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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA POLÍTICA

USOS POLÍTICOS DA “DOUTRINA JURÍDICA”: A INVENÇÃO


DA “INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL” NO BRASIL
IMPÉRIO

TESE DE DOUTORADO

Luciana Rodrigues Penna

Porto Alegre, RS, Brasil

2014
2

USOS POLÍTICOS DA “DOUTRINA JURÍDICA”: A INVENÇÃO


DA “INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL” NO BRASIL
IMPÉRIO

por

Luciana Rodrigues Penna

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade


Federal do Rio Grande do Sul como requisito parcial para a obtenção do grau de

Doutora em Ciência Política.

Orientador: Prof. Dr. Fabiano Engelmann

Porto Alegre, RS, Brasil


2014
3

____________________________________________________________________

2014.
Todos os direitos autorais reservados a Luciana Rodrigues Penna. A reprodução de
partes ou do todo deste trabalho só poderá ser com autorização por escrito da autora.
Endereço eletrônico: [email protected]
_____________________________________________________________________
4

COMISSÃO EXAMINADORA:

_____________________________________
Prof. Dr. Fabiano Engelmann – PPG Ciência Política - UFRGS
(Presidente/ Orientador)

__________________________________
Prof. Dr. Álvaro Oxley da Rocha – PPG Ciências Criminais – PUC-RS

__________________________________
Profa. Dra. Lígia Mori Madeira – PPG Ciência Política - UFRGS

___________________________________
Prof. Dr. Luis Alberto Grijó – PPG História - UFRGS
5

AGRADECIMENTOS

São inúmeras as pessoas a quem devo meu reconhecimento e gratidão pelo apoio
recebido para a realização desta Tese de Doutorado. Pela delimitação de espaço, aqui
estarão referidos apenas alguns desses nomes, mas minha gratidão alcança um conjunto
muito maior.

Agradeço a Deus pelo auxílio para principiar esta grande tarefa de reconstrução
intelectual que é a progressiva inserção em uma nova área do conhecimento. A
elaboração desta Tese de Doutorado em Ciência Política representa a concretização da
minha identidade intelectual e científica. A partir de agora, eu sou cientista política.

Agradeço de modo especial ao meu Orientador Professor Dr. Fabiano


Engelmann, Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da
UFRGS, fundador e líder do Núcleo de Estudos em Justiça e Poder Político (NEJUP),
centro que reúne pesquisadores voltados à investigação das diversas questões que
emergem das relações entre Direito, Justiça e política.

Eu sou grata por orientar-me ao longo do desenvolvimento desta Tese,


principalmente nos grandes desafios da construção do objeto de estudos e da escolha da
metodologia. Agradeço pelo seu constante estímulo, me auxiliando a crer no potencial
de inovação da minha pesquisa e a pôr em prática o objetivo de fazer uma sócio-história
do publicismo brasileiro, tomando como objeto os manuais de “interpretação
constitucional” publicados durante o Império. Sou grata por me encorajar a avançar uma
linha de investigação pioneira na Ciência Política de nosso país, e que resultou em
publicações e apresentação de trabalhos em importantes encontros da área, nos quais
pude debater minhas produções em torno do tema.

Unindo experiência, competência, entusiasmo pela inovação e empenho no


acompanhamento do meu trabalho, meu Orientador também auxiliou a selecionar o
local adequado para realizar o Estágio Doutoral no exterior: o Institut des Sciences
Sociales du Politique da École Normale Superieure de Cachan, pólo de excelência
internacional na área de Sociologia Política do Direito e de Sócio-História do político.

Agradeço também aos meus colegas do NEJUP: Carla Cruz, Júlia, Juliane
Bento, Ícaro Engler, Maria Filomena Semedo e Luciléia Colombo.
6

Sou grata aos Professores Dr. Luis Alberto Grijó, Dra. Lígia Mori Madeira e Dr.
Álvaro Oxley Rocha por aceitarem avaliar meu trabalho, compondo a minha Banca
Examinadora de Doutorado. Agradeço à Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
bem como aos Professores integrantes do Programa de Pós-Graduação em Ciência
Política e ao Secretário Executivo Bruno Stefani, com os quais travei contato desde
março de 2010, pela dedicação e seriedade com que realizam um trabalho de referência
junto às turmas de Mestrado e de Doutorado em Ciência Política.

Sou muito grata à professora Andréia Schneider Gregório pelas aulas de


Francês, pelo auxílio na preparação do estágio sanduíche no exterior e pela amizade.

Agradeço aos meus colegas de Doutorado, da turma que ingressou em 2010,


pela boa convivência cultivada durante o longo trajeto de aulas, seminários e processos
de avaliação. A nossa ligação conferiu à minha experiência um sentido especial, além
da mera apreensão de novos conhecimentos científicos: a alegria do compartilhamento.
Especialmente, sou grata à divertida e bem-humorada Etiene Vilela Marroni.

Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior,


CAPES, pela concessão da Bolsa de Doutorado que viabilizou o afastamento total das
atividades docentes para a dedicação exclusiva ao Curso, bem como pela concessão da
Bolsa de Estágio Sanduíche através do Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior
(PDSE), possibilitando meu contato com os pesquisadores franceses da École Normale
Superieure de Cachan, o que ampliou significativamente os horizontes da reflexão sobre
o tema.

Ao meu Co-Orientador francês Professor Dr. Benoit Bastard, Diretor Adjunto


do Institut des Sciences Sociales du Politique da École Normale Superieure de Cachan
(ENS Cachan), agradeço pela simpática acolhida na Universidade Francesa e por aceitar
a Co-orientação de meu trabalho, oferecendo valiosos questionamentos e sugestões de
análise. Agradeço também ao Professor Jacques Commaille e aos demais professores do
ISP, bem como à Secretária Executiva Sra. Brigitte Azzimonti pelas sugestões, críticas e
auxílio prestado no levantamento bibliográfico junto à Biblioteca Durkheim.

Agradeço aos colegas doutorandos brasileiros com os quais convivi na École,


pela amizade, compartilhamento de experiências e apoio, especialmente aos amigos
Cidinalva Neris e Wheriston Silva Neris, professores da Universidade Federal do
Maranhão. Sou grata ao colega doutorando francês Benjamin Morel, por pacientemente
7

ouvir o relato de minha pesquisa e fazer importantes sugestões de leitura. Agradeço ao


Professor Dr. Afrânio Garcia pela inclusão de meu trabalho no Seminário do Groupe de
Réflexion sur le Brésil Contemporain que coordena junto à École des Hautes Études en
Sciences Sociales, EHESS, de Paris, em que pude apresentar e debater minha pesquisa.
Sua análise, críticas e sugestões foram valiosas.

Sou grata ao Professor Dr. Bastien François, Cientista Político,


Constitucionalista e Diretor do Centre de Recherches Politiques de la Sorbonne (CRPS)
por me receber na Universidade Paris I – Panthéon – Sorbonne, ler e discutir minha
proposta de trabalho, tecendo relevantes considerações, oferecendo sugestões sobre
metodologia e indicando referências bibliográficas.

Agradeço a cuidadosa revisão de português empreendida pela excelente


Professora Ana Maria Montardo.

Agradeço aos meus ex-alunos de Ciência Política do Centro Universitário


Franciscano (UNIFRA) pelo estímulo, bem como à compreensão da Pró-Reitora de
Graduação Profa. Dra. Vanilde Bisognin e da Pró-Reitora de Pós-Graduação Profa. Dra.
Solange Binotto Fagan, que acataram minha solicitação de afastamento total das
atividades docentes durante os quatro anos de Doutorado. Também sou grata ao
Professor Dr. Selvino Antonio Malfatti, por encorajar meu aprofundamento docente na
área de Ciência Política. Agradeço pelo antigo e fecundo diálogo cultivado com os(as)
amigos(as) colegas da UNIFRA: Andréa Nárriman Cezne, Jaci René Garcia, Carina da
Cunha Alves e Marcos Pascotto Palermo.

Minha gratidão profunda a minha família pelo apoio recebido, especialmente a


minha mãe Eva Rodrigues Penna, que sempre esteve ao meu lado. Ao meu tio
Orozimbo Ramos Penna, companheiro de caminhadas já de longa data. Meu
reconhecimento e gratidão a Maria Nelci Menezes são imensos, pois sua ajuda foi
fundamental para o êxito deste percurso. Aos amigos Osvaldo Vieira, Bruna Casanova,
Giovani Vieira, Kelen Brum, Luis Otavio Moraes, Andressa de Souza, Natalício Correia
e Leocádia Inês Schoffen sou grata pelo incentivo e auxílio em tantos momentos
importantes. Grata à acadêmica Paula Martins Mallmann, do Curso de Letras da
UFRGS, pela solidária postura de me auxiliar ao final do “segundo tempo” com a
retirada de uma Tese da Biblioteca.
8

Sou grata de modo especial ao meu esposo Fernando Menezes por compartilhar
projetos de vida e ajudar a transformá-los em realizações. Seu apoio foi fundamental
para o ingresso, a realização e a conclusão deste Doutorado em Ciência Política. Sua
militância tem sido para mim um estímulo a pensar não apenas os desafios, mas também
as potencialidades transformadoras da prática política.

Por fim, o agradecimento maior aos meus filhos, José Fernando e Bibiana.
Contando com apenas cinco e dois anos de idade, respectivamente, em 2010 quando
principiei esta caminhada, souberam compartilhar os pequenos e grandes desafios do
trajeto. Superaram minha dedicação ao trabalho, compreendendo a importância dos
estudos e da viagem ao exterior. Sou grata por se empenharem nas atividades escolares
e por terem colaborado com a família durante minhas ausências, inclusive a de quatro
meses no exterior. Então, é a vocês que dedico esta Tese, pois ela é o princípio de novas
e melhores atividades. Com meu amor de mãe, desejo que os seus resultados os
recompensem generosamente.
9

DEDICATÓRIA

A José Fernando e Bibiana, com amor.


10

RESUMO

O publicismo como expressão de sentidos políticos em concorrência pela definição


legítima do Estado, esteve presente no discurso jornalístico, panfletário e parlamentar
mobilizado pela elite brasileira engajada nas lutas emancipacionistas, na atuação
constituinte de 1823 e na outorga da Carta de 1824. Após a Independência e com o
processo de construção institucional do Estado, o publicismo adquire também a feição
de conhecimento jurídico: é inventada a interpretação constitucional. Através de
manuais, o discurso político pôde ser formatado como doutrina jurídica, prática que se
intensifica a partir de 1850. Na presente tese, tal fenômeno se situa na problemática da
consolidação do Estado e do Regime Monárquico no Brasil. O investimento de frações
da elite em interpretação constitucional é analisado como estratégia de sustentação de
concepções do modelo político pela via “científica”, sendo o objetivo central da
pesquisa apreender os contornos do espaço que moldou essa prática durante o regime
imperial. O Primeiro Capítulo trata dos contornos sócio-históricos do publicismo na
crise do sistema colonial. No Segundo Capítulo, se aborda a intensificação dos usos
políticos do discurso publicista no cenário da Independência. Na sequência, o Terceiro
Capítulo analisa a invenção da “interpretação constitucional” a partir da fundação do
Estado Nacional e no Quarto Capítulo, por fim, se problematiza a estratégia de
investimento dos manuais jurídicos como forma de intervenção política no Segundo
Reinado.

Palavras-chave: Brasil Império, elites políticas, publicismo.


11

RESUMÉ:

Le publicisme comme une expression de sens politiques en compétition pour la


définition légitime de l'État, a été présent dans le discours journalistique, des dépliants
et parlementaire mobilisés par l'élite brésilienne engagée dans les luttes d'émancipation,
dans l’action constitutive de 1823 et à l'octroi de la Charte de1824.Après l'indépendance
et avec le processus de construction institutionnel de l'État, le publicisme acquiert aussi
le visage de connaissance juridique : il est inventé l'interprétation constitutionnelle. Par
des manuels, le discours politique a pu être formaté en doctrine juridique, pratique qui
s’intensifie à partir de 1850. Dans cette thèse, on situe ce phénomène dans la
problématique de la consolidation de l'État et du Régime Monarchique au Brésil.
L’investissement de fractions de l'élite à l’interprétation constitutionnelle est analysé
comme stratégie de soutenance à des conceptions du modèle politique par la voie
«scientifique», étant le but central de la recherche de saisir les contours de l'espace qui a
façonné cette pratique sous le régime impérial. Les contours socio-historiques du
publicisme à la crise du système colonial sont traités au premier chapitre. De sa part, le
deuxième aborde l’intensification des usages politiques du discours publiciste dans le
scénario de l’Indépendance. Le troisième chapitre est dédié à l’analyse de l’invention de
« l’interprétation constitutionnelle » à partir de la fondations de l’État National. Et, pour
finir, au quatrième chapitre on problématise la stratégie d’investissement des manuels
juridiques comme forme d’intervention politique au Second Règne.

Mots-clés : Brésil Empire, les élites politiques, le publicisme.


12

ABSTRACT:

The publicism as an expression of political senses in competition for the legitim


definition of State has been present on journalistic, pamphleteer and parliamentary
discourse held by the Brazilian elite, which was engaged in fights for emancipation, in
the constituent acting of 1823 and in the grant of the Letter of 1824. After Independence
and having the process of institutional construction of State going through, the
publicism aquires features of juridical knowledge: the constitutional interpretation is
created. Through handbooks, the political discourse could be formatted as juridical
doctrine, a practice deepened from 1850 on. On this dissertation, this phenomenon lies
on the issue of consolidation of State and Monarchical Regime in Brazil. The
investment by some fractions of elite in constitutional interpretation is analysed as a
strategy to support conceptions of the political model through the scientific via. The
main goal of this research is to understand the outlines of the space which molded this
practice during the imperial regime. The first chapter approaches the socio-historical
outlines of publicism during the colonial period crisis. The second chapter focus on the
intensification of the political uses of publicist discourse on the set of the Independence.
Next, the third chapter analyzes the invention fo the “constitutional interpretation” from
the establishment of the National State. Finally, the fourth chapter reflects upon the
strategy of investment of juridical handbooks as a manner of political intervention on
the Second Reign.

Key-words: Brazilian Empire, political elites, publicism.


