A Originalidade de Plauto
A Originalidade de Plauto
A Originalidade de Plauto
DO CASAMENTO
Caroline Barbosa Faria (UFES)
Resumo: Este trabalho tem como principal objetivo o estudo da questão da originalidade na
obra de Plauto, autor latino do século II a.C, buscando evidências de que o poeta não foi um
simples imitador da Comédia Nova Grega (NEA), como afirmam alguns estudiosos, visto
que suas peças revelam problemáticas de sua época. Não há como negar a influência
helênica nos comediógrafos latinos, autores da Palliata, porém, esse fato não impede que
sejam originais as peças que se inserem nessa categoria, pois estas apresentam muitos
elementos da sociedade romana que são incorporados aos modelos gregos. Para este estudo,
pretendemos focalizar inicialmente as primeiras manifestações literárias que contribuíram
para a formação da comédia romana. A seguir, identificaremos e analisaremos, em algumas
das obras plautinas a representação que Plauto faz em suas peças do casamento na
sociedade romana. Para tanto, partiremos de estudos teóricos acerca do teatro plautino,
passando por diversas leituras relacionadas à sociedade romana e à questão da originalidade
do autor frente ao teatro grego.
Abstract: This paper has as its mains goal studying the originality in Plautus’ works, in
search of evidence that the poet wasn’t simply an imitator of the Greek New Comedy
(Nea), as some scholars state, once that his plays reveal issues of his own time. There is no
denying the Hellenic inspiration of the Latin comedy writers, who wrote Palliatae;
however, that does not stop those plays from being original, for they display many elements
of the Roman society, incorporated in the Greek models. In this study, we intend to focus
on the first literary manifestation that contributed to the formation of the Roman comedy, at
first. Later on, we will identify and analyze, in some of Plautus’ plays, the representation of
marriages in the Roman society. To do so, we have our bases on theories about the
Plautine theater, as well as many other papers on the Roman society and the originality of
the author in relation to the Greek theater.
1
SOUZA, Rômulo Augusto. Manual de história da literatura latina. Belém: Serviço de Imprensa
Universitária, 1977.(Trad.: Depois que Plauto morreu, a comédia está de luto. O palco está deserto e, desde
então, choram ao mesmo tempo, em número incontável, o riso, a brincadeira, o divertimento.) Aqui há, em
latim, um jogo de palavras, numeri como os metros, innumeri pela polimetria de Plauto.
2
“A comédia nova grega (Nea) é antes de tudo uma comédia de família, onde se refletem a moral e os
costumes da célula familiar. Ela tem como principal assunto o amor, apesar da importante restrição de levar à
cena a intimidade das famílias. O amor permitido era de jovens, antes de tornarem-se chefes de família. Os
poetas eram sempre implacáveis com velhos apaixonados, quase sempre ridicularizados. As disputas entre
pais e filhos refletem bem Atenas do século IV a.C.”. CIRIBELLI, Marilda Corrêa. O teatro Romano e as
Comédias de Plauto. Rio de Janeiro:Sete Letras, 1995, p. 25.
2
Cumpre salientar que o conceito de originalidade para os antigos é muito diferente
do que foi elaborado no Romantismo e que perdura até os dias atuais. E, por isso, convém
levar-se em conta o conceito romano de originalidade:
Tendo, de início, nos monumentos do passado seu objeto, imitar era antes
homenagem do que plágio. Era a possibilidade que esses autores tinham de
emular, segundo o eterno caráter agonístico da cultura grega. Imitar permitia-
lhes exibir sua vasta erudição, palavra chave desta poética, pois o movimento de
elaboração de novas obras, direito assegurado de qualquer época, voltava-se não
para a novidade isenta de substância, por isso mesmo impensável, mas para
rebuscar na origem aspectos menos conhecidos dos antigos mitos e tradições. Só
assim eram originais. O elemento diferenciador com que todo autor procura
suprimir uma lacuna e que motiva seu trabalho insinuava-se a partir do antigo
patrimônio comum.3
Dessa forma, onde os antigos testemunhos falam de tradução, não se deve considerá-
la de acordo com os valores tradicionais, como simples cópia ou literal reprodução dos
modelos, mas sim uma semelhança quanto ao conteúdo e ao esboço, em que se podiam
encontrar muitos aspectos diferentes dos exemplares que davam origem a essas obras,
dignas de apreço.
