BHR - Lucas - Aula 1
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Ferrugem, Lucas
ISBN:
1. História da Rússia
CDD 990
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INTRODUÇÃO
A Rússia foi um dos temas mais abordados do século XX, acerca do qual há uma
historiografia imensa. A literatura, a pintura, a música desenvolvida no país, e a sua
história, não param de chegar até o Ocidente. E, no entanto, essa potência gigantesca,
influente e determinante desde sempre na história, não é devidamente compreendida.
O fato de não compartilharmos o alfabeto, nem semelhanças linguísticas e
culturais, fez com que tivéssemos uma impressão muito afastada do que é a Rússia
enquanto país, enquanto economia, enquanto política e enquanto cultura.
Por isso, o curso “Uma breve história da Rússia” apresenta um objetivo
desafiador: percorrer o período que abrange desde a formação do território russo, antes
de Cristo, até a Rússia contemporânea de Vladimir Putin e a posição que essa federação
ocupa na ciência política atual.
Neste e-book, trilharemos somente uma fração dessa jornada. Veremos como a
construção e a expansão do território russo levou à formação de um Império, sendo
nosso destino final o preâmbulo da Revolução e o clima que imperava antes de Nicolau
II ascender ao trono.
RÚSSIA: Uma primeira aproximação
“A Rússia é uma charada embrulhada em um mistério dentro de um enigma.”
Winston Churchill
A Rússia é o maior país do mundo. Seus mais de 17 milhões de km² abrigam um
nono da área terrestre. Apenas para dimensionarmos o quanto isso significa, dentro dela
cabem dois Estados Unidos, uma América Latina e um Plutão.
1
Bering é o nome do expedicionário que descobriu o estreito e fez os mapas de navegação do
Alasca.
Rica em recursos naturais, a Federação Russa conta com a região mais arbórea
do mundo, a maior reserva de gás do planeta, a segunda maior reserva de água
(perdendo apenas para o Brasil) e uma das dez maiores reservas de ouro sob banco, ou
seja, enquanto reserva fracionária de dinheiro. Além disso, o país é o segundo maior
exportador de petróleo, sendo a primeira posição ocupada pelos Estados Unidos e a
terceira pela Arábia Saudita.
Sexta economia do mundo em paridade de poder de compra, com um PIB de $1.4
trilhões e um PIB per capita de $10.700, a Rússia é membro do Conselho de Segurança
das Nações Unidas (ONU), do G20, do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do
Sul), da APEC (Cooperação Econômica Ásia-Pacífico) e da Eurasec (Comunidade
Econômica Eurasiática). Cabe ao país o segundo maior exército nuclear, o quinto maior
orçamento militar nominal e o terceiro maior exército - em todos os sentidos medidos.
Nono país mais populoso do planeta, a Rússia tem mais de 140 milhões de
habitantes, dentre os quais 13% são considerados muito pobres. Ao mesmo tempo, 77
famílias multimilionárias concentram em suas mãos 75% da riqueza. Em 2016, o salário
médio dos russos foi de quase 36 mil rublos, cerca de R$1900,00. Ainda que este valor
seja superior aos salários médios dos antigos países da União Soviética, é baixo em
comparação com os países da Europa Oriental e, principalmente, Ocidental. Estimativas
apontam que metade da renda das famílias (50%) é destinada para comprar comida e
praticamente ¼ (22%) é gasta em vodka.
A Rússia também exibe a maior ferrovia do mundo: a transiberiana, que transporta
seus passageiros e cargas até a Sibéria, um local em que as temperaturas atingem -
40ºC e em que 50% das causas de demissão se devem ao alcoolismo de vodka no
ambiente de trabalho.
O povo russo se orgulha de uma longa tradição de excelência nas artes, na
ciência, na cultura e na tecnologia, principalmente a astronômica, na qual alcançou feitos
incríveis. Um dos países mais cultos do mundo, suas estações de trem são verdadeiras
obras de arte, os teatros são magníficos, as óperas são fantásticas, a literatura é uma
das mais pujantes de todos os tempos, assim como a poesia e o cinema.
