O Infotainment e A Cultura Televisiva. Itania

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O Infotainment

e a Cultura Televisiva

ITANIA MARIA MOTA GOMES1

Infotainment, neologismo que traduz o embaralhamento de fronteiras entre informação e


entretenimento, tem ocuado boa parte da energia produtiva de profissionais e investigadores de algum
modo ligados à Cultura Midiática. Um rápido levantamento num dos principais bancos de dados para
pesquisa científica, o Scopus2, nos apresenta 242 itens, entre artigos (116), papers (70) e outros tipos de
documentos, publicados a partir de 1995. Se limitarmos a pesquisa às Ciências Sociais, Artes e
Humanidades, os itens caem para 26, sendo 21 artigos. Até o ano 2000, a base não registra mais que três
documentos publicados por ano. Em 2007 e 2008, encontramos 59 e 47 registros, respectivamente. O
termo tem, portanto, pelo menos duas décadas de existência e surgiu num duplo contexto. Nas
engenharias da computação e na indústria automobilística, ele se refere a uma gama de aplicações
multimídia digitais em tempo real, que permitem aos motoristas e seus passageiros acessarem serviços de
informação e entre-

1
Pesquisadora do CNPq e professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura
Contemporâneas/UFBA, onde coordena o Grupo de Pesquisa em Análise de Telejornalismo. Realizou pós-doutorado
na Université Sorbonne Nouvelle. Autora de Ejeito e recepção. A interpretação do processo receptivo em duas
tradições de investigação sobre os media (e-papers, 2004). Atualmente (2009-2011), é presidente da Associaçãoo
Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação/Compós.
2
Levantamento realizado em 30 de janeiro de 2009: http://www.scopus.com/scopus/home.url. Pesquisadores
brasileiros têm acesso também através do Portal de Periódicos da Capes:
http://www.periodicos.capes.gov.br/portugues/index.jsp.

195
tenimento, tais como informações meteorológicas, condições das estradas, mapas e estatísticas em tempo
real, mas também filmes, músicas, fotos, e-mails e sites de relacionamento3. Nas Ciências Sociais, em
especial na Comunicação, ele se refere ao embaralhamento de fronteiras de áreas presumivelmente
distintas da cultura midiática, informação e entretenimento. O que a expressão denota, nos usos que
adquire nos dois contextos, é a articulação entre as tecnologias da informação e da comunicação e a
globalização da cultura midiática.

Embora a relação entre informação e entretenimento não seja, de todo, uma novidade, a ampliação
do debate sobre a questão e o surgimento da expressão infotainment evidenciam que há um problema
sendo colocado na pauta da investigação científica sobre os processos midiáticos. Na área da
Comunicação, grande parte da discussão sobre infotainment concentra-se em dois enfoques, mais ou
meno articulados: os estudiosos das relações entre comunicação e política perguntam-se sobre os efeitos
do infotainment sobre o funcionamento da esfera pública, sobre os processos de democratização, de
formação do cidadão, da participação política; os estudiosos do jornalismo inquietam-se com relação às
consequências das grandes mudanças econômicas, tecnológicas e regulatórias do campo midiático sobre
elaboração, difusão e consumo das notícias4.

3
A título de curiosidade: o MyGIG, por exemplo, um desses sistemas de infotainment implantado em alguns modelos
dos automóveis da Chrysler, oferece um sistema de áudio e entretenimento em tecnologia touchscreen, incluindo um
disco rígido de 20 gigabytes, que inclui Music Juke Box para a organização de músicas e fotos; entrada USB que
permite baixar arquivos nos formatos WMA, MP3 e JPEG para o disco rígido; banco de dados já instalado no disco
rígido para permitir a identificação de músicas — inclusive compositor, artista e título; criação de playlists para
facilitar acesso aos arquivos; tela do sistema de áudio que exibe filmes (http://www.chrysler.com/en/2008
interior/infotainment/).
4
Em outro momento (Gomes, 2008a), discutimos a relação entre jor-

196
O embaralhamento de fronteiras entre informação e entretenimento, que parece caracterizar a
cultura midiática hodierna, é, porém, mais debatido e criticado do que propriamente investigado. A
expressão infotainment tornou-se uma muleta para críticos apressados, mas a leitura de publicações
científicas ou profissionais é de pouca ajuda na compreensão do fenômeno: não encontramos definições
sistemáticas, não temos clareza das razões de sua existência, não podemos avaliar suas potencialidades. A
maior parte do debate traduz o espanto com o reconhecimento de que, ―como uma espécie de vírus Ebola
cultural, o entretenimento invadiu organismos que ninguém jamais poderia imaginar que pudessem
oferecer diversão‖ (Gabler, 2004, p. 74). Neste artigo, recusaremos o lugar-comum da denúncia do
infotainment e concentraremos nossos esforços na compreensão do fenômeno com relação à televisão.
Para tanto, adotaremos um percurso que se interroga sobre o contexto de surgimento do termo e sobre as
condições de possibilidade de sua utilização, de modo a refutar os usos excessivamente largos que ele
vem recebendo em nossa área. Defendemos que infotainment designa uma estratégia de produção
midiática que não é, em si, nem boa, nem má, e que parece resultar de uma complexa articulação entre
políticas macroeconômicas, marcos regulatórios, possibilidades tecnológicas, estratégias empresariais,
expectativas históricas e culturais sobre os sistemas televisivos e seus produtos, ideologias, práticas e
expectativas profissionais do campo midiático, pressupostos e conhecimentos sobre a audiência. Assim,
concluímos o artigo num esforço de articular o conceito de estrutura de sentimento, apresentado por
Raymond Williarns como urna hipótese cultural, com as noções de dominante, residual e emergente
que Williams utiliza em Marxismo e Literatura para descrever

nalismo e entretenimento e mostramos como o infotainment tem implicações sobre o jornalismo enquanto uma
atividade social, enquanto ideologia e enquanto campo profissional.

197
elementos de diferentes temporalidades e origens que configuram o processo cultural e, na sequência,
evidenciar esta articulação numa análise, ainda bastante preliminar, de um dos principais eixos das
mudanças que estão sendo implementadas no Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão. em 2009,
quando o programa comemora seus 40 anos no ar.