13

SUMÁRIO:

Resumo............................................................................................................................10

Resumé............................................................................................................................11

Abstract............................................................................................................................12

INTRODUÇÃO: Problemática, Referencial Teórico e Metodologia de análise ............15

CAPÍTULO 1 – CONTORNOS SÓCIO-HISTÓRICOS DO PUBLICISMO: OS


SENTIDOS DE “CONSTITUCIONAL” NA CRISE DO SISTEMA
COLONIAL....................................................................................................................54

1.1 O publicismo anterior à Independência: sentidos de “constitucional” na crise do


sistema colonial...............................................................................................................56

1.2 O periodismo como veículo do publicismo: conflitos de caráter regional e o discurso


de Estado.........................................................................................................................62

1.3 O Seminário de Olinda e a Impressão Régia: a estruturação da concorrência entre o


“regional” e o “central” no publicismo brasileiro...........................................................69

1.3.1 O Seminário de Olinda: publicismo de contestação à Metrópole e ao Rio de


Janeiro..............................................................................................................................70

1.3.2 A Impressão Régia: investimento estatal da Corte na apropriação do


publicismo.......................................................................................................................73

CAPÍTULO 2 – O PUBLICISMO NA CONJUNTURA: INTENSIFICAÇÃO DAS


LUTAS PELA FUNDAÇÃO DO ESTADO NACIONAL.............................................80

2.1 Do padrão descritivo de conjunturas europeias aos “problemas e interesses


nacionais”: a politização do publicismo brasileiro no contexto de 1820-1822...............80

2.2 A “praga periodiqueira” da conjuntura emancipacionista: concorrência pela


definição legítima de “constitucional” e o explícito engajamento dos publicistas..........85

2.3 A influência dos livreiros franceses no Rio de Janeiro: importação do publicismo


“liberal” e seus usos para a legitimação do Regime Imperial.........................................99

2.4 A invenção dos manuais de “interpretação constitucional”: o publicismo jurídico da


elite política “coimbrã”..................................................................................................106
14

CAPÍTULO 3 – O PUBLICISMO A PARTIR DA INDEPENDÊNCIA: AS LUTAS


REGIONAIS, A ELITE COIMBRÃ E A INVENÇÃO DOS MANUAIS DE
“INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL”...............................................................113

3.1 O cenário Imperial: mudanças estruturais e novas armas para o jogo político.......118
3.2 A contestação ao Regime Político: o publicismo de Frei Caneca como crítica ao
Projeto da Constituição de 1824....................................................................................125

3.3 A elite coimbrã e sua “interpretação constitucional”: publicismo “brasileiro” versus


a mobilização das traduções..........................................................................................127

3.4 O predomínio da ordem nos manuais de “interpretação constitucional”: a defesa da


moral católica, da Monarquia centralizada e do Conselho de Estado...........................141

3.5 O recurso à publicação das traduções de obras francesas a partir de 1831: estratégia
de contestação dos políticos-bacharéis dominados à “interpretação constitucional”
oficial.............................................................................................................................146

CAPÍTULO 4 - O PAPEL POLÍTICO DA DOUTRINA CONSTITUCIONAL NO


SEGUNDO REINADO: A ELITE “BRASILEIRA” E A AMBIVALÊNCIA DOS
“INTÉRPRETES DA CONSTITUIÇÃO”....................................................................153

4.1 Trajetos dos novos publicistas: a elite “brasileira” e a disputa política pelo sentido
da “Constituição” no Segundo Reinado........................................................................160

4.2 Os manuais de “interpretação constitucional” da elite “brasileira” como discurso da


ordem: entre o “conservadorismo” e o “liberalismo moderado”...................................166

4.3 Efeito disciplinar da luta política entre “conservadores” e “liberais”: a “Análise da


Constituição do Império” contra o “Direito Público e Constitucional”........................176

4.4 Casos representativos de usos políticos de manuais de “interpretação constitucional”


publicados no Segundo Reinado...................................................................................191

4.4.1 A “Interpretação constitucional” de José Antônio Pimenta Bueno......................192

4.4.2 O caso e Braz Florentino Henriques de Souza.....................................................197

4.4.3 O publicismo jurídico de Paulino Soares de Sousa..............................................199

4.4.4 O manual de Zacarias de Góis e Vasconcelos......................................................203

4.4.5 Os políticos e as obras excluídas da dimensão dos manuais de “interpretação


constitucional”...............................................................................................................208

CONCLUSÃO...............................................................................................................211

BIBLIOGRAFIA E FONTES DE INFORMAÇÃO.....................................................219


15

INTRODUÇÃO: Problemática, Referencial Teórico e Metodologia de análise

Elaborar uma Constituição é um ato político. Interpretá-la também.

Em um amplo panorama histórico, envolvendo dois séculos de experiência


política, se pode verificar claramente que as elites brasileiras demonstram um enorme
apego à figura da “Constituição”: o Império inaugura-se com a Constituição outorgada
em 1824; a Primeira República pôs em cena a Constituição de 1891; o Estado Novo
implicou na imposição da Carta de 1937; O Regime Militar outorgou a Constituição de
1967 e a redemocratização, ao final do século XX, esteve atrelada ao processo de
elaboração constituinte e à promulgação da Constituição de 1988.

Assim, enquanto manifestações de poder, elaborar a “Constituição” e difundir a


“interpretação constitucional” são formas de intervenção no social e no político que
extraem sua força simbólica da proporção em que se opera a dissimulação de seu caráter
arbitrário. Isto afeta diretamente o plano de sua formatação. Por isso, o investimento na
produção de obras jurídicas no formato de manuais de “Direito Constitucional” pode ser
tomado como um fenômeno de cunho político, cujo efeito é a criação de um tipo de
instrumento de intervenção política estrategicamente mobilizado para ocultar ou
camuflar sua própria politicidade. O trunfo político dos manuais é a sua aparente
imparcialidade.

Dissimular o arbitrário presente na imposição de uma “Constituição”, ainda mais


quando “outorgada”1 como ocorreu no caso do Brasil Imperial, e nas tomadas de
posição dos agentes que a legitimam ou contestam é o princípio explicativo do sentido
da “interpretação constitucional”. Um determinado grupo de agentes da elite de
bacharéis assume a tarefa de promover essa forma de garantir que os ditames da ordem
dominante sejam percebidos como resultado de pura tecnicidade e, portanto, a-

1
Na visão do direito constitucional, uma Constituição é classificada quanto à sua origem em promulgada
(ou popular) ou outorgada. Essa segunda forma se dá quando o projeto não passou por um amplo
processo de discussão com a sociedade, não obtendo uma elaboração democrática. A outorga indica que o
texto da Constituição posta em vigor não foi construído com base na participação de diversas
representações de classes, camadas ou segmentos sociais. Trata-se de uma maneira eufemizada de afirmar
que ela foi imposta por um agente ou grupo político. Para a definição jurídica de Constituição e de
Constituição Outorgada vide SILVA (1999: 42).
16

históricos, apolíticos e dotados de universalidade.

Neste sentido, empreender a problematização da “interpretação constitucional”


implica, preliminarmente, em situar o jurídico no plano do social e do político. A
“interpretação constitucional” pode ser tomada, nesta perspectiva, como objeto de
estudos politológicos, sociológicos e históricos, o que pressupõe reconhecer que a
complexidade do social envolve a dimensão dos usos sociais e políticos do direito. Essa
percepção da politicidade do direito, que está na base da presente tese, desponta no
âmbito das Ciências Sociais internacionais2 e também vem sendo desenvolvida no
Brasil, em análises recentes.

Questões como as formas de recrutamento das elites políticas e jurídicas, a


composição das instituições judiciais, o papel político das carreiras jurídicas
(magistraturas, ministério público e advocacia), o ativismo judicial das Cortes e agentes
do direito e a intervenção de juristas em eventos e conjunturas políticas - especialmente
no que se refere às transformações ocorridas em diversos contextos nacionais nos
séculos XIX, XX e XXI - passam a ser tomadas como fatores relevantes na explicação
de fenômenos sociológicos e políticos. Ao mesmo tempo, novos problemas passam a
integrar a agenda de pesquisas da Ciência Política, implicando na afirmação de uma
linha de estudos que não dissocia o político do jurídico.

No caso brasileiro, a bibliografia especializada sinaliza para temáticas como a da


composição e atuação das magistraturas nacionais e estaduais, sobretudo as do Supremo
Tribunal Federal, e a das profissões jurídicas. Em geral, tomam-se essas instituições e
profissões como espaços sociais relativamente autônomos e, consequentemente,
suscetíveis de investigação empírica específica. Com isso, surgem noções abrangentes,
como a de “judicialização da política” (VIANNA: 1999) e começam a ser ampliados os
eixos de análise, desencadeando problemáticas relativas não apenas ao recrutamento de
magistrados, procuradores e advogados para as instituições ou postos políticos, mas
também quanto aos usos das arenas judiciais por diversas categorias de agentes, como
os governos, os partidos políticos, os sindicatos, as diferentes associações civis e

2
Desde a segunda metade do século XX o espaço do Direito vem sendo objeto de interesse para autores
de diversas disciplinas e vertentes analíticas, como: Michel Foucault, Niklas Luhmann, Jürgen Habermas
e Pierre Bourdieu (GUIBENTIF: 2010).
17

representativas de categorias, as organizações não-governamentais e os movimentos


sociais.

Deste modo, o panorama bibliográfico nacional tem situado as práticas


identificadas como integrantes do universo jurídico no conjunto dos objetos
sociológicos, históricos e politológicos, estendendo o alcance das pesquisas sobre a
sociedade e o poder. Com isso, a Ciência Política vem se aproximando de uma
Sociologia Política do direito e superando, progressivamente, os limites das abordagens
desenvolvidas no âmbito da Sociologia Jurídica, da História do direito e da Teoria do
Direito e do Estado, disciplinas jurídicas e, portanto, caracterizadas pelo seu teor
normativo, centrado em uma visão juridista do político (COMMAILLE: 2010: 29).

Ao conjunto diversificado dos trabalhos de Ciência Política, somam-se as


abordagens historiográficas e sociológicas que vem captando a relação entre o social, o
político e o jurídico, em dimensões temporais diferenciadas. Construindo objetos sobre
diversos contextos e analisando-os por diferentes ângulos, têm-se uma expressiva
quantidade de novos trabalhos que problematizam o “jurídico”, como: a evolução do
ensino jurídico no Brasil (VENÂNCIO FILHO: 1977), o bacharelismo liberal na
política do Império (ADORNO: 1988), a judicialização da política e a estrutura do
Poder Judiciário nacional (BURGOS e VIANNA: 1999), os juristas políticos da OAB
(VIANNA: 1985), o profissionalismo e a política no mundo do direito (BONELLI:
2002), a relação entre o Ministério Público e a política (ARANTES: 2002), as lutas pela
redefinição do campo jurídico o Brasil na década de 1990 (ENGELMANN: 2004;
2006), a nobreza togada e a formação da política de Justiça no Brasil (ALMEIDA:
2010), o papel dos juristas na formação do Estado brasileiro (MOTA e FERREIRA:
2010), os sentidos da judicialização da política (KOERNER e MACIEL: 2002), o Poder
Judiciário e a cidadania na constituição da República brasileira (KOERNER: 2010) e o
papel dos constitucionalistas no Brasil democrático (ENGELMANN e PENNA: 2014).

Tais abordagens mostram ser possível e profícuo o maior intercâmbio entre as


Ciências Sociais e a História como modo de apreender, em maior profundidade e
extensão, os contornos e efeitos sociais dos fenômenos a partir da historicização dos
mesmos. A perspectiva histórica aparece em vários desenvolvimentos temáticos sobre
as relações entre o social, o político e o jurídico, investigando temporalidades diversas,
18

visando a entender o papel dos agentes do direito na sociedade.

Nota-se, então, que a historicização se impõe como uma dimensão relevante para
a abordagem sociológica e politológica dos fenômenos sociais, e que dentre eles, está
situado o fenômeno jurídico. Esse eixo permite, portanto, agregar o universo das
práticas jurídicas como uma dimensão que é ao mesmo tempo, social, política e
histórica.

Porém, com maior ou menor intensidade, dependendo do caso, o que o estado


atual da literatura nacional aponta é uma predominância do foco analítico direcionado
para a denominada dimensão prática do direito. Ou seja, em termos gerais, a discussão
no âmbito da Ciência Política brasileira se fixou, até o presente, sobre as profissões
jurídicas mais próximas da esfera decisória, a partir das quais adquirem centralidade em
questões como a composição e atuação dos tribunais e das magistraturas, a mobilização
do espaço judicial por agentes sociais e o ativismo de juízes, promotores e advogados,
que, via de regra, já figuram no imaginário social como os legítimos operadores do
direito.

Tal foco sobre as carreiras jurídicas, a composição e os padrões de atuação da


Justiça constitui um eixo de pesquisa relevante, primeiramente, por possibilitar que se
adentre o universo do Direito a partir do olhar e com as ferramentas de pesquisa das
Ciências Sociais e, em segundo lugar, porque tais enfoques buscam apreender o
fenômeno jurídico como exercício de poder, superando a noção autonomista que vê a
Justiça e o jurídico como domínios de pura técnica. No entanto, o interesse na
“politização da Justiça” ou na “judicialização da política” circunscreveu as pesquisas e
debates ao âmbito das arenas judiciais, perante as quais, se sobressaem de modo mais
direto as “carreiras práticas”.

Portanto, tal concentração tem deixado escapar da investigação científica uma


dimensão do trabalho dos agentes do mundo jurídico: a construção de sentidos que se
destina a sustentar o poder simbólico e que se encarrega da delimitação dos sentidos
“possíveis” para as instituições jurídicas. Assim, o jurídico está duplamente
determinado, pois sofre a determinação da lógica da “prática”, mas também da lógica
interna das obras jurídicas (BOURDIEU: 2006: 211). Por isso, a eficácia simbólica do
19

jurídico depende da construção da categoria da “doutrina jurídica”, ou seja, do conjunto


de produções teóricas que contribuem para representar certos agentes do direito como
“juristas”, os detentores do conhecimento técnico, imparcial, científico e especializado.

Deste modo, a força do direito, isto é, sua eficácia simbólica, tal como
compreendida pela Sociologia do Campo Jurídico (BOURDIEU: 1981; 1986: 2011) e
pela Sociologia Política do Direito (COMMAILLE: 2010: 37), é gerada pela divisão do
trabalho jurídico, em que a “doutrina”, típico domínio de professores, está ligada ao
social e ao universo de ação dos “práticos”: magistrados, promotores, advogados3.

A predominância de um eixo “judicialista” nas análises da relação entre o social,


o político e o jurídico, ainda visível no panorama bibliográfico nacional, deve ser
superado. A preocupação com o ativismo dos agentes da Justiça é fundamental, porém
não deve permanecer como a única perspectiva para a problematização das práticas
emergentes do jurídico. É necessário incorporar à problematização dos fenômenos
jurídicos pelas Ciências Sociais também as práticas cuja representação situa os agentes
na condição de “teóricos” do Direito.

Buscando-se o enfoque dessa dimensão “teórica” das práticas de poder de


agentes identificados como “doutos” ou “juristas” é que se estruturou o objeto da
presente tese. Parte-se do pressuposto de que a legitimidade do trabalho teórico depende
da representação social de certos agentes enquanto “juristas”, o que demanda uma
construção social, baseada na crença em uma espécie de modelo ideal (WEBER:
2012:13) que é o “douto”, ou seja, aquele que ultrapassa a condição de titulado
(bacharel ou doutor), passando a ser reconhecido como detentor de grande
conhecimento jurídico, isto é, estando legitimado a falar em nome do saber “científico”
do Direito, definindo o sentido das regras.

Desta forma, a construção dessa categoria é um processo histórico, pois está


3
Assim, a Sociologia Política do jurídico pode ser considerada uma linha de abordagem que inclui o
trabalho de elaboração teórica dos juristas (a doutrina jurídica) nos estudos sobre o papel do jurídico na
vida política e social. “Nessa perspectiva, o conhecimento da natureza mesma do direito, de seus
conteúdos, pode tornar-se um trunfo importante para a análise do político. As múltiplas facetas da
tecnicidade jurídica não obedecem somente ao que seria uma lógica interna do direito em si mesmo, a
isso que alguns consideram uma “Razão Jurídica”, mas às lógicas políticas. Paradoxalmente, para
apreender isso convém não reduzir o direito a um simples suporte do político, sem conteúdo; ao contrário,
é necessário adentrar no que o constitui” (COMMAILLE: 2010:37). Tradução livre da autora.
20

inscrita no meio social. Neste sentido, cabe indagar como se estrutura esse tipo
específico de poder que molda a figura do “grande jurista” e que se projeta e ganha
visibilidade social através da produção de “doutrina jurídica”.