Esses dados instigam uma série de questionamentos: o que aconteceu para que
a Rússia apresente uma economia tão diferente dos demais países em relação à maneira
de se distribuir? O que aconteceu para que a Rússia conseguisse conquistas tão
relevantes? Mais: o que aconteceu para que a revolução comunista fosse possível lá?
A CONSTRUÇÃO E A EXPANSÃO DO TERRITÓRIO RUSSO
A história da Rússia tem início há cerca de três mil anos, quando povos
denominados cittás se estabeleceram no núcleo do espaço de terra ocupado, hoje, pelo
país, sendo os primeiros a migrarem para lá. O termo cittá não apresenta uma tradução
consolidada. Enquanto Heródoto, primeiro historiador grego, atribuiu-lhe o significado de
arqueiro, a historiografia oriental aponta corresponder à palavra saissaka, que quer dizer
atirador.
Como não possuíam linguagem escrita, todos os escassos conhecimentos que
temos acerca desses povos têm origem na arqueologia. A partir dessa ciência, foi
possível descobrir que os cittás erguiam morros de terra de 10 a 15 metros para servirem
de túmulos (curgans) para seus líderes. Além disso, acredita-se que apresentavam um
panteão de sete deuses, em que um oitavo deus estava disponível apenas para a
nobreza, assinalando a forte cultura de separar nobres de pessoas comuns desde aquela
época.
Tal como ocorreu na queda do Império Romano, os cittás foram invadidos por
bárbaros: húngaros, godos, eslavos. Em decorrência disso, várias tribos foram criadas
próximas à Europa. Essas tribos não compartilhavam a mesma língua e viviam em
extremo estado de violência, marcado por constantes guerras entre si.
O processo de unificação começou por volta de 300 anos d.C., quando vikings
escandinavos chegaram a esses territórios remando pelos rios. Embora vinculados ao
machado de folha dupla, os vikings eram, na verdade, um povo comerciante que não
respeitava as regras locais. Devido ao caráter de sua atividade, possuíam uma
habilidade de dialogar com outros povos e já haviam desenvolvido o uso da moeda, um
sistema de preços e uma ética comercial. Suas práticas econômicas, novas para aquelas
tribos, e sua capacidade de comunicação promoveram a integração e a prosperidade
daquelas sociedades.
Nas Crônicas de Nestor, a narrativa epopeica do povo russo, está registrada uma
importante lenda, que conta que os próprios povos das aldeias se colocaram de joelhos
aos pés do povo viking escandinavo, os varegues, pedindo: “assumam o poder, porque
vocês trouxeram paz e riqueza.”. Outra frase da época diz: “a nossa terra é grande e rica,
mas não há ordem dentro dela. Venham, pois, governar-nos como reis; é a única forma
de sermos enquanto povo.”.
Nessas crônicas está o mito fundador da cultura russa: colocar-se de
joelhos para um governante, a fim de que este traga paz por meio da distribuição
de riqueza.
A DINASTIA RURIK
O ato de se ajoelhar para o comércio viking fez com que o príncipe Rurik
ascendesse ao poder, dando origem ao princípio de comunidade política da Rússia, com
o início da dinastia Rurik. Enquanto governante, Rurik empreendeu a unificação do
comércio e o estabelecimento da paz. Os povos localizados naquela região passaram a
se autodenominar rus, ou seja, aqueles que remam, transformando aquela região na
terra de rus. Nos 700 anos de duração dessa dinastia, houve 45 monarcas. Destes,
citaremos apenas os mais importantes.
Rurik foi sucedido por seu filho Oleg, que começou a expandir o território e abriu
guerra contra os cazares, assim chamados por pertencerem ao Império de Cazar, que
impunha a cobrança de impostos nas estradas. Os vikings, com sua cultura comerciante,
queriam abolir essa prática, por considerá-la prejudicial. Oleg conseguiu vencer as
batalhas e conquistou Kiev, uma importante cidade comercial, no sul do território russo
europeu, por conectar duas terras cujo acesso era difícil de outra forma. Com isso, o
povo passou a se chamar Quievorus, que são os rus de kiev. Oleg também deixou o
poder para seu filho, Evestoslau, que deu continuidade à política expansionista, desta
vez para leste.