O infotainment se explica pelas grandes mudanças ocorridas no sistema global de comunicação,


devido a dois fatores articulados: a consolidação do neoliberalismo 5 como opção política hegemônica no
final do século XX, o que teve como uma de suas consequências a desregulamentação dos sistemas
nacionais dc comunicação, e a acentuada ampliação das possibilidades tecnológicas de produção,
distribuição e consumo da cultura midiática. Estes dois fatores, conjugados, formam o cenário que
denominamos como globalização da cultura midiática.

As transformações não se limitam a mudanças de ordem tecnológica, mas atingem o conjunto do


modo de regulação do setor das comunicações em nível mundial. Em especial no caso audiovisual e das
telecomunicações, esse movimento se traduziu num processo generalizado de desregulamentação, re-
posicionamento do Estado, constituição de novas formas e instâncias de regulação, internacionalização e
incremento da concorrência internacional (Bolaño, 2003, p. 4).

Em termos dos sistemas globais de comunicação, a consolidação do neoliberalismo tem sua base
legal no Acordo Geral sobre Comércio de Serviços ou General Agreemeni on Trade in Services
(GATS), que regulamenta, no âmbito da Or-

5
Brevemente, consideramos aqui liberalismo a doutrina política que prega a total ausência do Estado do âmbito da
economia, de modo a permitir que o mercado se auto-regule, que maximiza o papel dos mercados e minimiza o papel
do Estado. Em sua forma mais avançada, o neoliberalismo, doutrina política hegemônica no final do século XX, não
prega a total não-regulação, mas prevê interferência mínima do estado.

198
ganização Mundial do Comércio, todas as formas de prestação de serviços realizadas pelo comércio
internacional6. Ele foi aprovado em 15 de fevereiro de 1997 e implica o compromisso dos Estados-
membro da OMC em liberalizar seus serviços básicos de telecomunicações, ou seja, abrir o setor à
participação do capital estrangeiro. No Brasil, o marco regulatório inicial foi a emenda constitucional n°
8, promulgada em agosto de 1995 e transformada na Lei Geral das Telecomunicações Lei n° 9.472/97,

de julho de 1997, que revogou o antigo Código Brasileiro de Telecomunicações. A LGT não só autoriza a
exploração dos serviços de telecomunicação pela iniciativa privada, como estabelece a criação de um
órgão regulador para o setor, que virá a ser a Anatel. A regulamentação neoliberal dos anos 90 enfatizou,
em todos os setores, a abertura do mercado nacional ao capital estrangeiro, considerada uma via
fundamental para o desenvolvimento do país. A transferência dos serviços prestados por empresas estatais
ao controle privado e a abertura do mercado nacional ao capital estrangeiro foram a via política
construída para a modernização do país sob o Governo Coilor e em consonância com as diretrizes
econômicas do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional7.

Sistema global de comunicação implica a transnacionalização das indústrias culturais, que se


expandem econômica e geograficamente, tanto através de investimentos diretos quanto através de
aquisições de grupos midiáticos estrangeiros, em especial dos países em desenvolvimento, com grande
potencial consumidor, e que se organizam de modo a produzir e distribuir seus produtos para um pú-

6
O Brasil membro da OMC desde 1° de janeiro de 1995:
http://www.wto.org/english/theWTO_e/countries_e/brazil_e.htm No site da Organização Mundial do Comércio
(http://www.wto.org/) é possível encontrar mais informações sobre o GATS, incluindo o arquivo em PDF com o
texto integral do acordo e todos os seus anexos posteriores.
7
Sobre a regulação das comunicações no Brasil, ver Jambeiro, 1996, 2008; Caparelli & Santos, 2005, Bolaño, 2003.

199
blico global. Os serviços de comunicação, que incluem todo o setor do audiovisual, das
telecomunicações, da produção gráfica e dos serviços postais, se tornaram o maior setor no mercado de
fusões e aquisições8 de empresas. Nos anos 90, o setor das telecomunicações, por exemplo, só ficou atrás
dos bancos em valores envolvidos nas negociações.

Nos anos 90, a indústria das telecomunicações era a segunda maior em valor de dólar, 524,3 bilhões
de dólares, atrás dos bancos comerciais (547.2 bilhões de dólares), e a radiodifusão era a quarta maior
indústria no mercado de Fusões e Aquisições, com uma participação de 309.8 bilhões de dólares, atrás de
petróleo e gás (com 326,2 bilhões de dólares)... Numa combinação das indústrias de radiodifusão com a das
telecomunicações (834,2 bilhões de dólares), não resta dúvida de que o setor de comunicação foi o mais ativo
e o maior no mercado de Fusões e Aquisições nos anos 90... (Jin, 2008, p. 366).

Nove corporações midiáticas transnacionais, em sua maioria concentradas nos Estados Unidos,
controlam o mercado global: Time Warner, Disney, Bertelsmann, Viacom, News Corporation, Sony, TCI,
Universal e NBC. Estes ―gigantes‖ têm interesses em várias áreas da produção midiática, tais como as
indústrias cinematográfica, editorial e fonográfica, canais e redes de TV, revistas e jornais, e parques de
diversão. ―Um filme, por exemplo, deverá também gerar uma trilha sonora, um livro, e merchandise, e
possivelmente desdobrar-se em shows televisivos, CD ROMs, video games e passeios em parques de
diversões‖ (McChesney, 1997). Ao lado da concentração da produção e distribuição, a expansão do
sistema global de comunica-

8
Mergers & Acquisitions ou fusões e aquisições é uma estratégia que implica a compra, venda ou combinação de
diferentes empresas que podem ajudar, financiar ou contribuir para o rápido crescimento em uma dada área do
mercado sem ter que criar uma outra pessoa jurídica.

200
ção está associada a outros fenômenos, tais como acirramento da concorrência, ampliação dos
investimentos em tecnologia, maior expectativa de lucros e fragmentação da audiência.