Antes da comédia grega, o romano conheceu formas populares de expressão que
contribuíram para dar forma principalmente à sua comédia 4. Essas manifestações pré-
literárias, em que se podem perceber elementos dramáticos rudimentares, foram os
fesceninos, a atelana, o mimo e a satura.
Os fesceninos, provavelmente de origem etrusca, eram diálogos, recitados por
camponeses em festas religiosas, de caráter sagrado e satírico, onde também se cantava e
dançava, e, em ocasiões especiais, entoavam-se cantos dramatizados, extremamente
grosseiros, de injúria e agressão. A atelana, que provavelmente é originária da cidade osca
de Atella, consistia em um conjunto de cenas improvisadas pelo autor, de acordo com o
tema principal. Normalmente eram representadas personagens fixas e características –
personagens-tipo – que usavam máscara, tais como: Maco, voraz, devasso e infeliz nas suas
aventuras amorosas; Buco, tagarela, guloso, de grandes bochechas; Papo, velho ridículo;
Dorseno, corcunda, ardiloso, velhaco5. Além desses quatro tipos principais, a atelana ainda
apresentava o Manduco, que possuía longos dentes e uma boca grande, e outros monstros
3
OLIVA NETO, João Angelo . Introdução. IN CATULO. O Livro de Catulo.Trad., introd. e notas de João
Angelo Oliva Neto. São Paulo: EDUSP, 1996. p.26.
4
COSTA, Aída. Temas Clássicos. São Paulo. Ed. Cultrix, 1978, p. 11.
5
COSTA, Aída. Temas Clássicos. São Paulo. Ed. Cultrix, 1978, p. 19-20.
3
da superstição popular. O mimo, que tem sua origem na Grécia, caracterizava-se pelos
gestos mímicos, da expressão corporal e da dança. Os mimos eram conhecidos por suas
palavras licenciosas e pelas danças lascivas, que eram geralmente apresentadas pelas
mulheres.
Tito Lívio6 relata, acerca da questão do surgimento do teatro latino, que o senado
romano levou para Roma bailarinos, músicos e mimos etruscos, a fim de afastarem uma
epidemia de peste, e isto aconteceu durante os Ludi Scaenici.7 Essa atividade teve grande
importância para o desenvolvimento do teatro romano, pois, após o espetáculo, os jovens
romanos passaram a imitar os dançarinos da Etrúria, acompanhando suas músicas e danças
com textos poéticos – versos divertidos e satíricos –, surgindo, assim, a satura, que seria um
dos embriões da comédia romana. Uma outra tradição, relatada por Virgílio, afirma que a
comédia latina teve sua origem na Itália, nas festas celebradas pelos camponeses na
vindima. Nessas ocasiões os vinhateiros cobriam seus rostos com máscaras de casca de
árvores, cantavam e dançavam8.
Pierre Grimal, ao tratar dessa questão, afirma que uma teoria não invalida a outra,
pois o teatro romano não teve uma origem, mas várias. Segundo o autor, “estas festas
(celebração das vindimas) foram intermediárias entre a comédia helênica e as atellanae,
certa forma de comédia”.9
Sobre essas manifestações pré-literárias e a ligação que elas tiveram com os
primeiros escritores romanos, Leoni afirma:
Estas expressões espontâneas da primitiva produção latina em versos saturninos,
produção anônima e popular, é muito semelhante à dos primeiros escritores que,
como Plauto, dão início a uma literatura propriamente dita.10
Para que chegasse à produção dramática da segunda metade do século III a.C. e à
primeira metade do século II a.C., contudo, foi extremamente necessário que Roma
estivesse em contato principalmente com o teatro grego. A comédia grega trouxe um
elemento novo e fascinante para os romanos: a intriga.
6
LÍVIO, Tito, VII, parágrafos 2, 3 e 6.
7
Os Ludi eram festas públicas celebradas todos os anos em datas determinadas, obedecendo a um ritual
estabelecido. Estas festas públicas eram celebradas com cerimônias religiosas e com espetáculos variados que
incluíam representações teatrais, Ludi Scaenici, e espectáculos de Circo, Ludi Circenses, no Anfiteatro ou no
Circo.
