Psicanálise, Linguistica e Analise Do Discurso

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EDITORIAL

inal de ano geralmente momento de avaliao e relanamento de projetos. Articular propostas que faam trabalhar questes fundamentais para a clnica psicanaltica e suas relaes com a polis uma das tarefas institucionais. No deixa de ser uma arte, um artesanato singular (vale a redundncia) buscar rigor sem cair no dogmatismo; ou mesmo estar aberto ao dilogo sem ceder a um ecletismo ecumnico. Este foi um dos norteamentos de nosso trabalho vide o congresso sobre a Masculinidade. Assim, o retorno de algumas questes parece crucial para os psicanalistas e suas instituies. Como entendemos hoje o inconsciente est estruturado como uma linguagem, ou mesmo a linguagem condio do inconsciente? As invenes de Lacan: lalangue, lingisterie, disco-ours, sinthome o que tentam dizer/expressar, (a)bordar? Este impossvel Real que se enlaa s dimenses do Simblico e Imaginrio. Retomar conceitos uma tentativa de responder aos interrogantes do trabalho cotidiano. Seu suporte e seus restos irredutveis. A seo temtica deste ms, que publica trabalhos oriundos da lingstica e anlise do discurso, antecipa uma parte da trajetria de nossos projetos: dar continuidade formao e abrir espao para a discusso clnica. Afinal, o retorno a Freud foi alicerado nos encontros e desencontros com o pensamento contemporneo, onde a lingstica tem um lugar no mnimo importante. Reabre-se um dilogo fundamental com grupos que tentam, a partir de suas formaes especficas, pensar os efeitos provocados pela psicanlise em outros campos. O que, reciprocamente, reinterroga os psicanalistas; pois conceitos como sujeito, desejo e discurso so novamente impulsionados a dizer algo da especificidade da psicanlise. S para exemplificar: quando pensamos na especificidade do conceito de discurso, somos enviados a uma estrutura lgica, um matema que se compe de letras S1, S2, a, S barrado e lugares agente, outro, produo, verdade. Trabalhando com estes lugares e letras elaboramos o discurso do Mestre e chegamos ao discurso do Psicanalista, da Histrica e Universitrio (h uma proposta de um quinto discurso do Capitalista). O que nos interessa neste momento pensar que a partir deles fazemos lao social

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 131, dez. 2004

EDITORIAL

NOTCIAS

entre analistas e, apostamos, com outros para que possamos sustentar a psicanlise. Autorizar-se e autorizar a psicanlise a sustentar-se como a prtica de uma tica no pouca coisa nos dias de hoje. Mas no fugimos da responsabilidade que isto implica; pois sabemos que interior e exterior fazem parte da mesma superfcie, o que os diferencia uma pequena toro numa fita de Moebius. Boas Festas.

FESTA 15 ANOS DA APPOA Colega! O coquetel de comemorao dos 15 anos da APPOA ser no dia 17 de dezembro, s 21 horas, em nossa sede. Entre no clima de descontrao que j tradio em nossas festas! Coquetel: salgados, doces e bebidas. Multimdia dos 15 anos. Show Choro Bandido DJ Dana Sorteio de brindes Valor: R$25,00* *Adquira seu ingresso at o dia 13/12.

MUDANA DE TELEFONE Giovana Cavalcante Serafini comunica seu novo nmero de celular: 8403.2384. ERRATA Informamos que, no Correio anterior, Psicanlise clnica e conceitos, n 130, de novembro de 2004, a resenha Quando Nietzsche chorou, na pgina 68, foi escrita por Maria Helena Guaragni.

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esse nmero do Correio optamos pela ampliao de nosso terreno, agrupando textos escritos a partir de filiaes/formaes distintas, mas guardando um parentesco prximo. O leitor ir perceber que h uma espcie de ciso na composio de nossa seo temtica: temos uma primeira parte dedicada lingstica, mais propriamente s contribuies de autores como Saussure, Benveniste, Jakobson e outros, e uma segunda parte, dedicada temtica da anlise do discurso. Os trabalhos aqui reunidos trazem em si o esforo presente em uma interlocuo marcada por diferenas conceituais importantes e at mesmo contraditrias. Ser discutida a noo de sujeito presente na lingstica, na psicanlise e na anlise do discurso, o conceito de lngua, de linguagem e de interpretao, entre outros. Na tentativa de traar articulaes possveis entre o que nos aproxima e o que nos afasta, os textos se dedicam instaurao de balizas e demarcaes de territrios com o intuito de que, atravs desse dilogo, possamos ir avanando nas discusses.

A LINGSTICA DE FERDINAND DE SAUSSURE, A PSICANLISE DE JACQUES LACAN.


O QUE PODE UMA DIZER OUTRA?

Valdir do Nascimento Flores1

ste texto repousa sobre duas idias, de certa forma contidas j no ttulo, que devem ser vistas, moda de um a priori, como condio de leitura do que vai ser proposto: a primeira, decorrente da certeza de que h algo a ser dito a respeito das relaes entre as duas disciplinas, considera que lingstica e psicanlise podem, sim, ser postas em dilogo. A segunda idia, menos determinativa, derivada do uso de pode no ttulo e coloca em suspenso os efeitos desse dilogo. Nesse ltimo caso cabe perguntar: o dilogo entre lingstica e psicanlise leva aproximao ou ao distanciamento das duas reas? Ou ainda: a quem serve este dilogo? Aos lingistas? Aos psicanalistas? A seguir, sero expostas e avaliadas sucessivamente as duas idias. Vale lembrar, isso ser feito do ponto de vista que eu me autorizo, qual seja, o do lingista, mais precisamente o de um lingsta que busca enfatizar na linguagem os aspectos relativos enunciao (cf. Benveniste: 1988; 1989). Em linhas gerais, o raciocnio que farei mais o de avaliar em que termos as relaes entre lingstica e psicanlise podem se dar do que, propriamente, estabelecer formas de articulao entre tais domnios tericos. O caminho que seguirei : a) partir de um ponto comum s duas reas; para b) avaliar as especificidades de cada rea relativamente a este ponto. Desse prisma, acredito que o campo da linguagem o denominador comum a partir do qual possvel desencadear a discusso. Escolhida a linguagem como o campo a partir do qual lingstica e psicanlise se aproximam, necessrio que sejam feitos alguns recortes

* Esta seo temtica foi organizada por Fernanda Breda com colaborao de Eduardo Mendes Ribeiro e Luiza Surreaux.

Professor do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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dentro das prprias reas. A lingstica que me interessa nessa discusso aquela que tem origem em Ferdinand de Saussure, em especial, a partir da publicao do Curso de Lingstica Geral (1975) e que conheceu o seu desenvolvimento nas magistrais reflexes de Roman Jakobson e mile Benveniste. Acrescento a isso que chamo de Saussure do Curso2 algo que, na falta de denominao melhor, evocarei pela designao de os outros saussures que rene os trechos presentes nos Escritos de lingstica geral (2004) organizados e editados por Simon Bouquet e Rudolf Engler3 e Os Anagramas organizados por Jean Starobinski4 em As palavras sob as palavras: os anagramas de Ferdinand de Saussure (1974). O conjunto das trs referncias pode ser entendido como o sistema de pensamento de Saussure. Com essas referncias lingstica possvel fazer trs observaes que encaminham uma forma de tratamento do tema deste texto. A primeira diz respeito especificidade epistemolgica da lingstica aqui convocada: interessa ao dilogo com a psicanlise apenas a lingstica a qual se convencionou chamar de estrutural. A segunda leva em considerao o fato de que, tal como apresentei o sistema de pensamento de Saussure, no se trata aqui de recuperar a leitura que Lacan fez de Saussure, pois, se Lacan era conhecedor do Curso e dos Anagramas, no se pode dizer que ele conheceu os Escritos . A terceira observao, decorrente da anterior, considera que, na atualidade, se lingstica e psicanlise podem dizer algo uma outra isso ser bem mais produtivo se, do lado da lingstica, o pensamento de Saussure for contemplado na sua mxima abrangncia. Parece-me que o mesmo poderia ser aplicado obra lacaniana.

O Curso de lingstica geral sabidamente obra pstuma, datada de 1916, produzida por discpulos de Saussure a partir de notas de alunos, registradas por ocasio dos trs cursos proferidos na Universidadede Genebra entre os anos 1907-1911. Ao assinalar a diferena entre o Saussure do Curso dos demais saussures quero marcar algo que, ao meu ver, instaura um gesto singular de leitura: o Curso no foi escrito por Sassure ao contrrio dos demais textos. 3 Obra que rene um conjunto de manuscritos descobertos na estufa do hotel genebrino da famlia de Saussure e depositados na Biblioteca pblica e universitria de Genebra (p. 16). 4 Obra publicada a partir de cadernos distribudos em oitos caixas que se esto na Biblioteca da Universidade Pblica de Genebra.

Como j se deve ter percebido, a psicanlise convocada a de Jacques Lacan na releitura que faz do texto freudiano. Ora, que a linguagem um campo de fundamental interesse para a psicanlise j o atesta Lacan no ttulo do Discurso de Roma, Funo e campo da fala e da linguagem em psicanlise. Nesse sentido, no demais perguntar: Saussure e Lacan falam da mesma coisa quando usam o termo linguagem? De um lado, tem-se Saussure que, no Curso, rejeita o estudo da linguagem devido sua natureza multiforme e heterclita (CLG, p. 17). De outro lado, tem-se Lacan que concebe sob o rtulo de linguagem algo que no poderia ser resumido na definio que Saussure d do termo. A linguagem com que Lacan est preocupado aquela como a qual o inconsciente est estruturado. Saussure, por sua vez, est preocupado em dar alguma cientificidade lingstica e faz isso elegendo a lngua como o objeto do qual se deve dar uma descrio pautada pela noes de sistema e valor. Em outras palavras, para Lacan, a linguagem realmente um campo no qual o sintoma pode ser admitido na dimenso que tem de constituio do sujeito e que s pode ser tomado ...por inteiro numa anlise linguajeira, por ser ele mesmo estruturado como uma linguagem, por ser a linguagem cuja fala deve ser libertada. (Lacan , 1998: p.270). Acresce-se a isso a no menos contundente afirmao de Lacan, no Seminrio 20, mais ainda, de que meu dizer que o inconsciente estruturado como uma linguagem no do campo da lingstica (1993: p. 25). Para Saussure, a linguagem cumpre outra funo, qual seja, a de permitir acesso ao objeto lngua o qual possibilita que a lingstica como cincia seja possvel (cf. Milner: 1987, p. 32), pois entre linguagem e lngua h que se fazer a distino entre as coisas em si e os fenmenos. Em um primeiro momento, ento, pode-se dizer que entre lingstica e psicanlise nada mais h que meras homonmias. Realmente, h palavras que tm largo uso de um lado e de outro, sem que possam recobrir o mesmo objeto. So exemplos, alm de linguagem, as palavras enunciado, enunciao, significante, fala, sentido, sujeito etc. Portanto, poder-se-ia dizer que tudo indica que as relaes entre lingstica e psicanlise no passam de aparncia e o equvoco em pretender articul-las ou aproxim-las produto de uma

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homonmia no avaliada rigorosamente por alguns tericos de ambos os lados. Adianto que no comungo dessa opinio. Existe, sim, a possibilidade de refletir em torno das duas reas, desde o ponto de vista de um elemento comum. Talvez a questo tenha que ser formulada no em termos de condies de articulao entre lingstica e psicanlise, mas retomando a noo que to cara s duas reas: a estrutura. isso que Lacan preconiza ao dizer que ... a referncia lingstica nos introduzir no mtodo que, ao distinguir as estruturaes sincrnicas das estruturaes diacrnicas da linguagem, pode permitir-nos compreender melhor o valor diferente que nossa linguagem assume na interpretao das resistncias e da transferncia, ou ento diferenciar os efeitos tpicos do recalque e a estrutura do mito individual na neurose obsessiva (Lacan, 1998: p. 299). A noo de estrutura sofreu inmeras leituras no sculo XX, oscilando entre abordagens formalistas, a exemplo dos Prolegmenos de Louis Hjelmslev; abordagens funcionais, como faz Jakobson, abordagens enunciativas, como em Benveniste, entre outras. Em todas, porm, o princpio da estrutura enquanto um aspecto relacional em que a unidade no prexiste ao sistema conservado. Isso parece no escapar a Lacan. Em Funo e campo, Lacan retoma trs livros fundantes de Freud: A interpretao dos sonhos , Psicopatologia da vida cotidiana e O chiste e sua relao com o inconsciente. Essa retomada pautada por uma referncia aos processos de metfora e metonmia estudados por R. Jakobson, quando de seus estudos sobre as afasias associando-os aos movimentos de condensao e deslocamento referidos por Freud para falar da linguagem onrica. Ora, sabido que os mecanismos aplicados por Jakobson ao estudo das afasias so derivados das noes de sintagma e paradigma presentes no Curso de Saussure. Desse modo, possvel dizer que interessa a Lacan aquilo que, em outras palavras, pode ser considerado o prprio da lngua, na concepo saussuriana, isto , o seu aspecto estrutural. O sonho, o chiste, o lapso, o

sintoma, as formaes do inconsciente, enfim, todos tm estrutura semelhante da lngua e que, por isso, no se pense que so estruturados pela lngua, mas como a lngua. Ou seja, todos podem ser vistos como movimentos de condensao e deslocamento; metfora e metonmia; paradigma e sintagma. Nunca demais lembrar, no entanto, que este prprio da lngua, em Lacan, supe um sujeito radicalmente dividido. Em minha opinio, somente isso bastaria para se acreditar que lingstica e psicanlise podem constituir um terreno comum de reflexo: a linguagem deveria ser tomada, desde sempre e em ambas a reas, em seu aspecto estrutural. Evidentemente, esse campo comum no serviria a algum objetivo que procurasse, do lado da lingstica, o estudo do sentido em termos de interpretao conteudstica, o que seria tpico de uma semntica condenada ao descrdito. Da mesma forma, do lado da psicanlise, nada autorizaria ver na lingstica uma metodologia qualquer que, descolada da cena transferencial prpria clnica psicanaltica, produzisse uma ingnua correspondncia entre as categorias da gramtica e a histria do sujeito, clivado que . Isso posto, resta, ainda, perguntar: sem querer abordar o debate epistemolgico que seguramente decorre da formulao que propus em torno da estrutura em psicanlise e em lingstica, quais aspectos de ambas as reas poderiam ser repensados a partir do que foi exposto? Em outras palavras por que conceber estrutura e sujeito juntos produziria um dilogo profcuo entre lingstica e psicanlise? Tratarei, a seguir, apenas do que diz respeito lingstica, j que no que tange psicanlise o que foi dito acima parece-me suficiente para ilustrar os reflexos da lingstica na psicanlise. Penso que Lacan ainda o melhor exemplo para disso falar, ou como diz Juranville ... preciso sublinhar, ainda que isso custe aos lingistas, a continuidade da anlise lacaniana em relao teoria de Saussure... (1987: p. 46). A lingstica ao se constituir como cincia produz um real que irredutvel a ela mesma, mas que no constitui uma nova lgica, pois ele inerente lgica da lngua. O estatuto de cientificidade da lingstica, ao mesmo tempo que permite a garantia de unidade e de identidade, produz

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uma substncia que se ope forma. Sobre essa substncia, que excede a forma da qual fala Saussure ao dizer que a lngua forma e no substncia, a lingstica nada diz. De certa maneira, a cincia recalca o que nela no cabe, a saber, o inconsciente. E assim foi desde sempre, pois uma lngua, enquanto objeto da cincia, somente possvel de ter existncia porque dintingvel, porque idntica a ela mesma, porque isomrfica. Essa operao de recalcamento atende demanda de que a lingstica possa emitir princpios universalizantes sobre a lngua. O ponto de basta (point-de-capiton) da lingstica seria, ento, o sujeito da enunciao, aquele que operaria uma espcie de subverso da isomorfia da relao significante/ significado. Eis o ponto que subverte a lgica da imanncia: o sujeito. Se a lingstica quiser dele falar, no poder desconhecer a sua clivagem estrutural. exatamente neste ponto que vislumbro a pertinncia de se considerar o que designei acima como o sistema de pensamento de Saussure. Os Escritos de Saussure parecem no confirmar as excluses operadas pelo Curso. No mnimo, podemos ver nos Escritos a relativizao de dicotomias como lngua/ fala. Nos Anagramas, o que est em questo o signo lingstico tomado em sua linearidade e arbitrariedade. O anagrama no nem linear, nem arbitrrio. Ou ainda, no absolutamente certo que Saussure tenha excludo a fala de suas investigaes, entendendo-se fala, neste contexto, como atividade de linguagem que supe sujeito. por esse vis que vejo a produtividade das relaes entre lingstica e psicanlise na atualidade, qual seja, a de construo de outro objeto de pesquisa. Por esse caminho, a psicanlise apresenta lingstica os meios de incluir a falha no seu (da lingstica) objeto, a falha que desde sempre est posta por Saussure: a no-linearidade do anagrama, a no-oposio lngua/fala, etc. Essa lingstica que inclui a falha, por sua vez, tambm uma escuta do singular, a exemplo da escuta operada pela psicanlise. Eis o campo onde se desfazem as meras homonmias: o da enunciao. neste campo, o da singularidade da fala do sujeito, que lingstica e psicanlise podem juntas atuar. Trata-se agora de uma lingstica da enunciao, lingstica

que inclui o sujeito e sua fala e, por ela, a singularidade do que diz e do como diz. Essa lingstica no desautorizada pelo pensamento de Saussure. A lingstica da enunciao atenta psicanlise diz bem isso: para alm de uma categoria lingstica unitria (como os diticos, por exemplo), o sujeito ocupa (ou seria melhor dizer habita?) toda a linguagem, multiplicando sentidos 5. A lingstica da enunciao, tal como aqui a supus, estudaria tais meios desde um lugar que os referisse clivagem estrutural do sujeito. Para concluir, eu resumiria tudo da seguinte forma, propositadamente ambgua: hora de a cincia da lngua supor que de um homem falando que se trata sempre.
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS: BENVENISTE, Emile. Problemas de lingstica geral I. Pontes, So Paulo, 1988. _____. Problemas de lingstica geral II. Pontes, So Paulo, 1989. FLORES, Valdir. Lingstica e psicanlise: princpios de uma semntica da enunciao. EDIPUCRS: Porto Alegre, 1999. JAKOBSON, Roman. Lingstica e comunicao. Cultrix: So paulo, 1995. LACAN, Jacques. Escritos. J. Zahar Ed.: Rio de Janeiro, 1998. _____. O seminrio- livro 20: mais, ainda. J. Zahar Ed. Rio de Janeiro, 1985. MILNER, Jean- Claude. O amor da lngua. Artes Mdicas: Porto Alegre, 1987. SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingstica geral. Cultrix: So paulo, 1975. _____. Escritos de lingstica geral: Cultrix: So Paulo, 2004. STAROBINSKI, Jean. As palavrassob as palavras os anagramas de Ferdinand de Saussure. Ed. Perspectiva, Rio de Janeiro, 1974. SHFFER, Margareth; FLORES, Valdir; BARBISAN, Leci (orgs.). Aventuras do sentido: psicanlise e lingstica. EDIPUCRS: Porto Alegre, 2002.

