A Questão Do Sujeito Na Filosofia de Emmanuel Lévinas
A Questão Do Sujeito Na Filosofia de Emmanuel Lévinas
A Questão Do Sujeito Na Filosofia de Emmanuel Lévinas
Resumo
O objetivo do presente trabalho consiste em problematizar, em linhas gerais, o
pensamento de Emmanuel Lévinas a partir da interferência crítica do
pensamento derridiano. A questão de fundo diz respeito à crítica levinasiana à
concepção moderna de sujeito e à postura filosófica de neutralidade e
universalidade do pensamento Ocidental, de forma geral, propondo então que
se pense a subjetividade atrelada à alteridade e a alteridade como o verdadeiro
“eixo” do pensamento. O nosso intuito é o de fazer ver os limites dessa
proposta, ainda vinculada, desde uma perspectiva derridiana, a uma certa
tradição do cartesianismo.
Palavras-chave: Emmanuel Lévinas; Jacques Derrida; subjetividade.
Abstract
The aim of this paper is to discuss, in general terms, the thought of Emmanuel
Levinas from the critical interference of the derridian thinking. The
fundamental question concerns the levinasian critic to the modern conception
of the subject and to the philosophical position of neutrality and the
universality of Western thought, in general, proposing to consider the
subjectivity bound to alterity and the alterity as the real “axis” of thought. Our
intention is to show the limits of this proposal, still tied, from a derridian
perspective, to a certain tradition of Cartesianism.
Keywords: Emmanuel Lévinas; Jacques Derrida; subjectivity.
A
discussão que gravita em torno da chamada filosofia pós-
moderna consiste na necessidade de se repensar e redefinir o
conceito moderno de subjetividade a partir da decretação da sua
falência em qualquer das suas dimensões, seja como sujeito universal, como
indivíduo ou como discursos humanistas. A rigor, “subjetividade” é um
termo genérico que comporta uma série de outros conceitos ou noções – eu,
consciência, consciência de si, autorreferência, autodeterminação,
personalidade, espírito, dentre outros – que, uma vez conjugados, abrangem
uma certa problemática na qual o modelo filosófico ou a postura elementar
de reflexão, não obstante as alterações que essa noção sofrera ao longo da
sua própria história, é guiado pela oposição entre sujeito e objeto. A
representação, que corresponde ao ato de tornar um objeto, de algum modo,
presente é obra de um “eu”. O “eu”, enquanto expressão que designa a
estrutura de universalidade da subjetividade ou a espontaneidade
autoconsciente é, todavia, elemento insuficiente para a determinação exata
da individualidade, pois tal expressão tanto designa uma subjetividade geral
quanto um indivíduo singular – dizer “eu” significa referir-se a uma
entidade abstrata a qual é deduzida a partir de inúmeros atos singulares de
consciência, comuns a qualquer um, os quais, por sua vez, são
acompanhados da representação de que eu sou responsável pela sua
efetuação. Daí afirma-se que objetivar, isto é, constituir, tornar algo um
objeto, é uma prerrogativa da subjetividade. A consciência reflexiva de si ou
a autorreflexão seria uma auto-objetivação que comporta, em si, um
paradoxo: objetivar significa, por definição, não ser alvo, originalmente, da
objetivação; a subjetividade, ao voltar-se sobre si mesma, torna-se “objeto”
de reflexão e, por conseguinte, perde seu caráter de pureza, absolutidade.
Assim, subjetividade é um termo excelente que caracteriza o período da
1 Sobre essa questão, servimo-nos de uma ressalva de Luiz Bicca: “Kant, que denuncia os
paralogismos a que conduz a substancialização da alma na psicologia racional da metafísica
anterior (idealista ou não), busca, decerto, evitar hipostasiar a consciência de si
transcendental: o eu-sujeito, fundamento de toda experiência e de toda objetividade não é
uma existência objetiva ou objetivicável. Mas não lhe foi possível impedir que o
pensamento de substancialidade retornasse na posteridade, sub-repticiamente, na forma de
interpretações substancializantes da formulação do eu-sujeito transcendental, o “eu penso”
que acompanha todas as minhas representações: é tentador interpretar o eu como suporte de
representações (Bicca, 1997, p. 185).
4 O terceiro não é apenas o outro da relação ética, não é o par dialógico do eu, ele é o outro
como o próximo e também o próximo do outro; é aquele que inaugura a responsabilidade
do eu frente às necessidades do político. Para aprofundamento do tema da justiça e da
figura do terceiro em Lévinas, cf. LÉVINAS, Emmanuel. Verdade e justiça. In: Totalidade
e Infinito. Lisboa: Edições 70, 2000; e DERRIDA, Jacques. A palavra acolhimento. In:
Adeus a Emmanuel Lévinas. São Paulo: Perspectiva, 2008.