8
VIRGÍLIO, Apud GRIMAL, Pierre. O teatro antigo. São Paulo: Martins Fontes, s/d, p.80
9
GRIMAL, Pierre. O teatro antigo. São Paulo: Martins Fontes, s/d, p.80.
10
LEONI, G. D. A literatura de Roma. 8ª ed. São Paulo: Nobel, 1967, p.76.
4
A comédia grega foi introduzida em Roma ao mesmo tempo em que a tragédia, em
240 a.C., quando o Senado decidiu organizar espetáculos semelhantes aos realizados em
Siracusa e na Grécia, em homenagem ao rei Hierão II, de Siracusa, que visitava seus
aliados. Um grego que vivia em Roma por muito tempo, Lívio Andronico, foi encarregado
do trabalho. Segundo Grimal, Andronico afirma que utilizou elementos gregos, dos jogos
cênicos e da satura para adaptar tragédias e comédias gregas. Assim nasceu, além da
tragédia em coturnos, a comédia em pallium.11
A fabula palliata era a comédia romana de assunto e personagens gregos que se
passava na Grécia. Ela era assim chamada devido à veste utilizada pelo ator durante a
representação, o pallium, indumentária tipicamente grega, em oposição à toga, veste
romana que dava nome à fabula togata, comédia de assuntos e personagens romanos
ambientada em Roma. A Fabula Palliata se inspirava na comédia nova grega (Nea).
A Nea tinha quase sempre como tema fatos ocorridos no dia-a-dia ateniense com
pessoas de diversas classes sociais. Nela se refletiam “a moral, os costumes, as
dificuldades, as alegrias e as tristezas da célula familiar.”12 Normalmente baseava-se em
histórias de amor frustrado e de reconhecimento de crianças perdidas, cujos pais geralmente
eram cidadãos distintos. Seus principais representantes foram Aléxis, Dífilo, Filemon,
Demófilo e Menandro.
Grande parte das personagens-tipo presentes nas comédias de Plauto é comum à
comédia grega. Elas se em: escravos, mercadores de escravos, velhos, mulheres, jovens,
parasitas e cozinheiros. Essa classificação – o tipo – está relacionada à impressão
tipográfica, em que um molde de metal era utilizado para reproduzir um caractere impresso,
sendo, em seguida, duplicado um a um para a produção em maior escala. Esse conceito
estende-se à literatura para designar personagens em que um traço predominante as define.
Significativo no conceito literário de personagem-tipo é a sua particularidade de apresentar
algumas características conhecidas pelo público, sem que tivesse um caráter moralizador,
conforme pode-se perceber em alguns gêneros latinos.
Em função disso, muitos estudiosos no passado, e alguns ainda no século XX13,
afirmam que não se pode fazer um estudo da sociedade romana da época nas peças
11
GRIMAL, Pierre. O teatro antigo. São Paulo: Martins Fontes, s/d, p.89.
12
GRIMAL, Pierre. O teatro antigo. São Paulo: Martins Fontes, s/d, p.69.
13
Dentre estes, encontram-se Maria Helena Pereira, Rômulo Augusto Souza, J. Bayet, Millares e Bieller.
5
plautinas, já que os seus personagens seriam apenas “tipos comuns da comédia nova grega,
apresentados sem preocupações moralistas, com a finalidade exclusiva de se fazer rir.”14
Porém, diante da posição de grande parte dos teóricos15, baseados em análises detalhadas da
obra plautina, aliadas a fontes arqueológicas e historiográficas, entende-se que não se deve
considerar o poeta um simples imitador dos modelos e dos tipos gregos.
Tendo como modelo, principalmente, a Comédia Nova, os comediógrafos latinos
utilizavam-se da contaminatio, termo cunhado por Terêncio, que significava inserção de
uma ou mais cenas de um segundo modelo na trama do primeiro modelo, para criar uma
nova peça latina mais complexa. A essas peças “contaminadas”, Plauto imprimia o selo da
sua originalidade, com alusões a costumes, leis, divindades e lugares romanos, personagens
com características tipicamente romanas, além de utilizar-se da música e do canto como
elemento integrante da ação dramática16.
Sobre essa questão, Concetto Marchesi afirma:
La comedia greca nella palliata – sopratuto in quella di Plauto – visse uma sua
nuova esitenza, innestata sul ceppo laziale. Si inaspri, prese l’aceto italiano e la
grossezza consonatoria e buffonesca. Non fu tradizione o riduzione o imitazione:
fu continuazione di vita17.
