OBADJA, Lionel AntropDasReligioes

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ANTROPOLOGIA

DAS R ELIGIOES
Título original:
L' Anthropologie des Religions
© Éditions La Découvertc, Paris, 2007
Tradução: Pedro Elói Duarte
Capa: FBA LIONEL OBADIA
Na capa: desenho concebido a partir da representação da imagem de um xangô.
Depósito Legal nº 320055/10

Biblioteca Nacional de Portugal - Catalogação na Publicação


OBADJA, Lionel
Antropologia das religiões. - (Perspcclivas do homem)
ISBN 978-972-44-1606-9
CDU 39
2
316

Impressão, paginação e acabamenlO:


Pentaedro
para
EDIÇÕES 70, LDA.
Janeiro de 201 1

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INTRODUÇÃO

, ,,111 111igcm no mesmo tronco de questionamentos filosófi-


1 l1 1q11rlo a que se convencionou reunir na categoria geral das
l 11 111 1.1... das religiões» representa diversas disciplinas que se
111111111,1111/ill:1111 no século x1x. A unidade destas ciências funda­
' 111, 111,,, 1111111a convergência improvável de opiniões sobre o
111 1111111 1 .11l11l' os conceitos do que num acordo explícito sobre
,, 11lq11 111 comum. Estas ciências oferecem um panorama
1 1 1 1111 d1 .p.11 dl' abordagens e teorias, que se estendem des-
1 1 111,, ·1.1 ., lrlologia, a exegese e a filosofia religiosa, até
hl 111n 1 1 ,111 111logia, à psicologia e à antropologia - sem
1 t n , 1111111111110 recente de disciplinas como a geografia,
11111111 1 1111 11•. l ll'lll'ias políticas.
li ti,11 1 111.il,,.1 assim as variações e recorrências das
1 l1p11, .i-i 11uma escala diacrónica mais ou menos
1 t 111 l''"' 11111" p;11 l icularcs da temporalidade ou desde os
Ili , ,, 11 11·.) (' ll'l'onstitui sistemas religiosos, ligados
1, 1 111 1, 11 11 ,,., 111,-. quais aparecem ou se desenvolveram.

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ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES INTRODUÇÃO

A sociologia assume como objecto a dimensão e as condições e, neste sentido, permanece tributária dos desenvolvimentos e
sociais da religião: as relações entre a religião e a vida social, das orientações de uma antropologia geral. Em l 991, André
as suas formas colectivas, os seus efeitos ou funções sociais, Juillard já afirmava que «a antropologia das religiões conhece,
as suas dinâmicas de transformação impulsionadas pelas mu­ desde há uma dezena de anos, um novo interesse, marcado por
danças sociais, os processos de identificação colectiva ligados uma produção volumosa de trabalhos, cada vez menos contro­
às pertenças confessionais ... O objecto de uma psicologia da lável. Estabelecer o seu panorama constitui um empreendimento
religião parece igualmente muito definido: as relações entre a perigoso l 1991, p. 27](). Mais de quinze anos após esta consta­
psique humana e a religião, através cio estudo dos mecanismos tação, o volume das publicações aumentou em superfície e em
mentais, os afectos e as emoções mobilizados na vida religiosa diversidade, o que parece mais uma vez ameaçar o sucesso da
(os sentimentos e os desejos), a natureza e as formas da expe­ realização de uma cartografia. O leitor, portanto, não encontrará
riência religiosa, as interacções entre comportamentos religiosos aqui uma teoria antropológica da religião, mas uma visão geral
e perturbações psicológicas, o simbolismo inconsciente da vida das maneiras como os antropólogos falaram, de forma central ou
psíquica, a construção da identidade pessoal através da prática periférica, da religião, das religiões ou dos fenómenos religio­
ou adesão religiosas. Que lugar poderá ocupar a antropologia sos desde há 150 anos. Como assume o objectivo de clarificar
neste espaço já largamente circunscrito por disciplinas com o espaço teórico e metodológico da antropologia das religiões,
objectos próximos dos seus? Designada como ciência da cul­ esta obra esforça-se assim por apresentar aquilo que funda a
tura ou de certas sociedades («primitivas» ou «tradicionais»), singularidade deste campo: a sua constituição histórica e as suas
são-lhe reconhecidas, por um lado, algumas especificidades (de bases epistemológicas (capítulo 1), os métodos em que se funda
método, nomeadamente), são-lhe atribuídas descobertas teóricas o seu conhecimento (capítulo II), os modelos de religião forjados
(a racionaUdade da feitiçaria, entre outras) e dela se conhecem pelos antropólogos (capítulo III), os objectos singulares que o
alguns grandes nomes (Edward Tylor, James G. Prazer), sem estudo das religiões suscitou (crenças, mitos, ritos... ) (capítulo
que necessariamente a sua contribuição geral seja sempre muito IV) e, por fim, os desenvolvimentos contemporâneos do campo
claramente identificada. No entanto, a antropologia dedicou-se relativamente aos progressos intelectuais das ciências do homem
igualmente - até aos limites das suas competências - à compreen­ e das mudanças históricas (capítulo V).
são de quase todos os temas acima citados. Por conseguinte, não
são os objectos que fundam, propriamente falando, a identidade
das disciplinas das ciências das religiões, mas sim as perspec­
tivas teóricas e metodológicas adoptadas para os construírem e
dar-lhes uma explicação singular.
Além disso, embora seja relativamente corrente definir a
antropologia das religiões em relação às outras ciências das
religiões, é possível (trata-se da opção aqui escolhida) situá-la
numa história e numa cartografia específicas. Isto porque a an­ ( ) As referências entre parêntesis rectos remetem para a bibliografia
lropologia das religiões é, em primeiro lugar, uma antropologia no final da obra.
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- --- - - - --

A Antropologia das Religiões


Quando se trata de reconstituir a história e os desenvolvimen­
tos da antropologia das religiões, é possível escrever duas versões
diferentes. Pode-se misturar indistintamente os contributos de
filósofos, sociólogos, historiadores ou mitólogos com os dos
etnólogos - é a forma como Brian Morris [1987], por exemplo,
faz o retrato histórico dos «estudos antropológicos sobre a reli­
gião» de Hegel a Lévi-Strauss, passando pelos sociólogos Max
Weber, Karl Marx e Émile Durk:heim, e pelos psicólogos Sigmund
Freud e Carl Gustav Jung. Numa perspectiva completamente
diferente, o campo da antropologia das religiões revela-se mais
restritivo e liga-se a uma tradição académica muito particular, a
do estudo comparativo das sociedades não ocidentais e dos seus
sistemas de crenças. Entre a versão englobante e integrativa e a
versão restritiva e exclusiva, é tudo uma questão de perspectiva.
E é a segunda versão que aqui seguimos, por razões facilmente
explicáveis.

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-_ - --_
__ -_- _-_---- �

ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES QUE «ANTROPOLOGIA» DAS RELIGIÕES?

Que «antropologia» das religiões? lisou, os defensores de uma antropologia religiosa denunciam
o positivismo dos antropólogos das religiões, enquanto que a
Explicitar a identidade do nosso domínio de estudo implica maioria destes rejeita firmemente qualquer contaminação do
clarificar previamente aquilo que se entende por «antropologia». discurso antropológico por ideias religiosas, conservando as suas
Actualmente, este termo goza de um entusiasmo considerável: proposições numa tradição teórica e metodológica baseada no
existem muitos domínios onde se encontra uma «antropoJocria» e, ,
estudo comparativo das sociedades e das religiões (em particular,
que aparece como uma categoria genérica na qual uma obra se das não ocidentais) [ 1986, p. v111].
pode incluir sem grande cerimónia, sempre que o discurso evoca Mesmo depois de prestada esta explicitação, porém, a defini­
o Homem (em geral) e dá ares de universalidade. Numa acepção ção do domínio de estudo não está ainda completa. Há uma certa
mais lata, a antropologia das religiões incluiria qualquer obra indeterminação terminológica que pesa sobre a sua identidade
que falasse das relações entre o homem e a religião. A filosofia, disciplinar e sobre a identidade dos seus objectos. Durante mui­
a história ou a teologia podem então afirmar que se inscrevem to tempo, foi considerada (cm França) uma subsecção de uma
numa antropologia. Trata-se sempre de saber se esse discurso sociologia geral e comparativa (esta era, pelo menos, a posição
«antropológico» é o ele uma antropologia religiosa ou de uma de Mauss ou de Bastide). Mas a etnologia francesa autonomiza­
antropologia da religião. A primeira não esconde a sua pertença -se da sociologia a partir da primeira metade do século x1x, e,
ao registo do discurso religioso, à maneira ele uma Teologia com ela, a etnologia dos factos religiosos, associando-se então
da Cultura, que Paul TilJich decreta inteiramente enraizada na às outras tradições (britânica e americana), às quais irá buscar
religião ll972J. A segunda, menos suspeita de ligações pouco a sua denominação de «antropologia» das religiões. A alteração
legítimas ao seu objecto, inscreve-se mais consistentemente nas terminológica não é anódina. É a partir das concepções evolu­
perspectivas científicas das ciências sociais e humanas. No entan­ eionistas do século x1x e inícios do século xx que se começa
to, alguns pressupostos de natureza quase teológica ornamentam, a impor uma etnologia das religiões ou «etnologia religiosa»,
aqui ou ali, um domínio de conhecimento que, paradoxalmente, designada como ciência da religião nos «primitivos» ou nos
pretende instaurar uma distância intelectual relativamente ao seu «factos religiosos observáveis nos povos primitivos» [Bros, 1923,
objeeto e, entre os mais conhecidos, vemos, por exemplo, que p. 15]. Já livre cios seus pressupostos evolucionistas, como entre
o Homo sapiens é por natureza religiosus, que o divino (theos) os funcionalistas, graças aos quais se torna uma antropologia
seria a priori universal, e que as sociedades humanas estão ne­ das religiões, o seu objecto continua a ser o estudo da religião e
cessariamente banhadas de religião, quando não é a religião que das suas formas nas «sociedades primitivas» [Radcliffe-Brown,
beneficia de uma anterioridade histórica sobre a cultura (como 1968]. Evidentemente, a «antropologia» distingue-se aqui muito
em Ries [1992]). Uma antropologia das religiões, na acepção pouco da «etnologia», à excepção das concreções ideológicas
aqui retida, é um campo de estudos científicos nascido no século que supostamente afectavam a «etnologia». Para explicar esta
x1x, no seio de uma antropologia académica, cujas ambições se distinção terminológica, podem ser avançadas outras razões, que,
aliam às do segundo domínio citado, mas que não se confunde desta vez, remetem para as ambições intelectuais do campo.
com o primeiro. As relações com este são caracterizadas pela A tripartição que distingue antropologia, etnologia e etnografia,
suspeição recíproca: como resume Mark K. Taylor, que as ana- estabelecida por Claude Lévi-Strauss, como três níveis de inte-
14 15
.

ANTROPOLOGIA DAS RELTGTÕES QUE «ANTROPOLOGIA» DAS RELIGIÕES?

ligibilidade do trabalho antropológico [1974b, pp. 412-413], é «Uma» antropologia das religiões?
retomada por Roger Bastide no artigo dedicado à antropologia
religiosa na Encyclopaedia Universalis. Neste artigo, Bastide Outro perigo rodeia a reconstituição do campo da antropolo­
afirma que «a etnologia religiosa interessa-se sobretudo pelas gia das religiões: o perigo de o reduzir à trajectória das ideias
diversidades das crenças ou das práticas religiosas das etnias e ao seu reconhecimento académico na Europa Ocidental e nos
umas em relação às outras», mas o conhecimento que produz Estados Unidos. A realidade histórica diz que estas duas regiões
«permanece localizado numa área cultural, num tipo de religião, assistiram ao nascimento das mais influentes tradições nacionais
animista, por exemplo, ou politeísta». Inversamente, «a antropolo­ da antropologia das religiões, na Grã-Bretanha, em França e na
gia religiosa [para ele, uma antropologia da religião! interessa-se América do Norte. Outras tradições seguiram caminhos um pouco
mais pelo homem do que pela etnia» e assume o objectivo de diferentes, mas contribuem igualmente de maneira significativa
descobrir as «leis gerais do Homo religiosus» l 1978]. Tal como para o estudo etnológico ou antropológico das crenças e das
qualquer antropologia, arroga-se então o direito de superar o práticas religiosas, como a tradição italiana, cujo contributo terá
singular para falar do universal e, embora a sua reflexão inclua sido central nos debates sobre o estatuto antropológico da magia
um tratamento de materiais empíricos, confina essa reflexão (cf supra). Existe também uma tradição soviética de etnografia
a posteriori sobre o universal no homem e na religião num nível religiosa, pouco conhecida ou desqualificada no Ocidente, devi­
de abstracção suficiente para permitir a formulação de modelos do à sua forte ligação a concepções marxistas muito estritas (a
teóricos (que superam a descrição localizada da etnografia e os religião como «superstrutura» e as suas relações com a «infra­
limites do estudo etnológico) que poderão explicar a natureza -estrutura» económica e com a estrutura social) ou a conceitos
humana através da natureza religiosa do homem. próprios, abandonados pela etnologia ocidental (a sua encarnação
Mas se a antropologia das religiões é, desde logo, uma em ethnoi" ou «etnias»), mas que ainda assim incidem sobre um
etnologia, não interrogará então apenas a identidade de certas sexto da humanidade [Basilov, 1980]. A tradição alemã, que não
religiões? Como é que se constitui numa antropologia, capaz se reduz à ilustre escola de sociologia weberiana, distinguiu-se
de falar da religião em geral? Impõe-se assim, desde já, um igualmente por grandes investigações no terreno, em particular
curto desvio pela antropologia geral. Se a sua perspectiva é na Ásia (desde Fürer-Haimcndorf [ 1964]). A esta lista, eviden­
universalista, como afirma Lévi-Strauss ao longo de toda a sua temente aberta, convém acrescentar o conjunto das tradições
obra, e se o seu objecto é «vasto como o mundo», como esti­ de antropologia «exóticas» (africanas, asiáticas), que, nascidas
pula Jean Servier [ 1986], os seus desenvolvimentos académicos da influência das grandes escolas ocidentais, seguiram as suas
mostram, pelo contrário, uma limitação dos seus terrenos e dos próprias linhas de desenvolvimento.
seus objectos a certas sociedades e a certas religiões, em tempos
qualificadas como «primitivas».
Vicissitudes

O destino da antropologia das religiões está, além disso, repleto


de ciladas: oscila entre o palco e os bastidores da antropologia.

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ANTROPOLOGIA DAS RELTGIÕES QUE «ANTROPOLOGIA» DAS RELIGIÕES?

Com efeito, dois grandes programas de investigação marcam o de figuras como Malinowski, Radcliffe-Brown e Evans-Pritchard)
nascimento da antropologia, quando esta acede, no século x1x, 11 ia marcar profundamente este domínio (entre os anos 20 e 60
a um reconhecimento académico, na mesma altura em que é do século xx), oferecendo-lhe uma base de dados empírica muito
fortemente influenciada, como muitas outras disciplinas, pelo ,nais fiável do que a do evolucionismo, estabelecida a partir de
pensamento evolucionista: o estudo do parentesco e o estudo t·sLudos de campo rigorosos e sistemáticos. Já não se pretende
da religião. Enquanto os desenvolvimentos teóricos do estudo t·studar a origem da religião (e, a partir daí, as formas gerais do
do parentesco são subsequentes e contínuos, os da religião são pensamento e da organização humana), mas sim as suas funções
flutuantes e descontínuos. As próprias características da religião ,ociais; em resposta a L. Morgan, Alfred R. Radcliffe-Brown
devem ser, sem dúvida, colocadas no campo da ilegitimidade, que ,ilirma: «A função social da religião é independente da sua
a afectou num primeiro momento. Um dos pionei ro s da antropo­ verdade ou da sua falsidade, e as religiões que julgamos falsas
logia, Lewis Morgan, recusava integrá-la (a não ser de maneira ou até absurdas e repugnantes, como as das tribos selvagens,
episódica) no seu modelo teórico da evolução das sociedades podem desempenhar um papel importante e eficaz no mecanis-
humanas, com o pretexto de que «as crenças religiosas estão de 1110 social» [1968, p. 231]. Quanto ao funcionalismo, pecou por

tal modo ligadas ao domínio da imaginação e da afectividade t·xccsso de sociologismo: mais uma vez, a religião foi objecto de
e, por isso, assentes em conhecimentos tão incertos que todas 11111a redução, mas, desta feita, ao social, do qual a religião mais
as religiões primitivas são grotescas e, em certa medida, ininte­ 11ao era do que um efeito. Em contrapartida, um dos seus maiores
ligíveis» [ 1985, pp. 3-4]. Mas, na época, esta atitude radical era rnntributos foi o de opor à tendência anteriormente prevalecente,
minoritária e os primeiros grandes modelos teóricos da disciplina .1 generalização teórica, a preocupação com o pormenor etnográfico
devem muito ao estudo da religião; alguns contemporâneos de da vida religiosa numa determinada sociedade.
Morgan, como James Frazer ou Edward Tylor, dar-lhe-ão as suas Conservando este contributo do funcionalismo, o estrutura­
cartas de nobreza ao situá-la no centro das suas análises, e estes l ismo de Claude Lévi-Strauss restabeleceu, no pós-guerra, as
podem ser justamente considerados os fundadores da antropologia :iltas ambições do evolucionismo; deslocou a questão religiosa
e, ao mesmo tempo, da antropologia das religiões. para o terreno dos aspectos psicológicos e sociais do simbolismo
Após uma «idade de ou ro », no último terço do século x,x e humano, mas procedeu a uma redução fatal para a religião: esta
inícios do século xx, os estudos etnológicos ou antropológicos s6 tem importância para a antropologia no sentido em que as suas
sobre a religião sofrerem uma regressão visível em volume (mas manifestações reAectem fenómenos que são os do pensamento
não em criatividade), principalmente devido ao esgotamento humano em geral e das suas traduções sociais (ritos, instituições)
do paradigma a partir do qual se haviam desenvolvido: o evo­ a partir das quais é possível perceber invariáveis universais. Nos
lucionismo. A escola de sociologia então fundada em França anos 50 e 60, o inleresse pela religião diminuiu ao ponto de
confere-lhe, na primeira metade do século xx, um carácter de o discurso sobre o seu esgotamento se tornar um leitmotiv da
legitimidade, por impulso de Émile Durkheim e, sobretudo, de antropologia: para Lévi-Strauss, «a antropologia parece ter-se
Marcel Mauss - o primeiro a romper claramente com a tendência afastado progressivamente do estudo dos factos religiosos» l 1974,
da primeira sequência histórica que reduzia a religião a afectos p. 227]. Evans-Pritchard verifica que a religião «já não está no
ou a mecanismos mentais. O funcionalismo britânico (em torno centro das preocupações como estava em finais do século x1x

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ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES CONSTITUIÇÃO DO CAMPO

e inícios do século xx», mas avança razões que se prendem sagrados que se estendem desde o mundo árabe-muçulmano ao
menos com as orientações seguidas pela antropologia do que Extremo Oriente.
com o contexto social e ideológico global: se, nesta época, a
religião já não era uma questão intelectual importante é porque
deixara também de ser uma questão social [ 1965, pp. 169-170]. Raízes
Num artigo de referência, intitulado «A religião como sistema
cultural» í versão francesa de 1972, segundo uma conferência Tal como nas outras ciências humanas, a antropologia das
realizada em 1963], o antropólogo americano Clifford Geerlz religiões tem as suas raízes nas ideias da Antiguidade europeia
lamentava que, desde Durkheim, Weber e Lévi-Strauss, «não e foi oficialmente fundada no século x1x. Portanto, a antropolo­
tenha havido qualquer progresso notável no plano da teoria» gia das religiões não apareceu ex nihilo. Quanto nasceu, havia
[1972, p. 19], antes de reabrir a questão, reabilitando a abor­ uma convergência de várias influências: as grandes filosofias
dagem culturalista, através de uma revisão do simbolismo na da história (como as de Bossuet, Condorcet, Hegel ou Vico),
antropologia. Ainda que a via aberta por Geertz não lenha feilo a libertação geral do saber relativamente à tutela de um pen­
escola, devemos-lhe, porém, o facto de ter conferido novo ânimo samento religioso (embora Pascal e Descartes interroguem a
à antropologia das religiões, pelo menos em virtude das críticas existência de Deus e da sua fé, é com pensadores mais tardios
que a sua semiótica cultural da religião iria suscitar. A partir que se estabelecem as bases de uma filosofia da religião), e um
dos anos 80, o pleno reconhecimento teórico das mutações das <.:antexto geral de questionamento da verdade e da influência
sociedades humanas e os avanços de outras disciplinas (desde social do cristianismo (a crítica bíblica e as grandes descobertas
logo, a sociologia) contribuíram para o reaparecimento da reli­ científicas, nomeadamente as da recém-nascida arqueologia, que
gião nos objectos legítimos da antropologia. demonstram uma antiguidade do homem contrária à narrativa
bíblica). A antropologia das religiões encontra-se também na
confluência de grandes filosofias da religião. A de Montes­
Constituição do campo quieu, que, ao longo de toda a sua obra, revela um pensamento
precoce de tolerância (a respeito do pluralismo confessional) e
Desde o seu nascimento que a antropologia das religiões se de pragmatismo (uma religião deve servir para alguma coisa).
situa no cruzamento das ciências humanas nas quais se inspirou A de David Hume, na sua História Natural da Religião, publi­
ou que inspirará: a história fenomenológica (Van der Leew, cada em 1757, que inspirou mui los domínios da antropologia
Eliade), a sociologia religiosa comparada (Durkheim, Marx ou em geral e a antropologia das religiões em particular: as teorias
Weber), a psicologia, que sonda o fundo de um inconsciente do animismo e do politeísmo arcaico devem bastante à sua obra.
povoado de símbolos religiosos (Freud, Jung), os muito esque­ A filosofia de Kant (com A Religiiio nos Limites da Simples Ra­
cidos (ou desvalorizados) estudos folclóricos, contemporâneos zão, publicado originalmente em J 793), na qual Paul Ricreur vê
da etnologia «exótica», que empreenderam com obstinação a uma deslocação histórica dos discursos acerca de Deus para os
recolha das expressões «populares» da religião, ou, por último, o discursos sobre a religião [ 1994]. A influência da obra de Georg
orientalismo erudito, especializado nas grandes tradições de textos W.F. Hegel é igualmente marcante no que respeita ao «espírito»

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ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES CONSTITUIÇÃO DO CAMPO

das religiões e à comparação a que as submete (em O Espírito dl!s testemunhas do mundo - os geógrafos gregos (Heródoto,
do Cristianismo e o seu Destino, 1797-1800), ou em A Filoso.f1a Ml!gástenes, Estrabão), os exploradores árabes (Ibn Khaldun)
da História (1822-1823), que questiona as leis do espírito hu­ ou cristãos (Pian dei Carpine, Guilherme de Rubruck, Marco
mano. Ao Jongo de todo o século x1x, o pensamento científico Polo, Ordorico de Pordenone), os missionários europeus (Mon­
assenta num princípio de objcctividade e de agnosticismo, e até tl!corvino, Marignolli) - até às expedições científicas de finais
de ateísmo (que coincide com o reforço ideológico e político do século xrx e inícios do século xx, a presença de crenças e
da laicidade), que será resumido por Karl Marx na expressão práticas religiosas no campo de observação destes viajantes em
«O homem faz a religião, não é a religião que faz o homem», na 1l!giões longínquas foi sempre constante.
sua Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (1843), isto depois A religião foi também um elemento essencial para o re­
de Ludwig Feuerbach ter estabelecido as bases fundamentais conhecimento do estatuto dos povos não europeus por uma
de tal abordagem, ao afirmar que «o conteúdo e o objccto da Europa cristã então disposta a pensar que as fronteiras dos
religião são totalmente humanos» e que «o mistério da teologia monoteísmos coincidiam com as da humanidade. Algumas
é a antropologia, o mistério do ser divino é a essência huma­ �·randes controvérsias, das quais a mais célebre é, sem dúvida,
na» [19821. Estas condições ideológicas oferecem às ciências ,, de Valhadolide ( 1550), iriam progressivamente aumentar a
religiosas a oportunidade de se fundarem simultaneamente no L'Xtensão dessas fronteiras à medida que se reconheciam nos
século x1x em vários países da Europa e de serem apoiadas por ,naturais» um sentimento e urna actividade religiosa, ainda
instâncias académicas, claramente independentes da teologia. que não correspondessem exactamente à «verdadeira religião»
Mas o percurso e o destino da antropologia das religiões conti­ (o cristianismo). Com efeito, o encontro com culturas e civiliza­
nuam a ser singulares: estão ligados às descobertas dos mundos ,·oes diferentes das ocidentais é duplamente tributário da natureza
extra-europeus, à exploração e, funestamente, à evangelização dos contactos culturais e dos quadros ideológicos. Mondher Ki­
e, depois, à colonização destes mundos. lani lembra que, no lado ocidental, os quadros decorrem de um
ctnocentrisrno e, ao mesmo tempo, de um teocentrismo [1996]:
a percepção da diferença faz-se segundo uma referência dupla às
A religião no nascimento da antropologia: concepções culturais e religiosas dominantes dos observadores.
descoberta do mundo e da humanidade dos «selvagens» Não há dúvida de que, ao imiscuir-se de forma tão profunda
e duradoura na percepção e na construção do outro (primitivo
Neste sentido, os laços que unem a antropologia e a re­ ou cultural) pelo Ocidente, a religião desempenhou um papel
ligião são muito claros. Na literatura anterior à fundação da fundamental na constituição (teórica, empírica, epistemológica)
antropologia académica (finais do século x1x), bem como nos da antropologia [Bernand e Gruzinski, 1988].
trabalhos de uma antropologia científica agora datada (até aos Existe também um laço forte entre o nascimento da antro­
anos 50-60 do século xx), a descrição e a análise daquilo a que pologia e a evangelização cristã. Os missionários começaram
se convencionara chamar os «hábitos e costumes» incluíam a percorrer o mundo a partir do momento em que as grandes
invariavelmente uma rubrica (ou mais) dedicada às crenças e vias de circulação terrestres e marítimas foram descobertas ou
às práticas religiosas. Desde a observação das primeiras gran- criadas por eles próprios. Em contacto directo com as popula-
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ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES CONSTITUIÇÃO DO CAMPO

ções locais (ditas «primitivas»), foram os precursores de uma os «selvagens» e sobre a sua religião, bem como as tensões
etnografia descritiva e de uma antropologia (que teorizava os que dividem uma Europa em conflito: em suma, ao falar da
comportamentos culturais) particularmente religiosa. Com efeito, ,l·ligião dos outros, Léry fala da sua própria religião, e é nesta
se foi pelo prisma dos seus próprios esquemas de pensamento 1clação dialéctica entre si mesmo e o outro que se reconhecem
(religioso e ocidental) que descreveram os «hábitos e costumes» os próprios princípios do pensamento antropológico.
dos «outros» povos, a riqueza e a profundidade da informação O papel dos missionários cristãos na génese histórica de
recolhida por estes antepassados dos etnólogos contemporâneos 11,na antropologia, que será inicialmente uma etnografia, foi
acolhem variações singulares - dependentes da fidelidade cios .11nbivalente. Através da sua própria perspectiva religiosa do
observadores, das suas histórias pessoais e da natureza das suas 111undo, esforçar-se-ão por compreender a especificidade da
relações com os grupos encontrados [Blanckaert et ai., 1987). 1 d igião dos «sei vagens» - quando lhes reconheciam uma re­
Embora os viajantes e missionários tenham sido sempre ligião, o que nem sempre acontecia (como Moffat, citado por
cada vez mais numerosos ao longo dos séculos e à medida que l�vans-Pritchard [ l 965]). Ainda que nem todos os «naturais»
o Ocidente alargava a sua influência no mundo, poucos deles («selvagens») tivessem a «verdadeira rei igião» (o cristianismo),
marcaram realmente a história (ou melhor, a «pré-história») da alguns exploradores pensavam poder identificar nesses povos
antropologia académica. No entanto, alguns nomes merecem rn1briões de mitologia cristã (o dilúvio, a revelação), apesar da
ser evocados. Hans Stadcn, um soldado alemão que viajou num presença de espíritos pagãos e de «falsos profetas», e uma certa
navio português e que foi prisioneiro de uma tribo tupinambá no ,cceptividade à mensagem cristã. Esta receptividade incitará
Brasil, fornece, na sua narrativa (Nus, Ferozes e Antropófagos ... , depois os missionários a aprofundarem os seus conhecimentos
publicado em 1557) muitos pormenores sobre a vida cultural das culturas «exóticas» para melhor as converterem, e a missio­
e religiosa dos «selvagens» e, nomeadamente, sobre os seus logia, neste sentido, inspirou-se fortemente na etnologia. A partir
costumes antropófagos, que são aqui tratados na perspcctiva do tle inícios do século xx organizam-se, em Lovaina (Bélgica),
seu significado ritual e não da repulsa que inspira ao observador «seminários de etnologia» para missionários [Arens, 1925], e
ocidental. Foi também entre os Tupinambá do Brasil que outro as «Semanas de missiologia de Lovaina» não escondem o seu
viajante, Jean de Léry, viveu durante tempo suficiente para se objectivo de conhecer A Alma dos Povos a Evangelizar [ 1928],
familiarizar com os hábitos e costumes desta tribo, experiência interrogando-se sobre as disposições religiosas dos «negros», dos
que relatou numa obra de rcferência, História de uma Viagem na «Melanésios» e de outros «camponeses animistas» da Índia e da
Terra do Brasil (publicado em 1578). Nesta obra, Léry mostra China. A «etnografia missionária» é fundada em paralelo com
qualidades inegáveis de observador, mas as suas reflexões so­ uma «etnografia colonial» e a conivência é, por vezes, evidente.
bre a religião têm um sentido diferente das de Staden. É claro O padre Schmidt, célebre defensor das teses difusionistas, funda
que as suas observações sobre «aquilo a que se pode chamar em 1906 a revista Anthropos, que reúne os dois registos. Esta
religião entre os selvagens americanos» pretendem ver aí os revista continua actualmente a ser publicada, mas o seu con­
«erros» e a «grande ignorância de Deus» dos Tupinambá [ 1994, teúdo afastou-se dessa ascendência missionária. Desde há alguns
pp. 377-425]. Redigido no contexto das guerras religiosas, o anos que a antropologia se interessa por este aspecto particular
texto revela as ideias que, na época, um jesuíta podia ter sobre da sua história e a própria obra missionária tornou-se um dos
24 25
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES DEBATES FUNDADORES

seus objectos de estudo: em 2005, realizou-se em Lovaina um O século x1x assiste ao advento do pensamento evolucionista e os
colóquio intitulado «Antropologia missionária, a conversão dos primeiros grandes modelos propostos pela antropologia recém­
missionários à antropologia». -nascida inscrevem-se maioritariamente nesta perspectiva.