No caso específico da televisão, o contexto atual parece consolidar quatro tendências básicas:
desregulamentação; ampliação da concorrência, inclusive para fora dos espaços nacionais, em especial
com o desenvolvimento dos satélites; convergência de tecnologias e, portanto, o embaralhamento de
fronteiras também entre os distintos media e distintas indústrias culturais; e, finalmente, a globalização. E
este contexto, claro, tem implicações sobre a produção, a distribuição e o consumo televisivos — por
exemplo, quando a TV se caracterizava por ser uma indústria nacional, o seu produto mais
comercializado internacionalmente era o programa, que era produzido num contexto nacional e apenas
adaptado para outros mercados (o que quase sempre significava a adaptação à língua local, com a
produção de traduções, dublagens, legendas, ou a adaptação à censura política ou religiosa). Hoje, as
emissoras cada vez mais comercializam formatos, que possibilitam plena adaptação às culturas nacionais
ou rcgionais compradoras. O licenciamento de formatos é uma das atividades mais lucrativas da indústria
midiática. Formatos como o Big Brother, da Endemol, já foram produzidos em 36 países. Recentemente,
o grupo ampliou sua participação no Brasil:

A Endemol, líder mundial em programação de entretenimento, anunciou hoje que está crescendo
significativamente a sua presença no Brasil com o lançamento da Endemol Brasil — uma nova propriedade
completamente voltada para a produção regional... Endemol Brasil vai produzir uma ampla gama de
programação de entretenimento para o mercado televisivo brasileiro, retirados da biblioteca global de
conteúdo da empresa... Paralelamente à Endemol Brasil, a Endemol Globo, grupo resultante da fusão (50/50)
com a empresa líder brasileira TV Globo, vai continuar a ser uma importante produtora de pro –

201
gramação de entretenimento para a TV Globo... Marco Bassetti, Chefe do Escritório de Operações da
Endemol, comenta: ―O lançamento da Endernol Brasil significa que, pela primeira vez, temos uma operação
local própria para a produção neste importante território no qual já estabelecemos urna forte e crescente
presença. A combinação desta nova empresa com o sucesso contínuo da nossa fusão com a Globo irá reforçar
significativamente a nossa posição neste mercado‖9.

O infotainment seria, então, o resultado desse cenário global. Nos anos 80 e 90 do século XX, a
consolidação de grandes conglomerados da mídia, que se ocupam ao mesmo tempo da produção de
entretenimento e de informação, a cada vez mais alta exigência de audiência e de lucro na indústria da
cultura e a transmissão televisiva da primeira guerra do Golfo, evidenciaram o estreitamento entre
informação e entretenimento.

Usos demasiadamente ampliados da expressão infotainment, no entanto, tendem a torná-la pouco


produtiva para a compreensão do embaralhamento de fronteiras entre informação e entretenimento no
cenário televisivo. Portanto, para que infotainment tenha alguma validade, seja para interpretação dos
processos midiáticos, seja para interpretação dos seus produtos, precisamos fazer algumas ressalvas.

A primeira delas é que, rigorosamente, infotainment não é um conceito. Como neologismo, o termo
se constrói sobre a junção/superposição de duas expressões que caracterizam duas áreas (até então
distintas) da produção cultural, a informação e o entretenimento. A segunda delas é que infotainment
carrega um sentido suficientemente amplo de inforinação para não se restringir à informação jornalística
o que permite aos autores recorrerem a infotainment para falar de produtos que não têm qualquer relação
com o jornalismo, ainda que não se possa negar que contenham informação no seu conteúdo. Neste
sentido, quando falamos de infotainment não

9
Press release publicado em 04 de fevereiro de 2009, no site: http://www.endemol.com/news/endernol-launches-
new-operation-in-Brazil.

202
necessariamente estamos falando da relação entre jornalismo e entretenimento, ainda que a maior parte da
discussão sobre o infotainment se interrogue sobre as estratégias de captura da audiência usadas pelos
programas jornalísticos, sendo essas estratégias o que normalmente se considera como entretenimento.

A terceira ressalva é exatamente a de saber o que é entretenimento, em especial quando


relacionado à televisão. Nos estudos sobre comunicação e cultura, entretenimento é amplamente definido
de um ponto de vista depreciativo. Ele é. frequentemente, o pólo negativo de certas dicotomias:
contrapõe-se a arte e cultura, contrapõe-se a filosofia, a conhecimento, a verdade, contrapõe-se a
jornalismo... Os usos mais correntes do termo entretenimento, seja na bibliografia científica, seja na
crítica aos media, se referem: a) a um valor das sociedades contemporâneas (e, como valor, o
entretenimento se traduz pela primazia do prazer e dos sentidos); b) a uma indústria que se dedica à
produção de uma mercadoria ao mesmo tempo econômica e simbólica; c) aos meios massivos de
comunicação, aí se confundindo com seus produtos: videoclipes, canções, histórias em quadrinhos,
telenovelas, filmes, programas de auditório, transmissões esportivas, reality shows, entre outros; d) a um
conteúdo específico veiculado por esses media (lazer, cultura, esportes, moda, viagens, celebridades,
estilo de vida, fofocas); e) à linguagem audiovisual, em especial no que se refere à sua alta visualidade, e
àquela resultante da convergência tecnológica. Os dois primeiros usos são os mais amplos e os que mais
claramente acolhem a complexidade do fenômeno. Como valor, a primazia do prazer e dos sentidos
evidencia que o entretenimento se constrói no reconhecimento e ao mesmo tempo na produção de
— —

valores que as Ciências Sociais e Humanas têm identificado como sendo os valores característicos da
cultura contemporânea. Como modo de organização, a indústria evidencia que o entretenimento visa o
lucro e a ampliação de seus consumidores, o que permite maior atenção às suas estratégias

203
de produção, circulação e consumo 10. Podemos chegar, ao menos provisoriamente, à seguinte definição:
entretenimento é um valor das sociedades ocidentais contemporâneas que se organiza como indústria e se
traduz por um conjunto de estratégias para atrair a atenção de seus consumidores.

Outra ressalva, nossa quarta, é que muitas vezes sob a expressão infotainment acolhe-se não só
informação e entretenimento, mas também realidade e ficção. Na televisão, o termo tem sido usado para
caracterizar algumas séries televisivas, tais como a Doctor Who, série infantil da BBC, mas, sobretudo, se
aplica a programas que dramatizam a vida cotidiana (também conhecidos como docudramas televisivos),
a falsos documentários ou mock-documentaries e a programas que misturam cobertura jornalística com
dramaturgia. Em todos esses casos, infotainment designa uma das principais estratégias comunicativas,
aquela que se traduz por contar uma história que seja suficientemente excitante ou dramática para atrair
telespectadores. Quando usado para se referir à narrativa, uma das tantas estratégias comunicativas que
visam tornar os produtos televisivos atraentes, infotainment significa um fenômeno mais restrito que o da
mistura de informação com entretenimento e, nesse sentido, perde força explicativa. Usado assim, ele
nem se presta à abordagem da totalidade da relação entre realidade e ficção, pois a narrativização da
realidade é apenas um dos aspectos possíveis dessa relação, nem acolhe a complexidade do fenômeno do
embaralharnento de fronteiras entre informação e entretenimento.

