A História Do Rio Grande Do Norte Oitocentista

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A H I S T Ó R I A D O

RIO GRANDE DO NORTE


O I T O C E N T I S T A
JOÃO FERNANDO BARRETO DE BRITO
JULIANA TEIXEIRA SOUZA(ORGS.)

A H I S T Ó R I A D O
RIO GRANDE DO NORTE
O I T O C E N T I S T A
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL
Copyright © by Organizadores
Copyright © 2021 Editora Cabana
Copyright do texto © 2021 Os autores
Todos os direitos desta edição reservados

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responsabilidade dos autores.

Capa e Projeto gráfico:


Eder Ferreira Monteiro
Edição e diagramação:
Helison Geraldo Ferreira Cavalcante
Coordenação editorial:
Ernesto Padovani Netto
Revisão:
Os autores

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

A História do Rio Grande do Norte Oitocentista [Recurso eletrônico]


Textos e materiais didáticos para o ensino da História Local / organi-
zadores: João Fernando Barreto de Brito e Juliana Teixeira Souza. - 1.
ed. - Ananindeua, PA: Cabana, 2021.
Vários autores.
Formato: PDF
Requisitos de sistema: Adobe Acrobat Reader
Modo de acesso: World Wide Web
Inclui bibliografia

ISBN: 978-65-8984926-1
1. Ensino de História do Rio Grande do Norte; 2. História do Rio Grande
do Norte (1822-1889); 3. História do Brasil Império; 4. Materiais didáticos,
História Local; 5. Ensino de História Local. I - Título.

CDD 907

[2021]
EDITORA CABANA
Trav. WE 11, N º 41 (Conj. Cidade Nova I)
67130-130 — Ananindeua — PA
Telefone: (91) 99998-2193
[email protected]
www.editoracabana.com
CONSELHO EDITORIAL

Denise da Silva Meneses do Nascimento - UFJF


Flávia Eloisa Caimi - UPF
Maria Augusta Castilho - UCDB
Maria Fernanda Bicalho - UFF
Marta Margarida Andrade Lima – UFRPE
Sumário*

8 À guisa de introdução: como faremos a escola e a


universidade dialogarem ( Juliana Teixeira Souza)

PARTE I - NOVOS OLHARES SOBRE O PASSADO

31 A perspectiva da história local na busca de novos


significados para o ensino (Cícera Tamara Graciano Leal
da Silva Fernandes)

55 Educação étnico-racial: da legislação aos desafios


da sala de aula (Daniel Luiz Sousa de Lima)

78
As variações das categorias étnico-raciais no
oitocentos (Dayane Julia Carvalho Dias)

106 As estratégias dos escravizados na luta pelas


alforrias em Arez (Aldinízia de Medeiros Souza)

127 A busca pela liberdadede de negros escravizados


do Seridó(Ariane de Medeiros Pereira)

150 A revolta dos flagelados da seca na colônia agrícola


Sinimbú ( João Fernando Barreto de Brito)

178 Mulheres retirantes e o confronto de Areia Branca


(Francisco Ramon de Matos Maciel)

202 Mulheres, mestiças e abastadas: as sinhás-donas da


família Castriciano de Souza (Genilson de Azevedo Farias)

231 Gêneros alimentícios e o problema da saúde pública na


cidade do Natal (Avohanne Isabelle Costa de Araújo)
* Sumário interativo
PARTE II - NOVOS OLHARES SOBRE O ENSINO

257 Progressão do conhecimento histórico na primeira versão da


Base Nacional Comum Curricular (Matheus Oliveira da Silva)

274 Berimbau me leva: contribuições da capoeira à luta


antirracista na educação básica ( Jefferson Pereira da Silva)

292
A identidade potiguar e o encobrimento dos povos indígenas no
período imperial (Rebeca Nadine de Araújo Paiva e Maria Luiza
Dantas Lins)

307 ARiorepresentação dos povos indígenas na história do


Grande do Norte (Thaís dos Santos Maranhão)

323 Mulheres e o mundo do trabalho (Gustavo Ítalo Freire


Martins)

340 Toda avó tem sua história e toda história tem seu valor
(Maria Luiza Dantas Lins e Rebeca Nadine de Araújo Paiva)

357 Patriarcalismo e ensino de história no horto poético da


potiguar Auta de Souza (1876-1901) (Benigna Ingred Aurelia
Bezerril)

373
Feiras, comércio e desenvolvimento urbano: algumas propostas
didáticas (Allyson Afonso dos Santos Silva, Clivya da Silveira
Nobre eTiago do Nascimento Silva)

393 Autores
À GUISA DE
INTRODUÇÃO:
COMO FAREMOS A ESCOLA E A UNIVERSIDADE DIALOGAREM

Juliana Teixeira Souza

C
omecei a pensar na organização desse livro
em 2018, quando chamei o então douto-
rando e professor da Educação Básica João
Fernando Barreto de Brito para me ajudar a rea-
lizar essa empreitada, que ele topou de cara. Em
outubro daquele ano, a Universidade Federal do
Rio Grande do Norte sediou o III Seminário Inter-
nacional da Sociedade Brasileira de Estudo do Oi-
tocentos (SEO), que reuniu especialistas de todo
Brasil com o propósito de fomentar o intercâmbio
e estimular novos estudos sobre a História do Bra-
sil no século XIX, com a perspectiva de adensar re-
flexões teórico-metodológicas e dar visibilidade à
frente pioneira da pesquisa acadêmica.

8
Entre os historiadores locais, como não poderia
deixar de ser, o evento foi saudado como uma oportu-
nidade para discutir junto à comunidade acadêmica
internacional o resultado das pesquisas que nos últi-
mos anos têm sido realizadas sobre a História do Rio
Grande do Norte no oitocentos. Houve grande mobili-
zação nesse sentido, mas a esses interesses comumen-
te associados aos eventos acadêmicos somaram-se ou-
tras preocupações relacionadas às condições locais de
produção e difusão do conhecimento histórico, con-
siderando especialmente as dificuldades enfrentadas
pelos profissionais docentes que assumem o desafio
de ensinar História do Rio Grande do Norte na Educa-
ção Básica. Como há alguns anos já vinha investindo
na aproximação entre a escola e a universidade, espe-
cialmente por conta da coordenação do Programa de
Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência, pare-
ceu-me fundamental dialogar mais de perto com es-
ses colegas de profissão que desde muito tempo atrás
reclamam, e não sem razão, das dificuldades para a
apropriação do conhecimento histórico produzido na
academia para sua utilização na cultura escolar.
Seria leviano afirmar que a universidade, e os
professores do Departamento de História da UFRN
em especial, tenham se esquivado completamente
dessa demanda. Os professores e alunos de pós-gra-
duação da UFRN têm estado atentos ao interesse dos
profissionais de ensino em explorar o estudo da His-
tória Local em sala de aula, tendo havido iniciativas
com o objetivo de subsidiar o trabalho dos profes-
sores que têm assumido a tarefa de ensinar histó-
ria e cultura do RN na Educação Básica (ARRAIS et
al., 2012; ALVEAL et. al., 2015). Sobre esse aspecto,
fica evidente que o desenvolvimento de pesquisas na
pós-graduação acadêmica e profissional tem contri-
buído significativamente para a renovação da histo-

9
riografia do Rio Grande do Norte, propondo novos
temas e problemas que podem ser apropriados no en-
sino. Mas ainda há muito que avançar nesse debate,
pois nossos alunos de licenciatura e os professores da
Educação Básica continuam avaliando que permane-
ce grande a distância entre a universidade e a escola.
Essa distância entre saber histórico acadêmico e
saberes escolares tem sido constatada pelos estudantes
antes mesmo de terminarem os cursos de licenciatu-
ra. No Enade de 2017, os alunos concluintes do curso
presencial de Licenciatura em História da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, que recebeu conceito 5,
foram questionados se o curso favoreceu a articulação
do conhecimento teórico com atividades práticas. O
gráfico referente às respostas mostrou que 21,1% dis-
cordam (de parcialmente a totalmente) sobre o sucesso
dessa articulação, ao passo que 25% concordaram ape-
nas parcialmente que essa articulação fosse bem-suce-
dida. Ou seja, em torno de 46% dos estudantes avalia-
ram que é preciso melhorar a articulação entre teoria e
prática. É um índice muito alto. A média nacional é de
31% e a média da região Nordeste é de 36%, o que tam-
bém já seria muito alto (BRASIL, 2017).1
No caso do curso de licenciatura em História da
UFRN, esse resultado não é novo e sua persistência é
preocupante. Os relatórios do ENADE são vistos com
muita desconfiança pela comunidade acadêmica, mas
considero leviano ignorar os dados reveladores que
nos fornecem sobre a qualidade de nossos cursos, na
perspectiva dos nossos alunos. Chamo atenção para
isso porque, no relatório do Enade de 2014, verifica-se
que 39,8% dos estudantes do curso de licenciatura da
UFRN avaliaram que havia necessidade de melhorar
a articulação entre teoria e prática. Ou seja, na pers-

¹ Os relatórios do ENADE estão disponíveis em: <http://enade.inep.gov.br/


enade/#!/relatoriosPublicos >. Acesso em: 19 mai. 2021.

10
pectiva dos estudantes, o problema tem se agravado
(BRASIL, 2014). Assim como Margarida Maria Dias de
Oliveira e Itamar Freitas
O que nos move, evidentemente, é a constatação
de que há algum tempo “alguma coisa parece es-
tar fora da ordem”, mas não temos clareza de que
coisa é essa e, o pior, não assumimos a responsa-
bilidade sobre o enfrentamento desses problemas.
O incômodo com o desempenho dos cursos de
graduação em história é experimentado em todo
o país e pode ser flagrado em professores e alunos
dos mais de seiscentos cursos em funcionamen-
to, durante ou imediatamente após a formação de
determinada turma de graduandos (OLIVEIRA;
FREITAS, 2013, p. 132).

Incapaz de compactuar com a esquizofrenia de


fingir que nada acontece, assumo que esses dados vêm
me instigando a uma série de reflexões e mudanças na
minha prática pedagógica, em grande medida motiva-
das pela dúvida sobre a capacidade dos cursos de licen-
ciatura prepararem efetivamente nossos alunos para
a prática profissional.2 E, nos cursos de licenciatura,
quando falamos em prática nos referimos à atividade
docente nas escolas da Educação Básica. E o que esses
índices evidenciam é que os cursos de licenciatura não
têm correspondido suficientemente às expectativas
dos estudantes no que se refere ao exercício prático do
que lhes foi apresentado como conhecimento teórico
nos componentes curriculares. Superar esse desafio de-
manda enfrentar a crítica a algumas tradições que pe-
sam sobre o ensino, na universidade como na escola.
Refiro-me primeiramente à tradição que cen-
tra o processo de ensino-aprendizagem na figura do
professor, percebido como o sujeito detentor do co-
nhecimento que deve ser transmitido. É comum que
² Essas reflexões, como sempre, estão profundamente marcadas pelas lon-
gas discussões, trabalho compartilhado e convivência cotidiana com a Pro-
fa. Margarida Maria Dias de Oliveira.

11
essa crítica seja direcionada à escola, mas ela tam-
bém se aplica à universidade, onde os professores
“dão aula”, e os alunos e alunas “assistem aula”, ex-
pressões que traduzem exemplarmente essa percep-
ção do professor como sujeito que é também fonte
do conhecimento, que deve ser passivamente assi-
milado pelos(as) estudantes.
Outro desafio é superar a tradição que cris-
taliza a imagem da universidade como o espaço de
produção do conhecimento, enquanto a escola se li-
mitaria a reproduzi-lo, na melhor das hipóteses, de
forma simplificada. Mas na visão da maioria dos dou-
tos convictos da inferioridade da escola como espa-
ço de aprendizagem, o ensino nesse espaço é sempre
visto como inadequado, defasado e repleto de erros,
em contraponto à universidade que seria o local do
ensino qualificado por excelência, como se ele não es-
tivesse também repleto de problemas. Há outra tra-
dição que atribui ao professor da Educação Básica a
responsabilidade exclusiva sobre o fracasso escolar
dos nossos alunos, reforçando os argumentos que
contribuem para a desvalorização dos profissionais
do magistério. E é um ciclo perverso com o qual esta-
mos lidando pois, no ensino superior, o fracasso é co-
mumente atribuído aos alunos, futuros professores,
frequentemente acusados de desinteressados, mal-
formados na Educação Básica, incapazes de dominar
a teoria ou de utilizar metodologias de pesquisa.
Um dos grandes desafios impostos por essa
panaceia crítica é assumir que o problema da Educa-
ção Básica se resume à escola e aos professores, o que
eximiria os professores universitários de enfrenta-
rem o grande desafio que é o fracassado modelo de
formação inicial que ainda adotamos nos cursos de
licenciatura. A despeito de toda crítica já feita por
especialistas, é incrível a persistência da ideia de que

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bastaria às disciplinas de “conteúdo” informar os gra-
duandos, enquanto as disciplinas pedagógicas forne-
ceriam as técnicas que viabilizariam a transmissão
do conhecimento. Trata-se, contudo, de uma concep-
ção de ensino equivocada pelo seu caráter conteudis-
ta, por desconectar o ensino da teoria e metodologia
das áreas de referência, por atribuir aos pedagogos a
responsabilidade de determinar como cada Compo-
nente Curricular deve ser ensinado, por não reconhe-
cer a validade do conhecimento produzido no ensi-
no, e por identificar os alunos da escola como sujeitos
passivos no processo de aprendizagem, entre outros
problemas referentes à formação inicial de professo-
res que persistem sem qualquer justificativa razoá-
vel, como a manutenção do quadripartismo tão cri-
ticado nos ensinos fundamental e médio nos cursos
e o pouco investimento em atividades que viabilizem
a aprendizagem de habilidades de pesquisa e escrita
(OLIVEIRA; FREITAS, 2013, p. 140-142).
É difícil admitir, mas continuamos sucum-
bindo interessadamente ao peso da tradição e à
pretensiosa suposição de que o ensino é um tema
menor no âmbito dos grandes debates acadêmicos,
e isso faz com que a maior parte dos professores
e pesquisadores universitários se sinta confortá-
vel para ignorar as mudanças que múltiplos agen-
tes vêm procurando implantar no ensino escolar.
Além disso, os alunos de licenciatura são a maioria
dos cursos de História, mas a convicção mal dis-
farçada de que essa é a opção dos menos “qualifi-
cados”, enquanto os alunos promissores se dedi-
cariam à pesquisa, continua inibindo uma revisão
seria e aprofundada de nossas práticas formativas.
Resultado disso, não é incomum nossos alunos de
licenciatura recém-formados manifestarem sen-
sação de despreparo para enfrentar os desafios da

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educação escolar, queixando-se da distância entre
o que aprenderam na universidade e as necessida-
des concretas da atividade docente.
É urgente, portanto, promover a integração entre
educação superior e educação básica. Precisamos inserir
os licenciandos no cotidiano de escolas da rede pública de
educação, mas não para executar projetos formulados de
forma abstrata, sem conexão com a realidade. É preciso
conhecer a escola, seu público, suas especificidades. Isso
é indispensável para que os licenciandos sejam capazes
de definir os objetivos do ensino, selecionar os conteúdos
e as estratégias didáticas de forma crítica e autônoma, de
modo que suas escolhas possam ser justificadas por uma
legislação inclusiva, que defende a diversidade e o combate
à desigualdade, pela coerência com os objetivos da discipli-
na escolar, pela adequação às demandas sociais, pela consi-
deração ao contexto em que vai atuar.
É fundamental que o professor tenha clareza so-
bre objetivos da Educação Básica, conheça o público com
o qual trabalha, saiba funções das avaliações (do traba-
lho do professor e do aluno). O objetivo do professor não
é transmitir informações. Na Educação Básica, o con-
teúdo é meio para a formação do cidadão, não finalida-
de. Somente aproximando os licenciandos da realidade
que vão enfrentar no mercado de trabalho vamos lhes
proporcionar oportunidades de criação e participação
em experiências metodológicas, tecnológicas e práticas
que sejam significativas para a formação docente. Isso
porque, somente confrontados com as demandas espe-
cíficas de cada escola, de cada turma, podemos decidir
o que ensinar e como ensinar. Esse princípio é nortea-
do pela ideia de que teoria e prática são indissociáveis,
mas numa perspectiva que supera a ideia dicotômica de
que na universidade está a teoria e na escola a prática. É
preciso compreender que toda teoria embute práticas
e, nestas, estão embutidas concepções teóricas. Enten-

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der como esses campos se estruturam na academia e no
chão da escola é o grande desafio que esperamos contri-
buir para ser superado com os trabalhos aqui reunidos.
Procurando atender as expectativas dos profis-
sionais de ensino, no trabalho aqui apresentado, os pes-
quisadores que se debruçaram sobre a História do Rio
Grande do Norte no século XIX – no âmbito de suas es-
pecialidades – assumiram a tarefa de apresentar para os
professores da Educação Básica um breve panorama do
que tem sido produzido nas pós-graduações, explicitan-
do conceitos, problemas e perspectivas de abordagem
que podem ser revisados e/ou incorporados no ensino
de História do Rio Grande do Norte e História do Brasil.
Atentando às especificidades da educação escolar, pro-
curamos estabelecer como critérios: 1) abordar temas já
tradicionalmente inseridos no currículo do componente
curricular, ou que podem dialogar com os conteúdos ca-
nônicos; 2) focar em discussões que possam contribuir
no aprofundamento de conceitos estruturantes do com-
ponente curricular História – fonte, verdade, escravidão,
sujeitos históricos, trabalho, protesto, agências, gênero,
saúde pública, espaço público etc. –, como também na
formação cidadã de crianças e jovens, tais como relações
étnico-raciais e relações de gênero.
O livro é dividido em dois segmentos: a PARTE
I – Novos olhares sobre o passado, traz uma série de
textos temáticos, que podem ser lidos separadamente;
e a PARTE II – Novos olhares sobre o ensino, apresenta
sequências didáticas com sugestões práticas de como
pautar os novos temas e problemas apresentados ini-
cialmente em sala de aula.
Na PARTE I, os textos iniciais da coletânea tra-
tam dos desafios de propor novas perspectivas para o
ensino escolar de História, problema abordado a partir
da experiência de professores com sólida experiência
na Educação Básica e que retornaram à universidade

15
como pesquisadores do curso de mestrado profissio-
nal em ensino de História da UFRN, cujos trabalhos fo-
ram elaborados com o objetivo de atender as deman-
das que emergem do chão da escola. O texto de Cícera
Tamara Graciano Leal da Silva Fernandes discute a im-
portância da construção do conhecimento histórico
escolar privilegiando a perspectiva da História Local,
estimulando entre os alunos reflexões sobre diferen-
tes aspectos de seu cotidiano, considerando as carac-
terísticas dos lugares em que moram e das situações
vivenciadas em seus espaços de convivência. Seu tra-
balho confere atenção especial para as problemáticas
a serem enfrentadas por professores que atuam nas
regiões periféricas das cidades, marcadas pela falta de
infraestrutura e pelos estigmas sociais da pobreza e da
violência, tais como as situações de exclusão e a pre-
carização do acesso aos direitos de cidadania.
O texto de Daniel Luiz Sousa de Lima traz um
breve histórico das lutas que nortearam as políticas
públicas voltadas para a educação das relações étni-
co-raciais na Educação Básica, ressaltando que seus
objetivos não se restringem a acrescentar novos con-
teúdos ao currículo escolar, na medida em propõem,
sobretudo, combater o racismo, reconhecer e valo-
rizar a diversidade e, desse modo, contribuir para a
construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
O trabalho segue discutindo as dificuldades a serem
superadas pelos professores da Educação Básica para
concretizar esse projeto, como o eurocentrismo carac-
terístico da abordagem histórica dos materiais didáti-
cos, as práticas no ambiente escolar que naturalizam
os estereótipos de subalternidade dos alunos negros,
e a persistência do bullying associado ao racismo ser
visto como “só uma brincadeira” entre as crianças e
jovens. O texto de Daniel Luiz Sousa de Lima se encer-
ra com o relato de algumas experiências realizadas na

16
escola em que atua, a partir das quais avalia a impor-
tância da educação para as relações étnico-raciais para
a formação da identidade local.
As experiências da população escravizada têm
destaque nos textos seguintes da coletânea, em ra-
zão da promulgação da Lei n. 10.639 (BRASIL, 2003),
que tornou obrigatório o ensino de história e cultura
afro-brasileira, um exemplo de como as demandas
sociais e as exigências impostas pela legislação edu-
cacional têm impactado a produção historiográfica
no estado. Até então, a principal referência sobre o
tema era a obra de Luís da Câmara Cascudo, que in-
fluenciou fortemente a escrita do passado feita por
acadêmicos e não acadêmicos no estado. Cascudo
subestimava a presença cativa afirmando que “nun-
ca possuímos escravaria em número elevado” (CAS-
CUDO, 1984, p. 188) e declarava em favor do mito da
democracia racial que a composição da população
norte rio-grandense foi marcada pela “marcha da
mestiçagem unificadora”, sentenciando que o “crité-
rio para aferição da raça não é o étnico, mas o social e
econômico” (CASCUDO, 2010, p. 132-135).
Além de fazer crer que a história e cultura de
grupos étnico-raciais distintos do branco de origem
europeia pouco teria contribuído para a compreensão
do passado do Rio Grande do Norte, posto que a heran-
ça portuguesa seria a única influência decisiva e dis-
tinguível na mistura de raças que deu origem à gente
potiguar, Cascudo também colaborou ativamente na
difusão da propalada crença de que Rui Barbosa havia
queimado e feito desaparecer todos os documentos
relativos à escravidão no Brasil, “impossibilitando as
futuras pesquisas para estudos essenciais” (CASCU-
DO, 1984, p. 191). Das relações estabelecidas entre
os escravizados e os grandes senhores rurais, Cascu-
do assegurava que “o escravo não era bicho para tor-

17
tura. Raro era o mau senhor ou a senhora malvada”,
havendo mesmo “respeito pela vontade do escravo
alforriar-se”, o que explicaria o fato da Lei Áurea ter
encontrado tão pouco a fazer em terras potiguares
(CASCUDO, 1984, p. 118). A força e a longevidade da
influência de Cascudo asseguraram o estabelecimen-
to de uma linha interpretativa em que a formação
histórica do Rio Grande do Norte é dominada pela
figura demiúrgica dos grandes proprietários rurais,
forjando-se um passado em que os indígenas não
têm lugar e os negros são caracterizados como sujei-
tos passivos, totalmente submetidos ao domínio dos
benevolentes senhores de terra.
Diante dessa (falta de) perspectiva, foram ini-
bidas as iniciativas de estudo sobre a escravidão negra
no RN, tema que terminou sendo negligenciado du-
rante décadas. Resultado disso, os professores da Edu-
cação Básica que não abrem mão de articular a His-
tória Local com a narrativa da história do Brasil que
prevalece nos livros didáticos, com foco no eixo Rio de
Janeiro-São Paulo, encontram dificuldade de encon-
trar informações que permitam extrapolar essa pers-
pectiva eurocêntrica e discriminatória que marcou a
escrita da história do Rio Grande do Norte produzida
até meados do século XX.
Felizmente, uma nova geração de pesquisado-
res de História tem se debruçado com afinco sobre o
tema, submetendo novas questões a documentos já
conhecidos e se aventurando nos arquivos do estado
em busca de fontes que permitissem reconstruir as-
pectos ignorados ou pouco conhecidos da história de
africanos e afrodescendentes no Rio Grande do Norte.
Esses foram os caminhos percorridos por Dayane Ju-
lia Carvalho Dias, que recuperou os mapas estatísticos
produzidos no século XIX para colocar em discussão os
critérios para definição de categorias étnico-raciais e

18
sua variação ao longo do oitocentos. No lugar de tomar
esses mapas como uma fonte de uma verdade, capaz de
fornecer informações exatas e precisas sobre a compo-
sição da população, sua análise opera no sentido de evi-
denciar que esses documentos são produto de um con-
texto, e como tal respondem a diferentes preocupações
e se organizam a partir de uma lógica estreitamente
articulada aos interesses daqueles que os produziram.
Desse modo, ao mesmo tempo em que destaca o poten-
cial ainda pouco explorado desse tipo de fonte, Dayane
Julia Carvalho Dias revisa o debate sobre a presença ne-
gra em território potiguar, procurando mostrar como
a sub-representação dos povos indígenas e afrodescen-
dentes nos mapas estatísticos da província esteve con-
dicionada pelo projeto excludente de identidade nacio-
nal encampado pelo Estado imperial, e que contou com
a adesão das elites regionais.
Para o avanço do debate acadêmico sobre a
história da escravidão no Rio Grande do Norte, foi
fundamental rever criticamente as ideias e con-
cepções caudatárias dessa historiografia tradicio-
nal. Alinhando-se a perspectivas mais atualizadas
do debate sobre o tema, e utilizando como fonte
de pesquisa os processos criminais da Comarca do
Príncipe – atual cidade de Caicó, localizada na re-
gião do Seridó –, o trabalho de Ariane de Medeiros
Pereira restituiu aos negros escravizados a condi-
ção de sujeitos históricos. Seu estudo mostra como
esses negros elaboraram ideias próprias sobre o ca-
tiveiro, sobre direito e os significados da liberdade,
a partir das experiências vivenciadas no próprio
sistema escravista, marcadas por conflitos e nego-
ciações, resistências e acomodações.
A ideia de que a benevolente classe senhorial
foi responsável pela solução da questão servil no Rio
Grande do Norte (CASCUDO, 1984) foi contestada

19
por Aldinízia de Medeiros Souza, que utilizou car-
tas de alforria para estudar as estratégias de resis-
tência postas em prática pelos negros escravizados
para a conquista da manumissão. Utilizando essa
mesma documentação, Aldinízia de Medeiros Sou-
za procurou delinear o perfil dos libertos na Vila
de Arez, chamando atenção para o predomínio das
mulheres no agenciamento da liberdade. Seu texto
rompe com a visão dos negros escravizados concen-
trados em grandes propriedades rurais, dedicando-
-se exclusivamente ao trabalho no eito, no pasto ou
na casa grande. Por meio da análise dos inventários
da região, seu trabalho mostrou que a maior parte da
população escrava estava distribuída em pequenas
e médias propriedades, e apesar de se tratar de uma
sociedade rural, em que prevalecem as atividades
agrícolas, parte significativa dos cativos eram traba-
lhadores qualificados e desempenhavam diferentes
ofícios, como ferreiros, sapateiros, marceneiros etc.
Muito embora trabalho seja um dos conceitos
estruturantes do componente curricular História, a
história dos trabalhadores do Rio Grande do Norte
– homens e mulheres pobres, livres e escravizados
– por muito tempo se limitou a qualificar esses su-
jeitos como força produtiva, denunciando sua ex-
ploração por parte dos grandes proprietários rurais.
Essa tendência pode ser verificada no trabalho de
Denise Mattos Monteiro, que se propôs a responder
a seguinte questão: “quais as origens históricas do
problema agrário no Brasil contemporâneo, respon-
sável por inúmeras mortes no campo?” (MONTEIRO,
2007, p. 11). Muito embora a historiadora assuma
seus comprometimentos políticos a partir da empa-
tia com os vencidos, ao estabelecer as relações entre
terra e trabalho, Monteiro focou no encaminhamen-
to dado pela elite agrária ao problema da mão de

20
obra, enfatizando as propostas e medidas que foram
adotadas com o objetivo de controlar o processo de
formação e composição do mercado de trabalho. Por
conta disso, a escrita da história do mundo do traba-
lho acabou se limitando a discorrer sobre as ideias e
ações das elites, nos informando muito pouco sobre
a história dos trabalhadores no que concerne a suas
experiências e lutas, formas de pensar e sentir.
Os textos de João Fernando Barreto de Brito e
Francisco Ramon de Matos Maciel sobre os registros
de protestos protagonizados pelos retirantes da Gran-
de Seca de 1877 rompem com essa abordagem, cons-
truída a partir “de cima”. Analisando documentos ofi-
ciais que dão conta da criação de uma colônia agrícola
nas proximidades de Ceará-Mirim e Extremoz, João
Fernando Barreto de Brito mostra a tentativa das eli-
tes políticas e econômicas se articularem com o intui-
to de explorar e disciplinar o grande contingente de
mão de obra que se dirigia ao litoral fugindo da seca,
ao mesmo tempo em que procura confrontar esse pro-
jeto de dominação com a mobilização dos retirantes,
que resistiram tenazmente e protagonizam embates
violentos contra as autoridades locais, forçando o fe-
chamento da colônia. Ao reconstituir os fragmentos
da história do Rio Grande do Norte a partir “de baixo”,
evidenciando as ações da população que enfrentava
as consequências da prolongada estiagem, como tam-
bém as estratégias postas em prática por homens do
governo e latifundiários, que se aproveitaram das con-
sequências da catástrofe climática para desenvolve-
ram novas formas de explorar os trabalhadores, João
Fernando Barreto de Brito coloca no primeiro plano de
sua análise as agências da população, desconstruindo
a ideia presente no senso comum de que a população
do Rio Grande do Norte teria sempre aceitado passiva-
mente o domínio dos latifundiários e coronéis.

21
Francisco Ramon de Matos Maciel, por sua vez,
analisa os conflitos entre retirantes e autoridades pú-
blicas em Mossoró, incluindo jornais em seu corpus
documental. Seu trabalho se distingue pelo destaque
que confere à participação das mulheres nesses con-
frontos, iniciando e liderando protestos contra a cor-
rupção e as decisões dos governantes quanto ao pro-
cesso de distribuição dos socorros públicos. Trata-se
de um tema com grande potencial para ser abordado
na Educação Básica, especialmente por conta da Lei n.
11.340 (BRASIL, 2006), conhecida como Lei Maria da
Penha, que entre os mecanismos para coibir a violên-
cia doméstica e familiar contra a mulher, propõe que
os currículos de todos os níveis de ensino destaquem
conteúdos relativos à equidade de gênero. Estudar
registros de protesto protagonizados por mulheres
com nessa perspectiva oportuniza, sobretudo, proble-
matizar a história da cidadania que ainda domina as
narrativas históricas escolares e acadêmicas, marcada
pela presença de homens brancos de origem europeia.
Os episódios descritos e analisados por Francisco Ra-
mon de Matos Maciel mostram que as mulheres nor-
te-rio-grandenses lutaram com base numa noção pró-
pria de justiça, assim contribuindo para o avanço das
conquistas por direitos de cidadania.
A questão do gênero também é abordada no
texto de Genilson de Azevedo Farias, de forma arti-
culada ao debate sobre relações étnico-raciais. Numa
abordagem que dilui as fronteiras entre a História e a
Antropologia, seu trabalho analisa a trajetória de duas
mulheres da família Castriciano de Souza, de ascen-
dência indígenas e africana, que foi proprietária de
importante casa comercial em Macaíba e ganhou pro-
jeção entre a elite política e intelectual do estado no
período que se estende de finais do oitocentos à pri-
meira metade do século XX. Utilizando textos literá-

22
rios, livros de memória e biografias, Genilson de Aze-
vedo Farias traz para o primeiro plano as trajetórias de
Auta de Souza e sua avó Silvina de Paula Rodrigues, a
d. Dindinha, procurando mostrar que apesar de não
subverterem os valores da cultura católica e patriar-
cal, essas mulheres estiveram longe de se submeterem
passivamente aos papeis comumente atribuídos ao
gênero. Vivendo trajetórias singulares, mas que per-
mitem perscrutar outras representações sobre a pre-
sença negra e feminina na História Local, este estudo
mostra como d. Dindinha, em meio a tragédias fami-
liares, assume o domínio da casa e a chefia da família,
enquanto Auta de Souza rompe os limites do ambien-
te doméstico e ganha projeção no espaço público, por
meio da imprensa e da literatura, consagrando-se
como um dos principais nomes da poesia potiguar.
Outro aspecto ainda pouco conhecido da His-
tória da Cultura do Rio Grande do Norte no século
XIX, a elite intelectual da província era composta não
apenas por jornalistas e literatos, como também por
homens da ciência. As ideias e experiências desses
sujeitos foram investigadas por Avohanne Isabelle
Costa de Araújo, que focou sua pesquisa no trabalho
realizado pelos agentes da Inspetoria de Saúde Públi-
ca da cidade do Natal, considerando especialmente o
papel desempenhado pelos médicos que atuavam jun-
to às instituições do governo na definição de políticas
de Saúde Pública. Acompanhando o trabalho desses
agentes no enfrentamento às epidemias e na fiscali-
zação de mercados e matadouro, Avohanne Isabelle
Costa de Araújo evidenciou os usos políticos do co-
nhecimento técnico-científico dos médicos, que pas-
saram a interferir no ordenamento do espaço urba-
no deslegitimando os velhos costumes da população
pobre da cidade, que tinha outras formas de ocupar
e fazer uso do espaço. Ao analisar os conflitos daí de-

23
correntes, seu estudo também nos permite conhecer
o cotidiano e os hábitos da população que frequenta-
va as feiras e mercados da cidade, movimentando o
comércio que se ocupava do abastecimento interno.
Na PARTE II da coletânea, todas as sequên-
cias didáticas propõem a abordagem dos conteúdos
a partir da história local. Como o público-alvo das
sequências é variado – Ensino Fundamental, Ensino
Médio, Educação para Jovens e Adultos –, essa parte
da coletânea começa com o texto de Matheus Oliveira
da Silva sobre progressão do conhecimento históri-
co, chamando atenção para a importância de organi-
zarmos nossos planejamentos – seleção de conteúdo,
definição de objetivos, delimitação dos problemas a
serem investigados pelos(as) estudantes, estabeleci-
mento de expectativas de avaliação – considerando
os princípios da progressão do conhecimento, o que
significa de adequar os níveis de complexidade às es-
pecificidades de cada turma.
Daí seguimos com a apresentação das sequencias
didáticas, propriamente ditas, começando pela propos-
ta de Jefferson Pereira da Silva de contemplar os objetivos
da educação para as relações étnico-raciais privilegiando
a luta antirracista e a valorização de uma das mais emble-
máticas expressões da cultura negra: a capoeira, prática
surgida em diversas partes do Brasil no século XIX. Como
recurso didático, contrariando a ideia de que a população
afrodescendente não legou manifestações culturais ex-
pressivas no nosso estado, Silva sugere a utilização de can-
tigas compostas por capoeiristas do Rio Grande do Norte.
As propostas de Rebeca Nadine de Araújo Pai-
va e Maria Luiza Dantas Lins, assim como a proposta
de Thaís dos Santos Maranhão, retomam a discussão
sobre a composição étnico-racial da população do Rio
Grande do Norte, ocupando-se, desta vez, com o pro-
blema do suposto “desaparecimento” das populações

24
indígenas do estado, resultado de políticas públicas
instituídas pelo governo da província no período im-
perial. As autoras propõem que os(as) estudantes in-
vestiguem os relatórios dos presidentes de província
e os censos que as autoridades do governo mandaram
realizar no século XIX, convertendo essas fontes histó-
ricas em recursos didáticos privilegiados para o estu-
do sobre o passado, também entendido como meio de
reunir informações que permitam uma melhor com-
preensão sobre os desafios atualmente enfrentados
pelas populações indígenas em território potiguar.
Gustavo Ítalo Freire Martins apresenta sequên-
cias didáticas que propõem levar para a sala de aula o
debate sobre a importância das mobilizações sociais
para a luta por direitos de cidadania, privilegiando a
ação de trabalhadores e trabalhadoras rurais. As ati-
vidades que sugere objetivam colocar em debate a per-
sistência das disputas violentas por terra na história
agrária do Brasil, tendo como ponto de partida o estu-
do dos conflitos ocorridos no Rio Grande do Norte na
década de 1870, agravados pela grande seca que atin-
giu as chamadas províncias do Norte, e que vitimou
milhares de norte-rio-grandenses pela fome ou pelas
doenças decorrentes da falta de acesso aos gêneros de
primeira necessidade e assistência pública.
A condição social feminina é tema aborda-
do na sequência didática proposta por Maria Luiza
Dantas Lins e Rebeca Nadine de Araújo Paiva, que a
partir do estudo das experiências de Silvina Maria
da Conceição, avó dos intelectuais negros potigua-
res Eloy de Souza, Henrique Castriciano e Auta de
Souza. A proposta das autoras foi provocar, entre
os(as) estudantes, algumas reflexões sobre os múlti-
plos papeis exercidos pelas mulheres, e em especial
pelas avós no espaço privado, como cuidadoras, tra-
balhadoras e chefes de família, administrando seus

25
lares e educando as crianças e jovens, influindo de-
cisivamente na formação dos cidadãos.
O texto de Benigna Ingred Aurelia Bezerril
também discute questões de gênero, mas de forma
articulada ao trabalho com o conceito de patriarca-
lismo e a problemática das relações étnico-raciais. A
partir do estudo da trajetória de vida e obra da poeti-
sa Auta de Souza – utilizando poemas como recursos
didáticos e estimulando o diálogo com o componente
curricular de Língua Portuguesa –, seu trabalho pro-
move a construção e conhecimentos sobre a partici-
pação de mulheres negras no espaço público, con-
siderando essas experiências como uma forma de
resistência às diversas estratégias de dominação que
se sobrepõem sobre mulheres negras.
A PARTE II da coletânea se encerra com o texto
de Allyson Afonso dos Santos Silva, Clivya da Silveira
Nobre e Tiago do Nascimento Silva sobre o comércio
de gêneros alimentícios, o ordenamento do espaço
urbano e políticas de saúde pública. Tendo escrito
seus textos em meio à pandemia de COVID-19, inicia-
da nos últimos meses de 2019, os autores propõem le-
var para sala de aula debates sobre urbanização, aces-
so e gerenciamento de recursos hídricos, problemas
socioambientais, a importância do estabelecimento
de rotas comerciais para o avanço do capitalismo, e
o impacto dessa circulação de mercadorias e pessoas
na disseminação de epidemias.
Como se pode verificar, com esses trabalhos
escritos por graduandos e pós-graduados que, em
vários casos, também atuam como professores de
História na Educação Básica – no Ensino Funda-
mental II, Ensino Médio e Educação Profissional –,
propomos não apenas contribuir com o esforço dos
profissionais de História que atuam no ensino em
manterem-se atualizados com a produção acadêmi-

26
ca, como também esperamos trazer subsídios rele-
vantes para uma melhor compreensão sobre os pro-
blemas e desafios enfrentados pela sociedade norte
rio-grandense no passado e na atualidade.
Por fim, aos colegas professores, já formados
ou em formação, enfatizamos aqui a importância de
publicações desse tipo que acabamos de apresentar,
que evidencia a necessidade de não apenas rever a
historiografia norte-rio-grandense, caudatária de
uma intelectualidade elitista e preconceituosa, como
também de nos mobilizarmos para assegurar que esse
esforço de renovação dos estudos sobre o passado fo-
mente outras produções que possam ser consumidas
por um público mais amplo, começando pelo públi-
co escolar. Num momento de tantas controvérsias
sobre os usos éticos e políticos do passado, de franca
disputa entre projetos radicalmente diferentes de so-
ciedade, é urgente investirmos nossa capacidade de
trabalho e ação coletiva para tornar a universidade
menos conservadora e mais conectada ao que acon-
tece fora de seus muros. Não transpor esses muros
significa corrermos o risco de ficamos cada vez mais
fragilizados perante a sociedade, cada vez menos re-
levantes para as novas gerações.
Por isso é indispensável que, na Educação Bá-
sica, estejamos atentos à importância de orientar as
problemáticas de ensino-aprendizagem na perspecti-
va do tempo presente, em consonância com a experi-
ência local dos alunos. Os alunos não são uma página
em branco. Eles têm experiências e conhecimentos
que precisam ser tomados como ponto de partida para
a construção de novos conhecimentos no ambiente
escolar, como nossas propostas didáticas procuram
mostrar. E, para termos acesso aos conhecimentos
prévios dos alunos, precisamos partir daquilo que
lhe é mais próximo. Nossas crianças e jovens preci-

27
sam se situar e entender o tempo em que vivem, o
espaço em que vivem, a sociedade em que vivem. Pre-
cisamos ensiná-los a problematizar as relações em
que estão inseridos, subsidiá-los com informações,
habilidades e competências que lhes permitam con-
ferir sentido ao aqui e ao agora, às suas experiências
concretas, àquilo que eles veem, ouvem e consomem.
Assim vamos formar sujeitos capazes de não apenas
compreender a sociedade em que vivem, vamos for-
mar sujeitos capazes de agir e intervir na sociedade,
mudando o curso da História com o fim de realizar
projetos, individuais e coletivos.

Referências

ALVEAL, Carmen Margarida Oliveira; FAGUNDES, José Evan-


gelista; ROCHA, Raimundo Nonato Araújo da (Org.). Refle-
xões sobre História Local e Produção de material didático.
Natal: UDUFRN, 2015.
ARRAIS, Raimundo Pereira Alencar; ROCHA, Raimundo Nonato
Araújo da; VIANA, Hélder do Nascimento (Org.). Cidade e diversi-
dade: itinerários para a produção de materiais didáticos em histó-
ria. Natal: EDUFRN, 2012.
BRASIL. Lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no
9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e
bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da
Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura
Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Diário Oficial da União,
10 de janeiro de 2003.
_____. Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para
coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos
do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulhe-
res e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar
a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de
Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras
providências. Diário Oficial da União, 08 de agosto de 2006.
_____. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Exame Nacional de De-
sempenho dos Estudantes – ENADE 2014. Relatório de Curso.
História (licenciatura). Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. Natal. Brasília, DF: MEC, INEP, SINAES, 2014.

28
_____. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pes-
quisas Educacionais Anísio Teixeira. Exame Nacional de Desem-
penho dos Estudantes – ENADE 2017. Relatório de Curso. História
(licenciatura). Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal
– 12324. Brasília, DF: MEC, INEP, SINAES, 2017.
CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte. Na-
tal: Fundação José Augusto; Rio de Janeiro: Achiamé, 1984.
_____. História da cidade do Natal. Natal: EDUFRN, 2010.
MONTEIRO, Denise Mattos. Terra e trabalho na história: estudos
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OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de, FREITAS, Itamar. Desafios da
formação inicial para a docência em História. Revista História
Hoje, v. 2, n. 3, p. 131-147, 2013.

29
PARTE I
Novos olhares
sobre o
passado
A PERSPECTIVA DA HISTÓRIA
LOCAL NA BUSCA DE NOVOS
SIGNIFICADOS PARA O ENSINO

Cícera Tamara Graciano Leal da Silva Fernandes

Novos olhares sobre


a comunidade escolar1

Em boa parte do Rio Grande do Norte, os alu-


nos e as alunas que estudam em escolas públicas resi-
dem, a maior parte, nas comunidades em seu entorno.
Muitas dessas comunidades formam o espaço urbano
e fazem parte da vida cotidiana desse alunado porque
lá moram e porque esses são seus principais espaços
de convivência. Se as escolas fazem parte de regiões
periféricas, as pessoas que habitam o entorno da es-
cola sofrem muitas vezes com estereótipos e, conse-
¹ Texto baseado no capítulo “Ensino de História, cidade e memória” da
dissertação de mestrado (FERNANDES, 2018) defendida no Programa de
Pós-Graduação Mestrado Profissional em Ensino de História.

31
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

quentemente, preconceitos, devido a um processo de


“periferização” e “segregação”, os quais não são ho-
mogêneos, mas são perceptíveis, além da possível
formação de “estigmas sociais” (SILVA, A., 2003).
Diante disso, como estimular os discentes a reco-
nhecerem que o desenvolvimento da realidade do
lugar em que eles vivem e estudam, do entorno da
escola, pode subsidiar a construção do conheci-
mento histórico? É possível relacionar a história
desse lugar que permeia o seu dia-a-dia àquela his-
tória já canonizada nos livros didáticos, material
ainda principal do seu estudo em história?
Todos aprendemos que o estudo da história
deve partir de uma questão contemporânea, dos deba-
tes que mobilizam o presente, uma ideia introduzida
por historiadores consagrados como Marc Bloch e Lu-
cien Febvre, já na década de 1920, do desenvolvimen-
to de uma “história-problema” (CASTRO, 1997, p. 45),
cujas questões deveriam apresentar “pertinência so-
cial […] interesse para a sociedade no âmago da qual se
procede à sua formulação” (PROST, 2014, p. 84). Esse
é um objetivo a ser perseguido especialmente quando
se quer um ensino da história que se distancie da ideia
de simples transmissão de conhecimentos eruditos e
se aproxime da busca por uma formação voltada para
o desenvolvimento da cidadania, que pensa a aprendi-
zagem como mobilização de diferentes recursos com o
fim de enfrentar e resolver situações e problemas.
Mas entendem-se alguns dos porquês de os
alunos não perceberem a história como uma discipli-
na relevante no sentido da compreensão dos dilemas
da atualidade e da capacidade que estimula em pos-
sibilitar reflexões e ações historicamente embasadas
sobre o presente. Impossível não afirmar que o atu-
al ensino de história apresenta uma série de incoe-
rências. A história no Brasil, segundo Itamar Freitas

32
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

(2013) mesmo com “reformas educacionais” e trans-


formações de “currículos nacionais para o ensino de
história” desde a década de 1930, e apesar da cons-
tante busca dos professores pesquisadores por tornar
o ensino de história mais significativo, continua sen-
do baseada acriticamente no modelo de periodização
quadripartite francês e excluindo o protagonismo de
certos sujeitos da sociedade brasileira.
Isso pode ser exemplificado com uma análise
sobre o livro didático. Praticamente, o único recurso
didático nas salas de aula das escolas públicas é ele,
e em muitas delas, o único. Este material, na contra-
mão das críticas a ele, e apesar de uma orientação
clara do Governo Federal para melhorias nos últimos
anos através do Programa Nacional do Livro Didáti-
co – PNLD, alcançou uma padronização ao longo do
tempo que afasta mais e mais os alunos de suas pá-
ginas. Itamar Freitas e Margarida de Oliveira, sobre o
assunto revelam que:
O que acompanhamos nos últimos anos, infeliz-
mente, foi a acomodação dos autores e editores a
um modelo de livro didático que se transformou
em padrão. Em termos de conteúdos substantivos,
constatamos a incapacidade de diferenciar (entre
uma e outra coleção) conhecimentos e habilidades
singulares a cada título, seja em termos de abor-
dagem, seja em nível de aprofundamento e, prin-
cipalmente, de critérios de seleção de conteúdos.
(FREITAS; OLIVEIRA, 2014, p. 17).

O modelo cristalizado de livro didático nem


atrai a curiosidade do alunado, nem o ajuda a ver rela-
ção do passado com os dias atuais e quando utilizado,
erroneamente, confundindo-o com currículo escolar e
seguindo os seus conteúdos substantivos, linearmen-
te, de “capa à capa”, como dizemos no jargão do “chão
da escola”, fica claro o quão inócuas são algumas das
práticas de ensino. Desse modo, são urgentes estraté-

33
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

gias que ultrapassem a utilização das páginas desse li-


vro didático que deveria ser só mais um documento a
ser explorado pelos professores e alunos. Não se trata,
porém, de abandoná-lo, ressalva-se.
O espaço que compreende o entorno da esco-
la e que é o local da experiência dos alunos, justifica-
-se como objeto de estudo, como uma possibilidade
de diversificação dos recursos didáticos e de fontes
que podem ser produzidas pelo professor, como afir-
ma Antônia Terra (2012). Temos à nossa volta uma
gama de produções humanas que podem e devem ser
exploradas pelos professores e professoras de his-
tória, desde os objetos, prédios, ruas, passando por
imagens e depoimentos, escritos em geral, chegan-
do, inclusive, à quase infinita quantidade de material
disponibilizado no ciberespaço.
O conceito de História Local aqui utilizado
está em consonância com o que pensa Toledo (2010),
ao criticar as abordagens da História Local propostas
por profissionais da história e da educação no Brasil,
que valorizam apenas os movimentos populacionais
ou o cotidiano dos grupos sociais. De acordo com essa
historiadora, a História Local é: “Uma modalidade de
estudos históricos que, ao operar em diferentes esca-
las de análises, contribui para a construção de pro-
cessos interpretativos sobre as diferentes formas de
como os atores sociais se constituem historicamen-
te” (TOLEDO, 2010, p. 751).
Ou seja, a História Local interessa-se pela vida
individual e em sociedade dos sujeitos e grupos cons-
truídos e representados pelos poderes político e eco-
nômico sob a estrutura de bairros e cidades, mas reve-
la a história em si, pois toda “história é História Local”
(TOLEDO, 2010, p.746). Portanto, se as experiências
sociais definem os espaços urbanos de sociabilidade,
lugares são fontes, mas também são o próprio conhe-

34
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

cimento histórico. Isso significa que os lugares exis-


tem como resposta da vivência das pessoas e por isso,
podem ajudar os alunos e as alunas a compreenderem
a história como um resultado da ação de sujeitos que
lhe são próximos, apesar da distância temporal com
relação à sua realidade social, permitindo que se ve-
jam inseridos nessa mesma construção.
Também para Reznik:
Toda vivência é “localizada”. Trabalhar com a
constituição de memórias e com a análise de his-
tórias locais não implica uma simplificação do
número de variantes e aspectos da trama social.
O local, alçado em categoria central de análise,
pode vir a constituir uma nova densidade no qua-
dro das interdependências entre agentes e fatores
constitutivos de determinadas experiências his-
tóricas. (REZNIK, 2010, p. 92)

Documentos oficiais brasileiros norteadores da


educação, como as Diretrizes Curriculares Nacionais
da Educação Básica, por sua vez, indicam a importân-
cia da vivência localizada para o ensino:
Como protagonistas das ações pedagógicas, ca-
berá aos docentes equilibrar a ênfase no reconhe-
cimento e valorização da experiência do aluno
e da cultura local que contribui para construir
identidades afirmativas, e a necessidade de lhes
fornecer instrumentos mais complexos de análi-
se da realidade que possibilitem o acesso a níveis
universais de explicação dos fenômenos. (BRASIL,
2013, p. 136).

A questão local deve ser incentivada na sala de


aula pelos educadores de maneira equilibrada, como
incentivo à construção das identidades afirmativas
e para a relação com discussões de outras realidades,
propiciando aos educandos, assim, os meios para
transitar entre a sua e outras realidades e culturas e
participar de diferentes esferas da vida social, econô-

35
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

mica e política. Atentar para a reflexão sobre o local no


ensino de história está, pois, atrelada à concepção de
que a escola básica deve educar para a cidadania; ou
seja; deve instruir os alunos e as alunas a serem pes-
soas conscientes dos seus direitos e deveres e que rei-
vindiquem o exercício dessa cidadania, independen-
temente de sua origem social.

O que significa estudar


a história da cidade

É inerente ao estudo da História do homem


no tempo a problematização do tempo presente,
“com vistas a perceber como este momento presen-
te é afetado por certos processos que se desenvol-
vem na passagem do tempo, ou como a temporali-
dade afeta de diversos modos a vida presente”. Para
isso, outra categoria de análise também deve ser
considerada: o espaço onde a história se desenrola,
“como lugar que se estabelece na materialidade fí-
sica, como campo que é gerado através das relações
sociais” (BARROS, 2005, p. 96-97).
Para alguns historiadores explorar o urbano
é uma possibilidade com grande potencial a ser ex-
plorado pelos professores da escola básica pois, para
eles, “a cidade nos exibe com intensidade o seu pas-
sado e o seu presente. Em qualquer ponto, ela pode
nos surpreender com um sinal ou uma pequena por-
ta de entrada para sua história”, concordam Viana,
Rocha e Arrais (2012, p. 11). Os estudos sobre as
cidades são variados como o são os modelos de ci-
dades em diferentes tempos e espaços. Nesse caso, a
cidade pode ser compreendida como:
Caracterizada pelos fluxos econômicos e humanos
que, ignorando fronteiras estaduais e nacionais, a
vinculam a um território mais amplo; pela força dos

36
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

laços sociais existentes dentro dela, e, ainda, pelas


representações que os moradores formulam sobre
eles mesmos, concebendo-se como integrantes de
uma entidade coletiva. (ARRAIS, 2011, p. 20-21).

Isso significa que debater a formação e o de-


senvolvimento desse espaço junto aos estudantes,
pode contribuir para dar sentido à história escolar,
posto que “a cidade em que vivemos oferece um ar-
quivo a céu aberto, que documenta o seu passado e o
seu presente” (ARRAIS, 2011, p. 27). E esse não é um
tema explorado apenas recentemente. Os estudos so-
bre as cidades remontam ao século XIX, com debates
que se iniciaram procurando os fatores que desenca-
dearam seu surgimento, e mais contemporaneamen-
te se preocupam com suas funções, seus processos
de urbanização, seus efeitos na vida dos indivíduos
e suas mudanças espaciais provocadas pelos fatores
econômicos e sociais; além da relação entre cidade e
modernidade, tendo em vista as rápidas transforma-
ções tecnológicas da sociedade.
A temática da história urbana é uma área mul-
tidisciplinar de conhecimento que cresceu a partir da
década de 1960, sendo que no Brasil, desde a década de
1970, os historiadores têm feito investigações sob esse
prisma. Os objetos se concentravam em explorar as
questões relacionadas às condições de vida da
população pobre das grandes cidades, moradias,
habitações e intervenções sanitaristas, de remo-
delação das cidades e em relação à disciplinariza-
ção do espaço urbano, principalmente no que diz
respeito aos meios operários, além das questões
ligadas aquilo que constitui o patrimônio cultural
das cidades. (BRESCIANNI, 2001, p. 237-258 Apud
SILVA, W., 2011, p. 25)

A cidade, que articula em suas tramas relacio-


nais diferentes espaços e tempos históricos, “torna-
-se um objeto privilegiado de pesquisa histórica,

37
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

na qual se destaca o papel das experiências sociais


como definidoras dos espaços de sociabilidade”,
como afirma Maria Toledo (2010, p. 754), o que per-
mite articular historiografia local com história da
localidade e selecionar eixos de estudos no ensino
de História, com a possibilidade de interligação com
diversas experiências no tempo.
De acordo com Lefebvre, o modelo organicista
de análise empregado por muitos historiadores e
sociólogos não trouxe à tona as diferenças da rea-
lidade urbana. O continuísmo exacerbado destes
estudiosos ocultou as descontinuidades históri-
cas, espaciais e sociais da cidade, esquecendo-se
que no decurso de sua história, novas formas,
mas, estruturas e funções foram-lhe atribuídas.
(SANTOS, 2003, p. 165).

As cidades, portanto, devem ser estudadas em


suas semelhanças, diferenças, estruturações e rees-
truturações ao longo do tempo e cada uma analisada
em suas configurações e conflitos ímpares. Porque,
como adverte Lefebvre (1991, p. 1), “todo o sistema
tente a aprisionar a reflexão, a fechar horizontes”. Isso
significa que se deve estudá-las atentamente quanto
ao que lhe são específicos e o que lhes são gerais. O que
pode ser revelado em suas materialidades.
De acordo com Daniel Gevher (2016), frequen-
temente ouve-se que ensinar história nos dias de hoje
não é tarefa fácil, que as pessoas consideram a con-
temporaneidade tempos de desprezo ao passado, nos
quais se vive com a sensação de transformação cons-
tante, e em que as coisas e os lugares que falam sobre
a história parecem não ter mais importância. Vivería-
mos, então, um momento
De fragmentação do coletivo, de fronteiras cultu-
rais que desabam ou surgem, onde há multiplici-
dades de identidades. [...] Nesse jogo que envolve a
produção das identidades, o passado e o presente

38
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

entram em conflito fazendo com que alguns ele-


mentos do passado sejam esquecidos, ou pelo me-
nos deixados de lado, enquanto outros surgem e
tornam-se representantes da identidade dos su-
jeitos, que passam a compartilhar ideias e valores
culturais. (GEVHER, 2016, p. 948).

Se, como avalia o historiador citado, o espaço


real e concreto parece ter cada vez menos importân-
cia social, na medida em que passamos a viver em es-
paços de virtualidade e de relações midiatizadas, fa-
z-se urgente que os professores de história busquem
instigar os alunos a refletirem sobre a preponderân-
cia histórica da produção material das pessoas no
mundo, mesmo sabendo da existência de trabalhos
que enfocam as representações e os discursos de po-
der para a construção das cidades, visto que estas se
configuram também como espaço de disputa entre
diferentes grupos sociais. Natal, por exemplo, já foi
estudada como “uma espacialidade operada a partir
de determinadas construções intelectuais” (SILVA,
W., 2011, p. 23). Há um nível material e um nível
simbólico quanto à configuração de uma cidade.
O importante é ressaltar que a pesquisa his-
tórico-escolar, tendo como centro da análise o lugar
onde estão inseridos os alunos de uma escola espe-
cífica, lugar no espaço físico, com pessoas de verda-
de, precisa explorar o valor histórico intrínseco à
materialidade dos lugares à nossa volta, sem ignorar
os discursos sobre esses lugares, e como eles contri-
buem para o processo de atribuição de valor a alguns
lugares, em detrimento de outros.
Nesse sentido, atribui-se um outro significado
ao estudo da cidade, extrapolando o currículo comum.
Como temos afirmado, o aprendizado da história não
se limita ao conhecimento dos conteúdos tradicional-
mente abordados no currículo escolar, pois

39
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

O aprendizado se realiza ao longo de uma dupla ex-


periência: uma é a do contato com o legado da ação
humana, acumulada no tempo, e que chamamos
comumente de ‘história’, não raro com inicial mai-
úscula. Esse contato se dá de forma espontânea, no
convívio social do quotidiano, nos múltiplos âmbi-
tos da experiência concreta vivida. [...] A outra ex-
periência é a escolar. (MARTINS, 2011, p. 9).

Nessa perspectiva, os professores de histó-


ria precisam estar atentos ao cotidiano de seus
alunos, suas ações concretas e experiências vi-
vidas, não apenas para identificar os problemas
sociais que enfrentam e orientá-los a pensar cri-
ticamente sobre os mesmos, mas também para
saberem quais aprendizados construídos fora do
ambiente escolar tem contribuído para sua forma-
ção. No contato com o outro se estabelecem me-
mórias, tradições, valores, crenças.
No que concerne à Educação Histórica formal, ela
[a consciência histórica] será um meio imprescin-
dível para as crianças e jovens exprimirem as suas
compreensões do passado histórico e consciencia-
lizarem progressivamente a sua orientação tem-
poral de forma historicamente fundamentada.
(MARTINS, 2011, p. 12).

De acordo com Mesquita (2013), seguindo essa


proposta, o papel do professor é atuar como um orien-
tador e organizador de situações didáticas motiva-
doras; buscar reconstruir significados existentes ou
construir novos; valorizar as aspirações e realização
pessoal dos alunos, levando em conta o seu contexto
sociocultural e os conhecimentos prévios dos alunos.
Quanto ao educando, por sua vez, este deve:
alcançar objetivos, resolver problemas e tomar de-
cisões, levando ao desenvolvimento de competên-
cias e habilidades e à reorganização dos significa-
dos pré-existentes, que foram adquiridos ao longo

40
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

da vida. Propõe-se também que o aluno participe


ativamente do processo de construção do conheci-
mento histórico, aprendendo a ter autonomia para
expandir seus conhecimentos com base em pesqui-
sa, de modo que aprenda a pensar historicamente,
que implica em não apenas coletar a informação
por meio da pesquisa, como também avaliar a sua
fiabilidade e desenvolver interpretações, perceben-
do que a explicação histórica é sempre parcial e
provisória (MESQUITA, 2013).
Em concordância à postura defendida por
Oliveira (2010), defendemos que tanto na pesquisa
acadêmica quanto no ensino escolar há produção do
conhecimento histórico. Em ambas as experiências,
partimos de problemáticas a serem respondidas, te-
mos o tempo como categoria principal, investigamos
o passado por meio de fontes e utilizamos referen-
ciais teóricos e metodológicos para proceder a análise
dos dados. Nesse sentido, importa orientar os alunos
no processo de formulação de perguntas; rastreio das
fontes; confrontação de fontes diversificadas – com
atenção especial para a pesquisa de campo/estudo do
meio e fontes orais –; socialização das informações
pesquisadas; no trabalho de registros, sistematiza-
ções das informações pesquisadas e da construção da
memória histórica, de narrativa, de interpretação ou
de análise. Isso os fará tomar consciência do proces-
so vivenciado, aprendendo a valorizar esse processo.
O desafio procedimental da pesquisa como
eixo organizador do currículo tem a ver com estimu-
lar os discentes a elaborarem investigações inspira-
das no trabalho do historiador, que tenham a pos-
sibilidade de elaborar respostas para as perguntas
formuladas, sabendo que eles não são autores de co-
nhecimento científico, mas produtores de um saber
histórico que é próprio à experiência escolar.

41
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

Por um trabalho significativo


com a memória na escola

Quando se pensa este momento de transforma-


ções rápidas, por outro lado, nos perguntamos sobre a
relação entre o valor da memória coletiva nos tempos
atuais. A história se preocupa com a compreensão, a
crítica e a análise daquilo que se quer lembrar e esque-
cer. Uma estratégia para explorar essas questões é tra-
balhar com a ideia de lugares de memória, ou ainda de
artefatos simbólicos da memória pública.
Afirmando que “nossas lembranças permane-
cem coletivas e nos são lembradas por outros, ainda
que se trate de eventos em que somente nós estive-
mos envolvidos e objetos que somente nós vimos”,
Maurice Halbwachs (2003, p. 30) deu visibilidade às
discussões sobre memória coletiva ou social. Para
esse sociólogo, a memória coletiva é aquilo que é
compartilhado pelos indivíduos mutuamente, quan-
do as pessoas pertencem a um grupo específico, o que
as permite possuir os mesmos referenciais simbóli-
cos de leitura dos acontecimentos.
Ao escrever sobre os lugares de memória,
o historiador Pierre Nora (1993), também anali-
sando as rápidas mudanças da contemporaneida-
de falava sobre uma aceleração da história, sobre
transformações da sociedade que rompia com um
passado de tradições, que se esquecia da memória
coletiva. Para esse historiador, os lugares de me-
mória (museus, arquivos, cemitérios e coleções,
festas, aniversários, tratados, processos verbais,
monumentos, santuários, associações), que só
existiam, mas não simultaneamente, nos sentidos
funcionais, materiais e principalmente, simbóli-
cos, seriam “sacralizações passageiras numa so-
ciedade que dessacraliza” (NORA, 1993, p. 12-13),

42
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

lugares construídos ou transformados em reposi-


tórios de uma memória coletiva.
Nas palavras de Viana (2012), aquilo que o au-
tor chama de “artefatos simbólicos” são o produto da
memória coletiva, ou melhor, representantes da me-
mória pública fruto de constante negociação entre os
vários grupos sociais encontrados nas cidades. Arte-
fatos que só são simbólicos se fizerem sentido para as
pessoas que com eles convivem ou conviveram, e que
não têm valor em si mesmos.
Isso nos remete à questão do uso da cultura
material como fonte de estudo para a história e como
documento para a construção do conhecimento his-
tórico. Com as mudanças teóricas e metodológicas da
ciência da história a partir da escola dos Annales desde
o início do século XX, as fontes materiais passaram a
ser muito mais valorizadas para a história. Segundo
Roberto Silva e Camila Duarte (2017), esses estudos:
Redimensionaram o uso e a valorização das fontes
materiais, assim como também as introduziram
no seio da discussão historiográfica e fixaram um
melhor entendimento de que as sociedades con-
temporâneas, assim como as do passado, foram
permeadas pela materialidade em sua dimensão
cultural, na organização e distinção de suas esfe-
ras sociais e estruturas de poder. (THOMAS, 1999,
p. 15-20 Apud SILVA, R.; DUARTE, 2017, p. 183-
184).

Isso significa que a materialidade insepa-


rável da existência e do processo de entendimento
histórico das sociedades do passado, bem como do
seu funcionamento, de modo que a cultura material
permite estudar as ações, os pensamentos e os com-
portamentos das sociedades, sendo a cultura enten-
dida como “a manifestação não tangível dos com-
portamentos sociais dos diversos grupos humanos,
os quais envolvem as crenças, ritos, símbolos e ou-

43
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

tras manifestações da capacidade humana” (SILVA,


R.; DUARTE, 2017, p. 185).
Os artefatos da memória pública, ou bens cultu-
rais, para que possam ser problematizados junto ao seu
corpo discente, não precisam ter sido consagrados pelos
poderes públicos instituídos, reconhecidos pela socieda-
de e protegidos por legislações. Eles podem ser identifi-
cados simplesmente como aqueles que “fazem parte do
nosso dia-a-dia, da nossa realidade social, revelando os
múltiplos aspectos que a cultura viva de uma comunida-
de pode apresentar” (MACÊDO, 2017, p. 99).
Este é um aspecto importante de ser consi-
derado, pois mostra que não é preciso haver bens de
cultura material tombados para o estudo da materia-
lidade de uma cidade. Estudar o lugar de moradia dos
alunos, do ponto de vista da história pode, desta fei-
ta, significar buscar:
Os laços das pessoas com o lugar […]. Mudanças e
permanências ocorridas em um pequeno espaço
de uma cidade demonstra que existe um enor-
me leque de possibilidades para a realização de
trabalhos históricos encontrados na construção
identitária do sujeito. Todavia, se perguntarmos
a um jovem morador do bairro sobre sua relação
com aquele espaço, dificilmente ele fará alguma
correlação entre sua existência e a daqueles que
viveram no bairro duas ou três décadas atrás, ou
seja, seus pais e avós. (ROCHA, 2012, p. 275-281).

Há uma naturalização do espaço/tempo pre-


sente pelos moradores no bairro, de acordo ainda
com a reflexão de Rocha (2012), como se nos espaços
atuais nunca tivesse havido transformações ou rup-
turas, como se a vida fosse um “presente contínuo”.
Constata-se, assim, que as pessoas estão vivendo de
maneira “naturalizada”, perdendo sua memória re-
lacionada às transformações do lugar, relacionada
às teorias de uma contemporaneidade desligada de

44
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

sua memória, de sua história. Portanto, a memória


fundada sobre essa relação com o espaço está em
processo de desaparecimento.
Essa ideia que condiz com os estudos que valo-
rizam o papel dos professores de história como pro-
fissionais responsáveis por uma mudança de postu-
ra dos jovens, no sentido de valorizar o passado. Os
professores se tornam cada vez mais importantes,
pois “a destruição do passado – ou melhor, dos meca-
nismos sociais que vinculam nossa experiência pes-
soal à das gerações passadas – é um dos fenômenos
mais característicos e lúgubres do final do século XX”
(HOBSBAWM, 1995, p.13).
O desafio, para a historiadora Oliveira (2003,
p. 166-168), é que a memória no Brasil tem sido usa-
da pelos professores do ensino básico como uma se-
gunda versão da história, ou até como sua substitu-
ta, um problema, já que essa prática pode cristalizar
visões do senso comum. Na sua avaliação, é preciso
que os professores confrontem essas falas com a pro-
dução da pesquisa histórica.
Francisco Ramos (2009), ao criticar historia-
dores que escrevem em defesa do direito à memó-
ria, acredita que não se deve confundir falar sobre
um tema com defender esse tema, pois apesar de
ser inerente ao trabalho do historiador o lidar com
“a dinâmica das lutas sociais”, quando se defende a
memória de um grupo social, seja qual for, se escre-
ve memória e não história. A confusão entre as duas
práticas pode, inclusive, criar ressentimentos his-
tóricos. Assim, de acordo com esse pensamento, “a
produção de memórias e identidades múltiplas não
é tarefa do ensino de história. O que o saber históri-
co almeja é perceber a historicidade das produções,
localizando-as em conflitos de sujeitos socialmente
constituídos” (RAMOS, 2009, p. 11).

45
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

Refletir, portanto, sobre como abordar os luga-


res da experiência dos alunos e alunas, enquanto es-
paço de memória, de maneira a construir um ensino
de história a partir de uma abordagem historiográfi-
ca propriamente dita, sem sofrer a acusação de estar
“causando mais ressentimentos”, como alerta Ramos
(2009), acontece quando esses lugares de memória são
tratados como documentos, como fontes, os quais de-
vem ser articulados aos problemas, teorias e métodos.
Todavia, quando se tem a convicção das es-
pecificidades da função de ser professor de história
no Brasil, não podemos nos esquivar da constante
busca por ensinar com e por valores, como defen-
de Freitas (2016). O ensino de valores é inerente ao
ensino de história, pois estes valores são indicados
na legislação princípios norteadores da educação
básica. Conforme o autor:
Somos a materialização do Estado democrático de
direito. Assim, na educação pública (regrada pelo
Estado), somos submetidos a algumas normas das
quais podemos até discordar, mas não temos força
moral e autoridade jurídica para desobedecer. Es-
tados que regem interesses entre grupos sociais de
forma democrática conservam o seu conjunto de
valores, normatizando o seu emprego e indicando
os responsáveis por seu cultivo. É para esse rol de
valores que devemos dirigir nossa atenção. (FREI-
TAS, 2016).

É preciso considerar, então, o direito que os


alunos têm de perceberem-se enquanto sujeitos ati-
vos na sua sociedade.

Os excluídos da história
e o direito à memória

A reflexão que temos proposto também exige


um posicionamento teórico acerca dos debates sobre

46
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

o direito à memória, os quais podem ser entendidos


como aqueles que buscam dar voz aos grupos exclu-
ídos da história oficial, tais como indígenas, negros,
mulheres, trabalhadores. É importante entender
que, ao estimular os alunos a pensarem sobre si e so-
bre o mundo que os cerca no local, ou no geral, eles
invariavelmente devem ponderar sobre suas iden-
tidades nessa sociedade excludente em que vivem e
sobre a qual estudam.
Em Natal, compreende-se que – desde o início
do século XX, com os projetos e ações de urbanização e
seus ideais ordem e progresso, passando pelas mudan-
ças urbanas ocorridas com o aumento da população
que migrou quando da ocupação estadunidense na Se-
gunda Guerra Mundial, além das migrações por causa
das secas e mais, dos programas estatais de habitação
portanto – houve um processo de periferização.
Obviamente, que o conceito de periferia aqui
pensado não diz respeito apenas à ideia de região
geográfica que se estabelece nos arredores de algum
lugar. Periferia aqui se refere aos lugares afastados
das decisões políticas e cujas políticas públicas se fa-
zem menos presentes, onde vivem aqueles trabalha-
dores que se encontram “na dinâmica descontínua e
fragmentada das cidades contemporâneas” (SOTO,
2008, p. 2). Segundo ele:
A noção de subúrbio contém uma nova concepção
de espaço, uma nova sociabilidade, onde ocorre a
ruptura e a transição para a modernidade da ci-
dade. O subúrbio representa o ser dividido entre
o urbano e o propriamente rural. [...] Na periferia
se concretiza a subordinação da cidade e da urba-
nização à renda da terra. Como disse Martins “a
periferia é a negação das promessas transforma-
doras, emancipadoras, civilizadoras e até revolu-
cionárias do urbano, do modo de vida urbano e da
urbanização”. (SOTO, 2008, p. 2)

47
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

Para esse autor, o conceito de periferia dialoga


e se confunde com o de subúrbio. Mas enquanto, o su-
búrbio, na origem do termo, significa o espaço onde o
campo se torna apêndice da cidade, estando na tran-
sição do campo para a cidade, suavizando-se as mu-
danças radicais – e não necessariamente relacionado
à pobreza –, a noção de periferia é “o extremo da ur-
banização degradada, isto é, das habitações precárias,
inacabadas, provisórias, da falta de infraestrutura que
surgiu nos anos 60 [...]. Os subúrbios têm lotes maio-
res, casas com quintais, horta”. As periferias têm a es-
peculação imobiliária, casas pequenas, ruas estreitas,
falta de saneamento básico (SOTO, 2008, p. 5-7).
Abaixo, segue outra ideia sobre o que é perife-
ria, e que ajuda a pensar as problemáticas que muitos
de nós defrontamo-nos cotidianamente no entorno
da escola onde atuamos, marcado pela presença de
Gente pobre, com empregos mal remunerados,
baixa escolaridade, pele escura. Jovens pelas ruas,
desocupados, abandonaram a escola por não ve-
rem o porquê de aprender sobre democracia e li-
berdade se vivem apanhando da polícia e sendo
discriminados no mercado de trabalho. Ruas sujas
e abandonadas, poucos espaços para o lazer. Al-
guns, revoltados ou acovardados, partem para a
violência, o crime, o álcool, as drogas; muitos bus-
cam na religião a esperança para suportar o dia-
-a-dia; outros ouvem música, dançam, desenham
nas paredes [...] (PIMENTEL, 1997, p. 1 Apud CON-
CEIÇÃO; SANTOS, 2010, p. 1).

A periferia, então, é este lugar de exclusão so-


cial, em que as pessoas são marcadas por estigmas
negativos. Estigma significa, segundo Gilberto Velho
“aquele rótulo que cada pessoa carrega consigo, o es-
tigma do lugar onde mora [quando] ‘o mapa da cida-
de [...] passa a ser o mapa do social, onde as pessoas se
definem pelo lugar onde moram” (VELHO, 1972, p. 80

48
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Apud ALMEIDA, 2005, p. 10). Um estado de “violência


simbólica”, segundo Brum (2012, p. 9). Baseado em Er-
ving Goffman, Caio Cezar Silva defende que “o estig-
matizado é aquele que tem dificuldade em estabelecer
laços com padrões normalizados de sociedade” (2012,
p. 67-68, grifo do autor). Segundo o referido autor,
Assim como a imagem das periferias, a do seu mora-
dor também está alicerçada na base de um conjun-
to de premissas falsas, desenhadas pelo imaginário
social ou formulada pelo senso comum. Esse fator,
aliado a outros como o medo generalizado, pauta-
do no discurso das inseguranças, violência e crimi-
nalidade violenta, acarreta o aprofundamento das
disparidades socioespaciais. (SILVA, C., 2012, p. 68).

A exclusão, seja social, cultural ou econômica,


está relacionada principalmente à precarização ou fal-
ta de acesso aos direitos dos cidadãos, o que nos reme-
te à noção de pobreza, já que nos referimos à proble-
mas com relação à habitação, alimentação, trabalho,
cultura, infraestrutura e serviços urbanos mínimos.
Essa população privada de seus direitos comumente
vive em locais excluídos do padrão territorial comum,
como nos loteamentos irregulares. A exclusão aliada
ao problema da espacialização, é o que pode ser cha-
mado de segregação, pois esses indivíduos perdem até
os seus direitos inalienáveis. (MEDEIROS, 2013, p. 30).
Ao serem confrontados com o fato de que a re-
gião onde vivem é alvo de muitos preconceitos e este-
reótipos, muitas vezes reproduzidos por eles próprios,
os alunos também precisam ser estimulados a ver o
seu lugar no mundo de uma forma positivada. Sem
minimizar os problemas que enfrentam, obviamente,
é necessário estimulá-los a atuar como sujeitos de di-
reitos, capazes de se mobilizar e reivindicar mudanças
infra estruturais e na oferta de serviços, por exemplo,
de modo que percebam o exercício da cidadania como
resultado da ação de sujeitos de direito.
49
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

Considerações finais

A principal contribuição do ensino da história,


tomando como ponto de partida o estudo de bens de
cultura material de uma cidade, consagrados ou não,
é estabelecer relações entre o local, o regional, o nacio-
nal e o global. O que significa dizer que, ao estudar as
características locais, percebe-se a interdependência e
a influência de fatores dos diversos âmbitos da socie-
dade. Comunidade regionais, nacionais e globais im-
bricam-se em suas diferenças e semelhanças, trans-
formações e permanências.
No entanto, é preciso salientar que o traba-
lho de construção do conhecimento histórico esco-
lar que toma a História Local como ponto de par-
tida e reflexão, tem uma outra dimensão que põe
em evidência a função social do ensino de história.
Nesse sentido, impossível não fazer referência a
Paulo Freire (1996) neste ponto, quando este afir-
mava que há uma “pedagogicidade indiscutível na
materialidade do espaço”, pois:
Uma das tarefas mais importantes da prática edu-
cativo-crítica é propiciar as condições em que os
educandos em suas relações uns com os outros e
todos com o professor ou a professora ensaiam a
experiência profunda de assumir-se. Assumir-se
como ser social e histórico, como ser pensante, co-
municante, transformador, criador, realizador de
sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar.
Assumir-se como sujeito porque capaz de reco-
nhecer-se como objeto. (FREIRE, 1996, p. 46).

A história revela, sobretudo, relações de poder, e


as disputas pelo direito à memória exemplificam bem
isso. Empoderamento, palavra da moda, cabe bem nes-
sa proposta de estimular os educandos a perceberem-se
como detentores de poder político e social, capazes de
mudar sua realidade e construírem novas memórias.

50
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

A memória, onde cresce a história, que por sua


vez a alimenta, procura salvar o passado para
servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar
de forma a que a memória coletiva sirva para a
libertação e não para a servidão dos homens. (LE
GOFF, 1996, p. 476-477).

O trabalho clássico de Le Goff gravou essas


palavras que esclarecem os porquês desse silencia-
mento, ou melhor dizendo, dos porquês da seleção
da memória. “A memória coletiva é não somente
uma conquista, é também um instrumento e um
objeto de poder”, continua o estudioso. E nesse sen-
tido, os professores de história podem trabalhar no
sentido de assegurar a “democratização da memória
social”, possibilitando as condições para que os alu-
nos discutam as questões identitárias relacionadas
ao lugar em que eles vivem, diminuindo estereóti-
pos, preconceitos e estigmas. Por muito tempo as
vozes de pessoas trabalhadoras, “do povo”, foram si-
lenciadas, e muitos dos alunos das escolas públicas
compartilham desse silenciamento, mas, podem e
devem ser estimulados a se fazerem ouvir. Eles são
sujeitos de direito, e têm voz, memória e história.

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54
EDUCAÇÃO ÉTNICO-RACIAL:
DA LEGISLAÇÃO AOS DESAFIOS DA
SALA DE AULA

Daniel Luiz Sousa de Lima


Ensino de História
e formação cidadã

O Brasil é o país fora da África com o maior nú-


mero de negros. Levando em consideração os dados
oficiais do último censo do IBGE, realizado em 2010,
50,7% dos brasileiros se identificam como pretos ou
pardos, chegando a uma soma de mais de 90 milhões
de brasileiros. Porém, diferente do que se possa ima-
ginar, trabalhar com as relações étnico-raciais na es-
cola não é uma tarefa simples, principalmente, pela
insistência de alguns grupos em negar a existência do
racismo, em alguns casos por alegar que os brasileiros
são todos misturados, não sendo possível identificar
claramente a existência de diferentes raças.

55
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

Precisamos esclarecer que o conceito de raça


biológica já não é utilizado para separar seres huma-
nos em categorias distintas. O termo foi desconstru-
ído na década de 1940 após os resultados catastró-
ficos do genocídio nazista (MAIO, 1999). Em 1950
foi publicada pela ONU a 1ª Declaração sobre Raça,
que se tornou “o primeiro documento, com apoio de
um órgão de ampla atuação internacional, que ne-
gou qualquer associação determinista entre carac-
terísticas físicas, comportamentos sociais e atribu-
tos morais, ainda em voga nos anos 30 e 40” (MAIO,
1999, p. 143). Mas, no Brasil, o conceito de raça foi
ressignificado pelo movimento negro, transforma-
do em elemento estratégico no processo da constru-
ção identitária.1 Petrônio Domingues conclui que
a “raça” é o fator determinante de organização dos
negros em torno de um projeto comum de ação, de
maneira que, é em torno dessa ideia que a luta polí-
tica acontece (DOMINGUES, 2007, p. 102).
Por outro lado, é importante entender que
as discussões sobre educação para as relações étni-
co-raciais não são recentes. Durante o século XX,
cultura e educação foram pautas constantes para o
movimento negro, e muitos dos debates realizados
durante esse período giravam em torno de estraté-
gias para garantir a ampliação e acesso aos direitos
de cidadania, bem como a permanência da popu-
lação negra na escola. Em 2003 o Governo Federal
sancionou a lei 10.639, por meio da luta encabeçada
pelo movimento negro, assumindo que a educação é

¹ Como dizia Abdias Nascimento (PEREIRA, 2010, p.83) desde a chegada


dos africanos escravizados no Brasil existe resistência, das mais diversas
(fugas, rebeliões, movimento abolicionista, os quilombos, clubes e irman-
dades, etc.). Porém, trabalhamos aqui a partir de um recorte menos exten-
so, com a ideia de Petrônio Domingues de “Movimento Negro Organizado”,
esse começando a partir da abolição da escravatura no Brasil, com as as-
sociações culturais e clubes recreativos que envolviam o “homem de cor”
(DOMINGUES, 2007).

