Susanne K Langer - Sentimento e Forma OCR

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a re ttTO T:

K. LA N G ER

S EN TIM EN TO
ESTÉT- E FO R M A

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estudos
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EDITORA PERSPECTIVA
EDITORA PERSPECTIVA

Próximo lançamento
A Política e o Conhecimento Sociológico
F. G. Castles

A contribuição de Susanne Langer para a Teoria do Conhecimento


e a Estética é reconhecidamente uma das mais importantes
do pensamento contemporâneo.
Desenvolvendo principalmente as propostas filosóficas de
Whitehead e Cassirer, escreveu uma obra, Filosofia em Nova Chave,
que marcou fundo as pesquisas sobre o papel da estrutura simbólica
nos vários domínios da atividade e criatividade humanas. Sentimento
e Forma leva a frente e às últimas consequências a tarefa
anteriormente esboçada por via analítica. Agora, Susanne Langer
propõe-se a especificar no sentido mais rigoroso o significado de
conceitos como Expressão, Criação, Símbolo, Importe, Intuição,
Vitalidade e Forma Orgânica, de modo a esclarecer a natureza da Arte
e sua relação com o sentimento, a autonomia relativa das várias
artes e sua unidade fundamental na própria “ Arte” , as funções do tema
e do meio, os problemas epistemológicos da “ verdade”
e “ comunicação” artísticas.
Muitos outros problemas são analisados: por exemplo, se o
desempenho é “ criação” , “ recriação” ou “ mera habilidade” , se o
teatro é literatura ou não, por que a dança alcança o zênite de
desenvolvimento no estádio primitivo de uma cultura em que outras
artes apenas começam a despontar no horizonte étnico. Todos estes
aspectos decorrem evidentemente de questões centrais e, como estas,
são abordadas em sua plenitude. Assim, pode-se descrever o propósito
principal de Sentimento e Forma como o de estabelecer uma firme
infra-estrutura intelectual para estudos filosóficos gerais ou
pormenorizados, com respeito à Arte.
Coleção Estudos
Dirigida por J. Guinsburg

btjMÜ* tii TimltivAo: Ana M. Goldberger Coelho e


I iJllIlMflatltai 1’imliiteftHi IMInki Miiríln» Filho.
Susanne K. Langer

SENTIMENTO E FORM A
Uma Teoria da Arte desenvolvida
partir de Filosofia em Nova Chave

EDITORA PERSPECTIVA
Título do original
Feeling and Form

Copyright © 1953, by Charles Scribner*s Sons

À memória de
limst Ctmlrer

iê t i i i i
Sumário

Introdução XI

Parte I: O SÍMBOLO DA ARTE


1. A Medida das Id é ia s .............................................................. 3
Filosofia, o estudo de conceitos básicos — doutrinas rivais,
um sinal de conceitos inadequados — a teoria da arte, cheia
de confusões — seus problemas básicos, não formulados —
“falácia da abstração óbvia” — metodologia e método —
generalidades e generalizações — requisitos do pensamento
filosófico — princípio de generalização — princípio de fe-
cundidade — função de um problema central — problema
da criação artística — emergência sistemática de conceitos
gerais e problemas especiais — dificuldades e promessas
deste empreendimento.

2. Paradoxos 13
Idéias-chave na estética, heterogêneas — cada uma dá ori­
gem a um tipo especial de teoria — complicação posterior
devida a dois pontos de vista — expressão e impressão —
tendência das teorias a serem paradoxais — “polaridade”
de sentimento e forma — sentimentos na arte, não senti-
tidos — paradoxo do “sentimento objetivo” — Baensch, e
o sentimento como qualidade — suas distinções — a velha
questão da “Forma Significante”.
VI SUMARIO

3. O Símbolo do Sentimento .............................................. 25


Vários sentidos de “expressão” — todos os tipos encontra­
dos na arte — a maioria de tais tipos, não peculiares à arte
— sumário da teoria especial da música em Filosofia em
Nova Chave — música, uma expressão simbólica do senti­
mento — sumário da teoria semântica — formas articula­
das — import vital — significado de “forma significan-
te” em música — Clive Bell e a arte plástica — Bell, e a
“emoção estética” — “atitude estética” — fonte do conceito
— supostas dificuldades da atitude — crítica da aborda­
gem psicológica — o símbolo da arte — técnica — defini­
ção dc “arte”.

Parte II: A ELABORAÇÃO DO SÍMBOLO

4. Semelhança ............................................................................ 47
“Atitude estética” provocada pela obra — ilusão — ima­
gens — o caráter virtual destas — semelhança — Schiller,
e a função de Schein — abstração da forma — forma e
conteúdo — significação, como o conteúdo das formas ar­
tísticas — Prall, e as formas sensoriais — sobre o senti­
mento na arte — limitação de seus princípios — criação
de formas virtuais — a intenção como lógica da visão ar­
tística — relação com o sentimento — movimento e cres­
cimento — “forma viva” — criação.
5. Espaço Virtual 73
Motivos — não obras, mas engenhos — formatos sugestivos
— forma e representação — a pura decoração expressiva
— representação como motivo — articulação visual, o
objetivo de toda arte plástica — conformação do espaço
— espaço real e espaço virtual — ilusão primária da arte
plástica — seu caráter autônomo — Hildebrand, e o “espaço
perceptivo” — “processo arquitetônico” — o plano da pin­
tura — terceira dimensão — “forma real” e “forma pcrcep-
tiva” — unidade do espaço perceptivo — valores visuais —
imitação e criação — o espaço tornado visível — “vida”
em obras de arte — expressão de sentimento vital — na­
tureza da “expressividade” — ilusão primária, a criação bá­
sica — elementos e materiais — modos.
6. Os Modos do Espaço Virtual 91
“Cena” virtual — falsa a generalização de Hildebrand —
forma orgânica da escultura — “volume cinético” — espa­
ço subjetivo objetificado — arquitetura e espaço virtual
— arranjo e criação — “domínio étnico” — articulação
orgânica do lugar — relação entre escultura e arquitetura
— autonomia e unidade das artes.
7. A Imagem de Tempo 111
Interesse nos materiais — teorias do som e audição — não
teoria musical — respostas nervosas — vibrações — ele­
mentos musicais são formas audíveis — ilusório, seu mo­
vimento — ilusão primária é o tempo virtual — diferença
do “tempo do relógio” — não unidimensional — a passa-
SUMARIO VII

gcm, não uma sucessão de “estados” — tensões incomen-


suráveis — tempo musical e pura duração — a falha de
Bergson — música e a durée réelle de Bergson — músicos,
seus críticos realmente construtivos — sem fundamento o
temor da “espacialização” — “espaço musical” — para­
lelos com concepções de espaço plásticas — outros pro­
blemas.
8. A Matriz Musical .................................................................. 127
Composição e apresentação — todo orgânico, a concepção
essencial — “forma dominante” e composição — não a
mesma coisa que a Urlinie — princípios da arte e princi­
pais recursos — muitos tipos de música — definição de
ritmo — maior ritmo, a “forma dominante” — objetividade
da matriz musical.
9. A Obra Viva .......................................................................... 139
Ambigüidade de “a peça” — audição interior e audição fí­
sica — poesia e música não comparáveis em termos simples
— fatores essenciais na audição física — na audição interior
— composição incompleta — execução, seu acabamento —
controlado pela matriz musicai — ato de expressar — ex­
pressão artística e auto-expressão — sentimento real pela
peça — pathos da voz — formalização — imaginação mu­
sical versus “mera técnica” — poder de ouvir — desenvol­
vido pela prática — rádio e discos — vantagens e perigos.
10. O Princípio de A ssim ilação.................................................. 155
Palavras e música — teoria e prática freqüentemente em
desacordo — palavras tornam-se elementos musicais —
mas não meros sons — “superfície estética”, não a forma
perceptiva — a forma “incorpora” materiais estranhos —
formas poéticas cindidas — música incorpora o teatro —
Staiger, sobre Wagner e Gluck — música sugestiva —
princípios hermenêuticos como motivos — irrelevância das
associações — o devaneio “incorpora” a música — é pos­
sível que outras artes façam o mesmo.
11. Poderes Virtuais .................................................................. 177
A estética da dança apresenta dificuldades especiais —
a dança como uma arte musical — opiniões e evidência
em contrário — a dança como arte independente — Nover-
re — como arte dramática — objeções — a dança, uma arte
independente — o gesto, sua abstração básica — natureza
complexa do gesto — subjetivo e objetivo — gestos reais
como material — gesto virtual — forças vitais — forças
da dança como poderes virtuais — os dançarinos e a auto-
expressão — a prática desmente a teoria — sentimento
imaginado — semelhança de auto-expressão — confusão
de aspectos reais e virtuais — personagens da dança co­
mo seres virtuais — Scheingefühle — análise dos proble­
mas envolvidos — afirmações míticas resolvidas — valor
da teoria.
12. O Círculo Mágico .............................................................. 197
Concepção primitiva dos Poderes — o Mundo do Espírito
— Cassirer e a “consciência mítica” — senso de poder
objetificado na dança — evolução pré-histórica da dança —
VIII SUMARIO

Curt Sachs e tipos de mente — formas naturais como


motivos — o que é criado — ilusão de libertação de forças
reais — balé — a dança como aparição — o dançarino
e seu “mundo” — a música como elemento da dança —
espaço e tempo balético — efeito da audiência passiva —
efeitos da secularização — entretenimento — efeito da
dança na música — confusão de pensamento e clareza de
intuição nos dançarinos — a dança como arte pura.
13. Poesis .................................. ................................................... 217
A literatura chamada de arte mas tratada como afirmação
— discurso, seu material — maneiras de dizer coisas —
crítica e paráfrase — I. A. Richards e compreender a
poesia — dizer e criar — a ilusão poética feita pelo dis­
curso — vida virtual — toda arte literária, poética — dois
sentidos de “vida” — semelhança de eventos — forma sub­
jetiva — eventos, a abstração básica — filosofia na poesia
— ficção e fato — dialeto — Tillyard e a poesia “direta”
e “oblíqua” — falácia dos “significados mais profundos” —
poesia nenhuma é afirmação — legítimos os temas morais
— leis da lógica e da imaginação — arte e vida.
14. Vida e Sua Imagem .............................................................. 245
A imaginação como desvio da razão — Cassirer, a lingua­
gem e a imaginação — Barfield e a linguagem e mito —
Freud e os símbolos não-discursivos — “significados” psi-
canalíticos, não significação artística — significação artísti­
ca não escondida — o estudo de Freud sobre a “lógica”
não-discursiva — princípio da sobredeterminação — da
ambivalência — da ausência de negativas — da condensa­
ção — “obra de sonho” e obra de arte — escolas e re­
cursos poéticos — o ideal da “poesia pura” — a poesia
definida como uma experiência — como um tipo de lin­
guagem — impropriedade de tais tratamentos — a poesia
como semelhança de eventos admite todas as obras poé­
ticas — toda poesia boa é “pura” — a realidade de sua
significação — fontes na vida real — nenhum tema é
tabu — transformação de fato — prosa, uma forma poé­
tica.
15. Memória Virtual .................................................................. 269
Poesia lírica, o caso mais patente de linguagem criativa —
não uma arte de destaque — o tempo presente da lírica
— narrativa, um dos principais recursos literários —
mudança para o tempo perfeito — forma fechada do passa­
do — memória virtual — caprichos aparentes de tempo
têm funções criativas — tempos misturados nas baladas
milo c lenda, materiais literários — nenhuma composi­
ções sem autoria pessoal — poesia, não necessariamente
oriil capacidade de ler e escrever e as artes poéticas.
|n An CiiitndcN Formas Literárias .......................................... 291
i hiiv»‘iiçõi' n poéticas — formas literárias originam-se de
tpi ui miu imperiais nenhum “valor” literário absoluto —
Irfi uli itn i» pmpÓNitos criativos — meios vigorosos tornam
Miihmu Mipéi fliion técnica da balada — romance — o
vhimi litiiiii na dinprnHávol — ficção em prosa — novela,
num ha um impute frcciücntemente encarada como co­
SUMARIO IX

mentário, não como arte — ilusão de “vida sentida” —


estória e contador de estórias ■
>
— criação de personagens
— Clive Bell e Proust — ilusões secundárias na literatura
— o fato como o “modelo” — não-ficção como arte apli­
cada — exploração da forma discursiva como motivo —
especialização de formas — o épico como matriz de todas
as formas literárias.
17. A Ilusão Dramática 319
Drama é poesia, mas não “literatura” — abstração básica,
o ato — modo da memória e modo do Destino — futuro
virtual — Morgan e a “forma em suspenso” — inteireza
da ação dramática — forma orgânica á — situação — “lo­
calização” versus “ambiente” — drama, uma arte de cola­
boração — o poeta fornece os discursos — discurso como a
culminação da ação — deve ser representada — sentimen­
to real e fictício — teoria do faz-de-conta dramático —
Bullough e a “Distância psíquica” — o drama como ritual
— como divertimento — como obra-de-todas-as-artes —
teoria hindu — desmentida pelas práticas teatrais hindus
— o drama como dança — o drama “incorpora” a dança
— Rasa — o drama oriental representa objetos físicos —
todos os elementos do drama são poéticos.
18. As Grandes Formas Dramáticas: O Ritmo Cômico . . . . 339
Moralismo na teoria dramática — comédia como crítica
social — trágico é cômico como pontos de vista — na
realidade, estruturas diferentes — senso universal de vida
— vida e morte — o ritmo cômico — o destino como
Fortuna — o ritmo trágico — o destino como Fado —
a comédia séria — a “Divina Comédia” — a Nataka —
peças heróicas — comédia e humor — teorias do riso
— todas ignoram a “Distância psíquica” — o humor, um
elemento estrutural da comédia — o bufão — o humor
como esplendor do drama — muitas fontes da comédia
— resposta da audiência, não um riso comum — o ritmo
da vida universal.
19. As Grandes Formas Dramáticas: O Ritmo Trágico . . . . 365
O ritmo trágico — potencialidade e realização — a vida
com uma ação total — Fado — tragédia não é conhecida
em todas as partes — “forma dominante” da ação — vida
condensada — o “erro trágico” — a tragédia não ilustra
o Fado, mas cria sua imagem — elementos cômicos —
subestrutura cômica — função do espetáculo — mero espe­
táculo — o drama, não uma arte híbrida — sua real re­
lação com a vida.

Parte III: O PODER DO SÍMBOLO

20. Expressividade ...................................................................... 383


Símbolo da arte, não um simbolismo — questões centrais
na filosofia da arte — projeções não-temporais do senti­
mento — vida de sentimento — todos os padrões vitais
são orgânicos — idéias associadas podem variar — in­
tuitiva a percepção da significação — Bergson e a intuição
X SUMARIO

— Croce e a intuição e expressão — consequências de sua


teoria — Cassirer e a abstração e insíght — o símbolo de
arte não “faz referências*’ ou “comunica” — Collingwood
e a arte como “linguagem” — e a sinceridade e corrupção
— e a irrelevância da técnica — crítica de seu livro — te­
mor da teoria do símbolo — perigos e vigor de tal teoria
— arte e ofício — arte e personalidade — o empreendimen­
to do artista.
21. A Obra e Seu Publico .........................................................
Artista e público — objetividade — o espectador ideal —
problemas da percepção da arte — significação artística,
não comentário — sempre sustentada no símbolo — rela­
ção de quem percebe não com o artista, mas com a obra
— natureza real da “emoçap estética” — beleza — pri­
mazia da responsividade — liberdade e frustração da res­
posta — antecipação de forma — efeito da arte na vida
— educação do sentimento — arte e religião — efeitos da
secularização — entretenimento — não o mesmo que diver­
timento — crítica de arte — talento e gênio — “ tempera­
mento artístico” — a arte como herança cultural.
Apêndice
Uma Nota Sobre o Filme ..................................................
Filme não é teatro — não é pantomima — não é uma
arte plástica — “incorpora” todos os materiais — é um
modo poético separado — “presente virtual”, o modo do
sonho — abstração básica é o “caráter de ser dado” —
câmara móvel — caráter criativo do filme.
Bibliografia
Introdução

Em Filosofia em Nova Chave* foi dito que a teoria do


simbolismo ali desenvolvida deveria levar a uma crítica da
arte tão séria e de alcance tão amplo quanto a crítica da
ciência que se origina da análise do simbolismo discursivo.
Sentimento e Forma propõe-se realizar essa promessa, ser
essa crítica da arte.
Uma vez que essa filosofia da arte apóia-se diretamen­
te na teoria semântica acima mencionada, o presente livro
não pode senão pressupor o conhecimento do anterior pelo
leitor; cie tem, de fato, a natureza de uma continuação. Prefe-
riria tê-lo feito independente do primeiro, mas seu próprio
tema é tão vasto — apesar da forma esquematizada que assu­
miu algumas vezes — que, para repetir os tópicos relevantes
ou, mesmo, os mais essenciais do livro anterior, seriam
necessários dois volumes, sendo que o primeiro, é claro, teria
praticamente repetido o trabalho que já existe. Assim,
devo pedir ao leitor que considere Sentimento e Forma
como, efetivamente, o segundo volume do estudo sobre sim­
bolismo que se iniciou com Filosofia em Nova Chave.
Um livro, tal como um ser humano, não pode fazer
tudo; não pode responder, numas poucas centenas de pá­
ginas, todas as perguntas que o Filhote de Elefante, em

* Publicado por esta editora» na coleç&o Debates» n.° 33.


XII INTRODUÇÃO

sua curiosidade insaciável, podería resolver fazer. Assim,


posso muito bem afirmar imediatamente o que este livro
não tenta fazer. Não oferece critérios para julgar “obras-pri­
mas”, nem mesmo para julgar obras menores de um certo
sucesso em comparação com obras menores mal sucedidas —
pinturas, poemas, peças musicais, danças, ou quaisquer ou­
tras. Não estabelece cânones de gosto. Não prediz o que é
possível ou impossível dentro dos limites de qualquer arte,
quais os materiais que podem ser empregados nela, quais
os temas que lhe serão adequados, etc. Não auxiliará nin­
guém a ter uma concepção artística, nem o ensinará como
concretizá-la em meio algum. Todas essas normas e regras
parecem-me estar fora do campo do filósofo. O próprio da
filosofia é esclarecer e organizar conceitos, dar significados de­
finidos e satisfatórios aos termos que empregamos ao falar
de qualquer assunto (neste caso, de arte); é como disse
Charles Peirce, “tornar claras nossas idéias.”
Este livro tampouco coordena teorias da arte com pers­
pectivas metafísicas, “hipóteses mundiais” no dizer de Stephen
Pepper. Essa meta não está fora da filosofia, mas está além
do alcance de meu presente estudo filosófico. Dentro dos
limites por mim traçados, posso desenvolver apenas uma
teoria da arte, e não construir a “hipótese mundial” que po­
dería abrangê-la — sem falar de comparar um sistema con­
ceituai assim tão vasto com qualquer outro sistema alterna­
tivo.
Além do mais, existem limitações que tenho de aceitar
simplesmente com o fim de que minhas próprias idéias e
sua apresentação continuem manejáveis. A primeira limitação
é não rebater explicitamente as muitas teorias, clássicas ou
correntes, que contradizem a minha em pontos cruciais.
Se eu fosse seguir toda refutação de outras doutrinas que
implica minha linha de argumentação, esta ficaria perdida
num emaranhado de controvérsias. Conseqüentemente, evi­
tei as polêmicas tanto quanto possível (embora não de todo,
evidentemente) e apresentei para discussão principalmente
aquelas idéias de meus colegas e predecessores, baseada na
quais posso construir algo, dirigindo críticas contra o que me
parecem ser suas limitações ou erros. Além disso, tanto
quanto foi possível, releguei os materiais comparativos às
nolas dc rodapé. Isso provoca muitas anotações (especial-
mcnlc nos capítulos sobre poesia, ficção e teatro, assuntos
Irmlieionalmente estudados por eruditos, de forma que a
literatura crítica sobre eles é enorme), mas permite que o
Icxlo prossiga, sem embaraços de quaisquer arabescos de
INTRODUÇÃO XIII

saber eclético, e tão diretamente quanto possível, com o


desenvolvimento de seu próprio tema principal. As notas de
rodapé tornaram-se assim mais do que meras referências a
citações corroborativas do afirmado, e são destinadas ao
leitor comum, bem como ao estudioso especializado; abando­
nei, portanto, o costume estrito de deixar as citações de
autores estrangeiros na língua original e traduzi todas essas
passagens para o inglês, tanto nas notas quanto no texto.
Portanto, quando não se menciona nenhum tradutor de um
trabalho com título em outra língua, a tradução é minha.
Finalmente, nada neste livro é tratado exaustivamente.
Todo assunto, nele, exige posterior análise, pesquisa, inven­
ção. Isso ocorre porque é essencialmene um trabalho de
exploração, que — como Whitehead uma vez disse, referin-
do-se ao pragmatismo de William James — “levanta princi­
palmente uma porção de lebres para que as pessoas cacem” .
O que Sentimento e Forma propõe-se fazer é especificar
os significados das palavras: expressão, criação, símbolo,
significação (import), intuição, vitalidade, e forma orgânica,
de tal modo que possamos entender, em seus termos, a na­
tureza da arte e sua relação com o sentimento, a autonomia
relativa das várias artes e sua unidade fundamental na pró­
pria “Arte”, as funções do tema e do meio, os problemas
epistemológicos da “verdade” e “comunicação” artísticas.
Muitos outros problemas — por exemplo, se o desempenho
é “criação”, “recriação” ou “mera habilidade”, se o tetatro
é “literatura” ou não, por que a dança muitas vezes alcança
o zênite de seu desenvolvimento no estádio primitivo de
uma cultura onde outras artes estão apenas surgindo em seu
horizonte étnico, para mencionar apenas alguns — decorrem
dos problemas centrais e, como estes, assumem uma forma
que permite respondê-los. O propósito principal do livro,
portanto, pode ser descrito como sendo a construção de uma
infra-estrutura intelectual para estudos filosóficos, gerais ou
detalhados, relacionados com a arte.
Há certas dificuldades peculiares a este empreendimen­
to, algumas das quais de natureza prátioa e outras de nature­
za semântica. Em primeiro lugar, a filosofia da arte deve­
ria, creio, começar no estúdio, não na galeria, auditório
ou biblioteca. Da mesma forma como a filosofia da ciência
exigiu, para seu desenvolvimento adequado, o ponto de vista
dos cientistas, não o de homens como Comte, Buechner,
Speneer e Haeckel, que viam a “ciência” como um todo,
mas sem nenhuma concepção de seus problemas reais e
XIV INTRODUÇÃO

conceitos operacionais, assim a filosofia da arte exige o


ponto de vista do artista para pôr à prova a força de seus
conceitos e evitar generalizações vazias ou ingênuas. O
filósofo deve conhecer as artes, por assim dizer, “de dentro” .
Mas ninguém pode conhecer todas as artes dessa forma.
Isso acarreta uma quantidade árdua de estudo não-acadêmi-
co. Seus professores, além do mais, são artistas, e estes
falam sua própria linguagem, que resiste amplamente a uma
tradução para o vocabulário mais cuidadoso, literal, da filo*
sofia. É provável que isso deixe impaciente o filósofo. Mas,
de fato, é impossível falar sobre arte sem adotar, numa
certa medida, a linguagem dos artistas. A razão pela qual
eles falam como o fazem não é inteiramente (embora seja
parcialmente) porque careçam de um treinamento no dis­
curso e sejam populares em sua fala; nem eles aceitam, de-
sencaminhados por “maus hábitos de fala”, uma visão do
homem do tipo “fantasma na máquina”, como sustenta
Gilbert Ryle. Seu vocabulário é metafórico porque precisa
ter plasticidade e força a fim de permitir-lhes exprimir
seus pensamentos sérios e freqüentemente difíceis. Não
podem encarar a arte como sendo “meramente” este ou
aquele fenômeno facilmente compreensível; estão por demais
interessados nela para fazerem concessões à linguagem.
O crítico que despreza sua fala poética provavelmente esta­
rá sendo superficial ao examiná-la, e lhes atribuirá idéias
que não defendem, em vez de descobrir o que realmente
pensam e conhecem.
Mas não basta aprender a linguagem dos estúdios; sua
tarefa como filósofo, afinal, é empregar o que sabe para
construir uma teoria, não um “mito operacional” . E, quando
ele se dirige a seus próprios colegas, encontra uma nova
dificuldade semântica: em vez de interpretar as metáforas
dos artistas, agora tem de lutar contra as excentricidades do
uso profissional. Palavras empregadas por ele com toda
sobriedade e exatidão podem ser usadas em sentidos intei-
ramente diferentes por escritores tão sérios quanto ele.
Considere-se, por exemplo, uma palavra em torno da qual
todo este livro está construído: “símbolo” . Cecil Day
Lewis, em seu excelente livro The Poetic Image, atribui-lhe
sempre o significado daquilo que chamei de “símbolo atri­
buído”, um signo com um significado literal fixado por con­
venção; Collingwood vai ainda mais longe e limita o termo
a signos escolhidos propositalmente, tais como os símbolos
da lógica simbólica. Depois ele estende o termo “lingua­
gem” a fim de cobrir tudo o que eu chamaria de “símbolos”,
INTRODUÇÃO XV

Incluindo (cones religiosos, ritos e obras de arte1. Albert


Cook, por outro lado, opõe “símbolo” a “conceito”; por este,
entende o que Day Lewis significa com “símbolo’, mais tudo
o quo ele (Cook) condena como “mecânico”, tal como a
comédia de Rabelais. Fala da “infinita sugestividade do
símbolo”12. Evidentemente, “símbolo” significa algo vaga-
mente honroso, mas não sei o quê. David Daiches tem
nitida outro uso e, de fato, uma definição: “Como usado
aqui”, diz ele em A Study of Literature, “ele (‘símbolo’)
simplesmente significa uma expressão que sugere mais do
quo diz”3. Mas logo depois restringe seu sentido de maneira
muito radical: “Um símbolo é algo em que os homens sen-
NÍvcis reconhecem seu destino potencial.. . ”4. Aqui o signifi­
cado de “símbolo” pode ser ou não o mesmo que Cook tem
cm mente.
Tudo o que os pobres filósofos podem fazer é definir suas
palavras e confiar em que o leitor tenha a definição em
mente. Freqüentemente, entretanto, o leitor não está pronto
para aceitar uma definição — especialmente se esta, de
algum modo, for pouco usual — até ver o que o autor
pretende com ela, até ver por que a palavra deve ser assim
definida; e pode ser que isso ocorra quando a leitura do
livro já esteja bem adiantada. Minha própria definição de
“símbolo” ocorre, exatamente por essa razão, no Cap. 20;
c como ele se acha realmente muito longe, talvez seja melhor
cxpô-la aqui, com a promessa de que o livro a elucidará e
justificará: Símbolo é qualquer artifício graças ao qual po­
demos fazer uma abstração.
Quase todas as palavras-chave num discurso filo­
sófico sofrem da ampla variedade de significados que lhes
foram atribuídos na literatura anterior. Assim, Eisenstein,
em The Film Sense, usa “representação” para o que geral­
mente chamamos de “imagem”, e “imagem” para algo não ne­
cessariamente concreto — o que eu chamaria de “impressão”.
Porém sua palavra “imagem” tem algo em comum com
“imagem poética” de Day Lewis; além disso, cumpre dizer
o seguinte em seu favor: ambos sabiam, e nos dão a sa­
ber, o que querem dizer com ela.
Um termo mais difícil, e de fundamental importância
neste livro, é “ilusão” . Ele é geralmente confundido com
“delusão”, motivo pelo qual fazer-lhe menção em conexão

1. Uma discussão bastante completa do trabalho de OollLngwood


é apresentada mais adiante, no Cap. 20.
2. The Dark Voyage and th e Golden Mean, p. 173.
3. Ibid., p. 36.
4. Loc. cit., infra.
XVI INTRODUÇÃO

com a arte geralmente desperta protestos imediatos, como


se a gente houvesse sugerido que a arte é “mera delusão” .
Mas a ilusão como ocorre na arte nada tem a ver com a de-
lusão, nem mesmo com o auto-engano ou com a simulação.
Além das dificuldades apresentadas para a teoria da
arte em geral pela boa ou má reputação de palavras, o
que interfere com o significado estrito delas, e até mesmo
pela variedade de seus significados definidos na literatu­
ra, cada arte tem seu incubo especial de idéias erradas na­
turais. A música sofre mais do que qualquer outra arte
pelo fato de ter marcantes efeitos somáticos que, com fre-
qüência excessiva, são tomados por sua virtude essencial.
A aflição da literatura é sua relação com o fato, com a
verdade da proposição; do teatro, sua proximidade com as
questões morais; da dança, o elemento pessoal, o interesse
sensual; da pintura e escultura, o pseudoproblema da “imi­
tação”; da arquitetura, o fato óbvio de sua utilidade. Lutei
contra todos esses aspectos o melhor que pude; no fim,
entretanto, espero que não sejam as refutações diretas, mas
sim a própria teoria, a idéia sistemática inteira que irá dis­
persar os preconceitos especiais, bem como os gerais.
Pelo final do livro, poder-se-ia muito bem esperar que
as idéias desenvolvidas em relação a alguma arte conside­
rada isolamente fossem generalizadas e transportadas para
as outras artes. Muitas vezes o leitor poderá fazê-lo, e ficará
pensando por que deixei de fazê-lo. A razão é que, quando
eu efetuar um relacionamento entre as artes e demonstrar sua
unidade fundamental, fá-la-ei de maneira sistemática; será
um outro livro.
Nada neste ensaio, portanto, está terminado, nem po­
dería a teoria da arte jamais estar terminada. Pode ser
que haja novas artes no futuro; poderá haver com certeza
novos modos de qualquer arte; nossa própria época assistiu
ao nascimento do cinema, que não é apenas um novo meio,
mas é um novo modo (ver o apêndice, “Uma Nota sobre o
Filme” ) . Mas, assim como Filosofia em Nova Chave era
uma promessa de uma filosofia da arte, este livro, espero
confiantemente, é um começo de algo passível de continuações
infinitas.
Provavelmente não seria nem um começo — não seria
absolutamente nada — não fosse o apoio constante de vários
amigos que me auxiliaram. Por quase quatro anos gozei,
graças ao patrocínio da Universidade de Columbia, do
auxílio da Fundação Rockefeller, que aliviou minha carga
de ensino, de modo que pudesse dedicar-me à pesquisa e
INTRODUÇÃO XVII

i|UO mc deu, também, parte do tempo, um assistente ines­


timável. Agradeço a ambas, à Fundação e à Universidade,
do todo coração. Os agradecimentos que devo àquele assis-
lenlc, Eugene T . Gadol, não podem ser dados facilmente;
além do colocar à minha disposição seus conhecimentos es­
pecializados sobre o teatro, ele esteve associado com o tra­
balho quase que constantemente e, de fato, foi minha mão
direita. Além do mais, quero expressar minha gratidão
especial a Helen Sewell, que me deu o ponto de vista do
artista a respeito muitas coisas, e leu e releu o manuscrito;
à luz de suas críticas vigorosas e francas, o Cap. 5 foi quase
que totalmente reescrito, e os defeitos que ainda retém
devem-se ao fato de que ela não o escreveu. Também devo
agradecer a Katrina Fischer pela assistência à pesquisa que
mu proporcionou no Cap. 18 e à minha irmã, Use Dunbar,
pelo uuxílio com as muitas traduções de fontes francesas e
alemãs; a Alice Dunbar pelos conselhos de escultor e por sua
ajuda de última hora a fim de preparar o manuscrito para o
prelo; e a Kurt Appelbaum por ler quase que o trabalho intei­
ro o por beneficiar-me com as bem ponderadas reflexões de
um músico. Meu débito para com vários de meus antigos alu­
nos está, penso, suficientemente claro no texto. Mas devo
acrescentar uma palavra de apreço ao espírito de cooperação
com que o pessoal de Charles Scribner’s Sons, especialmente
o Sr. Burroughs MitchelI, permitiu que este volume tomasse
íorma de acordo com as minhas esperanças.
Um livro que entra no mundo com uma carga tão pesa­
da de gratidão é quase um empreendimento comunitário.
Espero que a comunidade de artistas, amantes da arte e es­
tudiosos o receba com interesse contínuo e o mantenha vivo
através de críticas sérias.
S. K . L.
Hurley, N . Y.
Parle 1 :0 SÍMBOLO D A ARTE
1 . A Medida das Idéias

A filosofia é uma textura de idéias. Não é, como a


ciência, um corpo de proposições gerais que expressam fatos
descobertos, nem um conjunto de “verdades morais” apren­
didas por algum meio que não o da descoberta fatual. A
filosofia é um levantamento das idéias em cujos termos
se exprimem fatos e leis, crenças, máximas e hipóteses —
é, em suma, o estudo da estrutura conceituai em que são
feitas todas as nossas proposições, verdadeiras ou falsas.
Lida fundamentalmente com significados — com o sentido
do que dizemos. Se os termos de nosso discurso foram
incompatíveis ou confusos, toda a especulação intelectual
a que pertencem fica invalidada, e neste caso nossas su­
postas crenças não são falsas, mas sim espúrias.
O indício comum de confusão em nossas idéias bási­
cas referentes a qualquer tópico é a persistência de doutri­
nas rivais, todas muitas vezes refutadas, porém ainda não
abandonadas. Num sistema de pensamento que é fundamen­
talmente claro, mesmo que não o seja inteiramente, as no­
vas teorias geralmente tornam obsoletas as antigas. Num
campo onde os conceitos básicos não são claros, enfoques
e terminologias conflitantes continuam, lado a lado, a recru­
tar adesões.
Este é notoriamente o caso no campo da crítica de arte.
Todo juízo cuidadosamente elaborado baseia-se, evidente-
4 SENTIMENTO E FORMA

mente, em algum tipo de base teórica, porém os maiores


conhecedores deste campo na verdade não conseguem de­
senvolver uma teoria interessante que preste contas de suas
descobertas. As reflexões filosóficas sobre a arte consti­
tuem uma literatura vasta e fascinante que abrange desde
tratados eruditos até as belas-letras em seu estado mais puro
— ensaios, aforismos, memórias, até mesmo poesia. Assen­
tou-se, neste saber acumulado, uma profusão de doutrinas,
constituindo algumas o melhor de uma longa tradição, en­
quanto outras, insights (introvisões) geniais, são bem no­
vas, assistemáticas porém profundas, todas numa exuberân­
cia confusa que obscurece as conexões naturais de uma com
as outras, com a história e com a vida real das artes criativas.
As próprias artes, entretanto, demonstram uma unidade
e uma lógica notáveis, e parecem apresentar um bom cam­
po para o pensamento sistemático. Por que a confusão? Por
que as teorias desconexas, o perigo constantemente alega­
do de perder-se contatos com a realidade, os numerosos pri­
meiros passos filosóficos que ainda deixam de tornar-se estru­
turas intelectuais orgânicas? Uma teoria da arte verdadeira­
mente esclarecedora deveria erigir-se a partir de importantes
introvisões artísticas e desenvolver-se de modo natural por
etapas, tal como os grandes edifícios do pensamento — mate­
mática, lógica, ciência, teologia, direito, história — evoluem
de raízes perenes até níveis cada vez mais elevados de suas
próprias implicações. Por que não há uma teoria sistemática
similar para a arte?
Penso que a explicação para isso está em que os pon­
tos centrais na apreciação e compreensão da arte, por mais
claros que possam ser na prática, não foram filosoficamente
analisados e reconhecidos como aquilo que eles realmente
são. Uma disciplina sistemática torna-se organizada apenas
à medida que seus problemas-chave são formulados, e fre-
qüentemente esses problemas, cuja solução iria requerer e
gerar uma terminologia eficiente e um princípio operacional,
são obscurecidos pela ocorrência de perguntas óbvias, colo­
cadas imediatamente pelo bom senso e consideradas “bási­
cas” por serem óbvias. Tais perguntas são: Quais são os
materiais da arte? O que é mais importante, forma ou con­
teúdo? O que é o Belo? Quais são os cânones de composição?
Como uma grande obra de arte afeta o contemplador? Muitas
delas têm sido debatidas por centenas de anos, mas no mo­
mento em que chegamos a uma conclusão quanto às respos­
tas, a teoria não avança mais. Adotamos uma posição e
detemo-nos nela.
A MEDIDA DAS IDÉIAS 5

Todas essas perguntas são bastante legítimas, e o pro­


pósito de uma filosofia da arte é respondê-las. Mas como
pontos de partida de uma teoria elas são nocivas, porque
são produtos do “bom senso” e conseqüentemente impingem
oni nosso pensamento o vocabulário e toda a estrutura con­
ceituai do bom senso. E com esse instrumental não pode­
mos pensar além do lugar-comum.
Há certos mal-entendidos a respeito do pensamento
filosófico que se originaram, bastante estranhamente, da
própria preocupação de filósofos modernos com o método,
da aceitação de princípios e ideais que soam impecáveis
quando os aprovamos em conferências e simpósios. Um
desses princípios é que a filosofia trata de noções gerais.
Essa máxima é repetida quase que em todos os textos intro­
dutórios, e proclamada em relação a uma ou outra coisa em
todo congresso filosófico. A ênfase é sempre sobre as “no­
ções gerais” ; porém o interessante é que confessamos lidar
com elas, e que esse trato é filosofia.
O efeito imediato desse princípio é fazer com que as
pessoas iniciem suas pesquisas com a atenção voltada para
as generalidades: belo, valor, cultura, e assim por diante.
Tais conceitos, entretanto, não têm nenhuma virtude siste­
mática; não são termos descritivos, como o são os con­
ceitos científicos, por exemplo os de massa, tempo, situação,
ctc. Não têm unidade e não podem ser combinados em
proporções definidas. São “qualidades abstratas” tal como
os conceitos elementares da filosofia grega da natureza —
umidade e secura, calor e frio, leveza e peso. E, assim como
nenhuma física jamais resultou da classificação das coisas
de acordo com tais atributos, da mesma forma nenhuma
teoria da arte emerge da contemplação de “valores estéticos” .
O desejo de tratar com idéias gerais desde o início, por
supor-se que esse seja o trabalho dos filósofos, leva-nos ao
que pode ser chamado de “a falácia da abstração óbvia” : a
abstração e esquematização das propriedades mais óbvias ao
bom senso, tradicionalmente reconhecidas e incorporadas no
“modo material” da linguagem.
Em vez de reiterar constantemente que a filosofia lida
com idéias gerais, ou com “coisas em geral”, deve-se consi­
derar o que ela faz em relação às noções gerais. Penso que
ela, propriamente, as constrói. A partir do quê? A partir das
noções mais específicas que usamos ao formular nosso conhe­
cimento especial e particularizado — o conhecimento prá­
tico, científico, social ou puramente sensível. Seu trabalho
é um constante processo de generalização. Esse processo
6 SENTIMENTO E FORMA

requer uma técnica lógica, imaginação e engenhosidade; não


é alcançado se se principia com generalidades do tipo: “Arte
é expressão” ou “Beleza é harmonia” . Proposições desta
espécie deveríam ocorrer ao final de uma indagação filo­
sófica, não em seu ponto de partida. Ao final da indagação,
elas são sumários de idéias explícitas e organizadas que lhes
atribui um significado, porém como ponto de partida pre-
julgam demasiado e não fornecem termos para sua própria
elucidação.
Outro produto infeliz de nossa autocrítica profissio­
nal é o dogma de que a filosofia, na verdade, nunca pode
alcançar sua meta, uma visão completamente sintética
da vida. Pode apenas aproximar-se de seu objetivo. Ora,
mesmo que haja um limite ideal para nossa compreensão
progressiva (o que pode ser posto em dúvida, pois um
insight sinótico desse tipo cheira a uma “totalidade ilegíti­
ma” ), tal limite não proporciona nenhuma medida de reali­
zação efetiva. Pelo contrário: quando todos estão devida­
mente impressionados com a impossibilidade de realmente
estar à altura de um desafio, pode-se exigir indulgência em
demasia; todo fracasso pode ser desculpado como sendo
“mera aproximação” . Em conseqiiência disto, hoje pratica­
mente não há um padrão de trabalho filosófico. As publi­
cações profissionais estão cheias de argumentos ultrapassados
que não fazem progredir seus tópicos de modo nenhum, e
os congressos deixam suas profundas sugestões tão irrespon-
didas e irrespondíveis como antes. A espécie de esforço e
engenhosidade utilizados na solução de problemas científicos
ou históricos analisariam e eliminariam de imediato as dú­
vidas, substituindo-as por outras mais importantes e suges­
tivas e a seguir inventando meios de encontrarem-se respos­
tas reais. Quando há recompensas para respostas definitivas,
as pessoas gastam uma boa parcela de tempo e trabalho na
procura dc artifícios intelectuais para a manipulação de ques­
tões difíceis. Os cientistas raramente falam sobre o método
científico, mas freqüentemente encontram os mais elabora­
dos c tortuosos modos de revirar uma questão a fim de tor­
ná-la acessível a algum método de investigação que possibili­
tará uma solução. É o problema que orienta a abordagem.
Por outro lado, os filósofos normalmente decidem sobre uma
abordagem dos problemas filosóficos em geral e a seguir en-
trcgam-sc ás questões seculares — tão tradicionalmente mas­
tigadas que já têm nomes com maiúsculas: o Problema do
Scr, o Problemu do Mal, ctc. — tal como foram formuladas
por Platílo ou por seu mestre, Parmênides.
A MEDIDA DAS IDÉIAS 7

Não obstante, a filosofia é uma especulação ativa, e as


questões filosóficas não são, por sua própria natureza, inso­
lúveis. Na verdade, são radicalmente diferentes das ques­
tões científicas, porque dizem respeito às implicações e outras
inter-relações de idéias, e não à ordem dos eventos físicos;
suas respostas são mais interpretações do que relatórios
fatuais, e sua função não é aumentar nosso conhecimento
da natureza, mas sim nossa compreensão daquilo que sabe­
mos. Na verdade, o desenvolvimento da conceituação, que
é a meta da filosofia, tem uma influência direta sobre nossa
capacidade de observação dos fatos, uma vez que é a concei­
tuação sistemática que toma alguns fatos importantes e
outros triviais. Lineu, pioneiro nas ciências naturais com
suas abstrações qualitativas óbvias, classificou as plantas de
acordo com as cores de suas flores; uma conceituação mor-
fológica da botânica, que relaciona toda e qualquer parte
de uma planta ao organismo inteiro e que, mais, combina a
vida vegetal com a vida animal num esquema biológico, faz
com que a cor das flores seja um fator sem importância.
Há uma filosofia da natureza, gradualmente desenvolvi­
da por homens como o Poincaré, Russell, Lenzen, Weyl, que
é subjacente a nossas ciências naturais; e ainda que possa
estar muito aquém do ideal “sinótico”, um trabalho filosófico
como, por exemplo, o que Whitehead efetuou no campo, es­
clarece nossos conceitos de ordem física, de existência orgâni­
ca, de mentalidade e conhecimento. De forma semelhante,
a filosofia da matemática fez dessa antiga disciplina um
paradigma de clareza intelectual e de operacionalidade. Os
pensadores que construíram esses sistemas conceituais dei­
xaram de lado todas as doutrinas rivais do Ser, Valor e Mente,
e partiram de problemas bem especiais — o significado de
“simultaneidade” em observações astronômicas, ou o signifi­
cado de (-2)* na série dos números, ou de “ponto sem di­
mensão” em mensuração física. Observe-se que estas são
todas questões filosóficas — todos, problemas de significa­
do; mas, por serem questões especiais, os significados a se­
rem interpretados devem satisfazer exigências definidas e
bastante complexas. A definição de “simultaneidade” cós­
mica, por exemplo, precisou de uma completa reconstrução
das noções de espaço e tempo. A interpretação de (- 2)- exi­
giu uma teoria de séries matemáticas para justificar o uso
muito conveniente desse enigmático símbolo. O conceito de
ponto sem dimensão, ou pura locação, levou à teoria
de Whitehead sobre a “abstração extensiva” — uma noção
filosófica muito importante.
8 SENTIMENTO E FORMA

Geralmente, tais idéias acabam por demonstrar que


têm uma aplicação tanto geral como particular — ou seja,
descobre-se que são capazes de generalização, uma vez que
tenham sido formuladas em pormenor para seus propósitos
especiais. A colocação dessas idéias em sua forma especial
implica muitas outras proposições colocáveis nos mesmos
termos, e sugere ulteriores definições. E, à medida que se
desenvolve a análise filosófica dos conceitos básicos, o assun­
to torna-se mais e mais sistemático; a partir do foco
central dos problemas reais que se esclareceram, formas simi­
lares apresentam-se em todas as direções até que possa
resultar toda uma cosmologia, ontologia ou epistemologia.
Uma tal filosofia é elaborada através do princípio da genera­
lização. Perfaz um todo único, e no entanto não pode ser re­
sumida na afirmação de uma única crença e escolhida ou re­
jeitada como sendo “isto-ou-aquilo-ismo” ; tampouco pode ser
simplesmente “aplicada” na interpretação da experiência co­
mo um todo. Os princípios da construção lógica habilitam-nos
a lidar eficientemente com a experiência, mas não nos ofere­
cem construções já prontas.
Evidentemente, “o método científico em filosofia” tem
sido discutido desde que Bertrand RusselI, quando jovem,
lançou seu vigoroso ataque contra a metafísica tradicional.
No entanto, método científico não é a mesma coisa que mé­
todo filosófico. Hipóteses e experimentos não ocupam lugar
de honra na filosofia, como o fazem na ciência; os fatos e
as conexões entre os fatos são, para a filosofia, pontos de
partida, ao invés de descobertas. As descobertas são idéias —
o significado do que dizemos, não apenas sobre os fatos
naturais, mas sobre todos os assuntos de interesse humano,
sejam quais forem: arte, religião, razão, o absurdo, liberdade
ou o cálculo. Somente uma estrutura de ulteriores signifi­
cados atribui um valor real a tais palavras gerais.
A elaboração de uma teoria — “a arquitetura de idéias”,
no dizer de Charles Peirce — envolve mais considerações
lógicas do que as pessoas geralmente percebem quando dis­
cutem metodologia. Não basta examinar o campo de estudo,
dividi-lo no que parecem ser seus elementos constituintes
mais simples e descrevê-lo como um padrão destes “dados”.
Tal padnio é ordenado como um índice alfabético den-
Iro do qual tudo o que é conhecido pode ser localizado, mas
nllo fornece pistas para coisas desconhecidas. Para cons­
truir uma teoria, devemos começar com proposições que
tenham implicações; o pensamento teórico é a ampliação das
couNO(|(lêuclas destas implicações. Portanto, nem toda afir-
A MEDIDA DAS IDÉIAS 9

raação verdadeira sobre a ciência, arte, vida ou moral é uma


“abordagem” do estudo sistemático do tópico em questão;
a afirmação deve conter idéias que possam ser manipuladas,
definidas, modificadas e usadas em combinações; deve ser
tão interessante quanto verdadeira. Esta exigência lógica
pode ser chamada de princípio de fecundidade.
Considere-se, como um bom exemplo de pensamento
construtivo, a reinterpretação dos fatos físicos que Newton
propôs ém seus Principia matkematica sob a designação abso­
lutamente correta de “filosofia natural” . A lenda diz que o
primeiro fato que ele descreveu em termos novos foi a queda
de uma maçã. A queda de uma maçã na terra sempre foi
um fato comum, mas o fato de a maçã ser atraída pela Terra
expressa uma grande idéia. O que a toma grande, em pri­
meiro lugar, é que ela é passível de generalização. Está
claro que podemos também generalizar a “queda” da maçã
e dizer: “todas as coisas tendem a cair para a Terra”,
mas esta regra tem exceções. A lua não cai, nem as nuvens.
Mas “Todas as massas atraem-se” não tem exceções. “A
maçã é atraída pela Terra” serve tanto para descrever com
precisão a mesma observação como a frase “a maçã cai”,
porém é verdadeira mesmo quando a maçã fica pendurada,
e continua a sê-lo quando a maçã está apodrecendo no
chão. Pode-se dizer também a mesma coisa da lua, embora a
lua nunca “caia” (ou seja, nunca chega à Terra) e das
nuvens que flutuam indefinidamente, e até mesmo do sol.
A segunda característica que valoriza a interpretação
de Newton é sua fecundidade, pois o conceito de “atração”
requer um elemento dinâmico que esteve ausente de toda a
física matemática anterior. Todos os sistemas puramente
geométricos exigiam a suposição de algum agente especial,
fora do mundo, que a este fornecesse seu movimento. Mas
a atração era uma força e, portanto, uma fonte de movimen­
to dentro do sistema físico. Além do mais, ela podia ser
medida, e sua medida provou ser proporcional às condições
mais familiares de massa e distância. Quase que no mesmo
momento em que “a nova filosofia natural” foi proposta,
deu ela origem a uma ciência da física.
A crítica de arte não é ciência, porque não está preo­
cupada com a descrição e previsão de fatos. Mesmo que
suas premissas fossem claras e coerentes, e eficientes os
seus termos, ela permanecería uma disciplina filosófica, pois
todo seu objetivo é a compreensão. Mas os princípios de
generalização e fecundidade não são, essencialmente, princí­
pios da ciência; são princípios do pensamento filosófico, e é
10 SENTIMENTO E FORMA

apenas na medida em que a ciência é uma formulação intelec­


tual que ela os compartilha. Talvez seja por isso que os
defensores do “método científico” para a filosofia negligen­
ciaram amplamente esses princípios. Só onde foi feito um
verdadeiro trabalho filosófico — por exemplo, ao estabele­
cerem-se as bases da ciência, jurisprudência e teologia
medievais — é que tais princípios receberam uma aceitação
tácita.
É especialmente nos domínios indefinidos e assistemáti-
cos do pensamento que um único problema, cuja solução é
perseguida obstinadamente, pode trazer à tona um novo voca­
bulário lógico, isto é, um novo conjunto de idéias que vai
além do problema em si e que força uma concepção mais
operacional de todo o campo. Levar tal problema para o
foco de nosso interesse é começar um trabalho sério com o
assunto em questão. Ê isso que me proponho fazer com a
filosofia da arte. Parece-me que, dentre todas as especulações
dos estetas e as conversas de estúdio dos artistas, não devi­
damente refletidas porém significativas, um ponto crucial
nunca chega a ser encarado de frente, sendo sempre rodea­
do com uma espécie de reverência intelectual ou tratado
emocionalmente sem que se faça nenhuma exigência quanto
à questão do significado: é o problema da criação ar­
tística. A obra de um artista é realmente um processo de
criação? O que, na verdade, é criado? Haverá uma justifica­
tiva para o conceito bastante popular de que se deve falar,
antes, em re-criação do que na criação de coisas na arte?
Ou será sentimentalismo toda a idéia de “trabalho criativo”?
Todas essas perguntas, e várias outras, apresentam
aspectos distintos de um mesmo problema. A solução desse
problema responde-as a todas com igual exatidão. Mas ela
ela requer uma certa reorientação entre as idéias familiares
da filosofia e da crítica de arte. Essa solução exige um tra­
tamento mais rígido do termo “expressão”, e dá um senti­
do único e não misterioso à “intuição” . Acima de tudo,
tal solução acarreta uma formulação especial de quase todos
os grandes problemas relativos à arte, notadamente aquele
sobre a unidade das várias artes, face ao fato freqüentemente
negado, mas patente, de sua divisão real; o do paradoxo da
abstração numa moda supostamente caracterizada pela con-
crctudc; o da significação do estilo, o do poder da técnica.
Uma vez respondida a pergunta: “O que a arte cria?”, todas
as perguntas posteriores de por que e como, de personalida­
de, talento c gênio, etc., parecem emergir da tese central sob
uma nova luz. Isso quer dizer, simplesmente, que a tese é
A MEDIDA DAS IDÉIAS II

central, e que o problema que a originou é fecundo e, em


última análise, geral.
À medida que o assunto se organiza, as idéias que
foram aventadas no passado assumem uma nova significação,
e descobre-se que neste campo já foi feito um número sur­
preendente de bons trabalhos. A literatura da teoria da
arte, que parece tão incoerente e tão atravancada com “abor­
dagens” infelizes, na verdade é rica em pensamentos vitais
e descobertas valiosas, eruditas.
Não é preciso começar com uma tabula rasa e traba­
lhar desafiando escolas; as sementes da teoria filosófica, e
muitas vezes suas raízes substanciais, estão por toda parte.
De uma certa forma, isso complica o trabalho: as literatu­
ras combinadas de todas as artes, bem como uma grande
parcela da filosofia e psicologia, formam um pano de fundo
intelectual tão vasto, e as contribuições importantes ao
conhecimento acham-se tão profundamente enterradas, que
uma verdadeira erudição num domínio tão amplo e fértil as­
sim é humanamente inatingível. Os primeiros passos de qual­
quer nova teoria que se proponha iniciar pela própria arte,
onde “arte” compreende música, literatura e dança, bem
como a expressão plástica, são inevitavelmente débeis e
casuais. Mas uma filosofia não é feita por uma única pessoa;
o corpo total de uma disciplina não pode estar contido nos
horizontes de pessoa alguma individualmente considerada.
Só se pode reunir dados suficientes para cada propósito ime­
diato — no caso presente — para substanciar o tratamento de
um assunto altamente importante, porém especial, que é
o problema da criação arística. Se esse tratamento real­
mente possibilitar uma visão da teoria da arte em geral,
a literatura anterior a nós (conhecida ou não por qualquer
pensador em especial) e as questões ainda à nossa frente
devem assumir, nessa perspectiva, suas formas e lugares ade­
quados, onde quer que as encontremos no desenvolvimento
do pensamento filosófico.
2. Paradoxos

Nos últimos duzentos anos — isto é, desde os dias de


Winckelmann e Herder — os filósofos têm continuamente
ponderado sobre a significação e motivação das artes. O
problema da arte tem até sido honrado como um departa­
mento especial da filosofia sob o nome de “estética”, defi­
nida de várias formas como “a ciência do belo”, “a teoria
ou filosofia do gosto”, “a ciência das belas-artes”, ou, ulti­
mamente, (na frase de Croce) “a ciência da expressão” .
Todas essas definições abordam o problema de maneira
mais ou menos torta. Um interesse filosófico num deter­
minado assunto, tal como gosto, ou belo, ou mesmo o
grande tópico da “expressão”, não funda uma ciência; se
“o belo” é o campo da estética, esse campo é mais amplo
do que o das belas-artes; da mesma forma é o âmbito da
“expressão” . Gosto, por outro lado, é apenas um dos fe­
nômenos relacionados ao belo (tanto na arte quanto em
outros setores) e ele está relacionado não menos ao
decoro e à moda. Talvez seja melhor não mapear antecipa­
damente um continente desconhecido, mas simplesmente es­
tudar sejam quais forem os problemas filosóficos apresenta­
dos pelas artes e confiar em que qualquer análise cuidadosa
e manipulação construtiva de até mesmo questões bem espe­
ciais (por exemplo, “O que é expresso na arquitetura?”,
“O desempenho musical é um ato criativo?” ou “O gosto está
14 SENTIMENTO E FORMA

relacionado com o talento?” ) mostrará logo suas inter-rela-


ções e definirá o campo geral de sua relevância.
Enquanto isso, mesmo nos confins vagos e arbitrários
de uma pseudociência, tem sido feito uma grande quantida­
de de reflexões, ora em íntima conexão com a filosofia em
geral, ora como uma incursão teórica a partir da crítica. No
curso dessa séria reflexão sobre as artes, emergiram certas
idéias dominantes que se constituem numa espécie de voca­
bulário intelectual da estética contemporânea. Elas estão
todas relacionadas, ao menos indiretamente, umas com as
outras, porém os relacionamentos não são nada claros e
simples e são, efetivamente, muitas vezes antinômicos. Algu­
mas das próprias idéias dominantes parecem acarretar difi­
culdades lógicas.
Em linhas gerais, essas idéias, que ocorrem repetidas
vezes sob diversas formas e combinações, são: Gosto, Emo­
ção, Forma, Representação, Imediatidade e Ilusão1. Ca­
da uma delas é um forte Leitmotiv na filosofia da arte, po­
rém as teorias nelas baseadas, respectivamente, têm uma
maneira peculiar de ou entrar abertamente em choque umas
com as outras ou deixar ao menos um tópico completamente
fora de consideração. Assim, as teorias da arte como satisfa­
ção sensual, isto é, apelo ao gosto, precisam negociar mui
cuidadosamente com a emoção e traçar estritamente os
limites da representação. As numerosas teorias com base na
emoção só podem fazer do gosto e, o que é pior, da forma,
um tópico de pouca importância. Aquelas que dão suprema­
cia à forma em geral vetam qualquer apelo à emoção e, fre-
qüentemente, consideram a representação um anátema ao
invés de uma vantagem; aquelas que se baseiam
principalmente no conceito de representação dão-se bem
com a ilusão, e até com a emoção, mas não podem tratar
da forma como um valor independente e reduzem a função
do gosto a um mero ofício de censura. A imediatidade,
quu é uma virtude metafísica da realidade pura, ou da indi­
vidualidade concreta, acarreta a idéia de intuição como uma
percepção direta de tudo o que há para conhecer sobre uma
obra dc arte. Encaixa-se bem nas teorias do gosto, e é ao
menos compatível com a maioria das teorias baseadas na
emoção c com os tratamentos mais sutis da representação;
iiiiin uno, como sc supõe comumente, com a noção de arte
em|uauio forma. £ impossível de estabelecer logicamente

I mmHjiinr antologia do estótlca fornecerá exemplo: A Modern


Ihmk o/ AflHthvttoM, do Molvln Roder, por exemplo, classifica as teorias
miiiio "Ttniiliw IflmonloiiulH”, “Teorias da Forma”, etc.
PARADOXOS 15

a unicidade de uma forma. Nenhuma forma é necessaria­


mente única e, à falta disso, o caráter de unicidade não po­
dería servir para conferir-lhe um status metafísico. Quanto
ao motivo da ilusão, geralmente está unido a seu oposto,
a realidade, e serve mais para levantar dificuldades do que
para resolvê-las. Freqüentemente essa é a bête noire a ser
explicada e afastada do caminho.
A desordem geral de nossos recursos intelectuais no
campo da estética agrava-se ainda mais pelo fato de haver
duas perspectivas opostas a partir das quais toda obra de arte
deve ser vista: a do autor e a dos espectadores (ou ouvintes,
ou leitores, conforme o caso ). Uma perspectiva apresenta-a
como uma expressão, a outra como uma impressão. Par­
tindo do primeiro ponto de vista, pergunta-se naturalmen­
te: “O que induz um artista a compor seu trabalho, o que
faz parte deste, o que o artista quer dizer (se quiser dizer
algo) com ele?” Partindo do segundo, por outro lado, a per­
gunta imediata é: “O que fazem, ou significam, as obras de
arte em relação a nós?” Esta pergunta é a mais usual, mesmo
no pensamento teórico sério, porque mais pessoas são mais
espectadoras do que fautoras de arte, e isso aplica-se
a filósofos, bem como a qualquer público não selecionado.
A maioria dos estetas pode tratar com mais autoridade o
problema da impressão artística do que a questão da expres­
são; quando falam a respeito de estado de espírito e inspira­
ções de artistas, ou tecem especulações quanto às fontes e mo­
tivos de qualquer obra determinada, abandonam o caminho
estreito e reto da consciência intelectual e freqüentemente
deixam à solta uma fantasia bastante irresponsável.
Porém as teorias da expressão, embora mais difíceis de
serem manipuladas por um leigo nas artes, são mais férteis
do que os estudos analíticos da impressão. Exatamente da
mesma forma que a mais interessante filosofia da ciência
foi elaborada a fim de ir ao encontro dos problemas lógicos
do laboratório, assim os tópicos mais vitais da filosofias
da arte surgem do estúdio.
As idéias dominantes ocorrem nos dois tipos de teoria,
mas parecem diferentes quando encaradas de tais pontos de
vista diversos. Essa circunstância soma-se à aparente confu­
são das noções estéticas. Aquilo que, na perspectiva impres­
sionista, figura como gosto, isto é, como uma reação agra­
dável ou desagradável à estimulação sensorial, aparece, “do
ângulo oposto”, como o princípio de seleção, o chamado
“ideal de beleza” que supostamente guia um artista em sua es­
16 SENTIMENTO E FORMA

colha de cores, tons, palavras, etc. A emoção tanto pode ser


considerada como o efeito de uma obra no espectador, como
a fonte da qual surgiu a concepção do seu autor, e as teorias
resultantes parecerão tratar de todo o assunto da emoção de
maneira inteiramente diferente (uma tenderá para o tipo
de psicologia de laboratório que procura princípios estéticos
nas reações tabuladas de crianças de escola, pais, estudantes
universitários ou audiências de rádio; a outra, para um
estudo psicanalítico dos artistas). A contemplação da for­
ma do ponto de vista da impressão fornece noções como Lei
Universal, Simetria Dinâmica, Forma Significante; do ponto
de vista da expressão, ela nos envolve nos problemas da
abstração. A representação pode ser considerada como Pla­
tão e Aristóteles a consideraram — isto é, como a função
social da pintura ou estátua, poema ou teatro — a função
de dirigir a mente de quem percebe para algo além da obra
de arte, a saber, o objeto ou ação representado: óu pode ser
considerada como o motivo que o artista tem para criar a
obra — um registro de coisas que o fascinam, pessoas ou coi­
sas que ele deseja imortalizar. Ele pode pintar sua amante,
sua lembrança do Taiti ou, mais sutilmente, seu estado de
espírito. Mas, para o espectador a pintura fornece uma
mulher, um aspecto dos Mares do Sul ou um símbolo da
libido. De forma semelhante, o problema da ilusão é tratado
do ponto de vista do crítico como uma exigência feita à nos­
sa credulidade, nossa disposição em “fazer de conta” ; do
ponto de vista do estúdio, é tratado como um jogo, “fuga”,
ou sonho do artista.
Esse inventário não é de forma alguma exaustivo quan­
to â riqueza de idéias a serem encontradas na estética con­
temporânea. Mas mesmo um apanhado tão ligeiro
díi-nos uma idéia da emaranhada profusão e da incomensu-
Nihilidndc geral dos conceitos proeminentes uns em relação
ims outros. Um esteta fala em termos de “Forma Significan-
h,M r outro, em termos de sonho. Um diz que a função
•In hi te r registrar a cena contemporânea, e outro sustenta
i|ii*' mium hiiiun cm “certas combinações”, ou cores em dis-
IimnIçNii i'N|uiilnl harmoniosa, dão-lhe a “emoção estética”,
ijin tf lauto o objetivo como o critério da arte. Um artista
iilHgii iiliiliii nimin Nonllmcntos pessoais, e o seguinte, expressar
1 1*1ihiile plhigoiluiN Nobre o universo astronômico.
Miin i'mii prnillm InelevAncia mútua das noções princi-
ptilN mhi tf u niiIiii iihpivlo clcseoncerlantc da atual teoria da
niIm, iiiiiii illtii ulilmle imiU inillenl ó a tendência que aquelas
Itfiu pum o pimuloiio A miiloiia das idéias dominantes,
PARADOXOS 17

mesmo tomadas isoladamente, trazem consigo algum perigo


de auto-anulação. No momento em que as desenvolvemos,
vemo-nos às voltas com conceitos dialéticos. Temos a Forma
Significante à qual não se deve, a nenhum preço, permitir que
signifique nada — ilusão, que é a mais elevada verdade —■
espontaneidade disciplinada — estruturas ideais concretas,
— sentimentos impessoais, “prazer objetivado” — e o sonho
público.
Essas extravagâncias não devem simplesmente ser
postas de lado como autocontraditórias2. Há uma
diferença entre a mera inconsistência e o paradoxo. Idéias
inconsistentes geralmente desaparecem de circulação tão logo
seus defeitos fatais são revelados e, se querem estar à altu­
ra das exigências, ainda que seja por pouco tempo, seus defei­
tos devem ser escondidos de alguma forma. Um termo absur­
do ou proposição autocontraditória que continua a funcio­
nar no pensamento sério, sistemático, embora seja patente
o escândalo lógico, é paradoxal. As idéias inconsistentes
nele envolvidas entram em conflito entre si porque na ver­
dade sofrem uma distorção. Formuladas adequadamente,
elas não seriam mutuamente contraditórias. São mal-entendi­
das e, consequentemente, sua união é mal-entendida, mas
ela é motivada por uma sensação sólida de sua importância
e conexão lógica. A palavra “paradoxo” evidencia essa con­
dição peculiar; ambos os elementos contraditórios são “dou­
trinas”, isto é, são realmente aceitos e a conjunção deles é
admitida, embora não seja compreendida.
Onde quer que o “lodo rico das vagas concepções”, que
é o lugar de desova da razão humana, forneça um paradoxo
genuíno, tal como “verdade fictícia” ou “símbolos auto-
representativos” ou “sentimentos impessoais”, deparamo-
nos com um desafio filosófico direto. O paradoxo é um sin­
toma de concepções erradas; e concepções coerentes, siste­
máticas, isto é, o processo de extrair um sentido da experiên­
cia é filosofia. Portanto, uma idéia paradoxal não é para
ser descartada, mas sim resolvida. Onde ambos os elemen­
tos de óbvia antinomia mantêm sua aparência de verdade,
sua virtude pragmática, e ambos podem alegar originar-se
de certas premissas aceitas, a causa do conflito provavel­
mente está naquelas próprias premissas. É o pecado original.
As premissas, por sua vez, freqüentemente são pressuposi­
ções tácitas, de maneira que o desafio real feito ao filósofo é

2. Ainda menos como impostura ou pomposa bobagem» tal como


Ducasse imputou a Cllve Bell» numa tirada veemente» para nfio
dizer vitriólica, contra a noçfio de “Forma Significante'* (Apêndice a
The Phllosophy of A r t).
18 SENTIMENTO E FORMA

expor, analisar e corrigir a elas. Se tiver êxito, se descobrirá


estar implícito um novo esquema das idéias dominantes sem
os conceitos paradoxais da antiga perspectiva.
Mas um tal procedimento filosófico é muito radical.
Geralmente, portanto, faz-se uma primeira tentativa de recon­
ciliar as idéias opostas, tratando-as como “princípios” no
sentido clássico, características antitéticas que podem ser
possuídas em proporções variáveis, pólos opostos cora um
ponto de equilíbrio perfeito entre eles. Esse esquema está
tão bem estabelecido no pensamento filosófico — remon­
tando, como remonta, pelo menos, até Empédocles — que
mesmo um leigo não tem dificuldades com ele. É o esquema
da ciência antiga e medieval: esta e aquela medida do prin­
cípio de calor com esta e aquela medida do princípio
de frio realiza uma temperatura dada, este e aquele tanto
de movimento e este e aquele tanto de repouso fornecem
uma velocidade particular, etc. Calor e frio, movimento e
repouso, ação e paixão, vida e morte são extremos que se
contrabalançam mutuamente em sejam quais forem os fenô­
menos que governam, mas sempre numa proporção caracte­
rística.
O uso mais célebre dessa polaridade de “princípios”
opostos é a graduação feita por Nietzsche de todas as obras
de arte entre os extremos do puro sentimento e da pura for­
ma, e a sua classificação em dionisíacas ou apolíneas se­
gundo a preponderância de um ou outro princípio. Efetiva­
mente, esse tratamento de uma antítese básica na teoria da
arte absorveu toda uma classe de “polaridades” relacionadas:
emoção-razão, liberdade-restrição, personalidade-tradição,
instinto-intelecto, e assim por diante. O “grande ritmo”, de
Curt Sachs, entre os pólos do ethos e do pathos é a mesma
espécie de ajustamento às oposições familiares na teoria da
arte.
Mas não se remedia o caráter paradoxal da estética lan­
çando-se mão da “polaridade” . A polaridade de sentimento
e forma é, em si mesma, um problema; pois a relação dos
dois “pólos” não é realmente uma relação “polar”, isto é,
uma relação de positivo e negativo, uma vez que sentimento
e forma não são complementos lógicos. Eles estão simples­
mente associados, respectivamente, com as negativas um
do outro. O sentimento está associado com a espontaneida­
de, a espontaneidade com a informalidade ou a indiferença
à forma, e, assim, (por raciocínio desmazelado) com
a ausência de forma. Por outro lado, a forma conota
formalidade, regras, portanto repressão do sentimento e
PARADOXOS 19

(através do mesmo desmazelamento) ausência de sentimento.


A concepção de polaridade, embora possa ser fascinante, na
verdade é uma metáfora infeliz pela qual uma confusão ló­
gica é elevada à dignidade de um princípio fundamental.
É claro que a alteração das fases de ethos e pathos
na história da arte é um fato observável, e deve ter algum
significado; mas tratá-la como a revelação de um “princí­
pio” dualístico (no sentido medieval) e achar que ela explica
a natureza da arte não é resolver um paradoxo, e sim
aceitá-lo como fundamental3. Por meio disso, toma-se uma
posição filosófica final exatamente onde a indagação filo­
sófica deve começar.
Além do mais, a antiga divisão entre as duas perspec­
tivas, a do artista e a do espectador — arte como expressão
contra arte como impressão — não é superada pela aceita­
ção de uma eterna luta pela supremacia entre os “pólos” opos­
tos, a forma prescrita e o conteúdo emocional. Até mesmo
um “campo de força” espiritual parece diferente, de acordo
com os dois diferentes pontos de vista. Para o artista, que
supostamente deve expressar-se face aos ditames técnicos
e tabus, as forças em combate são suas emoções contra os
cânones da inteligibilidade, composição e perfeição de for­
mas. Para o crítico, que deve encontrar beleza sensual nas
formas, olhá-las a uma “distância psíquica” adequada e com
equilíbrio mental enquanto é por elas excitado na direção
de sentimentos empáticos, os “pólos” são a qualidade estética
versus o estímulo emocional.
Em termos práticos, as próprias duas perspectivas alter­
nativas oferecem-nos uma difícil opção. Devemos julgar uma
obra de arte como uma forma de expressão, dando vazão aos
sentimentos de seu autor, ou como um estímulo, produzin­
do sentimentos no espectador? É óbvio que qualquer objeto
de arte pode ser ambas as coisas; mas ele pode ser perfeita-
mente adequado enquanto expressão e não o ser enquanto
incentivo à emoção ou, ao contrário, pode deixar o artista
ainda frustado, porém produzir reações das mais fortes nos
espectadores. Se a auto-expressão for o objetivo da arte,
então apenas o próprio artista pode julgar o valor de seus

3. Sachs considera o paralelismo das flutuações ethos-pathos nas


várias artes como uma prova de que todas as artes são uma só. A lógica
dessa “prova” é obscura, uma vez que qualquer influência externa pode
causar uma flutuação, sempre simultaneamente, em campos bem dis­
tintos; efetivamente, suas próprias observações posteriores de que as
modas na vestimenta, maneiras e costumes seguem o mesmo padrão
rítmico, fazem com que seu principio não prove nada ou prove demais
— a saber, que tais fenômenos também são “Arte1 e que na verdade
não se pode dlstlngul-los da pintura, música ou literatura.
20 SENTIMENTO E FORMA

produtos. Se o propósito dela for excitar a emoção, ele


deve estudar seu público e deixar que suas descobertas psi­
cológicas guiem seu trabalho, como o fazem os propagandis-
tas.
Ambas as hipóteses soam pouco ortodoxas, para dizer o
mínimo; para falar sem peias, ambas são tolas. A relação
da arte com o sentimento é evidentemente algo mais sutil
do que a pura catarse ou incitação. Com efeito, os críticos
mais experientes tendem a descontar ambos esses elemen­
tos subjetivos e a tratar do aspecto emotivo de uma obra de
arte como algo que lhe é integral, algo tão objetivo quanto
a forma física, cor, ritmo sonoro do próprio texto verbal.
Mas o sentimento que não é subjetivo apresenta um
novo paradoxo. Têm havido várias tentativas de descrever,
se não de explicar, tal fenômeno. Santayana considerava o
belo como o ‘‘prazer objetivado” — o prazer do espectador
“projetado” no objeto que o causou. Como e por que ocorre
a projeção não fica claro; não é uma imputação, pois não
imputamos prazer ao Partenon ou pensamos que o Cristo
crucificado, o Discípulo e a Mãe desfalecente embaixo da
cruz, ou a própria cruz, de Dürer, estão “tendo” nosso ale­
gado prazer na pintura. O que a pintura “tem” é beleza, que
é nosso prazer projetado, isto é, objetivado. Mas por que
não basta o prazer subjetivo? Por que o objetivamos e pro­
jetamos em formas visuais ou auditivas como “beleza”, en­
quanto nos contentamos em senti-lo diretamente, como delei­
te, cm caramelos, perfume e assentos estofados?
Uma manipulação mais radical do sentimento como algo
objetivo pode ser encontrada num pequeno artigo de Otto
Baensch, intitulado “Kunst und Gefühl”, publicado em Logos
em 1923. Ali o paradoxo dos “sentimentos objetivos” é
francamente aceito como um fato inegável, embora incom­
preensível. Através deste recurso fornecido pelo desespero,
o problema é forçado a sofrer uma crise que torna iminente
sua solução; o cenário intelectual está montado para ele,
os documentos necessários estão todos presentes. O pró­
prio Baensch aproxima-se tanto da posição lógica vantajosa
da qual o inteiro emaranhado de “expressão” artística
parece repentinamente deslindar-se e colocar-se em ordem
e, nesse processo, resolver .um número assombroso de outros
paradoxos, que a melhor introdução ao que considero
como a idéia chave (embora ele tenha deixado escapar com-
Jpletamente a solução) é, talvez, citar, algo demoradamente,
•seu pequeno e sugestivo ensaio.
PARADOXOS 21

Nas reflexões seguintes [diz ele no início] espero provar que


a anc, como a ciência, é uma atividade mental pela qual trazemos
certos aspectos do mundo para o campo da cogniçâo objetiva­
mente válida; e que, além do mais, é a função especial da arte
fazê-lo em relação aos aspectos emocionais do mundo. De acordo
com esse ponto de vista, portanto, a função da arte não é dar, a
quem percebe, alguma espécie de prazer, por mais nobre que ele
possa ser, mas dar-lhe o conhecimento de algo que não conhecia
antes. A arte, exatamente como a ciência, tem por objetivo primá­
rio ser "entendida”, ( . . . ) Mas, uma vez que aquilo de que ela nos
dá consciência é sempre de caráter emotivo, normalmente faz sur­
gir, de maneira mais ou menos imperativa, uma reação de prazer
ou desprazer no sujeito da percepção. Isso explica bem rapidamente
como surgiu a opinião errônea de que o deleite e o assentimento de
quem percebe são os critérios da arte.
O estado de espírito de uma paisagem parece-nos ser dado obje­
tivamente com ela como um de sêus atributos, pertencendo-lhe
exatamente como qualquer outro atributo que percebemos nela.
( . . . ) Jamais pensamos em considerar a paisagem como um
ser sensível cujo aspecto exterior "expressa” o estado de espírito
que contém subjetivamente. A paisagem não expressa o estado de
espírito, mas o (em; o estado de espírito a rodeia, preenche-a e pe­
netra nela, como a luz que a ilumina ou o odor que exala; o esta­
do de espírito faz parte de nossa impressão total da paisagem e pode
apenas ser distinguido como um de seus componentes através de
um processo de abstração.
Supõe-se então que aqui encontremos, como um aspecto
real do mundo, um sentimento que não está sendo sentido.
Ele não está sendo exprimido por sujeito algum; está apenas
presente objetivamente. Baensch tem na verdade tanta cons­
ciência dessa qualidade distinta que habilmente supera a
confusão através de sentimentos que são expressos sintoma­
ticamente.
O semblante e a atitude de uma pessoa triste podem "expres­
sar” tristeza, de forma que nos pareça perceber diretamente, na apa­
rência da pessoa, a mágoa que a possui intemamente; contudo, o
sentimento objetivo que pertence a uma pintura de uma pessoa
assim triste não precisa em si mesmo ser tristeza.

A pintura, por exemplo, pode ser cômica; pode ser


bem-humorada, até mesmo alegre. Portanto, ressalta o autor:
O sentimento que parece estar expresso numa pintura repre­
sentativa pode ser o mesmo que o sentimento objetivo que é ine­
rente à própria obra, mas isso não é necessário, absolutamente; de
fato, longe disso, os dois freqüentemente achar-se-ão numa relação
de acentuado contraste.
Há, então, "sentimentos objetivos” dados a . . . nossa cons­
ciência, sentimentos que existem de maneira bem objetiva e distintos
de nós, sem que sejam estados interiores de um ser animado.
Deve-se admitir que tais sentimentos objetivos não ocorrem, por si
mesmos, em um estado independente; são sempre engastados e ine­
rentes a objetos dos quais não podem, na verdade, ser separados,
22 SENTIMENTO E FORMA

mas apenas distinguidos através da abstração; sentimentos objetivos


são sempre partes dependentes de objetos.

A observação notável seguinte é a semelhança de tais


sentimentos com qualidades sensoriais, embora não tenha
um caráter sensorial.

Eles, por certo, não pertencem [diz ele] à forma do objeto,


não são relações, mas pertencem ao conteúdo. ( . . . ) Partilham
do caráter não-sensorial das formas relacionais, mas possuem tam­
bém algo em comum com o conteúdo sensorial, a saber, o fato de
que são conteúdos qualitativos temporais... cuja variedade e riqueza
prontamente se combinam com a prodigalidade do campo sensorial.

Mas é apenas até esse ponto que vão os paralelos


com os ingredientes familiares, forma e conteúdo, relações
e qualidades. Como sentimentos podem ser “inerentes”
a objetos sem vida é uma questão que constitui um desafio
ao pensamento analítico. A tentativa de explicá-la não tem
um êxito completo, porém é tão circunspecta e tão bem
dirigida que serve certamente para esclarecer a questão, se
não para decidi-la. Sempre que os sentimentos objetivos
são “inerentes” a objetos concretos, diz ele,

a maneira de sua inerência é tal que a analogia com a condição de


qualidade de sentido é rompida. Pois estas acham-se em relações
umas com as outras, são combinadas e compostas, a fim de produ-
duzir, conjuntamente, a aparência do objeto. Qualidades não-senso-
riais, por outro lado, rodeiam e permeiam toda essa estrutura em
ifluida onipresença e não se pode fazer nenhum correlacio-
namento explícito com seus elementos componentes. Eles estão
contidos nas qualidades sensoriais bem como nos aspectos formais
e, apesar de toda sua própria variedade e contrastes, fundem-se e
se combinam numa impressão global que é muito difícil de analisar.

Todos os sentimentos, sustenta Baensch, são qualida­


des não-sensoriais; os subjetivos são contidos em um Eu; os
objetivos, em coisas impessoais. A grande dificuldade é
pensar neles como apartados de qualquer hospedeiro, con­
cebê-los como conteúdos independentes do mundo.
('crlamcntc — diz — os sentimentos enquanto qualidades experi­
mentadas não são absolutamente vagos ou indefinidos e, sim, têm
uni caráter muito concreto e particular. Mas quanto ao tratamento
nuuelhinl, são rccalcilrantes desde o momento em que tentamos ir
iilftit (Iiih designações gerais mais grosseiras: Não há nenhum esque-
iiiii sUlrmatko que seja sutil o bastante, em suas operações lógicas,
| miii« i ii|tf111iu e transmitir suas propriedades.
I1!mImito, mi vida c no pensamento científico, nada nos serve
a ii(to M'i abonlá In* imliretamente, correlacionando-os com os even­
to* dom i lllvels, lidemos c externos a nós, que os contêm e, assim,
Mnnmnllem uns, im esperança de que qualquer pessoa que relembre
PARADOXOS 23

tais eventos será assim levada de alguma forma a sentir as qualida­


des emotivas, também, para as quais queremos chamar sua atenção4.
Aqui, o problema crucial obviamente é apresentar os
sentimentos nâo para o deleite (mesmo no sentido emprega­
do por Alexander), mas para a concepção; não é a experiên­
cia de sentimentos (que está pressuposta no apelo à me­
mória), mas o conhecimento sobre eles que é difícil de alcan­
çar.
Uma vez que são qualidades não-sensoriais, nossa apercepção de­
les também é de uma espécie não-sensorial. ( . . . ) Não há nenhuma
apercepção tão cega quanto a apercepção não-sensorial dos sentimen­
tos.
Como podemos captar, reter e manipular sentimentos, de
forma que seu conteúdo possa ser tornado concebível e ser apre­
sentado à nossa consciência sob uma forma universal, sem que sejam
entendidos no sentido estrito, isto é, por meio de conceitos? A res­
posta é: Podemos fazê-lo criando objetos nos quais os sentimentos
que procuramos reter estejam incorporados tão definitivamente que
qualquer sujeito, quando confrontado com tais objetos e disposto
enfaticamente em relação a eles, não pode deixar de experimentar
uma apercepção não-sensorial dos sentimentos em questão. Tais obje­
tos são chamados “obras de arte”, e por “arte” designamos a ativi­
dade que os produz5.
Quase todos os parágrafos do artigo de Baensch
são relevantes para a teoria que estou prestes a propor e
desenvolver. Fica-se tentado a prosseguir indefinidamente
com as citações, e eu voltarei livremente à tarefa em
ocasião ulterior. Mas o que ficou acima talvez sirva
para mostrar o dilema a que chegou a filosofia da arte, sob
todos seus aspectos: expressão e impressão, forma e emo­
ção, significação e sensação. Aqui, na versão mais recente,
as obras de arte contêm sentimentos, mas não os sentem.
Encontramos os sentimentos nelas e reagimos à sua apercep­
ção com prazer ou desprazer, os quais são nossos próprios
sentimentos, os que temos no momento. Mas a condição
dos sentimentos não sentidos que são inerentes aos objetos
de arte é ontologicamente obscura, e sua apercepção não-
-sensorial, numa obra que deveria, como se supõe geral­
mente, ser dada direta e inteiramente à percepção sensorial,
é epistemológica e igualmente difícil.
Penso que a resposta aguarda uma idéia que, em si,
não é estranha à teoria estética, mas que jamais foi usada
em sua mais elevada capacidade e para seus verdadeiros
fins. £ a mais poderosa idéia geradora no pensamento hu­
manista, hoje, razão pela qual a chamei, em outro lugar,

4. “Kunst and Geftihl”, Logos, II, p. 5 o 6.


5. lbiã„ p. 14.
24 SENTIMENTO E FORMA

de “nova chave” na filosofia. Da maneira como Baensch


deixou o problema do sentimento na arte, o problema pelo
menos está pronto a ser transposto para a nova chave que
fará com que ele alcance harmonias inesperadas. Mais do
que pronto, com efeito; a modulação está quase completa
quando Baensch propõe que a função da arte, como a da
ciência, é fazer com que o espectador conheça algo que não
conhecia antes. Aqui, a idéia do agente simbólico está tão
próxima da expressão franca que pode ser claramente vis­
lumbrada nas entrelinhas. Mas sua verdadeira tarefa aqui
não tem nada a ver com as funções iconográficas usual­
mente atribuídas aos símbolos na arte. O símbolo artístico,
enquanto artístico, lida com insights, não com referências;
não se baseia na convenção, mas motiva e dita convenções.
Ê mais profundo do que qualquer semântica de sinais acei­
tos e seus referentes, mais essencial do que qualquer diagra­
ma que possa ser lido heuristicamente.
As muitas idéias dominantes em teoria estética que são
correntes hoje, cada uma das quais tentando traçar um ca­
minho diferente através dos mistérios da experiência artís­
tica e cada uma constantemente fugindo ou aceitando pela
força algum posto paradoxal, convergem todas, na verdade,
para o mesmo problema: O que é a “significação” na arte?
O que, em outras palavras, quer dizer “Forma Significante”?
Acredito que a resposta a esse problema acarrete a so­
lução de todos os paradoxos relacionados mas estranhamen­
te incomensuráveis, e, mais diretamente, do problema envolvi­
do na noção de Baensch de sentimentos objetivos, qualida­
des não-sensoriais vistas invisivelmente. E a proposta dessa
resposta é nosso primeiro movimento inicial.
3. 0 Símbolo do Sentimento

No livro do qual este é continuação há um capítulo in­


titulado “Da Significação na Música” . A teoria da signifi­
cação ali desenvolvida é uma teoria especial, que não pre­
tende ter nenhuma outra aplicação além daquela feita nesse
campo original, a saber, a música. Contudo, quanto mais a
gente reflete sobre a significação da arte em geral, tanto mais
certamente surge por si mesma a hipótese de que a unidade
fundamental das artes, freqüentemente afirmada, reside não
tanto nos paralelos entre seus respectivos elementos ou nas
analogias entre suas técnicas, quanto na singularidade de sua
importância característica, o significado da significação'’
em relação a cada uma e a qualquer delas. A “Forma
Significante” (que realmente tem significação) é a essência
de toda arte; é isso que queremos dizer ao chamarmos qual­
quer coisa de “artística” .
Se a direção proposta não nos trair, temos aqui um
princípio de análise que pode ser aplicado dentro de cada
gênero artístico distinto ao explicar-se sua escolha determi­
nada e seu uso de materiais; um critério do que é ou não
relevante ao julgar-se obras de arte em qualquer campo;
uma exposição direta da unidade de todas as artes (sem
que seja necessário lançar-se mão de “origens” numa his­
tória duvidosa, fragmentária, e numa pré-história ainda
mais questionável); e a elaboração de uma teoria da arte
26 SENTIMENTO E FORMA

verdadeiramente geral, como tal, em que se pode distinguir


bem como interligar as várias artes, e quase que quaisquer
problemas filosóficos que elas apresentem — pro­
blemas dos seus valores relativos, seus poderes ou li­
mitações especiais, sua função social, seu relacionamento
com o sonho e a fantasia ou com a realidade etc., etc. —
podem ser atacados com alguma esperança de chegar-se a
uma decisão. A maneira adequada de construir uma teoria
geral é através da generalização de uma teoria especial; e
creio que a análise da significação musical em Filosofia em
Nova Chave é capaz de tal generalização e é capaz de for­
necer uma teoria válida da significação para todo o Parnaso.
O estudo da significação musical originou-se de uma
reflexão filosófica anterior sobre o significado do termo mui­
to popular, “expressão” Na literatura da estética essa pa­
lavra ocupa um lugar preeminente; ou, antes, ela ocupa lu­
gares preeminentes, pois é empregada em mais de um senti­
do e, conseqüentemente, muda de significado de um livro
para outro e algumas vezes até de passagem para passagem
em uma única obra. Algumas vezes escritores que na verda­
de estão em íntimo acordo usam-na de formas incompatíveis
c contradizem literalmente as afirmações uns dos outros,
mas na realidade, não tomam consciência desse fato porque
cada um lerá a palavra como o outro a pretendeu usar, não
como aquele realmente a usou onde ela aparece. Assim,
Roger Fry tentou elucidar a frase célebre mas misteriosa de
Clive Bell, “Forma Significante”, identificando-a com a
“expressão da Idéia” de Flaubert; e Bell provavelmente
aceita inteiramente a exegese de Fry, até onde ela vai (que,
como observa Fiy, infelizmente não é muito longe, uma vez
que a “Idéia” é o obstáculo seguinte). Porém o próprio Bell,
tentando explicar seu significado, diz: “É inútil ir a uma ga­
leria de arte à procura da expressão; deve-se ir à procura da
Forma Significante” É claro que, aqui, Bell está pensando
em “expressão” com um sentido inteiramente diverso.
Talvez queira dizer que não se deve procurar a nwío-expressão
do artista, isto é, um registro de suas emoções. Essa inter­
pretação, porém, é duvidosa, pois, em outro lugar do mesmo
livro, ele diz: “Parece-me possível, embora não seja de for­
ma alguma certo, que a forma criada nos comove tão pro-
fundamente porque ela expressa a emoção de seu criador” .
Fntão, é n emoção do criador a “Idéia”, no sentido empre­
gado por Flaubert, ou não é? Ou a mesma obra tem, talvez,
duas iunçòes expressivas diferentes? E o que dizer sobre a
espécie que nao devemos procurar numa galeria de arte?
O SÍMBOLO DO SENTIMENTO 27

Podemos, evidentemente, procurar qualquer espécie de


expressão que queiramos, e até existe uma boa possibilidade
de que, seja ela qual for, nós a encontremos. Uma obra de
arte freqüentemente é uma expressão espontânea do senti­
mento, isto é, um sintoma do estado de espírito do artista.
Se representar seres humanos, provavelmente também repro­
duzirá algum tipo de expressão facial que sugira os senti­
mentos supostamente nutridos por aqueles seres. Além disso,
pode-se dizer que ela “expressa”, em outro sentido, a vida
da sociedade da qual se origina, a saber, para indicar cos­
tumes, vestimentas, comportamento, e para refletir confusão
ou decoro, violência ou paz. E, além de todas essas coisas,
ela expressa com certeza os pesadelos e desejos inconscientes
de seu autor. Tudo isso pode ser encontrado em museus e
galerias, se quisermos notá-lo.
Mas elas também podem ser encontradas em cestos de
lixo e nas margens de livros escolares. Isso não quer dizer
que alguém descartou uma obra de arte ou produziu alguma
quando estava entediado com a operação de divisão. Quer
dizer simplesmente que todos os desenhos, afirmações, ges­
tos ou registros pessoais de qualquer tipo expressam senti­
mentos, opiniões condições sociais e neuroses interessantes;
a “expressão”, em qualquer desses sentidos, não é peculiar à
arte e, conseqüentemente, não é o que promove valor artístico.
A significação artística, ou “expressão da Idéia”, é “ex­
pressão” num sentido ainda diferente e, de fato, num senti­
do radicalmente diferente. Em todos os contextos acima
mencionados, a obra de arte ou outro objeto funcionavam
como um signo que apontava para algo de fato — co­
mo alguém se sentia, no que acreditava, quando e onde vivia,
ou o que atormentava seus sonhos. Mas expressão de uma.
idéia, mesmo no uso comum, em que “idéia” não tem I
maiúsculo, não se refere à função significa, isto é, à indi­
cação de um fato por algum sintoma natural ou sinal inven­
tado. Refere-se geralmente ao propósito primeiro da lingua­
gem, que é o discurso, a apresentação de simples idéias. Quan­
do dizemos que algo está bem expresso, não achamos ne­
cessariamente que a idéia expressada se refere à nossa situa­
ção presente ou, até, que seja verdadeira, mas apenas acha­
mos que ela é dada clara e objetivamente à contem­
plação. Tal expressão é a função dos símbolos: articulação
e apresentação de conceitos. Nisto os símbolos diferem radi­
28 SENTIMENTO E FORMA

calmente dos sinais1. Um sinal é compreendido se serve para


fazer-nos notar o objeto ou situação que indica. Um símbolo
é compreendido quando podemos conceber a idéia que ele
apresenta.
A diferença lógica entre sinais e símbolos está suficien­
temente explicada, acredito, em Filosofia em Nova Chave,
não sendo necessário repeti-la aqui, embora se pudesse dizer
muito mais sobre ela do que tentou fazer aquele pequeno
tratado bem geral. Aqui, como lá, passarei a um conseqüente
dos estudos lógicos, uma teoria da significação que ressalta
o contraste entre as funções da arte e do discurso respectiva­
mente; mas desta vez com referência a todas as artes, não
apenas à não-verbal e essencialmente não-representativa arte
da música.
A teoria da música, entretanto, é nosso ponto de par­
tida, e portanto ela pode ser brevemente recapitulada aqui
da maneira como ficou estabelecida no final do livro anterior:
As estruturas tonais a que chamamos de música têm
uma íntima semelhança lógica com as formas dos sentimentos
humanos — formas de crescimento e atenuação, fluência e
estagnação, conflito e decisão, rapidez, parada, violenta
excitação, calma, ou ativação sutü e lapsos sonhadores
— não alegria e dor, talvez, mas a pungência de cada
uma e de ambas — a grandeza e brevidade e o passar eterno
de tudo o que é sentido de maneira vital. É esse o padrão, ou
forma lógica, da “senciência”*; e o padrão da música é essa
mesma forma elaborada em sons medidos, puros, e silêncio.
A música é um análogo tonal da vida emotiva.
Essa analogia formal, ou congruência de estruturas ló­
gicas, é o requisito primário para a relação entre um sín-
bolo e seja o que for que ele signifique. O símbolo e o objeto
simbolizado precisam ter alguma forma lógica em comum.
Mas, com base puramente na analogia formal, não ha­
vería meios de se dizer qual de duas estruturas congruentes
seria o símbolo e qual o significado, uma vez que a relação
dc congruência, de semelhança formal, é simétrica, isto é,

I lllrn Filosofia em Nova Chave (citada daqui em diante como


(Vmi h 1'/mvr), a principal distinção foi traçada entre “signos” e “sim-
OlmrlPM W. Morris, em Signs , Language and Behavior, faz dis-
ihiI im "«I iiiiIm" o “símbolos”. Isso parece-me ser um melhor uso
iiMUmitta, uma ver, que deixa “signo” para cobrir tanto “sinal”
•iusimm Mmliiiiii” ruMimuito que minha utilização anterior deixou-me
imm Ikmhh aluuin. Adotei, portanto, essa prática,apesar do
»ii»m iíh Mm uma discrepância na terminologia de dois livros
th Um ttnlnilM «ft«« uma im>Iau hô.
* I h hui| im>miu u ueologlsmo p ara designar aquilo que é
*’ 1‘1* 1*'1 • •"<ummiiMvmmii>u ( h, o i|iin sente oú é sensível <N. dos T.)
O SÍMBOLO DO SENTIMENTO 29

funciona nos dois sentidos. (Se John parece-se tanto com


James que não se pode distingui-lo de James, então tampou­
co se pode diferençar James de John.) Deve haver um mo­
tivo para que se escolha, como entre duas entidades ou dois
sistemas, um como sendo símbolo do outro. Geralmente a
razão decisiva é ser um deles mais fácil de perceber e mani­
pular do que o outro. Ora, é muito mais fácil produzir,
combinar, perceber e identificar sons do que sentimentos.
Formas de senciência ocorrem apenas no curso da
natureza, mas formas musicais podem ser inventadas e en­
toadas à vontade. Seu padrão geral pode ser reencarnado
vezes sem conta pela repetição da execução. Na verdade,
o efeito jamais é exatamente o mesmo, embora a repetição
física possa ser exata, como na música gravada, porque o
grau exato de nossa familiaridade com uma passagem
afeta a experiência que se tem dela, e esse fator não pode
jamais ser tomado permanente. Dentro de uma gama bas­
tante ampla, porém, tais variações são, felizmente, pouco
importantes. Para algumas formas musicais, até alterações
muito menos sutis não chegam a ser realmente perturbado­
ras; por exemplo, certas diferenças de instrumentação e mes­
mo, dentro de limites, de tom ou tempo. Para outras, são
fatais. Mas, em linhas gerais, o som é um meio maleável,
capaz de repetição e composição voluntária, enquanto que o
sentimento não o é; essa característica recomenda o emprego
de estruturas tonais para propósitos simbólicos.

Além do mais, um símbolo é usado para articular idéias


de algo sobre o qual desejamos pensar e, até termos um
simbolismo razoavelmente adequado, não podemos pensar
nele. Portanto, o interesse sempre desempenha um papel im­
portante ao tomar uma coisa, ou esfera de coisas, o signi­
ficado de alguma outra coisa, o símbolo ou sistema de sím­
bolos.
O som, como um fator puramente sensorial na experi­
ência, pode ser tranqüilizante ou excitante, agradável ou tor-
turaao; mas assim também são os fatores de gosto, olfato e
tato. Selecionar e explorar tais influências somáticas é satis­
fazer os próprios apetites, coisa muito diversa da arte. Uma
sociedaae esclarecida conta em geral com alguns meios, pú­
blicos ou particulares, para sustentar seus artistas, porque o
trabalho deles é considerado um triunfo espiritual e uma
reivindicação de grandeza para toda a tribo. Mas meros epi-
curistas dificilmente alcançariam tal fama. Nem mesmo
mestres-cuca, perfumistas e tapeceiros, que produzem os
30 SENTIMENTO E FORMA

meios do prazer sensorial para outros, são classificados como


porta-archotes à altura da cultura e criadores inspirados. Só
os próprias anúncios é que lhes atribuem tais títulos. Se a
música, o som modelado, não tivesse outra função além de
estimular e acalmar nossos nervos, agradando a nossos
ouvidos, assim como comidas bem combinadas agradam a
nosso paladar, ela podería ser altamente popular, mas jamais
culturalmente importante. Seu desenvolvimento histórico se­
ria um assunto trivial em demasia para engajar muitas pessoas
num estudo que dura toda a vida, embora umas poucas
teses desesperadas de doutoramento pudessem ser extraídas
de seu passado anedótico sob a rubrica de “história social” .
E os conservatórios musicais seriam de maneira apropriada
classificados exatamente como escolas de arte culinária.
Nosso interesse na música origina-se de sua íntima rela­
ção com a vida sumamente importante dos sentimentos,
seja qual for essa relação. Depois de muitos debates
em torno das teorias atuais, chegou-se, em Filosofia
em Nova Chave, à conclusão de que a função da música não
é a estimulação de sentimentos, mas a expressão deles; e,
além do mais, não a expressão sintomática de sentimentos
que acossam o compositor, mas uma expressão simbólica
das formas de sensibilidade senciente da maneira como este
as entende. Ela indica como ele imagina os sentimentos, mais
do que seu próprio estado emocional, e expressa aqui­
lo que ele sabe sobre a chamada “vida interior” ; e isso
pode ir além de seu caso pessoal, porque a música é, para
ele, uma forma simbólica, através da qual pode aprender
bem como exprimir idéias sobre a sensibilidade (sensibility)
humana.
Há muitas dificuldades envolvidas na suposição de que
a música é um símbolo, porque estamos tão profundamente
impressionados com o protótipo da forma simbólica, a saber,
a linguagem, que transportamos naturalmente as característi­
cas desta para nossas concepções e expectativas de qualquer
outro modo de forma simbólica. A música, porém, não é uma
espécie de linguagem. Sua significação é, na realidade, algo
diverso daquilo que é tradicional e adequadamente chama­
do de “significado” Talvez os lógicos e filósofos positivistas
que levantaram objeções ao termo “significado implícito” sob
a alegação de que “significado” propriamente dito é sempre
explicável, definível e traduzível, sejam impelidos por um de­
sejo perfeitamente racional de manter um termo tão difícil
l'v; rie quaisquer outro embaraços e fontes de confusão; e, se
isso puder ser feito sem excluir o próprio conceito que desig­
o s ím b o l o d o s e n t im e n t o 31

nei como “significado implícito”, certamente parece ser sen­


sato aceitar tais críticas.
Provavelmente a forma mais rápida de compreender a
natureza precisa da simbolização musical é tomar as carac­
terísticas da linguagem e depois, por comparação e contraste,
notar a estrutura diferente da música e as consequentes dife­
renças e semelhanças entre as funções respectivas dessas duas
formas lógicas. Por ser o discurso o propósito primeiro
da linguagem, a estrutura conceituai que se desenvolveu
sob sua influência é conhecida como “razão discursiva” .
Geralmente, quando se fala de alguma forma em “razão”,
presume-se tacitamente seu padrão discursivo. Mas, num
sentido mais amplo, qualquer apreciação de forma, qualquer
percepção de padrões na experiência, é “razão”; e o discur­
so, com todos os seus refinamentos (por exemplo: simbolis­
mo matemático, que é uma extensão da linguagem) é ape­
nas um dos padrões possíveis. Para a comunicação prática,
conhecimentos científicos e pensamento filosófico, é o único
instrumento que temos. Mas, justamente por esse motivo,
há domínios inteiros da experiência que os filósofos julgam
“inefáveis” . Se tais domínios parecem a alguém como sendo
de suma importância, essa pessoa terá uma inclinação natu­
ral para condenar a filosofia e a ciência como estéreis e fal­
sas. Há justificativas para uma tal avaliação; não as há, en­
tretanto, para pretender um melhor caminho para a verda­
de filosófica através do instinto, intuição, sentimento, ou o
que se quiser. A intuição é o processo básico de toda a com­
preensão, sendo exatamente tão operacional no pensamento
discursivo quanto na clara percepção sensorial e no juízo
imediato; haverá mais a dizer sobre essa questão posterior­
mente. Mas ela não é um substituto para a lógica discursiva
na elaboração de qualquer teoria, contingente ou transcen­
dental.
A diferença entre formas lógicas discursivas e não-dis-
cursivas, suas respectivas vantagens e limitações e seus con-
seqüentes usos simbólicos já foram discutidos no livro ante­
rior, mas, tendo em vista que a teoria da música, lá desen­
volvida como forma simbólica, é nosso ponto de partida,
aqui, para toda uma filosofia da arte, os princípios semânti­
cos subjacentes talvez devam ser primeiro explicitamente re­
lembrados .
Na linguagem, que é o mais espantoso sistema simbólico
que a humanidade inventou, palavras separadas são consigna­
das a itens da experiência concebidos separadamente,
com base em correlações simples, de um para um. Uma pa­
32 SENTIMENTO E FORMA

lavra que não for composta (formada de dois ou mais


vocábulos independentemente significativos, tal como “oni-
-potente”, “com-posto” ) pode receber a atribuição de signifi­
car qualquer objeto tomado como um só. Podemos
até, por extensão, tomar uma palavra como “onipotente” e,
considerando-a como uma só, designar-lhe uma conotação
que não é composta, por exemplo ao chamar um cavalo de
corrida de “Onipotente” . Assim, Praisegod Barbon (“Bare-
bones” )* era um ser indivisível embora seu nome seja
uma palavra composta. Ele tinha um irmão chamado
de “H-Christ-had-not-come-into-the-world-thou-wouldst-have-
been-damned”**. A simples correlação entre um nome e seu
portador mantida aqui entre uma sentença inteira tomada
como uma palavra e um objeto ao qual ela foi arbitrariamen­
te atribuída. Qualquer símbolo que nomeia algo é “tomado
como um só” ; e assim o é o objeto. Uma “multidão” é uma
porção de pessoas, mas tomada como uma porção, isto é,
como uma multidão.
Enquanto relacionamos símbolos e conceitos dessa ma­
neira simples, temos a liberdade de pareá-los como queira­
mos. Uma palavra ou sinal usado arbitrariamente para deno­
tar ou conotar algo pode ser chamado de símbolo associativo,
pois seu significado depende inteiramente da associação.
No momento, entretanto, em que palavras tomadas para de­
notar coisas diversas são usadas em combinação, algo é
exprimido pela forma em que são combinadas. O complexo
inteiro é um símbolo, porque a combinação de palavras reúne
irresistivelmente suas conotações também num complexo, e
esse complexo de idéias é análogo ao complexo-palavra.
Para qualquer pessoa que conheça os significados de todas
as palavras constitutivas do nome do irmão de Praisegod, é
provável que o nome soe absurdo, porque é uma sentença.
Os conceitos associados com as palavras formam um concei­
to complexo, cujas partes estão relacionadas num padrão
análogo ao padrão-palavra. Significados-palavras e for­
mas gramaticais, ou regras de emprego de palavras, podem
ser atribuídos livremente; mas uma vez aceitos, automatica-
mrnle emergem proposições como significados de sentenças.
INmIr se dizer que os elementos de proposições são nomeados
pni pala vi as, mas as próprias proposições são articuladas
poi Mailen^as.
Um símbolo complexo, tal como uma sentença ou um
mapa <rti|on mulomos correspondem formalmente aos con-
9 I iHti vmi I m i n MnMmii ("(Inniw tiun")
•• Hh iiitii lívitMP vlhMo-tut-inundo-terias-sido-conden&do-ao-
O SÍMBOLO DO SENTIMENTO 33

tomos vastamente maiores de um país) ou um gráfico (aná­


logo, talvez, a condições invisíveis, o aumento e queda de
preços, os avanços de uma epidemia), é uma forma articu­
lada. Sua função simbólica característica é o que chamo de
expressão lógica. Expressa relações; e pode “significar” —
conotar ou denotar — qualquer complexo de elementos que
seja da mesma forma articulada que o símbolo, da forma
que o símbolo “expressa” .
A música, como a linguagem, é uma forma articulada.
Suas partes não apenas se fundem para fornecer uma entida­
de maior, mas, ao fazê-lo, mantêm algum grau de existência
separada, e o caráter sensual de cada elemento é afetado
por sua função no todo complexo. Isso quer dizer que a en­
tidade maior que chamamos de composição não é simples­
mente produzida pela mistura, como uma nova cor feita da
mistura de tintas, mas é articulada, isto é, sua estrutura in­
terna é dada à nossa percepção.
Por que, então, não é ela uma linguagem de sentimen­
to, como tem sido chamada frequentemente? Porque seus
elementos não são palavras — símbolos associativos indepen­
dentes com uma referência fixada pela convenção. Apenas
enquanto forma articulada é que ela se encaixa em algo; e
como não há nenhum significado atribuído a nenhuma de
suas partes, falta-lhe uma das características básicas da lin­
guagem — associação fixada e, com isso, uma referência
única, inequívoca. Temos sempre a liberdade de preencher
suas formas articuladas sutis com qualquer significado que
nelas se encaixe; isto é, ela pode transmitir uma idéia de
qualquer coisa concebível em sua imagem lógica. Assim,
embora a recebamos como uma forma significante e com­
preendamos os processos de vida e senciência através de seu
padrão audível, dinâmico, ela não é uma linguagem, porque
não tem vocabulário.
Talvez, no mesmo espírito de estrita nomenclatura, tam­
pouco se devesse na realidade fazer referência a seu conteúdo
como “significado” . Assim como a música é chamada, ape­
nas sem rigor e exatidão, de linguagem, da mesma forma
sua função simbólica é apenas imprecisamente chamada de
significado, porque lhe falta o fator da referencia conven­
cional. Em Filosofia em Nova Chave, a música era chama­
da de símbolo “inconsumado”2. Mas o significado, no sen­
tido usual reconhecido pela semântica, inclui a condição da
referência convencional, ou consumação do relacionamento

2. Na edição da Harvard Univeisity Press» p. 240; na da New


American Library (Menor), p. 195; na da Perspectiva, p* 228.
34 SENTIMENTO E FORMA

simbólico. A música tem importe*, e esse importe


é o padrão da senciência — o padrão da própria vida, como
é sentida e conhecida diretamente. Chamemos, então, a
significação da música de “importe vital” ao invés de “signi­
ficado”, usando “vital” não como um vago termo laudató-
rio, mas como um adjetivo qualificativo que restringe a rele­
vância do “importe” ao dinamismo da experiência subjetiva.
É o suficiente com relação à teoria da música; a músi­
ca é “forma significante”, e sua significação é a de um sím­
bolo, um objeto sensorial altamente articulado que, em vir­
tude de sua estrutura dinâmica, pode expressar as formas
da experiência vital que a linguagem é especialmente inade­
quada para transmitir. Sentimento, vida, movimento e
emoção constituem seu importe.
Aqui, num esboço grosseiro, está a teoria especial da
música que pode, acredito, ser generalizada para fornecer
uma teoria da arte enquanto tal. O conceito básico é a for­
ma articulada mas não-discursiva que tem importe sem
referência convencional e, portanto, que se apresenta
não como um símbolo, no sentido ordinário, mas
como “forma significante”, em que o fator de significação
não é discriminado logicamente, mas é sentido como uma
qualidade, mais do que reconhecido como uma função. Se
esse conceito básico puder ser aplicado a todos os produ­
tos daquilo que chamamos de “as artes”, isto é, se todas as
obras de arte puderem ser consideradas como formas signifi-
cantes exatamente no mesmo sentido que as obras musicais,
então todas as proposições essenciais na teoria da música
podem ser estendidas às outras artes, pois todas elas defi­
nem ou elucidam a natureza do símbolo e seu importe.
Essa generalização crucial já é dada puramente pelas
circunstâncias: pois o próprio termo “forma significante”
foi originalmente introduzido em conexão com outras artes
que não a música, no desenvolvimento de outra teoria espe­
cial; supunha-se que tudo quaáto até agora foi escrito
a seu respeito aplicava-se primordialmente, se não unica­
mente, às artes visuais. Clive Bell, quem cunhou a frase, é
um crítico de arte e (por suas próprias declarações) não
um músico. Sua própria introdução ao termo é feita nas
M<|tuluti'N palavras:

' M* IhiimimmIIiIIIiIimIu do encontrar um termo que corresponda exata-


h i iminvfit liiMloim imintrt' que em lógica Blgnifica “conjunto das
mi •!**• mhiiiMitwtloA <|iio iitnn palavra ou uma expressão desperta
i>im um umiu mmH hi iiHilu olóm do <pi0 esta palavra ou expressão designa
I #•!•• ÍMlofuh'), opttvmnn pelo vocábulo "importe", sinôni-
••»»* tAfmi* h t|tm iini’ onto lado se aproxima do significado
>U puImmii mlnloMi iH tlo« T)
O SÍMBOLO DO SENTIMENTO 35

Todos falam de "arte”, fazendo uma classificação mental pela


qual distinguem a classe "obras de arte” de todas as outras classes.
Qual é a justificativa dessa classificação? ( . . . ) Deve haver alguma
qualidade única sem a qual uma obra de arte não pode existir; com
a qual, no grau mais baixo, nenhuma obra é totalmente sem valor.
O que é essa qualidade? Que qualidade é partilhada por todos os
objetos que provocam nossas emoções estéticas? Que qualidade é
comum à Santa Sofia e aos vitrais de Chartres, à escultura mexicana,
a um jarro persa, a tapetes chineses, aos afrescos de Giotto em
Pádua, e às obras-primas de Poussin, Piero delia Francesca e Cé-
zanne? Apenas uma resposta parece possível — a forma significante.
Em cada uma, linhas e cores combinadas de uma determinada ma­
neira, certas formas e relações de formas, excitam nossas emoções
estéticas. A essas relações e combinações de linhas e cores, a essas
formas esteticamente comoventes, chamo de "Forma Significante”;
e a "Forma Significante” é a qualidade única comum a todas as
obras de arte visuais,
Bell está convicto de que a função da estética é contem­
plar a emoção estética e seu objeto, a obra de arte, e que a
razão pela qual certos objetos nos comovem como o fazem
está além dos limites da estética3 45. Se fosse assim, havería
pouca coisa de interesse a contemplar. Parece-me que a
razão para o nosso reconhecimento imediato da “forma signi­
ficante” é o âmago do problema estético; e o próprio Bell
deu várias sugestões para uma solução, embora seu temor,
perfeitamente justificado, das teorias heurísticas da arte o te­
nha impedido de levar adiante suas próprias observações. Mas,
à luz da teoria da música, que culmina no conceito de “forma
significante”, talvez bastem as indicações em sua teoria da
arte.
Antes de sentirmos uma emoção estética por uma combinação
de formas,
diz ele (apenas para subtrair-se rapidamente, antes mesmo do
fim do parágrafo, de qualquer compromisso filosófico),
não percebemos intelectualmente o acerto e necessidade da combi­
nação? Se o fazemos, isso explicaria o fato de que, passando rapi­
damente por uma sala, reconheçamos que uma pintura é boa, embora
não possamos dizer que ela haja provocado muita emoção. Parecemos
ter reconhecido intelectualmente o acerto de suas formas sem que nos
detivéssemos para fixar nossa atenção e recolher, por assim dizer, sua
significação emocional. Se fosse assim, seria permissível perguntar se
foram as próprias formas ou a nossa percepção de seu acerto e ne­
cessidade que causou a emoção estética^.
“Justeza e necessidade” são, certamente, propriedades
com implicações filosóficas, e sua percepção é mais um
incidente revelador do que uma emoção inexplicável. Re­
conhecer que algo é justo e necessário é um ato racional,
3. Jbid., p. 8.
4. Jbid., p. 10.
5. Jbid., p. 20.
36 SENTIMENTO E FORMA

não importando quão espontâneo e imediato possa ser o re­


conhecimento; indica um princípio intelectual no julgamento
artístico e uma base racional para o sentimento que Bell
chama de “a emoção estética” . Penso que essa emoção seja
um resultado da percepção artística, como ele sugeriu
na passagem acima citada; é uma reação pessoal à descober­
ta da “justeza e necessidade” nas formas sensuais que a evo­
cam. Sempre que a sentimos, estamos na presença da Arte,
isto é, da “forma significante” . Ele mesmo a identificou
como sendo a mesma experiência, tanto na apreciação da
arte quanto na pura audição de música, embora diga que ra­
ramente a alcançou musicalmente. Mas se é comum às ar­
tes visuais e tonais e se, de fato, evidencia o valor artístico
de seu objeto, ela oferece outro ponto de apoio para a
teoria de que a forma significante é a essência de toda arte.
Isso, entretanto, é aproximadamente tudo o que ela ofe­
rece. A afirmação de Bell de que toda teoria da arte deve
iniciar-se pela contemplação da “emoção estética” e que,
efetivamente, nenhuma outra coisa é na realidade o próprio
da estética8, parece-me inteiramente errada. Demorar-se no
nosso estado de espírito em presença de uma obra não adian­
ta nossa compreensão da obra e seu valor. A questão relativa
ao que nos provoca a emoção é exatamente a questão relativa
ao que torna o objeto artístico; e aí, a meu ver, é onde
principia a teoria filosófica da arte.
A mesma crítica aplica-se a todas as teorias que come­
çam com uma análise da “atitude estética” : não vão além
dela. Schopenhauer, que é o principal responsável pela
noção de um estado, completamente sem desejos, de dis­
criminação pura, sensual, como sendo a atitude adequada
para com as obras de arte, não fez dela o ponto de partida de
seu sistema, mas uma conseqüência. Por que, então, tem ela
sido empregada com tanta insistência, em especial ultima-
mcntc, como o principal dado da experiência artística?
Provavelmente sob a pressão das correntes psicológicas
que têm apresentado a tendência, ao menos nos últimos cin-
ijllcnta anos, de confinar à força todos os problemas filosó-
rinm da mie dentro dos limites do behaviorismo e do prag­
matismo, onde aqueles não encontram nem desenvolvimento
liam noIiiçAo, mas são consignados a vagas esferas de “valor”
a “Inleiesse", nas quais nada de grande valor ou interesse
Ihmi sido falto. A existência da arte é explicada, seu valor
admitido p xe lhe dá um fim. Mas as questões que

N a mU h Ahi'Iii mcI iiia , p. :i». nota 4.


O SÍMBOLO DO SENTIMENTO 37

realmente desafiam o esteta — por exemplo, a exata nature­


za e o grau de inter-relacionamento entre as artes, o signifi­
cado de “essencial” e “não-essencial”, o problema de tra-
dutibilidade, ou transponibilidade, de idéias artísticas —,
ou não podem surgir num contexto filosófico ou são respon­
didas, sem uma verdadeira investigação, tomando-se por base
alguma premissa geral que parece abrangê-las. Todo o teor da
filosofia moderna, especialmente nos EUA, é inadequado a
especulações sérias sobre o significado, dificuldade e serieda­
de das obras de arte. O enfoque pragmático, porém, unido
como está à ciência natural, mantém um tal poder sobre nós
que nenhuma discussão acadêmica consegue resistir a seus
conceitos orientadores, magnéticos; seu psicologismo básico é
subjacente a toda doutrina que parece realmente respeitável.
Ora, o lema dessa doutrina estabelecida é “experiên­
cia” . Se os filósofos de destaque publicam ensaios variados
com títulos como Freedom and Experience 7, ou centralizam
seu discurso sistemático em torno de Experience and Nature 789,
de forma que também em sua estética apresentam-se nos
The Aesthetic Experience 9 e A rt as Experience1012, é bastante
natural que os artistas, que são amadores em filosofia, ten­
tem tratar de seu assunto com a mesma veia e escrevam:
Experiencing American Pictures11 ou Dance — A Creative
Art Experience12, Tanto quanto possível, esses escritores, que
mais ou menos tateiam à procura de princípios de análise
intelectual, adotam a terminologia corrente e, com isso, com­
prometem-se com a voga de pensamento predominante.
Dado que essa moda cresceu sob a tutela das ciências
naturais, ela traz consigo não apenas os grandes
ideais do empirismo, a saber, a observação, a análise e a
verificação, mas também certas hipóteses apreciadas, princi­
palmente dentre as menos perfeitas e menos bem sucedidas
das ciências, a psicologia e a sociologia. A suposição principal
que determina todo o procedimento da filosofia pragmá­
tica é a de que todos os interesses do homem são manifes­
tações diretas ou oblíquas de “impulsos” motivados pelas
necessidades animais. Essa premissa limita a classe dos
interesses humanos admissíveis àqueles que podem, atra­
vés de um ou outro artifício, ser interpretados em termos
de psicologia animal. Uma parte espantosamente grande

7. Essays in Honor of Horace M. Kallen (1947).


8. John Dewey (1925).
9. Laurence Buermeyer (1924).
10. John Dewy (1934)
11. Ralph M. Pearson (1943).
12. Margaret H’Doubler (1940).
38 SENTIMENTO E FORMA

do comportamento humano pode realmente sofrer uma tal


interpretação sem que esta seja forçada; e os pragmáticos,
até agora, não admitem que haja ponto algum em que o
princípio definitivamente falha e onde seu uso falsifica nos­
sas descobertas empíricas.
O efeito da premissa genética na teoria da arte é que
os valores estéticos devem ser tratados ou como satisfa­
ções diretas, isto é, prazeres, ou como valores instrumen­
tais, o que quer dizer, meios de satisfazer necessidades bio­
lógicas. Trata-se ou de interesse de lazer, como esportes e
hobbies, ou de valor para prosseguir no trabalho do mundo
— reforçar a moral, integrar grupos sociais ou ventilar pe­
rigosos sentimentos reprimidos através de uma catarse emo­
cional inofensiva. Mas, em qualquer dos casos, a experi­
ência artística não é essencialmente diferente da experiência
ordinária física, prática e social13.
Os verdadeiros conhecedores da arte, entretanto, sen­
tem de imediato que tratar a grande arte como uma fonte
de experiências não essencialmente diferente das experiên­
cias da vida quotidiana — um estímulo aos sentimentos ati­
vos da pessoa e talvez um meio de comunicação entre pes­
soas ou grupos, promovendo a apreciação mútua — é dei­
xar de ver a própria essência dela, a coisa que torna a arte
tão importante quanto a ciência e até a religião, mas que
a distingue como uma função criativa, autônoma, de uma
mente tipicamente humana. Se eles, então, se sentem
constrangidos, pela tradição acadêmica dominante, a ana­
lisar sua experiência, atitude, resposta ou fruição, podem
apenas começar dizendo que a experiência estética é dife­
rente de qualquer outra, que a atitude em relação às obras
de arte é uma atitude altamente especial, que a resposta
característica é uma emoção inteiramente à parte, algo
mais do que a fruição comum — não relacionada aos pra­

13. Cf. John Dewey, Art as Experience, p. 10: " ... as forças que
«riam o abismo entre produtor e consumidor na sociedade moderna
opunirn para criar também um a cisão entre a experiência comum e a
irnlétini. Aceitamos por fim t como registro dessa cisão, como se fossem
iiorinalti as filosofias da arte que a looalizam num a região habitada
por imiihunia outra criatura, e que dfio ênfase, além de toda razão, ao
HtiAlrr mt'iitmi!i)i(j contemplativo do estético".
Titiiiltéiu i. a . Rlcliards, Principies of Literary Criticism, p. 16-17:
"(.juninlo ollmimm para uma pintura, lemos um poema ou ouvimos m ú-
Mcm, on.» 1'Nhimoti fozondo algo m ulto diverso do que estávamos fazen­
do ho li |*iírii a (lulcrla ou ao noe vestirmos de manhã. A maneira pela
•|mh| h m«|iih lAonla A cm nós causada é diferente e, como regra, a ex-
io*mA!o'Ih a imiiIm iioinploxa o, se tivermos êxito, mais unificada. MaB
initHiH mHvMm. h* oAo 6 iln uma espécie fundament&lmente diferente".
I humoo m hto'i iiiiivhi', Diii Thn Aesthettc Experience, p. 79, acompanha
hhh h• | i11i-hmah *I*• ••«pMiMriAo uri Inüoti com a afirmação: "Isso não quer
MUhi otim vm* iiimIh, ipm o ipm o artista tem a dizer seja diferente em
»Iu i|Oh a iiho oh vldn nml, ou que a esfera da arte esteja, em
aisuMi hmmkioiImi, iilvoiriiuia da esfera da realidade".
O SÍMBOLO DO SENTIMENTO 39

zeres ou desprazeres fornecidos pelo ambiente real da pes­


soa e, portanto, perturbada por estes mais do que integrada
na cena contemporânea.
Essa convicção não brota de uma preocupação sen­
timental com o glamour e a dignidade das artes, como o
sugere Dewey14; ela surge do fato de que, quando as
pessoas, em quem a apreciação de alguma arte — seja ela
pintura, música, teatro ou qualquer outra — é espontânea
e marcante, são induzidas por uma moda psicologística a
refletir sobre sua atitude para com as obras que apreciam,
elas descobrem que essa atitude não se compara em abso­
luto com a atitude que têm em relação a um novo automó­
vel, a uma pessoa amada ou a uma manhã radiosa. Elas
sentem uma emoção diferente, e de uma maneira diferente.
Uma vez que a arte é encarada como um tipo especial
de “experiência”, inacessível, àqueles que não podem entrar
no estado de espírito adequado, desenvolveu-se um verda­
deiro culto da “atitude estética” entre os patronos da gale­
ria de arte e da sala de concertos.
Mas a atitude estética, que supostamente evidencia a
experiência da arte na presença de objetos adequados (o
que os torna adequados parece ser uma questão de some-
nos importância, relegada para uma época em que a “ciên­
cia” estiver pronta para respondê-la), é difícil de alcançar,
mais difícil de manter, e raramente é completa. H . S . Lang-
feld, que escreveu sobre ela um livro inteiro, descreveu-a
como uma atitude
que para a maioria dos indivíduos precisa ser cultivada, se é que se
quer que ela exista em geral em meio às influências contrárias e, por­
tanto, perturbadoras que estão sempre presentes15.
E David Prall, em sua excelente Aesthetic Analysis,
observa:
Mesmo um jovem fanático por música durante um concerto de
sua música favorita tem uma ligeira atenção de sobra para o con­
forto de seu corpo e sua postura, algum vago sentido da direção das
saídas, um grau de atenção levado à notoriedade, com a maior faci­
lidade, por qualquer interferência em sen conforto pelos movimen­
tos de seu vizinho, ou ruídos acidentais vindos de outra parte, sejam
estes indicadores de perigo de fogo ou de alguma razão menos forte
para empreender alguma ação. O absorvimento estético completo,

14. Falando da separação entre arte e vida “que muitos teóricos


e críticos se orgulham de sustentar eatê de elaborar", ele a atribui ao
desejo de manter a arte como "espiritual”, e diz, à guisa de expllcaç&o:
"Para multas pessoas uma aura mista de reverencia e Irrealidade cir­
cunda o ‘espiritual’ e o ‘Ideal’, enquanto que a ‘matéria’ se tomou...
algo que deve ser explicado e removido do caminho ou sobre o que
se deve pedir desculpa". John Dewey, op. eit., p. 6.
15. The Aesthetie Attituãe, p. 65.
40 SENTIMENTO E FORMA

estritaménte voltado para um objeto, é, pelo menos, raro; o mundo


enquanto superfície exclusivamente estética raramente é, se é que
chega a sê-lo alguma vez, o objetivo único de nossa atenção!®.
Poucos ouvintes ou espectadores, efetivamente, che­
gam alguma vez a alcançar o estado que Roger Fry des­
creveu, em Vision and Design, como “intensidade desinte­
ressada de contemplação”17 — o único estado em que se
pode realmente ter a percepção de uma obra de arte e
sentir a emoção estética. A maioria das pessoas está ocu­
pada demais ou é demasiadamente preguiçosa para desligar
a mente de todos os seus interesses usuais antes de olhar
para uma pintura ou um vaso. Isso explica, presumivelmen­
te, aquilo que ele observou um pouco antes no mesmo
ensaio:
Na proporção em que a arte se torna mais pura, decresce o
número de pessoas a quem ela atrai. Isso extirpa todas as implica­
ções românticas que constituem a isca usual pela qual os homens
são induzidos a aceitar uma obra de arte. Ela apela apenas para a
sensibilidade estética, e esta, na maioria dos homens, é relativamente
fraca1®.
Se a base de toda genuína experiência artística for
realmente uma atitude tão sofisticada, rara e artificial, deve-
$e considerar como uma espécie de milagre que o mundo
chegue a reconhecer as obras de arte como tesouros públi­
cos. E o fato de que os povos primitivos, desde os habitan­
tes das cavernas de Altamira até os gregos antigos, tenham
sabido, sem dúvida alguma, o que era belo, torna-se um
absurdo total.
Há algo a dizer, pelo menos, em favor dos pragmáticos:
eles reconhecem o interesse na arte como algo natural e
robusto, não como uma frágil flor de estufa, reservada para
os iniciados e muito cultos. Mas o pequeno alcance dos
interesses humanos possíveis, permitido por suas premissas
biológicas, impede-os de ver o fato de que uma atividade
muito espontânea, mesmo primitiva, pode, não obstante,
scr peculiarmente humana e pode exigir longos estudos
cm seus próprios termos antes de que se tomem claras suas
relações com o resto de nosso comportamento. Dizer,
como o faz 1. A. Richards, que, se soubéssemos mais sobre
o nlHlcmn nervoso e suas respostas a “certos estímulos”
(noicwc quo “certos”, quando aplicado a dados hipotéti-
ooo, ftljinlflcu “incertos”, uma vez que os dados não podem
•mm ilcNljtmuloM com exatidão), descobririamos que

IA Anuiu**», p. 7-0.
I'f mmí I lh*Iunt p. 00.
ÍN ihhl, p 10
O SÍMBOLO DO SENTIMENTO 41

as diferenças imprevisíveis e milagrosas... nas respostas totais, que


são produzidas por ligeiras alterações no arranjo dos estímulos, po­
dem ser inteiramente explicadas em termos da sensibilidade do
sistema nervoso; e os mistérios das "formas” são meramente uma
conseqiiência de nossa ignorância atual dos detalhes de sua açâois,
não é apenas uma pretensão absurda (pois como sabemos
quais os fatos que descobririamos e o que haveríam de ser
suas implicações antes de os termos descobertos?), mas uma
hipótese vazia, porque não existe sucesso elementar algum
que indique a direção em que poderia desenvolver-se a esté­
tica neurológica. Se houvesse um ponto de partida teórico,
poder-se-ia imaginar uma extensão do mesmo procedimento
para descrever a experiência artística em termos de reflexos
condicionados, impulsos rudimentares ou talvez vibrações
cerebrais; mas, até o momento, os dados fornecidos por
galvanômetros e encefalógrafos não se relacionam com pro­
blemas artísticos, sequer a ponto de explicar as simples
e óbvias diferenças de efeito entre uma escala principal e
seu paralelo menor. A proposição de que, se conhecéssemos
os fatos, descobririamos que eles são assim e assim, é simples­
mente uma profissão de fé inocente, pseudocientífica.
A abordagem psicológica, ditada pela tendência em-
pirista geral na filosofia, não nos colocou no âmbito de
quaisquer problemas genuínos da arte. Assim, em vez de
estudar as “ligeiras alterações de estímulos” que causam
“alterações imprevisíveis e milagrosas” em nossas respostas
nervosas, seria melhor que considerássemos o objeto de arte
como algo de direito próprio, com propriedades indepen­
dentes de nossas reações preparadas — propriedades que
comandam nossas reações e tomam a arte o fator autôno­
mo e essencial que existe em toda cultura humana.
O conceito de forma significante como uma expressão
articulada do sentimento, refletindo as verbalmente inefá­
veis e portanto desconhecidas formas de sensibilidade, ofe­
rece pelo menos um ponto de partida para tais investiga­
ções. Toda articulação é difícil, minuciosa e engenhosa;
o fazimento de um símbolo exige habilidade tão verda­
deira quanto a feitura de um vaso adequado ou de um
remo eficiente, e as técnicas de expressão são tradições so­
ciais ainda mais importantes do que as habilidades de auto-
preservação, as quais um ser inteligente pode desenvolver
por si mesmo, ao menos de maneira rudimentar, para ir
ao encontro de uma situação dada. A técnica fundamental
da expressão — a linguagem — é algo que todos nós temos19

19. Op. dt., p. 172.


42 SENTIMENTO E FORMA

de aprender através de exemplos e prática, isto é, atra­


vés de treinamento consciente ou inconsciente20. As pessoas
cujo adestramento para a fala foi muito casual são menos
sensíveis àquilo que é exato e adequado para a expressão
de uma idéia do que as possuidoras de hábitos cultivados; não
apenas no tocante às regras arbitrárias de uso, mas também
no que se refere à justeza e necessidade lógicas da expressão,
isto é, dizer o que querem dizer e não outra coisa. De
modo semelhante, acredito, toda elaboração de forma ex­
pressiva é um ofício. Portanto, a evolução normal da arte
está em íntima associação com as habilidades práticas —
construção cerâmica, tecelagem, entalho, e práticas mágicas
cujas importância a pessoa civilizada média não mais co­
nhece21; e portanto também é provável que a sensibilidade
à justeza e necessidade das-formas visuais ou musicais seja
mais pronunciada e segura em pessoas com algum adestra­
mento artístico do que naquelas que conhecem as artes
apenas de vista. A técnica é o meio para a criação da for­
ma expressiva, o símbolo, exercício da senciência; o processo
da arte é a aplicação de alguma habilidade humana para
esse propósito essencial.
Neste ponto, tomarei a liberdade de apresentar uma
definição da arte, que serve para distinguir uma “obra de
arte” de qualquer outra coisa no mundo e, ao mesmo tem­
po, para mostrar por que, e como, um objeto utilitário pode
também ser uma obra de arte; e como uma obra da cha­
mada arte “pura” pode deixar de atingir seu propósito e
ser simplesmente ruim, exatamente da mesma forma como
um sapato que não pode ser usado é simplesmente ruim
por não atingir seu propósito. Serve, além disso, para
estabelecer a relação entre arte e habilidade física, ou fazi-
mento, por um lado, e entre sentimento e expressão, por
outro. Eis a definição tentativa, sobre a qual foram cons­
truídos os capítulos que se seguem: Arte é a criação de
formas simbólicas do sentimento humano.
A palavra “criação” é introduzida aqui com plena
consciência de seu caráter problemático. Existe uma razão
definida para dizer que um artesão produz mercadorias, mas
i ihi uma coisa bela; que um construtor erige uma casa, mas
i rlu um edifício se o prédio for uma verdadeira obra de ar-
»|ulli'liiiii, embora modesta. Um artefato enquanto tal é
•II • *1 NHnit Oup. 5, “Linguagem”.
•* ♦ Imíuimmi' inAuiro difundido foi, provavelmente, o vin-
fMln nuIMiwl Miilfn h ndiHjmigfio priUlcn e a expressividade nos arte-
»'*h*i|i U m*» Vm|m Nhvh Uhiw <■», Oup. 9 “A Gênese da Importância
A l H a ll i. il "
o s ím b o l o d o s e n t im e n t o 43

simplesmente uma combinação de partes materiais, ou uma


modificação de um objeto natural a fim de servir aos propó­
sitos humanos. Não é uma criação, mas um arranjo de
fatores dados. Uma obra de arte, por outro lado, é mais
do que um “arranjo” de coisas dadas — mesmo de coisas
qualitativas. Emerge, do arranjo de tons e cores, algo que
não estava ali antes, e isso, mais do que o material arranja­
do, é o símbolo da senciência.
A feitura dessa forma expressiva é o processo cria­
tivo que alista a suprema hábildiade técnica do homem no
serviço de seu supremo poder conceituai, a imaginação.
Não é a invenção de novos aspectos originais, não é a adoção
de temas novos, que merece a palavra “criativo”, mas
sim a elaboração de qualquer obra simbólica de sentimento,
ainda que no contexto e no modo mais canônicos. Mil
pessoas podem ter usado cada dispositivo e convenção
desta, anteriormente. Um vaso grego era quase sempre
uma criação, embora sua forma fosse tradicional e sua
decoração pouco se desviasse da de seus inúmeros prede-
cessores. O princípio criativo, não obstante, estava prova­
velmente ativo nele desde a primeira torneada da argila.
Expor esse princípio, e desenvolvê-lo em cada campo
autônomo da arte, é a única maneira de justificar a definição,
que na realidade é uma teoria filosófica da arte em minia­
tura.
Parle H: A ELABORAÇÃO DO SÍMBOLO
4. Semelhança

Ê curioso que as pessoas que passam a vida em conta­


to mais íntimo com as artes — os artistas, para quem a
apreciação do belo é certamente uma experiência contínua
e “imediata” — não assumam e cultivem a “atitude esté­
tica” . Para elas, o valor artístico de uma obra é a proprie­
dade mais óbvia desta. Elas o vêem de modo natural e
constante; para elas, o mundo não tem de, em primeiro lu­
gar, passar despercebido. A percepção dos aspectos prá­
ticos pode estar presente, numa posição secundária, como
acontece com qualquer pessoa absorvida por uma con­
versa ou por acontecimentos interessantes; se a percepção
se toma insistente demais para ser ignorada, elas podem fi­
car bastante irritadas. Mas normalmente a atração do objeto
é maior do que as distrações que com ela concorrem. Não é
quem percebe que põe de lado o ambiente circundante,
mas a obra de arte que, se tiver êxito, destaca-se do resto
do mundo; aquele simplesmente a vê como ela se lhe apre­
senta.
Toda verdadeira obra de arte tem tendência de aparecer
assim dissociada de seu ambiente mundano. A im­
pressão mais imediata que cria é a de “alteridade” quanto
a realidade — a impressão de uma ilusão a envolver a
coisa, ação, afirmação ou fluxo de som que constitui a obra.
Mesmo onde está ausente o elemento de representação, onde
48 SENTIMENTO E FORMA

nada é imitado ou fingido — num atraente tecido, num


vaso, num edifício, numa sonata — , esse ar de ilusão, de
ser pura imagem, existe tão forçosamente quanto na pin­
tura mais enganosa ou na narrativa mais plausível. Onde
um perito na determinada arte em questão percebe imedia­
tamente uma “justeza e necessidade” de formas, o espectador
não versado, mas sensível, percebe apenas um ar peculiar
de “alteridade”, que tem sido descrito de várias maneiras
como “estranheza”, “semelhança”, “ilusão”, “transparência”,
“autonomia” ou “auto-suficiência” .
Esse desligamento da realidade, essa “outridade” que
dá, até mesmo a um produto genuíno como um edifício ou
um vaso, uma certa aura de ilusão, é um fator crucial, indi­
cativo da própria natureza da arte. Não foi nem o acaso
nem o capricho que induziu os estetas a levar isso em consi­
deração (e, num período dominado pela perspectiva psicolo-
gista, procurar a explicação num estado de espírito). No
elemento de “irrealidade”, que alternadamente os perturba
e delicia, está a chave de um problema muito profundo e
essencial: o problema da criatividade.
O que é “criado” numa obra de arte? Mais do que as
pessoas geralmente percebem quando falam de “ser criati­
vo” ou quando se referem às personagens de um romance
como sendo “criações” do autor. Mais do que uma delicio­
sa combinação de elementos sensoriais; muito mais do que
qualquer reflexão ou “interpretação” de objetos, pessoas,
acontecimentos — invenções que os artistas usam em seu
trabalho demiúrgico e que levaram alguns estetas a se re­
ferirem a tal trabalho como “recriação” antes do que cria­
ção genuína. Mas um objeto que já existe — um vasò de
flores, um pessoa viva — não pode ser recriado. Teria de
ser destruído para ser recriado. Além disso, uma pintura
não é nem uma pessoa nem um vaso de flores. È uma
imagem, criada pela primeira vez a partir de coisas que
não são imaginárias, mas bem reais — tela ou papel, e pin­
turas ou carvão ou tinta.
É bastante natural, talvez, que a reflexão ingênua se
centraliza antes de mais nada em torno do relacionamento
entre uma imagem e seu objeto; e é igualmente natural
tratar uma pintura, estátua ou descrição gráfica como uma
imitação da realidade. O fato surpreendente é que bem
depois da teoria da arte ter ultrapassado o estádio ingênuo e
do todo pensador sério ter percebido que a imitação não
era nem o objetivo nem a medida da criação estética, o trá­
fico da imagem com seu modelo manteve seu lugar central
SEMELHANÇA 49

entre os problemas filosóficos da arte. Tem figurado como a


questão de forma e conteúdo, de interpretação, de idealiza­
ção, de crer e fazer de conta, de impressão e expressão
A idéia de copiar a natureza, porém, não é nem sequer
aplicável a todas as artes. O que é que um edifício copia?
Em que objeto dado a gente modela uma melodia?
Um problema que não morrerá depois que os filósofos
o condenaram como irrelevante tem ainda uma função irritan­
te no mundo intelectual. Sua significação simplesmente é
maior, de fato, do que qualquer de suas formulações.
Assim: a questão filosófica que é geralmente concebida em
termos de imagem e objeto, na realidade preocupa-se com a
natureza da imagem enquanto tal e sua diferença essen­
cial das realidades. A diferença é funcional; consequente­
mente, objetos reais, funcionando de uma maneira que seja
normal para as imagens, podem assumir um status pura­
mente imaginai*. É por isso que o caráter de ilusão pode
aderir a obras de arte que não representam coisa alguma.
A imitação de outras coisas não é o poder essencial das ima­
gens, embora seja um poder muito importante em virtude
do qual todo o problema do fato e da ficção foi levado origi­
nalmente ao âmbito de nosso pensamento filosófico. Mas o
verdadeiro poder da imagem está no fato de que é uma
abstração, um símbolo, o portador de uma idéia.
Como pode uma obra de arte que não representa coisa
alguma — um edifício, um vaso, um padrão de tecido —
ser chamada de imagem? Ela se toma uma imagem quando
se apresenta puramente à nossa visão, isto é, enquanto pura
forma visual em vez de um objeto relacionado local e
praticamente. Se a recebemos como uma coisa completa­
mente visual, abstraímos sua aparência de sua existência
material. O que vemos dessa maneira torna-se simplesmen­
te um objeto de visão — uma forma, uma imagem. Desta­
ca-se de seu cenário real e adquire um contexto dife­
rente .
Uma imagem nesse sentido, algo que existe apenas para
a percepção, abstraído da ordem física e causai, é a criação
do artista. A imagem apresentada numa tela não é uma
nova “coisa” em meio às coisas do estúdio. A tela estava
ali, as tintas estavam ali; o pintor não lhes acrescentou nada.
Alguns críticos excelentes, e também pintores, falam do
“arranjo” de formas e cores e consideram a obra resultante
fundamentalmente como um “arranjo” . Parece que Whistler
* Recorrenos ao neologismo, pela Imprecis&o que envolve o adjetivo
“imaginário”. (N. dos T .)
50 SENTIMENTO E FORMA

pensou nesses termos a respeito de suas pinturas. Mas


mesmo as formas não são fenômenos na ordem das coisas
reais, como o são as manchas numa toalha de mesa; as for­
mas num desenho — não importa quão abstratas se­
jam — têm uma vida que não faz parte de simples man­
chas. Algo surge do processo de arranjar as cores numa
superfície, algo que é criado, não apenas juntado e disposto
em ordem diferente: isso é a imagem. Ela emerge repenti­
namente da disposição dos pigmentos e, com seu advento,
a própria existência da tela e da pintura “arranjada” nela
parece ser ab-rogada; aqueles objetos reais tornam-se difíceis
de serem percebidos por si mesmos. Uma nova aparência su­
plantou seu aspecto natural.
Uma imagem é, efetivamente, um “objeto” puramen­
te virtual. Sua importância reside no fato de que não a usa­
mos para orientar-nos em direção a algo tangível e prático,
mas tratamo-la como uma entidade completa com relações
e atributos unicamente visuais. Ela não tem outros; seu
caráter visível é seu ser inteiro.
Os objetos virtuais mais notáveis no mundo natural são
ópticos — “coisas” visíveis perfeitamente definidas que se
mostram intangíveis, tais como arco-íris e miragens. Muitas
pessoas, portanto, consideram uma imagem ou ilusão como
algo necessariamente visual. Essa limitação conceituai le­
vou, até, alguns críticos literários, que reconhecem o cará­
ter essencialmente imaginai da poesia, a supor que os
poetas devem ser pessoas de propensão visual e a julgar
que as figuras do discurso que não conjuram imagens
visuais não são verdadeiramente poéticas1. F . C . Prescott,
com uma coerência que chega às raias do heróico, conside­
ra a frase “A qualidade da compaixão não é forçada” como
apoética porque não sugere nada visível3. Mas a imagem
poética, na realidade, não é absolutamente uma imagem de
pintor. A diferença exata, que é grande e tem longo alcan­
ce, será discutida nos capítulos seguintes; o que nos interessa
precisamente aqui é o significado mais amplo de “imagem”
que responde pelo caráter genuinamente artístico das artes
niio-visuais sem qualquer referência à pintura por palavras
<mi outro substituto para espalhar pigmentos numa super­
fície n fim dc fazer com que as pessoas vejam quadros.
A palavra “imagem” está quase que inseparavelmente
ligada ao Nnitido da visão porque nosso exemplo clássico

• Vh|h |mii »initt|i|n, Itomy do Gourmont, Le problème du style,


h |i 47, Hin in o u u t o r declara que as únicas pessoas que
1( * » » * » « 11 mAm n* <|ti* lAtn pensamento visual.
^ 4hm #*Mft|!»• MItiif, |i, 4U.
SEMELHANÇA 51

dela é o inundo do espelho, que nos dá uma cópia visível


das coisas à sua frente sem fornecer uma réplica tátil
ou referente a algum outro sentido. Mas algumas das pa­
lavras alternativas que têm sido usadas para denotar o cará­
ter virtual dos assim chamados “objetos estéticos” foge a
essa associação. Carl Gustav Jung, por exemplo, fala, a este
propósito, em “semelhança” Seu caso exemplar de ilusão não
é a imagem refletida, mas o sonho; e, num sonho, existem
sons, cheiros, sentimentos, acontecimentos, intenções, peri­
gos — toda espécie de elementos invisíveis — bem como
vistas, sendo todos, igualmente irreais quando medidos pelos
fatos públicos. Os sonhos não consistem inteiramente de ima­
gens, mas tudo neles é imaginário. A música ouvida num so­
nho vem de um piano virtual sob as mãos de um músico apa­
rente; toda a experiência é uma semelhante de acontecimento.
Pode ser tão vivida quanto quaquer realidade, contudo é
aquilo que Schiller chamava de Schein.
Schiller foi o primeiro pensador que divisou aquilo que,
na realidade, toma o Schein, ou a aparência, importante para
a arte: o fato de que libera a percepção — e, com ela,
o poder de concepção — de todas as finalidades práticas e
deixa que a mente habite na pura aparência de coisas.
A função da ilusão artística não é “fazer crer” como
presumem muitos filósofos e psicólogos, mas exatamente o
oposto, ou seja, a de desligamento da crença — a contem­
plação de qualidades sensoriais sem seus significados
usuais de “Aqui está essa cadeira”, “Aquele é meu te­
lefone”, “Estes números devem somar o que veio no extra­
to do banco”, etc. Saber que o que está à nossa frente não
tem significação prática no mundo é o que nos permite dar
atenção à sua aparência como tal.
Tudo tem um aspecto de aparência, bem como de im­
portância casual. Mesmo uma coisa tão não-sensorial quan­
to um fato ou uma possibilidade aparece de uma forma
para uma pessoa e de outra forma para outra pessoa. È
essa sua “semelhança”, pela qual pode “assemelhar-se” a
outras coisas, e — quando a semelhança é usada para indu­
zir a um julgamento errado sobre suas propriedades causais
— em virtude da qual se diz que ela “dessemelha” sua natu­
reza. Quando sabemos que um “objeto” consiste inteiramen­
te em sua semelhança; que, afora sua aparência, não tem
coesão e unidade — como um arco-íris ou uma sombra —
chamamo-lo de objeto meramente virtual, ou ilusão. Neste
sentido literal, uma pintura é uma ilusão; vemos um rosto,
uma flor, uma paisagem marinha ou campestre, etc., e sa­
52 SENTIMENTO E FORMA

bemos que, se levarmos a mão até ela, tocaremos uma su­


perfície manchada de tinta.
O objeto visto é dado apenas ao sentido da visão. É
esse o propósito principal da pintura “imitativa”, ou “obje­
tiva”. Apresentar coisas à visão, das quais se sabe que são
uma ilusão, é uma maneira rápida (embora de forma algu­
ma necessária) de abstrair formas visíveis de seu contexto
usual.
Normal mente, é claro, a semelhança não é desorientado-
ra; uma coisa é aquilo que parece ser. Mas, mesmo quando
não há o intuito de enganar, pode acontecer que um objeto
— um vaso, por exemplo, ou um edifício — prenda um dos
sentidos com tanta exclusividade que parece ser dado ape­
nas àquele sentido, e todas as suas outras propriedades tor­
nam-se irrelevantes. O objeto está ali francamente, mas é
importante apenas por (digamos) seu caráter visual. Tende­
mos então a aceitá-lo como uma visão; existe uma tal con­
centração na aparência, que se tem a sensação de ver puras
aparências — isto é, uma sensação de ilusão (ver Fig. 1).
Nisto está a “irrealidade” da arte, que tinge até objetos
perfeitamente reais como jarros, tecidos e templos. Quer
tratemos com ilusões verdadeiras ou com aquelas quase-
-ilusões produzidas por ênfase artística, o que se apresenta é,
em qualquer dos casos, exatamente aquilo que Schiller cha­
mou de Schein; e uma semelhança pura, ou Schein, en­
tre as vigorosas realidades substanciais do mundo natural, é
um estranho convidado. Estranheza, separação, alteridade —
chamem-no do que quiserem — é seu destino óbvio.
A semelhança de uma coisa, assim posta em relevo,
é sua direta qualidade estética. De acordo com vários crí­
ticos eminentes, é isso que o artista tenta revelar sem outro
interesse. Mas a ênfase na qualidade^ ou essência, na realida­
de é apenas um estádio na concepção artística. É a elabo­
ração de um elemento rarificado que serve, por sua vez,
para a elaboração de outra coisa — a própria obra de arte
imaginária. E essa forma é o símbolo não-discursivo, mas
o símbolo articulado do sentimento.
Acrcdilo que aqui esteja a clara afirmação do que foi
inilmlo por Clive Bell de uma maneira bastante confusa
mima passagem que identificava “forma significante” (não,
poioiti, Nigniíicunte de coisa alguma) com “qualidade
anli Uiu” A demonstração de qualidade pura, ou semelhan­
ça, m a nma nova dimensão, distinta do mundo familiar,
ft mnu mim iimçno, Nessa dimensão, todas as formas artísti­
SEMELHANÇA 53

cas são concebidas e apresentadas. Uma vez que sua substân­


cia é ilusão ou Schein, elas são, do ponto de vista da
realidade prática, meras formas; existem apenas para o sen­
tido ou a imaginação que as percebe — como uma mira­
gem ou a estrutura elaborada, improvável, dos eventos
em nossos sonhos. A função da “semelhança” é dar às for­
mas uma nova corporificação em ocasiões puramente quali­
tativas, irreais, libertando-as de sua corporificação normal
nas coisas reais, de forma que elas possam ser reconhecidas
por si mesmas e que possam ser livremente concebidas e
compostas tendo em vista o alvo fundamental do artista —
a significação, ou a expressão lógica.
Todas as formas na arte, então, são formas abstraídas;
seu conteúdo é apenas uma semelhança, uma pura aparên­
cia, cuja função é tomá-las, também, aparentes — mais livre
e inteiramente aparentes do que poderíam ser se fossem
exemplificadas num contexto de circunstâncias reais e de
interesses carregados de ansiedade. É nesse sentido elemen­
tar que toda arte é abstrata. Sua própria substância, qua­
lidade sem significação prática, é uma abstração da exis­
tência material; e a exemplificação nesse meio ilusório ou
quase-ilusório faz com que as formas das coisas (não apenas
formatos, mas formas lógicas3, a saber, proporções entre
graus de importância em acontecimentos, ou diferentes velo­
cidades nos movimentos) apresentemrse in abstracto. Essa
qualidade fundamental à abstração pertence tão forçosa-
mente aos murais mais ilustrativos e às peças mais realistas,
desde que sejam boas em seu próprio gênero, quanto às
mais deliberadas abstrações que são remotas representações
ou desenhos inteiramente não-representativos.
Mas a forma abstrata como tal não é um ideal artístico.
Levar a abstração até onde for possível e alcançar a
forma pura no meio conceituai mais simples é tarefa dos
lógicos, não de um pintor ou de um poeta. Na arte, as for­
mas são abstraídas apenas para tomarem-se claramente ma­
nifestas, e são libertadas de seus usos comuns apenas para
serem colocadas em novos usos: agir como símbolos, tornar-
se expressivas do sentimento humano.
Um símbolo artístico é uma coisa muito mais intrica­
da do que aquilo que geralmente pensamos como sendo uma
forma, porque ele envolve todos os relacionamentos de cada

3. I. A. Richards, em seu Pri7iciple8 of Literary Criticism , afirma


Que, quando as pessoas falam de “forma lógica”, elas não sabem exata­
mente o que querem dizer. Talvez ele não saiba, mas eu sei; e se ele
realmente se interessar em saber» encontrará uma expllcaçfto elementar,
mas sistemática, no Cap. I de minha Introduction to Sym bolic Logic.
54 SENTIMENTO E FORMA

um de seus elementos com os outros, todas as semelhanças


e diferenças de qualidade, não apenas relações geométricas
ou outras relações familiares. É por isso que as qualidades
entram diretamente na própria forma, não como conteúdos
desta, mas como elementos constitutivos dela. Nossa con­
venção científica de abstrair formas matemáticas, que não
envolvem qualidade, e de compará-las com a experiência,
sempre torna os fatores qualitativos um “conteúdo” ; e como
as convenções científicas governam nosso pensamento aca­
dêmico, tem-se considerado como sendo certo que na com­
preensão da arte também se deve pensar na forma como
oposta ao “conteúdo” qualitativo. Mas, baseado nessa supo­
sição acrítica, toda a concepção de forma e conteúdo fica
prejudicada, e a análise termina na afirmação confusa de
que a arte é “conteúdo enformado”, que forma e conteúdo
são uma só coisa4. A solução desse paradoxo é que uma
obra de arte é uma estrutura cujos elementos inter-relacio­
nados freqüentemente são qualidades ou propriedades de
qualidades, tais como graus de intensidade destas; que as
qualidades entram na forma e, dessa maneira, tornam-se
tanto uma só coisa com esta quanto as relações que elas,
e apenas elas, têm; e que falar delas como “conteúdo”, do
qual se poderia abstrair logicamente a forma, é tolice. A
forma é construída a partir das relações peculiares àquelas;
são elementos formais na estrutura, não conteúdos.
As formas, porém, são ou abstrações vazias, ou têm
um conteúdo; e as formas artísticas têm um conteúdo, muito
especial, a saber, seu importe. São formas logicamente ex­
pressivas, ou significantes. São símbolos para a articulação
do sentimento e transmitem o padrão fugidio, no entanto
familiar, da senciência. E, enquanto formas essencialmente
simbólicas, residem numa dimensão diferente da dos objetos
físicos enquanto tais. Elas pertencem à mesma categoria
da linguagem, embora sua forma lógica seja diferente, e do
mito e sonho, embora sua função não seja a mesma.
Nisso reside a “estranheza” ou “alteridade” que carac­
teriza um objeto artístico. A forma é dada imediatamente à
percepção, porém ela vai além de si mesma; é semelhança,
mas parece estar carregada de realidade. Tal como a fala, que
não é nada fisicamente além de pequenos sons zumbidos,
cia está preenchida por seu significado, e seu significado é

4. Morrí* Weitz, em sua Philosophy o f th e Arts, oferece uma aná-


llao exAUdtlva do problema forma-e-conteúdo, que mostra a confusão
conceituai em quo ele bo encontro. Ver Cap. HI, p. 35 a 41.
SEMELHANÇA 55

uma realidade. Num símbolo articulado, a significação sim­


bólica permeia toda a estrutura, porque cada articulação
dessa estrutura é uma articulação da idéia que ela transmi­
te; o significado (ou, falando com exatidão, de um símbolo
não-discursivo, o importe vital) é o conteúdo da forma
simbólica dado, como que junto com ela, à percepção8.
Como que para evidenciar a natureza simbólica da arte
sua “estranheza” peculiar tem sido algumas vezes chamada
de “transparência” . Essa transparência é o que nos é obscu-
recido se nosso interesse é distraído pelos significados dos
objetos imitados; neste caso, a obra de arte assume um
significado literal e evoca sentimentos, que obscurecem o
conteúdo emocional da forma, os sentimentos que são logi­
camente apresentados. Ê esse, por certo, o perigo da re­
presentação, no qual se incorre sempre que tal recurso
vai muito além das necessidades de sua função primária.
Ele tem também funções secundárias, na criação da forma
artística (falaremos mais a respeito disso), motivo pelo qual
muitos grandes artistas usaram profusamente seus poderes
imitativos; mas na obra feita por mão de mestre a forma
expressiva é tão dominante, a transparência é tão clara, que
não é possível que alguém que já tenha descoberto o fenô­
meno do importe artístico deixe de percebê-lo ali. O
problema é que muitas pessoas jamais chegaram a senti-lo
porque vivem dentro de um manicômio de arte em demasia,
em que obras de grande emvergadura estão misturadas com
uma enorme quantidade de obras perniciosamente más, em
vez de salientarem-se como cimos a partir do nível de uma
tradição boa, modesta, de desenho e artesanato. A própria
percepção da forma tem sido embotada por experiências
dolorosas, em vez de ser exercitada através de constantes
convites de exemplos simples, graciosos, como ocorre em
culturas menos confusas e menos ecléticas. Tillyard obser­
vou que a melhor preparação para ler a grande poesia é
ler muitos versos bons. De maneira semelhante, o treina­
mento mais seguro para a percepção de grandes pinturas é
viver rodeado de formas visuais boas no plano modesto
dos desenhos de tecidos e utensílios domésticos, e jarras,
potes e vasos decorados com boas formas, portas e janelas
bem proporcionadas, bons entalhes e bordados — em vez5

5. No ccuso da linguagem, essa latência da forma fisicamente


trivial com um Importe conceituai chega às raias do milagroso. Co­
mo disse Bernard Bosanquet, “A linguagem é t&o transparente que
ela desaparece, por assim dizer, dentro de seu próprio significado, e
somos deixados sem meio característico algum'*. ( Three Lectures on
Aesthetics, p. 64.)
56 SENTIMENTO E FORMA

de “esta erupção eczêmica do padrão em todas as superfí­


cies” da qual se queixava Roger Fry — e boas ilustrações
nos livros, especialmente nos livros infantis. Numa cultu­
ra que tenha um fundamento e uma tradição, desenvolvem-se
certas formas básicas que se aplicam a sentimentos sim­
ples e, portanto, são compreendidas por aqueles que, não
tendo imaginação criativa, adotam as idéias correntes e
aplicam aquilo que aprenderam. Mas numa sociedade sem
entraves, empanturrada de influências, nada é inviolável por
tempo bastante para ser governado por um sentimento claro
e para ser realmente expressão dela. Não há formas signi-
ficantes simples a seguir, e para compor repentinamente,
por um lampejo de imaginação, em grandes criações, que
são, ainda, coerentes com os princípios familiares que elas
transcendem. Um posto de gasolina imita o estilo do Taj
Mahal, o seguinte se adapta ao ambiente colonial que o cerca,
um terceiro é um tímido pagode e, ao seu lado, as bombas
de gasolina perfilam-se solenemente frente a um chalé suíço.
E vamos indo, “gostando” disto e não daquilo, e achando
que devemos “gostar” do quinto exemplo, um arco de vidro
e concreto colocado funcionalmente, porque é americano,
moderno, “nossa tradição”, etc., etc.
Somente uma sensibilidade excepcional para a forma
pode sobreviver a este emaranhado de linhas históricas,
que terminam todas na confusão à qual chamamos de civiliza­
ção. O instinto pictórico ou musical médio fica confuso a
ponto de ver-se em frustração completa; e a defesa natu­
ral é abandonar totalmente a linguagem da forma plástica,
ou da música, ou da poesia, e depender inteiramente das lei­
turas padronizadas da experiência sensorial que Coleridge
chamava “imaginação primária” . Assim, o poder represen-
tacional da arte torna-se um refúgio, uma garantia de signi­
ficado no modo familiar da realidade; e o homem médio
— bem como muitos críticos — acredita realmente que os
artistas “recriam” frutas, flores, mulheres e locais de veraneio
para que ele os possua em seus devaneios. Como diz Ortega:
A maioria das pessoas é incapaz de ajustar sua atenção ao vidro
c a tfansparcncia que é a obra de arte; em vez disso, penetram atra-
v*n dela para chafurdar apaixonadamente na realidade humana à
hum! irlorc a ohra dc arte. Se as convidarmos a largar sua presa e
i !* mi miii Mlrnvrto nu obra dc arte em si, dirão que não veem nada
iimIii eIVlivnmenlc, não vêem ali realidade humana alguma,
mm* h| hhm* (iMiiri|Mr£ncMN artísticas, puras essências3.

