Admin Artigo Dossi 01
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Número 18 – Julho/2020
Resumo Abstract
A conquista de territórios do Mediterrâneo Oriental The Macedonian conquest of territories in the
pela Macedônia e a fundação de Alexandria no eastern Mediterranean and the founding of
litoral egípcio no séc. IV a.C., bem como a Alexandria on the Egyptian coast in fourth century
posterior transformação do Egito em província BC, as well as the subsequent transformation of
romana três séculos depois intensificaram as mais Egypt into a Roman province three centuries later
diversas formas de intercâmbios culturais na região intensified the most diverse forms of cultural
do Nilo. Um exemplo notável do fortalecimento exchanges in the Nile region. A notable example of
desse processo de integração se refere a the strengthening of this integration process refers
popularização de tradições religiosas egípcias to the popularization of ancient Egyptian religious
antigas e suas ressignificações e dispersão por todo traditions and their resignifications and
o mundo helenístico-romano. O culto ao deus disseminations throughout the Hellenistic-Roman
híbrido greco-egípcio Serápis ao lado da deusa world. The cult of the Greek-Egyptian hybrid god
egípcia Ísis (antiga consorte de Osíris) e sua Serapis next to the Egyptian goddess Isis (former
crescente difusão pelo ecúmeno é uma chave consort of Osiris) and its increasing spread by the
importante para analisar fenômenos de ecumene is an important key to analyze phenomena
sincretismos num contexto em que aspectos antes of syncretism in a context in which aspects
vistos como “nativos” e étnicos ganharam um previously seen as “native” and ethnic achieved
estatuto global e cosmopolita. Serápis é global and cosmopolitan status. Serapis is usually
normalmente explicado na historiografia como explained in historiography as an “invention”,
uma “invenção”, que visava fundir tradições gregas which aimed to merge Greek and Egyptian
e egípcias num mesmo culto. Contudo, há diversas traditions into the same cult. However, there are
nuances da atmosfera político-religiosa no several tones in the political and religious
surgimento desse culto que enfraquecem a ideia de atmosphere during the emergence of this cult that
invenção e podem ter ajudado a impulsionar a nova weaken the idea of invention and may have helped
crença. A deidade acabou se revelando to boost the new belief. The deity turned out to be
conveniente para a legitimação da nova monarquia convenient for the legitimation of the new
macedônica em território nilótico, que não Macedonian monarchy in Nilotic lands, whom did
pretendia apagar as antigas tradições faraônicas. not intend to erase ancient Pharaonic traditions. In
Nesse sentido, a intenção desse artigo é discutir o this sense, the intention of this article is to discuss
ambiente e as prováveis motivações de Ptolomeu I the environment and the probable motivations that
Sóter para alavancar uma religião híbrida e led Ptolemy I Soter to leverage a hybrid and
inovadora em Alexandria. innovative religion in Alexandria.
Palavras-chave: Alexandria, Ptolomeus, Serápis. Keywords: Alexandria, Ptolomies, Serapis.
O Egito e o Mediterrâneo.
1
Alexandria foi fundada pelo rei da Macedônia Alexandre III (mais conhecido como Alexandre Magno ou Alexandre, o
Grande) em 331 a.C. No contexto da fundação, teve a assistência de dois homens, o arquiteto Dinócrates de Rhodes e
Cleômenes de Náucratis, que se tornou responsável pela sua edificação e administração inicial, além da organização do
sistema financeiro e monetário. Cleômenes governou a cidade como sátrapa até a chegada de Ptolomeu, mas pouco se
sabe de seus feitos. A passagem de Alexandre por Alexandria foi breve e devido a sua morte precoce, não pôde voltar
para presenciar sua edificação e crescimento, o que se deve, principalmente, aos três primeiros Ptolomeus. GREEN, Peter.
“Alexander’s Alexandria” In: GREENBERG, Mark; HAMMA, Kenneth; GILMAN, Benedicte e MOORE, Nancy (Eds.).
Alexandria and Alexandrinism. Malibu, California: The J. Paul Getty Museum, 1996, p. 14.
2
A colônia jônica de Náucratis se localizava próxima a um afluente que se comunicava com o Mediterrâneo na região
canópica do Delta do Nilo, perto da vila de Sais, que fora a capital de duas dinastias faraônicas entre os sécs. VII e VI
a.C. Embora pouco se saiba sobre a cidade na perspectiva da cultura material, Heródoto faz algumas menções do local
como o único porto aberto do Egito, apesar de a cidade não ter ser localizada no litoral (Histórias II. 179). Se firmou
como entreposto, principalmente após a reorganização pelo faraó Amásis, que lhe concedeu autonomia comercial e
religiosa. Ver em: LEFÈVRE, François. História do mundo grego antigo. São Paulo: Martins Fontes, 2013, p. 113;
GRIMAL, Nicolas. História do Egito Antigo. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 375; HUSSON, Geneviève & VALBELLE
Dominique. L'Etat et les institutions en Egypte: Des premiers pharaons aux empereurs romains. Paris: Armand Colin,
1992, p. 223.
3
GUARINELLO, Norberto Luiz. História Antiga. São Paulo: Editora Contexto, 2013, p. 69.
4
Daí a dinastia ser também chamada de Lágida. Posteriormente, tornou-se Ptolomeu I Sóter (“o salvador”), título recebido
provavelmente em Rodes, importante parceira comercial do Egito, como agradecimento após o apoio na manutenção de
sua independência contra a invasão por Demétrio. ELLIS, W. M. Ptolemy of Egypt. Routledge: London and New York,
1994, p. 46.
5
Grande parte da religião egípcia se estruturou em função da Maat, que era não só a deusa da ordem e do equilíbrio do
universo, continuamente desafiada pelas forças do caos, mas também um princípio social e uma busca perpétua. DAVID,
Rosalie. Religião e Magia no Antigo Egito. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011, p. 22.
evidências de reais impactos culturais exercidos por outros povos com relação a ordenação política
faraônica, cujas influências tendiam a ser absorvidas e egipcianizadas 6.
Algumas décadas após sua fundação, Alexandria tornou-se a sede administrativa da corte
macedônica que conquistara o Egito, ocorrendo uma inversão da ordem hierárquica no território
nilótico, já que as diretrizes passaram a irradiar da nova metrópole e de uma realeza estrangeira, que
enfatizava, antes de tudo, seu vínculo com Alexandre III e com o mundo grego7. Com as novas
monarquias instaladas em regiões orientais, a frequência do deslocamento de povos se intensificou
em todo o Mediterrâneo, também como reflexo das disputas e da transitoriedade da liderança dos
diádocos. Séculos depois, a unificação política estabelecida pelo Império Romano absorveria toda
essa diversidade, reformulando algumas formas de contato e aprofundando outras. Nesse contexto de
maior trânsito de povos, divindades estrangeiras foram acolhidas por todo o Mediterrâneo e admitidas
em panteões locais 8.