56
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

uma ferramenta essencial para diminuir as desigual-


dades, garantir acesso a outros direitos, formar va-
lores, hábitos e comportamentos, ampliando assim
a cidadania. O marco legal altera a Lei de Diretrizes
e Bases e institui a obrigatoriedade do ensino sobre
a História e cultura africana e afro-brasileira, sendo
posteriormente substituído pela lei 11.645/08 que
inclui a História e cultura indígena.
É profícuo lembrar que a promulgação da lei
faz parte de um movimento mais amplo de reivindica-
ções da população negra em diversas frentes, intensifi-
cando-se principalmente a partir de 2003, em função
das políticas públicas voltadas para a igualdade racial.
Como Márcia Lima aponta: “o movimento negro pas-
sa a ser um ator envolvido na formulação de políticas,
ocupando cargos e como representante da sociedade
civil nos espaços de controle social instituídos pelo
governo Lula” (LIMA, 2010, p. 82). Posteriormente à
aprovação da lei, foi instituído, através da resolução
de 17 de junho de 2004 pelo Conselho Nacional de
Educação, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino
de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, que
Constituem-se de orientações, princípios e fun-
damentos para o planejamento, execução e ava-
liação da Educação, e têm por meta, promover a
educação de cidadãos atuantes e conscientes no
seio da sociedade multicultural e pluriétnica do
Brasil, buscando relações étnico-sociais positivas,
rumo à construção de nação democrática (BRA-
SIL, 2004, p. 31).

A partir da promulgação da lei, iniciam-se as


discussões sobre sua implementação, para o qual era
essencial dotar os estabelecimentos de ensino e os
professores de meios para a aplicação do dispositi-
vo legal. As DCNs para Educação das Relações Etni-
co-Raciais deixam claro que “não se trata de mudar
57
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

um foco etnocêntrico marcadamente de raiz euro-


péia por um africano” (BRASIL, 2004, p. 17), mas de
trabalhar para que as crianças e jovens tenham uma
dimensão mais apropriada da diversidade que marca
a constituição da sociedade brasileira, seja ela racial,
cultural, social ou econômica.
Também é importante ressaltar que as dire-
trizes “não visam a desencadear ações uniformes, to-
davia, objetivam oferecer referências e critérios para
que se implantem ações, as avaliem e reformulem no
que e quando necessário” (BRASIL, 2004, p. 26). Ape-
sar de constituir um direcionamento, o documento
parte do pressuposto que as escolas das diversas re-
giões do país são diferentes e possuem demandas es-
pecíficas, sendo estimulado que as orientações sejam
utilizadas de acordo com as experiências locais, con-
siderando suas particularidades.
As DCNs para Relações Étnico Raciais estão
embasadas em três princípios, que são: valorização
da consciência política e histórica da diversidade;
fortalecimento de identidades e de direitos; e ações
educativas de combate ao racismo e discriminações.
As diretrizes fazem alguns apontamentos, dentro dos
princípios elencados anteriormente, de alguns temas
que podem ser trabalhados na escola, como algumas
datas que devem ser lembradas, como o 13 de maio e
20 de novembro. A primeira se torna o Dia Nacional
de Denúncia Contra o Racismo, e a segunda passa a ser
celebrada como o Dia da Consciência Negra, lembran-
do a data da morte de Zumbi dos Palmares que por sua
vez se torna símbolo da luta por liberdade do povo ne-
gro no Brasil. Enfatizamos que não interessa somente
comemorar essas datas, nem muito menos fazer delas
referência para a construção de uma história de novos
heróis, sendo mais profícuo que a escolha dessas datas
seja problematizada e historicizada.

58
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Sobre a aplicação da legislação, a “Proposta de


Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Cur-
riculares Nacionais da Educação das Relações Étni-
co-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-
-Brasileira e Africana – Lei 10.639/2003” coloca como
objetivo geral da implementação da Lei
Promover a valorização e o reconhecimento da
diversidade étnico-racial na educação brasileira
a partir do enfrentamento estratégico de cultu-
ras e práticas discriminatórias e racistas institu-
cionalizadas presentes no cotidiano das escolas e
nos sistemas de ensino que excluem e penalizam
crianças, jovens e adultos negros e comprometem
a garantia do direito à educação de qualidade de
todos e todas (BRASIL, 2008, p. 12)

O documento atribui aos estabelecimentos de


ensino “a responsabilidade de acabar com o modo fal-
so e reduzido de tratar a contribuição dos africanos es-
cravizados e de seus descendentes para a construção
da nação brasileira” (BRASIL, 2004, p. 18), podendo
chegar ao que se propõe na Constituição: “valorização
da diversidade étnica e regional” (BRASIL, 1998). Res-
saltamos as orientações prescritas nesses dispositivos
pois consideramos importante que o docente conheça
a legislação, para que possa atuar munido de aparato
legal, compreendendo-o como parte da luta organiza-
da dos negros visando a erradicação do racismo e em
busca de uma sociedade mais justa e igualitária.
Colocar essa legislação em prática não é fácil.
A formação do professor de História ainda é basea-
da no modelo quadripartite, prevalecendo uma visão
eurocêntrica e etnocêntrica da História, assim como
os materiais didáticos disponíveis. É inegável que o
etnocentrismo permeia a escrita dos livros didáticos
e, muitas vezes, ávidos pela conclusão do conteúdo
antes do fim do ano letivo e ainda angustiados pela
pressão para que os livros didáticos sejam utilizados

59
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

de capa a capa, não percebemos o quanto eles nos dis-


tanciam da possibilidade da formação de uma iden-
tidade plural, que reconheça e valorize as diferentes
raízes étnicas da sociedade brasileira.
Os livros didáticos estão entre os principais al-
vos de crítica quando se trata de combater estereóti-
pos ou promover a positivação da imagem do negro,
principalmente se considerarmos que ele muitas ve-
zes é, de acordo com Itamar Freitas: “o único impresso
que o professor lê durante um ano e os únicos exem-
plares que constituem a biblioteca familiar da maioria
dos alunos e dos pais ou responsáveis pelos alunos da
escolarização básica no Brasil.” (FREITAS, 2009). Não
podemos desconsiderar a importância que os livros
didáticos assumem na construção da memória histó-
rica e das identidades dos alunos. Nesse sentido, não
podemos esquecer o livro didático como dissemina-
dor de conteúdos autorizados e legitimados pela ciên-
cia da História, sendo visto como formador de identi-
dades e fiel depositário de memórias e valores. Nesse
sentido, é importante pensar que,
A utilização de livros didáticos de história pode
auxiliar a ensinar história no ensino fundamen-
tal, mas também pode criar alguns problemas
como, por exemplo, entender a história como algo
pronto e acabado, com conteúdos pré-definidos
sem levar em conta o contexto e os sujeitos envol-
vidos no processo de ensino-aprendizagem. (CAI-
NELLI, 2010, p. 25).

Maria Telvira (2010), em pesquisa realizada no


ano de 2008 com professores de escolas públicas do
Ceará, constatou que a maior parte deles avaliaram
que os seus materiais didáticos difundem uma visão
estereotipada da população negra, e defenderam que
os livros deveriam se empenhar mais apresentar o
negro como sujeito ativo na sociedade brasileira, evi-
denciando sua luta contra diferentes formas de do-
60
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

minação e discriminação. O impacto da manutenção


dos modelos eurocêntricos na formação das crianças
e jovens no que tange à educação étnico-racial vem
sendo discutido por especialistas.
No que tange ao livro didático, denunciaram-se
a sedimentação de papéis sociais subalternos e a
retificação de estereótipos racistas, protagoniza-
dos pelas personagens negras. Apontou-se a me-
dida em que essas práticas afetavam as crianças
e adolescentes negros/as e brancos/as em sua for-
mação, destruindo autoestima do primeiro grupo
e cristalizando, no segundo, imagens negativas e
inferiorizadas do sujeito negro, empobrecendo
em ambos o relacionamento humano e limitando
possibilidade exploratórias da diversidade étnico-
-racial e cultural. No que se refere aos currículos
escolares, chamou-se a atenção para a ausência
dos conteúdos ligados à cultura afro-brasileira e
à história dos povos africanos no período ante-
rior ao sistema escravista colonial. (CAVALLEIRO
2001, p. 67 Apud BONILHA, 2012, p.53)

O ensino de História também é responsável por


formar identidades, pela formação cidadã e, portanto,
pela construção de uma sociedade capaz de valorizar
a pluralidade em detrimento de um discurso homoge-
neizante. Obviamente, a questão não se limita a incor-
porar os negros nas narrativas dos livros didáticos, já
que a presença deles não configura uma novidade, mas
superar a tendência de que os afrodescendentes apare-
çam na narrativa histórica somente como escravos ou
como vítimas da sociedade atual. Numa perspectiva
mais prática, é importante destacar “a valorização da
oralidade, da corporeidade e da arte, por exemplo, como
a dança, marcas da cultura de raiz africana e da leitura”
(BRASIL, 2004, p. 19). Desse modo é possível dar visi-
bilidade a sua história e cultura, para proporcionar ao
estudante condições adequadas para a (re)construção
da sua identidade, prevaleendo o respeito às diferenças.

61
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

Na história contada nos livros didáticos, nota-


mos que outros povos, como os indígenas e os negros,
aparecem sempre como apêndice a obra civilizatória
do europeu, dificultando que os alunos compreendam
que a sociedade é constituída por vários grupos étni-
cos e que possuem histórias diversas. No currículo de
História comumente utilizado, os negros estão pre-
sentes nas narrativas referentes à História do Brasil,
sobretudo, no período colonial e imperial. Mas nos
parece que não é suficiente discutir a temática da es-
cravidão para que alunos compreendam que as conse-
quências dessa experiência ainda estão presentes na
sociedade. Como afirma a professora Julie Cavignac,
ao exarminarmos a tradição oral, verificamos que há
um passado que não foi merecedor de registro nos li-
vros didáticos (CAVIGNAC, 2003). Essa história pode
ser valorizada a partir do trabalho formativo desen-
volvido na escola, visto que a instituição escolar é um
espaço privilegiado de construção de conhecimento e
de formação identitária. Para tanto, é preciso destacar
as particularidades dessas experiências.
A tarefa que o professor assume é complexa, e
situações cotidianas que se apresentam travestidas de
normalidade devem ser combatidas. São circunstâncias
que muitos profissionais se deparam no ambiente esco-
lar e que, nem sempre, estão preparados para enfrentar. A
forma de abordagem da história e cultura africana e afro-
descendente é um aspecto a ser considerado. Em certas
ocasiões, é perceptível o desconforto dos alunos negros
durante as aulas, principalmente, com relação à forma
que a escravidão é tratada nos materiais didáticos, que
tendem a reforçar estereótipos de subalternidade. Por isso
perguntamos: em que medida esses conteúdos, tal como
tradicionalmente apresentados pela disciplina escolar de
História, atendem o objetivo essencial de contribuir para
a diminuição das desigualdades étnico-raciais?

62
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Acreditamos ser importante levar em consi-


deração que o ensino da História e cultura africana e
afro-brasileira exige também mudanças na prática do
professor, principalmente se compreendermos que o
ensino de História, como das outras disciplinas da Edu-
cação Básica, tem como objetivo central a formação ci-
dadã. Nesse sentido, defendemos aqui que todo o con-
teúdo deve ser selecionado seguindo critérios afinados
com a finalidade do processo educativo. Então,
Lidar com os alunos para o profissional de Histó-
ria, portanto, não significa fazer adaptação de um
tema, transpor um conhecimento saber reger uma
classe, etc. Significaria, dentro das disciplinas “nu-
cleares” da estrutura curricular, trazer para si a
responsabilidade de se refletir sobre o propósito do
conhecimento histórico, tendo em mente a quem
ele vai servir, e sobre sua relação com uma cultura
histórica presente fora dos muros da universida-
de, o que abarca alunos do ensino fundamental e
básico tanto quanto comunidades, grupos sociais,
movimentos populares, etc., redesenhando o con-
ceito do que seria uma preparação “técnica” para o
ensino (COSTA, 2013, p. 98-99).

Destarte, a seleção dos conteúdos deve es-


tar em consonância com os problemas da escola e
da sociedade em geral, e para que os conteúdos te-
nham significados para os discentes, é necessário
que elas partam de demandas do cotidiano da sua
comunidade, dessa forma
A respeito da escolha desses conteúdos, Rüsen
afirma que há que expressar uma relação com
as experiências e expectativas dos alunos. Em
outras palavras, os materiais apresentados aos
alunos (documentação, narrativas) e as ativi-
dades a esses destinadas têm que ser significa-
tivas. É o interesse presente e futuro do aluno
quem comanda a seleção do material. (FREI-
TAS; OLIVEIRA, 2014).

63
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

Segundo Circe Bittencourt, a seleção de conteúdos


é uma tarefa complexa, e optar por selecionar conteúdos
significativos requer a compreensão da impossibilidade
de ensinar a história de toda a humanidade, como preten-
samente se acredita (BITTENCOURT, 2009). Percebe-se,
portanto que a história factual, eurocêntrica, etnocêntri-
ca e total, invariavelmente narrada de forma cronológi-
ca, não é compreendida pelos alunos como algo que tem
implicação em suas vidas, nem auxilia para que desen-
volvam um pensamento autônomo, pois essa perspecti-
va contribui para que a história sempre seja vista como
uma disciplina distante da realidade do cidadão comum,
provocando o desinteresse dos estudantes pela disciplina.
Portanto, partimos do princípio que ensinar História não
pode se resumir à memorização e reprodução do conheci-
mento difundido na academia, com o objetivo apenas de
simplificá-lo, fazendo adaptações ao público.
Assumindo que o conhecimento não é algo trans-
ferido para alguém que não o possui, posto que o indi-
víduo aprende a partir do que já conhece, articulados às
novas informações e questões que vão sendo acrescenta-
das ou reformuladas, o professor deve procurar construir
conhecimento em sala de aula considerando os conheci-
mentos prévios de seus alunos. A intenção não é o acúmu-
lo de informações, e sim que a aprendizagem seja signifi-
cativa, ou seja, que tenha relação com a realidade vivida
pelo aluno, de modo que os novos conhecimentos que ele
adquire na escola o capacitem, como participante da vida
em sociedade, a analisar a sua realidade criticamente.

Relatos de experiência

Articular teoria e prática não é uma tarefa


fácil, mas esse esforço é indispensável. Partindo do
pressuposto de que era imprescindível pautar os te-
mas do cotidiano da comunidade escolar nas aulas

64
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

de História, em 2017 como professor supervisor do


Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Do-
cência – PIBID, Subprojeto História/UFRN, orientei
a produção de um relatório diagnóstico da escola
juntamente com os bolsistas do programa, na Es-
cola Estadual Zila Mamede - E.E.Z.M., localizada no
bairro Pajuçara, Zona Norte de Natal no Rio Grande
do Norte, escola que atende alunos do ensino funda-
mental II e ensino médio. Todo professor, de manei-
ra informal, com base em suas observações e impres-
sões, costuma fazer diagnósticos das suas turmas,
identificando problemáticas que são pertinentes a
serem pautadas, mas nosso objetivo era testar a pos-
sibilidade de identificar problemas e demandas das
turmas de forma mais objetiva, e ver em que medida
correspondiam às nossas impressões iniciais.
O relatório em questão envolveu a observação
de diversos aspectos da escola, desde sua organização
física – número de salas, biblioteca, espaços de convi-
vência –, até a relação entre os membros da comunida-
de escolar e a instituição. Coletando dados através de
questionários aplicados aos professores, funcionários
e alunos, foi elaborado um relatório diagnóstico que
serviu principalmente para identificar os problemas
que são enfrentados na escola, como também os desa-
fios da comunidade escolar, a partir dos quais poderí-
amos nortear o trabalho do planejamento.
Aqui nos deteremos aos dados referentes aos
alunos. Dos 149 discentesque responderam ao ques-
tionário, correspondendos a 47,15% dos alunos ma-
triculados no turno matutino, 50% se autodeclaram
pardos e 17% pretos, enquanto 23% se declararam
brancos. Pudemos perceber que, entre os desafios
enfrentados na E.E.Z.M., o bullying ocupa uma po-
sição central, pois 42% dos alunos disseram já ter
presenciado alguma forma de bullying na escola, e

65
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

23% afirmaram já ter presenciado casos de racismo.


Mesmo que nas experiências cotidianas houvesse
detectado casos que poderiam ser considerados pro-
blemáticos em relação ao racismo, as respostas no
questionário reforçaram nossas impressões e evi-
denciaram que era preciso dedicar mais atenção às
questões étnico-raciais na escola, sobretudo, no que
se refere ao respeito à diversidade.
Quando perguntados sobre temas que conside-
ravam importantes de serem estudados em história,
a partir de uma lista pré-definida, à qual poderiam
acrescentar outras opções, a história dos negros apa-
receu como a segunda opção mais votada, escolhida
por 15% dos alunos. Como na escola temos um histó-
rico de preconceito, aspecto confirmado na observa-
ção dos dados, parece que essa demanda pode partir,
principalmente, dos que sofrem ou se incomodam em
ver práticas racistas. O tema é antecedido na escolha
por “guerras, revoltas e revoluções”, opção preferida
de 24% dos estudantes, ao passo que o tema cidadania
foi o preferido de 14% dos alunos. Os dados são impor-
tantes para mostrar ao professor de forma mais obje-
tiva quais são os temas de interesse dos alunos. Além
disso, identificar os problemas enfrentados por eles,
cotidianamente, é fundamental para estabelecermos
um critério para seleção de conteúdos que possam aju-
dar a diminuir a distância entre o ensino de História e
as experiências dos alunos, marcadas por problemas
de infraestrutura, de intolerância ou racismo.
No ano seguinte, 2018, novamente com bol-
sistas do PIBID, decidimos aplicar novamente os
questionários para os alunos, a fim de fazermos
um mapeamento mais detalhado e construirmos
um novo relatório diagnóstico. Houve uma mu-
dança na questão do que eles consideram impor-
tante estudar em História. Em 2018, o tema negro

66
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

apareceu como preferido de 17% dos alunos, en-


quanto 14% escolheu cidadania e mulheres e 13%
optou por gênero e sexualidade.
Quando perguntados se já haviam presencia-
do alguma violência no ambiente escolar, os dados
permaneceram basicamente os mesmos, porém, na
dinâmica da aplicação dos questionários, foi deixado
um espaço para que pudessem expor o que estavam
chamando de violência na escola, principalmente,
os casos de bullying e de racismo, que continuaram
sendo os problemas mais registrados. Dessa forma,
constatamos que alguns casos que eram marcados
como bullying constituem-se como casos de racis-
mo. É o caso dos registros de xingamentos como
“macaco”, fazendo referência a cor de pele, e outros
que reforçam aspectos negativos por causa do cabe-
lo natural das meninas negras.
O racismo diversas vezes aparece travestido de
brincadeiras entre os alunos, por meio de apelidos de-
preciativos, que desfavorecem a imagem dos negros e
negras. Essas situações são muito comuns no ambien-
te escolar. Em várias situações, nos deparamos com
alunos chamando colegas de “escravos” por causa da
cor da sua pele, ou mesmo citando expressões que
são extremamente negativas, como “cabelo ruim” e
“cabelo de bucha”. Outros afirmam: “não gosto de ne-
gro”, utilizando caracterísitcas físicas para depreciar
a imagem dos amigos. Quando são questionados so-
bre o motivo desse comportamento, a resposta é qua-
se sempre a mesma: “é só uma brincadeira”, ou “ele/
ela não liga, até gosta”. Sabemos que é na adolescên-
cia que as identidades são construídas, as questões de
beleza, corpo, cabelo, etc. assumem um papel muito
forte na construção da autoestima e, quando essas ca-
racterísticas são criticadas, pode haver uma tentativa
de afastamento ou de negação.

67
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

A escola tem dificuldade em contribuir para


o reconhecimento da diversidade, mesmo sendo
um ambiente que, supostamente, deve reconhecer
e celebrar a pluralidade. Corroborando a afirmação
de Petronilha Silva que
O ocultamento da diversidade no Brasil vem re-
produzindo, tem cultivado, entre índios, negros,
empobrecidos, o sentimento de não pertencer à
sociedade. Visão distorcida das relações étnico-
-raciais vem fomentando a ideia, de que vivemos
harmoniosamente integrados, numa sociedade
que não vê as diferenças. Considera-se democráti-
co ignorar o outro na sua diferença (SILVA, 2011,
p. 26).

Compreendemos que nem sempre os docentes


estão preparados para enfrentar determinadas situ-
ações, e sabemos que o racismo não nasce na escola,
porém, a escola é também é um local propício à difu-
são do racismo, seja por meio da negação ou não pro-
blematização e sua existência, ou possibilitando que
construções de algumas identidades sejam favoreci-
das em detrimento de outras. Essas posturas dificul-
tam a reflexão crítica sobre a diversidade, pois quando
se universaliza em favor de um modelo único – o Brasil
mestiço – esquece-se o plural, o multicultural.
Como a escola é um espaço de aprendizagem,
acreditamos que a educação é um espaço estratégico
para que possamos combater o racismo, principal-
mente porque dentro do ambiente escolar, como afir-
ma Maria Telvira Conceição, os negros se deparam
com diversas situações e conflitos que perpetuam e
naturalizam os estereótipos e os preconceitos (CON-
CEIÇÃO, 2010). A autora destaca os principais proble-
mas enfrentados na escola e na educação: os maio-
res índices de analfabetismo da população negra, os
currículos que excluem a história e cultura africana
e afro-brasileira, o silenciamento dos professores e

68
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

gestores acerca das manifestações de preconceito en-


tre os alunos, o material didático e as produções lite-
rárias que circulam dentro do ambiente escolar que,
geralmente, são marcadas por estereótipos, simplifi-
cações e produção de racismos.
No enfrentamento desses problemas, há déca-
das, o movimento negro – subsidiado por pesquisas
acadêmicas – vem se esforçando para evidenciar que o
ensino de história é elemento estratégico em qualquer
política que busque superar a dificuldade de reconhe-
cimento identitário e construir uma visão positiva
dos negros, considerando sua história, cultura e lega-
do. O eurocentrismo ainda influencia os currículos e
a escrita dos livros didáticos e, sem fazer os devidos
questionamentos sobre a prática docente e a seleção
de conteúdos, não percebemos o quanto nos distan-
ciamos da possibilidade de formar uma identidade
plural, que considere as diferentes raízes étnicas.
Os dados obtidos com a aplicação dos questio-
nários para elaboração dos relatórios em 2018 e 2017,
e as situações observadas na E.E.Z.M., foram impor-
tantes para que os planejamentos fossem pautados
pelas demandas da comunidade escolar e pelo que
consideramos mais urgente de ser discutido com os
alunos. Várias atividades foram propostas visando a
diminuição dos problemas e casos de racismos na es-
cola, e duas delas merecem destaques.
A primeira foi a exposição organizada após a
visita realizada na comunidade quilombola de Capo-
eiras, localizada no município de Macaíba (RN). Um
grupo de 21 discentes, do 9º ano ao 3º ano do Ensi-
no Médio, fizeram uma visita à referida comunidade,
que tinha como objetivo principal propor questiona-
mentos ligados às referências culturais que, tradicio-
nalmente, são acionadas quando se discute a identi-
dade norte-rio-grandense, permitindo aos alunos e

69
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

alunas conhecerem outras narrativas possíveis sobre


a experiência histórica potiguar, e assim perceber
que existem discursos sobre a História e cultura do
Rio Grande do Norte que silenciam a contribuição de
diferentes grupos para a formação da identidade lo-
cal. Entendendo que a construção de uma visão da di-
versidade cultural e étnica está para além dos muros
da escola, foi relevante para o grupo de estudantes
conhecer in loco a comunidade, entendendo-a como
um espaço de resistência, organizado a partir das re-
lações da comunidade com a terra e com suas expres-
sões culturais, a partir do qual pudemos refletir sobre
o acesso aos direitos de cidadania.
Os alunos foram divididos em grupos, e cada
um deles foi orientado para a elaboração de três tipos
de materiais que seriam expostos na escola posterior-
mente, a saber: um vídeo sobre a visita, com entrevis-
tas e as imagens coletadas na comunidade; uma expo-
sição fotográfica com as visões dos alunos; e, por fim,
um grupo produziria relatos escritos sobre as suas
impressões acerca da visita, que posteriormente seria
publicado em um folheto, o ZineZila. Os três produtos
(vídeos, fotos e textos escritos), foram pautados pela
observação de três aspectos na comunidade: econômi-
co, cultural e histórico. A escolha dos grupos se deu de
forma totalmente livre, partindo apenas da afinidade
dos componentes com o tipo de material a ser produ-
zido. A ideia era que os alunos participantes da ativi-
dade pudessem levar para a escola materiais para se-
rem expostos para toda a escola, suscitando debates,
instigando a curiosidade e interesse na temática.
Para que a atividade tivesse êxito foram defini-
das as seguintes etapas do trabalho: a primeira ocor-
reu antes da aula de campo, consistindo em reuniões
semanais para discussão sobre a oralidade como fonte
histórica e questões relativas à identidade, diversidade

70
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

étnica, trabalho complementado com a montagem de


um roteiro de observação para todos os grupos, com
as informações que poderiam ser coletadas. A segun-
da etapa consistiu na visita propriamente dita, onde
os alunos participaram de rodas de conversas, presen-
ciaram apresentações culturais e conversaram com li-
deranças da comunidade. Na terceira fase do projeto,
com todo o material coletado, promoveu a elaboração
dos produtos, acompanhamento da escrita, edição do
vídeo e seleção das fotos para a exposição. A quarta
etapa referiu-se à exposição dos produtos na escola.
Profícuo ressaltar o êxito da atividade em vir-
tude do empenho que os alunos demonstraram como
também da qualidade das produções e as discussões
promovidas com toda a escola após a visita. Realizan-
do trabalho investigativo e procedimentos de pesqui-
sa, entendendo os relatos orais como fonte histórica,
os estudantes puderam não só construir conheci-
mento, como também levar para a escola a experiên-
cia de ter contato com uma outra experiência, dando
visibilidade à história de resistência da comunidade
e à mensagem de valorização da diversidade étnica e
cultural do Rio Grande do Norte e no Brasil. Eviden-
ciando a pluralidade de saberes e de narrativas pos-
síveis, conseguimos levar os alunos “à compreensão
de que a sociedade é formada por pessoas que perten-
cem a grupos étnico-raciais distintos, que possuem
cultura e história próprias, igualmente valiosas e que
em conjunto constroem, na nação brasileira, sua his-
tória;” (BRASIL, 2004, p. 18).
A segunda experiência que gostaríamos de re-
latar se deu após a realização do diagnóstico de 2018,
em que foram constatados vários casos de racismo na
escola, como mostrado anteriormente. Os problemas
do racismo eram mais recorrentes nas turmas de 2º
Ano do Ensino Médio, mais uma vez travestidos de

71
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

brincadeiras, mas que sempre depreciavam as caracte-


rísticas físicas dos alunos negros. Esses alunos se mos-
travam visivelmente constrangidos, mesmo tentando
reverter a situação afirmando entenderem como uma
simples brincadeira. Após as aulas sobre escravidão
no Brasil, os insultos passaram a ser mais frequentes,
já que os alunos negros eram chamados de escravos
reforçando uma visão estereotipada e preconceituosa.
Refletindo sobre o problema, lembramos que
entre os diversos fatores que contribuem para o afas-
tamento do aluno negro da escola, estão os que contri-
buem para a desqualificação do negro, bem como sua
invisibilidade, tanto do currículo quanto do ambiente
escolar (BONILHA, 2012). Segundo a UNICEF (2012),
19% das práticas discriminatórias na escola, humi-
lhações e/ou agressões, tem como vítimas principais
negros e negras, afetando assim o desempenho esco-
lar desses alunos. Se contarmos os dados sobre anos de
estudo, uma pessoa branca de 15 anos ou mais estuda
em média 9,1 anos, enquanto uma pessoa negra 7,7
anos, e a taxa de distorção idade/série atinge 17,9%
das pessoas brancas, entre os negros chega a 29%.
Portanto, de posse de dados concretos, enten-
dendo que as práticas racistas em sala de aula atingem
negativamente alunos negros e após ter constatado,
por meio de observação cotidiana e os dados obtidos
com o relatório diagnóstico, consideramos pertinente
discutir a temática sobre o racismo estrutural na nos-
sa sociedade e como essa prática perpassava afetava a
educação. Elaboramos uma sequência didática utili-
zando recortes de jornais do movimento negro do sé-
culo XX, além de dados sobre escolaridade, analfabetis-
mo e casos contemporâneos de racismo. A prioridade
na seleção das fontes foi dar destaque para aquelas que
remetiam ao racismo no ambiente escolar, e evidencia-
vam a desigualdade no âmbito educacional.

72
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

O objetivo era demonstrar como algumas práti-


cas de racismo na escola atingem os estudantes negros.
Porém, ao trazer jornais do movimento negro como
fonte de pesquisa, também pretendia-se demonstrar
como a população negra se organizou ao longo do tem-
po na busca por direitos e por acesso e permanência nas
instituições de educação formal, tentando desmistifi-
car a visão que se tem sobre a passividade da população
negra. O movimento negro foi apresentado como um
corpo de pessoas que atuou, e atua, nas lutas políticas
pelo fim do racismo e pela conquista de direitos para
população negra, incluindo o direito à educação. Para
que se sensibilizasse os alunos, a turma foi dividida em
grupos, que deveriam ler e discutir sobre os documen-
tos disponibilizados. Posteriormente o debate se am-
pliava para toda a sala, suscitando discussões que mui-
tas vezes eram remetidas ao cotidiano da sala de aula.
Para conclusão da sequência didática foi mon-
tado um debate sobre cotas raciais, na tentativa de
explicitar para as turmas as conquistas obtidas pelo
movimento negro com a luta organizada. A turma foi
dividida em dois grupos que necessitaram fazer pes-
quisas prévias e levar argumentos a favor e contra as
cotas raciais, preparando-se para uma dinâmica que
envolvia pergunta, resposta, réplica e tréplica. A par-
tir da realidade deles, puderam perceber que ainda há
conquistas a serem alcançadas para que se assegure a
igualdade racial no Brasil. Na tentativa de organizar
o debate, os argumentos foram escritos no quadro, e
ao final da atividade os alunos foram convidados a es-
creverem uma redação utilizando os argumentos do
grupo contrário, ou seja, os alunos que participaram
no debate defendendo as cotas tiveram que utilizar os
argumentos do grupo que atuou contra, e vice-versa.
Podemos considerar a sequência didática exi-
tosa, na medida que, ao longo das aulas, as turmas ex-

73
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

puseram suas visões acerca das situações enfrentadas


pela sociedade brasileira, e obviamente remeteram a
casos que faziam parte do cotidiano em sala de aula, e
nessas oportunidades os alunos negros puderam de-
monstrar como as situações tidas por “brincadeiras”
eram muitas vezes ofensivas e constrangedoras. Por-
tanto, além do conhecimento histórico acerca do mo-
vimento negro, durante as discussões e o debate sobre
cotas, os alunos foram levados a refletir criticamente
sobre as situações que ocorriam dentro da sala de aula.
A atividade foi considerada positiva por todos, e im-
pactou significativamente a relação entre os alunos,
visto que essas situações não foram mais observadas
em sala de aula o restante do ano letivo.
Por meio das experiências relatadas aqui, pro-
curamos demonstrar como podemos enfrentar o de-
safio da educação étnico-racial pautando as proble-
máticas da sala de aula nos nossos planejamentos,
tentando transformar a escola em um ambiente onde
se exerce a cidadania, por meio de debates de temas
que fazem parte do cotidiano da escola. Obviamente,
essas são duas experiências pontuais expostas no in-
tuito de exemplificar ações exitosas no âmbito das re-
lações étnico-raciais.

Considerações Finais

Toda as discussões aqui apresentada, sobre a


legislação como fruto da luta do movimento negro,
sobre a importância de promover debates acerca das
relações étnico-raciais dentro da escola, sobre os pro-
blemas nos materiais didáticos e os currículos de His-
tória e por fim, sobre as experiências do chão da esco-
la, foram trazidas para motivar os colegas professores
de História a encarar esse componente curricular com
uma agente poderoso no processo de formação iden-

74
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

titária, desempenhando um papel estratégico na des-


construção de estereótipos e combate aos preconcei-
tos acerca da população negra no Brasil.
Como já exposto, não é somente através de
ações específicas, como por exemplo a comemoração
do dia da consciência negra, que conseguiremos pro-
mover uma educação para as relações étnico-raciais.
Aliado a essas ações, também é importante haver uma
mudança de postura diante do currículo e da utili-
zação do material didático. Sem construir uma nova
narrativa histórica, mantém-se a percepção de que so-
mente grupos dominantes e suas ações são dignas de
registro, e, portanto, são valorizadas e estudadas, con-
trariando a ideia de que todos os sujeitos são agentes
da História (DAVIES, 2014).
Em sala de aula, o esforço precisa ser no senti-
do de trazer para o debate outras abordagens da His-
tória que não coloquem os negros e negras apenas
como vítimas passivas do domínio das elites brancas,
mas como sujeitos que lutaram e resistiram, como
ainda lutam e resistem, sendo suas ações contributos
determinantes nos processos históricos. Também
é importante, sempre que possível, levarmos para a
escola pessoas do movimento negro, africanos, qui-
lombolas, representantes de culturas afro-brasileira,
a fim de aproximar os conteúdos ministrados em sala
de aula com experiências reais.
Acreditamos que a função social da História é
contribuir para a concretização de um projeto de so-
ciedade menos desigual, pois como diz Prost: “afinal
de contas, o historiador faz o tipo de história que lhe é
solicitado pela sociedade; caso contrário esta se afas-
ta dele.” (1996, p. 271). Para tanto, é importante que o
professor se debruce sobre os materiais já produzidos,
reinterprete-os, buscando abordagens e perspectivas
que estimulem os alunos a pensar como as pessoas

75
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

comuns se inserem na história, de maneira que eles


também se sintam parte da história, como sujeitos ca-
pazes de ação e portadores de direitos.

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77
AS VARIAÇÕES DAS CATEGORIAS
ÉTNICO-RACIAIS NO OITOCENTOS

Dayane Julia Carvalho Dias


Os Estados sempre tiveram necessidade de
enumerar, mensurar, quantificar suas populações, ri-
quezas e recursos com o objetivo de conhecer a nação
por meio da estatística (SENRA, 2006). Nesta perspec-
tiva, pretende-se analisar o contexto de produção dos
mapas estatísticos do Rio Grande do Norte no século
XIX e, partir disso, discutir como as informações so-
bre as categorias étnico-raciais variaram ao longo dos
levantamentos populacionais, diante de interesses
políticos de tornar determinados grupos invisíveis ou
sub-representados, como negros escravizados e povos
indígenas.1 Os mapas estatísticos disponíveis durante

¹ Neste trabalho, optou-se pela utilização da palavra escravizado ao invés


de escravo com o propósito de tornar visível o fato de que o ser humano
se tornou escravizado/sofreu escravização, sendo, portanto, forçado a essa
situação. Enquanto o termo escravo reduz a pessoa a condição de mercado-

78
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

o século XIX para o Rio Grande do Norte compreen-


dem os anos de 1801, 1805, 1839, 1844 e 1872, nos
quais constam informações de população livre e es-
cravizada por idade (embora em diferentes faixas etá-
rias), sexo e categorias étnico-raciais.
Consideramos neste trabalho que fontes his-
tóricas são produtos de uma determinada época,
podendo representar diversos interesses – políticos,
econômicos e/ou sociais. Diante disto, os mapas es-
tatísticos serão analisados numa perspectiva crítica,
mas sem desmerecer a sua importância para o conhe-
cimento histórico e demográfico. O professor-pes-
quisador deve ter em mente a relevância dos mapas
estatísticos para o ensino/estudo da História, pois
permite verificar como foram alteradas, ao longo do
tempo, as diferentes estratégias e respostas articula-
das por meio de levantamentos censitários para res-
ponder o problema da ‘formação do povo brasileiro’,
evidenciando as transformações no significado do
conceito de nação e sua articulação com a formação e
consolidação do Estado independente.
O conceito de nação, no século XIX, se articulou
com as tentativas de produções dos primeiros levan-
tamentos censitários, tornando-se possível reconhe-
cer os censos demográficos como elemento integrante
de reconhecimento na nacionalidade brasileira (BO-
TELHO, 2005, p. 322-323). Nesse sentido, identificar
e analisar as variações das categorias étnico-raciais
nos mapas estatísticos permite verificar como certas

ria, naturalizado e acomodado a situação (TAILLE; SANTOS, 2012). Acres-


centamos também que se escolheu a designação de povos indígenas em
substituição ao de índios. Os povos habitantes do Brasil foram chamados
de índios pelos colonizadores portugueses porque estes pensavam ter che-
gado a Índia, sendo, um equívoco a designação da palavra. Já o termo in-
dígena, por outro lado, significa ‘gerado dentro da terra que lhe é própria,
originário da terra em que vive”. Desta forma, tem relação com a terra em
que nasceu, e como existiram (e ainda existem) vários povos com diferen-
tes características, são chamados de povos indígenas.

79
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

categorias foram substituídas por outras, em prol da


construção de um conceito de nação que excluísse de-
terminados grupos étnicos. Um exemplo é a substitui-
ção do termo índio por caboclos nos levantamentos
populacionais a partir de meados do oitocentos.2
Durante o século XIX, principalmente na se-
gunda metade, a apropriação das últimas terras in-
dígenas pelos proprietários rurais brancos resultou
no ‘desaparecimento’ dos indígenas do Rio Grande
do Norte. Câmara Cascudo afirma que o indígena
entrou no século XIX para morrer, sendo incapaz de
resistir às doenças infecciosas e à colonização brutal
do português (CASCUDO, 1984, p. 38). Nos levanta-
mentos populacionais de 1801, 1805, 1839 e 1844
eles ainda tinham sua identidade reconhecida, junto
com os “brancos”, “pardos” e “pretos”’. Entretanto,
no recenseamento de 1872 já não estavam mais pre-
sentes e surge uma nova classificação étnico-racial
– os ‘caboclos’ – constituído pelos indígenas e seus
descendentes. Tiveram, portanto, nos documentos
oficiais da província do Rio Grande do Norte, sua
identidade indígena apagada (MONTEIRO, 2002, p.
110; MARIZ; SUASSUNA, 2005, p. 178).
Em relação aos afrodescendentes, a historio-
grafia clássica defende que a presença do negro não foi
significativa no Rio Grande do Norte, devido às ativi-
dades econômicas, especialmente a pecuária, não ne-
cessitar de grande número de “escravos” (CASCUDO,
1984; LYRA, 2008). Essas afirmações são, em parte,
pautadas na mudança na classificação étnico-racial da
população escravizada, que no lugar de ser generica-
mente chamada de preta, como era comum até início
do século XIX, passa a ser dividida entre ‘preta’ e ‘par-
da’ nos levantamentos populacionais produzidos após

² Em algumas passagens, a grafia dos termos ‘índio, caboclo, preto e pardo’


foram utilizados exatamente como aparece nos documentos.

80
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

a Independência. Como havia o discurso político de


que no Rio Grande do Norte predominava a população
e origem europeia, uma alternativa foi classificar, nos
registros administrativos, a população descendente
de africanos escravizados como pardos.
Desta forma, tanto os negros escravizados
quanto os povos indígenas tiveram sua etnicida-
de encoberta no Rio Grande do Norte (CAVIGNAC,
2010). Diante disso, surge a importância de discutir
a presença dessa população negra e indígena, ques-
tionando as premissas assumidas pela historiografia
tradicional, que invisibilizam esses grupos étnicos
ao ponto de quase negar sua participação na com-
posição da população do Rio Grande do Norte. Além
disso, pautar essas questões permite ao professor de
história promover a aprendizagem da leitura crítica
de um tipo de fonte quantitativa – os mapas estatís-
ticos –, considerando-o não como expressão de uma
verdade, mas como fruto de um contexto, no século
XIX marcado pelo debate sobrea formação do povo
brasileiro e a constituição do conceito de nação.

Levantamentos demográficos como


instrumento de conhecimento
da formação do povo brasileiro

Maria Luiza Marcílio divide a história demográ-


fica brasileira em três grandes períodos, considerando
a variação da qualidade das informações estatísticas
ao longo do tempo (MARCÍLIO, 2010). O primeiro perí-
odo, chamado de pré-estatístico, é situado desde o iní-
cio da colonização até 1750, sendo caracterizado por
contagens populacionais limitadas geograficamente,
com periodicidade irregular e sem seguir um padrão
uniforme (SOUZA, 2015). O segundo período, o proto-
-estatístico, entre 1750 e 1872, significou uma melho-

81
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

ra da produção de informação quantitativa organiza-


da sobre a população. O terceiro período, o estatístico,
foi inaugurando com o primeiro recenseamento geral
do Brasil, ocorrido em 1872, marcando o início de uma
nova forma de produzir dados estatísticos no país.
É importante assinalar que foi, sobretudo, du-
rante o governo do Marquês de Pombal, a partir de
1776, que os levantamentos estatísticos assumiram
um caráter modernizante, inspirado nas ideias eu-
ropeias de levantamento populacional (PAIVA et al,
2012). Na gestão de Pombal, a confecção de mapas es-
tatísticos de população tornou-se obrigatória em to-
dos os territórios sob o domínio do Império Português
(ALDEN, 1963; WAGNER, 2009; MATOS; VOS, 2013).
Por meio desses dados, buscava-se “conhecer a reali-
dade”, que seriam tomados como referência para pro-
mover o renascimento agrícola da colônia e produção
de matérias primas para Portugal (BOTELHO, 1998).
No entanto, os levantamentos demográfi-
cos ainda eram regionais e desarticulados entre as
unidades da América portuguesa e do Império Luso
pluricontinental (SOUZA e SILVA, 1986; VIANNA,
1986; BOTELHO, 1998; PAIVA et al, 2012). Tais le-
vantamentos, tinham qualidade limitada devido
aos desafios nos primeiros séculos da colonização,
que dificultavam a tarefa de “conhecer” essa po-
pulação (PAIVA et al, 2012). A incidência de casos
não registrados era grande, pois havia por parte da
população uma certa resistência, pelo temor do au-
mento de tributação ou do recrutamento militar;
além disso, existia a dificuldade de recensear as
áreas rurais mais isoladas (BOTELHO, 1998). Havia
também o interesse das autoridades locais em su-
bestimar o tamanho populacional, em virtude do
receio de subdivisão de paróquias, dos conflitos en-
tre as instâncias administrativas, à falta de prepa-

82
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

ro profissional dos envolvidos na tarefa do levan-


tamento demográfico e a ausência de coordenação
entre os agentes (PAIVA et al, 2012).
Em 1822, com a instauração da Independên-
cia, por questões políticas, aumentou o desejo de co-
nhecer a “realidade brasileira” ou o tamanho da po-
pulação aumentou (PAIVA et al, 2012). As eleições
eram realizadas por meio do voto censitário (apro-
vado pela constituição de 1824 e abolido pela cons-
tituição de 1891) que estabelecia proporções entre
número de domicílios de cada paróquia de província
e a quantidade de eleitores, deputados e senadores
(SENRA, 2006). Por isso, crescia a necessidade de re-
alizar levantamentos populacionais com mais quali-
dade, ou seja, um censo nacional.
O esforço para consolidar a nova forma de go-
verno exigia a fixação da unidade territorial, sujeitan-
do as províncias ao poder imperial centralizado para
a obtenção do reconhecimento diplomático do novo
país. Para isso, o reconhecimento do território e da
população que o habitava fazia-se necessário, e isso
demandava ampliar as técnicas de quantificação da
população. Assim, em 9 de maio de 1826, em uma fala
do Marquês de São João da Palma, Francisco de Assis
Mascarenhas defendeu a formação de uma comissão
de estatística para o Brasil: “É um dos maiores traba-
lhos que temos a fazer, e talvez o mais importante;
porque sem termos a estatística, como conheceremos
o Brasil?” (ASB, 1827b Apud SENRA, 2006).
A primeira tentativa de produzir um censo na-
cional ocorreu em 1852, contudo não logrou êxito,
visto que a população não aceitou de forma pacífica a
tentativa utilizar a coleta de informações demográfi-
cas por meio da obrigatoriedade do registro civil, para
também estabelecer o perfil étnico-racial da popu-
lação, o que deu origem a uma série de revoltas (BO-

83
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

TELHO, 1998; BOTELHO, 2005; CHALHOUB, 2012).


A revolta social conhecida como “Ronco da Abelha”
eclodiu nas províncias de Pernambuco, Paraíba, Ala-
goas, Ceará, Sergipe e Minas Gerais entre 1851 e 1852.
A revolta ocorreu em oposição a decretos promulga-
dos em 1851 pelo Governo Imperial para a realização
de um Recenseamento Geral Império e a instituição
do Registro Civil de Nascimentos e Óbitos.
As revoltas foram consequências da descon-
fiança da população em relação ao interesse do poder
público em identificar a cor de cada indivíduo. Os ato-
res sociais que participaram da revolta eram negros
e mestiços, livres e libertos, que temiam o retorno a
sua antiga condição jurídica, além de tornar escravi-
zadas as crianças recém-nascidas e as pessoas livres
pobres classificadas como “gente de cor”. Tais atores,
reagiram violentamente em algumas províncias, em
que grupos armados atacaram vilas e engenhos. Es-
ses acontecimentos fizeram com que o Governo Im-
perial suspendesse a execução do censo, que só veio a
ser concretizado em 1872 (MONTEIRO, 2002, p. 111;
CHALHOUB, 2012, p. 14-19).
Os revoltosos acreditavam que poderia existir
uma ligação entre o fim do tráfico atlântico de escra-
vos, estabelecido em setembro de 1850 e a lei de 1º de
janeiro de 1852, que determinava a obrigatoriedade
do registro civil. Para eles, o fim do tráfico de pesso-
as escravizadas no Brasil aumentaria a demanda por
mão de obra e, para compensar isto, o governo pode-
ria tentar escravizar os filhos dos ex-escravizados e os
pardos livres, jovens e adultos (CHALHOUB, 2012, p.
20-21). Sendo relativamente comuns, os casos de es-
cravização e reescravização ilegais de pessoas negras,
com o apoio tácito de proprietários e autoridades po-
liciais e judiciárias. A proliferação daqueles boatos fez
emergir os medos que faziam parte do cotidiano das

84
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

pessoas de cor, cujos direitos de cidadania sempre ha-


viam sido exercidos de forma precária.
A segunda tentativa de realização de um cen-
so nacional, e desta vez bem-sucedida, foi em 1872. O
Censo de 1872 foi o primeiro censo brasileiro e o único
do período imperial e escravista. Se comparado com os
padrões dos censos atuais, pode ser considerado bem
completo, devido à quantidade de informações levan-
tadas sobre a população (PAIVA et al, 2012). A lei nº
1.829 de setembro de 1870 autorizava a realização do
Censo Geral e a criação de uma Diretoria Geral de Es-
tatística (DGE). Naquele momento, como não era uma
lei orçamentária, os recursos financeiros foram nego-
ciados a posteriori. Até que, pelo decreto nº 4.676, de
14 de janeiro de 1871, criava-se o DGE e o decreto nº
4.856, de 30 de dezembro de 1871 concedia regula-
mentação à realização do Censo Geral, então:
ficou determinado que, em cada paróquia do Im-
pério, haveria uma comissão censitária composta
de cinco membros e um corpo de agentes recense-
adores, a ela subordinado, cujo número seria fixa-
do pelos presidentes de província, tendo em vista
a população de cada paróquia e sua distribuição no
espaço (IBGE, 1951).

Nesse sentido, foi estabelecido que todos os ha-


bitantes do Império (nacionais, estrangeiros, livres e
escravizados) seriam recenseados. Assim, durante os
15 dias anteriores a 1º de agosto de 1872, os agentes
recenseadores distribuiriam de casa em casa os “bole-
tins de família”, os questionários do censo. Esses bo-
letins solicitavam dados sobre nome, sexo, idade, cor,
estado civil, naturalidade, nacionalidade, residência,
grau de instrução primária, religião e enfermidades.
Também se exigia declaração da relação de parentesco
ou de convivência de cada pessoa do fogo com o chefe
da família, além da informação do número de crian-

85
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

ças de seis a 15 anos que frequentavam ou não as es-


colas. A comissão censitária era composta por cinco
cidadãos residentes na paróquia e os agentes recen-
seadores. Após preenchidos e recolhidos, os dados se-
riam checados e os erros corrigidos para então serem
enviados para a DGE, na Corte. A DGE foi a primeira
instituição brasileira com fins de coordenação da ati-
vidade censitária e de elaboração de estatísticas (SEN-
RA, 2006; IBGE, 1951 Apud PAIVA et al, 2012).
Na coleta do Censo Imperial de 1872 participa-
ram os delegados de polícia, os vigários, os juízes (de
paz, de fora, de direito) e os membros das câmaras de
vereadores (SENRA, 2006). A difícil transcrição e apu-
ração dos dados presentes nos questionários, além da
baixa escolaridade da população, possivelmente eram
as causas da existência de erros de planejamento lo-
gístico para a execução do censo (PAIVA et al, 2012).
A isso, acrescenta-se o desafio de recensear um país
de dimensões continentais, com uma estrutura de
transporte e comunicação precários, como também
a insuficiência das instruções que acompanhavam os
formulários. Por isso, os prazos iniciais estipulados
para o levantamento do censo não foram cumpridos
e quatro das 21 províncias adiaram a data de execu-
ção do censo. O fato de o censo não ter sido realizado
de forma simultânea no território nacional também
pode ter comprometido a precisão das informações
(SENRA, 2006; PAIVA et al, 2012).
A DGE conseguiu finalizar a organização do
conteúdo levantado somente em 1876, devido ao
enorme volume de informações. Para cada uma das
1.440 paróquias recenseadas (32 paróquias ficaram de
fora do censo), foram gerados seis quadros padroniza-
dos contendo as principais informações produzidas a
partir do resumo dos dados contidos nos questioná-
rios (PAIVA et al, 2012).

86
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

A produção das estatísticas era de responsabili-


dade conjunta do governo central e dos governos pro-
vinciais. Mas a maioria dos governos provinciais espe-
raram as orientações do governo central, por meio de
legislações e formulários. As províncias que tentaram
elaborar as estruturas funcionais por si só se deparavam
com a escassez e despreparo dos funcionários. Algumas
terceirizavam a atividade de elaboração das estatísticas,
com o contrato de funcionários que a princípio eram
considerados como mais competentes e preparados. Po-
rém, ainda havia a dificuldade nas formas variáveis de
arquivamento (SENRA, 2006).
Nesta perspectiva, não obstante as condições in-
satisfatórias para a realização de estatísticas contínuas
e sistemáticas, muitos dados foram produzidos, e quase
sempre no sentido de responder a questões políticas. O
processo de produção das estatísticas durante o sécu-
lo XIX foi articulado com a ideia de construção de uma
nação/povo, mesmo que isso significasse a exclusão ou
sub-representação de alguns importantes atores histó-
ricos e sociais, especialmente indígenas e negros. Nesse
sentido, os mapas estatísticos integraram os relatos dos
presidentes de províncias no momento de aberturas das
Assembleias Provinciais, e os relatórios dos ministros às
aberturas das Assembleias Gerais (SENRA, 2006). O pró-
ximo item discutirá, brevemente, quais categorias esta-
vam presentes nos mapas estatísticos e os discursos dos
presidentes da província do Rio Grande do Norte quanto
às dificuldades na produção das informações.

Variações das categorias étnico-raciais


a partir dos mapas estatísticos e do
recenseamento imperial de 1872

É consenso entre a historiografia mais recente


que os negros e os indígenas tiveram sua etnicidade

87
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

encoberta no Rio Grande do Norte a partir da segun-


da metade do século XIX, por meio do apagamento de
sua presença nos registros administrativos (CAVIG-
NAC, 2010; MONTEIRO, 2002; SUASSUNA; MARIZ,
2005). Esse apagamento fundamentou os argumen-
tos difundidos pela historiografia tradicional de que o
número de escravizados era pouco e os indígenas ha-
viam desaparecido do Rio Grande do Norte. Cascudo
(1984) acreditava que a mão de obra escravizada não
foi indispensável no trabalho da agricultura ou pecuá-
ria. Citou o relatório do ex-presidente Casimiro José de
Morais Sarmento de 1848:
Concorda que o trabalho do escravo não é necessá-
rio. No Rio Grande do Norte há poucos escravos, e
quase toda a agricultura é feita por braços livres.
Conhece muitos senhores de engenho que não
têm senão quatro ou cinco escravos, entretanto,
que têm vinte, vinte e cinco, e quarenta trabalha-
dores livres, e se os não têm em maior número, é
pelo pequeno salário que lhes pagam (SARMENTO,
1848 Apud CASCUDO, 1984, p. 47).

Tavares de Lyra (2008) também afirmou que a


população escravizada na província nunca foi gran-
de, afirmando: “em 1872, para uma população de
233.979, havia 13.020 escravos. A última matrícula
mostra que o número de escravos existente era de
3.716 em 1887” (LYRA, 2008, p. 309).3
Durante o período colonial brasileiro (1530-
1822) o direito à terra ocorria por doação de sesmarias
pela coroa portuguesa. Juntamente com esse sistema,
havia a posse ou ocupação irregular pelos senhores
rurais. Com a independência em 1822, o acesso à terra
foi por meio da simples ocupação até 1850, ano da ins-
³ Tavares de Lyra (LYRA, 2008) não informa a data da última matrícula dos
escravizados. Porém Câmara Cascudo (CASCUDO, 1999, p. 369) faz menção
a 31 de março de 1887 como data da última matrícula realizada em Natal.
Provavelmente, foi semelhante a data da última matrícula de pessoas es-
cravizadas na província do Rio Grande do Norte.

88
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

tauração da Lei de Terras no Brasil. A lei determinava


que a aquisição de terras só poderia ser realizada me-
diante a compra, e aqueles que tinham ocupado a terra
ou recebido doação teriam a oportunidade de regula-
rizar a posse, desde que tivessem realmente a tornado
produtiva (MONTEIRO, 2002, p. 108).
Há uma estreita relação entre Lei de Terras e
outra aprovada em 1850 – a Lei de Abolição do Tráfi-
co Negreiro – que procuravam assegurar que os mi-
lhares de escravizados que mais tarde se tornariam
homens livres não tivessem acesso à terra, forçan-
do-os a buscar trabalho na grande lavoura. Além
disso, as decisões do Estado contribuíram para ele-
var o preço das terras, valorizadas como mercado-
ria, e grande parte da população não tinha condição
de adquiri-las, principalmente os ex-escravizados.
Desta forma, consolidava a grande concentração
da propriedade rural nas mãos de uma pequena eli-
te, enquanto a população negra liberta do cativeiro
continuaria trabalhando para esses grandes senho-
res rurais (MONTEIRO, 2002, p. 109).
Quanto aos indígenas, Cascudo foi categórico: ‘Em
três séculos toda essa gente desapareceu. Nenhum centro
resistiu, na paz, às tentações da aguardente, às moléstias
contagiosas, às brutalidades rapinantes do conquistador’
(CASCUDO, 1984, p. 38). Com isso, declarou a extinção
total da população de indígenas no Rio Grande do Nor-
te. A afirmação tem por base a documentação produzida
pela administração provincial, principalmente a partir
da segunda metade, em que as autoridades provinciais
passaram a declarar que os últimos indígenas estavam
espalhados pelo território, justificando a apropriação das
últimas terras indígenas pelos proprietários rurais bran-
cos e reforçando o argumento referente ao “desapareci-
mento” dos indígenas do Rio Grande do Norte (MONTEI-
RO, 2002; MARIZ; SUASSUNA, 2005).

89
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

Para a administração provincial, a ausência


do registro da população indígena nos documentos
oficiais e a indicação de que suas terras estavam de-
socupadas viabilizava que as poucas terras indíge-
nas existentes fossem classificadas como devolutas,
para serem posteriormente demarcadas e ocupadas
por novos proprietários (MARIZ; SUASSUNA, 2005, p.
178-180). Na documentação, há registros que permi-
tem acompanhar a adoção dessa estratégia ainda na
primeira metade do século XIX. Consta no relatório
apresentado a Assembleia Legislativa pelo presidente
Manuel de Assis Mascarenhas em sete de setembro de
1839, o seguinte relato:
O número destes indolentes habitantes do Brasil
vai progressivamente diminuindo nesta província,
e hoje apenas existem nos municípios de Extremoz,
São José, Vila Flor e Goianinha. (...) Consta que em
Extremoz o número de Índios chegará a 700; pos-
suem uma légua de terras no lugar denominado –
Cidade dos Veados; - entregam-se pouco a agricul-
tura, posto que o terreno não é muito fértil; vivem
da pesca, e de trabalhar a jornal. Os de S. José não
excedem de 500; possuem uma data de terras me-
didas, e demarcadas; são em geral dados a ociosi-
dade, e por isso vivem em grande penúria. Em Villa
Flor existem 140 fogos de Índios, os quais ocupam
duas léguas de terras, medidas e demarcadas; dão-
-se a cultura de mandioca; mas com pouco fruto,
pela má qualidade do terreno; as sobras das terras
são arrendadas pelos Juízes de Órfãos, que aplicam
os rendimentos delas para suprirem as necessida-
des dos mesmos Índios. O número dos de Goiani-
nha não excede de 400; cultivam a mandioca, e car-
rapateiro; mas a sua posição não mais feliz do que
os outros (RIO GRANDE DO NORTE, 1840). 4

⁴ Os relatórios dos presidentes de província estão disponíveis on-line pelo


Center for Research Libraries - Brazilian Government Documents, Provin-
cial Presidential Reports (1830-1930). Disponível em: <http://ddsnext.crl.
edu/titles?f%5B0%5D=collection%3ABrazilian%20Government%20Do-
cuments.>. Acesso em: julho de 2019.

90
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Notamos um discurso de progressivo desa-


parecimento da população indígena entre as autori-
dades provinciais. Segundo Mascarenhas, os poucos
indígenas ainda existentes tinham suas terras de-
marcadas e produziam seus próprios alimentos. A
contagem dos indígenas apresentada pelo presidente
soma a 1.740. Este número diverge no apresentado
no mapa estatístico publicado no mesmo relatório,
o qual informa um total de 3.103. Essa diferença en-
tre os números exatos e os apontados pelo presiden-
te pode ser parte do seu discurso político para con-
solidar a ideia do progressivo desaparecimento dos
indígenas no Rio Grande do Norte. O mesmo tipo de
discurso também pode ser visto na resposta ao Art.
2, § 21 da Lei n° 317 de 21 de outubro de 1843, em
que ficou estabelecida a “Catequese e civilização de
Índios, ficando o Governo autorizado para dar Regu-
lamentos às Missões, e para polos em execução”.
Na prática, as ordens do Governo Central fo-
ram remetidas para que os presidentes de cada pro-
víncia informassem o número, a importância e a lo-
calidade das aldeias indígenas e sobre a necessidade
de estabelecer novas. Significou, portanto, uma re-
gulamentação de demarcação das terras indígenas.
Mas segundo o relatório do Ministério dos Negócios
do Império de 1845, as províncias do Rio Grande do
Norte e Paraíba informaram ao governo central que
não havia demanda por demarcação utilizando-se
do argumento de que os indígenas estavam confun-
didos com o restante da população, habitando vilas
sujeitas as autoridades civis. (RIO GRANDE DO NOR-
TE, 1846) Neste cenário, foi uma oportunidade de os
proprietários rurais legalizarem as terras tomadas
dos indígenas (MONTEIRO, 2002, p. 108-109).
Diante de todo esse contexto, fruto de interes-
ses políticos que tornaram os escravizados e indíge-

91
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

nas – e seus descendentes – invisíveis ou sub-repre-


sentados, a partir dos mapas estatísticos de 1801,
1805, 1839 e 1844 e do recenseamento geral de 1872
é possível analisar as transformações das categorias
étnico-raciais dessas populações ao longo do século
XIX. Nesta perspectiva, a Tabela 1 apresenta a popu-
lação do Rio Grande do Norte, segundo a condição
jurídica e categorias étnico-raciais, durante os anos
selecionados. Verificamos uma diminuição gradativa
de pretos e indígenas no conjunto da população, ao
longo dos levantamentos populacionais. Por sua vez,
sucederam um aumento da classificação de pardos
até 1844, e em 1872, a exclusão dos indígenas acon-
teceu paralelo ao surgimento de uma nova categoria
de classificação – os caboclos (Tabela 1).

Tabela 1 - População segundo condição


jurídica e categorias étnico-raciais, RN5

Para uma melhor visualização e análise da con-


dição jurídica e da variação de tais categorias étnico
raciais, inserimos o Gráfico 1. No que se refere a po-

⁵ A composição da Tabela 1 foi fruto da análise de uma série de fontes e


dados, a saber: 1801: AHU. ACL. CU. B. Rio Grande do Norte, Caixa 9, Do-
cumento 565; 1805: AHU. ACL. CU. B. Rio Grande do Norte, Caixa 10, Do-
cumento 629; Relatório de Presidente de Província de 1839 e 1846; Censo
Imperial de 1872.

92
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

pulação de brancos livres, seu percentual em relação


ao total populacional manteve-se um certo equilíbrio
de 1801 a 1844 (variou entre 29% e 34%), entretanto
em 1872, foi registrado um crescimento de brancos na
população, aproximadamente 43,8%. Quanto aos par-
dos livres, verificamos um crescimento contínuo de
1801 até 1844, mas em 1872, o percentual caiu para
35,9%. Tais resultados apontam que, em 1872, o per-
centual de pardos livres diminuiu, e foi aumentado o
percentual de brancos, talvez por haver casos de subs-
tituição do registro pessoas pardas por brancas para
atender o ideal de embranquecimento da população.
O registro da população de pretos livres não
ultrapassou de 10% ao longo de todo o período ana-
lisado, apontamos algumas variações entre os anos:
1) em 1801 o percentual de pretos livres é semelhante
ao registrado em 1872, 8,2% e 10,0%, respetivamen-
te; 2) em 1805, o percentual de pretos livres foi mui-
to pequeno, aproximadamente 4,92%; 3) entre 1839
e 1844, manteve-se um equilíbrio em torno de 7,0%
(Gráfico 1). Tais números indicam que embora a alfor-
ria não era acessível a todos os escravizados. Acrescen-
ta-se que o aumento do percentual de pretos livres em
1872, deve-se também a Lei do Ventre Livre, promul-
gada em 28 de setembro de 1871, a lei instituiu que
os filhos de mulheres escravizadas nascidos a partir
daquela data, estariam livres (BRASIL, 1871).6

⁶ Conforme registrado no Art. 1º - Os filhos de mulher escrava que nasce-


ram no Império desde a data desta lei serão considerados de condição livre
(BRASIL, 1871).

93
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

Gráfico 17

No que se refere ao registro da população clas-


sificada como pardos escravizados, os percentuais
em relação aos totais populacionais, não ultrapassa-
ram a 5%. O maior número de pardos escravizados
registrados foi em 1839 (4,76%) e o menor, em 1872
(2,72%). Quanto aos pretos escravizados, foi registra-
do a diminuição dessa população conforme o passar
dos anos. A maior incidência foi em 1801 (13,2%) e a
menor, em 1872 (2,85%) (Gráfico 1). De acordo com
os resultados apresentados, temos como hipótese
que a diminuição da população escravizada (parda ou
preta) na capitania e depois província do Rio Grande
do Norte, ocorreu em razão do ao não registro dessas
populações nos documentos administrativos.8 Além
⁷ A composição do Gráfico 1 foi fruto da análise de uma série de fontes e
dados, a saber: 1801: AHU. ACL. CU. B. Rio Grande do Norte, Caixa 9, Do-
cumento 565; 1805: AHU. ACL. CU. B. Rio Grande do Norte, Caixa 10, Do-
cumento 629; Relatório de Presidente de Província de 1839 e 1846; Censo
Imperial de 1872.
⁸ Embora não seja nosso foco de discussão, outra hipótese a ser elencada é a
diminuição da população escravizada por meio do tráfico interprovincial.
O tráfico interprovincial de escravizados se tornou muito mais acentuado
em 1870, quando os valores internacionais do algodão e do açúcar caíram
drasticamente, enquanto o preço do café no mercado internacional dispa-
rou. A estimativa é que tenha sido 10 mil por ano, o número médio de pes-

94
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

disso, embora não fosse maioria na população total,


esses números não podem ser usados como argu-
mentos para a diminuir a participação do negro na
construção histórica da sociedade da região.
Desta forma, tais resultados evidenciam o para
a exclusão dos pretos dos registros administrativos,
uma vez que havia a concepção de que no Rio Grande
do Norte a escravidão não foi predominante nas re-
lações de trabalho e, portanto, tinha poucas pessoas
na condição de escravizadas. E de fato, mesmo que o
máximo registrado tenha sido 21,4% de escravizados
em 1801, como categorizar seus descendentes? Foram
classificados como pardos, grupo que apresentou cres-
cimento ao longo dos anos, e mais tarde muitos pos-
sivelmente foram classificados como brancos, numa
época em que ser “branco” também dependia de “sta-
tus”, da capacidade de ascensão econômica e social.
Em relação aos povos indígenas, também fi-
cou evidente o apagamento entre os levantamentos
estatísticos até o censo imperial de 1872. Em 1801
esse grupo representava 11,1% em relação à popula-
ção total. Em 1805, houve pouca modificação, conta-
bilizando-se 10,2%. Entretanto, a partir de 1839, a
população indígena caiu drasticamente para 3,85%
e 4,54% em 1844. No recenseamento imperial de
1872, os indígenas não foram incluídos, sendo subs-
tituídos pela categoria caboclos, referência aos povos
indígenas e seus descendentes, em que apresentou
uma porcentagem de 4,70%.
Reiterando o que temos afirmado, os indígenas
tiveram que lidar com várias formas de violência e ex-
clusão durante o período colonial e imperial brasileiro.
O primeiro combate foi contra as doenças infeciosas e
o brutal extermínio da população indígena resisten-
te à colonização portuguesa – a Guerra dos Bárbaros

soas escravizadas comercializadas na década de 1870 (GRAHAM, 2002).

95
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

(PUNTONI, 2002). No século XIX, a apropriação das


últimas terras indígenas pelos proprietários rurais re-
sultou no ‘desaparecimento’ entre os registros admi-
nistrativos (CAVIGNAC, 2010; MONTEIRO, 2002; SU-
ASSUNA; MARIZ, 2005).
É importante destacar que além do interesse
político em apagar os grupos étnico-raciais pretos e
indígena, havia as dificuldades relativas à produção
dos mapas estatísticos e do recenseamento de 1872.
O Rio Grande do Norte lidava com o despreparo para
a realização deles, tornando os dados incompletos/
sub-registrados. Esse problema não era exclusivo do
Rio Grande do Norte, pois o restante das províncias
brasileiras também lidava com diversas dificulda-
des para a realização dos levantamentos populacio-
nais. Segundo Senra (2006), no Primeiro Reinado e
no período das Regências, não se tinha as mínimas
condições necessárias a realização de levantamen-
tos estatísticos, os registros administrativos eram
incipientes, não sendo, portanto, contínuos e siste-
máticos. Essa situação extrapola o período das re-
gências, e no caso do Rio Grande do Norte, os pró-
prios presidentes de províncias frisaram isso em
suas falas ao longo do século XIX.
Consta no relatório do presidente de provín-
cia do Rio Grande do Norte, Manoel de Assis Masca-
renhas (1839), menção a organização de um censo
geral da população em 1839, mas a concretização do
levantamento não obteve sucesso, pois alguns dis-
tritos não foram inclusos no mapa, tais como: Serra
de São Bento, da Comarca de Natal, Campo Grande,
Vila de Santa Ana dos Matos, Vila do Apodi, Jardim
de Piranhas e São Miguel da Comarca de Assú (RIO
GRANDE DO NORTE, 1840).
No relatório do presidente Casimiro José de Mo-
rais Sarmento (1846) foi publicado outro mapa geral

96
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

da população da província, referente ao ano de 1844


(RIO GRANDE DO NORTE, 1846). De acordo com o se-
cretário da Polícia, João Paulo de Miranda, o mapa não
pode ser considerado exato, porque durante o proces-
so de produção ocorreram diversos “embaraços e tro-
peços”. No entanto, ele acreditava que os chefes das fa-
mílias deram as informações corretas sobre o número
de pessoas e as características dos indivíduos de suas
residências, e por isso considera o resultado mais fi-
dedigno à realidade, se comparado aos mapas anterio-
res. Além disso, não foi observada nenhuma freguesia
que não tenha sido contabilizada no mapa.
Foi publicado outro levantamento populacio-
nal na província do Rio Grande do Norte referente
ao ano de 1845, mas também não obteve grande su-
cesso. Segundo o secretário da presidência, João Car-
los Wanderley, não foram contempladas no mapa as
freguesias de Santa Cruz e Pau dos Ferros, pois os da-
dos das respectivas freguesias não foram enviados
a tempo para a produção do mapa geral. Durante a
terceira presidência de Casimiro José de Morais Sar-
mento (1847) foi publicado o mapa do ano de 1846,
mas, novamente, segundo o secretário da presidên-
cia, João Carlos Wanderley, as freguesias de Santa
Cruz e Pau dos Ferros ficaram ausentes da contagem
(RIO GRANDE DO NORTE, 1847).
No relatório de presidente de província Pedro
Leão Veloso (1862) consta que a falta de conhecimen-
tos estatísticos era tão grande que não dispunham
nem mesmo do básico: a cifra da população da pro-
víncia (RIO GRANDE DO NORTE,1862). Acreditava-se
que, em 1862, existiam cerca de 200 mil habitantes
no Rio Grande do Norte, porém essa conclusão não se
baseava em estatísticas. O presidente fez referência ao
trabalho organizado no ano de 1855 pelo chefe de po-
lícia à época, Herculano Antônio Pereira da Cunha, no

97
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

qual produziu um mapa populacional em que totali-


zou 132.216 habitantes, excluídos os dados da cidade
de Assú. Nesse sentido, o vice-presidente Trajano Leo-
cadio de Medeiros Murta (1862) expressa o seguinte:
A falta de um recenseamento da população é um
embaraço à solução de muitos problemas que se
prendem à administração; pelo que tomei por um
dos meus maiores empenhos coligir dados para
fazê-lo confeccionar. Aos párocos determinei por
mais uma vez que fizessem organizar o arrola-
mento da população das respectivas freguesias, e
nos remetessem; alguns o cumpriram. Á polícia
autorizei o Chefe a mandar imprimir mapas, a fim
de serem distribuídos pelos inspetores de quar-
teirão, e por eles devolvidos depois de cheias as
respectivas casas. À Tesouraria Provincial expedi
ordem, para que estabelecesse, como condição de
pagamento das côngruos dos coadjutores, a re-
messa mensal dos mapas de nascimentos e óbitos
(RIO GRANDE DO NORTE,1862, p. 47).

Em 1867, foi publicado o arrolamento da po-


pulação de 26 distritos, dos 30 existentes na provín-
cia no ano de 1866.Segundo o secretário de Polícia
Joaquim Guilherme de Souza Caldas, os subdelega-
dos dos distritos faltosos “não remeteram ainda os
respectivos mapas, não obstante as ordens expedidas
e reiteradas para o cumprimento deste dever” (RIO
GRANDE DO NORTE, 1867, p. 10).
Conforme o relatório de 1873, no ano de
1870, o chefe de polícia Aurélio Ferreira Espi-
nheira dirigiu um recenseamento da população
por intermédio de seus delegados e subdelegados,
contabilizando 262.307 habitantes no total. O
recenseamento foi realizado conforme o decreto
nº 4.856, de 30 de dezembro de 1871, que regu-
lamentou a realização de um Censo Geral do Im-
pério do Brasil. Contudo, com base em um cálculo
que estimou a população em 300.000 habitantes,

98
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Aurélio Ferreira Espinheira julgou que o número


obtido pelo censo “não era a expressão da verda-
de” (RIO GRANDE DO NORTE, 1873, p. 27).
Segundo o relatório de 1874, apresentado à As-
sembleia Legislativa Provincial pelo presidente João
Capistrano Bandeira de Mello Filho, todas as comis-
sões censitárias, nomeadas para o recenseamento da
população em cada uma das paróquias, remeteram
seus trabalhos, porém estiveram longe de apresentar
dados exatos. Grande parte da população não recebeu
as listas ou boletins de famílias, e das que foram dis-
tribuídas entre a população, muitas não foram arreca-
dadas, “devido isto ao pouco zelo dos agentes recense-
adores” (RIO GRANDE DO NORTE, 1874, p. 32).
Conforme esses relatos, fica evidente que a es-
tatística na província do Rio Grande do Norte funcio-
nava de forma precária, de modo que o recenseamento
não englobava toda a população e não havia conheci-
mentos estatísticos e pessoal qualificado para realizar
o trabalho.

O uso de mapas estatísticos


e recenseamentos em sala de aula

O trabalho com fontes históricas em sala de


aula não é uma abordagem nova, diversos professores
já utilizam essa metodologia com o objetivo de apro-
ximar o aluno de seu objeto de estudo e desenvolver
múltiplas aprendizagens. Os mapas estatísticos, e so-
bretudo, os censos brasileiros, foram fruto de um con-
texto específico do processo de reflexão sobre da for-
mação do povo brasileiro, a partir dos quais podem ser
investigadas em importantes questões, que podem ser
debatidas em sala de aula.
O estudo da variação das categorias étnico-ra-
ciais é um dos temas que os professores podem traba-

99
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

lhar a partir dos censos, pois, conforme os interesses


políticos de cada época, essas categorias mudaram
e refletiram o modo como a população brasileira era
representada. Até hoje, a classificação da população a
partir de categorias étnicas-raciais rende muita dis-
cussão, e os professores e alunos podem partir dessas
fontes estatísticas mais antigas para entender como
a sociedade enfrentou esse problema em outros con-
textos e quais continuidades e permanências podem
ser percebidas na comparação com a sociedade atual.
Em suma, a comparação de como as categorias étnico-
-raciais apareceram em cada censo do Rio Grande do
Norte e como as transformações das categorias refle-
tem os contextos históricos específicos de cada época
permite compreender o processo de variação das cate-
gorias étnico-raciais ao longo do tempo.
Além disso, a Lei de Diretrizes e Bases (BRASIL,
2003) e as Diretrizes Curriculares Nacionais (BRASIL,
2004 e 2008) e a BNCC (BRASIL, 2017) reconhecem o
compromisso que a educação tem como a formação e
o desenvolvimento humano mais amplo, em suas di-
mensões intelectual, física, afetiva, social, ética, moral
e simbólica. Os currículos das escolas devem incorpo-
rar às propostas pedagógicas temas contemporâneos
que afetam a sociedade em âmbito local, regional e
global, preferencialmente de forma transversal e inte-
gradora. Entre os temas, destaca-se a proposta de dis-
cussão das relações étnico-raciais e ensino de história
e cultura afro-brasileira, africana e indígena, confor-
me Leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008, Parecer
CNE/CP n° 3/2004 e Resolução CNE/CP n°1/2004.
Neste ponto, é possível ressaltar a importância e a va-
lidade de trabalhar com os recenseamentos, pois, con-
forme já dito, permite compreender a variação das ca-
tegorias étnico-raciais no passado e no presente.
Portanto, é imprescindível a discussão em sala

100
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

de aula de como as relações étnico-raciais e cultura


afro-brasileira, africana e indígena podem ser articu-
ladas a partir do estudo dos recenseamentos, que po-
dem nos informar sobre como os conflitos do passado
ainda influenciam as disputas em torno da definição
de categorias classificatórias. Da mesma forma, ainda
se discute a pertinência dos conceitos de preto, negro,
pardo ou indígena, havendo consenso sobre como é
complexo o trabalho com essas categorias, que certa-
mente só podem ser compreendidas quando aborda-
das numa perspectiva histórica.

Considerações finais

Diante do exposto é possível concluir que hou-


ve esforço em sub-representar a população negra e
apagar os indígenas dos registros administrativos pro-
duzidos no Rio Grande do Norte ao longo século XIX,
sendo contabilizados no censo de 1872 como pardos,
pretos e caboclos. Em relação aos indígenas, nos levan-
tamentos populacionais de 1801, 1805, 1839 e 1844
eles ainda tinham sua identidade reconhecida, embora
a partir de 1839 a população de indígenas contabiliza-
da nos mapas tenha diminuído drasticamente. Mas no
recenseamento de 1872 já não estavam mais presentes
e surge uma nova classificação étnico-racial – os cabo-
clos – constituído pelos indígenas e seus descendentes.
Quanto à categoria de pretos – livres ou escravizados –
em decorrência do discurso político de que o Rio Gran-
de do Norte não necessitava de um grande número de
escravizados, também ocorreu um processo de etnici-
dade encoberta nos registros oficiais, com os homens e
mulheres pretos sendo progressivamente identificados
como pardos ao longo do século XIX.
Vale relembrar que essa variação nas categorias
étnico-raciais foi produto de um contexto de formação

101
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

do povo brasileiro e constituição do conceito de nação,


marcado pela exclusão ou sub-representação de deter-
minados grupos étnico-raciais que não se encaixavam
no ideal civilizatório perseguido pelas elites brasileiras,
que procuravam valorizar a herança europeia. Portan-
to, os mapas estatísticos e o recenseamento imperial de
1872 constituem excelentes fontes para o professor de
história que deseja trabalhar em sala de aula questões
relacionadas à formação do povo brasileiro.

Fontes

BRASIL. Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871. Declara de con-


dição livre os filhos de mulher escrava que nasceram desde a data
desta lei, libertos os escravos da Nação e outras, e providencia
sobre a criação e tratamentos daqueles filhos menores e sobre a
libertação anual de escravos. In: BRASIL. Coleção das leis do Im-
pério do Brasil, v. 1. Rio de Janeiro, 1871.
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sino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasi-
leira”, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília,
10 de janeiro de 2003. Disponível em: <http://www.planalto.gov.
br/ccivil03/leis/2003/L10.639.htm>. Acessado em 17 mai. 2021.
_____. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Inclui no currículo
oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História
e Cultura Afro-brasileira e Indígena”. Diário Oficial da União,
Brasília, 11 de março de 2008. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_ ato2007-2010/2008/lei/l11645.
htm>. Acessado em 17 mai. 2021.
_____. Conselho Nacional de Educação/Conselho Pleno. Parecer nº
3, de 10 de março de 2004. Estabelece Diretrizes Curriculares Na-
cionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensi-
no de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Diário Oficial
da União, Brasília, 19 de maio de 2004. Disponível em: <http://
portal.mec.gov.br/dmdocuments/cnecp_003.pdf>. Acessado em
17 mai. 2021.
_____. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação; Con-
selho Pleno. Resolução nº 1, de 17 de junho de 2004. Institui Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e
para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Diário
Oficial da União, Brasília, 22 de junho de 2004, Seção 1, p. 11. Dispo-
nível em: <http://portal.mec. gov.br/cne/arquivos/pdf/res012004.
pdf>. Acessos em: 08 jan. 2019. Acessado em 17 mai. 2021.