Este viés, ainda pouco explorado nas Ciências Sociais brasileiras, constitui o
problema central desta tese e recebe neste trabalho o sentido de fenômeno social inscrito
no bojo das lutas políticas. Isto porque a disputa pelas posições de poder que se
processa com a ação explicitamente engajada dos atores políticos no âmbito das arenas
decisórias, das esferas dos Poderes Executivo e Legislativo, ou nos tribunais e “Cortes”,
também conta com a força “implícita” acumulada pelos “doutos” de elaborarem e
difundirem os sentidos “jurídicos” (legítimos) da ordem política.

O poder político se expressa, desta forma, como saber e linguagem jurídica: a


produção “doutrinária”, recorrente, contínua, veiculada pelas obras ou “manuais” de
Direito, aparentemente “ascéptica”, inofensiva e silenciosa, acumula sua maior eficácia
simbólica exatamente à medida em que é tomada como “neutra”, “teórica”, “técnica” e
“científica”. O discurso jurídico ou “doutrina jurídica”4 é o que conduz à legitimação
todas as produções finais que emergem do campo do Direito: decisões administrativas,
sentenças judiciais, decretos e leis. É no universo dos manuais jurídicos que tais
produtos de poder simbólico encontram sua base de sustentação. Portanto, é preciso
tratar a emergência dos manuais de forma coletiva e não vaga, esclarecendo o contexto
em que esses discursos são construídos.

Por trás da função aparentemente “técnica” de produzir saber jurídico, encontra-


se uma luta de poder entre frações da elite. Esta necessita, portanto, ser previamente
reconhecida como habilitada e encarregada da “interpretação” do Direito, das decisões
judiciais e dos textos legais. Portanto, desnaturalizar essa prática é necessário e implica
em questionar como se processa, em determinadas condições históricas, a consagração
de certos agentes na figura de “intérpretes da Constituição”.

A categoria de “intérprete da Constituição” é, desta forma, uma definição central

4
O emprego nativo da expressão “doutrina jurídica” ao invés de “teoria jurídica” não deve ser
desprezado, pois indica a opção dos juristas pelo fechamento do campo, através de uma forma de discurso
blindado contra as “intrusões” do questionamento e da refutação científica, próprias ao caráter das
“teorias”.
21

para a presente discussão. Ela é aqui tomada como a posição social que legitima o
agente ou um conjunto de agentes a definir os contornos jurídicos da vida social e
política, mobilizando para isso a noção de “Constituição”. “Interpretar a Constituição”
é, neste sentido, um ato político. Ele se inscreve nas lutas políticas de um período
determinado e usa a figura da “Constituição” como referência normativa na mobilização
doutrinária de múltiplos saberes, em que define o mundo, ora pela legitimação, ora na
contestação da ordem política.

Os manuais jurídicos de “interpretação constitucional” adquirem na presente


discussão um sentido fundamental: são o formato privilegiado da prática de poder que é
“interpretar a Constituição”. O manual de Direito é um tipo específico de obra que
manipula a força jurídica: aquela destinada a concentrar e sintetizar, em linguagem
relativamente técnica, mas também acessível, os conhecimentos considerados
“mínimos”, “básicos” e “fundamentais”, isto é, necessários a qualquer futuro bacharel
ou leigo interessado em conhecer o funcionamento da engrenagem jurídica (política). A
dimensão pedagógica dos manuais de Direito associa-se, portanto, de modo ideal à
tarefa simbólica da elite política: educar o povo, educar o cidadão e educar a própria
elite.

Na defesa da ordem ou em sua contestação, o “manual de interpretação


constitucional” desempenha papel político: receituário da ação política conformada
pelos valores e princípios constitucionais, repertório standard do saber jurídico que
norteia a ação social nos limites da “Constituição”, roteiro básico para a ação
acomodada aos limites da ordem. Por isso, o trabalho “constituinte” não se esgota no
processo constituinte (elaboração da “Constituição”, como regramento superior do
sistema jurídico), mas se estende para outros níveis da ação jurídica, dentre eles a
contínua elaboração de sentido das regras.

Assim, nesta tese se adota a perspectiva da Sociologia Política do jurídico


(COMMAILLE: 2010) e da metodologia sócio-histórica para inscrever a “interpretação
constitucional” no plano das estratégias de intervenção política. Essa ação social pode
ser apreendida, então, como uma forma de intervenção na vida política através do
jurídico (CHEVALLIER: 1993). Isto permite questionar como a acumulação de
experiências de atuação política e judicial, bem como os saberes jurídicos detidos por
22

um grupo de agentes, combinam-se em certa conjuntura social, interferindo na


possibilidade de mobilização desses capitais variados na representação do “doutrinador”
ou “intérprete do Direito”.

A representação social de “doutrinador” ou de “intérprete da Constituição” no


plano social e político não significa apenas concorrência profissional pelo monopólio de
“dizer o Direito”, mas é estratégia de intervenção política mobilizada por um grupo
específico de agentes, dentro dos quadros da elite política. Esse aspecto é relevante, pois
pode apontar para a formação de uma “elite dentro da elite”.

Ao travarem relações ora de maior distinção, ora de mais forte identificação com
outras esferas sociais, com destaque para a esfera política, tais agentes que alcançam a
posição de intérpretes autorizados da “Constituição” estão detendo, na realidade, não
um saber técnico e neutro, mas sim um poder de definição dos contornos do mundo
social, moldando o sentido “válido” das regras do jogo político, através da elaboração
de “manuais de direito público e constitucional”, ou seja, das obras jurídicas
especificamente voltadas à difusão dos sentidos legítimos da ordem social e política.

Nesta tese se busca indagar da composição do grupo social dos “intérpretes da


Constituição” em um contexto determinado: o Brasil Império. Neste sentido, procurou-
se delimitar a população de agentes identificados como “publicistas”, “doutrinadores da
Constituição” ou “intérpretes da Constituição” nos marcos da vigência do Regime
Monárquico. Para tanto, situa-se essa dimensão de mobilização da esfera doutrinária do
Direito não vivenciada como espaço social relativamente autônomo, mas como uma
dimensão integrante do trabalho de dominação simbólica a cargo da elite imperial, em
que alguns indivíduos exerceram o papel de “juristas”.

O cenário imperial foi o recorte histórico selecionado não apenas porque


representa um contexto delimitado temporalmente (1822-1889), o que facilita a
investigação das estratégias de poder em um sistema político com “início, meio e fim”,
mas sobretudo porque o cenário imperial permite verificar as condições em que se
processou a própria invenção da interpretação constitucional, tomada como estratégia
das elites políticas para ofuscar suas tomadas de posição na luta pela demarcação dos
moldes do regime.
23

A problemática da Tese consiste, portanto, em analisar um caso situado


historicamente, em que a mesma elite que atuava na política, composta em grande
medida por bacharéis em Direito, atuou também como conjunto de “juristas”,
inventando coletivamente e em condições de ambivalência, um tipo de intervenção
política camuflada e eufemizada: a interpretação constitucional.

Dito em outras palavras, uma fração dos políticos do Império foi,


simultaneamente, os seus publicistas-juristas. Esses dois papéis representam aqui
modelos ideais e com representações sociais contraditórias, em que o “político” é aquele
que atua de modo explicitamente engajado, inserido na vida político-partidária, e o
“jurista” é o “douto”, ou seja, o “técnico” legitimado a emitir juízos “científicos”,
“neutros” e “imparciais” sobre o regime político, suas normas e instituições.

Esta contradição entre o engajamento explícito e a imparcialidade aparente da


“doutrina jurídica” está na base da reflexão aqui empreendida, de modo que se refuta a
noção de que no caso do Brasil Imperial, como não havia autonomia relativa do espaço
jurídico e a produção de obras jurídicas fora efetivada por “políticos-bacharéis”, essa
prática tenha sido uma atividade intelectual residual das elites. Isso porque mesmo que
os agentes já estivessem integrados à ordem política, com carreiras de magistrados,
parlamentares ou mesmo integrando a alta esfera política e administrativa (Senado,
Conselho de Estado e Ministério), quando lançaram seus manuais de “interpretação
constitucional”, a contextualização histórica aponta para uma mobilização coletiva e
situada em dois momentos distintos do Regime Monárquico: a instauração (1824) e a
sua consolidação (1850).

A Tese aqui sustentada embasa-se no pressuposto central de que, nesses dois


contextos da Monarquia, produzir obras jurídicas de “interpretação constitucional” não
teve o sentido de uma prática “científica”, “técnica” ou “teórica” que estivesse ancorada
na exclusividade de uma vida acadêmica voltada à produção científica do “Direito
Público e Constitucional”. Ao contrário, essa prática das elites teve um sentido político:
a mobilização dos manuais de Direito como recursos para legitimar ou para contestar o
Regime.

Essa observação é muito importante, porque alerta, ao mesmo tempo, para os


24

riscos de se recair em um elitismo ou de exagerar na autonomização do objeto de estudo


(CHARLE: 1987: 459), adotando uma hiper-valorização da produção jurídica em um
cenário que não promoveu a autonomização relativa do espaço do Direito, mas ao
contrário, gerou a assimilação dos bacharéis em Direito para os postos de Estado: a
política, a Administração ou a vida parlamentar; e também para os riscos de uma adesão
às tomadas de posição dos agentes de que a interpretação constitucional representava
um desenvolvimento científico do saber jurídico constitucional no Império.

Portanto, o fenômeno do “bacharelismo imperial” (VENÂNCIO FILHO: 2005;


ADORNO: 1988; CARVALHO: 2006) não só não inviabiliza o objeto de estudo, como
permite a problematização dos usos políticos da “doutrina jurídica” pelo viés da
ambivalência dos agentes, ou seja, como prática coletiva realizada em condições de não
autonomização relativa do espaço jurídico em relação à esfera política. Desta forma, o
investimento em interpretação constitucional no Império foi empreendido por agentes
em multiposicionalidade, isto é, por políticos-bacharéis, sendo este, afinal, um atributo
geral das elites e não apenas uma tradição típica, exclusivamente, do contexto brasileiro
oitocentista.

Dito de outro modo, o “bacharelismo”, como formação jurídica e formação


política extra-acadêmica da classe política, não só não impediu, como viabilizou a
significativa produção de obras jurídicas de “Direito Público e Constitucional” durante
o contexto imperial. Se não se levar em conta a distinção em disciplinas, a soma de
obras jurídicas produzidas durante o Império atinge um total aproximado de trezentas
obras (DUTRA: 2004).

No que tange à interpretação constitucional, essa produção chegou a


aproximadamente quarenta obras (DUTRA: 2004; ALECRIM: 2011), o que possibilita
questionar os sentidos políticos inscritos nessa prática de mobilização do saber jurídico.
Fenômeno contraditório, porquanto a natureza “científica” dos manuais de Direito
conflitasse com o cenário social pouco favorável ao progresso da “Ciência Jurídica”, tal
amplitude na mobilização do publicismo jurídico ocorreu, indicando que a contradição
era apenas aparente: os manuais de Direito “Público e Constitucional” podem ser
estudados enquanto ferramentas de intervenção política, questão que está na origem da
formulação do Objeto de Pesquisa: os usos políticos do Direito através dos manuais
25

de “interpretação constitucional” publicados no Brasil durante o Império.

Por tal razão, delimita-se o objeto empírico aos manuais jurídicos de


“interpretação constitucional” publicados no período imperial, buscando analisar esse
material como um tipo de intervenção política da qual depende a própria inteligibilidade
das práticas judiciais e políticas, na forma de legitimação dos sentidos da Justiça e do
Estado, ligado, portanto, ao publicismo. Deste modo, a tese insere-se na Problemática
Geral da relação entre a inserção política dos agentes e as suas estratégias de poder
empregadas nas lutas pela legitimação ou contestação do domínio político. A partir daí,
tem-se a Problemática Específica das condições e sentidos da invenção da
“interpretação constitucional” por uma fração da elite imperial.

A problemática é formulada, reitera-se, com base na verificação empírica de que


a produção de obras jurídicas voltadas à “interpretação constitucional” no período
monárquico foi significativa. Empregando a categoria mais ampla de “obras políticas”,
tem-se a cifra de trinta e sete itens (PRADO: 2012). Já utilizando a categoria de
“literatura jurídica no Império”, encontra-se um montante de obras jurídicas de diversas
disciplinas, publicadas entre 1798 e 1888, que ultrapassa o patamar de trezentos itens
(DUTRA: 2004).

A partir dessas listagens gerais, caracterizadas por certa variação, verifica-se a


menção a um percentual que gira em torno de trinta e quatro (ALECRIM: 2011) a
quarenta títulos (DUTRA: 2004) classificados como pertinentes à disciplina de “direito
público e constitucional” publicadas no contexto imperial. A partir do cotejo dessas
listagens se procede ao recorte empírico da tese, selecionando um total de trinta e nove
títulos como amostra representativa da mobilização de “interpretação constitucional” no
Brasil Império. Partindo-se dessa amostra se pode buscar dados de percurso dos seus
autores, para relacionar sua posição na esfera política com a mobilização de produções
jurídicas publicistas5.

5
Conforme Pedro Dutra, a literatura jurídica no Império contempla um total de 344 obras, sendo que
destas, 40 aparecem classificadas como especificas de direito constitucional (DUTRA: 2004). Octacílio
Alecrim aponta a existência de 21 obras jurídicas como pertinentes à bibliografia de direito constitucional
no Império, além das quais indica mais 13 publicações tidas como “achegas” à disciplina, perfazendo uma
soma de 34 títulos (ALECRIM: 2011: 66).
26

Fator relevante a justificar essa problematização contextualizada é que o maior


ou menor poder dos “doutrinadores” ou “intérpretes do Direito” (categorias nativas)
depende de um conjunto de variáveis societárias, portanto, relativas a determinado
contexto histórico e social. Deste modo, o Brasil Império constitui um cenário
privilegiado para a abordagem dessa prática, pois permite tomar o grupo de agentes não
de modo abstrato e atemporal, como “juristas” dispersos em um cenário difuso, mas
como indivíduos e/ou grupos reais e inseridos concretamente no mundo social de seu
tempo.

A problematização da invenção da “interpretação constitucional” no Império


implica a adoção da perspectiva sócio-histórica para que a variável conjuntural da
outorga da Constituição não seja descontextualizada e não seja tomada como fator
explicativo exclusivo, como se bastasse afirmar que se houve manuais de interpretação
constitucional era porque havia uma “Constituição” a ser interpretada. Essa explicação
tautológica é normativa e não sociológica. A existência de uma mobilização constituinte
é relevante em todos os contextos temporais em que ocorre, porque acirra a
concorrência intraelites pela participação direta no processo decisório encarregado da
definição das regras do jogo político. Essa concorrência também foi intensificada em
1823 e 1824, oportunizando um espaço de intervenção direta dos agentes no papel de
“constituintes” do Império.

Deste modo, no plano do poder simbólico esse tipo de conjuntura representa


uma oportunidade aos bacharéis em Direito da elite para intervir de imediato na
modelagem da estrutura do Estado e na definição do regime político, invocando a
imagem do grande “publicista” ou “constitucionalista”. Por isso, tal participação nos
trabalhos da “assembleia nacional constituinte” contribui para converter certos agentes
em “notáveis” perante o imaginário social. Deste modo, o capital adquirido com o
treinamento na política, a experiência “prática” ou de conhecimento em “Direito
Constitucional” pode ser acessado, acumulado e, então, reconvertido em legitimidade
para a “interpretação da Constituição”.