Os sucessivos governantes dessa dinastia mantiveram a ampliação do território
como um objetivo fundamental. Até que o rei Vladimir assumiu o trono e percebeu que,
apesar da estabilidade econômica e da conquista de terras e de recursos, não usufruía
do mesmo prestígio dos demais impérios, sendo a causa da diferença, o paganismo.
Isso o levou a concluir que o Império precisava de uma religião. Essa conclusão
desencadeou um dos fatos mais importantes dessa dinastia: a conversão ao
cristianismo ortodoxo, em 988 d.C. Reza a lenda que a escolha de Vladimir por essa
religião foi motivada pela possibilidade que esta lhe conferia de ter mais de uma mulher.
O cristianismo ortodoxo nasceu de uma cisma na Igreja. A queda de Roma, onde
a Igreja Católica foi fundada, e a invasão dos povos bárbaros à cidade fizeram com que
o imperador Constantino estabelecesse uma nova capital: Constantinopla. Contudo, a
medida não foi aceita por todos e duas igrejas passaram a coexistir: a de Roma e a de
Constantinopla. O aumento crescente da divergência entre as práticas dessas igrejas
culminou na excomunhão mútua. A partir desse momento, estava configurado o cisma e
a Europa passou a viver com dois papas. Assim, de Constantinopla rumo ao Oriente, o
cristianismo propagado não é o apostólico, mas o ortodoxo da Igreja de Constantinopla,
que não entende a Igreja de Roma, do Vaticano, como legítima.
Constantinopla se tornou a única cidade com uma igreja e um império. Em vista
disso, foi considerada a Segunda Roma. No entanto, também veio a ser tomada, por
Genghis Khan2. Como a Rússia já havia adotado o cristianismo ortodoxo como religião
neste período, houve uma transferência de poder de um império para o outro.
Vladimir legou a seu filho, Yaroslav, o Sábio, o trono. Yaroslav escreveu um
código legal, que foi promulgado por seus filhos. Esse código, com atraso civilizacional
de mil anos, trazia leis expressas no código de Hamurabi, com normas extremamente
específicas, como: “se você roubar um carneiro de um homem nobre que seja cristão,
você será decapitado às 20h”. Se não é carneiro, se não é um homem nobre, se não é
cristão, nada se aplica. Essas leis, provavelmente, tinham influência de crenças litúrgicas
e religiosas.
A morte de Yaroslav provocou uma disputa entre seus filhos pelo trono, o que
dissipou a ordem anteriormente existente. Ao mesmo tempo, a riqueza se tornava
escassa, uma vez que as Cruzadas estavam impedindo o comércio com Constantinopla.
Sem uma herança legítima, a Rússia caiu em uma anarquia. Como resultado, o mito
fundador, que era governar, com ordem, a distribuição de riqueza, colapsou nesse
primeiro momento. Os povos bárbaros, que viviam nas proximidades, perceberam essa
desestabilização e invadiram, roubaram e destruíram tudo. Com a unidade perdida, o
povo se destrinchou em pequenas tribos.
Até que um acontecimento veio abalar essa Rússia fragmentada. Após ter tomado
toda a Ásia, Genghis Khan decidiu realizar uma missão de reconhecimento da Europa e,
para isso, invadiu a Rússia. As tropas de Genghis Khan venceram a batalha, mas ficaram
impressionadas com o tamanho da civilização presente naquele território, pois
acreditavam que encontrariam apenas aldeias, na região. Diante desse cenário, haviam
optado por recuar. O povo russo, que não sabia quem eram aqueles guerreiros, não
compreendeu por que eles vieram para seu território, mataram pessoas e foram embora.
Isso ficou como uma espécie de mito da muralha do norte, como em Game of Thrones.
2
Genghis foi um aldeão que ganhou uma enorme força militar, sendo um dos maiores
generais da história. A palavra khan, acoplada ao seu nome, significa líder tribal.