102
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

_____. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Base


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BRASIL, Rio Grande do Norte. Mappa Geral da Importação de Pro-
dutos, e Manufacturas do Reino Produção, Consunmo, Exporta-
ção, Portos de donde vierão e para onde forão Habitantes e oo-
cupações delles, Casamentos, Nascimentos, Mortos e dos Indios
domesticos, e suas idades. Tabellas das doenças com q(ue) fale-
cerão, previstas e não previstas. Rezumo das quantias emfor-
mado na Capitania do Rio grande do Norte no Anno de 1801. In:
Arquivo Histórico Ultramarino. ACL. CU. B. Rio Grande do Norte,
Caixa 9, Documento 565.
_____. Mapa geral da Importação, produções e Manufaturas do
Reino, Produção, consumo […?] ação e do ficou em ser sem se ex-
portar nem consumir. Portos de donde […?...] Dos Habitantes e
suas occupaçoues, Cazamentos, Nascimentos, e Mortos. Dos In-
dios de Mesticos com as mesmas declarações. Tabela das molés-
tias [...] pertencente ao anno de 1805, feito em o Mes de Outubro
de 1806. In: Arquivo Histórico Ultramarino. ACL. CU. B. Rio Gran-
de do Norte, Caixa 10, Documento 629.
_____. Relatorio da Repartição dos Negocios do Imperio apresen-
tado a Assembléa Geral Legislativa na 3ª sessão da 6ª legislatura,
pelo respectivo ministro e secretario d’estado Joaquim Marcelli-
no de Brito. Rio de Janeiro: Typographia Nacional. 1846.
RIO GRANDE DO NORTE. Relatório apresentado a Assemblea
Legislativa da provincia do Rio Grande do Norte na abertura da
última sessão ordinaria da 2ª legislatura provincial, no dia 7 de
setembro de 1839: pelo ex.mo presidente da província D. Manoel
de Assis Mascarenhas. Pernambuco: Typ. de Santos & Companhia.
1840.
_____. Discurso com que o ilustrissimo e excelentissimo senhor
Dr Casimiro Jose de Moraes Sarmento presidente desta provín-
cia do Rio Grande do Norte abriu a 1º sessão da 6º legislatura da
Assembleia Legislativa provincial, anno de 1846. Recife: Typo-
grafia de M. F. de Faria, 1846.
_____. Discurso apresentado pelo ilustríssimo e excelentíssimo
senhor Doutor Cazimiro Jozé de Moraes presidente da província
do Rio Grande do Norte na abertura da segunda sessão da sexta
legislatura da Assembleia Legislativa provincial no dia 7 de se-
tembro de 1847. Recife: Typografia de M. F. de Faria. 1847.
_____. Relatório apresentado a Assembleia Legislativa do Rio
Grande do Norte na sessão ordinária no anno de 1862 pelo pre-
sidente da provincia coordenador Pedro Leão Velloso. Maceió:
Tipographia do Diario do Commercio Rua do Macena – sobrado da
esquina. 1862.
_____. Rio Grande do Norte (Província) Vice-presidente (Medeiros
Murta). S/Titulo... 26 Maio 1862.
_____. Relatório apresentado a Assembléa Legislativa do Rio
Grande do Norte na sessão ordinária do anno de 1866 pelo pre-

103
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

sidente da provincia o Exm. Snr. Dr. Luiz Barbosa da Silva. Natal:


Tip. Dous de dezembro. 1867
_____. Relatório com que instalou a Assembléa Legislativa pro-
vincial do Rio Grande do Norte no dia 11 de junho de 1873. Vi-
ce-presidente Exm. Sr. Coronel Bonifacio Francisco Pinheiro da
Câmara e passou a administração da mesma província ao Exm.
Sr. Dr. Joao Capistrano Bandeira de Melo Filho no dia 17 do mes-
mo mez. Rio de Janeiro: Typographia Americana, 1873.
___. Falla com que o Exm. Sr. Dr. João Capistrano Bandeira de
Mello Filho abrio a 1ª sessão da vigesima legislatura da Assem-
bléa Legislativa provincial do Rio Grande do Norte em 13 de ju-
lho de 1874. Rio de Janeiro: Typographia Americana, 1874.

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104
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

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105
AS ESTRATÉGIAS DOS
ESCRAVIZADOS NA LUTA
PELAS ALFORRIAS EM AREZ1

Aldinízia de Medeiros Souza


O silenciamento sobre a significativa presença
da população negra e escravizada no Rio Grande do
Norte é também o silenciamento de suas lutas pela li-
berdade. Este trabalho é sobre essa luta, expressa nas
cartas de alforria da Vila de Arez, nas quais buscou-
-se informações sobre uma atuação constante dos es-
cravizados e escravizadas para adquirir a liberdade.
As informações das cartas se complementam com
as informações dos inventários e mapas de popula-
ção para evidenciar a presença da população negra
e compreender melhor as possibilidades de alforria
nesta vila do Rio Grande do Norte.
¹ Este artigo foi escrito com base no segundo capítulo da dissertação de mes-
trado intitulada Alforrias possíveis em espaços periféricos. Natal, UFRN, 2013.

106
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Ao longo de séculos de escravidão instituída,


pessoas escravizadas buscaram, de diversas formas, li-
vrar-se do cativeiro. Era possível no Brasil, assim como
em outras partes da América, conseguir a alforria
quando criança, ainda na pia batismal: era a alforria ad-
quirida em batismo. Havia também situações em que
a alforria era deixada em testamento, o que não signi-
fica que fosse um prêmio ou uma doação. Era comum
essa alforria testamentária estar vinculada a alguma
obrigação ou tempo de trabalho a ser cumprido. Nesses
casos, ainda havia o risco de o alforriado em testamen-
to ter sua liberdade questionada ou simplesmente não
cumprida pelos herdeiros do testador. Outra forma de
se tornar liberto era por meio da carta de alforria. Esta
também não eram uma benesse, pois demandavam
muito esforço dos escravizados para consegui-las.
A carta de alforria ou carta de liberdade é um
documento legal por meio do qual o escravizado modi-
ficava o status legal, e tornava-se liberto. A condição de
pessoa livre era dada pelo nascimento, logo, um ex-es-
cravizado não se tornava livre e sim liberto, e por isso
não possuía os mesmos direitos de uma pessoa livre.
Ao adquirir a carta, era necessário registrá-la em cartó-
rio como meio de comprovar sua condição em caso de
extravio ou mesmo de roubo. Não era incomum senho-
res, às vezes herdeiros, não reconhecerem a manumis-
são2 e dar sumiço ao documento, evitando que a pessoa
comprovasse sua condição de liberto. Havia ainda, em
se tratando de uma sociedade escravista, a possibilida-
de de a pessoa negra estar em constante suspeição de
ser escrava, sobretudo em cidades maiores ou lugares
em que o liberto não era conhecido. Nos lugares de pou-
co povoamento, esse risco era menor, mas não era im-
possível alguém liberto ser reescravizado ilegalmente
com consentimento da sociedade. De qualquer modo,

² Manumissão refere-se à ação de deixar forro, alforriar (BLUTEAU, 1712 -1728).

107
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

fosse por estas ou outras circunstâncias, ainda era mais


seguro registrar a carta em cartório.
Esses registros de alforria contêm informações
como o nome do escravo, cor, filiação, idade e motivo
da concessão, além de alguns dados sobre o senhor.
Com essas informações podemos identificar quem
conseguia adquirir a alforria e de que modo. Apesar do
documento possuir um texto formal padronizado, há
informações que são significativas, como por exem-
plo, se as alforrias foram pagas, ou gratuitas e o perfil
dos alforriados. Essas informações expõem, às vezes
nas entrelinhas, que dificuldades envolviam a aquisi-
ção da liberdade, tal como a prestação de serviços ao
senhor ou senhora por tempo indeterminado.
As modalidades de carta de liberdade podem
ser classificadas em onerosas pagas, condicionais e
gratuitas.3 As alforrias gratuitas não eram muito co-
muns. A historiografia tem demostrado que na maio-
ria das vezes a aquisição da alforria ocorria mediante
pagamento e com base nesses dados ressalta-se a carta
de liberdade como uma conquista dos escravizados e
não como um mero ato de bondade, como o texto dos
documentos tendem a fazer parecer.4
Em estudos realizados em regiões mais urba-
nizadas do Brasil, como Salvador e Rio de Janeiro, o
perfil dos escravos e o número de alforrias pagas é em
torno de 50% do total de alforrias (MATTOSO, 1990;
SCHWARTZ, 2001). Kátia Mattoso (1990) questiona
a gratuidade das alforrias condicionais, levando em
consideração que cumprir uma determinada obri-
gação para o escravo é um ônus, mesmo que uma
alforria condicional não demande o pagamento em

³ Essa classificação poder ser diferente a depender dos documentos ou en-


foque do historiador.
⁴ KARASCH, 2000; MATOSO, 1990; SCHWARTZ, 2001; realizaram estu-
dos com base em cartas de alforria e evidenciam o papel ativo dos escravi-
zados em oposição a ideia de concessão benevolente do senhor.

108
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

dinheiro, requer um pagamento em serviço, sendo,


portanto, uma alforria onerosa.
Mary Karasch analisou as alforrias registradas
na cidade do Rio de Janeiro na primeira metade do sé-
culo XIX, entre 1807 e 1831 (KARASCH, 2000). A au-
tora concluiu que as alforrias não eram conseguidas
com facilidade, nem eram frutos da benevolência do
senhor, mas que eram resultado, sim, do esforço dos
escravizados. Estes, em geral, precisavam pagar por
elas, ou obtinham-nas mediante cláusulas de presta-
ção de serviços. Karasch destaca o papel das mulheres
na conquista da manumissão, relacionada às ativida-
des desempenhadas por elas no contexto urbano, o
que era mais difícil para os homens, visto que, na cida-
de, as mulheres encontravam maiores possibilidades
de desenvolver atividades como vendedoras, quitutei-
ras, costureiras, o que permitia o acúmulo de um pe-
cúlio5 (KARASCH, 2000). A atuação das mulheres em
atividades de comércio no Rio de Janeiro tem relação
com a ancestralidade, com experiências trazidas da
África, a exemplo das pretas minas, mulheres da costa
ocidental da africana onde era comum, de acordo com
a divisão sexual do trabalho, as mulheres atuarem em
atividades comerciais, para as quais desenvolveram
especiais habilidades (FARIA, 2011).
Nos mapas da população de Recife, na primeira
metade do século XIX, a maior parte dos libertos eram
mulheres, cujas atividades domésticas e no comér-
cio favoreciam à aquisição de liberdade (CARVALHO,
2002). Além disso, “atividades domésticas que as mu-
lheres desempenhavam, regra geral, colocavam-nas
mais próximas do senhor e da sinhá do que aquelas

⁵ Pecúlio corresponde ao patrimônio havido, seja este em dinheiro ou bens.


DICIONÁRIO Antônio de Moraes Silva, 1789. Outros historiadores tam-
bém destacaram o papel das mulheres em atividades comerciais, atuando
como escravas de ganho e, com isso adquirindo pecúlio. Ver também: FA-
RIA, 2011.

109
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

desempenhadas pelos homens” (CARVALHO, 2002, p.


223). Nessa perspectiva, Marcus Carvalho avalia que
“quanto mais próximo estivesse do centro de decisão
da casa, maiores as suas chances de conseguir algu-
mas vantagens em termos de alimentação, vestuário
e até alforria” (CARVALHO, 2002, p. 223). Ligia Bellini
destaca, em cartas de alforria da Bahia, a referência às
alforrias concedidas a escravos que nasceram na casa
do senhor e que “são como filhos”, são elementos que
revelam motivações para o favoritismo de determina-
das crianças, que os indícios apontam terem sido al-
forriadas em função dos laços de afetividade estabele-
cidos com seus senhores (BELLINI, 1988).
As manumissões pagas foram, conforme ex-
põe a historiografia, a principal forma de aquisição
da carta de alforria no Brasil. Mesmo em localida-
des de menor porte urbano e comercial, como a vila
de Arez no Rio Grande do Norte, também foi este o
principal tipo de carta de liberdade.
A vila de Arez, antiga missão indígena de Gua-
raíras, na transição do século XVIII para o XIX, con-
tava com alguns povoados, entre eles Goianinha. O
pouco desenvolvimento da vila de Arez é atestado
por Aires do Casal (1817), que descreve a povoação
de Goianinha como maior que a sede do termo. Tam-
bém, em documentos oficiais, as diferenças entre
Arez e Goianinha são relatadas. Em correspondência
ao ministro da justiça, no ano de 1828, o Presidente
da Província do Rio Grande do Norte, tratando, entre
outros assuntos, da possibilidade de divisão interna
da Província, alega que não era oportuno estabelecer
novas divisões para evitar situações como a de Goia-
ninha “que estando entre duas vilas de Arez e Flor,
que só pelos alvarás de suas criações gozam estes no-
mes é uma das maiores povoações desta Província e
que em detrimento de seus habitantes tem a recorrer

110
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

a Vila de Arez, que é um deserto” (BN. I-32, 10, 05.


doc. 16). Isso porque a povoação de Goianinha cres-
ceu, em termos populacionais e comerciais, mais do
que as vilas vizinhas e, no entanto, estava subordi-
nada juridicamente à Arez, à qual a população tinha
que recorrer, conforme atesta o documento, de modo
que os libertos de Goianinha, outros povoados e zona
rural registravam as alforrias naquele cartório.
As atividades predominantes no termo da vila
de Arez eram agrícolas. Embora existisse engenhos
de produção de açúcar, a exemplo do Estivas, os in-
ventários da região demonstram uma predominân-
cia de agricultura de abastecimento, com destaque
para a mandioca, bem como as atividades derivadas
desse cultivo, pois era frequente a menção a roda de
moer mandioca ou outros elementos que remetem
à produção de farinha.6 Essas atividades contavam
com mão de obra escrava.
Embora tenha se atribuído a pouca presença de
escravos no Rio Grande do Norte ao pouco desenvol-
vimento da produção açucareira (CASCUDO, 1984),
percebe-se em estudos mais recentes, e também anali-
sando inventários da região de Arez, que a escravidão
estava presente em diversas atividades, pois os inven-
tários registram escravos em diversas funções arte-
sanais, como sapateiros, ferreiros, marceneiros, além
das atividades na agricultura.7
Observa-se com base nos inventários referen-
tes ao termo da vila de Arez entre 1705 e 1829 que as

⁶ Os inventários post mortem foram investigados a partir de fontes diver-


sas, tais como: GALVÃO, Helio. Velhas heranças. Revista Bando, Natal, v. 2,
nº 1, ano 3, p. 12-46, Ago-set. 1951; v. 4, nº 6, ano 5, p. 77-121, Jul-Ago,
1954. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, Na-
tal, v. LIX, LX, LXI, p. 67-92, 1974; v. LXIII-LXIV, p. 117-147, 1972.
⁷ Entre as obras precursoras dessa concepção difundida por Luís da Câ-
mara Cascudo, destaca-se Tavares de Lyra (LYRA, 1982), e Rocha Pombo
(POMBO, 1992). Sobre a presença escrava na região do Seridó, ver Muiraky-
tan K. Macêdo (MACÊDO, 2007), Michele Soares Lopes (LOPES, 2011).

111
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

escravarias em sua maioria parte eram de pequeno


porte. Dos 38 inventários desse período, 23 possuíam
uma pequena escravaria (1 a 5 escravos), 8 inventá-
rios possuíam média escravaria (6 a 14 escravos) e 6
inventários possuíam as maiores escravarias (15 a 25
escravos).8 Trata-se de um lugar de poucos senhores
de engenho, em que a maioria dos proprietários con-
tava apenas com pequenas posses escravas. Alguns
senhores possuíam terras de criar gado nas margens
que seguem o curso do rio Trairí, ao longo do extenso
termo que se limita com a freguesia de Santana, na
região do Seridó. Outros senhores viviam de suas la-
vouras nas proximidades da vila.
Mesmo sendo uma região de poucas ativida-
des urbanas, o pagamento em dinheiro apresenta-se
como principal meio de aquisição da carta de liberda-
de nas alforrias de Arez, como se vê nos dados das al-
forrias analisadas, referentes a esta vila entre 1774 e
1827: 32 alforrias foram pagas; 21 condicionadas e 9
foram registradas como gratuitas, de um total de 62
alforrias.9 O escravizado poderia pagar pela carta com
dinheiro, com bens, ou com prestação de serviço. Nos
casos de pagamento em dinheiro, em algumas situ-
ações, o valor era parcelado. Também poderia haver
pagamentos comutativos incluindo dinheiro, algum
bem e prestação de serviços.
Embora as cartas não mencionem como o es-
cravo adquiria o dinheiro necessário ao pagamento, a
não ser quando a quitação era realizada por terceiros,
são visíveis ao menos dois aspectos: o primeiro é que
o investimento era realizado pelo escravo, sobretudo o
⁸ Os inventários post mortem foram recolhidos por meio de fontes diversas,
tais como: GALVÃO, Helio. Velhas heranças. Revista Bando, Natal, v. 2, nº 1,
ano 3, p. 12-46, Ago-set. 1951; v. 4, nº 6, ano 5, p. 77-121, Jul-Ago, 1954.
Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, Natal, v.
LIX, LX, LXI, p. 67-92, 1974; v. LXIII-LXIV, p. 117-147, 1972.
⁹ Os livros de notas referentes a este período são dos seguintes intervalos:
1774-1782; 1785-1796; 1819-1821; 1826-1827

112
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

investimento em dinheiro; o segundo, é a aquisição de


um pecúlio10, fato relevante já destacado por Chalhoub
(1990) como prática costumeira. No caso das alforrias
pagas no termo da vila de Arez, a maioria foi paga em
dinheiro, e somente uma foi paga com outros bens.
Contudo, possuir o recurso para pagar a carta
de liberdade não garantia a sua aquisição. Até 1871,
não havia lei que garantisse a compra da alforria por
parte do escravo, mesmo que ele pudesse pagar pela
mesma. A compra dependia ainda da aceitação do se-
nhor. Também não havia garantia de manutenção da
alforria, pois esta poderia ser revogada. Somente, com
a Lei n° 2.040, conhecida como Lei do Ventre Livre, os
escravizados passaram a ter o direito de adquirir a al-
forria, mesmo contra a vontade do seu senhor, desde
que tivessem como pagá-la.
Para Chalhoub, a lei de 1871 reconheceu um di-
reito que já vinha sendo reivindicado costumeiramen-
te pelos escravizados (CHALHOUB, 1990). Embora não
fosse obrigatória, era costume a compra da alforria por
parte do escravo com a anuência do senhor. Nos casos
em que o senhor não concordava com a compra da
carta de liberdade, havia a possibilidade de buscar por
meios judiciais a arbitração do valor da alforria. Mes-
mo com posse de um pecúlio suficiente para pagar pela
liberdade, seria preciso um empenho do escravizado
em negociar com o senhor a aquisição da carta, bem
como sua manutenção, visto que a alforria poderia ser
revogada em caso de ingratidão, conforme o Livro 4º
das Ordenações Filipinas. Ainda em meados do século
XIX era comum a referência a essa legislação na defe-
10
A Lei n° 2.040, de 28 de setembro de 1871 especifica: Art. 4º É permitido
ao escravo a formação de um pecúlio com o que lhe provier de doações,
legados e heranças, e com o que, por consentimento do senhor, obtiver
do seu trabalho e economias. O Governo providenciará nos regulamentos
sobre a colocação e segurança do mesmo pecúlio. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LIM/LIM2040.htm>. Acesso em: ja-
neiro de 2013.

113
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

sa dos senhores em casos de reescravização, conforme


analisado por Keila Grinberg (GRINBERG, 2006).
As relações entre senhores e escravos são então
percebidas como fruto de uma complexa rede de rela-
ções em que “escravos e senhores manipulam e tran-
sigem no sentido de obter a colaboração um do outro”
(SILVA; REIS, 1989, p. 16). Em meio a complexidade
das relações entre senhores e escravos, a alforria pode
representar tanto uma promessa, enquanto elemento
de dominação do senhor, como a ação do escravo que
busca por sua liberdade. Afinidade e estima, assim
como dominação e controle estão presentes nas rela-
ções entre senhores e escravos, e se entrelaçam no jogo
de palavras das cartas. Vejamos o texto de uma carta:
Digo eu abaixo assinada que entre os mais bens
que possuo e bem assim uma mulata por nome
Rita filha de uma minha escrava por nome
Luiza de cuja mulata estou de mansa e pacífi-
ca posse a qual assim declarada a forro como
com efeito forra a tenho de hoje para todo o
sempre por preço e quantia de cento e onze mil
reis, os quais recebi logo ao fazer desta moeda
corrente do nosso reino, e como estou paga e
satisfeita desta referida quantia, poderá a dita
mulata lograr sua alforria e liberdade de hoje
em diante sem que pessoa alguma lhe possa
impedir, nem por mim nem por meus herdei-
ros, tanto por haver recebido o referido a seu
valor como por ser e fazer a dita alforria muito
da minha vontade, e pela lealdade com que me
tem servido. E como tal peço e rogo as Justiças
de Sua Majestade que façam dar inteiro cum-
primento a esta carta, por ser da minha vonta-
de [...] e para constar pede ao capitão Antônio
Pita Brandão, esta por mim escrevesse e eu me
assino, sendo presentes por testemunhas An-
tônio Pita Castro e Alexandre da Rocha Viei-
ra. Juazeiro, nove de agosto de mil setecentos
e noventa e dois. (IHGRN – LNA, 1785-1796)
[Grafia atualizada]

114
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Podemos observar no texto do documento su-


pracitado o que a historiografia confirma. A carta de
alforria foi paga por Rita e, embora não especifique a
idade de Rita, pelo valor pago é possível que estivesse
em idade produtiva, provavelmente realizava algu-
ma atividade que possibilitasse o pecúlio, embora a
atividade desempenhada por ela não esteja descri-
ta na carta. Também é possível pensar que a mãe de
Rita pode ter pago pela alforria, porém, quando isso
ocorria, era comum vir descrito na carta quem fez o
pagamento. De qualquer modo, o que se quer enfati-
zar aqui é que a senhora de Rita ressalta a lealdade
e os bons serviços prestados por ela, o que remete a
proposição de negociação entre senhores e escravos
(SILVA; REIS, 1989), bem como ao uso da promessa de
alforria para manter os escravizados obedientes. Ou-
tro aspecto a destacar, a partir desta carta, é o fato de
os escravizados próximos aos senhores serem mais
propensos a adquirir alforria, uma vez que essa pro-
ximidade poderia beneficiá-los. Veja-se que Rita era
filha de uma outra escrava da mesma senhora.
Digo eu Cosma dos Anjos que entre os mais bens
moveis que possuo de que estou de mansa e pacífi-
ca posse há bem assim uma mulata de nome Antô-
nia de idade pouco mais ou menos de vinte e cinco
anos pouco sadia, filha da minha escrava Maria,
cuja mulata Antônia, de minha livre vontade, sem
constrangimento de pessoa alguma, liberto, como
bem efeito libertada tenho, por preço e quantia de
Cento e dez mil reis, de cuja quantia tenho recebi-
do em dinheiro vinte e dois mil reis e lhe devo em
conta mais vinte mil reis os quais lhe foram esmo-
la, e os sessenta e oito mil reis que fica restando,
pagará ao meus herdeiros a quem competir sem
que por nenhum deles haja de haver apropriação
alguma a esta liberdade portanto, poderá a dita
mulata Antônia gozar dela como se liberta nas-
cesse do ventre materno e ir para onde lhe parecer,
sem impedimento de pessoa alguma, por quanto

115
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

é esta a minha vontade. Peço e rogo as justiças de


sua Majestade Fidelíssima [ilegível] desse cumpri-
mento a esta carta de liberdade e quando nela falte
alguma cláusula em direito estabelecida aqui, ache
por expressa e declarada como se delas fizesse in-
dividual menção. E por verdade pedi ao Escrivão
desta Villa, Domingos Jose da Gloria esta por mim
escrevesse e a meu rogo assinasse por eu [por cega]
não poder fazer, sendo presentes por testemu-
nhas que também assignaram, Manuel da Cunha
Calheiros, João Vicente de Andrade e Matheus de
Souza Monteiro. Vila de Arez sete de junho de mil
oitocentos e vinte um = Assino a rogo de Cosma
dos Anjos de Oliveira, Domingos Jose da Gloria =
Manuel da Cunha Calheiros João Vicente Vicente
de Andrade = Matheus de Souza Monteiro. (IHGRN
– LNA, 1819-1821) [Grafia atualizada]

A alforria custou cento e dez mil reis, dos


quais vinte e dois foram pagos, vinte mil conside-
rados pela senhora como esmola, ou seja, como do-
ação e os demais seriam pagos aos herdeiros. Como
a carta não especifica o prazo de pagamento, po-
de-se pensar que poderiam ser pagos em um prazo
curto ou somente quando a senhora falecesse.
Outra forma de pagar a alforria era com o pró-
prio trabalho. É o caso das alforrias condicionais,
que vinculam a liberdade às cláusulas condicionais,
entre as quais a mais comum era acompanhar o se-
nhor ou a senhora até à morte. Além dessa, as impo-
sições poderiam ser também: pagar uma quantia em
dinheiro para completar o valor da alforria; treinar
um escravo substituto; substituir o senhor nas for-
ças armadas; pagar as despesas do funeral do senhor
ou da senhora (KARASCH, 2000); mandar rezar mis-
sas para a alma do senhor; prestar serviço a um ter-
ceiro designado pelo senhor; ou permanecer na fun-
ção que exercia por um tempo estipulado ou até a
morte do senhor (MATTOSO, 1990). A prestação de
serviços ao senhor ao longo do restante de sua vida,

116
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

como uma maneira de garantir o serviço obediente


do escravo, implica uma conquista da liberdade que
se processa diariamente, uma vez que o escravo pre-
cisaria manter-se merecedor da alforria aos olhos
do senhor (KARASCH, 2000).
As alforrias podem ser compreendidas no
contexto de uma política de domínio paternalista,
na qual os senhores aparecem como sujeitos bene-
volentes. Genovese enfatiza que o paternalismo é
interpretado radicalmente diferente por senhores
e escravos, traduzindo-o “numa doutrina de resis-
tência às asserções de que a escravidão era uma
condição natural para os negros, de que os negros
eram radicalmente inferiores e de os escravos ne-
gros não tinham quaisquer direitos próprios” (GE-
NOVESE, 1988, p. 25). Nessa perspectiva, Enidelce
Bertin aborda a construção das relações entre se-
nhores e escravos por meio do conceito de paterna-
lismo enfatizado que, nas cartas de alforria, termos
como “por amor e por amizade” são utilizados para
justificar a manumissão expressa nos documentos
como uma concessão senhorial (BERTIN, 2004).
Este tipo de justificativa também está pre-
sente nas cartas de alforrias referentes à Arez e
aparece quase como um padrão formal da escrita
do documento. Para Bertin, as relações construí-
das por meio do paternalismo contribuíram para
“uma certa acomodação estratégica dos escravos.
Para estes, todo e qualquer esforço no sentido de
conseguir a carta de alforria seria válido, inclu-
sive demonstrar muito zelo, lealdade e bons ser-
viços para o senhor” (BERTIN, 2004, p.132). Esta
percepção, respaldada em Genovese (1988), re-
vela que escravos e senhores interpretavam dife-
rentemente o paternalismo, assim o escravo agia
como indivíduo consciente das possibilidades de

117
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

obtenção da alforria, atuando de maneira a criar


oportunidades ou aproveitar as existentes. 11
Há diferentes interpretações na historiografia
sobre a situação do alforriado sob condição. Este seria
considerado liberto após receber a carta, ou somente
após cumprida as cláusulas condicionais? Para Kátia
Matoso (MATTOSO, 1972), o escravo alforriado sob
condição foi sempre considerado livre perante a lei,
mas o gozo da liberdade só ocorreria após cumprida
as cláusulas. Uma vez recebida a carta de liberdade
condicional, o escravo não poderia ser alienado, nem
hipotecado e, além disso, o trabalho realizado pelos
libertos sob condição não era considerado trabalho
escravo. Diz ainda a autora que os filhos das escravas
libertas condicionalmente nasciam livres.
Mary Karasch, por sua vez, considera que os
alforriados condicionalmente eram tratados como
escravos e os filhos de escravas alforriadas condi-
cionalmente eram considerados, também, escravos,
pois, para serem livres “os senhores tinham que re-
gistrar a alforria de crianças nascidas de mulheres
em liberdade condicional, ou tinham que estipular
que todos os filhos dela nasceriam livres durante
o período de sua alforria condicional” (KARASCH,
2000, p. 462). A observação da autora é coerente,
pois se vigorava o princípio de que o parto segue o
ventre, e havia a necessidade de registrar as alfor-
rias de crianças nascidas de escravas libertas condi-
cionalmente, então, a conclusão é de que estas eram
consideradas escravas.
11
O discurso paternalista presente nas cartas de alforria é abordado por
Enidelce Bertin (BERTIN, 2004) e por Gabriel Aladrén (ALADRÉN, 2009).
Outros autores também abordam o paternalismo nas relações entre se-
nhores e escravos observando que essa política tanto poderia ser utilizada
como forma de os senhores manterem o controle e o bom comportamen-
to do escravo quanto poderiam ser fruto de ações dos escravos no sentido
de influenciar o senhor a aceitar a alforria. Ver Chalhoub, 2003; e Mattos,
1998.

118
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Algumas apreciações sobre o tema são realiza-


das por Sidney Chalhoub (CHALHOUB, 1990). Ele acre-
dita que as afirmações de Kátia Mattoso sobre a condi-
ção do statuliber são realizadas com base em Perdigão
Malheiro, em A escravidão no Brasil, embora a autora
não cite as fontes.12 Conforme Perdigão Malheiro, o es-
cravo, ao receber a alforria condicional, restitui a sua
condição natural de homem e personalidade, “apenas
o exercício pleno da liberdade é que permanece adia-
do” (CHALHOUB, 1990, p. 130).
Ao analisar ações civis de liberdade nas últimas
décadas da escravidão, Sidney Chalhoub (1990) depa-
rou-se com casos em que o princípio de que o parto se-
gue o ventre é duplamente interpretado: tanto consi-
derando que a escrava liberta condicionalmente ainda
é escrava, portanto, o filho também o é; quanto consi-
derando-se, também que a liberta condicionalmente
é, de fato, liberta, portanto, seu filho é livre. Analisan-
do-se outros casos, em que os juízes decidem pela li-
berdade do escravo que recebeu alforria condicional e
interpretam que o escravo se torna livre desde a data
da escritura da liberdade, esse autor supõe que Kátia
Matoso estava certa, ou seja, que os escravos libertos
condicionalmente eram considerados libertos.
Mesmo que Kátia Mattoso esteja certa, os exem-
plos analisados por Chalhoub demonstram a dupla in-
terpretação referente ao liberto condicionalmente e,
certamente, esta dupla interpretação não deve ter sido
exclusiva do século XIX, pois o próprio autor conside-
ra que os registros que fundamentam a interpretação
de Mary Karasch podem indicar que houve diferentes
soluções para o mesmo problema ao longo do tempo
(CHALHOUB, 1990). Ou seja, em algumas situações o
liberto mediante carta condicional era considerado

12
Termo derivado do Direito Romano para definir o liberto condicional-
mente, utilizado pelo autor citado.

119
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

propriamente liberto, com os efeitos que a carta de li-


berdade possibilitava, como por exemplo garantir que
o filho da mulher liberta nascia livre, ou em outras si-
tuações, a carta com condições só garantiria os efeitos
após o cumprimento das obrigações.
Nas cartas de alforrias dos Livros de Notas de
Arez, alguns senhores mencionavam que a liberdade
seria adquirida com o cumprimento da condição. Des-
sa maneira, a carta da crioula Adriana, de 1780, traz a
situação seguinte:
Digo eu Inácio Álvares de Araújo que entre os bens
que possuo há bem assim uma crioula por nome
Adriana a qual com tanto que me acompanhe bem
e fielmente e me sirva a meu contento como até
aqui me tem feito até que Deus seja servido dispor
de mim quero que de então por diante seja forra e
liberta isenta de toda escravidão da mesma sorte
que são todos os que nascem do ventre livre. (IH-
GRN - LNA, Carta de alforria da crioula Adriana,
1774-1782) [grafia atualizada]

Outra carta registrada no mesmo livro de no-


tas, no ano de 1777, traz a declaração:
Digo eu Dona Izabel de Figueiredo Maciel que en-
tre os mais bens que possuo tenho uma mulata
por nome Maria José a qual com a condição que
me acompanhará até a morte a forro de hoje para
todo o sempre para que se possa casar com Manoel
da Silva e assim mesmo forro seu filho João que já
nasceu e a cada os mais que tiver sem pensão ou
condição alguma e para que a todo tempo conste
esta minha vontade e esmola que lhe faço passei-
-lhe este papel que pedi ao Reverendo Padre Fran-
cisco Xavier fizesse por mim. (IHGRN - LNA, Carta
de alforria da mulata Maria José, 1774-1782) [gra-
fia atualizada]

Pelos dois exemplos citados, podem-se fazer al-


gumas ponderações. Na carta de Adriana, o senhor ex-
põe que ela ficaria “isenta de toda escravidão” somente

120
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

após sua morte, momento em que a escrava encerraria


o cumprimento da obrigação. A maneira como a car-
ta está escrita leva a crer que a crioula permaneceria
escravizada e que a liberdade ainda demandaria uma
espera. No segundo caso, no entanto, o da mulata Ma-
ria José, sua senhora a libertou para que pudesse casar,
mas ela continuaria servindo à senhora, a qual deixa
previamente esclarecido na carta que os filhos que
Maria José vier a ter já serão “forros”. Pode-se perceber,
então, certa ambiguidade, pois se Maria José já seria
considerada livre “de hoje para todo o sempre”, assim
como a carta menciona, seus filhos nascidos deveriam
ser considerados livres. Porém a senhora, ao declarar
como forros o filho que a escrava tinha, assim como os
que ela viesse a ter, parece demonstrar que não havia
uma garantia de que os filhos de escravas libertas con-
dicionalmente seriam considerados livres. São am-
biguidades como estas que chamam a nossa atenção
para as possíveis negociações entre essas escravizadas
e seus senhores, mediante as quais elas poderiam con-
seguir ou não algum benefício.
Em outra situação, registrada no livro de no-
tas de Arez, em 1826, o senhor Francisco Xavier de
Souza, para evitar uma possível disputa relacionada
aos filhos de uma escrava liberta condicionalmente,
chamada Francisca, procurou se prevenir expressan-
do claramente na carta da escrava que se ela parisse
enquanto ele estivesse vivo, período em que a escrava
estaria cumprindo a cláusula condicional de acompa-
nhá-lo até a morte, os filhos dela seriam escravos do
senhor e de seus herdeiros. Ao mesmo tempo, o se-
nhor expressa claramente que a escrava só poderá go-
zar de liberdade após a sua morte. (IHGRN - LNA, Car-
ta de alforria da crioula Francisca, 1826-1827) [grafia
atualizada] Logo, para Francisca, a alforria somente se
cumpriria com a morte do senhor.

121
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

A aquisição da alforria era, muitas vezes, um


processo longo, como se pode ver nesses casos de alfor-
ria condicional. Somente em 1871 é que foi estabele-
cido um limite de tempo para a prestação de serviços.
A lei 2.040, de 1871, além de estabelecer a compra da
alforria mediante pecúlio como um direito, limitou o
tempo de prestação de serviços em sete anos. Até então,
a definição do tempo ficava sob prerrogativa do senhor.
Com base nos exemplos de cartas condicionais
de Arez e nos exemplos da historiografia, pode-se in-
ferir que a condição dos alforriados condicionalmente
era de fato ambígua em diversos momentos da histó-
ria e que não havia segurança jurídica quanto a situa-
ção do liberto sob condição.
Outro aspecto a lembrar é que as relações entre
o senhor e o liberto não se encerravam com a obtenção
da carta de alforria, mesmo quando não havia condi-
ções a se cumprir. Márcio de Souza Soares considera
que, para a sociedade oitocentista, as alforrias devem
ser compreendidas sob a ótica da dádiva. Assim, a dá-
diva que encerra a alforria implicava uma retribuição
do escravo liberto, uma continuidade da relação que
explicaria as condições em troca da alforria.13 Nesse
sentido, a alforria é um acordo estabelecido a partir
de uma relação de troca, embora desigual, salienta o
autor. Em retribuição à dádiva da liberdade, o liberto
tinha que se mostrar obediente ao seu ex-senhor, pois
ainda havia o risco de revogação da alforria.14
Pode-se observar que a maior parte das alfor-
rias foram adquiridas mediante algum esforço dos es-
cravizados, uma vez que o número de alforrias pagas
(32) e condicionadas a alguma obrigação a cumprir
(21) se sobressaíram sobre as gratuitas. Somente nove
13
Márcio de Sousa Soares (SOARES, 2009, 2011) refere-se ao conceito de
dádiva de Marcel Mauss.
14
A Lei 2040 de 1871 derroga a Ordenação Filipina Liv 4º, titl 63 na parte
que revoga as alforrias por ingratidão.

122
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

alforrias das 62 analisadas foram gratuitas, ou pelo


menos, não mencionaram nenhuma contrapartida do
escravizado. Vale salientar que, na sociedade escravis-
ta, era apenas uma pequena parte da população escra-
va que conseguia conquistar a alforria. Mas mesmo
em Arez, uma região de poucas atividades comerciais,
escravizados conseguiram constituir um pecúlio ca-
paz de comprar a tão sonhada carta de liberdade.

Considerações finais

Embora fosse vila e assumisse a condição de


sede administrativa do termo, Arez, no século XIX,
ainda não possuía características urbanas suficientes
para justificar a compra de alforria como sendo fruto
principalmente de atividades comerciais ou artesa-
nais, conforme tem salientado a historiografia que
trata das alforrias em áreas urbanas. Nesse sentido,
se havia possibilidades para compra de alforria decor-
rente de pecúlio acumulado por atividades urbanas,
isso seria mais provável para os escravos da povoação
de Goianinha. O que as cartas analisadas nesse tex-
to revelam é que, além das atividades urbanas como
fonte de pecúlio, acumular algum recurso também
era possível para os escravizados de áreas rurais ou
de pouco comércio, que aproveitavam as oportuni-
dades que dispunham a fim de comprar a alforria, em
concordância com a conjectura de Schwartz (2001),
segundo a qual a frequência de manumissões pagas
não discrepava entre as áreas urbanas e as rurais. Ao
menos as porcentagens de alforrias pagas no termo da
vila de Arez aproximaram-se das manumissões pagas
nas áreas urbanas dos estudos sobre alforria no Brasil.
O empenho dos homens e mulheres escraviza-
dos em acumular pecúlio para compra de sua alforria
ou de seus filhos, os longos anos de serviços prestados,

123
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

as boas relações com seus senhores, as redes de rela-


ções e apoio construídas, são algumas das ações que
revelam a luta pela liberdade, mesmo que essa liberda-
de fosse precária e corresse risco de ser revogada.
As alforrias não foram dadas de forma benevo-
lente como faz parecer o discurso dos proprietários.
Elas dependeram do empenho pessoal de cada liber-
to e, muitas vezes do empenho de familiares e amigos
também. Foram os escravizados os protagonistas na
luta pela liberdade. O investimento por eles realizado
para conseguirem sua liberdade extrapolava o campo
material e envolvia práticas e sensibilidades, frutos
de uma atuação consciente, com a finalidade de con-
seguir a anuência do senhor para alcançar seus obje-
tivos. Afinal, os espaços de trabalho eram também,
espaços, de construção de sociabilidades, de relações
que favorecessem a luta pela liberdade.

Fontes

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geográfica do reino do Brasil composta e dedicada a sua
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TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

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A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

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126
A BUSCA PELA LIBERDADE DE
NEGROS ESCRAVIZADOS DO
SERIDÓ1

Ariane de Medeiros Pereira

A
o nos debruçar sobre a historiografia da escra-
vidão no Rio Grande do Norte percebemos que
a abordagem do tema se divide em três verten-
tes. Uma que coloca os senhores tratando seus escra-
vos de forma branda e benevolente2, e outros estudos
que apontam para os escravos como vítimas da lógica
senhorial, sendo duramente punidos e tratados uni-
camente como mercadoria, sendo vendidos e tributa-
dos.3 E há outra vertente, que insere os escravos den-

¹ Essa discussão faz parte das reflexões empreendidas no Programa de Pós-


-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(2012- 2014), em nível de mestrado, sob orientação do Prof. Dr. Muirakytan
Kennedy de Macêdo e co-orientação da Prof.ª Dr.ª Juliana Teixeira Souza.
² É a perspectiva encontrada na obra de Luís da Câmara Cascudo.
³ Essa é uma postura assumida por Denise Monteiro (MONTEIRO, 2000)
que privilegiou a condição dos cativos como uma mercadoria, que poderia
ser vendida e comprada, inserindo na lógica mercantilista e de mão de obra
para as lavouras e criação de animais. Nesse caso, a pesquisadora possui uma
influência dos estudiosos dos anos de 1950, dentre os quais: Emilia Viotti da
Costa, Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes e Jacob Gorender.

127
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

tro da lógica escravista reconhecendo todo o seu rigor,


mas sem deixar de evidenciar que os cativos soube-
ram agenciar formas de conquistar sua liberdade ou
melhorar as condições de seu cativeiro.4
Ao enveredar pela historiografia dos sertões do Rio
Grande do Norte, mais precisamente pelos estudos dedi-
cados ao Seridó Potiguar, outras peculiaridades nas dis-
cussões sobre a escravidão norte-rio-grandense. Existem
os estudos que tenderam a considerar que o tratamento
dado aos escravos não poderia ser o mesmo dispensado
aos cativos do litoral (MACÊDO, 1998, p. 32) consideran-
do que, no sertão, os escravos viviam em uma maior plas-
ticidade.5 Outros estudos consideram os cativos apenas
como mão de obra quantificável, sem refletir sobre suas
formas de ação.6 E pesquisas mais recentes que começam
a apresentar que os cativos da região do Seridó como su-
jeitos atuantes em suas vidas, considerando os conflitos,
negociações e imposições havidas entre senhores e escra-
vos, como observado no sistema escravista dos grandes
centros como Rio de Janeiro e Bahia (ARAÚJO, 2000).7
Nesse sentido, o texto que ora apresentamos
insere o escravo da Comarca do Príncipe - atual re-
gião do Seridó Potiguar - na condição de seres ati-

⁴ Essa perspectiva sobre a escravidão começa a ser difundida no Rio Grande


do Norte a partir dos anos 1980, com a repercussão e estudos realizados
por Sidney Chalhoub e Sílvia Lara. Expressão dessa influência é o trabalho
de Claudia Borges (BORGES, 2000), que enfatiza a condição do escravo en-
quanto sujeito histórico.
⁵ Ao longo de novas pesquisas por Muirakytan Macêdo (MACÊDO, 2000),
começa a se evidenciar que o sistema escravista da região do Seridó foi
bem mais complexo. E que os cativos do Seridó não viviam em uma har-
monia como havia colocado Cascudo (CASCUDO, 1984). Ao contrário, es-
tavam inseridos no regime escravista em meio a conflitos e negociações.
⁶ Podemos citar a dissertação de Regina Mattos (MATTOS, 1985) que faz
uma longa pesquisa sobre a população do sertão do Seridó e apresenta os
cativos enquanto mão de obra integrada aquela sociedade.
⁷ Como pesquisas que começam a despontar com o escravo na
condição de sujeitos ativos e atores de seus destinos têm as pesquisas
de: Cláudia Borges (BORGES, 2000), Michele Lopes (LOPES, 2001) e
Ariane Pereira (PEREIRA, 2014).

128
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

vos que souberam lutar por sua liberdade mesmo


estando em situação de cativeiro.8 Assim, entende-
mos que os cativos da dita jurisdição, mesmo estan-
do nos sertões, tiveram consciência em forjar lutas
por sua liberdade e promover estratégias para que
pessoas livres – brancas e de cor – os ajudassem em
seu intuito de conquistar a emancipação. Mas, quem
eram os escravos da Comarca do Príncipe?
No ano de 1872 havia um número considerá-
vel de escravos na Cidade do Príncipe – era uma das
cidades mais importantes da Comarca do Príncipe –
representando 10,1% da população total, enquanto
a livre totalizava 89,8% (PEREIRA, 2014, p. 65).9 Po-
deríamos pensar que existiam poucas pessoas cati-
vas na dita cidade, no entanto, quando ponderamos
que essa era uma área que tinha sua economia base-
ada na pecuária e agricultura e que não demandava
uma grande quantidade de braços escravos para ati-
vidades laborais, esse coeficiente torna-se expressi-
vo e representativo. Além do mais, temos de refletir
também que os escravos dos sertões estavam inse-
ridos na lógica do tráfico interprovincial e sofriam
a mortalidade devido aos momentos de seca (MAT-
TOS, 1985). Em épocas de estiagem, os escravos do
sertão eram vendidos para outras províncias como
forma dos proprietários adquirirem recurso para
sua sobrevivência e diminuir o número de pesso-
as que tinham de alimentar. Por isso consideramos
que a quantidade de mão de obra escrava foi signifi-
cativa na Comarca do Príncipe.
⁸ Comarca do Príncipe ou, como era conhecida nos primórdios, Comarca do
Seridó, estendia sua ação da Vila do Príncipe (atual Caicó) à Vila do Acary
(atual Acari). Nesse caso, trabalhamos com fontes judiciais que atendiam
as cidades do Seridó Potiguar nos dias de hoje.
⁹ Uma das leis que podemos citar é a Lei de 1831, que proibiu a entrada de
negros africanos no Brasil. Outro exemplo é a Lei de 1871, que determi-
nava que a partir dessa data todas as crianças nascidas de ventre cativo
seriam consideradas livres.

129
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

Os cativos da Comarca do Príncipe estavam in-


seridos como mão de obra nas atividades citadinas,
mas desempenhavam principalmente atividades no
meio rural, no setor agropecuário (PEREIRA, 2014, p.
66-69). Nesse caso, os cativos eram empregados nos
serviços que seus senhores necessitavam ou nas ativi-
dades secundárias que a demanda agropecuária preci-
sava, tais como: construção de currais, transporte do
gado de um pasto para outro, serviços domésticos ou
na vigilância dos animais.
Os escravos também atuavam em atividades
consorciadas, como por exemplo, a criação de ani-
mais de pequeno porte: cabras, carneiros, galinhas
e agricultura (FERREIRA, 2005, p. 36-37). Logo, não
é impensável que esses cativos passaram a agenciar
meios que viessem a melhorar as condições seu ca-
tiveiro. Dentro dessa lógica, os cativos da Comarca
do Príncipe souberam forjar espaços de negociações
com seus senhores e obtiveram a permissão para
possuir pecúlio – algum tipo de bem que os escravos
adquiriam e administravam para a compra de sua li-
berdade – e um dos bens de maior prestígio na época
era o gado (MACÊDO, 1998).
A partir da aquisição de bens é possível arra-
zoar que os escravos tinham mais possibilidades de
conquistar sua liberdade, tendo em vista que, com o
pecúlio, o cativo tinha condições mais favoráveis para
comprar sua liberdade, pois a capacidade de pagar por
sua alforria era uma situação importante a ser consi-
derada pelo juiz que viesse a julgar os pedidos de liber-
dade. O que podemos deduzir é que os escravos soube-
ram forjar espaços de negociações com seus senhores,
mesmo estando dentro da lógica do sistema escra-
vista, em um cotidiano de trabalho e de submissão.
Os cativos estavam aprisionados ao seu senhor pelo
direito à propriedade, entretanto, souberam exercer

130
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

sua autonomia e agiram como sujeitos de suas histó-


rias, pressionando o sistema por dentro e melhorando
sua condição de vida no cativeiro, ou até mesmo con-
quistando sua liberdade.10 Para tal, os escravos não
mediam esforços e lutavam com o que dispunha para
atender aos seus objetivos.

A busca pela liberdade: acionamento


da justiça pelos cativos

O sistema escravista funcionava por meio de


um complexo conjunto de práticas, as quais exigia a
negociação entre senhores e escravos. Assim, os ca-
tivos da Comarca do Príncipe estavam inseridos na
dialética de acordos estabelecidos entre as partes, haja
vista que os campos abertos e a tangência de gado de
um pasto a outro, sem o olhar cuidadoso de um agente
senhorial, exigia que os cativos desfrutassem de algu-
ma liberdade de movimento, que convivia com a preo-
cupação constante de intentarem uma fuga.
Neste caso, em vista da importância das ativi-
dades econômicas desenvolvidas no campo e os se-
nhores de terras reconhecerem os escravizados como
sujeitos com interesses próprios e capazes de ações
autonômicas, quando pressionados, os senhores es-
tiveram abertos à negociação para que os escravos
não se revoltassem e fugissem. Nesse sentido, fizeram
concessões aos escravos, possibilitando que cultivas-
sem para si um roçado e até criassem alguma peça de
gado (GUIMARÃES, 2009, p. 29).
Esta flexibilização significava para os senhores
uma forma de diminuir a pressão dos cativos contra
o sistema, um incentivo à acomodação servil, assim
10
Um exemplo claro da autonomia escrava foi à “brecha camponesa”, na
qual os cativos conseguiram conquistar o direito consuetudinário, poden-
do cultivar sua roça, ter alguma criação para seu próprio benefício, ou seja,
reter o usufruto para a compra de sua liberdade, ou de outrem.

131
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

como uma forma de baratear os custos com a sobrevi-


vência dos escravos, dado que a Comarca do Príncipe
se situava em uma área que enfrenta o problema da
seca e a falta de alimento nos períodos de estiagem.
No entanto, a economia autônoma dos escravos deve
ser compreendida para além de uma concessão, mas
também como resultado das lutas que os cativos tra-
varam contra os senhores para conseguir certa liber-
dade dentro do sistema escravista.
Na Comarca do Príncipe foi possível verificar
que o costume do escravo acumular pecúlio era re-
corrente. Nos inventários post-mortem essa situação
torna-se evidente, uma vez que havia senhores que
morriam deixando dívidas com seus escravos. A do-
cumentação da época também mostra cativos que
recorriam à justiça alegando que tinham bens sufi-
cientes para a compra da liberdade (MATTOS, 1985,
p. 124-125). Logo, podemos pensar que os escravos
poderiam conquistar sua liberdade por meio de um
acordo com seu senhor, ou seja, se o proprietário
estivesse devendo ao cativo, aquele poderia conce-
der-lhes a liberdade em troca dos bens já adquiridos,
provavelmente como retribuição pela prestação e
determinados serviços. Esses seriam casos que fica-
riam longe de nosso olhar de historiador, pois esta-
mos nos referindo aos acordos verbais estabelecidos
entre senhores e cativos. Mas pela documentação
de base jurídica disponível para pesquisa, podemos
averiguar a ação dos cativos da Comarca do Príncipe
recorrendo à justiça em busca de sua liberdade e ale-
gando possuir bens para pagar por ela.
No dia 16 de janeiro de 1885, na Comarca do
Príncipe, o senhor José Herculano Beserra Lima re-
correu à justiça na condição de curador da escrava
Andressa, ao impetrar uma ação de liberdade junto
ao Juiz de Órfãos da Cidade do termo da Cidade do

132
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Jardim, para que este notificasse ao senhor Manoel Al-


ves de Farias, o proprietário da cativa, a necessidade
de que ele estipulasse o preço da escrava, em vista que
esta possuía pecúlio para a compra de sua liberdade,
conforme o documento a seguir:

Diz o curador nomeado para representar em juízo


a escrava Andresa, com 45 anos de idade, de pro-
priedade do Senhor Manoel Alves de Farias, que,
havendo a dita escrava apresentado [em] juízo pe-
cúlio suficiente para a sua liberdade, se torna pre-
ciso que Vossa Senhoria digne marcar dia, lugar, e
hora para se proceder a avaliação da referida escra-
va, com citação do senhor da mesma, afim de se
louvar em peritos para o fim acima mencionado.

E presente a mesma é ela presente porque cada


um deles a conhecia a mui muitos [sic] anos e que
avaliação ou entendiam em suas consciências
ter ela pequeno valor por ter idade maior de qua-
renta anos pelo que disse o arbitro Felinto Elysio
que dava a mesma o valor de duzentos mil reis, e
o arbitro dado pela libertanda o capitão Rodrigo
Junior disse que dava a mesma o valor de cem mil
réis. Em presença do desacordo em que cairão os
árbitros houve o Juiz na forma da lei de [ilegível]
como terceiro arbitro para concordar com um
dos dois arbitramentos o Reverendo Vigário Luis
Ignacio de Moura a quem mando que se notifique
para comparecer desde já neste juízo o mesmo
desacordo (LABORDOC/PD/Cidade Jardim/Cx:
453/1885).11

O curador José Herculano Beserra Lima não era


uma pessoa que desconhecesse os trâmites legais para
11
O documento encontra-se no Laboratório de Documentação Histórica
do CERES/Caicó, optamos por referenciar da seguinte maneira: Labora-
tório de Documentação Histórica (LABORDOC), Processos Diversos (PD),
Caixa (Cx), acrescentando ainda o nome da cidade e o ano. Assim temos:
LABORDOC/PD/[nome da cidade]/Cx. 453/1885 optamos por mencionar
dessa forma pois, no LABORDOC, é assim que se identifica a localização da
documentação.

133
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

o ajuizamento do preço da escrava Andresa, e tratou


de solicitar de imediato que o Juiz da Comarca do Prín-
cipe determinasse o lugar, o dia e a hora para que acon-
tecesse a avaliação da dita escrava. Nesse caso, verifi-
ca-se que o senhor Lima tinha pressa para que o preço
fosse estipulado e a cativa conquistasse sua liberdade.
Fato é que não sabemos qual a natureza da relação en-
tre a cativa Andresa e seu curador, mas aquele estava
determinado a livrá-la do cativeiro. Por esse caso po-
demos perceber certo grau de astúcia, pois uma escra-
va conseguiu que um homem livre fosse até a justiça e
desse início a uma ação de liberdade em seu favor.
Havia também perspicácia por parte do cura-
dor, em convocar pessoas que conheciam Andresa
para avaliá-la, e que sabiam que seu valor seria bai-
xo, em razão, daquela já possuir quarenta anos, uma
idade avançada para uma cativa. Uma escrava mais
velha valia menos, pois se considerava que sua capa-
cidade de realizar trabalho duro de forma contínua
diminuía, e por isso seu valor era depreciado em re-
lação às cativas mais novas. Mesmo assim, os árbi-
tros chamados, Felinto Elysio e Rodrigo Junior, não
chegaram a um acordo em relação ao preço da cativa.
Nesse caso, o juiz recorreu ao vigário Luis Ignacio de
Moura para que pudesse avaliar a escrava e tomasse
partida por um dos valores de 100$000 ou 200$000.
O vigário foi favorável ao valor de 100$000, corres-
pondente ao valor que a cativa dispunha. Dessa for-
ma, Andresa conquistou sua liberdade tanto pela
ação de seu curador, mas principalmente pela utili-
zação do pecúlio que havia juntado.
Ser beneficiado pelos senhores com algum bem
material não era uma possibilidade restrita aos escra-
vos vaqueiros. Os escravos domésticos, principalmen-
te aquelas que trabalhavam cotidianamente e mais
próximas aos senhores, e principalmente as mulheres,

134
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

também tinham oportunidades de receber de seus se-


nhores algum tipo de bem semovente, tais como gado,
ovelhas, cavalos, galinhas, entre outros. Contudo, esse
pecúlio acumulado, não raras vezes, ficava nas mãos
de seu senhor, que assumia a responsabilidade de
guardar o bem conquistado. Assim, não era incomum
encontrar nos testamentos dívidas dos senhores para
com seus escravos (NEVES, 2012, p. 165).
O acúmulo de pecúlio pelos escravizados era
algo complexo. Se pensarmos bem, imagine um es-
cravo que possuía bens, mas, ao ser vendido, o novo
senhor não quisesse que o cativo levasse as posses
consigo como, por exemplo, algumas cabeças de
gado. Eram bens que na Comarca do Príncipe faziam
toda a diferença, contudo também podiam se tornar
um estorvo, haja vista que em momentos de estia-
gem a pastagem diminuía e não era suficiente nem
mesmo para as criações dos proprietários. Qual a
solução para esse escravo que não podia levar seus
animais? Uma solução seria esse pecúlio ficar com o
antigo senhor ou o cativo conseguir vendê-los e le-
var apenas a quantia consigo (NEVES, 2012, p. 166).
Nesse sentido, a relação senhor/escravo era per-
meada por acordos particulares, que com frequência
acarretavam tensões. Não eram incomuns que atritos
ocorressem quando havia falecimento do escravo que
possuísse algum tipo bem, ou seja, patrimônio como:
bodes, bezerros, vacas - e viesse a falecer no cativei-
ro. Quem ficaria com esse patrimônio? O seu senhor?
Algum parente próximo? Reivindicar herança legada
por escravo não era uma possibilidade irreal, sendo
verificável em uma petição de herança, em caso ocor-
rido no sertão da Comarca do Príncipe.
No dia 22 de abril de 1879, a liberta Joaquina
Theresa de Jesus recorreu ao Juiz Municipal da Cida-
de do Jardim, encaminhando uma petição de herança,

135
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

sob a justificava deque era a mãe da escrava Apollo-


nia, que havia morrido em cativeiro, deixando bens,
que julgava por direito lhe pertencerem, pois consi-
derava-se a herdeira de sua filha. Esse seria um caso
difícil para a justiça resolver, como podemos verifi-
car pelo documento a seguir:
Diz Joaquina Theresa de Jesus [ilegível] morado-
ra no Termo da Cidade d´Areia que quer justifi-
car ante Vossa Senhoria [ilegível]

Que a justificante foi escrava de Thomas Pereira


Cazumbá e sua [ilegível] morador neste Termo,
em cujo domínio pariu a escravinha Apollonia,
[ilegível]

Que tempos depois ela justificante libertou-se


ficando Apollonia no cativeiro dos seus referi-
dos senhores, passando a depois para o domí-
nio de José Casado.

Que possuindo Appollonia alguns bens dados


por uma senhora moça e outras agências, ante
de sua partida com o seu novo senhor, entre-
gou a José Pereira Mattos para fazê-los produzir,
comprando, e vendendo na intenção de formar
um pecúlio com o que se pudesse libertar.

Que Mattos na posse daqueles bens pouco pode


argumentá-los pela invasão da seca e como o
novo senhor vendendo Apollonia esta morrera,
a ela justificante compete o produto que Mattos
tiver apurado nos bens de sua filha a qual morreu
tísica no ato de embarcar no vapor. Portanto Para
Vossa senhoria que seja servido admiti a justifi-
car o deduzido, e que provocado mande passar
mandado do levantamento do produto, e – lhe
seja entregue como legítima sucessora de sua fi-
lha juntando esta e os documentos aos Autos.

136
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

[ilegível] em meu cartório presente Joaquina


Thereza de Jesus, fiz entrega da quantia de cento
e oitenta e cinco mil réis, a qual levantei do
depósito no poder do capitão José Thomaz de
Aquino Beserra, depositário que era da mesma,
a qual quantia a sobre dita Joaquina Thereza,
recebeu das minhas para as mãos dela, ficando
assim extinto o depósito e o depositante de toda
e qualquer responsabilidade, tudo em observância
e cumprimento do supro dito mandado
(LABORDOC/PD/Cidade Jardim/Cx.437/1879).

É preciso chamar a atenção para alguns fatos


relacionados a essa petição. Primeiramente, Joaqui-
na Theresa de Jesus era liberta, moradora na Cida-
de de Areia, Província da Paraíba, mas para intentar
seu objetivo de requerer os bens deixados por sua
suposta filha Apollonia, veio até a Cidade de Jardim,
na Província do Rio Grande do Norte, jurisdição da
Comarca do Príncipe. Não sabemos se Theresa de Je-
sus acreditava que seria mais fácil comprovar a in-
formação de que era a mãe de Apollonia por meio
de testemunhas, assim optando por encaminhar a
petição no lugar em que viveu e teria parido a dita
escravinha. Pode ser que a escolha da entrada nos
trâmites legais na dita jurisdição se justificasse pela
manutenção de uma rede de ligações naquela locali-
dade, que lhe ajudaria a solucionar o caso.
Fato é que Joaquina Theresa de Jesus afirmava
categoricamente que havia conseguido sua liberdade,
entretanto, foi embora daquele lugar e a suposta filha
Apollonia continuou escrava dos senhores Cazumbá.
Anos mais tarde, a filha teria sido vendida para José
Casado, mas seus bens teriam ficado a cargo de uma
terceira pessoa de nome José Pereira Mattos, que tinha
a responsabilidade de fazer os bens prosperarem. A
partir daí, já podemos observar que tanto Apollonia
quanto sua mãe contaram com pessoas que as ajuda-
ram a manterem cabedais, talvez com o objetivo que

137
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

um dia fossem revertidos para sua liberdade. Ade-


mais, mesmo em cativeiro as duas mulheres sabiam
a quem recorrer para que os bens semoventes progre-
dissem. Ou seja, a escrava Apollonia foi vendida, mas
pôde escolher com quem deixar seus pertences. Isso
nada mais era que resultado das pressões e negocia-
ções existentes entre senhores e escravos dentro do
sistema escravista dos sertões do Rio Grande do Norte
e demonstra claramente como os cativos sabiam ad-
ministrar seus bens, indicando uma pessoa livre com
quem deveriam ficar para fazê-los prosperar.
A infelicidade de Apollonia, no entanto, foi
morrer tísica – expressão usada para se referir às
pessoas que morriam de tuberculose –antes de con-
quistar sua liberdade. Contudo, a escrava havia dei-
xado bens e sua suposta mãe estava requerendo o pa-
trimônio deixado. A questão não seria simples, pois
Theresa de Jesus teria de comprovar que realmente
era mãe de Apollonia. Para sanar as dúvidas quanto à
maternidade, o Juiz da Comarca do Príncipe, passou
a arrolar astestemunhas, em um total de três, que
confirmaram Theresa de Jesus ser a mãe de Apollo-
nia. Ademais, serviu como fonte comprobatória da
legitimidade de parentesco o livro de matrícula dos
escravos, no qual se confirmou que Apollonia era fi-
lha de Joaquina Theresa de Jesus. Nesse caso, como
não restava dúvida, o juiz determinou que fosse pago
à Theresa de Jesus a quantia de 185$000 apurados da
venda do pecúlio de Apollonia.
A partir do caso particular de Joaquina Theresa
de Jesus e sua filha Apollonia, percebemos claramente
as ambiguidades do sistema escravista. Afinal, como
um escravo, que era em tese uma “coisa” (proprie-
dade de outrem) poderia possuir bens? Como se não
bastasse, adquirira o direito de transmitir seus bens à
herdeira direta? Uma das questões que podem ser pen-

138
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

sadas com respeito a essa posse de bens, diz respeito


às lutas que os escravos vinham travando contra o po-
derio senhorial, na busca por melhores condições de
cativeiro e mesmo por sua liberdade (MATTOS, 1994,
p. 140). Contudo, a questão pode ser problematizada
para além desses apontamentos. Neste caso, o escravo
é entendido como pessoa que estava apta a adquirir e
exercer direitos, mas como, se não possuía liberdade?
Como bem analisa Keila Grinberg, havia uma
multiplicidade de formas assumidas pelo sistema es-
cravista no Brasil do século XIX, no qual este não dava
mais conta de considerar o escravo somente como
uma “coisa” (GRINBERG, 2001). Segundo essa histo-
riadora, havia a urgência de escrever o Código Civil,
no entanto, como os escravos no Brasil eram consi-
derados juridicamente tanto pessoas quanto coisas,
não sendo incomum passar de uma situação para ou-
tra, inviabilizava-se a elaboração de um Código Civil
(GRINBERG, 2001, p. 53). Logo, era mais viável deixar,
em alguns casos, o costume prevalecer, do que estabe-
lecer um código que não abrangesse as particularida-
des de todas as experiências vivenciadas no Império
(GRINBERG, 1998). Se acolhesse o escravismo, o códi-
go civil colocaria em vigência leis que em vez de ajudar
a resolver os problemas, poderiam agravar as polêmi-
cas (GRINBERG, 2008, p. 56).
Portanto, enquanto a escravidão existisse, o
Código Civil não poderia ser efetuado. Optou-se por
abrir mão da regulamentação do direito civil e dei-
xou-se que as negociações entre senhores e escravos
ficassem a cargo dos mesmos, já que estes últimos,
na prática, já vinham forçando a ampliação das mar-
gens de negociação com seus senhores (GRINBERG,
2001). Assim, era comum que as relações entre se-
nhores e escravos fossem se ajustando por meio de
práticas costumeiras, e quando o costume não era

139
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

respeitado, recorria-se à justiça para que o caso fos-


se julgado e proferido uma decisão judicial. Para
resolver esses casos, era mais aceitável que fossem
criadas leis específicas que versassem sobre a condi-
ção escrava, como era o caso da Lei de 1871.
A Lei de 1871 previa que, com a morte do es-
cravo, no caso de possuir bens, metade seria desti-
nada ao cônjuge (se houvesse), e a outra parte aos
herdeiros. Caso não existisse quem reclamasse esses
bens, seriam destinados ao Fundo de Emancipação.
Nesse caso, mesmo não existindo o Código Civil, a
transmissão dos bens estava assegurada em lei, que
reconhecia a legitimidade de uma prática que se
tornara costumeira nas décadas anteriores. Logo,
era legítimo que a liberta Joaquina Theresa de Jesus
requeresse judicialmente a posse dos bens deixados
por sua filha, a escrava Apollonia.
Mesmo tendo alguns direitos assegurados
por lei, os escravos tinham consciência do cálcu-
lo político necessário de ser realizado no momen-
to de recorrer à justiça em busca de sua emanci-
pação ou conquistar um direito assegurado pela
lei. Num claro desafio ao direito senhorial, havia
cativos que recorriam aos ditames da lei por não
reconhecer mais a legitimidade de seu cativeiro.
Nesse caso, conseguiam um curador para que os
representasse perante a justiça (AMARAL, 2012,
p. 112). Fatos como esse são sintomáticos de que
as rédeas do sistema escravista não estavam sob
pleno domínio senhorial. Ademais, caso os cativos
não conseguissem seu intuito de conquistar a li-
berdade por meio da justiça, poderia ir em busca
de seus objetivos por meio do crime.

140
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

O crime pela liberdade:


Honorata em ação

Para compreendermos o Código Criminal do


Brasil é preciso inseri-lo na lógica do sistema escravis-
ta, considerando seus desdobramentos. Primeiramen-
te temos que refletir que o escravo era tido enquanto
um bem pertencente a outro, embora dispusesse de
alguns direitos juridicamente assegurados. De todo
modo, sendo propriedade de alguém, estava sujeito à
vontade de seu senhor. Sendo simultaneamente coisa
e pessoa, no Código Criminal do Império (1830), o es-
cravo era reconhecido como sujeito de ação, ou seja,
um ser capaz de agir por vontade própria e passível
de responder pelo cometimento de crimes. No citado
Código havia dois artigos destinados especificamente
aos cativos (FERREIRA, 2005, p. 82). O art. 113 trata-
va do crime de insurreição e o art. 60 discorria como
seriam as penas aplicadas aos cativos. Claramente per-
cebemos a preocupação do Estado em reforçar a domi-
nação do senhor sobre o escravo.
O crime é um ato social que foi gestado histo-
ricamente e, sendo assim, é revelador de concepções,
comportamentos e posturas constituídas a partir da
vivência da escravidão (LARA, 1988, p. 22; MACHADO,
1987, p. 60).Sua repercussão extrapolava a relação en-
tre senhor e escravo e atingia uma ampla rede de teias
sociais, marcada essencialmente pelas conexões entre
diferentes grupos, de maneira que, embora proprieda-
de de um senhor, o escravo mantinha contatos com
escravos de outros senhores, com indivíduos livres ou
libertos, com os quais se associava para as mais diferen-
tes práticas, inclusive para o cometimento de crime.
Assim também ocorria na Comarca do Prínci-
pe, onde houve escravos que recorreram à violação da
lei para atingir o intuito tão almejado de conquistar

141
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

a liberdade. Por vezes, essas violações da lei eram pre-


cedidas por outras tentativas de conseguir a liberdade,
utilizando os meios que a justiça disponibilizava. Por
meio de um caso particular, da escrava Honorata, pode-
mos constatar um caso que segue essa lógica, em que o
escravo primeiramente tenta conquistar sua liberdade
por meios legais e, vendo seus intentos frustrados, re-
corre a medidas extremas. (LABORDOC/FCC/1ºCJ/AC/
Cx:167/1874). A cativa tentou se tornar livre por meio
de uma ação cível alegando que estava em um cativeiro
injusto, mas como não conseguiu, optou por perpetrar
um crime para atingir sua emancipação.
Honorata nascera em 1847, sendo filha de Ma-
ria José, que neste período possuía liberdade imperfei-
ta – significava que a escrava gozava de meia liberdade
- dado ao fato de que, quando Maria José morava com
seu antigo senhor, Manoel Caetano Pereira, tinha a
posse de 18 a 20 cabeças de gado. Ao ser vendida para
Manoel Monteiro Pereira, esse recebeu a escrava e seus
bens e pagou a seu antigo senhor Manoel Caetano com
o gado de Maria José. Nesse caso, o gado pertencente
à Maria José serviu como moeda de pagamento entre
Manoel Monteiro Pereira e Manoel Caetano Pereira,
entretanto, para Maria José significou a compra de sua
meia liberdade ao senhor Manoel Monteiro Pereira,
dado vista que, aquele utilizou dos bens da cativa. A
partir de então, ficava a gozar de meia liberdade, como
informa sua ação de liberdade. Neste caso, quando Ho-
norata nasceu herdou de sua mãe, segundo o Direito
Romano – “partus seguitur ventrem” – a condição de
meia liberdade em procedência do ventre escravo. Em
sua condição de cativa, anos mais tarde, seu senhor
Manoel Caetano lhe ofertou como dote ao seu genro
Silvino Dantas Correia de Góes.
Honorata não reconhecia seu cativeiro e ale-
gava que este era injusto porque ao nascer, sua mãe já

142
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

possuía meia liberdade. Na experiência que criou no


cativeiro considerava-se livre, haja vista que já havia
trabalhado muitos anos para seu senhor, o suficiente
para ressarcir o restante de seu valor. Tendo três filhos
– José, Manoel e Maria – avaliava que tanto ela quanto
sua prole estariam livres. Com este pensamento, Ho-
norata veio para o Termo do Príncipe para solicitar na
justiça sua liberdade e de seus filhos, como podemos
verificar no documento abaixo:
Ação de liberdade – Autora Honorata e seus filhos
menores – por seu curador Doutor Antonio Alla-
dim de Araujo – Réu – Silvino Dantas Correia de
Goes, por seu Advogado Doutor Manoel José Fer-
nandes O Escrivão Valle Ano do Nascimento de
Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e se-
tenta e quatro, aos dezenove dias do mês de Março
do dito ano nesta Cidade do Príncipe, em meu Car-
tório autuou petição articulada contadas as suas
penas (inclusive?) a inquirição dita testemunha a
que tudo adiante se vê do que fiz este autuamen-
to. Eu Ignacio Gonçalves Valle Escrivão o escrevi =
Petição Ilustríssimo Senhor Doutor Juiz Municipal
do Termo do Príncipe Diz a liberta Honorata, filha
da liberta Maria José, natural de Patos, e hoje com
domicilio neste termo para onde veio mostrar sua
liberdade, e onde pretendi morar, que julgando
se oprimida naquele lugar por um senhorio que a
tem constrangido em um cativeiro injusto desde
1847 quando nascera até a presente, veio para ju-
ízo deste Termo, onde se acha em depósito a fim
de quer possa (...) provas que servirão a (...) de sua
mãe, provar a sua liberdade (LABORDOC/FCC/1º-
CJ/AC/Cx:167/1874.).

Com base no documento acima já podemos fa-


zer algumas considerações sobre a visão de mundo da
escrava Honorata. Em primeiro lugar, a cativa acionou
a justiça quando veio para a jurisdição do Príncipe,
provavelmente recorrendo à rede de solidariedade que
conseguiu ativar, tendo em vista que seu curador era

143
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

“Doutor Antonio Alladim de Araujo” e como “Advogado


Doutor Manoel José Fernandes” ambos a ajudariam em
seu objetivo emancipatório, como já estavam fazendo.
Como era de práxis nesses casos, o Juiz notifi-
cou o senhor da cativa para informar sobre a ação de
liberdade e em seguida colocou Honorata e seus filhos
– José, Manoel e Maria – em depósito na casa do senhor
Antonio Pereira Monteiro, que tinha a responsabilida-
de de apresentar à cativa e os filhos quando a justiça
requisitasse. A partir daí, o curador e o advogado pas-
saram a reunir provas e testemunhos que viessem a
contribuir para a liberdade dos cativos.
No dia 13 de junho de 1874 o juiz expediria sua
sentença, na qual considerava, segundo as provas jun-
tas, que a mãe de Honorata, Maria José, realmente ha-
via comprado sua liberdade no ano de 1863. No entan-
to, o efeito da liberdade não poderia ser retroativo a
Honorata que havia nascido na década de 1840, pois o
filho seguia a condição da mãe e, naquela época, a mãe
de Honorata ainda era escrava. Além do mais, o juiz
alegou que a ação de liberdade se encontrava irregu-
lar porque seu senhor morava no Termo da Paraíba do
Norte e como por isso a ação deveria ter sido intentada
naquela jurisdição. Contudo, Honorata poderia recor-
rer ao pleito de liberdade com uma nova ação na jus-
tiça da Paraíba do Norte. Fato é que, estrategicamente
a parte representada pelo senhor de Honorata apelou
no mesmo dia ao Tribunal das Relações de Fortaleza.
O Tribunal das Relações de Fortaleza, no mês
de agosto de 1874, se pronunciou prontamente a favor
do bem senhorial e considerou que Honorata e seus fi-
lhos – Maria, José e Manoel - eram legitimamente per-
tencentes ao senhor Silvino Dantas Correa de Goés e
como tal deviam ser levados ao depósito dos escravos
e entregues ao dito senhor. Para tanto, encarregou o
Juiz Municipal da Comarca do Príncipe que cumprisse

144
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

sua decisão, que seguia em documentos junto para a


dita Comarca. Como o Tribunal das Relações de Forta-
leza foi enfático a promover ganho de causa ao senhor
de Silvino Goés, ficaria Honorata para sempre em um
cativeiro que considerava injusto?
Honorata era uma cativa que já tinha discer-
nimento das artimanhas do cativeiro e do que fazer
para conquistar a liberdade. Se lembrarmos, Hono-
rata, sua mãe e a prole haviam vindo para o Termo
do Príncipe, por meio da fuga e esta foi à forma que
Honorata encontrou para conseguir viver como pes-
soa livre, longe do senhor, já que os meios legais não
haviam sido benéficos a seus intentos de mudar efe-
tivamente sua condição jurídica.
Diante do parecer desfavorável, Honorata con-
seguiu novamente agenciar uma rede de solidariedade
que a ajudou a fugir para a Província do Rio Grande do
Norte e evitar o cumprimento da sentença (LABORDOC/
FCC/1ºCJ/AC/Cx:167/1874). Já corria o ano de 1876
quando a dita cativa fugiu, com a ajuda de seu tio Manoel
e dos irmãos Pereira de Araújo – um Promotor e o outro
Comandante Superior. A decisão foi arriscada. Primei-
ramente, fugir com toda a família escrava tornava-se
mais difícil devido à dificuldade de manter segredo so-
bre o movimento dessa quantidade de pessoas, havendo
a possibilidade de ser descoberta mais facilmente (CAS-
TRO, 1995). Com a ajuda dos irmãos Pereira de Araújo,
os filhos da cativa ficariam na casa do Promotor e este
enviou uma carta a seu irmão Joaquim Araújo para que
encaminhasse a cativa para “capital”. Fugir em uma ci-
dade pequena era difícil, mas não impossível, quando se
contava com o apoio de gente de reconhecimento social,
como era o caso dos irmãos citados.
Honorata conseguiu seu objetivo, fugiu e con-
quistou sua liberdade, pois segundo a nossa docu-
mentação e até o que ela nos permite saber, a escrava

145
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

jamais foi capturada. Optamos por pensar, segundo


as concepções de Silvia Lara, que quando o escravo
fugia e sumia da documentação era porque tinha con-
quistado seu intuito (LARA, 1988, p. 237). A questão
que se depreende é que Honorata foi provavelmente
bem-sucedida no cálculo político feito para o planeja-
mento de sua fuga para a Província do Rio Grande do
Norte, e especialmente para a capital, pois em um es-
paço urbano, com maior circulação e pessoas, poderia
mais facilmente passar-se por livre e criar novos laços
de solidariedades para se manter longe do cativeiro
(CHALHOUB, 1990, p. 192; ARAÚJO et al., 2006, p. 25-
33). Assim, provavelmente Honorata passou-se por
liberta, como provavelmente fizeram tantos outros
cativos da cidade do Natal.

Considerações finais

A escravidão foi uma instituição que existiu em


toda parte do mundo, mesmo que sua lógica e dinâmi-
ca varie no tempo e no espaço. Esse fato acontece em
razão da escravidão ser um processo, e não um status
(REDE, 1998), o que significa que o sistema escravista
foi moldado de diferentes formas conforme as rela-
ções estabelecidas entre senhores e escravos em cada
sociedade. Assim, a estruturação e a organização do
regime escravista variaram conforme o meio e as vi-
vências impostas por tal relação.
Considerando que essas relações se estabelecem por
meio das ações dos mais diferentes sujeitos, em nossa análise
entendemos os escravos enquanto sujeitos atuantes, capazes
de buscar melhorar sua vida em cativeiro e lutar por sua liber-
dade. Negamos a ideia de que os escravos viviam à mercê da
vontade senhorial como vítimas passivas, pois os casos aqui
estudados mostram os cativos fazendo negociações e mobili-
zando rede de apoio para a conquista de sua liberdade.

146
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Como mostramos, esses cativos sabiam das leis


que asseguravam alguns direitos em seu favor, souberam
construir espaços de negociações com seus senhores, ex-
ploraram a brecha camponesa para acumular seus poucos
bens, como era o caso do gado, principal fonte de riqueza
naquela região, além de animais de pequeno porte como
ovelhas e aves. Esse patrimônio escravo, não rara às vezes,
foi utilizado pelos escravos para comprar sua liberdade.
O empenho das pessoas livres que recorriam à justiça em
favor dos cativos mostra que estes últimos se empenha-
vam em manter relações com pessoas as quais pudessem
realmente contar, já que teriam de escolher com muito
cuidado seus curadores e representantes.
Quando os escravos não conquistavam sua liber-
dade por meio da justiça, recorriam a prática ilícitas, entre
elas a fuga. O crime tornava-se o momento extremo da
relação com os senhores, em muitos casos sendo a culmi-
nância de conflitos e negociações fracassadas. Na Comarca
do Príncipe pudemos verificar escravos cometendo crime
como último recurso para atingir sua liberdade. No caso de
Honorata vimos que, primeiramente a escrava não reco-
nhecia seu cativeiro e o considerava injusto. Dessa forma,
recorreu à justiça, mas ao não obter sucesso agenciou uma
rede de solidariedade para que empreendesse uma fuga,
que ao final se tornou bem-sucedida, considerando que a
cativa não foi mais encontrada em nossa documentação.
Assim, acreditamos que a fuja obtive êxito.
Na Comarca do Príncipe, por meio da análi-
se realizada neste trabalho, pudemos perceber que,
mesmo em uma região que possuía poucos escravos,
esses foram capazes de ações autonômicas para a
busca de sua liberdade ou melhoramento das con-
dições de seu cativeiro, fosse recorrendo à justiça
ou ao crime. De todo modo, souberam forjar alian-
ças com outros escravizados, e até com pessoas dos
setores médios, sempre com o intuito de atingir os

147
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

objetivos de seus planos e ações. O senhor podia


possuir seus corpos, mas jamais conseguiu domínio
completo sobre as mentes dos cativos.

Fontes

LABORDOC/FCC/1ºCJ/AC/Cx:167/1874.
LABORDOC/PD/Cidade Jardim/Cx: 453/1885.

Referências

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148
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149
A REVOLTA DOS FLAGELADOS
DA SECA NA COLÔNIA
AGRÍCOLA SINIMBÚ

João Fernando Barreto de Brito


Esta pesquisa se desenrolou a partir da pro-
blematização das relações de trabalho em torno do
controle dos retirantes pobres livres do sertão do an-
tigo Norte, bem como da criação de espaços discipli-
nares durante a seca de 1877, mais especificamente
no interior do Rio Grande do Norte. Nosso objetivo
foi compreender como a administração imperial e
provincial conduziram milhares de flagelados a uma
colônia agrícola fundada com o objetivo de fazê-los
trabalhar em troca de alimentos e medicamentos,
ao tempo que se utilizou de violência e coerção para
explorá-los, não obstante a miséria e penúria que so-
friam. Por outro lado, analisamos as formas de resis-
tências e negociações, ainda que desiguais (afinal de
contas o fazer historiográfico deve ter o compromis-

150
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

so também com uma perspectiva vista debaixo, quer


dizer, devemos considerar também o fazer histórico
daqueles que tradicionalmente foram ou continuam
sendo marginalizados e por vezes impedidos de dei-
xarem registros ou fontes, ou seja, de se expressarem
pelas vias oficiais ou institucionais), entre o colono
de Sinimbú e os representantes do governo, de modo
a impedir uma efetiva dominação do Estado àqueles
corpos cansados e indisciplinados.