Ao estudar o caso do Brasil Império se pode adentrar em um cenário em que


essa participação no “momento constituinte” aparece como mais um trunfo para uma
fração da elite dos políticos-bacharéis, que pode se representar, a partir dali, também
27

como “juristas”, moldando uma espécie de ambivalência. O Brasil Império pode ser
visto como caso ilustrativo de um cenário social no qual a prática constituinte funcionou
como poderosa conjuntura propulsora da intervenção dos bacharéis na política, que se
tornam os “juristas nacionais”, mas continuam ligados à esfera do poder. Estes,
recrutados como líderes da emancipação política e do “momento constituinte”,
intervieram na própria fundação do Estado Nacional após a Independência.

Por tal viés, problematizar a mobilização da “interpretação constitucional” no


Império contribui para desnaturalizar o mito fundador da nacionalidade brasileira,
implicando “doutrina jurídica” e ação política em um processo que se desdobra a partir
da atuação da elite “coimbrã” na Assembleia de 1823, através dos posteriores usos
políticos do texto da Constituição de 1824. A Constituição foi confeccionada por um
grupo também recrutado na mesma fonte coimbrã, porém mais fortemente associado ao
círculo do primeiro Imperador. Os constituintes da versão outorgada enfrentaram a
repercussão da dissolução imperial da Assembleia e da imposição da Carta
Constitucional, pois além das rebeliões armadas, o publicismo também refletiu através
da imprensa e da publicação de obras as múltiplas reações, de adesão e de contestação à
“Constituição”, ou seja, ao regime político tal como estava sendo instituído.

Por isso, a conclusão do texto constitucional que foi “outorgado” pelo


Imperador, isto é, posto em vigência em 1824, não encerrou o trabalho da fração da elite
comprometida com o modelo político formalizado. Ao contrário, foi a partir de 1824
que essa fração passou a atuar na construção dos modos de legitimação do Regime, e é
aí que entra em cena a representação social da figura do publicista como “intérprete da
Constituição”. Desta forma, no circuito dos políticos-bacharéis ligados ao processo
constituinte foram recrutados alguns dos agentes que deveriam pôr em marcha o
trabalho incessante, permanente, contínuo de reprodução dos sentidos ali inscritos.

Com isso se pretende contribuir para apontar que houve um texto fundador no
Império e sua “exegese” não foi “jurídica”. Com isso, se pode desnaturalizar o olhar
sobre a produção de obras jurídicas dos publicistas imperiais, ultrapassando a visão
aludida pela relação entre a inserção política das elites e as estratégias de usos dos
manuais de “interpretação constitucional” para a intervenção política “mascarada”.
Parte-se do pressuposto de que os manuais de “interpretação constitucional” foram
28

inventados como recurso político de intervenção camuflada, com o qual as elites


“coimbrã” e “brasileira” lutaram para legitimar, consolidar e contestar, no plano
simbólico, as crenças na validade do sistema de dominação.

Ao problematizar a difusão de obras jurídicas de “Direito Público e


Constitucional” como uma estratégia de poder empregada por grupos relacionados com
o círculo do poder, é necessário situar essa prática nas condições históricas de uma
sociedade que começava a superar sua situação de colonizada, de um Estado Nacional
sendo instituído sobre uma base social que se manteve escravista, em uma nação
economicamente periférica, politicamente hierarquizada e importadora de saberes.

A metodologia de Pesquisa Qualitativa possibilita enxergar a prática jurídico-


doutrinária das elites no século XIX como um dos lugares das lutas pelo poder entre as
distintas frações da elite. Isto porque naquele cenário, através de obras de doutrina
jurídica, concorreram e se difundiram as noções do que era considerado “constitucional”
e “inconstitucional”. Essa questão central permite colocar as Questões de Pesquisa
específicas a serem respondidas:

a) Quais as condições sócio-históricas originárias da transição colonial que


possibilitaram a certos agentes da elite exercerem poder na forma de
publicismo antes da consolidação do Brasil Império?
b) Como o publicismo francês foi introduzido no Brasil e quais orientações
políticas foram apropriadas pelos agentes da elite brasileira?
c) Como a elite “coimbrã” de políticos-bacharéis eufemizou disputas políticas
em controvérsias jurídicas?
d) Como a questão disciplinar do “Direito Público e Constitucional” foi
enfrentada pela elite imperial?
e) No Segundo Reinado, com o advento da elite de políticos-bacharéis
“brasileiros”, como a concorrência político-partidária repercutiu no âmbito
dos manuais de “interpretação constitucional”?
f) Por fim, qual sentido predominou nos usos políticos que as gerações de
agentes da “interpretação constitucional” conferiram a essa estratégia em
face do Regime Imperial?
29

Essas seis indagações originaram os quatro capítulos da Tese, em que se procura


debater os usos dos manuais de “doutrina jurídica constitucional” no Império,
questionando como e com que teor foram formuladas, difundidas e legitimadas as
noções jurídicas sobre o sistema político, para captar como foram transformados em
argumentos de autoridade o que na realidade eram representações do mundo político,
adotadas por agentes ou grupos de agentes determinados e historicamente situados.
Dito em outras palavras, se procura apreender as condições que garantiram a
legitimação de um determinado grupo de agentes na posição de publicistas, bem como o
papel e os efeitos políticos alcançados através dessa prática no cenário imperial.

Deste modo, o Objetivo Geral da tese é problematizar os usos políticos do


publicismo jurídico no Império, observando os manuais de “interpretação
constitucional” como “armas” utilizadas no jogo político, consistindo em uma dimensão
ainda pouco explorada na Ciência Política brasileira. A partir dessa meta, têm-se como
Objetivos Específicos:

a) analisar os contornos sócio-históricos do publicismo brasileiro, sobretudo


quanto à introdução de vertentes estrangeiras no Brasil, com destaque para a
apropriação da doutrina publicista europeia, especialmente francesa, do século XIX;

b) apontar como o posterior processo de Independência (1821-1822) e de


construção institucional do Estado Monárquico (1823-1850) repercutiu sobre o
publicismo jurídico, a partir do surgimento de determinados marcos: a instauração da
Assembleia Constituinte de 1823, sua dissolução e a outorga da Constituição de 1824,
as Reformas Constitucionais das décadas de 30 e 40, a criação dos cursos jurídicos em
1827 e o surgimento dos dois grandes partidos políticos imperiais em 1831 e 1837, o
Partido Conservador e o Partido Liberal;

c) apontar a influência da vinda dos livreiros franceses ao Brasil sobre a


importação e seleção de doutrinas publicistas francesas e sua influência sobre o
publicismo brasileiro;

d) relacionar os usos dos manuais de “Direito Público e Constitucional” com a


dominação política, para discutir o que o investimento no publicismo jurídico via
30

manuais ofereceu de distinto e específico à dominação política;

e) cotejar as variáveis societárias, principalmente a inserção no plano político-


partidário, com a produção de “interpretação constitucional”, a partir de uma amostra de
agentes e manuais, levando-se em consideração as movimentações e variações
conjunturais da vida político-partidária6 imperial;

f) apontar de que modo as lutas políticas afetaram o publicismo sob o Regime


Monárquico, conferindo a certas controvérsias o status de “questões constitucionais” no
âmbito dos manuais, refutando outras temáticas, baseadas em problemas políticos e
sociais da época.

O desenvolvimento da Tese obedece, portanto, a uma Delimitação Espacial, no


caso, o Brasil, bem como a um Recorte Temporal, que não compreende todo o
decorrer do Século XIX, mas o período monárquico, adotando-se como pano de fundo a
diferenciação geral entre Primeiro Reinado (1822-1831), Regências (1831-1840) e
Segundo Reinado (1840-1889).

Adota-se essa diferenciação histórica mais ampla porque ela possibilita analisar
os percursos dos agentes que investiram na mobilização da “interpretação
constitucional” em face dos marcos mais nítidos e intensos no plano da mudança de
conjuntura política. Além disso, a delimitação temporal extensa do objeto empírico,
cobrindo todo o período de vigência do Regime Monárquico (1822 a 1889), em que
pese acarretar riscos de generalização à análise, é a opção necessária para se poder
captar a relação entre as gerações de “juristas” em face de conjunturas diversas. Deste
modo, tem-se a possibilidade de verificar suas repercussões sobre os padrões de
produção dos usos políticos do publicismo jurídico.

6
Conforme analisado por Américo Brasiliense em obra publicada originalmente em 1878, a estruturação
da esfera partidária no período Imperial reflete muitas mudanças, sobretudo no período de 1860 em
diante. A dinâmica partidária teria se iniciado com a criação do Partido Liberal em 1831, e
posteriormente, houve a fundação do Partido Conservador em 1837. Depois da medida da Maioridade
(1840), iniciou-se um novo contexto que preside uma onda de redefinição da esfera partidária, com o
aparecimento da Liga e, após, do Partido Progressista em 1862, seguido do novo Partido Liberal, fundado
em 1869, e do Partido Republicano, surgido em 1870 (MELO: 1979). No âmbito desta tese optou-se por
adotar como base para a análise dos trajetos dos publicistas a divisão geral entre Partido Conservador e
Partido Liberal, por se tratar da oposição de maior repercussão sobre a formatação e mobilização dos
manuais de “interpretação constitucional”, mesmo após 1850.
31

Isso porque a formatação de sua intervenção no debate político, como autores de


manuais de “Direito Público e Constitucional”, foi acionada desde 1824, por duas
frações de políticos-bacharéis: a primeira aqui denominada de elite “coimbrã” (formada
em Coimbra e com obras publicadas entre 1824 e 1854) e a segunda, identificada como
elite “brasileira” (formada nos Cursos Jurídicos nacionais e que publicou de 1857 até o
final do Império).

Tal diferenciação, ainda que binária, corresponde à aglutinação da amostra de


agentes pelo do ano de publicação dos manuais, abarcando-se uma divisão histórica
entre, de um lado, o Primeiro Reinado (1822-1831) e o Período Regencial (1831-1840)
e, em um segundo momento, o Segundo Reinado (1840-1889). O critério de aglutinação
da amostra em dois grupos obedeceu ainda à variável do local de formação dos agentes
da primeira fração da elite e da segunda, distinguindo entre “coimbrãos” e “brasileiros”.
Portanto, ainda que tenham ocorrido relevantes alterações conjunturais, de maior ou
menor proporção, disseminadas ao longo dessas etapas mais amplas da vida política do
Império, o perfil Qualitativo da Pesquisa empreendida implica selecionar as mudanças
de maior impacto que podem auxiliar a registrar uma tendência de reprodução e/ou a
mudança nos padrões de mobilização da doutrina jurídica constitucional.

Selecionou-se, assim, devido à extensão temporal do objeto empírico, um


conjunto limitado de variáveis: a origem geográfica, o local de formação e a ocupação,
destacando-se a posição na ordem política e a inserção no panorama partidário. A
delimitação de um número mais reduzido de variáveis é fundamental para a delimitação
do objeto empírico e da maior dificuldade de acesso a dados biográficos
pormenorizados, sobretudo, quanto ao âmbito da vida privada dos agentes sob enfoque.
Também salienta-se que a abordagem de um fenômeno em perspectiva de longa duração
temporal apresenta, de modo mais significativo, o perigo da generalização, pela
dificuldade de apreensão detalhada ou aprofundada da dinâmica dos trajetos dos agentes
em um quadrante complexo e extenso da história nacional.

No entanto, apesar desses riscos, opta-se pela análise do contexto imperial


brasileiro para apreender as condições de atuação dos “intérpretes da Constituição” por
tratar-se, como acima referido, de um cenário privilegiado para problematizar o peso da
mobilização do direito em face da tarefa de formação do Estado Nacional e de lutas pela
32

definição e legitimação de seu modelo político. Frisa-se, assim, que o objetivo geral da
Tese não é o de debater a composição das elites, tema já extensamente discutido na
bibliografia especializada sobre o Império, apenas substituindo o critério da origem
social e ocupacional pelo de autoria de obras de direito.

De modo diverso, o pertencimento à elite política imperial e a ocupação de


postos aparecem aqui como variáveis a serem detectadas e relacionadas às ações do
grupo enfocado, definido pelo critério de autoria de manuais de “interpretação
constitucional”. Essa delimitação procura registrar uma faceta da ação das elites
políticas, implicando em refinar a análise pelo viés da prática doutrinária. Esta, tomada
como dado invariável, aparece como a constante passível de explicação no percurso de
determinados agentes, nos diferentes momentos da experiência monárquica brasileira.

Por isso, é relevante alertar que a presente abordagem não é quantitativa,


trabalhando-se com uma amostra representativa, sem a pretensão de uma verificação
exaustiva do fenômeno. Não se pretende, portanto, abarcar toda a história do publicismo
brasileiro no Oitocentos, como em abordagens mais abrangentes, situadas na linha da
História Política ou História das Elites Políticas (CARVALHO: 2006) ou na História
das Ideias Políticas (SALDANHA: 2001). A presente tese se restringe a demonstrar os
usos políticos da doutrina jurídica, em que o foco recai sobre o publicismo expresso
pela via dos manuais de “Direito Público e Constitucional”.

Além disso, mesmo que a tese estivesse situada no âmbito disciplinar da


História, o que não é o caso, sabe-se que a questão da delimitação temporal “correta” ou
ideal não é algo consensual entre os historiadores, havendo múltiplas escolhas em face
dos diversos níveis da temporalidade7 que cercam os fenômenos políticos e sociais,

7
Para aprofundar a discussão sobre o problema da temporalidade nas pesquisas históricas e sociológicas,
recomenda-se a leitura de: BRAUDEL (2013), LACOSTE (1989) e NOVAIS e SILVA (2011). Verifica-
se que no âmbito dos embates travados no campo da historiografia francesa, desencadeados a partir da
“Escola dos Annales” de 1929, o historiador francês Ferdinand Braudel criticava a hegemonia da
“história de curta duração” ou “história ocorrencial”, reconhecendo não apenas a diversidade dos tempos
históricos, mas a multiplicidade de explicações historiográficas, como consequência da escolha seletiva
do historiador: “Todo trabalho histórico decompõe o tempo decorrido, escolhe entre suas realidades
cronológicas, segundo preferências e opções exclusivas mais ou menos conscientes. A história
tradicional, atenta ao tempo breve, ao indivíduo, ao evento, habituou-nos há muito tempo à sua narrativa
precipitada, dramática, de fôlego curto. A nova história econômica e social põe no primeiro plano de sua
pesquisa a oscilação cíclica (...). Hoje há, assim, ao lado do relato (ou do “recitativo” tradicional), um
recitativo da conjuntura que põe em questão o passado por largas fatias: dez, vinte ou cinquenta anos.
33

sendo arbitrária a delimitação do “momento exato”. Isso porque se entende que uma tal
exatidão só seria interessante e viável em abordagens que girassem em torno de um fato
ou acontecimento bastante específico, situado cronologicamente e moldado pela lógica
do “tempo curto” (LACOSTE: 1989: 7).

Deste modo, a discussão aqui apresentada se situa na Ciência Política, no âmbito


da Sociologia Política baseada na metodologia Sócio-História, pois adota-se como
problemática a invenção e mobilização da “interpretação constitucional” pelos políticos
sob o Regime Monárquico. Entende-se que este é o eixo adequado de estudo quando se
pretende direcionar o foco para as formas sutis de manutenção e reprodução da
dominação social, que podem passar despercebidas em face do foco sobre os “grandes
fatos” (as crises, rupturas e mudanças conjunturais do período monárquico) e nos
“grandes personagens”.