Ptolomeu I estabeleceu a base central de seu poder na região do Nilo, preservando suas antigas
fronteiras e grande parte da organização administrativa já existente, apesar das competições
territoriais em que se envolvera e das demais aquisições territoriais efetivadas após e durante a
conquista do Egito (Chipre, Fenícia e Cirenaica). O novo rei incentivou e financiou a chegada de
imigrantes de variados locais do mundo helênico para povoar principalmente a região do Delta e a
cidade fundada por Alexandre III. Nesse sentido, a densidade de povos de origem grega tornou-se
cada vez mais notável e institucionalizada no Egito, sobretudo em Alexandria.
A despeito da presença maciça de povos gregos no local (cujos dados numéricos são
praticamente ausentes), é provável que os egípcios formassem a maior comunidade unificada da
população no contexto da fundação de Alexandria 9. O local escolhido para o sítio abrigava uma antiga
vila egípcia chamada Rhacotis, que foi também o bairro que acolheria os egípcios nativos após o
crescimento da cidade10. Nesse mesmo lugar, algum tempo depois, foi instalado o Serapeum (por
6
Como os hicsos (“príncipes de terras estrangeiras”) no segundo período intermediário (XIV dinastia- 1500), que
tomaram o poder de grande parte do Egito, mas de certa forma, se egipcianizaram, ao escolherem Seth como deus
dinástico. Apesar da conjuntura de crise política, foi também uma fase de grandes inovações tecnológicas trazidas de fora.
Ver em: CARDOSO, Ciro Flamarion. O Egito Antigo. São Paulo: Brasiliense, 2004, p. 56-58; DAVID, op. cit., p. 36.
7
Não se sabe exatamente quando Ptolomeu foi com a corte para Alexandria, mas é provável que tenha sido no contexto
em que ele e os demais sucessores começaram a se proclamar reis, em torno de 306-304, aproveitando-se do vácuo pelo
fim da dinastia argéada, depois da morte do filho póstumo de Alexandre. De acordo com Walter Ellis, alguns autores
sugerem a data de 313 com base na estela do Sátrapa. ELLIS, op. cit., p. 51.
8
GUARINELLO, op. cit., p. 125.
9
EL-ABBADI, Mostafa. “Alexandria: Capital of Egypt” In: STEEN, Gareth L. Steen (Ed.). Alexandria: The Site and the
History. New York/ London, New York University Press, 1993, p. 42.
10
Essa versão é contada por diversos autores da tradição a partir de Estrabão e o maior consenso na historiografia atual,
embora pouco se saiba sobre esse povoamento anterior. Contudo, o historiador francês Michel Cheaveau polemiza a
questão, ao atribuir a nomenclatura a uma confusão de tradução que os modernos continuaram perpetuando, pois Ra-qed
era o nome dado a Alexandria pelos egípcios, que significava “terreno de construção”. Contudo, o autor não duvida de
que egípcios foram convocados para a construção dos edifícios públicos e privados da cidade, apesar de serem excluídos
Ptolomeu III Evergeta), o templo dedicado ao culto recém-criado de Serápis. O deus de características
sincréticas greco-egípcias não só se tornaria o patrono da dinastia e de Alexandria, como alcançaria
enorme popularidade para além do Egito nos séculos subsequentes. A intenção desse artigo é discutir
as motivações para o surgimento da crença em Serápis e sua difusão como fruto de um novo tempo,
que permitiu uma maior mobilidade de povos, possibilitando que tradições nativas pudessem transitar
por maiores distâncias e ser reinterpretadas de acordo com diferentes contextos.
desde o princípio da concessão de cidadania. CHAUVEAU, Michel. Egypt in the Age of Cleopatra. New York: Cornell
University Press, 2000, p. 57.
11
Ver em: ABULAFIA, David. O Grande Mar: Uma História Humana do Mediterrâneo. São Paulo: Objetiva, 2013, p.
181; RIAD, Henri. “Egyptian Daily Influence on Daily Life in Ancient Alexandria” in: Gareth L. Steen ed., Alexandria:
The Site and the History. New York/ London, New York University Press, 1993, p. 30; EL-ABBADI, op. cit., p. 46.
12
Sobre os debates acadêmicos, ver: CLIMACO, Joana Campos. A construção da Alexandria Ptolomaica na historiografia
contemporânea. Mare Nostrum, 2010, v. 1, p. 27-36 e CLIMACO, Joana Campos. “Impactos da romanização em
Alexandria”. História Revista, 2009, v. 14, n. 1, p. 261-290.
13
MILNE, Grafton. A History of Egypt under Roman Rule. London: Methuen & Co., 1924.
sobre Alexandria até a segunda metade do século passado. Entretanto, a interpretação de Serápis se
coaduna com a forma com que a historiografia concebia Alexandria, com base principalmente na sua
nomenclatura da cidade na tradição clássica Alexandria ad Aegyptum, que significa “Alexandria ao
lado do Egito” ou “próxima do Egito”. Argumenta-se que essa terminologia sublinha principalmente
a separação e fissura entre Alexandria e Egito. Alexandria, portanto, seria um “corpo estranho” no
território, pois sua inspiração helênica e sua liderança e desenvolvimento direcionada por
macedônicos a tornariam uma espécie de ilha, apartada e diferenciada do antigo território nilótico 14.
Para Françoise Dunand, embora Serápis fosse principalmente o deus tutelar de Alexandria e
dos Ptolomeus, as características predominantemente gregas de Alexandria não podem ser
desconsideradas. A autora argumenta que o papel preferencial destinado aos gregos em outros setores
era nítido, portanto, não acredita que na religião seria diferente15. Dunand aceita o sincretismo greco-
egípcio de Serápis somente fora de Alexandria e em contexto posterior, quando o culto se
universalizou no Império Romano, ao lado da Ísis também helenizada.
A monumental obra de Peter Fraser da década de 70, Ptolemaic Alexandria, problematizou e
aprofundou a discussão. O autor destaca a diversidade de origens dos povos helênicos que chegaram
em Alexandria como o motivador essencial para a preponderância de um deus patrono, diante da
necessidade de se criar um ponto de convergência para a variedade étnica e o novo poder político ali
instalados. Serápis seria, dessa maneira, um denominador comum em meio à diferença, cuja adoração
viria preencher uma lacuna, no sentido de que os recém-chegados buscariam referências e alguma
identificação com a nova cidade, com os vizinhos e a dinastia reinante16. Além dos alexandrinos,
Peter Fraser defende que a religião se direcionaria também a sujeitos de outros estados helenísticos.