A seca de 1877 e o trabalho livre


na província no Rio Grande Norte

Ao longo da seca de 1877 mudanças signi-


ficativas ocorreram no âmbito das políticas im-
periais, as quais trouxeram transformações signi-
ficativas, como veremos ao longo deste trabalho,
especialmente quanto às formas de controle das
populações menos abastadas do sertão de provín-
cias do Norte do Império, como a do Rio Grande do
Norte. De acordo com o historiador Gerald Green-
field, naquela ocasião Dom Pedro II nomeou um
novo ministério, composto por uma maioria libe-
ral1, e escolheu para o cargo de ministro do Esta-
do dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras
Públicas, em 5 de janeiro de 1878, o alagoano João
Lins Vieira Cansanção Sinimbú. Aquele que viria a
ser o Visconde de Sinimbú esteve empenhado em
atender a uma demanda dos senhores cafeiculto-
res: organizar e direcionar ao trabalho nas lavouras
a mão de obra livre no Brasil.
¹ Os grupos tidos como liberais faziam oposição aos grupos intitulados de
conservadores. Alguns historiadores se preocupam em demarcar as dife-
renças entre esses grupos, no entanto o que nos interessa neste momento
é saber que ambos faziam parte de uma mesma classe senhorial, amparada
sob a base da propriedade da terra, uns preocupados com a manutenção
da escravidão africana, outros com a garantia de exploração da força de
trabalho livre (MATTOS, 2004).

151
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

O planejamento do ministério de Sinimbú tinha


por objetivo solucionar o problema da “falta de braços”
nas grandes lavouras da nação por meio do controle
do trabalhador livre para garantir a disponibilidade
de força para o trabalho nas grandes fazendas. Tais
ideias ganhavam ânimo na província do Rio Grande
do Norte, assolada pela seca, sendo apoiada pelos jor-
nais locais que viam na imposição de condições para a
doação de socorros uma estratégia de controle eficaz,
onde o trabalhador receberia os gêneros apenas como
pagamento pelo seu trabalho e não mais como obra de
caridade. Neste âmbito, no dia 2 de novembro de 1878,
o Correio do Natal estampava em sua primeira página
um longo texto que dissertava acerca das medidas de
estímulo ao trabalho que o governo provincial deveria
adotar para dar utilidade ao grande número de retiran-
tes ociosos que se chegavam do interior da província
às cidades-refúgio – como Macau, Mossoró e Natal. O
referido jornal informava com alegria que o presidente
da província norte rio-grandense, o
Sr. Dr. Montenegro acaba[va] de empregar ou utili-
zar em Macau e Mossoró essa força desperdiçada em
obras públicas e reclamadas por aquelas localidades,
e que ordenará para aqui o transporte dos braços
disponíveis para empregá-los no serviço da estrada
de ferro para Nova Cruz, e de outras obras de público
interesse (Correio do Natal, 2/11/1878, p. 1).2

Percebamos que a repressão ao ócio e a explora-


ção da mão de obra livre impõem-se como o grande de-
safio a ser vencido. No entanto, para a população, não
se tratava de caridade, mas de direitos de cidadania,
de medidas que garantissem o direito social daqueles
que pagavam seus impostos – dinheiro recolhido pelo
² Os jornais utilizados neste trabalho foram obtidos através da consulta
no site da Hemeroteca Digital Brasileira, um projeto da Fundação Biblio-
teca Nacional - RJ, disponível em: < http://memoria.bn.br/hdb/periodico.
aspx>. Acesso em 20 de maio de 2019.

152
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

governo e que deveria ser usado em prol do bem co-


mum. Desta forma, no entendimento dos flagelados, o
recebimento dos gêneros concedidos pelo Estado não
era visto como esmola, mas como direito adquirido.
O governo, por sua vez, valia-se da grande quan-
tidade de pessoas reunidas nas principais cidades da
província para arrastá-las ao trabalho. Lembremos
que esta era, desde o início dos anos de 1850, uma de-
manda requerida pelos produtores de açúcar do litoral
leste do Rio Grande do Norte, que reclamavam dos pre-
ços das jornadas diárias cobradas pelos trabalhadores
livres, bem como da recusa destes em se empregarem
pelo pagamento proposto pelos senhores dos enge-
nhos. Assim, a seca de 1877 representou para este gru-
po de proprietários rurais a grande oportunidade de se
dirigir muitos destes trabalhadores e trabalhadoras à
lavoura, por um preço absurdamente baixo, trocando
um punhado de farinha pelo emprego de uma pessoa
pobre livre no trabalho duro nas plantações de cana de
açúcar, aproveitando-se do estado de penúria por qual
passava a maior parcela da população da província.
A decisão de não socorrer a todos os desvalidos
pela seca de 1877, limitando-se a distribuir os preci-
sos auxílios para aqueles que eram incapacitados de
trabalhar (idosos, crianças e portadores de limitações
física ou mental), negava o direito da outra parte afe-
tada pelo flagelo da seca. Assim, o modelo paterna-
lista de governo parecia estar dando lugar a um novo
modelo, influenciado por princípios de individuali-
dade, caracterizado por um mercado autorregulado,
uma nova ideologia da economia que apontava para a
adoção de políticas que visavam disciplinar o homem
pobre livre ao trabalho regulado, do ordenamento do
tempo de produção sob a vigilância do empregador.
Justamente naquele momento, o ministério
Sinimbú voltou-se às políticas de trabalho destinadas

153
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

aos retirantes. Segundo Gerald Michel Greenfield, “en-


tre as múltiplas iniciativas – obras públicas como es-
tradas, ferrovias e construção de açudes e represas – a
ideia do reassentamento de retirantes através da cria-
ção de núcleos agrícolas, ou colônias, teve forte apelo”
(GREENFIELD, 1997, p.8), e ganhava respaldo entre as
autoridades locais mediante a situação de crise viven-
ciada pela província, principalmente no ano de 1878.
Deste modo, podemos dizer que Eliseu de Souza
Martins, presidente da província do Rio Grande do Nor-
te, em conformidade com a política ministerial impe-
rial, viu na terrível seca em 1878 não apenas a oportuni-
dade de amenizar os problemas que vinha enfrentando
com a oposição política local, mas também no que diz
respeito ao controle sobre o tempo de trabalho do ho-
mem livre – conferindo o valor moralizador e mantene-
dor da ordem pública ao trabalho, ao trabalho orques-
trado pela elite governante – com a experimentação da
criação de um núcleo agrícola, a colônia Sinimbú3, que
chegou a possuir por volta de 6 mil pessoas.

A criação da colônia

Um mês antes de se fundar a colônia agrícola,


abriu-se um crédito de 500 mil contos de réis por Eli-
seu de Souza Martins, o maior crédito até então solici-
tado no decorrer de toda seca de 1877. Supomos que
tal verba foi devidamente planejada para a construção
do referido núcleo agrícola, haja vista a pretensão do
presidente em concentrar as medidas de auxílio e in-
centivo ao trabalho agrícola em um só espaço.
Em dia 1 de julho de 1878, Eliseu de Souza Mar-
tins comunicou ao inspetor da tesouraria da fazenda,
Manoel Pereira d’Azevedo, que no dia 31 de maio no-
³ O nome da colônia foi atribuído em homenagem ao então ministro dos
ministros da época, João Vieira Lins Cansanção Sinimbú, futuro Visconde
de Sinimbú.

154
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

meara “Arsênio Celestino Pimentel administrador da


colônia de socorro Sinimbú”. (ANRJ, maço IJJ9212,
1878, p. 69) Arsênio Pimentel esteve autorizado a de-
sempenhar muitas funções, solicitar fretes para en-
trada e saída de gêneros alimentícios, fiscalizar os ar-
mazéns e até atuar como médico dos colonos.
O curioso é que antes disso, o citado diretor
recebeu uma carta datada de 28 de maio de 1878do
próprio Eliseu Martins – que por certo já o considerava
diretor da colônia, mesmo este sendo nomeado ape-
nas em 1 de julho – a fim de que procedessem algumas
ações com o objetivo de fundar a Colônia Sinimbú, a
qual deveria servir ao “trabalho e a ocupação hones-
ta dos retirantes” (ANRJ, maço IJJ9212, 1878, p. 52).
Como não encontrou “nenhum livro ou papel da Co-
lônia e ato de sua instalação” (ANRJ, maço IJJ9212,
1878, p. 52), a citada comissão instituída por Manoel
Januário Bezerra Montenegro oficiou que
no intuito de fixar bem a respectiva data, interro-
gou diversos colonos, e chegou ao conhecimento
de que no dia 1º de junho o mesmo Arsênio, reu-
nindo a população emigrante que se achara no
lugar – Coroa – à margem esquerda do rio Salgado
em frente desta Capital, a conduziria para o sítio
em que se acha assentada a referida Colônia, e aí
começou a fazer derrubadas de matos, ordenan-
do o levantamento de palhoças. (ANRJ, março
IJJ9212, 1878, p. 69)

Dali os retirantes partiram para se fixarem com


suas famílias naquele lugar que recebeu o nome de
Colônia Sinimbú. Em carta, Martins recomendou que
em uma légua e meia entre Extremoz e Ceará-Mirim
fossem conduzidos os futuros colonos para a margem
esquerda do rio Mudo com a finalidade de desenvol-
ver trabalhos agrícolas, mas também de ficarem à dis-
posição para serviços de interesse geral, sendo esta a
primeira recomendação de Eliseu de Souza Martins.

155
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

(ANRJ, março IJJ9212, 1878, p. 69). Podemos ter a no-


ção de onde esteve localizada a dita colônia se observa-
mos a figura 1 abaixo. (ANRJ, maço IJJ9212, 1878, p. 69)
Figura 1 – Representação hidrográfica de Natal e
Ceará-Mirim.Adaptado de SENNA, Júlio Gomes de. Ceará-
Mirim: exemplo nacional (1938-1972) volume I.
Rio de Janeiro: Pongetti, 1974.

Observemos que Eliseu de Souza Martins es-


tabeleceu o trabalho na terra como condição/obriga-
ção para assentar flagelados e retirantes na colônia.
Isto nos possibilita afirmar que o referido presiden-
te estava colocando em prática a substituição de
medidas paternalistas pela coerção/repressão dos
retirantes ao trabalho, sob o discurso de estar trans-
formando a ociosidade em mão-de-obra. Mas esta
não foi a única medida estabelecida pelo governante
provincial com o propósito de assegurar o controle e
disciplina daqueles flagelados.
Muitas outras recomendações foram expedidas
pelo presidente Eliseu de Souza Martins à Arsênio Pi-
mentel, tais como a construção imediata de um arma-
zém, de moradias e até de um hospital pelos colonos.
O disciplinamento começava desde o alistamento de
todos os colonos e de suas respectivas famílias à de-

156
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

signação das vestimentas (reaproveitadas dos sacos


em que eram transportados os gêneros). Outro ponto
recaía sobre o controle dos hábitos, proibindo práticas
de lazer como bebida e jogatina dentro do núcleo agrí-
cola. Estabeleceu-se, por sua vez, uma polícia que con-
tava com alguns dos próprios colonos, chamados de
“inspectores de quarteirão”, imbuídos de manter a or-
dem e a regularidade dos trabalhos dentro da colônia,
fiscalizando o fornecimento e o uso de ferramentas de
trabalho, a fim de que estas não fossem extraviadas.
(ANRJ, maço IJJ9212, 1878, p. 69) Ao cabo, orientou-se
também quanto às “emergências”, as quais deveriam
ser informadas prontamente à presidência.4
Ademais, Eliseu de Souza Martins escreveu ao
ministro e secretário do Estado dos Negócios do Impé-
rio, o senhor Carlos Leôncio de Carvalho (acreditamos
que entre os meses de julho ou agosto), e comunicou
sobre a criação da Colônia “Sinimbú”, a qual estava
naquele momento em “efetivo andamento e trabalho
[...] medida tomada [...] para não deixar morrer a fome
quem realmente precisa de ser socorrido, [sendo este]
o único meio de chamar ao trabalho o mesmo povo,
aliás de índole tão de molde a entregar-se a vagabun-
⁴ Mas o que estes consideravam uma emergência? Pelas ideias expostas
ou nas entrelinhas do documento escrito por Eliseu de Souza Martins,
compreendemos que o receio do presidente esteve relacionado à ação dos
colonos, de um possível levante ou motim destes. Não devemos desconsi-
derar que o mesmo presidente presenciou várias insatisfações populares,
principalmente relacionadas a falhas das comissões de socorros, como nas
cidades de Mossoró e Macau. Neste âmbito, considerando que Sinimbú
também funcionou como um espaço de distribuição de gêneros, o temor
de uma revolta era algo real, uma vez que a direção da colônia esteve lidan-
do com a expectativa de uma vida melhor de mais de 6 mil vidas. Por isso,
Eliseu de Souza Martins acreditava que a preservação da ordem pública da
colônia dependeria do processo disciplinar dos colonos, incutindo-lhes va-
lores morais relacionados ao trabalho e a fé cristã, tidos pela elite dirigen-
te, como dignificante, no sentido de fazer do homem pobre livre do campo
norte rio-grandense – onde o trabalhador controlava sua própria rotina
produtiva – um trabalhador sob a vigilância de inspetores, os quais muni-
dos pelo tempo marcado pelos ponteiros. Arquivo Nacional do Rio de Janei-
ro – ANRJ, maço IJJ9212, Ministério dos Negócios do Interior, 1878, p. 70.

157
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

dagem. (ANRJ, maço IJJ9212, 1878, p. 70) Desta ma-


neia, fechavam-se as comissões de socorros públicos
espalhadas pela província, ao tempo que diminuía a
influência dos políticos locais.
Estabelecia-se, por sua vez, uma nova ordem
a partir de novas políticas de dominação em que o
Estado atuava como provedor das mudanças na or-
ganização das relações de trabalho, aplicando maior
disciplina ao trabalhador pobre e livre e estereoti-
pando os que resistissem ou se recusassem aos ser-
viços nas obras públicas e nas colônias agrícolas,
sendo caracterizados como ociosos e vadios, por
exemplo. Desta maneira, tais governantes preten-
deram combater de uma só vez o problema das mul-
tidões que agiam pressionando as autoridades pú-
blicas nas cidades-refúgios para onde migrou uma
grande quantidade de retirantes – distanciando-se
assim cada vez mais das antigas práticas paternalis-
tas. Mas o plano não sairia como esperado.

Conflitos na Colônia Sinimbú

Na madrugada entre os dias 15 e 16 de julho


de 1878 ocorreram fatos decisivos para o futuro
da Colônia Agrícola Sinimbú, como também para
o rumo da política norte rio-grandense. Isto por-
que nesta ocasião os colonos invadiram o arma-
zém que guardava os gêneros alimentícios e ata-
caram o diretor, que revidou a iniciativa de forma
violenta. Em algumas versões do fato, o fim era
socorrer uma criança que estaria sendo castiga-
da fisicamente pelo diretor Arsênio Celestino Pi-
mentel, enquanto outras versões informam que o
objetivo era se apoderar dos gêneros depositados
no armazém. De todo modo, os colonos revolta-
dos se uniram e invadiram o armazém, e o diretor

158
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

da colônia respondeu atirando contra estes, resul-


tando no grave ferimento de pelo menos um colo-
no, como também no suposto desaparecimento de
outro. Encurralado dentro do depósito da institui-
ção, Pimentel permaneceu no local até a manhã do
dia 16 de julho, quando foi preso pelo subdelega-
do de polícia de Extremoz, Lourenço Campos Café,
que o conduziu à delegacia da vila do Ceará-Mirim.
Em inquérito, quando os colonos foram final-
mente chamados a relatar o conflito ocorrido na noite
do dia 15 de julho, vemos surgir em primeiro plano o
confronto entre os colonos e o diretor da instituição.
Naquele momento, o promotor público acusou o dire-
tor Arsênio Celestino Pimentel de castigar com “pal-
madas o menor Manoel, filho de Manoel Pereira de
Morais, também colono” (ANRJ, maço IJJ9212, 1878,
p. 45), que teria entrado no armazém da colônia, no
intuito de arrancar seu filho das mãos do diretor. Se-
gundo o relato do promotor, nesta ocasião se travou
luta corporal entre Manoel Pereira e o diretor, da qual
o colono saíra ferido devido a um disparo de arma de
fogo efetuado pelo segundo. Diante do que fora apre-
sentado e de acordo com o referido inquérito, as tes-
temunhas foram intimadas pelo promotor público
interino, Manoel Ferreira Nobre a comparecerem ao
tribunal situado na vila de Ceará-Mirim no dia 18 de
outubro. (ANRJ, maço IJJ9212, 1878, p. 3)
Em depoimento, o colono Manoel Pereira Mo-
raes confirmou a história dos castigos sofridos por
seu filho, que levava palmadas de Arsênio Pimentel,
o qual disparou o revólver contra ele. Além disso,
respondeu que o diretor Arsênio C. Pimentel havia
“castigado com palmadas diversos colonos, atando-
-os com cordas a uma forquilha sendo esses castigos
praticados em homens, mulheres e meninos”. (ANRJ,
maço IJJ9212, 1878, p. 8) Perguntado se mais pessoas

159
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

o ajudavam a praticar tais castigos, respondeu Mano-


el Pereira de Moraes que “guardas de que sempre está
cercado o administrador auxiliam a amarrar as ditas
pessoas, sendo o castigo praticado pelo administra-
dor”. (ANRJ, maço IJJ9212, 1878, p.8)
O cabo Manoel Ferreira da Fonseca Silva e o co-
mandante Sá Bezerra Cavalcante, da força da vila de
Ceará-Mirim, também deram depoimento, e disseram
que chegaram na colônia às 5 da manhã do dia 16 de
julho, junto com o subdelegado do distrito de Extre-
moz, Lourenço Fernandes Campos Café. Esse, acom-
panhado de dez praças, deu voz de prisão ao português
Arsênio Celestino Pimentel. Segundo o depoimento, o
diretor achava-se cercado e havia imposto grande re-
sistência. As prisões de Arsênio Celestino Pimentel,
assim como de Francisco Martins de Souza, Manoel
Furtado da Silva, Manoel Lourenço Cavalcante, José
Alves Canela (conhecido como Quebra-Canela), Ho-
rácio Nunes da Silva e Francisco José Antônio, foram
declaradas como flagrante delito, por conta do tiro
que dera o diretor no colono Manoel Pereira de Morais.
(ANRJ, maço IJ1299, 1878, p. 10)
O colono de nome João Evangelista do Nascimen-
to, que havia chegado à colônia apenas há 14 dias, tam-
bém depôs sobre o episódio do dia 15 de julho, relatando
que chegou à casa em que residia o diretor por conta “do
tumulto e vozerias que ouvira ali, [e] teve ocasião de pre-
senciar o conflito de que se trata”. Segundo seu próprio
relato, ele havia se juntado a outras pessoas para tentar
resgatar uma criança que era agredida, quando ouviu
um tiro “o qual fora desfechado por Arsênio Celestino
Pimentel”, e depois outro disparado por Francisco José
Antônio. (ANRJ, maço IJ1299, 1878, p. 16)
Além disso, João Evangelista do Nascimento ne-
gou a versão sustentada por Arsênio C. Pimentel, que
em um dado momento teria dito que “tudo aquilo era

160
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

um ato precipitado de uma parte dos colonos anarqui-


zados ou tentativa de arrombamento ou incêndio a
casa para roubarem os gêneros ali recolhidos” (ANRJ,
maço IJ1299, 1878, p. 18). Confirmou, por sua vez, que
colonos eram castigados, e embora não houvesse pre-
senciado esses atos, viu “um homem e uma mulher, [...]
em uma noite arrastados pelo acusado Francisco José
Antônio e outros para dentro da casa da residência do
Diretor da Colônia” (ANRJ, maço IJ1299, 1878, p. 18).
Em resposta Arsênio Celestino Pimentel falou
que o colono João Evangelista do Nascimento havia
“jurado falso, depondo uma inexatidão ao parecer pro-
positalmente ensinada” (ANRJ, maço IJ1299, 1878, p.
19). Alegando que não pegava em uma arma de fogo
desde 1873, negou que houvesse qualquer arma em
sua residência, afirmando ser o depoimento do colono
induzido por alguém (ANRJ, maço IJ1299, 1878, p. 19).
Este discurso nos remete a uma estratégia de Arsênio
Pimentel em incutir a ideia de que os colonos estavam
sendo manobrados, ou seja, que eles não eram capazes
de autonomamente se mobilizarem e se revoltarem.
Este discurso não deve ser compreendido de maneira
desinteressada ou acrítica, uma vez que os muitos re-
latos dos moradores de Sinimbú que veremos a seguir
dão conta da crueldade e violência com que estes co-
lonos foram submetidos diariamente sob a tutela de
Arsênio Pimentel. Não faltaram motivos para uma re-
ação por parte daquela população.
O colono Joaquim Calisto Freire, por sua vez,
disse que ouviu gritos e palmadas que vinham de den-
tro do armazém, “e estimulado pelo sentimento de
compaixão convidara outros unidos a ele irem a aque-
le lugar evitar um semelhante castigo” (ANRJ, maço
IJ1299, 1878, p. 19). De acordo com o colono, eles pre-
senciaram o castigo que era dado sobre uma criança, e
logo procuram tirá-la dali motivo pelo qual se travara

161
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

uma luta, momento em que o diretor disparou em um


indivíduo que não soube dizer o nome. Contou ainda
que Francisco José Antônio também atirou contra os co-
lonos, pegando um dos tiros em uma pessoa que estava
atrás “de um tal Gato” (ANRJ, maço IJ1299, 1878, p. 19).
Assim como João Evangelista, ele negou que
pretendesse roubar ou incendiar o armazém, uma vez
“que da parte de pessoa alguma houvesse outra ideia
que não fosse a de tirar ou salvar dos castigos aludido
a criança de que trata” (ANRJ, maço IJ1299, 1878, p.
19). Perguntado sobre a maneira pela qual os colonos
eram tratados, respondeu que “eram tratados malicio-
samente, já com relação a ração minguada que dele re-
ceberam, já finalmente pelo modo desabrido por que
eram castigados com bolos e amarrações em um dos
esteios da casa” (ANRJ, maço IJ1299, 1878, p. 18). Dis-
se ainda que durante mais ou menos um mês, “têm-se
sepultado duzentos e setenta e oito cadáveres, vítimas
de sessões [castigos], fome, falta de curativo em tem-
po” (ANRJ, maço IJ1299, 1878, p. 19-20).
A testemunha Felix da Silva confirmou a
mesma versão sobre o conflito narradas pelos ou-
tros depoentes, de união dos colonos contra a ação
truculenta de Arsênio Pimentel contra uma criança.
(ANRJ, maço IJ1299, 1878, p. 20) No entanto, Felix
da Silva declarou ao tribunal que viu homens serem
“‘palmatoados’ e amarrados em uma forquilha5 da
casa em que mora o acusado”. (ANRJ, maço IJ1299,
1878, p. 20) Em resposta, Arsênio não negaria a Fe-
lix a história contada por Silva, afirmando que
quanto a homens amarrados era verdade ter isto
praticado em dois sentenciados requisitados pela
polícia, que infelizmente se evadiam a aproveitan-

⁵ Segundo o dicionário Antônio de Moraes Silva, o termo forquilha quer


dizer pau com três pontas, espécie de forcado para armar redes contra as
aves (SILVA, 1789). Disponível em: <http://dicionarios.bbm.usp.br/en/di-
cionario/2/forquilha>. Acesso em 12 de julho de 2018.

162
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

do-se da sedição pelas onze horas da noite; e que


ainda um outro fora amarrado por ter quase todos
os sinais de um criminoso tão bem requisitado
pela autoridade superior Policial; o qual dez minu-
tos depois pouco mais o menos fora posto em li-
berdade por lhe faltar o sinal cicatriz na sobrance-
lha; ignorando os habitantes da Colônia o motivo
deste procedimento por ser de segredo de justiça.
(ANRJ, maço IJ1299, 1878, p. 20)

As múltiplas funções oficialmente conferidas


a Arsênio Pimentel por Eliseu de Souza Martins não
compreendiam a sessões de tortura nem aprisiona-
mento de pessoas, os quais este assumiu ter praticado.
Arsênio Celestino Pimentel não apresentou qualquer
documento comprovando que a polícia estaria à pro-
cura de sujeitos já sentenciados, e, independente dis-
so, o diretor não tinha poder ou autoridade para amar-
rar ninguém, muito menos agir de forma violenta,
como o fez. No seu testemunho, há uma naturalização
da violência, já que ele sustentou a ideia de que seus
métodos eram legítimos.
Depois de Eliseu de Souza Martins deixar a pre-
sidência da província, em 6 de outubro de 1878, o vi-
ce-presidente Manuel Januário Bezerra Montenegro
incumbiu o escrivão da alfândega Antônio Cypriano
Araújo Silva – um funcionário do governo provincial –
de elaborar um relatório sobre a Colônia Sinimbú. Não
podemos esquecer que a referida colônia foi um proje-
to iniciado pelo governo provincial, que limitou o nú-
mero de comissões de socorros na província, fazendo
frente às elites locais, da qual fazia parte Manuel Janu-
ário Montenegro. Era seu interesse, portanto, expor à
público os problemas ocorridos na colônia durante a
gestão de Arsênio C. Pimentel.
O primeiro problema era a falta de assistência à
população da colônia, principalmente no que se refe-
re a alimentos e medicamentos, que parecem ter sido

163
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

continuamente extraviados. O sumiço de milhares de


sacas de farinha transportados para a colônia no mês
de setembro de 1878 tornava evidente os problemas
quanto à forma com que estava se administrando os
socorros dentro daquele estabelecimento, a despeito
dos gêneros alimentícios serem remetidos com certa
regularidade e geralmente em grande quantidade, es-
pecialmente a farinha, o charque e o feijão, base da ali-
mentação sertaneja.6 A comissão acreditava que nem
sempre o alimento indispensável chegava aos colonos,
assim como não se socorriam os doentes com a me-
dicação conveniente, ocasionando grande número de
óbitos, ora pela falta de alimentação ora pela ausência
de remédios. (ANRJ, maço IJ1299, 1878, p. 55)
Diante do relatório apresentado por Cypria-
no Cavalcante ao 1º vice-presidente do Rio Grande
do Norte Manoel Januário Montenegro, deliberou-se
uma comissão para averiguar o que ocorria na Colônia
Sinimbú, composta pelos cidadãos Hermógenes Joa-
quim Barbosa Tinoco, o capitão João Ferreira Nobre, o
tenente-coronel José Félix da Silveira Varela e o major
Francisco Bezerra Cavalcante Rocha Maracajá. Seu ob-
jetivo foi o de inventariar tudo o que nela encontrasse,
reunir toda a documentação produzida sobre a entra-
da e saída de pessoas e produtos, a disposição das casas
e do terreno em que fora instalada, e o estado de higie-
ne e salubridade das habitações. Desta forma, era de-
ver da comissão desenvolver “um trabalho completo
e perfeito” (ANRJ, maço IJ1299, 1878, p. 51), a fim de
que fosse plausível “transparecer por entre os diversos

⁶ O próprio Eliseu de Souza Martins autorizava – e, portanto, podemos in-


ferir que este detinha certo conhecimento sobre alguma movimentação
dos produtos destinados à Colônia Sinimbú – o transporte de gêneros para
Sinimbú. Podemos citar a carta encaminhada ao inspetor da tesouraria de
fazenda, o senhor Manoel Pereira de Azevêdo, em 3 de julho de 1878, pelo
mesmo Eliseu de Souza Martins que ordenava o pagamento de duzentos e
dez mil réis, para que fossem transportados da capital para a Colônia Sinim-
bú 400 volumes de gêneros alimentícios (ANRJ, maço IJJ9212, 1878, p. 81).

164
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

rumores populares que se têm levantado acerca da Co-


lônia Sinimbú” (ANRJ, maço IJ1299, 1878, p. 51).
Um dos primeiros comentários tecidos pela
dita comissão, referia-se ao quadro de magreza que
se encontravam os homens de Sinimbú, que residiam
em palhoças ou choupanas. “tão acanhadas que mal se
pode compreender que sejam destinadas para a habi-
tação de seres humanos. [...] São dispostas sem ordem
nem alento” (ANRJ, maço IJ1299, 1878, p. 51), que em
nenhum instante nos remete a algo planejado, como
propusera Eliseu de Souza Martins.
O curioso é que a comissão atribuiria à insalu-
bridade da colônia – das casas, cacimbas e arredores – à
preguiça dos colonos e à falta de disciplina dos traba-
lhadores, identificados como os principais males den-
tro de Sinimbú. Assim, a mortalidade entre os colonos
era justificada não apenas por tais “hábitos” conferidos
à população pobre livre (reforçando a visão da elite di-
rigente sobre o homem pobre livre, acusado de ocioso,
afeito aos vícios e à vadiagem), como também à falta
de responsabilidade do diretor da colônia. Além de re-
quisitar os gêneros alimentícios que achasse necessá-
rio, ele também dispunha de autorização para solicitar
medicamentos para os doentes. O diretor atuava como
médico e deveria ter o controle preciso do número de
doentes, assim como do estoque das drogas medici-
nais. Porém, segundo o relatório da comissão, este não
teria sido o procedimento adotado. Segundo consta no
mesmo relatório “Francisco Nogueira e outros homens
inteiramente analfabetos”, andando de porta em porta,
distribuíam os remédios aos doentes, arrancando “de
dentro de um bornal de couro e deixava, que no chão
jazem, sem uma palha por enxergar, sem cobertor, ou
quando muito convolvidos em sacos de estopa enso-
pados nas próprias fezes que deitavam” (ANRJ, maço
IJ1299, 1878, p. 82). Desta maneira, afirmavam que

165
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

a alimentação que recebiam era a mesma que se


dava aos homens válidos, não admira que mor-
ressem diariamente. Já de inanição, já de moléstia,
trinta pessoas segundo uns e até sessenta, segun-
do informa José Francisco Alves, que era fiscal da
Colônia, concorrendo grandemente para isso a
sordidez, que envolvia homens e pocilgas (ANRJ,
maço IJ1299, 1878, p. 82).

Segundo o mesmo José Francisco, estimava o


número de mortos em 3.985 pessoas, destacando que
“este obituário torna-se ainda mais notável, quando se
sabe, que assumiu tão grandes proporções no curto es-
paço de quatro meses, sobre uma população que talvez
nunca chegasse a 10 mil almas” (ANRJ, maço IJ1299,
1878, p. 56). Conforme as informações colhidas pela
supracitada comissão, “Muitas vezes, quando um cor-
po já estava a largar os pedaços, é que procurava se-
pultá-lo. Para este fim se o atava nu a um pau passado
por entre os pés e as mãos, e se o conduzia a sepultu-
ra, como se conduz um porco ao cepo do carniceiro”
(ANRJ, maço IJ1299, 1878, p. 56).
As informações recolhidas relatavam o modo
pelo qual eram “sepultados” aqueles que morriam den-
tro da colônia, retratando a violência e arbitrariedade
com que lidava o diretor daquele estabelecimento agrí-
cola para com os colonos. Nesta perspectiva, passare-
mos a analisar alguns relatos reunidos pela supraci-
tada comissão, a partir do contato com os colonos de
Sinimbú. Neste âmbito, começaremos a apresentar os
testemunhos dos colonos “Maria Ventura e o preto Ma-
rianno, [que] disseram que viram um cão comendo o
queixo de um cadáver, o qual só foi enterrado três dias
depois”. Segundo Maria Ventura, “alguns eram tão mal
sepultados, que os cães e os urubus os iam devorar, e
outros, desesperados de fome, saiam da colônia e iam
acabar de morrer nos tabuleiros, onde serviam de pasto
àquelas aves” (ANRJ, maço IJ1299, 1878, p. 56).

166
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Já o caso de Luiz do Pastorinho da Silva, retiran-


te do lugar chamado Campo Grande, relata que
chegado à Colônia no dia 5 der julho, com 6 pessoas
da família, e que ali ainda se acha, diz que viu um
negro, por ter pedido socorro ao diretor, para se ali-
mentar, sofrer o horrível castigo de ser amarrado
a uma forquilha desde as 10 da manhã até as 4 da
tarde, depois de haver recebido algumas pancadas
no peito, que lhe aplicara com um pau o mesmo di-
retor. Acrescenta, que á esse mesmo tempo, tendo
entrando na casa do armazém um rapaz, também
de cor negra, e procurando apanhar alguns caroços
de farinha, que se achava derramada, foi imediata-
mente agarrado por ordem do diretor, o qual lan-
çando mão de uma taboa de barril, [que] o espancou
até deitá-lo fora do armazém, proferindo contra ele
os mais terríveis impropérios (ANRJ, maço IJ1299,
1878, p. 54, grifo nosso).

Expusera ainda que o colono de nome Pedro


Severino foi enquadrado por um homem de nome
Antônio Bezerra Cavalcante, mais conhecido por An-
tônio-Canela ou Quebra-Canela, e teria sido “surrado
descomunalmente por diversos indivíduos da con-
fiança deste, somente porque dissera, que todos os
distribuidores dos gêneros eram ladrões” (ANRJ, maço
IJ1299, 1878, p. 54).
De acordo com a comissão, este fato seria tam-
bém confirmado por Maria Ventura da Anunciação,
natural de Alagoa Nova (hoje município de Lagoa
Nova), e viúva de Lino José do Nascimento, que tam-
bém residia na colônia desde seu começo. Maria da
Anunciação relatou que ouviu “a um tal Antônio Luiz,
testemunha ocular, que outro negro sem que se sabia
qual o seu crime, foi amarrado pelos pés de cabeça
para baixo, e faleceu no fim de 4 dias!” (ANRJ, maço
IJ1299, 1878, p. 55) [Grifo nosso]
Percebamos que existem elementos comuns
nas narrativas dos depoentes. As vítimas são na

167
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

maioria das vezes identificadas como negras ou pre-


tas, assim como grande parte dos crimes praticados
pelo diretor ou a mando dele tiveram motivações
fúteis. Os sucessivos castigos e arbitrariedades pra-
ticadas pelo diretor da Colônia Sinimbú permite-nos
afirmar que a revolta dos colonos não foi somente
causada pela fome, ou como argumentou o próprio
Arsênio Pimentel, manipulada por alguma liderança
intelectual ou política capaz de tal fim.
Havia entre os colonos uma noção clara de que
o exercício do diretor não deveria extrapolar os limi-
tes da lei, ou seja, os abusos perpetrados por Arsênio
Pimentel contra os colonos eram questionados, reco-
nhecendo-se que suas ações eram ilegítimas e ilegais.
Podemos também averiguar que as vítimas são iden-
tificadas por meio dos próprios relatos como negros
ou pretos, o que nos permite enxergar a existência de
estratégias de dominação associadas ao sistema es-
cravista7, mais um elemento que corrobora com o
argumento de que os colonos se recusavam a serem
tratados de modo igual ou semelhante aos escravos,
resistindo, revoltando-se contra seus pretensos domi-
nadores.8 Podemos citar como exemplos, além da vio-
lência e castigos aplicados pelo diretor Pimentel, o pri-
vilégio concedido a alguns colonos que se utilizavam
dos gêneros em benefício próprio, recebendo grandes
⁷ De acordo com o Código Criminal, o castigo moderado era autorizado
como forma de disciplinamento e punição nas relações entre pai e filho,
mestre e aprendiz, senhor e escravo. Ver BRASIL, Código criminal do Im-
pério do Brasil. Lei de 16 de dezembro de 1830. Capítulo II, artigo 14, pará-
grafo 6º. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LIM/
LIM-16-12-1830.htm>. Acesso em 9 de janeiro de 2019.
⁸ Esta situação em que a população percebe claramente que a autoridade
está agindo de forma arbitrária é problematiza por Edward Thompson em
Senhores e caçadores (1997), quando afirmou que “existe uma diferença
entre o poder arbitrário e o domínio da lei. Devemos expor as imposturas
e injustiças que podem se ocultar sob essa lei. Mas o domínio da lei em si,
a imposição de restrições efetivas ao poder e a defesa do cidadão frente às
pretensões de total intromissão do poder parecem [...] um bem humano
incondicional”. (THOMPSON, 1997, p. 357)

168
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

quantidades de alimentos em detrimento aos demais.


Deste modo, a soma de todos estes elementos “ateou
no espírito dos colonos uma certa exasperação que os
levou a acordarem-se para a resistência, na primeira
ocasião que algum tivesse de sofrer o bárbaro casti-
go das palmadas. Não tardou o momento previsto”
(ANRJ, maço IJ1299, 1878, p. 58).
Entendemos que embora existissem intenções
por parte de Lourenço Campos Café (preterido pela elite
local como diretor da colônia) em prendê-lo, provocan-
do, por conseguinte a saída de Arsênio C. Pimentel da di-
reção de Sinimbú, não se poderia isentar o português da
tentativa de assassinato contra o colono Manoel Pereira
e das agressões contra o menor seu filho, bem como, e
especialmente, das graves acusações que recebera ao
longo de sua administração, que como vimos são inú-
meras. Desta maneira, reconhecemos que a participação
dos colonos de Sinimbú nos tumultos de 15 de julho foi
decisiva para o afastamento do seu primeiro diretor. Po-
rém, a noção de justiça defendida pelos colonos, que jul-
gavam ter direito aos auxílios e socorros do governo, fez
com que se apropriassem dos gêneros.
Assim, explicava-se a frase: “O furto na Colônia
Sinimbu não era um crime, era um meio lícito de ad-
quirir”. A interessante afirmativa foi elaborada pela co-
missão e se encontrava na primeira linha do texto sob o
título de “Furtos”. Como já podemos imaginar, mesmo
antes de ler a linha seguinte, tal tópico relatava os escân-
dalos envolvendo os gêneros alimentícios, armazena-
dos e transportados para a colônia agrícola de Sinimbú.
Segundo tal documento, nos últimos dias da adminis-
tração de Arsênio Celestino Pimentel, muitos boatos
corriam sobre os casos de corrupção praticados com os
gêneros comprados pelo governo para o referido estabe-
lecimento, que havia se transformado em uma “verda-
deira cova de cacos” (ANRJ, maço IJ1299, 1878, p. 60).

169
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

Não havia a compreensão, por grande parte


dos colonos, de que saquear os gêneros configuras-
se crime ou algo ilícito. A prática do furto pode ser
compreendida, neste sentido, também como uma
forma de ação dos colonos, dentro daquele universo
de miséria ao qual foram impelidos, representando o
furto – por que não – uma forma de resistir à fome, à
seca e aos arbítrios das autoridades dentro da colônia
(ANRJ, maço IJ1299, 1878, p. 60).
Com o afastamento do diretor Pimentel, An-
tônio Quebra-Canela (que recebeu este apelido devi-
do a sua crueldade para com os colonos de Sinimbú)
apropriou-se dos gêneros do armazém e assumiu a
distribuição destes, realizando-a da maneira que lhe
agradava. De tal modo, segundo relatório da comis-
são, fornecia a sua amante, que atendia pelo nome
de Francisca, e a quem os demais colonos deveriam
tratar com “o mais profundo acatamento” (ANRJ,
maço IJ1299, 1878, p. 61), cerca de 6 a 8 sacas de
gêneros diariamente, “vendendo a uns e dando a
outros, as distribuía, [...] com diversas pessoas, que
as levavam a Ceará mirim e outros lugares” (ANRJ,
maço IJ1299, 1878, p. 61).
José Canela, colono fugido de Sinimbú, “talvez
com receio de ser punido, furtou de uma vez seis sa-
cas de farinha e com o produto dos diversos furtos
pôde comprar uma égua e muitas obras de ouro”, o
que demonstra a recorrência dos crimes praticados
pelas mesmas pessoas. Já em casa de Antônio Brejei-
ro “se encontrou fazendas no valor de seis centos mil
reis”, o que era muito difícil de ser conseguido ho-
nestamente, ainda mais para um colono de Sinimbú
(ANRJ, maço IJ1299, 1878, p. 60).
Quanto ao colono Francisco Grosso, justamen-
te aquele que teria atirado contra outros colonos no
incidente do dia 15 de julho, “com o produto de suas

170
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

rapinas estabeleceu uma venda em S. Gonçalo”. José


Cardoso, por sua vez, furtava e encaminhava gêneros
“para seu sogro Antônio Rodrigues, morador nas Ca-
cimbas”, população localizada na baixa do rio Mudo,
para onde “de uma vez chamou a si quatorze sacas, a
título de distribui-las com os moradores de seu quar-
teirão, os quais nada receberão.” Assim como Grosso,
Manoel Picanti “comprou cavalo e estabeleceu casa
de negócio à custa dos gêneros da Colônia” (ANRJ,
maço IJ1299, 1878, p. 60).
Outro homem, chamado Veado, condutor das
cargas vendidas por Francisca, a concubina de Que-
bra-Canela, teria furtado tanto “que pôde comprar um
cavalo por oitenta mil reis, não obstante ter chegado
a Colônia em tal estado de nudes que apenas trazia
uma tanga de estopa”. Além dele, outros se aproveita-
ram dos gêneros do governo, como Manoel Lourenço,
Francisco Mathias, Joaquim de Sant’Anna, Manoel Ca-
boclo, Francisco Nogueira e Ricarte, os dois últimos
condutores que trabalhavam para a dita Francisca.
(ANRJ, maço IJ1299, 1878, p. 61).
Já pudemos perceber que a tomada dos provi-
mentos recolhidos na colônia não foi privilégio de al-
guns poucos colonos. Os víveres do Estado também
despertavam o interesse dos negociantes de outras
regiões, que exploraram a chance de “fazer grossas
provisões sem que nada lhe custasse, para reforçar
sua casa de negócios” (ANRJ, maço IJ1299, 1878, p.
61). Este é o exemplo do comerciante da vila do Ceará-
-Mirim que atendia pela alcunha de Miguel de Paula.
Conforme o citado relatório, Paula corriqueiramente
frequentava a colônia, e quando não mandava o seu
cunhado conhecido por “Mestre André” conduzir, ele
mesmo transportava consigo “pelo menos três ou
quatro cargas de gêneros dadas por seu irmão Antô-
nio de Paula com o consentimento de Quebra-Cane-

171
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

la, que às vezes as entregava com sua própria mão”


(ANRJ, maço IJ1299, 1878, p. 61).
No dia 5 de outubro, o comerciante Antônio
de Paula (que também serviu de escrivão da colô-
nia), sabendo da notícia de que da capital da provín-
cia sairia uma força com destino à Sinimbú, teria
preparado “quatorze cargas de gêneros, dos quais
fazia parte um caixão de fazendas, e as mandou en-
tregar ao mencionado seu irmão Miguel de Paula”
(ANRJ, maço IJ1299, 1878, p. 61). Mas não parou por
aí. Antônio de Paula no dia seguinte, munido das
chaves do armazém, mandou tirar pela manhã uma
enorme quantidade de farinha, que totalizavam 60
sacas, arrumando-as junto a Miguel de Paula, sob
a vista de todos os colonos, fazendo-o conduzi-las
“para o Olho d’agua do Chapéu [na vila de São Gon-
çalo], protestando que irão destinadas ao pagamen-
to da quantia de duzentos mil reis, provenientes de
fretes de gêneros” (ANRJ, maço IJ1299, 1878, p. 61).
Não é difícil imaginar que esta situação desa-
gradava grande parte dos colonos, para quem con-
tinuava limitada a distribuição dos provimentos do
armazém. Ver os gêneros desviados ou sendo pa-
gos para os condutores era uma prática desonesta
sabida para todos que ali residiam, e que acontecia
muitas vezes a luz do dia, sem o menor pudor. Se-
gundo a comissão, “a Colônia inteira [era] testemu-
nha desses furtos, os quais se procurava a princípio
encobrir, com algumas razões, embora inaceitáveis”
(ANRJ, maço IJ1299, 1878, p. 63).
Por vezes, alguns colonos até tentavam impe-
dir que os roubos continuassem, que os gêneros e de-
mais víveres não fossem desviados de sua finalidade:
socorrer os retirantes/trabalhadores afetados pela
seca, estabelecidos na Colônia Sinimbú. Exemplo dis-
so ocorreu quando o “preto José Raymundo procurou

172
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

embargar a saída de um comboio de nove cargas de fa-


rinha, mas foi impedido por Francisco Menino que lhe
pôs uma pistola nos peitos, e obrigado a final a ceder”.
(ANRJ, maço IJ1299, 1878, p. 62)
Impedir a ação de tais salteadores, que em de-
terminadas ocasiões eram providos de poderes, con-
feridos por cargos administrativos, não era uma ta-
refa fácil. Além disso, nem todos os colonos estavam
dispostos a enfrentar armas de fogo, pois já era de co-
nhecimento de todos que os casos de assassinato ou
tentativas de homicídio na colônia não eram raros.
No entanto, as formas de resistência desta população
se mostravam de outra maneira, mediante a circula-
ção de boatos sobre o que estava acontecendo dentro
da Colônia Sinimbú, e que, por conseguinte, não tar-
dava a alcançar os ouvidos das autoridades provin-
ciais, bem como ganhar as páginas dos jornais locais,
chegando até a opinião pública.
Segundo a comissão, quando Arsênio Celes-
tino Pimentel soube da impossibilidade de voltar
à administração da colônia, dirigiu “uma carta a
Quebra-Canela aconselhando-o que distribuísse os
gêneros de valor a torto e a direito, a fim de que o
novo Diretor nada encontrasse na Colônia” (ANRJ,
maço IJ1299, 1878, p. 63). Logo, a saída dos gêneros
era controlada por Quebra-Canela que presenteava
vários outros colonos com os quais se relacionava.
Segundo a comissão, o último mandou entregar fa-
rinha e fazenda nas casas do cabo Manoel Alexandre
e de Joaquim de Santana, amigo de José Canela e An-
tônio Brejeiro, que por sua vez, “aproveitando-se da
noite, encheu de roupa as malas e dois sacos” (ANRJ,
maço IJ1299, 1878, p. 62).
Antônio Canela considerava, assim como Arsê-
nio C. Pimentel, que o armazém da colônia fosse como
sua propriedade. De tal maneira, que o primeiro ofere-

173
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

cera “a João Pereira trinta sacas de farinha em troca de


um cavalo e autorizou-o para utilizar-se das fazendas
que lhe agradassem” (ANRJ, maço IJ1299, 1878, p. 62).
Esta prática seria corriqueira, já que Arsênio Celestino
Pimentel utilizava os próprios gêneros para pagar os
fretes dos mesmos gêneros que chegavam à colônia. A
comissão afirmou que este fato poderia ser comprova-
do pelos próprios condutores, como João Pelinca, Luiz
Nunes e os filhos de Manoel Soares em São Gonçalo.
(ANRJ, maço IJ1299, 1878, p. 62)
Esta era uma clara demonstração das intenções
de Pimentel e Canela, os quais estavam dispostos a
roubar, desviar e distribuir com seus iguais os gêne-
ros que deveriam serem entregues aos trabalhadores
da colônia e suas famílias. O bem público era produto
da rapinagem desenfreada daqueles que deveriam re-
presentar os interesses da população. Ironizava a co-
missão ao “admirar” que a direção da colônia mesmo
praticando todos estes atos reprovados submetia “a
duríssimos castigos os que suspeitavam culpados de
furto, aí apanhava tendo ainda em mão os objetos fur-
tados” (ANRJ, maço IJ1299, 1878, p. 64).

Considerações finais

A colônia agrícola de Sinimbú foi planejada


pelas autoridades políticas da época como um espa-
ço da disciplina, do controle dos corpos, do trabalho,
das roupas, da alimentação, da disposição das casas e
da limitação do lazer, mas o projeto não saiu do papel,
transformando-se, por outro lado, em oportunidades
de ações escusas para administradores corruptos e
violentos. Neste sentido, compreendemos que as ações
dos retirantes, bem como a revolta realizada pelos co-
lonos de Sinimbú, não foram motivadas tão somente
pela fome, mas também sobretudo pelas arbitrarieda-

174
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

des e diferentes formas de exploração impostas pelos


representantes do governo provincial e local.
Assim, a reação da população contra Arsênio
Celestino Pimentel, diretor da Colônia Agrícola Si-
nimbú, foi resultado da luta e resistência da popula-
ção contra as formas de dominação, de exploração,
ainda mais quando estas utilizavam de estratégias
semelhantes àquelas difundidas no regime escravis-
ta, caso dos castigos físicos. As mudanças não foram
aceitas passivamente, mas devemos reconhecer as
dificuldades encontradas pela população em impor
uma resistência mais eficaz quando as elites dirigen-
tes detinham o domínio sobre todos os recursos, prin-
cipalmente quando se estava instalada uma crise sem
precedentes, como fora a seca de 1877. No lento ruir
da escravidão, ao longo da segunda metade do sécu-
lo XIX, bem como no processo de consolidação do ca-
pitalismo, o trabalhador pobre livre do campo sofreu
uma grande derrota, e esta população continuou so-
frendo com novas formas de exploração, sendo con-
tinuadamente submetida aos interesses dos grandes
proprietários rurais, como, por exemplo, os senhores
fazendeiros do vale do Ceará-Mirim. Outros tantos
enfrentaram coisa pior, sendo empregados em obras
públicas nas cidades, recebendo nada além de comida
como pagamento pelo trabalho desempenhado.
Ao reconstituir fragmentos da luta pela so-
brevivência enfrentada pela população sertaneja do
Rio Grande do Norte, esperamos ter contribuído para
o debate das relações de trabalho, especialmente a
transição para o trabalho livre na Província do Rio
Grande do Norte. É fundamental que reconheçamos
esses trabalhadores pobres como protagonistas de
suas próprias histórias. Trata-se da luta de retirantes
e colonos, mulheres e crianças, marginalizados e tes-
tados nos limites da fome, da violência e da injustiça,

175
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

cometidas por aqueles que teoricamente deveriam re-


presentar uma saída para os seus problemas, mas que
infelizmente governa(ra)m para si mesmos, aprofun-
dando os conflitos de um quadro social e econômico já
marcado pela miséria e exclusão.
Por fim, ressaltamos que os episódios que
marcaram a história da Colônia Sinimbú sinalizam
para a luta de uma população sertaneja em busca de
terem seus direitos garantidos. Entendemos que em-
bora não se tenha uma alteração dos quadros sociais,
a revolta daqueles colonos foi imprescindível ao fe-
chamento do dito estabelecimento agrícola, a prisão
e indiciamento dos verdadeiros algozes que admi-
nistravam aquele lugar, o que gerou os registros das
atrocidades narradas no texto em questão, e que são
de suma importância para a história.

Fontes

ARQUIVO NACIONAL DO RIO DE JANEIRO – ANRJ, maço IJJ9212,


Ministério dos Negócios do Interior, 1878.

ARQUIVO NACIONAL DO RIO DE JANEIRO – ANRJ, maço IJ1299,


Ministério dos Negócios da Justiça, 1878.

BRASIL. Código criminal do Império do Brasil. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LIM/LIM-16-12-
1830.htm>. Acesso em 9 de jan. 2019.

Correio do Natal, Natal, 2 de novembro de 1878.

RIO GRANDE DO NORTE. Relatorio apresentado à Assembléa Le-


gislativa do Rio Grande do Norte na sessão ordinaria do anno de
1862 pelo presidente da provincia o commendador Pedro Leão
Velloso. Maceió: Tipographia do Diario do Commercio, 1862

_____. Relatório apresentando á Assembléa Geral Legislativa na


primeira sessão da decima setima legislatura pelo Ministro e Se-
cretário do Estado dos Negócios do Império, Conselheiro Carlos
Leôncio de Carvalho. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1878.

176
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

SILVA, Antonio de Morais. Diccionario da lingua portugueza


composto pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado, e accrescenta-
do por Antonio de Moraes Silva natural do Rio de Janeiro (Volume
2: L - Z). Lisboa: Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789.

Referências

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tre a regularidade do espaço projetado e os violentos confrontos
do espaço vivido (Rio Grande do Norte, 1850-1880). Dissertação
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Norte, Natal, 2005.

GREENFIELD, Gerald Michel. A questão “Sinimbu” e a politicagem


da grande seca no Rio Grande do Norte. Caderno de história. V.
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MACIEL, Francisco Ramon de Matos. “Do alto sertão à Colônia


Sinimbú”: retirantes, trabalho e resistência na província do Rio
Grande do Norte (1877-1878). In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL
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tempos. Anais... George, F. Cabral de Souza... [et al]. Recife: Editora
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MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo Saquarema: a formação do


Estado imperial. São Paulo: Huicitec, 2004.

RAGO, Luzia Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disci-


plinar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

SENNA, Júlio Gomes de. Ceará-Mirim: exemplo nacional (1938-


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THOMPSON, E. P.. Senhores e Caçadores: a origem da lei negra.


Tradução Denise Bottman. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

177
MULHERES RETIRANTES E O
CONFRONTO DE AREIA BRANCA

Francisco Ramon de Matos Maciel


Por um ensino de História sobre os de baixo

As discussões acerca de um ensino de Histó-


ria que traga em sua narrativa a experiência, lutas,
formas de pensar e sentir dos sujeitos subalternos
na formação da sociedade brasileira, inclusive no
contexto de formação do Estado e construção de
uma identidade nacional no século XIX, ainda pre-
cisa ser mais explorada no currículo escolar. Toda-
via, torna-se inadiável trazer para esse debate os
princípios e as práticas de um processo de inclusão
social que garanta o acesso e considere a diversidade
humana, social, cultural, econômica dos grupos his-
toricamente excluídos, como orientam as Diretrizes
Curriculares Nacionais (BRASIL, 2013).

178
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Esse documento também ressalta a impor-


tância de abordar as questões de classe, gênero, raça,
etnia, geração, compostas por categorias que se en-
trelaçam na vida social, isto é, pobres, mulheres, afro-
descendentes, indígenas, pessoas com deficiência, po-
pulações do campo, de diferentes orientações sexuais,
sujeitos albergados, aqueles em situação de rua, em
privação de liberdade, “todos que compõem a diver-
sidade que é a sociedade brasileira e que começam a
ser contemplados pelas políticas públicas” (BRASIL,
2013, p. 16). Mas tratando-se do Rio Grande do Norte,
são poucos os trabalhos que abordaram essa perspec-
tiva voltada para o ensino de História.
Denise Monteiro, em Introdução à História do
Rio Grande do Norte (2005), pautou questões relevan-
tes quando discutiu o processo de formação da ca-
pitania e província, numa perspectiva que conferia
maior ênfase para as relações políticas e econômi-
cas na constituição do território norte riograndense
(MONTEIRO, 2015). A autora abordou a influência
dos grupos indígenas, escravizados e homens pobres
livres no povoamento do sertão, através da pecuária
e cultura do algodão, além da mão de obra africana
nos engenhos de açúcar nas áreas do litoral potiguar.
Seus apontamentos sobre esses sujeitos históricos,
que na ótica da história oficial eram marginalizados,
ganharam um papel significativo na formação da so-
ciedade norte riograndense.
Por outro lado, era preciso investigá-los por ou-
tras linhas de interpretação que saísse das malhas das
relações socioeconômicas, pois o determinismo econô-
mico tende a deslocar o foco para os grupos dominan-
tes da sociedade, sendo os responsáveis diretos pelas
ações a partir das quais se formulam explicações sobre
mudanças históricas. Porém, os demais atores sociais,
das camadas de baixo, também praticavam ações de ca-

179
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

ráter político pois, em determinadas situações, organi-


zavam-se e enfrentavam as forças governamentais que
os dominavam e excluíam, mostrando que as relações
de poder não eram uma estrada de mão única na cons-
tituição daquela sociedade no século XIX.
A partir da sensibilidade sobre a narrativa
dos sujeitos vistos de baixo, nosso propósito será
analisar o confronto entre retirantes e represen-
tantes dos poderes públicos na localidade de Areia
Branca e na cidade de Mossoró no ano de 1879, ano
final da grande seca iniciada em 1877, que atin-
giu várias províncias do Norte. 1 Nesse episódio
ocorre a construção da imagem do alferes Francis-
co Moreira de Carvalho como líder dos retirantes,
pela justiça e imprensa. Porém, numa outra chave
de leitura, identificamos a atuação das mulheres
retirantes contra a distribuição dos socorros pú-
blicos na província, acusando as autoridades de
corrupção. Longe de reagirem de forma espasmó-
dica à fome, um apelo à suposta “natureza” femi-
nina descrita nas fontes e historiografia tradicio-
nal potiguar. Mas consideramos que elas estavam,
através das ações diretas, como saques e motins,
sendo atores políticos. Historiadores como E. P.
Thompson, George Rudé e Eric Hobsbawm já escre-
veram sobre as ações coletivas de camponeses nos
séculos XVIII-XIX, interpretando os movimentos
populares como manifestações políticas da multi-
dão, distanciando-se da leitura de que esses grupos
¹ Mossoró teve sua formação através da fazenda Santa Luzia, propriedade
do sargento-mor Antônio de Souza Machado. No decorrer do século XIX,
esta vai adquirindo vários títulos, desde povoação, vila (1852) e cidade
(1870). Sobre informações da história e memória da cidade de Mossoró,
consultar SOUZA, Francisco Fausto de. História de Mossoró. Edição Es-
pecial para o Acervo Virtual Oswaldo Lamartine de Faria. Disponível em:
<www.colecaomossoroense.org.br>. Acesso em 3 de janeiro de 2013.; CAS-
CUDO, Luís da Câmara. Notas e Documentos para a História de Mossoró. Edi-
ção Especial para o Acervo Virtual Oswaldo Lamartine de Faria. Disponível
em <www.colecaomossoroense.org.br>. Acesso em 3 de janeiro de 2013.

180
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

efetuavam saques e motins em tempos de carestia,


apenas motivados pelo desespero da fome. 2
Assim, nossa escrita é feita a contrapelo da
narrativa histórica tradicional do Rio Grande do Nor-
te, da qual apenas mulheres de elites fizeram parte.3
Para o primeiro plano, trazemos os sujeitos de carne e
ossos que compõem o que poderemos chamar de mul-
tidão4 ou seja, mulheres, homens, velhos e crianças
organizando-se das mais variadas formas, motivos
e interesses, num determinado contexto específico,
pois acreditamos que (re)conhecer as experiências
de luta desses sujeitos, por direito e justiça, torna-se
imprescindível no processo de formação de nossa
cidadania, algo complexo na história do Brasil, pois
ainda resiste na historiografia uma visão dos grupos
dominados como sujeitos passivos e indiferentes nos
processos de transformação da sociedade.
Trabalhamos com as fontes documentais dos
jornais Brado Conservador (RN), A República (RN), O
Cearense (CE), Jornal do Recife (PE) e Relatórios da Jus-
² Acerca das revoltas camponesas podemos nos aprofundar a partir das
leituras dos seguintes autores: HOBSBAWN; RUDÈ, 1982; RUDÉ, 1991;
THOMPSON, 2005.
³ A escrita “a contrapelo” é inspirada sobre as teses do conceito de História
do filósofo Walter Benjamin. Nelas encontramos uma teoria da História
voltada para a rememoração de lutas, sonhos e resistência dos vencidos,
isto é, os que foram engolidos pelo progresso capitalista na sociedade e si-
lenciados pela própria história oficial. Assim, uma nova escrita da história
seria trazer as experiências desses sujeitos excluídos, escovando a contra-
pelo uma historiografia positivista, homogênea e vazia.
⁴ A concepção de multidão para o historiador George Rudé é “aquilo que os
sociólogos chamam de grupo frente-a-frente, ou de contato direto, e não
qualquer outro tipo de fenômeno coletivo [...]. De fato, nossa atenção prin-
cipal será dada às manifestações políticas e ao que os sociólogos chama-
ram de “multidão agressiva” ou “explosão hostil” – atividades como greves,
motins, rebeliões, insurreições e revoluções” (RUDÉ, 1991, p. 1-2) .Parti-
mos também da leitura do historiador Frederico de Castro Neves, quando
enxerga a trajetória das ações coletivas da multidão sertaneja em perío-
dos de grandes secas, que, por meio de suas experiências e relações sociais,
“negocia através da pressão direta, dos pedidos e exigências, dos saques e,
especialmente, da exposição pública de suas misérias, que a seca aguça e dá
visibilidade” (NEVES, 2000, p. 13).

181
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

tiça do Império, que serão analisadas a partir da utili-


zação do conceito de experiência. Ela foi abordada por
uma linha culturalista na historiografia marxista de
tradição inglesa, enfatizando o simbolismo, o imagi-
nário, os discursos e as retóricas de homens que “con-
testaram o poder e a subordinação vindos de cima,
criando seus próprios rituais de resistência e experi-
ência compartilhada” (TAYLOR, 1998, p. 77-90). Mas
a própria definição de “experiência”, nas palavras do
historiador E. P. Thompson, é quando “homens e mu-
lheres retornam como sujeitos”, não apenas indivídu-
os livres, “mas como pessoas que experimentam suas
situações e relações produtivas determinadas como
necessidades e interesses e como antagonismos”, tra-
tando essas experiências em sua cultura e consciência
“das mais complexas maneiras, e em seguida, agem,
por sua vez, sobre sua situação determinada”. Enfim,
a experiência é compreendida como uma “resposta
mental e emocional, seja de um indivíduo ou de um
grupo social a muitos acontecimentos inter-relacio-
nados ou a muitas repetições do mesmo tipo de acon-
tecimento” (THOMPSON, 1981, p. 225-226). Se trata,
portanto, de um conceito que permite ver essa popu-
lação de retirantes como sujeitos capazes de agenciar
suas próprias demandas, de resistir e lutar por aquilo
que reconheciam como direito e justiça.

“Mulheres ocupam a vanguarda”:


atuação feminina retirante na província
do Rio Grande do Norte (1877-1879)

Na província do Ceará chegavam as notícias


sobre um grave episódio no qual morreram o chefe
de polícia do destacamento, algumas praças e reti-
rantes, num confronto ocorrido na província do Rio
Grande do Norte no final de janeiro de 1879. O jornal

182
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

O Cearense escrevia que há dias “recebeu-se telegra-


mas de Aracati comunicando graves conflitos havi-
dos na vila de Mossoró, [...] e que alteraram seriamen-
te a ordem pública”. No dia 24 de janeiro, Francisco
Tertuliano de Albuquerque escreveu a João Avelino
comunicando-lhe que o alferes Francisco Moreira
de Carvalho, chefe conservador de Pau dos Ferros,
“capitaneando cerca de 2000 retirantes, havia pos-
to abaixo o sítio da sua casa, na Areia Branca, decla-
rando que não suspenderia o cerco sem que lhe fosse
mandado entregar bastante farinha para satisfazer
as necessidades de seu povo”. José Avelino respondeu
a Francisco Tertuliano, dizendo-lhe que não podia
acreditar em semelhante procedimento de Moreira,
com quem estava nas melhores relações e que havia
assegurado seu apoio durante sua administração da
mesa de rendas de Mossoró. Todavia, tomara a pro-
vidência de mandar “fornece-lhe alguma farinha e
oficiar ao delegado de polícia e comandante do des-
tacamento, alferes Manoel Rodrigues, para tomar
conhecimento dos factos. Moreira recebeu a farinha,
suspendeu o cerco e protestou não voltar mais”. (O
Cearense, 9/2/1879, p. 3)
Na matéria do referido jornal temos um aspec-
to que irá apresentar-se nas demais fontes sobre esse
episódio: o alferes Francisco Moreira sendo identifi-
cado como líder e organizador da multidão de reti-
rantes na seca de 1879. Temos que problematizar essa
construção da imagem do Francisco Moreira, pois
procurar indivíduos para responsabilizá-los como or-
ganizadores de sedições é uma prática do exercício do
poder para recriminar e punir, mas que tem em con-
trapartida a tendência de ofuscar as ações e escolhas
dos próprios retirantes como atores sociais, conside-
rando-os sujeitos sem instrução e discernimento, fá-
ceis de manobrar, o que não vem ao caso.

183
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

O jornal prossegue a notícia afirmando que no


dia 26 anunciam-se novos movimentos na localidade
de Areia Branca. O administrador da mesa de rendas
mandou para ali o delegado com a força pública de
Mossoró. No dia 27 teve então “lugar a explosão que
se esperava, a grande carnificina, Moreira à frente de
2000 retirantes, fazendo as mulheres ocupar a van-
guarda, dirigiu-se à casa onde se achava aquartela-
da a força e atacou-a”. O alferes comandante Manoel
Rodrigues, dirigindo-se a Francisco Moreira, “que se
achava na retaguarda dos sediciosos a dá-lhe vós de
prisão; cai, porém, varado por uma bala. As mulheres,
que pareciam sedentas de sangue, atiram-se ao infeliz
e acabam de matá-lo a cacetadas”. Depois de um horrí-
vel tiroteio, caem mortos 4 praças, 2 mulheres e 4 reti-
rantes do grupo de Moreira, além de haver registrado
grande número de feridos de ambas as partes: “Depois
disso a vila ficou em alarme e a ordem pública seria-
mente comprometida. Notícias posteriores a estas di-
zem que Moreira, senhor da vila, atacara o armazém
de socorros públicos e roubara todos os gêneros que
nele existiam” (O Cearense, 9/2/1879, p. 3).
Um mês depois do episódio, o Jornal de Recife di-
vulgou uma correspondência datada do dia 30 de janei-
ro de 1879 da cidade de Mossoró, narrando o ocorrido
em Areia Branca, destacando: “A nossa liberdade, honra
e vida estão em perigo”. De acordo com o periódico, no
dia 27 do corrente, pela manhã, seguindo em diligência
desta cidade para a Barra de Mossoró, o alferes Manoel
Rodrigues Pessoa, “com o fim de apaziguar os ânimos
exaltados de um grande número de retirantes”, capita-
neados pelo alferes Francisco Moreira de Carvalho de
São Miguel, e “encontrando essa gente armada e dispos-
ta a entrar em combate, deu dito alferes voz de prisão a
Moreira, mas este respondeu-lhe com um tiro de baca-
marte, caindo imediatamente morto o infeliz alferes”.

184
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Os soldados, vendo seu chefe assassinado, fizeram uma


descarga, “conseguindo por fora de combate alguns dos
celerados de Moreira”, matando e ferindo alguns solda-
dos (Jornal do Recife, 27/2/1879, p. 2).
Seguindo o relato do periódico, um “grande
grupo de mulheres, também da gente de Moreira,
caíram como serpentes sobre os pobres soldados fe-
ridos, e a cacete e pedra contundiram-nos horrivel-
mente” (Jornal do Recife, 27/2/1879, p. 2). A descrição
das matérias de jornais reforça a figura de Francis-
co Moreira como organizador e líder dos retirantes,
mas outra característica marcante apresentada pela
imprensa é a forte impressão causada pelas mulhe-
res ocupando a vanguarda da multidão sertaneja em
confronto direto com as forças públicas da cidade de
Mossoró. Vencida essa luta em Areia Branca, as notí-
cias de saques aos armazéns dos socorros públicos na
cidade espalham-se rapidamente pelas províncias do
Ceará, Pernambuco e Rio Grande do Norte.
As mulheres também vão aparecer nos demais
jornais da província, sempre na condição de manobra-
das pelo alferes Francisco Moreira de Carvalho. O jor-
nal Brado Conservador, da cidade de Assú, no Rio Gran-
de do Norte, já traz outros detalhes. Achava-se João
Avelino encarregado dos socorros públicos em Areia
Branca, mas, “ou porque” não encontrasse bons auxi-
liares para ajudarem no serviço da distribuição, “ou
porque” entendesse que esta devia ser feita somente
na cidade de Mossoró, “tomou a deliberação de reti-
rar-se para aquela cidade, sem deixar na Areia Branca
alguém que o substituísse”. Vendo-se, assim, o povo
aperreado pela fome, procurou Francisco Moreira, que
por seu gênio popular “servia ali de proteção a muitos
emigrantes, com o fim de servir-lhe de mediador”. Na
ausência de João Avelino, lembrou-se Francisco Morei-
ra de ir ou mandar alguém entender-se com a esposa

185
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

deste, reclamando providências no sentido de mandar


abrir o armazém para que se acalmasse o ânimo do
povo que, “no desespero da fome, já começava a suble-
var-se, ao que ela razoavelmente se recusou, dizendo
que, não tendo seu marido deixado ordem alguma a
respeito das providencias que lhe eram pedidas, nada
podia fazer”. Isto, porém, foi bastante para que o povo
entendesse que devia tomar vingança do encarregado
da distribuição na pessoa de sua esposa, “sitiando-lhe
a casa, e dirigindo-lhe palavras insultuosas” (Brado
Conservador, 21/2/1879, p. 2).
Na descrição do jornal da cidade de Assú foi
a multidão retirante que procurou Francisco Morei-
ra, devido a seu “gênio popular” e sua função como
“mediador”, acerca do atraso na entrega de gêneros
na localidade de Areia Branca Porém, um argumento
presente no discurso da imprensa é a identificação da
ação retirante nesse episódio como resposta ao estado
de fome, deixando-os dispostos a tudo fazerem. Nova-
mente a fome prescreve, centraliza e ofusca o sentido
e prática política de organização dos sujeitos, que es-
tavam naquele local para cobrar, criticar e reivindicar
os socorros públicos junto às autoridades. No relató-
rio do ministro e secretário de Estado da Justiça, con-
selheiro Lafayette Rodrigues Pereira, outros aspectos
aparecem sobre a narrativa do confronto.
Antônio Cyrino de Araújo e Silva, que então diri-
gia a mesa de rendas gerais de Mossoró, incumbira
a Francisco Moreira de Carvalho a construção de
um pequeno açude, com o trabalho de retirantes,
e mediante uma gratificação de 18 litros de fari-
nha, quantidade posteriormente aumentada pelo
administrador da mesa, João Avelino Pereira de
Vasconcellos. E apesar de ocorrer a falta de gêne-
ros para os socorros públicos, queria Moreira de
Carvalho que lhe fossem prestados, e neste intuito
mandou pelas mulheres retirantes, no dia 23 de ja-
neiro, cerca a casa do administrador João Avelino,

186
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

na ausência deste, cuja família se pretendia redu-


zir à fome. Mas a pedido de diversos cidadãos foi
levantado o cerco, depois de ultrajada a mesma fa-
mília pelas pessoas que a sitiavam. Ciente do ocor-
rido, o administrador enviou 50 sacas de farinha
que pode comprar em Mossoró, onde se achava
doente. (BRASIL, 1878, anexo p. 4).

No relatório em questão, Francisco Moreira


aparece como encarregado de uma obra pública du-
rante a seca de 1877, e que na falta de gêneros ali-
mentícios para pagar aos trabalhadores, mandou as
mulheres retirantes cercarem a casa de João Avelino,
levando-o a mandar 50 sacas de farinha para os re-
tirantes na localidade de Areia Branca. Novamente
as mulheres surgem como figuras que estavam obe-
decendo à liderança do alferes Francisco Moreira de
Carvalho. Mas o que estamos propondo é que ambos
estavam cientes dos problemas na distribuição dos
alimentos, e que os agenciamentos coletivos, a par-
ticipação de uma liderança e as ações diretas da mul-
tidão eram formas políticas encontradas no espaço
social que legitimaram e garantiram suas atuações
contra as autoridades responsáveis pelos socorros
públicos5. Ainda no relatório de Lafayette Rodrigues
Pereira temos mais descrições do episódio:
Chegando à Areia Branca o alferes Pessoa, a fim de
manter a ordem pública, soube de diversos fatos
criminosos e da marcha de Moreira, que pretendia
atacá-lo, à frente de um grupo armado. Depois de
reunir o destacamento e dar outras providencias,
o alferes Pessoa foi ao encontro de Moreira, que re-
sistiu à ordem de prisão. Foi então que um grupo
de mulheres investiu-o contra aquele oficial que
empurrou-as com um bacamarte, recebendo dos
sequazes de Moreira um tiro, que o postou mori-

⁵ O sociólogo James S. Scott comenta que as ações e resistências dos subal-


ternos surgem na medida em que existe um espaço social capaz de assegu-
rar as ações diretas ou disfarçadas dos sujeitos, pois assim teriam chances
de fazerem sua crítica ao poder (SCOTT, 2013).

187
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

bundo. Travou-se a luta, de que resultou ficarem


feridas as praças do destacamento e morreram
três soldados, um homem do grupo e posterior-
mente mais dois, sendo um no mesmo dia e ou-
tro dias depois. Tão repentino foi o conflito que
os soldados não puderam disparar as armas, que
se encontravam carregadas. Um filho de Moreira,
de nome Remígio mandou matar a cacete um dos
soldados que fugia para o quartel; mas uma das
testemunhas intercedeu por ele. Também verifi-
cou-se que a força repelira, na forma de lei, o grupo
resistente, que se achava armado de facas, espin-
gardas e cacetes, sendo capitaneado por Moreira
de Carvalho, que golpeou com a espada o alferes
moribundo. Depois do conflito, entendeu-se Mo-
reira com o farmacêutico Herculano Montenegro,
a cujo pedido consenti-o que fossem conduzidos
os cadáveres do alferes Pessoa e dos soldados para
Mossoró, exigindo, porém, que daquela cidade o
mesmo farmacêutico remetesse farinha (BRASIL,
1878, anexo p. 4-5).

É visível como as mulheres retirantes esta-


vam participando das ações diretas contra o desta-
camento da polícia do alferes Manoel Rodrigues, e
a sua voz de prisão ao alferes Francisco Moreira de
Carvalho. No fragmento também se evidencia a pres-
são de Francisco Moreira e retirantes direcionada ao
farmacêutico responsável pelos gêneros alimentícios
da cidade de Mossoró, o senhor Herculano Monteiro,
que deveria remeter farinha aos sertanejos depois do
confronto do dia 27 de janeiro. Interessante apontar
que depois do episódio cresceram rumores de saques
generalizados naquelas localidades. Nos dias seguin-
tes, os jornais noticiaram: “mostraram-nos ontem
um telegrama de Natal, no qual se diz que no conflito
havido de Mossoró, do qual demos notícia morreram
9 pessoas. A tropa fugiu deixando a mercê dos ata-
cantes os depósitos de gêneros do governo e particu-
lares”. (Jornal do Recife, 6/2/1879, p. 2)

188
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

O medo que as autoridades das províncias do


Ceará e de Pernambuco tinham da multidão retiran-
te era grande, também estando preocupadas com
a ordem pública pois, afinal, também eram locais
onde existiam milhares de sertanejos pobres fugi-
dos da seca de 1877. O problema chegou ao ponto de
algumas autoridades da cidade de Mossoró fugirem
para outros vilarejos à procura de proteção do go-
verno, ocorrência noticiada com alarde na impren-
sa: “consta-nos que o cap. Avelino, em consequência
de tais ocorrências, saíra fugitivo da cidade de Mos-
soró em companhia do ilustre médico, Dr. Câmara,
saindo também o farmacêutico, Dr. H. Montenegro,
Ricardo de Santana”. Assim, não restou uma só au-
toridade judiciária local, “pois que a vara de direito
achava-se em mão do último suplente de vereador”.
(Brado Conservador, 21/2/1879, p. 2)
Dias depois, um destacamento de soldados de
Natal e Recife trazido pelo navio Imperador veio pren-
der os responsáveis pelo confronto em Areia Branca.
Não houve resistência alguma, Francisco Moreira e
outros acusados foram levados para julgamento na
cidade de Natal6. As notícias de sua prisão também fo-
ram noticiadas pelos jornais das províncias vizinhas.
A ordem e o controle estavam “restabelecidos”. Lê-se
no Diário de Pernambuco um telegrama dirigido pelo
vice-presidente em exercício ao presidente Dr. Adolf
de Barros, onde declara achar-se restabelecido no Rio
Grande do Norte “o império da lei, e as autoridades
procedem de forma a que se não reproduzam os factos
ali havidos nos últimos dias”. Por outro lado, os rumo-
⁶ Os acusados desse processo foram: Francisco Moreira de Carvalho, Lud-
gero Bernardo de Souza, Francisco Cavalcanti da Silva, Cypriano Rangel de
Araújo, João Cardoso de Mello, Manoel Francisco Borges, Antônio Ferreira
Maia, Maria Alves de Jesus, Regemiro de tal, Brandão de tal, José Antônio,
Salvino de tal, José Pereira, Delfino Costa, Jeronimo de tal, Maximiano de
tal, Agostinho Saborá, um velho cujo nome se ignora e a cúmplice Maria
Francisca do Nascimento (BRASIL, 1879, p. 5).

189
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

res de saques foram classificados como “infundados”,


não passando apenas de grupos de mulheres causan-
do “distúrbios”. (O Cearense, n. 22, 26/2/1879, p. 2)
Desqualificar e criminalizar as ações das mu-
lheres retirantes nesse episódio é uma estratégia
presente em várias outras fontes e, sobretudo, no
discurso oficial. Porém, os indícios encontrados na
documentação sugerem que elas estavam conscien-
tes de suas ações, organização e tinham o objetivo
manifesto de exercer pressão sobre os responsáveis
pelos socorros públicos. Isso significa que os subal-
ternos tinham a capacidade de defender concepções
de direito e justiça em contextos de exploração e cri-
ses de abastecimentos. Nesse caso, obviamente se
considerava que era dever dos governantes proteger
os retirantes, que consideravam justo e legítimo usar
a força para requerer seu direito aos socorros públi-
cos. Algo a ser destacado é que essas investidas de
grupos de mulheres não ocorreram apenas em Areia
Branca e Mossoró, isto é, não era um fato isolado nes-
se contexto de seca no final dos oitocentos.
Na capital, Natal, os retirantes estavam perce-
bendo os problemas decorrentes das decisões do go-
verno na compra e distribuição de gêneros alimentí-
cios, que deveriam servir como pagamentos por seus
trabalhos nas obras públicas. De janeiro a fevereiro,
as notícias das dívidas e embaraços administrativos
da província estavam circulando entre os jornais e
grupos políticos rivais. Assim, um quadro de escas-
sez e falta de verbas para os socorros públicos era evi-
dente. A economista Fernanda Massarotto Dandaro
e Renato Leite Marcondes argumentam que a grande
seca parece ter gerado um “grande desembolso por
parte do governo na forma de socorro público, que
correspondeu a mais de 5 milhões em libras esterli-
nas” nas províncias do norte do império, e que entre

190
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

os anos de 1878-1879 foram gastos uma média de 4


milhões, que, além das despesas comuns, “ainda in-
cluíam compra e aluguel de animais, alojamentos,
instrumentos agrícolas e sementes e indenizações de
estragos, sendo a despesa mais significativa a reali-
zada com compra de alimentos” (DANDARO; MAR-
CONDES, 2018, p. 123).Logo, em função da seca de
1879, a província do Rio Grande do Norte tinha um
dos repasses mais altos.7 Possivelmente esse ponto é
um dos motivos da revolta dos retirantes, pois havia
verba pública, existia muito gasto com compra de ali-
mento, materiais de construção etc., mas havia tam-
bém corrupção, desvio e esquemas fraudulentos.
No dia 13 de fevereiro o Jornal do Recife publi-
cara um telegrama de Natal: “outro disparate, porém
de consequências reais e muito graves, foi a ordem
para o fechamento da tesouraria, que esteve privada
durante nove dias de recolher rendas arrecadadas pe-
los coletores que vieram de longe prestar as contas
do último trimestre”. Não se pagou a tropa ou fun-
cionários gerais, e todos passaram privações por não
receberem seus ordenados, incluindo “os infelizes
flagelados pela seca e que não podem resistir a fome,
morreram por falta de socorros!!! O Dr. Montenegro
segue agora para a corte, a fim de escrever a tal respei-
to e defender-se, conduzindo para isso documentos
importantíssimos”. O Dr. Morato, que passa a ocupar
o cargo 1º vice-presidente, estava “passando pelas
mesmas torturas que seu antecessor, visto como o
escriturário do Tesouro não o leva em consideração”.
(Jornal do Recife, 3/2/1879, p. 1)
⁷ Dandaro e Marcondes (2018), a partir dos dados dos relatórios do Mi-
nistro de Obras Públicas, mostram que os gastos em obras e socorros pú-
blicos, as províncias do Ceará e Rio Grande do Norte foram as que mais
desembolsaram do cofre do Governo no período de 1877-1914. No Ceará,
as obras foram em média 1.835.482$ e os socorros 4.522.564$. Já no Rio
Grande do Norte, 948.337% e 1.089.530, respectivamente (DANDARO;
MARCONDES, 2018, p. 123).

