Manuais No Império PDF
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TESE DE DOUTORADO
2014
2
por
____________________________________________________________________
2014.
Todos os direitos autorais reservados a Luciana Rodrigues Penna. A reprodução de
partes ou do todo deste trabalho só poderá ser com autorização por escrito da autora.
Endereço eletrônico: [email protected]
_____________________________________________________________________
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COMISSÃO EXAMINADORA:
_____________________________________
Prof. Dr. Fabiano Engelmann – PPG Ciência Política - UFRGS
(Presidente/ Orientador)
__________________________________
Prof. Dr. Álvaro Oxley da Rocha – PPG Ciências Criminais – PUC-RS
__________________________________
Profa. Dra. Lígia Mori Madeira – PPG Ciência Política - UFRGS
___________________________________
Prof. Dr. Luis Alberto Grijó – PPG História - UFRGS
5
AGRADECIMENTOS
São inúmeras as pessoas a quem devo meu reconhecimento e gratidão pelo apoio
recebido para a realização desta Tese de Doutorado. Pela delimitação de espaço, aqui
estarão referidos apenas alguns desses nomes, mas minha gratidão alcança um conjunto
muito maior.
Agradeço a Deus pelo auxílio para principiar esta grande tarefa de reconstrução
intelectual que é a progressiva inserção em uma nova área do conhecimento. A
elaboração desta Tese de Doutorado em Ciência Política representa a concretização da
minha identidade intelectual e científica. A partir de agora, eu sou cientista política.
Agradeço também aos meus colegas do NEJUP: Carla Cruz, Júlia, Juliane
Bento, Ícaro Engler, Maria Filomena Semedo e Luciléia Colombo.
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Sou grata aos Professores Dr. Luis Alberto Grijó, Dra. Lígia Mori Madeira e Dr.
Álvaro Oxley Rocha por aceitarem avaliar meu trabalho, compondo a minha Banca
Examinadora de Doutorado. Agradeço à Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
bem como aos Professores integrantes do Programa de Pós-Graduação em Ciência
Política e ao Secretário Executivo Bruno Stefani, com os quais travei contato desde
março de 2010, pela dedicação e seriedade com que realizam um trabalho de referência
junto às turmas de Mestrado e de Doutorado em Ciência Política.
Sou grata de modo especial ao meu esposo Fernando Menezes por compartilhar
projetos de vida e ajudar a transformá-los em realizações. Seu apoio foi fundamental
para o ingresso, a realização e a conclusão deste Doutorado em Ciência Política. Sua
militância tem sido para mim um estímulo a pensar não apenas os desafios, mas também
as potencialidades transformadoras da prática política.
Por fim, o agradecimento maior aos meus filhos, José Fernando e Bibiana.
Contando com apenas cinco e dois anos de idade, respectivamente, em 2010 quando
principiei esta caminhada, souberam compartilhar os pequenos e grandes desafios do
trajeto. Superaram minha dedicação ao trabalho, compreendendo a importância dos
estudos e da viagem ao exterior. Sou grata por se empenharem nas atividades escolares
e por terem colaborado com a família durante minhas ausências, inclusive a de quatro
meses no exterior. Então, é a vocês que dedico esta Tese, pois ela é o princípio de novas
e melhores atividades. Com meu amor de mãe, desejo que os seus resultados os
recompensem generosamente.
9
DEDICATÓRIA
RESUMO
RESUMÉ:
ABSTRACT:
SUMÁRIO:
Resumo............................................................................................................................10
Resumé............................................................................................................................11
Abstract............................................................................................................................12
3.1 O cenário Imperial: mudanças estruturais e novas armas para o jogo político.......118
3.2 A contestação ao Regime Político: o publicismo de Frei Caneca como crítica ao
Projeto da Constituição de 1824....................................................................................125
3.5 O recurso à publicação das traduções de obras francesas a partir de 1831: estratégia
de contestação dos políticos-bacharéis dominados à “interpretação constitucional”
oficial.............................................................................................................................146
4.1 Trajetos dos novos publicistas: a elite “brasileira” e a disputa política pelo sentido
da “Constituição” no Segundo Reinado........................................................................160
CONCLUSÃO...............................................................................................................211
1
Na visão do direito constitucional, uma Constituição é classificada quanto à sua origem em promulgada
(ou popular) ou outorgada. Essa segunda forma se dá quando o projeto não passou por um amplo
processo de discussão com a sociedade, não obtendo uma elaboração democrática. A outorga indica que o
texto da Constituição posta em vigor não foi construído com base na participação de diversas
representações de classes, camadas ou segmentos sociais. Trata-se de uma maneira eufemizada de afirmar
que ela foi imposta por um agente ou grupo político. Para a definição jurídica de Constituição e de
Constituição Outorgada vide SILVA (1999: 42).
16
2
Desde a segunda metade do século XX o espaço do Direito vem sendo objeto de interesse para autores
de diversas disciplinas e vertentes analíticas, como: Michel Foucault, Niklas Luhmann, Jürgen Habermas
e Pierre Bourdieu (GUIBENTIF: 2010).
17
Nota-se, então, que a historicização se impõe como uma dimensão relevante para
a abordagem sociológica e politológica dos fenômenos sociais, e que dentre eles, está
situado o fenômeno jurídico. Esse eixo permite, portanto, agregar o universo das
práticas jurídicas como uma dimensão que é ao mesmo tempo, social, política e
histórica.
Deste modo, a força do direito, isto é, sua eficácia simbólica, tal como
compreendida pela Sociologia do Campo Jurídico (BOURDIEU: 1981; 1986: 2011) e
pela Sociologia Política do Direito (COMMAILLE: 2010: 37), é gerada pela divisão do
trabalho jurídico, em que a “doutrina”, típico domínio de professores, está ligada ao
social e ao universo de ação dos “práticos”: magistrados, promotores, advogados3.
inscrita no meio social. Neste sentido, cabe indagar como se estrutura esse tipo
específico de poder que molda a figura do “grande jurista” e que se projeta e ganha
visibilidade social através da produção de “doutrina jurídica”.
Este viés, ainda pouco explorado nas Ciências Sociais brasileiras, constitui o
problema central desta tese e recebe neste trabalho o sentido de fenômeno social inscrito
no bojo das lutas políticas. Isto porque a disputa pelas posições de poder que se
processa com a ação explicitamente engajada dos atores políticos no âmbito das arenas
decisórias, das esferas dos Poderes Executivo e Legislativo, ou nos tribunais e “Cortes”,
também conta com a força “implícita” acumulada pelos “doutos” de elaborarem e
difundirem os sentidos “jurídicos” (legítimos) da ordem política.
4
O emprego nativo da expressão “doutrina jurídica” ao invés de “teoria jurídica” não deve ser
desprezado, pois indica a opção dos juristas pelo fechamento do campo, através de uma forma de discurso
blindado contra as “intrusões” do questionamento e da refutação científica, próprias ao caráter das
“teorias”.
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para a presente discussão. Ela é aqui tomada como a posição social que legitima o
agente ou um conjunto de agentes a definir os contornos jurídicos da vida social e
política, mobilizando para isso a noção de “Constituição”. “Interpretar a Constituição”
é, neste sentido, um ato político. Ele se inscreve nas lutas políticas de um período
determinado e usa a figura da “Constituição” como referência normativa na mobilização
doutrinária de múltiplos saberes, em que define o mundo, ora pela legitimação, ora na
contestação da ordem política.
Ao travarem relações ora de maior distinção, ora de mais forte identificação com
outras esferas sociais, com destaque para a esfera política, tais agentes que alcançam a
posição de intérpretes autorizados da “Constituição” estão detendo, na realidade, não
um saber técnico e neutro, mas sim um poder de definição dos contornos do mundo
social, moldando o sentido “válido” das regras do jogo político, através da elaboração
de “manuais de direito público e constitucional”, ou seja, das obras jurídicas
especificamente voltadas à difusão dos sentidos legítimos da ordem social e política.
5
Conforme Pedro Dutra, a literatura jurídica no Império contempla um total de 344 obras, sendo que
destas, 40 aparecem classificadas como especificas de direito constitucional (DUTRA: 2004). Octacílio
Alecrim aponta a existência de 21 obras jurídicas como pertinentes à bibliografia de direito constitucional
no Império, além das quais indica mais 13 publicações tidas como “achegas” à disciplina, perfazendo uma
soma de 34 títulos (ALECRIM: 2011: 66).
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como “juristas”, moldando uma espécie de ambivalência. O Brasil Império pode ser
visto como caso ilustrativo de um cenário social no qual a prática constituinte funcionou
como poderosa conjuntura propulsora da intervenção dos bacharéis na política, que se
tornam os “juristas nacionais”, mas continuam ligados à esfera do poder. Estes,
recrutados como líderes da emancipação política e do “momento constituinte”,
intervieram na própria fundação do Estado Nacional após a Independência.
Com isso se pretende contribuir para apontar que houve um texto fundador no
Império e sua “exegese” não foi “jurídica”. Com isso, se pode desnaturalizar o olhar
sobre a produção de obras jurídicas dos publicistas imperiais, ultrapassando a visão
aludida pela relação entre a inserção política das elites e as estratégias de usos dos
manuais de “interpretação constitucional” para a intervenção política “mascarada”.
Parte-se do pressuposto de que os manuais de “interpretação constitucional” foram
28
Adota-se essa diferenciação histórica mais ampla porque ela possibilita analisar
os percursos dos agentes que investiram na mobilização da “interpretação
constitucional” em face dos marcos mais nítidos e intensos no plano da mudança de
conjuntura política. Além disso, a delimitação temporal extensa do objeto empírico,
cobrindo todo o período de vigência do Regime Monárquico (1822 a 1889), em que
pese acarretar riscos de generalização à análise, é a opção necessária para se poder
captar a relação entre as gerações de “juristas” em face de conjunturas diversas. Deste
modo, tem-se a possibilidade de verificar suas repercussões sobre os padrões de
produção dos usos políticos do publicismo jurídico.
6
Conforme analisado por Américo Brasiliense em obra publicada originalmente em 1878, a estruturação
da esfera partidária no período Imperial reflete muitas mudanças, sobretudo no período de 1860 em
diante. A dinâmica partidária teria se iniciado com a criação do Partido Liberal em 1831, e
posteriormente, houve a fundação do Partido Conservador em 1837. Depois da medida da Maioridade
(1840), iniciou-se um novo contexto que preside uma onda de redefinição da esfera partidária, com o
aparecimento da Liga e, após, do Partido Progressista em 1862, seguido do novo Partido Liberal, fundado
em 1869, e do Partido Republicano, surgido em 1870 (MELO: 1979). No âmbito desta tese optou-se por
adotar como base para a análise dos trajetos dos publicistas a divisão geral entre Partido Conservador e
Partido Liberal, por se tratar da oposição de maior repercussão sobre a formatação e mobilização dos
manuais de “interpretação constitucional”, mesmo após 1850.
31
definição e legitimação de seu modelo político. Frisa-se, assim, que o objetivo geral da
Tese não é o de debater a composição das elites, tema já extensamente discutido na
bibliografia especializada sobre o Império, apenas substituindo o critério da origem
social e ocupacional pelo de autoria de obras de direito.
7
Para aprofundar a discussão sobre o problema da temporalidade nas pesquisas históricas e sociológicas,
recomenda-se a leitura de: BRAUDEL (2013), LACOSTE (1989) e NOVAIS e SILVA (2011). Verifica-
se que no âmbito dos embates travados no campo da historiografia francesa, desencadeados a partir da
“Escola dos Annales” de 1929, o historiador francês Ferdinand Braudel criticava a hegemonia da
“história de curta duração” ou “história ocorrencial”, reconhecendo não apenas a diversidade dos tempos
históricos, mas a multiplicidade de explicações historiográficas, como consequência da escolha seletiva
do historiador: “Todo trabalho histórico decompõe o tempo decorrido, escolhe entre suas realidades
cronológicas, segundo preferências e opções exclusivas mais ou menos conscientes. A história
tradicional, atenta ao tempo breve, ao indivíduo, ao evento, habituou-nos há muito tempo à sua narrativa
precipitada, dramática, de fôlego curto. A nova história econômica e social põe no primeiro plano de sua
pesquisa a oscilação cíclica (...). Hoje há, assim, ao lado do relato (ou do “recitativo” tradicional), um
recitativo da conjuntura que põe em questão o passado por largas fatias: dez, vinte ou cinquenta anos.
33
sendo arbitrária a delimitação do “momento exato”. Isso porque se entende que uma tal
exatidão só seria interessante e viável em abordagens que girassem em torno de um fato
ou acontecimento bastante específico, situado cronologicamente e moldado pela lógica
do “tempo curto” (LACOSTE: 1989: 7).
Bem além desse segundo recitativo, situa-se uma história de respiração mais contida ainda, e, desta vez,
de amplitude secular: a história de longa, e mesmo, de longuíssima duração” (BRAUDEL: 2013: 44).
34
dominação política.
No entanto, se verifica que essas dimensões estão, atualmente, sendo cada vez
mais exploradas pelos historiadores e cientistas sociais e que, portanto, estão mais
“visíveis” quando se trata de analisar a prática publicística no cenário imperial.
Diversamente, a dimensão dos manuais de “interpretação constitucional” não tem sido
problematizada enquanto indicativa de estratégia de usos políticos do direito, e mais
especificamente, da teoria ou “doutrina” jurídica.
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A interlocução entre a História (especialmente na linha da historiografia que promove discussões
implicadas em recortes temporais mais longos), a Economia e as Ciências Sociais seria beneficiada pelo
recurso dessas áreas às noções como “conjuntura”, “ciclo econômico” e “estrutura”. Embora utilizadas de
modo específico nas diferentes disciplinas, tais categorias de análise permitiriam uma investigação mais
abrangente da mudança social, mas também da reprodução, da continuidade e da repetição de fenômenos
(BRAUDEL: 2013: 49).
35
investimento intelectual de certos atores da elite, uma ação mais complementar, residual
e acessória em relação à intervenção política direta. Ou, então, no caso dos políticos-
bacharéis, são tratadas como um recurso a mais na busca de status intelectual por certos
indivíduos já inseridos na elite política, buscando a consagração como autores
(ADORNO: 1988: 134).
Todas essas percepções são dotadas de sentido, porém aqui se trata, de modo
diverso, de pôr o foco de discussão sobre os usos políticos do saber jurídico, formatado
em manuais de Direito e Público Constitucional. Em outras palavras, pretende-se
abordar as condições em que foi sendo constituída e a que fins políticos serviu, no
Brasil, ao longo de cerca de seis décadas de Regime Monárquico, essa forma específica
de produção e manipulação do poder simbólico, que consiste em estabelecer a definição
oficial e dominante do regime político como a legítima, atribuindo a essas crenças a
representação de “constitucionais” através dos manuais de “Direito Público e
Constitucional”.
(STONE: 2011), o que demandaria avançar sobre a vida pessoal e as redes de relações
privadas dos indivíduos. Com ele se pretende apenas adentrar nos percursos dos agentes
identificados com a prática do publicismo, buscando apontar a relação entre inserção
política e mobilização de obras jurídicas.
Por tal viés, entende-se que mesmo uma pesquisa restrita a dados sobre a vida
pública dos agentes da elite política, já disponíveis publicamente, possibilita analisar a
relação entre o grau de inserção política da população de duas amostras de publicistas:
uma “coimbrã” e outra “brasileira”, e os usos conferidos às obras jurídicas, nas quais foi
mobilizada a “interpretação da Constituição”, apontando se foi, e em caso afirmativo,
como foi utilizada para legitimar o modelo político. Isso porque as “situações
singulares” de “conjunturas passadas ou atuais” podem mostrar como “relações sociais,
estilos de relações, formas de troca e de comunicação, práticas profissionais,
engajamentos associativos”, dentre outros aspectos, podem “se tornar elementos ou
regras do espaço político e produzir sobretudo categorias de pensamento que permitem
de falar sobre ele” (LAGROYE: 2003: 4).
Por ser originária do universo francês, este tipo de metodologia recebe na França
uma diversidade de nomenclaturas empregadas pelos pesquisadores que estudam
objetos com a postura de mesclar a perspectiva da História e das Ciências Sociais,
dentre as quais se cita: Sociologia Histórica, Sócio-História, História Política, História
38
francês,
Política do Brasil, História Social, História das Ideias Políticas e Teoria da História do
Brasil (CARVALHO: 2006; DIAS: 2009; RODRIGUES: 1974, 1978; SALDANHA:
2001), bem como os Dicionários Biobibliográficos (BLAKE: 1899; MATTOS: 1997),
Dicionários de Pensadores e de Obras Políticas (CARDOSO: 2013; PRADO: 2012), e
obras sobre a produção jurídica no Brasil Império (ALECRIM: 2011; DUTRA: 2004;
MOTA e FEREIRA: 2010).
Tais análises desenvolvidas na França nas últimas duas décadas do século XX,
embora tomem a relação entre os planos político e jurídico a partir da noção de
autonomia relativa dessas esferas sociais, colocam luzes sobre a mudança de papéis e a
função política do Direito e da produção de doutrina jurídica, fornecendo parâmetros
para a problematização da relação entre publicismo jurídico e a luta política.
Exatamente por ser distinto do cenário imperial brasileiro, o contexto francês discutido
nesse referencial oferece contrapontos relevantes para compreender a relação entre a
esfera política e a produção de doutrina jurídica no Brasil do século XIX. Este
representa um universo em que não estavam dissociadas a atividade intelectual e a
prática política, ou seja, tratava-se de um contexto caracterizado pela inexistência de um
campo intelectual autônomo (ALONSO: 2002: 38).
