Mariana Cavalcanti Pereira - Tese (PPGCS) 2021
Mariana Cavalcanti Pereira - Tese (PPGCS) 2021
Mariana Cavalcanti Pereira - Tese (PPGCS) 2021
Centro de Humanidades – CH
Unidade Acadêmica de Ciências Sociais – UACS
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – PPGCS
CAMPINA GRANDE
2021
MARIANA CAVALCANTI PEREIRA
CAMPINA GRANDE
2021
UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE
________________________________________________________
Prof. Dr. Ronaldo Laurentino de Sales Júnior (PPGCS/UFCG)
(orientador)
________________________________________________________
Profa. Dra. Lígia Sofia Alves Passos Ferro (Universidade do Porto)
(coorientadora)
________________________________________________________
Prof. Dr. Lemuel Dourado Guerra Sobrinho (PPGCS/UFCG)
(avaliador interno)
________________________________________________________
Prof. Dr. Luis Henrique Hermínio Cunha (PPGCS/UFCG)
(avaliador interno)
________________________________________________________
Prof. Dr. Marco Aurélio Paz Tella (PPGA/UFPB)
(avaliador externo)
________________________________________________________
Profa. Dra. Maria Paula Jacinto Cardoso (URCA) (avaliadora externa)
AGRADECIMENTOS
A experiência do doutorado não se resume a este texto. É uma vivência que congrega
alegrias, dores, desafios. Definitivamente eu não teria chegado até esse momento sem a minha
rede de apoio pessoal e profissional. Por isso, minha mais sincera gratidão:
A minha mãe, por me dar suporte, por ter fé em mim, por me levantar nos momentos
mais difíceis; pelo amadurecimento contínuo da nossa amizade; por ser meu primeiro
exemplo de como a educação pode ser libertadora;
Ao meu orientador Ronaldo Sales, pelo acolhimento, parceria e paciência no processo
de construção desse caminho; pelos diálogos e contribuições enriquecedoras; pela presença
constante, receptiva e respeitosa;
À minha coorientadora Lígia Ferro, pela sempre alegre disponibilidade em contribuir,
em especial pela condução do trabalho durante o doutorado-sanduíche no Porto; pela escuta
afetuosa e pela ajuda na abertura das portas de um novo mundo;
Ao professor Lemuel Guerra, pelas instigantes e divertidas discussões; por encher a
experiência de sala de aula de poesia, provocação e sensibilidade;
Ao professor Luis Henrique Cunha, por ser um dos meus exemplos em competência e
compromisso com uma educação rica e crítica, sem perder a leveza;
Ao professor Marco Aurélio Paz Tella e à professora Maria Paula Cordeiro, pela
gentileza em partilhar suas compreensões nesse debate;
A todos os professores e funcionários que integram o PPGCS-UFCG e contribuíram
para a consolidação desse caminho;
A todos aqueles que compõem o mundo do parkour em Campina Grande e Porto e se
dispuseram a compartilhar comigo uma parte de suas experiências. Em especial, a Andrey,
Daniel, Luiz Anastácio, Odair, Márcio Filipe, Pedro, Tiago e Stanislav.
A Catarina e família pela amizade; por me mostrar as melhores ruas, a melhor
francesinha e a melhor sangria do Porto!
A Renata Milanês e dona Maria pela força, confiança, afeto e acolhimento que só uma
família escolhida pelo coração pode dar;
A Jéssyka Ribeiro pelo feliz encontro que é nossa amizade; pelas risadas, cafés, vinhos
e brincadeiras com Lola e Gatinha que preencheram os momentos mais difíceis durante o
processo final de escrita;
A Emilly Amorim pela cumplicidade nas horas a fio, na varanda, conversando sobre a
vida; por me trazer uma amizade leve e alegre;
A Valdênio Meneses pelas ideias de trabalho, supervisão do estágio-docência e da
constante disposição em ajudar;
Às mulheres incríveis que o PPGCS me trouxe: Denise Ferreira, Denise Marinho,
Deyse Luna e Jakeline, por abrirem meus olhos quando necessário, por compartilharem com
honestidade e afeto os piores e melhores momentos;
Aos amigos Cláudio, Jerferson e Milane por dividirem tantos momentos entre
angústias e alegrias;
As minhas amigas e irmãs do coração: Inêz Alencar, Jéssica Gama, Letícia Pinheiro,
Mércia Lima e Regina Paiva, por serem uma das partes mais importantes da minha rede de
apoio; pelo carinho, amizade e força em todos os momentos;
À Capes/PDSE pelo financiamento da pesquisa aqui no Brasil e em Portugal;
A todas as pessoas que acreditam na educação pública, que resistem e têm a coragem
de lutar em um país onde a democracia ainda é uma esperança.
O parkour é comumente descrito como uma prática que consiste em ultrapassar obstáculos de
maneira rápida e eficiente, utilizando o próprio corpo. Constituiu-se como tal a partir da
década de 1980, na França, e tem se espalhado pelo mundo especialmente por meio da mídia
e internet. Apesar de ser mais conhecido pela sua faceta “espetacular”, expressa por grandes
saltos ou movimentos considerados perigosos, o parkour é uma experiência vivida de maneira
plural. A multiplicidade de vivências revelam um emaranhado complexo de linhas que
envolvem uma série de subjetividades e encontros que produzem diferentes maneiras de estar
no mundo com e pelo parkour. Este trabalho interpreta a prática do parkour enquanto uma
malha (meshwork) (INGOLD, 2018) que é tecida pelo entrelaçamento de dinâmicas de
aprendizado e experiências que nos ajudam a compreender processos de criatividade e
conhecimento a partir do engajamento corpóreo, afetivo e sensorial no mundo. O parkour
enquanto uma prática viva, em movimento, nos mostra diferentes dimensões de participação
dos processos do existir e habitar o mundo, sem que precisemos interpelar uma perspectiva de
análise apoiada nas teorias da agência. Para realizar esse debate, foi feita uma pesquisa nas
cidades de Campina Grande-PB e na Área Metropolitana do Porto (AMP), com praticantes
entre 18 e 40 anos, em sua grande maioria constituída por homens. Os caminhos
metodológicos são traçados a partir de pistas e contribuições advindos da etnografia, da
literatura fenomenológica e da cartografia.
INTRODUÇÃO…………………………...………………………………………………….15
Antecedentes do Parkour………..….………………………………………………....18
Porque estudar parkour?.…………….………………………………………………..25
Eixo central da tese…………………………………………………………………...30
O campo e os percursos da pesquisa: situando o Parkour em João Pessoa, Campina
Grande e Área Metropolitana do Porto ……………………………………………....32
Uma metodologia tateante…………………………………………………………….38
Recursos metodológicos……………………………………………………………....42
Estrutura da tese……………………………………………………………………....43
CONSIDERAÇÕES FINAIS……………………………………...………………………...204
REFERÊNCIAS……………………………………………………………………………..210
15
INTRODUÇÃO
1SENNETT, R. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro: BestBolso, 2008.
16
de vivências criativas, catalisadas pelo improviso dos processos de habitar o mundo?
Tentaremos apontar alguns caminhos de reflexão para esses questionamentos.
O espaço urbano compreende três elementos cruciais para que possamos entender a
complexidade de sua dinâmica: a paisagem, os atores sociais e suas regularidades
(MAGNANI, 2012). Estudar a cidade e suas transformações cotidianas implica na
abrangência da relação entre esses fatores, de modo a considerar a existência de uma
mutualidade entre eles. Esse duplo movimento revela-nos um imenso aparato de
possibilidades a ser analisado no sentido de apreender a construção de uma realidade, onde a
relação entre o espaço e o indivíduo molda as configurações do urbano, suscitando aos nossos
sentidos os símbolos, as lutas e a representações sociais dos mais variados segmentos e
manifestações sociais, políticos, culturais e históricos. Percebe-se, de forma já consolidada em
uma série de estudos sobre práticas urbanas, a metáfora da “cidade como um grande
laboratório” - em suas infinitas potencialidades de explorações e exercícios criativos, tanto
para análises quanto para as vivências. A complexa inventividade humana abrange processos
que envolvem espaço, corpo, relações entre estes e com as diferentes texturas cotidianas.
Compreender a cidade implica conhecê-la não apenas em sua multiplicidade espacial,
mas também na relação desses espaços com os indivíduos. Nisso reside o grande desafio dos
estudos urbanos: entender que cidades são vividas, produzidas e imaginadas pelos atores
sociais (PEREIRA, 2015). Assim, podemos destacar o estudo das práticas urbanas como um
caminho interessante, especialmente quando as mesmas se encontram inseridas em uma rede
fluida de espaços e atores, suscitando o elemento da mobilidade como importante fator para o
conhecimento do aspecto dinâmico e pulsante da cidade em suas variadas configurações.
Entretanto, mais do que enxergar a cidade como um grande laboratório e encarar
algumas das vivências ocorridas majoritariamente nesse espaço como “práticas urbanas”,
proponho ajustar o foco para uma análise voltada para a experiência dessas práticas a partir
dos seus processos corpóreos e afetivos, bem como da intensa mobilização e atualização de
conhecimentos e outras vivências que fazem do parkour uma prática viva – crescente e em
movimento. Nesse sentido, partimos de um primeiro ponto para seguir em frente: buscar
enxergar o corpo para além de objeto da ação cultural, considerando a complexidade dos
processos nos quais ele está inserido também como produtor de sentido
(…) este (o corpo) deixa de ser mero objeto da ação social e simbólica, receptáculo
da inscrição de símbolos culturais e objeto a ser modelado pelas representações
sociais e coletivas, e passa a ser agente e sujeito da experiência individual e coletiva,
17
veículo e produtor de significados, instrumento e motor de constituição de novas
subjetividades e novas formas do sujeito. (MALUF, 2001, p.96)
Antecedentes do Parkour
3 Ver http://worldparkourchampionship.com
https://www.redbull.com/br-pt/tags/parkour
Competição reúne elite do parkour e freerunning em São Paulo. Disponível em
http://jovem.ig.com.br/esportesradicais/competicao-reune-elite-do-parkour-e-freerunning-em-sao-
paulo/n1597156839343.html
23
comentários em vídeos realizados nas academias, além de entrevistas de traceurs, que se
posicionam contra a mercantilização4 da prática, sob o argumento da perda dos valores
originais do parkour.
Além das academias, notamos, ainda, um outro movimento que tem ganhado força nos
últimos anos com o mercado digital: podemos encontrar uma variedade de cursos online de
parkour, como é o caso do oferecido pelos brasileiros Pedro Moreira e Zico Correa. O curso
intitulado “Arte do Parkour”5 consiste basicamente em uma série de vídeos com explicações e
tutoriais e é cobrado uma única parcela no valor de R$ 141,00. A descrição do curso no site
garante que é possível aprender os movimentos assistindo aos vídeos e treinando em um
lugar de sua escolha. Em 2018 também foi lançado o 1º Congresso Online Nacional de
Parkour e Coaching6, organizado pelo atleta Danilo Brustolini, o evento teve como objetivo
principal de “ajudar o Parkour a crescer de forma segura e profissional” e foi transmitido
gratuitamente a partir de um site dentro de uma programação específica. O conteúdo também
podia ser adquirido sob um determinado valor e possibilitava o acesso ilimitado aos vídeos
produzidos. Este congresso contou com diversos atletas brasileiros e alguns estrangeiros, os
quais proferiram pequenas palestras sobre diversos aspectos do parkour, desde reflexões mais
filosóficas, quanto a respeito da performance corporal, até conselhos e compartilhamento de
experiências para a construção de um empreendimento centrado na prática em questão.
Assim como a criação das academias e competições de parkour, os impactos da
disseminação da prática através da mídia foram sentidos de variadas maneiras, em diversos
contextos culturais. Há registros da prática em diversos países, em todos os continentes,
como, mais uma vez, as plataformas digitais podem nos mostrar com uma rápida pesquisa.
Um caso recente e emblemático que podemos citar aqui foi o que aconteceu na cidade de
Alepo, na Síria. Diante de cenário de pós-guerra, dezenas de jovens desenvolvem os
movimentos do parkour sobre os escombros resultantes do conflito. Os depoimentos
oferecidos por esses indivíduos relatam a prática enquanto forma de rechaçar os efeitos
negativos da guerra que afetaram seus psicológicos 7. Especialmente em uma dinâmica onde
4 Parkour, nascido na rua, vira negócio lucrativo nos Estados Unidos. Disponível em
https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,parkour-nascido-na-rua-vira-negocio-lucrativo-nos-estados-
unidos,161593e
5 Ver http://parkournaveia.com
6 1º Congresso Online Nacional de Parkour e Coaching http://conapkc.danilobrustolini.com.br/
7 Acrobacias como antídoto de guerra em Alepo. Disponível em
https://elpais.com/elpais/2018/04/10/album/1523384088_354373.html#foto_gal_2
Parkour y reguetón em Alepo: la vida patas arriba de los jóvenes sirios. Disponível em
http://www.elmundo.es/papel/historias/2018/06/02/5b110d4d468aeb30128b45ef.html
Parkour em tiempos de guerra. Disponível em
https://www.esquire.com/es/actualidad/a20629157/parkour-jovenes-alepo-guerra-siria Acesso em 18 de
24
grande parte da população jovem encontra-se em serviço ao Exército, esse fato é de extremo
interesse para analisarmos as inúmeras recepções e adaptações que o parkour adquire ao redor
do mundo, em diferentes configurações espaciais e políticas.
Fugindo não só à predominância do gênero masculino, mas quebrando alguns
preconceitos culturais e religiosos, a traceuse8 Amal Murad, primeira mulher dos Emirados
Arábes a ser considerada atleta de parkour, dá entrevistas e palestras sobre sua experiência
com a prática, e fala como esta tem sido uma ferramenta de empoderamento e inspiração para
9
incentivar outras mulheres a lutarem contra o medo. Superando mais que os obstáculos
físicos da cidade, mulheres no Irã ultrapassam preconceitos e estereótipos ao praticar parkour
na capital do país como forma de lazer e de resistência à opressão. Elas deslocam-se,
enquanto traceuses, com seus hijabs e roupas folgadas, mesmo temendo que seus corpos
sejam expostos ao realizarem os movimentos. Além disso, muitas vezes necessitam de escolta
masculina a fim de não passarem maiores constrangimentos por parte da população ou
intervenções policiais por serem mulheres e estarem ocupando os espaços urbanos dessa
forma.10
No Brasil, o parkour chega também por meio da mídia 11 a partir dos anos 2000 (em
que o acesso era expandido de forma considerável nessa época), sendo praticamente
impossível atribuir a uma pessoa específica o patamar de embaixador da prática no país. Os
vídeos dos integrantes do grupo Yamakasi serviam de inspiração para a prática do
deslocamento, sendo posteriormente criado um grupo no extinto Orkut chamado Le P”arkour
Brasil”, onde os membros podiam interagir e compartilhar informações sobre o assunto
(MARCHETTI, 2012).
A articulação entre interessados fez com que houvesse a criação de grupos de parkour,
a citar os paulistas: Parkour Brasil, considerado o precursor da prática no país, Associação de
Parkour do Grande ABC (PKABC) e Geração Traceur – grupos com uma história
significativa entre a comunidade brasileira de parkour (MARQUES, 2010). Por volta de 2007,
surge, também, em Campina Grande, o grupo Alliance Parkour, que passou por uma fase
julho de 2018.
8 Nome feminino para traceur.
9 Parkour: Amal Murad – the first Emirati woman to coach. Disponível em
https://www.bbc.com/news/av/world-middle-east-42923539/parkour-amal-murad-the-first-emirati-woman-
to-coach
Amal Murad wants to teach women not to be scared. Disponível em https://en.vogue.me/culture/amal-
murad-interview/
10 Fast-paced parkour offers outlet for women in Iran. Disponível em http://www.nydailynews.com/life-
style/health/iranian-women-embrace-parkour-article-1.1731975
11 Chagas e Girardi (2015) atribuem a expansão das informações digitais à política de Democratização da
Tecnologia promovida pelo Governo Lula (2004).
25
intensa de treinos e interação com outros grupos de fora, começando a decair a partir de 2012
e, atualmente, tenta estabelecer novamente uma agregação de antigos e novos membros dos
grupo. Em 2013, surge o Geração Parkour, em João Pessoa, enquanto grupo com uma
denominação – pois a prática em si, segundo relatos, data também dos primeiros anos de
2000.
Diante do exposto, podemos considerar que esta prática é relativamente recente,
apesar de ter suas bases em contextos mais longíquos; passou e passa por um processo de
expansão a nível global, onde a mídia em seus diversos desdobramentos (televisão, cinema,
internet, jornais, etc) contribui de forma extremamente significativa. Ainda, que se trata de
uma prática recepcionada de inúmeras maneiras, por diferentes dinâmicas socioespaciais, em
que adquire, ciclicamente, novas configurações de cenários materiais, bem como de ideais e
valores. Por fim, que o parkour é situado, cada vez, nas agendas de discussão desportiva sobre
a os processos de institucionalização.
Talvez em face do seu surgimento recente, não existe uma grande quantidade de
pesquisas brasileiras sobre o parkour, sobretudo nas Ciências Sociais - concentrando, então,
uma maior abordagem pelos estudiosos da Educação Física. Em relação às práticas urbanas
podemos observar uma maior incidência dos estudos voltados por exemplo, para o graffiti e
pixo (PEREIRA, 2005) break dance, (RAPOSO, 2013) skate (MACHADO, 2017), entre
outros, que são amplamente conhecidos. Algumas pesquisas sobre práticas envolvendo riscos
e incerteza também são feitas, a exemplo da escalada (CARVALHO, 2013), surfe (MERINO,
2017; SOUZA, 2003), montanhismo (LIMA, 1995) e outras práticas envolvendo a
corporalidade como as artes marciais (OLIVEIRA, 2013), capoeira (SOUZA, 1997;
ZONZON, 2014) e, por fim, parkour (MARQUES, 2010).
No âmbito da literatura internacional relativa às Ciências Sociais, podemos destacar
alguns trabalhos de cunho etnográfico como os realizados por Lígia Ferro (2016) com
pesquisa comparativa entre parkour e graffiti em Portugal; Jeffrey Kidder e uma análise da
prática sob a perspectiva da masculinidade, risco e esporte no Parkour (2012); Belinda
Wheaton (2017) e processos de institucionalização do parkour; e Thomas Raymen (2018)
com um olhar sobre a prática à luz dos estudos do desvio e controle social.
26
Ao ganhar propulsão nos anos de 1980, dez anos depois da explosão do hip hop, é
possível notar que o parkour possui semelhanças com o break dance (uma das vertentes
daquele movimento, ao lado do grafite, DJ e MC) em alguns pontos seguintes: ambos são
fenômenos que surgem dentro de um contexto de imigração presente nas periferias urbanas,
possuem predominância masculina e juvenil, envolve uma dinâmica onde é observada a
interação direta entre corpo e espaço e sem mediação de objetos (tais como o skate, bike,
patins etc) (FREITAS, 2014). O break dance tem suas bases “em passos e coreografias que
variam entre o acrobático e desportivo e a estilização de movimentos da capoeira e artes
marciais” (RAPOSO, 2012), aproximando-o do parkour, que é apoiado, em certa medida, em
elementos semelhantes, além daqueles herdados do Método Natural e do Parcous du
combattant. Tanto o break dance quanto o parkour exigem elaborações de relacionar o corpo
com a arquitetura física das cidades e o tipo de movimento corporal que surge delas, além de
demandarem dos seus praticantes métodos de lidar com as texturas, volumes e obstáculos
presentes no delineamento citadino (FREITAS, 2014).
Pode-se dizer, assim, que o bboy, tal qual o traceur, explora a cidade em busca de
estruturas que favoreçam a prática do break dance e do parkour, respectivamente. Entretanto,
apesar desses espaços apresentarem uma arquitetura interessante para esses indivíduos, eles
são usados fora da concepção original para a qual foram criados, desafiando os praticantes a
desenvolver métodos de relacionamento com a disposição tátil da cidade. Temos, de um lado,
um espaço sendo ressignificado e, de outro, corpos que se adaptam, traçando novas estratégias
de adequação àquele.
Dentro desse contexto, uma compreensão plausível é a que considera o parkour como
um fenômeno subcultural. Sob esse viés, observa-se a prática a partir da construção de sua
identidade baseada na resistência social (que vai desde a renúncia à competição formal até as
formas de desafiar a conformação da arquitetura urbana), na sua simbologia e estética que
perpassa o estilo, a vestimenta, a aproximação e o afastamento de outros símbolos e grupos
sociais e, sobretudo, a ideia de funcionalidade traduzida na máxima “ser forte para ser útil”
(CARVALHO et al, 2008). Esse universo, pois, criativo e antagônico, revela uma dimensão de
iniciativa e autonomia vinculada à gama de obstáculos oferecidos pela cidade contemporânea.
Em contrapartida, também encontramos um outro olhar sobre a temática que considera
o parkour enquanto prática espetacularizada, pois existe, atualmente, um processo de
aceitação coletiva da sua esportivização. Nesse sentido, a prática sob perspectiva contra-
hegemônica, mais defendida pelos agentes ortodoxos, passa a ser contraposta por interesses e
27
propostas diferentes para o parkour. O fenômeno da espetacularização pode ser observado no
espaço que o parkour vem conquistando junto aos conteúdos midiáticos (filmes, novelas,
clipes…), como também na crescente oferta de academias e um reclame por oficialização, e
consequente fomento (seja público ou privado), por parte de alguns grupos (CHAGAS, 2015).
É necessário pontuar que o parkour não se relaciona majoritariamente como uma
reivindicação política, isto é, no sentido especialmente de apropriação do espaço, pois
“transformar o meio urbano em um grande playground é não só explorar as potencialidades
lúdicas desse meio, mas também liberar devires que estavam enclausurados pela educação dos
gestos a que somos submetidos desde a mais tenra infância” (MARQUES, 2010, 20:30)
Isso implica considerar o parkour não somente em relação com a dimensão esportiva,
mas também artística, concebendo toda a sua capacidade criativa. (idem, 2008) A
dinamicidade que o parkour proporciona à relação entre corpo e espaço dá-se nas inúmeras
formas e estratégias de exploração e adaptação aos equipamentos urbanos, fazendo com que a
própria pesquisa nessa temática sugira acompanhar os traceurs, a fim de entender as
linguagens físicas e os discursos de risco, por exemplo. Sob essa linha de pensamento, existe
uma certa dificuldade de enquadrar o parkour em determinadas definições, pois se trata de
uma prática em processo, cujo alcance está cada vez mais próximo dos diversos lugares do
mundo, e cada qual desses lugares e indivíduos que se relacionam com a prática possui
semelhanças, mas sobretudo formas distintas de adaptabilidade e congregação de valores.
É necessário examinar a multiplicidade de discursos existentes entre as comunidades
de traceurs em diferentes contextos, especialmente comparando o que é enunciado na “teoria”
e o que é feito na “prática, analisando o que cada uma destas expressa não só por si, mas
dentro de uma relação. Ameel e Tani (2012), em pesquisa realizada na Finlândia, pontuam que
na fala dos seus interlocutores existe uma certa frequência da ideia de respeito pelos espaços e
propriedades privadas (como shopping centers e carros). Contudo, é possível notar, nos locais
de prática e, principalmente, nos vários vídeos postados em plataformas digitais, que as
limitações defendidas por alguns são transgredidas.
Em um estudo etnográfico realizado nos Estados Unidos, Kidder (2013) observou não
só as questões relativas ao status hegemônico ou não do parkour, atentando, também, para os
discursos e práticas vinculadas ao risco e à segurança no espaço urbano. A configuração
encontrada por aquele autor demonstra que os traceurs não praticam o parkour apenas sob a
perspectiva do “ser forte para ser útil” ou dos princípios da agilidade e eficiência. Muitos
deles, apesar de invocar esses enunciados, revelavam uma convergência para o risco:
28
O estudo do parkour, especificamente, não tem sido muito explorado no âmbito das
Ciências Sociais, aqui no Brasil, a exceção da pesquisa de mestrado em Antropologia de
Rafael Marques sobre a dimensão lúdica dessa atividade na cidade de São Paulo. Entretanto,
podemos encontrar um número considerável de artigos e trabalhos desenvolvidos em outras
áreas do conhecimento, sobretudo na Educação Física. São estudos que perpassam a
30
compreensão de dados relacionados ao condicionamento físico, ao movimento e técnica
presentes no parkour, comparativos entre diferentes campos da prática, como também
elucidam questões outras referentes à ludicidade, aproveitamento dos espaços públicos e
privados, equipamentos utilizados para a realização dos movimentos, entre outros.
Estudar o parkour pode ser útil no sentido de analisar as várias formas de relação do
corpo do indivíduo não só a partir de uma perspectiva da cidade, mas também da
compreensão, de um modo geral, da potencialidade criativa e relacional dos atores sociais e
ambientes com os quais eles interagem. Segundo Nascimento (2016), existe um grande
número de pesquisas voltadas para as práticas urbanas que articulam a corporeidade de
alguma forma, entretanto, os esforços destes trabalhos têm sido encaminhados na direção de
compreender os sentidos e usos da cidade, não privilegiando, necessariamente, o papel do
corpo nessas análises.
Com o parkour, podemos perceber que os indivíduos não absorvem simplesmente uma
prática e a “imitam” segundo a referência: muito mais que isso, eles envolvem a própria
vivência no mundo enquanto corpo que cresce, aprende, se move e se habilita para
determinadas práticas. Essas vivências não deixam de ser elaboradas em diálogo com aspectos
de cultura, gênero, classe, religião e etnia (como alguns exemplos citados acima). Além disso,
convém também examinar a questão da corporalidade e dos discursos que compreendem esse
aspecto: é perceptível um enunciado mais geral sobre autossuperação e a um suposto retorno
ao natural, ao “simples”, ao corpo instintivo, mas também existem outras expressões
adjacentes que contemplam vivências de resistência, do lúdico, da disciplina dos corpos, das
possibilidades de inserção socioprofissional oferecidas pela prática, entre tantas outras. Isto
posto, desdobra-se um longo e rico caminho a ser percorrido para compreender a diversidade
de experiências que envolvem o parkour.
De forma geral, essa tese tem a proposta de estudar a prática do parkour realizada nas
cidades de Campina Grande, na Paraíba, Brasil e também em Porto 13, Portugal. Para isso,
busquei considerar a multiplicidade de vivências que revelam um emaranhado complexo de
linhas geradoras de subjetividades e encontros que produzem diferentes maneiras de estar no
mundo com e pelo parkour. Este trabalho interpreta a prática do parkour enquanto uma malha
(meshwork) (INGOLD, 2018) que é tecida pelo entrelaçamento de dinâmicas de aprendizado
e experiências que nos ajudam a compreender processos de criatividade e conhecimento a
partir do engajamento corpóreo, afetivo e sensorial no mundo. O parkour enquanto uma
prática viva, em movimento, nos mostra diferentes dimensões de participação dos processos
do existir e habitar o mundo, sem que precisemos interpelar uma perspectiva de análise
apoiada nas teorias da agência.
13 Considerando o estreito relacionamento entre os praticantes de Campina Grande e João Pessoa, busquei
alguns dados complementares também nesta última. Já em Portugal, o alcance da pesquisa passa por
algumas cidades da Área Metropolitana do Porto.
32
Nesse contexto, busco privilegiar um exercício de análise sobre o elemento corporal,
vetor primordial das possibilidades suscitadas, pois, como afirma Merleau-Ponty, mais do que
sermos um corpo, temos um corpo, ou ainda, “não apenas estamos no mundo, como também
somos o mundo, pois é a partir do corpo que damos significados ao que chamamos realidade”
(LAKOFF et al, 1999, p.97). É nesse ponto que pretendo trabalhar, particularmente
delineando alguns questionamentos que perpassam problemáticas da agência, interpelando
pontos como: onde, começa e termina o corpo? O que pode o corpo? Como a possibilidades
de relação entre os corpos são produzidas e conduzidas ao longo das linhas dessa “malha” que
é o mundo social, de forma mais ampla, e, de forma mais específica, no mundo do parkour?
Não pretendo construir uma teoria do corpo, mas esboçar uma teoria do parkour,
enquanto um emaranhado de linhas que mobilizam o corpo em pleno envolvimento,
movimento, engajamento com o mundo, numa perspectiva dinâmica e orientada para e pelas
experiências de aprendizagem, reveladas em habilidades, técnicas, sensibilidades e
participação social. Emergindo de experiências de diálogo, trocas, brincadeiras, machucados,
vivências plurais etc, os movimentos e as técnicas no parkour podem nos falar das relações,
histórias, participação social e produção da prática e de si mesmo (DEBORTOLI e
SAUTCHUK, 2014).
