Mariana Cavalcanti Pereira - Tese (PPGCS) 2021

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Universidade Federal de Campina Grande – UFCG

Centro de Humanidades – CH
Unidade Acadêmica de Ciências Sociais – UACS
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – PPGCS

MARIANA CAVALCANTI PEREIRA

Percursos entrelaçados: linhas e movimentos do Parkour em Campina Grande e Porto

CAMPINA GRANDE
2021
MARIANA CAVALCANTI PEREIRA

Percursos entrelaçados: linhas e movimentos do Parkour em Campina Grande e Porto

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Ciências Sociais, da
Universidade Federal de Campina Grande
(PPGCS – UFCG) para obtenção do título de
doutora em Ciências Sociais.

Orientador: Dr. Ronaldo Laurentino de


Sales Júnior
Coorientadora: Lígia Sofia Alves Passos
Ferro

CAMPINA GRANDE
2021
UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE

Programa de pós-graduação em Ciências Sociais

MARIANA CAVALCANTI PEREIRA

Tese submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais como requisito para


obtenção do grau de Doutora em Ciências Sociais

Tese aprovada pela banca:

________________________________________________________
Prof. Dr. Ronaldo Laurentino de Sales Júnior (PPGCS/UFCG)
(orientador)

________________________________________________________
Profa. Dra. Lígia Sofia Alves Passos Ferro (Universidade do Porto)
(coorientadora)

________________________________________________________
Prof. Dr. Lemuel Dourado Guerra Sobrinho (PPGCS/UFCG)
(avaliador interno)

________________________________________________________
Prof. Dr. Luis Henrique Hermínio Cunha (PPGCS/UFCG)
(avaliador interno)

________________________________________________________
Prof. Dr. Marco Aurélio Paz Tella (PPGA/UFPB)
(avaliador externo)

________________________________________________________
Profa. Dra. Maria Paula Jacinto Cardoso (URCA) (avaliadora externa)
AGRADECIMENTOS

A experiência do doutorado não se resume a este texto. É uma vivência que congrega
alegrias, dores, desafios. Definitivamente eu não teria chegado até esse momento sem a minha
rede de apoio pessoal e profissional. Por isso, minha mais sincera gratidão:
A minha mãe, por me dar suporte, por ter fé em mim, por me levantar nos momentos
mais difíceis; pelo amadurecimento contínuo da nossa amizade; por ser meu primeiro
exemplo de como a educação pode ser libertadora;
Ao meu orientador Ronaldo Sales, pelo acolhimento, parceria e paciência no processo
de construção desse caminho; pelos diálogos e contribuições enriquecedoras; pela presença
constante, receptiva e respeitosa;
À minha coorientadora Lígia Ferro, pela sempre alegre disponibilidade em contribuir,
em especial pela condução do trabalho durante o doutorado-sanduíche no Porto; pela escuta
afetuosa e pela ajuda na abertura das portas de um novo mundo;
Ao professor Lemuel Guerra, pelas instigantes e divertidas discussões; por encher a
experiência de sala de aula de poesia, provocação e sensibilidade;
Ao professor Luis Henrique Cunha, por ser um dos meus exemplos em competência e
compromisso com uma educação rica e crítica, sem perder a leveza;
Ao professor Marco Aurélio Paz Tella e à professora Maria Paula Cordeiro, pela
gentileza em partilhar suas compreensões nesse debate;
A todos os professores e funcionários que integram o PPGCS-UFCG e contribuíram
para a consolidação desse caminho;
A todos aqueles que compõem o mundo do parkour em Campina Grande e Porto e se
dispuseram a compartilhar comigo uma parte de suas experiências. Em especial, a Andrey,
Daniel, Luiz Anastácio, Odair, Márcio Filipe, Pedro, Tiago e Stanislav.
A Catarina e família pela amizade; por me mostrar as melhores ruas, a melhor
francesinha e a melhor sangria do Porto!
A Renata Milanês e dona Maria pela força, confiança, afeto e acolhimento que só uma
família escolhida pelo coração pode dar;
A Jéssyka Ribeiro pelo feliz encontro que é nossa amizade; pelas risadas, cafés, vinhos
e brincadeiras com Lola e Gatinha que preencheram os momentos mais difíceis durante o
processo final de escrita;
A Emilly Amorim pela cumplicidade nas horas a fio, na varanda, conversando sobre a
vida; por me trazer uma amizade leve e alegre;
A Valdênio Meneses pelas ideias de trabalho, supervisão do estágio-docência e da
constante disposição em ajudar;
Às mulheres incríveis que o PPGCS me trouxe: Denise Ferreira, Denise Marinho,
Deyse Luna e Jakeline, por abrirem meus olhos quando necessário, por compartilharem com
honestidade e afeto os piores e melhores momentos;
Aos amigos Cláudio, Jerferson e Milane por dividirem tantos momentos entre
angústias e alegrias;
As minhas amigas e irmãs do coração: Inêz Alencar, Jéssica Gama, Letícia Pinheiro,
Mércia Lima e Regina Paiva, por serem uma das partes mais importantes da minha rede de
apoio; pelo carinho, amizade e força em todos os momentos;
À Capes/PDSE pelo financiamento da pesquisa aqui no Brasil e em Portugal;
A todas as pessoas que acreditam na educação pública, que resistem e têm a coragem
de lutar em um país onde a democracia ainda é uma esperança.

Enfim, a todos os que contribuíram de maneira alegre, intensa e potente.

A tempo: também, aos que não ficaram, mas me proporcionaram um tipo de


crescimento que só nasce dos encontros tortuosos e adversos: “I’m alive, vivo muito vivo,
vivo, vivo…”!
Caminante, no hay camino,
se hace camino al andar
(Antônio Machado)

Move-te se te queres vivo


(Hilda Hilst)

Nossa própria viagem é viajante e estrada (…)


Quantos cabemos dentro em nós?
Ir é ser. Não parar é ter razão.
(Fernando Pessoa)
RESUMO

O parkour é comumente descrito como uma prática que consiste em ultrapassar obstáculos de
maneira rápida e eficiente, utilizando o próprio corpo. Constituiu-se como tal a partir da
década de 1980, na França, e tem se espalhado pelo mundo especialmente por meio da mídia
e internet. Apesar de ser mais conhecido pela sua faceta “espetacular”, expressa por grandes
saltos ou movimentos considerados perigosos, o parkour é uma experiência vivida de maneira
plural. A multiplicidade de vivências revelam um emaranhado complexo de linhas que
envolvem uma série de subjetividades e encontros que produzem diferentes maneiras de estar
no mundo com e pelo parkour. Este trabalho interpreta a prática do parkour enquanto uma
malha (meshwork) (INGOLD, 2018) que é tecida pelo entrelaçamento de dinâmicas de
aprendizado e experiências que nos ajudam a compreender processos de criatividade e
conhecimento a partir do engajamento corpóreo, afetivo e sensorial no mundo. O parkour
enquanto uma prática viva, em movimento, nos mostra diferentes dimensões de participação
dos processos do existir e habitar o mundo, sem que precisemos interpelar uma perspectiva de
análise apoiada nas teorias da agência. Para realizar esse debate, foi feita uma pesquisa nas
cidades de Campina Grande-PB e na Área Metropolitana do Porto (AMP), com praticantes
entre 18 e 40 anos, em sua grande maioria constituída por homens. Os caminhos
metodológicos são traçados a partir de pistas e contribuições advindos da etnografia, da
literatura fenomenológica e da cartografia.

Palavras-chave: Parkour; Malha; Corpo; Agência; Campina Grande; Porto.


ABSTRACT

Parkour is commonly described as a practice that consists of overcoming obstacles quickly


and efficiently, using your own body. It was constituted as such since the 1980s, in France,
and has spread throughout the world, especially through the media and internet. Despite being
best known for its “spectacular” aspect, expressed by great jumps or movements considered
dangerous, parkour is an experience lived in a plural way. Parkour is commonly described as a
practice that consists of overcoming obstacles quickly and efficiently, using your own body. It
was constituted as such since the 1980s, in France, and has spread throughout the world,
especially through the media and internet. Despite being best known for its “spectacular”
aspect, expressed by great jumps or movements considered dangerous, parkour is an
experience lived in a plural way. The multiplicity of experiences reveals a complex
entanglement of lines that involve a series of subjectivities and encounters that produce
different ways of being in the world with and through parkour. This work interprets the
practice of parkour as a meshwork (INGOLD, 2018) that is woven by the interweaving of
learning dynamics and experiences that help us to understand processes of creativity and
knowledge from the bodily, affective and sensorial engagement in the world. Parkour as a
living, moving practice, shows us different dimensions of participation in the processes of
existing and inhabiting the world, without the need to question a perspective of analysis
supported by the agency's theories. To conduct this debate, a research was carried out in the
cities of Campina Grande-PB and in the Metropolitan Area of Porto (AMP), with practitioners
between 13 and 40 years old, mostly men. The methodological paths are drawn from clues
and contributions from ethnography, phenomenological literature and cartography.

Keywords: Parkour; Meshwork; Body; Agency; Campina Grande; Porto.


ÍNDICE DE FIGURAS

Figura 1: Principais pontos de treino de parkour em Campina Grande………………..….…34


Figura 2: Principais pontos de treino de parkour no Porto……………………………..…….35
Figura 3: Detalhe de textura de pedra e pego em parede, Póvoa de Varzim………….….…..61
Figura 4: Detalhe de textura de parede pintada no Skate Park da Maia, Porto……….……...62
Figura 5: Detalhe de grama e terra no Parque da Criança…………………………….….…..62
Figura 6: Dimensões aproximadas de Tênis Fila…………………………………….……...108
Figura 7: Dimensões aproximadas de Tênis Fila…………………………………………....109
Figura 8: Dimensões aproximadas de Tênis New Balance……………………………….....109
Figura 9: Dimensões aproximadas de Tênis New Balance……………………………….....109
Figura 10: Dimensões aproximadas de Tênis Primark………………………………………110
Figura 11: Dimensões aproximadas de Tênis Primark……………………………………....110
Figura 12: Praticantes de parkour durante treino coletivo no Parque da Criança…………...116
Figura 13: Praticantes de parkour durante treino coletivo no Parque da Criança…………...116
Figura 14: Praticantes de parkour no Skate Park da Maia, durante uma Jam……………….117
Figura 15: Praticantes de parkour no Skate Park da Maia, durante uma Jam……………….117
Figura 16: Foto de um homem senegalês……………………………………………………123
Figura 17: Diagrama – Principais influências em torno do Método Natural de G.Hébert…..124
Figura 19: Comparação entre dois tipos de calçado………………………………………...126
Figura 20: Comparação entre dois tipos de calçado e o impacto na morfologia do pé……...126
Figura 21: Registro da data de início na prática do parkour………………………………...141
Figura 22: Print de comentários no vídeo “Parkour para meninas em Taubaté”…………....156
Figura 23: Detalhe de pedras dispostas pelo praticante para realização de movimento….....190
Figura 24: Pneus colocados pelos praticantes de Parkour no Parque da Criança…………...190
Figura 25: Estruturas para treino de parkour na Academia Eu+…………………………….191
Figura 26: Aula de parkour na Academia Eu+……………………………………………....192
Figura 27: Maquete feita por praticantes para projeto sugerido à Prefeitura de João
Pessoa………………………………………………………………………………………..192
Figura 28: Praticantes explorando o ambiente………………………………………………194
Figura 29: Praticantes experimentando movimentos………………………………………..194
Figura 30: Meninos explorando ambiente em São Mamede de Infesta, Porto……………...195
Figura 31: Praticante visualizando possibilidade de salto, em Póvoa de Varzim…………...196
Figura 32: Exercício de ilustração de um salto……………………………………………...199
Figura 33: Exercício de ilustração das Linhas do movimento……………………………....199
Figura 34: Exercício de ilustração de uma sequência de saltos……………………………..200
Figura 35: Exercício de ilustração das Linhas do movimento………………………………200
Figura 36: Exercício de ilustração das Linhas possíveis de movimento em um ambiente….201
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO…………………………...………………………………………………….15
Antecedentes do Parkour………..….………………………………………………....18
Porque estudar parkour?.…………….………………………………………………..25
Eixo central da tese…………………………………………………………………...30
O campo e os percursos da pesquisa: situando o Parkour em João Pessoa, Campina
Grande e Área Metropolitana do Porto ……………………………………………....32
Uma metodologia tateante…………………………………………………………….38
Recursos metodológicos……………………………………………………………....42
Estrutura da tese……………………………………………………………………....43

CAPÍTULO 1: JOGANDO O CORPO NO MUNDO (DO PARKOUR) – NOTAS SOBRE OS


MOVIMENTOS DA PESQUISA…………………………………………………………….46
1.1 Pensar caminhos metodológicos para uma prática em movimento……………….48
1.1.1 Seguindo pistas e movimentos……………………………………………….....50
1.1.2 Educando a atenção……………………………………………………………..52
1.2 Desenvolver pesquisa enquanto experiência encarnada ………………………….56

CAPÍTULO 2: PERCURSOS TEÓRICOS SOBRE O CORPO…………………..…………72


2.1 O debate sobre o corpo no contexto social e institucional da América Latina...….72
2.2 O lugar do corpo nos clássicos…………………………………………………....74
2.3 O corpo em perspectiva…………………………………………………………...78
2.3.1 Debates sobre controle, disciplina e poder em torno do corpo………….81
2.3.2 A carnalidade do corpo – diálogos com a Fenomenologia……………...90
2.4 Uma proposta de movimento……………………………………………………..94
2.4.1 Um foco que emerge do campo…………………….…………………...95
2.4.2 Tim Ingold e um projeto vitalista para o parkour……………………….97
2.4.3 Pistas para agenciamentos no parkour a partir das contribuições
ingoldianas…………………………………………………………………...100

CAPÍTULO 3: PENSANDO E APRENDENDO COM O CORPO……………………......106


3.1 Refletir a partir dos pés……………………………………………………….....106
3.2 Aprender com todo o corpo……………………………………………………...111
3.3 Parkour como um resgate do natural?………………………………………..….119
3.4 Parkour contra o tédio…………………………………………………………...127
3.5 Devir animal e linhas de vida…………………………………………………....131

CAPÍTULO 4: ENTRELAÇAMENTOS DO PARKOUR……………………………….....135


4.1 Emaranhados em Campina Grande – PB………………………………………..140
4.1.1 De bobagem à paixão alegre – afecções do parkour nos praticantes
campinenses………………………………………………………………….142
4.2 Itinerações na Área Metropolitana do Porto…………………………………….146
4.2.1 Da rigidez à maleabilidade – parkour como potencializador do
corpo………………………………………………………………………....151
4.3 Entrelaçamentos entre parkour, gênero e virilidade………………………….….154
4.4 Emaranhados entre parkour, mídia, imaginário social e vivências na cidade…...161
4.5 Emaranhados entre parkour, caminhos de inserção profissional e processo de
esportivização da
prática…………………………………………………………………………...…………...169

CAPÍTULO 5: SER E HABITAR (N)O MUNDO COM O PARKOUR…………………...177


5.1 “Eu já fazia isso!” - parkour antes do parkour…………………………………..179
5.2 Texturas, espaços e movimento………………………………………………….183
5.3 Parkour como forma de habitar o mundo………………………………………..186
5.4 Interferindo e participando – construindo um mundo de parkour…………….....189
5.5 Flertando com o ambiente…………………………………………………….....193
5.6 Seguindo fluxos, traçando caminhos – Fazer parkour é mapear………………...197

CONSIDERAÇÕES FINAIS……………………………………...………………………...204

REFERÊNCIAS……………………………………………………………………………..210
15

Percursos entrelaçados: linhas e movimentos do Parkour em Campina Grande e Porto

INTRODUÇÃO

Ao relatar as inúmeras experiências que constituem sua trajetória enquanto praticante,


Vasco, um jovem português, conclui: “tão complicado quanto dizer o que é uma música ou a
vida”, após uma longa reflexão sobre o que é o parkour. Comumente definido como a
ultrapassagem de um obstáculo ou deslocamento de um ponto A para um ponto B de maneira
rápida e eficaz utilizando o próprio corpo, o parkour apresenta uma grande complexidade no
que tange a uma pluralidade de vivências e atravessamentos com outras práticas corporais,
além de estar encaminhado em um longo debate acerca dos seus rumos sociais e profissionais,
em que pese a sua negociação de entrada nos Jogos Olímpicos, evidenciando um processo de
esportivização que a prática vem passando nos últimos anos.
“O que se move é o muro que corre puro, ininterrupto/ aos olhos daquele vive” Estes
versos são um trecho de um poema feito pelo praticante de parkour Andrey Peixoto, residente
na capital da Paraíba, João Pessoa. Ao meu ver, ele não resume o parkour, mas introduz uma
ideia simples e direta do que é a prática em questão. Trata-se de uma uma primeira relação a
ser observada no parkour: praticante e ambiente. As palavras de Andrey apontam para um
olhar que, aos poucos, torna-se adequado a perceber os espaços viáveis para a prática do
parkour, antevendo os “obstáculos” e as possíveis formas de ultrapassá-los. As estruturas
materiais, apesar de fixas, movem-se, correm de maneira ininterrupta, fluida, porque também
corre o corpo de quem observa – “carne e pedra”, para mencionar o célebre livro de Richard
Sennett1, fundem-se, confundem-se. Essa reflexão vai ao encontro de uma das minhas
primeiras experiências ao ver um treino de parkour, no qual um praticante, ao me mostrar
alguns movimentos, falou “Você viu? No momento em que eu tava fazendo o rolamento, o
chão e eu éramos um só”. Assim, como podemos estabelecer conexões e análises profícuas
que deem conta dessa relação complexa entre corpo e meio? Quais as experiências, os
discursos, as corporalidades, os afetos que constroem esta forma de ser e estar no mundo por
meio do parkour? De que forma podemos olhar o parkour enquanto um grande emaranhado

1SENNETT, R. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro: BestBolso, 2008.
16
de vivências criativas, catalisadas pelo improviso dos processos de habitar o mundo?
Tentaremos apontar alguns caminhos de reflexão para esses questionamentos.
O espaço urbano compreende três elementos cruciais para que possamos entender a
complexidade de sua dinâmica: a paisagem, os atores sociais e suas regularidades
(MAGNANI, 2012). Estudar a cidade e suas transformações cotidianas implica na
abrangência da relação entre esses fatores, de modo a considerar a existência de uma
mutualidade entre eles. Esse duplo movimento revela-nos um imenso aparato de
possibilidades a ser analisado no sentido de apreender a construção de uma realidade, onde a
relação entre o espaço e o indivíduo molda as configurações do urbano, suscitando aos nossos
sentidos os símbolos, as lutas e a representações sociais dos mais variados segmentos e
manifestações sociais, políticos, culturais e históricos. Percebe-se, de forma já consolidada em
uma série de estudos sobre práticas urbanas, a metáfora da “cidade como um grande
laboratório” - em suas infinitas potencialidades de explorações e exercícios criativos, tanto
para análises quanto para as vivências. A complexa inventividade humana abrange processos
que envolvem espaço, corpo, relações entre estes e com as diferentes texturas cotidianas.
Compreender a cidade implica conhecê-la não apenas em sua multiplicidade espacial,
mas também na relação desses espaços com os indivíduos. Nisso reside o grande desafio dos
estudos urbanos: entender que cidades são vividas, produzidas e imaginadas pelos atores
sociais (PEREIRA, 2015). Assim, podemos destacar o estudo das práticas urbanas como um
caminho interessante, especialmente quando as mesmas se encontram inseridas em uma rede
fluida de espaços e atores, suscitando o elemento da mobilidade como importante fator para o
conhecimento do aspecto dinâmico e pulsante da cidade em suas variadas configurações.
Entretanto, mais do que enxergar a cidade como um grande laboratório e encarar
algumas das vivências ocorridas majoritariamente nesse espaço como “práticas urbanas”,
proponho ajustar o foco para uma análise voltada para a experiência dessas práticas a partir
dos seus processos corpóreos e afetivos, bem como da intensa mobilização e atualização de
conhecimentos e outras vivências que fazem do parkour uma prática viva – crescente e em
movimento. Nesse sentido, partimos de um primeiro ponto para seguir em frente: buscar
enxergar o corpo para além de objeto da ação cultural, considerando a complexidade dos
processos nos quais ele está inserido também como produtor de sentido

(…) este (o corpo) deixa de ser mero objeto da ação social e simbólica, receptáculo
da inscrição de símbolos culturais e objeto a ser modelado pelas representações
sociais e coletivas, e passa a ser agente e sujeito da experiência individual e coletiva,
17
veículo e produtor de significados, instrumento e motor de constituição de novas
subjetividades e novas formas do sujeito. (MALUF, 2001, p.96)

As Ciências Sociais, especialmente a Antropologia, traz, desde seus fundamentos, a


questão do corpo do Outro, uma vez que este sempre se apresentou como “demarcador
principal da alteridade, enquanto sustentáculo para a visibilidade da diferença e respetiva
confirmação social” (FERREIRA, 2013, p.496). Muitos esforços foram voltados para a
conformação de uma disciplina voltada para o tema, especificamente nas chamadas
Antropologia e Sociologia do corpo, fato este constatado diante dos inúmeros eventos, grupos
de trabalho e periódicos direcionados para a discussão desse tema em particular (SCRIBANO,
2013). Esse resgate do corpo por essas disciplinas parece buscar restabelecer um debate já
antigo, mas agora, adaptado às novas questões que se desenham na contemporaneidade, mas
também reivindicar o lugar da disciplina dentro da disputa que ocorre no campo das ciências.
Nesse sentido, muito do que vem sendo discutido nas Ciências Sociais caminha no
sentido de buscar um diálogo crítico com a própria categoria de “corpo”, repensando a sua
função de “invólucro” de uma substância comumente entendida por “alma” ou “mente”. Essas
reflexões também suscitaram a construção de programas teóricos voltados à discussão de toda
sorte de dicotomias, a exemplo de corpo e mente, natureza e cultura, agência e estrutura, entre
outras, impulsionando reelaborações, inclusive, a nível ontológico, além de diálogos com
outras disciplinas e propostas de teorias alternativas a essas bases duais.
Propor-se a estudar os fenômenos sociais, a cultura, e ignorar todas as questões que
inescapavelmente são atravessadas pelo corpo parece se tornar cada vez mais uma tarefa
impossível. Recorrer ao corpo, ao menos como ponto de partida da investigação pode nos
apontar debates frutíferos para a clássica problematização em torno da agência/estrutura e
natureza/cultura, mas não só, pode nos levar, também, a experimentar caminhos outros,
desafiando as bases da razão ocidental e o próprio fazer científico. Minha pretensão está longe
de revolucionar essas estruturas, mas procuro exercitar um modo de pensar e fazer cujo aporte
é o corpo, a corporeidade, a corporalidade, a carne, encarnação e outros nomes que serão
discutidos ao longo do texto, em diálogo com os processos de constituição da pessoa – em
especial do praticante de parkour - através de noções como experiência, movimento,
aprendizagem, conhecimento. Sabendo da complexidade desses processos, busco entender o
parkour como um grande emaranhado de experiências vivas, que fazem dele, portanto, uma
prática viva, que se move e cresce.
18

Antecedentes do Parkour

Já amplamente difundido na mídia e na literatura acadêmica referente ao parkour, essa


prática tem em sua trajetória uma grande influência do chamado Método Natural, cujo
impulsionador foi o oficial da marinha francesa George Hébert (1875-1957), na primeira
metade do século XX. Hébert acompanha alguns estudiosos da educação física e profissionais
da medicina desse período no chamado Movimento Naturista, entusiasta de uma terapêutica a
partir do conhecimento e aplicação de elementos naturais, além de ter como base, também, os
ideais rousseanianos (retorno à natureza)) e semi-religiosos do fim do século XVIII
(SOARES, 2003).
Hébert em seus trabalhos na marinha, volta seu interesse à morfologia e à gestualidade
dos seres humanos nativos das colônias francesas, vendo-os como ágeis e habilidosos,
criando, então, um ideal de beleza e vitalidade que normalmente não era visto na civilização
europeia. Assim, o conhecimento desses povos e de suas habilidades inspira-o a elaborar um
programa de exercícios físicos para a Escola de Fuzileiros Navais de Lorient cujas
características são direcionadas a maximizar a utilidade das ações adequadas à vida urbana, a
partir de um resgate da relação com a natureza (ibid).
O trabalho de exercícios feito por Hébert com os fuzileiros navais ficou conhecido,
então, como Método Natural de Georg Hébert ou Hebertismo, e era estabelecido em cima de
uma crítica à ginástica e à especialização esportiva, pois, segundo aquele, empobrecia a
utilidade do ser humano por não seracessível a grande maioria dos seres humanos e nem
conter o elemento de altruísmo, traduzido na utilidade às pessoas (MARCHETTI et al, 2012).
Baseado na proposta de Hébert, o Exército francês desenvolveu cursos de obstáculos
para treinar seus soldados durante a guerra, o que ficou conhecido como parcours du
combattant. Assim, nos anos de 1960, o bombeiro de origem vietnamita Raymond Belle,
influenciado por este tipo de treino, incrementou os exercícios do Método Natural de Hébert
e os aplicou especialmente nas suas missões de trabalho (LAMB, 2014). Seu filho, David
Belle, seguindo os ensinamentos do pai, em 1980, adaptou o parcours do combattant,
juntamente com Sebastien Foucan e outros amigos, criando o grupo Yamakasi (idem, ibidem).
Os movimentos feitos dentro da dinâmica espacial que esse grupo vivia – Lisses, um subúrbio
parisiense - ficou conhecido como L’art du Déplacement e, mais tarde, popularmente
difundido como Le parkour.
19
A prática do parkour pelo Yamakasi surge também dentro de um contexto de
influência midiática, a exemplo dos atores de filmes eminentemente ligados à cultura das artes
marciais, Bruce Lee e Jackie Chan (WARREN et al, 2013). Além disso, pode-se dizer que o
parkour manifesta-se a partir da “fricção” entre a cidade e seus habitantes (espaço e corpo),
especialmente localizado dentro de uma dinâmica cuja configuração está atrelada ao processo
de urbanização periférica e imigração (FREITAS, 2014). Ainda, é possível compreender, a
partir dessa informação, que os indivíduos praticantes de parkour – os traceurs – têm uma
característica própria, ligada à ideia de resistência social e reivindicação por um espaço de
expressão nos centros urbanos (CARVALHO e PEREIRA, 2008; FREITAS, 2014).
O parkour passa a ganhar popularidade sobretudo devido à influência midiática, a
exemplo do lançamento do filme “Yamakasi: les samourais des temps modernes” (2001), do
documentário “Jump London” (2003), do filme B13 (2004) – do qual David Belle participa
como ator, do clipe “Jump” da cantora Madonna (2005), divulgação de inúmeros vídeos na
plataforma do youtube, bem como o incremento dos videojogos com movimentos do parkour.
O youtube parece ser uma das principais formas de divulgação do parkour, existindo centenas
de canais dedicados à produção e compartilhamento de conteúdo voltado para essa prática.
Vale ressaltar que boa parte desses vídeos é amadora, consistindo na gravação dos
movimentos a partir de câmeras simples e celulares, sem edições significativas.
O número de inscritos nesses canais (alguns com mais de milhões, como é o caso do
grupo britânico “Storror”) certamente não condiz com o número de praticantes, mas pode
apontar para um grande interesse por parte dos internautas na prática, uma vez que esta
possui, muitas vezes, uma estética elaborada, a qual apresenta alguns riscos potenciais,
tornando-se chamativa, excitante e, por vezes, espetacularizada (CHAGAS et al, 2015). Sendo
assim, o parkour, como conhecemos hoje, está inescapavelmente atrelado às mídias sociais e
plataformas digitais:

(…) Parkour is a set of practices inseparable from their dissemination on the


Internet. By analyzing parkour and the Internet, therefore, social researchers can
better grasp the dialectical connection between the virtual and real world. We can
see how diffuse, globalized interactions become realized in specific locales by
unique local actors—in this case, Chicago and its surrounding suburbs—by young
men and women training in parkour2 (KIDDER, 2012, p.230)

2 O Parkour é um conjunto de práticas indissociáveis da sua disseminação na Internet. Ao analisar o parkour e


a Internet, portanto, os pesquisadores sociais podem compreender melhor a conexão dialética entre o mundo
virtual e o mundo real. Podemos ver como as interações globalizadas e difusas se realizam em locais
específicos por atores locais únicos - neste caso, Chicago e seus arredores - por jovens homens e mulheres
que treinam parkour (tradução nossa)
20

Nesse sentido, é importante frisar o papel da mídia, especialmente da plataforma


youtube – e mais posteriormente das redes sociais como facebook e instagram – na irradiação
do parkour pelo mundo. Alguns estudos (KIDDER, 2012; FERRO, 2016; MARQUES, 2010)
constataram a internet como uma das grandes responsáveis não só pela articulação de
informações entre traceurs e curiosos do mundo todo sobre o assunto, mas também pelo
compartilhamento de vídeos que acabam servindo de base para o aprendizado da prática, que
é, em grande medida, efetivamente mimética. Marques, em pesquisa realizada na cidade de
São Paulo, afirma que:

Um elemento central na difusão do Le Parkour é a Internet, particularmente os sites


que permitem a divulgação de vídeos amadores. A maioria das pessoas conhece a
prática assistindo a esses vídeos na rede. A eficácia da Internet como elemento de
reunião e difusão da prática pode ser facilmente notada com uma breve pergunta:
“De que lugar da cidade você é?” Nenhuma zona da cidade fica de fora: há gente da
Zona Leste, extremo sul da Zona Sul, ali de perto, da Vila Mariana... Enfim, de
qualquer lugar onde houver ao menos uma lan house para acessar o Youtube, assistir
um vídeo, depois procurar uma comunidade no Orkut para ficar a par da data e
horário do treino e pronto. Utilizando apenas as ferramentas do Google estamos ali,
no "Ibira" com gente de todos os cantos da cidade para conhecer melhor esse
“esporte novo” vindo da França. (2010, p.)

Existem diversos vídeos também mostrando “falhas” nos movimentos do parkour, já


que a prática envolve deslocamentos e experimentações com os mais inimagináveis
obstáculos, acompanhando a criatividade dos seus praticantes que, a toda nova oportunidade,
pode desenhar novas formas de mover-se de um ponto A para um ponto B. Os riscos advindos
desses movimentos, em geral, prescindem de um cálculo – exercício realizado com frequência
entre os traceurs mais comprometidos. Se por um lado esse risco requer um treino assíduo que
possa assegurar a habilidade de ultrapassar um obstáculo (inclusive o obstáculo do “medo” ou
falta de autococnfiança, constantemente citado nos relatos), por outro, é também o risco um
estímulo para prática, por gerar a sensação de euforia, superação e adrenalina (KIDDER,
2012).
O parkour, acompanhando alguns valores defendidos pelo Método Natural e pelo
Parcours du combattant, possui no seu cerne elementos de altruísmo, utilidade, disciplina e,
principalmente, de não competitividade. É comum o discurso sobre o qual o único adversário
do traceur é ele mesmo, convergindo para um ideal de autoconhecimento e autossuperação.
Trata-se, pois, de um exercício que exige um esforço não somente físico, mas também mental,
possível de ser realizado de forma solitária ou coletiva.
21
É preciso pontuar essas questões acima tendo em vista a divulgação do parkour em
uma escala global, sendo que tal fenômeno passa por processos de recepção e reconfiguração
constituídos de maneiras distintas pelos atores, nos seus diversos espaços. Um exemplo disso
é a grande confusão gerada para diferenciar as modalidades parkour e free running. Tanto este
quanto aquele se apoiam na mesma base do Método Natural e do Parcours du combattant,
mas aquele último é denominado como tal dentro do contexto londrino: é uma nomenclatura
para a língua inglesa – o que acaba se tornando importante, inclusive, para sua projeção
internacional.
Há uma tendência em diferenciar o freerunning do parkour, atribuindo àquele
elementos mais artísticos inspirados na ginástica. Alguns saltos e movimentos podem ser mais
ornamentais, fato este que às vezes é alvo de crítica pelos praticantes mais ortodoxos do
parkour, os quais podem denunciar uma suposta fuga do propósito inicial do parkour que é
atravessar obstáculos de maneira mais útil, mais otimizada. Existe, ainda, um discurso que
atrela o freerunning a um apelo mais comercial. Entretanto, essa discussão, conforme os
atores pesquisados me apontaram, cada vez mais se dilui e converge para a confusão de ambas
as práticas, reafirmando que se trata muito mais de uma denominação do que propriamente
uma distinção substancial.
Dentro dessa perspectiva de proeminência global, auxiliada sobretudo pela mídia,
Chagas e Girardi observam que a “relação que o parkour tem com a espetacularização está na
proposta de utilização da prática da modalidade em filmes, clipes, novelas...” (2015, p.27).
Também temos o crescente interesse de grandes marcas ligadas aos esportes e às atividades
físicas, o que acaba, entre outros fatores, contribuindo para a ampliação do debate sobre a
possibilidade ou não de esportivização do parkour. Além disso, atualmente existe uma luta de
boa parte da comunidade global do Parkour que é contrária à gestão da Federação de
Ginástica sobre os campeonatos de parkour nas Olímpiadas. O argumento principal é que
Ginástica e o Parkour são práticas completamente distintas, sendo necessário, portanto, a
valorização dos atletas que têm experiência direta com o parkour, reivindicando a
legitimidade da “autoridade parkour” na construção da institucionalização da prática.
Na contramão da ideia da não competitividade defendida por parte dos traceurs,
também temos visto um crescente número de competições de parkour ao redor do mundo.
Essas competições diferem de encontros coletivos entre traceurs por envolver premiações em
diversas modalidades da prática, congregando parkour e freerunning. Os campeonatos podem
ser divididos no tipo “speed” (ou fastest) – geralmente associado ao parkour, por avaliar a
22
rapidez com que um percurso é cumprido – e o freestyle – mais utilizado por praticantes de
freerunning, por possuir uma maior liberdade em experimentação na estética e técnica de
movimentos. Podemos citar algumas competições3 como: World Parkour Championship,
Campeonato Mundial Red Bull’s Art of Motion, North American Parkour Championship,
entre outros. Tais campeonatos são visados por muitos traceurs, de modo que possibilitam o
vislumbre de uma carreira profissional atrelada ao parkour.
Nota-se que as opiniões entre a comunidade do parkour são bastante divididas. Há
quem afirme a impossibilidade de normatização do parkour na forma de um processo de
esportivização, pois a prática trabalha com exercícios elaborados envolvendo uma dinâmica
holística, uma vivência moral, uma “filosofia”, e que isso não deve se submeter aos critérios
de avaliação normalmente difundidos nas competições esportivas. Por outro lado, há um
movimento de apoio ao processo de institucionalização do parkour, pois as competições são
vistas como um meio de profissionalização e, consequentemente, uma atividade econômica,
uma forma de “viver de parkour”.
Passível também de crítica por parte dos traceurs que se apegam a uma prática ao ar
livre e destituída de apelos econômicos, são as academias de parkour. Estas podem ser
ambientes fechados, com obstáculos pensados para o treino dos movimentos com
acompanhamento de um treinador - geralmente um traceur que obteve sua experiência nas
ruas ou educadores físicos que se dedicam a essa atividade e encontraram um meio de
trabalhar diretamente com a prática. Ou, ainda, podem combinar treinos dentro destes
ambientes, quanto ao ar livre, em locais da cidade propícios para o treino. Tais características
variam de academia para academia e podem estar de acordo com certas metodologias
empregadas por cada uma delas.
O advento dessas academias pode ser justificado pelo argumento da higiene, do
controle e, especialmente, da segurança: de um lado, por se tratar de ambiente desenhado,
pensado para a prática e acompanhado de um especialista em parkour, por outro, por ser um
local fechado e menos sujeito a intervenções de ordem violenta ou mesmo natural, como
chuva, que pode dificultar o deslocamento do traceur. A tensão entre a ideia de autenticidade
do parkour e desejo da normatização, pode ser percebida, por exemplo, nos diversos

3 Ver http://worldparkourchampionship.com
https://www.redbull.com/br-pt/tags/parkour
Competição reúne elite do parkour e freerunning em São Paulo. Disponível em
http://jovem.ig.com.br/esportesradicais/competicao-reune-elite-do-parkour-e-freerunning-em-sao-
paulo/n1597156839343.html
23
comentários em vídeos realizados nas academias, além de entrevistas de traceurs, que se
posicionam contra a mercantilização4 da prática, sob o argumento da perda dos valores
originais do parkour.
Além das academias, notamos, ainda, um outro movimento que tem ganhado força nos
últimos anos com o mercado digital: podemos encontrar uma variedade de cursos online de
parkour, como é o caso do oferecido pelos brasileiros Pedro Moreira e Zico Correa. O curso
intitulado “Arte do Parkour”5 consiste basicamente em uma série de vídeos com explicações e
tutoriais e é cobrado uma única parcela no valor de R$ 141,00. A descrição do curso no site
garante que é possível aprender os movimentos assistindo aos vídeos e treinando em um
lugar de sua escolha. Em 2018 também foi lançado o 1º Congresso Online Nacional de
Parkour e Coaching6, organizado pelo atleta Danilo Brustolini, o evento teve como objetivo
principal de “ajudar o Parkour a crescer de forma segura e profissional” e foi transmitido
gratuitamente a partir de um site dentro de uma programação específica. O conteúdo também
podia ser adquirido sob um determinado valor e possibilitava o acesso ilimitado aos vídeos
produzidos. Este congresso contou com diversos atletas brasileiros e alguns estrangeiros, os
quais proferiram pequenas palestras sobre diversos aspectos do parkour, desde reflexões mais
filosóficas, quanto a respeito da performance corporal, até conselhos e compartilhamento de
experiências para a construção de um empreendimento centrado na prática em questão.
Assim como a criação das academias e competições de parkour, os impactos da
disseminação da prática através da mídia foram sentidos de variadas maneiras, em diversos
contextos culturais. Há registros da prática em diversos países, em todos os continentes,
como, mais uma vez, as plataformas digitais podem nos mostrar com uma rápida pesquisa.
Um caso recente e emblemático que podemos citar aqui foi o que aconteceu na cidade de
Alepo, na Síria. Diante de cenário de pós-guerra, dezenas de jovens desenvolvem os
movimentos do parkour sobre os escombros resultantes do conflito. Os depoimentos
oferecidos por esses indivíduos relatam a prática enquanto forma de rechaçar os efeitos
negativos da guerra que afetaram seus psicológicos 7. Especialmente em uma dinâmica onde
4 Parkour, nascido na rua, vira negócio lucrativo nos Estados Unidos. Disponível em
https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,parkour-nascido-na-rua-vira-negocio-lucrativo-nos-estados-
unidos,161593e
5 Ver http://parkournaveia.com
6 1º Congresso Online Nacional de Parkour e Coaching http://conapkc.danilobrustolini.com.br/
7 Acrobacias como antídoto de guerra em Alepo. Disponível em
https://elpais.com/elpais/2018/04/10/album/1523384088_354373.html#foto_gal_2
Parkour y reguetón em Alepo: la vida patas arriba de los jóvenes sirios. Disponível em
http://www.elmundo.es/papel/historias/2018/06/02/5b110d4d468aeb30128b45ef.html
Parkour em tiempos de guerra. Disponível em
https://www.esquire.com/es/actualidad/a20629157/parkour-jovenes-alepo-guerra-siria Acesso em 18 de
24
grande parte da população jovem encontra-se em serviço ao Exército, esse fato é de extremo
interesse para analisarmos as inúmeras recepções e adaptações que o parkour adquire ao redor
do mundo, em diferentes configurações espaciais e políticas.
Fugindo não só à predominância do gênero masculino, mas quebrando alguns
preconceitos culturais e religiosos, a traceuse8 Amal Murad, primeira mulher dos Emirados
Arábes a ser considerada atleta de parkour, dá entrevistas e palestras sobre sua experiência
com a prática, e fala como esta tem sido uma ferramenta de empoderamento e inspiração para
9
incentivar outras mulheres a lutarem contra o medo. Superando mais que os obstáculos
físicos da cidade, mulheres no Irã ultrapassam preconceitos e estereótipos ao praticar parkour
na capital do país como forma de lazer e de resistência à opressão. Elas deslocam-se,
enquanto traceuses, com seus hijabs e roupas folgadas, mesmo temendo que seus corpos
sejam expostos ao realizarem os movimentos. Além disso, muitas vezes necessitam de escolta
masculina a fim de não passarem maiores constrangimentos por parte da população ou
intervenções policiais por serem mulheres e estarem ocupando os espaços urbanos dessa
forma.10
No Brasil, o parkour chega também por meio da mídia 11 a partir dos anos 2000 (em
que o acesso era expandido de forma considerável nessa época), sendo praticamente
impossível atribuir a uma pessoa específica o patamar de embaixador da prática no país. Os
vídeos dos integrantes do grupo Yamakasi serviam de inspiração para a prática do
deslocamento, sendo posteriormente criado um grupo no extinto Orkut chamado Le P”arkour
Brasil”, onde os membros podiam interagir e compartilhar informações sobre o assunto
(MARCHETTI, 2012).
A articulação entre interessados fez com que houvesse a criação de grupos de parkour,
a citar os paulistas: Parkour Brasil, considerado o precursor da prática no país, Associação de
Parkour do Grande ABC (PKABC) e Geração Traceur – grupos com uma história
significativa entre a comunidade brasileira de parkour (MARQUES, 2010). Por volta de 2007,
surge, também, em Campina Grande, o grupo Alliance Parkour, que passou por uma fase
julho de 2018.
8 Nome feminino para traceur.
9 Parkour: Amal Murad – the first Emirati woman to coach. Disponível em
https://www.bbc.com/news/av/world-middle-east-42923539/parkour-amal-murad-the-first-emirati-woman-
to-coach
Amal Murad wants to teach women not to be scared. Disponível em https://en.vogue.me/culture/amal-
murad-interview/
10 Fast-paced parkour offers outlet for women in Iran. Disponível em http://www.nydailynews.com/life-
style/health/iranian-women-embrace-parkour-article-1.1731975
11 Chagas e Girardi (2015) atribuem a expansão das informações digitais à política de Democratização da
Tecnologia promovida pelo Governo Lula (2004).
25
intensa de treinos e interação com outros grupos de fora, começando a decair a partir de 2012
e, atualmente, tenta estabelecer novamente uma agregação de antigos e novos membros dos
grupo. Em 2013, surge o Geração Parkour, em João Pessoa, enquanto grupo com uma
denominação – pois a prática em si, segundo relatos, data também dos primeiros anos de
2000.
Diante do exposto, podemos considerar que esta prática é relativamente recente,
apesar de ter suas bases em contextos mais longíquos; passou e passa por um processo de
expansão a nível global, onde a mídia em seus diversos desdobramentos (televisão, cinema,
internet, jornais, etc) contribui de forma extremamente significativa. Ainda, que se trata de
uma prática recepcionada de inúmeras maneiras, por diferentes dinâmicas socioespaciais, em
que adquire, ciclicamente, novas configurações de cenários materiais, bem como de ideais e
valores. Por fim, que o parkour é situado, cada vez, nas agendas de discussão desportiva sobre
a os processos de institucionalização.

Por que estudar parkour?

Talvez em face do seu surgimento recente, não existe uma grande quantidade de
pesquisas brasileiras sobre o parkour, sobretudo nas Ciências Sociais - concentrando, então,
uma maior abordagem pelos estudiosos da Educação Física. Em relação às práticas urbanas
podemos observar uma maior incidência dos estudos voltados por exemplo, para o graffiti e
pixo (PEREIRA, 2005) break dance, (RAPOSO, 2013) skate (MACHADO, 2017), entre
outros, que são amplamente conhecidos. Algumas pesquisas sobre práticas envolvendo riscos
e incerteza também são feitas, a exemplo da escalada (CARVALHO, 2013), surfe (MERINO,
2017; SOUZA, 2003), montanhismo (LIMA, 1995) e outras práticas envolvendo a
corporalidade como as artes marciais (OLIVEIRA, 2013), capoeira (SOUZA, 1997;
ZONZON, 2014) e, por fim, parkour (MARQUES, 2010).
No âmbito da literatura internacional relativa às Ciências Sociais, podemos destacar
alguns trabalhos de cunho etnográfico como os realizados por Lígia Ferro (2016) com
pesquisa comparativa entre parkour e graffiti em Portugal; Jeffrey Kidder e uma análise da
prática sob a perspectiva da masculinidade, risco e esporte no Parkour (2012); Belinda
Wheaton (2017) e processos de institucionalização do parkour; e Thomas Raymen (2018)
com um olhar sobre a prática à luz dos estudos do desvio e controle social.
26
Ao ganhar propulsão nos anos de 1980, dez anos depois da explosão do hip hop, é
possível notar que o parkour possui semelhanças com o break dance (uma das vertentes
daquele movimento, ao lado do grafite, DJ e MC) em alguns pontos seguintes: ambos são
fenômenos que surgem dentro de um contexto de imigração presente nas periferias urbanas,
possuem predominância masculina e juvenil, envolve uma dinâmica onde é observada a
interação direta entre corpo e espaço e sem mediação de objetos (tais como o skate, bike,
patins etc) (FREITAS, 2014). O break dance tem suas bases “em passos e coreografias que
variam entre o acrobático e desportivo e a estilização de movimentos da capoeira e artes
marciais” (RAPOSO, 2012), aproximando-o do parkour, que é apoiado, em certa medida, em
elementos semelhantes, além daqueles herdados do Método Natural e do Parcous du
combattant. Tanto o break dance quanto o parkour exigem elaborações de relacionar o corpo
com a arquitetura física das cidades e o tipo de movimento corporal que surge delas, além de
demandarem dos seus praticantes métodos de lidar com as texturas, volumes e obstáculos
presentes no delineamento citadino (FREITAS, 2014).
Pode-se dizer, assim, que o bboy, tal qual o traceur, explora a cidade em busca de
estruturas que favoreçam a prática do break dance e do parkour, respectivamente. Entretanto,
apesar desses espaços apresentarem uma arquitetura interessante para esses indivíduos, eles
são usados fora da concepção original para a qual foram criados, desafiando os praticantes a
desenvolver métodos de relacionamento com a disposição tátil da cidade. Temos, de um lado,
um espaço sendo ressignificado e, de outro, corpos que se adaptam, traçando novas estratégias
de adequação àquele.
Dentro desse contexto, uma compreensão plausível é a que considera o parkour como
um fenômeno subcultural. Sob esse viés, observa-se a prática a partir da construção de sua
identidade baseada na resistência social (que vai desde a renúncia à competição formal até as
formas de desafiar a conformação da arquitetura urbana), na sua simbologia e estética que
perpassa o estilo, a vestimenta, a aproximação e o afastamento de outros símbolos e grupos
sociais e, sobretudo, a ideia de funcionalidade traduzida na máxima “ser forte para ser útil”
(CARVALHO et al, 2008). Esse universo, pois, criativo e antagônico, revela uma dimensão de
iniciativa e autonomia vinculada à gama de obstáculos oferecidos pela cidade contemporânea.
Em contrapartida, também encontramos um outro olhar sobre a temática que considera
o parkour enquanto prática espetacularizada, pois existe, atualmente, um processo de
aceitação coletiva da sua esportivização. Nesse sentido, a prática sob perspectiva contra-
hegemônica, mais defendida pelos agentes ortodoxos, passa a ser contraposta por interesses e
27
propostas diferentes para o parkour. O fenômeno da espetacularização pode ser observado no
espaço que o parkour vem conquistando junto aos conteúdos midiáticos (filmes, novelas,
clipes…), como também na crescente oferta de academias e um reclame por oficialização, e
consequente fomento (seja público ou privado), por parte de alguns grupos (CHAGAS, 2015).
É necessário pontuar que o parkour não se relaciona majoritariamente como uma
reivindicação política, isto é, no sentido especialmente de apropriação do espaço, pois
“transformar o meio urbano em um grande playground é não só explorar as potencialidades
lúdicas desse meio, mas também liberar devires que estavam enclausurados pela educação dos
gestos a que somos submetidos desde a mais tenra infância” (MARQUES, 2010, 20:30)
Isso implica considerar o parkour não somente em relação com a dimensão esportiva,
mas também artística, concebendo toda a sua capacidade criativa. (idem, 2008) A
dinamicidade que o parkour proporciona à relação entre corpo e espaço dá-se nas inúmeras
formas e estratégias de exploração e adaptação aos equipamentos urbanos, fazendo com que a
própria pesquisa nessa temática sugira acompanhar os traceurs, a fim de entender as
linguagens físicas e os discursos de risco, por exemplo. Sob essa linha de pensamento, existe
uma certa dificuldade de enquadrar o parkour em determinadas definições, pois se trata de
uma prática em processo, cujo alcance está cada vez mais próximo dos diversos lugares do
mundo, e cada qual desses lugares e indivíduos que se relacionam com a prática possui
semelhanças, mas sobretudo formas distintas de adaptabilidade e congregação de valores.
É necessário examinar a multiplicidade de discursos existentes entre as comunidades
de traceurs em diferentes contextos, especialmente comparando o que é enunciado na “teoria”
e o que é feito na “prática, analisando o que cada uma destas expressa não só por si, mas
dentro de uma relação. Ameel e Tani (2012), em pesquisa realizada na Finlândia, pontuam que
na fala dos seus interlocutores existe uma certa frequência da ideia de respeito pelos espaços e
propriedades privadas (como shopping centers e carros). Contudo, é possível notar, nos locais
de prática e, principalmente, nos vários vídeos postados em plataformas digitais, que as
limitações defendidas por alguns são transgredidas.
Em um estudo etnográfico realizado nos Estados Unidos, Kidder (2013) observou não
só as questões relativas ao status hegemônico ou não do parkour, atentando, também, para os
discursos e práticas vinculadas ao risco e à segurança no espaço urbano. A configuração
encontrada por aquele autor demonstra que os traceurs não praticam o parkour apenas sob a
perspectiva do “ser forte para ser útil” ou dos princípios da agilidade e eficiência. Muitos
deles, apesar de invocar esses enunciados, revelavam uma convergência para o risco:
28

No one I encountered in the Chicago parkour community strictly trained for


speed and efficiency—which in almost all cases would simply involve running in a
straight line down a sidewalk or roadway. Instead, traceurs were uniformly
interested in performing complex, stylized, and often dangerous, maneuvers:
balancing on high ledges and railings, climbing up tall walls, flipping over hard
surfaces, and jumping across wide gaps.12 (p.236)

O risco observado no campo analisado pelo autor envolve rituais de segurança e


comprometimento, não deixando de lado, inclusive, o sentimento relacionado ao medo. Este
se trata de algo não só completamente aceitável, como necessário. Praticar parkour é,
basicamente, segundo pontua Kidder (2013), perseverar sobre este tipo de emoção.
Ainda, o autor afirma que durante sua pesquisa de campo, praticamente não visualizou
os traceurs praticando os movimentos de parkour (pulos, subidas etc) para ir de um lugar a
outro na cidade que dispusesse de uma distância razoável. Em geral, os traceurs se reuniam
em uma determinada área e treinavam os movimentos nesse local e depois de um tempo iam
para outra área. Ele não viu uma “corrida de fluxo” de um lugar para outro na cidade (idem,
ibidem). Essa constatação corrobora a ideia de que o parkour ultrapassa um discurso fixo que
o define de forma limitada, regrada também visto por Marques (2008). É mais um exemplo,
inclusive, da necessidade de compreender, dentro do campo, as particularidades dos traceurs e
do espaço urbano, em determinados contextos.
Alguns estudos relativos às Ciências Sociais têm sido feitos a respeito dessa temática,
especificamente no que compete às práticas de rua. No quadro geral da produção acadêmica
brasileira, podemos citar, a título de ilustração, os seguintes trabalhos etnográficos: a
dinâmica da “pixação” em São Paulo, de Alexandre Pereira (2010); as pesquisa sobre parkour
de Rafael Marques (2010), a análise sobre street skate de Giancarlo Machado (2011) e
também sobre skate de Mauricio Olic (2010). Na Paraíba, destacamos o trabalho de Angelina
Duarte sobre a pichação e o grafite em Campina Grande (2010) e o de Thayroni Arruda
(2010) sobre o movimento hip hop, onde aborda também aspectos referentes ao grafite e
pichação. Nota-se, de início, um campo mais consolidado de interesse acadêmico sobre o
grafite, a pichação e o skate, até mesmo devido a essas práticas terem surgido há mais tempo
que o parkour, por exemplo.

12 Ninguém que encontrei na comunidade de parkour de Chicago treinou estritamente em velocidade e


eficiência - o que, em quase todos os casos, envolveria simplesmente correr em linha reta por uma calçada
ou estrada. Em vez disso, os traceurs estavam uniformemente interessados em realizar manobras complexas,
estilizadas e muitas vezes perigosas: equilibrar-se em bordas altas e trilhos, subir em paredes altas, dar saltos
giratórios sobre superfícies duras e saltar através de grandes vãos (tradução nossa)
29
Segundo Ferro (2016), que desenvolveu uma investigação com traceurs (praticantes
de parkour) nas cidades de Barcelona, Paris e Lisboa e também com writers
(grafiteiros/pichadores, numa concepção brasileira), existe uma cerca lacuna na definição do
parkour, em razão da sua recente existência, mas ele pode ser definido de diferentes maneiras,
tais como a “arte do deslocamento”, como um esporte livre e radical ou mesmo como um
estilo de vida (FERRO, 2016).
Em sua pesquisa, a autora também pontua que, apesar de alguns estudos terem
demonstrado que o parkour surge diante da ausência de equipamentos esportivos, outras
pesquisas sugerem um desejo de autonomia dos participantes em relação às instituições
esportivas. Aspectos como liberdade e autoconhecimento também estão presentes com uma
forte expressão nesta prática, de forma que a competitividade não é o ponto central no
parkour, pois contradiz um de seus princípios que é a autoconsciência corporal e psicológica.
Compreender, pois, as próprias limitações e também as suas potencialidades é algo almejado
entre os traceurs (FERRO, 2016).
Existe portanto, um processo intenso de fusão do corpo com o espaço da cidade
(FERRO, 2016). A rua é estruturada pelos traceurs, e estes, por sua vez, também se estruturam
por meio da morfologia urbana. Nesse contexto, uma das principais características observadas
nesta prática é que os traceurs usam os equipamentos urbanos de forma alternativa ao
planejado pela administração pública (ou privada, dependendo do caso).

A pesquisa desenvolvida por Ferro (2016) com traceurs portugueses e espanhois,


aponta que os espaços do parkour podem sugerir consideráveis ferramentas metodológicas
para examinar as relações complexas entre os citadinos e seus espaços diários. Nesse sentido,
vejo isto como um ponto importante a ser considerado no desenvolvimento da presente
pesquisa: a forma como o parkour se desdobra na cidade, em seu caráter fluido, desafia o
delineamento metodológico, mas é justamente a compreensão e acompanhamento dessa
fluidez que podem tornar possível o olhar mais apurado sobre as relações e configurações
atinentes à prática.

O estudo do parkour, especificamente, não tem sido muito explorado no âmbito das
Ciências Sociais, aqui no Brasil, a exceção da pesquisa de mestrado em Antropologia de
Rafael Marques sobre a dimensão lúdica dessa atividade na cidade de São Paulo. Entretanto,
podemos encontrar um número considerável de artigos e trabalhos desenvolvidos em outras
áreas do conhecimento, sobretudo na Educação Física. São estudos que perpassam a
30
compreensão de dados relacionados ao condicionamento físico, ao movimento e técnica
presentes no parkour, comparativos entre diferentes campos da prática, como também
elucidam questões outras referentes à ludicidade, aproveitamento dos espaços públicos e
privados, equipamentos utilizados para a realização dos movimentos, entre outros.
Estudar o parkour pode ser útil no sentido de analisar as várias formas de relação do
corpo do indivíduo não só a partir de uma perspectiva da cidade, mas também da
compreensão, de um modo geral, da potencialidade criativa e relacional dos atores sociais e
ambientes com os quais eles interagem. Segundo Nascimento (2016), existe um grande
número de pesquisas voltadas para as práticas urbanas que articulam a corporeidade de
alguma forma, entretanto, os esforços destes trabalhos têm sido encaminhados na direção de
compreender os sentidos e usos da cidade, não privilegiando, necessariamente, o papel do
corpo nessas análises.
Com o parkour, podemos perceber que os indivíduos não absorvem simplesmente uma
prática e a “imitam” segundo a referência: muito mais que isso, eles envolvem a própria
vivência no mundo enquanto corpo que cresce, aprende, se move e se habilita para
determinadas práticas. Essas vivências não deixam de ser elaboradas em diálogo com aspectos
de cultura, gênero, classe, religião e etnia (como alguns exemplos citados acima). Além disso,
convém também examinar a questão da corporalidade e dos discursos que compreendem esse
aspecto: é perceptível um enunciado mais geral sobre autossuperação e a um suposto retorno
ao natural, ao “simples”, ao corpo instintivo, mas também existem outras expressões
adjacentes que contemplam vivências de resistência, do lúdico, da disciplina dos corpos, das
possibilidades de inserção socioprofissional oferecidas pela prática, entre tantas outras. Isto
posto, desdobra-se um longo e rico caminho a ser percorrido para compreender a diversidade
de experiências que envolvem o parkour.

Eixo central da tese

Normalmente, poderíamos pensar assim uma “cena” de parkour: previamente ao


movimento do corpo, há uma mobilização mental que já traça as possibilidades de um
percurso, há momentos distintos e subsequentes de “cálculo”, posicionamento do corpo e
dado movimento. Entretanto, mais do que uma série de fases separadas do tipo: primeiro, ação
mental, segundo, ação corporal e, terceiro, relacionamento com o ambiente (que seria o
movimento relacionado à alguma estrutura material), percebemos, na prática, que esses
31
elementos estão em pleno atravessamento uns dos outros, constituindo processos de
aprendizado e habilidade e elaborando um tipo de conhecimento que emerge dos
relacionamentos contínuos existentes na vida de um praticante.

De forma geral, essa tese tem a proposta de estudar a prática do parkour realizada nas
cidades de Campina Grande, na Paraíba, Brasil e também em Porto 13, Portugal. Para isso,
busquei considerar a multiplicidade de vivências que revelam um emaranhado complexo de
linhas geradoras de subjetividades e encontros que produzem diferentes maneiras de estar no
mundo com e pelo parkour. Este trabalho interpreta a prática do parkour enquanto uma malha
(meshwork) (INGOLD, 2018) que é tecida pelo entrelaçamento de dinâmicas de aprendizado
e experiências que nos ajudam a compreender processos de criatividade e conhecimento a
partir do engajamento corpóreo, afetivo e sensorial no mundo. O parkour enquanto uma
prática viva, em movimento, nos mostra diferentes dimensões de participação dos processos
do existir e habitar o mundo, sem que precisemos interpelar uma perspectiva de análise
apoiada nas teorias da agência.

Atravessado por discursos e ações aparentemente incoerentes ou paradoxas,


principalmente se pensadas ainda sob o olhar que considera o parkour uma atividade rígida e
destituída da plasticidade e das mutações mobilizadas por diferentes atores, em diferentes
contextos sociais, optei por manter o foco no estudo da coimplicação do corpo com os
ambientes e nas experiências de cada contexto social. Essa relação permite trazer à tona a
discussão dos aspectos presentes em cada tipo de experiência citada, possibilitando articulá-
las a uma forma de exercício teórico-metodológico cujo esforço é voltado para as
corporalidades desenvolvidas com e a partir da relação especialmente com o meio e suas
inúmeras “possibilidades de aproveitamento”, mas que também são construídas através das
relações com outras dimensões do social, como as interações entre praticantes e não
praticantes, com diversos tipos de práticas corporais e conteúdos culturais, a exemplo dos
veiculados sobretudo na internet. O objetivo é apresentar a pluralidade de possibilidade de
mover o corpo, de mover este por entre estruturas e texturas diversas (recorrentemente
nomeada de “meio”), possibilidade de estabelecimento de vínculos diversos com traceurs de
vários lugares, possibilidades, enfim, ser e estar no mundo mediados pela prática do parkour.