Pode-se notar que os romanos cultos acolhiam com grande entusiasmo as peças de
Plauto, sabendo que estas vinham da Grécia e que os seus costumes se assemelhavam aos
costumes gregos. Porém, aquele mesmo público que, passados cerca de dez anos, seria
muito duro com Terêncio, não seria abundante em aplausos a Plauto se nele não tivessem
visto reflexos mais próximos de sua cultura, e ainda os próprios sentimentos e os próprios
gostos sendo retratados na peça18.
Os textos do comediógrafo latino que chegaram até aos dias atuais valem por si só,
não somente como testemunho da sociedade romana em sua fase mais dinâmica de
14
SOUZA, Rômulo Augusto. Manual de história da literatura latina. Belém: Serviço de Imprensa
Universitária, 1977, p. 93.
15
Nesse segundo grupo encontram-se E. Fraenkel, Marilda Corrêa Ciribelli, Iná Costa, Zélia Cardoso,
Rafaelle Perna, Jaime Bruna, Pierre Grimal e Etore Parattore.
16
SOUZA, Rômulo Augusto. Manual de história da literatura latina. Belém: Serviço de Imprensa
Universitária, 1977, p. 95.
17
MARCHESI, Concetto. Apud SOUZA, Rômulo Augusto. Manual de história da literatura latina. Belém:
Serviço de Imprensa Universitária, 1977, p. 95.( Trad.: A comédia grega na paliata, - sobretudo na de Plauto, -
viveu uma sua nova existência, enxertada no tronco do Lácio. Espicaça-se, tomando a mordacidade italiana e
a grossura cantante e bufonesca. Não foi tradução, ou redução ou imitação: foi continuação de vida.)
18
PERNA, Rafaelle. L’ originalità di Plauto. Bari: Leonardo da Vinci, 1995, p. 8.
6
assimilação e integração da cultura helenística, mas também pela sua autenticidade, e pelos
seus valores humanos e universais, que os mantém vivos até os dias de hoje.
Diante de todos esses aspectos abordados, este trabalho se presta ao estudo da
retratação do casamento, que é muito freqüente no teatro de Plauto, como representante da
sociedade romana do século II a.C., em algumas de suas comédias.
Historiadores e poetas afirmam que o casamento, durante muitos séculos, foi uma das
instituições mais sólidas e importantes da urbe romana. Segundo Paul Veyne, o casamento
romano era um ato privado, um fato que nenhum poder público deveria sancionar. Para que
um cidadão romano fosse considerado casado, não era necessário que ele passasse por um
juiz ou por um sacerdote. O casamento não era um ato escrito (não existia contrato de
casamento, mas apenas um contrato de dote) e era totalmente informal: nenhum gesto
simbólico era obrigatório. Enfim, “o casamento era um fato privado, como entre nós o
noivado”19.
Veyne20 cita várias reflexões acerca do casamento feitas no passado que demonstram
a visão que os romanos tinham sobre essa instituição. Antipater de Tarso ensina aos
romanos que estes devem casar para “dar cidadãos à pátria e porque a propagação da
espécie humana está em conformidade com o plano divino do universo”. Musônio afirma
que o casamento existe para a procriação e para a ajuda mútua entre os esposos. Epicteto
diz que “roubar a mulher do próximo é tão indelicado quanto tirar a porção do porco
servida ao vizinho da mesa”. Em suas palavras: “Quanto às mulheres, é a mesma coisa: as
porções foram distribuídas entre os homens”. Sêneca afirma que o casamento é uma troca
de obrigações, talvez desiguais, mas diferentes, sendo a principal obrigação da mulher a de
obedecer.
Mas, afinal, por que os cidadãos romanos se casavam? Simplesmente para poderem
ter filhos legítimos? Não apenas por isso, mas também para receberem o dote que o pai da
noiva era obrigado a pagar ao noivo por este casar com sua filha (esse era um dos meios
honrosos de enriquecer).
Muitas são as alusões que Plauto faz acerca do casamento em sua obra. Mas em que
medida as representações plautinas correspondem à realidade romana?
19
VEYNE, Paul (org.). História da vida privada 1: Do império Romano ao ano mil . Trad. Hildegard Feist.