A lingstica da enunciao no restrita a uma categoria unitria cujo papel seria o de dar lugar a um sujeito, mas uma lingstica da enunciao de toda a lngua, que supe sujeito na multiplicidade dos sentidos no uso, em minha opinio, bem o que se pode derivar da teoria de mile Benveniste, mesmo que o prprio no tenha aceitado todas as decorrncias da sua brilhante descoberta: o aparelho formal da enunciao.

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UMA LINGSTICA SOBRE O QUE NO PDE SE DIZER: BENVENISTE


Marlene Teixeira 1

lgo no pde ser dito para que a lingstica tivesse lugar entre os saberes, conforme a um ideal de cincia em que os fenmenos precisam ser destitudos de suas qualidades intrnsecas para fazeremse objeto de investigao. A clivagem lngua/fala, atribuda ao Saussure do Curso de Lingstica Geral (1916), o ponto crucial que polariza o debate entre os lingistas. De um lado, h os que enfatizam, acima de tudo, a descrio/elaborao de modelos formais, eliminando aquilo que os embaraa, o Homem; e, de outro, os que promovem a abertura do objeto lngua para a diversidade concreta. Esses pontos de vista extremos encontram hoje oposio: o primeiro por no levar em conta a complexidade da linguagem; o segundo por diluir o objeto lngua como ordem prpria em proveito do social (Authier-Revuz, 1998). Uma outra posio pode ser delineada pelo reconhecimento de que sobre o que a lingstica colocou como limite insupervel para o saber que desejava instituir que se edificam os discursos e os sistemas simblicos humanos. Como bem observa Flores (1999), os elementos que no puderam ser ditos no gesto de fundao da lingstica como cincia a ele retornam, pois s ali tm existncia, isto : isso que exorbita a constituio da lingstica est contido, em ausncia, em seu prprio objeto. Pensar na possibilidade de abrir os estudos lingsticos ao dilogo com outros saberes, sobretudo, com a psicanlise, ter, ento, que abrir a caixa preta em que est aprisionado aquilo que o estruturalismo precisou recalcar para se constituir, ou seja, arrombar o cofre do grande movimento intelectual francs para captar o que no entrou no campo da cientificidade e que fez falta (Dufour, 2000), o sujeito.

Professora no Curso de Mestrado em Lingstica Aplicada e no Curso de Letras (UNISINOS)

Benveniste pode ser considerado instaurador de uma terceira posio, uma vez que sua lingstica da enunciao, ainda que tributria do estruturalismo, no negligencia o que, na linguagem, da ordem da complexidade. Em suas clebres formulaes sobre a subjetividade na linguagem, includas na anlise do sistema pronominal, encontram-se elementos indicativos de que a se desenvolve um pensamento sobre a linguagem que subverte ambas as tendncias em que se organizam os estudos lingsticos. Seu sistema terico, porque contempla isso que se produziu como um resto no ato de inscrio da lingstica no campo da cincia, representa um lugar de encontro privilegiado entre lingstica e psicanlise. Para ilustrar esse ponto de vista, refiro brevemente, a seguir, aspectos da teoria benvenistiana, valendo-me das interpretaes de Flores (1999) e Dufour (2000) dos textos de Benveniste que mais interessam enunciao, aqueles que compem o conjunto nomeado como O Homem na Lngua. Esses autores desfazem pelo menos dois equvocos j cristalizados no meio acadmico: o de que Benveniste reproduziu, por outra via, as dicotomias atribudas a Saussure; e o de que subjaz teoria benvenistiana uma concepo psicolgica da subjetividade. bastante difundida a idia de que, para estudar a enunciao, Benveniste prope uma srie de dicotomias: separa forma e sentido, lngua e discurso, semitico e semntico, pessoa e no-pessoa, referncia instncia de discurso e referncia a uma situao objetiva. Com efeito, esse modo de entender as formulaes de Benveniste sustenta-se no prprio texto do autor, desde que nos deixemos levar pelas aparncias. Nos artigos em que trata da forma e do sentido na linguagem (1989), ele defende a idia de que preciso ultrapassar a noo saussuriana de signo como princpio nico, do qual dependeriam simultaneamente a estrutura e o funcionamento da lngua. Prope que no se veja o signo saussuriano como princpio nico, pois h um outro nvel de anlise que exige seu prprio aparelho conceitual: o nvel do discurso. Nesses textos, concebe a lngua como comportando dois domnios distintos, o semitico e o semntico, cada um deles exigindo seu prprio aparelho conceptual. Nos textos de 1956 e 1958 (1988), Benveniste dedica-se ao estudo do que os gramticos chamam de pronomes, demonstrando que eles no po-

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dem ser considerados como constituindo uma classe homognea, pois, devido sua natureza, nem mesma classe pertencem. Reparte-os, ento, em dois grupos: eu e tu constituem a categoria de pessoa; ele no-pessoa. Eu o indivduo que enuncia a presente instncia de discurso que contm a instncia lingstica eu; (...) tu o indivduo alocutado na presente instncia de discurso contendo a instncia lingstica tu; (...) ele predica o processo de no importa quem ou no importa o que, exceto a prpria instncia, podendo sempre esse no importa quem no importa o que ser munido de uma referncia objetiva. A no-pessoa pertence ao semitico, linguagem enquanto sistema de signos; a categoria de pessoa, ao semntico, linguagem assumida pelo indivduo e manifesta em instncias de discurso. Em todos esses textos, Benveniste parece contrapor realidade objetiva (domnio objetivo) X realidade subjetiva (instncia de discurso). A impresso a de que ele no abre via de comunicao entre o que da lngua e o que do discurso, situando o que se refere lngua/discurso na esfera subjetiva, sob a vigilncia de eu-tu, e o que se refere lngua-sistema na esfera no-subjetiva, sob a guarda do ele (Bressan, 2003). As aparncias, contudo, enganam. O pensamento de Benveniste no oferece explicaes perfeitas, a que nada se possa acrescentar. No dizer de Dufour (2000), em lugar da explicao, encontramos uma implicao, uma dobra do pensamento que nunca deixa de suscitar o espanto e a desorientao: o pensamento parece reservar-se no momento em que se exprime. Essa dobra fundamentalmente o lugar de um insaber, que nos obriga a lidar com um certo luto da explicao. isso que faz seu pensamento vivo e desconcertante, sempre enigmtico e aberto interferncia de quem dele se aproxima recusando roteiros de leitura j automatizados. Ler Benveniste, deixar-se trabalhar pelo mistrio. Mais recentemente, a idia de que a trindade est desde sempre instalada na teoria benvenistiana vem ganhando corpo. Essa releitura contraria a interpretao de que Benveniste constitui um modelo de dois termos fundado na oposio estrutural eu, tu / ele. Para sustent-la, preciso examinar o modo como o eu concebido na lingstica da enunciao.

Benveniste (1988) define o eu por um axioma unrio ego que diz ego dando a escutar uma gagueira2, j que falta a ele uma explicao. Em quando Benveniste diz ego que diz ego, no d nenhuma definio conceitual, mas indica uma operao que poder produzir seus efeitos. Tal enunciado coloca para o leitor um limite, que o obriga a colocar de si, a se deixar trabalhar pelo enigma e at mesmo a produzir novos. Alm disso, Benveniste fornece uma definio negativa do eu segundo um conjunto de trs termos: eu no nem tu, nem ele. necessrio um conjunto de trs para a constituio do um. A definio de lngua e de sujeito em sua teoria faz-se, ento, por um conjunto de trs termos, irredutveis uns aos outros. Essa interpretao indica a existncia de uma trindade natural imanente ao ato de falar. Qualquer pessoa que fale, pe em ato uma figura trinitria. A propriedade trina muito banal e muito evidente. Dela cada ser falante no cessa de fazer a experincia imediata. No centro de nossa realizao mais imediata como ser falante, encontram-se os trs termos eu, tu, ele. Para apreender a propriedade trina, basta evocar o espao comum a toda espcie falante, a conversao: eu diz a tu histrias que obtm dele (Dufour, 2000). Esse dado, ao mesmo tempo trivial e fundamental, determina a condio do homem na lngua. por essa singular relao de trs que a lngua se precipita em discurso. Depois de haver formulado o conjunto trinitrio dos pronomes pessoais, Benveniste cliva sua definio em dois subconjuntos binrios: por um lado, analisa a dade formada pelo par eu e tu; em seguida, ope eu e tu a ele. A primeira dade o lugar da relao da comunicao intersubjetiva, mas, para que dois estejam aqui e agora co-presentes, necessrio que um outro esteja l, ausente, pois nenhum espao de simbolizao possvel sem uma demarcao de ausncia. No se est mais diante de uma dade,

Dufour utiliza o termo gagueira para nomear expresses tautolgicas produzidas por autores muito ilustres do estruturalismo, ou seja, enunciados que no se organizam segundo uma relao diferencial entre dois termos, nem repousam sobre uma relao causal, mas contm uma dobradura interna.

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mas de uma nova relao, impossvel de decompor em relaes didicas: a trade eu-tu/ele. Ele designa o que no est aqui e agora quando eu e tu falam. Sendo aquele que no est, ele se refere, portanto, ausncia, uma ausncia re-presentada no campo da presena. Deixando-se trabalhar pelo enigma contido na afirmao de Benveniste de que ele pode ser uma infinidade de sujeitos ou nenhum, pode-se concordar com Dufour que vislumbra a uma ausncia radical, da ordem do irrepresentvel. Assim considerada, a teoria benvenistiana permite falar no apenas de uma heterogeneidade re-presentada (ele sem barra), mas de uma heterogeneidade radical (ele barrado)3. Benveniste foi um dos raros a empreender uma descrio sistemtica do singular dispositivo intralingstico pelo qual a lngua posta em ato: o sistema de pronomes. Seu estudo associa a reflexo epistemolgica ao detalhe das anlises empricas, incidindo sobre questes concretas e insofismveis, a respeito das quais levantam-se problemas de base para quem quer que pense sobre a linguagem. Os textos de O Homem na Lngua fundamentam, assim, toda uma reflexo sobre o sujeito que hoje tem sido a preocupao fundamental das cincias humanas. Qualquer tipo de anlise poltica, psicanaltica ou semiolgica no pode abstrair da noo fundamental de sujeito, intimamente ligada ao conceito de discurso, e Benveniste, ao considerar o processo de instituio subjetiva na linguagem, revela a vocao transdisciplinar da lingstica da enunciao, abrindo-a ao dilogo. Se a lingstica moderna separou vida e cincia, Benveniste veio junt-las. Para finalizar, gostaria de assinalar que este texto no visa chegar a um sentido que obture e estabelea um quadro referencial esttico e seguro regulador da leitura do texto de Benveniste. Por no trazer a palavra toda, a lingstica da enunciao implica um compartilhar com o outro. Ou seja, ela se deixa trabalhar pelo sujeito que l, fisga, inquieta e provoca esse leitor, convocado a produzir provas para sustentar um lugar que balana e s no

cai quando o leitor se encontra em condies de suportar o non-sense. A dobra no produz nenhuma significao acabada, mas a revelao de uma verdade que faz furo e, portanto, convoca o inesperado. Sendo assim, a teoria de Benveniste est longe dessa idia de cincia harmoniosa, mito da modernidade, onde a ignorncia, a angstia, a inibio ou o sintoma no encontram lugar. Fica o convite a quem a quiser abrir outras trilhas.
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS: AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Palavras incertas: as no-coincidncias do dizer. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1998. ________. Heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva: elementos para uma abordagem do outro no discurso. In: ___. Entre a transparncia e a opacidade: um estudo enunciativo do sentido. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. p. 11-80. BENVENISTE mile. Princpios de lingstica geral I. Campinas, SP: Pontes, 1988. ________. Princpios de lingstica geral II. Campinas, SP: Pontes, 1989. BRESSAN, Nlvia Thas Weigert. A trade enunciativa: um estudo sobre a nopessoa na teoria de mile Benveniste. Dissertao de Mestrado orientada por Valdir do Nascimento Flores. Porto Alegre: Programa de Ps-Graduao em Letras, UFRGS, 2003. DUFOUR, Dany-Robert. Os mistrios da trindade. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2000. FLORES, Valdir. Lingstica e psicanlise : princpios de uma semntica da enunciao. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999. TEIXEIRA, Marlene. Anlise de discurso e psicanlise. Elementos para uma abordagem do sentido no discurso. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000.

O que est em Authier-Revuz (1998, 2004) por outra via.

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EFEITO PATOLGICO/EFEITO ARTSTICO: JAKOBSON, DA AFASIA POTICA


Luiza Milano Surreaux

oman Osipovich Jakobson nasceu em Moscou em 1896 e j aos 19 anos inaugurou sua inscrio na cultura, fazendo parte da fundao do Crculo Lingstico de Moscou. Esse apenas o incio de uma trajetria que situa Jakobson como um dos grandes pensadores da lingstica moderna. Como destaca Franois Dosse (1993), reconstituir o itinerrio de Jakobson equivale a seguir as voltas e desvios do paradigma estruturalista1 nascente, em sua escala internacional. Em 1926, exilado na Tchecoslovquia, torna-se um dos fundadores do Crculo Lingstico de Praga, no interior do qual surge sua fecunda pesquisa em fonologia estrutural, juntamente com Troubetzkoy. No ambiente persecutrio da Segunda Guerra, migra para a Escandinvia, onde aproveita a vasta literatura mdica e realiza um mergulho nas pesquisas de neurologia e psiquiatria. Da resultam seus ensaios sobre a linguagem infantil e a afasia. Novamente em funo da guerra vai para Nova York, onde, na cole Libre des Haute tudes, assiste s aulas de Lvi-Strauss sobre parentesco, ao passo que Lvi-Strauss acompanha suas aulas sobre som e sentido. E desse lao surgiro articulaes fundamentais de um mesmo movimento e mtodo o estruturalismo. no interior dessa reflexo que Jakobson retoma dos seus trabalhos em fonologia a noo de significao e incorpora-a lingstica como primado essencial. Ser tambm j na maturidade de sua trajetria que falar das leis universais da linguagem nas quais prioriza o aspecto descritivo das lnguas e detalha sua estrutura interna. O encontro de

Jakobson com Lvi-Strauss, na cole Libre, e depois com Lacan (em 1950), influencia de forma impactante o estruturalismo francs 2. De certa maneira, alm de contextualizar esse lingista to caro psicanlise, o que busco esboar aqui, uma forma de discutir a dicotomia normal/patolgico reinterpretando, mesmo que ainda em linhas gerais, as relaes, de um lado, entre o patolgico e o potico, e, de outro lado, entre a estrutura da linguagem e as manifestaes linguageiras que se caracterizam pela subverso da linguagem. Parece que podemos considerar, sem temer o equvoco fcil, que tanto o patolgico como o potico, encontram abrigo na estrutura da linguagem. Isso plenamente derivvel do raciocnio de Jakobson. A SUBVERSO DA LINGUAGEM NAS AFASIAS No conhecido trabalho Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia, Jakobson, ao abordar o duplo carter da linguagem, destaca que falar implica seleo de entidades lingsticas e sua combinao em unidades lingsticas do mais alto grau de complexidade. No entanto, o autor adverte que a seleo que o falante realiza no de modo algum livre. Ela dever ser realizada a partir do repertrio lexical que aquele que fala e aquele que recebe possuem em comum. Nessa concepo, o falante um usurio, no um criador de palavras (exceto nos casos de neologismos). Em relao ao funcionamento da linguagem, o autor aponta dois modos de arranjo do signo lingstico: Combinao: todo signo composto de signos constituintes e/ou aparece em combinao com outros signos. Qualquer unidade lingstica serve, ao mesmo tempo, de contexto para unidades mais simples e/ou encontra seu contexto em uma unidade lingstica complexa. Seleo: uma seleo entre termos alternativos implica a possibilidade de substituir um pelo outro.