Para tanto, a teoria de Tim Ingold é a principal companhia que escolhi nesse caminho
para explorar a temática do parkour, a fim de pensar como e se a crítica desse autor às
perspectivas cognitivistas, às dicotomias mente-corpo/natureza-cultura e sua proposta de
engajamento no mundo ajudam a descrever criticamente a constituição da problemática da
agência na relação “corpo-ambiente”. Estes últimos, tratados, por ora, de forma generalista, os
quais busco questionar ao longo do texto, mobilizando as categorias ingoldianas como pessoa,
organismo, coisa, vida, habilidade, técnica e movimento. Em suma, pretendo analisar o
parkour por meio de uma antropologia que Ingold (2004) compreende como uma “ciência do
engajamento no mundo relacional”.
14 Contamos, até então, apenas com a pesquisa de Mestrado de Marques (2010) sobre a temática.
15 Como também apontado por Machado (2011) em relação à prática do street skate.
34
Povo” durante 30 dias, no mês de junho e recebe inúmeras atrações artísticas e um grande
contingente de turistas.
Em relação ao parkour em Campina Grande, também podemos destacar o grupo
Alliance Parkour, criado em 2007 que conta com atores de diferentes idades. Os lugares onde
mais visualizamos os “treinos” são o Parque da Criança, no Catolé; o Açude Velho, no centro;
o Açude Novo, também no centro; a Universidade Federal de Campina Grande, em
Bodocongó; a Universidade Estadual da Paraíba, no Conjunto Universitário; a Praça da
Catedral, na Prata etc.
As duas cidades mencionadas encontram-se dentro de uma rede mais ampla de
traceurs, estabelecendo relações mais estreitas sobretudo com as capitais dos estados vizinhos:
Natal e Recife, e sediando encontros regionais, como por exemplo, o IX Encontro Nordestino
de Parkour, realizado em Campina Grande entre 06 e 08 de fevereiro de 2016. Este encontro
teve como principal “pico” a Cachoeira do Pinga, pertencente ao território de outro município
vizinho a Campina Grande: Lagoa Seca. Neste ponto, também é interessante observar como o
parkour insere-se na confluência entre a paisagens, ampliando os fluxos para além da cidade
urbana.
Vale ressaltar que é perceptível uma diferença no que tange à consolidação dos grupos
mais organizados em Campina Grande e em João Pessoa. O Parkour Alliance, naquela,
segundo relatos, encontra-se bem disperso, com poucos integrantes e sem muita regularidade
nos treinos. Já na capital, parece haver uma rede melhor articulada e uma agenda de treinos
que é preenchida com mais frequência.
Há relatos da emergência do parkour no início dos anos 2000 na AMP, tendo sido
intensificado principalmente após a criação do Team Braga, um “grupo de jovens que
praticava artes de rua como parkour e street workout”16. Esse grupo, com sede na cidade de
16 Descrição do grupo Team Braga na sua página do facebook:
https://www.facebook.com/pg/TeamBraga/about/?ref=page_internal
36
Braga, a 57km do Porto, possui membros provenientes da AMP, fato este que facilitou a
construção da Academia de parkour Eu+ em 2015, em Vila Nova de Gaia, concelho daquela
área. A organização desse grupo e a constituição da academia disseminaram ainda mais o
conhecimento da prática na AMP, sobretudo em virtude da realização de jams nas ruas –
eventos de treino livres com o objetivo de reunir praticantes de todos os lugares e também de
chamar a atenção dos citadinos para a prática.
Sendo assim, abre-se uma possibilidade de análise profícua sobre o parkour de forma
que a atividade está presente e difusa por entre vários espaços, conjugando alguns aspectos - a
priori - semelhantes na sua relação centro-periferia, bem como a escolha de lugares próximos
a redes de transporte a fim de viabilizar a acessibilidade dos indivíduos, além da rede de
articulação com traceurs de outras localidades. Certamente diversas outras semelhanças e
diferenças devem existir e parece-nos interessante analisar e comparar as duas realidades sob
a ótica das Ciências Sociais a fim de entender aspectos interligados não só à espacialidade das
duas cidades, mas também as questões atinentes às vivências dos praticantes com o parkour
em cada contexto.
Importante notar que deslocamento existente no parkour ultrapassa a dimensão
material, pois é especialmente no fluxo entre o virtual e o “face-a-face” que os contatos são
feitos: os traceurs paraibanos participam de uma rede que abrange a interação em grupos no
whatsapp e facebook, além de perfis do instagram e canais no youtube, onde constantemente
divulgam fotos e vídeos, amadores ou mais elaborados, com seus treinos, além de relatos,
informações e materiais referentes ao parkour, recebendo (e oferecendo) comentários de
vários colegas ou de admiradores dos mais diferentes lugares do Brasil. Este dado também
converge para a constatação feita por Ferro (2016) acerca das sociabilidades suscitadas
através dos meios virtuais em contextos como o de Lisboa, Paris e Barcelona
Por meio desses contatos, os traceurs paraibanos integram uma rede maior de troca,
ampliando a mobilidade não só pelo espaço de sua cidade, mas também para outras, seja
apenas treinar em um determinado pico diferente, conhecer outros traceurs, ou para organizar
e participar de encontros mais abrangentes. Existe, aparentemente, uma boa articulação entre
os traceurs paraibanos com o restante do Nordeste e do Brasil.
O intercâmbio de informações, seja por meio virtual ou não, e a organização coletiva
de traceurs para a elaboração de encontros ou para a construção de um parque de treino, por
exemplo, são alguns dos exemplos de sociabilidades geradas a partir de um objetivo em
comum: a prática do parkour. Os indivíduos que praticam o Parkour, bem como os seus
37
“simpatizantes”, apoiadores, entre outros, estabelecem uma rica troca de informações, onde os
meios digitais possuem grande ressonância na expansão dos contatos e lugares de prática,
além de atraírem novos participantes. O deslocamento ocorre a todo momento e parece ser o
elemento crucial para a manutenção das redes de traceurs, ultrapassando uma localização
determinada. Poderíamos, assim, pensar nessa articulação que perpassa o “offline” e o
“online”, isto é, o material e o digital, como uma forma de interagir potencialmente
mobilizadora. Como “um tipo de mobilização dos coletivos que multiplica os atores,
naturezas e sociedades” (LATOUR, 1994, P.71)
Numa breve pesquisa pelos perfis de facebook dos indivíduos que se reconhecem
enquanto traceurs, podemos observar diversas referências ao universo do parkour: figuras
como David Belle, Foucan e a máxima “être et durer” são constantemente mencionadas nas
postagens desses atores, o que aponta, em certa medida, para um tipo de diálogo entre esses
pares a respeito dos princípios e atores referenciais ligados ao parkour.
E quem são essas pessoas que fazem parkour? Durante minha pesquisa, acompanhei
treinos com praticantes de idades que iam dos 6 anos aos 40, contudo optei por priorizar,
sobretudo nas entrevistas mais aprofundadas, aqueles que estivessem há pelo menos 5 anos
praticando, espaço de tempo que considerei razoável para compreender as nuances do impacto
do fenômeno nos indivíduos de forma mais ampla. O núcleo dos meus interlocutores possui
uma faixa etária entre 18 e 35 anos, todos eles homens. A classe social predominante foi a
média na AMP, enquanto em Campina Grande e João Pessoa, foi possível visualizar uma
maior predominância da baixa classe média e da média classe média. Foi observada uma
diversidade étnico-racial em ambos os contextos, sendo, entretanto, mais marcada nas cidades
de Campina Grande e João Pessoa.
Feita essa breve apresentação do cenário de João Pessoa e Campina Grande referente
ao parkour, destaco a necessidade de compreensão do parkour a partir das experiências diretas
dos praticantes, aprofundando os aspectos que constituem essa prática, e, para isso,
percorrendo os entrelaçamentos que suscitam e que emergem as linhas de constituição da
experiência do parkour. Entender essas linhas pode nos levar a vislumbrar o alcance de
discursos, trajetórias e campos de possibilidades dos atores envolvidos nessa prática (FERRO,
2016). Tal abordagem ultrapassa a perspectiva de apropriação do espaço, privilegiando não só
o aspecto múltiplo de tessitura da cidade.
Vejo o parkour enquanto uma prática que nos permite entender os ambientes em suas
ressignificações, ludicidades, ou, ainda, a própria cidade como “criada e articulada a partir de
38
um treinamento do corpo que permite perceber qualidades até então inacessíveis para um
corpo não treinado” (MARQUES, 2010), mas, em especial, ressalto as várias nuances do que
é vivenciar o parkour, entendendo como são conectadas a distintas expressões e
configurações, apresentadas explícita ou implicitamente em variadas narrativas que
atravessam de maneira diluída – às vezes até contraditória – os mais diferentes contextos.
(...) Há uma gama de práticas que não é visível na chave de leitura da política
(ou melhor, de uma certa visão de política); é justamente essa dimensão que a
etnografia pretende resgatar. A incorporação desses atores e de suas práticas
permitiria introduzir outros pontos de vista sobre a dinâmica da cidade, para além do
olhar “competente”, que decide o que é certo e errado, e para além da perspectiva e
interesses do poder, que decide o que é conveniente e lucrativo (MAGNANI, 2012,
P.258)
A partir dessa ideia, é possível pensarmos em uma dimensão interessante para o estudo
do parkour, uma vez que considera a cidade a corporalidade dos seus atores como
mobilizadores dos processos dos quais participam. Portanto, mais do que compreender a
cidade em seus sentidos e usos, é necessário também identificar possíveis implicações
recíprocas que são instauradas entre o espaço urbano e as corporalidades dos indivíduos.
Analisando a dança a partir da noção de corpografia, Britto e Jacques (2008) afirmam
40
Reconhecer a cidade como um ambiente de existência do corpo, que tanto promove
quanto está implicada nos processos interativos geradores de sentido implica
reconhecê-la como fator de continuidade da própria corporalidade dos seus
habitantes. A dança seria, então, um dos modos de que dispõe o corpo de instaurar
coerências entre sua corporalidade e seu ambiente de existência, produzindo outras e
diferentes condições de interação desafiadoras de novas sínteses – novas
corpografias. (ibid, p.82)
Dessa forma, as autoras argumentam que o ambiente não se configura apenas como
um espaço físico que se encontra disponível para uso, mas é campo mesmo de processos para
o corpo, onde a relação entre eles gera tanto corporalidade quanto qualificações de ambientes.
Assim, cada corpo pode experienciar vários ambientes, como vários corpos podem lidar de
forma semelhante com a mesma situação, mas as corpografias, encaradas como experiências,
acontecem de forma ímpar (BRITTO. JACQUES, 2012)
A utilização da fotografia e vídeos em campo – tanto feitas por mim quanto pelos
traceurs - foi de grande relevância, pois, como destaca Ferro (2015), existe uma grande
pertinência desses recursos no contexto do parkour , posto que há um forte apelo da imagem
pelos traceurs, servindo, também, de componente a ser analisado. Dada a efemeridade do
movimento, o registro por meio de fotos e vídeos é bastante acionado pelos praticantes,
apontando uma forma de perpetuação da prática no tempo e no espaço (CALDEIRA, 2012).
Na mesma linha de pensamento, podemos destacar que a obra de Ingold, a qual busco
estar diálogo constante ao longo desta tese, também fornece, a partir da sua própria
formulação teórica, elementos que nos desafiam a pensar formas outras de explorar
metodologias, especialmente, o fazer etnográfico. A análise das categorias como corpo,
organismo, pessoa, ambiente, movimento, habilidade, técnica – caras ao tema do parkour –
são a todo tempo mobilizadas e postas em perspectiva no trabalho de campo. Para o autor,
“compreender o corpo é compreender o corpo e o ambiente como movimento” (INGOLD,
2011),
Assim como a etnografia dos fluxos (FERRO, 2015) e a análise das corpografias
urbanas (BRITTO, JACQUES, 2008), a compreensão de Tim Ingold (2015) sobre a relação
entre organismos e ambiente passa por uma preocupação em analisar os movimentos do e
junto ao campo de pesquisa; de desenvolver, literalmente, um tipo de “observação-
caminhante”. Nesse sentido, Iared e Oliveira (2017) destacam Ingold e outros autores de
orientação filosófica do que chamam “virada corporal”. Essa perspectiva, de inspiração
fenomenológica, defende uma ideia de que não existe uma mente num corpo pensado,
significando e representando o mundo. O que existe é, na verdade, uma mente engajada que
não distingue pensar–fazer e o sentir-estar em movimento, daí a necessidade de engajamento
corporal também do pesquisador na situação estudada.
Ao encarar a problemática pesquisada como um uma dinâmica em processo, além das
inspirações das abordagens etnográficas que citei, também busco referência na perspectiva da
cartografia, a fim de experimentar esse movimento de “tatear” o campo. Não se trata,
entretanto, de um exercício sem rigor, mas de uma ressignificação deste, deslocada para o
compromisso com o movimento da vida. A cartografia é, pois, uma imersão no plano da
experiência, de forma que não dissocia o conhecer do fazer, do acompanhar o caminho e
constituir-se no caminho (PASSOS, et al, 2010).
Durante meu processo de pesquisa, optei, sob influência dos ensinamentos da
Cartografia, apostar mais nas “pistas” do que nas regras de um esquema de investigação. Um
exercício de atenção no trabalho de campo foi de grande relevância para a construção de
novos delineamentos a respeito do que até então eu havia traçado. Essa atenção, vinculada
também à afetividade desenvolvida com o campo, possibilita uma elaboração reflexiva de
saber “com” e não de saber “sobre”, isto é, busca afastar em certa medida um possível
42
comportamento hierárquico de conhecimento sobre o campo que se investiga. Encarar,
portanto, que toda pesquisa é um tipo de intervenção permite-nos enxergar a relação entre
conhecimento com uma implicação, um engajamento no mundo (PASSOS. ALVAREZ, 2010).
Recursos metodológicos
A presente pesquisa foi desenvolvida com traceurs entre 18 e 40 anos, das cidades de
João Pessoa e Campina Grande – PB e também com traceurs da área metropolitana do Porto,
em Portugal, a partir da oportunidade de um doutorado-sanduíche por um período de 6 meses
nesta última. Diante dos diferentes cenários, foi possível recolher dados e analisar discursos e
práticas referentes ao universo do parkour no contexto paraibano e portuense, observando,
principalmente, os elementos que apontam para a elucidação de uma crítica do corpo em
relação à cidade e do parkour como prática para a vida, e não restrita a uma característica de
“juvenil”, como às vezes têm sido consideradas erroneamente práticas urbana em geral.
(FERRO, 2016). Para tanto, busco auxílio dos dados etnográficos acerca das sociabilidades,
experiências corporais e citadinas dos praticantes na Área Metropolitana do Porto e Campina
Grande, trazendo em complemento a esta última, algumas informações também sobre
dinâmica do parkour em João Pessoa, dada a sua articulação socioespacial com aquela.
Ressalte-se que todos os nomes dos praticantes utilizados ao longo dessa pesquisa são
fictícios. Além disso, busco dar preferência ao termo “praticante” de parkour pois engloba
outros termos como “traceur” ou a versão aportuguesada “tracer”, entretanto, estes dois
últimos podem ser interpelados eventualmente sem incorrer em impactos substantivos na
compreensão do texto, uma vez que todos se referem a pessoas que fazem parkour.
Os caminhos metodológicos foram diversos, passando especialmente pela Etnografia,
observação-participante (e participação observante), diário de campo, fotografia, entrevistas,
análises documentais de vídeos, fotos, textos, jornais e toda sorte de conteúdo disponível em
plataformas digitais.
No tocante às técnicas de recolha de dados, destaco, a priori, a entrevista semi-
estruturada, o diário de campo, a observação participante, a fotografia e também levantamento
de dados a partir de mídias tradicionais e digitais. Em relação à primeira, pretende-se, com
ela, entender aspectos sobre as trajetórias de vida dos traceurs, buscando elementos
elucidativos sobre o indivíduo, o grupo, a prática, os espaços urbanos, entre outros. Já o diário
de campo foi útil para confrontar constantemente as impressões de campo da pesquisadora
43
com dados passados e futuros, servindo, inclusive, de instrumento para (re)pensar as próprias
categorias e modos de elaboração do pensamento a partir de um aporte teórico dos
fluxos/movimentos mobilizadoras dos corpo (inclusive, em alguma medida, do meu próprio
corpo). Também contei com alguns esboços e desenhos dos movimentos de parkour como
uma extensão do meu diário de campo. O levantamento de dados nas mídias tradicionais e
digitais serviu como complemento investigativo, especialmente no tocante à divulgação de
material audiovisual pelos traceurs, bem como as informações trocadas em grupos, fóruns, o
que torna possível explorar a etnografia virtual, em virtude da articulação, emergência e
potencialização de sociabilidades que são suscitadas a partir da internet.
Estudar o parkour é mergulhar em uma infinidade de informações, nem sempre fáceis
de sistematizar em um texto. Trata-se de uma prática complexa, carregada de aparentes
paradoxos, mas que, ao final, nos evidenciam vivências muito ricas, experienciadas de
maneiras distintas em cada lugar e por diferentes indivíduos e grupos. Assim, convido você,
leitor, a fazermos juntos um pouco de parkour pelas próximas linhas.
Estrutura da tese
O texto é dividido em cinco capítulos. No primeiro capítulo, faço uma reflexão sobre
os movimentos da pesquisa, discutindo as formas de entrada e adaptação ao campo, os
caminhos metodológicos delineados para estudar o parkour e os desafios de desenvolver um
estudo a partir de uma perspectiva “encarnada”, isto é, levando em conta os aspectos que
elaboram uma experiência sensível, corpórea e afetiva.
Seguindo o debate em torno da experiência corpórea, trago no segundo capítulo, um
panorama das Ciências Sociais, visando situar o debate teórico sobre o corpo desde os autores
clássicos até os contemporâneos. Ao final, proponho um deslocamento do foco que é dado ao
corpo até então para pensarmos o tema deste trabalho, partindo de uma abordagem
fenomenológica até a contribuição de uma análise crítica ao representacionismo e à
perspectiva cartesiana da dicotomia entre corpo x mente, norteada pela teoria de Tim Ingold
(2018).
No terceiro capítulo, exploro alguns aspectos das vivências com o parkour
relacionadas com a experiência corporal dos praticantes. Busco trazer algumas elementos que
nos ajudem a compreender formas de agenciamento, percepção e modos de aprendizagem
44
do /com o corpo enxergadas na dinâmica do parkour. Ensaio uma reflexão sobre como
podemos exercitar a compreensão da prática a partir de uma reflexão pelos pés, como uma
maneira de deslocar o centro perceptivo do corpo da cabeça/mente para o corpo como um
todo.
No quarto capítulo, busco apresentar o parkour a partir de uma perspectiva de malha
(INGOLD, 2018). Considero as várias dimensões que delineiam a prática a partir da ideia de
linhas entrelaçadas. As linhas do parkour revelam-se, nesse contexto, enquanto diferentes
experiências, e, entre elas, tento explorar alguns aspectos especialmente marcados pelos
afectos (DELEUZE; SPINOZA), como também os relatos que tecem narrativas sobre
trajetórias, além das observações de campo que nos auxiliam a vislumbrar um panorama mais
geral acerca dos contextos estudados.
Por fim, o quinto capítulo apresento algumas reflexões sobre a experiência que é
viver o parkour a partir de uma perspectiva de relação de engajamento do mundo pela ótica do
habitar. Dentro de uma teoria da vida e do habitar, parte-se da ideia de que vivemos em um
ambiente sem objetos (ASO). Essa análise é apontada por Ingold (2012) visando um
afastamento do “problema da agência”.
45
46
Capítulo 1 – Jogando o corpo no mundo (do parkour) – notas sobre os movimentos da
pesquisa
Talvez a primeira coisa a ser feita quando iniciada uma pesquisa seja a busca pela
definição do que é o seu “objeto”. A partir daí, pode-se pensar os caminhos possíveis a serem
trilhados no ato de explorar as hipóteses e de aproximar-se dos objetivos desenhados. Sendo
assim, o que é parkour? Em uma busca rápida pela internet, ou em uma entrevista mais
superficial, a resposta mais comum é a seguinte explicação: “é um movimento realizado de
um ponto A para um ponto B, da forma mais eficiente possível”, eventualmente
complementada por “a fim de ser útil” e, ainda “de maneira que o corpo possa ser e durar ao
longo do tempo”. Tais aspectos estão presentes em maior ou menor medida em todas as
experiências do parkour, uma vez que vêm desde a constituição dos seus primeiros
delineamentos enquanto Art du deplacement, nos subúrbios franceses, com o grupo Yamakasi.
Embora as vivências com a prática desdobrem-se de inúmeras maneiras, a menção ao grupo
Yamakasi e a uma certa “essência” do parkour é, no geral, feita pela maioria dos praticantes,
indicando ser uma referência importante a um tipo de capital atinente ao parkour.
Mesmo dentro de comunidades mais organizadas e com grande frequência de treinos
coletivos e concepção de projetos, como é o caso da que pude conhecer no Porto, existem
modos de encarar certos valores e práticas do parkour diferentes entre os indivíduos. Por
exemplo, é possível observar, como foi mencionado por um dos praticantes, diferenças entre
um “parkour old school” como uma prática mais “pura”, sem “firulas”, objetiva, eficiente e
“parkour new school” que remete à incorporação de movimentos “não eficientes” tais como
saltos mortais e, por isso, mais próxima do que se entende por free running. Tanto a
comunidade analisada no Porto quanto em Campina Grande apresentam visões sobre a
definição do parkour que não são unívocas, podendo cada sujeito trazer um elemento
diferente à compreensão dessa prática. Com uma relativa segurança, o único ponto que
poderia ser ressaltado a respeito de um certo consenso observado nos dois campos está na
crítica à submissão do parkour enquanto subcategoria da Ginástica nos Jogos Olímpicos. O
movimento “We are not gymnastics”, manifestado na forma de carta aberta por diversas
federações de parkour, foi recebido por várias comunidades ao redor do mundo, as quais
consideram o ato da Federação Internacional de Ginástica uma “apropriação” do parkour,
menosprezando a autonomia da prática e dos seus atletas, subjugando-os a um esporte que
tem bases e características extremamente distintas do parkour. Nesse sentido, ainda que a
47
crítica à inclusão do parkour nos Jogos Olímpicos enquanto subcategoria da Ginástica seja
feita, os fundamentos dessas críticas repousam em visões divididas a respeito do próprio
processo de esportivização do parkour. De um lado, podemos encontrar pessoas que acreditam
no parkour enquanto um esporte regulamentado e até como via de profissionalização e meio
de vida para os praticantes dessa atividade, e de outro, também podemos encontrar sujeitos
completamente desfavoráveis à ideia do parkour como um esporte, de forma que esse
processo esfacelaria a lógica “essencial” da prática enquanto modalidade livre e assente na
noção de não competitividade. Estes são apenas dois lados com a finalidade de ilustrar
diferentes pontos de vista. Em meio a isto, temos muitas outras formas complexas de encarar
e vivenciar o parkour.
Construir, portanto, um modelo de interpretação do parkour, dada à heterogeneidade
dos discursos e das vivências com a prática ao longo de todo o mundo, é uma tarefa
desafiadora, especialmente se o objetivo for delinear um consenso. Meu esforço, portanto, é
mais direcionado no sentido de sugerir algumas pistas que possam nos encaminhar à
compreensão das multiplicidades enxergadas no mundo desse fenômeno, sem fechá-lo em
uma definição específica. Não busco, dessa forma, pela “essência” do parkour, mas sim, pela
compreensão do emaranhado das diversas linhas (INGOLD, 2018) que o constituem. Busco
pelos agenciamentos, pelas linhas desse “crescimento das dimensões, numa multiplicidade
que muda necessariamente de natureza à medida que ela aumenta suas conexões”
(DELEUZE;GUATTARI, 1995, p.16). Por isso, intento realizar o presente debate mobilizando
os termos referentes a algumas de suas facetas que ocorrem sob diferentes contextos: prática
corporal, esporte, atividade física, filosofia, arte etc, sem fazer uma escolha definitiva entre
nenhuma destas, tendo em vista que a própria prática se desdobra no social de diferentes
maneiras – todas são diferentes linhas do mesmo emaranhado. Assim, optei por, na maioria
das vezes, me remeter ao parkour enquanto “prática” ou “atividade” de forma que esses
termos possam deixar uma margem mais ampla de conceituação, oferecendo abertura para os
fluxos diversos das linhas seguirem com maior liberdade.
Além disso, ressalto que todas as outras escolhas e reflexões presentes nesse texto são
frutos de uma relação de colaboração entre diversas pessoas, seja com os praticantes nos
campos estudados, com praticantes que nunca encontrei pessoalmente, mas estabeleci trocas
importantes de ideias por meio das redes sociais. Além disso, de grande importância foram as
trocas feitas com colegas, professores e pesquisadores que encontrei ao longo da minha
jornada durante o doutorado, com destaque especial para as discussões realizadas na
48
disciplina de “Corpos, política e afetos” ministrada pelos professores Ronaldo Sales e Luis
Henrique Cunha no PPGCS, e que viria a ser um “ensaio” para o Devires – grupo de
intervenção e pesquisa sobre corpos, afectos e política – um espaço de compartilhamento
frutífero e plural, responsável por regar os rizomas de cada trabalho e experiência debatidos
ali e do qual, o meu estudo não sairia ileso. Um trabalho, nesse sentido, nunca é feito somente
a duas mãos, trata-se, também, de composição de um emaranhado (INGOLD, 2018), de uma
multiplicidade (DELEUZE; GUATTARI, 1995) que cresce propositadamente de maneira
descompensada. Mas a construção de um texto, o jogo teórico-metodológico – e tático –
repousa, em alguma medida, parte da responsabilidade nessas mãos que agora a escrevem. É
um trabalho de edição, um experimento artesanal que é podado pelas regras acadêmicas, mas
que também brinca com esta, escapando aqui, acolá, por algumas linhas de fuga. Por essas e
outras razões, resolvi apresentar meu trabalho na primeira pessoa do singular, com a
finalidade de não me esconder “sob a capa de um observador impessoal, coletivo, onipresente
e onisciente, valendo-se da primeira pessoa do plural” (OLIVEIRA, 1996, p.27) mas
acompanhado, também, de um esforço de não tornar o texto mera descrição intimista. Neste
capítulo, busco explicitar as condições de produção da pesquisa, trazendo pontos importantes
que, num contexto de intersubjetividade no campo em questão, contribuíram para a
construção epistêmica do debate aqui posto.
Para quem está “de fora” do mundo do parkour, é comum pensar que a prática trate de
um tipo de esporte radical e perigoso. Isso se deve em muito à imagem difundida pela mídia
de um certo estereótipo de parkour: saltos entre prédios de grande altura, escaladas e corridas
frenéticas ao tipo “fuga de polícia”. O conhecimento do parkour se alargou em grande medida
inclusive devido a esse imaginário espetacular e cinematográfico da prática, tornado popular
especialmente depois do filme de ação francês Banlieue 13 (B13 – 13º Distrito, no Brasil),
protagonizado por David Belle. Esse tipo de parkour de fato existe e, por ser a sua faceta mais
explorada pela mídia mainstream, acaba contribuindo para a construção de um senso comum
do parkour enquanto um “esporte radical” ou uma “prática perigosa”. Contudo, ao adentrar no
cotidiano da prática, nós somos levados a perceber que esses momentos mais “dramáticos”
constituem a exceção.
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Nesse sentido, ajustei meu foco a fim de compreender o parkour nas dinâmicas de
aprendizado nos treinos, nos muito mais frequentes momentos de conversa e desenvolvimento
de uma atenção ao movimento, no passeio pelas ruas, vielas, tateamentos pelos materiais das
paredes, olhares para coisas que os leigos no assunto não percebem a primeira vista. Foi
preciso, portanto, apreender o parkour para além das cenas cinematográficas como as
apresentadas nos filmes de ação ou nos vídeos hiper produzidos, como do do grupo britânico
Storror, isto é, sem pensar somente na “figura extraordinária” (WACQUANT, 2002), mas
tentar, sim, aproximar a experiência de pesquisa da experiência dos treinos ordinários, das
centenas de movimentos de precisão entre um degrau e outro, das incansáveis tentativas de
escalada, dos exercícios de fortalecimento, das trajetórias de vida, experiências, aspectos
sociais que distinguem os praticantes entre os contextos de Campina Grande e Porto. Além
disso, fui percorrendo caminhos que me levaram à compreensão das negociações, discursos e
fatores outros que de início podem se mostrar fragmentados em pontas soltas, mas que, aos
poucos, vão tecendo o emaranhado no qual o parkour se encontra e o constitui.