Lafitau: pai da antropologia religiosa? A religião / as religiões: origens, natureza, evolução


Joseph-François Lafitau foi um dos viajantes que con­ Por conseguinte, as três grandes questões que fundam o
tribuíram para o nascimento conjunto da antropologia e nascimento da antropologia das religiões são, respectivamente, a
da antropologia das religiões. Viajou para o Canadá em das origens, da natureza e da evolução da religião. Até meados
1712, onde permaneceu mais de 15 anos; em 1724, pu­ do século XX, a questão das origens ofuscou os antropólogos
blicou uma obra que viria a tornar-se famosa: Costumes e quase que cada um tinha a sua teoria, o que, porém, não im­
dos Selvagens Americanos Comparados com os Costumes pediu que esta questão se esgotasse, pois não contribuía para
dos Primeiros Tempos. Dotado, tal como muitos dos seus avanços significativos na compreensão do facto religioso [Evans-
homólogos missionários, de grande sentido da observação Pritchard, 1965]. Terão estas pistas iniciais sido, como afirma
etnográfica, o seu contributo será igualmente importante A. Julliard [1991, pp. 35-361, «problemas falsos que dificultaram
(ou até mais importante) no plano metodológico. Com a reflexão científica» Retrospectivamente, sem dúvida; mas as
efeito, revela-se o precursor (involuntário) do comparatis­ hases estabelecidas pelos fundadores levantaram, por um lado,
mo evolucionista no qual se apoiarão as primeiras grandes questões difíceis com as quais a antropologia teria, um dia, de
obras fundadoras da antropologia das religiões (como as voltar a lidar (será a natureza humana religiosa?) e, por outro,
de J.G. Prazer ou de E. Tylor). Tal como indica o título foram subvertidas por novas abordagens: era preciso começar
da sua obra, Lafitau pretende ver nos costumes (contem­ por algum lado, e o evolucionismo representa um preâmbulo
porâneos) dos Índios «vestígios» da Antiguidade (grega tao bom como qualquer outro. No século XIX, era difícil adop­
ou romana), ou seja, aquilo que Edward Tylor designará, tar perspectivas opostas àquilo que parecia ser uma ideologia
em 1871, por sobrevivências. ',()(:ial, política e científica dominante, na mesma altura em que
.1s recém-nascidas ciências sociais gozavam da influência de um
Fontes: Lafitau [1983]; Bros [1923].
Auguste Comte, também ele ligado ao evolucionismo. Nesta
l poca, havia muitas pretendentes ao título de primeira religião

da humanidade: o «fetichismo», religião de objectos herdada


Debates fundadores da descrição que dela fizera Charles de Brosses em Do Culto
,ln\· Deuses Fetiches (l 760), a «religião natural», enunciada por
Os termos dos debates fundadores da antropologia das reli­ Max Müller, nas suas Lectures on the Origin and Growth of
giões foram profundamente inspirados pelas grandes orientações /fr/igion ( l879), como um derivado de necessidades ecológicas,
teóricas seguidas pelas ciências humanas à data do seu nascimento. n rullo dos mortos, erigido a este estatuto por Herbert Spencer
26 27
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES DEBATES FUNDADORES

nos seus Princípios de Sociologia (1887), a magia, o totemismo bulo a Formas Elementares da Vida Religiosa, É. Durkheim
ou ainda o animismo. .ifirma que a «natureza religiosa do homem» é um «aspecto
A questão das origens acabou por se deslocar para a pré­ 1:ssencial e permanente da humanidade» [1986, p. 2]. Se o
-história, mais bem dotada do que a antropologia para respon­ homem é sempre e em toda a parte «religioso», era «natu­
der ou, pelo menos, para alimentar o debate. De forma muito ral» que a antropologia se voltasse para o estudo dos factos
sucinta, pois o debate é complexo, o interesse da antropologia n.:ligiosos, em particular nas sociedades «primitivas». Tanto
por sociedades vivas dificilmente podia açambarcar o domínio quanto as provas históricas e pré-históricas permitem afirmar,
de especialização de uma pré-história, especializada nas socie­ as sociedades humanas estão, com efeito, ligadas à religião.
dades desaparecidas. Foi, aliás, o contrário que se passou, uma Mas seriam elas religiosas? As sociedades qualificadas como
vez que a pré-história se inspirou profundamente na etnografia «primitivas» teriam sido por excelência o lugar de nascimento
dos povos extra-europeus para assentar as suas teses na ou nas de um Homo sapiens, cujo principal traço distintivo é o seu
religiões pré-históricas, um comparatismo de que André Leroi­ 1:arácter religioso. No encanto, as ciências religiosas hesitam
-Gourhan mostrou as debi !idades [ 197 l], sem que, porém, esta l'tHre dois cenários opostos: ou o Homo religiosus nasceu com
tentação se atenuasse - o ensaio de Emmanuel Anati sobre La a Humanidade, o que justifica em parte que a religião seja
Religion des origines [ 1999] convoca novamente a etnografia, uma «especificidade do homem», ou o seu aparecimento é
mas também a filosofia e a biologia para apoiar a tese de uma tardio na história, na altura do nascimento dos monoteísmos.
universalidade das formas e dos conteúdos da religião desde o /\ primeira versão goza de uma popularidade inegável. Tem
nascimento do género humano. por princípio (e, portanto, por consequência sobre a análise)
Alguns, como Lucien Scubla, consideram que a questão a constituição das sociedades «primitivas» como o lugar de
da origem merece ser recolocada pela antropologia: não a religiões «arcaicas» e, ao mesmo tempo, como sociedades
questão da origem da religião ou das religiões, mas a questão monistas por definição (são religiosas ou estão banhadas no
da origem religiosa da cultura e das sociedades humanas. religioso), e a fundação do «primitivo» como a figuração da
Ao recuperar as pistas de investigação traçadas por A.M. Ho­ relação do homem com as suas tradições «primordiais». Este
cart, Scubla atribui à religião o facto de ter fundado a «infra­ primitivismo evolucionista, que situa necessariamente o pri­
-estrutura ritual das primeiras sociedades humanas» l2001, mitivo num nível inferior numa escala histórica (no processo
p. 342]: «Uma cultura é, em primeiro lugar, uma forma de de evolução do homem), depois abandonado pela antropologia
culto», resume ele na sua introdução a Hocart [2005, p. 12]. (ainda que dele permaneçam sequelas), é substituído por
A nostalgia dos grandes programas da antropologia inspira um primitivismo categorial, que distingue, por comparação,
claramente tal empreendimento. Mais do que a origem, é a tipos de sociedades e de religiões (como em Mary Douglas
natureza da religião procurada através das suas formas mais 11992]). Nos dois casos, a religião continua a ser um traço
«elementares» - que encontramos num evolucionismo meto­ recorrente das sociedades estudadas pelos etnólogos e, por
dológico mas não teórico em Durkheim (1986] - e das suas isso, não pode escapar a uma teorização.
transformações, na época designadas como decorrentes de
uma «evolução», que interessa aos antropólogos. No preâm-
28 29
ANTROPOLOGIA DAS RELIGlÕES DEBATES FUNDADORES

A religião segundo a antropologia: coloca-se a questão da arbitrariedade de uma definição da


debates, definições e termos religião a partir de um termo ocidental que designa uma es­
pécie de religião entre as muitas que surgiram na história da
Embora as décadas fundadoras da antropologia das religiões humanidade: a universalidade do «religioso» é questionada
sejam ricas em teorias, é ilusório julgar que todas as antropologias mm tanta mais acuidade na antropologia porquanto os seus
tenham, num qualquer momento da história da sua disciplina, conceitos têm de ser transponíveis para além do Ocidente e
partilhado as mesmas ideias sobre uma definição da religião e dos monoteísmos.
sobre os métodos de análise que se lhe devem reservar. Pelo Tal como não há uma abordagem única da religião entre os
contrário, o facto religioso deu lugar a visões contrastadas e a t·tnólogos, não há uma definição que tenha gozado da adesão
vastas controvérsias científicas; mas é precisamente isto que faz de toda a comunidade cicnlífica. Para resumirmos as grandes
a força da antropologia, que se questionou perpetuamente a orientações seguidas pelos antropólogos, podemos dizer que
si mesma e se renovou, colocando muitas vezes em perigo a ,e dividem entre duas grandes definições da religião, respec­
sua consistência e identidade. Herdeiros de concepções filo­ t 1vamente enunciadas por E. Tylor [1871] e por É. Durkheim
sóficas, sociológicas ou psicológicas (ou por elas inspirados), 11986]. Em Primitive Culture [ 187 l], Edward Tylor estabelece
os antropólogos adoptaram geralmente, porém, a ideia de que 1 01110 critério principal da sua definição da religião a existência
a religião decorria de uma «tendência» profunda do homem de entidades personalizadas que são os «espíritos» e, por con­
e tinha uma utilidade (ou «função») no plano psicológico "l'guinte, de uma forma mais sofisticada que é o divino. Nesta
(de segurança ou projecção) ou no plano social (expressão \ 1a, será seguido por alguns antropólogos, nomeadamente das
do social, regulação dos comportamentos colectivos). Neste 1·,colas anglo-saxónicas. Com Émile Durkheim [ 1912] e ou-
sentido, as teorias antropológicas da religião dividem-se em 1 ros grandes nomes da filosofia ou da história das religiões (R.
modelos de inspiração psicológica e sociológica I Evans­ < )tto, R. Callois, M. Eliadc), é a ideia de sagrado que se revela
-Pritchard, 1965), aos quais se acrescentam as teorias histó­ t l·ntral na definição da religião, conceito que continua a ser

ricas IHocart, 20051. Além disso, existem alguns postulados bastante privilegiado na antropologia. Durkheim opõe à defini­
de base que fazem sentido para todos os antropólogos que l .tO de Tylor a existência de pelo menos uma grande religião,
se reconhecem como seguidores da abordagem etnológica: 11 budismo, para a qual a ideia de divino não tem alegadamente

um empirismo em ruptura com a fenomenologia, não com ,1gnificação 11986, pp. 44-45]. Trata-se de uma afirmação que
as reflexões que esta oferece à análise (com foco nasformas catos etnólogos especialistas do budismo não deixaram de re-
observáveis da religião), mas com o objectivo por ela assumido 1 utar para melhor aderirem à definição de Tylor [Spiro, 1972;
(a procura de uma «essência» supra-social e meta-histórica), <iuthrie, 1997, p. 1911.
e uma reflexh1idade crítica sobre a escolha e a definição dos Contudo, as definições da religião não se limitam a este de­
conceitos. O conceito de religião está agora bem conhecido h.1tc, e outras noções caracterizam os trabalhos antropológicos:
e é largamente debatido; é um conceito ocidental, forjado potências, poderes ... Em finais dos anos 70, o controverso Jean
no ambiente cultural e linguístico do cristianismo I Saler, \nvier tentou reabilitar o conceito de «invisível» postulando
1987]. Na antropologia, mais do que nas outras disciplinas, 11 seu carácter universal [ 19801, e embora há muito que a ideia

30 31
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES DEBATES PUNDADORES

tenha uma recorrência relativa, mesmo actualmente o seu uso religioso. Outras definições, igualmente de vocação generalista,
é raro. O conceito de «sobrenatural», em voga nas tradições orientam a perspectiva antropológica para um deslocamento de
anglo-saxónicas da antropologia desde Frazcr, caracteriza-se conceitos e de categorias: a uma definição da religião substitui­
pela desvalorização e pelo reaparecimento, ainda que lam­ -se, então, para as necessidades da análise, uma definição das
bém esteja fundamentalmente ligado à história ocidental e a religiões. Mais aberta e integradora do que a anterior, este
uma visão cristã do mundo [Saler, 1977 J. Nas definições que processo baseia-se na determinação de critérios morfológicos
não fizeram escola, demasiado marcadas pelos pressupostos facilmente compreensíveis: a religião pode então ser definida,
intelectualistas e individualistas do seu tempo, encontra-se com Marcel Mauss (cf. supra) e os seus seguidores, como um
a de um Edward Sapir, que propõe definir a religião como ,<conjunto de crenças e ritos, discursos e actos» [Testart, 1993,
«o esforço incessante do homem para descobrir, através dos p. 20]. Esta multiplicidade de propriedades não impede que se
problemas e dos perigos da vida quotidiana, um caminho determinem os seus contornos formais e, ao mesmo tempo, que
para a serenidade espiritual» [ 1967, p. 192]. Da antropolo­ se percebam as suas variações na história e nas sociedades. Deste
gia, retêm-se sobretudo as suas elucidações sobre rei igiões modo, Michel Izard e Pierre Smith propõem ver nas religiões
particulares, que exprimiriam as crenças de grupos sociais «conjuntos de composição variável, definidos de forma diversa,
na sua totalidade; nesta perspectiva, uma religião é «um ou não definidos, pelas diferentes culturas e cujos elementos
conjunto de comportamentos que exprimem as crenças de um rnnstitutivos (mitos, ritos, interpretações, códigos morais, colé­
dado grupo de homens» [Labarre, 1972]. Existem numerosas �ios sacerdotais, concepções relativas ao destino individual ou
monografias sobre essas religiões «étnicas» ou identificadas colectivo, etc.) estão desigualmente desenvolvidos conforme os
por um etnónimo (a religião nuer, kikuyu, oglala ...). Como casos» [1979, p. 13].
os comportamentos e as crenças adquirem formas variadas,
exprimem também o impacto da cultura local sobre a re­ O lugar da religião na antropologia admite então variações
ligião e, neste caso, a religião pode ser vista como «uma visíveis - de interesse, peso científico, centralidade nos objectos
instituição que rege, segundo modelos culturais, as relações da disciplina. O seu estudo, porém, permanece tributário das
dos homens com os seres sobre-humanos cuja existência é vicissitudes da antropologia: a sua definição segue os contornos
postulada pela cultura» [Spiro, 1972, p. 121 ]. Como a religião 1k uma antropologia geral que diversifica as suas perspecti­
se inscreve em práticas e formas colectivas, pode também ser vas, reformula os seus objectos, abre novas pistas de reflexão.
vista como uma mera ideologia inscrita cm relações sociais A complexificação de uma definição da religião, inicialmente
[Augé, 1974a] ou como a «extensão das relações sociais para 111onotética (caracterizada, pelo menos, por um critério necessá-
além dos limites da sociedade humana» [Horton, citado por 110 e suficiente) e depois politética (circunscrita por um grande
Bowie, 2000, p. 23). 1 1111junto de características) [Needham, 1972], acompanhou
O problema de todas estas definições, que decorrem respec­ 1 1·11amente a sofisticação crescente dos métodos da etnologia,
tivamente de uma antropologia cultural e de uma antropologia 1 1· também por estes métodos que se afirma a singularidade da
social, é o facto de se basearem num parâmetro único ou predo­ 1111ropologia das religiões. Foi também a partir do método que
minante susceptível de resumir, por si só, a complexidade do facto .1 l'stabeleceram e se repensaram as grandes perspectivas teó-

32 33
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES

ricas da antropologia das religiões (a génese e a transformação


das religiões, das suas formas institucionais e simbólicas, e a
explicação da diversidade da religião) e a recolha sistemática
dos dados etnográficos nos cinco continentes.

II

Questões de Método

34
Se a antropologia contribuiu para esclarecer, à sua maneira,
11 wnhecimento do facto religioso do ponto de vista teórico, os

,khates interdisciplinares conferem-lhe uma identidade singular


, 111 virtude do seu método; pelo menos é neste plano que se lhe
11·1:onhece, particularmente em história, uma posição forte e
111 iginal no seio das ciências religiosas [Honko, 1979, p. xx1v].

No entanto, é necessário lembrar aquilo que é abrangido pelo


11·11110 «método» e que este não pode ser reduzido apenas a al-
•1111s dos seus aspeclos (o estudo empírico ou o comparatismo).
< > método da antropologia das religiões pode ser facilmente
ill·,crito como o da antropologia geral: privilegia técnicas de
111vcstigação através de uma experiência directa, convida ao
1 nmparatismo, inscreve os seus objectos em quadros particulares

d, interpretação (funcional, hermenêutico, estrutural. .. ).

37
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES A SINGULARIDADE DO MÉTODO ANTROPOLÓGlCO

A singularidade do método antropológico o nosso espírito se move bastante mal» [ L960, p. 209]. Será o
religioso «primitivo» ininteligível em virtude de uma distância
Na famosa «querela dos métodos», a antropologia situa-se intransponível entre o pensamento do investigador e a singu­
invariavelmente no lado dos métodos qualitativos e, ao contrá­ laridade da cultura que ele estuda? Se este fosse o caso, se as
rio das outras ciências humanas, atribui-se-lhe regularmente culturas fossem herméticas à compreensão, nem a antropologia
um estatuto de ciência indutiva, cujo conhecimento assentaria nem as ciências humanas teriam conhecido os seus destinos his­
principalmente na experiência de terreno, ou etnografia I Rer­ tóricos. Os evolucionistas, que viam nos «primitivos» uns seres
thelot, 2001J. Não será certamente supérfluo lembrar aqui, na de razão limitada, estavam ligados a um intelectualismo ateu e
sequência de Lévi-Strauss, que o método da etnografia se impôs rnndescendente a respeito da religião, particularmente nas suas
por ocasião do estudo de sociedades sem escrita, e não como lormas «arcaicas». Um alto grau de civilização era sinónimo
uma escolha epistemológica intencional e inicial da disciplina de distância intelectual relativamente à religião. Trata-se de um
[1974b, pp. 378-3791. Na falta de uma documentação textual, .irgumento a que Eugene Burnouf, que se esforçava por fundar
com a qual a história alimenta as suas reflexões, era necessário na mesma época uma «ciência das religiões» (mais histórica
ir «ver» como viviam os povos «exóticos» e descobrir no local na sua abordagem e filológica no método), se opôs, afirmando:
em que acreditavam eles exactamente. As monografias, estu­ l lá povos nos quais a religião não é quase nada; não são,
dos exaustivos de uma sociedade ou de um grupo humano (de 11a verdade, os mais inteligentes» [1885, p. 6]. Os estudos no
dimensões adequadas a este género de estudos) - um modelo ll'rreno levaram a uma transformação radical das perspectivas
de investigação ilustrado pelos manuais de etnografia-, lidam primitivistas e a um questionamento das abstracções aprioristas,
invariavelmente com o facto religioso reservando-lhe um trata­ isto graças ao carácter indutivo da abordagem antropológica:
mento particular. Será isto, mais uma vez, porque as sociedades (� sempre preferível começar a investigação tendo como base
«primitivas» são necessariamente religiosas? os testemunhos directos dos indígenas e não as generalizações
As «sociedades primitivas» estudadas pelos etnólogos foram 11u as sínteses dos observadores europeus, mesmo que sejam
descritas, durante algum tempo, como indiferenciadas, tanto no 1·xactas», afirmava Paul Radin [1941, p. 7].
plano da organização social como no do pensamento simbóli­
co. É um facto admitido por uma certa geração de etnólogos
que as sociedades «primitivas» estavam saturadas de religião, A experiência etnográfica
enquanto que, nas sociedades «modernas», a religião ocupa
um domínio à parte: «A distinção que, nas nossas sociedades, Com a inflexão psicológica, realizada, nomeadamente, por
separa claramente os comportamentos religiosos dos outros William James em inícios do século xx [1906], o conceito de
comportamentos, não existe nos níveis primitivos», afirmava 1 xperiência impõe-se como um dos pontos de entrada ao estudo
E. Sapir em 1928 (1967, p. 203J. As tradições culturais de um 1 111pírico e descritivo da religião. A antropologia recém-nascida

grupo humano estão repletas de religião, quando não se con­ 111h.:ressa-se então por uma experiência particular, a do «primi-
fundem com ela, formando aquilo que Mauduit, no seu Manuel 11vo», que surge geralmente como religiosa «por essência» - e
d'ethnographie, qualificava como «universo misterioso no qual 11111tinuou durante muito tempo a ser pensada nestes termos: para
38 39
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES A EXPERIÊNCIA ETNOGRÁ.FICA

Lucien Lévy-Bruhl, ela é «mística» entre os «primitivos, que se 1 Malinowski, 1989]. Com este nascimento da etnografia descri­
sentem em contacto imediato e constante com o mundo invisível» tiva, as concepções antropológicas sobre a experiência cultural
[1938]. Apesar do fracasso do evolucionismo em reconstituir e religiosa das populações não ocidentais alteraram-se radical­
esta experiência religiosa sui generis, a tentação perdura: nos mente. Representante desta escola britânica, E. Evans-Pritchard,
anos 70, Weston Labarre, por exemplo, retomou a «questão das também ele defensor fervoroso da etnografia [1969], opor-se-á
origens», em busca da experiência «primordial», a do xamã das vigorosamente à redução da experiência religiosa na experiência
«sociedades arcaicas» l l 9721, demanda quase obsessiva para niltural «primitiva», para voltar a colocá-la no centro de uma
muitos antropólogos. Numa perspectiva completamente dife­ l'Xperiência concreta: por se centrar demasiado naquilo que parece
rente, a partir do seu estudo no terreno entre os índios pueblo, decorrer da magia ou dos ritos, a análise esquece-se de ver nas
Edward Sapir situa também a experiência no centro da religião: populações estudadas «a rotina quotidiana que representa nove
a primeira, pessoal, encontraria um prolongamento na segunda, décimos da vida do homem primitivo e constitui a sua principal
colectiva [1967, p. 197). Mas, como a antropologia implica uma preocupação» [ 1965, p. l8]. Um dos seus numerosos contributos
etnografia, a ideia de experiência adquire outros significados: para a antropologia das religiões foi o facto de ter mostrado que
é, em primeiro lugar, a do investigador num ambiente cultural ,,s atitudes dos alegados primitivos a respeito da religião não
diferente do seu e, depois, é a experiência, «cultural», dos au­ -.ao marcadas por um misticismo permanente, nem sequer por
tóctones, da qual o estudo pretende dar conta. É no centro desta 1 1cnças profundas [Evans-Pritchard, 1972]. Neste sentido, não
que se supõe residir a experiência «religiosa». d1 rerem em natureza do comportamento dos «modernos», cujo
riau de religiosidade admite também variações singulares.
Após esta conquista metodológica, a experiência etnográfica
Experiência etnográfica, experiência religiosa passou a corresponder à observação in situ da vida religiosa,
1 oncomitante de uma imersão na sociedade e de uma familia-

Tal como aconteceu com a antropologia geral, a experiência 111ação com a sua cultura. Deveria (idealmente) representar o
etnográfica só tardiamente obteve as suas cartas de nobreza ponto de partida do conhecimento antropológico - ainda que,
na antropologia das religiões. Os fundadores da antropologia 11,1 verdade, o tempo do etnólogo seja sempre mais passado nas
negavam até, com horror, terem alguma vez encontrado um pri­ 111 hliotecas do que no terreno propriamente dito [Descola, 1993).
mitivo «em carne e osso» (in theflesh). Evans-Pritchard ironiza: \l'�·undo os princípios metodológicos em vigor na etnologia, esta
«Facto extraordinário, nenhum dos antropólogos cujas teorias 1 nnstitui-se no contacto duradouro e íntimo com as populações

sobre a religião primitiva tiveram influência abordou alguma vez , por uma observação directa dos seus comportamentos nor-
uma população primitiva. É como se um químico nunca tivesse 111.iis. Trata-se, pois, para retomar uma expressão recentemente
entrado num laboratório» [1965, p. 15). Mas, com Franz Boas lt1qada por Albert Pierre noutro contexto, da religião vista «de
(nos Estados Unidos) e, sobretudo, com Bronislaw Malinowski 111110» [1999]. Mas também é necessário que o etnólogo tenha
(na Grã-Bretanha), a antropologia «de gabinete» (armchair) dá , ,111/ade de ver a religião, mas, conforme as suas inclinações
lugar a uma antropologia de campo (jieldwork) e o estudo por 1'1 ,soais ou as suas escolhas científicas, ele pode muito bem
contacto directo toma-se uma verdadeira competência profissional l)'H<>rá-la. Victor Turner, autor de uma teoria do rito religioso
40 41
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES A EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA

muito famosa e de inspiração estruturalista, lembrava que o


seu trabalho entre os Ndembu da Zâmbia deixara inicialmente O etnógrafo: um xamã?
de lado as dimensões religiosas do seu estudo no terreno, e
que demonstrava, tal como muitos dos seus contemporâneos, O antropólogo britânico I.E. Lewis tentou, não sem
uma «insensibilidade à música da religião» (usando a metáfora humor, fazer uma comparação entre o etnógrafo e o xamã.
weberiana do «ouvido religioso»), e foi o «barulho surdo dos «Afinal de contas, não fazem ambos viagens em mundos
tambores rituais» que ouvia permanentemente que o obrigou a misteriosos e longínquos, dos quais regressam com ricas
ultrapassar os preconceitos relativamente às práticas religiosas provisões de saberes exóticos? Ambos asseguram a me­
[Turner, J 990, p. 16). diação entre os grupos a que pertencem e esse mundo
desconhecido. Falam línguas incompreensíveis, agem
como barqueiros para as culturas em que vagabundeiam e
Imersão: entre a proximidade e a distância que, de certa maneira, acabam por encarnar. Ao interiorizar
a cultura dos seus anfitriões estrangeiros, o antropólogo
Deverá a experiência ser levada até a um ponto de fusão chega a ser por eles "possuído"». Embora alegoria, esta
com o objecto e o terreno, ou será que adquire características analogia não deixa de lembrar que se o etnólogo não é
religiosas para os próprios etnólogos? Estes mitos antropoló­ um ser religioso, mas agnóstico, se estuda sociedades ou
gicos - sustentados por alguns etnólogos e projectados para a religiões «estrangeiras» e «misteriosas», é também por­
etnologia por muitos investigadores oriundos de outros hori­ Lador, pela sua experiência, desse mesmo «mistério» que
zontes intelectuais - suscitam duas atitudes contraditórias: ao rodeia os xamãs de quem ele acaba por ser o alter ego,
racionalismo axiológico, que interdita qualquer colusão com no seu próprio mundo: o mundo, para Lewis, do Ocidente
o objecto, responde a tentação de uma antropologia metafí­ e dos seus meios académicos.
sica. Mas esta é muito moderada. A atitude dos fundadores
da antropologia das religiões, como lembra Evans-Pritchard, Ponte: Lewis [ 1986].
foi a de uma «fria hostilidade» [1974, p. 29J, que traduz
geralmente os pressupostos positivistas da época. Até nos
etnólogos mais considerados por terem cedido a uma pro­ Se os antropólogos hesitam - por profissão - em aderir às
ximidade fusional com o seu objecto/terreno (como Alfred 1 l"ligiões que estudam, que fazer da postura de «neutralidade»
Métraux), a incredulidade racionalista terá subsistido a ponto 1111 de ateísmo do antropólogo relativamente às crenças indígenas
de Michel Leiris evocar, a propósito das crenças e dos mitos q11ando são por estas afectados no seu ser? É a um verdadeiro
estudados, «feitiçarias ingénuas» e a atitude dos etnólogos que q11estionamento do «tabu antropológico» da crença do etnólo-
resistem a «entrar a bem nessas maravilhas com as costuras 1•11 que convida, por exemplo, Katherine Ewing, ao relatar a
à mostra» [citado por Dion, 2002, p. 233]. , nlonização dos seus sonhos pelos símbolos do sufismo, que
, la estuda no Paquistão, em conformidade com os princípios
11.,dicionais locais de aprendizagem religiosa por experiência
42 43
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES A EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA

onírica [1994]; trata-se de um tabu já posto em causa por James m<lígena». Em Dieu d'eau [Deus de Água], uma etnografia
Lett, que, ao confrontar as (não-)crenças dos etnólogos com as 1 ompreensiva da cosmologia dogon, Marcel Griaule transcreve

dos seus interlocutores no terreno, propunha suspender pura " perplexidade de Ogoteméli, o seu único informador: «Como
e simplesmente a questão da veracidade das crenças [ l 997). , 11sinar um Branco? Como pô-lo a par das coisas, dos ritos,
Nem todos os etnólogos se aventuraram tanto numa imersão das crenças?» [Griaule, 1966, p. 13]. Para esta questão, a única
tão profunda que implica o envolvimenlo de corpo e alma do , 1·sposta é a variedade das situações, das configurações religio­
investigador na sua pesquisa, no ponto limite dessa «fusão» ilu­ .. ,s e culturais e a natureza das interacções que o investigador
sória; pelo contrário, parece que o estudo do facto religioso - ou ,11scita no seu terreno. E, com as ferramentas que a antropologia
a parlicipação de um etnógrafo num rito - continua tributário poc à sua disposição, terá de arranjar forma de compreender a
de uma dialéctica do «dentro» e do «fora», da intimidade e da 11·ligião dos indígenas, «do ponto de vista do indígena», para
distância, em conformidade com a acção da antropologia. parafrasear Clifford Geertz [1986].
Mas o elnólogo pode, por um lado, ser levado pelo terreno
a envolver-se cada vez mais com o seu objecto. No seu estudo,
agora clássico, sobre a feitiçaria no bocage normando, Jeanne Tradução
Favret-Saada envolve-se totalmente nas questões de fala, de
conflito e de poder que caracterizam as formas de feitiçaria Ao interessar-se por religiões «diferentes» das do Ocidente,
locais. Para compreender, é preciso «sê-lo» ou «estar dentro» ,1 antropologia confronta-se com outro problema, o da tradução.
e a posição de objectividade (etnográfica) não tem aqui sentido 1 �sta admite várias acepções. Reduzindo um pouco a sua com­
devido à obrigação de estar inserido no sistema de comunicação plexidade, podemos distinguir três acepções. Há uma tradução
subjacente ao da feitiçaria: «Não há posição neutra da palavra: propriamente linguística - a dos discursos religiosos indígenas
na feitiçaria, a palavra é a guerra. Quem a falar é um belige­ . uma tradução narrativa - a transcrição da vida religiosa local
rante e o etnógrafo é como toda a gente; não há lugar para um no texto etnológico - e uma tradução teórica - a interpretação
observador não comprometido» l 1977, p. 27]. Inversamente, há das significações indígenas num quadro conceptual. No plano
situações em que o terreno devolve com insistência ao etnólogo ,·stritamente etnográfico, a tradução diria então respeito à vida
a imagem da sua alteridade e o impede de com ele se fundir. ,1·1igiosa tal como pode ser observada e ao esforço duplo que
Quando Robert Jaulin descreve, por exemplo, os pormenores do l onsiste em dar-lhe sentido através das categorias linguísticas a
rito de iniciação para o qual é convidado pelos Sara do Chade partir das quais são pensadas e teorizadas as crenças ou repre­
[1971], toma parte na cerimónia, mas conserva o seu carácter de \l'ntações religiosas dos grupos estudados, e uma interpreta�ão
«estrangeiro» (é branco e adulto, ao contrário dos jovens negros .1través dos conceitos mobilizados para o estudo. A este respeito,
tradicionalmente submetidos ao rito). As questões levantadas Victor Turner lembra que a recolha de dados de observações
pela experiência etnográfica - o como e o que aprender no l mpíricas esgota o estudo no limiar do sentido: «Uma coisa é
terreno - poderiam muito bem limitar-se à vertente puramente observar indivíduos enquanto executam os gestos estilizados e
científica e alimentar as reflexões dos etnólogos, se não tives­ l antam os cantos herméticos de cerimónias 1ituais, outra coisa é
sem sido invertidas (por obrigação do olhar etnológico) do lado 11hler uma compreensão adequada daquilo que esses movimentos
44 45
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES TRADUÇÃO

e essas palavras significam para eles» [1990, p. 161. Jean Pouillon acesso textual a valores religiosos codificados e normativos. A
interroga-se: «Que pergunta fazer [aos indígenasj, com o auxílio realidade da observação etnográfica mostra que o conhecimento
de que língua, em que contexto?», e, sobretudo: «Como traduzir edificado a partir dessas fontes admite variações visíveis em
a ou as palavras que usam para falar daquilo que, a nosso ver, é relação aos comportamentos sociais efectivos - aquilo que foi
um objecto de crença?» t 1979, p. 46]. Assim, este trabalho de designado na Ásia como uma religião «prática» porque «po­
tradução implica uma certa familiaridade com as línguas locais pular» (sobre o budismo, Swearer [1981); sobre o hinduísmo,
(ou o envolvimento de um ou de vários tradutores) e um material 1 >cliege [2004]), que, por vezes, se assemelha nas suas formas
composto de expressões e de testemunhos indígenas que proteja ( festivas e devocionais) e na sua dinâmica (integradora e tota­
o conhecimento antropológico da tentação de voltar ao soliló­ l11adora) à «religião popular» tal como se observa no mundo
quio de intelectual sobre abstracções: «O antropólogo», escreve 1 r istão [Isambert, J 9821. Mas a sua vitalidade, a diversidade