13 Considerando o estreito relacionamento entre os praticantes de Campina Grande e João Pessoa, busquei
alguns dados complementares também nesta última. Já em Portugal, o alcance da pesquisa passa por
algumas cidades da Área Metropolitana do Porto.
32
Nesse contexto, busco privilegiar um exercício de análise sobre o elemento corporal,
vetor primordial das possibilidades suscitadas, pois, como afirma Merleau-Ponty, mais do que
sermos um corpo, temos um corpo, ou ainda, “não apenas estamos no mundo, como também
somos o mundo, pois é a partir do corpo que damos significados ao que chamamos realidade”
(LAKOFF et al, 1999, p.97). É nesse ponto que pretendo trabalhar, particularmente
delineando alguns questionamentos que perpassam problemáticas da agência, interpelando
pontos como: onde, começa e termina o corpo? O que pode o corpo? Como a possibilidades
de relação entre os corpos são produzidas e conduzidas ao longo das linhas dessa “malha” que
é o mundo social, de forma mais ampla, e, de forma mais específica, no mundo do parkour?
Não pretendo construir uma teoria do corpo, mas esboçar uma teoria do parkour,
enquanto um emaranhado de linhas que mobilizam o corpo em pleno envolvimento,
movimento, engajamento com o mundo, numa perspectiva dinâmica e orientada para e pelas
experiências de aprendizagem, reveladas em habilidades, técnicas, sensibilidades e
participação social. Emergindo de experiências de diálogo, trocas, brincadeiras, machucados,
vivências plurais etc, os movimentos e as técnicas no parkour podem nos falar das relações,
histórias, participação social e produção da prática e de si mesmo (DEBORTOLI e
SAUTCHUK, 2014).
Para tanto, a teoria de Tim Ingold é a principal companhia que escolhi nesse caminho
para explorar a temática do parkour, a fim de pensar como e se a crítica desse autor às
perspectivas cognitivistas, às dicotomias mente-corpo/natureza-cultura e sua proposta de
engajamento no mundo ajudam a descrever criticamente a constituição da problemática da
agência na relação “corpo-ambiente”. Estes últimos, tratados, por ora, de forma generalista, os
quais busco questionar ao longo do texto, mobilizando as categorias ingoldianas como pessoa,
organismo, coisa, vida, habilidade, técnica e movimento. Em suma, pretendo analisar o
parkour por meio de uma antropologia que Ingold (2004) compreende como uma “ciência do
engajamento no mundo relacional”.

O campo e os percursos da pesquisa: situando o Parkour em João Pessoa, Campina


Grande e Área Metropolitana do Porto

No Brasil, muitos trabalhos sobre o parkour têm sido desenvolvidos especialmente na


área da Educação Física, o que contrasta com a incipiente atenção dada pelas ciências
33
sociais14, à prática. Esse panorama se apresenta dessa forma talvez em virtude do seu recente
surgimento e desdobramento pelo mundo, sobretudo, no nosso país.
O parkour vem ganhando visibilidade e expressão na Paraíba, em particular na capital,
João Pessoa, e em Campina Grande, que se situa no interior do estado.
João Pessoa possui aproximadamente 721.000 habitantes e fica situada no litoral
nordestino, projetando-se frequentemente como “cidade verde” ou “ponto mais oriental das
Américas”, além de focar em uma imagem turística vinculada à orla marítima ou ao centro
histórico (LEANDRO, 2006).
No que se refere à prática do parkour, é possível destacarmos pelo menos dois grupos
mais consolidados: o Parkour João Pessoa e o Geração Parkour, com uma média de 40
traceurs que praticam com frequência. Os lugares eleitos por esses atores estão espalhados
pela cidade, mostrando um verdadeiro exercício de exploração do mapa urbano e
corroborando o que Ferro (2016) constata em relação à mobilidade e olhar criativo dos
traceurs na Espanha e em Portugal e em outros contextos estudados.
Os “picos”15 como corriqueiramente esses atores se reportam aos espaços interessantes
para a prática do parkour estão distribuídos em diferentes bairros e equipamentos da cidade:
na Praça da Paz, nos Bancários; no Skate Plaza, em Manaíra; no bairro Valentina Figueiredo;
na Praça Castelo Branco; no Viaduto Varadouro e no Mercado Central, no Centro Histórico;
na orla de Cabo Branco, entre outros. Encontra-se, inclusive, em execução pelos próprios
traceurs dos mencionados grupos, o Park Parkour, em um terreno localizado no bairro de
Mangabeira.
O que se percebe ao observar os “picos” pessoenses é um grande fluxo entre
periferias, centro e bairros considerados “nobres”, reafirmando como essa prática “treina” a
percepção dos seus atores a enxergarem a cidade em suas múltiplas possibilidades,
aproveitando-a de modo amplo e fluido, além de congregar espaços heterogêneos em suas
configurações sociais.
Já Campina Grande é uma cidade de aproximadamente 407.000 habitantes, situada a
133km da capital, ocupando um lugar de destaque no cenário Nordestino e Paraibano, em
virtude de, historicamente, ser um local de forte expressão econômica na região, além ser
conhecida como a detentora (título em forte competição com a cidade de Caruaru-PE) do
“Maior São João do Mundo”, uma festa que ocorre num espaço público chamado “Parque do

14 Contamos, até então, apenas com a pesquisa de Mestrado de Marques (2010) sobre a temática.
15 Como também apontado por Machado (2011) em relação à prática do street skate.
34
Povo” durante 30 dias, no mês de junho e recebe inúmeras atrações artísticas e um grande
contingente de turistas.
Em relação ao parkour em Campina Grande, também podemos destacar o grupo
Alliance Parkour, criado em 2007 que conta com atores de diferentes idades. Os lugares onde
mais visualizamos os “treinos” são o Parque da Criança, no Catolé; o Açude Velho, no centro;
o Açude Novo, também no centro; a Universidade Federal de Campina Grande, em
Bodocongó; a Universidade Estadual da Paraíba, no Conjunto Universitário; a Praça da
Catedral, na Prata etc.
As duas cidades mencionadas encontram-se dentro de uma rede mais ampla de
traceurs, estabelecendo relações mais estreitas sobretudo com as capitais dos estados vizinhos:
Natal e Recife, e sediando encontros regionais, como por exemplo, o IX Encontro Nordestino
de Parkour, realizado em Campina Grande entre 06 e 08 de fevereiro de 2016. Este encontro
teve como principal “pico” a Cachoeira do Pinga, pertencente ao território de outro município
vizinho a Campina Grande: Lagoa Seca. Neste ponto, também é interessante observar como o
parkour insere-se na confluência entre a paisagens, ampliando os fluxos para além da cidade
urbana.
Vale ressaltar que é perceptível uma diferença no que tange à consolidação dos grupos
mais organizados em Campina Grande e em João Pessoa. O Parkour Alliance, naquela,
segundo relatos, encontra-se bem disperso, com poucos integrantes e sem muita regularidade
nos treinos. Já na capital, parece haver uma rede melhor articulada e uma agenda de treinos
que é preenchida com mais frequência.

Figura 1: Principais pontos de treino de parkour em Campina Grande

Fonte 1: Google Maps


35
Esta pesquisa também traz dados de observação de campo referente ao parkour em
alguns municípios da Área Metropolitana do Porto (AMP), na oportunidade da realização de
um estágio de doutorado-sanduíche na Universidade do Porto. Em Portugal, as áreas
metropolitanas de Lisboa e Porto detêm uma número maior de praticantes, mas as cidades
médias como Braga, Guimarães, Aveiro, Coimbra, entre outras, também contam com
praticantes ativos de parkour (FERRO, 2016).
A AMP tem sede no Porto e abrange 17 municípios (ou concelhos) contíguos, cuja
população é de aproximadamente 1.700.000 habitantes, apresentando uma considerável
diversidade socioeconômica e cultural entre seus concelhos (AZEVEDO, 2003). O Porto
possui uma centralidade, especialmente no que tange à implementação de políticas culturais,
recebendo um forte impacto nos últimos 20 anos dos processos de requalificação e
gentrificação turísticas – sobretudo nas zonas do seu centro histórico (ALVES, 2017). Ainda
que esses espaços sejam atrativos para os praticantes de parkour, é possível visualizar a
realização da prática em outros lugares fora do circuito turístico principal.

Figura 2: Principais pontos de treino na Área Metropolitana do Porto

Fonte 2: Google Maps

Há relatos da emergência do parkour no início dos anos 2000 na AMP, tendo sido
intensificado principalmente após a criação do Team Braga, um “grupo de jovens que
praticava artes de rua como parkour e street workout”16. Esse grupo, com sede na cidade de
16 Descrição do grupo Team Braga na sua página do facebook:
https://www.facebook.com/pg/TeamBraga/about/?ref=page_internal
36
Braga, a 57km do Porto, possui membros provenientes da AMP, fato este que facilitou a
construção da Academia de parkour Eu+ em 2015, em Vila Nova de Gaia, concelho daquela
área. A organização desse grupo e a constituição da academia disseminaram ainda mais o
conhecimento da prática na AMP, sobretudo em virtude da realização de jams nas ruas –
eventos de treino livres com o objetivo de reunir praticantes de todos os lugares e também de
chamar a atenção dos citadinos para a prática.
Sendo assim, abre-se uma possibilidade de análise profícua sobre o parkour de forma
que a atividade está presente e difusa por entre vários espaços, conjugando alguns aspectos - a
priori - semelhantes na sua relação centro-periferia, bem como a escolha de lugares próximos
a redes de transporte a fim de viabilizar a acessibilidade dos indivíduos, além da rede de
articulação com traceurs de outras localidades. Certamente diversas outras semelhanças e
diferenças devem existir e parece-nos interessante analisar e comparar as duas realidades sob
a ótica das Ciências Sociais a fim de entender aspectos interligados não só à espacialidade das
duas cidades, mas também as questões atinentes às vivências dos praticantes com o parkour
em cada contexto.
Importante notar que deslocamento existente no parkour ultrapassa a dimensão
material, pois é especialmente no fluxo entre o virtual e o “face-a-face” que os contatos são
feitos: os traceurs paraibanos participam de uma rede que abrange a interação em grupos no
whatsapp e facebook, além de perfis do instagram e canais no youtube, onde constantemente
divulgam fotos e vídeos, amadores ou mais elaborados, com seus treinos, além de relatos,
informações e materiais referentes ao parkour, recebendo (e oferecendo) comentários de
vários colegas ou de admiradores dos mais diferentes lugares do Brasil. Este dado também
converge para a constatação feita por Ferro (2016) acerca das sociabilidades suscitadas
através dos meios virtuais em contextos como o de Lisboa, Paris e Barcelona
Por meio desses contatos, os traceurs paraibanos integram uma rede maior de troca,
ampliando a mobilidade não só pelo espaço de sua cidade, mas também para outras, seja
apenas treinar em um determinado pico diferente, conhecer outros traceurs, ou para organizar
e participar de encontros mais abrangentes. Existe, aparentemente, uma boa articulação entre
os traceurs paraibanos com o restante do Nordeste e do Brasil.
O intercâmbio de informações, seja por meio virtual ou não, e a organização coletiva
de traceurs para a elaboração de encontros ou para a construção de um parque de treino, por
exemplo, são alguns dos exemplos de sociabilidades geradas a partir de um objetivo em
comum: a prática do parkour. Os indivíduos que praticam o Parkour, bem como os seus
37
“simpatizantes”, apoiadores, entre outros, estabelecem uma rica troca de informações, onde os
meios digitais possuem grande ressonância na expansão dos contatos e lugares de prática,
além de atraírem novos participantes. O deslocamento ocorre a todo momento e parece ser o
elemento crucial para a manutenção das redes de traceurs, ultrapassando uma localização
determinada. Poderíamos, assim, pensar nessa articulação que perpassa o “offline” e o
“online”, isto é, o material e o digital, como uma forma de interagir potencialmente
mobilizadora. Como “um tipo de mobilização dos coletivos que multiplica os atores,
naturezas e sociedades” (LATOUR, 1994, P.71)
Numa breve pesquisa pelos perfis de facebook dos indivíduos que se reconhecem
enquanto traceurs, podemos observar diversas referências ao universo do parkour: figuras
como David Belle, Foucan e a máxima “être et durer” são constantemente mencionadas nas
postagens desses atores, o que aponta, em certa medida, para um tipo de diálogo entre esses
pares a respeito dos princípios e atores referenciais ligados ao parkour.
E quem são essas pessoas que fazem parkour? Durante minha pesquisa, acompanhei
treinos com praticantes de idades que iam dos 6 anos aos 40, contudo optei por priorizar,
sobretudo nas entrevistas mais aprofundadas, aqueles que estivessem há pelo menos 5 anos
praticando, espaço de tempo que considerei razoável para compreender as nuances do impacto
do fenômeno nos indivíduos de forma mais ampla. O núcleo dos meus interlocutores possui
uma faixa etária entre 18 e 35 anos, todos eles homens. A classe social predominante foi a
média na AMP, enquanto em Campina Grande e João Pessoa, foi possível visualizar uma
maior predominância da baixa classe média e da média classe média. Foi observada uma
diversidade étnico-racial em ambos os contextos, sendo, entretanto, mais marcada nas cidades
de Campina Grande e João Pessoa.
Feita essa breve apresentação do cenário de João Pessoa e Campina Grande referente
ao parkour, destaco a necessidade de compreensão do parkour a partir das experiências diretas
dos praticantes, aprofundando os aspectos que constituem essa prática, e, para isso,
percorrendo os entrelaçamentos que suscitam e que emergem as linhas de constituição da
experiência do parkour. Entender essas linhas pode nos levar a vislumbrar o alcance de
discursos, trajetórias e campos de possibilidades dos atores envolvidos nessa prática (FERRO,
2016). Tal abordagem ultrapassa a perspectiva de apropriação do espaço, privilegiando não só
o aspecto múltiplo de tessitura da cidade.
Vejo o parkour enquanto uma prática que nos permite entender os ambientes em suas
ressignificações, ludicidades, ou, ainda, a própria cidade como “criada e articulada a partir de
38
um treinamento do corpo que permite perceber qualidades até então inacessíveis para um
corpo não treinado” (MARQUES, 2010), mas, em especial, ressalto as várias nuances do que
é vivenciar o parkour, entendendo como são conectadas a distintas expressões e
configurações, apresentadas explícita ou implicitamente em variadas narrativas que
atravessam de maneira diluída – às vezes até contraditória – os mais diferentes contextos.

Uma metodologia tateante

Diante do cenário heterogêneo, comum dos centros urbanos, percebe-se que é


necessário tanto adentrar no cotidiano da vida a fim de observá-la com detalhamento, como
também “emergir do campo de pesquisa para estabelecer conexões, entender práticas,
compreender sentidos e propor análises” (SILVA, 2015). A presente análise, como foi
demonstrado, trata especificamente de um contexto urbano, mas não se limita a ele. A ênfase é
dada buscando afastar-se das abordagens que privilegiam uma observação dicotômica e que
procuram distinguir de modo marcante o cenário e o indivíduo.
Nesse sentido, enxergo a Etnografia, de modo geral, como um profícuo caminho
metodológico para identificar a problemática aqui suscitada, de modo que a mesma apresenta
um imenso potencial para a apreensão da dinâmica que é construída entre espaços indivíduos,
sobretudo porque se trata de um contexto em que os discursos midiático, normativo e moral
fazem-se presentes na construção de um imaginário a respeito das práticas e intervenções
urbanas:

(...) Há uma gama de práticas que não é visível na chave de leitura da política
(ou melhor, de uma certa visão de política); é justamente essa dimensão que a
etnografia pretende resgatar. A incorporação desses atores e de suas práticas
permitiria introduzir outros pontos de vista sobre a dinâmica da cidade, para além do
olhar “competente”, que decide o que é certo e errado, e para além da perspectiva e
interesses do poder, que decide o que é conveniente e lucrativo (MAGNANI, 2012,
P.258)

Sendo assim, a perspectiva etnográfica possibilita o afastamento de possíveis


essencializações no entendimento do parkour, especialmente por tratar-se de uma prática que
envolve uma articulação de espaços – geograficamente e socialmente próximos ou não -
sendo praticamente impossível negligenciar os fluxos existentes entre tais contextos.
Considerar, portanto, o caráter heterogêneo do parkour, pelos motivos anteriormente
39
mencionados, é necessário a fim de atingir uma merecida discussão mais ampla e complexa,
que possa dar conta das transformações sofridas nos âmbitos espaciais, individuais e coletivos
– e na correlação entre estes.
Ademais, vale refletir a relação desses elementos no seu aspecto glocal, diante da
emergência do parkour em mundo extremamente influenciado pelas mídias digitais e marcado
por fluxos que perpassam os cenários físicos e virtuais. Esse movimento de múltiplos
referenciais promove uma plasticidade na conformação da prática em diferentes contextos
culturais, mobilizando, portanto, o caráter local mas também global. Essa constatação é feita
por Ferro (2016) e também corroborada por Pereira (2015), pois “o desafio para as etnografias
contemporâneas está em pensar-se nesse ir e vir dos interlocutores da pesquisa. Ir e vir que
envolve, inclusive, passagens sucessivas por âmbitos mais locais e outros mais globais, bem
como alternâncias pelas instâncias de poder e de subalternidade ou de insurgência (PEREIRA,
2015, p.112).
Em vista desta pesquisa ter boa parte do seu aporte teórico em diálogo com a
fenomenologia e com antropologia de Tim Ingold, minha proposta de explorar as questões da
relação constituída entre corpo e ambiente busca inspiração em referências que trabalhem
também nessa direção de compreender os entremeios existentes em práticas que elaboram
movimento, mobilizam fluxos e exploram dinâmicas de engajamento no mundo. A seguir
apresento as principais contribuições que orientam esta pesquisa.
Nesse contexto de pesquisas que interpelam uma malha de movimentos e fluxos,
Britto (2013) sugere a ideia de “corpografias urbanas” como pista de análise nos estudos que
envolvem o corpo e as práticas urbanas. Esta noção propõe compreender “a corporalidade das
pessoas como uma síntese transitória dos processos vividos pelo corpo na cidade, que se
expressa numa espécie de cartografia de experiências produzidas pelo e no próprio corpo (...)”
(BRITTO, 2013. p.37-38). Este viés indica uma perspectiva de continuidade entre corpo e
cidade, o que permite abordá-los enquanto elementos de um só processo de coplasticidade.

A partir dessa ideia, é possível pensarmos em uma dimensão interessante para o estudo
do parkour, uma vez que considera a cidade a corporalidade dos seus atores como
mobilizadores dos processos dos quais participam. Portanto, mais do que compreender a
cidade em seus sentidos e usos, é necessário também identificar possíveis implicações
recíprocas que são instauradas entre o espaço urbano e as corporalidades dos indivíduos.
Analisando a dança a partir da noção de corpografia, Britto e Jacques (2008) afirmam
40
Reconhecer a cidade como um ambiente de existência do corpo, que tanto promove
quanto está implicada nos processos interativos geradores de sentido implica
reconhecê-la como fator de continuidade da própria corporalidade dos seus
habitantes. A dança seria, então, um dos modos de que dispõe o corpo de instaurar
coerências entre sua corporalidade e seu ambiente de existência, produzindo outras e
diferentes condições de interação desafiadoras de novas sínteses – novas
corpografias. (ibid, p.82)

Dessa forma, as autoras argumentam que o ambiente não se configura apenas como
um espaço físico que se encontra disponível para uso, mas é campo mesmo de processos para
o corpo, onde a relação entre eles gera tanto corporalidade quanto qualificações de ambientes.
Assim, cada corpo pode experienciar vários ambientes, como vários corpos podem lidar de
forma semelhante com a mesma situação, mas as corpografias, encaradas como experiências,
acontecem de forma ímpar (BRITTO. JACQUES, 2012)

Nessa linha de experienciar os ambientes, temos em mente a questão da mobilidade,


dos fluxos e dos atravessamentos espaciais, temporais e culturais que permeiam indivíduos e
grupos . Para tanto, a noção de “etnografia dos fluxos” (FERRO, 2015) aparece-nos como
uma adequada perspectiva a ser adotada no contexto dessa pesquisa, uma vez que considera a
mobilidade de indivíduos ou coletivos relacionada de forma múltipla e complexa com os
espaços, congregando, portanto, diversas perspectivas de análise que se adaptem à realidade
dinâmica do e criativa do parkour. Destaque-se, ainda, a dinâmica atravessante dos fluxos por
outros níveis de análise, como a imagem elaborada e registrada em fotografias e vídeos.

A utilização da fotografia e vídeos em campo – tanto feitas por mim quanto pelos
traceurs - foi de grande relevância, pois, como destaca Ferro (2015), existe uma grande
pertinência desses recursos no contexto do parkour , posto que há um forte apelo da imagem
pelos traceurs, servindo, também, de componente a ser analisado. Dada a efemeridade do
movimento, o registro por meio de fotos e vídeos é bastante acionado pelos praticantes,
apontando uma forma de perpetuação da prática no tempo e no espaço (CALDEIRA, 2012).

Sobre esse ponto da imagem em registros fotográficos e de vídeo, retornamos para a


questão do corpo, pois “as telas dependem da autoridade dos corpos. Sem os corpos, as
imagens seriam vazias” (BELTING, 2012, p.189. tradução minha). Para além das imagens
propriamente ditas projetadas pelos corpos nas fotografias e vídeos, existe um corpo que
recebe essas imagens, e essa percepção – como toda a percepção do mundo – é feita com todo
o corpo, pois todos mobilizamos todos os sentidos, mesmo diante da inerência de simbolizar.
Dito isto, passamos pela compreensão de que a construção da narrativa do parkour ultrapassa
41
o discursivo, ou além disso, podemos mesmo pensar que o discurso é uma narrativa
entrelaçada de experiência que resulta da atividade prática e da percepção (INGOLD, 2008).

Na mesma linha de pensamento, podemos destacar que a obra de Ingold, a qual busco
estar diálogo constante ao longo desta tese, também fornece, a partir da sua própria
formulação teórica, elementos que nos desafiam a pensar formas outras de explorar
metodologias, especialmente, o fazer etnográfico. A análise das categorias como corpo,
organismo, pessoa, ambiente, movimento, habilidade, técnica – caras ao tema do parkour –
são a todo tempo mobilizadas e postas em perspectiva no trabalho de campo. Para o autor,
“compreender o corpo é compreender o corpo e o ambiente como movimento” (INGOLD,
2011),
Assim como a etnografia dos fluxos (FERRO, 2015) e a análise das corpografias
urbanas (BRITTO, JACQUES, 2008), a compreensão de Tim Ingold (2015) sobre a relação
entre organismos e ambiente passa por uma preocupação em analisar os movimentos do e
junto ao campo de pesquisa; de desenvolver, literalmente, um tipo de “observação-
caminhante”. Nesse sentido, Iared e Oliveira (2017) destacam Ingold e outros autores de
orientação filosófica do que chamam “virada corporal”. Essa perspectiva, de inspiração
fenomenológica, defende uma ideia de que não existe uma mente num corpo pensado,
significando e representando o mundo. O que existe é, na verdade, uma mente engajada que
não distingue pensar–fazer e o sentir-estar em movimento, daí a necessidade de engajamento
corporal também do pesquisador na situação estudada.
Ao encarar a problemática pesquisada como um uma dinâmica em processo, além das
inspirações das abordagens etnográficas que citei, também busco referência na perspectiva da
cartografia, a fim de experimentar esse movimento de “tatear” o campo. Não se trata,
entretanto, de um exercício sem rigor, mas de uma ressignificação deste, deslocada para o
compromisso com o movimento da vida. A cartografia é, pois, uma imersão no plano da
experiência, de forma que não dissocia o conhecer do fazer, do acompanhar o caminho e
constituir-se no caminho (PASSOS, et al, 2010).
Durante meu processo de pesquisa, optei, sob influência dos ensinamentos da
Cartografia, apostar mais nas “pistas” do que nas regras de um esquema de investigação. Um
exercício de atenção no trabalho de campo foi de grande relevância para a construção de
novos delineamentos a respeito do que até então eu havia traçado. Essa atenção, vinculada
também à afetividade desenvolvida com o campo, possibilita uma elaboração reflexiva de
saber “com” e não de saber “sobre”, isto é, busca afastar em certa medida um possível
42
comportamento hierárquico de conhecimento sobre o campo que se investiga. Encarar,
portanto, que toda pesquisa é um tipo de intervenção permite-nos enxergar a relação entre
conhecimento com uma implicação, um engajamento no mundo (PASSOS. ALVAREZ, 2010).

Recursos metodológicos

A presente pesquisa foi desenvolvida com traceurs entre 18 e 40 anos, das cidades de
João Pessoa e Campina Grande – PB e também com traceurs da área metropolitana do Porto,
em Portugal, a partir da oportunidade de um doutorado-sanduíche por um período de 6 meses
nesta última. Diante dos diferentes cenários, foi possível recolher dados e analisar discursos e
práticas referentes ao universo do parkour no contexto paraibano e portuense, observando,
principalmente, os elementos que apontam para a elucidação de uma crítica do corpo em
relação à cidade e do parkour como prática para a vida, e não restrita a uma característica de
“juvenil”, como às vezes têm sido consideradas erroneamente práticas urbana em geral.
(FERRO, 2016). Para tanto, busco auxílio dos dados etnográficos acerca das sociabilidades,
experiências corporais e citadinas dos praticantes na Área Metropolitana do Porto e Campina
Grande, trazendo em complemento a esta última, algumas informações também sobre
dinâmica do parkour em João Pessoa, dada a sua articulação socioespacial com aquela.
Ressalte-se que todos os nomes dos praticantes utilizados ao longo dessa pesquisa são
fictícios. Além disso, busco dar preferência ao termo “praticante” de parkour pois engloba
outros termos como “traceur” ou a versão aportuguesada “tracer”, entretanto, estes dois
últimos podem ser interpelados eventualmente sem incorrer em impactos substantivos na
compreensão do texto, uma vez que todos se referem a pessoas que fazem parkour.
Os caminhos metodológicos foram diversos, passando especialmente pela Etnografia,
observação-participante (e participação observante), diário de campo, fotografia, entrevistas,
análises documentais de vídeos, fotos, textos, jornais e toda sorte de conteúdo disponível em
plataformas digitais.
No tocante às técnicas de recolha de dados, destaco, a priori, a entrevista semi-
estruturada, o diário de campo, a observação participante, a fotografia e também levantamento
de dados a partir de mídias tradicionais e digitais. Em relação à primeira, pretende-se, com
ela, entender aspectos sobre as trajetórias de vida dos traceurs, buscando elementos
elucidativos sobre o indivíduo, o grupo, a prática, os espaços urbanos, entre outros. Já o diário
de campo foi útil para confrontar constantemente as impressões de campo da pesquisadora
43
com dados passados e futuros, servindo, inclusive, de instrumento para (re)pensar as próprias
categorias e modos de elaboração do pensamento a partir de um aporte teórico dos
fluxos/movimentos mobilizadoras dos corpo (inclusive, em alguma medida, do meu próprio
corpo). Também contei com alguns esboços e desenhos dos movimentos de parkour como
uma extensão do meu diário de campo. O levantamento de dados nas mídias tradicionais e
digitais serviu como complemento investigativo, especialmente no tocante à divulgação de
material audiovisual pelos traceurs, bem como as informações trocadas em grupos, fóruns, o
que torna possível explorar a etnografia virtual, em virtude da articulação, emergência e
potencialização de sociabilidades que são suscitadas a partir da internet.
Estudar o parkour é mergulhar em uma infinidade de informações, nem sempre fáceis
de sistematizar em um texto. Trata-se de uma prática complexa, carregada de aparentes
paradoxos, mas que, ao final, nos evidenciam vivências muito ricas, experienciadas de
maneiras distintas em cada lugar e por diferentes indivíduos e grupos. Assim, convido você,
leitor, a fazermos juntos um pouco de parkour pelas próximas linhas.

Estrutura da tese

O texto é dividido em cinco capítulos. No primeiro capítulo, faço uma reflexão sobre
os movimentos da pesquisa, discutindo as formas de entrada e adaptação ao campo, os
caminhos metodológicos delineados para estudar o parkour e os desafios de desenvolver um
estudo a partir de uma perspectiva “encarnada”, isto é, levando em conta os aspectos que
elaboram uma experiência sensível, corpórea e afetiva.
Seguindo o debate em torno da experiência corpórea, trago no segundo capítulo, um
panorama das Ciências Sociais, visando situar o debate teórico sobre o corpo desde os autores
clássicos até os contemporâneos. Ao final, proponho um deslocamento do foco que é dado ao
corpo até então para pensarmos o tema deste trabalho, partindo de uma abordagem
fenomenológica até a contribuição de uma análise crítica ao representacionismo e à
perspectiva cartesiana da dicotomia entre corpo x mente, norteada pela teoria de Tim Ingold
(2018).
No terceiro capítulo, exploro alguns aspectos das vivências com o parkour
relacionadas com a experiência corporal dos praticantes. Busco trazer algumas elementos que
nos ajudem a compreender formas de agenciamento, percepção e modos de aprendizagem
44
do /com o corpo enxergadas na dinâmica do parkour. Ensaio uma reflexão sobre como
podemos exercitar a compreensão da prática a partir de uma reflexão pelos pés, como uma
maneira de deslocar o centro perceptivo do corpo da cabeça/mente para o corpo como um
todo.
No quarto capítulo, busco apresentar o parkour a partir de uma perspectiva de malha
(INGOLD, 2018). Considero as várias dimensões que delineiam a prática a partir da ideia de
linhas entrelaçadas. As linhas do parkour revelam-se, nesse contexto, enquanto diferentes
experiências, e, entre elas, tento explorar alguns aspectos especialmente marcados pelos
afectos (DELEUZE; SPINOZA), como também os relatos que tecem narrativas sobre
trajetórias, além das observações de campo que nos auxiliam a vislumbrar um panorama mais
geral acerca dos contextos estudados.
Por fim, o quinto capítulo apresento algumas reflexões sobre a experiência que é
viver o parkour a partir de uma perspectiva de relação de engajamento do mundo pela ótica do
habitar. Dentro de uma teoria da vida e do habitar, parte-se da ideia de que vivemos em um
ambiente sem objetos (ASO). Essa análise é apontada por Ingold (2012) visando um
afastamento do “problema da agência”.
45
46
Capítulo 1 – Jogando o corpo no mundo (do parkour) – notas sobre os movimentos da
pesquisa

Talvez a primeira coisa a ser feita quando iniciada uma pesquisa seja a busca pela
definição do que é o seu “objeto”. A partir daí, pode-se pensar os caminhos possíveis a serem
trilhados no ato de explorar as hipóteses e de aproximar-se dos objetivos desenhados. Sendo
assim, o que é parkour? Em uma busca rápida pela internet, ou em uma entrevista mais
superficial, a resposta mais comum é a seguinte explicação: “é um movimento realizado de
um ponto A para um ponto B, da forma mais eficiente possível”, eventualmente
complementada por “a fim de ser útil” e, ainda “de maneira que o corpo possa ser e durar ao
longo do tempo”. Tais aspectos estão presentes em maior ou menor medida em todas as
experiências do parkour, uma vez que vêm desde a constituição dos seus primeiros
delineamentos enquanto Art du deplacement, nos subúrbios franceses, com o grupo Yamakasi.
Embora as vivências com a prática desdobrem-se de inúmeras maneiras, a menção ao grupo
Yamakasi e a uma certa “essência” do parkour é, no geral, feita pela maioria dos praticantes,
indicando ser uma referência importante a um tipo de capital atinente ao parkour.
Mesmo dentro de comunidades mais organizadas e com grande frequência de treinos
coletivos e concepção de projetos, como é o caso da que pude conhecer no Porto, existem
modos de encarar certos valores e práticas do parkour diferentes entre os indivíduos. Por
exemplo, é possível observar, como foi mencionado por um dos praticantes, diferenças entre
um “parkour old school” como uma prática mais “pura”, sem “firulas”, objetiva, eficiente e
“parkour new school” que remete à incorporação de movimentos “não eficientes” tais como
saltos mortais e, por isso, mais próxima do que se entende por free running. Tanto a
comunidade analisada no Porto quanto em Campina Grande apresentam visões sobre a
definição do parkour que não são unívocas, podendo cada sujeito trazer um elemento
diferente à compreensão dessa prática. Com uma relativa segurança, o único ponto que
poderia ser ressaltado a respeito de um certo consenso observado nos dois campos está na
crítica à submissão do parkour enquanto subcategoria da Ginástica nos Jogos Olímpicos. O
movimento “We are not gymnastics”, manifestado na forma de carta aberta por diversas
federações de parkour, foi recebido por várias comunidades ao redor do mundo, as quais
consideram o ato da Federação Internacional de Ginástica uma “apropriação” do parkour,
menosprezando a autonomia da prática e dos seus atletas, subjugando-os a um esporte que
tem bases e características extremamente distintas do parkour. Nesse sentido, ainda que a
47
crítica à inclusão do parkour nos Jogos Olímpicos enquanto subcategoria da Ginástica seja
feita, os fundamentos dessas críticas repousam em visões divididas a respeito do próprio
processo de esportivização do parkour. De um lado, podemos encontrar pessoas que acreditam
no parkour enquanto um esporte regulamentado e até como via de profissionalização e meio
de vida para os praticantes dessa atividade, e de outro, também podemos encontrar sujeitos
completamente desfavoráveis à ideia do parkour como um esporte, de forma que esse
processo esfacelaria a lógica “essencial” da prática enquanto modalidade livre e assente na
noção de não competitividade. Estes são apenas dois lados com a finalidade de ilustrar
diferentes pontos de vista. Em meio a isto, temos muitas outras formas complexas de encarar
e vivenciar o parkour.
Construir, portanto, um modelo de interpretação do parkour, dada à heterogeneidade
dos discursos e das vivências com a prática ao longo de todo o mundo, é uma tarefa
desafiadora, especialmente se o objetivo for delinear um consenso. Meu esforço, portanto, é
mais direcionado no sentido de sugerir algumas pistas que possam nos encaminhar à
compreensão das multiplicidades enxergadas no mundo desse fenômeno, sem fechá-lo em
uma definição específica. Não busco, dessa forma, pela “essência” do parkour, mas sim, pela
compreensão do emaranhado das diversas linhas (INGOLD, 2018) que o constituem. Busco
pelos agenciamentos, pelas linhas desse “crescimento das dimensões, numa multiplicidade
que muda necessariamente de natureza à medida que ela aumenta suas conexões”
(DELEUZE;GUATTARI, 1995, p.16). Por isso, intento realizar o presente debate mobilizando
os termos referentes a algumas de suas facetas que ocorrem sob diferentes contextos: prática
corporal, esporte, atividade física, filosofia, arte etc, sem fazer uma escolha definitiva entre
nenhuma destas, tendo em vista que a própria prática se desdobra no social de diferentes
maneiras – todas são diferentes linhas do mesmo emaranhado. Assim, optei por, na maioria
das vezes, me remeter ao parkour enquanto “prática” ou “atividade” de forma que esses
termos possam deixar uma margem mais ampla de conceituação, oferecendo abertura para os
fluxos diversos das linhas seguirem com maior liberdade.
Além disso, ressalto que todas as outras escolhas e reflexões presentes nesse texto são
frutos de uma relação de colaboração entre diversas pessoas, seja com os praticantes nos
campos estudados, com praticantes que nunca encontrei pessoalmente, mas estabeleci trocas
importantes de ideias por meio das redes sociais. Além disso, de grande importância foram as
trocas feitas com colegas, professores e pesquisadores que encontrei ao longo da minha
jornada durante o doutorado, com destaque especial para as discussões realizadas na
48
disciplina de “Corpos, política e afetos” ministrada pelos professores Ronaldo Sales e Luis
Henrique Cunha no PPGCS, e que viria a ser um “ensaio” para o Devires – grupo de
intervenção e pesquisa sobre corpos, afectos e política – um espaço de compartilhamento
frutífero e plural, responsável por regar os rizomas de cada trabalho e experiência debatidos
ali e do qual, o meu estudo não sairia ileso. Um trabalho, nesse sentido, nunca é feito somente
a duas mãos, trata-se, também, de composição de um emaranhado (INGOLD, 2018), de uma
multiplicidade (DELEUZE; GUATTARI, 1995) que cresce propositadamente de maneira
descompensada. Mas a construção de um texto, o jogo teórico-metodológico – e tático –
repousa, em alguma medida, parte da responsabilidade nessas mãos que agora a escrevem. É
um trabalho de edição, um experimento artesanal que é podado pelas regras acadêmicas, mas
que também brinca com esta, escapando aqui, acolá, por algumas linhas de fuga. Por essas e
outras razões, resolvi apresentar meu trabalho na primeira pessoa do singular, com a
finalidade de não me esconder “sob a capa de um observador impessoal, coletivo, onipresente
e onisciente, valendo-se da primeira pessoa do plural” (OLIVEIRA, 1996, p.27) mas
acompanhado, também, de um esforço de não tornar o texto mera descrição intimista. Neste
capítulo, busco explicitar as condições de produção da pesquisa, trazendo pontos importantes
que, num contexto de intersubjetividade no campo em questão, contribuíram para a
construção epistêmica do debate aqui posto.

1.1 Pensar caminhos metodológicos para uma prática em movimento

Para quem está “de fora” do mundo do parkour, é comum pensar que a prática trate de
um tipo de esporte radical e perigoso. Isso se deve em muito à imagem difundida pela mídia
de um certo estereótipo de parkour: saltos entre prédios de grande altura, escaladas e corridas
frenéticas ao tipo “fuga de polícia”. O conhecimento do parkour se alargou em grande medida
inclusive devido a esse imaginário espetacular e cinematográfico da prática, tornado popular
especialmente depois do filme de ação francês Banlieue 13 (B13 – 13º Distrito, no Brasil),
protagonizado por David Belle. Esse tipo de parkour de fato existe e, por ser a sua faceta mais
explorada pela mídia mainstream, acaba contribuindo para a construção de um senso comum
do parkour enquanto um “esporte radical” ou uma “prática perigosa”. Contudo, ao adentrar no
cotidiano da prática, nós somos levados a perceber que esses momentos mais “dramáticos”
constituem a exceção.
49
Nesse sentido, ajustei meu foco a fim de compreender o parkour nas dinâmicas de
aprendizado nos treinos, nos muito mais frequentes momentos de conversa e desenvolvimento
de uma atenção ao movimento, no passeio pelas ruas, vielas, tateamentos pelos materiais das
paredes, olhares para coisas que os leigos no assunto não percebem a primeira vista. Foi
preciso, portanto, apreender o parkour para além das cenas cinematográficas como as
apresentadas nos filmes de ação ou nos vídeos hiper produzidos, como do do grupo britânico
Storror, isto é, sem pensar somente na “figura extraordinária” (WACQUANT, 2002), mas
tentar, sim, aproximar a experiência de pesquisa da experiência dos treinos ordinários, das
centenas de movimentos de precisão entre um degrau e outro, das incansáveis tentativas de
escalada, dos exercícios de fortalecimento, das trajetórias de vida, experiências, aspectos
sociais que distinguem os praticantes entre os contextos de Campina Grande e Porto. Além
disso, fui percorrendo caminhos que me levaram à compreensão das negociações, discursos e
fatores outros que de início podem se mostrar fragmentados em pontas soltas, mas que, aos
poucos, vão tecendo o emaranhado no qual o parkour se encontra e o constitui.
Investigar o parkour abriu um caminho de desafios bem mais amplo do que pensei no
momento da confecção do meu projeto de pesquisa. As dúvidas estenderam-se durante toda a
trajetória do trabalho, na verdade. Inicialmente, desenhei um esboço de uma investigação na
qual a etnografia seria privilegiada e outros recursos de coleta de dados fariam as vezes de
complementação. Posso dizer que, sim, essa pesquisa tem sua orientação fortemente baseada
na Etnografia, pelo que acabei de expor, mas que faz também um movimento de encontro – e
de confronto – com outras reflexões, as quais, muitas vezes, apresentam elementos próximos
do debate etnográfico, mas que também fornecem aspectos outros capazes de suscitar
questionamentos e provocações no sentido de por em perspectiva um debate que não se reduz
ao caráter metodológico. Ora, a metodologia não se inicia somente no campo de pesquisa,
tampouco pode ser reduzida e apresentada estritamente no texto do que geralmente chamamos
de “capítulo metodológico”. Apesar de entender a necessidade deste último no sentido de uma
organização formal das ideias para o texto como um todo, as reflexões acerca dos
procedimentos de acesso à realidade do campo são diluídas por todo o trabalho, constituindo,
inclusive, as feituras da escrita – movimento em aberto, em constante diálogo, por vezes
“traiçoeiro”, mas que constroi e descortina suas potencialidades (e limitações) a medida do
seu desenvolvimento.
Metodologia, teoria e a pesquisa de campo são elementos de uma reflexão construídos
em sinergia. Atrelar fatalmente uma metodologia a um campo do conhecimento também pode
50
sugerir algumas problemáticas, como é o clássico entendimento da Etnografia como o método
por excelência da Antropologia. Realizar um estudo antropológico não implica desenvolver,
por consequência inescapável, uma etnografia. Muito se justifica a Etnografia pela prática da
observação-participante e vice-versa. Essas definições podem gerar algumas zonas nebulosas
e acredito que seja interessante conversar um pouco sobre essas implicações, trazendo
contribuições de algumas perspectivas que nos ajudem a navegar por esse debate, sem,
necessariamente, resolver tais questões com vereditos sobre um assunto tão rico em
possibilidades.

1.1.1 Seguindo pistas e movimentos

Para a presente análise, buscamos apresentar algumas contribuições que podem


convergir para possíveis caminhos em direção a uma dinâmica de pesquisa antropológica,
onde a educação da atenção ocupa o centro da proposta: são contribuições teórico-
metodológicas que privilegiam o acompanhamento dos processos, dos itinerários e
movimentos. Essas abordagens procuram explorar a pesquisa como uma prática corporificada
como um todo, oferecendo perspectivas interessantes para alguns desafios da pesquisas que
envolvem o exercício de análise pautado no que comumente entendemos por observação-
participante.
Muitos dos materiais teóricos utilizados na presente pesquisa têm aspectos de
inspiração fenomenológica, especialmente referenciados à Fenomenologia da Percepção de
Merleau-Ponty (1999). Esta filosofia, que tem suas raízes em Edmund Husserl – mas
diferencia-se dele no patamar no qual localiza o corpo-sensível – busca desenvolver um
paradigma centrado na percepção. É a partir das relações do sujeito com o mundo que a
percepção emerge, enquanto resultado do próprio corpo encarnado dos sujeitos. Assim, a
corporeidade é incontornável para a abordagem de Merleau-Ponty, pois é do e pelo corpo que
a dimensão do sensível é acessada.
Buscando aproximações metodológicas à Fenomenologia de Merleau-Ponty (1999),
destaco as possibilidades suscitadas a partir da Cartografia, abordagem impulsionada por
Deleuze e Guattari (1995) e da Educação da Atenção, defendida por Tim Ingold (2010). Nesse
sentido, esta tese possui características que buscam privilegiar a experiência
perceptiva/corporal do sujeito no mundo (o que inclui a pesquisadora), levando em conta a
dimensão fluida e processual da dinâmica estudada. Tanto a cartografia quanto a educação da
51
atenção convergem em direção à importância da “abertura para o mundo” enquanto atitude de
engajamento fundamental para a identificação dos traços, linhas e forças que constituem o
ambiente. Ambas perspectivas têm seus esforços voltados à compreensão dos fenômenos
centrada na experiência do ser-no-mundo, em sua diversidade e complexidade.
A abordagem cartográfica questiona como se pode desenvolver um trabalho que
priorize o aspecto processual em detrimento da apreensão de uma realidade dada. Mas não
existe uma resposta fechada, exata. Existem pistas, traços que apontam possibilidades de
caminhos. E estes vão sendo testados, postos em perspectiva, confrontados a medida que
pensamos, criamos e fazemos pesquisa. Não se trata de um amontoado de técnicas de
pesquisa sem nexo, mas de uma obra de imaginação, como bem coloca Adriano de León
(2015) em seu trabalho etnocartográfico num clube em João Pessoa-PB. Combinando a
etnografia à cartografia, o autor procura congregar o procedimento desta em seguir as pistas e
processos dos acontecimentos a partir da mescla entre pessoas e objetos, e o exercício daquela
em significar as experiências.
Essa abertura urge pela implicação do pesquisador em práticas que possibilitem a
atenção aos processos em curso, é um exercício de educar a percepção não somente com o
olhar sobre os acontecimentos, mas também com o corpo engajado nos mesmos, levando-nos
a trazer as experiências, suas complexidades e linhas de fuga para o centro da questão.
Realizar um trabalho sob orientação cartográfica solicita, portanto, um exercício de abertura
ao mundo onde está claro que tal movimento não se dá de forma neutra, pois não há separação
entre conhecer e fazer, pesquisar e intervir – atos estes que ocorrem enquanto prática
corporificada (COSTA, 2014). Trata-se, portanto, de um corpo-perceptor pretensamente e
atentamente vulnerável aos acontecimentos.
Enquanto práticas corporificadas, podemos pensar a experiência vivida e transitória a
partir da noção de “corpografia” proposta por Britto e Jacques (2012). Segundo as autoras, as
corpografias são cartografias feitas pelo e no corpo, sendo manifestação das corporalidades
que trazem à tona os resultados das relação entre a dimensão biológica do corpo do contexto
ambiental. Perspectivar, assim, esse “corpo-criante” (POZZANA, 2013) enquanto lócus da
vivência do conhecimento que manifesta sua experiência relacional com o fenômeno de
investigação, encaminha-nos a perceber as poéticas da expressividade, da criação ininterrupta,
dos rastros deixados e carregados pelo corpo.
Nesse sentido, podemos dizer que as corpografias dos praticantes de parkour apontam
para processos de “deseducação” de técnicas corporais aprendidas ao longo da vida, seja na
52
forma outra de subir ou descer uma escada, de locomover-se em posição quadrupedal, ou
mesmo de olhar um banco de praça e compreendê-la para além de uma estrutura cuja
finalidade é sentar-se, enxergando como meio de possibilidades para movimentar o corpo do
praticante de parkour. Desnaturalizar as técnicas do corpo envolve algum tipo de subversão
aos padrões que emergem em contextos históricos e geracionais, recriando-os
ininterruptamente, comunicando negociações entre o cotidiano e o extracotidiano, entre o
normativo e o desvio, redescobrindo-se, então, enquanto corpo múltiplo (LEITE, 2015). Os
corpos no parkour, ao descobrir-caminhos (INGOLD, 2005), são móveis e moventes,
enquanto vivências que saltam, em alguma medida, para fora do ordinário, criam e recriam
técnicas e modos de experienciar os espaços e as relações com aquilo que conforma o
cotidiano.
É nessa esteira que o plano cognitivo é tencionado, no sentido de considerar que não
existe ali uma estrutura dissociada da história; existe mais um “corpo atento e aberto no
espaço, do que conteúdos acumulados em aprendizados cristalizados” (POZZANA, 2013.
p.329). Seguindo essa linha, faz-se necessário voltar o olhar para as afetabilidades suscitadas
a partir das corporificações que constroem e participam dessa malha relacional – estabelecida,
também, no encontro entre humanos e não humanos.
O debate trazido pela cartografia, na medida em que traz à tona demandas em
torno de uma forma de pesquisa-intervenção voltada à compreensão a partir da nossa postura,
da nossa abertura ao mundo, aproxima-se também da noção de educação da atenção proposta
por Tim Ingold (2014). Este autor interpela aquele conceito em várias partes do conjunto de
sua obra, incluindo-a em sua discussão enquanto proposta alternativa ao esvaziamento da
definição de etnografia.

1.1.2 Educando a atenção

A abordagem clássica da ciência, baseada numa perspectiva cognitiva


representacional, advoga por uma apreensão científica da realidade que implica um
observador alheio em termos de sua experiência. A partir desse viés, privilegia-se aquilo que
supostamente se acessa em um tipo de exercício de observação distanciada, e não a trama que
permeia o individual e o coletivo, os atravessamentos do conhecer e do criar o mundo. Além
de Merleau-Ponty e seu paradigma da corporeidade contra o argumento representacionista
cognitivista, destaca-se, ainda, a crítica fenomenológica de Hubert Dreyfus, cujas bases
53
encontram-se também naquele autor, mas principalmente na obra de Heidegger com a
oposição deste ao pensamento cartesiano e defesa da centralidade do ser com seus encontros e
não para si mesmo (HEIDEGGER, 2005)17. Partindo da observação dos primeiros estudos do
Massachusetts Institute of Technology (MIT) sobre Inteligência Artificial, Dreyfus percebeu
que os pesquisadores desse campo operavam com um paralelo entre cognição e representação:
a mente processaria as informações de acordo a execução de um conjunto de regras, ou seja,
de um programa de instruções (DREYFUS, 1992)18. Tanto Merleau-Ponty quanto Heidegger
aparecem no argumento de Dreyfus contra o cognitivismo quando este, por exemplo, afirma
que “is not that the mind is sometimes extended into the world but rather that in our most
basic way of being—i.e., as skillful copers—we are not minds al all but one with the world”
(DREYFUS, 2007, p.255). Assim, estar com o mundo implica uma ideia de abertura ao
mundo, afastando, pois, os pressupostos de aquisição de conhecimento como parte de um
processamento de informações baseado na disponibilidade representacional da mente.
Compreendendo, dessa forma, os fundamentos da crítica ao cognitivismo e a
construção de uma noção de abertura que coloca o ser humano nos entremeios do mundo,
percebemos como esta noção permeia a obra de Ingold e fortalece sua elaboração acerca das
limitações da ciência cognitiva em enxergar as formas e capacidades dos seres humanos
enquanto processos de desenvolvimento (INGOLD, 2010). Assim, é mais frutífero, segundo
esse autor, pensar a análise antropológica enquanto uma prática de educação da atenção, um
processo que se faz na abertura à correspondência – termo sugerido como análogo à
“intersubjetividade”. Para além de descrever e representar, o movimento de correspondência
trata-se de “responder aos acontecimentos por meio das próprias intervenções, questões e
respostas (…) viver atencionalmente com outros” (Ingold, 2016, p. 408).
É seguindo esse fluxo de pensamento que Ingold vai tecer críticas ao próprio termo
“Etnografia”, o qual parecendo estar saturado e confundido enquanto sinônimo de
Antropologia. Seu status, seu significado, mais do que nunca, precisa passar de um momento
de mero debate para a prática de alternativas de reelaboração daquilo que, não sem hesitar,
ainda chamamos por “método etnográfico”. Nesse sentido, Ingold (2016) se opõe à noção
17 Para explicar essa ideia, Heidegger utiliza o termo dasein (traduzido para o português como “ser-aí” ou “pre-
sença”) para caracterizar o modo de ser humano como “ser com as pessoas que vêm ao seu encontro, nunca
como um sujeito existente para si” (HEIDEGGER, 2001, p.182)
18 Dreyfus sofreu muitas críticas acerca da sua interpretação da obra mais geral de Heidegger, entretanto, suas
contribuições no que tange especificamente à crítica da Inteligência Artificial são um importante referencial
no escopo da crítica ao cognitivismo e à cibernética. Ressalte-se, ainda, que o alvo de Dreyfus citado aqui é
o cognitivismo clássico, de forma que o autor já ofereceu, posteriormente, outros posicionamentos acerca de
novas definições sobre tal ciência. Devido à complexidade própria da matéria, cabe uma consulta mais
atenta sobre esse tema. O objetivo aqui é prestar tributo à teoria do autor, limitando-se a referenciá-lo.
54
engessada que atribui o aspecto da etnograficidade aos encontros ocorridos no âmbito de uma
pesquisa antropológica. O autor sustenta a necessidade de não se perder de vista o
compromisso ontológico e educacional da Antropologia, movimentos estes construídos a
partir do conhecimento que emerge dos engajamentos colaborativos com as pessoas com as
quais trabalhamos. A observação participante enquanto uma “maneira de trabalhar” pode ser
erroneamente compreendidas como fases distintas de um trabalho, e essa separação, para
Ingold (ibid.), ocorre devido aos protocolos da ciência normal, distinguindo a existência
humana entre estar no mundo e conhecer o mundo.
Identificar, portanto, os rastros, traços e linhas deixados e carregados pelas vivências
em um ambiente demanda um exercício de educação da atenção, pois assim é possível, a
partir do engajamento pessoal e comprometido com o ambiente, acessar e entender os fluxos e
linhas que se dão ao longo das relações que compõem as experiências (STEIL. CARVALHO,
2012). O estar no mundo em corporeidade, para Ingold, tem a ver com a participação nas
linhas do emaranhado do ambiente, que estão sempre em movimento constante
(NASCIMENTO, 2019). Não se trata de negar a etnografia e tampouco a Antropologia, mas
de reavivá-los segundo uma compreensão do engajamento, de trazer, como diz Ingold “gente
para dentro” dessa forma de pensar o mundo. Em outras palavras, engajar-se é pôr os sentidos
à tona, pensar com olhos, mãos, pés, olfato, audição – não falamos de fazer uma antropologia
dos sentidos, mas, sim, uma antropologia sensorial, onde fatores como corpo e afeto sejam
privilegiados em todo o desenrolar da análise.
Em um rico diálogo com Deleuze e Guattari (2004), Tim Ingold (2012) reafirma o
lugar das “linhas de fuga”, do movimento e dos fluxos proposto pelos autores, sugerindo uma
revisitação a essa abordagem para propor a ideia de “malha” (meshwork) em oposição à de
rede (network) – em uma crítica a Bruno Latour. Tanto Ingold quanto Latour convergem no
que tange a uma negação da dicotomia entre um mundo dos seres humanos e dos materiais ou
objetos, buscando reaproximá-los e repensá-los juntos a um esforço teórico sobre agência.
Enquanto Latour (2012) constroi sua conhecida teoria do Ator-Rede mobilizando um
exercício de identificar as associações ou conexões entre humanos e não humanos,
distribuindo o papel da ação em termos de subjetividade também para outros atores que
compõem as associações – e não o “social”, de forma que esta característica aponta quase que
automaticamente para uma oposição à “natureza”. Já para Ingold (2012), a noção de malha
permite incluir o ambiente que envolve uma coisa e seus fios que percorrem trilhas “ao longo
de”, avançando a ideia proposta por Latour (2012) de “conexões entre”, a qual pode deixar
55
escapar o aspecto do fluxo enquanto caminhos de possibilidades: “Conforme se movem juntos
através do tempo e encontram-se uns aos outros, esses caminhos se entrelaçam para formar
uma imensa e contínua tapeçaria em evolução (INGOLD, 2015, p.34). Dessa forma, pensar
em fios, linhas, ou devires que percorrem, que seguem “ao longo de” tem a ver com a
construção de itinerários, incluindo, assim, a compreensão dos fluxos e transformações dos
materiais, mais do que o estado da matéria em si.
Em outro trabalho, Ingold (2005) explora a ideia de “mapa” e dialoga com Merleau-
Ponty (1962) e Gibson (1979), quando traz as noções de percepção e de “trilha de
observação”, respectivamente. O ponto em comum para esses autores é de que não há um
começo e um fim dos fenômenos – das trilhas de um mapa - que possam ser definidos com
exatidão. A analogia do mapear com com a dinâmica de aquisição de um conhecimento é feita
a fim de elucidar que ambos os fenômenos acontecem na forma de um processo que “se
compõe no engajamento do ator-perceptor móvel com o seu ambiente. (…) Conhecemos
enquanto caminhamos, e não antes de caminhar” (INGOLD, ib, p.91). O autor em questão
desenha seu argumento baseado na crítica ao Cognitivismo, afirmando que esses processos de
conhecimento humano vão bem mais além do que uma simples operação isomórfica entre
estruturas do mundo e estruturas da mente. Para construir esse pensamento, Ingold toma
referência principalmente da psicologia ecológica, para a qual o processo de conhecimento se
dá de forma complexa, como resultado de um emaranhado de relações, num dado contexto
ambiental, onde o ator-perceptor está imerso.
O que a cartografia, a corpografia, a etnografia ou a educação da atenção apontam
enquanto recurso metodológico a importância da do “caminhar”, do deslocamento - ou de
atitudes próxima a tal - como atividade fundamental para a consecução dessas abordagens.
Nesse sentido, diante da inexatidão própria da complexidade dos fenômenos, especialmente
dos processos de conhecimento humano, podemos pensar, por exemplo, na dinâmica social do
parkour, seus aprendizados, história da prática e trajetórias das vidas individuais atravessados
por um tipo de experiência que interpela o movimento ao longo da formação do seu
emaranhado de relações. Esse movimento é literal quando falamos no salto, na escalada, no
equilíbrio sobre uma barra, na corrida quadrupedal, mas se trata, também, de deslocamentos,
de processos de descobrir-caminhos enquanto se caminha. Trata-se de fazer e criar na
errância, nos passos vacilantes e nos riscos, nos fluxos e trânsitos de um mapa que dialoga
não diz respeito às grafias de um desenho no papel, mas com os aprendizados, transformações
e reinvenções incessantes deixados e carregados pelos corpos.
56
Na esteira do que foi mencionado até então, os trabalhos realizados sob essas
perspectivas que agregam processos, ambiente e ator-perceptor, têm o olhar voltado para a
dinâmica do movimento e subsidiam um lugar importante ao corpo enquanto vetor
ininterrupto de criação. Além disso, o aspecto da atenção tratada trata-se de um exercício de
abertura aos acontecimentos, um ato de enxergar “pontas soltas”, fragmentos, movimentos
emergentes e significantes que apontam para o caráter processual da vivência investigada. O
ponto em comum entre as abordagens citadas está na relevância do acompanhamento dos
processos, considerando, para isso, os movimentos que constroem a poética da complexidade
relacional, atravessada pelo social, político, econômico e ambiental/ecológico.
Assim, impulsionada pelas contribuições dos trabalhos aqui suscitados, busquei
desenvolver uma experiência de pesquisa em movimento sobre corpos móveis, em diálogo
com ambiente e atores, atravessados e atravessantes ao longo do emaranhado das relações que
os constituem e são constituídas em correspondência. Aos poucos vamos construindo esse
caminho-quebra-cabeça da presente pesquisa: vamos trabalhar com as possibilidades que
diferentes abordagens lançam sobre seus estudos e entender as convergências que nos ajudam
na compreensão de uma metodologia sugerida para o parkour. Uma metodologia, adianto, que
evidentemente, busca seu rigor, uma vez que se trata de um estudo científico, mas se arrisca
em algumas errâncias e movimentos por sobre muros, texturas e, como não é incomum de
tudo que se move: quedas. Como foi falado, de inspiração fenomenológica, esse trabalho,
entretanto, não estabelece um compromisso preciosista com essa abordagem: leva em
consideração o quesito, incontornável para a temática, do movimento, assim como do corpo e
da experiência de todos os envolvidos em uma vivência de investigação acadêmica,
rastreando as linhas que atravessam a Fenomenologia – especialmente a pensada por Merleau-
Ponty – mas que também seguem fluxos para além desta. Sigamos.