Investigar o parkour abriu um caminho de desafios bem mais amplo do que pensei no
momento da confecção do meu projeto de pesquisa. As dúvidas estenderam-se durante toda a
trajetória do trabalho, na verdade. Inicialmente, desenhei um esboço de uma investigação na
qual a etnografia seria privilegiada e outros recursos de coleta de dados fariam as vezes de
complementação. Posso dizer que, sim, essa pesquisa tem sua orientação fortemente baseada
na Etnografia, pelo que acabei de expor, mas que faz também um movimento de encontro – e
de confronto – com outras reflexões, as quais, muitas vezes, apresentam elementos próximos
do debate etnográfico, mas que também fornecem aspectos outros capazes de suscitar
questionamentos e provocações no sentido de por em perspectiva um debate que não se reduz
ao caráter metodológico. Ora, a metodologia não se inicia somente no campo de pesquisa,
tampouco pode ser reduzida e apresentada estritamente no texto do que geralmente chamamos
de “capítulo metodológico”. Apesar de entender a necessidade deste último no sentido de uma
organização formal das ideias para o texto como um todo, as reflexões acerca dos
procedimentos de acesso à realidade do campo são diluídas por todo o trabalho, constituindo,
inclusive, as feituras da escrita – movimento em aberto, em constante diálogo, por vezes
“traiçoeiro”, mas que constroi e descortina suas potencialidades (e limitações) a medida do
seu desenvolvimento.
Metodologia, teoria e a pesquisa de campo são elementos de uma reflexão construídos
em sinergia. Atrelar fatalmente uma metodologia a um campo do conhecimento também pode
50
sugerir algumas problemáticas, como é o clássico entendimento da Etnografia como o método
por excelência da Antropologia. Realizar um estudo antropológico não implica desenvolver,
por consequência inescapável, uma etnografia. Muito se justifica a Etnografia pela prática da
observação-participante e vice-versa. Essas definições podem gerar algumas zonas nebulosas
e acredito que seja interessante conversar um pouco sobre essas implicações, trazendo
contribuições de algumas perspectivas que nos ajudem a navegar por esse debate, sem,
necessariamente, resolver tais questões com vereditos sobre um assunto tão rico em
possibilidades.
19 Lígia Ferro, minha coorientadora, responsável por me acompanhar durante meu doutorado-sanduíche no
Porto, em entrevista a Loureiro (2020) explicita muitas questões sobre sua experiência corporal enquanto
pesquisadora, a importância da aproximação e comunicação não verbal com os interlocutores a partir do seu
engajamento nas atividades. Disponível em https://journals.openedition.org/pontourbe/9757.
58
meu próprio corpo. Essa dimensão não norteou minha investigação nos seus primeiros passos
– ela foi, na verdade, se descortinando – se mostrando necessária - aos poucos, entre idas a
campo, conversas, entrevistas, leituras, consultas a materiais como vídeos, blogs, fotografias e
envolvimento corporal com a prática e outros tipos de atividade física. Trazer para o centro da
reflexão que eu e os praticantes de parkour somos, antes de tudo, seres “de carne, nervos e de
sentidos (sensual e significante)” (WACQUANT, 2002, p.11) conforma grande parte da
orientação teórica e metodológica dessa pesquisa. Meu movimento foi, em certa parte,
parecido com o descrito por Wacquant enquanto pesquisador de pugilismo, seu trabalho não
foi inicialmente propulsionado por uma vontade de comprovar a validade de uma sociologia
carnal:
Aos poucos fui me sentindo cada vez mais segura para utilizar a câmera do
smartphone ou câmeras fotográficas, como também comecei a ser interpelada pelos
praticantes, que me entregavam suas câmeras e pediam para eu fotografar ou filmar algum
movimento. Às vezes fazia “ao meu jeito”, e outras, eles intervinham, mostrando-me
exatamente como me mover, a velocidade que eu deveria caminhar ou correr para
63
acompanhar uma sequência de movimentações, como eu devia estender os braços e mãos para
apontar a câmera e os espaços mais interessantes para eu me posicionar e captar a cena de
forma mais clara. Assim, a partir da minha observação e com os praticantes sugerindo
melhores disposições para filmar ou fotografar, fui testando possibilidades com a câmera e
também com o meu corpo-olhar. Além de aprender gradualmente o timing certo para as fotos
e vídeos, passei a subir em paredes, bancos, a agachar-me, deitar no chão ou ficar em alguma
posição específica com mais frequência: passei a movimentar-me mais ativamente com intuito
de exploração do ambiente e de ângulos para os registros visuais (tanto pela câmera, como
pelo meu “olhar”). A início, eu tentava captar os movimentos de forma mais “fiel” ao que eu
estava vendo no momento, mas os cliques “errados” (seja por uma falha no timing, ou por não
conseguir acessar um determinado ângulo etc) mostraram-me outros aspectos que eu não
estava tão atenta no momento do registro.
Nesse sentido, o ato de fotografar/filmar mostrou-se de extrema valia no processo de
pesquisa, tanto no aspecto de análise do fenômeno estudado, quanto de aproximação com os
interlocutores, no sentido de uma certa efetivação da observação participante. Além disso,
pude desenvolver, com ajuda dos praticantes, um “olhar-movimento” com a câmera mais
acurado para o registro das imagens. O manuseio da câmera, ainda que de modo não-
profissional, definitivamente foi indispensável para estreitar os laços com as pessoas, com os
lugares, materiais, movimento e corpo.
Mídias sociais e visões políticas: A teoria dos grafos desenvolvida em 1736 pelo matemático
Leonhard Euler busca estudar as conexões entre elementos de um mesmo conjunto, sendo tais
grafos representados por nós, interligados por arestas, formando, assim, as redes. A teoria de
Euler influenciou diversos outros estudos a desenvolverem modelos de análise baseados na
compreensão das estruturas das relações, de modo que a Sociologia também recebeu esse
impacto, especialmente nas décadas de 1960 e 1970 com o paradigma da Análise Estrutural
(RECUERO, 2004). As redes sociais, assim, apesar de popularizadas na última década
enquanto sinônimo de “mídias sociais” - os sites ou aplicativos de interação social na internet
- não constituem uma ideia formada na contemporaneidade, sendo, portanto, nada mais do
que uma forma de análise com ênfase na interação, seja no mundo “online” ou “offline”.
Tratando-se, pois, de interação, e este tipo constituindo um dos principais aspectos da
realidade social, faz com que a materialidade digital seja parte, também, dos emaranhados do
parkour.
É inegável o efeito das mídias sociais e aplicativos na internet na dinâmica social
como um todo, especialmente as plataformas como youtube, facebook, instagram, twitter e
whatsapp que têm um alcance social significativo. No caso do parkour, prática que é
difundida principalmente pela internet, torna-se crucial desenvolver uma familiaridade com
tais sites e aplicativos como fonte e espaço de pesquisa, dado que uma relevante parte da
constituição e fortalecimento das interações entre praticantes de parkour desdobram-se nessas
plataformas. A minha aproximação dos interlocutores foi primordialmente facilitada por essas
mídias digitais, especialmente o facebook e instagram. Como mencionado, eu não tive uma
pessoa que pudesse mediar os primeiros contatos, de forma que eu selecionei alguns perfis e
enviei mensagem privada, na qual eu me apresentava como estudante que estava
desenvolvendo uma pesquisa sobre parkour, dizia que havia visto o perfil do praticante ao
realizar buscas sobre o assunto e perguntava se havia a possibilidade de conversar um pouco
sobre o tema. A maioria das mensagens foi respondida e, após a aproximação ser permitida,
eu adicionava o interlocutor, à convite meu ou dele, à rede utilizada para o contato, seja
facebook ou instagram. Optei por não criar uma rede específica para essa interação, pois senti
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que poderia soar como “fake” - um perfil falso - ou algo do gênero. A medida que fui
adicionando os praticantes, criei uma rede de “amigos em comum”, o que acredito que
também foi tornando mais a minha abordagem mais “confiável” quando eu entrava em
contato com novos praticantes.
É preciso ressaltar, em meio a essa dinâmica atravessada e atravessante pelos
desdobramentos do digital, que todo estudo é feito em um tempo e um lugar. Essa pesquisa,
tendo sido realizada entre os anos de 2016 e 2020, esteve situada num período de contexto
político muito acirrado, envolvendo desde o golpe de estado que resultou no impeachment da
Presidente Dilma Rousseff até a eleição e mandato do Presidente Jair Bolsonaro e sua atuação
frente a pandemia do Covid-19. Esse contexto precisou ser considerado em alguma medida
para não oferecer óbices à fluidez do trabalho, especialmente em razão das redes sociais
digitais serem, atualmente, os principais canais de opinião e visibilização da nossa identidade
política e, também, os principais meios de contato com os interlocutores.
Diante de um campo heterogêneo de praticantes de parkour, especialmente homens,
eventualmente me deparei com visões políticas divergentes da minha, seja em relação às
gestões presidenciais, seja sobre temas relacionados a gênero, compartilhadas em suas mídias
sociais. Percebi, entretanto, que compartilhar conteúdos nas minhas mídias que indicassem o
meu posicionamento diante desses temas podia oferecer uma certa antipatia inicial a alguns
interlocutores, o que me causou algumas poucas, mas significativas, exclusões, mesmo eu
nunca tendo falado sobre tais assuntos nos meus primeiros contatos. Optei, assim, evitar uma
divulgação muito explícita sobre minha visões políticas nas mídias sociais a fim de não gerar
possíveis resistências quando das oportunidades iniciais de aproximação. De toda forma, ao
longo da minha relação com os interlocutores, não escondi minhas considerações sobre temas
políticos, especialmente se eu era indagada sobre. Busquei, ao máximo, tentar estabelecer um
diálogo ameno e aberto, inclusive como estratégia de compreensão da diversidade de lugares
sociais experienciados pelos agentes e potencialmente reverberados na dinâmica de suas
vivências com o parkour.
***
Neste capítulo, busco delinear um certo panorama das Ciências Sociais, visando situar
o debate teórico sobre o corpo desde os autores clássicos até os contemporâneos. Ao final,
proponho um deslocamento do foco que é dado ao corpo até então para pensarmos o tema
deste trabalho, partindo de uma abordagem fenomenológica até a contribuição de uma análise
crítica ao representacionismo e à perspectiva cartesiana da dicotomia entre “corpo x mente”,
norteada pela teoria de Tim Ingold (2018).
É sobretudo a partir de 1980 que o debate sobre o corpo nas Ciências Sociais começou
a procurar preencher as lacunas de algumas questões deixadas pelos sociólogos clássicos,
buscando ampliar as raízes em um campo em vias de desenvolvimento. Há, nesse contexto,
uma mudança do paradigma naturalista - representado principalmente pela sociobiologia e
também por algumas correntes iniciais do feminismo - para o paradigma construtivista, o qual
encara o corpo como um resultado de uma série de processos socioculturais (SHILLING,
2013). Assim, foi iniciada uma série de trabalhos cujo esforço se concentrou em trazer o corpo
para o centro de discussões envolvidas nas questões mais “tradicionais” das Ciências Sociais,
servindo para alargar os horizontes teórico-metodológicos. Não só o empenho em torno das
demandas teóricas foi empreendido, mas também investigações de caráter empírico foram
importantes para incrementar e inspirar novos estudos sobre a temática. Podemos destacar
algumas relevantes produções na área representadas por nomes como Turner, O’Neill, Freund,
Frank e as publicações organizadas por Feher, Nadaff e Tazi e também por Featherstone et al
(ibid). Destaca-se, ainda, o renome da revista Body and Society, iniciada por Turner e
Featherstone, onde um levantamento acerca da temática do corpo demonstra que não houve
uma grande diferença na constituição das temáticas relacionadas ao corpo entre a sociologia e
a antropologia, à exceção de uma lacuna em torno dos trabalhos etnográficos e comparativos
(ALMEIDA, 2004).
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Voltando para o contexto sociohistórico que aludimos no início da discussão, Shilling
(2013) aponta que diferentes panoramas históricos trazem o corpo enquanto problema social,
relacionando-se, portanto, com a sua emergência enquanto problema sociológico, mas lembra
também ser uma visão reducionista acreditar nessa explicação de forma isolada. Objeto em
disputa nos mais diversos contextos sociais, o corpo foi delineado para atender padrões
correspondentes a determinados discursos e políticas voltados para questões étnicas, raciais,
médicas e morais. Desde as grandes guerras até os movimentos identitários mais recentes, o
significado social do corpo foi e é alvo de uma série de mudanças. Especialmente no contexto
em que vivemos, o desafio em torno dessa temática perdura, pois “o corpo é um terreno
privilegiado das disputas em torno quer de novas identidades pessoais, quer da preservação de
identidades históricas, da assunção de híbridos culturais ou das recontextualizações locais de
tendências globais” (ALMEIDA, 2004). Assim, observar essa chave das transformações
destes significados sociais em consonância com a história é muito importante para
acompanharmos e compreendermos os desdobramentos e implicações em torno da temática,
especialmente no que tange ao aumento da atenção das Ciências Sociais sobre o corpo.
As contribuições do movimento feminista, principalmente o da segunda onda, os
debates em torno das alterações demográficas, do envelhecimento, da ascensão do consumo
fomentada pela lógica capitalista instigaram o próprio tensionamento sobre o significado do
ser e ter um corpo. É inegável, sobretudo, os subsídios teóricos fornecidos pelos estudos
feministas para a problematização do corpo, especialmente devido aos questionamentos de
ordem ontológica sobre a diferença sexual (SHILLING, 2013).
Adicionais aos estudos feministas, outras importantes experiências auxiliaram no
incremento da discussão sobre o corpo, a exemplo das negociações em torno da valorização
do corpo jovem, magro e sexualizado (ibid). Ferreira (2009) também aponta a questão do
corpo na sociologia da juventude, argumentando a favor de uma encarnação da área, diante
da existência de normatividades que definem a figura do jovem, refletidas especialmente a
nível do corpo. A cultura de consumo também trouxe a tona as questões relacionadas à saúde,
dietas, estilo de vida fitness, vestuário enquanto expressão da personalidade, racionalização e
disciplinamento do corpo, entre outras. Ainda, Shilling (2013) afirma que, em virtude da
expansão tecnológica e dos avanços médicos, o corpo é frequentemente encarado enquanto
“máquina”, a qual pode ser controlada, remodelada, treinada, aprimorada. Esse controle sobre
o corpo, operado a partir de diversas instâncias, mesclado com os mais diferentes aparatos
materiais, discursivos e práticos, nos levam, cada vez mais, a tensionar os limites ocupados,
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constrangidos ou extrapolados pelos nossos corpos. Saber o que de fato o corpo é talvez não
seja o melhor ponto de partida para desenvolvermos uma teoria focada na questão, que por
sua natureza extremamente complexa, exija no esforço sociológico uma atenção voltada para
as formas plurais que os indivíduos têm de encarar, construir e desconstruir as narrativas e
experiências, encarnadas ou não, relativas ao que, pelo menos a priori, entendemos enquanto
corpo.
Nesse contexto, o objetivo das Ciências Sociais, ao travar uma análise que procure
sobrepujar a compreensão acerca do corpo enquanto organismo pré-definido e naturalizado,
configura-se muito mais enquanto um convite ao desafio de entender as nuances, pluralidades
e complexidades delineadoras dos corpos. Em outras palavras, falar em corpo põe à tona uma
dificuldade, especialmente a nível operativo nos casos de investigação empírica, se buscarmos
concebê-lo de forma fechada, escorados ainda na praxe biológica e médica. Diferentemente
de uma abordagem em torno do organismo humano, trazer o corpo para o centro do debate
sociológico, defini-lo enquanto um objeto de estudo, volta-se especialmente para a
compreensão ao nível da corporeidade. Esta, no entendimento de Berthelot, (apud
FERREIRA, 2013) pode ser interpretada como “o conjunto de manifestações simbólicas da
existência corporal, devidamente contextualizado no tempo histórico e no espaço social
(FERREIRA, 2013. p.499).
O avanço do olhar sociológico sobre o corpo é justamente o exercício reflexivo em
torno da sua socialidade, isto é, considerá-lo enquanto uma realidade simbólica, inserida em
um contexto de interação, ação e mudança tanto a nível morfológico e fisiológico, quanto a
nível dos seus movimentos e gestualidade; é buscar, assim, entendê-lo, situado no tempo e no
espaço, em diálogo com uma realidade histórica, social, política, ideológica, econômica e
simbólica (FERREIRA, 2013).
A perspectiva desencarnada do corpo foi encarada de forma marcante pela semiologia
e pela semiótica. Para estas, o corpo surge não “apenas como uma realidade socializada mas,
sobretudo, como uma realidade semantizada, matéria moldável pelo processo de semiosis”
(ibid). O estado tomado pela corporeidade é, assim, de estrutura textual, verbalizado e
expressado através das emoções, das técnicas, da aparência; o corpo é, além de linguagem,
“um espaço da sua inscrição” (BABO, 1990 apud FERREIRA, 2013). As abordagens da
semiótica e da semiologia nos auxiliam na compreensão acerca das dinâmicas de
transformação nos significados sociais e simbólicos em torno do corpo, já que a própria
linguagem, seja verbal ou corporal, muda ao longo do tempo. Mas observar o corpo somente
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pela chave de “painel” de inscrição da cultura reflete uma análise um tanto reducionista. É
necessário considerar a complexidade que essa matéria nos põe, por isso vamos continuar a
estudar as contribuições de outras perspectivas teóricas sobre o corpo.
Seguindo, algumas abordagens teóricas apesar de não terem seu foco propriamente
dito na questão corporal, passaram a entender que os corpos estão inseridos em uma dinâmica
que ultrapassa as significações das inscrições sobre os mesmos, observando-os a partir do
prisma da incorporação, sendo necessário, portanto, analisar também as várias instâncias com
as quais o corpo estabelece relações, especialmente aquelas que atuam por meio dos
dispositivos de docilização e reprodução social sobre os corpos.
Para além de texto, o corpo possui texturas – frutos de sua ação e resistência -
marcadas por elementos de poder, da história, da memória, da lei, tecidos e permeados pelas
interações entre corpos (FERREIRA , 2013). Nesse âmbito, é possível notar ao longo da
história mais recente das ciências sociais como o corpo tem sido compreendido enquanto
lugar de exercício de poder, já que se trata, como afirmou Mary Douglas, do meio mais
privilegiado e naturalizado de classificação social. O controle social, para esta antropóloga 21,
especialmente sob a perspectiva do poder simbólico, efetiva-se sob as características
fenotípicas, diacríticas, gestos e processos orgânicos dos indivíduos (ibid). O corpo físico,
manifestado precisamente em suas propriedades fisiológicas, cincunscreve-se ao permitido
pela experiência social, reverberando, portanto, enquanto símbolo do sistema social
The social body constrains the way the physical body is perceived. The
physical experience of the body, always modified by the social categories through
which it is known, sustains a particular view of society. There is a continual
exchange of meanings between the two kinds of bodily experience so that each
reinforces the categories of the other. As a result of this interaction the body itself is
a highly restricted medium of expression. The forms it adopts in movement and
repose express social pressures in manifold ways. The care that is given to it, in
grooming, feeding and therapy, the theories about what it needs in the way of sleep
and exercise, about the stages it should go through, the pains it can stand, its span of
life, all the cultural categories in which it is perceived, must correlate closely with
21 Ferreira (2013) destaca o contributo de Douglas em analisar como o distanciamento social é refletido no
distanciamento fisiológico e vice-versa. O grau de controle social sobre os indivíduos, segundo Douglas,
pôde ser observado no constrangimento ou relaxamento com os processos orgânicos diante das situações
sociais.
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the categories in which society is seen in so far as these also draw upon the same
culturally processed idea of the body (DOUGLAS, 1970: 2003. p. 72 )
Douglas demonstra nas suas pesquisas junto a diversos povos como ações
aparentemente simples podiam ser compreendidas a partir da cosmologia na qual aqueles
grupos estavam inseridos. Para o povo congolês Lele 22, o rio que atravessa sua região do sul
ao norte dialoga com sua história ancestral: descendentes dos povos da parte alta do rio, onde
aquele nasce, constantemente relacionam as características das águas dessa parte com uma
certa disposição moral das pessoas que ali habitam. As águas claras e puras são condizentes às
pessoas amigáveis e confiáveis, já as águas poluídas da parte mais baixa do rio são associadas
às pessoas que vivem nessa região, consideradas mais perigosas e suspeitas. O sentido do
escoamento do rio, da parte alta para a parte baixa, da parte mais “nobre” à parte mais
“impura”, é igualado ao próprio corpo, na cultura dos Lele: isso pode ser observado, segundo
Douglas, nas designações específicas como olhos, nariz, boca, dentes para se referir à parte da
cabeça; já para as partes mais baixas do corpo, os Lele tendem a mencionar os órgãos
relacionados à excreção e reprodução. O controle sobre as linguagens, as gestualidades, as
dietas e os rituais estavam, assim, relacionados a um sistema social, uma cultura cuja
cosmologia deu-se como uma “emergência gradual a partir de experiências das pessoas que
vivem juntas ao longo das margens de um grande rio” (DOUGLAS, 2004. p 145).
Destaque-se, ainda em referência ao controle social incorporado, o contributo de
Norbert Elias com sua teoria da civilização, largamente desenvolvida e aplicada à
compreensão de diversos fenômenos sociais, como a cortesia, a etiqueta e o esporte. Um dos
tipos de análise feita por Elias foi debruçar-se sobre os códigos de civilidade e observar como
as proposições sobre o comportamento humano foram mudando ao longo do tempo, de acordo
com o status aristocrático vigente e, por conseguinte, ressoando em valores e modelos de
distinção dessa classe. Elias, ao analisar a obra De civilitate morum puerilium (Da civilidade
no comportamento dos meninos) de Erasmo de Roterdã, publicado em 1530, demonstra como
são apresentadas propositivas sobre um tipo adequado de “linguagem corporal” (DUNNING,
1978:2014). Nesse texto, Erasmo menciona formas de gestualidade e suas correspondências
morais ou sociais adequadas ou inadequadas, além de citar, com bastantes meandros, os
genitais, os fluidos e processos orgânicos do corpo humano. Segundo Dunning, Elias indica
que esse texto aponta elementos sobre um período de transição entre as as convenções feudais
22 Para uma discussão mais aprofundada sobre como a compreensão do microcosmo de determinados povos
apontam para a ambiguidade entre os vocábulos casa/corpo ver Douglas (2004).
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e modernas, de “como e por que as sociedades ocidentais se distanciaram efetivamente de um
padrão na direção de outro, como se tornaram civilizadas” (idem, ibidem, p.89).
Outro fenômeno extremamente ilustrativo do processo de civilização analisado por
Elias e Dunning foi o esporte moderno. Estes autores afirmam que na Grécia Antiga os jogos
eram extremamente violentos, explicado por uma influência pelo ethos de uma aristocracia
guerreira, pelos mecanismos tradicionais das rixas familiares. Entre processos de
descivilização23 e civilização, foi entre os séculos XII e XVI que os torneios começaram a
expressar na prática os valores de um tipo de controle social, adotando um status de
“substituto da guerra” e, por isso, assentado em um tipo de violência simulada, de tom
espetacularizado (idem, ibidem). O autor mostra como o desenvolvimento do esporte
moderno está inserido em um panorama de pacificação e controle sobre os costumes
relacionados à violência. Esse argumento pode ser ampliado para a esfera do lazer de uma
forma geral, o que demonstra, que os comportamentos paulatinamente foram movimentados
pelas forças empregadas no processo de civilização. A teoria eliasiana a todo momento busca
fazer um resgate da dinâmica envolvida nos processos, a fim de esclarecer como os
fenômenos sociais como a esportivização e a parlamentarização estavam dialogavam junto a
fluxos políticos, sociais e, principalmente, históricos que apontavam para um elemento mais
profundo – o processo civilizador:
Foi nesse contexto, de uma sociedade cada vez mais pacificada e submetida a
formas sempre mais efetivas de governo parlamentar, que, de acordo com Elias,
começaram a surgir formas reconhecidamente modernas de prática esportiva,
baseadas em regras e em procedimentos mais efetivos de controle. A existência de
uma forte vinculação entre esses processos é sugerida pelo fato de que havia
estreitos paralelos entre os rituais parlamentares emergentes e os rituais emergentes
do esporte moderno. Consideremos o rito contemporâneo de questionamento do
primeiro-ministro: trata-se de uma forma de “jogo sério”. Ambos, contextos
esportivos e contextos políticos, como chegaram a se desenvolver na Inglaterra do
século XVIII, começaram a envolver modalidades menos violentas de gestão de
disputas do que aquelas que até então haviam prevalecido. (ibid, p.178)
24 O termo “parlamentarização” pode ser definido como “uma mediação, histórica e ideologicamente
determinada, de tipo burguês, de organicidade institucional e natureza reguladora. Junto com o “autocontrole
na resolução de conflitos”, ambos se espelham e se entranham como fazes da mesma moeda constitutiva das
sociedades ocidentais – contemporâneas (após 1789, Revolução Francesa) e capitalistas (após 1760-1870, 1ª
Revolução Industrial)” (MURAD, 2009. p.119)
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isso, explica aquele autor, por esse arraigamento tão estreito e sutil que a tarefa de se
desvincular do poder é tão custosa.
Destaque-se que o papel da história nessa dinâmica é de fundamental importância na
teoria foucaultiana, pois ao resgatar tal perspectiva, o autor afirma ser o corpo algo que
ultrapassa as leis da fisiologia, sendo, mais que isso, “ele é formado por uma série de regimes
que o constroem; ele é destroçado por ritmos de trabalho, repouso e festa; ele é intoxicado por
venenos − alimentos ou valores, hábitos alimentares e leis morais simultaneamente; ele cria
resistências” (FOUCAULT, 2013, p. 72). A história na sua articulação com o corpo é o que
proporciona a perspectiva genealógica desenvolvida por Foucault: é necessário compreender
o corpo “marcado de história e a história arruinando o corpo” (ibid, p.65).
Assim, Foucault identifica que há uma mudança de um tipo de sociedade disciplinar
para uma sociedade de controle, que é exercida, por sua vez, não somente a nível de
consciência ou ideologia, mas primordialmente pelo corpo e com o corpo (FOUCAULT,
2013). Desenvolve-se, desse modo, a política do corpo – ações relacionadas à materialização
do poder e do controle social sobre os corpos, impelindo-os à submissão a determinados
códigos de comportamento, seja na gestualidade, na forma de portar-se diante de eventos e
ritos sociais, nas maneiras incorporadas de manifestar certas condutas sociais (FERREIRA,
2013). Foucault aponta que as reivindicações sobre o próprio corpo – a nível de saúde e
sexualidade, por exemplo – são efeitos que despontam precisamente do investimento do poder
sobre o corpo. De um lado, o poder foi exercido por meio da valorização do corpo belo,
saudável, musculoso, levando esse enaltecimento a operar principalmente no desejo de
enquadramento desses padrões a partir de um laborioso esforço. Por outro lado, as próprias
conquistas em torno do corpo passaram a ser compreendidas enquanto resultado desse
trabalho e mobilizaram as contestações, fazendo, assim, uma mudança no polo de ação do
poder - “o que tornava forte o poder passa a ser aquilo por que ele é atacado” (FOUCAULT,
2013, p.235). A emergência de ideias e lutas como a união livre ou o aborto geraram um
frenesi nas instituições políticas e médicas, revelando, segundo o autor, os deslocamentos de
investimento realizados pelo poder.
Apesar de Foucault afirmar a existência de um direcionamento reativo que parte dos
sujeitos, ele não parece certo de que esse poder consiga operar de forma proporcional ao
poder hegemônico. A dimensão do social, portanto, nessa perspectiva, não só é inescapável ao
sujeito, como possui um potencial muito mais incisivo do que aquele exercido pelos corpos
que resistem e contestam.
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Ainda explorando essa linha de raciocínio a respeito da eficácia do social sobre o
corpo, temos a incontornável obra de Bourdieu, o qual se debruçou amplamente sobre os
desdobramentos da cultura sobre a natureza – especificamente no próprio corpo. Para este
autor, a cultura, nos seus mais variados aspectos, sejam relacionados, por exemplo, à estética
ou à classe social, inscreve-se no corpo, atribuindo ao mesmo, assim, as marcas que o
diferenciam dentro de uma estrutura social – as marcas da distinção. Bourdieu, desenvolve a
noção de habitus enquanto vetor que revela a vinculação entre social e o individual: os
processos de individualização, de incorporação de disposições duradouras moldam o corpo
social (MEDEIROS, 2011). Ser um indivíduo, portanto, é necessariamente ser social, é o
resultado por si da socialização.