B. Malinowski, «tem a vantagem única de poder refugiar-se junto das suas práticas, as grande variações que mostra no grau de
do primitivo, sempre que sente que as suas teorias ameaçam .idcsão religiosa constituem um desafio para as ciências huma-
descambar e que a corrente da sua eloquência demonstrativa 11.1s a respeito da sua interpretação - os comportamentos rituais
ameaça esgotar-se» [ 1933a]. h.1hituais ou cujo desempenho decorre da tradição sem neces-
.,riamente convocarem crenças serão religiosos? Enquanto que
11111a sociologia inspirada em Émile Durkheim ou em Max Weber
O sentido das crenças indígenas procede a uma modelização ideal do comportamento religioso
10 cristão crê em ... e age em consequência) e exclui da sua
Segundo um princípio estabelecido por Evans-Pritchard, «as .r11alise as variações «resi-duais», a etnografia coloca estas no
crenças não se observam, presumem-se»: a interpretação das 1 l'lllro da análise - tendo-se previamente libertado, com efeito,

crenças convoca então conceitos para decifrar aquilo que os d., sua primeira tendência para figurar comportamentos culturais
discursos e os actos exprimem. Mas também é preciso que haja 11picos» através de um sujeito colectivo anónimo (o Trobrian­
um elo mecânico entre as práticas observáveis e as crenças que dn,, o Nuer, o Bororo...), nomeadamente denunciado por Marc
lhes estão associadas, como se a religião de um indivíduo ou \ugé [1994). Em suma, a religião «prática» (reconstituída pela
de um grupo conferisse um carácter determinante e previsível 11h1-,ervação etnográfica) tem sempre mais consistência e revela-
aos seus comportamentos. Foi sobre este ponto que os traba­ ,1· sempre mais complexa (porque mais diversificada nas suas

lhos de Edmund Leach e dos seus colaboradores, em terrenos i.11 mas e significações) do que as tradições oficiais (decorrentes
asiáticos [1968b], libertaram a análise antropológica das suas d I tradução dos textos e das narrativas que constituem autorida­
veleidades em generalizar o sentido dos comportamentos a partir ,h ). Mas, quer a tradição religiosa estudada seja oral ou escrita,
dos sistemas de significação dado, a priori, pelo estudo dos ,pr,indo um acto aparentemente religioso se oferece à observação
símbolos e dos valores oficiais de uma sociedade: o conceito . 111ográfica, é necessário que este esteja efectivamente associado
de «religião prática» adquire assim toda a sua pertinência. As , 11111a crença, no contexto da sua efectivação. E é preciso que a
grandes tradições escriturais do mundo asiático (hinduísmo, 111ll'rpretação não caia numa das duas armadilhas enunciadas por
budismo, confucionismo, taoismo...) oferecem, com efeito, um 1 , l .cnclud: o barbarismo (procedente de um desfasamento entre

46 47
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES TRADUÇÃO

aquilo que crêem, respectivamente, o observador e o observado) Além das modalidades de interpretação, a compreensão das
e o contra-senso (a projecção das crenças do observador nos , 1 l·nças religiosas pressupõe também uma reflexão sobre a postura
comportamentos do observado) [J 990). 111ll·lectual que o etnólogo adopta a seu respeito. A demonstração
11 11 carácter ateu e racionalista do discurso etnológico já não é
111 rcssária. Daí resulta uma inevitável consequência metodoló-
O perigo da interpretação atributiva das crenças
1,.ca: 0 etnólogo é, tal como diz justamente Jean Pouillon, «o
d l ·,crente que crê que os crentes crêem» [Pouillon, 1979, p. 44].
Uma anedota muito famosa, contada por A.R. Radcliffe­
e ' 111110 explica Pouillon, «se digo que os Daugaleat [do Chade]
-Brown, lança uma luz particular sobre os problemas de
, t l·cm na experiência dos margai" ldos génios] é porque eu não
interpretação e de má interpretação dos actos religiosos (ou
ll I i;dito nisso e, ao não acreditar, penso que eles só podem
a priori associados a crenças religiosas). Num cemitério de
11 ri;ditar nisso à sua maneira, na qual, porém, eu imagino que
Queensland, conta Radcliffe-Brown, um indivíduo austra­
p1Hlcria fazê-lo» [Pouillon, 1979, p. 46]. A posição do etnólogo
liano depõe flores sobre um túmulo. A poucos metros de
, ti u ,ga-o a adoptar uma postura de exterioridade relativamente às
distância, um homem chinês, que adopta igualmente uma
, , cnças dos outros, uma exterioridade que, embora garanta uma
atitude de recolhimento frente a uma sepultura, deposita
, ,·, ia neutralidade do conhecimento, cobre o sentido real que
nela um bolo de arroz. Intrigado, o Australiano aproxima-se
11, indivíduos atribuem às suas práticas ou aos seus discursos.
e, em tom de brincadeira, pergunta-lhe se o defunto virá
\-.:..im, para além da questão da traduzibilidade das categorias
comer a oferenda. A resposta do Chinês, irónica, inverte
l111ruísticas, coloca-se também a questão das significações efec-
o argumento: é a demonstração de afeição ao defunto que
111,11111ente associadas a práticas ou a enunciados religiosos.
motiva essa oferenda. Dever-se-á acreditar que o morto a
quem foram oferecidas flores poderá sentir o perfume e
admirar as cores dessas flores? Como a reconstituição e
a compreensão das «outras» crenças estão no centro da
/ frnnenêutica e significação
etnografia das religiões, esta história é uma grande lição
/\ análise limita-se aqui ao lugar do trabalho interpretativo
de etnografia: o significado atribuído aos comportamentos
,i1,10 hermenêutico) no trabalho da antropologia das religiões.
ritualizados corre o perigo de uma projecção das suas
\1mJa que tenha marcado a obra cio antropólogo ª°:ericano
próprias categorias de pensamento nos comportamentos
1 li fford Geertz a ponto de lhe ser atribuída a patermdade, a
dos outros - categorias de pensamento que, em muitos
1 11 1111cnêutica preexiste em muitos trabalhos. Com Dieu d'eau,
casos, se fundam nas ciências religiosas por excesso, como
t.,rcel Griaule oferece, por exemplo, uma análise baseada em
se todos os comportamentos ligeiramente ritualizados
, ,,11vcrsas regulares com um velho caçador dogon, Ogotemeli.
dos indivíduos de culturas extra-ocidentais estivessem
, partir deste material discursivo (porque a literatura dogon era,
irremediavelmente enraizados na rei igião.
11, -.ta época, oral e a oralidade revestia-se de uma significaç�o

Fonte: Radcliffe-Brown [ 1968].


1111hólica [Griaule, 1966, pp. 76-77]), é toda uma cosmologia
d,,1,011 que se revela e que o etnólogo francês vai pacientemente
48 49
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES TRADUÇÃO

reconstituir: os seus mitos, heróis, antepassados, topografias, ,obre a religião em comunidades cujas concepções culturais
entidades, símbolos, relações entre géneros, numerologia, sim­ 1t:ligiosas se tingem perpetuamente de influências ideológicas
bolismo das técnicas, etc. As análises de B. Turner entre os ,111tigas ou recentes: os discursos recolhidos pelos etnólogos
Ndembu da Zâmbia procedem, numa perspcctiva ligeiramente ,,presentam tantos enunciados tradicionais quanto racionaliza­
diferente, de uma descodificação das estruturas do simbolismo i, oes modernas [Pigg, 1996, p. 172]. Para ser fiel à abordagem

religioso desta tribo: em Turner, o significado dos símbolos dos ht:rmenêutica, a antropologia das crenças e das significações
rituais ndembu não reside apenas na sua expressão e interpretação tcm de levar em conta essas variações sociológicas (a distribui-
conscientes; situa-se também num plano que escapa à consciên­ 1, ao social das «crenças», as suas inflexões idiossincráticas de

cia dos actores, mas que a análise de um observador exterior -.cntido), históricas (as variações na diacronia, que interditam a
e consciencioso é capaz de revelar [ 1991 ], perspectiva que se ,ua consideração como o reflexo eterno de um ethos cultural)
aproxima da de um Mauss, para quem a vida social era, desde 1 políticas (os jogos de poder subjacentes às manifestações e

logo, de natureza simbólica [ J 985], e de um Lévi-Strauss, para 1 , pressões religiosas) 1 Asad, 1993].

quem a cultura em geral assenta no simbólico l1985].


Embora incisiva, a hermenêutica levanta também muitos
problemas. Com efeito, assenta na ideia de que todos os actores e ·011ceitos indígenas, conceitos científicos
de um mesmo grupo social seriam depositários dos mesmos
referentes culturais e religiosos (de um ethos, segundo Geertz A postura e as descobertas empíricas do etnógrafo não im­
(1972]) e que, portanto, a significação das práticas e dos sím­ pl11.:am apenas reflexões sobre as suas competências em desco­
bolos religiosos seria idêntica para colectivos inteiros - e, por dificar o sentido dos outros; pressupõem também, e sobretudo,
isso, social e psicologicamente estruturante de maneira análoga 1 nrnpetências conceptuais, porque uma antropologia sem teoria

para cada indivíduo de um mesmo grupo l Ortner, 19731, o que é 111,iis não é do que uma etnografia descritiva. Os problemas
empiricamente discutível. Os trabalhos de Philippe Sagant sobre o d, tradução das crenças e representações religiosas indígenas
xamanismo limbu, no Nepal, mostram que não só a interpretação 11 .ibam por levar a antropologia a analisar os seus próprios con-

dos factos ligados à religião não admite uniformidade entre os 1:1 1tos. É que o maior problema da antropologia não reside no
próprios indígenas, como também é processual e distribuída entre 11 esforço de explicar o significado das categorias semânticas
os diferentes actores de um mesmo grupo social: informados da 1111ligenas; trata-se, afinal, de uma das suas primeiras razões de
cura de um xamã, os aldeões limbu envolvem-se progressivamente e, É outra ambição, mais teórica, a que consiste em converter
numa discussão generalizada sobre a sua eficácia e exprimem lllll·gorias indígenas em conceitos científicos, que depara com
opiniões bastante divergentes, a partir das quais a comunidade 111 11s obstáculos. Já confrontada com a dificuldade de estender
pode (ou não) confluir numa unidade de opiniões [Sagant, 1987]. 1, , onceito cristão de religião a um nível de comparação trans-

Foi também a partir de um estudo de terreno sobre o xamanis­ 11 lt ural, a terminologia antropológica soube ir buscar muitos

mo nepalês que Stacey L. Pigg mostrou as diferentes atitudes . I," seus conceitos às línguas vernáculas, com o objectivo de as
dos aldeões relativamente ao xamanismo (da plena convicção à 1, 11 l u;;ir em instrumentos intelectuais de vocação heurística e de
franca incredulidade) e evocou a «heteroglossia» dos discursos d, ,111ce transcultural: as ideias de tabu (polinésia), mana (mela-

50 5l
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES CONTEXTUALIZAÇÃO

nésia), totem (algonquina, América do Norte) ou xamã (tungúsica, 1 1t·ncia da reconstituição da história das sociedades humanas,
Sibéria) tomaram-se conceitos que se referem, respectivamente, a 1 mm Mauss e Malinowski que a antropologia se toma uma

interdições morais, a um poder mágico contagioso, a uma relação 1 H'ncia dos factos «em contexto» ou «no seu contexto», para

particular (social e genealógica) com entidades sobrenaturais, ou 11,.1r a expressão de l.E. Lewis [1986]. Os factos religiosos, seja
a um especialista da mediunidade. Evidentemente, a conversão q11.ll for a forma que adquiram para os seus praticantes ou ob-
de noções significantes numa língua e num contexto sociocultural 1 1 vadores, nunca são, com efeito, independentes dos contextos

de utilização para conceitos antropológicos implica submetê-las a , 111 que se inscrevem, porque, para a antropologia, tal como para
uma «desculturação» para lhes conferir faculdades descritivas e 111das as ciências sociais, o facto religioso não pode ser tratado
heurísticas transponíveis para outros contextos. Entramos assim d,· maneira autónoma. A sua inteligibilidade é tributária do so-
nos problemas epistemológicos da tradução em antropologia, que 1..1.11, do psíquico e do histórico. A sua variabilidade é tributária
foram tratados, em pru1icular no domínio anglo-saxónico, num d , cultura. O conceilo de contexto, porém, não é uniforme e
debate que analisava as relações entre as categorias emic (indíge­ p11dcmos distinguir pelo menos três tipos de contextualização:
nas) e etic (científicas): estas controvérsias levaram à conclusão h111úrica, empírica, sistémica ou teórica.
de que o carácter cultural do discurso científico invalida qualquer Na antropologia, tal como na história ou na sociologia, a
possibilidade de legitimar uma postura etic. Por outras palavras, a 1 1111tcxtualização é, em primeiro lugar, «histórica»: reconstitui

tradução dos conceitos indígenas não se faz para uma língua ou 1 1cligiões estudadas nas suas histórias, mas também na His-

para um pensamento científico metacultural, mas cultural [Olivier 11111a. Do mesmo modo, inscreve a análise nas transformações
de Sardan, 1998), o que leva à determinação da linguagem antro­ l11,1oricas que afectaram o quadro social e cultural das religiões,
pológica pelas categorias semânticas herdadas das raízes cristãs 111 1 mitindo revelar a abordagem antropológica das relações entre
de certos pensamentos científicos ocidentais. Além disso, corno 11.i11sformação histórica e transformação religiosa. Para Roger
observa Evans-Pritchard, essas noções são ainda mais difíceis de 11,1',t ide, «as religiões transformam-se como todos os factos
traduzir pelo facto de se tratarem de ideias complexas e abstractas 11t 1ais. Seguem as grandes mutações que fazem os homens pas­
(«termos metafísicos») íl965, p. 25). Mais do que a polissemia, ll l'll1 do nomadismo para o sedentarismo, das cidades para os
lembra J. Pouillon, é uma ambiguidade (para os próprios indíge­ 1111périos, das civilizações rurais para as sociedades industrüús»
nas) que caracteriza essas noções, e se a antropologia lhes fixou o 11 '> 1)7, p. 103). O segundo processo de contextualização, dita
sentido no registo enciclopédico dos conceitos, a sua compreensão 1 111pírica», relaciona os factos religiosos com as práticas, a sua
enquanto categorias indígenas apela, empiricamente, à restituição 11ddicação cultural e inscrição nos usos sociais. É aquilo que
dos seus usos e contextos [ 1993]. 1111stitui o âmago da etnografia. O terceiro tipo de contextua-
11 .u.-ao é aqui designado por «sistémica», no sentido em que
111duzida pelo princípio do holismo metodológico da análise,
Contextualização q111 relaciona os factos/instituições decorrentes da religião com
, outras dimensões da vida social e cultural: a produção eco-
O processo de contextualização é outro traço metodológico 1111111ica, a política, o parentesco, a arte, etc. Este processo de
constitutivo da antropologia das religiões. Depois de ter sido urna 1111textualização, que confere urna identidade à religião mais
52 53
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES CONTEXTUALIZAÇÃO

por relação (a outras esferas) do que por essência (per se), ·�·rados apresentam de si próprias (através da sua literatura
encontra-se tanto nos trabalhos funcionalistas como nos estru­ .. ,�•rada) a imagem de uma arquitectura clara e urna coerência
turalistas, mas encarna-se especialmente no conceito de «facto ,• l11bal, Michel lzard e Pierre Smith lembram que, «nas socie­
social total», cuja paternidade pertence a Marcel Mauss, no seu d.1des habitualmente estudadas pelos antropólogos, não há nada
Ensaio Sobre a Dádiva lEssai sur !e don, 1985]: a existência de d,,so: na maioria dos casos, lidamos com mitos esparsos, ritos
uma instituição (religiosa) explica-se, por um lado, por referência h1·1erogéneos, discursos Jacunares, práticas ligadas entre si por
às suas dimensões psíquica, sociológica e histórica e, por outro, 111 ,s imperceptí veis» í 1979, p. 11 l Por conseguinte, não é tanto
11 rnntexto que confere consistência a um sistema religioso, mas
em relação a outras dimensões da vida humana, consideradas na
sua totalidade. Esta totalidade, segundo Lévi-Strauss, é a própria 1111 o trabalho do investigador em compor ou recompor esses
cultura, designada como um conjunto de «sistemas simbólicos», l1os imperceptíveis».
que inclui a religião [ 1950, p. XIX].

Comparatismo
Do empírico ao sistema
A antropologia afirma-se assim como ciência comparativa
Mas será que as acções, práticas. discursos, signos e símbolos l excelência: a antropologia das religiões pode então, muito
''ll
da religião constituem realmente «sistemas»? Em 1935 (reed. 111,.icamente, reivindicar tal usufruto. No entanto, muitos outros
1997], Bastide rejeita esta possibilidade entre os «primitivos», , ompartimentos ou disciplinas no seio das ciências das religiões
cujo pensamento «não está ainda completamente separado do 1111 mam também aderir ao comparatismo, ainda que o método
instinto animal»: «Não encontraremos neles, portanto, repre­ il,· comparação, que foi «totalmente ignorado pela historiografia
sentações intelectuais bem desenhadas e claras, noções bem 11.,dicional», tenha sido introduzido pela etnologia na história
hierarquizadas, e muito menos sistemas teológicos» íp. 42]. No il ,., religiões, contribuindo assim para a sua reforma [Sabba-
entanto, é na perspectiva etnográfica que Evans-Pritchard encontra 1111 ri, 1988, p. 756j. Mais do que um simples ponto de método, a

uma elucidação particular, quando depara com dificuldades em 'llll'stão do comparatismo convoca, de facto, toda a epistemologia
ordenar num plano teórico todas as noções associadas ao Mbori, , 1 , antropologia e, por extensão, das outras ciências compara­
uma entidade sobrenatural presente nos discursos dos Azande do i• ·,1o.;, em especial a história das religiões. O que se pode ou
Sudão. «Quando são reunidas e globalmente apresentadas por ,. deve comparar, propriedades isoladas, sistemas completos?
um etnógrafo, [ essas noções] parecem fornecer uma prova irre­ '.1 ,ao todas as religiões comparáveis? O comparatismo deve ser
futável de uma doutrina sistematizada», admite Evans-Pritchard. , 11eralizado ou será que se pode limitar a um número limitado
Contudo, «na vida corrente, nunca se apresentam deste modo: 1, rasos? Coloca-se aqui uma dupla questão de método e de
são apenas frases observadas, proferidas em diversas situações pistcmologia. A questão de método é a da comparabilidade dos
de aflição, de ansiedade e de medo, e têm, no contexto em que 1 11 tos religiosos e das finalidades da comparação. A questão
são pronunciadas, uma significação mais emocional do que 1 ,11·temológica é a da universalidade dos factos religiosos.
conceptual» [1974, p. 199]. Se as grandes tradições com livros
54 55
ANTROPOLOGJA DAS RELIGIÕES COMPARATISMO

Alcance e limites i·l·rais: permite passar da descrição empmca à modelização


ll'<>rica de maior alcance. Neste sentido, está sujeito a uma du­
É com o evolucionismo que o comparatismo antropológico se pla obrigação: à contextualização (que vai no sentido do local)
desenvolve e que postula a universalidade do homem e das suas 1 a descontextualização (que vai no sentido do global). Criar
capacidades mentais, e, paradoxalmente, algumas categorias que 11111 modelo pela comparação significa quase sempre purgar a
1 omplexidade de um fenómeno local. É, por exemplo, o caso
descriminam as sociedades, as culturas e as religiões em função
da sua posição na escala da evolução. Robert Hertz opôs-se àquilo dos ensaios de comparação transcultural dos ritos, como os
que qualificava como «contribuição negativa» do evolucionismo 1 u opostos por Van Gennep [ 1969] ou Hocart [2005]: como a sua
1 111nparação implica uma classificação prévia, os ritos tratados
para a compreensão do facto religioso: a alegada presença de
certos fenómenos religiosos apenas nas religiões «superiores>>, por estes dois autores perdem em singularidade (cultural) aquilo
como o sentimento do pecado, era contradita por uma etnografia que ganham em universalidade (metacultural).
comparada, que revelava a sua universalidade f 1988]. Com a
falência do evolucionismo, em inícios do século xx, os grandes
modelos comparatistas foram abaixo: o seu defeito principal era 1 problemática da universalidade
o facto de se basearem num comparatismo que Edmund Leach
assimilou a um «borboleteio», uma espécie de colecção de l� esta universalidade - mais postulada do que demonstrada -
factos díspares que tinha como única finalidade a demonstração qul' oferece as bases a um método comparativo do qual a antro­
da existência de leis da evolução [1968aJ. Desde então, poucos p11logia se afirma depositária, mas que, de facto, se estende a
são os antropólogos que se dedicam ainda ao exercício difícil 111t1ilas outras disciplinas, muito para além das ciências religiosas
(mas fundamental para a antropologia) do comparatismo. Na 11 111110 mostraram Jucquois e Vielle [2000]. Na perspectiva de
maioria dos casos, limitam-se a dois sistemas religiosos, como 1 1•vi-Strauss, as «coisas» a comparar são comparáveis porque
as comparações efectuadas por Alain Testar entre o budismo e provaram previamente o seu carácter universal 119741- Mel-
as religiões indígenas da Austrália [ 19931 - uma comparação 1111 d Spiro opõe à «obsessão pelo universal» e ao postulado de
limitada, que é também a que se faz na história das religiões 1111,vcrsalismo a priori as variações (históricas e culturais) de
1 111ido de que a «religião» foi objecto: a comparação, mais do
[Honko, 1979, p. xxvm].
'llll' a fundamentar, faz o objecto tender para a universalidade,
Além disso, o trabalho comparatista só é possível a custo da
formulação de conceitos que o autorizem. Mas, face à impossi­ , ,1 não-universabilidade dos factos não exclui o comparatismo,
,i.1 l:ondição de que os conceitos satisfaçam critérios de «aplica-
bilidade de atribuir ao primeiro desses conceitos, o de religião,
critérios que satisfaçam um princípio de universalidade (inerente 111 lidade transcultural» [Spiro, 1972, p. 115]. Não há dúvida de
ao comparatismo) e, ao mesmo tempo, um princípio de relativi­ ,1111· foi com Marcel Mauss que o método comparativo terá sido
dade (o reconhecimento das suas formas locais), o historiador d.uamente explicitado na antropologia das religiões. Enquanto
Daniel Dubuisson referiu a sua «vocação antropológica incerta» , l'll" muitos dos seus contemporâneos continuavam a interessar-se,
,1 , l'Steira de Durkheim e Tylor, pela religião, Mauss esforçava-
(1998, p. 83 ss.]. O comparatismo consiste também em reduzir
a diversidade dos factos localmente observados a propriedades .,. por evitar a armadilha de um nível demasiado elevado de

56 57
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES

abstracção e de generalidade, e reduzia a análise antropológica


àquilo que seria o seu domínio de excelência: o estudo das
religiões. «Não há uma essência chamada religião», af irma ele,
«só há fenómenos religiosos a que chamamos religiões e que
têm uma existência histórica definida, em grupos de homens e
em tempos determinados» [1968, pp. 93-94]. Para as estudar,
é necessário dotar a antropologia da aparelhagem conceptual
ad hoc: postular a existência dos sistemas religiosos e mostrar
os seus elementos constitutivos, que são respectivamente as
representações, os actos e as organizações [ 1968, p. 89), que III
Bastide rebaptizará como «elementos representativos», «elemen­
tos motrizes» e «organização» L 1997].
O comparatismo, a que a antropologia pode recorrer, só diz
respeito a estas questões altamente epistemológicas. Num plano Os Modelos da
prático, trata-se de sublinhar a originalidade de uma religião
no sentido em que é a especificação das «outras» religiões ou Antropologia das Religiões
da religião do «outro» que fornece, por reflexão, a imagem da
sua própria singularidade religiosa (ou a de uma sociedade «de
partida») e o modelo de referência para destacar os «altos» e os
«baixos» da diferença (para usar a expressão de Dumont 119641).
É a razão por que o método de um Fustel de Coulanges, que
privilegia esta forma de comparação baseada na objectivação do
outro (no seu caso, a rei igião antiga), é, segundo François Héran,
«resolutamente etnológico e muito pouco sociológico» 1 J 986,
p. 244]. Assim, a comparação antropológica não é apenas uma
questão de disciplina, mas também de perspectivas metodológi­
cas: por se basearem no mesmo método comparativo, As Formas
Elementares da Vida Religiosa [Les Formes éléme11taires de la vie
religieuse, 1912] de Émile Durkheim, contam-se legitimamente
entre os «clássicos» da antropologia das religiões.