46
9
Guillaume Sacriste recorre à história social francesa, adentrando no século XIX para demonstrar a
articulação entre saber constitucional e argumentos políticos na ancoragem da Terceira República.
Segundo o autor é relevante explorar o papel do Direito Constitucional e de seus professores em uma
configuração de transição política, que no caso francês esteve marcada pela instalação delicada e
progressiva da República democrática. Ele aponta que desde 1879 as teorias constitucionais, enquanto
produtos simbólicos, passaram a estar à disposição dos políticos e da sociedade civil para difundir os
valores e justificar os princípios da nova ordem política republicana, sendo que aqueles que as produziam
pareciam, ao contrário, não ter incidência sobre esse processo. Essa ocultação se apoiaria no fato de que a
produção das teorias constitucionais pode aparecer como relativamente autônoma em relação às lutas
propriamente políticas e às mobilizações coletivas (SACRISTE: 2011: 13).
48
Por isso, esses trabalhos que datam das décadas de 1989, 1990 e 2000 vêm
refletindo novas abordagens sociopolíticas11 sobre o fenômeno jurídico, destacando suas
relações com a esfera política nacional e internacional, bem como a formação e os usos
da “Ciência do Direito”. Eles exploram questões como a lógica que preside o
funcionamento e a estruturação do mundo da elaboração dos saberes jurídicos e as
condições da manutenção de sua posição, tradicionalmente vinculada ao domínio
escolar, às elites políticas e ao poder de Estado.
10
Trata-se da perspectiva que toma a “Ciência Jurídica” como objeto (diferenciando-se do teor adotado
pela História do Direito e pela Sociologia do Direito), surgida ao final da década de 1980, com as análises
de Pierre Bourdieu em: “Décrire et Prescrire” (BOURDIEU: 1981); “La force du droit: elements pour une
sociologie du champ juridique” (BOURDIEU: 1986) e “Les juristes: gardiens de l’hypocrisie collective”
(BOURDIEU: 1991).
11
A partir dos anos 1990 apareceram novas abordagens enfocando o papel político dos juristas dentro de
estudos de elites e com alguns trabalhos destacando as práticas dos constitucionalistas e da doutrina:
Karady (1991), Poirmeur et Rosemberg (1989), Lacroix (1992), Chevallier (1993), Bernard et Poirmeur
(1993), François (1993), Dezalay (1993) e Sacriste (2011).
49
Por isso, verifica-se que a dimensão “teórica” não representa um papel de menor
relevância quando se trata de apreender a lógica que preside os usos políticos do
Direito. Isto porque o binômio “teoria-prática”, apresentado pelos juristas como um
antagonismo, dissimula, na verdade, o que são lógicas distintas, porém interligadas em
uma dinâmica através da qual os agentes das carreiras práticas (advogados, magistrados,
promotores) e os teóricos (autores de obras jurídicas que, em geral, também são
professores de Direito) competem pelo monopólio de “dizer o Direito”, repercutindo a
hierarquia estruturante do social e contribuindo, assim, para a sua naturalização, que é
sua força ou eficácia simbólica, seja sustentando ou contestando a dominação política
(BOURDIEU: 1986).
Os dados empíricos são extraídos dos meios que canalizam o objeto de estudo: a
invenção da “interpretação constitucional” que se processou através dos manuais de
“Direito Público e Constitucional” e sua relação com o Regime Imperial. Tal foco
implica analisar o teor de politicidade presente nessas produções, porém não visando
compreender o seu conteúdo em si, mas a sua relação com a inserção política de seus
autores. Destaca-se, neste sentido, a contribuição dos Dicionários de Obras arroladas
50
Desta filtragem teórica passa-se à coleta de certos dados biográficos dos agentes.
Para analisar a relação entre a mobilização do publicismo em formato jurídico e a
posição política, coloca-se ênfase em três tipos de variáveis: 1º) Variáveis de Percurso:
a) origem geográfica; b) ano e local de nascimento; c) ano e local formação superior; d)
inserção ocupacional (sobretudo quanto à atuação político-partidária, burocrática e/ou
acadêmica); 2º) Variáveis relativas à produção de manuais jurídicos: a) autoria, ano e
local de publicação; b) editora e existência de reedições; 3º) Variáveis relativas à
politicidade da “interpretação constitucional” expressa nos manuais jurídicos: a) título
do manual; b) formato do manual: c) temas e controvérsias tratadas; d) traduções; e)
recurso à citação de doutrinadores estrangeiros, especialmente os franceses, e por fim, f)
recurso às estratégias de linguagem que operam a universalização, a abstração e a
12
Vide página 19.
51
eufemização das tomadas de posição, voltadas para a conversão dos temas políticos em
questões científico-jurídicas.
O conjunto dessas variáveis permite identificar os usos políticos conferidos à
“doutrina jurídica”, bem como indicar a orientação seguida e as tomadas de posição
camufladas e relacioná-las com a estrutura das lutas políticas. Essa abordagem dos
manuais permite ver, portanto, como se estabeleceu a formatação da disputa política em
controvérsia jurídica. Como já referido, isso significa verificar em que condições se
processou, no Império, a invenção da “interpretação constitucional” pelas elites
políticas. Pode-se, ainda, apontar a correlação entre o teor das obras e os programas dos
político-partidários, bem como indicar as questões em disputa entre as frações de elite
ligadas a partidos políticos, especialmente, no contexto de 1850 em diante, considerado
o “auge” do período monárquico.
Pela mesma razão foram deixados de fora do universo da pesquisa os textos que
reproduzem os discursos parlamentares (mesmo os que constam como de autoria dos
agentes estudados), também levando-se em conta que a forma originária de sua
expressão foi a oralidade e não os manuais jurídicos. Além dessas, as obras de teor
literário, as memórias, as biografias, os trabalhos historiográficos, mesmo aqueles que
constam como de autoria dos agentes analisados, também ficaram fora do recorte
empírico. Excluiu-se, ainda, os manuais de “Direito Público e Constitucional” que
embora tenham sido publicados durante o século XIX, surgiram a partir de 1889, sendo
considerados como pertinentes ao período republicano.
52
Por se apreender publicismo como arma de luta política, se pode questionar por
55
que certos atores sociais que, via de regra, são frações da elite, formam grupos que
investem de modo mais intenso nessa espécie de intervenção política. A indagação
implica em pensar os elementos que facilitaram esse acesso privilegiado a tais meios de
difusão pública de ideários. Considera-se, portanto, que o publicismo não constitui um
fim em si mesmo, não sendo motivado pelo ideal científico ou filosófico, isto é, ao
desenvolvimento das ideias, mas objetiva a difusão de visões do mundo social com
vistas a convencer os demais atores sociais a aderir a determinadas causas.
Desta forma, é relevante ressaltar que mesmo antes da ruptura formal e oficial
com o domínio político de Portugal em 1822 já se contava com a existência de uma
representação local do Brasil como sociedade nacional, pois apesar da estrutura social
desigual e escravista, foi em face da ocupação do litoral e dos sertões pelos portugueses
que a sociedade brasileira contou, desde a primeira metade do século XVIII, com uma
“integração nacional praticamente concluída” (AB’SABER et al: 2008: 35). Florestan
Fernandes também aponta esse aspecto, indicando que, embora ainda não existisse
como nação, “o país possuía, graças ao desenvolvimento socioeconômico no período
colonial e ao legado português, alguma unidade interna e fortes tendências para
preservá-la” (FERNANDES: 2005: 72).
Deste modo, verifica-se que a transição entre os séculos XVII e XVIII na Europa
alterou não apenas os modelos políticos, tradicionalmente legitimados pela noção de
soberania real com origem divina, sustentadora da crença no poder pessoal do monarca,
mas investiu com intensidade no processo histórico de promoção do universalismo dos
interesses das novas classes sociais emergentes, o que colocou a Revolução Francesa
em uma posição paradigmática.
13
Neste sentido, existem abordagens que relacionam as “Revoluções” dos séculos XVII e XVIII e o
“Constitucionalismo”, como nos casos inglês, francês, americano e latino-americano. Ver nesse sentido,
respectivamente, os trabalhos de BARROS (2013), AVRITZER (2013), BIGNOTTO (2013) e
DOMINGUES (2013).
59
brasileiro14.
14
Essa importação de ideologias associada a um processo de clivagem local, em que os brasileiros
mobilizaram recursos diversos, gerando inovações no plano político, servindo-se da esfera artística e
cultural, pode ser considerada uma tendência que perdurou até o final do Império, conforme assinala
Ângela Alonso, sobretudo por parte de grupos marginais à política oficial, como os ativistas dos
movimentos abolicionista e republicano a partir de 1870 (ALONSO: 2012).
15
Conforme o historiador “a Revolução Francesa é um marco em todos os países. Suas repercussões, ao
contrário daquelas da revolução americana, ocasionaram os levantes que levaram à libertação da América
Latina depois de 1808” (HOBSBAWM: 2008: 12).
60
Tal aspecto constitui uma questão-chave para esta abordagem dos usos políticos
do publicismo, pois se trata de uma condicionante que iria pesar sobre a formatação e os
sentidos políticos do publicismo, face à sua vinculação com os interesses da elite dos
nascidos na Colônia. Deste modo, a identificação das gerações de elites de ilustrados
coimbrãos e, mesmo após, da geração dos brasileiros com os moldes da dominação
política portuguesa pode ser vista como efeito da formação e socialização, alcançada
16
A vinda de estrangeiros para o Brasil, ainda que vedada pela Metrópole, foi uma constante no período
colonial, sendo verificada desde o Século XVI, atraídos pela descoberta da mineração. Francisco Iglesias
aponta que em 1549 haveria em torno de 2 a 3 mil portugueses no Brasil. Já no Século XVIII esse número
saltara para em torno de 300 mil (IGLESIAS: 2001: 75).
61
Por tal razão, verifica-se que os ideários políticos das frações da elite que iriam
investir no publicismo brasileiro, apropriando-se da dimensão dos manuais de
“interpretação constitucional” ao longo da existência do Império, ainda quando
contraditórios, foram todos forjados nos marcos dessa cultura unionista ou
“lusobrasileira”, reforçada pela inserção docente, política e burocrática em Portugal, que
até 1822 possuía um Regime Absolutista, e, posteriormente, no Brasil. Reitere-se que o
Estado Português, contratando agentes letrados como funcionários públicos, colocava-
se à frente da situação que afetava o mundo ibérico nesse contexto, em face da escassez
de públicos consumidores para os produtos culturais ou bens simbólicos.
17
Neste sentido, a historiadora Lúcia Neves salienta que “A dependência dos intelectuais ilustrados ao
programa da Coroa portuguesa foi uma das características fundamentais da vida cultural luso-brasileira no
final do setecentos, perpetuando-se ao longo de todo o século XIX” (NEVES: 1999: 9).
62
Sabe-se que a partir do final do século XVIII, a parcela letrada da elite brasileira
formada em Coimbra passou a compor os quadros burocráticos e políticos na Metrópole
portuguesa, exercendo funções públicas destacadas, dentre os quais têm-se os nomes de
José Bonifácio de Andrada e Silva, Hipólito José da Costa, Manoel de Arruda Câmara,
José Vieira Couto, o bispo Azeredo Coutinho (NEVES: 1999: 15). Essa parte da elite
letrada constituiu o grupo dos publicistas “da ordem” dentro desse contexto, formando
uma verdadeira “família intelectual”, ou seja, tratava-se de agentes comprometidos com
63
No entanto, saliente-se que tais agentes podem ser tomados como “publicistas”,
mas não propriamente como “constitucionalistas”, porque o Reino de Portugal não
contava até 1822 com uma “Constituição”, no sentido moderno e formal de um Código
Nacional contendo um conjunto de normas que estabelecessem os fundamentos do
Regime Político.
Com base nessa constatação, verifica-se que os ideários políticos, ainda que
mobilizados em tais movimentos possam ser considerados resultantes da herança
lusobrasileira de teor iluminista, moldaram-se em uma combinação de múltiplos
interesses regionais e locais com as ideologias importadas, pois neles não estiveram
engajados apenas certas frações de elite, como os grandes proprietários de terras e
políticos18, mas também indivíduos e grupos de camadas populares, clérigos, parcelas
iletradas e militantes de tendências políticas “radicais”19.
18
Examinando-se a origem social e a profissão dos inconfidentes, dos revolucionários baianos de 1789 e
dos revolucionários pernambucanos de 1817, verificamos a predominância de ofícios e atividades
identificadas como sendo as da classe média (BARRETTO: 1989: 36).
19
Exemplifica um caso de liderança exercida com base em um ideário político “radical” em movimentos
sociais desse período a atuação de Cipriano Barata, um dos líderes da Conjuração Baiana. Mesmo sendo
letrado e político, identificava-se com a oposição “radical” ou “exaltada” ao regime (MOREL: 1999:
119).
65
O que se pode extrair dessa linha de raciocínio é que, se por um lado houve
apropriação popular de ideários políticos exógenos, sobretudo norteamericano e francês,
no âmbito dos movimentos sociais, por outro lado o publicismo jornalístico foi mais
uma ferramenta das parcelas da elite letrada, com seu perfil conservador, que herdaram
os traços da múltipla inserção em postos políticos, acadêmicos e estatais.
Distinguindo-se por setores de atividade, vê-se que não se tratava, assim, de uma
elite exclusivamente “burguesa”, no sentido econômico de homens “de negócios”, elite
comercial ou industrial, mas muito mais de uma “elite de Estado”, isto é, de indivíduos
originários da alta esfera política e da alta Administração Pública (CHARLE: 1987).
20
Entende Wolkmer que “o modelo jurídico hegemônico durante os primeiros dois séculos de
colonização foi, por consequência, marcado pelos princípios e pelas diretrizes do Direito alienígena –
segregador e discricionário com relação à própria população nativa -, revelando, mais do que nunca as
intenções e o comprometimento da estrutura elitista de poder. Desde o início da colonização, além da
marginalização e do descaso pelas práticas costumeiras de um Direito Nativo e informal, a ordem
normativa oficial implementava, gradativamente, as condições necessárias para institucionalizar o projeto
expansionista lusitano. A consolidação desse ordenamento formalista e dogmático está calcada
doutrinariamente, num primeiro momento, no idealismo jusnaturalista; posteriormente, na exegese
positivista” (WOLKMER: 2005:49).
67
identificação existente no domínio das elites jurídicas coloniais, com repercussão após a
Independência, inclusive do “direito público”, com o interesse do Estado em um sistema
legal heterogêneo: de um lado, com as normas e doutrinas originárias do domínio
metropolitano, beneficiadas pelo caráter oficial, e de outro, no plano local, com as
normas e sentidos de feitio nativo, atinentes às demandas e problemas de administração
da Colônia.
ideários políticos, a não ser pelo caminho do publicismo jornalístico. Mesmo após a
migração da Corte e a elevação do Brasil à condição de Reino Unido, o contexto não
pode ser visto como propício à criação e autonomização relativa de espaço da “Ciência
Jurídica” ou doutrina jurídica “brasileira”. Por isso, considera-se que a projeção do
domínio metropolitano sobre as práticas jurídicas condicionou, progressivamente, à
adesão ou à contestação ao sistema político português, empregando para tanto o único
meio para publicismo viável no cenário local: o jornalismo.
21
Florestan Fernandes adota essa percepção: “É provável que a transferência prévia da Corte tenha
contribuído também para quebrar o acentuado provincianismo colonial e para alargar o horizonte cultural
dos setores mais ativos e esclarecidos das elites dos estamentos senhoriais” (FERNANDES: 2005: 73).
70
22
Como foi o caso do bacharel coimbrão Hipólito José da Costa, autor do Correio Braziliense, o “jornal
de um homem só” editado em Londres, de 1808 a 1822. Nele, Hipólito veiculava um publicismo de teor
monarquista, expressando uma posição unionista com Portugal, com teor reformista e antirrevolucionário,
tendo, inclusive, criticado no jornal o Movimento Pernambucano de 1817 (PAULA: 2001: 28).
23
As revoltas como manifestação de ideários publicistas na época colonial é mencionada por Boris
Fausto, que denomina tais eventos como “movimentos de rebeldia e consciência nacional”, enfatizando
que foram permeados por um sentimento de “conspiração contra Portugal e de tentativas de
independência” que “tinham a ver com as novas ideias e fatos ocorridos na esfera internacional, mas
refletiam também a realidade local” (FAUSTO: 2006: 62).
73
24
Para uma discussão mais aprofundada sobre esse tema, ver a posição do historiador Evaldo Cabral de
Mello. O autor sustenta que a pouca ênfase na contribuição pernambucana, e sobretudo, do engajamento e
do publicismo de agentes como Frei Caneca na definição dos contornos da luta política pelo tipo de
Independência a ser efetuado no Brasil se deve à visão dominante na historiografia brasileira que sofreria
o peso da tradição “saquarema”, aderindo à visão dos heróis e comprando a tese da predestinação das
elites do sudeste para fazer a Independência, definir os contornos da nacionalidade brasileira e estabelecer
o Estado Unitário e Monárquico (MELLO: 2001: 16).
74
difusão do publicismo encampado pelas frações das elites coimbrãs inseridas nas esferas
políticas e administrativas, como ilustra o caso de José da Silva Lisboa. O, futuro
Visconde de Cairú, que seria um dos deputados da Assembleia Constituinte de 1823 e
que foi autor de obras econômicas e jurídicas25, foi um dos diretores da Impressão Régia
(HALLEWELL: 2012: 113).