5Sobre isso, cf. CASALONE, Carlo. Lévinas: ética e filosofia no pensamento pós-
moderno. In: Judaísmo e Filosofia. Caxias do Sul: Síntese, v. 20, nº 62, pp. 341-354, jul-set,
1993.
6 Sobre o Il y a, Lévinas (1998, p. 67): “Imagine o retorno ao nada de todos os seres: coisas
e pessoas. É impossível colocar este retorno ao nada fora de todo acontecimento. Mas, e
este próprio nada? Alguma coisa ocorre, fossem a noite e o silêncio do nada. A
indeterminação desse “alguma coisa ocorre” não é a indeterminação do sujeito, não se
refere a um substantivo. Ela designa como que o pronome da terceira pessoa na forma
impessoal do verbo – de modo algum um autor mal conhecido da ação, mas o caráter da
própria ação que, de alguma maneira, não tem autor, é anônima. Essa “consumição”
impessoal, anônima, mas inextinguível do ser, aquela que murmura no fundo o próprio
nada, fixamo-la pelo termo há. O há, em sua recusa de tomar uma forma pessoal, é o “ser
em geral”.
7 Derrida (2009, pp. 213-214), em Violência e Metafísica, analisa o que seria a linguagem
para Lévinas e expõe os limites de se pensar a linguagem como “pura invocação”: “No
limite, a linguagem não-violenta, segundo Lévinas, seria uma linguagem que se privasse do
verbo ser, isto é, de toda predicação. A predicação é a primeira violência. Estando o verbo
ser e o ato predicativo implicados em todos os outros verbos e em todos os nomes comuns,
a linguagem não-violenta seria, no limite, uma linguagem de pura invocação, de pura
adequação, que não proferisse senão nomes próprios para chamar o outro à distância. Tal
linguagem estaria, com efeito, conforme o deseja expressamente Lévinas, purificada de
toda retórica, isto é, no sentido primeiro desse termo que aqui evocaremos sem artifício, de
todo verbo. Uma tal linguagem ainda merecerá seu nome? Uma linguagem isenta de toda
retórica é possível? Os Gregos, que nos ensinaram o que o Logos queria dizer, jamais a
teriam admitido. É o que nos diz Platão [...]: não há Logos que não suponha o
entrelaçamento de nomes e verbos./ Enfim, se nos ativermos ao cerne da asserção de
Lévinas, o que ofereceria ao outro uma linguagem sem frase, uma linguagem que nada
dissesse? A linguagem deve dar o mundo ao outro, diz-nos Totalidade e Infinito. [...] Assim,
em sua mais alta exigência não-violenta, denunciando a passagem pelo ser e o momento do
conceito, o pensamento de Lévinas não somente nos proporia, como dizíamos mais acima,
uma ética sem lei, mas também uma linguagem sem frase. O que seria totalmente coerente
se o rosto não fosse senão olhar, mas ele é também fala; e, na fala, é a frase que faz chegar
o grito da necessidade à expressão do desejo. Ora, não existe frase que não determine, isto
é, que não passe pela violência do conceito. A violência aparece com a articulação. E esta
só é aberta pela circulação (de início pré-conceitual) do ser. A elocução mesma da
metafísica não-violenta é seu primeiro desmentido. Sem dúvida, Lévinas não negaria que
toda linguagem histórica comporta um irredutível momento conceitual e, portanto, uma
certa violência. Simplesmente, a seus olhos, a origem e a possibilidade do conceito não são
o pensamento do ser, mas o dom do mundo a outrem como totalmente-outro [...]. Nessa
possibilidade originária da oferta, em sua intenção ainda silenciosa, a linguagem é não-
violenta (mas será ela então linguagem, nessa pura intenção?) Ela só se tornaria violenta em
sua história naquilo que chamamos de frase, que a obriga a articular-se numa sintaxe
conceitual que abre a circulação ao mesmo, deixando-se controlar pela “ontologia” e pelo
que permanece, para Lévinas, o conceito dos conceitos: o ser. Ora, o conceito de ser seria, a
seus olhos, apenas um meio abstrato produzido pelo dom do mundo ao outro que está
acima do ser. A partir daí, é somente em sua origem silenciosa que a linguagem, antes de
ser, seria não-violenta”.
11 Essa “mudança de eixo” foi sugerida por Derrida em Violência e Metafísica referindo-se
à proposta filosófica de Lévinas que questiona o pensamento ocidental guiado pela razão,
pelo ideal de liberdade e autonomia do sujeito, reduzindo a alteridade do outro à identidade
do mesmo (“mesmo” entendido aqui como “eu” ou “sujeito”). Segundo Lévinas, não
obstante as variações que sobrevêm a este “eu” ou a este “sujeito” (e mesmo ao Dasein
heideggeriano), há algo que permanece o mesmo.
