; indícios disto é o verbo ouvir, que se transforma
de ouvido no em ouvido para e a seguir em ouve-se, uma das formas mais impessoais e
distantes da língua portuguesa para receber a palavra ópera e fechar na palavra chãotoria.
Há também na referência à ópera um elogio ao marinheiro, trovador de cordas e letras
que é Carlos Barbosa, pois as formas crioulizaram-se na vontade de desfazer os gêneros;
entre os versos do medievo e as canções populares do agora há muito do que a ópera
incorporou em sua performance de linguagens: a música e o teatro, já que o poético exige a
presença de um corpo na obra, segundo Zumthor (2000).
Por duas vezes, as marcações da adversativa mas revelam pequenas tensões, quando o
sujeito poético introduz o desejo de entender a magia e o brilho do sonho no canto do
51

grilo; de novo é advertido : não queira indagar mistérios./ somente dê-se a ouvitudes:
ausculte o grilo. Nestes versos da fala do marinheiro, os procedimentos lingüísticos
alternam-se entre o culto ( dê-se e ausculte) e a criação da voz popular em ouvitudes,
junção novamente do verbo ouvir e o sufixo para substantivos abstratos tude.
O sujeito poético desloca-se para aprender, esvazia-se das crenças antigas e passa a
olhar para dentro si, como recomenda o mais-velho. Tal gesto materializa-se na expressão
arre e pio-me de silêncios , que pode tanto demonstrar uma inquietude, um enfado por
detrás da interjeição arre, como ser usada para tocar os animais em pastos. O valor
semântico de pio-me também recebe uma carga dupla de significados, pois encerra junto com
arre, o verbo piar, que pode significar dar voz aos animais, ou conter alguém que quer falar,
como em não dê nem um pio . Preferimos lê-las, na sua forma dupla, ao mesmo tempo em
que inquieta-se com as palavras, também imita o gesto do pastor, e no retorno do verso quer
indagar sobre a voz do grilo.
Além deste ir e vir de sentidos, o plano fônico de arre e pio-me carrega a semântica do
verbo arrepiar( espantar, ondular-se, desviar-se do caminho comum); o eu dá-se conta da
transformação, do evento que não é explicado pelo mundo racional, por meio da voz
ascultada ,

ouvitudes: não carece de ouvidos para este estado; implica uma sensibilização de pele apenas _ em
desmultiplicação de poros. ( Há prendisajens, p. 63)

no interior do grilo e dilatada em verbete,

grilo: pastor de estrelas. embalador de noites. de tanto grilar seus sons, conhece cada curva de um
silêncio. bichinho quase inencontrável de dia. ( Há prendisajens, p.57)

E como nos épicos - cessa o canto, o encanto -, a voz do poeta encerra um ciclo, o
eu aceita a máxima final em paráfrase; estabelecendo uma relação com o imaginário do
sendo, de todos os sendo possíveis do mundo (GLISSANT,p. 81), através de outros poetas-
marinheiros: Camões, Eugênio de Andrade e no Cancioneiro de Fernando Pessoa:
Cessa o teu canto!
Cessa, que, enquanto
O ouvi, ouvia
Uma outra voz
Como que vindo
Nos interstícios
Do brando encanto
52

Com que o teu canto


Vinha até nós.
(...)
Não cantes mais!
Quero o silêncio
Para dormir
Qualquer memória
Da voz ouvida,
Desentendida,
Que foi perdida
Por eu a ouvir...
(PESSOA, 2001, p.179)

Ao buscar esse diálogo em rede de relações através da metáfora chãotoria, podemos


situar o poeta Ondjaki como um elemento que ao ver a identidade como uma questão de
tornar-se não se limita a se posicionar pela identidade, mas é capaz, também, de
posicionar a si próprio e de reconstruir e transformar as identidades históricas, herdadas de
um suposto passado comum , ou seja, a identidade depende da diferença , parafraseando o
que nos indica Stuart Hall e Kathryn Woodward em seus estudos sobre identidade e cultura, já
que o pensar poético não pode ser idêntico:

Cada cultura tem suas próprias e distintivas formas de classificar o mundo.


É pela construção de sistemas classificatórios que a cultura nos propicia os
meios pelos quais podemos dar sentido ao mundo social e construir
significados. Há, entre os membros de uma sociedade, um certo grau de
consenso sobre como classificar as coisas a fim de manter alguma ordem
social. (HALL, 2004,p.41)

O que demonstramos, na análise de O pastor de estrelas, é que em um palco com várias


vozes e culturas há tensão, estranhamento e aprendizagem. Mesmo que o discurso seja
poético, a presença de duas culturas bastaria para que as alteridades, de chãos diferentes,
emergissem das águas crioulizadas de kk barbosa, que Ondjaki chama de um convidado
especial, como se tivéssemos acabado de assistir a um filme em rolo labiríntico, ao final da
obra:

(...) foi também partindo dessa crença que me iniciei nestas prendisajens . barbosa, com sua força
revolta de mar, ele todo é uma calema38 voadora.39e, na mesma alma, uma criança franca. para
existenciar-se escolheu somente ser boa pessoa, daquelas que dão para aninhar amizades. (Há
prendisajens, p.55)

38
Arrebentação, tempestade.
39
Em outro momento e em outra obra, Ondjaki renova o diálogo com Kaká Barbosa através do conto Jangada
pra longe do livro Se amanhã o medo (2005).
53

O chão da língua em silêncio

PENÚLTIMA VIVÊNCIA

quero só
o silêncio da vela.
o afogar-me
na temperatura
da cera.
quero só
o silêncio de volta:
infinituar-me
em poros que hajam
num chão de ser cera. ( Há prendisajens, p, 48)

Temos, no poema acima, uma analogia entre o eu-lírico e um dos elementos da metáfora
chão. A medida em que deseja o silêncio de uma chama, seu calor, o eu quer tornar-se
infinito, quer preencher com cera os espaços deixados no chão. Deseja ser cera porque é ela
quem cobre o chão, os espaços; indica-nos a perpétua ação da chama, derretendo a vela para
que o eu retorne ao chão, ao estado de cera. Ao preencher os poros, reivindica o aspecto táctil
e estabelece novas relações, dando-nos um caráter sinestésico. O título do poema - penúltima
vivência - como um verso, infinituar-se pode nos indicar o desejo de não ser o último, fazer
parte de uma seqüência acesa de vida, fora do texto e dentro da obra, num exercício
metalingüístico, já que este poema é o penúltimo do livro. Se é que podemos dizer que há um
último, pois Geadações & Orvalhamentos recolhe versos espalhados por toda a obra,
insinuando uma idéia de construção constante do universo poético.

Ao transpor para a palavra chão, o silêncio da cera derretida, o poeta nos indica um
dos percursos da metáfora chão, quando ganha sentido de silêncio, o que segundo Ruy Duarte
40
de Carvalho, sempre está na tradição oral da poesia e é ele quem a pontua . Entendido o
silêncio como uma das dimensões da metáfora chão, passamos a vê-lo como signo poético-

40
Poeta, antropólogo, trabalhou como regente agrícola no Sul de Angola, ex-cineasta angolano, é professor da
Universidade Pública de Luanda, foi professor convidado da USP e da Universidade de Coimbra. Em
04/06/2004 esteve na PUC-SP para uma palestra intitulada Travessias da oralidade, Veredas da Modernidade ,
o trecho entre aspas acima é parte de sua fala sobre o silêncio na poesia africana .
54

ideológico, na medida em que busca uma filiação para Ondjaki dentro da literatura angolana,
por exemplo. Para exemplificar esta ligação com o lastro dentro do sistema, mostramos, a
seguir, alguns trechos da obra Hábito da terra (1988), de Ruy Duarte de Carvalho, nas
seqüências Aprendizagem de um dizer festivo e Noções geográficas,

Há um lugar que invade outro lugar e esse lugar estará presente noutro. Não há lugar sem lugar
perdido. (...) De que adianta iluminar-lhe o chão? (p. 10)

Partir de uma palavra. Partir numa palavra. Confirmações possíveis. Fidelidade a quê? Texto, lugar
do encontro (....) (p.11)

Escolher uma linguagem mais grata que o silêncio.


Eu falo do silêncio de alguns bichos, da força que rumina e busca as pregas da penumbra (...)
Ou do silêncio das grutas, abertas indiferentes .... ( p.11)

Ou uma cratera, uma boca de morna ebulição aonde o mosto amargo das perguntas virasse calda
espessa de respostas, onde ocorresse essa memória funda, a que transmuta o encontro em geração.
Que garantisse o fogo e o espírito do fogo... (p. 18)

Escolher uma paisagem de silêncio


a súbita bravura do seu eco
a lâmina do frio que levanta. ( p.20)

São os caudais do silêncio


a densidade grata do vazio
É o silêncio
tangente às curvas do tempo. ( p. 43)

Além do formato gráfico bastante diferenciado, ora em prosa poética ora em versos
livres, a obra de Ruy Duarte percorre a tematização lingüística da terra, bem como abraça o
silêncio como marca de contenção com o qual intercala cenas da grandiosidade dos elementos
da natureza - savanas, desertos, grutas- sem deixar de aproximar o texto da vida,
transformando seu chão em matriz de sentidos. ( CHAVES, 1991,p.198).

É neste ponto de intersecção, ser-terra-escrever (LEITE, p. 134) que as obras de


Ondjaki e Ruy Duarte entrecruzam-se silenciosamente sendo, já que ambos tratam o objeto
chão com o tempo do continuum, das relações pautadas na linguagem poética através de
movimento de imagens, difratadas nos ritmos da oralidade africana.O fogo do sol nos
55

desertos41 ou o fogo na chama da vela revelam um espaço do texto em que o silêncio aloja-se
para que se transmut[e] o encontro em geração (LEITE, p.140), inscrevendo o espaço
cultural do livro no espaço geográfico. Neste exercício de deslocamento de espaços, seguem
seus textos emudecidos diante da impossibilidade do eu-poético em abarcar, no papel, a
infinitude entre uma palavra e o pensamento, entre um sopro e o corpo do poema, que
encerra o verbete:

quero só/ o silêncio da vela: experimente soprar uma vela ao contrário, e engolir a luz da chama ou a
chama da luz, por instante seu coração resvalará para ceras, só assim se experimenta o poro da vela.
ora, o poro da vela é que emite um silêncio de cada vez. (Há prendisajens, p. 62)

O chão da língua em luas

Em Há prendisajens com o xão, há uma predominância de ambientes noturnos, ora


compostos por seres como o grilo e a toupeira, presos à terra; ora por estrelas e luas, aliadas
ao céu, ao ar, formando uma paisagem que não é estática, na qual o eu-chão transforma-se,
propiciando exercícios de intervenção, através de seu instrumento: a língua.

QUINTO MIM GUANTE

desmiragens;
para não mirar o amor então
estou pedir a cegueira.
aviragem;
uma lua de cera
assinonima-se
a uma luz que era.
implumagem;
na língua de um pássaro

41
Em Quantas madrugadas tem a noite (2004), Ondjaki através de seu narrador- personagem Adolfodido,
revela-nos Ruy Duarte em um parágrafo extenso, mas exemplificador destes diálogos intratextuais que suas
obras apresentam. Transcrevemos a seguir o trecho em que refere-se ao livro Hábito da terra : Qual mata
essa nos desertos lindos da Namibe?, o outro mais-velho que fala nos livros dele, esse com nome de ipslon
Ruy, todos kuvales e leites de cabra (...) que nem sei se tem aquela beleza toda nesses desertos kuvalares de leite
e cabras nos hábitos da terra, ou se é mesmo nos olhos dele que a beleza aplacou e ele depois entorna assim,
falésias, textos dele que vão até lá fora, nos estrangeiros, e lhe convidam depois pra ele ir falar lá, ao vivo e na
voz, os sonhos que ele sentou pra poder escutar... (p.103).
56

a saliva pode ser feliz.


para mirar amor então
estou pedir me acandeeirem.
(numa luz que seja besuntada de amor voraz)
estou pedir essa desmissão: exercer cimentagem na lua.
desconhecerei vácuos
eu-tapador-de-buracos.
e quinto: já a lua tem quatro faces;
e mim: em conveniência, escrevi assim;
e guante ( riso): para não ficar alongíquo à lua
eu-chão-lua,
quinto
mim
guante. (Há prendisajens, p. 43-4)

Parte da visualidade deste poema dá-se nas três primeiras etapas do texto como se
fossem fases lunares, dinamizando a paisagem junto à linguagem literária para que o poeta
possa recorrer à re-construção estética dos seguintes termos em itálicos:

1. desmiragem: o uso do prefixo des-, como um intra-verbete no corpo do poema, resvala em


um tema bastante comum na poesia por meio da associação entre lua e amor, que o eu
recusa-se a mirar.Nos resquícios da fala angolana : retira a preposição diante do infinitivo do
verbo pedir e a posta na frente do substantivo cegueira, com valor de artigo42; portanto,
desmiragem ganha valor semântico de não-olhar diante do poder de atração da lua que
cresce.
2.aviragem: como que observando a rotação, o verbo virar, recebe o prefixo a- e o sufixo -
agem , tornando-se um substantivo. Seguido do termo assinonima-se, marca o ritmo do
verso e novamente intenciona sua conotação filológica , o sinônimo aliado ao sentido de não,
dá um valor semântico à cera; a lua em suas fases derrete-se como a chama da luz de velas
para os fonemas finais da lua sem brilho: uma luz que era .

42
Em Particularidades morfossintáticas do Português , há uma nota explicativa sobre a recorrente
omissão da preposição a diante de locuções perifrásticas (GARTNER, p. 39), explicada pelo autor, pela falta
de processo análogos nas línguas banto (p. 43) referindo-se às particularidades das estruturas subordinadas, no
caso acima, há também a ausência do conectivo que diante do verbo pedir; embora tratemos da língua literária,
a nota visa esclarecer como a oralidade do substrato banto está recriada no verso; procedimento retomado no
verbete deste poema em está poder receber
57

3.implumagem: nesta construção, a mais intricada do poema, as plumas ganham o prefixo in-
, não em seu sentido negativo e excludente, mas naquele que inclui a língua de um pássaro
que alça vôos ao céu lunar, na umidade da saliva. Buscando uma lua cheia, o eu pede luz
reiterando, entre parênteses, não bastar apenas o amor da primeira cena, mas o amor voraz
que preencha os poros do eu-chão-lua, cimentagem; assim o eu como um astronauta ao
avesso em missão exploratória cumpre sua desmissão, não apenas daquele que mira e
observa, mas daquele que dá novos contornos, o eu- tapador- de- buracos .
Com esta imagem, do tapador, um trabalhador braçal, interseccionada ao poeta erige-
se o lúdico com a palavra guante (que em espanhol e em português significa luva ou mão-de-
ferro), da qual o eu ri (riso) surpreso pelo trocadilho, que quebra o tom existencialista do
texto.
A expressão escrevi assim revela novamente, como em Borboletabirinto e
Penúltima vivência, um percurso metalingüístico da palavra poética, a geografia do eu-chão-
lua, que não quer afastar-se do satélite ( na palavra popularesca que o prefixo a- doa ao termo
alongínquo), criando um triângulo amoroso de correspondências em que : eu está para
quinto, mim para chão e guante para lua.
Nesta quarta fase, o poema ganha uma visualidade condensada, quando o eu transmuta-
se em um quinto mim guante numa alusão à lua intercalar43, concebendo uma espécie de
jogo entre o minguar das pequenas palavras, como denunciam os três últimos versos, em que
desintegra o título, distribuído sobre o espaço em branco da página, assim a vista isola
(ONG, p.85) e
os sons intuídos pelas letras devem estar presentes na imaginação,[...] na
sua presença [que] não é meramente auditiva: eles interagem com o espaço
visual e cinestesicamente percebido que os circunda.(ONG, p. 147)

Simultaneamente, há uma alusão à lua minguante (entre as fases cheia e nova), quando
sua parte visível está gradativamente diminuindo, como também exemplifica o verbete:

quinto mim guante: missão de tapar todos os buracos esotéricos da lua. para tal, um sujeito
simplesmente entulha cada cova encontrada com quantidades maleáveis de poesia. exige, ainda,
manuseamentos de poeiras cósmicas. ou: presente que a lua oferece a pessoas da terra, mas apenas
uma minguante multidão está poder receber44. sinónimo de satisfação lunar. mistério. fenónemos

43
a décima terceira do ano (fato que só ocorre de três em três anos). Fonte: Hoauiss eletrônico.
44
Novamente, o procedimento sobre o qual comentávamos na nota 14, retomado no verbete deste poema em
está poder receber em que o poeta faz uso de dois infinitivos sem a mediação da preposição a , para cadenciar
os sufixos verbais -er como rimas internas pelas palavras terra e presente que os antecede no período.
58

acessível ao órgão coração [ também conhecido como cesto-sentido. (...) ou será ressentido?] (Há
prendisajens, p. 62)

Ao citar um sujeito , o poeta novamente coloca-se na materialidade da metáfora


visual (LEITE,p. 126) do tapador, que irradia para o campo semântico de terra-chão,
quando preenche a palavra cova com suas maleabilidades poéticas, estruturando a língua
da poesia nas poeiras , dos pequenos detalhes da língua cotidiana; pois,
com efeito, uma das mais importantes propriedades da literatura e do texto
literário é a ficcionalidade, definida como um conjunto de regras
pragmáticas que regulam as relações entre o mundo instituído pelo texto e o
mundo empírico. O texto literário constrói um mundo fictício através do qual
modeliza o mundo empírico,representando-o e instituindo uma
referencialidade mediatizada.(LEITE, p. 29)

Assim como esclarece-nos o poeta angolano Arlindo Barbeitos45:


meter-se por Angola adentro não é só meter-se pela paisagem, é meter-se
pelos homens adentro que não vivem contra a natureza; por isso esta poesia é
também um fazer a natureza falar. (in.: LEITE,p.122)

Vemos que na poesia de Ondjaki há a consciência46 de adaptar-se e indagar-se sobre os


ritmos da fala de outros, partindo de uma experiência visual (científica, como a missão lunar),
passando pela experimentação da escrita (manuseamentos), até resgatar da memória oral
(pessoas da terra, tapador) um trocadilho entre as expressões cesto-sentido e ressentido,
evocando um tempo em que os conselhos sobre a intuição e os ritmos do coração falavam
mais alto, carregados na voz do povo, tecidos em cestos que guardam a experiência humana.