São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 43-44.
20
VEYNE, Paul (org.). História da vida privada 1: Do império Romano ao ano mil . Trad. Hildegard Feist.
São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 54.
7
Sobre a questão do dote, muitas referências são feitas em suas peças acerca da
realidade dessa prática tão difundida entre os romanos.
Em Roma, não obstante o fato de que a obrigação de dotar não fosse jurídica, mas sim
moral, dificilmente uma mulher encontraria um bom marido sem dote. Essa questão é bem
expressa na peça A comédia da marmita, em que uma jovem que possuía todas as
qualidades que deveria ter uma esposa está sujeita a não se casar por ter condições
humildes e conseqüentemente não ter um dote:
Euclião: Da minha pobreza me lamento. Tenho lá uma donzela espigada, sem
um tostão de dote nem esperança de arrumação... (coça a cabeça repetidas vezes)
É que não vejo mesmo a possibilidade de a arrumar com ninguém... (v. 190)21
Entregar uma mulher sem dote era totalmente desonroso, visto que essa ação não
somente a condenaria à pobreza, mas também a exporia à opinião pública, que diria que a
jovem foi entregue como uma concubina e não como uma esposa. Como exemplo clássico
temos o jovem Lesbônio, da peça As três moedas (trinummus)22, que não aceita entregar
sua irmã a seu amigo Lisíteles que a ama porque ela não tem dote.
Já o contrário é totalmente passível de ocorrer. Uma mulher que não possui condições
morais, mas tem um dote considerável pode “adquirir” um marido, e esta terá todo o poder
sobre o seu cônjuge, pois o marido mais pobre entrega toda a sua autoridade à mulher:
Megadoro: Por mercê dos deuses e dos nossos avós, eu sou rico bastante. (Com
um movimento sofrido de desdém) Essas parentelas de auto bordo... com suas
ascendências... dotes espaventosos... escarcéus... brados de comando... carros de
marfim... xales de aparato... vestidos de púrpura... não me causam impressão
nenhuma. São coisas que, pelos gastos que envolvem, reduzem os homens à
escravidão. (v. 166-169) 23
E ainda:
(com uma ponta de ufania): Contei a muitos amigos o partido que tomei quanto
a este projeto de casamento. A filha de Euclião merece o aplauso de todos.
Acham que foi uma sensata resolução e um partido acertado. De fato – em
minha opinião, pelo menos –, se os outros fizessem o mesmo, isto é, se os
ricaços casassem com os filhos dos pobretanas, que não tem dote, haveria muito
mais concórdia na cidade; nós enfrentaríamos uma hostilidade menor do que
aquela que enfrentamos; elas teriam mais receio dos nossos castigos do que têm;
e nós faríamos menos despesas do que fazemos.
Para a maior parte dos cidadãos seria a melhor solução. (v. 475-485)
21
PLAUTO. A comédia da marmita. Trad. Walter Medeiros. Brasília: Ed. UnB, 1994.
22
PLAUTO s/d. Trinummus. Disponível em http://www.thelatinlibrary.com. Acesso em 30 set. 2009. Trad.
Hildegard Feist.
23
PLAUTO. A comédia da marmita. Trad. Walter Medeiros. Brasília: UnB, 1994, p. 39, 75, 78.
8
E mais à frente conclui:
Mulher sem dote está nas mãos do marido. As que têm dote são a desgraça e a
ruína do marido. (v. 535)24
O dote recebido estava sujeito à administração do cônjuge, mas a renda deveria ser
gasta apenas com as necessidades da família e “se não havia meio legal de impedir que um
marido pouco escrupuloso o dilapidasse, em caso de dissolução do casamento esse dote em
geral devia ser restituído à mulher”.25 Ou seja, quando a mulher romana tomava a iniciativa
do divórcio, ou mesmo que fosse repudiada, ela deixava o lar conjugal levando o seu dote,
caso o tivesse, e isso fazia com que obtivesse uma certa independência, que não era plena,
visto que continuava sob o domínio de seu pai.