Outro conceito muito importante para compreender as análises sobre o corpo deixadas
por Bourdieu é o de hexis corporal. Resgatando o legado de Marcel Mauss a respeito das
técnicas corporais, aquele sociólogo procurou revelar em seus escritos como os corpos,
comportando-se de maneira mimética e/ou improvisada, dentro de um certo esquema
corporal, atuam de forma correspondente ao habitus, especificamente entendido enquanto
hexis corporal e revelado nas formas das posturas, trejeitos, modos. Esse movimento de
interiorização das“técnicas corporais” - da hexis corporal – acontece de forma basilar na
família e grupo social no qual o indivíduo cresce e posteriormente é exercido pelas
pedagogias institucionalizadas nos sistemas de ensino. Assim, o ponto em que Mauss e
Bourdieu convergem é precisamente em considerar o corpo como instância prática e
conciliadora do simbólico e do social (MONTAGNER, 2006). Em outras palavras, podemos
entender essa perspectiva enquanto um “duplo movimento de interiorização da exterioridade e
de exteriorização da interioridade” orientado pelo habitus; assim, o corpo é implacavelmente
possuído pelo social e pela história (FERREIRA, 2013. BOURDIEU, 1997: 2001).
Um exemplo clássico trazido por Bourdieu para debater o estatuto do corpo na sua
relação com o social é a dinâmica estabelecida entre homens e mulheres. Os comportamentos
socialmente atribuídos aos sexos são fatalmente revelados pelos esquemas corporais: através
do vestuário, da maneira de andar, falar, de olhar, sentar-se etc, é possível compreender a
gramática da diferença entre masculinidade e feminilidade. Essas maneiras de ser são
naturalizadas especialmente na hexis corporal, na inculcação do social no corpo e do reflexo
do corpo no social (BOURDIEU, 1997:2001).
Bourdieu vai mostrar de maneira mais sistemática esse debate na sua obra “A
dominação masculina” (1998:2002), realizada a partir de uma série de análises da sociedade
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cabila, na Argélia. O autor busca demonstrar como se constitui a relação de dominação dos
homens para com as mulheres é tornada visível e eficaz principalmente sobre os corpos dos
sujeitos. Segundo o autor, os homens valorizam e desejam para si mesmos os aspectos que
sejam associados à virilidade, à força e à potência, revelados sobretudo nos seus corpos.
Músculos e membros fortes e grandes, que devem ser, segundo a estrutura da dominação,
opostos aos aspectos considerados “femininos”: delicadeza, sujeição, discrição. O ponto
central da obra é elucidar como uma série de elementos revelados pelo habitus, pelas
disposições incorporadas – hexis corporal - acabam por produzir toda uma situação de
violência não só física, mas também simbólica: desde a maneira de se relacionar sexualmente
até o tipo de divisão sexual do trabalho é pautado sobre as condições favoráveis à dominação
masculina. Esse tipo de dinâmica, afirma Bourdieu, estabelece uma relação de poder
sustentada especialmente na objetificação simbólica das mulheres diante da primazia da visão
androcêntrica. Entretanto, apesar de se revelar de maneira mais problemática sobre as
mulheres, essa estrutura coage também os homens. Ambos acabam, portanto, submetidos aos
modelos predeterminados do que é desejável e aceitável para corpos femininos e masculinos.
Sendo dois grandes expoentes para entendermos as questões sociológicas envolvendo
a dimensão do corpo, tanto Foucault quanto Bourdieu parecem argumentar a favor de uma
instância de poder ou dominação que atua de forma infalível sobre o corpo. Ainda que não
desconsiderem a agência deste diante do social, Ferreira (2013) demonstra que é preciso
também que possamos, diante de outras perspectivas que nos são apresentadas, buscar outros
caminhos de compreensão, como por exemplo aqueles que alcançam de forma mais concreta
a dimensão da excorporação do corpo, isto é, das ações orientadas de forma mais ou menos
planejadas e projetadas nos investimentos sobre o próprio corpo. O autor nos chama a atenção
inicial para o fato de que essa visão não é necessariamente oposta a da incorporação, pelo
contrário, complementa algumas lacunas de explicação que não consideram as formas de
intencionalidade e reflexividade dos sujeitos sobre os próprios corpos, que são, sim, resultado
do social, mas também mobilizam recursos a fim de reinventar a si mesmos.
Figurando como um dos principais representantes do enquadramento que debate o
corpo em relação direta com a reflexividade, Giddens estabele um diálogo com Foucault,
especialmente ao criticar este último no que tange a uma brecha de análise entre corpo e
agência. Enquanto Foucault se dedicou a demonstrar como os processos de docilização dos
corpos - principais alvos do poder disciplinar – eram exercidos dentro de uma lógica
hegemônica e, portanto, dificilmente passível de um tipo de contestação realmente eficaz,
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Giddens25 enxerga o corpo como um sistema-ação, um modo de praxis, construindo e
desafiando a si mesmo junto às interações cotidianas (ALMEIDA, 2004).
Para Giddens, a perspectiva foucaultiana é problemática pois enxerga os indivíduos
com pouca ou nenhuma potência para agir sobre suas próprias vidas, desconsiderando,
portanto, a reflexividade dos agentes em si perante a história. Além disso, a crítica dirigida a
Foucault afirma que sua teoria não leva em conta que tal reflexividade alcança o próprio
corpo do sujeito, que, mesmo sendo um foco do poder disciplinar, figura como “o portador
visível da auto-identidade, estando cada vez mais integrado nas decisões individuais do estilo
de vida” (GIDDENS, 1993, p.42). Ainda:
A crítica dirigida a Foucault tem sua validade sobretudo no sentido de nos instigar a
revisitar a sua obra, buscando ir mais a fundo nas suas contribuições, exercício este que nos
leva a perceber, sob um olhar mais atento, que a obra foucaultiana é bastante dinâmica,
sofrendo algumas atualizações ao longo de sua concepção. Especialmente nos seus últimos
escritos, Foucault aponta o lugar primordial da vontade individual, do enfrentamento do
sujeito perante o poder – este, agora, não é mais entendido como inescapavelmente triunfante,
de modo que as relações que dele derivam são também o reflexo da liberdade. Portanto, é
possível afirmarmos que, no fim das contas, tanto o ponto de vista de Giddens quanto o de
Foucault estão voltados para a compreensão do eu como um projeto reflexivo (GOMES et al.
2009)
O paralelo entre Giddens e Foucault sobre a tema da agência também pode ser feito
com Bourdieu: para este último, o corpo é estruturado, socializado e encontra-se localizado
25 Giddens (2002) remonta sua linha de pensamento atrelada à contribuição de Wittgenstein sobre a relação
entre o corpo e o eu. O corpo, sob tal perspectiva, não é só uma entidade, mas é a forma prática mesma que
se põe em confronto à realidade. É com o corpo se nos comunicamos frente a gramática do cotidiano.
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dentro de um campo ou de uma série de campos que permitem e/ou limitam as ações dos
indivíduos, incorporando, portanto, as estruturas de tais campos, reveladas, sobretudo, no
habitus e na hexis corporal. Giddens, ao delinear sua teoria da ação, apesar de admitir os
cerceamentos do social sobre o indivíduo, insiste por advogar a favor de um agente apto não
somente à escolha, como ao acesso dos dispositivos mobilizadores de poder (CARNEIRO,
2006). A reflexividade, para Giddens, é precisamente a possibilidade da agência humana em
decidir, planejar e mudar não somente suas práticas, mas também a estrutura no qual está
inserido.
Nesse sentido, para além de instância limitada pela dinâmica social na qual se insere
ou sendo passível de reflexividade, é necessário, também, entender a importância de olhar o
corpo sob o prisma da carnalidade, das práticas que o mesmo elabora e mobiliza em um
continuum: trata-se, pois, de uma base viva, vivida e em devir (FERREIRA, 2013). Ainda que
marcado pela socialidade e cultura, o corpo é carne, reverberada em imagem, emoção,
necessidades, possibilidades e limitações de movimento etc. Isso não significa em hipótese
alguma relegar a importância das análises estruturais e de poder, mas sim, trazer para junto do
debate uma dimensão que por tempos foi tratada de forma secundária nas Ciências Sociais.
Mesmo diante dos inúmeros e valorosos esforços em analisar o corpo fora de uma
ótica essencialmente naturalista, ao articulá-lo à história, ao social, às formas de poder,
dominação, submissão, resistência etc, há ainda uma tendência, segundo Ferreira (2013),
daquele esvaziar o seu sentido enquanto carne. Se o paradigma naturalista não nos serve, ao
menos em sua totalidade, e a abordagem construtivista nos instiga a analisar o corpo não
como um objeto flutuante, alheio à realidade social, mas como um conjunto de elementos em
diálogo com a cultura na qual se insere, é também necessário pontuar que os radicalismos das
duas abordagens, não parecem oferecer possibilidades profícuas para as análises atuais. Pois,
como afirma Almeida (2004)
algum determinismo social dogmático tem sido a pedra de toque das nossas análises
e o que nos tem impedido de incluir o corpo e a incorporação nas nossas agendas de
investigação. Como se só houvesse duas possibilidades: ou a remissão (excludente)
para o domínio do biológico, ou o mapeamento da acção das categorias sociais sobre
os corpos enquanto argamassa e não-pessoas. (ALMEIDA, 2004. p.5)
Superado, uma vez, o paradigma naturalista, para dar lugar ao construtivista, é preciso
resgatar, agora, questionando, inclusive, as limitações da nossa disciplina, a fim de propor
possibilidades outras de se pensar categorias “dadas”, refinando, dessa forma, as
90
problematizações em torno do que chamamos “corpo”, “corporeidade”, entre outros termos
desse espectro. Assim, o esforço de algumas abordagens sobre a compreensão dessa temática
lança convite para que não nos fixemos apenas às análises habituais, mas que, especialmente,
possamos repensar as próprias bases nas quais as ciências humanas, notadamente os
paradigmas ocidentais da Modernidade, estão fundadas.
E Ainda:
Enquanto tenho um corpo e através dele ajo no mundo, para mim o espaço e o
tempo não são uma soma de pontos justapostos, nem tampouco uma infinidade de
relações das quais minha consciência operaria a síntese e em que ela implicaria O
CORPO 195 meu corpo; não estou no espaço e no tempo, não penso o espaço e o
tempo; eu sou no espaço e no tempo, meu corpo aplica-se a eles e os abarca
(MERLEAU-PONTY. 1999, P.194-195)
Do exposto, temos a ideia de que o corpo não se reduz a um objeto, ele é o meio
primordial de experienciar a realidade, sendo a percepção atrelada aquele; em outras palavras,
não é preciso, pois, que “o corpo seja submetido a uma função simbólica ou objetivante” (id.
p.195). Muito além de termos um corpo, para a perspectiva de Merleau-Ponty, nós somos um
92
corpo e sê-lo implica uma série de mobilizações de caráter fluente em relação direta com a
experiência. Esta acontece pelo corpo, por meio do corpo, marcando-o e sendo ressignificada
por causa deste em contato com uma elaboração ininterrupta do mundo; a percepção, dessa
forma, ocorre por causa do corpo e não é algo que existe fora dele. Assim, compreender o
ponto fundamental do movimento do corpo “é reconhecê-lo como fenômeno que não se
reduz à causalidade linear; é considerar ainda que o ser humano não seja um ser determinado,
mas uma criação contínua” (NÓBREGA, 2008. p.145).
Enquanto Bourdieu, centrado no domínio da prática, recorre à ideia de corporeidade
para suplantar a dualidade entre estrutura e prática, Merleau-Ponty, no domínio da percepção,
concebe uma ontologia que traz para o centro da discussão a corporeidade, na busca de
superar a dualidade sujeito/objeto. Tanto Bourdieu quanto Merleau-Ponty, apesar de partirem
de locais distintos, convergem para a compreensão do corpo enquanto elemento
metodológico, parâmetro que vai servir de aporte para a crítica construída por Thomas
Csordas (ALMEIDA, 2004; CINTRA et al, 2010; MALUF, 2001; ). Este autor, sob tais
influências, elabora um escopo alternativo para as teorias referentes ao corpo, argumentando a
favor deste enquanto “carne” e, preferindo, assim, a noção de embodiment – traduzida por
Ferreira (2013) como encarnação. Csordas, nesse contexto, considera o corpo como a base
mesma da cultura, isto é, não se trata mais de encarar o corpo enquanto objeto da cultura, mas
de elaborar uma interpretação na qual o corpo é sujeito da cultura (CINTRA et al, 2010).
Pensar pelo prisma de embodiment – encarnação – permite enxergar a vida do corpo
desdobrada na sua capacidade de “sentir e fazer sentir, de ser visível e de se dar a ver, de ser
tangível e tocar, de audível e de ouvir, de se emocionar e de estimular emoções” (FERREIRA,
2013, p. 519).
Nesse sentido, as emoções exercem um papel fundamental no enquadramento de
Csordas (2008), pois, para ao autor, ainda que a Antropologia tenha voltado sua atenção para
o tema, acabou tornando-a secundária à cognição. Influenciado por Wilheim Dilthey, Csordas
elabora um debate que pode ser localizado na Antropologia da Experiência, a qual
compreende a experiência para além do seu fundamento cognitivo, situando-se,
especialmente, na esfera da emoção e do afeto, dos sentimentos e expectativas, manifestados
em variados domínios, desde a linguagem até a intersubjetividade (CINTRA et al, 2010).
Para Csordas (2008), tanto Merleau-Ponty quanto Bourdieu, enxergam na percepção e
na prática, respectivamente, o princípio essencial da indeterminação da vida humana. Assim,
na mesma linha, o autor busca transcender a ideia mesma do corpo como objeto da
93
antropologia, concentrando-se em construir uma teoria voltada para a experiência cultural
corporificada. Esse paradigma privilegia sobretudo a importância da etnografia para a
apreensão da complexidade em torno do corpo, o qual não é desconsiderado enquanto
dimensão biológica, mas que também não é tomado como dado determinado para a
antropologia, sendo necessário, portanto, alargar a interpretação do corpo enquanto sujeito da
cultura por meio, principalmente, do estatuto da experiência (MALUF, 2001).
A importância da encarnação está sobretudo no fato de que a corporeidade mesma é
encarnada, isto é, existe uma matéria com propriedades, funcionalidades e capacidades que
participam da construção da dinâmica sociocultural de ser e estar no mundo. É desta
encarnação que despontam as emoções, os desejos e as sensações, e essa perspectiva alude a
um tipo de interpretação na qual a experiência vivenciada pelo corpo implica também no
desenrolar dos processos de identidade, seja a nível pessoal ou social. Não se trata de reduzir
a uma análise exclusiva da dimensão motora ou orgânico-sensorial do corpo, mas sim, de
investigar como, na implicação desta, o corpo humano elabora potencialidades e
constrangimentos no exercício da sua agência ou na reprodução das estruturas (FERREIRA,
2013). Assim, a encarnação nos permite elaborar uma compreensão do corpo para além dos
extremismos tanto do construcionismo, quanto do naturalismo biológico, encarando-o,
portanto, na sua dinamicidade, complexidade e diversidade de relações durante todo o fluxo
da sua existência social.
O olhar sobre o corpo enquanto carnalidade contribuiu para o delineamento do
paradigma animista, isto é, uma visão que busca dar vida – anima – à carne. Podemos também
considerar esse paradigma como neovitalista, de forma que o mesmo retoma em certa medida
a discussão posta por autores como Bergson e Deleuze (SCRIBANO, 2013). Hoje deparamo-
nos com uma série de abordagens que continuam a buscar transpor as fronteiras dos
dualismos outrora estabelecidos e ainda presentes enquanto desafios epistemológicos e
ontológicos para as Ciências Humanas, mas que, agora, mais do que nunca, são mesclados
tanto às perspectivas de outras disciplinas, quanto direcionam maior atenção para questões por
muito tempo secundarizadas na teoria social e antropológica, como os afetos, as emoções, as
sensações, os movimentos, os fluxos e atravessamentos que perpassam essa questão em
tensionamento.
Mais importante que dar continuidade ao insistente - mas valoroso - esforço por
construir uma Sociologia ou Antropologia do Corpo, talvez seja o momento de voltarmos
nossa atenção para o que algumas relevantes investigações e teorias têm tentado nos mostrar a
94
respeito do lugar - mais que emergente - urgente, que o corpo, em toda a sua complexidade,
inescapabilidade do social e enquanto desafio teórico, precisa ocupar em nossos trabalhos
socioantropológicos. Ora, sendo o corpo a base mesma da cultura, como relegá-lo à margem
da nossa análise social? Como produzir uma ciência que perpassa, necessariamente, pela
carne? Pela minha carne, pela carne daqueles com quem estabeleço vínculos ao longo da
pesquisa, todos envoltos pela dinâmica das afetações? Fazendo menção ao clássico Richard
Sennet sobre A Carne e a Pedra, como enxergar o corpo vivo, vivido e em devir, não só da
carne, mas da “pedra”? Tem vida aquilo que comumente não percebemos como vida?
Pensar em corpo, carne, vida, remete-nos à já antiga, mas nunca ultrapassada, posto
que nunca resolvida, questão do self, do ser, ou da pessoa. A própria história da Sociologia e
Antropologia do Corpo talvez tenha sua relação com a busca de retomar tal debate,
pretendida, ai, ser apaziguada com a construção de uma disciplina onde o corpo ocupa um
lugar central. Essa tentativa pode ser sintomática de um estado ainda pulsante, premente por
um olhar mais ponderado sobre uma demanda que, agora, se coloca de forma categórica.
Muitas abordagens que vão desde as citadas, até o pós-humanismo, não fechando-se em si
mesmas, incitam-nos a desorganizar as ideias até agora postas, provocam-nos a percorrer
outros acessos do pensar, do ser e do fazer ciência com o corpo, até porque este nunca esteve
fora daquela. Mas o corpo tábua de inscrição da cultura, insípido, determinado, invólucro,
cápsula, objeto consumado da cognição, repulsa do eros, do sangue, suor, afeto, emoção, da
carne - esse corpo nunca mais será o mesmo.
Apesar de ter feito um certo balanço a respeito do corpo nas Ciências Sociais, a fim de
pontuar algumas questões para situar o debate, meu objetivo não é traçar uma história da
temática, pois compartilho da ideia de Almeida (1996), ao considerar que esse esforço pode
resultar em mais uma (má) história da disciplina e do pensamento ocidental. A Sociologia e a
Antropologia mesmo apresentando um considerável arcabouço na produção referente ao
corpo, sua discussão não apresenta indícios de exaustão, pelo contrário, nos convida a
enfrentar outros desafios. Sendo assim, proponho-me à tentativa de construir um itinerário
direcionado à compreensão da prática do Parkour um pouco fora dos limites definidos de uma
Sociologia ou Antropologia do corpo, mas, sim, de trazer a dimensão corporal daquela
95
modalidade como uma forma de exercitar o esforço de pôr o que entendemos por “corpo” em
perspectiva – pensá-lo enquanto elemento constituído pela cultura, mas também, em toda sua
complexidade, definidor da mesma.
Urge um momento na disciplina no qual não podemos ignorar a necessidade de
compreender que uma grande parte das práticas sociais estão entre o reflexivo e o
inconsciente, momento este que retoma a discussão tanto a discussão feita por Weber a
respeito da intencionalidade da ação orientada para os outros e, como também o debate
reverberado nas teorias da fenomenologia social, etnometodologia e interacionismo simbólico
(LOPES, 1998). Como apresentado anteriormente, a discussão sobre o corpo nas Ciências
Sociais tem uma das suas bases nos tensionamentos a respeito das formas de apreensão do
mundo e dos direcionamentos das intencionalidades a níveis de “interior”, “exterior”,
elaborados ou não por representações mentais.
O que foi apresentado pode nos fornecer um breve exemplo do arcabouço até então
construído de um movimento na Antropologia Contemporânea orientada a explorar a
interdependência entre Cultura e Natureza, abordagens que buscam, em maior ou menor
medida, um diálogo com estudos desenvolvidos nas áreas da Biologia, Psicologia
Cognitivista, História, Filosofia etc. Discutir o corpo, é discutir, portanto, a própria trajetória
da Antropologia e suas bases epistemológicas, trata-se, precisamente, de uma discussão sobre
os processos de conhecimento.
26Para um debate crítico sob o ponto de vista da Sociologia, ver a discussão a respeito da agência e cultura feita
por Vandenberghe (2016) in Sociologias, Porto Alegre, ano 18, no 41, jan/abr 2016, p. 130-163.
27Anna Tsing (2015) propõe perspectivar a natureza humana como uma relação entre espécies, possibilitando
alargar o alcance de pesquisas tanto biológicas quanto culturais. Esse entendimento permite enxergar também as
transformações que outras espécies geram nos seres humanos. A autora afirma que a dicotomia “humano-
selvagem” tem comprometimento com um tipo de ideologia antropocêntrica, propõe uma metodologia
multiespécies para explorar melhor essas questões.
98
buscando, assim, desviar-se das classificações adjetivadas da antropologia como “cultural”,
“estrutural”, “interpretativa” etc (STEIL. CARVALHO. 2012).
Nesse sentido, a preocupação de Ingold não encara o corpo enquanto instância
individual, distanciada do elemento “paisagem”, que supostamente lhe é externo. Tanto o
conceito de corpo, quanto de carne e paisagem, para esse autor, denotam uma ideia de
cerceamento, distinção e existência isolada, quando, na verdade, existem fluxos vitais que não
só estão nas coisas, como são as próprias coisas (ibid). Para Ingold, quando falamos em
corpos e objetos, seguimos uma linha de raciocínio que reitera a lógica de inversão: um
pensamento que fecha os seres, protegendo-os de interações com os arredores (AZEVEDO,
2020).
É nesse sentido que a crítica à abordagem cognitivista que Ingold está na recusa de
entender que a cognição é um momento que ocorre em separado da prática, afirmando que ela
está imbrincada na própria experiência. Na sua perspectiva, não há um conjunto simbólico
que se encontra acima de um mundo “natural”, biológico; o mundo não é somente uma teia de
significados – ideia propagada principalmente pelos interpretativistas. Sendo assim, a
transmissão do conhecimento não se dá meramente pela passagem de uma série de
informações independentes da experiência e do contexto ambiental. Não se trata de um
conhecimento que existe na forma de “conteúdo mental, “que, com vazamentos,
preenchimentos e difusão pelas margens, é passado de geração em geração, como a herança
de uma população portadora de cultura” (INGOLD, 2010, p.6).
O argumento de Ingold contra essa compreensão cognitivista defende uma
antropologia “como estudo sobre as possibilidades da vida e a educação como mobilização da
atenção” (op.cit, p.46). Nesse contexto, Ingold opõe-se a um tipo de enquadramento
representacionista da cultura, afirmando que a transmissão do conhecimento não é passado na
forma de um amontoado de representações, mas de um processo de educação da atenção.
Essa afirmação ocorre em oposição à máxima da antropologia cultural mais relativista de que
“o homem é uma tábula rasa que se escreve”, proposta por Alfred Kroeber, e propõe, por
outro lado, que os seres estão sempre em devir.
Assim, Ingold analisa a obra de Sperber, um antropólogo da linha cognitivista que
reúne bem as teorias sobre cultura e cognição, e tece críticas a esse tipo de abordagem,
propondo uma outra maneira de encaramos as questões de transmissão de conhecimento. Ao
criticar a ciência cognitiva clássica, Ingold também confronta preceitos do neodarwinismo,
pois não acredita que os seres humanos são meios de processamento da informação que é o
99
conhecimento. Para o autor, o ser humano é o centro de percepções e agência em um campo
de prática, sendo o conhecimento, assim, primordialmente compreendido como habilidade. A
visão de Ingold fundamenta-se na tentativa de transpor a clássica distinção entre capacidades
inatas e competências adquiridas, voltando seu foco para as propriedades emergentes de
sistemas dinâmicos (INGOLD, 2010, p.7)
Ingold destaca que não objetiva privilegiar a cultura sobre a natureza, tampouco
substituir uma concepção inatista por um tipo de determinismo ambiental, mas, sim,
argumentar que as capacidades não são pré-fabricadas, localizadas numa dimensão interior de
um invólucro “aguardando para serem preenchidos com informação cultural na forma de
representações mentais” (ibid, p.17) e nem impelida pela exterioridade. Assim, as capacidades
emergem “de processos de desenvolvimento, como propriedades de auto-organização
dinâmica do campo total de relaciona- mentos no qual a vida de uma pessoa desabrocha”
(ibid, p. 15).
Nesse sentido, ao tratar os organismos, de forma geral, e o ambiente como elementos
indissociáveis e cuja relação resulta no próprio continuum da vida, Ingold busca apontar um
debate que sirva tanto à antropologia, quanto à biologia. Para demonstrar esta questão, o autor
lança mão de uma importante chave de análise: a habilidade prática, notória especialmente em
alguns estudos referentes à ação, percepção, arte, tecnologia, entre outros. (SILVA, 2011).
Para desenvolver suas ideias sobre habilidade, engajamento e educação da atenção,
Ingold retoma as noções já discutidas por estudiosos como Gibson, para o qual a percepção
está relacionada ao corpo-organismo como um todo, sendo equivalente ao próprio movimento
exploratório do organismo no mundo. Além deste autor, Ingold busca referências na
perspectiva vitalista de Gregory Bateson, argumentando a favor de uma mente que não está
limitada à pele, bem como encontra apoio também na obra de Marx e Engels no tocante à
relação de transformação do indivíduo em plena relação com a natureza, a história, as técnicas
e as ferramentas de trabalho (INGOLD, 2018).
Ingold lança mão de uma série de exemplos para ilustrar suas explicações a respeito do
conhecimento, competência e habilidade. Ele defende que o processo de habilitação ultrapassa
uma tarefa intelectual, localizando-se, muito mais, no nível cotidiano da prática. Ao contrário
de Sperber, Ingold afirma que não é somente a partir de um movimento de acesso a uma
informação e posterior conversão a um comportamento corporal que a habilidade emerge (e
por consequência o conhecimento). Ele fornece um simples exemplo como uma receita
culinária presente num livro: é possível que eu siga todas as orientações ali fornecidas, mais
100
ou menos familiares com minha experiência prévia em manusear aparelhos culinários ou
manejar determinados tipos de alimento, mas tal livro de receitas, por si só, não é
conhecimento, sendo, muito mais, uma abertura para o conhecimento que eu mesma posso ir
desenvolvendo ao longo de um processo de saber-fazer. (INGOLD, 2010)
Dessa forma, “olhar, ouvir e tocar, portanto, não são atividades separadas; elas são
apenas facetas diferentes da mesma atividade: a do organismo todo em seu ambiente”
(INGOLD, 2008, p.20). Sob esse prisma, portanto, não podemos compreender que um órgão,
a exemplo dos olhos e sua atividade de olhar, existam por si mesmo, como isolado de todo o
resto do corpo. Ele funciona porque atravessado pelo fluxo vital de todo o corpo, e com este,
por sua vez, ocorre o mesmo em relação com o ambiente).
28 Ver Debortoli e Sautchuk (2014): os autores fornecem importantes referências sobre o debate em torno da
vinculação da Educação Física às ciências da natureza, sua gradativa associação aos estudos sobre Cultura e
os desafios advindos desses processos sob diversos níveis.
101
Debortoli e Sautchuk (2014) ao analisarem os desdobramentos da Educação Física
brasileira e seus processos de institucionalização, demonstram as tensões entre o
estabelecimento do objeto de estudo e a intervenção pedagógica da disciplina. Os autores
afirmam que esta problemática reforça a ideia de uma distinção entre uma “etapa
geneticamente determinada e outra culturalmente aprendida” (ibid, p. 343) e posicionam-se a
favor de uma compreensão de desenvolvimento, movimento (ou mesmo motricidade) e
aprendizagem enquanto noções que vão além da mera “aquisição de capacidades motoras
básicas para a realização posterior de outras formas consideradas mais complexas” (ibid).