,h»n* y H uma I, T h r Dchumanization of Art, citado em


liuuh ttf Ai'*lhc(lon <ln Rndcr
SEMELHANÇA 57

Não somos afligidos tanto com o mau gosto quanto com


o nenhum gosto. As pessoas toleram o que é bom e o que
é ruim porque nâo vêem em absoluto a forma expressiva
abstraída, o símbolo do sentimento.
É por isso que o papel dò sentimento na arte tornou-se
um enigma. As pessoas que chegam a redescobrir a forma
perceptiva, e percebem que ela é o fator verdadeiramente
essencial, em geral tornam-se de importância suprema, ex­
cluindo todo o seu comércio com algum “significa­
do” de qualquer espécie. Assim, elas rejeitam o sentimento,
juntamente com vários “conteúdos” associados. O que
sobra é um mosaico “excitante” de qualidades, que nos exci­
ta para nada, um objeto genuinamente “estético”, um beco
sem saída experiencial, pura essência. É forma e qualida­
de; forma em qualidade; forma da qualidade.
Mas as pessoas de discernimento artístico (e apenas
elas poderíam achar que a forma perceptiva é excitante)
sabem que o sentimento é de alguma maneira inerente a toda
forma imaginária. Se, então, elas se apegarem lealmente
a sua pura esfera de qualidades, uma qualidade deve exis­
tir. Assim, temos aqui as curiosas descobertas fenomenoló-
gicas de Baensch, e as conclusões muito semelhantes de
David Prall em sua Aesthetic Analysis.
O tratamento dado por Prall é particularmente inte­
ressante porque surge da mais séria e sistemática análise ja­
mais feita, que eu saiba, do elemento sensorial nas artes, que
ele chama de “superfície estética” . Cada arte, de acordo
com Prall, tem uma esfera sensorial limitada, definida pela
seletividade de um sentido especializado, dentro da qual
se encontra sua existência inteira. É essa sua “superfície esté­
tica”, que jamais pode ser rompida sem que se rompa a pró­
pria obra com que está relacionada, porque é o universo
dentro do qual a forma artística está articulada. A gama intei­
ra das cores constitui uma de tais esferas, e a dos tons for­
ma outra. Em qualquer dos casos, a “superfície estética” é
algo dado pela natureza; assim também são dadas as regras
básicas de estrutura, que surge da natureza do material, tal
como a escala diatônica, por exemplo, origina-se dos tons
parciais que se encontram em qualquer fundamental* de
tonalidade definida. As várias artes, por conseguinte, são
governadas pelos departamentos naturais dos sentidos, cada
um dando ao artista uma determinada ordem de elementos
com os quais ele pode fazer combinações e desenhos até os

Fundamental: nota primária da série harmônica (N. dos T.)


58 SENTIMENTO E FORMA

limites de seus poderes de invenção. A abordagem filosófica


que Prall faz da arte é claramente técnica e guiada por um
sólido senso artístico em vários domínios. Ele trata
toda obra de arte como uma estrutura, cujo propósito é dei­
xar-nos apreender formas sensuais de uma maneira lógica.
A diferença entre perceber claramente e compreender distinta­
mente, diz, não é a grande diferença que algumas vezes somos levados
a pensar 7.

E, mais além:
Qualquer conteúdo consciente é tomado como inteligível ape­
nas até onde é compreendido como forma ou estrutura. Isso quer
dizer, é claro, que é formado de elementos em relacionamentos em
virtude dos quais eles na realidade, se juntam ... Pois elementos não
ordenados originariamente por uma relação de algum tipo não che­
garão em absoluto a formar estruturas, para nós, nem elementos
intrinsecamente relacionados firmarão estruturas para nós, a menos
que nos tenhamos tornado conscientes dos tipos de relacionamentos
envolvidos. Não se pode fazer um todo espacial, exceto com ele­
mentos cuja própria natureza e ser seja a extensão espacial. Não
se pode fazer estruturas melódicas exceto com elementos que estão
originariamente ordenados por um relacionamento intrínseco de to­
nalidade, da qual eles não podem ser retirados. . . Os elementos
precisam estar numa ordem natural a seu próprio ser, uma ordem
compreendida por nós como constituída por uma relação. Chamamos
as estruturas de inteligíveis... na medida em que se nos apresentam
passíveis de análise naqueles elementos assim relacionados78.

Em outras palavras, as estruturas, ou formas, no sen­


tido mais amplo, devem estar em alguma dimensão intelec­
tual a fim de serem percebidas. As obras de arte são feitas
de elementos sensoriais, mas nem todos os elementos senso-
riais servem; pois apenas são componíveis os dados locali­
zados num contínuo ideal — por exemplo, as cores numa
escala de tonalidades, onde cada intervalo entre duas cores
dadas pode ser preenchido com outros elementos fornecidos
implicitamente, ou tons numa escala contínua de sons que
não apresente “furos” para os quais não se pode determinar
tom algum.
O método de Prall parece-me impecável: estudar a
obra de arte em si em vez de nossas reações e sentimentos
cm relação a ela, e encontrar algum princípio de sua organi­
zação que explique suas funções características, suas exigên­
cias físicas e seus apelos à nossa apreciação. Se eu, então,
parto dc uma premissa diferente, não é porque desaprove
as afirmações de Prall — quase todas são aceitáveis — mas
7. Ámthrtic Analyais, p. 30.
II. Ibitt., |». 41 -42 .
SEMELHANÇA 59

porque me parece que certas limitações de sua teoria en­


contram-se na própria concepção básica e desaparecem
quando se toma por base uma hipótese algo diferente. De­
paramos com uma dessas limitações na análise da poesia,
onde apenas um dos ingredientes — o padrão temporal do
som, ou “métrica” — oferece algo que se assemelha a uma
verdadeira “superfície estética”, com elementos mensuráveis
a serem deslocados em relacionamentos formais, e esse in­
grediente, embora seja importante, não é preeminente. Na
prosa, ele é livre demais para que possa ser examinado.
Fica a sensação, porém, de que o verdadeiro princípio for­
mal, pelo qual a literatura é construída, deve ser tão evidente
e dominante num gênero quanto no outro, e características
tais como o padrão da métrica poética são meramente meios
especializados de realizá-lo; e cada forma literária distinta
deve ter algum desses meios próprios, mas não um novo
princípio, para tornar-se literatura.
Surge outra dificuldade se voltamos nossa atenção à
arte da dança. Prall não submeteu essa arte à análise, mas
mencionou superficialmente que a trataria como uma forma
espaço-temporal e, evidentemente, seus elementos constituti­
vos — os movimentos — são mensuáveis e proporcionais
tanto em termos de espaço quanto de tempo. Mas uma tal
concepção de suas formas básicas a insere inteira e perfei-
tamente dentro da mesma categoria que a escultura móbile;
embora pudessem ser apresentadas algumas características
que distinguem essas duas artes espaço-temporais, elas per­
maneceríam intimamente relacionadas. Na verdade, entre­
tanto, elas se relacionam apenas remotamente; a escultura
móbile não tem mais relações com a dança do que a escul­
tura estática. Ela é inteiramente escultura, e a dança é intei­
ramente alguma outra coisa.
A arte de representar torna-se ainda mais difícil de
analisar do que a dança, uma vez que o contínuo sensorial
de espaço e tempo, cor e ritmo, é complicado ainda mais
por elementos sonoros, a saber, as palavras. O fato é que
a teoria de Prall é claramente aplicável apenas às artes pu­
ramente visuais ou puramente auditivas — pintura e mú­
sica — e sua extensão a outros campos, mesmo a poesia,
é uma projeção, mais do que uma conseqüência natural.
Em suma, a limitação inerente à teoria de Prall é sua
sujeição àquelas mesmas “ordens básicas” às quais
ela se aplica tão bem que praticamente tudo o que
ela diz a respeito de suas funções artísticas é verdade.
O princípio da “superfície estética”, seguido coerentemente,
60 SENTIMENTO E FORMA

na verdade leva àquela crítica purista que tem de condenar


a ópera como sendo uma arte híbrida, tolera o teatro ape­
nas enquanto o assimila à literatura, e tende a tratar temas
religiosos ou históricos na pintura como acidentes embara­
çosos de um desenho puro. Não leva a introvisão alguma sobre
as distinções e conexões das artes, pois as distinções básicas
que faz entre as ordens sensoriais são óbvias. Conseqüen-
temente, as conexões que ela permite — por exemplo, entre
música e poesia, ou música e dança, em virtude de seus in­
gredientes temporais — são também óbvias; óbvias, mas
algumas vezes enganosas.
A limitação não é em si uma razão para rejeitar uma
teoria. Prall conhecia as limitações de sua indagação e não
enfrentou os problemas que se encontravam fora de seu al­
cance . A única desculpa para descartar um princípio funda­
mental é que se tem uma idéia mais vigorosa, que realizará
facilmente a obra construtiva da idéia anterior, e fará algo
mais. O ponto fraco da estética de Prall reside, creio, numa
idéia errada das dimensões subjacentes às várias artes e,
portanto, dos princípios fundamentais de organização. A
nova idéia de estruturas artísticas, que me parece mais radi­
cal e, contudo, mais elástica do que a hipótese de Prall de
escalas e ordens espaço-temporais, provoca uma certa mu­
dança de foco na filosofia da arte; em vez de procurar ele­
mentos de sentimento entre os conteúdos sensoriais, ou qiuüia,
contidos literalmente no objeto de arte, somos levados dire­
tamente ao problema da forma criada (que nem sempre é
sensorial) e sua significação, a fenomenologia do sentimento.
O problema da criatividade, que Prall jamais teve ocasião
de mencionar, é, aqui, central; pois os próprios elementos, e
os conjunto dentro dos quais eles têm sua existência elementar
distinta, são criados, não adotados9.
Uma obra de arte difere de todas as outras coisas belas
pelo fato de ser “um espelho e uma transparência” — não, de
alguma maneira relevante, uma coisa, em absoluto, mas um
símbolo. Todo bom filósofo ou crítico de arte percebe, é
claro, que de alguma forma o sentimento é expresso na
arte; mas enquanto uma obra de arte é vista fundamental­
mente como um “arranjo” de elementos sensoriais tendo em
vista alguma inexplicável satisfação estética, o problema da
expressividade é realmente uma questão estranha. Prall
luta com cia durante um capítulo psicológico cuidadosamen-

U NRii uh ftfMiftinji o geometrias, pola estas sfto lógicas; mas os


MHUhtttiHi do exiBtência, os espaços, durações e cam-
|mw «t* n»rçs
SEMELHANÇA 61

te argumentado e, embora sua psicologia seja clara e exce­


lente, ela nos deixa com uma sensação de paradoxo; pois
o elemento emotivo na arte parece de alguma forma ser mais
essencial do que a própria experiência “estética” estrita, e
parece ser dado de uma maneira diferente; no entanto, a obra
de arte está afastada da emoção real e só pode sofrer danos
em qualquer comércio com associações sentimentais. Em cer­
to sentido, então, o sentimento deve estar na obra; da mesma
maneira como uma boa obra de arte esclarece e exibe as
formas e cores que o pintor viu, distinguiu e apreciou melhor
<do que os demais homens poderíam fazê-lo sem ajuda,
do mesmo modo ela esclarece e apresenta os sentimentos
próprios àquelas formas e cores. O sentimento “expresso” na
arte é “o sentimento ou emoção apresentado como o caráter
qualitativo de conteúdo imaginai” 101.
Aqui temos, essencialmente, o mesmo tratamento dò
sentimento que se encontra no ensaio de Baensch, “Kunst und
Gefühl”, exceto que Baensch chegou à conclusão de que nãò
se podería sequer dizer que o sentimento se encontra inteira­
mente na esfera sensorial que se podería considerar como
“conteúdo”, mas que ele permeava os elementos formais,
bem como os estéticos, de qualquer obra de arte. Ambos os
escritores, entretanto, procuram a salvação no mesmo tour
de force que consiste em simplesmente tratar os elementos
emotivos como qualidades de um objeto concreto, algo que
esse objeto inanimado, e não quem o percebe, de alguma
forma “tem” ; e ambos sabem que a “expressão” de senti­
mentos humanos reais por um objeto não-humano, que podè
ser analisado, sem relações espaço-temporais, apresenta um
paradoxo, e sabem que seu artifício filosófico é um recurso
desesperado.
Se se perguntar como um conteúdo imaginário qualitativo pode
apresentar sentimentos, diz Prall, como pode ser um sentimento real
que a arte expressa, chegamos ao suposto milagre que tão freqüente-
mente se diz que a arte é: a incorporação do espírito na matéria.
Mas o pensar não pode ter relação alguma com o milagre. E, uma
vez que o mais simples pensar verifica que as obras de arte expressam
de fato sentimentos, somos forçados, pelo caráter óbvio de nossos
dados, a procurar sentimentos dentro do conteúdo apresentado, como
sendo um aspecto dele, isto é, como parte integrante de seu caráter
realmente presente, ou como sua natureza qualitativa unitária en­
quanto um todo 10.

Penso que a solução da dificuldade esteja no reconheci­


mento de que o que a arte expressa não é um sentimento
10. /Md., p. 145.
11. Loc. cit., infra .
62 SENTIMENTO E FORMA

real, mas idéias de sentimento; da mesma forma que a lingua­


gem não expressa coisas e acontecimentos reais, mas idéias
a seu respeito. A arte é totalmente expressiva — cada linha,
cada som, cada gesto; e, portanto, é cem por cento simbólica.
Ela não é sensorialmente agradável e também simbólica; a
qualidade sensorial está a serviço de seu importe vital.
Uma obra de arte é muito mais simbólica do que uma pa­
lavra, que pode ser aprendida e mesmo empregada sem
qualquer conhecimento de seu significado; pois um símbolo
pura e totalmente articulado apresenta sua significação di­
retamente a qualquer espectador que chegue a ser sensível
às formas articuladas no meio dado12.
Uma forma articulada, entretanto, deve ser claramente
dada e compreendida antes de poder transmitir qualquer
importe, especialmente lá onde não há nenhuma referên­
cia convencional pela qual o importe é consignado à forma
como sendo seu significado inequívoco; a congruência, po­
rém, da forma simbólica e da forma de alguma experiên­
cia vital deve ser percebida diretamente apenas pela força
da Gestalt só. Daí a importância suprema de abstrair a forma,
eliminando todas as irrelevâncias que possam obscurecer sua
lógica e especialmente despojando-a de todos os seus signifi­
cados usuais de modo que possa estar aberta aos novos sig­
nificados. O primeiro passo é aliená-la da realidade, dar-
lhe “alteridade”, “auto-suficiência” ; isso é feito criando-se
uma esfera de ilusão em que ela funciona como Schein, mera
semelhança, livre de funções mundanas. O segundo passo
é torná-la plástica, de modo que possa ser manipulada de
acordo com os interesses da expressão em vez dos da signifi­
cação prática. Isso é realizado pelo mesmo meio — desli-
gá-la da vida prática, abstraí-la como livre invenção con­
ceituai. Apenas tais formas podem ser plásticas, sujeitas a
torsão, modificação e composição deliberadas tendo em
vista a expressividade. E, finalmente, ela deve tornar-se
“transparente” — o que acontece quando um insight da rea­
lidade a ser expressada, a Gestalt da experiência vivida guia
seu autor ao criá-la.
12. Frall chegou tão perto dessa compreensão que o fato de evitar
usar o termo “símbolo" para uma obra de arte parece ser premeditado.
Evidentemente ele preferiu a teoria especiosa que supõe que os senti­
mentos estão contidos nas qualidades sensorlals, a uma teoria semântica
da arte que o terla deixado exposto & acusação de intelectualismo
ou lconicismo. Assim, sustenta que um sentimento estã num a
pintura, e que nós o “temos’* quando olhamos para a obra. Compare-se,
por exemplo, a seguinte passagem com o que acabou de ser dito sobre
um símbolo apresentetivo aperfeiçoado: “O propósito da pintura, seu
ser efetivo, 6 justamente esse sentimento Incorporado que temos se,
com olhos abertos, sensíveis, olharmos para ela e deixarmos que seu
caráter tome-se o conteúdo de nossa própria vida afetiva consciente
no monmnto”. ( I b i d p. 163.)
SK M hLH A N Ç A t>3

Sempre que a habilidade artesanal é arte, estes prin­


cípios — abstração, liberdade plástica, expressividade —
são totalmente exemplificados, mesmo nas obras mais infe­
riores. Alguns teóricos atribuem valores diferentes às várias
manifestações da arte (por exemplo, desenho puro, ilustra­
ção, pintura de cavalete), classificando-as como tipos in fe ­
riores" c "superiores", dos quais apenas os “superiores” são
expressivos, e os "inferiores” meramente decorativos, dando
um prazer sensorial sem nenhum importe m aior1314. Uma
distinção desse tipo, porém, lança confusão em qualquer
teoria da arte. Se "arte” significa algo, sua aplicação deve
basear-se em um critério essencial, não em vários critérios
desvinculados — expressividade, agradabilidade, utilidade,
valor sentimental, e assim em diante. Se a arte é “a criação
de formas expressivas do sentimento humano”, então a gratifi­
cação dos sentidos deve ou servir esse propósito, ou ser irrele­
vante; e eu concordo plenamentc com Thomas Mann em que
não há artes superiores e inferiores, parciais e suplementa­
res, mas, como ele o expressou:
A arte é inteira e completa em cada uma de suas formas e ma*
festações; não precisamos somar as diferentes espécies para formar
um todo M.

O desenho puro, portanto, é um caso probatório, uma pe­


dra de toque do conceito de arte desenvolvido neste livro, e
merece, aqui, um exame mais detalhado. Pois é um fenôme­
no básico; no mundo inteiro encontram-se certos elementos
de expressão gráfica, padrões de cor em superfícies natu­
ral mente vazias — paredes, tecidos, cerâmica, placas de ma­
deira ou metal ou pedra — destinados apenas à visão, e
muito agradáveis a esse sentido. Algumas vezes servem
como símbolos mágicos, outras como substitutos ou lembre­
tes de objetos naturais; mas, com ou sem tais funções,
sempre preenchem uma finalidade à qual estão preeminen-
temente adaptados — decoração.
O que, então, é "decoração”? Os sinônimos óbvios são
“ornamentação”, "embelezamento” ; mas, como a maioria
dos sinônimos, não são bastante precisos. "Decoração” re­
fere-se não simplesmente à beleza, como "embelezamento”,
nem sugere a adição de um ornamento independente. “Deco-

13. Eugène Vèron è o mais conhecido expoente dessa concepç&o (yer


sua Aestheiics, especlalmente o Gap. VII). Mm compare-se também a
oplm&o multo mais recente de Henry Varnum Poor, de que "a deco-
raç&o perseguida enquanto decoraç&o pode chegar a ser t&o superficial
e limitada0 que ela exige alguma comblnaç&o com a “pintura realista”
para estimular a Imaglnaçfto (Magazine of Art, agosto, 1940).
14. Freud, Goethe, Wagner (1937), p. 139.
" 0 ponto interessante é que,
em cada uma destas inven­
ções, a forma é, de modo tão
inequívoco, uma flor."
Fig. 4

Assírio Indonésio
SEMELHANÇA 65

to perceptivo17 Mas compreensibilidade, clareza lógica, não


basta para criar um objeto virtual e separá-lo da realidade.
Círculos e triângulos, considerados em si mesmos, não são
obras de arte, como o são os desenhos decorativos. Numa
parte inicial de The Art in Painting, Barnes faz uma distin­
ção entre valores decorativos e expressivos18, que me parece
espúria; a decoração é expressiva19, não “estimulação ade­
quada” mas uma forma artística básica com um importe
emocional, como todas as formas criadas. Sua função não
é apenas ser agradável à percepção mas impregná-la e
transformá-la. É a educação da imaginação plástica. O de­
senho decorativo oferece a quem percebe — sem qualquer
regra ou explicação, puramente através de excmplificação —
uma lógica da visão. Esse fato já foi notado anteriormente;
mas o que não foi notado é o fato posterior, e crucial, de
que essa lógica não é a lógica conceituai de relações espa­
ciais que leva à geometria (toda e qualquer geometria)20.
Os princípios de visão que se tornam aparentes na estrutura
das formas decorativas são princípios de visão artística, pelos
quais os elementos visuais são extraídos do caos sensorial
amorfo para conformar-se, não com nomes e predicações,
como os dadoá da cognição prática, mas com o sentimento
biológico e sua eflorescência emocional, “vida” no nível hu­
mano. Eles são, ah initio, diferentes dos elementos que se
conformam ao pensamento discursivo; mas sua função na
construção da consciência humana é, provavelmente, tão
importante e profunda. A arte, como o discurso, é em toda
parte a marca do homem. Tal como a linguagem, sempre
que ocorre, divide-se em palavras e adquire convenções para
misturar os padrões dessas palavras semi-independentes a fim
de expressar proposições, do mesmo modo a gramática da
visão artística desenvolve formas plásticas para a expressão
de ritmos vitais básicos. Talvez seja por isso que certos
artifícios decorativos sejam quase universais; talvez seja a
convergência, mais do que a divergência, que explique os
espantosos paralelos de desenho que podem ser encontrados
em produtos culturais tão desvinculados entre si como borda­
dos chineses, potes mexicanos, decorações corpóreas dos
negros, e flores de gravadores ingleses.

17. Ver Walfgang Kflhler, G estalt Psychology (1929). eepeclalmente


o Cap. V, “Sensory organizatlan”.
18. Op. cií„ p. 30-31.
19. Numa passagem posterior, ele admite Isso e. efetlvamente,
chega à m&sma conclusfto que eu; mas ele Jamais chega a Justificar
ou a retratar-se de sua aflrmaç&o anterior.
20. O fato de deixar de reconhecer essa dlstlnç&o é que tez do ambicioso
trabalho de Blrkhoff, Aesthetic Measure, a especulaçfto curiosa, lnapll-
cável, sobre arte, que é.
66 SENTIMENTO E FORMA

O desenho decorativo puro é uma projeção direta do


sentimento vital para a forma visível e a cor. A decoração
pode ser altaménte diversificada, ou pode ser muito simples;
mas sempre tem aquilo que a forma geométrica, por exemplo,
uma ilustração em Euclides, não tem — movimento e re­
pouso, unidade rítmica, totalidade. Em vez de forma ma­
temática, o desenho tem — ou, antes, ele é — forma “viva”,
embora não seja necessário que represente nenhuma coisa
viva, nem mesmo vinhas ou pervincas. Áreas e linhas deco­
rativas expressam vitalidade naquilo que elas mesmas pare­
cem afazer"; quando retratam alguma criatura que podería
realmente fazer algo — um crocodilo, um pássaro, um
peixe — essa criatura pode tanto (e em algumas tradições
ainda mais) estar em repouso quanto em movimento. Mas
o próprio desenho expressa .vida. Linhas que se cortam
num ponto central, “emanam” desse centro, embora, na
realidade, nunca mudem sua relação com ele. Elementos
similares ou congruentes “repetem-se”, cores “equilibram-se,
embora não possuam peso físico, etc. Tódós esses termos
metafóricos denotam relacionamentos que pertencem ao obje­
to virtual, à ilusão criada, e são tão aplicáveis ao desenho
mais simples sobre um remo ou um avental, se o desenho for
artisticamente bom, quanto a uma pintura de cavalete ou
uma pintura mural.
Num pequeno manual sobre desenho decorativo, en­
contrei esta afirmação ingênua, normativa, acerca de beiradas
ornamentais: “As beiradas devem mover-se para a frente
e crescer enquanto se movem”21. O que significam as pala­
vras “mover” e “crescer” nesse contexto? A beirada está
fixada na superfície em que é pintada, impressa, bordada ou
esculpida, e seria difícil dizer, em relação a uma toalha de
mesa ou a uma página de rosto, qual direção é “para a fren­
te” O “movimento” da beirada não é realmente um movi­
mento no sentido científico, que é mudança de lugar; é a
semelhança de ritmo, e “para a frènte” é a direção em que
os elementos repetidos do desenho parecem comprimidos.
Muitas beiradas movem-se em ambas as direções, conforme
quisermos “lê-las”, mas algumas dão uma forte sensação
de movimento num sentido só. Tais efeitos surgem direta­
mente do desenho, e de nada mais; o movimento de um
desenho, para a frente, para trás, para fora, é inerente à sua
construção. Ora, em segundo lugar, o que se quer dizer com
“crescer”? Uma beirada nãô pode crescer e ficar maior do
que a margem que ela adorna, e nem seria desejável uma
'il Adolfo Uoul-Mangarei, A Metfiod for Creative Desiçn , p. 10.
Vêneto Mexicano

Chinês
Mexicano

Fig. 5

"Círculos tornam-se olhos. .


e espirais, caudas, caracóis,
orelhas, galhos, ondas que re­
bentam."

Mexicano

ChlnAi
SEMELHANÇA 67

tal maravilha. Não, mas a série de suas repetições parece


crescer e tornar-se mais comprida por uma lei própria que
faz com que ela continua. Isso, mais uma vez, é ritmo se­
melhança de vida (a definição de ritmo, que permite a
aplicação literal do termo a formas espaciais bem como a
formas temporais e, em algumas ocasiões, a outros arran­
jos diversos das séries, não pode ser dada aqui, mas é discuti­
da no Cap. 7 ). Todo movimento em arte é crescimento —
não crescimento de algo retratado, como uma árvore, mas de
linhas e espaços.
Existe uma tendência para essa ilusão em nossa “imagi­
nação primária”, nosso uso prático da visão. Linhas e mo­
vimento estão intimamente relacionados em termos de idéia,
como também estão linhas e crescimento. Um camundongo
correndo pelo piso descreve um caminho, uma linha ideal
que cresce com o seu avanço. Dizemos que o camundongo
correu para baixo do sofá e ao longo da parede; também pode­
mos dizer que seu caminho percorre esse curso. Uma pessoa
“escrevendo no ar” faz com que letras apareçam em nossa
imaginação, linhas invisíveis que crescem à nossa frente
embora nossos olhos vejam apenas sua mão que se move.
Numa beirada ornamental, não existe absolutamente
nada que se mova, nenhum camundongo ou mão encabe­
çando a linha que avança. A própria beirada percorre a
borda da toalha de mesa ou as margens de uma página.
Uma espiral é uma linha que avança, mas o que realmente
parece crescer é um espaço, a área bidimensional que ela
define.
A explicação clássica de tais efeitos dinâmicos daqui­
lo que, afinal, são marcas perfeitamente estáticas sobre um
fundo, é que sua forte “persuasão do olho” faz com que
esse órgão verdadeira e literalmente se movimente e a sensa­
ção nos músculos oculares faz com que nós, na realidade,
sintamos o movimento22. Na vida quotidiana, porém, nossos
olhos passam de uma coisa a outra com esforços musculares
muito maiores, e as coisas num quarto não parecem estar
correndo por ali. Uma pequena parte de uma beirada como a
que vemos aqui

22. Essa hipótese íol levantada por Theodor Llpps, em sua Aeathetio
e outros escritos, e íol defendida por Vlolet Paget (Vernon Lee), espo-
clalmente em seu bem conhecido pequeno livro, The Beautiful.
68 SENTIMENTO E FORMA

é apreendida num só olhar, praticamente sem movimento


ocular. Na verdade nada se move o bastante para dar-nos
uma sensação de movimento. O desenho, contudo, é uma
forma simbólica que abstrai a continuidade, direitura
e energia do movimento, e transmite a idéia desses ca­
racteres abstraídos exatamente como qualquer símbolo
transmite seu significado. De fato, ele apresenta algo mais
complexo do que a essência de movimento, o que podería
fazer se meramente conotasse movimento ao estimular di­
minutos movimentos em nossos olhos: a saber, a idéia de
crescimento.
Compreender como uma linha que avança gera a ilu­
são de crescimento envolve-nos realmente em toda a ques­
tão de aparência criada; e a pergunta posterior: por que
as beiradas que se “movem” devem “crescer”, levanta a
questão final da forma e do sentimento em arte. Vejamos
que luz pode ser lançada sobre o problema e qual a solução
oferecida pela teoria da semelhança e do importe simbólico.
Em certos desenhos lineares, que, evidentemente, em
termos físicos estão perfeitamente imóveis sobre um fundo,
parece existir movimento, embora nada esteja mudando de
lugar. Por outro lado, onde o movimento realmente ocorre,
ele define uma linha conceituai duradoura mesmo quando
não deixa vestígio algum. O camundongo que corre parece
cobrir um caminho que está no piso, e a linha imóvel, pinta­
da, parece correr. À razão disso é que ambos incorporam
o princípio abstrato de direção, em virtude do qual eles são
bastante congruentes logicamente para serem símbolos um
do outro; e no uso quotidiano, inteligente, da visão, deixa­
mos que um substitua o outro todo o tempo, embora não o
saibamos. Não é uma função que é primeiramente conce­
bida discursivamente e depois atribuída a um símbolo possí­
vel, mas é percebida e exibida não-discursivamente bem antes
de ser reconhecida num dispositivo científico (como o é na
linguagem da física, em que os vetores são indicados cònven-
cionalmente por flechas). O movimento, portanto, está re­
lacionado logicamente à forma linear, e onde uma linha é
ininterrupta, e formas de apoio tendem a dár-lhe direção,
sua simples percepção está carregada com a idéia de mo­
vimento, que brilha através de nossa impressão do dado
scnsorial real e funde-se com ele na apercepção. O resultado
é uma ilusão artística muito elementar (não uma delusão,
pois, ao contrário da delusão, ela sobrevive à análise), que
chamamos de “forma viva”
Giotto, A Saudação

"Do começo ao fim, cada


pincelada é composição."

Fig. 6

Catedral de Exeter, face oeste

"As grandes catedrais abrigam um grande número de estátuas


diretamente relacionadas com a criação arquitetônica, mas
que não criam arquitetura."
Stonehenge

"O templo realmente formou o maior mundo espacial dos ho­


mens. . . Podia-se ver os corpos celestes surgindo e se pondo
na moldura que o templo definia."
SEMELHANÇA 69

Esse termo, novamente, justifica-se por uma conexão


lógica existente entre o dado semi-ilusório e o conceito de
vida, pela qual o primeiro é um símbolo natural do último;
pois “forma viva9’ exibe diretamente o que é a essência de
vida — mudança incessante, ou processo, a articular uma
forma permanente.
Ò caminho de um movimento físico é uma linha ideal.
Numa linha que “tem movimento”, há um movimento
ideal. No fenômeno que chamamos de “vida”, existem real­
mente tanto a mudança contínua quanto a forma perma­
nente; mas a forma é feita e mantida por disposições com­
plicadas de influências mútuas entre as unidades físicas
(átomos, moléculas, depois células, depois órgãos), com o
que as mudanças tendem sempre a ocorrer de certas manei­
ras proeminentes. Em vez de uma simples lei de transfor­
mação, como a que encontramos em transformações inor­
gânicas, as coisas vivas por um processo cumulativo, elas
assimilam elementos do meio que as rodeia e esses
elementos enquadram-se dentro da lei de modificação
que é a forma orgânica da “vida”. Essa assimilação de fatores
não pertencentes originalmente ao organismo, pela qual
aqueles entram na vida deste, é o princípio de crescimento.
Uma coisa que cresce não precisa na realidade tornar-se
maior; uma vez que a ação metabólica não pára quando uma
substância não-viva foi assimilada e tornou-se viva, mas é
um processo contínuo de oxidação, os elementos separados
também renunciam ao padrão orgânico; eles se dividem nova­
mente em estruturas inorgânicas, isto é, morrem. Quando o
crescimento é mais vigoroso que a decomposição, a forma
viva torna-se maior; quando estão equilibrados, ela se auto-
perpetua; quando a decomposição ocorre com maior rapidez
do que o crescimento, o organismo está em decadência. Num
determinado ponto, o processo metabólico pára repentina­
mente, e a vida findou.
A permanência da forma, então, é o alvo constante da
matéria viva; não o objetivo final (pois é o que, no final,
falha), mas a coisa que está perpetuamente sendo realizada
é sempre, a cada momento, uma realização, porque depende
inteiramente da atividade de “viver”. Mas o próprio “viver”
é um processo, uma contínua modificação; se se imobiliza, a
forma desintegra-se — pois a permanência é um padrão de
modificações.
Nada, portanto, é tão fundamental na estrutura de nosso
sentimento quanto a sensação de permanência e mudança e
unidade íntima entre ambas. Aquilo que chamamos de “mo­
vimento” na arte não é necessariamente mudança de lugar,
70 SENTIMENTO E FORMA

mas c a mudança tornada perceptível, isto é, imaginável, de


alguma maneira. Qualquer coisa que simbolize a mudança
de modo que a nós nos pareça está-la observando, é o que
os artistas, com mais intuição do que convenção, chamam
de elemento “dinâmico”. Pode ser um “acento dinâmico”
na música, fisicamente nada além de sonoridade acentuada,
ou uma palavra carregada, mais do que outras, de emoção, ou
uma cor que é “excitante” lá onde ela se acha, isto é, fisica­
mente estimulante.
Uma forma que exemplifica a permanência, tal como
uma linha fixada ou um espaço delimitado (os esteios mais
permanentes da visão), simboliza, todavia, o movimento, traz
consigo o conceito de crescimento, porque o crescimento é
a operação normal daqueles dois princípios conjugados em
mútua dependência. Conseqüentemente, a afirmação meta­
fórica: “As beiradas devem avançar para a frente, e crescer
à medida que avançam” é perfeitamente racional se conside­
rarmos que, e por que, elas parecem fazer tais coisas. Mas
por que “devem” elas ser desenhadas a fim de que o pare­
çam? Porque essa ilusão, esse parecer, é o símbolo real do
sentimento. O padrão elementar de sentimento expresso
em tais formas mundialmente aceitas como símbolos de
“crescimento” é a sensação de vida, a “realização” mais pri­
mitiva; e não c refletida nas linhas materiais, mas na coisa
criada, no “movimento” que têm. A dinâmica, que é na rea­
lidade uma ilusão, é que copia a forma do sentimento vital.
ê com a finalidade de serem expressivas que as beiradas
precisam movimentar-se e crescer.
O “movimento” de um desenho, porém, reside sempre
numa infra-estrutura de estabilidade sentida; pois, ao con­
trário do movimento real, não está envolvido com mu­
danças. A única pessoa, pelo que eu sei, que reconheceu
claramente essa característica do espaço plástico não é um
pintor, mas sim um músico, Roger Sessions. Num curto
ensaio, notavelmente perspicaz, “The Composer and His
Message” 23 (ao qual provavelmente voltarei mais de uma
vez), Sessions escreveu:

As artes visuais governam um mundo de espaços, e parece-me


que talvez a sensação mais profunda que derivamos do espaço não
é tanto uma sensação de extensão, quanto de permanência. No nível
mais primitivo, sentimos que o espaço é algo permanente, funda-
menialmente inalterável; quando o movimento é apreendido através
do olho, ele ocorre, por assim dizer, dentro da infra-estrutura está­
tica, e o impacto psicológico dessa infra-estrutura é muito mais po-

23 Em The Intent o} the Artist, editado por Augusto Centeno.


Ver p 106.
SEMELHANÇA 71

deroso do que aquele das vibrações que ocorrem dentro de seus


limites.

Essa dualidade de movimento-na-permanência é, de fato,


o que efetua a abstração do dinamismo puro e cria a seme­
lhança de vida, ou a atividade que mantém sua forma.
“Expressão”, no sentido lógico — apresentação de uma
idéia por meio de um símbolo articulado — é o poder domi­
nante e o propósito da arte. E o símbolo é, do começo ao fim,
algo criado. A ilusão, que constitui a obra de arte, não é
um mero arranjo de materiais dados num padrão estetica­
mente agradável; ela é o que resulta do arranjo, e é literal­
mente algo que o artista faz, não algo que ele encontra. Ela
vem junto com sua obra e extingue-se com sua destruição.
Produzir e manter a ilusão essencial, destacá-la clara­
mente do mundo circunvizinho da realidade e articular sua
forma a ponto de ela coincidir inequivocamente com formas
de sentimento e de vida, é a tarefa do artista. Para tais fins,
ele usa quaisquer materiais que se prestem ao tratamento
técnico — tons, cores, substâncias plásticas, palavras, gestos
ou qualquer outro meio físico24. O fazimento da “semelhan­
ça” e a articulação da forma vital dentro de sua armação
é, portanto, o nosso tema condutor, do qual todos
os outros problemas da arte — os modos de imaginação, a
natureza da abstração, os fenômenos do talento e do gênio,
etc. — receberão a luz que a idéia central pode lançar por
implicação, o que constitui a força filosófica e o valor prag­
mático dos conceitos.

24. A proposição frequentemente feita de que a pintura n&o pode


incorporar nada além da cor, a música nada além do tom, etc., n&o é,
penso, incondicionalmente verdadeira. Esse ê um problema que a teoria
da forma criada est& mais apta a resolver do que qualquer teoria basea­
da no melo artístico (Alexander, Prall, Fry), porque ela admite o
principio dc assimilação discutido no Cap. 10.
5. Espaço Virtual

As formas fundamentais que ocorrem nas artes deco­


rativas de todas as épocas e raças — por exemplo, o círculo,
o triângulo, a espiral, a paralela — são conhecidas como
motivos de desenho. Elas não são “obras” de arte, nem mes­
mo ornamentos, elas mesmas, mas prestam-se à composição e
são, portanto, incentivos à criação artística. A palavra “mo­
tivo” evidencia essa função: motivos são recursos de organi­
zação que dão à imaginação do artista um impulso e, assim,
“motivam” a obra, num sentido perfeitamente ingênuo. Eles
a impulsionam para a frente, e guiam seu progresso.
Algumas dessas formas básicas sugerem formatos de
coisas familiares. Um círculo com um centro marcado e um
desenho a emanar do centro sugere uma flor, e essa insi­
nuação é capaz de guiar a composição do artista. Repenti­
namente, surge um novo efeito, há uma nova criação —
uma representação, a ilusão de um objeto.
A roseta floral é um dos mais antigos e mais ampla­
mente difundidos desses desenhos ornamentais com referên­
cia representativa óbvia. Encontramo-la em vestes assírias,
em entalhes peruanos, em peitorais romanos, vasos chineses,
instrumentos dos índios do Noroeste, mobília e cerâmica
camponesas de toda a Europa; e nas rosáceas das catedrais
góticas. O tratamento freqüentemente é muito formal, bas­
tante fantástico em termos botânicos; o centro pode ser
uma espiral; as pétalas, simples linhas radiais, ou círculos
74 SENTIMENTO E FORMA

à volta de um anel central, ou circundados por um grande


círculo, ou podem ser ovais ou triângulos ou mesmo linhas
convexas formando aros concêntricos. O ponto interessante é
que em cada uma dessas invenções a forma seja tão inequivo­
camente uma flor (cf. Fig. 4). De repente, o elemento de
representação está não apenas presente, mas parece ser o
elemento dominante. De costume não pensamos em tais de­
senhos como sendo formas geométricas interpretadas pictori­
camente, mas como figuras convencionalizadas de flores. É
uma suposição comum que as pessoas primeiramente copia­
ram a aparência de flores reais e depois, por nenhuma razão
muito evidente, “abstraíram” todas essas formas estranhas
do retrato fiel. Acredito que, na verdade, um estudo com­
parativo da arte decorativa e da primitiva arte representativa
sugere forçosamente que a forma vem em primeiro lugar e
que a função representativa é a ela acrescidax. Gradualmente,
as formas decorativas são cada vez mais modificadas a fim
de retratar todo tipo de objetos — folhas, vinhas, as formas
curiosas da vida marinha, vôos de pássaros, animais, pessoas,
coisas. Mas os motivos básicos permanecem: aros tomam-se
olhos sem sofrer qualquer modificação, triângulos tornam-se
barbas, e espirais, cachos, orelhas, ramos, ondas que se
quebram (cf. Fig. 5 ) . O ziguezague pode decorar uma ser­
pente do mesmo modo como decora as bordas de uma
jarra, ou pode representar a serpente diretamente. Gradual­
mente as formas elementares são cada vez mais sintetizadas
em figuras representativas, até parecerem desaparecer; mas,
muitas vezes, um pouco de atenção revela-as mesmo no
tratamento representacional avançado e, onde quer que as en­
contremos, sua função principal é a função primitiva de
desenho decorativo.
Uma alteração semelhante ocorre no desenvolvimento
da cor. A princípio, as cores primárias são as únicas presen­
tes e parecem ter apenas funções ornamentais. Na genuína
arte popular, cervos pretos com olhos azuis e cervos azuis com
olhos pretos podem altemar-se em redor de um vaso, e
guerreiros, bem como palmeiras, vêm em todas as cores.
Depois a convenção fixa cores que têm alguma relação com
as cores reais da natureza, mas que não denotam nenhum
esforço a fim de copiar efeitos específicos. Assim, nas
pinturas egípcias, os homens apresentam a cor de terracota e
as mulheres, branco ou marrom-claro; nos saltérios medievais,
muitas vezes os anjos têm literalmente cabelos dourados e,
1. Isso náo é uma “lei”, considerada universalmente verdadeira,
porque pode haver formas de arte que partem diretamente de fetiches,
signos, etc., isto é. de representações. Mas a fonte mais natural e po­
tente de estilos é. acredito, a forma decorativa, e mesmo criações de
origem mais prática provavelmente desenvolvem-se sob sua influência.
HSPÀÇO VIRTUAL 75

na arte camponesa, bigodes escarlates e tranças amarelo-ca-


nário estão na ordem do dia. O uso da cor, como o de for­
mas, é primeiramente ornamental e posteriormente represen­
tativo de atributos naturais.
A decoração, baseada em formas quase geométricas que
são “congeniais” à nossa intuição espacial, e guiada pelo
interesse em continuidades, ritmos e dinâmica emocional sen­
tidas, é uma ordem simples, mas pura e abstrata, da forma
expressiva. Quando os desenhos incluem elementos pictóri­
cos — cães, baleias, rostos humanos — essas imagens são
simplificadas e distorcidas com plena liberdade a fim de
ajustarem-se ao resto do padrão. Sua representação gráfica
nunca é uma cópia de impressões visuais diretas mas, sir
uma formulação, tuna modelação, uma definição das pró­
prias impressões de acordo com os princípios da expressivi­
dade, ou forma vital; é simbólização desde o início. Mas, uma
vez que a sugestão de objetoé foi seguida, o interesse repre­
sentativo faz com que a arte transcenda seus motivos elemen­
tares; surge um novo método de organização — a adaptação
dos antigos recursos decorativos à descrição sistemática de
objetos 2.
A importância desse princípio aumenta à medida
que as formas tornam-se mais complicadas, assimétricas e
sutis, criadas não apenas por meios óbvios como contornos
e cores puras, mas também por ilusões de espaço retrocedente
e pela orientação das unidades do desenho umas em
direção às outras. A interpretação de tais unidades como
formas de objetos é um auxílio inestimável na criação dó
novos relacionamentos espaciais, na distribuição de centros
de interesse e na composição destes numa unidade visual.
Por séculos, na Europa e na Ásia, o desenho e a pintura
evoluíram principalmente seguindo linhas de orientação repre-
sentacionais; e, assim como no desenho decorativo falamos de
ziguezagues e círculos como sendo “motivos”, agora também
aplicamos o “motivo” àquilo que é retratado pelas linhas e
formas.
Mas, não importa quantas possibilidades estejam abertas
à imaginação artística pelo poder de representar coisas, a
imitação jamais é o principal dispositivo na organização. O
propósito de toda arte plástica é articular formas visuais e
apresentar tais formas — tão imediatamente expressivas do
2. Leonardo, em seu Tratado sobre Pintura , aconselha os estudan­
tes a olharem para formas casuais como rachaduras no reboque e nós
nas tábuas e a tentar transformá-las em figuras, Isto é, a atribuir-lhes
formas de pessoas e coisas. Isso, diz ele, é multo bom para a imagina­
ção do pintor. Parece tolice; mas era Leonardo um tolo? Ou será que
ele também sentia que ,a “realidade” visual é composta pelas formas
que expressam a' vida interior de um homem?
76 SENTIMENTO E FORMA

sentimento humano que parece estar carregada de sentimento


— como o único ou, pelo menos, o supremo objeto da percep­
ção . Isso quer dizer que para o espectador a obra de arte deve
ser não apenas uma forma no espaço, mas uma enformação
do espaço — de todo o espaço que lhe é dado. Quando in­
vestigamos sistematicamente tudo o que está envolvido nessa
proposição, somos levados perpetuamente a questões cada vez
mais profundas, culminando no problema da criação: O que
é criado, e como é criado algo, pelo processo de desdobrar
cores sobre um fundo?
O espaço, como o conhecemos no mundo prático, não
tem forma. Mesmo na ciência, não a tem, embora tenha “for­
ma lógica”. Há relações espaciais, mas não há nenhuma tota­
lidade concreta do espaço. O próprio espaço é amorfo em
nossas vidas ativas e puramente abstrato no pensamento cien­
tífico. É um substrato de toda nossa experiência, descoberto
gradualmente pela colaboração de nossos vários sentidos —
ora visto, ora sentido, ora percebido como um fator em
nossos movimentos e ações — , um limite a nossa audição,
um desafio àquilo que podemos alcançar. Quando a experi­
ência espacial da vida quotidiana é refinada pela precisão e
artifício da ciência, o espaço toma-se uma coordenada nas
funções matemáticas. Jamais é uma entidade. Como, então
pode ele ser “organizado”, “modelado” ou “articulado”?
Deparamo-nos com todos esses termos nas mais sérias obras
de estética.
Penso que a resposta é que o espaço em que vivemos
e agimos não é, em absoluto, aquilo que é tratado na arte.
O espaço harmoniosamente organizado numa pintura não é
o espaço experimental, conhecido pela vista e pelo tato, pelo
movimento livre e pelos obstáculos, por sons próximos ou
longínquos, vozes perdidas ou reecoadas. É uma questão
inteiramente visual; para o tato, a audição e a ação muscular,
ele não existe. Para eles, existe uma tela chata, relativamente
pequena, ou uma fria parede vazia, onde, para o olho, há
um espaço profundo, cheio de formas. Esse espaço puramente
visual é uma ilusão, pois nossas experiências sensoriais não
concordam a seu respeito na informação. O espaço pictórico é
organizado não apenas por meio da cor (incluindo branco e
preto e toda a gama de cinzas entre elas), ele é criado; sem
as formas organizadoras, simplesmente não está presente.
Como o espaço “atrás” da superfície de um espelho, ele é
aquilo que os físicos chamam de “espaço virtual” — uma
imagem intangível.
O espaço virtual é a ilusão primária de toda arte plás­
tica. Cada elemento do desenho, cada uso da cor e seme­
lhança de forma, serve para produzir, manter e desenvolver
ESPAÇO VIRTUAL 77

o espaço da pintura que existe apenas para a visão. Sendo


unicamente visual, esse espaço não tem continuidade com o
espaço em que vivemos; ele é limitado pela moldura, ou
pelos vazios que o circundam, ou outras coisas incongruentes
que o isolam. Mas não se pode nem mesmo dizer que seus
limites o dividam do espaço prático; pois uma fronteira que
divide coisas também, sempre, liga-as, e entre o espaço da
pintura e qualquer outro espaço não há ligação. O espaço
virtual, criado é intéiramente còntido em si mesmo e inde­
pendente.
O primeiro; teórico, da arte que: reconheceu a natureza
puramente visual e, de outra maneira, ilusória do espaço
pictórico, e que cõmpreéndeu süa suprema importância para
os objetivos ê práticas dos pintores, foi Adolf Hildebrand*
Num pèqiieno, mas muito sério livro, The Problem of Fôrm
in Painting and Scuípturè, ele analisou 0 processo da repre­
sentação pictórica do ponto de vista da criação do espaço,
que denominou de procesáò “arquitetônico”. O termo hão é
completamente feliz, uma Véz que sugere “arquitetural”, que
não é seu sentido. Ele pretendia simplesmente conotar que á
obra do artista é Uma construção do espaço para apenas um
sentido, ã saber, a visão. Chamou essa imagem virtual de
“espaço perceptivo”, còm ò significado “visual” ; e por “mé­
todo arquitetônico” queria dizer á construção sistemática dé
formas que deveriám apresentar e articular tal espaço.
Tudo o que é relevante e artisticamente válido numa pin­
tura deve ser visual; e tudo o que é visual serve a finalidades
arquitetônicas. Onde, nà vida prática, empregamos outras
faculdades além da visão a fim de completar nossas experi­
ências visuais fragmentárias — por exemplo, a memória, me­
didas registradas, crenças sobre a constituição física das
coisas, conhecimento de suas relações no espaço mesmo
quando elas estão atrás de nós ou bloqueadas por outras
coisas —, no espaço virtual de uma pintura não há tais dados
de apoio. Tudo o que é, de alguma forma, dado, é dado à
visão; conseqüentemente, precisamos ter substitutos visuais
para as coisas que normalmente são conhecidas pelo tato, pelo
movimento ou pela inferência. Daí por que uma cópia direta
do que vemos não basta. A cópia de coisas vistas necessita­
ria a mesma suplementação a partir de fontes não-visuais exi­
gidas pela percepção original. Os substitutos visuais para os
ingredientes não-visíveis na experiência do espaço constituem
a grande diferença entre a representação fotográfica e a re­
presentação criativa; esta última é necessariamente um desvio
da imitação direta, porque é uma construção de entidades es­
paciais apenas através da cor (talvez apenas de matizes va­
riados de uma cor), através de todos os tipos de dispositi­
78 SENTIMENTO E FORMA

vos a fim de apresentar imediatamente com completa autori­


dade, a ilusão primária de um espaço total perfeitamente vi­
sível e perfeitamente inteligível.
O material obtido através de um estudo direto da natureza, diz
Hiidebrand, é, pelo processo arquitetônico, transformado numa uni­
dade artística. Quando falamos do aspecto imitativo da arte, refe-
rimo-nos ao material que ainda não foi desenvolvido dessa ma­
neira . . .
Revendo a produção artística de épocas antigas, descobrimos
que a estrutura arquitetônica de uma obra de arte destaca-se em
toda parte como o fator supremo, enquanto que a mera imitação é
uma coisa que se desenvolveu apenas gradualmente 3.
Se comparamos essa observação com descobertas na
esfera da arte popular, a coincidência é espantosa. O pro­
cesso arquitetural, como é concebido por Hiidebrand, é a
construção e ordenamento de formas no espaço de tal modo
que elas definam e organizem o espaço. Mas um espaço per-
ccptualmente definido é uma forma: portanto, a modelagem
completa de um campo visual dado é uma obra de arte pic­
tórica.
O conceito central da estética de Hiidebrand é o con­
ceito do campo visual, ou plano da pintura. Toda sua crítica
de arte, de fato, é baseada em valores pictóricos — idiossin­
crasia curiosa num escultor! Mas, dentro de seus limites, a
saber, a projeção gráfica efetuada pela pintura, desenho, in­
cisão ou trabalho em baixo-relevo, sua análise do espaço
criado é tão direta e esclarecedora que merece ser exposta.
O processo arquitetônico, diz ele, sempre trata os ele­
mentos da visão como estando espalhados num plano oposto
ao olho perceptor. As formas elementares a partir das quais os
pintores primitivos faziam suas representações estavam exclu­
sivamente contidas num tal plano. Mas, na verdade, nossos
olhos têm a capacidade de focalizar em diferentes pro­
fundidades, dando à visão um poder de penetrar por maiores
distâncias. Não obstante, com qualquer mudança de distân­
cia, a visão é aperfeiçoada apenas quando encontra um novo
plano. Organizar a visão novamente numa profundidade dife­
rente requer a determinação de um novo plano ideal.
A experiência no espaço composto e amorfo da percep­
ção comum ensinou-nos a interpretar certas linhas como
“cscorçadas’\ isto é, como sinais de coisas estendendo-se
numa direção perpendicular a nosso campo de visão. Na arte
gráfica, entretanto, tais linhas servem apenas de mediação
entre os vários planos, ou camadas de desenho, num es­
paço visual complexo. No momento em que nos preocupamos
em construir aquilo que se prolonga na direção oposta a3
3. The Problem of Form in P ainting and Sculpture, p. H-12.
ESPAÇO VIRTUAL 79

nós, não estamos mais lidando com formas visuais, mas com
coisas e com a história delas. Em termos artísticos, coisas e
acontecimentos são apenas motivos dos quais são feitas as
formas, e através dos quais as formas são relacionadas, a
fim de definir o espaço visual e exibir o caráter deste.
Ao relegar a imitação e seus modelos naturais a seus
devidos lugares, Hildebrand enfrenta abertamente o pro­
blema da realidade e da ilusão* Com inocência filosó­
fica, ele chama de “forma real” o caráter das coisas, como
as vimos, sentimos, ou construímos pelo trabalho conjunto
de todos os nossos sentidos. Além de qualquer ingênua crença
ontológica que possa transmitir, “real” não é um mau ter­
mo, pois se refere às características de coisas que são apren­
didas e avaliadas na esfera de nossas ações. Essa “forma
real” é aquilo com que o artista trabalha; aquilo para que
ele trabalha, por outro lado, é para esclarecer a “forma
perceptiva”, ou aparência visível desta forma. Tudo o que é
importante para ele é o que contribui para a forma perceptiva.
Essa forma é uma semelhança de coisas, e os planos de
visão, escalonados um atrás do outro face ao olho que per­
cebe, são uma semelhança de espaço. Pertencem àquele
espaço virtual que, acredito, é a primeira criação na arte
plástica — a ilusão primária em que todas as formas harmo­
niosas existem como ilusões secundárias, símbolos criados
para a expressão de sentimento e emoção.
O espaço virtual, sendo inteiramente independente e
não uma área local num espaço real, é um sistema total, auto-
suficiente. Quer seja bi ou tridimensional, ele é contí­
nuo em todas as suas possíveis direções, e é infinita­
mente plástico. Em qualquer obra de arte, a dimensionali-
dade de seu espaço e o caráter contínuo deste acham-se sempre
implicitamente assegurados . As formas perceptivas são extraí­
das dele e devem parecer ainda estar relacionadas a ele ape­
sar de seus limites bem definidos. Hildebrand encerra essa
idéia com uma parábola que provavelmente é o que me­
lhor a explica.
Imaginemos o espaço total — diz ele — como um corpo de água
em que podemos imergir certos recipientes e, assim, conseguimos
definir volumes individuais de água sem, entretanto, destruir a idéia
de uma massa contínua de água circundando tudo.
A apresentação pictórica tem por finalidade esse despertar da
idéia de espaço, e isso exclusivamente pelos fatores que o artista
apresenta 4.
Se, por conseguinte, o artista apresenta semelhanças de
objetos, pessoas, paisagens, etc., é por seus valores visuais
4. lJyiã., p. 53-55.
80 SENTIMENTO E FORMA

enquanto porções do espaço perceptual. Ao contrário da


maioria dos escritores de estética, Hildebrand define este
importante conceito:
Por valores visuais do espaço queremos dizer aqueles valores
de um objeto que resultam apenas em percepções puramente espa­
ciais tendentes à concepção gefal dé um segmento de espaço. Por
relações puramente espaciais queremos dizer percepções independen­
tes da organização ou funcionamento do objeto envolvido. Tome-
mos uma forma à qual é dada expressão visual por contrastes de luz e
sombra. Através de suas relações particulares e posições respectivas,
esses diferentes graus de luminosidade e escuridão afetam o especta­
dor como se estivessem realmente modelando o objeto — produz-se
um efeito combinado existente apenas para o olho. por fatores que,
de outro modo, não estão necessariamente ligados5 6.

A representação, em outras palavras, tem a finalidade


de criar formas individuais em relação visível umas com
as outras. Ela faz com que á imaginação ajude a visão ã
estabelecer proporções virtuais, ligaçõeè e pontos focais. A
sugestão dos objetos familiares, usados dessa maneira, é essen­
cialmente um recurso para construir volumes, distâncias, pla­
nos de visão e o espaço entre elesre, como tal, é um fator
genuinamente artístico. Mais uma vez a ilustração concreta de
Hildebrand é provavelmente a melhor glosa a nosso texto:
Para dar o exemplo mais simples, pense-se num plano. É evi­
dente que um plano é percebido com maior clareza quando algo é
colocado sobre ele, por exemplo, uma árvore — uma vertical. Com
alguma coisa em pé sobre ele, a porção horizontal da superfície ex­
pressa-se imediatamente: pode-se dizer que ela se torna espacial­
mente ativa. A árvore é afetada da mesma maneira. A tendência
vertical de sua forma é acentuada pela superfície horizontal da qual
surge... Umas poucas nuvens no horizonte atraem nosso olhar, e
passamos do plano frontal vertical para o plano de fundo, destarte
experimentando, efetivamente, pelo mais simples dos meios, todas
as dimensões do espaço ao mesmo tempo5.

Árvores, nuvens, horizontes, construções e navios, pes­


soas em muitas posições, rostos em várias luzes, todas produ­
zem súbitas revelações de forma expressiva para uma pessoa
visualmente criativa. Todos podem ser representados na esfe­
ra virtual de intervalos e formas puramente aparentes. Mas não
é, como disseram nomeadamente Croce e Bergson, a exis­
tência real do objeto a ser retratado, que o artista compreen­
de melhor do que as outras pessoas. É a semelhança, a sua
aparência e o importe emocional de sua forma, que ele per­
cebe, enquanto que outros apenas “lêem o rótulo” de sua na­
tureza real e repisam a realidade.

5. Loc. cit.
6. Op. cit.t p. 50-51.
ESPAÇO VIRTUAL 81

O problema da “imitação”, ou reprodução da aparência


de um modelo, tem incomodado os filósofos desde que Platão
censurou a arte como sendo “uma cópia de uma copia”.
Quase que todo escritor acadêmico de estética, em face da
antinomia da imitação e criação, refugia-se na doutrina
de que o artista seleciona certas impressões sensoriais, de
toda a reserva à sua disposição, e que sua criatividade reside
no novo efeito obtido por esse processo judicioso; o
resultado revela seu gosto individual, isto é, sua própria per­
sonalidade, ou então suas ênfases e expunções transmitem
uma introvisão referente à “realidade” de seu objeto, que ele
expõe como realmente é — não como uma espécie de coisa
ou esta ou aquela criatura, mas um indivíduo único que ele
“viu apaixonadamente” . Em um e outro caso, ele suprime ,o
que é inessencial e ressalta o que é essencial para o tema a
fim de revelar a natureza deste ou os sentimentos do artista
em relação a ele.
Mas uma análise desse gênero deixa-nos com uma con­
fusão fundamental entre natureza e arte e amarra a verdade
artística, em última análise, ao mesmo poste da verdade
proposicional — isto é, à coisa retratada. Não é de espantar,
então, que alguns estetas pretendam que nossa percepção das
coisas como vistas pelo pintor não é de um tipo diferente de
nossas próprias percepções na vida prática, mas difere desta
apenas em contexto e uso7. “Criação” toma-se uma palavra
algo pretensiosa para ser aplicada às modificações que um
artista pode efetuar na aparência das coisas através da seleção
e da ênfase. Alguns espíritos modestos, portanto, contentam-
se em chamar a arte de uma “re-criação” da experiência, uma
“transcrição” do mundo contemporâneo. Mas aqui não há
princípio algum de construção livre; todos os desvios do lu­
gar-comum são sinais de desequilíbrio mental, de “recriação”
de pesadelos. A liberdade do artista consiste em pequenas
liberdades, licenças poéticas ao editar o livro da natureza
na transcrição que ele faz. Quando DeWitt Parker diz
que um pintor recria o que vê, mas que “para sua visão crí­
tica haverá alg o ... de mais ou de menos, algo a acrescentar
ou algo a excluir,. . . ” 8 não há como fugir da conclusão de
que o artista está acrescentando toques à realidade, tornando
mais bonito o mundo real.
Comparem com isso a arrojada declaração de princípios
no livro de Hildebrand: Os fatores que o artista apresenta
são aqueles que nos tornam conscientes das formas re­
lacionadas no contínuo de um espaço perceptivo total.
7. Cf. Cap. 3. nota 13.
8. The Analysia of Art (1926), p. 51.
82 SENTIMENTO E FORMA

Todas as acentuações e seleções, bem como distorções


radicais ou desvios completos de qualquer “forma real” de
objetos têm o propósito de tornar o espaço visível e sua con­
tinuidade sensível. O próprio espaço é uma imagem projetada,
e tudo o que é retratado serve para defini-la e organizá-la.
Mesmo a representação de objetos familiares, se ocorrer, é
um meio para chegar-se a tal fim.
O espaço virtual, a essência da arte pictórica, é uma
criação, não uma re-criação. Contudo, a maioria dos grandes
artistas, e sobretudo aqueles que se afastaram mais arrojada­
mente da “forma real” das coisas, por exemplo, Leonardo e
Cézanne, acreditavam estar reproduzindo fielmente a
natureza. Leonardo até aconselhava os estudantes a colo­
carem um vidro através do qual se podia ver objetos, c traçar
os contornos destes naquele. (Ele próprio, é, claro, não pre­
cisava desse recurso porque podia desenhar à mão livre muito
bem. £ bastante estranho que o método não tenha engen­
drado nenhum outro Leonardo.) Mas, nas reflexões de Cé­
zanne, que sempre se centralizam na autoridade absoluta da
Natureza, a relação do artista com seu modelo revela-se in­
conscientemente e de modo simples, pois a transformação de
objetos naturais em elementos pictóricos verificava-se em sua
visão, no ato de olhar, não no ato de pintar. Consequente­
mente, ao registrar o que via, ele acreditava seriamente es­
tar pintando exatamente o que “estava lá” . Em sua análise
do objeto visto, expressa o princípio de construção do espaço
de que são testemunhas suas pinturas.
A natureza revela-se para mim em formas muito complexas. . .
É preciso ver-se o modelo corretamente e senti-lo da maneira cer­
t a . .. Para realizar progressos, só a natureza conta, e o olho é trei­
nado através de seus contatos com ela. Torna-se concêntrico pelo
olhar e trabalhar. Quero dizer que, numa laranja, numa maçã, num
vaso, numa cabeça, existe um ponto culminante; e esse ponto é sem­
pre — apesar do tremendo efeito de luz e sombra e das sensações de
cor — o mais próximo a nosso olho; os contornos do objeto retro­
cedem para um centro em nosso horizonte 9.

Aqui, o grande pintor simplesmente atribui ao objeto,


visto por ele, as propriedades que Hildebrand encontrou no
espaço virtual.
O espaço do qual estamos claramentc conscientes quando damos
atenção ao plano distante (o “plano da pintura”, a superfície trans­
formada) está atrás deste. Ele começa com o plano. O espaço é con­
cebido como uma penetração na distância... Todas as relações de
sólidos e diferenças de forma sólida são lidas da frente para trá s ... 910

9. De duas cartas a Émlle Bernard, 1904.


10. Cf. Hildebrand. op. cit.f p. 60.
ESPAÇO VIRTUAL 83

Cézanne era tão excelsamente dotado da visão do pin­


tor que para ele a vista atenta e a composição espacial eram
a mesma coisa. O espaço virtual era o habitat de sua mente.
Talvez também Leonardo pudesse “copiar a natureza” com
tanta ingenuidade porque ele, na realidade, visse apenas o
que, transferido para a tela ou traçado no vidro, criaria a
ilusão primária, a semelhança de espaço. (Dessa maneira
a visão do pintor é efetivamente seletiva, mas a linha que
“seleciona” uma forma jamais foi encontrada na realidade.)
É preciso um artista menor, um que conheça a luz do dia
comum, para notar o processo de interpretação pelo qual os
dados sensoriais, que são sinais entrevistos das condições
físicas do olho normal, são liberados dessa função e, intei­
ramente vistos, permanecem abstraídos como novas formas,
nas quais o ardor do sentimento e a sensação do processo vital
são visivelmente articulados. Hildebrand, que não era pintor
e, no melhor dos casos, era um escultor de segunda classe,
amiúde levava vantagem como teórico.
A criação de “espaço virtual” é comum a todas as
obras de arte plástica; mas isso é apenas o fazimento do
universo em que a forma simbólica existe. A expressividade
tem inúmeros graus. O êxito artístico completo seria a com­
pleta articulação de uma idéia, e o efeito seria a vivacidade
perfeita da obra. “Manchas mortas” são simplesmente par­
tes inexpressivas. Do começo ao fim, toda pincelada é com­
posição; onde isso é alcançado, há uma “forma” verdadeira­
mente “significante” (ver Fig. 6).
Nada demonstra com maior clareza o importe simbó­
lico das formas virtuais do que as constantes referências
encontradas, em discursos e escritos de artistas, à “vida” dos
objetos numa pintura (cadeiras e mesas tanto quanto seres
vivos) e ao próprio plano da pintura como superfície
“animada” . A vida na arte é uma “vida” de formas, ou,
mesmo, do próprio espaço.
Folheando uma coleção de pronunciamentos teóricos de
um grande número de artistas das mais variadas escolas
e pontos de vista11, pode-se reunir referências a esse efeito
fundamental em todos os níveis da concepção pictórica, desde
o simples desejo de “imitar” as ações humanas, a uma
concepção mística do dinamismo a ser transmitida por cores
ou linhas geométricas.
A forma artística é forma viva — disse Max Liebermann.

11. Tenho à minha frente uma antologia interessantíssima, Artista


on Art, editada por Robert Goldwater e Marco Treves. Todas as citações
seguintes são tiradas dessa fonte, a menos que haja outra indicação
'expressa.
84 SENTIMENTO E FORMA

É evidente que essa forma é a base de toda arte pictórica. Mas


é muito mais: é também seu fim e sua culminação.
Walter Sickert, falando de Mme Rivière, de Ingres,
disse:
O desenho tornou-se uma coisa viva, com uma vida, com um
débito e crédito próprios. Ò que emprestou aqui pode pagar, oü
não, como quiser, era outro lugar.
E, novamente:
Dentre as gravuras de Rembrandt, “Meninos no Banho” é puro
desenho, sem nenhum estofamento. Não há, nela, uma linha que
não esteja viva.
Femarid Léger afirma sobre cores a mesma coisa que
Sickert atribui a desenhos e até a meras linhas: “ . . . a cor
tem uma realidade em si mesma, uma vida própria” . Kan-
dinsky leva a metáfora de “vida” ainda mais longe, ao
assimilá-la conscientemente ao significado literal em sua com­
paração de uma linha abstrata e um peixe:
A linha isolada e o peixe isolado são igualmente seres vivos'
com forças peculiares a eles, embora latentes. São forças de expres­
são para tais seres e de impressão quanto aos seres humanos, porque,
cada um tem um “ar” impressivo que se manifesta por sua expressão
Mas a voz dessas forças latentes é fraca e limitada. Ê o meio’
ambiente da linha e do peixe que leva a cabo um milagre: as forças la­
tentes despertam, a expressão torna-se radiosa, a impressão profun­
da. ..
O meio ambiente é a composição.
A composição é a soma organizada das funções interiores (ex­
pressões) da obra.
Assim chegamos à idéia mais geral de “vida” numa
pintura, a “animação” da própria tela, a superfície como
um todo. Isso, também, é uma concepção natural para
um pintor; como o formulou Edward Wadsworth:
Uma pintura é fundamentalmente a animação de uma superfí­
cie plana inerte por um ritmo espacial de forma e cores.
E Alfred Sisley:
A animação da tela é um dos problemas mais árduos da pintu­
ra, Dar vida à obra de arte é, por certo, uma das tarefas mais
necessárias do verdadeiro artista. Tudo deve servir a essa finalidade:
forma, cor, superfície.
O que é, então, esse processo de “animar” uma superfície
que na realidade é “inerte”? É o processo de transformar os
dados espaciais reais, a superfície da tela ou do papel, num
espaço virtual, criando a ilusão primária da visão artística.
Essa primeira reorientação é tão importante que alguns pin­
ESPAÇO VIRTUAL 85

tores que a perceberam de modo agudo e consciente ten­


dem a ficar satisfeitos com a mera criação do espaço, sem
levar em consideração qualquer outra coisa a ser criada em
suas dimensões virtuais — como Malevich, enamorado dos
quadrados mágicos que, afinal, fornecem espaço e apenas
espaço. E aqueles que ainda não imaginaram a distinção
entre a superfície real e o plano da pintura estão inclinados,
não obstante, a senti-la, como o fez Redon, indubitavelmente,
quando fez observações sobre sua “peculiaridade invencível” :
Tenho horror de uma folha de papel em branco... Uma folha
de papel choca-me tanto que no momento em que está no ca­
valete sou forçado a rabiscar nela com carvão ou lápis, ou qualquer
outra coisa, e esse processo lhe dá vida.

Agora não é um papel, mas um espaço. Para os gran­


des pintores, a ilusão de espaço é geralmente tão evidente
por si mesma que, mesmo quando falam da superfície
material real, não podem falar em termos de outra coisa
que não seja o elemento criado. Assim, Matisse:
Se eu tomar uma folha de papel de determinadas dimensões,
rascunharei um desenho que terá uma relação necessária com seu
form ato... E se eu tivesse de repeti-lo numa folha do mesmo
formato, mas dez vezes maior, eu não me limitaria a aumentá-lo:
um desenho deve ter um poder de expansão que pode trazer à vida
o espaço que o rodeia.
Evidentemente, tudo isso são metáforas. Mas, mesmo
enquanto metáfora, o que quer dizer? Em que sentido pode-
se de alguma forma dizer que a cadeira amarela de Van
Gogh ou uma estufa de estúdio está viva? O que faz uma
superfície quando ela se toma, como disse Alfredo Sisley,
“por vezes elevadas ao nível mais alto de vivacidade”?
Tais perguntas, que na realidade são perfeitamente
justas, pareceríam fiíistinas e até pervertidas para quase que
todo artista. Ele provavelmente insistiría, assaz seriamente,
que não estava usando metáfora alguma; que a cadeira está
realmente viva, e que uma superfície animada verdadeira­
mente vive e respira, e assim por diante. Isso significa sim­
plesmente que o uso que ele faz de “vida” e “vivo” é um
modo simbólico mais forte do que a metáfora: é mito.
A marca do mito genuíno é seu poder de impressionar
seus inventores oomo sendo a verdade literal frente à mais
forte evidência contrária e em total oposição aos argu­
mentos. Ele parece ser uma verdade tão sagrada que per­
guntar em que sentido é verdadeiro, ou chamá-lo uma figu­
ra de linguagem, parece frivolidade. Pois é uma figura de
86 SENTIMENTO E FORMA

pensamento, não meramente de linguagem, e destruí-lo é des­


truir uma idéia em sua fase primitiva, quando apenas começa
a ocorrer às pessoas. £ por isso que as crenças míticas são
realmente sagradas. Elas são sugestivas, e trazem consigo
uma idéia não formulada12.
Mais a idéia tem de amadurecer algum dia e, tomando
uma forma lógica, emergir da matriz fantástica. Quando
isso ocorre, gera primeiro facções de crentes e escarnecedo-
res, sendo que estes últimos não conseguem simplesmente en­
tender como alguém pode prender-se aos seus absurdos.
No final, nenhum pensador sério coloca mais o mito em
questão; ele parece uma óbvia figura de linguagem para um
fato reconhecido. O fato parece ter sido encontrado em
outro lugar, no discurso racional. Na verdade, o pensa­
mento discursivo simplesmente cresceu até chegar a ele e deu
expressão literal à nova idéia, e os fatos podem agora ser
observados sob sua luz.
“Forma viva” é o produto mais indubitável de toda boa
arte, seja na pintura, arquitetura ou cerâmica. Tal forma
está “viva” da mesma maneira que uma borda ou uma es­
piral estão intrinsecamente “crescendo” : isto é, ela expressa
vida — sentimento, crescimento, movimento, emoção, e tudo
o que caracteriza a existência vital. Essa expressão, além do
mais, não é uma simbolização no sentido usual de significado
convencional ou atribuído, mas uma apresentação de uma
forma altamente articulada onde o espectador reconhece,
sem qualquer julgamento ou comparação conscientes, mas,
antes, por reconhecimento direto, as formas do sentimento
humano: emoções, humores, até sensações em sua passagem
característica. Os artistas mais intelectuais (isto é, aqueles
de mente aguçada, não aqueles dados a uma concepção lite­
ral na arte) — Delacroix, Matisse, Cézanne, e vários outros
mais jovens, nem sempre tão articulados — compreenderam-
no claramente; a “forma viva” é o simbolismo que veicula
a idéia de realidade vital; e o importe emocional perten­
ce à própria forma, não a alguma coisa que ele representa
ou sugere.
Todo o nosso mundo interior é realidade — disse Marc Chagai 1 —
e talvez o seja mais do que nosso mundo aparente. Ê esta realida­
de, sem dúvida, que Mondrian exaltou em suas reflexões: A “Arte”
não é a expressão da aparência da realidade tal como a vemos, nem
da vida que vivemos, m a s.... é a expressão da verdadeira realidade e
verdadeira v id a... indefinível mas realizável plasticamente.
12. Essa teoria da natureza do mito, desenvolvida por Ernest Cassi-
rer em seu Philosophie der syrribolischen Formen. Já foi por mim dis­
cutida em relaçfio ás doutrinas filosóficas, em Nova Chave , Cap. 7 (na
edlç&o Mentor, p. 159 — ver ed. bras.. p. 187), e mais completamente
num livro anterior, The Practice of Philosophy.
ESPAÇO VIRTUAL 87

A arte é uma expressão lógica, não psicológica, como


observou Marsden Hartley:
Os pintores precisam pintar para seu próprio enaltecimento espi­
ritual e prazer, e aquilo que têm a dizer, não o que são forçados a
sentir, é o que interessará àqueles que estiverem interessados neles. O
pensamento do momento é a emoção do momento.
Pode-se variar a última sentença para que reze: A emo­
ção na obra é o pensamento na obra. Da mesma forma comò
o conteúdo do discurso é o conceito discursivo, assim 6
conteúdo de uma obra de arte é o conceito não-discursivo
do sentimento; e ele é expresso diretamente pela forma, a
aparência à nossa frente. Como disse Courbet:
Uma vez que o belo seja real e visível, ele contém sua própria
expressão artística.

Maurice Denis observou o mesmo:


A emoção — acre ou doce, ou “literária”, como dizem os pin­
tores — brota da própria tela, superfície plana coberta de coresl3.
Não há nenhuma necessidade de interpor a memória de qualquer
sensação anterior (tal como a de um tema derivado da natureza).
Um Cristo bizantino é um símbolo: o Jesus do pintor moderno,
mesmo com um turbante desenhado com a maior correção, é mera­
mente literário. Num, a forma é expressiva; noutro, uma imitação
da natureza quer sê-lo.

Mas a afirmação mais explícita é a de Henri Matisse:


A expressão, a meu modo de ver, não consiste na paixão refle­
tida num rosto humano ou traída por um gesto violento. Todo o
arranjo de minha pintura é expressivo. O lugar ocupado pelas íigu-1
ras ou objetos, os espaços vazios em torno deles, as proporções —
tudo desempenha um p ap el... (ver Fig. 9 ).
Uma obra de arte deve carregar em si mesma sua significação,
completa e impô-la ao espectador antes mesmo que ele possa iden­
tificar o tema. Quando vejo os afrescos de Giotto em Pádua não
me dou ao trabalho de reconhecer que é a cena da vida de Cristo
que tenho à minha frente, mas percebo instantaneamente o senti­
mento que se irradia deles e que está presente na composição em
cada linha e cor. O título apenas servirá para confirmar minha
impressão.
Desde a primeira linha de desenho decorativo até as
obras de Rafael, Leonardo, ou Rubens, o mesmo princípio
de arte pictórica é exemplificado inteiramente: a criação do
espaço virtual e sua organização por formas (sejam elas
linhas, ou volumes, ou planos que se cortam, ou sombras e
luzes) que refletem os padrões da senciência e da emoção.13

13. Num sentido, sim; porém, mais adequadamente, de ilusão criada


par meio das cores na tela, as formas no espaço virtual. Se estas não
fossem produzidas as cores não transmitiríam nada de notável.
88 SENTIMENTO E FORMA

O espaço da pintara, seja ele concebido em duas ou três


dimensões, dissocia-se do espaço real em que a tela ou outro
portador físico da pintura existem; sua função como símbolo
toma os objetos numa pintura tão dessemelhantes dos obje­
tos materiais normais quanto uma palavra falada é diferente
dos sons de passos, roçadelas, tinidos e outros ruídos que
geralmente a acompanham e algumas vezes a abafam. O
pequeno som débil de uma voz que fala atrai o ouvido no
meio da confusão de sons mecânicos e é, algumas vezes,
totalmente diferente, porque sua significação é de ordem
diferente; de maneira semelhante, o espaço numa pintura
prende completamente nossa visão porque é significante em
si mesmo e não como parte da sala circundante.
A ilusão primária de espaço virtual surge com a pri­
meira pincelada ou o primeiro risco de lápis que concentra
a mente inteiramente no plano da pintura e neutraliza os
limites reais da visão. Isso explica por que Redon sentia o
impulso, ao ver uma folha de papel em branco em seu ca­
valete, de rabiscar nela tão depressa quanto possível com
qualquer coisa que deixasse marca. Estabeleça-se apenas
uma linha no espaço virtual, e imediatamente estamos na
esfera das formas simbólicas. A mudança mental é tão defi­
nida quanto a que fazemos, se depois de ouvir um som
de batidas, rangidos ou zunidos, passamos a ouvir a fala,
quando subitamente, no meio dos pequenos ruídos que nos
rodeiam, podemos perceber uma única palavra. Todo o
caráter de nosso ato de audição é transformado. A confusão
de sons físicos desaparece, o ouvido recebe linguagem, talvez
indistinta por causa dos ruídos que interferem, mas lutando
através deles como uma coisa viva. Exatamente o mesmo
tipo de reorientação é efetuado no tocante à visão pela cria­
ção de qualquer espaço puramente visual. A imagem, seja ela
uma representação ou um mero desenho, está a nossa frente
em sua expressividade: forma significante.
Ê por isso que os artistas e os amantes da arte não têm
necessidade de cultivar a “atitude estética” . Não estão sele­
cionando dados sensoriais do mundo real e contemplando-
os como experiências qualitativas puras. O pintor “selecio-
nou-as” e empregou exatamente as qualidades sensoriais que
podia usar, ao criar as formas ilusórias que pretendia para a
organização de seu espaço virtual total. Nossa contempla­
ção de suas formas criadas, toda a semelhança organizada,
deve tomar-se tão fácil para nós que o retomo à reali­
dade é um choque. Algumas vezes, na presença da gran­
de arte, a atenção ao meio real é difícil de sustentar.
ESPAÇO VIRTUAL 89

A ilusão primária de qualquer gênero de arte é a cria­


ção básica onde todos os seus elementos existem; e estes,
por sua vez, produzem-na e sustentam-na. Ela não existe
por si mesma; “primário” não significa estabelecido em
primeiro lugar, mas sempre estabelecido onde quaisquer
elementos chegam a ser dados. H á inúmeras maneiras de
tornar o espaço visível, isto é, de apresentá-lo virtualmente.
Quais são os “elementos” de uma obra de arte?
Os elementos são fatores na semelhança; e, como tais,
são eles mesmos virtuais, componentes diretos da forma
total. Nisso, diferem dos materiais, que são reais. As
pinturas são materiais, e também o são as cores existentes no
tubo ou na paleta; mas as cores numa pintura são elemen­
tos, determinados por seu meio. Elas são quentes ou frias,
avançam ou retrocedem, realçam ou suavizam ou dominam
outras cores; criam tensões e distribuem o peso numa pin­
tura. As cores numa caixa de tintas não fazem isso. Elas
são materiais, e jazem lado a lado em seu materialismo
real, não-dialético.
A escolha de materiais pode, certamente, afetar a gama
de elementos disponíveis. Não se pode sempre fazer as mes­
mas coisas com materiais diversos. A translucidez do vidro
permite a feitura e uso de elementos especiais de cor
que a tinta num fundo de madeira jamais poderia criar;
portanto, a pintura em vitral e a pintura em madeira pro­
põem para o artista diferentes problemas e sugerem diferentes
idéias a serem expressos. Algumas vezes diz-se que o vidro e
a madeira têm “sentimentos diferentes”. Eles permitem, e
mesmo exigem, formas bem distintas e, é claro, gamas ignal-
mente distintas de significação vital.
Todos os elementos discemíveis numa pintura susten­
tam a ilusão primária, que é invariável, enquanto que as
formas que a articulam podem variar indefenidamente. A
ilusão primária é um substrato do reino das formas vir­
tuais; ela está envolvida na ocorrência destas14.
Mas há diferentes modos até mesmo da ilusão primá­
ria, diversas formas principais de construí-la, que levam a
campos bem distintos das artes plásticas. Compreender em
que sentido toda arte plástica é o mesmo tipo de coisa não
basta, pois isso engendra identificações apressadas e confu­
sões ruinosas. Mas, à luz da função elementar — a criação

14. Pode também haver "ilusões secundárias’5, certos efeitos cria­


dos não-vlBuais como “uma sensaç&o de tempo”, que Malraux chama
de "santidade”, sentimento dramático, "poderes”, etc., que sustentam
o intento plástico. A funçfio de tais semelhanças Becundárias será exa­
minada mais tarde.
90 SENTIMENTO E FORMA

da ilusão primária enquanto tal — , podemo-nos aventurar a


seguir toda e qualquer distinção que separa as várias formas
de arte, sem perigo de perder nosso caminho nos cubículos da
descrição puramente acadêmica.
6. Os Modos do Espaço Virtual

Até agora preocupamo-nos somente com a “projeção


visual” em que o espaço é percebido como uma relação
entre coisas à distância de um determinado foco, e além
dele, atrás do ponto focal. O plano da pintura simula esse
padrão. Mas ele não substitui simplesmente sua superfície
por outras impressões que possamos ter. Fisicamente, uma
pintura é em geral uma dentre várias coisas em nosso
campo visual; ela está rodeada por uma parede, móveis,
janelas, etc. Muito poucas pinturas são suficientemente gran­
des para preencherem completamente nosso campo físico
de visão a uma distância normal, isto é, a uma distância que
nos permita enxergar com a maior vantagem as formas nelas
apresentadas. Uma pintura, contudo, é um campo visual total.
Sua primeira função é criar um espaço único, auto-suficiente,
perceptivo, que parece se nos deparar com tanta na­
turalidade quanto a cena que temos frente a nossos olhos
quando os abrimos para o mundo real. Quer dizer, a ilusão
criada na arte pictórica é uma cena virtual. Não real. Isto é,
a ilusão criada na arte pictórica é uma cena virtual. Não quero
dizer “cena” no sentido especial de “cenário” — a pintura
pode apresentar apenas um objeto ou mesmo consistir em
formas decorativas puras sem valor representativo —, mas
ela sempre cria um espaço em oposição ao olho e relaciona­
do direta e essencialmente com o olho. É a isso que chamo de
“cena” .
92 SENTIMENTO E FORMA

A noção de espaço perceptivo enquanto cena 'virtual


deriva de Hildebrand, e a idéia da criação do espaço por
meio de formas puramente visuais, substituindo até todos
os outros meios normais pelos visuais, é sua principal contri­
buição à teoria da arte. Infelizmente, entretanto, ele leva
sua montaria a uma queda, dando um salto imprudente. Ê
uma grande tentação conduzir uma teoria a ulteriores apli­
cações sem examinar em que medida ela é realmente geral
e em que medida é especial e, conseqüentemente, distorcer o
novo material para satisfazer condições teóricas que lhe são
próprias, em vez de descobrir a versão exata do princípio ge­
ral que satisfará o novo caso. Mas é algo estranho que
Hildebrand, o escultor, tenha sucumbido a ela da forma que
o fez; pois, em vez de raciocinar partindo da área que ele
conhecia melhor e, talvez, de aplicar mal alguns princípios
de outros campos (o que, embora lamentável, seria bastante
compreensível), ele transportou o conceito de espaço pic­
tórico para a escultura, o lote inteiro; assim, transformou
sua própria arte numa enteada a analisou-a essencialmente
em termos gráficos.
Conseqüentemente, o baixo-relevo é para ele a matriz
da forma escultural e a tridimensionalidade é ou uma carac­
terística de menor importância, ou um artifício para com­
binar muitas imagens (isto é, aspectos de uma figura) em
um objeto físico por meio de uma suprema perícia técni­
ca. Assim como o problema da forma do pintor é a criação
de um volume aparente por meio de uma superfície bidi­
mensional, do mesmo modo, ele sustenta, o problema do es­
cultor é a criação de um plano bidimensional da pintura por
meio de um volume real1.
Essa assimilação da escultura à pintura, através da me­
diação do entalhe em relevo, por certo violenta o sentido
escultural da maioria das pessoas; e o protesto íntimo toma-
se ainda mais decidido quando também a arquitetura é tra­
tada superficialmente como apenas outra forma de pintura,
e os edifícios tornam-se coleções de fachadas sem nenhum
sentimento inteiror. Isso é uma maneira simples demais
de passar de uma teoria especial do espaço pictórico para o
conceito de espaço perceptivo em geral, que é subjacente a
iodas as chamadas “artes plásticas” e que serve para fazer
tidas unia só família. Cada membro tem sua própria ma-
ndni de ser; não devemos temer a possibilidade de perder o
t A onouII,um tridimensional, para Hildebrand, tem a mesma fl-
iinllriiulo nwn u pintura chinesa em rolos: ela oferece uma série conti­
nua do onmpn/ilyAoH pictóricas. A única diferença é que o rolo a gente
tlnnoiuulM, iiiiin »vnd»-«o em torno da estátua. Ver The Problem of Farm,
u Uft,
OS MODOS DO ESPAÇO VIRTUAL 93

relacionamento básico ao reconhecer tais maneiras separadas.


A ilusão primária não é a cena — esta é apenas uma articula­
ção daquela —, mas o espaço virtual, seja ele construído
como for. Pintura, escultura e arquitetura são três grandes
manifestações da concepção espacial, igualmente originais
e igualmente destinadas a um completo desenvolvimento
sem confusão. Mesmo lá onde uma serve a outra, suas vá­
rias características não se tornam identificadas. Assim, po­
demos procurar na escultura a sua própria versão do espaço
virtual, e na arquitetura, a sua, em vez de tratar a arte pictó­
rica como sendo a medida de toda expressão plástica. As
diferenças entre artes intimamente relacionadas são tão
interessantes quanto as semelhanças e são, na realidade, o
que dão a essa família multifacetada seu alcance e riqueza
imponentes.
No campo da escultura, o papel da ilusão parece menos
importante do que na pintura, em que uma superfície chata
“cria” um espaço tridimensional que é obviamente virtual.
A escultura é na realidade tridimensional; em que sentido
ela “cria” espaço para o olho? Provavelmente essa é a per­
gunta que levou Hildebrand a dizer que a tarefa do escul­
tor era apresentar um objeto tridimensional no plano bidi­
mensional de pintura do “espaço perceptivo” . Mas a respos­
ta, embora seja satisfatória e, efetivamente, complete com
aptidão sua teoria, não tem a confirmação da experiência
imediata e da intuição artística. Os próprios escultores rara­
mente pensam em termos de pinturas e de planos ideais de
visão dispostos em ziguezague um após o outro para definir
o espaço profundo (exceto no relevo perfeitamente achatado
com talhes retangulares, ou mesmo meras linhas gravadas, que
é na realidade arte pictórica, substituindo o instrumento de
gravação pelo lápis). A escultura, mesmo quando unida a
um fundo como no relevo verdadeiro, é essencialmente volu­
me, não cena.
O volume, contudo, não é uma medida cúbica, como o
espaço dentro de uma caixa. É mais do que a massa da
figura; é um espaço tornado visível, e é mais do que a área
que a figura realmente ocupa. A forma tangível tem um
complemento de espaço vario que ela domina absolutamente,
que é dado junto com ela e apenas com ela e é, de fato, parte
do volume escultural. A própria figura parece possuir uma es­
pécie de continuidade com o vario não importando à sua
volta quanto suas massas sólidas possam afirmar-se como tais.
O vazio a envolve, e o espaço envolvente tem forma vital
enquanto continuação da figura.
94 SENTIMENTO E FORMA

A origem dessa ilusão (pois o espaço vazio, não-limita-


do, na realidade não tem nenhuma parte ou forma visível)
é o princípio fundamental do volume escultural: a semelhan­
ça de organismo. Na literatura sobre escultura, mais do
que em qualquer outro lugar, encontram-se referências à
“forma inevitável”, “forma necessária” e “forma inviolável” .
Mas o que significam tais expressões? O que, na natureza,
faz as formas “inevitáveis”, “necessárias”, “invioláveis”? Na­
da além da função vital. Os organismos vivos mantêm-se, re­
sistem às mudanças, lutam para restaurar sua estrutura quan­
do nela houve interferência pela força. Todos os outros pa­
drões são caleidoscópicos e casuais; mas os organismos, de­
sempenhando funções características, devem ter certas formas
gerais, ou perecer. Para eles, há uma norma de estrutura
orgânica de acordo com a qual, inevitavelmente, eles se
constroem, derivando matéria de seu meio ambiente casual;
e suas partes são feitas de modo a levar adiante este processo:
à medida que se torna mais complexo, de maneira que
as partes tenham formas necessárias a suas respectivas
funções; as atividades mais especializadas, porém, são susten­
tadas a cada momento pelo processo ao qual servem a vida do
todo. É o todo funcional que é inviolável. Rompa-se este, e
todas as atividades subordinadas cessam, as partes constituin­
tes desintegram-se, e a “forma viva” desaparece.
Nenhum outro tipo de forma é realmente “necessário”,
pois a necessidade pressupõe uma medida em termos teoló­
gicos, e nada além da vida demonstra qualquer rijXoç. Ape­
nas a vida, uma vez posta em movimento, alcança certas
formas inevitavelmente, enquanto cia continua de alguma ma­
neira: a bolota torna-sc um carvalho, embora Taquítico ou
variado; o ovo de pardal, um pardal; a larva, uma mosca.
Outros acréscimos de matéria podem ter formas usuais,
mas não lutam para alcançá-las, nem se mantêm nelas.
Um cristal partido ao meio fornece simplesmente dois peda­
ços de cristal . Uma criatura partida ao meio ou morre, isto
é, desintegra-se, ou repara uma parte, ou ambas as partes,
para funcionar novamente como um todo. Pode ser até que
ela se parta justamente porque os nov.os conjuntos são prefor-
mados, a reparação apenas feita, de modo que a ruptura é
seu padrão dinâmico*
Não há nada realmente orgânico no tocante a uma
obra de escultura. Mesmo a madeira entalhada c matéria
sem vida. Apenas sua forma é a forma de vida, e o espaço
que ela to rn a v í s í y c I é vitalizado como o seria pela atividade
OS MODOS DO ESPAÇO VIRTUAL 95

orgânica em seu centro. Ê volume cinético virtual, criado pela


— e com — a semelhança de forma viva.
A escultura, porém, não precisa representar organismos
naturais. Ela pode corporificar a aparência de vida em for­
mas não-representativas, como simples monolitos talhados,
pilares monumentais, invenções puras, ou grades, urnas, etc.,
que não representam quaisquer outros objetos, além do que
eles, respectivamente, são. Ou pode representar algo inorgâni­
co, como as garrafas de Boccioni ou as cestas e gaiolas de
passarinhos de Moore e, no entanto, ser inteiramente uma
forma viva; pois é a expressão do sentimento biológico, não
a sugestão de função biológica, que constitui a “vida” na
escultura. Onde esse sentimento é realmente transmitido,
temos a semelhança da forma “inevitável”, “necessária”,
“inviolável” ante nossos olhos, organizando o espaço que
preenche e também o espaço que parece tocá-la e ser ne­
cessário para sua aparência.
Aqui temos a ilusão primária, o espaço virtual, criado
de um modo bem diferente do da pintura, que é cena, o
campo de visão direta. A escultura cria um espaço igual­
mente virtual, mas não um espaço de visão direta; pois o
volume é realmente dado originalmente ao tato, tanto o to­
que cutâneo, quanto o contato a limitar o movimento cor-
póreo, e a função da escultura é traduzir dados em termos
inteiramente visuais, isto é, tornar visível o espaço tátil.
O íntimo relacionamento entre tato e visão, que é assim
efetuado pela semelhança de volume cinético, explica algu­
mas das complexas reações sensoriais que os escultores, bem
como os leigos, frequentemente têm em relação a ela. Mui­
tas pessoas sentem um forte desejo de manipular toda figu­
ra. Em algumas pessoas, o desejo surge de motivos obvia­
mente sentimentais, antropomorfizando a estátua, imaginan­
do um contato humano; essa era a atitude expressada por
Rodin, e o conhecimento de que iria tocar o mármore frio
deixava-o melancólico, como Pigmaliãó2. Mas outros —
dentre os artistas, provavelmente a maioria — imaginam o
toque da pedra ou madeira, metal ou terra; desejam sentir
a substância que está realmente presente, e deixam que suas
mãos passem sobre a forma pura desta. Sabem que a sen­
sação nem sempre confirmará a sugestão visual; talvez, mes­
mo, a contradiga. Contudo, acreditam que sua percepção
da obra será de alguma maneira realçada.
A forma escultural é uma vigorosa abstração a partir dos
objetos reais e do espaço tridimensional que construímos por

2. Auguste Rodin, Art, p. 55.


96 SENTIMENTO E FORMA

meio deles, através do tato e da visão. Eia faz sua própria


construção em três dimensões, a saber, a semelhança do espa­
ço cinético. Da mesma maneira como nosso campo de visão
direta está organizado, na realidade, como um plano à distân­
cia de um foco natural, de igual modo a esfera cinética dos
volumes tangíveis, ou coisas, e os espaços livres de ar entre
eles, estão organizados na experiência real de cada pessoa
como seu meio ambiente, isto é, um espaço do qual ele é o
centro; seu corpo e o alcance de seus movimentos livres, seu
espaço vital e o alcance de seus membros são seu próprio
volume cinético, o ponto de orientação a partir do qual ele
demarca o mundo da realidade tangível — objetos, distâncias,
movimentos, forma e tamanho e massa.
Bruno Adriani, em seu livro Problems of ihe Sculptor,
escreveu inúmeros trechos defendendo a comparação do es­
paço escultural com a construção subjetiva do mundo como
uma área centrada em nosso próprio volume cinético. A
convergência de nossos pontos de vista — um, o de um es­
cultor, outra, o de uma teórica — parece-me bastante digno
de nota para merecer uma citação literal de suas palavras. Por
exemplo:
Quando usamos a palavra “espaço” em conexão com problemas
artísticos, não são aplicáveis nem o conceito geométrico do espaço
tridimensional, nem a teoria dos físicos de (a) unidade tetradimen-
sional espaço-tempo. Eles derivam do pensamento abstrato e não são
acessíveis a nossos sentidos.
O espaço na a rte ... pode ser percebido através de nossa sensi­
bilidade.
É o cenário sensorial de nossas experiências humanas, “a esfera
de nossa atividade” e de nossas relações com nosso meio ambiente 3.
A escultura intensifica a vida do espaço sensorial, induzindo
sua existência em nossos sentidos e em nossa consciência...
Enquanto que os cientistas destilam idéias abstratas de “espaço'’,
o artista diligencia para perceber um espaço concreto através da
intuição e para tomá-lo perceptível numa criação formal.
O matemático Henri Poincaré4 . . . desenvolve a idéia de que
tomamos nosso próprio corpo como instrumento de medição a fim
de construir o espaço — não o espaço geométrico, nem um espaço
de pura representação, mas um espaço pertencente a uma “geome­
tria instintiva” . ..
Esse sistema fornece os meios necessários para fixar nossa po­
sição no espaço.
Poincaré conclui que todo ser humano tem de construir primei­
ro esse espaço limitado, . . . e depois é capaz de ampliar — por um
ato de imaginação — o espaço limitado para o “grande espaço onde
podemos alojar o universo” . . .
Ampliando a teoria de Poincaré, podemos estabelecer uma ana­
logia entre nosso procedimento instintivo de construção do espaço

3. Problems of th e Sculptor, p. 10.


4. Im Science et MéthoOe.
OS MODOS DO ESPAÇO VIRTUAL 97

sensorial, e a atividade mental do escultor ao determinar, por um


sistema orgânico de eixos, o esqueleto de sua obra
Através do organismo de suas formas, ele cria um “espaço
limitado” como símbolo do universo®.

Uma peça de escultura é o centro de um espaço tridi­


mensional. Ê um volume cinético virtual, que domina o espa­
ço circunvizinho, e essa ambiência deriva dele todas as pro­
porções e relações, da mesma maneira que a ambiência real
o faz no tocante a nós mesmos. A obra é uma semelhan­
ça de um eu (self), e cria a semelhança de espaço tátil — e,
além disso, uma semelhança visual. Ela efetua a objetivação
do eu e a ambiência para o sentido na visão. A escultura é,
literalmente, a imagem do volume cinético no espaço senso­
rial.
É por isso que eu digo que é uma abstração poderosa.
E, aqui, tenho de distanciar-me de Adriani; pois ele, ainda
falando do escultor, continua:
O espaço de sua escultura é seu mundo original... O “espec­
tador” ideal transpõe o sistema de eixos coordenados, criado
pelo escultor, para seu próprio organismo.

Pelo contrário, parece-me que, exatamente porque não


identificamos o espaço centralizado numa estátua com nossa
própria ambiência, o mundo criado permanece objetivo e
pode, assim, tornar-se uma imagem do próprio espaço que
nos rodeia. É uma ambiência, mas não a nossa; nem é a
de alguma outra pessoa, tendo pontos em comum com a
nossa, de forma que a pessoa e o que a cerca tornam-se
“objetos” para nós, existentes em nosso espaço. Embora uma
estátua seja, na realidade, um objeto, não a tratamos como
tal; vemo-la como centro de um espaço inteiramente próprio
a ela; mas seu volume cinético e a ambiência que ela cria
são ilusórios — existem apenas para nossa visão, uma se­
melhança do eu e seu mundo.
Isso explica, talvez, por que o encontro tátil com pedra
ou madeira, contradizendo, como o faz, a aparência orgâni­
ca da escultura, pode, não obstante, deixar de causar qual­
quer desapontamento mas, sim, realmente acentuar nos­
sa apreciação da forma plástica; controla a fantasia antro-
pomórfica, e acentua o poder de abstração da obra. Con­
tudo, manipular uma figura, não importando o que ela nos
dá, é sempre um mero interlúdio em nossa percepção da for­
ma. Temos de dar um passo para trás, e vê-la imperturbada5
5. Adriani, op. cit., p. 19.
98 SENTIMENTO E FORMA

por nossas mãos, essa quebra na esfera de sua influência


espacial.

Há um terceiro modo de criar espaço virtual, mais sutil


do que a construção da cena ilusória ou, mesmo, do organis­
mo ilusório, modo este que é, no entanto, não menos imperio­
samente artístico e, cujo escopo, é o mais ambicioso de to­
dos — a arquitetura. Sua “ilusão” passa facilmente des­
percebida por causa da evidência e importância de seus
valores reais: abrigo, conforto, proteção. Suas funções prá­
ticas são tão essenciais que os próprios arquitetos frequente­
mente confudem-se quanto ao seu estatuto. Alguns a têm
considerado como principalmente utilitária e apenas inciden-
talmente estética, exceto no Paso dos monumentos; outros
a têm tratado como “arte aplicada”, onde considerações de
ordem prática sempre forçam a algum sacrifício da “visão” do
artista; e outros têm tentado ir ao encontro das exigências
prosaicas da utilidade, ao fazer da função algo de importância
suprema, acreditando que formas genuinamente apropriadas
são sempre belas6. Em arquitetura, o problema da aparên­
cia da realidade chega ao apogeu, como em nenhuma arte. Isso
faz dela um caso de experiência representativa na teoria es­
tética, pois uma teoria verdadeiraménte geral não tem exce­
ções e, quando parece tê-las, é porque não está enunciada
em termos adequados. Se a arquitetura é utilitária exceto
no caso dos monumentos, então a utilidade não é sua essência;
se ela pode ser tratada como escultura exceto onde interferem
exigências de ordem prática, como na construção subterrânea,
ou necessidades como tabiques e galinheiros, então os valores
esculturais não lhe são essenciais. Se os interesses funcionais
puderem ser adequadamente servidos sem beleza, então a
forma pode seguir a função com todo o feliz efeito do mun­
do, mas a funcionalidade não é a medida do belo.

6. Louis H. Sullivan foi o primeiro mestre a declarar que, para


ser arquitetura, um edifício deve ser a imagem de sua função; e sua
célebre frase: “A forma segue a função»*, tem sido citada a propósito
e sem propósito. Evidentemente ele queria dizer mais do que a função
prática quando disse: ''Se a obra quiser ser orgânica, a função da parte
deve ter a mesma qualidade que a função do todo; e as partes___
devem ter a qualidade da massa**. (Kindergarten Chats, p. 47).
Trinta e cinco anos mais tarde, Laszlo Moholy-Nagy observou: "Em
todos os campos de criação os trabalhadores estão lutando hoje para
encontrar soluções puramente funcionais de tipo técnico-biológico:
Isto é, construir cada pedaço da obra unicamente com os elementos
que sfto exigidos por sua função." {The New Vision , p. 61.)
Cf. também Frank Lloyd Wright, On Architecture, p. 236: M*A forma
segue a função' é apenas a afirmação de um fato. Quando dizemos que
'forma e função são uma mesma coisa' é apenas então que levamos o
mero fato para a área do pensamento criativo."
OS MODOS DO ESPAÇO VIRTUAL 99

A arquitetura é tão geralmente considerada como uma


arte do espaço, isto é, do espaço real, prático, e a construção
é tão certamente a feitura de algo que define e arranja unida­
des espaciais, que todos falam da arquitetura como uma
“criação espacial”, sem perguntar o que é criado, ou como
o espaço está envolvido. Os conceitos de arranjo no espaço
e criação de espaço são constantemente intercambiados; e
a ilusão primária parece ter dado lugar a uma realidade pri­
mária. Nada é mais acidental do que o emprego das pala­
vras: ilusão, realidade, criação, construção, arranjo, expres­
são, forma e espaço, nos escritos de arquitetos modernos.
Mas a arquitetura é uma arte plástica, e sua primeira
realização é sempre, inconsciente e inevitavelmente, uma ilu­
são; algo puramente imaginário ou conceituai traduzido para
impressões visuais. A influência da idéia subjacente mostra-se
em frases-chave como “forma funcional”7, “vida no espaço”8,
“tomar posse do espaço”9. Forma funcional é um conceito
tomado emprestado da biologia ou da mecânica; uma vez
que, na fria realidade, os edifícios não são eles mesmos
seres ativos, mas apenas permitem que as pessoas exerçam
atividades neles, “forma funcional” é tomada literalmente
para significar arranjo conveniente. “Uma máquina para vi­
ver dentro” é então, a mesma coisa, restrita à arqui­
tetura doméstica, em vez de aplicada também a viadutos
e túmulos e torres de rádio. Falando prosaicamente, toda
vida está no espaço; e “tomar posse” do espaço não pode
significar nada além de ocupá-lo fisicamente. Cobertores
colocados dentro de um baú, enchendo-o completamente,
tomam posse do espaço no seu interior. Mas certamente Mo-
hoIy-Magy não se referia ao preenchimento físico quando
escreveu, no último parágrafo triunfal de The New Vision:
Uma flutuação constante, para os lados e para cima, radiante,
multifacetada, anuncia ao homem que ele tomou posse, até o ponto
em que o permitem suas capacidades humanas e suas concepções do
momento, do imponderável, invisível, mas onipresente, espaço.
Essa concepção mística de espaço é meramente uma
forma extaticamente acentuada de uma noção corrente e
bem aceita entre arquitetos — a noção de espaço como enti­
dade, com relações internas algumas vezes descritas como
“dinâmicas”, outras como “orgânicas” Pode-se ler a res­
peito de “espaços intersectantes” e “tensões intervalares de
espaço” .

7. Sullivan, loe. cit.


8. Le Corbusier (O. E. Jeannert-Gris), Toward a New Architecture ,
p. 4. tTrad. bras.: Por um a Arquitetura, Sfio Paulo, Perspectiva, 1977.]
9. Moholy-Nagy, op. c it, p. 180 e 202.
100 SENTIMENTO E FORMA

Tais expressões simplesmente não têm sentido com re­


ferência a nossos conceitos práticos ou científicos do espaço.
Linhas ou raios de luz podem cortar-se, mas não espa­
ços; há um só espaço concebido pelo bom senso como o
receptáculo ideal que contém, tudo, e pelas mentes científicas
como o sistema-coordenado pelo qual tudo está relacionado.
Para o arquiteto, entretanto, não parece ser esse o caso, ou
ele não teria toda uma literatura sobre espaço “vivo” e
“ativado” e “orgânico” e até mesmo “onipresente” — espaço
a ser vivido, sentido, intuído e tudo o mais. O arquiteto, em
suma, lida com um espaço criado, uma entidade virtual: a
ilusão primária da arte plástica efetuada por uma abstração
básica peculiar à arquitetura.
Como a cena é a abstração básica da arte pictórica, e o
volume cinético a da escultura, a da arquitetura é um
domínio étnico. Na realidade, é claro, um domínio não é
uma “coisa” entre outras “coisas”; é a esfera de influência
de uma função ou funções; pode ter efeitos físicos sobre
alguma localidade geográfica ou não ter. Culturas nômades,
ou fenômenos culturais, como a vida dos navegantes, não se
inscrevem em nenhum lugar fixo da terra. Contudo um
navio, constantemente mudando sua localização, é, não
menos, um lugar contido em si mesmo, e o mesmo acontece
com um acampamento de ciganos, de índios ou de um
circo, por mais freqüentemente que mudem suas referên­
cias geodésicas. Literalmente, dizemos que o acampamen­
to está em um lugar; culturalmente, ele é um lugar. Um
acampamento de ciganos é um lugar diferente de um acam­
pamento de índios, embora possa estar geograficamente lá
onde o acampamento de índios costumava estar.
Um lugar, neste sentido não-geográfico, é uma coisa
criada, um domínio étnico tornado visível, tangível, sensível.
Como tal, ele é, evidentemente, uma ilusão. Como qual­
quer outro símbolo plástico, é fundamentalmente uma ilusão
de espaço autônomo, auto-suficiente, perceptivo. Mas o prin­
cípio de organização é próprio: pois é organizado como uma
área funcional tornada visível — o centro de um mundo vir­
tual, o “domínio étnico” e, ele mesmo, uma semelhança geo­
gráfica .
A pintura cria planos de visão, ou “cenas” que confron­
tam nossos olhos, numa superfície real, bidimensional; a
escultura cria um “volume cinético” virtual a partir de ma­
terial real tridimensional, isto é, de volume real; a arquitetu­
ra articula o “domínio étnico”, ou “lugar” virtual, pelo trata­
mento de um lugar real.
OS MODOS DO ESPAÇO VIRTUAL 101

A ilusão arquitetônica pode ser estabelecida por uma


simples formação de pedras verticais a definir o círculo
mágico que separa o sagrado do profano, mesmo por uma
única pedra que marca um centro, isto é, um monumento101.
O mundo exterior, embora não seja isolado fisicamente, é do­
minado pelo santuário e torna-se seu contexto visível; o hori­
zonte, sua moldura. O Templo de Poseidon, em Sounion,
mostra esse poder de organização que tem uma forma com­
posta. Por outro lado, um túmulo escavado na rocha sólida
pode criar um domínio completo, um mundo dos mortos.
Não tem exterior; suas proporções são derivadas intemamen-
te — da pedra, do sepultamento — e definem um espaço
arquitetônico que pode ser profundo, alto e largo, dentro
de apenas alguns poucos cúbitos de medida real. O “lugar”
criado é essencialmente uma semelhança, e tudo aquilo que
afetar essa semelhança é relevante arquitetonicamente.
Uma lâmpada no chão pode tomá-lo um antro fantasmagó­
rico — uma luz vindo do alto, ressaltando os veios na rocha,
a textura do teto e das paredes, transforma-o numa câmara
estranhamente digna. Todas essas possibilidades são dadas
com a idéia arquitetônica. Le Corbusier disse:
Arquitetura é o jogo magistral, correto e magnífico, de massas
reunidas na lu z11.
Mas a luz é um fator variável; portanto os elementos
da arquitetura — os constituintes da semelhança total —
devem ser multiformes a ponto de permitir, livre e segura­
mente, as transformações radicais que serão feitas pelas mu­
danças de luz. Em boas construções, tais mudanças são ori­
gem de riqueza e vida; luzes inusitadas salientam novas for­
mas, mas todas as formas são belas, e toda mudança dá ori­
gem a um estado de espírito completo, perceptível.
Uma cultura é formada, efetivamente, pelas atividades
de seres humanos; é um sistema de ações entrecruzadas e
intersectantes, um padrão funcional contínuo. Como tal, ela
é, evidentemente, intangível e invisível. Ela tem ingredientes
físicos — artefatos; e também sintomas físicos — os efeitos
étnicos que são estampados na face humana, conhecidos
como sua “expressão”, e a influência da condição social no
desenvolvimento, postura e movimento do corpo humano.
Mas todos esses itens são fragmentos que “significam” o
padrão total da vida apenas para aqueles que estão familia­
rizados com ele e que podem ser relembrados de sua existên­
cia. São ingredientes de uma cultura, não sua imagem.
10. Cí. Sullivan, op. cit., p. 121.
11. Le Corbusier, op. cit., p. 29.
102 SENTIMENTO E FORMA

O arquiteto cria a imagem da cultura: uma ambiência


humana fisicamente presente que expressa os padrões fun­
cionais rítmicos característicos que constituem uma cultura.
Tais padrões são as alternâncias de sono e vigília, aventura
e segurança, emoção e calma, austeridade e liberdade; o
tempo, e a suavidade ou rudeza da vida; as formas sim­
ples da infância e as complexidades de uma completa esta­
tura moral, os humores sacramentais e caprichosos que mar­
cam uma ordem social e que são repetidos, embora com ca­
racterística seleção, por toda vida pessoal originada de tal
ordem. Uma vez mais posso lançar mão das palavras de
Le Corbusier:
A arquitetura... deve usar os- elementos que são capazes de
afetar nossos sentidos e de recompensar o desejo de nossos olhos,
e deve dispô-los de tal maneira que a visão destes nos afete imediata­
mente por sua delicadeza ou brutalidade, sua agitação ou sua sereni­
dade, sua indiferença ou seu interesse; esses elementos são elemen­
tos plásticos, formas que nossos olhos podem ver e nossas mentes po­
dem medir 12 .
A arquitetura é a primeira manifestação do homem criando
seu próprio universo, criando-o à imagem da natureza...
As leis físicas primordiais são simples e em numero reduzido.
As leis morais são simples e em número reduzido 1213.
Um universo criado pelo homem e para o homem, “à
imagem da natureza” — não, com efeito, simulando objetos
naturais, mas exemplificando “as leis da gravidade, da está­
tica e da dinâmica” — é a semelhança espacial de um mun­
do, porque feito no espaço real, todavia não é sistema­
ticamente contínuo com o resto da natureza numa completa
democracia de lugares. Tem seu próprio centro e periferia,
sem que divida um lugar de todos os outros, mas limite
de dentro o que quer que deva sê-lo. Essa é a imagem do
domínio étnico, a ilusão primária na arquitetura.
O produto mais familiar da arquitetura é, evidentemen­
te, a casa. Em virtude de sua ubiquidade é a forma geral
mais detalhada e, no entanto, a mais variável. Pode abrigar
uma pessoa ou uma centena de famílias; pode ser feita de pe­
dra ou madeira, gesso, cimento ou metal, ou muitos materiais
juntos — e até papel, grama ou neve. As pessoas fazem
casas nas cavernas de montanhas estéreis e casas de peles
de animais para levá-las consigo na marcha; usam árvo­
res copadas como teto, prendendo as casas aos troncos vivos.
A necessidade imperativa de moradias em todas as condi­
ções, do gelo polar, quase tão morto como a lua, às pródi­

12 . /Md., p. ia.
13. /Md., p. 73.
OS MODOS DO ESPAÇO VIRTUAL 103

gas terras mediterrâneas, fez com que todo meio de constru­


ção fosse explorado; a casa tem sido a escola primária do
construtor.
Mas as grandes idéias arquitetônicas raramente surgi­
ram, se é que alguma vez o fizeram, das necessidades domés­
ticas. A razão é bem simples: a cultura tribal é coletiva e
seu domínio, portanto, é essencialmente público. Quando
ela se toma visível, sua imagem é uma esfera pública. A
maior parte da arquitetura primitiva — Stonenhenge*, os
Mounds**, o Templo do Sol — define o que pode ser deno­
minado de “espaço religioso”. Esta é uma esfera virtual; o
templo, embora orientado pelos pontos do equinócio, simboli­
zava meramente os “cantos da terra” para as pessoas simples
que provavelmente nem chegavam a entender o esquema as­
tronômico. O templo realmente tomava o espaço um mundo
maior — a natureza, a residência de deuses e fantasmas.
Podia-se ver os corpos celestiais nascendo e pondo-se na es­
trutura definida por ele; e, enquanto apresentava esse espaço
ao pensamento popular, ele unificava céu e terra, homens
e deuses (ver Fig. 8).
O mesmo pode ser dito dos edifícios mais civilizados
que servem para salvaguardar a vida religiosa contra as
incursões do profano. Os templos egípcios, gregos e roma­
nos, a igreja, a mesquita, todos apresentam à vista externa
uma parede, escondendo o santuário. Os Filhos do Zodíaco
não são mais convidados a ir e vir, traçando suas órbitas
entre as colunas do templo. Um cela envolve o altar. Mas
o edifício domina a comunidade, e sua aparência exterior
organiza o local da cidade; a religião, embora não mais a to­
talidade da vida, é a confluência de todas as idéias. Dentro
do santuário, o domínio cultural é resumido pelo meio
arquitetônico mais econômico e concentrado — um mundo
sacro, onde ninguém pode viver, porque é por demais puro e
comovente, mas no qual se entra para a comunhão consci­
ente entre Deus e homem.
Os grandes túmulos são a imagem de um Mundo Infero;
suas paredes sem janelas criam um útero da Terra, embora
sejam construídos acima do solo e em plena luz do sol. Desti­
nam-se ao silêncio e ao reino da Morte. Contudo, artistica­
mente, não há nada de mais vivo do que a tensa quietude
de tais câmaras; nada expressa uma Presença c seu domínio

* Um conjunto de rochas dispostas circularmente e rodeadas por


um muro de 13 km, que data do fim do Neolítlco, ou Inicio da Idade
do Bronze, e a situa-se na Inglaterra. (N. dos T.)
•* Denominação de montes-tümulos, de origem Indígena pré-histó­
rica, localizados na América do Norte (N. dos T . ).
104 SENTIMENTO E FORMA

tão inequivocamente quanto um túmulo egípcio. Mesmo


roubado do cadáver que entesourava, isto é, despido de
sua função real, ele é o Reino dos Mortos visualizado.
Numa sociedade secular, por exemplo, a cultura bárba­
ra dos godos, onde espadas tinham nomes e jurava-se fideli­
dade aos senhores da guerra em vez de aos deuses, a Sala era
o símbolo natural de um mundo humano, onde o homem
encontrava-se
Como o pardal, voando para dentro por uma porta, e imediata­
mente saindo por o u tra ... Para o negro inverno de onde havia
emergido.
A arquitetura cria a semelhança do Mundo que é a
contrapartida de um Eu. É uma ambiência total tomada
visível. Onde o Eu é coletivo, como numa tribo, seu Mun­
do é comunitário; para o Eu pessoal, é o lar. E tal como a
ambiência real de um ser é um sistema de relações funcio­
nais, assim uma “ambiência” virtual, o espaço criado da
arquitetura, é um símbolo de existência funcional. Isso
não quer dizer, entretanto, que os signos de atividades im­
portantes — ganchos para instrumentos, bancos confortá­
veis, portas bem planejadas — desempenhem algum papel em
sua significação. Nessa falsa presunção reside o erro do “fun­
cionalismo” — é um erro que não vai muito fundo, mas talvez
tão fundo quanto vai a própria teoria. A expressão simbó­
lica é algo que está a milhas de distância do planejamento
previdente ou do bom arranjo. Ela não sugere coisas a fazer,
mas encarna o sentimento, o ritmo, a paixão ou a sobriedade,
a frivolidade ou o medo de que todas as coisas são com­
postas. É essa a imagem de vida que é criada nas construções;
é a semelhança visível de um “domínio étnico”, o símbolo da
humanidade a ser encontrado na força e na interação de
formas.
Em virtude de sermos organismos, todas as nossas ações
desenvolvem-se de maneira orgânica, e nossos sentimentos,
bem como nossos atos físicos, possuem um padrão essencial­
mente metabólico. Sístole, diástole; fazer, desfazer; crescendo,
diminuendo. Sustentando, algumas vezes, mas jamais por
períodos indefinidos; vida, morte.
Similarmente, a ambiência humana, que é o correspon­
dente de qualquer vida humana, conserva a estampa de um
padrão funcional; é a forma orgânica complementar. Por­
tanto, qualquer edifício que pode criar a ilusão de um mundo
étnico, de um “lugar” articulado pelo selo da vida humana,
deve parecer orgânico, como uma forma viva. “Organização”
é a divisa da arquitetura. Ao ler as obras de grandes arquitetos
com propensão filosófica — Louis Sullivan, por exemplo, ou
OS MODOS DO ESPAÇO VIRTUAL 105

seu discípulo Frank Lloyd Wright, ou Le Corbusier — somos


razoavelmente perseguido pelos conceitos de crescimento
orgânico, estrutura orgânica, vida, natureza, função vital,
sentimento vital, e um número indefinido de outras noções
que são mais biológicas do que mecânicas. Nenhum desses
termos se aplica aos materiais reais ou ao espaço geográfico
exigido por uma construção. “Vida” e “organismo” e “cresci­
mento” não têm importância para terrenos reais ou materiais
de construção. Referem-se ao espaço virtual, ao domínio
criado das relações e atividades humanas. O lugar que
uma casa ocupa sobre a face da terra — quer dizer,
sua localização no espaço real — continua sendo o mes­
mo se a casa é consumida pelo fogo ou se é demolida ou
removida. Mas o lugar criado pelo arquiteto é uma ilu­
são, gerada pela expressão visível de um sentimento, algu­
mas vezes chamado de “atmosfera”. Esse tipo de lugar
desaparece se a casa é destruída, ou modifica-se radical­
mente se a edificação sofre qualquer alteração violenta.
Nem é preciso que a alteração seja muito radical ou extensa.
O acréscimo de águas-furtadas desequilibradas, pórticos es­
palhafatosos e outras excrescências são doenças assaz es­
petaculares; má colocação e decoração interior confusa, em­
bora sejam suaves em comparação, podem bastar para des­
truir a ilusão arquitetônica de uma totalidade étnica, ou
“lugar” virtual14.
A proposição aqui adiantada de que a ilusão primá­
ria da arte plástica, espaço virtual, aparece na arquitetura
como defrontaçõo de um donúnio étnico acarreta algumas
conseqüências interessantes. Em primeiro lugar, liberta a
concepção de arquitetura de toda sujeição a fatores especiais
de construção, mesmo de fatores elementares como pilar, ver­
ga e arco. A importância de tais dispostivos antigos está fora
de qualquer discussão; porém, mesmo eles podem capitular
ante novos recursos técnicos, e a criação que toma for­
ma sem beneficiar-se deles pode, não obstante, ser arqui­
tetura pura e inquestionável. Em segundo lugar, ela dá
um novo e vigoroso significado a um princípio insistentemen­
te sustentado pelos grandes arquitetos de hoje — que a arqui­
tetura procede do interior para o exterior de um edifício, de
maneira que a fachada nunca é uma coisa concebida sepa­
radamente, mas, como a pele ou carapaça de uma criatura
viva, é o limite externo de um sistema vital, sua proteção
contra o mundo e, ao mesmo tempo, seu ponto de contato
14. Poder-se-ia dizer muito aqui sobre o tratamento interior, isto é, o
moblliamento e decoração; mas esse tópico apresenta algumas relações
Interessantes com o problema do desempenho, que surge na música,
teatro e balé, de maneira que eu o adiarei para um capitulo posterior.
106 SENTIMENTO E FORMA

e interação com o mundo15. Um edifício pode estar inteira­


mente encerrado por uma parede sólida, mascarante, como
um palácio renascentista ou um harém turco, onde a vida
está aberta apenas para o pátio interior; ou pode não ter
praticamente proteção alguma, estando separado de sua ambi-
ência apenas por vidro e telas, cortinas e venezianas mó­
veis. Seu domínio virtual pode incluir terraços e jardins, ou
fileiras de esfinges, ou uma grande psicina retangular. Mar
e céu podem preencher os intervalos entre suas colunas e
estar reunidos ao seu espaço. Em terceiro lugar, essa con­
cepção oferece um critério sobre quais coisas pertencem
à arquitetura, como essenciais, como variáveis (como te­
lhados ou cômodos adaptáveis para verão e inverno), ou
como auxiliares. A mobília pertence à arquitetura apenas
até o ponto em que ela toma parte na criação do domínio
étnico16. Pinturas, tratadas pelos “decoradores de interiores”
como embelezamentos de um cômodo, podem permanecer
dissociadas dele ou até lhe ser hostis. Contudo, uma grande
pintura tem direito a um cômodo, e um espaço francamente
consagrado a ela é um domínio étnico de tipo especial,
com uma função assim atribuída. Muitos arranjos práti­
cos, por outro lado, não têm significação arquitetônica,
embora estejam na casa, isto é, embutidos nela: aquecimento
a vapor ou de água quente, obturadores de condutos de fu­
maça, etc. Eles afetam a utilidade do edifício, mas não sua
aparência — nem mesmo sua aparência funcional. São fa­
tores materiais, mas não elementos arquitetônicos17.
O resultado mais interessante da teoria, entretanto, é a
luz que lança sobre a relação entre arquitetura e escultura.
O problema do inter-relacionamento entre as artes e, de fato,
da sua unidade básica, na realidade pertence a uma parte bem
ulterior de minha investigação; mas, neste ponto, a especial
conexão dessas duas artes (aparentadas como são, afinal de
contas) torna-se naturalmente aparente e, portanto, seria puro
pedantismo postergar sua menção.