Outra distinção necessária é entre infotainment e os termos tabloidização, trivialização,


popularização, que muitas vezes são usados como seu sinônimo. Tomar o primeiro termo pelos demais,
todos eles tendo como origem a denúncia da popularização da cultura midiática, indica que infotain -

10
Em Gomes (2008a), apresentamos mais detidamente as razões etimológicas, históricas e filosóficas das
concepções de entretenimento.

204
ment carrega, então, uma conotação negativa, que tem por base o caráter comercial da indústria midiática
global. Em geral, quando usado nesse sentido, infotainment se refere a programas jornalísticos que
―apelam‖ ao popular, enfatizando a criminalidade, a tragédia, a transgressão, o grotesco, a
sexualidade, a cobertura da vida de celebridades ou a transformação da gente comum em celebridade.
Para Mine Rek, por exemplo, ―tabloidização é uma forma avançada de infotainment resultante da
incorporação do entretenimento aos programas informativos‖ (2004, p. 371).

A definição do que seja jornalismo popular é complexa e escapa às ambições deste artigo. Em
outro momento11, identificamos ao menos quatro sentidos possíveis para o termo popular. Um dos
sentidos mais simples e mais utilizados enfatiza seu caráter quantitativo ou, no dizer de Stuart Hall
(2003), comercial ou de ―mercado‖. Neste caso, o popular faz referência duplamente ao tamanho da
audiência e à sua composição — audiência ampla formada por pessoas das classes populares. Outros dois
sentidos, que Colin Sparks (1992) chama de sentidos estético e político, aparecem confundidos nos
termos tabloidização, trivialização ou sensacionalismo e carregam sempre um juízo de valor. Tanto
política quanto esteticamente, a depender da posição ideológica ocupada por aquele que se refere ao povo
e ao popular, o termo pode assumir uma concepção negativa ou positiva. Um quarto sentido do popular
nos chega através dos estudos culturais, que reconhecem que a cultura popular é, ao mesmo tempo, a
expressão de uma posição de classe subordinada e carente de poder e uma fonte autônoma e
potencialmente libertadora de diferentes formas de vida, opostas à cultura oficial ou dominante, e de que
a cultura midiática, ao mesmo tempo em que se impõe ao povo, através das corporações midiáticas,
também deriva

11
Em Gomes (2008b), nos perguntamos sobre ―O que é o popular no jornalismo popular?‖, e desenvolvemos mais
amplamente a discussão sobre o conceito de popular, que aparece aqui apenas resumidamente.

205
de suas experiências, gostos e costumes. Neste sentido, seria popular todo e qualquer programa televisivo,
na medida em que a televisão é compreendida como espaço privilegiado de constituição de uma cultura
popular massiva.

Infotainment partilha com o popular algumas das suas razões de existência. Ambos são
interpretados como consequência do processo de comercialização: o acirramento da concorrência e a
busca por melhores índices de audiência levariam necessariamente a estratégias para atrair a audiência.
Politicamente, tanto infotainment quanto popular aparecem na literatura com um sentido de distração e
significam, então, negativamente, aquilo que desvia nossa atenção da agenda que realmente importa
(política, economia, negócios). Esteticamente, homogeneização e degradação do gosto popular são
compreendidas como resultado das condições e interesses tecnológicos, políticos e econômicos da cultura
de massa. Apesar disto, acreditamos que o infotainment não subsume integralmente o conceito de popular
quando aplicado à cultura midiática. E se assim fosse, teríamos um raro caso de criação de uma nova
palavra para expressar um velho fenômeno.

É certo que infotainment e popular têm em comum a consideração da comercialização como


característica básica da indústria midiática, mas as duas expressões convocam cenários midiáticos
bastante distintos. Popular, na medida mesmo em que se refere, duplamente, ao tamanho da audiência e à
sua composição, com as consequências políticas e estéticas que vimos, é mais adequada ao ambiente que
chamávamos de cultura popular massiva, caracterizada pela produção e distribuição em larga escala,
enquanto que infotainment convoca, por sua associação entre as tecnologias da informação e da
comunicação, um sistema midiático global que alguns pesquisadores já começam a chamar de pós-
massivo (Lemos, 2007). Infotainment é um fenômeno de algum modo distinto do jornalismo popular, ao
menos

206
no sentido de que põe outras questões em relevo, corno a cisão entre cognição/percepção,
conhecimento/sensibilidade.

Finalmente, devemos avaliar as condições de se considerar o infotainment como um novo gênero


televisivo. Muito brevemente, podemos dizer que os gêneros são formas reconhecidas socialmente a partir
das quais produtores e telespectadores se localizam em relação ao conjunto da produção televisiva. Ou,
como diz François Jost, o gênero é ―uma interface, responsável pela ligação entre emissor (televisão) e
telespectador‖ (2004, p. 18). Em geral, os programas individualmente pertencem a um gênero particular,
como ficção seriada ou o programa jornalístico, e é a partir deste gênero que ele é socialmente
reconhecido. Neste sentido, ele é ―uma estratégia de comunicação, ligada profundamente aos vários
universos culturais...‖ (Barbero, 1995, p. 64). Raymond Williams (1979) nos diz que o gênero é um modo
de situar a audiência televisiva em relação a um programa, em relação ao assunto nele tratado e em
relação ao modo como o programa se destina ao seu público12.

Uma gama impressionante de produtos é qualificada como infotainment na literatura corrente. De


modo mais geral, quando se refere à televisão, infotainment reúne uma série de programas distintos, tais
como programas de comportamento, reality shows, docudramas, reality games, programas de colunismo
social, talk shows, mocumentary (expressão contemporaneamente usada para designar filmes de ficção
apresentados como documentários) e news sit-coms (em referência aos programas que misturam notícia e
comédia de situação), que Stockwell (2004, p. 2) considera como gêneros do infotainment. São exemplos
de infotainment: programas de investigação sobre crimes; programas que dramatizam a vida cotidiana;
programas que conjugam o debate de assuntos da

12
Sobre o conceito de gênero televisivo, ver Gomes (2002 e 2007), Jost (2004) e Duarte (2004).

207
atualidade com recursos do entretenimento; programas que têm como conteúdo as várias formas de
entretenimento: programas que não são jornalísticos, mas que adotam estratégias do jornalismo para
ampliar seu capital simbólico; programas de soft journalism, ou seja, programas jornalísticos que
esvaziam seus conteúdos de política, política internacional, economia e aumentam os de celebridade,
crimes, saúde e beleza. Mas, para além do embaralhamento entre informação e entretenimento, pouco há
neste conjunto de programas que permita quer o reconhecimento de regularidades e especificidades de
suas formas, quer o reconhecimento de um modo distime de configurar sua relação comunicativa, ou seja,
dois aspectos fundamentais para configuração de um gênero televisivo.