A consulta aos trabalhos brasileiros de Educação Física mostrou-se de grande
relevância no sentido de apontar caminhos pelos quais os pesquisadores da área já vinham
explorando. Por se tratar de uma prática social corporal, pude ter acesso a algumas discussões
sobre o parkour, especificamente, e, de modo geral, a debates sobre o estatuto da dualidade
corpo/mente, bem como das noções de prática, movimento, aprendizado, entre outros. Como
já citei anteriormente, o diálogo proposto por Debortoli e Sautchuk a respeito das
contribuições da Antropologia para a Educação Física tem sua importância para a constituição
da minha problematização, especialmente ao revelar articulações com o pensamento de Tim
Ingold. Este autor também tem sido amplamente mobilizado nos trabalhos de pós-graduação
em Antropologia Social, sobretudo em investigações sobre técnicas, processos de
aprendizado, relações humano-animal, entre outros.29
Debortoli et al, mobilizam a perspectiva antropológica de Tim Ingold para
compreender um contexto de artistas-dançarinos, abordando questões relativas à técnica, arte
e movimento. Tal discussão mostra o alcance da noção de técnica para além da mecanização,
sendo o contrário, parte da história social em plena articulação e transformação das práticas.
Toda essa dinâmica relacional, de engajamento com o mundo, pode ser aludida na passagem
da brilhante etnografia de Wacquant (2002) com pugilistas, ao qual me remete, em grande
medida, à prática do parkour e a qual também poderíamos analisar junto às categorias
ingoldianas de habilidade, técnica e o tornar-se pessoa a partir do engajamento no mundo
29
102
potencialidades e de suas insuficiências, retirada do treinamento cotidiano, assim
como da "terrível experiência de apanhar e bater repetidamente” (WACQUANT,
2002, p.148)
Ganha força assim uma compreensão de que técnica enquanto relação; aquilo que,
com quem ou com o que você está propondo se relacionar; seja uma pessoa, uma
parede, uma cadeira, um platô móvel ou uma corda. Como ação relacional, o
movimento efetiva-se como possibilidade de narrativa, cujo sentido é produzido
como processo de envolvimento. (ibid, p.14)
A técnica, portanto, “se revela como um processo que envolve a pessoa inteira
interagindo em e com o ambiente, indissociavelmente, social e natural” (Sautchuk et al, 2014
p.10). No caso do parkour, a maior parte do desenvolvimento das habilidades, das técnicas,
dos movimentos em geral, dá-se em um processo de emulação, seja de vídeos ou dos próprios
companheiros de treino. Vale destacar que existe uma elaboração coletiva, mas também
individual e que a “destreza” do movimento não está somente em realizá-lo de uma
determinada forma, mas saber adequar-se a novas possibilidades. Podemos dizer, dessa forma,
que no parkour não há meramente uma reprodução de padrões, de técnicas fechadas em si,
30 Arriação é um termo também observado no meu campo de pesquisa durante o mestrado sobre lazer na
periferia de Campina Grande, constituindo um tipo de sociabilidade fundada na jocosidade entre os
indivíduos, podendo desenvolver relação de aproximação ou afastamento dentro do contexto observado.
Termos como “frescar” e “tirar onda” possuem sentidos próximos. (PEREIRA, 2016)
105
mas que todo movimento é único por si só, uma vez que mobiliza técnica-percepção enquanto
uma unidade, elaborando e participando, assim, de processos criativos.
Estes são alguns dos primeiros passos pelos quais busco adentrar na discussão do
parkour sob uma perspectiva da antropologia processualmente desenhada por Ingold. Ao
longo do trabalho, pretendo traçar paralelos com outras abordagens, a fim de analisar questões
outras supostamente negligenciadas por Ingold, como, por exemplo, a noção de “poder”, tão
trabalhada por Foucault. Ambos os autores têm suas influências no vitalismo de Nietzsche,
mas elaboram de maneira distinta seus projetos teóricos (PINHO, 2017).
Além disso, podemos citar de antemão uma crítica já delineada a respeito do projeto
ingoldiano: Silva afirma que a pretensão de Ingold em romper com os cânones das
abordagens cognitivistas por meio de explicações não sociológicas não ocasiona uma
subversão nas bases epistemológicas da antropologia clássica. Ainda que a proposta de Ingold
queira ultrapassar a ideologia moderna ocidental mobilizada por Mauss e Durkheim, ele não
escapa dela.
Dessa forma, não busco abandonar completamente os debates trazidos por outros
autores, mas procuro explorar um pouco mais as potencialidades das sugestões abertas por
Ingold, a nível teórico e metodológico, especialmente naquilo relacionado à experiência,
materialidade e movimento, categorias que me parecem conferir uma riqueza interessante na
análise do parkour.
106
CAPÍTULO 3 – PENSANDO E APRENDENDO COM O CORPO
Este capítulo objetiva apresentar alguns aspectos das vivências com o parkour
relacionadas com a experiência corporal dos praticantes. Busco trazer algumas reflexões que
nos ajudem a compreender formas de agenciamento, percepção e modos de aprendizagem
do /com o corpo enxergadas na dinâmica do parkour. Começo a explorar essas questões com
um breve ensaio sobre como podemos exercitar a compreensão da prática a partir de uma
reflexão pelos pés, como uma maneira de deslocar o centro perceptivo do corpo da
cabeça/mente para o corpo como um todo.
Assim, o exercício de pensar a partir dos pés trata-se de um recorte voltado para a
atenção de um detalhe importante que elabora a aproximação da pesquisadora com o
fenômeno estudado, assim como constitui uma dimensão indispensável à reflexão do
praticante diante da experiência do parkour. Além disso, prologamos o debate para outras
questões da aprendizagem, a fim de revelar a criatividade como um processo de conhecimento
contínuo e engajado no mundo.
À medida que fui participando dos treinos de parkour como pesquisadora, despertei
meu interesse por entender melhor, a partir do meu próprio corpo, os movimentos que eu
observava, como também fui sendo eventualmente convidada para experimentar alguns
movimentos. Ainda em um momento anterior, alguns dos entrevistados fizeram relatos onde
mencionavam alguma consideração sobre suas roupas e calçados utilizados nos treinos e,
durante estes, esse tema retornou, especialmente a questão dos tênis.
Existem diversos tipos de calçados disponíveis para a prática de esportes e atividades
em geral, e os praticantes de parkour podem utilizar uma variedade destes, entretanto, em
geral, parece haver uma certa preferência por tênis leves e flexíveis, cuja estrutura fique rente
aos pés e sem espessuras muito grossas. Esses tênis passam a ficar ainda mais confortáveis
quando um pouco antigos, pois memorizam o formato do pé do usuário, segundo os traceurs.
Em uma dos treinos na AMP, acompanhei o traceur Pedro para um passeio/treino por
diversos lugares de Póvoa do Varzim, passando por bancos, escadas e muros, até chegar à
areia da praia da cidade, onde havia uma estrutura de cordas construída sobre a mesma.
Depois fomos até uma área de concreto e pedras, bem próximo ao mar e enquanto Pedro
107
subia, descia e se deslocava com agilidade por todos esses materiais, eu sentia um certo
desconforto em simplesmente andar e acompanhar o seu ritmo de deslocamento.
Em geral, eu tentava ir à campo sempre com roupas confortáveis, como uma calça do
tipo legging, moletom e/ou blusa mais leve, de acordo com a temperatura, além de algum par
de tênis. Nesse dia que acompanhei Pedro em Póvoa do Varzim, por exemplo, eu usava um
tênis do modelo Fila Disruptor, um calçado extremamente robusto, com um solado tratorado
de 4cm, o qual não me causa desconforto mesmo em caminhadas longas por superfícies mais
lisas, mas que, em lugares mais acidentados e com caminhos mais sinuosos, tende a
apresentar uma dificuldade de adaptação ao espaço. A sensação que eu tinha com esse tênis é
de estar com os pés muito longes do chão, além de sua espessura muito rígida não oferecer
nenhuma flexibilidade. Meus pés eram como duas pedras de tijolo. E senti isso quando
precisei fazer uma pequena escalada em um muro baixo de concreto, no qual eu bastava
apoiar os pés e Pedro, que já estava no nível mais alto da estrutura que estávamos subindo,
iria me ajudar, ao me puxar pelas mãos. Apesar de não ser uma traceuse, eu sabia que até
mesmo descalços eu conseguiria subir aquela parede mais facilmente, mas definitivamente
não com aqueles tênis.
Em outras oportunidades, comecei a observar melhor os pés dos traceurs e vi que
alguns deles usavam modelos mais próximos daqueles utilizados para academia e caminhada
e resolvi usar um modelo parecido que eu tinha, adquirido justamente para fazer longas
caminhadas. Passei a usar o tênis New Balance 373, que apresentava um conforto muito
maior em relação ao anterior, sendo bastante leve e tendo boa flexibilidade. Eu gostava desse
tênis para realizar especialmente movimentos de precisão, pois ele é macio e oferece um leve
amortecimento e aderência. Entretanto, ainda sentia dificuldade com ele para movimentos de
equilíbrio em barras ou estruturas similares, nos quais eu sentia uma certa necessidade de
preensão com os pés para me manter com a coluna ereta por mais tempo.
Apesar desse tênis de caminhada/academia, de modelo mais “esportivo”, ser bem
tolerado entre os traceurs, o modelo que parece ter mais aceitabilidade é aquele cujo cano é
baixo e seu material, geralmente confeccionado com lona e borracha, além de ter espessura
fina, flexível e possuir contato bem rente aos pés. São modelos parecidos com o Converse All
Star ou com o modelo VI 2500 da marca brasileira Rainha, sendo este último um dos mais
mencionados e utilizados pelos traceurs de Campina Grande, tendo em vista seu ótimo custo-
benefício e uma melhora de adaptabilidade aos pés, com o passar do tempo. Segundo os
traceurs, esse tipo de tênis fornece uma boa flexibilidade, além de ser um dos modelos
108
disponíveis que mais se molda ao pé do seu usuário. Assim, resolvi testar um terceiro tênis
que eu tinha, similar ao modelo escolhido pelos traceurs, que se encontrava já bem utilizado e,
por isso, bem adaptado ao meu pé.
Podemos nos questionar, ainda: e porque a necessidade de utilizar calçados, então? É
evidente que há experiências de movimentos do parkour feitos descalços, entretanto, o uso do
tênis ainda parece ser necessário devido a um processo de adaptação às texturas e formas do
ambiente. Servem como uma barreira de proteção contra texturas espinhosas, eventuais cacos
de vidros e absorvem, ainda que pouco (especialmente no caso do tênis do tipo “Rainha”), o
impacto, só para sinalizar alguns exemplos. Os tênis mais utilizados no parkour são os que se
comportam como um tipo de “intermediário” entre os tênis mais robustos, espessos ou rígidos
e a forma do pé do praticante, funcionam, assim, como uma opção interessante para
movimentar-se com certa liberdade e flexibilidade.
Ouvindo, assim, os relatos e observando os pés dos traceurs, busquei também notar as
nuances sentidas por mim da utilização de cada um desses calçados que utilizei para a
realização de alguns movimentos. Resolvi olhar bem de perto os calçados e os meus próprios
pés, observando os detalhes no design dos calçados e a forma que tomava meus pés em cada
um deles, tentando exercitar um pouco a atenção sobre a relação desses tênis com os pés, com
o movimento e com as texturas com as quais eles se relacionam nas atividades do parkour.
A razão, localizada no corpo da cintura pra cima, onde cabeça, braços e mãos
funcionam como operadores da transformação sobre o mundo, libertos devido a possibilidade
112
da postura ereta do ser humano, relega pernas e pés a um papel secundário unicamente
responsável pela locomoção, não como participantes de uma dinâmica de conhecimento
(INGOLD, 2018). E outras palavras, pensamos da cintura para cima – os projetos inteligentes
são criados e entregues pela cabeça e mãos, enquanto pernas e pés não participariam
diretamente dos processos cognitivos. Estes, estariam em oposição à locomoção, sinalizando
o reforço da clássica dicotomia mente x corpo.
Mover-se, assim, não é visto como fator que desencadeia o processo perceptivo. A
ideia de percepção está ligada - muito em parte em função da própria história ciência - à
mente como elemento dissociado do corpo, este sendo, assim, relegado a um conhecimento
menor. É especialmente com a fenomenologia de Merleau-Ponty (1999) que podemos a
compreender um olhar alternativo à dicotomia cartesiana, propondo uma perspectiva na qual a
percepção está diretamente vinculada ao corpo em todos os seus sentidos. Conhecemos não só
com os olhos, mas com mãos, pés, olfato, audição.
Se tiver bem, normalmente consegues fazer as coisas, não cai, o corpo às vezes tem
mais entusiamo do que a nossa mente, mas nem sempre dá certo. Se tiveres num dia
ruim, é claro que podes fazer movimentos, mas é melhor fazer movimentos mais
leves, mais simples, brincando… e depois se calhar, até transformas essa energia
negativa em algo melhor. É tipo uma dança, mas nesse caso com movimentos de
parkour. É tipo dançar...É também como uma arte, a arte do que tu podes fazer com
31 Importante lembrar a reflexão feita por Caldeira (2012) de como esses registros feitos por praticantes de
parkour (de graffiti, de pixo etc) funcionam de maneira a estender uma experiência efêmera.
114
o corpo e com o ambiente. Tu sentes aos poucos e inventas a dança, entendes quais
os passos que encaixam ou não naquele ritmo, entendes o ritmo que te apeteces
naquele momento...ao teu corpo, a tua mente. É mesmo tipo dançar. (Vasco)
O relato feito por esse traceur faz um interessante paralelo do parkour com a “arte do
que tu podes fazer com o corpo e com o ambiente”, ao mesmo tempo nos mostra que
entender os passos e os ritmos pertinentes ao momento, ao ambiente, ao corpo, à mente é um
único processo de que abrange todos os sentidos. Ainda que um as figuras de mente e corpo
como coisas diferentes sejam apresentadas a nível narrativo nos relatos dos traceurs, a
construção explicativa, aliada à observação da prática, são capazes de nos mostrar a unicidade
do processo perceptivo, uma vez que os sentidos não estão vinculados casualmente, e, sim,
confusamente implicados em um drama único (MERLEAU-PONTY, p.269). Esse
aprendizado do movimento implica um conhecimento que se desenvolve no ato de explorar,
de mapear (INGOLD, 2005), de uma atitude fundamental de abertura ao novo, ao
imprevisível do mundo. Aprender, portanto, um movimento corporal não pode ser pensado
enquanto uma experiência que se emerge e fica limitado às fronteiras do corpo que o pratica.
Trata-se de um processo que emerge em conjunto e se estende às várias dimensões da vida
daquele que o experiencia
Porque parkour se trata de fazer algo diferente ou novo sempre. Que é diferente de
fazer basquete ou futebol porque eu não desenvolvo essas habilidades, eu só recebo
e repito as regras...não se mudam os padrões corporais… mesmo na ginástica é
sempre aquilo, é mais rígida, mais monofuncional, não existem outras alternativas,
sempre indoor, e a pessoa acaba não vivenciado a experiência do que é ser uma
pessoa no mundo físico. Parkour tem isso...tem essa parte, pois… abre mais, como a
primavera. É altamente subjetivo, sei que depende de cada pessoa. Mas acho que no
geral toda gente sente isso, quem faz parkour há muito tempo (…) Eu pensei numa
coisa que faz mais sentido pra mim: dizem que as pessoas do parkour são malucos
ou inconscientes, mas já conheci mais pessoas responsáveis e conscientes no
parkour do que em qualquer outro grupo de amigos que participei. Tomando
consciência do teu corpo e do teu corpo com o ambiente, e a tua relação com os
outros e com o ambientes, ficas mais consciente das coisas, e ajudas mais os outros e
a ti próprio. E é um bocado disso. (Vasco)
A molecada que tá junto com a gente, que é mais nova, vê o estilo dele, vê o
meu estilo, aprende com os dois, vão descobrindo o que eles gostam, vão achando o
caminho deles… E todos eles também tem suas vivências, né? Então eu acho é
preciso entender que parkour é estar transitando por tudo isso. É praticar depois um
pouco de capoeira, ver qual movimentação é boa, e praticar depois um pouco de
kung fu, ver qual conceito é bom pro treino, sabe? Não precisa ficar também só
“parkour parkour parkour”. Esse negócio de ficar brigando pelo o que é parkour e
free running… acaba gerando um...sendo sectário, essa é palavra mesmo. (Bruno)
Figura 15: Praticantes de parkour no Skate Park da Maia, durante uma Jam
É tipo eu ter encontrado o caminhão pra levar a carreta toda carregada já, então pk é
isso, é um caminhão que já tinha uma carga atrás. Que faltava essa carga ser
conectada ao caminhão pra sair levando adiante. Deve ter o objetivo final...mas o
objetivo final eu não posso falar o que é, porque eu também não sei o que é… Onde
tudo isso vai me levar eu não sei, por enquanto é isso… tô curtindo essa coisa de
pensar um parkour com isso da capoeira angola como eu falei, um novo estilo
focado na lentidão… mas aí eu trago coisa da dança, um pouco das artes
marciais...um pouco da vida toda, né… o parkour me ajuda a carregar tudo isso e a
fazer coisas diferentes com tudo (Bruno)
32 Ver, por exemplo, Vieira et al (2011), Nagata e Carmo (2011), Carneiro (2016), Silva (2012). Além disso,
figuras imponentes do parkour como Sébastien Foucan (2008) também se reporta à prática referenciando
certos movimentos a tipo de “desejo natural” ou “movimento natural”
120
perdidos ao longo do tempo, capturados pela forma de vida moderna, constrita em calçados,
cadeiras, ruas pavimentadas e automóveis. Tendo sua inspiração a partir da observação dos
povos pertencentes a tribos das Américas e África em suas viagens de missões da Marinha,
Hébert (1909) propôs uma série de exercícios a serem incluídos nos treinos militares,
exercícios estes que visavam uma melhor performance do ser humano na realização das
atividades da corporação a partir de um certo tipo de intimidade tátil com o ambiente que
seria conquistada com o aprendizado de oito grupos de movimentos básicos do corpo
humano: caminhar, correr, saltar, escalar, equilibrar-se, lançar, levantar, nadar (ibid, p.5).
É compreensível o uso da ideia de um “resgate do natural” não só por Hébert, mas
outros estudiosos da educação física da época, se olhamos para o contexto no qual estava
inserido: um mundo que experimentava grandes mudanças nas tecnologias, especialmente as
de locomoção, um ritmo frenético de expansão industrial, novos movimentos colonizadores
em torno do continente africano e asiático e a implosão da primeira guerra mundial. Todos
esses elementos contribuíram para alimentar o projeto de Hébert de desenvolver um tipo de
treinamento utilitário, acessível e inspirado nos modos de vida e nas técnicas de deslocamento
dos povos que ainda habitavam o imaginário exótico do sonho colonial dos europeus.
A ideia de Hébert ainda perdura, em maior ou menor medida, nas narrativas e na prática dos
do parkour, tendo em vista que o parâmetro que hoje temos dos movimentos corporais é
basicamente o conjunto muito restrito daqueles que mobilizamos no cotidiano de uma vida
onde a locomoção é facilitada por diversas tecnologias que não são as próprias pernas ou
braços daqueles que em tese poderiam acioná-los de forma mais ampliada. A referência a um
ethos animalesco de certos tipos de movimento como o acocorar-se ou o andar quadrupedal
também contribuem para uma cristalização da ideia de um movimento natural que foi perdido
ao longo do tempo, influenciado pelos aparatos modernos da civilização humana.
Mas é importante termos em mente que, apesar da razoabilidade desse discurso, é
preciso entender os significados da característica de “natural” que Georges Hébert visava
conferir ao método que ele buscava desenvolver. Assim, perceber como a locomoção e as
técnicas do movimento devem ser observadas em vinculação às formas de viver dos
indivíduos, às circunstâncias culturais e ambientais dos mesmos talvez tenha sido o que
impulsionou Hébert a enquadrar o seu método como “natural”. Concordo com Ingold (2018) e
Mauss quando estes afirmam, entretanto, que nenhuma dessas maneiras de se locomover, seja
com os pés descalços sobre terra e pedra, ou com os pés calçados em botas por sobre ruas
pavimentadas, são naturais. Evidentemente que processos tecnológicos podem ampliar ou
121
restringir, imediatamente ou a longo prazo, as formas da movimentação corporal, mas esse
fato não tem a ver com uma suposta naturalidade do ato em si. O “natural” aqui, nada mais é
do que os aprendizados dos indivíduos em sinergia com o ambiente e com a cultura que estão
inseridos.
Dessa forma, Hébert (1912), no seu Guide Pratique d’Education Physique, faz a
seguinte afirmação: atividade é uma lei da natureza. Então, desenvolve seu argumento de que
o ser humano, em seu “estado natural”, assim como os outros seres vivos, obedecendo às
necessidades naturais, desenvolvem-se fisicamente somente em realizar os seus exercícios e
trabalhos úteis a sua sobrevivência. Ele afirma, ainda, que tal desenvolvimento vai depender
das habilidades originais do indivíduo, do seu temperamento, das condições climáticas onde
vive e dos desafios postos a esse ser humano.
Nesse sentido, Hébert tece uma crítica à forma de vida que os “países civilizados”
impuseram ao indivíduo, afastando-o dos ambientes naturais e desencorajando cada vez mais
os exercícios físicos desde a infância. Além da crítica a um modo de vida sedentário que o
mundo moderno suscitou nos seres humanos, Hébert afirma que as escolas de educação física
deveriam não só orientar exercícios e cuidados corporais, como incentivar uma moralidade
voltada para o desenvolvimento da coragem e do altruísmo em prol de si mesmo, da sua
família e da humanidade (HÉBERT, 1909). Dessa maneira, portanto, é que ele busca elaborar
um método capaz de agregar essas orientações, centrado especialmente no papel da utilidade,
cuja inspiração é o indivíduo “não civilizado”, que age por “imitação” e por “instinto”,
participantes de culturas outras que não a europeia, sobretudo as pertencentes aos povos das
colônias francesas nas Américas e na África
Inicialmente como estudante da Escola Naval no fim do século XIX Hébert começa a
estruturar o seu Méthode Naturelle, especialmente influenciado por dois grandes estudiosos:
Demenÿ (1850-1917) e Carton (1875-1947) (COCHET, 2012). A aproximação de Hébert com
Demenÿ deu-se em virtude dos estudos deste último em torno da ginástica científica e sua
proposta de sistematização do método para as atividades físicas (SOARES, 2003). Já em com
o movimento naturista, representado pelo contato com o médico Paul Carton, Hébert buscou
integrar concepções da terapêutica defendida por Carton que consistia em
35 Minha análise, neste trabalho, está mais voltada às formas de deslocamento e caminhada e a influência de
tecnologias e planejamentos arquitetônicos na disposição corporal do indivíduo, o qual busco estudar com
auxílio da prática do parkour. É necessário, porém, ter em mente, o vasto debate existente que tenciona esse
aspecto sob o ponto de vista de um direito à cidade (e ao deslocamento, de um modo geral) a partir da
perspectiva de acessibilidade das pessoas com deficiência, de mulheres, de pessoas LGBTs, de pessoas
pretas e de populações periféricas. Há todo um conjunto de tecnologias, arquitetura e design pensados sob
uma ótica hegemônica do capital que reduz, também, a experiência da locomoção de diversos grupos sociais
128
andar e, há algumas décadas, em especial, com nossos modos de locomoção, dada a notória
redução da experiência pedestre que vivenciamos com o surgimento dos carros. Podemos
entender, ainda, com este tipo de parkour, um certo ponto fora da curva com os regimentos
sobre os corpos, aplicados principalmente nos esportes e treinos de atletas olímpicos, com
destaque para o papel da Ginástica.
Por outro lado, também contamos com um parkour que é apropriado por certos
aspectos da indústria capitalista, como, por exemplo, nas forma que grandes marcas do
comércio esportivo vão, pouco a pouco, explorando o público do parkour como um nicho
específico de mercado. Também vemos o processo de esportivização que a prática vem
sofrendo há alguns anos, diluindo princípios importantes para a história da prática, ao menos
em algum momento dela, como o da “não competitividade”, ou, ainda, na sua faceta de estilo
de vida saudável ou fitness, como produto da biopolítica que encara o corpo como objeto de
rendimento (ESPINAL-CORREA; ESTRADA-MESA, 2020). Muitos praticantes acabam
enxergando nesse contexto uma possibilidade de inserção profissional no mercado, uma
forma de poder “viver de parkour”, posicionando-se a favor desses processos pois acreditam
que, uma vez que o parkour se torne um esporte olímpico, mais oportunidades e incentivos,
seja pelo setor público ou privado, serão abertos para os praticantes.
Recapitulo esses pontos para chegar na seguinte questão: existem diversas maneiras de
experienciar o parkour, ressignificar e criar princípios sobre a prática, explorar possibilidades
de adaptação e inserção socioprofissional. Entre tantas maneiras de existir, são possíveis
leituras que o compreendam enquanto uma prática conformista ao modo de vida ocidental e
capitalista, ou uma prática subversiva ou de resistência ao mesmo. Particularmente, nesta
pesquisa, não é meu objetivo explorar sobremaneira esse ponto, que apesar de considerá-lo
extremamente rico para uma análise do parkour, não constitui, ainda, meu principal interesse,
de forma que aponto alguns aspectos no capítulo anterior que podem auxiliar futuras
investigações acerca dessa questão. Meu argumento se sustenta no elemento da multiplicidade
de experiências proporcionada pelo parkour, com um foco especial na experiência andante, a
qual, em maior ou menor intensidade, configura, sim, um forma de viver que se insurge contra
a redução do caminhar e do deslocamento a partir dos próprios pés, a partir da vivência
voluntária em habitar os ambientes mobilizando de formas outras os seus usos hegemônicos,
assim como o próprio corpo nas mais diferentes atitudes tateantes.
O modo de vida moderno com todo seu projeto tecnológico finda, portanto, os
processos de habilidade? Ingold (2018) detendo-se especialmente na análise das mudanças da
129
mecanização industrial, vai dizer que não, que “a essência da habilidade (…) vem a residir na
capacidade de improvisação com que os profissionais são capazes de desmontar as
construções da tecnologia e criativamente reincorporar as peças em suas próprias esferas de
vida” (ibid, p.110). É isso que os praticantes de parkour também fazem com o próprio corpo e
com o mundo no qual se encontram.
Ao explorar os distintos ambientes e encontrar oportunidades de movimento em
lugares que comumente não existem para o trânsito podal de seres humanos, os traceurs não
só transformam esses espaços ou descobrem novas formas de movimentação, mas participam,
sim, de uma reelaboração mútua entre seus corpos e todo o seu entorno. Ocorre uma
contaminação, uma afeccão mútua (DELEUZE, 1997) entre as bagagens da vida dos
indivíduos e dos ambientes que são habitados por eles. Essas bagagens que são trazidas em
seus corpos, expressas pelas formas de se movimentar, de se vestir, da escolha dos lugares por
onde transitam afetam suas experiências com a prática do parkour e estas, por sua vez,
intervêm naquelas. Essas experiências, em todas as suas multiplicidades, são atravessadas por
um ponto em comum: o exercício de conhecimento e de atenção desenvolvido pelo
deslocamento com os pés.
LeBreton, autor francês conhecido especialmente por suas obras sobre a sociologia e
antropologia do corpo e das emoções, faz uma reflexão muito pertinente em seu livro “Elogio
ao Caminhar” sobre como o ato de caminhar, em nosso mundo contemporâneo e ocidental,
pode ser uma forma de nostalgia ou de resistência, uma vez que pode proporcionar ao
caminhante uma oportunidade de atenção sobre si mesmo e sobre sua relação com seu
entorno, constituindo uma forma de driblar a lógica moderna assentada na locomoção
mediada sobre quatro rodas. Essa consideração acerca do impacto que o modo de vida
moderno teve na no cotidiano e no trabalho dos indivíduos também é feita por Vasco,
praticante e professor de parkour, citando um exemplo de um aluno:
Reflexão parecida faz a arquiteta e urbanista Paola Jacques (2012) ao afirmar que os
errantes modernos “recusam o controle disciplinar total dos planos modernos” e “denunciam
direta ou indiretamente os métodos de intervenção dos urbanistas e defendem que as ações na
cidade não podem se tornar um monopólio de especialistas sedentários” (ibid, p.25-26).
Andar, especialmente a partir da modernidade, passa a constituir uma espécie de
conhecimento menor, ligado ao tédio, à banalidade, à vagabundagem, à perambulação. O
status do sujeito é medido justamente de acordo com sua forma de se locomover, constituindo
uma prova dos seus recursos e de sua ocupação, de forma que a caminhar, errar, vagar, flanar
e atividades, na sociedade contemporânea, pode ser visto como uma oposição se “a las
poderosas exigencias del rendimiento, de la urgencia y de la disponibilidad absoluta en el
trabajo o para los demás (convertida, con la aparición del teléfono móvil, en una caricatura)”
(LeBRETON, p. 19).