15. Cf. Laszlo Moholy-Nagy, op. cit., p. 198: “Uma vez que na
arquitetura não são os padrões esculturais mas as posições espaciais que
são os elementos de construção, o interior do edifício deve estar inter­
ligado e ligado com o exterior por meio de suas divisões espaciais".
16. Nada pode parecer mais herético para um músico do que a
declaração de Wrlght segundo a qual um piano num cômodo deveria ser
“embutido9*, deixando apenas que as partes “necessárias” — teclado,
suporte de músicas e pedais — rompam um belo espaço de parede.
Deixando de lado o efeito na tonalidade, a afronta ao instrumento é
ultrajante: pois o instrumento é uma presença viva no cômodo, cuja
beleza deve ser respeitada em vez de sobrepujada por planos arquitetô­
nicos.
17. Eles são, não obstante, preocupação do arquiteto, e se este os
negligenciar, pouco honrará seu trabalho — como um Leonardo que
pinte com pigmentos experimentais, perecíveis.
OS MODOS DO ESPAÇO VIRTUAL 107

A mais antiga escultura que conhecemos é inteiramente


moldada e independente: as “Vênus” primitivas dos tempos
pré-históricos. Não restam monumentos arquitetônicos dessa
época, a menos que o dólmen megalítico e certos mounds
remontem a sua origem até os fetiches arcaicos. Mas quase
que no mesmo momento em que aparecem edificações de
pedra talhada, a escultura é assimilada à arquitetura; e,
pelo mundo inteiro, a estatuária transfunde-se no altar,
na parede do templo, na voluta, no arcobotante. Figuras
livres e em relevo são quase que igualmente sustentadas pelas
edificações com que estão associadas, e às quais usualmente
se diz que elas “adornam”.
A grande escultura, porém, embora intimamente relacio­
nada a uma edificação, não é um elemento arquitetônico.
O lugar criado, em vez de simplesmente incorporá-la e,
assim, sobrepujá-la, deve dar-lhe lugar. Por essa razão,
apenas interiores muito vigorosos, autônomos, podem
permitir-se o luxo de ter esculturas. As duas formas de arte
são, de fato, complementos exatos uma da outra: uma, uma
ilusão de volume cinético, simbolizando o Eu, ou centro da
vida — outra, uma liusão de domínio étnico, ou a ambiência
criada pela “Euidade” (Selfhood). Cada uma articula direta­
mente uma metade do símbolo de vida e a outra metade por
implicação; com qualquer das duas que comecemos, a outra é
seu plano-de-fundo. O templo a abrigar a estátua ou, inver­
samente, a estátua abrigada no tempo, é a Idéia Absoluta;
como todos os absolutos, intelectualmente imóvel, é antes
uma matriz de expressão artística do que um princípio diretor.
Quando a ambiência criada por uma edificação está
muito acima das concepções morais de seus possuidores, a
escultura articula seu significado claro, que estaria perdido
se não fosse assim. As grandes catedrais dão lu g ar. a
uma abundância de estatuária diretamente relacionada à cria­
ção arquitetônica, porém não para criar arquitetura (ver Fig.
7). A catedral é um lugar criado para símbolos de vida,
mais do que para a vida real, o que fica muito aquém da idéia
arquitetônica. Em criações altamente ideais, a escultura & a
arquitetura freqüentemente têm de suplementar uma à outra;
e, nas culturas mais perfeitas, onde o alcance mental es­
tava muito além da apreensão humana real, elas sem­
pre o fizeram — a saber, no Egito, Grécia, Europa medie­
val, China e Japão, nos grandes períodos religiosos na Índia,
e na Polinésia, no auge de sua vida artística.
A escultura moderna volta à existência independente
à medida que o conceito de ambiência social cai emo­
108 SENTIMENTO E FORMA

cionalmente na confusão, toma-se sociológico e problemá­


tico, e a “vida” é na reaÚdade entendida apenas a partir de
dentro do indivíduo. Novamente a expressão direta é do Eu, e
o domínio étnico, criado por implicação, é seu valor emotivo
mas apreendido vagamente. E a pintura — a semelhan­
ça de cena objetiva, visual — consegue seus direitos como
a suprema arte de nossa época.
A pintura tem uma evolução diferente, sustentada por
outros fenômenos que não a arquitetura. Não quero falar,
neste ponto, de sua história e de suas conexões, exceto para
observar que as tentativas de alguns arquitetos de assimilar
“a arte do pintor” a seu próprio campo, quando descobrem
a importância da cor para a arquitetura, é um erro. Ter
um material em comum não vincula duas artes de alguma
maneira importante. A cor é uma coisa numa casa e uma coisa
bem diferente numa pintura. Mesmo a vista real por uma
janela é um tipo de elemento e o plano de visão no espaço
virtual é bem outro. As conexões procuradas aqui são na
realidade difíceis demais para uma solução tão superficial,
e pertencem a um nível filosófico diferente.
Voltemos à ilusão primária das artes plásticas, espaço
virtual, em seus vários modos. O fato de esses modos serem
apenas outras tantas maneiras de criar espaço, relaciona-os
tão definitivamente quanto os distingue, e sugere boas ra­
zões pelas quais mentes diversas encontram expressão, res­
pectivamente, através das diversas abstrações básicas que dão
origem às grandes formas, e têm, contudo, uma afinidade
bem maior com outras formas de arte plástica diferente da
sua do que com as artes que não criam em absoluto qual­
quer espaço virtual; para falar de exemplos específicos, por
que é provável que um pintor seja um juiz competente de ar­
quitetura, escultura, desenho têxtil, ourivesaria, cerâmica ou
qualquer outra criação do espaço visual, mas não tem mais
probabilidades do que qualquer leigo (e, é claro, tampouco
menos) de possuir um entendimento especial de música ou
literatura. Na verdade, está apto a julgar outras artes, como
balé e teatro, inteiramente do ponto de vista da forma plás­
tica, que não é de modo algum de importância suprema nas
áreas destas artes.
As profundas divisões entre as artes são aquelas que
apartam seus próprios mundos, isto é, as diferenças no que
as várias artes criam, ou diferenças de ilusão primária. Mui­
tas pessoas — artistas, críticos e filósofos — são contrárias
a qualquer estudo sério dessas divisões, porque acham que,
de alguma maneira, a arte é uma só, e a unidade é mais real
OS MODOS DO ESPAÇO VIRTUAL 109

do que a multiplicidade que, insistem elas, pode ser apenas


ilusória, devida a diferenças materiais, puramente técnicas e
muito superficiais. Contudo, uma rejeição tão apressada
de um problema geralmente revela temor em face dele,
mais do que uma firme convicção de sua desimportância.
Também acho que a arte é essencialmente una, que a função
simbólica é a mesma em toda espécie de expressão artística,
todas as espécies são igualmente grandes, e sua lógica é intei­
riça, a lógica da forma não-discursiva (que governa a forma
literária, bem como qualquer outra forma criada). Mas a ma­
neira de estabelecer esses artigos de fé como proposições
razoáveis não é apenas afirmá-los enfática e frequentemente,
e desprezar as evidências em contrário; é, mais do que isso,
examinar as diferenças, e traçar as distinções entre as artes
até o ponto em que possam ser seguidas. Elas são mais
profundas do que pode, à primeira vista, parecer. Mas existe
um nível definido em que não é possível mais efetuar distin­
ções; tudo o que se pode dizer de uma única arte pode ser dito
de qualquer outra também. A li está a unidade. Todas as divi­
sões terminam nessa profundidade, que é a base filosófica
da teoria da arte.
7 . A Imagem de Tempo

Das artes plásticas, que tornam o espaço visível pelos


vários modos em que nós instintivamente o concebemos e
lidamos com ele, voltamo-nos para outro grande gênero
artístico, a música. Imediatamente estamos como que num
reino diferente. O espelho do mundo, o horizonte do domínio
humano e todas as realidades tangíveis se foram. Os objetos
tornam-se uma mancha; toda visão, irrelevante.
A esfera da experiência, porém, alterada de maneira tão
radical, está inteiramente preenchida. Existem formas nela,
grandes e pequenas, formas em movimento, algumas vezes
convergindo para dar uma impressão de completa realização
e repouso a partir de seus próprios movimentos; há imensa
agitação, ou vasta solidez e, mais uma vez, tudo é ar; tudo isso
num universo de puro som, um mundo audível, uma beleza
sonora a apoderar-se de toda nossa consciência.
Desde que Pitágoras descobriu a relação entre a altura
de um som e a frequência das vibrações do corpo que produz
esse som, a análise da música tem-se centralizado nos estu­
dos físicos, fisiológicos e psicológicos dos tons: sua própria
estrutura física e possibilidade de combinação, seus efeitos
somáticos em homens e animais, sua recepção no consciente
humano. A acústica tomou-se uma ciência valiosa, que
não apenas possibilitou o advento de melhores condições de
produzir e ouvir música como também, na esfera da própria
112 SENTIMENTO E FORMA

música, da escala temperada e da fixação de uma tonalidade


padrão.
A objetividade de tais conquistas inspirou a esperança
de que, embora a pintura ou a poesia pudessem ser recalci-
trantes quanto ao tratamento cientifico, a música, pelo
menos, podería ser compreendida e tratada através de leis
naturais relativamente simples, o que podería depois ampliar
a compreensão, pela analogia, de artes menos abstratas e
menos transparentes. Repetidas vezes, portanto, têm sido
feitas tentativas de explicar a invenção musical pela comple­
xidade física dos próprios tons, e descobrir as leis e limites
da composição numa base de razões ou sequências matemá­
ticas a serem exemplificadas. Não leva a nada discutir as
completas tolices ou as esquisitices acadêmicas a que essa
esperança deu origem, tal como o Sistema de Composição de
Schillinger *, ou o esforço sério e elaborado de G. D. Birkhoff12
para calcular o grau exato de beleza em qualquer obra de
arte (plástica, poética e musical) através da tomada da “me­
dida estética” de seus componentes e da integração destes
para obter um juízo de valor quantitativo.
A única teoria artisticamente válida e valiosa que eu co­
nheço, baseada primordialmente na natureza composta da
tonalidade, é a obra de Heinrich Schenker. Mas a significação
de Schenker ficará muito mais evidente depois que minha
própria tese principal for apresentada, de maneira que dei­
xarei para mais tarde todos os comentários sobre sua
análise, exceto um: a saber, que seu valor reside grande­
mente no fato de que ela sempre permanece uma análise
e jamais pretende ter qualquer função sintética. Uma obra
de arte é uma unidade originaríamente, e não pela síntese
de fatores independentes. A análise revela elementos nela,
e pode prosseguir indefinidamente, fornecendo cada vez maior
compreensão; mas ela nunca poderá proporcionar uma recei­
ta. Pelo fato de Schenker respeitar essa relação entre o teóri­
co e seu objeto, ele jamais trata de uma obra-prima sem
respeito, embora suas investigações se estendam até o m ínim o
detalhe. Não há perigo de ser “superintelectualizado” lá onde
o intelecto desempenha seu devido papel3.

1. Ver Joseph Schillinger, The Schillinger System o f Musical Com -


position e The M athem atical Basis o} tfte Arts.
2. G. D. Birkhoff, A esthetic Measure. Outra “esquisitice acadê­
mica” (para falar com polidez) foi meu próprio esforço Juvenil dé
aplicar a lógica simbólica à música: o que confesso, mas n&o transcrevo.
3. Schenker fala de “síntese”, mas nfio no sentido de um verda­
deiro procedimento. £ uma atividade mística que ele atribui & pró­
pria Linha Arquetípica, a Urlinie, n&o ao compositor. “A dlmlnulçfto está
para a Linha Arquetípica assim como o esqueleto de um homem está para
sua carne com vida... A Linha Arquetípica leva diretamente à síntese
do todo. Ela é a síntese” . {Tontoille, II, 5.)
A IMAGEM DE TEMPO 113

Mas a pergunta filosófica: O que é a música?, não é


respondida nem mesmo por Schenker; pois ela não pode ser
respondida através de pesquisas sobre os ingredientes com
os quais são feitas as obras musicais. Quase todas as inves­
tigações sérias até agora têm-se preocupado com os mate­
riais da música e as possibilidades de sua combinação. O
fato de as proporções tonais figurarem entre as primeiras
leis físicas a serem matematicamente expressas, experimenta­
das e sistematizadas, deu à música o nome de uma ciência, até
mesmo de um modelo científico para a cosmologia, -desde os
tempos antigos até nossos dias4. O material em si mesmo é
interessante e oferece um campo definido, especializado, de
indagação. A ordem de tonalidade é contínua, e corresponde a
uma série igualmente ordenada de freqüências de vibração.
O volume, também, pode ser expresso em graus matemáticos
de uma escala ininterrupta e reduzido a uma propriedade das
vibrações físicas. Mesmo o timbre — a característica mais
definitivamente qualitativa dos tons — está condicionado
pela simplicidade ou complexidade das vibrações que pro­
duzem o tom. Quase no mesmo momento em que nos pro­
pomos a pensar em termos estritos sobre o fenômeno chamado
“música”, apresenta-se a física do som como o fundamento
natural de qualquer teoria.
Mas o som, e mesmo o tom, como tal não é música;
música é algo formado por sons, geralmente de entonação
definida. Ora, existe apenas afinidade suficiente entre simples
relacionamentos de tons (oitava, quinta, terça) e a sensação
do agradável (consonância) para sugerir um sistema de “res­
postas” psicológicas exatamente correspondentes ao sistema
físico de “estímulos” tonais. Assim, a ciência da acústica
adquiriu um alter ego, a psicologia da música iniciada por
Carl Stumpf, que começa com o conceito de percepções audi­
tivas separadas e procura construir a experiência musical total
como uma resposta emocional a complexos estímulos tonais,
reforçada por sensações de contraste, surpresa, familiaridade
e, acima de tudo, associações pessoais. Existe, atualmente,
uma literatura bastante vasta sobre as descobertas psicoló­
gicas nesse campo. Mas muito maior do que o corpo de des­
cobertas é a fé no empreendimento, alimentada principal­
mente por pessoas que não se reuniram nem interpretaram
elas mesmas tais dados. O programa, mais do que sua reali­
zação, influenciou pessoas ligadas ou não à música quanto a
4. Ver, por exemplo, Matila C. Ghyka, JPssaí sur le rythm e, p. 78:
"Toda essa teoria vltrúvlca de proporções e euritmla não passa de uma
transposição, para a dimensão espacial, da teoria pltagórlca das cor­
das, ou melhor: Intervalos musicais, como o vemos refletido no
Tlmeu (o número como a alma do mundo) ”,
114 SENTIMENTO E FORMA

pensar na arte dos tons como um processo de estimulação


afetiva, e a supor que a experiência musical algum dia poderá
ser descrita em termos de “vibrações nervosas” correspon­
dentes às vibrações físicas dos instrumentos sonoros 5.
Essa esperança ambiciosa baseia-se, é claro, na crença
amplamente difundida de que a função apropriada da música
é provocar um tipo refinado de prazer sensorial que, por
sua vez, evoque uma sucessão oportuna, variegada, de senti­
mentos. Não é necessário resenhar de novo essa “teoria do
estímulo” depois de suas credenciais terem sido rejeitadas
para a arte em geral. Ê suficiente ressaltar que, se a música
é arte, e não um prazer epicúreo, o estudo dos padrões de
vibração em trilhas sonoras e encefalogramas pode dizer-nos
coisas espantosas sobre a audição, mas não a respeito de
música, que é a ilusão geradá pelos sons.
A preocupação tradicional com os ingredientes da música
teve um efeito algo infeliz no estudo teórico, erudição e crítica
e, através da crítica, nas idéias e atitudes do público em
geral. Ela levou as pessoas a ouvir as coisas erradas e pres­
supõe que para compreender música precisa-se conhecer
não simplesmente muita música, mas muito sobre música.
Os frequentadores de concertos tentam ansiosamente reco­
nhecer acordes, e julgar mudanças de clave e ouvir os
diferentes instrumentos num conjunto — todos insights técni­
cos que surgem por si mesmos através de uma longa fami­
liaridade, como o reconhecimento de esmaltes em cerâmica
ou de dispositivos estruturais num edifício — ao invés de
distinguir elementos musicais, que podem ser formados de ma­
terial harmônico ou melódico, alterações de alcances ou de
colorações de tom, ritmos ou acentos dinâmicos ou simples­
mente mudanças de volume e, contudo, ser em si mesmos
tão audíveis para uma criança quanto para um músico vete­
rano. Pois os elementos da música não são tons desta ou
aquela altura, duração e volume, nem acordes e batidas me­
didas; eles são, como todos os elementos artísticos, algo
virtual, criado apenas para a percepção. Eduard Hanslick6

5. Ver, por exemplo, o capitulo sobre música escrito por Paul


Krummreich em The S pirit Suhstance of Art, de L. W. Flaccus, onde
o autor, depois de afirmar que a música evoca reações instintivas, diz:
“Os Instintos podem Bèr considerados como uma fase de nossa vida
Inconsciente; e podemos discutir o Inconsciente em termos de vibrações*1.
Mas a discussão dele é sobre vibrações, nunca sobre alguma outra coisa
em term os de vibrações.
Uma das mais sérias destas aventuras esperançosaB é La musique
et ia vie intérieure. Essai à/une liistoire psychologique de Vart musical,
por I/. Bourguès e A. Denéréaz.
Ver, também, P. E. Howard: “Is Music an Art or a Science?v,
Connccticut Magazine, VIH, n. 2 (1903): 255-288. Existem dúzias de
o u tro s oxcmplOB.
0. Vom MusUcallsch-Schoenen.
A IMAGEM DE TEMPO 115

denotou-os corretamente: “tonend bewegte Formen” — “for­


mas sonoras moventes”.
Esse movimento é a essência da música; um movimento
de formas que não são visíveis, mas que são dadas ao ouvido
éro vez de à visão. Mas o que são tais formas? Não são
objetos no mundo real, como as formas normalmente reve­
ladas pela luz, porque o som, embora se propague no espaço,
e seja variadamente absorvido ou refletido, isto é, ecoado,
pelas superfícies que encontra, não é suficientemente modifi­
cado por elas para dar uma impressão de suas formas, como
o faz a luz 7. Coisas dentro de um aposento podem afetar a
tonalidade em geral, mas não influenciam as formas tonais
especificamente, nem obstroem seus movimentos, porque
formas e movimentos estão de igual modo presentes apenas
aparentemente; são elementos numa ilusão puramente audi­
tiva.
Pois em todos os movimentos progressivos que ouvimos
— movimento rápido ou lento, parada, ataque, melodia que
se ergue, melodia que se amplia ou se fecha, acordes que se
atropelam e figuras fluentes — na realidade não existe nada
que se movimente. Talvez seja oportuno aqui dizer uma pala­
vra a fim de evitar uma falácia popular, que é a suposição
de que o movimento musical é real porque cordas ou instru­
mentos de sopro e o ar que as circunda movem-se. Tal movi­
mento, entretanto, não é o que percebemos. A vibração é
mínima, muito rápida e, se ela pára, o som simplesmente
desaparece. O movimento das formas tonais, ao contrário, é
amplo e dirigido a um ponto de repouso relativo, que é não
menos audível do que a progressão que leva até ele. Numa
simples passagem como a seguinte:

as três oitavas caminham para cima, na direção do dó. Porém,


na realidade, não existe locomoção. O dó é seu ponto de
repouso; mas, enquanto ele é sustentado, existe uma vibração
mais rápida do que em qualquer outra parte da frase. O

7. Essa diferença funcional entre luz e som foi observada por Josepli
Goddard faz uns cinquenta anos. “De uma única fonte central» a luz
procede continuamente, sendo que essa luz é refletida pelas superfícies de
objetos de maneira correspondente às características destes... Em­
bora o som musical seja mais ou menos refletido e absorvido enquanto
se move entre objetos, o resultado é uma modificação de seu caráter
e volume geral — como quando a música ó executada numa sala vazia
ou numa sala cheia — para não dar-nos impressões de tais objetos".
(On Beauty and Expression in Music, p. 25-27.)
116 SENTIMENTO E FORMA

movimento musical, em suma, é algo inteiramente diferente


do deslocamento físico. Ele é uma semelhança, e nada mais.
A última nota do exemplo que acabou de ser dado intro­
duz outro elemento que não tem protótipo na dinâmica física:
o elemento de repouso sustentado. Quando uma progressão
alcança seu ponto de repouso dentro de uma peça, a música
daí por diante não pára, mas continua movimentando-se. Ela
passa por harmonias estáticas e tons persistentes como pontos
de pedal, e silêncios. Seu impulso para frente pode até levá-la
ritmicamente para além do último som, como em algumas
das obras de Beethoven, por exemplo, no final do Opus 9,
ifi 1, onde o último compasso é um silêncio:

Os elementos da música são formas moventes de som;


mas em seu movimento nada é removido. A esfera em que as
entidades tonais se movem é uma esfera de pura duração.
Como seus elementos, entretanto, essa duração não é um
fenômeno real. Não é um período de tempo — dez minutos
ou meia hora, alguma fração de dia — , mas é algo radical­
mente diferente do tempo em que decorre nossa vida pública
e prática. Ê completamente incomensurável em relação à
seqüência dos assuntos comuns. A duração musical é uma
imagem daquilo que poderia ser denominado de tempo “vivi­
do” ou “experienciado” — a passagem da vida que sentimos
à medida que as expectativas se tornam “agora” e “agora”
torna-se fato inalterável. Tal passagem é mensurável apenas
em termos de sensibilidades, tensões e emoções; e não tem
meramente uma medida diferente, mas uma estrutura com­
pletamente diferente do tempo prático ou científico.
A semelhança desse tempo vital, experimentado, é a
ilusão primária da música. Toda música cria uma ordem de
tempo virtual, em que suas formas sonoras se movem umas
em relação às outras — sempre e unicamente em relação às
outras, pois não existe mais nada aqui. O tempo virtual está
tão separado da seqüência de acontecimentos reais quanto o
espaço virtual o está do espaço real. Em primeiro lugar, ele
é inteiramente perceptível, através da utilização de um único
A IMAGEM DE TEMPO 117

sentido — a audição. Não há suplementação de uma espécie


de experiência por outra. Apenas isso a torna muito diferente
de nossa versão tipo “bom senso” do tempo, que é ainda mais
composto, heterogêneo e fragmentário do que nosso sentido
similar de espaço. Tensões internas e mudanças externas,
pulsar de coração e relógios, luz do dia e rotinas e cansaço
fornecem vários dados temporais incoerentes, que coordena­
mos, para finalidades práticas, deixando que o relógio pre­
domine. Mas a música espalha o tempo para a nossa apreensão
direta e completa, ao deixar que nossa audição o monopolize
— organize, preencha e forme, por si mesma. Eia cria uma
imagem do tempo medida pelo movimento de formas que
parecem dar-lhe substância, porém uma substância que con­
siste inteiramente de som, de modo que é a própria transi-
toriedade. A música torna o tempo audível, e torna sensíveis
suas formas e continuidade.
Essa teoria da música é surpreendentemente corrobo­
rada pelas observações de Basil de Selincourt num ensaio
curto, pouco conhecido, mas significativo, intitulado “Music
and Duration”, que deparei bem recentemente e achei notá­
vel por vários motivos, especialmente pelo fato de que o
autor fez uma distinção, clara e explícita, entre o real e o
virtual, em relação tanto ao espaço quanto ao tempo. Suas
palavras, escritas há trinta anos, podem muito bem ser citadas
aqui:
A música é uma das formas de duração; ela suspende o tempo
comum e oferece-se como um equivalente e ideal substituto. Nada
é mais metafórico ou mais forçado na música do que a sugestão de
que o tempo está passando enquanto a ouvimos, de que o desenvol­
vimento dos temas segue a ação no tempo de alguma pessoa ou
de que nós mesmos mudamos enquanto ouvim os... O espaço do
qual o pintor faz uso é um espaço traduzido, dentro do qual todos
os objetos estão em repouso e, embora moscas possam ficar andan­
do pela tela, seus passos não mudam a distância de uma tonalidade
a o u tra ... O Tempo da música é, de maneira semelhante, um tem­
po ideal, e se temos menos diretamente consciência dele, a razão
é que nossa vida e consciência estão condicionadas mais de perto
pelo tempo do que pelo espaço. . . As relações espaciais ideais e
reais afirmam suas naturezas diferentes na simplicidade do con­
traste que percebemos entre elas. A música, por outro lado, exige a
absorção do todo de nossa consciência de tempo: nossa própria
continuidade precisa ser perdida na do som que ouvimos... Nossa
vida mesma é medida pelo ritmo: por nossa respiração, por nossa
pulsação. Isso tudo é irrelevante, seu significado está suspenso, en­
quanto o tempo é música.
. . . Se estamos "fora de tempo” ao ouvir música, nosso estado
pode ser melhor explicado pela simples consideração de que é tão
difícil estar em dois tempos concomitantemente quanto em dois Juga-
gares. A música usa o tempo como um elemento de expressão; a
duração é sua essência. O começo e o fim de uma composição mu-
118 SENTIMENTO E FORMA

sical apenas formam uma unidade se a música se tiver apossado do


intervalo entre eles e o tiver preenchido totalmente 8.
A segunda divergência radical do tempo virtual para o
tempo real está em sua própria estrutura» seu padrão lógico,
que não é a ordem unidimensional que supomos para efeitos
práticos (inclusive para todos os efeitos históricos e cientí­
ficos)* O tempo virtual criado na música é uma imagem do
tempo em um modo diferente, isto é, parecendo ter diferentes
termos e relações.
O relógio — instrumento muito problemático em termos
metafísicos — faz uma abstração especial da experiência
temporal, a saber, tempo como pura seqüência, simbolizada
por uma classe de eventos ideais, indiferentes em si mesmos,
mas classificados numa infinita série “densa" pela relação
única de sucessão. Concebido sob este esquema, o tempo é
um contínuo unidimensional, e segmentos dele podem ser
tomados de qualquer “momento” sem extensão para qualquer
momento seguinte, e cada evento real pode ser inteiramente
localizado dentro de apenas um segmento da série de forma
a ocupá-lo completamente*
Outras descrições desse engenhoso conceito de tempo
não são relevantes aqui; basta ressaltar que é o único esquema
adequado que conhecemos para sincronizar assuntos prá­
ticos, para datar eventos passados e para construir alguma
perspectiva de eventos futuros. Ele pode, além disso, ser ela­
borado a fim de ir ao encontro de exigências de um pensa­
mento muito mais preciso do que o “bom senso”. O tempo
científico moderno, que é uma das coordenadas de uma es­
trutura multidimensional, é um refinamento sistemático do
“tempo do relógio”. Mas, apesar de todas as suas virtudes
lógicas, essa sucessão infinita, unidimensional, de momentos
é uma abstração de experiências diretas de tempo, e não é a
única possível. Suas grandes vantagens intelectuais e práticas
são adquiridas à custa de muitas fases interessantes de nossa
percepção do tempo que têm de ser completamente ignoradas.
Conseqüentemente, temos uma grande soma de experiência
temporal — isto é, conhecimento intuitivo do tempo —
que não é reconhecida como “verdadeira” em virtude de
não ser formalizada e apresentada de nenhuma maneira sim­
bólica; temos apenas uma maneira — a do relógio — de
pensar discursivamente sobre o tempo em geral.8
8. Music and Letters, I, n .° 4 (1920), 286-293.
Compare, também, a seguinte passagem de "The Composer and
His Message1’, de Rogér Sessions (já mencionado no Cap. 4, nota 22):
"Parece-me que o meio essencial da música, a base de seus poderes
expressivos, e o elemento que lhe dá sua qualidade única dentre as artes,
ó o tem po , tornado vivo para nós através de sua essência expressiva,
o movimento'*.
A IMAGEM DE TEMPO 119

O princípio subjacente ao tempo do relógio é a mudança,


que é medido ao se contrastarem dois estados de um instru­
mento, quer esse instrumento seja o sol em várias posições,
ou o ponteiro sobre um mostrador em sucessivas localizações,
ou um cortejo de eventos similares, monótonos, como tiques
ou lampejos de luz, “contados”, isto é, diferenciados, ao
serem correlacionados a uma série de números distintos. Em
qualquer caso, são os “estados”, “instantes”, ou seja qual
for o nome que quisermos dar aos termos da série, que são
simbolizados e, portanto, concebidos explicitamejnte, e a
“mudança” de um para outro é traduzida em termos de
suas diferenças. A “mudança” não é em si algo representado;
ela é dada implicitamente através do contraste de diferentes
“estados”, os quais são inalteráveis9.
O conceito de tempo que emerge de tal mensuração é
algo muito afastado do tempo que conhecemos pela experiên­
cia direta, que é essencialmente passagem, ou o sentido de
transitoriedade. A passagem é exatamente aquilo que não
precisamos levar em consideração ao formular uma ordem de
tempo cientificamente útil, isto é, mensurável; e, por podermos
ignorar esse aspecto psicologicamente fundamental, o tempo
do relógio é homogêneo e simples e pode ser tratado como
unidimensional. Mas a experiência do tempo é qualquer coisa,
menos algo simples. Ela envolve mais propriedades do que
o “comprimento”, ou o intervalo entre momentos selecionados,
pois suas passagens também têm aquilo que posso apenas
chamar, metaforicamente, de volume. Subjetivamente uma
unidade de tempo pode ser grande ou pequena, bem como
comprida ou curta; a expressão coloquial “um grande mo­
mento” é psicologicamente mais acurada do que um momento
“ruim”, “agradável” ou “excitante”. É este caráter volumoso
da experiência direta da passagem que a toma, como observou
Bergson há muito, indivisível10. Mas mesmo seu volume
não é simples; pois está preenchido por suas próprias for­
mas características, como o espaço está preenchido por formas
materiais, caso contrário não poderia em absoluto ser obser­
vado e apreciado. Os fenômenos que preenchem o tempo são

9. Em 1926, Charles Koechlln publicou um artigo, "Le temps et


la musique” (La Revue Musicale, VII, 3, p. 48), onde encontrei esta
passagem: “Para certos espíritos, o tempo aparece como resultado de
nossas lembranças de um grande número de estados de espirito, entre
os quais 'presumimos9 uma duraç&o continua que os vincula, na medi­
da em que, dados os limites de alguma distância medida, um caminho
encontra-se entre esses pontos. Mas na realidade esses filósofos admi­
tem apenas a existência dos limites, e negam aquela do caminho”.
10. Em Afaffére e t Mémoire, publicado orlglnalmente em 1896, ele
escreveu; "Todo movimento, sendo efetlvamente uma passagem de um
ponto de repouso a outro, é absolutamente indivisível” (46a. ed., Paris,
1946, p. 209).
120 SENTIMENTO E FORMA

tensões — físicas, emocionais ou intelectuais. O tempo existe


para nós porque sofremos tensões e suas soluções. Sua pe­
culiar acumulação, ou suas maneiras de romper-se ou diminuir
ou fundir-se em tensões mais longas e maiores formam uma
grande variedade de formas temporais. Se pudéssemos expe­
rimentar apenas pressões orgânicas únicas, sucessivas, talvez
o tempo subjetivo fosse unidimensional como o tempo mar­
cado pelos relógios. Mas a vida é sempre uma tessitura densa
de tensões concorrentes e, como cada uma delas é uma
medida de tempo, as próprias medidas não coincidem. Isso
faz com que nossa experiência temporal se esfacele em ele­
mentos incomensuráveis que não podem ser percebidos todos
em conjunto como formas nítidas. Quando uma é tomada
como parâmetro, as outras tornam-se “irracionais”, fora de
foco em termos lógicos, inefáveis. Algumas tensões, portanto,
sempre submergem no plano de fundo; umas empurram e
outras arrastam, mas, para a percepção, elas dão mais quali­
dade do que forma à passagem do tempo, que se desdobra
de acordo com o padrão das pressões dominantes e distintas
pelas quais o estamos medindo11.
A experiência direta da passagem, como ocorre em cada
vida individual, é, evidentemente, algo real, exatamente tão
real quanto o avanço do relógio ou do velocímetro; e, como
toda realidade, é apenas percebida em parte e seus dados
fragmentários são suplementados por idéias e conhecimentos
práticos de áreas de pensamento totalmente outras. Ela é,
porém, o modelo de tempo virtual criado na música. Aí
temos sua imagem, completamente articulada e pura; todo
tipo de tensão transformado em tensão musical, todo conteú­
do qualitativo em qualidade musical, todo fator estranho
substituído por elementos musicais. A ilusão primária da mú­
sica é a imagem sonora da passagem, abstraída da realidade
para tornar-se livre e plástica e inteiramente perceptível.
A maioria dos leitores, sem dúvida alguma, já percebeu
faz tempo que o que é aqui chamado de “tempo subjetivo” é
o “tempo real”, ou a “duração”, que Henri Bergson tentou
captar e compreender. O sonho de Bergson (com respeito a
seu pensamento, não ousamos dizer “conceito” ) de la durée
réélle* era sua metafísica a aproximar-se da área musical
— de fato, chega à própria margem de uma filosofia da arte.

11. A fenomenología tenta descrever em termos discursivos essa


experiência complexa e tenta fazê-lo em termos de impressões mo­
mentâneas e sentimentos reais. O resultado é uma tremenda complica­
ção de “estados*’, onde a sensação de passagem fica intelramente perdida
no desfile de 'momentos** ( Augenblicke , não M om ente ) . Ver, por exemplo,
o artigo de Philip Merlan, “Time Consclousness In Husserl and Hel-
degger”, Journal of Phenomenology, VXH, 1 (setembro de 1947), 23-53.
* A duração real. (N. dos T.)
A IMAGEM DE TEMPO 121

O que o impediu de alcançar uma teoria universal da arte


foi, essencialmente, uma falta de ousadia lógica; em seu
horror às abstrações perniciosas, ele fugiu para uma área
sem nenhuma abstração e, tendo ferido seu espírito nos instru­
mentos da ciência física, jogou fora os instrumentos em geral.
Contudo sua proximidade aos problemas da arte fez
dele, preeminentemente, o filósofo dos artistas. É um fato
curioso que Croce e Santayana, que produziram ambos teo­
rias estéticas, jamais tenham chegado a exercer influência no
pensamento artístico que Bergson ainda exerce; no entanto,
eles disseram muitas coisas verdadeiras sobre as artes, enquan­
to que Bergson disse muitas coisas sentimentais e amadorísti-
cas12. Mas, em termos metafísicos, ele lida com questões que
chegam ao âmago de todas as artes e, especialmente, da
música.
A grande importância do que ele percebeu é, em
poucas palavras, que toda forma conceituai, que suposta­
mente retrata o tempo, simplifica-o demais, a ponto de deixar
de lado seus aspectos mais interessantes, a saber, as manifes­
tações características da passagem, de maneira que temos
um equivalente científico, mais do que um símbolo concei­
tuai de duração. Essa crítica lança um novo desafio aos po­
deres de construção lógica do filósofo: descubra-nos um sim­
bolismo pelo qual possamos conceber e expressar nosso conhe­
cimento em primeira mão do tempo!
Mas agora o próprio crítico retira-se; o desafio era apenas
oratório; sua própria resposta é um conselho fruto do de­
sespero — isto é, que uma tal concepção é impossível, que
toda simbolização é, por sua própria natureza, uma falsifi­
cação. Ela é uma “espacialização”, e qualquer trato com o
espaço é uma traição feita a nosso conhecimento real do
tem po13. A filosofia deve renunciar ao pensamento discur­
sivo, abandonar a conceituação lógica, e tentar apreender
intuitivamente a sensação interna de duração.
Mas não é a intervenção do simbolismo como tal que
frustra nossa compreensão do tempo “vivido”; é a estrutura
inadequada e consequentemente estável do símbolo literal.
As exigências que- Bergson faz à filosofia — expor as
formas dinâmicas da experiência subjetiva — apenas a arte

12. Por exemplo, a passagem em La perceptian du changem ent:


“Sem dúvida, a arte íaz com que descubramos nas coisas mais qualida­
des e mais variações de significado do que normalmente perceberiamos.
Ela amplia nossa percepção, porém mais superficlalmente do que em
profundidade. Ela enriquece nosso presente, mas náo nos leva, de algu­
ma forma, a transcender o presente” .
13. Ver La pensée e t le m ouvant , especialmente o Cap. I; ver
também, para uma apresentação breve mas fundamental, sua pequena
Metaphysics.
122 SENTIMENTO E FORMA

pode satisfazer. Talvez isso explique por que ele é, par ex-
cellence, o filósofo dos artistas. Croce e Santayana fazem exi­
gências à arte que são essencialmente filosóficas; os filósofos,
portanto, julgam-nas interessantes, porém os artistas tendem
a ignorá-las. Bergson, por outro lado, estabelece uma ta­
refa que é impossível de realizar na esfera da expressão dis­
cursiva, isto é, ela situa-se além do reino do filósofo (e tam­
pouco pode forçar a entrada nesse âmbito lançando mão do
instinto), mas que é exatamente a função do artista. Nada po­
dería parecer mais razoável, para um poeta ou para um mú­
sico, do que o objetivo metafísico de Bergson; sem perguntar
se é exeqüível em filosofia, o artista aceita esse objetivo e
subscreve uma filosofia que o reivindica.
No momento em que o símbolo expressivo, a imagem
do tempo, é reconhecido, pode-se filosofar sobre suas reve­
lações e corrigir, na realidade, certos erros bergsonianos à
luz de melhores conhecimentos. Tem havido muitas refuta­
ções astuciosas da doutrina de Bergson, mas poucas críticas
construtivas, exceto por parte de músicos, os quais reconhe­
ceram qual o sentido de sua busca e, com a coragem da ino­
cência, foram diretamente à solução, lá onde os temores filosó­
ficos de Bergson o confundiram. Em especial, tenho em mente
dois artigos de La Revue Musicale, que atacaram o principal
obstáculo a uma filosofia da arte na apreensão fértil e original
do tempo, de Bergson — sua oposição radical ao espaço, o
repúdio a qualquer propriedade que aquele pudesse partilhar
com o espaço. A arte pode construir sua ilusão no espaço ou
no tempo; em termos metafísicos, podemos entender ou
desentender tanto uma área quanto outra; e é difícil en­
contrar as características interessantes da duração se há um
número demasiado de coisas que estamos decididos a não
encontrar.
Os dois artigos são, respectivamente, “Le temps et la
musique”, de Charles Koechlin, ao qual já me referi14, e
“Bergsonisme et musique”, ligeiramente anterior, de Gabriel
Marcei15. Ambos os autores simpatizam profundamente com
a tese de Bergson de que a intuição direta do tempo deve
ser a nossa medida para a sua concepção filosófica e ambos
percebem aquilo que o próprio Bergson jamais chegou a ver
claramente — que sua “duração concreta’, “tempo vivido”,
é o protótipo do “tempo musical”, isto é, da passagem, em
suas formas características16. Além do mais, deve-se levar a

14. Ver nota 9 deste capitulo.


15. La Revue Musicale, VIII, 3,
16. Marcei escreve: “fi extremamente difícil para o leitor de
Bergson deixar de supor — contrarlamente & razão — que uma certa
A IMAGEM DE TEMPO 123

seu crédito intelectual o fato de ambos terem feito uma dis­


tinção entre duração real e duração musical, entre a realidade
viva e o símbolo17.
Bergson efetivamente reconheceu um relacionamento ínti­
mo entre o tempo musical e la durée pure, mas seu ideal de
pensamento sem símbolos não lhe permitiu explorar o poder
da imagem dinâmica. O desejo de excluir toda estrutura espa­
cial levou-o a negar, para sua “duração concreta”, qualquer
estrutura; quando ele mesmo emprega o símile do tem­
po musical, trata este último como um fluxo completamente
informe, “os sucessivos tons de uma melodia pela qual nos
deixamos embalar”. Conseqüentemente, deixa de ver a reve­
lação mais importante e novel da música — o fato de que
o tempo não é uma pura sucessão, mas tem mais do que
uma dimensão. Seu próprio horror às abstrações científicas
que ele encontra tipificadas na geometria faz com que se
apegue à pura sucessão unidimensional de “estados”, que se
parece, de maneira suspeita, com a estrutura abstrata do fluxo
de tempo unidimensional de Newton.
Mas o tempo musical tem forma e organização, volume
e partes distinguíveis. Ao aprender uma melodia não estamos
vagamente flutuando com ela. Como observou Marcei:

Quando falamos da beleza de uma linha melódica, essa qualifi­


cação estética não se refere a uma progressão interior, mas a um
certo objeto, a uma certa forma não-espacial — para a qual o
mundo da extensão pode meramente fornecer um simbolismo que
sabemos ser inadequado. Gradualmente, à medida que passo de
tom em tom, um certo conjunto emerge, é construída uma formla que,
com muita certeza, não pode ser reduzida a uma sucessão organizada
de estados. ( . . . ) É da própria essência dessa forma revelar-se como
duração e, no entanto, transcender, a seu próprio modo, a ordem
puramente temporal em que é manifestada.

filosofia da música esteja envolvida na teoria do tempo concreto...*’


(Op. cit., p. 221.) E Koechlln: “O tempo ouvido chega tão próximo da
pura duraçfio que se podería dizer que é a própria sensaçfio de duração'».
(Op. cit., p. 47.)
17. Of. Marcei, op. cit., p. 222: "A duração concreta não é essencial-
mente musical. Com maior razão pode-se dizer, embora apenas por
melo de uma distorção da frase... que seria vigorosamente desaprovada
por Bergson — a continuidade melódica fornece um exemplo, uma Ilus­
tração. da continuidade pura. dada ao filósofo para que a apreenda dl-
retamente numa realidade tanto universal quanto concreta’*.
Também Koechlln, enumerando os vários conceitos de tempo:
"1. Pura duração, atributo de nossa consciência mais profunda,
e aparentemente independente do mundo externo: a vida
deeenrolando-BO.
2. Tempo psicológico. Este é a Impressão de tempo que rece­
bemos de acordo com os eventos da vida: minutos que parecem
séculos, horas que passam depressa demais...
3. Tempo medido por meios matemáticos...
4. D, finalmente, eu falaria do tempo musical... O tempo
auditivo é, sem dúvida, o que mais se aproxima da pura du­
ração...” (Op. cit.t p. 46.)
124 SENTIMENTO E FORMA

Considerar relação e forma musical como “espacial”,


como o faz Bergson, é precisamente deixar de ver o ser real
da música; a verdadeira percepção musical apercebe a forma
como algo dinâmico.
Mas esse ato de apercepção. . . não se resolve de maneira algu­
ma naquela simpatia pela qual sou unido à frase e a vivo. Afirmo
prontamente, não é um abandono, mas, pelo contrário, uma espécie de
domínio ls.
As referências freqiientes a “espaço musical” na litera­
tura técnica não são puramente metafóricas; há ilusões defi­
nitivamente espaciais criadas na música, isto sem se levar em
conta de modo algum o fenômeno de volume, que é literal­
mente espacial, e o fato de que movimento envolve logicamen­
te o espaço, o que pode equivaler a tomar-se o movimento de
um modo demasiado literal. ‘‘Espaço tonal” é coisa diversa,
uma semelhança genuína de distância e alcance. Deriva da
harmonia, mais do que do movimento ou do volume de
tom. A razão disso, creio, é que a estrutura harmônica dá,
à nossa audição, uma orientação no sistema tonal, a partir
da qual percebemos os elementos musicais como ocupando
lugares numa gama ideal1819. Mas o espaço da música nunca se
faz totalmente perceptível, como o é a textura do tempo
virtual; é realmente um atributo do tempo musical, uma apa­
rência que serve para desenvolver a esfera temporal em mais
de uma dimensão. O espaço, na música, é uma ilusão secun­
dária. Mas, primária ou secundária, ele é completamente “vir­
tual”, isto é, não relacionado ao espaço da experiência real.
Ernst Kurth, em sua Musikpsychologie, compara-o ao “espaço
cinético” 20, e no Ursymbole melodischer Gestaltung de Wemer
Danckert, ele figura como “lugar” virtual21. Por seu lado,
J. Gehring fala dos planos escalonados da profundidade mú­
sica!22. Evidentemente, o elemento espacial que todos esses
escritores encontram na música é um espaço plástico, artisti­
camente transformado, porém não de um modo visual espe­
cificado. Não se trata de algo importado da experiência real
(embora Kurth frequentemente flerte com o puro associacio-
nismo), mas também não é a substância essencial da arte. Ele
18. Marcei, op. ç it.t p. 223-224.
19. Cf. D. P. Tovey, Essays in Musical Analysis, V, 97: Falando
das modulações de Handel, ele diz: “No Coro da Escuridão... elas
atravessam a maior parte do espaço harmônico**.
20. Ver p. 136: “A luz de todos esses fenômenos, pode-se talvez
melhor designar essas impressões espaciais subjetivas como ‘espaço ciné-
tlco\ uma vez que derivam diretamente das energias vitais psicológi­
cas. Somente em suas manifestações marginais ele (este espaço) resol-
vo- ho em fatores perceptivos.. .**
21. Ver p. 66: “Como espaço em obras de arte» este (espaço mu­
sical) è nada menos do que um símbolo cósmico, uma representação
da ‘poslçdo’, 'locallKAÇ&o’ o ‘alcance* do Homem no nexo maior do mundo."
22. Oehrlng: G rtm dprim ipien musikalischer Gestaltung.
A IMAGEM DE TEMPO 125

simplesmente surge da maneira pela qual o tempo virtual de-


senrola-se nesta ou naquela obra individual — surge, e é de
novo eclipsado.
O fato de que a ilusão primária de uma arte possa apa­
recer, como um eco, enquanto ilusão secundária em outra,
dá-nos um indício da comunidade básica de todas as artes.
Da mesma maneira como o espaço pode aparecer repetina-
mente na música, o tempo pode estar envolvido em obras
visuais. Um edifício, por exemplo, é a encarnação de um
espaço vital; ao simbolizar o sentimento da vida que pertence
a seus recintos, ele inevitavelmente nos mostra tempo e, em
alguns edifícios, esse elemento torna-se impressionantemente
forte. A arquitetura, porém, não cria uma totalidade percep­
tível de tempo, como o faz quanto ao espaço; o tempo é uma
ilusão secundária. A ilusão primária sempre determina a
“substância”, o caráter real de uma obra de arte, mas a pos­
sibilidade de ilusões secundárias dota-a da riqueza, elastici­
dade e ampla liberdade de criação que fazem com que a
verdadeira arte seja tão difícil de conter dentro das malhas
da teoria.
Tão logo passamos a considerar a música como um
símbolo consumado, como uma imagem do tempo subjetivo, a
atração que as idéias de Bergson exercem sobre a mente ar­
tística torna-se de todo compreensível; pois a música não apre­
senta a realidade de um modo mais direto do que o discurso
filosófico, mas ela apresenta uma realidade emocional e
senciente mais adequadamente por uma imagem não-discursi-
va — globalementy como diriam os franceses. Com este instru­
mento, faz exatamente aquilo que Bergson exigia de la vraie
metaphysique*, exceto uma coisa: dar uma explicação dis­
cursiva de si mesma no fim. Isso seria querer comer um doce
e querer conservá-lo ao mesmo tempo; e por esta razão a arte
não é nem filosofia, nem um substituto da filosofia, mas é,
ela mesma, um dado epistemológico sobre o qual podemos
filosofar.
A feitura do símbolo é todo o problema da música
como o é, efetivamente, de todo artista; e todas as dificul­
dades especiais que nos confrontam quando lidamos com a
música emergem da natureza da ilusão musical e dos proces­
sos criativos envolvidos em sua formação e execução. Tais
questões subordinadas são: a intervenção de um executante
entre o compositor e sua audiência; a ampla gama de “inter­
pretações” de qualquer peça dada; o valor e perigos do vir­
tuosismo, o espectro da “mera técnica” ; o processo de “auto-
-expressão” atribuído ora ao compositor, ora ao executante,
* A verdadeira metafísica.
126 SENTIMENTO E FORMA

ou nas obras orquestrais ao regente; a função dos textos poé­


ticos; o princípio do peiit roman, à falta de um texto, para
inspirar ou explicar uma composição; o ideal contrário de
“música pura”, sustentado pelos melhores musicólogos e crí­
ticos, e — paradoxalmente — o interesse da maioria dos
grandes compositores pela ópera. Todos esses problemas têm
de ser discutidos em relação ao presente assunto. Mas eles são
complexos demais, grandes demais em implicações que afetam
todas as artes, para que sejam abordados com uma mera
saudação de reconhecimento. A sua resolução tem de ser pre­
parada por um conhecimento mais detalhado do tema central
— o que faz o músico, para que fim e por quais meios.
8. A Matriz Musical

Einc ciunklc, nuichtige


Totafiâee. Schiller.

O músico, é claro, faz uma peça de música. Ora, a música


é algo audível, como uma pintura é algo visível, não mera­
mente em sua concepção, mas em sua existência sensível.
Quando uma peça de música está inteiramente realizada, ela
está ali para ser ouvida pelo ouvido físico bem como pelo
ouvido interior. Pois, não obstante as opiniões contrárias de
Croce e muitos outros estetas sérios 1, o processo final de
formar uma idéia numa aparência sensorial não é um assunto
mecânico, mas é parte e parcela do impulso criativo, contro­
lado completamente, em cada detalhe, por uma imaginação
artística.
Uma grande parte da elaboração, porém, pode ocorrer
sem qualquer expressão aberta. Essa estrutura fisicamente
não-sensorial tem uma existência permanente e uma identi­
dade própria; ela é o que pode ser “repetido” em muitas, apa­
rências transitórias, que são seus “desempenhos” e, num senti­
do, é tudo o que o compositor pode realmente chamar de sua
peça. Pois, embora ele possa levá-la à conclusão absoluta exe­
cutando-a ele mesmo, e possa gravar um disco permanente de
sua execução de modo que também seja possível repeti-la,
a composição, não obstante, existe, como algo que pode ser
confiado à escrita ou à memória e que possa ser executado
por outra pessoa.
1. Uma âlscuss&o dessa teoria contrária será encontrada mais
adiante, no Oap. 20.
128 SENTIMENTO E FORMA

O propósito de todo o labor musical, em pensamento ou


em atividade física, é criar e desenvolver a ilusão do tempo
fluente em sua passagem, uma passagem audível preenchida
com movimento que é exatamente tão ilusória quanto o tem­
po que está medindo. A música é uma “arte do tempo”, num
sentido mais íntimo e importante do que o sentido tradicional
em que a frase é empregada comumente não apenas a ele,
mas à literatura, teatro e dança — o sentido de exigir um
tempo definido de percepção. Nessa acepção, as “artes do
tempo” opõem-se às “artes do espaço”. Mas a música merece
o título em dois sentidos, e double-entendres em filosofia são
infelizes. Portanto dispensarei completamente a expressão
“artes do tempo” e farei uma distinção entre artes plásticas e
ocorrentes (antes do que “artes do desempenho”, uma vez que
não se pode dizer que a literatura, para a leitura em silêncio,
é “desempenhada”, exceto num sentido derivado e até mesmo
hipotético).
A música é uma arte ocorrente; uma obra musical cresce
da primeira imaginação de seu movimento geral até sua
apresentação física, completa, sua ocorrência. Nesse cresci­
mento existem, contudo, certos estádios distinguíveis — dis­
tinguíveis, embora nem sempre separáveis.
O primeiro estádio é o processo de concepção, que tem
lugar inteiramente na mente do compositor (não importando
quais os estímulos externos que possam iniciá-lo ou mantê-lo),
e resulta num reconhecimento mais ou menos súbito da forma
total a ser alcançado. Emprego a expressão “mais ou menos
súbito”, porque o ponto dessa revelação provavelmente varia
amplamente na experiência típica de diferentes compositores
e mesmo nas várias experiências de qualquer deles. Um
músico pode sentar ao teclado, congregar toda espécie de te­
mas e figuras numa fantasia livre, até que uma idéia se apossa
dele e uma estrutura emerge dos sons vagueantes; ou ele pode
ouvir, imediatamente, sem a distinção de quaisquer tons
físicos, talvez mesmo ainda sem a cor tonal exata, a aparição
musical inteira. Mas, seja como for que a Gestált total se
lhe apresente, ele a reconhece como a forma fundamental
da peça; e, daí em diante, sua mente não está mais livre para
errar irresponsavelmente de tema em tema, clave a clave,
c modo a modo. Essa forma é a “composição” que ele se
sento chamado a desenvolver. (É significativo, neste ponto,
que se fale da “composição” na pintura em um sentido aná­
logo; a forma básica da pintura, que é para ser desenvolvida,
c pela qual cada linha e cada ênfase é controlada.)
Umn vez encontrada a forma musical essencial, uma
peça dc música existe cm embrião; ela está implícita ali,
embora seu caráter final, completamente articulado, ainda
A MATRIZ MUSICAL 129

não esteja determinado, porque há muitas maneiras pos­


síveis de desenvolver a composição. Todavia, em todo o pro­
cesso de invenção e elaboração subseqüentes, a Gesíalt geral
serve como medida do que é certo e errado, demais ou
de menos, forte e fraco. Poder-se-ia chamar essa concepção
original a forma dominante da obra. Ela exige coisas como
ornamentação ou intensificação ou maior simplicidade; pode
ser que exclua algum recurso favorito de seu criador, e
o force a encontrar um recurso novo como um organismo
vivo; ela mantém sua identidade e, face a influências que
deviam moldá-la em algo funcionalmente diferente, parece
preservar seus propósitos originais e desviar-se de suas linhas
verdadeiras mais do que simplesmente ser substituída por ou­
tra coisa.
De fato, é quando a primeira semelhança da forma orgâ­
nica é alcançada que uma obra de arte exibe suas possibili­
dades simbólicas gerais, como uma enunciação feita de manei­
ra imperfeita ou mesmo meramente indicada, mas compreen­
sível em sua intenção geral. Penso que essa significação central
é aquilo que Flaubert chamou a “Idéia”, e seu símbolo é
a forma dominante que guia o julgamento do artista, mesmo
em momentos de intensa excitação e inspiração. Na música, o
movimento fundamental tem esse poder de plasmar a peça
toda através de uma espécie de lógica implícita, que todo tra­
balho artístico consciente serve para tornar explícita. A exi­
gência implacável no tocante às faculdades do músico surge
principalmente da riqueza de possibilidades que residem numa
matriz desse gênero e que não podem todas serem realizadas,
de maneira que cada escolha é também um sacrifício. Cada ar­
ticulação obsta não apenas suas próprias alternativas, mas tam­
bém todo tipo de desenvolvimento que elas teriam tornado
viável. Uma vez reconhecida a forma dominante, a obra é
algo como o “melhor dos mundos possíveis” de Leibniz — a
melhor escolha, segundo seu criador, dentre muitos elemen­
tos possíveis, cada um dos quais, numa estrutura orgânica,
requer tanta desobstrução, preparação e auxílio contextual de
outros fatores que, mesmo a ação de um pequeno detalhe,
pode comprometê-lo a uma decisão séria. Se ele for compe­
tente em sua arte, sua mente está treinada e predisposta a ver
cada opção em relação às outras e ao todo. Ele decide, e
sabe o que sua escolha envolve, e não fica tateando. Como
disse Picasso:
Nunca fiz tentativas nem experiências. Sempre que tive algo a
dizer, eu o disse da maneira que eu achava que deveria ser dito?.2

2. Ver Goldwftter e Treves, Artista on Art, p. 418.


130 SENTIMENTO E FORMA

A matriz, em música o movimento fundamental de pro­


gressão melódica ou harmônica, que determina o ritmo
maior da peça e dita seu alcance, nasce do pensamento e sen­
timento do compositor, mas, no momento em que este a reco­
nhece como um símbolo individual e estabelece seu contorno,
ela se torna a expressão de uma Idéia impessoal e abre, para
ele e para outros, uma mina profunda de recursos musicais.
Pois a forma dominante não é essencialmente restritiva, mas
fecunda. Uma imaginação perfeitamente livre sofre de uma
verdadeira falta de pressão; ela se encontra no estado vago e
tateante que precede á concepção da forma total. O grande
momento da criação é o reconhecimento da matriz, pois nesta
encontram-se todos os motivos para a obra específica; não
todos os temas — um tema pode ser importado se se ajusta
ao lugar — mas as tendências da peça, a necessidade de disso­
nância e consonância, novidade e reiteração, duração da
frase e regulação de cadências. Em virtude de essas funções
gerais serem exigidas pela própria forma orgânica, a imagi­
nação do compositor tem problemas específicos a resolver, os
quais ele não coloca á si mesmo caprichosamente, a fim de
pôr à prova seus poderes de solucioná-los, mas que emergem
da forma objetiva que ele já criou. Daí por que se pode
ficar intrigado, por muito tempo, quanto à forma exata de
uma expressão, sem enxergar o que está errado neste ou na­
quele aspecto, e depois, quando se apresenta a forma correta,
sentir que ela se encaixa no lugar quase que com um clique.
Uma vez que o seu conteúdo emocional não é claramente pre-
concebível sem qualquer expressão, a adequação do novo ele­
mento não pode ser medida por ele com nada que se asse­
melhe à precisão e certeza daquele “clique’" intuitivo. É a
forma dominante da obra que garante um tal julgamento 3.
Sob a influência da “Idéia” total, o músico compõe cada
parte de sua peça. Os princípios de articulação da música são
tão variados que cada compositor encontra sua própria lin­
guagem, mesmo dentro da tradição que ele casualmente pode
herdar. A Idéia, como ocorre a ele, já sugere sua própria ma­
neira de compor; e nesse processo encontra-se a individuação
da peça. Portanto, a forma dominante, maior movimento ou
seja como que for que a queiramos chamar, não é aquilo que
Schenker denominou de Urlinie; pois, como observou Riezler,
as Urlinien de peças muito diferentes assemelham-se de ma­
3. Cf. Roger Sessions, op. cit.: “ (Algumas vezes) a inspiração
toma a forma, entretanto, n&o de um súbito lampejo de música, mas de
um impulso claramente imaginado na direç&o de um determinado alvo
pelo qual o compositor é obrigado a lutar. Quando (no caso da
'Hammerklavier Sonata’ de Beethoven) essa intulçáo perfeita era atin­
gida, entretanto, n&o podia haver hesltaç&o — antes, um lampejo de
reconhecimento de que isso era exatamente o que ele queria” (p. 120-27).
A MATRIZ MUSICAL 131

neira peculiar 4. Mas as concepções musicais a partir das quais


foram desenvolvidas as respectivas obras devem ter sido tão
distintas quanto os produtos finais. Isso porque a “Idéia”
inicial é o começo de um processo criativo e, portanto, ativa
um plano mais definido de desenvolvimento do que mera­
mente a decomposição de um acorde natural em tons suces­
sivos e das novas estruturas resultantes de notas harmônicas
em novas sucessões — princípio que Schenker chama de
auskomponieren*. Alguma maneira característica de desdo­
brar as potencialidades tonais das primeiras harmonias é real­
mente o princípio gerador de uma composição, e isso pode
estar implícito numa figura rítmica ou numa consciência de
alcances vocais extremos (Intervdzug de Schenker, mas sem
referências, inicialmente, aos intervalos precisos envolvidos)
e de mudanças que se atropelam ou ampla expansão, leveza,
rápido brilho ou intensidade impressionante. A Urlinie, por
outro lado, é o produto final de uma análise estrutural; e
Schenker provavelmente seria a última pessoa a supor que o
compositor começa com uma noção explícita de sua Unha
protomusical, como uma planta, e deliberadamente compõe a
peça dentro dessa estrutura. A idéia da peça contém a
Urlinie da mesma forma como uma afirmação contém sua
sintaxe; quando temos um pensamento discursivo a expressar,
numa língua que falamos facilmente, construímos nossa afir­
mação sem qualquer pensamento de sujeito e predicado,
porém nossa comunicação fluirá em algum canal sintático de-
terminável, com o qual as construções mais complicadas ainda
mantêm uma relação de dependência.
A “linguagem da música”, como a conhecemos, desen­
volveu suas próprias formas, e estas são tão tradicionais como
os elementos estruturais na fala. Pode ser, porém, que mesmo
a Urlinie não seja uma lei inalterável de toda música, mas
apenas de nosso desenvolvimento europeu da música; que
Schenker haja descoberto não tanto o princípio da própria
arte, quanto o da “Grande Tradição”. Sua constante depen­
dência das “obras-primas” e seu ressentimento para com todas
as novas linguagens e desvios levam-nos a pensar nos prota­
gonistas da chamada pintura “representacional” 5; as leis
da natureza que alegam ter descoberto para toda a arte
pictórica são, na verdade, os princípios da “Grande Tradição”
que inspirou e sustentou a carreira desta na história de nossa
cultura. Se a Urlinie for a marca de nosso tipo especial de
criação musical, então não é de espantar que possamos achá-
4. W. Riezler, "Die Urlinie", Die Musik, X X I1, p. 502.
* Literalmente, compor por fora.
5. Ver, por exemplo, Kenyon Cox, The Classio Point of View.
132 SENTIMENTO E FORMA

Ia em todas as boas composições e, também, em muitas que


não são boas; e nada poderia ser mais irrelevante do que a
acusação de Riezler contra a análise de Schenker, de que to­
das as Urlinien se parecem e que não se pode dizer, vendo-as,
se as obras das quais foram abstraídas são grandes ou pobres6.
Qual, então, é a essência de toda música? A criação do
tempo virtual e sua determinação completa pelo movimento
de formas audíveis. Os recursos para estabelecer essa ilusão
primária de tempo são muitos; o reconhecimento de tons rela­
cionados (fundamentais e harmônicos e, por derivação, todo
nosso sistema harmônico) é o princípio estrutural mais vigo­
roso que jamais foi empregado, se o vigor artístico for jul­
gado pelo alcance e expressividade das estruturas às quais o
princípio dá origem; mas outras tradições musicais usaram
outros recursos. O tambor tem sido empregado com belíssimo
efeito para cativar o ouvido, para empurrar para um lado, por
assim dizer, o mundo do tempo prático e criar uma nova
imagem de tempo no som. Em nossa própria música, o tambor
é um elemento subsidiário, mas existem discos de música afri­
cana em que seu poder construtivo é insuperável7. A voz, em
tais desempenhos, serve essencialmente para contrastar com o
tom firme do tambor — para vaguear e erguer-se e cair onde o
elemento puramente rítmico prossegue como o Destino. O
efeito não é nem melodia nem harmonia, porém é música:
tem movimento e forma autônoma, e qualquer pessoa fami­
liarizada com muitas obras desse gênero provavelmente senti­
ría sua estrutura e estado de espírito quase que desde a batida
inicial.
Outro princípio diretor da música tem sido a entonação
da fala. Se o canto, em seu sentido mais antigo, tem uma
linha protomusical, essa linha não é construída harmonica-
mente, como a Urlinie de Schenker, mas baseia-se em algum
outro princípio. Contudo o canto coral, seja qual for seu
conteúdo poético, é essencialmente música. Ele cria uma
forma dinâmica, movimento puramente sonoro, que serve de
medida a seu próprio Tempo audível mesmo para uma pessoa
que não entende as palavras, embora essa pessoa inevitavel­
mente perca algo da riqueza da textura musical. Mas esse é
um assunto a ser discutido futuramente. O ponto em questão,

fl. W. Riezler, op. cit., p. 509.


7. Por exemplo. Vlctor PIO-12 (89b). “Secret Society Drums. Blni
Trlbe” (5 tambores). É costume entre europeus chamar de “primitiva”
toda música de tambores; mas esta nfto é primitiva, em absoluto — é
altamente desenvolvida, produto sofisticado de uma tradlçfto viva. Se
itn comparar tal música africana de tambores com os acompanhamentos
do dança com tambores dos camponeses europeus (Vanthoiogie sonore,
1(1 (a. “Música do Sec. X III’'; b, “Séc XIV”). esta última, em com-
paraçAo, sourA como verdadeiramente “primitiva”, isto é. pouco desenvol­
vida.
A MATRIZ MUSICAL 133

aqui, é meramente que a música é mais universal do que


qualquer tradição artística, e a diferença entre música e baru­
lho não é a ausência deste ou daquele princípio construtivo,
mas sim a ausência de qualquer forma dominante. Pode até
acontecer que o barulho forneça fenômenos musicais; mar­
telos em bigornas, serras circulares, torneiras gotejantes ten­
dem a fazê-lo; mas a música real só passa a existir quando
alguém toma o motivo e o usa, ou como uma forma a ser
desenvolvida, ou como um elemento a ser assimilado a uma
forma maior.
A essência de toda composição — tonal ou atonal, vocal
ou instrumental, mesmo puramente percussiva, se se quiser —
é a semelhança de movimento orgânico, a ilusão de um todo
indivisível. A organização vital é a estrutura de todo senti­
mento, porque o sentimento existe apenas em organismos vi­
vos; e a lógica de todos os símbolos que podem expressar sen­
timento é a lógica dos processos orgânicos. O princípio mais
característico da atividade vital é o ritmo. Toda vida é rítmica;
em circunstâncias difíceis, seus ritmos podem tornar-se muito
complexos, mas, quando eles são realmente perdidos, a vida
não pode durar por muito tempo. Esse caráter rítmico do
organismo permeia a música, porque a música é uma apresen­
tação simbólica da mais alta resposta orgânica, a vida emo­
cional dos seres humanos. Uma sucessão de emoções que não
se relacionam umas com as outras não constitui uma “vida
emocionar’, da mesma forma como um funcionamento descon­
tínuo e independente de órgãos reunidos sob uma pele não
seria uma “vida” física. A grande tarefa da música é organi­
zar nossa concepção do sentimento em mais do que simples­
mente uma consciência ocasional de tempestade emocional,
isto é, dar-nos uma introvisão no que pode ser verdadeiramen­
te chamado de “vida de sentimento”, ou unidade subjetiva
de experiência; e ela faz isso pelo mesmo princípio que orga­
niza a existência física num projeto biológico — o ritmo.
Existem inúmeros estudos sobre o ritmo, baseados na
noção de periodicidade, ou recorrência regular de eventos.
£ verdade que as funções rítmicas elementares da vida têm
fases regularmente recorrentes: batidas do coração, respira­
ção, e os metabolismos mais simples. Mas o caráter óbvio
dessas repetições tem feito com que as pessoas as considerem
como a essência do ritmo, o que elas não são. O tique-taque
de um relógio é repetitivo e regular, mas não rítmico por si
mesmo; o ouvido atento escuta ritmos na sucessão de tiques
iguais, a mente humana os organiza numa forma temporal.
A essência do ritmo é a preparação de um novo evento
pelo término de um evento anterior. Uma pessoa que se
move ritmicamente não precisa repetir um único movimento
134 SENTIMENTO E FORMA

exatamente. Seus movimentos, entretanto, precisam ser gestos


completos, de modo que se possa ter uma sensação de começo,
de intenção e de consumação, e ver na última fase de
uma delas a condição e, efetivamente, o surgimento da outra.
O ritmo é o levantamento de novas tensões através da resolu­
ções das tensões anteriores. Elas não precisam, em absoluto,
ser de igual duração; porém a situação que gera a nova crise
deve ser inerente ao desenlace daquela que a precede.
A respiração é o exemplo mais perfeito de ritmo fisio­
lógico: à medida que soltamos o ar que inspiramos, estabele­
cemos uma necessidade corpórea de oxigênio que é a motiva­
ção e, portanto, o início real, da nova inspiração. Se o relaxa­
mento de uma inspiração não for sincrônico ao aumento
da necessidade da seguinte — por exemplo, se o esforço físi­
co exaure nosso oxigênio mais depressa do que expiramos, de
maneira que a nova necessidade se torna imperiosa antes que
se complete a expiração do momento — a respiração não é
rítmica, mas ofegante.
O pulsar do coração ilustra a mesma continuidade fun­
cional: a diástole prepara a sístole, e vice-versa. Toda a auto-
-Teparação dos corpos vivos baseia-se no fato de que a exaus­
tão de um processo vital sempre estimula uma ação corretiva
que, por sua vez, se exaure na criação de condições que exi­
gem novó dispêndio.
O princípio da continuidade rítmica é a base da unidade
orgânica que dá permanência aos corpos vivos — uma per­
manência que, como já observei antes (ver pág. 69), é
na realidade um padrão de mudanças. Ora, a assim chamada
“vida interior” — toda nossa realidade subjetiva, tecida de
pensamento e emoção, imaginação e percepção sensorial — é
inteiramente um fenômeno vital, mais desenvolvida onde a
unidade orgânica da forma individual, precária, é mais com­
pleta e intrincada, isto é, nos seres humanos. Aquilo que
chamamos de mente, alma, consciência, ou (no vocabulário
corrente) experiência, é uma vitalidade intensificada, uma
espécie de destilado de todo funcionamento sensível, teleoló-
gico, organizado. O cérebro humano, com todas as suas rami­
ficações, está escancarado para o mundo exterior e sofre alte­
rações profundas, mais ou menos permanentes, por impres­
sões que os órgãos “mais antigos”, menos variáveis, registram
apenas por respostas transitórias, sintomas corporais de emo­
ção, Em animais, o intelecto é quase tão seletivo quanto a
boca em relação àquilo que irá receber; e aquilo que admite
é capaz de colocar todo o organismo em movimento. O cére­
bro humano, porém, é incomparavelmente mais tolerante
quanto às impressões, porque ele tem um poder de manipular
estímulos aos quais não se pode permitir que afetem, de nenhu­
A MATRIZ MUSICAL 135

ma maneira profunda, o processo metabólico total, sob pena


de morte: esse poder é a transformação simbólica das per­
cepções.
Onde o processo simbólico é altamente desenvolvido, ele
praticamente se apossa do domínio da percepção e memória,
e imprime sua marca em todas as funções mentais. Mas, mes­
mo em suas operações mais elevadas, a mente ainda segue o
ritmo orgânico que é a fonte da unidade vital: o levanta­
mento de uma nova Gestalt dinâmica no próprio processo de
desaparecimento de uma anterior.
Existem tais ritmos genuínos também na natureza inor­
gânica; o ritmo é a base da vida, mas não é limitado à vida.
O balanço de um pêndulo é rítmico, sem nossa interpretação
organizante (que é o que toma uma mera sucessão de sons
— tudo o que percebemos ao ouvir um relógio, por exemplo
— rítmica para nós). A força cinética que impulsiona o pên­
dulo ao ponto mais alto de sua oscilação acumula o potencial
que o trará novamente para baixo; o dispêndio de energia
cinética prepara o ponto decisivo e a queda. A diminuição
gradual do arco do pêndulo devida à fricção geralmente não
é visível à observação direta, de maneira que os movimentos
parecem exatamente repetitivos. Um bola que pula, por outro
lado, apresenta um desempenho rítmico sem medida igual.
Mas o exemplo mais impressionante de ritmo conhecido pela
maioria das pessoas é o quebrar das ondas numa rebentação
constante. Cada novo vagalhão que se aproxima é formado pe­
lo repuxo que flui no sentido contrário e, por sua vez, na rea­
lidade apressa a recessão da onda precedente pela sucção. Não
há linha divisória entre os dois eventos. Uma onda quebran­
do, porém, é um evento tão definido quanto se poderia querer
encontrar — uma verdadeira Gestalt dinâmica.
Tais fenômenos no mundo inanimado são vigorosos
símbolos da forma viva, justamente porque eles mesmos não
são processos de vida. O contraste entre o comportamento
aparentemente vital e a estrutura obviamente inorgânica das
ondas do oceano, por exemplo, ressalta a pura semelhança
de vida e faz as primeiras abstrações de seu ritmo para nossa
intuição intelectual. Essa é a função primária dos símbolos.
Sua segunda função é permitir-nos manipular os conceitos
que alcançam. Isso requer mais do que um reconhecimento
daquilo que pode ser chamado de '‘símbolos naturais”; exige
a elaboração deliberada de formas expressivas que possam
ser deslocadas de maneiras variadas para revelar novos signi­
ficados. E tais Gestalten criadas, que nos dão um insight
lógico do sentimento, vitalidade e vida emocional, são obras
de arte.
136 SENTIMENTO E FORMA

A forma dominante de uma peça de música contém seu


ritmo básico, que é, ao mesmo tempo, a fonte de sua unidade
orgânica e seu sentimento total. O conceito de ritmo como
uma relação entre tensões mais do que uma questão de
divisões iguais de tempo (por exemplo, métrica), toma
bastante compreensível que as progressões harmônicas, reso­
luções de dissonâncias, direções de passagens “correntes” e
“tons da tendência” na melodia sirvam, todos, como agentes
rítmicos. Tudo o que prepara um futuro cria ritmo; tudo o
que gera ou intensifica expectativas, inclusive expectativa de
pura continuidade, prepara o futuro (“batidas” regulares são
uma fonte óbvia e importante de organização rítmica); e tu­
do o que cumpre o futuro prometido, de maneiras previstas
ou imprevistas, articula o símbolo do sentimento. Seja qual
for o espírito especial da peça, ou sua significação emocional,
o ritmo vital do tempo subjetivo (o tempo “vivido” que Berg-
son nos conjura a encontrar na experiência pura) permeia
o símbolo musical, complexo, multidimensinal como sua ló­
gica interna, que relaciona a música à vida de maneira íntima
e evidente por si mesma.
E quanto à repetição de formas, divisões iguais, se a
recorrência não é a base real do ritmo? Qual é a função das
inúmeras regularidades de acentuação, frase, figura e traço
nas grandes obras-primas?
A repetição é outro princípio estrutural — envolvido pro­
fundamente com o ritmo, como todos os princípios básicos o
estão entre si — que dá à composição musical a aparência
de crescimento vital. Pois o que recebemos, na passagem
de som, com uma sensação de reconhecimento, isto é, como
uma recorrência, muitas vezes é uma variante bastante livre
daquilo que veio antes, uma simples analogia e uma repetição
apenas em termos lógicos; mas é justamente esta espécie de
jogo sobre um padrão básico, especialmente o reflexo do pla­
no global na estrutura de cada parte, que é característico das
formas orgânicas. Tal é o princípio de “diminuição” de
Schenker8, o “princípio de associação” de Roger Sessions9. O
reconhecimento mais completo de sua função “vitalizadora”
de que tenho notícia está no artigo de Basil de Selincourt, o
qual já tive ocasião de citar extensamente, e não posso impe­
dir-me de deixar que o autor daquele magistral e curto ensaio
fale novamente:
A repetição começa com o compasso, e continua na melodia
e em cada frase ou item no qual podemos resolvê-la. O cresci-

8. Ver, especlalmente, Das Meisterwerk tn der Musik, passim .


9. Op. oit.t p. 129 e 85.
A MATRIZ MUSICAL 137

mento de uma composição musical pode ser comparado ao de


uma planta que floresce» ( . . . ) onde não só as folhas se repetem
umas às outras» como as folhas repetem as flores, e os próprios
rabos e ramos são como folhas não-abertas. ( . . . ) Ao padrão da
flor corresponde um outro padrão desenvolvido na colocação e
agrupamento das flores ao longo dos ramos, e os próprios ramos
dividem-se e sobressaem-se em proporção equilibrada, sob o im­
pulso vital controlador. ( . . . ) A expressão musical segue a mesma
lei 10 .

Tão logo uma idéia musical adquire um caráter orgâni­


co (não importa o recurso mediante o qual isso é al­
cançado), ela expressa a forma autônoma de uma obra,
a “forma dominante” que controla todo seu desenvolvimento
subseqüente. É a compreensão dessa unidade e individualida­
de orgânica que permite a um compositor executar uma obra
prolongada com a força de uma “inspiração” inicial e tornar
o produto cada vez mais integral, e não cada vez menos,
pela importação constante de novas idéias — algumas vezes
até mesmo temas que lhe ocorreram muito tempo atrás, de­
senvolvimentos que já usou em outro lugar, preparados tra­
dicionais — para serem assimilados e transfigurados, todos,
pela composição única. Enquanto ele puder manter vivo o
organismo musical em sua imaginação, não precisa de outra
regra ou alvo.
Há inúmeras referências na literatura musicológica e
entre os pronunciamentos de grandes músicos que dão provas
da importância central da forma viva, da semelhança de movi­
mento espontâneo, em música; poder-se-ia citar, quase ao
acaso, palavras de Marpurg, Goddard, Tovey, Schweitzer,
Schenker, Lussy ou notas e cartas de Mozart, Chopin, Men-
delssohn, Brahms — todo o mundo, quase, que já tenha escri­
to seriamente e com conhecimento sobre música. Somos forço-
samente lembrados da nota insistente do vitalismo, a concor­
dância universal sobre a qualidade orgânica de toda composi­
ção espacial, que perpassa os comentários dos mestres da arte
visual, coligidos no final do Cap. 5; e seria difícil, efetiva­
mente, não considerar ao menos a hipótese de que todas as
obras de arte, sejam de que domínio especial forem, são
“orgânicas” no mesmo sentido. Mas contentemo-nos com a
hipótese, até que a prova se apresente por si mesma; e, sem
generalizar prematuramente a forma musical, estudemo-la
mais.
Talvez a coisa mais notável a seu respeito seja o caráter
objetivo já mencionado. Uma vez apreendida pela imagina-10
10. "Music and Duration”, p. 288.
138 SENTIMENTO E FORMA

ção artística, uma matriz do pensamento musical, uma “forma


dominante", assume uma condição peculiarmente impessoal,
como uma impressão vinda do exterior, algo “dado” . Gran­
des músicos falaram da “Idéia” musical com um sentimento
inequívoco de obrigação moral em relação a ela, um senso
de responsabilidade por seu desenvolvimento e perfeição.
Assim, Mendelssohn escreveu a seu amigo Ferdinand Hiller,
compositor talentoso mas superficial:
Nada me parece mais censurável do que ficar criticando os
dotes naturais de um homem ( . . . ) mas se acontecer que, como
aqui em sua peça, todos os temas, tudo o que depende de talento ou
inspiração (chame-o do que quiser) é bom e belo e comovente,
mas o artesanato não é bom, penso que, então, não se tem o direito
de deixar passar o fato ( . . . ) Da mesma maneira, creio que
um homem de grandes capacidades tem o dever de tomar-se uma
pessoa excelente e deve ser censurado se não desenvolve ao máximo
os poderes com que foi dotado, assim, sustento, é com uma peça
de música. ( . . . ) Percebo muito bem que músico algum pode mo­
dificar as idéias ou talentos que lhe foram mandados pelos céus:
mas, com a mesma certeza, sei que se os céus lhe mandaram
grandes idéias, é sua obrigação executá-las adequadamente. Não tente
dizer-me ( . . . ) que seu trabalho é tão bom quanto suas compo­
sições!
Uma afirmação ainda mais clara, porém, é a de Beetho-
ven, se é que podemos confiar na narração de Bettina Bren-
tano a Goethe, a qual lhe assegurou, fiando-se em sua
memória extraordinária, que era aproximadamente literal:
É preciso ritmo espiritual (geistigen) para apreender a música
em sua essência. ( . . . ) Toda invenção (musical) genuína é pro­
gresso moral. Submeter-se a suas leis inescrutáveis e, em virtude
dessas leis, superar e controlar a própria mente, de modo que ela
produza a revelação: esse é o princípio isolador da arte. ( . . . )
Assim, cada verdadeira criação de arte é independente, mais
poderosa do que o próprio artista. ( . . . ) A música dá à mente
uma relação com a harmonia (total). Qualquer idéia única, se­
parada, tem em si o sentimento da harmonia, que é Unidadei2.
Ressalto tanto essa objetividade e potência da forma
dominante numa peça de música porque acredito que ela é a
chave de quase todos os problemas discutíveis de desempe­
nho, compreensão, adaptação e até mesmo daquele velho e
seco pomo da discórdia, a auto-expressão. Da matriz, o movi­
mento maior, flui a vida da obra, com todas as suas contin­
gências, seus poderes e perigos para dentro da comunidade
de mentes humanas.12

11. Moistarbricfe, II: “Pelix Mendelssohn-Bartholdy’’, editado por


Ernat Wolff. Vor p. 128-129.
12. Iiiidwig van Beethoven, Briefe und Gespràche, p. 146.
9. A Obra Viva

Muitas das considerações e perplexidades encontradas


mais cedo ou mais tarde em todas as artes têm sua expressão
mais clara, e portanto sua forma mais tangível, em relação
à música. Os problemas filosóficos da arte são geralmente
tão interligados que em qualquer ponto se poderia levantar
um deles; para evitar a falta de objetivo de uma ordem pu­
ramente arbitrária, portanto, tentarei discutir tais tópicos
especiais nem sempre na primeira oportunidade, mas cada
qual dentro da estrutura da arte que lhe dá maior relevo.
Por exemplo, a questão do sentido literal e da significação
artística toma-se mais aguda no campo da literatura, aquela
da “distância psíquica”, no teatro. Uma vez isolado e resolvi­
do um problema artístico mais ou menos especializado em
geral pode-se encontrar ao menos formas de seus vestígios
em todas as grandes ordens da arte; porém ele é mais fácil
de ser tratado lá onde exibe seu caso clássico.
Na música, todo tipo de questões interessantes surge,
uma vez dada ao mundo uma composição, lá onde ela tem um
estatuto e uma carreira como obra de arte viva. Antes de
tudo, muitas pessoas diferentes irão executá-la e, em algumas
ocasiões, ela soará como um espectro de si mesma, quando
não (pior ainda) como uma caricatura. Esse contraste é
tão grande que muitos músicos e psicólogos sustentam que
não existe uma coisa como seja a peça, digamos a Primeira
140 SENTIMENTO E FORMA

Fuga de Bach no Cravo Bem Temperado (dó maior), mas


tantas peças quantos forem os seus executantes, ou mesmo
tantas quantas sejam suas execuções reais. Aquilo que chama­
mos de “a Fuga em Dó Maior” é, dizem eles, na realidade
uma classe de peças, tendo apenas em comum as proprieda­
des simbolizadas pelos recursos de notação na partitura.
Esse é o tipo de afirmação com que nos deparamos fre-
qüentemente em conversas de estúdio; seus protagonistas or­
gulham-se de designá-la como “herética”, porque o que lhes
interessa é principalmente a divergência desta com a opinião
do bom senso, que eles chamam de visão “ortodoxa”, como
se houvesse um corpo real de doutrina por trás daquilo que é
aceito casualmente e eles fossem obrigados a opor-se a seus
dogmas. Mas o propósito da heresia não é evocar uma dis­
cussão filosófica de longo alcance; é justificar, e mesmo
glorificar, certa “liberdade” pouco usual, digamos nesta ou
naquela interpretação das fugas de Bach, desatenção aos
elementos estilísticos, transcrições questionáveis, e assim
por diante. Se a teoria “heterodoxa” tivesse propósitos filo­
sóficos, a sua primeira parte não seria uma afirmação radical,
“não existe uma tal coisa como 'a peça’ ”, mas uma pergunta
respondível, embora difícil: “O que queremos dizer com ‘a
peça’ ”? E a segunda parte — “Existem tantas peças quanto
executantes, ou mesmo execuções” — seria:
Onde “a peça” é tomada como uma obra completa, audível, ela
é na realidade um novo fenômeno, de algum modo intimamente rela­
cionado com aquilo que chamamos de “a peça” em outro sentido,
a saber, o opus do compositor.
Então a força da disjunção — “executantes ou mesmo
execuções” — apresentar-se-ia para abrir o novo gambito
e assim por diante. Pois existe, é claro, alguma verdade na
“heresia”, mas ela não é simples, e a única maneira de en­
contrá-la é separando e estudando as várias questões que
estão confusamente envolvidas na afirmação.
Comecemos pela primeira pergunta séria: ao falar de
uma peça de música que quase todos conhecem, por exem­
plo, a primeira fuga do Cravo Bem Temperado, o que que­
remos dizer com “a peça”, assim chamada e conhecida? Que­
remos dizer uma ilusão de tempo, organicamente desenvol­
vida, em passagem audível. Aqui, de pronto nos depara­
mos com uma ambigüidade; pois “audível” pode referir-se
à audição real ou imaginária. Para uma pessoa que saiba ler
música com tanta facilidade quanto a maioria das pessoa lê a
linguagem, a música torna-se audível através da leitura atenta
dc uma partitura, como acontece com as palavras na leitura
OBRA VIVA 141

comum. Assim, é-se naturalmente levado a perguntar: A


leitura silenciosa da música é o mesmo tipo de experiência
que a leitura silenciosa da literatura? Se todos fossem ensi­
nados a ler música, será que a maioria das pessoas encon­
traria satisfação musical na leitura silenciosa, como elas en­
contram satisfação literária em ler livros?
Calvin Brown, em Music and Literature: A Comparison
of the Arts, responde essas perguntas com um simples “sim”.
Tendo observado ser impossível a leitura silenciosa da música,
considera prova suficiente que as estruturas tonais e as
estruturas de palavras “apresentam-se ao ouvido” da mesma
maneira essen cialC o n tu d o há uma diferença radical, que
ele deixa passar, mas que vem à luz se nos apegarmos coeren­
temente ao problema central de o que é criado numa obra de
arte: na música, a passagem do tempo tornada audível por
elementos puramente sonoros. Tais elementos existem apenas
para o ouvido; todos os auxílios musicais à nossa percepção
real do tempo são eliminados e substituídos por experiências
tonais na imagem musical da duração. Mas os elementos da
literatura não são sons como tais; mesmo na' poesia, as pala­
vras não se destinam meramente a serem ouvidas; ao invés de
serem objetos puramente sensoriais que podem tomar-se
formas simbólicas “naturais”, como formas e tons, elas já
são símbolos, isto é, símbolos “atribuídos”, e a ilusão artística
criada por meio deles não é uma textura de tõnend bewegte
Formem mas uma ilusão completamente diferente. O fenô­
meno da leitura silenciosa, portanto, ocorre ém ambas as
artes, mas tem valores diferentes nos dois contextos respec­
tivos.
Em música, a relação entre audição interior e audição
real é subjacente a uma fase inteira da produção artística; o
trabalho do executante. Neste sentido, então, ela merece
um estudo exato, que demonstre que ela é mais interessante
do que nos permitiría supor uma vaga e geral concepção
a seu respeito. Os dois tipos de audição — física e mental —
diferem um do outro de maneiras que não são geralmente re­
conhecidas, e suas diferenças precisam ser compreendidas
antes de podermos determinar seus relacionamentos exatos
na experiência musical.
A audição física, percepção sensorial real do som,
depende da natureza de um estímulo externo e daquilo que o1

1. Ver p. 8: "Ninguém confunde as notas impressas numa folha de


música com música; elas são simplesmente símbolos que dizem a um
executante quais os sons que ele deve produzir, e os próprios sons sfto a
música. Precisamente a mesma coisa apllca-se à literatura, e nenhum
analfabeto seria jamais capaz de cometer tal confusão. De fato, a única
razão pela qual não cometemos o mesmo erro em relaçáo à música é
que somos em grande parte analfabetos musicais".
142 SENTIMENTO E FORMA

órgão sensorial transmite, e registros da mente atenta, ou co­


mo memória real, ou como “preparação mental” de recepções
ulteriores. Mesmo a audição inteligente é, até certo ponto,
passiva, determinada pela causa externa. Ela é em grande
parte seletiva, não deixando passar o que é irrelevante: no
entanto, um certo montante de irrelevâncias sempre acaba
infiltrando-se. Nosso aparelho perceptual é feito para pro­
pósitos práticos, e apenas adaptado com maior ou menor êxito
às finalidades artísticas. Os aspectos do tom físico que têm
importância prática tendem, portanto, a impor-se a nossa
atenção, e quanto mais passivamente ouvirmos tanto mais
proeminentemente eles hão de figurar naquilo que ouvimos.
São os estímulos mais diretos, os “dados sensoriais” propor­
cionados ao ouvido. É claro que as mentes humanas diferem,
mesmo em sua sensibilidade a tais impressões físicas; a per­
cepção é tão influenciada peía concepção que uma completa
passividade mental seria provavelmente igual à insensibilida­
de. Há graus de imediação em nossa audição, e talvez a me­
lhor maneira de determiná-los é notar quais os elementos da
experiência musical que perdemos pçla audição desatenta,
isto c, dando apenas atenção superficial, como o faz um fre­
quentador de concertos distraído ou indiferente.
Não deixamos de perceber a tonalidade absoluta. Isso
não quer dizer que saibamos qual tom estamos ouvin­
do, mas que cada som é ouvido como sendo desta ou
daquela altura, de acordo com as vibrações físicas que o
causam. Em segundo lugar, ouvimos sua duração absoluta.
Esta é dada diretamente; embora não notemos qual é seu
valor, ela dura por um período definido de tempo. Em ter­
ceiro lugar, seu timbre — a qualidade tonal de instrumentos
de sopro de metal ou de madeira, viola ou piano ou voz
humana. Quando vários instrumentos tocam juntos, o tim­
bre orquestral que prevalece para o ouvido casual é, de
fato, algo inominado, porém a pura impressão deste timbre é
“dado” inevitavelmente. Em quarto lugar, o volume; sono-
ridades altas e suaves são sempre ouvidas diretamente, sem
qualquer esforço mental especial. O mesmo ocorre quanto
a uma qualidade geral de consonância ou dissonância, em­
bora isso varie amplamente, sobretudo com a exposição habi­
tual do ouvinte a sons dissonantes (uma pessoa acostumada
ao jazz torna-se bastante indiferente a conflitos harmônicos).
Finalmente, existe o elemento de tensão. Acentos dinâmicos
são os efeitos auditivos de maior intrusão. Não importa
quão distraidamente escutamos, ouvimos sempre um ataque
agudo, um balanço ou batida rítmica, um movimento suave
ou tempestuoso ou rápido, e ouvimo-lo sempre em algum
tempo perfeitamente definido.
OBRA VIVA 143

Aquilo que perdemos pela audição desatenta é a cone­


xão lógica da seqüência. Não temos uma consciência clara
daquilo que passou e, por conseguinte, nenhuma impres­
são do desenvolvimento melódico ou harmônico, ne­
nhuma expectativa definida daquilo que virá. Conseqüen-
temente, naquilo que se podería chamar de ato de ouvir
puramente físicó, podemos espantar-nos com um sforzando
repentino, sem ficarmos intrigados com sua incursão inespe­
rada. Ouvimos mais a sucessão do que a progressão, e deixa­
mos de perceber toda a melodia subordinada; onde não
há uma “toada” óbvia, podemos perder toda melodia que
porventura existir. Apenas os tons reais mutantes, com altu­
ra específica, duração, timbre, volume, e aspereza ou suavi­
dade globais, passam com algum tempo definido — apressa­
dos, ou fáceis, ou prolongando-se interminavelmente.
Para a audição mental, como a experimentada na leitura
silenciosa, aplicam-se exatamente as condições opostas: as
propriedades tonais dadas cóm a maior definição ao ouvido
físico, sobrevivendo mesmo aò escutar desatento, são aquelas
mesmas que podem ser. bem vagas ou mesmo completamente
inexistentes para o ouvido interior, Para uma pessoa que não
consegue identificar espontaneamente uma altura absoluta, a
nota escrita, digamos , significa unj som mais ou

menos arbitrário, por volta do meio do registro de soprano.


Pode ser ou não que ela a ouça como um timbre particular,
como um som de piano ou de voz ou de instrumento de cor­
das; certamente sua qualidade tonal não é tão definida quanto
a de um som físico, que é dado de maneira única, um tom
bom ou mau. O volume é imaginado apenas onde a compo­
sição visa obviamente o poder supremo, ou onde preparou
um pianissimo especial. Além disso, a duração real dos tons
nem sempre é “ouvida”, embora seja compreendida de alguma
maneira; lendo-se um movimento lento, tende-se a ler mais
rápido do que passaria a execução em tempo real2. A gente
nunca deixa escapar elementos estruturais, tais como ten­
sões harmônicas e suas soluções; a melodia, mesmo em sua
mínima figura, preparação e realização, isto é, progres­
são, tema e desenvolvimento, imitações, respostas, e o ritmo
essencialmente musical (mais do que cinético) que emerge do
desdobramento de mudanças harmônicas e acentos meló­
dicos. A audição interior é trabalho da mente, que começa
com concepções de forma e termina com sua completa apre­
2. Afirmo-o com a autoridade de um eminente músico, Kurt
Appelbaum, com cuja ampla experiência comparei minhas próprias
observações.
144 SENTIMENTO E FORMA

sentação na experiência sensorial imaginada. Ela é mantida


por todo tipo de recursos simbólicos: a orientação de parti­
turas impressas, as respostas musculares específicas, embora
mínimas, da respiração e cordas vocais que constituem o
cantar subvocal, talvez memórias tonais individuais e outras
referências à experiência. Mas a influência de impressões sen-
soriais exatamente lembradas é muito variável; em geral a
audição interior pára justamente aquém daquela determi­
nação de qualidade e duração que caracteriza a sensação
real. Essa imaginação final do próprio tom, como algo com­
pletamente decidido pelo todo ao qual pertence, requer um
sustentáculo simbólico especial, um gesto corporal altamente
articulado; manifestamente, esse gesto é o ato de produzir o
tom, a expressão deste pelo executante; fisiologicamente, é a
sensação pelo tom nos músculos dedicados a produzi-lo, e é o
símbolo pelo qual o tom é imaginado. Provavelmente, toda
imaginação auditiva destituída de tal ação simbólica é de
alguma maneira incompleta, a menos que seja baseada numa
lembrança vivida de música realmente ouvida.
A maioria dos compositores leva o ato de imaginação
criativa, desde o início como uma “forma dominante” ou idéia
matriz (que Mendelssohn chamou de “a composição” ), até
um ponto situado nalgum lugar antes da realização completa
da obra musical, que é a peça executada. A peça do compo­
sitor é uma obra incompleta, mas é uma peça perfeitamente
definida conduzida a um estádio perfeitamente definido. Quan­
do falamos da “primeira fuga do Cravo Bem Temperado”,
queremos dizer algo que está ali para a audição interior de
qualquer pessoa e que pode ser completado levando-se sua
articulação tonal ao limite, que é a completa determinação.
Um músico muito competente pode ser capaz de fazê-lo
em imaginação pura. Como regra, entretanto, a imaginação
do executante é progressiva e é auxiliada, de momento em
momento, pela realidade do tom já realizado na execução.
A execução é a conclusão de uma obra musical, uma
continuação lógica da composição, levando a criação do pen­
samento à expressão física. Obviamente, então, o pensamento
precisa ser inteiramente apreendido, se se quiser que tenha
continuação. Composição e execução não são nitidamente
separáveis na fase assinalada pelo término da partitura;
pois ambas surgem da forma dominante e são governadas
completamente pelas exigências e instigações desta. Nenhuma
teoria geral do fraseado, tempo, ou estudo de períodos e
estilos pode permitir ao executante de uma peça começar seu
trabalho na página impressa; todo esse conhecimento geral é
um mero auxílio na orientação, um conhecimento de proba-
OBRA VIVA 145

bilidades que podem apressar sua compreensão do movimento


essencial expresso na partitura. A leitura sucessiva de nota
por nota, que é um padrão de reação comparável ao hábito
do teclado de uma datilografa, não é leitura3. Uma datiló-
grafa bem treinada não iria pretender ter lido um livro só
porque ela o copiou; muito executante à primeira vista no
piano jamais leu uma peça de música, mas apenas reagiu
manualmente ao estímulo de nota após nota. Mesmo a repro­
dução de frase após frase, tratando cada uma delas como um
item separado, não é executar uma peça; é como uma reci­
tação formal:
“Eu, João” . . . “Eu, João” . . .
‘Tomo a você, Maria” . . . “Tomo a você, Maria**...
“Como minha legítima esposa” . .. “Como minha legítima es­
posa”. ..
Ou poder-se-ia compará-la à leitura de um texto grego por
uma pessoa que sabe perfeitamente bem como pronunciar as
palavras e que pode falar de maneira contínua, erguendo
sua voz nas vírgulas, abaixando-a nos pontos e fazendo uma
pausa entre os parágrafos, porém compreende apenas pe­
daços ocasionais daquilo que está tagarelando.
A verdadeira execução é um ato tão criativo quanto a
composição, exatamente como o próprio desenvolvimento da
idéia pelo compositor, depois de ele ter concebido o movi­
mento maior e, com isso, toda a forma dominante, é ainda
trabalho criativo. O executante simplesmente leva-o adiante.
Ele pode ser o próprio compositor; nesse caso, aquilo que
ele leva à conclusão pode ser uma composição em que já
pensou cuidadosamente antes, talvez já tenha até escrito (diz-
se, então, que “toca sua própria peça” ), ou ele a pode
estar inventando no momento (“improvisando” ) . Se não
for o compositor, então a forma dominante é-lhe dada; uma
quantidade de detalhes variável, mas geralmente considerável
no desenvolvimento da forma, é dada 4; mas a decisão final
sobre como soa cada tom permanece a seu cargo. Pois, num
ponto crítico, definido, do curso da criação musical, um novo
sentimento instaura-se, que reforça a imaginação tonal, e ao
mesmo tempo submete-se a ela: o sentimento de proferição.

3. Robert Schum&nn, em seu “Muslkalische Haus-und Lebensregeln*’,


escreveu para o proveito dos Jovens estudantes: "Somente quando a for­
ma estiver bem clara para você é que você compreenderá sua significação".
(Gesam m elte ScHriften, n f 170.)
4. As numae medievais, em virtude de seus significados inexatos,
exigiam multo julgamento por parte dos executantes. Em notação
moderna, a prescrição mínima era o baixo contínuo, cujas harmonias
sfto indicadas por números escritos em baixo da nota, que pressupunha
a competência do executante para realizar aquilo que hoje considera­
mos definitivamente como parte do trabalho do compositor.
146 SENTIMENTO E FORMA

Uma pessoa em quem esse sentimento de expressão seja


forte e preciso é um virtuose natural. Mas tal força e precisão
não são a mesma coisa que um mero desejo de expressão
emocional. A proferição artística sempre luta por criar um
símbolo tão completo e transparente quanto possível, enquan­
to que a proferição pessoal, sob a tensão da emoção real, ge­
ralmente se cotnenta com símbolos semi-articulados, suficien­
tes apenas para explicar os sintomas da pressão interna. Onde
a música serve o propósito primário de expressão emotiva
direta, o sentimento de proferição não é completamente con­
trolado pela audição interior, mas é confundido pelo gesto
amusical que é apenas imperfeitamente assimilado ao pro­
cesso de produção de tons. Como resultado, as pressões dinâ­
micas em cada passagem são exageradas além das tensões
melódicas e harmônicas as quais, lógica e artisticamente, de­
veríam simplesmente iluminar; o efeito é “romântico” no
mau sentidos. Na fala, uma discrepância semelhante entre
significado e ênfase apaixonada é chamada de “oratórica”.
Em geral é atribuída a uma falta de comedimento, mas
essa não é realmente sua fonte. Um executante cuja proferi­
ção seja inspirada inteiramente pela forma dominante da
obra não precisa restringir coisa alguma, mas, sim, dar tudo
que tem todo seu sentimento para cada frase, cada tensão
harmônica determinante ou indeterminante na obra. Audição
interior, imaginação muscular de tom, desejo de audição
exterior: estas condicionam o estádio final da feitura de
uma obra musical.
A posse daquilo que posso apenas chamar de “imagi­
nação muscular”, base da técnica vocal ou instrumental, nem
sempre acompanha o poder de audição interior, que é o
fundamento de todo pensamento musical. Muitos composi­
tores levam seu trabalho criativo apenas a um ponto aquém
da imaginação tonal completa; para eles, a forma está com­
pleta e evidente por si mesma antes de alcançar a expressão
aberta. De fato, o domínio que exercem sobre ela algumas
vezes falha na última fase, de maneira que, na realidade,
executam sua própria obra de modo muito imperfeito. Outros
são virtuoses naturais; em muitos casos seu pensamento
percorre tão infalivelmente toda a gama, desde a primeira
concepção musical, até peça executada, e através dela, que
sua música soa como se fosse dedicada ao instrumento. A
arte pianística de Chopin parece ter desempenhado um pa­
pel mesmo em seus pensamentos iniciais. Chopin foi verda­
deira e fundamentalmente um compositor e, assim, a influên-5
5. Existe também "música romântica*' no bom sentido — música
composta de maneira que as tensões genuinamente tonais motivam
uma grande coloração dinâmica.
OBRA VIVA 147

cia do piano foi apenas um dos fatores em seu pensamento,


mas quando uma pessoa, que é acima de tudo um executante,
se volta para a composição, o poder do instrumento toma-se
supremo; as composições ocasionais de Kreisler, por exemplo,
soam como se tivessem sido sugeridas imediatamente pelas
cordas vibrantes, como cadências, variações de improviso,
études de melodias; a matriz é simples e pequena, a instigação
e interesse principal da obra é seu fácil e alto desenvolvimento
em tom físico.
Geralmente, entretanto, os dois tipos de imaginação
musical, que podem ser chamados, respectivamente, de con­
ceituai e sonoro (para evitar a palavra escorregadia “inter-
pretativo” ), ocorrem separadamente; e a forma de audição
interior que é necessária para uma imaginação conceituai,
dom característico do compositor, é mais sugestiva do que
plenamente sensorial. A significação de sua qualidade incom­
pleta é que tal audição é abstrativa, preocupada com relacio­
namentos fundamentais mediante os quais o som se toma mú­
sica, forma tonal significante. A imaginação sonora, por outro
lado, trabalha em direção ao alvo final da concepção artís­
tica — comunicação da “Idéia’’, enunciação articulada.
Isso nos traz ao problema da “auto-expressão” de uma
forma nova e aprofundada: não a interpretação subjetiva
que faz da arte um veículo para os humores e ansiedades
pessoais do executante, mas o elemento de ardor para o im­
porte transmitido. É claro que isso é sentimento real; não é
algo simbolizado pela música, mas algo que toma o símbolo
eficaz; é a excitação contagiosa do artista com o conteúdo
vital da obra. Onde ele falta, o símbolo é “frio”. Sendo,
porém, um fenômeno real e não virtual, a “calidez” artística
jamais pode ser planejada e garantida por qualquer artifício
técnico. Ela se mostra no produto final, mas sempre como
um fator inconsciente. Nas artes plásticas, sua marca é a
apresentação veemente da “Idéia”, da primeira à última pin­
celada. Em música, é a qualidade de enunciação apaixonada.
Essa qualidade pertence naturalmente à voz humana.
Mas a voz é tanto mais um instrumento de resposta bioló­
gica do que da arte, que todas as emoções reais, grosseiras
ou refinadas, profundas ou casuais, são refletidas em seu
tom espontaneamente variável. Ê o primeiro caminho de auto-
expressão e, nessa capacidade demonstrativa, na realidade
não é um instrumento musical, em absoluto. Como observou
Joseph Goddard:
da entonação à melodia é um passo. ( . . . ) Assim, do timbre
à harmonia é um passo. ( . . . ) A entonação, na linguagem, ainda
preenche a função prática de expressão em virtude da qual foi ini­
cialmente desenvolvida. Mas melodia e harmonia não têm função
148 SENTIMENTO E FORMA

prática alguma: ( . . . ) elas dão origem a ordens bastante novas de


sensação 6.

Por toda sua carreira como portadora de idéias musicais,


a voz mantém sua aptidão para o paíhos, sua associação
com o sentimento real — o que um alemão chamaria de seu
Lebensnãhe*.
Enquanto o pathos direto, originando-se das emoções
do momento, predomina na proferição vocal, a voz pode
estar lamuriando-se ou murmurando ou rejubilando-se tanto
mais livremente, mas não está cantando. A música começa
apenas quando algum fator formal — ritmo ou me­
lodia — é reconhecido como uma estrutura dentro da qual
acento e entonação são elementos por direito próprio, não
atributos casuais da fala individual. Talvez, nos primórdios
da vida religiosa, o desejo de fazer as preces corais chegarem
mais longe do que o discurso mais forte, com menos esforço
vocal e mais articulação do que nos gritos, levou as pessoas a
descobrir o poder da entonação para “carregar” suas palavras.
Não sabemos. Mas no momento em que as sílabas são fixa­
das numa altura definida, a respiração tem de ser retida, as
vogais tomam precedência sobre as consoantes, que servem
meramente para mantê-las separadas, e o som da proferição,
mais do que o discurso, torna-se o fenômeno observável: por­
tanto, a encantação seria um começo natural de uma canção
genuína. Neste nível de organização do discurso, as maneiras
ricas e variáveis de articular sons tornam-se aparentes. Vo­
gais longas ou curtas, vogais abertas ou fechadas, consoantes
agudas ou suaves, acentos silábicos, e semelhanças formais
como aliteração, rima e analogia rítmica, que raramente são
notadas na fala, tendem a tornar-se conspícuas. Todos esses
fatores servem para mudar o interesse que passa do conteúdo
literal das palavras, a coisa dita, para a forma tonal, a coisa
cantada. A enunciação, destinada originalmente a criar pala­
vras, cria agora sonoridades que são avaliadas mais como fins
do que como meios; ela pontua e elabora o tom cheio que
“leva” as palavras e o produto é uma forma audível, uma
peça de música.
Naturalmente, a voz, mesmo no canto, ficaria carregada
de tantas tensões emocionais que sua função musical estaria
constantemente em perigo. A abstração de elementos tais
como altura e métrica (especialmente o metro poético com­
plicado do discurso religioso) não é fácil em meio a uma
proferição pessoal. Conceitos formais, antes de serem inteira­
6. Josoph Goddard, The Deeper Sourees of th e Beauty and Ex-
pression 1n Music, p. 23.
* Lltoralmonte. bom senso .
OBRA VIVA 149

mente familiares e nítidos, precisam ser reforçados para não


serem novamente perdidos. No canto primitivo, a métrica
freqüentemente é apoiada por batidas de palmas ou de pés.
Mas uma tal atividade tende a interferir com o ato de ouvir
a música, tanto quanto a auxiliá-lo, porque ela é percebida
de maneira mais cinética (enquanto participação real) do
que audível (enquanto impressão sensorial). O tambor, por­
tanto, marca um grande avanço. Com esforço físico relativa­
mente pequeno, ele fornece um acento nítido, exato e primor­
dialmente audível, que pode ser manipulado com muito
maior facilidade e liberdade do que as batidas ginásticas. Sua
técnica pode ser desenvolvida por indivíduos, o que contribui
para o virtuosismo. Mesmo o canto monótono ao som de um
bom tambor é inequivocamente música, embora possa ou não
soar esquemático e nu para o ouvido totalmente treinado. O
passo crucial na música, porém, é a concepção de meios, fi­
xação e uso artístico da tonalidade; e esta provavelmente deve
sua existência em grande parte à descoberta de fontes físicas,
inanimadas, das quais se pode obter sons de altura definida
através do tanger, bater, roçar ou soprar. Por meio de instru­
mentos afinados, a entonação fica imediatamente objetivada;
os instrumentos fornecem um padrão pelo qual é possível
manter a tonalidade vocal.
Na Europa, onde a música teve certamente seu maior
desenvolvimento, instrumentos melódicos foram usados du­
rante séculos primordialmente para acompanhar canções. Uma
exceção importante é a flauta, que alcançou uma indepen­
dência prematura por duas razões: primeira, porque é uma
variante da gaita do pastor, que foi inventada por homens
solitários que podiam ou soprar num canudo ou cantar, mas
não as duas coisas ao mesmo tempo, de maneira que a exis­
tência de música sem palavras, instrumental, foi-lhes revelada
pela própria limitação de seu meio; e, em segundo lugar,
porque dentre os instrumentos primitivos, os instrumentos de
sopro de madeira são os que mais se aproximam quanto à
posse de uma qualidade vocal.
As contribuições essenciais da voz e dos instrumentos,
respectivamente, vêm de pólos opostos no campo da música.
Os elementos estruturais são desenvolvidos mais facilmente
com a ajuda de cordas vibrantes e flautas, cujo alcance ple­
namente desenvolvido excede de longe a de qualquer voz, ou
mesmo os alcances combinados de vozes agudas e graves. A
música vocal pode apenas aproximar-se da flexibilidade, dis­
tinção, acuidade rítmica e tonal dos instrumentos. Saltos
de entonação, figuras, tremolos e volata, que são fáceis no
violino ou piano, são o sonho de controle técnico de um
cantor. A voz enquanto instrumento, livre de toda interfe­
ISO SENTIMENTO E FORMA

rência pelos deveres fisiológicos dos pulmões, pelas constri-


ções emocionais da garganta, ou pelos hábitos não-musi-
cais da língua, é o ideal que governa o trabalho e a imagina­
ção tonal do cantor. Ouvindo e praticando, ele purifica o
elemento que é a qualidade perigosa, mas principal e insubs­
tituível, da música vocal — o elemento da proferíção.
O problema do executante é o oposto. A estrutura con­
ceituai de melodia e harmonia é expressa pela própria cons­
trução dos instrumentos musicais, mas a semelhança de can­
ção é algo alcançado apenas no curso de perfeição gradual
destes e, acima de tudo, em seu uso sob o estimulo da “audi­
ção cinética”. A música instrumental luta pela proferíção
direta, pela “voz” .
Acredito que essa seja a base da diferença qualitativa,
freqüentemente notada, entre Cantar e todos os outros tipos
de música7. Não é, como pensava Goddard, o poder de
nossa associação emocional com a voz que a torna precmi-
nentemente “humana”, mas o fato de que a proferíção, que
é uma função intelectual do organismo humano, tem sempre
uma forma fundamentalmente vital. Quando é abstraída de
qualquer contexto real, como na canção musicalmente cons­
ciente, toma-se arte, mas mantém seu Lebensnãhe. O fato de
que a canção cresce em poder musical pela. formalização
constante, aproximando-se do som de instrumentos, enquanto
que todas as outras fontes de tons são algo esquemáticas e
sem vida até que chegam à “voz”, a semelhança do cantar,
marca uma dialética peculiar no fenômeno total da música,
que dá conta, talvez, da existência de dois talentos distintos
— o inventivo, à vontade na abstração musical, e o inter-
pretativo, centralizando-se na imaginação tonal cinética, que
leva à elaboração de sons perfeitamente intencionados e con­
trolados. Este último tipo deriva da conexão natural entre
mente e voz. Nessa base, o desenvolvimento do canto não é
muito difícil de compreender; mas o que é verdadeiramente
desconcertante é a emergência, com a evolução de instru­
mentos sonoros, de algo que pode apenas ser chamado de
7. Por exemplo» Joseph Goddard: "Quando a música é produzida
pela voz humana ela cessa de ser destituída de associações, ficando então
envolta pelas numerosas associações da humanidade, ( . . . ) É essa vasta
mudança do som abstrato para o som rico em associações humanas —
de tons estranhos a tons familiares — que achamos tão notável e agra­
dável quando vozes humanas irrompem na música instrumental, Na
música vocal, os caracteres místicos do som musical têm um aspecto
humano. Assim é que a alta emanação musical em forma vocal possui
algo do caráter do proferíção Inspirada.'* (Op. cit,, p. 87-88.)
O mesmo contraste em sentimentos foi notado por Guldo M.
Oattl, "OompoHor and Llstener'», Musical Quarterlyt XXXIII, 1 (Janeiro
de 1947), OSl-ffll; Bchumann, op. cit.r n ; Günther Stern, "Zur Pháno-
mnimlotfln doe Sfitihftreiut", Zeifschri/t für M usíkwíssenscha/t, IX (1926-27),
tlUMIJU; u por Kmnolu Tovey, op. ctt., V, 1.
OBRA VIVA 151

“proferição” no tocar. Há uma transferência da resposta


ideomotora dos órgãos vocais para a mão. As mãos de um
músico, suplementadas por seu instrumento familiar, tornam-
se tão intuitivamente responsivas ao tom imaginado quanto a
garganta. Ninguém podería imaginar, ou aprender de cor, á
distância adequada exata no teclado para cada intervalo
possível; mas é suficiente conceber claramente o intervalo è
o dedo o encontrará com precisão e até se ajustará, após uma
única exploração, a um instrumento que apresenta divisões
um pouco diferentes do padrão habitual. Quanto às variantes
qualidades e nuanças de tom, produzidas principalmente pelo
arco, elas dependem patentemente da “audição cinética”. A
mente ouve, a mão segue, com tanta fidelidade quanto a
própria voz obedece ao “ouvido interior” 8. Provavelmente é
por isso que o instrumento natural e o artificial, a proferição
direta e a indireta, podem finalmente fundir-se tão com­
pletamente como o fazem nas obras-primas da ópera, cantata
e canção lírica, que estão bem próximas da forma perfeita
completamente proferida.
Também significa que o instrumentista, bem como o
cantor, tem à sua disposição um meio psicologicamente sen­
sível; assim, os valores e perigos do sentimento pessoal são
os mesmos tanto para um quanto para o outro. Enquanto o
sentimento pessoal está concentrado no conteúdo musical, isto
ê, na significação da peça, ele é a própria força e “impulso"
do trabalho do artista, é o dinamismo que faz com que ele
crie o símbolo audível pelo modo que lhe parece mais claro,
mais completamente perceptível, mais comovente. Essa é a
concepção intensa, que constitui o supremo poder da expres­
são musical. Cada tensão e movimento na estrutura do tempo
criado parece com uma emoção pessoal, mas uma emoção
que vive afastada das preocupações do dia real.
Se, por outro lado, o executante permite que sua própria
necessidade de alguma catarse emocional tome a música sim­
plesmente sua via de escoamento, é provável que ele
tocará apaixonadamente, com excitante dinâmica, mas faltará

8. Cf. Philippe Faur é-Fremiet, Pensée e t ré-création: "Recito,


mentalmente, cada nota com seu valor de tempo certo e meu sistema
nervoso inteiro está táo espontaneamente ajustado a ela que meus
dedos estão pratlcamente a ponto de executá-la. Novamente penso num
determinado tema melódico, num desenvolvimento, e também o penso
nota por nota, como uma realidade concreta e com seus valores de
tempo apropriados... Se ele é dado às flautas ou violoncelos, por exem­
plo, n&o evoca em mim qualquer impulso aparente de lhe dor expressão
manual, porém eu quase o canto de lábios fechados, como se minha
garganta e meus lábios tivessem sido, por sua vez, alertados, como se
eu fosse cantar ou, mais exatamente, reproduzi-lo, transpondo. ( . . . )
Eu quase vivo a peça com todo meu ser, a inteira gama de meus recur­
sos físicos, e num tempo e ritmo com que não posso permitir quaisquer
liberdades, porque a expressão que procuro depende disso" (pp. 32-33).
152 SENTIMENTO E FORMA

intensidade à obra, porque suas formas expressivas apresen-


tam-se inarticuladas e obscuras. A execução é um sintoma de
emoção, e como todos esses sintomas — riso, lágrimas, tre­
mor — é momentaneamente contagioso; mas ninguém conse­
gue levar consigo algo de uma tal exibição pessoal, porque
passagem após passagem da composição, derivando logica­
mente de um movimento central, foi impedida de chegar a
sua conclusão natural e foi adaptada para transmitir um sen­
timento novo e estranho.
Cada executante, contudo, tem aquilo que se poderia
chamar de “repertório adequado”, que consiste em peças
que ele é temperamentalmente capaz de tocar: música que
está dentro de seu horizonte emocional. Pois, embora não
seja necessário que haja sentido realmente cada senti­
mento que transmite, é preciso que seja capaz de imagi­
ná-lo, e toda idéia, quer de coisas físicas, quer de psíquicas,
pode formar-se apenas dentro do contexto da experi­
ência. Quer dizer, uma forma de sensibilidade, pensamento
ou emoção que ele pode imaginar deve ser possível para ele.
Dentro do âmbito de suas próprias possibilidades emocionais,
entretanto, ele pode até mesmo aprender, puramente através
da música, alguma maneira de sentir que jamais conheceu
antes9. Na abundante textura de nossa própria existência
subjetiva, fazemos descobertas, como as fazemos no mundo
exterior, pela ação de símbolos adequados. Através da arte
aprendemos o caráter e extensão da experiência subjetiva, da
mesma maneira que, através do discurso, aprendemos com
grande minúcia os aspectos do mundo objetivo.
É bem estranho que o executante que projeta sentimen­
tos irrelevantes em sua música, fragmentos emocionais de
sua própria vida, seja quem corra o perigo de exibir uma “me­
ra técnica” porque não está pensando a música no todo.
Uma vez que ele de fato toca o que está escrito, todos os
detalhes de sua execução que não são concebidos mentalmente
são respostas puramente físicas, e dão a impressão de que seus
dedos estão “tagarelando”, exceto na expressão de paixões
musicalmente imotivadas e não pretendidas. As comple­
xidades da composição não recebem significado algum da
própria forma dominante e, especialmente se passarem
com rapidez, ele não pode adaptá-las a suas próprias emo­
9. O seguinte relato foi-me feito por um dos maiores artistas do
piano, numa conversa: “Quando leio uma composição pela primeira
vez. concebo-a de acordo com a extensão de mlnlia experiência.
Mas, À medida que a estudo, chega um ponto — algumas vezes depois
de muito tempo, mas sempre de maneira bem definida e bastante re­
pentina — om que sinto que minha personalidade mudou sob a Influên­
cia da peça. Aprendí a sentir uma nova maneira, ou a compreender um
novo sontimonto. Ent&o apreendí a idéia musical, e passo a praticar
do manolra diferente — praticar lntelramente para articular*'.
OBRA VIVA 153

ções, que não têm uma tal forma distinta e elaborada; assim,
toca descuidadamente passagens inteiras simplesmente por­
que elas estão escritas, e tudo o que transmite é o fato
de que pode produzir as respostas mecânicas a tantas notas.
Mas se um virtuose está livre de emoções confusas a fim de
pensar em formas musicais e sentir apenas o importe
destas, a realização física mais elevada é absorvida pela coisa
apresentada, a duração virtual organizada, a imagem da vida
senciente. Não é possível que ele sofra de técnica excessiva:
ela é sua capacidade mental de articulação e seu poder de ex­
pressão.
Até agora nos preocupamos somente com a feitura
da música; mas há outra função, igualmente importante, que
é o ato de ouvir, que exibe uma variação quase que tão
grande, entre a eficácia suprema e a obtusidade total, quan­
to a que encontramos na execução. Ouvir música é em si
um talento, uma inteligência especial do ouvido e, como
todos os talentos, desenvolve-se com o exercício. Uma pessoa
acostumada a ouvir absorve com facilidade as composi­
ções mais extensas ou elaboradas, enquanto que, mesmo um
indivíduo naturalmente propenso à musica sem um back-
ground de muita música, talvez ouvida desatentamente, mas
ouvida com frequência, acha difícil ouvir por mais do que uns
poucos minutos. Talvez seja por isso que concertos provinciais,
orquestras de leigos e mesmo clubes de amadores bastante sé­
rios geralmente apresentem programas consistentes de peças
curtas e trechos de obras mais longas: um movimento de
uma sonata, um movimento de um trio, a Serenata do Quar­
teto de Haydn, Op. 3 N9 5, e assim em diante. A audiência
não consegue ouvir um quarteto de Haydn inteiro ou toda
uma sonata de Beethoven.
O primeiro princípio para se ouvir música não é, como
supõem muitas pessoas, a habilidade de distinguir os vários
elementos de uma composição e reconhecer seus recursos,
mas sentir a ilusão primária, sentir o movimento consistente
e reconhecer imediatamente a forma dominante que toma
essa peça um todo inviolável. Mesmo crianças pequenas assim
procedem quando ouvem com prazer uma cantiga. Se os mais
velhos promovem sessões de música mais ambiciosa em casa
e ensinam às crianças, como dever de cortesia, a ficarem ra­
zoavelmente quietas durante a execução, o poder de ouvir
destas crescerá pelo uso acidental, da mesma maneira que seu
poder de ler aumenta sempre que elas lêem signos, títulos e le­
gendas, aqui e ali. Deitar na cama e ouvir um bom canto ou
uma boa execução antes de dormir é uma educação natural.
O rádio, é claro, oferece todos os meios de aprender a ouvir,
mas também abriga um perigo — o perigo de aprender a
154 SENTIMENTO E FORMA

não ouvir; e este é maior, talvez, que sua vantagem. As pes­


soas aprendem a ler e estudar com música — algumas vezes
música bela e vigorosa — tocando no fundo. À medida
que cultivam a desatenção ou a atenção dividida, a música
enquanto tal se toma cada vez mais um estimulante ou seda­
tivo meramente psicológico (conforme o caso, ambas as fun­
ções são possíveis), do qual gozam mesmo durante conver­
sas. Dessa maneira, elas cultivam a audição passiva, que é
a própria contradição do escutar.
A base real da apreciação da música é a mesma da fei­
tura da música: o reconhecimento de formas no tempo vir­
tual, carregado com o importe vital de toda arte, os aspec­
tos do sentimento humano. É a percepção do sentimento atra­
vés de um fluxo puramente aparente de vida existente apenas
no tempo. Qualquer coisa que o ouvinte fizer ou pensar para
tornar essa experiência mais significativa é bom em termos
musicais. Isso não quer dizer, entretanto, que qualquer coisa
que as pessoas gostem de fazer durante a música seja bom,
uma vez que elas frequentemente confundem “deleitar-se
a música” com deleitar-se de maneira não musical durante a
música. Qualquer coisa, porém, que ajude a concentração e
mantenha a ilusão — seja cantar para si mesmo, seguindo
uma partitura semicompreendida, ou sonhar em imagens
dramáticas — pode ser a maneira pessoal de cada um com­
preender. Pois ouvir é a atividade musical primária. O mú­
sico ouve sua própria idéia antes de tocar, antes de escrever.
A base de todo progresso musical é um ouvir mais compre­
ensivo. E o único apoio que todo artista precisa ter se quiser
continuar a criar música é um mundo que ouve.
10. O Princípio de Assimilação

No capítulo anterior, o caráter especial da música vocal


foi examinado com alguns detalhes porque ele trazia o pro­
blema da proferição pessoal para o foco mais nítido. Esta,
entretanto, não é a única questão filosófica que surge de
maneira peculiar na esfera do canto. Uma segunda e igual­
mente fundamental questão é o discutido princípio de “pu­
reza” do meio artístico. Pois o canto está normalmente vin­
culado a palavras. Provavelmente começou com a entonação
de palavras, a fim de tomá-las mais poderosas nas preces ou
na magia. Em tempos antigos, supõe-se que canto e poesia
eram uma só coisa, pois toda recitação era entonada. Atra­
vés de toda a história da música, a importância das palavras
tem sido afirmada por uma escola e negada por outra. Os
Camarati italianos consideravam a transmissão de palavras
como a tarefa fundamental da música; os papas protestaram
contra antífonas e cantatas elaboradas que obscureciam os
textos sagrados, despedaçavam-nos ou sobrepunham as linhas
de maneira que nenhuma sentença podia ser bem ouvida. Su­
põe-se que Gluck, na famosa dedicatória de Alceste ao Arqui-
duque Leopoldo de Toscana, tenha afirmado a primazia
das palavras sobre a música, na ópera, embora eu não ache
que sua afirmação deva ser tomada como querendo dizer
que a obra é, de fato, poesia ou mesmo teatro, mais do que
música. Gluck é universalmente considerado como um com­
positor, não como um dramaturgo, nem como um arranjador
156 SENTIMENTO E FORMA

da poesia de Calzabigi para o palco; e ninguém, que eu


saiba, jamais falou da obra como sendo a peça de Calzabigi
com música composta por Gluck. Isso indica que, não im­
porta quão superficialmente as pessoas possam parafrasear as
palavras de seu prefácio, sua percepção artística desmente
a teoria que elas leram naquelas palavras. O verdadeiro senti­
do da deferência de Gluck ao texto ficará evidente um pouco
mais tarde, de maneira que podemos adiar essa questão pelo
momento.
O fato histórico é que, sejam quais forem as doutrinas
sobre o relacionamento entre palavras e música que tenham
tido influência, os compositores tomaram todas as liberdades
que quiseram em relação a seus textos. Bach seguiu algumas
vezes fielmente o padrão verbal na maneira recitativa, outras
vezes construiu sua música sobre a já composta linha poética,
como nos corais, e outras, ainda, esfacelou as sentenças, re­
petindo frases ou palavras isoladas e tecendo esses fragmen­
tos de linguagem nas fugati vocais mais intrincadas, por exem­
plo, nos motetes. Palestrina fez todas essas coisas antes dele,
Mozart as fez depois dele, Prokofiev as faz hoje. Contudo
ninguém poderia ter mais compreensão ou respeito pelas
palavras do que Bach tinha pelos textos sagrados. O que
todos os bons compositores fazem com a linguagem não é
nem ignorar seu caráter, nem obedecer às leis poéticas, mas
transformar todo o material verbal — som, significado, e
tudo — em elementos musicais.
Quando as palavras entram para a música, elas não são
mais poesia ou prosa, são elementos da música. Sua
tarefa é ajudar a criar e desenvolver a ilusão primária da
música, o tempo virtual, e não a da literatura, que é outra
coisa; assim, elas desistem de seu status literário e assumem
funções puramente musicais. Isso não quer dizer, porém,
que agora elas possuam apenas valor de sons. Aqui a teoria
de David Prall, de que a “superfície estética” da música é
som puro em ordens de altura, volume e timbre, e de que,
ao ouvirmos música, percebemos desenhos no compasso
dessa “superfície estética”, requer uma pequena emenda se
ela quiser manter sua significação face a alguns dos maiores
feitos musicais — canção, cantata, oratório e ópera. Pois o
que percebemos não é a superfície estética. O que ouvimos é
movimento, tensão, crescimento, forma viva — a ilusão de
um tempo multidimensional em passagem. A “superfície es­
tética” é algo subjacente a essa ilusão. Se assumirmos uma
“atitude estética” e tentarmos perceber apenas os elementos
tonais abstraídos, na realidade descontaremos a semelhança
forçosa a fim de compreender seu veículo sensorial. Um tal
interesse compromete-nos com o princípio de tratar palavras
O PRINCIPIO DE ASSIMILAÇAO 157

como fenômenos puros, e leva a artificialidades que aumen­


tam em proporção com a liberdade e poder da música dra­
mática e vocal; pois, na imaginação do compositor, as pala­
vras simplesmente não figuram como vogais separadas por
consoantes, apesar de o fato de que a entonação ressalta seus
atributos fonéticos e dá a estes, também, possíveis funções
independentes na estrutura audível.
A obra é, como diz Prall, composta de sons; mas tudo
o que dá aos sons uma aparência diferente de movimento,
conflito, repouso, ênfase, etc., é um elemento musical. Tudo
o que vincula as figuras, contrasta-as ou suaviza-as; em suma,
afeta a ilusão, é um elemento musical.
As palavras podem entrar diretamente na estrutura mu­
sical mesmo sem serem entendidas literalmente; a semelhança
da fala pode ser suficiente. A mais notável ilustração desse
princípio encontra-se no cantochão. Nesse canto me­
dieval, o material tonal é reduzido ao mais despojado míni­
mo: uma única linha melódica, pequena em compasso, sem
suporte polifônico, sem acompanhamento, sem nenhum acento
recorrente regular ou “batida”. Uma linha como essa tocada
no piano ou em qualquer outro instrumento soa pobre e
trivial, e parece não ter nenhum movimento em particular.
Mas no momento em que as palavras são articuladas, ela
se move, suas vagas figuras rítmicas cessam de vagar à me­
dida que incorporam ritmos de fala entoada, e as grandes
palavras latinas preenchem a forma melódica exatamente
como acordes e contrapontos o fariam. O fato de as
sílabas que suportam os tons estarem concatenadas por seu ca­
ráter original, não musical, em palavras e sentenças, faz com
que os tons sigam uns aos outros numa seqüência mais orgâ­
nica do que a mera sucessão que eles exibem numa paráfrase
instrumental. Não é o sentimento expresso nas palavras que
as torna de suprema importância no canto gregoriano; é a
coesão da linha latina, a simplicidade da afirmação, a gran­
deza de certas palavras, que faz com que o compositor se
detenha nelas e subordine a elas aquilo que é contextual.
Mesmo uma pessoa que não tenha conhecimentos de grego
— que talvez não reconheça a incursão de palavras gregas
na missa latina — sente a significação sagrada do texto:
Kyrie Eleison,
Chríste Eleison,
porque a exploração dessas quatro palavras é um aconteci­
mento musical completo1.
1. Essa função âo texto persiste em música posterior. Francis Tovey
diz sobre o “Magnlficat” da Missa em Si Menor de Bach: “É um con­
certo em que as vozes do coro desempenham o papel de Instrumento
solista”. (Essays in Musical Analysis, Vt 52). A única palavra é “Magnl-
flcat”.
158 SENTIMENTO E FORMA

Além do mais, a exigüidade do meio musical requer a


vivacidade e calidez que pertencem à voz humana. Mas onde
palavras e voz são contrapostas a elementos formais muito
tênues, tais como a melodia homofônica sem linhas a dividir
os compassos, sem qualquer ancoragem de tônicas e dominan­
tes, sem a tonalidade mecanicamente fixada, que cordas ou
flautas asseguram, existe um perigo evidente de perder com­
pletamente a ilusão artística sob o impacto da proferição pes­
soal. Aqui, a obra exige algo que garanta sua impessoalidade
e objetividade; e, de fato, ela mantém tais virtudes principal­
mente pelas formalidades de sua execução. O canto coral é
um forte antídoto contra o sentimentalismo, porque as ex­
pressões de sentimento real que ameaçam a ilusão musical
se neutralizam umas às outras no canto de grupo. Um coro,
portanto, é sempre uma influência impessoal. Onde essa sal­
vaguarda não funciona — isto é, onde um único cantor
entoa o serviço — é o espírito de seu vieariato, de seu próprio
status despersonalizado, que preserva a integridade artística
do canto, que é concebido como algo objetivo e eficaz e não
como uma oportunidade de auto-expressão. O eu, com todos
os seus desejos reais, está em suspenso enquanto o sacerdote
celebra seu ofício.
A finalidade de toda essa discussão sobre o cantochão
é demonstrar, por um exemplo clássico, como a música pode
absorver e utilizar fenômenos que não fazem parte absolu­
tamente de seu material normal, a “superfície estética” de
tons em suas várias ordens relacionais. Mas sejam quais
forem as importações que admite em seu território, ela as
transforma, o lote inteiro, em elementos musicais. O que ajuda
e o que prejudica a expressão musical depende daquilo que
a ilusão primária pode deglutir completamente. O sentido
das palavras, o fervor da proferição, os deveres devocionais, as
respostas corais — todos esses são materiais estranhos, mas
enquanto afetam a imagem de tempo, quer garantindo sua
dissociação da experiência real, quer reforçando seu im­
porte vital, ou fornecendo fatores estruturais genuínos,
são elementos virtuais numa esfera de imaginação pura­
mente musical. Tudo o que possa entrar no simbolismo vital
da música pertence à música, e tudo o que não possa fazê-lo,
não tem qualquer negócio com a música.
Quando palavras e música se conjugam na canção, a
música engole as palavras; não só meras palavras e sentenças
literais, mas até mesmo estruturas literárias de palavras,
poesia. A canção não é um compromisso entre poesia e mú­
sica, embora o texto tomado em si mesmo seja um grande
poema; a canção é música. Nem precisa ter, no estrito sen­
O PRINCIPIO DE ASSIMILAÇÃO 159

tido europeu, uma melodia; um canto monótono pontuado


com acordes mutantes2, uma batucada africana sobre
a qual irrompe uma longa, lamuriante, declamação,
que se ergue e cai dentro de um contínuo total ininterrupto,
é canção, não fala. Os princípios da música governam sua
forma, sejam quais forem os materiais empregados, de ca­
baças chocalhantes até nomes santos.
Quando um compositor põe um poema em música, ele
aniquila o poema e faz uma canção. É por isso que letras
triviais ou sentimentais podem ser textos tão bons quanto os
grandes poemas. As palavras devem transmitir uma idéia
componível, sugerir centros de sentimento e linhas de cone­
xão, excitar a imaginação de um músico. Alguns composi­
tores, por exemplo, Beethoven, são assim excitados pela
grande literatura3; outros encontram tão amiúde uma essência
musical em versos bastante insignificantes quanto na verda­
deira poesia. Schubert converteu, em sua composição, os poe­
mas inegavelmente de segunda classe de Müller, num ciclo de
canções tão belo e importante quanto suas versões musicais
dos tesouros poéticos de Heine e Shakespeare. As obras de
Müller são literatura muito mais pobre, mas constituem textos
musicais nada inferiores; e, nas obras de música a que deram
origem, sua inferioridade fica redimida, porque, como poesia,
desapareceram.
Estetas eminentes têm declarado repetidamente que a
forma mais elevada de composição de canções é uma fusão
de poesia perfeita com música perfeita4. Na realidade, porém,
um poema muito vigoroso pode chegar a militar contra toda
música. Robert Schumann fez essa descoberta quando, de
seus interesses originais literários e críticos, voltou-se para
a composição musical. Na juventude, escreveu um ensaio
“Sobre o Intimo Relacionamento entre Poesia e Música”, no
qual dizia, após uma longa e romântica passagem em
louvor de cada arte separada:

2. Um exemplo disso é dado — na música européia, mesmo assim


— pela Antigon a de Karl Orff.
3. Bettlna Brentano, numa carta a Ooethe, conta-lhe os comentá­
rios feitos por Beethoven sobre a poesia daquele, citando de memória —
a dela era excelente — as palvras do compositor: “Os poemas de Goethe
têm um grande poder sobre mim, nfto só em virtude de seu conteúdo, mas
por seu ritmo. Fico excitado, e com disposição para compor, por esta
linguagem que parece construir a si mesma como uma obra de seres
espirituais mais elevados, e conter, iá, o segredo de suas harmonias.
Ela me força a derramar melodia, em todas as direções, a partir do
ponto de Inflamabilidade de meu entusiasmo. Perslgo-a, apaixonadamente
ultrapasso-a de novo. ( . . . ) N&o posso separar-me dela, e, com zelosa
alegria, tenho de repeti-la em todas as modulações possíveis, e, no termo,
finalmente, saio triunfante sobre as idéias musicais/* (Beethoven, Briefe
unã Gespr&che, p. 145.)
4. O mais famoso é Wagner, por certo, que sonhava com uma obra
que uniría todas as artes em pé de lgrualdade, uma Gesam tkunstwerk.
160 SENTIMENTO E FORMA

Ainda maior é o efeito de sua união: maior e mais belo,


quando o simples tom é realçado pela sílaba alada, ou a palavra
que paira é erguida pelos ondas melodiosas do som, quando o
ritmo leve do verso é combinado suavemente com a medida orde­
nada dos compassos em graciosa alternação. ( . . . ) 5
Isso é típica crítica literária de música, a qual trata a
música como um suave acompanhamento romântico dupli­
cando os efeitos sonoros da poesia. Como músico amadure­
cido, contudo, escreveu numa veia diferente. Havia produ­
zido muitas canções e sabia que a composição de um texto
não era nenhum compromisso gentil, nenhuma altemação
graciosa de valores poéticos e musicais. Fazendo a crítica
das versões musicais feitas por Joseph Klein, dos versos do
Wilhélm Meister de Goethe, ele disse:
Para falar com franqueza, parece-me que o compositor nutre
demasiado respeito por seu poema, como se tivesse receio de feri-lo
ao tomá-lo com ardor demais; assim, a todo momento, encontramos
pausas, hesitações, embaraços. O poema, porém, deve estar como
uma noiva nos braços do menestrel, livre, alegre e inteiro; então
é que ele soa como algo vindo de céus ao longe.
E, mais adiante, numa referência especial à canção
de Mignon, “Kennst du das Land” :
Efetivamente, não conheço nenhuma transcrição musical dessa
canção, exceto a de Beethoven, que possa aproximar-se da impres­
são que ela causa por si mesmo, sem música 6.
Eis a chave de uma dificuldade radical na feitura de
canções. Um poema que tenha forma perfeita, em que tudo
seja dito e nada meramente esboçado, uma obra completa­
mente desenvolvida e fechada, não se presta facilmente à
composição. Não renunciará à sua forma literária. Isso se
aplica à maioria dos poemas de Goethe. As criações poéticas
são tão completamente autônomas e auto-suficientes que mui­
tos compositores mais capazes do que Klein esquivaram-se de
violentá-las a fim de transformá-las em mera substância plás­
tica para outra obra, e usá-las, de maneira nova, como ele­
mentos musicais sem forma independente. Um poema de
segunda classe pode servir melhor a essa finalidade porque é
mais fácil para a música assimilar suas palavras, imagens e
ritmos. Por outro lado, alguns versos da melhor lavra consti­
tuem textos excelentes, por exemplo, as canções incidentais
de Shakespeare, os versos robustos e simples de Burns, a
maior parte da poesia de Verlaine e, notadamente, a de
Heine. A razão é que todos esses poetas sugerem tanto quanto
dizem; a forma é frágil, não importa quão artística ela seja

5. Chiaamvurltc Schriften Über Musik ti. Musiker, vol. 31, p. 173.


0. Ibid., vol. I, p. 272.
O PRINCIPIO DE ASSIMILAÇAO 161

(como ela o é certamente com Verlaine e Heine), as idéias


que ela transmite não são completamente exploradas, os sen­
timentos não são dramaticamente construídos como o são
nos poemas de Goethe. Todas as suas potencialidades ainda
estão ali e são enfatizadas pela forma ironicamente casual.
Consequentemente, a obra poética pode dissolver-se de novo
ao toque de uma força imaginativa estranha, e as belas
palavras sobrecarregadas — “My love is like a red, red
rose” — ou: “Les sanglots Iongues des violons” — podem
motivar formas expressivas inteiramente novas, musicais ao
invés de poéticas.
Ê isso, acima de tudo, que o texto deve fazer em toda
música baseada em palavras. Existe uma forma mu­
sical conhecida antigamente como “toada”, que começa com
um texto, mas toma dele prineipalmente o padrão de acen­
tos métricos para estruturar uma melodia simples, au­
tônoma, passível de ser tocada sem palavras ou cantada
com quaisquer versos que sigam sua métrica. A canção
folclórica e o hino são exemplos de semelhante música vocal
abstrativa. A toada caracteristicamente não é nem triste, nem
alegre; mas a maneira pela qual ela pode tomar tal coloração
específica a partir das palavras variadas com que pode ser
cantada, mostra quão intimamente tristeza e alegria, exalta­
ção e furor, contentamento e melancolia, na realidade se pa­
recem uma à outra, em essência. A mesma toada pode ser
uma canção báquica ou um hino nacional, uma balada ou uma
cantiga7. Mas mesmo lá onde as palavras podem ser variadas
livremente, elas são assimiladas pela melodia como elemen­
tos que tornam a música mais leve ou mais profunda, que
a impelem para adiante ou a retém, suavizam-na ou retar-
dam-na. Uma canção folclórica tocada sem palavras pode
ser linda, mas sempre soa um pouco simplória. Ela apresen-
ta-se, de fato, vazia, incompleta. Considerem a diferença entre
ouvir quatro quadras de uma canção dessas, por exemplo,
“Marleborough s’en va-t-en guerre” numa língua estrangeira,
isto é, sem estar em condições de entender as palavras, e ou­
vir a melodia tocada quatro vezes em seguida num instru­
mento! A articulação das palavras, o elemento de proferição
que elas fornecem, é parte da música, sem qualquer atração
literária. Francis Tovey, embora eu ache que ele jamais che­
gou na realidade a distinguir entre a função musicalmente
importante do texto e suas funções literárias anteriores, reco­

7. "The Star-Spangled Banner” aparece pela primeira vez como uma


cançfio Inglesa ao som da qual se bebe. A canç&o “Believe me, lf all
those endearlng young charzns” de Thomae Moore íol escrita para uma
toada Irlandesa que, na época, já servia como “Fair Harvard".
162 SENTIMENTO E FORMA

nheceu, não obstante, as responsabilidades ativas da articula­


ção na canção, quando escreveu:
Ainda não tive uma oportunidade de produzir música vocal sem
palavras, como a Sonata Vocal de Medtner ou as Sirenes de Debussy,
de modo que não abordei as interessantes questões que surgem
quando a voz humana empurra para um lado todos os instrumentos,
como ela o faz inevitavelmente, apenas para desapontar a expec­
tativa de uma fala humana 8.
Na chamada “canção de arte”, pode haver uma ironia
consciente alcançada quando as mesmas palavras são colo­
cadas em diferentes frases musicais, como, por exemplo, em
“In griin will ich mich kleiden” (“De verde eu me vestirei”)
de Schubert, onde as palavras “Mein Schatz hat’s Grün so
gem” (“Meu amado gosta tanto de verde” ) aparecem nu­
ma frase alegre, aguda, para .serem repetidas imediatamente
numa frase grave e uniforme que se segue como um comen­
tário sombrio:
------- —
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Aqui o texto é o fator inalterado que lança o contraste
entre os dois estados de espírito dados musicalmente, e que
os une numa só referência. Mas, seja qual for a função parti­
cular das palavras, elas normalmente entram na própria
matriz da canção89.
O princípio fundamental da arte que torna possível a
transformação de uma linha poética em pensamento musical
é enunciado, resumida mas claramente, num pequeno artigo
de Mario Castelnuovo-Tedesco, onde ele diz:
O poema precisa ter um “cerne expressivo”; deve expressar
um “estado de alma” .
( . . . ) Ele deve expressar o “cerne” numa forma perfeita,
simples e clara, e harmônica, mas sem palavras em demasia. De­

8. Op. c i t Vol. V, “Música Vocal", p. 1.


9. Existe uma carta de Beethoven a seus editores, Breitkopf &
Hartel de Leipzig, que fornece um testemunho desse fato: “No Coro
do Oratório ‘Nós O vimos', os senhores persistiram, apesar de minha
nota para que se ativessem ao texto antigo, em ater-se às alterações infe­
lizes. Céus, acredita-se na Saxônla que é a palavra que faz a música?
Be uma palavra inadequada pode arruinar esta música, como é certa­
mente o caso, então deve-se ficar contente se se descobrir que palavras
o música afio inseparáveis e, n&o, tentar melhorá-las só porque as pala­
vras om b! s &o apoétlcas." Beethoven, op. cit., p. 82 .
O PRINCIPIO DE ASSIMILAÇÃO 163

ve-se deixar uma certa "margem” para a música; deste ponto de


vista, um poema íntimo e contido é preferível a um poema decora­
tivo e sonoro demais.
( . . . ) Quando encontro um poema que me interessa particular­
mente e que desperta minha emoção, confio-o à memória. ( . . . )
Depois de algum tem p o ... canto-o com toda naturalidade: a músi­
ca nasceu. ( . . . ) Quanto à parte vocal é o bastante. Mas, numa
canção, existe também a parte istrumental. ( . . . ) Produzi-la ade­
quadamente é questão de encontrar a atmosfera correta, o plano de
fundo, o meio ambiente que envolve e desenvolve a linha vocal. ( . . . )
Esse algo existe também na poesia. Já afirmei que todo o poema-
-para-música deve ter, acima de tudo, um "cerne expressivo” —
que pode ser formado por um ou vários elementos fundamen­
tais — um cerne que fornece a chave para o próprio poema. É
essa chave, são esses elementos, que devem ser descobertos e aos
quais precisa-se dar proferição através de meios musicais quase "sim­
bólicos” 10 .
O princípio de assimilação, pelo qual uma arte “engole”
os produtos de outra, não apenas estabelece a relação da
música com a poesia, mas resolve toda a controvérsia sobre
música pura e impura, virtudes e vícios de música sugestiva,
condenação da ópera como “híbrida”, versus o ideal da
Gesamtkunstwerk, a obra de arte total.
Não existe uma coisa como tipo “inferior” ou “impuro”
de música. Existe apenas música boa ou ruim. Ê claro que
existem tipos diferentes — vocal e instrumental, lírica e
dramática, secular e religiosa, ingênua e cultivada — mas
nenhum tipo é “mais elevado” ou “mais puro” do que qual­
quer outro. Não concordo absolutamente com W. J. Hen-
derson (cujo livro, What is Good Music?, parece-me ser uma
espécie de livro de etiqueta musical, estabelecendo um pa­
drão social de bom gosto) quando afirma categoricamente:
A música desacompanhada de texto é chamada de música abso­
luta, e esta certamente é a forma mais elevada da arte11.