Jakobson utiliza pela primeira vez a expresso estruturalismo, ao apresentar seus estudos em fonologia no recm formado Crculo Lingstico de Praga, reconhecendo sua filiao ao trabalho de Ferdinand de Saussure.

A obra de Dosse resgata um testemunho desses encontros e registra os efeitos desses nomes na histria do estruturalismo.

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Enquanto o mecanismo de seleo implica substituio, o mecanismo de combinao implica contigidade. Aps explicitar os dois aspectos do funcionamento da linguagem a seleo e a combinao Jakobson passa a articul-los a partir de sintomas lingsticos de sujeitos afsicos. Segundo o autor, na afasia, h uma das capacidades que principalmente afetada. Vejamos brevemente a caracterizao dos distrbios afsicos, segundo a classificao de Jakobson. Distrbio da similaridade (eixo da substituio, seleo): Na afasia de similaridade, os elementos principais da frase, como o sujeito, tendem a ser omitidos, o que conhecido como quadro de anomia. H para esse afsico ntidas dificuldades metalingsticas. A mesma palavra no poderia significar coisas diferentes para ele. Ele ter tambm dificuldade de enunciar objetos. Ao referir-se a um lpis, por exemplo, na impossibilidade de enunciar o nome, dir que serve para escrever. Na restrio de alternativas metafricas, esse sujeito utilizar a via da contigidade para se expressar. Seu recurso para falar ser, portanto, a metonmia. Distrbio de contigidade (eixo das combinaes, contextura): Nesse tipo de distrbio ocorre a deteriorao da capacidade de combinar entidades lingsticas mais simples em unidades mais complexas. Perdem-se as regras sintticas o que degenera a frase e resulta em um quadro chamado de agramatismo. Desaparecem as palavras dotadas de funes puramente gramaticais, os conectivos (conjunes, preposies, pronomes, artigos), gerando uma fala em estilo telegrfico. Na limitao do recurso metonmico, no podendo recorrer combinao entre elementos, o paciente enuncia por similaridade, utilizando a via da metfora. Aps analisar a caracterizao dos dois tipos de afasia, Jakobson expande sua reflexo para o funcionamento da linguagem do sujeito, independentemente da ocorrncia de algum distrbio de fala. Prope, ento, os plos metafrico e metonmico como processos atravs dos quais movimenta-se a linguagem. Segundo o autor, por influncias culturais, de personalidade ou de estilo verbal ora um, ora outro plo predomina. Retomemos os dois eixos da linguagem, com seus respectivos plos.

Eixo Sintagmtico: combinao, contexto, contigidade Plo Metonmico Eixo Paradigmtico (ou associativo): seleo, similaridade, substituio Plo Metafrico O funcionamento da linguagem pode ser expresso no entrecruzamento do eixo paradigmtico com o eixo sintagmtico. Algumas vezes, percebemos a predominncia de um plo sobre o outro, como o caso da predominncia da metfora na poesia, da metonmia na prosa, embora o prprio Jakobson faa a advertncia: na poesia em que a similaridade est sobreposta contigidade, toda metonmia ligeiramente metafrica e toda metfora tem um matiz metonmico (1969: 149). Jakobson faz ainda uma analogia dos processos de funcionamento da linguagem com o texto A Interpretao dos Sonhos de Freud. Ele aproxima a figura da metfora noo de condensao freudiana e a figura da metonmia idia de deslocamento proposto por Freud na anlise dos sonhos. Lacan rel as noes de condensao e deslocamento em Freud a partir dos plos metafrico e metonmico de Jakobson que, por sua vez, constituem uma leitura das relaes paradigmticas e sintagmticas de Saussure. A SUBVERSO DA LINGUAGEM NA FUNO POTICA Jakobson aponta que a funo potica no est somente na poesia, com isso, oferece a possibilidade de expandirmos essa reflexo para que se possa extrair desse eixo articulador conseqncias sobre a fala cotidiana. A funo potica, ento, estando presente na linguagem cotidiana e fazendo parte como aspecto bsico de todo ato de comunicao verbal, mobiliza os dois modos fundantes de arranjo no comportamento verbal, quais sejam, a metfora e a metonmia. Toda metonmia implica uma metfora. O efeito de sentido provocado na relao entre os elementos presentes numa cadeia de fala evidenciado na linha metonmica. Porm, nesse desenrolar do fio metonmico que o inusitado pode brotar. necessria a metonmia como pano de fundo para que se possa produzir algo novo e criativo a metfora. Ao mesmo tempo,

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diz-se que a metonmia dependente da metfora (j que a metonmia tambm um tipo de substituio). Substituio e combinao so processos 3, movimentos da linguagem que se articulam de modo semelhante s formaes do inconsciente. Ou seja, encontramos na estruturao sinttica, na escolha lexical que realizamos em nossa fala cotidiana, um movimento funcionalmente semelhante ao movimento estrutural que podemos observar no lapso, no chiste, no sonho, no ato falho e, conforme se est propondo aqui, tambm no sintoma de fala. Jakobson destaca que o poeta Khlebinikov elogiava o potencial artstico de erros de impresso. De acordo com Khlebinikov, o carter acidental do erro de impresso provoca um efeito potico imprevisvel. Jakobson, ao comentar o efeito potico da obra de Khlebinikov, aponta: A palavra recebe por assim dizer uma nova caracterstica fnica, a significao abalada, a palavra percebida como um conhecimento que tem subitamente um rosto desconhecido, ou como um desconhecido em quem entrevemos algo de conhecido (Fragmentos da nova poesia russa, in Holenstein, 1979: 144). inevitvel realizar uma analogia entre o que diz Jakobson sobre a obra de Khlebinikov com o efeito que provoca, naquele que escuta, uma fala com erro de impresso, na qual o sujeito imprime seu jeito de estar na linguagem. O contraste entre efeito artstico e efeito patolgico analisado por Jakobson tanto na poesia como na afasia um convite para pensarmos os limites da questo do funcionamento da linguagem na normalidade e na patologia. H especificidades numa e noutra situao? Como o prprio Jakobson avisava j em seus primeiros estudos sobre a afasia, a reflexo acerca da linguagem na afasia deve servir para que se pense antes de tudo no funcionamento da linguagem.
3

A poesia e a afasia abalam, subvertem a ordem da linguagem, seja na forma, seja no sentido, ou em ambos. Se na poesia o efeito da subverso artstico, o que produz o sujeito que ao falar falha? Alm de produzir um efeito de fala patolgica sua singular subverso da linguagem deveria produzir um interrogante naquele que a escuta. H entre essas duas manifestaes de linguagem uma diferena fundamental. Enquanto a poesia traz consigo um efeito artstico, o sintoma de linguagem apresenta algo da ordem do sofrimento. A subverso presente no sintoma de linguagem tem como especificidade causar dificuldades ou impedimento para o sujeito se comunicar com seus pares. *** Ao pr em evidncia importantes articuladores tericos da obra de Jakobson, como os dois plos do funcionamento lingstico (metfora e metonmia), as particularidades da funo potica e o funcionamento sintomtico da linguagem nas afasias , percebo entre eles pontos em comum. No meu ponto de vista, justamente da articulao destes elementos to caros a Jakobson que resulta uma concepo terica de linguagem. Uma concepo estruturalista, sem dvidas, mas um estruturalismo que comporta o movimento (ou que considera o funcionamento na estrutura). Uma concepo de lngua que rene ao funcionamento metafrico e metonmico a possibilidade de subverso atravs da fala. Uma perspectiva da lingstica que permite pensar que tanto na produo artstica (poesia), como na produo desviante (afasia), o movimento da linguagem que est em jogo. H um forte lao entre arte e cincia na obra de Jakobson. Ao estudarmos a questo da funo potica, esse lao torna-se ainda mais evidente. Certamente desde os frutferos encontros com escritores, poetas e tericos no Crculo Lingstico de Moscou e desde sua relao sempre muito expressiva com movimentos artsticos e culturais de vanguarda, que se pode pensar a produo terica de Jakobson. Sendo assim, quero apontar que a forma com que a reflexo sobre a potica por ele realizada destaca-se como sendo o momento em que o lao entre arte e cincia tem a expresso maior. Jakobson mesmo encarrega-se de realizar a questo: Que que faz

importante alertar que substituio no sinnimo de metfora, assim como combinao no sinnimo de metonmia.

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de uma mensagem verbal uma obra de arte?. A resposta no se d como uma camisa-de-fora que parea fingir abraar, com a frieza da teoria, a beleza do verso. Para o nosso artista da cincia, a poeticidade no consiste em acrescentar ao discurso ornamentos retricos. Ela implica, antes, uma total reavaliao do discurso e de todos os seus componentes, quaisquer que sejam. Essa abertura ao imprevisvel, talvez seja a conseqncia mais bela que tenha colocado Jakobson em posio de interlocuo com questes to heterogneas 4 como a linguagem infantil, a afasia, a poesia, a antropologia, a psicanlise, entre tantas outras. Essa abertura para o efeito imprevisvel, mas analisvel, da produo verbal parece-me a herana mais rica do legado de Roman Jakobson.
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS: DOSSE, F. Histria do estruturalismo I O campo do signo. So Paulo, Ensaio, 1993. HOLENSTEIN, E. Jakobson: o estruturalismo fenomenolgico. Lisboa, Editorial Vega, 1979. JAKOBSON, R. Lingstica e comunicao. So Paulo, Cultrix, 1969. ______. Lingstica. Potica. Cinema. So Paulo, Perspectiva, 1970. ______. A Escola Lingstica de Praga. In: TOLEDO, D. (org.). Crculo lingstico de Praga: estruturalismo e semiologia. Porto Alegre, Globo, 1978. ______. A transformao potica: o Crculo de Praga visto pelo Crculo de Copenhage. In: TOLEDO, D. (org.). Crculo lingstico de Praga: estruturalismo e semiologia . Porto Alegre, Globo, 1978. JAKOBSON, R.; POMORSKA, K. Dilogos. So Paulo, Cultrix, 1985.

A QUESTO DA INTERPRETAO NA ANLISE DO DISCURSO E NA PSICANLISE: INTERSEES1


Marianne Stolzmann Mendes Ribeiro2

anlise do discurso (AD), segundo a definio de Orlandi (1983), uma disciplina de entremeio; ela se faz na contradio da relao entre as outras disciplinas, principalmente no campo da interseo entre as Cincias Sociais e a Lingstica. Sua especificidade est, sobretudo na leitura que faz sobre a noo de ideologia, conceito que atravessa suas formulaes tericas. A Escola Francesa de Anlise do Discurso (AD) tem em Michel Pcheux seu criador e expoente que, por volta da dcada de 60-70, redimensionou e procurou substituir a Anlise de Contedo tradicional. A AD, ao contrrio da Anlise de Contedo, considera o texto como um monumento e sua exterioridade como parte constitutiva da historicidade inscrita nele. Ou seja, visa menos a interpretao do discurso do que a compreenso do seu processo produtivo (Minayo, 1992). Em seu quadro epistemolgico, tentando trabalhar a linguagem sob diferente enfoque, articula essencialmente trs reas do conhecimento: o materialismo histrico (tendo como expoente s concepes de Althusser sobre ideologia); a lingstica e a teoria do discurso, sendo estas trs reas atravessadas por uma teoria do sujeito oriunda da psicanlise. precisamente o entrecruzamento da AD com a psicanlise que me interessa trabalhar neste texto, tentando balizar o que pertence a um campo terico e a outro, e aquilo que faz interseo. Pode-se, ento, pensar a AD a partir da articulao de trs correntes bsicas: materialismo histrico, lingstica e psicanlise. Esses trs siste-

Dosse sugere uma excelente metfora ao apresentar Roman Jakobson como o homemorquestra!

Texto originalmente publicado nas Coletneas do Programa de Ps-Graduao em Educao, vol. 5, n. 13, julho-agosto de 1997.

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mas de pensamento, se que se pode cham-los assim, foram gerados no final do sculo passado, difundindo-se a partir do incio desse sculo: o materialismo histrico com Marx, a lingstica com Saussure e a psicanlise com Freud. Cada um deles sofreu releituras importantes que modificaram e acrescentaram elementos fundamentais (de retomada), principalmente na dcada de 60-70, justamente na poca do nascimento da AD, que tomou dessas disciplinas alguns de seus elementos fundamentais. Ainda outro ponto em comum entre as duas disciplinas a histria da sua prpria constituio e de seu desenvolvimento. Com isto me refiro AD e psicanlise francesas que tiveram um percurso de rupturas e reconfiguraes, cada qual dentro de seus respectivos movimentos: A histria da constituio da AD pode, talvez, ser vista como uma amostra da histria das cincias dentro de um domnio, onde a ruptura sempre lugar de recobrimentos. O que constitua a fora da AD, enquanto acontecimento, era tambm o que a tornava insustentvel. Era preciso, ento, descompactificla (Maldidier, 1992, p.24). No materialismo histrico Althusser foi responsvel por contribuies importantes trabalhando com o conceito de ideologia. Ideologia, para ele, tem por funo interpelar os indivduos como sujeitos; portanto, a AD concebe o indivduo assujeitado pela ideologia. No contexto da lingstica, vrios autores trouxeram suas contribuies aps Saussure, dentre eles Benveniste, introduzindo a noo de subjetividade, o que por sua vez foi modificado e ampliado, incorporando a noo do Outro como constitutivo do sujeito. Entretanto, com a psicanlise que me ocuparei neste texto, procurando fazer uma aproximao desta com a AD, aprofundando a questo da interpretao, conceito to caro a ambas as disciplinas. Alguns trabalhos recentes acerca da AD j exploraram a questo do que esta disciplina toma de emprstimo da psicanlise (lacaniana), a fim de entender a questo do sujeito, enquanto produtor/produto do seu discurso. O que me interessa precisamente neste trabalho fazer, se possvel, um paralelo entre AD e psicanlise, tomando a questo da interpretao enquanto um interrogante a ambas as vertentes.

INTERPRETAO NA PERSPECTIVA PSICANALTICA Deutung Interprtation Interpretation Interveno do analista, que procura fazer surgir um novo sentido alm do manifesto, apresentado por um sonho, um ato falho, ou at mesmo alguma parte do discurso do sujeito (Chemama, 1995, p.109). Este conceito muito precioso para a psicanlise, principalmente no que tange a sua clnica. Entretanto, sofreu mudanas nas acepes de Freud a Lacan, ampliando, com esse ltimo, o seu poder de alcance. Para Freud, a interpretao constitua um dos modos mais fecundos de ao do analista no tratamento, principalmente no que tange aos sonhos, lapsos, atos falhos ou mesmo aos sintomas, ou seja, s formaes do inconsciente. atravs dessas formaes que o inconsciente se revela e a interpretao, ento, desvelaria o sentido latente que est por detrs deste contedo. Na prpria obra freudiana, o conceito sofre modificaes: do trabalho de trazer para o consciente as lembranas patognicas recalcadas, para um trabalho interpretativo mais espontneo, segundo aquilo que os pacientes associavam livremente. Logo, desde o incio, grande nfase dada s associaes do sujeito, sem as quais nada a respeito do sonho pode-se dizer, entretanto, tendo sempre em vista que a cultura e a lngua possuem smbolos pelos quais os sujeitos esto atravessados, constituindo o seu tecido simblico, o material mesmo do sonho. A psicanlise, muitas vezes, foi criticada e, paradoxalmente, mesmo reconhecida, atravs de um uso sistemtico, linear da interpretao, dando ao discurso e ao uma significao sexual estereotipada (Chemama, 1995, p.110). Freud (1910) deu a isso o nome de psicanlise selvagem, tema que retomarei mais adiante. com Lacan, um releitor rigoroso e criativo de Freud, que temos um relanar deste conceito e a possibilidade de um alcance maior. Com a

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postulao lacaniana de que o inconsciente estruturado como uma linguagem, a psicanlise mergulha em outros campos dos saberes, por estes influenciada e os influencia. A linguagem, portanto, toma um lugar central nas postulaes de Lacan, advinda, inicialmente, da lingstica de Saussure (embora subvertida), com os conceitos de significante e significado. Linguagem, ento, polissmica, remete a palavra a vrios sentidos diferentes. Para Lacan, a instncia da letra o que possibilita a polissemia do significante, tomando a palavra na sua homofonia e na sua diferena. A interpretao, portanto, deve fazer valer, ou pelo menos deixar abertos os efeitos de sentido do significante (Chemama, 1995, p.110). O conceito de significante, assim, torna-se essencial para se entender o conceito de sujeito, visto ser este determinado e representado por tal. INTERPRETAO NA PERSPECTIVA DA ANLISE DO DISCURSO Pcheux (1990), em O discurso: estrutura ou acontecimento discute sobre o real para falar em interpretao. Por que traz justamente esse conceito? Qual a sua ligao com a interpretao? Para ele: Interrogar-se sobre a existncia de um real prprio s disciplinas de interpretao exige que o no-logicamente-estvel no seja considerado a priori como um defeito, um simples furo no real (Pcheux, 1990, p.43). Ou seja, supor que entendendo-se o real em vrios sentidos possa existir outro tipo de real diferente dos que acabam de ser evocados, e tambm um outro tipo de saber, que no se reduz ordem das coisas-a-saber ou a um tecido de tais coisas. Logo: um real constitutivamente estranho univocidade lgica, e um saber que no se transmite, no se aprende, no se ensina, e que, no entanto, existe produzindo efeitos (ibid., p.43). Com isso, ele j aponta direes, na medida em que salienta que, para se pensar em interpretao, tem que se deixar algumas coisas em suspenso, em aberto. No h que se considerar elementos a priori, pois estes elementos s tero (faro) sentido na cadeia enunciativa (significante), no discurso produzido (historicamente).