Ainda que Fraser enfoque na diversidade, o autor considera que a adoração era direcionada,
sobretudo, a um público grego e variado de Alexandria.
Ora, deve-se ressaltar o povoamento multiétnico de Alexandria, fruto de sua fundação por
Alexandre Magno e do aumento da mobilidade no Mediterrâneo a partir de suas conquistas, o que
teria levado para a cidade uma infinidade de deidades e as mais diferenciadas formas de adoração.
Mostafa El-Abbadi concorda que os Ptolomeus idealizaram Serápis para estabelecer um eixo de união
entre as crenças, mas o fizeram atribuindo uma forma humana para o Osíris-Ápis ou Osorápis de
14
GREEN, op. cit., p. 3.
15
Lilly Kahil argumenta na mesma perspectiva de Dunand, com ênfase na divindade como algo original, uma “criação
artística de Ptolomeu I” direcionado sobretudo para a nova cidade e sua dinastia. KAHIL, L., “Cults in Hellenistic
Alexandria”, in GREENBERG, Mark; HAMMA, Kenneth; GILMAN, Benedicte e MOORE, Nancy (Eds.). Alexandria
and Alexandrinism. Malibu, California: The J. Paul Getty Museum, p. 77-78.; DUNAND, Françoise. “The Factory of the
Gods”. JACOB, C. & POLIGNAC, F. de (eds.). Alexandria, third century BC – The knowledge of the world in a single
city. Alexandria: Harpocrates Publishing, 2000. p. 160-162.
16
FRASER, Peter M. Ptolemaic Alexandria. Oxford: Clarendon Press, 1972. 3 v., p. 252.
Mênfis 17 . Ou seja, para este historiador, a inventividade teria sido parcial, pois fora feito, sobretudo,
uma tradução e uma adaptação de um culto egípcio já existente, que ganhou uma nova representação
voltada para o mundo helenizado. Além disso, a busca por referências na tradição faraônica não pode
desconsiderada em meio a essa miscelânea predominantemente helênica, pois seria uma forma de
preservar a memória ancestral em meio a governantes estrangeiros, que precisariam considerar a nova
morada, para promover uma divindade híbrida.
Gunter Grimm não aceita a teoria do ideal de unificar diferentes populações e sugere que
Serápis fora projetada para se tornar a divindade patrona da “nova pólis” de Alexandria, da dinastia
e de seu poder18. Nesse sentido, seria o símbolo de toda uma configuração urbana, social e política
inovadora, o que de certa forma, tornaria secundária suas heranças genealógicas principais. Essa
interpretação mais recente entende Serápis como fruto de uma identidade original. Com base
principalmente nas novas descobertas da arqueologia subaquática que ocorreram na cidade a partir
da década de 90, os debates contemporâneos tentam resgatar e chamar a atenção para as apropriações
egípcias em Alexandria, o que também se observa nas interpretações acerca do culto a Serápis. Além
disso, nas últimas décadas têm havido mais diálogo entre os classicistas e egiptólogos, já que
anteriormente os classicistas dominaram as pesquisas sobre a cidade. A despeito de suas diferenças
em relação a outras cidades egípcias mais antigas, uma maior aproximação entre as áreas tem
enriquecido enormemente o debate acadêmico e evidenciado cada vez mais a existência de
ressonâncias de tradições faraônicas em Alexandria.
Deve-se destacar também a resistência dos egípcios em incorporar tradições helenizantes,
como a que tentou se impor com a chegada de Serápis. Como argumenta a Egiptóloga Rosalie David
ao ressaltar que a despeito dos objetivos sincréticos do culto, seu alcance foi maior entre os gregos
desenraizados de Alexandria, pois as evidências fora de Alexandria demonstram que os egípcios
continuaram cultuando a divindade Osíris-Ápis no formato tradicional. Portanto, tratar-se-ia mais de
um caso de coexistência de crenças do que de uma fusão criada através do intercruzamento de
19
elementos díspares . O debate está longe de ser resolvido. A intenção aqui é apontar a riqueza do
diálogo entre as subáreas dos estudos da Antiguidade (classicistas, egiptólogos e arqueólogos) que
também ilumina significativamente o entendimento da adoração a Serápis na Antiguidade.
17
EL-ABBADI, op. cit., p. 46-48.
18
GRIMM, Gunter. “City Planning?” In: GREENBERG, Mark; HAMMA, Kenneth; GILMAN, Benedicte e MOORE,
Nancy (Eds.). Alexandria and Alexandrinism. Malibu, California: The J. Paul Getty Museum, p. 78.
19
DAVID, op. cit., p. 424.
20
GREEN, Peter. Alexandre, o Grande: e o período helenístico. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014, p. 42.
21
HALL, Jonathan. “Quem eram os Gregos?” In: Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São
Paulo 11 (2001), p. 224.
22
BRIANT, Pierre. From Cyrus to Alexander: a history of the Persian Empire. Winona Lake, Indiana: Eisenbrauns, 2002,
p. 2.
23
BOWMAN, Alan K. Egypt after the Pharaos 332 B.C. -A.D.642. California: University of California Press, 1986, p.
174.
24
Ptolemais foi fundada por Ptolomeu I Sóter no Alto Egito, cerca de 120 kms de Tebas. Como Alexandria, a cidade
também era organizada em tribos e demos e tinha diversos privilégios.
negociar a soberania sobre o Egito25. É provável que a origem da adoração a Serápis e a divinização
de integrantes da família real seriam um desdobramento dessa postura, pois para que os Ptolomeus
tivessem condições de forjar um culto dinástico, precisariam encontrar algum ponto de comunicação
com a cultura faraônica. Embora Alexandria pudesse até ter sido projetada para se tornar uma
realidade cívica independente do Egito baseado num modelo políade, na longa duração as condições
não permitiram tal distanciamento.
As narrativas que descrevem a origem do culto a Serápis mais detalhadamente são de Plutarco
(Sobre Ísis e Osíris 361-362) e Tácito (Histórias 4.82-85), autores de gêneros e círculos eruditos
diferentes, mas que escreveram num contexto próximo do Alto Império Romano, entre a segunda
metade do séc. I e início do II d.C.26. A distância cronológica dos relatos em relação ao cenário da
introdução do culto em Alexandria provavelmente transmite elementos anacrônicos, já que ambos
escreveram no período da maior popularização da divindade (cronológico e espacialmente) e séculos
após sua suposta “invenção”.