1.2 Desenvolver pesquisa enquanto experiência encarnada

As reflexões que estiveram presentes no início da pesquisa foram desdobrando-se e


tomando contornos outros ao longo do trabalho, especialmente a partir do momento da minha
entrada em campo, precisamente, nos treinos de parkour. Tentar inserir-me em um mundo
composto, majoritariamente - quando não totalmente - por homens levantou-me uma série de
desconfortos que até então eu não havia experienciado em outros momentos de pesquisa.
Além disso, o mundo das “atividades físicas” nunca foi algo exatamente próximo dos meus
tipos de vivência. Este fato também me gerou um tipo de bloqueio no início, mas,
57
posteriormente, me suscitou muitos pontos que me apresentaram outras possibilidades de
olhar para a temática que eu meu propunha a estudar, deslocando conceitos, impressões,
métodos e me ajudando, aos poucos, a perceber melhor como desenvolver estratégias de
acesso e apreensão das práticas, valores e processos constituintes do campo pesquisado. Além
disso, durante meu estágio de doutorado-sanduíche no Porto, Portugal, onde também realizei
pesquisa de campo com praticantes de parkour, o fato de ser estrangeira exigiu uma série de
manejos e reflexões sobre códigos que vão desde a mobilização da língua e das linguagens –
inclusive não verbais19, como também a adaptação a um campo que, agora, continha outro
tipo de atravessamento referente a minha nacionalidade.
A aproximação dos interlocutores, sendo uma mulher e não sendo uma praticante de
parkour, exigiu de mim uma sensibilidade para compreender e traçar questionamentos em
torno do meu ofício enquanto pesquisadora. Muitas vezes cheguei a me questionar qual
melhor postura a adotar em campo: como transmitir a “seriedade” da minha pesquisa para os
interlocutores? De que forma comunicar o tipo de pesquisa que estava realizando? Como me
comportar em um ambiente predominantemente masculino e diante das circunstâncias
inesperadas advindas desse tipo de relação? O que fazer exatamente em um campo cujo
movimento é o eixo norteador da prática estudada? De que maneira acompanhar os fluxos e
deslocamentos literais dos interlocutores? Como não fazer perguntas extremamente prosaicas
e gerar um desinteresse por parte dos traceurs? Por fim, parecia-me mais fácil observar, o
desafio era mesmo participar. Muitas “ilusões” foram se despedaçando ao longo da minha
caminhada. Tive que voltar vários passos atrás, insistir em encontros que durante um tempo
não me pareciam frutíferos o quanto eu esperava, sentir-me deslocada e, às vezes, um pouco
insegura no meu lugar de mulher. Certamente nada de outro mundo para os relatos que
conhecemos de muitos pesquisadores. Sentir o meu desconforto, entretanto, foi primordial
para delinear os caminhos metodológicos, repensar constantemente o desenho da pesquisa e
redirecionar algumas orientações previamente estabelecidas.
Encontrar um tipo de equilíbrio para dar continuidade ao estudo exige uma atenção
muito minuciosa da pesquisadora, especialmente num campo de movimentos vários como
acontece no mundo do parkour. Essa atenção, lado a lado com o desconforto e também com a
excitação, partiu de uma observação cuidadosa dos corpos dos interlocutores e, sobretudo, do

19 Lígia Ferro, minha coorientadora, responsável por me acompanhar durante meu doutorado-sanduíche no
Porto, em entrevista a Loureiro (2020) explicita muitas questões sobre sua experiência corporal enquanto
pesquisadora, a importância da aproximação e comunicação não verbal com os interlocutores a partir do seu
engajamento nas atividades. Disponível em https://journals.openedition.org/pontourbe/9757.
58
meu próprio corpo. Essa dimensão não norteou minha investigação nos seus primeiros passos
– ela foi, na verdade, se descortinando – se mostrando necessária - aos poucos, entre idas a
campo, conversas, entrevistas, leituras, consultas a materiais como vídeos, blogs, fotografias e
envolvimento corporal com a prática e outros tipos de atividade física. Trazer para o centro da
reflexão que eu e os praticantes de parkour somos, antes de tudo, seres “de carne, nervos e de
sentidos (sensual e significante)” (WACQUANT, 2002, p.11) conforma grande parte da
orientação teórica e metodológica dessa pesquisa. Meu movimento foi, em certa parte,
parecido com o descrito por Wacquant enquanto pesquisador de pugilismo, seu trabalho não
foi inicialmente propulsionado por uma vontade de comprovar a validade de uma sociologia
carnal:

(…) na realidade, foi o inverso que aconteceu: é a necessidade de compreender e


dominar plenamente uma experiência transformadora que eu não desejara nem
previra, e que por muito tempo permaneceu confusa e obscura para mim, que me
levou a tematizar a necessidade de uma sociologia não somente do corpo, no sentido
de objeto (of the body), mas também a partir do próprio corpo como instrumento de
investigação e vetor de conhecimento (from the body) (id, ibid. p.12. Grifo meu)

Essa experiência de pesquisa, cuja reflexão parte do próprio corpo, da própria


sensação, das afetividades, expressas por medos, tensões, excitação, alegria, desconforto, dor,
entre outros, levaram-me à compreensão de que o caminho de acesso e análise do meu campo
atravessava esses elementos. Esse atravessamento não é superficial, pincelado, ele é vigoroso
e potente para a construção do debate sobre parkour. Essa reflexão também é suscitada por
Díaz-Benítez (2010) em sua obra “Nas redes do sexo”, onde a autora, ao estudar a indústria
pornô brasileira a partir dos sets de filmagem dos filmes, dialoga com a teoria do embodiment
de Thomas Csordas e afirma que suas sensações, seja tesão, vergonha ou outra, eram
evidências de sua afetação, e esta, possibilitava seu engajamento no mundo investigado.
Não me tornei uma praticante de parkour, tendo somente treinado de fato, arriscado
alguns movimentos, em algumas oportunidades. Assim, não cheguei a ser iniciada ou a
realizar um tipo de “conversão moral e sensual” ao cosmos do parkour, tal qual Wacquant no
pugilismo analisado em sua obra Corpo e Alma. Aproximo aqui minha experiência da deste
autor, no sentido de um confronto, em certa medida, com meu próprio corpo. Voltar a
reflexão, também, pro meu corpo-presença de pesquisadora, de mulher, de não praticante de
parkour (ou de outra atividade física), e de estrangeira (enquanto no Porto), nada mais é do
que considerar a experiência enquanto um estar no mundo. O exercício de compreender essas
dimensões foi importante para toda a construção teórico-metodológica da pesquisa, desde as
59
escolhas e estratégias de investigação e acesso aos dados, até os conceitos, categorias e ideias-
chaves para o desenvolvimento do trabalho.
Como citei mais acima, observar me parecia ser mais fácil do que o participar. Ir aos
treinos, , observar os movimentos, caminhar entre os praticantes, conversar com eles, registrar
por meio de escrita, fotografia ou vídeo tinham seus percalços no sentido de adaptação ao
ambiente e às pessoas, mas certamente era mais tangível do que participar da prática de
movimentação do parkour. Assim, sentia-me muito mais inserida em uma dinâmica de
observação acompanhante (DÍAZ-BENÍTEZ, 2010) do que de uma relação concreta de
participação. Ainda que qualquer presença em dado campo constitua uma participação em
maior ou menor medida, entendo que o meu estreitamento de fato com os interlocutores
aconteceu de forma gradual, sendo fortalecida em muito por causa do meu auxílio com a
gravação de vídeos e fotos para os mesmos e, posteriormente, diante da minha necessidade de
mobilizar o meu corpo, em um grau diferente do até então colocado dentro daquela dinâmica.
Assim, movida pelas orientações da literatura exposta até aqui, bem como sobre
cartografia e a educação da atenção, busquei adequar também meu corpo enquanto “meio
técnico” de acesso à vivência investigada no campo. Vamos percorrer, agora, esse caminho e
refletir sobre os “obstáculos” os delineamentos com os quais nos confrontamos ao longo desse
percurso. Vamos explorar o trabalho de imaginação, os recursos teórico-metodológicos
utilizados para tal e apresentar formas de negociação da pesquisa que me auxiliaram no
processo de traçar e conduzir meu encontro com o mundo do parkour:

Registros fotográficos e videográficos dos treinos: Fazer uso da câmera fotográfica em


campo pode gerar uma série de circunstâncias e, para evitar situações de afastamento das
pessoas envolvidas na pesquisa, é necessário observar com muita cautela os limites e os
momentos oportunos para tal. As fotografias têm sido utilizadas, cada vez mais, como um
instrumento de análise profícuo nos trabalhos acadêmicos, seja como um intermédio técnico
para a recolha de dados, mas, também, como uma ferramenta importante de acesso à realidade
social, permitindo uma aproximação de outros tipos de linguagem para além da verbal
(FERRO, 2005). Em diversos contextos, a fotografia assume um papel importante não só
como meio de análise do social, mas também de construção do mesmo: não só exploramos
visualmente o mundo, também estamos no papel criativo da visualidade do mundo
(MARQUES, CAMPOS, 2017). No caso do parkour – e aqui destacamos também o grafite e
o pixo – o registro fotográfico tem função social de fazer durar um momento efêmero, de
60
provar para outros indivíduos e grupos a autoria do feito e, também como forma de construir
suas narrativas e estabelecer diálogos em espaços como a internet, a medida em que as fotos e
vídeos são dispostos nas plataformas digitais (CALDEIRA, 2012; FERRO, 2005).
Assim, estamos diante de uma realidade de articulação entre o espaço da “rua” e do
digital, em que a fotografia e o vídeo, especialmente dispostos na internet, compõem regimes
de visibilidade, de comunicação, de narrativa, de identidade, de representação e de memória
desses agentes sociais em questão (SIMÕES, CAMPOS, 2016), estar a par da importância da
visualidade e dos recursos tecnológicos utilizados no contexto do parkour foi de extrema
importância para minha pesquisa. Em praticamente todos os treinos de parkour são feitos
vídeos e fotos pelos praticantes, seja para postar em suas redes sociais, para guardar e servir
de avaliação, ou mesmo para registrar o momento de uma movimentação. Além disso,
fotografar a partir de um “pano de fundo sociológico” revela como as imagens podem ser
fabricadas e, por conseguinte, criar estereótipos espetacularizados da prática do parkour nos
meios de comunicação (FERRO, 2005).
Sendo assim, comecei a utilizar a câmera muito timidamente no início da pesquisa
exploratória, procurando observar a receptividade dos interlocutores com isso e tentando não
atrapalhar os treinos ou me situar em lugares que pudesse obstaculizar suas movimentações.
Registrar esses eventos, para meu próprio acervo de fotos e vídeos, sempre se mostrou uma
tática interessante para consultar posteriormente os movimentos realizados nos treinos,
facilitar o estabelecimento de uma linha temporal dos dias de prática de parkour e captar
elementos presentes no ambiente que se relacionam com tal dinâmica – sejam indivíduos
passantes de determinados lugares ou as coisas que compunham o espaço e eram escolhidos
pelos praticantes como participantes de sua movimentação.
Assim, buscando alargar a compreensão do cotidiano do parkour como forma de
potencializar a experiência das sensações com os elementos com os quais os praticantes
estavam em contato direto, também procurei fotografar em modo hiper aproximado alguns
materiais, como concreto, areia, terra, pedra, tijolos, entre outros – simultaneamente tateando-
os. Essa aproximação dos materiais a partir do tato e das lentes da câmera auxiliaram-se no
treino de uma certa sensibilidade para apreender a própria ideia de “coisa” enquanto agregado
de feixes vitais de Ingold (2012). Assim como o autor chama a atenção para a observação da
árvore nos seus detalhes constitutivos, em suas relações com microorganismos e animais e
suas reações com o vento, considerando, portanto, a árvore enquanto coisa e não objeto, por
este denotar um ente fechado, busquei, junto desses ensinamentos, alargar minha relação com
61
as coisas do mundo do parkour também nessa dimensão “micro”. Tatear, olhar detalhes,
registrar imagens e analisá-las posteriormente também foi me ajudando a compreender os
acontecimentos que ocorrem entre os materiais: pele, suor, água, borracha do tênis, concreto
rugoso, paredes pintadas, madeira, tijolo, azulejo, areia pura, terra com grama e outros
infinitos materiais que por uma limitação técnica minha talvez não constem na discussão
desse trabalho. Esse esforço foi importante no que tange à aproximação do próprio debate
acerca da agência das coisas no processo de produção do praticante do parkour, ponto que
discutiremos em outro capítulo.

Figura 3: Detalhe de textura de pedra e prego em uma


parede - Póvoa do Varzim

Fonte 3: fotografia da autora


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Figura 4: Detalhe textura de parede pintada no Skate Park, Maia, Porto

Fonte 4: fotografia da autora

Figura 5: Detalhes de grama e terra no Parque da Criança, Campina


Grande

Fonte 5: fotografia da autora

Aos poucos fui me sentindo cada vez mais segura para utilizar a câmera do
smartphone ou câmeras fotográficas, como também comecei a ser interpelada pelos
praticantes, que me entregavam suas câmeras e pediam para eu fotografar ou filmar algum
movimento. Às vezes fazia “ao meu jeito”, e outras, eles intervinham, mostrando-me
exatamente como me mover, a velocidade que eu deveria caminhar ou correr para
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acompanhar uma sequência de movimentações, como eu devia estender os braços e mãos para
apontar a câmera e os espaços mais interessantes para eu me posicionar e captar a cena de
forma mais clara. Assim, a partir da minha observação e com os praticantes sugerindo
melhores disposições para filmar ou fotografar, fui testando possibilidades com a câmera e
também com o meu corpo-olhar. Além de aprender gradualmente o timing certo para as fotos
e vídeos, passei a subir em paredes, bancos, a agachar-me, deitar no chão ou ficar em alguma
posição específica com mais frequência: passei a movimentar-me mais ativamente com intuito
de exploração do ambiente e de ângulos para os registros visuais (tanto pela câmera, como
pelo meu “olhar”). A início, eu tentava captar os movimentos de forma mais “fiel” ao que eu
estava vendo no momento, mas os cliques “errados” (seja por uma falha no timing, ou por não
conseguir acessar um determinado ângulo etc) mostraram-me outros aspectos que eu não
estava tão atenta no momento do registro.
Nesse sentido, o ato de fotografar/filmar mostrou-se de extrema valia no processo de
pesquisa, tanto no aspecto de análise do fenômeno estudado, quanto de aproximação com os
interlocutores, no sentido de uma certa efetivação da observação participante. Além disso,
pude desenvolver, com ajuda dos praticantes, um “olhar-movimento” com a câmera mais
acurado para o registro das imagens. O manuseio da câmera, ainda que de modo não-
profissional, definitivamente foi indispensável para estreitar os laços com as pessoas, com os
lugares, materiais, movimento e corpo.

Desenvolvimento de um “capital esportivo”: Wacquant (2002) discorre sobre a facilidade


que ele teve em seu campo de pesquisa com pugilistas em Chicago por dispor de um capital
inicial esportivo. Tendo experiência prévia com outras práticas esportivas competitivas, o
autor mobilizava um certo conhecimento que considera indispensável para sua imersão no
mundo das provas de boxe. Angel (2016) também cita sua familiaridade com vários esportes
antes de adentrar enquanto estudiosa no mundo do parkour, tornando-se, tal como Wacquant,
uma praticante da atividade analisada. Particularmente, eu não tinha experiência alguma com
nenhum tipo de esporte ou outra atividade física. Podia facilmente me considerar uma
sedentária. Não desdobrei uma análise sobre o parkour de forma a compreendê-lo a partir de
uma Sociologia ou Antropologia do Esporte, mas faço a alusão ao texto do nosso
antropólogo-pugilista, quando falo de um desenvolvimento de capital esportivo no tópico em
questão para facilitar a categorização desse tipo de conhecimento, mas que eu poderia
estender um pouco mais para a noção de de um capital “cinesiológico”, digamos assim. A
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cinesiologia estuda o movimento, observando como as forças atuam sobre o corpo humano e
como este se move a partir dessa dinâmica de forças. Evidentemente não trato aqui do
desenvolvimento de um saber e uma forma de expressar cientificamente os movimentos tal
como o fazem os profissionais da área (educadores físicos, fisioterapeutas, médicos etc). Mas
sim, de um tipo de conhecimento que comumente chamamos, em outras palavras, de
“consciência corporal”, termo frequentemente utilizado por praticantes de atividades físicas.
Pois bem, senti que me faltava minimamente essa consciência corporal, por não ter
experiência suficiente na prática de atividades físicas. Esse aspecto pode não ser
extremamente crucial caso a abordagem escolhida pelo pesquisador lhe permita acessar seus
objetivos sem fazer uso reflexivo dessa questão. Mas, para mim, foi um dos pontos que mais
propulsionaram os meus questionamentos e os meus experimentos no campo. Todavia,
ressalto que esse capital cinesiológico ou esse desenvolvido de uma consciência corporal
voltada para esse tipo de atividade física não é da mesma ordem – ou ao menos não tinha a
pretensão de ser - da operada pelos profissionais da educação física, estando muito mais
dentro de um espectro “amador”.
Iniciei minha pesquisa com parkour basicamente em busca de entender as
sociabilidades e usos dos espaços pelos praticantes dessa atividade, eixo pautado
especialmente na bibliografia da Antropologia Urbana. Senti, entretanto, a medida que me
aproximava mais da dinâmica do parkour, que aquele eixo não seria suficiente para dar conta
da complexidade que me saltava aos olhos, do meu próprio incômodo com a falta de
familiaridade, e do que, de alguma forma, os interlocutores me “apontavam” como um
conjunto de elementos capazes de descortinar um outro olhar sobre a problemática do
parkour. Senti a necessidade, para além da bagagem que vinha construindo na Antropologia
Urbana, de buscar referências nos estudos cujo diálogos fossem travados com a
Fenomenologia, especialmente em virtude dos fatores corpo e movimento, agora, ocuparem
minhas principais indagações diante do confronto empírico. Indagações estas que começavam
por essa aqui: o que exatamente eu vou perguntar sobre os aspectos ligados ao corpo e ao
movimento no parkour – uma prática que trata necessariamente de se movimentar?
Eu não sabia como tecer as perguntas. E absorver conhecimento sobre aqueles
elementos a partir de leituras, vídeos, fotografia e conversas não supria tanto o meu
“despreparo” em matéria de atividade física. Por um tempo, mesmo indo diversas vezes a
campo, especialmente no Porto, me senti frustrada porque ficava a sensação de que eu não
estava alcançando bem o parkour e seus praticantes. Nos treinos coletivos, a dinâmica verbal
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voltava-se evidentemente para considerações acerca dos movimentos, como também a piadas
e palavras de apoio esporádicas e alguns diálogos maiores nos momentos de intervalo. Entre
outros fatores que procurarei discutir ao longo do texto, num dado momento em que eu me
sentia “peixe fora d’água” - o leitor pode agora achar meio óbvio - tive o seguinte lampejo:
estou parada num campo em movimento. Preciso que me mover, é isso. Estar “parada” não
deixa de ser um tipo de movimentação, a depender do referencial. Compreender o contexto
das inércias no qual eu estava inserida era, portanto, um passo importante para me aproximar
do emaranhado do parkour.
Não me tornei uma traceuse, nem mesmo cheguei perto de uma praticante de parkour.
Mas comecei a arriscar algumas coisas e a me mobilizar em outros espaços a fim de
desenvolver o mínimo de consciência corporal. Além de participar, eventualmente, de alguns
momentos dos treinos de parkour, testando movimentos básicos, fiz aulas de defesa pessoal
com base no kung fu, ioga e frequentei academia para fazer musculação. Comecei até a
prestar mais atenção nos movimentos dos gatos que crio – indicação de um dos interlocutores:
“preste atenção no foco que seu gato tem antes de pegar um inseto, as pupilas, a posição do
corpo… veja se seus gatos não fazem o “tic tac” que nós fazemos nas paredes também, preste
atenção nisso e depois me diga”.
A partir de então, com as dores provenientes das atividades físicas, algumas pequenas
lesões decorrentes das minhas tentativas com o parkour, o aprendizado dos movimentos de
defesa pessoal e os pontos estratégicos de mobilização do corpo, noção de espaço, a atenção
na física das máquinas que eu utilizava para malhar e as movimentações até mesmo dos meus
gatos, uma enxurrada de perguntas começou a surgir. Agora eu não sabia o que não perguntar.
Voltei para as teorias e, aos poucos, fui construindo e filtrando os questionamentos oportunos
para minha pesquisa, buscando dialogar com o aparato teórico escolhido para o trabalho.
Para incrementar esse “capital esportivo” também precisei conhecer bem uma série de
vídeos, filmes e debates relacionados ao campo simbólico do parkour, tanto para ficar a par
da temática que eu propus estudar, mas também para tornar as conversas mais fluidas no
campo pesquisado. Por ser uma outsider no mundo do parkour e no das atividades físicas e
esportivas de modo geral, temi ser, de alguma forma, repelida ou considerada “inútil” ou
desinteressante para os fins dos treinos de parkour. Muitas vezes fui questionada se eu
pretendia fazer um filme ou algo do gênero, sendo um verdadeiro desafio explicar meu papel
de cientista social naquele meio e ser aceita no meio.
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Vulnerabilidade feminina em um ambiente masculino: Assim como eu podia ser
considerada uma outsider no mundo do parkour por chegar ao campo sem capital esportivo
prévio, nem interesse propriamente dito em praticar a atividade, talvez a marca mais
desafiadora, para mim, de ser negociada junto aos grupos pesquisados foi a do meu lugar
enquanto mulher, dentro de um espaço predominantemente masculino (durante toda minha
pesquisa, tive contato com duas jovens mulheres, muito ocasional e rapidamente). O tema da
vulnerabilidade feminina em campo nem sempre compõe as agendas de debate nas Ciências
Sociais, ponto o qual acredito ser importante ressaltar neste trabalho, pois a reflexão sobre
esse desconforto, a partir do meu próprio corpo, foi também um catalisador relevante para a
escolha por um viés teórico-metodológico que privilegia as dinâmicas de experiência – minha
e dos interlocutores. Apesar de descrever aqui a minha experiência, atrelada evidentemente a
minha subjetividade, a discussão trava diálogo com as experiências narradas por outras
pesquisadoras que problematizam a questão da sua corporeidade em campo (BONETTI e
FLEISCHER, 2007; LIMA, 2016; MORENO, 1996; NASCIMENTO, 2019; STRATHERN,
2014), os desafios de um fazer científico a partir de nossa inserção não somente em contextos
de pesquisa marcados pela presença masculina, mas também diante de um padrão teórico
socioantropológico eminentemente androcêntrico.
A partir de uma pesquisa encarnada, não pretendo criar uma visão unilateral, mas sim,
caleidoscópica (NASCIMENTO, 2019), que possa apontar questões nas entrelinhas e criar
tencionamentos acerca de uma perspectiva feminista sobre a praxis de pesquisa em
determinados contextos de dominação masculina. Trata-se, ao invés de ser tomada pelos
incômodos advindos da sensação de vulnerabilidade a ponto de afastar-me dessa discussão (e
mesmo do campo), aceitar os desafios e enxergar as potencialidades derivados daquela
situação. Ser uma mulher faz diferença tanto no ambiente acadêmico quanto fora dele
(BJERÉN, 2017) e esse fato e seus percalços precisam ser minimamente registrados na
discussão sobre a construção dessa investigação, uma vez que transformam significativamente
a ideia de uma suposta ciência objetiva e sem gênero (id, ibid.).
O início da minha pesquisa apresentou vários desafios no sentido de traçar os
caminhos do trabalho, pensar e testar metodologias, apropriar-me de conceitos nativos, mover
o meu próprio corpo, como citei, entre outros. Nenhum destes, entretanto, se mostrou mais
laborioso do que empreender uma reflexão sobre a minha prática encarnada enquanto uma
mulher pesquisadora, com a qual, por um longo período, precisei negociar minha presença e
minha sexualidade com os agentes sociais de um campo majoritariamente masculino. Na
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quase totalidade das minhas idas a campo, seja nos treinos coletivos ou individuais dos
praticantes de parkour, eu fui a única mulher presente. Algumas situações foram me
mostrando, aos poucos, que minha presença, principalmente marcada pelo meu gênero,
poderia me impor alguns obstáculos a serem ultrapassados no que tange às técnicas mais
prosaicas da observação-participante.
De forma meio fascinada, no início, com uma pesquisa nova, uma prática
extremamente interessante como o parkour e cheia de dúvidas a serem exploradas, tendi a
superestimar meu campo e as pessoas que ali estavam inseridas. E como precisei fazer a
aproximação com os interlocutores sem um intermediador inicial, insisti e acreditei poder
realizar sem muitas dificuldades o trabalho de campo de tipo “lobo solitário” (id.ibid.). É
evidente que choques de realidade não são incomuns aos pesquisadores, mas as questões
acabam tornando-se mais complexas quando envolvem aspectos ligados ao seu próprio bem-
estar e segurança. Nesse sentido, fui confrontada por um considerável par de vezes com
questionamentos incisivos ou abordagens de cunho sexual e afetivo, em meio a entrevistas
feitas pessoalmente ou mesmo era interpelada pelas minhas redes sociais. Comecei a me
questionar se eu estava fazendo algo de “errado”, mesmo tomando todas as precauções que eu
já conhecia da minha experiência em outros contextos até então, além das dicas de outros
trabalhos que havia lido. Nada como o “ao vivo”, entretanto.
Diante das situações vividas nas quais me senti constrangida, e, em um caso ou outro,
até mesmo insegura, precisei me atentar mais ainda em relação aos encontros e locais para
entrevistas. Também decidi chegar alguns minutos depois do horário marcado dos treinos, a
fim de não ficar sozinha no local ou acompanhada de uma única pessoa. Em relação às
abordagens nas redes sociais, assim como nas presenciais, busquei sempre na medida do
possível, deixar clara minhas intenções com aquele tipo de interação. Passei, inclusive, a citar
eventualmente a existência do meu companheiro à época da pesquisa, com o objetivo de
afastar essas investidas. Podem parecer circunstâncias fáceis de lidar, mas havia todo um
contexto muito delicado de aproximação sendo criado ali, e eu procurava sempre voltar para a
compreensão de que meu ofício de cientista social iria envolver questões dessa ordem e eu
precisava aprender, não sem negar minhas afetações, a manejar, refletir e potencializar essas
experiências.
Existem mulheres praticando parkour, mas infelizmente não tive contato com elas
durante os anos da minha pesquisa, nos dois campos analisados, exceto por algumas
pouquíssimas vezes, com uma jovem praticante de 15 anos, no Porto e a namorada de um
68
traceur, em Campina Grande. Aquela se mostrava sempre muito introspectiva durante os
poucos treinos que pude encontrá-la e não interagia com os meninos com grande frequência.
Já aquela última, ao acompanhar seu namorado em um treino, manteve-se afastada para fazer
slackline, então resolvi chamá-la para treinar comigo e seu companheiro também e ela já
mostrava conhecer alguns movimentos. Quando a questionei se ela tinha interesse em fazer
parkour, a mesma me respondeu que sentia receio de chamar atenção, de fazer algo
“vergonhoso” que pudesse ser alvo de piadas, por isso preferia o slackline, o qual ficava mais
restrito a um determinado espaço, podendo ficar a sós com o elástico, sem interagir muito
com o restante do lugar e das pessoas.
Essa descrição sobre a sensação de vergonha relatada pela interlocutora acima
coincidiu com a minha própria experiência. Eu sentia vergonha de chamar atenção, de fazer
algo muito constrangedor. Ocupar um espaço de forma “alargada”, isto é, deslocando-me com
frequência por entre suas partes, movimentando meu corpo de diversas maneiras, não me
deixava de modo algum confortável. Além disso, o fato de não haver outras mulheres
treinando junto aos meninos também me causou, durante um considerável tempo da pesquisa,
uma certa resistência à ideia de participar dos treinos. Gostaria de pontuar especialmente essa
ideia de “chamar atenção”: ser uma mulher num campo onde a representatividade feminina é
extremamente reduzida pode provocar esse tipo de sensação e até uma repulsa em participar
de uma atividade que mobiliza o corpo de forma pronunciada, ainda mais, quando essa
atividade é principalmente realizada em espaços públicos – lugar historicamente negado às
mulheres (ROSALDO, 1974).
Destaco que tais situações que experienciei foram pontuais e seria injusto fazer parecer
que essa dinâmica é algo próprio do campo que pesquisei. Na verdade, esses relatos nada mais
são do que o reflexo de uma problemática que se estende por todas as dimensões do social.
Trago esse debate, em diálogo com outras discussões feitas também por mulheres
antropólogas, no sentido de reforçar a importância de se pensar acerca da pesquisa científica
supostamente objetiva, sem gênero e sem corpo.
Foi preciso passar por essas circunstâncias para ir traçando estratégias de comunicação
e encontro com as pessoas, antevendo cenários e criando alguns meios de autoproteção.
Todavia, isso não era suficiente para evitar uma totalidade de situações, pois não existe
manual algum que nos torne completamente ilesos aos imprevistos. Também havia o receio de
colocar em risco a própria pesquisa, caso alguma atitude minha agisse no sentido de repelir
algum dos interlocutores e o impacto que isso poderia ter dentro da comunidade inteira. Era
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preciso um equilíbrio para enfrentar o caminho sem cair no desânimo que às vezes me
ameaçou. Ao saber manejar minimamente esses desafios, desenvolvendo “jogos de cintura”, o
caminho passou a ser muito mais confortável para enfrentar as “saias justas” (BONETTI e
FLEISCHER, 2007).

Mídias sociais e visões políticas: A teoria dos grafos desenvolvida em 1736 pelo matemático
Leonhard Euler busca estudar as conexões entre elementos de um mesmo conjunto, sendo tais
grafos representados por nós, interligados por arestas, formando, assim, as redes. A teoria de
Euler influenciou diversos outros estudos a desenvolverem modelos de análise baseados na
compreensão das estruturas das relações, de modo que a Sociologia também recebeu esse
impacto, especialmente nas décadas de 1960 e 1970 com o paradigma da Análise Estrutural
(RECUERO, 2004). As redes sociais, assim, apesar de popularizadas na última década
enquanto sinônimo de “mídias sociais” - os sites ou aplicativos de interação social na internet
- não constituem uma ideia formada na contemporaneidade, sendo, portanto, nada mais do
que uma forma de análise com ênfase na interação, seja no mundo “online” ou “offline”.
Tratando-se, pois, de interação, e este tipo constituindo um dos principais aspectos da
realidade social, faz com que a materialidade digital seja parte, também, dos emaranhados do
parkour.
É inegável o efeito das mídias sociais e aplicativos na internet na dinâmica social
como um todo, especialmente as plataformas como youtube, facebook, instagram, twitter e
whatsapp que têm um alcance social significativo. No caso do parkour, prática que é
difundida principalmente pela internet, torna-se crucial desenvolver uma familiaridade com
tais sites e aplicativos como fonte e espaço de pesquisa, dado que uma relevante parte da
constituição e fortalecimento das interações entre praticantes de parkour desdobram-se nessas
plataformas. A minha aproximação dos interlocutores foi primordialmente facilitada por essas
mídias digitais, especialmente o facebook e instagram. Como mencionado, eu não tive uma
pessoa que pudesse mediar os primeiros contatos, de forma que eu selecionei alguns perfis e
enviei mensagem privada, na qual eu me apresentava como estudante que estava
desenvolvendo uma pesquisa sobre parkour, dizia que havia visto o perfil do praticante ao
realizar buscas sobre o assunto e perguntava se havia a possibilidade de conversar um pouco
sobre o tema. A maioria das mensagens foi respondida e, após a aproximação ser permitida,
eu adicionava o interlocutor, à convite meu ou dele, à rede utilizada para o contato, seja
facebook ou instagram. Optei por não criar uma rede específica para essa interação, pois senti
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que poderia soar como “fake” - um perfil falso - ou algo do gênero. A medida que fui
adicionando os praticantes, criei uma rede de “amigos em comum”, o que acredito que
também foi tornando mais a minha abordagem mais “confiável” quando eu entrava em
contato com novos praticantes.
É preciso ressaltar, em meio a essa dinâmica atravessada e atravessante pelos
desdobramentos do digital, que todo estudo é feito em um tempo e um lugar. Essa pesquisa,
tendo sido realizada entre os anos de 2016 e 2020, esteve situada num período de contexto
político muito acirrado, envolvendo desde o golpe de estado que resultou no impeachment da
Presidente Dilma Rousseff até a eleição e mandato do Presidente Jair Bolsonaro e sua atuação
frente a pandemia do Covid-19. Esse contexto precisou ser considerado em alguma medida
para não oferecer óbices à fluidez do trabalho, especialmente em razão das redes sociais
digitais serem, atualmente, os principais canais de opinião e visibilização da nossa identidade
política e, também, os principais meios de contato com os interlocutores.
Diante de um campo heterogêneo de praticantes de parkour, especialmente homens,
eventualmente me deparei com visões políticas divergentes da minha, seja em relação às
gestões presidenciais, seja sobre temas relacionados a gênero, compartilhadas em suas mídias
sociais. Percebi, entretanto, que compartilhar conteúdos nas minhas mídias que indicassem o
meu posicionamento diante desses temas podia oferecer uma certa antipatia inicial a alguns
interlocutores, o que me causou algumas poucas, mas significativas, exclusões, mesmo eu
nunca tendo falado sobre tais assuntos nos meus primeiros contatos. Optei, assim, evitar uma
divulgação muito explícita sobre minha visões políticas nas mídias sociais a fim de não gerar
possíveis resistências quando das oportunidades iniciais de aproximação. De toda forma, ao
longo da minha relação com os interlocutores, não escondi minhas considerações sobre temas
políticos, especialmente se eu era indagada sobre. Busquei, ao máximo, tentar estabelecer um
diálogo ameno e aberto, inclusive como estratégia de compreensão da diversidade de lugares
sociais experienciados pelos agentes e potencialmente reverberados na dinâmica de suas
vivências com o parkour.

***

Apresentadas essas notas sobre os movimentos da pesquisa – tentativas de


compreensão e adequação da teoria e da metodologia para o parkour, vamos seguindo a tatear
os materiais, a arranhar pele, sentir dores, a respiração ofegante. Vamos cair, levantar, desistir,
71
continuar… vamos seguindo pelos emaranhados a fim de captar algumas das tantas linhas que
constituem esse novelo e saber quais os caminhos podemos conhecer sobre a produção do
traceur: processos de aprendizagem, relação com o ambiente, materiais, texturas, trajetórias e
experiências de vida de indivíduos em realidades sociais diferentes nas cidades de Campina
Grande-PB e Porto-Portugal. Seguindo por essas vias, vamos estar atentos, também, para as
dinâmicas de aprendizado e vivências que nos revelam aspectos dos processos córporeos e
afetivo que constituem o emaranhado do parkour. São muitas linhas – muitos movimentos de
salto e ultrapassagem: arrisquemos alguns, a começar por uma compreensão geral do debate
em torno do corpo, presente no próximo capítulo.
72
CAPÍTULO 2 – PERCURSOS TEÓRICOS SOBRE O CORPO

Neste capítulo, busco delinear um certo panorama das Ciências Sociais, visando situar
o debate teórico sobre o corpo desde os autores clássicos até os contemporâneos. Ao final,
proponho um deslocamento do foco que é dado ao corpo até então para pensarmos o tema
deste trabalho, partindo de uma abordagem fenomenológica até a contribuição de uma análise
crítica ao representacionismo e à perspectiva cartesiana da dicotomia entre “corpo x mente”,
norteada pela teoria de Tim Ingold (2018).

2.1 O debate sobre o corpo no contexto social e institucional da América Latina

O resgate do corpo enquanto objeto de estudo, especialmente voltado a uma


abordagem preocupada em extrapolar as explicações reducionistas ligadas à biologia, alargou-
se por entre as mais diversas áreas, como a antropologia, psicologia, filosofia, história,
estética, linguística, semiótica, economia, ciência política, etc (FERREIRA, 2013). Essa
virada surge inserido em uma dinâmica de ordem política, animada especialmente pelos
movimentos sociais a partir da década de 1960 (LeBRETON 2017; FOUCAULT 2013). Os
protestos dos corpos precarizados do proletariado a respeito das condições de trabalho e
também as reivindicações impulsionadas pelos movimentos feministas, sobretudo nos anos de
1980, apoiadas no apelo pela liberação sexual e reprodutiva forneceram um contexto pulsante
para as reflexões científicas em torno do corpo (LeBRETON, 2017). Entretanto, vale salientar
a questão em torno do corpo tornou-se mais do que um tema de ordem social, mas sim, um
fato social acadêmico (ALMEIDA, 2004).
Se olharmos especificamente para o cenário latino-americano, veremos que a
problemática em torno do corpo é potencializada em conjunto aos movimentos sociais, sendo
notadamente refletida, anos depois, na profusão do debate acadêmico sobre corpo, afeto e
emoção nos eventos científicos ligados às Ciências Sociais (RAMOS, 2011). Apesar da forte
influência dos movimentos sociais na construção do debate em torno do corpo nas Ciências
Sociais, é necessário pontuar que essa preocupação não se restringe à efervescência daquelas
reivindicações, mas sim pela onda de mudanças nos significados sociais em torno do corpo,
estimulados pelas lutas coletivas (SHILLING, 2013). e por um esforço pluridisciplinar em
73
constituir o corpo “enquanto objeto científico heteróclito na sua multidimensionalidade e
polissemia” (FERREIRA, 2013. p.496)
No que tange ao contexto social do Brasil, notadamente ao fim da década de 1970, é
importante ressaltar o papel do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental, o qual, ao
denunciar os abusos nas instituições psiquiátricas e a precarização do trabalho, impulsiona o
movimento pela Luta Antimanicomial (AMARANTE, 1995). As disputas em torno da
institucionalização da saúde mental contribuem para o confronto a um modelo tecnológico de
poder cuja função era a de normalizar e disciplinar os corpos desviantes dos parâmetros da
Civilização Moderna, integrando os serviços especializados e a sociedade civil em torno da
luta por melhores condições de trabalho, de tratamento e acolhimento dos indivíduos. Esses
debates no Brasil não surgem diretamente vinculados aos trabalhos desenvolvidos por
Foucault, mas posteriormente encontram respaldo em sua obra, incrementando o escopo do
discurso da luta antimanicomial.
Ao observar a produção científica e a orientação dos debates nos eventos nacionais e
internacionais, com foco especialmente nos ocorridos na América Latina, notadamente no
Congresso do ALAS, Ramos (2011) destaca os principais níveis analíticos em relação ao
estudo da temática do corpo como sendo: o corpo e a dimensão da experiência subjetiva; o
corpo e a dimensão da interação; o corpo e a dimensão das práticas; o corpo e a dimensão
institucional; o corpo e a dimensão das representações; o corpo e os vínculos afetivos. Mesmo
diante de um esforço em distinguir uma perspectiva latinoamericana, a autora pontua que a
fonte teórica da teoria filosófica, social e sociológica encontra-se centrada nos autores da
Europa e Estados Unidos. A nível regional, destacam-se as temáticas voltadas, de um lado,
para o corpo, identidade e alteridade e, de outro, para as questões sobre corpo, poder e
conflito.
Não se trata de afirmar, portanto, que existe uma Sociologia do Corpo tributária da
América Latina, mas sim, um espaço de debate a partir da troca de pesquisadores e estudiosos
das Ciências Humanas, cujas influências inevitavelmente perpassam pelas contribuições de
matriz inglesa e francesa (RAMOS, 2011), mas que também elaboram investigações
dedicadas a compreender questões regionais, desenvolvendo agendas e projetos
impulsionadores da institucionalização do corpo enquanto matéria das Ciências Sociais.
Nesse contexto, a discussão em torno do corpo emerge principalmente diante do
questionamento sociológico sobre a distinção entre natureza e sociedade, fortemente marcado
pelo legado cartesiano do dualismo mente/corpo (FERREIRA, 2013). Trazer a temática para
74
um espaço de debate que oferecesse outras explicações além dos parâmetros preconizados
pelos discursos médicos e biologizantes acerca do corpo também fez parte do projeto das
Ciências Sociais em institucionalizar um objeto de investigação enquanto fruto de uma
conformação sociocultural. Entretanto, por muito tempo, o corpo ocupou um estatuto dual na
sociologia, estando, simultaneamente, presente e ausente: presente no sentido de ser um
animador da imaginação sociológica e ausente por falta de abordagens explícitas sobre ele
(SHILLING, 2013). Apesar de inúmeras teorias e investigações estarem preocupadas com a
dimensão da incorporação humana, elas raramente desenvolvem uma aproximação direta com
o corpo, o qual aparece de forma subteorizada (idem, ibidem) ou como algo dado.
LeBreton (2017) também aponta para esse estado do corpo na sociologia, afirmando
que houve três fases correspondentes a três formas de mirada sobre a temática do corpo. A
primeira fase desse processo relaciona-se com o próprio início das ciências sociais, figurado
pelos nomes clássicos desta disciplina, a qual não negava a dimensão corporal dos processos
sociohistóricos, mas também não detinha um foco específico em analisá-los. A segunda fase é
o que LeBreton chamada de “Sociologia em pontilhado”, momento marcado pelas
contribuições de nomes como Hertz, Simmel, Mauss, Elias, bem como dos estudos
etnológicos; em todos eles houve um incremento no esforço de análise do corpo, ainda que
sem sistematizar os elementos referentes ao mesmo. Por fim, a terceira fase vai ao encontro
do nosso presente, ainda em delineamento, mas que se propõe a construir um campo cujo
centro é especificamente a corporeidade. Uma análise sobre a produção relacionada aponta
que ainda parece haver um grande e desafiador caminho para explorar não só para uma
sociologia e uma antropologia do corpo propriamente dita, mas para tratar da cultura a partir
de uma perspectiva em que o corpo seja analisado enquanto elemento constitutivo e
constituído pela cultura, mas também repensado enquanto própria categoria de análise. Vamos
caminhar um pouco pela trajetória desse elemento nas Ciências Sociais a fim de percebermos
as nuances que o mesmo foi tomando ao longo de algumas perspectivas.

2.2 O lugar do corpo nos clássicos

A institucionalização do corpo num campo de debate sociológico é relativamente


recente, mas é possível percebermos os embriões desse debate já presentes nas obras
clássicas. Apesar dos “pais fundadores” da Sociologia não centrarem seus debates em torno
75
do corpo, estando muito mais dedicados a pensar o ator humano em termos de escolha
racional dos fins (Turner, 1991, apud Shilling, 2013), eles forneceram algumas “pistas” que
nos levam a entender os fundamentos da disciplina em questão.
Scribano (2013) afirma que é possível encontrar sinais de uma produção sociológica
acerca dos corpos e das emoções na obra de Karl Marx, aludindo para um certo fundamento
da temática neste autor. Para isso, ele analisa sobretudo os Manuscritos de 44, texto no qual
acredita ser possível evidenciar explicitamente as provas dessa discussão. Três eixos
transversais são visualizados por Scribano capazes de elucidar as pistas de uma sociologia do
corpo e das emoções na referida obra de Marx. O primeiro eixo diz respeito ao corpo, em suas
pluralidades, enquanto instância do biológico/genético que se desenvolve em relação com a
práxis, sendo, portanto, os sentidos, meios de apropriação e reapropriação do mundo. O
segundo eixo é centrado em perceber como o capitalismo interfere nos sentidos e nas
atividades humanas e quais os processos suscitados a partir da relação de expropriação da
vida. Por fim, o terceiro eixo revela a elaboração de um imaginário social como dispositivo
que age em cima do gozo, do desfrute e da paixão, e a partir do qual é possível entender
melhor os processos de aceitação, naturalização e incorporação de uma moral destinada a um
certo ordenamento.
A teoria de Marx fornece apontamentos importantes para uma sociologia dos corpos e
emoções, sendo, especialmente, uma via de crítica voltada para o social. Essa crítica é
centrada em perceber como as relações entre impressões, percepções, sensações e emoções
são estabelecidas e mobilizadas no sistema capitalista (ibid). Nessa abordagem oferecida por
Marx, é possível destacar que “o corpo foi simultaneamente uma entidade social e biológica
que estava em estado constante de tornar-se, e possuía potencialidades transcendentes capazes
de serem plenamente realizadas apenas dentro de um futuro Estado Comunista” (SHILLING,
2013. Tradução minha)
Já em Durkheim, encontramos o elemento da sensação como a premissa da qual a
ciência deriva: é a partir desse olhar que o autor constrói sua obra localizando o debate sobre
as sensações em um importante espaço no qual concentra um dos seus esforços analíticos. Na
sua visão, a sociedade estava apoiada em três importantes pilares: a disciplina, a emoção e a
felicidade (CHAHBENDERIAN 2013). Assim, os sentimentos são equivalentes às sensações,
constituindo-se como o meio primordial de tomada de consciência do indivíduo sobre si
mesmo e sobre sua história, colaborando, assim, não só para o entendimento pessoal, mas
também para a consciência comum. As paixões operam como uma força intrínseca e podem
76
interferir no processo de internalização da coerção social, sendo necessário, portanto, um
disciplinamento moral que exerça uma espécie de “docilização” das paixões (ibid).
A teoria de Durkheim, enfim, deságua no debate sobre corpo, de um lado, pelo espaço
ocupado em sua teoria sobre a sensação como instância primeira para a realização dos fatos
sociais e, por outro lado, também, pelo modo como o autor encara a sociedade enquanto corpo
social. Dessa forma, o Estado, ocupando o lugar de “cérebro” desse corpo, deve proceder de
modo a internalizar a disciplina nos corpos que conformam essa sociedade “regulando,
moderando e determinando os elementos primários como as sensações, os instintos, os
reflexos e os impulsos vitais, que expressam um estado de espírito ou de alma fazendo-os
permeáveis aos mandatos morais correspondentes” (ibid, p. 78. tradução minha). Durkheim
não se debruça propriamente em um esforço de compreender o corpo, muito em virtude do
seu projeto de construção da disciplina sociológica, o qual preocupava-se em delimitar uma
área do conhecimento distinta das ciências biológicas e psicológicas, entretanto, vale
considerar que houve sim, um esforço em analisar como os fatos sociais foram incorporados
das disposições corporais dos indivíduos20 (SHILLING, 2013).
Ainda resgatando indícios sobre a temática do corpo nas obras clássicas das ciências
sociais, destacamos, também, o lugar de Georg Simmel. Este autor, muito influenciado pela
filosofia alemã, especialmente no que tange à relação indivíduo-sociedade, delineia suas
teorias voltadas para a compreensão da percepção individual frente à profusão de objetos
culturais e às mudanças na produção do espaço próprias da Modernidade (DETTANO, 2013).
Em duas de suas obras podemos perceber o tom simmeliano a respeito do corpo e da emoção,
são elas: “As grandes metrópoles e a vida do espírito” e “A aventura”. Enquanto aquela traz
para o centro da discussão a grande cidade, a qual, por sua vez, reflete uma emocionalidade e
uma condição para o corpo, no texto “A aventura”, Simmel delineia uma ideia de
emocionalidade assinalada pela “espontaneidade e pelas vivências entregues ao acaso”,
marcadas principalmente pelas sociabilidades, das mais cotidianas às mais extraordinárias
(ibid).
A relação que a obra de Simmel toma com o corpo e com as emoções pode ser
vislumbrada no tipo de emocionalidade específica, própria dos grandes centros urbanos, na
sua relação com o dinheiro, consumo, formas de habitar, viver e relacionar-se – com os
sujeitos e com os objetos -, e todos estes, por sua vez, vão montando e atualizando o escopo
de sensibilidades presentes nas grandes urbes e provocando efeitos nocivos sobre o caráter
20 Shilling (2013) exemplifica os estudos de Durkheim sobre os casos do uso de tatuagens pelas sociedades
totêmicas enquanto expressão da identidade e coletividade desses grupos.
77
corporal das pessoas (SHILLING, 2013). É dessa abordagem que conhecemos o “caráter
blasé” - um tipo de subjetivação de distanciamento necessário para o indivíduo moderno
sobreviver diante da gama de estímulos ao qual é frequentemente confrontado. Ainda, Simmel
não deixa de considerar os momentos de ruptura que, mesmo influenciados pela lógica do
consumo, estão inseridos em uma busca por relações de afeto ligadas, de alguma forma, às
qualidades mais pessoais dos sujeitos (DETTANO, 2013).
Seguindo ainda os clássicos da Sociologia, Weber também fornece elementos
indicadores de uma certa preocupação com a dimensão corporal, especialmente voltada para a
racionalização do corpo inserido na ordem burocrática. Em “A ética protestante e o espírito do
capitalismo”, Weber destaca os desdobramentos de caráter psicológico envolvidos no
processo do capitalismo moderno, reverberando em uma disposição voluntária do corpo à
austera rotina de trabalho exigida pela lógica da acumulação de capital (SHILLING, 2013).
Feita essa breve apresentação das contribuições dos clássicos em torno de uma
disciplina sobre o corpo, Turner (1991, apud Shilling, 2013) aponta algumas questões
interessantes para pensarmos os porquês desses autores não terem voltado suas preocupações
diretamente sobre o corpo. A primeira delas diz respeito aos fundamentos de um projeto
disciplinar, nos quais as problematizações mais presentes procuravam responder às questões
em torno das transformações políticas, econômicas, urbanas e sociais ocorridas na Europa no
fim do século XVIII e começo do século XIX. Em seguida, outra razão tem a ver com a
priorização da sociedade sobre o indivíduo, considerando o corpo enquanto um fenômeno
“natural”, não passível de uma análise sociológica. A terceira gira em torno de uma
preocupação, especialmente representada pela teoria weberiana, voltada para a mente e a
questão da agência, da ação social diretamente relacionada com a ação racional, enquanto
processo intelectual, deixando o corpo à revelia da discussão. A quarta e última, está baseada
no fato de que esses projetos sociológicos não levaram em conta uma abordagem
antropológica do corpo enquanto sistema de classificação, privilegiando muito mais a
dimensão da mente neste empreendimento.
Shilling (2013) acrescenta às observações feitas por Turner, mais duas razões que
servem para uma análise sobre os fundamentos de uma sociologia clássica despreocupada
com a questão do corpo propriamente dita. De um lado, temos um conjunto de abordagens
metodológicas de ordem binária que distinguia mente e corpo. De outro, há um componente
biográfico nas sociologias desenvolvidas pelos “pais fundadores”: homens que não
vivenciavam, à época, os perigos corporais ligados ao ser mulher. Shilling destaca, ainda, que
78
essa observação não tem a pretensão de reduzir o conhecimento à experiência corporal, mas
afirma ser preciso reconhecer a relação existente entre os mesmos.
É importante ressaltar, ainda, o papel que a Antropologia teve, desde a sua constituição
enquanto disciplina – e influenciada inicialmente pelo darwinismo - em trazer o corpo para o
centro do debate sobre alteridade, pois, é concretamente a partir daquele que podemos
iluminar a questão da diferença; além disso, é no contexto Ocidental, fortemente marcado
pelas distinções entre natureza/cultura, corpo/mente, que a Antropologia galga seus esforços
analíticos em torno do “outro” (FERREIRA, 2013). Mas aqui, assim como aconteceu na
Sociologia, o corpo também ocupava um espaço secundário nas pesquisas de cunho teórico e
empírico. Aos poucos, o corpo foi ocupando um espaço de maior proeminência nas Ciências
Sociais, inclusive em vias de constituição de uma área autônoma e especializada da
Sociologia (idem, ibidem).

2.3 O corpo em perspectiva

É sobretudo a partir de 1980 que o debate sobre o corpo nas Ciências Sociais começou
a procurar preencher as lacunas de algumas questões deixadas pelos sociólogos clássicos,
buscando ampliar as raízes em um campo em vias de desenvolvimento. Há, nesse contexto,
uma mudança do paradigma naturalista - representado principalmente pela sociobiologia e
também por algumas correntes iniciais do feminismo - para o paradigma construtivista, o qual
encara o corpo como um resultado de uma série de processos socioculturais (SHILLING,
2013). Assim, foi iniciada uma série de trabalhos cujo esforço se concentrou em trazer o corpo
para o centro de discussões envolvidas nas questões mais “tradicionais” das Ciências Sociais,
servindo para alargar os horizontes teórico-metodológicos. Não só o empenho em torno das
demandas teóricas foi empreendido, mas também investigações de caráter empírico foram
importantes para incrementar e inspirar novos estudos sobre a temática. Podemos destacar
algumas relevantes produções na área representadas por nomes como Turner, O’Neill, Freund,
Frank e as publicações organizadas por Feher, Nadaff e Tazi e também por Featherstone et al
(ibid). Destaca-se, ainda, o renome da revista Body and Society, iniciada por Turner e
Featherstone, onde um levantamento acerca da temática do corpo demonstra que não houve
uma grande diferença na constituição das temáticas relacionadas ao corpo entre a sociologia e
a antropologia, à exceção de uma lacuna em torno dos trabalhos etnográficos e comparativos
(ALMEIDA, 2004).
79
Voltando para o contexto sociohistórico que aludimos no início da discussão, Shilling
(2013) aponta que diferentes panoramas históricos trazem o corpo enquanto problema social,
relacionando-se, portanto, com a sua emergência enquanto problema sociológico, mas lembra
também ser uma visão reducionista acreditar nessa explicação de forma isolada. Objeto em
disputa nos mais diversos contextos sociais, o corpo foi delineado para atender padrões
correspondentes a determinados discursos e políticas voltados para questões étnicas, raciais,
médicas e morais. Desde as grandes guerras até os movimentos identitários mais recentes, o
significado social do corpo foi e é alvo de uma série de mudanças. Especialmente no contexto
em que vivemos, o desafio em torno dessa temática perdura, pois “o corpo é um terreno
privilegiado das disputas em torno quer de novas identidades pessoais, quer da preservação de
identidades históricas, da assunção de híbridos culturais ou das recontextualizações locais de
tendências globais” (ALMEIDA, 2004). Assim, observar essa chave das transformações
destes significados sociais em consonância com a história é muito importante para
acompanharmos e compreendermos os desdobramentos e implicações em torno da temática,
especialmente no que tange ao aumento da atenção das Ciências Sociais sobre o corpo.
As contribuições do movimento feminista, principalmente o da segunda onda, os
debates em torno das alterações demográficas, do envelhecimento, da ascensão do consumo
fomentada pela lógica capitalista instigaram o próprio tensionamento sobre o significado do
ser e ter um corpo. É inegável, sobretudo, os subsídios teóricos fornecidos pelos estudos
feministas para a problematização do corpo, especialmente devido aos questionamentos de
ordem ontológica sobre a diferença sexual (SHILLING, 2013).
Adicionais aos estudos feministas, outras importantes experiências auxiliaram no
incremento da discussão sobre o corpo, a exemplo das negociações em torno da valorização
do corpo jovem, magro e sexualizado (ibid). Ferreira (2009) também aponta a questão do
corpo na sociologia da juventude, argumentando a favor de uma encarnação da área, diante
da existência de normatividades que definem a figura do jovem, refletidas especialmente a
nível do corpo. A cultura de consumo também trouxe a tona as questões relacionadas à saúde,
dietas, estilo de vida fitness, vestuário enquanto expressão da personalidade, racionalização e
disciplinamento do corpo, entre outras. Ainda, Shilling (2013) afirma que, em virtude da
expansão tecnológica e dos avanços médicos, o corpo é frequentemente encarado enquanto
“máquina”, a qual pode ser controlada, remodelada, treinada, aprimorada. Esse controle sobre
o corpo, operado a partir de diversas instâncias, mesclado com os mais diferentes aparatos
materiais, discursivos e práticos, nos levam, cada vez mais, a tensionar os limites ocupados,
80
constrangidos ou extrapolados pelos nossos corpos. Saber o que de fato o corpo é talvez não
seja o melhor ponto de partida para desenvolvermos uma teoria focada na questão, que por
sua natureza extremamente complexa, exija no esforço sociológico uma atenção voltada para
as formas plurais que os indivíduos têm de encarar, construir e desconstruir as narrativas e
experiências, encarnadas ou não, relativas ao que, pelo menos a priori, entendemos enquanto
corpo.
Nesse contexto, o objetivo das Ciências Sociais, ao travar uma análise que procure
sobrepujar a compreensão acerca do corpo enquanto organismo pré-definido e naturalizado,
configura-se muito mais enquanto um convite ao desafio de entender as nuances, pluralidades
e complexidades delineadoras dos corpos. Em outras palavras, falar em corpo põe à tona uma
dificuldade, especialmente a nível operativo nos casos de investigação empírica, se buscarmos
concebê-lo de forma fechada, escorados ainda na praxe biológica e médica. Diferentemente
de uma abordagem em torno do organismo humano, trazer o corpo para o centro do debate
sociológico, defini-lo enquanto um objeto de estudo, volta-se especialmente para a
compreensão ao nível da corporeidade. Esta, no entendimento de Berthelot, (apud
FERREIRA, 2013) pode ser interpretada como “o conjunto de manifestações simbólicas da
existência corporal, devidamente contextualizado no tempo histórico e no espaço social
(FERREIRA, 2013. p.499).
O avanço do olhar sociológico sobre o corpo é justamente o exercício reflexivo em
torno da sua socialidade, isto é, considerá-lo enquanto uma realidade simbólica, inserida em
um contexto de interação, ação e mudança tanto a nível morfológico e fisiológico, quanto a
nível dos seus movimentos e gestualidade; é buscar, assim, entendê-lo, situado no tempo e no
espaço, em diálogo com uma realidade histórica, social, política, ideológica, econômica e
simbólica (FERREIRA, 2013).
A perspectiva desencarnada do corpo foi encarada de forma marcante pela semiologia
e pela semiótica. Para estas, o corpo surge não “apenas como uma realidade socializada mas,
sobretudo, como uma realidade semantizada, matéria moldável pelo processo de semiosis”
(ibid). O estado tomado pela corporeidade é, assim, de estrutura textual, verbalizado e
expressado através das emoções, das técnicas, da aparência; o corpo é, além de linguagem,
“um espaço da sua inscrição” (BABO, 1990 apud FERREIRA, 2013). As abordagens da
semiótica e da semiologia nos auxiliam na compreensão acerca das dinâmicas de
transformação nos significados sociais e simbólicos em torno do corpo, já que a própria
linguagem, seja verbal ou corporal, muda ao longo do tempo. Mas observar o corpo somente
81
pela chave de “painel” de inscrição da cultura reflete uma análise um tanto reducionista. É
necessário considerar a complexidade que essa matéria nos põe, por isso vamos continuar a
estudar as contribuições de outras perspectivas teóricas sobre o corpo.
Seguindo, algumas abordagens teóricas apesar de não terem seu foco propriamente
dito na questão corporal, passaram a entender que os corpos estão inseridos em uma dinâmica
que ultrapassa as significações das inscrições sobre os mesmos, observando-os a partir do
prisma da incorporação, sendo necessário, portanto, analisar também as várias instâncias com
as quais o corpo estabelece relações, especialmente aquelas que atuam por meio dos
dispositivos de docilização e reprodução social sobre os corpos.