A pesquisa sócio-política baseada na História Social, diversamente, permite


reunir fontes primárias ou secundárias que apontem os modos que assumiu o uso
político do conhecimento do Direito, como uma ferramenta silenciosa de dominação,
porque os políticos, via de regra, não podem legitimar sozinhos suas próprias ações.
Eles necessitam, para isso, de um poder representado e validado pelo imaginário social
como externo ou estranho à política e que, portanto, esteja em condições de conferir ao
modelo de dominação uma autoridade insuspeita, neutra e imparcial. Neste sentido, a
política depende da voz do Direito, da voz da moral, da voz da religião ou da voz da
ciência. O caso do Brasil Império apresenta-se um caso-limite, em que os próprios
políticos desempenharam o papel de juristas.

Assim, esse dado inusitado do contexto imperial brasileiro merece um estudo


detido, uma vez que pode apontar os meios e capitais que foram lançados no jogo, de
modo a permitir que a própria elite política atuasse no papel de “fala autorizada” sobre o
sistema de dominação, ou seja, como tais agentes buscaram representar sua
“externalidade” à política, em nítida ambivalência de papéis. É neste ponto que se
problematiza o papel da ficção do publicismo jurídico como “interpretação
constitucional”, elemento que parece ter contribuído para esse fim: naturalizar a

Bem além desse segundo recitativo, situa-se uma história de respiração mais contida ainda, e, desta vez,
de amplitude secular: a história de longa, e mesmo, de longuíssima duração” (BRAUDEL: 2013: 44).
34

dominação política.

Desta forma, ao se verificar o peso das variáveis conjunturais e estruturais8 sobre


a prática doutrinária dos políticos do Império, sendo a mais relevante destas, o seu grau
de inserção nas esferas do poder, frisa-se, também, que a meta da Tese, baseada em
pesquisa qualitativa, não é de apresentar uma exaustiva análise de conteúdo dos
materiais identificados como pertinentes ao publicismo do Oitocentos, porque a análise
de conteúdo é utilizada ao final em amostra de casos, como mais um recurso da
abordagem. Da mesma forma, porque em face da extensão e do formato variado das
fontes do publicismo no século XIX, a exploração quantitativa extrapolaria os limites do
universo de pesquisa qualitativa.

Não se desconhece que houve outras vias e ambientes bastante diversos de


exercício do publicismo, dentre os quais se podem citar a Maçonaria, o Clero, o
Parlamento (Câmara e Senado), o Conselho de Estado, o Ministério e a Imprensa.
Assim, não se ignora que os materiais jornalísticos, bem como outros tipos de
impressos, possuíram grande relevância na configuração da vida política imperial, ao
lado dos projetos de lei apresentados e dos debates parlamentares travados e registrados
nas Atas das Casas Parlamentares e Executivas.

No entanto, se verifica que essas dimensões estão, atualmente, sendo cada vez
mais exploradas pelos historiadores e cientistas sociais e que, portanto, estão mais
“visíveis” quando se trata de analisar a prática publicística no cenário imperial.
Diversamente, a dimensão dos manuais de “interpretação constitucional” não tem sido
problematizada enquanto indicativa de estratégia de usos políticos do direito, e mais
especificamente, da teoria ou “doutrina” jurídica.

A publicação de obras de conteúdo político ou de teor publicista durante o


Império pode ser vista e, efetivamente, tem aparecido nas análises como uma espécie de

8
A interlocução entre a História (especialmente na linha da historiografia que promove discussões
implicadas em recortes temporais mais longos), a Economia e as Ciências Sociais seria beneficiada pelo
recurso dessas áreas às noções como “conjuntura”, “ciclo econômico” e “estrutura”. Embora utilizadas de
modo específico nas diferentes disciplinas, tais categorias de análise permitiriam uma investigação mais
abrangente da mudança social, mas também da reprodução, da continuidade e da repetição de fenômenos
(BRAUDEL: 2013: 49).
35

investimento intelectual de certos atores da elite, uma ação mais complementar, residual
e acessória em relação à intervenção política direta. Ou, então, no caso dos políticos-
bacharéis, são tratadas como um recurso a mais na busca de status intelectual por certos
indivíduos já inseridos na elite política, buscando a consagração como autores
(ADORNO: 1988: 134).

Ainda, esse tipo de prática é tomada na perspectiva da História do Livro no


Brasil, vistos estes como instrumental teórico de difusão cultural e científica, em um
cenário onde o acesso ao saber era limitado a uma camada ínfima da população e o
analfabetismo predominava, tendo, portanto, um reduzido potencial de influência sobre
a vida política e social, ainda que tenham canalizado os principais debates do período
(CARVALHO e NEVES: 2009), (NEVES: 2009; 2013), (RIBEIRO e
FERREIRA:2010) e (LUSTOSA: 2010).

Todas essas percepções são dotadas de sentido, porém aqui se trata, de modo
diverso, de pôr o foco de discussão sobre os usos políticos do saber jurídico, formatado
em manuais de Direito e Público Constitucional. Em outras palavras, pretende-se
abordar as condições em que foi sendo constituída e a que fins políticos serviu, no
Brasil, ao longo de cerca de seis décadas de Regime Monárquico, essa forma específica
de produção e manipulação do poder simbólico, que consiste em estabelecer a definição
oficial e dominante do regime político como a legítima, atribuindo a essas crenças a
representação de “constitucionais” através dos manuais de “Direito Público e
Constitucional”.

É nesse viés que a presente tese avança em relação às abordagens


supramencionadas, buscando identificar como se posicionou a “interpretação
constitucional” em face do Regime Político. Para isso é essencial a seleção de uma
amostra de autores e obras, obtida a partir de fontes secundárias, como os Dicionários
Biográficos e os trabalhos historiográficos sobre a produção de obras políticas no século
XIX.

Esse recorte metodológico de uma amostra de nomes, a partir de listas já


estabelecidas em estudos anteriores, permite que se analise grupos distintos e esparsos
em um tempo extenso, não visando a uma “biografia coletiva” ou prosopografia
36

(STONE: 2011), o que demandaria avançar sobre a vida pessoal e as redes de relações
privadas dos indivíduos. Com ele se pretende apenas adentrar nos percursos dos agentes
identificados com a prática do publicismo, buscando apontar a relação entre inserção
política e mobilização de obras jurídicas.

O acesso às fontes primárias foi relativamente prejudicado devido à escassez de


registros biográficos, precisamente sobre a inserção político-partidária, no caso de
vários agentes, bem como pelas lacunas na preservação dos manuais, sendo que apenas
alguns livros foram reeditados e/ou tiveram os originais digitalizados pela Biblioteca
Nacional. Tais fatores dificultaram uma análise mais minuciosa da relação entre trajetos
e produções simbólicas. Portanto, a construção dos dados empíricos se deu,
predominantemente, a partir de fontes secundárias. Porém, deve-se ter em conta que a
pesquisa é qualitativa e que em uma análise prosopográfica, o que a amostra ganharia
em compreensão, perderia em extensão e vice-versa (CHARLE: 1987: 19).

Por tal viés, entende-se que mesmo uma pesquisa restrita a dados sobre a vida
pública dos agentes da elite política, já disponíveis publicamente, possibilita analisar a
relação entre o grau de inserção política da população de duas amostras de publicistas:
uma “coimbrã” e outra “brasileira”, e os usos conferidos às obras jurídicas, nas quais foi
mobilizada a “interpretação da Constituição”, apontando se foi, e em caso afirmativo,
como foi utilizada para legitimar o modelo político. Isso porque as “situações
singulares” de “conjunturas passadas ou atuais” podem mostrar como “relações sociais,
estilos de relações, formas de troca e de comunicação, práticas profissionais,
engajamentos associativos”, dentre outros aspectos, podem “se tornar elementos ou
regras do espaço político e produzir sobretudo categorias de pensamento que permitem
de falar sobre ele” (LAGROYE: 2003: 4).

Neste sentido, procura-se objetivar a elaboração jurídica como publicismo, pois


o Direito é tido como um instrumento privilegiado para se captar “os processos de
constituição, estabelecimento e funcionamento do poder”, como um “revelador
excepcional desses processos, precisamente, na medida em que a forma jurídica é a
estrutura do discurso pelo qual se exprime o poder” (COMAILLE, DUMOULIN et
ROBERT: 2010: 36).
37

Reitera-se que essa linha se distancia da Sociologia Jurídica, disciplina nativa,


que não coloca o jurídico como problema político. A sociologia Política do Direito
afasta-se, portanto, das visões “juridicistas” do fenômeno político, baseadas tanto na
pretensão de autonomia absoluta do Direito, que pretende ser visto como uma “Ciência
Pura”, livre dos constrangimentos sociais e políticos, quanto na aspiração dos juristas de
serem legitimados como experts da “Ciência do Político”, ou seja, de se afirmarem na
função de estruturação do social e do político (COMMAILLE, DUMOULIN et
ROBERT: 2010: 32).

Para demonstrar, na perspectiva da Sociologia Política, quais foram as condições


sociais em que determinados agentes se apresentaram como “intérpretes da
Constituição”, transmutando certas questões políticas em “problemas jurídico-
constitucionais”, a Metodologia empregada na pesquisa é a do recurso às fontes de
História Social (CHARLE: 1987; 1997), também denominada de Metodologia da
Sócio-História (BUTONT et MARIOT: 2009). Tal metodologia liga-se à abordagem da
Sociologia Histórica do Político (DÉLOYE: 2007) e consiste na elaboração da
problemática de pesquisa a partir da interação entre a História e as Ciências Sociais,
baseada na combinação de referencial teórico, fontes e métodos de coleta de dados
empregados nessas duas áreas.

A metodologia Sócio-Histórica possui origem francesa e tem sido empregada na


abordagem de objetos e fenômenos políticos a partir de delimitações temporais diversas,
tendo em geral a característica de permitir o alcance de maior duração. Assim, ela
viabiliza apreender os contornos de um fenômeno social ou político ocorrido no
passado, inclusive o mais remoto, de modo a tomar em conta a dimensão
transgeracional do mesmo. Para isso, recorre à identificação de agentes ou grupos
sociais implicados no fenômeno estudado, cujos trajetos individuais possam ser
acessados, para desvendar seus modos de recrutamento e as condições de sua ligação
aos fenômenos, movimentos ou instituições.

Por ser originária do universo francês, este tipo de metodologia recebe na França
uma diversidade de nomenclaturas empregadas pelos pesquisadores que estudam
objetos com a postura de mesclar a perspectiva da História e das Ciências Sociais,
dentre as quais se cita: Sociologia Histórica, Sócio-História, História Política, História
38

Social, ou ainda, Neo-Institucionalismo Histórico (COSSART e TAÏEB: 2005). Uma


distinção apontada refere-se às noções de “Sociologia Histórica” e de “Sócio-História”,
no sentido de ser a primeira uma abordagem que valoriza a hibridação entre a
Sociologia Política e a História, enquanto que a segunda “seria, por contraste, um
repertório de trabalhos originários da Sociologia Crítica”, que tratam da “atualização
dos processos de dominação à distância, através da construção e da imposição histórica
de categorias estáticas” (COSSART e TAÏEB: 2005: 2).

Ambas as linhas, entende-se, mais se complementam do que se excluem. Assim,


consciente de tais distinções disciplinares e suas implicações metodológicas apontadas
nos referenciais franceses, o que interessa a esta análise é que o referencial
metodológico francês indica uma rica diversidade de formas de delimitação e
problematização de objetos de pesquisa. Neste sentido, extrai-se que a hibridação entre
a bibliografia histórica e os trabalhos de Ciências Sociais, bem como em relação aos
métodos de coleta de dados, é possível e útil para a discussão empreendida nesta Tese.
A principal contribuição refere-se ao recurso à pesquisa de trajetos individuais, com
destaque para algumas variáveis específicas, modelo que se coaduna com a proposta de
analisar a mobilização do publicismo por agentes situados no Brasil do século XIX.

Destaca-se, portanto, as vantagens dessa metodologia híbrida, isto é, baseada na


combinação entre Ciências Sociais e História: a possibilidade de usufruir das aquisições
de ambas as áreas; a superação do “presentismo”, o que permite trabalhar com objetos
“mortos” ou “desaparecidos”, de modo a ver os traços do tempo nos objetos estudados,
sejam instituições, fenômenos ou atores; a possibilidade de prestar atenção ao
“processo”, uma vez que a linearidade é fictícia, e o que existe, na verdade, é uma trama
tecida de práticas individuais, interações sociais, pesos institucionais, ligados a
contextos diversos; a possibilidade de ser um pesquisador comparatista, tanto no tempo,
quanto no espaço (COSSART e TAÏEB: 2005: 2).

A metodologia de coleta e análise de dados de percurso a partir de catálogos e


listagens durante todo o período imperial (1822-1889) permite, assim, identificar os
agentes e comparar as práticas empreendidas por duas frações da elite de publicistas do
cenário nacional. Neste sentido, clássico trabalho de C. Charle (1987), apresentando
análise das elites da República na França, indica um caminho metodológico relevante,
39

porque o autor parte de Dicionários Biográficos e Catálogos de Elites lançados nos


séculos XIX e XX, de modo a verificar com que critérios as elites da época se
autorrepresentavam. Dessas listas buscou partir para apreender os atributos dos agentes
inseridos, de modo a comparar gerações diferentes, verificando as continuidades ou
mudanças na composição e nas práticas de três frações das elites francesas no período
entre 1880 a 1900.

Tal abordagem permite captar a influência da mudança de regime político sobre


a atuação de duas gerações de membros da elite francesa, recaindo sobre a passagem do
século XIX ao século XX, cobrindo um período de trinta anos. Por isso, constitui em
relevante referencial metodológico desta Tese, apresentando um modelo de aplicação do
método de História Social, em que se relaciona a dimensão microssociológica, o que
viabiliza analisar os percursos individuais, com o plano da Macro-História Social, como
dimensão contextual, transgeracional ou trans-histórica, minimizando, com isso, os
riscos gerados pela etnografia que separa os agentes do seu contexto, levando à
hiperautonomização do grupo estudado (CHARLE: 1987:459).

Mesmo analisando um número maior de variáveis societárias, como a


geracional, a de origem social, a de origem geográfica e os modos de inserção política
dos agentes, dentre outras (CHARLE: 1987: 20), esse trabalho constitui uma importante
referência para esta problematização, na qual também se utiliza a análise de percursos
individuais como ponto de partida e se busca a relação dos mesmos com o contexto
social, a partir de uma seleção mais restrita de variáveis, mais adiante indicadas.

Outra referência metodológica da presente discussão é o trabalho sobre a


composição e atuação da “burguesia de toga” na França no século XIX (CHARLE:
1997). Nesse texto o autor problematiza, especificamente, as profissões jurídicas na
França do século XIX, vendo a atuação dos juristas dentro do quadro mais amplo de sua
afirmação como fração da elite, comparando dois modelos de reprodução social, um
primeiro ligado ao “Ancién Régime” e ancorado em estratégias de poder tradicionais,
baseados na formação e manutenção das grandes famílias de juristas, e outro que
emerge com a ascensão da burguesia, com efeitos de diferenciação social. Trabalhando
com a noção de “campo jurídico”, o autor sustenta a percepção da progressiva
autonomização e profissionalização desse segmento, iniciada no século XIX no caso
40

francês,

Deste modo, verifica-se que, mesmo recaindo sobre cenário diverso do


brasileiro, tais estudos auxiliam no tratamento do objeto da tese por apontar caminhos
metodológicos e enfocar o problema das elites e do mundo dos juristas em perspectiva
de longa duração, recaindo sobre o século XIX. Também são úteis por discutir a
aplicação de variáveis societárias na comparação das formas de acesso e reprodução
social entre agentes pertencentes a gerações distintas. A comparação entre o caso
francês e o brasileiro auxilia, ainda, a ver como a relação entre política e Direito se
estabeleceu nessas duas sociedades, distintas, porém bastante interligadas no
Oitocentos.