A preocupação de autores do Império Romano em resgatar e descrever as raízes obscuras de
Serápis sugere certo anseio de compreender sua difusão e força no período posterior. Praticamente
todas as outras deidades estrangeiras popularizadas pelo Império tinham origens étnicas, no sentido
de que eram associadas a algum território e/ou povo específico. Enquanto Serápis simbolizava a
interpenetração cultural e o encontro de credos num cenário de alargamento dos horizontes, que tendia
a aproximar tradições até então mais distantes, as fazendo habitar o mesmo espaço cívico. Seu
surgimento em Alexandria foi ainda mais emblemático em virtude das circunstâncias da fundação e
desenvolvimento da cidade e de sua importância como segunda metrópole mais populosa do Império
Romano. Portanto, analisar a questão dos primórdios da crença a partir de relatos do contexto imperial
implica em pensar essa realidade subsequente, quando a religião já estava estabelecida, conjuntura
relativamente distante de sua idealização. Ou seja, deve-se pensar nesses dois panoramas
diferenciados tendo a cautela de não projetar os conceitos anacrônicos das narrativas (de tempos
romanos), associando-os aos primórdios da sua veneração (na era ptolomaica).
Tácito descreve o culto a Serápis provavelmente pelo impacto peculiar da crença sobre o
imperador Vespasiano ao passar por Alexandria no início de seu reinado e na importância da cidade
25
PEREIRA, Ronaldo Guilherme Gurgel. Helenização e Egipcianização: Re-Construção de Identidades no Egito
Helenístico. Saarbrucken: Novas Edições Acadêmicas, 2013.
26
Versões posteriores e menos detalhadas como a de Pseudo-Calistenes e Arriano de forma nitidamente anacrônica
atribuem a instalação do culto a Alexandre, a associando ao contexto de fundação da cidade. SALES, José das Candeias.
Ideologia e propaganda real no Egipto Ptolomaico (305-30 a.C.). Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian - Fundação
para a Ciência e a Tecnologia, 2005, p. 106.
27
no processo de sua ascensão . Após tratar da experiência do recém-nomeado imperador com a
divindade, o autor faz uma longa digressão em que reflete sobre seu surgimento: “A origem do deus
de forma geral ainda não foi abordada pelos nossos autores: os sacerdotes egípcios contam a seguinte
história: (...) (Histórias 4. 83)” 28. Com essas palavras, Tácito parece apontar certa lacuna na erudição
romana acerca da proveniência do deus, sugerindo que tais elementos precisavam ser buscados, já
que a religião começava a repercutir em questões do estado romano. Tratava-se, portanto, de um
assunto de natureza imperial que passara por uma completa ressignificação a partir das origens
egípcias (que discutiremos abaixo). O final do relato remete justamente às diferentes versões a
respeito das origens, sinalizando que mesmo nos círculos eruditos havia essa polêmica e ponderação.
Ao citar as variações, Tácito inclui também uma variante genuinamente egípcia, associada a Mênfis:
Essa é a versão mais conhecida sobre a origem e chegada do deus. Mas eu estou
ciente que alguns dizem que o mesmo deus foi trazido da Selêucia na Síria no reino
de Ptolomeu III, outros ainda dizem que o mesmo Ptolomeu introduziu o deus, mas
que o lugar de que ele veio era Mênfis, antes uma famosa cidade e o símbolo do
antigo Egito. (Tácito. Histórias. 4.84) 29
Plutarco reflete sobre os primórdios do culto em meio às polêmicas acerca de seu nome e
funções, além das equivalências com deuses gregos, inferindo a respeito da diversidade de abordagens
sobre sua interpretação divina, ainda que por vias diferentes em relação a Tácito (Sobre Isis e Osíris,
361-362). A menção a Serápis em meio à narrativa Sobre Ísis e Osíris evidencia sua complexidade e
a interdependência com a tríade egípcia (Ísis-Osíris/Serápis-Hórus/ Harpocrates) e diante de outras
divindades, além do alcance de sua difusão pelo império.
As variações na história de Tácito e Plutarco (apesar da concordância em diversos pontos)
sugerem a circulação de diferentes versões e especulações acerca da proveniência de Serápis. A busca
por origens poderia ser uma forma de configurar e refinar a memória sobre um culto que alcançara
enorme popularização. Para validar tal difusão seria necessário legitimar sua ascendência e sofisticar
seu mito de fundação.
Vimos que no final de sua narrativa, Tácito cita as discordâncias existentes com relação à
proveniência e introdução do culto em Alexandria, contudo, ambos contam na sequência
27
CLIMACO, Joana Campos. “A divindade Serápis: Cultura, religião e sincretismo na Alexandria Greco-romana” In:
BRANCAGLION, Antônio; LEMOS Rennan de Souza & SANTOS, Raizza Teixeira dos (Orgs.). Semna – Estudos de
Egiptologia II / – Rio de Janeiro: Seshat – Laboratório de Egiptologia do Museu Nacional, 2015, p. 66-67.
28
Tradução livre a partir da versão em inglês da Loeb Classical Library. “The origin of this god has not yet been generally
treated by our authors: the Egyptian priests tell the following story: (...)”
29
“Such is the most popular account of the origin and arrival of the god. Yet I am not unaware that there are some who
maintain that the god was brought from Seleucia in Syria in the reign of Ptolemy III; still others claim that the same
Ptolemy introduced the god, but that the place from which he came was Memphis, once a famous city and the bulwark of
ancient Egypt.”
essencialmente a mesma história, na qual atribuem o feito ao primeiro Ptolomeu, que teria transferido
a estátua da divindade da cidade de Sínope, no Ponto (litoral do Mar Negro), para Alexandria após
um sonho premonitório. Apesar da concordância dos autores, muitos acadêmicos desconfiam do
desenvolvimento tão remoto do culto, defendendo seu estabelecimento posterior, nos reinos de
Ptolomeu II ou III, devido a maior abundância documental e a construção do Serapeum no bairro de
Rhacotis, o que tornaria a religião mais expressiva e institucionalizada, apesar de não necessariamente
30
explicar seus primórdios . A idealização de Serápis no reinado de Ptolomeu I estaria em sintonia
com diversas outras atitudes adotadas pelo governante no processo de sua fixação no Egito e da
transferência do aparato administrativo macedônico para Alexandria 31. Portanto, faria sentido situar
a introdução do culto à Serápis na fase inicial da sua história, justamente pela necessidade de eleger
uma divindade patrona para a cidade, estabelecendo um denominador comum para a heterogeneidade
32
.