2.3.1 Debates sobre controle, disciplina e poder em torno do corpo

Para além de texto, o corpo possui texturas – frutos de sua ação e resistência -
marcadas por elementos de poder, da história, da memória, da lei, tecidos e permeados pelas
interações entre corpos (FERREIRA , 2013). Nesse âmbito, é possível notar ao longo da
história mais recente das ciências sociais como o corpo tem sido compreendido enquanto
lugar de exercício de poder, já que se trata, como afirmou Mary Douglas, do meio mais
privilegiado e naturalizado de classificação social. O controle social, para esta antropóloga 21,
especialmente sob a perspectiva do poder simbólico, efetiva-se sob as características
fenotípicas, diacríticas, gestos e processos orgânicos dos indivíduos (ibid). O corpo físico,
manifestado precisamente em suas propriedades fisiológicas, cincunscreve-se ao permitido
pela experiência social, reverberando, portanto, enquanto símbolo do sistema social

The social body constrains the way the physical body is perceived. The
physical experience of the body, always modified by the social categories through
which it is known, sustains a particular view of society. There is a continual
exchange of meanings between the two kinds of bodily experience so that each
reinforces the categories of the other. As a result of this interaction the body itself is
a highly restricted medium of expression. The forms it adopts in movement and
repose express social pressures in manifold ways. The care that is given to it, in
grooming, feeding and therapy, the theories about what it needs in the way of sleep
and exercise, about the stages it should go through, the pains it can stand, its span of
life, all the cultural categories in which it is perceived, must correlate closely with

21 Ferreira (2013) destaca o contributo de Douglas em analisar como o distanciamento social é refletido no
distanciamento fisiológico e vice-versa. O grau de controle social sobre os indivíduos, segundo Douglas,
pôde ser observado no constrangimento ou relaxamento com os processos orgânicos diante das situações
sociais.
82
the categories in which society is seen in so far as these also draw upon the same
culturally processed idea of the body (DOUGLAS, 1970: 2003. p. 72 )

Douglas demonstra nas suas pesquisas junto a diversos povos como ações
aparentemente simples podiam ser compreendidas a partir da cosmologia na qual aqueles
grupos estavam inseridos. Para o povo congolês Lele 22, o rio que atravessa sua região do sul
ao norte dialoga com sua história ancestral: descendentes dos povos da parte alta do rio, onde
aquele nasce, constantemente relacionam as características das águas dessa parte com uma
certa disposição moral das pessoas que ali habitam. As águas claras e puras são condizentes às
pessoas amigáveis e confiáveis, já as águas poluídas da parte mais baixa do rio são associadas
às pessoas que vivem nessa região, consideradas mais perigosas e suspeitas. O sentido do
escoamento do rio, da parte alta para a parte baixa, da parte mais “nobre” à parte mais
“impura”, é igualado ao próprio corpo, na cultura dos Lele: isso pode ser observado, segundo
Douglas, nas designações específicas como olhos, nariz, boca, dentes para se referir à parte da
cabeça; já para as partes mais baixas do corpo, os Lele tendem a mencionar os órgãos
relacionados à excreção e reprodução. O controle sobre as linguagens, as gestualidades, as
dietas e os rituais estavam, assim, relacionados a um sistema social, uma cultura cuja
cosmologia deu-se como uma “emergência gradual a partir de experiências das pessoas que
vivem juntas ao longo das margens de um grande rio” (DOUGLAS, 2004. p 145).
Destaque-se, ainda em referência ao controle social incorporado, o contributo de
Norbert Elias com sua teoria da civilização, largamente desenvolvida e aplicada à
compreensão de diversos fenômenos sociais, como a cortesia, a etiqueta e o esporte. Um dos
tipos de análise feita por Elias foi debruçar-se sobre os códigos de civilidade e observar como
as proposições sobre o comportamento humano foram mudando ao longo do tempo, de acordo
com o status aristocrático vigente e, por conseguinte, ressoando em valores e modelos de
distinção dessa classe. Elias, ao analisar a obra De civilitate morum puerilium (Da civilidade
no comportamento dos meninos) de Erasmo de Roterdã, publicado em 1530, demonstra como
são apresentadas propositivas sobre um tipo adequado de “linguagem corporal” (DUNNING,
1978:2014). Nesse texto, Erasmo menciona formas de gestualidade e suas correspondências
morais ou sociais adequadas ou inadequadas, além de citar, com bastantes meandros, os
genitais, os fluidos e processos orgânicos do corpo humano. Segundo Dunning, Elias indica
que esse texto aponta elementos sobre um período de transição entre as as convenções feudais

22 Para uma discussão mais aprofundada sobre como a compreensão do microcosmo de determinados povos
apontam para a ambiguidade entre os vocábulos casa/corpo ver Douglas (2004).
83
e modernas, de “como e por que as sociedades ocidentais se distanciaram efetivamente de um
padrão na direção de outro, como se tornaram civilizadas” (idem, ibidem, p.89).
Outro fenômeno extremamente ilustrativo do processo de civilização analisado por
Elias e Dunning foi o esporte moderno. Estes autores afirmam que na Grécia Antiga os jogos
eram extremamente violentos, explicado por uma influência pelo ethos de uma aristocracia
guerreira, pelos mecanismos tradicionais das rixas familiares. Entre processos de
descivilização23 e civilização, foi entre os séculos XII e XVI que os torneios começaram a
expressar na prática os valores de um tipo de controle social, adotando um status de
“substituto da guerra” e, por isso, assentado em um tipo de violência simulada, de tom
espetacularizado (idem, ibidem). O autor mostra como o desenvolvimento do esporte
moderno está inserido em um panorama de pacificação e controle sobre os costumes
relacionados à violência. Esse argumento pode ser ampliado para a esfera do lazer de uma
forma geral, o que demonstra, que os comportamentos paulatinamente foram movimentados
pelas forças empregadas no processo de civilização. A teoria eliasiana a todo momento busca
fazer um resgate da dinâmica envolvida nos processos, a fim de esclarecer como os
fenômenos sociais como a esportivização e a parlamentarização estavam dialogavam junto a
fluxos políticos, sociais e, principalmente, históricos que apontavam para um elemento mais
profundo – o processo civilizador:

Foi nesse contexto, de uma sociedade cada vez mais pacificada e submetida a
formas sempre mais efetivas de governo parlamentar, que, de acordo com Elias,
começaram a surgir formas reconhecidamente modernas de prática esportiva,
baseadas em regras e em procedimentos mais efetivos de controle. A existência de
uma forte vinculação entre esses processos é sugerida pelo fato de que havia
estreitos paralelos entre os rituais parlamentares emergentes e os rituais emergentes
do esporte moderno. Consideremos o rito contemporâneo de questionamento do
primeiro-ministro: trata-se de uma forma de “jogo sério”. Ambos, contextos
esportivos e contextos políticos, como chegaram a se desenvolver na Inglaterra do
século XVIII, começaram a envolver modalidades menos violentas de gestão de
disputas do que aquelas que até então haviam prevalecido. (ibid, p.178)

Portanto, a atenuação das práticas violentas a partir da palavra, do acordo, do debate,


das leis, das normas e das propostas de ideias – mecanismos parlamentares – reverberou nos
esportes, os quais passaram a deixar no passado as marcas de um ethos de violência para
adequarem-se a uma série de regulamentações socialmente aceitas. A tese principal de Elias é
23 Dunning afirma que os processo de civilização não obedece a um contínuo gradativo de menor para maior
grau de civilização. O processo é uma dinâmica que está sempre em fluxo, movimentado por forças
históricas, políticas, sociais etc. O autor dá o exemplo de como os jogos romanos tornaram-se mais violentos
com o tempo, passando, assim, por um processo de “descivilização” ou de “barbarização”. A diminuição da
violência deu-se notadamente nos esportes modernos.
84
de que a caracterização do processo civilizador é justamente a mudança da coerção externa
em autocontrole – este, sendo o paralelo existente entre esporte e parlamentarização24.
Com esses dois exemplo, tanto do comportamento analisado a partir do texto de
Erasmo de Roterdã, quanto sobre o processo de esportivização de algumas práticas, é possível
perceber as ilustrações de um tipo de dinâmica de controle que passa por momentos de
transformação de acordo com elementos históricos e políticos, e que são refletidos, de certa
forma, no corpo. A perspectiva de Elias elucida como a autorregulação sobre o ethos corporal
pode ser enxergada como um traço da civilização, operada a partir da internalização de
comportamentos sociais, adaptando-se, assim, a um tipo de controle que agora não se dá
somente a partir da coerção externa, mas, sobretudo, por meio do autocontrole (FERREIRA,
2013.).
Analisando os fenômenos da contemporaneidade, é perceptível que o poder continua a
atravessar os corpos por meio de diversos mecanismos, mas, agora, é ampliada a noção da
fonte de onde emergem tais dispositivos. A escola, a família, igreja, Estado e a ciência médica
não são os únicos a mobilizar recursos de poder e dominação sobre os corpos. É o que vai
dizer Foucault (2013) com a sua teoria da microfísica do poder, a qual entende os sujeitos
imersos em uma grande rede de discursos e saberes que revelam o poder diluído, permeado
em outras nuances reveladoras dessa dinâmica. A partir dessa perspectiva, compreende-se que
que o sujeito não é somente o receptor das ações de poder, mas também atua como vetor do
mesmo, pois não se trata de um sistema localizado por sobre as cabeças dos indivíduos, mas
sim, entranhado nas relações estabelecidas por outras formas discursivas e institucionais, bem
como por “imagens e respetivas linguagens individualmente incorporadas e socialmente
reproduzidas, a partir das quais se estrutura o simbólico-corporal e as relações com as demais
corporeidades, tanto em público como em privado” (ibid).
Nesse contexto, a microfísica do poder é revelada para além dos preceitos jurídicos,
pois, como afirma Foucault (2013), é preciso uma força que transcenda à repressão para se
fazer eficaz, uma vez que o poder atuasse somente por meio da lei proibitiva, dificilmente
teríamos uma mera sujeição ao mesmo. Assim, a manutenção do poder é vertida
substancialmente por meandros que elaboram prazeres, saberes e discursos e é justamente por

24 O termo “parlamentarização” pode ser definido como “uma mediação, histórica e ideologicamente
determinada, de tipo burguês, de organicidade institucional e natureza reguladora. Junto com o “autocontrole
na resolução de conflitos”, ambos se espelham e se entranham como fazes da mesma moeda constitutiva das
sociedades ocidentais – contemporâneas (após 1789, Revolução Francesa) e capitalistas (após 1760-1870, 1ª
Revolução Industrial)” (MURAD, 2009. p.119)
85
isso, explica aquele autor, por esse arraigamento tão estreito e sutil que a tarefa de se
desvincular do poder é tão custosa.
Destaque-se que o papel da história nessa dinâmica é de fundamental importância na
teoria foucaultiana, pois ao resgatar tal perspectiva, o autor afirma ser o corpo algo que
ultrapassa as leis da fisiologia, sendo, mais que isso, “ele é formado por uma série de regimes
que o constroem; ele é destroçado por ritmos de trabalho, repouso e festa; ele é intoxicado por
venenos − alimentos ou valores, hábitos alimentares e leis morais simultaneamente; ele cria
resistências” (FOUCAULT, 2013, p. 72). A história na sua articulação com o corpo é o que
proporciona a perspectiva genealógica desenvolvida por Foucault: é necessário compreender
o corpo “marcado de história e a história arruinando o corpo” (ibid, p.65).
Assim, Foucault identifica que há uma mudança de um tipo de sociedade disciplinar
para uma sociedade de controle, que é exercida, por sua vez, não somente a nível de
consciência ou ideologia, mas primordialmente pelo corpo e com o corpo (FOUCAULT,
2013). Desenvolve-se, desse modo, a política do corpo – ações relacionadas à materialização
do poder e do controle social sobre os corpos, impelindo-os à submissão a determinados
códigos de comportamento, seja na gestualidade, na forma de portar-se diante de eventos e
ritos sociais, nas maneiras incorporadas de manifestar certas condutas sociais (FERREIRA,
2013). Foucault aponta que as reivindicações sobre o próprio corpo – a nível de saúde e
sexualidade, por exemplo – são efeitos que despontam precisamente do investimento do poder
sobre o corpo. De um lado, o poder foi exercido por meio da valorização do corpo belo,
saudável, musculoso, levando esse enaltecimento a operar principalmente no desejo de
enquadramento desses padrões a partir de um laborioso esforço. Por outro lado, as próprias
conquistas em torno do corpo passaram a ser compreendidas enquanto resultado desse
trabalho e mobilizaram as contestações, fazendo, assim, uma mudança no polo de ação do
poder - “o que tornava forte o poder passa a ser aquilo por que ele é atacado” (FOUCAULT,
2013, p.235). A emergência de ideias e lutas como a união livre ou o aborto geraram um
frenesi nas instituições políticas e médicas, revelando, segundo o autor, os deslocamentos de
investimento realizados pelo poder.
Apesar de Foucault afirmar a existência de um direcionamento reativo que parte dos
sujeitos, ele não parece certo de que esse poder consiga operar de forma proporcional ao
poder hegemônico. A dimensão do social, portanto, nessa perspectiva, não só é inescapável ao
sujeito, como possui um potencial muito mais incisivo do que aquele exercido pelos corpos
que resistem e contestam.
86
Ainda explorando essa linha de raciocínio a respeito da eficácia do social sobre o
corpo, temos a incontornável obra de Bourdieu, o qual se debruçou amplamente sobre os
desdobramentos da cultura sobre a natureza – especificamente no próprio corpo. Para este
autor, a cultura, nos seus mais variados aspectos, sejam relacionados, por exemplo, à estética
ou à classe social, inscreve-se no corpo, atribuindo ao mesmo, assim, as marcas que o
diferenciam dentro de uma estrutura social – as marcas da distinção. Bourdieu, desenvolve a
noção de habitus enquanto vetor que revela a vinculação entre social e o individual: os
processos de individualização, de incorporação de disposições duradouras moldam o corpo
social (MEDEIROS, 2011). Ser um indivíduo, portanto, é necessariamente ser social, é o
resultado por si da socialização.
Outro conceito muito importante para compreender as análises sobre o corpo deixadas
por Bourdieu é o de hexis corporal. Resgatando o legado de Marcel Mauss a respeito das
técnicas corporais, aquele sociólogo procurou revelar em seus escritos como os corpos,
comportando-se de maneira mimética e/ou improvisada, dentro de um certo esquema
corporal, atuam de forma correspondente ao habitus, especificamente entendido enquanto
hexis corporal e revelado nas formas das posturas, trejeitos, modos. Esse movimento de
interiorização das“técnicas corporais” - da hexis corporal – acontece de forma basilar na
família e grupo social no qual o indivíduo cresce e posteriormente é exercido pelas
pedagogias institucionalizadas nos sistemas de ensino. Assim, o ponto em que Mauss e
Bourdieu convergem é precisamente em considerar o corpo como instância prática e
conciliadora do simbólico e do social (MONTAGNER, 2006). Em outras palavras, podemos
entender essa perspectiva enquanto um “duplo movimento de interiorização da exterioridade e
de exteriorização da interioridade” orientado pelo habitus; assim, o corpo é implacavelmente
possuído pelo social e pela história (FERREIRA, 2013. BOURDIEU, 1997: 2001).
Um exemplo clássico trazido por Bourdieu para debater o estatuto do corpo na sua
relação com o social é a dinâmica estabelecida entre homens e mulheres. Os comportamentos
socialmente atribuídos aos sexos são fatalmente revelados pelos esquemas corporais: através
do vestuário, da maneira de andar, falar, de olhar, sentar-se etc, é possível compreender a
gramática da diferença entre masculinidade e feminilidade. Essas maneiras de ser são
naturalizadas especialmente na hexis corporal, na inculcação do social no corpo e do reflexo
do corpo no social (BOURDIEU, 1997:2001).
Bourdieu vai mostrar de maneira mais sistemática esse debate na sua obra “A
dominação masculina” (1998:2002), realizada a partir de uma série de análises da sociedade
87
cabila, na Argélia. O autor busca demonstrar como se constitui a relação de dominação dos
homens para com as mulheres é tornada visível e eficaz principalmente sobre os corpos dos
sujeitos. Segundo o autor, os homens valorizam e desejam para si mesmos os aspectos que
sejam associados à virilidade, à força e à potência, revelados sobretudo nos seus corpos.
Músculos e membros fortes e grandes, que devem ser, segundo a estrutura da dominação,
opostos aos aspectos considerados “femininos”: delicadeza, sujeição, discrição. O ponto
central da obra é elucidar como uma série de elementos revelados pelo habitus, pelas
disposições incorporadas – hexis corporal - acabam por produzir toda uma situação de
violência não só física, mas também simbólica: desde a maneira de se relacionar sexualmente
até o tipo de divisão sexual do trabalho é pautado sobre as condições favoráveis à dominação
masculina. Esse tipo de dinâmica, afirma Bourdieu, estabelece uma relação de poder
sustentada especialmente na objetificação simbólica das mulheres diante da primazia da visão
androcêntrica. Entretanto, apesar de se revelar de maneira mais problemática sobre as
mulheres, essa estrutura coage também os homens. Ambos acabam, portanto, submetidos aos
modelos predeterminados do que é desejável e aceitável para corpos femininos e masculinos.
Sendo dois grandes expoentes para entendermos as questões sociológicas envolvendo
a dimensão do corpo, tanto Foucault quanto Bourdieu parecem argumentar a favor de uma
instância de poder ou dominação que atua de forma infalível sobre o corpo. Ainda que não
desconsiderem a agência deste diante do social, Ferreira (2013) demonstra que é preciso
também que possamos, diante de outras perspectivas que nos são apresentadas, buscar outros
caminhos de compreensão, como por exemplo aqueles que alcançam de forma mais concreta
a dimensão da excorporação do corpo, isto é, das ações orientadas de forma mais ou menos
planejadas e projetadas nos investimentos sobre o próprio corpo. O autor nos chama a atenção
inicial para o fato de que essa visão não é necessariamente oposta a da incorporação, pelo
contrário, complementa algumas lacunas de explicação que não consideram as formas de
intencionalidade e reflexividade dos sujeitos sobre os próprios corpos, que são, sim, resultado
do social, mas também mobilizam recursos a fim de reinventar a si mesmos.
Figurando como um dos principais representantes do enquadramento que debate o
corpo em relação direta com a reflexividade, Giddens estabele um diálogo com Foucault,
especialmente ao criticar este último no que tange a uma brecha de análise entre corpo e
agência. Enquanto Foucault se dedicou a demonstrar como os processos de docilização dos
corpos - principais alvos do poder disciplinar – eram exercidos dentro de uma lógica
hegemônica e, portanto, dificilmente passível de um tipo de contestação realmente eficaz,
88
Giddens25 enxerga o corpo como um sistema-ação, um modo de praxis, construindo e
desafiando a si mesmo junto às interações cotidianas (ALMEIDA, 2004).
Para Giddens, a perspectiva foucaultiana é problemática pois enxerga os indivíduos
com pouca ou nenhuma potência para agir sobre suas próprias vidas, desconsiderando,
portanto, a reflexividade dos agentes em si perante a história. Além disso, a crítica dirigida a
Foucault afirma que sua teoria não leva em conta que tal reflexividade alcança o próprio
corpo do sujeito, que, mesmo sendo um foco do poder disciplinar, figura como “o portador
visível da auto-identidade, estando cada vez mais integrado nas decisões individuais do estilo
de vida” (GIDDENS, 1993, p.42). Ainda:

A questão do corpo na teoria social recente está particularmente associada ao nome


de Foucault. Ele analisou o corpo em relação a mecanismos de poder, concentrando-
se particularmente no surgimento do "poder disciplinar" nas circunstâncias da
modernidade. O corpo se torna o foco do poder e esse poder, em vez de tentar
"marcá-lo" externamente, como em tempos pré-modernos, o submete à disciplina
interna do autocontrole. Como retratado por Foucault, os mecanismos disciplinares
produzem "corpos dóceis". Mas por mais importante que seja a interpretação que faz
da disciplina, sua visão do corpo deixa muito a desejar. Ele não consegue analisar a
relação entre o corpo e a agência pois para todos os propósitos e intenções ele os
torna equivalentes. Essencialmente, corpo mais poder é igual a agência. (…) A
disciplina corporal é intrínseca ao agente social competente; é transcultural mais do
que especificamente ligada à modernidade; e é uma característica contínua da
conduta na durée da vida diária. E o mais importante, o controle rotineiro do corpo é
parte integrante da natureza mesma tanto da agência quanto de ser aceito pelos
outros como competente. (GIDDENS, 2002:1999, p. 58);

A crítica dirigida a Foucault tem sua validade sobretudo no sentido de nos instigar a
revisitar a sua obra, buscando ir mais a fundo nas suas contribuições, exercício este que nos
leva a perceber, sob um olhar mais atento, que a obra foucaultiana é bastante dinâmica,
sofrendo algumas atualizações ao longo de sua concepção. Especialmente nos seus últimos
escritos, Foucault aponta o lugar primordial da vontade individual, do enfrentamento do
sujeito perante o poder – este, agora, não é mais entendido como inescapavelmente triunfante,
de modo que as relações que dele derivam são também o reflexo da liberdade. Portanto, é
possível afirmarmos que, no fim das contas, tanto o ponto de vista de Giddens quanto o de
Foucault estão voltados para a compreensão do eu como um projeto reflexivo (GOMES et al.
2009)
O paralelo entre Giddens e Foucault sobre a tema da agência também pode ser feito
com Bourdieu: para este último, o corpo é estruturado, socializado e encontra-se localizado
25 Giddens (2002) remonta sua linha de pensamento atrelada à contribuição de Wittgenstein sobre a relação
entre o corpo e o eu. O corpo, sob tal perspectiva, não é só uma entidade, mas é a forma prática mesma que
se põe em confronto à realidade. É com o corpo se nos comunicamos frente a gramática do cotidiano.
89
dentro de um campo ou de uma série de campos que permitem e/ou limitam as ações dos
indivíduos, incorporando, portanto, as estruturas de tais campos, reveladas, sobretudo, no
habitus e na hexis corporal. Giddens, ao delinear sua teoria da ação, apesar de admitir os
cerceamentos do social sobre o indivíduo, insiste por advogar a favor de um agente apto não
somente à escolha, como ao acesso dos dispositivos mobilizadores de poder (CARNEIRO,
2006). A reflexividade, para Giddens, é precisamente a possibilidade da agência humana em
decidir, planejar e mudar não somente suas práticas, mas também a estrutura no qual está
inserido.
Nesse sentido, para além de instância limitada pela dinâmica social na qual se insere
ou sendo passível de reflexividade, é necessário, também, entender a importância de olhar o
corpo sob o prisma da carnalidade, das práticas que o mesmo elabora e mobiliza em um
continuum: trata-se, pois, de uma base viva, vivida e em devir (FERREIRA, 2013). Ainda que
marcado pela socialidade e cultura, o corpo é carne, reverberada em imagem, emoção,
necessidades, possibilidades e limitações de movimento etc. Isso não significa em hipótese
alguma relegar a importância das análises estruturais e de poder, mas sim, trazer para junto do
debate uma dimensão que por tempos foi tratada de forma secundária nas Ciências Sociais.
Mesmo diante dos inúmeros e valorosos esforços em analisar o corpo fora de uma
ótica essencialmente naturalista, ao articulá-lo à história, ao social, às formas de poder,
dominação, submissão, resistência etc, há ainda uma tendência, segundo Ferreira (2013),
daquele esvaziar o seu sentido enquanto carne. Se o paradigma naturalista não nos serve, ao
menos em sua totalidade, e a abordagem construtivista nos instiga a analisar o corpo não
como um objeto flutuante, alheio à realidade social, mas como um conjunto de elementos em
diálogo com a cultura na qual se insere, é também necessário pontuar que os radicalismos das
duas abordagens, não parecem oferecer possibilidades profícuas para as análises atuais. Pois,
como afirma Almeida (2004)

algum determinismo social dogmático tem sido a pedra de toque das nossas análises
e o que nos tem impedido de incluir o corpo e a incorporação nas nossas agendas de
investigação. Como se só houvesse duas possibilidades: ou a remissão (excludente)
para o domínio do biológico, ou o mapeamento da acção das categorias sociais sobre
os corpos enquanto argamassa e não-pessoas. (ALMEIDA, 2004. p.5)

Superado, uma vez, o paradigma naturalista, para dar lugar ao construtivista, é preciso
resgatar, agora, questionando, inclusive, as limitações da nossa disciplina, a fim de propor
possibilidades outras de se pensar categorias “dadas”, refinando, dessa forma, as
90
problematizações em torno do que chamamos “corpo”, “corporeidade”, entre outros termos
desse espectro. Assim, o esforço de algumas abordagens sobre a compreensão dessa temática
lança convite para que não nos fixemos apenas às análises habituais, mas que, especialmente,
possamos repensar as próprias bases nas quais as ciências humanas, notadamente os
paradigmas ocidentais da Modernidade, estão fundadas.

2.3.2 A carnalidade do corpo – diálogos com a Fenomenologia

O debate em torno de sermos e termos um corpo – aludido já de forma consagrada a


Merleau-Ponty – isto é, do indivíduo sofrer as ações do social sobre o seu corpo e de,
simultaneamente, ter capacidade de agir sobre o mesmo, como anteriormente mencionado,
não exclui a perspectiva da incorporação, do poder, do corpo enquanto instância onde se
inscreve e se reproduz o social, mas reforça, por outro lado, a necessidade de avaliarmos,
também, o fato de o sujeito, inserido na dinâmica da reflexividade, lançar mão da sua
intencionalidade para agir no seu próprio corpo-carne, quanto para gerar discursividade sobre
si e sobre os outros. O corpo, assim, além de dimensão reflexiva, também se desdobra
enquanto instância expressiva e comunicativa: ainda que seja o símbolo principal da
individualidade, ele é interpretado dentro de uma conjuntura social (FERREIRA, 2013).
Nesse sentido, o trabalho realizado por Merleau-Ponty contribuiu de forma
incontornável para o desenvolvimento de um novo enquadramento em torno do corpo. Apesar
de seu arcabouço ser eminentemente centrado na filosofia - nomeadamente na fenomenologia
- suas ideias possuem grande relevância para ampliarmos as questões socioantropológicas que
se colocam na contemporaneidade. A partir das suas reflexões sobre a experiência
corporalmente vivida do sujeito, é possível incrementar a interpretação de um corpo para além
de objeto, sendo entendido, também, enquanto uma estrutura complexa, multifacetada, social
e orgânico-sensorial.
Para desenvolver sua teoria, Merleau-Ponty resgata os ensinamentos da Física
Moderna a respeito da relatividade do tempo e do espaço, trazendo essa noção para pensar
que, assim como aqueles, os sujeitos e objetos não são absolutos, puros. Tempo, espaço e
sensorialidade inscrevem-se em nosso corpo de maneira dinâmica, em constante atualização
de nossa percepção, esta é, portanto, a própria potência criativa do ser humano (NÓBREGA,
2014). Além de avançar sua teoria apoiado na Física Moderna, Merleau-Ponty também toma
91
da Animalidade sua contribuição para desenvolver a noção de comportamento. Seu argumento
a favor da animalidade é construído em oposição a um certo essencialismo conformado nas
disposições dualistas, assim como procura fugir de uma filosofia da existência cujo foco
encontra-se na união entre corpo e alma. A tese deste autor é centrada, pois, na crítica aos
determinismos do vitalismo e do mecanicismo: o comportamento não acontece somente
pautado em um suposto impulso vital, assim como não se conforma apenas nas suas estruturas
físico-químicas; o comportamento está, na verdade, diretamente articulado à motricidade, à
postura, às ações orgânicas (ibid.).
Assim como a linguagem, o comportamento está em plena atualização, não se
reduzindo a sua estrutura anatômica, nem a sua fisiologia, estando, pois, na verdade, ligado às
dimensões de ordem corporal, ambiental e cultural. O comportamento e a linguagem dão
vazão aos sentidos, entretanto, é importante lembrar a característica primordial de fluxo, de
inerência na qual aqueles estão em plena simbiose, e que buscam, portanto, afastar a hipótese
da existência de uma constituição da Natureza ou de primazia do ambiente sobre o sujeito
(ibid). A dinâmica fluida e passageira do tempo é um dos principais pontos para pensar o
corpo sob essa interpretação do devir

Assim como está necessariamente "aqui", o corpo existe necessariamente "agora";


ele nunca pode tornar-se "passado", e se no estado de saúde não podemos conservar
a recordação viva da doença, ou na idade adulta a recordação de nosso corpo quando
éramos crianças, essas "lacunas da memória" apenas exprimem a estrutura temporal
de nosso corpo. A cada instante de um movimento, o instante precedente não é
ignorado, mas está como que encaixado no presente, e a percepção presente consiste
em suma em reaprender, apoiando-se na posição atual, a série das posições
anteriores que se envolvem umas às outras (MERLEAU-PONTY, 1999. p.194)

E Ainda:
Enquanto tenho um corpo e através dele ajo no mundo, para mim o espaço e o
tempo não são uma soma de pontos justapostos, nem tampouco uma infinidade de
relações das quais minha consciência operaria a síntese e em que ela implicaria O
CORPO 195 meu corpo; não estou no espaço e no tempo, não penso o espaço e o
tempo; eu sou no espaço e no tempo, meu corpo aplica-se a eles e os abarca
(MERLEAU-PONTY. 1999, P.194-195)

Do exposto, temos a ideia de que o corpo não se reduz a um objeto, ele é o meio
primordial de experienciar a realidade, sendo a percepção atrelada aquele; em outras palavras,
não é preciso, pois, que “o corpo seja submetido a uma função simbólica ou objetivante” (id.
p.195). Muito além de termos um corpo, para a perspectiva de Merleau-Ponty, nós somos um
92
corpo e sê-lo implica uma série de mobilizações de caráter fluente em relação direta com a
experiência. Esta acontece pelo corpo, por meio do corpo, marcando-o e sendo ressignificada
por causa deste em contato com uma elaboração ininterrupta do mundo; a percepção, dessa
forma, ocorre por causa do corpo e não é algo que existe fora dele. Assim, compreender o
ponto fundamental do movimento do corpo “é reconhecê-lo como fenômeno que não se
reduz à causalidade linear; é considerar ainda que o ser humano não seja um ser determinado,
mas uma criação contínua” (NÓBREGA, 2008. p.145).
Enquanto Bourdieu, centrado no domínio da prática, recorre à ideia de corporeidade
para suplantar a dualidade entre estrutura e prática, Merleau-Ponty, no domínio da percepção,
concebe uma ontologia que traz para o centro da discussão a corporeidade, na busca de
superar a dualidade sujeito/objeto. Tanto Bourdieu quanto Merleau-Ponty, apesar de partirem
de locais distintos, convergem para a compreensão do corpo enquanto elemento
metodológico, parâmetro que vai servir de aporte para a crítica construída por Thomas
Csordas (ALMEIDA, 2004; CINTRA et al, 2010; MALUF, 2001; ). Este autor, sob tais
influências, elabora um escopo alternativo para as teorias referentes ao corpo, argumentando a
favor deste enquanto “carne” e, preferindo, assim, a noção de embodiment – traduzida por
Ferreira (2013) como encarnação. Csordas, nesse contexto, considera o corpo como a base
mesma da cultura, isto é, não se trata mais de encarar o corpo enquanto objeto da cultura, mas
de elaborar uma interpretação na qual o corpo é sujeito da cultura (CINTRA et al, 2010).
Pensar pelo prisma de embodiment – encarnação – permite enxergar a vida do corpo
desdobrada na sua capacidade de “sentir e fazer sentir, de ser visível e de se dar a ver, de ser
tangível e tocar, de audível e de ouvir, de se emocionar e de estimular emoções” (FERREIRA,
2013, p. 519).
Nesse sentido, as emoções exercem um papel fundamental no enquadramento de
Csordas (2008), pois, para ao autor, ainda que a Antropologia tenha voltado sua atenção para
o tema, acabou tornando-a secundária à cognição. Influenciado por Wilheim Dilthey, Csordas
elabora um debate que pode ser localizado na Antropologia da Experiência, a qual
compreende a experiência para além do seu fundamento cognitivo, situando-se,
especialmente, na esfera da emoção e do afeto, dos sentimentos e expectativas, manifestados
em variados domínios, desde a linguagem até a intersubjetividade (CINTRA et al, 2010).
Para Csordas (2008), tanto Merleau-Ponty quanto Bourdieu, enxergam na percepção e
na prática, respectivamente, o princípio essencial da indeterminação da vida humana. Assim,
na mesma linha, o autor busca transcender a ideia mesma do corpo como objeto da
93
antropologia, concentrando-se em construir uma teoria voltada para a experiência cultural
corporificada. Esse paradigma privilegia sobretudo a importância da etnografia para a
apreensão da complexidade em torno do corpo, o qual não é desconsiderado enquanto
dimensão biológica, mas que também não é tomado como dado determinado para a
antropologia, sendo necessário, portanto, alargar a interpretação do corpo enquanto sujeito da
cultura por meio, principalmente, do estatuto da experiência (MALUF, 2001).
A importância da encarnação está sobretudo no fato de que a corporeidade mesma é
encarnada, isto é, existe uma matéria com propriedades, funcionalidades e capacidades que
participam da construção da dinâmica sociocultural de ser e estar no mundo. É desta
encarnação que despontam as emoções, os desejos e as sensações, e essa perspectiva alude a
um tipo de interpretação na qual a experiência vivenciada pelo corpo implica também no
desenrolar dos processos de identidade, seja a nível pessoal ou social. Não se trata de reduzir
a uma análise exclusiva da dimensão motora ou orgânico-sensorial do corpo, mas sim, de
investigar como, na implicação desta, o corpo humano elabora potencialidades e
constrangimentos no exercício da sua agência ou na reprodução das estruturas (FERREIRA,
2013). Assim, a encarnação nos permite elaborar uma compreensão do corpo para além dos
extremismos tanto do construcionismo, quanto do naturalismo biológico, encarando-o,
portanto, na sua dinamicidade, complexidade e diversidade de relações durante todo o fluxo
da sua existência social.
O olhar sobre o corpo enquanto carnalidade contribuiu para o delineamento do
paradigma animista, isto é, uma visão que busca dar vida – anima – à carne. Podemos também
considerar esse paradigma como neovitalista, de forma que o mesmo retoma em certa medida
a discussão posta por autores como Bergson e Deleuze (SCRIBANO, 2013). Hoje deparamo-
nos com uma série de abordagens que continuam a buscar transpor as fronteiras dos
dualismos outrora estabelecidos e ainda presentes enquanto desafios epistemológicos e
ontológicos para as Ciências Humanas, mas que, agora, mais do que nunca, são mesclados
tanto às perspectivas de outras disciplinas, quanto direcionam maior atenção para questões por
muito tempo secundarizadas na teoria social e antropológica, como os afetos, as emoções, as
sensações, os movimentos, os fluxos e atravessamentos que perpassam essa questão em
tensionamento.
Mais importante que dar continuidade ao insistente - mas valoroso - esforço por
construir uma Sociologia ou Antropologia do Corpo, talvez seja o momento de voltarmos
nossa atenção para o que algumas relevantes investigações e teorias têm tentado nos mostrar a
94
respeito do lugar - mais que emergente - urgente, que o corpo, em toda a sua complexidade,
inescapabilidade do social e enquanto desafio teórico, precisa ocupar em nossos trabalhos
socioantropológicos. Ora, sendo o corpo a base mesma da cultura, como relegá-lo à margem
da nossa análise social? Como produzir uma ciência que perpassa, necessariamente, pela
carne? Pela minha carne, pela carne daqueles com quem estabeleço vínculos ao longo da
pesquisa, todos envoltos pela dinâmica das afetações? Fazendo menção ao clássico Richard
Sennet sobre A Carne e a Pedra, como enxergar o corpo vivo, vivido e em devir, não só da
carne, mas da “pedra”? Tem vida aquilo que comumente não percebemos como vida?
Pensar em corpo, carne, vida, remete-nos à já antiga, mas nunca ultrapassada, posto
que nunca resolvida, questão do self, do ser, ou da pessoa. A própria história da Sociologia e
Antropologia do Corpo talvez tenha sua relação com a busca de retomar tal debate,
pretendida, ai, ser apaziguada com a construção de uma disciplina onde o corpo ocupa um
lugar central. Essa tentativa pode ser sintomática de um estado ainda pulsante, premente por
um olhar mais ponderado sobre uma demanda que, agora, se coloca de forma categórica.
Muitas abordagens que vão desde as citadas, até o pós-humanismo, não fechando-se em si
mesmas, incitam-nos a desorganizar as ideias até agora postas, provocam-nos a percorrer
outros acessos do pensar, do ser e do fazer ciência com o corpo, até porque este nunca esteve
fora daquela. Mas o corpo tábua de inscrição da cultura, insípido, determinado, invólucro,
cápsula, objeto consumado da cognição, repulsa do eros, do sangue, suor, afeto, emoção, da
carne - esse corpo nunca mais será o mesmo.

2.4 Uma proposta de movimento

Apesar de ter feito um certo balanço a respeito do corpo nas Ciências Sociais, a fim de
pontuar algumas questões para situar o debate, meu objetivo não é traçar uma história da
temática, pois compartilho da ideia de Almeida (1996), ao considerar que esse esforço pode
resultar em mais uma (má) história da disciplina e do pensamento ocidental. A Sociologia e a
Antropologia mesmo apresentando um considerável arcabouço na produção referente ao
corpo, sua discussão não apresenta indícios de exaustão, pelo contrário, nos convida a
enfrentar outros desafios. Sendo assim, proponho-me à tentativa de construir um itinerário
direcionado à compreensão da prática do Parkour um pouco fora dos limites definidos de uma
Sociologia ou Antropologia do corpo, mas, sim, de trazer a dimensão corporal daquela
95
modalidade como uma forma de exercitar o esforço de pôr o que entendemos por “corpo” em
perspectiva – pensá-lo enquanto elemento constituído pela cultura, mas também, em toda sua
complexidade, definidor da mesma.
Urge um momento na disciplina no qual não podemos ignorar a necessidade de
compreender que uma grande parte das práticas sociais estão entre o reflexivo e o
inconsciente, momento este que retoma a discussão tanto a discussão feita por Weber a
respeito da intencionalidade da ação orientada para os outros e, como também o debate
reverberado nas teorias da fenomenologia social, etnometodologia e interacionismo simbólico
(LOPES, 1998). Como apresentado anteriormente, a discussão sobre o corpo nas Ciências
Sociais tem uma das suas bases nos tensionamentos a respeito das formas de apreensão do
mundo e dos direcionamentos das intencionalidades a níveis de “interior”, “exterior”,
elaborados ou não por representações mentais.
O que foi apresentado pode nos fornecer um breve exemplo do arcabouço até então
construído de um movimento na Antropologia Contemporânea orientada a explorar a
interdependência entre Cultura e Natureza, abordagens que buscam, em maior ou menor
medida, um diálogo com estudos desenvolvidos nas áreas da Biologia, Psicologia
Cognitivista, História, Filosofia etc. Discutir o corpo, é discutir, portanto, a própria trajetória
da Antropologia e suas bases epistemológicas, trata-se, precisamente, de uma discussão sobre
os processos de conhecimento.

2.4.1 Um foco que emerge do campo

Inicialmente minha pretensão estava centrada em desenvolver uma pesquisa cuja


reflexão era mais voltada para a Antropologia Urbana. Estava muito preocupada em
compreender sentidos, significados, arquitetura e sociabilidades relativos ao mundo do
Parkour. Ainda estou, de certa forma. Mas, diante dos caminhos imprevistos do campo de
pesquisa, fui confrontada em todos os níveis com o que eu até então havia estabelecido
previamente. Tal qual a prática de um traceur, fui analisando outras possibilidades,
enxergando potencialidades variadas sobre outros aspectos, ouvindo e vendo as pessoas, mas
também as paredes, a grama, as pedras, árvores, os tênis, pés, mãos, braços, pernas e a
miscelância de um amontoado de coisas metodicamente organizadas na prática do parkour.
Foi preciso exercitar um refinamento dos outros sentidos, especialmente do tato e da visão, na
minha condição de pesquisadora.
96
Assim, passei muito tempo observando e conversando com os traceurs, até que resolvi
atender alguns convites dos interlocutores e experimentei movimentos, me machuquei, me
senti desconfortável, me senti animada, quis desistir, quis tentar novamente, mas,
especialmente – quase com uma sensação de “de repente!” – percebi com mais clareza o que é
o “flow”, o que é o “simples”, o “natural”, o “peso” e a “leveza” das movimentações, entre
outros aspectos. Quando falo em ouvir paredes e outros elementos citados acima, trato
justamente do resultado da intimidade que é cultivada com o ambiente material de forma
geral, e em forte relação com diversas outras dimensões do mundo social dos indivíduos que
praticam parkour.
Diante da proposta de privilegiar a análise do corpo enquanto elemento constitutivo e
constituinte da cultura, e não necessariamente construir um tópico dentro da Sociologia e
Antropologia do Corpo, pretendo, sem deixar de lado as contribuições dadas por estas, tatear
as potencialidades dos debates que trazem à tona o corpo em movimento sob a ótica das
dinâmicas de aprendizado do parkour e das suas formas de inserção e relação com o mundo.
Para realizar esse caminho, optei por explorar a dimensão sensorial e corporal da minha
proposta de estudo e do meu campo de pesquisa com a ajuda de algumas aspectos
relacionados a uma agenda de uma antropologia sensorial, bem como ideias tais quais:
educação da atenção e engajamento no mundo (INGOLD, 2015), corpografias urbanas
(BRITTO; JACQUES); cartografia (DELEUZE; GUATTARI). Todas essas contribuições
servem como meios para a experimentação de formas outras de compreender processos e
movimentos que constituem o emaranhado de linhas que é o parkour.
Para tentar responder a questão, parto da ideia de que o corpo não só é objeto, mas
também constitui a cultura. Além disso, busco desenvolver minha reflexão orientada por uma
agenda que visa romper a dicotomia natureza x cultura, dicotomia esta que nos coloca
diretamente em contato com um questionamento acerca de como está sendo elaborado o lugar
do corpo nas ciências humanas. O corpo não é algo apartado, distinto do mundo, ele é, sim,
constitutivo no sentido de estar em comunhão com o mundo, atravessando e sendo
atravessado, emaranhado, em outros elementos, ao longo de caminhos e em fluxo contínuo. O
corpo, assim, não é um tipo de “casca” que possui um conteúdo ou uma superfície onde a
cultura é inscrita, tampouco guarda uma alma ou uma substância. Corpo é movimento. E é o
corpo aberto ao mundo, é o movimento que enseja os processos de conhecimento. Pensar,
portanto, nesses corpos-movimento constituídos processualmente – não uma coisa em relação,
97
mas a própria relação – pode nos ajudar a reeducar nossa percepção e enxergar as
possibilidades do ser.

2.4.2 Tim Ingold e um projeto vitalista para o parkour

“(…) também eu sou um habitante do mundo e não de um


espaço dentro da minha cabeça. E, pelo mesmo motivo, sempre
posso consultar o mundo para orientar meus movimentos, em
vez de uma representação cognitiva interna”. (INGOLD, 2008,
p.23)

Enquanto a Modernidade tem por uma de suas características as máximas das


dicotomias mente/corpo, natureza/cultura, especialmente legada por Descartes, a proposta do
antropólogo britânico Tim Ingold encontra na continuidade e na simetria do espaço para
explorar uma perspectiva diferente. Embora sua linha de raciocínio, junto a outros autores da
antropologia contemporânea que exploram a dinâmica social sob uma ótica vitalista, seja
passível de críticas26, ela, no mínimo, nos instiga a deslocar olhares científicos muito
aficionados.
Se o tom de muitos estudiosos da Sociologia e da Antropologia tem voltado seus
esforços para construir uma abordagem e uma linha argumentativa a favor da superação das
dualidades - eminentemente ocidentais27 - cada qual com suas especificidades, Tim Ingold
(1991) também o faz ao lançar mão da noção de que a pessoa é o self, mas não de uma
maneira isolada ou “privada” e confrontado com um espectro externo, mas, sim, é um focus
de agenciamento, em pleno relacionamento, é um ser engajado no mundo.
A chave de análise de Tim Ingold está na compreensão de que nenhum organismo, seja
humano ou não humano, não se encontra fechado, cerceado por um tipo de “casca”, um
invólucro corporal ou uma identidade específica. Desse entendimento, o autor aproxima-se da
abordagem fenomenológica ao centrar o interesse da antropologia na noção de vida,

26Para um debate crítico sob o ponto de vista da Sociologia, ver a discussão a respeito da agência e cultura feita
por Vandenberghe (2016) in Sociologias, Porto Alegre, ano 18, no 41, jan/abr 2016, p. 130-163.
27Anna Tsing (2015) propõe perspectivar a natureza humana como uma relação entre espécies, possibilitando
alargar o alcance de pesquisas tanto biológicas quanto culturais. Esse entendimento permite enxergar também as
transformações que outras espécies geram nos seres humanos. A autora afirma que a dicotomia “humano-
selvagem” tem comprometimento com um tipo de ideologia antropocêntrica, propõe uma metodologia
multiespécies para explorar melhor essas questões.
98
buscando, assim, desviar-se das classificações adjetivadas da antropologia como “cultural”,
“estrutural”, “interpretativa” etc (STEIL. CARVALHO. 2012).
Nesse sentido, a preocupação de Ingold não encara o corpo enquanto instância
individual, distanciada do elemento “paisagem”, que supostamente lhe é externo. Tanto o
conceito de corpo, quanto de carne e paisagem, para esse autor, denotam uma ideia de
cerceamento, distinção e existência isolada, quando, na verdade, existem fluxos vitais que não
só estão nas coisas, como são as próprias coisas (ibid). Para Ingold, quando falamos em
corpos e objetos, seguimos uma linha de raciocínio que reitera a lógica de inversão: um
pensamento que fecha os seres, protegendo-os de interações com os arredores (AZEVEDO,
2020).
É nesse sentido que a crítica à abordagem cognitivista que Ingold está na recusa de
entender que a cognição é um momento que ocorre em separado da prática, afirmando que ela
está imbrincada na própria experiência. Na sua perspectiva, não há um conjunto simbólico
que se encontra acima de um mundo “natural”, biológico; o mundo não é somente uma teia de
significados – ideia propagada principalmente pelos interpretativistas. Sendo assim, a
transmissão do conhecimento não se dá meramente pela passagem de uma série de
informações independentes da experiência e do contexto ambiental. Não se trata de um
conhecimento que existe na forma de “conteúdo mental, “que, com vazamentos,
preenchimentos e difusão pelas margens, é passado de geração em geração, como a herança
de uma população portadora de cultura” (INGOLD, 2010, p.6).
O argumento de Ingold contra essa compreensão cognitivista defende uma
antropologia “como estudo sobre as possibilidades da vida e a educação como mobilização da
atenção” (op.cit, p.46). Nesse contexto, Ingold opõe-se a um tipo de enquadramento
representacionista da cultura, afirmando que a transmissão do conhecimento não é passado na
forma de um amontoado de representações, mas de um processo de educação da atenção.
Essa afirmação ocorre em oposição à máxima da antropologia cultural mais relativista de que
“o homem é uma tábula rasa que se escreve”, proposta por Alfred Kroeber, e propõe, por
outro lado, que os seres estão sempre em devir.
Assim, Ingold analisa a obra de Sperber, um antropólogo da linha cognitivista que
reúne bem as teorias sobre cultura e cognição, e tece críticas a esse tipo de abordagem,
propondo uma outra maneira de encaramos as questões de transmissão de conhecimento. Ao
criticar a ciência cognitiva clássica, Ingold também confronta preceitos do neodarwinismo,
pois não acredita que os seres humanos são meios de processamento da informação que é o
99
conhecimento. Para o autor, o ser humano é o centro de percepções e agência em um campo
de prática, sendo o conhecimento, assim, primordialmente compreendido como habilidade. A
visão de Ingold fundamenta-se na tentativa de transpor a clássica distinção entre capacidades
inatas e competências adquiridas, voltando seu foco para as propriedades emergentes de
sistemas dinâmicos (INGOLD, 2010, p.7)
Ingold destaca que não objetiva privilegiar a cultura sobre a natureza, tampouco
substituir uma concepção inatista por um tipo de determinismo ambiental, mas, sim,
argumentar que as capacidades não são pré-fabricadas, localizadas numa dimensão interior de
um invólucro “aguardando para serem preenchidos com informação cultural na forma de
representações mentais” (ibid, p.17) e nem impelida pela exterioridade. Assim, as capacidades
emergem “de processos de desenvolvimento, como propriedades de auto-organização
dinâmica do campo total de relaciona- mentos no qual a vida de uma pessoa desabrocha”
(ibid, p. 15).
Nesse sentido, ao tratar os organismos, de forma geral, e o ambiente como elementos
indissociáveis e cuja relação resulta no próprio continuum da vida, Ingold busca apontar um
debate que sirva tanto à antropologia, quanto à biologia. Para demonstrar esta questão, o autor
lança mão de uma importante chave de análise: a habilidade prática, notória especialmente em
alguns estudos referentes à ação, percepção, arte, tecnologia, entre outros. (SILVA, 2011).
Para desenvolver suas ideias sobre habilidade, engajamento e educação da atenção,
Ingold retoma as noções já discutidas por estudiosos como Gibson, para o qual a percepção
está relacionada ao corpo-organismo como um todo, sendo equivalente ao próprio movimento
exploratório do organismo no mundo. Além deste autor, Ingold busca referências na
perspectiva vitalista de Gregory Bateson, argumentando a favor de uma mente que não está
limitada à pele, bem como encontra apoio também na obra de Marx e Engels no tocante à
relação de transformação do indivíduo em plena relação com a natureza, a história, as técnicas
e as ferramentas de trabalho (INGOLD, 2018).
Ingold lança mão de uma série de exemplos para ilustrar suas explicações a respeito do
conhecimento, competência e habilidade. Ele defende que o processo de habilitação ultrapassa
uma tarefa intelectual, localizando-se, muito mais, no nível cotidiano da prática. Ao contrário
de Sperber, Ingold afirma que não é somente a partir de um movimento de acesso a uma
informação e posterior conversão a um comportamento corporal que a habilidade emerge (e
por consequência o conhecimento). Ele fornece um simples exemplo como uma receita
culinária presente num livro: é possível que eu siga todas as orientações ali fornecidas, mais
100
ou menos familiares com minha experiência prévia em manusear aparelhos culinários ou
manejar determinados tipos de alimento, mas tal livro de receitas, por si só, não é
conhecimento, sendo, muito mais, uma abertura para o conhecimento que eu mesma posso ir
desenvolvendo ao longo de um processo de saber-fazer. (INGOLD, 2010)
Dessa forma, “olhar, ouvir e tocar, portanto, não são atividades separadas; elas são
apenas facetas diferentes da mesma atividade: a do organismo todo em seu ambiente”
(INGOLD, 2008, p.20). Sob esse prisma, portanto, não podemos compreender que um órgão,
a exemplo dos olhos e sua atividade de olhar, existam por si mesmo, como isolado de todo o
resto do corpo. Ele funciona porque atravessado pelo fluxo vital de todo o corpo, e com este,
por sua vez, ocorre o mesmo em relação com o ambiente).

2.4.3 Pistas para agenciamentos no parkour a partir das contribuições ingoldianas

É necessário ressaltar a existência de vários estudiosos brasileiros de outras áreas do


conhecimento que trabalham no sentido de agregar as contribuições das Ciências Sociais para
a análise de determinadas práticas, principalmente teorias e conceitos advindos do arcabouço
da Sociologia e Antropologia Urbana, do Lazer, do Corpo, da Técnica, do Movimento, entre
outros. Esse movimento pode ser um indicativo de que os debates em torno destas temáticas
têm cada vez mais procurado estabelecer pontos de encontro entre diferentes disciplinas,
sendo especialmente frutíferas, ao meu ver, investigações na área das Ciências Sociais que
explorem a relação social e histórica da Educação Física com os processos de
institucionalização da mesma28. Não se trata do meu foco, entretanto, neste trabalho.
Eventualmente pretendo citar alguns diálogos feitos entre as disciplinas a fim de visibilizar
algumas questões que ultrapassam, desafiam ou mesmo agreguem algum dado interessante a
esta investigação.
Os estudos feitos pelos pesquisadores na área da Educação Física nos aponta um
importante caminho que parece estar, em alguma medida, consoante a um esforço também
presente em um determinado espaço das Ciências Sociais: a tentativa de não sobrepujar a
natureza à cultura e vice-versa, preocupando-se, especialmente com a dimensão relacional da
vida.

28 Ver Debortoli e Sautchuk (2014): os autores fornecem importantes referências sobre o debate em torno da
vinculação da Educação Física às ciências da natureza, sua gradativa associação aos estudos sobre Cultura e
os desafios advindos desses processos sob diversos níveis.
101
Debortoli e Sautchuk (2014) ao analisarem os desdobramentos da Educação Física
brasileira e seus processos de institucionalização, demonstram as tensões entre o
estabelecimento do objeto de estudo e a intervenção pedagógica da disciplina. Os autores
afirmam que esta problemática reforça a ideia de uma distinção entre uma “etapa
geneticamente determinada e outra culturalmente aprendida” (ibid, p. 343) e posicionam-se a
favor de uma compreensão de desenvolvimento, movimento (ou mesmo motricidade) e
aprendizagem enquanto noções que vão além da mera “aquisição de capacidades motoras
básicas para a realização posterior de outras formas consideradas mais complexas” (ibid).
A consulta aos trabalhos brasileiros de Educação Física mostrou-se de grande
relevância no sentido de apontar caminhos pelos quais os pesquisadores da área já vinham
explorando. Por se tratar de uma prática social corporal, pude ter acesso a algumas discussões
sobre o parkour, especificamente, e, de modo geral, a debates sobre o estatuto da dualidade
corpo/mente, bem como das noções de prática, movimento, aprendizado, entre outros. Como
já citei anteriormente, o diálogo proposto por Debortoli e Sautchuk a respeito das
contribuições da Antropologia para a Educação Física tem sua importância para a constituição
da minha problematização, especialmente ao revelar articulações com o pensamento de Tim
Ingold. Este autor também tem sido amplamente mobilizado nos trabalhos de pós-graduação
em Antropologia Social, sobretudo em investigações sobre técnicas, processos de
aprendizado, relações humano-animal, entre outros.29
Debortoli et al, mobilizam a perspectiva antropológica de Tim Ingold para
compreender um contexto de artistas-dançarinos, abordando questões relativas à técnica, arte
e movimento. Tal discussão mostra o alcance da noção de técnica para além da mecanização,
sendo o contrário, parte da história social em plena articulação e transformação das práticas.
Toda essa dinâmica relacional, de engajamento com o mundo, pode ser aludida na passagem
da brilhante etnografia de Wacquant (2002) com pugilistas, ao qual me remete, em grande
medida, à prática do parkour e a qual também poderíamos analisar junto às categorias
ingoldianas de habilidade, técnica e o tornar-se pessoa a partir do engajamento no mundo

O conhecimento que os pugilistas têm do funcionamento de seu corpo, a


percepção prática de que há limites que não devem ser ultrapassados, os trunfos e os
pontos fracos de sua anatomia (uma base baixa ou uma grande velocidade de braço,
um pescoço muito fino ou mãos frágeis), o comportamento e a tática que adotam no
ringue, seu programa de preparação, as regras da vida que seguem, tudo isso vem, de
fato, não da observação sistemática e do cálculo refletido da linha ótima a ser
seguida, mas de uma espécie de "ciência concreta"llIl de seu próprio corpo, de suas

29
102
potencialidades e de suas insuficiências, retirada do treinamento cotidiano, assim
como da "terrível experiência de apanhar e bater repetidamente” (WACQUANT,
2002, p.148)

Cada praticante de parkour tem um mínimo detalhe que o diferencia na realização de


um dado movimento. mesmo aparentemente sendo executado da mesma forma que os demais
praticantes, cada um possui uma particularidade que pode revelar uma potencialidade ou uma
dificuldade em relacionar-se com algum obstáculo ou movimentação. Os processos de
identificação, reflexão e execução dessas potencialidades ou dificuldades constituem o
exercício de autoconhecimento - ideia tão defendida e visualizada nos discursos e nos treinos
de parkour. Autoconhecimento pode ser entendido como uma relação de intimidade consigo
mesmo e com o meio ao seu redor: a partir da compreensão do meu corpo-mente, dos objetos
que me cercam e das técnicas, é possível elaborar formas de articulá-los, de estabelecer um
diálogo entre tais elementos através das mais diversas movimentações.
Geralmente, nos treinos coletivos, os praticantes com mais tempo de experiência,
podem sugerir alguns “jogos” ou “brincadeiras” a fim de treinar determinados aspectos, os
quais podem focar atenção à resistência, improvisação, condicionamento físico e psicológico.
A dimensão do “psicológico” é constantemente acionada nos discursos dos interlocutores e
pude perceber, de fato, alguns exercícios nos treinos de parkour que visavam o
aprimoramento desse nível. Frequentemente se tratavam de exercícios relacionados ao foco, à
atenção, à reflexão sobre os alcances e limitações do próprio corpo, sobre formas de superá-
los ou de adaptar-se aos mesmos. (por exemplo, altura, peso, facilidade/dificuldade com
determinados membros; agressividade, impulsividade, timidez, fácil distração, etc).
Por mais que nos treinos possamos ouvir claramente e frequentemente falas como
“hoje vamos treinar membros superiores, mas amanhã vamos exercitar o psicológico”, na
prática, os dois objetivos se confundem no Parkour. Em praticamente todos os treinos é
possível identificar elementos que apontam para um tipo de prática holística, de forma que,
sob a perspectiva de Ingold, não existe um apartado das duas dimensões. Poderíamos falar,
então, que os discursos dos traceurs, mesmo que construídos em cima da noção dual de corpo-
mente, existam, o parkour é um exemplo vivo, na sua prática, de um processo de aprendizado
relacional, mobilizado dentro de um contexto de pessoas, sensibilidades, afetos, objetos,
ambiente e técnicas corporais. Fazer parkour, é saber que nasce do envolvimento prático com
o cotidiano do praticante.
103
A técnica de um movimento, no contexto do parkour, não se constroi estritamente sob
uma perspectiva mecânica, ela é parte, na verdade, de uma dinâmica mais complexa. Apesar
de existirem movimentos mais “clássicos” do parkour, como monkey, cat leap e precisão, por
exemplo, é possível observar outras movimentações que nem sempre possuem uma
nomenclatura, uma definição ou mesmo uma prática continuada. Às vezes ela acontece, ali,
no momento da improvisação. Todos os praticantes possuem experiências sociais, seja no
âmbito dos esportes/atividades físicas ou não, que são mobilizadas no processo de
aprendizagem do parkour.
Alguns praticantes de parkour, com experiência prévia na Ginástica, por exemplo,
relataram vir de um contexto cuja dinâmica treinos e mesmo de sociabilidades entre
professores, colegas e instituições era muito mais rígida que a do parkour. Além dessa
“rigidez” nas relações, o fato dos treinos serem realizados em ambientes controlados, com
colchonetes e outros equipamentos pensados para reduzir os riscos, contribuía para um tipo de
expressão corporal mais “mecânica” ou “robótica”, como citado pelos interlocutores, diante
de uma fase mais inicial de adaptação aos treinos de parkour. Esses praticantes possuiam uma
certa dificuldade especialmente na execução do flow e nos exercícios de improvisação e
criatividade em obstáculos mais inusitados. Por outro lado, possuiam extrema facilidade com
movimentos de equilíbrio, saltos e precisão. A rigidez proveniente daquele outro campo de
atividade física também podia ser observada no comportamento desses praticantes: vindos de
um contexto onde a disciplina, a competição, e a perfeição da técnica são extremamente
valorizadas, alguns dos indivíduos relataram problemas com autoestima e autocobrança,
afirmando que encontraram no parkour uma maior liberdade tanto para o processo criativo das
movimentações, quanto das sociabilidades ali vivenciadas.
Outros tipos de experiência corporal paralela também foram vistas em campo, como
dança (especialmente break dance), capoeira, calistenia, musculação, treinos militares e
“método natural” (não exatamente como o cunhado por Georg Hébert – mais a frente
discutirei um pouco sobre esse ponto). Os indivíduos que também faziam dança e capoeira,
possuíam uma tendência a se dedicarem mais às experimentações de flow, desenvolvendo de
forma muito criativa e improvisada inúmeros movimentos por entre os objetos variados,
relatando também levar o que era aprendido no parkour para os momentos daquelas práticas.
Já os praticantes de calistenia e musculação apresentavam uma intimidade particular com
movimentos de escalada – que requer muita força nos braços. Estes, entretanto, são exemplos
rápidos apenas para fins de ilustração, pois tudo isso, especialmente nos treinos coletivos,
104
mistura-se de forma a estabelecer uma verdadeira panaceia de experiências e trocas diversas,
regadas a suor, cicatrizes, calos, quedas, arranhões (e eventualmente um pouco de sangue),
diálogos, “broncas”, incentivos, fotos, vídeos, piadas e muita arriação30.
Não é somente o corpo, assim, que está em movimento, mas todo o mundo. O
aprendizado vai se delineando a partir dos encontros, seja com as pessoas, com os artefatos,
com o ambiente. E as formas de dialogar com os aspectos materiais e subjetivos, com o
mundo, permite construirmos interpretações sobre eles, sobre nós, sobre eles e nós em plena
articulação. Sob essa perspectiva, a técnica não é “um produto objetivável, mas formas novas
de acoplamento em situações específicas” (DEBORTOLI et al, 2014, p.10).
Termo também muito utilizado no parkour, a “consciência corporal”, não deve ser
reduzida à percepção do movimento como um desdobramento da mecânica do corpo em dada
situação, mas sim, a um processo de compreensão que entrelaça memórias, vontades, desejos,
alegria, inseguranças, medos, enfim, os afetos mobilizadores de cada indivíduo. As árvores,
paredes, batentes, escadas, barras, pedras, terra e passantes também estão em plena relação
com a prática do parkour, estes e vários outros elementos podem “limitar”, por um lado,
determinados movimentos, mas também convida à criatividade, à inventividade, abrindo
novas possibilidades de conhecimento de si mesmo e do mundo. A técnica, assim, é também,
capacidade adaptativa, e esta, por sua vez, implica estar em relacionamento com o mundo:

Ganha força assim uma compreensão de que técnica enquanto relação; aquilo que,
com quem ou com o que você está propondo se relacionar; seja uma pessoa, uma
parede, uma cadeira, um platô móvel ou uma corda. Como ação relacional, o
movimento efetiva-se como possibilidade de narrativa, cujo sentido é produzido
como processo de envolvimento. (ibid, p.14)

A técnica, portanto, “se revela como um processo que envolve a pessoa inteira
interagindo em e com o ambiente, indissociavelmente, social e natural” (Sautchuk et al, 2014
p.10). No caso do parkour, a maior parte do desenvolvimento das habilidades, das técnicas,
dos movimentos em geral, dá-se em um processo de emulação, seja de vídeos ou dos próprios
companheiros de treino. Vale destacar que existe uma elaboração coletiva, mas também
individual e que a “destreza” do movimento não está somente em realizá-lo de uma
determinada forma, mas saber adequar-se a novas possibilidades. Podemos dizer, dessa forma,
que no parkour não há meramente uma reprodução de padrões, de técnicas fechadas em si,
30 Arriação é um termo também observado no meu campo de pesquisa durante o mestrado sobre lazer na
periferia de Campina Grande, constituindo um tipo de sociabilidade fundada na jocosidade entre os
indivíduos, podendo desenvolver relação de aproximação ou afastamento dentro do contexto observado.
Termos como “frescar” e “tirar onda” possuem sentidos próximos. (PEREIRA, 2016)
105
mas que todo movimento é único por si só, uma vez que mobiliza técnica-percepção enquanto
uma unidade, elaborando e participando, assim, de processos criativos.
Estes são alguns dos primeiros passos pelos quais busco adentrar na discussão do
parkour sob uma perspectiva da antropologia processualmente desenhada por Ingold. Ao
longo do trabalho, pretendo traçar paralelos com outras abordagens, a fim de analisar questões
outras supostamente negligenciadas por Ingold, como, por exemplo, a noção de “poder”, tão
trabalhada por Foucault. Ambos os autores têm suas influências no vitalismo de Nietzsche,
mas elaboram de maneira distinta seus projetos teóricos (PINHO, 2017).
Além disso, podemos citar de antemão uma crítica já delineada a respeito do projeto
ingoldiano: Silva afirma que a pretensão de Ingold em romper com os cânones das
abordagens cognitivistas por meio de explicações não sociológicas não ocasiona uma
subversão nas bases epistemológicas da antropologia clássica. Ainda que a proposta de Ingold
queira ultrapassar a ideologia moderna ocidental mobilizada por Mauss e Durkheim, ele não
escapa dela.
Dessa forma, não busco abandonar completamente os debates trazidos por outros
autores, mas procuro explorar um pouco mais as potencialidades das sugestões abertas por
Ingold, a nível teórico e metodológico, especialmente naquilo relacionado à experiência,
materialidade e movimento, categorias que me parecem conferir uma riqueza interessante na
análise do parkour.
106
CAPÍTULO 3 – PENSANDO E APRENDENDO COM O CORPO

Este capítulo objetiva apresentar alguns aspectos das vivências com o parkour
relacionadas com a experiência corporal dos praticantes. Busco trazer algumas reflexões que
nos ajudem a compreender formas de agenciamento, percepção e modos de aprendizagem
do /com o corpo enxergadas na dinâmica do parkour. Começo a explorar essas questões com
um breve ensaio sobre como podemos exercitar a compreensão da prática a partir de uma
reflexão pelos pés, como uma maneira de deslocar o centro perceptivo do corpo da
cabeça/mente para o corpo como um todo.
Assim, o exercício de pensar a partir dos pés trata-se de um recorte voltado para a
atenção de um detalhe importante que elabora a aproximação da pesquisadora com o
fenômeno estudado, assim como constitui uma dimensão indispensável à reflexão do
praticante diante da experiência do parkour. Além disso, prologamos o debate para outras
questões da aprendizagem, a fim de revelar a criatividade como um processo de conhecimento
contínuo e engajado no mundo.