18 Para uma discussão acerca desse tema, cf: Llewelyn, J. Am I obsessed by Bobby?. In:
Bernasconi, R., Critchley, S. (ed.). Re-reading Lévinas. Indianópolis: Indiana University
Press, 1991. Este filósofo defende que a dificuldade de ser ver pensada uma teoria dos
animais no pensamento levinasiano decorre do fato de Lévinas tratar da animalidade
humana, isto é, do lado animal deste ente racional que nós, humanos, somos. Cf também:
Latour, B. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 2000. Para Latour (assim
como para Derrida), há a possibilidade de ler o humanismo de Lévinas como ainda preso à
uma certa crença na Modernidade. Cf. ainda: Derrida, J. O animal que logo sou, onde a
questão fundamental no debate com Lévinas é questionar se os animais teriam ou não rosto,
isto é, se eles inserir-se-iam na ética levinasiana do face-a-face. Cf. também: Lévinas, E.
Nom d’um chien ou le droit naturel. In: Dificile Liberté. Paris: Albin Michel, 1963 e 1976.
Trata-se de um brevíssimo artigo de Lévinas dedicado a um cão, apelidado de Bobby, com o
qual ele tivera contato durante o período da Segunda Guerra em que fora prisioneiro. O
principal neste texto consiste em perceber como, para Lévinas, Bobby servia como
restituidor da dignidade humana em meio a homens desumanizados nos campos de
concentração. E, por fim, para uma articulação desse debate, cf. Haddock Lobo, R. A
questão dos animais. In: Da existência ao infinito: ensaios sobre Emmanuel Lévinas. São
Paulo: Edições Loyola, 2006, pp. 60-2.
19 Para esta interpretação, sigo os passos apontados por Carla Rodrigues em seu artigo: A
costela de Adão: diferenças sexuais a partir de Lévinas. In: Estudos Feministas,
Florianópolis, 19(2): 336, pp. 371-387, maio-agosto/2011.
20 Sobre esse tema, cf. o livro Descobrindo a Existência com Husserl e Heidegger de
Emmanuel Lévinas. A referência completa está na bibliografia.
comum a mim e aos outros, e distante de uma proposta que mantém o “eu”
como portador da responsabilidade. Aqui, em Lévinas, não se trata de uma
ética da responsabilidade, mas sim de uma ética como responsabilidade. A
centralidade que o tema da responsabilidade assume na Bíblia não é tratada
filosoficamente pela maioria dos sábios do judaísmo. A audaciosa meditação
de Lévinas busca trazer para o seio do debate filosófico um princípio bíblico
essencial, o messianismo, ignorado pela cultura grega, a fim de se educar
não na lógica da razão ou do ser, mas na “lógica” do rosto, apostando numa
espécie de “fraternidade gratuita”.
Nos tempos atuais, no âmbito das filosofias pós-modernas, embora
os filósofos gregos já houvessem despertado para a questão da relatividade
dos valores éticos, vê-se despedaçar a possibilidade de construção de uma
ética baseada em um sistema universal de normas pautadas pela razão. Se,
por um lado, isto parece-nos ameaçador, por outro lado pode ser o início de
novos horizontes nos quais o aprendizado pela via da sensibilidade pode
inaugurar uma outra (e legítima) inteligibilidade para o (inter)humano. Para
Lévinas, o que está em pauta é a busca por uma fundamentação filosófico-
ética para a questão do sujeito e do (inter)humano nos dias atuais em meio
aos impasses éticos do modelo de racionalidade e civilização vigentes e,
sobretudo, diante da urgente necessidade (especialmente pós-Auschwitz) de
se pensar de forma não-neutra, não-ontológica, não-totalizante o humano.
Neste sentido, o risco de cair em uma filosofia prática ou pragmática é
conhecido por Lévinas, por mim e por aqueles que foram tocados pelo seu
pensamento. Entretanto, desde uma noção de filosofia prioritariamente ética,
de uma nova inteligibilidade, que não tem receio de buscar inspiração em
outra sabedoria, a urgência sócio-ético-ecológico-educacional vivida
concretamente hoje no mundo não permite que o pensamento ainda se
posicione de modo neutro e irresponsável. É preciso que a filosofia torne-se
responsável pelo discurso que profere e pelo modo que ele ecoa no mundo.
Esta é a atualidade do pensamento levinasiano. Dar à alteridade a devida
dignidade filosófica abre as portas para assumir o posicionamento, isto é,
posicionar-se de forma não-neutra diante do mundo, como novo modo de
“racionalidade” e a responsabilidade como nova forma de fazer filosofia.
Este é o apelo, a dificuldade e a grandiosidade do pensamento de Emmanuel
Lévinas, em que, ao invés de reduzir a ética a um discurso positivo ou à
noção de direitos humanos, a (re)pensa como experiência, como infinita
tarefa.
Referências
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