Nem posso adotar a opinião de Paul Bertrand, de que


existem dois alvos opostos na feitura de música: um, o de
criar forma, outro, o de expressar o sentimento, e que o pri­
meiro é o ideal de música “pura”, o segundo de música “dra­
mática” .
Reconhece-se universalmente, diz Bertrand, que a música, preemi-
nentemente a linguagem do sentimento, pode ser expressa de duas
maneiras muito diferentes que são essencialmente distintas.10

10. “M ubIc and Poetry: Problema of a Song Wrlter", Musical Quar-


terly, XXX, n.° 1 (janeiro de 1944), 102-111. A frase "meios musicais
quase 'simbólicos' '* Indica que ele sabe que a expressão é simbólica, mas
que nenhuma definição de "símbolo" adapta-se ao caráter de uma
obra musical, de maneira que ele trata aquela expressão como meta­
fórica .
11. W. J. Henderson, W hat is Good MusicT, p. 87.
164 SENTIMENTO E FORMA

A música pura almeja, acima de todo o resto, ao agrupamento


estético de sons; não recorrendo diretamente à poesia, ela expressa
sentimentos apenas de uma maneira que é vaga e geral, indetermi­
nada pela precisão da linguagem. Aqui a música detém controle so­
berano. Tendo de bastar-se a si mesma, ela é compelida a manter,
por si mesma, um equilíbrio de forma calculado para satisfazer o
intelecto durante todo o tempo e, consequentemente, a sacrificar
parte de sua intensidade de expressão.
A música dramática, por outro lado, subordina a música a
palavras, gestos, ações, libertando-a em grande parte de toda preo­
cupação referente a equilíbrio de forma, cuidando para que a poeisa,
linguagem do intelecto, intervenha de maneira direta, e que a mú­
sica simplesmente a reforce contribuindo com todo o poder de ex­
pressão que puder fornecer.
Esses dois termos, portanto, música pura e música dramática,
não representam uma classificação arbitrária das produções musi­
cais, mas duas concepções diferentes — e até certo ponto opos­
tas — do papel da música. ( . . . ) Uma das duas concepções sempre
cresceu e desenvolveu-se às custas da outra12.

Esta passagem não só ilustra a confusão feita popular­


mente entre expressão musical, que é formulação de senti­
mento, e auto-expressão, a catarse de sentimento mais ou
menos inarticulada, mas também revela a incoerência que
vicia uma teoria da música baseada nessa confusão. Pois,
se a música for “preeminentemente a linguagem do sentimen­
to”, como diz Bertrand, então por que a música pura não
seria uma tal linguagem em estado puro? Por que seria o
instrumento preeminente, usado sozinho, capaz de expressar
sentimento “apenas de uma maneira que é vaga e geral?” E,
se sua verdadeira função fosse agir como um estímulo sen-
sorial, realçando a emocionalidade do drama ou poesia, en­
tão por que deve ser composto num mero “agrupamento es­
tético de sons” a fim de satisfazer o intelecto?
Uma teoria que faz com que a música apareça como
uma arte dividida contra si mesma, efetuando alternadamente
duas coisas essencialmente incomensuráveis, incompatíveis,
por certo não se aprofunda em seus problemas. Penso que a
verdade é que a gama de formas musicais é enorme, como
a diversidade de experiências vitais é enorme, abarcando
paixões extravagantes que só podem ser apresentadas em es­
cala grandiosa, e também a vida emotiva profunda, não es^-
petacular, que exige símbolos sutis, intrincados e auto-suficien­
tes, intensa e qualquer outra coisa, menos vaga, para sua arti­
culação. Quando a música é forte e livre, ela pode “engolir”

12. "Pure Music and Dramatic Muslc”, Musical Quarterly, ESC


(1022), 343. (Publicado orlglnalmente em francês, em Le Ménestrel,
Junho do 11121, o traduzido por Fred Rotliwell.)
O PRINCÍPIO DE ASSIMILAÇÃO 165

e assimilar não apenas palavras, mas até mesmo o drama.


Ações dramáticas, como o “cerne poético”, tomam-se cen­
tros de motivação do sentimento, idéias musicais. Men-
delssohn, ao compor Walpurgisnacht de Goethe, escreveu
ao autor:
Quando o Druida realiza seu sacrifício, e toda a coisa torna-se
tão solene e incomensuravelmente grande, na realidade não é neces­
sário compor qualquer música para ela, a música já é tão manifesta
nela, ela está completamente cheia de som, e cantei os versos para
mim sem pensár (em compô-los). ( . . . ) Só espero que se possa
ouvir em minha música até que profundidade a beleza das palavras
comoveu-me 13.

A crença simplista de que todas as artes fazem a mes­


ma coisa da mesma maneira, só que com materiais senso-
riais diferentes, levou a maioria das pessoas a um sério mal-
-entendido referente ao relacionamento da música com a
poesia e o drama. O texto, escrito previamente, tem, por
certo, forma literária. Se os procedimentos das várias artes
fossem realmente análogos, um compositor podería apenas
traduzir essa forma para seu equivalente musical. Então
teria sentido dizer, como o faz Henderson, que a música de
ópera “é governada absolutamente pelo texto”14. Mas seguir
como uma sombra as formas do verso e os conceitos literá­
rios não produz organismo musical. A música precisa cres­
cer a partir de sua própria “forma dominante” . Deixemos
Mendelssohn falar uma vez mais:
Posso conceber música (para um poema) só se puder conceber um
estado de espírito que a produza: meros sons arranjados com habi­
lidade que seguem adequadamente o acento das palavras, forte em
palavras fortes e piano nas suaves, mas sem nada expressar na rea­
lidade, nunca fui capaz de compreender. Contudo, para este poema,
não posso imaginar nenhuma outra espécie de música que não seja
esta — não música integral, poética, mas música de acompanha­
mento, paralela, musical; mas eu não gosto dessa espécie.

A expressão “música musical”, à primeira vista, é


desconcertante; toma-se bastante clara, entretanto, pela com­
paração com o termo anterior “poética” . O sentimento do
poema deve entrar na própria matriz. Música em que a
própria essência de um poema foi incorporada é, penso,
aquilo que Mendelssohn queria dizer com música “poética” ;
especificamente, música que não vai em paralelo com a es­
trutura literária. Uma canção concebida “poeticamente”

13. Fellx Mendelssohn-Bartholdy, Meisterbrtefe, editado por Emst


Wolfí, pp. 37-38.
14. Op . d t ., p. 86.
166 SENTIMENTO E FORMA

soa, não como soa o poema, mas como as sensações que ele
provoca; no processo de composição, palavras individuais,
imagens e ações simplesmenite apresentam oportunidades pa­
ra o desenvolvimento das idéias do compositor. Detalhes da
estória ou das imagens que não fornecem essas aberturas
simplesmente desaparecem na nova criação; eles podem
estar presentes, mas não são discernidos. Aquilo que ele
chamou de “música musical”, por outro lado, é algo indepen­
dente do poema, semelhante extemamente em estrutura,
mas fabricado de materiais inteiramente independentes a
fim de “combinar” com os versos, que permanecem por ela
inalterados na essência.
A medida de um bom texto, um bom libretto, mesmo
um bom assunto para música, é simplesmente sua transfor-
mabilidade em música; e isso depende da imaginação do
compositor. Assim Mozart, trabalhando em O Rapto do
Serralho, escreveu a seu pai, que encontrara todo tipo de
defeito no libretto:
Quanto ao trabalho de Stephanie, você tem toda razão, é claro.
( . . . ) Sei muito bem que sua versificação não é das melhores;
mas harmoniza tão bem com minhas idéias musicais (que ficam brin­
cando em minha cabeça com antecedência), que não posso deixar de
gostar dele, e estou pronto a apostar que, na execução da obra,
você não notará nenhuma falh a15.

Dado que o texto deve ser, antes de tudo, um ingre­


diente da forma dominante, a concepção musical como
um todo, a colaboração consciente entre poeta e compositor
não é na realidade tão valiosa quanto as pessoas estão
propensas a acreditar. Não que não tenha valor algum;
Mozart por certo aproveitou-se dos serviços de Stephanie
no curso de seu trabalho16, e Beethoven, um trabalhador mui­
to menos ágil do que Mozart, escreveu um oratório em uma
quinzena com o pronto auxílio de seu libretista; no entanto,
ele achava que a união daquelas palavras inteiramente
subservientes com sua música era um mariage de conven/m-
ce* .
De minha parte [escreveu nessa ocasião] preferiría compor
mesmo Homero, Klopstock, Schiller. Embora eles apresentem maio­

15. Albert Leltzmann, ed., Mozarts Briefe . Corta datada de 15 de


outubro de 1781» Viena.
10. Em outra carta, novamente a seu pai, ele escreveu: "No come-
<í<» do tnrcolro ato hà um encantador quinteto ou, antes, finale , mas eu
jirnrnrirUt tO-lo no fim do segundo ato. A fim de consegui-lo, cumpre
forjar uma krando alteração, um ponto de partida lntelramente novo, e
Win|iliaiiln iU iS a» orelhas de trabalho.*’ Ibid., carta datada de 26
«In aidmoloo do 17111, Viena.
* <'nuaiiitutto do convonlOnda.
O PRINCIPIO DE ASSIM1LAÇAO 167

res dificuldades a serem superadas, esses poetas imortais ao menos


valem a pena o esforço M.
Tendo em vista a prática e os comentários desses gran­
des compositores, a crítica de Wagner, de que o grande defei­
to da ópera sempre fora a subordinação dos elementos
dramáticos aos caprichos, inclinações e gostos do compositor,
enquanto que, na realidade, o drama deveria predominar
e a música ser a mera expressão emocional que o acompa­
nha1718, essa crítica soa estranhamente despropositada e injusti­
ficada. Mais estranho ainda é o efeito prático de sua determi­
nação de tomar a música um simples meio de realçar a ação
e de dar-lhe intensidade emocional. Mozart cortava suas
partituras implacavelmente sempre quando sentia que árias ou
efeitos de conjunto impediam a ação ou, como ele dizia, “fa­
ziam a cena tornar-se pálida e fria, e muito embaraçosa para
os outros atores, que tinham de permanecer parados em vol­
ta” ; mas, nas óperas de Wagner, por mais excitante que seja a
música, a ação arrasta-se interminavelmente, e os atores ficam
parados em volta a maior parte do tempo. Acima de tudo,
nenhuma ópera é mais inequivocamente música, e não drama.
Pode-se ouvir as aberturas de Wagner, ou Liebestod, ou Feuer-
zauber, em muitos consertos sinfônicos; mas alguma com­
panhia de teatro já alguma vez apresentou mesmo seu melhor
libreto, o Meistersinger, como uma peça sem música? Será que
alguém pensaria em levar Tristan como tragédia falada? O
que se aplica à sua dramaturgia aplica-se também a seus
outros esforços não-musicais. O espetáculo pode ser gran­
dioso, a encenação ambiciosa (como certamente o era, em
sua época, o palco giratório de Parsifal), mas a inspiração
teatral de Wagner não é uma arte teatral qualificada; o
libreto nunca é grande poesia; o cenário que ele exigia
não é melhor pintura do que qualquer outro, pois o cenário
não é absolutamente arte pictórica; em suma, seu drama
musical não é a Gesamtkunstwerk, a obra-de-todas-as-artes,
que ele havia projetado em teoria, mas uma obra de música,
como todas as óperas “repreensíveis” que a precederam.
Isso nos traz de volta ao primeiro grande compositor
de ópera que se propôs subordinar sua música à ação dra­
mática: Gluck. Ele, também, produziu obras essencialmente

17. Op. cit., carta ao Wiener Gesellschaft der MusiJefreunde, data­


da de 25 de Janeiro de 1824.
18. Cf. Rlchard Wagner, Gesam m elte Schriften u n d Dichtungen,
Vol. m , “Oper u. Drama”, p. 231: “Se, então, declaro que o erro na
forma artística da ópera estava no fato de que um meio de expressão
(música) era tratado como um fim, e o propósito da expressão (drama)
como um melo, faço-o ( . . . ) para combater as míseras melas-medidas
que infestam nossa arte e crítica".
168 SENTIMENTO E FORMA

musicais, embora, ao contrário de Wagner, romasse peças ter­


minadas para seu libretos. Mas a peça enquanto tal desapa­
rece no grande, único e verdadeiramente dramático movimen­
to da música. Não só as emoções da personae dramatis, mas
o próprio sentido da ação, o alcance do assunto, a sensação
da peça enquanto todo, são elementos na primeira concepção
musical. A música é “subordinada” apenas no sentido de
ser motivada pelo texto.
Existe um pequeno e criterioso artigo, escrito por um
autor que chama a si mesmo de “um amador, que de longa
data persegue interesses musicais através de seu instrumento,
e algumas vezes no campo da teoria”, sobre a questão da
arte dramática de Gluck. Emil Staiger, esse modesto amador,
concebe a significação do projeto de Gluck e de seu resulta­
do musical de uma maneira que converte seu ensaio em
testemunho direto do princípio de “assimilação” aqui dis­
cutido ld.

Wagner emprega a música para elucidar o texto psicológica e


filosoficamente [diz Staiger]. Com essa intenção, ele desenvolve seu
recurso do Leitmotiv, que lhe permite seguir cada volta da frase
poética, aludir a circunstâncias míticas ou psíquicas e mencionar
coisas sobre as quais seus heróis talvez ainda estejam não cônscios ou
sobre as quais mantêm um discreto silêncio. Porém quanto mais a
música de Wagner se compromete com tais detalhes do texto, mais
ele corre perigo de perder a linha mais ampla. De fato, o ciclo do
“Anel” e mesmo atos ou partes separadas dele não podem realmente
ser apreendidos como uma unidade exceto através da reflexão inte­
lectual sobre a estrutura ideacional. Falta a esse épico musical a
grande e única envergadura. Das profundezas da alma, emergem os
tons e figuras de Wagner, dotados de tremenda magia — quem
podería negá-lo seriamente? Mas, sem apoio, eles voltam a sumir de
novo e apenas raramente a obra exibe alguma grande forma.
Isto não ocorre com Gluck! Também ele era possuído por
um interesse humano, tanto quanto Wagner. ( . . . ) (Mas) sua mú­
sica procura representar suas personagens não por um Leitmotiv
— antes, poder-se-ia dizer, através de relações tonais — principal­
mente, entretanto, por meio de algo que realmente elude à descri­
ção, um traçado peculiar de linhas musicais, uma espécie de perfil
musical, que permanece inalterado através de todas as mudanças
externas. Assim Orfeu, em todo seu cantar, é (a encarnação da)
grande e nobre mágoa, tão controlado que mesmo seu lamento
mais comovente ocorre em uma clave maior; e Eurídice é pura
castidade, quase tão transparente quanto vidro. E se, em compa­
ração com a intrincada psicologia de Wagner, isso puder ser cha­
mado de primitivo, podemos apenas dizer que, exatamente nesse
aspecto, Gluck foi guiado por uma visão dramática mais verdadei­
ra, que se perdeu para a época de Wagner como está perdido para a
nossa, mas que exige a subordinação do interesse psicológico. ( . . . )

10. Ver “Gluoks Bühnentechnik", em seu Musik u n d Dichtunç.


O PRINCIPIO DE ASSIMILAÇÃO 169

Hõlderlin, em algum lugar, faz a comparação entre o progresso


de uma tragédia antiga e o progresso de um verso poético. Um
verso tem um começo e, mais cedo ou mais tarde, atinge um ponto
em que a entonação é mais alta. Depois torna a baixar e vai
morrendo. O drama ático desenvolve um curso semelhante. ( . . . )
O poeta começa com uma situação angustiosa que clama por uma so­
lução. Ele intensifica o intolerável. Introduz cenas de calma relativa
e inicia um outro aumento de sentimentos, até que ocorre uma
crise e a tensão é resolvida rápida ou gradualmente. O espectador
fica deliciado, muito mais do que ele mesmo percebe, pela se-
qüência rítmica das cenas, a sábia distribuição de emoções, o
grande arco de paixão que atravessa a peça de começo ao fim.
Esse “grande arco de paixão”, erguendo-se de um início
conturbado até alturas sublimes e cessando finalmente numa
cadência serena, derradeira, é encontrado por Staiger na pró­
pria estrutura, a “forma dominante”, das óperas de Gluck. O
próprio Gluck tinha tanta consciência de que a origem delas
estava nas estórias grega, que creditou a Calzabigi a parte
do leão em suas próprias obras. Mas os libretos apresentam-se,
no fim de contas, bem longe da tragédia grega em poder e
forma literária. O “final feliz” do Orfeu violenta tanto o mito
que seria intolerável como peça. Gluck, entretanto, sentia o
espírito do mito mesmo na forma suavizada. Só porque ele
o lia desde o início como aquilo em que se tornaria graças
à sua música, para ele o mito tinha forma e beleza. Na rea­
lidade, porém, Staiger diz com muita verdade:
Era tarefa do compositor distribuir as tensões; conter, aqui, a
irrupção de paixão; atacar, ali com força total e, então, calando o
tom, descer das terríveis alturas de volta à terra novamente. Era o
compositor quem criava a nova arte operística.

E, por fim, ele declara o segredo da relação de Gluck


com a trama que se desenrola:

( . . . ) Ele desejava, como o disse na introdução de Alceste,


que a música realçasse o interesse da situação dramática sem in­
terromper a ação. Agora sabemos o que isso quer dizer. Não é
questão de satisfazer a curiosidade da audiência sem interpolar
obstáculos musciais; o problema é não perder a envergadura única de
sentimento, a vasta unidade rítmica do todo. ( . . . )
Se revermos (a obra de Gluck) sob esse ponto de vista, seu
comentário muito discutido, de que a música deve servir ao texto,
aparece repentinamente sob nova luz. Embora Gluck estivesse deci­
dido a deixar que sua música desempenhasse o papel de criada da
obra poética, ele não era obrigado, nem por um momento, a trair
sua música, porque desde o primeiro momento concebeu o pró­
prio drama, a arte trágica dos gregos antigos, no espírito da músi­
ca, isto é, como uma arte que usa paixões e acontecimentos e perso­
nagens harmoniosos entre si a fim de criar música 2°.20

20. Op. cit^ p. 29-37.


170 SENTIMENTO E FORMA

Ora, isso é simplesmente o princípio de assimilação,


pelo qual as palavras de um poema, as alusões bíblicas em
uma cantata, as personagens e acontecimentos em comédias
ou tragédias tornam-se elementos musicais quando são usa­
dos musicalmente. Se a composição chega de alguma ma­
neira a ser música, ela é música pura, e não um híbrido de
duas ou mais artes. A Gesamtkunstwerk é uma impossibili­
dade, porque uma obra pode existir em uma única ilusão
primária, a qual cada elemento deve servir para criar, susten­
tar e desenvolver. É o que aconteceu com as óperas de
Wagner,'contra sua vontade: elas são música, e o que sobra
de suas importações não-musicais que não sofreram uma
mudança completa para tornar-se música é refugo.
Ainda remanesce uma das questões principais, talvez, pa­
ra muitos, a mais importante:' a pureza ou impureza, mérito ou
demérito, da “música sugestiva”. Tem-se escrito, a favor,
quanto coi/ra ela, que talvez seja melhor atalhar os argumen­
tos familiares e aplicar a mesma medida ao conceito de “suges­
tão” aplicada a todos os conceitos problemáticos anteriores.
Essa medida encontra-se na pergunta fundamental: “Como a
‘sugestão’ afeta a elaboração, a percepção, ou a compreensão
da peça musical enquanto forma expressiva?” Penso que a
resposta a essa pergunta revela os usos e abusos, em seu
contraste adequado, do petit roman.
Desde que a música se tornou uma arte independente,
separada da fala entoada e dos ritmos de dança (e talvez
até mesmo antes), tem havido melodias obviamente sugeri­
das por movimentos ou sons naturais que poderíam ser
chamadas, de maneira geral, de “música sugestiva” . A imita­
ção do pio do cuco em “Sumer is i-cumen in” é geralmente
citada como o mais antigo exemplo que podemos alcançar.
Depois veio o tempo da “hermenêutica musical”, quando
movimentos ascendentes e descendentes de frases melódicas
eram interpretados como símbolos de espírito em elevação e
espírito em depressão, respectivamente, isto é, de alegria e
tristeza, vida e morte. Depois semicolcheias tremulavam, cro-
matismos lamentavam-se, arpégios louvavam o Senhor. Na
idade de Bach e Handel tais interpretações tinham-se torna­
do bastante convencionais para fornecer uma grande reser­
va de sugestões ao compositor que estava musicando um tex­
to. E nisso residia o valor dessa decorosa “pintura de tons” :
ela sugeria dispositivos musicais a serem usados nas mais
variadas formas tonais e contextos originais, da mesma ma­
neira que a Bíblia oferece sua linguagem para as preces mais
O PRINCÍPIO DE ASSIMILAÇÃO 171

espontâneas e especiais. Os dispositivos erám reconhe­


cidas figuras melódicas e padrões rítmicos, e sua
aceitação geral na realidade aliviava o compositor de qual­
quer obrigação de imitar gestos e entonações naturais. E,
além do mais, enquanto as imitações diretas estão vincu­
ladas às idéias que supostamente transmitem, as versões
tradicionais são elementos musicais livres; elas podem ser
usadas para finalidades puramente criativas na feitura
de formas expressivas não motivadas por qualquer texto
poético. A afirmação de Schweitzer, de que Bach usava
regularmente certas figuras musicais em conjunção com pa­
lavras de matiz emocional como “morte”, “alegria”, “sofri­
mento”, “céu”, e que essas figuras, recorrentes em
sua música puramente instrumental, ainda carregavam as
mesmas conotações poéticas, de maneira que suas fugas e
suítes devem ser vistas como “poemas” traduzidos em mú­
sica212, parece-me inteiramente injustificada. Como disse
Tovey a respeito da estrutura de gestos musicais, obviamente
inspirados pelas palavras na música vocal,
Bach pressupunha-a, e não lhe atribuía nada que se assemelhasse
à importância que é capaz de assumir nas mentes de lei­
tores que tomam conhecimento de sua redescoberla hoje. Boa mú­
sica era, para ele, uma coisa que podia ser usada para qualquer
nova finalidade boa, sem levar-se em consideração aquilo que seus
detalhes poderíam ter simbolizado em sua primeira versao22.
Na realidade, as mesmas figuras que, nas cantatas re­
ligiosas, acompanham o medo mortal ou a auto-humilhação
podem ser usadas de maneira humorística para conotar ver­
mes sinuosos na Criação de Haydn, e podem aparecer nos
minuetos de Mozart, onde certamente ninguém está rastejan­
do em geral. Pode ser que as palavras das cantatas tenham
sugerido apresentações tonais pelos seus valores emotivos, mas
o que resulta é que essas palavras, com toda sua significação
religiosa ou humana, foram assimiladas por uma forma pu­
ramente musical, a matriz da cantata, a partir da qual as fi­
guras rítmicas e melódicas, que são sua composição caracte­
rística, emergem com a mesmo lógica com que ocorre a
evolução de detalhes funcionais em um organismo.
Tal composição não é “música sugestiva”, mas sim­
plesmente música. Para uma genuína imaginação tonal,
tudo que soa abriga a possibilidade de formas tonais e pode
tornar-se um motivo, e muitas coisas silenciosas, também,
oferecem seus ritmos como idéias musicais. Qualquer coisa

21. Schweitzer. J. S, Bach , Le m usicien-poet .


22. Op. cit.t vol. V, 4'Música Vocal", p . 51.
172 SENTIMENTO E FORMA

de que se puder fazer um tema, uma passagem, um movimen­


to, é boa: o pio do cuco que fornece um cânone, os sinos
que tocam o baixo da música de Páscoa de Mussorgski, a
batida de coração habilmente dada aos violinos (para uma
transformação muito maior do que poderíam efetuar os tím­
panos) no Rapto do Serralho de Mozart, ou idéias de paixão
e ação dramática. Todas essas idéias motivam o curso da
música que se desenvolve por sugestão delas. Mas a músi­
ca não imita tão de perto quanto possível, aproximando ruí­
dos naturais e auto-expressão nao-dramatizada; pois, como
disse Mozart:
A música deve sempre permanecer música23.
A música deve permanecer música e qualquer outra
coisa quê entrar nela deve tórnar-se música. Penso que isso
seja todo o segredo da “pureza”, e a única regra que determina
o que é ou não relevante. A música pode ser “representacio-
nal” no sentido de tomar temas de trinados de pássaros e
pregões da praça do mercado, batidas de cascos ou batidas
do coração, efeitos de eco, águas gotejantes, ou movimen­
tos de navios e máquinas. Ela também pode “representar”
as conotações emocionais de palavras pelos expedientes fami­
liares a Bach e Buxtehude ou, com menos convenção, o au­
mento e declínio de paixões representadas no palco. Mas,
quando a música é realmente música, embora idéias de coisas
ou situações possam ser subjacentes a suas formas, tais idéias
jamais são necessárias para explicar aquilo que se ouve,
para dar-lhe unidade, ou pior do que tudo — para dar-lhe
valor emotivo.
“Música de programa” em sentido estrito é uma ex­
travagância moderna, contrapartida musical ao naturalismo
nas artes plásticas. A origem de sua ampla popularidade é
que ela pode ser apreciada por pessoas sem pendores musi­

23. "A ira de Osmin é transformada em comédia pelo uso de mú­


sica turca. ( . . . ) A ária, 'Assim» pelas barbas do profeta', está no mesmo
tempo, é verdade, mas com notas rápidas e, uma vez que sua Ira au­
menta constantemente e parecería que a ária já estivesse acabando, o
Allegro Assai tem de ser eficaz ao extremo em um tempo totalmente di­
ferente e numa diferente tonalidade, pois uma pessoa que está com
uma violenta raiva extravasa todos os limites da ordem, mo­
deração e propósito de som» ela fica fora de sl e, assim,
também a música não deve mais reconhecer a sl mesma. Mas como
as paixões, quer sejam violentas ou não, jamais devem ser expressadas a
ponto de provocar repulsa, e a música, mesmo nas situações mais terríveis,
... deve sempre permanecer música, não escolhí um tom que não
tem relação alguma com fá (o tom da ária), mas 1& menor, tom relacio­
nado. Ora, a ária de Belmonte (é) em lá maior: ‘Oh que terrível, Oh
quo comovente', vocô sabe como é exprimido, e o bater agitado do cora­
ção é Indicado, também, os violinos em oitavas." (Leltzmann, op. cit.t
curta u Lcopold Mo/.urt, datada de 26 de setembro de 1781, Viena).
O PRINCIPIO DE ASSIMILAÇÃO 173

cais e, numa civilização de massa, em que as audiências so­


mam milhares em vez de vintenas de ouvintes, a maioria
é, evidentemente, composta de gente não sem maior mu­
sicalidade . A música afeta a maioria das pessoas,
mas não necessariamente como arte; exatamente como pin­
turas ativam a imaginação de quase todos, mas apenas mentes
claras e intuitivas compreendem realmente seu importe
vital, enquanto que a pessoa média reage às coisas
pintadas e vai embora se não pode encontrar nada que promo­
va seus pensamentos discursivos ou estimule suas emoções
reais. Um programa a relatar brincadeiras imaginárias,
a enumerar os temas de pinturas em uma galeria, ou
a anunciar que agora fulano está fazendo isso, agora está
fazendo aquilo, como a irradiação de um jogo ou luta, é
uma voz proveniente do campo da realidade, mesmo se suas
afirmações são fantasiosas. Se a “interpretação” resenha cor­
retamente o material bruto do próprio compositor, ela o
traz de volta enquanto tal, isto é, enquanto material não
transformado, não assimilado, para perturbar a ilusão de
um Tempo em fluxo em que todas as sensações tomam forma
audível. Algumas vezes, entretanto, o comentarista nem se­
quer fornece tais dados de canteiro de trabalho, mas mera­
mente relata o que ele mesmo sonha quando ouve a música
e convida oficialmente a audiência a partilhar de uma banal
sinopse literária sob a influência hipnótica do som.
Todas as artes exercem um certo hipnotismo, mas ne­
nhuma o faz tão pronta e patentemente quanto a música.
Algo semelhante emana de obras de arquitetura, como as
grandes catedrais, os templos gregos, e alguns logradouros
públicos especialmente impressionantes, como salões de mu­
seus que parecem encerrar seus tesouros num mundo com­
pletamente harmônico. Tudo que é dito ou feito em tais
lugares parece ser aumentado pela vastidão do espaço vivo
e dramatizado por sua atmosfera. A influência estende-se a
coisas que não pertencem de modo nenhum à arte. A arquite­
tura, entretanto, pode hipnotizar a pessoa média apenas por
seus maiores efeitos, enquanto que a música exerce esse po­
der quase que o tempo todo. Quando a gente está ouvindo a
meias e pensando em outra coisa, e as nossas emoções encon­
tram-se comprometidas com o tema, elas são realçadas pelo
mero fundo sensorial da música. Onde pensamento e senti­
mento são realmente determinados por um problema sob
contemplação, as formas tonais não veiculam idéias em ge­
ral . Toda a função da música, então, é algo que está sempre
envolvido em apresentações artísticas de alguma espécie —
174 SENTIMENTO E FORMA

o poder de isolamento. Ê isso que faz com que a


mera umúsica de fundo” facilite o pensamento amusical de
algumas pessoas e aumente sua tonalidade emocional. Por
estarem nossos ouvidos abertos para todo o mundo, e a
audição, ao contrário da visão, não querer um foco
exclusivo, as impressões auditivas atingem-nos sem exigir
nossa atenção consciente. Talvez seja por isso que possa­
mos sentir a influência hipnótica e parar por aí — parar
aquém de qualquer percepção significativa — de uma ma­
neira que não é dado fazer com a mesma facilidade em qual­
quer outra arte.
Entre o ato real de ouvir, que é o ato de pensar ati­
vamente em música, e o de não ouvir absolutamente, como
o estudante que resolve um problema algébrico enquanto o
rádio emite uma sinfonia, existe uma zona crepuscular de
fruição musical em que a percepção tonal é entretecida em
sonho acordado. Provavelmente esta é a maneira mais
popular de receber música, pois é fácil e altamente agradável,
e estetas que consideram qualquer tipo de prazer
como a finalidade da arte, e qualquer fruição, portanto, co­
mo equivalente à apreciação, encorajam essa prática. Con­
tudo, seu efeito na mente musical é questionável. Para o
ouvinte inteiramente não iniciado, ela pode ser um auxílio
na descoberta de formas expressivas em geral, para improvi­
sar um romance que a acompanha e deixar que a música
expresse sentimentos explicados por suas cenas. Mas, para
o ouvinte competente, é uma armadilha, porque obscure-
ce o pleno importe vital da música, notando apenas o
que vem a calhar para uma finalidade e aquilo que
expressa atitudes e emoções com que o ouvinte já es­
tava familiarizado. Ela obstrui tudo o que é novo ou
realmente interessante numa obra, uma vez que aquilo que
não se encaixa no petit roman é omitido e o que de fato
se encaixa é o próprio do sonhador. Acima de tudo, ela guia
a atenção não para a musica, mas para longe dela
— através da música para alguma outra coisa que é essen­
cialmente uma indulgência. Pode-se passar toda uma noite
nesse tipo de sonho, e não tirar nada dela a não ser o rela­
xamento do “homem de negócios cansado” — nenhuma
visão musical, nenhuma nova sensação e, na realidade, nada
efetivamente ouvido.
A razão pela qual não resta realmente nada musical
é que, no processo de sonhar acordado, a música é assimila­
da ao sonho, da mesma maneira como numa canção o poema
é “engolido” pela música e, na ópera, o drama sofre a mesma
O PRINCIPIO DE ASSIMILAÇÃO 175

sorte. Um sonho não é uma obra de arte, mas segue a


mesma lei; não é arte porque é improvisado para fins pura­
mente auto-expressivos ou para satisfação romântica, e
não precisa contentar padrões de coerência, formas orgâ­
nicas ou algo mais do que o interesse pessoal. O resultado de
ouvir música dessa maneira é a criatividade livre que per­
tence à adolescência, quando o sentimento não está fixado
e exige uma quantidade prodigiosa de aventuras fictícias.
Talvez seja natural e adequado que essa idade use a música,
também, primordialmente como um caminho para o roman­
ce. Mas o processo todo na realidade afasta-nos da arte
na direção da pura subjetividade.
No entanto, a música verdadeiramente ouvida e imagi-
nativamente apreendida pode ser “usada” artisticamente, assi­
milada a obras em outras ordens de ilusão — “engolida”, exa­
tamente como ela mesma pode “engolir” poesia ou drama.
Essa é uma outra história, que nos ocupará especialmente no
próximo capítulo.
1 1 . Poderes Virtuais

Nenhuma arte é vítima de maior número de mal-enten­


didos, juízos sentimentais e interpretações místicas do que a
arte da dança. Sua literatura crítica ou, pior ainda, sua lite­
ratura acrítica, pseudo-etnológica e pseudo-estética, constitui
uma leitura enfadonha. Contudo, essa própria confusão no
tocante ao que é a dança — o que ela expressa, o que ela
cria e como ela está relacionada com as outras artes, com o
artista e com o mundo real — tem uma significação filosófica
própria. Origina-se de duas fontes fundamentais: a ilusão pri­
mária e a abstração básica pela qual a ilusão é criada e
moldada. A apreciação intuitiva da dança é tão direta
e natural quanto a fruição de qualquer outra arte, mas
analisar a natureza de seus efeitos artísticos é especialmente
difícil, por razões que logo ficarão manifestas; conse-
qüentemente, existem inúmeras teorias enganosas sobre o
que fazem os dançarinos e o que essa feitura significa, que
desviam o observador da simples compreensão intuitiva e,
levando-o a dar atenção à mecânica e acrobacia, ou a encan­
tos pessoais e desejos eróticos, ou então, induzindo-o a procu­
rar retratos, estórias, ou música — qualquer coisa à qual
possa ater seu pensamento com confiança.
A visão mais amplamente aceita é de que a essência
da dança é musical: o dançarino expressa por gestos aquilo
que ele sente como o conteúdo emocional da música que é
178 SENTIMENTO E FORMA

a causa eficiente e sustentadora de sua dança. Ele reage,


como o faríamos todos nós se não estivéssemos inibidos;
sua dança é auto-expressão, e é bela porque o estímulo é
belo. Pode-se na realidade dizer que ele está “dançando a
música” .
Essa concepção da dança como uma versão gestual
de formas musicais não é meramente uma visão popular, mas
é sustentada por um grande número de dançarinos e por
uns poucos — embora, efetivamente, muito poucos — mú­
sicos. O crítico de música que chama a si mesmo de Jean
DTJdine1 escreveu, em seu pequeno livro muito provocante
(para não dizer irritante), L ’Art et le geste:
A gesticulação expressiva de um regente de orquestra é simples­
mente uma dança. ( . . . ) Toda música é dança — toda melodia,
apenas uma série de atitudes, poses1
2.
Jacques Dalcroze, também, que tinha treinamento de
músico e não de dançarino, acreditava que a dança podia
expressar em movimento corporais os mesmos padrões de
movimento que a música cria para o ouvido3. Mas, como
regra, é o bailarino ou coreógrafo, ou crítico de dança, mais
do que o músico, que considera a dança como uma arte
musical4. Partindo da hipótese de que toda música podería
ser assim “traduzida”, Fokine empreendeu dançar sinfonias
de Beethoven; Massine fez o mesmo — ambos, aparente­
mente, sem maior sucesso.
Alexander Sakharoff, em seu Reflexiorts sur la musique
et sur la danse, levou o credo “musical” ao extremo:
Nós — Clotilde Sakharoff e eu — não dançamos ao som da
música, ou com acompanhamento musical, nós dançamos a música.
Reitera esse ponto várias vezes. A pessoa que lhe
ensinou a dançar não com música, mas a dançar a própria
música, diz, foi Isadora Ducan5. Não pode haver dúvida
alguma de que ela considerava a dança como a encarnação
visível da música — de que, para ela, não havia “música
1. Albert Cozanet.
2. L*art e t le geste, p. XIV.
3. O mais conhecido expoente desse ponto de vista é, decerto.
Jacques Dalcroze; mas a questão recebe um enunciado muito mais
sistemático com L. Bourguès e A. Denéréaz, em La musique et la vie
intérieure, onde encontramos: “Toda peça de música estabelece no
organismo do ouvinte um ritmo global dinamogênlco. sendo que cada
Instante deste é uma totalidade de todos os seus fatores dinamogênlcos,
intensidade, alcance, duração, maneira de produção, timbres, combina­
dos em efeitos simultâneos e reagindo sobre o ouvinte de acordo com
sua sucessão’* (p. 17).
“Se a ‘cenestétlca* é a alma da sensação, então a cinestéslca afinal
não é nada mais do que a ‘alma do gesto*” (p. 20 ).
4. Ver, por exemplo, George Borodin, This Thing Called Ballet*
Rudolf Sonner, Musik und T a n z : vom K ulttanz zum Jazz.
5. Reflexions sur la musique e t sur la danse , p. 46.
PODERES VIRTUAIS 179

de dança”, mas apenas música pura reproduzida como dança.


Sakharoff observou que muitos críticos sustentavam que
Isadora não compreendia realmente a música que dançava,
que a interpretava mal e a violentava; ele, pelo contrário,
achava que ela a compreendia de maneira tão perfeita que
podia atrever-se a efetuar interpretações livres dela® Agora,
paradoxalmente, acho que tanto Sakharoff quanto os críticos
estavam certos. Isadora não compreendia a música musical­
mente, mas para os seus propósitos ela a compreendia per-
feitamente; sabia o que era balético7, e isso era tudo o que
sabia a respeito da música. Efetivamente, isso compreendia
de tal modo tudo quanto ela absolutamente sabia, que lhe
parecia ser tudo o que havia para se saber e que o que ela
dançava era realmente “a música” . O seu gesto musical co­
mo tal era pouco desenvolvido — não simplesmente pobre,
mas não podia ser de modo algum levado em conta. Isadora
colocava num mesmo nível o Narcissus de Ethelbert Nevin e
a Sonata em Dó Sustenido Menor de Beethoven, a Can­
ção de Primavera de Mendelssohn e alguns Êtudes de Chopin
muito bons que a mãe dela tocava.
A falta de julgamento musical de Isadora é interessante,
tendo-se em vista a alegada identidade básica entre música e
dança (Sakharoff considera-as “tão intimamente relacio­
nadas quanto poesia e prosa” — isto é, como duas formas
principais de uma arte ). A maioria dos artistas — como
tivemos ocasião de notar antes, com referência às artes
plásticas — são juizes competentes de obras em qualquer
forma e mesmo em qualquer modo de sua própria arte: um
pintor geralmente tem um sentido verdadeiro para edifica­
ções e estátuas, um pianista para música vocal, do cantochão
à ópera, etc. Mas dançarinos não são críticos de música com
particular discernimento, e os músicos mui raramente che­
gam sequer a nutrir simpatia pela dança. Existem aqueles, é
claro, que escrevem para balé e sem dúvida o compreen­
dem; mas, dentre a multidão de músicos — tanto compo­
sitores quanto executantes — os que apresentam uma inclina­
ção natural para a dança são tão poucos que é difícil acre­
ditar que as duas artes sejam gêmeas.
A existência de uma relação íntima — identida­
de ou quase-identidade — tem de fato sido repudiada, ne-
6. Ibid, p. 52.
7. “Balético" é empregado aqui com seu sentido genérico de "refe­
rente à dança ", e não em relação específica ao tipo de dança conheci­
do como “balé". N&o existe nenhum adjetivo aceito em Inglês (N. dos
T. — Nem em português) de uma palavra que, significando “dança”,
evite falsas conotações; na admirável coleção de ensaios de Merle Ami-
tage, Modem Dance, a palavra alemã fãnzerisch é traduzida por
dancistic (p. 9) ( “danclstico” em português, N. dos T.), mas a palavra
não soa natural.
180 SENTIMENTO E FORMA

gada veementemente, por alguns dançarinos e entusiastas


da dança, que sustentam — com bastante propriedade —■
que a deles é uma arte independente; e os poucos defen­
sores da fé têm mesmo chegado ao ponto de afirmar que a
união, tão velha quanto o mundo, de música e dança, é um
puro acidente ou uma questão de moda. Frank Thiess, que
escreveu um livro com muitos juízos e percepções notáveis,
permite que sua convicção de que a arte não é um modo
da arte musical confunda-o completamente quanto à função
balética da música, que ele censura como sendo um mero
“ritmo acusticamente ornamentado” a correr paralelamente
à dança independente*.
Existe uma outra interpretação da dança, inspirada
pelo balé clássico e, portanto, geralmente mais aceita no
passado do que em nossos dias: que a dança é uma das artes
plásticas, um espetáculo de quadros mutantes ou de desenho
animado, ou mesmo estátuas em movimento. Essa era a opi­
nião do grande coreógrafo Noverre que, por certo,
jamais vira na realidade quadros movendo-se ou escul­
tura móvel89. Desde que tais meios de comunicação passa­
ram a existir, a diferença entre os seus produtos e a dança
é patente. As formas equilibradas de Calder, movidas pelo
vento, definem um volume verdadeiramente escultural que
elas preenchem com um movimento livre e fascinante (estou
pensando, particularmente, em seu “Lobster Pot and Fishtail”
no poço da escadaria do Museu de Arte Moderna de New
York), mas elas por certo não estão dançando. O quadro
móvel tem sido seriamente comparado à dança, sob o argu­
mento de que ambos são “artes de movimento”10; porém

8 . Frank Thiess, Der Tanz ais K unstwerk , pp. 42-43.


9. Ver suas Lettres sur les arts im itateurs , reflexões sobre os en­
trechos de dança anexos à Carta XXIV: “Aquilo que produz um qua­
dro na pintura, também produz um quadro na dança: o efeito dessas
duas artes ó semelhante; ambas têm o mesmo papel a representar, elas
devem falar ao corçfio através dos olhos... tudo o que é usado na
dança é capaz de formar quadros, e tudo o que pode produzir um efeito
pictórico na pintura pode servir como um modelo para a dança, bem
como tudo o que é rejeitado pelo pintor deve, da mesma forma, ser
rejeitado pelo coreógrafo”. Comparar também suas L ettres sur la danse,
e t sur les ballets , Carta XIV: “A pantomima é um raio descarregado
pelas grandes paixões: é uma multidão de rel&mpagos que se seguem
uns aos outros com rapidez; as cenas que resultam são seu jogo, eles
duram apenas um momento e Imediatamente d 6.0 lugar a outros.”
10. Cf. Borodin, op. cit., p. 56: "Os materiais básicos tanto do
balé quanto do filme sfio similares. Ambos dependem da apresentação
de um quadro em movimento. ( . . . ) Como o balé, o filme é uma
estampa em movimento, uma seqüêncla de quadros que mudam cons­
tantemente, mas que são apresentados de acordo com um plano artís­
tico — ao menos em suas formas mais elevadas. Assim, também, com
o balé. í , de fato, apenas a linguagem, a construção de frases, que é
diferente. A diferença entre balé e filme é muito parecida com a
exlstonto entro duas línguas que tenham uma origem comum — como,
por exemplo, italiano o espanhol, ou holandês e Inglês. As bases são quase
PODERES VIRTUAIS 181

a influência hipnótica do movimento é tudo que realmente


têm em comum (a menos que aconteça de o filme ser uma
execução de dança), e um efeito psicológico peculiar não é
a medida de um forma de arte. Um roteiro de filme, um
jornal cinematográfico, um filme documentário, não têm
nenhuma semelhança artística com qualquer espécie de dança.
Nem o ritmo musical, nem o movimento físico, bas­
tam para gerar uma dança. Falamos de mosquitos “dançan­
do” no ar, de bolas “dançando” em uma fonte que as atira;
mas na realidade todos esses movimentos padronizados são
motivos de dança, não danças.
O mesmo pode-se dizer de um terceiro meio que algu­
mas vezes tem sido considerado como o elemento básico
da dança: a pantomima. De acordo com os protagonistas
desse ponto de vista, a dança é uma arte dramática. E, é
claro, eles têm uma teoria amplamente aceita, a saber, que
o teatro grego surgiu da dança coral, a fim de justificar sua
abordagem. Mas, se se considerar candidamente a dança
pantomímica mais elaborada, ela não se parece de modo al­
gum com a ação do verdadeiro teatro11; fica-se muito mais
tentado a duvidar das veneráveis origens da representação,
do que acreditar no ideal dramático dos movimentos da
dança. Pois a dança que começa em pantomima, como acon­
tece com muitas danças religiosas, tende, no curso de sua his­
tória subseqüente, a tomar-se mais balética, e não mais dra­
mática12. A pantomima, como padrões de movimento puro,
imagens plásticas e formas musicais, é material de dança,
algo que pode tornar-se um elemento balético, mas a dança
em si é outra coisa.
O verdadeiro relacionamento é bem colocado por
Thiess, que considera a própria pantomima como “um bas-

sempre as mesmas em ambos os casos, mas o desenvolvimento, em cada


uma, procedeu ao longo de linhas diferentes.**
11. Noverre, acusado por certos críticos de ter violentado as uni­
dades dramáticas de temas gregos em suas danças, respondeu: “Mas
basta dizer que o balé n&o é drama, que uma produção deste tipo
não pode sujeitar-se a regras aristotélicas estritas. ( . . . ) Essas são as
regras de minha arte; as do drama estão cheias de obstáculos; longe
de conformar-me a elas, devo evitar conhecer qualquer coisa sobre elas,
colocar-me acima dessas leis que nunca foram feitas para a dança” .
(Lettres sur les arts im itateurs, Reflexão XXIV sobre os entrechos da
dança, p. 334-336.)
12. Provas a favor desse argumento podem ser encontradas em
World History of the Dance, de Sachs, apesar do fato de que o próprio
autor acredita que o teatro surgiu de danças construídas sobre temas
históricos ou míticos (ver p. 226, 227). Discutindo a evolução de danças
de animais, ele diz: ‘‘Desses exemplos podemos ver que tem sido o
destino das danças de animais o dlstanclarem-se cada vez mais da
natureza, o impulso de compor os elementos em uma dança estilizada,
portanto de tomá-los menos reais, tem tirado cada vez mais o natural
dos passos e gestos” (p. 84).
182 SENTIMENTO E FORMA

tardo de duas artes diferentess”, isto é, da dança e da comé­


dia18, mas observa:
Concluir desse fato que ela (pantomima) está portanto con­
denada à esterilidade eterna, é apreender mal a natureza de alguns
processos de formação altamente importantes na arte. ( . . . ) Uma
verdadeira pantomima na dança pode de fato ser desenvolvida, pu­
ramente dentro dos limites adequados da d an ça... uma pantomi­
ma que é inteiramente baseada, do início ao fim, na lei intrínseca
da dança: a lei do movimento rítmico.

Como o primeiro mestre de tal mimo verdadeiramente


balético, ele nomeia Rudolf von Laban.
Em sua obra [diz], como na música pura, o conteúdo de um
evento desaparece inteiramente atrás de sua forma coreográfica.
( . . . ) Tudo torna-se expressão, gesto, servidão e libertação de cor­
pos. E, através do uso hábil de espaço e cor, a pantomima balética
foi desenvolvida, o que pode vir a ser subjacente à dança de con­
junto do futuro
O que, então, é a dança? Se for uma arte independente,
como de fato parece ser, deve ter sua própria “ilusão primá­
ria” . Movimento rítmico? Esse é seu processo real, não uma
ilusão. A “ilusão primária” de uma arte é algo criado, e
criado ao primeiro toque — neste caso, com o primeiro
movimento, executado ou mesmo sugerido. O movimento
em si, enquanto realidade física e, portanto, “material” na
arte, deve sofrer transformação. Em quê? — Thiess, na
passagem citada logo cima, deu a resposta: “Tudo torna-se
expressão, gesto ( . . . ) ”
Todo movimento de dança é gesto, ou um elemento
na exibição do gesto — talvez seu realce e contraste mecâ­
nico, mas sempre motivado pela semelhança de um movi­
mento expressivo. Mary Wigman disse, em algum lugar:
“Um gesto sem sentido me é repugnante” Ora, um “gestò
sem sentido” é realmente uma contradição de termos; mas
para a grande dançarina todo movimento na dança era
gesto — era essa a única palavra; um erro era um “gesto
sem sentido” . O ponto interessante é que a própria afirma­
ção podería também ter sido feita por Isadora Duncan, por
Laban, ou por Noverre. Pois, de maneira bastante estra-134

13. Comparar o comentário de Isadora Duncan: “Para mim a pan­


tomima jamais pareceu uma arte. O movimento é expressão emocional
e lírica, o que nfio pode ter nada a ver com palavras e, na pantomima,
as pessoas substituem palavras por gestos, de maneira que ela não é
nem a arte do dançarino, nem a do ator, mas fica no meio das duas
em desesperada esterilidade". (My Life , p. 33.)
Também não considero a pantomima como espécie alguma de arte
— mas, antes, como mico e conto de fadas, um fenômeno proto-artístlco
que pode servir como motivo em multas artes diferentes — pintura,
escultura, teatro, dança, filme, etc.
14. Thiess, op. cit., p. 44-47.
PODERES VIRTUAIS 183

nha, artistas que sustentam as teorias mais fantasticamente


diversas quanto ao que é a dança — uma música visível,
uma sucessão de quadros, uma peça muda — todos reconhe­
cem seu caráter de gesto. Gesto é a abstração básica pela
qual a ilusão da dança é efetuada e organizada.
O gesto é movimento vital; para quem o executa, ele
é conhecido de modo muito preciso como uma experiência ci-
nética, isto é, como ação e, de maneira algo mais vaga, pela
visão, como um efeito. Para outros, ele aparece como um
movimento visível, mas não como um movimento de coisas,
deslizando, oscilando ou revolvendo-se — ele é visto e
compreendido como movimento vital. Assim, é sempre,
ao mesmo tempo, subjetivo e objetivo, pessoal e público,
desejado (ou evocado) e percebido.
Na vida real, os gestos funcionam como sinais ou sin­
tomas de nossos desejos, intenções, expectativas, exigências
e sentimentos. Porque é possível controlá-los conscientemente,
também podem ser elaborados, êxatamente como sons
vocais, em um sistema de símbolos atribuídos e combináveis,
uma genuína linguagem discursiva. As pessoas que não en­
tendem a fala dos outros sempre lançam mão dessa forma
mais simples de discurso a fim de expressar proposições, per­
guntas, juízos. Mas, quer um gesto tenha um significado lin­
guístico, quer não, é sempre espontaneamente expressivo,
também, em virtude de sua forma: ele é livre e grande, ou
nervoso e contido, rápido ou lento, etc., de acordo com a
condição psicológica da pessoa que o faz. Esse aspecto de
auto-expressão é semelhante ao tom da voz na fala.
A gesticulação, como parte de nosso comportamento
real, não é arte. É simplesmente movimento vital. Um es­
quilo, espantado, sentado nos quartos traseiros com uma pata
contra o coração, faz um gesto, e um gesto muito expressi­
vo. Mas não há arte em seu comportamento. Ele não está
dançando. Apenas quando o movimento que era um gesto
genuíno no esquilo é imaginado3 de maneira que possa ser
executado isoladamente da mentalidade e situação momen­
tânea do esquilo, é que se toma um elemento artístico, um
possível gesto de dança. Então ele se torna uma forma sim­
bólica livre, que pode ser usada para transmitir idéias de
emoção, consciência e pressentimento, ou pode ser com­
binado ou incorporado a outros gestos virtuais, a fim de
expressar outras tensões físicas e mentais.
Todo ser que faz gestos naturais é um centro de força
vital, e seus movimentos expressivos são vistos por outros
como sinais de sua volição. Mas gestos virtuais não são
184 SENTIMENTO E FORMA

sinais, são símbolos de volição. O caráter espontaneamente


gestual dos movimentos de dança é ilusório, e a força vital
que expressam é ilusória; os “poderes” (isto é, centros de
força vital) na dança são seres criados — criados pelos ges­
tos de semelhança.
A ilusão primária da dança é a esfera virtual do Po­
der — não um poder real, exercido fisicamente, mas apa­
rências de influência e atividade criadas pelo gesto virtual.
Ao observar uma dança coletiva — digamos, um balé
bem-sucedido em termos artísticos —: não se vê pessoas cor­
rendo de um lado para o outro, vê-se a dança sendo impulsio­
nada nesta direção, puxada naquela, reunindo-se aqui, espa­
lhando-se ali — fugindo, repousando, erguendo-se, e assim
em diante; e todo movimento parece emergir de poderes si­
tuados além dos executantes15. Num pas de deux os dois
bailarinos parecem magnetizar um ao outro; a relação entre
eles é mais do que espacial, é uma relação de forças; mas as
forças que eles exercem, que parecem ser tão físicas quanto
as que orientam o ponteiro da bússola em direção ao pólo,
na realidade não existem absolutamente em termos físicos.
São forças de dança, poderes virtuais.
O protótipo dessas energias puramente aparentes não
é o “campo de forças” conhecido dos físicos, mas a experiên­
cia subjetiva da volição e livre atividade, e da relutância a
vontades alheias, constrangedoras. A consciência de vida,
a sensação de poder vital, mesmo do poder de receber im­
pressões, apreender o meio ambiente, e deparar-se com mu­
danças, é nossa mais imediata consciência de nós mesmos.
Esse é o sentimento de poder; e o jogo de tais energias “sen­
tidas” é tão diferente de qualquer sistema de forças físicas,
quanto o tempo psicológico o é do tempo marcado pelo reló­
gio, e o. espaço psicológico do espaço da geometria.
A doutrina largamente popular de que toda obra de arte
brota de uma emoção que agita o artista, e que é “ex­
pressa” diretamente na obra, pode ser encontrada na lite­
ratura de todas as artes. Daí por que os estudiosos son­
dam a história da vida de cada artista famoso, para apren­
der, pelo estudo discursivo, quais as emoções que ele deve
ter tido enquanto fazia esta ou aquela peça, de maneira que

15. Comparem, o relato de Cyril W. Bcaumont sobre um ensaio do


Balé Alhambra: “O pianista reproduz o tema do movimento... en­
quanto os dançarinos executam evoluç&o após evolução, que Nijinskaia
controla e dirige com gestos dramáticos de seus braços. Os dançarinos
rodam em linhas longas, sinuosas, fundem-se em uma massa pulsante,
dlvldem-ee, formam círculos, giram e então somem de vista". (Publicado
em Fanfare, 1921, e cit&ddo na obra do mesmo autor A MUceilany for
Dancers, p. 167.)
PODERES VIRTUAIS 185

possam “compreender” a mensagem da obra16. Exis­


tem, porém, alguns poucos críticos filosóficos — algumas
vezes também artistas — que percebem que o sentimento
em uma obra de arte é algo que o artista concebeu
enquanto criava a forma simbólica para apresentá-lo, mais do
que algo pelo qual estava passando e involuntariamente venti­
lando em um processo artístico. Há um Wordsworth que acha
que a poesia não é um sintoma de tensão emocional, mas uma
imagem desta — “emoção relembrada em tranqüilidade”; há
um Riemann que reconhece que a música se assemelha
ao sentimento e é seu símbolo objetivo, antes do que seu
efeito psicológico17; um Mozart que sabe por experiência que
o distúrbio emocional simplesmente interfere na concepção
artística18. Somente na literatura da dança, a pretensão
de auto-expressão direta é quase unânime. Não só a
sentimental Isadora, mas teóricos eminentes, como Merle
Armitage e Rudolf von Laban, e estudiosos, como Curt Sa­
chs, além de inúmeros dançarinos, julgando introspectivamen-
te, aceitam a doutrina naturalista de que a dança é uma des­
carga livre ou de energia excessiva ou de excitação emo­
cional .
Confrontado com tal evidência é-se naturalmente le­
vado a reconsiderar toda a teoria da arte como forma sim­
bólica. É a dança uma exceção? Boas teorias podem ter
casos especiais, mas não exceções. Será que a filosofia toda
desaba? Será que ela simplesmente não “funciona” no
caso da dança e, destarte, revela uma fraqueza fundamental
que podia estar meramente obscura em outros contextos? Cer­
tamente ninguém teria a temeridade de afirmar que todos os
peritos em um assunto estão errados!
Ora, há uma curiosa circunstância que aponta a saída
desse dilema: a saber, que os peritos realmente bons —
coreógrafos, dançarinos, estetas e historiadores — embora
afirmem explicitamente a tese do sintoma-emotivo, implici­
tamente a contradizem quando falam de qualquer dança de­
terminada ou de qualquer processo específico. Ninguém,
que eu saiba, jamais sustentou que a Pavlova ao interpretar
uma vida lentamente declinante na Morte do Cisne alcançava
melhor êxito no seu desempenho quando ela na realidade se
16. Margaret H'Doubler diz explicitamente: ,4A única maneira ver­
dadeira de apreciar obras de arte é familiarizando-se com as condi­
ções e causas que as produzem". ( Dances: A Creative Art Experience,
p. 54.)
17. Uma afirmação da atitude de Riemann pode ser encontrada
citada em Nova Chave, p. 242t nota. (Ed. Perspectiva, 1971)
18. Numa carta a seu pal (datada de 9 de junho de 1781, Viena),
Mozart eBcreveu: “Eu, que sempre devo estar compondo, preciso de
uma mente lúcida e um coração calmo". Em outra ocasião (27 de
julho de 1782): "Meu coração está inquieto, minha mente confusa,
como se pode penBar e trabalhar inteligentemente num tal estado?1*1
186 SENTIMENTO E FORMA

sentia débil ou doente, ou quando se propôs a levar Mary


Wigman ao estado de ânimo adequado às suas trágicas Dan­
ças Noturnas, dando-lhe uma notícia terrível alguns minutos
antes de ela entrar no palco. Um bom mestre de balé, que­
rendo que uma bailarina exprimisse desalento, pôde dizer:
“Imagine que seu namorado acabou de fugir com a colega
em que você mais confia!’’ Mas ele não iria dizer, com
manifesta seriedade: “Seu namorado me disse que lhe desse
adeus de parte dele, ele não virá mais vê-la” . Ou ele podería
sugerir a uma sílfide a ensaiar uma “dança de alegria” que
ela deve imaginar-se passando umas férias na Califórnia, no
meio de coqueiros e laranjais, mas provavelmente não a iria
lembrar de um compromisso excitante após o ensaio, porque
isso iria distraí-la da dança, talvez mesmo a ponto de pro­
vocar movimentos falsos.
É o sentimento imaginado que governa a dança, não
condições emocionais reais. Se se passar por cima da teoria
da emoção espontânea com que quase todo livro moderno
sobre a dança começa, chega-se rapidamente à prova dessa
asserção. O gesto da dança não é um gesto real, mas vir­
tual. O movimento corporal, por certo, é bem real; mas o
que o torna gesto emotivo, isto é, sua origem espontânea no
que Laban chama de “movimento-pensamento-sentimen-
to”19, é ilusório, de maneira que o movimento é “gesto” ape­
nas dentro da dança. Ele é movimento real, mas auto-exr
pressão virtual
Penso que aqui se acha a fonte dessa contradição
peculiar que assombra a teoria da arte balética — o ideal
de um comportamento ao mesmo tempo espontâneo e pla­
nejado, uma atividade brotando de paixões pessoais mas
de alguma maneira tomando a forma de uma obra artística
consumada, espontânea, emocional, mas capaz de repetição
se for pedido. Merle Armitage, por exemplo, diz:

. . . A dança moderna é um ponto de vista, não um sistema.


( . . . ) O princípio subjacente a esse ponto de vista é que a expe­
riência emocional pode expressar-se diretamente através do movi­
mento. E, como a experiência emocional varia em cada indivíduo,
assim a expressão externa variará. M as a fo rm a , com pleta e ade -

19. Rudolf von Laban, que constantemente insiste em que o


gesto origina-se do sentimento real (Cf. Welt des T&nzers: F ünf Gedan-
kenreiçen, especialmente a p. 14), entende, não obstante, que a dança
começa em uma concepção do sentimento, uma apreensão da alegria ou
tristeza e suas formaB expressivas: “De um golpe, como o relâmpago,
o entendimento toma-se plástico. Bepentinamente, de um único ponto,
o germe da tristeza ou alegria desponta em uma pessoa. A concepção
é tudo. Todas as coisas desenvolvem-se a partir do poder do gesto, e
encontram nele sua resolução*9.
PODERES VIRTUAIS 187

quciday deve ser o ponto de partida se é que se quer a dança mo­


derna, enquanto forma de arte, viva 20.

Como é que a forma pode ser o ponto de partida de


uma reação emocional direta é um segredo que por ora só
ele sabe. George Borodin define o balé como “a expressão
espontânea da emoção através do movimento, refinado e
erguido ao plano mais elevado”2021. Mas ele não explica o que
o ergue, e por quê.
A antinomia é mais notável no excelente trabalho de
Curt Sachs, A World History of the Dance, porque o autor
compreende, como poucos teóricos compreenderam, a nature­
za da ilusão da dança — a ilusão de Poderes, humanos, de­
moníacos ou impessoalmente mágicos, em um “mundo” não-
físico, mas simbolicamente convincente; de fato, ele chama a
dança de “a representação vivida de um mundo visto e ima­
ginado” (p. 3 ). Contudo, quando trata das origens da
dança, admite sem hesitação que as exibições eróticas dos
pássaros e os “jogos de rodopio” e trejeitos grupais vagamente
rítmicos dos macacos (relatados por Wolfgang Kõhler, com
grande reserva quanto ao modo de interpretá-los) são danças
genuínas; e, tendo sido levado tão facilmente a essa premissa,
ele passa a uma conclusão igualmente pronta:
A dança dos animais, especialmente a dos macacos antropói-
des, prova que a dança dos homens é, em seu início, uma agradá­
vel reação motora, um jogo que força a energia excessiva em um
padrão rítmico (p. 55).

A “prova” não é, evidentemente, prova nenhuma, mas


apenas mera sugestão; no máximo é uma corrobora-
ção do princípio geral discutido em Filosofia em Nova Chave,
de que os primeros ingredientes da arte são geralmente for­
mas acidentais encontradas no meio ambiente cultural, que
exercem atração sobre a imaginação como elementos
artísticos usáveis22. Os movimentos brincalhões que são pu­
ramente casuais entre os macacos, os gestos de exibição ins­
tintivos, mas altamente articulados e característicos dos
pássaros, são modelos óbvios para a arte do dançarino.
Também o são gestos e posturas “corretos” desenvolvidos e
reconhecidos de muitas habilidades práticas — tiro ao alvo,
lançamento de lanças, luta livre, remo, laço — e de jogos
e ginástica. O Professor Sachs percebe uma conexão entre
tais fenômenos e formas genuínas de arte, mas parece não
compreender — ou, pelo menos não o expressa — a
20. Op. cit., p. VI.
21. Op. cit., p. XVI.
21. Cí. Nova Chave, Cap. 9, especialmente p. 248
188 SENTIMENTO E FORMA

enormidade do passo de uma à outra. Como John Dewey,


atribui a execução séria desses gestos de brincadeiras
enquanto dança ao desejo de um propósito sério, um pre­
texto consciencioso para dispender energia e habilidade23.
Alhures já me contrapus à explicação do Prof. Dewey,
e não repetirei o argumento aqui24; basta dizer que
tão logo um gesto característico é exibido de maneira notá­
vel a alguém que não está completamente absorto pelo pro­
pósito prático desse gesto — por exemplo, os gestos de jogos e
exercícios livres, que não têm nenhum fim semelhante — tor­
na-se uma forma gestual e, como todas as formas articuladas,
tende a assumir funções simbólicas. Mas uma mente voltada
para símbolos (mais do que uma mente prática, voltada para
o útil) deve apoderar-se dela.
A razão pela qual a crença na natureza genuinamente
auto-expressiva dos gestos de dança é sustentada tão ampla­
mente, se não universalmente, é dupla: em primeiro lugar,
qualquer movimento executado pelo dançarino é um “gesto”
em dois sentidos diferentes, que são confundidos sistematica­
mente e, em segundo lugar, o sentimento está envolvido de
várias maneiras nos vários tipos de gesto, e suas funções
distintas não se mantêm à parte. Os relacionamentos entre
gestos reais e gestos virtuais são realmente muito complexos,
mas talvez uma pequena análise paciente os aclare.
“Gesto” é definido no dicionário como “movimento
expressivo” . Mas “expressivo” tem dois significados alternati­
vos (para não mencionar especializações menores): quer di­
zer ou “auto-expressivo”, isto é, sintomático de condições
subjetivas existentes, ou “logicamente expressivo”, isto é,
simbólico de um conceito, que pode ou não referir-se a con­
dições dadas faticamente. Um signo freqüentemente fun­
ciona em ambas as qualidades, como sintoma e como símbolo;
palavras faladas são, de maneira bastante normal, “expressi­
vas” das duas maneiras. Elas transmitem algo sobre o qual
o elocutor está pensando, e também denunciam o fato de que
ele está tendo (ou algumas vezes que não está tendo!) as
idéias em questão e, até um certo ponto, seu ulterior estado
psicofísico.
O mesmo se aplica ao gesto: ele pode ser ou auto-
expressivo, ou logicamente expressivo, ou ambas as coisas.
Pode indicar exigências e intenções, como quando uma
pessoa faz um sinal para outra, ou pode ser convencional­
mente simbólico, como a linguagem dos surdos-mudos, mas,
23. Ojj. cit., p. 55
34. Cí. Nova Chave p. 161
PODERES VIRTUAIS 189

ao mesmo tempo, a maneira pela qual um gesto é executado


geralmente indica o estado de ânimo de quem o executa;
é nervoso ou calmo, violento ou gentil etc. Ou pode ser
puramente auto-expressivo, como a fala pode ser pura ex­
clamação .
A linguagem é primariamente simbólica e incidental-
mente sintomática; a exclamação é relativamente rara. O
gesto, pelo contrário, é muito, mais importante como via
de auto-expressão do que enquanto “palavra” . Uma
palavra expressiva é a que formula uma idéia clara e ade­
quadamente, porém de hábito considera-se como um gesto
altamente expressivo aquele que revela sentimento ou emo­
ção. Ê movimento espontâneo.
Na dança, os aspectos reais e virtuais do gesto estão
misturados de maneira complexa. Os movimentos, evidente­
mente, são reais; brotam de uma intenção, e, nesse
sentido, são gestos reais; mas não são os gestos que pa­
recem ser, porque parecem brotar do sentimento, como de
fato não o fazem. Os gestos reais do dançarino são usados
para criar uma semelhança de auto-expressão e são, destarte,
transformados em movimento espontâneo virtual, ou gesto
virtual. A emoção em que tal gesto começa é virtual, um
elemento da dança, que transforma todo o movimento em
um gesto de dança.
Mas o que controla a execução do movimento real?
Uma real sensação do próprio corpo, semelhante àquela que
controla a produção de tons na execução musical — a articu­
lação final de sentimento imaginado sob sua apropriada
forma física. A concepção de um sentimento predispõe o
corpo do dançarino a simbolizá-lo.
O gesto virtual pode criar a semelhança de auto-ex­
pressão sem a vincular com a personalidade real que, como
fonte apenas dos gestos reais (não-espontâneos), desaparece
como estes na dança. Em seu lugar está a personalidade
criada, um elemento de dança que figura simplesmente
como um Ser psíquico, humano ou supra-humano. É isso
que é expressar a si mesmo.
Na chamada “Dança Moderna”, o dançarino parece
apresentar suas próprias emoções, isto é, a dança é um auto-
retrato do artista. A personalidade criada recebe seu nome.
Porém o auto-retrato é um motivo e, embora seja o motivo
mais popular junto aos dançarinos solistas de hoje, e se tenha
tomado a base de toda uma escola, não é mais indispen­
sável para a “dança criativa” do que qualquer outro mo­
tivo. Uma dança não menos boa pode ser alcançada por
outros expedientes, por exemplo simulando-se uma cone­
190 SENTIMENTO E FORMA

xão necessária de movimentos, isto é, uma unidade mecânida


de funções, como em Petruchka, ou criando-se a seme­
lhança de controle estranho, o motivo da marionette em to­
das as suas variedades e derivativos. Este último artifício
teve uma carreira pelo menos tão grande quanto a semelhan­
ça de sentimento pessoal que é o princípio norteador da cha­
mada “Dança Moderna” Pois a aparição de movimento
como gesto requer apenas sua (aparente) emanação de um
centro de força vital; de maneira bastante estranha, um
mecanismo que “cria vida” intensifica tal impressão, talvez
pelo contraste interno que apresenta. De modo semelhante,
a força mística que trabalha por controle remoto, estabelecen­
do seus próprios centros subsidiários nos corpos dos dança­
rinos, é um poder ainda mais efetivamente visível do que a
aparência naturalista de auto-expressão no palco.
Manter separados elementos virtuais e materiais
reais não é fácil para uma pessoa sem treinamento filosó­
fico e é mais difícil, talvez, para artistas, para quem o mun­
do criado é mais imediatamente real e importante do que o
mundo fático. Faz-se mister precisão, de pensamento para
não confundir um sentimento imaginado, ou uma emoção
precisamente concebida que é formulada em um símbolo
perceptível, com um sentimento ou emoção realmente sen­
tidos como resposta a eventos reais. De fato, a própria no­
ção de sentimentos e emoções não realmente sentidos, mas
apenas imaginados, é estranha para a maioria das pessoas.
Contudo, tais afetos imaginários existem — na realidade,
existem vários tipos: os que imaginamos como sendo nossos;
os que atribuímos a pessoas reais no palco, no teatro ou
dança; os que são imputados a personagens fictícias na lite­
ratura, ou que parecem caracterizar os seres retratados numa
pintura ou numa escultura, e são, portanto, componentes
inseparáveis de uma cena ilusória ou de um eu ilusório. E
todos esses conteúdos emocionais são diferentes dos senti­
mentos, estados de ânimo, ou emoções, que são expressados
na obra de arte como tais e constituem seu “importe vital” ;
pois o importe de um símbolo não é algo ilusó­
rio, mas algo real que é revelado, articulado, tomado mani­
festo pelo símbolo. Tudo o que é ilusório, e todo fator ima­
ginado (tal como um sentimento que nós mesmos imaginamos
ter) que sustenta a ilusão, pertence à forma sim­
bólica; o sentimento da obra inteira é o “significado” do
símbolo, a realidade que o artista encontrou no mundo e da
qual ele quer dar a seu próximo uma clara concepção.
Sentimentos imaginados, sintomas emotivos ilusórios e
retratos de sujeitos sencientes foram reconhecidos há muito
PODERES VIRTUAIS 191

tempo como ingredientes da arte. Konrad Lange, faz uns


cinqüenta anos, chamou tais elementos-sentimentos de
Scheingefühlé25. Sob essa rubrica, porém, ele aglomerou to­
das as diferentes espécies de sentimentos — imaginados, si­
mulados, retratados — que entram em uma obra de arte, e
interpretou a reação do percebedor como um processo de
“fazer de conta”, isto é, de tratar ludicamente a obra como
uma realidade e fingir sentir os sentimentos nela representa­
dos ou sugeridos. A idéia de apresentar sentimentos a nosso
intelecto através de um símbolo artístico não era, é claro,
concebível dentro da moldura das premissas utilitárias e ge­
néticas de Lange; a única “mensagem” que uma obra po­
dería ter era, de seu ponto de vista, seu conteúdo temático,
isto é, aquilo que ela representava, e como a única questão
epistemológica era a determinação de crenças em termos de
conceituação de bom senso, a única relação entre arte e
realidade era a do dado sensorial e do fato científico. Uma
vez que uma pintura de um cavalo obviamente não é um
cavalo em que se possa montar e que uma natureza morta
de maçãs, não é algo que se possa comer, a crença não
podia explicar o interesse de uma pessoa por pin­
turas e ficções; a única explicação, então, era uma psicologia
do “fazer de conta”, ou do jogo, no qual o conhecimento
dé que a pretensão permitiría era a “crença” fruir mes­
mo de cenas tristes e objetos intrinsecamente indesejados,
como os amantes de arte evidentemente procedem.
O avanço do pensamento epistemológico no século XX
é atestado sensivelmente pela diferença entre o tratamento
ingênuo dispensado por Lange aos conteúdos-sentimentos na
arte e a análise feita por Baensch no artigo “Kunst und
Gefühl”, citado algo longamente no Cap. 326. De ma­
neira bastante estranha, enquanto Lange não percebia as
distinções entre sentimentos experimentados e sentimentos
percebidos e classificava-os todos como “experimentados”
com diferentes graus de seriedade, Baensch deixava passar
a distinção entre um próprio sentimento, que é um evento
biológico real, e o seu conceito, que é um objeto intelectual,

25. Ver Das Wesen der K u n st , que apareceu em 1901. Existe um


ensaio de J. Sittard, “Die Musik im Lichte der niusions-Aesthetilc"
(Die Musik, IIa, p. 243), que é uma séria revisão contemporânea da­
quele livro; Sittard passa por cima da ilusão de objetos e eventos, e
aprofunda-se na noçfio de Scheingefühle. “Um sentimento Ilusório’*, diz
ele, "é o verdadeiro âmago da ilusão estética*' (p. 244). Depois de deixar
clara a diferença entre sentimentos reais e imaginados, ele observa: “A
base da real grandeza em um artista é, afinal, o poder de identificar-se
com cada emoção, mesmo com uma emoção que lhe seja estranha e na
qual ele não realiza seu próprio ser.”
26. Ver p. 20 e ss.
192 SENTIMENTO E FORMA

ou significado de um símbolo; portanto, ele viu-se em


face do paradoxo de sentimentos realmente presentes que
ninguém estava sentido. Os resultantes quixotismos filosó­
ficos, e seu desaparecimento quando as formas de arte são
tomadas como símbolos em vez de realidade, já foram
discutidos e não merecem repetição. O ponto salien­
te é que, na dança, a abstração básica em si envolve
um Scheingefühl. O gesto real brota do sentimento (físico
ou psicofísico); a semelhança de gesto, portanto, se for
feita por meio de um movimento real, deve ser um movi­
mento que parece brotar do sentimento. Mas o sentimento
que está implícito num tal “gesto” aparentemente espon­
tâneo é, em si, um elemento de dança criado — um Scheinr
gefühl — e pode até ser atribuído não ao dançarino, mas a
algum poder natural ou sobrenatural que se expressa através
daquele. A vontade consciente que parece motivá-lo ou
animá-lo pode ser imaginada como situada além de sua
pessoa, a qual figura como um mero receptáculo ou mesmo
como a sua concentração momentânea (Ballung von Tan-
zenergien de L aban).
A confusão quase universal de auto-expressão com
expressão da dança, de emoção pessoal com emoção balética,
é bastante fácil de compreender, se se considerar as com­
plexas relações que a dança realmente tem com o sentimento
e seus sintomas corpóreos. Ela é, além do mais, não apenas
induzida pela concepção popular da arte como catarse
emocional, mas é agravada por outra doutrina, igualmente
séria e respeitada (que é, acho, insustentável em muitos
aspectos, embora seja a teoria sustentada por Croce e Berg-
son), que é a de que o artista nos dá a introvisão das reali­
dades, que ele penetra na natureza de coisas individuais, e
nos mostra o caráter único de tais objetos ou pessoas com­
pletamente individuais. Na chamada “Dança Moderna”, o
motivo usual é uma pessoa expressar seus sentimentos. A
essência absolutamente individual a ser revelada seria, então,
uma alma humana. A doutrina tradicional da alma como
uma verdadeira substância, inteiramente única, ou individual,
vai ao encontro dessa teoria da arte em muitos pontos; e, se
a pessoa cujas alegrias e dores a dança representa não é
senão o dançarino, as confusões entre sentimento demons­
trado e sentimento representado, sintoma e símbolo, motivó
e imagem criada, são quase inevitáveis.
O reconhecimento de uma verdadeira ilusão artística,
de uma esfera de “Poderes”, em que seres puramente imagi­
nários dos quais emana a força vital enforma a todo um
mundo de formas dinâmicas através de suas ações psicofí-
PODERES VIRTUAIS 193

sicas, como que magnéticas eleva o conceito de Dança


acima de todos seus emaranhados teóricos com a
música, pintura, comédia e carnaval ou teatro sério, e nos
permite perguntar o que faz parte da dança e o que não faz.
Além do mais, determina exatamente como outras artes
estão relacionadas com a antiga arte balética, e explica
por que ela é tão antiga, por que ela tem períodos de degene-
rescência, por que ela está tão intimamente vinculada com
divertimento, disfarces, frivolidades, por um lado, e com
religião, terror, misticismo e loucura, por outro. Acima
de tudo, apóia a intuição de que a dança, não importando
quão diversas e variadas possam ser suas fases, talvez mesmo
quão pouco dignos seus usos, é inequívoca e essencialmente
arte, e desempenha as funções de arte tanto no culto reli­
gioso quanto no jogo.
Se nos aproximarmos da literatura sobre a dança à luz
dessa teoria, encontramos a teoria corroborada por toda
parte, mesmo lá onde uma concepção inteiramente diversa
da dança é professada explicitamente. Implicitamente, existe
sempre o reconhecimento de forças de dança criadas, agentes
impessoais, e especialmente do gesto controlado, ritmado,
concebido formalmente, a gerar a ilusão de emoções e von­
tades em conflito. Escritores que enchem suas introduções ou
parágrafos de abertura com afirmações que os submetem a
um assalto diário de emoções em número suficiente para
matar qualquer pessoa normal, e a suas exibições espontâneas
programadas, não falam de quaisquer sentimentos e
emoções específicas quando passam a discutir problemas
específicos da dança, mas falam quase invariavelmente de
estabelecer tensões, exibir forças, criar gestos que conotem
sentimentos ou mesmo pensamentos. Os pensamentos, lem­
branças e sentimentos reais que se encontram por trás da­
queles são símbolos puramente pessoais, que podem auxiliar
a concepção artística, mas não aparecem. Como Mary Wig-
man o colocou:

Como é que a experiência da dança manifesta-se ao indivíduo é


algo que constitui segredo dele mesmo. A realização artística, por
si só, é o único testemunho válido27.

Foi essa realização que Arthur Michel, embora estivesse


plenamente consciente da personalidade apaixonada que
havia por trás desta, descreveu puramente em termos de
forças de dança, tensões virtuais, centros virtuais ou “pólos”
de energia:27

27. “Tiie New German Dance**, em M odem Dance, p. 22.


194 SENTIMENTO E FORMA

Realizar o ser humano como tensão no espaço; isto é, a disso­


lução do dançarino em movimento oscilante descarregando tensão,
era a idéia, a tarefa, o alvo de Mary Wigman. Ninguém, se não um
ser tão soberbo e demoniacamente possuído, tão distendido entre céu
e inferno como era Mary Wigman, podería jamais conseguir, no
sentido da dança, incorporar a existência humana como ten­
são dentro de si mesma. Só uma pessoa assim, talvez, podería ter
concebido a idéia de dança criativa como a oscilação de um ser
humano entre dois pólos eternos de tensão, transplantando assim o
corpo que dança da esfera sensorialmente existente do materialismo
e do espaço real para a superesfera simbólica do espaço da tensão33.
Quando ela está dançando, seu torso e membros parecem ser
governados por um poder da natureza que age de acordo com leis
secretas 29.
A criatividade de Mary Wigman na dança exigia cada vez mais
insistentemente que a polaridade da tensão espacial fosse tornada
visível por um segundo dançarino, ou por um grupo, em acrésci­
mo a sua manifestação por um único dançarino282930.
O grupo que dança é uma personalidade, uma criatura que
padece, sofre, assaltada por uma tensão de dança que a leva a lutar
com um parceiro visível (ou invisível). O corpo de baile, pelo con­
trário, é uma massa de dança. Seus movimentos não são a expres­
são do que ele está sentindo individualmente. Move-se de acordo
com leis impessoais. Pode ser comparado a alguma obra de arqui­
tetura que tomou vida, movendo-se, transformando-se de uma for­
ma para outra. . . é uma criação e recriação conformadora de espa­
ço, dessa forma de tensão corpórea. .. arquitetura que, em sua
incessante mudança, produz uma atmosfera espiritual31.
Ora, obviamente, a personalidade de grupo não é uma
criatura real a sofrer ataques de coisa alguma; nem são os
dançarinos do corpo de baile na realidade uma massa orgâ­
nica sub-humana. Todas essas entidades são elementos de
dança que emergem da interação de forças virtuais de “ten­
sões espaciais” e “tensões corpóreas” e mesmo de “tensões
de dança” menos específicas criadas pela música, luzes,
decoração, sugestão poética e seja lá o que for.
Os escritos dos dançarinos mais refletidos frequente­
mente são difíceis de ler porque eles atravessam muito livre­
mente a linha entre fato físico e significação artística. A
completa identificação de fato, símbolo e significação, que
é subjacente a toda crença literal no m ito32, também acossa
o pensamento discursivo dos artistas, a tal ponto que suas
reflexões filosóficas tendem a ser tão confusas quanto ricas.
Para um leitor cuidadoso com ordinário bom senso, elas soam
como tolices; para uma pessoa treinada filosoficamente,
parecem, altemadamente, afetadas ou místicas, até que ela
descobre que são míticas. Rudolf von Laban oferece um
28. “The Modem Dance in Germany”, I b i d p. 5.
29. Ibid., p. 6.
30. Ibid., p. 7.
31. Ibid., p. 9.
32. Cí. Nova Chave, Cap. 6.
PODERES VIRTUAIS 195

perfeito exemplo: ele tem idéias muito claras sobre o que é


criado na dança, mas a relação das “tensões” criadas com a
física do mundo real envolve-o em uma metafísica mística
que é, no melhor dos casos, fantasiosa e, no pior, arrebata-
damente sentimental33.
A fonte principal de tais especulações abortivas é o
fracasso em distinguir entre o que é real e o que é virtual na
elaboração do símbolo e, além do mais, entre o próprio
símbolo “virtual” e a sua significação, que nos remete de volta
à realidade. Mas essa compressão de símbolos e significados,
palavra e mundo, em uma entidade metafísica, é o próprio
sinete daquilo que Cassirer chamou “a consciência mí­
tica” ; e isso é estruturalmente o mesmo que consciência
artística. É metafórica quase que de começo ao fim. Quando
nos lembramos, porém, de que as afirmações que Laban faz
sobre emoções se referem a sentimentos corpóreos, senti­
mentos físicos que surgem da idéia de uma emoção e iniciam
gestos simbólicos que articulam essa idéia e que suas “forças
emocionais” são semelhanças de forças físicas ou mágicas,
construção lógica, pois ela permite conceber o mundo
e suas energias em uma descrição da esfera ilusória dos
“poderes”, e então todas suas análises fazem sentido34.
Especialmente seu tratamento de objetos como complexos de
forças intersectantes em um espaço balético 35 é uma arrojada
construção lógica, pois ela nos deixa conceber o mundo
inteiro da dança como um campo de poderes virtuais — não
lhe resta, absolutamente nenhuma realidade nenhum mate­
rial intransformado, mas apenas elementos, Seres vivos, cen­
tros de força, e sua interação.
O resultado mais importante, entretanto, de se reco­
nhecer a ilusão primária da dança e a abstração básica —
gesto espontâneo virtual — que a cria, preenche e organiza,

33. Cf. op. cit>, passim .


34. Cf. op. cit., Zweiter Reigen, onde uma discussão peeudocien-
tíflca sobre a natureza física termina com o parágrafo: "As tensões
que experimentamos, repentinamente, em toda parte, na imobilidade,
na repentina sensação de estar caindo, de estar balançando, sfio as
faíscas, as partes orgânicas de um mundo grande, invisível e para nós
talvez aterrorizante, do qual temos pouca consciência”.
35. Ele descreve a tensão {Spannung) como "uma harmoniosa, simul­
tânea consciência de si mesmo, percepção de si mesmo, exploração de
si mesmo, sentir em sl mesmo as infinitas transformações e potenciali­
dades de transformaç&o no mundo em relação um com o outro". Depois
desse esforço heróico para dar uma definição cósmica, ele continua:
"Deste processo universal surge algo perceptível fisicamente, uma forma
de ser que nesta obra chamo de nucleação (Ballung ) . Essa nucleaçfio
surge, perdura, expira e gera, por esse Jogo de tensões, as impressões
de Tempo, Espaço, Poder, e coisas semelhantes.
( . . . ) Uma nucleação derivada dos modos especiais de vibrações sim­
páticas do infinito homogêneo será recebida de maneira sensível e rude
pelo olho. ‘Sensivelmente* quer dizer, ‘fazendo sentido*. Nossa experi­
ência interpreta esse fenômeno como uma nucleação preenchedora de
espaço, uma Coisa" (p. 6).
196 SENTIMENTO E FORMA

é a nova luz que esse reconhecimento lança sobre o status,


os usos e a história da dança. Todas as espécies de práticas e
formas de dança intrigantes, origens, conexões com outras
artes, e relações com religião e mágica, tomam-se claras no
momento em que se concebe a dança como sendo nem arte
plástica nem música, nem uma apresentação de uma estória,
mas um jogo de Poderes tomados visíveis. Desse ponto de
vista, pode-se compreender a dança estática e a dança ani­
mal, a valsa sentimental e o balé clássico, a máscara e o
mimo e o carnaval orgiástico, bem como o solene círculo
funéreo ou a dança trágica do coro grego. Nada pode corro­
borar a teoria de ilusão e expressão artística, aqui exposta,
com tanta força quanto uma história competente da dança,
relida à luz dessa teoria; o capítulo seguinte, portanto, apre­
sentará pelo menos uns poucos fatos significativos, históricos
ou atuais, para consubstanciar a concepção da dança como
uma arte completa e autônoma, a criação e organização de
uma esfera de Poderes virtuais.
12. 0 Círculo Mágico

Todas as forças que não podem ser cientificamente


estabelecidas e medidas devem ser consideradas, do ponto
de vista filosófico, como ilusórias; se, portanto, tais forças
parecem ser parte de nossa experiência direta, elas são
“virtuais”, isto é, semelhanças não-reais. Isso se aplica aos
poderes ctônicos, poderes divinos, fados, encantamentos e to­
dos os agentes místicos, à potência da oração, da vontade, do
amor e ódio, e também do frequentemente suposto poder
hipnótico de uma mente sobre outra (com isso não pretendo
pôr em discussão o fenômeno da hipnotização de um sujeito,
mas apenas o conceito de “força” psíquica que emana da
“mente dominante” ) .
A suposição de “poderes” misteriosos, ou concentra­
ções de forças não calculáveis teoricamente em termos mate­
máticos, domina toda a imaginação pré-científica. O retrato
do mundo de homens ingênuos origina-se naturalmente do
padrão de paixão e ação subjetiva. Assim como a visuali­
zação de relações espaciais começa com o que Poincaré
chamou de nossa “geometria natural” do mesmo modo a
compreensão das relações dinâmicas inicia-se a partir da
nossa experiência de esforços e obstáculos, conflitos e vitó­
ria ou derrota. A concepção de “poderes” na natureza que
operam como impulsos, e de força inerente às coisas1
1 . Comparar supra , Cap. 6, p. 96*
198 SENTIMENTO E FORMA

assim como se sente que o vigor está no corpo, é


óbvia. Contudo é um mito, construído sobre o símbolo mais
primitivo — o corpo (da mesma maneira que a maior parte
de nossa linguagem descritiva se baseia no simbolismo
de cabeça e pé, perna e braço, boca, pescoço, costas, etc.:
os “sopés” de uma serra, a “encosta” da montanha, a “perna”
de uma cadeira, a “boca” de um jarro, a “cabeça” de ponte, o
“braço” de mar, etc.). Essa visualização do mundo como um
reino de forças vivas individuais, em que cada uma é um
ser com desejos e propósitos que fazem com que entre em
conflito com outros poderes teologicamente dirigidos, é real­
mente a idéia-chave de toda interpretação mítica: a idéia do
Mundo Espiritual.
Ernst Cassirer, em seus volumosos escritos sobre a
evolução de formas simbólicas2, descobriu traços desse prin­
cípio de “espiritualização” (que não é realmente “antropo-
morfização”, uma vez que afeta a imagem do homem em si
mesmo de maneira estranha) através de toda a trama da
linguagem, e demonstrou como as mentes humanas, pensando
com palavras, construíram todo seu mundo com “poderes”,
que são modelados segundo sentimentos subjetivos de potên­
cia. Religião, história, política, e mesmo as abstrações tradicio­
nais da filosofia refletem essa Weltanschauung fundamental
que é incorporada na linguagem. A formulação engendrada
pelo modelo subjetivo é realmente uma grande metáfora, na
qual nossa “concepção” natural do mundo é expressa;
mas onde a mente humana tem apenas um símbolo para
representar uma idéia, o símbolo e seu significado não são
separáveis, porque não existe nenhuma outra forma pela
qual o significado pudesse ser pensado e distinguido do
símbolo. Conseqüentemente, a grande metáfora é identificada
com seu significado; os sentimentos de poder que servem
como símbolos são atribuídos à realidade simbolizada, e o
mundo aparece como um reino de Seres potentes.
Essa concepção da natureza caracteriza aquilo que
Cassirer chama de “consciência mítica” . Contudo, da
mesma maneira como o pensamento mítico determina a
forma da linguagem e então é sustentado e impelido para a
frente pela linguagem, assim também o progressivo aguça-
mento e articulação daquele supremo instrumento rompe,
finalmente, o molde mítico; a perfeição gradual da forma
discursiva, que é inerente à sintaxe da linguagem como a
metáfora é inerente a seu vocabulário, lentamente gera um
novo modo de pensamento, a “consciência científica”, que
2. Ver efipecialmezite os Vols. I e II de Die Philosophie der symbo -
lischen Formen; também Sprache und Mythos (Trad. bras.: Linguagem
e mito, S&o Paulo, Perspectiva, 1972), e An Essay on Man , Parte I,
passim, especialmente o Cap. II, "A Olue to the Nature of Man: tbe
Symbol*'.
O CIRCULO MÁGICO 199

supera o mítico, em maior ou menor extensão no “bom senso”


de diferentes pessoas e grupos de pessoas. A mudança pro­
vavelmente jamais é completa, mas, na medida em que é
efetuada, a metáfora é substituída pela afirmação literal, e a
mitologia dá lugar à ciência3.
As fases primitivas do desenvolvimento social são intei­
ramente dominadas pela “consciência mítica”. Desde os tem­
pos mais antigos, através dos últimos estádios tribais, os
homens vivem num mundo de “Poderes” — Seres divinos
ou semidivinos, cujas vontades determinam o curso dos
eventos humanos e cósmicos. Pintura, escultura e literatura,
sejam tão arcaicas quanto forem, mostram-nos esses Poderes
já fixados numa forma visível ou descritível, antropomórfica
ou zoomórfica — um bisonte sagrado, uma vaca sagrada,
um escaravelho, um Tiki, um Hermes ou Korê, finalmente
um Apoio, Atená, Osíris, Cristo — o Deus que tem uma
aparência pessoal até mesmo no corte de sua barba, uma
história pessoal de nascimento, morte e glorificação, um culto
simbólico, uma liturgia poética e musical. Mas, nos primeiros
estádios da imaginação, nenhuma de tais formas definidas
envolve os terríveis e fecundos Poderes que cercam a huma­
nidade. O primeiro reconhecimento destes dá-se através do
sentimento de vontade e desejo pessoal no corpo humano e
sua primeira representação é através de uma atividade cor­
poral que abstrai a sensação de poder das experiências prá­
ticas em que essa sensação é geralmente um fator obscuro.
Essa atividade é conhecida como “dança”. A dança cria uma
imagem de Poderes inominados e mesmo incorpóreos que
preenchem uma esfera completa, autônoma, um “mundo”. É
a primeira apresentação do mundo como reino de forças
místicas.
Isso explica o precoce desenvolvimento da dança como
uma forma de arte completa e mesmo sofisticada. Curt Sachs,
em sua volumosa World History of the Dance, observa com
alguma surpresa:
Por estranho que possa soar — desde a Idade da Pedra a dan­
ça pouco tem empreendido, tanto a título de novas formas, quanto
de novo conteúdo. A história da dança criativa ocorre na pré-
história4.
A dança é, de fato, o negócio intelectual mais sério da
vida selvagem: é a visualização de um mundo além do local
e momento da existência animal da pessoa, a primeira
concepção de vida como um todo — contínua, vida supra-
pessoal, pontuada pelo nascimento e pela morte, rodeada e
3. Cf. sua Substance and Function.
4. World History of th e Dhnce, p. 62.
200 SENTIMENTO E FORMA

alimentada pelo resto da natureza. Desse ponto de vista, a


evolução pré-histórica da dança não parece, em absoluto,
estranha. Ê o próprio processo de pensamento religioso que
gera a concepção de “Poderes” enquanto os simboliza. Para
a “consciência mítica” essas criações são realidades e não
símbolos; as pessoas não sentem que eles são criados pela
dança, em absoluto, mas que são invocados, adjurados, desa­
fiados e aplacados, conforme o caso. O símbolo do mundo,
a esfera das forças baléticas, é o mundo, e a dança é a parti­
cipação do espírito humano nele.
Todavia, o mundo do dançarino é um mundo transfi­
gurado, despertado para um tipo especial de vida. Sachs
observa que a forma mais antiga de dança parece ser o
Reigen, ou dança em roda, que ele considera como uma
herança dos ancestrais animais5. Ele a encara como uma
expressão espontânea de alegria, não representativa e, por­
tanto, “introvertida”, de acordo com a sua (bastante infeliz)
adaptação de categorias tomadas à psicologia dinâmica
de Jung. Mas a dança em círculo realmente simboliza uma
das realidades mais importantes na vida dos homens primi­
tivos — o reino sagrado, o círculo mágico. O Reigen en­
quanto forma de dança não tem nada a ver com o saltitar
espontâneo; preenche uma função sagrada, talvez a pri­
meira função sagrada da dança — divide a esfera da santida­
de da esfera da existência profana. Dessa maneira, ele cria
o palco da dança, que se centraliza naturalmente no altar
ou seu equivalente — o totem, o sacerdote, o fogo — ou
talvez o urso abatido, ou o chefe morto a ser consagrado.
No círculo mágico todos os poderes demoníacos são
soltos. O reino mundano é excluído, e com ele, muito fre-
qüentemente, as restrições e propriedades que lhe pertencem.
O Dr. Sachs disse, com muita verdade, que toda dança é
extática — a sagrada dança de grupo, a vertiginosa dança
individual rodopiante, a erótica dança de pares.

5. "As origens do dançar humano ... nfio nos sfio reveladas nem
na etnologia nem na pré-hlstórla. Devemos, antes, lnferl-las da
dança dos macacos: a alegre, viviaz dança circular ém torno de
algum objeto alto, firmemente fixado, deve ter sido transmitida ao
homem por seus antepassados animais. Podemos portanto supor que a
dança em roda já era uma posse permanente da cultura paleolitica,
o primeiro estádio perceptível da civlllz&ç&o humana." (Ibid., p. 208.)
O Dr. Sachs certamente simplifica em demasia o problema da arte e
superestima a evidência de (Ktihler) para a solução que aceita. Náo
sabemos se os macacos experimentam apenas um divertimento vivaz
enquanto correm em tomo de um poste; talvez algum instável pre-
decessor da excltaçfto mística desperte neles nesse momento. Talvez
seus trejeitos sejam de mera brincadeira. Talvez a tendência para baier
os pés ritmicamente tenha sido detonada pelo exemplo do Proí.
Kõhler, e jamais se teria desenvolvido na selva a menos que eles ti­
vessem visto dançarinos humanos em algum lugar. Sabemos multo
pouco para inferir algo da "dança dos macacos".
O CIRCULO MÁGICO 201

No êxtase da dança, o homem atravessa o abismo entre este


e o outro mundo, para o reino dos demônios, espíritos e DeusS.
Algumas vezes a luta contra os poderes da escuridão é
representada em uma dança com armas, contra um parceiro
invisível; algumas vezes a proeza militar é representada como
um embate de contendores visíveis. A virtude das próprias
armas pode ser celebrada pelos atos de lançá-las, pegá-las, gi­
rá-las e brandi-las. Todas as atividades vitais e cruciais foram
santificadas pela dança, como o nascimento, puberdade, casa­
mento, morte — plantio e colheita, caça, batalha, vitória —
estações, reuniões, inaugurações. As ocasiões de tais danças
sacras levaram naturalmente à pantomima ilustrando os
objetos de desejo ou medo; a pantomima forneceu novas
formas de dança, freqüentemente passíveis de grande elabo­
ração; a elaboração exigiu adereços — roupas, acessórios,
máscaras — e estas, por sua vez, criaram caracteres de
dança, espíritos e animais fantasmas e deuses, de acordo
com os recursos conceituais dos dançarinos. O “Diabo do
Campo” do Congo 6 uma máscara gigantesca de dança cujo
temível habitat é uma árvore na selva, onde ela fica pen­
durada no período entre as danças, a uma distância segura
do conjunto habitado7. A “Rainha de Maio”* das tradições
européias é uma personagem de dança, provavelmente toman­
do o lugar de uma deusa da fertilidade a quem a dança era
dirigida originalmente. O caráter secundário do “Rei de
Maio”, algumas vezes coroado e exaltado ao lado da rainha,
sugere que o centro de toda a cerimônia pode ter sido uma
dança erótica de um par, invocando as forças de procriação
nos campos e vinhedos e rebanhos, ou estimulando-os pela
“magia simpática” .
Não importando aquilo que a dança deve suposta­
mente alcançar, quais elementos dramáticos ou rituais ela
abrange, seu primeiro movimento é sempre a criação de um
reino de Poder virtual. “Êxtase” não é outra coisa que o
sentimento de entrar em tal reino. Há formas de dança que
servem principalmente para romper os vínculos com a reali­
dade e estabelecer a atmosfera “do outro mundo” em que
operam as forças ilusórias. Rodopiar e fazer círculos, deslizar
e saltar e equilibrar-se são gestos básicos que parecem origi-
nar-se das fontes mais profundas do sentimento, os ritmos da
vida física como tais. Dado o fato de não apresentarem
idéias de coisas fora do organismo, mas apenas a própria
vitalidade objetivada, o Dr. Sachs designou esses elementos
e. m a ., p. 4.
7. De acordo com uma conferência pronunciada por Fearl Primus,
depois de sua volta da África (Inverno de 1949-50).
* Maio, na Europa, é primavera.
202 SENTIMENTO E FORMA

como “destituídos de imagem” e os considera como o recurso


especial dos povos “introvertidos”. A distinção entre dançari­
nos “introvertidos” e “extrovertidos”, medida pelos usos de
“danças sem imagem” e “danças de imagem” (mimo) res­
pectivamente, perdura por todo o livro. Mas ela jamais se
apoia em quaisquer descobertas psicológicas capazes de pro­
var que os dançarinos puramente extáticos — dervixes, dança­
rinos do demônio, contorcionistas — sejam mais introvertidos
do que (digamos) as mênades que representam a morte e res­
surreição de Dionísio, ou que distinga a mentalidade de pes­
soas que dançam no. prado da aldeia numa simples roda da­
quela de dançarinos que serpenteiam numa “dança em ca­
deia”, tomando seu motivo do processo de tecer, ou que agi­
tam mãos estendidas para simular pássaros voando. À medida
que ele traça a história de “danças sem imagem”, estas
parecem fundir-se com a pántomima dramática; e, recipro­
camente, seu relato dos gestos imitativos mostra que neles o
desenvolvimento coral foi, geralmente, no sentido de distan­
ciar-se da mímica, em direção ao gesto expressivo e rítmico
puro. Resumindo suas descobertas, ele mesmo o nota.
A partir de tais exemplos [diz ele], podemos ver que tem sido o
destino da dança animal distanciar-se cada vez mais da natureza.
O impulso de compor os movimentos numa dança estilizada, para
assim torná-los menos reais, tem tirado a forma natural cada vez
mais dos passos e gestos. Com a maior rapidez, o andar do pato toma-
se um simples passo agachado. ( . . . )
Por outro lado, talvez movimentos de uma origem motora
puramente individual tenham sido considerados miméticos e seme­
lhantes aos de animais e recebido uma nova interpretação».
Refletindo sobre esses fatos, ele faz uma observação
geral que mostra toda questão interpretativa da arte sob o
que considero como sua luz adequada — como um conceito
orientador, ou motivo.
Existem, portanto, na dança animal, exatamente os mesmos
relacionamentos [diz ele] que são familiares na história da decoração:
estamos lidando com a abstração e a geometrização de um tema
animal ou com a naturalização zoomórfica de um tema abstrato e
geométrico?

(Comparem essa observação com as reflexões sobre os


motivos de desenho no Cap. 4: imediatamente uma relação
fundamental entre duas artes muito diferentes torna-se apa­
rente, a saber, seu uso estritamente semelhante de formas
naturais.)
A distinção entre dança extrovertida e introvertida,
representativa e não-representativa, que se torna cada vez8

8. Op. c i t p. 84-85.
o CÍRCULO MÁGICO 203

mais tênue através da obra, é rèalmente muito menos útil do


que a consideração sobre o que ê criado nos vários tipos de
dança e quais os propósitos, portanto, que os vários ele­
mentos rítmicos, miméticos, musicais, acrobáticos ou outros
servem. O que é criado é a imagem de um mundo de forças
vitais, incorporadas ou desencorporadas; nos primeiros está­
dios do pensamento humano, quando símbolo e significação
são apreendidos como uma realidade só, essa imagem é o
reino do sagrado; em fases posteriores, ela é reconhecida
como a obra de arte, a forma expressiva que realmente é.
Mas, em qualquer caso, os vários elementos de dança exercem
funções essencialmente construtivas. Eles têm de estabelecer,
manter e articular o jogo dos “Poderes”. A mascarada e o
mimo por si sós não podem fazê-lo, não mais do que a
representação naturalista de objetos pode por si mesmo criar
ou dar forma ao espaço pictórico. Mas motivos histriônicos
garantem a ilusão, o “êxtase da dança”.
Ela visa simplesmente ao êxtase [diz o D r. Sachs] ou ela
assume a forma do círculo mágico, no qual o poder salta dos que
estão de fora para o que está dentro ou vice-versa... as pessoas
circundam a cabeça de um inimigo, o búfalo do sacrifício, o altar,
o bezerro dourado, a hóstia sagrada, a fim de que o poder de tais
objetos possa fluir para elas de alguma maneira misteriosa^.
Sejam quais forem os motivos da vida real que possam
entrar numa dança, eles são ritmicizados e formalizados por
esse mesmo ingresso. Dentro do Círculo Mágico, cada ação
converte-se em acento e movimento balético: o ato de levan­
tar uma criança ou um gral, as imitações de animais e pássa­
ros, o beijo, o brado de guerra. O movimento livre de dança
produz, acima de tudo (para o executante bem como para
o espectador) a ilusão de uma conquista da gravidade, isto
é, uma libertação das forças reais que são normalmente
conhecidas e sentidas como controladoras do corpo do dança­
rino. Frank Thiess observou esse fato em seu excelente livro
já citado no capítulo anterior. Depois de alguns comentários
pertinentes sobre o uso excessivo de técnicas de estirar-se,
saltar e pular como uma bola em desempenhos que de outras
maneiras eram bastante vazios, “em que as bailarinas pro­
curam demonstrar que a gravitação da terra praticamente
não tem poder sobre elas”, acrescenta:
Não obstante, essa exigência de conquista da gravidade é
baseada numa concepção correta da natureza da dança; pois sua
tendência principal é sempre superar os vínculos do peso maciço,
e a leveza de movimento é, talvez, a exigência principal que se tem
de fazer a um dançarino. ( . . . ) Ê, afinal, nada mais que a conquista
da resistência material como tal e, portanto, não é em absoluto um 9
9. Jbid ., p. 57-
204 SENTIMENTO E FORMA

fenômeno especial no reino da arte. Considere-se o triunfo da


escultura sobre a pedra, da pintura sobre a superfície plana, da
poesia sobre a linguagem, etc. É, então, precisamente o material
com que qualquer arte determinada tem de trabalhar que é mister
superar e, até um certo ponto, deve ser tornado não mais aparentelO.
Um pouco mais adiante, ainda em relação a isso, ele
designa a dança na ponta dos pés como “o símbolo conge­
lado desse idear’, cuja intenção especial é mostrar que o
corpo perdeu quase todo seu peso, de forma que pode ser
suportado pela ponta de seus dedos dos pés. E, aqui,
acrescenta um comentário significativo para a teoria da
semelhança:
Na realidade [diz ele] os dedos dos pés estão encaixados com
segurança, o suporte do corpo é o peito do pé. Mas isso é irrele­
vante; julga-se que o corpo parece imponderável e, assim, do ponto
de vista artístico, que o seja11. ’
Mesmo a dança de ponta, tão desprezada por
Isadora Duncan e pelas escolas que esta inspirou, é essen­
cialmente criativa, não atlética. A arte da dança é uma cate­
goria mais ampla do que qualquer concepção particular que
possa governar uma tradição, um estilo, um uso sacro ou
secular; mais ampla do que a dança cultuai, a dança fol­
clórica, a dança de salão, o balé, a moderna “dança
expressiva”. Isadora, convencida de que a exibição do senti­
mento pessoal era o único tema legítimo para a arte terpsi-
córea, não podia entender suas próprias reações à dança de
Kschinsky e Pavlova, que a cativavam apesar de suas crenças
e idéias.
Eu sou uma inimiga do Balé [escreveu ela] que considero
uma arte falsa e ridícula e, de fato, fora dos confins de toda arte.
Mas era impossível não aplaudir a figura etérea de Kschinsky
enquanto ela adejava pelo palco mais como um maravilhoso pássa­
ro ou borboleta do que como um ser humano. ( . . . ) Alguns dias
mais tarde recebí uma visita da adorável Pavlova; e novamente fui
presenteada com um camarote para vê-la no arrebatador Balé de
Gisèle. Embora o movimento dessas danças fosse contra todo sen­
timento artístico e humano, novamente não pude resistir a aplaudir
acaloradamente a aparição primorosa da Pavlova enquanto ela
flutuava sobre o palco nessa noite10112.
Como podia ser “arrebatador” um balé em que to­
do movimento era contrário à arte e ao sentimento hu­
mano, um problema que ela evidentemente não levou
adiante em suas meditações teóricas. Tivesse ela pensado
mais profundamente em suas próprias palavras, poderia
ter encontrado a resposta, a chave para a graciosidade
10. Der Tanz ais Kunstwerk, p. 63.
11. Ibid., p. 67.
12. My Life , p. 164.
O CIRCULO MÁGICO 205

da Kschinsky e da Pavio va e de toda a “arte falsa e ridícula”


de ambas e aquela coisa que parece ter faltado mais aguda­
mente à dança da própria Isadora: o dançarino como apari­
ção.
O jogo de poderes virtuais manifesta-se nos movimen­
tos de personagens ilusórias, cujos gestos apaixonados pre­
enchem o mundo que criam — ura mundo remoto, racio­
nalmente indescritível, em que as forças parecem tornar-se
visíveis. Mas o que as torna visíveis não é em si mesmo
sempre visual; a audição e a cinestesia sustentam a imagem
rítmica, movente, a um tal ponto que a ilusão de dança
existe para o dançarino bem como para os espectadores. Na
sociedade tribal, algumas danças incluem todas as pessoas
presentes, não deixando qualquer espectador. Ora, uma
pessoa dançando tem impressões visuais, mas jamais a impres­
são real do desempenho como um todo. Um dançarino soli­
tário nem chega a ver outros membros de algum grupo de que
ele faça parte. Contudo a dança é dirigida essencialmente à
visão. Não sei de nenhum culto que pratique a dança na escu­
ridão total, nem de qualquer dançarino de qualidades que seja
cego. A quase escuridão é freqüentemente cortejada, mas pre­
cisamente por seus efeitos visuais: a imprecisão e fusão de for­
mas, o mistério de espaços negros. A luz da lua e a de
fogueiras são usadas pelos dançarinos primitivos com tanta
habilidade quanto as luzes da ribalta e os refletores coloridos
o são pelos coreógrafos modernos, exceto que a dança é
levada até a fonte de luz, por assim dizer, de maneira que
uma dada iluminação seja explorada, em vez de levar efeitos
de luz prescritos a incidir sobre uma execução para a qual
foram propositalmente inventados13.
A solução dessa dificuldade está em perceber-se que a
abstração básica é o gesto virtual, e que esse gesto é tanto
um fenômeno visível quanto um fenômeno muscular, isto é,
pode ser visto ou sentido. O gesto consciente é essencialmente
comunicação, como a linguagem. Na escuridão total ele
perde seu caráter comunicativo. Se estamos em comunhão co­
nosco mesmos, imaginamos seu caráter visível, e isso, é claro,
podemos fazer também no escuro; mas para uma pessoa cega
o gesto consciente é tão artifical quanto a fala para um surdo.
Nosso conhecimento mais direto da expressão gestual é a
sensação muscular, mas a sua finalidade é ser vista. Conse­
quentemente, a ilusão do gesto pode ser produzida em termos
de aparência visual ou cinestésica; mas onde na realidade se
faz apelo a apenas um dos sentidos, o outro deve ser satis­
13. Também essa observação foi feita por Pearl Primus depois
de sua visita ao “mato”.
206 SENTIMENTO E FORMA

feito por implicação. Em virtude de o gesto de dança ser


simbólico, objetivado, toda dança destinada a ter significação
balética fundamentalmente para as pessoas nela empenhadas
é necessariamente extática. Ela deve tirar o dançarino para
“fora de si”, e pode realizá-lo por uma espantosa varie­
dade de meios: pela mais sutil sugestão de movimen­
to, quando as preparações físicas foram feitas antecipa­
damente através da bebida, drogas ou jejum; pela mú­
sica ao mesmo tempo monótona e excitante, como, por
exemplo, a que os dervixes ouvem por longo tempo antes
de levantar-se; por fortes ritmos musicais e físicos que
cativam o dançarino quase instantaneamente num irrea-
lismo romântico (essa é a técnica usual da secular dança de
“salão” ); ou — mais primitiva e natural de todas — tecendo
o “círculo mágico” em torno do altar ou da divindade, pelo
qual cada dançarino é exaltado imediatamente ao status de
um místico. Cada movimento seu torna-se gesto de dança
porque ele se tomou um espírito, uma personagem de dança,
que pode ser mais ou menos do que um homem — mais, se
o interesse da tribo estiver concentrado em seu desempenho
particular; menos, se ele simplesmente fundir seus membros
moventes com o movimento maior do Reigen, e sua
mente com a Presença vaga e terrível que preenche o círculo.
Cada dançarino vê a dança suficientemente para permitir
que sua imaginação a apreenda como um todo; e com sua
sensação do próprio corpo compreende as formas gestuais que
são elementos básicos, nelas entretecidos. Não pode ver
sua própria forma como tal, mas conhece sua aparência —
as linhas descritas por seu corpo estão implícitas nas mudan­
ças de sua visão, mesmo que esteja dançando só, e são garan­
tidas pelo jogo rítmico de seus músculos, a liberdade com
que seus impulsos se consomem em movimentos completos e
intencionados. Ele vê o mundo em que seu corpo dança, e
essa é a ilusão primária de seu trabalho; nesse reino fechado,
ele desenvolve suas idéias.
A dança em seu vigor prestivo é completamente criativa.
Os poderes tornam-se aparentes dentro de uma moldura de
espaço e tempo; mas essas dimensões, como tudo o mais na
esfera balética, não são reais. Da mesma maneira como os
fenômenos espaciais na música apresentam-se mais como o
espaço plástico do que como os espaços da geometria ou da
geografia14, assim, na dança, tanto o espaço quanto o tempo,
tal como entram na ilusão primária e ocasionalmente apare­
cem por direito próprio como ilusões secundárias, são sempre
elementos criados, isto é, formas virtuais. A dança primitiva
14. Comparar supra, Cap. 7, p. 124.
O CIRCULO MÁGICO 207

produz seu próprio reino e garante sua própria duração, prin­


cipalmente pela tensão ininterrupta de seus círculos e deslo­
camentos, seus equilíbrios acrobáticos e inteireza rítmica de
movimentos.
A “postura corporal” dos dançarinos, mantida pela
concentração extática para grandes feitos, os de
saltar, girar, bater os pés como pistões, conserva a estrutura
de tempo num só todo, e a própria atividade dá origem ao
acompanhamento tonal que é ao mesmo tempo um produto
derivado musical e um forte artifício de coesão. O how-
how-how do índio norte-americano é uma parte integrante
da dança de guerra, como o cantarolar do faquir
o é de suas ações místicas. Sachs indica que as danças ani­
mais são acompanhadas, de maneira bastante natural, por
sons que lembram os do animal representado, e observa: “A
genuína dança animal não precisa de qualquer outra música”.
O elemento tonal é uma atividade da dança, um meio de
preencher e vitalizar a estrutura temporal da execução.
Efeitos musicais e pictóricos, que têm sido ampla e
variadamente considerados como a essência, o alvo ou os
modelos controladores da arte do dançarino, parecem, de pre­
ferência terem-se desenvolvido de modo inteiramente inde­
pendente das artes plásticas ou da harmonia, como elementos
de dança com funções estruturais, puramente baléticas. Em
virtude da natureza complexa de sua ilusão primária — a
aparência de Poder — e de sua abstração básica — o gesto
virtual — , a dança primitiva exerce completa hegemonia sobre
todos os materiais e recursos artísticos, embora sem explorá-
los além de suas próprias necessidades. Há vários dançarinos,
e também estetas da dança, cujos escritos testemunham a
importância do espaço e tempo de terpsicore e sua natureza
ilusória, essencialmente artística. Hanns Hasting, em um
estudo intitulado “Música para Dança”, faz esta observação
notável:
Quando um dançarino fala de espaço, ele não quer dizer apenas,
nem principalmente, o espaço real, mas o espaço que significa algo
imaterial, irreal, imaginário, que vai além dos contornos visíveis de
um ou mais gestos*®.
A profundidade real, entretanto, do relacionamento entre
as artes em virtude de suas criações simbólicas características15
15. Em Modern Dance, p, 39, A passagem prossegue: “Desse
sentimento orlgina-se uma necessidade de formas musicais que criam
o mesmo espaço musicar'. Embora uma tal ênfase em valores espa­
ciais possa algumas vezes ser vantajosa, não posso concordar com o
escritor quanto ao principio geral de paralelismo que ele desenvolve
desse ponto em diante. Não há, nenhuma razão pela qual em term os
gerais o efeito espacial alcançado na dança deva ser duplicado por
uma ilusão secundária semelhante na música.
208 SENTIMENTO E FORMA

é atestada por uma passagem de Musik und Tcmz, de Rudolf


Sonner, onde ele diz:
Em níveis culturais mais inferiores, a dança é um símbolo típico
do espaço e gera uma intensa experiência de espaço. Pois não existe,
por enquanto, qualquer lugar de culto, exceto possivelmente um
campo arado (bosque sagrado), um terreno sacro. Mas, a partir do
momento em que, pela construção de templos, uma nova e profunda
experiência de espaço é criada em termos de outro simbolismo, a
dança, enquanto cerimônia (espacial) de culto, parece ser superada
pelas forças da arquitetura. ( . . . ) 16
A relação entre dança e música é mais óbvia, e tem sido
estudada muito mais exaustivamente. Quer uma dança seja
ou não acompanhada por música, ela se move sempre em
tempo musical; o reconhecimento dessa relação natural entre
as duas artes é subjacente à sua afinidade universal. Em de­
sempenhos altamente extáticos, a autonomia temporal da
dança não requer uma estrutura musical muito bem feita a
fim de dar-lhe ênfase e garanti-la; fragmentos de canto e as
batidas atonais de bastões ou tambores, meras pontuações
de som, bastam. As sensações corporais dos dançarinos, fun-
dindo-se com coisas vistas e ouvidas, com todo o caleidos­
cópio de figuras (freqüentemente mascaradas) e gestos mís­
ticos, sustentam o grande ritmo. O dançarino individual dan­
ça não tanto com seus parceiros — eles todos são transforma­
dos em seres de dança, ou mesmo em meras partes de um or­
ganismo demoníaco — quanto com o mundo; dança com a
música, com sua própria voz, com a lança que se equili­
bra em sua mão como que por um poder próprio, com a luz,
e a chuva e a terra.
Mas uma nova exigência é feita à dança quando ela de­
ve encantar não apenas seus próprios executantes, mas uma
audiência passiva (as audiências rústicas que fornecem a mú­
sica cantando e batendo palmas são na realidade partici­
pantes; elas não estão incluídas aqui). A dança enquanto
espetáculo é geralmente considerada como um produto da
degenerescência, uma forma secularizada do que na reali­
dade é uma arte religiosa 17. Na realidade, porém, ela é um
desenvolvimento natural, mesmo dentro dos confins da “cons­

16. Musik und T anz : vom K u lttan z zum Jazz. Ver p. 76.
17. Cf. Rudolf Sonner, op. cit., p. 9: “Em última análise, a
dança sempre reporta-se a um motivo prático religloso-cerlmonial.
Apenas num estágio mais avançado é que as danças baixam a uma
esfera de hedonismo puramente estético, no qual elas perdem todo
significado sério".
Também Curt Sachs, op. cit., pág. 6: “Já na Idade da Pedra, as
danças tornam-se obras de arte. Já na Idade dos Metals, a lenda
apossa-se da dança e eleva-a a teatro. Porém, quando nas culturas
mais elevadas, ela se transforma em arte, no sentido mais estrito,
quando ela se transforma em espetáculo, quando procura influenciar
homens mais do que espíritos, então seu poder universal rompe-se*'.
O CIRCULO MÁGICO 209

ciência mítica”, pois a magia da dança pode ser proje­


tada para um espectador, a fim de curar, purificar ou iniciá-
lo. Tylor descreve uma cerimônia selvagem de iniciação em
que os meninos solenemente presenciaram uma dança do
cão executada pelos homens mais velhos. Xamãs, feiticei­
ros, curandeiros e mágicos comumente executam danças
pelos seus efeitos mágicos, não sobre o dançarino, mas sobre
os espectadores reverentes.
Do ponto de vista artístico, esse uso da dança repre­
senta um grande progresso em relação ao puramente extá­
tico porque, dirigida a uma audiência, a dança se faz essen­
cialmente, e não apenas incidentalmente, um espetáculo e,
assim, acerta seu verdadeiro alvo criativo — tornar visí­
vel o mundo dos Poderes. Esse objetivo dita toda sorte
de novas técnicas, porque não se pode mais depender de ex­
periências corporais, tensões musculares, momento, as sensa­
ções de equilíbrio precário ou os impulsos do desequilíbrio,
para dar forma e continuidade à dança. Cada um de tais
elementos cinestéticos deve ser substituído por elementos
visuais, audíveis ou histriônicos, a fim de criar ilusão extá­
tica comparável para a audiência. Neste estádio, os proble­
mas da dança tribal ou de culto são praticamente aqueles
do balé moderno: romper o senso de realidade do espec­
tador e erigir a imagem virtual de um mundo diferente; criar
um jogo de forças que confronta quem percebe, em vez de
engolfá-lo nelas, como acontece quando ele está dançando e
sua própria atividade é um dos principais fatores na feitura
da ilusão da dança.
A presença de uma audiência dá à dança sua disciplina
artística; e quando essa audiência exige grande respeito, por
exemplo quando os dançarinos desempenham frente a espec­
tadores da família real, a arte coreográfica logo se torna uma
apresentação altamente consciente, formalizada e hábil. Pode,
entretanto, ainda ser religiosa; no Oriente jamais chegou a
perder inteiramente sua significação cultural, embora a
longa tradição a tenha trazido, por agora, a um estado de
perfeição técnica e sofisticação cultural que nossos próprios
esforços baléticos não podem igualar e, efetivamente, nosso
pensamento balético provavelmente não pode apreender.
No Sudeste da Ásia [diz o Dr. Sachs], onde a dança de torção
passou para um campo mais restrito, os membros são metodicamen­
te torcidos, deslocados das juntas. ( . . . )
No Cambodja, bem como em Burma, braços e pernas são
dobrados formando ângulos retos, as espáduas são juntadas, o
abdome é contraído e o corpo como um todo fica numa posição
forçada e exagerada. ( . . . )
Existe um relacionamento muito consciente com a dança de
marionetes — onde, de acordo com padrões absolutos, a dança en-
210 SENTIMENTO E FORMA

quanto arte superior atingiu um de seus pontos mais altos — nas


danças das famílias de sultões de Java, e, algo degenerada, nas dos
dançarinos profissionais javaneses, que usam as antigas danças como
modelo. Pois a dança de homens e mulheres vivos no palco de
Java e a apresentação em pantomima sobre uma tela branca de anti­
gas estórias de heróis por meio de bonecas cortadas em couro, es­
tiveram durante séculos lado a lado em termos estilísticos e em
outros termos. ( . . . ) A dança javanesa é quase em duas di­
mensões e, uma vez que cada membro do corpo deve revelar-se com­
pleto e não encurtado pela perspectiva, ela é incomparavelmente
expressiva1®.

Tal maneira de dançar é destinada inteiramente a apre­


sentar uma aparência unificada e completa a uma audiência.
Contudo, a dança mais teatral pode ainda ter conotações
religiosas.
Segundo a estrita visão hindu, a dança sem preces é considerada
vulgar; aquele que a presenciar ficará sem filhos e será reencarnado
no corpo de um animal^.

Penso que o efeito mais importante da assistência passiva


sobre a história da dança é a separação entre a dança en­
quanto espetáculo e a dança enquanto atividade, e as conse-
qüentes histórias separadas dessas duas fases distintas. De
uma, derivamos o balé, que é uma questão inteiramente profis­
sional e, da outra, a dança social, que é quase* de maneira
não menos completa, uma atividade de amadores. A dança
sapateada e a dança de tamancos tomam uma posição inter­
mediária; como a quadrilha, são realmente arte folclórica,
não totalmente divorciadas da dança de aldeia em que
o publico participa cantando, e algumas vezes batendo
palmas, pés ou saltitando. Enquanto tais, elas na realidade
não se desenvolveram sob a influência da audiência passiva,
mas pertencem a uma ordem mais primitiva. Talvez isso
tenha algo a ver com seu renascimento e popularidade em
nossa sociedade, que traz muitas marcas de primitivismo
— pintura facial bastante grosseira, sobrancelhas alteradas
artificialmente, unhas das mãos e dos pés pintadas, etc.; um
gosto por ruídos cada vez mais altos, música aprendida de
povos selvagens; uma forte tendência à atividade mítica e
cultuai na vida política, e uma volta geral ao soldadesco
tribal, em vez da confiança na guarda mais especializada dos
exércitos profissionais, que permitiram à Europa dos séculos
XVII e XVIII desenvolver uma cultura essencialmente civil.
Seja como for, a separação entre dança cênica e pura­
mente extática teve lugar há muito tempo — provavelmente
muito antes em algumas partes da Ásia do que na Europa189
18. Op. cit.f p. 45-46.
19. Jhtô., p. 223.
O CÍRCULO MÁGICO 21!

— e desde este cisma os dois tipos de dança têm seguido


linhas diferentes de desenvolvimento e cada um tem sido
afetado a seu próprio modo pelo grande trauma que a
civilização ocidental, por necessidade, infligiu a todas as
artes — secularização.
Por que, sem motivos de culto ou feitura de mágica, as
pessoas continuaram dançando? Porque a imagem dos Po­
deres é ainda, para elas, em certo sentido, uma imagem do
mundo. Para a “consciência mítica”, ela apresenta a reali­
dade, a natureza; para uma mente secular, mostra um
mundo romântico; para o psicólogo entendido, este é o
“mundo” infantil de reações espontâneas, irresponsáveis, de­
sejos de potência, liberdade — o mundo dos sonhos. A eterna
popularidade da dança está em sua função extática, tanto
hoje quanto nos tempos primitivos; mas, ao invés de trans­
portar os dançarinos de um estado profano a um sagrado,
ela agora os transporta daquilo que reconhecem como
“realidade” para uma esfera de romance. Existem “poderes
virtuais” assaz genuínos criados mesmo na dança social;
artisticamente pode ser que sejam triviais — meramente
as forças magnéticas que unem um grupo, mais simples­
mente um casal de dançarinos, e os poderes do ritmo, que
“levam” o corpo pelo espaço aparentemente com menos do
que suas exigências usuais de esforço — mas são convin­
centes. Por essa razão, mesmo a dança social é intrinse-
camente arte, embora não atinja mais do que formas ele­
mentares antes de ser destinada a finalidades não-artísticas
— iludir, enganar a si mesmo, fugir. O mundo dos sonhos
é essencialmente uma tessitura de forças eróticas. Muitas
vezes a técnica da dança serve apenas para erigir sua ilusão
primária de poderes livres, não físicos, de maneira que possa
ser “encetado” um devaneio através da remoção extática
do dançarino da realidade, e depois disso a dança tor­
na-se confusa e dá lugar à auto-expressão pura e simples.
Danças que acabam por fazer reais propostas indecen­
tes à moça, como a Schuhplatter da Bavária, com beijos e
abraços, como a antiga valsa em geral fazia, ou mesmo,
de maneira bastante inocente, em um jogo de genuína com­
petição — tentar apanhar um anel, tentar escapar de uma ro­
da, etc. — tais danças são meramente instrumentais. Sua cria­
tividade é a mais baixa possível e, tão logo tenha servido
para um propósito prático, a própria dança entra em colapso.
Mas esse é um retrato extremado da degeneração da
dança devida à secularização. Seu destino normal c simples­
mente mudar de usos religiosos para românticos. Sem
dúvida, as virtudes artísticas de algumas danças religiosa­
mente extáticas, praticadas em anos alternados por seitas
212 SENTIMENTO E FORMA

dançarinas, não são maiores do que as da sarabanda, do


minueto, da valsa ou do tango. Com efeito, os Poderes divi­
nos com que se entra em contato na tradicional dança mís­
tica muitas vezes são apenas distinguíveis das forças eróticas,
vínculos de amor e egos comunicantes, ou da libertação da
gravidade, que sentem entusiásticos dançarinos de salão.
A mais importante, do ponto de vista balético, é a última
— a sensação de libertar-se da gravidade. Esse ingrediente
na ilusão de dança fica intocado pela mudança de valores
cultuais para os de diversão. É um efeito direto e potente do
gesto ritmado, realçado pela postura distendida que não só re­
duz as superfícies de fricção do pé, mas também restringe to­
dos os movimentos corporais naturais — o livre uso de braços
e ombros, as viradas inconscientes do tronco e especialmente
as respostas automáticas dos músculos da perna em locomoção
— e, destarte, produz uma nova sensação corpórea, em que to­
da tensão muscular se registra como algo cinestesica-
mente novo, peculiar à dança. Em um corpo disposto de
tal maneira, nenhum movimento é automático; se alguma
ação avança espontaneamente, ela é induzida pelo ritmo
erigido na imaginação e prefigurado nos primeiros atos,
intencionais, e não pelo hábito prático. Em uma pessoa com
pendor pela dança, essa sensação corpórea é intensa e com­
pleta, envolvendo cada músculo voluntário, até a ponta dos
dedos, a garganta, as pálpebras. É a sensação de virtuosismo,
afim ao senso de articulação, que distingue o músico ou
executante talentoso. O corpo do dançarino está pronto para
o ritmo.
O ritmo que irá transformar todo movimento em gesto,
e o próprio dançarino em criatura liberta dos vínculos
usuais da gravitação e da inércia muscular, é estabelecido
mais facilmente pela música. Na dança altamente séria, invo-
cadora, religiosa, a música tinha frequentemente de estabe­
lecer um êxtase completo antes que os dançarinos se
movessem; mas na dança de prazer secular, a ilusão a ser
criada é tão elementar, o padrão gestual tão simples, que um
mero ritmo métrico geralmente é o bastante para ativar os
executantes. Dois compassos, quatro compassos, os pés come­
çam a bater, os parceiros a conjugar seus movimentos, e o
êxtase aumenta na repetição, variações e elaboração, sus­
tentado por um pulsar de som mais sentido do que ouvido.
A dança popular assim motivada, executada em espí­
rito de romance, fuga, alívio da carga da realidade, sem
qualquer realização espiritualmente vigorosa — quer dizer, a
dança prazeirosa erótica e de entretenimento — gerou um gê­
nero correspondente de composição musical, destinado origi­
nalmente a ser mera parte da dança: toda a literatura de “mú­
O CÍRCULO MÁGICO 213

sica para dançar”. Isso, por sua vez, produziu formas musi­
cais que são independentes, hoje, dessa conexão original: a
suíte, a sonata e a sinfonia. Mesmo a valsa, o tango, a rumba
sugeriram obras musicais que não são na realidade destinadas
a serem dançadas20. Mas tais desenvolvimentos são eventos
musicais, não baléticos. A dança, em relação à suíte de
concerto que começa com uma intrata e termina com um
gigue, serve de motivo musical, que é abandonado ao
tempo em que Haydn empreende a sonata. A “música para
dançar” real é coisa diferente, e toda época tem sua safra
desta — música expressamente modelada para ser “engolida”
pela simples, encantadora, mas efêmera dança amadora de
salão. Geralmente ela é, em termos artísticos, tão negligen-
ciável quanto as criações românticas que ela serve. Mas aqui
— como em todos os caminhos secundários labirínticos da
arte — uma peça de música assim concebida pode ser uma
obra de verdadeira arte. E então ela faz algo à dança, tão
logo chega aos ouvidos de um dançarino dotado; pois a
dança social, também, tem todas as possibilidades de arte
séria. Não existe qualquer limite teórico à expressividade
da Dança de Exibição. Seu único requisito para beleza e sig­
nificação objetiva é — gênio balético
Fazer da dança uma obra de arte requer aquela tradução
da experiência cinestética para elementos visuais e audíveis,
que mencionei antes como a disciplina artística imposta pela
presença de espectadores passivos. O dançarino, ou dança­
rinos, devem transformar o palco para a audiência, bem como
para si mesmos, em um reino autônomo, completo, virtual, e
todos os movimentos em um jogo de forças visíveis em tempo
virtual, ininterrupto, sem efetivar nem uma obra de arte
plástica, nem de “meios”. Tanto espaço como tempo, en­
quanto fatores perceptíveis, desaparecem quase inteiramente
na ilusão da dança, servindo para gerar a aparência de po­
deres atuantes um sobre os outros, mais do que sendo eles
mesmos aparentes. Isso é dizer que a música deve ser tragada
pelo movimento, enquanto cor, composição pictórica, fanta­
sias, cenário — todos os elementos realmente plásticos —
tornam-se a moldura e o contraste do gesto. Os efeitos repen­
tinos de puro tempo ou espaço perfeito que algumas vezes
ocorrem são quase imediatamente fundidos de novo na vida
da dança.
A ilusão primária da dança é uma experiência particular­
mente rica, tão imediata quanto a da música ou a das artes
20. Um estudo sobre essa influência da dança na história da
música pode ser encontrado em Music Through the Dance, de Evelyn
Porter.
214 SENTIMENTO E FORMA

plásticas, porém mais complexa. Tanto espaço quanto tempo


são implicitamente criados com ela. A estória a percorre
como um fio, sem em absoluto vinculá-la à literatura; mímica
e personificação muitas vezes acham-se sistematicamente en­
volvidas em sua abstração básica, gesto virtual, mas a panto­
mima da dança não é teatro; o disfarce de máscaras e fan­
tasias, ao qual pertencem seus gestos temáticos, é despersona-
lização mais do que interessante em termos humanos. A
dança, a arte da Idade da Pedra, a arte da vida primitiva
por excelência, guarda hegemonia sobre todos os materiais
de arte.
Contudo, como toda arte, ela não pode abrigar qual­
quer material bruto, nem coisas nem fatos, em seu mundo
ilusório. A forma virtual tem de ser orgânica e autônoma
e divorciada da realidade. O que for que entre nela, fá-lo
em radical transformação artística: seu espaço é plástico,
seu tempo é musical, seus temas são fantasia, sua ação,
simbólica. Isso explica, penso, as muitas idéias diferentes
que dançarinos e estetas têm sustentado quanto ao que é a
essência da dança. Cada uma de suas ilusões secundárias tem
sido aclamada como a verdadeira chave de sua natureza,
assimilando o fenômeno inteiro da dança ao reino onde é
primária a ilusão dada; a dança tem sido chamada de arte do
espaço, arte do tempo, espécie de poesia, espécie de teatro 21.
Mas ela não é nenhuma dessas coisas, ném é a mãe de quais­
quer outras artes — nem mesmo do teatro, como penso que
será demonstrado mais adiante por um estudo da criação
dramática 22.
Como regra, os dançarinos que tomam o movimento de
dança como sendo essencialmente musical são aqueles que
pensam principalmente em termos da dança de solo e não
estão suficientemente desapegados da experiência subjetiva,
cinestética, de formas de dança como plena apreensão destas.
O ritmo musical entra de alguma forma mais direta e insis­
tentemente na percepção cinestética dos gestos feitos pela
própria pessoa do que na percepção objetiva de gestos exe­
cutados por outros, não importando, neste último caso, quão
bem a música possa ser empregada. Por outro lado, aqueles
que consideram a dança como uma arte do espaço são geral­
mente os verdadeiros dançarinos de palco e mestres de balé.
Contudo, ambas as partes são transviadas por sua consciência
de ilusões secundárias, que são na realidade artifícios que
sustentam a criação total ou realçam sua expressividade.