Mais do que isso, nas dimensões da metáfora chão, entre labirinto e silêncio, estrelas e
luas, Ondjaki procura traçar seu rizoma com o mundo , criando um maqui47 no título: Há
prendisajens com o xão, ao abarcar vários valores semânticos para a palavra xão. Da
sonoridade quimbundu resgata a forma contraída na palavra terra como lugar, naturalidade48

45
Ana Mafalda Leite, analisa algumas obras do poeta, em Oralidades & escritas(1998). Acima, cito
especificamente um trecho em que ele mesmo pronuncia-se sobre a questão, num fragmento da introdução (p.70)
de Angola Angolê Angolema (1975).
46
Termo utilizado por ONG (1998), ao longo do subcapítulo Oralidade, escrita e ser humano onde o teórico
afirma que tanto a oralidade quanto o desenvolvimento da cultura escrita baseado nela são necessários à
evolução da consciência. (p.195)
47
Segundo a etimologia da palavra: fr. maquis (1775) 'conjunto de arbustos e plantas diversas, característico
dos bosques da Córsega, usado como refúgio pelos marginais por ter uma vegetação densa', (1944) 'lugar em que
os membros da Resistência Francesa se reuniam', de um uso figurado do corso macchia 'mancha', pelo fato de a
vegetação formar como que manchas nas encostas das montanhas, der. do lat. macùla,ae 'id.'; nas acps.
relacionadas a 'membro da Resistência Francesa', esp. a partir de uma expressão corsa prende (ou gagner, ou
tenir) . Fonte: Houaiss eletrônico.
48
Segundo QUINTÃO, 1934, p.208.
59

( xi ) e em seu uso como verbo defectivo (ixi) que significa dizendo49, sem deixar a
reentrância da terminação latina ão, de expansão. Nesta acumulação de valores semânticos e
sonoros, o termo xão faz-se e refaz-se na aprendizagem do dizer, mostra os traços que o
colocam no mundo em relação, em trama poética, camuflando-se na auto-reflexividade textual
e no movimento perpétuo da interpenetrabilidade cultural e lingüística (GLISSANT,p. 147).

49
Também , segundo a gramática do quimbundu, Quintão explica que este verbo serve para introduzir uma
citação textual e equivale ao português dizendo, e não se emprega, senão no Pres. Fut. (p.93)
60

CAPÍTULO 4- OS OUTROS DO CHÃO

Ser poeta é de várias maneiras,o outro dizia


sou aquilo que vivo, minhas escrituras são minhas pegadas na areia do mundo
nome dele esqueci, mas, vês?, num esqueci o mais importante: a frase que ele disse e me serviu
também na minha existência (Ondjaki,Quantas madrugadas tem a noite)

É a maneira opaca de aprender o galho e o vento, ser um si que deriva do outro, a areia na verdadeira
desordem da utopia, aquilo que não foi sondado, o obscuro da corrente no rio liberado. As paisagens
determinam as outras ao longe(...) correm, frágeis,e obstinam-se essas ramificações de linguagens
interpelando-se.
(Glissant)

Nos capítulos anteriores, tentamos evidenciar três aspectos: no primeiro deles, o lugar
com o qual Ondjaki estalabelece as relações de traço50 e lastro que é Angola, através de
autores representativos da literatura deste país. No segundo aspecto, discutimos o caráter
específico das dimensões da metáfora chão por meio de seus desdobramentos na natureza. E
no terceiro, buscamos demonstrar os procedimentos adotados pelo autor, ainda sob à luz da
palavra chão, no que concerne ao uso da língua como matéria literária e a renovação de
gêneros na passagem da oralidade à escrita. Nos dois últimos casos, foi necessário ressaltar
a auto-reflexividade textual para que pudéssemos dar um valor à obra no seu corpo como
livro, expandido enquanto diálogo com outros autores.
Neste capítulo, já a título de conclusão, buscaremos discutir como tais pontos
anteriormente vistos convergem e divergem para compor as aprendizagens do eu-poético.
Para tal análise, recorreremos à teoria glissantiana com cujos conceitos procuramos dialogar
ao longo das análises de dois poemas Que sabes tu do eco do silêncio? e Mas existe?, bem
como seus paratextos em forma de agradecimento, nota do autor e verbete.

50
Ao longo deste capítulo, preferimos citar os conceitos da teoria glissantiana em itálico, para que não
confundam-se com trechos de poemas que foram sendo citados em negrito em meio às análises.
61

Dos ecos do chão

Para Glissant, a literatura tem um lugar fundamental no mundo, principalmente ao tratar


da poesia, nota-se em sua teoria, ao salientar a função desta arte, a compreensão de que a
sensibilidade humana é composta e expressa pela língua e pela linguagem literária como fator
primordial de nossa existência, em sua multiplicidade de contatos e conflitos resvala a busca
de um imaginário que está sempre sendo recriado. Ao discutir o valor do conceito em sua
teoria, o ensaísta tece o seguinte comentário:

Graças ao imaginário das humanidades de que a totalidade-mundo é um


rizoma no qual todos têm necessidade de todos, é evidente que haverá
culturas que estarão ameaçadas. Não será nem através da força, nem através
do conceito que protegeremos essas culturas, mas através da totalidade-
mundo, isto é, através da necessidade vivida do seguinte fato: todas as
culturas têm necessidade de todas as culturas.(GLISSANT, p.156)

Desta forma, entendemos que o diálogo que Ondjaki estabelece com outros autores é uma
dessas formas de viver a cultura, através de um rizoma criado pelos textos e paratextos que
envolvem Há prendisajens com o xão, no aparente caos que essa produção demonstra
enquanto forma. Embora, fique evidente, em alguns poemas a sintonia do poeta com esta
totalidade-mundo, verificamos também que há, parafraseando o que diz Glissant, uma certa
angústia criativa, como ser si mesmo sem fechar-se ao outro; e como consentir na existência
do outro, na existência de todos os outros, sem renunciar a si mesmo? Essa é a questão que
perturba o poeta (...) (GLISSANT,p.46)
Diante de tal pergunta, procuraremos refletir, como essa angústia criativa encontra lugar
nos ecos que perpassam o primeiro dos poemas escolhido para exemplo:
62

QUE SABES TU DO ECO DO SILÊNCIO?

palavras para paula tavares

um só olhar

pode ser uma voz não dita.

para acumular dores

o mais das vezes

bastou um desamor.

sei: a solidão

ecoa de modo muito silencioso.

sei: muita silenciosidade

pode reciprocar

verdadeiros corpos num amor.

um só silêncio

pode ser nossa voz não dita

ainda nunca dita.

para ecoar um silêncio

bastou gritarmo-nos para cá dentro

num gritar aprofundo.

já silenciar um eco

é missão para uma toda vida:

exige repensação da própria existência. (Há prendisajens, p.28)

Este poema formula uma resposta, por meio da dedicatória e do título, a um poema
de Paula Tavares 51, cuja poesia caracteriza-se pela delicadeza de imagens compostas por

51
Ana Paula Tavares nasceu na Huíla, Sul de Angola, em 1952.É historiadora, mestre em Literaturas Africanas
de Língua Portuguesa. Em Angola, publicou Ritos de Passagem (poemas) UEA, 1985. Em Cabo Verde, Praia, O
Sangue da Buganvília em 1998. Na Editorial Caminho publica em 1999 O Lago da Lua (poemas), seguido de
Dizes-me Coisas Amargas como os Frutos (poemas) em 2001 ( Prémio Mário António de Poesia 2004 da
Fundação Calouste Gulbenkian), em 2003 Ex-Votos (poemas) , em 2004 A Cabeça de Salomé (crônicas) e Os
olhos do homem que chorava no rio (2005). Tem participação com poesia e prosa em várias antologias em
Portugal, Brasil, França, Alemanha, Espanha. Publicou alguns ensaios sobre História de Angola.
63

mundos povoados de mulheres que trabalham no campo ao ritmo das estações do ano, recria
também a mitologia angolana através de uma lírica que ora usufrui da discursividade ora
manipula os esteios da linguagem pela síntese de palavras, valendo-se da intertextualidade e
da oralidade, para bordejar aspectos da existência humana e da realidade de seu povo.
No seu O lago da Lua (1999), temos uma seqüência intitulada Terracota, em que a
imagem da terra cozida em tons diversos funde-se ao diálogo com o homem amado que vem
de terras distantes, trazendo em suas sandálias de couro um pouco das areias do mundo,
criando um intertexto com o Cântico dos Cânticos, para encontrar a massambala52 que
cresce a olhos nus nos campos férteis de alimento. Ao fechar o ciclo, retoma o diálogo com
o homem amado:

Pergunta-me do silêncio

eu digo

meu amor que sabes tu

do eco do silêncio

como podes pedir-me palavras

e tempo

se só o silêncio permite

ao amor mais limpo

erguer a voz

no rumor dos corpos ( TAVARES, 1999, p.29)

Neste diálogo entre eus- poemas, vemos no de Ondjaki o resgate de alguns elementos do
tecido poético de Paula Tavares, ou seja, a acumulação como procedimento estético, abrindo-
se para o outro do pensamento, com o cuidado de associar a sibilância dos fonemas /s/ às
trocas propostas nos sufixos da palavra silêncio: silencioso, numa referência táctil ao rumor
dos corpos; silenciosidade como ruído de resposta na voz não dita e contida no olhar do
primeiro verso, fazendo o eco reciprocar e silenciar. Entre este jogo de ruídos /r/ e silêncio
/s/, dançam as palavras amor/desamor/solidão, caladas pelas intervenções de um sei que
52
Milho de sorgo ou milho miúdo, que serve para fazer fubá, mas também para alimentar aos animais.
64

responde à própria pergunta, título do poema. Com esta dialética entre o silêncio e o dizer
temos a poesia-texto do saber em palavras, comunicando-nos que repensar a própria
existência-texto é uma das formas do viver-texto.
Além do que a voz de um poema responde à voz do outro, recolhe-se nelas,também, o
tempo do eco, assim como todas as imagens do chão angolano que a poesia de Paula Tavares
carrega. Neste poema de Ondjaki, a palavra chão não é grafada, mas os ecos da terracota
estão depositados por todos os lados, pois é preciso atravessar o universo de O lago da lua
para ouvi-lo.
Pensando o eco como uma repetição e o associando ao conceito de Glissant, que explica
as repetições como uma forma de conhecimento de mundo, vemos que a poesia de Ondjaki
assume a forma da repetição (como poema-resposta) levando ao conhecimento do mundo,
pois sob o poema, pulsa em surdina uma visão de mundo , bem como o praticar uma
poética da totalidade-mundo é unir de maneira remissível o lugar, de onde uma poética ou
uma literatura é emitida à totalidade-mundo, e inversamente. (GLISSANT, p. 42)
Esse diálogo poético estabelece o que anteriormente citamos como a angústia criativa: o
poeta não pode escrever em voz única, apenas o faz diante das outras línguas do mundo, na
presença desse drama (GLISSANT, p.52), portanto a repetição e o lugar comum encenam
uma noção de tempo contínuo, reivindicada pelo eu-poema de Paula Tavares em sua relação
com o mundo53.Desta forma, esse diálogo poético determina a identidade como o valor do
poema resultante da busca errante e inquieta de formas e estruturas com as quais uma idéia de
mundo, emitida do seu lugar, encontra ou não outras idéias do mundo, reivindicando a
relação, que Ondjaki acaba por criar, quando as vozes de ambos confluem para uma
totalidade na interdiscursividade dos poemas.

53
Não só em Há prendisajens com o xão, Ondjaki estabelece um diálogo com Paula Tavares ao fim da
novela O assobiador (também de 2002) temos a resposta dela a uma carta enviada por ele cujo conteúdo fala de
um sonho que originou o livro: E acho que, por agora e em matérias de cartas, está tudo escrito no Vou lá
visitar pastores do Ruy Duarte. Não percas esse hábito saudável que adquiriste ultimamente, que é o de praticar
Manoel de Barros, que tão carinhosamente desarruma [ênfase nossa] a linguagem para livrar as palavras do seu
estado de dicionário e escrever de novo partituras para pássaros em vôo rasante pela vida. Assim falava, como
sabes João Vêncio, segundo o kota Luandino e o nosso mais-velho o Seu Vieira , para os amigos, Pe. Antonio
Vieira, para os menos íntimos.(...)Detive-me a escutar este silêncio tão secreto que dá vontade de escutar lá
dentro, agora que começo a ficar com saudades do futuro. Encontro os sentidos das coisas e sua primeira forma,
como fermento e massambala. Podes sentar-te em ti , pois teus búzios , tuas conchas estão cheios desses
segredos de cartas feitas literatura, que é como quem diz, escrever orações em silêncio que, uma vez lidas, nos
deixam espantalhos onde pousam os pássaros. (TAVARES, Ana Paula.in.:O assobiador, 2002,p.116-7)
65

Importante é ainda observar que, é através de Paula Tavares, como notamos nos
agradecimentos ao início da obra, que Ondjaki toma contato com a obra de Manoel de Barros,
conforme o fazer poético inscrito neste paratexto-poema-agradecimento:

agradecendo:

paula tavares num acaso adestinado me


passou um manoel de barros para eu viajar
mário fonseca me reacordou para a poe-
sia, em confiando com um só olhar.
carlos barbosa me emprestou o seu grilo
simples e a sua meninice contagiante.
manoel de barros distante, me ensinou a
tanta importância do chão; que deve ser pro-
movido a almofada, mas ele sobre nós.
(Há prendisajens, p.9)

Mais uma vez em paratexto, revela-nos a tendência do pós-moderno em significar


também através de sua forma gráfica - linhas com separações silábicas e constantes letras
minúsculas - não é o texto diagramado de forma centralizada, mas sim o que está como
margem que interessa, do canto expande-se em linhas sem medida, ora cortadas pela
hifenização ora marcadas pelo ponto final para regressar em minúsculas, como se essas vozes
aí evocadas pelos travessões assumissem um mesmo tom, nenhuma em maiúscula, todas em
caixa baixa, perto do chão.
Demonstra, também a preocupação em pontuar algumas das vozes que aparecerão ao
longo da obra, o que significa que uma intenção poética concebe-se na sua relação com os
outros, com a totalidade-mundo. O poeta transforma-se e permuta-se, permanecendo ele
mesmo, sem negar-se ou diluir-se, por isso, acreditamos que o pensamento poético está no
princípio desta relação, na forma do verbo em contínuo agradecendo -, ao contrário do
tradicional agradecimento.
Retomemos um destes outros, Manoel de Barros, que agora, em agradecimento, é
resgatado pela palavra chão, que ganha sentido de maciez e conforto. Entretanto, o eco que
66

começa por Paula Tavares é abafado por Manoel de Barros ao ser interseccionado pela
palavra almofada.
Na Nota do autor, ao final do livro temos a resposta de Manoel de Barros a uma carta de
Ondjaki. O poeta brasileiro, num simplicíssimo papel branco recortado à mão , pronuncia-
se da seguinte forma:

há exageros (...) não vou nomeá-los (...) há em você a consciência plena de que a poesia se faz
abandonando as sintaxes acostumadas e criando outras. São as palavras que guardam a poesia, não
os episódios. Palavra poética não serve para expressar idéias serve para cantar, celebrar. ( Há
prendisajens, p. 67-8.)