Na tradição literária greco-romana e mesmo nos debates acadêmicos contemporâneos há
grande destaque para Ptolomeu I como o primeiro rei da dinastia que governaria Alexandria e o Egito
pelos três séculos seguintes. A ênfase no seu papel como o iniciador da monarquia sucessora dos
faraós e sua importância no processo de monumentalização da metrópole da corte acabou ofuscando
o provável impacto que os anos antes de sua consagração como rei tiveram na liderança que se
efetivou posteriormente. Como já foi assinalado no início, certa tendência helenocêntrica da
historiografia ao destacar principalmente a roupagem grega de Alexandria e as políticas dinásticas
ptolomaicas em harmonia com o mundo helênico resultou na desatenção com as apropriações e
continuidades faraônicas, postura que tem sido problematizada por perspectivas mais recentes. Logo,
deve-se ressaltar que antes de se tornar rei (306-304 a.C.), Ptolomeu governara como Sátrapa em
Mênfis durante vinte anos, portanto, tal contexto talvez seja a chave para a compreensão a respeito
dos primórdios do culto. É possível que seus anos de imersão nas antigas tradições egípcias e de
aproximação com os núcleos templários tenham tornado o sátrapa e pretendente ao trono ciente dos
ideais de governo faraônicos, além do imperativo de o poder terreno ser apoiado e legitimado pelo
plano divino, pressuposto central da realeza faraônica.
Os templos funcionavam como ponto de apoio principal do governo faraônico e mantiveram
sua posição como mediadores das divindades diante do povo, além de guardiões da religião egípcia
antiga e seus pressupostos centrais. Nesse ambiente, não é improvável que tenha surgido ali a ideia
30
A primeira evidência do Deus com esse nome é de Menandro, que morreu em 291 (ainda no tempo de Ptolomeu I).
PFEIFFER, S. “The God Serapis, his Cult and the beginnings of the Ruler Cult in Ptolemaic Egypt” In: P. MCKENCHNIE,
P. & GUILLAUME, P. (Eds.). Ptolemy II Philadelphus and his World. Leiden: Brill, 2008, p. 390.
31
Um exemplo muito simbólico foi o transporte do corpo de Alexandre de Mênfis para Alexandria.
32
SALES, op. cit., p. 108; FRASER, op. cit., p. 252.
de reunir gregos e egípcios numa mesma atmosfera religiosa 33. Helmut Koester sugere que na ocasião
da transferência do corpo de Alexandre de Mênfis para Alexandria, Ptolomeu também levara o culto
de Serápis, concedendo-lhe feições gregas, o que possibilitou que se transformasse no principal
símbolo da religião do reino 34.
Mênfis fora a primeira capital administrativa do Egito no Reino Antigo e mesmo competindo
com Tebas como sede da realeza em períodos posteriores, manteve a sua importância como centro
administrativo, militar e religioso durante todo o período faraônico. Mênfis era a morada do deus
criador Ptah e, no Período Tardio, o culto ao touro sagrado Ápis se fortaleceu, momento que
correspondeu também ao início de ondas migratórias gregas para o Delta egípcio e para sua antiga
capital religiosa35. Ápis era uma divindade real, que deveria zelar pelo bem-estar do faraó e simbolizar
sua natureza divina, além de ser fundamental para cada nova entronização. O faraó entronizado era
associado a Hórus em vida e tornava-se Osíris depois da morte, portanto, no culto de Osíris-Ápis, o
processo de sincretismo se iniciaria efetivamente na ocasião da morte de Ápis, quando era
estabelecido o vínculo com Osíris, o governante do domínio dos mortos e representante do faraó
defunto. Em vida, o faraó era a encarnação de Hórus, filho de Osíris, que passara a governar no lugar
de seu pai após a morte pelo irmão Seth. Logo, o mundo divino reproduzia o princípio dinástico da
hereditariedade, o que seria conveniente para os novos governantes ptolomaicos se apropriarem.
A adoração de Ápis passara por várias transformações desde o Reino Novo e no Período
Tardio sua associação com Osíris se fortaleceu, tornando-se Osíris-Ápis. A forma tardia de adoração
a Osíris era própria de Mênfis e sua força se materializou na construção do Serapeum, a residência e
local de sepultamento do touro. O templo foi construído na vigésima-sexta dinastia e engrandecido
principalmente na trigésima, quando várias construções foram adicionadas ao complexo, como o
santuário à Ísis, que em Mênfis era associada com a vaca sagrada e deificada após dar à luz ao touro
Ápis, além das galerias de enterramento de vacas, falcões e babuínos sagrados 36. No tempo de Amasis
foram erguidos o Bubasteion e Anubeion, os templos a Bastet e Anúbis, respectivamente37.
Considerando o conhecimento antigo dos povos helênicos em relação ao Egito (desde o relato
de Heródoto principalmente), além da vivencia pessoal que Ptolomeu testemunhara em Mênfis, é
plausível que nessa ocasião ele tivera o entendimento de que para ser aceito e legitimado no território
nilótico seria necessário incorporar e/ou representar também as diversas divindades que os antigos
33
HOLBL, Gunther. A History of the Ptolemaic Empire. Routledge: London and New York, 2001, p. 131.
34
KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento. V.1: História, Cultura e Religião do Período Helenístico. São
Paulo: Paulus, 2005, p. 191.
35
BOMMAS, Martin. Isis, Osiris, and Serapis. In: RIGGS, Cristina. The Oxford Handbook of Roman Egypt. Oxford:
Oxford University Press, 2012, p. 423.
36
Idem, p. 423.
37
HOLBL, op. cit., p. 99.
faraós agrupavam38. O paralelismo entre duas capitais administrativas e dois templos destinados a
abrigarem divindades dinásticas não demonstraria a intenção dos reis de estabelecerem uma
continuidade com o modelo faraônico de governar? Ao menos para os egípcios, não é improvável
que fosse essa ideia que a nova monarquia pretendia introjetar, propondo a inovação na representação
de Osíris-Ápis.
Embora o aparato administrativo faraônico tenha se transformado consideravelmente ao longo
de milênios, sabe-se que o faraó era muito mais que uma autoridade política no Egito 39. Além de
reunir e representar diversas divindades, o faraó era também o responsável por manter a coesão entre
as facetas terrenas e divinas para preservar a Maat. Ora, sabe-se que Ptolomeu era um estudioso, um
“historiador”40, e ainda que como ferramenta de conquista, deve-se considerar o impacto que o
sistema faraônico tivera sobre as lideranças estrangeiras subsequentes. Daí talvez a decisão de
Ptolomeu de se vincular, inaugurar ou difundir uma adoração que reuniria tributos de diversas
divindades estabelecidas (e já plenamente aceitas). É dentro dessa dinâmica de transformações e
negociações que o culto de Serápis se estabelece e se populariza. Ou seja, não se trataria de mera
“invenção” de uma divindade e nem de um simples sincretismo greco-egípcio, mas de uma veneração
também apropriada com finalidades políticas para legitimar a dinastia reinante, fruto de reflexão de
aprendizados anteriores em Mênfis. Estabelecer-se-ia, dessa forma, uma ligação entre o Egito antigo
e o recente.