O amor conjugal não era a base do casamento e nem a condição do casal. Cabia aos
esposos o dever de cumprir suas respectivas tarefas. Se, além disso, se entendessem bem,
seria um mérito adicional, e não uma pressuposição.26
Legalmente cada romano tinha uma esposa, porém, os maridos não eram obrigados
pela lei e pelos costumes a serem fiéis a estas. Os amores passageiros eram permitidos
enquanto não ferissem a honra de uma mulher casada ou de um a moça de família. Catão, a
esse respeito, afirma:
Se surpreendesses a tua mulher em adultério, poderias matá-la sem julgamento e
impunemente; mas se cometesses adultério (...) ela não ousaria tocar-te nem com
a ponta do dedo, e, aliás, não teria tal direito.27
Matrona: Eu, de fato, não cometi nenhuma falta, dessa dúvida eu o livro em
primeiro lugar, papai. Mas absolutamente não posso viver aqui, nem suportar
mais. Por isso, leve-me embora. (põe-se a chorar)
24
PLAUTO. A comédia da marmita. Trad. Walter Medeiros. Brasília: UnB, 1994, p. 39, 75, 78.
25
GRIMAL, Pierre. O amor em Roma. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 76 e 77.
26
ID., Ibid., p. 50.
27
CATÃO, Apud GRIMAL, Pierre. O amor em Roma. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Martins Fontes,
1991, p. 117.
9
Vel.: Por quem?
Vel.: Brigados novamente! Quantas vezes lhe recomendei evitar que qualquer
dos dois me venha dar queixa do outro?
Vel.: A mim o pergunta? Basta querer. Quantas vezes lhe expliquei que deve ser
obediente a seu marido e não espionar o que ele faz, onde vai, no que se ocupa?
Vel.: (à parte) E tem bom gosto. (alto) E, por causa desta iniciativa que você
tomou, imagino que ainda mais há de amá-la.
Vel.: Então, só por atenção a você, há de deixar de beber, ali ou onde mais lhe
aprouver? Que petulância é essa, ora bolas?! Você podia, do mesmo passo,
pretender que ele fosse proibido de aceitar um convite para jantar ou de convidar
alguém para sua casa. Você pretende que os maridos virem servos? Da mesma
forma, você poderia querer que ele fiasse uma tarefa de lã, que se sentasse entre
as escravas, que cardasse a filaça.
Mat.: Pai, parece que o chamei para defender, não a mim, mas a meu marido! O
senhor está do meu lado, advogando a causa do lado oposto!28 (v.781-797)
Callicles (exagerando): Não, para ele é pouco; se esposasse cem mulheres, por
seus pecados, seria pouco! 30 ( v. 1181-1186)
28
PLAUTO. Os menecmos. In Comédias. Trad., introd. e notas Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1978, p.
125-126.
29
ID., Ibid., p.103.
30
PLAUTO s/d. Trinummus. Apud GRIMAL, Pierre. O amor em Roma. Trad. Hildegard Feist. São Paulo:
Martins Fontes, 1991, p. 120.
10
E ainda, na circunstância da morte de uma mulher, alguém acrescenta, à guisa de
oração fúnebre: “Foi a primeira vez que ela deu prazer ao marido”31. Não havia pior
maldição do que dizer a um homem: “Em nome da tua velhice, em nome daquela que
temes, quero dizer, tua mulher, se hoje não disseres a verdade a meu respeito, que os céus
façam tua mulher sobreviver a ti...” 32
Com freqüência Plauto faz menção a maridos atormentados por suas esposas. Um
desses maridos afirma: “A minha mulher tortura-me pelo simples fato de estar viva”. 33 Não
eram as mulheres jovens que possuíam essa má fama de autoritárias e tirânicas, pois estas
permaneciam submissas. Com o passar do tempo e muitas maternidades, as matronas viam-
se livres das amarras sociais que as impediam de se expressarem livremente e passavam a
se impor em suas casas34.
Uma das matronas plautinas diz acerca de seu casamento:
Pode-se perceber que o teatro plautino faz referência na maioria das vezes a mulheres
casadas com idade madura e raramente focaliza esposas mais jovens. Essa ausência se
deve, possivelmente, ao fato de que seria um escândalo retratar uma jovem apaixonada por
seu marido naquela época. Pois, segundo Grimal “na época de Plauto, a moral romana não
se ofendia com cenas mais picantes, desde que a apaixonada fosse uma cortesã e não uma
moça de família”.36 A questão não seria representar o amor em si, nem mesmo a vida
familiar, mas sim o amor legítimo. Essa era a moral que regia os primeiros tempos de um
casamento romano do século III a.C.