Quatorze anos se passaram até que Batu Khan, neto de Genghis Khan, voltou
para ocupar a Rússia com mais de 300 mil soldados. Essa foi a primeira vez que a Rússia
perdeu no inverno, pois esse exército vinha da Sibéria, onde as temperaturas beiram os
40ºC negativos. Além disso, possuíam uma tática de guerra bem estruturada. A cavalo,
eles se posicionavam em fileiras, que eram abertas apenas quando ficavam de frente
com o inimigo. Ao se abrir, rodeavam o inimigo, decepando a todos.
A vitória de Batu Khan pôs fim à dinastia Rurik e deu início a um novo período na
história da Rússia: o Canato da Horda Dourada.
O NOVO TSAR
Roma, a primeira Roma, estava destruída, invadida por tribos bárbaras.
Constantinopla, a segunda Roma, estava nas mãos do Império Otomano, que era
muçulmano. Ao mesmo tempo em que isso ocorria, Moscou venceu uma batalha muito
improvável, na qual conseguiu expulsar os islâmicos com a premissa de uma guerra
santa. Mais do que isso, estabeleceu a igreja ortodoxa como religião oficial.
Um conselho foi formado para decidir quem seria o novo rei e Ivan III foi eleito.
Por se sentir representante da Terceira Roma e herdeiro de Júlio César, Ivan III se
autonomeou com uma palavra a não se esquecer: ele afirmou ser o novo César, ou seja,
o novo Tsar3. Ao fazer isso, estava informando ao mundo que se entendia como sucessor
legítimo da Terceira Roma.
Ainda que os Impérios Franco, Prússio e Inglês não lhe concedessem importância,
Ivan III conquistou grande legitimidade ao realizar uma missão de expansão e de
reunificação do território.
Essa legitimidade ainda foi fortalecida ao conseguir se casar com a última herdeira
do Império Bizantino, tornando-se a Segunda e a Terceira Roma. O casamento significou
a apropriação da cultura bizantina, de sua arquitetura, da língua, do alfabeto cirílico e da
3
Não há diferença entre Czar e Tsar, exceto a grafia. Ambos significam César.
Águia de Duas Cabeças. A intensidade dessa influência foi imensa e forma o que
entendemos hoje como a cultura russa.
Ivan IV, filho de Ivan III, sucedeu-o no trono, usufruindo de uma legitimidade ainda
maior, sendo coroado pela Igreja Ortodoxa. Em sua coroação, o monge sentenciou:
“Constantinopla caiu diante do Império Otomano muçulmano, e o czar moscovita é o
único governante da igreja. A Terceira Roma será o sucessor final da antiga Roma e da
cristandade. Os centros de cristandade nos aceitarão como seu primeiro período.”.
Isso subiu à cabeça de Ivan IV, que entendeu que a única missão da Rússia, a
Terceira Roma, era conquistar o mundo. Isso ressoou profundamente no imaginário
popular da Rússia e passou a pautá-lo. Os russos se entendiam como os únicos cidadãos
legítimos do planeta. E os demais tinham que se converter à Igreja Ortodoxa.
Em um de seus primeiros atos, Ivan IV espancou seu filho até a morte com o cetro
real, devido a uma discussão entre ambos. No dia seguinte, voltou a governar
normalmente. Essa atitude perversa lhe conferiu a alcunha de Ivan IV, o Terrível.
Ivan IV, o Terrível, também demonstrou outros comportamentos cruéis, como
mandar seu exército atravessar, a nado, um rio congelado, com temperaturas próximas
a -20ºC. Ele queria verificar se os soldados conseguiriam chegar vivos à outra margem,
a fim de saber se poderia se valer dessa estratégia militar, caso fosse necessário.
Mesmo essas ordens eram obedecidas, pois, com o dinheiro advindo das
dominações de Moscou, Ivan IV contratava a facção dos cossacos. Os cossacos eram
mercenários que vendiam serviços de guerra. Eles estavam assentados entre a Polônia,
a Crimeia, o Império Otomano e a Rússia.
Ivan IV não conseguiu perpetuar sua dinastia. Seu filho Tion, um doente mental,
matou o próprio irmão e, incapaz de governar, acabou morrendo também. Com a sua
morte, a Rússia, uma vez mais, entra em uma anarquia.