Segundo Holbl, é plausível que em Mênfis, Ptolomeu percebera que os gregos já estabelecidos
na cidade adoravam o formato sincrético de Osíris-Ápis, Osorápis ou Serápis em grego, cujo templo
era o Serapeum41. Ou seja, apesar das obscuras e complexas transformações, não é improvável que
tal culto sincrético já estivesse parcialmente helenizado quando Ptolomeu se estabeleceu em Mênfis
como sátrapa42. Porém, embora a contração para Serápis explique a coincidência dos nomes, está
longe de esclarecer a complexidade da adoração com representação antropomórfica que se
38
Nos tempos mais antigos, a pessoa do rei era totalmente absorvida pela sua função divina. Na ocasião da coroação,
cinco títulos eram associados ao seu nome (Hórus, falcão). No reino novo, o faraó era Hórus e Seth, os dois irmãos
inimigos, estabelecendo a unidade de forças contrárias. Mas o rei era também filho de Osíris, daí seu corpo se tornar
Osíris depois de morto. HORNUNG, E. “O Rei”. In: DONADONI, S. (org.). O homem egípcio. Lisboa: Presença, 1994,
p. 240.
39
Não é a intenção aqui enfatizar qualquer ideia de imobilismo do Egito e do cargo faraônico (tanto no plano político,
quanto no religioso).
40
Ptolomeu escreveu uma versão sobre as guerras de conquista de Alexandre, preservada, principalmente, através de
Arriano. Embora sua obra seja alvo de diversos debates, há um consenso geral de que pretendia responder às narrativas
exageradamente eloquentes e fantasiosas a respeito do rei, com pretensões de objetividade e focando sobretudo nos
aspectos militares de sua vida. ELLIS, op. cit., p. 15.
41
Holbl argumenta que a placa de fundação bilingue encontrada no Serapeum de Alexandria sugere que o nome egípcio
Osíris-Apis era a contrapartida oficial da grega. HOLBL, 2001, p.100.
42
Sobre o sincretismo, consultar a tese de doutorado de Cássio de Araújo Duarte. DUARTE, Cássio de Araújo. Estudo
sobre a iconografia de Ápis durante o período faraônico. Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo,
2010. (Tese de Doutorado).
desenvolveu em Alexandria, totalmente contrária a origem menfita e mais próxima das representações
divinas gregas. A imagem do Osíris-Ápis de Mênfis, em seu formato já sincrético (visível em estelas
e baixo relevos) é a de um homem mumificado com cabeça de touro, portando o disco solar entre os
chifres43.
Como os conselheiros de Ptolomeu conseguiram adaptar e reconhecer a imagem do deus
híbrido de Mênfis na de um ser antropomórfico, mais próximo aos deuses gregos clássicos como
Zeus, Ascléplio, Hades e Júpiter? Essa é certamente uma das questões mais intrigantes da história.
Em Mênfis a divindade sincrética conservou o nome Osíris-Ápis ou Osorápis, pelo antigo prestígio
do touro na cidade, no entanto, em Alexandria dedicações bilingues encontradas no Serapeum
44
confirmam a contração . Grande parte das divindades faraônicas já eram sincréticas, podiam ter
atribuições separadas ou se combinar e se transformar. Eram também representadas de diferentes
formas e exerciam diversas funções. Ou seja, as representações das divindades egípcias não eram
estáveis, eram complexas e podiam mudar de acordo com o contexto e os variados núcleos
sacerdotais, sendo difícil atribuir-lhes uma única função e imagem. Nesse sentido, as feições variadas
de um mesmo deus ou uma representação que incorporaria múltiplas divindades não eram raras no
contexto egípcio 45. O culto a Serápis se harmonizaria com tal mentalidade, porém considerando que
boa parte da população alexandrina era composta por imigrantes de origem helênica, deveria se
ponderar a respeito do apelo visual que lhes seria direcionado. Por terem menos tolerância com
formas divinas animais, daí a representação humana de Serápis seria mais aceitável para o público
alexandrino grego. Ora, tal religião poderia traduzir um pouco da complexidade étnica de Alexandria
e atender as mais diversas expectativas daquela miscelânea multicultural e difusa, ao mesmo tempo
em que se estabelecia algum vínculo com as tradições nilóticas.
A estátua original do Serapeum não foi encontrada, somente diversas representações
derivadas. A imagem padrão, com variações ocasionais (na iconografia e nos fragmentos de estátuas
encontrados) é a de um senhor barbudo sentado com um kálathos (uma cesta de frutas) em sua cabeça
e Cérbero, o cachorro de três cabeças sentado ao seu lado 46. Cérbero na mitologia grega era o guardião
do submundo e sua presença ao lado de Serápis talvez tivesse a função de representar o além, o que
também o associava ao Hades dos gregos e Plutão dos romanos, além do Osíris egípcio. O kálathos
era um símbolo grego vinculado a fertilidade e ligado as divindades helênicas Deméter e Dioniso.
43
DUNAND, 1991, p. 215 apud LOBIANCO, Luís Eduardo. “Serápis – divindade política de Alexandria: Helenismo e
Legitimação do Poder Ptolomaico e Romano no Egito à luz da Religião”. Revista Jesus Histórico: Revista de Estudos
sobre o Jesus Histórico e sua Recepção. V.9, 2012, p. 67-68.
44
PFEIFFER, op. cit., p. 390.
45
TRAUNECKER, Claude. Os deuses do Egito. Brasília: Editora UnB, 1995, p. 11.
46
PFEIFFER, op. cit., p. 392.
Nesse contexto, poderia servir também para marcar a prosperidade e fertilidade egípcia proporcionada
pelo Nilo, o que remetia novamente a Osíris 47
Dessa forma, enquanto na teologia egípcia Osíris-Ápis exercia funções de rei, guardião do
submundo e da fertilidade, na tradição greco-romana poderia equivaler a Dioniso (simbolizando a
fartura e renascimento), Hades-Plutão (governante do mundo subterrâneo), Zeus-Júpiter
(representando a supremacia) e, por fim, Asklépio (deus da cura). Portanto, ao se transformar em
Serápis, assumiu funções características dos deuses gregos e também suas feições humanas. Stefan
Pfeiffer argumenta que Ptolomeu não tivera a intenção de fazer uma simples equivalência entre as
culturas, era sobretudo necessário estabelecer uma relação mais profunda entre as funções oraculares
e crenças de boa sorte garantidas por Ápis, com Osíris, a divindade do submundo e com poderes sobre
a fertilidade.