Assim, na presente Tese, o emprego dessa metodologia é fundamental para


analisar um grupo de agentes das elites imperiais, problematizando o sentido político de
uma prática social específica, que foi a mobilização do publicismo na forma de manuais
de “interpretação constitucional”. Não se parte, todavia, da lógica interna do “Direito
Público e Constitucional”, mas dos sentidos políticos conferidos ao mesmo pelos
agentes da época, como modo peculiar de intervenção política através da delimitação
dos sentidos das instituições.

Desta maneira, é importante frisar a importância desse tipo de suporte


metodológico para a análise, pois a construção da presente problemática emprega esse
viés de abertura sobre outros tempos históricos, como contribuição para se estender a
análise politológica para além do contemporâneo. Logo, a invenção da “interpretação
constitucional” no Império aparece na vida histórica e social, ligada ao investimento de
determinados agentes da elite política na mise en forme das instituições e das práticas do
regime imperial. Parte-se do pressuposto de que ao legitimarem certos sentidos das
instituições e desqualificarem outros, a concorrência desses agentes pelo monopólio da
autoridade de classificar algo como sendo ou não “constitucional” traduziu para o
espaço jurídico o que, em realidade, foram a luta pela dominação social e pela
apropriação dos espaços de poder.

Para se manter a análise dentro dos limites do recorte temporal escolhido,


utilizou-se como Fontes Secundárias, trabalhos de História do Brasil Império, História
41

Política do Brasil, História Social, História das Ideias Políticas e Teoria da História do
Brasil (CARVALHO: 2006; DIAS: 2009; RODRIGUES: 1974, 1978; SALDANHA:
2001), bem como os Dicionários Biobibliográficos (BLAKE: 1899; MATTOS: 1997),
Dicionários de Pensadores e de Obras Políticas (CARDOSO: 2013; PRADO: 2012), e
obras sobre a produção jurídica no Brasil Império (ALECRIM: 2011; DUTRA: 2004;
MOTA e FEREIRA: 2010).

Tais fontes viabilizaram construir uma amostra de autores e títulos, viabilizando


o rastreamento da produção de manuais de “interpretação constitucional”, caminho
fundamental para encontrar indícios da influência da esfera política sobre os usos do
direito. Os trajetos dos autores são analisados em comparação com o ambiente social em
que se movimentaram, permitindo indagar a incidência de inserção política e acadêmica
e a situação regional, como variáveis indicativas das diferenças e similitudes sociais,
refletidas em seu recrutamento.

Quanto ao Referencial Teórico da Tese, tem-se um conjunto de abordagens


históricas e sociológicas, nacionais e estrangeiras, como acima referido. Integra, deste
modo, a bibliografia um conjunto de trabalhos sociológicos e historiográficos sobre o
pensamento político no cenário político do Brasil Oitocentista e a intervenção dos
bacharéis na vida política do período monárquico, com destaque para as análises de
biografias de publicistas como José da Silva Lisboa, José Antônio Pimenta Bueno,
Paulino José Soares de Sousa e Zacharias de Góes e Vasconcelos, cujas produções
foram reeditadas e, estão, portanto, acessíveis à pesquisa.

Neste sentido, cita-se como referencial teórico sobre a sociedade brasileira do


período imperial: Carvalho (2006), Costa (2010), Ferreira (1954), Rodrigues (1974;
1978), Melo (1979), Simões (1983), Adorno (1988), Mattos (1987), Franco (1997),
Bastos (1998), Ferreira (1999), Faoro (2000), Iglesias (2001), Saldanha (2001), Alonso
(2002), Kugelmas (2002), Oliveira (2002), Mercadante (2003), Neves (2003), Holanda
(2004), Carvalho (2002; 2005; 2006), Grijó (2005), Venâncio Filho (2005), Fausto
(2006), Dutra (2004), Lustosa (2010), Ferreira e Botelho (2010), Sodré (2004), Lynch
(2010), Mota e Ferreira (2010), Weffort (2006), Kirschner (2009), Alecrim (2011) e
Prado (2012).
42

Partindo-se desse levantamento bibliográfico, se detecta a existência de estudos


brasileiros problematizando a relação entre os bacharéis e a política imperial, dentre os
quais destacam-se, primeiramente, as já clássicas análises de Venâncio Filho (2005),
Carvalho (2006), Adorno (1988) e Alonso (2002), bem como a relevante Tese de
Doutorado de Grijó (2005). Tais contribuições podem ser consideradas relevantes para
esta abordagem, embora não tenham desenvolvido especificamente o problema dos usos
políticos da “interpretação constitucional” no Império, porque colocaram o problema da
configuração do sistema político imperial e sua relação com a formação intelectual e
jurídica, apontando a centralidade da condição de bacharel na vida política brasileira
desse período, identificada como “política dos bacharéis” ou “bacharelismo”.

Nessa linha, têm-se as contribuições de José Murilo de Carvalho (CARVALHO:


2006), analisando aspectos como a formação comum da elite e sua atuação política,
apontando as condições da homogeneização cultural das elites imperiais com base em
sua socialização na Universidade de Coimbra, combinada com a experiência em postos
políticos e burocráticos no Estado Português e Brasileiro. Tais pontos podem ser tidos
como cruciais para se discutir o nível de compartilhamento político e ideológico dessas
frações letradas.

Também se destaca a contribuição da análise apresentada por Alberto Venâncio


Filho (VENÂNCIO FILHO: 2005). Tal trabalho, publicado originalmente em 1977, não
coloca o problema da mobilização política de obras jurídicas, mas situa na experiência
de 150 anos do ensino jurídico brasileiro a histórica fragilidade da estrutura escolar
desde o Império, marcada pela escassez de faculdades e pelas precárias condições do
ensino, ao apontar aspectos como a baixa frequência dos lentes às aulas, seu
desinteresse pelo ensino, com algumas exceções, o problema da indisciplina dos alunos,
a questão do controle do governo sobre as academias, a herança do Direito ministrado
em Coimbra, as sucessivas reformas curriculares, a questão dos métodos de ensino e dos
materiais disponibilizados, mencionados como característicos da formação jurídica
imperial.

A abordagem desses problemas coloca a análise de Venâncio Filho como uma


contribuição importante para esta tese, por fornecer fatores explicativos da não
autonomização do mundo jurídico e acadêmico, com efeitos sobre o sentido da
43

mobilização da produção doutrinária do Direito, ou seja, sobre os contornos da


representação social do “jurista” no cenário imperial.
A discussão apresentada por Sérgio Adorno (ADORNO: 1988), que tem como
questão central o papel fundamental que os bacharéis de direito do Império exerceram
na vida política nacional, não problematiza a formação escolar em si, mas mostra que a
formação foi muito mais extraescolar, tomando esta como explicação da “vocação
política” dos bacharéis, a partir do caso da Escola de Direito de São Paulo. Sua
abordagem é relevante para a presente tese porque aponta o fato de que as Escolas de
Direito imperiais e, no caso estudado, a Escola Paulista, não funcionaram propriamente
como promotoras da “Ciência Jurídica”, mas como espaços de socialização dos filhos
das elites e como trampolins para o seu ativismo político e cultural, pois eram lançados
não apenas na vida profissional, mas na vida política a partir de sua inserção acadêmica.

Como um celeiro de políticos-bacharéis que se tornaram homens políticos


ligados aos ideários liberais, a vivência na Escola jurídica teria fornecido as bases da
emergência do “bacharelismo”, a modelagem da militância pela via das associações
estudantis e da imprensa acadêmica, de um lado, combinada com a demanda do Estado
por quadros qualificados. A principal utilidade dessa explicação reside no argumento de
Adorno de que o “bacharelismo” explicaria a baixa produção jurídico-científica dos
egressos desse ambiente.

Assim, a conclusão de Adorno de que os bacharéis liberais formados em São


Paulo, a partir de 1828, estiveram muito mais voltados ao exercício do publicismo
jornalístico e às atividades militantes, ocupando, após formados, postos na esfera
burocrática e nas carreiras políticas, é relevante para a análise aqui empreendida, porque
seu argumento foi apontado como explicação do efêmero investimento na produção de
conhecimentos jurídicos através de obras doutrinárias no contexto do Império. Adorno
infere que a pequena produção doutrinária dos políticos bacharéis formados em São
Paulo não teria sido motivada por preocupações científicas, sendo, na realidade,
resultante do interesse pessoal desses agentes em adquirir um status intelectual
(ADORNO: 1988: 134). Essa interpretação é discutida e refutada na presente tese.

Com relação ao trabalho de Alonso (2002), tem-se a problematização da questão


do movimento intelectual da geração de 1870, apontado como mobilização política com
44

sentido de contestação ao sistema imperial. A autora emprega o argumento da


combinação de repertório (nacional e europeu), comunidade de experiência e estrutura
de oportunidades políticas, para demonstrar os usos políticos das produções intelectuais
desse cenário. Embora sustentada em outro eixo teórico, sua análise é útil a esta tese
porque apresenta um caso de uso político de produções doutrinárias. A produção
intelectual do movimento da geração de 1870 teria sido uma forma de ação (ALONSO:
2002:39), situada no cenário de crise do Império, tido como um contexto de inexistência
de um campo intelectual dotado de autonomia relativa.

A abordagem de Alonso também oferece um contraponto relevante à tese aqui


desenvolvida, pois a autora entende que no Império não havia um texto de fundação, de
modo que a ordem teria contado mais com práticas do que com doutrinas expressamente
formuladas (2002: 52). Assim, Alonso despreza o peso político e simbólico da
“Constituição”, expressa no texto normativo de 1824 e, logo, negligencia a extensa
produção de manuais de “interpretação constitucional” como mecanismo que refletia a
preocupação dos agentes identificados com a ordem em legitimar e difundir os
princípios políticos e as tomadas de posição das frações dominantes.

Outro equívoco cometido na análise, e que é refutado nesta tese, consiste em


considerar a existência de um consenso tácito em torno da ordem, uma vez que
“ninguém se abalou em justificar os pilares da ordem imperial senão quando entraram
em risco de desaparecimento” (ALONSO: 2002: 52), ignorando, portanto, as lutas
recorrentes travadas em torno da delimitação dos contornos do Regime imperial, bem
como a expressiva produção de obras jurídicas no formato de manuais de “interpretação
constitucional” manifestada tanto pela geração de políticos-bacharéis dita “coimbrã”
(1824-1840), quanto pela geração “brasileira” (1857-1882).

O conjunto da bibliografia especializada sobre o papel dos juristas na construção


do Estado inclui também outras abordagens, que apontam para a relação entre político e
jurídico, indicando problemas como: a relação entre bacharéis e política (SIMÕES:
1983), o debate entre políticos-bacharéis no Império (FERREIRA: 1999) e o papel dos
juristas na construção do Estado nacional (MOTA E FERREIRA: 2010).

Refira-se, ainda, que através do levantamento bibliográfico se alcançou


45

selecionar um referencial teórico estrangeiro, na linha da Sociologia Política do Direito,


consistente em variados trabalhos que problematizam o direito e o “constitucionalismo”,
especialmente, no caso francês. Essas análises são fundamentais para a presente tese,
pois oferecem caminhos de problematização da relação entre o político e a produção
“teórica” dos juristas, isto é, sobre os usos políticos da “doutrina jurídica”, contribuindo
para a construção do objeto de pesquisa.

Neste conjunto de trabalhos encontra-se a problematização de temas como: usos


sociais das ciências e as condições de legitimidade dos juristas para se tornarem os
detentores oficias da fala autorizada sobre a política (BOURDIEU: 1981; 1886; 1991;
2004), os fenômenos da juridicização e da judicialização da política (COMMAILLE,
DUMOULIN et ROBERT: 2010), a mudança de status da doutrina jurídica frente ao
surgimento de um mercado internacionalizado de bens e serviços jurídicos (DEZALAY:
1993), as condições de promoção dos “intérpretes” do direito na cultura política
(CHEVALIER: 19993), as condições da ascensão do constitucionalismo na França a
partir dos anos 1980 como espaço autônomo diante da esfera política (FRANÇOIS:
1993; 1996) e a questão das formas de intervenção política dos “constitucionalistas” no
cenário francês (LACROIX: 1992) e (POIRMEUR e ROSEMBERG: 1989), o uso
político das ciências (DÉLOYE: 2007), (DÉLOYE,IHL e JOIGNANT:2013), a
mobilização dos professores e os usos do direito constitucional na legitimação da
Terceira República da França (SACRISTE: 2011).

Tais análises desenvolvidas na França nas últimas duas décadas do século XX,
embora tomem a relação entre os planos político e jurídico a partir da noção de
autonomia relativa dessas esferas sociais, colocam luzes sobre a mudança de papéis e a
função política do Direito e da produção de doutrina jurídica, fornecendo parâmetros
para a problematização da relação entre publicismo jurídico e a luta política.
Exatamente por ser distinto do cenário imperial brasileiro, o contexto francês discutido
nesse referencial oferece contrapontos relevantes para compreender a relação entre a
esfera política e a produção de doutrina jurídica no Brasil do século XIX. Este
representa um universo em que não estavam dissociadas a atividade intelectual e a
prática política, ou seja, tratava-se de um contexto caracterizado pela inexistência de um
campo intelectual autônomo (ALONSO: 2002: 38).
46

Logo, o principal contraponto oferecido em relação ao problema dos usos


políticos do publicismo na forma de doutrina constitucional ou “constitucionalismo”
pelo caso francês, reside na sua apreensão como uma prática ancorada no espaço
acadêmico, que ao final do século XIX já poderia ser considerado relativamente
autônomo, como exemplifica o trabalho de Sacriste (2011) sobre os usos do Direito
Constitucional na Terceira República, implicando políticos republicanos e professores
de Direito Constitucional das faculdades de Direito.

Há uma diversificada gama de abordagens que situam as diversas práticas


jurídicas no âmbito da discussão do social e do político, situando-se em linhas como a
da Sociologia do Campo Jurídico, a da Sociologia Política do Direito, a da Sócio-
História do político e, ainda, a da Sociologia da Justiça e das profissões jurídicas. Pode-
se citar trabalhos com os de Bernard et Poirmeur (1993); Bourdieu (1986); Commaille,
Dumolin et Robert (2010); Dezalay (1993); François (1993; 1996); Sacriste (2011);
Bastard et Mouhanna (2010).

A partir desse referencial é possível empreender a problematização da “doutrina


jurídica” enquanto “publicismo” ou “constitucionalismo” como dimensão da prática
social e política. Tem-se como exemplo o estudo de Sacriste sobre o cenário francês do
final do século XIX, no qual emergiu a figura do “constitucionalista”. Esse papel,
assumido pelos professores de Direito Constitucional, serviu para a causa republicana
(SACRISTE: 2011), um aspecto que pode ser confrontado ao caso brasileiro do mesmo
período.