Gostaria de chamar a atenção para um fato: esse é o quarto ciclo em que um
reinado começa com a ideia de expansão, paz e riqueza e termina em desgraça,
destruição e morte.
Nesse período anárquico, entra-se na “Era dos Problemas”, caracterizada por
várias guerras e pela morte de ⅓ da população devido à fome e à peste negra, que
vitimaram toda a Europa entre os séculos XI e XIV.
A fé cristã ortodoxa desempenharia novamente um papel fundamental para o
restabelecimento da ordem no país. Neste contexto de fragilidade da Rússia, a Polônia,
uma adversária antiga, tomou Moscou e subjugou a igreja com outra cultura. Isso
provocou uma reação de um príncipe que, motivado pela questão religiosa, conseguiu
expulsar os invasores e restituir a independência da Rússia. A relevância desse fato,
para os russos, é tamanha que, embora não haja muitos detalhes historiográficos, até
hoje, em todos os dias 4 de novembro, comemora-se o dia da unidade nacional da
Rússia, o dia em que os russos expulsaram os poloneses.
Embora fosse general, o príncipe que comandou a resistência e a vitória sobre os
poloneses não se considerou capaz de governar no cenário de desordem em que estava
imersa a Rússia. Por isso, um novo conselho, composto por nobres, aristocratas, donos
de terra, entre outros, foi criado para nomear um novo rei. O escolhido, desta vez, foi
Mikhail Romanov.
OS ROMANOV
Mikhail tinha apenas 16 anos quando foi escolhido para governar o império russo;
era pertencente a uma família tradicional muito rica da Rússia. Sua mãe chorou
copiosamente, apavorada com o que poderia acontecer, por medo de seu filho morrer.
Os monges chegaram a lhe pressionar, questionando se preferia que a Rússia
afundasse.
A Rússia, de fato, vivia um caos alarmante. Moscou, o centro de poder, era alvo
constante de saqueadores e, era tal a gravidade da situação, que Mikhail precisou ficar
hospedado em um monastério, em um primeiro momento. Receoso acerca de seu
futuro, Mikhail Romanov visitou o oráculo do conselho, representado pelo conselho de
monges anciãos da Igreja, em busca de orientação. O oráculo respondeu a Mikhail: “o
senhor terá muito sangue pela frente, mas não será o seu, e sim o de seu nome. Fique
tranquilo.”.
A profecia é incrível, de tão real. Com a segurança de que não iria morrer, Mikhail
assumiu o trono da Rússia e inaugurou a dinastia Romanov, que vigorou nos 200 anos
seguintes. Como precisava chegar até Moscou, que estava um pandemônio, Mikhail
começou a ceder territórios para a Prússia e para a Suécia, em troca de paz. Sua
estratégia obteve resultados e a Rússia começou a se restabelecer. Logo em seguida,
no entanto, aos 23 anos, Mikhail morreu por problemas de saúde.
Seu parente e herdeiro, Alexei I, assumiu o trono e estipulou uma das medidas
mais significativas, no meu ponto de vista, para que a revolução tenha acontecido nesse
país, e não em outro. Alexei I determinou a lei da servidão, que transformou 80% da
população em servos da nobreza. Essas pessoas perderam seu direito à escolha, não
podiam fugir e não podiam ter a sua liberdade comprada por um terceiro. Se um indivíduo
nascia como servo de uma família, sabia que morreria com ela. Existiam senhores que
matavam seus servos, por não quererem assumir as despesas. Politicamente, essa era
uma decisão estúpida, porque colocava, em médio prazo, 80% da população contra o
governante. Esse sistema vigorou por 200 anos na Rússia, até que a família Romanov
promoveu uma releitura da lei da servidão. Quando esse momento chegou, no entanto,
as pessoas entenderam que os Romanov deviam ser mortos.
Racin, um intelectual, protestou contra a lei da servidão, negando-se a aceitá-la.