e a seguir a citação de uma conversa telefônica em que Ondjaki lhe pede uma nota de
abertura; Manoel de Barros lhe responde o seguinte:

você me desculpe, mas eu não sou crítico literário... , camarada angolano (Há prendisajens, p.68)

Temos, na seqüência citada, aquilo que na teoria glissantiana chama-se de opacidade


do pensamento poético, não necessito mais compreender o outro, ou seja, reduzi-lo ao
modelo da minha própria transparência, para viver com este outro ou construir com
ele (GLISSANT, p.86). Ao enviar a carta e fazer o telefonema, Ondjaki espera que Manoel
de Barros o acolha, mas isso não ocorre de forma objetiva por parte do poeta brasileiro, que
nega sua veia de crítico, embora, paradoxalmente, já o tivesse feito como poeta-crítico que é.
Quando responde à carta, Manoel de Barros está analisando e pontuando um dos aspectos
relevantes de Há prendisajens que é o trabalho com a linguagem, no seu processo de
acumulação de formas e temas imbricados à textualidade dos vocábulos por sufixos e
prefixos, além das palavras compostas por justaposição, tirando-os de sua condição
automatizada.
Em contrapartida, Ondjaki responde a ele sobre a importância do distante comentário
feito, no seguinte trecho da Nota do autor: ainda bem, manoel, que a sua sensibilidade de
poeta reciprocamente se dilui na sua sensibilidade54 de pessoa. (Há prendisajens, p. 68);
demonstrando-nos que na poesia,(...) a visão profética do passado juntamente com a visão

54
Sobre esta sensibilidade de Manoel de Barros, Luis Henrique Barbosa, ao compará-lo a Haroldo de Campos,
no seu Palavras do chão (2003), explica que: em Manoel de Barros, teremos a manipulação do código mais
humanizada: há em sua poesia um aproveitamento de sintaxes tortas produzidas pela linguagem popular, pois,
para ele, essa linguagem está mais próxima de uma linguagem adâmica .(p.41)
67

profética dos espaços longínquos, é, em toda parte, a única forma que temos de nos inserir na
imprevisibilidade da relação mundial .(GLISSANT, p. 107)
Se lermos outras obras do poeta angolano ou mesmo suas conferências55, veremos
como tais exageros citados por Manoel de Barros, muitas vezes, são retomados e outras vezes
estão abrandados56. Todavia, em Há prendisajens justificam-se dado o teor de construção e
desconstrução que os poemas e paratextos criam, já que para criar esse caos-mundo em
formato poético, é necessário perpassar a condição dimensionada da metáfora. Quanto a isso,
o pensamento glissantiano, mais uma vez, auxilia-nos, pois explica que o caos é belo
somente se tentarmos através do imaginário seguir-lhe a pista, traçar-lhe os invariantes, e não
suas leis. Assim como os físicos e os cientistas da ciência do caos tentam conceber o universo
físico. Há invariantes e são belos. (GLISSANT,p. 157).
É nesse sentido que podemos dizer que Há prendisajens é uma invariante dentro do
próprio universo poético de obras de Ondjaki, pois ao exacerbar a manipulação lingüística
acaba por transbordar temas e textualidades, os lugares comuns de Há prendisajens para
todas as suas outras obras, os outros dele mesmo. Visto que,

esse é um dos dados do caos-mundo, isto é, a anuência ao seu entorno ou o


sofrimento em seu entorno são igualmente operantes como via e meio de
conhecimento desse entorno .(...) Estamos na presença de sistemas de
relação que são completamente erráticos.(GLISSANT,p. 105)

Sobre esta errância, Eunice Rocha em Utopia do diverso, faz o seguinte comentário:

Glissant introduz em sua abordagem das culturas a noção de Errância


moderna, na qual está implicada a luta contra as intolerâncias que advêm da
noção de território e do sentimento que o elegera. O errante aqui não é mais
nem o viajante, nem o conquistador; ele busca conhecer a totalidade do
mundo e sabe de antemão que este conhecimento é impossível. O errante

55
Vide anexo C.
56
Ao inserirmos notas de rodapé com trechos de outros livros de Ondjaki, ao longo deste trabalho, nossa
intenção foi de exemplificar este caráter de constante mudança e diálogo que o poeta opera ora abrandando os
procedimentos de linguagem ora dimensionando-os na construção dos temas; em suma, há um constante refazer-
se em gêneros e procedimentos, como no exemplo a seguir em que o narrador do romance comenta um encontro
imaginário no Brasil com Manoel de Barros e discute sobre o seu fazer poético: Nós íamos mais dizer quê?,
hoje vou te dizer: a língua poesia!, mudaiê, eu num sou escrevedor de poemas, vivo isso, sou pura poesia sonora,
mas aquilo!, aquilo era poesia a sério, sabes o quê, aproveitar a lágrima da tibaria pra não dizer que aquela
lágrima afinal era do puro poema? Isso me aconteceu, avilo.
Aquela poesia tava então a me aguar, palavras do chão, como ele dizia, o kota era dado a uns bichismos, é isso
mesmo, não tem outro termo, aí entendi: combustível do lápis dele era baba de lesma. Tás a rir? , é porque não
tavas lá (ONDJAKI,Quantas madrugadas tem a noite, p.119)
68

mergulha nas opacidades do mundo e recusa sua transparência evidente.


(ROCHA, 2001, p.21)

Ondjaki manifesta-se, também, pela errância interna, já que é atravessado por


projeções em direção à totalidade- mundo e vivencia os reflexos destas projeções sobre si
mesmo, no que concerne à estética de seu escrita e às dimensões realizadas pela metáfora
chão, o que provoca exílios internos, visto que os que ficam atravessados por esta paixão pelo
mundo, que é comum a todos, sofrem os tormentos do exílio interior, que nas palavras de
Glissant é a viagem para dentro do enclausuramento. Ele [o exílio interior] introduz o
indivíduo, de maneira imóvel e exacerbada, no pensamento da errância (in.: ROCHA,
2001,p. 22)

Com estas reflexões sobre a errância pelo chão da língua da poesia, pensamos que um
dos aspectos de suas aprendizagens poéticas é o que vários desses outros do pensamento em
diversos momentos de suas escritas e depoimentos chamam de desarrumar a palavra . Nessa
tentativa, na repetição de um conceito poético, renova-se o imaginário da língua portuguesa,
que ganha corpo cultural através dos ecos, das vozes da literatura contemporânea: Luandino
Vieira, Guimarães Rosa, Mia Couto57, Manoel de Barros58; pois cada vez que um deles ou a
comunidade inscreve-se para desarrumar o que poderia ser ao menos estável, estabelece uma
identidade rizoma, isto é, raiz, mas que vai ao encontro das outras raízes (GLISSANT, p.37),
por meio da movência de sentidos e formas; como o próprio Ondjaki diz no título de uma de
suas conferências: dançar com as palavras quietas é a identidade da relação em um mesmo
palco, em um mesmo lugar, esperando o retorno do eco no seu próprio chão, estabelecendo
uma poética de relações.

57
Em entrevista,dada em Moçambique, à revista Thot nº 80, em abril de 2004, São Paulo: Palas Athena, ao ser
questionado por Marilene Felinto sobre a influência de Guimarães Rosa em suas obras, Mia Couto responde da
seguinte maneira: primeiro tenho que falar de Luandino Vieira, que é outro contato que tenho com alguém que
escreve um português que é arrevesado, que está misturado com a terra. Foi o primeiro sinal de autorização de
como eu queria fazer (...) mas precisava de uma credencial do mais velho que dissesse este caminho é
abençoado . E ele confessa que foi autorizado, também ele, por outro, um tal João Guimarães Rosa . (...)Então eu
tinha essa fascínio.Tinha que conhecer este João, este tal Rosa. E de fato foi uma paixão.Foi de novo alguém que
dizia isto pode-se fazer literariamente . (...)porque eu já estava contaminado por este processo que não é
literário, é um processo social das pessoas que vêm de outra cultura, pegam o português, renovam aquilo, tornam
a coisa plástica e fazem do português o que querem. É um processo muito livre aqui. As pessoas misturam
português e , como dizia uma camponesa da Zambézia, eu falo português corta-mato , uma prova de atletismo
que se faz através do mato, de trilhas. E pronto ( p. 50)
58
Manoel de Barros em entrevista concedida a Lucia Castelo Branco e Luis Henrique Barbosa, em 1994,
declara-se sobre a leitura de Guimarães Rosa. Reli toda a obra de Guimarães Rosa e ele me anulou. Propunha-
me a dizer frases minhas sobre o Pantanal e frases à maneira de Rosa sobre o sertão mineiro. Mas a linguagem
de Rosa tomou conta. Escrevi 6 capítulos e vi que era tudo Rosa. Fui anulado inteiramente. O homem tem um
feitiço...Em estado rosal eu não podia continuar. Rasguei os capítulos. Caspité! Assim não dá. Vai ser gênio pra
lá. (BARBOSA, p. 128)
69

Do chão ao vôo na língua dum pássaro

Há uma passagem em Introdução a uma poética da diversidade bastante elucidativa


sobre o contexto atual das literaturas e da relação da poética com o caos-mundo, em que
Glissant manifesta-se sobre escrever na presença de todas as línguas do mundo:

deporto e desarrumo a minha língua, não elaborando sínteses, mas sim


através de aberturas lingüísticas que me permitem conceber as relações da
línguas entre si em nossos dias, na superfície da terra. (GLISSANT, p.49-
50)

E mais adiante, complementa: a construção de uma linguagem na língua que usamos


permite-nos abrir nosso olhar para o caos-mundo, pois isso estabelece relações entre línguas
possíveis do mundo. (GLISSANT, p.52)
Deste mesmo modo, a seguir, analisamos o poema Mas existe? e seus paratextos,
discorrendo sobre como este olhar instaura-se em um contexto para além das literaturas de
língua portuguesa, também reiterando como enraízam-se aspectos da forma poética na
construção de Há prendisajens com o xão:

MAS EXISTE?

existe o piar do pio?


o bater da asa
é um desinstante?
a passarada
faz passar ar
ou passeia no ar?
existe palhintimidade
num aninho?
de mãezinha para filhinho
a transição da minhoca
é alimentação ou incesto?
o pássaro
ganhou enjoo para chão?
...
de tanta entrada e saliência
70

a porta do aninho foi renominada:


simples janela arredonda.
de tanta percursação
pássaro discipulou-se ao sapo.
assim exista a passipiência. (Há prendisajens, p.25)

Percebe-se, ao lermos o poema no seu todo, que há uma divisão pontuada por
reticências; além do mais, o título do poema pergunta-nos e incita-nos a outra pergunta: mas
existe o quê? Diante do eu que interrompe-se admirado, fica insinuado um pretenso leitor de
espaços nas marcas lingüísticas deixadas pela conjunção adversativa mas e uma oração sem
complemento para o verbo existir.
Parece-nos que no quesito aprendizagens, Ondjaki ouve aqui a palavra poética de Ruy
Duarte de Carvalho, partir de uma palavra e de Manuel Rui, ou a palavra é o princípio e
negação da eternidade ou o eterno só terá começado sem ter sido concluído - com a
59
palavra ; que neste caso é pássaro60.
Para isto, o poeta estabelece algumas estratégias de construção, de vôo. Na primeira
parte do poema, construída em meio a seis perguntas, há três corpos fônicos:
sons fricativos e vibrantes : /s/ e /r/ ;
sons nasais vinculados ao sufixo de diminutivo;
sons oclusivos /p/,/t/ e /d/;
Tais recursos sonoros dão movência ao campo semântico das palavras:
piar, pio, passarada, passar ar,pássaro,passeia,asa, criam uma linguagem
lúdica;
num,aninho,mãezinha,filhinho,minhoca,transição,alimentação,incesto,
ganhou, enjoo, chão, sugerem uma linguagem terna e infantil.
Os sons do terceiro grupo fônico espalham-se pelos dois campos semânticos, dando-nos
a sugestão do bater de asas e do piar dos pássaros. Há, também, duas palavras compostas,
uma por derivação prefixal - desinstante- e outra por justaposição de dois substantivos
(palha e intimidade) palhintimidade-, ligadas ambas ao sentido de pássaro, antes e depois
de iniciar-se à arte de vôo.
59
Parágrafo inicial da conferência (separata) Da escrita à fala , no Congresso Internacional de Teoria
Literária e Literaturas Lusófonas, em Coimbra (2005).
60
De acordo com Chevalier, o pássaro como símbolo pode representar, nas mais variadas culturas: as relações
entre o céu e a terra(...) a forma de aves a leveza, a liberação do peso terrestre(...), guardam entre nós alguma
coisa do canto da criação, (...) na arte africana simboliza a força e a fecundidade. (p.689)
71

Após as reticências, que anunciam uma possível resposta às perguntas, temos as mesmas
recorrências sonoras retomadas, embora estejam misturadas, pois começam a ganhar novos
formatos com valores semânticos diferenciados:
renominada, através da prefixação do verbo;
arredonda, pelo elemento de composição a unido ao adjetivo;
percursação, pela sufixação do substantivo
além da regência pronominal irregular para o verbo: discipular-se.
passipiência, em uma justaposição de dois substantivos: pássaro e sapo,
terminada com o sufixo -ência, resultando em um anagrama sonoro da palavra
sapiência.
Se pensarmos os itens acima, como um conjunto,veremos que a sexta pergunta: o
pássaro/ganhou enjoo para chão?,além de encerrar o primeiro grupo de versos, destoa
porque acaba por funcionar como resposta, ou seja, uma pergunta retórica. Vale ressaltarmos
o jogo entre os níveis de linguagem: inicia-se por uma linguagem prazeirosa do simples
trocadilhar com os sons dos pássaros: desinstante; atravessa uma linguagem infantilizada
pelos diminutivos: palhintimidade; e caminha para uma linguagem com vocabulário
acadêmico marcados pelas palavras discipular-se e sapiência.
Nesta segunda parte do poema, temos um grupo de palavras que acabam por levar-nos
aos verbetes, como que pedissem para serem ampliadas, são elas: entrada e saliência, porta
e janela:

desinstante: tem pouco a ver com instante; é somente o conhecimento prazeiroso que vai de um
batimento de asa ao seu sucedente. (Há prendisajens, p. 65)

É a partir dos verbetes que o poema expande-se em respostas: o pássaro-poeta vai em


busca do ar, entretanto, diante de uma percursação para a qual ainda lhe falta sapiência,
recolhe-se como bom discípulo-poeta que é - em sapo61, da água e do chão:

sapo: vive em ânsias de ser beijado por princesas. acredita em vidas passadas, onde julga ter sido
príncipe. mestre de cantoria e sapiência. pratica a perigosa arte de encher balões em suas próprias
bochechas. gosta de quebrar silêncios da noite.( Há prendisajens, p. 60)

61
Segundo diversas tradições, o óleo de sapo perfura a pedra. Ao discípulo que pergunta como passar da
ignorância ao saber, o mestre da iniciação responde : Transforma-te em óleo de sapo. O que equivale a dizer que
o homem, sem deslocar as coisas, pode penetrar nelas profundamente pela fluida finura do seu
espírito (CHEVALIER, p. 804)
72

pássaro: doutorado em voo e liberdade. tem domínio absoluto da poesia eólica. de sua autoria ,
destacam-se: o velho e o pássaro62; assim falava passatustra63; cem anos de provisão64; dom
passarote de la avoança65 e grande passarão: penedas66. ( Há prendisajens , p. 59)

Notamos que, nos verbetes, ocorre novamente um pacto lúdico67 entre os níveis de
linguagem e o vocabulário, enquanto o verbete sapo revela-nos apenas um mestre que pode
significar tanto o título acadêmico quanto o conhecedor popular, embora penda seu sentido
mais para o segundo, já que temos a palavra cantoria, com uma sufixação indicadora de tom
popularesco; o mesmo não ocorre com o verbete pássaro, anunciado com o título acadêmico