21. Cf. Cap. 11 especialmente p. 177 a 181.


22. Ver mate adiante, Cap. 17.
O CIRCULO MÁGICO 215

Na possibilidade de tais efeitos artísticos transitórios,


que realmente sugerem, pelo momento, uma excursão em
alguma esfera diferente da arte, encontra-se a chave de uma
das relações mais profundas entre os grandes gêneros artís­
ticos — o parentesco de suas ilusões primárias. Essa relação
entretanto, é sempre parentesco e não identidade, de ma­
neira que duas ordens radicalmente distintas jamais se fun­
dem; uma obra jamais pertence a mais do que um campo,
e sempre estabelece esse campo completa e imediatamente,
como sua verdadeira substância. Mas o aparecimento distinto
de uma ilusão mais simples, por exemplo, puro espaço ou
puro tempo, no contexto da ilusão mais complexa da dança
ou da literatura23, freqüentemente produz uma repentina
revelação de importe emotivo ao acentuar um aspecto for­
mal e abstraí-lo, o que torna seu aparente conteúdo-senti-
mento. A mesma ênfase é algumas vezes alcançada passan­
do-se momentaneamente a outro modo da ilusão primária;
SuIIivan observou que a decoração escultural na arquitetura
serve para a intensificação do sentimento 24, e D. G. James,
em Skepticism and Poetry, alega que cada uma das perso­
nagens centrais de Shakespeare atinge uma “despersonali-
zação de sentimento” em uma passagem lírica, que é na
realidade a apoteose da peça25.
Na dança, o rico tecido de sua ilusão primária confunde
o teórico, mas, para o artista criativo, é parte de sua dança
tudo aquilo que puder servir para converter a semelhança de
Poderes psíquicos e místicos em imagem dos “poderes” senti­
dos diretamente em toda vida orgânica, física ou mental, ativa
ou passiva.
Uma arte forte e convincente [disse Mary Wigman] jamais
surgiu a partir de teorias. Ela sempre cresceu organicamente.
Seus transmissores e defensores têm sido aquelas poucas naturezas
criativas para quem um caminho de trabalho foi determinado pelo
destino26.
Hoje, em nossa cultura secular, esses artistas são os
dançarinos do palco, do balé russo e seus derivados, das
várias escolas de “Dança Moderna”, e ocasionalmente da
revista, quando algum número em seu potpourri de bom e
mau entretenimento eleva-se a alturas não previstas, pelo en­
gajamento inadvertido de um gênio. O trabalho de compo­
sição da dança é tão claro e construtivo, tão imaginoso e tão
projetado quanto qualquer composição plástica ou musical;

23. O leitor deve reportar-se ao capítulo seguinte para uma ex­


plicação da ilusão literária.
24. Kindergarten Chats, p. 188.
25. Skepticism and Poetry # p. 118.
26. “The New German Dance”, em M odem Dance, p. 20.
216 SENTIMENTO E FORMA

ele brota de uma idéia de sentimento, uma matriz de for­


ma simbólica e cresce organicamente como qualquer outra
obra de arte. É curioso comparar as palavras posteriores de
Mary Wigman, no ensaio que acabei de citar, com os teste­
munhos de músicos27289 sobre o processo criativo:
Toda construção de dança origina-se da experiência de dança
que o executante está destinado a encarnar e que dá à sua criação
a verdadeira marca. A experiência enforma o âmago, a harmo­
nia básica de sua existência de dança em torno da qual todo o resto
se cristaliza. Toda pessoa criativa carrega consigo seu próprio tema
característico. Este espera para ser despertado pela experiência e
completa-se durante todo um ciclo criativo em inúmeras radiações,
variações e transformações22.
A substância de tal criação de dança é o mesmo Poder
que encantava as antigas cavernas e florestas, mas hoje nós
o invocamos com pleno conhecimento de seu estatuto ilusório
e, portanto, com plena intenção artística. O reino de magia
em torno do altar rompeu-se, inevitável e adequadamente,
pela evolução da mente humana da concepção mítica para o
pensamento filosófico e científico. A dança, o mais sagrado
instrumento de feitiçaria, adoração e oração, destituída de
seu elevado ofício, sofreu a degeneração de todos os rituais
abandonados como costume irracional ou jogo social. Deixou-
nos, porém, o legado de suas grandes ilusões e, com elas, o
desafio a uma imaginação artística não mais dependente de
enganos para seus poderes de motivação. Uma vez mais os
seres humanos dançam com grande seriedade e fervor; a
dança do templo e a dança da chuva jamais foram mais reve­
rentes do que a obra de nossos devotados artistas.
A dança séria é muito antiga, mas, como arte, é rela­
tivamente nova, exceto, possivelmente, em algumas antigas
culturas asiáticas. E, como arte, ela cria a imagem daquela
vida orgânica pulsante que, antigamente, se esperava que a
dança desse e mantivesse.
A imagem que assumiu forma evidencia a visão primária con­
cebida através da experiência interior. Essa criação sempre será
a mais pura e poderosa em seu efeito, em que o menor dos detalhes
fala da unidade animada, vibrante, que provocou a idéia. A for­
ma da experiência interna do indivíduo... também possuirá o poder
único, magnético, de transmissão, que torna possível atrair outras
pessoas, os espectadores participantes, ao círculo mágico da criação22.

27. Ver Cap. 8.


28. Op. cit.> p. 21.
29. Ibiâ., pág. 23.
13. Poesis

A literatura é uma das grandes artes e é mais ampla­


mente ensinada e estudada do que qualquer outra, contudo
seu caráter artístico é mais frequentemente reconhecido do
que realmente discernido e respeitado. A razão pela qual a
literatura é uma preocupação acadêmica padrão reside no
próprio fato de que ela pode ser tratada como outra coisa
além de arte. Uma vez que seu material normal é a lingua­
gem, e que a linguagem é, afinal, o meio do discurso, é
sempre possível olhar para uma obra literária como uma afir­
mação de fatos e opiniões, isto é, como uma peça de sim­
bolismo discursivo funcionando segundo o modo comunicativo
usual. Esse aspecto enganoso da arte verbal tem feito da “lite­
ratura” um de nossos principais objetos de exame, enquanto
que geralmente se julga que o estudo das outras artes requer
um talento ou inclinação especial e é, portanto, deixado à
escolha do estudante.
Bibliotecas inteiras têm sido escritas sobre os princípios
da arte literária, porque a abordagem intelectual que é natu­
ral aos estudiosos torna tais princípios ao mesmo tempo
muito excitantes e muito desconcertantes. A significação de
qualquer trecho de literatura deve encontrar-se, supõe-se, no
que o autor diz; todo crítico que vale o pão que come, porém,
tem suficiente intuição literária para saber que a maneira de
dizer as coisas é, de alguma maneira, sumamente importante.
Isso é especialmente óbvio na poesia. Como, então, deve o
218 SENTIMENTO E FORMA

leitor dividir seu interesse entre o valor da afirmação e a


maneira especial em que ela é feita? A escolha de palavras
não será tudo? No entanto, não deve essa própria escolha
de palavras ser julgada por sua adequação em enunciar as
idéias do autor?
A tarefa essencial da crítica parece ser a de determinar
qual é o modo especial de expressão, e quão prestável ele
é para dizer o que o autor quer dizer. Existem inúmeras
introduções à poesia que nos incitam a determinar “o que o
poeta está tentando dizer” e a julgar “até que ponto ele o diz
bem”. Mas se o leitor pode esclarecer o que o poeta está
tentando dizer, por que não pode o poeta dizê-lo claramente
desde o começo? Freqüentemente temos de traduzir para
nós mesmos aquilo que um estrangeiro falando nossa língua
está tentando dizer; mas será o poeta assim incapaz de mani­
pular suas palavras? Se formos nós que não estamos familia­
rizados com a sua linguagem, então não precisamos determinar
o que ele está tentando dizer, mas o que de fato diz; e
até que ponto ele o diz bem não nos compete julgar, uma vez
que somos novatos.
A coisa mais estranha sobre essa aparente dificuldade
linguística é que ela aflige pessoas que não são em absoluto
noviças nos campos da poesia. O Prof. Richards, que rea­
lizou um sério estudo sobre “a difundida incapacidade de
interpretar significados”, observa com alguma surpresa que
não são apenas aqueles que têm pouca experiência na poesia que
fracassam. Alguns que parecem ter lido abundantemente parecem
fazer pouco ou nenhum esforço para entender ou, pelo menos,
permanecem estranhamente mal-sucedidos. Efetivamente, quando
mais estudamos a questão, mais encontramos "um amor pela poesia”
acompanhado por uma incapacidade de compreendê-la ou inteipre-
tá-la. Essa interpretação, devemos supor, não é um desempenho
nem um pouco tão fácil e “natural” quanto temos tendência a suport.
Ele está convencido, porém, de que é um passo neces­
sário para a apreciação, e de que pode e deve ser ensinado,
uma vez que a única alternativa para “compreender” a poesia
que se lê tem de ser alguma espécie de prazer “sentimental”
nas palavras. Pois
não é duvidoso que certas inclinações “sentimentais” à poesia têm
pouco valor, ou de que essa pobre capacidade de interpretar signifi­
cados complexos e pouco familiares é fonte de infinitas perdas. ( . . . )12.
E um truísmo para os pragmáticos modernos o fato de
existirem apenas duas funções essenciais da linguagem
(embora possam falar muito sobre seus inúmeros usos),

1. I. A. Richards, Practical Criticism, p. 312.


2. Ibid., p. 313.
POESIS 219

a saber: transmitir informação e estimular sentimentos e ati­


tudes no ouvinte. As perguntas principais da crítica da poesia,
portanto, devem ser: O que o poeta está tentando dizer? E:
O que o poeta está tentando fazer com que nós sintamos? Que
os sentimentos que ele deseja invocar são respostas apropria­
das às proposições que enunciou, é outro truísmo. Mas, entre a
dificuldade peculiar de compreender o que o poema diz e
as distrações que podem interferir com a resposta emocional
“apropriada”, a apreciação de poesia parece ser um exercício
mental e neural altamente refinado. Penso que o Prof. Ri-
chards concordaria em que ela o é, pois diz a respeito apenas
da compreensão literal:
Ê uma habilidade, no sentido em que a matemática, a culinária
e a fabricação de sapatos são habilidades. Ela pode ser ensinada.
(••O3

E então vêm todos os riscos da resposta!


"Formar uma opinião sobre um poema” é o mais delicado de
todos os empreendimentos possíveis. Temos de reunir milhões de
impulsos passageiros semi-independentes em uma estrutura momen­
tânea de fabulosa complexidade, cuja essência, ou âmago, só nos é
dada nas palavras. Aquilo que "formamos”, aquela momentânea
ordem têm ula em nossas mentes, está exposta a inúmeras influências
irrelevantes. Saúde, estado de vigília, distrações, fome e outras
tensões instintivas, a própria qualidade do ar que respiramos, a umi-
midade, a luz, tudo nos afeta. Ninguém que seja um pouco sensível
ao ritmo, por exemplo, irá duvidar de que o novo murmúrio ou
rugir do transporte moderno, penetrante, quase incessante,... ó
capaz de interferir de muitas maneiras em nossa leitura de versos4.
Ora, isso é a contraparte exata na poética do “jovem
fanático musical” de Prall, cuja experiência não pode ser
completamente musical enquanto ele estiver cônscio de seu
corpo e daquilo que o rodeia (comparar com o Cap. 3,
p. 3 9 ). É outro exemplo da preciosidade que resulta
da teoria da arte estímulo-resposta — de tratar a arte
como uma maneira especial de “sentir” coisas que não
são, em si, diferentes das coisas que encontramos na vida
real. Não irei repetir aqui as objeções que já levantei contra
aquela abordagem psicológica 5, mas apenas apresentarei, aqui
como então, o que me parece ser uma concepção mais pro­
missora da obra de arte.
É moda entre os professores de poesia, hoje, começar
dizendo-nos que a palavra “poeta” significa “fazedor”.
Mas o que é que o escritor de uma poesia realmente faz? Um
arranjo de palavras não é mais criação do que o arranjo de

3. Ibid., p. 312-312.
4. Ibid., p. 317-318.
5. Ver Cap. 3. p. 39.
220 SENTIMENTO E FORMA

pratos sobre uma mesa. Algumas pessoas que percebem isso


decidem manter, não obstante, o termo e, consequentemente,
chamam todo ordenamento deliberado de elementos — pratos
sobre uma mesa, toalhas na prateleira, palavras num inven­
tário ou palavras num livro de poesia — de “criação.” Essa
prática vai bastante ao encontro da teoria pragmática de
que a poesia difere apenas “em grau” de qualquer outra
coisa da vida. Em grau de que? “Certas respostas”, “certas
integrações”, “certos valores” A ciência não progrediu o
suficiente para analisar mais a fundo essas certezas 6.
Se, entretanto, fizermos quanto à poesia as mesmas per­
guntas que levantei sobre as outras artes, as respostas de­
monstram ser exatamente paralelas àquelas referentes à
pintura ou à música ou à dança. O poeta usa o discurso para
criar uma ilusão, uma pura aparência, que é uma forma sim­
bólica não-discursiva. O sentimento expresso por essa forma
não é nem dele, nem de seu herói, nem nosso. É o significado
do símbolo. Pode ser que levemos algum tempo para perce-
cebê-lo, mas o símbolo expressa-o a todo momento e, nesse
sentido, o poema “existe” objetivamente sempre que nos é
apresentado, em vez de passar a existir apenas quando
alguém efetua “certas respostas integradas” ao que o poeta
está dizendo. Podemos dar uma olhada numa página e dizer
a nós mesmos quase imediatamente: “Eis um bom poema!”
Isto, ainda que a luz de uma lâmpada nua torne o apo­
sento horrendo, que os vizinhos estejam cozinhando re­
polho e que nossos sapatos estejam molhados7. Pois o
poema é essencialmente algo a ser percebido, e as percepções
são fortes experiências que normalmente podem atravessar a
“momentânea ordem trêmula em nossas mentes” resultante
de estímulos variados — sejam estes o conforto e o ar suave,
ou o frio e a tristeza e o repolho.
As perguntas iniciais, então, não são: “O que o poeta
está tentando dizer, e o que ele pretende que nós sintamos a
respeito?” Mas: “O que fez o poeta e como ele o fez?” Ele
produziu uma ilusão, tão completa e imediata quanto a ilusão
de espaço criada por alguns traços no papel, a dimensão de
tempo em uma melodia, o jogo de poderes erigido pelo pri­
meiro gesto de um dançarino. Ele produziu uma ilusão por
meio de palavras — palavras que têm som e sentido, pronún­
cias e grafias, formas dialéticas, palavras relacionadas ( “cog-
natas”) ; palavras com derivações e derivados, isto é, histórias

6. Cf. I. A. Rlchards, Principies o f Literary Criticism , especialmen­


te p. 226-227.
7. Comparar com a observaçfto de Clive Bell sobre reconhecer-
se uma pintura como boa com uma olhada, citada no Cap. 3, p. 35.
POESIS 221

e influências; palavras com significados arcaicos e modernos,


significados de gíria, significados metafóricos. Mas o que ele
cria não é um arranjo de palavras, pois as palavras são apenas
seus materiais, dos quais produz seus elementos poéticos. Os
elementos são o que ele desloca e equilibra, espalha ou
intensifica ou aumenta, a fim de compor um poema.
A maneira mais fácil, talvez, de entender que tipo de
coisa o poeta cria é considerar uma experiência bastante
trivial, que provavelmente todos têm uma vez ou outra: isto
é, ouvir como resposta a uma afirmação perfeitamente sincera
e verdadeira: “Isso soa tão horrível quando você o coloca as­
sim dessa maneira!” Ora, o fato referido na realidade não é
mais horrível por ser transmitido por um símbolo verbal do
que por outro; o fato simplesmente é o que é. Mas ele parece
mais horrível quando é enunciado de uma determinada manei­
ra. E o ouvinte não protesta “Isso é tão horrível quando você
o coloca assim”, mas “Isso soa tão horrível. . . ” Ou podemos
resumir o conteúdo de um discurso com completa fideli­
dade, meramente enunciando cada ponto com brevidade, e
depararmos com o comentário: “É claro, se você o coloca
assim, ele parece bobagem!” Novamente, o conteúdo de nosso
sumário, se for acurado, não será mais bobagem do que o
do discurso; mas ali, as proposições declaradas pareciam
maravilhosas, e na versão curta, seca, parecem ridículas.
O que é alterado no relato não é o fato ou crença ex­
pressado, mas a sua aparência. O mesmo evento pode parecer
de maneiras bem diferentes a duas pessoas que o experimen­
tam. As diferenças são indubitavelmente devidas a associa­
ções, atitudes, insights e outros fatores psicológicos que deter­
minam respostas totais integradas. Mas tais causas não podem
ser controladas por um poeta, uma vez que este não é um
psicólogo com experiência, que conhece o estado de ânimo
do leitor e que trabalha sobre este com a perícia de um
especialista em publicidade. As aparências de eventos em nos­
sas vidas reais são fragmentárias, transitórias e frequentemente
indefinidas, como a maioria de nossas experiências — como
o espaço em que nos movemos, o tempo que sentimos
passar, as forças humanas e desumanas que nos desafiam. A
tarefa do poeta é criar a aparência de “experiências”, a
semelhança de eventos vividos e sentidos, e organizá-los de
modo que constituam uma realidade pura e completamente
experimentada, uma peça de vida virtual.
A peça pode ser grande ou pequena — tão grande
como a Odisséia, ou tão pequena que compreenda apenas
um pequeno evento, como o ato de pensar-se um pensamento
ou a percepção de uma paisagem. Mas sua marca distintiva,
222 SENTIMENTO E FORMA

que a torna bem diferente de qualquer segmento real de vida,


é que os eventos nela são simplificados e, ao mesmo tempo,
avaliados e percebidos de maneira muito mais completa do
que a mistura de acontecimentos na história real de qualquer
pessoa. Não que também não possa existir uma mistura na
vida virtual; nada podería ser mais misturado do que, por
exemplo, as idéias e cenas em The Waste Land. Mas existe
propósito artístico em tal confusão, ela não é meramente
copiada de coisas que aconteceram, de fato, daquela maneira.
A experiência virtual criada a partir daquelas impressões mis­
turadas de modo muito hábil é uma visão plena e clara de
tiranias sociais, com todos os subtons de horror pessoal,
relutância, semi-enganos, e um fundo emocional para man­
ter unidos os variados itens em uma única ilusão de vida,
como um esquema de cores unifica todas as figuras de uma
pintura variegada dentro da esfera de seu espaço virtual.
Essa ilusão de vida é a ilusão primária de toda arte
poética. Ela é estabelecida, ao menos provisoriamente, pela
própria primeira sentença, que tem de desviar a atitude do lei­
tor ou do ouvinte do interesse pela conversação para o inte­
resse literário, isto é, da realidade para a ficção. Efe­
tuamos essa mudança com grande facilidade e de modo
muito mais frequente do que percebemos, mesmo em
meio a uma conversa; é preciso apenas dizer “conhece a his­
tória dos dois escoceses q u e .. . ” para fazer com que todos ao
alcance da voz suspendam a conversação real e prestem aten­
ção a “os” dois escoceses e “seus” absurdos. Piadas são uma
forma literária especial a que as pessoas prestam atenção sob
a espora do momento. As crianças escutam com a mesma dis­
posição estórias e versos, da mesma maneira como estão
sempre dispostas a ficar olhando figuras.
Neste capítulo, tratarei apenas da poesia, especialmente
a lírica, por várias razões: em primeiro lugar, a maioria
das pessoas pode sentir, mesmo que não possa explicar, a
diferença entre importe literal e importe artístico na poe­
sia lírica, de modo muito mais acentuado do que em outros
tipos de literatura; em segundo lugar, os materiais puramente
verbais — acentuação métrica, valores de vogais, rima, ali-
teração, etc. — são explorados com maior plenitude na
poesia do que na prosa, de maneira que a técnica de
escrever é visível de modo mais notável no verso e estu­
dado com maior facilidade nesse campo restrito; e, em terceiro
lugar, todas as formas de arte literária, inclusive a chamada
“não-ficção” dotada de valor artístico, pode ser compreendida
pela especialização e extensão de recursos poéticos. Todo
escrito ilustra os mesmos princípios criativos, e a diferença
POESIS 223

entre as grandes formas literárias, tais como verso e prosa,


é uma diferença de recursos usados na criação literária. Assim,
da mesma forma como desenvolvi o conceito de “espaço vir­
tual” primeiro com referência à arte pictórica unicamente8,
discutirei a ilusão de experiência, ou “vida virtual”, neste
capítulo, apenas em relação à poesia no sentido estrito. A
transição para a literatura em prosa é feita com grande facili­
dade, uma vez compreendido o princípio de criação poética.
A palavra “vida” é usada em dois sentidos gerais dis­
tintos, ignorando-se os muitos sentidos esotéricos ou espe­
ciais que possa;ter além daqueles: o sentido biológico, em
que “vida” é o funcionamento característico de organismos,
e opõe-se a “morte” ; e o sentido social, em que “vida” é
o que acontece, o que o organismo (ou, se se quiser, a alma)
encontra e com o que tem de lutar. Na primeira acepção, toda
arte tem o caráter de vida, porque toda obra precisa ter um
caráter orgânico 9, e geralmente faz sentido falar de seu “ritmo
fundamental”. Mas “vida” na segunda acepção, pertence de
maneira peculiar à arte poética, a saber, como sua ilusão
primária. A semelhança de acontecimentos experimentados,
a ilusão de vida, é estabelecida com a linha de abertura; o
leitor é confrontado imediatamente com uma ordem virtual
de experiências, que tem valores imediatamente aparentes,
sem quaisquer razões demonstráveis para os caracteres de bom
ou mau, de importância outrivialidade e mesmo os de na­
tural ou sobrenatural que parecem ter. Pois os eventos
ilusórios não possuem qualquer cerne de realidade que lhes
permita aparecer sob muitos aspectos. Eles possuem apenas
aqueles aspectos que lhes são dados na narrativa: são tão
terríveis, tão maravilhosos, tão simples, ou tão comoventes
quanto “soam”.
Tyger, tyger, burning bright
In the forests of the night —*

Imediatamente o “tigre” existe como um animal sobre­


natural, não uma fera a ser caçada e esfolada por espor­
tistas ingleses. Um tigre comum iria andar à espreita em uma
selva escura, não resplandecer nas “florestas da noite”. A
forma de expressar “florestas da noite” torna o lugar tão
irreal e simbólico quanto a própria criatura, porque a cons­
trução gramatical (nada mais!!) assimila as florestas à noite,
em vez de fazer da escuridão um atributo das florestas, como
o faria o bom senso, através da construção usual com adjeti­

8. Cf. Caps. 4 e 5.
9. Cf, Cap. 8, passim.
* "Tigre» tigre, resplandecendo/nas florestas da noite*'.
224 SENTIMENTO E FORMA

vos, “florestas escuras (ou tenebrosas)”. O “tigre” de Blake


não tem nascimento natural, nenhum hábito quotidiano; ele
é o “tigre” feito por Deus, com um coração de emoções sa­
tânicas e um cérebro mestre. O mistério da Natureza está
nele:
Did He who made the Lamb make thee?*

A visão de um tal tigre é uma experiência virtual, au­


mentada da primeira linha do poema até a última. Mas nada
pode ser aumentado a menos que as primeiras palavras do
poema efetuem o rompimento com o meio ambiente real do
leitor. Esse rompimento é o que torna qualquer condição
física, que não seja intensamente perturbadora, irrelevante
para a experiência poética. Seja qual possa ser nossa resposta
orgânica integrada, ela é uma resposta, não a cumulativos e
pequenos estímulos verbais — um avanço precariamente
sustentado por lembranças, associações, desejos inconscientes,
emoções — mas uma resposta a uma experiência virtual, for­
temente articulada, a um estímulo dominante. Não podemos
de maneira alguma notar e seguir nossas integrações psicoló­
gicas (o que me faz duvidar que a “ciência” consiga alguma
vez dar uma explicação interessante dos valores artísticos),
mas podemos traçar, com consideráveis detalhes, a feitura da
apresentação virtual, diante da qual diferentes pessoas têm di­
ferentes reações, mas que um número suficiente de pessoas
percebe essencialmente da mesma maneira, de modo a tomar
efetiva sua função simbólica.
Em um poema como “The Tyger”, a cativante irreali­
dade é tão evidente que o rompimento com a existência real
pode parecer algo especial, algo peculiar aos poemas mís­
ticos, que não pode, com justiça, ser erigido em princípio de
poesia enquanto tal. E quanto a poemas que estão próximos
à experiência comum, como os versos belos, concentrados,
escritos por antigos poetas chineses, mencionando lugares
reais e freqüentemente dirigidos a pessoas reais? Considere-se
as afirmações simples, precisas, deste pequeno poem a:10

A FAREWELL IN THE EVENING RAIN


To Li Ts3ao
Is it raining on the river all the way to Ch'u? —
The evening bell comes to us from Nan-king.
Your wet sail drags and is loath to be going
And shadowy birds are flying slow.

• “Aquolo quo foz o Cordeiro, foz a tl?”


10. Por WAl Yltw-wu, traduzido para o lnglôs por Witter Bynner.
POESIS 225

We cannot see the deep ocean-gate —


Only the boughs of Pu-kou, newly dripping.
Likewise, because of our great love,
There are threads of water on our faces*.
Mesmo na tradução, sem as convenções poéticas ori­
ginais da literatura chinesa (sejam elas quais forem), isso é
poesia, e não um relatório da partida de Li Ts’ao. Uma situa­
ção subjetiva completa é criada pelas coisas mencionadas;
mas tudo o que tem importância para o bom senso — para
onde o amigo está indo, a que distância, por que ou com
quem — é radicalmente omitido. A chuva no rio, nas velas,
nas ramagens que obstruem o caminho, finalmente transfor­
ma-se num fluxo de lágrimas. Ela é introduzida em todo o
poema, aproximadamente a cada duas linhas, de modo que
os outros itens — o sino, os pássaros sombrios, o portal
invisível do oceano — fundem-se com ela, e lhe são conse-
qüentemente reunidos no grande amor pelo qual todo o
poema está chorando. Além do mais, esses acontecimentos
locais, aparentemente casuais, entremeados entre as linhas
sobre a chuva são, todos, símbolos do vínculo que torna a
despedida dolorosa. Nan-king está chamando; a vela está
pesada, velejar é difícil; os pássaros, que estão indo embora,
são lentos, e são sombrios — A Sombra; o “profundo por­
tal do oceano”, o lugar maior que é o próximo destino de
Li Ts’ao, não podem ser vistos por causa do lugar próximo,
precioso, “as ramagens de Pu-kou”, obstruindo todo interesse
na aventura. E, assim, a descrição aparentemente simples é
elevada até à confissão de sentimentos humanos, que é trata­
da, através de um toque magistral de obliquidade, como um
mero símile dos eventos exteriores que na realidade servem
apenas para prepará-la:
Da mesma forma, por causa de nosso grande amor,
Há fios de água em nossas faces.

“Nós”, e a chuva, o rio, a despedida, os movimentos e


sons e a hora do dia são os elementos poéticos criados por
palavras apenas, por serem mencionados. O lugar e o inci­
dente assumem seu caráter tanto graças ao que é deixado
de fora quanto ao que é dito. Tudo no poema possui caráter
duplo: cada item é, ao mesmo tempo, um detalhe de um
acontecimento virtual perfeitamente convincente, e um fator

* UM ADEUS NA CHUVA DO ANOITECER. Para Li Ts’ao. “Está


chovendo sobre o rio todo o caminho até Ch‘u?.../ O sino vespertino
chega até nós de Nan-king./ Tua vela molhada arrasta-se e reluta
em ir embora/ e pássaros indlstintOB estão voando devagar./ Não
podemos ver o profundo portal do oceano.../ Apenas as ramagens
de Pu-kou» recém-gotejantes./ Da mesma forma, por causa de nosso
grande amor,/ Há fios de água em nossas faces'*.
226 SENTIMENTO E FORMA

emocional. Não existe nada na estrutura inteira que não


tenha seu valor emocional, e nada que não contribua para a
ilusão de uma situação humana definida e (neste caso) fami­
liar. Essa ilusão não seria ajudada em nada por conhecimen­
tos adicionais — pela familiaridade real com o lugar mencio­
nado, por mais informações sobre a carreira ou personalidade
de Li Ts’ao, ou por notas ao pé da página sobre a autoria do
poema e sobre as circunstâncias em que foi composto. Tais
acréscimos adicionais iriam apenas embaralhar a imagem
poética de vida com itens irrelevantes — irrelevantes porque
não brotam do princípio de organização pelo qual a ilusão
é forjada: que todo elemento na ação é também uma
expressão do sentimento envolvido na ação, de maneira que o
poeta cria eventos de um modo psicológico, mais do que
como um trecho de história objetiva.
Esse caráter experiencial dos eventos virtuais tom a o
“mundo” de uma obra poética mais intensamente significa­
tivo do que o mundo real, no qual fatos de segunda mão, não
relacionados com a existência pessoal, sempre formam a ar­
mação, de maneira que a orientação no mundo é um grande
problema. Numa estrutura literária, as dramatis personae
podem estar desorientadas, mas o leitor não está; mesmo o
mundo de imposturas e futilidades de T. S. Eliot, que des­
concerta J. Alfred Prufrock, apresenta um caráter perfeita-
mente definido — desolador, talvez, mas não confuso — para
o leitor. Se o leitor não pode apreender o “mundo” apresenta­
do, há algo de errado com o poema ou com a compreensão
literária do leitor.
O mundo virtual em que se desenvolvem os eventos
poéticos é sempre peculiar à obra; é a ilusão determinada de
vida que aqueles eventos criam, como o espaço virtual de
uma pintura é o espaço determinado das formas dentro dele.
Para ser coerente em termos de imaginação, o “mundo” de
um poema deve ser formado de eventos que estejam no modo
imaginativo — o modo de expressão ingênua, em que ação
e sentimento, valor sensorial e valor moral, conexão causai
e conexão simbólica, ainda permanecem indivisos. Pois a
ilusão primária da literatura, a semelhança de vida, é abstraí­
da da vida pessoal, imediata, como as ilusões primárias de
outras artes — espaço, tempo e poder virtuais — são imagens
de espaço percebido, tempo vital, poder sentido.
Acontecimentos virtuais são a abstração básica da lite­
ratura, por meio da qual a ilusão de vida é formada e man­
tida e recebe formas específicas, articuladas. Um pequeno
acontecimento pode preencher todo um poema, desdobrando
seus detalhes na estrutura simplificada, isolante, de uma rea­
POESIS 227

lidade puramente poética. Esse é o princípio sobre o qual


alguns poemas líricos elizabethanos são feitos de materiais
temáticos que, na realidade, são triviais. Considere-se a
pequenez e mesmo a banalidade da afirmação real contida
em “Delight in Disorder” de Herrick. Ele prefere um ar
casual na vestimenta feminina ao asseio e cuidado. Será essa
uma afirmação que vale ser preservada por mais de tre­
zentos anos? Enquanto afirmação fatual — como os pedaços
de informação inseridos nos jornais para preencher pequenos
espaços — certamente que não. Mas o que Herrick fez
com isso? Um evento psicológico: a ocorrência e a passagem
de um pensamento. Imediatamente o tema toma vida. O
pensamento começa com a contemplação do efeito geral e
sua fonte:
A sweet disorder in the dress
Kindles in clothes a wantonness:*
Já as primeiras palavras, “sweet disorder” (“doce desordem” ),
efetuam o rompimento com a realidade porque expri­
mem uma avaliação extraordinária, de maneira tão casual
como se se pudesse esperar que todos a compartilhassem. E
no mesmo alento a doçura é explicada: tal desordem é ator-
mentadora. A palavra “kindles” (“inflama” ) conta a estória
toda. Diz-se que a libertinagem é “inflamada” nas roupas; isso
mantém toda a fantasia amorosa, a paixão inflamada no cava­
lheiro pelo desleixo da dama, em um plano superficial de ga-
lanteios; especulando, ele a passa em revista da cabeça aos
pés:
A lawn about the shoulders thrown
Into a fine distraction:
An crring lace, which here and there
Enthralls the crixnson stomacher:
A cuff neglectful, and thereby
Ribbands to flow confusedly:
A winning wave (deserving note)
In the tempestuous petticoat:
A careless shoestring, in whose tie
I see a wild civility:
Do more bewitch me, than when art
Is too precise in every part. **
As duas últimas linhas expressam seu juízo ponderado,
e o pensamento está terminado. De seu extravagante começo

* “Uma doce desordem no vestido/ Inflama, nas roupas, uma


libertinagem:'*
** “Um xale fino em tomo dos ombros jogado/ Em agradável dis­
tração:/ Um laço errante, que aqui e ali/ Cativa o corpete carmesim:/
Um punho negligente, e perto/ Fitas a fluir confusamente:/ Uma
ondulação atraente (merecedora de nota)/ Na anágua Impetuosa:/
Um cordão de sapato descuidado, em cujo laço/ Vejo uma polidez
incivilizada:/ Mais me encantam do que quando a arte/ Ê precisa
demais em toda parte.”
228 SENTIMENTO E FORMA

à conclusão sincera, é um devaneio galanteador; os dísticos


de versos completamente regulares, regulares mesmo quanto
à igualdade de pontuação, fornecem um fundo de decoro ao
erradio e fascinante, à confusão, atração, impetuosidade
e negligência das roupas, que dá ao jogo óbvio de duplo
sentido um ar de sofisticada perversidade. A forma do
poema expressa a tacitamente aceita moldura das meditações
do cavalheiro, que é muito convencional — um padrão
regular, estrito de salvaguardas sociais, onde é possível dar-se
ao luxo de ficar-se intrigado n .
Ora, toda essa análise não pretende ser um exercício de
Nova Crítica, porém meramente mostrar que toda poesia é
uma criação de eventos ilusórios, mesmo quando ela parece ser
uma declaração de opiniões, filosóficas, políticas ou estéti­
cas. O aparecimento de um pensamento é um evento na his­
tória pessoal de um pensador, e tem um caráter qualitativo tão
distinto quanto uma aventura, uma vista ou um contato hu­
mano; não é uma proposição, mas a contemplação de
uma, que necessariamente envolve tensões vitais, sentimen­
tos, a iminência de outros pensamentos e os ecos dos
pensamentos passados. Reflexões poéticas, portanto, não
são essencialmente sequências de raciocínios lógicos, embora
possam incorporar fragmentos, pelo menos, de argumentos
discursivos. Essencialmente elas criam a semelhança de racio­
cínio; da seriedade, ansiedade e progresso, a sensação de
conhecimentos que crescem, a crescente claridade, convicção
e aceitação — toda a experiência do pensamento filosófico.
Ê claro que um poeta geralmente constrói um poema
filosófico em torno de uma idéia que o impressiona, na época,
como verdadeira e importante; mas não com a finalidade de1

11. O Proí. P. W . Bateson, em English Poetry and the English


Language, afirma que esse poema, "ao Invés de ser o mero jeu d’esprit
que parecería Ber, é essenclalmente uma defesa do paganismo”. Sinto
multo não poder concordar com essa lnterpretaçôo moral. Não con­
sigo encontrar qualquer antipurltanlsmo, nem qualquer antl-qualquer
coisa; a precisão a que o cavalheiro levanta objeções não é o casto
asseio de donzelas puritanas mas, sim, & "arte”, destinada a encantar,
e sua acusação é que ela deixa de fazê-lo. O uso de "arte” não é
aquilo contra o que ele levanta objeções; a verdadeira naturaUdade da
“Lucy” de Wordsworth não o empolgaria em absoluto. Pica entendido
que a dama tenta catlvã-lo, e ele observa galantemente "Uma ondu­
lação atraente (merecedora de n o ta )...” Só um acidente Intencional
merece ser notado.
Um poema que é essencialmente uma defesa de algo deveria por certo
expressar seu pathos em algum lugar, por mais sutilmente que fosse. Mas
não hã qualquer protesto social neste poema, nem mesmo um Titmo
rebelde; um leitor que não soubesse que o poeta escreveu em épocas
puritanas, Jamais adivinharia pelo poema que deveria ter existido
alguma circunstância opressiva desse gênero. Mas significados e mo­
tivos que apenas a erudição histórica pode fornecer não acrescentam
nada aos eventos poéticos ou à sua significação poética. O elocutor
no poema não estã defendendo liberdades, ele as toma, ainda que
seja na forma segura de reflexões; e o poema em sl não é uma
defesa moral, mas "uma agradável distração”.
POESIS 229

debatê-la. Ele a aceita e exibe seu valor emocional e possi­


bilidades imaginativas. Considere-se a doutrina platônica da
memória transcendental na “Ode: Intimations of Immortali-
ty” de Wordsworth: não há argumentos a favor ou contra,
nem dúvidas e provas, mas, essencialmente, a experiência de
ter uma idéia tão grande — a excitação que ela traz, a vene­
ração, o tom de sagrado que ela confere à infância, a expli­
cação dos crescentes lugares-comuns da vida posterior, a
aceitação resignada de uma introvisão. Mas citar Wordsworth
como o proponente de uma teoria filosófica da boa fé é um
erro; pois ele não podería e não teria elaborado e defendido
sua posição. A doutrina platônica com que o poema o com­
promete é na realidade rejeitada pela Igreja cujos ensinamen­
tos professava. Como ele a apresenta na Ode, entretanto, ela
não tem nada a ver com qualquer outra teologia; ela não vai
além do poema. Poucas pessoas que admiram o poema sen­
tem-se realmente persuadidas a crer numa existência anterior,
e não há, nele, realmente, qualquer profecia de uma vida
posterior, exceto por implicação em linhas esparsas:
Thou, over whom thy Immortality
Broods like the D a y . .. *
ou:
Our Souls have sight of that immortal sea
Which brought us hither.. .**
A estrutura lógica do pensamento é na realidade muito
frouxa; contudo, a composição inteira soa como um trecho
de raciocínio metafísico, e a semelhança de idéias originais
ocorrendo em um ambiente muito pouco acadêmico dá-lhe
uma peculiar profundidade, que é, na realidade, profundidade
de experiência, mais do que profundidade de intelecto.
Pensar é parte de nossa atividade instintiva — a parte
mais humana, emocional e individual. Mas esse talento alta­
mente pessoal é também nossa resposta mais inequivoca­
mente social, pois se acha tão intimamente vinculado à lin­
guagem que a meditação é inseparável das maneiras de
falar; e não importa quão originais possamos ser em nosso
uso da linguagem, a prática em si é uma herança puramente
social12. O pensamento discursivo, porém, tão profunda­
mente enraizado na linguagem e, destarte, na sociedade e em
sua história, é, por sua vez, o molde de nossa experiência
individual. Observamos e temos em mente essencialmente o

* "Tu, sobre quem tua Imortalidade/ Medita como o Dia..


** “Nossas Almas têm uma vista daquele mar imortal/ Que nos
trouxe aq u i...’*
12. Considerações mais detalhadas sobre a linguagem podem ser
encontradas em Nova Chave , Cap. 5.
230 SENTIMENTO E FORMA

que é “falável”. O inefável pode imiscuir-se em nossa cons­


ciência, mas é sempre algo como um hóspede temeroso, e nós
o admitimos ou recusamos, de acordo com nosso tempera­
mento, com uma sensação de mistério. A formulação do
pensamento pela linguagem, que faz de toda pessoa um
membro de uma determinada sociedade, envolve-a mais pro­
fundamente com sua própria gente do que podería fazer qual­
quer “atitude social” ou “comunidade de interesses” ; pois esse
vínculo mental original engloba o ermitão, o fora-da-lei soli­
tário, o excomungado, tão seguramente quanto o cidadão mais
perfeitamente ajustado. Seja qual for o fato em bruto, nossa
experiência a seu respeito traz a marca da linguagem.
Em eventos poéticos, o elemento do fato em bruto é
ilusório; a marca da linguagem é que faz tudo, ela cria o
“fato” . É por isso que peculiaridades de linguagem — fra­
seologia litúrgica, arcaísmo, infantilismos13 — são recursos
poéticos, e porque a poesia dialetal é uma forma literária
distinta. O dialeto traduz um modo de pensamento que entra
nos próprios eventos encontrados ou contemplados no poema.
Burns provavelmente não podería ter-se dirigido ou mesmo
notado o rato do campo* no inglês castiço, sem tornar suas
reflexões ligeiramente ridículas ou sentimentais. A linguagem
do granjeiro mantém o incidente na moldura quotidiana de
terra e milho, de sachadura e colheita, uma vida tão pró­
xima do solo que o homem está fazendo com suas ferra­
mentas e sua parelha aquilo que o rato faz ao roer e levar
embora. O apuro do rato é um desastre rural comum, e
ninguém podería avaliá-lo melhor do que o granjeiro: “tha
maun live”. A realidade do paralelo com sua própria depen­
dência do mesmo milho é realçada pelo dialeto, que funde
toda a experiência no molde de uma mente familiarizada com
problemas do inverno.
O dialeto é um instrumento literário valioso, que pode
ser empregado de maneira mais sutil do que escrever direta­
mente em seu vocabulário; pois ele se esmaece imperceptivel-
mente no uso coloquial de palavras, giros de expressão
que refletem pensamentos estranhos, mais do que em hábitos
de linguagem fixos. Walter de la Mare, por exemplo, usa todas
as gradações de inglês formal e vernacular na pequena peça
de fadas chamada “Berries” (“Bagas” ):
There was an old woman
Went blackberry picking
Along the hedges
From Weep to Wicking .
13. Por exemplo, a expressfio "et» VetoeraU" em "Der Idlot” de
Rainer Maria RlUce*
* Fielâ Mouse, organaz.
POESIS 231

Half a pottle —
No more she had got,
When out steps a Fairy
From her green grot;
And says, “Weil, Jill,
Would ‘ee pick fee mo?”
And Jill, she curtseys,
And looks just so.
“Be off” , says the Fairy,
“As quick as you can,
Over the meadows
To the little green lane,
That dips to the hayfields
Of Farmer Grimes:
IVe berried those hedges
A score of times;
Bnshel on bushel
Fll promise ‘ee, Jill,
This side of supper
If fee pick with a will” .
She glints very bright,
And speaks her fair
Then lo, and behold!
She had faded in air. *
(Jill corre para o caminho e encontra as sebes, que brilham
“como o caramanchão de William e Mary”, e colhe tanto
quanto pode carregar.)
When she comes in the dusk
To her cottage door,
Theres*s Towser wagging
As never before,
To see his Missns
So glad to be
Come from her frait-picking
Back to he.
As soon as next moming
Dawn was grey,
The pot on the hob
Was simmering away;
And all in a stew
And a hugger-mugger
Towser and Jill
A-boiling of sugar,
And he dark clear fruit
That from Faêrie carne,
For syrup and jelly
And blackberry jam.

* Ezn tradução livre: “Havia uma velha/ Que íol catar amoras/
Ao longo das sebes/ De Weep até Wlcking./ Melo cestlnho.../ Nada
mais ela tinha/ Eis quando surge uma Fada/ De sua gruta verde;/ E
diz, *Bem Jill/ Quer pegar mais?’/ E Jill, faz uma reverência,/
E fica assim./‘Vá*, diz a Fada,/ ‘Tão depressa quanto puder,/ Pelos
prados/ Até o pequeno caminho verde,/ Que vai aos campos de feno/
Do Granjeiro Grimes:/ J& catei amoras naquelas sebes/ Uma vintena
de vezes;/ Alqueire sobre alqueire/ EU lhe garanto, Jill,/ Esta parte da
cela/ Se catar com vontade// Ela brilha radiante,/ E fala belas pala­
vras;/ Então, veja!/ Ela desapareceu no ar” .
232 SENTIMENTO E FORMA

Twelve jolly gallipots


Jill put by;
And one little teeny one,
One inch high;
And that she*s hidden
A good thumb deep,
Half way over
From Wicking to Weep. *
A dicção nesse poema é mantida num nível razoável
de discurso literário enquanto os eventos são realistas, e cai
para o dialeto quando são essencialmente produtos da
mente da velha Goodie. A Fada, no primeiro momento de
espanto, fala em vernáculo, e seu desaparecimento, embora
descrito impessoalmente pelo poeta, ainda está na lingua­
gem de Jill:
She glints very bright
And speaks her fair. . .**
É isso que dá o caráter caprichoso ainda que pouco ex­
travagante, ao poema. O verdadeiro toque de gênio, entre­
tanto, é a narração objetiva do pensamento do cachorro com
uma distorção gramatical popular:
To see his Missus
So glad to be
Come from her fruit-picking
Back to he.***

O que o cachorro “pensa” é, afinal, a interpretação que ela


faz do ato de ele abanar a cauda: “Sim, Jill voltou, Jill voltou!
Sim, sim, ela está contente de voltar para junto dele!” E o
poeta eleva esse pensamento, condensado mas imperturbado,
ao nível de fato objetivo simplesmente através da construção
de sua narrativa.
Aqui chegamos ao princípio de criação poética: eventos
virtuais são qualitativos em sua própria constituição — os
“fatos” não têm existência à parte dos valores; seu importe
emocional é parte de sua aparência; eles não podem,

* ''Quando ela vem ao anoitecer/ Até a porta de sua cabana,/


Lã está Towser abanando a cauda/ Oomo jamais o fez antes./ De
ver sua Patroa/ Táo contente/ Vir da coleta de frutas/ Voltar
para junto dele./ Tâo logo na manhã seguinte/ A alva ficou cinza./ O
pote no fogão/ Já fervia no fogo lento;/ E no calor/ E na agitação/
Towser e Jill/ Fervendo açúcar,/ E a escura fruta clara/ Que velo do
Reino das Fadas,/ Para xarope e geléia/ E geléia de amoras./ Doze Jazros/
Jill preparou;/ B um pequenininho,/ De uma polegada de altura;/ E
esse ela escondeu/ A um bom polegar de pronfundldade,/ No meio do
caminho/ Entre Wicking e Weep".
** "Ela brilha radiante
E diz belas palavras...*’
••• "De ver sua Patroa
T&o contente
Vir da coleta de frutas
Voltar para junto dele.*'
POESIS 233

portanto, ser enunciados e, depois, “sofrer uma reação”.


Ocorrem apenas como parecem — eles são fatos poéticos,
não fatos neutros em relação aos quais somos convidados a
tomar uma atitude poética.
Existe um livro de E.M.W. Tillyard, intitulado Poetry,
Direct and Oblique, que propõe a tese de que há dois tipos
distintos de poesia: a direta, ou “poesia de enunciações” que
simplesmente enuncia as idéias que o poeta deseja transmitir,
e a “poesia da obliqiiidade” indireta, que não enuncia, em
absoluto, suas idéias mais importantes, mas as sugere ou im­
plica por relações sutis entre as enunciações aparente­
mente triviais que ele de fato faz, e pelo ritmo, imagens,
referências, metáforas e outros elementos que nelas ocor­
rem. O livro está cheio de reflexões interessantes sobre
retórica, mito, personagem, materiais temáticos e procedi­
mento literário; em suma, é um livro muito bom. Contudo,
penso que sua tese principal é, se não falsa, pelo menos fora
de ordem. A distinção entre “poesia de enunciações” e “poe­
sia de obliqiiidade” é bastante justa, mas baseia-se numa
diferença de meios técnicos, mais do que na excelência poética
e, consequentemente, não é tão profunda quanto supõe o Prof.
Tillyard; e sua explicação dos significados “oblíquos” quase
cancela a compreensão dos significados poéticos enquanto
tais, o que provavelmente inspirou toda sua análise.
Significados “oblíquos” são aquilo que DeWitt Parker
chamava de “significados profundos”, a serem lidos “nas en­
trelinhas” 14. Tillyard ilustra esse conceito com a comparação
de dois poemas sobre, essencialmente, o mesmo tópico, “The
Deserted Village” de Goldsmith e “The Echoing Green” de
Blake. O poema de Goldsmith é um poema longo, do qual
ele cita apenas a porção que descreve a aldeia; terei mais a
dizer quanto à interpretação que ele dá ao poema um pouco
mais tarde e, portanto, omitirei a questão aqui. Mas o poema
de Blake pode ser citado em sua totalidade:

THE ECHOING GREEN


The sun does arise,
And make happy the skies;
The merry bells ring
T o welcome the Spring;
The skylark and thrnsh,
The birds of the bush,
Sing louder around
To the bells’ cheetful sound,
While our sports shall be seen
On the Echoing Green.

14. The Principies of Aesthetics, especlalmente na p. 32


234 SENTIMENTO E FORMA

Old John, with whitie hair,


Does laugh away care,
Sitting under the oak,
Among the old folk.
They laugh at our play,
And soon they all say:
"Such, such were the joys
When we all, girls and boys,
In our youth time were seen
On the Echoing Green” .
TilI the little ones, weary,
No more can be merry;
The sun does descend,
And our sports have an end.
Round the laps of their mothers
Many sisters and brothers,
Like birds in their nest,
Are ready for rest,
And sport no more seen
On the darkening Green.*
Goldsmith, alega o Prof. Tillyard, “quer que o leitor
pense fundamentalmente em aldeias quando ele fala de
A ubum .(. . . ) Acreditamos nisso porque as partes formais da
poesia reforçam a afirmação, mais do que sugerem pensa­
mentos estranhos a ela. Os dísticos desenvolvem-se numa
simples seqüência explicativa; revelam a cena sem qual­
quer insinuação de sentido ulterior; seu frescor e desimpedi-
mento são os do claro dia de sol que descrevem’*15. Sobre
“The Echoing Green”, por outro lado, ele diz:
Acredito que Blake nesse poema esteja expressando uma idéia
uma idéia que em si não tem nada a ver com pássaros, gente velha
ou moça, ou gramados de aldeia, e uma das mais comuns nas obras
poéticas de Blake. É a idéia de que há virtude no desejo satisfeito.
Embora o desejo não seja mencionado, a idéia predominante do poema
é fruição. ( . . . ) O poema dá a sensação da maça perfeitamente
madura que se desprende a um toque da mão. Ele expressa a
profunda paz, o desejo completamente satisfeito. ( . . . )
Assim explicado, “The Echoing Green" é um exemplo tão per­
feito de obliqüidade poética quanto pode ser encontrado. ( . . . ) A
idéia abstrata, longe de ser enunciada, foi traduzida numa forma
completamente concreta; ela desapareceu dentro de fatos aparente­
* O GRAMADO ECOANTE. “O sol se levanta,/ E torna os céus
alegres;/ Os alegres sinos tocam/ Para receber a Primavera;/ A cotovia
e o tordo/ Os pássaros da mata,/ Cantam malB alto em derredor/ Ao
som alegre dos sinos,/ Enquanto nossas diversões serão vistas/ No Gra­
mado^ Ecoante.
O Velho John, com cabelos brancos,/ RI sem preocupações,/ Sen­
tado sob o carvalho,/ Entre os velhos. / Eles riem de nossos jogos,/
E logo todos dizem:/ ‘Essas, essas eram alegrias/ Quando todos
nõs, meninos e meninas,/ Éramos vistos em nossa juventude/ No
Gramado Ecoante*.
Até quo os pequenos, cansados,/ Não podem mais estar alegres;/
O sol se põe,/ E nossas diversões têm um fim./ No colo de suas mães/
Muitos Irmãos e Irmãs,/ Oomo pássaros em seus ninhos,/ Estão pron­
tos para o descanso,/ E no mais é visto esporte/ No Gramado turvante.”
15. Poctry Dircct and Oblique, p. 8.
POESIS 235

mente estranhos. Por sua grande obliqüidade, T h e Echoing Green"


está numa categoria diferente da linha de Goldsmith e deve ser
julgado por padrões diferentes^.
Admitida a interpretação de que há virtude no desejo satisfeito,
pode-se dizer que o poema exprime um grande lugar-comum humano,
e um dos que, na época de Blake, mais do que na nossa, exigia
especialmente expressão#.
O que o Prof. Tillyard está obviamente (e corretamente)
procurando é a significação do importe poético da peça; mas o
que ele encontra, para nós? Uma moral, que consegue expor
em seis palavras; uma proposição, a ser aceita pelos humanis­
tas e rejeitada pelos seguidores de cultos mais ascéticos. Não
há nada acerca de um tão “grande lugar-comum’5 que elida,
em princípio, a apreensão da linguagem discursiva; pode ser,
como ele sugere, que “provavelmente nenhuma enunciação
direta do mesmo tenha peso”, que “precisamos que o elocutor
fale sobre o mais das coisas antes de dizer aquilo que mais
tem a dizer”, e que “podemos até proferir a obliqüidade su­
prema que consiste em omitir inteiramente o que tem
a dizer, e dizê-lo implicitamente através de um pa­
drão elaborado de aparentes irrelevâncias” 16718. Mas o fato
continua sendo que o “grande lugar-comum” é uma moral,
uma verdade que poderia ser enunciada. O proprio Blake fez
uma afirmação direta disso:
Abstinance sows sand all over
The ruddy limbs and flaming hair,
But Desire Gratified
Plants fruits of life and beauty there*.

Contudo, ao analisar “The Echoing Green”, o Prof.


Tillyard encontrou o “cerne emocional” do poema, o qual
provavelmente reconheceu de modo intuitivo na primeira leitu­
ra; pois declara que o poema tanto o repelia quanto o fascina­
va — repelia, porque ele achava que era uma mera descri­
ção de um gramado de aldeia, e fascinava, ele não sabia
por que até que descobriu sua “obliqüidade”19. E, ao sali­
entar a suposta moral, menciona aquilo que, a meu ver, é
o verdadeiro significado, o sentimento desenvolvido e reve­
lado na pequena obra: “A tônica do poema é a fruição”.
Fruição é o próprio processo de vida, e a experiência direta
dela é a harmonia mais profunda que podemos sentir. Essa
experiência é o que o poema cria em três curtas estrofes, pelos
16. Ibid.t p. 11-12.
17. Ibid., p. 25.
18. Ibid., p. 28.
+ “A abstinência semeia areia por todos/ Os membros corados
e o cabelo flamejante,/ Mas o Desejo Satisfeito/ Planta frutas de
vida e beleza all” .
19. Ibid., p. 10-11.
236 SENTIMENTO E FORMA

dispositivos para os quais chamou a atenção, e alguns que


ele deixou passar. O desejo gratificado é apenas o fim
dessa experiência; o desejo em si, toda a alegria de co­
meçar, liberdade, força, depois simples resistência, e final­
mente o cansaço e o escuro, sustentados em uma visão
intensiva da humanidade em jogo, são todos igualmente
importantes na criação do símbolo da vida integralmente
vivida. Essa integridade é sentida; e o progresso e o élan
peculiar a esse sentimento é a abstração que a forma poética
efetua. Mas esse mesmo padrão emocional reluz através de
muitas experiências e em muitos níveis de vida, como em ge­
ral procedem os padrões emocionais; é por isso que um ver­
dadeiro símbolo artístico sempre parece apontar para outros
fenômenos concretos, reais ou virtuais, e ser empobrecido pela
atribuição de qualquer significação — quer dizer, pela con­
sumação lógica da relação de sentido.
Ao ler, no poema, um “grande lugar-comum”, o Prof.
Tillyard tem de passar por cima de alguns de seus mais vigo­
rosos elementos; por exemplo o título, que é parte integral
da peça. Um gramado de aldeia geralmente é plano e aberto,
estando as casas muito longe, no fundo, para produzir ecos
perceptíveis. Mas o uso que Blake faz de “ecoante” não é
descritivo, é o oposto; vai contra a planura e a abertura do
gramado comum, e mantém coesa sua imagem de vida, como
que dentro de uma moldura invisível. O “eco” na realidade é
o da história de vida que se repete — os velhos rindo dos
jovens e lembrando-se de sua própria juventude, os jovens
voltando a uma geração anterior — “No colo de suas mães,
muitos irmãos e irmãs. . . ” e há um outro nível de vida
“ecoante” — uma forma de vida sendo tipificada em outra:
as crianças “como pássaros em seus ninhos”, e as pessoas de
idade reunidas sob o carvalho. Penso que aqui o Prof.
Tillyard deixou de perceber uma trica, quando disse: “Por
que na segunda (estrofe) o velho John está sentado em baixo
do carvalho? Para evitar o sol do meio-dia”. É verdade, é
meio-dia na segunda estrofe, mas isso é mais sugerido pelo
fato de os folguedos das crianças estarem no auge, do
que por qualquer função da árvore. O carvalho é a árvore
de sombra que tarda mais em perder suas folhas, e quando
“Os alegres sinos soam para receber a Primavera”, esta árvore
na verdade ainda estaria desfolhado. O carvalho, porém, é um
símbolo tradicional e “natural” de vida duradoura — a
árvore dos velhos. Mesmo o verso “O velho John com cabelos
brancos” alcança esse entremeado de idade e juventude, pois
“John” significa “O Moço”, e Blake era suficientemente
versado no Novo Testamento para ligar a idéia do Discípulo
Mais Jovem ao nome. A prevalência deste como um nome
POESIS 237

na vida de aldeias inglesas deu a Blake a oportunidade


para uma sutil escolha.
Pode-se prosseguir quase que de palavra em palavra
nesse poema, seguindo a construção de uma forma artística
que é completamente orgânica e, portanto, capaz de articular
os grandes ritmos vitais e seus harmônicos e sugestões
emocionais. O que uma tal forma simbólica apresenta não
pode ser expressa em termos literais, porque a lógica da
linguagem não nos permite conceber a penetrante ambiva­
lência que é característica do sentimento humano. O Prof.
Tillyard fala da “primordial Alegria-Melancolia” 20; e indicar
tal sentimento por um nome paradoxal é aproximadamente
tudo o que a filosofia pode fazer com o fato.
Se a poesia fosse essencialmente um meio de exprimir
idéias discursivas, quer diretamente, quer por referência im­
plícita, estaria relacionada mais intimamente com a metafísica,
lógica e matemática do que com qualquer das artes. Mas as
proposições — estruturas básicas do discurso, que formulam
e transmitem “discursivamente” opiniões verdadeiras ou falsas
— são apenas materiais de poesia. O que o Prof. Tillyard
chama de “poesia de enunciação” é poesia que não usa quais­
quer proposições meramente implícitas; mas usa, é claro,
outros recursos para criar a ilusão de vida. Quando arrola a
pura sensibilidade entre os significados transmitidos pela
“enumeração oblíqua”21, “obliquidade” parece significar sim­
plesmente a posse de importe vital de alguma espécie. Con­
tudo qualquer coleção de versos que não seja “oblíqua” nesse
sentido não é poesia. Tillyard percebe essa fraqueza básica
de sua distinção entre poesia “oblíqua” e “direta”, mas de­
fende seu valor pragmático enquanto princípio de crítica22.
O que ele não percebe é que toda a dificuldade surge do fato
de ele tratar a poesia como um conjunto de declarações e
não como uma aparência criada, uma tessitura de eventos
virtuais.
Se, entretanto, perguntarmos como a ilusão primária
é estabelecida e mantida, quais elementos poéticos são
criados, e como estes são desdobrados, não teremos de lançar
mão de quaisquer contrastes ou classificações artificiais a
fim de compreender a diferença entre Blake e Goldsmith,
Wordsworth e Pope, e julgar seus respectivos poemas com
20. Ibid., p. 44 e ss.
21. I b i d p. 18 e ss.
22. “Finalmente, seria melhor que eu confessasse umía fraude
deliberada. Os termos poesia 'direta’ e 'obliqua* sfio um falso con­
traste. Toda poesia é mais ou menos obliqua: não há poesia direta.
Mas ( . . . ) a única maneira de ser enfático ou mesmo Inteligível em
termos gerais é através da fraude e do exagero a fim de forçar um
contraste hipotético e convencional** ( Op. c it ., p. 5). Infelizmente, a
falta de exatidão não faz com que uma afirmação se torne "hipotética**.
238 SENTIMENTO E FORMA

um só padrão, fazendo no entanto justiça a suas diferenças


de intenção,
A poesia cria uma “vida” virtual ou, como algumas vezes
se diz, “um mundo próprio”, Essa frase não é inteira­
mente feliz porque sugere a noção tão familiar de “fuga da
realidade” ; mas um mundo criado como uma imagem artís­
tica nos é dado para ser olhado, não para se viver nele e,
nesse ponto, é radicalmente diferente do “mundo particular”
do neurótico. Em virtude da associação malsã, entretanto,
prefiro falar de “vida virtual”, embora algumas vezes possa
usar a frase “o mundo do poema” para referir-me à ilusão
primária da maneira como ela ocorrre em uma determinada
obra.
Depois de tudo no sentido que tem sido escrito de
que o conteúdo literal de um poemã não é seu importe real,
o recurso a uma teoria de poesia mesmo “relativamente
direta” e de um padrão especial para julgá-la de acordo com
ela, parece um empreendimento estranho para uma mente
verdadeiramente literária; se declarações diretas ocorrem em
um bom poema, seu caráter direto é um meio de criar
uma experiência virtual, uma forma não-discursiva que ex­
pressa um tipo especial de emoção ou sensibilidade; quer di­
zer, o uso delas é poético, mesmo que sejam afirmações ma­
nifestas de fatos. Para pegar o touro pelos chifres, ilustrarei
o meu ponto de vista com o próprio poema que o Prof. Til-
lyard aduz como o exemplo de “poesia direta”, que suposta­
mente não tem qualquer (ou quase qualquer) missão além
de veicular as idéias que suas sentenças enunciam. O exemplo
dele é o antigo hino:
Stabat mater dolorosa
iuxta crucem lacrimosa
dum pendebat filius;
cuius animam gementem
contristatem et dolentem
pertransivit gladius.
O quam tristis et afflicta
fuit illa benedicta
mater unigeniti,
quae moerebat et dolebat
et tremebat, cum videbat
nati poenas inclyti!
“Embora impressionante”, declara ele, “este hino é
direto; limita-se a descrever e dar ênfase à cena que
descreve. Mas na realidade está descrevendo essa cena
de maneira muito especial — em versos curtos que real­
mente não descrevem em absoluto o que está acontecendo,
mas simplesmente aludem aos eventos familiares e
POESIS 239

utilizam tantos elementos das Escrituras e frases litúrgicas


quanto possível — a espada ferindo a alma, a Mãe Abençoa­
da, o Filho Unigênito, o Filho Nascido da Virgem. Há uma
quantidade extraordinária de recursos mesmo nessas primei­
ras duas estrofes. Na terceira estrofe acrescenta-se a Mãe de
Cristo, na quarta, a morte Dele pelos pecados de Seus filhos,
uma alusão por uma única palavra à flagelação Dele, depois
a menção lacônica: “dum emisit spiritum”. As referências
esparsas à emoção são, inteiramente, moeda corrente: gemer
e chorar, sentir pena, sofrer, lamentar-se.
Se não houvesse qualquer motivo ulterior em toda essa
coleta e conjugação de material tradicional e palavras
óbvias, as quatro primeiras estrofes seriam poesia puramente
manufaturada, e não sei como o Prof. Tillyard pôde achá-las
impressionantes. Mas o poema ê impressionante; na quinta
estrofe, que começa:
Pia mater, fons amoris!
As palavras “fac, ut” são introduzidas e, depois disso, “fac”
ocorre nove vezes, sempre em posições fortes — e apenas uma
vez, de fato, no começo de um verso. O poema modificou-se,
passando da afirmação à prece; não há mais cadeias de pala­
vras monótonas (“quae moerebat et dolebat et tremebat cum
videbat” ou em 4: “ . . . suum dulcem natum, morientem, de-
solatum” — entre “subditum” e “spiritum” ), mas um movi­
mento fluido para o fecho incrivelmente musical e solene:
Quando corpus morietur
fac ut animae donetur
Paradisi gloria.
No poema enquanto um todo, as quatro estrofes decla-
ratórias formam uma introdução que é notavelmente estática.
As primeiras palavras — “Stabat mater” — preparam essa
impressão pelo seu sentido, e a extraordinária dureza do
segundo verso, “iuxta crucem lacrimosa”, sustenta “stabat”
graças a seu som. Depois vem a monotonia e as alusões não
desenvolvidas. O efeito é o de idéias ensaiadas, todas
familiares (até mesmo as emoções mencionadas), todas man­
tidas em um compasso pequeno por chamadas e imóveis
como rochas. As enunciações diretas não estão em absoluto
“descrevendo e dando ênfase à cena” ; elas estão criando um
sentimento que não é nem um pouco apropriado para essa
cena melodramática — um sentimento que pertence à fé, à
aceitação de doutrina, uma sensação de certeza e correção
dogmática: a bênção do Credo. £ dessa fé sentida que salta
a muito menos confiante e mais apaixonada oração: e o
ritmo e tom do poema elevam-se da contemplação da Cruci-
240 SENTIMENTO E FORMA

fixão (em 6 e 7) para “Virgo virginum praeclara”, o Juízo,


e a glória do Paraíso, num crescendo de som e sentido.
Citar apenas as duas primeiras estrofes é enganoso; elas
mudam de caráter inteiramente dentro do todo; suas enuncia-
ções são “diretas”, mas a finalidade poética desse caráter
direto é uma obliqüidade que Blake não poderia ultrapassar.
Tratar qualquer coisa que mereça o nome de poesia
como declaração fatual que está simplesmente “versi-
ficada”, parece-me frustrar a apreciação artística desde seu
início. Um poema sempre cria o símbolo de um sentimento,
não pela recordação de objetos que suscitariam o sentimento
em si, mas pela tessitura de um padrão de palavra — pala­
vras carregadas de significado, e coloridas por associações
literárias — afim ao padrão dinâmico do sentimento (a
palavra “sentimento”, aqui, cobre mais do que um “estado”;
pois o sentimento é um processo, e pode ter não apenas fases
sucessivas, mas vários desenvolvimentos simultâneos; é
complexo e suas articulações são fugidias). Observe-se o
poema, ou, melhor, o fragmento que o Prof. Tillyard cita
em contraste a ‘T he Echoing Green” — a descrição que Gold-
smith faz de Aubum e seus prazeres de feriado, no início de
“The Deserted Village”
How often have I loitered o’er thy green,
Where humble happiness endeared eacb scene!
How often have I paused on every charm,
The sheltered cot, the cultivated farm,
The never-failing brook, the busy mill,
The decent church that topt the neighboring hill,
The hawthom bush, with seats beneath the shade,
For talking age and whispering lovers madc!
How often have I blessed the coming day,
When toil remitting lent its turn to play,
And all the village train from labour free
Led np their sports beneath the spreading tree,
While many a pastime circled in the shade,
The young contending as the old surveyed;
And many a gambol frolicked o’er the ground,
And sleights of art and feats of strenght went round;
And still as each repeated pleasnre tired,
Succeding sports the youthful band inspired.*
Este [diz ele] é um bom exemplo daquilo que eu cha­
mo de poesia de enunciação direta: ela está, até um certo
ponto, preocupada com o que as palavras enunciam, mas
também com o que está implícito nelas.

* “A Aldeia Deserta": "Quantas vezes vagueei pelo teu gramado,/


Onde uma modesta felicidade encarecia cada cena!/ Quantas vezes
parel perante cada encanto,/ O chalé abrigado, a granja cultivada,/
O córrego jamais escasseante, o moinho ocupado,/ A Igreja decente
que coroava a colina próxima,/ Os esplnheiros, com bancos à. sombra,/
Feito para os velhos, que falam, e os amantes, que sussurram!/
POESIS 241

Apesar de ligeiras obliqüidades, tal como a falta de um


comentário moral direto, o poeta
quer que o leitor pense fundamentalmente em aldeias quando fala de
Auburn. ( . . . ) Cremo-lo porque as partes formais da poesia re­
forçam a afirmação, mais do que sugerem pensamentos estranhos
a ela.
Se considerarmos o importe não-literal de um poema
como um pensamento estranho ao assunto, como uma moral
ou como um juízo de valor, então as reminiscências de Gold-
smith sobre o gramado de aldeia não possuem, de fato, qual­
quer “obliqüidade”, pois ela não tem tal conteúdo. Mas se as
encararmos como uma história virtual criada, os versos, que
“se desenvolvem em simples sequência explicatória”, fazem-
no com propósito muito diverso do que fazer o leitor “pensar
primordialmente em aldeias” : sua finalidade é construir aque­
la história de modo a torná-la uma forma exata e significativa.
As “partes formais” não reforçam a enunciação; elas são
reforçadas por esta. Os itens aos quais se faz referência são
“escolhidos” (o que significa que eles ocorreram ao poeta)
por que servem ao conjunto formal.
A nota dominante da forma poética é a complexidade,
não a simplicidade; e é a complexidade de uma dança gru­
pai. Verso após verso, há ou uma referência a movimento
suave contínuo, circular, processional, ou a lugares mu-
dantes. Esta última forma especialmente ocorre repetidas
vezes mesmo lá onde não há qualquer movimento envolvido.
Existe uma razão artística para isso. Mas, em primeiro lugar,
a natureza geralmente ativa da aldeia é estabelecida: “O
córrego jamais escasseante, o moinho ocupado” . Observe-se
que, como pintura direta de palavras, estas acham-se fora de
lugar; começamos com o gramado. O córrego e o moinho
provavelmente não ficam no centro da aldeia; nem estão ali
o chalé abrigado e a granja cultivada. Mas o gramado é o
lugar de danças, e todo o resto, na aldeia, está, para os pro­
pósitos de Goldsmith, relacionado com ele: abrigo, redonde­
zas “cultivadas”, então o símbolo de atividade natural, o
córrego, e atividade humana, o moinho. E por que
A igreja decente que coroava a colina próxima?

A igreja é a sanção social dessa dança simbólica: tutela


divina, distante e à parte, mas presente. A ação toda tem
Quantas vezes abençoei o dia que vinha,/ Quando a labuta cessante
cedia a vez ao jogo,/ E o cortejo todo da aldeia livre do trabalho/
Conduzia suas dlverBões sob a árvore frondosa,/ Enquanto multo pas­
satempo circulava na sombra,/ Os jovens competindo enquanto os ve­
lhos observavam;/ E muita cabrlola era dada no chão,/ E golpes de pe­
rícia e proezas de força;/ E, ainda, & medida em que cada prazer can­
sava,/ Sucessivas diversões o Jovem bando animava”.
242 SENTIMENTO E FORMA

lugar como que sob um dossel: “com bancos sob a sombra”,


ou “na sombra”, “sob a árvore frondosa.” Isso traça o Cír­
culo Mágico. Então a procissão: “o cortejo todo da aldeia”
que “conduzia suas diversões” . No poema de Blake não há
uma frase assim, porque ele não estava criando uma imagem
de dança. Através de todos os versos de Goldsmith há um
padrão de girar, circular, alterar, repetir suceder.

When toil remiting leit its turn to play,


While many a pastime circled in the shade,
And many a gambol frolick’d der the ground,
And sleights of art and feats of strenght went round;
And still, as each repeated pleasure tired,
Succeeding sports the youthful band inspired. *

Finalmente, existem dois versos que nos permitem perceber


quem são realmente os parceiros nessa dança popular:

Feito para os velhos, que falam, e os amantes, que sussurram,


e
Os jovens competindo enquanto os velhos observam.

Os parceiros que se alternam são juventude e velhice, a


dança é a Dança da Vida, e a aldeia de Goldsmith é o
cenário humano. Como tal, o fragmento que Tillyard es­
colheu para tratar como “poesia declarativa” é apenas uma
das metades do contraste que é a linha mestra de todo o
poema: elemento por elemento, a dança é oposta à cena
posterior, em que o gramado está crescido demais, o córrego
está obstruído e pantanoso, a igreja desertada, as granjas
abandonadas. Se Goldsmith tivesse limitado a descrição
de Aubum revisitada a essa antítese e dado a razão —
a intrusão de uma aristocracia irresponsável na economia
rural sóbria, equilibrada — em umas poucas pala­
vras incisivas, ele teria escrito um poema vigoroso. A
moral teria sido um elemento artístico, a sombra da força
bruta e insensível dissipando o ritmo natural da vida humana.
O poema, porém, é mais longo do que a idéia poética de
Goldsmith; é por isso que termina de maneira “moralizante”
e se perde num fraco apelo literal.
Não há nada de errado na presença de uma ardente
idéia moral na poesia, desde que a idéia moral seja usada pa­
ra propósitos poéticos. Shelley, inimigo declarado do verso
moral, utilizou o velho tema batido da vaidade do poder ter­
reno para um de seus melhores poemas. “Ozymandias”. A
* As palavras em grifo, ao pé da letra: “emprestou seu turno”
(mas turn também significa “giro”), “circulavam”, “brincavam sobre
o solo”, "lam em tomo”, “repetido”, “sucessivos”.
P0ES1S 243

forma do soneto adapta-se particularmente aos motivos mo­


rais. Considerem-se os temas de alguns sonetos famosos:
The world is too much with us; iate and soon,
Getting and spending, we lay Waste our pow ers...
Let me not to the marriage of true minds
Admit impediment. Love is not love
Which alters when it alteration finds,
Or bends with the remover to rem ove...
Leave me, O Love! which reachest but to dust;
And thou, my mind, aspire to higher things.. .
O how much more doth beauty beauteous seem
By that sweet omament which truth doth give!*
Se os considerarmos como “poesia moral”, suas mensagens
são tão familiares que chegam à banalidade. Mas exatamente
porque não há aí qualquer conteúdo literal interessante que
convide à discussão, podemos tomar a moral como um
tema a motivar a criação poética, que é uma experiência
virtual de reflexão séria que chega a uma conclusão. Essa
experiência envolve muito mais do que o raciocínio; mesmo
os primeiros versos indicam que cada soneto inicia sua re­
flexão com um sentimento inicial diferente. O de Wordsworth
abre-se com um reconhecimento completo; o primeiro de
Shakespeare, com um insistente tom argumentativo que ex­
pressa desejo de acreditar, mais do que introvisão objetiva; o
de Sidney começa em meio a uma luta mental; e o segundo
de Shakespeare, com uma exclamação, uma idéia repentina.
“The Echoing Green” de Blake é um poema melhor do
que “The Deserted Village” de Goldsmith, mas isso não
significa que este último, sendo de espécie diferente, requeira
um padrão diferente de julgamento; o poema de Blake é
melhor porque é inteiramente expressivo, enquanto que
Goldsmith não sustentou sua idéia poética através de toda a
composição. O fato de serem diferentes seus principais recur­
sos é irrelevante; atmosfera, sugestividade, exposição sóbria,
morais e máximas, tudo serve apenas a um propósito nas
mãos do poeta: criar um evento virtual, desenvolver e dar
forma à ilusão de vida diretamente experimentada.
Uma vez que todo poema suficientemente bem-sucedido
para merecer o nome de “poesia” — sem se levar em conside-
♦ “O mundo 6 demais quanto a nós; cedo e tarde,/ Recebendo e
gastando, desperdiçamos nossos poderes...'*
"Ao casamento de espíritos verdadeiros/ N&o oporei impedimento.
O amor não é amor/ Se se altera quando encontra alteração,/ Ou se
rende a quem remove para remover..."
“Deixa-me, ó Amor! que alcanças apenas o pó;/ E tu, espírito meu,
aspira a coisas mais elevadas..."
“ó, quão mais bela deve parecer a beleza/ For aquele doce ornamento
que a verdade dã!"
244 SENTIMENTO E FORMA

ração estilo ou categoria — é uma forma simbólica não-discur-


siva, é de boa razão que as leis que governam a elaboração
de poesia não sejam as da lógica discursiva. São “leis de pen­
samento”, tão verdadeiras quanto o são os princípios do ra­
ciocínio; mas jamais se aplicam ao raciocínio científico ou
pseudo-científico (prático) . Elas são, efetivamente, as leis
da imaginação. Como tais, estendem-se a todas as artes, mas
a literatura é o campo em que suas diferenças ante a lógica
discursiva tornam-se mais agudamente manifestas, porque o
artista que as emprega está empregando formas linguísticas e,
destarte, as leis do discurso, ao mesmo tempo, em outro nível
semântico. Isso levou os críticos a tratar da poesia indiscrimi­
nadamente tanto como arte quanto como discurso. O fato
de que algo parece ser afirmado desvia-os para um curioso es­
tudo de “aquilo que o poeta, diz”, ou, se se emprega apenas
um fragmento de asserção ou se a semelhança de pensamen­
to proposicional não chega sequer a ser completada, para
especulações sobre “o que o poeta está tentando dizer.” O
fato é, penso, que eles não reconhecem o processo real de
criação poética porque as leis da imaginação, pouco conheci­
das, afinal de contas, são-lhes obscurecidas pelas leis do dis­
curso. A enunciação verbal é óbvia e esconde as formas
características da invenção verbal. Assim, embora falem da
poesia como “criação”, eles a tratam, altemadamente, co­
mo relatório, exclamação e arabesco puramente fonético.
O resultado natural da confusão entre discurso e criação
é uma confusão paralela entre experiências virtual e real. O
problema de “Arte e Vida”, que é apenas de importância se­
cundária para as outras artes, toma-se uma questão central
na crítica literária. Ele preocupou Platão, e preocupa
Thomas Mann; e, nas mãos de teóricos menos profundos,
promete bastante lançar toda a filosofia da arte em um caos
de moral e política, religião e psiquiatria moderna. Assim,
antes de passar da poesia à literatura ainda mais enganosa­
mente “fatual”, é melhor que consideremos as funções da
linguagem e tentemos compreender o relacionamento entre
fato e ficção e, com isso, as conexões entre literatura e vida,
explícita e claramente em primeiro lugar.
14. Vida e sua Imagem
\
y

Os filósofos levaram tempo para reconhecer o fato de


que existem quaisquer leis gerais governando a imagina­
ção, exceto na medida em que seus processos interferem com
Naqueles do raciocínio discursivo. Hobbes, Bacon, Locke e
Hume notaram as sistemáticas tendências da mente para o
erro: as tendências a associar idéias pela mera contigüidade
na experiência, de hipostasiar conceitos uma vez abstraídos
como realidades e tratá-los como novas entidades concretas,
de atribuir poder a objetos inertes ou a meras palavras, e
várias outras fantasias que desviam da ciência e conduzem a
um estado de erro infantil. Mas até recentemente ninguém
perguntava por que tais erros fantásticos deviam ocorrer com
persistência monótona.
Como freqUentemente acontece na história do pensa­
mento, o problema apresentou-se de súbito a um certo núme­
ro de pessoas de diferentes campos de estudo. A resposta mais
notável que lhe foi dada é a de Emst Cassirer, em sua grande
obra, Die Philosophie ãer symbolischen Formen. O primeiro
dos três volumes de Cassirer refere-se à linguagem, e desco­
bre, nesse paradigma de formas simbólicas, as origens tanto
da lógica quanto de seu principal antagonista, a imaginação
criativa. Pois na linguagem encontramos duas funções intelec­
tuais que ela realiza em todos os tempos, em virtude de sua
própria natureza: fixar os fatores principais da experiência co­
mo entidades, dando-lhes nomes, e abstrair conceitos de rela-
246 SENTIMENTO E FORMA

cionamentos, falando a respeito das entidades nomeadas. O


primeiro processo é essencialmente hipostático; o segundo,
abstrativo. Tão logo um nome nos dirige para um centro
de interesse, existe uma coisa ou um ser (no pensamento
primitivo estas alternativas não são distinguidas) em torno
do qual o resto de “presente ilusório” se arranja. Mas esse
arranjo é por sua vez refletido na linguagem; pois o segundo
processo, a asserção, que formula a Gestalt do complexo domi­
nado por um ser nomeado, é essencialmente sintático; e a for­
ma que a linguagem assim imprime à experiência é discur­
siva.
Os seres do mundo do homem primitivo eram, portanto,
criações de sua mente simbolizadora e do grande instrumento,
a fala, tanto quanto da natureza externa a ele; coisas, ani­
mais, pessoas, tudo tinha esse caráter peculiarmente ideal,
porque a abstração se misturava à fabricação. O processo
de nomeação, iniciado e guiado pela excitação emocional,
criava entidades não apenas para a percepção sensorial mas
para a memória, especulações e sonhos. Essa é a fonte da
concepção mítica, na qual o poder simbólico ainda não pode
ser distinguido do poder físico, e o símbolo permanece fundi­
do com aquilo que simboliza.
A forma característica, ou “lógica”, do pensamento
mítico é o tema do segundo volume de Cassirer. É uma ló­
gica de significados múltiplos em vez de conceitos gerais, de
figuras representativas em vez de classes, de reforço de
idéias (por repetição, variação e outros meios) em vez de
prova. O livro é tão extenso que até para coligir aqui apenas
as citações mais relevantes exigiría espaço demais; posso
apenas indicar a fonte ao leitor.
Exatamente na época em que o filósofo alemão es­
tava escrevendo o segundo volume, um professor de lite­
ratura inglês refletia precisamente sobre o mesmo problema
do simbolismo não-discursivo, ao qual ele fora levado
não pelo interesse na ciência e nas fantasias do pensamento
a-científico, mas pelo estudo da poesia. Esse estudioso da
literatura, Owen Barfield, publicou em 1924 um livro pequeno,
mas altamente significativo, intitulado Poetic Diction, A Study
in Meanings. Não parece porém que haja causado qualquer
impressão profunda na sua geração de críticos literários. Tal­
vez sua transcendência ante os conceitos epistemológicos acei­
tos fosse radical demais para recomendar-se a si mesma sem
uma reorientação muito mais deliberada e completa do que
aquela que o autor deu a seus leitores; talvez, exatamente pelo
contrário, nenhum desses leitores percebesse a radicalidade ou
a importância de suas implicações. O fato é que esse estudo
VIDA E SUA IMAGEM 247

puramente literário revela os mesmos relacionamentos entre


linguagem e concepção, concepção e imaginação, imaginação
e mito, mito e poesia, que Cassirer descobriu como resultado
de suas reflexões sobre a lógica da ciência1.
O paralelo é tão notável que é difícil crer em pura coin­
cidência, porém é o que parece ter ocorrido. Barfield, como
Cassirer, rejeita a teoria de Max Müller de que o mito é uma
“doença da linguagem”, mas elogia a distinção que este faz
entre metáfora “poética” e “radical”; depois prossegue criti­
cando a suposição básica contida mesmo na teoria da “metá­
fora radical”, segundo a qual a transposição de uma palavra
de uma esfera de significado a outra, ou de significados sén-
soriais para nao-sensoriais, é, na realidade, “metáfora” em
geral.
Os significados completos das palavras [diz ele] são formas
flamejantes, iridescentes, como chamas — vestígios sempre bruxu-
leantes da consciência que se desenvolve lentamente debaixo deles.
Para a maneira de pensar Locke-Müller-France2, pelo contrário,
aparecem como parcelas sólidas com fronteiras e limites definidos,
às quais podem ser acrescentadas outras parcelas quando surge a
ocasião.
Ele passa a questionar a suposta ocorrência de um “pe­
ríodo metafórico” na história da humanidade, quando pala­
vras de significado inteiramente físico eram empregadas meta­
foricamente; pois, ele diz,
esses valores poéticos, e aparentemente metafóricos, estavam latentes
no significado desde o início. Em outras palavras, pode-se inferir, se
se quiser, junto com o Dr. Blair^, que as primeiras palavras em uso
eram “os nomes de objetos materiais sensíveis” e nada mais — só
que, nesse caso, cumpre também supor que os “objetos sensíveis”
eram algo mais; cumpre supor que eles não eram, como parecem
ser no presente, isolados, ou destacados, do pensamento e sensação.
Posteriormente, durante o desenvolvimento da linguagem e do pensa­
mento, esses significados únicos cíndiram-se em pares contrastantes
— o abstrato e o concreto, o particular e o geral, o objetivo e o
subjetivo. E a poesia que sentimos residir na linguagem antiga
consiste justamente nisto, a saber que, a partir de nossa consciência
“subjetiva”, analítica, última, uma consciência que foi produzida junto
com essa cisão de sentido, e pardalmente por causa dela, somos
levados de volta a experimentar a unidade original4.
1. A filosofia das formas simbólicas de Cassirer desenvolveu-se a
partir de sua obra anterior, Substância e Função .
2. Faz-se referência às obras de John Locke, Max Müller, e
Anatole France, respectlvamente. Poeflc Diotion, A S tu dy in Meanings,
p. 57.
3. Hugh Blalr, Lectures on Rhetoric and Belles L ettres (1783).
4. Barfield, op. cit., p. 70. Com referência à dicotomia sujeito-
-objeto, comparar Cassirer, Philosophic der sym bolischem Formen, II,
p. 32, eobre a funçáo primordial do simbolismo: “Só porque, nesse
estágio, o ego ainda n&o é consciente e livre, florescendo em suas
próprias produções, mas está apenas no limiar desses processos men­
tais que posteriormente Irão provocar a dicotomia entre “Eu” e
“Mundo0, o novo mundo dos signos deve aparecer à mente como algo
absolutamente, 'objetlvamente' real”.
248 SENTIMENTO E FORMA

Em todo o desenvolvimento da consciência... podemos rastrear


a operação de dois princípios opostos, ou forças. Primeiramente
(sic), existe a força pela q u a l... significados únicos tendem a cin­
dir-se em vários conceitos separados e freqüentemente isolados. ( . . . )
O segundo princípio é o que encontramos dado a nós, para come*
çar, como a natureza da própria linguagem em sua origem. É o
princípio da unidade vivaS.
.. .Não um vazio "significado radicial a luzir”, mas a mesma
realidade espiritual definida que é observada por um lado naquilo
que se tomou desde então o puro pensamento humano; e, por outro
lado, naquilo que desde então se tornou luz física; ( . . . ) não uma
metáfora, mas uma figura vivaG.
Essas passagens poderiam quase passar por paráfrases de
Linguagem e Mito* de Cassirer, ou por fragmentos de
Philosophie der symbolischen Formen. O paralelo mais notá­
vel, entretanto, é a discussão da imaginação mítica, que
começa:
“Talvez nada mais pudesse ser mais prejudicial à con­
cepção ‘radiciaT da linguagem do que o fenômeno ubíquo do
mito.” Barfield então expõe resumidamente a teoria dos sig­
nificados múltiplos e da fusão do símbolo e significado, e
conclui:
A mitologia é o fantasma do significado concreto. Conexões en­
tre fenômenos discriminados, conexões que agora são apreendidas
como metáforas, foram uma vez percebidas como realidades ime­
diatas. Como tais, o poeta luta, por seus próprios esforços, em
vê-las e fazer com que outros as vejam, de novo?.
Enquanto isso, em um departamento totalmente dife­
rente de estudo, a saber, a recém-nascida ciência da psiquia­
tria, outro homem tinha-se deparado com a existência
de um modo “irracional” de pensamento — um modo
com seu próprio simbolismo e “lógica” — e havia efetuado
aplicações práticas da idéia, com êxito espetacular. Esse
homem era Sigmund Freud. No início — quando come­
çou a publicar a sua teoria das neuroses e os estudos analí­
ticos dos sonhos, por volta do final do século, a relevância
de sua descoberta para a estética não era patente, e o perigo
que representava para a ética tradicional absorvia comple­
tamente a atenção de seus críticos. Mas, mesmo no prefácio
de sua terceira edição do Traumdeutung, a edição de 1913,
ele mesmo observava que no futuro esta deveria ser revista
“para incluir seleções do abundante material de poesia, mito,
uso da linguagem (idiom), e folclore. ( . . . ) ”
Por que Cassirer e Barfield não tomaram conhecimento
da obra de Freud? Porque, ao tempo em que eles empreen-567
5. I b i d p. 73.
6. Ibtd., p. 75.
* Ed. bras.: Linguagem e M ito, S&o Paulo, Perspectiva, 1972.
7. I b i d p. 78-79.
VIDA E SUA IMAGEM 249

deram seus respectivos estudos, a influência daquela sobre a


teoria da arte, especialmente sobre a poética, bem como
sobre a mitologia e a religião comparativa, era difundida e
profunda, mas já havia mostrado sua fraqueza característica,
isto é, que tendia a colocar a boa e má arte no mesmo
plano, convertendo toda arte numa função natural auto-ex-
pressiva como o sonho e o “faz-de-conta”, em vez de um
avanço intelectual arduamente conseguido. Da mesma forma,
ela igualava mito e conto de fadas. Quem quer que reconhe­
cesse os padrões artísticos, como Barfield, ou conhecesse os
intricados problemas da epistemologia, como conhecia Cassi-
rer, não podia deixar de sentir que essa excursão deveria
terminar de alguma forma num beco sem saída.
A literatura da estética baseada na psicanálise de Freud
pertence principalmente à década de 192089. Durante esse
anos, C. G. Jung publicou sua versão muito abrandada e
algo mística da “psicologia dinâmica”, e expressou suas opi­
niões muito mais razoáveis sobre a influência daquela na
crítica da arte. Mas admitir as “limitações” de um procedi­
mento ainda não extingue nossas dificuldades se acontecer de
o procedimento estar fundamentalmente errado. Os estudos
feitos por Freud sobre o simbolismo não-discursivo, e as con­
sequentes especulações de Jung sobre os “arquétipos”, fo­
ram todos efetuados por causa do interesse de rastrear os
símbolos do sonho até suas fontes, que são idéias exprimíveis
em termos literais — os “pensamentos do sonho” que o
“conteúdo manifesto do sonho” representa. A mesma coisa
pode, efetivamente, ser feita com todo produto da imagina­
ção, e interessantes fatos psicológicos virão à luz através da
análise. Cada poema, romance ou peça contém uma multi­
dão de material onírico que representa pensamentos não
verbalizados. Mas a psicanálise não é um juízo artístico, e os
numerosos livros e artigos que têm sido escritos sobre as fun­
ções simbólicas da pintura, música e literatura, na realidade,
não contribuem com nada para a nossa compreensão da “for­
ma significante” . A concepção freudiana de arte é uma teo­
ria do “motivo significante”®.
A forma não-discursiva na arte tem uma função dife­
rente, a saber, articular conhecimentos que não podem ser
8. Por exemplo, The Poetic Mind de F. O. Prescott, 1022; Poetry
and MytK, 1927; A rt and th e Unconscious de J. M. Thorhum, 1025;
The Principies o f Aesthetic de DeWitt Parker, 1920; The Analysis of
Art , 1924; Slgmund Freud, Psychoanalytische Studien an Werken der
Dichtung und Kunst, 1924. Esses s&o apenas alguns poucos.
9. O motivo pode desempenhar um papel na express&o artística,
como tentarei demonstrar um pouco mais adiante. Mas sua funçfto
artística nfio é nem a revelaç&o de “pensamentos do sonho**, nem a
catarse de emoções.
250 SENTIMENTO E FORMA

expressos discursivamente porque ela se refere a experiências


que não são formalmente acessíveis à projeção discursiva.
Tais experiências são os ritmos da vida, orgânica, emocional
e mental (o ritmo da atenção é um elo interessante entre
todos eles), que não são simplesmente periódicos, mas infini­
tamente complexos, e sensíveis a todo tipo de influência.
Juntos eles compõem o padrão dinâmico do sentir. £ esse
padrão que apenas as formas simbólicas não-discursivas po­
dem apresentar, e esse é o ponto fundamental e o propósito
da construção artística.
As leis da combinação, ou “lógica”, de formas pura­
mente estéticas — sejam elas formas de espaço visível, tempo
audível, forças vivas, ou a própria experiência — são as leis
fundamentais da imaginação. Elas foram reconhecidas há
muito tempo pelos poetas, que as enalteceram como a sabe­
doria do coração (muito superior à da mente), e pelos mís­
ticos, que acreditavam que elas eram as leis da “realidade”.
Mas, como as leis da linguagem literal, elas na realidade são
apenas cânones de simbolização; e seu estudo sistemático
foi empreendido pela primeira vez por Freud.
Uma vez que o interesse de Freud por tal pesquisa epis-
temológica era apenas incidental a seu projeto de descobrir o
motivo escondido de uma fantasia, suas próprias formulações
sobre esses cânones acham-se espalhadas por muitas centenas
de páginas, de análise dos sonhos. Mas, resumidas brevemente,
demonstram ser aquelas mesmas “leis” que Cassirer postulava
para a “consciência mítica”, que £mile Durkheim considerou
operativas na evolução do totemismo101, e que Barfield notou
no “significado poético” ou “verdadeira metáfora” .
O princípio fundamental da projeção imaginativa é o que
Freud chama de Darstellbarkeit, que Brill traduz como “apre-
sentabilidade”. Uma vez que os alegados “verdadeiros” signi­
ficados de Freud são, com tanta frequência, não “apresentá­
veis” no sentido usual, essa tradução é infeliz; pois darstéllbar
significa “capaz de apresentação” e não se refere a uma pro­
priedade. Portanto eu o traduzirei como “exibível”. Cada
produto da imaginação — seja ele a obra inteligentemente
organizada de um artista, ou a fabricação espontânea de
alguém que sonha — chega a quem o percebe como uma
experiência, um dado qualitativo direto. E qualquer importe
emocional transmitido por ele é percebido de maneira
exatamente tão direta; é por isso que freqüentemente diz-se
que a apresentação poética tem uma “qualidade emocional”11.

10. Em Les formes élém entaires âe la vie religieuse.


11. Cf. a passagem citada de “Kunst und Geftttil” de Baensch
no Gap. 2, p. 23.
VIDA E SUA IMAGEM 251

Significados associados não são, como supõem muitos


estetas, uma parte da significação da poesia; eles servem
para expandir o símbolo, e isso é utn auxílio técnico ao nível
da feitura do símbolo, não do insight artístico. Onde as­
sociações não são evocadas, o símbolo não é intensificado,
c onde seu uso poético depende de tal extensão tácita, pode
ser que ele simplesmente falhe. (T . S . Elliot conta algumas
vezes com associações que normalmente deixam de ocorrer,
de maneira que sua tessitura mais rica em referências históricas
oblíquas não produz qualquer enriquecimento imaginativo
para o leitor. Essa crítica a Eliot é análoga a uma que ouvi
um músico fazer ao Pro Arte Quartet, cujo piamssimo era
tão perfeito que era inaudível além do palco: “De que adian­
ta um belo piamssimo se não se pode ouvi-lo?” Os mem­
bros do quarteto poderíam ter respondido, dentro do
espírito de Eliot, que a audiência deveria estar seguindo
a partitura.)
O primeiro aspecto logicamente perturbador das formas
expressivas não-discursivas é aquilo que Freud chama de
“sobredeterminação” . A mesma forma pode ter mais do
que uma significação; e, conquanto a atribuição de signi­
ficado a um símbolo reconhecido (por exemplo, o significado
aceito, literal ou hiperbólico, de palavra) preclui outras
possibilidades em seu contexto dado, a significação de uma
forma perceptível pura não é limitada por nada exceto a
própria estrutura formal. Consequentemente, referências que
poderíam ser tomadas em termos racionais apenas como alter­
nativas estão simplesmente co-presentes como “o importe” na
arte. Isso permite fundir mesmo dois afetos contradi­
tórios em uma expressão. A “Alegria-Melancolia primacial”
de que fala Tillyard é exatamente um conteúdo assim, que
não pode ser levado a cabo em nenhum simbolismo vincu­
lado à lógica do discurso, mas que é um conteúdo familiar à
mente poética. Freud chama a isso de princípio de ambiva­
lência. Acredito que o poder das formas artísticas de serem
emocionalmente ambivalentes brota do fato de que opos­
tos emocionais — alegria e pesar, desejo e temor, e assim
por diante — são freqüentemente muito similares em sua
estrutura dinâmica e lembram um ao outro. Pequenos deslo­
camentos de expressão podem reuni-los e mostrar o íntimo
relacionamento que têm um com o outro, enquanto que a
descrição literal pode apenas dar ênfase à separação entre
eles.
Onde não houver exclusão de opostos, também não
haverá, falando em termos estritos, qualquer negativa. Nas
artes não-verbais isso é óbvio; as omissões podem ser signifi-
252 SENTIMENTO B FORMA

cantes, mas jamais como negativas. Na literatura, as pala­


vras “não”, “nenhum”, “nunca”, etc., ocorrem livremente;
mas aquilo que elas negam é, destarte, criado. Na
poesia não há negação, mas apenas contraste. Considere-se,
por exemplo, a última estrofe de “The Garden of Proserpine”
de Swinbume, em que quase todos os versos são negações:
Then star nor sun shall wafcen,
Nor any change of light:
Nor sound of waters shaken,
N or any sound or sight:
Nor wintry leaves nor veraal;
Nor days or things diurnal;
Only the sleep cternal
In an eternal night.*
Sol e estrela, luz, águas soantes, folhas, e dias, tudo aparece
mesmo enquanto é negado; com ele é tecido o plano de
fundo que realça a asseveração final:
Only the sleep eternal
In an eternal night.**
O longo processo de negação, entrementes, forneceu o
monótono “nor-nor-nor” (“nem-nem-nem”) que faz com que
toda a estrofe submerja no sono quase sem os versos
finais; a palavra negativa exercendo assim uma função cria­
tiva. O sentido literal, além do mais, sendo uma constante
rejeição das idéias emergentes, mantém-nas pálidas e formais
— esmaecidas, “ausentes” — em contraste com a única rea­
lidade afirmada positivamente, o Sono.
Já mencionei antes que em poesia não há argumento
lógico genuíno; isso, mais uma vez, encontra paralelo na
especiosidade do raciocinar nos sonhos18. A “fixação da
crença” não é o propósito do poeta; seu propósito é a cria­
ção de uma experiência virtual de crença ou de sua consecu­
ção. Sua “argumentação” é a semelhança do processo
de pensar, e a tensão, hesitação, frustração, ou a rápida suti­
leza dos meandros mentais, ou uma sensação de súbita reve­
lação, são elementos mais importantes nisso do que a con­
clusão. Algumas vezes uma convicção fica perfeitamente esta­
belecida pela mera reiteração (“Se eu o disser três vezes, é
verdade”, como declarou o Bellman de Lewis Carroll.).
Um dos princípios mais poderosos que governam o uso
dos “símbolos naturais” é o princípio da condensação. Isso,
* “Nem estrela nem sol despertarão,/ pfem qualquer mudança
de luz:/ Nem som de água agitada,/ Nem qualquer som ou vls&o:/
Nem folhas de Inverno nem primaveris;/ Nem dias ou coisas diurnas;/
Apenas o sono eterno/ Em eterna noite."
•• "Apenas o sono eterno/ Em eterna noite."
12. Ver Freud, Interpretation o f Dreams, Gap. V I; "The Dream
Work", p. 227 e ss.
VIDA E SUA IMAGEM 253

também, foi descoberto por Freud no curso de sua análise


dos sonhos13. Relaciona-se, é claro, com a sobredetermi-
nação; de fato, todos os princípios da projeção não-discur-
siva estão provavelmente relacionados entre si, exatamente
como os da lógica discursiva — identidade, complementari­
dade, exclusão do termo médio, etc. — formam todos uma
unidade. Mas condensação de símbolos não é o mesmo que
sobredeterminação; ela é essencialmente a fusão das próprias
formas pela intersecção, contração, elisão, supressão e mui­
tos outros recursos. O efeito, geralmente, é o de intensificar a
imagem criada, elevar a “qualidade emocional” ; muitas vezes
de tornar-nos cônscios das complexidades de sentimento
(penso que esse seja o propósito de James Joyce ao levar a
condensação a tal ponto que sua linguagem se torna uma
linguagem de sonhos distorcida). O verdadeiro mestre da
condensação é Shakespeare:
And Pity, like a naked newborn babe,
Striding the blast, or Heaven’s Cherubin, hors’d
Upon the sightless couriers of the air,
Shall blow the horrid deed in every eye
That tears shall drown the wind.*
Um estudante orientado pelo Prof. Richards podería prova­
velmente parafrasear o último verso de tal modo que “o som
do pranto será mais alto do que o vento” ; mas a paráfrase
soa pouco provável, e o verso em si, tremendo; ademais,
o que Shakespeare disse foi: “Lágrimas afogarão o vento”,
de maneira que provavelmente ele não pretendia dizer qual­
quer outra coisa. Além do mais, qual a paráfrase que pode
dar sentido a um recém-nascido e a uma guarda monta­
da de querubins que sopram um jeito nos olhos das pessoas?
O sentido literal dessas profecias é negligenciável, embora o
das palavras não o seja; o sentido poético de toda a figura
condensada e excitante é perfeitamente claro. A poesia de
Shakespeare ressoa com tal dicção.
Existem outras características da expressão imaginativa,
mas as que acabei de aduzir devem servir para marcar a dis­
tinção básica entre pensamento e apresentação discursivos e
não-discursivos. Tais princípios parecem governar igualmente
a formação de sonhos, conceitos míticos, e as construções vir­
tuais da arte. O que, então, distingue realmente a poesia
do sonho e da neurose?

13 . m a., p . 284 e b s .
* “E Piedade» como um recém-nascido nu,/ Transpondo o vento,
ou o Querubim Celeste, montado/ Nos cegos mensageiros do ar,/ So­
prará o feito horrível em todo olho/ Que lágrimas afogar&o o vento.*'
254 SENTIMENTO E FORMA

Acima de tudo, seu propósito, que é transmitir algo que


o poeta sabe e deseja expor pela única forma simbólica que
pode expressá-lo. Um poema não é, como um sonho, um
representante de idéias literais, destinado a esconder desejos e
sentimentos de nós mesmos e dos outros; está destinado
a ser sempre transparente emocionalmente. Como toda ex­
pressão deliberada, ele se encaixa dentro de um padrão pú­
blico de excelência14. Ninguém diz de uma pessoa adorme­
cida que ela sonha de modo desajeitado, nem de um neu­
rótico que seus sintomas se conjugam sem cuidado; mas
um poeta pode com certeza ser acusado de inépcia ou falta
de cuidado. O processo de organização poética não é uma
associação espontânea de imagens, palavras, situações, e
emoções, todas espantosamente entrelaçadas, sem esforço,
através da atividade inconsciente que Freud chamava de
“o trabalho do sonho”. A composição literária, por mais “ins­
pirada” que seja, requer invenção, julgamento, freqüentemente
tentativas e rejeições, e longa contemplação. É possível que
um ar de proferição espontânea não-estudada seja obtido tão
laboriosamente quanto qualquer outra qualidade na ficção
poética.
Toda obra literária bem-sucedida é inteiramente uma
criação, não importando quais as realidades que serviram
como seus modelos, ou quais as estipulações que embasaram
sua armação. £ uma ilusão de experiência. Ela sempre cria a
semelhança do processo mental — isto é, de pensamento vivo,
consciência de eventos e ações, memória, reflexão, etc. Con­
tudo, não é necessário que haja no “mundo” virtual qualquer
pessoa que veja e relate. A semelhança de vida é sim­
plesmente o modo pelo qual os eventos virtuais são feitos. O
relato mais impessoal de “fatos” pode dar-lhes a marca qua­
litativa que os converte em “experiências”, capazes de entrar
em toda espécie de contextos, e que assumem significação de
acordo com isso. Quer dizer que a literatura não precisa ser
“subjetiva”, no sentido de relatar as impressões ou sentimen­
tos de um sujeito dado, porém tudo o que ocorre dentro da
moldura de sua ilusão tem a semelhança de um evento
vivido. Isso significa que um evento virtual existe apenas na
medida em que está formado e caracterizado e que suas rela­
ções são apenas tais como são manifestas no mundo virtual
da obra.
Criar a ilusão primária poética, fazer com que o leitor
se atenha a ela, e desenvolver a imagem de realidade de ma­
14. O problema de aplicar esse padrfto é outra questfio; aqui,
gostaria de observar que, embora n&o seja sempre possível dizer como
um poeta satisfez o padrão, é sempre possível apontar as causas, se
ele falhar.
VIDA E SUA IMAGEM 255

neira que tenha significação emocional acima das emoções


sugeridas, que são elementos nela, é o propósito de toda pa­
lavra que um poeta escreve. Ele pode usar as aventuras de
sua própria vida ou o conteúdo de seus sonhos, assim como
um pintor pode retratar a cadeira de seu dormitório, o fogão
de seu estúdio, as chaminés vistas de sua clarabóia, ou as
imagens apocalípticas surgidas ante o olho de seu espírito.
Um poeta pode tomar doutrinas e convicções morais como
seu tema, e pregá-las em versos heróicos ou em pentâ-
metros jâmbicos ou em punhados de versos livres. Ele pode
entremear referências a eventos públicos e usar nomes de per­
sonagens reais, da mesma forma como os pintores muitas vezes
têm pintado retratos fiéis, ou dado as feições de seus patro­
nos aos fiéis retratados nas pinturas sacras. Não se faz mister
que tais materiais, transformados para propósitos artísticos,
perturbem, em absoluto, a obra, que, conseqüentemente,
não é menos “arte pura” do que de outra forma sê-lo-ia. A
única condição é que materiais, seja de que fonte forem,
devem ser partes completamente do uso artístico, inteiramente
transformados, de maneira que não provoquem um desvio
para longe da obra, mas lhe dêem, em vez disso, o ar de ser
“realidade!”
Há inúmeros recursos para criar o mundo de um poema
e articular os elementos de sua vida virtual, e quase todo
crítico descobre algum desses meios e se posta em mara­
vilhada admiração ante a “magia” que eles têm. Pode ocor­
rer que o próprio poeta se apaixone por um recurso poético,
como sucedeu a Swinburne com as palavras aliterativas e a
Browning com o som das conversas, e que o use com tanta
liberdade e obviedade que a gente ouça a técnica em si, ao
invés de perceber somente os eventos virtuais que ela serve
para criar. O poeta converteu-se em teórico, como o crítico
reverente (um crítico que não consegue ser reverente não
está à altura de seu material), e ele é tentado a fixar
uma receita para a obra poética. Se outros escritores ficarem
impressionados com sua receita, eles formam uma “escola”,
e talvez lancem um manifesto, asseverando a natureza es­
sencial da poesia e, como corolário, a importância básica de
sua técnica, que alcança a essência. A poesia do passado, e
especialmente do passado recente1S, é então censurada como
“impura” na medida em que a maior parte dela não luta por
sua essência (não atingi-la é ser mal-sucedido, mais do que
impura; mas visar a qualquer outra coisa é considerado

15. F. A. Pottle, em The Idiom of Poetry, p. 28, faz observações


sobre essa reação na época lmedlatamente precedente, e subsequen­
temente a explica.
256 SENTIMENTO E FORMA

como importação de fatores não-poéticos, adulteração do


poema).
A questão da “poesia pura” tem preocupado os críticos
literários (alguns dos quais são poetas) na Inglaterra e espe­
cialmente na França e, em menor grau, em outros países, no
mínimo, nas últimas três décadas. L’Abbé Bremond deu-lhe
uma formulação sucinta e uma resposta absolutamente infun­
dada em sua famosa conferência, La poésie pureM, que ter­
mina com uma descrição da essência poética pela qual se po­
de apenas interpretar “essência” como “magia”. Ora, qual­
quer leitor ávido de poesia provavelmente concordará em
que existe algo na poesia que pode ser chamado de “magia
poética”, mas que essa qualidade não dependa de som ou
imagens, significado ou emoção, mas que seja outra coisa
inerente ao poema, separado e místico, não é uma hipótese
esclarecedora. Como todas as crenças místicas, é irrefutável,
mas não possui qualquer valor teórico.
O valor da preleção foi que provocou uma controvér­
sia no curso da qual alguns pensadores sérios julgaram
necessário explicar a qualidade “mágica”, definir suas pró­
prias noções de essência poética, e fixar um critério de “poe­
sia pura” que não medisse os poemas pelos padrões de uma
poesia além de toda linguagem, acima das palavras, uma
“poesia do silêncio”. Muitos críticos, porém, seguiram em
princípio, a l'Abbé Bremond, isto é, pensando a “poesia
pura” como purificada, liberada de ingredientes não-poéticos
ou funções não-poéticas; e, nisso, este e aqueles estavam
levando adiante o pensamento de Poe, Shelley, Coleridge,
Swinburne, os quais haviam procurado a “essência
poética” como um dos elementos do discurso poético, e
pleiteado um aumento desse elemento, fosse qual fosse, e a
eliminação de outros elementos tanto quanto fosse possível.
Shelley gostaria de pôr de lado todas as enunciações didáticas;
isso não era muito difícil, e a maioria dos estetas literários o
secundava. Mesmo os amantes da poesia didática usualmente
concordavam que aquilo que amavam não era “poesia pura”.
Poe ia mais além, considerando toda enunciação “explícita”
como apoética. Ele não deixou bem claro se o oposto de
“explícito” seria “implícito”, “figurado” ou “vago”; em um
caso, ao menos, ele nos permite inferir que pretende dizer
“vago”, pois elogia a música como a mais vaga de todas
as comunicações. Mas também a expressão figurada o satis­
fazia. Como a maior parte dos escritores sem treinamento
filosófico (pois, embora a maioria dos críticos-poetas lesse16

16. Isso apareceu em um pequeno livro em 1920.


VIDA E SUA IMAGEM 257

filosofia, não eram pensadores disciplinados), Poe per­


mitia que o termo infamante “explícito” significasse alterna-
damente “explícito”, “preciso”, “literal”, “objetivo”, “natu-
ralístico”, e outros aspectos censuráveis. O que estava
tentando fazer era excluir idéias, palavras isoladas, ou afir­
mações “não-transformadas” que poderíam levar o leitor a
pensar em coisas no mundo real em vez de mantê-lo no
mundo virtual do poema. Seu engano era o engano comum
de tentar excluir materiais supostamente ofensivos, mais do
que exigir práticas artísticas coerentes.
Seus sucessores modernos são mais sutis. Eliot não
é indisciplinado filosoficamente. Ele também tenta purificar a
poesia abandonando tantas enunciações explícitas quanto pos­
sível; e, para ele, o oposto de “explícito” é, de maneira bem
apropriada, “implícito”. O ponto discutível de sua teoria surge
em sua aplicação: é possível tornar o puramente implícito em
uma enunciação sempre efetiva? Como podem ser dadas im­
plicações remotas à intuição do leitor? A resposta do poeta é
que o leitor deve ser educado para ler poesia pura: ele deve
ter associações tão amplas com palavras que mesmo a asso-
nância com um verso de literatura famosa, inglesa ou es­
trangeira, provoque nele uma reverberação desse verso, e uma
referência velada a algum obscuro monge medieval sugira
imediatamente a história ou lenda desse notável. As célebres
notas ao pé de página de Eliot podem ser um recurso
poético para criar uma sensação de abstrusidade, mais do
que glosas genuínas para atenuá-lo; mas isso não altera o
fato de que essa pressuposição cultural confessa é fantástica,
e denuncia uma desesperada nostalgia por uma cultura ex­
tinta, menor e mais segura e sistematicamente compacta. Gran­
des poetas freqüentemente sustentam teorias estranhas e,
mesmo assim, escrevem boa poesia; Eliot é um caso assim.
Existe sempre um perigo, porém, de que a poesia conce­
bida com tão refinada preciosidade possa ser lida não como
poesia, mas como um jogo esotérico entre poeta e leitor, que
proporciona àqueles que podem jogá-lo uma emoção intelec­
tual, mais do que poética.
O interessante paralelo entre as teorias de Bremond e a
de Eliot é que ambas tendem a reduzir o material discursivo
do poema, ou o poema no papel, a fim de realçar o verda­
deiro elemento “poético”, que é uma experiência criada pelo
estímulo verbal; sendo a premissa tácita que essa experiência
é mais intensa lá onde o estímulo é mais reduzido. Como o
limite ideal de Bremond é uma “poesia do silêncio”, o de
Eliot deveria ser, propriamente, o da palavra única, que tudo
implica. Tudo o que o salva, acho eu, de abraçar esse
258 SENTIMENTO E FORMA

ideal é o bom senso poético (1’Abbé Bremond, sendo um


místico, não dispõe uma salvaguarda tão simples, e não
precisa d ela). O poeta é melhor do que sua poética.
O ideal de poesia pura está, é claro, intimamente ligado
ao problema daquilo que constitui a poesia de qualquer gênero,
isto é, à definição de poesia. Se sabemos o que queremos
dizer com “poesia”’, podemos julgar seus exemplos puros, e
devemos ser capazes de descobrir as causas da impureza nos
poemas que esta afeta. A grande maioria de escritores que
levantam a questão: “O que é poesia?” não chega a respon­
dê-la, de maneira alguma, mas discutem o que é poética, ou
definem a “experiência poética” . Alguns deles, efetivamente,
chamam a experiência poética de poema em si e, ao “poema
no papel”, apenas de símbolo dela. Prescott, por exemplo,
afirma explicitamente esse ponto de vista em Poetiy and Myíh:
“Poesia, no sentido verdadeiro, obviamente não é algo
que pode ser fixado numa página impressa e reunido em
volume; é, antes, algo composto pela série de pensamentos e
sentimentos, induzidos pelos símbolos impressos, a suceder-se
uns aos outros na mente do leitor.” Mas, o que é deveras
surpreendente, essa poesia pode não ser poética! Pois pros­
segue diretamente, dizendo:
A resposta a esses símbolos pode não ser poética em absoluto;
ela pode ser alguma construção bastante racional em lugar da série de
imagens, acompanhada espontaneamente por sentimentos e pensa­
mentos adequados, que o poeta intenta, e para o que os sím­
bolos, na melhor das hipóteses, serviram-lhe como meio de co­
municação muito imperfeito1? .
Aqui temos dois poemas, o do escritor e o do leitor,
relacionados um com o outro através de um meio muito
imperfeito, as palavras. Contudo um desses dois poemas pode
não ser poético. Pode ser “uma construção bastante racional”.
É certo que algumas páginas além o autor declara:
O elemento essencial na poesia é não-racional. Ê esse elemento
que gera a verdadeira beleza poética, que é como um sonho; que
não pode ser contemplada constante e atentamente, mas pode ape­
nas ser entrevista; sobre a qual podemos apenas dizer que possui o
encanto ou a magia que é a marca de sua presença; que, portanto, é
inexplicável1®
Aqui temos tudo: a irracionalidade postulada por Poe,
a “presença” de um Algo além das palavras ou pensamentos,
a magia, as indispensáveis palavras mediadoras, a “experi­
ência poética”, a “intenção poética”. E é preciso por certo,
que tenhamos criatividade:178
17. Poetry and M yth, p. 1.
18. I b i d p. 7.
VIDA E SUA IMAGEM 259

A marca distintiva da poesia, seja qual for sua forma externa,


está em sua criação. Essa criação ficcional. . . é expressiva de e
motivada pelo desejo do poeta, ou por sua aspiração1^.
Pode parecer estranho que uma série de pensamentos e
sentimentos na mente do leitor devam ter como marca
distintiva os sintomas de pressão dinâmica oferecidos por outra
pessoa; mas, salientando que a visão do poeta (imperfeita­
mente transmitida pelas palavras) é uma ilusão, “uma trans­
ferência de impressões externas para um mero fantasma da
mente”, ele explica que o leitor pode tomá-la emprestado e
elaborá-la a fim de adequá-la a suas próprias necessidades.
Mesmo o esboço mais ligeiro, se dá partida à imaginação, será
amplamente preenchido; — e todo esse ato de preencher, parte
maior de toda obra de arte, é mero sonho e ilusão20.
O propósito real da comunicação dos devaneios do poeta
é fazer com que o leitor comece a devanear; e seja qual for
o sonho que resultar (pela primeira afirmação, citada acima)
é o poema (embora possa não ser poético).
Dediquei tanto espaço a uma teoria da poesia obvia­
mente confusa porque ela apresenta quase todas as confusões
de que a teoria atual sofre, e logo cai na condição desesperada
às quais estas dão origem — que nenhum de seus “prin­
cípios” realmente funciona, livremente e sem exceções, em
todos os casos. Poesia é essencialmente o mesmo que mito;
mas, diz Prescott,
Antes de tentar pôr em relevo o elemento mítico na poesia,
devo dizer que, por certo, ele não é encontrável em Ioda parte
em nossa poesia atual.
É porque, embora a poesia seja a linguagem da imagi­
nação, “Em muitos versos, e mesmo em muito daquilo que,
com bastante propriedade, chamamos de poesia, a imaginação
não está direta ou constantemente em trabalho”. A poesia
(aqui, presumivelmente, o “poema no papel” ) desencadeia
uma visão e impõe ritmo (forma, métrica, música); “A
poesia, portanto, pode ser considerada uma questão de ver
e cantar. Ela não é, entretanto, sempre ambas as coisas” .
E assim por diante; em termos ideais, os poemas deveríam
ser criações míticas, imaginosas, visionárias, musicais; mas
nenhum poema na mente ou no livro de pessoa alguma na
verdade corresponde ao padrão.
Assim, voltamos ao problema da poesia pura. Existem
duas maneiras de fazer poesia “pura”; ela é feita quer pondo
de lado o que é repudiado como não-poético — como advoga­
is. Ibid., p. 4.
20. Ibid.t p. 40.
260 SENTIMENTO E FORMA

vam Shelley, Poe Valéry e Moore — deixando a poesia tão


pura quanto possível; quer usando um princípio aceito,
tal como um relato de emoções, ou o som puro, ou a metá­
fora, para gerar todo o poema, tornando-o genuíno e, conse­
quentemente, pequeno e rarefeito, uma gema. Essa é a ma­
neira dos imagistas, impressionistas, simbolistas.
Face a todos esses esforços, o Prof. F. A. Pottle levantou
a pergunta ingênua, mas pertinente: Deve a poesia ser intei­
ramente pura, ou mesmo tão pura quanto possível? E sua
resposta ponderada é: “A poesia não deve ser mais pura do
que o exigir o propósito"a . Qual o propósito do poeta, isso
ele discutiu antes, e chegou ao seguinte princípio geral:
A linguagem poética é linguagem que expressa as qualidades da
experiência, na medida em que distinta da linguagem que indica seus
usos. Como toda linguagem é até certo ponto expressiva nesse
sentido, toda fala humana é, de maneira estrita, poesia em vários
graus de concentração. N o sentido ordinário ou popular do termo,
poesia é a linguagem onde se sente que a expressão das qualidades da
experiência predomina grandemente sobre as afirmações referentes
a seus usos 22.
“Poesia” e “linguagem poética” tornam-se aqui sinôni­
mos. A poesia, então, é um tipo de linguagem e, além disso,
um tipo que se transforma gradualmente em outro tipo que, em
seu ponto extremo, é o seu oposto. O emprego da linguagem
poética tem por objetivo fazer com que o leitor perceba
as qualidades da experiência23. Não somos informados sobre
que espécie de “experiência” se faz aqui referência, mas pre­
sume-se que seja a experiência real humana em geral. Essa
concepção da missão da poesia é a contrapartida, na poética,
da convicção de Roger Fry de que a função da arte pictórica
é fazer-nos cônscios de “como as coisas se apresentam na
realidade”24.
A poesia “no sentido ordinário ou popular do termo”
é, suponho, linguagem selecionada por sua referência quali­
tativa, mais do que prática, e reunida em discursos sobre
a experiência do escritor, conhecidos como “poemas” . Um
poema é uma enunciação, no mesmo sentido de qualquer
enunciação prática, mas em termos que realizam uma alta con­
centração de “expressividade qualitativa”. Pottle, contudo,
sustenta que não há necessidade de manter uma quinta-essên-
cia de expressividade através de todo um discurso desses; um
poema pode conter uma boa dose de “prosa”, ou linguagem

21. Op. cit., P. 99.


22. Ibid ., p. 70.
23. Op. cit.. P- 66: “O que quero dizer com linguagem que é
‘expressiva’? £ a linguagem que nos torna mais agudamente conscientes
da experiência enquanto experiência...’4
24. Vision and Design, p. 25.
VEDA E SUA IMAGEM 261

informativa, que serve como um contraste à intensidade


excessiva de percepção, e tende a dar melhor realce aos
momentos altos da “experiência55 quando estes ocorrem25.
Há bom juízo artístico na maneira como o Prof. Pottle
trata a exigência de “pureza”. Mas, filosoficamente, é um
paliativo, que não resolve os problemas da linguagem
poética versus a não-poética, “expressão de qualidade” versus
“expressão de fato”, porque não chega a atingir o pressuposto
confuso de onde brotam tais problemas. O infeliz pressuposto
é o próprio princípio básico de Pottle, que ser poética é uma
função da linguagem, de maneira que “toda fala humana é,
em termos estritos, poesia em vários graus de concentração”.
Isso torna a poesia uma espécie de discurso, salientando carac­
terísticas da experiência, como o faz todo discurso, mas
preocupada com aspectos qualitativos e não e com os prá­
ticos. Uma vez que a experiência tem, evidentemente,
ambos os aspectos, a distinção entre poesia e discurso literal
é assim concebida como sendo não radical, mas gradual.
Ora, sustento que a diferença é radical, que a poesia
não é, em absoluto, discurso genuíno, mas é a criação de
uma “experiência” ilusória, ou um pedaço de história virtual,
por meio da linguagem discursiva; e que a “linguagem
poética” é uma linguagem particularmente útil para essse
propósito. Quais as palavras que parecerão poéticas depende
da idéia central do poema em questão. A linguagem legal,
por exemplo, ordinariamente não é considerada poética;
não há nada de qualitativo em palavras como charter, deed,
patent, lease, bonds, estimate, grant*; mas considere-se como
Shakespeare as empregou:
Farewell! Thou art too dear for my possessing,
And like enough thou know^t thy estimate.
The charter of thy worth gives thee releasing;
My bonds in thee are all determinate.
For how do I hold thee but by thy granting.
And for that riches where is my deserving?
The cause of this fair gift in me is wanting,
And so my patent back again is swerving.
Thyself thou gav^st, thy own worth then not knowing.
Orme, to whom thou gav*st it, else mistaking:
So thy great gift, upon misprision growing,
Comes home again, on better judgment making.
Thus have I had thee as a dream doth flatter —
In sleep a king, but waking no such matter**.

25. Op. c i t Gap. V, p. 93 e ss.


* Respectivamente: titulo, contrato, privilégio, obrigação, bônus,
estimativa, concessão.
** "Adeus! £s cara demais para eu possuir-te,/ E bastante conhe­
ces tua estimativa./ O titulo de teu valor desobriga-te;/ Meus bônus
em ti são todos limitados./ Pois como reter-te senão por tua con­
cessão,/ E para tal riqueza onde está meu merecimento?/ A causa de
262 SENTIMENTO E FORMA

Os termos duros, técnicos, têm aqui um propósito, para a


qual, aliás, Shakespeare os empregava com freqüência: eles
criam a semelhança de fatos inelutáveis. A natureza impessoal
e soberana da lei é infundida em uma situação intensamente
pessoal, e o resultado é uma sensação de finalidade abso­
luta. Essa sensação é alcançada pela ousada metáfora de
um discurso legal; aqui, o jargão do bacharel é verdadeira
“dicção poética” .
Não há poesia bem-sucedida que não seja poesia pura.
Todo o problema de "pureza” é um pseudoproblema que
emerge de uma idéia errada sobre o que é poesia, de confun-
dir-se certos recursos poderosos e quase onipresentes com o
princípio básico da poesia e de se chamar de “poesia pura”
apenas o que é efetuado por tais meios. Fixar-se no sensorial,
no qualitativo, é um desses recursos principais para criar a
imagem de experiência; o uso de ironia é outro, pois a própria
estrutura do sentimento humano é irônica; ambigüidade,
metáfora, personificação, ritmo e palavras “hipnóticas” —
todos são fatores de importância na feitura de poesia. Mas
a criação de uma história virtual é o princípio que percorre
toda literatura: o princípio da poesis.
Se a poesia jamais é uma asserção sobre a realidade,
então ela não tem nada a ver com a vida, afora a referência
última de suas formas compostas à própria vitalidade, isto
é, através da função artística destas, que é a de expressar a
morfologia do sentimento humano real? Será que nada da
própria biografia do artista entrou na ilusão, exceto aciden­
talmente, mais como escória do que como ouro?
Penso que toda obra de arte tem algo sobre o qual se
pode dizer que provém do mundo, e que evidencia o próprio
sentimento do artista acerca da vida. Isso está de acordo com
a importância intelectual e, efetivamente, biológica da arte:
somos impelidos à simbolização e articulação do sentimento
quando temos de compreendê-lo a fim de nos mantermos
orientados na sociedade e na natureza. Assim, o primeiro fenô­
meno emocional que uma pessoa quer formular são suas
próprias paixões desconcertadas. É natural procurar materiais
expressivos dentre os eventos ou objetos que geraram tais
paixões, isto é, usar imagens associadas com eles e, sob a
tensão da emoção real, eventos e objetos percebidos tendem
a aparecer em uma Gestalt congruente com a emoção que
tal bela dádiva em mim está faltando,/ E assim meu privilégio nova-
mente é desviado,/ Tu te deste, n&o conhecendo entáo teu próprio
valor,/ Ou a mim, a quem o deste, com outrem confundindo:/ Assim,
tua grande dádiva, no engano crescente,/ Retoma para casa nova*
mente, depois de um juízo melhor feito./ Assim tive-te como um
sonho dá prazer.../ Em sonhos, um rei, mas nada disso ao despertar."
VIDA E SUA IMAGEM 263

provocaram. Assim, a realidade, assaz normalmente, fornece


as imagens; mas estas não são mais nada na realidade, são
formas a serem usadas por uma imaginação excitada. (Elas
podem, de fato, ser metafóricas também à moda freudiana,
fantasias sintomáticas em torno das quais o sentimento se
concentra.) E agora inicia-se o trabalho de composição,
a luta pela expressividade completa, por aquela compreensão
da forma que finalmente dá sentido ao caos emocional.
O motivo, brotando freqüentemente de fontes mais pro­
fundas da imaginação do que a arte em si, e o sentimento
que o artista nutre em relação a ele, dão os primeiros
elementos de forma à obra; suas dimensões e intensidade,
seu alcance e o ânimo nela dominante. Às vezes a técnica é
contida quando o assunto é violento, como em “Morte na
Cidade” de Thomas Wolfe, de maneira que todo o trata­
mento tem um ar de understatemení * que é parte da con­
cepção artística fundamental. O motivo em si, longe de ser
indiferente ou estranho, torna-se, então, um elemento estru­
tural, o pólo oposto da apresentação. Mas se o artista esco­
lhe por algum motivo seu uma imagem ou evento que é exci­
tante apenas para ele, isto é, como um símbolo particular,
um tal uso não criaria qualquer tensão na obra, mas apenas
na mente do artista, e o recurso intentado falharia. Para
alcançar a sensação de understatemení, ele não poderia usar
o tema como tal, mas teria de criar um elemento de quali­
dade excitante a fim de fazer força contra a contenção de
seu tratamento. Arte que contém símbolos puramente pessoais
como elementos estruturais é impura, e tal impureza é fatal.
Usualmente é com o avanço da capacidade conceituai
que um artista consegue encontrar material fora de sua
própria situação, porque se torna cada vez mais apto a ver
todas as coisas, possibilidades, bem como realidades, já semi-
forjadas em formas expressivas nos termos de sua própria arte.
Um poeta pensa poesia uma boa parte do tempo, e pode
encarar a experiência — não apenas a sua — emocional­
mente, porque compreende a emoção. Alguns poetas, por
exemplo Wordsworth, partem geralmente da experiência
pessoal da mesma forma como alguns pintores sempre
pintam a partir de modelos, ou fora do estúdio; mas as
experiências que usam não são crises subjetivas, são eventos
objetivamente interessantes. Outros escritores, como Cole-

* A palavra n&o tem tradução exata para o Português, significando


em esBêncla uma exposição que diz sobre uma coisa, algo menos do que
esta coisa, seja porque se trate de uma enunciação Incompleta atenuada,
suavizada, seja porque n&o é dita toda a verdade a seu respeito. (N. dos T.)
264 SENTIMENTO E FORMA

ridge, compõem suas visões poéticas a partir de sugestões


encontradas em livros, antigas lembranças, sonhos, rumores e
uma experiência ocasional marcante. De onde vem um tema
não faz diferença; o que importa é a excitação que gera, a
importância que tem para o poeta. A imaginação deve ser
alimentada pelo mundo — por novas vistas e sons, ações e
eventos — e o interesse do artista pelos modos do sentir
humano deve ser mantido pelo sentir e viver reais; isto
é, o artista deve amar seu material e crer em sua missão e
seu talento, caso contrário a arte torna-se frívola e degenera
em luxo e moda.
Com tanta certeza quanto alguma experiencia de vida
real deve inspirar a arte, ela deve ser inteiramente transfor­
mada na obra em si. Mesmo a personalidade chamada “eu”
em uma autobiografia deve.ser uma criatura da estória e não
o próprio modelo. “Minha” estória é o que acontece no livro,
não uma série de ocasiões no mundo. Por não conseguir
fazer essa distinção, creio eu, George Moore foi levado a
rejeitar toda poesia “subjetiva” como impura26. Os trechos
subjetivos em um bom poema acham-se tão distanciados da
realidade quanto a descrição da natureza ou os contos pré-
rafaelitas de damas medievais, os quais ele aceita como poeti­
camente puros. Existe, é claro, em nossa herança literária
uma grande porção de poesia arruinada pelo relato nada
imaginativo da emoção. Mas que é nem a idéia moral, nem a
menção de sentimentos que torna ruins tais passagens; é o
lapso de criatividade, de criar a ilusão de uma iluminação
moral ou de uma experiência passional, em um mero discurso
sobre tais assuntos; isto é, a falácia de usar o poema simples­
mente para enunciar algo que o poeta deseja dizer ao leitor 27.
Moore, entretanto, não discrimina a boa da má poesia através
de um padrão de criatividade; ele descarta todas as passagens
que se utilizam dos materiais que considerou como tabus. Ati­
tudes em relação a qualquer coisa, crenças, princípios, e
todos os comentários gerais são impurezas. Algumas vezes,
de fato, o poema em si pode nem mesmo soar como didático,
mas se o crítico souber, das outras obras do poeta ou mesmo
de dados biográficos, que um interesse moral motivou a
composição, esta não pode mais dar-lhe prazer. Moore relata
uma tal descoberta e a mudança de opinião que ela pro­
duziu nele:
26. Ver An Anthology of Pure Poetry, p. 19: " . . . arte pela arte
significa arte pura, o que quer dizer, uma vlsâo quase apartada da
personalidade do poeta". E, na pág. 34, ele fala da "poesia pura"
como "algo que o poeta cria fora de sua própria personalidade."
27. O pior exemplo que me vem à mente, de Imediato (exceto
a poesia de amadores nos Jornais provinciais) é "A Psalm of Life"
de Longfellow.
VIDA E SUA IMAGEM 265

Meu pai costumava admirar o soneto sobre a Ponte de West-


minster28, e eu o admirei até que não pude mais fugir da suspeita
de que não era a bela imagem de uma cidade sobrepairando um
rio ao amanhecer que retinha o poeta, mas a esperança de que ele
poderia mais uma vez discernir uma alma na natureza. ( . . . ) E,
depois de reler novamente o soneto e considerar o seu tom geral,
descobri nele uma moral cuidadosamente escondida. ( . . . ) Ele
iria cristianizar a alma na natureza se a obtivesse, disse eu; em
conseqüência o poema se coloca sob a cabeçalho do proselitismo
na poesia2^.
A medida de “poesia pura” erigida por Moore como o
padrão de boa poesia relega a maior parte da herança lírica
do mundo para um nível inferior282930. Isso o deixa com uma
escassa reserva de obras-primas, como ele predisse que acon­
teceria; e, embora a maioria dos poemas que reuniu em
sua antologia como exemplos da arte mais alta sejam encan­
tadores, nenhum deles é grande e vigoroso. Seu encanto, de
fato, toma-se um pouco saturante; as rimas saltitantes e os
ritmos deslizantes contêm caprichos e delícias demais, e os
lamentos ocasionais e melancólicas tragédias imaginárias não
possuem força suficiente para romper a monotonia.
Proibir os poetas de terem qualquer comércio com o
pensamento sério é eliminar toda uma esfera de criação
poética, a saber, a apresentação de sentimentos profundos
e trágicos. Qualquer mágoa mais forte do que a suave
melancolia de cantar Willow, willow, willow (“Chorão, cho­
rão, chorão”), requer uma estrutura de assunto mais forte
do que Moore admitiría31. Uma observação na introdução
(que é escrita sob forma de uma conversa entre ele e seus
amigos, John Freeman e Walter de la Mare), segundo a
qual um livro de “Poesia Pura” poderia incluir a maioria das
Songs of Innocence de Blake, mas nenhuma das Songs of
Experience32, demonstra a influência restritiva e limitadora
de seu padrão estético; mesmo um poeta tão inspirado quanto
Blake deve sempre tomar cuidado para não mencionar as
coisas erradas. “The Tyger”, presumivelmente, não é um
poema puro porque contempla os contrastes na criação
( “Aquele que fez o Cordeiro fez a ti?”), e porque men­

28. Soneto de Wordsworth, que começa com: “Eartii has not


anything to show more falr” ( “A terra não tem nada mais belo a
mostrar”) .
29. Moore, op. c i t p. 19-20.
30. Na p. 34 de sua Introdução, ele permite a De la Mare obser­
var: "Muitos dos mais belos poemas da língua terlam de Ber excluídos”.
Contudo ele mesmo diz sobre sua (projetada) coletânea: "O valor
da antologia (se a compilarmos) seria o de que cria um novo padrão”.
31. Cf. C. Day Lewis, The Poetic Imaçe, p. 133: ”Uma poesia
que exclua as procuras da razão e os estímulos do senso moral é, por
isso mesmo, menos apaixonada, menos variada e humana, menos um
produto do homem Inteiro em sua plena altitude Imaginativa”.
32. Op. cit., p. 36.
266 SENTIMENTO E FORMA

ciona “Deus” (o Deus do próprio Blake) ao invés de


“deuses” obsoletos. “The Sick Rose” não é puro por causa
do significado óbvio, de que em toda alegria existe o pesar
incipiente, em toda vida, a morte incipiente, ou seja qual for
o “Grande Lugar-Comum” que se escolha como o tema
implícito. Contudo, “The Echoing Green” é incluído na anto­
logia; mas o Prof. Tillyard não encontrou um “Grande Lugar-
Comum” também nesse — como a “Alma na Natureza” que
estragou “Westminster Bridge”?
Idéias e emoções são assuntos perigosos para a poesia;
aquelas porque um poeta fraco pode ser levado a discursar
sobre seu tópico, estas porque ele pode ser tentado à direta
expressão, exclamação e catarse de seus próprios sentimentos.
Mas um bom poeta consegue e com certeza pode manipular
mesmo o material traiçoeiro; a única lei que o obriga — e, de
fato, obriga a todos os outros artistas — é que cada partícula
do assunto deve ser usada para efeitos artísticos. Tudo deve
ser experiência virtual. Não há relacionamento com as reali­
dades na poesia, não importando quanto o criador da seme­
lhança extraiu de seus próprios sentimentos, suas convicções
mais profundas, suas memórias e desejos secretos. Poesia sobre
temas morais pode ser adidática, pela mesma razão pela
qual Goethe achava que a poesia sobre temas imorais não era
corruptora33: ela não expressa qualquer proposição e, por­
tanto, não defende ou confessa coisa alguma. Da mesma
forma, a poesia subjetiva não é uma exibição genuína de
subjetividade, porque é ficção. A própria intensidade da cons­
ciência pessoal, nela, é algo criado por meio do fraseado, da
cadência, do estado completo ou incompleto das afirma­
ções, e de qualquer outro ardil conhecido em literatura. O
exemplo mais perfeito da subjetividade virtual que me vem à
mente ocorre em forma de prosa, não em verso, mas
é um exemplo do caso em questão, pois é uma transformação
poética completa: o Portrait of the Artist as a Young Man,
de James Joyce. A maneira de contar forma a cena, a vida,
a personagem — não existe uma única linha de “linguagem
puramente informativa”, é tudo ficção, embora seja um re­
trato. Os eventos literários são feitosy e não relatados, exata­
mente como os retratos são pintados, e não são natos e
criados.
É um costume comum entre poetas e críticos opor a
poesia à prosa, não como uma forma de arte à outra, mas

33. “A arte é Intrinsecamente nobre; por essa razáo, o artista


n&o teme o comum. Pois, pelo próprio uso desta, ele a enobrece; e,
assim, vemos os maiores artistas exercendo com extrema audácia sua
real prerrogativa’* (Maximen und Reflexionen ilber K u n st ).
VIDA B SUA IMAGEM 267

como arte e não-arte — isto é, identificar a prosa com a


linguagem discursiva do pensamento prático. Coleridge, Poe,
e, em nossos dias, o Prof. Pottle, dentre muitos outros, querem
dizer com “prosa” o /n-poético. Na realidade, entretanto, a
prosa é um uso literário da linguagem e, portanto, em um
sentido amplo, porém perfeitamente legítimo (considerando-se
o significado de “poesis”), uma forma poética3*. Ela deriva
da poesia no sentido mais estrito, não da conversação; sua
função é criativa. Isso aplica-se não apenas à prosa de ficção
(o próprio termo “ficção” evidencia sua natureza artística),
mas mesmo ao ensaio e ao genuíno escrito histórico. Mas esse
é outro assunto.

34. A crença de que prosa é o mesmo que linguagem coloquial


é tão generalizada que todo mundo está inocentemente disposto a rir do
cavalheiro que ficou espantado ao descobrir que, durante toda a
vida, estivera falado prosa. Em minha opinião, M. jourdain tinha razão
de ficar étonné; seu instinto literário dizia-lhe que a conversação era
algo diferente da prosa, e apenas uma falta de filosofia forçou-o a
aceitar o erro popular.
15. Memória Virtual

“La realité ne se forme que


dans ia mémoire" — Proust.*

Tudo o que é real deve ser transformado pela imaginação


em algo puramente experiencial; esse é o princípio de
poesis. O meio normal de efetuar a transformação poética é
a linguagem; a maneira pela qual um evento é relatado dá-lhe
a aparência de ser algo casual ou algo muito importante,
trivial ou incomum, bom ou ruim, e mesmo familiar ou novo.
Uma enunciação é sempre a formulação de uma idéia, e todo
fato conhecido ou hipótese ou fantasia tira seu valor emo­
cional em grande parte da maneira como é apresentado e
considerado.
Esse poder das palavras é realmente espantoso. O pró­
prio som delas pode influenciar nosso sentimento sobre aquilo
que se sabe que elas significam. A relação entre o compri­
mento de frases rítmicas e o comprimento de cadeias de pen­
samento toma o pensar fácil ou difícil, e pode fazer com que
as idéias envolvidas pareçam mais ou menos profundas. As
tensões vocais que dão ritmo a algumas línguas, a duração
das vogais em outras, ou a altura tonal em que as palavras
são faladas em chinês e algumas outras línguas menos conhe­
cidas, pode tornar uma maneira de frasear uma proposição

'A realidade forma-se apenas na memória.


270 SENTIMENTO E FORMA

parecer mais alegre ou mais triste do que outra. Esse ritmo da


linguagem é um traço misterioso que provavelmente evidencia
unidades biológicas de pensamento e sentimento que ainda
permanecem inteiramente inexploradas.
A exploração mais completa do ritmo e do som da
linguagem, assonância e associações sensoriais, é feita na
poesia lírica. £ por isso que me dediquei em primeiro lugar
a esse tipo de composição literária; não, como algumas pessoas
podem supor, porque ela seja de alguma maneira superior a
outros tipos, a mais antiga ou a mais pura ou a mais perfeita
espécie de poesia. Não acho que ela tenha qualquer valor
artístico mais elevado do que a poesia narrativa ou a prosa.
Mas é a forma literária que depende mais diretamente
de recursos verbais puros — o som e o poder evocativo das
palavras, métrica, aliteração, rima, e outros artifícios rítmi­
cos, imagens associadas, repetições, arcaísmos e inversões
gramaticais. Ela é a criação mais obviamente lingüística e,
portanto, o caso mais acabado de poesis.
A razão pela qual a poesia lírica depende tanto do som e
do caráter emocional da linguagem é que ela tem materiais
muito escassos com que trabalhar. O motivo (o chamado
“conteúdo”) de uma lírica, usualmente, não é nada mais do
que um pensamento, uma visão, um estado de ânimo, ou uma
emoção pungente, que não oferece uma estrutura muito ro­
busta para a criação de um trecho de história virtual. Assim
como os compositores do cantochão tiveram de explorar
os ritmos e acentos de seus textos latinos e os registros
das vozes humanas (a cultivação do coro de eunucos ori-
gina-se desta necessidade musical) porque não possuíam
nenhum dos recursos da métrica, polifonia, tônica e mo­
dulação, nem apoio instrumental com o qual trabalhar,
do mesmo modo o poeta lírico usa toda qualidade da lingua­
gem porque ele não dispõe nem de enredo nem de personagens
fictícios nem, geralmente, de qualquer argumento intelectual
que dê continuidade a seu poema. O atrativo da preparação
e realização verbal precisa fazer quase tudo.
A história virtual que um poema lírico cria é a ocorrên­
cia de um pensamento vivo, o arrebatamento de uma emoção,
a intensa experiência de um estado de ânimo. Este é um trecho
genuíno de história subjetiva, embora geralmente seja um
episódio único. Suas diferenças de outros produtos literários
não são radicais, e não existe qualquer recurso característico
da composição lírica que também não possa ser encontrado
em outras formas. É a freqüência e importância de certas
práticas, mais do que seu uso exclusivo, que fazem da poesia
MEMÓRIA VIRTUAL 271

lírica um tipo especial. A fala na primeira pessoa, por exemplo,


pode ser encontrada em baladas, romances e ensaios; mas,
ali, é um desvio do padrão usual, e, na lírica, é normal. Diri­
gir-se diretamente ao leitor é algo que se pode encontrar em
novelas, baladas, romances — mas, na lírica, versos como:

Hast thou named all the birds without a gun?


ou:
Never seek to tell thy love
Love tbat never can be told
ou:
Tell me, where is fancy bred*

dificilmente parecem apóstrofes pessoais; a vocativa é formal,


mais do que exortatória. Ao refletir sobre a expressão lírica
à luz de outras obras literárias, verificaremos, logo, que nem
a pessoa que fala, nem a pessoa a quem se fala é um ser
humano real, o escritor ou o leitor; a forma retórica é um
meio de criar uma subjetividade impessoal, que é a ilusão
vivencial peculiar de um gênero que não cria nenhuma perso­
nagem e nenhum evento público.
O que um poeta se lança a criar, mais do que o que
ele sente ou quer nos dizer, determina todas as suas práticas,
e leva ao estabelecimento de formas literárias como a lírica,
a novela, o conto, o romance. Os críticos que não reconhe­
cem esse alvo universal de toda arte, e cada obra de arte,
são facilmente desviados do caminho por usos que têm
significados na arte bem diferentes de seus significados no
discurso real; tais críticos supõem que um poeta que diz
“você”, sem colocar as palavras na boca de uma personagem
dirigindo-se a outra, está falando com o leitor; e que a carac­
terística mais notável da poesia lírica — o uso do presente
— significa que o poeta está enunciando seus próprios
pensamentos e sentimentos momentâneos.
O estudo do tempo e seus usos literários é, de fato, uma
abordagem reveladora do problema da criação poética; e o
inglês é uma língua particularmente interessante para um tal
estudo, porque possui certas sutilezas de formação verbal
que faltam à maioria das línguas, notadamente as formas
“progressivas” “I am doing”, “I was doing”, “I had been
doing”, etc., distintas das conjugações formais: “I do”,

* Em tradução literal: “Nomeaste todos os pássaros sem uma


arma?*', “Jamais procures dizer teu amor/ Amor que Jamais pode
ser dito’*, “Dize-me, onde se nutre a fantasia'*.
272 SENTIMENTO E FORMA

“I did”*, e os tempos do participio passado1. No uso de


formas verbais encontram-se artifícios que revelam a verda­
deira natureza da dimensão literária em que a imagem de
vida é criada; verifica-se que o tempo presente é um instru­
mento muito mais sutil do que em geral os gramáticos e
retóricos percebem e que tem muitos outros usos além da
caracterização dos atos e fatos presentes.
No momento em que passamos da forma intensiva,
pequena, da lírica, para obras de maior envergadura, depara-
mo-nos com um novo elemento dominante — a narrativa.
Esse elemento não é desconhecido no verso lírico, mas é, aí,
incidental;
She dwelt among the untroddcn ways,
ou:
A sunny shaft did I behold,
From sky to earth it slanted,*
são versos narrativos, mas servem apenas para introduzir uma
situação, uma imagem ou um objeto para a reflexão e a emo­
ção. Quando, entretanto, a narrativa é tratada como o motivo
central de uma composição, um novo fator é introduzido,
que é o interesse da estória. Isso altera toda a forma de pen­
samento que governa a obra. Um curso de acontecimentos
impessoais é uma estrutura forte para a elaboração de
uma ilusão poética; tende a tomar-se o plano básico, ou
“enredo”, da obra toda, afetando e dominando todo outro
meio de criação literária. A vocativa, por exemplo, que é
usualmente um recurso retórico nos escritos líricos, torna-se
uma ação na estória, quando uma personagem fictícia se dirige
a outra. A imagística, que é freqüentemente a substância prin­
cipal de um poema lírico, e pode parecer como gerada pela
livre associação, cada visão evocando outra 2, deixa de ter a
primazia na poesia narrativa e o de ser livre; ela tem de servir
às necessidades da ação. Se não conseguir satisfazê-las, a
obra perde o caráter orgânico que faz com que a poesia
pareça parte da natureza, embora tudo nela seja fisicamente
impossível.
A narrativa é um dos principais recursos de organização.