Como punição, recebeu a pena de morte, que aconteceu em praça pública. O povo se
reuniu para assistir Racin ser esquartejado: primeiro os pés, depois a cintura, depois os
braços e, por fim, a cabeça. Exercendo uma governança rígida, Alexei I usava
constantemente condenações para servirem de exemplo, a fim de demonstrar o que
aconteceria àqueles que desrespeitassem suas leis.
Durante o seu reinado, os cossacos foram invadidos pela Polônia e recorreram a
ele, em busca de apoio militar. Para obtê-lo, os cossacos colocaram em perspectiva que
isso permitiria a aniquilação da Polônia e ofereceram como recompensa a anexação de
territórios pelos Romanov. Alexei I aceitou o acordo e o povo polonês foi massacrado.
Nessa época, os demais 20% da população não podiam optar pelo emprego que
quisessem. Havia um livro em que constavam todas as profissões exercidas pelos
membros de uma determinada família. As pessoas estavam restritas ao histórico de
profissões de seus pais. Essa norma trouxe consequências negativas: com a falta de
liberdade de escolha, os postos de trabalho eram ocupados por maus profissionais.
Posteriormente, ao perceberem os efeitos prejudiciais, os Romanov decidiram que a
disputa de emprego, para aqueles 20% da população pertencente à nobreza, seria
realizada com base no mérito. No entanto, o pedido para o exercício de uma profissão
específica deveria ser submetido ao governo, que, sob seus critérios, poderia emitir ou
não a aprovação. Tempos depois, quando Fiodor III assumiu o trono, tentou abolir essa
prática e queimou os antigos livros de posição social como ato simbólico, para dizer que
isso não fazia mais parte da Rússia.
A dinastia Romanov deu prosseguimento à política de expansão do território por
meio de guerras regulares. Desse período, também destaca-se a celebração de um
tratado de paz com a Polônia, para que ambos os países formassem a Liga Santa, cuja
finalidade era derrotar os muçulmanos.
Alguns monarcas reinaram até que Pedro, o Grande, ascendeu ao poder. Em
busca de aliados para a Guerra Santa contra os mouros, Pedro realizou um feito sem
precedentes: se tornou o primeiro rei a sair da Rússia. Em sua viagem à Europa à procura
de apoio, ficou impressionado com o desenvolvimento da França e da Inglaterra, com as
ciências e com a tecnologia. Deslumbrado, retornou à Rússia com anseios de modernizar
o país.
4
O historiador Angelo Segrillo realizou a primeira tradução completa da tabela de patentes.
Está disponível no laboratório de estudos da Ásia, do Departamento de História da USP.
5
Pedro, o Grande, pai do seu país, imperador de todas as Rússias.
Como queria estudar filosofia para parecer bem na sociedade, buscou tornar-se
amiga dos melhores filósofos da época. Assim, se aproximou dos salões de Paris, em
que Diderot, Voltaire, Rousseau, entre outros, já defendiam suas propostas de reforma.
Além disso, também ficou encantada com as filosofias de Hegel e Kant. Fascinada com
esses estudiosos, Catarina decidiu levar esses conhecimentos modernizadores para seu
país que, em sua concepção, só tinha servos analfabetos. Para isso, realizou uma
missão em 1762, em que levou a alta cúpula das filosofias francesa e alemã para a
Rússia, a fim de fundar as primeiras escolas públicas russas com essas ideias.
Por ser apaixonada pela estética do sábio da filosofia, da filosofia enquanto status,
e não necessariamente do conteúdo em si, Catarina não compreendeu o que fazia. Em
uma sociedade em que 80% das pessoas eram servas, em que os reis frequentemente
massacravam a população, ela resolveu fornecer uma educação formada pela junção
dos pensamentos de Hegel - para quem o Estado é o novo Deus e Deus não existe mais
e, portanto, não precisa ser acreditado - e de Voltaire, cuja frase mais famosa é “A
revolução só estará feita quando o último padre for enforcado nas tripas do último rei.”.
A criação de uma ferrovia ligando Moscou a São Petersburgo possibilitou o fluxo dessas
ideias no país.