Jacques (2012) explica que a experiência da errância, tema no qual a autora se debruça
nessa obra, constitui um tipo de prática desviatória, que abre, descobre e cria caminhos dentro
de um sistema urbanístico estratégico que suprime e controla experiências de deslocamento
nômade. E em diálogo com Deleuze e Guattari, ela afirma que esse processo se dá em uma
oposição não dicotômica entre o espaço liso e o estriado, entre o espaço nômade, nomos -
externo à cidade, e o espaço sedentário da cidade - polis. Assim, a errância urbana congrega,
infiltra, o liso – espaço vetorial, caracterizados por traços – no estriado – espaço marcado por
muros, cercas e caminhos entre estes – e vice-versa. Esse processo permite a coexistência de
nomos e polis: alisa-se o estriado e estria-se o liso. Os indivíduos voluntariamente errantes ao
alisar os espaços estriados, estão buscando a mesma lógica ambulatória nesses espaços, e não
promovendo uma espécie de homogeneização espacial. O corpo errante é uma vivência que
resiste à lógica sedentária da métrica citadina, pois ele flana, perde-se, busca, e abre-se às
experiências do percurso em um espaço majoritariamente planejado para o estacionamento, a
inércia, a previsibilidade e a fixidez. Nesse sentido, errar pela cidade já é, por si só, uma
resistência ao urbanismo predominante, pois
A cidade é apreendida pela experiência corporal, pelo tato, pelo contato, pelos pés.
Essa experiência da cidade vivida, da própria vida urbana, revela ou denuncia o que
o projeto urbano estratégico exclui, pois mostra tudo o que escapa ao projeto, as
táticas e micropráticas cotidianas do espaço vivido, ou seja, as apropriações diversas
do espaço urbano que escapam às disciplinas urbanísticas hegemônicas, mas que não
estão, ou melhor, não deveriam estar, fora do seu campo de ação. (ibid, 272)
131
Nesse sentido, podemos aproximar a reflexão sobre a errância de Jacques com a
experiência do deslocamento proporcionado pelo parkour, uma vez que este opera como uma
espécie de alisamento do estriado, isto é, de tornar transitável um espaço que é, por
excelência, sedentário ou não convidativo à errância, à exploração, à criatividade, à
experimentação. Além disso, os praticantes de parkour também revelam uma infiltração nos
planejamentos urbanos desenvolvidos em uma sociedade de enclaves fortificados
(CALDEIRA, 1997), com mobilidades que nem sempre beneficiam, em especial, os
moradores das regiões periféricas da cidade. Circular simplesmente por lazer em um mundo
hostil à deambulação constitui, em maior ou menor escala, um tipo insurgência.
Tal qual um animal segue os rastros de sua presa, o praticante de parkour também
segue linhas que o orientam à realização de determinados movimentos, à descoberta e à
construção de caminhos. No meio dessas linhas, encontram texturas outras e descobrem novas
possibilidades até então não experimentadas, provam dos entrelaçamentos possíveis entre seu
corpo e o seu entorno. Tecem a dança do parkour a partir dos atravessamentos entre pele,
terra, concreto, mato, enquanto rastreiam e farejam caminhos vários com pés e mãos, no chão,
nos muros, nos tetos, nas árvores e nas pedras. Nas superfícies secas ou úmidas, debaixo de
sol escaldante ou sob a chuva suave. Percebem-se do mundo. No mundo. As corporalidades
mobilizadas vão além das experienciadas pela maioria dos sujeitos, onde o andar bipedal e
ereto pode rapidamente dar lugar ao andar quadrupedal, por exemplo. As vivências entre
humanos e não humanos aproximam-se cada vez mais à experiência atenta, e cada vez mais se
torna comum a comparação com as atitudes corporais dos animais não humanos, evocando,
inclusive características destes às formas de fazer do praticante de parkour.
Essas comparações não acontecem somente a nível visual ou narrativo, elas realmente
constituem um dado possível de ser analisado cientificamente, devido à proximidade de
capacidades motoras, especialmente entre seres humanos e primatas. Em um estudo na área
das Ciências Biológicas, realizado na Universidade de Birmighan, Halsey et al (2016)
desenvolveram um experimento com praticantes de parkour para entender como ocorre o
gasto energético da locomoção de orangotangos em ambientes estrategicamente complexos
como as copas das árvores. Dado a dificuldade de obter esses dados diretamente com esses
animais, os pesquisadores enxergaram na locomoção empregada pelos atletas de parkour em
132
determinados ambientes uma possibilidade de realizar essa experiência cujo potencial de
fornecimento de pistas para a compreensão do problema foi observado, a partir de adaptações
específicas para uma maior aproximação à habilidade dos orangotangos.
Mais uma vez habitando não só os discursos, mas também a prática dos traceur,
podemos ver, por exemplo, como o famoso grupo inglês de parkour Storror possui uma série
de vídeos36 produzidos durante uma viagem na Índia, onde eles dividem os ambientes,
especialmente os terraços no alto de construções e prédios (rooftops), com macacos que
habitam as cidades. A edição dos vídeos busca mostrar a semelhança dos movimentos
realizados pelos praticantes do Storror com os dos macacos ao saltarem entre os prédios,
apoiarem-se em diferentes estruturas ou ao darem cambalhotas e saltos mortais. Apesar de ser
um grupo cujo um dos traços é viajar pelo mundo e fazer parkour nos mais diferentes
cenários, a escolha e a oportunidade de treinar e gravar na Índia sem dúvidas foi incrementada
pela possibilidade de registrar os momentos compartilhados com os animais, enfatizando os
paralelos entre os movimentos dos macacos e dos praticantes.
O macaco acabou batizando um dos principais movimentos do parkour: “macaco” ou
“monkey” é um dos movimentos mais conhecidos, consistindo em um tipo de locomoção
quadrupedal cujo objetivo é deslocar-se por sobre um objeto apoiando-se com ajuda dos
braços e mãos e passando pernas e pés por entre os braços, finalizando, geralmente, com os
pés ou seguido, ainda, de um rolamento. A figura do macaco é constantemente utilizada para
caracterizar performances e símbolos relacionados à prática do parkour: é possível encontrar
nomes de grupos de parkour que fazem referência ao animal, bem como os próprios
praticantes se comparam aos macacos em analogias cotidianas. Essa designação não acontece
de forma aleatória, tendo uma relação muito próxima, de fato, com a maneira como esse
animal se desloca, como nos afirma Bruno:
Essa concentração de você olhar, mirar onde você quer chegar, pensar no caminho
até aquele determinado ponto...você vai pensando ao mesmo tempo que vai
preparando seu corpo, sabe? Vai posicionando as pernas, os pés, o tronco no lugar
certo, ajeita a postura, respira… já viu esses vídeos que tem um tigre ou um leão
olhando para a presa, como a pupila dilata, como a postura do corpo vai se
modificando, vai se preparando pra tomar impulso… Você tem gato em casa né?
Pronto, pois presta atenção neles quando vão pegar um inseto ou sei lá, quando eles
brincam, sobem nas coisas… os animais são inteligentes, eles sabem se as patas
traseiras vão antes das dianteiras ou vice-versa, presta atenção e vê mesmo se não
tem umas coisas parecidas com o parkour.37 (Bruno)
36 Disponível em https://www.youtube.com/playlist?list=PL8KV1nWcRiJSqyE4fSnHW0Tb3cZt8IFP1
37 Podemos também aproximar esse relato da visão de Merleau-Ponty (1999) quando o autor nos evidencia que
a experiência tátil de uma certa parte do corpo implica a experiência tátil do seu restante, isto é, ocorre uma
ação conjunta dos sentidos.
133
É normal demais as pessoas falarem “ah, parkour...já sei, aquela coisa que
você fica pulando nos cantos feito doido, feito macaco, né?”, ou falam que é coisa
meio de vagabundo, sabe...essa parada de ficar subindo, pulando… Eu e os meninos
já passamos muito por isso. E ainda mais tendo tatuagem, piercing assim como eu…
Imagina? Sinceramente pra mim isso nem soa como ofensa… me chamar de doido,
me chamar de macaco… é uma coisa que eu tenho orgulho de fazer, eu quero
mesmo poder pular como um macaco (risos). Esses nomes que a gente bota no
parkour de monkey, cat e tal não são a toa, né? Nós temos muito mais coisa parecida
com os bichos do que nós pensamos, nós também somos animais só que vivemos
parados, acomodados... e com o parkour nós podemos voltar um pouco pra essa
natureza, pra essa forma de se movimentar mais natural que nós fomos perdendo
com o tempo. O desafio do parkour é com você mesmo, é se movimentar. É muito
mais do que “só sair pulando por aí feito macaco”, nós aprendemos muito juntos…
fazemos amigos, inimigos, nos machucamos, quando saramos, voltamos a treinar,
conhecemos muitas pessoas de todos os tipos, muitas histórias...Eu mesmo, na
primeira vez que ouvi sobre o parkour pensei que era besteira, como te falei antes,
mas depois que resolvi experimentar...estou aqui até hoje, o parkour me ajudou a
formar minha personalidade (Diego)
Não dá pra explicar o que é o parkour, sabe? Você vai achar mil explicações
por aí… mas só vivendo mesmo, a vida que o parkour me mostrou… não outra vida,
mas a minha vida mesmo que eu não tinha ideia, o que minha cabeça pode pensar, o
que meu corpo pode fazer… ah, isso tudo é diferente pra cada pessoa. Não tem
mesmo como explicar, só vivendo (Vasco)
***
Buscar uma definição para o parkour, hoje, pode abrir um caminho extremamente
vasto, de modo que há uma diversidade de leituras que concebem, cada qual a sua maneira, do
que a prática se trata. Não procuro, entretanto, fechar um entendimento nesse trabalho sobre
nenhuma dessas definições e tampouco as nego. Meu objetivo não é me ater a alguma
concepção em especial, mas mostrar as várias nuances das experiências dos praticantes do
parkour em dois contextos distintos: na cidade de Campina Grande – PB e na Área
Metropolitana do Porto (AMP).
Parto especialmente de duas ideias orientadoras para a apresentação de uma textura 39
do parkour nesse capítulo: afecção (DELEUZE, 2002) e malha (INGOLD, 2015). Em “Ética”,
Spinoza (1677/2009) descreve um dos seus principais postulados: “o corpo humano pode ser
afetado de muitas maneiras, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída,
enquanto outras tantas não tornam sua potência de agir nem maior nem menor” (p. 99). O
corpo, para este filósofo, é diretamente resultante do movimento, e não o contrário, sendo
constituído, portanto, pelas relações entre outros corpos e a natureza. Desse contato, o corpo
sofre afecções, que são as transformações e transições dos afetos, constrangendo ou
expandindo as potências do corpo: “Afecção remete a um estado do corpo afetado e implica a
39 A textura remete à ideia de tecer, sendo uma proposição que considera o mundo como um entrelaçamento de
fios, sendo cada um destes vital para sua constituição. De La Fuente (2019) identifica a perspectiva textural
presente em abordagens vitalistas, fenomenológicas e nas ontologias de processo, a exemplo de autores
como
136
presença do corpo afetante, ao passo que o afeto remete à transição de um estado a outro,
tendo em conta variação correlativa dos corpos afetantes” (DELEUZE, 2002, p.56). Existir,
nessa perspectiva, portanto, é afetar e ser afetado.
Para Spinoza, existem os afetos ativos e os afetos passivos. Os afetos ativos, ou ações,
provocam uma expansão da potência do corpo, sendo, na sua visão, sempre afetos alegres,
não existindo, assim, pulsão de morte. Já os afetos passivos, ou paixões, são resultado dos
encontros e estes podem nos afetar positiva ou negativamente, de modo que afetos não são
imutáveis e possuem um caráter dinâmico. Segundo este autor, os encontros que
potencializam nossa mente e corpo são aqueles que devem ser buscados, como afirma
Deleuze (1968)
L'homme qui devient raisonnable, fort et libre, commence par faire tout ce qui est en
son pouvoir pour éprouver des passions joyeuses. C'est donc lui qui s'efforce de
s'arracher au hasard des rencontres et à l'enchaînement de passions tristes,
d'organiser les bonnes rencontres, de composer son rapport avec les rapports qui se
combinent directement avec le sien, de s'unir avec ce qui convient en nature avec lui,
de former l'association raisonnable entre les hommes; tout cela, de manière à être
affecté de joie. Dans l'Ethique la de'scription du livre IV, concernant l'homme libre
et raisonnable, identifie l'effort de la raison avec cet art niser les rencontres, ou de
former une totalité sous des rapports qui se composent (p. 241)
Não há nem um nem múltiplo, o que seria remeter-nos, em qualquer caso, a uma
consciência que seria retomada num se desenvolveria no outro. Há apenas
multiplicidades raras, com pontos singulares, lugares vagos para aqueles que vem,
por um instante, ocupar a função de sujeitos, regularidades acumuláveis, repetíveis e
que se conservam em si. A multiplicidade não é axiomática nem tipológica, é
topológica (Deleuze, 2005, p. 25).
40 Por exemplo, nesse blog, há um post do ano de 2005, no qual é possível ver comentários de pessoas que
relatam já estarem praticando ou registram sua curiosidade acerca do parkour. Também é possível notar
comentário a respeito da matéria veiculada no programa Fantástico.: https://marcogomes.com/blog/2005/o-
que-e-le-parkour/
141
Santo. Na Paraíba, o pico das pesquisas sobre parkour foi especialmente no primeiro semestre
de 2006. Apesar de não podermos traçar mais informações correspondentes a ponto de afirmar
com certeza alguns indícios, esse dado coincide com os relatos do início das atividades de
praticantes como Diego41 e Alexandre, que mais tarde viriam a fundar o grupo “Alliance
Parkour”.
Figura 21: Registro da data de início na prática do parkour (Março de 2006), marcado na
parede da casa do traceur Odair Santos, feita pelo mesmo, na época.
Rememorando sua trajetória com o parkour em Campina Grande, Diego relata que
jogava futebol e andava às vezes de skate na altura em que conheceu a modalidade. Por meio
da televisão, viu matérias sobre a prática e achou “bobagem” ou “coisa de gente sem ter o que
fazer”. O assunto parecia “persegui-lo” em vários programas de TV, até que viu alguns vídeos
na internet e resolveu arriscar algumas movimentos. Desde então, não parou. Segundo ele, se
apaixonou pelo parkour, e sentiu diversas mudanças a nível físico e mental. Antes, era uma
pessoa muito explosiva, e com o parkour passou a “treinar a mente”, a ser perseverante, a
conhecer várias pessoas e compreender a diversidade das vivências de cada uma delas. Disse
que, após tomar conhecimento do parkour, sua mente se abriu de maneira única, enquanto me
contava isso, fez um gesto com as mãos próxima à cabeça sugerindo a expansão do
pensamento.
41 Todos os nomes utilizados ao longo do trabalho são fictícios. Quando correspondente ao nome real, será
sinalizado.
142
1.1 De bobagem à paixão alegre – afecções do parkour nos praticantes campinenses
Rememorando sua trajetória com o parkour em Campina Grande, Diego relata que
jogava futebol e andava às vezes de skate na altura em que conheceu o parkour. Por meio da
televisão, viu matérias sobre a prática e achou “bobagem” ou “coisa de gente sem ter o que
fazer”. O assunto parecia “persegui-lo” em vários programas de TV, até que viu alguns vídeos
na internet e resolveu arriscar algumas movimentos. Desde então, não parou. Segundo ele, se
apaixonou pelo parkour, e sentiu diversas mudanças a nível físico e mental. Antes, era uma
pessoa muito explosiva, e com o parkour passou a “treinar a mente”, a ser perseverante, a
conhecer várias pessoas e compreender a diversidade das vivências de cada uma delas. Disse
que depois do parkour, sua mente se abriu de maneira única, enquanto me contava isso, fez
um gesto com as mãos próxima à cabeça sugerindo a expansão do pensamento.
Além da sua experiência pessoal, Diego rememora com detalhes sobre dois outros
praticantes que marcaram sua trajetória enquanto traceur: Júnior e Roberto. Diego relata que
Júnior é um rapaz negro, pobre e muito tímido que chegou falando muito pouco junto aos
treinos e tinha muita vergonha da sua aparência. Diego disse que deu vários “sermões” nele e
o incentivou na prática, de modo que com a constância dos diálogos e trocas de experiências,
Júnior conseguiu melhorar diversas das suas inseguranças tanto a nível psicológico quanto
físico. Posteriormente, Júnior viria a se tornar uma outra pessoa muito importante para o
Parkour em Campina Grande, tendo participado também do Alliance Parkour. Já um outro
colega, Roberto, é descrito como um jovem que treinou parkour com Diego há um tempo
atrás, e tem um problema de saúde que dificultava sua constância nos treinos. Apesar de
gostar muito da prática, teve que parar de se dedicar por um período a fim de realizar seu
tratamento. Nos momentos em que estava melhor, sempre voltava para treinar. Segundo
Diego, o treino tinha um papel perceptível na autoestima de Roberto. À época desse relato,
Roberto entrou em contato com Diego para marcar um encontro, pois vai se mudar de
Campina, mas não queria deixar de rever o antigo companheiro e “mentor” de treinos.
Tive a oportunidade de entrar em contato com Roberto antes do mesmo deixar a
cidade e ele me confirma a narrativa de Diego. Vindo de uma família com boas condições
sociais, mas com valores que divergiam dos seus, Roberto não possuía uma boa relação com
seus familiares, além de ter uma doença de difícil diagnóstico e tratamento, fatores estes que
acabaram afetando sobremaneira sua autoestima. Como uma forma de “estar fora de casa” e
evitar conflitos familiares, bem como se exercitar para melhorar sua condição física, Roberto
143
relata que passou a praticar artes marciais e, em uma das suas idas ao local dessa atividade,
viu alguns rapazes treinando parkour no Açude Novo (ou Parque Evaldo Cruz). Ele se reporta
a essa época como um período de bons aprendizados e destaca a importância do papel de
Diego no incentivo e paciência com suas limitações.
Diego é uma figura central no parkour de Campina Grande, sendo apontado
constantemente como “mestre” ou “mentor” de praticantes mais novos. Nos seus relatos sobre
sua trajetória com a prática, ele carrega uma imensa bagagem de memórias detalhadas sobre
diversas pessoas que treinaram junto a ele. O aspecto da mudança de autoestima e confiança
nos praticantes após iniciarem o parkour é sempre lembrado por Diego nas suas falas. Dessa
vez, ele cita Levi como um rapaz que possuía uma autoestima muito baixa e também era um
pouco agressivo no seu comportamento. Durante os treinos, era normal que Levi não ouvisse
os mais experientes, fizesse “cara feia” para os conselhos de colegas ou ficasse muito
chateado por não conseguir realizar algum movimento. Entretanto, após os diálogos com
outros praticantes. Segundo Diego, o desafio que o parkour lhe proporcionouem agir com
perseverança, com repetição e ter humildade em ouvir os mais experientes, o ajudou a
melhorar também suas inseguranças. Hoje, Levi é formado em Educação Física, e já publicou
trabalhos na área sobre o parkour.
Após alguns anos sem se reunir com muitas pessoas para treinar, Diego fez uma
chamada por meio de suas redes sociais, para um treino coletivo no Açude Novo. Nesse
encontro, havia cerca de 20 meninos, entre 10 e 35 anos, dispostos em círculo ouvindo
algumas coisas que Diego falava. Me pus junto ao círculo por convite de Diego, fui
apresentada e expliquei um pouco sobre a pesquisa, o que eu já tinha feito e disse que havia
passado um tempo em Portugal também pesquisando junto aos praticantes de lá. Alguns
meninos acharam interessante e citaram nomes de traceurs portugueses que eles conheciam
por vídeos do youtube e perfis do instagram, e perguntaram se eu os havia conhecido. Em
seguida, ouvimos algumas recomendações e regras, como a necessidade de pagar flexões caso
fizesse algo “errado”: pisar muito forte, fazer uma aterrissagem pesada, ou mesmo não
conseguir realizar o movimento.
Essas regras, durante o treino, nem sempre são apontadas por Diego ou pelos colegas,
de forma que os próprios praticantes já fazem sem ninguém chamar atenção. Essas regras
segundo Diego, são para incentivar o preparo físico, dada a necessidade de estar bem
condicionado para a prática, como o exemplo das flexões. Em seguida, Diego nos falou que
iríamos explorar vários pontos do Açude, e não deixou de fazer relatos sobre os treinos “das
144
antigas”, oportunidade esta em que outros meninos também relatavam suas memórias afetivas
desse período, contando sobre piadas, “tiração de onda”, amizades e experiências outras.
Pagar flexão, apesar de proibido pelas regras militares, é uma forma de punição
comum nas unidades do Exército, geralmente ordenadas de superiores para seus subordinados
hierárquicos. Diego serviu ao Exército quando mais jovem e, assim como ele, também Heitor
e Alexandre.
Conheci Heitor em uma ida ao parque da criança para caminhar, o vi sozinho
treinando e fui conversar com ele, apresentando-me como estudante e fazendo referência a
Diego. À época da pesquisa, Heitor tinha 19 anos anos e cursava Engenharia de Materiais na
UFCG, mas encontrava-se com o curso trancado devido ao seu serviço junto ao Exército,
pretendendo voltar no semestre de 2020.1. Ele afirma que “O Exército é legal, mas gosto mais
da UFCG, inclusive é um dos lugares que mais gosto de treinar”. Combinamos, assim, de nos
encontrarmos na UFCG, em um domingo, que seria sua folga do Exército e ele também
aproveitaria para treinar pois na UFCG tem muitos “picos brabos” , e falou que sua namorada
também gostava de ir para praticar slackline.
No domingo fui até a UFCG, por volta das 15h. Havia quase nenhum movimento,
apenas os guardas e uns meninos que iam jogar futsal na quadra. Heitor chega com Natália,
sua namorada, e prontamente começamos a conversar e ir em direção à pracinha do Centro de
Humanidades, onde existem bancos, escadas e batentes. O chão, com vários retângulos de
concreto, também é útil para marcar “traços” de alcance nos saltos de precisão. Começamos a
conversar sobre como eu decidi pesquisar parkour e falo também um pouco da minha
experiência no campo de Porto, Portugal, pois Heitor acompanha alguns traceurs de lá e
mostra interesse nos relatos.
Heitor treinava há 5 anos e também teve seus primeiros contatos com o parkour a
partir da divulgação do filme B13 e outros vídeos da internet. Via com uma certa frequência
algumas pessoas treinando no Açude Novo e no Parque da Criança, até que um amigo o
chamou para treinar junto à sua turma, da qual Diego fazia parte. Assim, Heitor começou a
frequentar os treinos que aconteciam principalmente nos domingos.
Assim como outros praticantes que tive contato, Heitor considera o parkour um marco
em sua vida. A prática é um vetor de autoconhecimento muito importante para ele, que
carrega uma tatuagem no peito com um dos símbolos do Parkour: quatro grafias baseadas nos
antigos hieróglifos que significam igualdade, equilíbrio, controle e simplicidade. Com o
parkour, Heitor conta que aprendeu a não se importar tanto com os julgamentos dos outros,
145
pois a medida que passou a se conhecer melhor, entendeu que não precisa estar agradando ou
provando nada a ninguém, desde que tenha sua consciência tranquila.
Quando passou a se dedicar mais ao parkour, Heitor relata que se sentia “fraco” ao
tentar os movimentos, os quais demandam um bom preparo físico, então ele começou a fazer
calistenia junto a amigos do bairro, que treinam nas barras de exercício, disponíveis em
algumas praças. Passou, assim, um tempo afastado dos treinos mais frequentes do parkour
para se dedicar a um treino de força e, consequentemente, conseguir realizar de forma mais
satisfatória os seus treinos. Cita, ainda, que quando entrou no Exército, sua experiência com o
parkour e com a calistenia o ajudaram na realização dos treinos.
Fomos, em outra oportunidade, para um treino no Parque da Criança, pois Heitor havia
combinado com alguns amigos do quartel para treinar alguns movimentos de parkour e
realizar atividades físicas nas barras que existem neste espaço. Heitor e todos os seus amigos
do quartel são negros e residem nas periferias de Campina Grande, além de realizarem algum
outro tipo de atividade física a fim de complementar os treinos realizados no quartel. O treino
em comum entre todos eles é a calistenia. Todos têm músculos bem definidos e bastante
familiaridade com exercícios de fortalecimento onde se utiliza apenas o peso do próprio
corpo. Além da calistenia, alguns deles tem experiência com a capoeira, fato que fica
evidenciado na realização dos movimentos como giros e mortais.
Já em outro treino, também realizado no Açude Novo, conheço Eduardo, um rapaz
tímido que relata gostar de estudar qualquer coisa relacionada ao corpo e à educação física,
chegando a me indicar um livro sobre proxêmica de E. T. Hall, afirmando se tratar de um
material interessante para eventualmente pensar algumas questões do parkour. Estudante do
curso de física na Universidade Estadual da Paraíba, Eduardo é interessado também por break
dance e às vezes pratica parkour, especialmente quando Heitor, seu amigo, o convida.
Tanto Diego quanto Heitor falam com paixão sobre o parkour, mas confessam que
sentem falta de um grupo para treinar em companhia, pois acha bom compartilhar as
experiências do treino. Para Heitor, por exemplo, o fato de se estar em número mais alto de
praticantes, também afasta uma sensação de insegurança nos espaços públicos. Motivo pelo
qual ele gosta de treinar na UFCG, pois se sente mais seguro, além do que na universidade
pode-se contar com uma estrutura com banheiro e bebedouro, anexos à quadra de esportes.
Também na Universidade, ele pode levar o celular, tirar fotos e fazer vídeos com mais
tranquilidade. Diego não para treinar, dedicando sempre alguns intervalos entre suas
atividades como pai e seu trabalho como tatuador, durante a semana para ir, mesmo sozinho,
146
até o Açude Novo treinar, pois é uma maneira de se manter em forma e de “botar as energias
pra fora”.
Essas experiências relatadas entre os praticantes da transição de comportamentos
descritos como medroso, agressivo, defensivo, tímido ou sentimentos como solidão, para uma
atitude mais leve, humilde, alegre, brincalhona e momentos em comunidade, em encontros,
podem ser vista como um processo de afecção que potencializa o existir do praticante. Assim,
o parkour pode realizar bons encontros em ambientes que, a partir de outras experiências,
poderiam agenciar maus encontros, paixões tristes, como medo, solidão, insegurança.
Enquanto determinados espaços ou relações podem constituir formas hostis às experiências de
deslocamento ou de lazer, o repertório criativo possibilitado pelo parkour oferece
oportunidades de vivências positivas.
A mudança que ocorre nos corpos como efeito das afecções é denominado por Spinoza
(2016) e Deleuze (2002), por “modo”. Assim, podemos dizer que as afecções vivenciadas do
encontro no parkour constituem modos outros de agir do corpo: ocorrendo, assim, uma
alteração do estado do corpo, podemos ver em que direção, em qual intensidade, foi
provocada essa mudança, em outras palavras, se a potência desse corpo foi aumentada ou
diminuída. É nesse sentido que podemos dizer que os encontros proporcionados pelo parkour,
o conjunto de afetos trocados entre os praticantes, desdobram-se nas afecções que são
marcadas e reverberadas no e pelo corpo.
43 Street workout e calistenia são práticas muito semelhantes, mas a grande diferença está no fato de que a
primeira geralmente é praticada em praças e parques que contêm equipamentos, a exemplo das barras. A
calistenia não requer necessariamente esses equipamentos, sendo uma prática que necessita essencialmente
do peso do próprio corpo.
151
Enquanto acompanho uma das aulas na Academia Eu+, comento com Iuri e Miguel
sobre a “atmosfera leve” que eu percebia nos treinos, bem como as palavras de incentivo e
pequenos toques com as mãos, entre professores e alunos, e entre os alunos. Miguel me fala
que essas pequenas atitudes fazem toda a diferença, especialmente quando comparado à
dinâmica presente na Ginástica. Uma palavra de incentivo ou uma crítica feita com delicadeza
contribuem para que o atleta de parkour tenha motivação para estar ali, para perseverar e,
sobretudo, para acreditar em si mesmo.
Eesse ato de tocar as mãos entre os praticantes, aplaudir quando um colega realiza um
movimento desejado, estimular os amigos com palavras e frases de incentivo como “você
consegue!”, “vamos, mais uma vez”, “você está melhorando!”, entre outras, contribuem para
a produção de uma “atmosfera potencializadora”. A importância do encontro, do estar junto, é
sempre descrita como um momento crucial para o desenvolvimento dos laços de comunidade
– esta comumente reportada como “família” - e para o incentivo no processo de aprendizagem
dos praticantes de parkour.