58
Se a antropologia é a ciência do homem em geral, e a antropo­
h igia das religiões a da religião concebida na sua universalidade,
1 l'Lnologia das religiões, sobre a qual se funda, deveria virtual-

111ente ser a ciência de todos os sistemas religiosos que existem ou


, , istiram. Contudo, foram religiões particulares que se estudaram
, que conferiram à antropologia das religiões as suas orientações
111gulares. Deram lugar à formação de grandes modelos, que são
1q11i apresentados na forma de seis rubricas: religião primitiva,
1111rnismo, magia, feitiçaria, totemismo e xamanismo. Eventual-
11n·nte, outras categorias, como o fetichismo, o paganismo ou o
l'oliteísmo, foram admitidas pela antropologia, mas de maneira
1111·nos central do que os conceitos acima referidos. A diversidade
1, ,tcs modelos revela, simultaneamente, a extensão e os limites
. li, domínio de estudo. Isto porque, na antropologia das religiões,
1 ti rnmo na antropologia geral IAppadurai, 1986], é a singula-
11d,1de dos terrenos explorados pelos antropólogos que cria os
11111dclos teóricos: as configurações socioculturais dos grupos de
llllrígenes da Austrália ou das sociedades siberianas impuseram
61
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES A RELIGIÃO «PRIMITIVA»: MODELOS E DEBATES

à análise a necessidade de formular sistemas diferentes e de os h, 1 tudo, a impossibilidade de sustentar a tese monogenética (que
teorizar na forma de modelos etnológicos (à escala de uma so­ u111sidera uma forma original a partir da qual teriam derivado
ciedade) e, depois, antropológicos (comparáveis). Cada sistema 11111.,s as outras formas) face à evidência de uma poligénese (a
estudado - ou teoricamente criado pelos etnólogos - suscitou 111,1·rsidade das religiões está ligada a configurações singulares)
debates particulares no seio da antropologia das religiões, da 1111 anunciou o declínio do fundamento teórico do primitivismo,
an�r ?pologia cm geral (por isso, é fonte de importantes avanços , , volucionismo [Sidney, 1954]. Inicialmente criticado pelas
teoncos) ou no diálogo com outras disciplinas. , 111cntes de pensamento anti-históricas, como o funcionalismo
lt11ta11ico e o estruturalismo francês (que refutavam, cada um
1 11a maneira, os fundamentos do evolucionismo), sofreu os
A religião «primitiva»: modelos e debates 11,1qucs mais duros a partir dos anos de descolonização (1950-
1 %0), num momento da sua história em que a antropologia se
Os primeiros modelos comparativos da antropolooia das 1111, 1 rogava, através de debates agitados, sobre o seu contributo
re�ig!�es fundaram-se em torno da ideia de que a «;eligião p 11.1 o colonialismo [Panoff, 1977]. Ainda que o primitivismo
pnm1t1va» constituía o objecto principal da etnolooia das re­ 1 11lta falhado, apesar de algumas tentativas para o reabilitar,
ligiões, um tema que esteve na origem de debates ;om outras li, ,l'mbaraçando-o dos seus pressupostos ideológicos [Douglas,
disciplinas, como a psicologia, a sociologia e a história. Durante 1 1 1 1 1 'J, podemos questionar retrospectivamente o seu verdadeiro
quase um século (desde os anos 60 do século x1x aos anos 50 J• 1pl'I na constituição dos objectos da antropologia das religiões.
do século xx), a produção científica menciona regularmente a p, imeiras grandes teorias da religião em antropologia tratam
s �a existência, sob uma forma geral (a religião primitiva) ou 111• .11 iavelmente das suas formas «primitivas». Uma das versões
s111gular (uma religião primitiva). 111 11s clássicas baseia-se na ideia antiga de que a religião, nos
p, 1111itivos, tem origem em «medos profundos», nascidos da sua
1. 11 l·pção dos fenómenos naturais. Recorrente na filosofia e na
Primitivismo e Homo religiosus
111 1mia, esta ideia seria desmentida pela etnografia: se existem
1•111111livos, estes não são mais aterrorizados do que os «modernos»
No entanto, apesar da recorrência da expressão, a antropologia 1• l I meteorologia ou por qualquer outro fenómeno perturbador.
nunca chegou a um consenso claro sobre a própria existência l11,p1rando-se nos trabalhos de Evans-Pritchard sobre a feitiça­
de uma «religião primitiva», sobre a natureza da reJioiosidade n I Mary Douglas lembra que «quando um Azande descobre
dos «�r��itivos» e, de uma forma mais geral, sobr; 0 lugar 1111 loi enfeitiçado, não fica aterrorizado, mas sim indignado,
_
da rehgiao nas sociedades «tradicionais». Dominante durante . ,1111) ficaríamos ao saber que fomos vítimas de um desvio de

os anos de fundação da antropologia (a partir dos anos 1860- l,1111los» [1992, p. 23]. Para Paul Radin [1941], esses medos
-1870), porque herdado dos pressupostos racionalistas e cris­ ht1am efectivamente, mas nada tinham de existencial: estavam
tian�cêntricos da época, o primitivismo, crisol intelectual que 111, itamente ligados à instabilidade das condições económicas
sus�1tou a formulação da religião primitiva epónirna, tornou-se 111 sociedades «primitivas». A religião nasce nestas sociedades
rapidamente alvo de críticas internas na antropologia. Foi, so- 111110 instituição cm virtude de condições económicas que faci-

62 63
ANTROPOLO GIA DAS RELIGIÕES /\ RELIGIÃO «PRIMITIVA»: MODELOS E DEBATES

litaram a emergência de classes de sacerdote


. .. s ou de «teólooo
o s 1' 11967, p. 205). Por assumir como objecto um «presente»,
pnm1t1vos» cuja actividade estaria então isent 1, ,nvação etnográfica está necessariamente inscrita numa
a de qualquer 11
obrigação de produção. ,1 111t 111poraneidade; ora, os primitivos só podem pertencer ao

1 1 ,,do, salvo se os considerarmos sobreviventes dos tempos


1111 •os e imunizados contra qualquer mudança cultural. Para-
A «mentalidade primitiva» 1 1 1 1li ncnte, Marcel Mauss afirma inequivocamente aquilo que
1 , l'sperar um etnólogo que se dedique ao estudo da religião
Em oposição a esta concepção «economista», encontramos 1 11111a sociedade «arcaica», perpetuando assim a representação
as reflexões de James G. Frazer ou de Lucien Lévy-B ru hl, que 111 pnrnitivo como «religioso»: «O observador encontrar-se-á
colocam a primitividade das sociedades não-ocidentais no plano 11 , l'll'scnça do Homo religiosus, do homem religioso; é assim
das capacidades mentais - ou, mais precisamente, da «menta­ 111, 11s membros das sociedades não-europeias se caracterizam»
lidade». A «mentalidade primitiva», ideia comum a todos os 11'1' ,03-204). De qualquer forma, o primitivo seria, aliás, mais
trabalhos evolucionistas, mas teorizada distintamente por Lucien 11111 I Jomo magicus do que religiosus.
Lévy-Bruhl, deve dar conta, com exclusão das condições mate­
riais ou da ecologia, da forma particular que adquirem as suas
crenças e as suas práticas religiosas. Criticada por primitivismo A magia, a ciência, a religião
(o conceito de pré-fogismo tem aqui importância) - e continua
a ser actual rejeitar as teses de Lueien Lévy-Bruhl -, foi, na J\ magia e a feitiçaria revestem-se de uma importância fun­
verdade, muito mal compreendida. Para Lévy-Bruhl, a «mentali­ l 1111l'ntal para a antropologia. Segundo Bruce Kapferer, estão
dade» dos primitivos decorria, sem dúvida, de uma «aversão ao 111 1.aladas no «âmago epistemológico da antropologia», na medida
raciocínio, àquilo a que os lógicos chamam operações discursivas 11, que o seu estudo abriu três grandes campos de investigação:
do pensamento» [ 1960), mas «esta aversão não tinha a ver com l11ndações da religião, as características da psique humana e
uma incapacidade radical ou com uma impotência natural do 11 ,1ureza da ciência [2003, p. 11. Excluídas. pela sociologia e
entendimento; explicava-se pelo conjunto dos seus hábitos de
1 l.1 história, do domínio «próprio>> da religião (�� f,�cto, dos
espírito» 119601. Neste sentido, a perspectiva de Lévy-Bruhl m1,11oteísmos de tradição escrita), a magia e a fe1t1çana foram
aproximava-se mais de um relativismo cultural do que de um l111.111te muito tempo relegadas para o nível dos arcaísmos ou das
verdadeiro primitivismo [Evans-Pritchard, 1965; Douglas, 1992]. 11p,·rstições antiquadas, e até pura e simplesmente eliminadas
Embora seja fácil apontar as tendências etnocêntricas subja­ 11 p.,isagem religiosa de referência, ou seja, da das sociedades
centes a estas teorias, a atitude dos antropólogos parece mais 11lentais, devido ao seu pretenso desaparecimento histórico
ambígua. Nos cursos reunidos e publicados após a sua morte na li ,1Het-Saada, 1977, 19911. Em contrapartida, impõem-se de
forma de um Manual de Etnografia íManuel d'ethnographie], h11 111a persistente no campo de observação dos etnólogos, a
Marcel Mauss opunha-se ao primitivismo projectado sobre as 111,1110 de parecerem formar uma matriz de poderes, crenças e
religiões das sociedades tradicionais, segundo o princípio de 11111s nas sociedades não-ocidentais.
que «em lado algum se encontrará uma religião muito "primi-
64 65
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES
A MAGIA, A CIÊNCIA E A RELIGIÃO

Magia e religião
,, 11n1dos pela sua índole sagrada e obrigatória (ritos oficiais,
, 111c.les cultos, cultos privados) e em «religião lato sensu», ou
Ainda que usado com regularidade, o conceito de magia , 1., a magia e a adivinhação, que inclui também o «folclore»
não recebeu uma definição consensual em antropologia, e pa­ l 11, «superstições» populares [1967, p. 212]. Depois de James
rece que muitos antropólogos ficam satisfeitos em inscrevê-la , , 1 :razer, Roger Callois estabelece uma diferenciação no plano
numa definição de natureza adversativa: o que lhe confere a , l I psicologia e dos comportamentos humanos: a atitude «mágica»
identidade é menos aquilo que é do que aquilo que não é (re­ , de natureza activa, denuncia uma vontade de poder sobre a
ligião). Quando Claude Riviere considera a magia «à margem , 11, km do mundo e tenta opor-se ou aliar-se a potências superiores.
da religião» [ 1997], é essencialmente como reflexo invertido l 11wrsamente, a atitude «rei igiosa» é passiva, caracterizada pela
de uma certa concepção da religião, que deve ser tão questio­ 11l11nissão, e de modo algum põe em causa a ordem do mundo,
nada quanto a própria categoria de magia. A distinção entre l[lll' é uma ordem de origem divina t 1938, pp. 8-9]. Em Esboço
«magia» e «religião» é herdada das concepções religiosas dos /, 11111a Teoria Geral da Magia [Esquisse d'une théorie générale
monoteísmos, em particular de um judaísmo que se mostrou /, /a magie] (redigido em 1902-1903), Henri Hubert e Marcel
particularmente hostil à magia. Se a oposição conceptual magia t.111ss sugerem, por seu lado, que é no domínio da organização
versus religião atravessa todas as obras dos maiores nomes da 111 1al que as diferenças entre as duas se tornam mais claras: a

�isciplina, como J.G. Prazer, H. Hubert e M. Mauss [ 1950], 111.i)'ia é individual, secreta, escondida, enquanto que a religião
E. Durkheim tJ912J, W.H.R. Rivers (que lhe acrescenta uma , l olcctiva, pública e oficial [ 1985, p. 15]. Magia e religião
terceira dimensão, a medicina) (1924], R. Callois 1_1938] ou até 11 p1 esentam então dois pólos opostos, mas complementares,
L. Lévy-Bruhl [19311, decorre, porém, para todos os autores ,1 ,.., crenças e das práticas nas sociedades tradicionais: no pólo
citados, menos de uma oposição de natureza do que de uma /, 1:ttimo, a religião, no pólo ilegítimo, a magia.
diferença de grau (de organização social, de sofisticação das
crenças, de articulação entre as representações e os ritos). Marcel
Mauss pensa poder isolar o traço comum que situa a religião e I 11idade do «mágico-religioso»
a magia num mesmo plano de realidade: ambas se fundam no
sagrado. Após Durkheim, que analisou as suas propriedades No plano etnográfico, a distinção entre as duas ordens de
e mostrou a sua plasticidade [1986], o sagrado subdivide-se, 1, 11nmenos tende a esbater-se, de tal modo que se impõe uma
segundo Mauss, em duas categorias, o «sagrado religioso» e il11pla evidência: a oposição é apenas de natureza conceptual e
o «sagrado mágico» (ilustrado pelo mana). Do mesmo modo 1i 111 a ver com escolhas terminológicas, e os factos «mágicos»
quando Émile Durkheim vê uma oposição de facto e de naturez� ,digiosos» inscrevem-se, para a antropologia moderna, num
entre a religião e a magia, o sociólogo francês não lhes nega 111tinuum. O recurso a uma terminologia distintiva é visto, por
uma influência recíproca e permanente, uma vez que «a magia 11i1rothy Hammond, como um simples problema de semântica:
está cheia de religião, e a religião cheia de magia» (1986, p. 59]. . 111110 a magia é apenas uma forma singular de comportamento
Marcel Mauss propõe, porém, dividir os fenómenos religiosos 11111:11, pode então ser considerada parte integrante da religião
observáveis em «fenómenos religiosos stricto sensu», carac- 111.,mmond, J 9701. No entanto, muitos antropólogos seguiram
66 67
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES A MAGIA, A CIÊNCIA E A RELIGIÃO

a via de uma singularidade da magia, esforçando-se por lhe «carisma mágico» num «carisma de profissão», tal como
assinalar as propriedades distintivas. Para Prazer, é caracterizada caracteriza a religião, «padronizada» pela organização
pelas leis de simpatia (o semelhante atrai o semelhante) e de burocrática na qual se modela. Por oferecer uma leitura
contágio (aquilo que foi posto em contacto continua a agir ft cómoda da história, esta teoria gozou de um sucesso du­
distância) [ 18901. Mas as ideias incisivas de Frazer não impe­ radouro: Keith Thomas, numa obra publicada em inícios
dirão a persistência do primitivismo. Em sua sequência, Hutton dos anos 70, reafirmou que o aparecimento histórico da
Webster faz da magia uma primeira figuração das potências religião terá significado a redução histórica do domínio
«ocultas», fundada na indistinção primitiva entre o pessoal e o da magia face ao aumento de poder da religião. Este mo­
impessoal, o natural e o sobrenatural (1952]. Paradoxalmente, delo é duplamente disjuntivo: é dicotómico (pressupõe,
Webster assinala na mesma obra a complexidade das formas da na base, uma clara diferença entre a magia e a religião)
magia (taumatúrgica, propiciatória, profiláctica ... ) e a diversidade e substitutivo. Também é necessário que a pertinência da
das funções psicológicas e sociais que assume, desvalorizando­ leitura da história que propõe seja extensível para além
-a, ao mesmo tempo, como pensamento complexo. Hubert e do mundo monoteísta, onde a oposição magia/religião
Mauss [ 1950] reabrirão a questão da magia para fo rnecer outros tem uma significação social e cultural.
elementos, menos marcados por pressupostos desqualificativos.
A reanálise da transmissibilidade dos poderes mágicos irá resul­ Fontes: Prazer [1890]; Weber f 1971]; Thomas [1971].
tar num dos conceitos clássicos da antropologia das religiões: o
mana, uma força espiritual impessoal e contagiosa, descoberto
pela primeira vez por Robert H. Codrington entre os Melanésios Presciência, pseudociên.cia?
(The Melanesians, 1891 ).
A identidade da magia constitui-se também em oposição à
ciência [Jorion e Delbos, 1980]. A paternidade desta perspectiva
Magia «antiga» e religião «moderna»? é atribuída a James G. Frazer, mas encontra-se em autores tão
diferentes como Malinowski ou Lévi-Strauss. Em O Ramo de
Um dos debates mais importantes suscitados pela Ouro [The Golden BoughJ, Jame<; George Frazer enuncia aquilo
magia é, sem dúvida, o da posição das crenças na es­ que considera serem os três estádios do pensamento �elos �u �is
-
cala evolutiva. Ainda que se atribua a paternidade desta toda a humanidade deve supostamente passar: magia, rellgiao
hipótese a James G. Frazcr, vários antropólogos, histo­ e ciência. Esta tripartição, e sobretudo a sua consumação no
riadores e sociólogos partilham a ideia de que a magia pensamento científico e racional, não deixa de fazer lembrar
_
é uma forma arcaica da religião e que se situa, portanto, a «lei dos três estados» de Auguste Comte, com a diferença
num estádio anterinr na escala da história, e, em muitos de que o fundador da sociologia, nos seus Cursos de Filosofia
casos, é-lhe inferior cm matéria de crenças e rituais. Positiva [Cours de philosophie positive] (1830-1842), postula
O sociólogo alemão Max Weber, que não pode ser sus­ como pensamento primeiro uma teologia e a sua co� su�ação
peito de evolucionismo, evoca a transformação de um histórica num pensamento positivo. O modelo evoluc1onista de
68 69
A MAGIA, A CIÊNCIA E A RELIGIÃO
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES

discurso evolucionista de um Frazer, pondo em pé de igualdade


Fr�zer, muito controverso, situa paradoxalmente a magia na
0 pensamento da magia e da religião (reunidos na expressão
ongem da religião, ao mesmo tempo que o antropólogo britânico
«pensamento mágico-religioso») e o pensamento positivo, que
abre outro assunto: o das proximidades entre as formas da cau­
não se distinguem num plano histórico nem numa avaliação
salidade mágica e as da causalidade científica. Nos dois planos,
truncada de uma (a magia) pela outra (a ciência): poder-se-ia
pelo menos, Frazer terá contribuído para separar a magia da
dizer que são simplesmente dois modos de pensamento distin­
religião e para aproximá-la da ciência, fazendo dela uma «pré­
tos pelas operações mentais e pelos objectos da realidade que
-ciência»: uma vez que a magia assenta em causalidades (totais)
submetem ao seu tratamento í 1962b].
para explicar acontecimentos (singulares), partilha com a ciência
uma certa forma de racionalidade interna. Além disso, adquire
um carácter empírico, quase «experimental», no sentido em que
tenta dominar e inílectir as leis da natureza (através de ritos e Reabilitações
acções eficazes). São dois traços que não estariam presentes na
Segundo uma opos1çao de perspectiva bem conhecida na
religião, que se apresenta então como mais abstracta e menos
antropologia, existem dois planos distintos em que se pode ver
instrumental. É verdade que a magia fracassa (uma deficiência
a reabilitação da magia: o das mentalidades e o da história. Esta
negada à ciência), e é este «fracasso mágico» que a desqualifica
dupla reabilitação é feita, nomeadamente, por Ernesto de Martino,
[Prazer, 1993). Numa obra muito discutida, Magia, Ciência e
chefe de fila de uma escola italiana de filosofia e história das
Religião, e outros Ensaios IMagic, Science and Religion, anel
religiões, que qualificou de «magismo» o conjunto de poderes
Other Essays, 1948], a oposição traçada por Malinowski entre
designados como «paranormais» que os especialistas usam nas
ciência e magia sobrepõe-se à distinção entre o profano e 0
sociedades não-ocidentais: ao recolocar a questão dos «poderes
sagrado. Para Malinowski, a magia teria um cankter utilitário
mágicos» sem se referir nem ao psicologismo do evolucionismo
ao contrário da rei igião, claramente mais especulativa, c �
(estariam ligados ao grau de desenvolvimento da mentalidade
essa característica que a aproxima do pragmatismo da ciência.
primitiva) nem ao sociologismo de Durkheim (a eficácia desses
Na leitura que faz da obra de Malinowski, que postula a ine­
poderes residiria nos processos sociais que os envolvem: comu­
xistência de uma distinção clara entre magia e religião (que
nicação, aprendizagem, adesão colectiva), interpreta-os como
convocam, em simultâneo, o sagrado e actos eficazes) 1 J 9481,
resultantes de um certo «estar-no-mundo» ou de um «drama
Stanley J. Tambiah conclui que, a seu ver, o famoso antropó­
existencial» que lhes funda a singularidade. O «drama histórico»
logo britânico não é um pensador importante para as questões
da magia não reside no seu eventual desaparecimento histórico,
religiosas. Em contrapartida, retoma a sua abordagem da
mas na sua desqualificação pelo pensamento ocidental: «Não
eficácia e da tecnicidade do acto mágico como pe,jormance
nos apercebemos», escreve ele, «que fomos nós que, na estrei­
de linguagem (é a eficácia das palavras que d,1 poder ao acto
teza da nossa consciência histórica e na atitude polémica que
mágico) e social (no seu contexto colectivo de enunciação): 0
dela decorre, subtraímos à crença mágica no sortilégio o drama
acto mágico é então «um falso acto técnico, um verdadeiro acto
real que a fundamenta, o de estar no mundo que corre o risco
social» [Tambiah, 1990]. Claude Lévi-Strauss, por seu lado,
de nele deixar de estar» (1971, p. 126]. Martino denuncia, ao
em O Pensamento Selvagem [la Pensée Sauvage], opõe-se ao
71
70
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES SENTIDO E FEITIÇARIA

mesmo tempo, a atitude positivista dos etnólogos a respeito da


primitivistas e no irracional foi abandonado pelos historiadores
magia e, mais geralmente, do mundo intelectual relativamente
e negligenciado pelos sociólogos: apenas os folcloristas e os
à «parapsicologia». Segundo a leitura que dele fazem os seus
etnólogos lhe atribuíram um interesse constante, por razões muito
exegetas, Martino permitiu ver o magismo das análises
em diferentes. Como os antropólogos que trabalham neste tema são
termos de conhecimento, de instrumentalidade ou de moral
, vistos como «mercadores do estranho» (segundo a expressão
e reconhecer-lhe o estatuto de instituição cultural I Mancini,
consagrada de Geertz), foi necessário «des-exotizar» a feitiçaria,
1994], mas, ao mesmo tempo, o filósofo italiano terá aberto a e o contributo de Evans-Pritchard terá sido fundamental. As
caixa de Pandora ao dar livre expressão a opiniões claramente
suas pesquisas entre os Azande do Sudão resultaram numa obra
simpáticas e apologéticas a respeito do «metapsiquismo» no seio
importante para a antropologia das religiões e para a antropo­
da ciência [Charuty, 20011 ou, pelo contrário, terá estabelecido
logia geral: Witchcraft, Oracles and Magic Among the Azande,
as fundações de um questionamento profundo sobre as poten­
( 1937). Longe de ser uma crença misteriosa e ininteligível, a
cialidades da psique humana e das maneiras como as ciências
feitiçaria surge, pelo contrário, como uma «filosofia natural»
(em particular, a antropologia) podem compreendê-la [Mancini
mobilizada nos casos de adversidade ou de conflito social. Do­
e Méheust, 2002]. A magia abriu então, por muito tempo, o
mínio de análise completo, a feitiçaria revela então toda a sua
terreno do sentido, que encontrará maiores desenvolvimentos
rnmplexidade na análise das suas dimensões simbólica, psico­
no estudo da feitiçaria.
lógica e sociológica. Reílecte, em primeiro lugar, as estruturas
profundas do simbolismo cultural, revelando, por exemplo, o
dualismo sexuado das relações dos homens e das mulheres com o
Sentido e feitiçaria: sobrenatural I Hertz, 1970 j. Possui origens psicológicas e sociais
significação, causalidade e racionalidade e cresce no terreno fértil dos sentimentos anti-sociais: frustração,
ira e inveja [Lévy-Bruhl, 1931 ]. Estes traduzem-se no plano das
Mais do que a magia, cujo estudo atravessa vários campos do relações sociais, e a feitiçaria oferece uma elucidação sobre os
conhecimento, não há dúvida de que é afeitiçaria que representa antagonismos interpessoais e sociais; constitui um «sistema»
um dos objectos mais habitualmente atribuídos à antropologia. entre três actores: o enfeitiçado, o feiticeiro, o «desenfeitiçador»
Prolongamento da magia, da qual representa uma forma «ne­ 1 Favret-Saada, 1977 J; a feitiçaria manifesta-se então na forma
gra», igualmente acção de um especialista individual, a feitiçaria de processo e deve a sua eficácia a processos psicossociológi­
só se distingue da magia num ponto: a intenção de fazer mal cos (sugestão, questionamento do empírico, consenso moral da
através da convocação de forças ou de entidades do invisível ou rolectividade) !Lévi-Strauss, 1974a]. Malinowski vê nela uma
do sobrenatural. Durante muito tempo, o termo «feiticei ro» foi dimensão social, porque, pelo seu carácter jurídico, regula as
uma categoria genérica para designar qualquer especialista das potenciais tensões sociais: o perigo de um contra-ataque sobre­
coisas «ocultas» nas sociedades «primitivas». Para Ioan Lewis, natural pode acalmar os fervores de uma agressão através da
«a elucidação do "problema" da feitiçaria» representa «um dos lcitiçaria l l 933b, pp. 62-631. Ao resumir todas as posições sobre
feitos mais impressionantes da análise antropológica» f 1986, as relações entre feitiçaria e sociedade, Alfred Adler não opta
p. 16]. Com efeito, este objecto tão arreigado nos estereótipos nem pela ideia de uma feitiçaria anti-social nem por a de uma
72 73
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES O ANIMISMO E AS «rORMAS ELEMENTARES» DA RELIGIÃO

feitiçaria social: mais do que social, a feitiçaria tem um papel suposta imutabilidade histórica. Isto porque todos os grandes mo­
essencial na reprodução da ordem simbólica e, neste sentido, delos de «religião primitiva» tinham sobretudo vocação para serem
embora se exprima socialmente, é associa[ [2004). integrados em reconstituições gerais da história, tal como as que se
encontram normalmente no século xrx. Foi Edward Bumett Tylor
quem forjou um dos primeiros grandes modelos da antropologia das
Porque caem os celeiros? É feitiçaria... religiões: o animismo, formado a partir da raiz latina anima («alma»
ou, mais geralmente, princípio animado). Nesta categoria cabem
O exemplo mais conhecido de feitiçaria na literatura formas muito variadas de culto, porque a definição do animismo
antropológica é, sem dúvida, o caso etnográfico descrito inscreve-se na vontade de Tylor em enunciar uma teoria universal
por Evans-Pritchard no seu estudo entre os Azande. O an­ da religião: «a crença geral em seres espirituais considerada como
tropólogo britânico relata o desmoronamento de um celeiro definição mínima da religião» [1876-1878]. O projecto de 'fylor
sobre alguns aldeões que estavam tranquilamente instalados consistia em mostrar o processo gerativo pelo qual as formas ar­
debaixo dele, à sombra. A causa é entendida: é feitiçaria, caicas da rei igião se transformam na história para darem origem às
a intervenção de um agente sobrenatural na vida ordinária. tradições que se conhecem, no primeiro nível das quais se encontra
Esta explicação do infortúnio e da desgraça é largamente o monoteísmo. O divino, na forma monoteísta, está no desfecho de
partilhada e mobilizada pelos Azande. No entanto, estes não uma longa maturação do pensamento. Refutada por É. Durkheim,
ignoram as causas concretas que provocaram o acidente: as a ideia de animismo tornou-se obsoleta com o naufrágio do evolu­
térmitas roeram as fundações do celeiro e este, mais tarde cionismo que lhe deu o seu sentido inicial, não sem ter suscitado
ou mais cedo, iria cair. Mas não necessariamente em cima um vasto debate em torno da sua posição numa periodização do
de pessoas. É a conjunção destes acontecimentos naturais pensamento religioso: ao animismo, religião primeira, opõe-se a
(a presença dos aldcãos, as fundações que cedem) que assinala escola «pré-animista» e, nomeadamente, Robert R. Marett, um dos
a intervenção do sobrenatural. O pensamento da feitiçaria discípulos de Tylor, que presume a existência de formas ainda mais
não exclui, portanto, nem a racionalidade nem a causali­ m·caicas do que o próprio animismo í 1994]. Mas Durkheim oporá
dade: modula-os simplesmente de uma maneira particular, a 'fylor e aos defensores das teses «animista» ou «pré-animista» o
atribuindo-lhes razões diferentes da lógica vulgar. totemismo como forma primeira da religião.

Fonte: Evans-Pritchard [ 1972].