62
O velho e o mar , do escritor americano Ernest Hemingway (1899-1961)conta a história de um homem que
convive com a solidão do alto-mar, com seus sonhos e pensamentos, sua luta pela sobrevivência e sua inabalável
confiança na vida. Esse é o fio do enredo tenso como o que prende na ponta da linha o grande peixe que acaba
de ser pescado com o qual arma uma das mais belas obras da literatura contemporânea. Há 84 dias que Santiago,
um velho pescador, não apanhava um único peixe. Por isso já diziam se tratar de um salão, ou seja, um azarento
da pior espécie. Mas Santiago possui têmpera de aço, acredita em si mesmo, e parte sozinho para o mar alto,
munido da certeza de que, desta vez, será bem-sucedido no seu trabalho.
63
Assim falou Zaratustra,do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, escrita entre 1883 e 1885, na qual
desenvolve sua doutrina do super-homem e do eterno retorno. Zaratustra é apresentado como um herói, como um
anunciador do super-humano e da morte de Deus , ao qual pode converter-se o homem quando libertar-se de
tudo que o mutila. O eterno retorno é outra face do super-humano, outro da vontade de potência, desta vontade
de libertar-se de todas as determinações para só obedecer ao princípio Tornar-te o que tu és , assumindo a gaia
ciência que lhe confere a liberdade. (JAPIASSU, 1996, p.18-9)
64
Cem anos de solidão, do colombiano Gabriel Garcia Marquez, cuja leitura está ordenada fundamentalmente
sobre dois eixos; as relações de parentesco e o mito de Édipo, uma espiral que condensa o conjunto dos enigmas.
O romance narra a incrível e triste história dos Buendía - a estirpe dos solitários em sete gerações para a qual não
será dada uma segunda oportunidade sobre a terra. Toda a narrativa passa-se na fictícia cidade colombiana de
Macondo, que se parece muito com Aracataca, cidade onde o autor nasceu. O livro também pode ser entendido
como uma autêntica enciclopédia do imaginário; escrito na década de 60, publicado pela primeira vez em 1967, é
considerado um marco da literatura de realismo fantástico. Prêmio Nobel de Literatura em 1982.
65
O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha, obra-prima de Miguel de Cervantes Saavedra ( (1547 -
1616), é o romance mais importante da literatura em língua espanhola. Grandes críticos, historiadores e leitores
fizeram dele a segunda obra mais traduzida e editada do mundo, depois da Bíblia. Dom Quixote, entregue ao
delírio causado pela leitura excessiva de livros de cavalaria, sai pelas planícies espanholas para impor justiça, na
companhia de seu fiel escudeiro Sancho Pança. A dupla então vive uma variada seqüência de aventuras e
confrontos no limite entre a realidade e a fantasia, confunde moinhos com gigantes, monges com feiticeiros
diabólicos, rebanhos de carneiros com exércitos inimigos. Dom Quixote e Sancho Pança encarnam o próprio ser
humano, oscilando entre o ridículo e o sublime, o ideal e o pragmático, o poético e o prosaico, o riso e a lágrima.
66
Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa.
67
Expressão utilizada e analisada por Melo e Castro em O próprio poético: o lúdico permanece no transfundo
dos fenómenos culturais é a tese fundamental do ensaio Homo ludens de Huizinga e mais adiante: Esse
excesso tem nome: escrita. A [escrita como] atividade lúdica é justamente um dos meios desse exceder
(CASTRO, 1973, p. 111 e 113).
73

de doutorado em poesia eólica, seguido pelos trocadilhos com os nomes de obras de


escritores considerados como clássicos da literatura ocidental.
O poeta parece render homenagem aos mais-velhos , aos pássaros-escritores, que
alçaram vôos mais altos no imaginário de suas línguas e literaturas do mundo ocidental,
compondo obras lidas e relidas ao longo dos últimos séculos.
Retomando o conceito da identidade-rizoma, cabe-nos pensar que derivas, no sentido
de migração para outras culturas, estariam nos livros trocadilhados e o porquê destas escolhas;
a senha continua a ser a palavra pássaro, que anagramaticamente perpassa os títulos de O
velho e o mar, de Hemingway; Assim falava Zaratustra, de Nieztche; Cem anos de
solidão, de Garcia Márquez, D. Quixote, de Cervantes e Grande sertão: veredas de
Guimarães Rosa.
Ao pensarmos quais seriam as possíveis intersecções entre estas obras e quais
aprendizagens estas línguas de pássaros , cantadas na presença do mundo-chão de letras,
trazem ao poeta, verificamos que através do enredo, dos protagonistas e da linguagem existe
uma seqüência de prováveis temas dicotômicos, refratados no poema através das palavras:
percursação, transição, alimentação, renominada, arredonda, assim e em diálogo com os
verbetes: velho, falava, provisão, passarote, penedas.
Pontuamos, a seguir, as relações existentes entre a palavra evocada do título original e
vocábulos do poema e verbete, bem como os procedimentos sêmico-morfológicos do texto de
Ondjaki e questões temáticas-estruturais situadas dentro das narrativas dos outros escritores:

Em o velho e o pássaro, há uma troca sêmica de mar (do original) para pássaro
(no verbete), mantém-se o vocábulo velho, numa referência à tradição do mais-
velho contador em África; bem como ao mar como espaço de percursação,
transição, alimentação, já que a narrativa transcorre em uma fase da vida do
velho (em que vai ele não consegue um peixe, o alimento, há 84 dias e toda a
comunidade duvida de seu percurso marítimo).

Em assim falava passatustra, a troca ocorre entre o nome da personagem


Zaratustra (do original) e passatustra é uma referência à ação da personagem
durante a narrativa: a de um andarilho, no estar de passagem; liga-se ao poema
através do termo arredonda, em uma alusão à teoria do eterno retorno do
filósofo alemão. Quanto ao vocábulo poema, liga-se através da palavra assim,
74

porque nos faz retornar para a pergunta inicial, além do vocábulo exista que nos
envia às questões de essência e existência discutidas pela filosofia.

Em cem anos de provisão, há uma troca de solidão (do original) para provisão,
fazendo uma referência indireta ao poema através da palavra alimentação.
Quanto à narrativa de Garcia Márquez, aproveita-se do tema da família em
gerações que se alimentam da solidão, como o filhote no ninho espera a minhoca
da terra.

Em dom passarote de la avoança, há uma troca entre a palavra Quixote (do


original) para passarote, dando a sugestão de um diminutivo para pequeno
pássaro, filhote. Reaproveitando o tema do percurso, do andarilho, só que ao
usar termos de um pretenso espanhol remete-nos ao espalhafatoso e atrapalhado
avoança - de D.Quixote, como ave que aprende a voar, sem contar também a
transição em que vive a personagem entre o mundo medieval e o renascentista,
entre o sonho e as leituras contrapostas à realidade.

Em grande passarão : penedas, há a troca de sertão (do original) para passarão,


no uso do sufixo para aumentativo, e também como lance de futuro, já que a obra
de Rosa permite os dois aspectos: de uma lado a grandiosidade do vôo que
percorremos ao ler o desalinho do tempo na narrativa do narrador-Riobaldo, que
do presente narra o passado, embora deixe-nos sempre enigmas para o futuro.
Neste desalinho temporal, temos a questão do trocadilho com veredas (do
original) que advém de penedo e na troca do sufixo penedas. A troca
geomorfológica faz-se necessária, pois, como vimos anteriormente, Guimarães
Rosa é uma referência, uma rocha, o elemento-terra para toda uma comunidade
de leitores e escritores. Liga-se ao poema através da palavra saliências, a massa
de rocha saliente no morro, no leito de rios e oceanos. Interessa-nos, ainda, a
escolha do vocábulo penedo-, principalmente, pelo seu aspecto etimológico:
que advém da palavra pena-, desdobrando-se para valores como: pena que
escreve, pena que sustenta o vôo da ave.68

68
Etimologia: port. ant. pena 'rocha' (penna ou pinna,ae 'ameia; pluma') + -edo; ver pin(i). Fonte: Hoauiss
eletrônico.
75

Todas as obras relacionadas apresentam o imprevisível e o caótico, seja na linguagem


ou no percurso das personagens; mundos entrecruzados entre oralidade e escrita que
agregam-se no poema pelo vocábulo renominada, isto é, ao nomear novamente cada um dos
títulos. O pensamento poético de Ondjaki renova a diversidade pela construção dos
trocadilhos, perante todas essas línguas de pássaros; eis a poética da relação. Podemos
fundamentar isso naquilo que Glissant comenta ao ser questionado sobre a obra de Guimarães
Rosa e Garcia Márquez no que concerne à narrativa e seus escritores:

Não me surpreende que elas renunciem à voz épica, que em nossos dias
pronuncia a comunhão, a dispersão da Narrativa e, contra a História,
reivindica, finalmente, o encontro das histórias dos povos. (GLISSANT,
p.95)

Outra faceta deste pensamento poético situa-se entre os vocábulos: pássaro, chão, sapo
e a questão utópica com a qual as personagens das obras-títulos estão envolvidas: Santiago, o
velho, confronta-se com sua comunidade; Zaratustra andarilha por aldeias entorno do além-
homem; a família Buendía vaga durante sete gerações lutando contra a solidão; D. Quixote,
inocentemente, duela com seu próprio imaginário em busca de justiça; Riobaldo atravessa e
extravasa a dureza de seu sertão. Em todos os casos, as personagens buscam romper limites,
encontram-se divididas em seu interior, em exílio interior, o que faz com que busquem em
suas raízes (comunidade, aldeia, escudeiro, família,bando) a memória, através da viagem
percorrida na paisagem que cabe a cada um.
É nesta imagem metafórica do pássaro que enjoa do chão, que o poeta situa seu verbete,
incluindo-se na paisagem que conhece: o chão. Assim, como os outros de seu pensamento,
liberta-se em vôo pela linguagem literária, embora, diante da dimensão de seus interlocutores,
divida-se e recolha-se no sapo ingênuo e irônico, com suas pequenas utopias: beijos de
princesas evocadas de contos de fadas infantis; de passipiência apenas a sapiência e a
cantoria dos versos; balões de ar, como uma criança, que brinca com palavras no silêncio de
sua própria noite. Prefere a deriva das minúsculas coisas de seu chão onde experimenta a
errância diante destas línguas do Todo-o-mundo.
76

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao entitularmos este trabalho como As prendisajens poéticas em Ondjaki:


dimensões da metáfora xão , propusemo-nos a demonstrar, através de diversos teóricos e
ensaístas críticos, como o autor angolano concebe em Há prendisajens com o xão seu
projeto poético por meio de dois planos:
Em um primeiro, a metáfora chão procura dimensionar seu tecido cultural pela
simbiose com a natureza para fundar um eu que se enraiza dentro da comunidade literária,
através da renovação de gêneros que traz para a obra. Ou seja, além dos poemas e paratextos,
a metáfora chão desdobra-se em palavras-montagem, trocadilhos e anagramas,
mecanismos de acumulação pela repetição da pontuação e uso do espaço gráfico.
Tais recursos demonstraram que nesta poética de relações, o eu-chão movimenta-se
pelas maleabilidades da língua nas recorrências dos prefixos re, -des, -a, -em e de sufixos
como mento, -ência, - tude, -ão, -inho, que assumem significações semânticas diversas
junto às palavras que as compõem, como demonstradas nas análises, mas sempre em
exercícios de aprendizagem, que em seus descompassos diversos singularizam-se diante dos
outros pelo caos de significações propostas na forma- título : há prendisajens.
Diante desta constatação, fica-nos a mensagem de que o eu-chão, ao romper o nível
lingüístico e utilizar-se disso como instrumental, enreda-se, também, por uma estratégia
política, que interage criticamente com as tensões da oralidade e escrita, abaixo deste chão.
Tensões que, em um segundo plano, são dimensões que a metáfora chão irradia em
outros de seu pensamento poético, estabelecendo diálogos com contextos culturais diversos,
não só com os de língua portuguesa. Para isso, através dos paratextos, evoca outras estéticas,
provoca outras escritas, alimenta-se com o xão, para elevar-se em espiral do que é o próprio
do processo poético: um continuum mutável e gerador de universos.
Tal continuum,evidencia-se e comprova-se ao lermos o último poema Geadações &
Orvalhamentos que recolhe versos plantados por todo o chão da obra. Nos últimos dizeres
de um sapo ainda antes de implodir-se (p.49- 51), o poeta de Há prendisajens com o xão,
ludicamente, remete-nos para a poesia dos segredos , das margens , da liberdade
mascarada em ar ; do alumeia-se em fogo, da terra que prende. apreende como em um
labirinto formado de raízes.
77

Ao pensarmos o projeto artístico de Ondjaki, como um todo, vemos que Há


prendisajens com o xão funciona como uma matriz geradora de temas e estéticas em suas
obras literárias ou de outras artes, conforme pontuamos em notas ao longo deste trabalho e na
apresentação do autor (vide anexos A e C). Talvez, por isso, a obra provoque um
estranhamento até mesmo para o autor, como ele mesmo admite em uma de suas entrevistas:
parece um projeto inacabado; e o é, já que, contém, a nosso ver, elementos que
constantemente se refazem porque não buscam a indústria cultural, a mercantilização. É nisto
que reside a importância de sua publicação para o contexto angolano e das literaturas em
língua portuguesa contemporânea: um projeto em constante interação cuja principal função é
a humanização.
Por meio do ser poético concentrado de informações, Ondjaki cumpre seu papel público
de escritor de uma nação literária em trânsito, cujo

lar provisório (...) é o domínio de uma arte exigente, resistente e


intransigente, dentro da qual não é possível, infelizmente, nem se esconder
nem procurar soluções. Mas é apenas nesse precário mundo solitário que se
pode verdadeiramente compreender a dificuldade daquilo que não pode ser
compreendido e ir em frente e tentar assim mesmo.( SAID,2003, p.41)

Assim sendo, esperamos que este trabalho contribua para o que é vital em literatura:
fazer o presente da linguagem.
78

BIBLIOGRAFIA

1. do autor:

ONDJAKI. Actu sangüíneu. Luanda: INIC, 2000.

________.Bom dia camaradas. Luanda: Edições Chá de Caxinde, 2000.

________.Há prendisajens com o xão (O segredo húmido da lesma &outras

descoisas). Lisboa: Caminho, 2002.

________. E se amanhã o medo. Lisboa: Caminho, 2005.

________.Momentos de aqui. Lisboa: Caminho, 2001.

________. O assobiador. Lisboa: Caminho, 2002.

________.Quantas madrugadas tem a noite. Lisboa: Caminho, 2004.

_______.Ynari.Lisboa: Caminho, 2005.

_______. http://groups.msn.com/Ondjaki/apoesia.msw >último acesso em 30 de jun. de

2006.

_______.http://luandaminasluanda.blogspot.com > último acesso em 30 de jun. de 2006.

2. teórica e de estudos culturais:

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: HUCITEC, 1999.

BARTHES, Roland. A aula.10 ed. Cultrix: São Paulo, 2002.

________________.O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1973.

BOSI, Alfredo. O ser e o tempo na poesia.10 ed. São Paulo: Cultrix, 1993.
____________. Dialética da colonização. 4ed. São Paulo: Cia. das Letras, 2005.

BRAIT, Beth. Gêneros: artmanhas do texto e do discurso.São Paulo: Escolas


Associadas, 2004.
CAMPOS, Haroldo (org.).Ideograma: lógica, poesia e linguagem. 3. ed. São Paulo:
79

Edusp, 1994.
CANDIDO, Antonio. Estudo analítico do poema. 4.ed. São Paulo: Humanitas, 2004.

COHEN, Jean. Estrutura da linguagem poética.São Paulo: Cultrix, 1974.

FERRARA, Lucrecia. Leitura sem palavras. São Paulo, Ática, 1986.

FERREIRA, Jerusa P.(org.). Oralidade em tempo e espaço.São Paulo: EDUC, 1999.

FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. Lisboa: Duas Cidades, s/d.


HALL, Stwart & WOODWARD, Kathryn Identidade e diferença a perspectiva dos
estudos culturais.. Tomaz Tadeu Silva org. e tradução.3.ed. Petrópolis: Ed. Vozes,
2004.
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. Trad. J.P. Monteiro. São Paulo: Perspectiva, 1980.

JOLLES, André. Formas simples. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 1976.

GLISSANT, Edouard. Introdução a uma poética da diversidade. Trad. Eunice Rocha.


Rio de Janeiro: UFJF, 2005.

JAKOBSON, Roman. Lingüística e comunicação.10.ed.São Paulo: Cultrix, 1997.

LIMA, Luiz Costa.(org.) Teoria da literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira,v.1, 2002.

MAINGUENEAU, Dominique.Pragmática para o discurso literário. São Paulo: Martins

Fontes, 1996.

MENEZES, Philadelpho (org.). Poesia sonora. São Paulo: EDUC, 1992.

MIGNOLO, Walter. Histórias locais/ projetos globais. Trad. Solange Ribeiro. Belo

Horizonte: UFMG, 2003.

ONG, Walter.Oralidade e cultura escrita. São Paulo: Papirus, 1998.