Ao analisar a aparição da figura do “constitucionalista” no advento da Terceira


República francesa, Sacriste aponta que, até então, os civilistas (professores de Direito
Privado, especialmente o Direito Civil) mantiveram-se em posição hegemônica nas
escolas de Direito, sendo os juristas beneficiados pelo Antigo Regime. Com o advento
da República, ao final do século XIX, mais precisamente em 1879, foi fundada a
primeira cadeira de Direito Constitucional na Faculdade de Direito de Paris, mostrando
que a nova elite política em ascensão articulou-se com os juristas “publicistas” em um
contexto de transição de regime político, como modo de garantir a instauração da
47

República (SACRISTE: 2011: 12)9.


Outro aspecto relevante de diferenciação entre os dois cenários, é que a evolução
da produção dos doutrinadores franceses se ordena progressivamente com base no
crescente antagonismo da distinção entre as disciplinas de “direito público” e “direito
privado”. Isto significa que naquele cenário, durante os séculos XIX e XX, se processou
maior distinção disciplinar, o que levou à construção da imagem do “publicista” ou
“constitucionalista” francês como figurando em oposição aos juristas identificados com
outras áreas, sobretudo com o direito “privado”, a disciplina de direito civil, e vice-
versa. Essa diferenciação estaria ligada, portanto, ao processo de autonomização dos
campos sociais e à crescente disputa disciplinar, o que remete ao aumento progressivo
da concorrência entre as disciplinas jurídicas e a uma divisão mais rígida do trabalho
teórico jurídico. Tais aspectos diferem significativamente do caso imperial brasileiro.

Desta forma, identifica-se uma maior ênfase da Sociologia Política do Direito


sobre o caso francês no período contemporâneo, especificamente, nos anos 1990,
tratando do fenômeno da mudança de papel do Conselho Constitucional a partir da
segunda metade do século XX. Esse momento representa a formação de uma
“jurisprudência constitucional” na França, mudança associada ao trabalho de
legitimação do novo modelo político, empreendido pelos próprios doutrinadores
constitucionalistas. Estes, interessados na ampliação de suas chances de ascensão
disciplinar e na ancoragem de seu reconhecimento, a levaram a um reposicionamento,
atuando enquanto agentes da doutrina publicista, não apenas dentro do quadro do ensino
jurídico francês, mas também em relação à regulação do universo social e político.

Assim, no caso francês, os usos políticos do Direito no final do século XIX e no


século XX apontam a articulação entre o ensino jurídico e as práticas políticas,
emergindo desse cenário novas práticas judiciais e a abertura de um novo mercado de

9
Guillaume Sacriste recorre à história social francesa, adentrando no século XIX para demonstrar a
articulação entre saber constitucional e argumentos políticos na ancoragem da Terceira República.
Segundo o autor é relevante explorar o papel do Direito Constitucional e de seus professores em uma
configuração de transição política, que no caso francês esteve marcada pela instalação delicada e
progressiva da República democrática. Ele aponta que desde 1879 as teorias constitucionais, enquanto
produtos simbólicos, passaram a estar à disposição dos políticos e da sociedade civil para difundir os
valores e justificar os princípios da nova ordem política republicana, sendo que aqueles que as produziam
pareciam, ao contrário, não ter incidência sobre esse processo. Essa ocultação se apoiaria no fato de que a
produção das teorias constitucionais pode aparecer como relativamente autônoma em relação às lutas
propriamente políticas e às mobilizações coletivas (SACRISTE: 2011: 13).
48

bens doutrinários. A mobilização da “interpretação da Constituição” francesa de 1958


foi relacionada a fatores externos ao universo jurídico, como a pressão neoliberal e a
internacionalização dos capitais, implicados nas mudanças no modo de atuação dos
juristas, inclusive na dimensão “teórica”, suscitando significativo interesse sociológico,
do qual resultou um tipo de abordagem que problematiza a elaboração jurídica10.

Por isso, esses trabalhos que datam das décadas de 1989, 1990 e 2000 vêm
refletindo novas abordagens sociopolíticas11 sobre o fenômeno jurídico, destacando suas
relações com a esfera política nacional e internacional, bem como a formação e os usos
da “Ciência do Direito”. Eles exploram questões como a lógica que preside o
funcionamento e a estruturação do mundo da elaboração dos saberes jurídicos e as
condições da manutenção de sua posição, tradicionalmente vinculada ao domínio
escolar, às elites políticas e ao poder de Estado.

Advirta-se que mesmo empregando o conceito de “campo social” para tratar do


direito, o que se considera incompatível com o caso do Brasil imperial, a vertente
francesa da Sociologia do campo jurídico (BOURDIEU: 1986; 1991) pode ser
considerada a contribuição teórica que principiou a problematização do trabalho
simbólico dos juristas, sendo essencial para a análise das práticas dos políticos-
bacharéis do Império, na medida em que o autor discutiu a função política do trabalho
de teorização sobre o mundo social e político exercido pelos juristas.

Com base nesse referencial, detecta-se que a dimensão “prática” do Direito é


indissociável da sua esfera “teórica”, mesmo em um caso como o francês, em que se
consagrou a autonomia relativa do corpo de juristas. Deste modo, ambas as dimensões
ligam-se e se relacionam com a esfera política, em grau mais ou menos explícito e
direto, dependendo do cenário histórico e social.

10
Trata-se da perspectiva que toma a “Ciência Jurídica” como objeto (diferenciando-se do teor adotado
pela História do Direito e pela Sociologia do Direito), surgida ao final da década de 1980, com as análises
de Pierre Bourdieu em: “Décrire et Prescrire” (BOURDIEU: 1981); “La force du droit: elements pour une
sociologie du champ juridique” (BOURDIEU: 1986) e “Les juristes: gardiens de l’hypocrisie collective”
(BOURDIEU: 1991).

11
A partir dos anos 1990 apareceram novas abordagens enfocando o papel político dos juristas dentro de
estudos de elites e com alguns trabalhos destacando as práticas dos constitucionalistas e da doutrina:
Karady (1991), Poirmeur et Rosemberg (1989), Lacroix (1992), Chevallier (1993), Bernard et Poirmeur
(1993), François (1993), Dezalay (1993) e Sacriste (2011).
49

Por isso, verifica-se que a dimensão “teórica” não representa um papel de menor
relevância quando se trata de apreender a lógica que preside os usos políticos do
Direito. Isto porque o binômio “teoria-prática”, apresentado pelos juristas como um
antagonismo, dissimula, na verdade, o que são lógicas distintas, porém interligadas em
uma dinâmica através da qual os agentes das carreiras práticas (advogados, magistrados,
promotores) e os teóricos (autores de obras jurídicas que, em geral, também são
professores de Direito) competem pelo monopólio de “dizer o Direito”, repercutindo a
hierarquia estruturante do social e contribuindo, assim, para a sua naturalização, que é
sua força ou eficácia simbólica, seja sustentando ou contestando a dominação política
(BOURDIEU: 1986).

Adota-se, a partir dessa vertente sociológica, a noção de que a eufemização dos


debates políticos em interpretações jurídicas possibilita a determinados agentes da elite
fazer política sob a fachada de doutrinadores. Portanto, extrai-se que essa prática
contribui prioritariamente com a reprodução da dominação social, instituindo o sentido
oficial das regras para que o arbitrário seja aceito como neutro, abstrato, imparcial,
desinteressado e universalmente válido. Trata-se, portanto, dos efeitos de
“naturalização” e “universalização” daquilo que, na verdade, é singular e historicamente
situado, que emana das definições jurídicas (BOURDIEU: 1986).

Estas referências, dentre outras, formam o conjunto da bibliografia mobilizada,


seguindo-se a orientação metodológica sócio-histórica e buscando-se inferir de tais
análises do contexto imperial, somadas a dados de percursos individuais, a compreensão
dos usos da estratégia doutrinária. A integração da bibliografia de Sociologia Política
francesa com a bibliografia brasileira permite abordar o problema em sua singularidade,
destacando a influência do publicismo francês sobre o brasileiro nesse período.

Os dados empíricos são extraídos dos meios que canalizam o objeto de estudo: a
invenção da “interpretação constitucional” que se processou através dos manuais de
“Direito Público e Constitucional” e sua relação com o Regime Imperial. Tal foco
implica analisar o teor de politicidade presente nessas produções, porém não visando
compreender o seu conteúdo em si, mas a sua relação com a inserção política de seus
autores. Destaca-se, neste sentido, a contribuição dos Dicionários de Obras arroladas
50

como “políticas” ou de “publicismo”, comparadas com outras listagens de obras,


enquadradas no rol da produção jurídica brasileira de Direito Constitucional durante o
Regime Monárquico, anteriormente referidas12.

Assim, citam-se como fontes sobre a produção intelectual no contexto


monárquico os trabalhos de: Adorno (1988), Alecrim (2011), Alonso (2002), Carvalho
(2006), Dutra (2004), Hallewell (2012), Neves (2003), Prado (2002) e Saldanha (2001).
Dos dados fornecidos por essas fontes, procura-se filtrar os manuais de “Direito Público
e Constitucional” lançados durante o Império como ponto de partida para mapear a
existência do conjunto de agentes identificados com a invenção da “interpretação
constitucional”.

Desta forma, do conjunto de trabalhos que integra o referencial teórico extrai-se


os elementos relevantes para identificar o sentido político predominante no
“publicismo” do Império, especialmente, quando este é apropriado pelos políticos-
bacharéis e adquire o formato de “doutrina jurídica”, isto é, de manuais de
“interpretação constitucional”. Assim, caminhos para a identificação dos atributos dos
agentes e os tipos de capitais mobilizados para realizar a intervenção política a partir do
discurso jurídico consiste na contribuição central extraída do Referencial empregado na
presente discussão.

Desta filtragem teórica passa-se à coleta de certos dados biográficos dos agentes.
Para analisar a relação entre a mobilização do publicismo em formato jurídico e a
posição política, coloca-se ênfase em três tipos de variáveis: 1º) Variáveis de Percurso:
a) origem geográfica; b) ano e local de nascimento; c) ano e local formação superior; d)
inserção ocupacional (sobretudo quanto à atuação político-partidária, burocrática e/ou
acadêmica); 2º) Variáveis relativas à produção de manuais jurídicos: a) autoria, ano e
local de publicação; b) editora e existência de reedições; 3º) Variáveis relativas à
politicidade da “interpretação constitucional” expressa nos manuais jurídicos: a) título
do manual; b) formato do manual: c) temas e controvérsias tratadas; d) traduções; e)
recurso à citação de doutrinadores estrangeiros, especialmente os franceses, e por fim, f)
recurso às estratégias de linguagem que operam a universalização, a abstração e a

12
Vide página 19.
51

eufemização das tomadas de posição, voltadas para a conversão dos temas políticos em
questões científico-jurídicas.
O conjunto dessas variáveis permite identificar os usos políticos conferidos à
“doutrina jurídica”, bem como indicar a orientação seguida e as tomadas de posição
camufladas e relacioná-las com a estrutura das lutas políticas. Essa abordagem dos
manuais permite ver, portanto, como se estabeleceu a formatação da disputa política em
controvérsia jurídica. Como já referido, isso significa verificar em que condições se
processou, no Império, a invenção da “interpretação constitucional” pelas elites
políticas. Pode-se, ainda, apontar a correlação entre o teor das obras e os programas dos
político-partidários, bem como indicar as questões em disputa entre as frações de elite
ligadas a partidos políticos, especialmente, no contexto de 1850 em diante, considerado
o “auge” do período monárquico.

Portanto, o Recorte Empírico da Tese recai sobre uma população de vinte e


quatro agentes que figuraram como “publicistas”, isto é, os agentes que investiram em
manuais de “interpretação constitucional”, publicados entre 1824 e 1885, e mais oito
nomes que mobilizaram traduções de manuais de “doutrina constitucional” estrangeiros,
computando um total de trinta e dois indivíduos. Devido à necessária delimitação do
objeto de estudo, foram excluídos desse universo empírico os agentes cujas obras
jurídicas estão classificadas como pertinentes a outras disciplinas ou “ramos” do
Direito, ainda quando representados como “publicísticas” ou integrantes do “Direito
Público”, como: obras de Direito Tributário, Direito Internacional Público ou Direito
das Gentes, Direito Natural, Direito Processual, Direito Criminal ou Penal e Direito
Eleitoral.

Pela mesma razão foram deixados de fora do universo da pesquisa os textos que
reproduzem os discursos parlamentares (mesmo os que constam como de autoria dos
agentes estudados), também levando-se em conta que a forma originária de sua
expressão foi a oralidade e não os manuais jurídicos. Além dessas, as obras de teor
literário, as memórias, as biografias, os trabalhos historiográficos, mesmo aqueles que
constam como de autoria dos agentes analisados, também ficaram fora do recorte
empírico. Excluiu-se, ainda, os manuais de “Direito Público e Constitucional” que
embora tenham sido publicados durante o século XIX, surgiram a partir de 1889, sendo
considerados como pertinentes ao período republicano.
52

Frisa-se que a seleção da amostra de agentes e obras não pretendeu ser


exaustiva, mas fornecer elementos para se principiar uma problematização da
intervenção política através dos manuais de “doutrina jurídica”, com base nos percursos
das frações da elite imperial que os mobilizaram. Portanto, reitera-se que a metodologia
da Sócio-História, escolhido para o desenvolvimento da Tese, implica em realizar uma
etapa preliminar de identificação da herança histórica que influenciou a formatação do
publicismo jurídico da elite “coimbrã” (1824-1840) e, em etapa posterior, requer a
visualização do panorama doutrinário em relação ao contexto político-partidário que se
molda a partir de 1837, e liga-se à entrada em cena da elite “brasileira”, como requisitos
para se apreender um panorama das tomadas de posições dos políticos representados
como “publicistas” do Império.

Quanto à Estruturação do texto, a Tese está dividida em quatro capítulos. No


primeiro capítulo, de teor descritivo, se busca apreender os contornos sociais dos
ideários presentes no publicismo brasileiro herdados da época colonial e que
conformaram as disputas de sentidos conferidos à noção de “constitucional” nas
condições do final do século XVIII e início do XIX. Visa-se, aqui, apontar os principais
fatores sócio-históricos que repercutiram na mobilização de ideários publicistas antes e
durante o processo de emancipação nacional.

No segundo capítulo, se discute as repercussões do processo de fundação do


Estado de estruturação da concorrência política regional sobre os usos do publicismo,
verificando como se processa a partir da Independência, a relação entre publicismo e
institucionalização política.

No terceiro capítulo, analisa-se as repercussões de fatores conjunturais, como a


vinda dos livreiros franceses para o Brasil, da instalação da Assembleia Constituinte de
1823, sua dissolução e a outorga da Constituição de 1824, e, ainda, a fundação dos
cursos jurídicos em 1827, sobre a invenção dos manuais de “interpretação
constitucional” pela elite “coimbrã” dos políticos-bacharéis. Parte-se de uma amostra de
doze manuais publicados entre 1824 e 1854.

E por fim, no quarto capítulo, se coloca em destaque a questão dos usos


53

políticos dos manuais publicistas pela elite “brasileira” de políticos-bacharéis, situada a


partir de 1857. Emprega-se a amostra de agentes formados nas escolas brasileiras e que
formaram a bibliografia brasileira de “Direito Público e Constitucional”. Discute-se a
relação entre os trajetos individuais dos autores de uma amostra de dezesseis obras
jurídicas, publicadas entre 1857 e 1882, com a intervenção política através de manuais.
Ao final, pontua-se alguns casos ilustrativos desse modo de intervenção pela elite do
Segundo Reinado, apontando a orientação e as questões políticas eufemizadas como
“problemas constitucionais”.