Totemismo, classificação e clãs:


a universalidade dos modelos em questão
O animismo e as «formas elementares» da religião
Nenhum outro modelo de religião terá certamente mobilizado
O conceito de primitivo - por muito pejorativo que hoje tanto a comunidade dos antropólogos como o totcmismo. Como
pareça - contribuiu muito mais para forjar modelos dinâmicos observou recentemente Federico Rosa [2003], quase todos os
das religiões não-ocidentais do que apenas para encerrá-las numa grandes antropólogos entre finais do século x,x e a primeira me-
74 75
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES TOTEMISMO, CLASSIFICAÇÃO E CLÃS

tade do século xx participaram, pelo menos uma vez, no debate instituição matrimonial, a exogamia (1910]. Ora, as características
sobre o totemismo; esta categoria conceptual nunca foi unânime reunidas nesta categoria são, na maioria dos casos, dispersas ou
no seio da antropologia e o totemismo deu lugar a uma grande observadas de forma isolada, e muito raramente estão associadas
controvérsia. E com razão: por si só, o totemismo cristalizava num mesmo sistema, crítica que Alexander Goldenweiser, Franz
questões fundamentais da antropologia das religiões nessa altura. Boas e muitos outros irão fazer até esvaziarem o totemismo do
Lembremos que o termo totem significa «laço» na língua ojibwa seu conteúdo conceptual e das suas bases empíricas: o totemismo
(América do Norte) e não a representação animal ou vegetal a passa então a ser visto como uma criação intelectual que parece
que é prestado um culto. O totemismo designa nominalmente nunca se ter encarnado concretamente nas sociedades humanas.
uma forma de crença e de prática em que uma entidade (vegetal Com O Totemismo Hoje [Le Totémisme aujourd'hui, 1962a],
ou animal) está associada (de maneira genealógica) a um grupo C. Lévi-Strauss pretende acabar de uma vez por todas com a
humano ou a uma das suas subdivisões (em geral, um clã ou controvérsia, ao denunciar uma última vez a «ilusão totémica»
uma linhagem). e ao deslocar o problema para outro plano da análise. O pro­
O primeiro debate em torno do totemismo diz respeito ao blema do totemismo não é o da identidade do sistema, mas das
seu estatuto de «religião primitiva» ou de «forma elementar» classificações mentais e sociais que o totemismo mobiliza num
da religião, postura que será defendida por Jevons Lin Evans­ certo tipo de sociedade (dualista).
-Pritchard, 1965] e Durkheim [1986]. O totemismo permite, Circunscrita no tempo - terá durado menos de meio século
em seguida, abordar uma questão mais vasta, a da origem das (desde os anos 80 do século x1x até aos anos 20-30 seguintes)-,
interdições religiosas e culturais. A ideia de um sacrifício a questão antropológica do totemismo ressurge ocasionalmente,
totémico humano enunciada por W.R. Smith, em que o chefe a saber: se é possível incluir nesta categoria formas particulares
do clã é morto e consumido colectivamente, oferece a Freud a de cultos, observadas em áreas onde parecem predominar outros
oportunidade de lhe conferir um estatuto psicanalítico e de ver sistemas rei igiosos, corno nas tribos hinduizadas da Índia Cen­
aí a origem da civilização, ou seja, das regras invioláveis que tral [Fcn-cira, 1965]. Alguns prolongamentos contemporâneos
caracterizam o homem: a interdição do homicídio e a proibição surgem corno tentativas infrutuosas de reabrir pistas de inves­
do incesto [ I 965] - uma versão condenada pela antropologia, em tigação abandonadas: a tese do totemismo como «sequência»
virtude dos frágeis fundamentos do material em que se baseia. numa história evolucionista, retornada por J. Ferreira nos anos
O último debate, que iria aliás selar o destino do totemismo, 60, foi recebida com reservas nos Estados Unidos [Orans, 1968J
incide sobre a sua consistência enquanto conceito antropológi­ ou em França [Ottino, l 9751. Fazer do totemismo uma forma
co. Os trabalhos de Spencer e Gillen [1899J sobre a religião «fixa» porque «primitiva» seria um erro, corrigido desde então
dos aborígenes Aranda da Austrália levaram à formulação da por pesquisas sobre a dinâmica de transformação dos sistemas
existência de um «sistema australiano» como modelo de refe­ totémicos, impulsionada sobretudo pelas mudanças dos seus
rência a partir do qual se avaliam as diferenças relativamente ambientes societais. Esta perspectiva elucidou, por exemplo, no
ao «verdadeiro» totemismo. Depois de Smith, Spencer e Gillen, contexto australiano, a perenidade dos totens, que tem menos a
Frazer pensa ver pelo menos três características no totemismo: ver com a sua dimensão estritamente simbólica (de codificação
uma organização em clãs, um culto à genealogia mítica e uma das relações do homem com o seu ambiente natural) do que
76 77
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES XAMANISMO E POSSESSÃO

com a sua dimensão sociológica (de codificação das relações Com Eliade [1951], coloca-se a questão recorrente da an­
entre unidades sociais) [Worsley, 1955]. O totemismo, portanto, tiguidade do sistema religioso: o xamanismo seria a tradição
não morreu com o golpe de misericórdia desferido por Lévi­ primordial da humanidade. Mais específico do xamanismo é o
-Strauss e, há alguns anos, Alfred Adler tentou requalificar sob problema das formas que adquiriu nos imaginários do Ocidente.
esta designação certos cultos animistas da África negra I Adler, À luz da religião ocidental, começa por aparecer como uma de­
1998]. monologia. Na perspectiva da medicina, revela-se depois como
uma patologia e, mais tarde, como uma «terapia». O interesse
que lhe demonstrou a psicologia suscitou abordagens em termos
Xamanismo e possessão: de psiquiatria ou de psicologia cultural. No primeiro caso, o
ocidentalocentrismo e cornparatismo xamanismo é uma «medicina da alma» e, por isso, o equiva­
lente «tradicional» da psiquiatria e até a sua forma primitiva.
Antes de o xamanismo ter sido erigido ao nível de sistema Na segunda abordagem, o xamanismo é a expressão, no plano
religioso e de ter dado azo a desenvolvimentos teóricos con­ de uma cultura ou de um grupo de culturas dadas, de um tipo de
sequentes, foi a figura do xamã como primeiro «mágico» ou patologia particular (geralmente, a psicose ou a esquizofrenia)
«homem religioso» que se impôs nos trabalhos antropológicos: - por exemplo, em Georges Devereux [Jilek, 2003].
na primeira metade do século xx, grande parte da literatura A Europa do século xv111 não ignorava o xamanismo, ou a
antropológica faz referência a esta categoria genérica na qual existência de xamãs, nos mundos russo e siberiano. Mas uma das
se incluem quase Lodos os casos etnográficos recenseados, dos obras fundadoras dos estudos antropológicos sobre o xamanis­
medecine-men índios das planícies aos feiticeiros melanésios. mo é a de Shirokogoroff, autor de The Psychomental Complex
Pelo seu carácter «exótico», o xamanismo faz parte da of the Tungus ( 1935), que popularizou a figura desse médium
construção cio outro que funda a legitimidade dos objcctos da tungu (da Sibéria), o shaman - termo raiz do modelo religioso.
antropologia, mas, olhando-o mais de perto, não é um tema privi­ O xamanismo organiza-se cm torno de uma relação particular
legiado. Por um lado, porque o seu estudo declinou em algumas com o sobrenatural ou com o «outro mundo». É a figura do xamã,
grandes tradições nacionais de antropologia, principalmente as como médium capaz, por formação, eleição espiritual ou acção
da antropologia norte-americana [Atkinson, I 992J, ao passo que pessoal, de adquirir poderes, de comunicar com os espíritos, que
manteve uma posição preponderante nas tradições da Europa de representa a sua personagem-chave [Vazeilles, 19911. A relação
Leste ou da Rússia, ou conservou o interesse constante de pelo com os espíritos faz-se no modo da aliança e não da submissão:
menos alguns investigadores em França. Por outro, extravasa esta aliança adquire, aliás, a forma de um parentesco simbólico,
largamente as fronteiras da antropologia, porque os debates no sentido em que assenta em relações quase familiares (no âm­
que provocou «permitiram ao xamanismo percorrer todas as bito siberiano [Hamayon 19901) ou quase matrimoniais, surgindo
ciências sociais e humanas, desde as das religiões às da alma o xamã entre os Magar tibeto-birmaneses do Nepal como um
e do cérebro humanos, sem que alguma obtivesse vantagem «genro dos espíritos» lSales, 1989). No entanto, está longe de
definitiva», afirma Roberte Hamayon [2003, p. I I J. ser o único especialista conhecido desta técnica espírita, que
assume formas variadas, incluindo o transe musical, o consumo
78 79
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES XAMANISMO E POSSESSÃO

de psicotrópicos ou a exploração onírica [Perrin, 1992]. Daí 1leveurs de sorts] e os curandeiros de segredos [panseurs de
um dos debates mais recorrentes, que incide sobre o rigor dos secrets], em regiões do mundo muito distantes daquelas onde
termos a empregar e estabelece uma identidade distintiva dos se observa o «verdadeiro» xamanismo (como em França, com
sistemas religiosos: o xamanismo não se confunde com outras os trabalhos de Marcelle Bouteiller [1950]).
religiões da mediunidade, do transe ou do êxtase e, sobretudo,
da possessão. A célebre monografia de Roger Bastide sobre
O Candomblé da Bahia lLe Candomhlé de Bahia, 2000] mostra A antropologia, indiferente aos monoteísmos?
que este culto, designado como uma «sobrevivência religiosa
africana» [p. 42] e organizado em confrarias («filhos dos deu­ Enquanto que a antropologia assumiu como quadro de re­
ses» ou dos «santos»), se articula em tomo de um rito central, flexão a religião na humanidade em geral, a etnologia explorou
o da possessão pelos espíritos/antepassados (orixâs) durante sistemas religiosos particulares, e a pretensão de enunciar prin­
festividades que incluem danças e sacrifícios. O possuído é um cípios gerais do pensamento ou da vida religiosa depara com
médium, mas não é designado como um xamã. um limite, e não dos menores: a posição totalmente relativa
A definição de um xamanismo de referência (o «complexo atribuída às grandes religiões monoteístas. É verdade que, em
siberiano») distingue-o, pela sua verticalidade ascendente (a alma muitos casos, os antropólogos cederam à tentação de se fazerem
deixa o corpo do especialista para ir dialogar com os espíritos cxegetas dos textos sagrados das suas próprias sociedades (a
no mundo do além), da possessão que, por seu lado, procede de Bíblia), reservando-lhes um tratamento idêntico àquele reservado
uma verticalidade descendente (é o espírito que desce ao corpo do às tradições orais ou escritas das outras religiões: compreender
especialista para conversar com os homens). A desincorporação os seus símbolos fundamentais que permitem descodificar a
espiritual inerente ao «voo da alma» [Hamayon, 19901 opõe-se «visão do mundo» e que se revelam na leitura, como fez Mary
à incorporação dos espíritos, cujo carácter voluntário e contro­ Douglas em relação ao Levítico [Douglas, 2004]. Mas é no
lado foi teorizado por Luc de Heusch como um «adorcismo», plano do estudo etnográfico que a escassez de trabalhos parece
ao contrário do exorcismo, que é uma possessão involuntária e mais manifesta.
nefasta [Heusch, 1971 J. Evidentemente, uma distinção tão cla­
ra entre os dois sistemas é muito problemática, e os materiais
empíricos reunidos numa ou noutra das categorias conceptuais Etnografias fugazes?
põem em causa a própria possibilidade de torná-las modelos
universais (sobre o xamanismo, Atkinson [ 1992]; sobre a pos­ Recentemente, Albert Piette sublinhou que a preferência
sessão, Boddy [ 1994]). Porque os xamãs, tal como os médiuns atribuída pelos antropólogos às religiões das sociedades não
e outros especialistas da possessão, têm uma função terapêutica ocidentais levou, paralelamente, a negligenciar o estudo dos
largamente atestada, quer as suas formas sejam «puras» ou monoteísmos (na base de lhes faltar exotismo) e, em parti­
«derivadas», esse xamanismo «teórico» serviu também como cular, do cristianismo [2003]. A crítica é conhecida: o estudo
base de comparação para avaliar a eficácia da «cura mágica» de de fenómenos religiosos caracterizados pela sua proximidade
outras categorias de terapeutas, como os curadores de feitiços geográfica e cultural seria ilegítimo para uma certa antropo-
80 81
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES A ANTROPOLOGIA, INDIFERENTE AOS MONOTEÍSMOS?

logia. Autor de uma etnografia sobre os sacerdotes cristãos todas as línguas. E o cristianismo não é a única religião desta
em França, Pascal Dibie afirma que é mais fácil ao etnólogo espécie: o islamismo, o budismo, o judaísmo e o confucionismo
realizar uma investigação etnográfica no seio de urna população fazem parte da mesma natureza. Por conseguinte, são sobretudo
exótica e muito distante (xamãs amazónios, por exemplo), do as religiões tribais, do xintoísmo aos cultos muito elementares
que estudar os vizinhos imediatos de uma cidade urbana [ 1993, dos Hotentotes, que nos interessam, porque estão associadas à
p. 14). Não há dúvida de que a frase é um tanto excessiva e vida de um único povo» Ll950, pp. 8-9).
merece ser reanalisada mais no plano das religiões do que no Embora a postura aqui adoptada seja de defesa da autenti­
da sua localização: a dificuldade terá a ver com o estudo do cidade dos cultos e das culturas «arcaicas», a antropologia, a
cristianismo ou com o facto de se levar a cabo uma pesquisa partir dos anos 60, passou a dar mais importância às grandes
na sua própria sociedade? Devemos lembrar aqui a influência religiões: conquistaram grande parte dos seus terrenos e não
clara do pensamento monoteísta, apesar da vontade de os antro­ podiam, pois, ser ignoradas; a antropologia abdicou em grande
pólogos se libertarem desse pensamento, sobre o plano teórico parte do pensamento evolucionista na sua procura do «primi­
(cf. infra), e a escolha incidir o estudo mais sobre umas religiões tivo»; nesses tempos de descolonização, as consequências da
do que outras, inicialmente determinada pela especialização do expansão das grandes civilizações e religiões já não são vistas
antropólogo cm áreas culturais não-ocidentais, a fim de nelas c.:omo responsáveis por uma homogeneização cultural e religiosa,
procurar formas religiosas (ditas «primitivas) preservadas das mas antes como a causa das variações de forma e de conteúdo
influências ocidentais. dessas civilizações e religiões no contacto com culturas locais.
Esta circunscrição dos objectos antropológicos foi por vezes Daí resulta que o interesse dos etnólogos a respeito dos mono-
pensada como decorrente de uma oposição entre «rei igiões 1eísmos é mais manifesto, mas concentra-se ainda nas expressões
universais» (que interessam aos historiadores e aos sociólogos) «marginais» às grandes tradições cultas: as expressões populares
e «religiões étnicas» (reservadas aos antropólogos). Mas o que do islamismo ou os cristianismos sincréticos que surgem, aos
justifica esta oposição são menos as propriedades específicas olhos das outras disciplinas, como formas «barrocas» que «não
das religiões do que aquilo que revelam das culturas que as 1êm a dignidade, nem o carácter erudito dos seus modelos» lAugé,
adoptaram: as religiões universais, pelas suas veleidades expan­ 1982, pp. 78-791. Em França, a etnografia do judaísmo conhe­
sionistas (estranhas aos politeísmos locais a que Augé chama rcu apenas desenvolvimentos menores e, além disso, limitou-se
«paganismos» [ 1982, p. 781), teriam contribuído para nivelar as suas formas mais ortodoxas IGutwirth, 19701. No entanto,
as diferenças culturais tão caras aos antropólogos. O mesmo já l'Xistem trabalhos importantes de etnografia do islamismo.
era dito, em meados do século passado, por William Howells: A célebre (e controversa) monografia dos igurramen lhanlasen
«O cristianismo, tal como as outras grandes religiões mundiais, 12003], realizada por Ernest Gellner, devia conferir uma con­
não é um objecto favorável a um estudo do ponto de vista an­ hguração à antropologia do Magrebe e à etnografia do Islão.
tropológico porque é demasiado antigo e vasto. Abrange toda a Mas este Islão, popular, é o das tribos agropastorícias berberes
civilização ocidental. Não se trata de um culto simples, local ou de Marrocos e está à margem das tradições escritas exploradas
autóctone. Sessenta gerações de teólogos profissionais acabaram pelos historiadores e filólogos; além disso, inscreve-se numa
por torná-lo a coisa comum dos povos de todas as cores e de l olectividade particular (cujo carácter tribal e segmentário a torna

82 83
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES A ANTROPOLOGIA, INDIFERENTE AOS MONOTEÍSMOS?

«marginal» relativamente ao resto da sociedade), que está na Deus, 1908-191O) propuseram, cada um por seu lado e a partir
origem da controvérsia sobre as teorias que Gellner iria fundar da ideia sugerida por W.R. Smith da existência de «Grandes
[Albergoni, in Gellner, 2003]. Contudo, é com Clifford Geertz e Deuses» nas antigas civilizações semíticas, uma modelização da
L'lslam observé [1992] que a antropologia do islamismo se torna história das religiões segundo um modelo contrário ao de Tylor,
comparativa (uma vez que Geertz põe em confronto os «estilos» defendendo a tese de um «monoteísmo arcaico». Os debates em
marroquino e indonésio) e dinâmica. Muito mais do que uma torno do lugar do monoteísmo nesta história generativa só foram
etnografia comparada das tradições religiosas nos seus contextos prosseguidos com o fim de demonstrar a indigência das suas
respectivos, a abordagem de Geertz situa no âmago da análise fundações. Paul Radio, por exemplo, retomou os seus termos
as mudanças que as afectam, apesar dos princípios religiosos para sublinhar que o monoteísmo, na sua forma pura (o culto
que as vêem como baseadas numa eternidade meta-histórica: as exclusivo de um deus único), é histórica e demograficamente
suas expressões sociais e formas culturais são profundamente «extremamente raro» [194 J, p. 2021 - uma tese à qual, mais
modeladas pelas mudanças imprimidas pela história. tarde, faria eco a de Edmond Ortigues, que o via como a religião
de uma «minoria» [1981] - e que, na maioria das regiões em
que se terá implantado, é fundamentalmente uma monolatria
Monoteísmo «arquetípico»: evolução e comparatismo (o culto preferencial a um deus único) e, por isso, deriva de
uma matriz politeísta [Radin, 1941, p. 204).
Ao contrário destes desenvolvimentos recentes, convém
mencionar, sobretudo, que o monoteísmo já estava no centro dos
grandes debates fundadores de uma antropologia das religiões.
Se a etnografia dos monoteísmos do Ocidente continua, com
efeito, muito menos desenvolvida do que a das religiões «exó­
ticas», é necessário reconhecer que os primeiros ocuparam
inicialmente uma posição central nas teorias de antropologia
religiosa na perspectiva do comparatismo (um monoteísmo
«puro» servia então de modelo-padrão para a comparação). Este
monoteísmo, ainda que baseado nas expressões contemporâneas
(do século x1x) do cristianismo europeu (catolicismo romano ou
protestantismo), continua a ser largamente arquetípico.
Um dos debates mais antigos da antropologia das religiões,
de alcance histórico, colocara, porém, o monoteísmo no centro
das suas preocupações, mas na perspecliva de uma história
universal das religiões. Se E. Tylor situara o monoteísmo na
conclusão da história, Andrew Lang (em The Making of Re­
ligion, 1898) e Wilhelm Schmidt (em A Origem da Ideia de
84 85
IV

Objectos da Antropologia Religiosa


A antropologia não produziu apenas teorias sobre religiões
particulares: certas propriedades inicialmente atribuídas à religião
em geral foram erigidas ao nível de objectos de estudo particu­
lares, que engendraram domínios autónomos do conhecimento.
As crenças, os símbolos, os ritos, os mitos e os poderes são,
num certo aspecto, «sagrados» ou «religiosos» e, neste sentido,
ligam-se à antropologia das religiões, mesmo que, por outro
lado, extravasem a esfera da religião stricto sensu.

Crença, crenças
A antropologia confere dois estatutos ao conceito de crença:
no plural, as crenças encarnam-se em objectos passíveis de se­
rem estudados pela etnografia em virtude da sua materialidade;
no singular, surge como um fenómeno mental, durante muito
tempo considerado objecto da psicologia. A partir do estudo das
suas formas presumidas ou observadas nas sociedades estudadas
89
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES CRENÇA, CRENÇAS

pelos etnólogos, a primeira categoria (as «crenças») pertence à apesar de tudo, o sentido dos enunciados e dos comportamen­
ordem da linguagem de descrição («os x acreditam») e revela tos que são qualificados, segundo a terminologia das ciências
a singularidade dos objectos de crença num grupo determinado humanas, corno decorrentes da religião ou do religioso: «Em
(«mas os y acreditam noutra coisa»). Foi exactamente a respei­ dengaleat, pode-se traduzir tudo do verbo 'crer' ... excepto este
to deste último ponto que se fundou o debate sobre o alcance próprio verbo» [1993, p. 32]. Como a análise regressa sempre à
comparativo do conceito de crença enquanto estado mental, questão dos conceitos e a maioria destes foi forjada nas línguas
particular à religião ou não. Para além da crença, levanta­ ocidentais, R. Needham questiona a sua transponibilidade, em
-se outra questão, a da «fé» (das populações não-ocidentais). particular uma das suas características comummente admitidas da
O historiador W. Cantwell-Smith pensou poder estabelecer uma religião, a interioridade da crença. A sua demonstração não deixa
distinção entre os dois conceitos de «fé» e «crença»: a primeira, dúvidas: a universalidade postulada desta categoria psicológica
que qualifica como «categoria religiosa fundamental» [ 1979, não resiste à prova das condições culturais locais e, ao mesmo
p. 7], seria universal ( «o único elemento comum a todas as re­ tempo, revela os limites do alcance comparativo do conceito de
ligiões») e só variaria em intensidade; a segunda declinar-se-ia religião, quando é definido a partir desse critério.
no plural como diversas «formas» do sentimento religioso, de
uma sociedade a outra. No entanto, formulado desta maneira, o
conceito de fé apresenta claramente aquilo que Gérard Lenclud
qualifica como «modelo ocidental da crença» [J 990, p. 7]. O Za 1/ dos Akha: uma religião sem «crença»?

Os Akha compõem-se de uma população dispersa entre


Limites do conceito a província chinesa de Yunnam, o leste da Birmânia, o Nor­
te da Tailândia, o Laos e o Vietname. Praticam uma forma
O estudo clássico de Rodney Needham, Belief. Language de culto dos espíritos chamada Za '7· Segundo Deborah
and Experience [19721, mostrou que, tal como a religiüo é E. Tooker, que os observou, na língua akha, o Za '7 não se
um conceito dificilmente traduzível nas línguas não-latinas, é traduz por «religião», mas por «costume» ou «tradição».
quase impossível dar um equivalente da ideia de crença ou do A etnóloga mostra assim que, entre os Akha, a relação
verbo crer em muitas línguas elas populações estudadas pelos com o Za 17 é muito singular: culto relacional por exce­
etnólogos. Não faltam os exemplos empíricos para confirmar a lência, tem essencialmente uma dupla dimensão étnica e
solidez desta tese: a respeito dos Nuer, Evans-Pritchard coloca ética. Para os Akha, não se trata de acreditar ou de não
muito directamente a questão em termos etnográficos, e Lenclud acreditar no Za '7, mas de o «carregar» à semelhança de
observa que «a tradução talvez não seja possível em teoria, mas um fardo. Os comportamentos culturais «correctos» que
é-o na prática» [1990, p. 91. Pouillon, por seu lado, mostra determinam a respeitabilidade e a identidade avaliam-se
que a ausência de um equivalente semântico que corresponda pela submissão (ou insubmissão) dos Akha a essa tarefas.
exactamente a cada palavra não impede que se constitua uma Nesta base, nenhuma prova - nem sequer linguística -
rede de vocábulos (nas duas línguas) que permita circunscrever, permite confirmar a hipótese de uma crença interiorizada.
90 91
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES CREN(A,CRENÇAS

Não é que a crença não exista: simplesmente, não é obrigató­ ao ser considerado um «poderoso feiticeiro». O facto mais
ria na vida religiosa. Este exemplo etnográfico contribui, tal impressionante do relato é que Quesalid não acredita no poder
como muitos outros observados noutras regiões do mundo, dos feiticeiros, de cujos rituais ele se esforça por demonstrar o
para fragilizar uma definição da religião de vocação trans­ carácter superficial e pantomímico [1974a, p. 202], antes de ele
cultural baseada no critério de uma crença «interior». próprio se tornar, mais por pressão social do que por convicção,
um «grande xamã». Os «primitivos», portanto, estão dotados de
Fonte: Tooker [ J 9921. uma capacidade crítica e reflexiva incisiva, e de uma perplexi­
dade idêntica à dos «modernos» no que diz respeito à religião.
Evans-Pritchard concluiu que a atitude deles decorria da «fé
Após Rodney Needham, Gérard Lenclud fez outras críticas à moderada pelo cepticismo», o que Ioan Lewis corrige invertendo
noção de crença, que ele qualifica como «categoria em migalhas», a expressão: o «cepticismo na fé» l 1986, p. 19]. As reflexões
uma vez que o seu uso é inversamente proporcional às questões de Jean Pouillon são particularmente elucidativas sobre a forma
que levantou (particularmente na tradição francesa) até há pouco como as crenças dos outros são construídas através do prisma
tempo [ 1990]: o estudo dos seus objectos, das disposições mentais dos quadros de referência do observador. Das suas «notas sobre
e sociais que convoca (que devem ser distinguidas), põe então o verbo "acreditar"» f 19791, retemos uma lição de etnografia
em causa a sua natureza e fragiliza a sua subsunção à religião. interpretativa que convida à prudência: o verbo «acreditar»
Foi também Needham quem apontou para o escasso alcance com­ abrange já atitudes (acreditar em... , acreditar que... ) e graus
parativo do conceito genérico de crença, confundido no Ocidente diferentes de confiança na existência daquilo que é designado
com uma das suas variantes, a crença religiosa. (quer se trate de um deus ou da chuva). Manifesta-se assim o
imperativo reflexivo de interrogar as suas próprias crenças antes
de se evocarem as dos outros.
Atitudes de indígenas

Na antropologia dominante do século x1x e de parte do sé­ Símbolos e função simbólica


culo xx, bem como em todas as ciências que, de alguma forma,
se referem aos «primitivos», as populações submetidas a uma Dizer que a religião se exprime por símbolos é um truísmo.
cultura da tradição estariam supostamente mais inclinadas do O simbolismo já recebeu numerosas interpretações, em domí­
que as «modernas» para a fé ou para a crença religiosa. Mas, a nios tão variados como a psicanálise, a história cultural ou a
partir de meados do século xx, a etnografia opôs críticas sólidas hermenêutica, mas presta-se particularmente bem ao estudo do
a estas concepções. Um texto famoso, recolhido por Franz Boas fenómeno religioso. Resumindo, pode-se afirmar que os símbo]os
e analisado por Claude Lévi-Strauss [1974a, pp. l 91-212], relata, religiosos foram tratados pelo menos segundo três perspectivas:
por exemplo, a história de um jovem índio kwakiutl chamado (1) Um relativismo semiótico, pelo qual certas representações
Quesalid, que escarnecia do poder dos feiticeiros da sua tribo simbólicas particulares formam o «âmago» e a identidade das
(e das outras), antes de se ver apanhado no seu próprio jogo religiões (a estrela, a cruz, o crescente, a roda, que designam
92 93
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES SÍMBOLO E FUNÇÃO SIMBÓLICA

outros tantos sistemas de crenças); mas os símbolos, considera­ Ainda que Lévi-Strauss se tenha oposto a Prazer sobre a questão
dos em si mesmos, prestam-se apenas a uma leitura «rasa» das da complexidade das operações mentais envolvidas no mágico­
doutrinas e dos signos religiosos. (2) Um simbolismo universal -religioso (ao negar a ideia de um arcaísmo do pensamento má­
de inspiração psicanalítica (nomeadamente cm Carl G. Jung), gico), perpetuou esta ênfase na «mentalidade» e no simbólico.
que lhes atribui uma localização, significações e efeitos num A função simbólica oferece uma luz particular sobre a religião:
plano meta-empírico; desempenham, alegadamente, um papel preside ao ordenamento do mundo através dos símbolos. O pro­
na estruturação e no funcionamento do inconsciente individual blema desta abordagem é o facto de negar ao religioso qualquer
ou «colectivo». (3) Uma simbolização cultural, que reflecte a espécie de singularidade, reduzindo-o a aspectos simbólicos que
maneira como os símbolos religiosos se constituem, se fixam o ultrapassam: Lévi-Strauss, por exemplo, reduziu a religião a
e se transmitem na psicologia, na história e nas sociedades mecanismos mentais (de classificação e associação) inerentes à
humanas. função simbólica, situando esta, aliás, na origem da vida social
e não como seu produto, o que extravasa largamente o religioso
[ 1962b]. Na via traçada por Lévi-Strauss, a religião é vista, por
A função simbólica exemplo, como uma «realidade cosmologizada, co-extensiva à
vida humana, quando se manifesta para além da natureza» [Mas­
Aquilo que Lévi-Strauss designa pela expressão «função senzio, 1994, p. 13]. O religioso é muito mais do que o mito,
simbólica» [1958, 1962a] é uma forma particular do pensamento, está para além do rito, do pensamento mítico, e este tem mais
ligado ao domínio da linguagem (surge, portanto, como uma geralmente a ver com todos os produtos simbólicos do espírito
característica humana por excelência), capaz de criar objectos humano que se manifestam na vida social. A especificidade do
abstractos ou artificiais (ou que podem receber uma interpretação religioso é assim dissolvida no simbolismo cultural e este em
não-natural): os símbolos. Nas profundezas da história humana, propriedades universais do pensamento.
a função simbólica abriu caminho à manipulação da natureza
pelo homem, a uma antropomorfização dos meios naturais e
à criação de sistemas de signos para lhes conferirem sentido: Essência versus política dos símbolos
isto justificaria a existência de uma relação entre a civilização
e a religião !Facchini, in Ries, 1992]. Trata-se de uma tese que As perspectivas abertas pela teoria da «função simbólica»
se estendeu à antropologia social e cultural, elogiada pelo seu encontraram desenvolvimentos na obra de Geertz, que a orna­
carácter inovador [lzard e Smith, 19791, que se inscreve na ge­ menta com semiótica. Em 1963, enuncia a seguinte definição
nealogia de uma abordagem «intelectualista» ou «psicologista» da religião: «um sistema de símbolos que age de forma a sus­
da religião em antropologia, de Frazer a Lévi-Strauss, passando citar nos homens motivações e disposições fortes, profundas
por Malinowski. Subjacentes à religião, existem os mecanismos e duradouras, formulando concepções de ordem geral sobre a
gerais do pensamento humano, que constituem todo o interesse existência, e dando a essas concepções uma tal aparência de
de um estudo da religião, não por si mesma, mas por aquilo que realidade que essas motivações e esses sentimentos parecem
revela das propriedades ou dos progressos do espírito humano. basear-se apenas no trai» 11972, p. 231. Geertz reactiva assim,
94 l)'i
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES RITOS, ACTOS, PRÁTLCAS

mas numa perspectiva muit o diferente da de um Bateson [1971], Ritos, actos, práticas
uma teoria da transmissão do ethos cultural através da religião.
Seria errado afirmar que a sua definiçã o fez escola (embora se Para a antropologia, o rito é um elemento essencial da vida
encontre regularmente nos bons manuais de antropologia geral): religiosa. O estudo do rito (ou ritual) representa um sector im�or­
a posiçã o que Geertz atribui aos símbolos foi objecto de críticas tante da antropologia das religiões, bem como da antropologia e
acérrimas. Em França, a crítica incide sobre a indistinção entre das ciências do homem. O ritual foi tratado, alternadamente, sob
o religioso e o simbólico (inspirada em Lévi-Strauss) e s obre a 0 ângulo das origens (no evolucionismo), do seu contributo para
assimetria das relações entre os d ois termos: para Alain Testart, a vida psíquica e s ocial (no funcionalismo) e das significações
«se aquilo que é religioso pode ser efectivamente pensado com o e dos símbolos que encarna ou veicula (no estruturalismo e no
simbólico, nem tudo aquilo que é simbólico é religioso» [1993, culturalismo) !Bell, 1997].
pp. 22-231. Talai Asad [1983, 19931 desloca a questão - clássi­
ca - da essência da religião para a da construçã o histórica das
categorias do pensamento científico, inaugurando a entrada no Posiçiio do rito na antropologia das religiões
campo da antropologia religiosa dos debates ditos pós-modernos
que, desde entã o, colonizaram todos os compa rtimentos da No entanto, será o rito um objecto privilegiado da antropo­
antropologia geral. Para Asad, o problema da abordagem de logia? Isto é tudo menos evidente, ainda que certas disciplinas,
Geertz da religião reside, em primeiro lugar, na ausência de nomeadamente a sociologia, tenham contribuído fortemente para
uma teoria da socialização dos símbolos: Geertz nunca explica fixar esta imagem. Danicle Hervieu-Léger, p or exemplo, afirma
como é que os símbolos suscitam essas famosas «motivações e que a sociologia se especializou nas crenças (como performance
disposições duradouras» que não por um poder intrínseco aos discursiva), enquanto que o domínio da antropologia é, sobretudo,
próprios símbolos, enquanto que situa no centro d o estudo da 0 do rito (como pe1formo11ce prática) l2004, p. 121. O fundamento
religião «propriamente dita» o «relacionamento dos sistemas de de tal asserção assenta menos em questões de método (p orque,
símbolos com os pr ocessos soci oculturais e psico lógicos» 11972, afinal de contas, a sociologia investiu fortemente no estudo dos
p. 63]. A segunda crítica, de alcance mais geral, tem por alvo rituais !Héran, 1994]) do que no princípio de uma separação de
o carácter social e politicamente desencarnado do simbolism o natureza das sociedades estudadas pelas duas disciplinas: neste
religioso: c omo é que os símbol os são formulados, trocad os, sentido, 0 rito é visto com o um traço distintivo entre sociedades
reactivados, comunicados, legitimados, em suma, socialmente tradicionais e rituais (e, portanto, «religiosas») e sociedades
manipulados e com que fins? Como pensar os contextos e não-rituais ou nas quais os rito s se tornaram periféricos na vida
processos que lhes conferem a consistência social e a eficácia? social, as sociedades seculares. Esta dicotomia justificar-se-ia
[Asad, 1983, p. 18]. Parece claro que, à definiçã o de Geertz, facilmente se não reactivasse um primitivismo desactualizado
faltava um apoio mais sólido nas práticas. p rojectado sobre a antr opologia e se não assentasse num conhe­
cimento limitado dos objectos da antropologia. Inversamente, o
percurso histórico d o secularismo ocidental não deixou de s�r
estudado pel os antropólogos [Asad, 20031, e o rito não p odena
96 97
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES RITOS, ACTOS, PRÁTICAS