Neste ponto, é fundamental destacar que por mais de uma década, ou mais
precisamente durante quatorze anos (de 1808 a 1822), a Impressão Régia, enquanto
organismo estatal, deteve o monopólio das publicações no Rio de Janeiro, perfazendo
nesse período um volume em torno de 1192 publicações, dentre as quais figuravam
basicamente: “documentos de governo, cartazes, volantes, sermões, panfletos e outras
publicações secundárias”, sendo relevante o fato de que os materiais que publicava, na
maior parte, se constituíam em textos com temas de interesse governamental, científico
e militar (HALLEWELL: 2012: 114). Isso representa a iniciativa de elaboração e
difusão do publicismo ajustado aos interesses do Governo e, também, o acesso
privilegiado aos meios e recursos de publicação para as frações das elites associadas ao
poder central e situadas em torno da Corte, no Rio de Janeiro.
25
José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairú, teria sido um político liberal na orientação econômica, mas
conservador na visão política, o que significava referendar a proposta da “pedagogia de Estado”
encampada pela Impressão Régia. Sua adesão à Monarquia, ao Catolicismo e sua apologia da
Constituição de 1824, apareceram expressas no primeiro manual de “interpretação constitucional”
brasileiro publicado pela Typographia Nacional, em duas partes, a primeira em 1824, e a segunda em
1825 e intitulado: “Constituição Moral e Deveres do cidadão com exposição da moral pública conforme o
espírito da Constituição do Império” (DUTRA: 2004: 151).
75
ainda, que a iniciativa de monopólio estatal da produção cultural foi gerenciada do Rio
de Janeiro para os demais locais, colocando os interesses do Governo nas mãos da elite
“central”, “alta burocracia” ou elite “de Estado”, recrutada para a tarefa de propulsora
do publicismo “legítimo” e “oficial”.
Esse aspecto deve ser frisado: as publicações que eram difundidas através da
Imprensa Régia contavam com o financiamento da Coroa e, portanto, da vinculação aos
interesses do governo e dos escalões em seu entorno, formado, predominantemente, pela
burocracia lusa. Isso auxilia a explicar porque a Gazeta do Rio de Janeiro difundia mais
notícias europeias do que locais, com destaque para a situação da Inglaterra em relação
aos ataques de Napoleão (SILVA: 2009: 15).
27
Deve-se tomar em consideração o fato de que a ampliação do mercado de livros nesse contexto
ganhava também um maior impulso com a divulgação de obras importadas (SILVA: 2009: 16).
28
Do qual é exemplo o Alvará de 20 de março de 1720, que proibia as “letras impressas” no território
brasileiro (HALLEWELL: 2012: 93).
29
Há referência a nomes de gerações nascidas a partir de meados do Setecentos, como: José da Silva
Lisboa, (1756-1823), Hipólito José da Costa Pereira (1774-1823). Este é considerado o primeiro jornalista
brasileiro, editor do jornal Correio Braziliense, publicado em Londres, criado em 1808 (AB’SABER:
2008: 116).
77
Introdução, que ser incorporado ao grupo dos “publicistas brasileiros” nesse momento
histórico significava integrar um dos “pólos” regionalizados, que delimitavam, através
de instituições como o Seminário de Olinda e a Impressão Régia, as fronteiras do
espaço de atuação intelectual das elites letradas. O publicismo elaborado no Brasil e
difundido durante esse período (1800-1824) foi influenciado por tal concorrência
ideológica e política, confrontando “revolucionários” de norte a sul, em que os
movimentos nordestinos, especialmente os pernambucanos, se destacaram, com as
frações de políticos-bacharéis e jornalistas situados na Corte, detentores de uma
orientação unionista ou “lusobrasileira”, emanada do espírito monarquista coimbrão.
políticos não pode ser explicado como uma resultante direta de regra constitucional
(LACROIX: 1992).
Infere-se, daí, que algumas das características do espaço social que moldaram a
mobilização jornalística do publicismo e sua politização nesse cenário foram: a) a
inserção dos agentes no contexto colonial em crise e já distanciado do universo
acadêmico-científico metropolitano; b) o teor modelado pelos diversos usos políticos de
conceitos, princípios e teorias; c) o caráter fluido; d) exposição do caráter “engajado”
em uma das causas em jogo, isto é, o perfil militante do autor, pois mesmo em caso de
anonimato, o fundamento ideológico do posicionamento era exposto; e) natureza
conjuntural, isto é, voltado ao tratamento imediato de questões prementes ou “do
momento”; f) a velocidade de circulação dos textos.
Embora o movimento cultural seja uma dimensão relevante, porque indica uma
vinculação das elites coimbrãs à nova cultura jurídica européia dita “jusnaturalista30”,
que não favorecia situar como problema político a questão da legitimidade do Regime e
acatava a noção absoluta de propriedade como direito natural, ela não é suficiente.
30
O Jusnaturalismo é uma vertente da filosofia jurídica centrada na noção de “direito natural” ou “lei
natural”, apropriada de modos diversos conforme a época e contexto social. Para a sua apropriação em
Portugal no contexto de transição entre o século XVIII e XIX, ver: KIRSCHNER: 2009.
81
do Brasil, mas sim seu retorno à condição de colônia portuguesa (FAUSTO: 2006: 71).
Neste ponto, deve-se ter em consideração que a partir de 1821 aflorou e acirrou-
se em Portugal e no Brasil a concorrência entre pelo menos quatro “correntes” ou eixos
de luta política identificadas com diferentes facções e que influem sobre o publicismo:
a) a posição “lusa” ou favorável à supremacia da Coroa Portuguesa e ao retrocesso do
Brasil ao status colonial; b) a posição unionista ou de defesa da manutenção da
condição do Brasil de Reino Unido a Portugal; c) a posição “radical” da defesa da
emancipação com autonomia do Brasil, porém com a adoção do sistema monárquico
constitucional, e por fim, d) a posição “extremada” dos emancipacionistas republicanos
(FAUSTO: 2006: 73).
31
Ao tratar do papel dos impressos e livros, Lúcia Neves menciona que: “(...) nesse debruçar-se sobre a
história dos livros e impressos, dois momentos mostram-se fundamentais: o Setecentos e o longo século
XIX. Na primeira temporalidade, encontram-se as novidades em relação às práticas de leitura, à
constituição do esboço de uma voz geral, mas também as resistências em relação a tais propostas por
meio do papel repressivo da Inquisição e da censura. Na segunda, o livro se integra ao tecido cultural e
político da sociedade, revestindo-se as palavras, por meio de tais escritos, de conotações particulares e
diversas, fazendo com que uma simples ideia, ao transcender seu contexto originário, projete-se no tempo
sob a forma de um novo conceito, que transforma aqueles discursos contemporâneos em práticas capazes
de revelar as diversas identidades políticas e sociais presentes naquela conjuntura histórica” (NEVES:
2009:8).
32
“Naquela altura, as linhas de divisão passavam pelo retorno ou não de Dom João VI a Portugal. O
retorno era defendido no Rio de Janeiro pela “facção portuguesa”, formada por altas patentes militares,
burocratas e comerciantes interessados em subordinar o Brasil à metrópole, se possível nas linhas do
sistema colonial. Opunha-se ao retorno o “partido brasileiro”, constituído de grandes proprietários rurais
das capitanias próximas à capital, burocratas e membros do Judiciário nascidos no Brasil”(FAUSTO:
2006: 72).
83
Nesse novo cenário, entre os anos 1821 e 1822, constata-se que os jornais e os
panfletos, principais tipos de periódicos, eram os veículos mais utilizados na difusão das
visões políticas por atores sociais, conferindo significados a termos e expressões
importadas de outros cenários, sobretudo europeu, como constitucionalismo,
Constituição, regime constitucional e outros correlatos.
33
Note-se que o próprio D. Pedro I usou o termo “partido” e “facção” por ocasião da dissolução da
Assembleia Constituinte em 1823, com sentido de parcialidade e desunião. Também José Bonifácio
85
34
O historiador José Honório Rodrigues remete a esta questão, ao reconhecer os contextos
revolucionários como momentos privilegiados de difusão de termos e sentidos políticos (1975: 51).
Assim, “as revoluções são criadoras de um vocabulário político novo”, são “indutoras de palavras
políticas novas, criadas em outros países, ou em outras revoluções”. Assim, a Revolução Francesa foi o
movimento que mais intensamente produziu um conjunto variado de termos políticos, exportados para o
mundo. No caso do Brasil, desde a Revolução Pernambucana de 1817, mobilizavam-se termos tais como:
revolução, pátria, patriota, liberal, partido, partidista, partidário, facção, deputado, “brasileiro”,
“brasiliano” ou “brasilense”, paraíba, crioulo (negro nascido no Brasil), botafogo (tolo, pedante, mal-
educado). (RODRIGUES: 1975: 52).
35
“Constituição portuguesa, que estás em nossos corações, santificado seja o teu nome, venha a nós o teu
regime constitucional, seja feita sempre a tua vontade, um melhoramento na agricultura, navegação e
comércio nos dá hoje e cada dia; perdoa-nos os defeitos e crimes passados, assim como nós perdoamos
aos nossos devedores, não nos deixes cair em tentação dos velhos abusos, mas livra-nos destes males,
assim como do despotismo ministerial, ou anarquia popular. Amém” (NEVES: 2003: 41).
86
foi influenciado pela adesão das elites lusobrasileiras à “praga periodiqueira” da Europa,
onde o financiamento estatal através da Typographia Real, pela Impressão Régia e pela
Imprensa Nacional foram constantes. Nesse sentido, com base em levantamento
publicado em fonte historiográfica, verifica-se que foram lançados cerca de 20
periódicos no Brasil entre 1821 e 1822 (NEVES: 2003: 43). Os itens constam dos
quadros a seguir.
Por isso, fica nítida a relação de proximidade dos autores dos materiais com o
centro do poder político, implicando em proximidade com o próprio Regente Dom
Pedro e seus aliados. Verifica-se, portanto, que o recurso ao espaço da imprensa,
fundada em 1808 com a criação da Imprensa Régia, reproduziu-se de modo exponencial
durante o momento das lutas pró e contra a ruptura com o sistema político Unionista e
da consolidação da Independência em 1822. A listagem no quadro a seguir reúne os
dados de local e ano de publicação dos materiais, permitindo verificar a expansão do
debate para outros focos regionais e os empregos do termo “constitucional”, indo da
defesa do unionismo com Portugal à propaganda do emancipacionismo brasileiro, e
sendo manejado tanto pelos jornais mais “conservadores” (monarquistas tradicionais ou
liberais moderados), quanto pelos mais “radicais” (monarquistas parlamentaristas e até
republicanos).
36
A vinculação dos autores de jornais e panfletos com a atividade política é um elemento relevante a ser
destacado não apenas para a compreensão do domínio dos temas “políticos” e da conjuntura europeia,
mas para que se reflita sobre a sua posição na esfera política e sua relação com o poder de Estado,
sobretudo pela facilidade de acesso às editoras oficias. Segundo a historiadora Virgínia Silva: “Os anos
entre 1820 e 1822 foram importantes para o florescimento da imprensa de opinião em decorrência das
medidas que estabeleceram sua liberdade de circulação no Brasil, mas também por conta do largo uso dos
jornais como instrumento político-doutrinário”, sendo que esses materiais estavam “estreitamente
vinculados à atividade política exercida pelos mais variados agentes sociais e facções (...).” (SILVA:
2009: 172).
90
empregada pelos próprios agentes, porque permitem verificar as direções múltiplas que,
nas conjunturas, foram se combinando e formando orientações políticas mais nítidas.
38
A refutação da dicotomia esquerda-direita para explicar a esfera política nesse contexto também se
justifica pela inexistência de partidos políticos nesse contexto, referido como a passagem de uma
“desolação colonial” para um “entusiasmo cívico”. Nessa linha de entendimento, José Honório Rodrigues
ressalta que “Não havia partidos, mas facções de correntes de opinião”. Neste sentido, é mais adequado
falar em “sectários, liberais, conservadores, radicais”, como “grupos pré-partidários” (RODRIGUES:
1975: 10). A posição de que não havia partidos políticos no Brasil antes de 1837 é adotada também por
José Murilo de Carvalho (CARVALHO: 2006: 204).
92
certa ambiguidade, uma vez que optou pela “índole moderada” e “reformista”, expressa
ao classificar as ideologias manifestadas no contexto e ao identificar, com certa ironia, a
existência de seis “partidos” naquele cenário, enquadrando-se no último: o Partido dos
Indiferentes, o Partido dos Flutuantes, o Partido dos Desejadores do Governo Antigo e
Inimigos da Inovação (Corcundas), o Partido dos Republicanos (radicais democratas), o
Partido dos Aderentes às Cortes de Lisboa (Unionistas) e, por fim, o Partido dos
Aclamadores do Príncipe Regente, aglutinando as posições separatistas e monarquistas
(RODRIGUES: 1975: 12).
O caso do Correio do Rio de Janeiro representa outro jornal que também tomou
posição como discurso “brasiliense” e separatista, apontado como a folha mais radical
do Rio de Janeiro, por estar alinhada com as posições que seriam defendidas por Frei do
Amor Divino Caneca e Cipriano Barata, líderes do movimento pernambucano de 1824
(LUSTOSA:2010: 12). Lançado em abril de 1822, teria sido o primeiro jornal a
reclamar a convocação de uma assembleia constituinte nacional, sendo que seu editor
reivindicava também a inserção de uma cláusula de “Juramento Prévio” da Constituição
pelo Imperador.
Deve-se reiterar que não apenas frações da elite com curso superior tiveram
acesso ao publicismo via imprensa nesse contexto. Isto porque “a liberação da imprensa
possibilitaria a escritores e leitores brasileiros a abertura para uma multiplicidade de
94
ideias e atitudes”, permitindo que “gente das mais diversas origens e formações
aproveitasse a porta aberta pela imprensa para se lançar na vida política” (LUSTOSA:
2010: 11). Desta forma, um outro efeito importante gerado por essa “abertura” ao
“discurso popular” constitui a possibilidade da convivência entre a linguagem mais
erudita dos bacharéis com a linguagem mais popular das frações letradas, mas não
“ilustradas”, caracterizando a mescla de sentidos e expressões mobilizadas nos
discursos moldados pelos embates travados no meio jornalístico.
Por um lado, estes fatores possibilitaram sua conversão em espaço mais amplo
de intervenção social sobre os acontecimentos políticos, pois “defender ideias no âmbito
da instituição ou publicá-las em algum panfleto era uma intervenção direta na vida
política do Império. Não era apenas discutir a política, mas executá-la” (PEREIRA:
2010: 48) No entanto, por outro lado, não poderia constituir-se, exclusivamente, a
médio e longo prazo, na única via para o manejo do publicismo, sobretudo diante da
tarefa de sustentação da legitimidade “jurídica” e “científica” do Regime Monárquico.
39
Para Lustosa os “aforismos, expressões populares, até mesmo chulas, que eram elementos da
linguagem popular do Brasil do começo do século XIX foram conservados nas páginas desses jornais, nos
proporcionando a possibilidade de identificar muitas permanências, falares que chegaram aos nossos dias.
Esse estilo de escrever mais coloquial vai ser especialmente adotado pelo grupo que Lúcia Bastos
classificou de elite brasiliense em oposição à elite coimbrã”. (LUSTOSA: 2010: 11).
95
Ainda cabe destacar, quanto aos contornos gerais do pensamento dos políticos-
bacharéis da geração emancipacionista, a opinião que defende o efeito de longa duração
na reprodução de um padrão não científico e doutrinário-manualístico da elaboração
publicista no pós-Independência. Isto porque antes da Independência, as ideias
revolucionárias se concentravam na ação dos padres, médicos e maçons (CARVALHO:
2006: 86), formando um arcabouço de usos militantes e radicalizados das teorias
constitucionais estrangeiras que penetravam no Brasil, com destaque para a ênfase nas
ideias políticas revolucionárias francesas.
status quo. Ou seja, por longo tempo, após a consolidação do Brasil independente e
apesar do isolamento dos alunos de Coimbra ter sido rompido com a criação das escolas
de Direito no Brasil, “as ideias radicais continuaram ausentes dos compêndios
adotados” (CARVALHO: 2006: 85).
O uso dos panfletos, folhetos e periódicos no contexto dos anos 1820-1822 como
veículos de imprensa utilizados nas lutas travadas em torno da difusão dos ideários
políticos em jogo aponta que nesse cenário, apesar da importação, muitas vezes
clandestina, de livros estrangeiros, não era através de manuais de doutrina
constitucional que as elites engajadas tratavam das questões constitucionais43. Os
40
Segundo Venâncio Filho: Assim, quando Portugal, na peripécia do processo das descobertas, depara-se
com a Terra de Santa Cruz, a Colônia que passará a ser, em pouco tempo, a joia mais preciosa do Império
Português, iria sofrer os influxos desse condicionamento cultural, ao mesmo tempo em que as populações
que para aqui vinham compostas de degredados e de elementos da pequena nobreza, teriam de se adaptar
a um novo tipo de atividades econômicas. Por isso mesmo, a rarefação do poder político, nos primeiros
séculos, dá margem a um processo de fortalecimento do poder privado (...). Nesse quadro de privatismo,
o processo cultural que se exerce sobre a nova colônia é devido em parcela primordial à Companhia de
Jesus (VENÂNCIO FILHO: 2005: 3).
41
Venâncio Filho entende que: “Por força do predomínio da Companhia de Jesus na Universidade de
Coimbra, a cultura portuguesa nos séculos XVI e XVII e na primeira metade do século XVIII conservar-
se-ia impermeável às transformações que se processavam no continente europeu após o Renascimento,
com a expansão dos estudos científicos e a disseminação do método experimental” (VENÂNCIO FILHO:
2005: 5).