Conversando com Iuri e Miguel sobre as diferenças entre o parkour e a ginástica, eles
afirmam que a ginástica faz corpos mais “rígidos”, dizendo que é possível notar isso nos
corpos mais “viciados” por essa atividade física. Existe um “corpo de ginástica”, um corpo
com definição distribuída por todos os músculos. É inegável, segundo eles, perceber a
facilidade que alunos que têm experiência com ginástica possuem ao chegar na Academia,
com a realização de certos movimentos em virtude da técnica adquirida no tempo da atividade
anterior, mas isso não significa que serão capazes de realizar qualquer movimento. Ao
contrário do parkour, o corpo de um ginasta, segundo Miguel, tende a ser mais “robótico”,
pois a Ginástica condiciona o atleta dentro de uma dinâmica extremamente linear, tanto de
movimentos, quanto de espaço físico. Os propósitos da Ginástica e do Parkour são
completamente diferentes, apesar de convergirem esteticamente, em alguma medida, na
realização de alguns movimentos. A estética do Parkour, inclusive, não é tão “bonita”,
segundo Iuri, quanto a da Ginástica porque esta tem parâmetros de postura ao cair, ao pular
etc, enquanto no Parkour, o que se busca é a fluidez, é a maleabilidade, adaptabilidade entre
os aparatos concretos. “É quase como água, que quando tu jogas ela toma se espalha ou toma
a forma do lugar onde é jogada”, comenta Iuri.
152
Além disso, Miguel e Iuri também destacam que um dos grandes pontos que diferencia
as duas a ginástica e o parkour é o potencial de desenvolvimento da autoestima. Eles me
fazem relatos de constrangimentos de jovens ginastas, de situações em que estes até mesmo
choravam devido à pressão e desvalorização por parte dos instrutores, além da hostilidade
oferecida pela constante pressão da competitividade. Em uma conversa com dois praticantes,
uma menina de 15 anos e um menino de 14, ambos com anterior experiência em ginástica,
eles corroboram o que foi apontado por Iuri e Miguel, afirmando que, no parkour,
encontraram uma oportunidade de agir com mais liberdade, sem as amarras reguladoras que a
ginástica os oferecia.
Um outro praticante que frequentava a Academia às vezes como professor, é Vasco, de
25 anos, morador da cidade de Esposende, distrito de Braga, a 50 km do Porto. Vasco pratica
artes marciais e segue uma dieta vegana e natural. Em virtude de um problema de saúde de
um familiar, seu estilo de vida passou a ser mais saudável, de forma que seu familiar também
o acompanhou em alguns passos dessa transição. O parkour, segundo ele, assim como outras
atividades também o podem ser, auxilia nesse processo de expressão de energias reprimidas
através do corpo. Pedro é um rapaz que se interessa muito por assuntos mais que ele chama de
“holísticos”. Disse-me que em sua adolescência, passou por uma crise existencial, não sabia o
que era ou o que queria da vida, tendo encontrado sua resposta no contato junto à natureza.
Dos traceurs que entrei em contato na AMP, ele é o rapaz que mais realiza treinos em
ambientes com menor intervenção artificial, buscando sempre estar próximo de árvores, terra,
água, etc. Além disso, Pedro é formado em Ciências do Desporto, com mestrado na área,
atuando como professor em escola primária. Nas suas aulas, Pedro cita que busca sempre
passar algumas técnicas e movimentos do parkour, mas em virtude do espaço e da proposta da
disciplina, varia por outras atividades. O que ele gosta mesmo, entretanto, é ensinar parkour
porque é uma oportunidade de estar em encontro com as pessoas
Gosto muito de ensinar e de treinar junto porque cocê sozinho o dia todo vagueando,
treinando...cria mais sentimento de solidão. Se tiver em grupo, você sente mais paz,
alegria, tem mais movimento. Quando você vai treinar sozinho, geralmente você tá
procurando ficar em paz consigo mesmo, e depois que você consegue essa paz, você
quer sentir alegria. Então sozinho você sente alegria, mas no coletivo é mais intenso
isso. O sentimento de bem-estar aumenta porque você está trocando energia com
outras pessoas e tá intensificando o seu sentimento. (Vasco)
153
O fato de conseguir realizar movimentos com o próprio corpo que até um certo
momento anterior não se era possível imaginar promove um sentimento de autoconfiança e
autoestima que são transportados para outras vivências além do parkour. Um exemplo disso
foi um caso relatado pelos pais de um adolescente residente no Porto: segundo eles, seu filho
de 13 anos, antes de entrar no parkour, era muito tímido, medroso e “travado” e não tinha uma
grande autoestima, especialmente pelo fato de ser magro e ter uma estatura menor que a
média dos meninos da sua idade. Após o início na prática do parkour, o menino passou a ser
mais aberto e corajoso, a conversar com mais frequência e demostrar uma atitude mais leve e
descontraída. Essa mudança é vista pelos pais como uma clara consequência da entrada do
filho no parkour, fato este que os motiva a desejar que o filho permaneça treinando e em
vínculo com os colegas da prática, pois sentem que é uma atividade saudável e divertida para
o adolescente, tanto a nível físico, quanto psicológico. No mesmo sentido, temos o
depoimento de Gustavo
Quando eu era mais novo tinha menos confiança, tinha a autoestima mais baixa.
Então sinto que o parkour ajudou-me a crescer nesse ponto também, comecei a ver
as coisas de forma diferente, a sentir-me melhor comigo mesmo(…) Sempre gosto
de ir pra casa com aquela sensação de pensar “ok, tinha uma coisa que eu tinha
medo, acabo de fazer, sinto-me muito bem, muito feliz” se calhar não me achava
capaz e essa é sempre uma dimensão interessante porque acabamos por descobrir
que somos mais capazes do que o que achamos que somos. (…) E acho que essa é a
parte mais cativante do parkour. (Gustavo)
Em um dos treinos que participei, resolvi treinar com Heitor. Sua namorada, Natália,
que já tentou algumas coisas do parkour, mas não insistiu, também treinou conosco. Ela
montou o slackline entre as árvores da UFCG e também testei ficar em pé e andar sobre a fita,
com a ajuda dos dois, que apoiavam meus braços, cada um de um lado. Perguntei à Natália o
porquê dela não treinar parkour. Ela me disse que tinha muita vergonha, mas não entendia
exatamente essa vergonha, suspeitava que tinha receio das pessoas ficarem “olhando demais”
ou “olhando torto”. Perguntei se ela não sentia isso também com o slackline, pois ao meu ver,
também é uma prática que chama certa atenção. Ela disse que preferia o slack porque era ela e
a fita, ali, num canto. Achei interessante ela falar sobre essa sensação de vergonha, porque eu
também experienciei isso, especialmente durante minha estadia no Porto. Uma vez que fui
chamada para treinar junto ao pessoal, neguei porque estava com essa sensação de vergonha.
Fiquei tensa, com medo de julgamentos e coisas do tipo, e não sabia também explicar
exatamente o que eu sentia, mas a princípio era uma negação de que aquilo fosse “algo para
mim”.
Durante os treinos que eu acompanhava, comecei a ficar com vontade de tentar
algumas coisas, mas a vergonha ainda falava mais alto, me impedindo de ter coragem de
treinar. Acredito que isso me atrapalhou um pouco em me aprofundar na compreensão de
outros aspectos da prática, sobretudo para as sensações de dores, de frustração ou de alegria
ao conseguir realizar algum movimento, e também em relação à experiência do
compartilhamento de ideias acerca das movimentações entre os pares durante o treino. É
diferente ouvir essas ideias, sugestões, conselhos de “fora”, mesmo com todo a vontade e
esforço de entender a fundo aquelas falas. Quando me propus a treinar também, a forma como
ouvia as sugestões e como via as movimentações para tentar imitar, era bem diferente, pois
havia a necessidade de incorporar aquele entendimento para desdobrá-lo na prática do
movimento proposto.
Acredito, assim, que treinar em grupo no Porto, também poderia ter me ajudado a
entender melhor as possíveis dinâmicas sociais em torno do gênero. Isso pesou um pouco
155
durante um tempo nas minhas inseguranças após esse período de pesquisa, mas, por outro
lado, foi importante para vivenciar a prática etnográfica (MAGNANI, 2009), compreendendo
as nuances do campo e traçando novas estratégias de pesquisa. Uma delas foi a decisão,
evidentemente dentro das minhas limitações e respeitando o meu processo de entender e me
destituir, ainda que em menor escala, dessa vergonha em questão, de treinar, mesmo que
pequenas possibilidades.
Em janeiro do ano de 2020 foi veiculada uma matéria em um jornal local sobre um
encontro de parkour feminino na cidade de Taubaté-SP, sendo rapidamente viralizada em todo
o Brasil com um tom pejorativo, tornando-se, inclusive, em meme44. A edição de vídeo
transmitida pelo jornal mostra cenas de meninas realizando movimentos básicos do parkour,
pois se tratava de um evento que reunia garotas com e sem experiência, visando justamente a
inclusão feminina em uma atividade majoritariamente praticada por homens. É notável que a
própria edição da matéria não foi cuidadosa em constar informações adequadas, reforçando os
estereótipos relacionados tanto à prática em si, como ao aspecto de gênero. A jornalista, ao
anunciar a matéria, diz “Pode parecer brincadeira, mas é um esporte”, o que demonstra uma
hierarquia de práticas a serem “levadas a sério”: brincar é algo menor que realizar um esporte.
Em outro momento, é mostrado um professor de educação física emitindo sua opinião sobre a
prática com tais palavras: “(…) Arrisco dizer que as mulheres são mais belas que os homens
praticando, são muito mais delicadas, são muito mais sensíveis...coisa que nós homens
geralmente não temos”.
A quantidade de comentários no vídeo da matéria postado no YouTube é imensa e o
padrão segue mais ou menos discursos que ridicularizam a prática e reforçam a ideia do
parkour como algo extraordinário e “perigoso”. O teor desses comentários demonstra muito
do desconhecimento em relação ao parkour como um todo, como reproduzem discursos
sexistas, misóginos e gordofóbicos. O vídeo em questão obteve uma forte repercussão,
gerando muitos conteúdos de cunho depreciativo, mas também inflamou alguns debates em
torno da prática e do aspecto de gênero relacionado ao mesmo. O Programa “Encontro com
Fátima Bernardes”, na Rede Globo de Televisão, por exemplo, convidou duas meninas,
praticantes de parkour para conversarem sobre a ressonância dessa matéria e o preconceito
sofrido pelas mulheres nesse meio.
44 Os memes são reproduções em larga escala de imagens, vídeo ou gif, difundidas na internet com cunho
paródico (TREVISAN et al, 2016).
156
Figura 22: Print de comentários no vídeo "Parkour para meninas em Taubaté", disponível no
YouTube
Fonte: YouTube
espacialização deste. Ele aponta, ainda, que esse tipo de modalidade apresenta uma
uma resistência à dor e admissão dos riscos. Para Kidder, masculinidade e espaço são
redefinição dos espaços proporcionadas pelo parkour não podem ser analisadas sem
Nesse sentido, Kidder (id, ib) afirma que o apelo a cenários e situações hipotéticas
(como por exemplo: “se houver um assalto”, “se houver um incêndio”, “se um prédio estiver
desmoronando” etc) não devem ser entendidos de forma literal, pois essas falas são
poderoso e capaz de controlar determinados eventos. Além disso, observar as formas que o
corpo masculino toma quando colocado em ação é necessário para compreender o parkour
como um ato de masculinidade, como o exemplo do treino sem camisa. Já verbalmente, esse
autor argumenta que o corpo do traceur não se realiza em um vazio espacial: ao praticar ações
A pesquisa realizada por Kidder (2013) evidencia como o parkour pode ser lido sob
vivenciam os espaços de forma criativa e não convencional. Paralelo a isso, há de se notar que
essas formas de experienciar o ambiente constituem atos de exclusão daqueles corpos que não
concebe-se uma dinâmica social de reforço e recepção dos aspectos ligados à masculinidade
no parkour: a juventude, o corpo magro ou sarado, aptidão e desejo a “correr riscos”, o poder
masculinas que expressam a admissão de ações arriscadas e do corpo apto a praticar essas
ações. Para fazer parkour é preciso aprender a lidar com o medo e buscar a superação dos
159
obstáculos (corporais e ambientais). Assim, o espaço que se desenha a partir dessas
experiências é uma “paisagem urbana definida em termos de quem tem o poder de controlar e
quem não tem. O ambiente urbano, portanto, é tratado como um campo de prova para as
identidades de gênero masculina (em que outras identidades são subordinadas” (KIDDER,
2013. p. 13)
É relevante, ainda, pontuar que existe uma variedade nos modos de experienciar o
parkour e alguns deles não são devotados a um tipo de exercício significativamente “radical”.
A virilidade e o heroísmo, entretanto, são expressões presentes nas mais variadas formas de
aqui é esse: a performance da masculinidade heroica é catalisada pelo parkour de modo mais
recorrentemente afastado no parkour, ele é deslocado para uma ideia de competitividade “com
si mesmo”, isto é, uma busca pela autossuperação. Mas, ao entendermos que “uma das formas
de ‘mostrar-se homem’ em nossa sociedade é correr riscos, aceitar desafios, em suma: ‘entrar
Diego, ao relatar suas memórias com o parkour, cita que, além desta paixão, também
possui outra: os personagens de super herois, e brinca com a coincidência de, um dia, estar
vestindo uma camisa do super homem e ajudar uma pessoa desconhecida que estava sendo
assaltada. Na ocasião, Diego recorreu às habilidades aprendidas com o parkour para correr e
saltar alguns obstáculos. Ele aponta que é impossível deixar de fazer essa analogia, dizendo
que, naquele dia, sentiu-se tal qual um super-heroi.
Já Bruno, praticante brasileiro residente no Porto, ao narrar suas experiências com o
parkour, refere-se constantemente à relação que ele estabelece com as construções urbanas,
160
compara um prédio grande a um “monstro” com o qual ele precisa lutar. Este enfrentamento é
travado justamente a partir dos movimentos realizados sobre a estrutura da qual ele fala.
Trata-se de uma luta entre um monstro “imóvel”, que avança sobre o indivíduo na sua
Mais uma vez o elemento guerreiro ou heroico é evocado, por exemplo, no “Desafio
Hércules”, uma série de 12 exercícios pensada pelo traceur pernambucano Adilson Veron.
Esse desafio é uma evidente referência ao mito grego do semideus Hércules que precisa
enfretar 12 árduas tarefas para livrar-se de sua penitência dada pela deusa Hera. O Desafio de
paraibana, a comunidade local de parkour escolheu o dia 30 de dezembro para sua realização.
Macho”45, desenvolvida pelo traceur sergipano Duddu Rocha. Em um vídeo divulgado por
“Rotina física voltada para o parkour com o único objetivo de ver até onde você é
idiota (…) Saiba que não possui nenhuma lógica científica e a intenção é mesmo
esgotar sua energia física e mental. É um complemento, e não substituto aos treinos
de parkour. Você vai cansar, sangrar, gritar, tremer e, no caso do Edi, vomitar. Nos
vemos no hospital.”
pelo traceur e professor de parkour Leonard Akira. Segundo informações do site sobre seu
curso de parkour, o praticante que se propõe a participar desse ambiente deve saber que o
curso é mais que isso, constitui, também, uma “segunda família”, um grupo de “amigos”,
Nesse sentido, a ausência de meninas no parkour não é uma exceção quando olhamos,
principalmente, para as atividades físicas ou esportes considerados mais “radicais”, que
exigem um alto desenvolvimento físico ou que envolvem práticas em dinâmicas de rua. A
45 Disponível em http://ibyanga.blogspot.com/2009/07/que-comecem-as-dores.html
161
virilidade é um fator crucial para entendermos a divisão de “práticas de homem” e “práticas
de mulher”, excluindo estas, até o início do século XX de espaços como as forças policiais e
as forças armadas, por exemplo e posteriormente as incluindo sob a justificativa de humanizar
e modernizar esses contextos (MOREIRA, 2011.)
Ao perguntar sobre a forma de contato com o parkour, traceurs brasileiros mais antigos
constante citam o papel de vídeos e filmes estrangeiros lançados a partir da primeira década
do ano 2000. São conteúdos desenvolvidos de forma profissional ou amadora, mas um filme
em especial sempre é lembrado: Banlieue 13 (na versão brasileira, B13 – 13º Distrito). Em
grande parte, difundidos a partir de plataformas como a extinta rede social Orkut, muitas
pessoas, praticantes ou não, compartilhavam ideias e vídeos nos fóruns das comunidades
dessa rede. Além disso, alguns programas de TV aos poucos lançavam matérias abordando o
parkour, especialmente no estado de São Paulo, fazendo com que mais pessoas soubessem da
existência da prática e levando-as a procurar mais a respeito da mesma, como foi o caso de
Diego, praticante campinense desde 2004.
Juntamente com Sébastien Foucan, David Belle, filho de Raymond, é constantemente
referenciado como o precursor do parkour, uma espécie de releitura urbana do Método
Natural (ATKINSON, 2013) desenvolvido inicialmente em Évry, Lisses e Sarcelles, cidades
satélites de Paris. David Belle elevou seu reconhecimento como traceur a nível internacional
sobretudo em virtude de sua participação no filme francês Banlieue 13.
É interessante pararmos um pouco e analisar a importância desse filme na projeção de
David Belle e na divulgação da prática de parkour para um grande público. Banlieue 13 fala
de um bairro socialmente vulnerável na França, com diversos problemas relacionados ao
tráfico de drogas e à violência. Os movimentos de parkour realizados por Belle, no
personagem de Leïto, e de outros atores, constroem a estética da miséria e da estreiteza das
ruas e construções do banlieue (PRUBHA, 2014). Comecemos pela compreensão do espaço
geográfico e social que é a banlieue francesa e posteriormente passemos para a discussão de
alguns de seus desdobramentos no cinema e no imaginário social a respeito do parkour.
O termo francês banlieue refere-se a espaços residenciais que se encontram nas
redondezas da cidade, um equivalente ao conceito de subúrbio. As banlieues eram os espaços
162
para onde a força de trabalho dos projetos de reurbanização após a Segunda Guerra Mundial
foi enviada, especialmente indivíduos provenientes de colônias francesas. A partir da década
de 1960, o Estado francês preocupado em erradicar os bairros considerados insalubres, a partir
de uma lógica higienista, dá início às construções de habitações coletivas, as Habitações de
Aluguel Moderado (HLM).
Construídos tão somente para responder ao problema de moradia com o um custo
baixo e destinados a cumprir o sentido de habitação em sentido estrito (LEFEBVRE, 2013),
esses conjuntos localizavam-se distantes dos eixos de comunicação e fora do circuito ou com
acesso limitado a rede de transporte público, associados a uma oferta limitada de
equipamentos coletivos (BRANCO, 2008).
Já a partir de 1980, com o crescente aumento da diversidade étnica e racial na França e
refletida em grande parte na constituição da banlieue, esse termo passa a ter uma conotação
específica, indicando um espaço geográfico e social comumente ligado à pobreza,
criminalidade, imigração e problemas com a sua juventude. Por exemplo, a família de David
Belle é de origem franco-vietnamita e Sebastien Foucan tem suas raízes em Guadeloupe,
departamento ultramarino da França, localizado no Caribe. Tanto Sarcelles, quanto Lisses e
Évry estavam inseridas no imaginário daqueles elementos que apresentam uma certa ameaça à
ordem dominante e, apesar de não figurarem nos motins ocorridos entre 1980 e 1990, muitos
dos seus residentes eram não-brancos ou de origem não europeia, fatores estes que reforçaram
os estigmas sobre os jovens provenientes das banlieues (KIDDER, 2017).
Nesse contexto, o cinema francês do século XX, especialmente a partir da década de
1950, contribui para delinear e difundir o imaginário em torno da banlieue, interpelando
narrativas tanto sobre o deslocamento desse tipo de subúrbio até a Paris mais central, quanto
relacionadas à criminalidade e juventude. Nesse período, há uma grande produção que busca
retratar a banlieue a partir do resgate da história de um certo urbanismo como estratégia de
segregação socioespacial das classes populares (ZIMERMAN, 2015). Já a partir de 1990,
ganha força a temática da violência e da criminalidade constantemente inscritas no universo
juvenil, que por sua vez estava associado a uma problemática urbana e de imigração. Assim,
se, por um lado, a banlieue é interessante para observamos as questões de ordem
socioarquitetônica, para o cinema, ela serviu como uma forma de leitura sobre as tensões da
cultura francesa tradicional e um novo contexto de multiculturalismo e diversidade étnica
(BRANCO, 2008).
163
A banlieue, portanto, congrega uma carga de estereótipos e estigmas relacionados ao
local geográfico, mas sobretudo ao lugar social que ocupa na conformação urbana e
capitalista da cidade. É nela que os marcadores sociais da diferença como classe e etnia
definem os personagens da narrativa sobre a constituição e dinâmica do local. Apesar dessas
concepções sobre espaços socialmente segregados e diante dessas urbanizações gigantescas e
descaracterizadas que de início não se revelam como as maiores promotoras de sociabilidade,
é com as parcelas mais jovens que vemos iniciativas criativas sobre o espaço público,
precisamente a rua, como local de socialização por excelência (idem, ibidem).
Não obstante a complexidade desses espaços seja maior do que a retratada pela mídia,
resta plausível iniciarmos a discussão sobre o parkour a partir da compreensão das
implicações sociais do seu lugar de origem.
O último treino (natalino) durou 8 horas… assim, é coisa de você esquecer da vida e
aproveitar a cidade totalmente. No dia 25 de dezembro não tem uma alma penada na
cidade, não passa um carro. A cidade é nossa. E logo de manhã, 5 da manhã...não
tem ninguém. Eu não quero incomodar, às vezes a gente pode estar numa praça
treinando e um casal está lá e se sente incomodado com nossa presença. Ou sei lá, a
gente estar treinando ao lado de um banco… você pessoas não tão bem
vestidas...porque nós não vamos arrumados e tá ali treinando com movimentos
bruscos, com barulho que a gente comemora, aplaude… não sei, eu acho que quando
a cidade é “nossa”, nossa entre aspas, quero dizer, que a gente pode aproveitar mais,
é mais confortável. Não que isso seja motivo de impedir um treino, a gente não vai
deixar de treinar, mas eu acho que é diferente. (Ygor)
Pergunto a Heitor sobre eventuais conflitos com outros atores, como guardas e afins e
ele disse que nunca houve de fato um confronto direto, apenas algumas vezes em que guardas
chegam para entender do que se trata aquela movimentação, mas sempre alguma das pessoas
que está treinando, procura explicar o que é. As advertências sempre são mais no sentido de
não danificar os espaços, ponto que Heitor concorda pois os guardas estão cumprindo sua
função. “Principalmente agora que eu tou tendo essa experiência do lado de “lá”, na guarda do
Exército, eu também entendo o lado de quem precisa chamar atenção para possíveis danos e
tal, lógico que tem os abusos e tudo mais, mas chamar a atenção eu entendo”. Ele também
fala que procura não incomodar outras pessoas e não danificar os espaços para não manchar o
nome da prática e contribuir para o reforço da sua estigmatização. Além disso, não quer correr
o risco de ser abordado por estar fazendo algo errado e comprometer também seu trabalho no
Exército.
Ainda nessa conversa, Heitor pontua que procura não julgar as diferentes visões acerca
do parkour, pois sabe que é uma prática que possui desdobramentos vários. Atenta, entretanto,
para o fato de preservar a essência de “ser e durar”. Não adianta, segundo ele, abusar do
167
próprio corpo e, por pressão ou por modismo e exibicionismo, arriscar movimentações e
utilizar espaços de forma irresponsável. Cita o caso de alguns canais de parkour que divulgam
vídeos em lugares muito inapropriados, chegando a colocar a própria vida em risco. O
problema, segundo ele, não diz respeito às pessoas fazerem isso por conta própria, mas sim,
divulgar essas ações, pois projeta o parkour de maneira inadequada, principalmente para
aqueles que não o conhecem ou estão começando agora na prática. Para Heitor, o propósito do
parkour de“ser e durar” é incoerente com os riscos não calculados, bem como com treinos
mal feitos. É preciso estudar as movimentações e desenvolver consciência corporal, a fim de
compreender os impactos que atitudes mal pensadas podem ter no corpo e na mente. “Você
pode até conseguir fazer tal salto que exige muito do seu corpo, mas fazendo de forma errada,
em pouco tempo você não vai conseguir fazer nem de vez em quando porque seu corpo vai
estar lesionado. Quando isso sobe à cabeça, sua cabeça vai pro barro”.
Heitor entende que essa compreensão é tomada de forma gradativa e também com
compartilhamento e estudo sobre a prática. No início, ele queria fazer mais saltos mortais,
treinar coisas mais arriscadas, mas depois foi entendendo que “talvez eu não precise disso”,
que podia ir aprendendo outras coisas e que o momento para outras, aos poucos, ia chegando.
Heitor disse que com o parkour, seu olha sobre a cidade mudou completamente. Ele
enxerga várias possibilidades em diversos lugares. Ele relata que às vezes está andando de
ônibus, vê um pico interessante e temcom vontade de descer e treinar naquele momento
mesmo. Ele acha muito interessante a ideia das Academias, mas acredita que elas teriam de
ser pensadas no contexto social de cada local. Nem todo mundo pode pagar para frequentar
esses espaços. Seria mais viável pensar em espaços destinados à prática, mas que fossem
acessíveis para o público em geral.
Gustavo, no Porto, me fala que é positivo em relação às academias de parkour, pois é
um ambiente interessante e seguro para treinar e depois passar para o meio urbano, sobretudo
para quem está iniciando na prática e para crianças e adolescentes. Mas reforça que nada vai
ser igual à vivência das ruas. Cita que transitar pela cidade e entre outras cidades fornece uma
bagagem de visões e aguça a criatividade em relação aos movimentos. Segundo ele, a
arquitetura do Porto permite movimentos mais rentes ao chão, os muros são mais baixos e
mais afastados uns dos outros. Diferentemente, por exemplo, de algumas cidades da Espanha,
onde há muros mais altos e mais próximos uns dos outros. O mapeamento dos spots, segundo
Gustavo, ocorre através dos passeios, quando saem a andar em grupos em busca de lugares
interessantes. O olhar desenvolvido que a vivência do caminhar nas cidades proporciona é
168
algo que não se desfaz, segundo ele, mencionando que passou um pouco mais de um ano sem
treinar e esse “olhar” não o abandonou. A visão apresentada por Gustavo é comungada por
Ygor, praticante de parkour, residente em João Pessoa:
As academias no Brasil todo, elas trazem isso e trazem mais possibilidades para
praticantes de outras idades. Essa segurança da academia pode dar mais confiança
pro praticante a treinar coisas que ele não treinaria na rua. Uma coisa mais difícil,
uma sequência mais complicada… acho que a academia fechada traz muitos
benefícios, mas eu acho que o parkour como origem não pode se perder. Pode
construir várias academias, vai ser bom, mas não vai tirar a importância que o
parkour tem e trouxe. Isso tá batido de martelo já. A gente sabe que o parkour é rua e
sempre vai ser. O praticante que sai da rua pra academia é diferente do que sai da
academia pra rua. O que sai da academia pra rua ele tá conhecendo o meio,
conhecendo as possibilidades, as incertezas, outros materiais… e tem muita
diferença porque ele tá mais acostumado com um espaço que fornece mais certezas.
E na rua é diferente, tá cheio de incerteza. Eu acho que nada vai superar a rua não.
(Ygor)
Esse cenário restituído, por sua vez, sugere que essas tomadas de posição quanto aos
eventos de competição de parkour/freeruning configuram uma luta pelo uso legítimo
do corpo, mais precisamente, uma disputa entre aqueles que defendem um ideal
amadorístico da prática versus aqueles que são afeitos ao ideal profissional.
Enquanto o ideal amadorístico ou ortodoxo, marcado pela autonomia, defende o uso
hedonista do corpo e considera que a espetacularização contribui para a vulgarização
da modalidade, o ideal profissional ou heterodoxo, com ênfase na heteronomia,
sustenta, por sua vez, um uso competitivo do corpo com recorrência à logica
espetacular. (FERNANDES et al, 2020, p. 514)
***
Percebemos, assim, por meios dos relatos, das vivências resgatadas pelas memórias,
pela observação de campo e pelos próprios atravessamentos da minha percepção enquanto
presença nos encontros, que o parkour atuou e atua como uma fonte de afetos que são capazes
de “animar” o corpo do seu praticante, de produzir uma transição de afetos negativos para
afetos positivos. Além da dimensão dos afectos, notamos os entrelaçamentos de linhas que
que dialogam com processos relativos ao gênero, às vivências na cidades e às oportunidades
de inserção socioprofissionais do mundo do parkour.