ser considerado um elemento distintivo de tipologias societais Van Gennep [ l 909), «pos1tivos e negativos» para Durkheim
sem que se analisasse a sua posição nas teorias antropológicas. [ 1912] ou Mauss [1967)) seria aqui demasiado longo; por isso,
Na introdução a um número da revista L'Ethnographie, dedicado limitar-nos-emos a referir alguns aspectos gerais das abordagens
aos ritos himalaios, Alexandcr MacDonald retoma, com efeito, teóricas.
uma queixa que A.M. Hocart já endereçava há meio século aos As abordagens funcionais ao ritual dividem-se em duas gran­
seus colegas: o rito não tem qualquer interesse para os intelectuais des teorias. A primeira especifica a sua função como «social»: o
em geral e continua a «aborrecer um pouco» os etnólogos, que ritual contribui de forma significativa para a perenidade da vida
preferem o simbolismo ou as crenças l1987, p. 51. social, e o seu papel é fundamental na reprodução dos sistemas
Contudo, segundo W.R. Smith, «desde a origem que o ritual sociais !Radcliffe-Brown, 1968). A segunda, inspirada nos tra­
e a prática tradicional constituíam, stricto sensu, a religião antiga balhos de Freud, atribui-lhe funções «psicológicas»: é catártico
na sua totalidade. Primitivamente, a religião não era um sistema e tranquilizador !Malinowski, 1925]. As duas categorias de fun­
de crenças com aplicações práticas, mas sim um conjunto de ções podem ser associadas: através das suas dimensões práticas
práticas tradicionais fixadas, às quais se submetiam todos os (rituais), a religião responde a «necessidades» fundamentais, de
membros da sociedade» [1889, citado por Radcliffe-Brown, 1968, natureza psicológica (expressivos, cognitivos) e sociológica (de
p. 234]. No entanto, é a N.D. Fustel de Coulanges que se atribui ajustamento, adaptação, integração) [Spiro, 1972].
a paternidade da ideia de uma preeminência dos ritos sobre as Os princípios da abordagem funcional nascem, paradoxal­
crenças [19821, nesta via acompanhado, na sociologia, por Émile mente, numa teoria evolucionista, a de W.R. Smith, que recons­
Durkheim [ L 986) ou Yilfredo Pareto 11968] e, na antropologia titui o desenrolar de um hipotético «sacrifício totémico» entre
social, por A.M. Hocart 1.20051 ou A.R. Radcliffe-Brown, que os antigos Semitas, o que inspirará a Sigmund Freud - como
afirma que as crenças são muito mais variáveis e voláteis do anteriormente sugerido - uma teoria psicanalítica do assassínio
que os ritos, cuja consistência e perenidade fazem deles objectos do Pai como fundamento da civilização 11965 J. Enquanto que
de estudo privilegiados 119681. A antropologia, ao contrário de E. Tylor insiste nos aspcctos simbólicos do sacrifício (é uma
outras disciplinas (como a psicologia, por exemplo), nunca che­ maneira de obter os favores dos espíritos [ 1876-18781), W.R.
gou, porém, a um consenso sobre uma definição mínima deste Smith introduz uma dimensão sociológica que será herdada pela
conceito [Segalen, 1998, pp. 4-51. Esta indefinição permanente escola durkheimiana: o rito tem uma função social, assegura as
faz pairar sobre o rito/ritual uma suspeita de confusão teórica condições da vida colectiva ou restabelece-lhe a unidade. J.G.
[Fabre, 1987], o que não impediu que ocupasse um lugar cen­ Prazer estende a tese de Smith aos ritos sacrificiais agrários,
tral em pelo menos três grandes paradigmas: o funcionalismo, mostrando a importância para a sociedade de designar um «bode
o estruturalismo e o culturalismo. Segundo Émile Durkheim, expiatório» a fim de assegurar o seu equilíbrio [1993]. Hubert
os elementos comummente associados ao rito são, de manei ra e Mauss alargam a lese com o estabelecimento de um «sistema
não sistemática: (1) a sua dimensão social; (2) o seu carácter de sacrificial» composto de quatro elementos (sacrificado, sacrifica­
repetibilidade; (3) a função ou papel que assume no seio de uma dor, lugares e instrumentos) [in Mauss, 1968, p. 205]. O interesse
sociedade ou de uma cultura. O inventário das classificações dos pelo sacrifício suscita o estudo de outros ritos. Mauss esboça uma
ritos («simpáticos, animistas dinâmicos, contagionistas» paras teoria geral da oração (que ele subordina à sua teoria geral dos

98 99
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES
RITOS, ACTOS, PRÁTICAS

ritos), que não conhecerá desenvolvimentos consequentes. A via


como no plano social. Hubert e Mauss já haviam mostrado que
teórica é reaberta em inícios dos anos 90, quando a antropologia,
0 sacrifício tinha um carácter dinâmico: consagra e, portanto,
munida dos avanços da linguística pragmática, propõe alargar o
tramforma os objectos e as pessoas [in Mauss, 1968 , p. 205].
seu estudo superando as abordagens em termos de forma e de
Arnold Van Gennep distinguia diversas sequências dos ritos de
função, para preferir o estudo dos contextos e das modalidades
passagem (separação - margem ou liminalidade - agre�ação)
de enunciação da oração [Headley, 1994, p. 7].
pelas quais o indivíduo é simbolicamente excluído pela sociedade
para nela ser mais bem reintegrado [ 1969], enqu�nto que Tur�er
_
associa a ideia de liminalidade (situação de transição introduzida
Os ritos como actos «eficazes» e «tradicionais»
pelo rito) à de comnzunitas (a associação colectiva do� indiví­
_
duos em situação liminal): em todos os casos, o nto introduz
Marcel Mauss define os ritos como «actos tradicionais»,
efeitos de contra-estrutura para melhor restabelecer a estrutura
«realizados segundo uma forma adoptada pela colectividade
[1990]. Além deste aspecto funcional, Turner introduzirá a ideia
ou por uma autoridade reconhecida» [1968, p. 4021. Mas,
de que o ritual faz parte de uma performance simila�, em ce��s
mais uma vez, se os ritos são actos tradicionais, nem todos os
pontos, à representação teatral [ 1992], depois de M1chel Lems
actos tradicionais são ritos. São, antes de tudo, «actos da vida
ter aberto a via desta abordagem, na base dos seus trabalhos na
religiosa». É assim que se coloca a questão das suas relações
Etiópia Ll980]. No entanto, essas «funções», «significações» ou
com as outras dimensões da vida religiosa. Porque o rito não
«performances» não são as únicas explicações possíveis dos ritos.
pode por si só definir a religião, e apenas é inteligível na sua
Em La Cérémonie du Naven [ 19711, Gregory Bateson mostrou
relação com outros aspectos da vida religiosa, como o senti­
que, entre os Iatmul da Nova Guiné, as performances de um
mento religioso: quer o primeiro engendre a segunda !Radcliffe­
mesmo rito eram menos repetições do que variações encenadas
-Brown, 1968], quer a segunda cause o primeiro. A propósito
e cenográficas, e, neste sentido, nunca é o mesmo ritual que se
da magia, Malinowski avançou a ideia, por exemplo, de que a
observa, do mesmo modo que as perspectivas escolhidas para
ansiedade (suscitada pela incerteza do meio natural e social)
as decifrarem não se limitam a uma única opção: à clássica
esteve na origem da elaboração dos rituais [ 19251. Mas, num
«função» social do rito e à sua significação cultural (e�h os),
artigo estimulante e já antigo, Richard Price mostrou, a partir -
Bateson acrescenta uma exploração dos processos cogmt1vos
do seu estudo no terreno entre os pescadores da Martinica,
(eidos) como outras abordagens mutuamente independentes para
que a relação entre ansiedade e rito é muito mais complexa:
um mesmo objecto. Assim, se o seu estudo envolve escolhas
se um rito mágico ou de feitiçaria pode atenuar a ansiedade,
metodológicas particulares, na mesma ordem de ideias, o rito
pode também suscitá-la; do mesmo modo, as disposições rituais
reflecte ioualmente opções teóricas e até epistemológicas mais
não respondem necessariamente a circunstâncias causadoras de
latas: co;forme a matéria com que se manifesta e o sentido que
ansiedade lPrice, 19641. Com Turner l 199IJ e, depois, Geertz
se lhe quiser dar, o rito pode, com efeito, servir de instrumento
[1973], o rito não é apenas um acto religioso particular com
de distinção entre a religião e a magia, e contribuir assim para
efeitos psico-afectivos e sociais: tem um carácter dinâmico e
autonomizar estes dois objectos, embora seja uma propricd,1<k
prncessual. Esta concepção não é nova, tanto no plano simbólico
que lhes é comum. Para Malinowski, um rito é mágico qua11d11
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ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES RITOS, ACTOS, PRÁTICAS

a sua eficácia só reside nele próprio, ou seja, quando convoca pejorativas: é ficção, imaginação, lucubração. No entanto, os
um poder imanente (o mana); é religioso quando a sua eficácia antropólogos e os historiadores levaram o mito muito a sério,
depende da intervenção de potências que existem fora do rito (os considerando-o um relato, de um género particular (não é um
espíritos e os deuses) [ 1925]. Na mesma via, Marcel Mauss vê conto nem uma lenda ...), uma vez que «apresenta dois traços
uma mesma oposição entre a oração (religiosa) e o encantamen­ essenciais: por um lado, trata-se de um relato de carácter fun­
to (mágico), entre o sacrifício (religioso) [19681 e o malefício dador sobre o sentido ou a origem das coisas e, por outro, é
(mágico) 11950). Contudo, o rito não é, por si só, a única ex­ um relato simbólico, que inclui elementos impossíveis de serem
pressão da religião, tanto mais que não pode abranger todos os interpretados a partir apenas dos dados empíricos» fGéraud,
comportamentos associados, de uma forma ou de outra, à vida Leservoisier e Pottier, 1998, p. 2941. O problema inicialmente
religiosa. Isto porque os ritos, tal como já sublinhara Edward levantado pelos mitos é, pois, o da sua inteligibilidade: a sua
Sapir, são distribuídos no seio de comunidades inteiras e, na leitura literal permanece obscura. Para Max Müller, o mito é
maioria dos casos, são o facto de um subgrupo de especialistas uma «doença da linguagem»: não um erro, mas uma construção
ou de um único indivíduo (o xamã, o feiticeiro, o sacerdote) figurativa (e, portanto, dificilmente inteligível) da realidade pela
[1967, p. 2021. Dever-se-á então, como sugeria Weston Labarre, linguagem. E grandes nomes da mitologia comparada (como
limitar o estudo da vida religiosa a esses indivíduos particulares, Dumézil, Eliade ou Yernant) usaram-no para tentarem encontrar
aos «impresarios» dos deuses - os únicos que podem ser objecto as chaves das suas interpretações, enquanto que o mesmo mito
de uma investigação antropológica? [Labarre, 1970). A unidade dava lugar a leituras psicanalíticas ou estruturais. Embora todas
do rito - confrontada com as variações da sua peiformance - foi as mitologias do mundo tenha já sido muito exploradas por
criticada por uma corrente teórica que propunha reatar o debate aquilo que significam em si próprias, nenhum mito, porém, é
sobre a acção ritual, quer com o objectivo de conferir ao rito a autónomo de uma compreensão que remeta para duas dimensões:
coerência que lhe dá o pensamento indígena IHouseman e Sé­ a da cultura (ou seja, do pensamento humano nos seus aspectos
véri, 1994], quer para situar essa actividade no registo de uma universais) e a das culturas (ou seja, de modos de pensamento
psicologia behaviorista [Boyer e Lienard, 20061. singulares). Ou, como resume Jean Pouillon, «os materiais de
um mito só se compreendem em função da cultura e da ecolo­
gia de uma sociedade onde é narrado, em função também da
Mitos, representações, visões do mundo constituição psíquica do homem» í J 993, p. 47). Considerado
nos seus aspectos etnográficos, o mito pôde ser apresentado
Os mitos contam-se entre os objectos mais antigos e mais como o sistema de códigos culturais da experiência ordinária
famosos da antropologia das religiões. De todos os sistemas de dos «primitivos» ou «arcaicos», inseridos então num universo
representação, os mitos foram os que mais captaram a atenção simbólico próprio, estranho à Razão moderna e ocidental, mas
dos antropólogos, pela simples razão de que, supostamente, indiferente às aparentes contradições lógicas que o atravessam.
abrem a porta ao conhecimento das cosmologias e das «visões Esta é a perspectiva de um Lévy-Bruhl ou de um Maurice
do mundo» dos povos antigos ou exóticos. É verdade que o Leenhardt, para quem o «Canaco» é então alimentado pelos
conceito de mito está, ainda actualmente, pejado de conotações seus mitos, que ele exprime nos seus discursos e actos [1947].
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ANT ROPOLOGIA DAS RELIGIÕES RITOS, AC'TOS, PRÁTICAS

A perspectiva de Lévi-Strauss, autor da notável série Mitológicas reconstitui a sua coerência global. Em opos1çao (parcial) a
[Mythologiques], esclarece, sobretudo, as propriedades universais Lévi-Strauss, Maurice Bloch (entre outros) restabelece a uni­
dos mitos, que submete a uma análise estrutural inspirada na dade do mito e do rito: a permutação (reversível) dos papéis
linguística saussuriana. entre as categorias dos animais e dos homens, codificada pelos
Mais do que o próprio relato, foram as relações que man­ mitos nos Ma'Betiseks da península malaia, corresponde a uma
tém com as práticas (os ritos) que interessaram à etnologia. experiência e a um retrocesso da violência exprimida pelos ritos
Para muitos antropólogos (entre os quais Malinowski [1948] sacrificiais f 1992).
ou Leach [ 1954]), essa relação é directa: os mitos formam a
estrutura simbólica dos ritos, que, de certa forma, são apenas a
sua aplicação concreta. Para Malinowski, trata-se de uma «carta Poder e ordem social
[charte] pragmática da fé e da sabedoria moral primitivas», e
Mauss vê «todo o mito e todo o rito convergirem na oração» Será que a religião organiza todas as relações humanas nas
[1968, p. 3771. Claude Lévi-Strauss opôs-se várias vezes a esta sociedades «tradicionais» a ponto de ser vista como o principal
concepção mecanista do mito como «projecção ideológica de factor de ordem? Esta ideia está bastante difundida. A entrada
um rito» e do rito como «ilustração do mito na forma de qua­ religião da Encyclopaedia Universalis é, a este título, particular­
dro em acção» [1974c, p. 266). Para Lévi-Strauss, o mito e os mente significativa: «As sociedades arcaicas estão de tal modo
ritos estão empiricamente interligados, mas são teoricamente imbuídas de sobrenatural que não se pode isolar a sacra/idade da
separáveis. Por outras palavras, o rito é autónomo - pelo menos própria socialidade. Não têm uma religião. É a sua constituição
no plano da análise - do mito. No muito comentado final de do social que é intrinsecamente religiosa» (1988, p. 752). Esta
O Homem Nu íl'Homme nu, 1971], o fundador do estruturalismo <.:oncepção de uma coextensividade «primitiva» do social e do
na antropologia leva ainda mais longe a distinção. Nem todas religioso nutriu-se de antigas teorias antropológicas e socioló­
as representações convocadas nos ritos são, a seu ver, míticas. �·icas que admitiam a imagem das sociedades tradicionais como
As que decorrem do mito stricto sensu exprimem-se sob duas socialmente «indiferenciadas» - fundadas numa «solidariedade
formas distintas: explícita (relatos completos) e implícita (glosas mecânica» para Durkheim ou numa base de vida comunitária
fragmentárias). O rito consiste então «em palavras proferidas, ( GemeinscJuift) para Max Weber. As sociedades modernas, pelo
gestos realizados, objectos manipulados independentemente umtrário, seriam caracterizadas por um alto grau de diferenciação
de qualquer glosa ou exegese [ ... ] que tenham a ver com [ ... ] ,ocial e moral. Ainda que a tese diferenciadora entre sociedades
a mitologia implícita» [ 1971, p. 600). As relações entre o rito e 1radicionais (indiferenciadas e religiosas) e sociedades modernas
o mito não são, para Lévi-Strauss, as da prática e do seu código, (diferenciadas e menos religiosas) tenha sido objecto de muitas
da acção e do sentido. Têm ambos a ver com processos inversos, l ríticas, os antropólogos têm pesada responsabilidade na po­
mas complementares, do pensamento: o mito é descontínuo e pularidade dessas concepções. Em 1909, Arnold Van Gennep
procede por segmentação do sentido, o rito é contínuo por um introduzia os seus Ritos de Passagem afirmando: «Nas nossas
efeito de «fragmentação» do sentido em pequenas unidades ,ociedades modernas, não há separação mais c1ara do que a que
através do cuidado com o pormenor e a repetição litúrgica, l'Xiste entre a sociedade laica e a sociedade religiosa, entre o
104 105
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES PODER E ORDEM SOCIAL

profano e o sagrado» [ 1969, p. 11]. Este traço distintivo estaria Igreja», que só aparecem em sociedades diferenciadas [1967,
ausente das sociedades tradicionais: «À medida que se desce p. 1911, convidando a explorar a relação particular que existe
na série das civilizações, verifica-se uma maior predominância entre ordem sociopolítica e organização religiosa - e até en­
do mundo sagrado sobre o mundo profano, que, nas sociedades tre ordem sociopolítica e práticas religiosas singulares. Alain
menos evoluídas que conhecemos, engloba quase tudo» [ 1969, Testart estabelece, por exemplo, uma relação particular entre a
p. 2]. No entanto, Van Gennep, que poderíamos acusar, pelo distribuição das formas sociopolíticas (sociedades estatizadas)
menos ideologicamente, de conivências com o evolucionismo, e o sacrifício 11993]. Nesta base, Durkheirn projecta claramente
não é o único em causa. Significará então que toda a vida social, sobre religiões primitivas um modelo moderno. No entanto, alguns
e nomeadamente a organização política, seria, nessas socieda­ grandes modelos, também estabelecidos a partir de exemplos
des, exclusivamente religiosa? A abordagem estruturalista e asiáticos, criaram igualmente a imagem duradoura de sociedades
funcionalista de Marc Augé convida a explorar de forma mais integralmente estruturadas em torno de princípios religiosos.
prudente a complexidade e a diversidade das relações entre Neste sentido, a obra L' Homo hierarchicus [ 1967], de Louis
ideologia (rubrica na qual inclui a religião l l 974b]) e estrutura Dumont, é uma vasta demonstração do carácter socialmente
social [ 1974a] ou, mais geralmente, entre religião e sociedade, estruturante das concepçõcs de pureza na Índia: o sistema de
numa perspectiva antropológica. castas Uatilvarna) do hinduísmo é, simultaneamente, um sistema
,imbólico, um sistema social e um sistema político - é uma tese
que divide a indologia. Os sistemas religiosos, porém, não exer­
Religião e sociedade cem mecanicamente influência em todos os compartimentos das
sociedades «tradicionais» e, por isso, não têm necessariamente
Quando Émile Durkheim funda a sua definição de religião dimensão política. É verdade que há «sociedades xamânicas»
na ideia de comunidade moral e social («lgreja») ll 986, p. 65], 1 Vazeilles, 1991], mas o xamanismo está longe de oferecer sis­
estabelece uma relação forte entre o sistema de crenças e a tematicamente uma arquitectura simbólica aos poderes políticos
organização sociopolítica. Mas o seu modelo de referência é o a escala de sociedades na sua totalidade.
do catolicismo romano, para o qual esta reciprocidade singular
entre a ordem simbólica e a ordem social tem uma importância
especial. Na introdução da volumosa obra Les Re/igions du Reale:as divinas, estruturas sociais «sagradas»
monde, Geoffrey Parrinder relativiza as veleidades dos antropó­
logos e dos historiadores em estenderem esta forma específica Não há dúvida de que é com a questão da realeza divina
de relação do social com o religioso a todas as tradições e que se inicia a reflexão antropológica sobre as relações entre
sociedades existentes: por contraste com o cristianismo, as re­ religião e poder e, de uma forma mais geral, entre religião e
ligiões orientais parecem assim pouco determinantes em relação política. Em muitos casos, as realezas antigas e africanas servem
à organização social no exterior da sua esfera de influência, de exemplos: em O Ramo de Ouro, Frazer [1993] justifica os
que são as instituições da actividade cultual 11981, p. 20). Em fundamentos religiosos do poder a partir do estudo das realezas
1928, E. Sapir sublinhava a fraca recorrência das religiões «com antigas e, com A Realeza Divina entre os Shillukk (do Sudão),
106 107
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES PODER E ORDEM SOCIAL

Ev�ns-Pritchard mostra que a função real é duplamente política t poca recente, sugere que as sociedades «primitivas» se apoiam
e ntual, e que «a relação entre o edifício político e o culto re­ 11uma dupla estrutura, «social» e «espiritual» [Mauduit, 1960),
ligioso é perceptível em todos os pontos desse edifício» [ 1974, 1\ portanto, que o ordenamento e/ou a legitimação das formas
p. 83]. Ao acrescentar casos analisados noutras regiões do de organização social e das ordens políticas assenta em funda­
mundo, A M. Hocart afirma, paralelamente, que a origem de mentos religiosos. A partir dos seus trabalhos entre os Kachin
:
to�a� as dr mensões da vida social se encontra nas expressões da Birmânia, Edmund Lcach [ 1954] mostrou que a polaridade
.
rehg1osas, incluindo a ordem política. Embora a demonstração l'ntre as forças social e simbolicamente desestruturantes e es­
.
se baseie num certo evolucionismo, que postula a existência de lruturantes fundava o equilíbrio das pequenas sociedades não-
um� matriz religiosa fundamental, outras abordagens seguiram ocidentais. As pesquisas de Bertrand Hell junto dos Gnawa de
a via comparativa e avançaram a ideia duradoura de uma base Marrocos [ 19991 moslram uma sociedade em que a desordem se
relig_iosa no exercício do poder político. Como os princípios 11niscua permanentemente, na forma de perturbações orgânicas,
gerais das sociedades humanas residem na sua vontade de psíquicas e sociais, no seio da qual cabe a especialistas, xamãs
lutar contra o caos [Lévi-Strauss, 1962b, 19741, fundado num individuais ou reunidos em corporação, a função de serem esses
sen�imento �e vulnerabilidade [Balandier, 1967], a instituição ,enhores da desordem» que, paradoxalmente, são os garantes
.
polittca - seJa qual for a sua forma - afirma assim uma vontade da ordem (orgânica, psíquica, social e simbólica). Por conse-
de permanência [Heusch, 1962] ou de eternidade [Balandier, 1•uinte, seria muito redutor ver nas abordagens antropológicas
1967], que mobiliza formas de sacralidade: «O sagrado faz 11111a espécie de consenso em torno do carácter de atestação da
parte da estrutura do poder, de qualquer poder», afirma Luc de urdem social que se atribui à religião dos «primitivos», a partir
Heusch f 1962, p. 15 l, recusando ver na sacra! idade cio poder da ideia, muito difundida na anlropologia, de que as sociedades
um traço arcaico. lrndicionais são sociedades da ordem. O vasto campo de estudos
,obre os fenómenos de feitiçaria mostra, além disso, a intricação
l omplexa das relações entre poderes e papéis sociais e efeitos ou

A religião, ordenamento do social e do simbólico? !unções da religião. Para Mary Douglas, a feitiçaria exprime-se
Resistências e dinâmicas 1·m contexto de «não-estrutura» [ 1992, p. 19], nos interstícios
,1u desequilíbrios da sociedade: de uma forma mais geral, os
Implicitamente, coloca-se a questão das relações entre a poderes espirituais podem, alternadamente, ameaçar ou apoiar
ordem simbólica - o sistema de crenças e de representações 11111a estrutura social, conforme esta seja Jábil ou estável [ 1992,
- e a ?rdem social. Na perspectiva de Lévi-Strauss, a parte p. 116). Pensar a ordem numa perspectiva dinâmica e já não
.
simbólica da vida humana («cultura», mas que engloba tam­ estática permite então pensar as religiões nas tensões sociais
bém a reli�ião) procede a um ordenamento, enquanto que 1 históricas que sofrem ou que imprimem à sociedade, como

a parte social («sociedade») introduz a desordem _ as duas 111.eram, respectivamente, em África Georges Balandier [ 1957]
forças harmonizam-se para conferirem um equilíbrio relativo ,. Max Gluckman, teórico dos «ritos de rebelião» [ 1963]. Na
ao mundo do homem [Charbonnier, 1961, p. 46]. Este modelo '\sia, foi também Edmund Leach quem mostrou que os ritos
homeostático, largamente ratificado pela antropologia até a uma 1 l'ligiosos tinham, alternadamente, um valor de integração e de

108 109
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES PODER E ORDEM SOCIAL

desintegração social, em função da posição que ocupam no campo Novas abordagens: historicizar os conceitos
de força dos sistemas sociais l 19541, prolongando assim o foco
durkheimiano no rito como um acto socialmente estruturante. Em 1991, André Julliard sugeria que a antropologia das
Em The Ghost Dance [ 1970), Weston Labarre pretende traçar religiões «já praticamente não tem conceitos privilegiados»
a origem e o desenvolvimento das religiões a partir da ideia de 11991, p. 27]. Apesar de nunca os ter possuído (grande parte
que a ghost dance, longe de ser um epifenómeno messiânico da sua terminologia veio da linguagem natural dos seus países
localizado na América do Norte, encarna essas formas de rito de origem, portanto, maioritariamente das línguas latinas), a
ou de culto que surgem em tempos de crise, e, de uma forma antropologia resulta menos de uma propriedade do que de um
mais geral, defende que a dinâmica da religião é impulsionada 11so, ou seja, de uma definição particular dos seus conceitos, já
por essas crises. dados na linguagem natural e carregados dos seus determinan­
lcs semânticos. Se a antropologia já não podia efectivamente
reivindicar a posse de conceitos «próprios», a maneira como
A ghost dance ou a religião como resistência índia define e trata os seus objectos e modelos «clássicos» continua,
porém, a ser privilegiada para delimitar - tanto quanto possível
Em finais do século x1x, oprimidos pelo poder dos l' útil - o seu domínio de especialização.

Brancos, algumas tribos índias da América do Norte (em No entanto, os desenvolvimentos recentes da antropologia
especial, os Paiute) conceberam um plano de sublevação; oferecem novas pistas epistemológicas e metodológicas, com uma
seriam esmagadas no massacre de Wounded Knee (em 1cílexão aprofundada sobre a historicidade dos seus conceitos,
Dezembro de 1890). Como poderiam os Índios acredi­ para lá do seu mero alcance heurístico. Dois exemplos ilustram
tar que, apesar do seu pequeno número e do seu poder t·sta nova tendência. O primeiro é de Catherine Bell, que, na sua
militar muito inferior ao cio exército americano, tinham obra Ritual: Perspective and Dimensions l 1997 J, propõe uma
alguma hipótese de se libertarem do jugo dos Brancos e reflexão sobre o alcance do conceito de ritual e sobre a história
de purificarem a sua terra conspurcada? A resposta não da sua reificação nas ciências das religiões e, nomeadamente,
deixou de espantar; é uma crença religiosa, uma forma de na antropologia. O debate foi aberto por Mary Douglas, que
messianismo, que se exprime no rito da ghost dance, que ,ublinhara que o interesse das ciências humanas e das ciências
supostamente deve satisfazer os espíritos e conferir pode­ ,eligiosas pelo ritual era concomitante de um contexto social
res sobrenaturais aos homens. Antigo rito reactualizado l' histórico, o da Europa do século x1x, onde, precisamente, a
para fins de mobilização social e política, daria origem religião e as suas formas práticas pareciam perder consistência
às utopias de libertação das tribos indígenas. Trata-se da 1· influência social l 1982]. Este enfraquecimento social teria
ilustração, por excelência, de uma revitalização religiosa l'Xplicado o fascínio «romântico» de um Ocidente moderno por
em contexto colonial. l'ssa forma «tradicional» ainda vivaz nas sociedades «exóticas»
1·. por isso, o interesse que lhe testemunharam as ciências. Foi
Fonte: Mooney [ l 9651. 1·nquanto historiadora que Catherine Bell desenvolveu a pers­
pcctiva aberta por M. Douglas, e o seu contributo é salutar: não
110 J J 1
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES

só convida a pensar os contextos históricos e ideológicos que


envolvem a formulação dos objectos das ciências das religiões,
como também prossegue a reflexão sobre o etnocentrismo que
nelas prevalecia (como as concepções ocidentais da história e
da religião predeterminam a interpretação das crenças dos povos
não-ocidentais), abrindo finalmente caminho para um questio­
namento sobre o impacto das concepções académicas na esfera
religiosa. Isto porque, para além das vicissitudes do (conceito de)
ritual no seio das ciências religiosas, o (facto) ritual tornou-se
também uma questão para as próprias religiões, que renovaram
as suas práticas inspirando-se nas teorias antropológicai; e so­
V
ciológicas. Foi numa perspectiva semelhante que, poucos anos
depois, Talai Asad prolongou as suas reflexões sobre a obra de
Geertz, questionando, sob o ângulo das relações entre o poder
e a construção do conhecimento (conhecido, no outro lado do Questões Actuais: A Antropologia
Atlântico, como herdeiro da corrente Power and Knowledge),
a própria categoria de religiüo e as modalidades pelas quais foi das Religiões e o Mundo Moderno
construída no pensamento antropológico [ I 993], muito depois
de Wilfred Cantwell-Smith lhe ter traçado a genealogia pela
primeira vez [ 1963 j. Tanto Asad como Bell demonstraram que
os conceitos utilizados pela antropologia, no estudo da religião
ou das suas formas (como o rito), eram igualmente operações
ideológicas de demarcação entre um mundo «moderno» e um
mundo «não-moderno» (tradicional, arcaico, primitivo), cm suma,
um constituinte da construção da alteridade cultural e religiosa
( o resto do mundo) por um Ocidente «unificado», «racional»
e «desenvolvido». Após Tambiah [ 1990], que lembra que o
século x1x foi a época dos «ismos», ou seja, da reificação dos
sistemas religiosos pelas ciências humanas, Asad mostrou que a
autonomização da religião, que se atribui geralmente à história,
é sobretudo fruto da história do pensamento académico que a
constituiu como realidade autónoma í1993, p. 27].