3.1 Refletir a partir dos pés

À medida que fui participando dos treinos de parkour como pesquisadora, despertei
meu interesse por entender melhor, a partir do meu próprio corpo, os movimentos que eu
observava, como também fui sendo eventualmente convidada para experimentar alguns
movimentos. Ainda em um momento anterior, alguns dos entrevistados fizeram relatos onde
mencionavam alguma consideração sobre suas roupas e calçados utilizados nos treinos e,
durante estes, esse tema retornou, especialmente a questão dos tênis.
Existem diversos tipos de calçados disponíveis para a prática de esportes e atividades
em geral, e os praticantes de parkour podem utilizar uma variedade destes, entretanto, em
geral, parece haver uma certa preferência por tênis leves e flexíveis, cuja estrutura fique rente
aos pés e sem espessuras muito grossas. Esses tênis passam a ficar ainda mais confortáveis
quando um pouco antigos, pois memorizam o formato do pé do usuário, segundo os traceurs.
Em uma dos treinos na AMP, acompanhei o traceur Pedro para um passeio/treino por
diversos lugares de Póvoa do Varzim, passando por bancos, escadas e muros, até chegar à
areia da praia da cidade, onde havia uma estrutura de cordas construída sobre a mesma.
Depois fomos até uma área de concreto e pedras, bem próximo ao mar e enquanto Pedro
107
subia, descia e se deslocava com agilidade por todos esses materiais, eu sentia um certo
desconforto em simplesmente andar e acompanhar o seu ritmo de deslocamento.
Em geral, eu tentava ir à campo sempre com roupas confortáveis, como uma calça do
tipo legging, moletom e/ou blusa mais leve, de acordo com a temperatura, além de algum par
de tênis. Nesse dia que acompanhei Pedro em Póvoa do Varzim, por exemplo, eu usava um
tênis do modelo Fila Disruptor, um calçado extremamente robusto, com um solado tratorado
de 4cm, o qual não me causa desconforto mesmo em caminhadas longas por superfícies mais
lisas, mas que, em lugares mais acidentados e com caminhos mais sinuosos, tende a
apresentar uma dificuldade de adaptação ao espaço. A sensação que eu tinha com esse tênis é
de estar com os pés muito longes do chão, além de sua espessura muito rígida não oferecer
nenhuma flexibilidade. Meus pés eram como duas pedras de tijolo. E senti isso quando
precisei fazer uma pequena escalada em um muro baixo de concreto, no qual eu bastava
apoiar os pés e Pedro, que já estava no nível mais alto da estrutura que estávamos subindo,
iria me ajudar, ao me puxar pelas mãos. Apesar de não ser uma traceuse, eu sabia que até
mesmo descalços eu conseguiria subir aquela parede mais facilmente, mas definitivamente
não com aqueles tênis.
Em outras oportunidades, comecei a observar melhor os pés dos traceurs e vi que
alguns deles usavam modelos mais próximos daqueles utilizados para academia e caminhada
e resolvi usar um modelo parecido que eu tinha, adquirido justamente para fazer longas
caminhadas. Passei a usar o tênis New Balance 373, que apresentava um conforto muito
maior em relação ao anterior, sendo bastante leve e tendo boa flexibilidade. Eu gostava desse
tênis para realizar especialmente movimentos de precisão, pois ele é macio e oferece um leve
amortecimento e aderência. Entretanto, ainda sentia dificuldade com ele para movimentos de
equilíbrio em barras ou estruturas similares, nos quais eu sentia uma certa necessidade de
preensão com os pés para me manter com a coluna ereta por mais tempo.
Apesar desse tênis de caminhada/academia, de modelo mais “esportivo”, ser bem
tolerado entre os traceurs, o modelo que parece ter mais aceitabilidade é aquele cujo cano é
baixo e seu material, geralmente confeccionado com lona e borracha, além de ter espessura
fina, flexível e possuir contato bem rente aos pés. São modelos parecidos com o Converse All
Star ou com o modelo VI 2500 da marca brasileira Rainha, sendo este último um dos mais
mencionados e utilizados pelos traceurs de Campina Grande, tendo em vista seu ótimo custo-
benefício e uma melhora de adaptabilidade aos pés, com o passar do tempo. Segundo os
traceurs, esse tipo de tênis fornece uma boa flexibilidade, além de ser um dos modelos
108
disponíveis que mais se molda ao pé do seu usuário. Assim, resolvi testar um terceiro tênis
que eu tinha, similar ao modelo escolhido pelos traceurs, que se encontrava já bem utilizado e,
por isso, bem adaptado ao meu pé.
Podemos nos questionar, ainda: e porque a necessidade de utilizar calçados, então? É
evidente que há experiências de movimentos do parkour feitos descalços, entretanto, o uso do
tênis ainda parece ser necessário devido a um processo de adaptação às texturas e formas do
ambiente. Servem como uma barreira de proteção contra texturas espinhosas, eventuais cacos
de vidros e absorvem, ainda que pouco (especialmente no caso do tênis do tipo “Rainha”), o
impacto, só para sinalizar alguns exemplos. Os tênis mais utilizados no parkour são os que se
comportam como um tipo de “intermediário” entre os tênis mais robustos, espessos ou rígidos
e a forma do pé do praticante, funcionam, assim, como uma opção interessante para
movimentar-se com certa liberdade e flexibilidade.
Ouvindo, assim, os relatos e observando os pés dos traceurs, busquei também notar as
nuances sentidas por mim da utilização de cada um desses calçados que utilizei para a
realização de alguns movimentos. Resolvi olhar bem de perto os calçados e os meus próprios
pés, observando os detalhes no design dos calçados e a forma que tomava meus pés em cada
um deles, tentando exercitar um pouco a atenção sobre a relação desses tênis com os pés, com
o movimento e com as texturas com as quais eles se relacionam nas atividades do parkour.

Figura 6: Dimensões aproximadas de tênis Fila

Fonte 6: fotografia da autora


Figura 7: Dimensões aproximadas de Tênis Fila
109

Fonte 7: fotografia da autora

Figura 8: Dimensões aproximadas de tênis New Balance

Fonte 8: fotografia da autora

Figura 9: Dimensões aproximadas de tênis New Balance

Fonte 9: fotografia da Autora


Figura 10: Dimensões aproximadas de tênis Primark 110

Fonte 10: Fotografia da autora

Figura 11: Dimensões aproximadas de tênis Primark

Fonte 11: Fotografia da autora

Tirei as medidas aproximadas dos tênis, especialmente as relativas à altura entre a


entressola e o solado (de onde senta o pé à superfície do tênis em contato com o chão), à
largura na área dos dedos dos pés (ante-pé), ao comprimento e à altura do calçado (da língua
do tênis à sola), pois notei que são as que mais apresentam variações quando comparamos os
três modelos que mencionei. Cabe destacar, ainda, que outras variáveis precisam ser levadas
111
em conta, como a espessura do material dos tênis: apesar das medidas entre os três não ser
extremamente significativa, a espessura, por exemplo, do Fila Disruptor é bem grossa em
relação aos outros dois. Entre o New Balance e o Primark, também há uma diferença de
espessura. Tanto a altura entre entressola e sola, além da espessura do material do tênis, vão
proporcionar uma maior flexibilidade e contato com as superfícies pelas quais o usuário se
desloca.
A escolha dos traceurs pelo terceiro modelo parece permitir uma maior liberdade aos
pés na realização dos movimentos, sendo o que mais se aproxima da própria forma do pé,
proporcionando um maior contato, aderência e leveza. Evidentemente não se trata de uma
análise técnica e seria necessário um estudo especializado para trazer melhores detalhes e
explicações mais aprofundadas sobre o design e a ergonomia desses calçados. Tentei fazer
essa observação como um experimento de aproximação metodológica com o que estudei, a
fim de realizar mesmo um exercício sensorial para buscar compreender melhor o parkour
pelos pés.
Observar o parkour a partir da cintura para baixo, e compreender o processo de
vivência e aprendizado da prática a começar pelos membros inferiores é também um exercício
de considerar pernas e pés como imprescindíveis no processo de conhecimento e
desenvolvimento das habilidades humanas. Trata-se de um olhar que busca trazer a análise da
experiência pedestre proporcionada pelo parkour, em meio a um processo histórico de
redução progressiva das atividades andantes, impulsionada especialmente na era do carro com
a mecanização do pé com a utilização de botas e outros calçados, o aumento do uso das
cadeiras e a viagem orientada para um destino certo (INGOLD, 2018). Nesse sentindo, busco
debater nos próximos tópicos como podemos estabelecer um diálogo entre o parkour e a
compreensão de uma certa supremacia da cabeça sobre os pés, buscando entender como
analisar uma prática habilidosa a partir da locomoção pode fortalecer a hipótese de que
atividade perceptiva também depende dos nossos sentidos em conjunto. O conhecimento
também é feito com os pés.

3.2 Aprender com todo o corpo

A razão, localizada no corpo da cintura pra cima, onde cabeça, braços e mãos
funcionam como operadores da transformação sobre o mundo, libertos devido a possibilidade
112
da postura ereta do ser humano, relega pernas e pés a um papel secundário unicamente
responsável pela locomoção, não como participantes de uma dinâmica de conhecimento
(INGOLD, 2018). E outras palavras, pensamos da cintura para cima – os projetos inteligentes
são criados e entregues pela cabeça e mãos, enquanto pernas e pés não participariam
diretamente dos processos cognitivos. Estes, estariam em oposição à locomoção, sinalizando
o reforço da clássica dicotomia mente x corpo.
Mover-se, assim, não é visto como fator que desencadeia o processo perceptivo. A
ideia de percepção está ligada - muito em parte em função da própria história ciência - à
mente como elemento dissociado do corpo, este sendo, assim, relegado a um conhecimento
menor. É especialmente com a fenomenologia de Merleau-Ponty (1999) que podemos a
compreender um olhar alternativo à dicotomia cartesiana, propondo uma perspectiva na qual a
percepção está diretamente vinculada ao corpo em todos os seus sentidos. Conhecemos não só
com os olhos, mas com mãos, pés, olfato, audição.

A percepção sinestésica é a regra, e, se não percebemos isso, é porque o saber


científico desloca a experiência e porque desaprendemos a ver, a ouvir e, em geral, a
sentir, para deduzir de nossa organização corporal e do mundo tal como o concebe o
físico aquilo que devemos ver, ouvir e sentir. A visão, diz-se, só pode apresentar-nos
cores ou luzes, e com elas formas, que são os contornos das cores, e movimentos,
que são as mudanças de posição das manchas de cor. Mas como situar na escala das
cores a transparência ou as cores "turvas"? (...) Da mesma maneira, no ruído de um
automóvel ouço a dureza e a desigualdade dos paralelepípedos, e com razão fala-se
em um ruído "frouxo", "embaçado" ou "seco". Se se pode duvidar de que a audição
nos dê verdadeiras "coisas", pelo menos é certo que ela nos oferece, para além dos
sons no espaço, algo que "rumoreja" e, através disso, ela se comunica com os outros
sentidos. (ibid, 309-310)

Em outras palavras, evoca-se um alargamento da compreensão sobre a percepção a


partir de uma perspectiva em que todos os sentidos, e não só a visão e o tato, participem do
processo de conhecimento do ser humano. Esse exercício pode ser feito com o auxílio de uma
análise detida sobre processos simples, como o uso de uma bengala por um indivíduo cego:
com seu uso contínuo, esse instrumento passa, também, a tatear o mundo, pois “não é mais
um objeto que o cego perceberia, mas um instrumento com o qual ele percebe (…) uma
extensão da síntese corporal” (ibid, p.211). Nesse sentido, quando utilizo o exemplo dos pés
não quero sugerir uma soberania destes sobre as próprias mãos ou outras partes do corpo, mas
sim, como um exercício de compreender a percepção pelos sentidos difusos no corpo. Essa
ideia pode se aplicar, portanto, a outros sentido, inclusive na análise do próprio parkour. Para
113
fins deste trabalho, escolhi “pensar a partir dos pés” - meus e dos praticantes que participaram
desta pesquisa.
Apesar do parkour ser uma atividade que aumenta a experiência pedestre, há alguns
elementos que nos apontam uma certa permanência do que Ingold (2018) chama de
“supremacia da visão” - relacionada, ainda, com o ponto que falamos sobre a razão localizar-
se na parte superior do corpo. Ao mesmo tempo que, no parkour, são feitas dinâmicas muito
interessantes para treinar a noção do espaço sem recorrer necessariamente à visão como, por
exemplo, exercícios com os olhos vendados, trata-se, ainda, de uma prática com um
considerável apelo visual. Podemos observar isso, em certa medida, tanto na escolha de certos
lugares e movimentos considerados mais “perigosos”, quanto no papel que as imagens e
vídeos desempenham em boa parte da experiência dos seus praticantes, especialmente quando
da realização de saltos mortais ou saltos feitos em lugares muito altos. É evidente que os
registros31 produzidos durante essas experiências nem sempre se destinam exclusivamente a
sua reprodução em sites ou redes sociais, muito utilizados por diversos traceurs como nicho
de produção de conteúdo e propagação de sua prática.
Dizer, entretanto, do apelo visual que o parkour possui, em maior ou menor instância,
tem mais a ver com um tipo de produção de conteúdo e de uma vivência voltados para uma
certa espetacularização da prática, do que para a afirmação da superioridade da visão sobre o
processo de desenvolvimento da habilidade prática. Por outro lado, também há, durante a
própria experiência com o parkour, um treinamento gradual da atenção que não se limita à
atitude da visão. Quando um praticante relata, por exemplo, que é necessário sentir se hoje ele
“está bem” para realizar um determinado movimento, ou que é necessário sentir se é possível
“saltar mais que seis ou oito pés de distância hoje”, no ponto em que se encontra “física e
mentalmente” falando, ele sugere um processo de percepção que ocorre na atenção da própria
disposição corporal. Relatar, portanto, que não se está com “cabeça” para fazer algum
movimento, aponta, na verdade, um processo de percepção vivenciado pelo corpo como um
todo:

Se tiver bem, normalmente consegues fazer as coisas, não cai, o corpo às vezes tem
mais entusiamo do que a nossa mente, mas nem sempre dá certo. Se tiveres num dia
ruim, é claro que podes fazer movimentos, mas é melhor fazer movimentos mais
leves, mais simples, brincando… e depois se calhar, até transformas essa energia
negativa em algo melhor. É tipo uma dança, mas nesse caso com movimentos de
parkour. É tipo dançar...É também como uma arte, a arte do que tu podes fazer com

31 Importante lembrar a reflexão feita por Caldeira (2012) de como esses registros feitos por praticantes de
parkour (de graffiti, de pixo etc) funcionam de maneira a estender uma experiência efêmera.
114
o corpo e com o ambiente. Tu sentes aos poucos e inventas a dança, entendes quais
os passos que encaixam ou não naquele ritmo, entendes o ritmo que te apeteces
naquele momento...ao teu corpo, a tua mente. É mesmo tipo dançar. (Vasco)

O relato feito por esse traceur faz um interessante paralelo do parkour com a “arte do
que tu podes fazer com o corpo e com o ambiente”, ao mesmo tempo nos mostra que
entender os passos e os ritmos pertinentes ao momento, ao ambiente, ao corpo, à mente é um
único processo de que abrange todos os sentidos. Ainda que um as figuras de mente e corpo
como coisas diferentes sejam apresentadas a nível narrativo nos relatos dos traceurs, a
construção explicativa, aliada à observação da prática, são capazes de nos mostrar a unicidade
do processo perceptivo, uma vez que os sentidos não estão vinculados casualmente, e, sim,
confusamente implicados em um drama único (MERLEAU-PONTY, p.269). Esse
aprendizado do movimento implica um conhecimento que se desenvolve no ato de explorar,
de mapear (INGOLD, 2005), de uma atitude fundamental de abertura ao novo, ao
imprevisível do mundo. Aprender, portanto, um movimento corporal não pode ser pensado
enquanto uma experiência que se emerge e fica limitado às fronteiras do corpo que o pratica.
Trata-se de um processo que emerge em conjunto e se estende às várias dimensões da vida
daquele que o experiencia

Porque parkour se trata de fazer algo diferente ou novo sempre. Que é diferente de
fazer basquete ou futebol porque eu não desenvolvo essas habilidades, eu só recebo
e repito as regras...não se mudam os padrões corporais… mesmo na ginástica é
sempre aquilo, é mais rígida, mais monofuncional, não existem outras alternativas,
sempre indoor, e a pessoa acaba não vivenciado a experiência do que é ser uma
pessoa no mundo físico. Parkour tem isso...tem essa parte, pois… abre mais, como a
primavera. É altamente subjetivo, sei que depende de cada pessoa. Mas acho que no
geral toda gente sente isso, quem faz parkour há muito tempo (…) Eu pensei numa
coisa que faz mais sentido pra mim: dizem que as pessoas do parkour são malucos
ou inconscientes, mas já conheci mais pessoas responsáveis e conscientes no
parkour do que em qualquer outro grupo de amigos que participei. Tomando
consciência do teu corpo e do teu corpo com o ambiente, e a tua relação com os
outros e com o ambientes, ficas mais consciente das coisas, e ajudas mais os outros e
a ti próprio. E é um bocado disso. (Vasco)

O desenvolvimento de uma habilidade decorre justamente da sinergia entre o corpo do


tracer e de todo o seu entorno, essa “consciência” é a percepção que é, por sua vez,
relacionada ao alinhamento ocorrido entre “os próprios movimentos em contraponto às
modulações do dia e da noite, do sol e da sombra, do vento e do clima. É sentir as correntes de
ar enquanto infundem o corpo, e as texturas da terra sob os pés (INGOLD, 2018, p.142).
Dessa forma, a tomada de consciência corporal, expressão corrente não só no parkour, como
no mundo das atividades físicas em geral, supõe, segundo a análise aqui feita, um movimento
115
de atenção a partir do engajamento corpóreo no mundo orientado por uma educação da
atenção.
Nesse sentido, Bruno destaca a importância dos treinos em conjunto, com diferentes
pessoas e suas experiências distintas: quando mais diverso, melhor. Pois isso ajuda, segundo
ele, a diluir essa visão “bizarra” de que o parkour se limita a coisas extremas e muitas vezes
desestimulantes para todos os tipos de perfil. Além disso, o estereótipo de parkour como
esporte “radical pode ser um caminho perigoso, servindo para criar ilusões acerca da prática e
incentivando-a de maneira um tanto irresponsável. Treinar em conjunto é interessante para
Bruno porque mostra as várias possibilidades de experimentação com o corpo a partir de
diferentes movimentos, tendo em vista que cada praticante tem seus “fortes” e seus “fracos” e
tudo isso pode ser enriquecido e desenvolvido de forma criativa e coletiva.

A molecada que tá junto com a gente, que é mais nova, vê o estilo dele, vê o
meu estilo, aprende com os dois, vão descobrindo o que eles gostam, vão achando o
caminho deles… E todos eles também tem suas vivências, né? Então eu acho é
preciso entender que parkour é estar transitando por tudo isso. É praticar depois um
pouco de capoeira, ver qual movimentação é boa, e praticar depois um pouco de
kung fu, ver qual conceito é bom pro treino, sabe? Não precisa ficar também só
“parkour parkour parkour”. Esse negócio de ficar brigando pelo o que é parkour e
free running… acaba gerando um...sendo sectário, essa é palavra mesmo. (Bruno)

A abertura para a aprendizagem coletiva, para a troca de experiências e disposição de


orientar os iniciantes na prática é extremamente valorizada na comunidade do parkour, sendo
citadas sempre como um dos “pilares” no qual o parkour se sustenta: o altruísmo. Treinar
parkour e, sobretudo, treinar na coletividade potencializa o aperfeiçoamento mútuo das
habilidades, bem como fortalece o sensação de que “não se está sozinho”, como cita Ygor ao
conversamos sobre a importância dos encontros de parkour em sua trajetória com a prática.
Os encontros de parkour, a exemplo dos Encontros Nordestinos, no Brasil, e das Jams,
no Porto, são constantemente mencionadas como uma das principais oportunidades de
expansão do aprendizado e, com as trocas, aconselhamentos de outros praticantes e
observações de outros tipos de movimentações, há uma maior possibilidade de
“destravamentos” de alguns movimentos que até então não conseguiam ser feitos por
determinados praticantes. Além disso, as falas sobre esses eventos carregam uma bagagem de
memórias afetivas sobre os encontros, as amizades, as lições de coragem, ajuda, conselhos
dados e recebidos, brincadeiras, etc. Também são citadas algumas situações de conflito
decorrente de divergências de opiniões e, principalmente, falta de humildade ou
116
exibicionismo por parte de alguns praticantes que, segundo os entrevistados, estavam lá “só
para se mostrar e não para, de fato, trocar a experiência com os colegas”.

Figura 12: Praticantes de parkour durante treino coletivo, no Parque da Criança

Fonte 12: fotografia da autora

Figura 13: Praticantes de parkour durante treino coletivo, no Parque da Criança

Fonte 13: Fotografia da autora


117

Figura 14: Praticantes de parkour no skate park da Maia,


durante uma Jam

Fonte 14: Fotografia da autora

Figura 15: Praticantes de parkour no Skate Park da Maia, durante uma Jam

Fonte 15: Fotografia da autora


118
A troca de experiências, o deslocamento geográfico, mas também cultural e social,
proporciona novas formas de viver o parkour. Diferentes afetos e vivências com o mundo
fazem parte do processo de engajamento que se dá por meio de habilitações. O mundo do
parkour é uma demonstração de como uma prática revela um enorme leque, ou melhor, uma
malha de linhas de vida. Para Bruno, o parkour atua como um “caminhão” que o ajuda a
carregar várias experiências de práticas corporais

É tipo eu ter encontrado o caminhão pra levar a carreta toda carregada já, então pk é
isso, é um caminhão que já tinha uma carga atrás. Que faltava essa carga ser
conectada ao caminhão pra sair levando adiante. Deve ter o objetivo final...mas o
objetivo final eu não posso falar o que é, porque eu também não sei o que é… Onde
tudo isso vai me levar eu não sei, por enquanto é isso… tô curtindo essa coisa de
pensar um parkour com isso da capoeira angola como eu falei, um novo estilo
focado na lentidão… mas aí eu trago coisa da dança, um pouco das artes
marciais...um pouco da vida toda, né… o parkour me ajuda a carregar tudo isso e a
fazer coisas diferentes com tudo (Bruno)

Nos treinos coletivos é possível ver as dinâmicas de aprendizado a partir da relação


entre praticantes mais experientes e os mais novos, ou entre praticantes com habilidades
voltadas para movimentos distintos. Um termo muito comum é “destravar” ou “desbloquear”
um determinado movimento, aludindo, em alguma medida, à passagem de fase nos jogos de
videogame. Há uma diferença entre desbloquear e aprender o movimento: desbloquear é
conseguir realizar o movimento, mas aprender implica uma uma certa consolidação da
movimentação, fazendo-a de maneira mais fluída, menos rígida, conscientizando-se melhor
sobre o próprio corpo.
Durante um treino no Açude Velho, em Campina Grande, Heitor dá um exemplo com
um mortal que ele já sabia fazer, mas sentia que não saia “leve”. À medida que foi treinando
mais, e obtendo conselhos dos colegas, começou a mudar pequenos detalhes como uma leve
articulação no joelho e o impulso do tronco a fim de que pudesse tornar o salto mais
confortável. Esse conforto pode ser interpretado como o processo de habilidade que é
desenvolvido a partir da educação da atenção.
Em outra oportunidade, no Porto, alguns meninos mais novos treinavam saltos de um
banco para outro, distando algo entre 1,5m e 2m. A maioria, ao meu ver, parecia realizar com
uma certa eficácia (pois para mim, saltar de um banco para o outro já era sinônimo de
sucesso), entretanto, percebi que entre eles, que já estão habituados e compreendem muito
mais que eu a respeito das técnicas, havia uns aconselhamentos do tipo “estica mais as
costas”, “estica mais as pernas”, “flexiona o joelho” etc. Percebi, sobretudo no início do treino
119
que, quando os meninos saiam correndo, tomando impulso para pular no primeiro banco e, do
primeiro, pular para o segundo, muitas vezes vacilavam ao chegarem perto do primeiro banco,
não subindo e voltando ao ponto de partida para tomar impulso novamente.
Passei exatamente por essa hesitação em um treino com Bruno, no qual ele me
ensinava a fazer um speed em uma pequena parede: trata-se de um movimento que consiste
em “transpor o obstáculo apoiando-se com apenas uma das mãos e lateralizando o corpo no
momento da ultrapassagem com relação ao objeto” (SENA; LEMOS, 2020). Vacilei várias
vezes para iniciar o primeiro salto. Corria e, quando chegava muito próximo ao banco, parava.
Depois de algumas tentativas, Bruno constatou que minha dificuldade estava em esticar a
perna direita, que deveria fica do lado externo, dando mais espaço para a perna esquerda
“passar por dentro”. Ao me falar isso, passei a me esforçar para pôr em prática o seu conselho
e, depois de algum tempo, consegui “desbloquear” o movimento. Aprender até me sentir
confortável, só com bastante treino.
Essa atenção ocorre a partir de uma atitude “vigilante do caminho, à medida que ele
vai se desdobrando” (INGOLD, 2015, p.27), trata-se, dessa forma, vigiar com todos os
sentidos de maneira mais atencional do que intencional. Portanto, quando falamos de romper
a dicotomia cartesiana e o modo representacional de encarar o processo de percepção, não
queremos dizer que não existem processos psicológicos e intencionais. Mas sim, afirmar que a
mente é “imanente ao próprio movimento, e não uma fonte originadora à qual esse
movimento pode ser atribuído enquanto efeito” (ibid).

3.3 Parkour como um resgate do natural?

Na introdução, trazemos alguns aspectos iniciais sobre a relação do parkour com o


método natural de George Hébert e, neste tópico, busco explorar melhor esse diálogo a fim de
apresentar elementos que nos revelem a elaboração de uma ótica sobre o corpo, originalmente
no âmbito científico da educação física, onde Hébert se situa, e como esse olhar produz
ressonâncias, ainda, nas narrativas e vivências atuais em relação ao parkour.
O Método Natural de George Hebert, como o próprio nome já diz, mobiliza o discurso
de um certo resgate dos movimentos naturais dos seres humanos - endossado ainda hoje seja
pelos próprios praticantes de parkour, seja por estudiosos32 - uma vez que foram suprimidos e

32 Ver, por exemplo, Vieira et al (2011), Nagata e Carmo (2011), Carneiro (2016), Silva (2012). Além disso,
figuras imponentes do parkour como Sébastien Foucan (2008) também se reporta à prática referenciando
certos movimentos a tipo de “desejo natural” ou “movimento natural”
120
perdidos ao longo do tempo, capturados pela forma de vida moderna, constrita em calçados,
cadeiras, ruas pavimentadas e automóveis. Tendo sua inspiração a partir da observação dos
povos pertencentes a tribos das Américas e África em suas viagens de missões da Marinha,
Hébert (1909) propôs uma série de exercícios a serem incluídos nos treinos militares,
exercícios estes que visavam uma melhor performance do ser humano na realização das
atividades da corporação a partir de um certo tipo de intimidade tátil com o ambiente que
seria conquistada com o aprendizado de oito grupos de movimentos básicos do corpo
humano: caminhar, correr, saltar, escalar, equilibrar-se, lançar, levantar, nadar (ibid, p.5).
É compreensível o uso da ideia de um “resgate do natural” não só por Hébert, mas
outros estudiosos da educação física da época, se olhamos para o contexto no qual estava
inserido: um mundo que experimentava grandes mudanças nas tecnologias, especialmente as
de locomoção, um ritmo frenético de expansão industrial, novos movimentos colonizadores
em torno do continente africano e asiático e a implosão da primeira guerra mundial. Todos
esses elementos contribuíram para alimentar o projeto de Hébert de desenvolver um tipo de
treinamento utilitário, acessível e inspirado nos modos de vida e nas técnicas de deslocamento
dos povos que ainda habitavam o imaginário exótico do sonho colonial dos europeus.
A ideia de Hébert ainda perdura, em maior ou menor medida, nas narrativas e na prática dos
do parkour, tendo em vista que o parâmetro que hoje temos dos movimentos corporais é
basicamente o conjunto muito restrito daqueles que mobilizamos no cotidiano de uma vida
onde a locomoção é facilitada por diversas tecnologias que não são as próprias pernas ou
braços daqueles que em tese poderiam acioná-los de forma mais ampliada. A referência a um
ethos animalesco de certos tipos de movimento como o acocorar-se ou o andar quadrupedal
também contribuem para uma cristalização da ideia de um movimento natural que foi perdido
ao longo do tempo, influenciado pelos aparatos modernos da civilização humana.
Mas é importante termos em mente que, apesar da razoabilidade desse discurso, é
preciso entender os significados da característica de “natural” que Georges Hébert visava
conferir ao método que ele buscava desenvolver. Assim, perceber como a locomoção e as
técnicas do movimento devem ser observadas em vinculação às formas de viver dos
indivíduos, às circunstâncias culturais e ambientais dos mesmos talvez tenha sido o que
impulsionou Hébert a enquadrar o seu método como “natural”. Concordo com Ingold (2018) e
Mauss quando estes afirmam, entretanto, que nenhuma dessas maneiras de se locomover, seja
com os pés descalços sobre terra e pedra, ou com os pés calçados em botas por sobre ruas
pavimentadas, são naturais. Evidentemente que processos tecnológicos podem ampliar ou
121
restringir, imediatamente ou a longo prazo, as formas da movimentação corporal, mas esse
fato não tem a ver com uma suposta naturalidade do ato em si. O “natural” aqui, nada mais é
do que os aprendizados dos indivíduos em sinergia com o ambiente e com a cultura que estão
inseridos.
Dessa forma, Hébert (1912), no seu Guide Pratique d’Education Physique, faz a
seguinte afirmação: atividade é uma lei da natureza. Então, desenvolve seu argumento de que
o ser humano, em seu “estado natural”, assim como os outros seres vivos, obedecendo às
necessidades naturais, desenvolvem-se fisicamente somente em realizar os seus exercícios e
trabalhos úteis a sua sobrevivência. Ele afirma, ainda, que tal desenvolvimento vai depender
das habilidades originais do indivíduo, do seu temperamento, das condições climáticas onde
vive e dos desafios postos a esse ser humano.
Nesse sentido, Hébert tece uma crítica à forma de vida que os “países civilizados”
impuseram ao indivíduo, afastando-o dos ambientes naturais e desencorajando cada vez mais
os exercícios físicos desde a infância. Além da crítica a um modo de vida sedentário que o
mundo moderno suscitou nos seres humanos, Hébert afirma que as escolas de educação física
deveriam não só orientar exercícios e cuidados corporais, como incentivar uma moralidade
voltada para o desenvolvimento da coragem e do altruísmo em prol de si mesmo, da sua
família e da humanidade (HÉBERT, 1909). Dessa maneira, portanto, é que ele busca elaborar
um método capaz de agregar essas orientações, centrado especialmente no papel da utilidade,
cuja inspiração é o indivíduo “não civilizado”, que age por “imitação” e por “instinto”,
participantes de culturas outras que não a europeia, sobretudo as pertencentes aos povos das
colônias francesas nas Américas e na África

Le sujet non civilisé se perfectionne de lui-même, par imitation d'abord, en usant


ensuite de son expérience per sonnelle ; c'est une action tout instinctive.
La méthode, au contraire, aide dès le début le sujet civilisé en lui indiquant les
meilleurs principes à suivre. Elle lui évite un grand nombre d'essais infructueux et
d'expériences personnelles inutiles ou dangereuses. Elle lui permet ainsi de gagner
du temps. En outre, il faut remarquer que les effets de certains exercises naturels ou
de certains travaux impossibles à pratiquer dans certains cas, peuvent être obtenus
artificiellement par des mouvements particuliers bien déterminée. (…) Ces exercices
forment huit groupes distincts, qui sont : la marche, la course, le saut, la natation, le
grimper, le lever, le lancer, enfin la défense naturelle (par la boxe et par la lutte).
(…) En dehors d'eux il reste seulement des exercices tels que l’escrime, l'équitation,
l’aviron,... qui sont d’unc utilité secondaire ou limitée à certaines catégories de
personnes ; ou bien des jeux, des sports, des exercices de fantaisie ou acrobatiques ;
mais aucun parmi ces derniers n'est indispensable à tous les individus, sans
distinction de profession ou de classe. (ibid, p. 4-5)
122
Nesse sentido, Hébert propõe a constituição de um “método racional”, visando o
máximo rendimento da “máquina humana”, baseado no ideal de “ser forte” e “ser útil”.
Assim, elabora um método de aprendizagem e o aprimoramento de exercícios básicos e úteis
que a maioria dos seres humanos poderia conseguir realizar a partir de uma série progressiva
de treinos, aperfeiçoando o sistema muscular, respiratório e corrigindo problemas decorrentes
de maus hábitos físicos (ibid) Tal elaboração privilegia o aperfeiçoamento de exercícios
específicos, considerando secundárias práticas como as acrobacias, por exemplo. Segundo ele,
aqueles exercícios básicos seriam não só mais úteis, quanto também mais acessíveis à maioria
dos indivíduos, enquanto essas práticas acessórias ofereceriam uma maior restrição. Além
disso, o oficial da marinha francesa também leva em consideração o tempo limitado que o
indivíduo moderno possui, fator este que exige um método racional, otimizado de treino e, por
essa mesma razão, a necessidade de realizar um exercício útil para si e para os outros.
Hébert é constantemente lembrado tanto nas narrativas dos praticantes, quanto na
literatura relacionada ao parkour, como uma peça essencial na emergência da prática,
especialmente pela influência causada nos treinos de Raymond Belle e, reverberando,
posteriormente, no desenvolvimento do parkour com o grupo Yamakasi e David Belle, filho
de Raymond. Para entender como Hérbert elabora o seu método, é importante destacar o
contexto e as referências que o influenciaram na estruturação e inserção do Método Natural
no treinamento militar da sua época.
Na última década do século XIX, Hébert fazia parte da Marinha Francesa e
desenvolvia à época, um método de treinamento cujas bases remontavam uma linha de outros
pensadores das ciências e da educação física que formulavam teorias e sistemas de atividades
físicas orientadas ao retorno racional à natureza (JUBÉ, 2020). O militar francês acaba
popularizando-se entre seus colegas, assim como se constitui enquanto um importante nome
na historiografia da educação física francesa, chegando, inclusive, a integrar o rol de
referências de autores para estudos e projetos que visavam a inserção do esporte e da ginástica
no cotidiano brasileiro, nas primeiras décadas do século XX (JUBÉ, QUITZAU, 2019).
Antes de Hébert, um outro importante nome que também disseminou os ensinamentos
da ginástica voltada para o treino militar foi o coronel espanhol, naturalizado francês,
Francisco Amoros (1770-1848), especificamente na École de Joinville. Amoros, por sua vez,
foi bastante influenciado pelo educador suíço Johann Pestalozzi, cujo pensamento remete aos
ideais de altruísmo e utilidade comum do filósofo Jean-Jacques Rousseau. Seguindo essa
linha, Amoros afirma que a principal razão de ser do seu método é a utilidade.
123

Figura 16: Foto de um homem senegalês como exemplo


de desenvolvimento corporal perfeito e adquirido sem
método

Figura 17: Fonte: extraído de Hébert (1909)

Inicialmente como estudante da Escola Naval no fim do século XIX Hébert começa a
estruturar o seu Méthode Naturelle, especialmente influenciado por dois grandes estudiosos:
Demenÿ (1850-1917) e Carton (1875-1947) (COCHET, 2012). A aproximação de Hébert com
Demenÿ deu-se em virtude dos estudos deste último em torno da ginástica científica e sua
proposta de sistematização do método para as atividades físicas (SOARES, 2003). Já em com
o movimento naturista, representado pelo contato com o médico Paul Carton, Hébert buscou
integrar concepções da terapêutica defendida por Carton que consistia em

tornar a dar o equilíbrio da saúde, corrigindo primeiramente os erros vitais e


prescrevendo a seguir o regresso à lei natural sobre todos os planos (…) restabelecer
o poder das imunidades naturais que constituem agentes de preservação (…) mais
eficazes, lógicos e duráveis do que as imunidades artificiais (CARTON, 1923, p.6)
124

A historiografia do naturismo francês percebe, assim, que este movimento uma


importante referência na constituição do método estruturado por Hébert, que defendeu, ao
longo de suas obras, a necessidade de uma educação física instituída sob os princípios
naturais, notadamente na compreensão da sinergia existente entre ser humano e a natureza: o
corpo é feito dos mesmos elementos desta. A influência recíproca entre Hébert e Carton, isto
é, entre a educação física e o naturismo, contribuiu sobremaneira para a idealização de uma
nova pedagogia voltada ao corpo, a qual Hébert dedicou sua vida.

Figura 18: Diagrama - Principais influências em torno do Método Natural de Hébert

Fonte: criado pela autora com referência nos textos consultados

Podemos constatar como o movimento naturista e o método natural de Hébert


reverberam nos dias de hoje, particularmente com a existência de alguns movimentos em
países do Ocidente que promovem um estilo de vida diferente a partir do ensino e fomento de
sistemas de métodos de exercício que seguem uma narrativa de um “resgate” ou aprendizado
das habilidades naturais do corpo humano. Participam desses movimentos, por exemplo,
profissionais da educação física, médicos, fisioterapeutas, atletas e simpatizantes dessas
ideias, entre outros perfis.
Tratam-se de coletivos de pessoas que estudam e compartilham informações acerca de
atividades físicas, dietas e estilos de vida, de um modo geral, que buscam se aproximar de
uma experiência corporal considerada mais natural, seja a partir do aumento de vivências em
125
ambientes de “natureza”, como também na reeducação alimentar com a retirada de alimentos
processados e inserção dos orgânicos, além da própria mudança de forma e posturas corporais
“impostos” pelo modo de vida citadino ocidental. A título de ilustração, gostaria de citar
alguns que nos ajudam a estabelecer uma visão dos desdobramentos de um mesmo gênero,
mais remoto, do qual o parkour participa de alguma forma.
Em um vídeo produzido e divulgado cujo título é “The workout the world forgot” 33,
são exibidas cenas de um homem em meio a pedras, rios e árvores, realizando movimentos de
corrida, nado, escalada, carregamento de pesos, entre outros. O intuito desse vídeo é resumir o
objetivo pretendido pelo MovNat (abreviação para Mouvement Naturelle): fazer com que os
indivíduos se reconectem com as habilidades naturais do corpo. Os movimentos ensinados
pelo MovNat podem promover “a clarity and restful state of mind. This feeling of
competence, peace and grace is the feeling of being your true self” e, segundo os princípios
norteadores, um movimento aprendido dentro desse método precisa ser: prático, adaptável,
eficiente, atenção, vital, instintivo, cooperativo, ambiental, evolucionário, não especializado,
universal e progressivo.34 Seu idealizador, o francês Erwan LeCorre, possui uma trajetória de
experiências com atividades ao ar livre, parkour, bem como foi iniciado, ainda na
adolescência, nos esportes de combate. Aos 33 anos, ele buscava desenvolver seu próprio
método de treino, o que o levou a conhecer a história da educação física na Europa e o
Método Natural de Georges Hébert, citando o mesmo como como uma das inspirações para o
desenvolvimento do MovNat. Esse sistema desenvolvido por LeCorre hoje se consolidou em
uma empresa que oferece cursos de capacitação para treinadores físicos de todo o mundo, que
são certificados para orientar treinos dentro dos parâmetros do MovNat.
Um outro movimento que podemos citar, a título de ilustração, diz respeito a uma série
de coletivos que defendem a restauração e o desenvolvimento saudável do corpo a começar
pelos pés. Nos conteúdos divulgados por tais coletivos, são apresentados diversos tipos de
produções que trazem imagens e dados sobre os problemas causados pela supressão de grande
parte do design dos sapatos modernos. É notório, ainda, um nicho de mercado que vem
crescendo em torno desses movimentos, com a venda de produtos que prometem contribuir
para esse estilo de vida mais natural.

33 Em tradução livre: “o exercício que o mundo esqueceu”.


34 Ver com mais detalhes em https://www.movnat.com/principles/
126

Figura 19: Comparação entre dois tipos de calçado e o


impacto na morfologia do pé

Fonte: Instagram do @thefootcollective

Figura 20: Comparação entre dois tipos de calçado

Fonte: Instagram da marca Vivo Barefoot. Disponível em


@vivobarefoot
127
Evidentemente o MovNat ou os coletivos citados são apenas um exemplo que trago
devido à ligação com o naturismo e o Método Natural de Hébert, além de ser um exemplo que
se enquadra bem no modelo contemporâneo de “coach” e “lifestyle”. Durante minha pesquisa,
vários praticantes fizeram menção ao método natural de Hébert como treino complementar ao
parkour, ou, simplesmente, como “movimentos naturais”, “treino livre” para se referir aos
treinos cujo objetivo é o fortalecimento do corpo para a realização dos movimentos de
parkour.
Assim, podemos afirmar que o parkour, de certa forma, ainda mantém um diálogo com
a lógica naturista da educação física. É um contexto antecedente ao parkour e que, de alguma
maneira, ainda reverbera em algumas experiências da prática, como a construção de um corpo
e de uma vivência que resgatam supostas habilidades naturais, perdidas ou sequer
desenvolvidas, devido ao estilo de vida imposto, sobretudo a partir da Modernidade, e do
crescente aparato tecnológico sobre os pés e sobre a locomoção dos indivíduos, o qual exige,
cada vez menos, dos recursos corporais como caminhar, correr, nadar para as nossas relações
com o trabalho e com os deslocamentos 35 (LE BRETON, p. 16, 2011). Nesse sentido,
percebemos algumas linhas da longa história cujo um dos desdobramentos é o que hoje
conhecemos por parkour. Além desta, outras várias atividades vão se emergem de uma
referência, apropriando-se de algumas características, modificando um ou outro aspecto,
renomeando-as, aplicando-as em outros contextos.

3.4 Parkour contra o tédio

Há na literatura sobre o parkour diferentes entendimentos sobre qual seria o local


ocupado pela prática dentro de um modo de vida capitalista. Levando-se em consideração
alguns princípios que nortearam o parkour, especialmente aquele da década de 1980, na
França, é possível entender sua filosofia como um posicionamento antagônico às regras
impostas sobre o corpo, seja a nível mais geral, em um contexto de aprendizado automatizado
que seguimos há séculos em relação às técnicas ocidentais sobre o modo de ficar em pé, de

35 Minha análise, neste trabalho, está mais voltada às formas de deslocamento e caminhada e a influência de
tecnologias e planejamentos arquitetônicos na disposição corporal do indivíduo, o qual busco estudar com
auxílio da prática do parkour. É necessário, porém, ter em mente, o vasto debate existente que tenciona esse
aspecto sob o ponto de vista de um direito à cidade (e ao deslocamento, de um modo geral) a partir da
perspectiva de acessibilidade das pessoas com deficiência, de mulheres, de pessoas LGBTs, de pessoas
pretas e de populações periféricas. Há todo um conjunto de tecnologias, arquitetura e design pensados sob
uma ótica hegemônica do capital que reduz, também, a experiência da locomoção de diversos grupos sociais
128
andar e, há algumas décadas, em especial, com nossos modos de locomoção, dada a notória
redução da experiência pedestre que vivenciamos com o surgimento dos carros. Podemos
entender, ainda, com este tipo de parkour, um certo ponto fora da curva com os regimentos
sobre os corpos, aplicados principalmente nos esportes e treinos de atletas olímpicos, com
destaque para o papel da Ginástica.
Por outro lado, também contamos com um parkour que é apropriado por certos
aspectos da indústria capitalista, como, por exemplo, nas forma que grandes marcas do
comércio esportivo vão, pouco a pouco, explorando o público do parkour como um nicho
específico de mercado. Também vemos o processo de esportivização que a prática vem
sofrendo há alguns anos, diluindo princípios importantes para a história da prática, ao menos
em algum momento dela, como o da “não competitividade”, ou, ainda, na sua faceta de estilo
de vida saudável ou fitness, como produto da biopolítica que encara o corpo como objeto de
rendimento (ESPINAL-CORREA; ESTRADA-MESA, 2020). Muitos praticantes acabam
enxergando nesse contexto uma possibilidade de inserção profissional no mercado, uma
forma de poder “viver de parkour”, posicionando-se a favor desses processos pois acreditam
que, uma vez que o parkour se torne um esporte olímpico, mais oportunidades e incentivos,
seja pelo setor público ou privado, serão abertos para os praticantes.
Recapitulo esses pontos para chegar na seguinte questão: existem diversas maneiras de
experienciar o parkour, ressignificar e criar princípios sobre a prática, explorar possibilidades
de adaptação e inserção socioprofissional. Entre tantas maneiras de existir, são possíveis
leituras que o compreendam enquanto uma prática conformista ao modo de vida ocidental e
capitalista, ou uma prática subversiva ou de resistência ao mesmo. Particularmente, nesta
pesquisa, não é meu objetivo explorar sobremaneira esse ponto, que apesar de considerá-lo
extremamente rico para uma análise do parkour, não constitui, ainda, meu principal interesse,
de forma que aponto alguns aspectos no capítulo anterior que podem auxiliar futuras
investigações acerca dessa questão. Meu argumento se sustenta no elemento da multiplicidade
de experiências proporcionada pelo parkour, com um foco especial na experiência andante, a
qual, em maior ou menor intensidade, configura, sim, um forma de viver que se insurge contra
a redução do caminhar e do deslocamento a partir dos próprios pés, a partir da vivência
voluntária em habitar os ambientes mobilizando de formas outras os seus usos hegemônicos,
assim como o próprio corpo nas mais diferentes atitudes tateantes.
O modo de vida moderno com todo seu projeto tecnológico finda, portanto, os
processos de habilidade? Ingold (2018) detendo-se especialmente na análise das mudanças da
129
mecanização industrial, vai dizer que não, que “a essência da habilidade (…) vem a residir na
capacidade de improvisação com que os profissionais são capazes de desmontar as
construções da tecnologia e criativamente reincorporar as peças em suas próprias esferas de
vida” (ibid, p.110). É isso que os praticantes de parkour também fazem com o próprio corpo e
com o mundo no qual se encontram.
Ao explorar os distintos ambientes e encontrar oportunidades de movimento em
lugares que comumente não existem para o trânsito podal de seres humanos, os traceurs não
só transformam esses espaços ou descobrem novas formas de movimentação, mas participam,
sim, de uma reelaboração mútua entre seus corpos e todo o seu entorno. Ocorre uma
contaminação, uma afeccão mútua (DELEUZE, 1997) entre as bagagens da vida dos
indivíduos e dos ambientes que são habitados por eles. Essas bagagens que são trazidas em
seus corpos, expressas pelas formas de se movimentar, de se vestir, da escolha dos lugares por
onde transitam afetam suas experiências com a prática do parkour e estas, por sua vez,
intervêm naquelas. Essas experiências, em todas as suas multiplicidades, são atravessadas por
um ponto em comum: o exercício de conhecimento e de atenção desenvolvido pelo
deslocamento com os pés.
LeBreton, autor francês conhecido especialmente por suas obras sobre a sociologia e
antropologia do corpo e das emoções, faz uma reflexão muito pertinente em seu livro “Elogio
ao Caminhar” sobre como o ato de caminhar, em nosso mundo contemporâneo e ocidental,
pode ser uma forma de nostalgia ou de resistência, uma vez que pode proporcionar ao
caminhante uma oportunidade de atenção sobre si mesmo e sobre sua relação com seu
entorno, constituindo uma forma de driblar a lógica moderna assentada na locomoção
mediada sobre quatro rodas. Essa consideração acerca do impacto que o modo de vida
moderno teve na no cotidiano e no trabalho dos indivíduos também é feita por Vasco,
praticante e professor de parkour, citando um exemplo de um aluno:

Que a visão deles do que é a vida já tá completamente cristalizada, fechada. Se eles


conseguissem ver… um instrutor bancário de 48 anos tava a dizer isso lá na
academia. De como o parkour o ajudou a abrir a mente para outras coisas e
desenvolver o corpo. Depois começas a fazer parkour e começas a ver o mundo de
maneira diferente, tu podes usar qualquer coisa, qualquer coisa é uma oportunidade.
É bué diferente...é tipo mais positivo, porque tudo que tá a ver tem movimento. As
ondas do mar, os animais, o sol, a lua...só o ser humano é que tipo criou tipo
conflitos e problemas, criou tipo enclausuramento...acordar, escovar os dentes e ir
numa caixa que é o carro pra outra caixa que é o escritório depois voltar pra outra
caixa que é a casa. Dormir na caixa, na cama e no dia seguinte fazer tudo isso de
novo. E o parkour pode te proporcionar uma experiência contrária a isso. (Vasco)
130

Reflexão parecida faz a arquiteta e urbanista Paola Jacques (2012) ao afirmar que os
errantes modernos “recusam o controle disciplinar total dos planos modernos” e “denunciam
direta ou indiretamente os métodos de intervenção dos urbanistas e defendem que as ações na
cidade não podem se tornar um monopólio de especialistas sedentários” (ibid, p.25-26).
Andar, especialmente a partir da modernidade, passa a constituir uma espécie de
conhecimento menor, ligado ao tédio, à banalidade, à vagabundagem, à perambulação. O
status do sujeito é medido justamente de acordo com sua forma de se locomover, constituindo
uma prova dos seus recursos e de sua ocupação, de forma que a caminhar, errar, vagar, flanar
e atividades, na sociedade contemporânea, pode ser visto como uma oposição se “a las
poderosas exigencias del rendimiento, de la urgencia y de la disponibilidad absoluta en el
trabajo o para los demás (convertida, con la aparición del teléfono móvil, en una caricatura)”
(LeBRETON, p. 19).
Jacques (2012) explica que a experiência da errância, tema no qual a autora se debruça
nessa obra, constitui um tipo de prática desviatória, que abre, descobre e cria caminhos dentro
de um sistema urbanístico estratégico que suprime e controla experiências de deslocamento
nômade. E em diálogo com Deleuze e Guattari, ela afirma que esse processo se dá em uma
oposição não dicotômica entre o espaço liso e o estriado, entre o espaço nômade, nomos -
externo à cidade, e o espaço sedentário da cidade - polis. Assim, a errância urbana congrega,
infiltra, o liso – espaço vetorial, caracterizados por traços – no estriado – espaço marcado por
muros, cercas e caminhos entre estes – e vice-versa. Esse processo permite a coexistência de
nomos e polis: alisa-se o estriado e estria-se o liso. Os indivíduos voluntariamente errantes ao
alisar os espaços estriados, estão buscando a mesma lógica ambulatória nesses espaços, e não
promovendo uma espécie de homogeneização espacial. O corpo errante é uma vivência que
resiste à lógica sedentária da métrica citadina, pois ele flana, perde-se, busca, e abre-se às
experiências do percurso em um espaço majoritariamente planejado para o estacionamento, a
inércia, a previsibilidade e a fixidez. Nesse sentido, errar pela cidade já é, por si só, uma
resistência ao urbanismo predominante, pois

A cidade é apreendida pela experiência corporal, pelo tato, pelo contato, pelos pés.
Essa experiência da cidade vivida, da própria vida urbana, revela ou denuncia o que
o projeto urbano estratégico exclui, pois mostra tudo o que escapa ao projeto, as
táticas e micropráticas cotidianas do espaço vivido, ou seja, as apropriações diversas
do espaço urbano que escapam às disciplinas urbanísticas hegemônicas, mas que não
estão, ou melhor, não deveriam estar, fora do seu campo de ação. (ibid, 272)
131
Nesse sentido, podemos aproximar a reflexão sobre a errância de Jacques com a
experiência do deslocamento proporcionado pelo parkour, uma vez que este opera como uma
espécie de alisamento do estriado, isto é, de tornar transitável um espaço que é, por
excelência, sedentário ou não convidativo à errância, à exploração, à criatividade, à
experimentação. Além disso, os praticantes de parkour também revelam uma infiltração nos
planejamentos urbanos desenvolvidos em uma sociedade de enclaves fortificados
(CALDEIRA, 1997), com mobilidades que nem sempre beneficiam, em especial, os
moradores das regiões periféricas da cidade. Circular simplesmente por lazer em um mundo
hostil à deambulação constitui, em maior ou menor escala, um tipo insurgência.

3.4 Devir animal e linhas de vida

Tal qual um animal segue os rastros de sua presa, o praticante de parkour também
segue linhas que o orientam à realização de determinados movimentos, à descoberta e à
construção de caminhos. No meio dessas linhas, encontram texturas outras e descobrem novas
possibilidades até então não experimentadas, provam dos entrelaçamentos possíveis entre seu
corpo e o seu entorno. Tecem a dança do parkour a partir dos atravessamentos entre pele,
terra, concreto, mato, enquanto rastreiam e farejam caminhos vários com pés e mãos, no chão,
nos muros, nos tetos, nas árvores e nas pedras. Nas superfícies secas ou úmidas, debaixo de
sol escaldante ou sob a chuva suave. Percebem-se do mundo. No mundo. As corporalidades
mobilizadas vão além das experienciadas pela maioria dos sujeitos, onde o andar bipedal e
ereto pode rapidamente dar lugar ao andar quadrupedal, por exemplo. As vivências entre
humanos e não humanos aproximam-se cada vez mais à experiência atenta, e cada vez mais se
torna comum a comparação com as atitudes corporais dos animais não humanos, evocando,
inclusive características destes às formas de fazer do praticante de parkour.
Essas comparações não acontecem somente a nível visual ou narrativo, elas realmente
constituem um dado possível de ser analisado cientificamente, devido à proximidade de
capacidades motoras, especialmente entre seres humanos e primatas. Em um estudo na área
das Ciências Biológicas, realizado na Universidade de Birmighan, Halsey et al (2016)
desenvolveram um experimento com praticantes de parkour para entender como ocorre o
gasto energético da locomoção de orangotangos em ambientes estrategicamente complexos
como as copas das árvores. Dado a dificuldade de obter esses dados diretamente com esses
animais, os pesquisadores enxergaram na locomoção empregada pelos atletas de parkour em
132
determinados ambientes uma possibilidade de realizar essa experiência cujo potencial de
fornecimento de pistas para a compreensão do problema foi observado, a partir de adaptações
específicas para uma maior aproximação à habilidade dos orangotangos.
Mais uma vez habitando não só os discursos, mas também a prática dos traceur,
podemos ver, por exemplo, como o famoso grupo inglês de parkour Storror possui uma série
de vídeos36 produzidos durante uma viagem na Índia, onde eles dividem os ambientes,
especialmente os terraços no alto de construções e prédios (rooftops), com macacos que
habitam as cidades. A edição dos vídeos busca mostrar a semelhança dos movimentos
realizados pelos praticantes do Storror com os dos macacos ao saltarem entre os prédios,
apoiarem-se em diferentes estruturas ou ao darem cambalhotas e saltos mortais. Apesar de ser
um grupo cujo um dos traços é viajar pelo mundo e fazer parkour nos mais diferentes
cenários, a escolha e a oportunidade de treinar e gravar na Índia sem dúvidas foi incrementada
pela possibilidade de registrar os momentos compartilhados com os animais, enfatizando os
paralelos entre os movimentos dos macacos e dos praticantes.
O macaco acabou batizando um dos principais movimentos do parkour: “macaco” ou
“monkey” é um dos movimentos mais conhecidos, consistindo em um tipo de locomoção
quadrupedal cujo objetivo é deslocar-se por sobre um objeto apoiando-se com ajuda dos
braços e mãos e passando pernas e pés por entre os braços, finalizando, geralmente, com os
pés ou seguido, ainda, de um rolamento. A figura do macaco é constantemente utilizada para
caracterizar performances e símbolos relacionados à prática do parkour: é possível encontrar
nomes de grupos de parkour que fazem referência ao animal, bem como os próprios
praticantes se comparam aos macacos em analogias cotidianas. Essa designação não acontece
de forma aleatória, tendo uma relação muito próxima, de fato, com a maneira como esse
animal se desloca, como nos afirma Bruno:

Essa concentração de você olhar, mirar onde você quer chegar, pensar no caminho
até aquele determinado ponto...você vai pensando ao mesmo tempo que vai
preparando seu corpo, sabe? Vai posicionando as pernas, os pés, o tronco no lugar
certo, ajeita a postura, respira… já viu esses vídeos que tem um tigre ou um leão
olhando para a presa, como a pupila dilata, como a postura do corpo vai se
modificando, vai se preparando pra tomar impulso… Você tem gato em casa né?
Pronto, pois presta atenção neles quando vão pegar um inseto ou sei lá, quando eles
brincam, sobem nas coisas… os animais são inteligentes, eles sabem se as patas
traseiras vão antes das dianteiras ou vice-versa, presta atenção e vê mesmo se não
tem umas coisas parecidas com o parkour.37 (Bruno)
36 Disponível em https://www.youtube.com/playlist?list=PL8KV1nWcRiJSqyE4fSnHW0Tb3cZt8IFP1
37 Podemos também aproximar esse relato da visão de Merleau-Ponty (1999) quando o autor nos evidencia que
a experiência tátil de uma certa parte do corpo implica a experiência tátil do seu restante, isto é, ocorre uma
ação conjunta dos sentidos.
133

A analogia dos movimentos realizados por traceurs com as formas de locomoção de


animais como macacos e gatos não traduz somente a similaridade das maneiras de
deslocamento, mas sinalizam um tipo de experiência micropolítica, especialmente nos
contextos urbanos, de desfazimento das amarras que buscam prender não só animais, mas
vários outros modos de vida minoritários - em jaulas: muros, cercas, cubículos e caminhos
projetados para uma ou poucas formas de deslocamento, de preferência, eretas sobre as duas
pernas ou, em sua maioria, sentadas em poltronas sobre duas rodas. Podemos entender com
isso que esse tipo de experiência possui uma potência do sujeito em diferir de si mesmo em
direção a algo que é contínuo e o escapa. É dessa forma, pois, entre tantas possibilidades 38 de
existência, que o devir-animal pode ser observado como uma potência presente na vida do
praticante de parkour

É normal demais as pessoas falarem “ah, parkour...já sei, aquela coisa que
você fica pulando nos cantos feito doido, feito macaco, né?”, ou falam que é coisa
meio de vagabundo, sabe...essa parada de ficar subindo, pulando… Eu e os meninos
já passamos muito por isso. E ainda mais tendo tatuagem, piercing assim como eu…
Imagina? Sinceramente pra mim isso nem soa como ofensa… me chamar de doido,
me chamar de macaco… é uma coisa que eu tenho orgulho de fazer, eu quero
mesmo poder pular como um macaco (risos). Esses nomes que a gente bota no
parkour de monkey, cat e tal não são a toa, né? Nós temos muito mais coisa parecida
com os bichos do que nós pensamos, nós também somos animais só que vivemos
parados, acomodados... e com o parkour nós podemos voltar um pouco pra essa
natureza, pra essa forma de se movimentar mais natural que nós fomos perdendo
com o tempo. O desafio do parkour é com você mesmo, é se movimentar. É muito
mais do que “só sair pulando por aí feito macaco”, nós aprendemos muito juntos…
fazemos amigos, inimigos, nos machucamos, quando saramos, voltamos a treinar,
conhecemos muitas pessoas de todos os tipos, muitas histórias...Eu mesmo, na
primeira vez que ouvi sobre o parkour pensei que era besteira, como te falei antes,
mas depois que resolvi experimentar...estou aqui até hoje, o parkour me ajudou a
formar minha personalidade (Diego)

Devir é um tornar-se contínuo, sem fim. Não significa, evidentemente, que o


praticante do parkour queira se tornar um macaco, um gato, ou qualquer outro animal, como
se modificasse sua forma molar, e, sim, que o traceur habita um processo de multiplicidades,
no qual está presente a variação das relações que constituem um animal. Trata-se de “relações
de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, entre partículas emitidas (DELEUZE e
GUATTARI, 1997, p.67). Assim, o praticante de parkour não imita o macaco, nem confunde-
se com ele: trata-se de um processo de tornar-se mais próximo de si, isto é, do próprio
praticante de parkour, e não tornar-se mais macaco, pois “o devir não produz outra coisa
38 Marques (2010) analisa o parkour a partir da experiência lúdica da cidade, apontando a produção de um
devir-criança pelo traceur, também em diálogo com o conceito de Deleuze e Guattari.
134
senão ele próprio” (ibid, p.18). Além disso, o devir não tem um objetivo e constitui o
imprevisível porque dança uma música que não está terminada, que o próprio sujeito constroi
contínua e indefinidamente em direção a si mesmo, e assim o faz, em abertura ao mundo, com
o mundo.
As analogias constantemente empregadas pelos praticantes do parkour com
movimentos e formas de vida animais ou mesmo “naturais”, como aspectos a serem
resgatados, aprendidos ou identificados na experiência traceur, foram apresentadas no sentido
de povoar o debate acerca da potência de uma das linhas de vida que constituem a vivência no
parkour. Ressalte-se que ao expor essas analogias, o argumento não se encontra na afirmação
de uma experiência que busca transforma-se em outra, de um traceur que busca ser ou
confundir com um animal. O ponto aqui é enfatizar como as maneiras de experienciar, de
permitir-se reinventar formas habituais de se deslocar e de viver são potencializadas, nesse
caso, por um devir-animal, uma das linhas de fuga possíveis no processo de
desterritorialização e reterritorialização contínuas de si na vivência do parkour. Processo que é
experiência e desejo em múltiplas variações, em múltiplas combinações – são linhas que
compõem uma vida.