ORLANDI, Eni P. As formas do silêncio. 3 ed., Campinas: Editora da Unicamp, 1995.

PIGNATARI, Décio.O que é comunicação poética. São Paulo: Ateliê editorial, 2004.

PIGLIA, Ricardo. Formas breves.São Paulo: Cia. das Letras, 2004.

POUND, Ezra. ABC da literatura.Trad. A.Campos e J.P.Paes. 9.ed. SãoPaulo: Cultrix,

1997.

___________.A arte da poesia.Trad. E. Dantas e J.P.Paes. São Paulo: Cultrix, 1976.


80

SAID, Edward W. Cultura e política. São Paulo: Boitempo, 2003.

TEZZA, Cristóvão.Entre a prosa e a poesia: Bakthin e o formalismo russo.Rio de


Janeiro; Rocco, 2003.

TODOROV, Tristan. Os gêneros do discurso. Trad. Elisa Kossovitch. São Paulo: Martins
Fontes, 1980.

VALÉRY, Paul. Variedades. Trad. São Paulo: Iluminuras, 1999.

ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção e leitura. São Paulo: Educ, 2000.

3. sobre História e crítica da literatura africana e angolana:

ABDALA JR., Benjamin. Literatura, história e política : Literaturas em língua


portuguesa no séc. XX. São Paulo: Ática, 1989.
__________.(org.) De vôos e ilhas. São Paulo: Ateliê, 2003.

___________. Fronteiras múltiplas, identidades plurais. São Paulo: SENAC, 2002.

___________.(org.) Margens da cultura. São Paulo: Boitempo, 2004.

___________.(org.) Portos flutuantes. São Paulo: Ateliê, 2004.

ANDRADE, Mario de. Antologia temática da poesia africana. 3.ed. Cabo Verde: ICL.
1980.

CANIATO, Benilde Justo. Percursos pela África e por Macau. São Paulo: Ateliê, 2005.

CARELLI, Fabiana Butor. Ruína e construção: oralidade e escritura em João


Guimarães Rosa e Luandino Vieira. Tese de doutoramento, FFCLH/USP, 2003.

CASTRO, E.M.M. O próprio poético. São Paulo: Edições Quiron, 1973.


______________. Poesia dos países africanos de língua portuguesa: percursos
comparatistas com as poesias portuguesa e brasileira.Tese de
doutorado, FFCLH/USP,1998.

CHAVES, Rita . Angola e Moçambique: experiência colonial e territórios literários.


São Paulo: Ateliê, 2005.
__________. (org.) Literaturas em movimento. São Paulo: Arte & ciência, 2003.

__________. O lago da lua, de Ana Paula Tavares. Metamorfoses. Rio de Janeiro,n.1, p.271-
81

4, 2000.

__________. Ruy Duarte de Carvalho: A educação pela terra. In: I Encontro de


Professores de Literaturas Africanas. Anais : Repensando a africanidade.Niterói:
UFF, 1991, p.197-204.
DASKALOS, Alexandre et . Poesia africana de língua portuguesa. Rio de Janeiro:
Lacerda editores, 2003.

ERVEDOSA, Carlos. Roteiro da literatura angolana. Lisboa: Ed. 70. (Col. Estudos), 1979.

FERREIRA, Manuel .(org.) No reino de Caliban. Lisboa: Seara Nova, 1976.

GARTNER, Eberhard. Particularidades morfossintáticas do português em Angola e


Moçambique. In.: Revista Confluência, nº 12, 2º semestre de 1996, Rio de Janeiro, p.26-
58.

HAMILTON, Russel G. Literatura africana, literatura necessária. Lisboa: Ed. 70 (v. I),
1983.

LARANJEIRA, Pires. De letra em riste. Identidade, autonomia e outras questões nas


literaturas de Angola, Cabo Verde, Moçambique e S. Tomé e Príncipe. Porto:
Afrontamento,1992.

LEÃO, Ângela (org.) Contatos e ressonâncias.BH: Ed. PUC-Minas, 2003.

LEITE, Ana Mafalda . Oralidades & escritas nas literaturas africanas. Lisboa: Ed. Colibri
(Extra-colecção),1998.

______. Literaturas africanas e formulações pós-coloniais. Lisboa: Ed. Colibri, 2003.

LOPES, Ana & ARNAULT, Luis. História da África: uma introdução. BH: Crisálida,2005.

MACEDO, Tânia . A representação literária de Luanda uma ponte entre


Angola, Brasil e Portugal. Revista Via Atlântica, n. 1, São Paulo: USP, 1997.

___________. Angola e Brasil: estudos comparados.São Paulo: Arte&ciência, 2002.

MARGARIDO, Alfredo. Estudos sobre literaturas das nações africanas de língua


portuguesa. Trad. Carlos Leite. Lisboa: Regra do jogo Ed. Ltda, 1980.

MATA, Inocência. Literatura angolana: silêncio e falas de uma voz inquieta. Lisboa: Mar
além. (Colecção Mar Profundo),2001.

MENEZES, Solival. Mamma Angola. São Paulo: EDUSP, 2000.


MOUTINHO, Viale.(org.) Contos populares de Angola.São Paulo: Landy, 2000.
82

PADILHA, Laura Cavalcante . Reconversões. In: Revista Via Atlântica, nº 01. São Paulo:
USP,1997.
PEPETELA. Algumas questões sobre literatura angolana. Disponível em
<http://www.uea-angola.org/artigo.cfm?ID=173 >. Acesso em 18 de junho de 2006.

QUINTÃO, Jose L. Gramática de kimbundo. Lisboa: Edições Descobrimento.1934.

ROCHA,Eunice do Carmo Albergaria.A utopia do diverso: o pensamento glissantiano nas


escritas de Edouard Glissant e Mia Couto. Tese de doutoramento. FFLCH- USP, São
Paulo: 2001.

SANTILLI, Maria Aparecida. Africanidade. São Paulo: Ática (Col. Contornos


Literários),1985.

SECCO, Carmem. Carlos Drummod de Andrade: o poeta de Itabira evocado em


África. In: CHAVES, Rita et all. (Org.). Brasil / África: como se o mar fosse mentira.
Maputo: UEM, 2003.

________ . O rumor e o roçar da língua portuguesa na busca de africanos caminhos.


In.:Literatura e diferença. IV Congresso ABRALIC. São Paulo, 1994.
_________. Sendas de sonho e beleza.Disponível em <http://www.uea-angola.org/
artigo>Acesso em 28 jun.2004.

SEPULVEDA, Maria do Carmo & SALGADO, Maria Teresa (org.). África & Brasil: letras
em laços. Rio de Janeiro: Ed. Atlântica, 2000.

TAVARES, Ana Paula. Cinqüenta anos de literatura angolana. Revista Via Atlântica, n. 03.
São Paulo: USP, p.124-30, 1999

VASCONCELOS, Adriano. Breve olhar sobre os fazedores de nossa literatura. Disponível


em <http://www.uea-angola.org/artigo>. Acesso em 30 de maio de 2006.

VENANCIO, José Carlos. Valor estético e originalidade das literaturas africanas. In:
Literatura versus Sociedade. Lisboa: Vega, 1992.

4. geral :

ASSIS, Machado. Crítica & variedades. São Paulo: Globo, 1997.


BARBOSA, João Alexandre. A biblioteca imaginária. São Paulo: Ateliê, 1996.

BARBOSA, Luis Henrique. Palavras do chão. São Paulo: Annablume, 2003.


BARROS, Manoel de. Gramática expositiva do chão. Rio de Janeiro: Record, 1996.

_________________.Retrato do artista quando coisa.Rio de Janeiro: Record, 1994.


BORGES, Jorge Luis. Obras completas. volumes: 1, 2 e 3. São Paulo: Globo, 1998.
CARVALHO, Ruy Duarte. Hábito da Terra. Luanda: UEA, 1988.
83

CASCUDO,Câmara. Made in Africa.São Paulo: Global, 2003.

CERVANTES, Miguel. Engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha. São Paulo:

Editora 34, 2002.


CHEVALIER, Jean. Dicionário de Símbolos. trad. Vera da Costa e Silva. 16 ed. Rio de
Janeiro. Jose Olympio ed, 2001.
COUTO, Mia. Estórias abensonhadas.4.ed. Lisboa: Caminho, 1994.

______.Chuva pasmada. Lisboa: Caminho, 2004.

GARCIA MARQUEZ, Gabriel. Cem anos de solidão. 45.ed. Rio de Janeiro : Record,

1998.

HEMINGWAY, Ernest. O velho e o mar. 57. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

HOUAISS, Antonio. Dicionário eletrônico Hoauiss. Rio de Janeiro (2006) Disponível em:
<http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm> Acesso em 30 de jun. de 2006.
JAPIASSU, Hilton. Dicionário básico de filosofia. 3.ed. ver. ampliada. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1996.
NETO, Agostinho. Poemas de Angola. Rio de Janeiro: Codecri, 1976.

PEPETELA. Geração utopia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,2000.

PESSOA, Fernando. Obra poética Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2001.

LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. 10.ed.. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 1986.

NIETZSCHE, Friedrich W. Obras completas. Trad. Rubens Rodrigues. 3. ed. São Paulo:

Abril Cultural, 1983.

ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. 20.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,2005.

_______________ . Primeiras estórias. 49.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,2001.

SÁ, Olga de. Clarice Lispector: travessia do oposto. 3.ed. São Paulo: Annablume, 2004.

SARAMAGO, José. Manual de Pintura e caligrafia.São Paulo: Cia. das Letras, 1992.

SOARES, Francisco. Antologia da nova poesia angolana. Lisboa: IN, 2001.

SOROMENHO, Castro. Calenga. Lisboa: Inquérito, 1945.

TAVARES, Paula. O lago da lua. Lisboa: Caminho, 1999.


VASCONCELOS, Vânia Maria. A poética in-verso de Manoel de Barros:
84

metalinguagem e representados numa disfunção lírica. (Doutorado em Comunicação


e Semiótica) PUC-SP, São Paulo, 2002.

VIEIRA, José Luandino. Luuanda. Lisboa: Caminho, 2004.


85

ANEXO A
Apresentação do autor

Uma das preocupações primeiras quando da escolha do escritor e obra a serem


analisados, Ondjaki e Há prendisajens com o xão , sempre foi fazer uma justa apresentação,
uma leitura que o colocasse como um novo expoente dentro do que Mello e Castro chama de
polissistema de invenção poética (1998, p.1) e que Benjamin Abdala chama de
macrossistema/microssistema (1986, p.16) em língua portuguesa e, por fim, trazer ao
debate de que forma essa poética do jovem escritor é concebida e lida.
Em se tratando de um autor desconhecido do público e da crítica brasileira, mais
conhecido em Portugal e Angola, cabe, deste lugar um pouco incômodo muitas vezes que é o
do intérprete-crítico, apresentar suas produções literárias e seus desdobramentos em outras
artes para o leitor deste trabalho no Brasil. Assim como nos lembra Rita Chaves,

não nos parece gratuito o fato de pelo menos três dos maiores poetas
angolanos da contemporaneidade também se destacarem no campo de outras
artes. Costa Andrade, Henrique Abranches e Ruy Duarte de Carvalho trazem
para o domínio da literatura o legado da aprendizagem proveniente do
exercício de outras linguagens, notadamente artes plásticas e cinema.(...) No
momento, arriscamo-nos a dizer que o senso do concreto, plasmado pela
corporeidade do signo visual, pode contribuir de modo mais explícito para
que a poesia resista melhor à tentação de se reduzir a um mero exercício
metalingüístico que, muitas vezes, faz do poema uma ilha(...) (CHAVES,
2005, p.67)

Faremos um breve percurso por sua produção, para que em outros tópicos dessa
dissertação possamos traçar possíveis ligações com o projeto artístico e não só literário de
Ondjaki. Algumas informações foram tiradas dos catálogos de suas publicações ou sites das
editoras www.editorial-caminho.pt e www.bandaoriental.com.uy que o publicam, do site do
autor http://groups.msn.com/ONDJAKI/apoesia.msnw vem a maioria das imagens; outros
dados foram fornecidos por ele mesmo em entrevista69 feita por email. 70

69
Mantivemos nos anexos, quando a escrita é de Ondjaki, letras minúsculas diante de ponto final, por exemplo,
com o objetivo de ser fiel ao texto que nos foi enviado.
70
contos e crônicas do autor também podem ser lidos na íntegra em revistas digitais:
http://www.bestiario.com.br/9_arquivos/Amarela.html ,
http://www.bestiario.com.br/maquinadomundo/ed5/ondjaki.htm,
http://www.bestiario.com.br/3_arquivos/libelula.html e
http://www.revistavisaoonline.pt.
86

Ndalu de Almeida, Ondjaki, nasceu em Luanda Angola, em 1977, graduou-se em


Sociologia pela ISCTE, 2002, em Lisboa. Atualmente, é doutorando da Universidade Oriental
de Nápoles, com um projeto sobre as estigas utilizadas entre as crianças no contexto do pós-
guerra civil em Luanda.
Seu percurso artístico começa no teatro, em 1992, pelo curso de mímica em Luanda.
Em 1998, cursa a escola de teatro Os sátyros . Já em Lisboa, participou da peça O futuro
está nos ovos (Ostara grupo), apresentada em Lisboa e Seixal. Em 2002, participou da peça
Os carnívoros , com o grupo MISCUTEM, apresentada no ISCTE em Lisboa.
Quanto ao cinema, parece-nos que é ao lado da literatura uma das atividades nas
quais tem posto mais empenho: cursou um semestre do mestrado em Cinema, na Columbia
University NY. Escreveu em 1998 o roteiro da curta-metragem A Canoa ;
em 2004, episódios do roteiro de Sede de viver (Angola, 2005, TPA, TV pública). Ao fim
de 2005, foi assistente de direção do filme As cartas do domador , do cineasta e escritor
brasileiro Tabajara Ruas.
Desde 2005, dedica-se à produção e direção do documentário Oxalá Cresçam
Pitangas: histórias de Luanda (Ondjaki & Kiluanje Liberdade)71.

71
SINOPSE : Angola, 30 anos de independência. Três anos de paz. Capital, Luanda. Cidade construída para
600 000 habitantes. Actualmente com cerca de 4 milhões. Cruzamento de várias realidades e gente de todas as
províncias. A vida desta cidade são as pessoas. Que pessoas?Através de 10 personagens, mostrar formas
diferentes de viver e interpretar a cidade. Oxalá Cresçam Pitangas histórias de Luanda revela a realidade por
detrás da permanente fantasia luandense.10 vozes vão expondo com ritmo, dignidade e coerência, um espaço
ocupado por várias gerações e dinâmicas sociais complexas. Luanda ainda não havia sido filmada sob esta
perspectiva realista e humana: conflitos entre a população e a esfera política, a proliferação do sector informal,
as desilusões e as aspirações, o questionamento do espaço urbano e do futuro de uma Angola em acelerado
crescimento.10 personagens falam também das suas vidas, do seu modo de agir sobre a realidade, da música que
não pode parar. Aparece uma Luanda onde a imaginação e a felicidade defrontam as manobras de sobrevivência.
Onde a Língua é mexida para se adaptar às necessidades criativas de tantas pessoas e tantas linguagens.Este é um
filme sobre uma Luanda que recria constantemente a sua identidade: os dias, as noites e todos os ritmos da
cidade que não sabe adormecer.Luanda mistura fenómenos urbanos e rurais. O sector informal, sendo a grande
alternativa, agita o país e dinamiza as relações. Os jovens colocam diariamente a imaginação ao serviço da
sobrevivência e da felicidade, inventando formas de viver e sobreviver por necessidade e pelo gosto de se
sentirem vivos.Palco de arte, festa e alegria, em Luanda a tristeza e a felicidade convivem com a euforia. Os
casamentos são sempre festivos; os funerais nem sempre são tristes. Há um substracto intencional de felicidade
nas acções e intenções dos luandenses.A linguagem falada traduz um modo de pensar mais local e típico. Num
português carregado de calões e de adaptações, reflecte-se o modo interventivo de as pessoas agirem sobre a
realidade. Nos gestos e nas falas, aparece, pois, a fantasia que acompanha os ritmos do quotidiano.A cidade vive,
noite e dia, com música nos lares, nas viaturas, nas ruas. É possível ter uma vivência rítmica do quotidiano pela
importância que se dá à música e ao convívio.Com uma visão que acentua a esperança no futuro, Oxalá Cresçam
Pitangas histórias de Luanda é uma viagem pelas pessoas, pelas ruas e pelas histórias de Luanda.
"Eu considero Luanda a melhor cidade do mundo. Sempre desejei ter o meu filho aos 25 anos." Joel Dorivaldo.
"Todas as comunidades, por questões de conflito armado, estão aqui. Mas as pessoas ainda vivem, cada uma, a
sua Luanda. E isto por circunstâncias de sobrevivência."Cornélio Caley.
"Eu sou fortemente influenciado pela música dos anos 60, aqueles kotas desafinados mas que tinham uma coisa
sempre para dizer. Havia sempre uma mensagem."Mc K.
"Os adultos daqui todos os dias a partir das 4 da manhã saem. Vão para a cidade. Vão para as praças. As crianças
87

Tem intensa participação em encontros literários em vários países, de dois deles,


resultaram pequenos documentários: Faenas de amor, produzido a partir do Salão do Livro de
Gijón, Espanha em 2005 e Essa palavra sonho do evento Correntes d Escritas (2003)
realizado em Portugal.
Participou da Exposição Colectiva de Jovens Pintores (Lisboa, 1999) e realizou a
exposição Do inevitável em Luanda, Galeria Cenárius, em 1999. A seguir, selecionamos
trechos de textos para exposição e algo do que foi exposto:

entendo que o inevitável é o que acabou por acontecer. estas imagens são um
pouco assim: nasceram em desmomentos, sentadações.

há um fio entre elas: o pastel em si, alguns tons, alguns traços. de resto, o que
aqui se encontra são pedaços do lado avesso de um sonho. há, pois, imagens
obscuras, fortes, confusas até. quanto a isso, a pintura (ou o borranço) revela-se
um escape de libertação; uma oportunidade de auto-revelação.

algumas imagens vêm irmanadas com palavras. (...) também isso me foi
inevitável."