42
Para Lúcia Neves: “(...) de acordo com o pensamento da elite coimbrã e brasiliense, a regeneração
política deveria ser portadora de uma Constituição que enterrasse o “maldito sistema de colônia”
juntamente com “o cabeçudo despotismo”. Nesse sentido, “o grito de liberdade, levantado no Douro,
repetido no Tejo”, ensejou no Brasil os mesmos princípios de liberdade proclamados “do soberbo
Amazonas até ao Rio da Prata” (NEVES: 2003: 125).
43
A predominância do espaço jornalístico sobre a produção de obras, como meio de difusão de noções
políticas nesse período, foi apontada por Neves, que afirma: “Entretanto, muito mais do que obras de
98
cunho teórico, foram os folhetos políticos, panfletos e periódicos, publicados entre 1821 e 1823, que, sem
dúvida, mais contribuíram para veicular e difundir a cultura política, plasmada na tradição de uma
Ilustração mitigada, de que se imbuíra o Vintismo. Traçando um caminho entre a história e a política, esta
imprensa permitia a circulação das informações em todos os setores sociais, trazendo à tona os
acontecimentos diários que passavam do domínio privado ao público, fazendo os fatos políticos
adquirirem o status de novidades. (...) Muitos desses escritos haviam sido editados em Portugal, durante o
movimento de 1820, e se destinavam a propagar a proposta de um constitucionalismo monárquico,
profundamente inspirado nas ideias pregadas durante a revolução da Espanha (...). Era frequente a venda
de constituições espanholas, tanto em Portugal, quanto no Brasil (...)” (NEVES, 2003: 39).
99
44
Tais informações podem ser encontradas em trabalhos que se referem à questão da difusão do livro no
Brasil, dentre os quais cita-se: HALLEWELL (2012); FONSECA e SEELAENDER (2008); HESPANHA
(2006); NEDER (1995).
100
Essa amostra de onze livreiros aponta para a intensa vinda ao Brasil de editores
estrangeiros e a concentração da instalação desses agentes no Rio de Janeiro,
especialmente no ano de 1824, coincidindo com o contexto da outorga da Constituição
imperial brasileira. A inserção do incipiente mercado editorial na capital do Império
contrasta com a existência de apenas uma casa editora fora do Rio de Janeiro, situada
em São Paulo, cidade que seria, a partir de 1827, a sede de um dos dois únicos Cursos
Jurídicos do período.
45
Os primeiros editores instalaram-se no Brasil vindos da Europa especialmente a partir da segunda
metade do século XIX. Plancher, Garnier, Leuzinger, Laemmert, Jacintho Ribeiro dos Santos, Francisco
Alves, além da exceção do brasileiro Francisco de Paula Brito, destacaram-se no grupo que passou a se
dedicar aos negócios envolvendo o mercado editorial brasileiro (PIVATTO: 2010: 43).
46
Famoso na França por editar obras vinculadas ao pensamento iluminista, o tipógrafo e livreiro Pierre
Plancher aportou em território brasileiro em 23 de fevereiro de 1824. Pretendia proteger-se da
perseguição que sofria pelo governo de conde d‘Artois que tornou-se rei da França com o nome de Carlos
X, após a morte do irmão Luís XVIII em 1824 (FUTATA e MIZUTA: 2008).
47
Apesar desses embates e da precária liberdade de comércio e de expressão, Plancher demonstrava
habilidade para exercer sua atividade de editor de obras que veiculavam ideias ligadas ao pensamento
liberal. Em sete anos, publicou em Paris 150 títulos, um número considerável diante das adversidades da
época. Vários expoentes do liberalismo francês tiveram suas obras publicadas na tipografia de Plancher:
102
Assim, é referido que “seu principal interesse era a política”, sendo que sua empresa na
França era conhecida como a “livraria política” (HALLEWELL: 2012: 149). Publicou
ainda em Paris, em 1818, a obra: “Coleção completa das obras publicadas sobre o
governo representativo e a constituição atual da França, formando uma espécie de curso
de direito constitucional”, obra de Benjamin Constant (Idem).
Benjamin Constant, François Guizot, RoyerCollard, Madame de Staël, Destutt-Tracy, Dupont de l’Eure,
ProsperBarante (...). (FUTATA e MIZUTA: 2008).
48
Neste sentido, Laurence Hallewell enfatiza que: “A Constituição foi um êxito espetacular e lançou as
bases de sua prosperidade; obter a permissão para imprimi-la constituiu um feito memorável, após uma
longa luta com a Typographia Nacional, vitória que se deveu tanto à qualidade do seu trabalho como à
força de suas amizades em altos cargos” (HALLEWELL, 2012: 151).
103
Neste sentido, pode-se dizer que a criação dos cursos jurídicos em 1827 foi um
fator a incrementar a inserção dos livreiros franceses no Brasil, fomentando o comércio
livreiro relacionado ao universo das elites letradas, sobretudo dos bacharéis em Direito,
necessitados de novas fontes doutrinárias, além de apenas as lusas, para embasar o
aprendizado acadêmico e o exercício das carreiras jurídicas. Como exemplifica o caso
do livreiro De Plancher50, essa migração de editores franceses contribuiu para que se
difundisse a publicística francesa, americana e inglesa, abrindo o universo do
publicismo, antes quase exclusivamente jornalístico, a uma nova forma de mobilização
de ideário políticos: as obras jurídicas.
49
Anote-se, o fator de que o contexto em que De Plancher desembarcou no Brasil foi “em meio à revolta
diante dos atos do imperador tais como a dissolução da Constituinte e o rumo político que imprimiu ao
processo de construção do estado nacional” (FUTATA e MIZUTA: 2008). Essa conjuntura coloca a
questão da relação do livreiro com o apoio à causa monárquica através da difusão de obras monarquistas,
quase como uma retribuição à acolhida de D. Pedro I.
50
O aspecto econômico da condição de estrangeiro foi assim ressaltado: “Assim, verifica-se um paradoxo
entre a direção ideológica do editor-livreiro na França e a estabelecida no Brasil, mas tal contradição não
passa de aparência. Exilado de seu país, Plancher buscou apoio nas instituições políticas brasileiras e,
visto que o encontrou, não poupou esforços para mantê-lo. Afinal, a manutenção do poder de seus aliados
lhe rendia, além do apoio, a isenção de impostos, o que garantia o funcionamento com êxito de sua
atividade comercial. Por esse motivo Ezequiel Correia dos Santos, do Nova Luz Brasileira, atacava
Plancher chamando-o de corcunda, o que significava, no vocabulário político, ser partidário do
despotismo” (FUTATA e MIZUTA: 2008).
104
51
A influência de Guizot no publicismo brasileiro foi referida por Rodrigues (2012).
52
Conforme o verbete GUIZOT, François do Dicionário de Obras Básicas da Cultura Ocidental,
disponível em http://www.videeditorial.com.br/dicionario-obras-basicas-da-cultura-ocidental/f-g-h-
i/guizot-françois.html. Acesso em 14/04/2004.
105
Portanto, não se deve considerar apenas o peso das figuras centrais de D. Pedro
I, dos irmãos Andrada e dos demais deputados brasileiros que haviam participado das
Cortes Lisboetas, no trabalho constituinte em 1823. Embora essas personagens sejam
tomados pela historiografia brasileira como decisivos nesse processo, deve-se
considerar que ocorre a partir de 1824 uma contínua prática de um novo formato de
publicismo, que passa a ocupar lugar ao lado do publicismo já operado através do
jornalismo.
Interessa aqui salientar que a elite política “coimbrã”, que assumiu a tarefa de
“construção” do Estado brasileiro e da definição constitucional (no plano da regra
jurídica) do Regime Político, estava identificada com o Despotismo Ilustrado português,
defensor da centralização política em torno da Coroa. Os coimbrãos, que formaram um
“partido” durante o Primeiro Reinado, eram chefiados pela antiga burocracia
lusobrasileira, cujos agentes haviam pertencido aos quadros do segundo escalão do
governo de D. João VI (LYNCH: 2010: 27). Portanto, esses agentes defendiam uma
“modernização pelo alto”, com a futura abolição do tráfico negreiro e da escravidão,
isto é, defendiam a subordinação do interesse provincial ao governo central e ao
reformismo imperial, fundada nos princípios da “ordem” e da “autoridade” (LYNCH:
2010: 28).
Uma implicação relevante desse embate político sobre a definição das regras do
Regime Político no plano constitucional foi reforçar o peso dos conhecimentos
jurídicos, favorecendo os “políticos-juristas”, os que podiam se identificar como
“publicistas”, ou seja, como os detentores do conhecimento da “Constituição” e do
“Sistema Constitucional”. Por isso, a figura do “publicista do Direito” adquiriu maior
destaque nesse contexto de “construção do Estado” no Brasil (IGLESIAS: 2001: 124).
Demonstra a prioridade conferida ao “processo constituinte” o fato de que a elaboração
de um projeto de Constituição iniciou no âmbito da Maçonaria, antes mesmo da
Independência em 1822 (LEAL: 2002: 108), sendo posterior a sua apresentação e
109
discussão durante a Constituinte de 1823, por Antônio Carlos de Andrada. Mais ainda,
salienta-se a divergência acirrada entre “coimbrãos” e “brasilienses” no âmbito da
Assembleia de 1823 (LYNCH: 2010: 26), seguida pelo decreto de dissolução da mesma
e da outorga imperial da Constituição de 1824.
54
Esse aspecto é relevante para se detectar o alcance da influência política lusa, revelada pela decisão de
D. Pedro I quanto ao início do processo de organização institucional do novo país. Observe-se que no
decreto de convocação da constituinte brasileira consta que “para a mantença da integridade da
monarquia portuguesa e justo decoro do Brasil” estava sendo convocada “uma assembleia luso-
brasiliense, que, investida, daquela porção de soberania que essencialmente reside no povo deste grande e
riquíssimo continente, constituía as bases sobre que se devam erigir a sua independência, que a natureza
marcara e de que já estava de posse, e a sua união com todas as outras partes integrantes da grande família
portuguesa, que cordialmente deseja” (RODRIGUES: 1974: 25).
55
De acordo com a informação contida na “História Constitucional do Brasil”, do político republicano
Aurelino de Araújo Leal (LEAL: 2002: 108).
112
Neste cenário, tem-se que a ocorrência dos embates de poder intraelites, que tiveram
como desfecho a dissolução da Assembleia Constituinte em novembro de 1823 e a
subsequente outorga da Constituição de 1824 pelo Imperador, aponta para a gravidade
adquirida pelo conflito de interesses e para a importância da necessidade de novos
meios de rearticulação e conciliação política entre as frações da elite situadas nos
diversos postos do poder político e burocrático.
A partir daí, pode-se destacar três fatores que podem ser considerados repercussões
dessa demanda política conjuntural colocada pelo processo de institucionalização do
Estado Nacional ou de “construção da ordem”: primeiramente, a formação de um
mercado editorial com forte presença de livreiros franceses no Brasil a partir de 1824;
em segundo lugar, o começo do investimento de agentes da elite política na produção de
manuais de interpretação constitucional; e, por fim, a criação dos cursos jurídicos em
1827, recaindo na instauração de uma cadeira de Direito Constitucional. Esses fatores
serão analisados mais detidamente no Capítulo 3.
56
Essa indissociabilidade entre a dimensão “prática” e dimensão “teórica” é própria ao universo jurídico.
Essa combinação foi referida por Pierre Bourdieu como a “força da forma”, uma vez que tanto a doutrina
jurídica quanto o procedimento judicial aspiram à universalidade (2006: 243). Também Tereza Cristina
Kirschner faz alusão ao poder dos “doutrinadores” quando descreve o foco de resistência às reformas do
ensino jurídico na Universidade de Coimbra encampada pelo Marquês de Pombal: “Nesse contexto, as
mudanças propostas na reforma do direito não seriam viáveis apenas por um ato de vontade política.
Dependiam também de uma mudança profunda do estilo de trabalho dos juristas, para os quais as leis, até
então, submetiam-se a um sistema de princípios jurídicos doutrinais e jurisprudenciais, produto de um
saber corporativo ciosamente defendido. A ciência jurídica tradicional não se amparava em um corpo de
leis, mas sim em um corpo de doutrina – o sistema dogmático da tradição romanística -, nomeadamente as
obras de Bartolo e seus seguidores. A argumentação jurídica partia da autoridade daqueles juristas, do
cotejo de opiniões, da invocação de precedentes jurisprudenciais e da utilização das formas de raciocínio
particulares a esse fim” (KIRSCHNER: 2009: 28).
113
Verifica-se, em face disso, que tal processo de mobilização local implicou nos
usos de termos e ideários europeus, possibilitando novas apropriações locais e usos
nativos, que foram projetados no cenário brasileiro a partir das lutas emancipacionistas.
No caso do Brasil, essa mobilização ligou-se, portanto, ao molde da estrutura social
colonial e escravista, influenciada, então, pelos movimentos europeus e pela
desagregação do Império Português, com seus consequentes reajustamentos
econômicos, sociais, culturais e políticos58.
57
Quanto a essa apropriação liberal do termo, releva frisar que: “O triunfo do liberalismo ganhou forma
nos jornais e folhetos, por meio de um instrumento que realizava, na prática, esse ideário político: a
Constituição. Símbolo da Regeneração vintista iniciada em 1820, a palavra exprimia o anseio político de
todos os membros das elites política e intelectual, tanto do Brasil, quanto de Portugal. “Cortes e
Constituição” foi o grito dos portugueses que ecoou por todo o mundo luso e retumbou em terras
brasileiras. A Constituição, a Lei Fundamental de um povo, devia ser elaborada por uma Assembleia
composta de representantes da Nação, no caso, as Cortes Gerais e Extraordinárias de 1821 e, mais tarde,
no Brasil, pela Assembleia Legislativa e Constituinte de 1823” (NEVES: 2003: 148).
58
O cenário brasileiro de 1821 apresentava essa tensão e incerteza quanto aos destinos do Brasil.
Conforme refere Teresa Cristina Kirschner: “Enquanto os debates e as tentativas de acordo sobre a
questão do Brasil no contexto do império português prosseguiam em Lisboa, a notícia do movimento
constitucionalista agitava o Rio de Janeiro. A partir da liberação da imprensa promulgada nas bases da
constituição portuguesa em março de 1821, vários periódicos e folhetos, contendo diferentes versões
sobre os eventos políticos, começaram a circular na capital. Novas tipografias, como a Nova Oficina
Tipográfica e a Tipografia do Diário, surgiram na cidade. Nelas imprimiam-se os periódicos e panfletos
que comentavam a nova situação em Portugal (KIRSCHNER: 2009: 201).
115
Portanto, estas novas armas de combate político não podem ser adequadamente
analisadas sem se levar em conta sua inserção no “todo” da vida social do Brasil, o que
conduz a uma perspectiva sócio-histórica de longa duração (BRAUDEL: 2013:48;
BURKE: 1997: 55), por ser esta o viés que permite indagar-se sobre a repercussão
intergeracional de padrões de práticas sociais sobre formas de intervenção observadas
em contextos posteriores. Esse eixo de análise sócio-histórica permite problematizar a
reprodução não apenas das estruturas sociais, mas das formas de intervenção e
construção de sentidos do social60. Nesta ótica, o cenário do Brasil Império pode ser
60
Relevante frisar que o interesse por abordagens de processos sociais (longa duração) existiu tanto da
parte da História quanto da Sociologia, refletindo o interesse em fenômenos não situados apenas dentro
da perspectiva conjuntural, ocorrencial, do presente ou do “tempo curto”. Essa vertente da História e das
Ciências Sociais possibilita, portanto, investigar objetos em dimensão inter-geracional e estrutural. Neste
sentido, é elucidativa a definição de Fernand Braudel: “Por estrutura, os observadores do social entendem
uma organização, uma coerência, relações bastante fixas entre realidades e massas sociais. Para nós,
historiadores, uma estrutura é sem dúvida, articulação, arquitetura, porém mais ainda, uma realidade que
o tempo utiliza mal e veicula mui longamente. Certas estruturas, por viverem muito tempo, tornam-se
elementos estáveis de uma infinidade de gerações: atravancam a história, incomodam-na, portanto,
comandam-lhe o escoamento. Outras estão mais prontas à se esfacelar. Mas todas são, ao mesmo tempo,
sustentáculos e obstáculos. Obstáculos, assinalam-se como limites (envolventes, no sentido matemático)
dos quais o homem e suas experiências não podem libertar-se. Pensai na dificuldade em quebrar certos
quadros geográficos, certas realidades biológicas, certos limites da produtividade, até mesmo, estas ou
aquelas coerções espirituais: os quadros mentais também são prisões de longa duração” (BRAUDEL:
118
3.1 O cenário Imperial: mudanças estruturais e novas armas para o jogo político
Por tal razão, se pode considerar que o publicismo, nos moldes em que até então
vinha servindo como meio de embate entre ideários políticos através dos jornais e
panfletos, não seria nem suficiente, nem mesmo o mais adequado para atender aos
interesses das elites políticas, sobretudo as frações mais diretamente encarregadas da
tarefa de legitimação do regime: os políticos que se aglutinam em torno da “Trindade
Saquarema” e formam o Partido Conservador, em 1837.
Nesta ótica, não seria com base em uma autoconsciência de sua “missão” como
“dirigente do povo” por parte das elites políticas que se poderia explicar por que o
2013: 50).