A propósito da figura da matrona no teatro plautino, Maria de Lurdes C. M. Maia e
Santos afirma:
31
PLAUTO s/d. Cistelaria. Apud GRIMAL, Pierre. O amor em Roma. Trad. Hildegard Feist. São Paulo:
Martins Fontes, 1991, p. 120.
32
PLAUTO s/d. Asinaria. Apud GRIMAL, Pierre. O amor em Roma. Trad. Hildegard Feist. São Paulo:
Martins Fontes, 1991, p.121.
33
PLAUTO s/d. Casina. Apud GRIMAL, Pierre. O amor em Roma. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Martins
Fontes, 1991, p. 122.
34
GRIMAL, Pierre. O amor em Roma. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 99.
35
PLAUTO. Os menecmos. In Comédias. Trad., introd. e notas Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1978, p.
101.
36
GRIMAL, Pierre. O amor em Roma. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 104.
11
A propósito das personagens femininas, Plauto consegue inovar, isto é, conjuga
atitude tradicional da mulher romana, reservada e silenciosa, com uma nova
postura feminina, determinada pela sociedade em mudança: a de troçar dos
homens pondo a ridículo os seu defeitos ou manias, o que revela uma certa
emancipação. Desse rir em silêncio, dessa troça dissimulada, surge uma saborosa
vingança das matronas que se contrapõe à hipocrisia e desfaçatez masculina.37
Realmente temos bem pouco prazer em nossa vida, durante toda a nossa
existência, ao preço de todos os sofrimentos! Assim é a vida dos humanos; os
deuses quiseram que a todo prazer sucedesse a dor, que digo eu, que logo haja
mais dor e sofrimento, quando se experimentou alguma satisfação. Sim,
experimento-o agora, por mim mesma, sei-o muito bem, eu, que tive um instante
de prazer, quando me foi dado ver meu marido – uma só noite, não mais; e
depois ele partiu, deixou-me ao raiar do dia. Agora estou sozinha, pois ele não
está comigo, o único homem que eu amo dentre todos... No entanto, o que pelo
menos me faz feliz é que venceu os inimigos, voltou para casa coberto de
glórias. Isso me consola. Pode estar longe, desde que ao retornar traga a glória!
Com firme e enérgica coragem suportarei sua ausência até o fim, se ao menos
tiver a compensação de ver meu marido chamado vencedor; considerarei que é
suficiente para mim. A coragem é a mais bela recompensa, a coragem
certamente supera todas as coisas: liberdade, segurança, vida, fortuna, parentes,
pátria, família são por ela protegidos e salvos. A coragem tudo contém em si,
possuí-la é ter todos os bens!38(v. 633-653)
Cumpre ainda destacar que uma outra característica importante do casamento romano
é retratada nas peças plautinas: o pai da jovem noiva conservava em suas mãos a faculdade
de romper o casamento da filha segundo seu querer, sem o consentimento do casal. E, “a
esposa que escapasse da manus do marido continuava sujeita a do pai; continuava
participando da religião da casa onde nascera”.39 Em Menecmos, O mercador e Estico, fica
37
SANTOS, Maria de Lurdes C. M. Maia e. A família de Roma na obra de Plauto. Braga. Edições
APPACDM, 2000.
38
PLAUTO. Anfitrião. In A comédia Latina. Trad. Agostinho da Silva. Rio de Janeiro: Globo, 1969, p. 45.
39
GRIMAL, Pierre. O amor em Roma. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 61.
12
claro esse direito. Uma matrona em O mercador pede a sua escrava para chamar seu pai a
fim de queixar-se de seu marido a ele:
Doripa: Por Pólux, eu não suportarei estar assim tão mal casada, Sira, e que em
minha casa sejam trazidas prostitutas.
Sira, vá e peça por mim a meu pai para que venha a minha casa, já, junto com
você. (v. 785-787)40
Na peça Estico, o pai propõe o fim do casamento de suas duas filhas devido à longa
ausência de seus maridos :
Antifonte: Por Pólux! Estão aprovadas com louvor vocês e a índole de sua
índole. Mas a razão por que venho até vocês e por que quero as duas reunidas é
esta: meus amigos me aconselharam a levar vocês definitivamente para minha
casa.
BIBLIOGRAFIA
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