* Respectivamente: “eu estou fazendo", "eu eBtava fazendo",


"eu tinha estado fazendo”; "eu faço", "eu fiz".
1. Por outro lado, faltam ao Inglês as formas Independentes
correspondentes aos passados "Imperfeito" e "definido" do francês.
O "presente perfeito" do inglês corresponde ao "passado indefinido"
francês, mas a distinção entre "J’étals" ("eu era”) e "Je íus" ("eu
fu i") não pode ser feita sem clrcunlocuções.
* "Ela se demorava entre os caminhos não pisados." "Um feixe de
sol eu contemplei,/ Do céu à terra ele se inclinava".
2, Shelley construiu as três primeiras seções de sua "Ode to the
West Wlnd" por melo de uma tal concatenação de imagens semelhantes
a um sonho.
MEMÓRIA VIRTUAL 273

Ê tão importante para a literatura quanto a representação o


6 para a pintura e escultura; quer dizer, não é a essência da
literatura, pois (como a representação nas artes plásticas) não
é indispensável, mas é a base estrutural sobre a qual é plane­
jada a maioria das obras. É subjacente à “Grande Tradição”
da arte poética em nossa cultura, de modo muito similar
àquele pelo qual a representação é subjacente à “Grande
Tradição” na arte escultórica e pictórica.
A profunda influência da narrativa em qualquer obra
literária na qual ela entra fica difundidamente visível
na mudança de tempo do presente, que é normal na ex­
pressão lírica, para o pretérito perfeito, que é o tempo carac­
terístico das estórias. Uma vez que a maior parte da literatura
é narração, o pretérito perfeito é, de longe, a forma verbal
mais comum na ficção. £ tão aceito que não parece exigir
explicação, até que refletimos no fato de que o devaneio —
com freqüência considerado como a fonte de toda invenção
literária — usualmente é formulado no presente. O devaneio
é um processo de fingir, isto é, de “fazer de conta”, afim
ao jogo imaginativo das crianças; a estória é “vivida” ao
ser contada, tanto pelo autor quanto pelos ouvintes. Se
o propósito da arte literária fosse, como sustentava Tolstoi3,
fazer o leitor viver na estória, sentir com as personagens e
experimentar vicariamente as aventuras destas, por que o
presente não é seu tempo natural, como ele o é na imaginação
livre?
Porque a literatura, embora possa ser fantástica, emo­
ciona ou como um sonho, nunca é fantasia presente, servida
por idéias nuas de ação e situações emocionais, voluntaria­
mente como no jogo ou involuntariamente como no sonho.
A vida virtual, tal como apresentada pela literatura, é sem­
pre uma forma auto-suficiente, uma unidade de experiência,
em que cada elemento está organicamente relacionado com
cada um dos outros, não importando quão caprichosos ou
fragmentários se faz parecer os itens. Esse próprio capricho ou
fragmentação é um efeito total, que requer uma percepção
de toda a história como uma estrutura de eventos contri-
butivos 4.
3. Lefto Tolstoi, W hat is Art?
4. F. W. Bateson, em English Poetry and the English Language,
p. 77, cita uma passagem Interessante de The Architecture of Hu-
m anism , de Geoffrey Scott, com referência a isso: “O detalhe do estilo
barroco é grosseiro. ( . . . ) É rápido e inexato. Mas o propósito era
exato, embora exigisse arquitetura ‘Inexata* para sua realização. Eles
(os arquitetos barrocos) desejavam comunicar, através da arquitetura,
uma sensaçáo de vigor exultante e força transbordante... um enor­
me organismo gigante através do qual se poderia imaginar que cor*
ressem correntes de contínuo vigor. Uma falta de qualidade distintiva in-
274 SENTIMENTO E FORMA

A experiência real não tem uma forma assim fechada.


Geralmente ela é desigual, sem acentos, de modo que as irri­
tações desempenham o mesmo papel que sacrifícios, as diver­
sões se alinham com elevadas realizações e os contatos hu­
manos casuais parecem mais importantes do que os seres
que se encontram por trás deles. Mas existe uma condição
normal e familiar que enforma a experiência de um modo
distinto, sob o qual ela pode ser apreendida e avaliada: é
a memória. A experiência passada, à medida que a reme­
moramos, assume forma e caráter, mostra-nos pessoas em
vez de vagas presenças e seus pronunciamentos, e modifica
nossas impressões pelo conhecimento de coisas que vieram
depois, coisas que modificam a avaliação espontânea da
pessoa. A memória é o grande organizador da consciência. Ela
simplifica e compõe nossas percepções em unidades de conhe­
cimento pessoal. Ela é o verdadeiro criador da história — não
da história registrada, mas do senso de história em si, do re­
conhecimento do passado como uma tessitura de eventos com­
pletamente estabelecida (embora não completamente conhe­
cida), contínua no espaço e no tempo, e totalmente interli­
gada causalmente5. Whitehead teceu observações sobre a
peculiar indiferença do passado em face de todos os nossos
desejos e lutas, como algo formado e fixo, enquanto que o
presente é ainda amorfo, não usado, não modelado 6.
Relembrar um evento é experimentá-lo novamente, mas
não da mesma maneira que da primeira vez. A memória é
um tipo especial de experiência porque é composta por
impressões selecionadas, enquanto que a experiência atual é
um misto de coisas vistas, sons, sentimentos, tensões físicas,
expectativas, e reações mínimas, não desenvolvidas. A me­
mória peneira todo este material e o representa na forma de
eventos distinguíveis. Algumas vezes os eventos estão ligados

divldual nas partes... era assim n&o uma negligência negativa, mas
uma exigência positiva. Sua 'inexatidão' era uma lnvenç&o necessá­
ria’*. £ Bateson continua: ”0 estilo barroco é rápido e Inexato: é
rápido porque é Inexato. E o mesmo se dá com a dlcç&o poética. O
estilo de poetas como Thomson. Young, Gray e Coillns é um estilo rá­
pido; mas sua dicçfto é convencional. E a dlcç&o é convencional por­
que o estilo é rápido. Uma dlcç&o mais precisa e completa terla
destruído a impressão de rapidez que o estilo transmite. É apenas
porque as palavras individuais chamam t&o pouco a atenç&o que a
poesia é capaz de atingir sua sensaç&o sem par e quase abrupta de
movimento**.
5. Cf. Georg Mehlis, "Das aesthetlsche Problem der Ferne”
(Logos, VI, 1916/17, 173-184): "As profundezas enigmáticas da memó­
ria jamais foram perserutadas e exaustivamente sondadas por qual­
quer homem. ( . . . ) Cada tempo de vida organiza-se em um nexo par­
ticular de eventos que podemos relembrar e em que nos podemos de­
morar. ( . . . ) Esses mundos de experiência e memória s&o nossas
posses permanentes. ( . . . ) Eles têm a virtude de produtos termina­
dos ... um estado de compietltude que o presente n&o tem’*.
6. Ver Sym bolism : Its Meaning and Effect, especlalmente p. 58-59.
MEMÓRIA VIRTUAL 275

logicamente, de maneira que o ato puro de rememorar pode


datá-los uns com respeito aos outros; isto é, em uma lem­
brança vivida de (digamos) descer uma colina, a sensação de
estar no alto e de pisar pedregulhos secos fundiu-se com a de
movimento acelerado, do horizonte elevando-se em torno, de
lugares perto do fundo da trilha; e a série inteira de mu­
danças pode ser lembrada. Qualquer aventura especial no
caminho encontra, então, sua moldura temporal na própria
memória. Mas a maioria dos eventos é relembrada na quali­
dade de incidentes isolados, podendo-se datá-los apenas se
forem pensados em uma ordem causai na qual não são “pos­
síveis” exceto em determinadas ocasiões. Os outros itens nessa
ordem causai são as várias outras memórias da pessoa, mas a
ordem em si é um sistema intelectual. Crianças pequenas não
têm senso histórico. O passado é simplesmente “antes”; “onde
estávamos ontem” e “onde estávamos faz três dias” não são
expressões significativas, a menos que os dois lugares tenham
sido, por alguma outra maneira, identificados e relacionados
com aquelas datas relativas. Antes de conhecermos quaisquer
nomes para os dias da semana, para os meses, para a hora
do dia, mesmo memórias muito recentes não têm ordem. As
experiências das crianças ou ainda fazem parte do presente
ilusório — como a batida que ainda dói — ou transforma­
ram-se em lembranças, e fazem parte de um passado essen­
cialmente atemporal.
Mesmo nossa história pessoal, como a concebemos, é,
então, uma construção feita de nossas próprias memórias,
relatos de memórias de outras pessoas, e suposições de vín­
culos causais entre os itens assim fornecidos. Ela não é, de
forma alguma, inteiramente de lembranças. Nós não estamos
realmente cônscios de nossa existência como contínua. Al­
gumas vezes as recordações de diferentes lugares e atividades
em que nos encontramos são tão incongruentes que temos de
relembrar e arranjar uma série de eventos interpostos antes
de ficarmos convencidos realmente de que duas situações tão
diversas fazem parte da mesma vida. Especialmente quando
a memória é muito vivida, ela não tem continuidade. O inci­
dente profundamente impresso parece emergir do passado
inteiramente só, às vezes com detalhes tão extraordinários que
sugere uma experiência há pouco ocorrida, ainda muito
pouco modificada pelo esquecimento; então, embora o evento
rememorado possa ser de longa data, parece “como se
tivesse acontecido ontem”. Recordações recentes, por outro
lado, podem existir como meras consciências de fatos, sem tom
emocional, sem quaisquer detalhes, e podem mesmo tornar-se
confusas com eventos imaginados, de maneira que podemos
276 SENTIMENTO E FORMA

verdadeiramente dizer: “Lembro-me de que isso aconteceu,


mas não consigo me lembrar claramente como foi”.
A ilusão primária criada pela poesis é uma história
inteiramente “experienciada” ; e, na literatura propriamente
dita (enquanto distinta do teatro, filme ou história retratada),
essa história virtual está no modo tipificado pela memória.
Sua forma é a forma fechada, completa, que, na realidade,
apenas as memórias têm. Não é preciso que a literatura seja
composta de memórias do autor (embora possa sê-lo), nem
que necessariamente apresente eventos de maneira explícita
como memórias de alguém (embora possa fazê-lo), mas o
modo como aparecem os eventos é o modo da experiência
completada, isto é, do passado. Isso explica porque o tempo
normal da narração literária é o passado. A forma verbal —
fator puramente lingüístico — efetua a “projeção literária” ao
criar um passado virtual.
Entretanto, esse passado, que a literatura engendra, tem
uma unidade que a história pessoal não tem; pois nosso pas­
sado aceito não é inteiramente experiencial. Como nossas apre­
ensões do espaço, do tempo e das forças que nos controlam,
nosso senso de passado deriva de lembranças misturadas com
elementos estranhos, suposições e especulações, que apresen­
tam a vida como uma sucessão de eventos, mais do que como
uma ação progressiva única. N a ficção, entretanto, não existe
nada além da memória virtual; a ilusão de vida deve ser com­
pletamente experiencial. O mundo criado poeticamente não
está limitado às impressões de um indivíduo, mas está limitado
a impressões. Todas as suas conexões são conexões vividas,
isto é, motivações, todas as causas e efeitos operam apenas
como os motivos de expectativa, realização, frustração, sur­
presa. Eventos naturais são simplesmente os moldes em que
são vazadas as experiências humanas; sua ocorrência tem de
ser inerente à estória, que é uma ação total. Considere-se, por
exemplo, a tempestade perfeitamente natural na balada de
Sir Patrick Spens: é um “próximo passo” motivado psicolo­
gicamente depois de zarpar desafiadoramente da Noruega,
porque os pouco hospitaleiros noruegueses o insultaram. Nem
é ela introduzida por mero acaso, mas um de seus homens a
prediz:
I saw tbe new moon late yestreen
Wi* the auld moon in her arm;
And if we gang to sea, master,
I fear well come to harm.*
* “Vi a lua nova tarde ontem à noite/ Com a lua velha em seus
braços;/ E se sairmos para o mar, mestre./ Receio que algum mal nos
aconteça/*
MEMÓRIA VIRTUAL 277

Na vida real amiúde efetuamos tais predições racio­


nais; e, se o evento esperado não ocorre, a predição logo é
esquecida. Mas na poesia nada é esquecido exceto por pessoas
na estória. Se o leitor esquece, ele será lembrado (presumin­
do-se que a estória é bem contada); pois a concepção do
poeta não inclui nada que não sirva à narrativa, que é a
substância de sua criação. Reflexões, descrições vasos
preciosos, e mesmo personagens são apenas partes do conto,
ou do que é contado.
A narrativa, então, tem sempre a semelhança de memó­
rias, de maneira mais pura do que a história real, e mesmo
mais que a história pessoal que tratamos como nossa própria
memória; pois a poesia é criada, e se seus eventos forem em­
préstimos tomados à memória do artista, ele deve substituir
cada fator não-experiencial de seu “passado” real por elemen­
tos de caráter puramente experiencial, da mesma maneira
como um pintor substitui aparências puramente visuais pe­
los fatores não-visuais na percepção espacial ordinária. O
poeta elabora uma semelhança de eventosí que é como-que-ex-
periência, mas universalmente acessível; uma “memória” obje­
tivada despersonalizada, inteiramente homogênea, não im­
portando quão explícita e quão implícita é.
O contraste entre o avanço caótico do presente real e
a forma examinável da vida lembrada foi realçado por vários
artistas-filósofos, notadamente Marcei Proust, que sustentava
que aquilo que chamamos de “realidade” é antes um produto
da memória do que o objeto do contato direto; o presente é
“real” apenas por ser o material de memórias posteriores. Era
uma peculiaridade do gênio de Proust trabalhar sempre com
uma essência poética que era uma formulação espontânea e
perfeita de algo na memória real. Essa recordação intensa,
carregada emocionalmente, completamente articulada em ca­
da detalhe, contudo tão repentina e imediata quanto uma ex­
periência presente, não só era o catalisador que ativava a
imaginação de Proust, mas também constituía seu ideal de
ilusão poética, a ser atingido pela espécie mais consciente
e sutil de narração de estórias.
A literatura, no sentido estrito, cria a ilusão de vida no
modo do passado virtual. Poesis é um termo mais amplo
do que literatura, porque há outros modos de imaginação
poética, além da apresentação de vida através apenas da lin­
guagem. O teatro e suas variações (pantomima, marionetes)
e o cinema são essencialmente artes poéticas em outros mo­
dos, que irei discutir em um capítulo posterior; empregam
palvras de maneira especial, e algumas vezes chegam até a
dispensá-las completamente. A ilusão que criam é vida virtual,
278 SENTIMENTO E FORMA

uma história experiencial, mas não na projeção mnemônica,


não um Passado virtual. Este modo é peculiar à “literatura”
no sentido estrito de arte verbal — obras de imaginação a
serem ouvidas ou lidas.
O pretérito perfeito é um recurso natural para produzir
e manter uma ilusão de fato consumado. O que desafia o teó­
rico é, antes, o uso ocasional do presente na narrativa, e espe­
cialmente seu uso normal na poesia lírica. £ o presente e o
"present perfect”* que exigem explicação. O papel dessas
formas na criação da história virtual lança algumas luzes
interessantes sobre a natureza da memória; pois a memória
tem muitos aspectos que os psicólogos não descobriram, mas
dos quais o poeta, que constrói sua imagem, está cônscio. Um
poeta, porém, não é um psicólogo; seu conhecimento não está
explícito mas implícito em sua concepção da imagem. O crí­
tico, analisando a maneira pela qual a “rememoração” do
Passado virtual é feita, é a pessoa que está em uma posição
de descobrir os meandros da memória real através dos recur­
sos artísticos que levam a cabo sua semelhança.
Existem certos usos ordinários, não-literários, do pre­
sente que indicam suas possibilidades para finalidades cria­
tivas. Seu uso oficial é, evidentemente, designar ações que
ocorrem no momento em que se fala. Os gramáticos geral­
mente citam o presente indicativo de um verbo em primeiro
lugar, e, ao ensinar uma língua, nós o ensinamos primeiro,
como se fosse a forma mais necessária, mais útil. Na reali­
dade, é de pouca utilidade em inglês; raramente dizemos
“I go”, “I wait”, (“eu vou”, “eu espero” ), etc.; geralmente
substituímos pela forma “progressiva” . A razão é que o pre­
sente puro se refere a um desempenho momentâneo, o par-
ticípio com I am (“eu estou” ) a um desempenho mantido,
um estado ativo; uma ação imediata em curso, de hábito
é aparente, e não é preciso que seja mencionada7; assim,
quando falamos de atos presentes, normalmente fazemo-lo
para explicar nosso comportamento imediato como parte de
uma ação prolongada e, portanto, usamos o presente “pro­
gressivo” : “I am going home”, “I am waiting for a bus”.*
O uso mais importante do presente puro está na enuncia-
ção de fatos gerais, como as leis da natureza, ou de rela­
ções entre conceitos abstratos, como as proposições em um

* Correspondente, em português, ao pretérito perfeito oomposto.


7. Exceção feita das afirmações freqüentes: “Eu acho.. “Eu
não acredito.*.", “Eu s i n t o . p o i s os atos subjetivos não são apa­
rentes por sl mesmos.
* Literalmente: “Eu estou indo para casa", “Eu estou espe­
rando um ônibus.** Para manter o mesmo sentido do inglês, o primei­
ro exemplo deveria ser traduzido como “Eu vou para casa’*.
MEMÓRIA VIRTUAL 279

livro de álgebra. Ciência, filosofia e crítica normalmente são


escritas no presente puro; “2 + 2 = 4” lê-se “dois mais dois
é quatro”, não “foi” ou “está sendo” ou “será”. O presente
em um tal contexto é o tempo da atemporalidade8. Ê usado
quando o tempo é irrelevante — quando entidades abstratas
são relacionadas, verdades gerais expressadas, ou meras idéias
associadas independentemente de qualquer situação real, como
no devaneio.
Talvez seja esse caráter “atemporal” do presente pu­
ro que faz com que os gramáticos o citem antes de todos
os outros tempos; ele é como um módulo de conjugação
verbal — uma forma algures entre o infinitivo, que mera­
mente nomeia uma ação sem afirmar em absoluto sua ocor­
rência, e os tempos que não só a indicam, como a datam.
Na literatura, o presente puro pode criar a impressão de
um ato, no entanto suspende a sensação de tempo em relação
a ele. Isso explica seu uso normal na poesia lírica. Muitos
críticos, supondo que o presente deve referir-se ao momento
presente, foram levados, por essa suposta evidência grama­
tical, a acreditar que a poesia lírica é sempre a enunciação das
crenças e sentimentos reais do próprio poeta®. Eu mantenho,
porém, que a composição lírica é arte e, portanto, criativa;
e o uso de seu tempo característico deve servir à criação que
é peculiar a esse tipo de poesia.
Como já disse antes neste capítulo, a semelhança criada
com maior freqüência numa lírica é a de um evento muito
limitado, de uma partícula concentrada de história — o
pensar um pensamento emocional, um sentir algo a respeito
de alguém ou alguma coisa. A estrutura é de idéias
ocorrentes, não de acontecimentos externos; a contemplação é
a substância da lírica que motiva e mesmo contém a emoção
apresentada. E o tempo natural da contemplação é o pre­
sente. As idéias são atemporais; em uma lírica não se diz
que elas ocorreram, mas que estão virtualmente ocorrendo;
as relações que as ligam são atemporais também. A criação
inteira em uma lírica é uma consciência de uma experiência
8. Na literatura da epistemologla, a observação desse uso “atem­
poral" do presente pode ser encontrado em Analysis of Meaning and
Valuation , de C. I. Le-wis, p. 51»
9. Ver» por exemplo, o artigo de D. G. Brinton, “The Epllogues
of Browning: Their Artlstic Slgnlficance" ( “Os Epílogos de Browning:
Sua Significação Artística"), em P oet Lore, IV (1892), que enumera as
seguintes conclusões:
“ (1) Que Browning unlformemente trata o epílogo como um
elemento, não de poesia dramática, mas de poesia lírica.
'(2) Que, com ele, o epílogo se aproxima da forma do solllóqulo,
e 6 destinado a produzir um relacionamento direto e pessoal entre
ele e seu leitor.
“ (3) Que seus epílogos s&o as únicas porções de seus escritos em
que declaradamente abandona a tendência dramática de seu gênio e
expressa seus próprios sentimentos enquanto homem".
280 SENTIMENTO E FORMA

subjetiva, e o tempo da subjetividade è o presente "atem­


p o r a l Esse tipo de poesia tem o caráter “fechado” do modo
nmemônico, sem a fixidez histórica que eventos externos
outorgam às memórias reais; ela está na “projeção histórica”
sem cronologia. Escrever líricas é uma técnica especializada
que constrói uma impressão ou uma idéia como algo experi­
mentado, em uma espécie de presente eterno; dessa maneira,
ao invés de oferecer proposições abstratas nas quais tempos e
causação simplesmente não entram, o poeta lírico cria uma
sensação de realidade concreta da qual foi anulado o ele­
mento tempo, deixando uma sensação platônica de “eterni­
dade” .

Essa atemporalidade é na realidade um dos traços


marcantes de muitas memórias. A rememoração de estados
de espírito e atitudes, como a febre de primavera ou a pensa-
tividade, normalmente não faz referência a ocasiões especí­
ficas; contudo uma experiência assim é definitivamente
familiar e surge, na lembrança, com a vividez de algo muito
recente. Amiúde os mais remotos estados de ânimo infantis
voltam de súbito com um frescor completamente acronoló-
gico; contudo, não os defrontamos como se fossem novos,
como o presente atual, mas como antigas posses. Nossa
memória de pessoas com as quais vivemos geralmente tem
esse caráter atemporal.
Se, agora, nos voltarmos da lírica, com seu caráter atem­
poral, pessoal, para a poesia narrativa, é bastante natural
que encontremos o perfeito e o mais-que-perfeito como tem­
pos normais para construir a moldura de eventos impessoais,
físicos. Na simples enunciação discursiva de fatos históricos,
usam-se apenas os tempos passados. Mas a enunciação poéti­
ca tem um objetivo diferente; seu propósito não é informar as
pessoas daquilo que aconteceu e quando, mas criar a ilusão
de coisas passadas, a semelhança de eventos vividos e senti­
dos, como uma memória abstraída e consumada. Os poetas,
portanto, exploram as formas verbais gramaticais para toda
nuança de imediatidade ou indiretidade, continuidade ou
finalidade, isto é, por seu poder de enformar a experiência
virtual, mais do que por sua função literal de nomear ações
e datá-las. Assim, encontramos o presente, mesmo aqui, em
sua capacidade “atemporal”, e também em algumas outras.
Uma destas é o conhecido “presente histórico” que aumenta
a vitalidade de uma ação ao ser esta contada “como se fosse
agora”. Esse artifício pode ser muito eficaz, mas tem sido
usado tão espalhafatosamente por jornalistas e novatos que
se transformou num truque óbvio. É interessante notar que,
MEMÓRIA VIRTUAL 281

quando um verdadeiro mestre o emprega, o presente usual­


mente tem outra justificativa além de realçar a ação. Existe
um genuíno “presente histórico” na “Rime of the Ancient
Mariner” :
Swiftly, swiftly flew the ship,
Yet she sailed softly too;
Sweetly, sweetly blew the breeze—
On me alone it blew.
Oh! dream of joy! is this indeed
The lighthouse top I see?
Is this the hill? is this the kirk?
Is this mine own countree?*

O presente de fato intensifica a alegria repentina do Mari­


nheiro quando ele reconhece seu porto de partida, mas faz
mais do que isso: encerra a viagem, como “agora” sempre
encerra a história subjetiva da pessoa. A estória culmina no
retorno do Marinheiro, como o passado culmina no presente.
Note-se como o desembarque (descrito no passado) forma
uma cadência que termina com outro “presente histórico”,
que, transbordando, para um futuro, a fim de reforçar o
efeito:
I saw a third — I heard his voice:
It is the hermit goodí
He singeth loud his godly hymns
That he makes in the wood.
H ell shrieve my soul, h ell wash away
The albatross’s blood.**
Entretanto, o uso mais interessante, do presente em narra­
tivas que realmente se movem no passado, é um uso que, até
onde sei, jamais foi reconhecido como uma consecução técni­
ca. Talvez os críticos literários não o tenham percebido por­
que têm a tendência de pensar sobre um poema como algo
que o poeta diz, mais do que como algo que o poeta faz,
e o que ele diz não é realçado por esse sutil jogo de tempos;
refiro-me à mistura de construção no presente e no passado
que comumente se apresentam em baladas, especialmente nas
estrofes iniciais e finais. É uma prática gramaticalmente incon­
sistente, mas tão difundida que obviamente tem uma missão
artística. Não dá a impressão de um solecismo, nem desorienta
o leitor quanto ao tempo em que se passa a ação. Geralmente
passa sem chamar a atenção. Nas antigas baladas tradicio­

• “Rima do Antigo Marinheiro’*: “Rápido, rápido voava o navio,/


Más velejava suave também;/ Doce, soprava a brisa.../ Soprava só em
mim./ Oh] sonho de alegria! será esse de fato/ O topo do farol que
vejo? Será essa a colina? Essa a igreja?/ Será essa minha terra?”
♦ * “Vi um terceiro — ouvi sua voz:/ Ê o bom ermlt&o!/ Ele canta
alto seus divinos hinos/ Que ele faz na floresta./ Ele absolverá minha
alma, ele lavará/ O sangue do albatroz.”
282 SENTIMENTO E FORMA

nais, a dicção freqüentemente é tão coloquial que se pode


atribuir a imprecisão de tempo verbal ao descuido popular;
mas dificilmente poder-se-ia permiti-la com tais bases nas
excelentes baladas escritas por poetas modernos. “The Rime
of the Ancient Mariner”, “The Lady of Shalott”, ou a
“Erlkõnig” de Goethe, em todas as quais ela ocorre e, geral­
mente, nem chega a ser observada. É um dos recursos do ba-
ladista, e foi usada de modo tão natural tanto por poetas
recentes quanto pelos antigos quando o espírito da balada
pairava sobre eles.
Aduzindo alguns exemplos do acervo da poesia
anônima inglesa: em “The Queen’s Marie” 10, as primeiras
três estrofes misturam tempos presente e passado; as estrofes
quatro e cinco estão no passado; a sexta mescla os tempos
novamente; a sétima e a oitava aparecem no presente; depois
disso, começa a ação conexa, Marie é levada após o parto
a levantar-se e cavalgar junto com a rainha, entra em Edin-
burgo, é acusada e condenada. Todas essas ações conexas,
obra de um dia, são contadas no passado, até o final da es­
tória.
Em “Sir Patrick Spens”, a primeira estrofe está no pre­
sente, a segunda no passado, a terceira começa no perfeito
composto (present perfect) e termina com o perfeito puro
progressivo (‘Vas walking”, “estava andando” ). Com o rece­
bimento da carta, começa a aventura, e a narrativa prossegue
no tempo passado até que o desastre termina; as últimas três
estrofes, que são conseqüências, acham-se no presente de
novo.
Se, agora, nos voltarmos para “The Rime of the An­
cient Mariner”, encontramos a mesma mistura de tempos. A
primeira estrofe está no puro presente; a segunda deve ser des­
contada, uma vez que é discurso direto; a terceira, quarta
e quinta são misturadas. Então começa a verdadeira estória
em discurso direto, e contada no passado, com exceção de
duas estrofes (as que empregam um genuíno “presente
histórico” ) até que a estória é relatada e o Marinheiro fala
do que é presente. Ê só no final que a narrativa impessoal é
retomada, e nessas duas estrofes finais os tempos aparecem
de novo mesclados:
The mariner whose eye is bright,
Whose beard with age is hoar,
Is gone; and now the Wedding-Guest
Turned from the brídegroom’s door.

10. A maioria, se n&o todas, de tais antigas baladas é conhecida


em multas versões. A versão aqui citada é a do The Oxford Book of Ballads.
MEMÓRIA VIRTUAL 283

He went like one that hath been stunned,


And is oí sense forlorn;
A sadder and a wiser man
He rose the morrow m ora.*
Mesmo o uso de “hath” e “is” na comparação, embora for­
malmente correto, é inusitado, pois o tempo com que uma
tal oração relativa geralmente concorda é o da oração prin­
cipal . A forma estritamente acurada é aqui empregada em seu
sentido estritamente acurado, que é atemporal, uma vez que
que a referência não é a “um” qualquer em particular que
tinha ficado aturdido. Esse toque de atemporalidade é exata­
mente aquilo que o poeta queria.
Na famosa balada de Tennyson, “The Lady of Shalott”,
as primeiras sete estrofes, que contam sobre o lugar, a
dama, sua vida e sua canção, a maldição, o espelho, e a teia,
estão no presente. Na oitava estrofe — a última da Segun­
da Parte — o perfeito é introduzido quase que impercepti-
velmente. Depois disso, a ação prossegue a partir de uma
ocasião definida (a passagem de Lancelote a cavalo) até o
fim, e é contada de modo consistente no passado.
O princípio que governa tal uso parece ser o de que todo
o necessário para criar o contexto da estória é apresentado
como uma condição sem data. Isso se adequa à natureza
da memória; todo o nosso conhecimento relevante está im­
plícito na lembrança de um evento passado, mas não é em
si “lembrado” como sendo dessa época. É o ambiente his­
tórico ativo, não a história em si mesma; e, na poesia, onde
a semelhança de história vivida é criada, e sua moldura de
conhecimento implícito também tem de ser criada através
da narração explícita, o senso da diferença entre eventos
e suas circunstâncias motivadoras é freqiientemente dado
pelo jogo de tempos, que torna o senso de tempo indefi­
nido para tudo, menos para a própria ação.
Isso, é claro, não é uma regra, mas um recurso que
pode ou não ser usado. Há baladas em que o tempo pre­
sente jamais ocorre (por exemplo, “Clerk Saunders” ), e
há algumas em que é utilizado em meio à narrativa para
indicar um salto na ação. Em “Binnorie” (tematicamente,
aventuro-me a dizer, uma das mais antigas lendas em toda
nossa tradição), a estória é contada no passado até o pon­
to em que a princesa jaz morta ao lado do dique, e o har­
pista passa:

* "O marinheiro, cujos olhos sâo brilhantes,/ Cuja barba está


branca de velhice,/ Fol-se; e agora o Conviva do Casamento/ Afastou-se
da porta do noivo./ Ele foi como alguém que ficou aturdido,/ E está
desolado;/ Um homem mais triste e mais sábio/ Ele levantou-se na
manhá seguinte.*'
284 SENTIMENTO E FORMA

And when he look’d that lady on,


He sigh’d and made a heavy moan.
He’s made a harp of her breast-bane,
Whose sound wad melt a heart of stane.
He’s ta*en three locks o* her yellow hair,
And wi’ them strung his harp sae rare.
He went into her father’s hall.
And there was the court assembled all.*

Assim a narrativa prossegue novamente, em sua forma na­


tural .
Uma das manipulações mais incomuns e brilhantes
do tempo na poesia narrativa ocorre na “Erlkõnig” de
Goethe: esta balada é, de ponta a ponta, uma obra-prima
de estrutura retórica para efeito poético11. Há apenas
quatro linhas de afirmação impessoal antes de que o diálo­
go tome posse inteiramente, e essas quatro linhas estão no
presente. O poema termina, de forma semelhante, com qua­
tro linhas de narrativa, todas no presente, exceto a última:

Dem Vater grausefs, er reitet geschwind,


Er hált in den Armen das âchzende Kind.
Erreicht den Hof mit Mühe und Not;
In seinen Armen das Kind war tot.

* “E quando ele olliou para a dama,/ Suspirou e deu um pro­


fundo gemido./ Ele fez uma harpa com o esterno dela,/ Cujo som
derretia um coração de pedra./ Ele tomou três cachos de seu cabelo
amarelo,/ E com eles fez cordas para bu& harpa./ Ele entrou no átrio
do pai dela,/ E lá estava toda a corte reunida.'1
11. Uma tensfio quase incrível é erigida e constantemente au­
mentada por perguntas em todos os níveis de dlBcurso e experiência;
primeiro, a pergunta impessoal do poeta:
Wer reitet so spát durch Nacht und Wind?
A breve introdução narrativa é a resposta. Depois, a pergunta do pal:
“Meln Sohn, was birgst du so bang deln Geslcht?’*
a que a criança responde com outra pergunta:
“Siehst, Vater, du den Erlkõnig nicht?
Den Erlenkônig, mit Kron’ und Schweif?”
O pai lança uma única linha de resposta tranqülllzadora:
“Meln Sohn, es lst eln Nebelstrelf."
Depois vem a suave tentação do Rei Amieiro, e a pergunta mais
urgente da criança:
“Meln Vater, meln Vater, und hüresfc du nicht
Was Erlenkônig mlr lelse versprlcht?*
Logo o próprio fantasma fala no modo interrogativo:
“Wlllst, feiner Knabe, du mit mlr gehn?M
E a criança, novamente:
“Meln Vater, meln Vater, und slehst du nicht dort
Erlkõnlgs Tõchter am düstera Ort?“
Dessa forma, todo o fantasma é criado de Incertezas, assim, a de­
claração final:
“Ich llebe dlch, mlch relzt delne schõne Gestalt;
Und blst du nicht wllllg, so brauch’ ich Gewalt!'
vem com uma força terrível, que traz à tona o grito:
“Meln Vater, Meln Vater, jetzt fasst er mlch anl”
e faz com que a própria crise pareça uma solução, só porque é fato,
e rompe a tensão de tantas perguntas:
“Erlkõnig hat mir eln Leids getanl"
Isso é uma suprema composição, da primeira palavra à última.
MEMÓRIA VIRTUAL 285

(O pai está abalado, cavalga apressado,


A criança está gemendo em seu abraço;
Ele chega à casa, com medo e pavor;
A criança em seus braços estava m orta.)
Aqui a súbita incursão do passado encerra a aventura e o
poema, com o poder de uma cadência completa — o tempo
“perfeito”, o fato consumado.
O presente ali serve a dois efeitos concomitantemente —
seu caráter de estar “fora do tempo” ajuda a criar a atmos­
fera irreal em que surgem todas as perguntas e visões, e
seu caráter imediato — a fórça do “presente histórico” —
realça a ação. Além do mais, é claro, ele prepara o efeitò
da mudança de tempo na linha final.
A função normal do tempo de verbo no passado é criar
a “projeção histórica”, isto é, a aparência de eventos no mo­
do mnemônico, como uma realidade vivida e lembrada. As
pessoas tacitamente reconhecem essa função do “perfeito”
(note-se como seu nome técnico evidencia seu poder de
formulação e definição), ao evitá-lo quando contam sim­
plesmente o enredo de uma obra literária. Ao esboçar a
ação de uma estória, poema ou filme, habitualmente usamos
o presente, pois não estamos compondo a ação em termos
de alguma forma artística. A regra não escrita de que tais
paráfrases sejam adequadamente relatadas no presente origi­
na-se de um genuíno sentimento poético; o verbo no passa­
do faria com que a simples enunciação de enredo tivesse a
pretensão de status literário, e, como literatura, ela seria
atrozmente má. Assim, deixamos nossas sinopses no “pre­
sente atemporal” a fim de indicar que estamos exibindo ma­
teriais, e não apresentando elementos, de arte.
A lenda, o mito e o conto de fadas não são em si
mesmos literatura; não são em absoluto arte, mas, sim,
fantasias; enquanto tais, entretanto, são os materiais na­
turais da arte. Por sua natureza, não estão ligados a quais­
quer palavras determinadas, nem mesmo à linguagem, mas
podem ser relatados ou pintados, representados ou dan­
çados, sem sofrer distorção ou degradação12. Mas a li­
teratura propriamente dita é o uso da linguagem a fim
de criar história virtual, ou vida virtual, no modo mnemôni­
co — a semelhança de memória, embora uma memória des-
personalizada. Uma lenda apresentada como estória é uma
criação tão nova quanto qualquer obra cujo enredo acabou
de ser inventado; pois, narração à parte, a ação ou “enre­
12. Essa circunstância foi-me apontada pela llustradora Helen
Sewell, que tem dedicado multa reflexão âs relações entre literatura
e pintura, e os direitos de ambas às nascentes da tradição ( lore ) popular.
286 SENTIMENTO E FORMA

do” não é uma “obra”, não cria qualquer ilusão completa


e organizada de algo vivido, mas está para a literatura
como uma armação ou bloco rudemente talhado está para
a escultura — uma primeira forma, uma fonte de idéias.
O principal instrumento de prova do uso artístico dos
tempos verbais, em toda minha longa discussão, foi a arte dos
antigos fazedores de baladas, de quem alguns poetas modernos
aprenderam seu ofício; assim, é surpreendente, para não dizer
desconcertante, constatar que alguns reconhecidos especialistas
na balada popular sustentem vigorosamente que ela não é, de
maneira alguma, arte literária, mas pertença à matriz pri­
mitiva da fantasia espontânea. Frahk Sidgwick, por exem­
plo, em seu pequeno livro, The Ballad, afirma-o enfatica­
mente .
Uma balada [diz ele], está, e sempre esteve, tão distante de
ser uma forma literária que é, em seus elementos essenciais, não
literária, e . .. não tem uma forma única. É um gênero não só
mais antigo do que a Epopéia, mais antigo do que a Tragédia mas
também mais antigo do que a literatura, mais antigo do que o
alfabeto. É tradição (/ore), e pertence aos iletrados1^ .

Até aqui, tudo bem; se se tomar “literatura” em seu


sentido estrito, como uma arte de letras, então, é claro, a
poesia de sociedades analfabetas não é “literatura”. Mas
quando o Prof. Sidgwick diz que a balada não é poesia tenho
de discordar. O fato de toda balada possuir várias versões e,
portanto, nenhuma forma única, não quer dizer que ela não
possua forma nenhuma. Mitos são “lore” ; não têm métrica,
nem frases características, e são registrados com a mesma fre-
qüência em pinturas de vasos e baixos-relevos quanto em
palavras. Uma balada, entretanto, é uma composição; e, em­
bora seja multiforme, não vinculada a uma forma completa­
mente determinada, ela é essencialmente poética. Como todas
as obras transmitidas pessoalmente — canção popular, litania
e dança (mesmo hoje) — , a balada viva tem uma forma aber­
ta; ela pode sobreviver a muitas variações, porque sua con­
cepção não é completamente verbalizada, embora as princi­
pais decisões quanto à sua progressão estejam todas tomadas.
Como o baixo figurado, ela convida à elaboração.
A natureza essencialmente poética da balada folclórica
fica bem atestada por uma prática que se desenvolveu no
momento em que tais composições populares foram escritas
— o costume de fornecer uma paráfrase consecutiva por
meio de glosas marginais. Essa paráfrase é mantida no13
13. The Ballad , p. 7-8.
MEMÓRIA VIRTUAL 287

presente, e expressa a fantasia protopoética, o enredo puro,


que podería ser incorporado da mesma forma em uma peça,
um conto, um friso, uma série de tapeçarias, ou uma ópera.
A balada, por outro lado, emprega normalmente o tempo de
verbo da verdadeira narrativa; cria uma ilusão poética no
modo literário, embora sua verbalização seja pré-letrada. O
que a torna memorável não é o enredo enquanto tal, mas o
poema — o trecho criado de história virtual, que é uma for­
ma expressiva não-discursiva.
A afirmação amiúde repetida — em que o Prof. Sidgwick
insiste — de que uma balada não possui autor, de que é
um produto de grupo, “emoção cristalizada em uma multi­
dão”, parece-me não ter fundamentos. Ninguém jamais soube
de uma multidão que inventasse uma canção, embora suces­
sivos membros desta possam elaborar uma, acrescentando
estrofes ou propondo paródifes, uma vez que seu tema poético,
seu esquema de rimas e melodia tenham sido propostos (a
métrica usualmente é ditada pela melodia). A idéia vem de
ama pessoa; e uma canção séria, tal como um spiritual, geral­
mente é apresentada em uma forma completa, por mais sim­
ples que seja. A multidão a adota; e, se a canção é bem
recebida, e é transmitida, sua autoria logo toma-se obscura,
embora o compositor possa ter fama local como alguém fre­
quentemente inspirado14.
O conceito de folk como uma perfeita democracia de tar
lentos é uma ficção pseudo-etnológica que se orgina, creio eu,
da anonímia da arte folclórica. Mas, voltando à balada, é
altamente improvável que ninguém haja inventado um poema
como “The Wife of Usherís Well”. Não importa quantas
versões possam existir, alguém compôs a estória originalmente
em métrica e rima, e forneceu o “cerne poético” de todas as
variantes que podem ser reunidas sob o título.
Ê esta “forma aberta” uma característica essencial da
verdadeira balada? Se a “verdadeira balada” é um conceito
etnológico, sim; mas se a considerarmos como categoria
poética, não. Grafar as palavras de uma balada não a
destrói, embora sua função sociológica possa ser alterada

14. Existe um interessante estudo de Elsa Mahler sobre a en-


decha russa como uma espécie de poesia camponesa. A forma mé*
tiica, as figuras de retórica e outras rubricas sfio tradicionais; mas
a expectativa é que toda mulher seja capaz de improvisar a endecha
para seus mortos (essa é tarefa feminina). Naturalmente, talento e
imaginação diferem grandemente; mas cada endecha, que é por certo
“poesia do folk”, é sempre a obra de um poeta. Uma vez que o costu­
me exige um novo poema para cada ocasião, não há motivos para es­
crever nem mesmo os melhores. Ver Elsa Mahler, Die russiche Totenkla-
get ihre rituelle u. dichterische Deutung.
288 SENTIMENTO E FORMA

ou mesmo destruída. Teoricamente, todas as suas versões


poderiam ser escritas, não sendo dado a nenhuma preeminên-
cia, exceto na prática, pelo favor popular, posto que toda a
gente tem acesso a todas elas. Evidentemente, o fato é que,
entre o público e a obra medeiam editores e publicadores, e
eles padronizam as versões de sua escolha; os efeitos étnicos
da alfabetização não podem ser evitados.
Como todo poema que se sabe de cor pode ser registrado
por escrito, a balada, embora não seja “literatura” em seu
estado prístino, estava destinada a tornar-se uma forma lite­
rária; e muitas versões de baladas oralmente lembradas eram
sutis. Tão logo apareceram impressas, forneceram ao mundo
letrado e literário uma forma altamente característica. Essa
nova forma, entretanto, não é para cantar; não é sequer para
recitar, mas — como a “literatura” mais madura — é para
ser lida.

A vigorosa insistência do Prof. Sidgwick de que a


balada não é poesia pode fundar-se não em algum mal-en­
tendido sobre a forma de balada (o que seria muito pouco
provável em uma pessoa com suas qualificações), mas
naquilo que eu consideraria uma concepção demasiado es­
treita da arte poética: a identificação dessa arte com seu
próprio desenvolvimento mais elevado, que é “literário”
no sentido estrito, a feitura de estruturas verbais comple­
tamente fixadas, invariáveis — fixadas por serem escritas
ab initio por seus autores. Tais poemas estão para a poesia
folclórica como as chamadas “canções artísticas” estão para
a canção folclórica; mas a canção popular, a toada simples
com texto variável e qualquer tipo, ou nenhum tipo, de
acompanhamento, é ainda música, e nada mais que música;
e a balada tradicional com suas numerosas versões, algu­
mas grosseiras e algumas formalmente belas, é ainda poesia
no modo “literário” de memória virtual.
Talvez a concepção escrita da “literatura” como matéria
de leitura origine-se de um protesto inconfessado mas bas­
tante justificado contra uma teoria popular, sustentada tam­
bém por muitos teóricos, de que a palavra escrita é um
inimigo da experiência poética — de que toda poesia, e
(dizem alguns) inclusive toda prosa, deveria na realidade
ser lida em voz alta, e de que a leitura em silêncio é apenas
um substituto pobre para a audição da palavra falada. Talvez
a noção de que a literatura começa somente com as letras
seja simplesmente uma excessiva reação compensatória ante
essa doutrina bastante difundida, mas superficial. A arte da
MEMÓRIA VIRTUAL 289

imprensa, de acordo com a teoria “oral” da poesia, privou-nos


de muito prazer literário, pois nossa habilidade de preservar
inúmeras palavras do esquecimento foi comprada ao preço de
nossa experiência real destas. As palavras, como a música,
são essencialmente algo para a audição física15.
Se o princípio do Prof. Sidgwick de datar a “literatu­
ra” a partir do advento da alfabetização é de fato uma revolta
contra tal teoria, posso apenas assentir em espírito en­
quanto critico a sua definição da poesia. O tratamento da
poesia como som físico comparável à música baseia-se,
acredito, em um total mal-entendido sobre aquilo que um
escritor cria e sobre qual é o papel do som nessa criação.
Existe poesia que aproveita, ou mesmo exige, a fala real16
(E . E . Cummings, por exemplo, ganha tremendamente
quando lido em voz alta; onde as palavras são usadas de
maneira impressionista e não se pretende que a pessoa se
detenha nelas e as examine para um sentido literal, a reci­
tação é uma vantagem, pois não nos permite parar, mas
nos força a passar por cima da palavra problemática e
receber apenas a impressão que ela foi destinada a d a r).
Mas muita poesia e quase que toda a prosa devem ser lidas
com rapidez algo maior do que a velocidade normal da fala17.
Falar depressa não satisfaz essa exigência, porque se toma
precipitado. A leitura silenciosa na realidade é mais rápida,
mas não parece, porque não é apressada ante um ritmo
mais rápido, enquanto que a enunciação física o é. As
imagens querem passar mais céleres do que a palavra fala­
da. E, além do mais, na ficção em prosa, bem como em
um bom número de poemas, a voz de um elocutor tende
a intrometer-se no mundo criado, transformando o vocativo
lírico formal, como:

I teli you, hopeless grief ís passionless*

15. A expressão desse ponto de vista por Calvin S. Brown, Jr„ em


sua Music and Líterature: A Comparison o t the Arts, Já foi citada e dis­
cutida no Cap. 9, p. 134-135.

16. Multas pessoas supõem que a poesia multo sonora ou musical,


especialmente, perde sua beleza se não for falada. Tal poesia, porém, é,
de fato, a mais fácil de “ouvir" lnteriormente.
17. Esse ponto de vista é corroborado nas palavras de H. W. Boynton,
que escreveu, há cerca de melo século: “Fora da poesia, existem poucas
formas de literatura que não fiquem tfio bem ou melhores sem a inter-
poslçáo da voz. A razão disso parece ser que uma página impressa dota
o ouvido de uma faculdade de audição rápida. O ouvido Interior pode
receber uma impressão de modo tão seguro quanto o ouvido exterior, e
com muito maior rapidez. As palavras impressas representam som mais
do que forma para a maioria das pessoas. ( . . . ) ” ( “Pace ln Reading’’,
em Joum alism anã Líterature, and Other Estiays, p. 62).
* “Dlgo-lhe, a mágoa desesperada não 6 apaixonada."
290 SENTIMENTO E FORMA

em discurso genuíno, dirigido pelo representante do poeta


— o elocutor — a outra pessoa real, o ouvinte18. Um ro­
mance centralizado principalmente na criação de persona­
lidades virtuais quase sempre sofre, quando lido em voz
alta, pela presença periférica do leitor (contos de fadas, es­
tórias de aventuras, e romances medievais não são grande­
mente influenciados dessa form a).
O signo mais seguro de que o fato de escrever e ler
não mina a vida da arte poética é o fato histórico de que
o verdadeiro desenvolvimento de tal arte — a emergência
de suas formas especiais, tanto na poesia quanto na prosa —
processa-se em uma cultura somente depois que a escrita é
estabelecida. É o poeta letrado que explora os meios técnicos
permitidos por sua arte, inventa novos elementos estilísticos,
e estende seus numerosos projetos de modo a englobar mais
e mais material. Somente na escrita podería a prosa tomar-se
um meio artístico. Essa e todas as outras formas especiais
desenvolveram-se, creio, pela exploração de técnicas alterna­
tivas; cada meio de criar a ilusão poética produziu sua própria
espécie de composição. Traçar essa evolução das grandes for­
mas literárias, cada uma à base de seus principais recursos, é
a maneira mais rápida de demonstrar que toda “escritura
criativa” é poesia e, na medida em que trabalha só com pala­
vras, cria a mesma ilusão: memória virtual, ou história ao
modo de um Passado experimentado.

18. A confusão torna-se ainda mais desastrosa quando o voca-


t,lvo direto é colocado na boca de um personagem, e pressupõe alguém
que responde e não é explicado no poema, por exemplo:

“Nay, but you, who do not love her,


Is she not pure gold, my mlstress?1

( “N&o, mas você, que não a ama,
Não é ela ouro puro, minha senhora?”)
ou:
“Let us go then, you and I,
When the evenlng ls spread out agalnst the sky
Llke a patlent etherlsed upon a table.”
(“Vamos, então, você e eu,
Quando a noite está espalhada contra o céu
Como um paciente eterizado sobre uma mesa/’)
Um critico recente, Morris Weltz, propôs como uma Interpretação
óbvia, que Prufrock — uma pessoa fictícia, um elemento no todo poético
— tome o leitor para que nós nos vejamos andando com ele por ruas se-
midesertas, e que o poema não crie, mas revele, confidente, ”a lndecÍ6ão
de Prufrock e a nossa” ! (Ver Philosophy of th e Arts, p. 96).
16. As Grandes Formas Literárias

Todas as convenções artísticas são recursos para criar


formas que expressam alguma idéia de vitalidade ou emo­
ção. Qualquer elemento em uma obra de arte pode contri­
buir para a dimensão ilusória em que tais formas são apre­
sentadas, ou para sua aparência, sua harmonização, sua
claridade e unidade orgânica; pode servir a muitos de tais
objetivos ao mesmo tempo. Tudo, portanto, que faz parte
de unia obra é expressivo; e todo artifício é funcional.
Supor que um bom poeta usou um determinado vocabulá­
rio simplesmente porque este era considerado como a lin­
guagem adequada para a poesia em sua época é uma expli­
cação a-histórica. A pergunta importante é por que os
poetas, em sua época, utilizaram tais palavras — que tipo
de semelhança estavam produzindo, e por qual meio, isto
c, o que tais palavras estavam fazendo na literatura.
O vocabulário poético de uma época consiste das ma­
neiras de falar que os poetas estavam explorando naquele
tempo. Que um homem introduza um novo giro de frase,
uma nova imagem, ou um novo recurso rítmico para (diga­
mos) expandir uma ação, ou apressá-la, ou demorar-se nela,
outros poetas evidentemente serão afetados pela técnica da­
quele. Os mais fracos imita-la-ão; mas seus verdadeiros pares
irão usar soluções análogas para seus próprios problemas e
desenvolverão outros recursos em harmonia e combinação
com esta. Não sabemos, por exemplo, quem foi o primeiro
292 SENTIMENTO E FORMA

poeta a empregar um verso de apenas um ou dois acentos,


detendo o fluxo de uma estrofe que depois continua com
uma cadência mais lenta; mas a prática é comum na poesia
elisabetana e serve para mais de um propósito. Henick a
emprega para aprofundar um sentimento ou um pensamento,
como em seu poema “To Daffodils” ; Donne usa-a para gerar
uma sensação de rigidez e frieza:
Though she were true, when you met her,
And last till you write your letter,
Yet she
Wffl be
False, ere I come, to two or three.*

Fletcher deixa que o verso curto sirva de resposta, de


assentimento formal, como uma reverência:
Cynthia, to thy power and thee
We obey.**

Todos os usos desse pequeno instrumento, um por um, são


explorados — não apenas para retardar um ritmo, mas
também para detê-lo com uma nota de finalidade:
Forbear therefore,
And lull asleep
Thy woes, and weep
No more.***
Ele serve como pausa, como acento, como eco, como acorde
final e, sem dúvida, uma pequena pesquisa iria revelar ou­
tras funções.
O verso de dois centos é uma convenção elisabetana.
Até os impressores reconheceram seu valor e desenvolve­
ram uma maneira adequada de centralizá-lo, para auxiliar
o ouvido interior com uma ênfase para o olho1. Contudo,
a suposição fácil de que os poetas a usavam puramente como
um recurso do ofício, com o fito de fazer com que seus poemas
se amoldassem a uma certa moda, é desmentida tão logo se
olha para a variedade de fins que eram alcançados por meio
dela. Para estudiosos a classificar as obras literárias, ela
pode ser simplesmente uma marca registrada da poesia de
um determinado estilo; mas, nas mãos dos poetas que esta­
beleceram esse estilo, era, em cada caso, um elemento ex­

• “Embora ela fosse sincera, quando você a encontrou, permaneceu/


E até que você escreveu sua carta,/ Ainda assim ela,/ Há de ser/ Falsa, al
chego eu, para dois ou três.9*
** "Cintia, a teu poder e a ti/ Obedecemos.”
"Tem paciência então,/ E embala para dormir/ Tuas mágoas, e
chora/ Nfto mais.”
1. Na literatura que se oferece para a leitura silenciosa, a tarefa
do tipógrafo torna-se uma tarefa artística, estreitamente afim à execução.
AS GRANDES FORMAS LITERÁRIAS 293

pressivo. A “moda” desenvolveu-se a partir da versatilidade


do recurso e de seu poder de fazer coisas que aqueles deter­
minados poetas queriam fazer.
Estrutura, dicção, imagística, o uso de nomes, alusões
são todos recursos criativos apreendidos pela imaginação de
alguém ao elaborar a imagem de vida que deveria expressar
sua “Idéia” . Em uma época em que a poesia é viva e pro­
gressiva, existe uma unidade de interesses que leva muitos
escritores a explorar os mesmos sentimentos predominan­
tes, de modo que chega a ser uma certa solidariedade de esti­
lo que é inteiramente genuína em cada contribuinte. Re­
cursos, então, tomam-se tradições, no entanto servem a muitos
e diferentes propósitos poéticos. São vantagens técnicas, não
práticas imitativas, são empregadas por bons poetas até que
suas possibilidades são exauridas, ou até que outra invenção
os toma ineficazes, supérfluos e, consequentemente, banais.
O efeitos dos elementos artísticos, uns sobre os outros
e, portanto, de um meio criativo sobre alguns ou todos os
outros, tem sido frequentemente observado, mas jamais, que
eu saiba, foi estudado seriamente. Contudo, é o princípio
de construção artística que leva à evolução de formas espe­
ciais dentro de um grande campo geral de arte — formas
tão distintas quanto a balada, o romance, a novela, o ensaio
literário, o conto, o catecismo, o diálogo.
Há críticos, e especialmente professores de retórica e
poética, que julgam a excelência de uma obra de acordo
com o número de virtudes bem conhecidas que podem en­
contrar nela (de modo algo semelhante com a maneira pela
qual cães em uma exposição são julgados por “pontos” ):
música das palavras, riqueza de imagens, sensitividade, in­
tensidade emocional, economia, interesse na estória, “obli­
quidade”, ironia, profundidade de pensamento, realismo,
caracterização dramática, vigor, e qualquer outra coisa que
é usualmente elogiada e recomendada como valor literário2.
Existem diferenças de opinião quanto a qual é o valor
principal: imagens ou musicalidade na lírica, personagens ou
enredo nos romances, realismo ou “profundidade” no conto,
ironia ou intensidade de sentimentos ou economia, ou seja
lá o que for em tudo. Mas, seja qual for o traço tomado como
o sine qim non da literatura, ou do gênero particular em
questão, pensa-se que uma obra sempre é enriquecida pela

2. Um excelente exemplo dessa prática pode ser encontrado em


The Basis of C ritidsm in th e Arts, de Stephen Pepper, Cap. VI, p.
115-120, a avaliação “do mecânico” . o Prol, Pepper n&o indica em parte
alguma que Julga tal avaliação passível de objeçôes.
294 SENTIMENTO E FORMA

presença de qualidade adicionais, e a falta completa de qual­


quer das virtudes principais é considerada como uma “limi­
tação” 3. Assim, um poema cheio de imagens sensoriais é, por
princípio, considerado melhor do que um que não as tenha,
uma asserção econômica, sempre melhor do que uma circun-
locução prolixa, e assim por diante.
O que estes críticos (alguns dos quais são teóricos sé­
rios) deixam de ver é que tais “valores” não são em abso­
luto a substância da literatura, mas apenas recursos para
a feitura dos verdadeiros elementos que constituem a ilusão
poética. Seu uso é propriamente relativo ao propósito criativo
do poeta; pode ser que ele precise de muitos destes recursos,
que os explore ao máximo ou mude livremente de um para
outro; da mesma maneira que alguns artífices têm uma fer­
ramenta favorita que lhes serve quase em toda a parte, ao
passo que outros escolhem um implemento diferente para cada
tarefa especial. O princípio cardial é que cada artifício em­
pregado deve ser empregado para um propósito poético, e
não porque é divertido, ou porque é a moda, ou porque usá-
lo é uma nova experiência4. Conseqüentemente, um recurso
técnico pode tomar outro, ou mesmo muitos outros, desne­
cessários; e, também, uma vez que duas práticas que podem
ser ambas valiosas na mesma obra, podem, contudo, ser in­
compatíveis, é possível que uma tenha de ser sacrificada.

Se se traz sempre em mente que tudo o que um poeta


escreve é uma pincelada na criação de um pedaço de his­
tória virtual, pode-se encarar a evolução de cada gênero
literário como a exploração de algum princípio técnico
preeminente e sua influência — positiva ou negativa — no
valor poético de todas as outras práticas e materiais dispo­
níveis. Como o emprego da narrativa toma suficiente a
versificação simples e a dicção simples e, portanto, excelen­
tes, a balada folclórica, governada por uma estória, não tem
nada da intensidade de pensamento e sentimento que pode
ser encontrada na canção lírica folclórica5. Ao invés de

3. Essa prática náo se restringe à crítica literária; uni critico


alemão de música considera o gênio de Mozart "limitado” porque este
náo tem amor pela vida ao ar livre.
4. Práticas ou meios genuinamente novos, tais como os grandes
artistas algumas vezes introduzem, e talvez apontam com entusiasmo,
n&o são "experiências”; pois o artista não os usa apenas para ver o
que acontece; ele parte de uma nova concepção que lhe determina uma
tarefa para a qual ele sabe que aqueles servirão, e meramente mostra
como eles resolvem seu problema de uma maneira emlnentemente ade­
quada. Cf. a afirmação de Plcasso, citada na p. 129.
5. Uma forma poética mais comum na Alemanha, Escandinávia
e Rússia do que na Inglaterra ou nos paises latinos, que amam as
estórias.
AS GRANDES FORMAS LITERÁRIAS 295

concentração, ela tem alcance; a estrutura usual, que é uma


série de eventos sucedendo-se uns aos outros em uma única
cadeia causai, leva o poema a mover-se rápido através de
muitas estrofes; e, tendo em vista o interesse de manter a
estória clara, as estrofes geralmente são construídas com
comprimentos de verso que se alternam regularmente e com
rimas alternadas. Tudo se destina a continuar a estória.
Isso elimina muitos dos meios poéticos favoritos: descri­
ções, comparações, protestos de sentimento e, com eles, os
giros de frases e as variações métricas que enriquecem uma
poesia mais contemplativa.
Uma ação progressiva simples, entretanto, não é o
único padrão em que uma narrativa pode desenrolar-se.
Com habilidade adestrada e crescente, os contadores de es­
tórias elaboraram suas histórias a fim de abranger uma
cena mais ampla, eventos mais complicados, mesmo aven­
turas paralelas que ocasionalmente se tocavam, envolvendo
mais do que um jogo de agentes; a forma resultante foi o
“romance”. Sua finalidade maior requeria meios mais for­
tes de sustentar a ilusão de eventos e de manter claras
suas formas e movimentos do que o simples quarteto rima­
do e enunciação vigorosa que a balada fornecia. Isso levou
a bem conhecida, mas geralmente incidental, arte da descri­
ção a um papel novo e proeminente. Foi dito com freqüência
que os trovadores (e seus imitadores) introduziram seus
relatos detalhados de armas e vestimentas, torneios, ban­
quetes e funerais pelo puro prazer da imaginação sensorial.
Mas, independentemente de quão deliciosos sejam tais ingre­
dientes, não poderíam ser inseridos em um poema em
função deles mesmos, mais do que uma libra extra de açúcar
podería ser alegremente despejada em uma massa de bolo só
porque o açúcar é tão bom. Eles são, efetivamente, podero­
sos elementos formais; retêm a narrativa e fazem com que os
eventos pareçam espalhados como em uma terceira dimensão,
cm vez de se precipitarem para uma conclusão, como as
aventuras de Sir Patrick Spens ou Thomas the Rhymer. Se a
audiência do trovador regalava-se com suas descrições e
pedia-lhe que as expandisse, o senso artístico deste exigia
outros elementos literários que motivassem e sustentassem
uma exuberância de imagens. A estória, tomada mais lenta e
mais ampla pelas imagens e detalhes a fim de permitir que
suas ações complexas se entremeassem, produziu um novo
fator estrutural, os constantes relacionamentos de caracteres
uns com os outros. Na poesia folclórica, os atores aparecem e
desaparecem à medida que são necessários O rei senta-se em
Dunfermline Town mas, depois de ter escrito sua “carta en­
296 SENTIMENTO E FORMA

trançada”, desaparece. Não lhe incumbe fazer qualquer gesto


de elogio ou pesar pelo herói quando o desastre é consumado.
Os agentes nos romances medievais, entretanto, permanecem
em segundo plano quando não são necessários, porque existe
um plano de fundo. Ao invés do implícito cenário natural de
mar, charco, país encantado, ou chorões de cemitério, o
romance tem um cenário social explícito: a corte do rei, o
acampamento militar, o átrio. Ê em tais ambientes huma­
nos que as ações se cortam naturalmente, e as estórias são
tecidas em um só todo.
O rei que está sentado em Dunfermline Town pode
desaparecer quando Sir Patrick vai para o mar, mas o rei
que está sentado em Camelot permanece sentado até ter
outra coisa a fazer. Contudo, não há nada mais a seu respeito
do que o requerido pela estória para a sua continuação
e a criação de seu ambiente humano uniforme. Os caracteres
do romance, como todos sabem, são estritamente perso­
nagens, não personalidades. Sua importância deriva de seu
status. Manuais escolares de história da literatura geralmente
ressaltam que os trovadores e minnesingers ainda não haviam
aprendido a desenvolver personagens individuais. Parece mais
provável, entretanto, que eles não nutrissem qualquer desejo
de fazer com que suas personagens “vivessem” como homens
e mulheres, porque o que realmente devia “viver” era o mun­
do social, o mundo do poema, dominado por ações espeta­
culares; e essa vida romântica não seria beneficiada em abso­
luto por uma maior individuação de personagens. Persona­
gens era exatamente o que se necessitava: realeza, clero, cava­
leiros sempre de armadura, damas sempre belas. Estes não
são produtos da fé naquilo que se quer crer ou da ingenui­
dade — são os elementos humanos necessários em um tipo
especial de obra poética.
A verdadeira novidade e força desse gênero encontra-
se na descrição de como as coisas são feitas; e essa longa
demora em cada ação dá mesmo aos eventos mais fami­
liares — viajar, amar, morrer — uma nova forma. É como
pintar repentinamente em três dimensões, em vez de em
duas. A técnica descritiva detém um movimento da estó­
ria enquanto outro prossegue; isso atira sutilmente toda a ex­
periência virtual em distorção e produz a aparência de exis­
tências e acontecimentos no plano de fundo, eventos que não
estão sendo “seguidos”, mas que podem emergir novamente em
pleno foco a qualquer tempo6. O fato de que tais paradas

6. Comparar a an&üse de tensões lncomensuràveis na consciência»


p. 119-120.
AS GRANDES FORMAS LITERÁRIAS 297

na ação nem sempre são “semelhantes à vida”, nem sempre


feitas onde a ação aberta se detém naturalmente, fez com
que muitas pessoas acreditassem que os detalhes expansi­
vos, cheios de cor, fossem decorações acrescentadas em
excesso, e rissem dos momentos “irrealistas” de demora
que eles causam no progresso da estória. Mas tais expansões
descritivas são exatamente o que dá ao verdadeiro romance
sua vitalidade. É esse uso especial de imagens sensoriais e
procedimentos articulados, mais do que o fato de existi­
rem genuínos cursos de ação contemporâneos, que produz
o efeito de um tecido, em vez de um fio, de história.

Uma vez que o tratamento descritivo de eventos é, aqui,


o principal recurso poético, mesmo o interesse narrativo tem
de ser contido. Não só as personagens, mas também suas
aventuras, tendem a ser típicas: a procura, a missão, a
contenda, o salvamento, o compromisso cumprido. Torneios
e recepções a estrangeiros e cenas de mortes reais ou de núp­
cias pululam no mundo da cavalaria. Matanças de dragões,
cruzadas e provações de amor dão à sua vida forma dra­
mática; mas, em essência, ela é espetacular.
O romance medieval possui abundância de recursos
poéticos. A moldura narrativa é tal que maior número de
elementos da estória podem ser desenvolvidos quase em toda
a parte; é por isso que a busca — do Graal, ou de torres
escuras com damas cativas, ou de um unicórnio branco —
é um motivo favorito. Ele pode acomodar aventuras subsi­
diárias. Além da estrutura narrativa, há pessoas de toda
gradação; há a Igreja com toda sua lenda; visões, avisos,
promessas. Acima de tudo, o poeta medieval dispunha do tema
do amor a dar calor e encanto a quase todo canto.
Com uma tal riqueza de meios técnicos, o poema na
realidade não precisava dos poderes hipnóticos da fala ri­
mada a fim de manter seus ouvintes cativados. Havia mui­
tos outros meios para sustentar a ilusão poética e para de­
senvolver sua forma expressiva. A versificação, portanto,
tornou-se uma convenção que chamava a atenção; especial­
mente depois que os livros ocuparam o lugar dos cantores
como meios de apresentação, a tradição, mais do que a ne­
cessidade, conservou vivas as antigas formas de verso. Um
tal estado é a velhice de uma tradição, em que ela, propria­
mente, morre. Métrica e rima morreram com o romance de
cavalaria à medida que as convenções deste, vivas (e, portan­
to, despercebidas), tornaram-se ricas e dotadas de bastante
segurança para dispensar auxílios puramente auditivos.
298 SENTIMENTO E FORMA

A ficção em prosa surgiu quando seus requisitos poéti-


ticos foram preenchidos; mas entre ela e a poesia, no senso
estrito, as diferenças são puramente técnicas78. Como David
Daiches escreveu, em um livro recente:
Na ficção em prosa, a disposição da ação leva a maior carga,
enquanto que na poesia é o uso dos recursos da linguagem em rela­
ção uns com os outros que suporta o maior peso. Ambos visam a
alcançar o mesmo tipo de fim*.
A ficção em prosa é a forma literária favorita de nossa
própria sociedade. O conto, a “Novelle” alemã, a fantasia
(satírica ou profética) e, acima de tudo, a novela* são nossa
principal dieta poética. A novela moderna desempenha o
papel em nossa vida intelectual que o romance desempenha­
va na da Idade Média: ela retrata o cenário contemporâneo.
A recitação do trovador, com seu plano pitoresco, convi­
dando a se fazer uso de personagens e instituições, era
modelada em realidades e acentuava os interesses mais ime­
diatos de uma época em que o crescimento de uma ordem
social, a partir do caos tribal e colonial da Europa, era ainda
uma conquista moderna. De maneira similar, a novela é
particularmente adequada para formular nossa vida moderna,
ao tomar nossos interesses mais difundidos como tema — a
avaliação e os riscos da personalidade. Esse tópico central
normalmente acarreta a consideração da ordem social a partir
do ponto de vista da vida individual; assim, a criação de
“personagens”, ou pessoas genuínas, leva de modo tão natural
à representação de nosso mundo contemporâneo como as per­
sonagens de uma literatura mais antiga levavam ao retrato
do mundo daquele tempo. Nosso interesse na personalidade é
o que torna nosso mundo diferente e a maioria de seus pro­
blemas relativamente novos. A origem dessa mudança de
interesse é, evidentemente, histórica: econômica, religiosa,
política, todas em conjunto. Mas, seja o que for que a tenha
causado, a nova visão da realidade emergente não está ainda
totalmente em foco e, portanto, é emocionalmente baralha-
dora. Sentimentos não familiares nos levam a sentir medo de
nós mesmos e dos outros; sua presença fugidia persegue nossas
mentes, e desafia a imaginação artística a realizá-los em for­
mas perceptíveis.
O romance é uma resposta a esse desafio. Cria uma
experiência virtual de alcance relativamente grande; sua

7. Sobre a diferença de função que os meios técnicos, por exemplo


as Imagens poéticas, podem sofrer no desenvolvimento de novas for­
mas, cf. C. Day Lewls, The Poetie Image, p. 86-87.
8. A Study of Literature, p. 138.
• A tradução de novel por “novela** e não por “romance**, como é de
uso generalizado em português, se deve & utilização subseqtlente que a
autora faz do termo.
AS GRANDES FORMAS LITERÁRIAS 299

forma é elástica e permite complicação ou simplificação


pruticamente ilimitadas, porque seus recursos estruturais são
imcnsamente variados e ricos. Pode empregar a narrativa
factual rápida, ou as mais indiretas semi-enunciações, des­
crições reluzentes ou descrição alguma; pode ser a estória
ele uma única alma, ou de uma robusta multidão de buca-
nciros, uma sociedade inteira, ou mesmo uma reunião de
vivos e mortos (como em Les jeux sont faits de Sartre).
fi um gênero recente, ainda em evolução, tomando tudo o
(|uc é característico no cenário “moderno” como fonte de
fornecimento de seus materiais temáticos, de motivação pa­
ru desenvolver sua ilusão de vida.
Contudo ela é ficção, poesis, e sua significação é o
sentimento formulado, não a teoria sociológica ou psicoló­
gica; sua meta é, como declarou o Prof. Daiches, simples­
mente a meta de toda literatura e, aliás, de toda arte. Sua
avaliação crítica, portanto, deve ser, sob todos os aspectos,
um juízo literário. Uma vez, entretanto, que o cenário
da estória é geralmente uma imagem do tempo e lugar em
que seus leitores vivem, é fácil demais para estes ficarem intei­
ramente absortos nas representações do autor, julgá-las co­
mo verdadeiras ou falsas, e tratar o livro como sendo o co­
mentário dele sobre problemas reais e uma confissão de
seus próprios sentimentos. A maioria dos críticos literários
dc hoje tende a elogiar ou criticar um romance contempo­
râneo como documento e não como obra de ficção com um
objetivo poético a alcançar. Seu caráter ficcional é tratado
como um artifício retórico a fim de fazer com que o leitor
escute toda tuna enunciação, que ele estaria inclinado a
interromper e contestar, fosse ela apresentada em discurso
direto. Frequentemente um romance é encarado como um
exemplo da vida humana individual para ilustrar uma con­
dição social, e é medido inteiramente por sua relevância face
aos problemas atuais, políticos, psiquiátricos ou morais. Dark-
ness at Noon de Koestler e Dr. Faustus de Mann devem sua
recepção entusiástica, pelo público culto principalmente, se
não inteiramente, a sua retratação e avaliação da cultura
contemporânea. No fluxo de discussão provocada por Kafka
c Sartre, dificilmente ouve-se qualquer palavra sobre os po­
deres literários destes, mas apenas sobre seus alegados senti­
mentos pessoais e atitudes morais, suas esperanças e temores
ante o mundo atual, sua crítica da vida. Porém a maior parte
dessa “crítica” não é uma consideração artística da vida em
si, tal como se encontra em Joyce, Proust, Turguenev, Tha-
ckeray, Goethe; é opinião raciocinada, mais ou menos ficcio-
nalizada, e é recebida como tal — como o comentário do
300 SENTIMENTO E FORMA

autor, sábio ou rabugento ou desesperado, conforme for,


sobre nossa civilização de após-guerra.
Não há razão por que tal comentário não deva exis­
tir na ficção; o único requisito artístico é que, se ele tem
de existir, deve ser necessário à obra. Em A Morte de
Ivan Ilyich de Tolstoi, a crueldade de uma sociedade “refi­
nada” e a vacuidade dessa vida sem emoções são o tema
da estória; a estória em si, entretanto, não ressalta sim­
plesmente essa sociedade, com os comentários do autor,
más usa-a a fim de formar o ambiente para a intensa experi­
ência humana de Ivan, o anseio de vida e amor, que aumenta
à medida que sua doença lentamente o afasta do mundo
das simulações, destrói seu poder como personagem e não
lhe deixa nada além de suas necessidades enquanto pessoa,
até que ele desata no grito de protesto que pára apenas
com a morte.
A dificuldade em que muitas pessoas se deparam ao
julgar a ficção em prosa como boa ou má ficção reside
largamente no meio — linguagem discursiva, nem mesmo
formalizada pela métrica ou rima —, exatamente a mes­
ma linguagem discursiva que usamos na conversação; é
difícil não se deixar induzir ao engano de supor que o autor
pretende, por seu uso de palavras, exatamente aquilo que
pretendemos com o nosso — informar, comentar, inquirir,
confessar, em suma: falar às pessoas9. Um romancista, con­
tudo, pretende criar uma experiência virtual, completamente
formada e inteiramente expressiva de algo mais fundamental
do que qualquer problema “moderno” : o sentimento humano,
a natureza da vida humana em si.
O romance, embora seja nossa produção literária mais
exuberante, característica e popular, é um fenômeno relativa­
mente recente, e sua forma artística ainda está desenvol­
vendo-se, ainda surpreendendo críticos com efeitos sem
precedentes e com concepções completamente novas de es­
truturas e meios técnicos10. Assim, talvez seja natural que

9. Cf. as opiniões de A. C. Ward manifestadas em seu Foundations


of English Prose, p. 28: “A exigência que se faz ao romance no séc. XX
é que ele retrate a vida t&o completamente quanto possível na litera­
tura; que nos Informe sobre multas questões Importantes; e que nos
Ilumine com crescentes conhecimentos e sabedoria".
Também Winfleld Rogers, "Form ln the Art-Novel" ( Helicon , n ,
1939), p. 3: "O artista está tentando transmitir uma soma da ma­
neira pela qual a vida está agrupada, em um determinado momento
ou período, uma soma, é claro, que pode dar lugar a outras no futuro.
( . . . ) Todos os aspectos da técnica são meios pelOB quais o romancista
tenta transmitir sua atitude ou filosofia e são a expressão natural de
filosofia".
10. Edith. Warton, em 1924, começou seu livro, The W ríting of
Fiction, com as palavras: "Tratar da prática de ficção é lidar com a
mais nova, mais fluida e menos formulada das artes".
AS GRANDES FORMAS LITERÁRIAS 301

des ainda se inclinem a preocupar-se fundamentalmente


»com seus aspectos representativos: referências a eventos
•reais, retratação de pessoas no ambiente do autor (particu­
lar ou público), comentários sobre a cena que passa, e re-
•vclações sobre sua própria personalidade, através de uma
personagem fictícia ou mesmo através de um grupo de
personae, que são consideradas como símbolos de “eus” se­
parados, algumas vezes conflitantes, em seu próprio Eu.
Tais aspectos, ao menos, podem sempre ser encontrados e
comentados, mesmo se seu uso na criação poética é muito
pouco claro para o crítico.
Contudo, uma espécie mais ponderada de crítica está
cm bom caminho; e, reunindo as observações verdadeira­
mente literárias sobre romances e a escritura de romances
desde que Flaubert e Henry James reconheceram esse novo
gênero como uma forma de arte genuína, pode-se ver seus
objetivos artísticos, e os conseqüentes problemas de atingir
uma forma completamente virtual, vital (isto é, orgânica),
emergindo com o avanço da arte em si. De Quincey ainda
(rata apenas de poesia como verdadeira “literatura”, mas
observa com surpresa que mesmo “o romance mais comum,
movendo-se em aliança com os temores e esperanças huma­
nos”, faz parte, de alguma maneira, de “a literatura de poder”
— uma literatura que propõe metas humanas e emoções dire-
lamente, não para o entendimento discursivo, mas para “o
coração, isto é, o grande órgão intuitivo ( ou não-discursi-
vo) ”“ .
Quarenta anos mais tarde, Henry James declarou ex-
plicitamente que o romance era uma obra de arte e, além do
mais, uma espécie de história; embora a relação dessa “his­
tória” com a história genuína, a memória ou recuperação
de eventos reais, lhe escapasse, de modo que recorreu a uma
negativa e ao mesmo tempo observou que a história de ficção
tinha suas próprias premissas.

A única razão para a existência de um romance é que ele tenta


representar a vida. . . . e a analogia entre a arte do pintor e a arte
ilo romancista é, até onde posso ver, completa. Sua inspiração é a
mesma, seu processo (levando-se em consideração a qualidade di­
ferente do veículo) é o mesmo, seu sucesso é o mesmo. ...como
a pintura é realidade, assim o romance é história. É essa a única
descrição geral (capaz de fazer justiça) que podemos dar do ro­
mance1112.

11. Thomas De Quincey, “Alexander Pope” . Publicado pela pri­


meira vez em Nortfo British Jteview, 1848, republicado em seu Literary
Criticism, 1808. Ver p. 96. A glosa entre parênteses ê de De Quincey.
12. “The Art of Plctlon», em American Criticai Essays, editado por
Norman Foerster. Ver P&g, 158.
302 SENTIMENTO E FORMA

James sentia que, de alguma forma, essa “história”


era objetiva e vinculava o romancista à sua procura fiel.
Ele não reconheceu que a comparação que fez entre a obra
do escritor com a do pintor continha ao mesmo tempo a
justificação de suas alegações e sua limitação: o romance é
história assim como a pintura é realidade. Não compre­
endia em que sentido a pintura é realidade, de modo que
pode apenas registrar sua convicção de que o romance
deve ser tratado exatamente como a história. Falando so­
bre Anthony Trollope, ele disse:

Em uma digressão, um parênteses ou um aparte, ele concede


ao leitor que ele e seu amigo leal estão apenas “fazendo de conta”.
Admite que os eventos que narra não aconteceram realmente,
e que ele pode dar à sua narrativa qualquer curso que o leitor
possa gostar mais. Uma tal traição de um ofício sagrado parece-me,
confesso, um crime terrível; . . . e choca-me tanto em Trollope
quanto me iria chocar em Gibbon ou Macaulay. Isso implica em
que o romancista está menos ocupado em procurar a verdade (a ver­
dade, quero dizer, por certo, que ele supõe, as premissas que
temos de atribuir-lhe, sejam elas quais forem) do que o historia­
dor, e, ao fazê-lo, fica privado de um só golpe de toda sua esta­
tura. Representar e ilustrar o passado, as ações dos homens, é a
tarefa de qualquer dos dois escritores.

Sim, mas com uma profunda diferença; pois o no­


velista explora um passado virtual, um passado de sua pró­
pria criação, e “a verdade que ele supõe” tem suas raízes
nessa história criada. O problema com as admissões feitas
por Trollope (onde elas nos perturbam) é que destro-
em a ilusão poética, fazem com que suas estórias pareçam
não ser verdadeiras: em vez de nos apresentar um passado
virtual, ele nos convida a partilhar de sua própria experiência
real de entregar-se a fantasias irresponsáveis. Não é de es­
pantar que James, o artista, reconhecendo que o romance é
uma obra de arte, ficasse chocado com uma concepção tão
nociva do ofício do autor.
O escritor de ficção em prosa, como qualquer outro
poeta, fabrica uma ilusão de vida inteiramente vivida e
sentida, e apresenta-a na perspectiva “literária” que eu de­
nominei de “modo mnemônico” — como a memória, só que
despersonalizada, objetivada. Sua primeira tarefa é tornar
essa ilusão convincente, isto é, fazê-la, por mais distante da
realidade que ela esteja, parecer real. James, apesar de sua
reflexão perturbada sobre o romance enquanto história,
sabia que a aparência de história era a medida real da­
quela; e, no mesmo ensaio que registrava seu horror com
a atitude de Trollope, ele prosseguiu, um pouco mais adian­
te, para dizer:
AS GRANDES FORMAS LITERÁRIAS 303

. . . o ar de realidade (solidez de especificação) parece-me


«cr a virtude suprema de um romance — o mérito do qual todos os
seus outros méritos (inclusive aquele propósito moral consciente de
que fala Besant) desesperada e submissamente dependem. Se
não estiver ali, todos eles são como nada, e se estes estiverem ali,
cies devem seu efeito ao êxito com que o autor produziu a ilusão
do vidaW.

Para produzir essa ilusão de vida, os escritores têm


empregado muitos e variados meios, começando com o
truque óbvio de fingir escrever história ou memórias reais.
Se você puder fazer com que as pessoas tomem sua ficção
como fato, parece que “o ar de realidade” deve ter sido
atingido. Contudo, de modo bastante estranho, é bastante
comum que a notícias de jornal, que geralmente (de acordo
com seus redatores) tem “fundamento nos fatos”, falte
exatamente esse ar de realidade imediata e importante
que Augusto Centeno chama de “viveza” — a sensação de
vida mais do que os conteúdos familiares desta1314. A preten­
são à verdade histórica (tal como Defoe reivindicou para The
Journal of the Plague Year) ou a alguma autoria estrangeira
(Sonnets from the Portuguese ou os poemas de Ossian)
não é parte integral da obra, que podería produzir uma
ilusão genuinamente literária, mas um pretexto que, supõe-se,
irá “vender-lhe” o trabalho, ou irá absolver o autor da res­
ponsabilidade por suas imperfeições, ou talvez irá escudar
uma poetisa vitoriana de qualquer suspeita de que ela está
indelicadamente revelando seus próprios sentimentos.
A “viveza” de uma estória é realmente muito mais
certa, e freqüentemente maior, do que a da experiência real.
A vida em si pode, algumas vezes, ser bastante mecânica e
passar despercebida por aqueles que a vivem; mas a percep­
ção de um leitor jamais deve ficar em suspenso. As pessoas
do livro podem ser tediosas e deprimentes, mas não o li­
vro em si. Eventos virtuais, por contida que seja a sua expo­
sição, têm caráter e sabor, aparência distinta e tonalidade
de sentimento, ou simplesmente deixam de existir. Algumas
vezes elogiamos um romance por se aproximar da vive­
za de eventos reais; geralmente, entretanto, ele os excede
em viveza. Uma transcrição servil da vida real é pálida ao
lado das experiências criadas pelas palavras da vida virtual,

13. Op. cit., p. 168-169.


14. Ver sua Introdução a The In te n t of th e Artist, pág. 11:
"Viveza ... é uma sensação de vida, profunda e intensa, emergindo
de relacionamentos espirituais e para ser apreendida somente pela In­
tuição. O que o ritmo é para o tempo, pode-se sugerir, é a relação
que a viveza tem com a vldaM.
304 SENTIMENTO E FORMA

como uma máscara de gesso feita diretamente de um ser


vivo é uma contrafação morta quando comparada ao
retrato em escultura mesmo dos mais “conservadores”15.
Em uma crítica de uma estória autobiográfica — Brcàn-
storm de Charlton Brown — , o crítico descreveu o livro co­
mo não sendo “bem um romance, embora parte dele, par­
ticularmente as linhas escritas em um hospital para doentes
mentais, tenha a intensidade e participação da ficção”16.
O que é essa “participação” que caracteriza a ficção e algu­
mas vezes ocorre na realidade? A qualidade de ser comple­
tamente sentido — “viveza”, como diz Centeno ou, nas
palavras de Henry James, “vida sentida” .
Onde o estabelecimento da ilusão primária acarreta
uma semelhança da assim chamada “vida real” deve haver,
por certo, uma constante salvaguarda contra a possibili­
dade de confudir a obra com seu modelo, identificar a
personagem central conosco mesmos e conseqüentemente
deixar que os eventos do romance substituam nossas próprias
experiências, por acaso reais ou, de outro modo, simples­
mente imaginadas. DeWitt Parker disse que a tarefa do
poeta é “fazer-nos sonhar um sonho interessante”17; eu
afirmo que a tarefa do poeta é impedir-nos de introduzir
nossos sonhos, de maneira que possamos ver suas abstra­
ções poéticas — formas essenciais de estória — compostas
em símbolos transparentes do próprio sentimento.
A segunda grande preocupação da literatura, portanto,
correlativa com ter de dar a uma obra “o ar de realidade”,
é o problema de mantê-la como ficção. Muita gente reco­
nhece os recursos pelos quais um escritor alcança a simi­
laridade com a vida; mas poucos têm consciência dos meios
que sustentam a diferença entre arte e vida — a simplifica­
ção e manipulação da imagem de vida que torna aquela
essencialmente diferente de seu protótipo. O estilo é, em
grande parte, determinado pelas maneiras segundo as quais
os autores lidam com esses dois requisitos básicos. C. E .
Montague, em um livro loquaz mas refletido, chamado A
Writefs Notes on his Trade, observa o estranho fenôme­
no pelo qual, na ficção, eventos passados parecem ga­
nhar autenticidade ao serem recontados em segunda ou ter­
ceira mão — contados por alguma personagem que pode

15. Ver a comparação em Oriçins of M odem Sculpture, de W.


R. Valentiner, entre uma escultura “realista” e uma máscara, p. 34
<Figs. 20, 21 e 22).
16. Lorine Pruette no Herald Tribune de New York, 31 de dezembro
de 1944.
17. The Analysis of Art, p. 70.
AS GRANDES FORMAS LITERÁRIAS 305

mesmo alegar ter ouvido a história de outro: “Só tou te


contando o que ele me contou”18. Na vida real, esse ouvir di­
zer por certo não é qualquer prova de verdade. Por que será
que ele aumenta o valor de eventos virtuais?
Porque os projeta imediatamente no modo experien-
cial, e garante sua forma essencialmente literária. Uma
pessoa que narra um evento naturalmente o “torce” um
pouco porque deve ter algum interesse nele que a leve falar
nele. Aquilo que a estória ganha ao ser meramente
relatada não é autencidade, mas transformação poética;
lembranças transformam “ouvi-dizer” em ficção (enquanto
que, na vida real, uma estória se torna menos con­
vincente cada vez que é recontada). A apresentação de
eventos passados, em um romance, pelo discurso direto de
uma das personagens, é uma técnica simples que quase sem­
pre funciona; ela permite que uma história longa e esparsa
seja reunida e abreviada, sem convertê-la em mero preparo
para a ação apresentada, pois toma-se um ingrediente dessa
mesma ação.
O êxito com que esse método assegura alguma espécie de
orientação no “mundo” virtual da estória levou, acho, à
convenção (pois não é mais do que isso) de limitar os even­
tos às impressões e avaliações de uma personagem: o “ponto
de vista unificado” que é o ângulo de visão, ou experiência,
de alguém na estória. A personagem em questão não está
contando um conto, mas está experienciando os eventos, de
modo que todos eles assumem a aparência de que teriam
para aquela pessoa. Filtrá-los todos através de uma mente
assegura, é claro, sua concepção em termos de encontro e
sentimento pessoal, e dá à obra inteira — ação, cenário,
falas, e tudo — a unidade natural de uma perspectiva.
Edith Warton chamou esse método de nada menos do que
princípio da escritura de ficção.

A impressão produzida por uma paisagem, uma rua ou uma


casa [disse ela em The Writing of Fiction] deveria sempre, para o ro­
mancista, ser um evento na história de uma alma, e o uso da "passa­
gem descritiva”, e seu estilo, deveríam ser determinados pelo fato
de que precisa retratar apenas aquilo que a mente em questão teria
percebido, e sempre em termos dentro do registro dessa mente19.
Aplicado ao romance, isso pode parecer injusto, uma vez que a
passagem mais longa de tempo e o campo de ação mais apinhado
pressupõem, de parte da personagem visualizadora um estado de
onisciência e onipresença capaz de abalar o senso de probabilida­
de do leitor. A dificuldade é contornada mais freqüentemente pela
mudança de ponto de vista de uma personagem para outra de

18. Ver p. 30 e es.


19. Op. c i t p. 85.
306 SENTIMENTO E FORMA

modo que compreenda toda a história e, contudo, preserve a unida­


de de impressão20.

É costume contrastar com esse método o desenvolvi­


mento de uma estória de um ponto de vista que se origina
além de qualquer das personagens em si. Van Meter Ames,
em sua Aesthetics of the Novel (livro que perpetua um nú­
mero demasiado de concepções erradas que atravancam a
estética, desde a arte como devaneio até a arte como ética
social), diz sobre esta última maneira:
O método comum tem sido o do autor onisciente que cons­
tantemente se interpõe na estória para contar ao leitor o que este
precisa saber. A artificialidade desse procedimento tende a destruir
a ilusão da estória e, a menos que o autor seja excepcionalmente
interessante em si mesmo, tal intrusão não é bem recebida?1*.

Parece-me que um autor muito interessante seria ainda


mais criticável do que um autor monótono, porquanto iria
interromper com mais eficácia nossa concentração em sua
estória. A questão, porém, é realmente ociosa, pois se ori­
gina de uma compreensão errada, a saber, que o autor é
uma pessoa de algum modo vinculada à estória. O Prof.
Ames critica a mudança de ponto de vista feita por Conrad
em Almayerfs Folly, onde, diz,
Conrad era o autor onisciente. Enquanto a estória é contada
do ângulo de Almayer, o leitor recebe uma impressão consistente
e parece como se Conrad tivesse de algum modo obtido o relato
de Almayer mesmo. Mas, quando o ponto de vista é desnecessariamen­
te mudado para os pensamentos da mulher malaia de Almayer e de
outros personagens, o efeito unificado é perdido, a ilusão de rea­
lidade é prejudicada. O leitor começa a imaginar se todas essas
pessoas haviam contado seus segredos a Conrad2*.

Ora, não existe nenhum Sr. Conrad na estória, a quem


alguém pudesse ter contado algo; o problema não é que
o autor seja representado como onisciente, mas que um
leitor determinado queira ir mais além da estória e fazer de
conta que ela realmente aconteceu, e que “Conrad tivesse
de algum modo obtido o conto de Almayer mesmo” ou de
alguma outra pessoa no livro. Mas Conrad, que não está nele,
não precisava e não podia tê-lo “obtido” de maneira nenhu­
ma; e não posso encontrar uma única passagem em que sua
personalidade repentinamente se intrometa no mundo vir­
tual. Pretender que a ficção se baseie em memórias reais
ou rumores pertence aos primórdios da arte do romancista201

20. Tbid., p. 87. Um par de páginas mais adiante ela observa,


entretanto, que todos os usos do princípio são simplesmente convenções.
21. Aesthetics of the Novel, p. 179.
22. Loc. cit.
AS GRANDES FORMAS LITERÁRIAS 307

quando as estórias previamente tinham todas sido contadas,


não escritas, e uma narrativa em prosa composta proposi­
talmente parecia exigir alguma semelhança com o cenário
do contador de estórias23. A mudança gerou uma forma de
transição em que o novo tipo de apresentação ainda estimu­
la o antigo; da mesma forma como as primeiras colunas de
pedra, gregas, simulavam troncos de árvores, e que nossas
primeiras lâmpadas elétricas eram feitas para parecer com
velas ou lamparinas de querosene, tanto quanto possível.
Essa transferência de narração de estória para a escritura
de estórias também foi, indubitavelmente, a fonte do truque
antiquado de usar expressões como “minha heroína”, “caro
leitor”, “não posso começar a co n tar.. . ”, que é uma ver­
dadeira intromissão do autor no mundo virtual de suas per­
sonagens. Dickens, cujo realismo foi revolucionário, pode
ter lançado mão dele algumas vezes para compensar aquela
extrema verossimilhança e garantir o caráter ficcional de sua
obra; mas ele é, mesmo para essa finalidade, um recurso
infeliz, despindo um santo para vestir outro. O contador
de estórias nebuloso e o ouvinte hipotético são formulados
demasiado ligeiramente para que não se tomem idênticos ao
autor real sentado à sua escrivaninha e ao leitor real senta­
do em sua poltrona. O realismo da estória perde seu poder
excessivo à medida que as pessoas se acostumam a uma
técnica que outrora parecia violenta, mas o vocativo direto
jamais deixa de flertar com a realidade e, logo, ao invés de
apenas manter os eventos relatados no reino da ficção, ele
gera a impressão que Trollope causou em James — que a es­
tória não é séria, mas uma mera fantasia pela qual o autor
entretém a si mesmo ou a sua companhia.
Os eventos em um romance são eventos puramente vir­
tuais, “conhecidos” apenas por pessoas igualmente virtuais;
o “autor onisciente” é tanto uma quimera, quanto o autor
que vê ou julga através da mente de seu herói24. Mesmo
uma estória contada na primeira pessoa, se for literatura,
é completamente transformada pela imaginação poética, de

23. Essa herança explica, penso, o tato comentado pelo Prof.


Daiches com alguma perplexidade: “Nos prlmórdios da novela inglesa,
09 escritores usavam todo Tecurso possível a fim de persuadirem
seus leitores de que aquilo que lhes estavam contando havia realmente
acontecido”. (A Study of Literature, p. 91.)
24. A falácia de considerar o autor e o leitor como dados pela
estória parece-me ser subjacente à atitude moralista da Sra. Wharton,
também, que é expressada em seu livro em geral admirável, The Wri-
tin g of Fiction, p. 27: “Sob uma forma ou outra, deve haver alguma
espécie de resposta racional & pergunta interior, inconsciente mas
Insistente, feita pelo leitor: Tara que eBtão-me contando esta estória?
Qual Juízo de vida ela contém para mim?”* Uma estória que pareça
“verídica” pode provocar um tal Juízo do leitor; mas ela pode conter
apenas um para as pessoas em seu mundo.
308 SENTIMENTO E FORMA

maneira que a pessoa chamada “eu” é simplesmente uma


personagem chamada assim. Pode ser que todo evento
tenha seu modelo na memória real do autor, e que toda
personagem seja um retrato; um retrato, porém, não é a
pessoa que posou — nem mesmo um auto-retrato o é. Da
mesma forma, eventos realmente observados, talvez regis­
trados em jornais e cartas, não são elementos literários, mas
materiais literários.
A observação é o instrumento da imaginação [como disse
David Daiches], e a imaginação é o que pode ver significação po­
tencial nos eventos aparentemente mais casuais*5.
A imaginação, contudo, sempre cria; ela jamais regis­
tra.
Em uma passagem posterior, o Prof. Daiches ilustra
sua opinião com o Retrato do Artista quando Jovem de
Joyce:
É ficção, [diz ele] no sentido em que a seleção e arranjo dos
incidentes produzem uma obra com um padrão artístico, uma tota­
lidade em que não há nada supérfluo, em que cada detalhe é artis­
ticamente, bem como biograficamente, relevante. Joyce, de fato,
deu-nos um dos poucos exemplos na literatura inglesa de uma auto­
biografia empregada com êxito como modo de ficção2^.

A escassez de tais exemplos corrobora a opinião de


Edith Warton de que “o dom autobiográfico não parece
estar relacionado muito intimamente com o da ficção”252627.
Penso que a razão disso é que muitas pessoas têm efetiva­
mente um talento literário limitado e, quando a armação de
uma estória está de antemão preparada para elas e o ponto
de vista é automaticamente dado, como em suas próprias his­
tórias de vida, conseguem tratá-la poeticamente com razoável
êxito; mas essas são as pessoas que “têm apenas um livro den­
tro de si” . Possuem o dom autobiográfico, mas não a
imaginação fecunda de um verdadeiro romancista, para quem
sua própria vida é apenas um tema dentre muitos. A pró­
pria estória escassamente ficcionalizada, então, traz a mar­
ca de sua origem: pois os incidentes não estão consistente­
mente projetados no modo da memória. Apresentam-se tingi­
dos em vários graus com essa modalidade, dependendo se
brotam da memória real, registros disponíveis ou in­
venções que preenchem os vazios da lembrança. Nas mãos
de um verdadeiro romancista, pelo contrário, sua própria es­
tória é inteiramente material em bruto, e o produto final,

25. The Novel and the M odem World, p. 85.


26. Ibiã„ p. 101 .
27. Op. cit„ p. 77.
AS GRANDES FORMAS LITERÁRIAS 309

inteiramente ficção. A Sra. Wharton ressalta esse fato ao


falar de A Sonata de Kreutzer de Tolstoi:
Existe um abismo entre um livro assim e “Adolphe” . O conto
de Tolstoi, embora quase reconhecido como o estudo de sua pró­
pria alma torturada, é tão objetivo quando Otelo. A transposição
mágica teve lugar; ao ler a estória não nos sentimos dentro de um
m u n do real ressuscitado (uma espécie de Museu Tussaud de figuras
de cera com vestimentas reais), mas naquele outro mundo, que é a
imagem de vida transposta no cérebro do artista, um mundo em
que o sopro criativo tornou todas as coisas n o v a s 28 ,

A moral dessa estirada crítica é que a ficção em prosa é


exatamente uma criação tão elevada e pura quanto a poesia
lírica, ou o teatro (que será examinado no próximo capí­
tulo) e, embora seu material seja a linguagem discursiva,
nem sequer modificada e distinguida da fala comum pelas
convenções do verso, o produto, contudo, não é discurso,
mas a ilusão de vida diretamente vivida, um mundo em que
pensar e conversar podem ocorrer. Com o fito de criar essa
história virtual, o escritor de prosa escolhe suas palavras
com tanta precisão quanto o escritor de versos, e urde
suas linhas aparentemente casuais com o mesmo cuida­
do. Um nome ou um giro de frase em uma estória podem
ser o meio de criar um ambiente ou uma situação com um só
toque. Considere-se, por exemplo, o romance peculiar alcan­
çado pelos Livros da Jângál de Kipling, especialmente nos
contos de “Mowgli”, que os torna atraentes não para as crian­
ças muito pequenas, que são quem normalmente gostam de es­
tórias de animais falantes, mas para jovens adolescentes e
até para adultos. A “realidade” fantástica é obtida principal­
mente com a linguagem: os animais falam um inglês arcaico
chamam-se de “thou” (“tu” ), usam o subjuntivo (“for we be
Ionely in the Jungle without thee, Little Brother” — “pois
ficamos sós na Selva sem ti, Irmãozinho”) e o presente simples
ao invés da forma progressiva usual (“I go now” — “eu vou
agora” — em vez de “I am going” — “eu estou indo” );
suas falas, conseqüentemente, têm o sabor de uma tradução,
o que lhes dá um ar sutil de falas “em tradução” da lingua­
gem animal. A disseminação de palavras hindus ajuda a tor-
ná-la uma linguagem do jângal. As personagens portam no­
mes hindus, também, o que as vincula a uma terra estranha, e
essa estranheza é realçada por um recurso puramente poético:
descrição exagerada, em pouquíssimas palavras, de um ce­
nário já exótico. Contudo, esses mesmos nomes dão ao ce­
nário uma localização geográfica autêntica; mesmo enquanto
a tornam extraordinária, salvam-na de tornar-se uma “terra28

28. Op. cit.j p. 79.


310 SENTIMENTO E FORMA

encantada” e proporcionam às estórias uma semelhança de


proximidade com a natureza — maior proximidade, efetiva­
mente, do que a vida real da maioria das pessoas parece es­
tar.
Essas estórias juvenis são criações poéticas altamente
engenhosas. Citei-as porque sua magia é bastante fácil de ana­
lisar, e a análise revela aquilo que pode, de fato, ser encon­
trado em qualquer estória bem contada — que toda a trama
de eventos ilusórios recebe sua aparência e valor emocional
inteiramente da maneira pela qual as enunciações que real­
mente compõem a estória se dispõem em palavras, da maneira
pela qual as sentenças fluem, param, repetem-se, permanecem
isoladas, etc., as concentrações e expansões de asserções, as
palavras carregadas ou desnudas. Os modos de contar formam
o lugar, a ação, as personagens, na ficção; e nada, em mi­
nha opinião, podería estar mais irremediavelmente errado do
que a distinção entre poesia e prosa feita por F. W. Bateson:

A estrutura da prosa é, na acepção mais ampla da palavra,


lógica; suas asserções são sempre redutíveis, em última análise, a
uma forma silogística. Uma passagem de prosa, qualquer passagem,
sem exclusão sequer da chamada prosa “poética”, resolve-se inteira­
mente, sob análise, em uma série de explicações, definições e con­
clusões. É por esses meios que o livro vai adiante. Eles são a mol­
dura em que o conteúdo da prosa — seu tema — deve ser, de algu­
ma maneira, encaixado. ( . . . )
A estrutura da poesia, por outro lado, é determinada, em
última análise, por sua técnica. ( . . . ) 29
As palavras da prosa não são notáveis porque formam parte
de uma estrutura lógica. Elas são apenas fichas. ( . . . ) E, assim,
uma palavra em prosa não tem valor em si mesma. ( . . . )
As palavras da poesia são mais conspícuas, mais sólidas, por­
que são parte de uma estrutura que elas mesmas criam30.

Se Bateson não tivesse incluído sua observação sobre


a “chamada prosa ‘poética’ ”, poder-se-ia achar que estivesse
salientando a diferença entre a linguagem usada na fala
e a linguagem usada na arte. Mas, aparentemente, ele sus­
tenta que todo verso, simplesmente enquanto tal, é criativo —
mesmo “Mary had a little lamb” *; e toda prosa, simples-

29. English P oetry and th e English Language, p. 20.


30. Ibid., p. 23. Uma ldentlflcaç&o semelhante de prosa com
enundaç&o discursiva é íeita por A. O. Ward, em Founãationa of
English Prose (ver especialmente p. 20-22), e por S. Alexander, em
“Poetry and Prose in the Arts", embora nenhum desses dois escrito­
res a faça de maneira táo irrestrita quanto Bateson.
• Poema aproximadamente do tipo de “Batatinha quando nasce".
AS GRANDES FORMAS LITERÁRIAS 311

mente enquanto tal, oferece explicações, definições e con­


clusões — mesmo “The morning stars sang together” * .
A diferença entre ficção em prosa e em poesia é pura­
mente uma diferença de dispositivos e de seus efeitos. Ambas
as formas literárias criam a ilusão poética, isto é, criam uma
história virtual em que todos os eventos são experiências —
anseios e frêmitos, reflexões, promessas, casamentos, assas­
sinatos. A ilusão é efetuada pelo uso de palavras, seja esse
uso a tortuosa tessitura de versos em uma ode horaciana,
seja ele as sentenças rápidas, mesmo coloquiais, da narra­
tiva em prosa — “esse cuidadoso artifício que é a verdadeira
falta de cuidado da arte”31.
A literatura é uma arte flexível, elástica, que colhe seus
motivos em todos os cantos do mundo e todos os aspectos da
vida. Ela cria lugares e acontecimentos, pensamentos, ações,
pessoas. O romance centraliza-se no desenvolvimento de pes­
soas; a tal ponto, na verdade, que as pessoas freqüente-
mente perdem de vista qualquer outro elemento desta, e
elogiam como sendo grande qualquer obra que apresenta uma
personagem interessante32. Um romance, porém, para ser vital,
precisa mais do que estudo de personagens; requer uma
ilusão de um mundo, de história percebida e sentida — “um
canto de vida visto através de um temperamento”, como
disse Zola.
Clive Bell, saindo de seu papel usual de esteta pura­
mente visual, uma vez escreveu um pequeno livro sobre Marcei
Proust, no qual estudava não sua própria emoção estética,
mas o segredo de uma criação literária. Aqui, onde estava
livre de qualquer responsabilidade pela emoção difícil, ele
examinou profundamente a obra em si para ver o que a torna
tão estranha e no entanto tão vigorosa; e uma longa expe­
riência com outras artes além da poética permitiu-lhe perceber
seus elementos artísticos, não obscurecidos por um excesso
de princípios de crítica literária. Acima de tudo, ele julga a
ficção inteiramente como arte.
Sua psicologia [diz a respeito de Proust] dificilmente pode ser
louvada em excesso, e a coisa mais fácil do mundo, contudo, é
louvar demais a psicologia. A psicologia não é a coisa mais impor­
tante na arte literária ou em qualquer outra. Pelo contrário, as
supremas obras-primas derivam seu esplendor, seu poder sobrenatu­
ral, não de lampejos de percepção, nem da caracterização, nem mesmo
de uma compreensão do coração humano, mas da forma — em­
prego a palavra em seu sentido mais rico, quero dizer a coisa que
os artistas criam, sua expressão. Quer isso seja chamado de “forma

* "As estrelas da manhã cantavam Juntas."


31. Wharton, op. cit., p. 48.
32. Cf. Arnold Bennett, "Is the Novel Decaying?" (Em Thinçs
T hat Have Interested Met Terceira Série, pág. 193): "A hase da boa
ficção é a criação de personagens, e nada mais".
312 SENTIMENTO E FORMA

significante” ou de outra coisa qualquer, a qualidade suprema na


arte é formal; tem a ver com ordem, seqüência, movimento e for­
ma. ( .. . )3 3

Bell, ao contemplar essa forma, lançou luz sobre a


fonte tanto de sua singularidade quanto de seu poder de re­
velar uma nova espécie de verdade.

Proust põe à prova nossa paciência enquanto esperamos que


sua estória se mova para a frente: não sendo essa a direção em que
ela está destinada a mover-se. ( . . . ) É de estados, não de ação, que
ele trata. O movimento é o de um inseto ou flor que se expande.
( . . . ) Proust não vai para a frente, queixamo-nos. Por que deveria?
Será que não existe outra linha de desenvolvimento no universo?^4

O traço mais notável de Proust é seu senso de tempo;


o tempo não é algo que ele menciona, mas algo que ele cria
para a percepção direta da pessoa. É uma ilusão secundária
em seus escritos, como o espaço o é na música, e, como as
mais cuidadosas descrições do “espaço musical” inconscien­
temente ecoam os princípios da concepção do espaço plástico,
assim a explicação dada por Bell à ilusão poética de tempo de
Proust apóia-se em uma comparação musical e apresenta o
tempo como um plenum em que formas e movimentos existem.
O tempo é a substância de que é composta A la recherche du
temps perdu: a3 personagens existem no tempo e, se o senso de
tempo fosse abstraído, deixariam de existir. No tempo, elas se de­
senvolvem; seus relacionamentos, cor e extensão são todos tempo­
rais. Assim elas crescem; as situações desdobram-se, nem sequer
como flores, mas como canções. ( . . . )
Proust lida com o tempo da mesma forma como os pintores
modernos lidam com o espaço. O pintor não permite que leis de
perspectiva e relações espaciais cientificamente obtidas restrinjam
sua imaginação35.
A la recherche du temps perdu é uma forma no tempo; não é
um arabesco no tempo. Está construída em três dimensões. ( . . . )

Em outro lugar, o engenhoso crítico fala do tratamento


que Proust dispensa aos fatos, que são os “modelos” do
poeta como os objetos são os do pintor ou do escultor; e, de
maneira absolutamente inconsciente, fala deles como “obje­
tos”, e seu comentário sobre o método de Proust é um notável
paralelo ao de Cézanne sobre seu próprio trabalho.

Foi a contemplação, a compreensão, dos fatos que provocou o


poeta nele. Ele mantinha seu olhar no objeto, mais ou menos como345

33. Proust , p. 67.


34. Ibid., p. 16.
35. Ibid., p. 55-56.
AS GRANDES FORMAS LITERÁRIAS 313

os grandes impressionistas haviam feito: observava, analisava,


reproduzia; mas o que ele via não era o que os escritores de sua
geração viam, mas o objeto, o fato, em sua significação e m o cio n ai.
Finalmente, depois de expor todas essas práticas e efeitos
que tocam sutilmente as outras artes, Bell presta home­
nagens à criação proustiana da própria ilusão poética:
Tão agudo era seu senso daquele mundo inventado e, ao mes­
mo tempo tão crítica, tão vivida e histórica sua maneira de apresen­
tá-lo, que, lendo-se sua ficção, a gente tem a sensação de estar
lendo memórias3637.
A ficção em prosa é um tópico tão amplo que po-
der-se-ia prosseguir indefinidamente analisando suas técnicas
e realizações; mas em um livro que trata sozinho de todas as
artes, é preciso interromper-se. Simplesmente não há espa­
ço para discutir o romance histórico, a fantasia simbó­
lica (tal como a que Kafka escreve em forma de novela), a
biografia ficcionalizada (por exemplo, Mozart auf der Reise
nach Prag de Mõrike), o romance de propaganda e de sátira.
Uma grande ordem literária, porém, tem ainda de ser consi­
derada: a não-ficção.
Esta categoria inclui o ensaio crítico, que serve para
expor as opiniões do autor e para definir suas atitudes; a
filosofia, a análise de idéias; a história, apresentando os fatos
compro váveis de um passado real em sua unidade causai; a
biografia, ou história pessoal; relatos; e todo tipo de expo­
sições.
O que todas essas espécies de composição têm em
comum é sua relação com a realidade. O autor não usa eventos
dados, condições, propostas e teorias meramente como mo­
tivas para desenvolver uma ficção; ele não cria pessoas e
acontecimentos à medida que precisa deles, mas haure
cada item, mesmo em seu mínimo detalhe, da vida. Tais
escritos são, em essência, não poesia (toda poesia é ficcional;
“não-ficção” é “não-poesia” ) . Contudo, quando é bem feita,
alcança um padrão que é essencialmente literário, isto é, um
padrão artístico.
Os escritos discursivos — é a designação adequada
para toda esta categoria — são uma forma altamente impor­
tante da assim chamada “arte aplicada” . Em geral pensa-se
primeiramente em têxteis, cerâmica, móveis e signos comer­
ciais sob essa rubrica; mas o escrito discursivo é realmente
seu exemplo mais puro, e expõe suas relações, tanto positivas
quanto negativas, com a arte “liberal” ou livremente criativa
de modo mais claro que qualquer outro caso. Assim, seguindo
36. I b i d p. 26.
37. I b i d p. 79.
314 SENTIMENTO E FORMA

a regra prática de tratar um problema que pertence a várias


artes apenas em conexão com a que o apresente de modo mais
perfeito, reservei a discussão teórica sobre a “arte aplicada”
para este contexto apropriado, mesmo se algo inesperado.
Na primeira discussão sobre “semelhança”, salientei que
esta não é necessariamente enganosa; apenas que,
quando uma semelhança perfeitamente normal — a aparência
visual de um vaso, por exemplo — é revelada de modo tão
sensível que todo nosso interesse no objeto está centralizado
em seu aspecto visual, o objeto mesmo parece como pura
visão. O espectador toma-se tão cônscio de sua forma quanto
ficaria se ele não fosse nada além de uma forma, isto é, de
uma ilusão.
O pensamento lógico, literal, tem uma forma caracte­
rística, que é conhecida como “discursiva”, porque é a forma
do discurso. A linguagem é o instrumento fundamental do
pensamento, e o produto traz o selo do instrumento que o
molda. Um escritor com imaginação literária percebe mesmo
essa forma familiar como um veículo de sentimento — o
sentimento que é naturalmente inerente à reflexão erudita,
a crescente intensidade de um problema à medida que ele
se toma mais e mais complexo e, ao mesmo tempo, mais
definido e “pensável”, até que a exigência de resposta se faz
urgente, tocada pela impaciência; a retensão do assentimento
enquanto a explicação é preparada; o sentimento cadenciado
de solução, e a expansão da consciência em um novo conhe­
cimento. Se todas essas fases fundirem-se em uma passagem
configurada, o pensamento, por mais difícil que seja, é natural;
e o pináculo do estilo discursivo é a encarnação de um tal
padrão de sentimento, modelado, palavra por palavra, no
argumento que progride. O argumento é o motivo do escritor,
e absolutamente nada mais pode entrar nele. Tão logo
ele dirige o sentimento para longe do pensamento motivador,
para (digamos) uma reação mística ou moral, ele não está
mais sustentando o processo de entendimento.
Um desvio sutil da enunciação literal em um discurso é
a base daquilo que é comumente chamado de “retórica”. No
escrito retórico, o discurso é um motivo usado com maior ou
menor liberdade; o objetivo do escritor é fazer com que a
conclusão do argumento representado pareça aceitável, mais
do que tornar o argumento inteiramente visível. O bom dis­
curso procura, acima de tudo, ser transparente, não como
um símbolo do sentimento, mas como um veículo do sentido;
a forma artística está vinculada estritamente à função literal.
Daí por que tais escritos não são poesia; o escritor não tem
a liberdade de criar qualquer semelhança de experiência in-
AS GRANDES FORMAS LITERÁRIAS 315

(elcctual ou imaginativa que seu motivo, um pensamento dis­


cursivo, coloca ao alcance de sua imaginação, mas está com­
prometido com a contemplação de uma experiência viva — a
experiência intelectual de seguir esse discurso. O sentimento
apresentado tem de ser na realidade apropriado ao assunto re­
presentado, ao “modelo”; e a excelência de um estilo de ex­
posição depende de dois fatores, em vez de um — a unida­
de e viveza do sentimento apresentado (que é o único critério
da arte “livre”), e a relação ininterrupta desse sentimento
com o progresso real do discurso representado.
Não existem muitas artes “aplicadas” tão intimamente
vinculadas à realidade quanto o escrito discursivo. Outra que
vem à mente é o desenho científico. Em alguns antigos
livros de botânica, encontram-se desenhos coloridos de plan­
tas, com detalhes ampliados de suas partes diminutas, tão
belos quanto as flores e animais de Dürer, mas meticulosa-
mente fiéis a um ideal científico. A beleza dessas ilustrações
está no espaçamento dos itens, na proporção do campo ante
as figuras, na tonalidade das tintas, na escolha da cor —
sempre pálida e discreta, mas bastante variada — do
fundo. A simplicidade e a clareza das formas mostradas, que
têm de ser botanicamente acuradas e elaboradas, são trans­
formadas em uma convenção artística, mais do que em uma
limitação artística. Tal desenho é arte, embora sirva à ciência;
como a arquitetura ou escultura religiosa é arte, embora sirva
à fé e à exaltação.
Ê um erro fatal pensar na “arte aplicada” como um
acréscimo de fantasias artísticas a objetos que são essencial­
mente comuns e banais. Essa, infelizmente, é a idéia mais
popular, que domina a chamada “arte comercial”. As me­
lhores escolas de design estão gradualmente destruindo-a;
mas mesmo seus membros nem sempre perceberam a relação
precisa entre arte e artefato, que o artefato é tomado
como o motivo essencial da obra de arte; a aparência criada
é uma aparência “verdadeira” (no sentido ordinário de “ver­
dadeiro”, isto é, “fatual” ), o objeto apresenta-se ao olhar
como é, e atrai nossa visão por sua semelhança de unidade
orgânica, exatamente como o faz o design decorativo.
Em arquitetura, esse princípio é conhecido como “fun­
cionalismo”. Algumas vezes tem sido considerado como o
princípio supremo da arte do construtor. Acho que isso é um
erro; a arquitetura é essencialmente uma arte criativa38.
Mas uma grande parte da “arte aplicada” faz parte dela, pois
móveis e acessórios são parte da arquitetura. O “domínio
étnico” está, de fato, relacionado tão intimamente a funções
38. Ver, acima, Cap. 6 , especialmente p. 99.
316 SENTIMENTO E FORMA

específicas que só a própria arquitetura pode realizar a sua


abstração para nossa percepção; e a passagem a partir da arte
livremente criativa à arte aplicada neste campo deve, de modo
apropriado, ser quase invisível.
Similarmente, a passagem a partir da ficção, em que o
material temático é completamente transformado, e não
“dado” em absoluto como uma realidade, para a verdadeira
exposição, em que o uso discursivo da linguagem é enfatizado
de maneira que o discurso real se torna manifesto, pode, algu­
mas vezes, ser uma transição fluida. Os diálogos de Platão
são uma tal “ficção didática”; e assim também são muitas
“utopias”, alegorias e fantasias proféticas. Manifestos, credos
e orações formalmente compostas são, todos, discurso real
tratado poeticamente.
Todas as espécies de literatura podem, de fato, entrecor-
tar-se, porque sua separação jamais é absoluta. Elas surgem
do poder de diferentes recursos. Nos capítulos precedentes,
iniciei a análise das formas literárias com a da lírica, porque
a poesia lírica emprega a menor quantidade de material a
fim de criar seus elementos poéticos, e consequentemente
explora esses materiais ao máximo. Intelectualmente, os pro­
jetos maiores podem ser sucessivamente aumentados, acres­
centando-se meios de criação mais poderosos — narração,
ação e mesmo ações contemporâneas, descrição extensa, per­
sonagem, ambiente realista, conversas, e seja lá o que for.
Mas, historicamente, esse não foi o processo de produção dos
vários tipos de literatura. A forma mais antiga provavelmente
foi aquela em que todos os desenvolvimentos separados esta­
vam implícitos — o gênero épico.
O épico é realmente, como a verdadeira balada, poesia
pré-literária; e é a grande matriz de todos os gêneros poéticos.
Todos os recursos da arte ocorrem nele mais cedo ou mais
tarde — mas jamais todos ao mesmo tempo. Há versos
líricos, buscas românticas, descrições da vida quotidiana,
incidentes autônomos que podem ser lidos como uma balada.
Nos épicos gregos, encontram-se conflitos políticos, histórias
pessoais, personagens que crescem junto com suas ações; na
Edda existem enigmas e provérbios, no Kalevala, fantasias
cosmológicas; e em todos os épicos, inovações e louvores aos
deuses. O épico é uma mistura de criações literárias, vaga
no entanto grandiosamente abarcadas por uma estória — a
oniabrangente estória do mundo.
Foi provavelmente a descoberta que diferentes práticas
poéticas produziam diferentes efeitos, causando estados de
ânimo e movimentos variados em partes sucessivas do épico,
que deu origem às formas literárias especiais. Cada meio iso-
AS GRANDES FORMAS LITERÁRIAS 317

iado de criação poética podia ser explorado e engendrou um


gênero de menor alcance, mas de forma mais organizada. Ao
mesmo tempo, que é possível que indícios de menor enverga­
dura se verificassem no canto: por exemplo, em endechas e
peãs, falas mágicas, encantamentos e recitações místicas. Co­
nhecemos pouco dos primórdios da literatura. Mas sabemos
que a grande tradição poética, em todas as línguas, foi alcan­
çada com o desenvolvimento da escrita e, de fato, apenas com
o uso livre de lètras; a arte das palavras não é essencialmente
uma arte da oratória, inadequadamente registrada por sím­
bolos visuais e algo degradada durante esse processo, mas é
verdadeira e justamente chamada “literatura” .
1 7 . A Ilusão Dramática

A maioria dos tratamentos teóricos da literatura haure


seu material e evidência tanto do drama quanto de obras
líricas e narrativas. Uma análise séria da arte literária com
uma menção apenas ocasional, de passagem, a Shakespeare
pode ter parecido, a muitos leitores, uma curiosa inovação.
A razão para tal, entretanto, é bastante simples, e já foi suge*
rida acima: Shakespeare é essencialmente um dramaturgo e
o teatro não é, no sentido estrito, “literatura”.
Contudo, é uma arte poética, porque cria a ilusão pri­
mária de toda poesia — história virtual. Sua substância é
uma imagem da vida humana — fins, meios, ganhos e perdas,
realização, declínio e morte. É uma estrutura de experiência
ilusória, e esse é o produto essencial da poesis. Mas o dra­
ma não é, meramente, uma forma literária distinta; é um
modo poético especial, tão diferente da genuína literatura
quanto a escultura o é da arte pictórica, ou qualquer dessas
duas o é da arquitetura. Quer dizer, efetua sua própria abs­
tração básica, o que lhe dá um caminho próprio de realizar a
semelhança de história.
A literatura projeta a imagem de vida ao modo da
memória virtual; a linguagem é seu material essencial; o som
e significado das palavras, sua ordem e uso familiar ou inco-
mum, mesmo sua apresentação na página impressa, criam a
ilusão de vida como um reino de eventos — completados,
vividos, à medida que as palavras os formulam — eventos
que compõem um Passado. O drama, porém, apresenta a
320 SENTIMENTO E FORMA

ilusão poética sob uma luz diferente: realidades ou “even­


tos” não acabados, mas respostas visíveis, imediatas, de seres
humanos, efetuam sua semelhança de vida. Sua abstração bá­
sica é o ato, que emerge do passado, mas se dirige ao futuro,
e está sempre cheio de coisas por vir.
Ao usar palavras comuns, tais como “evento” ou “ato”,
como termos analíticos, corre-se o perigo de sugerir conceitos
bem menos gerais, e de fato um grande número deles, todos
igualmente inadequados para a finalidade presente. “Even­
to”, nos capítulos precedentes, foi usado no sentido dado por
Whitehead, para cobrir toda ocorrência espaço-temporal,
mesmo a persistência de objetos, os ritmos repetitivos de
vida, o ensejo de um pensamento bem como a de um terre­
moto. De modo semelhante, com “ato” quero dizer uma
espécie de resposta humana, física ou mental. A palavra 6
usada normalmente, é claro, em sentidos mais especializados.
Pode significar uma das principais divisões de uma peça —
Ato I, Ato II, etc.; ou pode referir-se a comportamento evi­
dente, como apressar-se, pôr as mãos em alguém, tomar ou en­
tregar um objeto, e assim por diante; ou pode significar um
ato fingido, como quando se diz, a respeito de uma pessoa,
que ela pensa de uma forma e “atua” de outra.* No sentido
geral empregado aqui, entretanto, todas as reações são atos,
visíveis ou invisíveis; assim no drama, qualquer ilusão de ati­
vidade física ou mental é aqui chamada de “ato”, e a estrutu­
ra total de atos é uma história virtual ao modo da ação dra­
mática.
Um ato, quer instintivo, quer proposital, está normal­
mente orientado em direção ao futuro. O drama, embora
implique ações passadas (a “situação” ), move-se, não
em direção ao presente, como procede a narrativa, mas em
direção a algo que está além; lida essencialmente com com­
promissos e conseqüências. Também as pessoas, no drama,
são puramente agentes — quer consciente, quer cegamente,
fazedores do futuro. Esse futuro, que é feito perante nossos
olhos, dá importância aos próprios inícios dos atos dramá­
ticos, isto é, aos motivos dos quais brotam os atos, e as si­
tuações em que eles se desenvolvem; a sua feitura é o prin­
cípio que unifica e organiza o contínuo da ação no palco.
Tem sido dito repetidas vezes que o teatro cria um perpétuo
momento presente1; mas é apenas um presente preenchido
♦ Em inglês, "act", ato, como verbo significa também representar
(uma peca) e simular.
1. Por exemplo, R. E. Jones, em The Dramatic Imagination ,
p. 40, diz: “Isto é drama; isto é teatro — ter consciência do Agora1*.
E Thomton Wilder, em “Some Thoughts on Playwritlng”, enumera
como uma das “quatro condições fundamentais do drama*’, que “sua
aç&o tenha lugar em um perpétuo tempo presente**. — “No palco»
é sempre agora.** (The Jntent of the A rtist, p. 83).
A ILUSÃO DRAMÁTICA 321

com seu próprio futuro que é realmente dramático. Uma pura


imediatidade, uma experiência direta imperecível sem o amea­
çador movimento para a frente da ação conseqüente, não o
seria. Como a literatura cria um passado virtual, o drama
cria um futuro virtual. O modo literário é o modo da Me­
mória; o dramático é o modo do Destino.
O futuro, como o passado, é uma estrutura conceituai,
e a expectativa, muito obviamente mais ainda do que a me­
mória, é um produto da imaginação2. O “agora” criado pela
composição poética está sempre sob a égide de alguma visão
histórica que o transcende; e sua pungência deriva não de
qualquer comparação com a realidade, mas do fato de que os
dois grandes campos de contemplação — passado e futuro
— intersectam-se no presente, que, conseqüentemente, não
tem a forma imaginativa pura nem da memória, nem da
profecia, mas uma peculiar aparência própria que designamos
como “imediatidade” ou “agora” .
Na vida real, o futuro iminente é sentido de modo muito
vago. Cada ato isolado visa ao futuro — pomos uma cha­
leira no fogo esperando que ferva, entregamos uma nota a
alguém e esperamos receber o troco, subimos em um ônibus
com a confiança casual de que desceremos dele novamente no
ponto desejado, ou tomamos um avião com um interesse algo
mais consciente em nossa saída em perspectiva de seu interior.
Mas geralmente não dispomos de qualquer idéia do futuro co­
mo experiência total que está vindo por causa de nossos atos
passsados e presentes; um tal senso do destino surge apenas
em momentos pouco comuns sob tensões emocionais peculia­
res.
No drama, entretanto, esse senso de destino é de suprema
importância. É o que faz com que a ação presente pareça
como parte integrante do futuro, não obstante esse futuro
nao se ter ainda desenrolado. A razão disso é que, no pal­
co, todo pensamento expresso em conversação, todo senti­
mento traído pela voz ou pelo olhar, é determinado pela ação
total do qual é parte — talvez uma parte embrionária, a
primeira sugestão do motivo que logo ganhará força. Mesmo
antes de ter-se qualquer idéia sobre qual será o conflito (isto
é, antes de ter sido feita a “exposição” ), sente-se a tensão
desenvolvendo-se. Essa tensão entre passado e futuro, o
“momento presente” teatral, é o que dá a atos, situações, e
2. Comparem as observações de Oeorg Mehlis, citadas na nota da
p. 274. Mehlis compreendeu mal a natureza do efeito “distanciador” da
memória e expectativa, que julgou estar baseada na tendência que as
pessoas têm para deixar de lado o desagradável, e uma conseqüente “me­
lhoria estética” dos fatos; mas, apesar desse erro, ele notou com acerto
o poder de transformação de ambas as projeções.
322 SENTIMENTO E FORMA

mesmo a elementos constituintes, tais como gestos e atitudes e


tonalidades, a intensidade peculiar conhecida como “quali­
dade dramática”.
Em um volume pouco conhecido, trazendo o título mo­
desto, impessoal, Essays by Divers Hands (um volume de
“Transactions” da Royal Society of Literature da Inglater­
ra )3, existe um ensaio filosófico muito rico em idéias, de
Charles Morgan, intitulado “The Nature of Dramatic Illusi-
on”, em que me parece que ele tanto formulou quanto respon­
deu a pergunta sobre o que é criado na obra de arte dramá­
tica plenamente desenvolvida — a peça representada.
Com todo desenvolvimento da técnica dramática [escreveu
ele alt] c cada desvio da estrutura clássica, aumenta a necessidade
de uma nova discussão q ue . .. irá estabelecer para o palco, não
efetivamente uma regra formal, mas uma disciplina estética, elástica,
racional, e aceitável para este nas circunstâncias modernas.
É meu propósito, então, descobrir o princípio a partir do qual
tal disciplina pode surgir. A esse princípio, chamo princípio de ilusão45.
A ilusão, da maneira pela qual a concebo, é forma em sus­
penso. ( . . . ) Em uma peça, a forma não tem valor em si mesma;
só o estar em suspenso da forma tem valor. Em uma peça, a forma
não é e não pode ter valor em si mesma, porque enquanto a peça
não terminar não existe forma. ( . . . )
A representação de uma peça ocupa de duas a três horas.
Até o final, sua forma está latente nela. ( . . . )
Esse suspenso da forma, pelo qual se quer significar a in-
completude de uma conhecida completude, deve ser nitidamente dis-
tinguido do suspense comum — o suspense do enredo — a ignorân­
cia do que irá acontecer, ( . . . ) pois o suspense do enredo é um
acidente estrutural» e o suspenso da forma é, como o entendo,
essencial à forma dramática em si. ( . . . )
Qual forma é escolhida... importa menos do que, enquanto
o drama esteja cm movimento, uma forma esteja sendo preenchidas.
“Preenchida” é aqui a palavra-chave para a idéia de
forma dramática. Tudo, é claro, tem uma forma de alguma
espécie: o célebre milhão de macacos batendo em um milhão
de máquinas de escrever por um milhão de anos, produzindo
combinações casuais de letras, estariam fornecendo inúmeras
formas fonéticas (embora algumas pudessem não encorajar sua
pronúncia); de modo semelhante, o mais aleatório conglome­
rado de eventos, atos, enunciações, ou seja lá o que for, iria
produzir uma forma quando tomado em conjunto; porém,
antes de tais coleções serem completadas (o que ocorrería
simplesmente quando, por qualquer razão, parassem de co-
letá-la), ninguém podería imaginar sua forma. É preciso que
exista um senso do todo, alguma antecipação do que pode

3. N. S. v. 12, editado por R. W, Macan, 1933. O artigo em questão


ocupa as p. 61 a 77.
4. Ibid., p. 61.
5. Ibid., p. 70,72.
A ILUSÃO DRAMÁTICA 323

ou deve vir, se se quiser que a produção de novos elementos


dc a impressão de que “uma forma está sendo preenchida” .
A ação dramática é uma semelhança de ação construída
de modo tal que um trecho inteiro, indivisível, de história vir­
tual está nela implícito, como forma ainda não realizada, bem
antes de que a apresentação se complete. Essa ilusão constante
de um futuro iminente, essa aparência vivida de uma situação
que se desenvolve antes de que qualquer coisa espantosa haja
ocorrido, é “forma em suspenso”. É um destino humano que
se desdobra ante nós, sua unidade é manifesta desde as pala­
vras ou até a ação silenciosa iniciais, porque no palco vemos
atos em sua inteireza, como não os vemos no mundo real
exceto em retrospecto, isto é, pela reflexão construtiva. No
teatro, eles ocorrem em forma simplificada e acabada, com
visíveis motivos, direções e fins. Uma vez que a ação no
palco não está, como a ação genuína, enraizada em um caos
de feitos irrelevantes e interesses divididos, e que as perso­
nagens no palco não têm complexidades desconhecidas (em­
bora possam ser muito complexas), é possível, ali, ver os
sentimentos de uma pessoa tornarem-se em paixões, e tais pai­
xões extemarem-se em palavras e atos.
Sabemos, de fato, tão pouco sobre as personalidades à
nossa frente no início de uma peça que cada movimento e
palavra delas, mesmo sua vestimenta e forma de andar, são
itens distintos para nossa percepção. Em virtude de não es­
tarmos tão envolvidos com elas quanto com as pessoas reais,
podemos considerar cada mínimo ato em seu contexto, como
um sintoma de caráter e condição. Não precisamos descobrir
o que é significativo; a seleção foi feita — seja o que for que
estiver ali é significativo, e não é demais para ser examinado
in toto. Uma personagem se nos depara como um todo coe­
rente. O que se aplica a personagens, aplica-se a situações:
ambos tornam-se visíveis no palco, transparentes e completos,
como não o são seus análogos do mundo6.
Mas o que realmente assegura a unidade artística que
Morgan chamou de “forma em suspenso” é a própria ilusão
6. Um critico alemão, Peter Richard Rohden, viu essa diferença
em nossa compreensão de pessoas ilusórias e reais, respectivamente,
como algo paradoxal. “O que'*, escreveu ele, “distingue uma perso­
nagem no palco de uma pessoa *real'? Obviamente o fato de que
aquela está frente a nós como um todo plenamente articulado. Per­
cebemos nossos semelhantes apenas de modo fragmentário, e nosso
poder de auto-observação é geralmente reduzido, pela vaidade e cobiça,
a zero. O que chamamos de 4llusão dramática* é, portanto, o fenômeno
paradoxal de sabermos mais sobre os processos mentais de um Hamlet
do que sobre nossa própria vida interior. Pois o poeta-ator Sbakespeare
mostra não só os feitos, mas também os motivos deste, e, de um modo
na verdade mais perfeito do que Jamais os vemos em conjunto na
vida real.” (Ver “Das Scbauspielerlscbe Erlebnis’*, na coleção de ensaios
de Ewald Gelssler, Der Schauspieler, p. 36)
324 SENTIMENTO E FORMA

de Destino que é dada no drama, e que se origina principal^


mente da maneira pela qual o dramaturgo manipula a circuns-
tânica. Antes de que uma peça haja sèguido muito adiante,
já se tem consciência não apenas de vagas condições de vida
em geral, mas de uma situação especial. Como a distribuição
de peças em um tabuleiro de xadrez, a combinação de per­
sonagens forma um padrão estratégico. Na vida real, geral­
mente reconhecemos uma situação distinta apenas quando
ela atingiu, ou quase atingiu, uma crise; mas, no teatro, vemos
todo o arranjo de relacionamentos humanos e interesses con­
flitantes bem antes de ter ocorrido qualquer evento anormal
que poderia, na vida real, colocá-lo em foco. Enquanto no
mundo real iríamos testemunhar algum ato extraordinário e
gradualmente compreender as circunstâncias que se encon­
tram por trás dele, no teatro percebemos uma situação amea*
çadora e vemos que alguma ação de longo alcance deve brotar
a partir dela. Isso cria a tensão peculiar entre o presente
dado e sua conseqüência ainda não realizada, “forma em
suspenso9’, a ilusão dramática essencial. Tal ilusão de um
futuro visível é criada em toda peça — não apenas em peças
muito boas, mas em tudo o que reconhecemos como peça,
e não como dança, pompa ou outras “artes teatrais” não-
dramáticas7. É a ilusão primáriada poesia, ou história virtual,
no modo peculiar ao drama. O futuro aparece como já uma
entidade, embrionária no presente. Isso é o Destino.
O destino é, evidentemente, sempre um fenômeno virtual
— não existe coisa assim nos fatos nus. e crus. £ uma pura
semelhança. Mas aquilo a que se “assemelha” (ou, na lin­
guagem aristotélica que ultimamente tem sido revivida, o que
ele “imita” ) é, não obstante, um aspecto da experiência real
e, efetivamente, um aspecto fundamental, que distingue a vida
humana da existência que levam os animais: o senso de pas­
sado e futuro como partes de um contínuo e, portanto, da
vida como uma realidade única.
Essa ampla percepção, que devemos a nosso talento
peculiarmente humano de expressão simbólica, está enraizada,
entretanto, nos ritmos elementares que partilhamos com todos
os outros organismos, e o Destino criado pela arte dramá­
tica traz a marca do processo orgânico — de função prede­
terminada, tendência, crescimento e conclusão. A abstração
de tais formas vitais por meio da arte já foi considerada no

7. Pode ser que neste ponto Morgan não concorde comigo.


Tendo enunciado que a 4‘forma em suspenso" é a própria lVus&o
dramática, e o suspenso da íorma algo "sem o qual não existe drama”,
ele fala, da llusâo dramática como uma rara experiência, "a recompensa
mais elevada de asBlstlr-se a peças”. Não sei se emprega dois conceitos
ou apenas um, de modo algo diferente do meu.
A ILUSÃO DRAMÁTICA 325

Cap. 4, com referência ao desenho primitivo. Em toda arte


ela é alcançada de modo diferente; mas penso que em cada
uma isso se faz de modo igualmente sutil — não uma simples
referência a casos naturais dessa forma, mas uma manipu­
lação genuinamente abstrativa de seu reflexo sobre estruturas
não-viventes ou mesmo não-físicas. Literalmente, “processo
orgânico” é ura conceito biológico; “vida”, “crescimento”,
“desenvolvimento”, “declínio”, “morte” — todos esses são
termos estritamente biológicos. São aplicáveis apenas a orga­
nismos. Na arte, eles são retirados de seu contexto literal, e,
imediatamente, em lugar de processos orgânicos, temos formas
dinâmicas: em vez de metabolismo, progressão rítmica, em
vez de estímulo e resposta, complexidade, em vez de matu­
ração, realização, em vez de procriação, a repetição do todo
em suas partes — aquilo que Henry James chama de “refle­
xo” nas partes8910, e Heinrich Schenker, “diminuição” ®, e
Francis Fergusson, “analogia” ,0. E, em lugar de uma lei de
desenvolvimento, tal como a estabelecida pela biologia, na
arte temos o destino, o futuro implícito.
A finalidade de abstrair-se formas vitais de suas exem-
plificações naturais é, evidentemente, tomá-las disponíveis
para uso artístico sem empecilhos. A ilusão de crescimento,
por exemplo, pode ser produzida em qualquer meio, e de
inúmeros modos: linhas que se alongam ou fluem, que não
representam qualquer criatura viva; graus que se elevam rit­
micamente, embora dividam ou diminuam; complexidade cres­
cente de acordes musicais, ou repetições insistentes; uma
dança centrífuga; versos poéticos de seriedade cada vez
mais profunda; não há necessidade de “imitar” qualquer coisa
literalmente viva a fim de transmitir a aparência de vida. As
formas vitais podem ser refletidas em qualquer elementos de
uma obra, com ou sem representação de coisas vivas.
No drama, a situação possui seu próprio caráter “orgâni­
co”, quer dizer, desenvolve-se, ou cresce, à medida que a
peça prossegue. Isso porque todos os acontecimentos, para
serem dramáticos, devem ser concebidos em termos de atos,
e os atos pertencem apenas à vida; eles têm motivos, mais do
que causas e, por sua vez, motivam atos posteriores, que
compõem ações integradas. Uma situação é um complexo de
atos pendentes. Ela altera-se de momento para momento ou,
antes, de movimento para movimento, à medida que os
atos diretamente iminentes são realizados e que o futuro por
trás deles se torna distinto e pleno de excitação. Dessa forma,
8. The Art of Fiction, p. 170.
9. Cf. Cap. 8, p. 136.
10. The Idea of a Theater, p. 104.
326 SENTIMENTO E FORMA

a situação em que agem as personagens difere do “meio


ambiente” destas — um termo com o qual ela algumas vezes é
confundida, através da influência das ciências sociais que in­
vadiram o teatro há uma geração e geraram uma progênie
prolifera, mesmo se de vida breve, de peças sociológicas, com
uns poucos verdadeiros dramas entre elas. O meio ambiente
em que as personagens se desenvolveram e pelo qual são atro­
fiadas ou endurecidas, refinadas ou falsamente polidas, está
quase sempre implícito (quase sempre, isto é, exceto quando
se toma um fator consciente de interesse para alguém na pe­
ça). A situação, por outro lado, sempre é explícita. Mesmo
em um mundo romântico vago como o de Pelléas e Mélisande,
distanciado de toda história real, e tão ageográfico que o
meio ambiente na realidade é só paredes de castelo e uma
floresta, sem população (o coro de mulheres na cena da
morte simplesmente surge ex níhilo — não havia habitantes
no segundo plano antes, como existem nos castelos de
Shakespeare), a situação que provoca a ação é clara.
A situação é, de fato, parte da ação; é inteiramente
concebida pelo dramaturgo e é dada, por ele, aos atores para
que estes a compreendam e representem, da mesma forma
em que ele lhes dá as palavras que devem ser ditas. A situa­
ção é um elemento criado na peça; ela cresce até seu clímax,
frequentemente ramificando-se em detalhes elaborados no
curso de seu desenvolvimento, e, no final, é resolvida pelo
término da ação.
Onde o “meio ambiente” chega de alguma forma a
entrar no drama, entra como uma idéia nutrida por pessoas
na peça, tais como visitantes de cortiços e reformistas na
peça “radical” de problemas. Eles mesmos, entretanto, não
aparecem em um meio ambiente, porque esta abstração socio­
lógica não tem significado para o teatro. Eles aparecem em
um cenário. “Meio ambiente” é uma constante invisível,
mas “cenário” é algo imediato, algo sensorial ou poetica­
mente presente. O dramaturgo pode utilizar um cenário
como o fez Strindberg em suas primeiras peças, a fim de esta­
belecer o sentimento de vida quotidiana, ou pode destiná-lo à
finalidade oposta de distanciar a cena de todas as associações
familiares, como Wagner tentou fazer com suas extravagantes
exigências cênicas. O cenário é um fator altamente variá­
vel, que os poetas de tempos antigos costumavam confiar às
pessoas que montavam as peças daqueles no tablado; prática
que abriga perigos, mas que também evidencia uma fé
saudável no poder do script para guiar a imaginação teatral
que deve projetá-lo. Existe uma grande liberdade dada pela
simples indicação: “Tebas”.
A ILUSÃO DRAMÁTICA 327

Das escolhas feitas por artistas executantes o drama é


mais variável, mais tolerante do que outra qualquer
arte e modo. Por essa razão, a "forma dominante”, que é
estabelecida pelo dramaturgo, deve ser clara e vigorosa. Ela
tem de governar o emaranhado de muitas mentes imaginosas e
mantê-las, a todas — o diretor, os atores, os projetistas de
cenários e iluminação e vestimentas — , em uma concepção
essencial, uma inconfundível “essência poética”. O poeta,
porém, deve dar a seus intérpretes também um certo campo;
pois o drama é essencialmente um poema representado e,
se a representação pode apenas duplicar aquilo que as falas
já efetuam, haverá uma redundância não intencional e um
tumulto aparente de elementos supérfluos que torna a forma
total impura e opaca (tais falhas de concepção clara, não o
uso de materiais “pertencentes” a outras artes, não arrojadas
ilusões secundárias, são a fonte de impureza em uma obra;
se a forma dominante é orgânica e sua realização é econô­
mica, os materiais mais anormais serão assimilados, os efei­
tos mais intensos de poder, tempo ou espaço abstraído tomar-
se-ão parte da pura obra dramática).
Se o drama não é feito de palavras, como o é uma obra
de literatura, como se pode dizer que o poeta, que compõe
apenas as “linhas”, cria a forma dominante? “Linhas” * em
uma peça são apenas a substância das falas, e as falas são
apenas alguns do atos que constituem o drama.
Elas são, entretanto, atos de tipo especial. A fala é uma
atividade altamente especializada na vida humana, e sua
imagem em todos os modos da poesia, portanto, tem usos
peculiares e poderosos. A proferição verbal é a vazão aber­
ta de uma resposta emocional, mental e corpórea, maior,
e sua preparação em sentimentos e consciência, ou na inten­
sidade crescente de pensamento, está implícita nas palavras
ditas. A fala é como um quintessência da ação. Edith
Wharton descreveu sua relação com o resto de nossas ativi­
dades de modo muito adequado, quando indicou seu uso
no próprio meio poético dela, a ficção em prosa:
O uso do diálago na ficção . . . deve ser reservado para os
momentos culminantes e considerado como o borrifo em que se que­
bra a grande onda da narrativa ao curvar-se em direção ao observa­
dor na praia11.
,A metáfora da onda de Wharton é mais adequada
do que sua afirmação literal, porque pensamos naturalmente
em “momentos culminantes” como momentos raros, pontos
* Em inglês, "Unes", “Unhas”, significa também versos (de um
poema) e telas (de um personagem em uma peça.)
11. The W riting of Fiction, p. 7 3 .
328 SENTIMENTO E FORMA

altos da estória, enquanto que a culminação do pensamento


e do sentimento na fala é uma ocorrência frequente, como a
culminação e a quebra de cada onda em uma constante re-
bentação.
Se, além do mais, contempla-se a metáfora com um
pouco mais de profundidade, ela transmite uma outra relação
da fala com os elementos poéticos que a rodeiam, a saber,
que ela é sempre da mesma natureza que eles, sujeita à
abstração básica do modo em que é usada. Na narrativa, é
um evento, como todos os eventos que compõem o Passado
virtual — os eventos particulares que culminam em “discurso
direto”, os eventos públicos que se entrecortam na experiência
do elocutor e aqueles que a fala, como um novo evento,
engendra. No drama, a fala é um ato, uma expressão, moti­
vada por outros atos visíveis e invisíveis e, como estes, dando
forma ao Futuro que se aproxima.
Um teatrólogo que escreve apenas as falas proferidas em
uma peça marca uma longa série de momentos culminantes
no fluxo da ação. É claro que indica os principais atos não-
verbais, mas isso pode ser feito com o menor número
possível de palavras: entra Fulano, sai Fulano, ou indicações
lacônicas tais como: morre, eles lutam, excursões e alarmas.
Os dramaturgos modernos algumas vezes escrevem páginas
de instruções para os atores, até mesmo descrevendo a figura
e rosto da heroína, ou o estilo dos movimentos e posturas de
alguma personagem (Strindberg diz ao ator principal de Srta.
Julin que ele deve parecer um homem semi-educado!). Tais
“indicações de cena” são realmente tratamentos literários da
estória — aquilo que Clayton Hamilton chamou de
“o tipo das indicações de cena que, embora interessantes pa­
ra o leitor, não são de qualquer proveito para o ator”18, por­
que não partilham da forma dramática. Ibsen prefaciou suas
cenas iniciais com descrições minuciosas de pessoas e cenário;
mas seus maiores intérpretes têm sempre tomado liberdades
com eles. As falas de uma peça são a única orientação que
um bom diretor ou ator precisa. O que toma a peça trabalho
do autor é que as falas são realmentè os pontos altos de uma
ação perpétua, progressiva, e determinam o que pode ser
feito com a peça no palco.
Uma vez que cada proferição é o final de um processo
que se iniciou dentro do corpo de quem fala, uma enunciação
representada é parte de um ato virtual, brotando aparente­
mente no momento do pensamento e sentimento; assim,12
12. The Theory of th e Theatre , p . . 307. Alguns parágrafos mais tar­
de, ele observou sobre as .peças de Granvllle-Barker: “A indicações de ce­
na, impressas, escritas por Barker, sáo pequenas novelas em sl mesmas*'.
A ILUSÃO DRAMÁTICA 329

o ator tem de criar a ilusão de uma atividade interior


que resultam em discurso espontâneo, se é que suas pala­
vras devam ter um efeito dramático e não retórico. Como um
autor alemão muito interessante, Ferdinand Gregori, o ex­
pressou,
O gesto é mais antigo do que as palavras, e, na criação dramá­
tica do ator, também, é preciso que o gesto seja o arauto delas. Quer
seja visível para a audiência ou não, deve ser sempre o precur­
sor. Quem quer que comece com as palavras e depois fique à
cata do gesto apropriado para acompanhá-las, mente tanto frente
à arte quanto à natureza^.