Buscamos mostrar como o parkour é moldado a partir de um movimento de
emaranhados de experiências que revelam muitos outros processos e, por esta razão,
descortinam, também, a complexidade que é a própria definição do parkour. Entendendo,
assim, que essa mesma complexidade potencializa e proporciona o desenvolvimento contínuo
de um repertório criativo ao praticante, passemos a compreender alguns aspectos do habitar o
mundo, particularmente pensando nos ambientes onde esses praticantes se movimentam e
treinam o parkour.
177
CAPÍTULO 5 – SER E HABITAR (N)O MUNDO COM O PARKOUR
Nesse capítulo, gostaria de apresentar a última das linhas dessa experiência que é viver
o parkour: a relação de engajamento do mundo pela perspectiva do habitar. Dentro de uma
teoria da vida e do habitar, parte-se da ideia de que vivemos em um ambiente sem objetos
(ASO). Essa análise é apontada por Ingold (2012) visando um afastamento do “problema da
agência”: entender que vivemos em um ambiente sem objetos nos convida a refletir sobre
como nos engajamos nos processos de formação das coisas não humanas. Essas coisas, assim
como os seres humanos, também estão vivas. Estar vivo, para o autor, tem a ver com um
“vazamento” por e através das suas superfícies a partir do entrelaçamento das linhas que os
constituem (MERENCIO, 2013).
***
Não há assim tanta diferença porque o parkour pode ser movimento livre, só que a
pessoa que vem mais de ginástica, artes marciais ou capoeira são mais de girar e dar
mortal, mais free style. Pode desenvolver esse estilo e encontrar seu estilo em
parkour. E ai cada um tem seu estilo, e é a expressão de cada um. Não há o que é
certo e o que é errado.(…) Agora a pessoa pode treinar assim ou pode tá a se divertir
só a fazer mortais. A definição de parkour não é tanto lidar com mortais. Os mortais
são tipo um bônus, tás a ver? (…) É como uma bicicleta. Com a bicicleta tu vais de
um sítio pro outro. Tu podes fazer truques com a bicicleta, mas normalmente…. É
isso, parkour é mais utilitário. Dá pra desenvolver os mortais, mas não é tão
necessário. Mas tipo, um bônus como falei. (...) Natural é correr, escalar, andar,
nadar, pular… Se bem que... também há macacos que fazem mortais. Enfim, cada
pessoa decide qual seu movimento.
O movimento que ocorre na fala de Vasco nos mostra como a própria narrativa sobre o
parkour pode ir tateando as várias possibilidades de definição da prática e, apesar de, a uma
primeira vista ser possível encontrar ideias aparentemente opostas ou um pouco
contraditórias, elas representam justamente a complexidade da malha que é tecida ao habitar o
mundo com o parkour. Ao mesmo tempo que ele pode ocupar uma faceta utilitária, ele
também aflora em experiências sensórias, afetivas e espaciais, dentro de um campo mais
existencial.
O conhecimento do parkour não é baseado apenas no acúmulo de técnicas habilidosas
dos movimentos, mas sim, do engajamento com a comunidade e com os ambientes. Ser
experiente no parkour envolve saber conviver, saber quando começar e quando parar. A
convivência diz respeito à adaptação às dinâmicas de sociabilidades com outros praticantes,
com os atores que de alguma forma atravessam as experiências de parkour, a exemplo de
policiais, guardas, praticantes de outras atividades que eventualmente compartilhem os locais
onde se treina parkour.
A convivência que é viver junto também se estende às relações com o ambiente e seus
elementos não humanos. Fazer parkour é uma forma de habitar o mundo que interpela modos
criativos de mapear caminhos a partir do processo sensível, corpóreo, afetivo. Daí a
dificuldade da análise centrada na agência, em especial, na agência dos objetos: não existe,
segundo Ingold (2012) um movimento de atribuir ou não a vida aos objetos, sendo, no
máximo, uma tentativa didática ou metafórica. Trata-se de considerar a vida como o processo
norteador para nossa análise, entendendo o fenômeno como algo que constitui no movimento
dos emaranhados de experiências que extrapolam as relações de intencionalidade ou a
perspectiva de agência.
183
5.2 Texturas, espaços e movimento
Em uma tarde fria de treino, os praticantes aproveitavam a trégua da chuva que ocorria
há algumas semanas no Porto para treinar um pouco. Primeiramente, vamos a um espaço
entre prédios com algumas estruturas de estatura média, coberta de azulejos, nas quais os
rapazes sobem e saltam entre elas. Com o passar dos minutos, a umidade aumenta um pouco,
deixando os azulejos escorregadios e convidando os praticantes a buscarem outras
possibilidades. Assim, à procura de estruturas cuja umidade não interviesse nos movimentos
de modo a facilitar quedas e escorregos, os rapazes decidem treinar em uma praça com muitos
bancos e paredes de concreto.
Miguel e outros rapazes treinavam em alguns spots por São Mamede de Infesta e, em
um destes lugares, experimentavam treinos de precisão entre uma pequena parede e outra.
Miguel possui uma habilidade muito desenvolvida com os movimentos de precisão, é comum
escutarmos que “seus pés colam”, pois a sua aterrissagem costuma ser muito bem equilibrada
e precisa. Um rapaz treinava essas precisões, sendo possível ver um certo nervosismo, ou uma
certa desatenção, em seus gestos. Estava sempre a olhar para os colegas, ria e titubeava no
salto. Miguel diz “concentra-te! Olha para onde queres saltar e mantém teu corpo equilibrado
quando chegares lá e dobra um pouco os joelhos que isso ajuda a ter equilíbrio”. A orientação
de Miguel, praticante experiente de parkour, é muito bem recebida entre seus colegas. Sua
disposição em ajudar, além de sua atenção aos detalhes técnicos nos movimentos realizados
por seus pares, permite-o oferecer conselhos bem direcionados. Depois de algumas tentativas,
com uma postura claramente mais firme e concentrada, olhos mirando o próximo, seu colega
consegue fazer um salto de precisão bastante assente, momento em que Miguel vibra com o
feito e diz “tás a ver quando te concentras bem?”.
Em outro momento, em Campina Grande, fui treinar com Heitor na UFCG. Ele se
deslocava por toda a pracinha do Centro de Humanidades e imediações da praça de
alimentação, fazendo sequências de movimento com muita fluidez e conhecimento do espaço.
Na pracinha do CH treinamos precisão, pulando de pequenos batentes para o chão, traçando a
linha de chegada a partir dos desenhos dos blocos retangulares que compõem o piso desse
lugar. A medida que conseguíamos chegar até um ponto, traçávamos um ponto um pouco mais
distante para tentar o salto. Heitor também ia me mostrando outros movimentos e sempre
falando sobre como posicionar e impulsionar braços, pernas e tronco. Comentava sobre as
possíveis lesões que poderiam ocorrer caso não fizesse da forma correta os movimentos: lesão
184
nos joelhos, dores na lombar etc, e destacando sempre a importância de alongar antes e depois
dos treinos.
Ao treinar um salto de precisão, na minha primeira tentativa, senti o choque entre o
chão e meu corpo, iniciado pelo contato com os pés, que, aterrissados de forma muito reta,
não amortecia o movimento, gerando um impacto muito forte e imediatamente irradiado para
na minha lombar, que apresentou sinais de dores no dia do treino e no dia seguinte. Nas outras
tentativas, procurando compreender e incorporar o ensinamento de Heitor de flexionar um
pouco os joelhos e impulsionar o corpo com ajuda dos braços, projetando o tronco para frente
e procurando pular com as pontas dos pés, já senti uma diferença gigantesca. O movimento
tinha sido muito mais leve e sutil do que a primeira vez. Tentei outras vezes, algumas errei
novamente e outras, ao focar mais no que me foi ensinado, procurando sentir as partes do meu
corpo, colocando-as para atuar de forma mais precisa para realizar a precisão, consegui ter
mais sucesso.
Quando pontuo que “errei” o salto de precisão, quero dizer que senti de forma mais
brusca o impacto, não realizando de forma fluida o movimento. A fluidez está na sutileza da
movimentação, desdobrada nos impactos amortecidos através do uso consciente do próprio
corpo. Essa consciência está na atenção plena de como cada parte do seu corpo está sendo
posicionado. Eu sentia que não adiantava, por exemplo, eu me posicionar exatamente como
Luiz me ensinava se eu não entendia de fato como aquela flexão de joelhos ou impulso dos
braços atuava na configuração do salto. É um exercício de mecânica que exige atenção e
conhecimento do próprio corpo. Esse exercício, entretanto, é aprendido com muita repetição e
foco. É preciso, conforme Heitor me fala e me orienta, conhecer suas fraquezas e suas
potencialidades. Ao perceber, por exemplo, que não se consegue realizar bem movimentos de
escalada por falta de condicionamento dos braços, faz-se necessário um treino prévio voltado
para o fortalecimento desses membros.
Depois descemos até a praça de alimentação, no espaço mais próximo ao Bloco BG,
onde há uma escada e um muro. Ele diz que gostam muito desse muro para escalar porque ele
tem boa aderência para os apoiar os pés, em virtude da sua textura espinhada. O fato de ter
uma pequena escadaria ao lado do muro é interessante pois possibilita treinar a escalada por
níveis de altura. Do chão mesmo, o pulo precisa ser mais alto para apoiar os pés na parede e
posteriormente as mãos por cima do muro. Tentei de um outro nível de altura a partir de um
dos batentes da escada e também a partir do chão. Corri várias vezes e parava ao me
aproximar do muro, devido à insegurança. Andreza também tentava, já com um pouco mais
185
de familiaridade pois havia tentado em outras ocasiões. A base para ultrapassar o muro era
conseguir primeiramente se apoiar com aos mãos no muro, que iam depois de apoiar o
primeiro pé na parede. “Você precisa pensar a parede como uma escada, ela vai ser o apoio
para você segurar em cima do muro”. Quando ouvi esse conselho de Heitor em pensar a
parede como escada, consegui já incrementar um pouco mais o movimento. “Você quando vai
pular um muro, considerando que ele seja alto, dificilmente vai alcançar o seu topo sem elevar
seu corpo. E para elevar o seu corpo, você precisa da ajuda dos seus pés, que vão antes das
mãos”.
Pensar a parede como a escada pode nos ajudar a entender processos de “deseducação”
do corpo (LEITE, 2015) e dos contra-usos (LEITE, 2002) dos espaços. Ora, ao ver um muro,
normalmente pode-se pensar, se quiser ultrapassá-lo, em carregar uma escada e, através dela,
acessar a parte mais alta daquele e pulá-lo. A escada, desenvolvida especialmente para
facilitar um acesso a um ponto mais alto, é utilizada primordialmente com as pernas e pés. O
muro, a grosso modo, é pensado exatamente com a finalidade de separar espaços, pois
dificulta o seu atravessamento justamente pela inabilidade que temos em subirmos esses
equipamentos. Não pensamos, corriqueiramente, na parede do muro como uma escada, como
um meio que podemos utilizar para alcançar o seu topo. Também não associamos pernas e pés
à estrutura da parede, mas sim, a equipamentos como uma escada. Fazer parkour instiga
processos outros de interpretação diante das vivências cotidianas com o espaço, como relata
Ygor
Eu sempre fui uma pessoa de olhar as coisas simples, olhar os detalhes… qualquer
coisa pequena pra mim é motivo de interpretação. O passar a tocar no concreto...
passar a olhar detalhes, a olhar a paralelepípedos, a rua de outra forma...me fez
mudar a movimentação que é hoje. Eu aproveito mais aquele obstáculo, eu tento
tirar tudo dele pra mim. Meu objetivo não é passar por ele, meu objetivo é aproveitar
ele ao máximo. Tem um muro na minha casa que tem meio metro de altura, um
palmo de largura...um murinho. Eu treinei duas horas nele um dia desse. Existem
milhões de movimentos que você pode fazer só com aquele murinho. Minha visão é
assim: aproveitar o obstáculo em si, não só passar por ele rápido.
Esses delineamentos das percepções em torno do próprio corpo e dos espaços vão
sendo construídos a partir do contato frequente entre esses dois elementos. A partir de
diferentes vivências, referências que vão desde a familiaridade com outras práticas esportivas
e lúdicas, até troca de experiências com outras pessoas nas mais diversas situações auxiliam
no processo de aprendizagem da prática, a qual acontece de forma contínua, sendo mobilizada
pela inventividade e relações diversas dos seus atores em seus mais diversos meios. Essas
186
experiências podem ser desdobradas, recriadas, improvisadas na intimidade do corpo com os
espaços escolhidos para o parkour. Cada experiência também pode ser refletida de maneira
peculiar por cada pessoa, mesmo que se trate do mesmo movimento. Essas “intimidades”
entre corpo e espaço, na verdade, podem ser entendidas como processos de habitar o mundo.
Antes de passar para o debate mesmo sobre o habitar, lembremos de alguns exemplos
trazidos aqui sobre as dinâmicas de aprendizado do parkour e destaquemos um argumento
importante para a compreensão vitalista do mundo proposto por Ingold, que nos ajuda a
nitidificar esse processo. O ponto é: para o autor, não existe transmissão de conhecimento e,
sim, um redescobrimento guiado. Mostrar, orientar uma prática, uma habilidade, não é
transmitir, é auxiliar no processo de educação da atenção, é apresentar as condições
específicas de desenvolvimento, a partir do qual, o aprendiz, crescendo em um mundo social,
desenvolve suas habilidades e disposições corporais (INGOLD, Isto quer dizer que as
pessoas (ou as gerações, como põe o autor) não reproduzem simplesmente um conhecimento,
pois existe uma criação que é contínua e aberta. Desse modo, implica dizer que os processos
do ser humano estão emaranhados aos processos do entorno, daí a necessidade de uma análise
que entenda a vida não como atributo seja de elementos humanos ou não humanos. O que
importa para a perspectiva ingoldiana não é o debate da agência: esta, na verdade, constitui
um problema para sua proposta vitalista que traz tudo – coisas, humanos, não humanos – de
“volta” à vida. Tudo isso está vivo não no sentido que comumente atribuímos aos seres,
amparado na explicação biológica.
Se o que temos é um mundo em intensa relação, composto de linhas que se
confundem, se atravessam, se interpenetram, movimentando-se de forma processual,
precisamos entender que ele não está pré-constituído para ser ocupado pela vida. Não é um
palco esperando cenário e atores. O mundo é uma elaboração contínua, tecido ininterrupto por
vários fios, linhas, caminhos de vida que traduzem o processo de habitação do mundo e não
de ocupação. Habitar o mundo é tecer o mundo. A vida é um processo de impregnação que
pode ocorrer em maior ou menor intensidade, compõe histórias e deslocamentos que vão
dando o tom à cada malha, à cada emaranhado de linhas.
Voltemos, portanto, ao início do nosso debate neste trabalho, no seguinte ponto: o
corpo. Como pensar, portanto, o corpo dentro da perspectiva de vida e não de agência, não a
187
partir das proposições desenhadas pelos autores e correntes teóricas citadas no capítulo
referente ao aporte teórico sobre o corpo. Se seguirmos no compasso dos fluxos e linhas de
vida que, se entrelaçando, vão constituindo uma malha, precisamos enfatizar, sobretudo, as
experiências desses corpos, considerando que se tratam de lócus de crescimento e
desenvolvimento concreto dentro de um campo contínuo de relações (INGOLD, 2000)
When we speak of man and space, it sounds as though man stood on one side, space
on the other. Yet space is not something that faces man. It is neither an external
object nor an inner experience. It is not that there are men, and over and above them
space; for when I say "a man," and in saying this word think of a being who exists in
a human manner-that is, who dwells-then by the name "man" I already name the stay
within the fourfold among things. Even when we relate ourselves to those things that
are not in our immediate reach, we are staying with the things themselves. We do not
represent distant things merely in our mind-as the textbooks have it-so that only
mental representations of distant things run through our minds and heads as
substitutes for the things. If all of us now think, from where we are right here, of the
old bridge in Heidelberg, this thinking toward that location is not a mere experience
inside the persons present here; rather, it belongs to the nature of our thinking of that
bridge that in itself thinking gets through, persists through, the distance to that
location. From this spot right here, we are there at the bridge-we are by no means at
some representational content in our consciousness. From right here we may even be
much nearer to that bridge and to what it makes room for than someone who uses it
daily as an indifferent river crossing. Spaces, and with them space as such-"space"-
are always provided for already within the stay of mortals. Spaces open up by the
fact that they are let into the dwelling of man. To say that mortals are is to say that in
dwelling they persist through spaces by virtue of their stay among things and
locations. And only because mortals pervade, persist through, spaces by their very
nature are they able to go through spaces. But in going through spaces we do not
give up our standing in them. Rather, we always go through spaces in such a way
that we already experience them by staying constantly with near and remote
locations and things. When I go toward the door of the lecture hall, I am already
there, and I could not go to it at all if I were not such that I am there. I am never here
only, as this encapsulated body; rather, I am there, that is, I already pervade the
room, and only thus can I go through it. (HEIDEGGER, 1954/1971, p.358-359)
That is, bauen, buan. bhu, beo are our word bin in the versions: ich bin, I am, du
bist, you are, the imperative form bis, be. What then does ich bin mean? The old
word bauen, to which the bin belongs, answers: ich bin, du bist mean: I dwell, you
dwell. The way in which you are and I am, the manner in which we humans are on
the earth, is Buan, dwelling. To be a human being means to be on the earth as a
mortal. it means to dwell. The old word bauen, which says that man is insofar as he
dwells, this word barren however also means at the same time to cherish and protect,
to preserve and care for, specifically to till the soil, to cultivate the vine. Such
building only takes care-it tends the growth that ripens into its fruit of its own
accord.46 (HEIDEGGER, 1954/1971, p.349)
46Bauen, buan, bhu, beo é, na verdade, a mesma palavra alemã "bin", “eu sou” nas conjugações ich bin, du bist,
eu sou, tu és, nas formas imperativas bis, sei, sê, sede1 . O que diz então: eu sou? A antiga palavra bauen
(construir) a que pertence "bin", "sou", responde: "ich bin", "du bist" (eu sou, tu és) significa: eu habito, tu
habitas. A maneira como tu és e eu sou, o modo segundo o qual somos homens sobre essa terra é o Buan, o
habitar. Ser homem diz: ser como um mortal sobre essa terra. Diz: habitar. A antiga palavra bauen (construir) diz
que o homem é à medida que habita. A palavra bauen (construir), porém, significa ao mesmo tempo: proteger e
cultivar, a saber, cultivar o campo, cultivar a vinha. Construir significa cuidar do crescimento que, por si mesmo,
dá tempo aos seus frutos. (tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback, disponível em
https://www.fau.usp.br/wp-content/uploads/2016/12/heidegger_construir_habitar_pensar.pdf )
189
morar, dizendo respeito, também, ao permanecer com. Tal permanência está atrelada a um
movimento de proximidade ao que o autor chama de “ser-no-mundo”. O processo de ser é ser-
no-mundo, e, portanto, é habitar, que também é construir (SARAMAGO, 2011). O
pensamento de Heidegger reverbera na construção de uma crítica à arquitetura hegemônica da
atualidade, feita por Pallasmaa (2011). Para este, a arquitetura tem perdido sua finalidade que
é criar as possibilidades de habitar o mundo de modo que este processo acontece quando o
espaço perde seu sentido existencial, constituindo-se apenas como experiência física ou
estética (AÍSA, 2012). Assim, para recuperar aquela finalidade, Pallasmaa propõe uma
arquitetura que se construa com e para o tato, diminuindo a imensa experiência visual que se
sobressai atualmente.
As perspectivas destes três autores encontram-se na forma de propor uma outra
abordagem ao processo corpóreo, à experiência sensória dos seres no mundo a partir da ideia
do habitar como ponto em comum, alternativo às dicotomias que reiteram a separação entre
corpo e mente, natureza e cultura, bem como às teorias representacionistas acerca das
dinâmicas de conhecimento. Habitar o mundo, assim, é juntar-se à formação pulsante e
contínua das coisas, é vazar e participar do vazamento de vida de outros habitantes (INGOLD,
2012).
A lida com os caminhos que se abrem nas vivências com o parkour demonstra a
criatividade como processo de improviso em diálogo com o ambiente e com seus materiais. É
possível encontrarmos uma intensa experimentação com as texturas, os elementos, as
estruturas arquitetônicas quando vemos, por exemplo, como os praticantes se relacionam com
o ambiente, construindo, intervindo e propondo mudanças a fim de criar novas possibilidades
de movimentação e habitação. Em um dos encontros para treinar, encontrei Heitor no Parque
da Criança, um espaço muito frequentado pelos praticantes, devido à variedade de texturas
existentes ali: areia e grama, boas para treinar saltos mortais; escadas e muros, onde é possível
treinar monkeys e escaladas, por exemplo; barras para treinos de força; corrimões para treinos
de equilíbrio; entre outros.
Ao conversarmos sobre algumas intervenções feitas pelos próprios praticantes nos
espaços do Parque da Criança, Heitor rememora alguns exemplos que ocorreram no passado,
como a colocação de pneus justapostos, cheios de areia, próximos às paredes do Parque. Ele
190
diz que havia muito mais do que aqueles que vemos ali. Algumas, com o tempo, foram
retiradas ou desgastadas. Nesse dia, Heitor queria treinar um salto do solo para um pneu que
estava enterrado pela metade no chão, mas sentia que era necessário algum tipo de elevação
no solo para lhe ajudar no impulso do salto. Dessa forma, ele vai olhando o chão, catando
algumas pedras e dispondo-as de várias maneiras, até chegar em uma que lhe possibilitasse o
movimento desejado. Assim, ele põe uma pedra maior, outra pequenina sob um lado
específico da maior, a fim de nivelá-la.
Figura 23: Detalhe de pedras dispostas pelo praticante para realização de movimento
Figura 27: Maquete feita por praticantes para projeto sugerido à Prefeitura de João
Pessoa
Em outro dia, fui conversar com Vasco em Póvoa do Varzim. O objetivo era entrevistá-
lo e dar um passeio sem o compromisso específico de treinar. Encontramo-nos próximo à
praia de Póvoa e fui sendo guiada por Vasco entre as ruas da cidade. Próximo dessa parte da
praia, existe um antigo prédio onde havia eventos de touradas, hoje abandonado. Logo ao
lado, há um pequeno espaço com alguns muros e era nítido observar os olhos rápidos de
Vasco que andava e gesticulava, como quem conversasse sozinho, pensando e se
posicionando para visualizar a distância entre as muretas. Perguntei se ele costumava treinar
nesse lugar e ele disse “não, eu acabei de pensar que dá pra fazer uns movimentos”. Ele
olhou, pensou, chegou a se posicionar, mas não prosseguiu com as tentativas. Assim,
seguimos a caminhada.
Enquanto caminhávamos, Vasco me fala que gostaria de me mostrar uma casa
abandonada, ao fundo de um prédio, que ele havia descoberto há pouco tempo e utilizava do
espaço para treinar. Entramos pela garagem do prédio vizinho, ultrapassando a cancela do
196
estacionamento. Entretanto, vimos um movimento que levava a parecer haver gente pelo
espaço dessa casa abandonada e desistimos de prosseguir. Desse modo, Fomos a outro espaço,
uma rua por trás dos prédios que possui um chão com blocos de cortiça, um material
interessante, segundo Vasco, para treinar rolamentos e até alguns saltos, devido à maciez do
material que permite absorver o impacto e causar menos lesões. Enquanto fazia alguns
rolamentos nesse chão, Vasco senta-se um pouco para descansar e avista uma parede próxima,
imediatamente levantou, escalou a parede, pôs-se em pé e ficou a visualizar a distância e
possibilidade de um movimento, mas também não prosseguiu por perceber que o pequeno
poste à frente da outra parede podia atrapalhar o salto.
Perguntando a respeito da descoberta dos spots, Vasco me conta que ele e os colegas
geralmente combinam o dia de treinar e depois decidem exatamente um local de encontro, que
197
pode ser um lugar mais central para a maioria dos praticantes ou um local mais distante, sendo
este último um momento que requer maior planejamento para a locomoção dos meninos que
moram em bairros mais distantes. A partir do momento em que se encontram, eles começam
a passear e é o seguimento é, segundo Vasco, improvisado. Assim como foi o nosso passeio
acima descrito.
Com os spots, os movimentos aparecem, não é algo muito pensado. Não é tipo um
filme em que nós temos o roteiro e sabemos exatamente o que vamos fazer. É mais
uma aventura em que nós não sabemos o que vai se passar, por isso improvisamos,
tentando criar, descobrir coisas, descobrir sítios abandonados...ou sítios, ruas que
nunca passamos antes. Andamos atrás de sítios diferentes, que sejam interessantes
para criarmos movimentos… podemos começar numa praça ou ali na praia como
encontramo-nos, e então saímos a andar, cada um está a olhar coisas diferentes e
vamos conversando e meio que brincando ao longo do caminho. Às vezes começa
com uma brincadeira de uma pessoa só em uma escada que ela vê no caminho e
quando vês, estão todos ali a treinar também, e podemos voltar naquele mesmo sítio
***
Tal como Ingold reflete acerca da definição da árvore – se ela é um objeto ou uma
coisa, em seus termos – poderíamos pensar a respeito da “mobília” dos ambientes que
habitamos, no caso, do ambiente que os praticantes de parkour habitam. Algumas estruturas
arquitetônicas da cidade, por exemplo, como muros, cercas, calçadas, escadas, corrimão,
parede, chão etc são definidas enquanto tal de acordo com o fim a que se destinam. Uma
parede, geralmente, serve para divisão e proteção de um ambiente. Evidentemente essa
explicação não é suficiente quando pensamos na carga e efeito simbólico que, por exemplo,
as paredes de um grande muro possui.
A parede é a enunciação de um impedimento: “não passe daqui” ou “aqui acaba o seu
caminho”, além de constituir parte dos enclaves fortificados (CALDEIRA), cada vez mais
comuns na nossa sociedade com os enormes condomínios. Essas mesmas paredes, entretanto,
especialmente as dos muros cidade afora, também são telas para o grafite e para o pixo, apoio
para cartazes e para a exposição de produtos de vendedores ambulantes, ou ainda como
203
imprevisíveis nascedouros de plantas, resultado especialmente do depósito de matéria
orgânica feito por animais como pássaros e morcegos.
Assim, se pensamos rapidamente em uma estrutura de concreto, tijolos ou algum outro
material do tipo, constituindo uma parede, dificilmente a relacionamos ao conceito de “coisa”
proposto por Ingold (2012) que é um “agregado de fios vitais”. Parece realmente ser mais
plausível este exercício imaginativo em torno de uma coisa como a árvore porque mesmo a
um olhar mais veloz, ela parece algo cujas linhas de vida realmente a atravessam, se
lembramos, por exemplo, do movimento de suas folhas ou da sua dinâmica com os animais. É
mais plausível pensar em vida, dessa maneira, se levamos em conta a concepção de “vida”
como atributo dos seres vivos ou “animados”. Entretanto, não é sobre esse conceito de vida
que o autor se debruça.
O parkour é tecido a partir de uma malha de linhas que vão costurando os
mapeamentos do mundo habitado. E este é um primeiro ponto: não se ocupa o mundo: habita-
se porque as coisas não estão acabadas e à espera de agentes que se superponham a elas, como
fossem superfícies. São, ainda, as linhas que falam sobre crescer e aprender com o parkour a
partir de processos técnicos que se conjugam com experiências afetivas de amizades,
conflitos, trocas e vivências nos ambientes.
As sinuosas formas de seguir e compreender materiais e texturas com os diferentes
sentidos compõem a intimidade do praticante que está em um processo aberto e contínuo com
terra, concreto, pedras, madeira, plantas, calor, frio, sangue, suor e lágrimas. Não por trás,
mas junto ao salto, à escalada, à ultrapassagem de um obstáculo, à construção de uma
sequência de vaults, entre tantos outros movimentos, um mundo inteiro também se
movimenta. O movimento do parkour não é realizado por um objeto encapsulado, o qual
entendemos geralmente por “corpo”, fazendo uma pirueta impulsionado pela própria força. O
corpo se movimenta junto às coisas, pois não ocupa o mundo, e sim, habita-o. Essas linhas
entrelaçam-se e formam, como uma malha dançante, o parkour.
204
Considerações Finais
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