Ao analisarmos o leque de programas colocados sob o guarda-chuva do infotainment, seja do


ponto de vista das estratégias semiótico-discursivas que emprega, seja do ponto de vista dos conteúdos
que privilegia, seja do ponto de vista das relações comunicativas que propõe, pouco encontramos que nos
autorize a utilização do conceito de gênero. Do ponto de vista das estratégias, procura-se dar conta de
recursos muito distintos. Não é possível fazer uma listagem exaustiva, até porque a criatividade dos
produtores e as potencialidades tecnológicas sempre nos deixariam em desvantagem, mas certos usos de
recursos sonoros e visuais, tais como cores, gráficos, vinhetas, selos, trilhas sonoras; a narrativa leve e
agradável; o discurso mais pessoal e subjetivo; o bate-papo entre apresentadores e entre apresentadores e
repórteres; a construção dos apresentadores, âncoras e repórteres como celebridades; a referência a outras
áreas de produção artística e cultural, como declamação ou citação de textos literários ou a citação (em
especial a visual) de cenas e personagens do cinema são os recursos mais citados. No que se refere aos
conteúdos. e destaque vai para aquelas áreas da vida consideradas prioritariamente voltadas ao prazer e ao
âmbito privado: esferas

208
da produção cultural (corno cinema, teatro, música, dança, turismo, lazer, moda); ênfase na vida privada
(e aqui tanto vale a exibição da vida das celebridades quanto a transformação de pessoas comuns em
celebridades; a abordagem de temas de interesse público do ponto de vista das suas implicações mais
imediatas na vida de sujeitos individuais; o enquadramento de políticos por seus comportamentos e
histórias pessoais); a ênfase em comportamento, bem-estar e cuidado com o corpo. Do ponto de vista da
relação comunicativa que propõe, não conseguimos ir muito além da afirmação de que o infotainment tem
como propósito atrair a atenção do telespectador — mas isso, a rigor, é uma característica da produção
midiática contemporânea e não configura uma estratégia comunicativa específica. Infotainment, nesse
sentido, seria um não-gênero: ele serve para classificar rapidamente os produtos televisivos que não se
enquadram muito claramente em nenhum dos gêneros televisivos que conhecemos.

Feitas essas ressalvas, gostaríamos de afirmar que o infotainment é uma estratégia midiática.
Enquanto estratégia, o infotainment apresenta uma dupla inflexão: serve, ao mesmo tempo, para dizer da
presença preponderante de âmbitos específicos da vida como conteúdos da cultura contemporânea
(conteúdos de entretenimento) e para dizer de formas específicas de produção e consumo que quaisquer
conteúdos recebem quando participam do circuito comunicativo da cultura midiática. Como estratégia, o
infotainment pode produzir novos gêneros na cultura televisiva, mas não configura, em si, um novo
gênero.

Nesse sentido, infotainment é uma estratégia de produção midiática que não é, em si, nem boa,
nem má. O infotainment parece ser o resultado de uma complexa articulação entre políticas
macroeconômicas, marcos regulatórios, possibilidades tecnológicas, estratégias empresariais, expectativas
históricas e culturais sobre os sistemas

209
televisivos e seus produtos, ideologias, práticas e expectativas profissionais do campo midiático,
pressupostos e conhecimentos sobre a audiência. Neste sentido, enquanto estratégia, o infotainment
potencializa a criatividade e não interdita a qualidade13 .

Enquanto estratégia, no entanto, o infotainment nos convoca à análise histórico-cultural da cultura


midiática, análise que deverá mostrar, diante das transformações na cultura contemporânea, quais são as
condições de possibilidade e a produtividade da distinção entre informação e entretenimento. Críticos da
cultura, tais como Raymond Williams, Edward Said, Salman Rushdie e Nestor Garcia Canclini têm
indicado que as transformações nos valores e nas formas culturais quase sempre nos chegam através de
formas híbridas e, neste sentido, o infotainment nos faz pensar que podemos estar diante de um daqueles
elementos de diferentes temporalídades e origens que configuram o processo cultural a que Raymond
Williams (1979, p. 124- 129) chama de aspecto emergente.

Pretendemos, agora, articular o conceito de estrutura de sentimento, apresentado por Raymond


Williams como uma hipótese cultural, com as noções de dominante, residual e emergente que Williams
utiliza em Marxismo e Literatura para descrever elementos de diferentes temporalidades e origens que
configuram o processo cultural. Procuraremos, na sequência, evidenciar esta articulação numa análise,
ainda bastante preliminar, de um dos principais eixos das mudanças

13
A esse respeito, ver em Gutrnann, Ferreira & Gomes (2008), uma análise do Custe o que Custar, transmitido pela
Rede Bandeirantes. O CQC é um formato da Eyeworks-Cuatro Cabezas, que estreou na Argentina, em 1995. O
programa, que já obteve sete indicações ao International Emrny Awards, tem versões na Espanha (1996), Itália
(1996), México (1997), Chile (2002). Sua versão brasileira, construída a partir do embaralhamento entre jornalismo e
entretenimento, concretiza um exemplo de excelente qualidade na programação televisiva.

210
que estão sendo implementadas no Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão, em 2009, quando o
programa comemora seus 40 anos no ar 14.

O conceito de estrutura de sentimento aparece pela primeira vez em The Long Revolution, no
capítulo dedicado à análise da cultura, e continuará a ser trabalhado por Williams até Marxismo e
Literatura, no qual aparece como um capítulo autônomo dentro da parte dedicada à teoria cultural. Do
ponto de vista do que nos interessa aqui, acreditamos que estrutura de sentimento poderá ser útil à
compreensão e à abordagem do jornalismo como instituição social: permite olhar para o que é
socialmente instituído como normas, valores, convenções do campo e o que é vivido, o que é a prática
cotidiana e o que ela contém de características e qualidades que ainda não se cristalizaram em ideologias
e convenções.