Não dá pra explicar o que é o parkour, sabe? Você vai achar mil explicações
por aí… mas só vivendo mesmo, a vida que o parkour me mostrou… não outra vida,
mas a minha vida mesmo que eu não tinha ideia, o que minha cabeça pode pensar, o
que meu corpo pode fazer… ah, isso tudo é diferente pra cada pessoa. Não tem
mesmo como explicar, só vivendo (Vasco)

Em que a experiência de pesquisadora me proporcionou viver com o parkour, busco


tecer explicações socioantropológicas para essa prática, analisando processos de atenção, as
multiplicidades de potência que o corpo-tracer pode vivenciar. Essa última fala, ao meu ver,
diz que não é possível explicar o parkour no sentido de defini-lo: a história do parkour é
tecida de forma complexa a nível macro e micro, possuindo atravessamento subjetivos,
simbólicos, narrativos e práticos. Busco explicar, portanto, o parkour da forma que me foi
possível com os aportes teóricos, metodológicos, e também os afetos que atravessaram meu
corpo quando da minha vivência enquanto pesquisadora em tempo integral e, muito
eventualmente, como praticante.
135
CAPÍTULO 4 – ENTRELAÇAMENTOS DO PARKOUR

Neste capítulo, busco apresentar o parkour a partir de uma perspectiva de malha


(INGOLD, 2018). Para isso, considero as várias dimensões que constituem a prática a partir
da ideia de linhas entrelaçadas. As linhas do parkour revelam-se, nesse contexto, enquanto
diferentes experiências, e, entre elas, tento explorar alguns aspectos especialmente marcados
pelos afectos (DELEUZE; SPINOZA), como também os relatos que tecem narrativas sobre
trajetórias, além das observações de campo que nos auxiliam a vislumbrar um panorama mais
geral acerca dos contextos estudados. Objetiva-se, por fim, revelar como o parkour é
atravessado por vivências múltiplas que o tornam uma prática viva, em constante atualização
e movimento.

***

Buscar uma definição para o parkour, hoje, pode abrir um caminho extremamente
vasto, de modo que há uma diversidade de leituras que concebem, cada qual a sua maneira, do
que a prática se trata. Não procuro, entretanto, fechar um entendimento nesse trabalho sobre
nenhuma dessas definições e tampouco as nego. Meu objetivo não é me ater a alguma
concepção em especial, mas mostrar as várias nuances das experiências dos praticantes do
parkour em dois contextos distintos: na cidade de Campina Grande – PB e na Área
Metropolitana do Porto (AMP).
Parto especialmente de duas ideias orientadoras para a apresentação de uma textura 39
do parkour nesse capítulo: afecção (DELEUZE, 2002) e malha (INGOLD, 2015). Em “Ética”,
Spinoza (1677/2009) descreve um dos seus principais postulados: “o corpo humano pode ser
afetado de muitas maneiras, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída,
enquanto outras tantas não tornam sua potência de agir nem maior nem menor” (p. 99). O
corpo, para este filósofo, é diretamente resultante do movimento, e não o contrário, sendo
constituído, portanto, pelas relações entre outros corpos e a natureza. Desse contato, o corpo
sofre afecções, que são as transformações e transições dos afetos, constrangendo ou
expandindo as potências do corpo: “Afecção remete a um estado do corpo afetado e implica a

39 A textura remete à ideia de tecer, sendo uma proposição que considera o mundo como um entrelaçamento de
fios, sendo cada um destes vital para sua constituição. De La Fuente (2019) identifica a perspectiva textural
presente em abordagens vitalistas, fenomenológicas e nas ontologias de processo, a exemplo de autores
como
136
presença do corpo afetante, ao passo que o afeto remete à transição de um estado a outro,
tendo em conta variação correlativa dos corpos afetantes” (DELEUZE, 2002, p.56). Existir,
nessa perspectiva, portanto, é afetar e ser afetado.
Para Spinoza, existem os afetos ativos e os afetos passivos. Os afetos ativos, ou ações,
provocam uma expansão da potência do corpo, sendo, na sua visão, sempre afetos alegres,
não existindo, assim, pulsão de morte. Já os afetos passivos, ou paixões, são resultado dos
encontros e estes podem nos afetar positiva ou negativamente, de modo que afetos não são
imutáveis e possuem um caráter dinâmico. Segundo este autor, os encontros que
potencializam nossa mente e corpo são aqueles que devem ser buscados, como afirma
Deleuze (1968)
L'homme qui devient raisonnable, fort et libre, commence par faire tout ce qui est en
son pouvoir pour éprouver des passions joyeuses. C'est donc lui qui s'efforce de
s'arracher au hasard des rencontres et à l'enchaînement de passions tristes,
d'organiser les bonnes rencontres, de composer son rapport avec les rapports qui se
combinent directement avec le sien, de s'unir avec ce qui convient en nature avec lui,
de former l'association raisonnable entre les hommes; tout cela, de manière à être
affecté de joie. Dans l'Ethique la de'scription du livre IV, concernant l'homme libre
et raisonnable, identifie l'effort de la raison avec cet art niser les rencontres, ou de
former une totalité sous des rapports qui se composent (p. 241)

Deleuze e Guattari foram responsáveis por reler a obra de Spinoza e atualizá-la


mediante um diálogo especial com o papel da arte no mundo dos afetos, enxergando o artista
como um “inventor de afectos”, criando estes não somente na sua obra, mas nos fornecendo
os mesmos e nos fazendo participar, e transformarmo-nos com ele nesse processo
(DELEUZE; GUATTARI, 1992). Nesse sentido, os autores afirmam a perspectiva dos afectos
como um norte para fugir da lógica representativa, isto é, da dicotomia da relação exterior-
interior como fator de apreensão da realidade. Em alternativa, privilegia-se o papel do plano
sensível no processo de conhecimento de si e do mundo.
Compreendendo, dessa maneira, o parkour como uma forma de encontro de corpos e
afecções - atravessado por uma outra pluralidade de encontros e afetos – podemos dialogar,
ainda, com a ideia de itinerações (INGOLD, 2012) para pensar o praticante de parkour, assim
como o artista ou artesão, tal qual um itinerante que segue os fluxos, comungando a sua
prática com a sua trajetória de vida. Interpretar dessa forma nos permite enxergar o processo
criativo e inventivo que caracteriza o parkour como uma prática fluida e sem limites muito
bem estabelecidos. A diversidade de vivências estão, assim, emaranhadas, compondo uma
intensa movimentação que ultrapassa a lógica da reprodução e, assim, da interação – daí, a
137
proposta de itineração como prática de seguir linhas que percorrem fluxos e não linhas que
conectam.
A partir da compreensão de que essas experiências são tecidas dentro de uma
lógica de coexistência e afecções (DELEUZE) mútuas de narrativas, de vivências, trajetórias
e perspectivas variadas que formam a malha (INGOLD) do parkour, procuro dar especial
ênfase à demonstração do desenvolvimento dessa prática habilidosa sob a função que as
relações estabelecidas nesse universo constituem o conhecimento traceur. O parkour é carne e
concreto, terra e água. É a coimplicação dos materiais e de corpos. É, assim, um processo de
crescer e habitar no mundo em que

las personas experiencian historias de desarrollo y maduración dentro de los campos


de relaciones establecidos a través de la presencia de otros y de sus actividades. Y lo
que es más importante, este crecimiento no se produce únicamente en términos de
fuerza y estatura, sino también en términos de conocimiento, en el empleo de la
imaginación y em la formación de ideas. Después de todo, estos últimos son
procesos corpóreos de entretejido de materiales y experiencias tanto como lo es el
propio desarrollo físico del individuo. (INGOLD, 2016, p.3)

A experiência do parkour é intensamente marcada pela multiplicidade de


vivências, de trocas, de processos e fluxos que se emaranham constituindo uma verdadeira
malha (INGOLD, 2016) ou rizoma (DELEUZE, GUATTARI, 1995/2011). Compreender tal
prática a partir destas chaves de análise nos convida a adentrar em um plano complexo de
linhas que são entrelaçadas na coletividade, na variedade de relações com outros atores, outras
experiências, e também com diferentes materiais e ambientes. Pensar no parkour como uma
malha ou rizoma é buscar uma alternativa ao entendimento do fenômeno como conexões e
lugares, optando, de outra forma, por um ponto de vista não dicotômico, não polarizado; é
levar em consideração as pistas que nos auxiliam a mapear os múltiplos agenciamentos
existentes no experienciar parkour.
Assim, analisar o parkour como uma malha, como uma textura, como um ninho de
fios variados, nos impulsiona a identificar algumas das linhas que fazem parte desse
emaranhado. Essas linhas são práticas, relações e experiências que bordam a trama do parkour
e compõem o processo de constituição do seu praticante. Além disso, tentar puxar essas linhas
do parkour nos possibilita enxergar como a prática atravessa e é atravessada por experiências
outras que revelam, por exemplo, relações de gênero, raça, classe, mobilidade urbana, entre
outras. Esse exercício privilegia os fluxos e o movimento por entender que estes oferecem
potencialidade na análise da mútua permeabilidade das experiências. Esta visão advém do
138
entendimento do mundo constituído por coisas e não por objetos: enquanto as coisas vazam,
transbordam, penetram-se, os objetos são encerrados em suas formas finais. O ambiente assim
considerado, é um ambiente sem objetos (ASO), onde o habitamos, juntamo-nos ao seu
processo de formação (INGOLD, 2012).
É nesse sentido que o parkour compõe-se por linhas diversas, por histórias, trajetórias,
narrativas e experiências que, desenhando e redesenhando, de forma contínua essa forma de
ser-no-mundo, rompem com binarismos estabelecidos na compreensão do social,
evidenciando, ao contrário, a multiplicidade. Esta ideia de multiplicidade é aqui apoiada no
que Deleuze (1995/2011) considera como um substantivo, fugindo, assim, do binômio uno-
múltiplo

Não há nem um nem múltiplo, o que seria remeter-nos, em qualquer caso, a uma
consciência que seria retomada num se desenvolveria no outro. Há apenas
multiplicidades raras, com pontos singulares, lugares vagos para aqueles que vem,
por um instante, ocupar a função de sujeitos, regularidades acumuláveis, repetíveis e
que se conservam em si. A multiplicidade não é axiomática nem tipológica, é
topológica (Deleuze, 2005, p. 25).

Sendo, portanto, topológica, o entendimento de multiplicidade empregado nessa


pesquisa nos auxilia no acompanhamento dos processos, nos mapeamentos, nas forças e
linhas que não se encontram na unidade, uma vez que estão entrelaçados no rizoma ou na
malha. Na vivência dessa pesquisa, nos dois campos estudados, foi possível encontrar uma
multiplicidade de atores e ambientes, atravessados por diferentes experiências e processos,
desvelando uma pluralidade de relações que são vivenciadas entre a prática do parkour, casa,
família, amigos, trabalho, estudo e práticas outras de lazer e/ou esporte. Cada um desses
campos possui particularidades que dizem respeito ao território e aos processos históricos,
culturais, políticos e econômicos do lugar e tais aspectos não deixam de atravessar as
vivências dos praticantes de parkour e das formas que o parkour se constitui em cada um
desses campos.
É nesse sentido, portanto, que estudar o parkour é um exercício de rastreamento ou
mapeamento. A chamada “fase exploratória” de pesquisa nunca fez tanto jus ao nome, para
mim, como essa tarefa de vasculhar, remexer, fuçar um campo, uma atividade e uma
experiência. Pensar com o parkour não exigiria nada menos que isso. Dar os primeiros passos
nesse emaranhado do parkour pode ser quase sinônimo de perder-se. Isso talvez aconteça,
principalmente, se se entra muito preso a um script de pesquisa, muito devoto a tradições e
hábitos acadêmicos que compuseram o estudioso até então. As clausuras não combinam com
139
o parkour. Não falo, com isso, que não existam processos de controle, poder, hierarquia e
outros mais que segurem, em alguma medida, o indivíduo a dinâmicas que oferecem certas
limitações. O que gostaria de destacar é uma disposição de ordem móvel e criativa que pulsa
na vida do parkour.
O exercício de mapear os fluxos, as intensidades envolvidas nos processos de
aprendizagem, nas escolhas, nos interesses e nos conflitos que constituem a experiência do
parkour convida-nos a perceber os itinerários, ou ainda, como sugere Bonet (2014) em
diálogo com Ingold, as itinerações – movimentos que envolvem criatividade e improvisação,
uma malha que permite enxergarmos as várias linhas e multiplicidades, privilegiando um
olhar sobre as relações e processos e não sobre as entidades. Trata-se, assim, de perceber essa
malha como um processo que envolve criatividade e improviso, mobilizados e aprendidos no
seguir da caminhada, e não colados a um momento preestabelecido. Logo, é pertinente
destacar que a criatividade não admite clausuras, ou melhor: cria-se mesmo a partir e com as
possíveis limitações. Criar necessita de rastrear, de tatear, de sentir, errar, tentar. Mover-se.
Fazer parkour é um exercício de rastreamento, de mapeamento, estudar parkour também o é.
A exploração é feita na vasculha que passa desde matérias e reportagens locais,
narrativas, trajetórias, composição e organização dos grupos de parkour, dados relativos aos
“marcadores da diferença”, vivências com os ambientes (em especial o urbano), além de
atravessamentos com outras práticas e atividades, entre outros detalhes. Em outras palavras,
buscamos olhar o parkour sob a perspectiva relacional para compreender como os processos
de constituição da prática e do praticante de parkour se dão no entrelaçamento a processos que
são córporeos e relacionais com o ambiente.
Nesse sentido, esse capítulo pretende compor uma textura do parkour nos campos de
Campina Grande e da Área Metropolitana do Porto. Puxando linhas dessa complexa malha,
vamos buscar apresentar algumas dessas forças que compõem a multiplicidade da
experiência-traceur nestes contextos. Sendo uma vivência marcada pela pluralidade, então,
busco mapear algumas itinerações – e não itinerários – pois, uma vez que não há caminhos
únicos e estabelecidos nos atravessamentos do parkour. Existem, sim, caminhos que são
tecidos ao caminhar, uma vida em intenso movimento que caracteriza as trajetórias, os
processos, enfim, a inventiva dinâmica parkoutiana.
140
1 Emaranhados em Campina Grande – PB

No ano de 2005, um ano após o lançamento do filme Banlieue 13 (“B13 - 13º


Distrito”, título no Brasil), o jornal impresso Folha de São Paulo, no quadro “Equilíbrio”,
lança uma matéria intitulada “Urbano e Radical”, trazendo uma reportagem sobre a prática de
parkour no estado. Nessa matéria, os traceurs entrevistados relatam como conheceram o
parkour, o impacto da prática nos seus corpos e na relação com o espaço. Nesse mesmo ano, o
programa dominical da Rede Globo de Televisão, “Faustão”, convida membros do grupo
paulista Le Parkour Brasil para participar do seu programa, oportunidade esta em que são
entrevistados acerca de sua constituição e história com o parkour, além de comentarem
algumas filmagens de suas práticas em alguns pontos da cidade de São Paulo. Já em
dezembro, o programa “Fantástico” também apresenta uma reportagem com os grupos “Tobu
Le Parkour” (RJ) e Parkour Brazil (SP). Como é possível encontrar relatos em arquivos de
sites mais antigos, estes não foram os primeiros programas no país a reportarem sobre a
prática, mas, devido ao alcance da televisão aberta, bem como a popularidade da emissora,
são frequentemente resgatados pela memória dos praticantes entrevistados ou em comentários
e blogs na internet.
A cidade de São Paulo era os centro de irradiação dessas matérias e reportagens sobre
o parkour, mas a atividade já era conhecida em outros lugares do país, muito em decorrência
de vídeos baixados da internet que percorriam, principalmente, os circuitos dos jogos digitais
e filmes estrangeiros. Segundo relatos, as informações e vídeos eram trocadas em fóruns,
blogs e comunidades no Orkut que já não estão mais disponíveis na internet, o que acaba
dificultando o acesso aos conteúdos e comentários partilhados nessas plataformas durante essa
época, a exceção de alguns poucos blogs40.
A ferramenta “Google trends” disponibiliza os índices relativos ao interesse de
pesquisa em um determinado assunto, dentro de um período que o usuário pode personalizar
de acordo com sua busca. A ferramenta só traz os dados relativos a partir do ano de 2006, com
certa limitação nos detalhes (como as cidades onde as pesquisas foram realizadas, em
específico). Contudo, é possível notar que o estado da Paraíba figura em 1º lugar no ranking
dos estados com interesse no assunto “le parkour”, seguidos pelos estados do Piauí e Espírito

40 Por exemplo, nesse blog, há um post do ano de 2005, no qual é possível ver comentários de pessoas que
relatam já estarem praticando ou registram sua curiosidade acerca do parkour. Também é possível notar
comentário a respeito da matéria veiculada no programa Fantástico.: https://marcogomes.com/blog/2005/o-
que-e-le-parkour/
141
Santo. Na Paraíba, o pico das pesquisas sobre parkour foi especialmente no primeiro semestre
de 2006. Apesar de não podermos traçar mais informações correspondentes a ponto de afirmar
com certeza alguns indícios, esse dado coincide com os relatos do início das atividades de
praticantes como Diego41 e Alexandre, que mais tarde viriam a fundar o grupo “Alliance
Parkour”.

Figura 21: Registro da data de início na prática do parkour (Março de 2006), marcado na
parede da casa do traceur Odair Santos, feita pelo mesmo, na época.

Fonte: Odair Santos. Foto gentilmente cedida pelo autor do registro

Rememorando sua trajetória com o parkour em Campina Grande, Diego relata que
jogava futebol e andava às vezes de skate na altura em que conheceu a modalidade. Por meio
da televisão, viu matérias sobre a prática e achou “bobagem” ou “coisa de gente sem ter o que
fazer”. O assunto parecia “persegui-lo” em vários programas de TV, até que viu alguns vídeos
na internet e resolveu arriscar algumas movimentos. Desde então, não parou. Segundo ele, se
apaixonou pelo parkour, e sentiu diversas mudanças a nível físico e mental. Antes, era uma
pessoa muito explosiva, e com o parkour passou a “treinar a mente”, a ser perseverante, a
conhecer várias pessoas e compreender a diversidade das vivências de cada uma delas. Disse
que, após tomar conhecimento do parkour, sua mente se abriu de maneira única, enquanto me
contava isso, fez um gesto com as mãos próxima à cabeça sugerindo a expansão do
pensamento.

41 Todos os nomes utilizados ao longo do trabalho são fictícios. Quando correspondente ao nome real, será
sinalizado.
142
1.1 De bobagem à paixão alegre – afecções do parkour nos praticantes campinenses

Rememorando sua trajetória com o parkour em Campina Grande, Diego relata que
jogava futebol e andava às vezes de skate na altura em que conheceu o parkour. Por meio da
televisão, viu matérias sobre a prática e achou “bobagem” ou “coisa de gente sem ter o que
fazer”. O assunto parecia “persegui-lo” em vários programas de TV, até que viu alguns vídeos
na internet e resolveu arriscar algumas movimentos. Desde então, não parou. Segundo ele, se
apaixonou pelo parkour, e sentiu diversas mudanças a nível físico e mental. Antes, era uma
pessoa muito explosiva, e com o parkour passou a “treinar a mente”, a ser perseverante, a
conhecer várias pessoas e compreender a diversidade das vivências de cada uma delas. Disse
que depois do parkour, sua mente se abriu de maneira única, enquanto me contava isso, fez
um gesto com as mãos próxima à cabeça sugerindo a expansão do pensamento.
Além da sua experiência pessoal, Diego rememora com detalhes sobre dois outros
praticantes que marcaram sua trajetória enquanto traceur: Júnior e Roberto. Diego relata que
Júnior é um rapaz negro, pobre e muito tímido que chegou falando muito pouco junto aos
treinos e tinha muita vergonha da sua aparência. Diego disse que deu vários “sermões” nele e
o incentivou na prática, de modo que com a constância dos diálogos e trocas de experiências,
Júnior conseguiu melhorar diversas das suas inseguranças tanto a nível psicológico quanto
físico. Posteriormente, Júnior viria a se tornar uma outra pessoa muito importante para o
Parkour em Campina Grande, tendo participado também do Alliance Parkour. Já um outro
colega, Roberto, é descrito como um jovem que treinou parkour com Diego há um tempo
atrás, e tem um problema de saúde que dificultava sua constância nos treinos. Apesar de
gostar muito da prática, teve que parar de se dedicar por um período a fim de realizar seu
tratamento. Nos momentos em que estava melhor, sempre voltava para treinar. Segundo
Diego, o treino tinha um papel perceptível na autoestima de Roberto. À época desse relato,
Roberto entrou em contato com Diego para marcar um encontro, pois vai se mudar de
Campina, mas não queria deixar de rever o antigo companheiro e “mentor” de treinos.
Tive a oportunidade de entrar em contato com Roberto antes do mesmo deixar a
cidade e ele me confirma a narrativa de Diego. Vindo de uma família com boas condições
sociais, mas com valores que divergiam dos seus, Roberto não possuía uma boa relação com
seus familiares, além de ter uma doença de difícil diagnóstico e tratamento, fatores estes que
acabaram afetando sobremaneira sua autoestima. Como uma forma de “estar fora de casa” e
evitar conflitos familiares, bem como se exercitar para melhorar sua condição física, Roberto
143
relata que passou a praticar artes marciais e, em uma das suas idas ao local dessa atividade,
viu alguns rapazes treinando parkour no Açude Novo (ou Parque Evaldo Cruz). Ele se reporta
a essa época como um período de bons aprendizados e destaca a importância do papel de
Diego no incentivo e paciência com suas limitações.
Diego é uma figura central no parkour de Campina Grande, sendo apontado
constantemente como “mestre” ou “mentor” de praticantes mais novos. Nos seus relatos sobre
sua trajetória com a prática, ele carrega uma imensa bagagem de memórias detalhadas sobre
diversas pessoas que treinaram junto a ele. O aspecto da mudança de autoestima e confiança
nos praticantes após iniciarem o parkour é sempre lembrado por Diego nas suas falas. Dessa
vez, ele cita Levi como um rapaz que possuía uma autoestima muito baixa e também era um
pouco agressivo no seu comportamento. Durante os treinos, era normal que Levi não ouvisse
os mais experientes, fizesse “cara feia” para os conselhos de colegas ou ficasse muito
chateado por não conseguir realizar algum movimento. Entretanto, após os diálogos com
outros praticantes. Segundo Diego, o desafio que o parkour lhe proporcionouem agir com
perseverança, com repetição e ter humildade em ouvir os mais experientes, o ajudou a
melhorar também suas inseguranças. Hoje, Levi é formado em Educação Física, e já publicou
trabalhos na área sobre o parkour.
Após alguns anos sem se reunir com muitas pessoas para treinar, Diego fez uma
chamada por meio de suas redes sociais, para um treino coletivo no Açude Novo. Nesse
encontro, havia cerca de 20 meninos, entre 10 e 35 anos, dispostos em círculo ouvindo
algumas coisas que Diego falava. Me pus junto ao círculo por convite de Diego, fui
apresentada e expliquei um pouco sobre a pesquisa, o que eu já tinha feito e disse que havia
passado um tempo em Portugal também pesquisando junto aos praticantes de lá. Alguns
meninos acharam interessante e citaram nomes de traceurs portugueses que eles conheciam
por vídeos do youtube e perfis do instagram, e perguntaram se eu os havia conhecido. Em
seguida, ouvimos algumas recomendações e regras, como a necessidade de pagar flexões caso
fizesse algo “errado”: pisar muito forte, fazer uma aterrissagem pesada, ou mesmo não
conseguir realizar o movimento.
Essas regras, durante o treino, nem sempre são apontadas por Diego ou pelos colegas,
de forma que os próprios praticantes já fazem sem ninguém chamar atenção. Essas regras
segundo Diego, são para incentivar o preparo físico, dada a necessidade de estar bem
condicionado para a prática, como o exemplo das flexões. Em seguida, Diego nos falou que
iríamos explorar vários pontos do Açude, e não deixou de fazer relatos sobre os treinos “das
144
antigas”, oportunidade esta em que outros meninos também relatavam suas memórias afetivas
desse período, contando sobre piadas, “tiração de onda”, amizades e experiências outras.
Pagar flexão, apesar de proibido pelas regras militares, é uma forma de punição
comum nas unidades do Exército, geralmente ordenadas de superiores para seus subordinados
hierárquicos. Diego serviu ao Exército quando mais jovem e, assim como ele, também Heitor
e Alexandre.
Conheci Heitor em uma ida ao parque da criança para caminhar, o vi sozinho
treinando e fui conversar com ele, apresentando-me como estudante e fazendo referência a
Diego. À época da pesquisa, Heitor tinha 19 anos anos e cursava Engenharia de Materiais na
UFCG, mas encontrava-se com o curso trancado devido ao seu serviço junto ao Exército,
pretendendo voltar no semestre de 2020.1. Ele afirma que “O Exército é legal, mas gosto mais
da UFCG, inclusive é um dos lugares que mais gosto de treinar”. Combinamos, assim, de nos
encontrarmos na UFCG, em um domingo, que seria sua folga do Exército e ele também
aproveitaria para treinar pois na UFCG tem muitos “picos brabos” , e falou que sua namorada
também gostava de ir para praticar slackline.
No domingo fui até a UFCG, por volta das 15h. Havia quase nenhum movimento,
apenas os guardas e uns meninos que iam jogar futsal na quadra. Heitor chega com Natália,
sua namorada, e prontamente começamos a conversar e ir em direção à pracinha do Centro de
Humanidades, onde existem bancos, escadas e batentes. O chão, com vários retângulos de
concreto, também é útil para marcar “traços” de alcance nos saltos de precisão. Começamos a
conversar sobre como eu decidi pesquisar parkour e falo também um pouco da minha
experiência no campo de Porto, Portugal, pois Heitor acompanha alguns traceurs de lá e
mostra interesse nos relatos.
Heitor treinava há 5 anos e também teve seus primeiros contatos com o parkour a
partir da divulgação do filme B13 e outros vídeos da internet. Via com uma certa frequência
algumas pessoas treinando no Açude Novo e no Parque da Criança, até que um amigo o
chamou para treinar junto à sua turma, da qual Diego fazia parte. Assim, Heitor começou a
frequentar os treinos que aconteciam principalmente nos domingos.
Assim como outros praticantes que tive contato, Heitor considera o parkour um marco
em sua vida. A prática é um vetor de autoconhecimento muito importante para ele, que
carrega uma tatuagem no peito com um dos símbolos do Parkour: quatro grafias baseadas nos
antigos hieróglifos que significam igualdade, equilíbrio, controle e simplicidade. Com o
parkour, Heitor conta que aprendeu a não se importar tanto com os julgamentos dos outros,
145
pois a medida que passou a se conhecer melhor, entendeu que não precisa estar agradando ou
provando nada a ninguém, desde que tenha sua consciência tranquila.
Quando passou a se dedicar mais ao parkour, Heitor relata que se sentia “fraco” ao
tentar os movimentos, os quais demandam um bom preparo físico, então ele começou a fazer
calistenia junto a amigos do bairro, que treinam nas barras de exercício, disponíveis em
algumas praças. Passou, assim, um tempo afastado dos treinos mais frequentes do parkour
para se dedicar a um treino de força e, consequentemente, conseguir realizar de forma mais
satisfatória os seus treinos. Cita, ainda, que quando entrou no Exército, sua experiência com o
parkour e com a calistenia o ajudaram na realização dos treinos.
Fomos, em outra oportunidade, para um treino no Parque da Criança, pois Heitor havia
combinado com alguns amigos do quartel para treinar alguns movimentos de parkour e
realizar atividades físicas nas barras que existem neste espaço. Heitor e todos os seus amigos
do quartel são negros e residem nas periferias de Campina Grande, além de realizarem algum
outro tipo de atividade física a fim de complementar os treinos realizados no quartel. O treino
em comum entre todos eles é a calistenia. Todos têm músculos bem definidos e bastante
familiaridade com exercícios de fortalecimento onde se utiliza apenas o peso do próprio
corpo. Além da calistenia, alguns deles tem experiência com a capoeira, fato que fica
evidenciado na realização dos movimentos como giros e mortais.
Já em outro treino, também realizado no Açude Novo, conheço Eduardo, um rapaz
tímido que relata gostar de estudar qualquer coisa relacionada ao corpo e à educação física,
chegando a me indicar um livro sobre proxêmica de E. T. Hall, afirmando se tratar de um
material interessante para eventualmente pensar algumas questões do parkour. Estudante do
curso de física na Universidade Estadual da Paraíba, Eduardo é interessado também por break
dance e às vezes pratica parkour, especialmente quando Heitor, seu amigo, o convida.
Tanto Diego quanto Heitor falam com paixão sobre o parkour, mas confessam que
sentem falta de um grupo para treinar em companhia, pois acha bom compartilhar as
experiências do treino. Para Heitor, por exemplo, o fato de se estar em número mais alto de
praticantes, também afasta uma sensação de insegurança nos espaços públicos. Motivo pelo
qual ele gosta de treinar na UFCG, pois se sente mais seguro, além do que na universidade
pode-se contar com uma estrutura com banheiro e bebedouro, anexos à quadra de esportes.
Também na Universidade, ele pode levar o celular, tirar fotos e fazer vídeos com mais
tranquilidade. Diego não para treinar, dedicando sempre alguns intervalos entre suas
atividades como pai e seu trabalho como tatuador, durante a semana para ir, mesmo sozinho,
146
até o Açude Novo treinar, pois é uma maneira de se manter em forma e de “botar as energias
pra fora”.
Essas experiências relatadas entre os praticantes da transição de comportamentos
descritos como medroso, agressivo, defensivo, tímido ou sentimentos como solidão, para uma
atitude mais leve, humilde, alegre, brincalhona e momentos em comunidade, em encontros,
podem ser vista como um processo de afecção que potencializa o existir do praticante. Assim,
o parkour pode realizar bons encontros em ambientes que, a partir de outras experiências,
poderiam agenciar maus encontros, paixões tristes, como medo, solidão, insegurança.
Enquanto determinados espaços ou relações podem constituir formas hostis às experiências de
deslocamento ou de lazer, o repertório criativo possibilitado pelo parkour oferece
oportunidades de vivências positivas.
A mudança que ocorre nos corpos como efeito das afecções é denominado por Spinoza
(2016) e Deleuze (2002), por “modo”. Assim, podemos dizer que as afecções vivenciadas do
encontro no parkour constituem modos outros de agir do corpo: ocorrendo, assim, uma
alteração do estado do corpo, podemos ver em que direção, em qual intensidade, foi
provocada essa mudança, em outras palavras, se a potência desse corpo foi aumentada ou
diminuída. É nesse sentido que podemos dizer que os encontros proporcionados pelo parkour,
o conjunto de afetos trocados entre os praticantes, desdobram-se nas afecções que são
marcadas e reverberadas no e pelo corpo.

4.2 Itinerações na Área Metropolitana do Porto

Antes mesmo de ir morar no Porto para realizar o doutorado-sanduíche, eu sabia da


existência da Academia Eu+, em Vila Nova de Gaia, área metropolitana do Porto. Por não
conhecer ninguém nesse país que pudesse intermediar o meu contato com algum praticante,
comecei a seguir o perfil dessa academia e fui observando os comentários e alguns outros
perfis relacionados à página. Todos os traceurs que tive contato no Porto fizeram menção a
ela, sejam os mesmos alunos ou não dessa academia.
Quando fui morar no Porto, eu havia entrado em contato com vários praticantes que
encontrei em perfis do Instagram, tendo sido meu primeiro contato em pessoa com Gustavo.
Expliquei o meu intuito e ele convidou-me para assistir aos treinos dele e de uns amigos,
próximo ao Hospital São João. Gustavo enviou-me a localização na qual estava e fui da minha
147
casa até lá com ajuda do Google Maps, e, após atravessar uma larga rua em direção à
localização enviada, rapidamente avistei um grupo de jovens meninos, ao lado da GO Gym,
uma academia de musculação. Chegando lá, Gustavo me apresentou a Miguel e ao resto dos
rapazes, a maioria mais jovem que estes últimos. Miguel é professor da Academia Eu+ e é
conhecido entre alguns membros da comunidade internacional de parkour. Nesse dia, Gustavo
não treinou pois havia se machucado há uns dias, de forma que conversamos bastante
enquanto observávamos o treino dos outros meninos mais novos, que estavam sendo
supervisionados por Miguel.
Gustavo tinha 19 anos e treinava parkour há 8 anos, enquanto Miguel tinha 23 e
treinava há 11. Gustavo havia terminado a Escola Secundária no ano anterior e expressa o
desejo de cursar Ciências do Desporto. Miguel é professor de parkour há 2 anos na Academia
Eu+ e não possui formação superior. Ambos residem em São Mamede de Infesta, freguesia
pertencente ao concelho de Matosinhos, área Metropolitana do Porto, sendo habituados a
treinar por diversos spots dessa região, especialmente quando se reúnem com outros
praticantes que também residem ali. Mencionam, ainda, a importância de pensarem lugares
estratégicos, isto é, lugares em que o acesso à maioria das pessoas é facilitado, bem como de
acordo com o objetivo de treino deles, como exercitar um determinado movimento que requer
um ambiente mais específico. Também são citados sítios mais ao Centro do Porto como as
proximidades da estação São Bento, Esquadrão da Polícia e Jardim do Morro em Gaia.
Conversando ainda sobre as experiências com o parkour, Gustavo e Miguel falam
também que gostam muito de viajar e conhecer novos lugares e praticantes, de forma que,
muita vezes, entram em contato com estes por meio das redes sociais ou os conhecem em
eventos como as jams realizadas em alguma cidade próxima ou mesmo no Porto. Miguel, por
exemplo, tem uma vasta experiência com viagens pela Europa e coleciona uma série de
ambientes diferentes nas suas experiências de treino, desde as rooftops quanto quando às
colinas do Gerês, um parque nacional que abriga uma reserva natural, perto da fronteira com a
Espanha.
Conversando sobre as “jams”, encontros de pessoas para praticar parkour, os rapazes
comentam que vai acontecer uma que a Academia Eu+ está promovendo e me convidam para
assistir, pois poderia ser uma oportunidade de ver vários perfis de praticantes e conhecer
alguns spots diferentes. Essa jam aconteceu na Maia, na AMP e participaram alunos e não
alunos da Academia. O evento teve início junto ao Fórum da Maia, de modo que praticantes
não se concentravam todos num mesmo local, dividindo-se em pequenos grupos, de acordo
148
com seus interesses de movimentação no momento. Alguns descem as escadas de cabeça para
baixo, outros exploram muros mais altos, outros treinam “mortais” na grama. Esse primeiro
spot, a parte frontal do Fórum da Maia, é composto por diversos muros, de diferentes
tamanhos e escadas, bem como por um grande espaço com grama. As conversas, na sua
grande maioria, são sobre os movimentos, sempre com incentivos e aconselhamentos em
relação às técnicas corporais.
Alguns traceurs sobem no topo do Fórum e todos vibram e apontam para eles a fim de
que os colegas vejam a cena. Outros andam sobre o teto de outra parte da estrutura do prédio.
Um segurança chega e repreende os traceurs, que por sua vez não o questionam, apenas saem
e prontamente buscam outros espaços para treinar. Após um tempo, os traceurs resolvem ir a
outro spot. Dessa vez, o Skate Park, ainda na cidade da Maia. Rapidamente se espalham no
espaço, a exceção do lado esquerdo já ocupado pelos skatistas. São vários os movimentos
realizados em diferentes equipamentos do parque: saltos de precisão, mortais, monkeys42 etc.
O exercício de explorar a arquitetura passa pela observação, tentativa, improviso e diálogo
entre os pares. Os movimentos vão sendo “desenhados”, adequados, reparados e, também,
adaptados às potencialidades de cada traceur.
Já quase ao anoitecer, mudamos para outro spot. Dessa vez, uma pracinha com muitas
árvores, mesas e bancos de concreto entre dois conjuntos de prédios residenciais. Alguns
moradores olhavam pelas janelas e, cada vez mais, eu escutava o barulho das mesmas sendo
fechadas. A cena, de início, para quem avistava pela janela ou de longe, poderia parecer
curiosa ou ameaçadora. Quase 40 rapazes e duas meninas (eu e jovem praticante de 15 anos) a
saltar por sobre os muros, bancos e árvores em uma área residencial.
Os traceurs por vezes treinam em praças, parques e lugares centrais ou situados dentro
de um contexto mais turístico (como é o exemplo do Jardim do Morro, Quinta do Covelo ou
na Ribeira), ou em spots que, mesmo não sendo centrais, possuem uma complexidade
arquitetônica e não passam tão facilmente desinteressados aos olhares que se deparam com
eles. Mas os treinos podem ocorrer em lugares que para alguém de fora da prática seriam
completamente despercebidos. Uma pequena escada em uma rua, dois bancos de uma calçada
ou uma parede com uma leve saliência que possa ser agarrada com as mãos.
Apesar de usarem espaços de amplitude maior para desenvolver algum movimento, as
possibilidades suscitadas pelos pequenos detalhes são também exploradas com vigor. Os
traceurs frequentemente concentram-se em microespaços e passam um longo tempo
42 Movimento em que o traceur apoiando os braços sobre um obstáculos, passa suas pernas entre aqueles e
finaliza o movimento de pé ou seguido de um rolamento.
149
dialogando sobre as diferentes perspectivas de aproveitamento de determinados obstáculos e
técnicas utilizadas para realizar melhor os movimentos. Também, procuram perceber os
ambientes a partir de diferentes alturas, tateiam as superfícies, limpam constantemente as
pontas dos tênis para que não haja interferência de pequenos objetos ou materiais porventura
atrelados aos mesmos.
A gravação de vídeos também ocorre de forma intensa, uma vez que dada a
efemeridade do movimento, o registro pode ser uma forma de perpetuação no tempo e espaço
(CALDEIRA, 2012). Como em vários treinos que pude acompanhar, tanto na Academia,
quanto na rua, percebi nos olhares fixos, testas franzidas ou movimentos dos braços a tomar
impulso, expressões corporais que denotam cálculos necessários para a realização dos
movimentos, medição da distância pela escada de pés e sempre muitas conversas sobre as
possibilidades de aproveitamento do espaço e do corpo, ou mesmo da análise de ângulos mais
interessantes para o registro de fotos e vídeos.
Dias após essa jam, visitei a Academia Eu+, um empreendimento nascido da reunião
de 6 sócios, todos praticantes de parkour. Essa academia constitui uma importante referência
na prática do parkour no Norte de Portugal, tendo emergido da articulação de alguns membros
do Team Braga, um grupo situado na cidade de Braga, próxima ao Porto e outros praticantes
residentes desta última. O Team Braga possui um papel central no fortalecimento do parkour
no Norte de Portugal, agregando integrantes com experiências, técnicas e movimentações
diversas, como street workout, parkour, artes circenses e teatro, de forma que seus integrantes
trabalham em conjunto com apresentações em diversos eventos, especialmente os voltados
para recreação e esportes, tendo ganhado especial notoriedade com sua participação na edição
de 2015 do “Got Talent”, um programa-franquia de talentos exibido no canal RTP, em
Portugal.
Em Portugal, a repercussão do parkour também acompanhou sua difusão a nível
internacional, especialmente com a divulgação de vídeos de praticantes e do filme Banlieue
13 (B13 - 13º Distrito, em tradução no Brasil). A novela “Morangos com Açúcar”, transmitido
pela emissora portuguesa TVI, também retratou o parkour em alguns dos seus episódios,
contribuindo para uma maior procura pela prática, especialmente pelo público mais jovem.
Em 2020, um grupo de 7 jovens rapazes, alunos da Academia Eu+, participaram do Got Talent
sob o nome “Team Eu+”, apresentando suas habilidades no palco.
A Academia Eu+ é composta de diversos obstáculos feitos em madeira, desenhados
por um dos sócios-praticantes, com vários tamanhos e pensados para o treino de movimentos
150
específicos, mas que não impede o desenvolvimento de outros mais, de acordo com a
criatividade de cada um. O espaço também tem diversas barras, camas e uma piscina de
espumas para o treino de saltos mortais. Há um espaço separado, mais alto, onde os pais
podem ficar sentados observando seus filhos. Não é permitido aos pais acessarem o espaço de
treino, pois, segundo os professores, alguns deles querem intervir nos exercícios.
As pessoas conversavam sobre uma determinada parte dos obstáculos da academia e
tentavam desenvolver uma sequência de movimentos. Noto uma atmosfera leve, descontraída,
sempre com muitas palavras e gestos de incentivo entre alunos e alunos, e alunos e
professores. Alguns outros meninos vão chegando e, antes de se entrosarem ao grupo que
treina, vão “aquecer” um pouco, seja pulando alguns murinhos ou andando sobre barras.
As formas de se movimentar são diversificadas entre os alunos que estão ali na
academia, e em uma conversa rápida com alguns, vou descobrindo outras vivências que
atravessam a experiência do parkour. Há alguns adolescentes que iniciaram na ginástica
olímpica e, após conhecerem o parkour, resolveram se dedicar mais a este do que àquele, em
virtude de uma maior margem de liberdade nos treinos. Entre os professores, os perfis são
bem diferentes também. Iuri, por exemplo, é de nacionalidade russa e vive em Portugal há
mais de 15 anos, treinava parkour, à altura da pesquisa, há 4 anos, mas já possuía uma vasta
experiência prévia com a prática de street workout e calistenia 43. Ele me relata que conheceu
alguns praticantes de parkour na cidade de Braga, começando a participar dos seus treinos e
convidando os rapazes a participar também dos eventos de street workout. Desse encontro,
surge a Associação Portuguesa de Street Workout e Parkour e também o projeto da Academia
Eu+.
Na Academia Eu+, há uma confluência de aspectos metodológicos relacionados ao
ensino do parkour, desde traços pedagógicos da ginástica, das artes circenses, entre outros.
Existem alunos que ainda são crianças e, por isso, os professores buscam explorar bastante o
lado lúdico da prática, criando brincadeiras e atividades que emulam histórias ou situações
divertidas. Mas essa abordagem não é restrita às interações com crianças, mesmo os jovens e
adultos, em diversas situações, lidam com a prática a partir da sua dimensão lúdica. Este
aspecto é inegável quando falamos de parkour, e foi muito bem demonstrado na pesquisa de
Marques (2010) sobre a prática na cidade de São Paulo.

43 Street workout e calistenia são práticas muito semelhantes, mas a grande diferença está no fato de que a
primeira geralmente é praticada em praças e parques que contêm equipamentos, a exemplo das barras. A
calistenia não requer necessariamente esses equipamentos, sendo uma prática que necessita essencialmente
do peso do próprio corpo.
151

4.2.1 Da rigidez à maleabilidade – parkour como potencializador do corpo

Enquanto acompanho uma das aulas na Academia Eu+, comento com Iuri e Miguel
sobre a “atmosfera leve” que eu percebia nos treinos, bem como as palavras de incentivo e
pequenos toques com as mãos, entre professores e alunos, e entre os alunos. Miguel me fala
que essas pequenas atitudes fazem toda a diferença, especialmente quando comparado à
dinâmica presente na Ginástica. Uma palavra de incentivo ou uma crítica feita com delicadeza
contribuem para que o atleta de parkour tenha motivação para estar ali, para perseverar e,
sobretudo, para acreditar em si mesmo.
Eesse ato de tocar as mãos entre os praticantes, aplaudir quando um colega realiza um
movimento desejado, estimular os amigos com palavras e frases de incentivo como “você
consegue!”, “vamos, mais uma vez”, “você está melhorando!”, entre outras, contribuem para
a produção de uma “atmosfera potencializadora”. A importância do encontro, do estar junto, é
sempre descrita como um momento crucial para o desenvolvimento dos laços de comunidade
– esta comumente reportada como “família” - e para o incentivo no processo de aprendizagem
dos praticantes de parkour.
Conversando com Iuri e Miguel sobre as diferenças entre o parkour e a ginástica, eles
afirmam que a ginástica faz corpos mais “rígidos”, dizendo que é possível notar isso nos
corpos mais “viciados” por essa atividade física. Existe um “corpo de ginástica”, um corpo
com definição distribuída por todos os músculos. É inegável, segundo eles, perceber a
facilidade que alunos que têm experiência com ginástica possuem ao chegar na Academia,
com a realização de certos movimentos em virtude da técnica adquirida no tempo da atividade
anterior, mas isso não significa que serão capazes de realizar qualquer movimento. Ao
contrário do parkour, o corpo de um ginasta, segundo Miguel, tende a ser mais “robótico”,
pois a Ginástica condiciona o atleta dentro de uma dinâmica extremamente linear, tanto de
movimentos, quanto de espaço físico. Os propósitos da Ginástica e do Parkour são
completamente diferentes, apesar de convergirem esteticamente, em alguma medida, na
realização de alguns movimentos. A estética do Parkour, inclusive, não é tão “bonita”,
segundo Iuri, quanto a da Ginástica porque esta tem parâmetros de postura ao cair, ao pular
etc, enquanto no Parkour, o que se busca é a fluidez, é a maleabilidade, adaptabilidade entre
os aparatos concretos. “É quase como água, que quando tu jogas ela toma se espalha ou toma
a forma do lugar onde é jogada”, comenta Iuri.
152
Além disso, Miguel e Iuri também destacam que um dos grandes pontos que diferencia
as duas a ginástica e o parkour é o potencial de desenvolvimento da autoestima. Eles me
fazem relatos de constrangimentos de jovens ginastas, de situações em que estes até mesmo
choravam devido à pressão e desvalorização por parte dos instrutores, além da hostilidade
oferecida pela constante pressão da competitividade. Em uma conversa com dois praticantes,
uma menina de 15 anos e um menino de 14, ambos com anterior experiência em ginástica,
eles corroboram o que foi apontado por Iuri e Miguel, afirmando que, no parkour,
encontraram uma oportunidade de agir com mais liberdade, sem as amarras reguladoras que a
ginástica os oferecia.
Um outro praticante que frequentava a Academia às vezes como professor, é Vasco, de
25 anos, morador da cidade de Esposende, distrito de Braga, a 50 km do Porto. Vasco pratica
artes marciais e segue uma dieta vegana e natural. Em virtude de um problema de saúde de
um familiar, seu estilo de vida passou a ser mais saudável, de forma que seu familiar também
o acompanhou em alguns passos dessa transição. O parkour, segundo ele, assim como outras
atividades também o podem ser, auxilia nesse processo de expressão de energias reprimidas
através do corpo. Pedro é um rapaz que se interessa muito por assuntos mais que ele chama de
“holísticos”. Disse-me que em sua adolescência, passou por uma crise existencial, não sabia o
que era ou o que queria da vida, tendo encontrado sua resposta no contato junto à natureza.
Dos traceurs que entrei em contato na AMP, ele é o rapaz que mais realiza treinos em
ambientes com menor intervenção artificial, buscando sempre estar próximo de árvores, terra,
água, etc. Além disso, Pedro é formado em Ciências do Desporto, com mestrado na área,
atuando como professor em escola primária. Nas suas aulas, Pedro cita que busca sempre
passar algumas técnicas e movimentos do parkour, mas em virtude do espaço e da proposta da
disciplina, varia por outras atividades. O que ele gosta mesmo, entretanto, é ensinar parkour
porque é uma oportunidade de estar em encontro com as pessoas

Gosto muito de ensinar e de treinar junto porque cocê sozinho o dia todo vagueando,
treinando...cria mais sentimento de solidão. Se tiver em grupo, você sente mais paz,
alegria, tem mais movimento. Quando você vai treinar sozinho, geralmente você tá
procurando ficar em paz consigo mesmo, e depois que você consegue essa paz, você
quer sentir alegria. Então sozinho você sente alegria, mas no coletivo é mais intenso
isso. O sentimento de bem-estar aumenta porque você está trocando energia com
outras pessoas e tá intensificando o seu sentimento. (Vasco)
153
O fato de conseguir realizar movimentos com o próprio corpo que até um certo
momento anterior não se era possível imaginar promove um sentimento de autoconfiança e
autoestima que são transportados para outras vivências além do parkour. Um exemplo disso
foi um caso relatado pelos pais de um adolescente residente no Porto: segundo eles, seu filho
de 13 anos, antes de entrar no parkour, era muito tímido, medroso e “travado” e não tinha uma
grande autoestima, especialmente pelo fato de ser magro e ter uma estatura menor que a
média dos meninos da sua idade. Após o início na prática do parkour, o menino passou a ser
mais aberto e corajoso, a conversar com mais frequência e demostrar uma atitude mais leve e
descontraída. Essa mudança é vista pelos pais como uma clara consequência da entrada do
filho no parkour, fato este que os motiva a desejar que o filho permaneça treinando e em
vínculo com os colegas da prática, pois sentem que é uma atividade saudável e divertida para
o adolescente, tanto a nível físico, quanto psicológico. No mesmo sentido, temos o
depoimento de Gustavo

Quando eu era mais novo tinha menos confiança, tinha a autoestima mais baixa.
Então sinto que o parkour ajudou-me a crescer nesse ponto também, comecei a ver
as coisas de forma diferente, a sentir-me melhor comigo mesmo(…) Sempre gosto
de ir pra casa com aquela sensação de pensar “ok, tinha uma coisa que eu tinha
medo, acabo de fazer, sinto-me muito bem, muito feliz” se calhar não me achava
capaz e essa é sempre uma dimensão interessante porque acabamos por descobrir
que somos mais capazes do que o que achamos que somos. (…) E acho que essa é a
parte mais cativante do parkour. (Gustavo)

As intensidades dos fluxos que atravessavam um treino de parkour também produziam


afecções em meu corpo: senti alegria quando um praticante conseguia realizar um movimento,
ou, então, uma apreensão com uma mistura de entusiasmo ao ver saltos considerados mais
arriscados e perigosos. No começo da minha pesquisa, eu chegava a cobrir meus olhos em
alguns momentos. À medida que fui me familiarizando, passei a ficar mais tranquila e
confiava na atuação dos meninos, pois acompanhava a rotina de treinos e sabia que eles
estavam habilitados para tal.
Corpos afetam outros corpos, e essa afetação pode gerar tanto um aumento como uma
diminuição na potência de agir. As paixões tristes são aquelas que provocam uma diminuição
da potência de agir de um corpo, enquanto as paixões alegres provocam o efeito contrário.
Nota-se, portanto, um encontro potente de paixões alegres na dinâmica do parkour. As
memórias resgatadas na construção de uma narrativa sobre a trajetória de cada praticante com
o parkour mobilizam marcadores que são identificados pelos efeitos das afecções
154
proporcionadas pela experiência com a prática. Sentimentos narrados como adrenalina,
felicidade, instiga, vontade de se superar são percebidos como afecções sentidas no corpo que
se desenvolvem a partir do aumento profundo da potência de vida desses praticantes.

4.3 Entrelaçamentos entre parkour, gênero e virilidade

Em um dos treinos que participei, resolvi treinar com Heitor. Sua namorada, Natália,
que já tentou algumas coisas do parkour, mas não insistiu, também treinou conosco. Ela
montou o slackline entre as árvores da UFCG e também testei ficar em pé e andar sobre a fita,
com a ajuda dos dois, que apoiavam meus braços, cada um de um lado. Perguntei à Natália o
porquê dela não treinar parkour. Ela me disse que tinha muita vergonha, mas não entendia
exatamente essa vergonha, suspeitava que tinha receio das pessoas ficarem “olhando demais”
ou “olhando torto”. Perguntei se ela não sentia isso também com o slackline, pois ao meu ver,
também é uma prática que chama certa atenção. Ela disse que preferia o slack porque era ela e
a fita, ali, num canto. Achei interessante ela falar sobre essa sensação de vergonha, porque eu
também experienciei isso, especialmente durante minha estadia no Porto. Uma vez que fui
chamada para treinar junto ao pessoal, neguei porque estava com essa sensação de vergonha.
Fiquei tensa, com medo de julgamentos e coisas do tipo, e não sabia também explicar
exatamente o que eu sentia, mas a princípio era uma negação de que aquilo fosse “algo para
mim”.
Durante os treinos que eu acompanhava, comecei a ficar com vontade de tentar
algumas coisas, mas a vergonha ainda falava mais alto, me impedindo de ter coragem de
treinar. Acredito que isso me atrapalhou um pouco em me aprofundar na compreensão de
outros aspectos da prática, sobretudo para as sensações de dores, de frustração ou de alegria
ao conseguir realizar algum movimento, e também em relação à experiência do
compartilhamento de ideias acerca das movimentações entre os pares durante o treino. É
diferente ouvir essas ideias, sugestões, conselhos de “fora”, mesmo com todo a vontade e
esforço de entender a fundo aquelas falas. Quando me propus a treinar também, a forma como
ouvia as sugestões e como via as movimentações para tentar imitar, era bem diferente, pois
havia a necessidade de incorporar aquele entendimento para desdobrá-lo na prática do
movimento proposto.
Acredito, assim, que treinar em grupo no Porto, também poderia ter me ajudado a
entender melhor as possíveis dinâmicas sociais em torno do gênero. Isso pesou um pouco
155
durante um tempo nas minhas inseguranças após esse período de pesquisa, mas, por outro
lado, foi importante para vivenciar a prática etnográfica (MAGNANI, 2009), compreendendo
as nuances do campo e traçando novas estratégias de pesquisa. Uma delas foi a decisão,
evidentemente dentro das minhas limitações e respeitando o meu processo de entender e me
destituir, ainda que em menor escala, dessa vergonha em questão, de treinar, mesmo que
pequenas possibilidades.
Em janeiro do ano de 2020 foi veiculada uma matéria em um jornal local sobre um
encontro de parkour feminino na cidade de Taubaté-SP, sendo rapidamente viralizada em todo
o Brasil com um tom pejorativo, tornando-se, inclusive, em meme44. A edição de vídeo
transmitida pelo jornal mostra cenas de meninas realizando movimentos básicos do parkour,
pois se tratava de um evento que reunia garotas com e sem experiência, visando justamente a
inclusão feminina em uma atividade majoritariamente praticada por homens. É notável que a
própria edição da matéria não foi cuidadosa em constar informações adequadas, reforçando os
estereótipos relacionados tanto à prática em si, como ao aspecto de gênero. A jornalista, ao
anunciar a matéria, diz “Pode parecer brincadeira, mas é um esporte”, o que demonstra uma
hierarquia de práticas a serem “levadas a sério”: brincar é algo menor que realizar um esporte.
Em outro momento, é mostrado um professor de educação física emitindo sua opinião sobre a
prática com tais palavras: “(…) Arrisco dizer que as mulheres são mais belas que os homens
praticando, são muito mais delicadas, são muito mais sensíveis...coisa que nós homens
geralmente não temos”.
A quantidade de comentários no vídeo da matéria postado no YouTube é imensa e o
padrão segue mais ou menos discursos que ridicularizam a prática e reforçam a ideia do
parkour como algo extraordinário e “perigoso”. O teor desses comentários demonstra muito
do desconhecimento em relação ao parkour como um todo, como reproduzem discursos
sexistas, misóginos e gordofóbicos. O vídeo em questão obteve uma forte repercussão,
gerando muitos conteúdos de cunho depreciativo, mas também inflamou alguns debates em
torno da prática e do aspecto de gênero relacionado ao mesmo. O Programa “Encontro com
Fátima Bernardes”, na Rede Globo de Televisão, por exemplo, convidou duas meninas,
praticantes de parkour para conversarem sobre a ressonância dessa matéria e o preconceito
sofrido pelas mulheres nesse meio.