[ Ondjaki/dez/1999]

(universo) porque a poeira etérea flui de acordo com


o coração desacordado que salta. porque a cor
vermelha invoca o sangue, o sangue cansado se faz
negro. porque a espiral castiga e, de seguida, encanta.
ondjaki.

A exposição Pôr-do-sonho, a seguir exemplificada, veio para o Brasil em 2000, em


Salvador, Bahia (Casa de Angola) e também em Caxambu, MG; e a seguir para Galeria
Cenárius em Luanda.

é que ficam. As crianças é que fazem tudo."Irmã Domingas.


88

(plantas assim... foi capa da primeira edição de Momentos de


aqui , editado pela Caminho)

as línguas do escorpião

não careço de razão para exercer

ou proclamar

poesia.

antes uma mão, um giz riscando o quadro

um quarto

um tabuleiro de princípios simples

umas quatro portas avariadas.

para convidados, os bichos.

só os bichos.

(ondjaki)
89

Silêncio

eu disse palavra-paz?

adesculpe.

eu quis dizer momento-silêncio.

seja você a paz.

(ondjaki)

Ao iniciar-se pela escrita, em 1993,cria a Nganza Times, ainda em Luanda, revista


satírica, em parceria com os colegas de escola, com seis números.

Em 1999, recebe o primeiro lugar no Prêmio PALOP de


Literatura, promovido pelo Fundo Bibliográfico Europeu com o
livro de contos Momentos de aqui (2001), hoje em sua segunda
edição. Quem apresenta esta obra é Mia Couto, ressaltando
algumas características que se desdobraram ao longo de
produções posteriores: a inventividade aliada a sutilezas das
construções lingüísticas coloquiais, bem como a diversidade de
avôs, crianças, padres e até micróbios de uma literatura
fantástica.

Já em 2000, publica oito poemas sob o título Palavras desaguadas em uma antologia
bilíngüe chamada Agua en el tercer milenio, edições Pilar e Bianchi Editores, pela mesma
editora na Antologia Multilingue, publica o conto A freira.
90

No mesmo ano, publica Actu sanguíneu, em


Luanda pelo INIC, livro que recebe menção honrosa do
Prêmio Literário António Jacinto.

Bom dia camaradas (2000), editado pela Chá de Caxinde em Angola, é a primeira
experiência em prosa ficcional,editado em Portugal pela Caminho ( 2003), seguida de
tradução para o francês ( pela editora suíça La Joie de Lire, 2004) e em espanhol ( pela
uruguaiana Ediciones de la Banda Oriental, 2005), está em curso uma tradução para o alemão.
Em 2006, a editora Agir publicou a edição brasileira, já em segunda edição. Um dos
aspectos da obra é o término de uma situação política: o fim da guerra - que nas últimas
páginas nos é anunciada pela Rádio Nacional. Ao som da chuva-renovação, a personagem-
menino-narrador vê cair as águas da fecundação sobre o quintal- jardim de sua casa,e
mesmo diante da solidão de quem tenta construir e sorrir sozinho, dá-se conta do ser-
identidade cujas raízes já são profundas; com esse espírito, ao terminarmos a leitura de Bom
dia Camaradas temos a impressão de que o título grita um imenso vocativo à nação por
meio da ficção.
91

Em 2002, lança O assobiador, com tradução para o


italiano (2005) e tradução sendo elaborada em inglês. O que
nos chama a atenção em O assobiador são as delicadezas da
narração com cronologia entrecortada, criando certas
expectativas típicas da tradição novelística: os fantásticos
sons vindos de um desconhecido vão enlaçando toda uma
comunidade que estava adormecida em seu próprio
cotidiano. Neste trabalho, reafirma-se a qualidade do autor
em criar personagens -tipos, que, ao longo da narrativa se
transformam em seres densos e profundos.

De 2002, é o livro de poesia que escolhemos


analisar: Há prendisajens com o xão, já em sua
segunda edição em Lisboa pela Caminho e em Angola
pela Nzila.

Obra coletiva em que está presente é Tração a Poemas e uma Corda , edição
bilíngüe lançada na Espanha em 2003, junto com Nina Reis (Brasil), Roberto Bianchi
(Uruguai), Ángela Ibáñez (Espanha)
92

Em 2004, lança o romance Quantas madrugadas tem a noite, que também tem em
curso traduções para o italiano e inglês. É uma obra divisória e marcante na produção de
Ondjaki. A estória se passa em uma noite, em um bar de Luanda, nos dias de hoje; é
permeada por tipos construídos com excelente humor, dentre eles um morto que não
consegue morrer em paz. O trabalho com a linguagem coloquial, que pode à primeira vista
nos confundir, junto às marcações de falas das personagens, é um bordado minucioso,
artesanal, que exige fôlego. Há de imediato, para o leitor brasileiro, grandes identificações
pelas referências que o narrador faz, desde personagens de TV até situações culturais.

Também em 2004, entra por um novo viés, com a obra


infanto-juvenil: Ynari a menina das cinco tranças, com
ilustrações de Danuta Wojciechowska, a estória trata de uma
menina que semeia a paz por meio da palavra.

Há, ainda uma produção desenvolvida em um blog do autor,


http://luandaminasluanda.blogspot.com/ , em parceria com Paulinho Assunção, escritor
mineiro. Bastante dinâmica, pois pode- se acompanhá-la à medida em que a estória da
viagem, em forma de diário, se desenrola, como o fragmento - exemplo:

Luanda-Minas-Luanda

Anotações de uma viagem feita por dois barcos a certa região secreta do Atlântico,
entre Brasil e Angola, entre Minas Gerais e Luanda. Um barco (de nome Estrela-do-
Mar) partiu da África, o outro (chamado Euzebel) partiu da América.
93

Em 2005, publica E se amanhã o medo, livro de


contos, que recebeu os prêmios Sagrada Esperança em Angola e
Antonio Paulouro em Portugal; com tradução sendo feita para o
espanhol. São textos mais curtos que provocam no leitor uma
sensação de incômodo pelos deslocamentos que nos
proporcionam os narradores.
As palavras de Pepetela, na contracapa de E se amanhã
o medo, apontam para o significado literário deste jovem
escritor:

De obra para obra, este autor multifacético, que ensaia a poesia, a


prosa e a pintura, mas que sonha com o teatro e com o cinema, tem mostrado
maior firmeza e maturidade. E tem aquilo que muitas vezes infelizmente se
perde com os anos de trabalho permanente, o prazer da escrita e da
descoberta. O nosso autor tem também aquilo que distingue os pioneiros, os
desbravadores de novos caminhos, o gosto pelo risco. Esperemos que saiba
sempre aliar o estudo e a pesquisa com o sentimento de prazer, que fornece a
frescura e a alegria a um texto. Ondjaki é um jovem que escreve uma ficção
viçosa e jovem. Espero que mantenha esse viço e juventude quando tiver
oitenta anos e atrás de si uma parte uma prole de cem obras sempre.
Inch Allah.
94

ANEXO B

Entrevistas com o autor

Para completar a apresentação do autor, seguem três entrevistas72, a primeira


concedida por email, entre dezembro de 2005 e fevereiro de 2006, a fim de esclarecer um
pouco mais sobre o projeto poético em questão; a segunda a I. Cori, discute as obras do autor
de uma maneira geral e terceira concedida a A. Ualibo, por email em 2006, sobre Há
prendisajens com o xão:

1. Entrevista concedida a Andrea Cristina Muraro:

Andrea- A primeira página de prendisajens : mastiga um alguém cuspindo-o a si mesmo


ou mesmo o poema Chão sempre me remetem a uma escritura antropofágica . Minha
impressão é distorcida? Se tivesse que se descrever para uma identidade literária, que
perfil traçaria?

Ondjaki- Mastigar um alguém é mastigar todo o passado e o presente dessa pessoa. Há uma
nota no início que refere que o livro é para quem se autoriza a repessoar-se, redescobrir-se;
mastigar seria deglutir, destruir o já feito, o já visto, e o resto é descoberta; cuspir é o
resultado dessa ruminação.
Se eu tivesse que me descrever para uma identidade literária, seria uma aflição. há pistas, há
coisas que vamos vendo em nós, e sobretudo no nosso trabalho, mas sei pouco disso que seria
a minha identidade literária. é uma descoberta constante, e não sei se quero chegar a descobrir
isso, é um trabalho constante, refazemo- nos; vamo-nos refazendo...

A_ Outro aspecto interessante no prendisajens é uma certa necessidade de organizar


mundos com os abecedários aos avessos, marca que me faz identificá-lo com a geração
anterior (embora ainda escrevam) em Angola e não com a Brigada Jovem, por exemplo. Até
que ponto isso é plausível?

72
Três outras entrevistas com o autor, uma do Jornal das Letras :MARTINS, Maria João. Revista Visão on line,
Lisboa, julho de 2004. Disponível em <http://visaoonline.clix.pt/default.asp?CpContentId=35163>. Acesso em
30 de junho de 2006;
as duas outras, feitas para publicação durante o lançamento da edição brasileira de Bom dia Camaradas,
durante a FLIP/2006, por : BRASIL, Ubiratan. As diversas vozes libertárias. O Estado de São Paulo, São
Paulo, 13 de ag. de 2006, e por: MILLEN, Manya. Contar histórias ajuda a lamber feridas. O Globo, Rio de
Janeiro, 27 de jul. de 2006.
95

O- Não diria que foi necessidade... Foi poesia também. e a brincadeira de pôr uma espécie de
diccionário, permitia-me estender um pouco mais a poesia, explicá-la, sim, mas ainda em
poesia. e pôr o diccionário por ordem alfabética contrária era a rebeldia que aquele
diccionário me permitia. não o fiz para me posicionar nalguma postura geracional, nem para
me opôr a outra. Na verdade, foi uma coisa só minha, inerente ao próprio processo de
construção (e descoberta) do livro.

A- Observando sua trajetória nos últimos dois anos, é possível perceber que suas
experiências além- literatura: teatro, aquarelas ,e principalmente cinema já devem ter criado
raízes em suas imagens poéticas;além disso, tua formação em Sociologia e o fato de sair
de Angola e retornar com uma certa freqüência. Tudo isso somado ao fato de que também
discorre pela Internet, como no blog Luandaminasluanda . Essas simultaneidades são um
xão , estratégia, engajamento artístico?

O- É mais uma libertação. a minha estratégia literária, se a tenho, é cumprir os destinos e as


urgências da minha imaginação. da minha vontade de contar. em prosa, conto, poema,
literatura infantil, bilhete-postal, bilhete-blog, carta de verdade, email, desenho ou telefonema;
estar vivo é comunicar.
Claro que, em literatura, outros processos aparecem e se fazem cumprir; a coerência
estética, que vem de dentro, dos recursos que o autor tem ou criou; as intenções, sim, mas não
num sentido tão engajado. ou melhor, não é engajamento, é aquilo que em mim é espontâneo,
necessário. Observo, apreendo, incorporo e crio.
Esse "xão" plural é um quintal onde posso explorar, testar e acarinhar a minha
sensibilidade. Depois de freqüentar tudo isso, escrevo. E vou crescendo assim, mesmo que
seja por dentro só.

A- Já me disseste que Ynari terminou de ser escrito quando do fim da guerra.


Prendisajens é editado no ano em que ela termina. O que esse tema representa no
conjunto da tua produção?
O- O tema da guerra nem é intencional, ele acaba por ser natural. Aparece quando um
autor menos espera, ou então deixamo-lo estar inerente às coisas que são para ser contadas
quando o que vamos contar se prende à realidade angolana. É um tema imanente.
Visceral.
Não tenho presente que a guerra chegue à minha poesia. A não ser uma guerra interna (no
caso de actu sanguineu ), que é coisa para durar uma vida ou mais.
O tema da guerra para mim representa o material necessário para muita da reflexão que
terá de ser feita em Angola, agora e no futuro. Seja em que área for, literária ou não. É e
96

será uma espécie de textura da nação ainda por alguns anos, e é forçoso que saibamos
cicatrizar essa ferida sem fingimentos e sem pressas de anunciar, a nós ou aos outros, que
toda a dor já passou. Qualquer nação, enquanto corpo social, leva décadas a sarar e se
recuperar de um conflito com a multiplicidade e a dimensão que o nosso teve.

A- A ordem de lançamento dos teus livros é a ordem de escritura? Alguns foram escritos
simultaneamente?
O- Infelizmente não tenho tudo apontado. O prendisajens seguramente que terá sido
escrito em simultâneo com outros projectos, pois os poemas e os contos são coisas que
vão acontecendo, saindo.

A- Como, quando e onde foi o tal curso de escrita criativa que fizeste?

O- Foi em Lisboa, num Instituto, num ano em que devido a extravios de processos, fiquei
sem estudar. Fui avisado desse curso e fui fazê-lo.
Durava 2 meses, e foi uma maravilha. O professor, formado em antropologia, mas que
dominava bem os grandes autores do conto (desde Poe a Borges ), disse-nos que não nos
ia ensinar a escrever. Se fosse possível, o que nos queria transmitir eram técnicas de
constrangimento . Foi a ferramenta que alguma vez me deram para lidar com o universo
conto. Evoluí muitíssimo nesses dois meses. Eu já escrevia e até já sabia escrever, mas os
constrangimentos mostraram-me caminhos e soluções. Deve ter acontecido em fevereiro
de 1996.
97

2. Entrevista concedida a Isaquiel Cori :73

Pergunta - Como e porquê Ondjaki ?

Resposta - Ondjaki é o meu pseudónimo literário, e escolhi-o porque era para me chamar
Ondjaki. A dada altura, os meus pais mudaram de ideias e deram-me outro nome. Quando
comecei a aparecer publicamente optei por esse pseudónimo.

P - Quando, onde e em que circunstâncias despertou para a criação literária?

R - Penso que despertar para a criatividade literária é um processo gradual, e, na maioria das
vezes, um processo dependente de outros processos internos que têm a ver com a criatividade,
a maturidade emocional, a sensibilidade, etc. É difícil, portanto, apontar um momento
concreto. Parece-me que sempre fui uma pessoa fascinada por estórias, sempre gostei de as
ouvir e de as recriar. Mais tarde, talvez aos 17 anos, descobri que me dava prazer dar-lhes um
formato escrito, reinventá-las com alguma coerência.

P - Quais foram (são) as leituras que se terão revelado decisivas na sua formação cultural e
artística?

R - Fica difícil citar nomes, no entanto é importante referir que as leituras são muito
importantes, muito mais do que aquilo que se usa imaginar. E digo isto não só porque as
leituras nos permitem em certa maneira interagir com os textos de outros, como nos dão ainda
acesso ao seu imaginário. E frequentar livros é frequentar mundos, é viajar. E a diversidade
faz crescer, se bem apreendida. Penso que hoje em dia se descura um pouco a importância da
leitura na formação pessoal do indivíduo. Parece que os escritores e os estudiosos é que
devem ler livros. Não concordo com esta visão, penso até que faz parte da "boa educação" ter-
se em atenção os hábitos e os tipos de leitura. Isto para dizer que praticamente toda a leitura é
decisiva na formação cultural das pessoas. Mesmo aquilo que não se quer mais ler, mas para
rejeitar é preciso ter experimentado. Pessoalmente, todos os autores com acentuado estilo
próprio e sem medo de "voar" me foram muito importantes. Por exemplo, Gabriel García
Márquez, Guimarães Rosa, Kazantzakis, Luandino. Mas também Clarice, Manoel de Barros,
Manuel Rui Monteiro, Mia Couto, Paul Celan. Ficam muitos por dizer.