Estrutura de sentimento é um termo difícil. Com ele Williams quer se referir a algo ―tão firme e
definido corno sugere a palavra ‗estrutura‘, ainda que opere nos espaços mais delicados e menos tangíveis
de nossa atividade‖ (1961, p. 48). ―Sentimento‖ aparece aí para marcar uma distinção em relação aos
conceitos mais formais de visão de mundo ou ideologia, para dar conta de significados e valores tais
como são vividos e sentidos ativamente, levando em consideração que ―as relações entre eles e as crenças
formais ou sistemáticas são, na prática, variáveis (inclusive historicamente variáveis),

14
Em Gutmann, Ferreira & Gomes (2008), realizamos uma análise do programa CQC, que se caracteriza por
articular jornalismo com humor. Ali, avaliamos que o modo de endereçamento do CQC remete a estas duas
instâncias, jornalismo e entretenimento, e convida os telespectadores a compartilharem da articulação entre as duas,
sem o prejuízo ou deformação de nenhuma delas. O CQC se utiliza largamente de recursos do humor e do
entretenimento como ferramenta para a promoção de um curioso efeito de sentido, em que o riso e a piada são
explorados com um fim bem específico: fazer jornalismo. No caso do CQC, acreditamos que o infotainment,
enquanto estratégia, pode nos levar à configuração de um novo gênero televisivo.

211
em relação a vários aspectos‖ (1971, p. 134), enquanto ―estrutura‖ quer chamar a atenção para elementos
que se apresentam ―como uma série, com relações internas específicas. ao mesmo tempo engrenadas e em
tensão‖. De todo modo. estrutura de sentimento se refere a uma experiência social que está em processo
ou em solução, com frequência ainda não reconhecida como social. Com ele, Williams pensa poder
acessar a emergência de novas características que ainda não se cristalizaram em ideologias, convenções,
normas, gêneros.

Beatriz Sarlo (1997) propõe articular estrutura de sentimento com as noções de dominante,
residual e emergente que Williams utiliza em Marxismo e Literatura para descrever elementos de
diferentes temporalidades e origens que configuram o processo cultural. Segundo Williams, é claro que a
análise cultural deve considerar as características dominantes de um determinado processo ou sistema
cultural, mas o analista precisa estar atento também a um certo senso de movimento, de processo
histórico, e às articulações e interrelações complexas entre esses elementos dominantes e os residuais,
aqueles elementos que foram efetivamente formados no passado, mas ainda estão ativos no processo
cultural, não só como elemento do passado, mas como um elemento efetivo do presente, e emergentes,
novos significados e valores, novas práticas, novas relações e tipos de relação que são efetivamente
criados e que aparecem como substancialmente alternativos ou opostos na cultura dominante. Segundo o
autor, é ―com as formações emergentes que a estrutura de sentimento, como solução, se relaciona‖ (1971,
p. 136):

o que temos de observar é, com efeito, uma emergência preliminar, atuante e pressionante, mas ainda
não perfeitamente articulado... É para compreender melhor essa condição de emergência preliminar, bem
como as formas mais evidentes do emergente, do residual e do dominante, que devemos explorar o conceito
de estruturas de sentimento (Williams, 1971, p. 129).

212
Trabalhar com a hipótese cultural da estrutura de sentimento impede olhar o telejornalismo apenas
como cristalização, impede também observá-lo como unidimensional, mas, ao contrário, favorece
recuperar as práticas jornalísticas culturalmente vividas. Neste sentido, se acolhemos estrutura de
sentimento como um conceito metodológico, o trabalho do analista de televisão é encontrar as marcas da
sua heterogeneidade constitutiva, a copresença, em seus produtos, de elementos dominantes, residuais e
emergentes.

Telejornal do horário nobre da maior emissora do Brasil, o Jornal Nacional é hoje o programa mais
antigo em exibição na televisão brasileira. Tendo estreado em 1° de setembro de 1969, o programa
completa agora 40 anos. Junto com ele, comemora-se também os 40 anos da transmissão em rede no
Brasil, iniciada pelo noticiário — já na primeira edição, o Jornal Nacional anuncia aquela que seria a sua
marca mais forte. Segundo o site Memória Globo15:

―O Jornal Nacional da Rede Globo, um serviço de notícias integrando o Brasil novo,


inaugura-se neste momento: imagem e som de todo o Brasil‖, foi assim que o apresentador Hilton
Gomes abriu, às 19h45, a primeira edição do Jornal Nacional. Em seguida, a voz de Cid Moreira
anunciou: ―Dentro de instantes, para vocês, a grande escalada nacional de notícias‖... Cid Moreira
se despediu, anunciando para breve a integração do circuito de Brasília e Belo Horizonte ao Jornal
Nacional: ―é o Brasil ao vivo aí, na sua casa‖. E emendou com um ―boa- noite‖, saudação que o
apresentador viria repetir cerca de 8 mil vezes ao longo dos 27 anos seguintes.

No site Memória Globo, é possível encontrar uma descrição de como era o Jornal Nacional em
seus primeiros tempos16:

15
http://memoriaglobo.globo.com/Memoriaglobo/0,27723 ,GYN05273-239077,00.html.
16
O site Memória Globo tem sido uma importante ferramenta de pesquisa sobre a televisão no Brasil. Entretanto, a
pesquisa sobre o audio-

213
O Jornal Nacional, no início, tinha apenas 15 minutos de duração e era transmitido de segunda-feira a
sábado. As edições eram divididas em três partes: local, nacional e internacional. Para se diferenciar do
modelo consagrado pelo Repórter Esso que sempre terminava com a notícia mais impactante do dia, o JN
concluía o seu noticiário com informações leves, de conteúdo lírico ou pitoresco. Essa matéria de
encerramento era conhecida como ―boa-noite‖, pois antecedia ao cumprimento de despedida dos locutores. A
principal diferença entre o Jornal Nacional e o Repórter Esso era, entretanto, conceitual. O telejornal da
Globo apresentava matérias testemunhais, com a fala dos entrevistados. O Repórter Esso, por sua vez, não
tinha som direto. As imagens eram apenas cobertas com áudio do locutor.