O real remete a ordem do impossvel, do inapreensvel, do resto. E, tambm, do equvoco. Para Pcheux (1990), descrever supe o real da lngua e toda descrio est intrinsecamente exposta ao equvoco da lngua: Todo enunciado, toda seqncia de enunciados , pois, lingisticamente descritvel como uma srie (lxico-sintaticamente determinada) de pontos de deriva possveis, oferecendo lugar interpretao. nesse lugar que pretende trabalhar a AD (p.53). Ou, ainda, como coloca Authier-Revuz (1994), no texto Falta do dizer, dizer da falta: as palavras do silncio: ... vontade e dever de dizer, de nomear o inapreensvel, o incompreensvel, o impensvel, e, experimentando incessantemente que esse real escapa, dispor-se no a fix-lo mas somente de modo vital ao assim dizer (p. 276). INTERSEES... Algumas intersees tericas so fundamentais de ser explicitadas para se entender a questo da interpretao. Irei me deter um pouco naquelas que julgo pertinentes e de interesse terico para este trabalho; alm disso, so conceitos que embasam ambas as disciplinas, tanto a psicanlise como a AD. Conforme anteriormente mencionado, a psicanlise e a AD possuem em comum concepes tericas muito importantes e de inegvel interesse para ambos os campos de estudo. Contudo, possuem especificidades prprias aos seus objetos de estudo que no podem ser desconsideradas, sob o risco de um reducionismo, o que s empobreceria uma possvel aproximao. Assim, julgo importante aprofundar a questo sobre a noo de sujeito segundo cada disciplina. No que se refere questo do sujeito, parece procedente a articulao das concepes do materialismo histrico com as da psicanlise que a AD vem tentando fazer em suas pesquisas mais recentes. Certamente no se vai procurar o ponto de encontro entre essas duas cincias numa identidade de objeto (Swirski, 1996, p.44). A concepo de sujeito advinda da psicanlise que a AD tomou de emprstimo, principalmente na sua ltima fase (Maldidier, 1992), apresenta algumas particularidades, prprias a cada uma das disciplinas.

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O sujeito, para a psicanlise, no o indivduo (biolgico), mas produto da linguagem enquanto efeito da relao entre significantes; na AD, o indivduo se faz sujeito das condies histrico-ideolgicas que preexistem a sua existncia singular (Teixeira, 1997). Logo, a nfase, para a psicanlise, est colocada no lado do desconhecimento que o sujeito tem a respeito do que fala, visto que ele falado desde um outro lugar, que diz respeito noo de inconsciente. Para a AD, a nfase est no assujeitamento do sujeito frente s estruturas de funcionamento da ideologia. Ou seja, o sujeito tem a iluso de que senhor do seu discurso, e no apenas um efeito, um produto deste. Logo, para a AD, a autonomia do sujeito uma iluso. Ele no tido como autnomo, senhor do seu discurso; ele no unvoco. Essa disciplina orienta-se, assim, na direo de uma teoria no subjetivista da subjetividade, em que noes de ideologia e inconsciente tm papel essencial (Letras, 1996). Embora as duas concepes sejam diferentes, no penso que sejam paradoxais. Para a psicanlise, o sujeito no escapa ao primado do simblico, enquanto que para a AD, segundo as concepes de Althusser, o sujeito sempre interpelado pela ideologia. Ou seja, em ambas postulaes, o sujeito tem o seu lugar inscrito ou pelo sistema de produo (Althusser) ou pelas leis da cultura (Lacan) (Swirski, 1996). Portanto possvel, ao meu ver, fazer uma aproximao da noo de sujeito para a AD e para a psicanlise, relacionando-se inconsciente e ideologia: Temos, por um lado, que o simblico se impe de fora ao homem atravs da Metfora Paterna, que o faz sujeito em conformidade com as leis e normas da cultura. Por outro lado, as estruturas concretas do parentesco, ou seja, as funes especficas (paternidade, maternidade, infncia), as variaes histricas destas estruturas esto sensivelmente afetadas pela ideologia. Se o homem no escapa ordem da cultura, no escapa tambm interpelao ideolgica (Swirski, 1996). Entretanto essa aproximao levanta outros questionamentos, pelos lapsos deixados ao longo do caminho: onde se situa, para a AD, o sujeito do desejo, visto que ele histrica e ideologicamente determinado?

Acredito que com Authier-Revuz (1994) que a AD vai avanar nesta e em outras questes, quando esta autora introduz o conceito de falta no campo do Outro, conceito este cunhado por Lacan, e que faz ecos dentro das concepes da AD: E dessa falha em nomear, falha para dizer a verdade que no se diz toda porque as palavras faltam (Lacan) que estruturalmente se constitui o sujeito, em um irredutvel desvio [cart] de si mesmo, sujeito, pelo fato de que ele faltante e, por conseqncia do que ele , falho (p. 253). Authier-Revuz (1990) se refere a dois tipos de heterogeneidades no discurso: a mostrada e a constitutiva. As heterogeneidades do discurso vo dar conta de um sujeito que atravessado por uma exterioridade que o constitui e produz a a sua marca. De Lacan, Authier-Revuz (1990) toma duas concepes bsicas: a de uma fala fundamentalmente hetergena, ou seja, polifnica, e a de um sujeito dividido, onde se poderia perceber as pontuaes do inconsciente na lngua. Esta concepo do discurso atravessado pelo inconsciente se articula quela do sujeito que no uma entidade homognea exterior linguagem, mas o resultado de uma estrutura complexa, efeito da linguagem: sujeito descentrado, dividido, clivado, barrado... ( p.28). A autora conclui, ento, que a exterioridade est no interior do sujeito: constitutivamente, no sujeito e no seu discurso, est o Outro concepes do discurso, da ideologia e do inconsciente. Logo, para Authier-Revuz (1990), o sujeito no se constitui numa fala homognea, visto que as marcas de um discurso remetem a uma alteridade (evocada ou implcita) que aponta para a heterogeneidade da fala, conseqncia de um sujeito dividido, ou seja, inserido no campo do Outro, marcado pelo desejo do Outro. Trabalha, ento, o conceito de denegao que caracteriza as formas marcadas da heterogeneidade mostrada como formas do desconhecimento da heterogeneidade constitutiva: A presena do Outro emerge no discurso, com efeito, precisamente nos pontos em que se insiste em quebrar a continuidade, a homogeneidade fazendo vacilar o domnio do sujeito (ibid., p.33).

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O MAL-ESTAR NA INTERPRETAO Em O demnio da interpretao, Roland Chemama (1983) tece algumas consideraes muito interessantes e extremamente rigorosas sobre a questo da interpretao em psicanlise. Embora seja um texto j antigo, considero-o ainda bastante atual e, ao meu ver, aproxima-se muito das concepes da anlise do discurso. Procurarei, a seguir, abordar a questo da interpretao sob o ponto de vista da AD, fazendo um paralelo com a psicanlise, tendo como interrogante (no sentido de provocao) o referido texto, devido riqueza de conceitos e colocaes ali contidos e, tambm, devido ao fato dele se aproximar, ao meu ver, da abordagem que busca a AD em suas leituras. Como a psicanlise v a questo da interpretao na literatura? Acredito que um vertente possvel a da tica, ou seja, do alcance e das possibilidades possveis dessa prtica, como to bem nos aponta Chemama em seu texto. Freud tomou a literatura como um lugar de engajamento terico; ou seja, tomou-a como referncia na sua produo conceitual, no enquanto interpretao literal, mas enquanto inspirao. Dito de outro modo, Freud buscou na literatura instrumentos que o ajudassem nas suas descobertas clnicas. Isso no se deu pacificamente e, muitas vezes, foi duramente criticado. Lacan, por seu lado, mais explcito e, talvez, por isso mesmo, menos polmico neste aspecto. A literatura est presente em toda a sua obra e se vale dela inmeras vezes na elaborao de seus conceitos. Entretanto, assim como Freud, h uma preocupao tica da interpretao psicanaltica da literatura, da qual alguns psicanalistas infelizmente se esqueceram. Cito um trecho de Lacan (1965), que, ao meu ver, coteja muito bem a sua postura tica: ... a nica vantagem que um psicanalista tenha o direito de tirar de sua posio, uma vez que lhe seja reconhecida como tal, a de se lembrar, com Freud, que em sua matria, o artista sempre o precede e que sendo assim, ele no tem porque bancar o psiclogo ali onde o artista lhe abre caminho. precisa-

mente o que eu reconheo no Deslumbramento de Lol V. Stein, onde Marguerithe Duras se revela saber, sem mim, o que eu ensino. por isso que no estou desmerecendo seu gnio quando apio minha crtica sobre a virtude de seus meios. Que a prtica da letra converge com o uso do inconsciente, tudo o que tenho a testemunhar lhe rendendo homenagem. Voltando ao texto O demnio da interpretao, creio que Chemama (1983) foi muito perspicaz, mas sobretudo, extremamente rigoroso em suas consideraes a respeito da apropriao que uma leitura psicanaltica pode fazer de um texto, evitando os reducionismos e um fechamento de sentido, ou seja, um sentido j concebido a priori. , ao meu ver, tambm a postura tica da AD: Em suma, interpretar, para os analistas de discurso, no atribuir sentidos, mas expor-se opacidade do texto (Pcheux, 1990), ou, como tenho proposto (Orlandi, 1987), compreender, ou seja, explicitar o modo como um objeto simblico produz sentidos, o que resulta em saber que o sentido sempre pode ser outro (Orlandi, 1996, p.64). Em seu texto, Chemama (1983) faz uma dura crtica ao que chama de psicanlise aplicada : esse termo infeliz, que devemos a Freud, j diz bastante sobre a transposio, fora do campo de origem, de um saber j pronto (p.4). Com isso, ele se refere a modelos interpretativos que procuram as significaes ocultas que o texto porventura traz, que a psicanlise ento ajudaria a desvelar, interpretando. Essa leitura se aproxima da concepo da AD, na qual ... a interpretao uma injuno. Face a qualquer objeto simblico, o sujeito se encontra na necessidade de dar sentido. O que dar sentido? Para o sujeito que fala, constituir stios de significncia (delimitar domnios), tornar possveis gestos de interpretao (Orlandi, 1996, p.64). Segundo Orlandi (1994), nas diferentes direes significativas que um texto pode tomar h, no entanto, um regime de necessidade que ele obedece. No verdade que o texto possa se desenvolver em qualquer direo: h uma necessidade que rege um texto e que vem da relao com a exterioridade. Isto s pode ser compreendido se no pensarmos o texto em sua organizao, mas o texto em sua ordem significante (p.15).

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Ou seja, no quer dizer que no se possa encontrar elementos num texto que sejam passveis de interpretao, mas que no se tome a priori uma teoria, um sentido (o sentido) e, a partir disso, se busque decifr-lo. Pois, interpretar no simplesmente traduzir, visto que muitos sentidos escapam e, outros tantos, so equvocos. O sentido para a AD, no est j fixado a priori como essncia das palavras, nem tampouco pode ser qualquer um: h a determinao histrica. Ainda um entremeio (Orlandi, 1996, p.27). Lacan, em suas postulaes tericas, retoma a concepo de um sujeito imerso na histria, determinado socialmente em forma de indivduo. Foi um autor sempre preocupado em salientar o sujeito enquanto imerso na cadeia significante, na histria que o constitui e o determina. A psicanlise como corpo terico tem como objeto de estudo o sujeito na histria, efeito da Histria e da Cultura (Volnovich, 1991, p.51). Logo, o espao da interpretao o espao do possvel, de falta, do efeito metafrico, do equvoco, em suma: do trabalho da histria e do significante, em outras palavras, do trabalho do sujeito (Orlandi, 1996, p.22). Estando o sujeito imerso na histria e sendo por ela constitudo, os sentidos que pode ele dar s coisas e a sua prpria existncia esto atravessados por estes significantes que o constituem e deixam a as suas marcas. Esse discurso-outro, enquanto presena virtual na materialidade descritvel da seqncia, marca, do interior dessa materialidade, a insistncia do outro como lei do espao social e da memria histrica, logo como prprio princpio do real scio-histrico (Pcheux, 1990, p.55). O analista, conforme Chemama, no est procura de uma profundidade oculta do discurso (1983, p.6). Ele busca tomar naquilo que escuta do discurso, o que faz corte, escanso. Ele no ir buscar a um sentido profundo, essencial, nico. Mas ele ficar atento ao prprio funcionamento da escrita. A interpretao, se conservamos esse termo, no ser uma metalinguagem relacionando o discurso do escritor a um saber j constitudo. Ele ser corte, escanso operada sobre os traos da prpria escrita, que permite fazer sobressair aquilo que a j se encontra( p.6). Para a AD, a interpretao no mero gesto de decodificao, de apreenso do sentido. Tambm no livre de determinaes. Ela no

qualquer uma e no igualmente distribuda na formao social (Orlandi, 1996, p.67). Logo, o gesto de interpretao, fora da histria, no formulao ( frmula), no re-significao ( rearranjo) (p.17). Portanto, tomar um sentido como unvoco, interpretar sem levar em considerao as condies de produo do discurso, a historicidade da qual faz parte, nada mais do que uma busca estril e bastarda de um sentido que no outra coisa seno um estilo reacionrio e repressor. E, para finalizar, a ttulo de uma ltima interseo, uma frase de Volnovich, que ilustra, ao meu ver, uma desejvel postura tica: A teoria psicanaltica demonstra que a maior liberdade do ser humano consiste em ter a possibilidade de criar novos sentidos. Para isto necessrio, antes de mais nada, assumir a histria (1991, p.76).
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS: AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Cad. Est. Ling., Campinas, (19): 25-42, jul./dez. 1990. AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Falta do dizer, dizer da falta: as palavras do silncio. In: ORLANDI, Eni P. (org.) [et al.]. Gestos de Leitura: da histria no discurso. Campinas: UNICAMP, 1994. p.253-277. BRANDO, Helena N. Introduo anlise do discurso. 3 ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1994. CHEMAMA, Roland (org.). Dicionrio de psicanlise Larousse. Porto Alegre: Artes Mdicas, 1995. CHEMAMA, Roland. O demnio da interpretao. In: Le Disccours Psychanalytique, ano 3, n4, dez. 83. LACAN, Jacques. Homenagem a Marguerithe Duras pelo Deslumbramento de Lol V. Stein. In: Petits crits et confrences. 1965. LETRAS/ Universidade Federal de Santa Maria, Centro de Artes e Letras. Centro de Letras n12 (jan/jun 1996). Santa Maria: UFSM/CAL., 1996. MALDIDIER, Denise. Elementos para uma histria da anlise do discurso na Frana. Trad. Mnica Graciela Zoppi Fontana. MALDIDIER, Denise. A inquietude do discurso: um trajeto na histria da anlise do discurso: o trabalho de Michel Pcheux. 1992. (polgrafo discutido em sala de aula).
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MINAYO, Maria Ceclia. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em sade. ORLANDI, Eni P. Interpretao: autoria, leitura e efeitos do trabalho simblico. Petrpolis: Vozes, 1996. PCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento . Campinas, SP: Pontes, 1990. Sujeito do inconsciente e interdiscursividade: observaes sobre a interseo dos conceitos. Letras de hoje, Porto Alegre, v.32, n1, P.89-102, maro 1997. TEIXEIRA, Marlene. O sujeito o outro? Uma reflexo sobre o apelo de Pcheux psicanlise. Letras de hoje, Porto Alegre, v.32, n1, p.61-88, maro 1997. VOLNOVICH, Jorge. Lies introdutrias psicanlise de crianas. Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 1991.