P - Um facto marcante da sua escrita, tanto na prosa como na poesia, é o gozo, o prazer
mesmo de escrever, mais do que a veiculação de mensagens, como se o acto de escrever, para
si, fosse sobretudo uma via para a descoberta de novos modos de dizer. É, realmente, assim
que concebe o exercício da escrita?

R - Não, não é realmente assim, porque a veiculação de mensagens preocupa-me e, penso eu,
é quase inerente ao acto da escrita. E uma escrita que contenha em si determinado tipo de
mensagens não anula o "prazer de escrever", ou o exercício da escrita enquanto desfrute do
potencial das palavras. Sem dúvida que tenho uma relação "libertina" com as palavras e com a
língua portuguesa em geral. Penso que devemos mexer na língua, tendo em conta os
referentes gramaticais, mas dando-nos a liberdade de exercer uma certa "pressão cultural" à
língua portuguesa. A língua portuguesa já é também língua angolana, brasileira, cabo-
verdiana, etc. O "portuguesa" é já o nome, a designação desta língua. Portanto, também
73
disponível em < www.uea-angola.org/entrevistas
98

concebo a escrita como espaço de criatividade, de reinvenção de um modo de estar que é


linguístico. Mas as mensagens estão lá, aparecem de dentro para fora. Mesmo a "brincadeira
linguística", o "atrevimento", pode conter em si muita mensagem.

P - Você pertence a uma geração que nasceu já no pós-independência. Digamos que você é,
inteiramente, fruto da independência. Ou o período anterior à independência ainda teve ecos,
ressonâncias, na sua educação e na sua mundividência?

R - Eu, pessoalmente, não me considero fruto da independência, nem sei se isso existe
enquanto designação para um grupo de pessoas. Nasci de facto após a data da independência,
e sim, julgo que isso tem implicações na minha formação e no meu processo de crescimento.
Contudo, sinto que nós, os angolanos, vivemos ainda inseridos num ciclo que é muito vasto
no tempo, para frente e para trás, e que engloba uma série de eventos por sua vez
influenciados ainda pelo processo de colonização, pela inexistência de um correcto processo
de descolonização, pela guerra anti-colonial e pelas nossas guerras internas. Nascer antes ou
depois da independência é apenas falar de uma data, pois todos somos ainda influenciados por
todos os eventos relacionados com a independência. Devo dizer que o período antes da
independência, na minha opinião, tem grande influência na educação e na formação das
pessoas da minha geração.

P - Uma questão que tem atravessado ultimamente a literatura angolana é a da utilização


literária do português. Uns defendem que se deve escrever num português correcto outros
advogam que já existe um português angolano ou angolanizado que deverá servir de base
aos textos literários. O que pensa sobre isso?

R - Penso que um "português angolano" não é necessariamente incorrecto, portanto, é uma


questão de escolha da estética e da tendência literária de cada um. Também penso que se pode
escrever num português carregado de características culturais específicas e que não colida
com as regras básicas do chamado "português clássico". Não se pode fugir à regra sem
conhecer a regra, isto é uma verdade desde Guimarães Rosa, Luandino, Mia Couto... Mas é
uma verdade sobre a estética também, qualquer estética, incluindo a linguística. É preciso
conhecer para quebrar com qualidade. Agora, é preciso ter em atenção quem vai estudar este
tipo de textos e a que grau de ensino mais se adequa. Possivelmente, um texto com
demasiadas "excepções linguísticas" não é muito apropriado para uma camada estudantil
muito jovem, ainda com um caminho longo pela frente no tocante ao estudo e interpretação
dos estilos dentro da própria língua portuguesa.

P - A sua geração nasceu e ganhou a maioridade em pleno estado de guerra. Agora veio a paz.
Que significado profundo tem, para si, o alcance da paz no país?

R - Tem o significado que eu julgo que terá para qualquer cidadão que gosta do seu país e da
sua gente, é um momento magnífico, principalmente para aqueles que há anos vêm sofrendo
na pele os efeitos de todas estas guerras. É uma oportunidade de pensar que a realidade
angolana finalmente está dissociada da guerra e que isto vai propiciar que as pessoas cresçam
(as crianças e os adultos) num ambiente diferente, e que a política do país se ajuste e se regule
por outros índices que não os da guerra. Penso ainda que a ausência de um clima de guerra
permitirá o surgimento de diferentes "movimentações sociais", o que permitirá o combate à
desorganização e à corrupção. Mas, acima de tudo, estou contente porque as pessoas estão
livres de um mal terrível que nunca é opção para ninguém. A guerra é uma tempestade que
99

nunca ninguém quer e que todos desejam que passe o mais rapidamente possível. A nossa
tempestade durou tempo demais.

P - No contexto presente e futuro da reconstrução e reconciliação nacionais, que papel, na sua


opinião, deverão desempenhar os escritores?

R - Não estou certo. Os escritores podem ser vistos como seres lúcidos e intelectualizados
(supostamente...), mas é preciso não esquecer que são cidadãos comuns com um certa
habilidade artística. Os escritores devem desempenhar o mesmo papel que qualquer cidadão
angolano, neste momento preciso da História do país: esforçar-se por contribuir para a
evolução e melhoramento da sociedade. Sei que é uma visão utópica, pouco realista se calhar,
mas é a minha opinião. Estamos numa fase crítica, do pós guerra, em que é preciso muito
empenho individual de modo a que um eventual empenho colectivo seja posto em prática.

P - Pode dizer-nos dos seus projectos literários?

R - O meu "projecto literário" é escrever enquanto fizer sentido, isto é, enquanto eu acreditar
que tenho uma boa estória para contar, e que a escrevi bem, que vale a pena ser publicada.
Julgo que é muito difícil fazer isto, ao longo do tempo, com clareza e humildade, com justeza
e sentido crítico, mas vou tentar. Tenho algumas ideias pensadas, para romances e para
contos. Continuo a escrever poesia, embora não saiba ainda se a vou publicar ou não. E
continuo interessado em escrever livros que sejam interessantes. O resto, só o tempo dirá.

P - Já disse publicamente da sua propensão para o cinema. Já terá alguma coisa em mão?

R - Tenho algumas coisas pensadas para cinema, coisas próprias e ideias para adaptações de
materiais de outros autores. E estou, neste momento concreto, Setembro de 2003, a receber
formação na área do cinema. O que tenho em mão são ideias para documentários. Seria
importante documentar uma série de coisas que já se passaram e outras ainda que hão-de
passar-se no domínio social e político de Angola. E os documentários são menos dispendiosos
que os filmes, são mais acessíveis de serem produzidos. Espero pelo menos vir a fazer alguns
documentários interessantes.
100

3. Entrevista concedida a Abderrahmane Ualibo sobre Há prendisajens com o xão.

-Na epígrafe do teu livro dizes que aprendizagens é uma palavra que ramifica e
desramifica uma pessoa Foi para te ramificares ou desramificares que escreveste esse
livro?
Acho que foi para entender se era mesmo possível desramificar. Devo esclarecer que escrevi
essa nota de abertura, muito depois de o livro estar concluído. Mas não era para mim esse
alerta, era para outros. Os eventuais leitores.

-Na mesma página citas (outra vez ) o Ionesco, dizendo sei porque escrevo . Posso
perguntar o porquê dessa afirmação emprestada a outro autor?
É um pouco verdade que nessa altura descobri o prazer de escrever como bem me apetecia.
Fui muito livre e solto ao escrever esse livro. Corrigi-o, como faço com as outras obras, mas o
processo de criação foi muito espontâneo, por se tratar de poesia, e por se tratar daquele tipo
de poesia.

-Que tipo?
Uma poesia que não era tão interna quanto a do livro actu sanguíneu .

-Como interna ? Esta não vinha de dentro?


Sim, vinha de dentro, obviamente, mas não era sobre o dentro . Era sobre outros de mim, era
sobre visitas à natureza, aos bichos e, mais do que isso, era sobre visitas imaginadas, não
estive assim em tanto contacto com a natureza. Foi uma visita conseguida com cheiros e
bichos que fui descobrindo dentro de mim. Eram dias de um exercício novo, experimental: ir
buscar coisas como se fossem recordações, muitas delas, eu sabia, que eu nunca tinha vivido.
Ou talvez as tivesse vivido, sim, mas num outro formato. Não me é muito fácil explicar.

-Referes-te aos bichos? Grilos, formigas, pássaros?


Sim, mas também à hiena, a alforreca, a lesma, a libélula.

-As lemas e as libélulas, julgo que estão em Bom dia, Camaradas


De certo modo, a infância em Luanda é com bichos, pequenos bichos de jardim. As lesmas,
sim, o meu jardim era cheio de lesmas, gafanhotos, caracóis e lagartos. Por isso digo que
101

algumas dessas coisas eram revisitações vividas em formatos menos poéticos.

-Mas é também um livro de revisitações ao presente, isto é, de algumas dores. No poema


que sabes tu do eco do silêncio aparecem frases que, se forem assumidas pelo autor, são
exposições de momentos difíceis. Isso era o presente ou não?
Há momentos difíceis ao longo da vida toda. Talvez, sim, alguns momentos tenham
provocado algumas reflexões que depois resultassem em poesia. Mas mesmo esses aspectos
mais pesados chegaram a este livro com alguma leveza. Era essa a novidade: a leveza. Os
textos fluíam e, sobretudo, não me incomodavam.

-tens textos que te incomodam?


Sim, tenho. A poesia do livro actu sanguíneu incomoda-me por alguns referentes que,
mesmo codificados, ou camuflados, sei reconhecê-los.

-No poema reencontro com gotas , afirma que sofrimento é uma inexplicabilidade .
solidão é uma esteira onde se evite cochilar . E mais: paz é uma sapiência . São recados
que escreve para si, para os outros?
Não penso que sejam recados. Não se escrevem recados nos poemas. Para mim a poesia
continua a ser feita a partir de momentos. Poderão ser momentos mais ou menos instintivos,
mas gosto de sabê-los mais espontâneos que planificados. Já a correcção do poema é um
pouco mais racional. É a reconstrução do texto no seu ritmo, na sua lógica, na sua estética.
Mas um recado,penso que não.

-existe um influência, até assumida por ti, das obras de Manoel de Barros. Como foi ter de
reconhecer isso?
Foi muito rápido. Porque tudo aconteceu com ampla simplicidade, isto é, não foi nada
complexo o processo. Tinha uma coisa muito nítida ao longo desses dias: escrevi como se
fosse uma urgência, e o que saiu, foi sincero. Então o que saía tinha aquela textura do mais
velho Manoel, e eu aceitei isso. Não me intimidou, na altura. Não parei de escrever. Não
parei, sobretudo de sentir. É que estes são poemas sentidos, suados, acontecidos. E mal pude,
enviei-lhe todo o material.

-chegou a pedir-lhe que fizesse um texto?


Sim, embora hoje reconheça que não devesse ter feito isso.
102

-porquê?
Posso ter sido indelicado, não sei. Mas não resisti.

-era a aprovação que lhe pedia?


Não tanto a aprovação, mais o privilégio. E a companhia. Era muito isso: assim como invoco
autores para as epígrafes dos meus contos, ter algo do Manoel de Barros no meu livro seria
como recebê-lo um dia para jantar em casa. Era isso. Mas entendo que as coisas possam ter
sido vistas de outro modo. Não faz mal, estou muito satisfeito porque até a carta que lhe
escrevi foi muito natural. Era uma carta tímida e muito respeitadora, acho que isso ele terá
entendido sim.

-lembra-se da carta, dos conteúdos?


Não, não a tenho muito clara. Lembro-me que falava do livro, e acho que eu referia que este
livro, aprendisajens, tinha nascido depois de eu ter lido o retrato do artista quando coisa .

-quanto tempo depois?


Alguns meses. O livro (retrato) foi-me emprestado pela Ana Paula Tavares. Fui à Itália pela
primeira vez na minha vida, e levei o livro. Já no avião ia louco focinhando um Manoel de
Barros pela primeira vez. Agora imagine o que é ver Florença, Veneza, Roma, Siena,
Peruggia, acompanhado dos versos do mais velho Manoel. Eu não sabia se os meus olhos
haviam de acreditar no que liam ou no que viam. Foi uma impressão muito forte e eu tinha
ordem para não escrever durante esses dias.

-como assim?
A Ana Paula tinha-me avisado: não escrevas poesia enquanto descobres Manoel de Barros. E
eu tentei.

-não escreveste nessa altura?


Nem um verso. Estive meses calado, fervilhando por dentro, a tentar entender que urgência
era aquela, que coisas os meus dedos queriam dizer. E depois cedi. Entendi que as lesmas
eram minhas, os gafanhotos, as reinterpretações de outros poemas já lidos. Mas os ritmos e
até quase os formatos, advinham da textura de Manoel de Barros. Ele tem uma voz muito
forte.
103

-há poemas com uma experimentação um pouco exagerada, eu diria, e outros em que vais a
uma simplicidade muito interessante, estou-me a lembrar do poema penúltima vivência .
Sentias esse contraste?
Como te disse, eu não quis, nunca, avaliar muito aquela poesia. Mas, como sabes, gosto de
poemas simples. Esse que referes é o meu poema preferido desse livro. Se os outros versos
fossem assim, teria um livro muito melhor.

- como seria um livro muito melhor?


Seria um livro com um ritmo mais amadurecido. Menos precipitado.

-há precipitação no prendisajens ?


Há. Há falta de amadurecimento. Mas isso ou era assim como foi ou talvez nunca tivesse
sido

-não o publicarias?
Se pensasse muito sobre ele, acho que não. Estaria ainda hoje na gaveta. Mas aconteceu ser
publicado e assumo-o. Assumo-o como um exercício espontâneo, e de muita sinceridade. Não
queria trabalhá-lo muito mais, porque alterá-lo demasiado também seria fazer um outro livro.

-o livro está cheio de dedicatórias pessoalíssimas, não sei se te incomoda falar sobre isso.
Escritores, amigos, duas sobrinhas, uma irmã e até uma estorinha dedicada a ti. Tinha de ser
assim?
Não sei. Mas foi assim. Os escritores, alguns deles também amigos, outros por saudade
impossível: tenho muitas saudades da Clarice, do Richard Bach, e nunca os conheci. Da
família também é usual ter saudades. E essa estorinha, não é dedicada a mim, é para eu
adormecer .

-essa estorinha chama-se a jangada, o passeador . Voltamos à água, às flutuações muito


presentes nos teus contos, e ideia de acalmia das águas. Tu és uma jangada ou um
passeador?
Se eu puder escolher, serei os dois. É que há alturas na vida para se ser passeador e portanto
seguir a viagem; mas há alturas em que necessitamos da pacatez da jangada. Eu sou, quase
sempre, mais passeador que jangada. Mas tenho o desejo de, ao longo do tempo, ir invertendo
isso.
104

-no poema mosca espera o terceiro pensamento há uma certa pacatez que incomoda o
homem. Não era suposto o pacato ser tranquilizador?
Sim, e a mosca desse poema, ela incomoda a pessoa por ser assim parada. Há ali um desafio,
tanto quanto entendi da mosca e da pessoa que ela incomodou. A pacatez das moscas, dos
bichos, às vezes faz-nos lembrar que somos intranquilos. Tantas vezes matamos um bicho que
está somente parado

-muitos dos poemas aparecem como fórmulas . Como ser formiga, como ser chão, como
aquecer os ouvidos, como perseguir um bicho no seu trajecto íntimo. São poemas para
sugerir caminhos?
Não foram concebidos com esse pecado (risos), mas é possível que sirvam para isso. Mas
acho que poderemos chamar a isso de descaminho , gosto mais. Mas deixa-me lembrar aqui
uma frase do Alexandre O Neill quando dizia que era necessário fazer bom e expressivo .
Acho que é isso que eu gosto de encontrar num poema: que seja um pouco expressivo
também.

-porquê que tenho a sensação que gostas menos deste livro?


Não se trata de gostar menos. Trata-se de ter, desde o início e até hoje, uma relação muito
estranha com ele. Não sei bem o que ele é. Não sei explicá-lo, como facilmente faria com um
romance, um livro de contos. Não sei explicá-lo. Vejo-o de modo diferente à medida que o
tempo passa, e é essa alternância da minha avaliação que me faz pensar que era talvez um
bom projecto para nunca ter sido publicado.