112
Entre a fundação da antropologia em finais do século x1x e este
início do século xx1, o mundo sofreu transformações importantes:
urbanização massificada, descolonização, impactos dos processos
de «modernização» por todo o planeta, desenvolvimento rápido
das tecnologias de informação e de comunicação. migrações
generalizadas das pessoas, das ideias, das práticas culturajs ...
As demarcações geográficas, culturais e, por extensão, científi­
cas dos objectos das ciências humanas, que dantes pensávamos
estarem bem circunscritas, estão agora desconcertadas e parecem
ameaçar a identidade dos campos do conhecimento. Vista durante
parte da sua existência como «ciência do primitivo», atribuindo­
-se a si própria a «religião primitiva» ou «dos primitivos» como
objecto de estudo, a antropologia das religiões dispunha de um
campo que parecia suficientemente bem delimitado para que
pudesse beneficiar de uma identidade claramente definida face
à história, à sociologia ou à psicologia.

Ll5
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES ETNOLOGIA: «NOVAS RELIGIÕES», «NOVOS TERRENOS»?

Etnologia: «novas religiões», «novos terrenos»? cosmoplanetário», sobre os seus adeptos. A reacção da
comunidade científica após a publicação dos resultados
Na intr�dução de um número especial da revista Ethnolo­ das suas pesquisas foi corrosiva: num domínio de estudo
.
gie frança ise, dedicado aos «novos movimentos religiosos» tão conflituoso como o das «seitas» ou dos «novos mo­
(NMR), a socióloga Françoise Champion lembrava O desinte­ vimentos religiosos», a política imiscua-se na ciência e
resse que, até então, os etnólogos demonstravam relativamente a comunidade científica mostra-se fortemente dividida.
a essas f?rmas bem visíveis nas «sociedades modernas» l20001. A suspeita de conluio com o objecto pesa então sobre
Os contnbutos dos autores desse número especial da revista_ na o etnólogo, tanto mais que decidiu partilhar a vida e os
sua grande
_ mai?ria sociólogos - mostram que O mundo industrial, infortúnios dos «omistas» e descrevê-los a partir do in­
ou �ós-rndustnal, tem efectivamente muitos terrenos onde os terior - como se ele próprio fosse advogado e apologista
�tn?logos podem investir. Mas este convite parece assentar na dos seus «indígenas». A sensibilidade do debate protege
1de1a de que os etnólogos estão confortavelmente instalados no tão pouco o etnólogo quanto o homem comum das suas
estudo �e sociedades e religiões «tradicionais». É necessário que tomadas de posições intelectuais: mesmo estudado cien­
o conceito de NMR seja significante para a antropologia e que tificamente, o problema das seitas continua, nas nossas
o �esdém dos etnólogos pelas formas «modernas» da religião latitudes, ligado ao debate social e político.
seJa atestado - um conhecimento limitado da etnologia leva a
que normalmente lhe sejam dirigidas críticas muito lapidares. Fonte: Duval [2002J.

Maurice Duval, um etnólogo numa Não há dúvida de que a possibilidade de fundar, por exemplo,
«seita»
uma antropologia urbana religiosa inscrita na continuidade das
Etnólo�o da universidade de MontpeJiier, Maurice abordagens «clássicas» da etnologia, alimentando-se também das
Duval dedicou-se ao estudo etnográfico do Mandaram abordagens singulares de uma antropologia urbana [Gutwirth,
o lugar de cult�, localizado no Sudeste de França, d� 19911, não deu lugar a desenvolvimentos substanciais no plano
_ .
u� �rupo �111�ret1co (o «omismo») que mistura crenças teórico, pois o contributo é essencialmente metodológico (1991,
.
ongma1s e ideias das tradições do Extremo-Oriente Fiel pp. 1 1-12]. Mas será que o recurso a um método de observação
a� mét�do da etnografia, o autor da monografia rec�nsti­ directa justifica a identidade «etnológica» de uma investigação?
tmu _ o sistema de crenças deste grupo, descreveu as suas O debate está aberto, mas não se pode limitar a estes aspectos
_
pr�t�cas pormenorizou a sua sociabilidade comunitária, estritamente metodológicos. É que a antropologia está, antes de
:
pnv1l�giando o ponto de vista do indígena. No entanto, tudo, inscrita numa tradição científica ligada a uma história e
o 0�1smo tem a particularidade de ser considerado uma a uma geografia particulares, as dos mundos «primitivos», que
«seita» (e apontado como tal nos diferentes relatórios tanto a fundam como lhe limitam a extensão.
parlamentares), devido principalmente à influência do
seu guru fundador, Gilbert Bourdin, proclamado «messias
l 16 117
ANTROPOLOGIA DAS REL
IGIÕES
TRADIÇÃO, MODERNIDADE, RELIGIÃO

Bruxos no centro da cidade:


os wiccans a divisão da sociologia e da etnologia entre a modernidade e
a tradição, que prevalece desde o século x1x. Da ideia de uma
Excluídas do campo das expres
sões religiosas com o diferença de natureza entre estas duas categorias decorrem
pretexto de terem desaparecido
do mundo ocidental com evidentemente difcrenças significativas nas religiões estudadas:
o adve�to dos tempos modernos Roger Bastide faz uma distinção entre sociedades modernas «na
, as práticas de bruxaria
beneficiam de uma visibilidade mu história» e sociedades tradicionais «no cosmos», umas isolando
ito relativa, reduzindo­
se aos �s�� ç s rurais, onde são e reduzindo o espaço do sagrado, as outras banhando-se literal­
� ? ainda objecto de aborda­
º ens pnrn1t1vistas. Mas as religiõ mente nesse sagrado [Baslide, 1997, p. 96]. Será que a singula­
es «antigas» e «rurais»
a�apt�rn-se be a ambientes urb ridade dessas «outras» sociedades e das suas religiões, que se
:11 anos e modernos. Prova
disso e o crescimento e desenvolv mostrariam insensíveis às mutações impulsionadas pela história,
imento de urna bruxaria
«moderna» chamada ur . em refe
rrrc.ca, A •
estudadas pelos etnólogos, explicará o pouco interesse que estes
rencia (discutível)
a um termo do anfigo mg · IA
es, · . demonstram relativamente à religião em «mundos modernos»,
. . que imp lica uma revisão
das �1coto ias urbano-rural e tradição-mode designados, inversamente, como os da mudança perpétua?
� rnidade
A W,cca foi fundada no ambie
. nte dos mov1·mentos ocul-
tistas e neo-esotéricos do século
x1x , nomeadamcnte por
uma ?ªs. suas figuras pnn . .·
c1pais, o britânico Gerald Gardne A antropologia e a viragem modernista
Mov1 ento abertamente «pagão r. nas ciências religiosas
'.11 », afirma ser um culto das
forças da natureza. Organizada .
· em rede i·nternac1o na 1 e
rnstalada nos centros das grande . Mas é preciso que a modernidade (cuja localização temporal,
_ s cidades urbanas• a WiTec a
func10na como un1a emp,e . sa,
, com quadros que em nada geogrMica e cultural, designada corno reservada apenas ao «Oci­
,
ficam atras do mundo indust dente», é bastante problemática) seja, como sugeriram muitos
· · rhl .
' · T1·ata' - se de urna s1Lu -
1mpress10 . açao trabalhos, o motor da mudança e um perigo para as formas
nante, em que «b.i uxos» modern
os se reúnem
s com fªtos. c h'1ques e em luxuos
. . religiosas «tradicionais» como as estudadas pelos antropólogos.
de dia vestido
as salas de Ao contrário dos seus homólogos sociólogos, muitos antropólo­
conferen�1as, para, à noite, organi
A •

_ zar em , no mais simples


aparato, ntua1s que simulam sacrifícios e que inv gos nunca se convenceram totalmente da teoria da modernidade,
forças demoníacas ditas de «ou ocam a� rejeitada por exce�so de etnocentrismo e de generalidade, que
tro tempo». atribuía demasiado rapidamente, desde os anos 60, os mesmos
Fonte: Greenwood l2000]. efeitos (secularização, privatização, individualização) às mesmas
causas (a «modernidade»), independentemente do sistema reli­
gioso considerado e do contexto histórico e cultural no qual se
Tradição, modernidade, religião opera essa «modernização» [Hefner, 1998]. As manifestações
contemporâneas da religião são, além disso, contraditórias com
Em 197�, Jack Goody descreveu as teses clássicas da secularização e do desencantamento (que,
a «grande divisão» traçad·'1
entre as sociedades do oc1. ·dent entretanto, se tornaram reversíveis), duas variantes do paradigma
e e as «outras» sociedades com
o da modernidade nas ciências religiosas.
!18
119
TRADIÇÃO, MODERNIDADE, RELIGIÃO
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES

Existe sobretudo, da parte da antropologia contemporânea, misturas, das inovações, das reinvenções) [2003]. Entre as di­
uma resistência a respeito de uma teoria que é vista como um versas versões da modernidade, aquilo a que se convencionou
«mito» [Argyrou, 2003]. Por uma espécie de convenção implícita, chamar «secularização interna» (cujas causas se encontram nos
a atitude dos antropólogos face à ideia de «modernidade» e à valores e representações das próprias religiões) por um lado, e
religião no mundo ocidental oscila assim entre o entusiasmo, a uma «secularização externa» (que afecta a esse processo causas
ignorância e a suspeição; em muitos casos, consiste em manter ambientais e contextuais), por outro, um antropólogo como
o foco da antropologia nas sociedades não-ocidentais e em Louis Dumont privilegia a primeira. Dumont tentou identificar
abdicar da possibilidade de observar formas mais «próximas», as origens da secularização do cristianismo em virtude do seu
ou seja, em conservar o exotismo e a alteridade como traços acento tónico na persona (origem do individualismo moderno)
distintivos do seu objecto (e, ao mesmo tempo, da identidade !Dumont, 1983). Mas outros cenários são possíveis, que, além
da disciplina), ainda que a modernidade, graças às missões e à disso, invalidam esta visão cristianocentrada da secularização,
expansão colonial, tenha já entrado nos terrenos dos antropólogos. que enuncia quer o sufoco, quer a renovação da religião no
Uma atitude inversa consiste em entrar de cabeça no «terreno» horizonte da história recente. Ao analisar as propriedades dos
da modernidade (o das sociedades e das teorias) e em observar sistemas religiosos e a sua relação com a realidade, Marc Augé
plenamente esses «novos objectos» que são os NMR, já muito considera, por seu lado, que «é o politeísmo que tende teórica
estudados pelas disciplinas vizinhas (sociologia e história), e praticamente para o ateísmo, e não o monoteísmo» [Augé,
com o risco de ver dissolverem-se os critérios «clássicos» da 1982, p. 83].
identidade da antrnpologia e dos seus objectos.
Alguns vêem assim nas teorias da modernidade uma pista
inovadora para uma reflexão antropológica resolutamente baseada Controvérsias em torno do «desencantamento do
no contemporâneo, como François Laplantine, que afirma que mundo»
«o regresso do religioso constitui provavelmente um dos fenó­
menos sociais e culturais mais significativos da modernidade dos A tese do «desencantamento», inicialmente enunciada
anos 70-90» [ 1994, p. 9]. A antropologia empenha-se então na por Max Weber no contexto de uma racionalização formal
reflexão aberta pelas teses desenvolvidas na sociologia e na his­ e ideológica da religião, foi copiosamente discutida após
tória contemporânea, que fazem da «modernidade» um contexto a publicação da obra de Marcel Gauchet. Uma modeliza­
singular na história, caracterizado pela transformação rápida das ção tão ambiciosa da história religiosa a que se entrega
paisagens religiosas I Riviere, 1990]. Esta antropologia adere à a filosofia não podia deixar de suscitar admiração e, ao
teoria das «recomposições modernas» da religião, formulando, mesmo tempo, provocar a crítica. Impõe-se desde logo a
por exemplo, à imagem das tipologias que abundam na sociolo­ evidência de que a extensão geográfica do fenómeno de
gia, «matrizes de recomposição» religiosas [Laplantine, 1994], «desencantamento» se reduz às sociedades ocidentais: o
ou em grandes tendências. François Laplantine distingue, por autor, aliás, faz das sociedades «tradicionais» universos
exemplo, um «religioso por diferenciação» (o das cristalizações totalmente dominados pelo religioso. Este ponto é muito
e recuos identitários) e um «religioso por pluralização» (o das problemático: em lado algum se demonstra ou se justifica

120 121
ANTROPOLOGIA DA
S RELIGIÕES
TRADIÇÃO, MODERNIDADE, RELIGIÃO

o carácter «encantado» de
ssas sociedades - que são
o�se��a�as de longe e atravé apenas 1111.: «a antropologia religiosa constituiu-se na sua origem co�o
s do prisma de uma ideolo
pnm1t1�1sta. Uma crítica sup gia 1111a ciência das mutações» [ 1997, p. 93]. E as transformaçoes
lementar vem da antropolog
que se interroga sobre os ia, 11·l1giosas observadas in situ são tão antigas quanto o olhar ex­
parâmetros escolhidos po
chet para sustentar a sua r Ga u­ plorador dos etnólogos (ou «pré-etnólogos»), desde J.-F. �afitau,
demonstração: será O eco
co, o político ou o simbó nómi­ que descrevia Uá) as diminuições da intensidade do sentimento
lico que é responsável po _
desencantamento?, pergu r esse ,l'ligioso entre os Índios da América do Norte. A 1��gem de
nta Emmanuel Terray. o _
ataque (e o mais forte) vem último 11111 a antropologia, designada como «ciência do pnm1t1vo», fe­
dos opositores mais fervoros
da tese do «desencantam os l hada na fixidez histórica, exclusivamente absorvida no estudo
ento», que rejeitam em blo
suas co�sequências. A pa co as das formas arcaicas da religião, decorre assim dos pressupostos
rtir de finais dos anos 60,
predo�mava o paradigma qu ando l'Volucionistas de certos sectores da sociologia e da história
_ _ da secularização, alguns via
ressurgir�m os smars do m já projectados sobre a antropologia, para melhor sublinh�rem, por
«sobrenatural» e interrogava
sobre o impacto real de m-se rontraste, a «modernidade» dos seus objectos [Obadia, 2004].
uma secularização com
efe itos Até os autores mais firmemente convictos de que a modernidade
:desencantado�es». Para alguns, o mundo «p
e, pelo contráno, o da cri ós-mo derno» traduz uma série de mudanças rápidas e radicais, como Georges
ª? desencantamento, observa
atividade religiosa: cm rea
m-se um «reencantamento»
cção Balandier, reconhecem que a religião é um dos sectores nos
difer�ntes «regressos» (da e quais as transformações são mais lentas - na base de que a
magia, dos sentimentos rel
«arcaicos», da emoção). igioso s religião opõe às vicissitudes da história a eternidade dos seus
Remetido para uma filosofi
h�stória, à qual se liga Ma a da mitos [1985, p. 168].
rcel Gauchet, o desencantam
nao pode receber nem a co ento Não se reconhece a Edward Tylor o facto de ter concebido
nfirmação do seu carácter
dental» nem a do seu cum «ac i­ a teoria das «recomposições religiosas», supostamente posterior
primento inevitável.
à sua obra. No entanto, Tylor descreveu diferentes processos
Fontes: Gauchet [ 19851;
Terray [ J 9911. da mudança religiosa: os principais conceitos - «progresso»,
«degradação» ou «sobrevivência» - inscrevem-se plenamente
na teoria evolucionista, mas, ao mesmo tempo, esquecemos
Dialéctica do antigo e do que formulou as ideias de «revivescência» e de «modificação»,
moderno
enunciando assim a ideia de que a religião inova com o velho
�e a antropologia das religiõe e vice-versa [Kippenberg, 2002] e, por isso, fertilizou as refle­
s se mostrou, de uma forma
mais reticente do que ou geral, xões ulteriores sobre a questão. Não seria, aliás, a primeira vez
tras disciplinas em aderi
de um mundo religioso me r ao s ce nários que um autor marcado com o selo pejorativo de evoluci�nista
_ tamorfoseado pela «modern
pela seculariz ação, não foi por os antro ida de » ou se veria reabilitado pelo seu contributo para a compreensao de
de � ue o mundo não mu pó log os ad eri rem à ideia
da. Num artigo publicad determinada dimensão da religião - R.R. Marett sofreu sorte
dedicado ao «problema da o em 1970 e semelhante em finais dos anos 70, quando a sua abordagem
s mutações religiosas» !re
le Sacré sauvage, l 9971, editado em <<emocional» da religião foi exumada pela psicologia social
Roger Bastide afirmava, pe
lo contrário, [Bengtson, 1979]. A temática das «recomposições religiosas»,
122
123
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES
TRADIÇÃO, MODERNIDADE, RELIGIÃO

transversal à sociologia e à antropologia, declina-se depois, na


conjunturais (a «modernidade», os efeitos políticos da desco­
antropologia, em termos eminentemente tylorianos: as f ormas
lonização, os impactos socioeconómicos da «globalização») o
religiosas antigas inscrevem-se em novas configurações, ou
ressurgimento ou a persistência de formas «tradicionais» da
novas formas reconstituem-se em configurações antigas [Ba­
religião. Nesta ordem de ideias, Jean e John Comaroff asso­
landier, 1985; Bastide, 1997]. Esta mesma linha de argumenta­ ,
ciam as manifestações de feitiçaria da Africa contemporânea
ção atravessa trabalhos antigos, como em Eliade, que pensava
menos a uma eventual perenidade das suas funções e das suas
reconhecer as estruturas do mito nas ideologias modernas
significações do que a uma metamorfose dos seus contextos
[1957), ou mais recentes, com Claude Riviere, que vê funções
de expressão - a feitiçaria ganharia assim mais intensidade em
idênticas nestes dois registos diferentes 11990]. O exemplo dos
virtude das mudanças impulsionadas pela colonização e, depois,
trabalhos sobre uma ritualidade contemporânea que extravasa
pela descolonização. Mas continua no centro das sociedades.
os quadros da análise «religiosa» que lhe dava o seu primeiro
Neste sentido, a feitiçaria africana terá sido menos transformada
sentido [Goody, 19611 mostra, por outro lado, a autonomização
pela modernidade do que absorvido os seus choques [Comaroff
progressiva do conceito [Terrain, 1987; Riviere, 1990; Segalen,
e Comaroff, 19931 - à maneira do xamanismo no mundo pós­
1998). Mas estarão estas variações em torno do ritual ligadas
-soviético [Hamayon, 2003]. O mesmo fenómeno pode, porém,
às vicissitudes da religião? Será isso devido a uma passagem
ter interpretações menos tributárias das contingências históricas.
efectiva dos ritos religiosos para ritos «profanos» [Rivicre, 1990)
Muito recentemente, Michel Adam viu nas funções relativamente
nas sociedades «contemporâneas», ou será que, com o termo
clássicas da feitiçaria ( «fugir à realidade, contornar o real por
«rito» se descreve um certo tipo de actividade social que revela
artifícios») a explicação do seu «novo crescimento» em África
as suas propriedades morfológicas e os seus efeitos no contexto
!Adam, 2006, p. 299]. Quando muito, impõe-se a evidência de
de uma sociologia funcional (o seu papel na institucionalização
que a antropologia concebe a dinâmica do antigo e do moder­
das práticas sociais [Bourdieu, 1982)) ou interaccionista (o rito
no de f orma diferente de outros sectores da sociologia ou da
como quadro da interacção) [Goffrnan, 1974; Piette, 1997] e,
história das religiões. Tratar-se-á de uma questão de foco ou de
portanto, urna prática que só foi designada como religiosa pela
«natureza» das sociedades estudadas? Nenhuma resposta pode
história singular do cristianismo e pelas convenções científicas,
ser dada a um campo que ainda não recebeu toda a atenção
enquanto que podia ser vista como autónoma relativamente à
que lhe seria devida. Contudo, pela sua tradição intelectual e
religião? 1 Kreinath, 2005 J
pela sua familiaridade com sociedades de temporalidade longa
e mudanças lentas, a antropologia esforça-se por perceber os
efeitos de permanência, enquanto que a sociologia, que admitiu
O antigo no moderno:
largamente que as mudanças sociais são correlativas de mudan­
reinvenções e ressurgimentos «arcaicos»
ças religiosas (e vice-versa), prefere teorizar as metamorfoses.
Ao abordar a modernidade, a antropologia das religiões terá dado
No entanto, os antropólogos tendem também a inscrever
atenção, sobretudo, aos efeitos de continuidade morfológica (das
as suas análises numa argumentação menos influenciada pelo
rormas) ou funcional (das funções) da religião, aquém ou além
estruturalismo ou pelo funcionalismo, que atribui a condições
da superfície dos factos históricos; portanto, uma leitura «rasa»
124
125
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES TRADIÇÃO, MODERNIDADE, RELIGIÃO

pode efectivamente dar uma impressão de descontinuidade. Com transmissão internacional, oferece igualmente um espaço
a lição do estruturalismo, de Lévi-Strauss a Salhins, passando antagónico onde se exprimem e se cristalizam as questões
por Bastide, a antropologia interessou-se pelos efeitos de recom­ de definição da autenticidade das tradições religiosas.
posição, mas esta procede de uma mudança relativa [Obadia,
2006). A questão da correlação entre mudança sociocultural Fonte: Capone [ 1999].
e mudança religiosa coloca-se, então, em termos específicos
para a antropologia: os contributos reunidos na obra colectiva
dirigida por M. Klass e M. Weisgrau, Contemporary Jssues Pluralismo e outros híbridos
in the Anthropology of Religion [ 1999], revelam, segundo M.
Winkelman, que a dinâmica actual da religião parece alinhar­ As temáticas em torno da hibridez, da mistura, qualificadas
-se pela ideia - inspirada numa famosa frase do antropólogo noutros termos por «bricolage» ou «mestiçagem», parecem
americano Marshall Salhins - de que «quanto mais a religião hoje em dia impor-se como fortes paradigmas, enquanto que a
muda, mais fica na mesma» [2000, p. 3801, recuperando aqui antropologia herdou da influência dos missionários um horror à
uma problemática já largamente explorada por Roger Bastide, miscigenação religiosa [Mary, 2000a]. No entanto, as proprie­
que, cm 1970, ao reflcctir sobre a profundidade das mudanças dades dos sistemas observados pelos etnólogos incitaram-nos
religiosas no Ocidente e noutras regiões, perguntava: «Qualquer rapidamente a teorizar uma dinâmica da mistura dos géneros e
mutação não será, no fundo, um fenómeno de reestruturação?» das referências: os politeísmos «primitivos» mostram-se assim
[1997, p. 96]. Em certos aspectos (as configurações dos sistemas abertos a influências religiosas externas - o que os constitui
religiosos), sem dúvida; mas não se podem excluir da análise os como mosaicos de crenças e de práticas diversas, mas não sem
parâmetros da mudança, nomeadamente técnicos, cuja influência organização. Jean de Léry já observara que os Tupinambá, em­
está ainda por determinar. bora dispondo de um culto organizado em torno de espíritos e
divindades locais, se adaptavam bem ao deus cristão, a partir
do momento em que retiravam um proveito simbólico, por mí­
As religiões afro-brasileiras e a rede electrónica mundial nimo que fosse, da sua adopção. Longe de ser um sistema fixo
e restritivo, o politeísmo, pelo menos na sua forma amazónica,
Serão as religiões das sociedades tradicionais indife­ é dinâmico e inclusivo. Desde então, observaram-se atitudes si­
rentes às tecnologias de informação e de comunicação, milares em regiões muito diferentes, o que faria desta tendência
cujo desenvolvimento actual acompanha plenamente a quase uma lei geral: ao contrário das religiões «superiores», que
expansão mundial das religiões? Ao contrário dos mo­ pretendem purificar as crenças de «superstições», «os cultos in­
noteísmos missionários, as religiões tradicionais tinham dígenas», defendeu, em 1950, o antropólogo americano William
poucas hipóteses de conhecer tal destino. A Internet terá Howells, «não têm tanta pretensão e aceitam qualquer corpo
aberto caminho à difusão de cultos afro-brasileiros corno estrangeiro desde que seja utilizável» [Howells, 1950, p. 11].
a santeria, os cultos orixá (vudu) e anago (iorubá), mas, Ao formular a noção de «bricolage» 11962b], Claude Lévi­
muito mais do que um mero suporte desta inesperada -Strauss iria esclarecer as modalidades de combinação (e os
126 127
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES TRADfÇÃO, MODERNIDADE, RELIGIÃO

seus limites) dessas adopções no pensamento mítico. Foi sobre merece ser relacionada com as suas condições de emergência
uma utilização - muito diferente daquela que Lévi-Strauss lhe e as suas formas comparadas com outras, designadas como
conferia inicialmente - que a sociologia das religiões renovou as sincretismos [Mary, 1999]. O vudu haitiano, o candomblé ou a
suas abordagens da religião no mundo contemporâneo: o «bri­ umbanda brasileiros são sínteses religiosas de religiões africanas
colage» (uma mistura de géneros) aparecia aí como o reflexo de (os cultos dos espíritos iorubá) com o cristianismo, misturas de
uma época moderna de economia religiosa aberta e governada influências com as mais diversas origens, incluindo concepções
pelo individualismo rschlegel, l 995]. extremo-orientais (como na umbanda), nascidas no contexto
Procedendo a uma leitura retrospectiva dos trabalhos mais particular das Caraíbas e do Brasil e, por isso, tributárias de uma
antigos sobre os fenómenos de «misturas», parece que estas história particular, tal como os cultos bwti (ou de Eboga) dos
temáticas, supostamente contemporâneas, estão longe de serem Fang do Gabão estão ligados à história missionária e colonial
novos objectos para a antropologia. Jan Nederveen Pieterse atribui da África Negra [Mary, 2000al. Outros sincretismos, como o
à antropologia das religiões (pela obra de Bastide) o facto de da religião dos Newar, mistura de budismo e hinduísmo, não
ter introduzido essas pistas de investigação nas ciências sociais têm, porém, qualquer contacto com o Ocidente [Toffin, 2002),
antes de terem chegado à linguística, arte, política, sociologia e que não pode ser visto como a única força subjacente a essas
epistemologia [2001, p. 2231. Nem a diversidade das religiões fertilizações religiosas.
nem a sua amálgama em formas compósitas nasceram com a
modernidade (tal como teorizada pela sociologia) [Goossaert,
2005, p. 14). Designar a heterogeneidade como resultante da Os cultos do cargueiro ou o materialismo ocidental divi­
modernidade decorre de uma projecção errónea sobre sociedades nizado
«primitivas» que supostamente teriam aderido a um princípio
de holismo e de comunitarismo espirituais, que faria delas mo­ No século x1x, um pouco por toda a Melanésia, apa­
delos exemplares de um religioso homogéneo [Obadia, 2004]. receram novos cultos: baseados na observação dos navios
Autores como Paul Radin I J 941] ou, mais recentemente, Edmond ocidentais que acostam nas ilhas colonizadas (mais tarde,
Ortigues [19811 lembraram que o pluralismo religioso estava re­ na observação dos meios de transporte mais modernos)
solutamente do lado das sociedades «antigas», e Denise Paulme e que depositam, à atenção exclusiva dos coloniais, uma
tentou fazer do sincretismo a origem de todos os sistemas reli­ carga sempre abundante, elaboram uma teoria original,
giosos [19621. Para André Mary, o sincretismo representa um segundo a qual as embarcações e os bens que transpor­
desafio simultaneamente teórico (porque mobiliza os conceitos tam seriam de origem espiritual, por intenção e uso dos
de aculturação, de mestiçagem, de bricolage, sem a eles se indígenas, mas desviados e controlados pelos Brancos.
reduzir) e sociopolítico (convoca um duplo questionamento Messiânicos, os cultos do cargueiro profetizam um regresso
sobre a sua identidade e sobre as questões históricas subja­ desses bens materiais aos seus legítimos destinatários e
centes ao seu aparecimento) í1999]. Nem todas as formas de propõem, com esse fim, uma prática religiosa intensiva.
misturas religiosas podem ser confundidas num mesmo modelo, Esta é fortemente caracterizada por crenças e ritos an­
e a singularidade do pluralismo religioso ocidental e moderno cestrais, que simplesmente integraram no seu panteão e
128 129
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES TRADIÇÃO, MODERNIDADE, RELIGIÃO

na sua liturgia esses novos deuses que são os Brancos. obtêm vantagens, chegando ao ponto de verem alguns dos seus
O caso dos cultos do cargueiro ilustra precisamente a princípios ( o xamanismo está reservado apenas às sociedades de
maneira como o confronto entre o Ocidente e as culturas xamãs e não tem pretensões de universalidade) revistos para a
tradicionais pode dar lugar à fundação de novos cultos ocasião [Luca, 1999J. Este movimento de exportação mundial
- e não ao desaparecimento das crenças tradicionais. afecta tanto os xamanismos l Vazeilles, 1991], adoptados pelo
Esclarece também parte do sincretismo, no sentido em movimento new age, como as religiões extremo-orientais, as
que mostra que se trata menos de uma mestiçagem dos religiões de cura ou os messianismos africanos (que adoptam as
cultos rnelanésios com formas culturais ocidentais do vias migratórias), bem como a magia e a feitiçaria, que operam
que da adaptação da sua cosmologia à experiência da um «regresso» idêntico ao da «religião» [lntrovigne, 1992] e
colonização e do materialismo ocidentais. colocam um verdadeiro desafio lLaplantine e Martin, 1994] a
uma concepção prometeica e secularizada da história do Ocidente.
Fonte: Kilani [ l 9941.
Outrora vistos como sábios «indígenas», simplesmente dispostos
a viverem uma vida social regida por representações culturais e
a dedicarem-se a pe1formances cultuais que o etnólogo recolhe
Reinvenção e exportação das «religiões tradicionais» cuidadosamente, os xamãs, feiticeiros, médiuns, medicine-men e
ou a globalização em acção outros sacerdotes de cultos «indígenas» ou «étnicos» enveredam
agora pela promoção internacional das suas tradições, adaptando­
Estará o espaço das religiões «tradicionais» confinado a -as e reinventando-as para novas audiências - e alguns etnólogos
territórios culturais singulares - aqueles, precisamente, explo­ contribuíram também para esta adaptação de tradições antigas
rad�� p�los et?�logos? O paradigma da modernidade já levara «ao tempero» ocidental ou mundial.
as c1encias religiosas a um questionamento geral sobre o futuro É sobretudo a transformação das religiões ditas «tradicionais»
ª:
e meta�orfoscs dos monoteísmos. O paradigma da globali­ pela irrupção maciça, em muitos terrenos explorados pelos
:açao reonent�u �m pouco este foco: como a globalização não etnólogos, das religiões «mundiais» que representa ainda um
e apen�s �conom1ca ou política, há também uma globalização desafio para a antropologia. Alguns trabalhos recentes destacam,
.
das reh�1�es. Fa�e à constatação de uma disseminação maciça por exemplo, a necessidade de incluir na etnogra fia das socie­
-
das :rad1çoes rel1grnsas, o interesse incidiu principalmente nos dades africanas esses novos actores da cena religiosa que são
movimentos mais visíveis ou mais representativos desse movi­ as religiões ditas «transnacionais», as que chegam em missão
mento mundial, neste caso, os grupos evangélicos e missionários, (igrejas evangélicas, etc.), como intrusões da «modernidade» no
como o pentecostalismo norte-americano, que se implantou mundo «tradicional» estudado pelos etnólogos [Mary, 2000b].
agora em todos os continentes. Se os movimentos Ji oados às Esta consideração do impacto, ao nível local, de dinâmicas
�andes :eligiões �eneficiaram fortemente desta «coloc�ção em religiosas que se estabelecem à escala mundial (macroscópica)
Clfcul��:o» mundial do religioso f Meintel e Leblanc, 2003], permite, neste caso, que o estudo etnológico (local, microscópico)
as rel�g1oes de «tradição oral» (mais uma vez, as que a antro­ conserve a sua originalidade - como há muito tempo [1957] já
.
pologia assumm como primeiro objecto de estudo) também sugerira G. Balandier.
130 131
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES ABORDAGENS RECENTES DA RELIGIÃO