Existem poucos elementos para avaliar o nível de meditação e reflexão de Ptolomeu acerca
da introdução do culto, e ainda menos para considerar se sua opção fora genuína, diante do impacto
exercido pela religião egípcia em Mênfis e consulta a diversos sacerdotes, ou planejada, visando sua
legitimidade política no Egito como um todo. Talvez um misto de intenções e projeções. O objetivo
aqui foi ressaltar que embora sua herança macedônica lhe empurrasse para privilegiar gregos, o rei
talvez tenha se convencido de que não deveria desconsiderar a força das antigas tradições como forma
de firmar sua liderança e garantir a predominância de Alexandria sobre o território nilótico. Dessa
forma, através de narrativas posteriores, em que elementos lendários pudessem já ter se cristalizado
na história, é notável como autores da tradição não ignoravam as possíveis inspirações egípcias do
culto.
47
LOBIANCO, op. cit., p. 75.
popularização da deidade. Foi discutido acima que Tácito aponta divergências com relação a origem
e datação da introdução do culto em Alexandria. A data da edificação do Serapeum também é objeto
de debates acadêmicos, Gunter Grimm por exemplo, sugere que sua construção remontaria já ao
reinado de Ptolomeu I ou II48. O que se sabe é que complexo passou por um notável engrandecimento
no reinado de Ptolomeu III Evergeta. A partir da reunião de inscrições dedicadas aos deuses irmãos
(Ptolomeu II Filadelfo e Arsinoé II) em associação com Serápis, Stefan Pfeiffer defende o vínculo
anterior entre o deus e os reis, demonstrando o envolvimento da realeza no projeto de construção do
Serapeum, o que apontaria para a força do deus como divindade dinástica49.
A escolha do setor da cidade onde já residiam egípcios nativos antes da fundação de
Alexandria para abrigar o templo talvez tivera a intenção de fortalecer a conexão da cultura nativa
com a dos gregos imigrantes. Provavelmente, os primeiros Ptolomeus e seus conselheiros
consideraram que a antiguidade e o simbolismo do local ajudariam a promover, ao mesmo tempo, o
deus e os governantes recentes, que estabeleceriam então a mediação entre o povo recém-chegado e
os egípcios. Segundo o egiptólogo português José das Candeias Sales, a construção de um imponente
templo na colina mais alta da região poderia ter a intenção de aproximar Alexandria de Atenas, além
de respeitar o conselho de Aristóteles de que a principal divindade cívica deveria ser colocada no
terreno mais alto da cidade, sugerindo que gregos imigrantes também foram considerados no
processo50. Para David Abulafia, a localização do Serapeum dentro da parte egípcia e afastada dos
bairros gregos seria a evidência mais marcante do sincretismo greco-egípcio pretendido pelos reis em
Alexandria, que visavam estender o culto também aos egípcios. Além de localizado em Rhacotis, o
complexo era cercado de esfinges 51. A despeito do anseio por harmonizar as tradições, percebe-se
uma tentativa de aproximar a divindade, a realeza e os egípcios, ao se apropriarem da força simbólica
do lugar de povoamento mais antigo da cidade para abrigar o deus dinástico.
Além da predileção por Rhacótis para reverenciar a herança antiga do sítio, o projeto tinha
52
diversas ressonâncias com o Serapeum de Mênfis, com seu nilômetro e galerias subterrâneas .É
provável que, inspirado na política de seu avô, Ptolomeu III Evergeta engrandeceu o complexo já
existente, acrescentando também uma biblioteca auxiliar. Além de tais evidências, a descoberta mais
impressionante feita no subterrâneo do Serapeum foi a estátua em basalto do touro Ápis (ainda visível
48
GRIMM, op. cit., p. 63.
49
Diversos autores enfatizam os vínculos entre Serápis, Ísis e os casais reais. Foram encontrados diversos fragmentos de
estátuas da divindade e de reis posteriores no lugar, sugerindo que poderiam ser cultuados lado a lado no templo. Como
Serápis era o deus do rei e associado a Osíris, Ísis era também concebida como deusa da rainha, portanto, não é surpresa
que o casal divino (com Serápis no lugar de Osíris) tenha logo ascendido para se tornar representante da dinastia.
PFEIFFER, op. cit., p. 399; HOLBL, op. cit, p. 133.
50
SALES, op. cit., p. 111.
51
ABULAFIA, op. cit., p. 120.
52
PFEIFFER, op. cit., p. 393.
para visitantes do lugar), uma forte indicação da permanência autóctone do culto ao lado da adoração
a Serápis 53.
Apesar da abundância de objetos encontrados no sítio e dos escritos que assinalam seu
esplendor, apenas recentemente se conseguiu reconstruir um pouco de sua antiga estrutura
arquitetônica. No contexto das escavações, estátuas clássicas e egípcias (do período dinástico e
54
ptolomaico) foram encontradas, além de fragmentos de dois obeliscos . Todas essas evidências
sinalizam que a população egípcia de Alexandria foi estimada pelos primeiros Ptolomeus. Apesar de
o templo de Alexandria ser o mais magnífico destinado à santidade, pois o Serapeum de Mênfis
manteve a tradição do culto de Osíris-Ápis com as feições taurinas, tudo indica que Serápis não teve
um grande apelo entre os egípcios, conquistando maior popularidade entre a população helênica de
Alexandria e alcançando uma maior difusão fora do Egito nos primeiros dois séculos de Império
Romano, ao lado da deusa Ísis55.
53
SALES, op. cit., p. 111.
54
MCKENZIE, Judith. The Architecture of Alexandria and Egypt: 300 B.C. to A.D. 700. London: Prestel, 2008.
55
Holbl aponta a ironia do Serapeum ter se tornado o último bastião da religião egípcia durante o período romano tardio,
além de ter sido lá que as disputas entre paganismo e cristianismo alcançaram seu auge, resultando da ruina final do
templo em 392 d.C. HOLBL, op. cit., p. 311; EL-ABBADI, op. cit., p. 46.
56
KOESTER, op. cit., p. 169; MILNE, 1924, p. 208-209.
57
SALES, 2005, p. 111.
58
PFEIFFER, op. cit., p. 392; KAHIL, op. cit., p. 82.
até alcançar os lugares mais remotos do Alto Império Romano, auge de sua adoração em termos de
amplitude territorial.
Embora Ísis já fosse conhecida pelos gregos desde Heródoto (associada a Deméter), sua
aceitação fora do Egito cresceu posteriormente ao lado de Serápis, quando ganhou as características
de uma divindade universal, não somente como a esposa de Osíris, mas como mãe suprema e soberana
do mundo subterrâneo 59. Foi então que a adoração se expandiu e ganhou o estatuto de uma religião
global, ultrapassando as fronteiras étnicas entre territórios. Deve-se sublinhar que a associação com
uma divindade conhecida desde tempos antigos, colaborou para a ampla aceitação de Serápis60. Ou
seja, se é possível entender a popularização de Serápis em Alexandria como um culto autônomo, sua
propagação fora do Egito ocorreu de forma interdependente da adoração a Ísis. Portanto, a parceria
com Ísis aumentou a tolerância de Serápis entre os egípcios, enquanto em regiões mediterrânicas
ocorreu o contrário, pois provavelmente foi a proximidade com Serápis que permitiu a difusão de Ísis
fora do Egito. Deve-se destacar, contudo, que Alexandria funcionou como seu centro de divulgação.