-o que farias com ele então?


Poderia mostrar às pessoas para quem ele foi escrito. Poderia corrigi-lo eternamente. Poderia
enviá-lo ao mais velho Manoel de Barros.

-há outros projectos desta natureza? Voltou a acontecer escreveres assim?


Sim, há um projecto chamado Um espanador de tristezas . Não é tão dentro do universo do
Manoel, mas faz lembrar. Está revestido de identidades e texturas semelhantes, mas é mais
longínquo aos formatos do prendisajens .

-vais publicá-lo?
Primeiro vou enviar aos amigos e corrigi-lo eternamente
105

ANEXO C
Conferências do autor

Seguem duas conferências do autor, cujo tema principal circula entre a construção da
língua e o diálogo com autores de língua portuguesa:

1. Outras margens da mesma Língua 74

[texto poético-dependente, com tendência para ser mais "instalação" que "texto" ]

Ondjaki

Porque a História também se faz ao contrário, o caçador quando pressente o perigo é tarde
demais e saiu já caçado, num golpe de futura sorte ou carnaval linguístico; e o oceano, quintal
vasto e multiplicador de margens, convida a viagens com direito a retorno melhorado e
banquete renovador. Depois dos gestos, a linguagem falada é a boca sincera dos sentimentos e
a cultura apanha boleia para ir mais longe, enfeitiçar outros mundos e mascarar-se de novos
conteúdos.

"( ) Ela não voltou a falar. Lava as chávenas com espantável lentidão. Suas mãos
acariciavam o vidro por onde eu havia bebido. Senti como se ela me tocasse os lábios e me
retirei nesse embalo de ilusão.
Me dirigi para casa, sem vontade de caminho. Demorei em coisas nenhumas.
Nisto, uma estrelícia, simples flor, me deflagra os olhos. O vendedor me cativa a atenção
agitando a crista laranja da flor. ( ) As mãos se ridicularizam com a intransitiva flor. Chego
a casa e a flor se extravaganta ainda mais. Nunca eu tinha encenado flor em jarra.
Sentado, frente a uma cerveja deixo entrar em mim a voz: preciso é de mulher. Necessito de
um acontecimento de nascência, uma lucinação. Careço de um lugar para esperar, sem
tempo, sem mim. Devia haver um feminino para ombro. Porque ombra era o nome único que
merecia o encosto daquela mulher."1

Depois de Língua conquistadora, a Língua conquistada virou raiz reprodutora - arma e


fogo artificial; embrião e simultânea gravidez.
E é sabido pelos mais-velhos que uma Língua grávida pode parir culturas, cores novas e
contornos imprevistos em pessoas humanas. E todas as grávidas levadas, e todos os séculos
extraídos e a terra sangrando em lágrimas de saudade, e todos os navios idos haviam de levar,
além de fomes e músculos, sementes de uma flor mestiça com condimentos de diferença e
criativa ramagem. Na fogueira do tempo, as chamas cercaram o lacrau, o lacrau picou o
próprio corpo, e o veneno circulou feito febre nova, nova temperatura, temperatura de uma
nova errância.

"Naquela hora em que os pescadores atravessavam o canal com seus apetrechos tão

74
comunicação lida na conferência, "A Língua Portuguesa: Presente e Futuro", realizada na Fundação
Calouste Gulbenkian, dias 6 e 7 de Dezembro de 2004, em Lisboa .
106

resumidos para virem fazer a aguada, o mar abria boca-réstia de sono ainda em maré baixa
a espreguiçar-se, sonolentamente, sob o sol sem nuvem. Esteira de dormir qualquer liturgia
mesmo de difícil, um esse porém afofalhado imenso de se apresentar sem vaga, na areia da
beira-praia, em desinteresse de pureza pisada de ilusão. Pois só a linha trémula, tão
empoucada de suave movimento, demarcava a aparente separação de diferença entre a terra
e o mar. ( ) Cheiros retirados à noite. Misturados. Essências de peixe. Néctares de algas,
plantas e coisa no ar como aroma de árvore e fruto da beira rio, amadurecido. Rascaldo ou
quê."2

Porque a História também dá golpes num corpo linguístico que, lá longe, é a sombra de
uma mesma imagem. As investidas políticas, e as de letras, e as sociais, e as mundanas, e as
imprevistas, numa dança alargada - e mesmo que controlada - libertam-se das correntes pré-
concebidas e o inesperado vence. O Kinaxixi com as crianças e os pássaros luandinizados,
vencem; um santo de pessoa como o Arnaldo Santos vence; o Pepe solta um cão entre os
caluandas e o cão morde a realidade; assim o cão do Honwana tomba mas a Isaura segue nos
nossos sonhos de criança; as crianças do Manuel Rui, depois da fogueira e das estrelas do
povo, só querem ser ondas; as mumuílas fazem transumância num poema da Paula; os olhos
do Mia brilham à passagem dos flamingos e o leite de cabra lá do Sul se entorna meio azedo
nas palavras do Ruy Duarte de Carvalho. E mesmo assim ficam nomes por celebrar.
A Língua, à velha maneira de Brecht, retira passividade às margens e intimida o rio a ser mais
plural; o rio que corria estreito e manso, agora caudaloso faz uso de uma rebeldia saudável.
Porque a natureza da água (da cultura) é mover-se, descendo o vale ou trepando a montanha,
em luta de vaivém ternurento com a vã pressão dos homens. E se a margem toca o rio, o rio
beija a margem numa dúvida aquática sem limite de exactidão.
As Línguas faladas e escritas, e as sonhadas, e as censuradas, nunca foram pertença de
ninguém. Afinal, o maleável não pode ser amarrado, e à força de tanto contacto, o original fez
da sombra verdade, e o resto também.

"O que ainda que ninguém que falou, ainda não existiu. ( ) O homem ainda não
descobriu a morte, muadiê. Se nem ainda chegou na lua, coisa-de-ver, quanto mais Com
morte eu dou-me bem, afirmei e não regresso. A senhora tumbandala não me assusta. O meu
medo só é o que o senhoro bem sabe - voz, cara e alma de gente não encontrar, o deserto
desumano, solidão de sozinho. Eu chego de dormir de luz acesa para fingir sol em meu
quarto. As trevas danam a alma."3

Nesse refluxo musical vindo de outras margens, há uma coloração que no tempo se espalha
devolvendo à Língua uma faceta adequada para enfrentar futuros.
À mistura estão as pessoas - que são as margens da cultura, e os destinos da Língua
revistos por aqueles que a manejam como utensílio quotidiano. Que esta linguagem seja, pois,
ferramenta e prazer, veículo seguro mas maleável; que as gerações vindouras nela vejam
molde aberto para memória e labor criativo. Porque bonitas são as Línguas depois de
manejadas e celebradas pelas pessoas.

1 Mia Couto, in "Contos do nascer da terra", Caminho, 1997, p.123.


2 Manuel Rui, in "Rio Seco", Cotovia, 1997, p.9.
3 Luandino Vieira, in "João Vêncio: os seus amores", Ed. 70,1987.
107

2. Oralidade e escrita: dançar com as palavras quietas75

Falta-nos descobrir o caminho humano para o futuro [ ]


Mia Couto

José Saramago diz, no seu mais recente romance, «saberemos cada vez menos o que é
um ser humano»; eu gostaria de apostar que saberemos cada vez menos sobre aquilo que uma
vez julgámos ser uma Língua pura. Assistimos, presentemente, à mestiçagem da Humanidade,
em todos os seus sectores, mais ou menos políticos, mais ou menos culturais, e as Línguas de
falar e de escrever não fogem a isso.
Assim é que as manobras e investidas sobre as Línguas, dando-lhes um sentido e até
uma textura de plasticidade, vão ganhando mais respeito e coesão. A fuga à norma, ao sentido
clássico de produção literária, é vista como caminho possível, nem mais nem menos válido
que as outras opções estéticas. Uma destas vias, é a escrita que se revê num registo muito
próximo daquilo que se poderia chamar de oralidade, ou o uso quotidiano da Língua, das
Línguas, quando as pessoas se expressam num sentido mais criativo. As palavras do poeta
brasileiro Manoel de Barros apontam para isso mesmo:

Respeito as oralidades.
76
Eu escrevo o rumor das palavras.

O escritor, este ou outro, aproximando-se e reivindicando o rumor das palavras ,


mais não faz do que aproximar- se da sua maneira de interpretar, incorporar e usar uma
linguagem própria, portanto singular, para expor em formato compreensível a sua arte. Os
escritores aproximam a sua escrita de um tom mais coloquial, ou que vão beber à oralidade
quotidiana inspiração para a sua oficina, procuram traduzir, a meu ver, conteúdos tão internos
quanto os escritores que o fazem em formatos ditos mais eruditos , mais consoantes com a
clássica maneira de escrever em Língua Portuguesa. Quem ouve, e gosta de ouvir para depois
escrever, tem, usualmente, uma relação umbilical com a Língua falada, com a Língua de se
dizer , de ser vivenciada sem se isolar dos acontecimentos pessoais ou colectivos do

75
Conferência proferida pelo autor no Rhode Island College, EUA, em abril de 2006.
76
Manoel de Barros, in «Livro das Ignorãnças», Record, 1993.
108

teatro da vida. Estes escritores buscam, arriscaria dizer, mexer no corpo da Língua ,
procurando dar-lhe novos sentidos, imprevisíveis sonoridades, pressentindo nos parágrafos
uma voz que também seja a sua, a do escritor.
Vinda assim, directamente da vida mundana, esta escrita quase falada traz em si uma
força oral, quase sempre sugerindo um ritmo e um tom musical:

como os dedos dela no piano faziam deslumbrações quase de conversa com as


violetas que abriam para as estrelas daquele céu sempre tecto protector mesmo
quando chovia chuva teimosa numa cantata de muitos dias e o som dos grilos sempre
embriagado no luar tão fresco do planalto [ ]. 77

Não se trata porém, de fixar materiais da oralidade. Talvez, isso sim, se trate de
reinventar essa oralidade, fixando em texto algumas das suas energias de coisa para ser
falada , imprimindo nessa escrita plástica a textura de quem a produz, ou seja, demarcando
esses materiais legitimamente literários com formatos personalizados. Nestes formatos,
aparece uma estética que se afasta das regras e cede aos instintos e vontades do escritor. Este,
mais do que planificar um resultado, quer ser seduzido por hesitações estéticas e libertinagens
acontecidas. Partindo do que é quotidiano e colectivo, o escritor quer, talvez, descobrir um
pouco de uma verdade que de tão interna seja só sua. Como diria, em versos, o mestre
Guimarães Rosa

Não agüento depor


nem um tijolo a mais
na minha torre,
e já esqueci as línguas
dos outros homens.
Quem me dera
78
não perder a minha própria língua!

Para alguns autores habituados e interessados em trabalhar, na escrita, com um tom e


uma palavra que é falada , o resultado é, pois, uma dança de palavras quietas. Porque é
próprio da oralidade que a erudição se perca. O sentido prático da linguagem diária,
englobando tendências várias e criando novos formatos que derivam da mistura cultural de
todos os quotidianos globalizados (as novelas brasileiras, os filmes americanos, os programas
da televisão portuguesa, e também as telenovelas angolanas), não deixa muito espaço para

77
Manuel Rui, in «O manequim e o piano», Cotovia, 2005.
78
João Guimarães Rosa, in Magma , Nova Fronteira, 1997.
109

uma linguagem mais cuidada. Nesse belo descuido , o improviso ganha força e valor. O
texto não busca perfeição mas sinuosidade:

imagino em Benguela mulheres afamadas perfume de coco sempre a sereiar das


ondas onduladas na areia da praia que o beijo delas por isso salga tanto de mar na
boca [ ]. 79

Será, então, o escritor, um tradutor da oralidade? Poderá o escritor fixar a oralidade no


que ela contém de livre arbítrio e de captação constante? Penso que não. Reinventando a
oralidade, a escrita acaba por criar um código novo não hermético cuja raiz existiu num
tempo e espaço específicos. A oralidade não é fonte directa, exclusiva matéria-prima de
trabalho, mas tão somente ponto de partida, referente privilegiado originário de uma estética
que se há-de reconhecer em algumas escritas.
Havendo estética intencional, parece-me que é a do instinto. Creio que o instinto
trabalhado, retocado e intelectualmente alimentado, é o denominador comum de todo o labor
sério em torno da palavra. trata-se, diria Manuel Rui, de usar a palavra

como elemento da criatividade mais inicial, a palavra como princípio de se conhecer


a existência. 80

O escritor, enquanto artista e esteta, procura aperfeiçoar as ferramentas da sua


disciplina. É um ser atento, receptivo, racional. Mas é também um animal de buscas, e pode
ser visto como uma ponte entre aquilo que nos acontece e aquilo que foi criado como se
tivesse de facto acontecido. O escritor é, nisso concordo com o poeta angolano Ruy Duarte de
Carvalho, um

81
arquitecto do simbólico e mestre de símbolos antes de mestre de técnicas .

Poderá também ser visto como um arquitecto dos sentires e, assim, uma escrita que
viva de coisas sentidas, ouvidas, assimiladas para aparecerem sob novos formatos, pode
resultar extremamente verdadeira. Porque o uso da oralidade na escrita literária resulta não
como uma bengala ou mera ferramenta , mas sim quando constitui uma sugestão tão
interna que se transforma numa urgência da estética literária. Isto é, a oralidade e a

79
Manuel Rui, in «O manequim e o piano», Cotovia, 2005.
80
Manuel Rui Monteiro, in «Da escrita à Fala», texto escrito especialmente para o Ciberdúvidas, 2004.
81
Ruy Duarte de Carvalho, in «A câmara, a escrita e a coisa dita », INALD, 1997.
110

reformulação de aspectos orais resultou em Guimarães Rosa, em Luandino, em Manuel Rui


ou Mia Couto, porque, parece-me, mais do que uma opção era uma necessidade inequívoca.
Ou chamamento.
No livro O Manequim e o Piano , de Manuel Rui, um personagem diz a outro aquilo
que talvez seja uma inconsciente confissão do escritor angolano:

um livro eu gostava de escrever como a gente se fala sem essa porra das pontuações
aliás imagina eu a conversar contigo e dizer vírgula ou fim de comunicação ou
parágrafo sabes que para mim um livro devia ser falado! 82

Será este um dos sonhos ou pesadelos de quem escreve num registo que sugere e
rectifica a oralidade? Um livro falado? Fica a questão.
Na verdade, as Línguas Portuguesas faladas e escritas nos mais variados pontos do
planeta o que fazem é, a partir de uma matriz que ainda está muito clara e presente,
transformar uma Língua em várias. As tendências, os regionalismos que se vão adicionando à
Língua-padrão, os refluxos de mestiçagem linguística e sonora, todos estes fenómenos estão a
transformar a Língua Portuguesa em variadas Línguas Contemporâneas, mais permissivas,
mais plásticas, mais irreverentes. Talvez mais adaptadas ao decurso da parte da humanidade
que vive e sonha em Português livre. Vai havendo e é assim o fluir da História um
desaperfeiçoamento da norma, mas poderá ser verdade que

nesse desaperfeiçoamento aparente, vamos aperfeiçoando a vida da língua, das falas


e das escritas. 83

Não há o que recear. A escrita, no sentido da literatura ficcional, em prosa ou verso,


em discurso pensado ou improvisado, ela é sempre um exercício da intimidade intelectual e
cultural de cada um, e deve ser, como diria Ruy Duarte de Carvalho,

um exercício de modernidade, precisamente, que encontra nas estruturas profundas,


reveladas por essa expressão, a via para actualizar, tornar acto, uma atitude tão
antiga quanto o próprio tempo do homem a atitude poética no exacto momento da
escrita, no aqui, no agora, hoje mesmo. 84

A escrita, tenha ela a textura que apresentar, advém de opções individuais e de


coerências próprias, o mais das vezes.
82
Manuel Rui, in «O manequim e o piano», Cotovia, 2005.
83
Manuel Rui Monteiro, in «Da escrita à Fala», texto escrito especialmente para o Ciberdúvidas, 2004.
84
Ruy Duarte de Carvalho, in «A câmara, a escrita e a coisa dita », INALD, 1997.
111

Quando a ponte entre oralidade e escrita é feita com seriedade e sentido estético, mas
também criativo, o resultado é um desaperfeiçoar aperfeiçoante da Língua escrita. Porque as
Línguas fazem-se a caminho do futuro. Porque o caminho para o futuro descobre-se no
decurso de múltiplos quotidianos.
This document was created with Win2PDF available at http://www.win2pdf.com.
The unregistered version of Win2PDF is for evaluation or non-commercial use only.

Você também pode gostar