119
Um fato que ilustra essa percepção por parte dos mais próximos ao Imperador
foi o conjunto de medidas repressivas à imprensa adotadas por José Bonifácio e seu
grupo de apoio, após o 7 de setembro, repercutindo a crise entre estes e os “liberais” do
Rio de Janeiro, como Gonçalves Ledo e Januário Barbosa, que criticavam o curso da
política da Corte, levando à decretação da censura. As ações como o fechamento de
jornais e a prisão de mais de trezentos indivíduos que atuaram como militantes do
movimento da Independência repercutiram até mesmo em Pernambuco, onde contra as
quais se manifestou o ativista político Frei Caneca (MELLO: 2001: 40).
61
A Independência não assegurou a estabilidade política do Império. O contexto que abrange o Primeiro
Reinado e o Período Regencial (1822-1840) pode ser considerado um cenário de profunda instabilidade
política, de “flutuação”, de rebeliões e de ausência de consenso sobre as linhas que deveriam ser adotadas
na organização do Estado (FAUSTO: 2006: 79).
62
Uma linha dominante na historiografia brasileira repercute essa representação social que consiste em
considerar os políticos-bacharéis do Império como uma elite de “juristas”. José Honório Rodrigues
exemplifica essa percepção quando indica quem foram os “grandes juristas” que atuaram na Assembleia
de 1823: José da Silva Lisboa, Joaquim Carneiro de Campos, seu irmão Francisco Carneiro de Campos,
Luís José Carvalho e Melo e Antonio Luis Pereira da Cunha (RODRIGUES: 1974: 273).
63
Quanto às categorias ocupacionais presentes na composição da Assembleia Constituinte de 1823, tem-
se referência à inserção de dezesseis padres, dois matemáticos, dois médicos, dois funcionários públicos,
sete militares, sendo a maioria de bacharéis em Direito, como juízes e desembargadores. O recrutamento
dessas duas últimas categorias para o trabalho constituinte teria gerado uma situação atípica: a falta de
juízes nos tribunais, o que teria obrigado a Assembleia a recomendar ao Imperador o provimento de suas
vagas (RODRIGUES: 1974: 28).
121
Por este viés, a manutenção da liberdade de imprensa, embora já fosse vista como
um dos pilares do “liberalismo” e do “governo constitucional”, combinada com a
64 64
Foi um Conselho de Estado criado em 13 de novembro de 1823, composto por dez ministros, a
estrutura que formalizou o grupo os políticos incumbidos de elaborar o novo projeto de Constituição.
Entre eles estava Carneiro de Campos, apontado como o principal autor da obra (BARRETO: 2010: 287).
122
Por isso, é relevante destacar que a participação social, que era mais ampla e difusa
na mise-en-scène do vocabulário “constitucional” que presidiu o tratamento das
questões políticas pelo jornalismo e panfletismo na Independência, contrasta,
substancialmente, com o tratamento de “questões políticas” enquanto “questões
constitucionais”, o que passou a ser, a partir da Independência nacional, não uma
função da elite política em geral, mas sobretudo uma tarefa própria aos “juristas”.
65
A posição de Ângela Alonso negligencia completamente a dimensão da produção de literatura jurídica
durante o Império, inclusive não dotando a “Constituição” de 1824 de significação política. Seu
entendimento nega politicidade ao plano das obras jurídicas. Ele corresponde, portanto, a uma adesão ao
ponto de vista do Direito, cioso da autonomia absoluta do enunciado e das formas jurídicas em relação ao
peso dos constrangimentos sociais e políticos, tratados sempre como “externos” (BOURDIEU: 1986).
Segundo a socióloga: “O status quo imperial esteve mais representado em modos de pensar e agir do que
em doutrinas explicitamente formuladas. O Império não contou com um texto de fundação. Seus
princípios básicos estão na lei de Interpretação do Ato Adicional de 1841, que não toma mais que duas
páginas. Os valores estavam encarnados nas próprias práticas políticas” (ALONSO: 2002: 52).
124
Daí vem sua eficácia na dissimulação das tomadas de posição política, sejam
elas apologéticas ou contestatórias da ordem. Os manuais de “interpretação
constitucional” representam, portanto, muito mais do que uma via de expressão da
“doutrina jurídica”, mas uma importante arma no jogo político, porque oferecem ao
agente um trunfo de peso: a possibilidade de fazer política ofuscando sua orientação
ideológica e engajamento político (e no caso Imperial, seu vínculo partidário), pela aura
de cientificidade modelada pela linguagem jurídica.
66
“(...) Se todas as análises de Ciência Política estão de acordo em apresentar o Direito, e em particular o
direito constitucional, como uma das linguagens da legitimidade política, elas geralmente guardam
silêncio sobre as condições, simultaneamente práticas e cognitivas, da formatação jurídica das atividades
125
Nesta linha, se pode situar o caso dos textos doutrinários de Frei do Amor
Divino Caneca sobre o Projeto de Constituição de 1824. Sua produção de “interpretação
constitucional”, ainda que pela via jornalística, ilustra não simplesmente uma
contestação política a mais na história do Império, mas a mobilização da elaboração
teórica na forma de “interpretação constitucional” para expressar uma posição de
oposição ampla ao Regime ali formalizado. O constitucionalismo de Frei Caneca
representou, politicamente, a versão mais dominada expressa na forma de “interpretação
constitucional” no Oitocentos.
Formado pelo Seminário de Olinda, Frei Caneca era reconhecido pelo alto grau
de erudição (MELLO: 2001: 11), mas seu posicionamento político contestador do
Regime moldado a partir de 1822, e a ausência de uma formação em Direito são fatores
que contribuíram para afastá-lo do espaço dos “intérpretes da Constituição”. O recurso
ao publicismo pela Imprensa não indica apenas a menor familiaridade com a elaboração
de “obras jurídicas”, como os “manuais” de direito, mas o uso do periódico “Typis
Pernambucano”, por ele mesmo fundado, neste caso, aponta a sua posição periférica, no
plano regional, e dominada no cenário político, cujas elites se situavam no sudeste,
principalmente em torno da Corte.
Embora os textos de Frei Caneca estejam, atualmente, inseridos nas listagens dos
dicionários de obras políticas produzidas no período monárquico (PRADO: 2012), eles
não constam nas referências que remetem à “bibliografia” classificada como de “Direito
Público e Constitucional” publicadas durante o Império67. Essa exclusão expõe a
estratégia de demarcação das fronteiras do grupo autorizado a falar em nome da
Constituição, ou mesmo a criticá-la, porém dentro dos limites circunscritos pela fração
dos homens políticos dominantes.
68
Para exemplificar outro caso em que se recorreu à apropriação do passado e à recontagem da história
com fins de apropriação política ver a análise de Luiz Alberto Grijó sobre os políticos do Partido
Republicano Rio-Grandense (GRIJÓ: 2010).
128
se utilizar do exercício da força física” (BOURDIEU: 1986: 3). A “lógica interna das
obras jurídicas”, na medida em que “delimita o espaço dos possíveis” ou o “universo
das soluções propriamente jurídicas”, é um fator essencial para o alcance desse poder
simbólico do Direito (BOURDIEU: 1986: 4).
O que se infere dessa abordagem, é que como prática ligada ao poder de Estado,
a interpretação jurídica é ao mesmo tempo uma causa e um efeito político, o que fica
mais nítido no caso da !interpretação constitucional”. Portanto, o peso desse tipo de
intervenção política em uma sociedade e contexto determinados depende da existência
de certas condições sociais e históricas.
Assim, o grau de assimilação dessa crença pelo meio social e político dependem
do processo histórico formador do poder estatal que explica a importância conferida ao
trabalho doutrinário exercido pelos juristas. Desta forma, a autoridade dos juristas pode
ser entendida como resultante da afirmação do domínio político, que se utiliza da força
simbólica do Direito. Esta, por sua vez, se assenta sobre o acúmulo de diversos capitais
sociais pelos juristas agentes, que em conjunto são percebidos como sua “vocação” e
129
sua “competência” para explicar o sentido legítimo das regras jurídicas. Isto garante que
aquilo que é herdado e adquirido possa ser visto como fruto de aptidão natural. Esses
são os efeitos de naturalização e universalização, próprios ao Direito, na medida em que
não colocam o problema de sua legitimidade (BOURDIEU: 1986: 5).
A partir daí tem-se uma questão relevante para a compreensão dos usos políticos
dos manuais de doutrina constitucional no Brasil Império: a interpretação jurídica des-
historiciza a regra, ou seja, faz com que o texto legal não se apresente mais como
produto de uma relação de força política circunstancial, mas como fruto da necessidade
e da incontestabilidade. Deste modo, o discurso jurídico do legislador anônimo é
distinto do discurso político dos parlamentares (Idem).
Assim, no caso do Brasil Monárquico, esse viés analítico deve ser relativizado,
pois a realidade social estava moldada pelas formas culturais, sociais, econômicas e
políticas herdadas do sistema colonial escravista, na qual não havia um campo ou
espaço jurídico de fronteiras nitidamente definidas. Não havendo um ambiente
69
Verifica-se que os juristas encarregados da elaboração teórica do Direito procuram apresentar-se a si
próprio como “cientistas do Direito” e a doutrina como resultante de pesquisas científicas, tendo sempre
por fim o aperfeiçoamento do Direito, estando por isso, em condições de emanar noções imunes aos
constrangimentos e pressões do mundo social (DEZALAY: 1993: 232).
132
70
Conforme a historiadora Lúcia Neves: “Uma nova linguagem política, estruturada sobre os princípios
básicos da Ilustração portuguesa, veio à tona no Brasil após a eclosão do movimento do Porto de 1820.
Esse vocabulário traduziu-se na produção editorial que alcançou um grande impulso com a publicação
dos folhetos, panfletos e periódicos da época. Ao longo do ano de 1821, os escritos, que documentam esse
ideário esclarecido, pautavam-se em dois conceitos opostos que definiam a cultura política luso-brasileira:
de um lado, o de despotismo e, de outro, o de liberalismo/constitucionalismo. Esses conceitos
englobavam um conjunto de palavras que anunciavam princípios, definiam direitos e deveres do cidadão,
ilustrando aquilo que os indivíduos do passado acreditavam estar transmitindo através de suas
mensagens” (NEVES: 2003: 119).
133
71
Saliente-se a questão da posse de capital cultural e de capital político, indicando que essa “nova elite”
de políticos constituiu-se de herdeiros do poder colonial, não sendo nem nova, nem inexperiente. Esse
aspecto foi levantado por Emília Viotti da Costa: “Não se tratava de homens inexperientes que
enfrentavam pela primeira vez problemas relacionados com política e administração. Eram, na sua
maioria, homens de mais de cinquenta anos, com carreiras notáveis de servidores públicos, que haviam
desempenhado vários cargos a serviço da Coroa portuguesa durante o período colonial e, por isso,
estavam bem preparados para levar a cabo a sua missão” (COSTA: 2010: 133).
134
Nome Ano de Local de Local e ano de Cargos Públicos e/ou Postos políticos
nascimento nascimento Graduação ocupados
José Maria de 1798 Lisboa Universidade Lente de Direito Natural no curso jurídico
Avelar de Coimbra; de São Paulo durante 44 anos (1827 a 1871);
Brotero
Ano: não
identificado. Conselheiro do Imperador D. Pedro I.
Fontes: Alecrim (2011); Barreto e Paim (1989); Blake (1899); Junqueira (2011); Sítio do Portal do
Supremo Tribunal Federal (www.stfjus.br), acesso em 27/08/2013; Sítio do Centro de Documentação do
Pensamento Brasileiro (www.cdpb.org.br), acesso em 27/08/2013; http://www.e-
biografias.net/jose_alencar/, acesso em 27/08/2013;
http://familytreemaker.genealogy.com/users/p/o/Sergio-R-Porto-Rio-de-Janeiro/FILE/0004text.txt,
(acesso em 29/10/2013).
Detecta-se a partir dessa amostra que aos agentes que investiram em publicismo
jurídico via manuais ostentam alto índice de inserção burocrática, sobretudo na
magistratura, combinada com o exercício de mandatos parlamentares, havendo um caso
de participação na Assembleia Constituinte de 1823. Trata-se, portanto, de um conjunto
de agentes formados no modelo jurídico coimbrão, na época em que emanava a
orientação reformista-moderada, monarquista e politicamente centralizadora, que se
tronaram características da cultura lusobrasileira, já anteriormente discutidas.
Esse traço é reforçado pela amostra de trajetórias dos novos publicistas, ativos a
partir de 1824, pois sua acumulação de postos situava-se nos espaços mais próximos ao
Chefe do Executivo e titular do Poder Moderador. Esse fator deve ser ponderado ao se
analisar suas produções simbólicas, os manuais de “interpretação constitucional”, isto é,
ao situar as tomadas de posição eufemizadas em definições normativas da
institucionalidade política, produzindo as novas “questões constitucionais” do período.
Assim, o cenário que iria se delineando após a ruptura com Portugal, herdou,
138
partir da segunda metade do século XIX é que iria ascender uma nova geração de
juristas publicistas, já formados nas escolas brasileiras.
73
O próprio subtítulo da obra de Octacílio Alecrim (2011) “influencias francesas” refere a essa
representação do período monárquico como a do predomínio do publicismo francês.
140
74
A noção de “círculos de poder” foi apresentada por Roderick Barman e Jean Barman (1976), que
apontam a existência de três espaços: um círculo mais restrito abrangendo a família imperial, o Conselho
de Estado, o Conselho de Ministros e o Senado; um círculo médio representado pelos membros da
Câmara dos Deputados, o Alto Comando das Forças Armadas, a Suprema Corte de Justiça, os presidentes
de províncias e os eleitos para o Senado em listas tríplices; e o último círculo, que abrangeria os juízes, os
presidentes de províncias de menor importância e os deputados substitutos. Conforme Barman e Barman
apud LIMA e LOPES FILHO: 2010: 6.276).
141
75
Como é ilustrativo o caso do lusobrasileiro e católico José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairú, mais
citado pela autoria de obras econômicas de teor liberal, mas que publicou em 1824 e 1825,
respectivamente, dois volumes de um manual de doutrina constitucional intitulados: “Constituição moral
e deveres do cidadão com exposição da moral pública conforme o espírito da Constituição do Império” e
“Suplemento à Constituição moral, contendo a exposição das principais virtudes e paixões e Apêndice das
máximas de La Rochefoucauld e doutrinas do cristianismo”, ambos pela Typographia Nacional.
142
Princípios de 1837
direito publico
universal: analyse
de alguns" São Paulo
paragranhos de Não
Watel. identificado
Filosofia do Direito
Constitucional Não Identificado Não Identificado Não
Identificado
Suplemento à 1825
constituição moral,
contendo a
exposição das
principais virtudes e
paixões e Apêndice
das máximas de La
Rochefoulcald e
doutrinas do
cristianismo
José Paulo de Figueroa Diálogo 1827 Rio de Janeiro Imp. Tip. De
Nabuco de Araújo constitucional Plancher
brasiliense
Lourenço José Ribeiro Análise da 1829 Pernambuco Manuscrito
Constituição Política
do Império do Brasil
Silvestre Pinheiro Observações sobre a 1831 Paris Of. Tipog. De
Ferreira Carta Constitucional Casimir
do Reino de Portugal
e a Constituição do
Império do Brasil
José Cesário de A Questão das 1832 Rio de Janeiro Imp. Tip. De
Miranda Ribeiro Reformas da Pancher
Constituição do
Império na
Assembléia
143
Legislativa;
Exposição 1822 Rio de Janeiro
Justificativa do
Procedimento do
Deputado José
Cesário de Miranda
Ribeiro sobre a
questão das
Reformas da
Constituição do
Império na
Assembléia Geral
Legislativa
Pedro Autran da Mata Constituição Política 1842 Não encontrado Não encontrado
Albuquerque do Império
Francisco de Paula Breves Reflexões 1854 Paris Tip. De W.
d’Almeida e Retrospectivas, Remquet C.
Albuquerque Políticas, Morais e
Sociais sobre o
Império do Brasil
Fontes: Alecrim (2011); Blake (1899); Dutra (2004); Mattos (1997); Prado (2012).
A amostra também indica a forte presença dos editores franceses no Brasil, bem
como a existência de dois agentes com publicação de doutrina no exterior, sendo ambas
em Paris. Esse dado permite deduzir as condições de relativa aproximação entre o
constitucionalismo brasileiro e a doutrina francesa, confirmando a percepção da
influência francesa no ideário “jurídico” desse período.
No caso de José da Silva Lisboa está ilustrado de modo nítido o uso político
“conservador” da “interpretação constitucional”, em que se verifica a explícita relação
entre política e fé católica, apresentada na forma de um manual jurídico voltado para a
elaboração da Moral Constitucional. Sua produção jurídico-doutrinária, editada em três
volumes, somada a mais um volume de adendo, publicados entre 1824 e 1825, Silva
Lisboa desenvolve sua “interpretação constitucional” intitulada de “Constituição Moral
76
Segundo Venâncio Filho, o Lente de Olinda Lourenço José Ribeiro: “escreveu trabalhos inéditos,
explicando as lições de Direito Constitucional”. Venâncio Filho enfatiza esse efeito de promoção
doutrinária do valor da Constituição sobre as divisões partidárias radicalizadas existentes em
Pernambuco, citando Carlos Honório de Figueiredo: “desse insano trabalho, imensa vantagem resultou
não só a seus discípulos (como eles diziam) como também a toda a Província, porque era a Constituição
ali mal olhada pelos dois Partidos, que então a retalhavam. Os absolutistas a desprezavam, receando que
pela sua demasiada franqueza, viesse a degenerar em um Governo republicano e os republicanos a
detestavam por causa do Poder Moderador, que considerava hostil às liberdades públicas e um
despotismo encoberto. As lições do Desembargador Ribeiro os enganaram em excelente erro, muito mais
quando, transcritos nos seus periódicos, correram toda a Província. E foi então que se formou o grande
Partido Constitucional, que é hoje o maior e mais forte de toda a Província” (VENÂNCIO FILHO: 2005:
43).