ANLISE DE DISCURSO E PSICANLISE: UMA ESTRANHA INTIMIDADE


Maria Cristina Leandro Ferreira 1
1. ABRINDO O JOGO eixo de incio estampado/destampado o meu desconforto: falar de algo to prximo e tambm to distante, to ntimo e to estranho, to conhecido e, ao mesmo tempo, to desconhecido... Mas assim mesmo querer falar. O desejo, nesse caso, prevalece e me faz enfrentar o desafio. Nada parece mais simples do que falar da prpria rea em que trabalhamos, falar da prpria casa e dos que nela habitam e refiro-me aqui anlise de discurso da chamada escola francesa. Nada mais natural e, tambm, nada mais delicado e arriscado. Afinal, temos a iluso de conhecer os vos e os desvos do nosso espao, as aberturas e os esconderijos do nosso abrigo, seus pontos fortes e suas bases mais frgeis. Temos, por isso, uma certa segurana de no nos perdermos nos caminhos de nossa morada... Alm disso, conhecemos a vizinhana e as cercas que nos separam, sabemos at onde vai nosso terreno e onde comea o do outro. Alguns vizinhos so mais ntimos e nos tocam mais de perto; outros, ainda que prximos, mantemos distncia, tratando-os com formalidade. Mas o que fazer, ento, quando esse forasteiro mora dentro da nossa casa e dela insiste em no querer sair? O que fazer, afinal, com esse estrangeiro que nos habita? Com esse outro que nos concerne? Essas interrogaes expressam nossa investida nesse trabalho e estabelecem os contornos de nossa investigao. , pois, nesse territrio de estrangeiridade que habita a lngua, o discurso e o sujeito, que pretendemos penetrar, e como penetras, perscrutar seus mistrios e qui seus se-

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gredos.2 Esperamos que essa estranha intimidade entre Anlise do Discurso e Psicanlise que nos inquieta e intriga nos indique tambm novos rumos, quem sabe novos atalhos, at ento desconhecidos ou escondidos. Mas para isso preciso que abramos as portas e que demos passagem ao estrangeiro de dentro e de fora. 2. A MIGRAO ENTRE AS FRONTEIRAS A anlise do discurso nasceu em zona j povoada e tumultuada de um lado, numa esquina, ocupando quase todo o quarteiro a lingstica; na outra ponta, espaoso, o materialismo histrico; e no meio, dividindo o espao lado a lado com a psicanlise, a teoria do discurso. Portanto, essa contigidade, esse convvio fronteirio entre anlise do discurso e psicanlise vem de longe, vem desde o incio. Tais vizinhas, contudo, ainda que bastante prximas, guardam distncia e no confundem seus espaos comuns so ntimas, mas nem tanto, donde a estranha intimidade. Essa circunstncia especial de viver na fronteira, de estar na fronteira, torna seus habitantes mais sensveis e abertos a conviver com as diferenas, a aprender a absorv-las. Afinal, os ritos de passagem e o cmbio flutuante das condies fazem parte da dinmica da fronteira. E tanto a anlise do discurso quanto a psicanlise gozam desse estatuto. prprio tambm do fronteirio estar exposto a desditas, enfrentar as agruras prprias de quem vive margem, no limite, tendo que defender seu territrio, demarc-lo a cada nova investida do que vem de fora. A zona de fronteira , assim, um espao tenso, instvel, contraditrio ... e fecundo. Quem nela habita, desfruta de uma amplido de horizontes e de uma maior iluso de liberdade; liberdade ilusria porque implica, ao mesmo tempo, e paradoxalmente, um espao a ser compartilhado com o outro, o estrangeiro.

A anlise do discurso se define, desde sua concepo inicial, como uma disciplina que se constitui numa zona de interface, na fronteira entre o sentido e o no-sentido; entre o possvel e o impossvel; entre a completude e a incompletude. A psicanlise, por sua vez, se situa tambm na fronteira entre o consciente e o inconsciente; entre a lembrana e o esquecimento, entre o dito e o no-dito. As linhas demarcatrias entre as duas reas assinalam o lugar do fim e tambm do incio; ao mesmo tempo que fecham a fronteira dos respectivos territrios, apontam para um comeo, para uma continuidade. Desse modo, incio e fim de cada lado se confundem, se imbricam, se enlaam. 2.1. OS MARCOS QUE DISTINGUEM E INDISTINGUEM OS DOIS TERRITRIOS Podemos dizer, ainda que com algum risco, que o campo da anlise do discurso o dos sentidos; afinal, ela se apresenta como uma teoria materialista dos sentidos. E, sendo campo dos sentidos, traz para junto de si e para dentro de seu terreno, portanto, a ideologia, os sujeitos, a lngua e a histria. J o campo da psicanlise o do inconsciente; ela reconhecida como uma teoria do desejo. E, como tal, tambm convoca para seu mbito o sujeito desejante, o Outro e a linguagem. Muitos desses conceitos so comuns aos dois campos conceituais em exame. Contudo, o fato de circularem em ambos no os indistingue nem implica aproximaes redutoras. Cada conceito fundante ao ser desterritorializado ressignificado no novo espao terico, recebendo sentidos prprios e singulares. Como via comum de acesso aos dois pases, pensamos na FALTA como passaporte.E para tornar mais claro esse pensamento, convm que se ressalte o complexo e intrigante funcionamento paroxstico a envolvido. A falta algo que nos completa pela ausncia a presena na ausncia, a que faz referncia Lacan. E assim como uma dimenso estruturante para o SUJEITO (sujeito ideolgico e sujeito do inconsciente), ela se apresenta igualmente como constitutiva e condio de possibilidade para a LNGUA e para o DISCURSO. E isso vale tanto para um lado quanto para o outro; por essa via, portanto, os territrios se tocam. O carter estruturante e constitutivo

Esse estrangeiro que, desde sempre, vive em nossa casa, o que h de mais exterior e ntimo, de mais estranho e familiar. Sendo o mais opaco, o mais escondido, , ao mesmo tempo, o mais estranho e o mais interior. Souza, 1998, 156.

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da falta e o seu efeito em cada um dos conceitos fundadores tornam-na lugar de possibilidade por excelncia. Se no houvesse a FALTA, se o sujeito fosse pleno, se a lngua fosse estvel e fechada, se o discurso fosse homogneo e completo, no haveria espao por onde o sentido transbordar, deslizar, desviar, ficar deriva. nessas frestas deixadas pelos limites, nos interstcios que se formam entre as fronteiras, que vai existir um frtil e produtivo campo de anlise que pretendemos aqui explorar, dessa vez pelo vis do estranhamento. 3 3. O ESTRANHO QUE NOS HABITA A experincia do estranho parece indicar um momento de ruptura no tecido do mundo, essa teia de vus, imagens, sentidos e fantasmas que constituem o pouco de realidade que nos dado observar. (Neusa Santos Souza, 1998, 157) Pois de estranhamento no tecido de dois mundos que pretendemos falar: estranho lugar desde onde falamos que nos familiar e desconhecido; estranhas noes que fundam as teorias envolvidas que so comuns e tambm especficas; estranhas relaes que insistem em manter distintos conceitos indissociveis. Para incursionar por esses caminhos quase sempre sombrios e nada apaziguadores teremos que nos fazer acompanhar por alguns guias. Para nos introduzir na questo do estranhamento, suas particularidades e desdobramentos, vamos recorrer a Freud e a um texto seu, nodal nessa reflexo O estranho, (1919); em espanhol, siniestro, em alemo unheimlich.4

Em outro trabalho (Ferreira, 2000), investigamos essas brechas pela dimenso do equvoco, atravs do chiste, do humor e do jogo das palavras e brincadeiras com a lngua no espao da propaganda. Na opaca e resistente materialidade de certas construes, recolhidas no universo infantil e na publicidade, foi possvel desvendar um pouco mais de perto os deslocamentos e efeitos de sentido que subvertem o sistema, perturbando e surpreendendo sua prpria estrutura significante. 4 Agradeo a Simone Rickes pela indicao desse texto e tambm por outras tantas pistas no campo da psicanlise.

O prprio Freud nos conduz aos bastidores da palavra unheimlich, desvelando suas entranhas, suas excentricidades e seu carter paradoxal. E se detm numa anlise detalhada, meticulosa e instigante sobre os vrios sentidos que circulam em torno do termo e a surpreendente direo de ambivalncia que vai de heimlich (familiar) a unheimlich (no-familiar), fazendo com que o significado das duas palavras de incio, em oposio acabe por coincidir. Freud pretende ir alm da relao do estranho com o novo e o no-familiar, da voltar-se para outras lnguas em busca de nuanas outras para expressar o que assustador. Em portugus, tambm, h vrias maneiras de se referir noo de unheimlich: estranho, sinistro, fantstico, perigoso, nefasto, incomum, excepcional, esquisito, misterioso so algumas delas . Note-se que a escolha de uma j determina um sentido prprio, diferente, que aponta para especificidades distintas em relao aos demais termos. evidente que o que move Freud nessa investigao no a riqueza do aspecto lingstico-semntico da palavra, mas um interesse psicanaltico pela categoria do estranho. A particularidade lingstica, no caso, viria apenas confirmar a srie de casos individuais coligida por ele. Seu argumento geral o de que o estranho provm de algo familiar que foi reprimido e que retorna. A esse estranho que nos familiar Freud denomina de inconsciente. Ou seja: nosso prprio inconsciente que criamos e alimentamos tambm o que menos conhecemos, o mais sinistro. Essa natureza secreta do estranho, segundo Freud, nos faz compreender, ento, por que o uso lingstico estendeu o sentido de das heimliche [homely (domstico, familiar)] para o seu oposto das unheimliche. A psicanlise prope o reconhecimento desse estranho em ns mesmos como efeito de nossa prpria constituio. Nesse sentido, o texto de Freud traz uma importante contribuio como uma forma de leitura da subjetividade e estabelece uma estreita e rica relao com a Esttica e, especialmente, com a Literatura. Diz-nos Freud: O estranho, tal como descrito na literatura, em histrias e criaes fictcias, merece na verdade uma exposio em separado. Acima de tudo, um ramo muito mais frtil do que o

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estranho na vida real, pois contm a totalidade deste ltimo e algo mais alm disso, algo que no pode ser encontrado na vida real (...) O escritor imaginativo tem, entre muitas outras, a liberdade de poder escolher o seu mundo de representao, de modo que este possa ou coincidir com as realidades que nos so familiares, ou afastar-se delas o quanto quiser.5 Importante ressaltar que a literatura, como objeto de interesse de Freud, no entra como mera ilustrao da teoria, mas constituindo, articulada com o campo de saber psicanaltico, um caminho singular da interrogao de Freud., como esclarece Lucia Serrano Pereira6. Na opinio ainda dessa autora, Freud aproximou-se do texto literrio, deixando-se interrogar, em alguns momentos, pelos textos que traziam no as costuras harmnicas, redondas, mas as fices que apontavam os pontos de estranhamento, das fraturas, do recalcado, do que ele encontrava, do outro lado, na experincia de escuta/formulao recente do inconsciente.(Ibidem, p.49) Lacan, por sua vez, em sua releitura da produo freudiana, tambm no ficou alheio questo do estranho e seus efeitos. Chega mesmo, num funcionamento to a seu estilo, a inventar uma palavra xtimo, extimidade para designar essa terra estranha interior, esse fora alijado pelo processo do recalque, que o que habita de modo mais ntimo o sujeito, sua exterioridade ntima. De acordo com Neusa Santos Souza, que examina a condio do estrangeiro em um belo artigo7, extimidade o nome cunhado por Lacan para designar, de uma maneira problemtica, o real no simblico. que o simblico que nos concerne, o simblico que organiza a experincia analtica, abriga em sua estrutura uma heterogeneidade radical. o real, o ncleo duro do real. No centro do dizer, habita o que no se pode dizer, no universo feito de palavras h um mundo onde palavra alguma jamais pisou.(ibidem,

p.157). O estranho seria assim, segundo a autora, esse enlace entre os registros simblico e real que, num timo, se nos apresenta no imaginrio, lugar no qual tudo se representa, tudo vem luz.. No entanto, alerta a autora, o estranho se mostra a despido das paramentas que do consistncia a este registro, nudez esta responsvel pelo carter terrorfico, pela presena angustiosa, marcas prprias do real como impossvel de suportar. (Ibidem, p.157). Para a psicanlise, nas palavras de Nasio, para que uma coisa exista preciso que haja um furo em algum lugar. O sujeito do inconsciente nasce precisamente nesse furo, nesse lugar vazio, onde se ergue o obstculo de uma impossibilidade. 8 Estranho, inconsciente e furo renem-se aqui, novamente, como ns que se entrelaam numa mesma tessitura. No plano da anlise do discurso, o estranho comparece fazendo furo no tecido discursivo, como fio que se rompe, deixando irromper a falta, o buraco, o vazio do sentido, que clama por um sentido. Chegamos aqui a um ponto de contato entre os vizinhos que passa pelo efeito de estranhamento: tanto no campo da psicanlise quanto no da anlise do discurso, o estranho est sempre apontando para uma dimenso da falta, para uma zona limite que beira o paradoxo. Por isso, indicamos essa dimenso lacunar como uma espcie de senha de acesso aos dois stios. Sujeito e linguagem se apresentam como estruturas que comportam esse furo, o qual se manifesta pelo estranho, enquanto categoria desencadeadora da ruptura. Linguagem, em Lacan, o sistema que est em jogo como lngua. Este sistema precede o sujeito e o condiciona. H aqui um ponto de aproximao entre o sujeito da psicanlise e o do discurso. Ambos so determinados e condicionados por uma estrutura, que tem como singularidade o no-fechamento de suas fronteiras e a no-homogeneidade de seu territrio. Dessa forma, sujeito, linguagem e discurso poderiam ser concebidos como estruturas s quais se tm acesso pelas falhas. Esse

5 6

Freud, 1919, p.266. Pereira, 2003, p.17 Dissertao de mestrado em que analisa Dom Casmurro, de Machado de Assis, como um narrador incerto, entre o estranho e o familiar. 7 Cf. Souza, 1998.

Cf. Nasio, 1993.

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deslocamento terico da noo de estrutura, afastando-se da concepo cunhada pelo estruturalismo e inscrevendo-se como um novo paradigma no seio das cincias da linguagem, constitui-se numa das grandes e revolucionrias contribuies de Pcheux para os estudos da rea. E isso, certamente, tem a marca da psicanlise. Os psicanalistas, sabido, se interessam pela linguagem, e se interessam precisamente no limite em que a linguagem tropea. Do mesmo modo que ns, analistas de discurso, os psicanalistas ficam muito atentos ao momento em que a linguagem se equivoca e a fala derrapa. E tudo isso vai se dar, vai se mostrar , vai se capturar na materialidade da lngua. Para distinguir, ento, a lngua do inconsciente da lngua da lingstica entra em jogo um novo termo, cunhado por Lacan, visando assegurar a especificidade de seu campo. Lacan d uma importante contribuio para isso, ao forjar o neologismo grfico lalangue (em portugus, alngua), que solda o artigo e o substantivo 9. Alngua seria esse lugar do impossvel na lngua impossvel de dizer, impossvel de no dizer de uma certa maneira o no-todo no todo, o no-representvel no representado10. Esta entrada em cena da lngua essencial para a teoria do discurso e tem um ponto de contato com a psicanlise lacaniana. Enquanto na perspectiva psicanaltica, a via de acesso ao inconsciente se d pela lngua, na perspectiva discursiva, a via de acesso ao discurso se d pela lngua em sua forma material. E essa lngua aquela capaz de falha, de deslizes, de equvocos. ... na tica discursiva, falar da lngua falar da falta, admitir que o todo da lngua no pode ser dito em nenhuma lngua; sempre faltaro palavras para expressar algo, pois existe o impossvel a dizer. 11

Michel Pcheux em artigo intitulado O estranho espelho da anlise do discurso penetra nesse terreno incerto e tenso da anlise do discurso, em que a lngua e a histria, diz ele, encontram-se mutuamente sintonizadas e em choque. Ao tratar do estranho reconhecimento conquistado progressivamente por uma rea marginal, que pe o termo anlise do discurso em circulao cada vez maior, Pcheux 12 vai definir alguns traos do paradoxo que cerca a disciplina, sobretudo na Frana, onde surgiu, nos anos 1968/ 1969. O paradoxo da anlise do discurso est (por suas vicissitudes, guinadas e derrotas), na prtica indissocivel da reflexo crtica que ela exerce sobre si mesma, sob a presso de duas determinaes maiores: de um lado, a evoluo problemtica das teorias lingsticas; e, de outro, as transformaes no campo poltico-histrico. So, portanto, dois estados de crise que se encontram no ponto crtico da anlise do discurso. Com relao psicanlise, podemos afirmar que tambm existe e persiste nos seus domnios um permanente estado de crise, alimentado, na maior parte das vezes, por um movimento interno derivado das mltiplas correntes, linhas, escolas e tendncias em constante enfrentamento. O campo da psicanlise apresenta-se assim como um campo minado, a exigir dos que nele se aventuram um cuidado extremo com o cho (terico) onde pisam e as alianas que estabelecem. 4. DEIXANDO O VIZINHO ENTRAR Desde seus primeiros escritos, ainda como Thomas Herbert, h referncias diretas psicanlise, na obra de Michel Pcheux, especialmente no modo como ele constri o objeto discurso, no engendramento entre a lingstica como cincia da linguagem , do materialismo histrico como cincia das formaes sociais e da Psicanlise, como cincia do incons-

Milner o lingista que faz a ligao entre psicanlise e anlise do discurso. Pcheux reconhece sua importncia, ainda que o critique por no considerar o real da histria. 10 Cf. Milner, 1987, p.18 e segs. 11 Ferreira, 1999, p.130.

12

Pcheux, 1981,p.5.