191
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

A “falta de créditos”, a péssima administração


e a corrupção das comissões de socorros públicos con-
sequentemente prejudicaram o abastecimento dos gê-
neros alimentícios em vários pontos de concentração
de retirantes na província como Areia Branca, Natal
e Mossoró. No final de 1878, também se amplia a es-
tratégia das autoridades de converterem os socorros
públicos em “salários” para os trabalhos nas obras
públicas e melhoramentos materiais efetuados pelos
sertanejos na província.8 Assim, um quadro de insa-
tisfações estava compondo-se entre os retirantes con-
tra as autoridades, pois mesmo “aceitando” trabalhar
nas obras de melhoramento material para receber os
socorros, não estavam adquirindo sua alimentação
como espécie de salário pelo governo.
Logo, grupos de mulheres organizaram-se para
criticar e saquear os armazéns do governo na capital
da província: “Ontem nesta capital as mulheres em
número superior à 200, que haviam trabalhado nas
obras públicas” (Jornal do Recife, 13/2/1879, p. 1) e
não receberam salário por culpa do comissário do te-
souro; “foram aos armazéns do governo e os arromba-
ram, conduzindo algumas sacas de farinha, depois que
andaram pelas ruas bradando contra o governo, que
não queria pagar o seu trabalho!!! Quanta miséria!!”
(Jornal do Recife, 13/2/1879, p. 1). Na noite seguinte
houve um “segundo arrombamento dos armazéns pe-
las mulheres emigrantes, que no desespero da fome,
conduziram apenas 9 sacas de farinha que o governo
já comprou e o comissário do tesouro ainda não quis
pagar” (Jornal do Recife, 13/2/1879, p. 1). Consta-se
que o comissário havia se trancado na sua residência,
“para evitar que elas o atormentem. Retirando-se hoje
o Dr. Chefe de polícia e ficando esta capital, quase sem
⁸ A partir de 1878 encontra-se, em algumas cidades como Mossoró, um
crescente aformoseamento urbano e territorial feito pela mão de obra re-
tirante (MACIEL, 2013).

192
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

força pública, é muito de recear graves acontecimen-


tos muito breve, devendo pesar a culpa de tudo sobre o
ministério” (Jornal do Recife, 13/2/1879, p. 1).
As mulheres retirantes estavam organizadas
em suas ações de saque aos armazéns e atormenta-
vam a vida do comissário do tesouro da cidade de
Natal, pois queriam o pagamento de seu trabalho
nas obras públicas nessa seca de 1877-1879. Assim,
a fome não pode ser encarada como única e exclu-
siva chave de explicação aos episódios de saques.
Ao contrário, existe uma prática política e cultural
diluída na organização e atitude dos sujeitos no seu
espaço social, capaz de pressionar as estruturas de
poder dos grupos dominantes.
As mulheres retirantes foram presentes em
todos os momentos das ações diretas e formas de
organização no episódio de Areia Branca e Mossoró.
Desde a formação do cerco, confronto, saque e pri-
sões elas estavam envolvidas com os demais com-
panheiros sertanejos. O historiador E. P. Thompson
escreveu, em seu artigo sobre a economia moral da
multidão inglesa no século XVIII, que “quem começa-
va os motins era, com bastante frequência, as mulhe-
res” (THOMPSON, 1998, p. 183). Embora o contexto
inglês seja diferente do Brasil Império, inclusive no
espaço norte riograndense, a finalidade do historia-
dor era analisar a formação da multidão e seus com-
ponentes. A sua intenção é ilustrar a evolução de
uma multidão amotinada, que num momento pode
ser incitada “por mulheres, passando depois a ser um
conjunto de sexos e idades misturados, transforman-
do-se então (quando o objetivo é o resgate e o con-
fronto) num grupo predominantemente masculino.
Mas nada disso deve ser estereotipado” (THOMPSON,
1998, p. 240). Assim, Thompson chama a atenção
para o papel feminino na constituição das subleva-

193
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

ções na Inglaterra, e como a formação dos amotina-


dos podem, em vários momentos, constituir-se de di-
ferentes grupos com idades e gêneros diferentes, mas
ainda organizados pelos interesses em comum.
Outro aspecto abordado pelo autor era o papel
desempenhado pelas mulheres nas atividades do co-
mércio. Em muitos casos, elas eram as responsáveis
pela tarefa de ir ao mercado prover as necessidades da
família, realizando compras e trocas nas feiras das ci-
dades e vilas. Exerciam, portanto, um papel estratégi-
co na regulação (informal) das atividades do mercado
em períodos de crise, pressionando os comerciantes e
as autoridades públicas a baixarem os preços dos ali-
mentos de primeira necessidade, principalmente o
pão e trigo, alimentos mais consumidos no período da
revolução industrial. Embora associando os episódios
de confrontos diretos às ações masculinas, mas não
estereotipando numa fórmula abstrata, é relevante
problematizar outras experiências de revoltas popu-
lares, além de espaços e temporalidades, pois assim
poderemos entender as expressões de lutas políticas
desses sujeitos em contextos como a província do Rio
Grande do Norte, onde mulheres descendentes de po-
vos indígenas e africanizados que trabalham na la-
voura com toda a família, frequentando os mercados
e, em alguns casos, sendo chefes de família, estavam
muito longe daquela imagem de mulheres submissas
pintada pela historiografia tradicional potiguar.9
O historiador George Rudé também aponta a
presença feminina em vários momentos de revoltas
populares na França do século XVIII. As mulheres de-
sempenharam um papel destacado em muitas ocasi-
ões “– como na marcha sobre Versalhes, em outubro
de 1789, os motins da fome de 1792-3 e o levante final

⁹ Sobre essa historiografia oficial, consultar: CASCUDO, 1955; LYRA, 1921;


POMBO, 1922.

194
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

dos Sans-culottes, em maio de 1795 – quando os pre-


ços dos alimentos e outras questões relacionadas com
a sobrevivência ocuparam o primeiro plano” (RUDÉ,
1991, p. 222). O objetivo desses historiadores era com-
preender a multidão como um fenômeno histórico
vivo e multifacetado, analisando seus componentes e
experiências a partir de seus contextos históricos.
A presença feminina retirante no episódio de
Areia Branca e Mossoró ganha destaque nos vários
momentos que a multidão resolveu dialogar, negociar
e enfrentar as autoridades locais, responsáveis pelo
provimento dos socorros públicos. Sua presença no
discurso oficial surge justamente do “estranhamento”
das suas ações pela justiça imperial e imprensa nor-
tista, impressionadas por encontrá-las ao lado de seus
parceiros na multidão. Insubmissas, elas xingaram,
sitiaram, lutaram, saquearam, morreram e foram pre-
sas. Evidenciar as ações dessas mulheres não é impor-
tante somente para entender os elementos da própria
multidão e coletividade, mas é uma tarefa essencial na
reconstrução da escrita da história, reconhecendo-as
como sujeito político e histórico, inseridas no processo
social e nas relações sociais como um todo. Contrapo-
mo-nos, assim, ao “pressuposto de uma condição femi-
nina, idealidade a-histórica, [que] empurra as mulheres
de qualquer passado para espaços míticos sacralizados,
onde exerceriam misteres apropriados, à margem dos
fatos e ausentes da história” (DIAS, 1995, p. 13).
Outras grandes secas ocorreram nos anos
de 1889 e 1904, trazendo novamente a migração
de sertanejos para os pontos do litoral. Comissões
de socorros públicos foram feitas nas cidades mais
atingidas pelo fluxo de retirantes. Mossoró recebeu
em seu espaço milhares de sertanejos à procura de
alimento e trabalho. Os armazéns guardavam os
gêneros alimentícios enviados pelo governo repu-

195
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

blicano, mas a fome não parecia diminuir entre a


população. A distribuição não estava ocorrendo de-
vidamente, aumentando a insatisfação dos retiran-
tes. Não demorou para que um grupo de mulheres
armadas novamente tomassem providência.
A cidade de Natal recebeu o seguinte telegrama
de Mossoró: “Povo em desespero. Armazéns do gover-
no cheios de farinha. Mulheres armadas de machados
atacam depósitos, arrombam portas e tiram farinha.
Comissão parece reservar socorros pagamentos de vo-
tos”. Como é destacado na imprensa, não é provável
que o grupo de mulheres que arrombou os armazéns
de Mossoró tenham cometido tamanha violência pela
exaltação dos “vinhos capitosos de algum banquete
lauto: foi sem dúvida a alucinação da miséria, o desva-
rio da fome que lhes armou o braço”. A matéria ainda
diz que existia alimentos em Mossoró: “havia talvez
dinheiro, e naquela cidade bem pode existir alguma
obra proveitosa em que ocupassem os braços adventí-
cios” (A República, 21 out. 1889, p. 1).
Anos depois, o fotógrafo Bruno Bougard regis-
trou uma multidão de retirantes que migrou para a
cidade de Natal à procura de socorros públicos e traba-
lhos na seca de 1904.10 A preponderância de mulheres
salta ao nosso primeiro olhar na imagem. Vestidas de
longas saias, camisas de manga comprida e cobertas
de véus, espalhavam-se no espaço da rua, parecendo
não se importarem com a câmera fotográfica. Assim,
podemos acompanhar uma multidão composta de
mulheres, crianças e homens pobres do sertão que de-
cidem subir a rua da Ladeira, que liga o bairro da Ribei-
ra e Cidade Alta, passando na rua da Cruz, Junqueira
Ayres, onde residia o governador Tavares de Lyra, para
10
Foto de Bruno Max Bougard, foi encontrada no site do Instituto Tavares
de Lyra- Macaíba-Rio Grande do Norte. Disponível em:<http://www.histo-
riaegenealogia.com/2017/01/o-antigo-solar-do-governador-tavares-de.
html>. Acesso em 20 nov. 2018.

196
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

exigir providências à situação de miséria e abandono


pelas autoridades do Rio Grande do Norte.

Considerações finais

Refletir sobre as ações coletivas e formas de


resistência sertaneja nas grandes secas nas provín-
cias do Norte, identificando a presença e protagonis-
mo de mulheres nesses contextos é uma tarefa difícil
para o pesquisador. A documentação já criminaliza
as atitudes dos retirantes, mas quando esses grupos
são formados por mulheres, a tendência é minimizar
o impacto de suas ações, tomando-as como passivas,
ofuscadas e influenciadas pela “irracionalidade” de
sua natureza feminina e estado de fome. Por outro
lado, a figura feminina destaca-se quando o assunto é
a perversão dos costumes e moralidade, causada pela
miséria e presença dos retirantes nas cidades. Exem-
plo disso, a imprensa denunciava que na cidade de
Assú, “o povo está nu! Rapariguinhas de 12 a 15 anos
vagueiam pelas ruas da cidade esmolando o pão en-
volvidas em farrapos que mal amparam uns ou outra
parte do corpo!” (Brado Conservador, 24/3/1879, p. 3).
A historiografia acerca dos levantes populares
na Europa no século XVIII discutiu a presença femi-
nina nos motins da fome e revoltas campesinas, sua
influência na organização das multidões frente aos
avanços do capitalismo no espaço agrário. As mulhe-
res na historiografia vão aos poucos ganhando espa-
ço quando passam a ser reconhecidas como sujeitos,
atores sociais presentes nas transformações socio-
culturais e político-econômicas das sociedades. En-
tretanto, um problema se estabelece quando estamos
trabalhando com a categoria de multidão ou sujeito
coletivo. Essa não é a simples soma de indivíduos, pelo
contrário, a organização humana é uma construção

197
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

social, política e histórica, possui suas características


de arranjo, duração e protocolos que estão situados
em experiências vividas, ou seja, em conformidade
com as pressões, determinações e escolhas dos atores
sociais e seus contextos. Pensar a mulher como seg-
mento da coletividade é compreendê-la nos seus es-
paços de atuação e relação com os outros indivíduos,
desnaturalizando suas representações nos discursos
oficiais e eruditos, como também problematizando
sua construção, a partir de uma leitura relacional en-
tre seu sujeito e meio de representação do poder.11
Esse texto foi uma contribuição ao estudo da
presença das mulheres retirantes em episódios de sa-
ques e formas de resistência como sujeitos políticos
durante a seca de 1877-79 no Rio Grande do Norte. A
Base Nacional Comum Curricular (BNCC) traz as ca-
tegorias de Política e Trabalho como fundantes para
a investigação e a aprendizagem no ensino das Ciên-
cias Humanas e Sociais Aplicadas, utilizadas na com-
preensão das ideias, dos fenômenos e dos processos
políticos, sociais, econômicos e culturais. Todavia as
discussões em torno do bem comum, formas de orga-
nização da sociedade, as lógicas de poder estabelecidas
em determinados grupos e a micropolítica “são alguns
dos temas que estimulam a produção de saberes nessa
área” (BRASIL, 2017, p. 556).Como apontado, o estu-
do das categorias Política e Trabalho no Ensino Médio
permite aos estudantes “compreender e analisar a di-
versidade de papéis dos múltiplos sujeitos e seus me-
canismos de atuação e identificar os projetos políticos
e econômicos em disputa nas diferentes sociedades”.
Essas categoriais contribuem para que os estes pos-
11
A crítica feminista e pós-colonial sobre a mulher subalterna enfatiza a
importância das questões de gênero na história, na política e na cultura,
numa perspectiva interdisciplinar entre os campos como a Literatura, So-
ciologia, Antropologia e História. (BAHRI, 2013; CHAKRABARTY, 2010;
SPIVAK, 2010).

198
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

sam “atuar com vistas à construção da democracia,


em meio aos enfrentamentos gerados nas relações de
produção e trabalho” (BRASIL, 2017, p. 557).
Assim, nossa proposta foi trazer, a partir dessas
categorias, uma narrativa para o ensino de História na
perspectiva de uma história social dos grupos subal-
ternos da sociedade norte riograndense. Acreditamos
que na medida que novas construções narrativas das
experiências de homens e mulheres das camadas po-
pulares são colocadas em destaque na construção dos
processos históricos nos currículos e sala de aula, po-
demos ajudar no desenvolvimento de uma consciên-
cia histórica (RUSEN, 2010) que enxergue as relações
do passado e tempo presente como um espaço de luta,
solidariedade e resistência, desenvolvendo as habili-
dades e competências educacionais, tanto em profes-
sores como em alunos, sobre a relevância de estudar a
história: a formação de sujeitos de direitos.

Fontes

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Brado Conservador. Assú, 24 de março de 1879.
Brado Conservador. Assú, 21 de fevereiro de 1879.
Cearense. Fortaleza, 9 de fevereiro de 1879.
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Jornal do Recife. Recife, 13 de fevereiro de 1879.
Jornal do Recife. Recife, 27 de fevereiro de 1879.
O Cearense. Fortaleza, 26 de fevereiro de 1879.
BRASIL. Ministério da Justiça. Relatorio do Anno de 1878 Apre-
sentado a Assembléa Geral Legislativa na 2ª Sessão da 17ª Legis-
latura. Publicado em 1879. Inclui Annexos, Rio de Janeiro: Typo-
graphia Perseverança, 1979.

199
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

Referências

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sica. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Dire-
toria de Currículos e Educação Integral. Brasília: MEC, SEB, DICEI,
2013.
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nistas. Florianópolis, v. 21, n. 2, 2013, p. 659-688.
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de Mossoró. Edição Especial para o Acervo Virtual Oswaldo Lamar-
tine de Faria. Disponível em: <https://www.omossoroense.com.
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200
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TYLOR, Miles. As Guinadas Linguísticas na História Social Britâ-
nica. Campinas, n. 5, 1998, p. 77-90.

201
MULHERES, MESTIÇAS
E ABASTADAS: AS SINHÁS-DONAS
DA FAMÍLIA CASTRICIANO
DE SOUZA

Genilson de Azevedo Farias


Minh’ alma vai cantar, alma sagrada!
Raio de sol dos meus primeiros dias...
Gota de luz nas regiões sombrias
De minha vida triste e amargurada.

Minh’alma vai cantar, velhinha amada!


Rio onde correm minhas alegrias...
Anjo bendito que me refugias
Nas tuas asas contra a sina irada! [...].
(SOUZA, 2009, p. 45).

Introdução

Durante muito tempo a história oficial produ-


zida no Rio Grande do Norte que se debruçou sobre os
oitocentos deu ênfase a sujeitos das altas esferas do
poder trazendo a figura dos “grandes homens” e suas
ações nos campos político e econômico. Em contra-

202
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

partida, grupos inteiros ficaram de fora desses estudos


entre os quais negros, índios e trabalhadores pobres li-
vres que eram apenas mencionados, sendo na maioria
das vezes desqualificados, invisibilizados e anulados
das narrativas ditas oficiais.
Em relação às mulheres isso não foi diferen-
te e só bastante recentemente é que vemos trabalhos
sobre a temática se efetivarem, graças ao empenho
de pesquisadores e pesquisadoras filiados a grupos de
pesquisa que vêm trazendo do limbo a figura de mu-
lheres do passado, sobretudo a trajetória de escritoras,
professoras, artistas e intelectuais dos oitocentos. Esse
movimento foi possível graças à abertura proporcio-
nada pelos estudos culturais, mas também por causa
das lutas feministas ao longo da história, corroboran-
do com o que a historiadora Michelle Perrot afirmou: “o
desenvolvimento da história das mulheres acompanha
em surdina o ‘movimento’ das mulheres em direção à
emancipação e à libertação” (PERROT, 2015, p. 15).
Nesse sentido, o texto que apresentamos por
ora busca embasar-se nessas reflexões e tem como ob-
jetivo analisar as representações que foram produzi-
das sobre as mulheres da família Castriciano de Sou-
za, utilizando como fontes o livro Memórias (1975) de
Eloy de Souza, a Nota escrita por Henrique Castriciano
para a segunda edição do Horto (1911), e a biografia
Vida Breve de Auta de Souza (1961) escrita por Câmara
Cascudo. Além dessas referências, também utilizamos
a documentação da Massa falida da Casa Comercial
Paula Eloy & CIA. Ao darmos visibilidade às mulheres
da família Castriciano de Souza é possível perceber que
embora elas tivessem vivido imersas em uma cultura
rural, católica e patriarcal nos oitocentos, suas trajetó-
rias contrariam algumas imagens formuladas por cro-
nistas e viajantes de que as mulheres da Casa-Grande
eram meras vítimas passivas do domínio masculino.

203
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

Nossa pesquisa vem ampliar o conhecimento


historiográfico do Rio Grande do Norte a partir do
viés da história das mulheres. A exemplo da senhora
Silvina de Paula Rodrigues, a avó materna de Auta
de Souza, Henrique Castriciano e Eloy de Souza, as
mulheres de famílias abastadas estiveram às voltas
atuando em posições de mando e exercendo lideran-
ça no ambiente doméstico, sobretudo em relação
aos filhos, netos e escravos.
No entanto, as vidas dessas mulheres também
foram envolvidas num silenciamento pelos estudos
clássicos sobre a história do Rio Grande do Norte, en-
tre eles, os de Câmara Cascudo, ocultamento este que
se estendeu em outras obras mais recentes tais como:
(MONTEIRO, 2007; SUASSUNA; MARIZ, 2005) as quais
são utilizadas como material didático por alguns pro-
fessores nas escolas de ensino básico. É importante
discutir em sala de aula sobre a trajetória de outros su-
jeitos, permitindo que os estudantes reconheçam esse
passado como resultado das ações empreendidas por
homens e por mulheres e, assim, se percebam tam-
bém enquanto construtores da história.

Questões de método, recortes e fontes

No nosso estudo buscamos entender como no


esforço de construção de uma memória para a família
Castriciano de Souza, cujos representantes mais des-
tacados foram os intelectuais Auta de Souza (1876-
1901), Henrique Castriciano (1874-1947) e Eloy de
Souza (1873-1959), processou-se representações so-
bre as mulheres desse grupo familiar. Por representa-
ções, utilizamos a definição tal qual pensada por De-
nise Jodelet, para quem representar ou se representar
tem a ver com a forma de como um sujeito se reporta a
um objeto, como o pensa, como o vê (JODELET, 2001).

204
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Dessa forma, pensar numa representação para


as mulheres dessa família é pensar numa imagem
aristocrática produzida por escritores homens e que
se estendeu inclusive para a poeta Auta de Souza que
no seu tempo ousou se fazer escritora na imprensa
de seu estado e para além deste.1 É também pensar
em espaços delimitados, em normas de conduta e em
valores tidos como ideais a serem seguidos pelas mu-
lheres da elite, que se moviam entre as estruturas do
patriarcado (SAFFIOTI, 2004). Todavia, dentro dessas
estruturas havia margem de manobra por onde essas
mulheres atuavam e se sobressaiam.
Para perceber a atuação dessas mulheres,
utilizamos o mesmo método utilizado por Sidney
Chalhoub (2003) nas análises dos escritos literários
de Machado de Assis. Nesse sentido, analisaremos
as obras citadas acima visando entender a imagem
que Câmara Cascudo (1961), Henrique Castriciano
(1910) e Eloy de Souza (1975) fizeram das mulheres
em relação a outros entes da família. O método em-
pregado por Chalhoub aproxima história e crítica li-
terária tomando os romances e contos machadianos
como objeto de análise, visualizando neles as trans-
formações do período bem como o perfil da socie-
dade oitocentista de base aristocrática, escravista e
paternalista em que os personagens viveram.
Sobre as obras utilizadas como fontes, observa-
mos que, cada um de seus autores a seu modo, dispen-
deu esforços para a construção de uma determinada
memória e proporcionou ainda a visualização de um
contexto de dominação social através de uma situação
familiar específica tal como os romances de Machado
de Assis também o fizeram. Vale colocar que os textos
¹ É importante colocarmos que neste artigo não trataremos das represen-
tações que estes mesmos autores produziram sobre/para Auta de Souza.
Para quem tiver interesse em aprofundar os estudos nessa questão indica-
mos os trabalhos de nossa autoria: (FARIAS, 2013, 2018, 2021).

205
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

destes autores que estão sendo tomados como fonte


nesta pesquisa possuem historicidades distintas a sa-
ber: a de quando eles escreveram, ou seja, na primeira
metade do século XX e o tempo em que os fatos nar-
rados se passaram: as décadas de 1870, 1880 e 1890,
momento de profundas mudanças para o Brasil nos
campos econômico, político, social e cultural.

Sinhá-donas: Dindinha, Tatá – Cosma,


Chiquinha, Cordina, Zulina
e Henriqueta Leopoldina

Tal como dissemos anteriormente, durante


muito tempo se acreditou que as mulheres abastadas
do Brasil colonial e também imperial levavam uma
vida oprimida e enclausura bem como acomodada
no interior de suas casas e fazendas. Isso se deve, em
grande medida, aos escritos de cronistas e viajantes
que por aqui passaram relatando, seja através da escri-
ta ou através do desenho, suas impressões da realida-
de de então. Entre eles, destacamos o português Hen-
ry Koster (1793-1820) e os franceses Charles Expilly
(1814-1886) e Jean Baptist Debret (1768-1848).
Anos mais tarde estudiosos da história e da
cultura do Brasil, tais como o pernambucano Gilber-
to Freyre, se debruçaram sobre essas narrativas tor-
nando essas imagens hegemônicas, sendo reforçadas
em alcunhas tais como: “[...] gordas, moles, criavam
papada [...]”, “[...] com ar de velhas [...]” (FREYRE,
1998, p. 347). Sobre as mulheres oitocentistas Gil-
berto Freyre escreveu ainda:
[...] não se queria ouvir a voz na sala, entre conversas de
homem, a não ser pedindo vestido novo, cantando modi-
nha, rezando pelos homens; quase nunca aconselhando
ou sugerindo o que quer que fosse de menos doméstico,
de menos gracioso, de menos gentil; quase nunca meten-
do-se em assuntos de homem (FREYRE, 2004, p. 224).

206
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

No entanto já há algum tempo que as mulheres


do passado pertencentes à elite vêm recebendo uma
maior atenção por parte dos estudiosos e estudiosas,
os quais demonstram que mesmo havendo limita-
ções impostas pela cultura patriarcal vigente, e alguns
privilégios próprios do grupo a que pertenciam, em
nada suas vidas eram tranquilas e sedentárias (MA-
LUF, 1995; SILVA, 2017; SETTE, 2005). Gilberto Freyre
(1998) salienta que as sinhá-donas eram todas as mo-
ças de família patriarcal que ascendiam ao status de
mulher casada momento em que deixavam de ser si-
nhá-moças e assumiam a administração da casa e a
criação dos filhos. Inclusive, o escritor pernambucano
Mário Sette no romance Senhora de Engenho (2005)
tratou da realidade das mulheres casadas em seus en-
genhos a partir da personagem Dona Ignacinha que
era casada com um importante senhor de engenho de
Pernambuco. Assim ele escreveu:
-Olhe minha filha, vá mais Betânia. Ela lhe mostra
tudo direitinho viu? Eu não vou também por cau-
sa de minha lida. De manhã é um aferventado de
coisas... Repare: aquela meninada vem buscar lei-
te. No pátio, punhado de crianças, filhas dos mo-
radores, traziam vasilhaes para encher de leite, as
sobras das vacas, dadas caritativamente pela bon-
dosa senhora (SETTE, 2005, p. 77, grifos nossos).

Conforme é sugerido acima o regime de traba-


lho diário na administração de seus lares era exausti-
vo, exigindo delas iniciativa e ação no âmbito de uma
rotina de trabalho bastante onerosa. Nesse sentido,
neste texto buscamos trazer para este campo um caso
em particular: as mulheres da família Castriciano de
Souza (avós e mães) que tal como as demais mulheres
enfatizadas nas pesquisas acima citadas foram mulhe-
res de seu tempo e que se moveram dentro dos limites
da domesticidade, mas cujos reflexos dessas mesmas
ações excediam em muito esses mesmos recortes, de-
207
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

monstrando que a vida das matronas estavam atre-


ladas a atividades de expressiva significação social.
Exemplo disso foram as experiências da senhora Sil-
vina de Paula Rodrigues (1828-1908), a avó materna
dos Castriciano de Souza, ou simplesmente Dindinha,
como era comumente chamada segundo Eloy de Sou-
za (1975) e Câmara Cascudo (1961).
Sobre Dindinha o que encontramos em nossas
pesquisas foram breves menções nos textos que deram
destaque aos seus netos: Auta de Souza, Henrique Cas-
triciano e Eloy de Souza. Coube ao cordelista Mané Ber-
radeiro a importante iniciativa de escrever o cordel A
avó com a saia de merinó: a poética história de Dindinha
(2017) trazendo-a para o centro de sua narrativa, enfa-
tizando pontos importantes de sua vida para prestar,
assim, uma merecida homenagem à matriarca dos (re)
conhecidos intelectuais do Rio Grande do Norte.
Nas narrativas de Câmara Cascudo a distin-
ta senhora aparece sempre enquanto um modelo de
resignação e obediência ao marido. A este Dindinha
dava sopa no jantar perguntando-lhe sobre o anda-
mento dos negócios, mas sempre de forma acanhada
para não parecer invasão à privacidade do esposo, o
influente comerciante Francisco de Paula Rodrigues,
que as crianças chamavam de vovô Paula. Nas falas de
seu neto Eloy de Souza, Dindinha correspondia a um
ideal de mulher muito louvado pela hierarquia da ca-
sa-grande, acordando cedo, preparando tudo para o
novo dia, o café da manhã do marido e dos netos, ob-
servando a colheita das frutas pelos escravos para a
vendagem, cuidados que se redobravam na ausência
do senhor Paula (FARIAS, 2013, 2018).
Além disso, Dindinha se esmerava trabalhan-
do para bem receber os convidados do esposo que iam
até a sua casa para tratar de negócios (SOUZA, 1975).
Vale destacar que as ações da distinta senhora, con-

208
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

forme atesta Eloy de Souza, se davam sem romper


com submissão ao marido Francisco de Paula Rodri-
gues, sem levantar a voz em nenhuma circunstância
e sem nunca dar ordens, nem mesmo aos escravos.
Mesmo após o casamento oficial, Dindinha conti-
nuou vestindo-se de forma sóbria e discreta confor-
me afirmou o neto Eloy (SOUZA, 1975). Possivelmen-
te, o vestir-se de forma mais neutra da senhora fosse
também um traço próprio das mulheres sertanejas
conforme observou Miridan Falci (2013).
Segundo Cascudo, Dindinha foi uma mulher
simples oriunda da cidade de Goiana, em Pernambu-
co (CASCUDO, 1961). De temperamento manso, tí-
mida e doce, esteve ao lado do marido até o momen-
to de sua morte em 29 de outubro de 1888, quando
então ficou viúva. Dindinha ocupava uma posição
fundamental na estrutura da família, certamente
porque atuava na manutenção da ordem domésti-
ca, mas ao contrário do que Cascudo e Eloy escreve-
ram sobre ela, não observamos Dindinha sendo tão
somente subordinada, ela foi o pilar sobre o qual a
família se estruturou, sobretudo após a morte da fi-
lha em 1878, do genro em 1881 e finalmente de seu
marido em 1888, quando ficou sob sua responsabi-
lidade a guarda de cinco crianças órfãs.
Foi ainda Dindinha, a “querida avozinha” que
merecia obter a santidade segundo Eloy por ela ter
dedicado todos os anos de sua vida aos familiares
enfermos, vendo-os morrer progressivamente, cui-
dando com dedicação e um saber que excedia o dos
médicos (SOUZA, 1975). Tanta dedicação e afeto dis-
pendidos por ela obteve também o reconhecimento
da neta Auta de Souza no poema A minha avó, o qual
trouxemos como epígrafe para este texto. No poema
de Auta podemos ver atributos que reforçam o lu-
gar de centralidade de Dindinha em relação à afeti-

209
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

vidade da poeta. São eles: “Velhinha amada”, “alma


sagrada”, “raio de sol dos primeiros dias”, “anjo ben-
dito”, “Rio onde correm minhas alegrias”.
Tal como muitas das mulheres ricas de sua épo-
ca, Dindinha era analfabeta indiciando assim o siste-
ma educacional precário do Império brasileiro. Muitas
mulheres da época deixavam o fato expresso em do-
cumentos, “pedindo ao tabelião que assinasse, a seu
rogo, “por não saber ler nem escrever’” (FALCI, 2013,
p. 252). Dindinha por sua vez, por não poder exprimir-
-se por escrito, passou uma procuração para o advo-
gado Dr. Francisco de Paula Sales para que ele pudesse
advogar pelos bens dos seus netos no momento em
que foi declarada a falência da empresa da família. Em
procuração datada de 06 de agosto de 1891 é colocado:
[...]. Saibam, quantos este público instrumen-
to de procuração bastante virem, que no ano do
Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil
oitocentos e noventa e um, aos seis de agosto nes-
ta cidade do Recife em meu cartório a rua 15 de
Novembro nº 42 perante mim compareceu como
outorgante D. Silvina de Paula Rodrigues como tu-
tora de seus netos menores Eloy, Henrique, Auta,
João Câncio e Irineu já falecido conhecida de mim
e das testemunhas abaixo assignadas dou fé. E pe-
rante elas disse: Que pela presente, constitua seu
procurador no Estado do Rio Grande do Norte ao
advogado Dr. Francisco de Paula Sales a quem con-
fere poderes especiais para defender os interesses
dos ditos seus netos tutelados na falência da Fir-
ma Paula Eloy & Cia do Rio Grande do Norte po-
dendo requerer e negociar tudo quanto for a bem
dos mesmos menores, comparecendo às reuniões
de credores, votando na concordata, aceitando-a
ou denegando-a, procedendo em tudo como se a
outorgante presente fosse que para o dito fim lhe
concede todos os poderes em direito [...]. (Docu-
mentação da massa falida da Casa comercial Paula
Eloy & CIA, caderno 1).

210
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Além de ser analfabeta tal como muitas mu-


lheres da época e de não ter sido alfabetizada por
vontade própria conforme atestado por Eloy, Dindi-
nha também não se deixou fotografar pois acredita-
va que a alma se perdia quando a fisionomia era re-
produzida pela máquina ou pelo desenho (CASCUDO,
1961). Cascudo reforça que esse pensamento da se-
nhora Dindinha estava ligado à sua origem, que ele
identificou como sendo a “velha raça”. Dindinha era
chamada de mulatinha, escura e mais outros tantos
adjetivos que recebeu, sobretudo do neto Eloy, o que
sinaliza para a sua origem racial ligada aos negros e
aos índios da região de pernambucana.
Embora firme em suas ações, a afetuosidade
se fazia presente no cotidiano da casa familiar. Din-
dinha também é descrita como presente nos diver-
timentos dos netos, sobretudo nos de Auta quando
esta brincava de dona de casa, processo este de pro-
dução dos gêneros que foi chamado por Peter Berger
e Thomas Luckmann (BERGER; LUCKMAN, 1985) de
socialização primária, a qual se dá ainda na infância.
Pierre Bourdieu por sua vez, observou que este pro-
cesso estimula desigualdades entre meninos e me-
ninas, diferenciando-os, impulsionando os meninos
à aquisição de habilidades para executar atividades
de comando e por isso a maioria das brincadeiras de
meninos serem fora de casa. Já às meninas são apre-
sentadas uma série de brincadeiras ligadas ao mundo
doméstico, entre elas, o brincar de boneca e o brincar
de dona de casa (BOURDIEU, 2007).
Eloy salientou que Dindinha levava os netos
para passear nas fazendas do marido no interior do
Rio Grande do Norte, dedicando horas na cozinha fri-
tando pastéis no Natal, fazendo pão-de-ló, doces e bo-
los e assando o carneiro nas festas de São João (SOUZA,
1975). Dentro desta perspectiva de conferir atributos

211
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

positivos à imagem formada para a avó, Eloy afirmou


também que mesmo analfabeta foi ela que estimulou
os netos desde a infância a seguir dentro de uma for-
mação cultural católica através das práticas da oração,
da caridade e ajuda aos mais necessitados e os incenti-
vou a investir na educação formal.
Foi Dindinha que orientou os netos para que
prosseguissem na vida escolar se esmerando em
acompanhar de perto a educação deles que se fazia em
colégios de Recife. Na autobiografia da escritora ceara-
mirinense Magdalena Antunes é narrado um encontro
interessante a bordo do Navio Una, encontro este que
a memorialista registrou ter sido em 1891 ano este em
que seus pais a levaram para se matricular num colé-
gio interno em Recife, tal como Auta de Souza, que no
Colégio São Vicente de Paulo já estudava desde 1888
(GOMES, 2013). Assim Magdalena escreveu:
Passamos quase dois dias em Cabedelo. A bordo
minha mãe fez amizade com uma simpática se-
nhora, a dona Silvina, de trato agradável e bem
educada. Tenho vaga recordação de seu físico que hoje
se me afigura pequenino e esguio. Guardo, porém,
nítido o sentimento de uma bondade que jamais
se apagou de minha imaginação. Insensivelmente
aproximava-me dela que me recordava a tia Melâ-
nia. O respeito à velhice e admiração pelas pessoas
modestas e boas se iniciavam para fazer parte da
minha natureza. Em conversa com minha mãe a
dona Silvina contou-lhe algo de sua vida. Morreu-
-lhe a única filha deixando cinco crianças entre as
quais uma menina. Ela fora encarregada de guiá-
-las pelo resto da vida. Os meninos estudavam em
Recife e a menina no Colégio da Estância, onde era
conhecida pelo nome de “lírio do colégio”, tal sua
angelical conduta e aplicação aos estudos. Eu es-
cutava aquela história pesarosa por não conhecer
a “menina lírio”. Mais tarde, no camarote, pedi a
minha mãe que me pusesse no Colégio da Estância
em vez de no outro. Queria ser um lírio também,
Ela, porém, respondeu-me – Não! O teu colégio é

212
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

o São José, o colégio da dona Yayá. Estava escrito:


Lírio – Auta de Souza. Eu seria apenas a haste espi-
nhosa de planta rasteira. (ANTUNES, 2003, p. 56-
57, grifos nossos).

Certamente esse encontro de Silvina com


a família Antunes de Ceará-mirim aconteceu em
uma das idas de Dindinha a Recife que nesta cida-
de ia tratar de saber do andamento dos estudos de
seus netos pois, mesmo sendo ela analfabeta, era ela
quem agenciava a vida das quatro crianças. Vale res-
saltar que o irmão mais novo já havia falecido em
1887 em decorrência da explosão de um candeeiro
que o carbonizou. Após a menina Auta de Souza ser
diagnosticada com tuberculose aos 14 anos de ida-
de todos regressaram para o Rio Grande do Norte se
instalando em Macaíba (GOMES, 2013).
Segundo Cascudo, a partir dos escritos feitos
por Eloy de Souza, Dindinha era fisicamente “uma
criaturinha pequena, fraca, morena, cabelo emara-
nhado”. (CASCUDO, 1961, p. 28). De corpo franzino
e baixa estatura certamente ela era tal como obser-
vou Magdalena Antunes ao dar realce à aparência
da avó dos Castriciano. Todavia, fraca certamente
ela não foi como afirmou Câmara Cascudo e Eloy de
Souza afinal, tomar as rédeas de sua família exigiu
dela, acima de tudo, coragem que a fez suportar tan-
tas dificuldades e perdas ao longo da vida. Ainda se-
gundo Câmara Cascudo:
Silvina jamais possuiu o conhecimento alheio,
agenciado, ensinado, imóvel dos livros. Todas as
soluções foram resultados de elaborações perso-
nalíssimas de sua lógica. Era cultura mas cultura
tradicional, popular, milenar, transmitida pela
oralidade, bom-senso que independe das lógicas
sucessivas que cada século consagra em sua dialé-
tica oficial. Coube-lhe a tarefa de educar cinco ne-
tos, todos poetas e dois chegaram ao legislativo e
ao Executivo; [...] (CASCUDO, 1961, p. 28).

213
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

Acima, vemos que Cascudo deu realce a algu-


mas experiências que poderiam ser vistas como ne-
gativas, sobretudo em relação à cultura popular e a
oralidade. Todavia ele, juntamente com Eloy e Hen-
rique, ressaltou e valorizou em suas narrativas algo
de excepcional em Dindinha: afinal, não é qualquer
analfabeta que cria poetas e políticos. O fato é que foi
a senhora Dona Silvina, mestiça da cidade de Goiana,
analfabeta, de origem humilde, de tradições culturais
e religiosas populares que ficou a cargo da criação dos
cinco netos órfãos após a morte de sua filha Henrique-
ta Leopoldina, do genro Eloy Castriciano e mais tarde
do marido Francisco de Paula Rodrigues.
Sendo assim, dentro daquela estrutura fami-
liar, ela passou a exercer sozinha a posição de poder
dentro do seu lar, fazendo-se mais respeitada e obede-
cida do que antes pelos netos, escravos e empregados.
Tal como afirmou Michelle Perrot:
As mulheres do século XIX [...] não foram somente
vítimas ou sujeitos passivos. Utilizando os espa-
ços e as tarefas que lhes eram deixados ou confia-
dos, elas elaboraram, às vezes, contrapoderes que
podiam subverter os papéis aparentes. Há abun-
dantes imagens de mulheres resplandecentes, de
avós reinando sobre sua linhagem [...] (PERROT,
2005, p. 273).

Acreditamos que Dindinha foi uma dessas mu-


lheres do século XIX que reinou sobre sua família tal
como enfatizou a historiadora. Devido às circunstân-
cias que incidiram sobre a sua vida, a senhora preci-
sou se adaptar de forma rápida às novas configurações
que se apresentavam. No entanto, a maioria das tra-
jetórias de mulheres do passado não ficaram conheci-
das, seja porque não deixaram registros de suas vidas
ou porque esses registros, se existiram, tiveram o aces-
so público vetado pelos familiares, fato que as legaram
ao silêncio da história.
214
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Dindinha aparece como uma transgressão den-


tro do cenário da casa-grande que foi desenhado por
Gilberto Freyre (1998) haja vista que não era comum
uma mulher de origem pobre adquirir poder e que
mesmo dentro do seu “silêncio” foi basilar na vida de
seus descendentes. Ao nosso ver, Dindinha foi uma
transgressão dentro daquela sociedade, haja vista que
não era comum pessoas advindas dos mesmos estra-
tos sociais que ela adquirirem projeção e subir na hie-
rarquia de uma sociedade elitista, racista e excludente.
A rigor, Dindinha possuía origem desconhecida, mas
por seu fenótipo era identificada como descendente
de negros e/ou de índios, conforme já salientamos an-
teriormente (FARIAS, 2013, 2018).
Como indício das ações administrativas de
Dindinha no espaço doméstico está a sua atuação
sobre os empregados e escravos da chácara. Estes úl-
timos saíam pelas ruas do arraial em Recife venden-
do frutas, os bolos e doces que ela preparava, eram
os chamados escravos de ganho (DIAS, 1995). Vale
ressaltar que a família passou por problemas finan-
ceiros com o declínio da Firma Paula Eloy & CIA que
tinha sede em Macaíba. Segundo Miridan Falci, al-
gumas mulheres nesse momento, viúvas ou de uma
elite empobrecida, faziam doces e outras atividades
visando ajudar no sustento dos filhos (FALCI, 2013).
Nesse sentido, acreditamos que como forma de aju-
dar nas despesas da casa a senhora Silvina se valeu
desse recurso. Conforme nos diz Eloy:
Dindinha, todas as manhãs, depois da colheita das
frutas, arrumava os taboleiros que eram carrega-
dos na cabeça por João, Brasiliano e José. Quando
regressavam, ela lhes tomava as contas, dispondo-
-as em tulhas verticais de moedas de cobre, segun-
do a taboada daquele tempo: selo, pataca e cruza-
do (SOUZA, 1975, p. 11).

215
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

E na citação abaixo Eloy deixou bastante claro


que dentro do ambiente doméstico dos Castriciano de
Souza não havia tanta harmonia entre senhores e es-
cravos como sugere em maior parte de sua memoria-
lística. O sumiço do dinheiro da vendagem das frutas
da chácara demonstra que havia contendas que eram
resolvidas pelos senhores castigando seus serviçais.
A violência física conforme podemos observar era
utilizada pelos senhores como forma de corrigir o
que avaliavam como mal feito. Na passagem abaixo,
Dindinha deixou de lado a pretensa submissão e do-
cilidade que lhe era peculiar e puniu o neto por ele ter
mentido para salvar o escravo. Vejamos:
Certa vez, desapareceu uma tulhazinha, de um
selo, 240 réis. Dindinha perguntou quem havia
tirado. Eu vi que tinha sido João e para salvá-lo
apresentei-me como o autor da subtração. O in-
quérito sumário denunciou-me e, por isto, apa-
nhei seis bolos. Fiquei indignado. Passei todo o
restante do dia sem falar com Dindinha. No dia
seguinte, quinta-feira, ela foi ao Recife e, de lá
voltando, chamou-me e disse as seguintes pa-
lavras: - Você ficou zangado comigo por eu ter
dado uns bolos injustamente. Você apanhou
porque mentiu e um homem não deve mentir
em circunstância alguma. Trouxe-lhe este pe-
queno relógio como prêmio à sua boa ação!...
(SOUZA, 1975, p. 11, grifos nossos).

O fato de Eloy ter colocado que houve a neces-


sidade de um salvamento já denota que no ambiente
doméstico havia punição contra os escravos e que
Silvina tinha plenos poderes para castigá-los. Mes-
mo possuindo a mesma origem racial dos trabalha-
dores escravizados, juridicamente estavam em posi-
ções diferenciadas, afinal ela era a senhora da casa e
João seu serviçal. Outra cena em que podemos visu-
alizar uma aparente harmonia no espaço domésti-
co da casa senhorial é a reproduzida pelo desenhis-

216
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

ta francês Jean-Baptist Debret (1768-1848) em seu


quadro Uma senhora brasileira em seu lar.
Na imagem, que é facilmente encontrada na
internet por aqueles que tiverem interesse em co-
nhecê-la, a senhora e a sinhá-moça se dedicam res-
pectivamente à costura e ao aprendizado das pri-
meiras letras. A senhora e a menina estão no centro
da imagem, enquanto as escravas que também estão
costurando aparecem margeando as mulheres bran-
cas. Há também crianças negras brincando ao chão
e um menino negro serve uma bebida para a sua
senhora. Em sua pintura Debret retratou uma pre-
tensa harmonia entre senhoras e escravos, todavia,
um símbolo da autoridade passa-se despercebido ao
expectador desatendo: uma chibata que pende do
cesto de costura e que se encontra de fácil alcance
da senhora. É possível que este objeto fosse movido
pela senhora contra qualquer um dos escravos que,
desatento ou por vontade, subvertesse a ordem es-
tabelecida por ela (FARIAS, 2013, 2018).
A cena produzida por Debret se assemelha
com a cena descrita por Eloy de Souza, uma vez que
Dindinha, embora aparentemente mansa e submissa
conforme é exaustivamente descrita nas narrativas
aqui salientadas, tinha autoridade para castigar o es-
cravo João pelo sumiço do dinheiro. Como o seu neto
assumiu a culpa, foi ele que recebeu os bolos na mão,
agressão que ela tentou posteriormente reparar pre-
senteando o neto injustiçado com um relógio.
Outras mulheres da família também demons-
traram o mesmo perfil de Dindinha no que tange às
ações administrativas do lar. Além dela, os Castriciano
de Souza ainda tiveram outra avó por parte do pai Eloy
Castriciano, de nome Cosma que era casada com Félix
do Potengi Pequeno. Tal como Dindinha, a origem ra-
cial de Cosma é uma incógnita, mas cogitamos a partir

217
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

dos nossos estudos que ela também foi remanescente


índia, negra ou mestiça. Conforme Câmara Cascudo
(1961), Cosma teve que observar os namoros do ma-
rido de forma resignada, evitando conflitos chegando
inclusive a criar filhos dele com outras mulheres junto
aos filhos naturais do casal.
Félix do Potengi Pequeno, marido de Cosma e
avô paterno dos Castriciano de Souza, se tornou cé-
lebre pela atividade de vaqueiro e posteriormente de
administrador das fazendas de seu sogro, mas tam-
bém por suas aventuras extra-conjugais (CASCUDO,
1961). Vemos nessas posturas da esposa em relação
ao marido um exemplo de violência simbólica tal
como pensado por Pierre Bourdieu, haja vista que
esta forma de violência se institui intermediada pela
adesão que o dominado não pode deixar de conceder
ao dominante (BOURDIEU, 2007).
As mulheres na narrativa de Eloy e de Cascudo
aceitam os relacionamentos extraconjugais dos ma-
ridos, comportamento respaldado pela ordem social
estabelecida, haja vista que uma mulher não deveria
sobrepor-se ao homem, pois tal como instituído pela
dominação masculina, uma mulher deve se sentir di-
minuída na mesma medida em que o homem fosse
diminuído. Nesse sentido, dentro da lógica patriarcal,
o adultério praticado pelo homem era algo naturaliza-
do, ou seja, fazia parte da própria cultura em que estes
indivíduos estavam inseridos tal como é visualizado
no romance Helena (2002) de Machado de Assis.
Em relação a isso, Bourdieu, observou também
que esse privilégio masculino engendra em si mesmo
uma cilada, pois impõe ao homem o dever de afirmar
sua virilidade (BOURDIEU, 2007). Para Bourdieu a vi-
rilidade deve ser “entendida como capacidade repro-
dutiva, sexual e social, mas também como aptidão ao
combate ao exercício da violência (sobretudo em caso

218
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

de vingança), é, acima de tudo uma carga” (BOURDIEU,


2007, p. 64). Conforme nos diz Gilberto Freyre, não era
nenhum orgulho para a família patriarcal terem filhos
“donzelões” e “maricas”. O que sempre se valorizou foi
o menino “que cedo estivesse metido com raparigas
[...]. Deflorador de mocinhas. E que não tardasse em
emprenhar negras” (FREYRE, 1998, p. 372).
Tal como a condição dos demais dependentes,
a condição feminina era de submissão à autoridade
que emanava da figura do patriarca, que se valia do
direito de controlar a vida da esposa, da(s) amante(s)
e, também, das filhas mulheres (FILGUEIRA, 2011).
Sendo assim, a infidelidade do homem era comum
e tornava-se prova cabal de sua virilidade. A única
dentre as mulheres que Eloy de Souza narrou que não
passou por um caso de traição por parte do marido foi
sua mãe, a senhora Henriqueta Leopoldina de Paula
Rodrigues (SOUZA, 1975). O pai dos Castriciano nas
narrativas aparece enquanto homem íntegro, traba-
lhador, apaixonado pela esposa e devotado à família.
Tanto é que na perspectiva do filho, após a morte da
esposa, o senhor Eloy Castriciano de Souza não se ca-
sou novamente como era comum, mas se entregou à
política negligenciando a própria saúde, o que o fez
adoecer e falecer logo em seguida.
Eloy de Souza lembra ainda da avó Cosma
que viveu resignada, vitimada pelo reumatismo
(SOUZA, 1975). A tia Chiquinha, irmã de Félix, ti-
nha o humor volúvel dependendo da enxaqueca
que a acompanhava. Mesmo entrevada pelo reu-
matismo, de sua cadeira fiscalizava o movimen-
to da casa, gostava de ler, versejava e praticava a
caridade (SOUZA, 1975). Já sobre as tias paternas
Zulina e Cordina, Eloy nada descreveu, mas é pro-
vável que não tenham se diferenciado das demais
mulheres descritas por ele.

219
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

Outra figura nesse cenário de mulheres da


família foi Henriqueta Leopoldina de Paula Rodri-
gues, a mãe dos Castriciano de Souza. Com exceção
do fato de ser mestiça, dentro da rígida hierarquia
social do Nordeste patriarcal, Henriqueta configu-
rava-se como modelo ideal de mulher por ser filha
de fazendeiro, herdeira de escravos, gado, imóveis e
terras. Embora tenham tido pouco convívio com a
mãe, ela é descrita como sendo uma mulher sempre
bonita e arrumada às modas da época e com muitas
amigas em Macaíba. Fisicamente foi assim descrita:
“A pele do rosto era cor de jambo e os cabelos longos
e cacheados” (SOUZA, 1975, p. 10).
Henriqueta aparece na narrativa do filho sem-
pre bastante compreensiva, tolerante, de esmerada
educação e de postura corporal submissa. Câmara
Cascudo por sua vez endossou: “sinhá-moça de vin-
te anos incompletos, de prendas domésticas, lida em
livros, morena côr de jambo, pele macia como cam-
braia, olhos submissos” (CASCUDO, 1961, p. 29).
Pierre Bourdieu salienta que a dominação masculi-
na institui que as mulheres precisam ser: “‘femini-
nas’, isto é, sorridentes, simpáticas, atenciosas, sub-
missas, discretas, contidas ou até mesmo apagadas”
(BOURDIEU, 2007, p. 82).
Segundo Gilberto Freyre, o comportamento
das meninas e moças de família patriarcal era alvo
de constante vigilância, sendo valorizadas aquelas
meninas que desde tenra idade transparecessem
medo e timidez. Odiava-se as malcriadas, respon-
donas e com espírito inventivo. As moças precisa-
vam ostentar o “ar humilde que as filhas de Maria
ainda conservam nas procissões e nos exercícios
devotos da Semana Santa, as meninas de outrora
conservam o ano inteiro” (FREYRE, 1998, p. 421).
Em outro texto o sociólogo colocou:

220
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Docilidade e acanhamento eram a principal


graça de uma sinhazinha. A menina aprendia a
ser tímida ou, pelo menos, a mostrar-se tímida
diante dos estranhos, como se aprendesse uma
arte. A moça brasileira [...] tornava-se por ve-
zes mestra dessa delicadíssima arte, a timidez
(FREYRE, 2008, p. 96).

Henriqueta também era mestiça conforme po-


demos observar na expressão “morena côr de jambo”
utilizada por Eloy e por Cascudo, termos estes que
também são utilizados por eles para se referir a Auta
de Souza. Em meio a uma sociedade miscigenada, o
branqueamento das famílias era apreciado e Henri-
queta trazia no corpo as marcas da miscigenação ra-
cial (FARIAS, 2013, 2018). Nesse sentido, acreditamos
que o fato de ser mestiça talvez tenha pesado contra ela
no momento de estabelecer o seu matrimônio. Nossa
suspeita recai quando pensamos no fato de Henrique-
ta só vir a casar com vinte anos, quando o ideal era que
uma moça nordestina se casasse por volta dos quinze
ou antes disso (FALCI, 2013). Sobre esse dado Gilber-
to Freyre colocou: “Foi geral, no Brasil, o costume de
as mulheres casarem cedo. Aos doze, treze, quatorze
anos. Com filha solteira de quinze anos dentro de casa
já começavam os pais a se inquietar vinte anos, estava
a moça solteirona” (FREYRE, 1998, p. 346).
Além disso, em meio a um contexto em que o
marido nem sempre seria o desejado pela moça, Eloy
de Souza, mestiço e dez anos mais velho, surge en-
quanto o escolhido pelo pai de Henriqueta uma vez
que ele era um dos prósperos sócios da Firma Paula
Eloy & Cia. Sendo assim, acreditamos que o enlace
matrimonial entre Henriqueta e Eloy foi arranjado
refletindo a época em que os casamentos se estabe-
leciam por questões de compromisso entre famílias
muito mais do que por um sentimento estreitado
entre os noivos (FALCI, 2013).

221
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

De fato, Henriqueta era uma jovem abastada e


que como outras moças de mesma condição que ela
deixou um vasto patrimônio para os seus filhos que
posteriormente à sua morte e à de seu marido, bem
como à de seu pai, foi dilapidado devido à má adminis-
tração dos bens dos herdeiros que ficou sob a respon-
sabilidade dos sócios da empresa Paula Eloy & CIA. A
mãe dos Castriciano de Souza morreu a 29 de junho de
1879, um ano e poucos meses depois do nascimento
do quinto e último filho, momento em que a senhora
possuía 27 anos de idade. A trajetória de Henriqueta
é alusiva para percebermos que, tal como ela, outras
moças da época também morreram jovens vitimadas
pela gestação sucessiva de muitos filhos ou após a pri-
meira gestação. Sobre isso escreveu Gilberto Freyre:
Um fato triste é que muitas noivas de quinze
anos morriam logo depois de casadas. Meninas.
Quase que como no dia da primeira comunhão.
[...] Morriam de parto. [...]. Sem tempo de criarem
nem o primeiro filho. Sem provarem o gosto de
ninar uma criança de verdade em vez dos bebês
de pano, feitos pelas negras de restos de vestidos
(FREYRE, 1998, p. 349).

Segundo Simone de Beauvoir (2009) homens


e mulheres são consumidos pela espécie em decor-
rência do processo reprodutivo, todavia, são as mu-
lheres que sofrem mais os seus efeitos. Henriqueta
aparece na reiteração dos seus comentadores como
uma mulher submissa, investida de amor maternal,
temente a Deus e que morreu cedo vitimada pela
tuberculose que incidiu sobre seu corpo já debilita-
do devido o ciclo de reprodução a que se submeteu.
Tanto Henriqueta, quanto as outras mulheres de sua
família, dentro da construção social das relações de
parentesco e de casamento, figuravam enquanto ob-
jetos de negociação variando segundo os interesses
da dominação masculina.
222
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Como já colocado, durante toda a vida infan-


til e adulta, Auta e seus irmãos conviveram com es-
cravos e trabalhadores pobres que lhes prestavam
serviços na chácara do Recife e em Macaíba. Tais
escravos eram propriedades do senhor Francisco de
Paula Rodrigues. A partir da Memorialística de Eloy
de Souza e da biografia escrita por Câmara Cascudo,
identificamos alguns nomes que aparecem execu-
tando atividades de ajuda aos seus senhores: Rita,
Sabino, Ambrósio, Felipe, João, Brasiliano, José e Luis
(FARIAS, 2013, 2018). Escravos estes que são descri-
tos como sendo de grande confiança de Dona Silvina
e que a ajudavam nas atividades do dia-a-dia. Entre
eles enfatizamos a escrava Rita, negra já alforriada e
que quando sua senhora precisava se ausentar e ir até
Macaíba ela se encarregava de cuidar de tudo.
Eloy relata em sua memorialística que aos
cinco anos viajou com sua mãe para o Recife apro-
veitando para cortar o cabelo:
Ao voltar para Macaíba, aproveitei, certa manhã,
a ausência de minha mãe e chamei três escravos.
Manobrei desastrosamente a tesoura na cabeça
daquelas criaturas passivas e mudas, numa humi-
lhação que era o medo da criança arvorada em se-
nhor do seu corpo e vontade. As cabeças daqueles
pobres sem vontade ficaram deformadas, e a de-
formação os tornou ridículos e vítimas das vaias
de outros escravos. Eu era tão inocente e tão sen-
sível, que a tristeza daquele espetáculo comoveu-
-me até as lágrimas. Minha mãe chegou no mo-
mento final da dramática situação e, informada da
ocorrência, abraçou-me e foi com alegria que me
disse: - Meu filho, você está perdoado. Eles perdo-
aram você porque você chorou! Exclamou: - Como
meu filho é bom! (SOUZA, 1975, p. 17).

A narrativa de Eloy se assemelha bastante com


a de Brás Cubas (ASSIS, 2007). Ambos escreveram de
um lugar de fala comum, ou seja, ambos pertenciam

223
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

ao mesmo estrato social e, de tal forma, suas visões de


mundo eram bastante próximas. Em suas escritas os
escravos existiam para servi-los e serem alvo de suas
vontades de forma que não cogitavam de forma algu-
ma a considerar a vontade ou o sentimento do outro,
pondo os seus caprichos em primeiro lugar. Vejamos:
Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de
“menino-diabo” [...], confessa o herói das Memó-
rias Póstumas de Brás Cubas. Por exemplo, um
dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me
negara uma colher do doce de coco que estava fa-
zendo, e, não contente com o malefício, deitei um
punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito com
a travessura, fui dizer à minha mãe que a escra-
va é que estragara o doce “por pirraça”; e eu tinha
apenas seis anos. Prudêncio, um muleque de casa,
era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos
no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa
de freio, eu trepava-o, dava-lhe mil voltas a um e
outro lado, e ele obedecia, - algumas vezes gemen-
do - mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando
muito, um – “ai, nhonhô” - ao que eu retorquia: -
“Cala a boca, besta!” – Esconder os chapéus das vi-
sitas, deitar rabos de papel a pessoas graves, puxar
pelo rabicho das cabeleiras, dar beliscões nos bra-
ços das matronas, e outras muitas façanhas deste
jaez, eram mostras de um gênio indócil, mas devo
crer que eram também expressões de um espírito
robusto, porque meu pai tinha-me em grande ad-
miração; e as vezes me repreendia, à vista de gen-
te, fazia-o por simples formalidade: em particular
dava-me beijos (ASSIS, 2007, p. 24).

Nesse sentido, nas duas citações acima, per-


cebemos a ação de dois meninos que, a despeito da
pouca idade, já tinham ciência dos poderes de mando
que tinham sobre os seus subalternos. Realidade esta
que também foi descrita por Freyre quando ele se re-
feriu aos ““meninos-diabo” do tempo da escravidão”
(FREYRE, 1998, p. 370). Ambos submetem os escravos
aos seus desejos e para tal ainda contam com a aceita-

224
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

ção e apoio dos pais, reforçando assim o sentimento


aristocrático em relação aos seus dependentes.
Nesse sentido, a partir dos escritos aqui ana-
lisados, os caminhos pelos quais as mulheres deve-
riam ganhar visibilidade eram associados ao mundo
doméstico e da subserviência (ROSALDO; LAMPHE-
RE, 1979). Questionando essa ideia e reivindicando
abertura dos espaços públicos para as mulheres, Mi-
chele Perrot afirmou que nos oitocentos “a mulher
foi criada para a família e para as coisas domésticas.
Mãe e dona de casa, esta é a sua vocação, e nesse caso
ela é benéfica para a sociedade” (PERROT, 1998, p. 9).
Nesse sentido, apoiar as atitudes dos filhos fazia par-
te do repertório do que era ser uma “boa mãe” para
aquele grupo social dentro desse recorte de tempo.
Simone de Beauvoir (2009), afirmou que é a
sociedade engendrada pelo domínio masculino que
forja aquilo que deva ser a mulher: perfil, comporta-
mento e papéis que ela deve desempenhar para que
seja aceita nos círculos sociais que os homens co-
mandam, conforme tão bem resumido em sua frase
canônica: “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”
(BEAUVOIR, 2009, p. 362). Dessa forma, a partir dos
escritos dos autores tomados como fontes nessa pes-
quisa, acreditamos que Dindinha, Cosma, Cordina,
Zulina e Henriqueta Leopoldina, pertencentes a uma
família aristocrática do interior do Rio Grande do
Norte também não fugiram a essa regra tão bem ob-
servada por Simone de Beauvoir.
No entanto, tomando-as como exemplo, acre-
ditamos que as mulheres abastadas da casa-grande
não foram apenas mulheres submissas e acomodadas
tal como durante tanto tempo foi colocado pela histo-
riografia ou que viveram abafadas dentro de um “iso-
lamento árabe” como pontuou Gilberto Freyre (1998).
Foram sim mulheres de seu tempo e como tal, tiveram

225
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

vivências peculiares àquilo que era esperado delas,


sendo mães, esposas e administradoras do cotidiano
de suas famílias, mas que por outra via também con-
seguiram obter poder e visibilidade se destacando
no cenário de uma sociedade que se se orientava por
moldes patriarcais. A história dessas mulheres preci-
sa ser (re)conhecida, afinal, tal como pensou Michel-
le Perrot (2015), matizar a trajetória de mulheres é
levar em consideração que elas têm uma história da
qual são sujeitos ativos.

Considerações finais

Como visto acima, nossa intenção foi refletir


sobre a representação formulada para as mulheres
da família Castriciano de Souza a partir dos escri-
tos de três escritores ligados a elas: Câmara Cascu-
do, Eloy de Souza e Henrique Castriciano. Mulheres
estas que estiveram diretamente ligadas ao seu pró-
prio tempo, espaço e grupo social, mas distantes de
serem meramente vítimas passivas do sistema pa-
triarcal, ao contrário, se empenharam na produção
e reprodução da vida a partir do trabalho doméstico
que ainda hoje é lamentavelmente tão desvaloriza-
do e não remunerado certamente por ele ser execu-
tado por mãos de mulher.
Foram mulheres cujas trajetórias ressoaram
na vida de seus descendentes os quais, a partir do que
escreveram, nos permitiram visualizar um cenário da
cultura e da sociedade norte-riograndense do século
XIX, inclusive fazendo um desenho das expectativas
em relação às mulheres, exercício também realiza-
do por Natalie Zamon Davis (1997) em relação a três
mulheres do século XVII. Foram esposas, mães e ad-
ministradoras de suas casas, que embora estivessem
numa posição subordinada em relação aos seus pais e

226
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

maridos, já em relação aos escravos, agregados, filhos


e netos ocupavam posição de domínio e de autoridade.
A trajetória dessas mulheres que são narra-
das por Henrique Castriciano, Câmara Cascudo e
Eloy de Souza são tidas enquanto modelo de condu-
ta feminina, em outra via, se contrapõe ao ideal de
educação proposto por Henrique para as moças da
elite na Escola Doméstica de Natal, instituição por
ele fundada em 1914. Com exceção de Auta de Sou-
za, nenhuma das mulheres da família frequentou a
escola formal, mas para além disso, não podemos
desconsiderar que a presença feminina na vida de
Henrique foi bastante forte desde a sua infância.
Após a morte de figuras masculinas de sua família
(avô, pai e tios maternos), Henrique se viu envolvi-
do por uma teia de mulheres tais como sua estimada
avó Dindinha fato este que possivelmente serviu de
inspiração, ao lado das observações feitas pelo edu-
cador sobre a educação feminina europeia, para que
ele fundasse a Escola Domética de Natal.
Foram mulheres que fizeram da vida de seus
descendentes o projeto maior de suas próprias vidas,
tal como ainda acontece hoje quando mães abrem
mão de seus projetos e de suas carreiras em função da
criação e da realização de sua prole. Dessa forma, essa
história também precisa ser problematizada e discu-
tida nas escolas a exemplo de tantas outras que ainda
se encontram nas margens dos livros didáticos e das
falas de alguns professores que ainda insistem em de-
bater em suas salas de aula temáticas dissociadas da
realidade de seus alunos.

227
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

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A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

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230
GÊNEROS ALIMENTÍCIOS
E O PROBLEMA DA SAÚDE
PÚBLICA NA CIDADE DO NATAL

Avohanne Isabelle Costa de Araújo


Outros símbolos advertem aquilo que é proibido
em algum lugar – entrar na viela com carroças, uri-
nar atrás do quiosque, pescar com vara na ponte –
e aquilo que é permitido – dar de beber às zebras,
jogar bocha1, incinerar o cadáver dos parentes. [...]
Se um edifício não contém nenhuma insígnia ou
figura, a sua forma e o lugar que ocupa na organi-
zação da cidade bastam para indicar a sua função
(CALVINO, 1990, p. 17-18).

¹ Jogo praticado com diversas bolas grandes e uma pequena (bolim), todas
de madeira, que consiste em rolar o bolim numa pista de terra batida e, em
seguida, os jogadores lançam as bolas grandes para que se aproximem dele
ao máximo. Disponível em: <https://michaelis.uol.com.br/moderno-por-
tugues/busca/portugues-brasileiro/bocha/>. Acesso em: 20 de novembro
de 2014.

231
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

Introdução

O trecho extraído do livro As cidades invisíveis,


de Ítalo Calvino, é um excelente ponto de partida
para iniciarmos a discussão deste capítulo. Por meio
da fiscalização dos gêneros alimentícios que eram
vendidos nos espaços públicos da cidade do Natal, na
segunda metade do século XIX, vamos refletir sobre
as ações realizadas e os discursos a partir dos quais
se define o proibido, o permitido, assim como as re-
lações de poder estabelecidas entre as autoridades
provinciais, municipais e médicas com a população
que consumia os alimentos e os que vendiam estes
gêneros nas feiras e no mercado público. Isso permi-
te pensar sobre as medidas de salubridade adotadas,
pois elas acabam por definir como a população deve
se comportar ante os saberes médicos, que comba-
tiam os antigos costumes que passaram a ser vistos
como prejudiciais para a saúde pública sob a ótica de
médicos, autoridades municipais e provinciais. Além
disso, a dimensão de espaço público, aqui discutida,
transcende os limites cartográficos e envolve ques-
tões sociais (ARRAIS, 2004, p. 11) das formas de tra-
balho, disputas, tensões e conflitos do Estado com a
população, numa tentativa de ordenar lugares como
matadouro, mercado público e feiras.
Mas antes de começar a responder estas ques-
tões, é importante deixar claro ao leitor porque ques-
tões relacionadas à saúde têm se consolidado como
objeto de estudo da história e qual a relevância de
discutir este tema na Educação Básica. A produção
científica vem consolidando a história da saúde e das
doenças como campo de estudo, e os olhares perante
a temática tem se ampliado nos últimos tempos. Na
produção historiográfica potiguar podemos desta-
car estudos sobre mortalidade, tendo como uma das

232
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

causas a precariedade da saúde da população (DIAS,


2016), sobre a incidência de doenças como malária
e cólera (ANAYA, 2011; SILVA, 2003), sobre políticas
de saúde pública no século XIX (ARAÚJO, 2015; MA-
CÊDO; ARAÚJO, 2011) e sobre instituições sanitá-
rias e de assistência como a construção do Hospital
de Caridade Juvino Barreto e os cemitérios no Seridó
(SANTOS, 2011; SILVA, 2012). Estes trabalhos são
importantes, porque permitem analisar e compreen-
der questões relativas à saúde e políticas públicas a
partir de nossa realidade.
Discutir saúde nas aulas de história com os alu-
nos e alunas da Educação Básica é importante, porque
mostra para este público o quanto o conceito de saú-
de muda dependendo do período em que é estudado,
vinculado a assuntos como a preocupação e cuidados
com o corpo, a alimentação, a higiene, a organização
dos espaços públicos e privados como a rua, a escola, a
casa, os hospitais e as formas de prevenção das doen-
ças. É um exercício que amplia o olhar deste público
no sentido de mostrar que as questões relativas à saú-
de podem ser percebidas numa perspectiva histórica,
sendo um problema enfrentado e respondido pela so-
ciedade de diferentes formas, com variações no tempo
e no espaço, conforme a cultura de cada época, as con-
dições materiais de existência daquela sociedade, os
avanços da ciência e as ações dos sujeitos históricos.
Dentro dessa discussão, a nossa temática vai
tratar de assuntos tradicionalmente abordados na
história do Rio Grande do Norte como a política, a
economia e a sociedade, mas por meio da problema-
tização de questões relativas à saúde. Neste sentido,
pretendemos discutir sobre as condições dos gêneros
alimentícios que eram manuseados e comercializa-
dos nos espaços públicos da Cidade do Natal. Assim,
vamos conhecer mais do cotidiano da população

233
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

dessa cidade a partir das seguintes questões: quais


eram os hábitos alimentares dos homens e mulheres
no século XIX? Como era a qualidade dos alimentos
e quem fiscalizava sua procedência e conservação?
Onde eram vendidos? Por que isso se tornou um pro-
blema de saúde pública? O foco está em entender o
funcionamento do trabalho de fiscalização, tendo
como agentes a Inspetoria de Saúde Pública, a Câma-
ra Municipal, considerando como suas decisões inci-
diam nos hábitos da população.
A alimentação é tema central de nossa análise
porque, na segunda metade do século XIX, o assunto
foi discutido pelas autoridades provinciais, médicas
e camarárias como um problema relacionado à fome
aos elevados preços dos alimentos, principalmente
em virtude da seca de 1877, provocando o apareci-
mento de doenças como varíola e beribéri, esta última
ocasionada pela deficiência nutricional da vitamina
B no organismo. É neste momento também que pas-
samos a conhecer melhor os consumidores e os pro-
dutores destes alimentos. São homens e mulheres que
pescavam os peixes às margens do Rio Potengi, os que
trabalhavam no matadouro, enquanto os comercian-
tes vendiam suas mercadorias nas ruas da Ribeira e
Cidade Alta, feiras e mercado público. Esta população
aparece nas entrelinhas e discursos que partem do Es-
tado, por meio dos Relatórios dos Presidentes de Pro-
víncia do Rio Grande do Norte e da documentação ad-
ministrativa da Câmara Municipal da cidade do Natal.
As tramas e fatos do cotidiano administrativo
revelam facetas das relações de poder estabelecidas
entre um conhecimento que se diz técnico-científi-
co, e os hábitos corriqueiros daquela população que
trabalhava e comprava os seus alimentos nas feiras
e mercados públicos no século XIX. O que queremos
enfatizar é o modo como o Estado, por meio dos seus

234
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

agentes (médicos, autoridades municipais e provin-


ciais) praticavam ações que visavam modificar os
comportamentos dessa população, revelando as ten-
sões e a complexidade entre as diversas formas de se
viver em sociedade no âmbito do espaço público.

O manuseio e comercialização dos gêneros


alimentícios na Cidade do Natal

A discussão sobre a produção e comércio dos


gêneros alimentícios na cidade do Natal se articula
com uma preocupação mais ampla e comum às capi-
tais do Império nos Oitocentos: o debate sobre a ne-
cessidade de melhoramentos materiais relacionados à
vida urbana e ao intenso desenvolvimento comercial
na segunda metade do século XIX, questão por sua
vez ligada ao processo industrial inglês e à ampliação
do mercado de consumo no Brasil (MONTEIRO, 2007,
p. 101-102). Dada essa dinâmica da vida comercial,
na Província do Rio Grande do Norte, o “crescimen-
to das exportações e importações (do algodão, cou-
ro e açúcar) gerou um aumento na renda arrecadada
pelo governo provincial, através dos impostos sobre
as mercadorias que entravam e saíam” (MONTEIRO,
2007, p. 105). Foi a partir dessas rendas que alguns
melhoramentos foram feitos na Cidade do Natal como
a construção do hospital de caridade, do cemitério do
Alecrim e, no nosso caso em especial, do mercado pú-
blico (MONTEIRO, 2007, p. 101; SUASSUNA, 2005, p.
166-167). E dentro desse universo urbano, as medidas
de controle dos espaços, por meio da higiene, vão levar
médicos, fiscais, vereadores e presidentes de província
a estenderem os seus olhares para os lugares direta-
mente ligados ao comércio de alimentos.
Neste sentido, faz-se necessário discutir as
condições de salubridade do matadouro e do mercado

235
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

público do Natal, sendo o primeiro destinado ao abate


do gado, cuja carne assegurava o abastecimento local,
e o segundo, relacionado à venda destes víveres e de
outros gêneros alimentícios. É importante destacar
que o cuidado com a saúde pública não se restringia
somente às doenças, mas também aos possíveis lo-
cais que poderiam trazer riscos aos que moravam nas
proximidades de construções de beneficiamento ali-
mentar, como o matadouro. Essa preocupação era jus-
tificada pela teoria miasmática, um saber médico pre-
dominante no século XIX, que defendia que as doenças
se originavam de cheiros e outros vapores que vinham
do solo e do ar, e poderiam estar ligados a logradouros
alagados, pantanosos e lugares com animais em de-
composição, entrando nesta categoria os matadouros.
Era necessário, portanto, manter os locais limpos e hi-
gienizados, para evitar o mau cheiro e as doenças.
No tocante a isso, vemos que os médicos aler-
tavam para uma possível mudança do local destina-
do ao matadouro, em que, dado o conhecimento dos
ventos, o cheiro das carnes em decomposição não
ameaçasse a população.2 Além disso, eram frequen-
tes nos discursos dos presidentes de província os
apelos sobre a necessidade de reparos e limpeza do
matadouro (RIO GRANDE DO NORTE, 1861, p. 21).
Não conseguimos, até o presente momento, identifi-
car com exatidão a sua construção e qual a sua locali-
zação no interior do perímetro urbano, mas as pistas
encontradas na documentação não nos impedem de
tomar esse caso para refletir sobre as concepções mé-
dicas e espaciais relacionadas à saúde.3
² O Presidente de Província João Carlos Wanderley não faz referência em
seu relatório de 1850, ao nome do médico que trabalhava na província e
que foi o responsável por fazer a análise da localização física do matadouro
e sua relação com o ar da Cidade do Natal.
³ É importante destacar que a bibliografia que discute sobre a alimentação
no século XIX menciona que para além da técnica de abate e suas circuns-
tâncias sanitárias, no Brasil já se discutia a preocupação em estabelecer re-

236
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Alguns discursos dão conta de como era o ma-


tadouro público. No jornal Correio Natalense (1867),
o matadouro é descrito como edifício, diferente do
que considera o Presidente de Província João Capis-
trano Bandeira de Mello Filho, que relatou que na
cidade do Natal, não existia estabelecimento digno
deste nome. Havia apenas:
uma pequena área de terreno, fechada até certa
altura por um muro, prolongando-se depois em
pilares que sustentam a coberta. A falta do asseio
e limpeza deste lugar, criado pela municipalidade,
e impropriamente chamado matadouro, dá lugar
a uma casa permanente de infecção pela rápida
putrefação dos resíduos. De outro lado, alguns
marchantes prevalecendo-se da exiguidade do es-
paço acima descrito, matam em lugares vizinhos
as suas casas os bois destinados ao consumo pú-
blico; resultando dessa liberdade indébita, muitos
acidentes e outros males produzidos pela putre-
fação das matérias deixadas ao abandono, cujos
eflúvios se espalham pelos arredores. Seria para
desejar que se criasse um estabelecimento pró-
prio, que reunisse as condições indispensáveis de
asseio e limpeza, de acomodações suficientes para
o descanso do gado, depois de uma longa viagem,
e onde enfim fossem obrigados os marchantes a
matar os animais destinados a alimentação públi-
ca, sob as vistas imediatas da polícia, que poderá
então velar melhor sobre a qualidade das carnes
entregues ao comércio (RIO GRANDE DO NORTE,
1873, p. 44-45).

Esta descrição mostra que, apesar das autorida-


des provinciais e municipais conhecerem a concepção

gras para a manipulação da carne nos matadouros, de maneira a não com-


prometer suas qualidades mercadológicas e propriedade para o consumo
humano. Por exemplo, em 1858 o risco com as epidemias do cólera levou
à aprovação, em São Paulo, do regulamento para o matadouro público, de-
finindo não só o horário de funcionamento, mas também as funções do
médico designado pela Câmara para examinar as reses e verificar como se
dava o abate, transporte e depósito dos resíduos. Para saber mais a respeito
disso, ver: SILVA, 2008, p. 74. E também SABINO, SALGADO, 2008, p. 3.

237
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

dos maus ares que preconizava a teoria miasmática,


nem sempre os saberes médico-sanitários eram sufi-
cientes para combater a péssima estrutura, e os riscos
à saúde pública que aquele local poderia trazer. Ade-
mais, nem sempre os problemas que eram diagnosti-
cados em termos de infraestrutura pública eram re-
solvidos em prazo razoável, já que nem mesmo obras
emergenciais eram realizadas.
Sobre o cotidiano de trabalho, é possível ter a
dimensão de quem eram esses trabalhadores e quais
as suas condições laborais. A referida autoridade faz
menção aos marchantes que, segundo os dicionários
do século XIX, eram os responsáveis por tratar do gado
para os talhos dos açougues (SILVA, 1813). A precarie-
dade de trabalho levava estes trabalhadores a abater
o gado nas proximidades das residências onde mora-
vam, trazendo malefícios não só para eles, mas para as
pessoas que moravam próximas ao local onde a práti-
ca acontecia. Outro aspecto a ser observado no relató-
rio do presidente de província é a preocupação em se
construir um local onde o gado pudesse permanecer
até ser destinado ao matadouro e que a polícia cuidas-
se de fiscalizar as carnes que abasteciam o comércio
da cidade.4 O percurso e transporte dessa carne até os
estabelecimentos comerciais, como o mercado e as
feiras, é outra informação que não consta nas fontes,
assim como não encontramos um documento em es-
pecífico que informasse qual a maneira adequada de
transportar este gênero alimentício.
⁴ A polícia, no século XIX, tinha atribuições bem mais amplas do que re-
solver questões relacionadas ao crime e à violência. Eles também davam
conta de problemas relacionados a saúde pública. Neste sentido, Juliana
Teixeira Souza nos mostra que “nem a polícia e nem tampouco os médicos
haviam formado um campo de produção especializado, e, portanto, não
havia critérios muito bem definidos para se determinar o que estava den-
tro ou fora da alçada de uns e outros” e, por vezes, ambos davam conta de
participar da fiscalização dos gêneros alimentícios (SOUZA, 2007, p. 112).
Ver também o livro da mesma autora (SOUZA, 2018), mais especificamen-
te o capítulo “a salubridade das feiras e mercados”.

238
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

No tocante ao mercado público, o presidente de


província José Bento da Cunha Figueiredo Junior men-
cionava que estava providenciando uma casa para insta-
lar o mercado público de maneira provisória, até que se
construísse o novo prédio. Essa medida fazia-se necessá-
ria, pois o presidente informava que o telheiro do antigo
mercado ameaçava desabar, representando, portanto,
perigo para as pessoas que vendiam gêneros alimentí-
cios (RIO GRANDE DO NORTE, 1861, p. 20). Neste mes-
mo documento, o presidente também fazia referência à
fiscalização mais efetiva dos açougues e seus utensílios,
assim como a necessidade de se ter mais cautela e asseio
com os depósitos de carnes verdes.5 Essa fiscalização de-
veria ser feita pela Câmara e seus agentes, juntamente
ao inspetor de saúde pública (RIO GRANDE DO NORTE,
1861, p. 20). Mais uma vez, os presidentes de província
cobravam da Câmara e da Inspetoria de Saúde Pública
maior vigilância e fiscalização.
A população também se manifestava a respeito
da construção do mercado público. Um abaixo assi-
nado foi feito em 1878 por “22 respeitáveis morado-
res do bairro da Ribeira, pedindo que, de preferência,
mandasse consertar a estrada velha e mais obras ne-
las existentes” (RIO GRANDE DO NORTE, 1878, p. 16).
Dentre estes consertos, os moradores alegavam que,
como não havia um mercado municipal no bairro da
Ribeira, “os habitantes andavam errantes em busca
dos matutos que traziam o gênero a vender, e os mes-
mos matutos ficavam expostos ao relento, chuvas, e
naturalmente, aos rigores do sol” (RIO GRANDE DO
NORTE, 1878, p. 16). Isso mostra que os próprios mo-
radores opinavam (pelo menos os “22 respeitáveis”!)
sobre o cotidiano da cidade e, de certa forma, faziam
o papel de fiscais, avaliando a maneira como os pro-

⁵ A denominação carnes verdes é o modo como popularmente é chamada


a carne fresca e sem sal.