145
77
Exemplifica esse tipo de dedicatória, o livro de Silva Lisboa: “À SUA MAGESTADE IMPERIAL O
SENHOR D. PEDRO I. A principal Honra, que os sábios da antiguidade tributarão aos Fundadores dos
Impérios, teve por motivo a consideração de estabelecerem a Moralidade Nacional como a Solida Base do
Edifício Político. O immortalLyrico amigo de Augusto bem o advertia, que as mais sãas Leis do Império
Romano se constituirão vãas sem bons costumes do Povo. Sendo objecto de geral censura a decadência da
Moral Publica , pelo contagio da infidelidade, propagado nas Revoluções de ambos os Hemispherios, he
digno do GRANDE CARACTER de VOSSA MAGESTADE IMPERIAL o Dar Patrocínio aos estudos
das doutrinas que podem contribuir a formar Cidadãos de Heróico Espirito Publico, e ao mesmo tempo
excitar, virtuosa emulação nos Engenhos Brasileiros, para com seus escriptos e exemplos darem credito
ao Império do Brasil em tão importante repartição dos conhecimentos humanos. Eis, Senhor, a razão
porque me animei a supplicar a VOSSA MAGESTADE IMPERIAL a Mercê de Permittir-me que
dedique ao Seu NOME esta synopse literária de huma Sciencia, que deve faze rmui essencial parte da
INSTRUCÇÀO PÚBLICA. José da Silva Lisboa” (LISBOA: 1824).
146
como foi empreendida a reação dos políticos “liberais”, especialmente, no que se refere
à posição dos “históricos”, “exaltados” ou “radicais”, isto é, dos agentes situados em
posições periféricas em relação ao domínio restrito dos homens da Corte e de seus
manuais “conservadores”.
Republicano”
João Silveira de “Preleções de Direito Raynal, Montesquieu, Recife, 1871; Não identificado
Sousa Público Universal” Mably
2ª ed. 1882.
José Soriano de “Apontamentos de Referências sobre a Recife, 1883 Não Identificado
Sousa Direito parte costumeira do
Constitucional” Direito constitucional
Inglês
Tobias Barreto “Responsabilidade Sistema Parlamentar Local Não Não Identificado
dos Ministros no Inglês Identificado
Governo
parlamentar”; Período: 1871-1882
“A Questão do Poder
Moderador”
“Programa de Direito
Público Universal”
Fonte: Alecrim (2011).
O quadro indica, apesar das lacunas nos dados disponíveis sobre as editoras, a
ocorrência de uma estratégia de contestação do Regime Monárquico ligada ao cenário
pernambucano, ao buscar nas traduções de publicistas estrangeiros uma fundamentação
não só comparativa com o modelo político brasileiro, mas indicativa de que esse
modelo não era o único possível, revelando-se o arbitrário da escolha. Deste modo,
pode-se verificar que esse recurso representou um canal viável para a veiculação de
“modelos constitucionais” diversos do brasileiro, como os “presidencialistas”,
“federalistas” e “republicanos”, o que era uma forma de colocar em questão a
legitimidade do modelo político monárquico e centralizado, que adentrou também pelo
Segundo Reinado (1840-1889).
Nota-se, ainda, que a partir de 1870 tem-se sete obras traduzidas, sendo uma
148
78
Esse Movimento político de caráter reformista, e não revolucionário, também teve uma dimensão
intelectual, na qual os diversos grupos de agentes empregaram a estratégia de produção simbólica e
mobilização de repertórios de política científica, formulando os esquemas explicativos da sua crítica ao
sistema imperial. No entanto, como se pode verificar no Anexo 2 da obra de Ângela Alonso, na extensa
produção teórica dos diversos grupos que integraram esse Movimento, o formato de manuais de
“interpretação constitucional” praticamente não aparece, com exceção de apenas três publicações: de
Tobias Barreto (1871), Anfriso Fialho (1885) e Francisco Antônio Almeida (1889), cujos títulos invocam
a crítica aberta ao Regime Monárquico e a necessidade de uma nova constituinte. Isto reforça a percepção
de que os manuais estiveram mais identificados com a elite política defensora da ordem. Ver Alonso
(2002: 356).
149
79
Octacílio Alecrim fez alusão a essa problemática ao informar que: “Com efeito, o ensino do “Direito
Constitucional” precondicionado à análise estrita da Constituição de 1824 significava obviamente uma
diretiva interessada, porque importava em “reduzir” a matéria ao campo de um documento escrito
qualificado como “constituição”, representativo de uma forma-tipo de governo, contra a qual
naturalmente não deveria prevalecer nenhuma ideia de evolução” (2011: 62).
150
desde a década de 1830 até o final do Regime remete, portanto, às estratégias de lutas
intraelites, em face da desigualdade regional e não apenas frente à hierarquia existente
entre os Partidos Políticos (“luzias” e “saquaremas”) (MATTOS: 1987: 132). A
orientação doutrinária majoritária dos manuais produzidos na Corte foi conservadora e
também se ligou à doutrina francesa, porém sustentando a identificação entre a posição
centralista e a defesa “nacionalista” da Constituição de 1824. Esse uso político serviu,
inclusive, para a legitimação da Lei de Interpretação do Ato Adicional de 1834, posta
em vigor em 1841.
80
Veja-se a biografia e amostra de títulos publicados por Tobias Barreto disponível no sítio do Centro de
Documentação do Pensamento Brasileiro (CPDOC).
151
81
Verifica-se que essa relação entre a demanda de legitimação do Regime político e o potencial simbólico
do trabalho teórico dos juristas foi uma dimensão relevante do publicismo nesse período, como ressalta
Alecrim: “Para os legisladores e ministros do Império, até Franco de Sá, havia portanto o propósito
manifesto de se fazer do ensino do direito constitucional nas duas Faculdades de Direito existentes no
país uma espécie de análise puramente formal da carta política “outorgada”, e, consequentemente, uma
exegese intencional do regime político imobilizado no texto” (ALECRIM: 2011: 62).
82
Há referência em torno dessa questão, como se pode constatar pelo comentário de Octacílio Alecrim:
“Ademais, os estudos de direito constitucional fora das Faculdades já a esse tempo não eram mais feitos
através dos “livros” indicados pelo livreiro imperial Plancher...; Pimenta Bueno consultava em São Paulo
publicistas estrangeiros como Delome, Blackstone e Lajounais; Nabuco, entrava em intimidade com A
Constituição Inglesa de Bagehot entre as “novidades” da Livraria Lailhacar, no Recife; e no cafundó de
Escada, Tobias Barreto traduzia e comentava Gneist, professor na universidade de Berlim” (ALECRIM:
2011: 63).
152
Mas tal processo de mudança não significava que o Segundo Reinado iniciasse
em um quadro de vazio legal e institucional, pois apesar da Abdicação de D. Pedro I em
face da Revolução de 7 de abril de 1831, já havia estado em vigor, outorgada, a
Constituição de 1824. Seu texto assegurava, no plano institucional, a Monarquia, o
Poder Moderador, a Câmara Temporária, o Senado vitalício e o Conselho de Estado, ou
seja, moldava a centralização política pela formalização do regime na regra jurídica
(BRASILIENSE: 1979: 17).
dos anos 30, como o Código Criminal de 1832 e o Ato Adicional de 1834, somada aos
movimentos revolucionários do período regencial (1831 – 1840) foram os fatores que
motivaram a fundação dos dois partidos que se mantiveram dominantes na vida política
até o final do Império (CARVALHO: 2006: 204). Os partidos políticos surgiram,
portanto, a partir de um cenário de “crise” e instabilidade política, aspecto que necessita
ser enfatizado de modo a se compreender que a década de 40 do século XIX não
representou um período de passividade e previsibilidade política, mas de desafio às
elites políticas no sentido de encontrar estratégias eficazes para apaziguar ou, ao menos,
controlar os níveis das disputas que já haviam iniciado na década anterior e assumido
caráter violento.
Esta última posição atentava contra o próprio regime instituído, que era a
Monarquia, restando como viável somente em uma via de ação camuflada, por ser
contra a “ordem”, “inconstitucional”, uma espécie de “impossível político”, isto é, ao
republicanismo (e até certo momento, ao abolicionismo) só restava a ação
“revolucionária”. Desta forma, os Partidos Conservador e Liberal representavam os
únicos “admitidos” para a ação política, pelo menos até fins da década de 60. Ambos
não colocavam em questão a forma monárquica do regime, semelhança que auxilia a
explicar o fato de ser comum a passagem de políticos de um campo para o outro
(FAUSTO: 2006: 98).
155
Segue-se a orientação de que se houve diferenças, por outro lado houve também
semelhanças entre os “luzias” e os “saquaremas”. No entanto, a dimensão importante
que não pode ser desprezada é aquela que aponta não apenas as distinções e ou as
similitudes, mas sobretudo a hierarquia política entre ambos. Isto porque somente por
este viés se pode verificar as condições em que foram mobilizadas estratégias e recursos
para a manutenção da posição de superioridade política do Partido Conservador
(MATTOS: 1987: 128) e o modo como buscaram enfrentar essa supremacia os agentes
do campo liberal. É neste viés que se pode inserir a produção de manuais de
“interpretação constitucional” durante o Segundo Reinado.
87
Para essa questão, ver Carvalho (2006: 202). Também Ilmar de Mattos aponta que com argumentos
diferentes, Oliveira Vianna, Caio Prado Jr., Maria Isaura Pereira de Queiroz e Nestor Duarte afirmam ser
apenas aparente a distinção entre os partidos conservador e liberal (MATTOS: 1987: 130).
88
Para Mattos seria o caso de João Camilo de Oliveira Torres, Fernando de Azevedo, Manoel Maurício
de Albuquerque, Azevedo Amaral, Raymundo Faoro e José Murilo de Carvalho (MATTOS: 1987: 131).
156
Em 1834 foi aprovado o Ato Adicional à Constituição, que ficou muito aquém
do Programa Liberal de 1831, mas suprimiu o Conselho de Estado. Esse momento
marca a fase das Regências, sendo a primeira delas encabeçada pelo “liberal” Diogo
Feijó, que renunciou em 1837 pela falta de apoio parlamentar. Com a renúncia do
Regente, iniciava um “levante” de parlamentares a defender que o obstáculo à “ordem
política” e à “paz social” consistia no próprio Ato Adicional de 1834 (BRASILIENSE:
1979: 21). Desta forma, era necessário “interpretá-lo”, isto é, reduzir seu alcance.
Este aspecto é muito elucidativo para esta abordagem, pois permite, por
exemplo, situar o funcionamento das duas Escolas Jurídicas, criadas em 1827, dentro do
panorama histórico marcado por essas características: o avanço de uma dominação
conservadora e a reação da posição dominada, em que se situavam como oposicionistas
os “liberais”. Também permite observar os percursos dos agentes e o teor de seus
manuais de “interpretação constitucional” dentro desse enquadramento, buscando
identificar as posições alinhadas com o “saquaremismo” e os usos identificados com a
contestação “liberal”.
Tendo isto em vista, entende-se que desde a formação das primeiras turmas
graduadas em Direito no Brasil, a partir de 1832, uma parte da elite de bacharéis seria
recrutada para a tarefa de mobilização do poder simbólico em defesa do Regime
Imperial. O discurso jurídico era bastante adequado para esse fim. Este ponto é
relevante porque permite verificar os padrões de mobilização dos manuais diante dessa
159
disputa, ainda que no interior desses dois partidos não houvesse consenso, identidade de
origem social, nem homogeneidade ideológica89.
89
Como a distinção “interna” ao campo liberal que os distinguia em: liberais “históricos”, liberais
“moderados” e liberais “radicais” (quase republicanos). Para essas distinções, ver Brasiliense (1979).
90
Esse aspecto foi também salientado por Guedes: “Sendo a doutrina um Discurso Científico, obedece às
normas para trabalhos científicos, firmando teorias ou estabelecendo interpretações sobre a ciência
jurídica; dessa forma, desenvolvendo uma reflexão contínua. Tem como premissa a atividade de fazer
persuadir. As marcas são aquelas utilizadas para construir a própria imagem dentro dos padrões
necessários para ser legitimada. Assim, podemos admitir que os discursos doutrinários existem com a
finalidade de descrever certa situação, como uma reflexão científica, mas acabam tendo outra finalidade
na medida em que servem para elucidar dúvidas, sendo citadas na lógica da argumentação do discurso
decisório. Por conseguinte, a doutrina acaba por adquirir natureza prescritiva, pois, ao preencher uma
lacuna na lei, ganha força de lei, tornando-se norma para casos semelhantes” (GUEDES: 2011: 32).
160
4.1 Trajetos dos novos publicistas: a elite “brasileira” e a disputa política pelo
sentido da “Constituição” no Segundo Reinado
Quadro 7 – Amostra de dados biográficos e de percurso dos autores de obras de “Direito Público e
Constitucional” do Segundo Reinado por nome, ano e local de nascimento, ano e local de graduação
em Direito
Nome Ano de Local de Ano e Local de Graduação
Nascimento Nascimento
José Antônio Pimenta 1803 Santos , São Paulo 1832, Faculdade de Direito de São Paulo
Bueno
José Maria Correia de 1833 Campos dos Bacharel em Letras pelo Colégio Pedro II (Rio de
Sá e Benevides Goytacazes, São Janeiro). Doutor em Ciências Sociais e Jurídicas
Paulo pela Faculdade de Direito de São Paulo
José de Alencar 1829 Mecejana, Ceará Faculdade de Direito de São Paulo, 1850.
Paulino José Soares de 1807 Paris, França Iniciou o curso em Coimbra (1823)
Sousa
Graduou-se em 1831 na Faculdade de Direito de
(Visconde do Uruguai) São Paulo.
Fontes: Alecrim (2011); Blake (1899); Dutra (2004); Prado (2012). Sítio do Portal do Supremo Tribunal Federal
(www.stfjus.br), acesso em 27/08/2013; Sítio do Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro
(www.cdpb.org.br), acesso em 27/08/2013; http://www.e-biografias.net/jose_alencar/, acesso em
27/08/2013; http://familytreemaker.genealogy.com/users/p/o/Sergio-R-Porto-Rio-de-
Janeiro/FILE/0004text.txt, (acesso em 29/10/2013).
grupo. A partir do quadro abaixo, se pode verificar dados de percurso, como modo de
identificar a existência de padrão de inserção política.
Zacarias de Góis e Inicia a carreira política no campo conservador em 1840, como Deputado na assembleia da
Vasconcelos Bahia; em 1850 ingressa na Câmara dos Deputados.
1860 – Ruptura com o Partido Conservador e inserção no Partido Liberal.
Lente da Academia Jurídica de Olinda.
José Carlos Fundou com José da Silva Costa, em São Paulo, a Revista Jurídica (1862-73). Em 1863, ainda
Rodrigues como estudante, publicou Constituição política do Império do Brasil.
No âmbito do Jornalismo: Diretor e principal redator do Jornal do Comércio. Em Nova York,
publicou dois jornais em português: o Novo Mundo (1870-9), coadjuvado por Sousa Andrade,
e a Revista Industrial (1878-9). Em Londres, colaborou no Time e no Financial News (1882) e
negociou o primeiro empréstimo provincial ao Brasil, em favor de São Paulo. Regressando ao
Brasil (1890), comprou o Jornal do Comércio, que dirigiu por 25 anos.
Brás Florentino Nomeado professor na Faculdade de Direito do Recife em 1865; Presidente da Província do
Henriques de Sousa Maranhão (1869-1870).
José Maria Correia Foi presidente das províncias de Minas Gerais, de 14 de maio de 1869 a 26 de maio de 1870;
de Sá e Benevides foi Presidenete de Provìncia do Rio de Janeiro, de 1 de junho a 27 de outubro de 1870;
Foi Lente da Faculdade de Direito de São Paulo.
Ensaio sobre o direito administrativo (1862) e Estudo prático sobre a administração das
províncias (1865)
Morreu no Rio de Janeiro, então capital do Império, aos 58 anos.
Fontes: Alecrim (2011); Blake (1899); Dutra (2004); Prado (2012), Simões (1983). Sítio do Portal do Supremo
Tribunal Federal (www.stfjus.br), acesso em 27/08/2013; Sítio do Centro de Documentação do
Pensamento Brasileiro (www.cdpb.org.br), acesso em 27/08/2013; http://www.e-
biografias.net/jose_alencar/, acesso em 27/08/2013;
http://familytreemaker.genealogy.com/users/p/o/Sergio-R-Porto-Rio-de-Janeiro/FILE/0004text.txt,
(acesso em 29/10/2013).
91
Isto porque, como mencionado, o papel político adquirido pelo publicismo jurídico pela via dos
manuais doutrinários não só não implicou o abandono da via jornalística, como não significou menor
relevância da mobilização pela imprensa, sobretudo porque a partir de 1827, essa via jornalística do
publicismo foi encampada pela Imprensa Acadêmica organizada e mantida pelos alunos das escolas de
Direito: “Na imprensa, veiculavam-se grandes modelos de pensamento que conferiam forma à prática
política de defender e de atacar sobre o que se via às voltas do mundo acadêmico: as condições da
agricultura, a vida partidária, a prática eleitoral etc. [...A academia] foi uma verdadeira escola de
costumes. Humanizou o embrutecido estudante proveniente do campo; civilizou os hábitos enraizados
num passado imediatamente colonial; disciplinou o pensamento no sentido de permitir pensar a coisa
política como atividade dirigida por critérios intelectuais” (ADORNO: 1988: 155).