O Jornal Nacional vem se transformando diariamente, ao longo desses 40 anos, mas mantendo-se
na liderança de audiência, e representa o conjunto mais bem-acabado de marcas que caracterizam um
telejornal no Brasil. O JN sofreu várias transformações ao longo dos anos: modernizou-se o cenário,
inovaram-se as vinhetas, mudaram os apresentadores, polêmicas e crises de credibilidade aconteceram,
mas ele permanece o telejornal de maior audiência do país e é o modelo de referência para o
telejornalismo nacional. As mudanças podem ser pequenas, de roupagem apenas, ou mais significativas,
quando, por exemplo, em 1996, a mudança dos apresentadores significou também uma mudança
importante

visual brasileiro muito se beneficiaria de uma política pública que tornasse obrigatório o depósito legal e o livre
acesso para fins de pesquisa a todo o material audiovisual brasileiro, nos termos do que já existe em países como a
França, onde a Loi de Dépôt Légal, de 20 de junho de 1992 (http://www.ina.fr/entreprise/activites/depot-legal-radio-
tele/depot-legal-en-france.html) estendeu à produção de rádio e televisão a obrigatoriedade de arquivo e acesso à
consulta pública de todo o material audiovisual produzido na França. Desde fevereiro de 2004, o depósito legal vale
também para a produção da web.

214
em sua linha editorial17. Uma pesquisa por ser feita é justamente a da análise histórica das estratégias
comunicativas do JN. Aqui, vamos nos concentrar em algumas mudanças que o programa tem realizado a
partir do início de 2009, a pretexto da comemoração de aniversário, tendo como base as edições dos
meses de março e abril de 200918. A observação dessas

17
Sobre isso, ver Porto, 2002, em que o autor analisa como as mudanças ocorridas no ano de 1996, com a
substituição de Cid Moreira e Sérgio Chapelin pelos jornalistas William Bonner e Lillian Witte Fibe, representaram
alterações na cobertura de temas políticos, econômicos e sociais, no compromisso do telejornal com uma cobertural
mais plural e menos baseada em fontes governamentais.

18
As observações aqui realizadas são fruto de exercícios de análise realizados no Grupo de Pesquisa em Análise de
Telejornalismo do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Universidade Federal
da Bahia. Desde o início de março/2009, os participantes do grupo têm se dedicado a analisar o JN, considerando
suas estratégias comunicativas, sua história e as alterações mais evidenciadas nesse início de ano comemorativo dos
40 anos do programa. Como procedimento básico de análise, todos os membros do grupo de pesquisa acompanham
as emissões diárias do programa e produzem textos individuais de análise que circulam pela lista eletrônica do grupo,
são lidos e debatidos numa reunião de pesquisa. Para além da observação sistemática do programa, o trabalho se faz
acompanhar da leitura de bibliografia sobre televisão, telejornalismo, TV Globo e Jornal Nacional. Participam do
grupo, no momento de produção desta análise, os alunos: Fernanda Mauricio da Silva (doutoranda); Jussara Peixoto
Maia (doutoranda); Juliana Freire Gutmann (doutoranda); Marília Costa (mestranda); Mirella Freitas (mestranda);
Karina Araújo (mestranda); Lilian Mota (mestranda); Thiago Emanoel Ferreira dos Santos (Bolsista I.C./CNPq);
Luciana Alves Vera (Bolsista I.C./CNPq); Valéria Vilas Bôas Araújo (Bolsista Apoio Técnico/CNPq), Ive Deonísio
(graduanda em Jornalismo/UFBA); Neumar Almeida Rosário (graduando em Jorna1ismo/UFBA), Brisa Dultra
(graduanda em Jomalismo/UFBA); Jane Evangelista (graduanda em Jornalismo/UFBA); Raíza Rocha Teixeira
(graduanda em Jornalismo/UFBA); Edinaldo Araújo Mota Jr. (graduando em Jomalismo/UFBA); Carolina Garcia
(graduanda em Jornalismo/ UFBA).

215
mudanças nos permite considerar que o principal telejornal de referência no Brasil também adota o
embaralhamento de fronteiras entre informação e entretenimento como uma estratégia importante na sua
permanente atualização.

A crítica televisiva vem anunciando as mudanças no JN:

O ‗Jornal Nacional‘ começou a mudar na semana passada. As mudanças já apontam um ―JN‖ com
mais entradas ao vivo e menos formal. O ciclo se fechará em setembro, quando o jornal completará 40 anos e
ganhará novos cenário e bancada.
A principal mudança até agora está nas entradas ao vivo. Antes, os repórteres tinham 30 segundos
para relatar as informações. Suas falas eram praticamente decoradas. Agora, os repórteres têm um minuto ou
um minuto e meio para falar. Eles não têm mais que cumprir o tempo à risca, para que suas participações
fiquem mais ―faladas‖ e naturais. A duração do ―JN‖, no entanto, continua rígida. Para compensar estouros,
William Bonner, que também é editor-chefe, faz mudanças nos intervalos, ―derrubando‖ notas. Na semana
que vem, l3onner conduzirá um workshop com todas as afiliadas da Globo para ―azeitar‖ as mudanças. Pelas
novas regras, Bonner e Fátima Bernardes podem fazer comentários, mas sempre de caráter noticiosos. Uma
das metas do jornalismo da Globo neste ano é renovar a linguagem, complementando as mudanças de
conteúdo feitas nos últimos anos, com coberturas político-eleitorais mais extensas e intensas e ancoragem
fora de estúdio. Em setembro, a mudança ficará mais nítida. A nova bancada terà lugar para repórteres
comentarem séries especiais19.

Acreditamos que o melhor eixo de análise das mudanças em curso no Jornal Nacional é a ênfase
na construção/reconstrução de uma maior cumplicidade com os telespectadores do programa. Essa
cumplicidade constrói-se, claro, a partir da familiaridade que a audiência já tem com o programa, tanto
em razão dos 40 anos ininterruptos de transmissão diária. quanto pela ratificação cotidiana das marcas
que caracterizam

19
Coluna Outro Canal, Folha de São Paulo, 21 de abril de 2009:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2104200904.html.

216
o JN — vinhetas, apresentadores, modo de organização temática, estratégias narrativas de humanização
do relato sofreram mudanças, claro, nesse período, mas elas não são nunca nem muito abruptas nem
muito drásticas. O JN não é, definitivamente, o local de experimentação da Rede Globo. Sabendo que
familiaridade é algo que se constrói com o tempo e que a fidelidade da audiência deve ser conquistada e
reconquistada a cada edição, o JN adota um leque de estratégias comunicativas que se movem em maior
ou menor grau ao longo do tempo acompanhando e também determinando o fluxo de mudanças no
contexto onde está inserido. Buscando o ponto de equilíbrio entre inovação e conservadorismo, em um
esforço constante para manter sua posição hegemônica, o JN está articulado e fazendo constantes
negociações com o surgimento de novas tecnologias, com premissas e valores do jornalismo, com
alterações do cenário político, cultural e econômico sem perder de vista a autolegitimação do seu papel
social.