239
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

dutos eram comercializados, revelando o trânsito de


vendedores ambulantes pelas ruas da cidade.
Ainda sobre os trabalhadores ligados diretamente
à venda de alimentos, o presidente José Bento da Cunha
Figueiredo Junior, ao falar sobre as feiras, fez referência
aos chamados “atravessadores” (RIO GRANDE DO NOR-
TE, 1861, p. 26). De acordo com os dicionários de Antonio
Moraes da Silva e Luiz Maria da Silva Pinto, os atravessa-
dores eram compradores de mercadorias ou víveres que
os vendiam a seu arbítrio, sem necessariamente possu-
írem estabelecimento comercial ou mesmo espaço no
mercado público (SILVA, 1813, p. 141; PINTO, 1832).
Neste caso, o presidente reclamava que esses vendedores
compravam gêneros alimentícios por um preço inferior e
vendiam no mercado faturando excessivo lucro.
Assim, o que a autoridade provincial queria era
acabar com o monopólio dos atravessadores e manter
as feiras, mesmo considerando que o ideal seria um
mercado público. No entanto, por não ter recursos
para reunir todos os feirantes em um só edifício, a au-
toridade provincial aceitava emergencialmente o es-
paço das feiras a céu aberto, desde que fosse minorada
a presença dos atravessadores, pois estes dificultavam
que a fiscalização da câmara municipal, por não pos-
suírem locais fixos de trabalho. É importante destacar
que, neste período, as feiras livres eram vistas com
desconfiança pelos médicos e autoridades políticas
em razão da insalubridade. Para resolver o problema,
previam-se reformas urbanas para disciplinar o fluxo,
permanência de pessoas e mercadorias em espaços
planejados, com ruas largas e prédios especializados,
promovendo também o embelezamento dos espaços,
já que a sujeira e o perfil desses vendedores que não
tinham locais de venda fixos não estavam em conso-
nância com esse ideal de salubridade e ordenamento
proposto pelos médicos (SILVA, 2008, p. 69).

240
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

As propostas de construção do matadouro e


do mercado público aparecem simultaneamente. Isso
revela que houve uma tentativa de ordenamento do
espaço, de modo a tornar os gêneros alimentícios que
chegavam até o consumo da população mais apropria-
das ao consumo, evitando que saíssem do matadouro
corrompidos. A proposta desses prédios era concen-
trar e facilitar a fiscalização da Inspetoria de Saúde
Pública e da Câmara Municipal. Eram espaços públicos
que, se não fossem fiscalizados tal como preconiza-
vam os saberes médicos, podiam contribuir para a má
qualidade dos alimentos e, consequentemente, causar
doenças na população que os consumisse, visão de-
fendida por estes profissionais e pelos responsáveis
pela governança da cidade, como os fiscais, vereado-
res e presidentes de província. Mas o mercado público
da cidade do Natal só foi inaugurado no regime Re-
publicano, no dia 7 de fevereiro de 1892, pela Junta
Governativa composta por Manuel do Nascimento
Castro e Silva e Joaquim Ferreira Chaves Filho (CASCU-
DO, 1999, p. 159; SUASSUNA, 2005, p. 166-167). An-
tes disso, os debates somente abordavam as péssimas
condições estruturais e higiênicas, sem que houvesse
uma solução mais sistemática desses problemas para
ser posta em prática.

Aos olhos dos fiscais e médicos:


a fiscalização dos gêneros alimentícios

Na segunda metade do século XIX, a fiscaliza-


ção tentava dar conta do cuidado com o manuseio
dos alimentos, desde o momento em que saíam dos
matadouros, campo e armazéns, até chegarem às
feiras, ambulantes e mercado público. E é nesse per-
curso que a Inspetoria de Saúde Pública tentava in-
tervir, no intuito de verificar não só os matadouros e

241
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

o mercado público, mas também os próprios gêneros


alimentícios. Pela pouca documentação disponível
sobre a fiscalização, é possível perceber que ela nem
sempre era feita de maneira regular.
O comércio de alimentos virou alvo da fiscali-
zação da Câmara Municipal, no intuito de combater a
sujeira em vias públicas. Daí a preocupação com as car-
nes verdes e peixes, a farinha, o leite e a manteiga, que
eram vendidos no mercado público, ou em qualquer
estabelecimento comercial. Em 1850, um médico que
atuava na cidade reclamava da falta de condições ne-
cessárias para a fiscalização dos gêneros alimentícios.
O médico menciona que a cidade ressentia de um
mal gravíssimo, que fere muito de perto a saúde
pública, o qual é a falta de Polícia Médica, que fis-
calize o mercado do peixe, o consumo das carnes
verdes e a venda de todos os mais gêneros de pri-
meira necessidade entregue a discrição de quem a
quer especular, abusando da credulidade de uns,
da necessidade de muitos e do bom senso de todos
(RIO GRANDE DO NORTE, 1850, p. 13).

Trata-se de um profissional da saúde emitin-


do um juízo sobre a questão e sugerindo encaminha-
mentos a partir de um saber técnico e científico acer-
ca da fiscalização dos gêneros alimentícios na cidade
do Natal. Se existia uma fiscalização instituída pelo
poder público sobre os gêneros alimentícios em 1850
ou antes desse ano, não são encontrados documen-
tos que atestem isso. Somente a partir de 1853 é que
posturas referentes à fiscalização se destinam a regu-
lar tal questão. De qualquer forma, o discurso citado
acima pode ser uma tentativa do médico em se afir-
mar enquanto um profissional que também poderia
participar da vida pública, do governo da cidade. A
ideia de Polícia Médica que aparece em seu discurso
estava voltada para uma atuação mais sistemática da
fiscalização e cuidado com os gêneros alimentícios,
242
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

que eram vendidos e abastecidos no mercado, princi-


palmente o peixe e a carne verde que, por serem mais
perecíveis, precisavam ser consumidos em curto es-
paço de tempo, haja vista os escassos meios de con-
servação disponíveis naquela época.
Por fim, o referido discurso do médico traz
informações acerca dos hábitos de alimentação da
população. Quando ele enfatiza que a venda desses
gêneros abusava da credulidade de uns, da necessi-
dade de muitos e do bom senso de todos, pode estar
fazendo referência tanto aos altos preços quanto
à má qualidade da alimentação negociada fraudu-
lentamente como produto fresco. Estas referências
se confirmam quando são analisadas as informa-
ções contidas na documentação provincial e as da
Inspetoria de Saúde Pública.
Sobre a atuação destas instâncias, de acordo
com o Decreto n° 828, de 29 de Setembro de 1851, da
Junta Central de Higiene Pública, subordinada ao Go-
verno Central, as Comissões e os Provedores de Saúde
Pública iriam inspecionar as substâncias alimentares
expostas à venda em armazéns de mantimentos, ca-
sas de pasto, mercados públicos, confeitaria, açougues
e em todos os lugares passíveis de ocasionar danos à
saúde pública.6 No caso do Natal, essa fiscalização era
feita pela Inspetoria de Saúde Pública. Além disso, o
inspetor, de acordo com o decreto, fazia a inspeção
junto com o fiscal da câmara municipal, ou seja, duas
instâncias administrativas.
⁶ A Junta de Higiene Pública, criada pelo decreto n. 598, de 14 de setem-
bro de 1850 tinha por atribuição propor o que fosse necessário para a salu-
bridade nas cidades, bem como indicar medidas que se convertessem em
posturas municipais e exercer a polícia médica nas visitas às embarcações,
boticas, lojas de drogas, mercados, armazéns e em todos os lugares, esta-
belecimentos e casas que pudessem provocar danos à saúde pública. Em
1851, o regulamento desse órgão firmou-se pelo decreto de nº 858, de 29
de setembro de 1851, onde se acrescentou o termo “Central” devido à in-
corporação da Inspeção de Saúde do Porto e o Instituto Vacínico (CABRAL,
2014; BRASIL, 1851, p. 259).

243
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

Todo o ordenamento da comercialização e al-


guns procedimentos a serem realizados com os ali-
mentos ficam definidos nos Códigos de Posturas da
Cidade do Natal do ano de 1853. Tais documentos
eram expedidos pela instituição camarária, com a
função de registrar de forma escrita o ordenamento
urbano, servindo de instrumento legal para o con-
trole do espaço público e dos que nele viviam. Além
disso, esses códigos ditavam regras com o objetivo
de nortear a conduta dos moradores e, além do or-
denamento urbano, considerava também diretivas
acerca da venda de produtos que eram expostos em
estabelecimentos comerciais e no mercado (TEIXEI-
RA, 2012, p. 57-59). Dentre os artigos referentes aos
gêneros alimentícios, o código versa desde as formas
de conservação da carne até os locais destinados à
venda dos peixes, como se vê logo abaixo:
Art. 4°. Ninguém poderá expor ao sol couros sal-
gados, ou carne, se não nos lugares, que pela câma-
ra forem designadas, sob pena de pagarem a multa
de 8$000 reis, e o duplo na reincidência.

[...]

Art. 14. Ninguém poderá vender peixe fresco ou


salgado nesta capital, a exceção dos donos, das
armadilhas e os próprios pescadores, sem que tire
uma licença anual da câmara municipal, pela qual
pagará vinte mil reis (20$000) além do selo nacio-
nal.

Art. 15. A mesma licença se dará gratuitamente aos


moradores, somente, das praias limítrofes que se
quiserem empregar neste gênero de vida trazendo
os mesmos víveres para o abastecimento do merca-
do; desta cidade não prevalecendo porém esta dispo-
sição para aqueles que, morando nesta cidade, vão as
mesmas [praças?] empregar-se neste ramo de vida.

244
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Art. 16. Os lugares designados para a venda dos


referidos víveres são os portos em que saírem as
jangadas ou armadilhas e no mercado público des-
ta cidade: os infratores em qualquer das casas dos
artigos antecedentes pagarão pela 1ª vez a multa
de 8$000 ou 8 dias de prisão, e o dobro nas reinci-
dências (POSTURAS, 1853).

Certamente a ideia de a Câmara designar os lo-


cais para este tipo de prática estava relacionada com
a preocupação sobre os bons ares, numa tentativa de
impedir que a exposição das carnes comprometesse
o ar da cidade. O artigo não esclarece quais locais a
câmara designava para isso, mas, considerando-se a
teoria miasmática, a qual estava em voga na segun-
da metade do século XIX, os locais certamente eram
afastados do centro da cidade.7
O Código de Postura demonstra que há uma
tentativa, por parte da Câmara Municipal de fisca-
lizar o comércio de peixes e de saber quem são os
responsáveis por tal prática, perceptível através da
exigência de licença a ser retirada pelos respectivos
vendedores na instituição camarária. Isso também
poderia implicar nos impostos que esses vendedores
teriam de pagar à Câmara. No entanto, no artigo 15,
verifica-se uma exceção para os pescadores que mo-
ravam nas praias próximas, que desejassem abaste-
cer o mercado. Neste caso, a licença seria dada gra-
tuitamente, em virtude do pouco espaço disponível
para eles no mercado. O fato de a câmara designar
quais os locais permitidos para a venda do peixe (os
portos e o mercado público), leva à conclusão de que
havia pessoas que se dedicavam a vender peixes ou
outros gêneros alimentícios em locais que a câmara
não permitia, provavelmente nas ruas da cidade.

⁷ Explicamos sobre esta teoria no tópico anterior deste texto intitulado


“entendendo o cenário do manuseio e comercialização dos gêneros ali-
mentícios na Cidade do Natal.”

245
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

Após a aprovação desse documento, em 27 de


maio de 1853, uma correspondência do governo pro-
vincial foi enviada à Câmara Municipal, tratando de
artigos a serem adicionados àquela Postura, sendo um
referente à fiscalização do leite:
Artigo 28 – O fiscal fica autorizado a examinar o lei-
te, que for exposto à venda pública nesta cidade, e
conhecendo que nele existe água, ou outra qualquer
substância o mandará em continente deitar fora, fi-
cando além disto os vendedores sujeitos a sofrer três
dias de prisão (GOVERNO PROVINCIAL, 1853).

Assim, houve necessidade de inserir um arti-


go que especificasse quem e como deveria ser feita a
fiscalização do leite em Natal. Como o próprio artigo
aponta, o fiscal da câmara seria responsável por verifi-
car a qualidade do leite que era vendido. Considerando
os funcionários que trabalhavam em conjunto com a
Inspetoria de Saúde Pública, compreende-se que a Câ-
mara Municipal ficava encarregada de mandar o fiscal
fazer a verificação da qualidade dos alimentos. Era
uma função que estava presente tanto na documenta-
ção de cunho camarário, quanto no já citado decreto
da Junta Central de Higiene Pública.8
Outro aspecto citado no artigo 28 diz respeito à
qualidade do leite: se existisse água ou qualquer subs-
tância no leite, o fiscal poderia jogar o leite fora e apli-
car a penalidade ao vendedor (três dias de prisão). Isso
mostra que, além da péssima qualidade dos alimentos
que eram vendidos na Cidade do Natal, existiam ven-
dedores de má fé. Mas qual o critério utilizado pelo fis-
cal para detectar se o leite estava ou não corrompido?
⁸ Juliana Teixeira Souza, ao estudar a função dos fiscais na fiscalização
dos gêneros alimentícios no Rio de Janeiro, conclui que eles não possuí-
am nenhuma formação ou habilidades específicas “que lhes credenciasse
mais do que a qualquer outro indivíduo para avaliar questões referentes à
saúde pública” pois para as autoridades públicas e a maioria da população,
ninguém que assumisse essa função precisava passar anos estudando para
detectar se um alimento estava estragado (SOUZA, 2007, p. 109).

246
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

A pesquisa de Juliana Teixeira Souza tenta res-


ponder à indagação sobre quais critérios esses fiscais
poderiam utilizar para isso. Ao mencionar sobre um
episódio ocorrido no Rio de Janeiro envolvendo a fis-
calização feita pelo agente, a historiadora menciona
que, provavelmente, para comprovar se o leite era fal-
sificado, o fiscal tenha observado a textura, a colora-
ção, o sabor e o odor do leite, exame feito de acordo
com critério adquirido pela experiência como consu-
midor, aprendido de outros fiscais ou adquirido com
a prática cotidiana da fiscalização (SOUZA, 2007, p.
125). Provavelmente, os fiscais na cidade do Natal usa-
ram técnicas semelhantes. No dizer popular, quando
se acrescenta água ao leite ele fica “fraco” ou sua tex-
tura “afina”, tornando-se menos densa e oleosa.
Preocupado com a fiscalização dos gêneros ali-
mentícios, o inspetor de saúde pública, o médico Firmino
José Doria fez a seguinte requisição à Câmara Municipal:

Ilustríssimos senhores.
Não tendo até o presente esta inspetoria de
saúde as posturas da câmara deste município,
para regular em dias exames as infrações por
venda de gêneros corrompidos; por isso que
as formas impostas pelo regulamento n° 828
de 29 de setembro de 1851 são muito pesadas
para uma população pobre, como a desta cida-
de; requisito de Vossas Senhorias um exem-
plar: assim como que se dignem de determi-
nar ao fiscal do município que na forma do
decreto acima citado, tem ele obrigação legal
de acompanhar-me nas diligências sanitárias,
que houver de proceder, nos interesses da saú-
de pública e particular.
Deus guarde às Vossas Senhorias.
Ilustríssimos Senhores Presidente, e mais
membros da câmara municipal da Cidade do
Natal.O Inspetor de saúde Dr. Firmino José Do-
ria (CÂMARA MUNICIPAL do Natal, 1861)

247
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

O documento nos mostra que, a administração


na Inspetoria de Saúde Pública e a Câmara Municipal
do Natal tinham dificuldades de cumprir o decreto
imposto pelo poder central. Ou seja, a legislação não
se adequava à realidade da maioria da população da
cidade e o inspetor qualificava as penalidades e as
multas como sendo muito pesadas. A inspetoria tam-
bém cobrava da Câmara a implantação das Posturas
Municipais e a presença do fiscal, principalmente para
acompanhá-lo nas diligências sanitárias. Isso pode
significar que o fiscal provavelmente não gostava de
dividir as funções equivalentes a seu cargo com outro
funcionário especialista em saúde pública. Divergên-
cias entre autoridades municipais e profissionais da
saúde pública na segunda metade do século XIX tam-
bém aconteciam em outras localidades do Império.9
O relatório do Presidente de Província, Anto-
nio Marcellino Nunes Gonçalves, fornece detalhes
sobre a qualidade da farinha e o seu preço no ano de
1858. De acordo com o presidente, a população re-
clamava da escassez e do preço da farinha de man-
dioca que, segundo a autoridade provincial, custava
entre vinte e sete e trinta e dois mil réis por alqueire.
Segundo a avaliação do presidente, a baixa qualida-
de da fécula não justificava o alto preço (RIO GRAN-
DE DO NORTE, 1858, p. 6-7).
Outros alimentos também eram vendidos em
estado de deterioração no mercado. No relatório de
1870, o vice-presidente Pedro de Barros Cavalcante de
Albuquerque mencionou que a carne verde estava em
falta, e a pouca que havia era de “tão má qualidade que
mais valia prescindir dela” (RIO GRANDE DO NORTE,
1870, p. 12). Esse é o primeiro relatório das autorida-
⁹ A tese de Juliana Teixeira Souza e o seu livro são fundamentais para en-
tender os conflitos de atribuições envolvendo os funcionários que traba-
lhavam na câmara municipal (o recorte espacial é o Rio de Janeiro) desig-
nados a fiscalização dos gêneros alimentos (SOUZA, 2007).

248
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

des provinciais que registra um tópico específico para


Alimentação Pública. Refletindo sobre a estrutura do
matadouro e do mercado, deduz-se que a carne verde
pode ter saído do matadouro em condições não favo-
ráveis ou ela pode ter se estragado pelo mercado mes-
mo. Como afirmamos anteriormente, não houve con-
dições de investigar como a carne era transportada do
matadouro para o mercado. Então, a questão do asseio
do local do abate, o modo de conservação ou a falta de
limpeza nos locais de venda podem ter contribuído
para a má conservação deste gênero.
Como alertamos na introdução deste capítulo,
a população e, principalmente, os trabalhadores que
lidavam diretamente com a alimentação aparecem
em nossos estudos a partir do que foi escrito pelas
elites governamentais. Em alguns momentos da nos-
sa investigação, podemos perceber quem eram estes
trabalhadores, quais as suas condições de trabalho e
que novas normas e condutas estavam sendo exigidas
pelas autoridades responsáveis pela administração da
vida cotidiana da cidade do Natal. As tensões apare-
cem de maneira sutil na documentação, mas a produ-
ção historiográfica do Rio Grande do Norte nos traz
elementos que permitem elaborar hipóteses acerca do
comportamento dessa população, que não esteve pas-
siva frente a esses novos saberes e maneiras de organi-
zar o espaço que eram impostos de cima para baixo.
Um exemplo disso é a Revolta do Quebra-Qui-
los, que ocorreu entre 1874 e 1875, nas Províncias do
Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas.
Na face mercantil dessa revolta estava a mudança do
padrão de pesos e medidas tradicionais para o sistema
métrico francês, além da exigência de novos impostos
e aluguel dos artefatos de “medidas” que eram impos-
tas pelas Câmaras e os custos que os comerciantes te-
riam que arcar com a aquisição desse material. No Rio

249
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

Grande do Norte, este cenário foi agravado pelo con-


texto de uma economia em crise, devido à queda dos
preços do açúcar e do algodão no mercado mundial,
provocando a baixa das rendas provinciais. No intuito
de angariar recursos, os governos provincial e munici-
pal aumentaram os impostos “já existentes e criaram
novos, dentre eles o imposto de consumo sobre gêne-
ros básicos, como farinha e carne seca, vendidos em
feiras e mercados, geralmente por pequenos lavrado-
res” (MONTEIRO, 2007, p. 115).
O novo sistema de pesos e medidas, que pas-
sou a ser executado em 1873, foi a gota d’água para
a revolta acontecer, pois a população começou a des-
confiar desse sistema e atacou mercados e feiras,
destruindo as balanças. Além disso, outros fatores
estavam relacionados à revolta, como o alistamen-
to por sorteio, o censo, abuso dos aferidores e a alta
nos preços dos produtos e impostos da municipali-
dade (MONTEIRO, 2007, p. 115-117)10 No Rio Gran-
de do Norte, a revolta ocorreu em algumas cidades
e vilas como Cidade do Príncipe (Caicó), Santa Cruz,
Acari, Jardim (Jardim do Seridó).11

10
João Fernando Barreto de Brito que, atualmente, vem desenvolvendo pes-
quisas a respeito dos pesos e medidas e da revolta de quebra-quilos chama a
atenção que a população não era apenas contrária à lei do sistema de pesos
e medidas por ignorância ou por ser “anti-moderna”, mas que isso estava
atrelado às medidas que o governo realizou e não se preocupou em educar as
pessoas para manusear e/ou fiscalizar os instrumentos de medição.
11
Para entender como o Quebra-quilos aconteceu na Cidade do Príncipe,
considerar que a localidade foi palco de acontecimentos “que confirmam,
a exemplo de outras cidades brasileiras do mesmo período, que o sertão
da Província do Rio Grande do Norte se encontrava em um contexto de
excitações provocadas por antipatias a medidas do Estado, configurando
espaços de violência, como se deu com a casa do Mercado e casas de venda
de particulares” (SANTOS, 2014. p. 56). Outro trabalho que também pode
servir para entender como se deu essa revolta no Seridó potiguar, é a mo-
nografia de MEDEIROS, 2003. Quanto aos nomes das cidades e vilas que
eram chamadas nos anos em que ocorreu a revolta de quebra-quilos, me
baseei nos seguintes relatórios de presidentes de província de 1874 e 1875.

250
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Considerações finais

Diante do exposto, estes foram os dados encon-


trados na documentação sobre o matadouro público, lo-
cal de abate das carnes e do mercado público, local onde
se comercializava os gêneros alimentícios na Cidade do
Natal, na segunda metade do século XIX. A documen-
tação mostrou que houve uma tentativa de ordenar o
espaço público, no que diz respeito à sua materialida-
de, por meio da fiscalização e controle desses locais em
relação à saúde pública, envolvendo principalmente a
limpeza dos estabelecimentos, a preservação da quali-
dade dos gêneros alimentícios que eram vendidos, so-
bretudo da carne proveniente do matadouro. Ou seja,
constata-se pelo menos a intenção (nem sempre reper-
cutindo em ações concretas) de intervenção das dife-
rentes autoridades neste espaço público.
Acreditamos que entender o cotidiano da popu-
lação por meio da temática da saúde pública permite re-
flexões muito importantes para pensar esse aspecto da
vida social, não só para o século XIX, mas também re-
percutindo no modo como enfrentamos os problemas
envolvendo a saúde nos dias atuais. Essa preocupação
de perceber as mudanças, permanências e rupturas do
passado em relação ao presente é um exercício funda-
mental não só para quem escreve a história, mas tam-
bém para os/as discentes e professores/as da Educação
Básica. Pensar isso a partir do nosso lugar de vivência,
como a cidade do Natal, nos permite trabalhar com a
realidade local, a partir da qual podemos pensar em es-
calas mais amplas, envolvendo as relações econômicas,
sociais, de trabalho e questões de saúde.
A temática proposta em nosso estudo mos-
trou também a relação do Estado com a população
que trabalhava diretamente com os gêneros alimen-
tícios e com os que consumiam estes produtos. Ques-

251
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

tões como as péssimas condições de infraestrutura e


de trabalho, a dificuldade de assegurar à população a
qualidade dos alimentos consumidos, e a crítica aos
preços elevados revelam a complexidade das formas
de agir e pensar daquela sociedade.
Contar a história de sujeitos difíceis de serem
identificados, mas que exerciam a profissão de mar-
chantes, matutos, pescadores, atravessadores e co-
merciantes, se configurou como um grande desafio,
pois eles aparecem em meio às papeladas e discursos
que foram compostos por outros sujeitos ligados ao
governo, estes sim, com nome e sobrenome sempre
evidentes. Mesmo nas entrelinhas da atuação do Es-
tado, a forma daqueles sujeitos trabalharem e se re-
lacionarem com o espaço público nos mostra que as
políticas de saúde eram implementadas no sentido de
ordenar e sanear a cidade, num processo complexo
que também envolvia tensões, que surgiam quando os
novos saberes se deparavam aos costumes e hábitos
da população, que tinha sua própria maneira de ven-
der e consumir os gêneros alimentícios.

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252
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

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ordinaria de 1861. Ouro Preto, Typ. Provincial, 1862.
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-Presidente o Exm. Sr. Dr. Octaviano Cabral Raposo da Camara.
Pernambuco: Typographia de M. Figueira de F. & Filhos, 1870.
_____. Relatorios com que installou a Assembléa Legislativa Pro-
vincial do Rio Grande do Norte no dia 11 de junho de 1873 o 2°
Vice-Presidente Exm. Sr. Coronel Bonifacio Francisco Pinheiro
de Camara, e passou a administração da mesma Provincia ao
Exm. Sr. Dr. João Capistrano Bandeira de Mello Filho no dia 17 do
mesmo mez. Rio de Janeiro, Typografia Americana, 1873.
_____. Falla com que o Exm. Sr. Dr. João Capistrano Bandeira de
Mello Filho abriu a 1ª sessão da vigésima legislatura da Assem-
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A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

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SANTOS, Alcineia Rodrigues dos. O processo de dessacralização


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XX. Tese (doutorado em História) – Faculdade de História, Univer-
sidade Federal de Goiás, Goiânia, 2011.

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didas do imperador: o Quebra quilos no sertão da Província do Rio
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254
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

SILVA, Antonio Moraes. Diccionario da língua portugueza - re-


compilado dos vocabularios impressos ate agora, e nesta segunda
edição novamente emendado e muito acrescentado, por ANTO-
NIO DE MORAES SILVA. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813.

SILVA, João Luiz Maximo da. Alimentação de rua na cidade de São


Paulo (1828-1900). Tese (doutorado em História) - Departamento
de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.

SILVA, Rodrigo Otávio da. Sair curado para a vida e para o bem:
diagramas, linhas e dispersão de forças no complexus nosoespa-
cial do Hospital de Caridade Juvino Barreto (1909- 1927). Disser-
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SILVA, Rosinéia Ribeiro de Almeida. O Seridó em tempos de cólera:


doenças e epidemias na segunda metade do século XIX. Monografia
(graduação em História) - Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, Caicó, 2003.

SOUZA, Juliana Teixeira. A autoridade municipal na Corte Imperial:


enfrentamentos e negociações na regulação do comércio de
gêneros (1840-1889). 2007. Tese (doutorado em História) –
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual
de Campinas/UNICAMP, Campinas, 2007.

______. A câmara e o Governo da Cidade: poder local, cidadania e


polícia dos mercados na corte. Natal: EDUFRN, 2018.

PINTO, Luiz Maria da Silva. Diccionario da Lingua Brasileira por


Luiz Maria da Silva Pinto, natural da Provincia de Goyaz. Na Typo-
graphia de Silva, 1832.

TEIXEIRA, Rubenilson Brazão. O poder municipal e as casas de


câmara e cadeia: semelhanças e especificidades do caso potiguar.
Natal: EDUFRN, 2012.

255
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

PARTE II
Novos olhares
sobre o
ensino

256
PROGRESSÃO DO
CONHECIMENTO HISTÓRICO
NA PRIMEIRA VERSÃO DA BASE
NACIONAL COMUM CURRICULAR

Matheus Oliveira da Silva


Apresentação

Como professores, nossas tarefas são múltiplas.


Ministrar aulas, planejá-las, elaborar atividades, avalia-
ções e, até mesmo, materiais didáticos. Apesar de práticas
distintas (mas que se relacionam), poderíamos fazer um
levantamento de aspectos comuns entre elas: precisamos
definir objetivos, selecionar conteúdos e fontes, estabele-
cer problemas, determinar critérios e expectativas, preci-
samos pensar em nosso público-alvo. Como em uma lis-
ta, é muito fácil ter a sensação de que, uma vez cumprida
cada uma dessas tarefas, cumprimos plenamente o míni-
mo daquilo que seria da alçada de um professor. Porém,
há uma teia, por assim dizer, que entrelaça essas e tantas
outras incumbências do ofício: a progressão.

257
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

De certa maneira, nenhum de nós está total-


mente alheio a essa temática. Afinal, se em algum
momento escolhemos uma palavra ao invés de outra
para falar com crianças e adultos, se propomos uma
atividade mais fácil do que outra para essa ou aquela
turma, se optamos por narrativas mais gerais ao invés
daquelas mais complexas, em todos esses casos, esta-
mos nos utilizando de princípios da progressão (em-
bora muitos de nós não o saibamos).
Antes de chegar ao conceito, gostaria ainda
de propor um exercício imaginativo para que possa-
mos dimensionar a progressão. Imagine que, agora,
você escreverá um pequeno livro didático sobre His-
tória Local para seus alunos do 6º Ano. Pensemos
nas seguintes questões:

A) Para que serve este livro?


B) De onde parte a narrativa que construí no livro? Ela
leva em consideração o que os alunos já sabem sobre o
assunto? Ela é a mesma narrativa que escreveria para
outras séries?
C) As palavras que utilizei no texto realmente propor-
cionam aos alunos uma compreensão efetiva da nar-
rativa? Elas estão adequadas a suas idades e desempe-
nho cognitivo?
D) O que espero que os (as) alunos(as) saibam e/ou
consigam após o trabalho com este livro?
E) Este livro servirá como base para que o aluno con-
siga aprender coisas novas e lidar melhor com aquilo
que já sabe?
F) Os comandos das atividades demandam uma utili-
zação do que já foi aprendido em capítulos anteriores
ou estão fechados na interpretação dos capítulos?

258
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Essas questões elucidam como a progressão


não apenas está presente em nossa prática docente,
mas, principalmente, como precisa estar, caso real-
mente queiramos alcançar os objetivos que estabe-
lecemos para nossas aulas de História. Por isso, para
tratar do tema a partir de um caso concreto, este tex-
to apresenta os resultados de uma pesquisa desenvol-
vida na iniciação científica, entre 2018 e 2019, que
procurou averiguar a existência ou não de uma pro-
gressão do conhecimento histórico na primeira ver-
são da Base Nacional Comum Curricular (2015). Para
isso, o texto divide-se em duas partes: na primeira,
tentarei historicizar a pesquisa que origina este tex-
to, apresentando também aspectos bibliográficos e
teóricos a respeito da progressão. Já na segunda, será
exposta a análise feita para delimitar a progressão no
componente curricular História.
Contudo, o mais importante é ressaltar que
este texto foi motivado pela necessidade de contri-
buir com os estudos sobre o tema e para ratificar a
importância e coerência de pensar a aprendizagem
histórica, em todas as suas dimensões, a partir da
ciência de referência.

Por que docentes de História devem


discutir progressão do conhecimento?

Para utilizar uma definição operatória de pro-


gressão do conhecimento, podemos entendê-la como
a “distribuição criteriosa dos conhecimentos e habi-
lidades relativos à determinada matéria” (FREITAS,
2014, p.148)1. No caso da História, a progressão pode
ser percebida mediante a distribuição de conteúdo,
seleção de recortes espaciais e temporais, e conceitos

¹ Tal opção se dá justamente pela ainda imprecisão no trato com a progres-


são, observada nos trabalhos com os quais tivemos contato.

259
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

sob uma perspectiva de complexização. Os conceitos


vão ficando, por exemplo, mais específicos; os espa-
ços podem ir se distanciando em relação ao espaço
local; os recortes temporais podem ir recuando no
tempo; a compreensão sobre determinados fenôme-
nos ou fatos pode requerer a articulação de mais in-
formações – conceitos, uso de fontes, comparação de
informações, entre outros.
O estudo da progressão do conhecimento em
História é resultado da percepção de que a aprendiza-
gem histórica é um elemento da ciência da história.
Segundo Rafael Saddi, há uma disciplina especializada
dentro da ciência da história, chamada didática da his-
tória, que é responsável pelo estudo das formas, usos,
sentidos e funções do conhecimento histórico sob a
relação de como se ensina e se aprende história em di-
versos espaços da sociedade (SADDI, 2012).
A progressão pode contribuir com diversos as-
pectos do ensino de história e da prática docente, como
por exemplo, a seleção de conteúdos e objetivos, bem
como fontes. Não é incomum constatar diversas difi-
culdades de alunos em sala de aula. Quando se ministra,
por exemplo, assuntos cuja dimensão temporal e espa-
cial é muito distante de suas realidades, requer-se deles
uma capacidade de abstração que os situe em relação a
tais recortes. No entanto, esta é uma tarefa que, antes
de executada, precisa ser desenvolvida não apenas na
Geografia, mas também na História. Isto poderia ser re-
solvido com um trabalho com mapas e fontes sobre o
período, mas por este pequeno deslize, digamos assim,
um assunto pode perder o significado para os alunos e,
logo, afetar seu desempenho. Também ocorre muitas
vezes de os professores menos experientes tentarem
ensinar para alunos do 6º ano do ensino Fundamental
I da mesma maneira – o mesmo recorte, fontes, textos,
vocabulário, gestos, objetivos, recursos didáticos, nar-

260
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

rativa – como se ensina aos alunos do 1º ano do Ensi-


no Médio, sem levar em consideração que as estruturas
cognitivas, os conhecimentos e a percepção de mundo
de um estudante de 10 anos não são as mesmas de um
estudante de 14 anos. E logo se descobre, na prática, a
importância de pensar na progressão do conhecimento
em nossos planejamentos.
Estas nuances precisam ser incorporadas às dis-
cussões no ensino de história, à formação de docentes
e suas respectivas práticas. Esta, dentre outras, é a con-
tribuição que se espera dar por meio desta pesquisa.

Progressão do conhecimento
e a Base Nacional Comum Curricular

Em setembro de 2015, o Ministério da Educa-


ção tornou pública a Primeira Versão Preliminar da
Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Envolvi-
da em diversas polêmicas, a Base foi alvo de críticas
de professores, instituições de diferentes naturezas,
gestores e outros profissionais. No que diz respeito ao
componente curricular História, tais polêmicas esta-
vam relacionadas a uma suposta exclusão de conte-
údos substantivos, como História Antiga e Medieval,
considerados por muitos historiadores como conte-
údos canônicos. Já em maio de 2016 foi publicada a
segunda versão do documento, cujas características
destoavam completamente da primeira e revelavam a
retomada de uma perspectiva considerada tradicional
no ensino de história, marcada pelo eurocentrismo
(OLIVEIRA; FREITAS, 2018).
Este processo de elaboração e disputas em tor-
no das duas referidas versões, e as características de
cada uma no que diz respeito à História, foi estudado
entre os anos de 2016 e 2018, resultando em duas im-
portantes conclusões. A primeira afirma que os pro-

261
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

fissionais de História – representados por entidades


de classe –, quando opositores ou críticos à primeira
Base, não tinham clareza sobre a distinção de diversos
aspectos da elaboração de um currículo, limitando-o
exclusivamente à seleção de conteúdo. A partir deste
ponto, revelou-se outra importante característica dos
historiadores brasileiros, a saber, o conservadorismo
que os impedia de romper com uma organização da
História escolar pautada no modelo quadripartite,
como propunha a Base (SILVA, 2018).
Como então as disputas em torno da primei-
ra versão foram efetivadas na segunda? A resposta a
esta questão se constitui como a segunda conclusão
mencionada, validando a primeira. Em uma análise
das principais mudanças no perfil do componente
curricular História, constatou-se que a segunda Base,
ao retomar um modelo tradicional e eurocêntrico,
preocupou-se em propor mudanças a partir de con-
teúdos substantivos2 e, consequentemente, voltar
a privilegiar recortes espaço-temporais que, na pri-
meira versão, estavam condicionados à relação com
a história do Brasil (SILVA, 2019a).
Estas constatações poderiam abrir caminhos
para uma série de outras discussões e questionamen-
tos. Contudo, o contato com uma bibliografia que ver-
sa sobre teoria da História e ensino e aprendizagem da
História revelou a necessidade de eleger a progressão
como uma discussão necessária em nossa área. Evi-
dentemente, tal afirmação pressupõe que este é um
tema ainda muito distante dos historiadores e que
guardaria novas possibilidades de ensino, pesquisa,
atuação e percepção sobre o ensino de História. Desta

² Houve também mudanças nos eixos temáticos, mantendo-se apenas um


eixo para conteúdos substantivos e outro para meta-históricos. Foi excluído,
por exemplo, o eixo Formação cidadã, o que quando somado ao grande esfor-
ço em mobilizar a volta da história eurocêntrica, ratifica a despreocupação
com o principal objetivo da História na Educação Básica: a formação cidadã.

262
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

maneira, encaminhamos o estudo da terceira versão


da Base sob a perspectiva das duas primeiras pesqui-
sas apresentadas aos demais membros do Grupo de
Pesquisa Espaços, Poder e Práticas Sociais3, e empe-
nhamo-nos em tornar a progressão nosso objeto.
Nossa primeira tarefa foi realizar um levanta-
mento bibliográfico que indicou, na época, cinco tra-
balhos de historiadores que estão inseridos no cam-
po do ensino de história versando especificamente
sobre progressão.4 Estes trabalhos revelaram a pou-
ca presença de referências brasileiras para o assunto
e a necessidade e importância de dialogar com uma
bibliografia internacional, que classificarei aqui em
três blocos. Neles, há uma bibliografia especializada
em progressão do conhecimento5, em teoria da história6

³ O trabalho intitulado “A terceira versão da BNCC: as disputas para um cur-


rículo em História” foi desenvolvido entre 2018 e 2019 por Isabela Ferreira
(História/UFRN) e Cíntia Venâncio (História/UFRN) através do Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC/PROPESQ/UFRN).
⁴ São eles Progressão da aprendizagem do conhecimento histórico nos
currículos prescritos de social studies dos EUA (1995-2012) de Maíra Ielena
Cerqueira Nascimento; A progressão do conhecimento histórico na educa-
ção básica: dilemas da transição entre os níveis fundamental e médio e Pro-
gressão do conhecimento histórico entre o ensino fundamental e o ensino
médio: um olhar sobre o livro didático, ambos de Flávia Caimi e Sandra Re-
gina de Oliveira; Formação da Consciência Histórica a partir das ideias de
progressão do Livro Didático: uma proposta de pesquisa com estudantes
do Ensino Fundamental II, escrito por Aaron Sena Cerqueira Rei; Progres-
são dos conteúdos históricos em currículos nacionais da América, Europa
e Ásia (1995-2012), de Itamar Freitas. Ao mesmo tempo, discussões que
tocam aspectos relativos à progressão em História não são estranhas aos
historiadores. Poderia citar algumas obras de referência, como Fundamen-
tos Teóricos e Metodológicos para o ensino de História – Anos Iniciais (Itamar
Freitas), Aprender e ensinar História nos Anos Finais da Escolarização Básica
(Itamar Freitas), Ensino de História para o Fundamental I (Maria Belintane
Ferminiano e Adriane Santarosa dos Santos). Entretanto, nosso critério foi
compreender o quanto a discussão sobre progressão já havia se disciplina-
rizado entre os historiadores.
⁵ Entre os autores mais citados na abordagem desse tema destacam-se:
Itamar Freitas, Kieran Egan, Peter Lee, Jörn Rüsen, Margarida M. D. Olivei-
ra, Margaret Heritage, Katia Maria Abud, Isabel Barca, Peter Lee, Rosalyn
Ashby e Alaric Dickinson.
⁶ Neste âmbito, podemos citar os seguintes autores: Robin Collingwood,

263
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

e teorias da aprendizagem7 (SILVA, 2019b). A partir


das referências mobilizadas por esses trabalhos,
defendo que a progressão é constituída sob uma
área de fronteira desses três segmentos discipli-
nares e que, justamente por isso, pode ser obser-
vada em diferentes objetos por meio de coman-
dos, conteúdos, recortes, conceitos, e podem ser,
inclusive, todos estes relacionados e comparados.
Dito que a progressão é algo ainda pouco
considerado no leque de preocupações dos profis-
sionais de História brasileiros, coube-nos aqui re-
fletir se a primeira versão da Base, tão polêmica
como foi, faria jus a um caráter inovador não ape-
nas pela maneira como reorganizou a história esco-
lar em torno do Brasil, mas também por incorporar
ao componente curricular história aspectos míni-
mos acerca da progressão do conhecimento.

Estratégias de progressão
histórica na 1º BNCC

Para observar a progressão na BNCC, utiliza-


mos dois parâmetros: comandos e objetivos, por um
lado, e as chamadas estratégias de progressão, por
outro. Estas são meios comuns para articular a pro-
gressão entre séries e níveis. Foram analisadas as es-
tratégias de progressão para todo o documento e, entre
o 9º ano e o 1º ano do Ensino Médio, os comandos.
Esta escolha decorre do fato de que as séries indica-
das representam a mudança de fases do ensino e que
as estratégias de progressão podem ser observadas
mais claramente em todo documento.

Jörn Rüsen, Peter Lee, Reinhart Koselleck, Geoffrey Hawthorn, Oldimar


Cardoso, Isabel Barca e Itamar Freitas.
⁷ Segue aqui alguns autores importantes para o presente tema: Lev Vigotsky,
Jean Piaget, Frederic Skinner, B. S. Bloom, Jerome Bruner e Phillipe Perrenoud.

264
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Incialmente, é preciso considerar que a BNCC já


anuncia elementos que sinalizam perspectivas de pro-
gressão. Isso informa que sua elaboração estava pautada
minimamente em pressupostos sobre o assunto. Logo
no texto introdutório verifica-se que “a proposta para o
componente curricular História compreende uma orde-
nação de objetivos de aprendizagens relacionadas à com-
preensão do lugar social do saber histórico na Educação
Básica” (BRASIL, 2015, p. 242). Além disso, “em função
dessa postura, a proposição curricular estabelece arti-
culação entre os anos iniciais e finais do Ensino Funda-
mental e entre esses e o Ensino Médio” (BRASIL, 2015, p.
242). A BNCC, portanto, afirma que seus objetivos foram
ordenados de maneira criteriosa e articulada, o que dia-
loga com conceito de progressão apresentado por Frei-
tas, referenciado no início do texto.
Outro elemento que indica a existência de uma
proposta de progressão são os objetivos de cada fase do
ensino. Nos Anos Iniciais, são desenvolvidos saberes
necessários à apropriação histórica do tempo e ao de-
senvolvimento de conhecimentos para a compreensão
contínua de processos históricos. Nos Anos Finais há
o desenvolvimento de conhecimentos necessários ao
enfrentamento de processos históricos, enfatizando-
-se o estudo da História do Brasil, de indivíduos e co-
letividades, que demarcaram mudanças e permanên-
cias nas conformações sociais, econômicas, culturais
e políticas da trajetória brasileira. Por fim, no Ensino
Médio, ocorre o aprofundamento destas perspectivas,
fomentando o desenvolvimento de habilidades para
conceituação, para análise e para síntese dos proces-
sos históricos, inter-relacionando a História do Brasil
com outros espaços: as Áfricas, as Américas e os mun-
dos europeus e asiáticos (BRASIL, 2015, p. 242-243).
Sintetizando tais proposições, pode-se inferir
que, nos Anos Iniciais, há a construção de uma base

265
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

teórica e cognitiva para lidar com o tempo; nos Anos


Finais, esta base é desenvolvida e ampliada, visando
lidar com processos históricos no tempo; e no Ensi-
no Médio esta base é utilizada para operacionalizar
o trato com estes processos históricos também ao
longo do tempo. No 1º Ano do Ensino Fundamental,
por exemplo, espera-se “identificar e problematizar
as razões da seleção, das escolhas e da definição de
datas comemorativas, considerando seus diferentes
significados e sentidos” (BRASIL, 2015, p. 244). Já
no 6º Ano do Ensino Fundamental, espera-se “co-
nhecer e reconhecer diversas maneiras de contagem
e de registro do tempo – calendários e outras formas
consagradas – dos astecas, dos maias, dos egípcios,
dos diferentes povos indígenas brasileiros entre ou-
tros, discutindo usos e adequações” (BRASIL, 2015,
p. 251). Por fim, no 1º Ano do Ensino Médio, “re-
fletir, discutir e posicionar-se sobre os sentidos, os
significados e as representações de datas comemo-
rativas alusivas às presenças ameríndias, africanas,
afro-brasileiras e europeias no Brasil e no mundo”
(BRASIL, 2015, p. 260).
Outra característica presente na BNCC é a
organização dos recortes espaciais do próximo ao
distante. Para efetivar isso, o documento toma a re-
alidade brasileira como ponto de partida para esta-
belecer nexos com outros locais ao longo do tempo.
Para tanto, enfatiza-se a História do Brasil como
alicerce a partir do qual tais conhecimentos serão
construídos ao longo da Educação Básica. Tal ên-
fase, é importante ressaltar, não significa exclusi-
vidade na abordagem da história brasileira nem
tampouco a exclusão dos nexos e articulações
com as histórias africanas, americanas, asiáticas
e europeias. Aliás, tais nexos e articulações são
apontados em vários objetivos de aprendizagem
(BRASIL, 2015, p. 242).

266
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Já o reforço nos passos anteriores aparece de duas


maneiras. Primeiro na repetição de eixos temáticos
consecutivamente. Assim, o 1º ano dos Anos Iniciais
versa sobre os sujeitos e grupos sociais e o 2º sobre
grupos sociais e comunidades. O 7º ano trata de pro-
cessos e sujeitos, e o 8º e 9º anos sobre análise e pro-
cessos históricos. A segunda maneira é a repetição de
comandos entre séries, como se verá adiante. Estes
são os elementos identificados que anunciam uma
progressão do conhecimento histórico na Base.

A progressão por meio dos


comandos na 1º BNCC

Serão analisados agora os comandos utilizados


nos objetivos prescritos e como eles conformam – ou
não – uma progressão. O parâmetro utilizado para ave-
riguar isso foi a Taxonomia de Bloom, um instrumen-
to que tem por objetivo orientar o planejamento, or-
ganização e controle de objetivos de aprendizagem, e
que dispõe de três domínios, a saber, cognitivo, afetivo
e psicomotor, dentro dos quais há um nível de comple-
xidade crescente estruturados por meio de objetivos
dispostos em cada dimensão do processo cognitivo –
conhecimento, compreensão, aplicação, análise, síntese e
avaliação (ANDERSON et al., 2001).
No 9º Ano todos os comandos remetem a ideia
de conhecer e compreender, ou seja, fica claro que a
proposta nesta série é construir uma base cognitiva
e conceitual. Já no 1º Ano há maior variedade de co-
mandos. A prerrogativa de conhecer e compreender é
mantida, mas agora está acompanhada de objetivos
como avaliar, posicionar-se e interpretar. Observe-se
a Taxonomia de Bloom.

267
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

Tabela 1 - Taxonomia de Bloom

Agora vejamos os comandos do 9º ano8, colori-


dos de acordo com o campo ao qual correspondem9.
Tabela 2 – Classificação dos comandos do 9º Ano.

⁸ Na tabela abaixo, os comandos estão dispostos na mesma ordem como


nos objetivos prescritos na BNCC.
⁹ Ressalta-se que esta correspondência não se faz exclusivamente pela
existência dos mesmos comandos na Taxonomia, mas sim a partir da sua
aproximação. O verbo conceituar, por exemplo, não consta no campo co-
nhecimento, mas remete ao pressuposto de que o ato de conceituar um
fato ou um período expressa o conhecimento sobre eles.

268
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Transformando estes dados em gráficos per-


centuais, fica mais clara a proposta do 9º ano. As infor-
mações acimas apontam uma concentração de 67%
do domínio da compreensão e 33% do conhecimento.
Nesta série, portanto, predominam comandos que vi-
sam construir a capacidade de apropriar-se de infor-
mações. Agora vejamos os comandos do 1º ano.

Tabela 3 – Classificação dos comandos do 1º Ano.

Há incorporação de comandos que deman-


dam ações cognitivas mais complexas. Para “ava-
liar as relações África-Brasil em suas diferentes
dimensões: do comércio transatlânticos de pes-
soas, das culturas material e imaterial, do desen-
volvimento econômico do Brasil” é necessário,
por exemplo, conhecer minimamente a história
do Brasil e do continente africano, a formação das
populações nestes dois locais, aspectos das suas
culturas, saber conectar fatos, saber questionar e
recorrer a possíveis fontes, bem como elaborar hi-
póteses. Os comandos o 1º Ano reservam, assim,
29% de seu espaço para o domínio da análise, 22%
para compreensão, 21% para a avaliação, 14% para
aplicação e outros 14% para conhecimento.
Agora colocando todos os comandos das
duas séries em ordem de complexidade, pode ser
ainda mais nítida a progressão em cada uma.

269
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

Tabela 4 – Comparação entre os comandos do 9º


e 1º Ano, de acordo com a Taxonomia.

Produzido pelo autor

Há, assim, uma complexização interna, ou seja,


dentro de cada série avança-se em direção a competên-
cias mais sofisticadas, mas também há uma progres-
são quando relacionamos cada uma delas. Em outras
palavras, o 9º ano seria a fase de construir uma base
e o 1º ano o momento de utilizar esta base para ope-
racionalizar comandos que exigem, de maneira mais
concreta, a atuação dos alunos.
Após averiguar a existência de estratégias de
progressão, a articulação de objetivos e dos pressu-
postos epistemológicos por trás da estruturação do
componente curricular História, anunciados no texto
introdutório da disciplina, é possível afirmar que sim,
a primeira versão da Base possui uma progressão do
conhecimento histórico, como questionava a proble-
mática da pesquisa posta no início do texto.

Considerações finais

Este estudo sobre a Base foi quase um pretexto


para trazer aos colegas da História algumas reflexões
sobre a progressão do conhecimento. Relacionando os
resultados da pesquisa ao estado da produção brasilei-
270
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

ra sobre o tema, fica clara a necessidade e importância


de pensar esta questão a partir das ciências de referên-
cia – que no nosso caso é a História –, sempre em diálo-
go com as teorias da aprendizagem.
O estudo da progressão pode contribuir sig-
nificativamente para a melhoria de muitos aspectos
na formação de docentes, e mesmo para a melhoria
dos resultados do trabalho realizado pelos professo-
res que já estão em sala de aula. Não é incomum que
ouçamos relatos destes profissionais insatisfeitos
com baixo desempenho de estudantes na leitura dos
textos dos livros didáticos, na compreensão das ex-
plicações dadas em sala e nas respostas encontradas
nas avaliações escolares. Mas quando estes mesmos
docentes foram sensibilizados sobre a importância
de entender cada aluno(a) em sua singularidade e
em sua fase? E por que não foram? Faltou reflexão
sobre o que significa ensinar História para um estu-
dante de 10 anos e para outro de 14?
Por isso, gostaria de encerrar este texto pro-
pondo a professores e futuros professores que te-
nhamos sempre em mente aquilo que irei ensinar, o
para que irei ensinar, para quem irei ensinar, por meio
de que irei ensinar. Sobre aquilo a ser ensinado (con-
teúdo substantivo), precisamos dessacralizar as coi-
sas e visualizar temáticas históricas dentro de um
plano de aprendizado mais amplo. Se a Revolução
Francesa for nosso tema no 8º Ano, é de bom tom
que não a signifiquemos apenas pelo discurso de
que “é importante”, mas pensemos quais noções his-
tóricas serão apreendidas desse conteúdo para que
novas bases de interpretação histórica sejam desen-
volvidas (o termo Revolução de 30 é o mesmo para
Revolução Francesa? Se a Burguesia “nasce” na Revo-
lução Francesa, por que falamos burguesia no Brasil
no século XX, um ano depois, no 9º Ano?).

271
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

Ao mesmo tempo, se a História ensinada for


dotada de um para que ensinar (objetivos), temos que
após um ano letivo alcançando objetivos pré-estabele-
cidos, teremos saído de um ponto A para um B e, logo,
o aluno não será o mesmo que iniciou esse trajeto.
Este aluno, por sua vez, não pode percorrer um cami-
nho que não seja adequado a ele. O para quem ensinar
demanda de nós que lembremos que aquele texto que
usa termos como virada histórica, forças produtivas,
alhures, epistemologia pode ser incompatível ao estado
cognitivo de crianças de 10 anos. Ou, caso queiramos,
tracemos meios para chegar a tais palavras. Aliás, nis-
to pode consistir o por meio de que irei ensinar. Atual-
mente, existem diversos recursos à disposição de pro-
fessores (livros, sites, aplicativos, computadores etc.).
Devemos definir quais desses recursos são imprescin-
díveis para que outros possam ser usados em sequên-
cia. O que é necessário saber antes, por exemplo, para
que os alunos possam usar aplicativos de maneira efi-
caz? E após a inserção de aplicativos, com quais outros
recursos eles estarão habilitados a usar? Creio que, as-
sim, poderemos ampliar a receptibilidade e o poten-
cial da progressão em nossas atuações.

Referências
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273
BERIMBAU ME LEVA:
CONTRIBUIÇÕES DA CAPOEIRA
À LUTA ANTIRRACISTA NA
EDUCAÇÃO BÁSICA

Jefferson Pereira da Silva 1

Você não sabe o valor que a capoeira tem


Você não sabe o valor que a capoeira tem
Ela tem valor demais
Ê se segura rapaz
Você não sabe o valor que a capoeira tem
(Mestre Burguês)

Descrição da proposta

A sugestão de atividade aqui apresentada tem


como foco o trabalho com a temática da capoeira no
ensino de História, desenvolvendo valores e princípios
¹ Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGH-UFRN) e membro do Gru-
po de Pesquisa Espaços, Poder e Práticas Sociais. Atualmente, é professor
substituto da disciplina de História no Instituto Federal do Rio Grande do
Norte (IFRN), campus de São Gonçalo do Amarante.

274
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

coerentes com uma formação cidadã democrática e re-


publicana. Segundo Manoj Geeverghese, “a arte da capo-
eira é repleta de tradições e rituais advindos da africa-
nidade do povo brasileiro. Este é um valor que deve ser
bastante explorado e difundido em prol da valorização
de aspectos formativos presentes na cultura afro-brasi-
leira” (GEEVERGHESE, 2013, p. 106). Para explorar esse
potencial, utilizaremos como recurso didático um dos
elementos fundantes da prática da capoeira, a musica-
lidade, por meio de canções compostas por capoeiris-
tas que atuam em grupos de capoeira no Rio Grande do
Norte. A proposta foi pensada para ser trabalhada no-
tadamente com estudantes que estão no Ensino Fun-
damental II. De acordo com a Base Nacional Comum
Curricular (BNCC), um dos objetos do conhecimento
que devem fazer parte das aulas de História do 9º ano
trata-se da cultura afro-brasileira como elemento de re-
sistência e superação das discriminações. A sequência
didática aqui apresentada é dividida em três momentos
que, juntos, permitirão uma discussão geral sobre a his-
toricidade da capoeira e seu aspecto antirracista.

Público-alvo: 9º Ano do Ensino Fundamental II

Tempo estimado: 2h/a

Objetivos

● Identificar a relação da capoeira com a História da


escravidão no Brasil do século XIX;
● Reconhecer a capoeira como um patrimônio cultu-
ral de origem afro-brasileira;
● Discutir diferentes aspectos da experiência da escravidão
no Brasil e formular hipóteses sobre essa experiência a partir
do exercício de leitura e interpretação de cantigas de capoeira;

275
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

● Desenvolver valores e princípios coerentes com uma


formação cidadã comprometida em promover a inclu-
são, a igualdade e a justiça social;
● Estimular ações sociais de combate ao racismo e
toda forma de discriminação.

Conteúdo

Sobre à relação entre a sociedade e a escola,


Margarida Dias de Oliveira há muito ressaltou “que
todo cidadão tem o direito e o dever de saber sobre
História para entender seu mundo, ler sua realidade
e nela atuar” (OLIVEIRA, 2003, p. 188). Neste senti-
do, concordamos com Itamar Freitas quando afirma
que os valores fazem parte da aprendizagem históri-
ca, quer queiramos ou não, pois eles fazem parte do
nosso cotidiano, estão postos. E mais, “esse valor é
também conteúdo histórico” (FREITAS, 2016, p. 109).
Eles perpassam ainda documentos que de forma dire-
ta ou indireta direcionam as ações a serem executa-
das na educação, tais como as Declarações Universais,
a Constituição, as Leis de Diretrizes e Bases, os Parâ-
metros Curriculares etc. o que torna mais necessário
ainda suas problematizações nos ambientes escolares.
E dentre esses, muito se tem discutido sobre a Lei n.
10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino de His-
tória e Cultura da África e dos afro-brasileiros.
Responder ao questionamento sobre qual Áfri-
ca e qual Brasil negro devem ser ensinados aos alunos
da Educação Básica é um dos grandes desafios que a Lei
n. 10.639/2003 apresentou e que continua em pauta
na contemporaneidade. Acreditamos que a resposta
varia de acordo com os contextos nos quais a questão
é lançada, uma vez que os critérios utilizados no pro-
cesso de selecionar conteúdo são múltiplos, cabendo
ao docente a tarefa de diagnosticar qual a necessida-

276
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

de da turma que ele está atuando ou do grupo com o


qual ele esteja trabalhando, especialmente no que se
refere ao desenvolvimento de valores que promovam
a inclusão de grupos historicamente excluídos e mar-
ginalizados pela sociedade.
De acordo com Vitor Barcellos, muitas vezes
a capoeira é incluída em feiras interdisciplinares ou
culturais por ser-lhe atribuído um sentido meramen-
te lúdico, assumindo caracterizações denominadas
por ele de “folclóricas” e da perspectiva do espetáculo.
Ou seja, como se fosse uma prática “exótica” ou “es-
tranha” aos objetivos educativos (BARCELLOS, 2013).
Esse é um problema que essa sequência didática pre-
tende contornar, pois consideramos que a “Capoeira, o
Jongo e o Samba de Bumbo são movimentos culturais
de conscientização da luta de resistência do povo bra-
sileiro, que sofreu com a colonização e a exploração
imposta pelos colonizadores europeus”, de modo que
ações educativas que tomem essas práticas como refe-
rência não podem perder de vista “a questão histórica,
a identidade cultural e o desejo de representar os valo-
res e tradições do povo” (HENRIQUE, 2014, p. 128).
A epígrafe que inicia este trabalho é o coro de
uma música bastante cantada nas rodas de capoeira
do Rio Grande do Norte. Escrita e gravada por Antônio
Menezes, conhecido no cenário capoeirístico como
Mestre Burguês, a canção fala a respeito de um valor
presente na capoeira que poucas pessoas conhecem,
capaz de mudar a vida das pessoas e de ajudá-las nos
momentos de dificuldade. A capoeira é fruto da vivên-
cia e experiência sociocultural dos africanos e seus
descendentes em território brasileiro. Juntamente
com outras manifestações resultantes dessa experi-
ência, tais como o samba e o jongo, esta manifestação
hoje se configura em um dos símbolos que represen-
tam a identidade nacional.

277
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

De modo geral, ao longo do século XIX, entende-


-se que a prática da capoeira tenha possuído um perfil
que esteva fortemente atrelado ao que Carlos Eugênio
Líbano Soares chamou de capoeira escrava, uma vez
que a difusão e o desenvolvimento dessa prática ocor-
reram notadamente por meios das relações sociocul-
turais estabelecidas entre africanos e afro-descentes
na conjuntura da escravidão brasileira. Entretanto,
vale destacar que, dependendo dos contextos de cada
região ou temporalidade, durante o oitocentos, a ca-
poeira apresentou aspectos particulares.
Os trabalhos que analisaram a capoeira no sé-
culo XIX na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo,
apontam principalmente para uma dura persegui-
ção e marginalização de seus praticantes, que com-
punham um grupo heterogêneo formado não apenas
por africanos e afrodescendentes pobres e iletrados,
mas também de indivíduos letrados, aristocratas e
militares. Esse tipo de objeção decorreu, sobretudo,
na segunda metade do século XIX, por conta da histó-
ria das maltas, grupos que se envolveram em diversos
conflitos na então capital do Império do Brasil. Tais
confrontos ocorreram tanto por questões políticas,
como nos confrontos que antecederam e se seguiram
à Proclamação da República brasileira, quanto por
disputas territoriais, uma vez que algumas maltas
disputavam entre si o poder de influência em deter-
minados espaços da cidade carioca.
Em outras regiões do Brasil, a perseguição
e marginalização da capoeira e de seus praticantes
também foi intensa durante o século XIX. Em Belém,
diversas são as fontes, sobretudo na imprensa, que
apontam para essa dura repressão. Nesse caso, me-
rece destaque a participação de diversas mulheres
que, além de se comportarem na contramão do que
se esperava, ou seja, desenvolvendo atributos volta-

278
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

dos para o trabalho doméstico e os cuidados com a


família, encontravam-se vinculadas a uma prática
totalmente marginalizada e proibida de acordo com
o Código Penal da época.2
Mas nem só de hostilidade vive a trajetória da
capoeira e de seus praticantes no século XIX. Na Bahia,
as memórias que giram em torno do 2 de Julho, no
contexto das chamadas Guerras de Independência,
destacam a importante participação que os escraviza-
dos capoeiristas tiveram nos conflitos, lutando contra
os portugueses. Nas palavras do Mestre Noronha, por
não possuírem armas de fogo, os capoeiras “brigavam
de ponta-pé, cabeçada, rasteira, rabo de arraia e joe-
lhada” (ABREU, 2005, p. 25).
Importante símbolo da resistência negra, a
capoeira foi reconhecida pelo Instituto do Patrimô-
nio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)3 em 2008
como patrimônio cultural imaterial brasileiro e, em
2014 como patrimônio cultural imaterial da huma-
nidade pela Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), a capoeira
foi instituída como importante expressão da cultu-
ra afro-brasileira, especialmente após o processo de
esportização dessa prática. O que estamos chamando
de esportização da capoeira trata-se de todo um movi-
mento protagonizado por algumas lideranças com o
fim de resistir à criminalização indiscriminada de sua
prática, proibida no Código Penal brasileiro entre os
² Para saber sobre essa questão, ver o livro Capoeira, identidade e gênero: en-
saios sobre a história social da Capoeira no Brasil (2009), escrito por Josival-
do Oliveira e Luiz Leal, especificamente o capítulo 8, intitulado “O reina-
do das mulheres: a capoeiragem feminina no norte do Brasil” (OLIVEIRA;
LEAL, 2009).
³ O IPHAN – criado em 13 de janeiro de 1937, por meio da Lei nº378 – é a
autarquia federal vinculada ao Ministério da Cultura responsável por res-
ponder pela preservação de todo o patrimônio cultural brasileiro. Cabe a
ele proteger e promover os bens culturais do país, assegurando sua perma-
nência e usufruto para todas as gerações. Para saber mais acessar: <http://
portal.iphan.gov.br >.

279
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

anos de 1890 e 1937.4 O movimento ganhou fôlego


nas décadas de 1960 e 1970, notadamente em São
Paulo e Rio de Janeiro, quando ocorreu uma gran-
de migração de capoeiristas e mestres baianos para
esses estados. Esta migração impulsionou sua valo-
rização e fez com que a capoeira ganhasse cada vez
mais respaldo em nível nacional, principalmente
após a regulamentação da capoeira como modalida-
de esportiva pela Confederação Brasileira de Pugilis-
mo (CBP) no final de 1972, através do então Ministé-
rio da Educação e Cultura do Brasil.
Sobre quais os valores que são atribuídos a
prática da capoeira no que diz respeito a sua relação
e contribuição com a educação brasileira, e especial-
mente com o ensino de História, certamente merece
destaque a perspectiva que oferece para a formação
humanística. De acordo com Maria Coelho, “a forma-
ção humana é entendida em seus sentidos plenos de
emancipação pessoal e participação ativa na constru-
ção da sociedade democrática” (COELHO, 2009, p. 25).
A capoeira é capaz de propiciar aos seus praticantes a
oportunidade de agir e interagir na sociedade a partir
dos fundamentos próprios desta arte – baseados na
luta pela liberdade e igualdade – de forma lúdica. Por
isso, estudos sobre o tema atribuem à capoeira gran-
de potencial educativo, principalmente no que se
refere à superação das desigualdades étnico-raciais,
desenvolvimento de princípios éticos e contribuição
com a formação cidadã. De acordo com Marco Silva,
a roda da capoeira constitui um espaço de formação
porque, dentre outras coisas,
⁴ “Capítulo XIII – Dos vadios e capoeiras. Art. 402. Fazer nas ruas e praças
públicas exercício de agilidade e destreza corporal conhecida pela denomi-
nação Capoeiragem: andar em carreiras, com armas ou instrumentos ca-
pazes de produzir lesão corporal, provocando tumulto ou desordens, ame-
açando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal; Pena
de prisão celular por dois a seis meses”. (CÓDIGO PENAL DOS ESTADOS
UNIDOS DO BRAZIL, 1890).

280
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

reproduz nas suas práticas os conceitos de co-


munidade; permite o conhecer da diferença sem
discriminação; educa a partir do conhecimento
histórico de sua origem e desenvolvimento; leva
ao praticante a entender sua história; auxilia na
busca do equilíbrio em situações adversas; abre
um espaço no campo de trabalho através das ha-
bilidades desenvolvidas no decorrer da sua for-
mação (SILVA, 2006, p. 94).

Desse modo, a formação humanista que a ca-


poeira é capaz de proporcionar acontece, principal-
mente, por intermédio das relações interpessoais que
ocorrem entre os sujeitos e nos mais variados espaços
e situações rotineiros desta prática, tais como os trei-
nos, celebrações, rodas, todos repletos de musicalida-
de. Para Núbia Cassiano, o acesso à aprendizagem da
capoeira contribui com a amplitude do conhecimento
sobre como se deu a formação cultural de grande parte
do povo brasileiro. E mais: “sua prática mantém viva a
maneira de ‘ser’ do nosso povo lutador pela igualdade.
A capoeira, além de esporte, dança, luta ou jogo, é uma
manifestação cultural que representa um modo de
enfrentar o mundo e a vida” (CASSIANO, 2014, p. 37).
Neste caso, o que ganha força é a corporeidade, que se
movimenta ao ritmo dos tambores.
Já de acordo com Fernando Placedino, a cha-
mada Capoeira Escolar, profundamente amparada
na sua história e cultura popular, “apresenta-se como
possibilidade de experiência estética capaz de provo-
car o educando a um sentido formativo possível de
ressignificações, o desenvolvimento do sujeito ético”
(PLACEDINO, 2014, p. 12). Na sua perspectiva, essa
ideia de ressignificação e desenvolvimento do sujeito
ético só pode ser compreensível se entendermos que
a capoeira não se limita às singularidades de natureza
do mundo capoeirístico, mas que pode ainda provocar
uma série de sensações que desencadeiam, através de

281
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

si mesmas, a manifestação no que diz respeito a con-


cepções e posturas relacionadas a princípios como
pluralidade e alteridade, pois
Seja tocando berimbau, pandeiro, atabaque, ago-
gô, batendo palmas, cantando lamentos ou exalta-
ções reportando os acontecimentos e personagens
históricos da negritude, seja no gingado e demais
gestos expressados no diálogo de corpos na Roda
de Capoeira, os alunos capoeiristas estão cons-
tantemente experimentando e compartilhando
estéticas que vão provocando mudanças no ser.
É principalmente nesse ritual circular musicado
que vai se percebendo e manifestando condutas
de convívio respeitoso, e que acabam transgredin-
do o próprio momento da Roda de Capoeira, dando
continuidade no exercício de pequenas ações no
cotidiano (PLACEDINO, 2014, p. 70).

Ou seja, a capoeira é entendida aqui na condi-


ção de ferramenta capaz de fazer com que os alunos
compreendam que é nas interações com o outro que
eles se formam, bem como são também colaboradores
para com a formação dos demais sujeitos. Além dis-
so, Paula Silva compreende a capoeira como uma lin-
guagem na qual a gestualidade, a musicalidade, seus
aspectos históricos e sua ritualidade compõem um
acervo a ser apropriado pelos alunos de modo que eles
possam compreendê-la e praticá-la por meio de pro-
postas educativas interdisciplinares.
Na concepção de Giuliano Mendonça, a capo-
eira possui a capacidade de nos guiar para um novo
entendimento do que é o conteúdo escolar, que não
se encontra “departamentalizado” dentro de um blo-
co de conteúdo ou área, já que a gênese e desenvol-
vimento histórico da capoeira dificilmente podem
ser contemplados numa perspectiva unidimensio-
nal (MENDONÇA, 2013). Assim como a capoeira não
pode ser enquadrada em um único determinante
(jogo, luta, dança etc.), não se pode existir uma dis-
282
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

ciplina sozinha capaz de abordar e dar conta de toda


a sua complexidade. Seguindo a mesma linha que os
autores anteriores, Barcellos defende que a capoeira
potencializa o aprendizado de uma multiplicidade de
valores e competências que são inerentes ao currícu-
lo da escola, pois a capoeira é uma prática
extremamente rica para o ensino nas escolas, por
seus diferentes “lados”: corporal, musical, cultu-
ral, identitário. Se por um lado, nas escolas parti-
culares – onde haveria uma “maioria de crianças
brancas” – ela pode ajudar a entender e valorizar a
“cultura negra” na formação do Brasil, por outro,
nas escolas públicas – onde haveria uma “maioria
de crianças negras” – ela seria importante para
fortalecer processos de identificação dos “negros”.
“Identidade negra” é visto, assim, como algo espe-
cífico, que não é subsumido na “identidade nacio-
nal”, exigindo um trabalho específico e um con-
tato com processos de identificação trazidos pela
Capoeira (BARCELLOS, 2013, p. 156-157).

Guiliano Mendonça acredita que o professor,


com habilidade e criatividade, consegue fazer com que
seja dissociada essa imagem da capoeira apenas como
um jogo, luta ou dança. Mas também, de entender a
capoeira como uma abertura para que sejam discuti-
das questões como preconceitos, sejam eles discrimi-
natórios com relação a raça, a religião etc. (MENDON-
ÇA, 2013). Nesse sentido, é fundamental distinguir o
que é a capoeira na escola, seja nas aulas de História,
Educação Física, Música, Artes e demais, e a capoeira
executada na rua ou em quadras de esporte, pois são
espaços e lugares diferentes, com sujeitos diversos e
que apresentam demandas específicas. E, no ensino,
a capoeira deve se converter em uma importante fer-
ramenta para a concretização de um projeto de socie-
dade comprometido com o combate contra o racismo
existente em nossa sociedade.

283
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

Estratégias

Como leitura e estudo prévio para o profes-


sor ou professora que deseje trabalhar com a temá-
tica aqui proposta, indicamos a leitura do Inventário
para registro e salvaguarda da capoeira como patrimô-
nio cultural do Brasil5, desenvolvido entre os anos de
2006 e 2007 pelo IPHAN e que serviu como impor-
tante ferramenta para justificar o registro do ofício
dos mestres e da roda de capoeira como patrimônios
imateriais da cultura brasileira.
Como as atividades propostas utilizam como
recurso didático cantigas de capoeira (Anexo), é inte-
ressante que os(as) estudantes possam ouvi-las. A aula
pode ser planejada com os(as) professores de Língua
Portuguesa, Artes e Música, que podem trazer mais in-
formações sobre a composição das cantigas, e com o(a)
professor(a) de Educação Física, que pode ensinar sobre
os movimentos do jogo de capoeira. Nesse caso, o tem-
po estimado para a sequência didática deve ser adapta-
do de acordo com a avaliação dos(as) professores.

1. Para começar a aula no clima da capoeira, a sugestão


é que a turma faça uma grande roda, para que possam
conversar olhando nos olhos uns dos outros. Outra su-
gestão é realizar a aula na quadra da escola, onde os(as)
estudantes poderão acompanhar as músicas cantan-
do e batendo palmas. Propõe-se que a discussão come-
ce com a música Navio de Aruanda, e composta pelo
professor Tony Angola6. Essa música aborda o tráfico
de escravizados e pode ser usada como ponto de parti-
da para reflexões sobre o tema na medida em que traz

⁵ Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/


Dossi%C3%AA_capoeira.pdf>. Acesso em 10 jun. 2021.
⁶ Tony César da Silva Gonçalo, conhecido como Tony Angola, é professor
de capoeira pela Associação de Capoeira Angola Comunidade e tem atuado
principalmente na cidade de Nova Cruz/RN.

284
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

perguntas sobre os motivos e interesses envolvidos


nessa prática. A sugestão é que o(a) professor(a) deba-
ta o assunto com a turma e estimule a formulação de
hipóteses para responder as perguntas colocadas pela
música, utilizando o conhecimento construído sobre
escravismo nas aulas anteriores. Ademais, a música
permite ainda uma conversa sobre o papel das religi-
ões de matrizes africanas no conjunto e elaboração da
cultura afro-brasileira. Isto porque o termo “Aruan-
da” se refere ao local que serve de morada aos orixás
e demais entidades. Portanto, é um local presente no
mundo espiritual e que emerge no território brasileiro
a partir de cantigas de origem bantu.7

2. A aula segue com discussões de problemas ela-


borados a partir da análise da música Mãe África,
composta pelo instrutor Formiga8. Essa música,
assim como a anterior, discute elementos vincu-
lados à história do tráfico de escravizados entre o
continente africano e o Brasil. Entretanto, ela esti-
mula a formulação de questões relacionadas às for-
mas de resistência dos grupos escravizados, nesse
caso, representado pela formação dos quilombos.
É importante estimular o debate sobre outras for-
mas de resistência, violentas (revoltas, ataques a
senhores e feitores, suicídio, infanticídio etc.) ou
institucionalizadas (processos contra escravização
ilegal, ações de liberdade, negociações pela alforria
etc.). Também é o momento oportuno para indu-
zir os(as) estudantes a mobilizar conhecimentos
⁷ Para se debruçar mais sobre essa questão da representatividade de Luan-
da e de Aruanda com a memória coletiva afro-brasileira indicamos o artigo
O reino de Aruanda: de porto luso-angolano de escravos a reino mítico afro-
-brasileiro, de Isis McElroy, publicado no ano de 2007 pela revista Scripta
e disponível em: < http://periodicos.pucminas.br/index.php/scripta/arti-
cle/view/14025/11026>. Acesso 06/06/2021.
⁸ Jadson B. C. Santos, conhecido no meio capoeirístico como Formiga, é ins-
trutor de capoeira e tem atuado sobretudo na cidade de Natal/RN.

285
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

prévios para responderem sobre a formação das co-


munidades quilombolas no passado e suas lutas no
pós-abolição e nos dias atuais.

3. O terceiro momento de discussões utiliza a músi-


ca É liberdade, composta pelo contramestre Pitoco9.
A música foi selecionada por pretender dar conta dos
significados que a capoeira possui na contemporanei-
dade. Seus versos instigam a problematização de va-
riados elementos, que vão desde aspectos relaciona-
dos ao jogo da capoeira, ou seja, da movimentação dos
corpos, passando também por temáticas referentes à
identidade, liberdade e luta por igualdade. É interes-
sante, nesse caso, estimular os(as) estudantes a iden-
tificar as palavras-chave da cantiga, comentar sobre
seus significados e verificar como essas questões são
vivenciadas pelos(as) próprios(as) estudantes. Para
promover a discussão na turma, pode-se perguntar
quais suas origens, como se identificam, com viven-
ciam sua liberdade, em que situações sentem sua li-
berdade cerceada ou ameaçada, como são afetados
pela desigualdade e exclusão que marca a sociedade
brasileira, se já vivenciaram ou presenciaram situa-
ções de discriminação étnico-racial.

4. Para fechar a discussão, é conveniente que os(as) es-


tudantes sejam estimulados a pensar e compartilhar
com os colegas sugestões de ações sociais que con-
tribuam para a valorização da cultura afro-brasileira
e combate ao racismo na escola e na comunidade em
que vivem.

⁹ Lucas Costa de Souza, conhecido como Pitoco, é contramestre de capoeira


e tem atuado principalmente na cidade de Natal/RN.

286
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Avaliação

Como proposta de avaliação, seguem algu-


mas possibilidades:

1ª proposta: A avaliação pode ser continuada, ou seja,


realizada ao longo de toda a aula. Nesse caso, dentre
os aspectos que podem ser observados, destacamos: a
participação nas dinâmicas, como por exemplo, na in-
teração durante a formação da roda no momento ini-
cial; e as respostas dadas às problemáticas levantadas
pelo professor ou professora, seja nos debates estimu-
lados pelas músicas, seja nas sugestões de ações que
visem a valorização da cultura afro-brasileira e o com-
bate ao racismo na escola e na comunidade, tal como
proposto no quarto momento. Para esse tipo de ava-
liação, é importante que o docente fique atento tam-
bém aos alunos que não participam tanto, buscando
estimulá-los a expressar suas ideias de forma oral e
interagirem com os colegas.

2ª proposta: Trabalhos que envolvem pesquisas esti-


mulam os alunos a desenvolverem habilidades de in-
vestigação e de construção de novos conhecimentos.
Por isso, propor que os alunos pesquisem imagens
que retratem a capoeira no século XIX pode ser uma
boa alternativa, tendo em vista que esse é um perío-
do crucial na história da escravidão no Brasil e no de-
senvolvimento da cultura afro-brasileira, inclusive da
própria capoeira. Além disso, existe uma considerável
quantidade de materiais que podem ser localizados
via internet e que, posteriormente, podem ser com-
partilhados em forma de exposição com a turma ou
com a comunidade escolar de modo geral. Nesse caso,
cabe ao professor ou professora retomar junto à tur-
ma o método de analisar uma fonte histórica, como

287
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

por exemplo, ressaltando a importância das críticas


interna e externa às fontes imagéticas.

3ª proposta: Pesquisar músicas de capoeira de outros


tempos e comparar com as atuais.

A construção de um folheto sobre a capoeira


por todos os alunos da turma é um modo interessan-
te de instigar o trabalho coletivo. Além de valorizar
essa manifestação cultural, notadamente após a di-
vulgação do resultado com a comunidade escolar, tal
proposta possibilita também o desenvolvimento das
potencialidades que os alunos e alunas da turma po-
dem possuir. São os casos, por exemplo, dos alunos e
alunas que possuem familiaridade com atividades de
diagramação, de pesquisa, ou de outras tarefas que
envolvem a elaboração do material. Ou ainda, da de-
monstração de habilidades artísticas (tais como dese-
nhos e poemas), que também podem ser aproveitadas
na confecção do folheto, enriquecendo ainda mais o
projeto. Nesse caso, o professor ou professora deve es-
tar atento não apenas ao resultado do produto pron-
to, mas também ao processo de elaboração como um
todo, observando e registrando os diferentes modos
de participação de cada estudante da turma.

Anexo – Cantigas

● Navio de Aruanda (Tony Angola)


Vim no navio de Aruanda, Aruanda ê
Vim no navio de Aruanda, Aruanda á
Por que me trouxeram de Aruanda?
Pra que me trouxeram de Aruanda?
Vim no navio de Aruanda, Aruanda ê
(Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?-
v=A6mZllfcCTc>. Acesso: em 05 de junho de 2021).

288
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

● Mãe África (Formiga)


Mãe África chora de dor
Por ver seus filhos prisioneiros
E o povo se cobre de luto
Lembrando a dor do cativeiro

Mas eu vou me libertar


Vou fugir pro quilombo
No mato me refugiar
(Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?-
v=45NveXo2lTM>. Acesso: em 05 de junho de 2021).

● É liberdade (Contramestre Pitoco)


É liberdade, é raiz e fundamento, é louvor e é lamento,
corpo e alma em movimento.
Tal carcará penerando lá no céu, tal jararaca rastejan-
do no sertão,
meu corpo faz coisas que eu nem imagino,
eu já vi que o meu destino é com os pés pro ar e as mãos
no chão.
É liberdade, é raiz e fundamento, é louvor e é lamento,
corpo e alma em movimento.
Vou desenhando com meu corpo uma ginga, vou ex-
pressando assim a minha identidade.
A capoeira não tem regra ou restrição, nunca pode ser
prisão pois é luta de liberdade.
É liberdade, é raiz e fundamento, é louvor e é lamento,
corpo e alma em movimento.
É muito justa nossa arte brasileira, ela é de todos mas
não pertence a ninguém.
Quando agachado ao pé do berimbau, todo mundo é
igual, quem treinou vai se dar bem.
É liberdade, é raiz e fundamento, é louvor e é lamento,
corpo e alma em movimento.
(Disponível em:<https://www.youtube.com/wat-
ch?v=_HgIa8t4tvA>. Acesso em: 07 de junho de 2021).

289
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

Referências
ABREU, Frederico José de. Capoeiras – Bahia, século XIX: imaginá-
rio e documentação. Salvador: Vogal, 2005.

BALESTRERI, Ricardo Brisolla. Cidadania e Direitos Humanos:


um sentido para a educação. Centro de Assessoramento a Progra-
mas de Educação para a Cidadania (CAPEC). Passo Fundo-RS: Pater
Editora, 1999.

BARCELLOS, Vitor Andrade. Currículo e Capoeira: negociando


sentidos de “cultura negra” na escola. Dissertação (mestrado em
Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação. Universida-
de Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013. 215 f.

BRASIL. Senado Federal. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Na-


cional: nº 9394/96. Brasília: 1996.

BRASIL. Lei n. º 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº


9394/96, de 20 de novembro de 1996, que estabelece as diretrizes
e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da
Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura
AfroBrasileira” e dá outras providências.

CASSIANO, Núbia Nogueira. O ser capoeirista e as possibilidades


educativas: uma análise à luz da corporeidade. Dissertação (mes-
trado em Educação Física). Programa de Pós-Graduação em Edu-
cação Física. Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Uberaba,
2014. 90 f.