166
José Antônio Pimenta Direito Público 1857 Rio de Janeiro Tip. e Imp. de
Bueno Brasileiro e Análise Jacques
da Constituição do Villeneuve
Império.
Orientação política:
Monarquista e
Conservadora.
Orientação “liberal
progressista”. Não
contestador da
Monarquia.
José Carlos Rodrigues Constituição Política 1863 Rio de Janeiro Ed. Eduardo &
do Império do Brasil Henrique
- seguida do Ato Laemmert
Adicional, da Lei de
sua Interpretação e
de outras. (Tipo de
obra: “Constituição
Anotada”, faz
comentários aos
dispositivos).
Orientação: “liberal
situacionista”, não
contesta a
Monarquia e os
privilégios do
Senado
Orientação política
conservadora,
monarquista,
católico e centralista.
Orientação política
não-identificada.
Analyse da
Não
Constituição Política 1870 São Paulo
identificado
do Império do
Brazil.
Orientação política
conservadora,
monarquista,
centralista.
Orientação política
Conservadora,
monarquista,
centralista,
escravista.
Orientação política:
conservadora
moderada,
monarquista, com
apologia da Const.
de 1824, porém
defendia a separação
do Poder Real do
Poder Executivo.
Orientação política
não identificada
Orientação política
não identificada.
Orientação política;
Liberal. Comparação
entre o sistema
brasileiro e os
sistemas de outros
países.
Orientação política:
não identificada.
Orientação não
identificada.
Orientação
Conservadora.
Orientação
Conservadora,
“saquaremista”,
defesa do Poder
Moderador e da
política
centralizadora.
Orientação política
monarquista e
conservadora.
Como acima referido, a amostra ilustrativa das publicações desse grupo foi
montada a partir do cotejo de referências sobre a produção intelectual das elites
imperiais classificada como “obras jurídicas”. Dentre estas, foram selecionadas as
registradas como pertencentes à área de “Direito Público” ou à disciplina de “Direito
Público e Constitucional” e lançadas durante o período de 1857 a 1888 (ALECRIM:
2011; DUTRA: 2004; PRADO: 2012; BLAKE: 1899).
Por contrastar com a diversidade de origem geográfica dos autores, estes dados
indicam o objetivo político da produção de “doutrina constitucional”, apontando a
ligação desta com suas carreiras profissionais e políticas situadas no Rio de Janeiro,
pois os manuais não foram lançados predominantemente nas duas cidades onde nesse
momento funcionavam os Cursos Jurídicos imperiais: Recife e São Paulo.
Nas condições da sociedade imperial, este fator indica que as referidas obras
foram direcionadas a um público que não era constituído, necessariamente e
imediatamente, pelos estudantes e professores de Direito. Ao contrário, como a Corte
era o centro político do país, este aspecto assinala que a eufemização de questões
políticas reconstruídas como “problemas constitucionais” vinculava-se muito mais às
disputas intraelites, aos “olhares estrangeiros” e às demandas de uma legitimação
“técnica” e “teórica” para as reivindicações das frações rurais e urbanas da Corte e do
sudeste cafeeiro, representadas por esses políticos-bacharéis. Pela localização das
publicações é possível verificar a posição periférica das outras províncias, como
Pernambuco, Bahia, Maranhão. Note-se que muitas sequer aparecem na amostra, como
é o caso do Rio Grande do Sul.
O quadro aponta ainda que houve uma duplicação no “círculo” dos “intérpretes
da Constituição”, acompanhando a urbanização e a formação de bacharéis a partir das
escolas brasileiras. Estes dados também indicam que a elite imperial “brasileira” refletia
um apego ao ideal da “Constituição”, representando sua própria “missão” como a de dar
continuidade à tarefa de erguer o edifício político nacional dentro de um molde
“constitucional”, tomando a apropriação da dimensão jurídico-doutrinária como
estratégia eficaz dessa “missão política”.
Com relação à orientação política dos manuais, relacionada com o percurso dos
agentes, se constata a presença dos integrantes da esfera política, de escalões diversos,
e, em menor número, de indivíduos situados nas academias de Direito de São Paulo e
Olinda (Recife), como: Braz Florentino Henriques de Sousa, José Antônio Pimenta
174
Essa nomenclatura aponta que a criação dos cursos jurídicos obedeceu ao peso da
questão da legitimação do Regime instaurado em 1824, visando-se à reprodução dos
padrões de publicismo que deram sustentação a sua consagração. A existência do novo
espaço acadêmico passaria, assim, a justificar o direcionamento do publicismo para a
modelagem de um conhecimento jurídico específico sobre o regime brasileiro.
177
Assim, também pode ser considerada como uma variável relevante para explicar a
prática do publicismo jurídico a partir de 1824, e que se vincula ao processo de
institucionalização política do Estado brasileiro, o conjunto de iniciativas legais para a
criação e reforma das escolas de ensino jurídico no Brasil. Nesse tema, se destaca a
previsão da cadeira de “Direito Público e Constitucional” nos estatutos do ensino
jurídico do Visconde da Cachoeira, aprovados em 1827, e nas legislações de reforma do
ensino jurídico que surgiram em momentos posteriores.
93
A opinião expressa por Aurélio Wander Bastos em estudo sobre a evolução do ensino jurídico no Brasil
reflete essa percepção: “Ao contrário do que tradicionalmente se supunha, as conclusões mais importantes
sobre o conteúdo geral dos documentos não se referem aos debates sobre a localização das academias –
São Paulo e Olinda (os locais preferidos), Minas, Rio de Janeiro e Bahia (os locais preteridos) -, mas às
contradições teóricas de uma jovem nação que se debatia entre as pressões e prioridades da
institucionalização política e as necessidades de afirmação de uma incipiente sociedade civil, sujeita às
diretrizes institucionais ainda marcadas pelos contornos e confrontos coloniais. Esses cursos, que, aliás,
não surgiram no Brasil destituídos de qualquer significado histórico, representam, inclusive, o
rompimento com as formas físicas e acadêmicas da pressão metropolitana sobre os estudantes brasileiros
que, em Coimbra, buscavam conhecimento e preparo profissional (BASTOS, 1998: 2).
180
Saliente-se ainda, com relação a esse aspecto, a observação de que “até 1850 a
grande maioria dos membros da elite foi educada em Coimbra”, implicando em que o
modelo de ensino coimbrão foi relevante na formação jurídica dos brasileiros, mesmo
após a fundação dos cursos de Olinda e São Paulo em 1827. Em relação ao ensino
jurídico nas Escolas de Direito do Brasil, refere José Murilo de Carvalho que apesar da
concentração regional (Olinda e São Paulo), havia mais uma concentração do que uma
dispersão, em virtude da extensão do reino (CARVALHO: 2006: 82).
Outro aspecto relevante a ser apontado é que “o governo central manteve sempre
estrita supervisão das escolas superiores, sobretudo as de Direito. Diretores e
professores eram nomeados pelo Ministro do Império, programas e manuais tinham que
ser aprovados pelo Parlamento” (CARVALHO: 2006: 83)94.
94
Deve-se frisar, no entanto, o aspecto contraditório salientado por Carvalho, cuja opinião é de que “Esse
conservadorismo contrasta com o comportamento dos que se formaram em outros países europeus,
sobretudo na França, e dos que se formaram no Brasil, aos quais, estranhamente, parecia mais fácil entrar
em contato com o Iluminismo francês. As academias, as sociedades literárias, as sociedades secretas,
formadas no Brasil, e as próprias rebeliões que precedem a Independência exibem quase que
invariavelmente a presença de elementos formados na França ou influenciados por ideias de origem
francesa, os primeiros em geral médicos, os segundos, padres (CARVALHO: 2006: 85).
182
Com base na data e teor dessa Reforma, verifica-se que o retorno à cena do embate
“Análise da Constituição do Império” versus “Direito Público e Constitucional” no
Segundo Reinado indica a persistência do dilema político traduzido para a versão
disciplinar. Manteve-se no currículo a cadeira de “Análise da Constituição do Império”,
que seguiu sendo concebida como “exegese puramente nacional” (ALECRIM: 2011:
61), pois tal era a posição defendida pelos monarquistas ligados a Dom Pedro I, linha de
direção política que seria mantida e reforçada a partir do Segundo Reinado, com um
novo grupo de manualistas, defensores da Monarquia e do poder Moderador, a qual
183
Por isso, tem-se que o referido Decreto n. 1.386, de 28 de abril de 1854, que
instituiu a segunda reforma no ensino jurídico imperial, não apenas estabeleceu a
mudança da denominação “cursos” para “faculdades” e transferiu o Curso Jurídico de
Olinda para Recife, mas também contribuiu para “reformar mantendo” a lógica até
então estabelecida. Isto pode ser detectado pelo fato de que o novo regramento manteve
a sistemática da nomeação imperial dos diretores das faculdades.
Desta forma, na segunda metade do século XIX, quando o ensino sofreu a reforma
de 1854, a questão do regime político voltou a afetar o ensino do modelo constitucional
mais intensamente do que nas disciplinas do “Direito Privado”, indicando a percepção
das elites sobre o potencial de politicidade contido na transmissão do publicismo 96. Nas
duas reformas subsequentes do ensino jurídico brasileiro no século XIX (a Reforma
Franco de Sá, em 1885, e a Reforma Benjamin Constant, de 1891), não houve alteração
95
No tocante à didática da cadeira de Análise da Constituição do Império, os Estatutos do Visconde da
Cachoeira, mandados regular a Lei dos Cursos “naquilo em que forem aplicáveis”, preceituavam, entre
outras, a seguinte receita: “... o Professor (explicará) o direito público pátrio, definindo-o
competentemente, e extremando-o do particular, e regulando-se pelas disposições gerais do direito
público universal, fará aplicação dos seus princípios ao que há de semelhante na legislação pátria, e dará a
conhecer aos seus ouvintes a constituição antiga da Monarquia, e a atual do Império” Grifos do autor.
(ALECRIM: 2011:61).
96
Em 28 de abril de 1854, em consequência do Decreto nº 1.386, os Cursos Jurídicos de Olinda e São
Paulo passaram a se denominar Faculdades de Direito e receberam novos Estatutos, valendo registrar
ainda que foi nesse ano que se transferiu para Recife a Faculdade de Direito de Olinda. Esta reforma,
sendo ministro o Barão e Visconde de Bom Retiro (Couto Ferraz), manteve a cadeira de Análise da
Constituição do Império na concepção primitiva de uma exegese puramente nacional, se bem que tivesse
estabelecido em relação ao Direito Civil Pátrio a necessidade de uma análise e comparação com o
Direito Romano. Grifos do autor. (Idem).
185
Para Venâncio Filho, o movimento teria repercutido como uma “reação científica”,
implicando na ascensão de um “liberalismo cientificista”, sendo que “o cientificismo
reclama também a liberdade de ensino e crê firmemente no poder da concorrência (...)
(VENÂNCIO FILHO: 2005: 76). Atenta-se para o efeito transgeracional dessa
percepção, pois essa forma de organização do ensino jurídico não ficou restrita ao
oitocentos, mas adentra o século XX e o regime republicano, alterando
significativamente o cenário do espaço jurídico brasileiro98.
Portanto, a questão do ensino jurídico e das escolas de Direito não demonstra apenas
a possibilidade de as elites conferirem um feitio científico ao publicismo, contando com
a combinação entre a importação de obras estrangeiras e a produção local de manuais
que já circulavam desde 1824. Ela traz à tona a dimensão política dos saberes jurídicos,
pois a partir dos estatutos do Visconde da Cachoeira e das legislações posteriores,
97
Com efeito, o ensino do “direito constitucional” precondicionado à análise estrita da Constituição de
1824 significava obviamente uma diretiva interessada, porque importava em “reduzir” a matéria ao
campo de um documento escrito qualificado “constituição”, representativo de uma forma-tipo de
governo, contra a qual naturalmente não deveria prevalecer nenhuma ideia de evolução. Para os
legisladores e ministros do Império, até Franco de Sá, havia, portanto, o propósito manifesto de se fazer
do ensino de Direito Constitucional nas duas faculdades de Direito existentes no país uma espécie de
análise puramente formal da carta política “outorgada”, e, consequentemente, uma exegese intencional do
regime político imobilizado no texto (ALECRIM: 2011: p. 62).
98
Para Venâncio Filho “A ideia do ensino livre vai ser, efetivamente, até 1915, o grande tema dos debates
educacionais em matéria de ensino superior e, especialmente, de ensino jurídico. De vigência curta,
durante o Império, é restaurada pela Reforma Benjamin Constant, no que se refere à criação de faculdades
livres, e reimplantada pela Reforma Rivadavia Correia, de 1911, cujos resultados maléficos levarão à sua
supressão pela Reforma Carlos Maximiliano, de 1915” (VENÂNCIO FILHO: 2005: 87).
186
Desta forma, o mercado de obras doutrinárias não girava apenas em torno das
aulas ministradas nas escolas jurídicas, porque ao lado da demanda por um tipo de saber
didático, útil para as aulas de Direito, esse mercado de material teórico, ainda que
iniciante, interagiu com o contexto de demanda por legitimação política do regime
instituído com a Carta de 1824. Pode-se indagar aqui da motivação docente dos agentes,
verificando a questão do exercício da função de lente da cadeira de Interpretação da
Constituição, também em face do domínio de um mínimo de conhecimentos teóricos,
conforme a legislação previa99.
99
Verifica-se referência ao fato de que: “No tocante à didática da cadeira de Análise da Constituição do
Império, os Estatutos do Visconde da Cachoeira, mandados regular a Lei dos Cursos “naquilo em que
forem aplicáveis”, preceituavam, entre outras, a seguinte receita: “... o Professor (explicará) o direito
público pátrio, definindo-o competentemente , e extremando-o do particular, e regulando-se pelas
disposições gerais do direito público universal, fará a aplicação dos seus princípios, ao que há de
semelhante na legislação pátria, e dará a conhecer aos seus ouvintes a constituição antiga da Monarquia, e
a atual do Império. Exporá mais nas suas lições as diversas formas de governo, já simples, já composto,
para chegar gradualmente a expor no que consiste o governo misto, constitucional e representativo, de
modo que nesta parte da jurisprudência pública se estabeleçam os seus verdadeiros limites, do que
depende a consolidação do governo” (ALECRIM: 2011: 61).
187
Filosofia do Direito
Constitucional
José Maria Correa 1865-1890 Filosofia Elementar Direito Natural Juiz Municipal (RJ);
de Sá e Benevides do Direito Público Presidente de
Interno, Temporal e Província (MG, RJ);
Universal (1867) Deputado
Provincial.
Análise da
Constituição Política
do Império do Brasil
(1891)
Carlos Leôncio da 1870-1901 Sem produção Direito Natural Ministro do Império
Silva Carvalho Direito Público e (1878-79);
Constitucional. Deputado Geral;
Bibliotecário;
Diretor da
Faculdade (1890);
Conselheiro de
Estado.
Américo Brasiliense 1882-1896 Colaboração no Direito Romano Deputado
de Almeida projeto da provincial;
Constituição Presidente de
Republicana Província (PB, RJ).
Deputado Geral
Brasílio Rodrigues 1883-1901 Não produziu Direito Comercial Juiz; Senador da
dos Santos doutrina Constituinte;
Deputado Federal.
Verifica-se que no cenário da escola paulista não havia uma correlação direta
entre a docência em Direito Público ou Constitucional e a produção de doutrina
constitucional, sendo esta prática de dissociação ligada à estrutura deficiente dos cursos
jurídicos. Esta dissociação esteve aliada à tradição de baixa valorização da produção
teórica em Direito no Brasil, por sua vez herdada da escola de Direito da Universidade
de Coimbra. Esta, focada mais na reprodução de textos do jusnaturalismo europeu,
permaneceu influente no Brasil, sustentando o ideário acadêmico, mesmo após o fim do
período colonial e proclamação da Independência, mantendo-se ainda sob a vigência da
188
Constituição de 1824100.
Tal padrão se prolongou durante o século XIX até o começo do século XX,
porque “outros grandes jurisconsultos que o Império conheceu, egressos da Academia
de Direito de São Paulo, não foram – nenhum deles - membros do corpo docente desse
estabelecimento de ensino” (1988, p. 133) e cita como exemplo “José Antônio Pimenta
Bueno, Teixeira de Freitas, Conselheiro Lafaiete e Rui Barbosa” (ADORNO: 1988:
132). Detecta-se a partir dessa amostra que a condição de lente não estaria, durante o
império, necessariamente vinculada à elaboração teórica, configurando-se apenas uma
relação de possibilidade101.
100
Esse aspecto foi pontuado por Sergio Adorno, que refere: “Por mais estranho que possa parecer, figuras
tão expressivas na história política brasileira, como Carneiro de Campos (Visconde de Caravelas), Couto
Ferraz, João da Silva Carrão, Martim Francisco Ribeiro de Andrada, José Bonifácio de Andrada e Silva,
Leôncio de Carvalho, Dutra Rodrigues, Américo Brasiliense e Costa Bueno não deixaram uma única obra
de Direito, a despeito do legado legislativo que alguns deles deixaram à posteridade. Assim, a
importância que obtiveram com políticos foi inversamente proporcional ao papel que teriam
desempenhado como jurisconsultos”. Grifos nossos (ADORNO: 1988: 132).