A cultura russa, de fato, floresceu muito, pois Catarina embutiu muito
conhecimento num povo muito sofrido, de milhares de anos de guerra, fome e dor. O
século seguinte seria dos grandes escritores da literatura e não só Nikolai Gogól,
Turguêniev, Tchekhov, Dostoiévski, Stanislavski, Tolstói, Bolshoi. A lista é incrível. Uma
elite intelectual estava formada.
A modernização de Catarina não se deteve na educação. Ela também mandou
construir o Palácio de Inverno, aos moldes de Luís XIV, para ser a nova casa dos
Romanov. Além disso, formou uma coleção de obras de arte invejável, abrigada hoje no
Hermitage, um dos maiores museus da Europa. Com isso, ela seguiu todos os passos
de quem perdeu a cabeça na guilhotina. E mais um spoiler: o Smolny, colégio de meninas
que fundou para a aristocracia, foi usado por Lênin como base antes da Revolução, por
estar próximo do Palácio de Inverno. Catarina construiu, literalmente, o caminho da
revolução.
A elite intelectual, formada pelas ideias do iluminismo francês e do materialismo
alemão, popularizava cada vez mais a ideia de que era preciso um movimento de
liberalização.
E foi neste contexto que os Romanov mandaram servos para a Sibéria, a fim de
construir a ferrovia transiberiana e de demonstrar que não perdiam o Império Russo de
vista. Na Sibéria fazia tão frio, que o exército sequer ia supervisionar os trabalhadores.
Lentamente, tantas decisões inumanas criam o questionamento: por que se submeter e
trabalhar para esses reis?
Catarina foi uma boa conquistadora, tendo anexado 500 mil hectares de terra ao
Império Russo, dentre os quais, consta a anexação da Polônia 6. Com o advento da
Revolução Francesa, abandonou o iluminismo, no final de sua vida. No entanto, a
população russa já havia absorvido aquela filosofia. Seria nessa mesma elite que “O
Manifesto Comunista”, que estava sendo escrito naquela época por Karl Marx e Friedrich
Engels, iria se proliferar.
Catarina é sucedida por Alexandre I, responsável por enfrentar as guerras
napoleônicas contra a França. Para a trajetória que desejamos percorrer, são dois os
acontecimentos fundamentais de seu reinado. Primeiro, o fato de a Rússia anexar a
Geórgia, terra natal de Stálin, concedendo-lhe o direito de ser russo. Segundo, a perda
do apoio do exército, que ansiava por uma reforma liberal. Para alcançar essa finalidade,
sociedades secretas surgiram e tentativas de golpes foram executadas contra os reis.
Diante desse cenário ameaçador, como reação, os Romanov passaram a
massacrar o povo violentamente.
Após Alexandre I, teve início o reinado de Nicolau I, que ironizou o lema de
Catarina, “Razão, Tolerância e Progresso”. Sem se dar conta de que já não contava com
o apoio do exército e de que havia uma elite intelectual impregnada pelas idéias
6
Com a anexação da Polônia, houve a absorção de toda uma população judaica. Sendo a cultura
russa hostil aos judeus, zonas de assentamentos foram criadas para eles morarem. Excursões
de extermínio aos judeus, chamadas Progom, eram realizadas por facções organizadas, nessas
zonas de assentamento. Isso fez com que milhões de judeus fugissem, a maior parte deles para
os Estados Unidos e para a Alemanha.
revolucionárias, adotou para si as máximas “Ortodoxia, Autocracia e Nacionalidade”.
Para ele, a Rússia deveria estar marcada pela Igreja, pelo Rei e pelo espírito russo de
Terceira Roma.
7
A lista de indicações de leitura foi pensada para ser lida na ordem proposta acima, a fim de
evitar dificuldades e de promover fluência na cultura russófona. Por isso, as normas da ABNT
não foram utilizadas. Além disso, recomendam-se as edições da editora Cosac Naify e da
editora 33.
8
Este livro foi considerado a melhor biografia da história das biografias literárias, ao intercalar
toda a vida de Dostoiévski com trechos dos seus livros e a interpretação que ele possivelmente
deu a cada um desses fragmentos.