COELHO, Maria Inês de Matos. Por que a educação e a formação


humana na contemporaneidade? In: COELHO, Maria Inês de Ma-
tos; COSTA, Anna Edith Bellico da (org.). A educação e a formação
humana: tensões e desafios na contemporaneidade. Porto Alegre:
Artmed, 2009. p. 15 - 47.

FREITAS, Itamar. Valores como objeto da aprendizagem histórica.


In: BUENO, André; ESTACHESKI, Dulceli; CREMA, Everton [orgs.].
Para um novo amanhã: visões sobre aprendizagem histórica. Rio
de Janeiro/União da Vitória: Edição LAPHIS/Sobre Ontens, 2016.
p. 107 – 116.

GEEVERGHESE, Manoj. O valor educativo da capoeira. Disser-


tação (mestrado em Educação). Programa de Pós-Graduação em
Educação. Universidade de Brasília, Brasília, 2013. 110 f.

INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIO-


NAL. Dossiê Inventário para registro e salvaguarda da capoeira
como patrimônio cultural do Brasil. Brasília, 2007. Disponível em:
<http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/D
ossi%C3%AA_capoeira.pdf >. Acesso em 07 de jun. de 2021.

290
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

MENDONÇA, Giuliano Pablo Almeida. Capoeira na escola: análise


e reflexões acerca de sua legitimação nas aulas de Educação Físi-
ca das Escolas Estaduais da DIREC 13 – Jequié-Bahia. Dissertação
(mestrado em Educação Física). Programa de Pós-Graduação em
Educação Física. Universidade São Judas Tadeu, São Paulo, 2013.
165 f.

OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de. O direito ao passado (uma


discussão necessária à formação do profissional de História). Tese
(doutorado em História). Universidade Federal de Pernambuco,
Recife, 2003, 292 f.

PLACEDINO, Fernando Campiol. Capoeira escolar: a arte popular


para uma educação ético-estética. Dissertação (Mestrado em Edu-
cação). Programa de Pós-Graduação em Educação. Pontifícia Uni-
versidade Católica, Porto Alegre, 2014. 100 f.

SILVA, Marco Antônio Santos da. Prática da capoeira como espa-


ço de formação. Dissertação (mestrado em Educação). Programa
de Pós-Graduação em Educação. Universidade Federal de Alagoas,
Maceió, 2006. 141 f.

SILVA, Paula Cristina da Costa. O ensino-aprendizado da capoeira


nas aulas de educação física escolar. Tese (doutorado em Educa-
ção). Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Es-
tadual de Campinas, Campinas, 2009. 261 f.

291
A IDENTIDADE POTIGUAR
E O ENCOBRIMENTO DOS
POVOS INDÍGENAS NO PERÍODO
IMPERIAL

Rebeca Nadine de Araújo Paiva


Maria Luiza Dantas Lins
Descrição da proposta

Propomos nessa sequência didática uma dis-


cussão acerca das lutas enfrentadas pela população
indígena em terras potiguares no período oitocentis-
ta. Diante disso, serão utilizados como fontes dados
retirados dos relatórios elaborados pelos presidentes
da província do Rio Grande do Norte durante o perí-
odo imperial. A partir dos censos produzidos por es-
sas autoridades, os alunos poderão identificar quais
grupos compunham a população, organizada a partir
de critérios étnico-raciais. Esses dados serão apresen-
tados na forma de gráficos, auxiliando a identificação

292
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

dos processos de crescimento ou decrescimento nos


números de cada grupo nos diferentes relatórios, nos
quais também é possível verificar mudanças nas cate-
gorias étnico-raciais a partir das quais a população é
identificada. Por meio dessas mudanças verificar-se-á,
por exemplo, o “desaparecimento” dos indígenas no
censo de 1872. Por fim, será proposto um exercício de
articulação entre passado e presente, tomando como
referência as experiências dos grupos indígenas que
vivem atualmente no Rio Grande do Norte.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) es-
tabelece como uma das unidades temáticas previstas
para o 8º ano do Ensino Fundamental “O Brasil no
século XIX”, estando inserido nesta unidade o objeto
do conhecimento “Políticas de extermínio indígena
durante o Império”. Nesse sentido, essa sequência dia-
loga diretamente com a proposta do documento na-
cional, uma vez que trata da estratégia administrativa
imposta na província do Rio Grande do Norte, focada
em tornar progressivamente despercebida a presen-
ça indígena no território. Além disso, pautamos essa
discussão na reflexão sobre o tempo presente, em uma
tentativa de retirar os povos indígenas do lugar histo-
ricamente reservado para eles: o passado.
Para evidenciar como, no Rio Grande do Nor-
te, teve início a elaboração do discurso que decretou
o “desaparecimento” dos povos indígenas, propomos
a análise de uma fonte histórica, o Regulamento ácerca
das Missões de catechese, e civilisação dos Indios (1845),
que tinha o objetivo identificar as localidades do país
onde havia indígenas, para que se criassem aldeias e
missões para “civilizar” e “catequizar” as chamadas
“hordas selvagens” do país. O problema, para as auto-
ridades vinculadas ao poder local, é que o reconheci-
mento da presença indígena implicava na delimitação
de espaços – aldeias e missões – reservados exclusiva-

293
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

mente a ocupação dos indígenas. Esta proposta con-


trariava os interesses dos grandes proprietários, pre-
ocupados em assegurar a concentração fundiária em
sua posse, prática que se verifica até os dias atuais.

Público-alvo: Ensino Fundamental II.

Tempo estimado: 2 h/a.

Objetivos

● Desenvolver a habilidade de leitura e análise de gráficos


em sala de aula, utilizando informações sobre o censo da
população do Rio Grande do Norte no século XIX;
● Entender os povos indígenas como grupo constituinte
da sociedade na qual vivemos, superando o equívoco de
aprisioná-los em narrativas sobre o passado;
● Discutir sobre políticas de acesso à terra brasileira
no passado e na atualidade, problematizando questões
relacionadas à concentração fundiária.

Conteúdo

As discussões subjacentes da proposta aqui apre-
sentada dialogam diretamente com o capítulo de autoria
de Dayane Julia Carvalho Dias contido nesta obra. Nele,
a autora trata dos números populacionais contidos nos
relatórios da província do Rio Grande do Norte no perí-
odo imperial, incluindo o censo de 1872. Com eles, apre-
senta uma discussão acerca da sub-representação da po-
pulação negra e apagamento dos indígenas no território,
leitura fundamental para os professores que desejarem
aplicar essa sequência em suas turmas.
Focamos, especificamente, no apagamento dos
povos indígenas e, para além do debate apresentado

294
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

por Dias, é necessário entender como esse apagamento


não é um fato isolado na história do nosso país, sendo
um dos objetivos do projeto nacional posto em execu-
ção durante o Império e início da República. O principal
marco da preocupação com a formulação de uma iden-
tidade brasileira foi a fundação do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro (IHGB), em 1838, que, segundo
Manoel Luís Salgado Guimarães, foi mantido majorita-
riamente pelo Estado Imperial ao longo do século XIX,
afinal eram muitas viagens exploratórias e projetos
sendo desenvolvidos (GUIMARÃES, 1988, p. 9).
Nesse sentido, nos anos de 1840 foi lançado
pela revista do IHGB um prêmio para quem formulas-
se o melhor plano de escrita da história do Brasil, sen-
do vencido pelo alemão Carl Friedrich von Martius,
apontando a missão do historiador responsável pela
escrita, que seria de mesclar as três raças formadoras
do país (indígena, europeia e africana), surgindo aí os
alicerces do mito da democracia racial (GUIMARÃES,
1988, p. 16). Seria necessária a presença da figura indí-
gena nesse processo, mas eles optaram por represen-
tar um tipo específico de indígena, desse modo, como
aponta Maria Regina Almeida, o passado foi o lugar
reservado para estes personagens (ALMEIDA, 2010).
Tais indígenas, que foram relegados ao passa-
do, eram necessários para construir a mitografia na-
cional, apontada por John Monteiro, que os colocava
como nobres, valentes e extintos (MONTEIRO, 2003,
p. 124). Monteiro indica também que não só a revis-
ta do IHGB estava empenhada na tarefa de construir
essa história, sendo lançadas várias obras indianistas
de poetas e romancistas que se aproximavam da etno-
grafia; e, partindo da mesma preocupação, em 1854,
Francisco Adolfo de Varnhagen, membro expoente do
IHGB, lança a obra “História Geral do Brasil” (MONTEI-
RO, 2003, p. 124). Nela, Varnhagen reserva os mesmos

295
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

espaços aos indígenas da proposta de von Martius,


utilizando relatos do século XVI para apontar apenas
traços negativos, distorcendo, por exemplo, o “caniba-
lismo” dos tupis (MONTEIRO, 2003, p. 126-127).
De alguma forma, tal modelo historiográfi-
co reverbera na atualidade, entretanto, as próprias
reinvindicações do movimento indígena e as refor-
mulações na história e antropologia fizeram emer-
gir uma nova história indígena pautada na interação
entre essas duas áreas de conhecimento (ALMEIDA,
2010). A partir de mudanças teórico-metodológi-
cas, ocorridas na história cultural durante os anos
1960, passam a ser valorizados os hábitos e crenças
dos povos marginalizados (como os indígenas), for-
talecendo a aproximação da antropologia, que passa
a perceber os processos históricos em que seus obje-
tos de estudo estão inseridos.
A imagem construída acerca dos povos indí-
genas no século XIX demorou muito tempo para ser
desmistificada, sendo um sintoma disso a tardia pro-
mulgação da Lei 11.645, que tornou obrigatório o en-
sino da história indígena na educação básica apenas
em 2008. Obviamente, leis como essa são resultan-
tes de anos de luta desses povos que passaram tanto
tempo sem reconhecimento, entretanto precisamos
continuar tentando, cada vez mais, contar uma his-
tória plural da nossa sociedade.
Acerca dessa nossa responsabilidade, ao tratar so-
bre os conceitos de diferença e semelhança, Mauro Coelho
(COELHO, 2019, p. 85) aponta que eles são primordiais
no processo de construção de identidades. Nesse senti-
do, elas precisam ser constantemente trabalhadas em
sala de aula em relação às transformações provenientes
de diferentes contextos históricos, sendo importantes
para a manutenção ou subversões de padrões (COELHO,
2019, p. 90), sejam eles historiográficos ou sociais.

296
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Dialogando com essa perspectiva, vemos que


a presença da história indígena no Rio Grande do
Norte nas salas de aula contribui para a construção
de uma identidade diversa. Ao entender quais sujei-
tos estão presentes na formação dessa sociedade que
é plural, preenchemos os espaços vazios que foram
relegados ao esquecimento. Uma vez que isso é feito,
os alunos poderão reconhecer e ter referenciais de
onde estão essas populações, deixando de ser ape-
nas personagens de um passado.
Outrossim, é de comum acordo na área de en-
sino de história que uma das principais estratégias
para a promoção da diversidade na escola é a difusão
de informações atualizadas (FREITAS, 2010, p. 165),
principalmente quando falamos da história indíge-
na, já que as análises historiográficas desatualizadas
tendem a naturalizar o “desaparecimento” dos povos
indígenas da sociedade atual.
É papel da escola desmistificar o esquecimen-
to das populações originárias, e, em consequência
disso, combater o preconceito e a discriminação. A
mesma história que explica a diferença também de-
nuncia que a convivência entre os diferentes não
tem sido das mais amistosas nos últimos 10 séculos,
afirma Freitas, como é demostrado nos relatórios
que apagam essas populações (FREITAS, 2010). Ape-
sar disso, a Constituição Cidadã, de 1988, formulada
com a participação de diferentes grupos sociais, esta-
beleceu direitos aos povos indígenas, e entre eles está
a posse permanente das terras tradicionais.
É importante ressaltarmos ainda que a con-
vivência e a manutenção dos direitos indígenas en-
frentam constantes disputas. Atualmente estamos
passando por mais um arco dessas disputas: a tenta-
tiva de implementação do Projeto de Lei 490/2007,
propondo que a demarcação das terras indígenas seja

297
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

feita através de lei, possibilitando a abertura das ter-


ras indígenas para atividades como o garimpo que
há décadas vem devastando reservas florestais, espe-
cialmente na Amazônia. Tal projeto, entendido pelos
movimentos sociais como inconstitucional por ser
um retrocesso no tocante aos direitos que devem ser
garantidos a todos os cidadãos brasileiros, pode ser
considerado como parte do processo de ações anti-
-indígenas e genocidas que marca toda a história do
nosso país. Manifestando-se de forma contrária a ele,
diversas lideranças indígenas vêm organizando pro-
testos e ações espalhados pelo país.1
Por fim, consideramos que apresentar es-
ses sujeitos como ativos em meio aos ataques que
sofrem cotidianamente reforça a necessidade de
manter os debates atualizados nas salas de aula.
Afinal, quando as disputas travadas pelos movi-
mentos sociais são pautadas nos espaços escolares,
estimulamos os(as) alunos(as) a refletirem sobre
seu cotidiano e o mundo que os cerca, tornando o
aprendizado significativo e relevante.
Como se pretende mostrar, essa proposta didática
propõe debater como os ataques sofridos pelas popula-
ções indígenas fazem parte de um projeto de nação que
os excluiu várias vezes na história do nosso país. Com
isso, esses povos ocupam, comumente, o imaginário so-
cial como personagens de um passado que nada tem a ver
com o presente. Ao contrário disso, o movimento indíge-
na e suas diversas lideranças lutam diariamente para que
possam viver com dignidade, tendo seus direitos básicos
assegurados. Uma vez que a educação é responsável por
formar cidadãos comprometidos com o respeito ao pró-
ximo, esse trabalho se configura como uma das diversas
possibilidades para alcançar esse objetivo em sala de aula.

¹ Esse texto foi escrito entre junho e julho de 2021, quando esteve em deba-
te a aprovação do PL 490/2007.

298
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Estratégias

1. A fim de discutir os dados dos relatórios provinciais


do Rio Grande do Norte no século XIX, a aula poderá
ser iniciada questionando aos alunos se eles conhecem
ou já participaram de alguma pesquisa populacional,
sendo entrevistados por agentes censitários. Tomando
seus conhecimentos prévios como ponto de partida,
pode ser explicado ou aprofundado o conhecimento
sobre o que são censos demográficos e como o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) trabalha atu-
almente. Na medida em que a contagem da população é
uma prática fundamental para os Estados modernos, é
importante explicar a importância dessas informações
para que o governo conheça a população. Como leitura
complementar para o(a) professor(a), sugerimos a lei-
tura do texto de Dayane Julia Carvalho Dias, nessa co-
letânea. Esse é o momento oportuno para apresentar
uma fonte (Anexo 1) que evidencia essa preocupação
do Estado imperial em conhecer a população. Nos refe-
rimos ao Regulamento ácerca das Missões de catechese, e
civilisação dos Indios (1845).

2. Após esse debate e explicações iniciais, a turma será


dividida em grupos que receberão, cada um deles, um
conjunto de gráficos (Anexo 2) e um roteiro análise
(Anexo 3). O roteiro de análise ajudará na sistemati-
zação do conhecimento construído por cada grupo e
será utilizado como consulta no momento de com-
partilharem as informações com o restante da turma.
Neste segundo momento, a proposta é que os diferen-
tes grupos confrontem as informações e identifiquem
rupturas e continuidades, incoerências e contradi-
ções, e, a partir dos dados levantados, comecem a for-
mular hipóteses que expliquem as diversas situações
observadas. Nesse caso, o ideal é que cada grupo ana-

299
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

lise, pelo menos, dois gráficos. Ao confrontarem os


gráficos, provavelmente, os estudantes perceberão o
“desaparecimento” dos indígenas. A expectativa é que,
na formulação de hipóteses explicativas, os(as) estu-
dantes vinculem esse “desaparecimento” dos povos
indígenas à aprovação do regulamento de 1845.

3. Em seguida, o(a) professor(a) poderá colocar em de-


bate as seguintes questões: qual deve ter sido o impacto
social, econômico e cultural desses documentos que fi-
zeram os indígenas “desaparecerem” do Rio Grande do
Norte? O que os(as) estudantes sabem sobre o que acon-
teceu com esses povos nas décadas que se seguiram, até
os dias atuais? Os(as) estudantes convivem com pesso-
as que se identificam como indígenas e descendentes
de indígenas? As famílias dos(as) estudantes identifi-
cam seus ancestrais (avós, bisavós, trisavós etc.) como
pertencentes a algum grupo indígena? É interessante
que o debate se encerre com as conclusões dos(as) estu-
dantes sobre a identidade do povo norte-rio-grandense
e sobre suas próprias identidades.

Avaliação

Para avaliação da turma, sugerimos que se di-


vidam em grupos e façam um trabalho de pesquisa
sobre outros dispositivos legais que afetaram direta-
mente os povos indígenas do Brasil, tais como a Lei n.
4.504/1964 (Estatuto da Terra), a Lei n. 6.001/1973
(Estatuto do Índio), Constituição de 1988 e o Projeto
de Lei 490/2007. Outros dispositivos legais que inci-
dem diretamente nos direitos dos povos indígenas po-
dem ser consultados no site da FUNAI.2

² Site da FUNAI disponível em: <http://www.funai.gov.br/index.php/leg-


-etno>. Acesso em 30 jun. 2021.

300
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Anexo 1 - Regulamento ácerca das Missões de


catechese, e civilisação dos Indios (1845).

DECRETO N. 426 - DE 24 DE JULHO DE 1845


Contém o Regulamento ácerca das Missões
de catechese, e civilisação dos Iudios.

Hei por bem, Tendo ouvido o Meu Conselho de


Estado, Mandar que se observe o Regulamento seguinte:
Art. 1º Haverá em todas as Províncias um Di-
retor Geral de Índios, que será de nomeação do Im-
perador. Compete-lhe:
§ 1º Examinar o estado, em que se acham as
Aldeias atualmente estabelecidos; as ocupações habi-
tuais dos Índios, que nelas se conservam; suas incli-
nações e propensões; seu desenvolvimento industrial;
sua população, assim originaria, como mestiça; e as
causas, que tem influído em seus progressos, ou em
sua decadência.
§ 2º Indagar os recursos que oferecem para a
lavoura, e comércio, os lugares em que estão coloca-
das as Aldeias; e informar ao Governo Imperial sobre a
conveniência de sua conservação, ou remoção, ou reu-
nião de duas, ou mais, em uma só. [...]
§ 6º Mandar proceder ao arrolamento de todos
os Índios aldeados, com declaração de suas origens,
suas línguas, idades e profissões. Este arrolamento
será renovado todos os quatro anos.
§ 7º Inquerir onde há Índios, que vivão em
hordas errantes; seus costumes, e línguas; e mandar
Missionários, que solicitará do Presidente da Pro-
vincia, quando já não estejam a sua disposição, os
quais lhes vão pregar a Religião de Jesus Cristo, e as
vantagens da vida social. [...]
§ 11. Propor ao Presidente da Provincia a de-
marcação, que devem ter os distritos das Aldeias, e fa-

301
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

zer demarcaras terras que [...] forem dadas aos Índios.


Se a Aldeia já estiver estabelecida, e existir em lugar
povoado, o distrito não se estenderá além dos limites
das terras originariamente concedidas a mesma. [...]
Palacio do Rio de Janeiro em vinte e quatro de
Julho de mil oitocentos quarenta e cinco; vigésimo
quarto da Independência e do Império.

Com a Rubrica de Sua Majestade o Imperador.

Anexo 2 – Gráficos sobre a composição da


população do Rio Grande do Norte no século XIX

Os gráficos foram produzidos pelas autoras


deste capítulo a partir dos dados apresentados por
Dayane Julia Carvalho Dias nesta obra3.

³ Para conferir os números absolutos de cada gráfico, consultar o capítulo


de Dias. Ver também DIAS, 2016.

302
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

303
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

304
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Anexo 3 – Roteiro de análise dos gráficos

1. De acordo com o gráfico que seu grupo está anali-


sando, quais os grupos étnico-raciais compunham a
população do Rio Grande do Norte?
2. Considerando os números percentuais, organize os
grupos em ordem crescente e verifique quais os mais e
menos numerosos.
3. Agora, troque o gráfico com o grupo ao lado.
4. Com o novo gráfico, repita os exercícios 1 e 2.
5. Confronte as informações dos dois gráficos com
seus colegas e identifiquem o que muda e o que per-
manece ao longo do tempo.
6. Quais acontecimentos puderam ser verificados?
7. Junto com seu grupo, formule hipóteses que permi-
tam explicar os acontecimentos verificados.

Referências
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. O lugar dos índios na histó-
ria: dos bastidores ao palco. In: ALMEIDA, Maria Regina Celestino
de. Os índios na história do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2010.

BRASIL. Lei nº 11 645, de 10 março de 2008. Obrigatoriedade do


estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena. Brasília,
10 mar. 2008. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/cci-
vil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm>. Acesso em: 15
jun. 2021.

BRASIL. Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850. Dispõe sobre as


terras devolutas do Império. Livro 1º do Actos Legislativos, f. 57,
2 out. 1850. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/cci-
vil_03/leis/l0601-1850.htm>. Acesso em 15 jun. 2021.

BRASIL. PL 490/2007. Estabelece que as terras indígenas serão


demarcadas através de leis. Brasília, 20 mar. 2007. Disponível em:
<https://www.camara.leg.br/proposic
oesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=345311>. Acesso em:
19 jun. 2021.

COELHO, Mauro. Diferença e semelhança. In: FERREIRA, Marieta de


Moraes; OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de (Coord.). Dicionário
de Ensino de História. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2019.

305
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

DIAS, Dayane Julia Carvalho. O comportamento da mortalidade


no Rio Grande do Norte entre 1801 e 1870. Dissertação (mestrado
em Demografia) – Centro de Ciências Exatas e da Terra, Universi-
dade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2016.

FREITAS, Itamar. A experiência indígena no ensino de História. In:


OLIVEIRA, Margarida M. D. (Org.). História: ensino fundamental.
Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica,
2010.

GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Nação e Civilização nos Trópi-


cos: o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro e o projeto de uma
história nacional. Revista Estudos Históricos, vol. 1, n. 1, 1988.

MONTEIRO, John Manuel. Unidade, diversidade e a invenção dos


índios: entre Gabriel Soares de Sousa e Francisco Adolfo de Varnhagen.
Revista de História. São Paulo, 149 (2o), p. 109- 137, 2003.

Povos Indígenas do RN. Disponível em:< www.cchla.ufrn.br/povo-


sindigenasdorn/index.html>. Acesso em: 15 jun. 2021.

306
A REPRESENTAÇÃO DOS POVOS
INDÍGENAS NA HISTÓRIA DO
RIO GRANDE DO NORTE

Thaís dos Santos Maranhão


Descrição da proposta

Os recursos didáticos trazidos por essa propos-


ta devem auxiliar o(a) estudante a entender o processo
de “apagamento” das sociedades indígenas da história
do Rio Grande do Norte, bem como a luta desses grupos
pelo direito à ocupação de terras e representação polí-
tica no estado. O trabalho será iniciado desenvolvendo
junto aos alunos(as) o conceito de representação, para
que possam compreender os desdobramentos políti-
cos e sociais causados por descrições imprecisas dos
indígenas por parte dos gestores e imprensa locais.
Em seguida será feita a leitura e a análise de
um quadro censitário (Anexo 1), que apresenta dados
sobre a população do estado nos anos 1844, 1872 e

307
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

1890. Esse quadro evidencia o surgimento de dois novos


grupos étnico-raciais: os caboclos e os pardos. Os(as) alu-
nos(as) serão orientados a preencherem uma tabela com
as informações obtidas no quadro em questão (Anexo
2), e comparar tais informações com duas fontes histo-
riográficas (Anexo 3): um fragmento do Relatório do Mi-
nistério dos Negócios do Império (1845), e um fragmento
do livro Vida Potiguar (1899), que oferecem representa-
ções sobre os indígenas potiguares. O exercício pretende
exercitar nos(as) alunos(as) a leitura crítica, interpreta-
ção, análise e comparação de fontes históricas diversas.
Em seguida, será feita a leitura conjunta de uma notícia,
de fevereiro de 2021, sobre a proliferação do covid-19
entre grupos indígenas aldeados no Rio Grande do Norte
e a falta de políticas públicas que prestem a devida assis-
tência para esse grupo. O intuito dessa última leitura é
evidenciar como os grupos indígenas ainda são sub-re-
presentados politicamente no estado. Por fim, propõem-
-se uma pesquisa sobre os grupos indígenas potiguares,
que será orientada pelo(a) professor(a).

Público-alvo: Ensino Médio e EJA.

Tempo estimado: 2 h/a.

Objetivos

● Exercitar a leitura crítica e a interpretação de fontes


textuais (textos oficiais e literatura do século XIX);
● Construir conhecimento sobre o conceito de
representação;
● Identificar as diferentes formas como os indígenas
são identificados ao longo da história do século XIX e
as razões que levaram às mudanças dos termos utili-
zados para sua designação étnico-racial;

308
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

● Entender as causas do “desaparecimento” dos indí-


genas no Rio Grande do Norte, articulando-as, espe-
cialmente, ao interesse pela desapropriação de terras
indígenas por proprietários rurais brancos;
● Promover os valores de justiça e igualdade, de modo
a sensibilizar os(as) alunos(as) acerca da importância
das lutas históricas travadas por grupos indígenas
para assegurar o acesso à terra e o reconhecimento de
sua identidade étnico-racial diferenciada.

Conteúdo

O processo de conquista e colonização das ter-


ras americanas, demandava a criação de uma espécie
de censo para informar a Portugal sobre os recursos
naturais e as pessoas que viviam em suas possessões.
A preocupação com a coleta de dados precisos sobre
o território e a população se intensificou no Brasil in-
dependente em função da preocupação de promover
uma administração eficiente, com políticas públicas
sendo elaboradas a partir de dados concretos, inclusi-
ve no que se referia a ocupação e exploração do terri-
tório. Sobre esse tema, na província do Rio Grande do
Norte como em outras, pesavam permanentes confli-
tos entre os povos indígenas aldeados e os proprietá-
rios de terras brancos que pretendiam avançar sobre
as terras demarcadas. Frente ao interesse dos proprie-
tários de terra, os relatórios demográficos comumen-
te subnotificavam a quantidade de pessoas indígenas
existentes em cada região, até que, em meados do sé-
culo XIX, eles “desapareceram”.
A aceleração desse processo de invisibilização
foi impactada, em 1845, pela promulgação do Regu-
lamento acerca das Missões de catequese e civilização
dos índios, que pretendia conferir ao governo impe-
rial maior controle sobre os aldeamentos indígenas.

309
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

Diante dessa medida, as autoridades do Rio Grande


do Norte decidiram pôr fim aos aldeamentos ainda
existentes em Extremoz, São José de Mipibu, Villa Flor
e Goianinha, declarando que os indígenas estariam
completamente confundidos com a população. Desse
modo, as autoridades do estado justificavam a decla-
ração de que não havia necessidade de demarcar ter-
ras para aldear os indígenas da província.
Educar sobre as relações étnico-raciais a partir
das experiências históricas da população indígena do
Rio Grande do Norte, esta é a nossa proposta que tem
por finalidade discutir o processo de apagamento e di-
minuição quantitativa dos povos indígenas e pretos
dos registros censitários do Rio Grande do Norte du-
rante o período oitocentista. Outro ponto a ser proble-
matizado é o sentido político das designações étnico-
-raciais “caboclos” e “pretos”. Será feita a análise de um
quadro censitário (Anexo 1) e de fragmentos de fontes
historiográficas (Anexo 3). O primeiro fragmento é de
1844 e faz parte do Relatório da Repartição dos Negó-
cios do Império, nele consta que os indígenas do Rio
Grande do Norte vivem misturados ao restante da po-
pulação. O segundo fragmento faz parte do texto Vida
Potiguar (1899), publicado pelo político e intelectual
Antonio de Souza, sob o pseudônimo Polycarpo Feito-
sa, a partir do qual se pretende verificar como a elite
local representava os povos nativos.

Estratégias

1. No primeiro momento, o(a) professor(a) deve tra-


balhar junto aos alunos o conceito histórico de re-
presentação, desenvolvendo a ideia de que as repre-
sentações dos grupos indígenas sofreram mudanças
ao longo da história brasileira devido às questões
políticas. Para tanto, sugerimos a utilização de di-

310
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

ferentes imagens representando os povos indígenas


presentes no livro didático utilizado pela turma.

2. A aula segue com um breve debate, no qual o(a)


professor(a) levantará alguns questionamentos aos
estudantes, com o fim de avaliar seus conhecimen-
tos prévios sobre os indígenas. É possível perguntar,
por exemplo: qual é a origem do termo índio? O ter-
mo mais apropriado seria índio ou indígena? Por qual
motivo? Como os(as) alunos(as) visualizam as pesso-
as indígenas? Quais características avaliam que uma
pessoa deve ter para ser considerada indígena? Nesse
debate o professor poderá identificar os conhecimen-
tos que os(as) já tem e podem aprofundar, corrigir in-
formações equivocadas e imprecisas, e verificar quais
preconceitos e estereótipos precisará desconstruir ao
longo das aulas seguintes.

3. Após o debate, sugerimos que o(a) professor(a) de-


safie a turma a realizar um estudo sobre as diferentes
representações dos indígenas no Rio Grande do Nor-
te por meio da análise de fontes historiográficas. Para
tanto, o(a) professor(a) apresentará à turma uma tabe-
la com informações sobre a composição demográfica
da população do Rio Grande do Norte em 1844, 1872
e 1890 (Anexo 1). A apresentação da tabela deve ser
acompanhada de explicações sobre a importância de
dados populacionais para a administração do Estado.1
¹ De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, na atuali-
dade, os censos demográficos contribuem para “1. estudar o crescimento
e evolução da população ao longo do tempo; 2. identificar áreas de investi-
mentos prioritários em saúde, educação, habitação, transportes, energia,
programas de assistência à infância e à velhice; 3. selecionar locais que
necessitam de programas de estímulo ao crescimento econômico, como
instalação de polos industriais; 4. definir a representação política no País,
indicando o número de deputados federais, deputados estaduais e verea-
dores de cada estado e município; e 5. fornecer subsídios ao Tribunal de
Contas da União para o estabelecimento das cotas do Fundo de Participa-
ção dos Estados e do Fundo de Participação dos Municípios”. Para a socie-

311
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

4. Uma primeira análise dos elementos que compõem


a tabela pode ser feita coletivamente, com o(a) profes-
sor(a) verificando se os(as) estudantes compreendem
todos os elementos que compõem a tabela, tais como
ano de realização do recenseamento, condição civil da
população (livre ou escravizada) e identificação étni-
co-racial. Atenção que essas denominações variam
ao longo do tempo e optamos por manter na tabela as
mesmas designações utilizadas nos documentos uti-
lizados como fonte. Após essa análise inicial, os(as)
estudantes serão orientados a responder – individual-
mente ou em dupla – o roteiro de análise (Anexo 2),
que demandará leitura e interpretação da tabela, as-
sim como a formulação de hipóteses que expliquem
a variação as informações apresentadas pelos censos.
Caso considere pertinente, fica a critério do(a) profes-
sor(a) utilizar as perguntas propostas no roteiro de
análise na primeira análise da tabela.

5. A segunda atividade proposta para a turma consis-


te na leitura e análise de três excertos (Anexo 3), que
são fontes documentais. Trata-se de um trecho do Re-
latório do Ministério dos Negócios do Império escrito
em 1845, no qual se justifica não haver necessidade de
demarcar territórios indígenas no estado; um trecho
do relatório do presidente da província, reconhecen-
do ainda haver indígenas no Rio Grande do Norte; e
um fragmento do livro Vida Potiguar (1899), em que
dade civil, esses dados também são fundamentais, podendo ser utilizados
“1. na seleção de locais para a instalação de fábricas, supermercados, sho-
pping centers, escolas, creches, cinemas, restaurantes, lojas; 2. na análise
do perfil da mão-de-obra brasileira, instrumento fundamental para sindi-
catos, associações profissionais e entidades de classe; 3. na análise acadê-
mica do perfil sociodemográfico e econômico da população e sua evolução
até o ano 2000; e 4. na reivindicação dos cidadãos por maior atenção do
governo municipal ou estadual para problemas específicos, expansão da
rede de água e esgoto, expansão da rede telefônica, instalação de postos
de saúde, etc.”. Disponível em:<https://www.ibge.gov.br/censo/motivos.
shtm>. Acesso em: 10 jun. 2021.

312
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Polycarpo Feitosa reconhece a existência de povos


indígenas no estado, e avalia como a sua participa-
ção na composição da população afeta a cultura e o
comportamento dos norte-rio-grandenses. A leitu-
ra e compreensão dos textos pode ser verificada por
meio de avaliação oral, com debate envolvendo toda
turma. A partir da compreensão do texto, os(as) es-
tudantes devem ser estimulados a avaliar em que
medida os interesses das elites no campo político,
econômico e cultural podem repercutir na produção
de dados sobre a população. Após a discussão, os(as)
estudantes devem retomar o roteiro de análise da
tabela, a fim de verificar se avaliam ser necessário
revisar ou corrigir alguma reposta.

6. Para a realização a atividade final, se solicita que os(as)


estudantes utilizem as informações coletadas no roteiro
de análise para escrever a redação proposta (Anexo 4),
utilizando como textos motivadores os materiais que
compõem essa sequência didática (Anexos1, 3 e 5), sele-
cionados conforme o interesse do(a) professor(a).

Avaliação

Esta sequência didática propõe um método


de avaliação contínuo, no qual o(a) professor(a) po-
derá avaliar tanto a participação e o desempenho
dos(as) estudantes nas atividades propostas, quanto
o resultado da redação final.
Outra sugestão, como atividade complemen-
tar para casa ou avaliação, sugerimos que o(a) pro-
fessor(a) primeiramente conduza a leitura de uma
notícia publicada em fevereiro de 2021 (Anexo 5). A
notícia relata a infecção de povos indígenas aldeados
pelo vírus Covid-19, não incluídos o Plano Estadual
de vacinação como prioritários. Os(as) alunos então

313
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

devem ser provocados com a seguinte questão: em


que medida o reconhecimento ou não de popula-
ções indígenas no estado, assim como a definição
do tamanho dessas populações, impactam na cria-
ção e implementação de políticas públicas de volta-
das especificamente para suas necessidades? Para
responder essa questão, sugerimos que o(a) profes-
sor(a) proponha à turma a elaboração de um rela-
tório com informações sobre sete grupos indígenas
do Rio Grande do Norte. A turma será dividida em
sete grupos e cada um deles vai se responsabilizar
pela pesquisa de um grupo indígena aldeado o Rio
Grande do Norte (Anexo 6). Os materiais produzi-
dos pelos(as) estudantes poderão ser pulicados em
uma página do facebook criada para a turma. Ou-
tra possibilidade é dedicar uma aula à realização de
uma roda de conversas, em que os relatórios seriam
trocados entre os grupos e os(as) alunos(as) pode-
riam conversar sobre o que aprenderam com a pes-
quisa dos demais colegas.

Anexo 1 –Quadro censitário da população


do Rio Grande do Norte

Fontes de dados: Relatório de Presidente de Província de 1846; Censo


Imperial de 1872; Vânia Moreira (2001).

314
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Anexo 2 – Tabela de análise dos


fragmentos e do quadro censitário

Para entender as fontes


Quais são os anos que os dados do quadro censitários elecam?

Quais são os grupos étnico-racias descritos?

Qual é o grupo étnico-racial que tem o maior número de pessoas?


Quais os grupos que tem o menor número de representantes?

Quais grupos étnico-raciais sofreram um aumento na porcentagem?

Quais grupos étnico-raciais sofreram uma diminuição na porcenta-


gem?

Algum grupo étnico-racial parou de ser retratado com o tempo?

Quais elementos do quadro censitário que chamaram a sua atenção?

315
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

Anexo 3 – Transcrição das fontes


historiográficas e literárias

Relatório do Ministério dos Negócios do Império


apresentado à Assembleia Geral Legislativa em 1845.

“O Governo tem dado as convenientes providên-


cias para melhorar a sorte dos indígenas que, por abusos
de remota data, se chão em muitos lugares quase reduzi-
dos à condição e escravos. Nas Províncias do Rio Grande
do Norte e Paraíba não pode ter execução o citado Regula-
mento, porque os Índios estão confundidos com o resto da
população, habitando Vilas sujeitas às autoridades civis”.

Fragmento do livro Vida Potyguar, de Polycarpo


Feitosa (1899).

“Sem iniciativa para empreendedorismo de


qualquer natureza, sem coragem para mais trabalho
além daquele que lhe é absolutamente indispensável
para subsistir, não tendo, em regra, outras aspirações
que não sejam possuir alguma coisa e ser alguém na
política, o potiguar vive como quem espera que os me-
lhoramentos de qualquer espécie, os benefícios, o pro-
gresso lhe caiam prontos e sem muito trabalho seu, do
alto do céu ou do alto do governo. E é este, penso eu, o
vício fundamental da educação indígena”.

Anexo 4 – Notícia sobre a exclusão de


povos indígenas do Plano Estadual de vacinação.

Plano de vacinação contra Covid-19 exclui indígenas


do Rio Grande do Norte e do Piauí

“A comunidade indígena Potiguara do Catu


ocupa há séculos as margens do rio Catu, entre os mu-

316
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

nicípios de Canguaretama e Goianinha, no Rio Grande


do Norte. No território ainda não demarcado, onde vi-
vem 226 famílias, quase mil pessoas, foram confirma-
dos 19 casos de Covid-19 desde o começo da pandemia.
Um precisou de internação. Mas ninguém da aldeia foi
imunizado. Por não terem territórios demarcados, ne-
nhum indígena do Rio Grande do Norte e do Piauí foi
vacinado até agora, embora os povos tradicionais es-
tejam entre os grupos prioritários.
Acontece que o plano nacional de vacinação
define como grupo prioritário ‘indígenas vivendo em
terras indígenas (ou seja, demarcadas pela Funai) com
18 anos ou mais atendidos pelo Subsistema de Aten-
ção à Saúde Indígena’. Ainda de acordo com o texto, a
vacinação ‘deve ser realizada em conformidade com a
organização dos Distritos Sanitários Especiais Indíge-
na (Dsei) nos diferentes municípios’”.
No entanto, o Rio Grande do Norte, por exem-
plo, não possui um Distrito Sanitário Especial Indí-
gena (DSEI) próprio. Em 2015, por recomendação do
Ministério Público, o estado passou a ser atendido
pelo Dsei Potiguara, que responde povos indígenas
na Paraíba. Mas, por problemas de logística e de re-
cursos, o estado foi desligado em 2019 da unidade.
No Piauí, também não há Dsei.
Aproximadamente 12 mil indígenas no Rio
Grande do Norte e no Piauí estão sem perspectiva
de vacinação. Somente no Rio Grande do Norte há
16 aldeias onde vivem 6.385 indígenas ‘à beira de
um massacre’, como alertou o ofício enviado pela
Articulação dos Povos Indígenas do estado à Fu-
nai, no primeiro dia deste ano. O documento des-
taca que essas populações estão sendo ‘duplamen-
te punidas pelo Estado, por não terem suas terras
demarcadas e por ficarem de fora da prioridade na
vacinação contra a Covid-19’.

317
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

É como se nós não existíssemos para o governo


federal’, desabafa Luiz Katu, cacique da Aldeia Potiguara
de Catu, onde foi registrada a maior quantidade de casos
de Covid-19 entre as aldeias do Rio Grande do Norte. Por
meio de sua assessoria de imprensa, a Secretaria Especial
de Saúde Indígena (Sesai), órgão do Ministério da Saúde,
informou que o envio de doses suficientes para atender
as populações indígenas nos dois estados está previsto
para a primeira semana de março. Mas a imunização se-
guirá dentro do calendário do plano nacional de vacina-
ção, ou seja, sem dar prioridade a esses grupos ‘Temos
muitos idosos na aldeia e, sem uma perspectiva de va-
cinação logo, nosso medo é um novo recorde de casos’,
diz o cacique Luiz Katu. Para ele, o fato de o território
ainda não ter sido demarcado não impede o governo fe-
deral de calcular a quantidade de doses necessárias para
contemplar todas as comunidades indígenas, porque há
contagens locais. Ele diz que, em 2015, a Sesai recebeu
um censo da população Potiguara do Catu.
A indígena Tapuia Francisca Bezerra, cacique da
aldeia Lagoa de Tapará, localizada em Natal, critica o
governo federal e afirma ser ‘absurda’ a regra de vacinar
apenas os povos aldeados. ‘A gente não precisa desse re-
conhecimento do presidente. A gente precisa que eles
respeitem que nós estamos aqui. Estamos aqui: vivos,
fortes, mostrando nossa história’, diz a liderança.
A aldeia de Francisca é composta por cerca de
200 famílias. No ano passado, a comunidade registrou,
segundo a liderança, ao menos uma dezena de casos
de Covid-19. A liderança teme que, até a imunização,
os casos voltem a crescer. Nesta semana, foram regis-
trados cinco testes positivos para o coronavírus entre
os Tapuia. ‘Nosso direito à vacina está sendo negado.
Precisamos de muito apoio e muita força para que pos-
samos conseguir que todos os povos indígenas do Rio
Grande do Norte sejam vacinados’.

318
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Segundo a assessoria de imprensa da secretaria


de Saúde do estado, os indígenas estão incluídos no pla-
no estadual e a pasta fez “um pedido formal ao Ministé-
rio da Saúde”, pedindo a inclusão de 285 indígenas do es-
tado na fase prioritária, mas ainda não obteve resposta.
Durante a pandemia, grupos indígenas que vi-
viam da agricultura familiar no Rio Grande do Norte per-
deram renda com fechamento de feiras de rua e merca-
dos. O agricultor Liano Soares, 24 anos, vive com os pais
idosos no território Potiguara de Catu. Ele teve Covid-19
em abril do ano passado. Como a casa da família é peque-
na, na época não conseguiu cumprir o isolamento total e
temia pela contaminação dos pais idosos. “Nossa comu-
nidade devia ser vacinada logo porque são pessoas de bai-
xa renda, que vivem próximas umas das outras”, defende.
A família de Liano está conseguindo se manter
graças à aposentadoria dos pais e às vendas pontuais das
mangabas que ele coleta, porque o comércio de hortaliças
está parado. ‘Ações de etnoturismo na aldeia, que trazem
ganhos para cozinheiras, produtores de artesanato e guias
para trilhas na mata também foram suspensas. Muitas fa-
mílias passam por necessidades’, diz o cacique Luiz Katu.
Disponível em: https://apublica.org/2021/02/plano-
-de-vacinacao-contra-covid-19-exclui-indigenas-do-
-rio-grande-do-norte-e-do-piaui/. Acesso em: 01 de
jun. de 2021.

Anexo 5 – Orientações para a pesquisa


sobre os grupos indígenas potiguares

Comunidades indígenas do Rio Grade do Norte:


● Caboclos de Assu
● Potiguara do Catu
● Potiguara do Sagi/Trabanda
● Potiguara-Mendonça

319
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

● Tapuia Paiacu
● Tapuia
● Warao

Questões a serem abordadas na pesquisa:


● Quais regiões do estado o grupo habita?
● O grupo vive em uma área demarcada?
● Quantas famílias ou pessoas compõe a etnia?
● Quais são as fontes de renda da comunidade?
● Elenque algum aspecto cultural (música, alimenta-
ção ou rituais) do grupo indígena.

Anexo 6 – Sugestão de sites de


pesquisa para o(a) professor(a)

Fundação Cultural Palmares


A Fundação Cultural Palmares é responsável por emi-
tir as certidões de posse de terras pertencentes às
comunidades quilombolas o Brasil. Disponível em:
http://www.palmares.gov.br/?page_id=31465. Aces-
so em: 01 de jun. de 2021.

Fundação Nacional do Índio (FUNAI)


A Fundação Nacional do Índio é a coordenadora e prin-
cipal executora da política indigenista do Governo Fe-
deral. Sua missão institucional é proteger e promover
os direitos dos povos indígenas no Brasil. Disponível
em: https://www.gov.br/funai/pt-br. Acesso em: 01
de jun. de 2021.

Comissão Pastoral da Terra


Site da Comissão Pastoral da Terra, que publica notí-
cias referentes à conflitos no campo. Disponível em:

320
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

https://www.cptnacional.org.br/. Acesso em: 01 de


jun. de 2021.

Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra)


Página oficial do Incra, com notícias sobre as ações do
órgão, inclusive no que se refere aos povos indígenas
e aos quilombolas. Disponível em: http://www.incra.
gov.br/. Acesso em: 01 de jun. de 2021.

Povos Indígenas do RN
O site contém o mapeamento das comunidades/aldeias indíge-
nas do Rio Grande do Norte. Pretende-se promover a divulgação
para o público em geral de aspectos relacionados à história, à lo-
calização e à cultura. Disponível em: https://cchla.ufrn.br/povo-
sindigenasdorn/index.html. Acesso em: 01 de jun. de 2021.

Guia Cultural Indígena - Rio Grande do Norte


A obra organizada pelas pesquisadoras Julie A. Cavignac
(UFRN) e Carmen Alveal (UFRN) oferece informações ge-
rais sobre a presença histórica e a dinâmica social e cultu-
ral das comunidades indígenas do estado. Disponível em:
https://portal.ifrn.edu.br/arquivos/guia-cultural-indige-
na-do-rio-grande-do-norte. Acesso em: 01 de jun. de 2021.

Referências
BRASIL. Relatório da Repartição dos Negócios do Império apresenta-
do à Assembléa Geral Legislativa na 3ª sessão da 6ª legislatura pelo
respectivo ministro e secretário d’Estado Joaquim Marcellino de Brito.
Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1846. Disponível em: <http://
ddsnext.crl.edu/titles/100#?c=0&m=15&s=0&cv=0&r=0&xywh=-
-79%2C-1072%2C3
164%2C4759>. Acesso em: 10 jun. 2021.
_____. Rio Grande do Norte. Discurso com que o Illustrissimo e Excel-
lentissimo Senhor Dr. Casimiro José de Moraes Sarmento, presidente
desta provincia do Rio Grande do Norte, abriu a 1ª sessão da 6ª le-
gislatura da Assembléa Legislativa Provincial, anno de 1846. Dispo-
nível em: <http://ddsnext.crl.edu/titles/181#?c=0&m=10&s=0&c-
v=0&r=0&xywh=-295%2C72%2C
3324%2C2345>. Acesso em: 10 jun. 2021.

321
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

______. Recenseamento do Brazil em 1872. Rio de Janeiro: Typ. G.


Leuzinger, 1874. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/vi-
sualizacao/livros/liv25477_v11_rn.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2021.
______. Directoria Geral de Estatistica. Sexo, raça e estado civil, nacio-
nalidade, filiação culto e analphabetismo da população recenseada
em 31 de dezembro de 1890. Rio de Janeiro: Officina da Estatística,
1898. Disponível em: <https://bib
lioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=deta-
lhes&id=225487>. Acesso em: 10 jun. 2021.
CORREIA, Mariana; OLIVEIRA, Rafael; PINA, Rute. Plano de Vaci-
nação contra COVID-19 exclui indígenas do Rio Grande do Norte e
do Piauí. Pública, 12 fev. 2021. Disponível em: <https://apublica.
org/2021/02/plano-de-vacinacao-contra-covid-19-exclui-indige-
nas-do-rio-gr
ande-do-norte-e-do-piaui/>. Acesso em: 10 jun. 2021.
FEITOSA, Polycarpo. Vida Potyguar. Natal: Sebo Vermelho, 2008.

322
MULHERES E O
MUNDO DO TRABALHO

Gustavo Ítalo Freire Martins


PROPOSTA 1 - TRABALHADORES RURAIS
E A LUTA POR DIREITOS DE CIDADANIA
NO RIO GRANDE DO NORTE

Descrição da proposta

Esta atividade propõe a elaboração de um texto


dissertativo argumentativo, em exercício inspirado nas
provas de redação propostas em avaliações de grande
escala, como o Exame Nacional do Ensino Médio. Como
textos motivadores, propomos fontes primárias comen-
tadas e analisadas nos textos de João Fernando Barreto
de Brito (2015), e uma reportagem jornalística escrita
por Caroline Oliveira (2020), disponíveis em anexo, so-
bre conflitos envolvendo trabalhadores do campo.

323
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

Comumente, a historiografia brasileira e o sen-


so comum custam a reconhecer a agência dos sujeitos
subalternos, lhes destituindo do protagonismo so-
bre suas próprias histórias. Tal percepção é reforçada
nas narrativas históricas sobre as pessoas do campo,
cujas vidas parecem sempre resultado dos interesses e
ações dos grandes proprietários rurais. Supostamente
desprovidos da ação política, não aparecem nas nar-
rativas como protagonistas dos processos históricos
que vivem, figurando muitas vezes como coadjuvan-
tes ou meros expectadores das transformações políti-
cas e econômicas que ocorrem em seu tempo. É essa
perspectiva que pretendemos desconstruir por meio
da atividade proposta. Como se trata da elaboração de
uma redação, a sugestão é que o(a) professor(a) pla-
neje e realize essa atividade em colaboração com o(a)
professor(a) de Língua Portuguesa.

Público-alvo: 3° Ano do Ensino Médio e turmas da


Educação de Jovens e Adultos.

Tempo estimado: 2 h/a.

Objetivos

● Entender os interesses envolvidos em conflitos


entre grandes proprietários rurais e trabalhadores
do campo, agravados em função da seca de 1877;
● Identificar a persistência das disputas violentas
por terra na história agrária recente do Brasil, consi-
derando especificamente a situação desses conflitos
no Rio Grande do Norte;
● Desenvolver habilidade de leitura e interpretação
de fontes históricas, assim como a capacidade
argumentativa;

324
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

● Estabelecer relações entre presente e passado a


partir dos conceitos de continuidade e ruptura;
● Construir a noção de justiça social e direitos huma-
nos numa perspectiva histórica, verificando como es-
sas noções são entendidas e mobilizadas por diferentes
agentes históricos, e em temporalidades diferentes.

Conteúdo

Esta atividade tem como ponto de partida a


análise dos depoimentos recolhidos por João Fernan-
do Barreto de Brito em seu estudo sobre os trabalha-
dores da Colônia Agrícola de Sinimbú. Criada na Pro-
víncia do Rio Grande do Norte durante a seca de 1877,
a citada colônia foi fechada após um motim contra o
seu diretor. Na perspectiva dos trabalhadores agríco-
las, as autoridades responsáveis pela administração
da colônia cometeram uma série de irregularidades
consideradas como injustas, como a violação da inte-
gridade física dos colonos, a retenção de alimentos e
a negação de assistência médica. O quadro de insatis-
fação se agravou, e logo se converteu num motim, de-
pois de uma criança receber castigos físicos por parte
do diretor e seus homens.
Diante do conflito instaurado, o presidente da
província enviou uma equipe para elaborar um rela-
tório sobre o que vinha acontecendo na colônia, rece-
bendo informações alarmantes sobre a situação em
que viviam os flagelados pela seca. A partir dos rela-
tos, é possível identificar as motivações que levaram
aqueles trabalhadores do campo a se reunirem contra
o diretor da colônia. Nesse movimento, percebe-se a
existência de uma forte noção de justiça validando a
ação dos colonos, de modo que, quando o agravamen-
to de sua condição é resultado da arbitrariedade do
poder instituído, esses sujeitos rompem as relações

325
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

hierárquicas, deixam de reconhecer a autoridade de


determinados grupos de agentes, e buscam a solução
do problema por meio do motim.
A situação do segundo texto motivador utiliza-
do para elaboração dessa proposta diz respeito à dis-
puta pela titulação da terra na comunidade de Enxu
Queimado, do município de Pedra Grande (RN). Desde
2007, a comunidade é assediada por uma empresa que
reclama a propriedade do território em que vivem 554
famílias, lá estabelecidas há mais de cem anos. Em
meio à pandemia pelo COVID-19 vivida pelo mundo a
partir do ano de 2020, a empresa passou a ameaçar os
moradores, que acionaram os poderes públicos para
garantir sua permanência no território.
Conforme os depoimentos coletados, vemos
também a existência de uma noção própria de jus-
tiça que perpassa o entendimento dos moradores
com relação ao pertencimento àquele espaço, e que
se baseia numa noção de propriedade que se justi-
ficaria pelo tempo de ocupação, e não pela compra.
Ou seja, como estão ocupando e produzindo naque-
le espaço há gerações, consideram justo considera-
rem como sua propriedade.
A partir da análise dos dois casos, que aconte-
ceram em momentos distintos da história do estado,
espera-se que os estudantes possam realizar o exercí-
cio de relacionar presente e passado no que se refere à
história da luta dos trabalhadores do campo contra si-
tuações que consideram injustiças e em favor daquilo
que reconhecem como seus direitos como cidadãos.

Estratégias

1. Leitura conjunta dos textos motivadores (Anexo I).


2. Compreensão e análise dos textos por meio de
debate coletivo. A atividade, nesse caso, deve ser

326
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

mediada pelo(a) o(a) professor(a) de maneira a as-


segurar que os(as) estudantes compreenderam as
situações narradas e conseguiram fazer o exercício
de comparação, estabelecendo semelhanças e dife-
renças, continuidades e rupturas.
3. Para a realização desse exercício, o(a) professor(a)
pode utilizar o roteiro de questões (Anexo II), que
também pode ser utilizado como ficha de análise, a ser
reproduzido pelos(as) estudantes em seus cadernos.
O objetivo da ficha é apenas sistematizar os conhe-
cimentos construídos coletivamente, registrado na
perspectiva de cada estudante. A sugestão é que os(as)
estudantes preencham uma ficha para cada texto, que
serão utilizadas para subsidiar a avaliação proposta.

Avaliação

A avaliação sugerida é uma redação, que pode


ser proposta nos seguintes termos:
Com base na leitura dos seguintes textos motiva-
dores e nos conhecimentos construídos ao longo
de sua formação, redija texto dissertativo-argu-
mentativo em norma culta escrita da língua por-
tuguesa sobre o tema Trabalhadores do Campo no
Rio Grande do Norte, apresentando experiência
ou proposta de ação social para a solução dos con-
flitos apresentados, que respeitem os direitos hu-
manos. Selecione, organize e relacione, de forma
coerente e coesa, informações e argumentos que
fundamentem a defesa de seu ponto de vista.

Ao final da atividade, seria interessante reto-


mar o debate com a turma, discutindo coletivamente
as ações propostas pelos(as) estudantes.

327
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

Anexo 1 – Textos motivadores

TEXTO A – “Conflitos na Colônia Sinimbú”, texto es-


crito pelo historiador João Fernando Barreto de Brito
para sua pesquisa de pós-graduação

“Na madrugada entre os dias 15 e 16 de julho


de 1878 ocorreram fatos decisivos para o futuro da
Colônia Agrícola Sinimbú [criada para servir de espa-
ço de trabalho para os flagelados da seca iniciada no
ano anterior], como também para o rumo da política
norte rio-grandense. Isto porque nesta ocasião os co-
lonos invadiram o armazém que guardava os gêne-
ros alimentícios e atacaram o diretor, que revidou a
iniciativa de forma violenta. Em algumas versões do
fato, o fim era socorrer uma criança que estaria sendo
castigada fisicamente pelo diretor Arsênio Celestino
Pimentel, enquanto outras versões informam que o
objetivo era se apoderar dos gêneros depositados no
armazém. De todo modo, os colonos revoltados se
uniram e invadiram o armazém, e o diretor da colônia
respondeu atirando contra estes, resultando no grave
ferimento de pelo menos um colono, como também
no suposto desaparecimento de outro. [...] Em depoi-
mento, o colono Manoel Pereira Moraes confirmou a
história dos castigos sofridos por seu filho, que levava
palmadas de Arsênio Pimentel, o qual disparou o re-
vólver contra ele. Além disso, respondeu que o diretor
Arsênio C. Pimentel havia “castigado com palmadas
diversos colonos, atando-os com cordas a uma forqui-
lha sendo esses castigos praticados em homens, mu-
lheres e meninos”. [...]
No lento ruir da escravidão, ao longo da segun-
da metade do século XIX, bem como no processo de
consolidação do capitalismo, o trabalhador pobre livre
do campo sofreu uma grande derrota, e esta população

328
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

continuou sofrendo com novas formas de exploração,


sendo continuadamente submetida aos interesses dos
grandes proprietários rurais, como, por exemplo, os
senhores fazendeiros do vale do Ceará-Mirim [onde se
localizava a colônia agrícola]. Outros tantos enfrenta-
ram coisa pior, sendo empregados em obras públicas
nas cidades, recebendo nada além de comida como pa-
gamento pelo trabalho desempenhado”.

TEXTO B – “Comunidade pesqueira acusa incorpo-


radora de ameaças e destruição de barracos no RN”,
texto escrito por Caroline Oliveira para o site Brasil de
Fato, publicado em agosto de 2020

Um conflito entre moradores da comunidade pes-


queira de Enxu Queimado, no município de Pedra Grande,
a 142 km de Natal (RN), e a Incorporadora Teixeira Onze
vem se intensificando desde julho deste ano, com ameaças
e derrubada de barracos por parte da empresa, de acordo
com relatos dos moradores.
Leonete Roseno, que vive no local desde 2011, e
é casada com um pescador que está na região há 34 anos,
afirma que o italiano Marcello Giovanardi, que se apresen-
ta como representante da empresa, contratou dois segu-
ranças para derrubar os barracos construídos na área de
expansão, zona rural ocupada pelos moradores para impe-
dir o avanço da incorporadora sobre Enxu Queimado.
“Tentaram amedrontar os outros companhei-
ros, começando pelos dois barracos”, afirma a mora-
dora. O dono de um desses barracos é Ramiro Alves, de
52 anos, pescador e agricultor. Ele mora com cinco fi-
lhos e a esposa, que é deficiente física. “Fico preocupa-
do porque não tenho onde morar. Sou pobre, mas sou
humilde. Não sou sujo”, afirma Alves. “Ele já fez várias
ameaças, ameaçou colocar um trator por cima da bar-
raca para queimar, ameaçando”, conta.

329
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

Segundo Roseno, Giovanardi apareceu no vila-


rejo demarcando terras, colocando cercas, medindo as
casas, utilizando serviços de engenharia e topografia,
“sem dialogar com nenhum dos moradores”.
“Simplesmente chegou na cidade se intitu-
lando dono e não dialogou com ninguém. Aí a co-
munidade se uniu e começou a derrubar as cercas,
porque temos a posse há mais de 50 anos e não ad-
mitimos que de repente um estrangeiro chegasse se
dizendo o dono”, relata Roseno.
No vilarejo, onde faz sol e sossego desde que
começou a se formar em meados de 1920, o conflito
fundiário teve início em outubro de 2007 quando a
Incorporadora Teixeira Onze comprou 184,766 hec-
tares de terra por R$ 60 mil.
“A quantidade de terra que ele colocou em do-
cumentação dizendo que tinha comprado pelo valor
que ele disse que comprou é inaceitável: 180 hectares
por 60 mil reais? Não tem cabimento isso”, questiona
Maria Joelma Martins, de 32 anos, presidente da Colô-
nia de Pescadores de Enxu Queimado.
Os 184.766 hectares comprados pela empresa
se referem às duas áreas: na primeira, os moradores
têm criações de animais e plantações como de maca-
xeira e batata, e na segunda, estão as 810 casas e 554
famílias, um total de 2.389 moradores, segundo um
levantamento feito pela Unidade de Saúde de Enxu
Queimado, em junho de 2020.
“É inaceitável em um vilarejo com mais de
100 anos ele chegar com uma documentação se di-
zendo dono, querendo que a comunidade aceite ele
como dono das terras. Como que você é dono? Com-
prou a terra de quem? Porque não existia dono aqui
em Enxu Queimado. O dono somos nós, nativos, que
estamos há mais de cem anos aqui. Somos os possei-
ros do lugar”, afirma Martins.

330
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Anexo 2 – Roteiro de análise dos textos

Apresentamos aqui algumas perguntas bá-


sicas que auxiliarão no exercício de compreensão e
análise dos textos. Como o objetivo é subsidiar pos-
teriormente a elaboração de uma redação, outra su-
gestão é que o(a) professor(a) de História planeje e
realize essa atividade em colaboração com o(a) pro-
fessor(a) de Língua Portuguesa.

a. Quando? Na leitura desses textos, é fundamental que


os(as) estudantes consigam identificar a temporalida-
de em que ocorreram os acontecimentos relatados.

b. Onde? Também é fundamental que os(as) estudan-


tes identifiquem a localidade em que ocorreram os
acontecimentos relatados.

c. Quem? Esta questão, que exige um pouco mais de


atenção por parte dos(as) estudantes, demanda que
identifiquem os sujeitos e/ou os grupos de sujeitos
que protagonizam as situações narradas.

d. Por quê? Os dois textos apresentados relatam situa-


ções de conflito. Com a mediação do(a) professor, por
meio de explicações e perguntas instigadoras, os(as)
estudantes devem tentar compreender as causas dos
conflitos, considerando as diferentes perspectivas e
interesses dos sujeitos envolvidos.

e. Comparação. No exercício de comparação, com a


mediação do(a) professor(a), os(as) estudantes devem
procurar estabelecer relações entre as duas situações
de conflito, ocorridas no passado e no presente, se
apropriando dos conceitos de continuidade e ruptura.

331
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

f. Parte propositiva. Considerando a dimensão políti-


ca, econômica e social dos conflitos pelo acesso à terra
na História Agrária do Brasil espera-se, por fim, que
os(as) estudantes sejam estimulados a pensar solu-
ções para esse problema, para isso mobilizando as no-
ções de justiça social e direitos humanos.

PROPOSTA II - MULHERES,
ALIMENTAÇÃO E REVOLTA POPULAR:
O CASO DAS RETIRANTES DE AREIA
BRANCA E MOSSORÓ (1879)

Descrição da proposta

Essa sequência didática foi baseada no tex-


to que Francisco Ramon de Matos Maciel apresen-
ta nessa coletânea, no qual o autor estuda os mo-
tins e levantes protagonizados pelos retirantes em
Areia Branca e Mossoró, na Província do Rio Grande
do Norte, no contexto da seca de 1877. Utilizando
fontes jornalísticas da imprensa da época, o autor
identifica a preponderância de grupos de mulheres
entre a multidão dos amotinados, que invadiram
armazéns e realizaram saques de gêneros alimentí-
cios. Essas mulheres protestaram contra as injusti-
ças ocorridas na distribuição dos gêneros enviados
pelo governo central para os retirantes da seca. O
que se observa na documentação é, além da crimi-
nalização da ação feminina, a construção de este-
reótipos sobre essas mulheres, que aparecem como
desprovidas de iniciativa política, sempre motiva-
das pelos “devaneios da fome” ou pelas ordens de
outrem. De fato, era prática comum da imprensa
da época ofuscar o protagonismo dessas mulheres,
analisando-as a partir de uma suposta “irracionali-
dade” inerente ao chamado “sexo frágil”.

332
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Para problematizar esse processo de constru-


ção de estereótipos sobre o feminino, esta atividade
propõe exercícios de coleta e análise de informação
que serão utilizados para estabelecer relações entre o
passado e o presente. Após analisar o texto de Francis-
co Ramon de Matos Maciel, os estudantes deverão rea-
lizar entrevistas com mulheres de sua família, bairro
ou comunidade, a fim de coletar informações sobre
relações de gênero na contemporaneidade, cujos re-
sultados serão apresentados para a turma e utilizados
para debater o tema coletivamente.

Público-alvo: Estudantes dos anos finais do Ensino


Fundamental (8º e 9º anos).

Tempo estimado: 4h/a.

Objetivos

● Problematizar relações de gênero na sociedade pro-


pondo atividades que promovam a construção de
conhecimento sobre discriminação de gênero numa
perspectiva histórica;
● Desenvolver a habilidade de realizar leitura crítica,
exercitando a coleta e análise de informações com o
fim de produzir conhecimentos que respondam um
problema previamente elaborado;
● Por meio do estudo das relações de gênero, estabele-
cer relações entre presente e passado, de modo a per-
ceber continuidades e rupturas nas formas de pensar
e vivenciar o feminino.

333
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

Conteúdo

O texto que Francisco Ramon de Matos Maciel


apresenta nessa coletânea suscita uma série de discus-
sões sobre a história social e os sujeitos subalternos
em situação de confronto aberto com o poder. Toda-
via, para esta sequência didática, optou-se por focar
na construção dos discursos sobre as mulheres, que
insistiram em minimizar o protagonismo que elas ti-
veram na organização dos levantes reforçando estere-
ótipos sobre elas. Em seu texto, Francisco Ramon de
Matos Maciel utiliza várias reportagens publicadas na
imprensa e documentos produzidos por agentes do go-
verno, mas é preciso destacar que elas não foram ouvi-
das pelos jornais e seus depoimentos não constam nas
fontes oficiais. Por isso, importa problematizar com
os(as) estudantes esses discursos e narrativas sobre
as mulheres, construídos por meio do silenciamento
de suas vozes, de modo a evidenciar a importância e
necessidade de aprendermos a ouvir, da forma que as
fontes nos permitem, os diversos sujeitos e grupos so-
ciais envolvidos nos conflitos sociais.
No que tange o acesso aos gêneros de primeira ne-
cessidade, por comumente se ocuparem do preparo dos
alimentos e de sua compra no mercado, além de trabalha-
rem no cultivo do campo, são as mulheres que detectam
os primeiros indícios de que a família corre risco de não
conseguir colher ou comprar o suficiente para seu susten-
to. Na época da grande seca iniciada em 1877, essa pers-
pectiva assombrou e tornou-se uma realidade de muitas
famílias. A insegurança alimentar continuou sendo um
problema, mesmo para as famílias que se retiraram do
campo e, nas cidades, foram encaminhadas para traba-
lhar nas obras públicas em troca dos socorros – que mui-
tas vezes se limitavam a farinha e água – que deveriam ser
distribuídos gratuitamente. Entender o papel das mulhe-

334
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

res trabalhadoras do campo como provedoras e co-res-


ponsáveis pelo sustento das famílias é fundamental para
compreendermos a presença delas na vanguarda dos mo-
tins, ao lado de seus colegas e companheiros.
Por meio da leitura e análise de um excerto do
texto de Francisco Ramon de Matos Maciel, adapta-
do para os(as) estudantes, a expectativa é que pos-
sam construir conhecimento sobre as mulheres do
passado que se contraponham aos estereótipos e
senso comum que lhes associam à imagem de sujei-
tas passivas na história, enclausuradas no ambiente
doméstico e sem posicionamentos políticos. Assim,
é possível também repensar as motivações das mo-
bilizações e revoltas populares, considerando espe-
cialmente os sentidos atribuídos à noção de justiça,
pois nem sempre as dificuldades alimentares se tor-
nam causa para motim, pesando de forma mais de-
cisiva a reação da população contra as autoridades
identificadas como incompetentes ou responsáveis
por injustiças. O que se procura, portanto, é estimu-
lar os(as) estudantes a analisar os processos históri-
cos a partir da ótica dos sujeitos que experimentam
as carestias, fomes e misérias, compreendendo as
maneiras de pensar e sentir dos flagelados pela seca.

Estratégias

1. A atividade deve ser introduzida a partir da con-


textualização do Brasil do século XIX e do contexto
da seca de 1877-1879. Há que se destacar a imensi-
dão da miséria em que viviam as trabalhadoras e os
trabalhadores do campo no Brasil, e como isso poten-
cializou o drama da grande seca. Para essa contex-
tualização, sugerimos que o(a) professor(a) utilize o
livro didático da sua turma;

335
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

2. A leitura do excerto retirado do texto de Francisco


Ramon de Matos Maciel (Anexo) pode ser feita em voz
alta, coletivamente, com cada estudante lendo um
trecho. A sugestão é que a análise crítica seja feita de
forma colaborativa, por meio de um debate, no qual
os(as) estudantes exercitem compreensão de texto,
construção de argumentos e participação no debate
público com urbanidade, valorizando a escuta, a mul-
tiplicidade de ideias e o respeito ao próximo;

3. Para conduzir o debate, é importante que o(a) pro-


fessor(a) apresente questões desafiadoras, cujas res-
postas demandem a formulação de hipóteses utili-
zando conhecimentos prévios construídos nas aulas
anteriores e adquiridos por meio da leitura do texto.
Algumas perguntas que podem animar o debate:

• As situações descritas no texto se adequam às ima-


gens que normalmente forjamos sobre as mulheres do
passado?
• Se a fome é sempre pensada como o primeiro moti-
vo da revolta, por que na história encontramos várias
situações em que a população passa fome, mas não se
revolta?
• Considerar que as populações pobres agem somente
em função de seus instintos primitivos – a fome – se-
ria suficiente para compreender as formas de pensar e
sentir das pessoas do passado?
• Como compreender as formas de pensar e sentir de
sujeitos do passado quando eles não nos deixam teste-
munhos diretos de suas experiências?
• De que maneira o fato de nosso conhecimento sobre
o passado utilizar, fundamentalmente, fontes escritas
– e a população ser analfabeta em sua quase totalidade
– pode afetar a construção do conhecimento sobre o
passado?

336
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

• Sobre a produção do discurso oficial sobre as mulheres


retirantes, quais as estratégias da imprensa no sentido de
estabelecer estereótipos que deslegitimem a atuação de-
las? O que motivaria a imprensa a proceder dessa forma?
• De que modo uma determinada compreensão do con-
ceito de justiça pode ter interferido nas ações daquelas
mulheres trabalhadoras?
• A noção de justiça pode ser pensada de forma atempo-
ral? Ou ela pode ter significados diferentes para diferen-
tes grupos de sujeitos, em tempo e espaços distintos?

Avaliação

Na realização dos debates, a sugestão é que o(a)


professor opte pela avaliação continuada, consideran-
do a participação dos(as) estudantes na atividade, a
clareza e fundamentação dos argumentos, o respeito
aos colegas etc. Mas também se sugere que, para en-
cerrar o debate, o(a) professor(a) peça aos estudantes
que façam uma autoavaliação sintetizando, com suas
próprias palavras, o que aprenderam sobre a condição
social feminina no passado, especialmente no que se
refere à participação das mulheres no mundo do tra-
balho e no mundo da política.

Anexo 1 – Adaptação do texto de Francisco Ra-


mon de Matos Maciel, apresentado nessa coletâ-
nea.

MULHERES RETIRANTES
E O CONFRONTO DE AREIA BRANCA

A falta de créditos, a péssima administração e


a corrupção das comissões de socorros públicos pre-
judicaram o abastecimento dos gêneros alimentícios
em vários pontos de concentração de retirantes na

337
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

província, como em Areia Branca, Natal e Mossoró.


No final de 1878, se ampliou a estratégia das autori-
dades de converterem os socorros públicos em “salá-
rios” para os trabalhos nas obras públicas para e me-
lhoramento dos espaços urbanos, realizados com a
mão de obra proporcionada pelos retirantes sertane-
jos na província. Assim, um quadro de insatisfações
estava compondo-se entre os retirantes contra as au-
toridades, pois mesmo aceitando trabalhar nas obras
públicas para receber os socorros, não estavam ten-
do acesso à farinha, alimento entregue pelo governo
como uma espécie de salário.
Logo, grupos de mulheres organizaram-se
para criticar e saquear os armazéns do governo na
capital da província, como informam os jornais: “On-
tem nesta capital as mulheres em número superior
à 200, que haviam trabalhado nas obras públicas” e
não receberam salário por culpa do comissário do te-
souro; “foram aos armazéns do governo e os arrom-
baram, conduzindo algumas sacas de farinha, depois
que andaram pelas ruas bradando contra o governo,
que não queria pagar o seu trabalho!!! Quanta misé-
ria!!”. Na noite seguinte houve um “segundo arrom-
bamento dos armazéns pelas mulheres emigrantes,
que no desespero da fome, conduziram apenas 9 sa-
cas de farinha que o governo já comprou e o comissá-
rio do tesouro ainda não quis pagar”. Consta-se que o
comissário havia se trancado na sua residência, “para
evitar que elas o atormentem. Retirando-se hoje o Dr.
Chefe de polícia e ficando esta capital, quase sem for-
ça pública, é muito de recear graves acontecimentos
muito breve, devendo pesar a culpa de tudo sobre o
ministério” (Jornal do Recife, 13/2/1879, p. 1).
As mulheres retirantes estavam organizadas
quando decidiram promover o saque aos armazéns,
atormentando a vida do comissário do tesouro da ci-

338
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

dade de Natal, pois queriam o pagamento de seu tra-


balho nas obras públicas realizadas pelos flagelados
pela seca de 1877-1879. Assim, a fome não pode ser
encarada como única e exclusiva chave de explicação
para os episódios de saques. Ao contrário, existe uma
prática política e cultural diluída na organização e ati-
tude daquelas mulheres, sujeitas de suas histórias,
que nãos e intimidaram e foram capazes de pressionar
as estruturas de poder dos grupos dominantes.

Referências
BRITO, João Fernando Barreto de. Colônia agrícola Sinimbú: entre
a regularidade do espaço projetado e os violentos confrontos do es-
paço vivido (Rio Grande do Norte, 1850-1880). 2015. 185f. Disser-
tação (Mestrado em História) - Centro de Ciências Humanas, Letras
e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2015.

OLIVEIRA, Caroline. Comunidade pesqueira acusa incorporadora


de ameaças e destruição de barracos no RN. Brasil de Fato.
São Paulo, p. 1-1. 25 ago. 2020. Disponível em:<https://www.
brasildefato.com.br/2020/08/25/comunidade-pesqueira-acusa-
incorporadora-de-ameacas-e-destruicao-de-barracos-no-rn>.
Acesso em: 05 jun. 2021.

339
TODA AVÓ TEM SUA
HISTÓRIA E TODA HISTÓRIA
TEM SEU VALOR

Maria Luiza Dantas Lins


Rebeca Nadine de Araújo Paiva
Descrição da proposta

Essa sequência didática traz como proposta a


elaboração de notícias de jornal produzidas pelos alu-
nos sobre mulheres de seu cotidiano. Para isso, eles
analisarão, durante a aula de história, a jornada de
múltiplos papeis exercidos por Silvina Maria da Con-
ceição1 (Dindinha), pernambucana analfabeta, que
viveu as últimas décadas de sua vida no Rio Grande
do Norte, cuidando dos netos que figurariam entre os
principais intelectuais de seu tempo: Auta de Souza,

¹ Também conhecida por Silvina de Paula Rodrigues, optamos pelo nome


de solteira registrado por Eloy de Souza em suas Memórias (SOUZA, 2008).

340
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Eloy de Souza e Henrique Castriciano. Assim, propõe-


-se a percepção das rupturas e continuidades quanto
aos lugares reservados às mulheres ao longo dos anos.
Essa atividade pode ser adaptada para outros conte-
údos de ensino, havendo a possibilidade de ser tra-
balhada interdisciplinarmente. É importante ter em
mente que a realização desta atividade deve ser feita
com alguns cuidados. De forma inicial, antes de pro-
por que o aluno produza um dos gêneros textuais, uti-
lize, durante a explicação, exemplos de sua vivência ou
do cotidiano dos alunos na mesma temática, isso será
uma forma de inspirá-los a entenderem o seu passado
e suas histórias como parte da História do Rio Grande
do Norte. Outrossim, devemos deixar claro que cada
gênero textual possui suas especificidades antes da
produção do trabalho final, e isso deve ser considera-
do na apresentação dos roteiros aos alunos, para que
possam externar as ideias da melhor forma possível.
Os conteúdos presentes nesta sequência didáti-
ca fazem parte dos temas previstos a serem estudados
na Educação Básica, sobretudo no 8º ano do Ensino
Fundamental. A Base Nacional Comum Curricular de-
fine “O Brasil no século XIX” como uma das unidades
temáticas a serem trabalhadas na referida série (BRA-
SIL, 2018), entretanto, o documento não faz menção
ao estudo das mulheres desse período. Tendo sido as
mulheres costumeiramente invisibilizadas por tanto
tempo na história escrita e estudada, elas ocupam o
papel principal deste trabalho, sobretudo as mulheres
cuidadoras, trabalhadoras e chefes de família, repre-
sentadas nesta sequência didática a partir da trajetó-
ria de uma avó analfabeta, que pela morte da filha e
genro acabou assumindo a criação e seus netos, que se
tornaram poetas e intelectuais reconhecidos social-
mente. Por meio dos registros de sua vida evidencia-
mos parte da história norte-rio-grandense oitocentis-

341
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

ta, uma vez que Dindinha representa muitas outras


mulheres de seu tempo, bem como da atualidade, que
continuam com a responsabilidade de administrarem
seus lares e educarem suas crianças.

Público-alvo: Ensino de Jovens e Adultos.

Tempo estimado: 4h/a.

Objetivos

● Identificar mudanças e permanências nas vivências


das mulheres entre o século XIX e o XXI;
● Analisar produções textuais que descrevem o coti-
diano das mulheres;
● Exercitar a pesquisa e a busca de informações sobre
o papel feminino em diferentes temporalidades;
● Desenvolver habilidades de escrita por meio de pro-
dução textual.

Conteúdo

Esta sequência didática foi produzida em um mo-


vimento conjunto para apontar caminhos de como o en-
sino de história pode levar para as salas de aula a histo-
riografia recente acerca da sociedade oitocentista do Rio
Grande do Norte. Dialogamos, assim, com as propostas
apresentadas nos capítulos anteriores, que ressaltam a
necessidade de diversificarmos os sujeitos e espaços de
análise na construção da narrativa histórica em espaços
acadêmicos, bem como no ambiente escolar. O questio-
namento norteador dessa proposta é: como podemos
demonstrar o protagonismo feminino nas famílias do
Rio Grande do Norte no século XIX em sala de aula?

342
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

As relações familiares e o papel de cada um dos


sujeitos na formação do que entendemos como famí-
lia se delineiam à medida em que a vida em sociedade
vai se transformando. Com isso, podemos constatar
que permanece presente em nossa sociedade atual a
percepção das estruturas familiares sendo compostas
somente pelo núcleo “pai, mãe e filhos”. Entretanto,
na ausência dos pais, avôs e avós assumiam o posto
de cuidar de seus netos, movimento que acontece até
hoje. Diante das demandas atuais da nossa sociedade,
essa posição de cuidado ocupada pelas avós é bastan-
te comum em casos nos quais os responsáveis traba-
lham fora de casa e não possuem recursos para pagar
alguém que cuide de seus filhos.
Para entender mais sobre os perfis femini-
nos em outras temporalidades e espaços da história
brasileira, recomendamos a leitura de alguns traba-
lhos, como o texto do professor Luciano Figueiredo
(FIGUEIREDO, 2008), que trata sobre as mulheres
mineiras no século XVIII, percebemos uma diver-
sidade de papeis exercidos pelas figuras femininas
que transitavam naquele território. Estando em um
período de grandes tensões devido à grande procu-
ra pelo ouro naquela região, elas precisavam garan-
tir meios de driblar a pobreza em que viviam. Nesse
cenário, as mulheres estavam presentes no comér-
cio, como as “negras de tabuleiro” ou quitandeiras,
havendo ainda algumas que precisavam recorrer à
prostituição para garantir seu sustento.
No trabalho de Margareth Rago (RAGO, 1985)
contamos com uma análise do movimento anar-
quista brasileiro e as discussões acerca da participa-
ção feminina na classe operária entre os anos finais
do século XIX até 1930. Em nosso país, para formar
os futuros cidadãos da República, o imaginário so-
cial atribuía às mulheres as tarefas domésticas, não

343
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

havendo uma preocupação em profissionalizá-las.