Além disso, para ser acolhido entre os gregos de Alexandria, o culto de Osíris-Ápis teve que se
adequar ao formato antropomórfico. O fato de a antiga Ísis já ser uma divindade egípcia em forma
humana também facilitou a aceitação mais ampla junto a Serápis.
Em Alexandria a tríade principal era composta de Serápis como o deus supremo e central, ao
lado de Ísis e Harpócrates, o Hórus criança, que se tornou predominante nas representações ao lado
61
da mãe . A antiga tríade de Ísis, Osíris e Hórus já tivera considerável difusão, contudo, foi
principalmente sua ressignificação na substituição de Osíris por Serápis que a fez alcançar um estatuto
universal para além do Egito62. Tal circulação por um horizonte mais amplo, por um lado enfraquece
a raiz egípcia do casal, mas pelo outro, o fez alcançar uma dimensão mais global e menos dependente
das raízes nativas.
Ainda que em Alexandria Serápis fosse vista como a patrona da cidade e da dinastia e a grande
protagonista da religião ao lado da companheira Ísis, Holbl reflete que para os egípcios Serápis
poderia ser somente a forma grega atribuída a Osíris-Ápis de Mênfis ou ainda, uma versão grega do
antigo Osíris, como Tácito defende 63. Nesse sentido, é natural que numa conjuntura de conquista, os
egípcios tenham optado por recusar o hibridismo e preferido reverenciar Ísis e Osíris-Ápis no formato
familiar. Portanto, a continuidade da adoração tradicional em paralelo ao culto híbrido colaborou para
59
KOESTER, op. cit., p. 91-192.
60
SALES, op. cit., p. 107-108.
61
MILNE, op. cit., p. 212
62
ELLIS, op. cit., p. 31.
63
HOLBL, op. cit., pp. 138 e 139.
64
PFEIFFER, op. cit., pp. 398 e 407.
65
SALES, op. cit., p. 111.
66
LEFEVRE, op. cit., p. 35. Apesar da força da difusão da religião nos núcleos ptolomaicos, o culto se expandiu também
por iniciativa privada em territórios de outros reinos helenísticos do mediterrâneo oriental, onde havia pouca associação
com o culto real de Alexandria. Entre mercadores de Alexandria seu culto circulou de forma independente da religião do
estado, ainda que motivada por ela. No contexto imperial, sua adoração teve enorme expansão também entre marinheiros
romanos de origem não-egípcia. Ver: HOLBL, op. cit. p. 138 e 139; KAHIL, op. cit., p. 82. ABULAFIA, op. cit., p. 233.
67
SALES, op. cit., p. 101.
Delfim Leão considera que uma das principais características do período helenístico foi o
surgimento de um espirito cosmopolita, marcado pelo estímulo à mobilidade de ideias, pessoas, bens
e também deuses. E nessa dinâmica, Alexandria e Serápis podem ser consideradas os casos mais
emblemáticos dessa época de alargamento dos horizontes, que se tornou possível a partir das
conquistas de Alexandre 68. Uma deidade estabelecida nesse contexto não poderia ser excessivamente
exclusiva, daí ter se adaptado às diferentes tradições, entendida e adorada de formas diversas 69.
Helmut Koester interpreta o maior trânsito de deuses como uma característica do período helenístico,
fazendo com que religiões e divindades antes locais e associadas a regiões específicas tivessem mais
“mobilidade”, passando por uma ressignificação, conforme se universalizavam e passavam fazer
parte de uma cultura mundial. Ou seja, não se pode falar somente do enfraquecimento das deidades
tradicionais, mas de terem maior possibilidade de conviver com outras e transitar 70. Nas palavras de
Koester:
O culto dos deuses egípcios tornou-se a religião oriental mais helenizada dos
períodos helenístico e romano. Sua base foi um desenvolvimento complexo de cultos
e mitos egípcios em que vários deuses egípcios foram envolvidos: Ísis, Osíris, Ápis,
Hórus, Anúbis e Set. O mais importante era o mito de Ísis e Osíris que, em sua forma
final, não foi um produto egípcio, mas helenístico. 71
68
LEÃO, Delfim. A globalização no mundo antigo: do polites ao kosmopolites. São Paulo: Annablume Clássica, 2013,
p. 113.
69
FERGUSON, John. A herança do helenismo. Lisboa: Verbo, 1973, p. 26.
70
O autor identifica um padrão em vários cultos helenísticos que ganharam estatuto de religião universal; inicialmente
ritos estrangeiros e antigos eram helenizados, no sentido que suas práticas eram traduzidas e explicadas com base em
conceitos gregos (interpretatio graeca), depois eram ressignificados e universalizados. Usa como exemplo as antigas
religiões de mistério gregas, argumentando que enquanto os antigos mistérios não transitavam, pois eram vinculados a
lugares específicos, muitas religiões helenísticas começaram a se organizar e circular no “modelo” dos mistérios, para
que a adoração ganhasse um significado mais profundo e uma aura obscura, que satisfizesse o interesse pela edificação
pessoal através da experiencia religiosa, KOESTER, op. cit. 169; p. 203-204.
71
Idem, p. 188.
Alexandria, não é improvável que Ptolomeu I Sóter tenha considerado que diante da diversidade
cultural da nova cidade, o excesso de permeabilidade religiosa poderia se tornar um problema para o
reino. A ênfase em um culto único (ainda que sincrético) visava estabelecer algum tipo de controle e
unidade e poderia ser, também, uma forma de evitar que os gregos se seduzissem pela religião
tradicional egípcia 72.
A ressignificação do culto a Osíris-Ápis e sua reacomodação para um público helenizado
serviria como um projeto de identidade para uma cidade nova, cujos governantes ansiavam pela
criação das próprias tradições, ao mesmo tempo em que valorizavam os vínculos com as antigas raízes
gregas e egípcias, sem as recusar e enfraquecer. Uma possibilidade é que os Ptolomeus tenham
tentado estabelecer a fusão dos dois cultos ao transformar os deuses-irmãos Ísis e Serápis na
“contrapartida cósmica” da realeza (a partir de Ptolomeu II Filadelfo que casou com a irmã Arsínoe
II), divindades que representavam a casa real, o Egito Ptolomaico e a universalidade da cultura
alexandrina, criando uma identidade global no ecúmeno, ainda que a ampla aceitação e a diversidade
de formas que o culto ganhou ao longo do tempo não deva ser somente associado à iniciativa real e
suas motivações.
72
SALES, op. cit., p. 102.