44 Os memes são reproduções em larga escala de imagens, vídeo ou gif, difundidas na internet com cunho
paródico (TREVISAN et al, 2016).
156
Figura 22: Print de comentários no vídeo "Parkour para meninas em Taubaté", disponível no
YouTube

Fonte: YouTube

Em um treino que participei em Campina Grande, conversávamos sobre a “polêmica”


do parkour de Taubaté e a maioria dos praticantes demonstrou empatia com os ataques e
ridicularizações direcionadas às meninas do referido encontro, pontuando que muitos desses
comentários eram advindos de pessoas que não conhecem de fato o que é o parkour, pois o
têm cristalizado no imaginário como uma atividade perigosa e extrema, além de apontarem a
edição da matéria jornalística como “mal feita”.
Apesar de se apresentarem de forma aberta à inserção das mulheres na prática, é
possível identificar alguns comentários que também reforçam o tipo “ideal” de treino de
parkour como algo essencialmente viril. Em uma conversa entre os praticantes, falávamos de
alguns nomes conhecidos no parkour e citamos uma traceuse brasileira que hoje vive na
Europa, e tal comentário foi feito: “Ela é braba? Se garante muito, ela tem uns movimentos
pesados, tá treinando mesmo como um homem!”
Os exemplos mostrados com a matéria do “parkour de Taubaté”, o teor dos
comentários diante da sua repercussão, o enaltecimento de mulheres “brabas” como aquelas
que realizam “treinos vigorosos” bem como a ausência ou baixíssima incidência de mulheres
na prática do parkour, demonstram relação com um lugar historicamente negado às mulheres
que é o espaço público, além da divisão entre esportes ou atividades “típicos” homens e de
mulheres (DEVIDE, 2005). Assim, nota-se que mundo das atividades físicas apesar de possuir
uma certa abertura para as mulheres, ainda mantém viva algumas questões que endossam a
desigualdade de gênero em tais espaços. Uma dessas questões diz respeito à aversão à mulher
157
“masculinizada” e a consequente resistência à entrada dessas mulheres em esportes ou
atividades chamadas de “aventura”, “radicais”, ou “extremas”, como o fisiculturismo, boxe,
escalada, entre outros. Essa questão também é desdobrada para as atividades realizadas
principalmente nos espaços públicos, sejam elas de lazer e/ou esporte, uma vez que o espaço
público está mais suscetível à interpelação de atributos viris, necessários à vivência e
ocupação deste local.
No parkour, uma praticante mulher tende a se destacar mais se possui uma
movimentação mais vigorosa, e o vigor, característica considerada masculina, quando não
visualizada no treino, parece deslegitimar ou invalidar a prática de quem a realiza de maneira
mais “suave” ou “sutil”. Isso, inclusive, às vezes é reproduzido entre os próprios homens
praticantes de parkour. Tal questão está relacionada com os estereótipos atribuídos às
dicotomias e hierarquias de gênero que desconsideram a pluralidade de vivências,
subjetividades e corporalidades (ADELMAN, 2006)
Pensar nessas questões nos remete ao papel que o contexto militar tem sobre a
emergência do parkour, na França: a prática nasce e vai carregando, ao longo do tempo,
adaptado aos novos contextos nos quais se desdobra, aspectos de uma disciplina viril,
masculina e heroica. E, apesar daqueles princípios de cunho altruísta adquirirem novos
significados ou novas roupagens diante dos desdobramentos da atividade, a identificação de
aspectos que reiteram e remontam a um certo ethos masculino heroico é um ponto que merece
ser explorado para compreender como essa performatividade viril é disposta com a prática do
parkour.
Um importante trabalho que nos ajuda a entender a relação da virilidade com o

parkour é o do antropólogo norte-americano Jeffrey Kidder (2013), desenvolvido em Chicago.

Este autor enxerga o parkour enquanto um vetor de realização de masculinidade,

argumentando que o desempenho de gênero dessa atividade está plenamente vinculado à

espacialização deste. Ele aponta, ainda, que esse tipo de modalidade apresenta uma

predominância de praticantes do sexo masculino, além de endossar uma identidade voltada a

uma resistência à dor e admissão dos riscos. Para Kidder, masculinidade e espaço são

mutuamente constitutivos. As afetações relativas a medo, conquista, superação, bem como a

redefinição dos espaços proporcionadas pelo parkour não podem ser analisadas sem

considerar a performance masculina:


158

Through parkour, men co-construct an embodied masculinity characterized by risk-


taking and controlling physical space. To this end, I analyze parkour as a particular
way in which young men transform the urban environment into a structural resource
for asserting masculine gender identities. (…) That is, traceurs—as they climb, run,
and vault through places like Grant Park—are transforming the city (albeit only
temporarily) into masculinized spaces—environments for taking physical risks as
proof of their manhood. (KIDDER, 2013. p.6)

Nesse sentido, Kidder (id, ib) afirma que o apelo a cenários e situações hipotéticas

(como por exemplo: “se houver um assalto”, “se houver um incêndio”, “se um prédio estiver

desmoronando” etc) não devem ser entendidos de forma literal, pois essas falas são

mobilizadas de acordo com uma narrativa guerreira, evocando a imagem de um homem

poderoso e capaz de controlar determinados eventos. Além disso, observar as formas que o

corpo masculino toma quando colocado em ação é necessário para compreender o parkour

como um ato de masculinidade, como o exemplo do treino sem camisa. Já verbalmente, esse

corpo é colocado em narrativas heroicas envolvendo cenários hipotéticos. Dessa forma, o

autor argumenta que o corpo do traceur não se realiza em um vazio espacial: ao praticar ações

consideradas arriscadas, o traceur comunica sua forma de compreender o ambiente, ao mesmo

tempo que reafirma e constroi sua identidade viril.

A pesquisa realizada por Kidder (2013) evidencia como o parkour pode ser lido sob

uma perspectiva de agência transgressora do ambiente, na medida em que os traceurs

vivenciam os espaços de forma criativa e não convencional. Paralelo a isso, há de se notar que

essas formas de experienciar o ambiente constituem atos de exclusão daqueles corpos que não

carregam física ou simbolicamente, elementos relacionados à virilidade masculina. Assim,

concebe-se uma dinâmica social de reforço e recepção dos aspectos ligados à masculinidade

no parkour: a juventude, o corpo magro ou sarado, aptidão e desejo a “correr riscos”, o poder

e controle sobre espaço.

O que apresentamos até aqui parece corroborar a ideia da masculinidade atrelada à

conquista do espaço público. Este constroi e é construído a partir de performatividades

masculinas que expressam a admissão de ações arriscadas e do corpo apto a praticar essas

ações. Para fazer parkour é preciso aprender a lidar com o medo e buscar a superação dos
159
obstáculos (corporais e ambientais). Assim, o espaço que se desenha a partir dessas

experiências é uma “paisagem urbana definida em termos de quem tem o poder de controlar e

quem não tem. O ambiente urbano, portanto, é tratado como um campo de prova para as

identidades de gênero masculina (em que outras identidades são subordinadas” (KIDDER,

2013. p. 13)

É relevante, ainda, pontuar que existe uma variedade nos modos de experienciar o

parkour e alguns deles não são devotados a um tipo de exercício significativamente “radical”.

A virilidade e o heroísmo, entretanto, são expressões presentes nas mais variadas formas de

experiência do parkour e o ponto importante de compreensão para o debate que se constroi

aqui é esse: a performance da masculinidade heroica é catalisada pelo parkour de modo mais

ou menos variável, manifestando-se, por exemplo, na superação de obstáculos concretos

considerados “arriscados”; na conquista desses obstáculos ou de espaços materiais e/ou

territoriais em determinados ambientes; na reprodução e/ou identificação de performances

masculinas e heroicas nas narrativas relacionadas à prática do parkour, entre outros.

A aceitação de desafios, assim como a competitividade, são medidas da masculinidade

(GASTALDO; BRAGA, 2011). Apesar da competitividade entre praticantes ser um aspecto

recorrentemente afastado no parkour, ele é deslocado para uma ideia de competitividade “com

si mesmo”, isto é, uma busca pela autossuperação. Mas, ao entendermos que “uma das formas

de ‘mostrar-se homem’ em nossa sociedade é correr riscos, aceitar desafios, em suma: ‘entrar

no jogo’” (GASTALDO; BRAGA, 2011. p. 884), percebemos que o parkour permite a

performance e a manutenção de gênero.

Diego, ao relatar suas memórias com o parkour, cita que, além desta paixão, também
possui outra: os personagens de super herois, e brinca com a coincidência de, um dia, estar
vestindo uma camisa do super homem e ajudar uma pessoa desconhecida que estava sendo
assaltada. Na ocasião, Diego recorreu às habilidades aprendidas com o parkour para correr e
saltar alguns obstáculos. Ele aponta que é impossível deixar de fazer essa analogia, dizendo
que, naquele dia, sentiu-se tal qual um super-heroi.
Já Bruno, praticante brasileiro residente no Porto, ao narrar suas experiências com o

parkour, refere-se constantemente à relação que ele estabelece com as construções urbanas,
160
compara um prédio grande a um “monstro” com o qual ele precisa lutar. Este enfrentamento é

travado justamente a partir dos movimentos realizados sobre a estrutura da qual ele fala.

Trata-se de uma luta entre um monstro “imóvel”, que avança sobre o indivíduo na sua

imponência, concretude, altura, texturas variadas e a criatividade do traceur em saltar, agarrar-

se, rolar e escalar as mais variadas partes desse prédio.

Mais uma vez o elemento guerreiro ou heroico é evocado, por exemplo, no “Desafio

Hércules”, uma série de 12 exercícios pensada pelo traceur pernambucano Adilson Veron.

Esse desafio é uma evidente referência ao mito grego do semideus Hércules que precisa

enfretar 12 árduas tarefas para livrar-se de sua penitência dada pela deusa Hera. O Desafio de

Hércules geralmente acontece de forma esporádica: na cidade de João Pessoa, capital

paraibana, a comunidade local de parkour escolheu o dia 30 de dezembro para sua realização.

Outro desafio conhecido pela comunidade do parkour no Nordeste é a do “Caba

Macho”45, desenvolvida pelo traceur sergipano Duddu Rocha. Em um vídeo divulgado por

este, esse treino é definido como uma

“Rotina física voltada para o parkour com o único objetivo de ver até onde você é
idiota (…) Saiba que não possui nenhuma lógica científica e a intenção é mesmo
esgotar sua energia física e mental. É um complemento, e não substituto aos treinos
de parkour. Você vai cansar, sangrar, gritar, tremer e, no caso do Edi, vomitar. Nos
vemos no hospital.”

Já em São Paulo, podemos tomar nota, também, do método “Lepartano” desenvolvido

pelo traceur e professor de parkour Leonard Akira. Segundo informações do site sobre seu

curso de parkour, o praticante que se propõe a participar desse ambiente deve saber que o

curso é mais que isso, constitui, também, uma “segunda família”, um grupo de “amigos”,

“colegas”, “espartanos” e “guerreiros”. Assim, é perceptível a recorrências das simbologias

atreladas a um ethos heroico ou guerreiro na vivência do parkour, apontando para a virilidade

ainda presente em diversos desdobramentos da prática.

Nesse sentido, a ausência de meninas no parkour não é uma exceção quando olhamos,
principalmente, para as atividades físicas ou esportes considerados mais “radicais”, que
exigem um alto desenvolvimento físico ou que envolvem práticas em dinâmicas de rua. A

45 Disponível em http://ibyanga.blogspot.com/2009/07/que-comecem-as-dores.html
161
virilidade é um fator crucial para entendermos a divisão de “práticas de homem” e “práticas
de mulher”, excluindo estas, até o início do século XX de espaços como as forças policiais e
as forças armadas, por exemplo e posteriormente as incluindo sob a justificativa de humanizar
e modernizar esses contextos (MOREIRA, 2011.)

4.4 Emaranhados entre parkour, mídia, imaginário social e vivências na cidade

Ao perguntar sobre a forma de contato com o parkour, traceurs brasileiros mais antigos
constante citam o papel de vídeos e filmes estrangeiros lançados a partir da primeira década
do ano 2000. São conteúdos desenvolvidos de forma profissional ou amadora, mas um filme
em especial sempre é lembrado: Banlieue 13 (na versão brasileira, B13 – 13º Distrito). Em
grande parte, difundidos a partir de plataformas como a extinta rede social Orkut, muitas
pessoas, praticantes ou não, compartilhavam ideias e vídeos nos fóruns das comunidades
dessa rede. Além disso, alguns programas de TV aos poucos lançavam matérias abordando o
parkour, especialmente no estado de São Paulo, fazendo com que mais pessoas soubessem da
existência da prática e levando-as a procurar mais a respeito da mesma, como foi o caso de
Diego, praticante campinense desde 2004.
Juntamente com Sébastien Foucan, David Belle, filho de Raymond, é constantemente
referenciado como o precursor do parkour, uma espécie de releitura urbana do Método
Natural (ATKINSON, 2013) desenvolvido inicialmente em Évry, Lisses e Sarcelles, cidades
satélites de Paris. David Belle elevou seu reconhecimento como traceur a nível internacional
sobretudo em virtude de sua participação no filme francês Banlieue 13.
É interessante pararmos um pouco e analisar a importância desse filme na projeção de
David Belle e na divulgação da prática de parkour para um grande público. Banlieue 13 fala
de um bairro socialmente vulnerável na França, com diversos problemas relacionados ao
tráfico de drogas e à violência. Os movimentos de parkour realizados por Belle, no
personagem de Leïto, e de outros atores, constroem a estética da miséria e da estreiteza das
ruas e construções do banlieue (PRUBHA, 2014). Comecemos pela compreensão do espaço
geográfico e social que é a banlieue francesa e posteriormente passemos para a discussão de
alguns de seus desdobramentos no cinema e no imaginário social a respeito do parkour.
O termo francês banlieue refere-se a espaços residenciais que se encontram nas
redondezas da cidade, um equivalente ao conceito de subúrbio. As banlieues eram os espaços
162
para onde a força de trabalho dos projetos de reurbanização após a Segunda Guerra Mundial
foi enviada, especialmente indivíduos provenientes de colônias francesas. A partir da década
de 1960, o Estado francês preocupado em erradicar os bairros considerados insalubres, a partir
de uma lógica higienista, dá início às construções de habitações coletivas, as Habitações de
Aluguel Moderado (HLM).
Construídos tão somente para responder ao problema de moradia com o um custo
baixo e destinados a cumprir o sentido de habitação em sentido estrito (LEFEBVRE, 2013),
esses conjuntos localizavam-se distantes dos eixos de comunicação e fora do circuito ou com
acesso limitado a rede de transporte público, associados a uma oferta limitada de
equipamentos coletivos (BRANCO, 2008).
Já a partir de 1980, com o crescente aumento da diversidade étnica e racial na França e
refletida em grande parte na constituição da banlieue, esse termo passa a ter uma conotação
específica, indicando um espaço geográfico e social comumente ligado à pobreza,
criminalidade, imigração e problemas com a sua juventude. Por exemplo, a família de David
Belle é de origem franco-vietnamita e Sebastien Foucan tem suas raízes em Guadeloupe,
departamento ultramarino da França, localizado no Caribe. Tanto Sarcelles, quanto Lisses e
Évry estavam inseridas no imaginário daqueles elementos que apresentam uma certa ameaça à
ordem dominante e, apesar de não figurarem nos motins ocorridos entre 1980 e 1990, muitos
dos seus residentes eram não-brancos ou de origem não europeia, fatores estes que reforçaram
os estigmas sobre os jovens provenientes das banlieues (KIDDER, 2017).
Nesse contexto, o cinema francês do século XX, especialmente a partir da década de
1950, contribui para delinear e difundir o imaginário em torno da banlieue, interpelando
narrativas tanto sobre o deslocamento desse tipo de subúrbio até a Paris mais central, quanto
relacionadas à criminalidade e juventude. Nesse período, há uma grande produção que busca
retratar a banlieue a partir do resgate da história de um certo urbanismo como estratégia de
segregação socioespacial das classes populares (ZIMERMAN, 2015). Já a partir de 1990,
ganha força a temática da violência e da criminalidade constantemente inscritas no universo
juvenil, que por sua vez estava associado a uma problemática urbana e de imigração. Assim,
se, por um lado, a banlieue é interessante para observamos as questões de ordem
socioarquitetônica, para o cinema, ela serviu como uma forma de leitura sobre as tensões da
cultura francesa tradicional e um novo contexto de multiculturalismo e diversidade étnica
(BRANCO, 2008).
163
A banlieue, portanto, congrega uma carga de estereótipos e estigmas relacionados ao
local geográfico, mas sobretudo ao lugar social que ocupa na conformação urbana e
capitalista da cidade. É nela que os marcadores sociais da diferença como classe e etnia
definem os personagens da narrativa sobre a constituição e dinâmica do local. Apesar dessas
concepções sobre espaços socialmente segregados e diante dessas urbanizações gigantescas e
descaracterizadas que de início não se revelam como as maiores promotoras de sociabilidade,
é com as parcelas mais jovens que vemos iniciativas criativas sobre o espaço público,
precisamente a rua, como local de socialização por excelência (idem, ibidem).
Não obstante a complexidade desses espaços seja maior do que a retratada pela mídia,
resta plausível iniciarmos a discussão sobre o parkour a partir da compreensão das
implicações sociais do seu lugar de origem.

Com efeito, a mediatização das violências urbanas das banlieues e a frequente


difusão sensacionalista de imagens espectaculares de carros incendiados, lojas
saqueadas, prédios e ruas vandalizados, concorrem em muito para a imagem
negativa dos jovens destes bairros. Comummente associados a grupos
hierarquicamente organizados e a gangs criminosos, estes jovens são vistos como
uma ameaça de marginalidade, não só para a periferia, como para o centro da cidade.
A amplificação de actos espectaculares e de distúrbios e conflitos ignora uma série
de aspectos que, vistos fora do seu contexto sociocultural, são tomados como
incivilidade, provocação, desordem e violência. (BRANCO, 2008. p.71)

Já em relação à representação do parkour na mídia, basta uma rápida pesquisa em uma


plataforma de filmes como o Netflix com o nome “parkour” para depararmo-nos com uma
série de filmes de gênero policial/ação. Um dos filmes mais citados e um dos principais
responsáveis pela divulgação da parkour a nível internacional é B13 – 13º Distrito, lançado
em 2004 e com atuação do traceur francês David Belle no personagem de Leïto, um civil que
luta contra um governo repressor e violento. Cyril Rafaelli, outro traceur francês, praticante
de artes marcias, ator e dublê, também participa do filme em questão.
A filosofia do parkour, derivada do ideal delineado pelo Método Natural que consiste
em ser útil, não advoga inicialmente pela finalidade da autodefesa ou agressão, tratando-se
muito mais da eficiência e utilidade do praticante em seu ambiente cotidiano (PRUBHA,
2014). Apesar de nascer nesse contexto, é muito comum que o cinema represente o parkour
enquanto atividade catalisadora de práticas que permeiam o espectro da violência ou
criminalidade, geralmente localizados em bairros pobres, como as banlieues francesas ou os
guetos norteamericanos.
164
Essas representações são uma via de mão dupla, no sentido em que auxiliam no
reforço de estereótipos, em especial provenientes dos bairros pobres, além de reafirmarem a
rua como sendo o lugar do perigo, do risco, da violência e, por excelência, o habitat dos
sujeitos desviantes. Esse imaginário construído sobre as ruas e suas práticas, sobretudo as
realizadas nas localidades socialmente segregadas, reverbera, portanto nas falas e nas práticas
dos traceurs entrevistados. De um lado, há uma vertente do parkour, outrora mais forte, que
interpela um estilo de vida através da prática onde a resistência a um sistema excludente e
massificante do urbano é marcada; de outro, há também um movimento em direção a uma
gradual aceitação social e em vias de ser institucionalizada. Mas é importante frisar a
complexidade e a heterogeneidade que evidenciam a existência de outros híbridos em meio a
essas dinâmicas mais marcantes, pontuados por experiências individuais, mas também
coletivas, lúdicas, profissionais, filosóficas, espirituais, entre outros.
Ainda sobre o papel fundamental dos filmes e produções audiovisuais que colocam os
movimentos do parkour no cerne da trama estética, não devemos esquecer que são esses
mesmos filmes para os quais é tecida a crítica aqui que atuam, em parte, no sentido de projetar
o parkour internacionalmente, criando também oportunidade profissional para David Belle e
outros traceurs. A prática é recepcionada em diversos lugares do mundo das mais diferentes
maneiras, e nesta pesquisa, temos duas realidades ao mesmo tempo semelhantes e distintas em
muitos aspectos e que serão exploradas ao longo do texto.
Nas entrevistas realizadas no Porto, vários traceurs afirmaram que a carreira de ator ou
dublê eram visadas. A projeção desses traceurs com filmes como Banlieue 13 pode ser um dos
fatos inspiradores no qual esses praticantes atualmente se apoiam ao planejar seu futuro
profissional enquanto participantes de filmes e clipes de ação. A explosão de programas como
Ninja Warrior, no qual atletas advindos das mais diversas modalidades físicas encaram uma
série de desafios de ultrapassagem de obstáculos, têm também chamado a atenção de alguns
traceurs como oportunidade de crescimento dentro de sua área de atuação. Essa dimensão foi
melhor visualizada no Porto do que em Campina Grande, o que pode apontar para o lugar
estratégico que Portugal ocupa por estar na Europa e, em consequência, mais próximo dos
centros de produção audiovisual, mas também aponta para oportunidades que estão
relacionadas à classe e etnia dos praticantes, uma vez que foi verificada uma maior incidência
de traceurs de classe média e brancos.
Durante minha pesquisa no Porto, em uma conversa com um pai de um praticante de
parkour, de 12 anos, aluno da Academia Eu+, ele me confessou que não se sentia muito à
165
vontade de deixar o filho treinar na rua porque, apesar de buscar compreender o propósito da
atividade, ainda tinha uma certa ideia que a prática podia sugerir, em suas palavras, algum
comportamento de “gangue”, “proibido” ou “vândalo” para outras pessoas que porventura
vissem ou soubessem do exercício praticado pelo filho. Já Roberto, em Campina Grande,
também rememora alguns discursos ouvidos sobre o parkour, fazendo comentários sobre o
imaginário no qual a prática está envolta, a qual vai de acordo justamente com a fala do pai do
jovem traceur portuense.
Essas falas podem nos revelar alguns aspectos sociais alimentados tanto por meio da
própria narrativa de origem do parkour, como também em virtude da representação da prática
pela indústria cinematográfica - vetor de extrema importância na difusão do parkour a nível
internacional - as quais convergem para um tema em comum que é a rua como lugar de
perigo.
Em conversa com os rapazes praticantes de parkour em Campina Grande, eles
mencionam que antes os treinos focavam muito na parte teórica porque Diego, em especial,
tinha a preocupação de que todo mundo entendesse de fato o que é o parkour, até mesmo para
poder explicar para a família e quem porventura interviesse sobre o assunto, ou em algum
momento dos treinos. Isso se dava tanto para o aprendizado da parte “filosófica” ou “moral”
do parkour, mas também para evitar preconceitos de família, amigos, passantes ou
autoridades. Citaram, inclusive, o fato de Diego possuir muitas tatuagens e piercings e como
isso poderia agravar o esteriótipo em torno do praticante de parkour.
Heitor cita, por exemplo, que como o parkour é uma prática não muito conhecida,
principalmente em Campina Grande, sua mãe de início, tinha um pouco de receio por não
saber bem com quem o filho estava andando. Após um tempo, ficou mais tranquila, sobretudo
depois dele entrar no Exército. Em virtude também do serviço militar, Heitor dizia buscar não
“arrumar confusão” com ninguém ou não treinar em lugares inapropriados para “não ir pro
barro”, isto é, ser retaliado de alguma forma no quartel, pois seu comportamento fora deste
espaço também estava, de alguma forma, sendo vigiado e avaliado.
Heitor me fala de algumas vezes que treinou em João Pessoa, a exemplo de um
Encontro Nordestino de Parkour. E comenta que se lá não é tão bom para aproveitar os
espaços e também se locomover “aqui em Campina é muito pior. Aqui está mesmo muito
ruim”. Comenta sobre os espaços abandonados na cidade, que se fossem revitalizados e
oferecessem um mínimo de estrutura e segurança, já ajudaria bastante, fazendo com que mais
pessoas frequentassem os locais. Ele ainda conta que às vezes quer ir até outros espaços para
166
treinar, mas o acesso ao transporte público, além de caro, é muito defasado. Nesse mesmo dia
que tivemos esse encontro, Heitor e Natália, já cansados de esperar pelo ônibus para nos
encontrarmos, resolveram ir a pé do bairro das Malvinas até a UFCG.
Quanto treinavam mais antigamente, os traceurs em Campina costumavam fazer uma
caminhada no domingo que ia do Açude Novo até o Viaduto, treinando em diversos picos ao
longo do caminho. A escolha do dia para esse treino específico, se dava em virtude da pouca
movimentação de carros e comércio. “Nesses treinos, a gente tinha a cidade toda só pra
gente”, diz Heitor ao lembrar desses momentos. De forma semelhante, ocorre o Treino
Natalino, em João pessoa, no qual vários praticantes saem da Lagoa, no centro da cidade, até
o Busto de Tamandaré, na orla.

O último treino (natalino) durou 8 horas… assim, é coisa de você esquecer da vida e
aproveitar a cidade totalmente. No dia 25 de dezembro não tem uma alma penada na
cidade, não passa um carro. A cidade é nossa. E logo de manhã, 5 da manhã...não
tem ninguém. Eu não quero incomodar, às vezes a gente pode estar numa praça
treinando e um casal está lá e se sente incomodado com nossa presença. Ou sei lá, a
gente estar treinando ao lado de um banco… você pessoas não tão bem
vestidas...porque nós não vamos arrumados e tá ali treinando com movimentos
bruscos, com barulho que a gente comemora, aplaude… não sei, eu acho que quando
a cidade é “nossa”, nossa entre aspas, quero dizer, que a gente pode aproveitar mais,
é mais confortável. Não que isso seja motivo de impedir um treino, a gente não vai
deixar de treinar, mas eu acho que é diferente. (Ygor)

Pergunto a Heitor sobre eventuais conflitos com outros atores, como guardas e afins e
ele disse que nunca houve de fato um confronto direto, apenas algumas vezes em que guardas
chegam para entender do que se trata aquela movimentação, mas sempre alguma das pessoas
que está treinando, procura explicar o que é. As advertências sempre são mais no sentido de
não danificar os espaços, ponto que Heitor concorda pois os guardas estão cumprindo sua
função. “Principalmente agora que eu tou tendo essa experiência do lado de “lá”, na guarda do
Exército, eu também entendo o lado de quem precisa chamar atenção para possíveis danos e
tal, lógico que tem os abusos e tudo mais, mas chamar a atenção eu entendo”. Ele também
fala que procura não incomodar outras pessoas e não danificar os espaços para não manchar o
nome da prática e contribuir para o reforço da sua estigmatização. Além disso, não quer correr
o risco de ser abordado por estar fazendo algo errado e comprometer também seu trabalho no
Exército.
Ainda nessa conversa, Heitor pontua que procura não julgar as diferentes visões acerca
do parkour, pois sabe que é uma prática que possui desdobramentos vários. Atenta, entretanto,
para o fato de preservar a essência de “ser e durar”. Não adianta, segundo ele, abusar do
167
próprio corpo e, por pressão ou por modismo e exibicionismo, arriscar movimentações e
utilizar espaços de forma irresponsável. Cita o caso de alguns canais de parkour que divulgam
vídeos em lugares muito inapropriados, chegando a colocar a própria vida em risco. O
problema, segundo ele, não diz respeito às pessoas fazerem isso por conta própria, mas sim,
divulgar essas ações, pois projeta o parkour de maneira inadequada, principalmente para
aqueles que não o conhecem ou estão começando agora na prática. Para Heitor, o propósito do
parkour de“ser e durar” é incoerente com os riscos não calculados, bem como com treinos
mal feitos. É preciso estudar as movimentações e desenvolver consciência corporal, a fim de
compreender os impactos que atitudes mal pensadas podem ter no corpo e na mente. “Você
pode até conseguir fazer tal salto que exige muito do seu corpo, mas fazendo de forma errada,
em pouco tempo você não vai conseguir fazer nem de vez em quando porque seu corpo vai
estar lesionado. Quando isso sobe à cabeça, sua cabeça vai pro barro”.
Heitor entende que essa compreensão é tomada de forma gradativa e também com
compartilhamento e estudo sobre a prática. No início, ele queria fazer mais saltos mortais,
treinar coisas mais arriscadas, mas depois foi entendendo que “talvez eu não precise disso”,
que podia ir aprendendo outras coisas e que o momento para outras, aos poucos, ia chegando.
Heitor disse que com o parkour, seu olha sobre a cidade mudou completamente. Ele
enxerga várias possibilidades em diversos lugares. Ele relata que às vezes está andando de
ônibus, vê um pico interessante e temcom vontade de descer e treinar naquele momento
mesmo. Ele acha muito interessante a ideia das Academias, mas acredita que elas teriam de
ser pensadas no contexto social de cada local. Nem todo mundo pode pagar para frequentar
esses espaços. Seria mais viável pensar em espaços destinados à prática, mas que fossem
acessíveis para o público em geral.
Gustavo, no Porto, me fala que é positivo em relação às academias de parkour, pois é
um ambiente interessante e seguro para treinar e depois passar para o meio urbano, sobretudo
para quem está iniciando na prática e para crianças e adolescentes. Mas reforça que nada vai
ser igual à vivência das ruas. Cita que transitar pela cidade e entre outras cidades fornece uma
bagagem de visões e aguça a criatividade em relação aos movimentos. Segundo ele, a
arquitetura do Porto permite movimentos mais rentes ao chão, os muros são mais baixos e
mais afastados uns dos outros. Diferentemente, por exemplo, de algumas cidades da Espanha,
onde há muros mais altos e mais próximos uns dos outros. O mapeamento dos spots, segundo
Gustavo, ocorre através dos passeios, quando saem a andar em grupos em busca de lugares
interessantes. O olhar desenvolvido que a vivência do caminhar nas cidades proporciona é
168
algo que não se desfaz, segundo ele, mencionando que passou um pouco mais de um ano sem
treinar e esse “olhar” não o abandonou. A visão apresentada por Gustavo é comungada por
Ygor, praticante de parkour, residente em João Pessoa:

As academias no Brasil todo, elas trazem isso e trazem mais possibilidades para
praticantes de outras idades. Essa segurança da academia pode dar mais confiança
pro praticante a treinar coisas que ele não treinaria na rua. Uma coisa mais difícil,
uma sequência mais complicada… acho que a academia fechada traz muitos
benefícios, mas eu acho que o parkour como origem não pode se perder. Pode
construir várias academias, vai ser bom, mas não vai tirar a importância que o
parkour tem e trouxe. Isso tá batido de martelo já. A gente sabe que o parkour é rua e
sempre vai ser. O praticante que sai da rua pra academia é diferente do que sai da
academia pra rua. O que sai da academia pra rua ele tá conhecendo o meio,
conhecendo as possibilidades, as incertezas, outros materiais… e tem muita
diferença porque ele tá mais acostumado com um espaço que fornece mais certezas.
E na rua é diferente, tá cheio de incerteza. Eu acho que nada vai superar a rua não.
(Ygor)

Nesse sentido, as academias aparecem como uma alternativa ao treino realizado na


rua, mas também como uma forma de capitalizar o parkour, sendo vista como um meio de
inserção profissional dos praticantes. Além disso, percebe-se que as vivências na rua com o
parkour, em alguma medida são controladas pelo receio de parecer “coisa de doido” ou “coisa
de ladrão”, como cita Diego. Entretanto, ainda que sejam prática realizadas na rua e possuam
um certo caráter transgressivo, Caldeira (2012) afirma que o parkour, assim como o skate e o
grafite, têm um relacionamento amistoso com o poder público, tendo sido, em alguma
medida, aceitas pela administração municipal. Esse fato pode ser constatado nas iniciativas e
parcerias do poder público na promoção de eventos e construção de centros de esporte e lazer
que possuem estruturas direcionadas a estas atividades.
Essa relação com o poder público muitas vezes pode ter um custo, mais notadamente
em Campina Grande, de uma manutenção da “imagem” do praticante. Nos relatos, vários
tracers afirmaram “maus olhos” de pessoas que eventualmente passavam próximos aos seus
treinos, além de algumas pequenas confusões com guardas e seguranças de prédios, pelo fato
destes inicialmente perceberem a prática como um ato de vandalismo. Alguns praticantes que
eram integrantes do Exército, também buscavam vigiar seus treinos de modo a evitar, por
exemplo, treinar em lugares de acesso restrito ou privado, a fim de não sofrerem advertências
ou algum tipo de retaliação no âmbito militar, devendo, portanto, manter o “civismo” também
durante a prática do parkour. Essa vigilância sobre a prática na rua se mostrou mais forte no
contexto estudado na Paraíba, apontando que os marcadores sociais da diferença como cor da
169
pele e classe social também interfere na construção do estigma do praticante que escolhe a rua
como meio de lazer.

4.5 Emaranhados entre parkour, caminhos de inserção profissional e processo de


esportivização da prática

Realizar a pesquisa de campo na cidade de Campina Grande, entre os anos de 2016 e


2020, foi um desafio no sentido de encontrar praticantes ativos, seja em treinos coletivos ou
individuais. Já no Porto e área metropolitana, pude encontrar uma comunidade mais
organizada, bem articulada com praticantes de toda a Europa e engajados em projetos como
academia, comércio de marcas esportivas (roupas e acessórios), ensino de parkour em escolas
ou outras instituições, além de participação em eventos recreativos, nos quais os traceurs
utilizavam suas habilidades para encenar personagens. Os interlocutores que encontrei no
Porto praticavam parkour há, em média, 10 anos, tendo interrompido os treinos por um
período, ocasionalmente, devido a alguma lesão ou outro motivo que exigiu o afastamento
temporário. Mas o número de praticantes que conseguem viver profissionalmente de parkour,
senão como renda principal, mas como renda complementar, é absurdamente maior em
comparação com a realidade de Campina Grande, quiçá de toda a Paraíba. Enquanto na Área
Metropolitana do Porto, os praticantes eram, em sua maioria, de classe média e brancos, na
Paraíba, encontrei traceurs, majoritariamente, moradores das periferias da cidade, bem como,
pretos e pardos.
Especialmente no ano de 2019, alguns rapazes em Campina Grande, encabeçados por
praticantes mais antigos, resolveram retomar os encontros coletivos naquele que é um dos
espaços mais simbólicos para o parkour na cidade: o Parque Evaldo Cruz, mais conhecido
como “Açude Novo”. Durante esse ano, a pesquisa aconteceu de forma mais intensa que nos
anos anteriores, dada a própria dinâmica que começava a se delinear de forma diferente.
Nesses treinos, havia uma variância entre 5 e 10 pessoas (a exceção do primeiro encontro que
continha aproximadamente 20), e então pude vivenciar com maior frequência a experiência do
treino coletivo. De acordo com os praticantes entrevistados, o hiato ocorrido entre 2013 – ano
no qual, segundo os relatos, os treinos começaram a ficar esvaziados – e 2019, deu-se por
diversas razões, mas o fator de peso aponta para uma maior dedicação de tempo a ocupações
como trabalho e família.
170
Diante desses breves dados, podemos começar a discutir algumas questões relativas
aos possíveis óbices à continuidade da prática. Podemos traçar, de início, duas hipóteses
principais: a primeira, é de que há uma desistência massiva com o decorrer do tempo porque o
parkour é uma atividade chamativa apenas para o público jovem, outra hipótese é a
dificuldade encontrada diante das possibilidades de inserção socioprofissional dos praticantes
no mercado de trabalho, é nesse último ponto que pretendo debruçar uma reflexão mais
aprofundada.
A primeira hipótese cujo aspecto da juventude se sobressai para justificar a interrupção
da prática em função da faixa etária do traceur tem sua validade, mas não justificada no
aspecto fisiológico do praticante jovem. As realidades dos dois campos analisados, colocando
em paralelo praticantes de idades extremamente próximas, corrobora que a juventude é uma
realidade vivida contextualmente, em diálogo com as dimensões sociais e econômicas de um
lugar.
Na segunda hipótese, podem haver uma série de críticas em decorrência de um certo
pensamento calcado numa suposta “raiz” do parkour de que a prática se trata de uma
modalidade livre, não devendo ser passível de qualquer tipo de exploração comercial. Há
praticantes são contra, por exemplo, a cobrança financeira para dar uma aula de parkour.
Outros manifestam o desejo de ter um espaço e um negócio para viver do ensino da prática
porque é “o que mais gosta de fazer”, como cita Miguel, no Porto, e Ygor, em João Pessoa.
O ensino superior no contexto observado em Campina Grande e João Pessoa parece
ser, atualmente, a possibilidade mais próxima de “viver de parkour”. Dois praticantes de
parkour em João Pessoa, hoje, são profissionais de educação física e, eventualmente, utilizam
os métodos do parkour em suas aulas. Nas entrevistas, eles relatam o desejo de desenvolver
algum projeto como uma academia, por exemplo, destinada à prática de parkour. Em Campina
Grande, dos entrevistados, apenas um deles possui formação no curso de Educação Física e
um eventual atravessamento com o parkour durante sua atuação profissional. Estes praticantes
e profissionais de educação física, em geral, atuam como instrutores e procuram desenvolver
seus treinamentos pautados na sua experiência como traceur ao longo dos anos.
Atuar como professor ou instrutor de parkour, no Brasil sem uma habilitação
concedida por um curso superior ainda não é uma questão bem resolvida, ponto este que pode
estar relacionado à indefinição do status da prática. Práticas como dança e artes marciais, por
exemplo, não exigem formação em ensino superior. Sobre este aspecto, Diego afirma que não
concorda que o parkour seja reconhecimento como um esporte por várias razões. Uma delas é
171
que “se uma pessoa que quisesse trabalhar com parkour teria que se graduar, ter uma
formação técnico-científica que o habilitasse para tal… eu, que treino há mais de 10 anos não
poderia ensinar parkour?”. O segundo fator apontado por ele diz respeito à possibilidade de
dissolução do propósito do parkour em ser atividade livre, não normativa, apontando que não
concorda com competições, porque simplesmente não fazem sentido “se o objetivo principal
do parkour é você compreender a dimensão do autoconhecimento e da autossuperação, você
vai estabelecer normas de como tem quer ser assim ou assado?”.
Os conflitos em torno do parkour não envolvem somente a possibilidade de
esportivização da prática, sendo já clássica a disputa entre as definições entre parkour e free
running. Alguns praticantes de Campina Grande, ao conversarem sobre esse aspecto, lembram
de um encontro na cidade de Recife, em Pernambuco, onde havia uma “galera mais chatinha
que ficava a todo momento ditando regra sobre o que devia ser feito ou não em cada uma das
atividades. Isso aqui é parkour, isso aqui é free running”, como relata Alexandre.
Em relação ao aspecto da esportivização, houve uma série de inclusões e mudanças
nos jogos olímpicos previstos para o ano de 2024, como a reformulação de provas de alguns
esportes já veteranos e a entrada de novas modalidades como breakdance e o parkour. Todas
essas alterações foram propostas pelas Federações ou Associações dos respectivos esportes, a
exceção do parkour, cuja intervenção é proposta pela Federação Internacional de Ginástica. E
este parece ser o principal ponto de conflito na grande comunidade de traceurs ao redor do
mundo: o fato de ginástica apropriar-se do parkour como submodalidade daquela. Apesar de
divergências de várias ordens, como por exemplo, a oposição à esportivização do parkour
como processo capaz de minar a não-competitividade, um aspecto por muito tempo caro aos
praticantes, o ponto principal de crítica da comunidade como um todo é o fato da inclusão do
parkour nas Olímpiadas ser gerida por atletas de outro esporte. Há uma certo paralelismo
entre as duas práticas devido à semelhança de alguns movimentos, bem como um
atravessamento consideravelmente recorrente entre o parkour e a ginástica devido a seus
praticantes transitarem pelas duas atividades, em especial, ginastas que acabam migrando para
o parkour em busca de uma modalidade mais livre (FERRO, 2016).
As experiências de treino com o parkour apontam para uma diferença substancial da
ginástica, desde o tipo das relações estabelecidas entre praticantes e professores, quando é o
caso de Academias ou escolas direcionadas ao ensino da prática, passando pela interação e
olhar com e sobre os materiais e os espaços, até a forma propriamente dita de mobilização
habilidosa do corpo. Como citei em tópico anterior, alguns praticantes portuenses de parkour
172
que tiveram uma experiência prévia com a ginástica relataram ter abandonado esta para se
dedicar àquela em razão do rígido disciplinamento vivenciado anteriormente, na maioria das
suas vezes, voltado para uma prática de alto rendimento.
A relação que há entre os praticantes do parkour em comparação à prática de
Ginástica, segundo Iuri e Miguel, passa por um crivo mais sensível do que outros ambientes
de treino esportivo institucionalizado. Esse aspecto do constante incentivo, das críticas
colocadas de forma mais polida – demonstrando não somente uma sensibilidade maior por
parte do professor/instrutor, mas também uma atenção para cada caso específico – juntamente
com os propósitos diferentes do parkour em relação às outras práticas, coloca-o em um
patamar próprio, de uma modalidade onde há envolvimento comunitário, maior liberdade,
individualidade e respeito às potencialidades de cada um.
Há um consenso em considerar que a vivência proporcionada pelo parkour é única e,
por isso, não deve ser apropriada pela modalidade da Ginástica. Só os indivíduos diretamente
envolvidos com o parkour são capazes de compreender as finas tessituras desta prática, fato
este que os permite reivindicar o lugar de gestão, por exemplo, do processo de esportivização
do parkour e sua atuação junto a um evento do naipe das Olimpíadas.
Iuri afirma que o Parkour está para a Ginástica, assim como a religião está para a
ciência. Ressaltou que evidentemente é possível explicar cientificamente o parkour,
principalmente depois do crescente envolvimento de profissionais da educação física com
essa atividade, entretanto, há uma rigidez (pensar em outros termos também), uma linearidade
e um “detachment” na Ginástica que não é vivenciada no Parkour.
Apesar dos discursos que diferenciam o parkour e a ginástica, até mesmo das opiniões
mais críticas, eles deixam claro que existe respeito por todas as atividades, sendo apenas uma
reivindicação de experiência direta com a modalidade que lhes dá propriedade para tratar da
esportivização do parkour.
No Parkour é difícil, segundo Iuri e Miguel, avaliar, assim como faz a Ginástica, o
“sucesso” do traceur, pois não há uma linearidade exigida naquela. A grosso modo, para
ilustrar “se um traceur prefere pular com as pernas abertas e outro com as pernas fechadas”,
mas ambos conseguem realizar o salto, como avaliar quem é melhor ou pior? É óbvio que
existe uma certa competição entre os traceurs, sobretudo motivada em alguns por ego,
vaidade, mas isso não constitui a regra. Os praticantes chegam a realizar pequenas
competições, mas não há aquele peso existente nas academias de ginástica, por exemplo. A
competição se dá em cima de uma ou mais habilidades específicas, realizadas por dois ou
173
mais traceurs, para testar o seu desempenho, como um sticker mais preciso. As pessoas não
estão ali para tentarem ser melhor que os outros, mas para superar a si próprio. A
competitividade no Parkour é, no fim das contas, consigo mesmo.
Ao pesquisar nos materiais disponíveis na Internet, consigo chegar a uma quantidade
maior de posicionamentos contra a “apropriação” do parkour pela Ginástica, expresso
especialmente no movimento chamado “We are not gymnastics”. Apesar de haver divisões no
que tange à aceitação ou não do processo de esportivização do parkour e sua consequente
inserção nos Jogos Olímpicos, em geral, a esportivização em si não é de todo mal vista pela
comunidade, a ideia predominante diz respeito ao protagonismo de atletas de parkour na
gestão da modalidade em eventos esportivos.
A esportivização do parkour tende a ser um processo inescapável na trajetória da
prática, se olhamos para a história de outras atividades e esportes. Segundo Marchi-Júnior
(2004), o voleibol, por exemplo, passou por um processo de espetacularização que implica
uma virada progressiva do amadorismo à profissionalização, movimento este que, para o
autor, não está relacionado necessariamente com o objetivo de aumentar o número de
praticantes e, sim, com o fomento de um mercado consumidor de símbolos e signos sociais
relacionados àquele esporte. Fernandes et al (2020), ao analisarem as condições
sociohistóricas do parkour, endossam a tese defendida por Marchi-Júnior, afirmando que o
parkour, assim como diversos outras práticas, passam por essas e disputas entre as correntes
que defendem o amadorismo e as que acreditam nos processos de esportivização

Esse cenário restituído, por sua vez, sugere que essas tomadas de posição quanto aos
eventos de competição de parkour/freeruning configuram uma luta pelo uso legítimo
do corpo, mais precisamente, uma disputa entre aqueles que defendem um ideal
amadorístico da prática versus aqueles que são afeitos ao ideal profissional.
Enquanto o ideal amadorístico ou ortodoxo, marcado pela autonomia, defende o uso
hedonista do corpo e considera que a espetacularização contribui para a vulgarização
da modalidade, o ideal profissional ou heterodoxo, com ênfase na heteronomia,
sustenta, por sua vez, um uso competitivo do corpo com recorrência à logica
espetacular. (FERNANDES et al, 2020, p. 514)

Vaghetti et al (2019) demonstra em sua pesquisa o interesse tanto de praticantes


quando dos profissionais de Educação Física na inserção da prática de parkour no ensino
superior, pois enxergam-na como uma nova oportunidade de trabalho, bem como se
mostraram entusiastas com as possibilidades que o parkour pode abrir em relação à
construção de uma cultura corporal baseada em uma prática nova e que não depende de
muitos aparatos além do próprio corpo.
174
Em relação ao ensino do parkour, seja por pessoas com ou sem formação superior, há,
segundo Miguel, exceções, mas a maioria das pessoas que trabalha com parkour, o faz por
“amor”, por gostar da prática. Ele mesmo diz “gosto de outras coisas, mas nada me cativa
tanto quanto o parkour, é o que mais gosto de fazer na vida”. Ele é professor porque “gosta de
parkour, gosta de ensinar e gosta de crianças”. Esse fazer por gostar no âmbito do ensino ou
acompanhamento dos iniciantes também se constitui em um diferencial com a dinâmica
vivida em outras atividades mais “oficiais”, pois existem propósitos diferentes nessas práticas.
Enquanto os “esportes oficiais” procuram direcionar os atletas para competição e para a
vitória, propriamente dita, o parkour não. Este procura além de desenvolver indivíduos
capazes de serem fluidos por entre os equipamentos urbanos, também busca aprimorar
“valores” intrínsecos ao parkour – autoconhecimento, disciplina etc. Para Miguel, o que
fundamenta essa diferença é o objetivo final: dinheiro. Mesmo que o parkour possa
eventualmente ganhar algo em termos financeiros com a realização da prática, o fato de não
ser a finalidade principal, afasta-o, em mais um aspecto, das práticas “oficiais”, a exemplo da
Ginástica.
Outro ponto a ser destacado é a articulação destas comunidades com a esfera midiática
e publicitária: especialmente no Porto, foi possível notar uma forte integração de alguns
traceurs com marcas esportivas não só de Portugal, como de outros países europeus. A
maioria dos praticantes possuía câmeras do tipo go pro ou outros equipamentos de captação
de imagem, como câmeras fotográficas semiprofissionais ou profissionais, demonstrando
também forte interesse na aquisição de habilidades de edição de imagens e vídeos para a
divulgação dos materiais de parkour. Dois grupos de parkour em Portugal, por exemplo, já
participaram, nos anos de 2015 e 2020, do Got Talent Portugal, programa-franquia
transmitido pela emissora portuguesa RTP, onde diversos artistas apresentam números e são
escolhidos entre o público os melhores participantes. Além disso, a participação em
espetáculos artísticos, ocorridos sazonalmente, também figuram como um dos caminhos de
participação profissional desses praticantes, como cita Iuri:

Todos aqui na academia (Eu+), temos trabalhos paralelos. Dá pra viver de


parkour, mas viver bem...não. É um salário mínimo. Os atletas que vão para
espetáculos, sim… basicamente, se eu trabalhar meio ano em espetáculos, eu ganho
150 euros por dia. E há outros, por exemplo, uma empresa diz “quero um salto de
um prédio pro outro pra publicidade”. São 5 mil euros. Mas esses trabalhos não são
certos. Os mais certos são teatro, circo… isso dá pra trabalhar. Tem riscos, posso
cair, posso me aleijar… mas são trabalhos bem pagos. O problema é quando eles não
aparecem. Na academia, ganhamos pouco, mas é mais certinho, mais seguro.
Quando nos espetáculos só aparecem em determinadas épocas de verão… no nosso
175
ramo não temos muita concorrência porque acrobatas há poucos, principalmente
acrobatas que atuam em qualquer área. Aqui se eu estiver velho, talvez não consiga
saltar mais, mas consigo dar aulas. É sempre uma alternativa melhor do que estar
nos espetáculos...e a partir dos 30 isso se torna muito difícil. Enquanto se é jovem dá
pra fazer mais trocos. Uma coisa é ir a rua e divertir-se, outra coisa é estar todos os
dias a dar mortais, mortais, mortais… é mesmo desgastante.

As possibilidades de integração em Portugal, tanto a nível midiático, quanto


profissional, ainda que não extremamente marcantes considerando outros contextos, são
maiores que no Brasil. Constantemente mencionado pelos praticantes do Porto como um
exemplo a ser seguido, o Storror, grupo de traceurs britânicos cuja projeção internacional, na
atualidade, é a maior do mundo em termos de projeção midiática. O grupo conta mais milhões
de inscritos no YouTube e seguidores no Instagram. A grande maioria dos traceurs com quem
pude conversar menciona o Storror como uma das principais referências. O Storror também é
citado como um grupo de pessoas que congregam dessas duas perspectivas em suas vidas. O
grupo possui uma dinâmica intensa de elaboração de material: desde a captura de vídeos,
edição, mapeamento de spots pela cidade. Além disso, o grupo também é uma marca,
comercializando diversos acessórios e roupas que levam o nome do Storror.
Ainda que configurem como um espaço de cruzamento classista entre as classes
médias e as classes populares, o parkour em Portugal, assim como o graffiti, aponta para uma
associação maior à classe média. Provenientes de famílias com consideráveis recursos
econômicos e capital cultural, os praticantes de parkour não são desestimulados a realizarem
essa atividade e a ocuparem os espaços públicos. É certo que há uma via de resistência
especialmente no que tange aos processos de requalificação dos centros urbanos que
expulsam as classes médias destes espaços da cidade: os praticantes do Porto ocupam lugares
para treinar parkour, por exemplo, como o Jardim do Morro, Ponte Dom Luís, arredores da
Estação Trindade, entre outros, dividindo com turistas a dinâmica de ocupação e
deslocamento por entre tais espaços.
Em várias paredes no centro do Porto, inclusive, é possível visualizar diversos graffitis
assinados por writers de renome no país. Ferro (2016) aponta para o papel de mediação
sociocultural que writers, em Portugal, e grafiteiros, no Brasil, têm na articulação de
intervenções em espaços públicos de bairros social e economicamente desfavorecidos,
operando enquanto vetores de iniciativa cívica, social e política. A classe média tem
considerável representação na cultura do graffiti em Portugal e, tendo também o parkour, mas
sendo este mais um fenômeno mais recente, talvez daqui uns anos será possível perceber o
176
envolvimento dessa comunidade com intervenções daquela ordem na qual o graffiti está já
mais inserido.
O balanço no que tange ao atravessamentos entre parkour e as possibilidades de
inserção profissional dos praticantes de parkour demonstra que o contexto estudado na AMP
oferece um maior leque de caminhos para “viver de parkour”. As dinâmicas observadas
apontam que há uma maior organização entre praticantes, com a composição de projetos
esportivos e recreativos, além de estarem em maior contato com o mercado de consumo
voltado para o esporte. Enquanto em Portugal há maiores chances de trabalhar a partir da
experiência com o parkour, sem, necessariamente, estar graduado em um curso de Educação
Física (Ciências do Desporto, em Portugal), em Campina Grande e João Pessoa o ensino
superior ainda figura como a oportunidade mais próxima de estar em contato com o parkour
ao longo da vida profissional.

***

Percebemos, assim, por meios dos relatos, das vivências resgatadas pelas memórias,
pela observação de campo e pelos próprios atravessamentos da minha percepção enquanto
presença nos encontros, que o parkour atuou e atua como uma fonte de afetos que são capazes
de “animar” o corpo do seu praticante, de produzir uma transição de afetos negativos para
afetos positivos. Além da dimensão dos afectos, notamos os entrelaçamentos de linhas que
que dialogam com processos relativos ao gênero, às vivências na cidades e às oportunidades
de inserção socioprofissionais do mundo do parkour.
Buscamos mostrar como o parkour é moldado a partir de um movimento de
emaranhados de experiências que revelam muitos outros processos e, por esta razão,
descortinam, também, a complexidade que é a própria definição do parkour. Entendendo,
assim, que essa mesma complexidade potencializa e proporciona o desenvolvimento contínuo
de um repertório criativo ao praticante, passemos a compreender alguns aspectos do habitar o
mundo, particularmente pensando nos ambientes onde esses praticantes se movimentam e
treinam o parkour.
177
CAPÍTULO 5 – SER E HABITAR (N)O MUNDO COM O PARKOUR

Nesse capítulo, gostaria de apresentar a última das linhas dessa experiência que é viver
o parkour: a relação de engajamento do mundo pela perspectiva do habitar. Dentro de uma
teoria da vida e do habitar, parte-se da ideia de que vivemos em um ambiente sem objetos
(ASO). Essa análise é apontada por Ingold (2012) visando um afastamento do “problema da
agência”: entender que vivemos em um ambiente sem objetos nos convida a refletir sobre
como nos engajamos nos processos de formação das coisas não humanas. Essas coisas, assim
como os seres humanos, também estão vivas. Estar vivo, para o autor, tem a ver com um
“vazamento” por e através das suas superfícies a partir do entrelaçamento das linhas que os
constituem (MERENCIO, 2013).

***

A dimensão relacional existente no parkour entre o corpo do praticante e o ambiente


pode ser lido a partir da perspectiva da agência, se olharmos para o caso a partir de duas
principais perspectivas: uma agência restrita ao ser humano, se interpretada pela ótica da
intencionalidade; a de uma agência distribuída tanto pelos humanos quanto pelos não
humanos e ou objetos, representada pelas teorias da agência material. A proposta apresentada
nesta tese objetiva realizar a análise do parkour por meio de uma reflexão que questiona a
perspectiva da agência, por acreditar que esta oferece um limite: retira as coisas da vida,
diminuindo o olhar sobre os entrelaçamentos que constituem a dinâmica do existir. Em vez de
voltarmos nossos questionamentos para o alcance/existência da agência ou da intenção de
humanos e não humanos, preferimos acompanhá-los nos processos de emaranhamento nos
quais estão envolvidos.
Nesse sentido, viemos ao longo desse trabalho tentando traçar algumas linhas que
constituem uma perspectiva que nos revela os movimentos existentes nas experiências do
parkour, a fim de apresentar este enquanto uma prática viva em sentido amplo. Viva porque
estamos diante de um mundo vivo, em crescimento. Assim também é a prática, como
fenômeno que revela processos – e, justamente por serem processos, estão em movimento.
E, para que haja um exercício desse tipo, a agência como atributo exclusivo do corpo,
tampouco, somente do corpo humano. É preciso estender essa compreensão para os outros
178
corpos – todas as coisas – e analisar como estas abrem ou limitam as possibilidades de
aproximação com os mesmos.
Tampouco essa relação entre corpos, nas oportunidades de um treino de parkour, são
reduzidas àquele momento em específico. Imersos numa malha ampla que alcança corpos
para além daquele evento, os praticantes de parkour e os materiais são entrelaçados em uma
diversidade de relações outras que envolvem questões de ordem biológica, histórica, social,
política, cultural etc. Não podemos falar seres humanos ou não humanos como se os mesmos
fossem a-históricos, como se não estivessem, também, inseridos em dinâmicas de poder –
inclusive, a partir da própria ideia do que pode ser considerado ou não como detentor de
agência.
Ao mapear o ambiente - não exclusivamente, mas, principalmente, o espaço urbano -
os praticantes de parkour evidenciam formas de habitar o mundo que extrapolam a
compreensão de “ocupação” do espaço. Ocupar pressupõe as estruturas do ambiente como
objetos cerrados em suas formas finais, contidos e trancados, enquanto habitar implica em
reunir-se ao mundo que está aberto, juntando-se ao processo de formação do mesmo. Imersos,
assim, na circulação de coisas, no fluxo da vida, o traceur mistura-se ao mundo, não
ocupando-o, mas habitando-o. Pensar por essa perspectiva, pode nos ajudar a sair do
problema da agência, trazendo não só corpo, mas também todas as coisas, de volta à vida. A
vida, nesse sentido, é movimento, criatividade e improvisação. As coisas estão vivas porque
não estão contidas: pelo contrário, transbordam, vazam. E vazando, contaminam em maior ou
menor instância outras coisas a ponto de ser quase impossível detectar o alcance final do seu
vazamento.
Em alternativa ao que Ingold chama de “problema de agência”, ele sugere que nos
dediquemos em torno da reflexão dos processos vitais, “devolvendo” todas as coisas
(humanos e não humanos) à vida, sendo esta, uma “capacidade geradora do campo englobante
de relações dentro do qual as formas surgem e são mantidas no lugar” (ibid, p.27). Na busca
de romper com o modelo hilemórfico sustentado por e desde Aristóteles, no qual um agente, a
partir de uma ideia em sua mente, impõe forma a um material passivo e inerte, Ingold
apresenta um movimento distinto: privilegiar os processos, fluxos e transformações ao invés
da forma.
Assim, na perspectiva de Ingold, existe um ambiente sem objetos (ASO) onde as
coisas se movem e crescem não em razão de uma agência, mas porque elas estão vivas. O
parkour, sendo criação e improvisação, é uma prática viva, e isto implica dizer que ele é um
179
emaranhado de linhas pulsantes, moventes e contínuas. É nesse sentido que proponho
experimentarmos uma análise do parkour a partir da compreensão dos movimentos de
experimentação e habitação que são desenvolvidos e elaborados em comunhão com o
ambiente. Essas elaborações não são destituídas das histórias, vivências e afecções carregadas
pelos corpos dos praticantes, de modo que eventualmente, nas seguintes reflexões, esses
elementos podem vir à tona a fim de continuar dando o tom do emaranhado que constitui a
experiência do parkour.

5.1 “Eu já fazia isso!” - parkour antes do parkour

Em uma visita do Storror ao Vidigal, periferia do Rio de Janeiro, documentada em


vídeo no canal do grupo no Youtube, os praticantes chamam atenção das crianças do bairro, as
quais logo se entrosam com os rapazes do grupo e começam a tentar imitar alguns dos seus
movimentos, os quais lhes parecem familiares, diante da aparente facilidade vista nas
imagens. É comum ouvir de alguns traceurs que, ao conhecerem o parkour, imediatamente
identificaram esta modalidade com a prática que já tinham nas ruas do bairro ou nas
brincadeiras de infância: “É isso que eu já faço! É isso que eu fazia lá na rua!”. É interessante
notar, no histórico do parkour, como esta surge e continua a caminhar dentro de uma malha de
muitas outras práticas e vivências, no que pese ao olharmos, principalmente, para sua
trajetória pelas ruas e parques de Évry, na França, e a diversidade de práticas experimentadas
pelos praticantes que, àquela época, elaboravam o que viria a ser conhecido por parkour.
Estávamos diante de um agregado que envolvia desde experiências com o treinamento militar,
artes marciais, escalada, até a vivência lúdica do ambiente francês.
Bruno mudou-se recentemente para o Porto, em busca de oportunidades de emprego
como instrutor de parkour, mas é um praticante brasileiro que cresceu na periferia de São
Paulo, sendo bastante conhecido no meio do parkour nacional. Ao conversarmos sobre suas
trajetórias e vivências com o parkour, ele relata que tem o hábito de se movimentar desde os 9
anos de idade, além de gostar desde muito novo de filmes de ação, de forma que buscava
copiar os movimentos vistos nesses filmes. Para isto, ele gravava em uma fita K7 os filmes e
assistia as cenas por diversas vezes, tentando emular os vídeos repetidas vezes. Dependendo
do movimento, ele colocava um colchão para amortecer a queda, especialmente nas tentativas
de realizar saltos mortais. Assim como os filmes, a influência dos jogos de videogame
também foi bastante forte no seu caminho de aprendizados desses movimentos, como, por
180
exemplo, as cenas de ultrapassagem de obstáculos e escaladas que o personagem de alguns
jogos precisavam realizar para “passar de fase”.
Já aos 16 anos, Bruno começa a treinar ginástica olímpica, na qual não permaneceu
muito tempo, pois não teve grande afinidade, buscando, assim, experimentar outras
atividades, como a capoeira e o tae kon do. Ao terminar o ensino médio, Bruno se viu diante
da responsabilidade de trabalhar para ajudar nas contas de casa, o que o levou a atuar como
moto boy, não mostrando, segundo ele, muito interesse em continuar os estudos em nível
superior. Aconselhado por uma tia que sugeriu ajudá-lo a pagar a faculdade, Bruno resolveu
fazer Educação Física, curso este que o despertava certo interesse, devido a sua paixão por
esportes e atividades físicas. Foi só na faculdade que ele conheceu, de fato, o “parkour”

Ai nessa eu conheci o parkour. Já era final de 2004. Eu vi um vídeo de parkour, os


caras pulando, mas nem sabia o que era… ai pensei “Mano, olha só, já era o que eu
fazia”, que era pular na rua. Mas ai eu vi que os moleques eram parecidos comigo,
pulando na rua, fazendo mortal na rua. Ai falei “porra, essa porra tá virando esporte,
vei?” “Mano, era o que eu fazia”.