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ciente. Isso explicitado ainda mais em Anlise Automtica do Discurso13, onde consta que uma teoria do discurso postulada enquanto teoria geral da produo dos efeitos de sentido, que no ser nem a substituta de uma teoria da ideologia, nem de uma teoria do inconsciente, mas poder intervir no campo dessas teorias. Interessante observar que, desde o incio, Pcheux faz as aproximaes tericas entre os terrenos, mas estabelece tambm os devidos limites, preservando a especificidade do domnio discursivo. H inmeras passagens que revelam sua preocupao em deixar claro o lugar de onde fala e em que condies certos conceitos so usados. Ao trazer a psicanlise para o campo epistemolgico da anlise do discurso, em sua reflexo sobre a histria das cincias e sobre a teoria das ideologias, Pcheux se mostra um homem ligado ao seu tempo. A conceituao tradicional de um sujeito centrado no seu prprio eixo no respondia mais s inquietaes da poca. A idia da determinao que atua sobre o sujeito era prevalente e incompatvel com a existncia de um sujeito livre, senhor de seus atos e de sua vontade. nesse ponto que se atravessa a psicanlise, com a hiptese do inconsciente formulada por Freud. Freud, com o descobrimento do inconsciente, o responsvel pela entrada em cena de uma noo de sujeito distinta do conceito tradicional de sujeito agente, a qual subverte de modo radical o cogito cartesiano e introduz a dimenso de uma racionalidade inteiramente nova. O psicanalista Marco Antnio Coutinho Jorge14 lembra que o prprio Freud chegou a comparar sua descoberta do inconsciente com dois outros golpes desferidos pela cincia sobre o amor-prprio da humanidade: Coprnico (a Terra no o centro do Universo) e Darwin (o homem no est no centro da criao). A partir de ento, o sujeito passa a ser concebido como algo sempre dividido, cindido, conflitivo, impossvel de se identificar de modo absoluto.

A alterao no quadro terico da psicanlise, em meados da dcada de 50, se deve a certos desvios que as idias de Freud vinham ganhando. Isso porque a leitura de Freud seguia um acentuado vis cientificista, que colocava em risco a caracterizao desse sujeito do inconsciente. Na verdade, o freudismo reinante, como nos lembra Dosse, 15 encaminhava-se para uma perigosa tendncia biologizante, com o risco de perder sua identidade e permanecer prisioneiro do positivismo vigente. a que surge em cena a figura do psicanalista Jacques Lacan, ao propor uma releitura de Freud, inscrita na filiao saussuriana, o que vai provocar uma salutar reao, muito alm das hostes psicanalticas. Lacan, ao apoiar-se nos princpios da lingstica saussuriana, fez da linguagem a condio do inconsciente, renunciando idia freudiana do substrato biolgico, herdado do darwinismo(Roudinesco, 2000, p.137). Ao formular seu clebre aforismo, o inconsciente est estruturado como uma linguagem, Lacan apropria-se da cientificidade da lingstica e prope-se explicar a psicanlise de um modo cientfico, obtendo um sucesso incontestvel nessa sua empreitada. Jorge (op.cit.) lembra que preciso que os achados psicanalticos adquiram uma ressignificao no mundo das idias, junto a outras disciplinas, para sair do gueto terico muitas vezes criado pela ortodoxia. E isso, sem dvida, a Psicanlise deve a Lacan. A psicanlise parte de dois conceitos fundamentais inconsciente e pulso que caracterizam a poderosa singularidade de suas descobertas, ao tratar da emergncia do sujeito. Lacan vai deter-se, particularmente, no inconsciente, chegando a constituir um novo nome para expressar essa realidade humana. Trata-se da consagrada trade real simblico imaginrio. O real apresentado como um corte na estrutura do sujeito, a falta originria da estrutura. precisamente em torno dessa falta que o inconsciente se estrutura. O real , portanto, o ncleo do inconsciente. Tudo comea a partir dele. Lacan tematiza o real de dois modos: O real o impossvel de ser simbolizado;

13 14

Pcheux, AAD (1969). Cg.Jorge, 2000.

15

Cf.Dosse, 1993.

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O real o que retorna sempre ao mesmo lugar. O simblico tem seu lugar, efetivamente, a partir do real. De acordo com Lacan, ele tem a ver com o saber em jogo na prpria experincia psicanaltica, responsvel pelas transformaes to profundas para o sujeito. no simblico que o sujeito do inconsciente se estrutura como linguagem. O imaginrio originariamente faltoso para o sujeito, captao especular no plano consciente. A possibilidade de sua constituio se d pelo efeito de introduo do simblico. Esses trs registros apresentam-se unidos de modo indissolvel na topologia do n borromeano, eles no podem ser isolados; precisam estar juntos para que a estrutura se estabelea. O real escapa simbolizao e se situa margem da linguagem; no h meio de apreend-lo a no ser pelo simblico. Real e furo esto, portanto, intimamente articulados, A concepo de sujeito formulada por Lacan, como um sujeito descentrado, efeito do significante que remete para um outro significante, encontra eco em outros campos das cincias humanas, como o caso da anlise do discurso e, especialmente, de Pcheux. Assim como Althusser foi uma influncia decisiva para Pcheux (bem como para toda uma gerao de intelectuais da poca), o encontro com as idias de Lacan tambm foi algo decisivo na sua reflexo terica e na sua vida. Em Semntica e Discurso (1975), as referncias a Lacan e sua teoria so bem freqentes, at pela insistncia de Pcheux em trabalhar uma analogia entre a ideologia e o inconsciente, que j se esboa no texto de 1968, de Thomas Herbert. O inconsciente, no sentido freudiano, e a ideologia, na acepo marxista, passam a ser revistos, respectivamente, ao modo lacaniano e althusseriano. fundamental reiterar nesse ponto, que mesmo com todo o fascnio de Pcheux, claramente manifesto, por alguns conceitos formulados pela psicanlise, tanto via Freud, mas sobretudo, via Lacan, ele nunca deixou de ressaltar e, mais que isso, advertir que as duas ordens a do discurso e a da psicanlise no coincidem, nem se superpem. Em Semntica e Discurso, talvez tomado pelo fantasma terico unificador da teoria do discurso (para usar a expresso mencionada por
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Maldidier), Pcheux fora uma aproximao terica entre o recalque inconsciente e o assujeitamento ideolgico, ainda que sem confundi-los. Ele mesmo em nota elucidativa alerta: (...) quando utilizamos aqui conceitos elaborados por J.Lacan, estamos separando-os da reinscrio idealista de sua elaborao, neles includa pelo prprio Lacan (...) De nossa parte, diremos simplesmente que formulaes como o sujeito do inconsciente, o sujeito da cincia, etc., parecem-nos participar dessa reinscrio idealista 16 J, no texto de 197817 S h causa daquilo que falha ou o inverno poltico francs: incio de uma retificao num corajoso exerccio de autocrtica, Pcheux corrige esse percurso e retifica, em parte, sua afirmao anterior, deixando claro que o recalque no se identifica nem ao assujeitamento nem represso, mas a ideologia no pode ser pensada sem referncia ao registro inconsciente(ibidem, p.301). Fica evidente, em ambas as passagens, que entre idas e vindas a anlise do discurso (como a quer e a entende Pcheux) no perde nunca seu eixo, como uma teoria materialista dos sentidos, que busca articular ideologia e inconsciente na constituio do sujeito, atravs de/e sob a linguagem. Mas volta aqui uma questo que est sempre presente e que incomoda: como conciliar a figura de um sujeito assujeitado, determinado pelas relaes sociais, produto da luta de classes, com um sujeito do inconsciente, movido pelo desejo, marcado por uma falta e submetido ao discurso do Outro? O primeiro registro que se pode fazer a respeito desse par conceitual o de que a tenso entre a sobredeterminao e o desejo no tem como se dissipar. Alm disso, vemos a uma aproximao problemtica ao tentar relacionar o sujeito assujeitado althusseriano, aquele interpelado pela ideolo-

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Pcheux, 1975,p.139. Pcheux (1978). Anexo de Semntica e Discurso

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gia, ao sujeito do inconsciente lacaniano, aquele identificado ao discurso do Outro. Isto porque, este grande Outro no traz carga alguma de subjetividade; ele alude a um lugar do significante e no a uma entidade. Em Lacan, o inconsciente como o discurso do Outro, est assim alm da regulao do sujeito. Na anlise do discurso, o discurso visto como atravessado pelo discurso do Outro e por outros discursos, sendo a alteridade entendida como condio constitutiva. O sujeito desse discurso, mesmo no sendo a fonte de seu dizer, tem a necessidade da iluso de s-lo. Pcheux, em seus ltimos textos 18, especialmente em Discurso: estrutura ou acontecimento, demonstrou no estar imune a essas questes envolvendo a interface com a psicanlise. Pelo contrrio, ele se encaminhava cada vez mais a perceber no sujeito, bem como na lngua, uma falha constitutiva, de carter estrutural. 5. VOLTANDO AO COMEO E aqui nos encontramos, de novo, a falar do furo e a falar da falha do discurso, da lngua e do sujeito como uma questo que no cessa de se inscrever. Na tenso entre a falta e a resistncia, no embate entre o impossvel e a contradio, a vai emergir o estranho que atravessa o territrio da anlise do discurso. A psicanlise funcionaria como esse estrangeiro, com o qual temos que dividir nossa casa, e que nos causa, no raro desconforto e mal-estar. Ela prpria, por sua vez, por tambm viver na fronteira, no estaria imune a essa presena estrangeira. Esse trabalho me propiciou um encontro, por certo, desejado, mas nem por isso ameno, entre minha rea de pesquisa e uma outra. Mas arriscaria dizer que esse encontro no se deu to somente no exterior entre dois mundos, ou entre os territrios, como preferi designar. Ele se deu tambm no interior, na intimidade de nossa morada.

Encontrei nas palavras de uma psicanalista uma definio para sua rea que em mim ressoou e fez sentido: Uma psicanlise o encontro de dois desconhecidos unidos pela transferncia. E por isso que ela oferece a oportunidade de se descobrir o estranho em si mesmo, permitindo que, um por um, cada qual faa sua a experincia do estrangeiro. 19 Ao tentar compreender o funcionamento desse convvio entre anlise do discurso e psicanlise (esses dois desconhecidos), acabei por realizar, em mim mesma, essa experincia do estrangeiro, de que nos fala Koltai, inquietante, incmoda, mas estranhamente atraente. Confirma-se, assim, o que foi anunciado, como um desabafo, l nas primeiras linhas: Deixo de incio estampado/destampado o meu desconforto: falar de algo to prximo e tambm to distante, to ntimo e to estranho, to dentro e, ao mesmo tempo, to fora...mas assim mesmo querer falar. Falei... (e disse?)
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS: DOSSE, Franois. Histria do Estruturalismo. So Paulo, Ensaio, Campinas, Ed. Unicamp, 1993. vol.1 FERREIRA, Maria Cristina Leandro. Da ambigidade ao equvoco: a resistncia da lngua nos limites da sintaxe e do discurso. Porto Alegre, Editora da UFRGS, 2000. _____. Saussure, Chomsky e Pcheux: a metfora geomtrica do dentro/fora da lngua. In: Linguagem & Ensino. Revista do Curso de Mestrado em Letras da Universidade Catlica de Pelotas, vol.2, n.1, jan.1999. FREUD, S.(1919). O estranho. In: Edio Standard Brasileira das Obras Psicolgicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago, 1996. JORGE, Marco Antonio Coutinho. Fundamentos da psicanlise de Freud a Lacan. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2000. vol.1. KOLTAI, Caterina. Poltica e Psicanlise. O estrangeiro. So Paulo, Escuta, 2000. LACAN, J.(1953) O simblico, o imaginrio e o real.
19

18

Pcheux, 1990.

Koltai, 2000, p.125.

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INTERPRETAO E AUTORIA: TRABALHO DO ANALISTA


Leda Verdiani Tfouni1

m trabalho anterior (Tfouni, 2001), apresento uma proposta segundo a qual a autoria de um texto se instala quando o sujeito do discurso ocupa uma posio que lhe permite lidar com a disperso e aceitar a deriva que sempre se instala. Vou retomar essa reflexo aqui, e tentar aprofund-la, fazendo, para tanto, um esforo no sentido de estabelecer um dilogo entre a Anlise de Discurso de filiao francesa e a Psicanlise lacaniana. Comeo mobilizando o conceito de deriva e afirmando que ela a irrupo do real, no sentido de que o real est na falta e, pelo processo de deriva, outras possibilidades de significao irrompem, quebrando a unidade e instalando o no-Um. Procurarei mostrar aqui que o trabalho de autoria situa-se nessa regio de quebra, ou fissura, do simblico, constituindo-se essencialmente sob a forma de uma tentativa de amarrao, ou de fazer Um. Pretendo apresentar o trabalho de autoria como sendo da ordem de uma interpretao ditica a qual se d no processo de enunciao. Retomo, nesse sentido, trabalhos anteriores, nos quais afirmo que o que serve para dar as coordenadas da autoria em relao ao sujeito-enunciador da atividade linguageira que o autor trabalha na regio do intradiscurso, enquanto que o enunciador est na dimenso do interdiscurso, de acordo com o seguinte processo: enquanto o autor tece o fio do discurso procurando construir para o leitor/ouvinte a iluso de um produto linear, coerente e coeso, onde no existiria a disperso, o sujeito linguageiro est preso dupla iluso, ou seja, imaginar que dono de seu dizer e tambm que aquilo que diz equivale a uma traduo literal do seu pensamento, um dizer sem deriva.
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Professora Associada do Departamento de Psicologia e Educao da FFCL-RP- UNIVERSIDADE DE SO PAULO (USP) - Pesquisadora do CNPq e do Programa de Ps-Graduao em Psicologia.

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Ora, estar sob o domnio dos dois esquecimentos e tentar domar a disperso, significa, ao mesmo tempo, que h um eu, que controla, e um sujeito que se perde. Ou, em outras palavras, significa admitir a existncia de lalangue, que no cessa de se infiltrar na lngua, movimento este que faz com que o trabalho de autoria se formule em um duplo eixo: por um lado, controlar, na enunciao, atravs de mecanismos lingsticos adequados, a disperso que ameaa a unidade do texto, o dizer pleno almejado; por outro lado, procurar mecanismos de ancoragem, que sedimentem e tragam uma naturalidade de sentido ao texto. Conforme vou mostrar brevemente mais adiante, o uso de genricos um desses mecanismos. Por ora, devo dizer que o autor est, deste modo, constantemente renunciando a outras formas paradigmticas possveis, dentro de uma ordem sintagmtica pretendida. por este motivo que Authier (s/d) comenta que a escrita (de autoria, acrescento eu) vem sempre marcada pela perda. O processo descrito gera momentos de uma dinmica especial na enunciao, e isto mostrado, na fala, pela ocorrncia de hesitaes, falsos comeos, enfim, as assim chamadas parapraxias que, atuando sobre a seqncia sintagmtica, indiciam a fora paradigmtica, ou ainda o embate entre a iluso de livre escolha, que a essncia do trabalho de autoria, por um lado, e a irrupo do real, fazendo furo no simblico e quebrando a transparncia imaginria da lngua, por outro. Nesses momentos, em que se d conta de que as palavras no recobrem totalmente o mundo, o sujeito perde seu apoio como autor e se refugia no grande Outro, a fim de buscar tamponar esse real. O que se delineia acima um embate entre consciente e inconsciente. F. Tfouni (2003) lembra que, se Pcheux considera o sujeito como assujeitado, no entanto, em Estrutura ou Acontecimento? (1997), o mesmo Pcheux coloca esse sujeito como um estrategista. A meu ver, este jogo de aprisionamento/liberdade que caracteriza o processo descrito acima, de irrupo do real no processo simblico: processo esse que cria, para o autor, uma necessidade de driblar, enganar a lalangue e refugiar-se na aparente opacidade da lngua. Esse estrategista, de que, em grande medi-

da, feito o autor, procura, ento, formas de contornar a disperso e a deriva que esto constantemente resvalando pelos interstcios e tentando instalarse. Estas colocaes levam a um questionamento: de onde surge o novo, aquilo que constitui um gesto de autoria? Para F. Tfouni (op. cit.), o novo o acontecimento, um ndulo do real que surge na realidade e clama por sentido. No entanto, fao notar que esse sentido no qualquer um, pois, sendo produzido pela ideologia, ele tem a funo de reequilibrar a ordem imaginria da sociedade, restabelecendo o mundo sua estabilidade lgica. Isto quer dizer que os mecanismos de reparos de que o autor se serve para consertar os desarranjos gerados pela irrupo desses ndulos do real no so neutros; esto, antes, a servio de formaes ideolgicas que podem ser dominantes ou dominadas. Ou, dizendo de outro modo, o processo de identificao ao grande Outro indicia um desejo recalcado de pertencer a uma ou outra das duas classes sociais em conflito. Ao fazer-se, na enunciao, a autoria, portanto, trai sua filiao. Esses so momentos de no-saber do sujeito, quando lhe falta a palavra na cadeia metonmica e um significante no se prende bem ao outro, ento o sujeito (que, como sabemos, aquele que emerge entre significantes) no pode emergir, isto , fica deriva, sem o prximo significante. No h coeso, ali onde o imaginrio falha... Assim, no saber como continuar a dizer equivale a um lapso e a que o sujeito pode emergir. Deste modo, pode-se supor que a ausncia da autoria, ou seja, a impossibilidade de existir textualizao, deve-se a um processo que , primeiramente de deriva e, depois, de disperso. nesses momentos, quando impossvel prosseguir e quando o sujeito se encontra diante de algo que falta (uma palavra...), a que o sujeito encontra refgio no grande Outro. Esse no-simbolizado pode ser representado como um ndulo do real que se interpe no processo simblico e fura a tessitura do texto. Diante deste no-sentido, faltando-lhe o solo debaixo dos ps, o sujeito tenta fazer o mundo voltar sua estabilidade lgica, como estrategista que . E ele faz isso dando um sentido a esse ndulo. Pcheux (1997) denomina esse pro-