Já no ambiente operário, também havia uma visão
inferiorizada quanto ao sexo feminino, que concor-
ria com os homens por postos de trabalho.
Já o trabalho de Martha Esteves analisa vários
processos-crime do Rio de Janeiro nos primeiros anos
da República. Estes demonstraram como a sociedade
da época enxergava as mulheres que, por trabalharem,
precisavam transitar em espaços públicos, sendo por
isso tidas como “meninas perdidas” (ESTEVES, 1989).
Mesmo sendo as vítimas de crimes sexuais nos jul-
gamentos, eram elas que precisavam ter sua moral e
boa índole comprovada. Esses trabalhos apresentam
o quanto a elite brasileira impôs um modelo de disci-
plinarização do corpo feminino, seguindo um padrão
de enclausuramento no ambiente doméstico que não
fazia o menor sentido para as jovens trabalhadoras.
O mesmo tipo de pesquisa foi desenvolvido
por Tânia Vasconcelos a partir de processos e no-
tícias da cidade de Jacobina, sertão da Bahia, entre
os anos de 1943 e 1959 (VASCONCELOS, 2020). De
modo similar, é possível perceber que as notícias de
jornais demonstravam um discurso modernista e
higienista por parte da elite, prezando por mulheres
que valorizassem sua feminilidade e se dedicassem
à maternidade e à vida doméstica.
Evidenciando o quanto a história de Dindinha
não foi uma exceção em relação ao que acontecia no pe-
ríodo oitocentista brasileiro, temos a pesquisa de Maria
Odila Dias (DIAS, 1995). A autora analisa diversos cen-
sos demográficos da cidade de São Paulo durante o sécu-
lo XIX, constatando que grande parte dos núcleos fami-
liares eram chefiados por mulheres e, na maioria deles,
eram formados por avós, filhas e netos. Vivendo em uma
sociedade que as deixavam nas margens, as mulheres
pretas, pardas e pobres constituíam suas próprias redes

344
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

de apoio a partir de ligações familiares diversas, garan-


tindo o mantimento de suas vidas e de suas crianças.
Outrossim, a utilização da história local e a dis-
cussão de gênero em sala de aula aproxima os(as) alu-
nos(as) do objeto de estudo e colabora na construção
da identidade social, sendo um aspecto importante
a ser desenvolvido para que os alunos compreendam
que são sujeitos da história, havendo a necessidade de
exemplificação no mundo prático, assim como posto
por Joana Neves sobre a ação de desvendar a identi-
dade social de sujeitos históricos que se revelam por
meio de suas próprias ações. Esse desvendamento, por
sua vez, norteará novas ações, a menos que a noção de
conhecimento histórico, empregada nessa prática,
seja esvaziada do próprio conteúdo da história (NE-
VES, 1997, p. 15). Então, ao relacionar a ideia de uma
identificação entre o conteúdo proposto e a vivência
dos alunos, estaríamos construindo uma identidade
no processo de aprendizagem dos alunos.
Ao apresentar aos alunos noções de gênero na histó-
ria, a partir de uma perspectiva histórica e cultural, a noção
de gênero fundamenta estudos que trazem à tona a dimen-
são política das relações masculino e feminino presentes na
vida cotidiana e relaciona-se diretamente com a questão das
relações de poder (LEITE, 2010, p. 194). Tal deslocamento
entre o passado e o presente pode ser de grande contribuição
para a forma com a qual o aluno desenvolverá novas habili-
dades a partir dos saberes construídos nas aulas, como tam-
bém para a construção de valores fundamentais à formação
cidadã, tais como liberdade, justiça e igualdade.
Para a aplicação da sequência é preciso ter
em vista os conhecimentos prévios dos alunos ar-
ticulados aos conteúdos que serão trabalhados em
sala de aula. O que o estudante já aprendeu em sua
vida e o seu entorno possibilita representações es-
senciais à consolidação de novas aprendizagens

345
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

(SELBACH, 2010, p.21). Questionar se estes co-


nhecem as obras de Henrique Castriciano, Eloy de
Souza e Auta de Souza, e comparar às dinâmicas de
suas próprias famílias, é uma forma de mobilizar
os conhecimentos já adquiridos. Desse modo,
o professor informa, mas só ensina quando sabe
transformar a informação em conhecimento que
transforma o aluno. Assim a verdadeira aprendi-
zagem é processo que começa com o confronto
entre a realidade do que sabemos é algo novo que
descobrimos ou mesmo uma nova maneira de se
encarar a realidade, passando a um conceito novo,
consistente e crítico (SELBACH, 2010, p.19).

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC),


quando aponta os aprendizados que devem ser adqui-
ridos no Ensino Fundamental, prevê que sejam reali-
zadas atividades que evidenciem os procedimentos de
investigação para as Ciências Humanas. De tal modo,
as atividades pensadas para esse nível de ensino “de-
vem contribuir para que os alunos desenvolvam a
capacidade de observação de diferentes indivíduos,
situações e objetos que trazem à tona dinâmicas so-
ciais em razão de sua própria natureza (tecnológica,
morfológica, funcional)” (BRASIL, 2017, p. 355).
Ao propor que os alunos relacionem a história
de outras mulheres ao seu convívio, tal processo resulta
na investigação e compartilhamento dessas histórias.
Dessa forma estaríamos contribuindo para alcançar a
formação de alunos nas competências específicas de
ciências humanas para o ensino. Podemos incluir, por
sua vez, o plano na seguinte competência:
identificar, comparar e explicar a intervenção do
ser humano na natureza e na sociedade, exerci-
tando a curiosidade e propondo ideias e ações que
contribuam para a transformação espacial, social
e cultural, de modo a participar efetivamente das
dinâmicas da vida social (BRASIL, 2017, p. 357).

346
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

A exposição das experiências individuais pe-


los(as) alunos(as), em forma de produção textual, por
exemplo, representa a importância do espaço escolar
enquanto extensão/lugar das práticas cotidianas, as
quais devem fazer parte do processo educativo e de
formação da cidadania. A escola, como as demais ins-
tituições sociais, abrigam indivíduos que estão vin-
culados a grupos sociais que lutam por suas ideias e
crenças e que, por vezes, utilizam-se deste espaço para
disseminar seus pontos de vista em relação à forma
de viver em sociedade (GATTI JÚNIOR, 2010, p. 106).
Nesse sentido, cabe aos professores a mobilização des-
ses conhecimentos em sala de aula.
Durante muito tempo a história foi reservada
apenas aos grandes homens que ocupavam os espaços
públicos. Entretanto, com as mudanças historiográfi-
cas mais recentes, proporcionadas, sobretudo, pelos
avanços das pesquisas da história social e da decolo-
nialidade, outros sujeitos historicamente excluídos
começaram a ocupar espaço na construção das narra-
tivas, entre eles as mulheres.
Ao longo desse livro foram discutidas dife-
rentes perspectivas acerca da historiografia oitocen-
tista do Rio Grande do Norte. Nesse sentido, diante
da polifonia de sujeitos e espaços proposta na obra,
o que esperamos é incentivar os(as) professores(as)
de história a procurarem formas de discutir tais te-
máticas em sala de aula. Considerando, então, que a
escola é um espaço de construção de conhecimentos
diversos e não de mera transmissão de produções
acadêmicas, buscamos, com essa proposta, discutir
o assunto (o lugar de chefe de família das mulheres
potiguares no oitocentos e na atualidade) por meio
da participação ativa dos(as) educandos(as), reali-
zando sempre o movimento entre passado e presen-
te para a prática de um ensino com significados.

347
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

Estratégias

1. Diante da temática do período imperial brasilei-


ro, para entender o cotidiano dos habitantes do Rio
Grande do Norte naquela época, teremos como pon-
to de partida questionamentos sobre como os(as)
estudantes imaginam ou têm conhecimento sobre
os papéis desempenhados por homens e mulheres
daquele contexto, virada do século XIX para o século
XX. São conhecimentos que podem ter por leituras,
por ouvir dizer, por programas na TV ou conteúdos
que acessam na internet. Para alterar essa perspecti-
va, pode ser utilizada a descrição de Eloy de Souza e
fragmentos de seus textos para apresentar a senhora
Silvina Maria da Conceição (Dindinha), a avó mater-
na do intelectual, com o auxílio do cordel escrito por
Mané Beradeiro (Anexo 1), bem como os trechos do
texto apresentado no capítulo escrito por Genilson
de Azevedo Farias, contido nessa obra. Outro mate-
rial a ser utilizado é a arvore genealógica da família
Castriciano de Souza (Anexo 2) para demonstrar a or-
ganização familiar ali existente. Os alunos podem ser
questionados se o perfil feminino imaginado por eles
para o período é semelhante ou diferente das fontes
analisadas durante esse momento.

2. Num segundo momento, continuando com questio-


namentos que promovem debate na turma, serão fei-
tas perguntas relativas ao tempo presente para apro-
ximá-los mais da temática. Alguns exemplos: vocês
conhecem pessoas, mulheres, que se identificam com
a história de Dindinha? Vocês são responsáveis por
cuidar de algum ente familiar? O que faz um chefe de
família? Quais as suas obrigações? Quantas mulheres
que vocês conhecem são chefes de família? Alguém foi
criado pela avó? Como é ou qual era a relação de vo-

348
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

cês com suas avós? Suas avós se parecem com a avó de


Eloy de Sousa? De que modo as avós influenciam na
criação dos netos? Quais as principais pessoas da sua
família que participaram da sua criação? Dessa forma,
pode ser apresentado notícias sobre o assunto (Anexo
4), sendo estabelecidas relações com o passado. Nesse
contexto, pode ser explicado à turma qual a estrutura
de uma notícia de jornal, o que é preciso para escrevê-
-la, quais elementos podem e não podem aparecer.

3. Em seguida, proponha aos alunos que, a partir das


informações apresentadas, sejam produzidas notícias
(Anexo 3) que retratam o cotidiano das mulheres no
presente, utilizando as informações sobre uma ou al-
gumas mulheres de sua família. Sugira que os alunos
utilizem as informações reveladas nas questões ante-
riores para aplicá-las em suas produções. É importan-
te que eles e elas se sintam confortáveis em comparti-
lhar suas experiências ou de pessoas próximas e que
entendam o valor dessas histórias. Para nortear a con-
fecção da atividade, sugira que a turma faça pesquisas
na internet sobre os problemas e desafios enfrentados
pelas mulheres na atualidade, que lhes auxiliem com
ideias para a escrita (Anexo 5).

4. Para a finalização da atividade, os alunos devem


compartilhar seus trabalhos com a turma, e essa
ação pode ser feita por meio de exposição dos textos
em mural produzido coletivamente, seja de modo
presencial ou virtual (podendo ser utilizado o am-
biente virtual da escola ou a ferramenta padlet).
Caso possua tempo hábil para o desenvolvimento
dessa atividade, dê retorno aos alunos de correções
que possam ser feitas ou aspectos que podem ser
desenvolvidos para melhorar o texto. As produções
escritas dos nossos alunos precisam ser valorizadas

349
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

para que melhoremos os aspectos referentes à auto-


estima e à confiança deles. Outro ponto importan-
te é que esse trabalho pode ser construído de forma
interdisciplinar com professores(as) de linguagens.

Avaliação

Nesta sequência didática é possível avaliar o


processo de aprendizagem ao decorrer dos passos que
constituem a produção do trabalho final, podendo ser
dividida entre a etapa de pesquisa, participação, envol-
vimento nas aulas e a escrita do gênero jornalístico.

Anexo 1 – Fragmento do cordel


escrito pelo poeta Mané Beradeiro

O cordel publicado em folheto A avó da saia de


merinó - a poética história de Dindinha (2017), com 36
estrofes compostas em sextilhas, propõe resgatar a
memória de ima importante, mas pouco conhecida,
personagem da história de Macaíba: Silvina de Pau-
la Rodrigues, a Vovó Dindinha, que sozinha cuidou
da criação de cinco netos: o senador Eloy de Souza, o
criador da Escola Doméstica Henrique Castriciano, a
poetisa Auta de Souza e seus outros irmãos, Irineu de
Souza e João Câncio.

A avó da saia de merinó -


a poética história de Dindinha

Silvina foi a mulher


Cujo busto honraria
A Praça de Macaíba
E ninguém desmentiria
Pois na terra do Brasil
Outra igual não havia.

350
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Doravante chamaremos
A humilde, dadivosa,
Pelo nome de Dindinha
A avó maravilhosa
Que foi mãe dos cinco netos
de maneira gloriosa.

Eloy de Souza ouvia


Vó Dindinha ensinar
A aula forte da vida
Que cedo fez soletrar
Ficando órfão da mãe
Que pouco pode amar.

Há em cima deste chão


Tão certo como o ar,
Há embaixo deste céu,
Tão grande como o mar,
Um ser que chamamos morte,
que ceifa sem cultivar.

Se eu pudesse faria
Sem sombra de ilusão
Um altar pra esta santa
Em toda religião
Que no silêncio da vida
Teve grande galardão.

Ao poeta Criador
Peço cheio de fervor
Quando eu chegar ao céu
Conceda-me o favor
Vê desta avó a face
Repleta de esplendor.

(Auta de Souza e João Câncio)

351
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

Anexo 2 – Árvore genealógica


da família de Dindinha

Fonte: adaptado de Auta de Souza (SOUZA, 2008).

Anexo 3 – Roteiro sobre como escrever uma notícia


sobre o cotidiano das mulheres no presente

● Título: Chamada para a notícia;


● Subtítulo: informações complementares;
● O primeiro parágrafo: Qual o assunto? Faça a des-
crição dos dados (informações): diga o que aconteceu,
com quem, onde, como etc.;

352
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

● Segundo e terceiro parágrafos: conte o que aconteceu


com mais detalhes, pois esse é o momento que se pren-
de o leitor com a história que está sendo contada. Dicas:
o texto deve ser escrito na terceira pessoa (é a pessoa
de quem se fala “ele” ou “ela”); não esqueça de organi-
zar previamente as informações que deseja expor como
uma lista de elementos a serem contemplados;
● Finalizando: Retornar a ideia principal e con-
clua seu texto com a mensagem que você avalie
como mais significativa.

Anexo 4 – Notícias sobre mulheres chefes de


família e redes de apoio formadas por mulheres

● Quase metade dos lares brasileiros são sustentados


por mulheres! Percentual de casas com comando femi-
nino salta de 25% em 1995 para 45% em 2018, com in-
serção no mercado de trabalho. Disponível em: <https://
www.em.com.br/app/noticia/economia/2020/02/16/
internas_economia,1122167/quase-metade-dos-la-
res-brasileiros-sao-sustentados-por-mulheres.shtml>.
Acesso em: 01 de junho de 2021.

● Falta de trabalho e estudo afeta mais mulheres, ne-


gros e chefes de família. De acordo com pesquisa, 31%
das jovens são ‘nem-nem’; fatia é de 20% para homens.
Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/
mercado/2021/05/falta-de-trabalho-e-estudo-afeta-
-mais-mulheres-negros-e-chefes-de-familia.shtml>.
Acesso em: 01 de junho de 2021.

● Maternidade e carreira: os desafios da dupla jorna-


da na pandemia. Estudos realizados pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelam
que apenas 54,6% das mães brasileiras, de 25 a 49
anos, que têm crianças de até três anos de idade estão

353
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

empregadas. Disponível em: <http://www.diariode-


petropolis.com.br/integra/maternidade-e-carreira-
-saiba-como-conciliar-a-dupla-jornada-durante-a-
-pandemia-193767>. Acesso em: 04 de junho de 2021.

● Um olhar para as necessidades práticas das mulhe-


res através da intersetorialidade. A luta das mulheres
para garantir espaço de participação na vida em so-
ciedade. Disponível em: <https://paraibaja.com.br/
um-olhar-para-as-necessidades-praticas-das-mulhe-
res-atraves-da-intersetorialidade/>. Acesso em: 04 de
junho de 2021.

Anexo 5 – Roteiro de Pesquisa sobre os problemas e


desafios enfrentados pelas mulheres na atualidade.

● Pense no seu tema e defina as palavras-chaves que


ajudem na hora de pesquisar para ir direcionando seu
olhar, e não esqueça de registrar os resultados;

● Toda pesquisa procura resolver um problema. Então,


vamos pensar nas perguntas que você precisa respon-
der: Por que esse problema acontece? Quais as causas?
Quais pessoas são mais atingidas? Quem se beneficia
com isso, e de que forma? É um problema que só acon-
tece onde vivo? Existem outras pessoas reclamando?
Existe alguma legislação a respeito?

● Observação: essas informações podem ser encontra-


das de diferentes formas com a ajuda da internet, mas
existem outras formas de pesquisar e conhecer mais
sobre determinado assunto (exemplos: fazer uma en-
trevista, visitar uma biblioteca ou arquivo etc.). Refli-
ta sobre as informações encontrou e anote os pontos
que lhe chamam atenção.

354
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

● A partir dessas informações, você provavelmente


já é capaz de explicar o problema e apontar possíveis
soluções. Lembre-se de escrever suas ideias de forma
clara e objetiva, utilizando as regras da língua portu-
guesa corretamente.

● Durante sua pesquisa não esqueça de registrar de


onde tirou as informações e para que possa informar
corretamente as fontes usadas em sua pesquisa.

Referências
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricu-
lar (BNCC). Brasília: MEC, 2017.

_____. Secretaria de Educação Básica. Diretrizes Curriculares Na-


cionais Gerais da Educação Básica. Brasília: MEC, SEB, DICEI, 2013.

DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo


no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1995.

ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas perdidas: os populares


e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle Époque. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1989.

FIGUEIREDO, Luciano. Mulheres nas Minas Gerais. In: DEL PRIORY,


Mary (Org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto,
2008.

GATTI JÚNIOR, Décio. Demandas sociais, formação de cidadãos e


ensino de história. In: OLIVEIRA, Margarida M. D. (Org.). História:
ensino fundamental. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria
de Educação Básica, 2010.

LEITE, Juçara Luiza. Fazendo gênero na história ensinada: uma vi-


são além da (in)visibilidade. In: OLIVEIRA, Margarida M. D. (Org.).
História: ensino fundamental. Brasília: Ministério da Educação,
Secretaria de Educação Básica, 2010.

MARTINS, Francisco. A avó da saia de merinó – a poética história


de Dindinha – 43° cordel de Mané Beradeiro, 2017. Disponível em:
<http://franciscomartinsescritor.blo
gspot.com/2017/01/a-avo-da-saia-de-merino-poetica.html>.
Acesso em: 24 jun. 2021.

NEVES, J. História local e construção da identidade social. Sæcu-


lum – Revista de História, n. 3, 10 dez. 1997.

355
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar


(1890-1930). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

SELBACH, Simone et al. História e didática. Petrópolis: Vozes, 2010.

SOUZA, Eloy. Memórias. Org., notas e índice onomástico de Rejane


Cardoso. - 2. ed. - Macaíba, RN Brasília, DF: Instituto Pró-Memória
de Macaíba e Senado Federal, 2008.

VASCONCELOS. Tânia Maria Pereira de. “Sertanejas defloradas”:


ideias de modernidade, convenções de gênero e insubmissões fe-
mininas em processos de sedução no sertão da Bahia. In: SANTOS,
Georgina; GARCIA, Elisa (Orgs.). Mulheres do mundo atlântico:
gênero e condição feminina da época moderna à contemporanei-
dade. Belo Horizonte: Fino Traço, 2020.

356
PATRIARCALISMO E ENSINO
DE HISTÓRIA NO HORTO
POÉTICO DA POTIGUAR AUTA
DE SOUZA (1876-1901)

Benigna Ingred Aurelia Bezerril


Descrição da proposta

O presente trabalho tem como objetivo apresen-


tar uma sequência didática que utilize, como principal
recurso didático, a obra de Auta de Souza, promoven-
do a abordagem dos conceitos de gênero1, articulado
¹ “[...] o termo gênero constituiu-se uma categoria que, inicialmente, ana-
lisa as relações entre homens e mulheres e seus desdobramentos sociais,
sendo estas estruturadas por meio da importância atribuída ao político na
configuração das relações humanas, que valorizou as experiências tempo-
rais decorridas no âmbito público e ao mesmo tempo, vilipendiou as de-
corridas na esfera privada. Como resultado, os agentes mais atuantes em
cada âmbito ganharam ou não mais relevância social. Essas atribuições re-
lacionadas ao sexo e aos espaços de atuação resultaram em representações
simbólicas que projetaram na realidade certa oposição (homem/mulher;
feminino/masculino), por vezes reprimindo e desvalorizando um ao mes-
mo tempo em que valoriza o outro” (SOUSA; CAIXETA, 2019, p. 28).

357
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

ao debate sobre relações étnico-raciais e patriarcado/


patriarcalismo no ensino de História do Rio Grande
do Norte.2 Conforme indicam Genilson Farias e Luci-
cleide Araújo “durante muito tempo os estudos sobre
as mulheres foram relegados a um segundo plano [...].
Contudo, o estudo de gênero veio adquirindo espaço
preponderante nas últimas décadas” (FARIAS; ARAÚ-
JO, 2012, p. 1). Mediante tal cenário, faz-se necessá-
rio investir nessa abordagem, considerando especial-
mente as demandas dos movimentos sociais por uma
educação que promova o combate às desigualdades
de gênero. Como Auta de Souza é a figura central des-
sa proposta, além de apresentar informações sobre a
vida e obra da escritora, discutiremos o uso da litera-
tura no ensino de História, estimulando a articulação
com Língua Portuguesa. O recorte temporal é a segun-
da metade do século XIX, abrangendo as últimas déca-
das do Brasil Império e o início do Brasil República.

Público-alvo: a proposta pode ser adaptada para tur-


mas de 8º ano do Ensino Fundamental II e 2º ano do
Ensino Médio.

Tempo estimado: 2-3 h/a. Para a atividade de avalia-


ção, o tempo fica a critério do/a professor/a.

² “O patriarcado é um conceito que surge inicialmente para designar um


regime de organização familiar, onde o pai, como chefe, tinha poder irres-
trito sobre os membros da família. Também foi adotado para nomear um
sistema de relações em que os donos de grandes extensões de terra (coro-
néis, latifundiários), tinham um domínio sobre todas as pessoas que re-
sidiam em sua propriedade. No interior da teoria feminista, tal conceito
surge para denominar as relações desiguais de dominação dos homens so-
bre as mulheres. Trata-se da caracterização de um sistema de organização
das relações sociais, baseada em critérios de divisões desiguais de tarefas
entre homens e mulheres e da atribuição de espaços e atividade específicas
de forma naturalizada. Afirmam-se por meio dessas atividades, papéis so-
ciais sob a forma do enquadramento de funções e posições na sociedade”
(ALMEIDA, 2010, p. 23).

358
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Objetivos

● Reconhecer o protagonismo feminino de Auta de


Souza, colaborando assim para um ensino de História
mais plural no tocante às relações de gênero;
● Caracterizar e identificar o papel da mulher na socie-
dade oitocentista, assim como perceber as estratégias
usadas por algumas delas no que tange à participação
na vida pública;
● Colaborar com a compreensão do conceito “patriar-
calismo” a partir da vida e obra de Auta de Souza;
● Perceber rupturas e continuidades, mudanças e per-
manências, acerca do papel da mulher na sociedade,
tomando a História Local como recorte de análise
para compreensão das experiências históricas desse
grupo, considerando especialmente suas táticas de re-
sistência;
● Capacitar os/as estudantes a analisar poemas utili-
zando a metodologia da história como referência.

Conteúdo

Auta de Souza nasceu em 1876 na cidade de


Macaíba, província do Rio Grande do Norte. De fa-
mília abastada, Auta foi a única menina entre cinco
irmãos. Ela estudou no Colégio São Vicente de Paulo,
em Recife, um colégio religioso para meninas. Aos
18 anos, Auta começou a publicar poesias na im-
prensa de Natal. Ela ficou conhecida como principal
poeta norte-rio-grandense a partir do livro de poe-
sias Horto (1900). Sua carreira foi breve devido à tu-
berculose a qual lhe acometeu aos 14 anos, levando
a escritora a falecer em 1901. Após sua morte, Auta
ganhou grande fama no Rio Grande do Norte, sendo

359
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

considerada mulher modelo por parte dos intelectu-


ais e estudiosos de sua vida. Porém, “esses mesmos
intelectuais não deram atenção para a excepciona-
lidade de sua condição: mulher, intelectual e negra
nos oitocentos, três indicadores de subalternidade
numa época em que se margeavam as mulheres, so-
bretudo as escritoras bem como os libertos da escra-
vidão” (FARIAS; ARAÚJO, 2012, p.3).
Auta de Souza, criada em um meio patriarcal,
para se firmar enquanto intelectual e escritora, teve
que superar barreiras de gênero de sua época, a qual
era extremamente “excludente, sobretudo para com
as mulheres que se dedicavam à escrita” (FARIAS;
ARAÚJO, 2012, p.2). Assim como Nísia Floresta, Auta
teria o objetivo de que a imprensa escrita reconhecesse
seu talento, embora tal espaço fosse dirigido e lidera-
do por homens, situação que lhe impunha “driblar os
preceitos e valores de sua geração” (FARIAS; ARAÚJO,
2012, p.8). Por isso, estudar Auta de Souza e seu prota-
gonismo no meio intelectual literário do Rio Grande
do Norte contribui no esforço em dar visibilidade para
as mulheres nas narrativas históricas3, favorecendo
o ensino inclusivo, diverso, plural, colaborando para
que as diferenças estruturadas entre homens e mulhe-
res sejam diminuídas e combatidas.
Outro aspecto a ser considerado: problematizar
as experiências de Auta de Souza oportuniza utilizar a
literatura como fonte para a pesquisa histórica, com-
preendendo suas poesias como “vias de acesso à com-

³ “Pode-se afirmar que esse apagamento da mulher ocorre em duas situa-


ções. A primeira ocorre no campo epistemológico da constituição do saber
histórico presente na historiografia e que influencia a narrativa do livro
didático. A segunda está presente na atuação docente eu pode estar contri-
buindo para esse ocultamento feminino. Em ambas as situações, conside-
ra-se a narrativa como elemento central através do qual é possível contri-
buir para um aprendizado plural que coloque homens e mulheres em um
patamar de importância equitativo e não hierárquico” (SOUSA; CAIXETA,
2019, p. 30).

360
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

preensão dos contextos sociais e culturais” (FERREIRA,


2009, p. 71). Como afirma Janaina Correia, trata-se de
uma documentação com grande potencial, pois
Por sua força em instituir imaginários e agir na
sociedade, a literatura tem poder de reconstruir a
vida cotidiana, desvendar contradições e revelar
divergências presentes nas relações sociais e nas
suas representações. A literatura pode também
servir para captar valores, concepções, sentimen-
tos, apropriar-se de elaborações dos acontecimen-
tos recolhidos, imaginados, idealizados (CORREIA,
2013, p. 31).

Tomando a literatura como fonte histórica e


recurso didático, faz-se possível analisar a sociedade
da época em que a autora escreveu a partir da leitura
de mundo eternizada na escrita. Para o trabalho com
tal fonte e recurso, é pertinente que essa atividade se
dê a partir da contextualização e que perguntas sejam
lançadas às fontes, não compreendendo o texto como
dado. Para que o potencial da fonte seja explorado, é
fundamental estarmos atentos ao processo de proble-
matização da fonte e à perspectiva que oferece para a
“o ensino e a construção de conceitos, a análise cau-
sal, o contexto temporal” (SCHMIDT, 2004, p. 59). Ao
decidir quais acontecimentos e contextos históricos
vai abordar, o/a professor/a também pode levar o edu-
cando “à compreensão das mudanças e permanências,
das continuidades e descontinuidades” (SCHMIDT,
2004, p. 60). Lembrando que o texto literário, para ser
utilizado como fonte e recurso didático para o ensino
de História, requer que seja submetido a uma série
de questões, tais como: “Quem é o autor? Qual o seu
público? A quem se destina a obra? Em que momento
histórico foi criado?” (CORREIA, 2013, p. 33). Por isso,
propor esse tipo de atividade em sala de aula requer
uma postura ativa e investigativa do/a estudante no
processo de ensino-aprendizagem.

361
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

Estratégias

A presente sequência didática diz respeito ao


período final do Brasil Império e começo do Brasil Re-
pública. Caso o docente siga a ordem cronológica de
aulas de História do Brasil, a proposta pode ser apli-
cada na transição dos referidos períodos históricos. A
abordagem em questão pode parecer um pouco disso-
nante em relação aos conteúdos trazidos em muitos
livros didáticos, se tratando dos períodos menciona-
dos, todavia, o intuito da proposta realmente é trazer
novas perspectivas de ensino de História. O docente
poderá vincular essa aula às discussões acerca das
mudanças e permanências atribuídas à instauração
do novo regime republicano, considerado progressis-
ta, inspirado em novas ideias cientificistas e compro-
metido com o ideário burguês, muito embora essas
novas ideias e valores também tenham justificado a
manutenção da opressão às mulheres e aos grupos
étnico-raciais não-brancos. Deste modo, tendo sido
dado o contexto e conteúdo do Brasil Império, facil-
mente o docente conseguirá mostrar essas relações
existentes no período como são as de gênero e da es-
trutura patriarcal. Outra possibilidade é realizar essa
proposta de sequência didática na abordagem de te-
mas transversais ou eixos temáticos que tratem das
relações de gênero e/ou História das Mulheres.

1. Primeiro momento: no final da aula que anteceder o


início da sequência didática, como atividade para casa,
solicitar que os/as estudantes realizem uma entrevis-
ta com o fim de investigar o papel social das mulhe-
res e sua educação em tempos passados. A entrevista
deve ser feita com pessoas mais velhas. As perguntas
(Anexo 1) podem ser entregues em folha impressa ou
copiadas na lousa para que os educandos anotem no

362
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

caderno. O intuito aqui é que, com os resultados obti-


dos, os/as estudantes comecem a formular hipóteses
sobre os elementos centrais que tradicionalmente são
associados ao papel social feminino, vinculando-o ao
espaço privado e à vida familiar.

2. Segundo momento: supõe-se que grande parte dos


resultados da entrevista apresentem experiências de
parentes e antepassados dos educandos que mostrem
a visão que se tinha do papel da mulher nas décadas
anteriores. A partir das conclusões dos/as estudantes,
o professor vai identificando e escrevendo na lousa
os elementos centrais do conceito de “patriarcalis-
mo”. Ao final dessa etapa, na mesma aula, sugere-se
lançar aos estudantes uma questão provocadora: será
que o patriarcalismo era sentido da mesma forma
por todas as mulheres? Como o local de nascimento,
a origem social e a identidade étnico-racial poderiam
interferir nessas vivências? Introduz-se, então, a per-
sonagem Auta de Souza, instigando os/as estudantes
a formularem novas hipóteses: como terá sido a ex-
periência dessa mulher que, muito embora vinda de
família abastada, era negra. No Anexo 2 estão o link
com sugestão de texto para o docente sobre a educa-
ção de Auta e a sua biografia. Além de compartilhar
com os/as estudantes informações sobre a vida e obra
da poetisa, é importante articular essas informações
com os resultados da entrevista realizada pelos/as es-
tudantes, estimulando-os/as a participar ativamente
da aula. É pertinente que o docente os instigue/as a
realizar exercício de comparação e considerar sobre
qual educação se assemelha mais com a do contexto
de Auta de Souza, a dos/as educandos ou a das pessoas
que foram entrevistadas por eles/as, promovendo-se,
assim, a comparação dos três recortes temporais.

363
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

3. Terceiro momento: considerando o conhecimento


construído pelos/as estudantes até o presente mo-
mento, com a mediação do professor, considera-se
que tenham os subsídios necessários para realizar o
exercício de análise das fontes, sugerindo-se os poe-
mas Morena e A Noiva. Os poemas poderão ser anali-
sados em duplas ou trios, seguindo o roteiro sugerido
no Anexo 3. É importante que o docente comente as
análises dos educandos, ressaltando aspectos impor-
tantes da interpretação dos poemas que colaborem na
percepção de como as fontes históricas podem nos in-
formar acerca das experiências vividas, das formas de
pensar e sentir, de homens e mulheres do passado.

Avaliação

A sugestão é que a avaliação seja feita de forma


continuada, considerando a realização as entrevistas,
a apresentação dos resultados, a participação nos de-
bates em sala de aula, o desempenho na formulação de
hipóteses e análise das fontes.
Outra sugestão é a realização de uma ava-
liação que promova a sistematização do conheci-
mento construído, por meio da elaboração de um
pequeno texto. Os educandos deverão formular hi-
póteses acerca do motivo pelo qual é difícil mudar
ideias e comportamentos presentes na sociedade e
apresentar possíveis soluções para a diminuição das
desigualdades identificadas. O texto deve ser acom-
panhado de imagens que ilustrem as mudanças pro-
postas pelos/as estudantes. Nesse caso, é pertinente
que os estudantes compartilhem o que foi produzi-
do expondo os textos e imagens num grande painel,
a ser montado na própria sala ou num mural ou ou-
tro espaço apropriado para exposições que exista na
escola. Uma aula pode ser dedicada à essa exposição,

364
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

oportunizando que os/as estudantes apresentem seu


trabalho e suas reflexões para a própria turma ou até
mesmo as demais turmas da instituição de ensino.
Por fim, outra sugestão é a elaborar um info-
gráfico sobre a vida e obra de Auta de Souza, conforme
orientações no Anexo 4.

Anexo 1- Roteiro para entrevista

Explique para a pessoa entrevistada que essa


atividade faz parte de um estudo realizado na escola e
será utilizado na aula de História. Pergunte se a pessoa
autoriza o uso dessa entrevista em sala. Caso concor-
de, prossiga com a entrevista, registrando a resposta
no caderno. Caso seja possível, grave o áudio da entre-
vista para fazer o registro escrito posteriormente.

a) Qual o seu nome e a sua idade?


b) Qual era o nome e o grau de instrução de sua mãe e/
ou avós? Se frequentaram a escola, até que ano estuda-
ram? Você sabe se elas gostariam de ter estudado mais?
Se gostariam e não o fizeram, foi por qual motivo?
c) E você, estudou o tanto quanto gostaria? Por qual motivo?
d) O que sua mãe e/ou avós te contavam sobre a vida
das mulheres no tempo em que eram jovens? Qual
sentimento elas pareciam exprimir quando falavam
nesse assunto?
e) Como sua mãe e/ou avós te orientavam sobre como
as mulheres devem se comportar em casa e em públi-
co? Você concordava ou não? Por qual motivo?
f )Na sua opinião, quais as principais mudanças entre
o tempo de sua mãe e/ou avós, seu tempo de juventude
e os tempos atuais?

365
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

Anexo 2 - Para saber mais sobre Auta de Souza

Site do programa Heróis de Todo Mundo, o qual trou-


xe um episódio sobre a poeta. Disponível em: <http://
antigo.acordacultura.org.br/herois/heroi/autadesou-
za>. Acesso em: 01 jun. 2021.

Link com sugestão de texto sobre a educação de Auta de


Souza para leitura do docente (apenas as duas primeiras
páginas): GOMES, A. L. F. Vida e Obra da Poeta Potiguar
Auta de Souza (1876-1901). Disponível em: <http://
www.limiarespirita.com.br/livros/vida_e_obra_da_
poeta_potiguar.pdf>. Acesso em: 01 jun. 2021.

Anexo 3 - Poemas de Auta de Souza


e roteiro de análise

Morena
À moça mais bonita de minha terra

Ó moça faceira,
Dos olhos escuros,
Tão lindos, tão puros,
Qual noite fagueira!

Criança morena,
Teus olhos rasgados
São céus estrelados
Em noite serena!

Que doces encantos,


No brilho fulgente,
No brilho dolente
De teus olhos santos!

E eu vivo adorando,
Meu anjo formoso,
O brilho radioso
Que vão derramando,

366
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Em chamas serenas,
Tão mansas e puras,
Teus olhos escuros,
Ó flor das morenas!
(SOUZA, 2009, p. 79).

A Noiva

Ela chegou na Igreja. Vagarosa


Vai ao braço do noivo conversando...
Grave, soa a orquestra acompanhando
Uma dança febril e langorosa

E a noiva passa assim, casta e nervosa


A cabecinha pálida inclinando...
Da capela uma flor vem resvalando
Pela macia fronte perfumosa

Sem tirá-la e levando a mão ao rosto,


Sente-se presa de infantil desgosto
E fita sua mãe cheia de amor.

Ah! Fora ela que, trêmula, divina,


Beijando-lhe a mãozinha alabastrina
À grinalda lhe atara aquela flor.
(SOUZA, 2009, p. 270).

Roteiro de análise

Para o uso de Auta de Souza em sala de aula,


dentre os diversos poemas com as quais a autora nos
agraciou, foram selecionados dois: Morena e A Noiva.
Como já comentado, a literatura apresenta potencia-
lidades diversas quanto à pesquisa e ensino-aprendi-
zagem de História. Para isso, faz-se pertinente com-
preender o contexto no qual determinada obra foi
escrita. A respeito de Horto e as possibilidades de lei-
tura da sociedade a partir de tal escritura, destaca-se
que Auta de Souza dedica grande parte de seus poe-
367
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

mas às mulheres com as quais conviveu ao longo de


sua vida. Por meio de seus poemas, “Auta fala por es-
tas mulheres, sem colocar-se como elas e, ao mesmo
tempo, traduzindo seus anseios, angústias, sonhos
e desejos, poetizando o universo feminino como ne-
nhum homem de sua época conseguiu fazê-lo” (SOU-
ZA; FONSENCA, 2013, p. 288-289).
Sendo a literatura esse espaço de expres-
são de experiências e percepções, pode-se con-
siderar que seus versos revelam a percepção da
autora sobre a sociedade oitocentista, especial-
mente no tocante à imagem e papel social das
mulheres. O poema A noiva apresenta a figura
feminina vinculada ao casamento, desta feita,
uma noiva caminha para cumprir seu papel de
casar-se, repetindo, certamente, o que fora feito
por sua mãe. Zélia Lopes traz uma análise perti-
nente acerca de tal poema:
A forma como a poeta alterna emoções contra-
ditórias é característica do soneto camoniano,
na mistura de sentimentos como a alegria e o
medo, o sonho e a expectativa. Ele traduz a si-
tuação da noiva que, “presa de desgosto”, está a
caminho do altar. A mãe chora, a filha está ner-
vosa [...]. As imagens são claras demonstrações
de medo e de tristeza. Um caminho sem volta.
Auta de Souza descreve apenas duas mulheres,
mãe e filha. A mãe relembra na filha a mesma
imposição vivida por ela. [...] Chama-nos aten-
ção a orquestra que toca acompanhando “uma
dança febril e langorosa”. De acordo com o di-
cionário Aurélio Online (2017), lânguido sig-
nifica abatido, sem vigor, força ou energia. Ao
observarmos a descrição da noiva ao entrar na
igreja, sentimos que a música reflete o estado
de espírito da jovem abatida diante do destino
que a aguarda, passando da chefia do pai para
a chefia do marido, como era de se esperar no
século dezenove (LOPES, 2018, p. 20).

368
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Já o poema Morena subverte o ideário de bele-


za de uma sociedade que promovera o fim da Abolição
poucos anos antes, e via o preconceito racial se rees-
truturar em outras bases, supostamente científicas.
Tendo em vista essas considerações, propomos
que essa sugestão de roteiro de análise seja revisada
pelo/a professor/a de História, com a colaboração do/a
professor/a de Língua Portuguesa, considerando os
conhecimentos que se pretendem construir, as carac-
terísticas da turma e os diferentes níveis de complexi-
dade do resultado esperado.

a) Como os poemas se organizam (versos e estrofes)?


b) Qual o estilo literário adotado por Auta de Souza?
c) Que símbolos e figuras de linguagem são utilizados
e como influenciam na composição dos poemas?
d) Identifique as personagens descritas nos poemas.
Que elementos dos poemas podem informar sobre es-
sas personagens?
e) Tente identificar as intenções da autora. Que ideias
e sentimentos ela parece querer despertar por meio de
seus poemas?
f ) Quais os temas abordados nos poemas? Você perce-
be ênfase em algumas ideias específicas?
g) O poema Morena tem o título relacionado à identi-
dade étnico-racial. Em que medida o poema de Auta de
Souza reafirma ou subverte as ideias predominantes
em sua época sobre as mulheres morenas?
h) O poema A noiva tem o título relacionado a um episódio
importante na vida das mulheres. Em que medida o poema
de Auta de Souza reafirma ou subverte as ideias predomi-
nantes em sua época sobre as etapas da vida das mulheres?

369
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

Anexo 4 - Orientações para a avaliação final e


links contendo informações sobre o infográfico.

Orientações acerca da produção dos cartazes

1. Em conjunto, os educandos deverão elaborar um car-


taz com a vida e obra de Auta de Souza. Aqui, deverão
ser expostas imagens da autora, ilustrações feitas pe-
los próprios educandos, informações essenciais sobre
sua trajetória e informativos sobre o contexto no qual
Auta viveu, considerando especialmente as relações de
gênero e as relações étnico-raciais, a serem pesquisadas
no livro didático utilizado pela turma ou utilizando ao
cervo disponível na biblioteca da escola. As informa-
ções podem ser dispostas em modelo de infográfico.
Tal modelo permite produzir um cartaz informativo
utilizando imagens, textos curtos e outros recursos que
favoreçam a articulação e entendimento do conteúdo.
A turma também poderá elaborar ilustrações para re-
presentar as cenas dos poemas abordados, a fim expor
as produções nas paredes da escola. A ilustração dos po-
emas pode ser feita de maneira interdisciplinar, com a
colaboração do/a professor/a de Artes.

2. A elaboração do infográfico pode ser complexifica-


da com a articulação de elementos (textos, imagens,
gráficos, tabelas, mapas etc.) que informem sobre a
condição social feminina na sociedade atual, conside-
rando especialmente como a origem socioeconômica
e étnico-racial impactam suas experiências. É impor-
tante que o infográfico fique exposto num local acessí-
vel a toda comunidade escolar.

370
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Sugestão de links de sites sobre o texto


visual infográfico e alguns modelos:

PACHECO, Mariana. Gênero textual infográfico. Dispo-


nível em: <https://brasilescola.uol.com.br/redacao/ge-
nero-textual-infografico.htm>. Acesso em: 02 jun. 2021.

Modelos de infográfico de História. Disponível em: <


https://www.storyboardthat.com/pt/create/modelo-
-infogr%C3%A1fico-hist%C3%B3ri
a>. Acesso em: 02 jun. 2021.

Referências
ALMEIDA, Janaiky Pereira. As multifaces do patriarcado: uma
análise das relações de gênero nas famílias homoafetivas. Disser-
tação (Mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco. CCSA.
Serviço Social, 2010.

CORREIA, Janaina dos Santos. O uso de fonte em sala de aula: a


obra de Maria Firmina dos Reis (1859) como mediadora no estudo
da escravidão negra no Brasil. Dissertação (Mestrado em História
Social) – Universidade Estadual de Londrina, Centro de Letras e Ci-
ências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História Social,
2013.

FARIAS, Genilson de Azevedo; ARAÚJO, Lucicleide da Silva. Auta


de Souza X Nísia Floresta: reconhecimento e silêncio no espaço
das letras femininas do século XIX. Anais do III Congresso
Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade
Cultural, 2012.

FERREIRA, Antonio Celso. Literatura: a fonte fecunda. In: PINSKY,


Carla; LUCA, Tânia de (org.). O historiador e suas fontes. São Pau-
lo: Contexto, 2009.

GOMES, Tissiane Emanuella Albuquerqu; PEREIRA, Auricélia Lo-


pes. Diálogo entre literatura e história: o poema enquanto fonte
histórica no ensino de história. In.: IV Encontro de Iniciação à Do-
cência da UEPB. Anais IV ENID/UEPB. Campina Grande: Realize
Editora, 2014.

LOPES, Zélia Souza. Horto: negritude, espiritualidade e morte em


Auta de Souza. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de
Juiz de Fora, Faculdade de Letras. Programa de Pós-Graduação em
Estudo Literários, 2018.

371
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

SCHMIDT, Maria Auxiliadora. A formação do professor de História


e o cotidiano da sala de aula. In: BITTENCOURT, Circe (org.). O
saber histórico na sala de aula. 9 ed. São Paulo: Contexto, 2004.

SOUSA, Priscila Cabral de; CAIXETA, Vera Lúcia. A História das Mu-
lheres e o Ensino de História: considerações acerca de uma educa-
ção para a igualdade de gênero. Humanidades & Tecnologia em
Revista (FINOM) – ISSN: 1809-1628. Ano XIII, vol. 17 – jan-dez
2019.

SOUZA, Auta. Horto, outros poemas e ressonâncias. Obras reuni-


das de Auta de Souza. Alvamar Medeiros; Ana Laudelina Ferreira
Gomes; Angelina Araújo (Org.); Natal: EDUFRN, 2009.

SOUZA, Karla Christine; FONSECA, Ailton Siqueira. As vozes na po-


esia de Auta de Souza: fragmentos de vida e obra. Antares: Letras
e Humanidades - ISSN 1984-1921. Vol 5, num. 10. jul-dez 2013.

TELLES, Norma. Escritoras, escritas, escrituras. In: DEL PRIORE,


Mary (Org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto.
2018. p. 336-370.

372
FEIRAS, COMÉRCIO E
DESENVOLVIMENTO URBANO:
ALGUMAS PROPOSTAS
DIDÁTICAS1

Allyson Afonso dos Santos Silva


Clivya da Silveira Nobre
Tiago do Nascimento Silva
PROPOSTA I - OS RECURSOS HÍDRICOS
E O DESENVOLVIMENTO URBANO: DO
CRESCENTE FÉRTIL AO POTENGI

Descrição da proposta

Esta sequência didática propõe estabelecer um


debate sobre o uso dos recursos hídricos das socieda-
des mesopotâmicas como também fazer um parale-
¹ As propostas aqui apresentadas são adaptações de projetos desenvolvi-
dos pelos autores, quando bolsistas de iniciação à docência do Programa
Residência Pedagógica - UFRN, entre os anos de 2018 e 2020.

373
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

lo com a relação atual que a população de Natal tem


com o rio Potengi. A sequência didática será feita em
3 etapas. A primeira será uma aula expositiva sobre a
sociedade mesopotâmica, com ênfase na forma como
exploraram seus principais rios, Tigre e Eufrates; A
segunda etapa consiste na análise de mapas e de uma
matéria do jornal Tribuna do Norte, que trata dos efei-
tos do descaso com o rio Potengi, possibilitando ar-
ticular um debate na turma sobre a importância dos
rios para a sociedade na Antiguidade e nos dias de
hoje; Em seguida, com uso dos mapas, propomos que
seja respondido um questionário pelos alunos, como
parte da avaliação da sequência didática.

Público-alvo: 6º Ano do Ensino Fundamental.

Tempo estimado: 2 h/a

Objetivos

● Compreender a necessidade de dispor de recursos


hídricos para o desenvolvimento das mais diversas ati-
vidades humanas por meio de estudo comparativo das
sociedades mesopotâmicas e norte-rio-grandense;
● Pautar os problemas socioambientais na formação
cidadã dos(as) estudantes, problematizando as rela-
ções que a comunidade do alunado tem com os recur-
sos hídricos onde eles residem;
● Compreender os conceitos de ruptura e continui-
dade a partir do exercício de comparação das formas
como as civilizações antigas e a sociedade urbana atu-
al lidam com seus recursos hídricos.

374
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Conteúdo

Este trabalho busca destacar a importância dos


rios para o fim do nomadismo e início da sedentariza-
ção, contribuindo com isso para o surgimento de so-
ciedades urbanas, tomando como referência o estudo
das sociedades mesopotâmicas que se desenvolveram
entre os rios Tigre e Eufrates. Os vários povos da Me-
sopotâmia aproveitaram do constante fluxo de água
para navegação, pesca, como também irrigação das
suas plantações. Para isso foi necessário o desenvolvi-
mento de tecnologias para domínio do rio, como cons-
trução de diques e barragens, bem como o conheci-
mento das cheias e secas dos rios, fundamental para o
desenvolvimento da agricultura. Para aproximar essa
reflexão com a realidade dos(as) alunos, sugerimos
que se considere a importância do rio Potengi, que foi
de suma importância para a fundação e o desenvolvi-
mento não só de Natal, como também de todo estado,
de forma direta ou indireta, pois o rio era utilizado
para a pesca, e também como um canal navegável, fa-
cilitando a comunicação na província do Rio Grande,
como também o comércio local, especialmente no sé-
culo XIX, com a intensificação da produção e exporta-
ção de algodão. No entanto, atualmente o rio Potengi
é tratado como descaso pelas autoridades públicas e
pela própria população, tornando fundamental o de-
bate sobre a importância dos rios para a preservação
do meio ambiente.

Estratégias

1. Sugerimos que os(as) professores(as) iniciem a aula


a partir do presente. Para isso, numa conversa descon-
traída, é possível sondar o alunado quanto ao que eles

375
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

sabem sobre o Rio Potengi: quem já ouviu falar; quem


mora próximo; onde fica; onde começa ou termina;
qual a importância do rio para a sociedade em volta
dele? Essas perguntas, sendo respondidas de forma
correta ou não proporcionam acesso ao conhecimen-
to prévio dos(as) estudantes e pode ser uma forma de
iniciar a discussão sobre a importância dos rios para
as sociedades, no presente e no passado. É possível dar
seguimento à aula com a leitura coletiva de algum ou
alguns trechos do livro didático, que certamente abor-
dam as sociedades mesopotâmicas e informam como
elas surgiram nas proximidades dos rios Tigre e Eu-
frates. Destacar o quanto os diferentes povos lutaram
por esse território torna-se importante para justificar
a importância desses rios para aquelas sociedades. A
utilização de um mapa da região – a maioria dos li-
vros didáticos o trazem – ajudará a deixar claro que a
localização da Mesopotâmia entre dois grandes rios a
tornou estrategicamente próspera e, assim, explicar
sobre como o domínio dos rios foi importante tanto
para irrigação das plantações, como para transporte e
comércio que foram imprescindíveis para o desenvol-
vimento das sociedades.

2. No segundo momento será exposto para turma um


mapa do Rio Potengi, acessível na internet, e a partir
do que fora discutido anteriormente sobre o Tigre e
Eufrates na Mesopotâmia é possível perguntar à tur-
ma: Por qual motivo vocês acham que Natal foi funda-
da às margens do Rio Potengi? A partir dessa pergunta,
o(a) docente pode verificar se a turma avalia que os co-
lonizadores portugueses que fundaram Natal tiveram
interesses semelhantes aos povos mesopotâmicos ao
fundar a cidade próximo ao rio Potengi. Também é
possível perguntar se eles consideram que os mora-
dores que hoje vivem próximo do rio tem os mesmos

376
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

interesses, ou se mudaram com o tempo. Sugerimos


que, nesse caso, se retomem as perguntas trazidas no
início da sequência didática sobre os conhecimentos
prévios sobre o Rio Potengi.

3. O próximo passo sugerido é apresentar a notícia do


jornal Tribuna do Norte (Anexo) que critica a falta de
políticas públicas adequadas para a manutenção do
Rio Potengi, especialmente a falta de esgotamento sa-
nitário nas regiões em seu entorno, avaliando os pro-
blemas que acarretam. Como é um trecho pequeno, a
notícia pode ser lida em voz alta pelo(a) professor(a).
Verificar se compreenderam o conteúdo da notícia
e perguntar a opinião dos(as) alunos(as) sobre o que
compreenderam é fundamental. O debate pode ser
encerrado perguntando-se para os(as) estudantes que
ações os cidadãos podem realizar com o objetivo de
contribuir para a preservação dos rios.

Avaliação

Nessa aula, propõe-se que o professor realize


a avaliação a partir da participação dos(as) estudan-
tes no debate, verificando como articulam as ideias,
como constroem argumentos, como interagem com
os demais colegas. Outra sugestão é que usem o mu-
ral da sala, ou outro mural da escola, para montar
um painel coletivo contendo fotos, desenhos e tex-
tos que tragam informações sobre os rios da cidade,
considerando sua importância para o desenvolvi-
mento do espaço em que vivem, e trazendo suges-
tões sobre como cuidar destes rios.

377
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

Anexo – Adaptação da reportagem “Água do


Potengi é a mais poluída do RN”, publicada por
Arthur Barbalho no jornal Tribuna do Norte,
em 04 de setembro de 2016.

A qualidade dá água das principais bacias hidro-


gráficas e reservatórios muito do Rio Grande do Norte
melhorou nos últimos anos ponto. É o que aponta o
levantamento feito pelo projeto água azul desenvol-
vido pelo instituto de desenvolvimento sustentável e
meio ambiente do Rio Grande do Norte (IDEMA), em
parceria com outros órgãos públicos estaduais e fede-
rais em todo o solo potiguar. Contudo, um dos fatores
que influi diretamente para que os números não sejam
melhores é a falta de saneamento dos centros urba-
nos. Assim, casos como o da poluição do Rio Potengi, o
maior do estado e que divide a zona norte do restante
de Natal, ainda devem demorar a ter alguma solução.
“O Potengi hoje é um Rio que está com sua capacidade
de saturação no limite. É um Rio poluído. o que salva
ele é o fato de estar na foz, uma vez que com as marés
altas, ele é constantemente renovado. Então, isso dá
uma sobrevida a ele. É um Rio poluído, como todos os
que margeiam as grandes cidades, ainda mais as que
não são saneadas. Nossa expectativa é que como sane-
amento de Natal chegando a 100%, essa carga (de po-
luição) vai diminuir e o rio seja purificado, restabeleça
suas condições naturais”, disse Luiz Augusto Santiago
Neto, diretor técnico do IDEMA, que ainda afirmou: “A
despoluição do Potengi passa, necessariamente pelo
esgotamento sanitário”.

378
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

PROPOSTA II - O RIO E A CIDADE:


URBANIZAÇÃO E COMÉRCIO NAS
PROXIMIDADES DO RIO POTENGI,
EM NATAL, NO SÉCULO XIX

Descrição da proposta

O trabalho com esta sequência didática é volta-


do para turmas do 8º ano do Ensino Fundamental e visa
abordar a história do Brasil Império a partir da História
do Rio Grande do Norte, problematizando a relação en-
tre comércio e a paisagem nas proximidades do Rio Po-
tengi, entre as cidades de Natal e Macaíba. A proposta é
articular discussões sobre a importância das vias de co-
municação para a expansão do capitalismo.

Público-alvo: 8º Ano do Ensino Fundamental.

Tempo estimado: 2 h/a

Objetivos

● Compreender e articular os conceitos de capitalis-


mo, comércio, mercado e urbanismo, tomando a ex-
periência histórica do Rio Grande do Norte como refe-
rência empírica;
● Analisar as continuidades e rupturas entre a antiga
província do Rio Grande do Norte e o atual estado do
RN, considerando o desenvolvimento de atividades
comerciais e a organização espacial das cidades;
● Desenvolver habilidades de pesquisa para a constru-
ção de conhecimento de forma autônoma.

379
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

Conteúdo

Esta sequência didática busca explicitar para


os alunos e alunas a importância do comércio no
desenvolvimento urbano. A proposta aqui apre-
sentada visa trabalhar com a temática do comércio
norte-rio-grandense no século XIX. Nesta sequência
didática, os(as) estudantes conhecerão um pouco da
história do bairro Guarapes, localizado na Zona Oes-
te da Natal, que foi criado em torno de um impor-
tante mercado e entreposto comercial, o Casarão do
Guarapes, que na segunda metade do século XIX foi
considerada a principal casa de importação e expor-
tação da província do RN.
No decorrer dos oitocentos, o Rio Potengi, tam-
bém chamado de Rio Salgado e Rio Grande, teve impor-
tante função de via para transporte de mercadorias de
diversas regiões do interior de província do Rio Grande
do Norte para o litoral. Pelo mau estado das estradas e
os custos e lentidão dos meios de transporte terrestres
daquele período, o transporte fluvial era mais rápido e
economicamente mais vantajoso. Carregamentos dos
principais produtos da província, como couro, cana-
-de-açúcar, sal, algodão e carne bovina eram transpor-
tados pelo Rio Potengi até sua foz, no Oceano Atlântico,
de onde era distribuído para outros centros urbanos
Brasil afora, e exportados para Europa. Desse modo, o
Rio Potengi tinha grande importância econômica e es-
timulava o desenvolvimento urbano.
Um dado que deve ser destacado é a presença
de entrepostos comerciais ao longo do rio, em loca-
lidades que atualmente são bairros de Natal e cida-
des próximas, como Cidade Alta, Ribeira, Guarapes e
Macaíba, enfatizando a relação entre urbanização e
comércio. A utilização de imagens de paisagens co-
nhecidas do corpo discente, como fotos das ruínas do

380
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Casarão do Guarapes e de centros comerciais antigos


– muitas vezes disponíveis na internet –, confronta-
das com imagens dos mesmos lugares na atualidade,
é uma estratégia que torna mais estimulante o exer-
cício de comparação entre o passado e presente.
As ruínas do Casarão do Guarapes, nas ime-
diações do bairro Guarapes, são o que resta do antigo
entreposto que mediava o comércio entre o interior e
os portos do litoral. Tinha posição geográfica estraté-
gica por ficar próximo das estradas para o interior da
província. Além disso, este trecho do Rio Potengi tem
largura entre as margens e profundidade que possibi-
litavam a passagem de grandes embarcações carguei-
ras. A colina no topo da qual foi construído o casarão
permitia a visão panorâmica do porto do Guarapes
(atualmente inexistente) e das embarcações que iam e
vinham pelo Potengi, por isso foi escolhida pelo prin-
cipal comerciante do período, Fabrício Pedroza, para
ser o local de estabelecimento de seus armazéns e do
grande mercado, além de sua própria residência. Atu-
almente essas edificações apenas deixaram como res-
quícios algumas paredes e uma estrutura que resiste
ao tempo. Degradada pela ação do tempo, esta locali-
dade atualmente é conhecida como as Ruínas do Casa-
rão, e pode ser vista da rodovia que é um dos acessos
ao bairro Guarapes, por ficar no alto de uma colina.
Além de discutir a influência de um antigo cen-
tro comercial para o desenvolvimento econômico da
região no século XIX, também procuraremos refletir
sobre as marcas deixadas na paisagem, como as Ruí-
nas do Casarão e a própria urbanização do bairro Gua-
rapes. A discussão desses elementos em sala de aula
possibilita o desenvolvimento de noções como conti-
nuidade e ruptura, que são fundamentais na constru-
ção do conhecimento histórico.

381
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

Estratégias

1. Num primeiro momento, sugerimos para o(a) profes-


sor(a) que se analisem imagens antigas da Casa do Guara-
pes ou de feiras e bairros comerciais do município em que
os(as) estudantes moram. Em sites de busca, o(a) profes-
sor(a) e/ou estudantes podem privilegiar a busca por ima-
gens de portos e atracadouros, no caso dos municípios
litorâneos, e de feiras, no caso dos municípios do interior.
O interessante é que se explorem imagens que sejam anti-
gas, mas também familiares, de modo a estimular a busca
por elementos que mudaram ou permaneceram inaltera-
dos. A busca por mapas, que permitam identificar esses
portos e feiras e sua vinculação com antigas vias de comu-
nicação e transporte também pode ser estimulada. Para
estimular o debate, é interessante questionar se os(as)
alunos(as) já conhecem aqueles locais, se já estiveram lá,
e o que conhecem previamente sobre sua história. Caso
haja algum outro ponto de comércio que se aproxime da
escola ou de lugares frequentados por discentes, podem
ser inclusas imagens desses locais na análise. Quanto aos
mapas, é importante que localizem as legendas e toda tur-
ma proceda análise coletivamente.

2. Caso o(a) professor(a) opte por analisar apenas ima-


gens do antigo Casarão do Guarapes, é importante que o
debate evidencie sua localização estratégica, viabilizan-
do as trocas comerciais entre o interior e o litoral, e o im-
pacto dessa atividade econômica para a urbanização do
entorno daquela região. No caso do(a) professor(a) optar
por explorar imagens de feiras antigas na região em que
se situa a escola, podem ser observadas a localização (em
geral, numa praça central, próxima ao centro administra-
tivo e igreja matriz), a proximidade com diferentes rotas
de transporte de mercadorias, a proximidade com a área
mais urbanizada do município etc.

382
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

3. Algumas questões que podem estimular o debate entre


os(as) estudantes: se conhecem as feiras e centros comer-
ciais que aparecem nas imagens; se já foram naqueles lo-
cais e em quais circunstâncias; se sabem qual a importân-
cia de um entreposto comercial ou feira para as pessoas
de uma cidade; de onde acreditam que podem vir as mer-
cadorias comercializadas; onde foram produzidas; como
supõem que pode ter sido o transporte das mercadorias
no século passado e na atualidade etc. A ideia é que os es-
tudantes, por meio do debate, construam conhecimentos
que lhes permita perceber que as atividades comerciais
conectam regiões distantes e, por meio da circulação de
produtos, impactam a economia de várias regiões, in-
fluindo até mesmo no processo de urbanização.

Avaliação

Como forma de avaliação, sugerimos que a turma


pesquisa sobre a história do Casarão do Guarapes e pro-
cure descobrir a história da família que criou o estabe-
lecimento comercial e sua relação com a política local; a
importância daquele estabelecimento para o incremento
da economia do RN no século XIX; os motivos que leva-
ram ao abandono do local; os esforços feitos atualmente
com o objetivo de transformar as ruínas em patrimônio
histórico. Cada grupo de alunos(as) pode ficar responsá-
vel por um desses tópicos. Importante orientar o aluna-
do sobre a importância de buscar fontes confiáveis, como
sites institucionais e portais de jornais conhecidos. Em
anexo, seguem sugestões de leitura. A sugestão é que o(a)
professor(a) reserve uma aula para que os(as) estudantes
apresentem para os colegas o resultado de suas pesquisas.

383
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

Anexo – Sugestões de leitura sobre


o Casarão do Guarapes

A CASA de Guarapes. Tribuna do Norte, Natal, 27 de junho de


2017. Disponível em: <http://www.tribunadonorte.com.br/noti-
cia/a-casa-de-guarapes/384403>. Acesso em 01 jun. 2021.

CASARÃO do Guarapes de Macaíba continua em ruínas. CAURN.


Disponível em: <https://www.caurn.gov.br/?p=13634>. Acesso
em 01 jun. 2021.

EBBESEN, Lucas. Geografia do Rio Grande do Norte. Infoescola.


Disponível em: <https://www.infoescola.com/geografia/geogra-
fia-do-rio-grande-do-norte/>. Acesso em 01 jun. 2021.

LIMA, Eliane. Salvem o casarão. Tribuna do Norte, 10 de setem-


bro de 2017. Disponível em: <http://www.tribunadonorte.com.
br/noticia/salvem-o-casara-o/391668>. Acesso em 01 jun. 2021.

RUINAS de Guarapes é testemunha do desenvolvimento econô-


mico do RN no século XIX. Brechando. Disponível em: <https://
brechando.com/2018/01/ruinas-de-guarapes-e-testemunha-do-
-desenvolvimento-economico-do-rn-no-seculo-xix/>. Acesso em:
25 maio 2021.

SILVA, Yuno. Fragmento histórico. Tribuna do Norte, Natal, 4 de


maio de 2011. Disponível em: <http://www.tribunadonorte.com.
br/noticia/fragmento-historico/180258>. Acesso em: 25 maio
2021.

TEIXEIRA, Rubenilson B. O rio Potengi e a cidade do Natal em cin-


co tempos históricos: Aproximações e distanciamentos. Confins,
n. 23, 2015. p. 1-29. Disponível em: <https://www.researchgate.
net/publication/273899097_O_rio_Potengi_e_a_cidade_do_Na-
tal_em_cinco_tempos_historicos_Aproximacoes_e_distancia-
mentos>. Acesso em: 25 maio 2021.

TRINDADE, Sérgio. Estabilidade e crescimento econômico (Se-


gundo Reinado). In: História do Rio Grande do Norte. Natal: IFRN
Editora, 2010, p. 121-126. Disponível em: <https://memoria.ifrn.
edu.br/handle/1044/1011>. Acesso em 01 jun. 2021.

384
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

PROPOSTA III - A FEIRA LIVRE COMO


LOCAL DE DISCUTIR SAÚDE PÚBLICA:
DO SÉCULO XIX À ATUALIDADE

Descrição da proposta

Esse plano de aula busca trabalhar e permi-


tir aos alunos observar pontos de interrelação entre
passado e presente. Zonas limítrofes onde, apesar das
mudanças, o passado ainda se faz muito presente.
Ademais, busca mostrar que assuntos aparentemente
muito distantes no tempo, por meio da ciência histó-
rica, podem ser problematizados, sobretudo quando
que são frutos de convergências com a vida pública e
política das cidades. Para tanto, esse plano traz como
mote dessa conversa as feiras livres, locais por onde
transitam produtos de origens diversas, locais e im-
portados, voltados à alimentação, prática medicinal
ou consumo diverso. O nosso ponto de partida será a
visão da feira como um local dúbio, onde se pode en-
contrar produtos naturais e frescos e também como
local de aparente “perigo” higiênico, lugar onde pro-
dutos, como carnes, são manipulados de maneira “du-
vidosa”. Esse conjunto de características atribuídas às
feiras do passado e do presente contribuiu para que
durante o século XIX e início do XX, se tornassem al-
vos de médicos e engenheiros que propunham que a
sociedade se organizasse de acordo com um ideal hi-
gienista.

Público-alvo: 3º ano do Ensino Médio.

Tempo estimado: 2 h/a

385
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

Objetivos

● Desenvolver junto aos alunos as habilidades de pes-


quisa e construção de conhecimento a partir de hipóte-
ses sugeridas por eles e articulação de saberes prévios;
● Analisar as continuidades e rupturas entre as con-
dições de higiene, e as opiniões sobre elas, nas feiras
livres durante a Primeira República e nas feiras livres
que permanecem atualmente;
● Compreender os conceitos de miasma e saúde pública.

Conteúdo

Durante o século XIX e ao menos a primeira


metade do século XX, “acreditava-se serem os mias-
mas emanações nocivas invisíveis que corrompiam
o ar e atacavam o corpo humano” (MASTROMAURO,
2011, p.1). A teoria miasmática foi a vertente princi-
pal do saber médico do período, no que se tratava de
pandemias e surgimento de doenças em ambientes
urbanos. A teoria foi base para intervenções higienis-
tas durante o período imperial e se manteve em pau-
ta após passagem para o período republicano, uma
vez que, como aponta Sidney Chalhoub (CHALHOUB,
1996), as resoluções dos problemas de higiene pública
estavam ligadas a ideias de avanço civilizatório. A teo-
ria vai se fazer relevante no período, uma vez que com
o avanço econômico de centros urbanos, principal-
mente portuários, em pleno crescimento. A população
pobre, em geral, buscava abrigo em moradias simples,
como cortiços, e não raramente insalubres. Mas tam-
bém havia outros locais vistos por autoridades sanitá-
rias do período como propícios ao surgimento de do-
enças, pois “as medidas de controle dos espaços, por

386
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

meio da higiene, vão levar médicos, fiscais, vereadores


e presidentes de província a estenderem os seus olha-
res para os lugares diretamente ligados ao comércio
de alimentos” (ARAÚJO, in prelo, p.7).
As feiras livres brasileiras, segundo Thiago
Queiroz, herança das tradicionais feiras europeias tra-
zidas pelos portugueses, eram locais de amplo trânsi-
to comercial, espaço de comercialização de produtos
vindos do interior dos estados, assim como produtos
importados, provindos das regiões portuárias (QUEI-
ROZ, 2011). Ademais, eram, tal como ainda são, local
de venda de ampla gama de gêneros alimentícios. Essa
convergência de pessoas e alimentos em um único
local tornou as feiras, dentro da lógica de controle de
espaços por meio da higiene, um alvo para médicos e
fiscais da câmara municipal.
Multidões, carcaças de animais em putrefação,
alimentos estragados ou pouco frescos, mesmo a su-
jeira das vias públicas, todos são pontos que contem-
plavam o que se acreditava ser possível gerar mias-
mas. Mas mesmo com a superação das crenças em
gases e odores como vetores de doenças, através das
teorias bacteriológicas, as feiras livres ainda são al-
vos de questionamento sobre as condições de higiene
dos produtos ali comercializados. Recentemente, no
início do período pandêmico o qual, durante a reda-
ção desse artigo, ainda vivemos, os gêneros alimentí-
cios comercializados num mercado chinês figuraram
como principais suspeitos de serem ponto inicial da
transmissão do SARS-CoV-2. Dessa maneira, procura-
remos mostrar que o debate sobre história e higiene
pode ser pautado a partir da investigação de um local
frequentado por quase todas as famílias, que são as
feiras livres e mercados abertos.

387
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

Estratégias

1. Primeiro Momento: sugerimos ao(a) professor(a) ini-


ciar a intervenção avaliando o que os alunos já sabem so-
bre a temática a ser discutida. Dessa maneira, indicamos
que, em moldes de uma conversa informal, sejam feitas
perguntas, de modo que o(a) professor(a) possa se intei-
rar dos conhecimentos prévios dos alunos sobre saúde
pública, feiras e do início da epidemia de COVID-19. Para
provocar os comentários dos(as) alunos(as), é possível
perguntar: se eles ouviram falar que o início da pande-
mia havia ocorrido em uma feira; se eles sabiam o moti-
vo de uma feira livre ser investigada como possível foco
de uma pandemia ou outras doenças; se eles sabem o que
é uma feira livre; se conhecem ou já foram em alguma, se
sabem o que se comercializa em feiras; se há alguma fei-
ra no bairro ou cidade em que vivem e quando acontece;
se já foram na feira e o que viram de interessante; se lem-
bram das condições de higiene do lugar etc.;

2. Num segundo momento, a proposta é evidenciar que


as preocupações com a saúde pública, e em especial com
a salubridade das feiras, tem uma historicidade e encon-
tra no século XIX seu marco inicial. Para a construção do
conhecimento dos(as) alunos(as) com relação às feiras
e saúde pública, é interessante que o(a) professor(a) or-
ganize sua fala a partir das respostas dadas pelos alunos
durante o primeiro momento. Sobre a emergência da
pauta higienista, é interessante comentar brevemente
sobre as teorias miasmáticas, que ambientes eram pen-
sados como propícios para a propagação de doenças, e
o impacto dessas teorias higienistas sobre os hábitos e
costumes da população. Caso haja possibilidade, é reco-
mendado tornar o momento interdisciplinar, podendo
ser combinada uma aula conjunta com o(a) docente da
área de biologia.

388
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

Avaliação

Nossa proposta, é que a atividade avaliativa


considere o momento formativo dos(as) alunos(as).
Sendo uma aula proposta para o 3° ano do Ensino Mé-
dio, se propõe que seja apresentada aos alunos uma
proposta de redação, semelhante ao que serão solici-
tados a fazer ao realizar o Exame Nacional do Ensino
Médio – ENEM, podendo assim exercitar suas habili-
dades no uso de fontes e na organização de ideias den-
tro de um modelo textual específico.
Para avaliação (Anexo II), se propõe que seja co-
brado ao aluno a escrita de uma breve redação, cerca
de 20-30 linhas, utilizando dois textos motivadores,
apresentados em anexo.

Anexo – Textos motivadores para a redação

TEXTO A: Gêneros alimentícios e o problema da saú-


de pública na cidade do Natal, adaptação do texto de
Avohanne Isabelle Costa de Araújo.

No Rio Grande do Norte oitocentista, o cuida-


do com a saúde pública não se restringia somente ao
controle das doenças, mas também à vigilância dos
possíveis locais que poderiam trazer riscos aos que
moravam nas proximidades de construções de bene-
ficiamento alimentar, como o matadouro. Essa pre-
ocupação era justificada pela teoria miasmática, um
saber médico predominante no século XIX, em que se
acreditava que as doenças se originavam de cheiros
e outros vapores que vinham do solo e do ar, e po-
deriam estar ligados a lugares alagados, pantanosos
ou com animais em decomposição, entrando nesta
categoria os matadouros. Era necessário, portanto,
manter os locais limpos e higienizados, para evitar o

389
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

mau cheiro e as doenças. A documentação mostrou


que houve uma tentativa de ordenar o espaço público
por parte das autoridades, principalmente por meio
da fiscalização e ordenação do funcionamento des-
ses locais, havendo orientações sobre a limpeza dos
estabelecimentos e a preservação da qualidade dos
gêneros alimentícios que eram vendidos, sobretudo
da carne proveniente do matadouro. Ou seja, consta-
ta-se pelo menos a intenção (nem sempre repercutin-
do em ações concretas) de intervenção das diferentes
autoridades neste espaço público.

TEXTO B: Coronavírus faz governo chinês rever le-


gislação sobre mercados com animais vivos, texto de
Steven Lee Myers, do New York Times, publicado em
30/01/2020
LANGFANG, CHINA — Os mercados típicos da
China têm frutas e vegetais, cortes de carne bovina,
suína e ovina, frangos depenados (com cabeças e bi-
cos à mostra), além de caranguejos e peixes vivos, es-
pirrando água para fora de tanques agitados. Alguns
deles vendem mais que o básico, incluindo cobras vi-
vas, tartarugas, cigarras, porquinhos-da-índia, ratos-
-de-bambu, texugos, ouriços, lontras, civetas e até fi-
lhotes de lobo. Os mercados são sensação em diversas
cidades chinesas e, agora, pela segunda vez em duas
décadas, são a fonte de uma epidemia que espalhou
medo, abalou a burocracia do Partido Comunista e ex-
pôs os riscos epidemiológicos que podem proliferar
em lugares que reúnem gente e bichos.
O novo coronavírus, que já matou mais de
130 pessoas e deixou outras 6.000 adoecidas na
China e em outros países, provavelmente começou
a se espalhar exatamente a partir de um desses lo-
cais: um mercado de atacado de Wuhan, cidade no
centro da China onde comerciantes vendiam ani-

390
TEXTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL

mais vivos legalmente em barracas espremidas às


centenas umas contra as outras.
Apesar de a trajetória exata do patógeno ain-
da não ter sido determinada, autoridades de governo e
cientistas afirmam que o novo contágio teve similarida-
des macabras com a epidemia da SARS (síndrome respi-
ratória aguda severa) no fim de 2002, que matou quase
800 pessoas e deixou milhares doentes no mundo. Ago-
ra, enquanto o governo luta para conter a insatisfação
popular com outro surto, cresce a pressão para que a
venda de animais silvestres seja mais regulamentada ou
banida. E cresce o questionamento sobre por que quase
nada mudou em 17 anos, desde o fim da SARS.2

Referências
A CASA de Guarapes. Tribuna do Norte, Natal, 27 de junho de
2017. Disponível em: <http://www.tribunadonorte.com.br/noti-
cia/a-casa-de-guarapes/384403>. Acesso em 01 jun. 2021.

CASARÃO do Guarapes de Macaíba continua em ruínas. CAURN.


Disponível em: <https://www.caurn.gov.br/?p=13634>. Acesso
em 01 jun. 2021.

CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte


Imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 15-59.

EBBESEN, Lucas. Geografia do Rio Grande do Norte. Infoescola.


Disponível em: <https://www.infoescola.com/geografia/geogra-
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LIMA, Eliane. Salvem o casarão. Tribuna do Norte, 10 de setem-


bro de 2017. Disponível em: <http://www.tribunadonorte.com.
br/noticia/salvem-o-casara-o/391668>. Acesso em 01 jun. 2021.

MASTROMAURO, Giovana Carla. Surtos Epidêmicos, Teoria Mias-


mática e Teoria Bacteriológica: Instrumentos de intervenção nos
comportamentos dos habitantes da cidade do século XIX e início
do XX. In: Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH
• São Paulo, 2011.

² MYERS, Steven Lee. Coronavírus faz governo chinês rever legislação so-
bre mercados com animais vivos. O Globo, Rio de Janeiro, 30 jan. 2020.
Disponível em: < https://oglobo.globo.com/sociedade/coronavirus-fa-
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391
A HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE OITOCENTISTA

MYERS, Steven Lee. Coronavírus faz governo chinês rever legisla-


ção sobre mercados com animais vivos. O Globo, Rio de Janeiro, 30
jan. 2020. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/sociedade/
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QUEIROZ, Thiago Augusto de. O Complexo Circuito das Feiras


Livres de Natal-RN. In: Anais da XIX Semana de Humanidades –
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mico do RN no século XIX. Brechando. Disponível em: <https://
brechando.com/2018/01/ruinas-de-guarapes-e-testemunha-do-
-desenvolvimento-economico-do-rn-no-seculo-xix/>. Acesso em:
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n. 23, 2015. p. 1-29. Disponível em: <https://www.researchgate.
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TRINDADE, Sérgio. Estabilidade e crescimento econômico (Se-


gundo Reinado). In: História do Rio Grande do Norte. Natal: IFRN
Editora, 2010, p. 121-126. Disponível em: <https://memoria.ifrn.
edu.br/handle/1044/1011>. Acesso em 01 jun. 2021.

392
OS(AS) AUTORES(AS)

Aldinízia de Medeiros Souza, cursou gra-


duação em História na Universidade Federal do Rio
Grande do Norte; tem especialização em Antropologia
da Cidade; e mestrado em História pela Universidade
Federal do Rio Grande do Norte. É professora da Educa-
ção Básica no Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Rio Grande do Norte.

Allyson Afonso dos Santos Silva, é profes-


sor de História, tendo cursado licenciatura na Univer-
sidade Federal do Rio Grande do Norte.

Ariane de Medeiros Pereira, cursou licen-


ciatura e bacharelado na Universidade Federal do Rio
Grande do Norte; tem especialização em História dos
Sertões; e mestrado em História pela Universidade Fe-
deral do Rio Grande do Norte. É professora da Educa-
ção Básica na rede privada de ensino, em Caicó-RN.

393
Avohanne Isabelle Costa de Araújo, cur-
sou graduação em História na Universidade Federal
do Rio Grande do Norte; e está cursando o doutorado
no Programa de Pós-Graduação em História das Ciên-
cias e da saúde, Fundação Oswaldo Cruz-RJ.

Benigna Ingred Aurelia Bezerril, cursou


licenciatura em História na Universidade Federal
do Rio Grande do Norte, e está cursando o mestrado
acadêmico na Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. É professora na rede privada de ensino.

Cícera Tamara Graciano Leal da Silva


Fernandes, cursou licenciatura e bacharelado na
Universidade Federal do Rio Grande do Norte; e tem
mestrado profissional em Ensino de História pela Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Norte. É professo-
ra da rede pública de ensino, Secretaria Municipal de
Educação (Natal-RN).

Clivya da Silveira Nobre, cursou licenciatu-


ra em História na Universidade Federal do Rio Gran-
de do Norte; e é mestranda do curso de pós-graduação
em História e Espaços da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. Fez estágio docência no PIBID e no
Programa Residência Pedagógica.

Daniel Luiz Sousa de Lima, cursou licencia-


tura em História na Universidade Federal do Rio Gran-
de do Norte; e tem mestrado profissional em Ensino
de História pela Universidade Federal do Rio Grande
do Norte. É professor da rede pública de ensino, Secre-
taria Estadual de Educação-RN.

394
Dayane Julia Carvalho Dias, cursou gra-
duação em História e mestrado em Demografia, am-
bos na Universidade Federal do Rio Grande do Nor-
te. É doutoranda no Programa de Pós-Graduação em
Demografia da UNICAMP.

Francisco Ramon de Matos Maciel, cur-


sou graduação e mestrado em História na Universi-
dade Estadual do Rio Grande do Norte, e é doutor em
História Social na Universidade Federal do Ceará. É
professor do curso de História da Universidade Esta-
dual do Ceará, campus Jaguaruana.

Genilson de Azevedo Farias, é bacharel e li-


cenciado em História pela UFRN e licenciado em Socio-
logia pelo Centro Universitário Internacional – Unin-
ter. Mestre e doutor em Ciências Sociais pela UFRN, e
faz pós-doutorado pelo Programa de Pós-graduação
em Educação da UFRN. É professor da rede pública de
ensino, Secretaria Estadual de Educação-RN.

Gustavo Ítalo Freire Martins, graduando do


curso de licenciatura em História pela Universidade Fe-
deral do Rio Grande do Norte. Fez estágio docência no
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docên-
cia – PIBID, e tem estagiado na rede privada de ensino.

João Fernando Barreto de Brito, gradua-


do e mestre pela Universidade Federal do Rio Grande
do Norte; e doutor pelo Programa de História Social da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. É professor da
Educação Básica e tem atuado em cursos técnicos inte-
grados ao Ensino Médio e na rede privada de educação.

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Juliana Teixeira Souza, graduada e Mestre
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, doutora
pela UNICAMP, professora do Departamento de Histó-
ria da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e
do Programa de Pós-Graduação Mestrado Profissional
em Ensino de História.

Maria Luiza Dantas Lins, cursou licenciatura


em História na Universidade Federal do Rio Grande do
Norte; fez estágio docência no Programa Institucional
de Bolsas de Iniciação à Docência – PIBID e é mestran-
da do curso de pós-graduação em História e Espaços
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Rebeca Nadine de Araújo Paiva , gra-


duanda do curso de licenciatura em História pela
Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Fez
estágio docência no Programa Institucional de Bol-
sas de Iniciação à Docência – PIBID e no Programa
Residência Pedagógica. É professora do Movimento
de Educação Popular +Nós.

Tiago do Nascimento Silva, é professor de


História, tendo cursado licenciatura na Universidade
Federal do Rio Grande do Norte.

Thaís dos Santos Maranhão, cursou licen-


ciatura em História na Universidade Federal do Rio
Grande do Norte; e fez pós-graduação em Literatura e
Cultura do Rio Grande do Norte pela UFRN.

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[2021]
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