A necessidade de preparar toda proferição por alguns


elementos de expressão e comportamento que a prenunciam,
levou muitos teóricos e quase todos os espectadores ingênuos à
crença de que um ator precisa mesmo sofrer de verdade as
experiências emotivas que apresenta — que é preciso que ele
“viva” seu papel, e produza falas e gestos a partir de uma
paixão genuína. £ claro que a ocorrência cênica não 6 sua
própria vida, mas (de acordo com esse ponto de vista) é
mister que ele pretenda ser o indivíduo que representa, até que
sinta na realidade as emoções que lhe cabe registrar. £ bas­
tante estranho que as pessoas que acreditam nisso não per­
guntem se é preciso que o ator também tenha realmente os
motivos e desejos de seu alter ego — ou seja, se é preciso que
ele realmente pretenda ou, ao menos, deseje matar seu anta­
gonista, ou divulgar um segredo.
A imputação de sentimentos e emoções genuínos ao
ator no palco seria apenas um erro popular negligenciável
não fosse ela parte de uma falácia mais ampla — a confusão
de representação teatral com “faz-de-conta”, ou fingimento,
que tem sempre levado, tanto os teatrólogos, quanto os dire­
tores, a conceber erradamente a relação da platéia com a
peça, e os tem sobrecarregado com o problema gratuito e
tolo da credulidade do espectador. A expressão clássica dessa
preocupação é, evidentemente, o aviso dado por Castelvetro
em sua Poética, publicada em 1570:
O tempo da representação e aquele da ação apresentada devem
ser exatamente coincidentes. Não há possibilidade de fazer com
que os espectadores acreditem que se passaram muitos dias e
noites, quando eles mesmos obviamente sabem que apenas algu­
mas horas se escoaram realmente; eles se recusam a ser assim
enganados1314.

13. “Dle Vorbildung des Schausplelers,ft na coleção Der Schau-


spieíer de Ewald Gelssler. Ver p. 46.
14. Reproduzido em The Great Critics, An Anthology of Literary
Criticism, editado por J. H. Smltb e E. W. ParkB. Ver p. 523.
330 SENTIMENTO E FORMA

Corneille, uma geração depois, ainda aceitava o princípio,


embora ele se queixasse de que limitar uma ação dramática
de modo bastante estrito a um quarto e ao lapso de tempo
de uma visita ao teatro frequentemente “é tão desastrado,
para não dizer impossível, que alguma ampliação de lugar
deve, por necessidade, ser encontrada, bem como de tempo’*15.
Um princípio artístico que não pode ser aplicado plena
e sinceramente, mas requer compromissos e evasões, deve ser
imediatamente suspeito; contudo, o princípio de que os espec­
tadores devem ser levados a crer que estão presenciando acon­
tecimentos reais tem sido aceito até nossos dias16 e, em­
bora a maioria dos teóricos haja visto o erro, ele ainda
aflora na crítica contemporânea e — ainda pior — na prá­
tica teatral. Já nos recuperamos razoavelmente bem da epide­
mia do naturalismo, tipo de encenação que procurava dispen­
sar todo artifício e, consequentemente, tomava emprestado
material vivo do mundo real — “empregados de lojas recruta­
dos para personificar a si mesmos em lojas reais transferidas
fisicamente ao palco”, como Robert Édmond Jones des­
crevia essa espécie de dramaturgia. Ora, é verdade que a arte
real pode ser feita de tais recursos; nenhum recurso em si
próprio é tabu, nem mesmo mendigos cênicos vestidos
com roupas pedidas a mendigos reais (Edward Sothern,
em sua autobiografia, relembra sua aquisição de um tal
tesouro pouco sedutor). Mas a teoria de que a peça é
um jogo de “faz-de-conta” projetado pelo poeta, executado
pelos atores e sustentado por uma audiência desejosa de fingir
que a história no palco é real, que ainda persiste, e com sua
contrapartida prática — o princípio de iludir a platéia,
auxiliando o “faz-de-conta” público ao fazer a peça parecer
tão real quanto possível — é outra estória.
Todo o conceito de teatro como ilusão está intimamente
vinculado à crença de que a audiência deve ser forçada a
partilhar das emoções dos protagonistas. A maneira mais
rápida de realizá-lo é estender a ação cênica para além

15. Ibid., p. 531. De Discurso Sobre as Três Unidades.


16. Strlndberg, por exemplo, estava convencido de que os espec­
tadores no teatro se deixavam iludir, induzir na crença ou no fazer-
- de-conta que o que viam era vida real desenrolando-se em sua pre­
sença, e ele temia serlamente aquilo que a educaç&o do povo, e o*
esclarecimento geral que se esperava que provocasse, faria para a
credulidade do povo. No célebre prefácio de Srta. Júliat observa que
“o teatro sempre tem servido de escola primária para jovens, mulheres,
e aqueles que adquiriram um pouco de conhecimentos, todos os quais
retêm a capacidade de enganar-se e de ser enganado”, mas que ”em
nossa época, quando os processos de pensamento rudimentares, incom­
pletos, operando através de nossa fantasia parecem estar-se desenvolvendo
em reflexão, pesquisa e análise, o teatro pode estar a ponto de ser
abandonado como uma forma decadente, para cujo desfrute carecemos,
das condições requeridas” .
A ILUSÃO DRAMÁTICA 331

do palco nos momentos mais tensos, fazer com que os espec­


tadores se sintam realmente presentes como testemunhas da
cena. O resultado, porém, é artisticamente desastroso, uma
vez que cada pessoa se torna cônscia não apenas de sua pró­
pria presença, mas da de outras pessoas também, e do teatro,
do palco, da diversão em andamento. Rosamond Gilder
relatou uma tal experiência em seu comentário sobre a ence­
nação de Orson Welles de Native Son; descrevendo a cena em
que Bigger Thomas é encurralado por seus perseguidores, ela
disse:
Aqui, luzes lampejantes, jogo de armas, gritos e tiros con­
vergem sobre o palco a partir do balcão e camarote. A ilusão
teatral, longe de ser aumentada, é rompida, e a toma-se nada
mais do que uma versão 1941 de Elisa cruzando o gelo17.

Também eu me lembro vividamente, até hoje, do choque


terrível de um tal chamado à realidade: quando criança, vi
Maude Adams em Peter Pm . Era minha primeira visita ao
teatro, e a ilusão era absoluta e esmagadora, como algo
sobrenatural. No ponto mais alto da ação (a Fadinha havia
tomado o remédio envenenado de Peter a fim de poupá-lo de
fazer isso, e estava morrendo), Peter virou-se para os espec­
tadores e pediu-lhes para manifestar sua crença nas fadas.
Instantaneamente, a ilusão se desvanecera; havia centenas
de crianças, sentadas em filas, batendo palmas e mesmo gri­
tando, enquanto Miss Adams, vestida como Peter Pan, nos
falava como uma professora estudando conosco uma peça em
que ela mesma desempenhava o papel principal. Eu não en-
tendi, é claro, o que tinha acontecido; mas uma aguda aflição
obliterou o resto da cena e ela não se dissipou inteiramente
enquanto a cortina não se ergueu revelando um novo cenário.
A falácia central em tal montagem de peça, e o conceito
de drama que pressupõe, é o total desrespeito pelo que Edward
Bullough, em um ensaio que já se tomou merecidamente
célebre18, chamou de “Distância psíquica”. Toda apreciação
de arte — pintura, arquitetura, música, dança, seja lá o que
for — exige um certo desvinculamento, que tem sido chamado
de modo variado de “atitude de contemplação”, “atitude
estética” ou de “objetividade” do espectador. Como já res­
saltei em um capítulo anterior deste livro19, é parte da tarefa
do artista fazer com que sua obra suscite essa atitude em
vez de exigir que o sujeito da percepção traga consigo uma
17. “Glamor and Purpose”, em Theatre Arts , maio de 1941, p.
327-335..
18. “ ‘Psychical Distance’ as a Factor in Art and an Aesthetlc Prin­
cipie", British Journal of Psychology, junho de 1912.
19. Ver Gap. 4.
332 SENTIMENTO E FORMA

disposição de espírito ideal. O que o artista estabelece por


recursos estilísticos deliberados não é realmente a atitude do
espectador — esse é um produto secundário — mas uma rela­
ção entre a obra e seu público (inclusive ele mesmo). Bullough
denomina esse relacionamento de “Distância”, e ressalta, com
bastante acerto, que “objetividade”, “desvinculamento” e “ati­
tude” são completos ou incompletos, isto é, perfeitos ou
imperfeitos, mas não admitem gradações.

A distância, pelo contrário, admite naturalmente gradações, e


difere não apenas de acordo com a natureza do objeto , que pode
impor um maior ou menor grau de Distância, mas também varia
de acordo com a capacidade do indivíduo de manter um grau
maior ou menor^o.

Ele descreve (mais do que define) seu conceito, não


sem lançar mão da metáfora, ainda que de maneira bastante
clara para torná-la uma vantagem filosófica:

A Distância... é obtida ao separar-se o objeto e sua atração


do próprio eu da pessoa, ao desengrená-lo das necessidades e fina­
lidades práticas. ( . . . ) Mas isso não quer dizer que a relação entre
o eu e o objeto fique rompida a ponto de tomar-se “impessoal”.
( . . . ) Pelo contrário, ela descreve uma relação pessoal, amiúde
com coloração altamente emocional, mas de caráter peculiar. Sua
peculiaridade está em que o caráter pessoal da relação foi, por
assim dizer, filtrado . Foi limpa da natureza prática, concreta, de
sua atração. ( . . . ) Um dos exemplos mais conhecidos encontra-se
em nossa atitude com respeito aos eventos e personagens do drama
(...)».
Essa relação “de caráter peculiar” é, creio, nossa
relação natural com um símbolo que incorpora uma idéia e
a apresenta à nossa contemplação, não para a ação prá­
tica, mas “limpa da natureza prática, concreta, de sua
atração” . É por causa dessa remoção que a arte lida intei­
ramente com ilusões, que, em virtude de sua falta de
“natureza prática, concreta”, são prontamente distanciadas
como formas simbólicas. Mas a delusão — mesmo a quase
delusão do “faz-de-conta” — visa ao efeito oposto, à maior
proximidade possível. Procurar delusão, crença e “participa­
ção da audiência” no teatro é negar que o drama é arte.
Existem os que efetivamente o negam. Existem críticos
muito sérios que vêem seu valor essencial para a sociedade
não no tipo de revelação que é apropriado à arte, mas em sua
função como forma de ritual. Francis Fergusson e T. S. Eliot201

20. Op. cit., p. 94.


21. Op. oit.t p. 91. A atitude a que se íaz referência é, evidente­
mente, a famosa “atitude estética1', tratada aqui como um índice
do grau adequado de distância.
A ILUSÃO DRAMÁTICA 333

trataram do drama sob esse aspecto22, e vários críticos ale­


mães encontraram no costume de bater palmas um último ves­
tígio da participação da audiência que é na realidade o perdi­
do direito inato do público2324. Há outros que consideram o
teatro não um templo, mas fundamentalmente um lugar de
entretenimento e exigem do drama que agrade, que nos
iluda por algum tempo e que, incidentalmente, pregue moral
e o “conhecimento do homem”. Brander Matthews ampliou
a exigência de diversão — toda e qualquer espécie de diver­
são — a todas as artes; mas, como seu renome está baseado
inteiramente em sua crítica e ensinamento dramáticos, sua
visão de “arte” é realmente uma visão do teatro estendida
casualmente a todos os outros campos.
A finalidade primária de todas as artes é entreter [disse Mat­
thews] mesmo que toda arte deva também alcançar seu objetivo
próprio. Alguns desses entretenimentos exercem sua atração sobre
o intelecto, alguns sobre as emoções, e alguns apenas sobre os
nervos, sobre nosso gosto pela excitação pura e pela sensação bruta;
mas cada uma delas, à sua própria maneira, procura, antes de
mais nada, entreter. Elas devem, cada uma delas, ser incluídas no
show busines&*.

Aqui temos por certo dois extremos de teoria dramática;


e a teoria que sustento — que o drama é arte, uma arte
poética em um modo especial, com sua própria versão da
ilusão poética a governar cada pormenor da peça executada
— essa teoria não se encaixa em lugar algum entre esses ex­
tremos. O drama não é nem ritual, nem show business,
embora possa ocorrer na estrutura de um ou de outro; é
poesia, que não é nem uma espécie de circo, nem uma espécie
de igreja.
Talvez a maior cilada no curso de nossa reflexão sobre
o teatro seja seu livre jogo com os materiais padrão de todas
as outras artes. As pessoas acham-se tão acostumadas a definir
cada arte por seu meio característico que, quando a pintura
é usada no teatro, classificam o resultado como “a arte
do pintor”, e, porque o cenário exige construção, consi­
deram o seu projetista um arquiteto. O drama, por conse­
guinte, tem sido descrito, com tanta freqüência como uma
síntese de várias ou mesmo todas as artes, que sua auto­
22. Cí. Francis Fergusson, The láea of a Theater. Um livro
t&o cheio de idéias, erudição e discernimento que, mesmo discordando
dele eu o recomendaria a todos os leitores.
T. 8. Eliot, em “A Dialogue on Dramatic Poetry” (em Selected
Essays, 1917-1932), p. 35, permite que "E.” diga: 4lA única satis­
fação dramática que encontro agora é o que surge em uma Missa Can­
tada bem executada.”
23. Por exemplo, Theodor Wiesengrund-Adorno, "Applaus”, Die
Musik, 23 (1030-1931), p. 476; também A. E. Qünther, "Der Schaus-
pieler und wir”. em Der Schauspieler de Gelssler, p. 144.
24. A Book About the Theater , p. 6.
334 SENTIMENTO E FORMA

nomia, seu status como modo especial de uma grande arte


única, está sempre em risco. Já foi tratado como essencial­
mente dança, em virtude de confusão com danças pantomí-
micas que têm enredo dramático; foi concebido como quadro
vivo e cerimonial realçado por fala e ação (Gordon Craig sus­
tentava que o projetista de seus aspectos visuais era seu
verdadeiro criador), e como recitação poética acompanhada
de gestos, algumas vezes gestos de dança. Este último ponto
de vista é tradicional na Índia, onde é sustentado devido às
origens épicas óbvias das peças hindus (como sempre, supõe-se
que encontrar a origem de um fenômeno é revelar sua natu­
reza “real” ). Os estetas hindus, portanto, consideram o
drama como literatura, e o julgam segundo padrões literá­
rios 2526. Nietzsche encontrou a origem do drama no “espírito
da música” e, conseqüentemente, considerava a verdadeira
natureza dele como musical. Thornton Wilder descreve-o
como uma forma exaltada de narrativa:
O teatro [escreve] eleva a arte da narração a um poder
maior do que o romance ou o poema épico. ( . . . ) O dramaturgo
deve ser por instinto um contador de estórias^6.

Mas contar estórias, narração, é algo bem diferente da


representação de estórias em um teatro. Muitos contadores de
estórias de primeira não conseguem produzir uma peça, e os
mais altos desenvolvimentos da narrativa, tais como o romance
moderno e o conto, apresentam recursos próprios que não têm
qualquer significado para o palco. Eles projetam uma histó­
ria em retrospecto, enquanto que o drama é história que está
vindo. Mesmo enquanto artes de representação, a narração
e a dramatização são distintas. O antigo rapsodo, com toda
sua gesticulação e inflexões, não era um ator e, hoje, tam­
bém, há pessoas conhecidas como bons leitores de poesia ou
prosa que nem por isso precisam ter qualquer aptidão para
o teatro.
O conceito de drama como literatura embelezada com
concorrentes atrativos ao sentido da visão é contradito com
maior convicção na própria sociedade em que desfruta
sua voga tradicional; o fato de na índia o drama clássico
ter sobrevivido como arte popular por séculos depois de tanto
25. Cf. Sylvaln Lévi, Le théàtre indien, p. 257: “Eles (os teó­
ricos Indianos) estão acostumados a considerar o. drama como a jus­
taposição de duas artes, que perseguem simultaneamente seus fins
respectivos, a saber, a poesia e a dança mímica. ( . . . ) Dança e más­
cara, encenação e cenário combinam-se para intensificar a ilusão e o
prazer exercendo atração sobre vários sentidos. A representação, por­
tanto, ultrapassa a leitura por uma diferença quantitativa de emoção;
não há diferença qualitativa entre elas”. Ver também A. B. Sinith,
The Sanskrit Drama , p. 294-295.
26. “Some Thoughts on Playwrlting”, p. 86.
A ILUSÃO DRAMÁTICA 335

o sànscrito, quanto os vários prácritos em que era composto


tercm-se tornado línguas mortas, compreendidas apenas por
eruditos, prova que a ação no palco não era um mero acom­
panhamento, mas era instintivamente desenvolvida pelos
atores até a auto-suficiência, tornando dispensáveis os sig­
nificados precisos das palavras das falas; que esse drama é,
de fato, aquilo que Cocteau chamou de “poesia do teatro”,
bem como “poesia no teatro”.
Quanto à dança, embora provavelmente tenha precedido
o drama no tablado, e embora use enredos dramáticos de
maneira própria, ela não dá origem ao drama — nem mesmo
à verdadeira pantomima. Qualquer ação dramática direta tende
a suspender a ilusão balética. O fato de que o drama grego
emergiu em meio à dança ritual levou vários historiadores
da arte a considerá-lo como um episódio de dança; mas a
dança era, de fato, apenas uma moldura perfeita para o de­
senvolvimento de uma arte inteiramente nova; no instante em
que dois antagonistas se destacaram do conjunto coral e se
dirigiram, não à congregação, mas um ao outro, eles criaram
uma ilusão poética, e o drama tinha nascido em meio ao rito
religioso. A dança coral em sí foi assimilada ao mundo da
história virtual que eles apresentavam.
Uma vez que tenhamos reconhecido que o drama não é
nem dança, nem literatura, nem uma democracia de várias
artes funcionando juntas, mas é poesia ao modo de ação, as
relações de todos os seus elementos entre si e com a obra
toda tornam-se claras: a primazia do texto, que fornece, a
forma dominante; o uso do palco, com ou sem cenário repre­
sentativo, para delimitar o “mundo” em que a ação virtual
se dá; a necessidade de tomar a cena um “lugar”, de modo
que muitas vezes o projetista produz uma ilusão plástica
que, aqui, é secundária, mas que é primária na arte da arqui­
tetura 27; o uso de musical é algumas vezes de dança a fim de
manter a história fictícia apartada da realidade e garantir sua
abstração artística28; a natureza do tempo dramático, que é
“musical” aó invés de tempo prático, e algumas vezes torna-se
notavelmente evidente — outra ilusão secundária na poesia,
mas primária na música. O princípio diretor no uso de tantas
27. Cf. Jones, op. cit., p. 75: “A energia de uma determinada
peça, seu conteúdo emocional, sua aura, por assim dizer, tem suas
próprias dimensões físicas definidas. Ela se eBtende até um certo
ponto do espaço e n&o vai mais além. As paredes do cenário devem
ser colocadas precisamente nesse ponto**.
George Belswanger, em um pequeno artigo intitulado “Opera for
th© Eye'\ (Theatre Arts, janeiro de 1943, p. 59), faz uma observação
semelhante: “Cada ópera tem suas próprias dimensões Ideais, e sua
ilusão deve ser criada seja o palco real grande ou pequeno.**
28. Schiller, em seu célebre prefácio a Die Braut von Messina,
chamava o coro grego, que ele reviveu em sua peça, de “uma parede
viva" para preservar a Distância da obra.
336 SENTIMENTO E FORMA

ilusões efêmeras tomadas de empréstimo é a elaboração de


uma aparência, não sob circunstâncias normais, como pretexto
ou convenção social, mas sob as circunstâncias da peça. Sua
totalidade emocional total é como a “paleta” de uma pintura,
e controla a intensidade de cor e luz, o caráter sóbrio ou fan­
tástico dos cenários, os requisitos tais como aberturas, inter­
lúdios e seja lá o que for.
Acima de tudo, a tonalidade emocional guia o estilo dos
atores. Os atores são os principais intérpretes — normal­
mente, os únicos indispensáveis — das criações incompletas
mas dominantes do poeta. Um ator não expressa suas emo­
ções, mas as de uma pessoa fictícia. Ele não sofre e dá vazão
a emoções; ele as concebe, em seus mínimos detalhes, e as
representa.
Alguns dos críticos hindus, embora subordinem e mesmo
desaprovem a arte dramática em favor dos elementos literá­
rios que ela envolve, compreendem muito melhor do que seus
colegas ocidentais os vários aspectos da emoção no teatro,
que nossos escritores confundem tão livre e perniciosaraente:
os sentimentos experimentados pelo ator, os experimentados
pelos espectadores, os apresentados como sendo os que ani­
mam as personagens da peça, e, finalmente, o sentimento que
brilha através da peça em si — o sentimento vital da peça. A
este último, eles denominam de rasa; é um estado de conheci­
mento emocional, que chega apenas àqueles que por muito
tempo estudaram e contemplaram a poesia. Supostamente é
de origem sobrenatural, porque não é como a emoção e o senti­
mento mundano, mas é apartado, mais do espírito do que das
vísceras, puro e edificante2g.
Rasa é, de fato, aquela compreensão do diretamente ex­
perimentado ou de vida “interior” que toda arte transmite. O
status sobrenatural atribuído à sua percepção demonstra a
perplexidade que assaltou os antigos teóricos quando se con­
frontaram com o poder de um símbolo ao qual não reconhe­
ciam como tal. As platéias que podem dispensar os auxí­
lios que a caixa do palco, vestimentas e cenários representa­
tivos, e várias propriedades do palco prestam à nossa ima­
ginação poética, provavelmente têm um melhor entendimento
do drama como arte do que nós, que exigimos um potpourri
de meios. No drama indiano, chinês e japonês — mas,
com maior consistência, no do Extremo Oriente---- não só
eventos e emoções, mas mesmo coisas são representadas.
Existem adereços cênicos, mas seu uso é mais simbólico do
que naturalista. Mesmo a simulação de sentimento pode ser29

29, Sylvain Lèvi, op. c i t p. 295.


A ILUSÃO DRAMÁTICA 337

sacrificada a fim de realçar o valor formal, o efeito emocio­


nal da peça como um todo. Os objetos envolvidos na ação
são simplesmente implicados pelo gesto 30. Na Índia, alguns
acessórios cênicos ocorrem — carros, dragões, e mesmo ele­
fantes — e são cuidadosamente feitos de papel, bambu,
verniz, etc.; outros ficam a cargo da imaginação. O fator
decisivo parece ser se a ação gira em torno do elemento não-
humano, ou não. Um rei que, de modo casual, sobe em uma
carruagem, indica simplesmente a existência desta por um
ato, mas em A Carrocirtha de Barro, a carroça é realmente
posta no palco. Os espectadores europeus das peças chinesas
julgam sempre surpreendente e ofensivo que ajudantes em
roupas comuns fiquem andando de um lado para o outro no
tablado; mas, para a platéia de iniciados, as roupas não-
teatrais dos ajudantes parecem ser suficiente para tornar a
presença deles tão irrelevante quanto para nós, em nossa
perspectiva, o é a intrusão de um lanterninha que acompa­
nha as pessoas até um assento.
No palco japonês, um ator pode sair de seu papel
dando um sinal e dirigir-se à platéia e, depois, por outro
signo formal, reassumir seu papel.
Um público que se delicia com tal representação
pura entrega-se à ilusão dramática sem qualquer necessi­
dade de enganos sensoriais. Mas satisfação sensória ele
quer de fato: cortinas e vestes maravilhosas, exibição pro­
fusa de cores, e sempre música (de um tipo que os ocidentais
freqüentemente não acham que seja vantagem). Tais elemen­
tos tomam a peça dramaticamente convincente precisamente
por mantê-la à parte da realidade; eles garantem a “Distância
psíquica” do espectador, ao convidá-lo a considerar a ação
como uma peça do comportamento natural. Pois, no teatro,
em que um futuro virtual se desenrola frente a nós, a
significação de cada pequeno ato é aumentada, porque mesmo
o menor ato está orientado para esse futuro. O que vemos,
portanto, não é um comportamento, mas a auto-realização
de pessoas em ação e paixão; e, como todo ato possui impor­
tância exagerada, as respostas emocionais de pessoas em
uma peça são outrossim intensificadas. Mesmo a indiferença
é uma atitude concentrada e significativa.
Como todo ato e enunciação registrados no texto do
poeta serve para criar um destino perceptível, todos os
elementos plásticos, coreográficos ou musicais que são acres­
centados à sua peça no teatro devem sustentar e realçar
30. Ver Jack Chcn, The Chinese Theater ; A. E. Zucker, The
Chinese Theater ; Noé] Perl, Cinq nô: Drames Iyríques japonais. Este
último faz um relato mais detalhado dessa técnica.
338 SENTIMENTO E FORMA

aquela criação. A ilusão dramática é poética e, onde é pri­


mária — quer dizer, onde a obra é um drama — ela trans­
forma todos os empréstimos de outras artes em elementos
poéticos. Como diz Jones em The Dramatic Imaginaiion:
Em última análise, a criação de cenários para o palco não é
problema de um arquiteto ou de um pintor ou de um escultor ou
mesmo de um músico, mas sim de um p o e ta i.
É o pintor (ou arquiteto, ou escultor) transformado
em poeta que compreende a forma dominante que o autor
compôs ao escrever as falas da peça, e que leva essa forma
ao estádio posterior de visibilidade, e é o poeta-ator que
conduz a obra inteira — palavras, cenários, acontecimentos,
e tudo — através da fase final de sua criação, em que pa­
lavras se tornam enunciações e a cena visível é fundida na
ocorrência da vida virtual.
A imaginação histriônica é o mesmo talento funda­
mental tanto no teatrólogo, quanto nos atores principais, nos
coadjuvantes mesmo de papéis menores na medida em que
sejam atores genuínos, em que projeta os cenários e a ilumi­
nação, no compositor ou no selecionador de música incidental,
no mestre de balé e no diretor que considera o conjunto
para sua satisfação ou desespero. O trabalho em que se em­
penham é uma só coisa — a aparição do Destino.
Desde os gregos até Ibsen, o ator teto representado, por elo­
cução, bem como por movimentos, o caráter humano e o destino
humano. ( . . . ) Quando o drama assume o caráter abstrato da mú­
sica ou dança pura, deixa de ser drama. ( . . . )
O dram aturgo... é um escritor, um poeta, antes de ser um
músico ou coreógrafo. Wagner, é claro, demonstrou que muitos
elementos dramáticos podem ser incorporados à música orquestral;
os filmes mudos demonstraram o quanto pode ser feito só com o
elemento visual; mas se se somar Wagner a Eisenstein e multiplicar
por dez, ainda não se tem um Shakespeare ou um Tbsen. Isso não
quer dizer que o drama é melhor do que a música, dança ou artes
visuais. Só que é diferente.
Os defensores das artes do teatro devem estar contaminados
pelas comodidades do teatro se podem esquecer que todas as "artes
teatrais” são meios com vistas a um fim: a apresentação correta de
um poema3132.

31. p. 77.
32. De E. R. Bentley, “The Drama at Ebb” Kenyon R eviw , VII, 2
(primavera de 1945), 169-184.
18. As Grandes Formas Dramáticas:
0 Ritmo Trágico

De todas as artes, as mais expostas à crítica e inter­


pretação não-artística são a ficção em prosa e o drama.
Da mesma maneira como o romance tem sofrido por ser tra­
tado como um documento psicobiográfico, o drama tem
sofrido de moralismo. No teatro, a maioria das pessoas —
e especialmente os espectadores mais competentes — acham
que a visão de destino é a essência da obra, a coisa que se
desenrola frente a seus olhos. Em retrospecto crítico, elas
esquecem que esse futuro que cresce visivelmente, esse des­
tino a que estão comprometidas as pessoas na peça, é a for­
ma artística que o poeta empreendeu fazer, e que o valor
da peça está nessa criação. Como críticos, elas tratam a
forma como um recurso para transmitir um conteúdo social
e moral; quase toda análise e comentário de drama preo­
cupa-se com a luta moral envolvida na ação, com a justiça
do resultado, o “caso” da sociedade contra o herói trágico
ou o vilão cômico, e a significação moral das várias perso­
nagens .
É verdade que a tragédia geralmente — talvez mes­
mo sempre — apresenta uma luta moral, e que a comédia
com muita frequência castiga fraquezas e vícios. Mas nem
uma grande questão moral, nem a loucura que atrai o riso
e o embaraço fornecem em si mesmos um princípio artís­
tico; nem a ética, nem o bom senso produzem qualquer
imagem de forma orgânica. O drama, entretanto, sempre
340 SKNT1 MENTO E FORMA

exibe uma tal forma; ele o faz criando a semelhança de


uma história e compondo seus elementos em uma única
estrutura rítmica. O conteúdo moral é material temático
que, como tudo o que entra em uma obra de arte, tem de
servir para elaborar a ilusão primária e articular o padrão
de “vida sentida” que o artista pretende.
“O tema trágico” e “o tema cômico” — culpa e ex-
piação, vaidade e desmascaramento — não são a essência
do drama, nem mesmo os determinantes de suas formas
principais, tragédia e comédia; são meios de construção
dramática, e, como tais, não são, é claro, indispensáveis,
por mais difundido que seja o seu uso. Mas são, para o drama
europeu, o que a representação de objetos é para a pintura:
fontes da Grande Tradição. Moralidade, o conceito de feito e
merecimento, ou “o que cabe a quem faz”, é um assunto tão
óbvio para a arte que cria um futuro virtual quanto a retra­
tação de objetos o é para a arte que cria um espaço virtual.
A razão para a existência desses dois temas principais, e para
seus respectivos conteúdos particulares, ficará mais clara no
momento em que considerarmos a natureza das duas grandes
formas, o drama cômico e o trágico.
Supõe-se comumente que comédia e tragédia têm a
mesma forma fundamental, mas diferem em pontos de vis­
ta — na atitude que o poeta e seus intérpretes tomam, e
que os espectadores são convidados a tomar, no tocante
à ação1. A diferença, porém, na realidade é mais profun­
da do que um tratamento superficial (isto é, relativa levian­
dade ou pathos). Ela é estrutural e radical. O drama abstrai
da realidade as formas fundamentais da consciência: o
primeiro reflexo da atividade natural na sensação, consci­
ência e expectativa, que é próprio a todas as criaturas mais
elevadas e pode ser chamado, portanto, de puro senso de
vida; e, além disso, o reflexo de uma atividade que é ao
mesmo tempo mais elaborada e mais integrada, tendo um
começo, eflorescência e fim — o senso pessoal de vida, ou
auto-realização. Este último provavelmente é próprio uni­
camente aos seres humanos e, a eles, em graus variados.
O senso puro de vida é o sentimento subjacente de
comédia, desenvolvido de inúmeras formas diferentes. Dar

1. Cf., por exemplo, as cartas de Athene Seyler e Stepben Haggard,


publicadas com o titulo: The Craft of Com edy . Seyler escreve: a co­
média é simplesmente um ponto de vista. É um comentário sobre a vida,
do exterior, uma observaç&o sobre a natureza humana. ( . . . ) A comédia
parece ser a postura externa de uma personagem ou situação e a incüca-
ç&o de nosso prazer em certos aspectos deste. Por tal raz&o ela exige
a cooperação de... a audiência e é, em essência, o mesmo que contar
uma boa estória à mesa do jantar” (p. 9).
O RITMO CÔMICO 341

um nome a um fenômeno geral não é tornar todas as suas


manifestações uma só coisa, mas apenas agrupá-las concei-
tualmente sob um título. A arte não generaliza e classifica;
a arte expõe a individualidade de formas que o discurso, sendo
essencialmente geral, tem de suprimir. O senso de vida é sem­
pre novo, infinitamente complexo, portanto infinitamente va­
riável em suas expressões possíveis. Esse senso, ou “desfrute”,
como o chamaria Alexander é a percepção em sentimento
direto daquilo que distingue a natureza orgânica da inorgâ­
nica: autopreservação, auto-restauração, tendência funcional,
finalidade. A vida é teleológica, o resto da natureza é, apa­
rentemente, mecânico; guardar o padrão de vitalidade em
um universo não-vivo é o propósito instintivo mais elementar.
Um organismo tende a manter seu equilíbrio em meio ao bom­
bardeiro de forças sem objetivo que o assediam, a recuperar
o equilíbrio quando este foi perturbado e a desenvolver uma
seqüência de ações ditadas pela necessidade de manter todas
as suas partes independentes constantemente renovadas, sua
estrutura intacta. Só os organismos têm necessidades; objetos
sem vida ficam girando ou deslizando ou caindo, são quebra­
dos e espalhados, juntados, amontoados, sem mostrar qual­
quer impulso de voltar a alguma função e condição preemi-
nente. Mas coisas vivas empenham-se em persistir em deter­
minado equilíbrio químico, em conservar determinada tem­
peratura, em repetir funções determinadas, e em desenvolver-se
segundo determinadas linhas, atingindo um crescimento que
parece ser preformado em sua mais primitiva estrutura proto-
plásmica, rudimentar.
Este é o padrão biológico básico de que todas as coisas
vivas partilham: o ciclo de processos orgânicos condicio­
nados e condicionantes que produz o ritmo de vida. Quan­
do esse ritmo sofre perturbações, todas as atividades no
complexo total são modificadas pelo rompimento; o orga­
nismo como um todo fica desequilibrado. Mas, dentro de
uma ampla gama de condições, ele luta para recuperar sua
forma dinâmica original, superando e removendo o obstáculo
ou, se isso se mostrar impossível, desenvolve uma ligeira
variação de sua atividade e forma típica e prossegue a vida
com um novo equilíbrio de funções — em outras palavras,
ele se adapta à situação. Uma árvore, por exemplo, que
esteja privada da luz solar por causa da invasão de sua área
por outras árvores, tende a crescer alta e fina até que possa
espalhar seus próprios ramos à luz. Um peixe, que
teve a maior parte da cauda arrancada a mordidas, supera2
2. 8. Alexander, Space, Time and Deity. Ver vol. I, p. 12.
342 SENTIMENTO E FORMA

parcialmente a perturbação de seus padrões de locomo­


ção com a formação de novo tecido, substituindo parte da
cauda, e adapta-se parcialmente à sua nova condição, modifi­
cando os usos normais de suas barbatanas, nadando efetiva­
mente sem tentar corrigir a inclinação de seu corpo inteiro
na água, como fazia a princípio.
O impulso de sobreviver, porém, não é gasto apenas
em defesa e acomodação; aparece também no poder va­
riado que têm os organismos de aproveitar oportunidades.
Considere-se como os andorinhões de chaminé, que costuma­
vam fazer ninho nas fendas de rochas, exploraram os pro­
dutos da arquitetura humana, e quão infalíveis são os ratos
em descobrir o calor e outras delícias de nossas cozinhas.
Todas as criaturas vivem de oportunidades, em um mundo
repleto de desastres. Esse é o padrão biológico em termos
mais gerais.
Esse padrão, entretanto, não se desenvolve esporadi­
camente em meio a sistemas mecânicos; quando ou como ele
começou na terra não sabemos, mas, na fase atual da cons­
tituição deste planeta, parece não haver “geração espon­
tânea” . Ê preciso vida para produzir outra vida. Todo
organismo, portanto, está historicamente vinculado a ou­
tros organismos. Uma célula única pode morrer, ou pode
dividir-se e perder sua identidade na reorganização do que
antes fora seu protoplasma em tomo de dois núcleos em
vez de um. Sua existência como célula que amadurece é
uma fase em um continuum de processos biológicos que varia
seu ritmo em pontos definidos de crescimento, começando
de novo com multiplicados exemplares de formas imaturas.
Cada indivíduo dessa progressão que morre (isto é, depara-se
com o desastre) em vez de dividir-se, é um ramo colate­
ral do processo contínuo, um fim, mas não uma quebra
na biografia comunal.
Existem espécies de tal vida elementar que estão di­
fundidas no ar e na água, e algumas que se juntam em
colônias visíveis; acima de tudo, existem estruturas orgâni­
cas geneticamente relacionadas que tendem a interagir, a
modificar umas às outras, a variar de maneiras especiais,
e juntas — freqüentemente centenas, milhares, milhões em
conjunto — a produzir um único organismo mais alto. Em tais
organismos superiores, a propagação não ocorre mais pela
fissão binária e, conseqüentemente, o indivíduo não é uma
fase passageira em um progresso metabólico interminável;
a morte, que é um acidente na existência amebóide, trans-
forma-se no destino de todo indivíduo — não um aci­
dente, mas uma fase do próprio padrão de vida. A única
O RITMO CÔMICO 343

porção “imortal” de um tal organismo complexo é uma


classe de células que, durante seu tempo de vida, forma
novos indivíduos.
Em formas relativamente inferiores de vida individua­
lizada, por exemplo os criptógamos, espécimes novos podem
surgir inteiramente de um genitor, de modo que toda a
ascendência de um organismo forma uma única linha. Mas
a tendência evolucionária principal tem sido em direção
a uma forma mais complexa de hereditariedade: duas célu­
las de estrutura complementar, e de indivíduos diferentes,
fundem-se e transformam-se em um descendente comum.
Esse elaborado processo acarreta a divisão da raça em dois
sexos, e afeta radicalmente as necessidades e instintos de
seus membros. Para a água-viva, o desejo de continuidade
é suficiente; ela procura alimento e evita influência des­
trutivas. Seu ritmo é o ciclo metabólico interminável do
crescimento celular, pontuado por fissões e rearranjos, po­
rém sem idade, exceto quanto aos estádios de cada indivi-
duação passageira e, em princípio, imortal. Os organismos
superiores, entretanto, que não abdicam de si mesmos pela
divisão em novas unidades de vida, estão todos fadados a
morrer; a morte é inerente em uma forma de vida que atin­
ge a completa individuação. O único vestígio, neles, da
interminável vida protoplásmica que passa através de um
organismo para outro, é sua produção das células “imortais”,
óvulos e espermatozóides; essa pequena fração deles ainda
desfruta a vida mais longa da linhagem.
O impulso sexual, que presumivelmente pertence ape­
nas a criaturas bissexuadas (sejam quais forem os equiva­
lentes que possam existir em outros processos de procria-
ção), está intimamente entrelaçado ao impulso de vida; em
um organismo maduro, é parte integrante do ímpeto vital
global. Mas é uma parte especializada, porque as ativida­
des que sustentam a vida do indivíduo são variadas e adap­
táveis a muitas circunstâncias, mas a procriação exige ações
específicas. Essa especialização reflete-se na vida emo­
cional de todos os animais superiores; a excitação sexual
é a mais intensa e, ao mesmo tempo, a experiência de pa­
drão mais elaborado, tendo seu próprio ritmo, no qual a
criatura toda se engaja, seu aumento, crise e cadência, em
um grau muito mais alto do que qualquer outra resposta
emotiva. Conseqüentemente, é usual que todo o desenvol­
vimento de sentimento, sensibilidade e temperamento irra­
die dessa fonte de consciência vital, ação sexual e paixão.
A humanidade também tem seu ritmo de existência
animal — o esforço de manter um equilíbrio vital em meio
344 SENTIMENTO E FORMA

às mudanças estranhas e imparciais do mundo, complica­


das e aumentadas por desejos passionais. O puro senso de
vida origina-se desse ritmo básico, e varia desde o bem-
estar sereno do sono à intensidade do espasmo, raiva, ou
êxtase. O processo de viver, porém, é incomparavelmente
mais complexo para os seres humanos do que para os ani­
mais, mesmo os superiores; o mundo do homem é, acima
de tudo, intricado e enigmático. Os poderes da linguagem
e imaginação o apartam completamente dos de outras cria­
turas. Na sociedade humana, um indivíduo não está expos­
to, como membro de um rebanho ou uma colméia, ape­
nas a outros que visível ou tangivelmente o rodeiam, mas
está conscientemente ligado a pessoas que se acham ausentes,
talvez bem distantes, no momento. Até mesmo os mortos
podem ainda exercer influência em sua vida. Sua consciência
de eventos é muito maior do que o alcance de suas per­
cepções físicas. A construção simbólica formou esse mundo
largamente enredado e extenso: e a aptidão mental é sua
principal qualidade para explorá-lo. O padrão de seu sen­
timento vital, portanto, reflete sua profunda relação emocio­
nal com aquelas estruturas simbólicas que são suas realida­
des, e sua vida instintiva modificada em quase todas as ma­
neiras pelo pensamento — um oportunismo cerebrino face a
üm universo essencialmente horrível.

Esse sentimento de vida humano é a essência da co­


média. É ao mesmo tempo religioso e dissoluto, cognoscível
e desafiante, social e extravagantemente individual. A ilu­
são de vida que o poeta cômico cria é o futuro iminente
repleto de perigos e oportunidades, isto é, com eventos físi­
cos ou sociais que ocorrem casualmente e constroem as
coincidências com que os indivíduos se deparam, de acordo
com suas luzes. Esse inelutável futuro — inelutável porque
seus inúmeros fatores estão além do controle e conhecimento
humano — é a Fortuna. O Destino disfarçado de Fortuna
é a estrutura da comédia; é desenvolvida pela ação cômica,
que é o abalo e a recuperação do equilíbrio do protagonista,
sua luta com o mundo e seu triunfo pelo espírito, sorte,
poder pessoal, ou mesmo a aceitação humorística, ou irônica,
ou filosófica do infortúnio. Seja qual for o tema — sério e
lírico como em A Tempestade, palhaçada grosseira como em
Schwãnke de Hans Sachs, ou sátira social inteligente e polida
— o senso imediato de vida é o sentimento subjacente à
comédia e dita sua unidade ritmicamente estruturada, isto é,
sua forma orgânica.
O RITMO CÔMICO 345

A comédia é uma forma de arte que surge naturalmen­


te sempre que as pessoas se reúnem para celebrar a vida, em
festivais de primavera, triunfos, aniversários, casamentos ou
iniciações. Pois ela expressa as soluções e tensões elemen­
tares da natureza animada, os impulsos animais que persis­
tem mesmo na natureza humana, o prazer que o homem
tem com seus dotes mentais especiais que o tornam senhor
da criação; é uma imagem de vitalidade humana sustentan­
do sua posição no mundo em meio às surpresas da coinci­
dência não planejada. As ocasiões mais óbvias para o de­
sempenho de comédias são as graças ou os desafios à fortuna.
O que justifica o termo “Comédia” não é que a antiga pro­
cissão ritual, o Comus, em honra ao deus desse nome,
foi a fonte desta grande forma de arte — pois a comédia
originou-se em muitas partes do mundo, onde o deus grego
com seu culto particular era desconhecido — mas que o
Comus era um rito da fertilidade, e o deus que celebrava,
um deus da fertilidade, um símbolo de renascimento perpé­
tuo, vida eterna.
A tragédia tem um sentimento básico diferente e, por­
tanto, uma forma diferente; daí por que possui também ma­
terial temático bem diferente, e por que exposição de caráter,
grandes conflitos morais e sacrifício são suas ações usuais.
Ê também o que torna a tragédia triste, como o ritmo de pura
vitalidade torna a comédia alegre. Para compreender esta
diferença fundamental, devemos mais uma vez nos voltar para
as reflexões biológicas feitas acima e levá-las um pouco
adiante.
Nas formas mais elevadas de vida, um organismo não
se cinde em outros organismos de modo a deixar sua carreira
como indivíduo propriamente dito terminar sem morte e
decomposição; cada corpo isolado, nos níveis mais altos,
depois de completar seu crescimento e, normalmente, depois
de reproduzir-se, torna-se decadente e, finalmente, morre.
Sua vida tem um começo, ascensão, ponto culminante, des-
censão e final definidos (salvo destruição acidental da
vida, tal como a que células simples também podem sofrer);
e o final é inevitavelmente a morte. Animais — mesmo os
altamente desenvolvidos — procuram instintivamente evitar
a morte quando se vêem repentinamente confrontados com
ela, e presume-se que não percebem sua aproximação se e
quando morrem naturalmente. Mas os seres humanos, em
virtude de seu horizonte semanticamente ampliado, têm cons­
ciência da história individual como uma passagem do nasci­
mento até a morte. A vida humana, portanto, possui um
padrão subjetivo diferente da existência animal; como “vida
346 SENTIMENTO E FORMA

sentida” (para ficar mais uma vez com a frase de Henry


James), ela tem uma dimensão diferente. Juventude, maturi­
dade e velhice não são simplesmente estados em que pode
acontecer que uma criatura se encontre, mas fases através das
quais as pessoas têm de passar. A vida é uma viagem, e ao
final dela está a morte.
O poder de conceber a vida como uma extensão única
permite-nos também pensar em sua condução como um
único empreendimento, e em uma pessoa como um ser
unificado e desenvolvido, uma personalidade. A juventude,
então, é toda potencialidade, não só de crescimento físico e
procriação, mas também de crescimento mental e moral.
O desenvolvimento corporal é, em grande parte, inconsci­
ente e involuntário, e os instintos que o auxiliam tendem
simplesmente a manter òs ritmos vitais de momento em
momento, evitando a destruição, deixando que o organismo
cresça à sua maneira altamente especializada. Sua maturação,
impulso de procriação, depois o período bastante longo de
“manutenção da posição” sem aumento ulterior e finalmente
a perda gradual de ímpeto e elasticidade — esses processos
formam uma evolução e dissolução orgânica. A extraordi­
nária atividade do cérebro humano, entretanto, não acom­
panha automaticamente essa carreira biológica. Ela se subtrai
à ordem de interesses animais, algumas vezes confundindo
os instintos desta, algumas vezes exagerando-os (como a
simples paixão sexual, por exemplo, é alçada pela imagi­
nação em paixão romântica e eterna devoção), e dá a sua
vida um novo padrão dominado por sua presciência da
morte. Em vez de passar simplesmente peta sucessão natural
de sua existência individualizada, ele pondera sobre seu
caráter único, sua brevidade e limitações, os impulsos de
vida que a formam e o fato de que, no final, a unidade
orgânica será rompida, o eu irá desintegrar-se e não mais
existir.
Há muitas maneiras de aceitar a morte; a mais co­
mum é negar que é um fim, é imaginar uma existência que
continua “além” dela — pela ressurreição, reencarnação,
ou separação da alma do corpo e geralmente do mundo
com que estamos familiarizados, para uma existência sem
morte no hades, nirvana, céu ou inferno. Mas, não im­
portando o que as pessoas inventem para reconciliar-se com
sua mortalidade, isso imprime um selo na concepção que
elas têm da vida: uma vez que a luta instintiva para conti­
nuar vivendo está destinada a encontrar a derrota no final,
elas procuram tanta vida quanto possível entre o nascimento
O RITMO CÔMICO 347

e a morte — aventura, variedade e intensidade de experi­


ência, e a sensação de crescimento que o desenvolvimento
de personalidade e de status social podem dar muito tem­
po depois que o crescimento físico cessar. A limitação
conhecida da vida lhe dá forma e faz com que ela pareça,
não meramente como um processo, mas como uma carrei­
ra. Essa carreira do indivíduo é concebida variadamente
como uma “vocação”, a consecução de um ideal, a pere­
grinação da alma, “provação da vida”, ou auto-realização.
Esta última designação é, talvez, a mais esclarecedora no
presente contexto, porque contém a noção de uma persona­
lidade potencial limitada, dada com o nascimento e “reali­
zada”, ou desenvolvida sistematicamente, no curso da ativi­
dade total do sujeito. Sua carreira, então, parece ser-lhe
preformada; suas sucessivas aventuras no mundo são outros
tantos desafios para levar a cabo seu destino individual.
O destino visto dessa forma, como um futuro molda­
do essencialmente de antemão e apenas incidentalmente por
acontecimentos casuais, é o Fado; e o Fado é o “futuro
virtual” criado na tragédia. O “ritmo trágico de ação”, como
é chamado pelo Prof. Fergusson, é o ritmo da vida do ho­
mem no cimo de seus poderes nos limites de sua carreira
única, destinada à morte. A tragédia é a imagem do Fado,
como a comédia é da Fortuna. Suas estruturas básicas são
diferentes; a comédia é essencialmente contingente, episódica e
étnica; ela expressa o equilíbrio constante de pura vitalidade
que é próprio da sociedade e é exemplificado brevemente
em cada indivíduo; a tragédia é um preenchimento, e sua
forma, portanto, é fechada, final e passional. A tragédia é
uma forma madura de arte, que não surgiu em todas as partes
do mundo, nem sequer em todas as grandes civilizações. Sua
concepção requer um senso de individualidade que algumas
religiões e algumas culturas — mesmo culturas superiores
— não geram.
Isso, porém, é assunto para uma discussão posterior,
em conexão com o teatro trágico enquanto tal. No momen­
to desejo apenas salientar a natureza radicai da diferença
entre os dois tipos de drama, comédia e tragédia; uma di­
ferença que, entretanto, não é a de opostos — as duas
formas são perfeitamente capazes de combinações variadas,
incorporando elementos de uma na outra. A matriz da
obra é sempre ou trágica ou cômica; mas dentro dessa mol­
dura as duas freqüentemente atuam uma sobre a outra.
Onde a tragédia é conhecida e aceita em geral, a co­
média normalmente não atinge seu desenvolvimento mais
alto. O estado de espírito sério é reservado para o palco
348 SENTIMENTO E FORMA

trágico. Contudo a comédia pode ser séria; existe o drama


heróico, o drama romântico, o drama político, todos no
padrão cômico, contudo inteiramente sérios; a “história” é
geralmente comédia exaltada. Ela apresenta um incidente na
vida imortal de uma sociedade que se depara com boa e
má fortuna em inúmeras ocasiões, mas jamais conclui sua
procura. Depois da estória vem mais vida, mais destino
preparado pelo mundo e pela raça. Até onde a estória vai,
os protagonistas “viveram felizes para sempre” — na terra
ou no céu. Essa fórmula de contos de fadas é tacitamente
entendida no final de uma comédia. Está implícita na estrutura
episódica.
Dante chamou a seu grande poema de comédia, em­
bora seja inteiramente sério — visionário, religioso e algu­
mas vezes terrível. O nome Divina Commedia, que as gera­
ções posteriores ligaram à obra, se lhe ajusta, mesmo que não
demasiado literalmente, uma vez que na realidade não é um
drama, como o título sugere3. Algo análogo ao padrão da
comédia, juntamente com os tons de elevada seriedade que
os poetas europeus geralmente alcançaram apenas na tra­
gédia, produz uma obra que provoca o nome paradoxal.
Paradoxal, entretanto, apenas para nossos ouvidos,
porque nosso sentimento religioso é essencialmente trágico,
inspirado pela contemplação da morte. Na Ásia, a designa­
ção “Divina Comédia” ajustar-se-ia a inúmeras peças; especi­
almente a Índia, deuses triunfantes, amantes divinos uni­
dos após várias provações (como no perenemente popular
romance de Rama e Sita), são os temas favoritos de um teatro
que não conhece o “ritmo trágico”. O clássico drama sâns-
crito era comédia heróica — poesia elevada, ação nobre,
temas quase sempre tirados dos mitos — um drama sério,
concebido religiosamente, porém no padrão “cômico”, que
não é um desenvolvimento orgânico completo que atinge uma
conclusão previamente determinada, inevitável, mas é episó­
dico, restaurando um equilíbrio perdido e implicando um
novo futuro4. A razão dessa imagem de vida coerentemente

3. Tanto o Prof. Fergusson quanto T. S. Ellot tratam de A Divina


Comédia como um exemplo de drama genuíno. O primeiro chega mesmo
a falar de “o drama de Sòfocles e Shakespeare, a Divina Commedia de
Dante — em que a Idéia de um teatro foi realizada sumariamente.”
(The Idea of a Theater , p. 227.) Entre o drama e a narrativa dramática,
porém, existe um mundo de diferença. Se tudo que esses dois críticos
eminentes dizem a respeito do grande drama aplica-se também ao poe­
ma de Dante, Isso n&o quer dizer que o poema seja um drama, mas que
os críticos atingiram uma generalizaç&o que se aplica a mais do que o
drama.
4. Cf. Sylvain Lévl, Le théâtre indient p. 32: **A comédia heróica
(natdka ) é o tipo consumado de drama indiano; todos os elementos
dramáticos encontram nela lugar”.
O RITMO COMICO 349

“cômica” na Índia é bastante óbvia: tanto o hindu quanto


o budista consideram a vida como um episódio na carreira
muito mais longa da alma que tem de efetuar muitas reen-
carnações antes de atingir seu objetivo, o nirvana. Suas
lutas no mundo não a exaurem; de fato, elas mal chegam a
ser dignas de ser registradas exceto no teatro de passa­
tempo, “comédia” em nosso sentido — sátira, farsa e diá­
logo. As personagens cujas fortunas interessam seriamente
são os deuses eternos; e, para estes, não há morte, não há
limite de potencialidade, daí não haver qualquer destino
a ser cumprido. Existe apenas o ritmo equilibrado da senci-
ência e da emoção, mantendo-se de pé em meio às mudanças
de natureza material.
As personagens do nataka (o drama heróico sânscrito)
não sofrem qualquer desenvolvimento de caráter; elas são
boas ou ruins, conforme o caso, no último ato como o eram
no primeiro. Esse é, essencialmente, um traço de comédia.
Em virtude de o ritmo cômico ser o da continuidade vital,
os protagonistas não mudam durante o curso da peça, como
normalmente o fazem na tragédia. Nesta, existe um de­
senvolvimento; naquela, desenvolvimentos. O herói cômico
luta contra obstáculos apresentados ou pela natureza (que
inclui monstros míticos, tais como dragões e também “for­
ças” personificadas como a “Rainha da Noite”, ou im­
pessoais como inundações, incêndios e pestes), ou pela so­
ciedade; isto é, sua luta é contra obstáculos e inimigos, aos
quais sua força, sabedoria, virtude ou outras qualidades per­
mitem superai5 . Ê uma luta com o mundo incompatível, o
qual ele afeiçoa à sua própria fortuna. Lá onde o sen­
timento básico da arte dramática sempre tem o ritmo cô­
mico, a comédia desfruta de um desenvolvimento muito
maior do que lá onde a tragédia usurpa suas honras mais altas.
Nas grandes culturas da Ásia, ela passou por todos os esta­
dos de ânimo, do mais leve ao mais solene, e por todas as
formas — a pasquinada de um ato, a farsa, a comédia de
costumes, mesmo por dramas de proporções wagnerianas.
Na tradição européia, a comédia heróica tem tido uma
existência esporádica; a Comedia espanhola foi talvez seu
único desenvolvimento popular e extenso 6. Quando ela atinge

5. No drama chinês, até mesmo heróis exaltados frequente­


mente conquistam seus Inimigos mais pelo ardil do que pelo valor;
ver Zucker, The Chinese Theater, especialmente a p. 82.
6. Brander Matthews descreve a Comedia como não sendo “muitas
vezes comédia em geral, de acordo com nossa compreensão inglesa
do termo, mas, antes, um jogo de intrigas, povoado de heróis de
sangue quente. ( . . . ) ”. (Introduç&o à Arte Nuevo de Haeer Comédias ,
de Lope De Vega Carpio.)
350 SENTIMENTO E FORMA

algo semelhante ao caráter de exaltação do nataka, nossa


comédia tem sido tomada geralmente por tragédia, sim­
plesmente por causa de sua dignidade, ou “sublimidade”,
que associamos apenas à tragédia. Corneille e Racine con­
sideravam seus dramas como tragédias, porém o ritmo da
tragédia — o crescimento e plena realização de uma per­
sonalidade — não se encontra nelas; o Fado com que suas
personagens se deparam é na realidade a infelicidade e
elas vão a seu encontro heroicamente. Esse caráter triste,
contudo não-trágico, do drama clássico francês foi notado
por vários críticos. C. V . Deane, por exemplo, em seu
livro, Dramatic Theory and the Rhymed Heroic Play> diz
a respeito de Corneille:
Em suas tragédias, os incidentes estão dispostos de maneira a
expor plenamente o conflito entre uma vontade sobrepujante e
as forças do Fado, mas o interesse está centralizado na intrépida
resignação do indivíduo, e há poucas tentativas de examinar ou
sugerir o problema moral universal inerente à natureza da Tragédia,
nem personagens principais se submetem à moralidade ordi­
nária; cada um é uma lei em si, em virtude de seu tipo particular
de heroísmo?.
Já anteriormente, no livro, ele havia observado que a
criação de personalidades humanas não era o objetivo desses
dramaturgos 78 e, em um comentário sobre a tradução feita por
Otway de Bérénice de Racine, expôs realmente — talvez
sem tê-lo percebido — a verdadeira natureza de suas tragé­
dias, pois ele disse que Otway foi capaz “de reproduzir o
espírito do original” embora não fosse escrupulosamente fiel
ao texto francês.
Mesmo Otway, contudo, adapta, mais do que traduz [observou]
e a tendência para o final feliz em sua versão evidencia uma aqui­
escência com a justiça poética estereotipada que os dramaturgos
ingleses (sob influência apreciável da prática de Corneille) julga­
vam inseparável da interação de heroísmo e honra. (p. 19)
Como poderia um editor-tradutor levar uma peça trá­
gica a um final feliz e ainda “reproduzir o espírito do ori­
ginal”? Apenas em virtude da estrutura não-trágica, do mo­
vimento fundamentalmente cômico da peça. Esses impo­
nentes clássicos gálicos são na realidade comédias heróicas.
São classificados como tragédias devido a seu tom sublime,
que é associado, em nossa tradição européia, à ação trágica 9,
7. Dramatic Theory anã th e R hym ed Heroic Play , p. 33.
8. Ibid., p. 14: “É verdade que, no curso de sua história, a peça
heróica raras vezes conseguiu criar personagens que fossem críveis como
seres humanos; isso, entretanto, na realidade estava além de seu
propósito".
9. A força dessa associação é tfio grande que alguns críticos
na realidade tratam a "sublimidade" como a condição necessária e
O RITMO CÔMICO 351

mas (como ressaltou Sylvain Lévi) 10 eles são realmente


semelhantes em forma e espírito ao nataka. As personagens
heróicas de Corneille e Racine são semelhantes a deuses em
sua racionalidade; como os seres divinos de Kalidasa e
Bhavabhuti, não passam por qualquer agon real, qualquer
grande luta moral ou conflito de paixões. Sua moralidade
(tão extraordinária quanto possa ser) é perfeita, seus prin­
cípios, claros e coerentes, e a ação deriva das mudanças
de fortuna com que eles se deparam. A fortuna pode trazer
ocasiões tristes ou alegres, e não é preciso que um curso
diferente de eventos viole “o espírito do original” . Mas não
se discute quanto ao modo como os heróis enfrentarão as
circunstâncias; enfrentá-las-ão racionalmente; a razão, mais
alta virtude da alma humana, será vitoriosa. Essa razão não
cresce, através de lutas interiores contra obstáculos passio­
nais, de uma faísca original ao esclarecimento completo, co­
mo seria exigido pelo “ritmo trágico de ação”, mas é perfeita
desde o início11.
O drama romântico, tal como o Wilhélm Tell de Schil-
ler, ilustra o mesmo princípio. É outro espécime da co­
média heróica séria. Tell aparece como uma personagem
exemplar no começo da peça, como cidadão, marido, pai,
amigo e patriota; quando se desenvolve uma extrema crise
política e social, ele se mostra à altura da situação, sobrepuja o
inimigo, liberta seu país, e retorna à paz, dignidade e ale­
gria harmoniosa de seu lar. O equilíbrio da vida é restau­
rado. Como personagem, é impressionante; como per­
sonalidade, é muito simples. Ele tem as emoções-padrão
suficiente da tragédia. O próprio Racine diBse: “Basta que sua ação
seja grande, seus atores heróicos, que as paixóes sejam, nela, exci­
tadas; e que o todo forneça a experiência de tristeza majestosa em
que reside todo o prazer da tragédia’*. (Citado por Fergusson, op. cit.,
p. 43.)
Os mesmos critérios são evidentemente aplicados pelo Prof.
Zucker quando escreve: “A tragédia não é encontrada no drama
chinês. Abundam, nas peças, situações tristes, mas não existe nenhu­
ma que, por sua nobreza e sublimidade, merecesse ser chamada de
trágica” . (Op. cit., p. 37.) Jack Chen, por outro lado, em seu livro
The Chinese Theater, diz que durante a dinastia Ching “A tragédia
histórica estava grandemente em voga. O Leque Ensanguentado, que
tratava dos últimos dias dos Mings e O Palácio da Vida Eterna ...
são perenemente populares ainda hoje” (p. 20). Esta última peça,
que trata da morte de Lady Yang, é por certo uma tragédia genuína.
10. Ver Le théâtre indten, p. 425.
11. Cf. a análise de Bérénice feita por Fergusson: “As cenas
de diálogo correspondem aos agons; mas o polido intercâmbio entre
Arsace e AntlochUB, no primeiro ato, está multo longe do terrível
conflito entre Oedlpus e Tiresias, em que os seres moralB dos anta­
gonistas estão em jogo. ( . . . ) (Em Bérénice) o ser moral é inconfun­
dível e impossível de perder enquanto a vida no palco continua ...
a própria possibilidade de intercâmbio depende da autoridade da ra­
zão, que garante o ser moral em qualquer contingência. ( . . . ) Po­
rém, se o ser moral está garantido ex hypothesi, ... não pode haver
de maneira alguma pathos no sentido sofocliano” (Op. cit., p. 52).
352 SENTIMENTO E FORMA

— indignação honrada, amor paterno, fervor patriótico


orgulho, anseios, etc. — em suas condições óbvias.
Nada na ação exige que ele seja mais do que um homem
de muita coragem, espírito independente, e outras virtudes,
tais como as de que se vangloriavam os montanheses da
Suíça, para opor-se à arrogância e vaidade dos opressores
estrangeiros. Mas esse varão ideal, ele o era desde o prin­
cípio, e o episódio de Gessler lhe dá meramente a oportu­
nidade de mostrar sua ousadia e habilidade indomável.
Tais são os produtos sérios da arte cômica; são tam­
bém seus exemplos mais raros. A veia natural da comédia
é humorística — tanto é assim, que “cômico” se tornou
sinônimo de “engraçado” . Em virtude de a palavra “cômi­
co” ser aqui usada em um sentido um tanto técnico (con­
trastando “o ritmo cômico” com “o ritmo trágico”), é
aconselhável dizer comical* quando se quer usar no sen­
tido popular. Existem todos os graus de humor na comé­
dia, desde a rápida réplica que provoca um sorriso por sua
inteligência, sem chegar a ser intrinsecamente engraçada,
até o absurdo que faz com que jovens e velhos, pessoas sim­
ples e sofisticadas, gargalhem de alegria. O humor tem seu
lugar em todas as artes, mas é no drama cômico que tem
sua morada. A comédia pode ser frívola, farsesca, dissolu-
ta, ridícula em qualquer grau, e ser ainda verdadeira arte.
O riso brota da própria estrutura desta.
Existe uma íntima correlação entre humor e o “senso
de vida”, e muita gente tentou analisá-la a fim de en­
contrar a base desta função caracteristicamente humana, o
riso; a principal fraqueza de tais tentativas, penso eu,
deve ter sido que todas elas começaram com a pergunta:
Que tipo de coisa nos faz rir? Por certo o riso é freqüente-
mente provocado por idéias, cognições, fantasias; ele acom­
panha emoções específicas, tais como o desdém, e algumas
vezes o sentimento de prazer; mas também rimos quando
nos fazem cócegas (o que pode não ser em absoluto um
prazer), e na histeria. Essas causas predominantemente
fisiológicas não têm qualquer relação direta com o humor;
e nem o tem, aliás, alguns tipos de prazer. O humor é
uma das causas do riso.
Marcei Pagnol, que publicou sua teoria do riso em um
pequeno livro intitulado Notes sur le rirey observa que todos
os seus predecessores — ele cita especialmente Bergson, Fa-

• Ao contrário do português, em que existe apenas "cômico”


para designar tanto ‘,engraçado,, quanto “relativo à comédia*’, em
Inglês existem comic e comical, que significam, respectivamente, “o
que provoca o riso relativo à comédia e “humorístico; que provoca
o riso; ridículo*'.
O RITMO CÔMICO 353

bre e Mélinand — procuraram a fonte do riso em coisas


ou situações engraçadas, isto é, na natureza quando ela real­
mente se encontra no sujeito que ri. O riso sempre — sem
exceção — indica uma repentina sensação de superiorida­
de. “O riso é um canto de triunfo”, diz ele. “Expressa
a descoberta repentina que faz quem ri de sua momentânea
superioridade em relação à pessoa de quem r i. ” Isso, sus­
tenta Pagnol “explica todos os acessos de riso em todos os
tempos e em todos os países” e ptrmite-nos dispensar toda
classificação do riso por diferentes tipos ou causas: “Não
se podem classificar ou arranjar os raios de um círculo”12.
Contudo, prossegue sem mais dividindo o riso em
espécies “positiva” e “negativa”, de acordo com sua ins­
piração social ou anti-social. Isso indica que ainda esta­
mos lidando com situações ridículas, embora tais situa­
ções sempre envolvam a pessoa para quem são ridículas,
de modo que se pode dizer que “a fonte do cômico (comi-
cal) está no riso”13. A situação, além do mais, é algo que
o sujeito tem de descobrir, isto é, o riso requer um elemen­
to conceituai; nisso, M. Pagnol está de acordo com Bergson,
Mélinand e Fabre. Quer, segundo a mui debatida concepção
de Bergson, vejamos seres vivos seguindo a lei do mecanis­
mo, ou vejamos o absurdo em meio à plausibilidade, como
diz Mélinand, ou, como pretende Fabre, uma confusão seja
criada apenas para ser dispersada repentinamente, senti­
mos nossa própria superioridade em detectar o elemento
irracional; mais especialmente, sentimo-nos superiores em
relação àqueles que realizam ações mecânicas, introduzem
absurdos ou fazem confusões. Consequentemente, M . Pagnol
alega que sua definição do riso se aplica a todas estas si­
tuações supostamente típicas.
Provavelmente se aplica; mas é, ainda, estreita demais.
O que é risível não explica a natureza do riso, mais do que
o que é racional explica a natureza da razão. A fonte últi­
ma do riso é fisiológica, e as situações variadas em que ele
surge são simplesmente seus estímulos normais ou anormais.
O riso, ou a tendência ao riso (a reação pode deter-se
aquém do espasmo respiratório concreto, e afetar apenas os
músculos faciais, ou mesmo deparar-se com a completa inibi­
ção), parece emergir de uma onda de sentimento vital.
Essa onda pode ser muito pequena, da mesma forma que
pode ser bastante repentina para que se possa senti-la distin-
tamente; mas pode também ser grande, e não especialmente

12. Notes sur le rire , p. 41. Sua argumentação» infelizmente, nfio


é t&o boa quanto suas Idéias» e, flnalmente, leva-o á Incluir o canto
do rouxinol e o canto do galo como formas de riso.
13. Ibid., p. 17.
354 SENTIMENTO E FORMA

rápida, e atingir um clímax acentuado, sendo que nesse ponto


rimos ou sorrimos de alegria. O riso não é um simples ato
aberto, como a palavra única sugere; é o final espetacular
de um processo complexo. Tal como o discurso é a culmina­
ção de uma atividade mental, do mesmo modo o riso é uma
culminação do sentimento — a crista de uma vaga de vita­
lidade sentida.
Uma repentina sensação de superioridade acarreta uma
tal “elevação’* de sentimento vital. Mas a “elevação” pode
ocorrer também sem autolisonja; não é preciso que es­
tejamos rindo de alguém. Um bebê rirá ruidosamente
de um brinquedo que surge de repente, repetidas vezes, por
cima da beirada do berço ou do espaldar de uma cadeira.
Seria necessária uma interpretação muito artificiosa para
demonstrar que este cumprimento de sua tensa expectativa faz
com que ele se sinta superior. Superior em relação a quem?
À boneca? Um bebê de oito ou nove meses ainda não está
bastante socializado para pensar: “Isso, eu sabia que você
vinha!” e acreditar que a boneca não poderia enganá-lo.
Um tal aplauso a si mesmo requer a linguagem e bastante
experiência para estimar probabilidade. O bebê ri porque seu
desejo é gratificado; não porque acredita que a boneca
obedeceu a seus desejos, mas simplesmente porque o sus-
pense é rompido e suas energias são liberadas. O súbito
prazer aumenta seu tônus geral de sentimento, de modo que
ele ri.
No chamado “humor negro” — o áspero riso na des­
graça — a “elevação” de sentimento vital é simplesmente
um lampejo de auto-afirmação. Algo similar causa provavel­
mente o riso desconsolado da histeria: na resposta
desorganizada de um pessoa histérica, o senso de vitalidade
irrompe através do medo e depressão espasmodicamente, de
modo que causa riso explosivo, algumas vezes alternando
com soluços e lágrimas.
O riso é, de fato, uma coisa mais elementar do que
o humor. Freqüentemente rimos sem achar que qualquer
pessoa, objeto ou situação seja engraçada. As pessoas riem
de alegria no folguedo ativo, na dança, ao cumprimentar ami­
gos; ao devolver um sorriso, reconhece-se o valor da outra
pessoa ao invés de alardear a própria superioridade e achar
que o outro é engraçado.
Mas todas essas causas de riso ou de sua forma redu­
zida, o sorriso, que operam diretamente sobre nós, perten­
cem à vida real. Na comédia, o riso do espectador tem
apenas uma fonte legítima: sua apreciação do humor na
peça. Ele não ri com as personagens, nem mesmo das per­
O RITMO CÔMICO 355

sonagens, mas sim de seus atos — de suas situações, do


que elas fazem, de suas expressões, frequentemente de seu
desânimo. M . Pagnol sustenta que rimos das personagens,
diretamente, e considera o fato uma corroboração de sua
teoria: nosso prazer no teatro cômico está em ver pessoas
em relação às quais nos sentimos superiores14.
Existe, entretanto, um defeito sério nessa opinião, que
é o de supor que o espectador tenha consciência de si mes­
mo como um ser no mesmo “mundo” das personagens.
Para compará-las, mesmo subconscientemente, a si mesmo,
é preciso que ele abdique de sua Distância psíquica e se
sinta copresente com elas, como ao lermos uma notícia ane-
dótica como algo à parte de nossa própria vida, mas ainda
no mundo real, e somos compelidos a dizer: “Como é que
ela pode fazer uma coisa dessas! Imagine alguém tão tolo!”
Se a pessoa experimentar uma tal reação no teatro, isso será
algo distanciado de sua percepção da peça como produção
poética; ela perdeu, pelo momento, a Distância, e sente-se
dentro do quadro.
O humor, então, seria um produto secundário da co­
média, não um seu elemento estrutural. E se o riso fosse
provocado assim de passagem, não faria qualquer diferen­
ça para o valor da obra em que ocorresse; um acidente no
palco, um mau ator que fizesse todo ator amador na platéia
sentir-se superior, deveria servir tão bem quanto qualquer
fala inteligente ou situação engraçada na peça para divertir
a audiência. De fato, rimos de tais falhas; mas não elogia­
mos a comédia por esse entretenimento. Numa boa peça, os
“risos” são elementos poéticos. Seu humor, bem como seu
pathos, faz parte da vida virtual, e o prazer que sentimos
com ela é o prazer com algo criado para a nossa percepção,
não um estímulo direto a nossos próprios sentimentos. É
verdade que as figuras cômicas são freqüentemente bufões,
simplórios, palhaços; mas tais personagens são quase sempre
simpáticos e, embora sejam jogados de um lado para o outro
e maltratados, são indestrutíveis, e etemamente autoconfian-
tes e bem-humorados.
O bufão é, de fato, uma personagem importante da
comédia, especialmente no teatro do povo. Ele é essencial­
mente uma personagem folclórica, que persistiu através de
estádios mais sofisticados e literários da comédia como Atle-
quim, Pierrô, o Karaguez persa, o bobo da corte elisa-
betano, o Vidusaka do drama sânscrito; mas, nas formas
mais humildes do teatro que entretinham os pobres e espe-

14* Ibid., p. 92. Há uma discussão posterior sobre este pro­


blema no final do presente capitulo.
356 SENTIMENTO E FORMA

cialmente os camponeses em toda parte antes que apareces­


sem os filmes, o bufão tinha uma existência mais vigorosa co­
mo Hans Wurst, como o Punch das marionetes, o palhaço da
pantomima, o Karagõz turco (tomado datradiçãopersa)
que pertence apenas ao teatro de sombras15. Estas perso­
nagens populares desde a Antiguidade demonstram aquilo
que o bufão realmente é: a indomável criatura viva lutan­
do por si mesma, caindo e tropeçando (como o palhaço
ilustra fisicamente) de uma situação em outra, entrando em
apuro após apuro e saindo de novo, levando ou não uma
surra. Ele é o élan vital personificado; suas aventuras e
desventuras casuais, sem muito enredo, embora muitas ve­
zes com complicações bizarras, suas absurdas expectativas
e desapontamentos, de fato toda sua existência improvisada
tem o ritmo da vida primitiva, selvagem, se não animalesca,
competindo com um mundo que está sempre enveredando por
novos rumos imprevistos, frustrante, mas excitante. Ele
não é nem bom homem, nem mau, mas é genuinamen­
te amoral, — ora triunfante, ora derrotado e pesaroso,
mas em seu pesar e desânimo é engraçado, porque sua
energia não é na realidade diminuída e cada fracasso pre­
para a situação para um novo movimento fantástico16. O
mais direto desses infantilistas é o Punch inglês, que leva a
cabo todo impulso com força e rapidez de ação — bate na
mulher, joga o filho pela janela, bate no policial, e final­
mente atravessa o diabo com uma lança e o carrega triun­
falmente em um forcado. Punch não é um verdadeiro
bufão, ele é por demais bem-sucedido; sua atração é pro­
vavelmente subjetiva, um apelo aos desejos reprimidos das
pessoas por vingança geral, revolta e destruição. Ele é psi­
cologicamente interessante mas, na realidade, uma figura
degenerada e estereotipada e, como tal, possui pequeno valor
artístico porque não tem descendência poética. O que cau­
sou sua persistência em um papel único, principalmente vul­
gar e não especialmente espirituoso, eu não sei, e nem este é
o lugar para investigá-lo; porém, quando apareceu pela pri­
meira vez na Inglaterra como Punchinello, um empréstimo
das marionetes italianas, ainda era o puro protagonista
de comédia. Segundo uma afirmação de R . M . Wheeler,
na Encyclopaedia Britannica, que podemos, presumivelmen­
te, tomar como autoridade,
O antigo Punchinello era muito menos restringido em suas
ações e circunstâncias do que seu moderno sucessor. Lutava

15. Ver N. N. Martinovitch, The Turkish Theater , passim .


16. Falstaff é um exemplo perfeito do bufão elevado a “persona­
gem” humana na comédia.
O RITMO CÔMICO 357

contra figuras alegóricas representando a necessidade e a exaus­


tão, bem como contra sua mulher e contra a polícia, tinha intimida­
de com os patriarcas e os sete campeões da Cristandade, sentava-
se no colo da rainha de Sabá, tinha duques e reis por companheiros,
e enganava a Inquisição, bem como o carrasco comum.

A elevada companhia desse Punch original está


inteiramente de acordo com os ambientes nobres em
que ele se apresenta. No mesmo artigo, ficamos sabendo que
suas aparições mais antigas de que se tem registro na
Inglaterra foram em uma peça de marionetes da Criação
do Mundo e em outra representando o Dilúvio. Para o
espírito religioso moderno, solene, estórias das Escrituras
podem parecer estranho contexto para uma personagem
tão secular, e talvez essa aparente incongruência tenha le­
vado à amplamente difundida crença de que o palhaço
na comédia moderna deriva do diabo dos dramas sacros
medievais17. O diabo está, é claro, bem à vontade em
ambientes sacros. Não é impossível que essa relação entre
diabo e bobo (em suas várias formas como palhaço, bufão,
monstro) seja sustentável; contudo, se o for, isso será um
acidente histórico, devido à peculiar concepção cristã que
identifica o diabo co ma carne, e o pecado com a luxúria.
Uma tal concepção faz com que o espírito da vida e o pai
de todo mal,’ que normalmente são pólos opostos, aproxi­
mem-se muito. Pois não há como negar que o Bobo é
um sujeito de sangue quente; ele está, de fato, próximo ao
mundo animal; na tradição francesa, usa uma crista de
galo em seu boné, e o nariz de Punchinello é provavelmente
o resíduo de um bico. Ele é todo movimento, capricho e
impulso — a própria “libido” .
Contudo, ele é provavelmente mais antigo do que o
diabo cristão e não precisa de qualquer conexão com essa
notabilidade para entrar em precintos religiosos. Ele sempre
esteve próximo dos deuses. Se o encararmos como o re­
presentante da humanidade em sua luta com o mundo, fica
claro, de imediato, porque seus gestos e impertinências fre-
qüentemente são parte integrante de ritos religiosos — por
que, por exemplo, as ordens bufônicas na sociedade Pueblo
eram muito honradas18: o palhaço é Vida, é a Vonta­
de, é Cérebro e, pela mesma razão, é o bobo da nature­
z a . .. desde as primitivas religiões exuberantes que ce­
lebram a fertilidade e o crescimento, ele tende a aparecer
17. Ver o artigo “Clown” (nâo asBlnado) na Encyclopaedia Bri-
tannica,
18. Sobre as Bocledades secretas de palhaços, ver F. H. Cushing,
Zuni Creation M yths (Report of the Bureau of American Ethnology,
1892), referente à ordem de “Koyemshl” (“Cabeças de L am a").
358 SENTIMENTO E FORMA

sempre nos cultos ascéticos, e tropeçar e fazer prestidigi-


tações, com toda a inocência, perante a Virgem.
Na comédia, a figura corrente do bufão é um recurso
óbvio para a construção do ritmo da comédia, isto é, a
imagem da Fortuna. Mas, no desenvolvimento da arte, ele
não permanece como a figura central que era no teatro
popular: a inclinação e equilíbrio de vida que ele introdu­
zia, uma vez apreendidos, são reproduzidos em invenções
poéticas mais sutis, que envolvem personagens plausíveis e
uma intrigue (como os franceses a chamam) que produz
uma ação dramática coerente, global. Algumas vezes ele
permanece como um truão, servo ou outra personagem subsi­
diária cujos comentários, tolos ou espirituosos ou sagazes,
servem para apontar o padrão essencialmente cômico da
ação, onde a verossimilhança e complexidade da vida cênica
ameaçam obscurecer sua forma básica. Esses pontos normal­
mente são “risos”; e isso nos traz ao problema estético da
piada na comédia.
Em virtude de a comédia abstrair e reencamar para
nossa percepção o movimento e ritmo de viver, ela realça
nosso sentimento vital, de modo muito semelhante à ma­
neira pela qual a apresentação de espaço na pintura realça
nossa consciência do espaço visual. A vida virtual no palco
não é difusa e apenas semi-sentida, como a vida real usual­
mente é: a vida virtual, sempre movendo-se visivel­
mente em direção ao futuro, é intensificada, acelerada, exa­
gerada; a exibição de vitalidade cresce até um ponto de
ruptura, até alegria e risos. Rimos no teatro de pequenos
incidentes e gracejos que dificilmente mereceríam uma ri­
sadinha fora do palco. Não é por tais razões psicológicas que
vamos lá para sermos entretidos, nem por elas é que somos
forçados pelas regras de polidez a escondermos nossa hi-
laridade, mas essas tolices de que rimos são na realidade
mais engraçadas onde elas ocorrem do que o seriam em
outro lugar; elas são empregadas na peça, e não simples­
mente introduzidas casualmente. Ocorrem onde a tensão
do diálogo ou outra ação atinge um ponto alto. Da mes­
ma forma como o pensamento irrompe no discurso — que
a onda quebra em espuma — a vitalidade irrompe em
humor.
O humor é o esplendor do drama, uma repentina intensi­
ficação de ritmo vital. Uma boa comédia, portanto, erige-se
gradualmente a cada riso; uma representação recheada de pi­
lhérias, à vontade do comediante ou do autor, pode provo­
car uma longa série de risos, e no entanto deixar o especta­
O RITMO CÔMICO 359

dor sem qualquer impressão clara de uma peça muito en­


graçada. As risadas, além do mais, tenderão provavelmente
a ser de uma mesmice peculiar, quase perfunctórias, o reco­
nhecimento formal de um caso oportuno.

O caráter amoral do protagonista da comédia abarca


toda a gama do que pode ser chamado de a comédia do riso.
Mesmo os produtos mais civilizados dessa arte — peças
que George Meredith honraria com o nome de “comédia”,
porque elas provocam o “riso pensativo” — não apresen­
tam distinções e questões morais, mas apenas as maneiras
da sabedoria e da tolice. Aristófanes, Menandro, Molière —
praticamente os únicos autores que este crítico dos mais
exigentes admitiu como verdadeiros poetas cômicos — não
são moralistas, contudo não ostentam nem desaprovam a
moralidade; eles, literalmente, “não têm uso” para princípios
morais — isto é, não os utilizam. Meredith, como pratica­
mente todos os seus contemporâneos, trabalhava sob a crença
de que a poesia deve dar lições à sociedade, e que o valor
da comédia media-se pelo que revelava com respeito à
ordem social19. Ele tentou com afinco manter a exposição
de fraquezas e defesa do bom senso dentro de um padrão
ético; todavia, em seus próprios esforços de justificar as
personagens amorais apenas admitiu a natureza amoral e o
simples gosto pela vida destes caracteres, como ao dizer:

As heroínas da comédia são como mulheres do mundo, não


necessariamente desalmadas por serem perspicazes. ( . . . ) A
vp oeSiqnca uma 9 Ujpamoo y ( ' ' ' ) ‘*rep Ofôjqixa umn 9 uipamoa
batalha delas com os homens, e da destes com elas. ( . . . )

É isto, em suma: o combate de homens e mulheres


— o combate mais universal, humanizado, de fato, civili­
zado, contudo ainda o primitivo desafio jubiloso, a autopre-
servação e auto-afirmação cujo progresso é ritmo cômico.
0

19, Seu pequeno trabalho muito conhecido é chamado An Essay


on Comedy, anã tlie Uses of th e Comic Spirit. EsteB usos s&o inteira­
mente náo-artísticos. Elogiando as virtudes do “bom senso" (que
é tudo o que tem valor de sobrevivência aos olhos da sociedade), ele
diz: “Os franceses possuem uma imponente escola de comédia & qual
podem recorrer em busca de renovação sempre que hajam se afastado
dela; e o fato de terem uma tal escola é a razão principal pela qual. como
ressaltou John Stuart Mill, eles conhecem os homens e as mulheres
de modo mais acurado do que nós" (p. 13-14). E, algumas pá­
ginas mais adiante: “A Femmes Savantes ô um dos principais exemplos
dos usos da comédia para ensinar ao mundo a compreender aquilo
que o aflige. Os franceses haviam sentido o peso dessa nova insensatez
(a mania da erudição acadêmica, logo depois da mania de pre-
cisfio e refinamento excessivo da linguagem, que havia marcado as
Precieuses); mas eles tiverem de ver a comédia várias vezes antes de
serem consolados em seu sofrimento por verem a sua causa exposta"
(p. 19-20).
360 SENTIMENTO E FORMA

Esse ritmo é capaz das apresentações mais diversas.


Ê por isso que a arte da comédia se desenvolve, em toda cul­
tura, a partir de começos casuais — mimos, palhaçadas, às ve­
zes danças eróticas — em alguma arte dramática especial e
distinta, e por vezes em muitas de suas formas dentro de
uma cultura, embora jamais pareça repetir suas obras. Po­
de produzir uma tradição de drama nobilitado, brotando
do ritual solene, mesmo funéreo, com um movimento emo­
cional lento demais para culminar em humor num ponto
qualquer; então, outros meios têm de ser encontrados para
dar-lhe encanto e intensidade. É provável que a comédia
heróica mais pura não contenha passagens humorísticas,
.mas empregue o truão apenas de maneira ornamental,
reminiscente da tragédia, e, de fato, use muitas técnicas da
tragédia. Pode mesmo parecer que transcenda o padrão
cômico amoral ao apresentar heróis e haroínas virtuo­
sos. Mas a virtude destes é uma questão formal, uma qua­
lidade social; como Deane observou em relação aos heróis
clássicos franceses20, eles não se submetem à moralidade
ordinária; sua moralidade é o “heroísmo”, que é essen­
cialmente força, vontade e persistência em face do mundo.
Tampouco têm as divindades do drama oriental qualquer “mo­
ralidade ordinária” ; são perfeitas na virtude quando ma­
tam e quando poupam, sua bondade é glória, e sua vonta­
de é lei. Elas são o Super-Homem, o Herói, e o padrão
básico de sua vitória sobre os inimigos, cuja única maldade
é a resistência, é o padrão de vida amoral de duelar com
o diabo — homem contra morte.
O humor, então, não é a essência da comédia, mas ape­
nas um de seus elementos mais úteis e naturais. É também
seu elemento mais problemático, porque provoca nos
espectadores o que parece ser uma resposta emocional direta
às pessoas em cena, de maneira alguma diferente de sua
resposta às pessoas reais: divertimento, riso.
O fenômeno riso no teatro coloca em foco todo o
problema da distinção entre emoção apresentada simbolica­
mente e emoção estimulada diretamente; e, na verdade, um
pons asinorum da teoria que esta distinção é radical, porque
ela nos apresenta o que provavelmente é o exemplo mais
difícil. O riso da platéia em uma boa peça é, evidentemente,
auto-expressivo, e denota uma “elevação” de senti­
mento vital em cada pessoa que ri. Contudo, ele tem um
caráter diferente do riso na conversa, ou na rua, quando o
vento leva embora um chapéu com o “penteado” preso nele,
ou na “casa do riso” em um parque de diversões, onde as
20. Cf. supra, p. 350.
O RITMO CÔMICO 361

vítimas complacentes deparam-se com espelhos deformantes


e com coisas que gritam “bu” . Todos esses risos da vida
quotidiana são respostas diretas a estímulos separados; podem
ser tão esporádicos quanto as piadas trocadas em jovial
companhia, ou podem ser encadeados propositalmente como
os eventos esperados e no entanto imprevistos, da “casa do
riso”, ainda assim continuar sendo outros tantos encon­
tros pessoais que parecem engraçados apenas quando a gen­
te está com disposição de espírito adequada. Algumas vezes
rejeitamos ditos espirituosos e ficamos entediados com tru­
ques e palhaçadas.
No teatro, é diferente: a peça nos possui e rompe nosso
estado de ânimo. Ela não o modifica, mas simplesmente o
ab-roga. Mesmo se chegamos com uma disposição jovial,
isso não aumenta de modo notável nossa apreciação do
humor na peça; pois o humor em uma boa comédia não nos
atinge diretamente. O que nos atinge diretamente é a ilusão
dramática, a ação do palco à medida que se desenrola;
e a pilhéria, em vez de ser tão engraçada quanto nossa
resposta pessoal a faria, parece tão engraçada quanto sua
ocorrência na ação total a torna. Uma piada muito suave
no lugar certo pode arrancar grande gargalhada. A ação
culmina em um dito espirituoso, em um absurdo, em uma
surpresa; os espectadores riem. Mas, depois da explosão, não
existe o abatimento que se segue ao riso normal, porque a
peça prossegue sem o momento de pausa que normalmente
damos a nossos pensamentos e sentimentos depois de um
chiste. A ação prossegue de uma risada a outra, algumas
vezes bastante espaçadas; as pessoas estão rindo da peça,
não de uma série de gracejos.
O humor na comédia (como, de fato, em toda arte hu­
morística) faz parte da obra, não de nosso ambiente real; e,
se é tomado do mundo real, sua aparência na obra é o que
realmente o torna engraçado. Alusões políticas ou atuais em
uma peça divertem-nos porque elas são usadas, não porque
se referem a algo intrinsecamente muito engraçado. É tão
seguro que esse recurso de jogar com coisas da vida real
há de provocar risos que o escritor de comédia médio e co­
mediante improvisado abusam dele a ponto de arruinar o
trabalho artístico; daí o fluxo constante de shows que têm
imensa popularidade mas nenhuma essência dramática, de
maneira que não duram mais do que o momento de suas
alusões passageiras.
A verdadeira comédia introduz na platéia uma sensação
de jovialidade geral, porque apresenta a própria imagem
da “vivacidade” e a sua percepção é excitante. Seja qual for
a estória, assume a forma de um triunfo temporário sobre
362 SENTIMENTO E FORMA

o mundo circundante, complicada e, assim distendida, por


uma sucessão emaranhada de coincidências. Essa ilusão de
vida, a vida no palco, tem um ritmo de sentimento que não é
transmitido a nós por sucessivas estimulações isoladas, mas,
antes, por nossa percepção de sua inteira Gestalt — todo um
mundo movendo-se em direção a seu próprio futuro. A “viva­
cidade” do mundo humano é abstraída, composta e apresen­
tada a nós; com ela, os pontos altos da composição que são
iluminados pelo humor. Eles fazem parte da vida que vemos,
e nosso riso faz parte da jovialidade teatral, que é universal­
mente humana e impessoal21. Não é o que a pilhéria significa
para nós que mede nosso riso, mas o que ela faz na peça.
Por essa razão tendemos a rir de coisas no teatro
que poderiamos não achar engraçadas na realidade. A técnica
da comédia freqüentemente precisa limpar o caminho de seu
humor evitando qualquer deslize para “o mundo do interesse
ansioso e da solicitude egoísta” . Ela o faz através de vários
recursos — coincidências absurdas, expressões estereotipadas
de sentimento (como os lamentos de desânimo do palhaço),
um ritmo acelarado de ação e outros efeitos não-realistas
que servem para dar ênfase à estrutura da comédia. Como
disse o Prof. Fergusson,
quando compreendemos uma convenção da comédia, vemos a peça
com onisciência semelhante à dos deuses. ( . . . ) Quando Scara-
mouche apanha, não sentimos os golpes, mas a idéia de uma surra,
naquele momento, nos atinge como sendo engraçada. Se a surra
é realista demais, se ela rompe o leve ritmo de pensamento, a
graça se esvai, e a comédia é destruída^.
Esse “leve ritmo de pensamento” é o ritmo da vida; e a
razão pela qual é “leve” é que todas as criaturas amam a
vida, e a simbolização de seu ímpeto e fluxo nos torna
realmente cônscios dela. O conflito com o mundo pe­
lo qual um ser vivo mantém sua própria unidade orgânica
complexa é um encontro prazenteiro; o mundo é tão pro­
missor e tentador quanto é perigoso e contrariante. O senti­
mento da comédia é um sentimento de vitalidade intensificada,
espírito e vontade desafiados, comprometida no grande jogo
com a Sorte. O verdadeiro antagonista é o Mundo. Uma vez
que o antagonista pessoal na peça é na realidade esse grande
desafiador, raramente é um vilão completo; ele é interes­
sante, divertido, sua derrota é um sucesso hilariante, mas não
sua destruição. Não há derrota permanente e triunfo humano
permanente exceto na tragédia; pois a natureza deve pros­
seguir se a vida prossegue, e o mundo que apresenta todos
21. O leitor deve reportar-se ao ponto de vista hindu mencio­
nado no Cap. 17, p. 336.
22. Op. c i t p. 178-179.
O RITMO CÔMICO 363

os obstáculos também fornece o sabor da vida. Na comédia,


portanto, ocorre uma trivialização geral da batalha humana.
Seus perigos não são desastres reais, mas embaraços e humi­
lhações. É por isso que a comédia é “leve” em comparação
com a tragédia, que exibe uma tendência exatamente oposta,
de exagero geral de questões e personalidades.
O mesmo impulso que levou as pessoas, mesmo em
tempos pré-históricos, a representar ritos de fertilidade e
a celebrar todas as fases de sua existência biológica, sustenta
seu interesse eterno na comédia. E da natureza da comédia
ser erótica, picante, e sensorial, se não sensual, irreverente,
e mesmo maldosa. Isso garante-lhe um interesse emocional
espontâneo, contudo um interesse perigoso: pois é fácil e
tentador dominar uma platéia pela estimulação direta do sen­
timento e fantasia, não pelo poder artístico. Mas quando a
formulação do sentimento é realmente alcançada, ela pro­
vavelmente reflete o inteiro desenvolvimento da humanidade
e do mundo do homem, pois o sentimento é a imagem enta­
lhada da realidade. A sensação de precariedade que é a típica
tensão da comédia ligeira desenvolveu-se indubitavelmente na
eterna luta com a sorte que todo lavrador conhece muito
bem — com o tempo, as pragas, os bichos, os pássaros, os
insetos. Os embaraços, perplexidades e pânico crescente que
caracterizam este gênero favorito, a comédia de costumes,
pode ainda refletir os labores do ritual e do tabu que com­
plicavam a existência do homem das cavernas. Mesmo o
elemento de agressividade na ação da comédia serve para
desenvolver u mtraço fundamental do ritmo cômico — a sua
profunda crueldade, na medida em que toda vida se alimenta
de vida. Não existe verdade biológica que o sentimento não
reflita e que a boa comédia, portanto, não esteja proptnsa a
revelar.
Mas o fato de o ritmo da comédia ser o ritmo básico
da vida não quer dizer que a existência biológica seja o
“significado mais profundo” de todos os seus temas, e que
compreender a peça seja interpretar todas as personagens co­
mo símbolos e a estória como uma parábola, um rito de prima­
vera ou magja de fertilidade disfarçada, executada quatro­
centas e cinquenta vezes na Broadway. As personagens carac­
terísticas são provavelmente simbólicas tanto em sua ori­
gem quanto em sua atração. Existem tais fatores inde­
pendentemente simbólicos, ou resíduos deles, em todas as
artes23, mas seu valor para a arte encontra-se no grau em
23. Por exemplo, a slmboiizaç&o do zodíaco em algumas obras
de arquitetura sacra, de nossa orientação corporal quanto ao plano
da pintura, ou da medida dos passos, uma medida primitiva do
tempo real, na música. M sb um estudo dessas funções simbólicas
não-artísticas iria exigir uma monografia.
364 SENTIMENTO E FORMA

que sua significação pode ser “englobada” pelo símbolo único,


a obra de arte. Não a derivação de personagens e situações,
mas o ritmo da “vida sentida” que o poeta coloca nelas,
parece-me ser de importância artística: o sentimento cômico
essencial, que é o aspecto senciente de unidade orgânica, de
crescimento e autopreservação.
19. As Grandes Formas Dramáticas:
O Ritmo Cômico

Da mesma forma como a comédia apresenta o ritmo


vital da autopreservação, a tragédia exibe o da autocon-
sumação.
O avanço cadenciado do eterno processo de vida,
mantido indefinidamente ou temporariamente perdido e res­
taurado, é o grande padrão vital geral que exemplificamos
dia-a-dia. Mas as criaturas que estão destinadas, mais
cedo ou mais tarde, a morrer — isto é, todos os indivíduos
que não passam vivos a novas gerações, como águas-vivas e
algas — mantêm o equilíbrio da vida apenas precariamente,
no quadro do movimento total que é inteiramente diverso; o
movimento do nascimento até a morte. Ao contrário do
processo metabólico simples, o avanço em direção à morte de
suas vidas individuais processa-se através de uma série de
estações que não são repetidas; crescimento, maturidade,
declínio. Esse é o ritmo trágico.
A tragédia é uma forma cadenciada. Sua crise é sempre
a virada rumo a um encerramento absoluto. Esta forma reflete
a estrutura básica da vida pessoal, e, destarte, do sentimento
quando a vida é encarada como um todo. É essa atitude —
“o sentido trágico da vida”, como Unamuno o chamou —
que é objetivada e posta diante de nossos olhos na tragédia.
Mas, no drama, ela não é apresentada como Unamuno a
apresenta, a saber, por uma percepção intelectual de morte
iminente, que, por constituição, somos incapazes de aceitar
366 SENTIMENTO E FORMA

e, portanto, à qual nos opomos com uma crença irracional


em nossa imortalidade pessoal, em ritos “imortalizantes” e
graças sobrenaturais1. O irracionalismo não é introvisão, mas
desespero, reconhecimento direto de instintos, necessidades e,
com isso, de nossa impotência mental. Uma “crença” que
desafie convicções intelectuais é uma mentira freneticamente
defendida. Essa defesa pode constituir um grande tema trá­
gico, mas não é, em si mesma, uma expressão poética do
“sentido trágico da vida”; é expressão real, patética, origi­
nando-se de um conflito emocional.
A tragédia dramatiza a vida humana como potenciali­
dade e realização. Seu futuro virtual, ou Destino, é portanto
bem diferente daquele criado na comédia. O Destino da
Comédia é a Fortuna — aquilo que o mundo há de trazer,
e que o homem há de colher ou perder, encontrar ou escapar;
o Destino trágico é o que o homem traz e o que o mundo
exigirá dele. Esse é seu Fado.
Aquilo que ele traz é sua potencialidade: seus poderes
mentais, morais e mesmo físicos, seus poderes de agir e
sofrer. A ação trágica é a realização de todas as suas possi­
bilidades, que ele desdobra e exaure no curso do drama. Sua
natureza humana é seu Fado. O Destino concebido como
Fado é, portanto, não caprichoso, como a Fortuna, mas é
predeterminado. Eventos exteriores são meramente ocasiões
para sua realização.
“Sua natureza humana”, portanto, não se refere a seu
caráter geralmente humano; não quero dizer que um herói
trágico deva ser considerado fundamentalmente como um
símbolo da humanidade. O que o poeta cria é uma perso­
nalidade; e, quanto mais individual e poderosa for essa
personalidade, mais extraordinária e irresistível será a ação.
Uma vez que o protagonista é o agente principal, sua relação
com a ação é óbvia; e, uma vez que o curso da ação é a
“fábula” ou “enredo” da peça, também é óbvio que criar
as personagens não é algo à parte do trabalho de construir o
enredo, mas é parte integrante dele. Os agentes são os ele­
mentos primários na ação; mas a ação é a própria peça, e os
elementos artísticos existem sempre com vista ao todo. Penso
que tenha sido isso que fez com que Aristóteles dissesse:

1. Ver seu O Sentido Trágico da Vida , passim. Os Bentlmentos de


Unamuno sôo fortes e naturais; seus aforismos freqüentemente são
poéticos e memoráveis. Com suas asserções filosóficas, entretanto, nfto
se pode entrar em debate porque ele se orgulha de ser incoerente, tendo
por base que a “vida é irracional”, a “verdade não é lógica”, etc. Ele con­
sidera a coerência de enunclações como a marca de sua falsidade.
Como algumas damas exasperantes, que reivindicam “o direito de
uma mulher de ser incoerente", ele nfio pode, portanto, ser batido
em uma discussão, mas — também como elas — n&o pode ser levado a
sério.
O RITMO TRÁGICO 367

A tragédia é essencialmente uma imitação23, não de pessoas,


mas de ação e vida, de felicidade e infelicidade. Toda felicidade ou
infelicidade humana assume a forma de ação; o objetivo para o
qual vivemos é um certo tipo de atividade, não uma qualidade. A
personagem nos dá qualidades, mas é em nossas ações — naquilo
que fazemos — que somos felizes ou o contrário. Em uma peça,
de acordo com isso, elas não agem a fim de retratar as Persona­
gens; elas incluem as Personagens tendo em vista a ação. De
modo que é a ação nela, isto é, sua Fábula ou Enredo, que é o
fim e o propósito da tragédia; e o fim é, em toda parte, a coisa
principal3.

Esse “fim” é a obra enquanto tal. O protagonista e todas as


personagens que o sustentam são introduzidos de forma que
possamos ver o cumprimento de seu Fado, que é simples­
mente a realização completa de sua “natureza humana” indi­
vidual.
A idéia do Fado pessoal foi concebida, em termos mí­
ticos, muito antes de a relação de história de vida com a per­
sonagem ser compreendida discursivamente. A tradição mítica
da Grécia tratava o fado de seus “heróis” — as personali­
dades oriundas de certas grandes famílias, altamente indi­
vidualizadas — como um poder misterioso inerente ao mundo,
antes do que presente no homem e em seus ancestrais; era
concebido como um incubo particular outorgado a ele no mo­
mento do nascimento por uma divindade vingativa, ou, mesmo
através de uma maldição proferida por um ser humano. Algu­
mas vezes nem chega a ser dada uma tal causa específica de
seu destino peculiar; mas um oráculo profecia o que ele irá
fazer. Ê interessante notar que esta concepção de Fado usual­
mente está centralizada na misteriosa previsibilidade de atos
que alguém irá executar. As ocasiões dos atos não são
previstas; o mundo irá fornecê-las.
Para o desenvolvimento da tragédia, tal determinação
dos atos aparentes, sem circunstâncias e motivos, fornecia
um ponto de partida ideal, pois constrangia os poetas a
inventar personagens cujas ações resultariam naturalmente nos
exigidos feitos fatídicos. A profecia dos oráculos, então,
tornou-se um símbolo intensificador da necessidade que era
na verdade dada com a personalidade do agente; sendo a
“fábula” apenas um caminho possível, o mundo poderia
provocar sua completa auto-realização no empenho, erro e
descoberta, paixão e punição, até o limite de seus poderes.
O melhor exemplo dessa passagem da idéia mítica de Fado
2. "Imitação” é usada por Aristóteles em um sentido 'bem se.
melhante ao que eu uso em “semelhança”. Evitei a palavra por­
que ela acentua a semelhança com a realidade, mais do que a
abstração da realidade.
3. De Poética, Cap. 6, II ( 1450a), tradução por W. R. Roberts.
368 SENTIMENTO E FORMA

para a criação dramática do Fado como destino natural,


pessoal, do protagonista, é, evidentemente, o Oedipus Tyran-
nus de Sófocles. Com esse exemplo impressionante de auto-
afirmação, autovaticínio e auto-exaustão, nasceu a “Grande
Tradição” da tragédia na Europa.
Existe outra concepção mítica de Fado que não é um
antecessor da tragédia mas, possivelmente, de alguns tipos
de comédia: é a idéia de Fado como a vontade de poderes
sobrenaturais, talvez decretada há muito tempo, talvez es­
pontânea e arbitrária. É o “Fado” do verdadeiro fatalista, que
não toma muito cuidado com sua vida por julgar que
eia está inteiramente nas mãos de Alá (ou de algum outro
Deus), que matará ou poupará, de acordo com sua vontade,
não importando o que a pessoa fizer. Essa é uma noção bem
diferente do “Fado” oracular da mitologia grega; a vontade
de um deus que dá e toma, derruba ou eleva, por inescru-
táveis razões próprias é Kismet, e esse é na realidade um mito
da Fortuna 4. Kismet é aquilo com que uma pessoa se depara,
não aquilo que ela é. Ambas as concepções freqüentemente
existem lado a lado. O escocês que tem de “suportar seu fado”
acredita, não obstante, que suas fortunas estão, a cada mo­
mento, nas mãos da Providência. As Bruxas de Macbeth
eram perfeitamente aceitáveis para uma platéia cristã. Mesmo
na antiga tradição de nossos contos de fadas, a Bela Ador­
mecida está destinada a picar-se — isto é, ela tem um destino
pessoal. Na tradição grega, por outro lado, onde a noção de
“Fado oracular” era em geral tão alimentada que o Oráculo
era uma instituição publica, o Fado como vontade momen­
tânea de um Poder governante é representado no mito das
Norns germânicas ou Moirai helênicas (Parcas), que fiam
os fios das vidas humanas e os cortam onde desejam; as
Três Deusas são tão despóticas e caprichosas quanto Alá, e
o que elas fiam é, na realidade, Kismet (Destino).
A tragédia pode nascer e florescer apenas lá onde as
pessoas têm consciência da vida individual como um fim em
si mesma e como uma medida de outras coisas. Nas culturas
tribais onde o indivíduo está ainda vinculado tão intima­
mente com sua família que não só a sociedade, mas também
ele considera sua existência como um valor comunitário, que
pode ser sacrificado a qualquer tempo para finalidades co­
munitárias, o desenvolvimento da personalidade não é um
4. Cf. N. N. Martlnovitch, The Turkish Theatre, p. 36: "Segun­
do a especulação Islâmica, o homem quase nâo tem Influência no de­
senvolvimento de seu próprio fado. Alá é soberano, fazendo o que
lhe apraz e n&o prestando contas a ninguém. E a tela do haial (o tea­
tro de sombras cômico) é a dramatização deste conceito especulati­
vo do mundo".
O RITMO TRÁGICO 369

padrão de vida conscientemente apreciado. De forma seme­


lhante, lá onde os homens creem que o Karma, ou o registro
de seus feitos, pode ser mantido para a recompensa ou a expia-
ção em outra vida terrena, sua encarnação do momento não
pode ser vista como um todo auto-suficiente em que suas
potencialidades todas devem ser realizadas. Portanto, a tra­
gédia genuína — o drama que exibe “o ritmo trágico de
ação”, como é chamado pelo Prof. Fergusson56— é uma
forma especializada de arte, com problemas e recursos
próprios.
A palavra “ritmo”, que usei livremente com respeito ao
drama, pode parecer uma petição de princípio, tomada ao
reino da fisiologia — onde, efetivamente, as funções vitais
básicas são geralmente rítmicas — e transposta com uma certa
volubilidade ao reino dos atos conscientes, que, na maior
parte das vezes — e, por certo, na parte mais interessante
— não são repetitivos. Mas é precisamente o ritmo da ação
dramática que torna o drama “uma poesia do teatro” e não
uma imitação (no sentido usual, não aristotélico) ou faz-de-
-conta da vida prática. Como disse Hebbel:
Nas mãos do poeta, o Vir-a-Ser deve sempre constituir uma passa­
gem de forma para forma (von Gestalt zu Gestalt), jamais deve
parecer, como o barro amorfo, caótico e confuso aos nossos olhos,
mas deve parecer, de algum modo, uma coisa perfeita *.

A análise e definição da estrutura rítmica, dada no Cap.


8 em referência a formas musicais7, pode aplicar-se sem
ser distorcida ou forçada à organização de elementos em
qualquer peça que alcança forma “viva”.
Um ato dramático é um compromisso. Ele cria uma
situação em que o agente ou agentes devem necessariamente
fazer um lance ulterior; isto é, ele motiva um ato (ou atos)
subseqiientes. A situação, que é o completamento de um
dado ato, já é o ímpeto para outro — como, ao correr, a
passada que sustenta nosso peso no final de um salto já nos
impulsiona para a frente a fim de acabar no outro pé. Não
é preciso que os saltos sejam idênticos mas, sim, proporcio­
nais, o que significa que o ímpeto de qualquer salto especial­
mente grande deve ter sido preparado e reunido em alguma
parte, e qualquer repentina diminuição deve ser equilibrada
por algum movimento que faça passar a força impulsora. Os
atos dramáticos estão ligados, de modo análogo, uns aos
outros, de maneira que cada um deles direta ou indireta­
5. £m The Idea of a Theater, especialmente na p. 18.
6. Friedrlch Hebbel, Tagebilcher, collgido em Hebbel ais Denleer
de Bernhard Münz (1913). Ver p. 182.
7. Ver p. 133-136.
370 SENTIMENTO E FORMA

mente motiva o que o segue89. Destarte, um genuíno ritmo


de ação é armado, que não é simples como o de um pro­
cesso repetitivo físico (por exemplo, correr, respirar), mas
freqüentemente mais intricado, mesmo enganoso, e, é claro,
não dado primordialmente a qualquer sentido particular,
mas sim à imaginação, através de seja qual for o sentido
que empregarmos para perceber e avaliar a ação; o mesmo
ritmo geral de ação aparece em uma peça quer a estejamos
lendo ou ouvindo sua leitura, quer estejamos desempenhan­
do-a nós mesmos ou vendo sua representação. Esse ritmo
é a “forma dominante” da peça; ele brota da concepção
original feita pelo poeta da “fábula” e dita as principais divi­
sões da obra, o estilo leve ou pesado de sua apresentação,
a intensidade do sentimento mais agudo e do ato mais vio­
lento, o número pequeno ou grande de personagens e os
graus de desenvolvimento destes. A ação total é uma forma
cumulativa; e em virtude de ser éla construída por um trata­
mento rítmico de seus elementos, parece crescer a partir de
seus inícios. Essa é a criação que o dramaturgo faz da
“forma orgânica”.
O ritmo trágico, que é o padrão de uma vida que cresce,
floresce e declina, é abstraído ao ser transferido dessa ativi­
dade natural à esfera de uma ação caracteristicamente hu­
mana, onde é exemplificado em crescimento mental e emo­
cional, amadurecimento e renúncia final de poder. Nessa
renúncia encontra-se o verdadeiro “heroísmo” do herói —
a visão de vida como realizada, isto é, da vida em sua tota­
lidade, a sensação de cumprimento que o ergue acima de sua
derrota.
Uma expressão notável dessa idéia de tragédia pode ser
encontrada no mesmo livro onde fui buscar, alguns pará­
grafos acima, a frase “o ritmo trágico de ação”. Falando de
Hamlet, o Prof. Fergusson observa:
“No Ato V . .. ele sente que seu papel, com exceção do der­
radeiro episódio, já foi desempenhado. ( . . . ) Ele se contenta, agora,
em deixar o fim predestinado chegar como quiser. ( . . . ) Poder-se-ia
dizer que sente a justeza poética de sua própria morte. ( . . . )
Como quer que seja inteipretada, quando a morte de Hamlet
chega ela “fica bem”, é o único final possível para a peça. ( . . . )
Certamente pretende-se que sintamos que Hamlet, embora possa
ter trabalhado obscura e incertamente, discerniu a maneira de ser
obediente a seus valores mais profundos e efetuou algum tipo de
progresso purgatório para consigo mesmo e para com a Dinamarca^.
8. Pode-se dizer que um ato motiva outros atos Indlretamente
se o faz através de uma situaç&o total que ajuda a criar; os peque­
nos atos de significação psicológica que criam meramente a personali­
dade são deste tipo.
9. Op. c i t p. 132-133. "Ser obediente a seus valores mais pro­
fundos" nfto 6 malB do que realizar suas próprias potencialidades,
cumprir seu verdadeiro destino.
O RITMO TRÁGICO 371

A segunda cena do Ato V, [continua a crítica] com o duelo


entre Hamlet e Laertes, mostra a solução de todas as intrigas na
peça. ( . . . ) Mas esses eventos, que literalmente finalizam as
narrativas na peça, e levam o regime de Cláudio a seu fim tem­
poral, não nos dizem nada de novo, exceto o fato de que a sentença,
que o fado ou a providência pronunciaram há muito tempo, foi
agora executada. É a pompa, a mascarada cerimonial, em suma, o
caráter virtual desta última cena que nos faz senti-la como a epi-
fania final.
O drama trágico é planejado de modo que o protago­
nista cresça mental, emocional ou moralmente, segundo a
exigência da ação, que ele mesmo iniciou, até a completa
exaustão de seus poderes, o limite de seu desenvolvimento pos­
sível. Ele se desgasta no curso de uma ação dramática. Isto,
evidentemente, é uma tremenda abreviação de vida; ao invés
de sofrer o longo processo, físico e psíquico, multilateral,
de uma biografia real, o herói trágico vive e amadurece
em algum aspecto particular; todo seu ser está concentrado
em um objetivo, uma paixão, um conflito e derrota derra­
deira. Por esta razão, o agente primordial da tragédia é he­
róico; seu caráter, a situação que se desenrola, a cena,
embora ostensivamente familiares e humildes, são, todos, exa­
gerados, carregados com mais sentimento do que as realidades
comparáveis possuiríam11. Essa intensificação é necessária
para alcançar e manter a “forma em suspenso” que é ainda
mais importante no drama trágico do que no cômico, porque
a solução de uma comédia, não assinalando um término abso­
luto, precisa apenas restaurar um equilíbrio, mas o final trágico
precisa recapitular toda a ação para ser o cumprimento visível
de um destino que estava implícito no início. Esse recurso,
que pode ser chamado de “exageração dramática”, lembra
a “exageração épica”, e pode ter sido adotado de maneira
inteiramente inconsciente com os temas épicos da tragédia
antiga. Mas isso não significa que seja um fator acidental, um
legado puramente histórico de uma tradição poética mais
antiga; convenções herdadas não se preservam por muito
tempo em qualquer arte, a menos que sirvam os seus propósi­
tos. Eles podem ter sua antiga rpison d*être em novas formas
de arte, ou assumir funções inteiramente novas, mas, enquanto
puros ornamentos — requisitos tradicionais — , seriam des­
cartados pelo primeiro gênio que não pudesse descobrir
um uso para eles.10

10. Op. c i t p. 138.


11. Como Robert Edmond Jones o formulou: "O grande drama
não trata de pessoas cautelosas. Seus heróis sfio tiranos, marginais,
peBsoas errantes. Desde Prometeu, o primeiro de todos, o ladrão que
roubou a fogo divino do céu, todos esses protagonistas são apaixonados,
excessivos, violentos, terríveis. 'Ávidos de perdição’, como a saga islan-
desa os chama”. The V ram atic Imaglnation, p. 42.
372 SENTIMENTO E FORMA

O drama não é psicologia, nem (embora a literatura


crítica tenda a dar-lhe tal aparência) é filosofia moral.
Não oferece qualquer discurso sobre os dotes inatos do herói
ou da heroína que nos permita estimar em qualquer ponto
da ação quão próximos devem estar da exaustão. A pró­
pria ação deve revelar o limite dos poderes do protago­
nista e marcar o fim de sua auto-realização. E isso, de fato,
ela o faz: o ponto decisivo da peça é a situação que ele não
pode resolver, onde ele comete seu “erro trágico” ou exibe
sua “fraqueza trágica”. Ele é levado por sua própria ação e
pelas repercussões desta no mundo a responder com mais e
mais competência, mais e mais audácia a um desafio que
se acumula constantemente; assim, seu caráter “cresce”,
isto é, ele desdobra sua vontade e conhecimento e paixão, à
medida que a situação amadurece. Sua carreira não é uma
mudança de personalidade, mas amadurecimento. Quando
atinge o limite de seu desenvolvimento mental e emocional,
ocorre a crise; então vem a derrota, ou pela morte, ou, como
em muitas tragédias modernas, pelo desespero que é o equi­
valente da morte, a “morte da alma”, que encerra a carreira.
Tem sido reiterado tantas vezes que o herói da tragédia
é um homem forte com uma fraqueza, um homem bom com
uma falha, que toda uma ética da tragédia se desenvolveu em
torno da significação dessa única jaça. Capítulos e mais capí­
tulos — mesmo livros — têm sido escritos sobre a mistura
necessária de bem e mal em seu caráter, de modo que ele
inspire piedade e, no entanto, sua queda não repugne ao
“nosso senso moral”. Críticos e filósofos, de Aristóteles a
Croce, escreveram sobre a aceitação, por parte do espec­
tador, do destino do herói como um reconhecimento da ordem
moral que ele desafiou ou ignorou, sobre o triunfo da justiça
que supõe-se, o próprio herói aceita em sua “conciliação”
final ou “epifania”. A restauração da grande ordem moral
através do sofrimento é encarada como o Fado que ele
precisa cumprir. Ele tem de ser imperfeito para romper a lei
moral, mas fundamentalmente bom, isto é, lutando por per­
feição, a fim de atingir a salvação moral no sacrifício, renún­
cia, morte.
Toda essa preocupação com a significação filosófica e
ética dos sofrimentos do herói, contudo, provoca um desvio
da significação artística da peça, para idéias discursivas sobre
vida, caráter e o mundo. Deparamo-nos imediatamente com
o dilema usual do crítico que vê a arte como uma represen­
tação da vida real e uma forma de arte como uma Weltans-
chauung: não se pode realmente dizer que toda obra do
O RITMO TRÁGICO 373

gênero expressa a Wéltanschauung que supostamente a carac­


teriza, nem que ela nos dá uma mesma imagem geral do
mundo, tal como a “ordem moral” em que a justiça é ine­
vitavelmente feita, ou a “ordem cósmica” amoral em que o
homem é um joguete de forças que estão além de seu con­
trole. Então o crítico pode chegar à desesperadora conclusão
de que o gênero não pode ser definido, mas é, na realidade,
apenas um nome, que muda de significado essencial de época
para época. Uma autoridade de uma envergadura tão grande
quanto a de Ashley Thorndike chegou à conclusão de que a
tragédia é realmente indefinível; pode-se traçar a evolução
histórica de cada concepção, mas não o atributo definidor
que corre através de todas e as agrupa, com correção, sob um
único nome. Como traços comuns a todas as tragédias os
únicos que ele encontrou eram a representação de “ações
dolorosas e destrutivas” e “críticas da vida” 12. Qualquer destes
aspectos, é claro, podería ocorrer também em outras formas de
arte. A. C. Bradley, em seu excelente Shakespearean Tragedy,
salienta que Shakespeare, ao contrário dos tragediógrafos gre­
gos, não postulava um poder sobre-humano a determinar as
ações dos homens e os acidentes, nem uma Nêmesis especial,
invocada por crimes passados, pertencente a certas famílias
ou pessoas; ele pretende, de fato, que não se encontra qual­
quer representação do Fado em Shakespeare13. Mesmo a jus­
tiça, sustenta ele, não é ali ilustrada, porque os desastres que
os homens atraem sobre si mesmos não são proporcionais a
seus pecados; mas algo que se podería chamar de “ordem mo­
ral”, uma ordem não do certo e errado, mas, ao menos, do
bem e do mal. O acidente tem seu papel, mas, em linhas ge­
rais, os agentes é que se precipitam voluntariamente para a
queda14. Edgar Stoll, exatamente ao contrário, sustenta que a
ação nas tragédias de Shakespeare “no fundo, não se desen­

12. “A qualquer definição precisa e exata faltará com certeza


alcance e veracidade. ( . . . ) Parece que somos forçados a rejeitar a
possibilidade de qualquer limitação exata para a espécie dramática, a
Incluir como tragédias todas as peças que apresentam ações doloro­
sas ou destrutivas, a aceitar os elementos diretores de uma tradição
literária derivada dos gregos como indicadores dos vínculos comuns entre
tais peças no passado, mas a admitir que essa tradlçfto, embora
ainda poderosa, é variável, Incerta e sem autoridade.** ( Tragedy , p.
12.) No final do livro ele estabelece, como o único padráo comum,
“uma inquiriçáo altruísta, social, moral à vida** (p. 376).
13. Em uma nota à p. 30 ele escreve: “Não levantei qualquer
objeção ao uso da idéia de fado, porque ela ocorre com tanta fre-
qüência quer na conversação quer nos livros sobre tragédias de
Shakespeare que devo supor que ela seja natural a muitos leitores.
Contudo, duvido que Isso fosse assim se a tragédia grega Jamais tivesse
sido escrita; e devo confessar, com sinceridade, que para mim ela não
ocorre amlúde quando estou lendo, ou quando acabei de ler, uma
tragédia de Shakespeare.**
14. A discussão da justiça (Conferência I, “The Substance of
Tragedy**, p. 5) é digna de menção especialmente por seu reconheci­
mento da irrelevância do conceito para a arte dramática.
374 SENTIMENTO E FORMA

volve a partir da personagem” 15. Poder-se-ia prosseguir qua­


se que indefinidamente citando exemplos de contradição ou
exceção aos vários padrões de ação trágica, especialmente ao
padrão fatalista.
A falácia que leva a este emaranhado de interpretações
e opiniões é a falácia familiar de confundir o que o poeta cria
com o que ele representa. É a falácia de procurar, não a
função artística de tudo quanto ele representa e a maneira pela
qual ele o representa, mas algo que suas representações
supostamente ilustram ou sugerem — algo que pertence à
vida, não à peça. Se, então, a tragédia é chamada de imagem
<do Fado, espera-se que ilustre as obras do Fado. Isso,
porém não é necessário; ela pode muito bem ilustrar as obras
da maldade, neurose, fé, justiça social, ou qualquer outra
coisa que o poeta ache que é utilizável a fim de motivar
uma ação ampla, integral. O mito do Fado, freqüentemente
usado nas tragédias gregas, era um motivo óbvio, como, em
peças posteriores, o era o amor romântico que desafia as
circunstâncias, ou as largas consequências de uma transgres­
são. Mas não se deve esperar que uma das principais formas
de arte esteja vinculada a um único motivo, sejam quais forem
suas variações ou mesmo seus disfarces; reduzir os núme­
ros temas que podem ser encontrados na tragédia, desde
Esquilo até 0 ’Neill, a “obra do Fado”, e as muitas Weltans-
chauungen que a obra permite extrair (ou introduzir) a outros
reconhecimentos de uma ordem sobrenatural, uma òrdem
moral, ou uma ordem casual pura, leva apenas a intermináveis
buscas de significados mais profundos, substituições simbóli­
cas e implicações de longo alcance que nenhum espectador
poderia possivelmente inferir, de modo que não teriam utili­
dade no teatro.
O Fado na tragédia é a forma criada, o futuro virtual
como um todo terminado. Não é, em absoluto, a expressão
de uma crença. O fado de Macbeth é a estrutura de sua tra­
gédia, não um exemplo de como as coisas acontecem no
mundo. Esse futuro virtual tem a forma de uma vida com­
pletamente individualizada e, portanto, mortal — uma vida
medida, a ser exaurida em um pequeno lapso de tempo.
Mas crescimento, eflorescência e exaustão — o protótipo do
Fado — não é aquilo sobre o qual é a peça; é apenas
como é o movimento da ação. A peça é sobre os desejos,
atos, conflito e derrota de alguém; sejam como forem moti­
vados seus atos, sejam como forem aniquilantes seus feitos,
a ação total é o fado dramático. A ação trágica tem o
ritmo da vida e morte natural, mas não se refere a elas ou
15* Shakespeare anã Other Jiasters, p. 31.
O RITMO TRÁGICO 375

às ilustra; abstrai a sua forma dinâmica e imprime-a em


assuntos inteiramente diferentes, em um espaço de tempo
diferente — a auto-realização inteira pode ter lugar em dias
ou horas em vez das décadas da consumação biológica, de
maneira que o “ritmo trágico” permanece afastado de qual­
quer ocasião natural e transforma-se em uma forma percep­
tível.
O tipo de teoria da arte que mede o valor do drama
pelo modo que este representa a vida, ou pelas crenças
implícitas do poeta sobre a vida, não só desvia a crítica, da
poesia, para a filosofia, religião ou ciência sociais, mas
também induz as pessoas a pensar no protagonista como
sendo um indivíduo comum a quem devem aprovar ou con­
denar e, de um ou de outro modo, de quem devem apiedar-se
Essa atitude, que indubitavelmente deriva — quer errada quer
corretamente — de Aristóteles, deu origem a muitas das exi­
gências morais com respeito ao caráter do herói: ele deve
ser admirável, mas não perfeito, deve provocar a simpatia
do espectador mesmo se incorre em sua censura; estes pre­
cisam sentir o destino dele como sendo o seu, etc.16.
Na verdade, acredito que o herói da tragédia deve nos
interessar o tempo todo, mas não como uma pessoa a quem
conhecemos. Seu erro, crime ou outra falha trágica não é
introduzida por razões morais, mas com propósitos estrutu­
rais: marca o limite do poder dele. Suas potencialidades
aparecem no palco apenas como atos bem-sucedidos; no
momento em que suas intenções declaradas ou, de alguma
maneira, óbvias, ou que seus atos recaem sobre ele e cau­
sam-lhe dor, seu poder atingiu o máximo, ele está no final
de sua carreira. Nisto, por certo, o drama é completa­
mente diferente da vida. A falha moral no drama não é
um incidente normal, algo a ser esquecido como um deslize,
presumivelmente nem a primeira transgressão do agente, nem
a última; o ato que constitui o erro ou culpa trágico do
protagonista é o momento culminante de sua vida e, daí
por diante, a maré baixa. Sua “imperfeição” é um elemento
artístico: é por isso que uma única falha é suficiente.
Todas as práticas persistentes na arte têm uma função
criativa. Elas podem servir a várias finalidades, mas a prin­
cipal é a moldagem da obra. Isso se aplica não só aos traços
de caráter que tornam uma personagem dramática crível ou
simpática, mas também a outro recurso muito debatido
16. Thorndike considerava a tragédia como a forma de arte mala
alta, porque, como afirmou, “ela nos faz compreender as Imagens
de nossas mágoas, e purifica o espirito através do extravasamento de
nossas simpatias, mesmo de nosso horror e desespero, pela infelici-
dade de nossos companheiros** (Op. cií., p. 19). Pouco antes, admitira
que ela também pode nos dar — dentre outros prazeres — “deleite
estético em uma obra-prima” (p . 17).
376 SENTIMENTO E FORMA

do drama — o chamado “alívio cômico”, a introdução de


interlúdios triviais ou humorísticos em meio à ação trágica,
séria, ameaçadora. O termo “alívio cômico” indica a suposta
finalidade dessa prática: dar à audiência uma pausa ante uma
excessiva tensão emocional, permitir que ela tenha entrete­
nimento bem como “piedade e medo”. Aqui, de novo, a
crítica tradicional apóia-se com demasiada confiança, julgo,
nas observações de Aristóteles, que — afinal — não eram os
insigkts de um dramaturgo, mas as reflexões de um homem
com inclinações científicas, interessado na psicologia. Aristó­
teles considerava o interlúdio cômico como uma concessão à
fraqueza humana; e “alívio cômico” tem sido seu nome desde
então.
Os interlúdios humorísticos na tragédia são simples­
mente momentos em que o espírito cômico se eleva até o
ponto da hilaridade. Tais momentos podem resultar de todo
tipo de exigências poéticas; o célebre porteiro bêbado em
Macbeth estabelece um contraste macabro com a situação
por trás da porta em que está batendo e é introduzido obvia­
mente para aumentar, mais do que para aliviar, o tenso
segredo do assassinato.
Mas o fato mais importante nesses famosos toques
de “alívio cômico” é que eles sempre ocorrem em peças nas
quais, de ponta a ponta, a veia cômica é mantida
a maior parte do tempo abaixo do nível do riso. Essa veia
pode ser usada para efeitos especiais, mesmo para uma cena
inteira, a fim de tornar a ação mais lenta ou fraca ou para
aumentá-la com reflexos grotescos. Naquelas tragédias herói­
cas que são rebaixadas pela incursão da farsa e não são
afetadas estruturalmente por sua omissão, não existe qualquer
comédia integral, implícita — qualquer vida quotidiana — no
“mundo” da peça, à qual pertençam naturalmente as palha­
çadas e do qual elas possam ser derivadas sem desorganiza­
ção do todo17. Em Macbeth (e, de fato, em todas as peças
de Shakespeare), existe uma vida quotidiana ampla, social, de
soldados, cavalariços, intrigantes, cortesões e homens do povo,
que fornece uma subestrutura essencialmente cômica para a
ação heróica. A maior parte do tempo esse substrato inferior
é reprimido, dando uma impressão de realismo sem qualquer
ação colateral óbvia; mas esse realismo sustenta o ritmo
cômico fundamental de onde podem emergir interlúdios gro­
tescos com perfeita lógica dramática.
17. Thorndike observa que Tamburlaine é desse gênero: “Origi­
nalmente ”, diz ele, “a peca continha cenas cômicas, omitidas na
forma publicada e evidentemente sem valor na estrutura ou concep-
ç&o” (Op. cit., p. 90).
Ver também J. B. Moore, The Comie and th e Bealistic in Bnglish
Drama .
O RITMO TRÁGICO 377

O fato de que os dois grandes ritmos, cômico e trágico,


são radicalmente distintos não significa que sejam os opostos
um do outro, ou mesmo formas incompatíveis* A tragédia
pode estar solidamente baseada em uma subestrutura cômica
e, contudo, ser pura tragédia18. Isso é bastante natural,
pois a vida — de onde brotam todos os ritmos sentidos
— contém a ambos, em todo organismo mortal. A socie­
dade é contínua, embora seus membros, mesmo os mais fortes
e mais belos, vivam suas vidas e morram; e mesmo enquanto
cada indivíduo preenche o padrão trágico, ele participa tam­
bém da continuidade cômica19. A tarefa do poeta, eviden­
temente, não é copiar a vida, mas organizar e articular um
símbolo para o “senso de vida”; e, no símbolo, um ritmo
sempre governa a forma dinâmica, embora outro possa per­
correr a peça toda ao modo de um contraponto. O mestre
dessa prática é Shakespeare.
Será que o inflexível Fado individual da mais pura tra­
gédia grega eliminava, por seu intenso movimento no sentido
da morte, o sentimento cômico do eternamente cheio e ondu-
lante fluxo de vida? Ou foi a riqueza que o contraponto
cômico-trágico cria em outras tradições poéticas fornecidas a
Ésquilo e Sófocles pela dança coral que emoldurava e em­
belezava a peça? A peça satírica ao final da longa apresen­
tação trágica pode muito bem ter sido necessária a fim de
assegurar a veracidade à estrutura da realidade subjetiva
por uma celebração exuberante da vida.
Há, todavia, um outro fator no drama que é comu-
mente, e penso que erradamente, tratado como uma concessão
ao gosto popular: o uso do espetáculo, da pompa, do show
brilhante. Muitos críticos acreditam aparentemente que um
dramaturgo providencia efeitos espetaculares de maneira intei­
ramente independente de seu intento e juízo poético, simples­
mente a fim de atrair o público ao teatro. Thorndike, efetiva­
mente, afirma que o uso do espetáculo evidencia
o duplo propósito, dificilmente separável do drama e particularmen­
te manifesto nos dramaturgos elisabetanos, os dois desejos, de
agradar suas platéias e de criar literatura20.
18. Um exemplo notável é a pequena tragédia de J. M. Barrle,
que data da Primeira Guerra Mundial, The Old Lady Shows her Medals .
Apesar do tratamento consistentemente cômico, fica-se na expectativa
da Inevitável (e sem palavras) cena final.
18. Existe também um gênero conhecido como “tragicomédla”
(os alem&es a chamam de Schauspiel, dlferenclando-a tanto da L ust -
spiel quanto da Trauerspiel), que é um padrão cômico alternado com
o trágico; sua estrutura-enredo é tragédia evitada , contemporizando
com o senso de destino, que geralmente inspira uma dicção trágica,
pouca ou nenhuma exuberância (humor), e freqüentemente cal no
melodrama. Um estudo de seus poucos sucessos artísticos, e das rela­
ções precisas destes com a comédia pura e a tragédia pura, podería
levantar problemas interessantes.
20. Op. cit., p. 98.
378 SENTIMENTO E FORMA

Brander Matthews disse claramente que não só o teatro, mas


qualquer arte é show business, sejá o que for além disso.
A arte, e especialmente a arte dramática, está cheia de
compromissos, pois um efeito possível é geralmente obtido
às custas de outro; nem todas as idéias e recursos que ocor­
rem ao poeta são co-possíveis. Toda decisão envolve uma
rejeição. Além do mais, o palco, os fundos disponíveis, as
capacidades dos atores, talvez tenham que ser levados todos
em consideração. Mas nenhum artista pode fazer concessões
quanto ao que considera mau gosto, sem arruinar sua obra.
Ele simplesmente não pode pensar como artista e aceitar
formas inexpressivas ou admitir um elemento que não possua
função orgânica no todo. Se, portanto, deseja apresentar
cenas espetaculares, é preciso que parta de uma idéia que
exija uma apresentação espetacular.
Toda peça tem uma audiência a que é destinada, e nessa
audiência há um membro preeminente: o autor. Se a peça é
destinada a um público, digamos, elisabetano, esse membro
honorário será um freqüentador de teatros elisabetanos,
partilhando do melhor gosto elisabetano e algumas vezes
lançando sua moda. Nossos críticos escrevem como se os
poetas do passado fossem pessoas de hoje fazendo con­
cessões a interesses que já se desgastaram faz muito. Mas os
poetas que subministraram espetáculos cênicos tinham idéias
espetaculares, e trabalhavam com elas até que as possibi­
lidades expressivas destas se exaurissem.
O elemento de puro espetáculo tem uma função impor­
tante na arte dramática, pois tende a intensificar o sentimento,
seja o que for o sentimento. Procede do mesmo modo na vida
real: um saguão esplêndido, um arranjo de mesa ornamentado,
visitas em traje a rigor, fazem com que uma festa pareça maior
e a reunião mais ilustre do que uma mesa simples em uma
lanchonete, refeitório ou ginásio, com os convidados em
roupas esporte. Um funeral esplêndido, passando em pro­
cissão atrás de sacerdotes a cantar, é mais solene do que
um funeral banal, embora talvez ninguém no serviço espe­
tacular se sinta mais triste do que no serviço incolor. No
teatro, o elemento de espetáculo é um meio de acentuar a
atmosfera, seja ela de alegria, de terror ou de pesar; assim,
é, antes de mais nada, um auxiliar disponível.
Mas na tragédia também exerce uma função mais espe­
cializada e essencial. A tragédia, que expressa a consciência
da vida e da morte, deve fazer com que a vida pareça valer
a pena, rica, bela, fazer com que a morte pareça terrível. Os
esplêndidos exageros do palco servem ao sentimento trágico
elevando a atração do mundo. O mundo belo, vem como
O RITMO TRÁGICO 379

o tom emocional da ação, é multiplicado pelo elemento do


espetáculo — por luzes e cores, cenário e agrupamentos,
música, dança, “excursões e alaridos”. Alguns dramaturgos
recorrem livremente a essa ajuda; outros dispensam-na quase
inteiramente (jamais totalmente; o teatro é espetacular em
qualquer momento), porque têm outros meios poéticos de dar
à vida virtual a glória que a morte leva embora, ou que o
desespero — a “morte da alma” — corrompe.
O espetáculo é um ingrediente poderoso em várias artes.
Considere-se o que fontes luminosas podem fazer para um
jardim ou praça, e como uma procissão cerimonial traz o inte­
rior de uma catedral à vida visível! O desenho arquitetônico
pode ser maravilhosamente alterado por um suplemento de
espetáculo fortuito. A Ponte Gálata sobre o Como Dourado
no meio de Istambul, com milhares de pessoas e veículos pas­
sando por ela, vindos de colinas íngremes em ambos os lados,
parece como se estivesse pendurada das alturas coroadas de
mesquitas; sem a pompa de seu abundante tráfico cosmopo-
litano encolhe-se em uma simples rodovia através do rio, entre
suas cabeças-de-ponte reais. Uma esplanada sem o movi­
mento da água sob ela seria completamente inexpressiva;
banhada de luar, que realça o movimento superficial da água,
ou permanecendo imóvel contra um mar agitado, pode trans­
formar-se realmente no sonho de um arquiteto.
Mas o espetáculo puro, não assimilado a qualquer arte,
não constitui uma “obra”. Acrobacias, jogo de tênis, alguns
belos ritmos ocupacionais, tais como lançar redes, girar mar­
telos, ou as evoluções de berços em uma corrida, são fasci­
nantes, esteticamente emocionantes, de modo que mantêm o
espectador em um transe jovial; mas não são arte. Para a
obra de arte, esse transe é apenas um requisito. O espetáculo,
embora belo, é sempre um elemento na arte. Pode muito bem
ser um elemento principal, como o era nos balés de Noverre,
e nas mascaradas da corte, mas mesmo esses produtos lar­
gamente espetaculares são classificados como “obras” porque
tinham alguma outra coisa que motivava a exibição; uma
essência imaginativa, uma “forma dominante”. Um circo
poderia ser uma obra de arte se dispusesse de algum senti­
mento central e alguma ilusão primária, infalível. Tal como é,
o circo às vezes contém pequenas “obras” genuínas — um
número de montaria que na realidade é uma dança eqtiestre,
uma cena de palhaços que chega a ser comédia genuína.
Mas, globalmente, o circo é um “espetáculo”, não uma obra
de arte, embora seja uma obra de habilidade, planejamento
e adequação, e algumas vezes lide com problemas que sur­
gem também nas artes. O que lhe falta é o primeiro requisito
380 SENTIMENTO E FORMA

para a arte — uma concepção de sentimento, algo a expressar.