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cesso de acontecimento: algo novo, ainda no simbolizado, da ordem de uma necessidade altica, clamando por sentido. Atribuir um sentido trabalho do imaginrio, da ideologia: fazer lao, estabelecer relaes, ordenar, classificar, comparar, transformar este novo que perturba em algo sempre-j-l. Domesticar a instabilidade da lalangue atravs da langue, fixando, assim, por metforas e metonmias, uma nova unidade transitria, que logo tambm se dissolver sob o assdio incessante do real, do retorno do recalcado, daquilo que impossvel de se dizer enquanto tal. Como fica o trabalho do autor nesses momentos? Sabemos que toda escolha implica excluses. A memria memria do desejo, afirma Freud, e, portanto, a estratgia que o sujeito usa para restituir cadeia metonmica a sua seqncia perdida no est ligada a um processo consciente nem aleatrio. Assim, para voltar posio-autor, o sujeito se refugia no interdiscurso pelo lado do avesso: ele se refugia no fantasma. Essa retomada de posio d-se atravs de um movimento de retorno seqncia discursiva, com o propsito de (re)interpret-la, atravs de um mecanismo de retroao que estabelece ponto-de-estofo, conforme descrito por Lacan no grafo do desejo. (Lacan, 1998 [1966]). Atravs deste movimento, o sujeito realiza a tarefa de analista, retornando aos enunciados j proferidos e pontuando a cadeia significante em lugares especficos, onde possvel fazer uma releitura, uma amarrao com a memria e, deste modo, estabelecer ponto-de-estofo. O ponto-de-estofo, tambm denominado significante mestre, permite que a srie sintagmtica detenha-se momentaneamente e possa ter continuidade, atravs de uma leitura retroativa que j uma interpretao e, portanto, uma retomada do dito em um momento posterior, mas ainda dentro do processo de enunciao. Esse movimento permite que o sujeito lance um anzol sobre a cadeia metonmica e a faa deter-se, relanando, deste modo, a significao, atravs de um processo de amarrao que vai restabelecer a unidade aparente e transitria do texto. O corpo novamente uno, no mais despedaado.... Lacan nos faz visualizar esse processo. Aps definir o ponto-de-estofo como a operao pela qual ... o significante detm o deslizamento, de

outra forma indeterminado e infinito, da significao (op. cit., p. 808), ele S, apresenta o grafo, onde o ponto-de-estofo est representado pelo vetor que colcheta em dois pontos a cadeia significante. possvel fazer, aqui, uma aproximao com os conceitos de deriva e de acontecimento, criados por Pcheux (op. cit.), e to caros Anlise do Discurso. Deter-se, para conter a deriva que sempre est prestes a se instalar, pela insistncia do real (isto explicado lingisticamente pelo conceito saussuriano de valor do signo), possibilita ao sujeito gestos de autoria, movimentos de retorno ao jdito, que vo realocar a cadeia significante em lugares do interdiscurso e da memria social (arquivo), atualizando-a e reconfigurando-a. Esse processo realizado lingisticamente de vrias formas, principalmente atravs do uso de shifters (processos diticos e anafricos: pronomes, advrbios, etc) e pelo mecanismo da nomeao e tambm atravs do uso de frmulas genricas, como homem no chora. Ao enunciar homem no chora, temos a formulao: todos os homens no choram, silenciando alguns homens choram. A qualidade de no chorar para se constituir como sendo do homem aparece como algo natural, no-social e historicamente construdo, justamente por um mecanismo ideolgico que silencia uma qualidade contrria nessa constituio. Assim, justamente na dominao de um sentido em detrimento de outros que se estabelece a eficcia dos genricos e da ideologia na manuteno de formaes ideolgicas dominantes. Essas frmulas, que povoam o imaginrio social e se propagam maciamente pela mdia, no so absorvidas diretamente pelo sujeito, pois este confrontado com suas experincias, o que o obriga a fazer re-inscries no seu dizer. Essas re-inscries esto submetidas s posies discursivas que podem ou no ser assumidas pelo sujeito, por serem da ordem do interdito. Logo, do ponto de vista discursivo, a utilizao de genricos cria o efeito de sentido de um enunciador universal, que fala de um mundo semanticamente estabilizado, onde no existe discordncia. Esses momentos se caracterizam por estabelecer uma sntese, uma verdade incontestvel que serve de fechamento, ou ponto-de-estofo para os enunciados produzidos at aquele momento.

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Chemamma, falando sobre os provrbios (que so um tipo de genrico) na experincia psicanaltica, afirma que ... s se pode dar conta da experincia do real na forma proverbial (2002:25). Ou, em outras palavras, ao usar estas frmulas encapsuladas, o sujeito anula-se enquanto locutor e refugia-se, atravs da lngua, no grande Outro irredutvel. , portanto, o domnio do Outro sobre o sujeito que os genricos indiciam. Pelo fato de tentar instituir uma verdade universal, as frmulas genricas funcionam como indeterminadores, o que, ainda segundo Chemamma, permite que o sujeito possa ... romper a barreira da relao imaginria do eu, que impedia que o inconsciente se manifestasse. Para que isto ocorra, preciso ir alm do eu, e tambm do voc: preciso romper a relao dual. (op. cit.:39). Ou seja, preciso romper o fluxo comunicativo do discurso, a linearidade S- S, e fazer a retroao, o movimento de interpretao que ir estabelecer ponto-de-estofo ( S1 ). nesse momento que o sujeito se depara com seu prprio desejo que lhe apresentado pelo discurso do grande Outro na forma de uma questo: Che vuoi?. No se pode esquecer, porm, que as escolhas que o sujeito faz, quando faz uso de genricos, no so aleatrias, nem neutras, nem conscientes. A voz universal que se faz ouvir a, longe de ser de fato o consenso que anularia as diferenas de classes, ndice de que a ideologia da classe dominante pode fazer-se voz no dominado, num processo de identificao que tampona o real, conferindo naturalidade voz do excludo. Enfim, podemos pensar nessa relao entre autoria e disperso/deriva, bem como do seu controle atravs do ponto-de-estofo, como uma metfora do que ocorre na experincia analtica do div, quando uma fala solta/ frouxa adquire o status de palavra plena (Lacan, 1998), sob o efeito da interveno do analista.
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS: AUTHIER, J.(mimeo n/p) Paroles tenues distance. CHEMAMMA, R. (2002). Elementos lacanianos para uma psicanlise no cotidiano. Porto Alegre, RS: CMC Editora.

LACAN, J. (1998). Rumo a um significante novo. Opo Lacaniana, n. 22, pp. 615. LACAN, J. (1998 [1966]). Subverso do sujeito e dialtica do desejo no inconsciente freudiano. In Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar, pp. 807-842. PCHEUX, M. (1997). O discurso: Estrutura ou acontecimento? Campinas, SP: Ed. Pontes. TFOUNI, L. V. (2001). A disperso e a deriva na constituio da autoria e suas implicaes para uma teoria do letramento . In I. Signorini (Org.). Investigando a realao oral/escrito e as teorias do letramento. Campinas, SP: Mercado de Letras, pp.77-96. TFOUNI, F.E.V. (2003). A fantasia capitalista do sujeito centrado e o desmentido fetichista . Ms. n/p, 31 p.

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VCTORA, L. G. Situao da psicanlise...

SITUAO DA PSICANLISE NO BRASIL


Ligia Gomes Vctora

nfelizmente no pude estar presente na reunio com Elizabeth Roudinesco a propsito da situao da psicanlise na Frana. Mesmo assim, gostaria de entrar na discusso sobre a situao da psicanlise no Brasil e no mundo, dando meu depoimento baseado no que observei e escutei. Nos meses de agosto/setembro, estive em Paris e tive oportunidade de discutir longamente o assunto com colegas de diversas instituies e com diferentes pontos de vista. As questes que escutei l so muito diferentes das que urgem aqui e renem no mesmo saco a seguridade-social (equivalente ao nosso SUS), que paga todas as intervenes desde aspirinas ou simples curativos, a culos ou a cirurgias com fins meramente estticos; a medicalizao acelerada da psiquiatria, as polticas pblicas de sade, que permitem acesso aos arquivos mdicos e psicolgicos para consulta das partes interessadas... No se trata de querer fazer uma oposio entre o local e o internacional, mas, neste ponto, parece que o divisor de guas mesmo o oceano. Em um momento poltico de novos cdigos de tica, parece que no Brasil seguimos mais as tradies norte-americanas que as europias. Na Frana, as listas dos associados das Associaes Psicanalticas foram pivs de discusses e mostram que listas ainda assombram (como a de Schindler?), e com razo, nossos colegas do alm-mar. Aqui nossa histria outra e os fantasmas que nos assombram tambm so outros. Fazemos um esforo para dialogar e trocar experincias entre idiomas, cdigos de costumes e enormes diferenas sociais e econmicas que separam nossas realidades. Por isso, sempre que podemos, levamos nosso depoimento e nosso trabalho para outros pases, aprendemos outras lnguas, traduzimos, escutamos crticas e elogios, ensinamos e aprendemos com eles. Da mesma forma, no congresso A Masculinidade, trs colegas franceses estiveram presentes, vindo por suas prprias expensas, e pelo desejo

de trazer sua contribuio para o dilogo sobre um tema tanto atual quanto controvertido, pois que faz um contraponto com o conceito de Freud a feminilidade. Ficou claro, por suas atitudes, que eles no vieram para nos ensinar, mas para uma legtima interlocuo. Durante todo o congresso, esforaram-se para escutar os trabalhos e conversar com os presentes, mesmo no dominando a nossa lngua. Isso, a meu ver, atesta sobre a maturidade da APPOA, quando comemoramos os 15 anos de existncia desta. Momento de virada nas relaes internacionais, momento de tenso nas nacionais. Vejamos o que ocorreu bem aqui, neste mesmo congresso. Mais de 500 pessoas reunidas, entre as quais, psicanalistas, psiclogos, psiquiatras, psicoterapeutas, antroplogos, socilogos, estudantes universitrios e curiosos de todos os gneros. Uma outra lista, contra o Ato mdico, circulou, angariando quase a unanimidade de assinaturas dos presentes. Sem alarde, sem propaganda, silenciosamente, pacificamente... Ao puxar a discusso europia para o Brasil, ser que no estamos deixando de atentar para uma questo concorrente que est, correndo por fora, ganhando terreno da psicanlise e de todos os profissionais, artistas ou artesos que trabalham de alguma forma com a sade?

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UM TEXTO A RESPEITO (DA MORTE) DE DERRIDA


Charles E. Lang
(Ao Figueiredo e ao Stein)

o Domingo, dia 10.10 (2004) encontrei Robson Pereira na Livraria Cultura. Talvez ele tenha me encontrado, a gente nunca sabe disso, mas quando escreve um texto, o eu uma marca de que quem escreve sou eu, no o outro, que um texto um ponto de vista, o meu. Pois bem, Robson disse que havia lembrado de mim, pois Derrida havia morrido. Ele no estava pensando em mim ou no Derrida, mas pensou em ns depois de saber que Derrida falecera e pensar em quem poderia escrever algo sobre isso quando, entre outra de suas ocupaes e preocupaes, o Correio da APPOA o ocupava. Derrida faleceu. Quem poderia escrever um texto sobre isso? A resposta o encontrou na Livraria, ou ele a encontrou... Ento ele perguntou: Voc poderia escrever um texto? 1 Esta a resposta pergunta, um texto sobre Derrida, em que coloco a morte entre parnteses (esta deve ser uma das funes de todo texto) e em que no sei, de comeo, o que quer dizer texto. Por certo tecitura, tecido, tecelagem. Mas h algum ser que responda pelo nome texto? Um texto, num sentido restrito, o que ocupa uma pgina (no latim paganus , aquele que habita o campo), o que se d a ler num livro, por exemplo. Num sentido mais geral, pode ser tudo o que chamamos de realidade, se a compreendermos como um sistema de sistemas, como pginas escritas em diferentes sistemas simblicos.

Escrevo isso e desse modo para no apagar a gnese do texto, num trabalho contra a tendncia geral de todo texto, como veremos um pouco adiante, de apagar a sua gnese, no fluxo e refluxo metaforizante.

Um texto , de entrada, um campo polmico, o espao heterogneo de um conflito de foras j, antes de tudo, fora e sentido e requer, mais do que uma leitura neutra, metdica ou especulativa, interveno estratgica e singular, implicada em tal ou qual lugar ou momento daquele espao. Ao ler, ns nos internamos num texto e no h qualquer relao com um texto que j no seja uma leitura e uma interpretao. Mas, o que quer dizer ler, interpretar? Talvez seja revelar o fundo mvel e metafrico de um texto. Por exemplo, algum v um pintor furando a orelha de sua modelo com uma agulha para, ali e depois, colocar um brinco. Do olho da modelo escorre uma lgrima que o pintor recolhe com o dedo e a dispersa nos lbios da modelo. Voc que agora l o que escrevi h algum tempo (escrevo no presente, mas serei lido no futuro) pode imaginar que estou descrevendo uma cena, uma pintura, etc. No entanto, estou tentando contar o que algum me contou. Este algum assistiu um filme e falou da cena para dizer que viu na cena uma cena sexual, em que cada coisa representa um elemento de uma cena sexual (agulha que perfura uma superfcie da qual sai sangue e logo uma lgrima de dor ou prazer brota dos olhos...). No se trata de um equvoco. Voc me l como se eu tivesse es crito, ou como se eu estivesse falando? O que diferencia uma fala de uma escrita? E no caso daquela que assiste uma cena em que v uma coisa registrada por um cinegrafista mas enxerga outra (uma relao sexual)? A linguagem invadida pela metfora, o refluxo ou o retirar-se da metfora, o que exige um texto, que suporte esse movimento. Um texto que, por sua prpria natureza, ou por sua prpria lei, resiste a ser compreendido como a expresso de um sentido. Texto que, por ser processo significante geral, submete o discurso lei da no-plenitude ou no-presena do sentido e que est, por sua vez, submetido lei da insaturabilidade do contexto, encobrindo e revelando, em extratos, a construo gentica de um processo significante. Aprendi muitas coisas com Jacques Derrida, desde que entrei em contato com sua obra no doutorado, em 1998 e pelas mos de meu orientador,

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Lus Cludio Figueiredo2. Principalmente, reaprendi a ler. E aprendi um pouco de teoria da traduo, de teoria da leitura e da interpretao e um pouco mais de Psicanlise, com ele que nunca se deitou em um div, mas que manteve uma longa e duradoura amizade com Ncholas Abraham e Maria Torok e Ren Major, e que era casado com uma psicanalista. Para descobrir que Lacan o mais famoso e importante dos psicanalistas com quem Derrida discute em seus textos, mas no o nico nem o principal. E que possvel ler Freud, de novo, a partir de textos como O bloco mgico. O primeiro texto de Derrida que enfrentei, ingenuamente, foi a Gramatologia. Depois, foi preciso se armar melhor. Li e reli e de quando em quando a ele retorno. O segundo, o que me apaixonou: A farmcia de Plato, a leitura meticulosa e respeitosa que Derrida faz do Fedro. De texto em texto cheguei a um curso do prof. Ernildo Stein, na PUC/RS, sobre a desconstruo Derrida, Heidegger e Freud. Era paixo. A mesma que eu percebia em outros de seus leitores e em alguns de seus seguidores. E tambm nos seus inimigos. Ele intrigou e apaixonou mais americanos do que franceses ou alemes. Pudera, nos Estados Unidos ele era lido muito mais nos Departamentos de Literatura do que nos de Filosofia, e nestes Departamentos a desconstruo vingou e prosperou, at constar em ttulo de filme de Woody Allen. Conversei com os textos de Derrida durante e aps o trmino de meu doutorado. Com o homem, apenas uma vez, e por poucos minutos. Eu era mais um que disputava a ateno do filsofo. E nem chegou a ser uma conversa. Mas ouvi a sua voz, partilhei de sua presena (temas to caros Metafsica), tietagem intelectual pura, da qual no me constranjo, mesmo que estivesse l sozinho. Mas no por isso que me deu um aperto quando ouvi, no dia 09.10, no Jornal Nacional, que Derrida havia morrido. Uma semana antes havia revisto as quase quatro horas que gravei, vdeo em punho, de

Os cursos que Figueiredo ministrou naquele ano no PEPG em Psicologia da PUC-SP esto publicados em FIGUEIREDO, L.C. (1999) Palavras cruzadas: entre Freud e Ferenczi, So Paulo, Escuta, cujo primeiro captulo faz uma apresentao didtica de uma metodologia de leitura francamente inspirada por Derrida.