101
A destinação política das obras jurídicas aparece na percepção de Sérgio Adorno: “Tudo indica que a
produção de conhecimentos jurídicos era pratica social independente da condição de lente; vale dizer, na
sociedade brasileira, àquela época, a Academia de Direito de São Paulo não constituía locus privilegiado
da produção da ciência jurídica (...)”. (ADORNO: 1988: 134).
102
Essa precariedade, que não se restringia apenas às instalações das faculdades, foi apontada por
Venâncio Filho: “As dificuldades para o funcionamento dos cursos eram, porém, de toda ordem, tanto
189
por Adorno (1998), mostrava que “àquela época, ser acadêmico/bacharel representava
oportunidades preferenciais de apropriação de cargos nas diversas instâncias da
burocracia estatal, a par de se configurar fonte segura de prestígio e poder” (ADORNO:
1988: 28).
Logo, pode-se deduzir que para conquistar uma posição como autor de doutrina
constitucional, naquele contexto, não se exigisse como condição sine qua non o
exercício da docência na disciplina de Direito Constitucional, sendo que os bacharéis
com investidura em carreiras burocráticas ou políticas já estavam situados em postos
“altos”, reservados às escalas mais restritas da elite, e portanto, suficientemente
legitimados a “explicar a Constituição” com base em seu conhecimento do Direito e em
sua “experiência prática”.
No entanto, deve-se ressaltar que uma fração de lentes dos cursos jurídicos integra a
população de autores de manuais, sendo um fator indicativo da tendência geral, ainda
que reduzida pelo contexto, de modelagem do espaço da “doutrina” como um lugar
afeito à identificação entre ensino e “competência teórica”. Dentre os agentes da
produção de manuais de “doutrina jurídica” que tiveram passagens nas escolas de São
Paulo e Olinda/Recife como lentes, citam-se os casos de Braz Florentino e Zacarias de
Góis e Vasconcelos. Neste sentido, é preciso salientar que no contexto imperial o
discurso constitucional que emergiu não esteve nem exclusivamente ligado nem
completamente separado do mundo acadêmico.
Todavia, mesmo que a produção teórica não fosse uma exigência para o ingresso
quanto às instalações materiais quanto ao pessoal. Em relação às instalações materiais, tiveram os cursos
jurídicos de se abrigar à sombra de velhas instituições eclesiásticas, o que ocorreu tanto em São Paulo
como em Olinda” (VENÂNCIO FILHO: 2005: 37).
190
103
Segundo informa Octacilio Alecrim: “O ensino do “direito constitucional” precondicionado à análise
estrita da Constituição de 1824 significava obviamente uma diretiva interessada, porque importava em
“reduzir” a matéria ao campo de um documento escrito qualificado “constituição”, representativo de uma
forma-tipo de governo, contra o qual naturalmente não deveria prevalecer nenhuma ideia de evolução”
(ALECRIM: 2011: 62).
191
104
Essa questão da censura foi pontuada por Aurelino Leal como inobservância da garantia de liberdade
de expressão inserida na Constituição de 1824, mas que na realidade, já era vivenciada no Brasil desde
1808 e intensificada na campanha emancipacionista em 1821. Em sua posição de historiador do Império,
o político republicano diria que: “No entanto, ‘o sagrado código’ não estava sendo mais que um
phantasma de estatuto político, suspenso ostensivamente para uns na parte relativa às franquezas da
liberdade individual, e, para todos, pode-se dizer que em mero estado potencial, ou de promessa não
realizada...Porque a verdade é que o regimen constitucional não passava de um rótulo collado ao
absolutismo. Aliás, enquanto não existiu Constituição, houve mais liberdade que após o juramento da
Carta”. (LEAL: 2002: 146).
192
Desta forma, sua trajetória apresenta muitos elementos comuns com os percursos
traçados, de um modo geral, pela elite imperial, característicos dos políticos-bacharéis
193
Outro fator importante sobre Pimenta Bueno diz respeito à sua proximidade com
a pessoa do Monarca, indicando seu papel de verdadeiro “conselheiro jurídico privado
do Imperador” (ALECRIM: 2011: 68), o que repercutiu sobre o plano de sua produção
doutrinária, na forma de usos do saber constitucional no manual “Direito Público
Brasileiro e Análise da Constituição do Império” (1857).
Quadro 13 - Cargos não eletivos ocupados por J. A. Pimenta Bueno por período
Pimenta Bueno foi considerado por Eduardo Kugelmas como sendo “jurista
erudito e de formação intelectual sólida, político moderado e conciliador, e sobretudo
um discreto preferido do monarca, era o homem talhado para a tarefa de não apenas
analisar, mas de enaltecer a Constituição de 1824” (KUGELMAS: 2002: 34). O
compromisso político com o Partido Conservador e o aspecto de proximidade pessoal
ao Imperador repercutiram no manual como comentários abstratos a cada dispositivo e
na escassez de críticas ao funcionamento efetivo das instituições, mesmo trinta anos
após a entrada em vigor do modelo. Também se detecta a estratégia de ofuscar a
importância das Reformas Liberais da década de 30, sobretudo, as mudanças na
Constituição e no sistema político incorporadas com o Ato Adicional de 1834.
Por fim, na sua defesa da ordem vigente, Pimenta Bueno utiliza no manual a
mesma denominação que era empregada na disciplina de “Direito Constitucional” que
foi mantida ao longo do Império: “Análise da Constituição do Império”. Como
105
Pimenta Bueno explicava, ao tratar na “seção 2ª” das “atribuições da Assembleia Geral, conservadora
da forma de governo e da ordem política”, que a aprovação do Ato Adicional era a entrada em vigor de
uma “lei promulgada em 12 de agosto de 1834 que fez adições e alterações à Constituição de 1824. Entre
outras determinações, suspendeu o exercício do poder Moderador durante a Regência, suprimiu o
Conselho de Estado e criou Assembleias Provinciais com maiores poderes em substituição aos antigos
Conselhos Gerais” (KUGELMAS: 2002: 121).
106
Mas o problema da distinção entre “direito público” e a “Constituição” é resolvido pela “síntese” ou
identificação de ambos no caso brasileiro. Segundo Pimenta Bueno: “Nosso Direito Público positivo é a
sábia Constituição política que rege o Império: cada um de seus belos artigos é um complexo resumido
dos mais luminosos princípios do Direito Público filosófico ou racional. Procuraremos, pois, desenvolvê-
los; não separaremos um do outro; aquele é a nossa lei pública, este é a fonte esclarecida, de que ela foi
derivada” (Pimenta Bueno apud KUGELMAS: 2002: 58).
196
107
Esse viés filosófico foi salientado em análise do pensamento de Uruguai: “Precisamente o Visconde do
Uruguai definiria as regras do que denominou de Ecletismo Esclarecido desta forma: “Para copiar as
instituições de um país e aplicá-las a outro, no todo ou em parte, é preciso primeiro conhecer o seu todo e
o se jogo perfeita e completamente...Há muito o que estudar e aproveitar (no sistema criado por outros
povos) por meio de um ecletismo esclarecido. Cumpre porém conhecê-lo a fundo, não copiar servilmente
como o temos copiado, muitas vezes mal, mas sim acomodá-lo com critério como convém ao país”
(BARRETO e PAIM: 1989: 110).
108
Seu trajeto mostra as repercussões políticas dessa inserção: “Um dos principais artífices do Partido
Conservador, tendo-lhe incumbido, como Ministro da Justiça do gabinete conservador que subiu em
1841, conceber e implantar as instituições de âmbito nacional, em especial na oportunidade da elaboração
do Código de Processo Criminal” (BARRETO e PAIM: 1989: 110).
197
difusão de manuais de doutrina apareceu, então, nesse contexto, como ligada à sua
ampla inserção política e posição de cúpula do Estado, como recurso à disposição desse
ideário. O seu domínio do saber jurídico permitiu mobilizar o publicismo não apenas
em viés jornalístico ou panfletário, mas elaborando obras sofisticadas de Direito, para
poder angariar a legitimidade conferida pela formulação mais erudita, abstrata e
científica da linguagem manualística. Isto também se manifesta no caso do pensamento
conservador na doutrina constitucional de Braz Florentino.
109
Isto porque: “Sua defesa do poder Moderador cifra-se na doutrina da necessidade imperativa da
existência de um poder supremo, colocado acima de todos os outros, ao qual não se recusa a chamar de
absoluto” (BARRETO e PAIM: 1989: 115).
198
abaixo.
Essa mobilização de doutrina jurídica pode ser inserida como uma das faces do
esforço dos políticos na sustentação do formato institucional diante das crises que
afetaram a Monarquia ao longo do século XIX, dentre as quais destacam-se como
momentos cruciais a Abdicação do Imperador em 1831, o Golpe da Maioridade de Dom
Pedro II e as várias Insurreições Regionais emergentes nos anos 1835-1870, sendo este
199
110
Nessa perspectiva deve-se levar em consideração a reprodução de aspectos originários da herança
cultural lusobrasileira, como a tendência à importação de ideias e teorias: “O Império brasileiro realizara
uma engenhosa combinação de elementos importados. Na organização política, inspirava-se no
constitucionalismo inglês, via Benjamin Constant. Bem ou mal, a Monarquia brasileira ensaiou um
governo de gabinete com partidos nacionais, eleições, imprensa livre. Em matéria administrativa, a
inspiração veio de Portugal e da França, pois estes eram os países que mais se aproximavam da política
centralizante do Império. O direito administrativo francês era particularmente atraente para o viés estatista
dos políticos imperiais. Por fim, até mesmo certas fórmulas anglo-americanas, como a justiça de paz, o
júri e uma limitada descentralização provincial, serviam de referência quando o peso centralizante
provocava reações mais fortes” (CARVALHO: 2012: 23).
111
Tal habilidade de teórico pode ser considera central no percurso do agente: “Paulino José Soares de
Souza, o Visconde do Uruguai, foi o principal teórico da corrente conservadora do Segundo Império e um
dos principais construtores das instituições políticas que perduraram até a queda do regime. Não foi
filósofo. Seu pensamento e sua ação cingiram-se ao campo do Direito e da Política. Não obstante, em
várias passagens de sua obra maior, publicada em 1862, o Ensaio Sobre o Direito Administrativo,
inspirada no que ele denomina de ‘ecletismo esclarecido’, encontra-se um pensamento moral muito
semelhante ao que será eventualmente sistematizado por Paul Janet, quando o filósofo eclético francês,
publicou em 1874, a obra La Morale” (RODRIGUES: 2011: 139).
112
Essa precocidade na inserção política reflete a importância que a combinação entre “aplicação nos
estudos” e apadrinhamento político possuía desde o início do contexto Imperial e se reproduziu no
200
Segundo Reinado: “Paulino tinha 25 anos quando Evaristo da Veiga incluiu seu nome na lista tríplice do
Partido Moderado, para a primeira legislatura da Assembleia Provincial, da recém criada Província
Fluminense. Foi eleito e assim ingressou na carreira política. Dois anos depois, já havia granjeado o
respeito de todos os membros da Assembleia, pela sua cultura e saber jurídico. Foi então convidado pelo
Regente Feijó para assumir a pasta da Justiça. Não aceitou o convite, alegando que ainda não estava
preparado para exercer tão alto cargo. Não obstante, em 1836, contando apenas 29 anos, foi nomeado, por
Feijó, Presidente da Província do Rio de Janeiro” (RODRIGUES: 2011: 139).
113
Ana Maria Moog Rodrigues destaca que a aquisição desse perfil se deu ao longo do trajeto político de
Uruguai: “A partir de então, eleito para sucessivas legislaturas, ocupou vários cargos no governo. Por
duas vezes foi Ministro da Justiça, (1840 e 1841); por três vezes foi Ministro dos Negócios Estrangeiros
(1843, 1849 e 1852); foi nomeado Senador vitalício pelo Imperador, e membro do Conselho de Estado.
Como Ministro da Justiça, foi o principal redator do novo Código do Processo que tornou efetiva a Lei de
Interpretação do Ato Adicional, da qual ele mesmo havia sido o relator quando deputado, e da qual
resultou a consolidação do poder central do país e sua definitiva unificação. Na prática, a Lei de
Interpretação do Ato Adicional revogava grande parte da autonomia que havia sido atribuída às
províncias na anterior reforma da Constituição; autonomia que fora inspirada no modelo da organização
dos Estados Unidos da América” (Idem).
114
Na reedição de sua obra, publicada sob a direção de José Murilo de Carvalho em 2002, verifica-se o
entendimento de Paulino sobre a hierarquia disciplinar do Direito: “(...) O direito público interno ou
constitucional subdivide-se em direito constitucional ou político e em direito administrativo. (...) O direito
constitucional ou político é aquela parte da legislação de um povo que regula a forma do seu governo, a
extensão, limites e harmonia dos poderes políticos, e as garantias dos direitos civis e políticos do
cidadão”. E aderindo à posição do francês Laferrière, afirma: “Definem o Direito Administrativo: o
complexo de regras ou leis que determinam as relações entre os administradores e administrados”
(CARVALHO: 2002:84).
201
relevante foi o Ato Adicional de 1834, foram sendo alteradas pelo Regresso de 1837,
com a Lei de Interpretação do Ato Adicional, aprovada em 1840. Esse movimento, visto
como representativo da “transação” ou convergência política entre os conservadores e
os liberais, na realidade colocou os liberais em posição dominada115.
115
Essa delimitação de problemáticas políticas constitui eixo relevante para a compreensão do papel
simbólico do publicismo jurídico, pois através dele se operava a definição “científica” das questões
políticas relevantes. Assim: “O tema do Poder Moderador – do mesmo modo que o Senado Vitalício e a
existência do Conselho de Estado – polarizou as atenções até a década de 30. Parte da elite inclinava-se,
então pelo regime republicano, de que é uma expressão clara o fato antes mencionado da eleição do
Regente por voto direto. Vigorou, entretanto, uma solução de compromisso, que consistia no
fortalecimento do Poder Central em mãos de uma autoridade selecionada entre os políticos sem entretanto
abolir a monarquia” (BARRETO e PAIM: 1989: 106).
116
Por isso, é relevante destacar que: “A discussão travar-se-á entre a fundamentação conservadora e a
fundamentação liberal. O ponto de vista conservador estará expresso nos livros: Direito Público
Brasileiro e Análise da Constituição do Império (publicado em 1857 e reeditado em 1858 e em 1878), de
José Antônio Pimenta Bueno, Marquês de São Vicente; Ensaio sobre administrativo (1864, reeditado em
1978), de Braz Florentino Henriques de Souza (...). O ponto de vista liberal estará expresso no livro Da
natureza e limites do poder Moderador (1861, reeditado em 1978), de Zacarias de Góes e Vasconcelos”
(BARRETO e PAIM: 1989: 107).
203
Ainda que mobilizada também pelo grupo dos políticos liberais, que não se
encontravam na mesma posição hierárquica que os conservadores, mas abaixo destes, o
publicismo jurídico, a partir dos anos 1850, refletiu a predominância do poder dos
segundos, embora ambos os polos apareçam sustentados na importação e usos de
conceitos e doutrinas estrangeiras, sobretudo francesas.
117
A construção de uma elite de Estado invoca a combinação de estruturas sociais e estruturas mentais,
baseadas em “mecanismos que tendem a assegurar a sua reprodução ou sua transformação”
(BOURDIEU: 2013:13). A formação dessa elite se dá em dimensão geracional, em contextos nos quais se
mobiliza um conjunto de fatores que visando a moldar a homogeneidade social e cultural, base do
“espírito de corpo”. A educação superior exerce nesse aspecto um papel muito relevante. Para abordagem
do tema, consultar o clássico: “La Nobleza de estado: educaciónde elite y espiritu de cuerpo”. Nela o
sociólogo francês discutiu as condições de “disciplinamento do espírito” no caso francês, enfatizando o
papel da Escola Nacional de Administração (ENA) na formação dos quadros burocráticos e de governo.
207
CONCLUSÃO:
Desde a vinda dos livreiros franceses para o Rio de Janeiro em 1824, com
destaque para Pierre Plancher, se verifica a promoção da ênfase na apropriação da
Constituição a partir das noções dos ideólogos franceses entre os letrados, sobretudo em
relação ao perfil e às teses dos “liberais doutrinários” François Guizot e Benjamin
Constant. Os manuais deste teriam tido influência no próprio texto imposto em 1824,
ressignificando a noção de “poder neutro” desenvolvida por B. Constant em Poder
Moderador, mais alinhada aos interesses políticos da fração da elite brasileira mais
ligada ao imperador D. Pedro I.
de leis como a de proibição do tráfico (1850), não foram tratadas por uma fração
representativa de “intérpretes da Constituição imperial”. Esse papel omissivo e seletivo
dos “problemas nacionais” apareceu em uma parcela desses agentes, como: Pimenta
Bueno, Paulino Soares e Zacarias de Góes e Vasconcelos.
A pesquisa permitiu concluir que o fato de haver dois Cursos de Direito e uma
“Constituição” oficialmente formalizada em 1824 não é suficiente para explicar as
causas da invenção da “interpretação constitucional” por uma fração da elite política
imperial. Esta explicação só pode ser fornecida com base em uma abordagem social e
histórica do fenômeno, que relacione os agentes com o seu contexto de intervenção.
Nessa perspectiva, conclui-se que a mobilização dos manuais pode ser vista como
uma estratégia de intervenção política, usada para disputar a definição legítima do
Regime Monárquico e circunscrever a determinação do que seria legítimo em termos
políticos, à autoridade simbólica de uma parcela dessa elite. De políticos-bacharéis,
determinados agentes se tornaram “intérpretes da Constituição”, o que parte da
construção social da figura da “Constituição” e dos manuais de seus analistas
autorizados como modo privilegiado de “explicação” do mundo político aos profanos.
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