A experiência de entrar em contato com o parkour só em 2004, na faculdade, foi muito


“louca”, segundo Bruno, porque despertou a memória afetiva de suas brincadeiras e
experimentos corporais nas ruas dos seus bairros, quando ainda tinha 9 anos. Bruno conta que
tinha mania de entrar na casa dos amigos pulando o portão da casa deles e pregava sustos, o
que resultou em um apelido de “ninja”, pois aparecia quando seus amigos menos esperavam.
As maneiras de se movimentar foram, na vivência de Bruno, sendo atualizadas de acordo com
suas mudanças na forma de entender seu corpo, os espaços, conhecer outras atividades e
repensar o que é o flow do parkour.
Durante os últimos anos, Bruno tem se convencido cada vez mais que o flow do
parkour é a movimentação suave, e não o impacto dramático causado pelos saltos em grandes
alturas ou mortais. Dessa forma, ele me foi me mostrando durante os seus treinos, como ele
tem pensado em amadurecer e refinar a suavidade do movimento com a ajuda do que
aprendeu na capoeira, em especial com a capoeira angola. Assim como esta, Bruno trabalha
em buscar conectar movimentações mais lentas, mais próximas ao chão e que evocam
brincadeiras e coreografias dançantes. A barra que em outro momento serviu para treinar
equilíbrio ou um salto em direção ao chão, e parecia um objeto mais fixo, enquanto o corpo de
Bruno se movimentava, agora é um elemento que parece dançar junto com ele. Meus olhos
acompanham essa dança de forma atenta e eram tomados de assalto pela surpresa dos
181
movimentos de Bruno. De alguma forma, parecia que eu também participava dessa
movimentação porque, mesmo parada, observando-os, o parkour-dança que Bruno fazia com
aquela simples barra brincavam com meus afetos daquele espaço e do seu corpo.
Bruno continua a demonstrar suas experimentações em fazer um parkour “angola” e,
enquanto faz alguns movimentos, vai mencionando outras referências que o ajudam a pensar
o que pode o seu corpo implicado com aquela mesma barra de ferro. Dessa vez, faz um
movimento que, segundo ele, é para passar a ideia de que está havendo uma “transmissão de
energia” da barra para seu corpo e vice-versa. Tal movimento, ele traz do que aprendeu com a
dança, em especial com o break dance: ao tocar a barra, a “energia” faz seu corpo se
movimentar gradualmente, começando pela mão, indo pelo braço, descendo pelo tronco,
pernas, até chegar no outro braço e passar para a cabeça, até devolver aquela energia para a
barra.
Dentro dessa dinâmica de trocas entre as experiências dos diferentes praticantes,
mapeamentos e descobertas dos ambientes e suas texturas, bem como a abertura do processo
de criatividade, Miguel também cita como o deslocamento entre distintos locais, contextos
culturais e arquitetônicos, além da própria vivência com outros praticantes lhe proporciona
novas visões e possibilidades com o parkour. Ele relata que sempre ao viajar para outras
cidades e países, especialmente para aqueles cuja arquitetura é distinta da geralmente
vivenciada por ele na AMP, volta para onde reside com um outro olhar e passa a ver coisas
que antes ele não via. Acaba sendo, segundo ele, uma troca de estilos, pois muitas formas de
treinar parkour e muitas vivências que são carregadas por cada pessoa que ele encontra por
meio desta prática.
Vasco tem uma trajetória intensa de atividades físicas os quais ele considera “livres”
experimentações com o corpo diante de um determinados ambientes, em especial, segundo
ele, aqueles com menos elementos artificiais. Apesar de gostar muito de treinar nas ruas, tem
uma afeição particular pelo contato com árvores, plantas, pedras pois busca, já há um bom
tempo, desenvolver um estilo de vida mais saudável e acredita que buscar estreitar a relação
com esse tipo de ambiente pode levá-lo a encontrar camadas de si mesmo que talvez não
encontre nos ambientes e situações que um certo modo de vida “encaixotado” e frenético
promovido pelo capitalismo. Formado em Ciências do Desporto, Vasco também fez mestrado
na mesma área e hoje atua como professor em uma escola de ensino fundamental. Nas suas
falas, reconhece que não existe um único modo de vivenciar o parkour e destaca a influência
de outras práticas sobre esta atividade
182

Não há assim tanta diferença porque o parkour pode ser movimento livre, só que a
pessoa que vem mais de ginástica, artes marciais ou capoeira são mais de girar e dar
mortal, mais free style. Pode desenvolver esse estilo e encontrar seu estilo em
parkour. E ai cada um tem seu estilo, e é a expressão de cada um. Não há o que é
certo e o que é errado.(…) Agora a pessoa pode treinar assim ou pode tá a se divertir
só a fazer mortais. A definição de parkour não é tanto lidar com mortais. Os mortais
são tipo um bônus, tás a ver? (…) É como uma bicicleta. Com a bicicleta tu vais de
um sítio pro outro. Tu podes fazer truques com a bicicleta, mas normalmente…. É
isso, parkour é mais utilitário. Dá pra desenvolver os mortais, mas não é tão
necessário. Mas tipo, um bônus como falei. (...) Natural é correr, escalar, andar,
nadar, pular… Se bem que... também há macacos que fazem mortais. Enfim, cada
pessoa decide qual seu movimento.

O movimento que ocorre na fala de Vasco nos mostra como a própria narrativa sobre o
parkour pode ir tateando as várias possibilidades de definição da prática e, apesar de, a uma
primeira vista ser possível encontrar ideias aparentemente opostas ou um pouco
contraditórias, elas representam justamente a complexidade da malha que é tecida ao habitar o
mundo com o parkour. Ao mesmo tempo que ele pode ocupar uma faceta utilitária, ele
também aflora em experiências sensórias, afetivas e espaciais, dentro de um campo mais
existencial.
O conhecimento do parkour não é baseado apenas no acúmulo de técnicas habilidosas
dos movimentos, mas sim, do engajamento com a comunidade e com os ambientes. Ser
experiente no parkour envolve saber conviver, saber quando começar e quando parar. A
convivência diz respeito à adaptação às dinâmicas de sociabilidades com outros praticantes,
com os atores que de alguma forma atravessam as experiências de parkour, a exemplo de
policiais, guardas, praticantes de outras atividades que eventualmente compartilhem os locais
onde se treina parkour.
A convivência que é viver junto também se estende às relações com o ambiente e seus
elementos não humanos. Fazer parkour é uma forma de habitar o mundo que interpela modos
criativos de mapear caminhos a partir do processo sensível, corpóreo, afetivo. Daí a
dificuldade da análise centrada na agência, em especial, na agência dos objetos: não existe,
segundo Ingold (2012) um movimento de atribuir ou não a vida aos objetos, sendo, no
máximo, uma tentativa didática ou metafórica. Trata-se de considerar a vida como o processo
norteador para nossa análise, entendendo o fenômeno como algo que constitui no movimento
dos emaranhados de experiências que extrapolam as relações de intencionalidade ou a
perspectiva de agência.
183
5.2 Texturas, espaços e movimento

Em uma tarde fria de treino, os praticantes aproveitavam a trégua da chuva que ocorria
há algumas semanas no Porto para treinar um pouco. Primeiramente, vamos a um espaço
entre prédios com algumas estruturas de estatura média, coberta de azulejos, nas quais os
rapazes sobem e saltam entre elas. Com o passar dos minutos, a umidade aumenta um pouco,
deixando os azulejos escorregadios e convidando os praticantes a buscarem outras
possibilidades. Assim, à procura de estruturas cuja umidade não interviesse nos movimentos
de modo a facilitar quedas e escorregos, os rapazes decidem treinar em uma praça com muitos
bancos e paredes de concreto.
Miguel e outros rapazes treinavam em alguns spots por São Mamede de Infesta e, em
um destes lugares, experimentavam treinos de precisão entre uma pequena parede e outra.
Miguel possui uma habilidade muito desenvolvida com os movimentos de precisão, é comum
escutarmos que “seus pés colam”, pois a sua aterrissagem costuma ser muito bem equilibrada
e precisa. Um rapaz treinava essas precisões, sendo possível ver um certo nervosismo, ou uma
certa desatenção, em seus gestos. Estava sempre a olhar para os colegas, ria e titubeava no
salto. Miguel diz “concentra-te! Olha para onde queres saltar e mantém teu corpo equilibrado
quando chegares lá e dobra um pouco os joelhos que isso ajuda a ter equilíbrio”. A orientação
de Miguel, praticante experiente de parkour, é muito bem recebida entre seus colegas. Sua
disposição em ajudar, além de sua atenção aos detalhes técnicos nos movimentos realizados
por seus pares, permite-o oferecer conselhos bem direcionados. Depois de algumas tentativas,
com uma postura claramente mais firme e concentrada, olhos mirando o próximo, seu colega
consegue fazer um salto de precisão bastante assente, momento em que Miguel vibra com o
feito e diz “tás a ver quando te concentras bem?”.
Em outro momento, em Campina Grande, fui treinar com Heitor na UFCG. Ele se
deslocava por toda a pracinha do Centro de Humanidades e imediações da praça de
alimentação, fazendo sequências de movimento com muita fluidez e conhecimento do espaço.
Na pracinha do CH treinamos precisão, pulando de pequenos batentes para o chão, traçando a
linha de chegada a partir dos desenhos dos blocos retangulares que compõem o piso desse
lugar. A medida que conseguíamos chegar até um ponto, traçávamos um ponto um pouco mais
distante para tentar o salto. Heitor também ia me mostrando outros movimentos e sempre
falando sobre como posicionar e impulsionar braços, pernas e tronco. Comentava sobre as
possíveis lesões que poderiam ocorrer caso não fizesse da forma correta os movimentos: lesão
184
nos joelhos, dores na lombar etc, e destacando sempre a importância de alongar antes e depois
dos treinos.
Ao treinar um salto de precisão, na minha primeira tentativa, senti o choque entre o
chão e meu corpo, iniciado pelo contato com os pés, que, aterrissados de forma muito reta,
não amortecia o movimento, gerando um impacto muito forte e imediatamente irradiado para
na minha lombar, que apresentou sinais de dores no dia do treino e no dia seguinte. Nas outras
tentativas, procurando compreender e incorporar o ensinamento de Heitor de flexionar um
pouco os joelhos e impulsionar o corpo com ajuda dos braços, projetando o tronco para frente
e procurando pular com as pontas dos pés, já senti uma diferença gigantesca. O movimento
tinha sido muito mais leve e sutil do que a primeira vez. Tentei outras vezes, algumas errei
novamente e outras, ao focar mais no que me foi ensinado, procurando sentir as partes do meu
corpo, colocando-as para atuar de forma mais precisa para realizar a precisão, consegui ter
mais sucesso.
Quando pontuo que “errei” o salto de precisão, quero dizer que senti de forma mais
brusca o impacto, não realizando de forma fluida o movimento. A fluidez está na sutileza da
movimentação, desdobrada nos impactos amortecidos através do uso consciente do próprio
corpo. Essa consciência está na atenção plena de como cada parte do seu corpo está sendo
posicionado. Eu sentia que não adiantava, por exemplo, eu me posicionar exatamente como
Luiz me ensinava se eu não entendia de fato como aquela flexão de joelhos ou impulso dos
braços atuava na configuração do salto. É um exercício de mecânica que exige atenção e
conhecimento do próprio corpo. Esse exercício, entretanto, é aprendido com muita repetição e
foco. É preciso, conforme Heitor me fala e me orienta, conhecer suas fraquezas e suas
potencialidades. Ao perceber, por exemplo, que não se consegue realizar bem movimentos de
escalada por falta de condicionamento dos braços, faz-se necessário um treino prévio voltado
para o fortalecimento desses membros.
Depois descemos até a praça de alimentação, no espaço mais próximo ao Bloco BG,
onde há uma escada e um muro. Ele diz que gostam muito desse muro para escalar porque ele
tem boa aderência para os apoiar os pés, em virtude da sua textura espinhada. O fato de ter
uma pequena escadaria ao lado do muro é interessante pois possibilita treinar a escalada por
níveis de altura. Do chão mesmo, o pulo precisa ser mais alto para apoiar os pés na parede e
posteriormente as mãos por cima do muro. Tentei de um outro nível de altura a partir de um
dos batentes da escada e também a partir do chão. Corri várias vezes e parava ao me
aproximar do muro, devido à insegurança. Andreza também tentava, já com um pouco mais
185
de familiaridade pois havia tentado em outras ocasiões. A base para ultrapassar o muro era
conseguir primeiramente se apoiar com aos mãos no muro, que iam depois de apoiar o
primeiro pé na parede. “Você precisa pensar a parede como uma escada, ela vai ser o apoio
para você segurar em cima do muro”. Quando ouvi esse conselho de Heitor em pensar a
parede como escada, consegui já incrementar um pouco mais o movimento. “Você quando vai
pular um muro, considerando que ele seja alto, dificilmente vai alcançar o seu topo sem elevar
seu corpo. E para elevar o seu corpo, você precisa da ajuda dos seus pés, que vão antes das
mãos”.
Pensar a parede como a escada pode nos ajudar a entender processos de “deseducação”
do corpo (LEITE, 2015) e dos contra-usos (LEITE, 2002) dos espaços. Ora, ao ver um muro,
normalmente pode-se pensar, se quiser ultrapassá-lo, em carregar uma escada e, através dela,
acessar a parte mais alta daquele e pulá-lo. A escada, desenvolvida especialmente para
facilitar um acesso a um ponto mais alto, é utilizada primordialmente com as pernas e pés. O
muro, a grosso modo, é pensado exatamente com a finalidade de separar espaços, pois
dificulta o seu atravessamento justamente pela inabilidade que temos em subirmos esses
equipamentos. Não pensamos, corriqueiramente, na parede do muro como uma escada, como
um meio que podemos utilizar para alcançar o seu topo. Também não associamos pernas e pés
à estrutura da parede, mas sim, a equipamentos como uma escada. Fazer parkour instiga
processos outros de interpretação diante das vivências cotidianas com o espaço, como relata
Ygor

Eu sempre fui uma pessoa de olhar as coisas simples, olhar os detalhes… qualquer
coisa pequena pra mim é motivo de interpretação. O passar a tocar no concreto...
passar a olhar detalhes, a olhar a paralelepípedos, a rua de outra forma...me fez
mudar a movimentação que é hoje. Eu aproveito mais aquele obstáculo, eu tento
tirar tudo dele pra mim. Meu objetivo não é passar por ele, meu objetivo é aproveitar
ele ao máximo. Tem um muro na minha casa que tem meio metro de altura, um
palmo de largura...um murinho. Eu treinei duas horas nele um dia desse. Existem
milhões de movimentos que você pode fazer só com aquele murinho. Minha visão é
assim: aproveitar o obstáculo em si, não só passar por ele rápido.

Esses delineamentos das percepções em torno do próprio corpo e dos espaços vão
sendo construídos a partir do contato frequente entre esses dois elementos. A partir de
diferentes vivências, referências que vão desde a familiaridade com outras práticas esportivas
e lúdicas, até troca de experiências com outras pessoas nas mais diversas situações auxiliam
no processo de aprendizagem da prática, a qual acontece de forma contínua, sendo mobilizada
pela inventividade e relações diversas dos seus atores em seus mais diversos meios. Essas
186
experiências podem ser desdobradas, recriadas, improvisadas na intimidade do corpo com os
espaços escolhidos para o parkour. Cada experiência também pode ser refletida de maneira
peculiar por cada pessoa, mesmo que se trate do mesmo movimento. Essas “intimidades”
entre corpo e espaço, na verdade, podem ser entendidas como processos de habitar o mundo.

5.3 Parkour como forma de habitar o mundo

Antes de passar para o debate mesmo sobre o habitar, lembremos de alguns exemplos
trazidos aqui sobre as dinâmicas de aprendizado do parkour e destaquemos um argumento
importante para a compreensão vitalista do mundo proposto por Ingold, que nos ajuda a
nitidificar esse processo. O ponto é: para o autor, não existe transmissão de conhecimento e,
sim, um redescobrimento guiado. Mostrar, orientar uma prática, uma habilidade, não é
transmitir, é auxiliar no processo de educação da atenção, é apresentar as condições
específicas de desenvolvimento, a partir do qual, o aprendiz, crescendo em um mundo social,
desenvolve suas habilidades e disposições corporais (INGOLD, Isto quer dizer que as
pessoas (ou as gerações, como põe o autor) não reproduzem simplesmente um conhecimento,
pois existe uma criação que é contínua e aberta. Desse modo, implica dizer que os processos
do ser humano estão emaranhados aos processos do entorno, daí a necessidade de uma análise
que entenda a vida não como atributo seja de elementos humanos ou não humanos. O que
importa para a perspectiva ingoldiana não é o debate da agência: esta, na verdade, constitui
um problema para sua proposta vitalista que traz tudo – coisas, humanos, não humanos – de
“volta” à vida. Tudo isso está vivo não no sentido que comumente atribuímos aos seres,
amparado na explicação biológica.
Se o que temos é um mundo em intensa relação, composto de linhas que se
confundem, se atravessam, se interpenetram, movimentando-se de forma processual,
precisamos entender que ele não está pré-constituído para ser ocupado pela vida. Não é um
palco esperando cenário e atores. O mundo é uma elaboração contínua, tecido ininterrupto por
vários fios, linhas, caminhos de vida que traduzem o processo de habitação do mundo e não
de ocupação. Habitar o mundo é tecer o mundo. A vida é um processo de impregnação que
pode ocorrer em maior ou menor intensidade, compõe histórias e deslocamentos que vão
dando o tom à cada malha, à cada emaranhado de linhas.
Voltemos, portanto, ao início do nosso debate neste trabalho, no seguinte ponto: o
corpo. Como pensar, portanto, o corpo dentro da perspectiva de vida e não de agência, não a
187
partir das proposições desenhadas pelos autores e correntes teóricas citadas no capítulo
referente ao aporte teórico sobre o corpo. Se seguirmos no compasso dos fluxos e linhas de
vida que, se entrelaçando, vão constituindo uma malha, precisamos enfatizar, sobretudo, as
experiências desses corpos, considerando que se tratam de lócus de crescimento e
desenvolvimento concreto dentro de um campo contínuo de relações (INGOLD, 2000)

When we speak of man and space, it sounds as though man stood on one side, space
on the other. Yet space is not something that faces man. It is neither an external
object nor an inner experience. It is not that there are men, and over and above them
space; for when I say "a man," and in saying this word think of a being who exists in
a human manner-that is, who dwells-then by the name "man" I already name the stay
within the fourfold among things. Even when we relate ourselves to those things that
are not in our immediate reach, we are staying with the things themselves. We do not
represent distant things merely in our mind-as the textbooks have it-so that only
mental representations of distant things run through our minds and heads as
substitutes for the things. If all of us now think, from where we are right here, of the
old bridge in Heidelberg, this thinking toward that location is not a mere experience
inside the persons present here; rather, it belongs to the nature of our thinking of that
bridge that in itself thinking gets through, persists through, the distance to that
location. From this spot right here, we are there at the bridge-we are by no means at
some representational content in our consciousness. From right here we may even be
much nearer to that bridge and to what it makes room for than someone who uses it
daily as an indifferent river crossing. Spaces, and with them space as such-"space"-
are always provided for already within the stay of mortals. Spaces open up by the
fact that they are let into the dwelling of man. To say that mortals are is to say that in
dwelling they persist through spaces by virtue of their stay among things and
locations. And only because mortals pervade, persist through, spaces by their very
nature are they able to go through spaces. But in going through spaces we do not
give up our standing in them. Rather, we always go through spaces in such a way
that we already experience them by staying constantly with near and remote
locations and things. When I go toward the door of the lecture hall, I am already
there, and I could not go to it at all if I were not such that I am there. I am never here
only, as this encapsulated body; rather, I am there, that is, I already pervade the
room, and only thus can I go through it. (HEIDEGGER, 1954/1971, p.358-359)

A partir dessa perspectiva, não falamos mais de enculturação, isto é, de um processo


de internalização de representações coletivas, pois a teoria de Ingold se opõe ao viés
representacionista. Em alternativa, propõe-se uma compreensão dos processos de
conhecimento a partir da ideia de habilitação (enskilment), pois “learning is inseparable from
doing, and in which both are embedded in the context of a practical engagement in the world
– that is, in dwelling” (INGOLD, 2000, p.416). Conhecer, nesse sentido, está diretamente
relacionado com o movimento engajado no mundo, e não com um esquema de representação
mental. Esse engajamento envolve humanos e não humanos, de tal forma que não a discussão
de agência acaba não fazendo sentido nesse caminho de reflexão.
188
Dessa maneira, as experiências corporais, mais do que a um esquema cognitivo, dizem
respeito às a um processo de criatividade que envolve improvisação, atualização contínuas e
em pleno diálogo com os ambientes habitados. É, pois, por esses caminhos, que esse trabalho
busca trilhar uma compreensão do parkour, focando nas experiências do habitar o mundo que
a prática em questão proporciona. As várias experiências vão tecendo caminhos e delineando
histórias e narrativas, realizadas nos movimentos de habitar o mundo – as praças, as vielas,
topos de prédios, areia da praia, construções abandonadas, campo, floresta, terra, plantas,
água, terra… Nesses intensos movimentos, os praticantes tecem a malha de suas vivências
com o parkour, criando e recriando os ambientes de acordo com suas experiências e, não
necessariamente, com os projetos ou definições de uso que outros sistemas conceberam.
O sentido de habitar proposto por Tim Ingold dialoga com Heidegger e com o
arquiteto Juhani Pallasmaa (2011). O filósofo alemão Heidegger desenvolve uma reflexão a
nível ontológico sobre o ser enquanto habitar, posto que é ser-no-mundo, e o finlandês
Pallasmaa traça caminho semelhante ao propor uma arquitetura pautada desde o habitar,
entendido como um processo de unidade e sensibilidade do mundo e seus elementos, a partir
de uma perspectiva de construir e cuidar. Heidegger mostra que a antiga palavra buan, em sua
origem alemã, significa construir e também significa habitar. Aquela palavra, por sua vez,
também significa “ser”. Ser, portanto, é habitar:

That is, bauen, buan. bhu, beo are our word bin in the versions: ich bin, I am, du
bist, you are, the imperative form bis, be. What then does ich bin mean? The old
word bauen, to which the bin belongs, answers: ich bin, du bist mean: I dwell, you
dwell. The way in which you are and I am, the manner in which we humans are on
the earth, is Buan, dwelling. To be a human being means to be on the earth as a
mortal. it means to dwell. The old word bauen, which says that man is insofar as he
dwells, this word barren however also means at the same time to cherish and protect,
to preserve and care for, specifically to till the soil, to cultivate the vine. Such
building only takes care-it tends the growth that ripens into its fruit of its own
accord.46 (HEIDEGGER, 1954/1971, p.349)

Para este filósofo, habitar trata de uma questão ontológica. A interpretação


heideggeriana vai ao encontro do entendimento que habitar não se restringe ao significado de

46Bauen, buan, bhu, beo é, na verdade, a mesma palavra alemã "bin", “eu sou” nas conjugações ich bin, du bist,
eu sou, tu és, nas formas imperativas bis, sei, sê, sede1 . O que diz então: eu sou? A antiga palavra bauen
(construir) a que pertence "bin", "sou", responde: "ich bin", "du bist" (eu sou, tu és) significa: eu habito, tu
habitas. A maneira como tu és e eu sou, o modo segundo o qual somos homens sobre essa terra é o Buan, o
habitar. Ser homem diz: ser como um mortal sobre essa terra. Diz: habitar. A antiga palavra bauen (construir) diz
que o homem é à medida que habita. A palavra bauen (construir), porém, significa ao mesmo tempo: proteger e
cultivar, a saber, cultivar o campo, cultivar a vinha. Construir significa cuidar do crescimento que, por si mesmo,
dá tempo aos seus frutos. (tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback, disponível em
https://www.fau.usp.br/wp-content/uploads/2016/12/heidegger_construir_habitar_pensar.pdf )
189
morar, dizendo respeito, também, ao permanecer com. Tal permanência está atrelada a um
movimento de proximidade ao que o autor chama de “ser-no-mundo”. O processo de ser é ser-
no-mundo, e, portanto, é habitar, que também é construir (SARAMAGO, 2011). O
pensamento de Heidegger reverbera na construção de uma crítica à arquitetura hegemônica da
atualidade, feita por Pallasmaa (2011). Para este, a arquitetura tem perdido sua finalidade que
é criar as possibilidades de habitar o mundo de modo que este processo acontece quando o
espaço perde seu sentido existencial, constituindo-se apenas como experiência física ou
estética (AÍSA, 2012). Assim, para recuperar aquela finalidade, Pallasmaa propõe uma
arquitetura que se construa com e para o tato, diminuindo a imensa experiência visual que se
sobressai atualmente.
As perspectivas destes três autores encontram-se na forma de propor uma outra
abordagem ao processo corpóreo, à experiência sensória dos seres no mundo a partir da ideia
do habitar como ponto em comum, alternativo às dicotomias que reiteram a separação entre
corpo e mente, natureza e cultura, bem como às teorias representacionistas acerca das
dinâmicas de conhecimento. Habitar o mundo, assim, é juntar-se à formação pulsante e
contínua das coisas, é vazar e participar do vazamento de vida de outros habitantes (INGOLD,
2012).

5.4 Interferindo e participando – construindo um mundo de parkour

A lida com os caminhos que se abrem nas vivências com o parkour demonstra a
criatividade como processo de improviso em diálogo com o ambiente e com seus materiais. É
possível encontrarmos uma intensa experimentação com as texturas, os elementos, as
estruturas arquitetônicas quando vemos, por exemplo, como os praticantes se relacionam com
o ambiente, construindo, intervindo e propondo mudanças a fim de criar novas possibilidades
de movimentação e habitação. Em um dos encontros para treinar, encontrei Heitor no Parque
da Criança, um espaço muito frequentado pelos praticantes, devido à variedade de texturas
existentes ali: areia e grama, boas para treinar saltos mortais; escadas e muros, onde é possível
treinar monkeys e escaladas, por exemplo; barras para treinos de força; corrimões para treinos
de equilíbrio; entre outros.
Ao conversarmos sobre algumas intervenções feitas pelos próprios praticantes nos
espaços do Parque da Criança, Heitor rememora alguns exemplos que ocorreram no passado,
como a colocação de pneus justapostos, cheios de areia, próximos às paredes do Parque. Ele
190
diz que havia muito mais do que aqueles que vemos ali. Algumas, com o tempo, foram
retiradas ou desgastadas. Nesse dia, Heitor queria treinar um salto do solo para um pneu que
estava enterrado pela metade no chão, mas sentia que era necessário algum tipo de elevação
no solo para lhe ajudar no impulso do salto. Dessa forma, ele vai olhando o chão, catando
algumas pedras e dispondo-as de várias maneiras, até chegar em uma que lhe possibilitasse o
movimento desejado. Assim, ele põe uma pedra maior, outra pequenina sob um lado
específico da maior, a fim de nivelá-la.

Figura 23: Detalhe de pedras dispostas pelo praticante para realização de movimento

Fonte: fotografia da autora

Figura 24: Pneus colocados por praticantes de parkour no Parque da Criança

Fonte: Fotografia da autora


191
Já na AMP, na Academia Eu+, em Vila Nova de Gaia, o desenho das estruturas de
madeira do espaço foi pensando por um praticante de parkour que também é um dos sócios da
academia. Todo o espaço foi construído de acordo com a sua experiência de treinos na rua e
em diálogo com outros colegas de parkour. As estruturas foram pensadas de modo a
possibilitar o máximo de movimentações possíveis, explorando diferentes alturas e mistura
entre blocos de madeira, barras de ferro e uma piscina de espuma para o treino de saltos
mortais. Já na capital paraibana, Ygor me relata acerca de um projeto desenvolvido por ele e
outros colegas de treino, proposto para a Secretaria de Juventude, Esporte e Recreação da
Prefeitura Municipal de João Pessoa, no ano de 2016. A proposição foi feita em forma de um
documento, solicitando a criação de um “Parkour Parque”, no qual a prática é explicada
resumidamente, além de conter diversas fotos de treinos e algumas das principais praças
frequentadas pelos praticantes de parkour.
O texto do projeto sugere duas ações por parte do poder público: em um primeiro
momento, a manutenção do espaço da Praça da Paz, com limpeza regular e guarda do local,
apontada como “um enorme passo” para a continuação dos treinos. A segunda sugestão traz
uma proposta de revitalização de praças direcionada para a prática do parkour, sendo
sugeridos os espaços como a própria Praça da Paz, a Praça do Coqueiral, no bairro de
Mangabeira, a Praça Bela, no bairro de Funcionários II e a Praça do Caju, no bairro do Bessa.
As recomendações apontadas no texto dessa proposta trazem exemplos de materiais de baixo
custo a serem utilizados no caso de uma reforma: pneus, cones de esgoto, muros e muretas de
concreto e barras de ferro. Para ilustrar o plano, os proponentes realizam a construção de uma
pequena maquete, feita com papelão, isopor e palitos.

Figura 25: Estruturas para treino de parkour na Academia Eu+

Fonte: Fotografia da autora


192

Figura 26: Aulas de parkour na Academia Eu+

Fonte: Fotografia da autora

Figura 27: Maquete feita por praticantes para projeto sugerido à Prefeitura de João
Pessoa

Fonte: Gentilmente cedido por Andrey Peixoto

Os exemplos trazidos, desde as pequenas intervenções com pedras, o desenho das


estruturas da Academia Eu+, até a proposta do Parkour Parque com ajuda da construção
improvisada de uma maquete, nos aproxima do que Ibarra (2014) chama de “design por não-
designers” (DND). Trata-se de um processo de modificação e construção de artefatos nos
espaços públicos a fim de satisfazer determinadas necessidades, realizado por pessoas que não
193
possuem conhecimentos formais na área do design. A reflexão da autora também dialoga com
a ideia do habitar proposta por Ingold, a partir da compreensão de práticas criativas como
processos de improvisação. Ibarra (ibid), ao analisar as práticas criativas realizadas por não-
designers aponta para as possibilidades de participação de não-designers e profissionais da
área, de modo a estimular uma prática permeada pelo diálogo e construção de oportunidades
para um design aberto e não ameaçador.

5.5 Flertando com o ambiente

Um grupo chega a um novo “pico” ou “spot” para explorar os movimentos de parkour


em meio a um determinado espaço: vão explorar as possibilidades e as limitações do próprio
corpo, vão discutir entre os pares sobre as superfícies – que podem ser pedras, concreto, areia,
cerâmica, água etc – vão tateando e experimentando, aos poucos, a combinação de corpos e
“cena”. Tal qual como a descrição feita por Merleau-Ponty (1999) em que Cézanne,
segurando o pincel, diante da tela e da paisagem que deseja pintar, encena um tipo de “dança”
com o instrumento, antes de tocar, ou tocando levemente a tela. Os movimentos podem
começar como uma espécie de ensaio, de forma até meio um pouco hesitante – para quem vê
de fora e mesmo para quem está desenvolvendo a tentativa em questão.
Nesse sentido, é comum ver, especialmente nas experiências realizadas em um local
nunca experimentado antes, ou mesmo com o treino de algum movimento inédito, uma
maneira de aproximação, uma negociação entre o corpo do praticante de parkour e o material
com o qual ele tenta estabelecer um diálogo por meio do movimento, começando, muitas
vezes, de forma tímida, cautelosa. Um tipo de flerte. Essa aproximação envolve cálculo,
adaptação de técnicas prévias, paulatina compreensão do vínculo que ali pode ou não ser
estabelecido e, como todo processo de descoberta e conquista e também quebras de
expectativas.
Observei essa dinâmica de descoberta de possibilidades, por exemplo, em uma tarde
de treino coletivo em São Mamede de Infesta, AMP. Nesse dia, os praticantes foram treinar
em frente a uma praça, em um espaço entre um dois prédios residenciais, onde havia algumas
estruturas esféricas de concreto e, ao lado, um espelho d’água em frente a um dos prédios. Os
mais praticantes mais novos, em especial, conversavam, juntos, com atenção no espaço
d’água, pensando nas possibilidades de movimento naquele espaço. Outros experimentavam
diferentes movimentos junto às esferas de concreto, enquanto alguns tentavam escalar um dos
194
prédios. A dinâmica das improvisações nesses treinos coletivos é especialmente intensa, dada
a troca que ocorre entre os diferentes praticantes.

Figura 28: Praticantes explorando o ambiente

Fonte: fotografia da autora

Figura 29:Praticante experimentando movimentos

Fonte: fotografia da autora


195

Figura 30: Meninos explorando ambiente em São Mamede


de Infesta, Porto

Fonte: Fotografia da autora

Em outro dia, fui conversar com Vasco em Póvoa do Varzim. O objetivo era entrevistá-
lo e dar um passeio sem o compromisso específico de treinar. Encontramo-nos próximo à
praia de Póvoa e fui sendo guiada por Vasco entre as ruas da cidade. Próximo dessa parte da
praia, existe um antigo prédio onde havia eventos de touradas, hoje abandonado. Logo ao
lado, há um pequeno espaço com alguns muros e era nítido observar os olhos rápidos de
Vasco que andava e gesticulava, como quem conversasse sozinho, pensando e se
posicionando para visualizar a distância entre as muretas. Perguntei se ele costumava treinar
nesse lugar e ele disse “não, eu acabei de pensar que dá pra fazer uns movimentos”. Ele
olhou, pensou, chegou a se posicionar, mas não prosseguiu com as tentativas. Assim,
seguimos a caminhada.
Enquanto caminhávamos, Vasco me fala que gostaria de me mostrar uma casa
abandonada, ao fundo de um prédio, que ele havia descoberto há pouco tempo e utilizava do
espaço para treinar. Entramos pela garagem do prédio vizinho, ultrapassando a cancela do
196
estacionamento. Entretanto, vimos um movimento que levava a parecer haver gente pelo
espaço dessa casa abandonada e desistimos de prosseguir. Desse modo, Fomos a outro espaço,
uma rua por trás dos prédios que possui um chão com blocos de cortiça, um material
interessante, segundo Vasco, para treinar rolamentos e até alguns saltos, devido à maciez do
material que permite absorver o impacto e causar menos lesões. Enquanto fazia alguns
rolamentos nesse chão, Vasco senta-se um pouco para descansar e avista uma parede próxima,
imediatamente levantou, escalou a parede, pôs-se em pé e ficou a visualizar a distância e
possibilidade de um movimento, mas também não prosseguiu por perceber que o pequeno
poste à frente da outra parede podia atrapalhar o salto.

Figura 31: Praticante visualizando possibilidade de


salto, em Póvoa do Varzim

Fonte: Fotografia da autora

Perguntando a respeito da descoberta dos spots, Vasco me conta que ele e os colegas
geralmente combinam o dia de treinar e depois decidem exatamente um local de encontro, que
197
pode ser um lugar mais central para a maioria dos praticantes ou um local mais distante, sendo
este último um momento que requer maior planejamento para a locomoção dos meninos que
moram em bairros mais distantes. A partir do momento em que se encontram, eles começam
a passear e é o seguimento é, segundo Vasco, improvisado. Assim como foi o nosso passeio
acima descrito.

Com os spots, os movimentos aparecem, não é algo muito pensado. Não é tipo um
filme em que nós temos o roteiro e sabemos exatamente o que vamos fazer. É mais
uma aventura em que nós não sabemos o que vai se passar, por isso improvisamos,
tentando criar, descobrir coisas, descobrir sítios abandonados...ou sítios, ruas que
nunca passamos antes. Andamos atrás de sítios diferentes, que sejam interessantes
para criarmos movimentos… podemos começar numa praça ou ali na praia como
encontramo-nos, e então saímos a andar, cada um está a olhar coisas diferentes e
vamos conversando e meio que brincando ao longo do caminho. Às vezes começa
com uma brincadeira de uma pessoa só em uma escada que ela vê no caminho e
quando vês, estão todos ali a treinar também, e podemos voltar naquele mesmo sítio

Nesse sentido, percebemos que a forma como os praticantes de parkour tecem o


mundo do parkour passa por um verdadeiro processo de mapeamento que dialoga com as
linhas e fluxos entrelaçados nos movimentos e deslocamentos(INGOLD, 2007). Quando
pensamos no mapeamento realizado por esses praticantes, no entrelaçamento de linhas que
são as suas relações é necessário não perder de vista uma ideia importante nesse processo: o
movimento. As linhas que compõem essas relações estão em um intenso movimento aberto e
contínuo.
Fazer parkour também é mapear a cidade a partir do que pode o corpo do praticante, a
partir das relações que esse corpo pode desenvolver – e descobrir que pode mais! - nos
diferentes espaços e texturas encontrados no deslocamento pelos mais distintos lugares. As
possibilidades sempre podem ser atualizadas, a medida que também são atualizadas as
dinâmicas de movimentação e as relações corpóreas, sociais e afetivas do praticante. Tal qual
o poeta espanhol Antônio Machado diz que o caminho é feito ao caminhar, ocorre um
movimento semelhante no processo de mapear aduzido por Ingold (2005): mapear é conhecer,
e o conhecimento, para este último, só acontece em movimento. É, portanto, movimentando-
se, experimentando, que os praticantes de parkour vão tecendo os seus próprios mapas de uma
“cidade parkoutiana”.

5.6 Seguindo fluxos, traçando caminhos – Fazer parkour é mapear


198

O Parque Evaldo Cruz, conhecido por “Açude Novo”, localizado no centro da


Campina Grande, é um dos locais mais emblemáticos para os praticantes de parkour
campinenses. Desde o começo da prática na cidade, os jovens rapazes elegeram esse local
como um dos principais “picos” de treino. Trata-se de uma espécie de praça em formato
circular, contendo várias escadas que dão acesso ao centro do espaço, além de corrimões de
ferro, alguns quiosques, a sede da força florestal voluntária, um grande obelisco com bancos e
uma estrutura de espelho d’água, que hoje se encontra vazia, além de diversas árvores. Todas
essas características oferecem um rico leque de possibilidades para os praticantes, com muitas
texturas de materiais e desenhos das estruturas arquitetônicas.
Em um dos encontros, chego ao Açude Novo e desço pela escada que fica ao lado da
entrada do Terminal de Integração. Degrau por degrau, desço como “tem que ser”. Na mesma
hora, um dos rapazes também chega para o treino, mas ao contrário de usar a escada, ele
desce por um vão entre o corrimão da escada e o chão, num movimento só. O caminho que
faço até o ponto específico onde o restante dos meninos estão, é aquele que os sinais do
parque me direcionam por onde tenho que ir. O meio fio das calçadas delimita onde é lugar de
andar e praticamente não tenho que desviar de nada. Traço o meu mapa de forma mais ou
menos a seguir o fluxo com o qual me identifico: linear, respondendo à previsibilidade – da
perspectiva do meu corpo - do desenho arquitetônico projeto para aquele espaço.
Ao anotar as experiências vividas com o parkour no diários de campo, passei a utilizar
alguns rabiscos e pequenos desenhos para registrar os movimentos e deslocamentos dos
praticantes. Passei a fazer isso durante alguns treinos de parkour, quando percebi que eu não
iria conseguir gravar “de cabeça” as sequências dos saltos, ultrapassagens, precisões,
escaladas etc, e também não podia gravar por meio de vídeo, por eventualmente ser um
momento inoportuno para tal. Uma vez compreendido o meu objetivo com esses esboços,
resolvi utilizá-los, em alguns momentos, como uma forma de conhecer o mundo do parkour,
como mais uma ferramenta ao meu favor de registrar e refletir sobre o que vinha estudando
(INGOLD, 2015. KUSCHNIR, 2016).
Nesse sentido, comecei a fazer alguns traços no pequeno caderno que indicavam
direcionamentos dos movimentos realizados pelos praticantes. Eu buscava empreender, assim,
um certo esforço em mapear algumas linhas de movimento. Tínhamos dois mapeadores,
então: eu, de um lado, na tentativa de adaptar o olhar e mapear as linhas de movimentação do
traceur que eu não conseguia registrar por meio das palavras, e, do outro lado, o traceur
199
mapeando as diversas possibilidades de deslocamento, às vezes no mesmo pequeno espaço
físico, como uma barra de ferro ou três degraus de escada.

Figura 32: Exercício de ilustração de um salto

Fonte: fotografia da autora

Figura 33: Exercício de ilustração das Linhas do movimento

Fonte: fotografia da autora


200

Figura 34: Exercício de ilustração de uma sequência de saltos

Fonte: Fotografia da autora

Figura 35: Exercício de ilustração das Linhas do movimento

Fonte: fotografia da autora


201

Figura 20: Exercício de ilustração das Linhas possíveis de movimento em um


ambiente

Fonte 16: fotografia da autora

A diversidade de movimentos, como podemos ver na comparação entre as linhas


pretas e azuis, nos comunicam sobre uma forma de conhecimento e de engajamento no
mundo. O traceur atua como um “captador” de fluxos, tendo um repertório de movimentos e
uma intensa habilitação para reinventar os caminhos, ele pode traçar uma infinidade de linhas
em fluxo. É como se inúmeras linhas estivessem passando freneticamente no ambiente aberto
e o praticante de parkour conseguisse identificar algumas e segui-las. Mas essa
“identificação” não acontece como um processo de representação mental, e sim, como
resultado de um processo de habilitação. É com muito treino que se ganha essa habilidade.
As assimetrias de vivências entre mim - não praticante de parkour - e os praticantes,
podem ser vistas nesse exercício do desenho das linhas possíveis de movimento de um corpo
habilitado para determinada prática. As linhas pretas são referentes aos meus possíveis
movimentos, as linhas em azul, são referentes a algumas das linhas de movimento possíveis
para um praticantes de parkour. Esses desenhos podem nos ajudar a pensar na dinamicidade
do mundo, que foge aos usos e mapeamentos convencionados pela arquitetura. Vários são os
movimentos e estes dizem respeito às formas de habitar o mundo.
202
Mas o que é esse mapear senão habitar? Seja meu mapeamento “previsível” e linear ao
andar pelo parque, meu esforço em mapear os movimentos por meio de desenho, ou o mapear
dos praticantes nas diferentes formas de olhar o lugar e, a partir desse olhar, enxergar as
possibilidades – os caminhos - de deslocamento e movimento, todos esses exercícios indicam
a própria atividade do mapear. Se faz caminho caminhando. Se faz mapa mapeando.
Movimentando-se e – e também desenhando! São todas formas de ser e estar no mundo, estar
com o mundo.
Essas maneiras de ser e estar vão sendo delineadas por aspectos distintos, implicados
com as linhas de vida que atravessam as experiências de habitar do ser humano. O parkour
enquanto linha intensa da vida do praticante, impacta a sua forma de ver e viver o mundo, de
habitar conforme sua experiência, atravessada por esta e tantas outras linhas. Como nos diz
Heitor: “Mesmo quando não estou treinando, estou indo na rua resolver alguma coisa, pagar
alguma conta e tal… vou andando e olhando e pensando que ali dá pra fazer isso, ai emendo
nisso, depois giro assim e por aí vai… Faço o parkour na minha cabeça”. A vivência do
praticante de parkour é marcada, entre outras linhas, pela habilidade de mapear os ambientes.
Esta habilidade é aprendida ao longo da experiência e está sempre em atualização.

***

Tal como Ingold reflete acerca da definição da árvore – se ela é um objeto ou uma
coisa, em seus termos – poderíamos pensar a respeito da “mobília” dos ambientes que
habitamos, no caso, do ambiente que os praticantes de parkour habitam. Algumas estruturas
arquitetônicas da cidade, por exemplo, como muros, cercas, calçadas, escadas, corrimão,
parede, chão etc são definidas enquanto tal de acordo com o fim a que se destinam. Uma
parede, geralmente, serve para divisão e proteção de um ambiente. Evidentemente essa
explicação não é suficiente quando pensamos na carga e efeito simbólico que, por exemplo,
as paredes de um grande muro possui.
A parede é a enunciação de um impedimento: “não passe daqui” ou “aqui acaba o seu
caminho”, além de constituir parte dos enclaves fortificados (CALDEIRA), cada vez mais
comuns na nossa sociedade com os enormes condomínios. Essas mesmas paredes, entretanto,
especialmente as dos muros cidade afora, também são telas para o grafite e para o pixo, apoio
para cartazes e para a exposição de produtos de vendedores ambulantes, ou ainda como
203
imprevisíveis nascedouros de plantas, resultado especialmente do depósito de matéria
orgânica feito por animais como pássaros e morcegos.
Assim, se pensamos rapidamente em uma estrutura de concreto, tijolos ou algum outro
material do tipo, constituindo uma parede, dificilmente a relacionamos ao conceito de “coisa”
proposto por Ingold (2012) que é um “agregado de fios vitais”. Parece realmente ser mais
plausível este exercício imaginativo em torno de uma coisa como a árvore porque mesmo a
um olhar mais veloz, ela parece algo cujas linhas de vida realmente a atravessam, se
lembramos, por exemplo, do movimento de suas folhas ou da sua dinâmica com os animais. É
mais plausível pensar em vida, dessa maneira, se levamos em conta a concepção de “vida”
como atributo dos seres vivos ou “animados”. Entretanto, não é sobre esse conceito de vida
que o autor se debruça.
O parkour é tecido a partir de uma malha de linhas que vão costurando os
mapeamentos do mundo habitado. E este é um primeiro ponto: não se ocupa o mundo: habita-
se porque as coisas não estão acabadas e à espera de agentes que se superponham a elas, como
fossem superfícies. São, ainda, as linhas que falam sobre crescer e aprender com o parkour a
partir de processos técnicos que se conjugam com experiências afetivas de amizades,
conflitos, trocas e vivências nos ambientes.
As sinuosas formas de seguir e compreender materiais e texturas com os diferentes
sentidos compõem a intimidade do praticante que está em um processo aberto e contínuo com
terra, concreto, pedras, madeira, plantas, calor, frio, sangue, suor e lágrimas. Não por trás,
mas junto ao salto, à escalada, à ultrapassagem de um obstáculo, à construção de uma
sequência de vaults, entre tantos outros movimentos, um mundo inteiro também se
movimenta. O movimento do parkour não é realizado por um objeto encapsulado, o qual
entendemos geralmente por “corpo”, fazendo uma pirueta impulsionado pela própria força. O
corpo se movimenta junto às coisas, pois não ocupa o mundo, e sim, habita-o. Essas linhas
entrelaçam-se e formam, como uma malha dançante, o parkour.
204
Considerações Finais

Terminamos nosso percurso voltando para as primeiras linhas desse trabalho: na


introdução, sugeri algumas definições do parkour e sinalizei a pluralidade das mesmas. Agora,
trago-a de novo, questionando: afinal, o que é o parkour?
Bem, esse trabalho não dará ao leitor uma resposta. Pelo menos não só uma. A
proposta que se traça aqui é percorrer caminhos possíveis que nos ofereçam algumas
explicações sobre essa prática. Assim como a criatividade infinita na construção do diálogo
entre corpo, movimento e ambiente estabelecida no mundo do parkour, no debate acadêmico
esse tema pode tomar proporções enormes, cada uma permeada por visões e teorias variadas.
Busco, na construção desse trabalho, acompanhar e me mover tal qual o flow, no ritmo
de um traceur que descobre os lugares, as paredes, as vielas, as calçadas, postes, pedras, terra,
grama, água e vai enlaçando-os e desenlaçando-os ao seu corpo, em uma espécie de dança
plúrima. Nesse fluxo, muitas relações e experiências dos praticantes coreografam os passos
para além do mimetismo proporcionado a partir de vídeos tutoriais do YouTube, ou da busca
pela imitação dos movimentos de outros praticantes. A pergunta pode ser reformulada: o
parkour é um emaranhado – quais fios desse tecido foram possíveis acessar nessa pesquisa?
Como eles se entrelaçam e para onde seguem seus movimentos? O que passa e o que não
passa nesse emaranhado?
Para traçar algumas pistas durante nosso percurso, elegemos a dimensão corporal
como ponto de partida da reflexão. O corpo aqui é mobilizado como elemento inescapável da
análise social, tendo em vista que todos os processos de conhecimento são processos
corpóreos. E estes, por sua vez, implicam na compreensão de um entrelaçamento de relações e
fluxos, de movimento que o compõem. Em outras palavras, aprender uma habilidade, e mais
especificamente, aprender o parkour, a despeito de expressões comuns no cotidiano do tracer
tais quais “Meu corpo pode, mas minha cabeça ainda me limita” ou “Hoje minha cabeça não
está boa para eu realizar esse movimento. Preciso estar com corpo e mente em harmonia”, não
mobilizam corpo e mente em separados. Tais expressões nada mais são do que a cristalização
do pensamento cartesiano no mundo moderno.
No geral, foi notado um grande potencial de geração de paixões alegres
(DELEUZE, 2002; SPINOZA, 2009) no parkour. Isso não quer dizer, entretanto, que não
existam processos conflitivos. As hierarquias e a competitividade, por exemplo, podem, em
algum nível, ser notadas. Os próprios praticantes não negam a hierarquização e a competição
205
de forma substancial, afirmando que se trata mais de exemplos a serem seguidos, pessoas
mais experientes a serem ouvidas, do que necessariamente uma competição em um sentido
mais egoísta. São exemplos que podem servir de inspiração nos processos de aspiração do
indivíduo.
Entretanto, essa narrativa, se não “seguida” à risca na prática, é ao menos intentada ao
longo das vivências em grupo. Praticantes experientes que agem com arrogância e não
compartilham de forma “humilde” suas experiência e habilidades nem sempre são bem vistos
na comunidade. Por outro lado, praticantes novatos que também não se comportem com
humildade, especialmente quando chamados atenção por alguma prática que a comunidade
não aceite, também não são bem recepcionados. São comuns os relatos de pessoas que dizem
ter mudado seu comportamento positivamente depois de estabelecer um relacionamento com
o grupo, passando por experiências de aprendizado não só físico quanto moral.
Sobre o princípio de não competitividade do parkour, hoje já mais diluído nas
diferentes vivências do parkour ao redor do mundo, é transposto especialmente para a ideia de
“competição com si próprio”, objetivando a superação dos limites do próprio indivíduo.
Superar a si mesmo é um exercício de criatividade e, esta, por sua vez, trata-se da “capacidade
de crescer de maneira continuada para superar-se a si mesmo” (INGOLD, 2016, p.4).
Seja um parkour “puro” ou um parkour “misturado” - aquele cuja prática inclui
movimentos “não naturais” ou mesmo considerados “inúteis” do ponto de vista da eficiência,
como o faz o free running com seus saltos mortais – trata-se de uma grande malha cujas linhas
de experiência são vastas e estão em movimentação intensa. O movimento desse
entrelaçamento é percebido nas narrativas, trajetórias e memórias afetivas sobre o parkour, o
que resulta, inclusive, em uma certa dificuldade de construir um texto bem sistematizado
sobre os contextos observados. Por isso penso na ideia de “textura” como alternativa ao texto,
por sinalizar com mais evidência um processo de emaranhado que vai desde o fenômeno em
si estudado, até a construção, o ordenamento das palavras e ideias aqui postas.
A dificuldade de dizer o que é o parkour tem a ver com a a intenso emaranhado de
movimentos que vão sendo agregados, construídos, inventados e reinventados na prática do
parkour, de forma desdobrada a partir de outros eventos e também aberta para outros
possíveis. Sendo assim, os vários atravessamentos das linhas de afetos e experiências também
fazem parte do processo criativo de experimentos com a movimentação do parkour. Além
disso, é importante notar que existe, sim, uma força de normatização, de regulação, no
parkour. Essa força é capilarizada por diversos caminhos. Um deles vai em direção à
206
esportivização do parkour, um outro, à oposição ao parkour enquanto esporte (defendo-o
como uma rotina física livre, por exemplo); a uma maior aceitação à mescla do parkour e do
free running, considerando-os apenas lados da mesma moeda (que poderia ser facilmente
denominada por esta ou aquela nomenclatura). Entre outros caminhos.
Percebemos, assim, que o parkour não é “criado” em uma forma final, ele é crescente
e renasce enquanto vive. Isso não quer dizer que qualquer coisa pode ser parkour, e sim, que o
parkour enquanto uma atividade ainda não sujeita às normas institucionais, notadamente do
campo esportivo, flui e avança em cada interpretação, em cada experiência de cada praticante.
A dificuldade observada de definir e até mesmo de organizar comunidades que perdurem ao
longo do tempo pode ter a ver com com o caráter extremamente fluido que a atividade possui,
vazando para além da prática pontual. Ela pode ser um momento de atravessamento de outras
experiências que o indivíduo percorre e, assim como outras, também sofre o impacto de
relações sociais marcadas pelas diferença como gênero, raça e classe.
Percebemos, ainda, que o parkour atua como um catalisador da criatividade, conforme
vemos nos diversos relatos de experiências e experimentações dos praticantes com o corpo e
com o ambiente. É nesse movimento de engajamento no mundo, portanto, que salta aos
nossos olhos o processo de improvisação, isto é, de seguir os caminhos do mundo na medida
em que se abrem (INGOLD, 2018). Esse engajamento se dá em um intenso processo
relacional, note-se a importância mencionada, por exemplo, dos treinos coletivos para o
incremento nas dinâmicas criativas.
Penso que buscar analisar processos pela ótica das linhas vitais, da malha e/ou
emaranhado feito por essas linhas, bem como a partir da perspectiva do habitar, que se
preocupa mais em olhar a comunhão entre seres humanos e não humanos, ou as coisas
“animadas” e “inanimadas” oferece um caminho frutífero no sentido de acolher a
multiplicidade das experiências, considerando-as, especialmente, dentro do seu aspecto
sensório e corpóreo como abertura e engajamento mesmos no mundo. Tais processos falam de
dinâmicas de conhecimento e aprendizado que têm muito mais a ver com um movimento de
habilitação do que com o de transmissão de conhecimento, reprodução e operação de acordo
com esquemas mentais e, por fim, do que com o debate teórico em torno da questão da
agência.
É nesse sentido, portanto, que habitar o mundo com o parkour envolve uma série de
experiências e afetos que vão elaborando, de forma contínua os processos de aprendizado da
prática e de constituição da subjetividade do praticante. Aprender parkour, como já falamos,
207
não se trata de um processo de transmissão de conhecimento e sua reprodução pura e
simplesmente. O aprendizado do movimento é o próprio movimento sendo feito, dentro de
uma malha de experiências várias, contextualizado com os ambientes habitados. As linhas
dessas malhas são constituídas por vivências e habilidades desenvolvidas com outras práticas,
como os esportes e as artes, e são também os afectos resultantes de processos socioculturais
que perpassam desde as questões, por exemplo, de gênero, raça e classe, produzindo
movimentos de afecções e subjetividades nos praticantes de parkour.
Parkour é fazer cat leap, é desenvolver um flow, é fazer brincadeiras e desafios entre
os participantes em um dado ambiente, é escalar paredes e descer ou subir escadas de formas
inimagináveis – são todos esses movimentos em um diálogo entre corpo, espaço e tempo.
Esse diálogo é atravessado por processos de aprendizado, de técnica e de habilidade que não
acontecem de forma isolada, solitária e unilateralmente intencional. O parkour nos mostra
como a criatividade – o criar – assume o aspecto de “com e/ou diante e/ou apesar de”. Cria-se
com o que se tem, diante do que se tem e apesar do que se tem. Mas o diálogo, o
entrelaçamento que existe entre os elementos do mundo – no caso, do praticante de parkour e
o ambiente no qual ele vive – constituir o ponto-chave do que estamos falando aqui.
Os traceurs não só inventam caminhos, como também as formas por sobre as quais
exercerão seus movimentos. Podem atuar como escultores dos próprios materiais com que se
deparam. Deslocam seus corpos, bem como as coisas no seu ambiente, a fim de interagirem
com elas de maneiras outras. Mas também as coisas propõem, instigam, desafiam o traceur a
inventar formas de interação com elas.
Por fim, será que mesmo buscando localizar-se em um lugar alternativo ao debate da
agência de um modo geral, a teoria de Ingold também não cairia na “armadilha” sugerida por
Van Dyke (2015) que Latour e outros teóricos da agência material caem que é a de não dar a
devida atenção aos processos e relações de poder? A antropologia simétrica de Latour, ao
considerar a ênfase sobre as redes e mutualidades exercidas entre seres humanos e seres não
humanos poderia nos levar a um certo caminho estreito e aberto para uma perspectiva
neoliberal (ibid), uma vez que o alcance das redes não tem fim e não saberíamos a hora exata
de cessar o rastreamento destas e passar para um segundo momento que seria a análise das
relações de poder. Nesse sentido, também não aconteceria o mesmo com as malhas e linhas de
vida propostas por Ingold?
A perspectiva de malha e linhas de vida como alternativa ao “problema da agência”
discutido por Ingold (2018) tem um grande potencial de nos revelar a multiplicidade existente
208
na dinâmica do parkour, auxiliando-nos a percorrer as diversas linhas que atravessam e são
atravessadas nas e pelas experiências dos indivíduos em seus contextos sociais. Entretanto,
parece que ao se afastar da teoria da agência, o vitalismo de Ingold pode sinalizar uma certa
limitação em identificar aspectos sobretudo relacionado às dinâmicas de poder, inclusive na
própria relação entre humanos e materiais, tendo em vista que estes estão imersos em
estruturas hegemônicas que podem mobilizar interpretações outras sobre um certo alcance da
agência. Nesta tese, busquei apresentar alguns elementos que apontam para problemáticas que
elaboram marcados da diferença e acredito que sejam pontos com um grande potencial a ser
explorado em outras pesquisas, a exemplo das questões sobre gênero e normatização dos
corpos.
Por fim, parkour é uma experiência. É uma malha de experiências. É constituída de
várias linhas. Essas linhas são experiências. São histórias, trajetórias vividas em relações
sociais. Como prática corporal que envolve aprendizados intensos e dinâmicos, quero
defender a compreensão do parkour do ponto de vista processional. Esse ponto de vista
enxerga o aprendizado e a vida social como experiência, como um processo de criatividade
que envolve uma dinâmica de orientação/guia, especialmente se notamos o caráter de
coletividade existente no parkour, e se afasta da concepção de aprendizagem fixada na
transmissão de conhecimento como reprodução.
É necessário entender o pk dentro da história e dos fluxos, trajetórias, linhas – pois a
criatividade e a experiência habilidosa suscitada nessa prática é fruto do emaranhado de tudo
isso. Entender a experiência do parkour por essa perspectiva implica no afastamento da
dicotomia corpo x mente e suas variantes cultura x natureza, sujeito x objeto, frutos do
pensamento cartesiano.
Pensar com o corpo em movimento e imerso no fluxo de coisas vivas pode nos ajudar
a exercitar sua compreensão a partir da ideia de vida e não de agência. Trata-se de estudar a
prática enquanto uma forma de habitar o mundo, habitar os ambientes e não uma forma de
ocupá-los, pois eles também são coisas vivas, participantes do fluxo, em circulação, mais ou
menos intensa, mas sempre contínua.
Portanto, aprender, desenvolver, criar, imaginar, improvisar são processos corpóreos.
Não há uma preparação mental e uma execução corporal em separado. O processo é corpóreo
como um todo porque a percepção, o conhecimento, se desdobra com e no movimento, não há
“fase 1” e “fase 2”, ou um “treino da mente” e um “treino do corpo”. Tanto o processo de
desenvolvimento propriamente físico quanto o relacionado à imaginação e à formação de
209
ideias compõem um processo que é corpóreo e entrelaçado aos materiais e experiências. Estas
experiências estão imersas em uma malha de linhas de vida que envolve histórias, trajetórias,
coisas (humanas e não humanas)/materiais e tudo isso está vivo porque está na vida, e não o
contrário.
210
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