Em virtude de uma obra dramática ter uma tal essência,
tudo nela é poesis. Ela não é, portanto, nem um produto
híbrido, com peças juntadas segundo a exigência de muitos
interesses, nem uma síntese de todas as artes — nem mesmo
de um mais modesto “várias” artes. Pode ter uso para tintas
e gesso, madeira e tijolo, mas não para pintura, escultura ou
arquitetura; ela emprega música, mas utiliza-se nem sequer de
um fragmento de programa de concerto; pode exigir dança,
mas tal dança não é autônoma — intensifica uma cena, fre-
qüentemente abstrai uma quintessência de seu sentimento, a
imagem de puros poderes emergindo como ilusão secundária
em meio à história virtual.
O drama é uma grande forma, que não só convida à
expressão do sentimento humano elementar, mas também
permite um certo grau de articulação, complexidade, detalhe
dentro de detalhe, em suma: desenvolvimento orgânico, que
formas poéticas menores não podem exibir sem confusão.
Dizer que tais obras expressam “um conceito de sentimento”
é enganoso, a menos que se tenha em mente que é toda a vida
do sentimento — seja ela chamada de “vida sentida”, “subjeti­
vidade”, “experiência direta”, ou o que se quiser — que en­
contra sua expressão articulada na arte e, acredito, apenas na
arte. Uma forma tão grande e tão plenamente elaborada
quanto (digamos) uma tragédia de Shakespeare pode for­
mular o modo característico de percepção e resposta, sensibi­
lidade e emoção e suas sugestões simpatéticas, que constitui
uma personalidade global. Aqui vemos o processo de expres­
são artística “escrito à graúde”, como diría Platão; pois a me­
nor obra faz o mesmo que a maior, em sua própria escala: ela
revela os padrões de sensibilidade, vitalidade e mentalidade
possíveis, objetivando nosso ser subjetivo — a “Realidade”
mais íntima que conhecemos. Essa função, e não o registro de
cenas contemporâneas, atitudes políticas ou mesmo morais,
é o que vincula a arte à vida; e a grande desdobração do senti­
mento no padrão orgânico, pessoal, de uma vida humana,
surgindo, crescendo, cumprindo seu destino ou encontrando
a perdição — o que é a tragédia.
Parle III: 0 PODER DO SÍMBOLO
20. Expressividade

Uma obra de arte é um símbolo indivisível, único, em­


bora seja um símbolo altamente articulado; não é, como um
discurso (que também pode ser considerado como uma forma
simbólica única), composto, analisável em símbolos mais
elementares — sentenças, orações, frases, palavras e mesmo
partes separadamente significativas de palavras: raízes, pre­
fixos, sufixos, etc.; selecionados, arranjados e permutáveis
de acordo com “leis da linguagem* publicamente conhecidas.
Pois a linguagem, falada ou escritá, é um simbolismo, um
sistema de símbolos; uma obra de arte é sempre um símbolo
primário. Ela pode, efetivamente, ser analisada, visto que
sua articulação pode ser rastreada e podem ser distinguidos
nela vários elementos; mas jamais é possível construí-la
por um processo de síntese de elementos, porque fora dela
não existe qualquer elemento assim. Estes ocorrem apenas em
uma forma total; da mesma maneira como se pode notar que
as superfícies convexa e côncava de uma concha são carac-
terizadoras de sua forma, mas uma concha não pode ser
composta, sinteticamente, “do côncavo” e “do convexo”. Não
existem tais fatores antes de que exista uma concha.
Até agora tratei sistematicamente da feitura dos símbolos
da arte, cada um dos quais é uma “obra”. Agora que os
princípios de sua criação e articulação foram discutidos
com respeito a cada uma das grandes dimensões tradicionais:
384 SENTIMENTO E FORMA

arte plástica, música, dança, poesia (é claro que pode


haver outras, mesmo outras “ilusões primárias”, por certo
outros modos das que foram mencionadas), chegou o mo­
mento de atacar alguns dos principais problemas filosóficos
que esta teoria da arte levanta. Na primeira parte do livro,
isso não era possível; não se pode elucidar completamente as
afirmações gerais antes que seus usos estejam claros. Porém,
no final, há um desafio epistemológico a ser aceito. Há,
também, muitas questões psicológicas que surgem natural­
mente, algumas das quais poderíam levar diretamente ao
âmago da antropologia e mesmo da biologia. Vou reservar
tais questões para uma obra subseqiiente. Mas, embora este
livro não seja uma Psicologia da Arte, ele pode tocar assuntos
psicológicos, porque algumas respostas características do ar­
tista aos temas e materiais, ou do percebedor a uma obra,
mostram a natureza da arte; e fugir de tais questões com base
no fato de que elas pertencem à psicologia (como Clive Bell
rejeitou o problema do que causava sua “emoção estética” ) é
bloquear o progresso do pensamento sistemático com as bar­
reiras artificiais de classificações estanques pseudocientíficas.
Um problema pertence à disciplina em que surge logicamente
e para a qual sua solução produz conseqüências.
As questões centrais, entretanto, são lógicas e episte-
mológicas:12345
1) Como pode uma obra de arte que não envolve
sequência temporal — uma pintura, uma estátua, uma casa
—> expressar qualquer aspecto da experiência vital, que é
sempre progressiva? Qual comunhão de forma lógica pode
haver entre um tal símbolo e a morfologia do sentimento?
2) Como é que a significação de uma obra é conhecida
por alguém mais além do artista?
3) Qual a medida da boa arte? Consequentemente: O
que é “bom gosto” na arte?
4) O que é beleza e como ela se relaciona com a arte?
5) Qual a importância pública da arte?
Tentarei responder essas perguntas pela ordem.
A arte plástica, como toda outra arte, apresenta uma
interação daquilo que os artistas de qualquer campo chamam
“tensões”. As relações entre massas, a distribuição de tôni­
cas, direção de linhas, de fato todos os elementos da com­
posição constroem tensões-espaço no espaço virtual primário.
Cada escolha que o artista faz — a profundidade da cor, a
técnica — , suave ou arrojada, delicadamente sugestiva como
os desenhos japoneses, cheia e luminosa como vitrais, chia-
roscuro, ou seja lá o que for — cada uma de tais escolhas é
EXPRESSIVIDADE 385

controlada pela organização total da imagem que ele quer


sugerir. Não partes justapostas, mas elementos interatuantes
a compõem. Seu persistente contraste fornece tensões-espaço;
mas o que os une — a singularidade de qualidade que impreg­
na toda boa obra — é a solução-espaço. Equilíbrio e ritmo, o
recesso e a fusão de elementos coadjuvantes que ocorre de
um modo tão natural e perfeito que nem se sabe o que decide
entre projeto e fundo, cada recurso que integra e simplifica a
visão, cria o complemento das tensões-espaço, as soluções-
espaço. Se esse complemento não fosse constantemente apa­
rente, todo o sistema de tensões passaria despercebido; e
isso significa que não existiría, pois “tensão-espaço” é um
atributo que pertence apenas ao espaço virtual, onde esse
est percipi. No espaço real, comum, não existe uma tal coisa1.
Seres sencientes reagem a seu mundo mudando cons­
tantemente suas próprias condições totais. Quando a atenção
de uma criatura passa de um centro de interesse a outro, não
só os órgãos imediatamente implicados (os dois olhos vendo
um novo objeto, os dois ouvidos recebendo e “situando”
um som, etc.) mas centenas de fibras no corpo são afetadas.
Cada mínima alteração da consciência provoca um reajusta-
mento, e, em circunstâncias ordinárias, tais reajustamentos
fluem facilmente um para outro. Sob esse processo variável,
de que se podería chamar de “vida de vigília”, constante­
mente influenciada por coisas externas à pele da criatura,
está outra seqüência de mudanças, mais simplesmente rítmica,
o sistema de funções vitais. Se essa seqüência reflete as fun­
ções da consciência exterior todo o tempo, ou apenas quando
esta se eleva acima de um determinado grau de perturbação,
não sei; mas certamente grandes excitações vindas de fora
põem todo o sistema — músculos voluntários e involuntários,
coração, pele e glândulas, bem como olhos e membros — em
atividade inusitada.
A mesma coisa pode ocorrer, ao menos em seres hu­
manos, não por causas exteriores, mas por crises no processo
continuado (se não contínuo) da ideação. Pouco sabemos
acerca da vida mental dós animais, e, felizmente, isso não
nos preocupa aqui; mas, por certo, na vida humana as fun­
ções intelectuais e imaginativas têm uma parcela de influência
controladora na atividade da vigília. No sono, eles têm
provavelmente quase um monopólio (não completo, ao menos
em adultos, pois nós de fato aprendemos a não cair da cama

1. Pode-se argumentar, é claro, que o espaço real existe apenas


em virtude de tensões físicas, diferentes do campo eletromagnético
em objetos e eventos físicos. Mas tensões desse tipo nfto sáo sentidas
como tais; no nível “de massas”, em que se encontra uma comparação
entre experiência real e virtual, o espaço real é homogêneo e est&tlco.
386 SENTIMENTO E FORMA

— isto é, a recuar da beirada do colchão — e a controlar


nossas vísceras mesmo no sono).
Essa atividade mental e sensitividade é o que determina
principalmente a maneira pela qual uma pessoa vai ao en­
contro do mundo circundante. A sensação pura — ora dor,
ora prazer — não teria unidade e modificaria a receptividade
do corpo diante de dores e prazeres futuros apenas em termos
rudimentares. É a sensação lembrada e prevista, temida ou
procurada ou mesmo imaginada e esquivada que é importante
na vida humana. É a percepção moldada pela imaginação
que nos dá o mundo externo que conhecemos. E é a conti­
nuidade de pensamento que sistematiza nossas reações emo­
cionais em atitudes com distintas tonalidades de sentimento,
e estabelece uma certa amplitude para as paixões de um
indivíduo. Em outras palavras: em virtude de nosso pensa­
mento e imaginação, temos não só sentimentos, mas uma vida
de sentimento.
Essa vida de sentimento é um fluxo de tensões e solu­
ções. Provavelmente toda emoção, toda tonalidade emocional,
estado de ânimo ou mesmo “senso de vida”' pessoal ou “senso
de identidade” é uma interação especializada e intricada,
mas definida, de tensões — tensões reais, nervosas e mus­
culares, que ocorrem em um organismo humano. Esse con­
ceito daquilo que é chamado, com toda propriedade, de
“vida interior” já foi discutido no Cap. 8; e sua imagem
no “fluxo” de som composto não é difícil de achar. Mas o
fato de a música ser um fenômeno temporal, progressivo,
desvia-nos facilmente e leva-nos a pensar em sua passagem
como uma duplicação de eventos psicofísicos, uma cadeia de
eventos paralela à passagem da vida emotiva, mais do que
como uma projeção simbólica que não necessita partilhar das
condições daquilo que simboliza, isto é, não precisa apresentar
sua significação na ordem temporal porque essa significação
é algo temporal. O poder simbólico da música reside no
fato de que ela cria um padrão de tensões e soluções. Como
sua substância — sua ilusão primária — é um Tempo virtual
(bastante irrealista em termos científicos), a tessitura de ten­
sões musicais é temporal. Mas um mesmo tipo de padrão
se nos apresenta em uma projeção não-temporal nas artes plás­
ticas. A abstração efetuada pelo símbolo provavelmente não
é maior ali, mas é mais evidente. Pintura, escultura, arqui­
tetura e todas as artes afins fazem o mesmo que a música.
Em um livro que já tive várias ocasiões de citar —
The Idea of a Theater de Francis Fergusson — há uma passa­
gem que demonstra quão rapidamente a compreensão artís­
EXPRESSIVIDADE 387

tica pode prescindir da apresentação temporal e encontrar


seu caminho na imagem atemporal: falando da estrutura
de Tristan und Isolde, diz o Prof. Fergusson:
Wagner arranjou os incidentes da estória de tal modo que
pudesse mostrar sempre, no palco, momentos de paixão. Esses mo­
mentos sucessivos constituem uma seqüência, ou ritmo de sentimen­
to, ou (se se pensar neles em conjunto, em vez de pensá-los na su­
cessão temporal em que os temos) um espectro de emoções geradas
por paixão absoluta...2
Esse espectro de emoções é a “idéia” organizadora nas
artes não-temporais. A vida do sentimento é mostrada em
projeção atemporal. Apenas a arte, que cria seus elementos
ao invés de tomá-los do mundo, pode exibir tensão e solu­
ção simultaneamente, através da ilusão de “tensões-espaço”
e “tensões-solução” .
Mas, embora uma obra de arte possa abstrair o caráter
temporal da experiência, o que ela nos dá em sua própria
projeção lógica deve corresponder no projeto à estrutura da
experiência. £ por isso que a arte parece essencialmente orgâ­
nica; pois todos os padrões de tensão vital são padrões
orgânicos. Deve-se lembrar, é claro, que uma obra de arte
não é um organismo real, mas apenas apresenta a aparência
de vida, crescimento e unidade funcional. Sua constituição
material é ou inorgânica, como pedra, ou matéria orgânica
morta como madeira ou papel, ou não é uma “coisa” em
absoluto. A música é uma perturbação do ar. A poesia é
a mesma coisa, a menos que seja uma trilha de tinta. Mas exa­
tamente porque a aparência criada é tudo o que tem estrutu­
ra orgânica, uma obra de arte mostra-nos a aparência de vida;
e a semelhança de unidade funcional é indispensável se se
quiser que o padrão de tensão ilusório conote tensões sen­
tidas, experiência humana. Tecnicamente, isso significa que
cada elemento deve parecer, ao mesmo tempo, distinto, isto
é, ele mesmo, e também contínuo com respeito a uma forma
maior, auto-suficiente (cf. a análise feita por Hildebrand
do espaço pictórico, Cap. 5 ); penso que esse relacionamen­
to integral seja o que produz a qualidade frequentemente
observada de “vividez” em todas as obras bem-sucedidas.
E dado o fato de a arte ser uma apresentação simbólica e não
uma cópia do sentimento, pode haver tanto conhecimento
de sentimento projetado na forma articulada atemporal de
uma pintura, ou de um vitral, ou de um templo grego com
sutis relações proporcionais, quanto nas formas fluidas da
música, dança ou recitação.2

2 . p. 79.
388 SENTIMENTO E FORMA

Se sentimento e emoção são realmente complexo de


tensões, então toda experiência afetiva deveria ser um pro­
cesso desse tipo determinado de modo único; então toda
obra de arte, sendo uma imagem de um tal complexo, deve­
ria expressar sem ambiguidade um certo sentimento particular;
em vez de ser o “símbolo não-consumado” postulado em Filo­
sofia em Nova Chave, podería, de fato, ter uma única referên­
cia. Suspeito que esse é o caso, e que os diferentes valores
emocionais atribuídos a uma obra de arte situam-se em um
plano mais intelectual do que sua significação essencial: pois o
que uma obra de arte exprime — o curso da sensibilidade, sen­
timento, emoção, e o próprio élan vital — não tem corres­
pondente em vocabulário algum. Seus elementos, portanto,
são conhecidos discursivamente por nós apenas como figuram
em ações e situações típicas; nomeamo-os tendo em vista con­
dições associadas. O mesmó progresso de excitação, porém,
pode ocorrer em circunstâncias inteiramente diferentes, em
situações que se intensificam até o desastre e em outras que
se dissolvem sem maiores consequências práticas. O mesmo
sentimento pode ser ingrediente na dor e nas alegrias do amor.
Uma obra de arte a expressar um tal efeito ambiguamente
associado será chamada de “alegre” por um intérprete e
“melancólica” ou mesmo “triste” por outro. Mas o que ela
transmite na realidade é apenas uma passagem inominada
de “vida sentida”, cognoscível através de sua encarnação no
símbolo artístico, mesmo que o espectador jamais a tenha
sentido em sua própria carne.
Até o artista não precisa ter experimentado na vida
real cada emoção que é capaz de expressar. Através da
manipulação de seus elementos criados pode suceder que ele
descubra novas possibilidades de sentimento, estranhos esta­
dos de ânimo, talvez maiores concentrações de paixão do que
seu próprio temperamento jamais podería produzir, ou do que
suas fortunas jamais suscitaram. Pois, embora uma obra
de arte revele o caráter de subjetividade, ela é em si mesma
objetiva; seu propósito é objetivar a vida do sentimento.
Como forma abstraída ela pode ser tratada de maneira
inteiramente à parte de suas fontes e fornecer padrões dinâmi­
cos que surpreendam até mesmo o artista. Todas as in­
fluências alheias em sua obra constituem tais contribui­
ções a seu conhecimento humano (não digo conhecimento
“psicológico”, porque a psicologia é uma ciência, e apenas
o conhecimento discursivo pode fazer parte d ela). A arte
bizantina, a arte negra, a arte hindu ou chinesa ou polinésia
tomam-se importantes para nossa vida artística somente na
EXPRESSIVIDADE 389

medida em que nossos artistas apreendem os sentimentos


dessas obras exóticas.
Isso nos leva à segunda grande pergunta, que é episte-
mológica: Como pode a significação de um símbolo de arte
(isto é, de uma obra de arte) ser conhecida de alguém que
não seja seu criador?
Pelo processo intelectual mais elementar — excetuando
da categoria “intelectual” aquele reconhecimento de coisas
como entidades práticas que Coleridge chamou de “imagi­
nação primária”, e que provavelmente partilhamos com os
animais superiores — o ato intelectual básico da intuição.
A palavra “intuição”, usada no contexto da teoria fi­
losófica da arte, traz naturalmente à mente dois grandes no­
mes — Bergson e Croce. Mas, se se pensar na intuição nos
termos que eles tornaram familiares, soa paradoxal falar-
se “intuição intelectual” porque — sejam quais forem as
diferenças que suas doutrinas possam mostrar — um ponto
em que estão de acordo é na natureza não-intelectual da
intuição. Croce alega explicitamente ter “libertado o conhe­
cimento intuitivo de qualquer sugestão de intelectualismo”3;
a oposição feita por Bergson à intuição, revelação direta da
realidade, e ao intelecto, falsificação da realidade para pro­
pósitos práticos, é demasiado bem-conhecida para que se
torne necessária qualquer nova exposição aqui4. Mas a intui­
ção, da maneira como Bergson a concebeu, está tão próxima
da experiência mística que ela realmente foge à análise
filosófica; ela é simplesmente uma iluminação súbita, conhe­
cimento infalível, raro, e incomensuráve] com o resto da
vida mental. Croce tem uma noção mais usável, a saber,
percepção imediata, que é sempre de uma coisa, evento,
imagem, sentimento individual — sem qualquer juízo sobre
seu status metafísico, isto é, se é fato ou fantasia56. Mas
aqui o ato de intuição não é, como Bergson o entendia, uma
cega “tomada de posse” ou experiência emocional da “rea­
lidade” ; ela é, para Croce, um ato de percepção pelo qual o
conteúdo é formado, o que quer dizer, para ele, convertido
em formcfi. Esse é um conceito difícil, embora não sem jus­
tificação; não irei elaborá-lo ou criticá-lo aqui, pois
3. Aesthetic as Science of Expression and General Linguistic, p. 5.
4. Qualquer leitor que náo esteja familiarizado com ela pode
encontrar sua formulação clássica no pequeno livro de Bergson, Intro-
duction to Metaphysics.
5. Op. cit.t p. 4: “A intuição é a unidade lndiferenciada da
percepçfio do real e da simples Imagem do possível. Em nossas Intui-
ç6es, nfio nos colocamos em oposlç&o como seres empíricos & realidade
externa, mas simplesmente objetivamos nossas impressões, sejam elas
quais forem7'.
6. Ibiâ., p. 15-16: "No fato estético, náo se acrescenta atividade
expressiva ao fato das impressões, mas estas são formadas e elaboradas
por aquela. ( . . . ) O fato estético, portanto, é forma, e apenas forma*7.
390 SENTIMENTO E FORMA

isso nos levaria a adentrar muito a metafísica. É, penso,


essencialmente, o mesmo conceito que o de Kant sobre
os dados da experiência, os quais já estão formados pela ativi­
dade da percepção — já tornados perceptuais, o que é a for­
ma mais inferior de ser inteligível. A falta de precisão de
Croce no uso de palavra tais como “fato”, “atividade”,
“matéria”, dá à sua Estética uma aparência mais críptica e
duvidosa do que era necessário, ao menos no que diz res­
peito à teoria da arte. Acho que tal frouxidão de lingua­
gem provoca e disfarça alguns passos logicamente inadmis­
síveis que levam a sua metafísica de “o Espírito” ; na esté­
tica, isso produz apenas uma confusão de grandes conse­
quências — a identificação de intuição e expressão7, que
finalmente conduz à doutrina de que uma obra de arte é essen­
cialmente algo na mente do artista e que sua duplicação em
termos materiais é incidental. Essa conclusão infeliz foi,
adequadamente, analisada e criticada por Bernard Bosan-
quet, L. A. Reid, e outros 8; é, de fato, um erro que Croce
jamais deveria ter cometido, e não teria, não fosse uma idéia
errada básica que é comum à maioria dos teóricos que li­
dam com a intuição — a falsa concepção da relação da
intuição com o simbolismo.
O que Croce quer dizer com “intelectual” é, de acordo
com toda a evidência interna, simplesmente “discursivo” .
A “atividade expressiva” pela qual as impressões são “for­
madas e elaboradas” e tomam-se acessíveis à intuição, acre­
dito que seja o processo de feitura de símbolos elemen­
tares, pois os símbolos básicos do pensamento humano
são imagens que “significam” as impressões passadas que
as geraram e também as futuras que irão exemplificar a
mesma forma. Esse é um nível muito baixo de simboliza-
ção; é, contudo, nesse nível que principia a mentalidade ca-
racteristicamente humana. Nenhuma impressão humana é
apenas um sinal do mundo exterior; ela sempre é também
uma imagem em que são formuladas impressões possíveis,
isto é, um símbolo para a concepção de tal experiência.
A noção de “tal” indica uma abstração elementar,
ou consciência de forma. Acredito que seja isso que Croce
queria dizer com a “intuição” que é indistinguível da “expres­
são”, quando escreveu, finalizando seu primeiro capí­
tulo:

7. Outro exemplo da difundida falácia de simplesmente identificar


quaiBquer dois termos que mantenham uma relação constante e inti­
ma um com o outro.
8. Ver espedalmente Bernard Bosanquet, Three Lectures on
Aesthetics; Louis Araaud Reid, “The Problem of Artlstic Froduction”,
Journal of Philosophical Studies, V (1930), 533-544.
EXPRESSIVIDADE 391

O conhecimento intuitivo 6 conhecimento expressivo... intui­


ção ou representação são distinguidas como forma do que é sentido
e sofrido, do fluxo ou onda de sensação, ou da matéria psíquica;
e essa forma, essa tomada de posse, é expressão. Intuir é expressar;
e nada (nada mais, mas nada menos) além de expressai?.
Formulação, representação, abstração: essas são as
funções características dos símbolos. Enquanto tais, elas
têm sido estudadas, entretanto, principalmente em conexão
com símbolos discursivos; e é por isso, como disse Croce,
que
Existe uma ciência muito antiga do conhecimento intelectual,
admitida por todos sem discussão, a saber, a Lógica; porém uma
ciência do conhecimento intuitivo é defendida, timidamente e com
dificuldade, por apenas uns poucosio.
Enquanto a intuição é tratada à parte de qualquer
correlato objetivo, nem suas variedades, nem suas relações
com a razão, imaginação, ou qualquer outro traço mental
não-animalesco, podem ser estudadas. Os lógicos podem
olhar para as complexas e freqüentemente fugidias funções
da linguagem (quer a linguagem “natural”, quer a “artifi­
ciar’, isto é, técnica) a fim de registrar suas experiências
cognitivas — concepção, coordenação de conceitos, infe­
rência, juízo — e encontrar algum padrão de atividade inte­
lectual refletido no discurso padronizado que a medeia.
Mas contemplando-se intuições como experiências diretas,
não mediadas, não correlacionadas a nada que seja público,
não se pode registrá-las ou sistematizá-las, muito menos cons­
truir uma “ciência” do conhecimento intuitivo, que será “o
verdadeiro análogo da lógica”11. O processo de formulação,
da maneira como é apresentado por Croce, é transcendental:
uma intuição — um ato puramente subjetivo — tem lugar
espontaneamente, e sem qualquer meio, em uma mente.
Não há tipos diferentes de intuição. Conseqüentemente —
uma vez que a intuição é, aqui, igualada à expressão — não
pode haver tipos diferentes de expressão, embora hajam
conteúdos diferentes. Isso tem uma implicação de longo
alcance para a teoria da arte, a saber, que não há variedades
de arte, não há modos, não há estilos — não há diferenças
entre música e pintura e poesia e dança, mas apenas conhe­
cimento intuitivo de alguma experiência única12.
Quando Croce diz: “Toda verdadeira intuição ou re­
presentação é também expressão”, ele realmente mostra o
caminho para um possível estudo da intuição, pois, com

9. Op. cit., p. 11.


10. P. 1.
11. Ibid., P. 14.
12. Ibid., Oap. IV, passim.
392 SENTIMENTO E FORMA

expressão, ele quer dizer aquilo que eu chamei de “expressão


lógica”, não importando o quanto podería protestar
contra a palavra “lógica” . Ele não quer dizer sintomas
emocionais, mas formulação. Penso que não existe formu­
lação sem projeção simbólica; o que sua “ciência” do conhe­
cimento não-intelectual esperava era um reconhecimento da
simbolização não-discursiva. Ele mesmo observou que
como regra geral, dá-se um significado demasiado restrito à palavra
expressão. Geraímente, ele é restringido apenas ao que são cha­
madas de expressões verbais. Mas existem também expressões não-
verbais, tais como as da linha, cor e som, e a todas elas deve ser
estendida nossa afirmação. ( . . . ) Mas seja pictórica, ou verbal,
ou musical,. . . a nenhuma intuição pode ser insuficiente a expressão
em uma de suas formas; ela é, de fato, uma parte inseparável da
intuiçãoi3.
Foi Cassirer quem forneceu a propedêutica a um estu­
do da intuição em sua grande Philosophie der symbolischen
Formen; e, ao estudar as funções de símbolos de várias es­
pécies, em vários níveis, descobre-se que eles se relacionam
com não apenas um tipo de intuição, a consideração de
experiências como formas individuais, inteligíveis, esta
coisa, este evento, etc. (o que dá uma resposta à noção
de Croce), mas também com outros tipos. Toda cognição
de forma é intuitiva; todo relacionamento — distinção,
congruência, correspondência de formas, contraste e síntese
em uma Gestalt total — pode ser conhecido apenas pela
introvisão direta, que é a intuição. E não só a forma, mas a
significação formal, ou importe, é vista intuitivamente
(motivo pelo qual algumas vezes se diz que ela é “sentida”),
ou não é vista de modo algum; esse é o valor simbólico bá­
sico que provavelmente precede e prepara o significado
verbal1314.
A compreensão da forma em si, através de suas exem-
plificações em percepções formadas ou “intuições”, é
abstração espontânea e natural; mas o reconhecimento de
um valor metafórico de algumas intuições, que se origina
da percepção de suas formas, é interpretação espontânea e
natural. Tanto a abstração quanto a interpretação são intui­
tivas e podem lidar com formas não-discursivas. Elas se en­
contram na base de toda mentalidade humana e são as
raízes de onde surgem quer a linguagem quer a arte15.

13. Ibid., p. 8. Este trecho evidencia a impossibilidade de prescin­


dir de tipos, ou formas diferentes, de express&o (lntulç&o).
14. Uma dlscuss&o mais completa sobre o "senso de signltlcaç&o”
e a natureza da linguagem pode ser encontrada em Nova Chave, Gap. 5,
jxissim.
15. A dupla natureza da linguagem, como um registro de concep­
ção mítica e também a origem da generalização e concepção clen-
EXPRESSIVIDADE 393

Filósofos que reconhecem o caráter intuitivo da apre­


ciação artística parecem nutrir, de modo bastante geral,
um forte preconceito quanto à concepção científica e às
demonstrações lógicas. Parecem achar necessário desprezar
a lógica a fim de aumentar o valor e a dignidade da intui­
ção e, usualmente, fazem grande alarde da oposição
entre os dois “métodos do saber” . Mas, na realidade, não
há essa oposição — quanto mais não fosse porque a intui­
ção não é de modo algum um “método” mas, sim, um
evento. Além disso, ela é o início e o fim da lógica; todo
raciocínio discursivo goraria sem ela. A simples concatena-
ção de proposições conhecida como “silogismo” é apenas um
recurso para levar uma pessoa de uma intuição para
outra. Quem quer que, convencido de que todos os
homens são mortais e mesmo aceitando que Sócrates é um
homem, ainda não reconheça que portanto Sócrates é mor­
tal, é destituído de entendimento lógico porque não res­
ponde com intuição normal a cada estádio do discurso.
Mesmo em um nível mais baixo, a racionalidade falharia
se a intuição não ocorresse devidamente: se essa pessoa
espantosamente pouco dotada conhecesse os significados de
todas as palavras, “Sócrates”, “homem”, “é” e “um”, mas
deixasse de entender o sentido de “Sócrates é um homem”
porque a ordem das palavras não caldeia o sentido destas
em um único conceito para ele, tal indivíduo não poderia se­
quer chegar ao obstáculo do “portanto” . Até mesmo pessoas
de inteligência normal, quando confrontadas com uma língua
declinada como o latim ou o alemão, podem dar consigo
olhando para palavras que não se fundem em uma propo­
sição; mas, quendo os signos sintáticos (inflexões, for­
mas verbais), bem como as denotações de todas as pala­
vras são realmente compreendidas, o significado da senten­
ça emerge repentinamente. Essa emergência de significado
é sempre uma intuição lógica ou introvisão. Todo discurso
visa a aumentar cumulativamente, mais e mais complexas
intuições lógicas.
A significação de um símbolo artístico não pode ser
erigido como o significado de um discurso, mas precisa ser
vista in toto em primeiro lugar, isto é, o “entendimento”
de uma obra de arte começa com uma intuição de todo
o sentimento apresentado. A contemplação, então, gradual­
mente revela as complexidades da peça, e de sua significa­
ção. No discurso, o significado é construído sinteticamente
por uma sucessão de intuições; mas na arte o todo com-
tífica, é tratada longamente na Philosophíe der sym bolischen Formen
de CaBsirer, e brevemente em vários ensaios, especialmente em Lingua­
gem e M ito.
394 SENTIMENTO E FORMA

plexo é visto ou antecipado em primeiro lugar16. Isso cria


um impasse epistemológico real: a significação artística, ao
contrário do significado verbal, pode apenas ser exibida,
mas não demonstrada a qualquer pessoa para quem o símbo­
lo de arte não seja lúcido. Uma vez que não há unidades
semânticas com significações consignadas que, por pará­
frase ou tradução, poderiam ser transmitidas por símbo­
los equivalentes, como as palavras podem ser definidas ou
traduzidas, não há maneira pela qual se possa fazer uma
identificação ulterior do importe de uma obra. A única
maneira de tornar público o conteúdo-sentimento de um
desenho, melodia, poema ou qualquer outro símbolo artís­
tico, é apresentar a forma expressiva de modo tão abstrato
e vigoroso que qualquer pessoa com sensibilidade normal
para a arte em questão veja sua forma e sua “qualidade
emotiva” (cf. Cap. 2, especialmente páginas 22 e 23: Ba-
ensch e a emoção como qualidade de uma obra de arte).
Não se pode realmente dizer que um símbolo que não
pode ser separado de seu sentido se refira a algo exterior
a ele mesmo. “Referir” não é a palavra correta para sua
função característica. E onde o símbolo não tem uma re­
ferência aceita, o seu uso não é o de “comunicação” propria­
mente. Contudo, sua função é expressão, no sentido lógico,
não no biológico (chorar, ficar enraivecido, abanar a cau­
da); e na boa arte a expressão é verdadeira, na má arte
é falsa, e na arte pobre é malsucedida. Quando não entra
qualquer intenção ou impulso de expressar algo, o produ­
to — mesmo se for uma figura humana, como o mane­
quim de um alfaiate ou uma boneca — não é arte. O
manequim de um alfaiate pode ser arte, e as bonecas po­
dem e o são algumas vezes.
Em matéria de verdade e falsidade artísticas, estou de
pleno acordo com, ao menos, um esteta eminente, R. G.
Collingwood. O fato me é tanto mais agradável, e espero
que o seja para ele também, quanto não li seus Principies of
A ri a não ser quando minhas próprias idéias estavam
completamente formadas, de modo que a semelhança de10

10. Cf. meu ensaio “Abstractlon ln Science and Abstraction ln


Art’\ em Structure, Method, anã Meaning: Essays tn Honor of Henry
M. Sheffer, p. 171-182. Em uma resenha sobre o ensaio (Jornal of Aesthe-
tics, X, 3), o Prof. Ellseo Vivas lmputa-me o dogma de que "Em um
caso, a abstraç&o vai da parte ao todo e, no outro, do todo & parte".
Isso, evidentemente, 6 tolice; a abstração n&o tem nada que ver com
todo e partes: é a percepção, seja em que nível de abstraç&o for, que
se realiza dessas diferentes maneiras. A abstraç&o na ciência é efetuada
pelas sucessivas generalizações, e, na arte, sem nenhum de tais passos
Intelectuais. O Prof. Vivas deixou passar ou esqueceu de mencionar
a generalização, mas acontece que ela é a diferença entre os dois
modos de abstraç&o.
EXPRESSIVIDADE 395

nossas conclusões é uma corroboração mútua. Com sua


epistemologia não posso concordar inteiramente; o ingre­
diente da autoconsciência, e, de fato, a estrita limitação
da expressão artística à experiência real, parecem-me equi­
vocadas; porém falarei mais a esse respeito adiante, quando
abordar o resto de nossas diferenças. O problema atual
é o da verdade.
A arte é visualização de sentimento, o que envolve
sua formulação e expressão naquilo que chamo de símbolo
e Collingwood chama de “linguagem”. (Evidentemente, é
uma infelicidade que palavras sejam usadas de modo tão
diferente por diferentes autores — ele usa “símbolo”, ape­
nas para denotar o que os semantólogos chamam hoje de
“linguagem artificial”, tal como o simbolismo matemáti­
co ou as linguagens construídas artificialmente que Carnap
analisa — porém tomando suas palavras com o significado
que ele, evidentemente, quer que elas tenham, suas afirmações
sobre expressão e visualização soam verdadeiras.) Essa visua­
lização, entretanto, pode sofrer interferências de emoções que
não estão formadas e reconhecidas, mas afetam a imagi­
nação de outra experiência subjetiva. A arte que é
assim distorcida em sua própria origem por falta de
candor é arte de má qualidade, e é má porque não corresponde
a o que uma visualização cândida teria sido. O candor é o
padrão: “ver retamente”, diz o vernáculo. Como afirma
Collingwood, onde a visualização é falsa, não se pode,
na realidade, falar nem de erro nem de mentira, porque o
erro surge somente no nível mais alto do “intelecto” (pen­
samento discursivo), e a mentira pressupõe “conhecer mais” ;
a falta de visão cândida, porém, efetua-se no nível profun­
do da imaginação. A esse tipo de falsidade ele chama,
portanto, de “corrupção da consciência”1718. A arte ruim é
arte corrompida. Ê falsa da pior maneira porque essa falsi­
dade não pode ser corrigida subsequentemente, tal como
uma mentira pode ser revelada e retratada, e um erro
pode ser descoberto e corrigido. A arte corrompida pode
ser apenas repudiada e destruída.
Uma má obra de arte [diz ele] é uma atividade em que o
agente tenta expressar uma emoção dada, mas falha. Essa é a
diferença entre arte de má qualidade e a arte que é falsamente cha­
mada assim ( . . . ) Na arte falsamente chamada assim não existe
falha de expressão, porque não há nela tentativa de expressão; há ape­
nas uma tentativa (bem-sucedida ou não) de fazer alguma outra
coisa *8.

17. Ver The Principies o f Art, p. 219.


18. ma., p. 282. A seção lotelra (Gap. XII, "Art as Language",
53. “Oood Art and Bad A rt") é relevante no caso, mas evidentemente é
396 SENTIMENTO E FORMA

A essas distinções entre arte e não-arte de um lado,


arte boa e má do outro, eu acrescentaria uma outra, em­
bora menos fundamental dentro da esfera da arte essencial­
mente boa, a saber, arte livre e arte obstruída ou arte pobre.
Isso surge em um nível de atividade imaginativa corres­
pondente ao nível “intelectual” da mentalidade, ou seja, o
nível da obra de arte. Collingwood não admite o ofício
de artista como um desenvolvimento assim elevado, por­
que ele sustenta que a arte não pode ser ofício; a arte não
tem técnica19. Nesse ponto, não posso fazer-lhe companhia.
Nossa diferença pode ser “verbal”, mas mesmo assim ela
é importante, porque a maneira pela qual usamos palavras
não é arbitrária; ela revela nossas concepções básicas; assim,
a crítica de sua terminologia, que se segue, é realmente
uma crítica daquilo que considero como suas noções inade­
quadas .
Essas noções são, principalmente, seus conceitos de
obra, de meios e fins, de meio artístico, e as relações das
várias atividades humanas umas com as outras. Nas críti­
cas, nutre uma tendência para o que se podería chamar de
“rejeição simples” : examinando o alegado relacionamento
de dois termos, tais como, por exemplo, representação e
expressão artística, encontrando que a relação proposta não
é sustentável e, conseqüentemente, achando que os ter­
mos não tem qualquer relação um com o outro20. Essa ten­
dência impede-o de sujeitar o processo de criação artística
à detalhada e frutífera espécie de estudo que ele dedicou
ao processo de visualização imaginativa, e leva-o finalmen­
te a considerar a imaginação, pelo artista, do sentimento
(que é tudo o que ele realmente analisou) como a obra de
arte em si. A certa altura, escreve que “uma obra de arte
pode estar completamente criada quando foi criada como
uma coisa cujo único lugar é na mente do artista” (p. 130),

longa demais para ser citada aqui; portanto aconselhamos ao leitor


que a leia em sua fonte — e, de fato» que leia o livro inteiro.
19. Ibiã., p. l i l : “A expressão é uma atividade da qual nfio
pode haver técnica”.
20. Por exemplo: “Decidir qual a reação psicológica que uma
obra de arte produz (por exemplo, perguntar-se a Bi mesmo como
um determinado poema 'faz você sentir-se’) não tem absoluta­
mente nada a ver com decidir se ela é uma verdadeira obra de arte
ou náo” (p. 32). Existe um sentido em que o sentimento é o gula
mais seguro para a boa arte; o sentimento de excitação sobre a obra
que denota sua importância como arte, e não como outra coisa. Ou
novamente: “A origem da perspectiva... foi relacionada com o uso
da pintura como um adjunto da arquitetura. ( . . . ) Para pinturas que
podem ser movidas, a perspectiva é mero pedantismo’* (p. 253 e ss.).
Sua finalidade nas pinturas de cavalete é, efetlvamente, não a de
realçar o plano de uma parede; mas pode-se conseqüentemente dizer,
com tanta volubilidade, que ela não tem outra finalidade?
EXPRESSIVIDADE 397

e pouco mais adiante: “A música, a obra de arte, não é a


coleção de ruídos, é a melodia na cabeça do compositor”
(p. 139). Asserções semelhantes espalham-se através de todo
o Livro I. Neste, encontra-se a identificação croceana de
expressão e intuição (embora Collingwood use “conhe­
cimento” — “intuição” não aparece nem mesmo no índice),
e sua ulterior identificação com a arte; a estátua vista
completamente na imaginação, a pintura não pintada.
O mais duvidoso de seus dogmas, entretanto, é o de
que um artista não pode saber que tipo de obra — mesmo
em linhas das mais gerais, e. g ., se é uma comédia ou
uma tragédia — ele está a ponto de criar; porque
Se a diferença entre tragédia e comédia é uma diferença entre
as emoções que expressam, essa não é uma diferença que pode
estar presente na mente do artista quando está começando sua
obra; se o fosse, ele sabería qual emoção iria expressar antes de
tê-la expresso. Nenhum artista, portanto,.. . pode partir da de­
terminação de escrever uma comédia, uma tragédia, uma elegia, ou
coisa semelhante. Na medida em que é um artista propriamente dito,
é exatamente tão provável que ele escreva qualquer delas, seja de
uma seja de outra. ( . . . ) 21

No Livro III, Collingwood parece retirar muitas de


suas afirmações quixotescas. Ele admite que os artistas
pintam a fim de formular sua visão e expressar seus sen­
timentos, e que a pintura é parte de um ver criativo, uma
coisa diferente de “olhar para o objeto sem pintá-lo” (p.
308); e também que osi músicos “compõem para a execu­
ção”, e que os executantes “não apenas recebem permissão,
mas exige-se deles que preencham os detalhes” (p. 320-
321) . Com a melhor boa vontade do mundo para seguir suas
transições, nem sempre é possível reconciliar tais admissões
com o que as precedeu; como podem os executantes, a
audiência e mesmo outros artistas “colaborarem” em uma
peça que é “uma melodia na cabeça do compositor” ou
em qualquer outra obra (talvez plástica) “completamente
criada... na mente do artista”?
Talvez a melhor maneira de superar as dificuldades de
sua porção crítica (Livro I) seja perguntar por que ele está
ansioso em negar à habilidade de ofício qualquer papel na arte
e, conseqüentemente, em rejeitar o conceito de técnica, e por
que precisa condenar o ideal de expressão literária na
ciência e filosofia e tratar a linguagem como essencialmente
expressão de sentimento com um conteúdo conceituai ape­
nas incidentalmente veiculado. Algo está faltando na es­
21. Ibld., p. 116. O contexto dessa passagem é o tratamento mais
radical que já encontrei sobre a arte como “uma bela exaltaç&o” sem
plano ou contexto.
398 SENTIMENTO E FORMA

trutura epistemológica. A deficiência de seus argumentos con­


tra a “teoria da técnica” e a concepção da “arte como ofício”,
e contra todas as variadas teorias de formas lingiiísticas e
significado literal, evidencia um temor de conclusões ina­
ceitáveis: e isso não é nada menos do que uma falta de
sinceridade filosófica — “corrupção da consciência” — , uma
falta tão comum e natural na filosofia quanto na arte. Ele
mesmo constatou este fato:
A corrupção da consciência não é um pecado oculto que se
apossa apenas de uns poucos infortunados ou malfadados; é uma
experiência constante na vida de qualquer artista, e sua vida é uma
guerra constante e, no todo, uma guerra bem sucedida contra ela.
(...)
Uma consciência sincera dá ao intelecto fundações firmes so­
bre as quais construir; uma consciência corrupta força o intelecto a
construir sobre areia movediça^.
Procuremos as evidências do pecado. Elas são, no
Livro I, as distorções com que ele apresenta os conceitos que
deseja rejeitar, por exemplo, a redução de todo “ofício” a
“maneiras de levar seres humanos a determinadas condições
mentais”, o que é obviamente sofistico e feito apenas com
o fato de identificar qualquer aceitação do ofício íyi
arte com uma concepção de arte como ofício, e esta, por
sua vez, com arte como estímulo emocional — que é a idéia
que ele realmente, e de modo adequado, para combater.
Algo provocou a fusão de todos esses conceitos em uma
massa informe.
Em segundo lugar, na p . 108, ele faz a afirmação
categórica: “O elemento que a teoria técnica chama de fim
(isto é, de objetivo da arte) é definido por esta como o des­
pertar de emoção” . Mas ele não citou qualquer defensor
de algo que poderia denominar-se de “teoria técnica” para
dar a impressão de que o propósito da técnica é despertar
emoção, e muito menos provou que todos os que a ela ade­
rem concordariam com isso. Os dogmas da “teoria técnica”
são, de fato, o que ele mesmo resolveu amontoar sob esse
nome; e, mais uma vez, é da arte como estímulo de sentimen­
tos que ele realmente quer livrar-se e a “técnica” está vaga­
mente associada com essa falsa teoria.
A fraqueza de tais argumentos inverídicos aparece
claramente no fato de que as definições de termos que se
diz não pertencerem à arte, mas a outras esferas, são tão
rígidas e estéreis que não seriam mais utilizáveis em seus
lugares alegadamente apropriados do que na arte. Sua de­
finição de “símbolo”, por exemplo, é tão estreita que é si-2
22. Zbta., pàg. 284.
EXPRESSIVIDADE 399

nônima de “linguagem artificial” ; porém, uma vez que se


diz que a linguística e a lógica se baseiam no uso de sím­
bolos, a definição estreita serve para fazer com que essas
disciplinas se pareçam com artifícios triviais. Isso é im-
perícia filosófica. É o mesmo pecado cometido pelos posi­
tivistas quando agrupam todos os problemas da arte, sobre
os quais nada sabem, sob a “reação emocional”, que en­
tão relegam a uma “ciência da psicologia”1da qual tampouco
nada sabem.
Finalmente, Collingwood afirma que a linguagem não
é a estrutura semântica que se supõe ser, mas não tem
nem vocabulário, nem sintaxe; é pura expressão, criada
pela “consciência”; é arte, e não tem técnica, não tem
“utilização” (correta ou incorreta), e não tem função sim­
bólica — é expressão de sentimento, como a dança, a pin­
tura ou a música. Toda fala é poesia. Gramática e sintaxe
e mesmo o reconhecimento de palavras são invenções pura­
mente arbitrárias para retalhá-la (algo um tanto seme­
lhante, podemos supor, aos “versos” em que os erudi­
tos medievais dividiam as Escrituras para uma rápida
identificação de qualquer trecho). Aqui, porém, onde mais
necessário se toma um argumento forte a fim de estabelecer
uma doutrina tão radical, seus poderes de demonstração
falham completamente. Ele se contenta em mostrar que
a linguagem sempr^tem algo a ver com o sentimento, que
ela pode existir apenas onde a imaginação já apreendeu e
formou o “sentimento psíquico” e, como essa imaginação
é a raiz da arte, toda linguagem é arte e toda arte é lin­
guagem; o que ele prova difamando os gramáticos (“ Um
gramático não é uma espécie de cientista.. . é uma
espécie de açougueiro”23) e insultando I . A . Richards (re­
ferindo-se a sua “enfadonha boca de Cambridge”, etc.)24.
Tal maneira de escrever é indigna de um homem que tem
coisas verdadeiras a dizer. Aqui, ele se encontra em areia
movediça intelectual; aqui, trata-se da rejeição emotiva de
algum conceito que não deve ser alimentado, o temor de
alguma Besta Negra da estética.
A Besta Negra temida pela maioria dos estetas que
sustentam uma teoria da arte como expressão, é o conceito
do Símbolo de Arte. O fato inadmitido que os persegue é o
de que uma forma expressiva é, no fim de contas, uma forma
simbólica. No momento em que se encara tal fato, todos os
principais paradoxos e anomalias desaparecem — “forma

23. Ibid., p. 257.


24. Ibid., p. 264.
400 SENTIMENTO E FORMA

significante” que não é significante de nada25, poesia e


música das quais “podemos dizer, se quisermos, que ambas
são expressivas”, mas devemos evitar problemas “insistin­
do que elas não ‘expressam’ nada, nada em absoluto”26, a
teoria de Croce da expressão artística que não requer qual­
quer meio, e o conceito semelhante de Collingwood, do
“ato expressivo”, que ocorre apenas na cabeça do artista,
como a obra de arte em si. Enquanto se tenta esquivar da
forma simbólica que veicula a “expressão da Idéia”, não se
pode estudar o processo dessa expressão, nem apontar pre­
cisamente como ela difere de outras atividades. Mas no
momento em que se admite que a “forma expressiva” é um
tipo especial da forma simbólica, apresentam-se interessan­
tes problemas a serem resolvidos, e evita-se com segurança
alguns perigos sempre iminentes de mésaUiance entre esté­
tica e ética ou ciência. Não há perigo de abraçar um
“intelectualismo vicioso” uma vez compreendida a diferen­
ça entre um símbolo de arte e um símbolo científico — ou,
melhor, simbolismo científico: eles são tão diferentes quan­
to a arte o é da ciência: é, efetivamente, a diferença radical
entre suas respectivas formas simbólicas que faz da arte
e do discurso (lógica, ciência, assunto banal) campos fun­
damentalmente diferentes, e remove a esperança (ou temor,
conforme o caso) que têm certos filósofos de que em uma
“idade da ciência” a arte aspire e finalmente atinja à digni­
dade do pensamento científico27.

25. A referência é, evidentemente, & frase de OUve Bell.


26. O. K. Bowsma, "The Expression Theory oí Art”, na antologia
de Mas Black, Philosophical Analysis. Ver p. 07.
27. Santayana, em Reason in Art, p. 111, fala de "aquele mundo
semimftlco através do qual os poetas, por falta de uma educação
racional, até agora vagueiam", e espera um rapprochement entre poe­
sia e ciência: "A visão de um poeta racional terla as mesmas funções
morais que o mito devia preencher, e ' preenchia de modo t&o
traiçoeiro; ela empregaria as mesmas faculdades reais que o mito
expressava de modo confuso e apressado. Teriam sido acrescentados
mais detalhes e maior variedade na interpretação. ( . . . ) Uma tal
poesia estaria enraizada mais profundamente na experiência humana
do que qualquer fantasia casual, e, portanto, seria mais atraente para
o coração".
"Se o conhecimento fosse geral e adequado, as belas-artes seriam,
de acordo com isso, induzidas a expressar a realidade. ( . . . ) Assim,
não havería separação entre artes úteis e belas-artes". (lbiâ., pag. 214.)
Em UEsthetique de Eugêne Véron, expressa-se a mesma esperança
de que a arte abandone a imaginação mítica e se torne científica.
Strlndberg esperava o mesmo desenvolvimento, mas temia que o es­
clarecimento do público fosse o fim do drama, que exige uma platéia
facilmente iludível (Prefácio a Srta. Júlia).
A colocação extrema da atitude servil tomada por toda uma gera­
ção de artistas e críticos em relação à ciência, pode ser encontrada em
um pequeno livro publicado em 1913 por dois autores que eram classi­
ficados, naquela época, de avant-garâe: The Modern Evolution of
Plastic Expression por M. De Zayas e P. B. Havilland. Ali consta:
"A arte está sendo grandemente influenciada e possivelmente absorvida
pela ciência porquanto ela expressa um fenômeno cientifico que pode
ser expressado apenas através da forma. ( . . . ) Está tentando fazer
EXPRESSIVIDADE 401

O primeiro problema crucial que encontra solução é


como uma obra de arte pode ser ao mesmo tempo uma cria­
ção puramente imaginativa, intrinsecamente diferente de um
artefato — não, de fato, uma “coisa” física propriamente —
e, contudo, ser não apenas “real”, mas também objetiva.
O conceito da coisa criada como não-real, isto é, ilusória,
mas presente em termos de imaginação e mesmo sensoriais,
funcionando como um símbolo, mas não como um dado
físico, não apenas responde à pergunta imediata, mas a res­
ponde de uma maneira que sugere a resposta a seu coro­
lário, o problema da técnica. Afirmar que a arte não tem
técnica, nem relação íntima com um ofício é, afinal, um
tour de iorce; e, em pequenas passagens, aqui e ali, o autor
dessa doutrina tenta suavizá-la, dizendo que, embora “a
pintura não seja a obra de arte no sentido adequado dessa
frase”, todavia “Sua produção está de alguma forma re­
lacionada necessariamente com a atividade estética, isto é,
com a criação da experiência imaginativa que é a obra de
arte”28. Ele se propõe mostrar a necessidade dessa conexão;
mas a demonstração é sempre precária e evasiva.
Se, entretanto, considerarmos a pintura como o sím­
bolo de arte que expressa a experiência imaginativa, isto é,
a visualização que o artista faz do sentimento, então a pin­
tura é a obra de arte “no sentido próprio dessa frase”, e
somos poupados do problema de saber por que o sentido
“próprio” é um sentido que jamais foi usado; pois mesmo
bons artistas, e daqueles que refletem sobre teoria da arte, di­
zem sobre a “Ültima Ceia” de Leonardo que ela é uma obra
de arte, e não dizem, a respeito de si mesmos, que estão “ten­
do” uma tal obra quando vêem ou pensam na pintura. A pin­
tura, efetivamente, não é a tinta sobre a parede, mas a ilusão
que Leonardo criou por meio de tinta sobre gesso molhado.
A tinta, infelizmente, desapareceu em grande parte; mas
restou o suficiente para sustentar a ilusão, de modo que a
pintura ainda está ali. Se o tempo apagar essa última e
pálida pigmentação, a obra de arte terá desaparecido, não
importando quão bem alguém possa saber e lembrar
de seu importe vital — as harmonias de sentimento que
revelava.
O trabalho do artista é a feitura do símbolo emotivo;
essa feitura envolve graus variados de habilidade de ofício, ou

da forma um veiculo para a psicologia e a m etafísica” (p. 19). Mas,


em uma passagem anterior, eles admitiram, algo tristemente: "N&o
achamos que a arte já tenha atingido um estádio em que possa ser
considerada como uma pura expressão cientifica do hom em . ( . . . ) ”
<P. 13).
28. Collingwood, op. c i t p. 305.
402 SENTIMENTO E FORMA

técnica. Além dos rudimentos que todos aprendem — como


usar um lápis, como usar a linguagem, como talhar um pe­
daço de madeira, lascar uma pedra, entoar uma canção —
ele aprende seu ofício tal como necessita para seu pro­
pósito, que é criar um objeto virtual que será uma forma
expressiva. Mas um ofício, ou técnica, não é o procedi­
mento mecânico, rotineiro, ditado, que Collingwood des­
creve; cada artista inventa sua técnica, e desenvolve sua
imaginação à medida em que o faz. £ por isso que pintar
e ver são a mesma coisa quando uma pessoa está criando
uma pintura29; ouvir e compor ou, em um estádio posterior
da obra musical, ouvir e tocar ou cantar, são atos indivi­
síveis .
Dado o fato de cada artista ter de dominar seu ofício
de seu próprio modo, para suas próprias finalidades de sim­
bolizar idéias de realidade subjetivá," pode existir uma arte
pobre, que não seja corrompida, mas falhe em expressar aqui­
lo que ele sabia por uma intuição demasiado breve. £ difícil
manter uma visualização sem um símbolo mais ou menos
permanente; e ser confrontado com um símbolo errado
pode destruir uma visão interior. Uma ferramenta com a qual
não se está familiarizado, um instrumento musical inade­
quado, mas também uma mão fisicamente incontrolável,
podem contradizer a imaginação e, nos momentos iniciais
de uma idéia despontante, podem erradicá-la desapiedadamen-
te. O resultado é um produto pobre, indefeso, bastante sin­
cero, mas confuso e frustrado pela resistência do meio ou
pela pura falta de liberdade técnica.
Não vejo vantagem em definir “técnica” de modo que
signifique “manufatura”, exceto como parte da campahha
contra o tratamento de obras de arte como “bens” e de
pessoas que lhes dão valor como “consumidores” . Essa
campanha é bem intencionada e bastante justificada; mas
não é necessário que ela remova todas as relações da arte
com as atividades que normalmente a alimentam — os
ofícios, e o interesse mundial no puro entretenimento.
Collingwood, como Brander Matthews, fala apenas em
“diversão”, o que tem uma conotação de autocomplacência,
trivialidade e barateza, e é facilmente relegada à categoria da
não-arte30; mas o entretenimento é coisa diversa. O Morria-

29. Jbid., p . 303.


30. Matthews usou o termo para finalidade oposta — para mostrar
que toda arte. “desde o Oeste Selvagem de Buffalo Blll até o 'Édlpo*
de Sófocles, era na realidade apenas dlversfio. dai. uma comodidade
ev portanto, t&o respeitável quanto o golfe e tfio próximo aos cora-
çóes dos americanos como pipoca e sorvete. Ver A Book A bout the
Theater, Cap. I .
EXPRESSIVIDADE 403

ge de Figaro de Mozart, a Tempest de Shakespeare, o Pride


and Prejudice de Jane Austen são excelente diversão; são
também arte muito boa. Admitir a possível coincidência de
artesanato ou entretenimento com expressão artística não é
suficiente31; eles se apresentam, evidentemente, em alguma
relação íntima. E a conexão é realmente óbvia: os ofícios
(incluindo os misteres literários e teatrais) fornecem os ma­
teriais e técnicas da criação artística. Uma pessoa que é,
por intuição, um artista, não pode modelar um vaso ou
criar uma canção para uma ocasião festiva sem sentir as
possibilidades artísticas do projeto. Se o vaso é feio e a
canção banal, isso não se deve ao fato de ter o artista feito
o vaso para a loja de artigos baratos, ou a canção para
propósitos “mágicos” ; é porque quem os produziu não era
artista, mas uma pessoa vulgar, que achava “bonito” o
vaso feio ou “grandiosa” a canção banal, ou talvez não
chegava nem a pensar em valores perceptivos, contanto que
seu vaso tivesse capacidade para 350mm, ou que sua canção
fosse aceita pela comissão organizadora do programa.
Os ofícios, em suma, fornecem oportunidades para
fazer obras de arte; eles foram na realidade a escola do sen­
timento (o sentimento toma-se claro e consciente apenas
através de seus símbolos), como foram os incentivos para a
articulação e os primeiros formuladores da visão abstrativa.
Que a arte seja praticada a serviço da religião ou do entreteni­
mento, dentro de casa por mulheres que moldam cerâ­
mica ou que tecem, ou, apaixonadamente, em sótãos esque­
cidos com clarabóias vazantes, não faz diferença para seus
próprios objetivos, sua pureza, ou sua dignidade e impor­
tância.
Um outro problema da criação artística, que foi resol­
vido por Collingwood de um modo que é ou estranho
ou muito duvidoso, é o problema daquilo que ele chama
de “espécies” de obra — tragédia, comédia, elegia, soneto
— e, em outras artes, natureza morta ou paisagem, canção
ou quarteto de cordas, etc. Croce também alega que tais
“espécies” de obra não existem; mas aquilo o que o seu pro­
testo quer assinalar é que não existem padrões separados pe­
los quais se possa julgar diferentes “espécies” de pintura,
poesia e assim por diante, e que qualquer classificação é, por
conseguinte, do ponto de vista filosófico, trivial32. Isso é ver­
dade; mas a futilidade que há em rotular as obras de acordo
com seus temas, materiais, tamanho, ou seja lá o que for,
é uma questão completamente diversa da suposta capacidade

31. Collingwood, op. c i t p. 277.


32. Aesthetic, p. 35.
404 SENTIMENTO E FORMA

do artista em saber, desde o inicio, qual será o alcance e ca­


ráter geral de sna obra33.
Ao criar um símbolo emotivo, ou obra de arte, o
criador articula um importe vital que não lhe seria dado
imaginar à parte de sua expressão e, consequentemente,
não pode conhecer antes de expressá-la. Mas o ato de con­
cepção que dá partida a seu trabalho, quer venha repentina­
mente como inspiração ou somente depois de muita con­
fusão laboriosa e triste, é a visualização da “forma dominan­
te”, o sentimento fundamental a ser explorado e expressado.
Esta é "a obra de arte na cabeça do artista”. Tão logo conce­
be essa matriz da obra-a-ser ele sabe qual deve ser sua estru­
tura geral, suas proporções, seu grau de elaboração; uma tra­
gédia começa com um bosquejo de seu “ritmo trágico” parti­
cular, que determina seu peso, sua dicção, toda sua economia;
uma poesia lírica brota de um sentimento lírico total, não é
uma série de pequenos relances-sentimento que pode se
encordoar em uma peça ou romance sem uma intenção deter­
minada do artista. De fato, não é provável que um verdadei­
ro artista parta da resolução: “Quero escrever uma poesia
lírica”, mas, antes, da descoberta: “Tenho uma idéia para
uma poesia lírica”. Contudo, mesmo tais supostas marcas do
“verdadeiro artista” devem ser acolhidas com reservas. Um
pintor competente, aceitando uma encomenda de um retrato,
mural, ou qualquer outra “espécie” de trabalho, simplesmente
confia na possibilidade de que, ao contemplar os poderes do
meio ele terá um súbita introvisão de um sentimento que tal
meio pode expressar; e, trabalhando com ele, perseguirá e
aprenderá e apresentará esse sentimento. O que ele prova­
velmente dirá, entretanto, é que, se pensar por bastante tempo
no assunto encomendado, saberá “o que fazer com este”. Por
certo todo arquiteto tem de encontrar o sentimento a ex­
pressar em cada edifício que planeja. Ele não pode deixar
sua necessidade interior decidir se há de planejar uma casa
de campo ou uma catedral.
Tal oportunismo e complacência seriam absurdos se a
significação total de uma obra de arte tivesse de ser uma
emoção real experimentada por seu autor. Aqui, novamen­
te, a suposição de que a obra é um símbolo livre, e não
uma emoção (embora “filtrada” ou, nas palavras de Col-
lingwood, “desnaturada” ) , nem uma confissão de emoções,
salva o conceito de forma expressiva de levar a um “esteti-
cismo” que eliminaria, por princípio, algumas obras genuí-

33. Supra, Cap. 8 passim.


EXPRESSIVIDADE 405

nas — mesmo obras-primas — porque seria possível mos­


trar teoricamente que elas têm motivos “impuros” ou “não-
artísticos”34. O grande valor cognitivo dos símbolos é que
eles podem apresentar idéias que transcendem a experiência
passada do interpretante. Ora, a primeira pessoa a perce­
ber o importe vital de uma forma artística, as possibili­
dades emotivas de um elemento, o valor expressivo de uma
mudança em composição (talvez através de um pequeno
detalhe), é o próprio artista. Ele é a primeira pessoa, a
mais constante, e geralmente a mais competente, a perceber
sua obra. E ele é um artista não tanto em virtude de seus
próprios sentimentos, quanto de seu reconhecimento intuitivo
de formas simbólicas de sentimento, e sua tendência a pro­
jetar conhecimento emotivo em tais formas objetivas. Ao
manipular sua própria criação, ao compor um símbolo de
emoção humana, aprende, da realidade perceptível à sua
frente, possibilidades de experiência subjetiva que ele não
conhece em sua vida pessoal. Seu próprio alcance mental
e o crescimento e expansão de sua personalidade estão, por­
tanto, profundamente envolvidos em sua arte.
Dizer, porém, que ele não traduz suas próprias emo­
ções seria simplesmente tolice. Todo conhecimento repor­
ta-se à experiência; não podemos conhecer coisa alguma
que não tenha relação com a nossa experiência. Só que
essa relação pode ser mais complexa do que o supõe a
teoria de expressão pessoal direta.
Uma vez ouvi um excelente artista, que é também um
filósofo articulado, dizer: “Quando eu era pequeno —
acho que antes de freqüentar a escola — eu já sabia como
seria minha vida. Ê claro que eu não podia adivinhar co­
mo seriam minhas vicissitudes, em que situações econômicas
e em que eventos políticos eu me envolveria; mas, desde o
início de minha autoconsciência, eu sabia como teria de ser
qualquer coisa que me acontecesse
Qualquer coisa que um artista pode visualizar é
“como” a própria subjetividade dele, ou é, ao menos, rela­
cionada com suas maneiras de sentir. Normalmente tais co­
nexões ocorrem, para ele, através de seu conhecimento cres­
cente da arte de outras pessoas; isto é, por revelação sim­
bólica. A apreciação de uma arte nova é um desenvolvimen­
to das possibilidades emotivas da pessoas; e isso, por certo,
é uma expansão dos poderes inatos e não uma aceitação
intelectual da novidade com um espírito tolerante. A tole­
rância é outra questão, e cabe precisamene quando não

34. Cf. a discussão sobre “poesia pura”, Cap. XIV, p. 255 e ss.
406 SENTIMENTO E FORMA

compreendemos as expressões de outras pessoas, porque elas


são novas, exóticas ou muito individuais. A universalidade
de um artista cresce com seu crescente pensamento artístico,
sua liberdade de variar, construir e desenvolver formas, e a
descoberta progressiva do importe através de sua pró­
pria imaginação consolidada. Mesmo suas próprias obras
— que nascem de sua experiência interior — podem,
e felizmente o fazem, superar o âmbito de sua vida pessoal
e mostrar-lhe, em uma visão muito maior, como deve ser
qualquer coisa que possa acontecer à humanidade. O conhe­
cimento de sua própria subjetividade torna-se parte dessa
visão maior, embora esta permaneça no centro. O conheci­
mento que ele tem da vida vai até onde sua arte pode al­
cançar.
É o suficiente para o. artista e sua obra, a idéia e
sua forma, concepção e expressão; mas a obra que sai das
mãos de seu autor entra, assim, na vida de outras pessoas,
e essa circunstância levanta as seguintes perguntas: Por
quais padrões deverão elas medi-la? O que significa para elas?
Qual é a importância pública da obra?
Essas são as derradeiras questões em uma filosofia da
arte, porque pressupõem o conhecimento do símbolo de
arte em si — sua natureza, sua significação e seu valor de
verdade. Ê apenas no finál de um estudo sistemático, por­
tanto, que elas podem ser estudadas com algum proveito, na
expectativa de alguma resposta bem fundamentada.
2 1. A Obra e seu Símbolo

Até agora, consideramos a arte quase inteiramente a


partir do que se podería chamar de “o ponto de vista do
estúdio”, vendo a obra de arte como uma expressão da
“Idéia” de seu autor, isto é, como algo que toma forma à
medida em que ele articula uma visualização de realidades
que não podem ser adequadamente expressadas pela lin­
guagem discursiva. O que ele faz é um símbolo — prima­
riamente um símbolo para captar e manter sua própria ima­
ginação do sentimento organizado, os ritmos de vida, as
formas de emoção. Em um sentido, portanto, pode-se dizer
que o artista produz cada peça para si mesmo, para sua
própria satisfação.
Em outro sentido, contudo, ele a faz para outras
pessoas; essa é uma das diferenças entre arte e devaneios.
Uma obra de arte tem um público — ao menos um público
hipotético (por exemplo, quando um prisioneiro no exílio
compõe poesia em sua própria língua, sem saber se ela
jamais chegará a um ouvido que a compreenda); e sua in­
tenção social, que lhe é essencial, estabelece seu padrão de
significação. Mesmo uma pessoa que produza uma obra tão
pouco familiar, tão difícil e original que não alimenta es­
peranças de encontrar compreensão intuitiva por parte de
seus contemporâneos, trabalha com a convicção de que,
quando eles a tiverem contemplado suficientemente, a intui­
ção de sua significação virá. Dispõe, além do mais, de
408 SENTIMENTO E FORMA

outro artigo de fé, sem o qual provavelmente não pode-


ria trabalhar: que mesmo enquanto o público se retrai sob
o choque de sua apresentação confusa e alienadora, haverá
aqueles que percebem, de pronto, a forma orgânica do­
minante da obra como um todo, e suspeitam a grande visão
emotiva que seria evidente se não estivessem atordoados pe­
la excessiva novidade de sua projeção; que, conseqüente-
mente, os mais sérios e competentes juizes irão contemplá-la
por tempo suficiente para poder transcender seu caráter
“chocante” e achá-la lúcida.
A função pública do símbolo de arte impõe-lhe um
padrão de completa objetividade. É preciso que seja intei­
ramente dado; estando tudo quanto é deixado à imagina­
ção implícito e não faltante. Mas a implicação pode ser sutil.
É um grande erro pensar que um artista deve sempre ter em
mente o público particular que irá visitar a galeria ou
a sala de concertos ou a livraria onde sua obra irá apare­
cer pela primeira vez1. Ele trabalha para uma audiência
ideal. Mesmo quando pinta um mural, sabendo qual o pú­
blico que irá usar o edifício que abriga sua obra, ele pinta
para sua idealização desse público, ou pinta mal. Uma obra
dirigida ad hominem é tão insignificante e sem valor quanto
um argumento filosófico ad hominem; é o compromisso
psicológico que Mr. Collingwood relega ao “ofício” e con­
sidera como uma tentativa de estimular a emoção direta (o
que não é necessário; na verdade, em geral ela se torna con­
fusa demais para ser algo tão racional, mesmo na esfera da
não-arte). O espectador ideal é a medida da objetividade de
uma obra; pode ser que ele venha a existir realmente só
depois de muitos anos de carreira desta criação.
Como espectadores, tentando ir ao encontro do artista,
vemos sua obra não a partir “do ponto de vista do estúdio”,
mas do ponto de vista do amante da arte, “do ponto de
vista da audiência” ; e temos problemas próprios com refe­
rência a ela. Como saber se entendemos a mensagem de
seu criador? Como julgar o valor dessa peça determinada,
e classificá-la de modo adequado entre outras — de seu
criador e de outras pessoas? Se não gostamos dela, será cul­
pa nossa ou dele? Devemos aceitá-la mesmo se não a achar­
mos bela?
A maioria dessas perguntas não tem resposta direta,
porque elas não são perguntas diretas; estão baseadas em

1. Penso que seja esta a falácia na teoria de Brander Matthews


segundo a qual toda peça deve ser escrita para uma dada platéia em
um dado teatro, e que seus defeitos se devam geralmente ao fato
ela ter sido removida desse ambiente. Ver A Book About the Theater ,
Cap. I.
A OBRA E SEU PÜBLICO 409

idéias erradas que estão expressadas nos termos que em­


pregam. Frequentemente, quando uma pergunta é formula­
da de modo correto, não existe problema, ou sua solução
é simples. Comecemos pela primeira questão: Como sa­
ber se entendemos a mensagem do artista?
Uma vez que o símbolo de arte não é um discurso, a
palavra “mensagem” é enganosa. Uma mensagem é algo
comunicado. Mas, como observei no capítulo anterior, não
se pode dizer, com todo o rigor semântico, que uma obra
de arte efetue uma comunicação entre seu criador e os con­
temporâneos deste; sua função simbólica, embora tenha
muito em comum com a da linguagem (daí por que Croce
inclui a arte sob “lingüística”, e Collingwood declara que
a arte, não o discurso, merece “realmente” o nome de lin­
guagem), tem um contato mais direto com a intuição do
que o que mantemos através dos símbolos discursivos. O
estudo da expressão não-discursiva foi prejudicado e algo
confundido por um infeliz “modelo de trabalho”, que é o
comentário. O uso desse modelo obscureceu a característica
mais distintiva da arte — que sua significação não é
separável da forma (pintura, poema, dança, etc.) que ex­
pressa. Tem sido suposto, em geral, que, se uma obra de
arte expressa algo, de um modo simbólico e não sintomático,
então ela deve ser o comentário do autor sobre alguma
coisa. Um comentário, porém, sempre dirige nosso inte­
resse para algo diverso das palavras, gestos ou outros signos
que o transmitem; estes são meros signos, apontam para
um objeto considerado e transmitem alguma opinião a seu
respeito. Assim, surgem as perguntas na crítica de arte: so­
bre o que o artista comenta, o que diz ele, e como ele o diz ?
Acredito que tais sejam perguntas espúrias. Ele não está
dizendo coisa alguma, nem mesmo quanto à natureza do
sentimento; ele está mostrando. Está-nos mostrando a
aparência de sentimento, em uma projeção simbólica per­
ceptível; mas não está se referindo a um objeto público, tal
como uma “espécie” de sentimento conhecida em geral, ex­
terno à sua obra. É apenas até o ponto em que a obra é
objetiva que o sentimento que ela exibe torna-se público;
está sempre vinculado a seu símbolo. O efeito dessa
simbolização é oferecer ao espectador uma maneira de con­
ceber a emoção; e isso é algo mais elementar do que fazer
juízos a respeito.
O amante da arte que vê, ouve ou lê uma obra “do
ponto de vista da audiência” entra em uma re ação
diferente, não com o artista, mas com a obra. Ele responde
410 SENTIMENTO E FORMA

a ela como respondería a um símbolo “natural”2, simplesmen­


te encontrando sua significação, que provavelmente considera­
rá como sendo “o sentimento dentro dela”. Esse “sentimento”
(que pode ir desde uma pequena experiência passageira até o
padrão subjetivo de toda uma vida humana) não é “comu­
nicado”, mas revelado; a forma criada o “tem”, de modo
que a percepção do objeto virtual — digamos, do célebre
friso do Partenon — é ao mesmo tempo a percepção de seu
sentimento espantosamente integrado e intenso. Perguntar
se o escultor queria transmitir esse sentimento particular
é perguntar se ele fez o que queria fazer; e, em uma obra
tão inequivocamente bem sucedida, a pergunta é um tanto
tola.
Uma vez que paramos de nos preocupar com a tentativa
de entender o escultor e nos entregamos puramente à obra,
não parece que nos defrontamos com um símbolo em geral,
mas com um objeto de valor emocional peculiar. Existe uma
emoção real induzida pela sua contemplação deste, bem di­
versa do “sentimento dentro dela” ; essa emoção real, que tem
sido chamada de “a emoção estética”, não é expressa na obra,
mas pertence à pessoa que a percebe; é um efeito psicológico
da atividade artística desta, essencialmente o mesmo, quer o
objeto que prende sua atenção seja um frágil trecho de poesia,
quer uma obra de terrível impacto e muitas dissonâncias tor­
turantes como o Ulisses de Joyce, quer o sereno friso do Par­
tenon; a “emoção estética” é na realidade de um sentimento
difuso de jovialidade, inspirado diretamente pela percepção
de boa arte. É o “prazer” que se supõe que a arte dá.
“Prazer” é uma palavra indiscriminada; seu uso levou a in­
termináveis confusões, de modo que é melhor evitá-la comple­
tamente. Mas tantos artistas e bons criticos, desde os anti­
gos, passando por Goethe, Coleridge e Keats, até Santayana,
e Herbert Read3, usaram-na, que vale a pena notar seu
significado exato com respeito à arte; uma vez que não é
provável que tais homens tenham trabalhado (ou traba­
lhem) sob quaisquer das idéias errôneas originadas de seus
significados mais comuns. De minha parte, entretanto, acho
melhor evitar tanto “prazer” quanto “a emoção estética” .
De fato, não há muito a dizer sobre o sentimento em ques­
2, O tema dos “símbolos naturais" foi discutido no Cap. 14,
p. 245-248, e, com maior amplitude em Filosofia em Nova Chave,
Cap. 5; e, originalmente, por Casslrer, Die Philosophie der sym bolis-
chen Formem , vol. H, passim.
3. Ver especialmente George Santayana, The Sense of Beauty,
em que beleza é definida como “prazer objetivado”, e Herbert Read,
The Meaning of Art. (1931), p. 18: a arte é definida de modo
mais simples e mais usual como uma tentativa de criar formas agra*
dáveis” .
A OBRA E SEU PÚBLICO 411

tão, exceto que é um índice da boa arte. Outras coisas


além da arte podem evocá-lo, se e somente se elas excitam
a mesma atividade intuitiva que a arte excita.
A percepção direta de formas emocionais pode ocorrer
quando olhamos para a natureza com “os olhos do pintor”,
pensamos poeticamente em experiências reais, encontramos
um motivo de dança nas evoluções dos pássaros, etc. —
isto é, quando algo nos atinge como sendo belo. Um objeto
percebido dessa maneira adquire o mesmo ar de ilusão apre­
sentado por um templo ou um tecido, que fisicamente são tão
reais quanto pássaros e montanhas; é por isso que os artis­
tas podem derivar temas e mais temas, inexaurivelmente, da
natureza. Mas os objetos naturais tomam-se expressivos
apenas para a imaginação artística, que descobre suas for­
mas. Uma obra de arte é intrinsecamente expressiva;
é destinada a abstrair e apresentar formas para a percepção
— formas de vida e sentimento, atividade, sofrimento, indi­
vidualidade — por meio das quais concebemos essas reali­
dades, as quais, de outro modo, podemos apenas sofrer ce­
gamente .
Toda boa obra de arte é bela; no momento em que
a achamos assim, apreendemos sua expressividade, e até
que o façamos, não a teremos visto como boa arte, embora
possamos ter amplas razões intelectuais para acreditar que
o é. Palavras belas podem conter elementos que, tomados
isoladamente, sejam horríveis; as obscenidades que Ezra
Pound empilha umas sobre outras nos Cantos XIV e XV são
revoltantes, mas sua função no poema é a de uma violenta
dissonância. Aí está uma criação do Inferno sem que ele seja
nomeado (o que ocorre apenas em retrospecto, no Canto
XVI, e, ali, apenas uma vez) e sem uma única menção de
tortura, punição, fogo, ou qualquer outra imagem tradicio­
nal. A passagem que se segue a “Andiamo!”, embora em
si mesma não seja nada prazenteira, alcança a sensação de
libertação muito antes que o pesadelo ter realmente nos
deixado; as palavras deixar ir. Tais elementos são a força
da obra, que deve ser grande para contê-los e transfigurá-los.
A forma emergente, o todo, está vivo e, portanto, é belo,
como as coisas feias podem sê-lo — como as gárgulas e as
máscaras africanas são temíveis, e as tragédias gregas de
incesto e assassinato são belas. A beleza não é idêntica ao
normal, e por certo não ao encanto e à atração sensoriais, em­
bora todas essas propriedades possam entrar em sua com­
posição. A beleza é forma expressiva.
Toda a qualificação que se deve ter para compreender
a arte é ser responsivo. Isso é, fundamentalmente, um dom
412 SENTIMENTO E FORMA

natural, relacionado com o talento criativo, não sendo, con­


tudo, a mesma coisa; tal como o talento, lá onde existir em
qualquer grau ele pode ser elevado pela experiência ou
reduzido por circunstâncias adversas. Uma vez que é intui­
tivo, não pode ser ensinado; mas o livre exercício da intuição
artística depende frequentemente da possibilidade de limpar
a mente dos preconceitos intelectuais e das idéias falsas que
inibem a responsividade natural das pessoas. Se, por exemplo,
um leitor de poesia acha que não “compreende” um poema
a menos que possa parafraseá-lo em prosa, e que as opiniões
verdadeiras ou falsas do poeta são o que torna o poema
bom ou mau, ele o lerá como um trecho de discurso e é
provável que sua percepção da forma poética e do sentimen­
to poético seja frustrada. É possível, naturalmente, que seja
bastante sensível e responsivo ,à literatura, mas qualquer coisa
que ele identificar como “poesia” parecer-lhe-á incompreensí­
vel ou, então, falaciosa. Sua atitude intelectual, nutrida
por um convicção teórica, constitui um obstáculo a
sua receptividade. De modo semelhante, se o treinamento
acadêmico nos induziu a pensar em pinturas fundamental­
mente como exemplos de escolas, períodos ou das classes
vituperadas por Croce ( “paisagens”, “retratos”, “interiores”,
etc.), tendemos a pensar sobre a pintura, reunindo rapida­
mente todos os dados disponíveis para juízos intelectuais,
e assim, fechando e atravancando os caminhos da resposta
intuitiva.
A alegria de uma experiência estética direta4 indica
a que profundidade da mentalidade humana essa experiên­
cia chega. Pode-se dizer verdadeiramente que uma obra de
arte, ou qualquer coisa que nos afeta como o faz a arte,
“provoca algo em nós”, porém não no sentido usual —
dar-nos emoções e estados de ânimo — que é negado, e
com razão, pelos estetas. O que ela provoca em nós é uma
formulação de nossas concepções de sentimento e nossas con­
cepções da realidade visual, factual e audível, em conjunto.
Ela nos dá formas de imaginação e formas de sentimento,
inseparavelmente; quer dizer, clarifica e organiza a própra
intuição. É por isso que ela tem a força de uma revelação
e inspira um sentimento de profunda satisfação intelectual,
embora não suscite qualquer trabalho intelectual cons­
4. John Dewey, em A rt as Experience, faz uma distinção entre
a atitude “artística” e a experiência do “estético”; a divisão dele corres­
ponde, acho, ao que chamei de “ponto de vista do estúdio” e “ponto
de vista da audiência” respectivamente — imaginação criativa e res-
ponslvidade. Na realidade, é claro, movemo-nos livremente de uma
atitude para a outra; toda pessoa tem alguma Imaginação criativa e,
por certo, todo artista deve perceber e fruir arte, se não por outro
motivo, pelo menos para ser seu primeiro púbUco.
A OBRA E SEU PÜBLICO 413

ciente (raciocínio). A intuição estética apreende a forma


maior e, portanto, a significação principal, imediata­
mente; não há necessidade de trabalhar através de idéias
menores e implicações cerradas em primeiro lugar sem uma
visão do todo, como no raciocínio discursivo, onde a intui­
ção total de relacionamento vem na conclusão, como um
prêmio. Na arte, é o impacto do todo, a revelação imediata
da significação vital, que age como chamariz psicológico
de uma longa contemplação.
Em uma obra que requer um extensão apreciável de
tempo para a completa percepção física, tal como um ro­
mance, uma peça musical, uma dança ou uma peça, a primei­
ra tarefa do autor é deixar implícito, desde o início, o alcan­
ce e a significação vital do todo. Se a imagem que ele tem
da obra é clara, éssa tarefa geralmente é desempenhada in­
conscientemente; e o “chamariz de sentimento” (para tomar
emprestada uma frase de Whitehead) é estabelecido quase
imediatamente. É verdade, portanto, que se deve ler ou
testemunhar uma obra em sua totalidade antes de poder-se
julgá-la, mas não antes de desfrutá-la.
O exemplo conspícuo do que se pode chamar de “an­
tecipação intuitiva” é a excitação que se apossa de um
verdadeiro amante de teatro quando a cortina sobe (ou,
algumas vezes, mesmo antes). Essa excitação tem sido
observada tantas vezes que algumas pessoas procuraram
uma explicação para o fato fora da esfera da experiência da
arte propriamente dita, e tomaram-na como um vestígio da
emoção religosa que estava supostamente associada com re­
presentações dramáticas em tempos passados5. Mas, para o
aficionado instintivo do teatro, a experiência poética imi­
nente parece ser suficiente justificar sua antecipação sem qual­
quer referência atávica à religião primitiva ou a interesses
tribais. Charles Morgan, que evidentemente a conhece mui­
to bem, encontra sua origem unicamente na função artística
do drama.
Todo frequentador dc teatro [escreve ele, no artigo já citado
(p. 322)] torna-se cônscio de vez em quando, da existência no teatro
de uma suprema unidade, um poder misterioso, uma ilusão transcen­
dente e urgente que, por assim dizer, flutua acima da ação do palco
e acima do espectador,. . . dotando-o de uma visão, uma sensação de
transi ação e êxtase, estranhas ao conhecimento que ele comumente
tem de si mesmo. A esperança dessa ilusão é a excitação, e expe-
rimentá-la é a recompensa mais alta da freqüentação do teatro. ( . . . )
Repetidas vezes ficamos desapontados. ( . . . ) Mas, de vez em quando,
a esperança de um freqüentador persistente, ou parte dela, é realizada.
A ordem de sua experiência é sempre a mesma — um choque,

5. Cf. Cap. 17, p. 333.


4J4 SENTIMENTO E FORMA

e depois do choque uma quietude interior, e dessa quietude uma


influência emergente que o transmuda. Transmuda a ele — não
a suas opiniões. Esse grande impacto não é nem uma persuasão
do intelecto, nem uma sedução dos sentidos. ( . . . ) É o movi­
mento envolvente do drama inteiro sobre a alma do homem. Ren­
demos-nos e somos modifiçados^.
Em uma passagem posterior ele explica — acho que
corretamente — o que confere esse extraordinário valor a
uma obra de arte que realmente nos comove, no sentido
estético, e nâo no sentido comum:
A arte dramática t em. . . uma dupla função — primeira, apa­
ziguar a mente preocupada, esvaziá-la da trivialidade, torná-la recep­
tiva e meditativa; depois, fecundá-la. A ilusão é o poder fe-
cundante. É aquela força espiritual na arte dramática que fecunda
os silêncios do espectador [a referência aqui é ao “longo silêncio esté­
ril” ao pé do fogo, de Wordsworth], permitindo-lhe imaginar,
perceber, mesmo tornar-se, aquilo que por si mesmo ele não podia
tornar-se ou perceber ou imaginar?.
Aquilo que Morgan diz do teatro pode ser dito de
qualquer obra que se nos apresenta como uma experiência
estética de envergadura: ela efetua uma revelação de nossa
vida interior. Mas faz mais do que isso — dá forma à
nossa imagem da realidade externa de acordo com as formas
rítmicas de vida e sensibilidade, fecundando assim o mundo
com valor estético. Como observou Kant na Crítica do
Juízo, a beleza da natureza é sua conformidade com o nosso
entendimento, e essa conformidade é algo imposto a ela ori­
ginalmente por nossa intuição678.
A vida como a vemos, agimos e sentimos é tanto pro­
duto da arte que conhecemos quanto da língua (ou línguas)
que enformaram o nosso pensamento na infância. Guillaume
6. “The Nature of Dramatic Illusion", p. 63-64.
7. 7bt£., p. 70. Uma observação multo semelhante é feita no
pequeno livro informal, mas valioso, de C. E. Montague, A W rite fs
Notes on Ms Trade : “No clímax de uma tragédia, parece como se o
homem, ou mulher, médio pudesBe compreender quase tudo —
mesmo coisas que podem tornar-se novamente Incompreensíveis para
ele no dia seguinte, quanto tentar compreender como as compreendeu”
(p. 237). Mais adiante, observa que parte da emoção de ler ou
ver uma grande tragédia é uma exultação “com nosso próprio poder,
estranhamente aumentado, de sermos comovidos sem ficarmos entor­
pecidos, e de ver, como parece, diretamente dentro do coração incan­
descente da vida com uma clareza e calma não atingíveis em quase
nenhum outro estado de ânimo” (p. 237). Só que, acho eu, que
não é o estado de ânimo que torna viável tal tnsight, mas o meio;
é Inatingível por qualquer outro símbolo. Ele está, além do mais, bem
cônsclo do crescimento da consciência, o esclarecimento, que a expe­
riência estética inicia: “Quando uma tragédia perfeita se apodera de
nossa mente, por um momento parece que se está com mão próxima de
alguma chave para toda essa região do enigma. Não se pode segurar
a chave, mas, por aqueles momentos à beira do transe, tudo correu
quase claro na mente; quando a experiência termina, a gente tem cer­
teza de que o que se teve foi uma visão, não uma ilusão" (p. 238).
8. Critique of Judgm ent , Introdução, VIII; na tradução de Mere-
dith (Oxford, 1911), p. 34 do texto.
A OBRA E SEU PÚBLICO 415

Apollinaire, em uma pequena monografia sobre o cubismo


(a primeira parte grandemente viciada pelo uso irresponsá­
vel de termos tomados emprestados, "a quarta dimensão”,
“infinito”, e tc.), observou esse fato no efeito exercido por
certos grandes pintores na concepção visual popular.
Sem poetas, [disse] sem artistas. . . a ordem que encontramos
na natureza, e que é apenas um efeito da arte, desaparecería ime-
diatamente.

E, mais adiante:
Criar a ilusão901 do típico é o papel social e a finalidade pecu­
liar da arte. Só Deus sabe como se falou mal das pinturas de
Renoir e Monet! Muito bemí Mas é preciso só relancear sobre
algumas fotografias da época para ver como as pessoas e coisas
conformavam-se bem de perto aos retratos que esses grandes mes­
tres fizeram deles.
Uma vez que, de todos os produtos plásticos de uma época,
as obras de arte tem máxima energia, essa ilusão parece-me bastante
natural. A energia da arte impõe-se aos homens e toma-se para
eles o padrão plástico da. época. ( . . . ) Todas as obras artísticas
de uma época terminam assemelhando-se às obras de maior energia,
às mais expressivas e às mais típicas do período. As bonecas perten­
cem à arte popular; contudo, elas sempre parecem ser inspiradas pela
grande arte do mesmo período*9.

Como a pintura afeta a imaginação visual, a poesia


(no sentido mais amplo, incluindo o verso, a prosa, a ficção
e o drama) afeta a concepção que a gente tem dos eventos.
Há um trecho de Sons and Lover, de D . H . Lawrence, que
apresenta com grande autenticidade a necessidade que uma
pessoa tem de compor eventos horríveis a fim de tomá-los
definidos, emocionalmente significativos, antes de enfrentá-
los pratica e moralmente. A situação que é o contexto desse
trecho foi desenvolvida gradualmente: Morei, um mineiro
que está se convertendo em um bêbado inveterado, torna-se
cada vez mais ofensivo e violento em relação a sua esposa
grávida e fustigada pelas dificuldades, até que, no momento
em questão, ele acaba por agarrá-la brutalmente, pela pri­
meira vez, e a expulsa de casa. Na narrativa, lê-se
Por um instante, ela não conseguiu controlar sua consciência;
mecanicamente repassou a última cena, depois reviu de novo
certas frases, certos movimentos que voltavam como ferro incan­
descente em sua alma; e a cada vez ela representava novamente a
hora que tinha passado, a cada vez o ferro atingia os mesmos
pontos, até que a marca ficasse queimada nela, e a dor se extin-
guisse, e finalmente ela voltou a si.

9. No sentido de delusfto — causa de um erro — não no sentido de


uma aparência criada.
10. The Cubist Painters . Aesthetic M editations (traduzido por L.
Abel), p. 13.
416 SENTIMENTO E FORMA

A vida é incoerente a menos que lhe demos forma.


Geralmente, o processo de formular nossas próprias situações
e nossa própria biografia não é tão consciente quanto a
luta da Sra. Morei para conceber o ultraje que havia sofri­
do; mas segue o mesmo padrão — nós “o colocamos em
palavras”, contamo-lo a nós mesmos, compomo-lo em ter­
mos de “cenas”, de modo que em nossas mentes possamos
representar todos os seus momentos importantes. A base
desse trabalho de imaginação é a arte poética que conhece­
mos, desde as primeiras quadrinhas infantis até o mais pro­
fundo, ou sofisticado, ou arrebatador drama ou ficção11.
Aquilo que Apollinaire observou sobre a influência de Re-
noir e Monet na visualização das pessoas pode também ser
dito sobre a influência de Wordsworth no vocabulário de­
las e de Balzac no senso de.ironia.
Acima de tudo, entretanto, a arte penetra profunda­
mente na vida pessoal porque, ao dar forma ao mundo, ela
articula a natureza humana: sensibilidade, energia, paixão
e mortalidade. Mais do que qualquer outra coisa na expe­
riência, as artes moldam nossa vida real de sentimento.
Essa influência criativa é uma relação mais importante en­
tre arte e vida contemporânea do que o fato de os mo­
tivos serem derivados do ambiente do artista1112. A arte, por
certo, está enraizada na experiência; mas a experiência, por
sua vez, é construída na memória e preformada na imagina­
ção, de acordo com as intuições de artistas vigorosos, fre­
quentemente mortos de há muito (leva tempo para que uma
influência atinja os estratos mais profundos da mentalidade,
e o que aprendemos na infância, para nunca mais perder,
sempre se origina de uma época anterior), e mais raramen­
te de profetas de nossa própria geração13.
O treinamento artístico é, portanto, a educação do
sentimento, da mesma maneira como nossa educação esco­
lar normal em matérias factuais e habilidades lógicas, tais
como o “cálculo” matemático ou a simples argumentação

11. Uma criancinha que conheço uma vez contou, a mesa do café,
um sonho que ela tivera durante a noite — evidentemente um sonho
paradisíaco vivido — e terminou com a reflexão extática: “Era tão mara­
vilhoso — a grama emhaixo das árvores, e tantos, tantos cachorrinhos na
grama — e tudo em Technlcolorl”
12. André Malraux, falando das esculturas da catedral de Rheims,
diz: “O homem do século XIII encontrava tanto sua ordem interior
quanto seu paradigma no mundo exterior”. {The Creative A ct , p. 81.)
13. Cf. a observação de Owen Barfleld, em Poetic Diction, p. 143:
4,0 mof de Oscar Wilde, — de que os homens são feitos pelos livros,
mais do que os livros pelos homens — por certo não era puro contra-senso,
existe um sentido multo real, por mais humilhante que pareça, em que
aquilo que geralmente chamamos de nossos sentimentos s&o realmente
o ‘significado* de Shakespeare’’. Também Irwln Edman, diz, em Arts
and lhe Man, p. 29: “Para muitas pessoas, é a literatura, mais do que
a vida, que lhes ensina quais são suas emoções nativas”.
A OBRA E SEU PÚBLICO 417

(os princípios dificilmente chegam a ser explicados), é a


educação do pensamento. Poucas pessoas percebem que a
verdadeira educação da emoção não é o “condicionamento”
efetuado pela aprovação e desaprovação social, mas o con­
tato tácito, pessoal, iluminador, com símbolos de senti­
mento. A educação da arte, portanto, é negligenciada, dei­
xada ao acaso, ou considerada como um verniz cultural.,
Pessoas tão preocupadas com o esclarecimento científico de
seus filhos que mantém Grimm fora da biblioteca e Papai
Noel fora da chaminé, permitem que a arte das mais baratas,
o pior do pior canto, a ficção sentimental mais revoltante
sejam impingidos à mente das crianças o dia inteiro e todos
os dias, durante a infância. Se as fileiras de jovens crescem
em confusão e covardia emocional, os sociólogos procuram
em condições econômicas ou relações familiais a causa
dessa deplorável “fraqueza humana”, mas não na influên­
cia ubíqua da arte corrupta, que mergulha a mente média em
um sentimentalismo raso que arruina quaisquer germes de
sentimento verdadeiro que poderíam se desenvolver nele.
Só um ocasional devoto das artes vê a devastação, como, por
exemplo, Percy Buck, que observou, há quase trinta anos:
Parece haver completa indiferença, pelo menos, na Inglaterra,. . .
se o lado emocional de um homem é desenvolvido de alguma maneira,
em geral. A única convicção que tem um inglês sobre a emoção é que
se deve aprender, o mais cedo possível, a suprimi-la inteiramente.
o que o exercício deve ser para o lado físico de nossas
vidas, a religião para o estudo moral e o nosso lado intelectual, isso
pode a arte ser, e nenhuma outra coisa exceto a arte, para o nosso lado
emocional^.
E por fim:
Todo planejamento e projeto, o que quer dizer toda estrutu­
ra, é a apresentação de sentimento em termos de entendimento 15.

A arte não afeta a viabilidade da vida tanto quanto afeta


sua qualidade; a esta, entretanto, afeta profundamente. Nesse
sentido ela é afim à religião, que também, ao menos
em sua fase primitiva, vigorosa, espontânea, define e desen­
volve sentimentos humanos. Quando a imaginação religiosa
é a força dominante na sociedade, a arte dificilmente é sepa­
rável dela; pois uma grande abundância de emoções reais
acompanha a experiência religiosa, e mentes intatas, sem
mácula, lutam alegremente por sua expressão objetiva, e são
levadas além da ocasião que desencadeou seus esforços a fim
de perseguir as mais remotas possibilidades das expressões145

14. Percy C. Buck, The Scope of Music, p. 52.


15. Ibid.j p. 76
418 SENTIMENTO E FORMA

que encontraram. Em uma época em que se diz que a


arte serve à religião, a religião na realidade está alimenta*
do a arte. O que for sagrado para as pessoas inspira a con­
cepção artística.
Quando as artes “libertaram-se”, como se diz, da religião,
elas simplesmente exauriram a consciência religiosa e alimen-
taram-se de outras fontes. Elas jamais estiveram vinculadas
ao ritual ou à moral ou ao mito sacro, mas floresceram livre­
mente em esferas sacras enquanto o espírito humano se con­
centrava nelas. No momento em que a religião se torna
prosaica ou perfunctória, a arte aparece em outro lugar. Hoje
em dia, a Igreja tolera pinturas e esculturas, literalmente más,
e musica banal, na crença de que Virgens adocicadas e har­
monias de salão de barbeiro estão “mais próximas do povo”
do que as “distantes” e visionárias Madonas, às quais gran­
des artistas deram (e ainda dão) suas almas e habilidades. E
assim são elas, esses lembretes sentimentais de idéias pias;
acham-se tão próximas quanto o gatinho de porcelana e a
boneca de pernas longas, e tudo o que as diferencia de tais
objetos mundanôs é seu sentido literal. Corrompem a consciên­
cia religiosa que é desenvolvida em sua imagem e, mesmo en­
quanto ilustram os ensinamentos da Igreja, degradam tais ensi­
namentos a um nível de sentimento mundano. Música ruim,
estátuas e pinturas ruins são irreligiosas, porque tudo o que
é corrupto é irreligioso. A indiferença face à arte é o signo
mais sério da decadência de qualquer instituição; nada evi­
dencia sua velhice de modo mais eloqüente do que o fato
de que a arte, sob o seu patrocínio, toma-se literal e auto-
imitativa.
Então a arte mais impressionante, mais vivida, abandona
o contexto religioso e alimenta-se de sentimento irrestrito
em algum outro lugar. Não pode fazer outra coisa; mas,
ao fazê-lo, perde sua esfera tradicional de influência, a
solene, festiva populaça, e corre o risco de jamais ultrapassar
o estúdio onde foi criada. Então os artistas falam heroica­
mente de “arte pela arte”, como se a arte pudesse ter
outros objetivos exceto os artísticos. O problema é simples­
mente que, para a pessoa média, a obra deles não tem mais um
lugar natural de exibição. Uns poucos ricos podem ser pro­
prietários de pinturas e estátuas; mas a grande e importante
arte, sempre foi pública, e deve sê-lo. O museu, portanto, vem
à existência.
Os problemas de exposição em um museu são muitos, e
a eficácia de uma obra é com frequência gravemente prejudi­
cada pela presença de outras peça ao seu redor. André
Malraux apontou esse perigo em seu Museu Imaginário,
A OBRA E SEU PÚBLICO 419

em que elogiava, como um remédio promissor, a técnica


cada vez melhor de reprodução, que dá aos apreciadores
da arte o álbum, uma coleção particular de obras-primas.
Isso, por sua vez, tem suas desvantagens, e elas são muitas;
mas a perda real que a arte sofreu com sua secularização é
comum ao museu real e ao “museu imaginário” das ilustra­
ções impressas: as pessoas não vêem, natural e constante­
mente, obras de arte. Ir a um museu não é uma ocorrência
normal, regular, na vida média, como ir à Igreja ou ao Tem­
plo. O álbum fica numa estante de onde é retirado ocasio­
nalmente para ser olhado; seus tesouros não avultam diante de
nós em sua grandeza, como sucede com altares e janelas
esplêndidas e estátuas. As artes plásticas tornaram-se estra­
nhas a seu público.
Todas, isto é, menos uma, que floresce hoje, talvez com
maior vigor nos Estados Unidos: a arquitetura. Todo mundo
vê grandes edifícios, pontes, viadutos, elevadores de cereais,
chaminés, navios e, consciente ou inconscientemente, sente o
impacto deles em sua vida emocional e em sua Weltanschau-
ung. É essa a educação do “olho interior”, da imaginação
criativa que guia a percepção.
Música, dança e drama, entrementes, puderam naturali-
zar-se inteiramente num reino que parece, à primeira vista,
o exato oposto do sacro recinto onde nasceram; encon­
traram aceitação como entretenimento. Mas, como já disse
antes, o entretenimento não é essencialmente frívolo, como a
diversão. Esta é um estímulo temporário, o “incremento” de
sentimento vital que normalmente é expressado no riso. £
em geral agradável e, algumas vezes, é procurada, errada-
mente, como uma cura para a depressão. O entretenimento,
porém, é qualquer atividade sem objetivo prático direto, qual­
quer coisa a que as pessoas se dedicam simplesmente porque
esta lhes interessa. Interesse, não diversão nem mesmo prazer,
é a palavra chave. Conversa social, bate-papo à mesa, é
entretenimento. Pode ser o humor grosseiro do salão de fumar,
a tagarelice do coquetel, a célebre conversa de café da
manhã de Oliver Wendell Holmes ou a mais célebre conversa
à mesa de Mohammed. O entretenimento não é, em si, uma
categoria de valor. Ele inclui tanto o passatempo, quanto a
satisfação de necessidades mentais imperiosas; mas, trivial ou
sério, é sempre trabalho da mente. Whitehead definiu-o como
“o que as pessoas fazem com sua liberdade” 16.

16. “Liberdade1’ é uma palavra melhor do que o termo mais co­


mum “lazer”, porque “lazer” conota relaxagão, enquanto que a livre
atividade é muitas vezes o máximo esforço de que nossas mentes sáo
capazes.
420 SENTIMENTO E FORMA

O grau de refinamento dos indivíduos pode ser aferido


por aquilo que os diverte (George Meredith sustentava que
os alemães eram grosseiros demais para divertirem-se com a
comédia); mas sua energia mental e força emocional mos-
tra-se naquilo que os interessa — a seriedade e dificuldade
a que pode chegar seu entretenimento, sem transformar-se em
“trabalho” (como os grandes livros que são lidos apenas na
escola, ou os concertos e peças a que se “deve” ir por razões
educacionais). As tragédias de Shakespeare foram escritas
para um teatro de entretenimento em que as pessoas procu­
ravam não a diversão, mas a alegria da experiência artística,
o teatro sobrepujante.
A arte está tão adequadamente à vontade no entreteni­
mento, quanto na religião. Não é necessário interpretar
Hamlet como o Édipo moderno, ou o palco elisabetano à luz
do teatro coral ateniense, para compreender o poder do teatro
trágico secular. Mas a semelhança com o ritual antigo que
Francis Fergusson e alguns outros estudiosos17 professam des­
cobrir na tragédia shakespeariana, e mesmo na de Ibsen, indi­
ca efetivamente, acredito, o propósito artístico comum a todas
essas obras — a visualização da existência individual como
um todo, e de seu desenvolvimento completo até os limites
de ação e paixão. Essa visualização, apresentada primeira­
mente na arte sacra, é uma necessidade para as pessoas que
atingiram uma consciência amadurecida de si mesmos; uma
vez que desponte em nós o senso da tragédia, somos persegui­
dos por ele, e ansiamos por vê-lo clarificado e composto. Pou­
cas pessoas sabem por que a tragédia é uma fonte de profunda
satisfação; elas inventam todo tipo de explanação psicológica,
desde a catarse emocional até uma sensação de superioridade,
porque as desgraças do herói não são as nossas próprias 18.
Mas a fonte real é a alegria da revelação, a visão de um mun­
do totalmente significante, da vida a despender-se a si mesma
e a morte como a assinatura de sua completação. É simples­
mente a alegria da grande arte, que é a percepção da forma
criada de maneira totalmente expressiva, isto é, bela.
Tragédia, música difícil ou irresistível, a dança apaixo-
nadamente séria de alguns balés modernos têm seu lugar no
“entretenimento” porque nós nos entregamos à sua contem­
plação espontânea, impulsivamente, sem qualquer outra in­
tenção do que a de ouvir, ver e ficar cativado. Nós os procu­
ramos, porém, por aquela necessidade de arte que costumava
ser aplacada de modo mais seguro e mais freqüente pelos
ofícios e objetos sacros.
17. Cr. Cap. 17, p. 332-333.
18. Lucrécio subscreveu essa teoria, na passagem Inicial de De Rerurn
Natura.
A OBRA E SEU PÚBLICO 421

A mesma necessidade de arte, e não um desejo indiscri­


minado de diversão, é satisfeita pela comédia, música alegre,
coreografia humorística; a solenidade não é necessária para
a expressividade — nem mesmo para a grandeza. O critério
da boa arte é seu poder de comandar nossa contemplação e
revelar um sentimento que reconhecemos como real, com o
mesmo “clique de reconhecimento” pelo qual um artista sabe
que uma forma é verdadeira. Todas as formas de sentimento
são importantes, e é preciso tornar o alegre pulsar da vida
quase tão manifesto quanto as paixões mais complexas, se é
que queremos dar valor a ele.
Uma das perguntas clássicas da sala de aula, e das
pessoas que lêem livros para “aprender sobre arte”, é: “O que
faz com que uma obra de arte seja melhor do que outra?”
Acho que essa é uma pergunta errada. As obras de arte geral­
mente não são comparáveis 19. Apenas júris de premiação
têm de avaliá-las com referência a algum padrão, que é inevi­
tavelmente arbitrário e em muitos casos inaplicável. Um
júri competente não chega nem a definir um padrão. Se
consistir de pessoas que desenvolveram seus poderes de per­
cepção por uma longa prática com a espécie de arte (isto é,
poesia, escultura, música, etc.) na qual terão de pronunciar
seus julgamentos, a intuição orientará o veredicto. Haverá
desacordos — não porque obras boas e más não possam ser
distinguidas, mas porque, dentre as obras bem sucedidas, não
há um princípio seguro de seleção. Fatores pessoais ou sociais
usualmente inclinam a balança; as “gradações” são triviais.
Isso não quer dizer, contudo, que as obras de arte não
sejam passíveis de crítica. A apreciação — tenha a obra im­
pressionado ou deixado frio — vem em primeiro lugar; mas
o reconhecimento de como a ilusão foi feita e organizada e de
como a sensação da significação é dada imediatamente por um
exemplo vigoroso, embora o crítico em si possa ficar confuso
por seu sentimento estranho — esse reconhecimento é um
produto da análise, efetuada pelo raciocínio discursivo a res­
peito da obra e seus efeitos. Tais descobertas, entretanto, não
são critérios de excelência; são explicações desta ou, inversa­
mente, do fracasso. No momento em que são generalizadas e

19. Exceções a essa regra podem ser encontradas, por exemplo


entre as várias obras de um autor, se ele usa a mesma idéia principal
em um certo número de peças. Os poemas “To Daffodils” e “To Blos-
soms”, de Herrick, são essencialmente o mesmo; o último provavelmente
seria mais famoso do que é, não fosse o primeiro um trátamei» bo
melhor realizado da mesma Idéia poética. Bõcklin pintou quatro vi-rsóes
de seu “Toteninsel"; essas quatro pinturas são obras comparáveis.
Malraux, em A Arte Criativa , compara as quatro versões do “Cristo
Expulsando os Vendilhões do Templo” de EI Greco, com multo proveito.
422 SENTIMENTO E FORMA

usadas como medidas de realização, tornam-se nocivas. No


caso, por exemplo, de um poema que não medeia qualquer
intuição, isto é, de um mau poema, um pequeno estudo pode
remeter sua falta de “vida” ao uso de frases feitas, onde a
presença delas como frases familiares não serve qualquer pro­
pósito artístico. O poema sugere outros poemas, e não os in­
corpora; é sintético, não tem corpo — não possui estrutura
orgânica — próprio. Mas considerar a presença de frases em­
prestadas ou, efetivamente, de quaisquer materiais por
desgastados que estejam, como, em si, um critério de imper­
feição é perigoso 20. Os materiais não são bons nem maus,
nem fortes ou fracos. O juízo, portanto, deve ser guiado pelos
resultados virtuais, o êxito ou malogro do artista, o que é
conhecido intuitivamente óu não é conhecido em absoluto.
Nenhuma teoria pode estabelecer critérios de expressivi­
dade (isto é, padrões de beleza) 21. Se pudesse, poderia­
mos aprender a fazer poesia ou a pintar quadros segundo
regras. Porém, em virtude de cada artista ter de descobrir o
meio de expressar sua própria “Idéia”, ele só pode ser auxilia­
do pela crítica, não pelo preceito ou pelo exemplo; e a crítica,
se for para desenvolver os poderes do artista, deve basear-se
no sucesso parcial dele — isto é, o crítico deve ver a forma
dominante da obra do discípulo, porque essa é a medida do
certo e do errado na obra. Onde não há matriz de sentimento
visualizado a ser articulada, não há problema técnico.
Talento é essencialmente a habilidade inata de mani­
pular idéias tais como as que se tem, a fim de alcançar efeitos
desejados. Parece estar intimamente ligado ao sentimento do
corpo, sensitividade, controle muscular, memória verbal ou
tonal, bem como ao grande requisito mental, a responsivi-
dade estética. Por causa de suas complexas alianças ora
com um, ora com outro fator casual no organismo humano,
tende a ser especializado e talvez hereditário, e a ocorrer
em todas as gradações possíveis, como todos sabem. A pessoa
comum possui um pouco de talento para cantar ou tocar mú­
sica, um pouco de talento para escrever, representar, dançar,
20. Cf. a discussão dos comentários de TlIIyard sobre a Stabcit
Mater, no Cap. 13. p. 238.
21. David Prall, em sua Aesthetic Analysis, apontou todo tipo de
dificuldades filosóficas semeadas no caminho de uma estética que podería
fornecer critérios intelectuais para Julgar “obras-primas” artísticas, mas,
aparentemente, não Julgou a exigência em sl pouco razoável (ver p. 26:
*'Se quisermos procurar um critério seguro para obras-primas, apenas
uma estética sólida servirá para no-lo-dar”) ; ele só não tinha espe­
ranças em sua praticabilidade. Contudo, mais tarde, como que por
um insight súbito, ele diz: “A diferença entre perceber claramente e
compreender dlstlntamente não é a grande diferença que algumas vezes
somos levados a supor. E o fato mais óbvio quanto ao conhecimento de
obras de arte, é que a apreensão direta é o conhecimento final ade­
quado que queremos” (p. 30). Que outro critério, então, deveria for­
necer “uma estética sadia”?
A OBRA E SEU PÚBLICO 423

sabe desenhar um pouco, plasmar uma escultura rudimentar


(ao menos um boneco de neve), etc. A falta total de algum
talento — inabilidade completa para cantar uma toada, por
exemplo, ou para tomar parte em uma quadrilha — é bem
pouco comum para que chame a atenção. E o que é conhe­
cido como “talento médio” para uma arte pode ser desen­
volvido em considerável extensão ao ser exercitado.
Por outro lado, geralmente se supõe que a genialidade
não admite gradações, mas é considerada como um grau
superlativo de talento. Nos vários sistemas de psicométrica
que foram inventados para aferir aptidões e talentos, existe
(ou costumava existir) um determinado ponto na escala co­
nhecido como o “nível de gênio”. Pensa-se que “um gênio”
faz com facilidade o que outros conseguem apenas através de
esforços longos e trabalhosos. Por essa razão, a precocidade
é em geral tomada como sinal de gênio; e todo ano o palco
de concertos, o rádio, a tela e, algumas vezes, até mesmo a
galeria de pintura, aclamam como gênio indubitável algum a
criança verdadeiramente espantosa, cujo talento supera as
dificuldades da técnica como um gamo salta as cercas do
pasto; e algumas vezes essa criança cresce para pôr fogo no
mundo artístico (Mozart não foi o único), mas é muito mais
freqüente que sua vida adulta comprove ser a de um bom
artista profissional sem distinção especial.
O gênio, de fato, não é de maneira alguma um grau de
talento. O talento é uma habilidade especial de expressar o
que se concebe; mas o gênio é o poder de concepção. Em­
bora seja necessário algum grau de talento se não se quiser
que o gênio seja natimorto, os grandes artistas nem sempre
tiveram uma extraordinária habilidade técnica; freqüente-
mente lutaram pela expressão, mas a urgência de suas
idéias fazia com que desenvolvessem cada vestígio de talento
até que estivesse à altura de suas exigências. Calvocoressi
relata que Mussorgsky
criava trabalhosamente, desajeitadamente, imperfeitamente. Foi, na
verdade, devido ao seu gênio que ele produziu páginas imortais: ele
sempre o fazia quando sua inspiração era suficientemente poderosa
para registrar-se a seu próprio modo. ( . . .)22
Aqui a distinção entre gênio e talento está implícita.
Malraux, em sua grande Psicologia da Arte, reconhe­
ce-o explicitamente quando diz:2

22. M. D. Calvocoressi: Mitsorgski, th e Russian Musical Natio-


nalist. Citado por J. T. Howard cm seu artigo, “Inevitabllity as a
Criterion of Art”, Musical Quarterly, 9 (1923), p. 303-13.
424 SENTIMENTO E FORMA

Caravaggio acreditava firmemente no "real", e a tensão emo­


cional de seu estilo, em seu melhor ponto, vem do fato de que,
enquanto seu talento levava-o a ater-se a esse realismo, seu gênio o
impelia a libertar-se dele 23.
Aqui, talento e gênio parecem não só diferentes, mas
opostos, embora pareçam estar combinados de modo mais
equilibrado do que em Mussorgsky. Um caso interessante de
grande talento sem qualquer gênio notável é refletido na
crítica feita por Friedrich Ludwig Schõder sobre seu célebre
colega, Iffland, cujos extraordinários dotes naturais haviam
espantado Goethe e induzido Schiller a predizer que, nele, a
Alemanha finalmente iria encontrar um verdadeiro grande
ator:
Iffland [escreveu Schrõder, com mais percepção do que os poetas]
não é um criador. Mesmo para seus papéis cômicos, ele sempre
procura algum modelo que possa copiar. Meu princípio, que a
experiência ainda não desmentiu, é: um grande ator não pode co­
piar 24.
Quando, entretanto, o gênio recebe a dedicação exclu­
siva de um supremo talento, está livre para desenvolver-se,
como sucedeu com Mozart e Rafael. Mas é um erro pensar
que o gênio está completo desde o início. É muito mais pro­
vável que o talento o esteja, motivo pelo qual a criança pro­
dígio é um fenômeno bem conhecido. O gênio, de fato, algu­
mas vezes aparece apenas com a maturidade, como com Van
Gogh, cujas primeiras pinturas são medíocres, e cresce e
aprofunda-se a cada obra, como o de Beethoven, Shakes-
peare ou Cézanne, muito depois que a maestria técnica atingiu
seu ponto máximo.
Uma vez que o gênio não é o talento superlativo, mas
o poder de conceber realidades invisíveis — sensibilidade,
vitalidade, emoção — em uma nova projeção simbólica que
revela algo de sua natureza pela primeira vez, ele admite gra­
dações; e um pequeno montante de gênio não é um dote
raro. Seja qual for seu alcance, é a marca do verdadeiro ar­
tista e, embora seja um artesão por profissão, o gênio o
coloca acima do puro artesão, do copista e explorador, na
esfera da arte.
A arte é uma posse pública, porque a formulação de
“vida sentida” é o coração de qualquer cultura, e molda o
mundo objetivo para o povo. É a sua escola de sentimento,
e sua defesa contra o caos interior e exterior. É só quando a
natureza é organizada na imaginação, segundo linhas con­
23. Vol. rn, The Twilight of th e ADsolute , p. 226.
24. Citado em SchauspielerM efe aus zw ei Jahrhunderten, de Man-
fred Barthel.
A OBRA E SEU PÜBLICO 425

gruentes com as formas de sentimento, que podemos com­


preendê-la, isto é, achá-la racional (esse era o ideal de ciên­
cia de Goethe e o conceito de beleza de Kant). Então, inte­
lecto e emoção não se acham em oposição, a vida é simboli­
zada por seu cenário, o mundo parece importante e belo e é
“apreendido” intuitivamente.
Mas por que, se a arte é efetivamente a clarificação da
vida emocional, é o “temperamento artístico” proverbial­
mente um temperamento perturbado, infrene, ou mesmo ligei­
ramente louco? Por que não é o próprio artista o principal
beneficiário de seu gênio?
De uma certa maneira, é claro, ele o é; em cada obra
bem sucedida, é fundamentalmente seu problema que resol­
veu, sua mente que ele esclareceu. Mas ele não repousa em
suas criações, como o faz o público leigo; suas formulações
e revelações são um produto acabado para ele. Sua recom­
pensa é a imagem, não o uso dela, pois, enquanto outras
pessoas contemplam-na e desfrutam dela e incorporam em
suas vidas a visão que ele teve, o artista já está perseguindo
outra2S. Ele não tem tempo de colocar sua própria casa em
ordem.
Uma palavra mais, pois a consideração da arte como
uma herança cultural nos traz de volta a um conceito que
fora posto de lado em uma relação anterior — o conceito
de arte como um tipo de “comunicação”. Ele apresenta seus
perigos porque, com base numa analogia com a lingua­
gem, espera-se naturalmente que a “comunicação” seja entre
o artista e sua audiência, o que creio ser uma noção enga­
nosa. Mas existe algo que pode, sem o perigo de excessiva
literalidade, ser chamado de “comunicação pela arte”, a
saber, o informe que as artes fazem de uma época ou nação
às pessoas de outra. Nenhum registro histórico poder-nos-ia
contar em um milhar de páginas tanto sobre a mente egípcia
quanto uma visita a uma exposição representativa da arte
egípcia. O que conhecería o europeu da cultura chinesa, com
sua vasta extensão no passado, se o sentimento chinês não
tivesse sido articulado na escultura e pintura? O que conhe­
ceriamos sobre Israel sem sua grande obra literária — sem
falar de seu registro de fatos? Ou de nosso próprio passado,
sem a arte medieval? Nesse sentido, a arte é uma comunicação,
mas não é pessoal, nem deseja ansiosamente ser entendida.

25. Talvez seja por isso que as pessoas que, como se diz, “tem
dentro de sl apenas um livro**, geralmente sâo melhor ajustadas do
que o gênio fértil sem limites. Elas compõem a imagem de suas pró­
prias vidas e clarificam seus próprios sentimentos nessa imagem e, tendo
encontrado sua segurança mental, n&o sfio perseguidas por outras visões.
426 SENTIMENTO E FORMA

Os problemas levantados pela teoria do Símbolo de Arte,


e passíveis de solução à sua luz, parecem inexauríveis, mas é
preciso que os livros tenham um fim; devo deixar o resto
para o futuro 28, talvez para outros pensadores. A teoria em
si, que expus aqui, não é na realidade obra de uma só
pessoa. Ê um passo — e penso que seja um passo importante
— para uma filosofia da arte sobre a qual muitos estetas já
trabalharam, a teoria da forma expressiva. Apesar de todos
os defeitos, becos sem saída ou erros que uns possam ver nas
doutrinas dos outros, acredito que Bell, Fry, Bergson, Croce,
Baensch, Collingwood, Cassirer e eu (não esquecendo críti­
cos literários tais como Barfield e Day Lewis, bem como
outros, a quem não nomeei e talvez nem haja lido) estive­
ram e estão, realmente, compromissados com um projeto fi­
losófico. Foi Cassirer — embora ele jamais se tivesse consi­
derado um esteta — quem talhou a pedra-de-toque da
estrutura, em seu estudo amplo e desinteressado das formas
simbólicas; e eu, de minha parte, colocaria essa pedra no
lugar, para reunir e sustentar aquilo que até agora cons­
truímos.

26* A natureza da abstraç&o artística, abordada apenas ligeira­


mente aqui, e a unidade de todas as artes, s&o uma sequência óbvia
para o presente estudo, da qual espero tratar em um livro posterior*
APÊNDICE

UMA NOTA SOBRE O FILME

Eis uma nova arte. Por algumas décadas ela não pareceu
ser mais do que um novo recurso técnico na esfera do drama,
uma nova maneira de preservar e recontar desempenhos dra­
máticos. Mas, hoje, seu desenvolvimento já desmentiu essa
suposição. A tela não é um palco, e o que é criado na con­
cepção e realização de um filme não é uma peça. £ cedo
demais para sistematizar qualquer teoria sobre essa nova arte,
mas, mesmo em seu presente estado primitivo, ela exibe —
penso que muito além de qualquer dúvida — não apenas uma
nova técnica, mas um novo modo poético.
Muito do material das reflexões subsequentes foi coli-
gido por quatro de meus antigos alunos de seminário1, no
Columbia Teachers College, que gentilmente me permitiram
utilizar seus achados. Da mesma forma, fico obrigada a Mr.
Robert W. Sowers, que (também membro daquele seminá­
rio) fez um estudo da fotografia que forneceu ao menos uma
idéia de valor, a saber, que as fotografias, não importa quão
posadas, cortadas ou retocadas sejam, devem parecer factuais
ou, como ele chamou isso “autênticas”. Voltarei mais adiante
à sugestão.

1. Joseph Pattison, Louls Forsdaie, William Hoth e Virgínia E.


Allen. Mr. Hoth é agora Instrutor de Inglês no Cortland State Teachers
College (New York); os outros três s&o membros do corpo docente do
Oolúmbla Teachers College.
428 SENTIMENTO E FORMA

Os pontos significativos, para meu propósito, que foram


demonstrados pelos quatro membros colaboradores foram:
(1) que a estrutura de um filme não é a de um drama e está,
de fato, mais próxima da narrativa do que do drama; e (2)
que suas potencialidades artísticas tornaram-se evidentes ape­
nas quando foi introduzida a câmara móvel.
A câmara móvel divorciou a tela do palco. A simples
fotografia da ação no palco, anteriormente vista como a única
possibilidade artística do filme, daí em diante apareceu como
uma técnica especial. O ator de cinema não é gover­
nado pelo palco, nem pelas convenções do teatro, ele tem sua
própria esfera e convenções; de fato, pode nem existir “ator”
algum. O filme documentário é uma invenção fecunda. O
desenho animado nem sequer envolve pessoas que estejam
simplesmente “comportando-se”.
O fato de que o filme pôde desenvolver-se em um grau
relativamente elevado como arte muda, em que o discurso
precisou ser reduzido e concentrado em legendas sumárias,
bem espaçadas, foi outro indício de que não era mera­
mente drama. Utilizava a pantomima, e os primeiros estetas
do cinema consideravam-no essencialmente como pantomima.
Mas não é pantomima; incorporou essa antiga arte po­
pular da mesma maneira como incorporou a fotografia.
Uma das características mais notáveis desta nova arte é
que ela parece ser onívora, capaz de assimilar os materiais
mais diversos e transformá-los em elementos próprios. A cada
nova invenção — montagem, trilha sonora, Technicolor —,
seus apaixonados ergueram um brado de temor de que agora
sua “arte” devia estar perdida. Visto que cada uma de
tais novidades é, por certo, prontamente explorada, antes
mesmo de ser tecnicamente aperfeiçoada, sendo exibida em
estado dos mais crus como sensação popular, no fluxo de
composições sem significado que o show business provê
constantemente, existe em geral uma maré de refugos especial­
mente em associação com cada avanço importante. Mas
a arte continua. Ela incorpora tudo: dança, patinação, drama,
panorama, desenho, música (quase sempre requer música).
Com isso, ela continua sendo uma arte poética. Mas não
é qualquer das artes poéticas que conhecíamos antes; rea­
liza a ilusão primária — história virtual — de um modo
próprio.
Este é, essencialmente, o modo do sonho. Não quero
dizer que ela copia o sonho ou nos imerge em devaneios. De
maneira alguma; não mais do que a literatura invoca a me­
UMA NOTA SOBRE O FILME 429

mória, ou nos faz crer que nós estamos relembrando. O modo


de uma arte é um modo de aparência. A ficção é “como a
memória pelo fato de que é projetada para compor uma
forma experiencial acabada, um “passado’* — não o passado
do leitor, nem o do escritor, embora este possa reivindicá-lo
(isso, bem como o uso de memórias reais como modelo, é
um recurso literário). O drama é “como” a ação por ser
causai, criar uma experiência total iminente, um “futuro”
pessoal ou Destino. O cinema é “como” o sonho no seu
modo de apresentação: cria um presente virtual, uma ordem
de aparição direta. Esse é o modo do sonho.
A característica formal do sonho mais digna de nota é
que o sonhador está sempre no centro do sonho. Os lugares
mudam, as pessoas agem e falam, ou modificam-se e desapa­
recem — fatos emergem, situações desenrolam-se, objetos
surgem com estranha importância, coisas comuns infinita­
mente valiosas ou horríveis, e podem ser suplantadas por
outras que estão relacionadas às primeiras essencialmente
pelo sentimento, não pela proximidade natural. Mas quem
sonha está sempre “ali”, sua relação é, por assim dizer, eqüi-
distante de todos os eventos. Podem ocorrer coisas em tomo
dele ou desenrolar-se ante seus olhos; ele pode agir ou querer
agir, ou sofrer ou contemplar; mas a imediatidaãe de tudo em
um sonho é a mesma para ele.
Essa peculiaridade estética, essa relação com as coisas
percebidas, caracteriza o modo do sonho: é isso que o filme
incorpora e, assim, cria um presente virtual. Em sua relação
com as imagens, ações, eventos que constituem a estória, a
câmara está no lugar do sonhador.
Mas a câmara não é uma pessoa que sonha. Geralmente
somos agentes em um sonho. A câmara (e seu complemento,
a trilha sonora) não está em si no filme. Ela é o olho da
mente e nada mais. E nem é provável que o filme (se for
arte) seja como um sonho em sua estrutura. Ele é uma
composição poética, coerente, orgânica, governada por um
sentimento concebido de maneira definida, e não ditado por
pressões emocionais reais.
A abstração básica pela qual cria-se história virtual ao
modo do sonho é a imediatidade da experiência, a qualidade
do “que é dado”, ou, como Sowers o chama, “autenti­
cidade”. É isso que a arte do filme abstrai da realidade, de
nossos sonhos reais.
A pessoa que percebe um filme vê junto com a câmara;
sua perspectiva move-se com ela, sua mente está difusamente
presente. A câmara é seu olho (como o microfone é seu ouvi­
430 SENTIMENTO E FORMA

do — e não há razão para que o olho da mente e o ouvido


da mente devam estar sempre juntos). Ele toma o lugar de
quem sonha, mas em um sonho perfeitamente objetivado —
isto é, ele não está na estória. A obra é a aparência de um
sonho, uma aparição unificada, continuamente passante,
significativa.
Concebido dessa maneira, um bom filme é uma obra de
arte por todos os padrões aplicáveis à arte como tal. Sergei
Eisenstein fala de filmes bons e maus como, respectivamente,
‘“vitais” e “sem vida” 2; fala das tomadas fotográficas como
“elementos” 3, que se combinam em “imagens”, que são
“objetivamente inapresentáveis” (eu as chamaria de impres­
sões poéticas), mas são elementos maiores compostos de “re­
presentações”, quer pela montagem, quer pela representação
simbólica, quer por quaisquer outros meios4. O todo é
governado pela “imagem inicial geral que originalmente pai­
rava frente ao artista criativo” 5 — a matriz, a forma domi­
nante; e é isso (não, ressalte-se, a emoção do artista) que
deve ser evocado na mente do espectador.
Contudo, Eisenstein acreditava que o espectador de um
filme era, de alguma forma especial, chamado a usar sua
imaginação, a criar sua própria experiência da estória6. Aqui
temos, acho, um indício da poderosa ilusão que o filme
realiza, não de coisas que estão acontecendo, mas da dimen­
são em que elas acontecem — uma imaginação criativa vir­
tual; pois parece nossa própria criação experiência visio­
nária direta, uma “realidade sonhada”. Como a maioria dos
artistas, ele tomou a experiência virtual pelo fato mais óbvio 7.
O fato de um filme não ser uma obra plástica, mas
uma apresentação poética, explica seu poder de assimilar os
materiais mais diversos e transformá-los em elementos não-
-pictóricos. Como o sonho, ele cativa e mistura todos os sen­
tidos; sua abstração básica — aparecimento direto — é

2. The Film Sense, p. 17.


3. Ibid., p. 4.
4. Ibid., p. 8.
5. Ibid., p. 31.
6. Ibid., p. 33: " . . . o espectador é atraído para um ato criativo
em que sua Individualidade não está subordinada à individualidade
do autor, mas que é explorada através do processo de fusão com a
Intenção do autor, da mesma forma em que a individualidade de um
grande ator é fundida com a Individualidade de um grande drama­
turgo na criação de uma imagem cônica clássica. De fato, cada espec­
tador. .. cria uma Imagem de acordo com a orientação representativa,
sugerida pelo autor, que o leva a compreender e experimentar o tema
do autor. Essa é a mesma imagem que foi planejada e criada pelo
autor, mas essa imagem é, ao mesmo tempo, criada também pelo pró­
prio espectador**.
7. Comparar a afirmação contida em The A rt of th e Film, de
Emest Lindgren, p. 92, a respeito da câmara móvel: ”£ a própria mente
do espectador que se move”.
UMA NOTA SOBRE O FILME 431

feita não só por meios visuais, embora estes sejam de suprema


importância, mas por palavras, que pontuam a visão, e por
música, que sustenta a unidade de seu “mundo” mutante.
Ele precisa de muitos meios, freqiientemente convergentes,
para criar a continuidade de emoção que o mantém unido
enquanto suas visões vagueiam pelo espaço e pelo tempo.
É digno de nota que Eisenstein tenha extraído seus
materiais para discussão da poesia épica, mais do que da
dramática; de Pushkin, mais do que de Chekhov, de Milton
mais do que de Shakespeare. Isso nos traz de volta ao ponto
observado por meus alunos de seminário, que o romance
se presta mais prontamente à dramatização da tela do que o
drama. O fato é que, penso eu, uma estória narrada não
requer tanta “divisão” para tomar-se uma aparição cinema­
tográfica, porque ela própria não tem uma moldura de espaço
fixo, como tem o palco; e uma das peculiaridades dos sonhos,
incorporada pelo cinema, é a natureza de seu espaço. Os even­
tos oníricos são espaciais — muitas vezes intensamente rela­
cionados com o espaço — intervalos, caminhos intermináveis,
precipícios sem fim, coisas excessivamente altas, excessiva­
mente próximas, excessivamente distantes — mas não estão
orientados dentro de algum espaço total. O mesmo se aplica
ao cinema, e o distingue — apesar de seu caráter visual —
da arte plástica: seu espaço vai e vem. Ele é sempre uma
ilusão secundária.
O fato de o filme estar de alguma maneira relacio­
nado com o sonho e está, efetivamente, de um modo seme­
lhante, foi notado por várias pessoas, algumas vezes por
razões artísticas, outras por razões não-artísticas. R. E. Jones
observou sua liberdade não só com respeito a restrições espa­
ciais, mas também às temporais.
Os filmes [disse ele] são nossos pensamentos tornados visíveis
e audíveis. Eles fluem em uma rápida sucessão de imagens, pre­
cisamente como nossos pensamentos, e sua rapidez, com seus flash -
backs — como repentinas irrupções de memória — e sua abrupta
transição de um assunto para outro, aproxima-se muito de perto
da velocidade com que pensamos. Têm o ritmo da corrente de
pensamentos e a mesma estranha habilidade de mover-se para a
frente ou para trás no espaço ou no tempo. ( . . . ) Projetam o
pensamento puro, o sonho puro, a pura vida interior8 .
A “realidade sonhada” na tela pode mover-se para a
frente e para trás porque ela é, na realidade, um presente
virtual eterno e ubíquo. A ação do drama vai inexoravel­
mente para a frente porque ele cria um futuro, um Destino;
o modo do sonho é um Agora interminável.
8. The Dramatic Imagination, p. 17-18.
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ZUCKER, A. E. The Chinese Theater. Boston, Little, Brown & Co.,
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COLEÇÃO ESTUDOS

1. Introdução à Cibernética, W. Ross Ashby.


2. Mimesis, Erich Auerbach.
3. A Criação Científica, Abrabam Moles.
4. Homo ludens, Johan Huizinga.
5. A Lingiiística Estrutural, Giulio Lepsehy.
6 . A Estrutura Ausente, Umberto Eco.
7. Comportamento, Donald Broádbent.
8 . Nordeste 1817, Carlos Guilherme Mota.
9. Cristâos-Novos na Bahia, Anita Nòvinsky.
10. A Inteligência Humana, H. J. Butcher.
11. João Caetano, Décío de Almeida Prado.
12. As Grandes Correntes da Mística Judaica, Gershom G. Scholem.
13. Vida e Valores do Povo Judeu, Cecil Roth e outros.
14. A Lógica da Criação Literária, Káte Hamburger.
15. Sociodinâmica dá Cultura, Abráham Moles.
16. Gramatologia, Jacques Derrida.
17. Estampagem e Aprendizagem Inicial, W. STuckin.
18. Estudos Afro-Brasileiros, Roger Bastide.
19. Morfologia do Màcunaíma, Haroldo de Campos.
20. A Economia das Trocas Simbólicas, Pierre Bourdieu.
21. A Realidade Figurativa, Pierre Francastel.
22. Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte, Paulo Emílio S. Gomes.
23. História e Historiografia, Saio W. Baron.
24. Fernando Pessoa ou o Poetodrama, José Augmto Seab»*;u
25. As Formas dó Conteúdo, Umberto Eco.
26. Filosofia da Nova Música, Theodor W. Adornó.
27. Por uma Arquitetura, Le Corbusier.
28. Percepção e Experiência, M. D. Vernon.
29. Filosofia do Estilo, G. G. Granger.
30. A Tradição do Novo, Harold Rosenberg.
31. Introdução à Gramática Gerativa, Nicolas Ruwet.
32. Sociologia da Cultura, Karl Mannheim.
33. Tarsila — Sua Obra e seu Tempo (2 v.), Aracy Amaral.
34. O Mito Ariano, Léon Poliakov.
35. Lógica do Sentido, Gilles Deleuze.
36. Mestres do Teatro I, John Gassner.
37. O Regionalismo Gaúcho, Joseph L. Love.
38. Sociedade, Mudança e Política, Hélio Jaguaribe.
39. Desenvolvimento Político, Hélio Jaguaríbe.
40. Crises e Alternativas da América Latina, Hélio Jaguaríbe.
41. De Geração a Geração, S. N. Eisenstadt.
42. Política Econômica e Desenvolvimento no Brasil, Nathanael
H. Leff.
43 . Prolegômenos a uma Teoria da Linguagem, Louis Hjelmslev.
44. Sentimento e Forma, Susanne K. Langer.
45. A Política e o Conhecimento Sociológico, F. G. Castles.
46. Semiótica, Charles S. Peirce.
47. Ensaios de Sociologia, Marcei Mauss.
48. Mestres do Teatro II, John Gassner.
49. Uma Poética para Antônio Machado, Ricardo Gullón.
50. Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial, Stuart 6 . Schwartz.
51 . A Visão Existenciadora, Evaldo Coutinho.
52. América Latina em sua Literatura, UNESCO.
53 . Os Nuer, E. E. Evans-Pritchard.
54. Introdução à Textologia, Roger Laufer.
55. O Lugar de todos os Lugares, Evaldo Coutinho.
56. Sociedade Israelense, S. N. Eisenstadt
57. Das Arcadas ao Bacharelismo, Alberto Venancio Filho.
58. Artaud e o Teatro, Alain Virmaux.
59. O Espaço da Arquitetura, Evaldo Coutinho.
60. Antropologia Aplicada, Roger Bastide.
61 . História da Loucura, Michel Foucault.
62. Improvisação para o Teatro, Viola Spolin.
63 . De Cristo aos Judeus da Corte, Léon Poliakov.
64. De Maomé aos Marranos, Léon Poliakov.
65. De Voltaire a Wagner, Léon Poliakov.
66. A Europa Suicida, Léon Poliakov.
67. O Urbanismo, Françoise Choay.
68. Pedagogia Institucional, A. Vasquez e F. Oury.
69. Pessoa e Personagem, Michel Zeraffa.
70. O Convívio Alegórico, Evaldo Coutinho.
71. O Convênio do Café, Celso Lafer.
72. A Linguagem, Edward Sapir.
73. Tratado Geral de Semiótica, Umberto Eco.
74. Ser e Estar em Nós, Evaldo Coutinho.
Composto e impresso na
IMPRENSA METODISTA
Av. Senador Vergueiro, 1301
São Bernardo do Campo — SP

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