A alteração mais evidente neste início de ano é a da conduta dos apresentadores do Jornal
Nacional, verificada quer por modificações no texto verbal quer por modificações na performance.
Eles ainda permanecem sentados na bancada, com a redação ao fundo, no cenário familiar aos
telespectadores do JN desde abril de 2000, e ainda não atuam como âncoras, permitindo-se
comentar as notícias, mas já protagonizam uma cena de tácita intimidade entre eles e, consequentemente,
com o telespectador. Em 2004, quando realizamos um exercício de análise do
JN20, a não emissão explícita de opinião por parte dos apresentadores era uma estratégia do programa em
direção à construção da sua imparcialidade os apresentadores quase não falavam entre si e pouco se

remetiam diretamente à audiência. Hoje, Fátima Bernardes e William Bonner configuram uma cena de
maior proximidade e informalidade no papel de mediadores do Jornal Nacional. O espectador tem sido
constantemente inserido no dis-

20
Ver Gomes et al. 2005.

217
curso a partir de expressões recorrentes como ―veja‖ e ―você‖ ou de convocações diretas como:

Fátima: “Se você acha que já viu tudo sobre contrabando na fronteira Brasil/Paraguai...”.
Bonner: “Você vai se surpreender. Daqui a um minuto no Jornal Nacional” (09.03.09).

Fátima: “Você sabe por que é tão difícil perceber na vida real a redução de juros como a que o
Banco Central anunciou ontem?” (12.03.09).

Além do texto verbal, os enquadramentos de câmera têm sido insistentemente usados como
dispositivos configuradores de uma cena comunicativa de maior proximidade entre mediadores e
telespectadores. Além do enquadramento padrão do telejornal, da câmera parada na altura da bancada,
recorre-se ao travelling que sai do close no mediador e se distancia de modo vagaroso até o plano
americano, enquanto a cabeça do VT é proferida, movimento que desenha o percurso do olhar do
telespectador que se aproxima e se afasta dos apresentadores. Ao mesmo tempo, explora-se o plano geral,
que enquadra Fátima e Bonner numa mesma cena, reforçando uma situação de conversa entre os dois e
entre eles e os telespectadores. Na edição de 10.03.09, por exemplo, Bonner anuncia uma exposição de
obras de moradores de rua em São Paulo em PG; o enquadramento permite que enquanto ele fale (“A
pinacoteca de são Paulo abriu as portas para mostrar obras de 30 pessoas que moram ou moraram nas
ruas”), dirija-se com o olhar a seus interlocutores, Fátima e à audiência, configurando uma cena de
―conversa‖.

Esse pretendido efeito de proximidade também tem sido provocado pela inserção do espectador no
lugar de fala da produção, através da inclusão de VTs cuja sugestão de pauta parte da recepção. Em
tempos de interatividade, o Jornal Nacional também reforça seu posicionamento frente às

218
novas tecnologias na busca de elos mais fortes com a audiência. Telespectadores podem enviar, pelo
portal G1, sugestões de pauta para o telejornal. Essa estratégia e o modo como o discurso é elaborado em
torno da participação do telespectador demonstram o interesse do telejornal em comunicar sua inserção
em novos parâmetros possibilitados pela internet e pela chegada da televisão digital ao Brasil, muito mais
do que efetivamente urna abertura para outros tipos de enunciação. Nas edições analisadas, duas
reportagens foram sugeridas por telespectadores internautas. No dia 14.03.09, o jornal exibiu a
reportagem ―Brasileiros aderiam às lâmpadas fluorescentes‖, feita por Roberto Burnier, e em 10.03.09
houve uma matéria sobre a dificuldade de compra de carros por brasileiros com necessidades especiais. O
fato é explicitado por Fátima Bernardes em nota de rodapé: “Esta reportagem foi sugerida por um
telespectador. E você também pode ajudar a fazer o Jornal Nacional, é só visitar a seção Fale Conosco
na nossa página na internei g1.com.br/jornalnacional”. Recursos que permitam a interferência direta do
telespectador na produção do telejornal, no entanto, são usados com mais cautela. O telespectador não é
convocado a enviar uma matéria gravada em video, mas a colaborar com a sugestão de pautas do
noticiário. De todo modo, verificamos como uma tendência à ampliação do espaço de participação do
telespectador.
Acreditamos que o exemplo do Jornal Nacional, ainda que bastante breve e localizado em uma das
suas mais recentes mudanças, a da construção de uma maior cumplicidade com os telespectadores,
evidencia como a articulação entre as TICs e a globalização da cultura midiática tem configurado o
infotainment como um fenômeno emergente na cultura televisiva. Neste sentido, a busca de uma maior
cumplicidade com os telespectadores responde à perda de audiência21, ao

21
Segundo o jornal O Estado de São Paulo, do dia 11 de março de 2009, o Jornal Nacional perdeu 28% de Ibope em
uma década. Na soma dos meses de janeiro e fevereiro deste ano, o Jornal Nacional teve a me-

219
acirramento da concorrência, à concentração dos processos de produção e distribuição, mas certamente
também à ampliação dos investimentos em tecnologia. Avaliado à luz das mudanças implementadas no
principal telejornal de referência no Brasil, o infotainment apresenta-se como uma tendência da
programação televisiva.

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nor audiência de sua história. A considerar apenas o share, índice que mede a sintonia do programa só no universo de
TVs ligadas, o JN caiu de 53,5% em 2000 para 47,3% na média dos dois primeiros meses do ano, segundo o Ibope da
Grande São Paulo. Em índices absolutos, a queda foi de 11 pontos porcentuais (39,3 em janlfev de 2000 para 28.3 em
jan/fev de 2009) — a baixa nesta comparação é maior que no share. revelando que a Globo perdeu audiência, mas o
número de televisores ligados também despencou em uma década. Seja para a concorrência ou para o botão ―liga-
desliga‖, o JN perdeu 28% de público de uma ponta a outra, sempre tendo a média de janeiro e fevereiro como base.
http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,jornal-nacional-perde28-de-ibope-em-uma-decada,337003,0.htm

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