Larry Peters: o etnólogo que se tornou «consultor­ na busca das propriedades gerais do espírito humano e das suas
-xamã» manifestações sociais e históricas. No seu ambicioso programa
de uma antropologia da natureza, Philippe Descola [2005]
Larry Peters deu-se a conhecer na antropologia pela ressuscita alguns grandes conceitos esgotados (animismo) ou
_ _ desvalorizados (totemismo) para defini-los mais como «ontolo­
pubhcaçao de um estudo de inspiração etnopsiquiátrica
so�re os xamãs tamang, um grupo étnico de raiz tibetana gias» do que como «religiões» ou «cultos». Desembaraçados, de
res, _dente _ no Nepal. Por satisfazer os princípios habituais alguma maneira, da sua singularidade religiosa (o qualificativo
da 1nvest1gação etnográfica, a obra e o seu autor seriam aparece apenas de forma discreta na obra Par-delà nature et
r �c�nhecidos no seio da antropologia e dos estudos espe­ culture [20051), são erigidos, numa perspectiva próxima da de
cializado� sobre o xamanismo como um contributo para um Lévi-Strauss, ao nível de sistemas de conhecimento. Esta
o con�ec1mento das práticas de comunicação espiritual ênfase no conhecimento e nos seus mecanismos consagra um
_ último capítulo da história recente da antropologia das religiões,
d�s Himalaias. Mas Peters, que também era psiquiatra,
nao se contentou com este reconhecimento. Formado nas que se inscreve a partir dos avanços nas ciências do espírito,
técnicas de transformação dos estados de consciência com cm especial as ciências cognitivas.
finalidade espiritual, passou a orientar a sua carreira numa
_
via totalmente diferente: tornou-se então «consultor» e
propõe agora aos Americanos com problemas de stress Renovações conceptuais:
«estágios xamâmicos» durante os quais experienciarão cognitivismo e psicologia evolucionista
u:_11 xamanismo soft, descullurado e de vocação tera­
_ _
peut, ca suavizada. Peters está longe de ser O único caso Depois de Freud. a questão das origens e das evoluções psico­
recenseado: um dos mais conhecidos é Michael Harner, lógicas da religião não deixou de ser recolocada. Das perspectivas
que, por ocasião de um estudo entre os Jivaro, se iniciou abertas por Weston Labarre [ 19701, pelo menos três enunciam
no xamanismo e enveredou depois pela difusão de uma directamente aquilo que serão ulteriormente os desenvolvimentos
versão «modernizada» da prática xamânica. da antropologia cognitiva e da psicologia evolucionista: ( 1) a
religião é, sobretudo, uma questão de homens e, nomeadamen­
Fontes: Petcrs 11988]; Yazeilles [20031. te, de disposições psíquicas daqueles que se tornam os seus
especialistas; (2) a religião é apenas uma variante da cultura, já
não concebida como sistema de símbolos, mas como resposta
adaptativa, «uma espécie de adaptação cultural, mais especial»
Abordagens recentes da religião: [itálico do autor, Labarre, 1970, p. 39]; (3) a finalidade da antro­
novos debates para antigas questões pologia é reconstituir uma sua história longa de tipo evolutivo.
Regressamos aqui às primeiras questões levantadas, há mais de
Quase um século e meio após a fundação da antropolouia um século, pela antropologia das religiões. E embora se afirmem
esta encontra finalmente as suas grandes ambições comparati;ta; inovadoras no plano teórico, as ciências cognitivas mais não
132 133
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES ABORDAGENS RECENTES DA RELIGIÃO

fizeram do que recuperar essas pistas iniciais. Os trabalhos que exclusivamente psicológic os (em detrimento das suas formas
se reivindicam da antropologia, os de Pascal Boyer ou de Scott sociais e culturais), como também as teor ias cognitivas são
Atran, oferecem exemplos particularmente significativos deste invalidadas pelos dados etnográficos em que se baseiam: o
carácter de continuidade nos questionamentos fundamentais da princípio segundo o qual as crenças são religiosas porque c�­
disciplina: a origem da religião, as suas funções, os mecanismos lectivas, partilhadas em virtude de uma cooperação humana tao
mentais que mobiliza e toda uma série de questões associadas antiga quanto os primeiros grupos de caçadores-recole� tores, �or
(a interioridade das crenças, a construção mental dos «espíritos» exemplo, retira à análise to da a conflitualidade da vida social,
e a evolução do pensamento humano). Dan Sperber já reabrira ilustrada pela feit içaria (rapidamente eliminada desses trabalho�
o debate em torno da racionalidade/irracionalidade das crenças para não abalar o edifício conceptual), um fe�ómeno que esta
[ 1982), inaugurando uma «antropologia cognitiva» em França. longe de ser marginal na história e nas sociedades humanas
Em Sperber, a religião, tal como a cultura, estão desembaraçadas [Dupré, 2002]. Apesar dos contributos que pode� dar a uma
de toda a singularidade. A sua inteligibilidade reduz-se a uma antropologia das religiões, sempre inspirada por pistas abertas
psicologia colectiva da linguagem: As pessoas dizem aquilo pelos outros ram os das ciências humanas, as questões recuper�­
_
em que acredi tam? Que mecanismos psicológicos escondem os <las pelas ciências cognitivas ainda não deram prov as da aptidao
elementos improváveis dos seus discursos? Com Scott Atran, a dessas novas orientações da psic ologia para transformarem o
análise adquire uma dupla viragem neuropsicológica e histórica: saber científico sobre o fenómeno religioso.
a partir da constatação de que os mecanismos mentais da crença
são inerentes à própri a biologia humana [2002al, mas inúteis
para a sua adaptação (no sentido darwiniano do termo), é toda Fazer um balanço?
a ev olução do homem que é repensada através da estranha per­
sistência da religião, paradoxalmente dispendiosa (em energia) Em qualquer conclusão de panor ama temático, é grande a
e infrutuosa (no plano da adaptação) [2002b j. Na mesma via, tentação de ver na antropologia das religiões, tal como era de_s­
os trabalhos de Pascal Boyer, mais conhecidos cm França, co­ crita por Clifford Geertz em inícios dos anos 60, uma cole�ç�o
meçam por fazer tábua-rasa de todas as abordagens da religião de m odelos, conceitos e métodos «oriundos de uma trad1çao
(psicológica, histórica, sociológica, etn ológica ... ) anteriores intelectual com fronteiras estreitas» l 1972, p. 191, cuja apre­
às ciências cognitivas [Boyer, 200 l ]. Estas ciências postulam sentação está ligada a essa «doença» chamada «academismo»
o carácter «natural» (porque biologicamente determinado) do e cujo primeiro sintoma é a «r epetição pomposa da obra de
comportamento religioso (anteriormente teorizado cm termos mestres r econhecidos» [Geertz, 1972, p. 20]. Chegados quase
sociais ou culturais), derivado das capacidades de percepção e ao fim deste panorama, outra forte impressão se pode impor :
de tratamento da informação do cérebro humano LBoyer, 1997). a da dispersão, uma vez que a antropologia das religiões só
Esta psico logia da religião, renovada por recentes avanços teó­ apr esenta um carácter de unidade pelo seu objecto e porque se
_
ricos, nutre-se bastante dos materiais etnográficos - daí a sua revela heterogénea, tal como a antropo logia geral. Que dizer,
inclusão recorrente no domínio da antropol ogia. N o entanto, por último, do contributo da antropologia para a co�preensão
não só a religião é aqui mais uma vez reduzida a mecanismos do facto religioso? Poderíamos, por um lado, reduzi-la a um
134 135
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES FAZER UM BALANÇO?

inventário da diversidade etnográfica das formas da religião (na - o estudo da religião ou de uma religião inscreve-se numa
forma de um atlas ou de uma enciclopédia): mas a antropologia relação dialéctica enlre o conhecimento de si e o conhecimento
Uá) não acalenta esse projecto de cartografia exaustiva. É mais dos outros, o que implica uma epistemologia reflexiva que leve
justo referir que, desde o seu nascimento, não deixou de afirmar, em consideração as condições históricas, políticas e culturais
pelo contrário, as suas ambições teóricas, nem sempre fundadas, da enunciação do saber. Interrogar as crenças ou as práticas
sobre o material ou a partir dos métodos e dos conceitos que lhe religiosas - ou assim supostas - dos outros significa, desde
teriam permitido fundamentá-las duradouramente. Ao reduzir a logo, interrogar as do observador, mas também e sobretudo as
extensão do campo a algumas questões principais, o contributo ideologias que prevalecem nas comunidades científicas e que
da antropologia pode ser resumido, na forma de um balanço, a moldam, representam ou constituem esses objectos intelectuais
uma série de proposições, que se acrescentam aos contributos e sociais que são as religiões;
metodológicos ou teóricos anteriormente evocados ou sintetizam - as abstracções aprioristas e universalistas sobre a reli­
alguns dos seus aspectos: gião (à maneira de um Caillois ou de um Eliade) perderam a
- uma definição da religião ou de uma religião (obrigatória pertinência enquanto categorias de análise, mas fe:tili�ara� a
para alguns, acessória para outros) não pode ser fundada sem análise enquanto categorias ideológicas, elas próprias mscntas
respeitar as categorias de pensamento e as práticas efectivas na história das ciências religiosas;
da sociedade ou das sociedades que dela se reivindicam; estas - a questão fundadora das origens - históricas, psicológicas
não podem ser arbitrariamente desqualificadas na base de uma ou sociológicas - da religião surge agora menos como um fim
superioridade do saber (a ciência) sobre a crença (a religião); do que como uma modalidade da sua compreensão, que, além
- a constatação da diversidade das formas (institucionais e disso, está sujeita à variedade dos cenários possíveis, susceptíveis
práticas) e da extensão das significações da religião interdita de serem refutados, repensados ou combinados;
qualquer generalização a partir de um modelo a priori, quer - a constatação de uma presença persistente da religião em
seja ocidentalocentrado ou monoteocentrado, como é o caso épocas muito distantes da história e em numerosas sociedades
na sociologia ou na história, ou, como lembra judiciosamente assinala a sua importância para a humanidade, mas não pode,
Evans-Pritchard [ 1965 J, fundado a partir apenas das religiões em caso algum, legitimar a afirmação peremptória da sua uni­
«primitivas»; versalidade, ou da univcr<;alidade das suas formas, das suas
- o pensamento religioso dos «outros» é infinitamente mais funções e das suas significações. A diversidade empírica, pelo
_
complexo do que o havia constituído o primitivismo: similares contrário, questiona perpetuamente a natureza abstracta da reh­
em alguns aspcctos, as crenças dos «outros» (que não o são gião, e a antropologia, depois de se ter esforçado por lhe fixar
tanto quanto isso) são diferentes noutros aspectos. Nesta base, 0 sentido, rendeu-se à evidência de uma inflexão necessária e
a alteridade cultural, histórica e geográfica não pode ser um perpétua dos seus conceitos relativamente à plasticidade dos
parâmetro de discriminação (científica e principalmente social) sentidos possíveis conferidos à «religião».
que satisfaça uma tipologia das religiões, ainda que seja a alte­
ridade (entre o mundo dos homens e os «outros mundos») que
funda a natureza antropológica da religião;
136 137
CONCLUSÃO

Século e meio após a sua fundação, as questões que se


perfilam no horizonte da antropologia das religiões são muito
diferentes do que eram inicialmente: a dupla questão da sua
pertinência e da delimitação em campos das ciências religiosas
e das ciências humanas não deixa de ser recolocada. Não po­
derá a antropologia das religiões tornar-se obsoleta em virtude
da natureza dos seus objectos, confrontada com a potencial
dissolução desses objectos? Os fluxos de populações, de ideias,
as transformações das sociedades, das culturas, das práticas e
territórios parecem, com efeito, ameaçar uma hipotética «re­
serva de caça» dos objectos ou domínios outrora reservados às
disciplinas das ciências humanas.
Nem a modernidade nem a globalização esgotaram a riqueza
e a criatividade da vida religiosa, que demonstrou notáveis ca­
pacidades de adaptação. Mas se, desde há alguns anos, o facto
religioso recuperou um lugar central nos debates de sociedade L'
na investigação científica, foi também porque voltou a ser uma

139
CONCLUSÃO
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES

questão social e política. A -;ociologia, a história ou a psicologia das religiões, da qual, como acontece com todas as idades de
empreenderam uma re onquista desse objecto, enquanto que, ouro, esta não tem realmente consciência [ 1997, p. l]. O segundo

por seu lado, a geografta, a economia ou as ciências políticas desafio apela a mais circunspecção: se a antropologia das reli­
fiz�r�m a sua entrada no campo cada vez maior das ciências das giões se funda inicialmente num discurso de vocação universal,
religiões. E no que respeita à antropologia das religiões? não deixou de limitar os seus objectos e domínios a religiões
A antropologi� das religiões beneficia também deste repo­ particulares, certamente numerosas, mas na maioria estranhas
. _
sicionamento do facto religioso no centro das problemáticas e ao mundo ocidental «moderno». Por conseguinte, não é seguro
programas de investigação das ciências humanas. Não há dúvida que os avanços geográficos recentes da antropologia (tanto da
de que os antropólogos se vêem - de maneira sintomática_ num antropologia geral como d:1 das religiões) correspondam ao
momento crítico da história da sua disciplina e do conjunto dos projecto dos seus pais fundadores. Tanto mais que a distinção
seus campos. A publicação de alguns grandes readers e manuais das fronteiras culturais coincidiu durante muito tempo com a das
como Anthropology oJReligion, coordenado por Stephen Glazie; outras disciplinas, uma posição já não defensável numa altura
[1997], The Anthropology of Religion, editado por Fiona Bowie em que a sociologia e a história entram nos terrenos (empíricos
f2000�, ou o Reader in tlze Anthropology of Religion, dirigido e teóricos) da antropologia.
por Michael Lambek [2002J. assinala a vitalidade do campo ou, Há uma tendência que se impõe actualmente com insistên­
�elo menos, uma certa matundade: todas estas obras se referem cia: o projecto de fundar uma sócio-antropologia unificadora,
igualmente aos grandes debates (fundadores) e às novas abor­ em que as duas disciplinas, doravante reunidas nos mesmos
�age1:s. Pouco antes da sua morte, Clifford Geertz publicou no terrenos, distantes ou próximos, se fundiriam numa única.
Jornal francês Le Monde (4 de Maio de 2006) a sua conferência Alguns, como J.-P. Olivier de Sardan, justificam a existência
no colóq'.li? «As ciências sociais em mutação», na qual sugeria dessa fusão proclamando a unidade das ciências humanas (pelo
_ menos a história, a sociologia e a antropologia) em torno da
que a r�hg1ao era «um tema de futuro» (o título do seu artigo),
no sentido em que afirmava que «o estudo da religião, agora identidade da sua epistemologia [1995, p. 71]. Outros, como
que I se desvaneceu] qualquer pcrspcctiva de a ver desaparecer Pierre Bouvier, defendem o projecto de uma sócio-antropologia
a c�rto prazo. e sem dúvida nunca, da cena mundial, deve ou complementar das <luas disciplinas que a constituem, para dar
devia operar a partir. como se di1, do '·ponto de vista do indíge- conta das mutações sociais e culturais contemporâneas [ 1995].
,, Nos estudos religiosos, essa aliança disciplinar ainda não deu
�a ». A tra�es , J· este con�it: a repensar as expressões religiosas
contemporaneas e mund1a1s numa perspectiva antropológica, é verdadeiros frutos: um ensaio como o de Roger Lapointe [ 1989]
_ retém das duas disciplinas apenas aquilo que é menos inventivo:
a antropologia em geral que é assim convocada.
Com efeito col�icam-sc dois desatios à antropologia: realizar, a sua sócio-antropologia do religioso perpetua a figuração de
por um la��· a reintegração do religioso nos seus objectos de um «primitivo» (religioso) para distinguir melhor uma época
estudo Ieg1timos � empenhai-se. por outro, noutra conquista, a «moderna» (menos religiosa), e esta é a única justificação do
do estudo das sociedades ocidentais ( «complexas» ou «moder­ timbre «antropológico» do seu propósito. Contudo, se é verdade
nas�>). Este reposicionamento já está em curso, e s. Glazier não que as disciplinas tendem cada vez mais a associar-se - nomea­
hesita em falar de uma «rnwa idade de ouro» da antropologia damente no estudo dos factos religiosos ditos «contemporâneos»,

J .-H)
[41
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES
CONCLUSÃO
1
�.�:t�::
as ou-
como o exemplo de Socio-anthropologie des religions, de Claudt·
. . no de uma ciência que transcende todas
étodo
\
Riviere [19971 -, podemos enunciar outro diagnóstico que nã(I �:�:deiro obj e�to ne1� m ; ��; �: :�����::1:
dade ao longo a . t i
fundaram na sua singulan r ·- )
o da sua imprová vel «fusão». Confrontada com uma globali
em tor no de um me smo obJecto (a re igiao ,
zaçã o que acelera as misturas das culturas e das religiões, QUl' Que converoem rmanente�ente, _ e ��-ª
id[nci a. Qu s e influenciam pe
é uma e
l-
extravasam as suas f onteiras políticas, que se inscrevem e m
· . futuro numa mterdlSClp
r ev
, o seu
plurilocalizações e adquirem formas inesperadas («mágicas»). v erdade inegavel. Que v eAem igioso as
Mas a nquez� do facto rel
a sociologia sente , de forma pertinente, a necessidade de rever naridade. é um proj�ct�. ª com ree nsã o da �ida
que of e
não só os m odelos sobre os quais se funda, mas também a� descobertas inesgotave1 s . :� �:s difer!1 ças culturais só
. p nsa m h
ento umano .
suas perspectivas, «des-ocidentalizando-se» (para retomar a sac ia, 1 , d ento
e no enriqueclm
o e
as no d. ,1
ia og o
e xpre ssão de Cristian Parker Gumucio [20021) e abrindo-se ao são p erfeitamente explorad r ando
das ciências hum�nas, dom.
n
estudo de outras «re alidades» (africana, asiática, etc.) [Parkcr �útuo entre as disciplinas
as perspectivas e metodos.
Gumucio, 2002, p. 182]. Ao admitir a fragilidade das t eorias plenamente as suas própri
da secularização, Bryan S. Turn er r econhece, além disso, que
a sociologia negligenciou a dimensão cultural da religião e o
«valor inerente da diferença» das culturas e das civilizações
[Bryan S. Turn er, 2006, p. 443] e , assim, a necessidade de
se t om ar mais comparatista [Bryan S. Turner, 2006, p. 439].
Do mesmo modo, o desenvolvimento r ecente do paradigma da
«religião cultural» -que confere à religião papéis e significaçõ es
da cultura, ind epende ntemente do grau de observância efectiva
dos seus ritos - [Demerath III, 2000] ou de uma de finição so­
ciológica das religiões como culturas LWillaime, 2003, p. 256]
confirmam que a sociologia das re ligiões dá sinais de uma au­
têntica viragem antropológica, como, aliás, as ciências cognitivas
(pelo menos os sectores que se afirmam «antropologia») muito
depois da história (nomeadamente cm Eliade) e paralelament e a
uma psicologia que reconh ece que a religião é «antes de tudo,
um fenóm eno cultural» [Belzen, 19991.
E videntemente, ignoramos a consequência que tal populari­
dade poderá ter para o futuro da antropologia e da antropologia
das religiões. Será que esta se diluirá nas outras disciplinas?
A sua vitalidad e e pertinência actuais contradizem claramente
tal hipótese. Deverá então a antropologia rec eber novamente o
e statuto de ciência englobant e, com o p e rigo de regre ssar ao
143
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A religião segundo a antropolo
termos...................................
........ ····································· 30

163
162
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES ÍNDICE

II. Questões de Método ...................................................... 35 O aninúsmo e as «formas elementares» da religião ............. 74

A singularidade do método antropológico ............................ 38 Totemismo, classificações e clãs: a universalidade dos


modelos em questão............................................................... 75
A experiência etnográfica ...................................................... 39
Exper�ência etnográfica, experiência religiosa ................. 40 Xamanismo e possessão: ocidentalocentrismo e
Im�rsao: entre a proximidade e a distância ..................... 42 comparatismo ................................................................................... 78
Cazxa: o etnógrafo: um xamã?......................................... 43
A antropologia, indiferente aos monoteísmos? ..................... 81
Tradução............................................................................... 45 Etnografias fugazes? ......................................................... 81
O sentido das crenças indígenas..................................... :: 46 Monoteísmo «arquetípico»: evolução e comparatismo .... 84
Caixa: � p�rigo �a i�te17Jretação atributiva das crenças ... 48
Herm�neut1ca e s1gmficação ............................................. 49 IV. Objectos da Antropologia Religiosa ........................... 87
Conceitos indígenas, conceitos científicos ....................... 51
Crença, crenças ...................................................................... 89
Contextualização .................................................................... 52 Linútes do conceito .......................................................... 90
Do empírico ao sistema .................................................... 54
Caixa: O Za r, dos Akha: uma religião sem «crença»? .. 91
Comparatismo ........................................................................ 55 Atitudes de indígenas ....................................................... 92
Alcance e limites .............................................................. 56
Símbolos e função simbólica................................................. 93
A problemática da universalidade .................................... 57
A função simbólica ........................................................... 94
Essência versus política dos símbolos.............................. 95
m. Os Modelos da Antropologia das Religiões .......................... 57
Ritos, actos, práticas .............................................................. 97
A rel�gi�� �<primitiva»: modelos e debates............................ 62 Posição do rito na antropologia das religiões .................. 97
Pnm1t1v1smo e Homo religiosus ....................................... 62 Os ritos como actos «eficazes» e «tradicionais»............ 100
A «mentalidade primitiva» ............................................... 64 Mitos, representações, visões do mundo........................ 102
A magia, a ciência, a religião................................................ 65
. Poder e ordem social ........................................................... 105
Mª g1a e religião................................................................ 66
. Religião e sociedade ....................................................... 106
Umdade do «mágico-religioso»........................................ 67
Realezas divinas, estruturas sociais «sagradas» ............. 107
Caix�-� M�gia «antiga» e religião «moderna»? ............... 68
A religião, ordenamento do social e do simbólico?
:resi.\�nc1�, pseudociência? .............................................. 69 Resistências e dinâmicas ................................................ 108
ea 1 1taçoes ..................................................................... 71
Caixa: A ghost dance ou a religião como resistência
Sentido e feitiçaria: significação, causalidade e racionalidade ..... 72 índia .......................................................................................... l 10
Caixa: Porque caem os celeiros? É feitiçaria ................. 74 Novas abordagens: historicizar os conceitos .................. li 1

164 165
ANTROPOLOGIA DAS RELIGIÕES
PERSPECTIYAS DO HOMEM

V. Questões Actuais: a Antropologia das Religiões e o 1. A Constrnçüo do Mundo. Marc Augé (dir.) 28. A lógica da Escrita e a Organi;;açüo
2. Os Domínios do Paremesco, Marc Augé da Sociedade, Jack Goody
Mundo Moderno ................................................................ 113 29. O Ensaio Sobre a Dádim, Marcel Mauss
(dir.)
i
3. Antropologia Social, E. E. Evans-Pritchard 30. Magia. Ciência e Religiio,
Etnologia: «novas religiões», «novos terrenos»? ................. 116 4. A Antropologia Económica, Bronislaw Malinowski
Caixa: Maurice Duval, um etnólogo numa «seita» ........ L 16 François Pouillon (dir.) 31. Indivíduo e Poder, Paul Vey11e, Jean Pierre
5. O Mito do Eterno Retorno. Mircea Eliade Vernant. Louis Dumonl, Paul Ricoeur,
Caixa: Bruxos no centro da cidade: os Wiccanos .........118 François Dolto e Outros
6. lntmduçüo aos Estudos Emo-Antropo-
./ógicos, Bernardo Bemardi 32. Mitos, Sonhos e Mistérios, Mircea Eliade
Tradição, modernidade, religião ........................................... 118 7. Tristes Trópicos, Claude Lévi-Strauss 33. História do Pensamento Antropológico,
A antropologia e a viragem modernista nas ciências 8. Mito e Significado, Claude Lévi-Su·auss E. E. Evans-Pritchard
religiosas ..........................................................................1 J 9 9. A Ideia de Raça, Michael Banton 34. Origens, Mircea Eliacle
10. O Homem e o Sagrado, Roger Callois 35. A Dil•ersidade da Antropologia,
Caixa: Controvérsias em torno do «desencantamento» do
11. Guerra, Religiiio, Poder. Pierre Clastres. Edmund Leach
,nundo .............................................................................121 Alfred Adler e Outro, 36. Estrut11ra e F1111ção nas Socie,lade.,
Dialéctica do antigo e do moderno .................................123 12. O Mito e o Homem. Roger Calloi, Primitfras, A. R. Radcliffe-Brown
O antigo no moderno: reinvenções e ressurgimentos 13. Antropologia - Ciência das Sociedades 37. Ca11ibais e Reis, Marvin Harris
Primiti1·as?. J. Copans, S. Tomay, 38. História das Religiões, Maurilio Adriani
«arcaicos» .........................................................................124
M. Godelier e C. Backés-Clement 39. Pureza Perigo, Mary Douglas
Caixa: As religiões afro-brasileiras e a rede electrónica I.J. Hori;;ontes da Antropologia, Maurice 40. Mito e Mitologia. Walter Burkert
,nundial ........................................................................... 126 Godelicr 41. O Sagrado, RudolfOllo
Pluralismo e outros híbridos ............................................127 15. Críticas e Políticas da Antropologia, 42. Cultura e Comunicaçiio, Edmund Leach
Jean Copans 43. O Saber dos Antropólogos. Dan Sperber
Caixa: Os cultos do cargueiro ou o materialismo
16. O Gesto e a Palavra - l, Técnica 44. A Narure;;a da Cultura, A. L. Kroeber
ocidental divinizado ........................................................129 e Linguagem, André Leroi-Gourhan 45. A lmaginaçüo Simbólica, Gilbert Durand
Reinvenção e exportação das «religiões tradicionais» 17. As Religiões da Pré-História, 46. Animais, Deuses e Homem, Pierre Levêquc
ou a globalização em acção ............................................. J 30 André Leroi-Gourhan 47. Uma Teoria Cientifica da Cultura.
18. O Gesto e' a Palcll'ra -11, A Mem6ria Bronislaw Malinowski
Caixa: Larry Peters: o etnólogo que se tornou 48. Signos, Símbolos e Mitos. Luc Bcnoist
e os Ritmos. André Leroi-Gourhan
«consultor-xamã» ........................................................... 132 19. Aspectos do Mito. Mircea Eliade 49. /111tvduçüo à Antmpologia. Claude Rivicre
Abordagens recentes da religião: novos debates para 20. EwJ/11çüo e Técnicas -1. O 1/omem 50. Esboço de 11111a Teoria Gemi da Magia.
antigas questões .................................................................... 132 e a Matéria, André Leroi-Gourhan Marcel Mauss
21. Ei•oluçiio e Técnica.\ - li, O Meio 51. O Enigma da Dádim, Maurice Godelier
Renovações conceptuais: cognitivismo e psicologia 52. A Ciência dos Símbolos, René Alleau
e as Térnicas. André Leroi-Gourhan
evolucionista.......................................................................... 133 22. Os Caçadores da Pré-História. 53. /1111vduçiio à Teoria em Antropologia,
Fazer um balanço? ................................................................ 135 André Leroi-Gourhan Robert Layton
2.1. As Epidemias 11a História do Homem. 54. Clllude Lévi-Strauss, Catherine Clément
Conclusão ............................................................................. 139 Jacques Ruffié e Jean-Charles Sournia 55. Com1111idades Imaginadas. Benedict
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Referências bibliográficas................................................... 145 25. Magia, Ciência e Civi/izaçiio, J. Bronowski 56. A Antropologia, Marc Augé e Jean-Paul
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27. A O/eira Ciumeuta, Claude Lévi-Strauss 57. Intimidade Cultural, Michael Herzfeld

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