Derrida falando. Os detalhes dos movimentos de suas mos, as expresses, as inflexes de voz, o gesto espontneo e o gesto estudado. A morte j era anunciada na notcia de mais de trs meses de que o cncer o consumia. Sua ltima estadia no Brasil, em agosto ltimo, encerrou-se com um ar de despedida. Derrida estava morrendo e no eram apenas os seus textos que nos cativavam. Derrida se foi e seu ltimo ato poderia ter sido o de receber o prmio Nobel de Literatura. Teria sido a coroao, como a de Freud em 1930. Um prmio pelo amor ao texto, leitura, interpretao, escrita. Um guardio da palavra, zeloso e ciente do poderes que ela contm ou detm. Derrida era candidato ao prmio, mas no ganhou. No entanto, foi ele quem aguou para alguns de nossa gerao, a dimenso literria e metafrica que habita os textos, sejam eles cientficos, filosficos ou psicanalticos. Dimenso que o tecido de que feita a realidade e que significantes como o sacrifcio, a solidariedade, o perdo, a amizade, a hospitalidade, a confiana no so palavras gastas. E que mesmo a mais gasta das palavras ainda est viva. No final dos anos sessenta, mais do que participante do maio de 68, ele foi um dos poucos a anteverem o que estava por vir: a era da informao, da informtica, da globalizao e do fim do Livro. E da pena de ganso, que ele utilizara para escrever seu textos mais srios, ele chegou mquina de escrever, comprada nos Estados Unidos, e ao Mac da Apple. Esta uma das metforas da obra de Derrida. A escrita pena da poca sisuda e sria dos textos jurdicos e teolgicos, ao hipertexto e banalidade das escritas da multimdia, daquilo que no se faz mais mo (Heidegger dizia, repetia Derrida, que o rgo do pensamento a mo), mas na mquina (o computador) e publicadas diretamente nas pginas da Internet; sem um trabalho do texto, sem a mediao necessria antes de chegar ao pblico. David Lodge, em seu romance Invertendo os papis, repete a metfora de Derrida, para conclu-la com um texto que se acelera no ritmo e na forma de um roteiro de cinema: o final so imagens em um caleidoscpio. Como se o simblico e a voz da escrita se desvanecessem e fossem tomadas pelo silncio da imagem. No mais preciso nem falar nem escrever, a imagem disse tudo.

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RESENHA

Derrida esteve no Brasil trs vezes. Desde 2002, esperava-se que ele viesse a Porto Alegre. A esperana desapareceu. Talvez seja isto mesmo o que a morte presentifica. O fim da esperana. Tema que alis empolgava Derrida, na linha de um Benjamin e de Lvinas: o messianismo sem Messias, a abertura para o futuro, aguardar alguma coisa pois alguma coisa sempre sobrevir. Mas o que ser, isso no pode ser respondido de antemo; necessrio garantir, sempre, a estrutura da espera, a abertura para o futuro. Talvez meu texto sobre a morte de Derrida no dissipe a iluso. A morte para todos. Para alm da iluso, no entanto, ele reafirma o desaparecimento de algum que continua pensando a nossa poca, algum que faz falta e, por isso, entra para a histria universal de nossos pensamentos.

AVENTURAS DO SENTIDO PSICANLISE E LINGSTICA 1


Margareth Schffer, Valdir do Nascimento Flores e Leci Borges Barbisan (orgs.) Aventuras do sentido Psicanlise e Lingstica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. 364 p.

Trata-se, antes, de um grande esforo de leitura, claro, mas que pretende ter a virtude de ser capaz de fomentar a discusso, de avisar uma interlocuo (...) Settineri, p. 250

esenhar sem ter a oportunidade de discutir as idias frustrante; tomamos, pois, uma citao de um dos autores como mote para os comentrios que se seguem. Aventuras do sentido Psicanlise e lingstica um volume contendo sete trabalhos: trs so produes coletivas; os outros, escritas individuais. Alm disso, no possuem o mesmo gnero: temos ensaio, monografia, tese. Teramos, a rigor, que construir o mesmo nmero de longas resenhas; no o fizemos para no fugir da proposta da sesso Rumor. Optamos, no entanto, por elaborar comentrios e propor discusses do que nos tocou em cada trabalho, um por um. Ainda guisa de introduo, importante sublinharmos que os trabalhos dedicam-se, de uma maneira geral, relao da psicanlise com a linguagem no registro do simblico, onde Lacan localizou as incidncias do significante como pura diferena, como representao que remete sempre a um outro significante. As questes da escritura, da letra e do registro do real no so aqui abordadas, com exceo do que tratado no captulo cinco (p. 200 e sgs.) do quinto artigo, A constituio da subjetividade: a questo do
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Publicado originalmente no livro Novos sintomas. Salvador: galma, 2003.

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significante. Assim, este volume rene trabalhos em torno do funcionamento simblico, alargando horizontes com estudos de pensadores, tais como Arriv, Benveniste, Ducrot, Hegel, Bachelard, Cassirer, Authier-Revuz, Chemama, Melman, entre outros, e proporcionando debate no que se refere clnica psicanaltica da neurose e da psicose. Sobre a necessidade e a natureza das relaes entre a psicanlise e a lingstica, de Schffer, Flores e Barbisan organizadores do volume o primeiro trabalho. Introduz a diferena epistemolgica entre a psicanlise e as lingsticas; descreve suas influncias mtuas, e sublinha a enunciao como a presena do sujeito no enunciado. Esta presena subverte a idia de simetria do dilogo, onde supostamente haveria comunicao. Isso leva retomada da questo do sentido, como reza o ttulo desta coletnea. O segundo trabalho Freud e a autonmia de Michel Arriv; a partir da frase negativa de Lacan, no h metalinguagem o lingista discute dois pontos: se a autonmia seria uma prova contrria a Lacan, e se Freud concordaria com Lacan quanto a no haver metalinguagem, nem nas formaes do inconsciente, nem na interpretao analtica. Para defender a hiptese de que no se encontra uma teoria metalingstica em Freud, o autor toma a teoria dos sonhos e a metapsicologia para demonstrar que o que Freud chama de palavra no tem o mesmo estatuto do signo lingstico. A elaborao de Arriv localiza o corte entre as duas disciplinas que ser observado em todos os trabalhos que se seguem , e que corresponde ao algortmo de Lacan S/s, tal como ele o desenvolveu na Instncia da Letra. A denegao na neurose e na psicose o escrito de uma pesquisa coletiva. O grupo dos autores estuda a Verneinung freudiana luz dos desenvolvimentos de Ducrot que estabelecem a negao polmica e a concepo polifnica da enunciao, e evidenciam a marca do Outro na operao do recalque. Os autores apontam as diferenas da estrutura da linguagem na neurose e na psicose, e suas incidncias no uso da negao. Ilustram-na com trechos da escuta psicanaltica, o que enriquece e esclarece o estudo. Uma discusso central se estabelece na interpretao que os autores fazem quando dizem fracasso do recalque (p. 54) e que remete traduo e inter-

pretao da Aufhebung do texto da Verneinung de Freud. No discurso do analista, a estrutura do recalque, uma vez estabelecida, no fracassa: ela produz seus efeitos, entre os quais a Verneinung. Comentaremos abaixo a questo desta traduo. A tese que se segue, de Margareth Schffer, faz uma reviso das concepes filosficas da negao num mbito diverso de psicanlise e lingstica, ttulo do volume. A autora estuda Hegel, o primeiro Bachelard, Serres, o segundo Bachelard e as influncias que ele teve de Duran e Cassirer na retomada das questes da imaginao simblica; na seqncia, vm as concepes de Granger. No captulo seguinte, a autora discorre sobre a negao na psicanlise de Freud e de Lacan propondo-se a estudar o tema enquanto fato psicanaltico mais amplo (p. 137), isto , situando-o epistemologicamente; exerccio acertado, necessrio e esclarecedor, uma vez que o sujeito da psicanlise falta a ser descentrado em relao ao ser filosfico: o lixo do homem (litura pura) no dever constranger o analista, pois com restos e faltas que a clnica lida e realiza suas construes. No ltimo captulo, a autora complementa seu texto, escrito num tempo anterior, retomando os debates de Deleuze com as idias de Espinoza, Benjamin, e Bourgeois quanto ao tema da negao. Antes de passarmos para o comentrio do prximo artigo, gostaramos de assinalar que a opo da traduo de Aufhebung por cancelamento no texto da Verneinung, feita por Schffer a partir da edio Amorrortu, alvo de debate entre os analistas: temos suspenso na Standard Brasileira, e na traduo de Eduardo Vidal (Revista da Letra Freudiana, n. V); alzamiento em Ballesteros; e cancelacin na Amorrortu. Lacan, nos crits, prefere conservar o termo em alemo. O que est em jogo na interpretao do termo a prpria concepo do recalque, como mencionamos acima; mesmo no recalque secundrio no h cancelamento: h, continuamente, formaes do inconsciente; por isso a nossa preferncia por suspenso. Em A constituio da subjetividade: a questo do significante, de Schffer, Settineri, Barbisan, Teixeira, Nbrega, Flores e Brauner, os autores primeiramente estudam o signo saussuriano em duas vertentes: a edio estabelecida por Bally e Sechehaye, e o confronto introduzido pelo estudo

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dos manuscritos de Saussure (Godel, De Mauro, Bouquet): retomam e debatem os conceitos de signo, significado, significante, significao, arbitrariedade, valor. A seguir, abordam a leitura divergente feita por Lacan, centrando o que o ttulo do ensaio preconiza: o interesse na teoria do significante em ambas as disciplinas. Neste trabalho os autores fazem justia importncia que a leitura de Jacobson teve na construo lacaniana das frmulas da metfora e da metonmia, atravs das quais o significante opera na sua representao do sujeito para um outro significante; adentram-se pela anlise da lgica do significante, na qual Lacan utiliza matemtica, lgica e topologia para fazer a mostrao do real na teoria, para garantir matemas na transmisso da psicanlise, para dar conta da lgica do inconsciente; o conceito de letra como idntica a si mesma (enquanto que o significante diferente de si mesmo) vai marcar o passo do simblico ao real, fazendo-os conviver com o imaginrio numa relao de trs registros homogneos, mostrada no enodamento borromeu. A ltima parte dedicada teorizao do quarto lao do n borromeu, na neurose e na psicose. O artigo da lingista Mnica Nbrega Lacan e a lingstica sausuriana: um tiro que errou o alvo, mas acertou na mosca? defende que a interpretao lacaniana do signo que parecia subversiva s idias de Saussure, na realidade acompanha bastante a teoria tal como ela apareceu revisada na edio crtica de Tullio de Mauro; assim, o algoritmo lacaniano S/s est prximo ao verdadeiro pensamento saussuriano. A autora faz uma reviso dos elementos lingsticos utilizados por Lacan tais como aparecem na Instncia da Letra (crits), luz dos estudos efetuados por Michel Arriv sobre o significante em Saussure e em Lacan. Surpreende a ausncia de referncia ao lingista Roman Jakobson no estudo da metfora e da metonmia lacanianas, e na anlise dos dois planos da cadeia significante, a partir do texto de Jakobson Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia tal como est indicado na Instncia da Letra. O ltimo artigo Quando falar tratar: o funcionamento da linguagem na interpretao psicanaltica um livro: o psicanalista Settineri faz um percurso esclarecedor das relaes da fala e do sentido com a psicanlise, rumo a uma teoria da interpretao. Nesta trilha, o autor articula as idias de

Jakobson sobre o enunciado e a enunciao, para aproximar-se da questo do sujeito psicanaltico; segue com a teoria saussuriana/lacaniana do significante como pura diferena e pura representao para descrever as formaes do inconsciente; adentra-se pelos chistes como via rgia do inconsciente estruturado como uma linguagem. Neste ponto, Settineri aplica aos chistes a teoria polifnica da enunciao de Ducrot, do modo como o trabalho coletivo A denegao na neurose e na psicose aplicou-a no estudo da Verneinung. Nos exemplos dos chistes aparecem as questes sobre o sentido: o duplo sentido, o sem sentido, um outro sentido, evidenciando a presena da outra cena: expresso do desejo inconsciente ertico ou agressivo. O autor toma tambm a teoria de Jacqueline Authier-Revuz sobre a heterogeneidade para demonstrar a diferena entre a hermenutica e a interpretao analtica: esta ltima tem a estrutura de ato, e se d na transferncia. Neste ponto, dedica-se a fazer a reviso das relaes de Lacan com Saussure, nas suas duas edies. O que o leva ao mago de seu artigo: a interpretao ser estudada como corte na linearidade discursiva. O corte obtido pela interrupo da fala; pela repetio, por parte do analista, de um segmento do discurso do analisando; pela interrupo da sesso. Este corte produz o clculo de um novo sentido, e seu efeito s poder ser observado a posteriori. Logo, a interpretao analtica no uma traduo. Settineri remete os leitores teoria do nachtrglich, de Freud a Lacan, e indica o Seminrio As formaes do inconsciente, onde Lacan constri o grafo do desejo a partir deste movimento da cadeia significante e do ponto de capitonagem, que detm o deslizamento da significao. Na ltima parte do artigo, o autor trabalha exemplos da clnica analtica comentando-os luz de sua tese. Finalizando: se aceitamos que o inconsciente estruturado como uma linguagem, os estudos sobre a linguagem se tornam imprescindveis para o analista; se, por outro lado, O inconsciente pode ser, como eu dizia, a condio da lingstica (Radiofonia), isso tambm abre uma perspectiva de novas elaboraes para os lingistas, como ficou bastante evidenciado nos estudos apresentados neste volume. Elaine Foguel

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AGENDA

Capa: Manuscrito de Freud (The Diary of Sigmund Freud 1929-1939. A chronicle of events in the last decade. London, Hogarth, 1992.) Criao da capa: Flvio Wild - Macchina

DEZEMBRO 2004
Dia 02, 09 e 16 06 e 20 09 10 10 13 16 Hora 19h30min 20h30min 21h 8h30min 15h15min 20h30min 21h Local Sede da APPOA Sede da APPOA Sede da APPOA Sede da APPOA Sede da APPOA Sede da APPOA Sede da APPOA Atividade Reunio da Comisso de Eventos Reunio da Comisso do Correio da APPOA Reunio da Mesa Diretiva Reunio da Comisso de Aperidicos Reunio da Comisso da Revista da APPOA Reunio do Servio de Atendimento Clnico Reunio da Mesa Diretiva aberto ao Membros da APPOA

ASSOCIAO PSICANALTICA DE PORTO ALEGRE GESTO 2003/2004 Presidncia: Maria ngela C. Brasil a 1 Vice-Presidncia: Mario Corso 2a Vice-Presidncia: Ligia Gomes Vctora 1a Secretria: Marieta Rodrigues 2a Secretria: Marianne Stolzmann 1a Tesoureira: Grasiela Kraemer 2a Tesoureira: Maria Lcia Mller Stein MESA DIRETIVA Alfredo Nstor Jerusalinsky, Ana Maria Medeiros da Costa, ngela Lngaro Becker, Carmen Backes, Clara von Hohendorff, Edson Luiz Andr de Sousa, Gladys Wechsler Carnos, Ieda Prates da Silva, Jaime Betts, Liliane Seide Froemming, Lucia Serrano Pereira, Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack, Maria Beatriz Kallfelz, e Robson de Freitas Pereira

EXPEDIENTE rgo informativo da APPOA - Associao Psicanaltica de Porto Alegre Rua Faria Santos, 258 CEP 90670-150 Porto Alegre - RS Tel: (51) 3333 2140 - Fax: (51) 3333 7922 e-mail: [email protected] - home-page: www.appoa.com.br Jornalista responsvel: Jussara Porto - Reg. n0 3956 Impresso: Metrpole Indstria Grfica Ltda. Av. Eng. Ludolfo Boehl, 729 CEP 91720-150 Porto Alegre - RS - Tel: (51) 3318 6355 Comisso do Correio Coordenao: Marcia Helena de Menezes Ribeiro e Robson de Freitas Pereira Integrantes: Ana Laura Giongo, Fernanda Breda, Gerson Smiech Pinho, Henriete Karam, Maria Lcia Mller Stein, Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jnior e Rosane Palacci Santos

PRXIMO NMERO

TRANSMISSO E FORMAO
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S U M R I O
EDITORIAL NOTCIAS 1 3
N 131 ANO XI DEZEMBRO 200 4

SEO TEMTICA 4 A LINGSTICA DE FERDINAND DE SAUSSURE, A PSICANLISE DE JACQUES LACAN. O QUE PODE UMA DIZER OUTRA? Valdir do Nascimento Flores 5 UMA LINGSTICA SOBRE O QUE NO PDE SE DIZER: BENVENISTE Marlene Teixeira 12 EFEITO PATOLGICO/EFEITO ARTSTICO: JAKOBSON, DA AFASIA POTICA Luiza Milano Surreaux 18 A QUESTO DA INTERPRETAO NA ANLISE DO DISCURSO E NA PSICANLISE: INTERSEES Marianne Stolzmann Mendes Ribeiro 25 ANLISE DE DISCURSO E PSICANLISE: UMA ESTRANHA INTIMIDADE Maria Cristina Leandro Ferreira 37 INTERPRETAO E AUTORIA: TRABALHO DO ANALISTA Leda Verdiani Tfouni 52 SEO DEBATES 60 SITUAO DA PSICANLISE NO BRASIL Ligia Gomes Vctora 60 UM TEXTO A RESPEITO (DA MORTE) DE DERRIDA Charles E. Lang 62 RESENHA 67 AVENTURAS DO SENTIDO 67 AGENDA 72

PSICANLISE, LINGSTICA E ANLISE DO DISCURSO

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