Reitera-se, por fim, que os percursos e obras objeto da análise de casos


empreendida nos dois últimos capítulos foram selecionados a partir da amostra geral de
manuais de publicismo jurídico obtida na pesquisa. Ela fornece casos ilustrativos dos
posicionamentos de duas amostras de publicistas, uma “coimbrã” e a outra “brasileira”,
situados entre os polos que moldaram a luta política imperial a partir de 1837: o
“conservador” (saquarema) e o “liberal” (luzia).

Essa polarização política correspondente à dicotomia partidária que se


estabeleceu no Regime Imperial, e que só se tornou passível de relativização a partir da
década de 1860, quando se tornam mais nítidas as clivagens internas e surgem outras
configurações partidárias. Porém, o teor binário da disputa política até 1860 confere à
presente abordagem uma chave de compreensão importante, na medida em que viabiliza
apontar de modo mais nítido a repercussão dos vínculos político-partidários sobre o
plano dos usos do saber jurídico, apontando o grau de eufemização das lutas formatadas
em manuais de “interpretação constitucional”.
54

CAPÍTULO 1 – CONTORNOS SÓCIO-HISTÓRICOS DO PUBLICISMO: OS


SENTIDOS DE “CONSTITUCIONAL” NA CRISE DO SISTEMA COLONIAL

É no âmbito do processo histórico brasileiro do final do Setecentos e início do


Oitocentos que se encontram as condições sociais que influenciaram na intervenção
política na forma de publicismo, isto é, na apropriação dos sentidos da vida política por
parcelas da elite. A mobilização de ideários políticos apareceu, assim, como arma de
luta política ligada à definição dos rumos nacionais, recaindo no processo de construção
e consolidação do Estado brasileiro.

O objetivo deste primeiro capítulo é, portanto, inferir, do contexto do final do


século XVIII e das primeiras duas décadas do século XIX, as condições que moldaram
o publicismo brasileiro, seja pela introdução de termos e noções do publicismo
estrangeiro, seja pela mobilização de formulações nativas, ligadas aos interesses e
problemas locais. Isto se considerando que o publicismo desse contexto não apenas
antecedeu cronologicamente à apropriação da “interpretação da Constituição” como
monopólio dos políticos-bacharéis, mas influiu na consagração dos manuais de
“interpretação constitucional” como forma por excelência de eufemização de lutas
políticas, gerando um padrão de intervenção política favorável aos juristas, pela via das
obras de “direito público e constitucional”, por longo tempo após a formalização da
Independência.

Portanto, frisa-se que a definição de publicismo aqui empregada é a de um tipo


de prática social utilizada por partes da elite em concorrência pelos espaços de poder e
voltada à expressão de ideários políticos. Por isso, trata-se de prática situada e
condicionada no tempo e no espaço, uma prática social e histórica. Como modo de
mobilização política, vinculado a uma época e a uma sociedade determinadas, é possível
falar-se em “publicismo brasileiro” e “publicismo francês”, bem como em “publicismo
oitocentista”, “publicismo republicano”, “publicismo pós-88”. Tais expressões, além de
o situarem espacial e historicamente, implicam na consciência da diversidade de
contextos e, portanto, de conteúdos e formatos que pode assumir.

Por se apreender publicismo como arma de luta política, se pode questionar por
55

que certos atores sociais que, via de regra, são frações da elite, formam grupos que
investem de modo mais intenso nessa espécie de intervenção política. A indagação
implica em pensar os elementos que facilitaram esse acesso privilegiado a tais meios de
difusão pública de ideários. Considera-se, portanto, que o publicismo não constitui um
fim em si mesmo, não sendo motivado pelo ideal científico ou filosófico, isto é, ao
desenvolvimento das ideias, mas objetiva a difusão de visões do mundo social com
vistas a convencer os demais atores sociais a aderir a determinadas causas.

O publicismo é captado, nesta perspectiva, como repercussão da estrutura social


desigual, refletindo o estado da concorrência pelos espaços de poder. Detecta-se que tal
prática tem sido expressa de diversos modos ao longo do tempo, sendo que no século
XIX esteve formatada, sobretudo, em textos escritos, mesclando linguagem coloquial
com registros eruditos da linguagem, originários da Teologia, da Filosofia, da Ciência
Política, do Direito e da Economia, dentre outras. Logo, no caso estudado, que é o do
Brasil Oitocentista, verifica-se que foi através da difusão de textos que os diversos
ideários políticos foram postos em concorrência, estando seus agentes inseridos na
estrutura de dominação existente. As variáveis circunstanciais tiveram influência, como,
por exemplo, o estado da circulação internacional das ideias.

Deste modo, o publicismo é definido como conjunto de discursos escritos,


difundidos no meio social a partir de diversos veículos, sobretudo da imprensa, em que
os agentes procedem à mobilização de termos e expressões, empregadas como
ferramentas de tradução do mundo social e político, oferecendo sustentação às tomadas
de posição política. Dito de outro modo, o publicismo apresenta-se como interpretação
da vida social e política e do funcionamento das instituições, representando uma forma
de intervenção política, pelos usos de vocabulário que se integra ao universo
propriamente “político”.

Nesta abordagem, detecta-se que o publicismo brasileiro no Oitocentos


comportava uma variedade de práticas de mobilização pública de ideários políticos,
expressas em diferentes formatos, sendo os principais: os textos impressos em jornais e
folhetos, as obras jurídicas, as obras contendo narrativas históricas, os discursos
acadêmicos e os discursos parlamentares, embora nestes as opiniões sejam expressas
através da oralidade. Porém, como referido anteriormente, a análise se restringirá às
56

manifestações escritas do publicismo, em que se sobressaem duas, ligadas a dois


contextos distintos: a forma jornalístico-panfletária e a forma das obras jurídicas, de
modo a poder comparar o padrão jornalístico com aquele dos manuais de “interpretação
constitucional”, apontando as condições sociais que permitiram às frações da elite se
apropriar dessas duas formas de intervenção política.

Inicialmente, busca-se verificar as condições que moldaram o desenvolvimento


da prática do publicismo no período anterior à Independência para apontar o peso do
social sobre a definição dos sentidos do que seria “constitucional” e que iria repercutir
na mobilização da doutrina jurídica, após a Independência, gerando um novo padrão de
publicismo, mobilizado ao longo do período imperial.

1.1 O publicismo anterior à Independência: usos e sentidos de “constitucional”


herdados da história colonial

A partir do cenário social brasileiro do final do Setecentos, infere-se certos


fatores sociais que poderiam repercutir no teor e na formatação do publicismo. Assim,
na dimensão interna, verifica-se que a centralização do poder na Metrópole portuguesa
inseria-se em um cenário de progressiva contestação do sistema colonial, ligada a
mudanças na esfera econômica, cultural e social. Tratava-se de um cenário de “agitação
geral”, com rebeliões em várias capitanias, como a Guerra dos Mascates (1710-1711),
em Pernambuco, e outras, na Bahia e em Minas, como a Inconfidência Mineira (1789)
(AB’SABER et al: 2008:34).

O governo nesse momento intensificou as medidas e a produção de legislação


em face da crise na economia mineradora e na agricultura em geral, que o extrativismo
corroía desde o início do século, gerando reformas paradoxais, que consolidavam o
regime colonial e, ao mesmo tempo, insuflavam força ao processo de Independência.
Uma dessas mudanças foi a transferência da capital da Bahia para o Rio de Janeiro
(AB’SABER et al: 2008: 54).
57

Deste modo, pode-se tomar o cenário de crise econômica, contestação local e


derrocada do domínio colonial como um contexto de referência preliminar e
fundamental para se apreender os contornos da prática do publicismo no início do
Oitocentos e para verificar sua repercussão na dinâmica de solidificação dos usos
políticos do termo “constitucional” e expressões afins, moldando seus sentidos no
âmbito das lutas políticas.

Desta forma, é relevante ressaltar que mesmo antes da ruptura formal e oficial
com o domínio político de Portugal em 1822 já se contava com a existência de uma
representação local do Brasil como sociedade nacional, pois apesar da estrutura social
desigual e escravista, foi em face da ocupação do litoral e dos sertões pelos portugueses
que a sociedade brasileira contou, desde a primeira metade do século XVIII, com uma
“integração nacional praticamente concluída” (AB’SABER et al: 2008: 35). Florestan
Fernandes também aponta esse aspecto, indicando que, embora ainda não existisse
como nação, “o país possuía, graças ao desenvolvimento socioeconômico no período
colonial e ao legado português, alguma unidade interna e fortes tendências para
preservá-la” (FERNANDES: 2005: 72).

Verifica-se, assim, que aparece como um fator explicativo dessa representação


de “nação” a conquista territorial pelos portugueses e a existência pré-nacional de uma
vida social, econômica e cultural, que já promovia o movimento de interligação, pois os
colonizadores conseguiram, em trezentos e vinte e dois anos de domínio, manter a
unidade do território (IGLESIAS: 2001: 112). Deste modo, seria a definição do mapa de
uma nação, com oito milhões de quilômetros quadrados de extensão, dotada de unidade
de língua, religião, práticas, costumes e crenças, a base para a integração desigual e
hierarquizada entre brancos, negros e índios. Apesar da concentração demográfica na
região litorânea e nas principais cidades agroexportadoras do Norte, Nordeste e Sudeste,
a população do Brasil em 1822 já teria atingido em torno de três milhões e setecentos
mil habitantes (IGLESIAS: 2001: 113).

Um outro fator social relevante referido, que é a circulação internacional das


ideias, deve ser analisado no bojo dessas condições, em que as elites letradas nascidas
no Brasil recepcionavam uma série de ideários políticos originários do mundo europeu e
norteamericano e os adaptavam aos problemas locais.
58

Essa influência tem importância, sobretudo, porque a Europa, desde o século


XVII, já vivenciava um contexto de contestações não só na estrutura política, mas pelas
vias culturais, denominado “Iluminismo”. Tratava-se de contestações da vida política,
econômica e social, abrangência que colocava em xeque não apenas as formas
tradicionais de legitimação das instâncias governativas, isto é, as Monarquias
Absolutistas, mas implicava em demandas por laicização, cidadania e direitos,
traduzidas em lutas e sintetizadas como “Constitucionalismo” 13.

Deste modo, verifica-se que a transição entre os séculos XVII e XVIII na Europa
alterou não apenas os modelos políticos, tradicionalmente legitimados pela noção de
soberania real com origem divina, sustentadora da crença no poder pessoal do monarca,
mas investiu com intensidade no processo histórico de promoção do universalismo dos
interesses das novas classes sociais emergentes, o que colocou a Revolução Francesa
em uma posição paradigmática.

Portanto, esse período representa um contexto internacional de mudanças tanto


nas estruturas de poder, quanto nas crenças políticas e sociais, e que iria atingir não
apenas a Europa, mas alcançaria repercussões em outros cenários, implicando em novos
ajustes ou mesmo rupturas entre os interesses das classes sociais, opondo a antiga
associação entre a Monarquia, nobreza e Igreja às novas demandas das camadas
emergentes da alta e média burguesia ascendentes. Entrava-se, assim, na denominada
“Era das Revoluções Liberais”.

Nesse sentido, remontando ao cenário das últimas décadas do século XVIII e


início do século XIX, quando estava em curso na Europa e nos Estados Unidos tal
processo de mudança econômica, cultural e política, a análise das condições em que se
encontrava a elite brasileira com inserção acadêmica e ocupacional em Portugal
demonstra como se processou a assimilação desses novos ideários políticos, ou seja,
como as noções e conceitos sofreram a adaptação ao cenário colonial, implicando na
progressiva formatação de ideários políticos próprios ao Brasil, isto é, um publicismo

13
Neste sentido, existem abordagens que relacionam as “Revoluções” dos séculos XVII e XVIII e o
“Constitucionalismo”, como nos casos inglês, francês, americano e latino-americano. Ver nesse sentido,
respectivamente, os trabalhos de BARROS (2013), AVRITZER (2013), BIGNOTTO (2013) e
DOMINGUES (2013).
59

brasileiro14.

A cultura política referente ao cenário brasileiro do período colonial recebe,


assim, desde o final do século XVIII, a influência cultural da Revolução de
Independência das Colônias Britânicas da América do Norte (1776) e, especialmente, a
partir de 1789, da Revolução Francesa, por se tratar do fenômeno político europeu de
maior repercussão sobre as eclosões de movimentos de independência no século XIX e
não apenas em relação à Europa15 (HOBSBAWN: 2008: 12).

O Iluminismo, conjunto de novos ideários situados no contexto histórico de


passagem do século XVIII para o século XIX, no que tange à vida política pode ser
visto como a transposição da era da “arte de governar” para a era da “Ciência política”
(DELOYE, IHL e JOIGNANT, 2013: 26). O desenvolvimento desse fenômeno
implicou em inovações culturais e econômicas trazidas juntamente com os movimentos
revolucionários de transformação social, descritos e sintetizados por Weber como
“modernização ocidental”, ligada ao advento da “racionalização e evolução econômica
e técnica, no qual o Direito iria exercer um papel de destaque” (WEBER: 2013:303).

Neste sentido, a emancipação política de sociedades dominadas por regimes


coloniais nos séculos XVIII e XIX, como foi o caso do Brasil, repercutiu esse amplo
processo de mudanças socioeconômicas e revoluções políticas do cenário ocidental. No
caso brasileiro, tratou-se, mais diretamente, dos efeitos da “crise do Antigo Regime
Português”, a partir do “desmoronamento do modelo de exploração colonial centrado
hegemonicamente em uma política econômica mercantilista” (MUNTEAL FILHO:
1999: 82). Para o enfrentamento dessa crise, reforçada pela ação das potências europeias
que pressionavam a Península Ibérica para uma posição periférica, Portugal investiu na
produção intelectual e científica da “Harmonia de Dois Mundos”, através do
Absolutismo Ilustrado, que a partir da segunda metade do século XVIII implicaria em

14
Essa importação de ideologias associada a um processo de clivagem local, em que os brasileiros
mobilizaram recursos diversos, gerando inovações no plano político, servindo-se da esfera artística e
cultural, pode ser considerada uma tendência que perdurou até o final do Império, conforme assinala
Ângela Alonso, sobretudo por parte de grupos marginais à política oficial, como os ativistas dos
movimentos abolicionista e republicano a partir de 1870 (ALONSO: 2012).
15
Conforme o historiador “a Revolução Francesa é um marco em todos os países. Suas repercussões, ao
contrário daquelas da revolução americana, ocasionaram os levantes que levaram à libertação da América
Latina depois de 1808” (HOBSBAWM: 2008: 12).
60

um reformismo nas instituições políticas e culturais, dotado de caráter naturalista e


utilitário (MUNTEAL FILHO: 1999: 83)

O aspecto que se entende relevante destacar com relação à modelagem do


publicismo brasileiro a partir desse período é que o Brasil ilustra o caso de uma
sociedade colonial e escravista, que se emanciparia da metrópole portuguesa em 1822,
sem deixar de ser escravista. Assim, verifica-se que o publicismo, como mobilização de
ideários políticos, não só não decorreu, originariamente, de camadas dominadas, nem de
uma elite ilustrada exclusivamente nativista e emancipacionista, como foi mobilizado
por frações de uma elite ilustrada “lusobrasileira”. Isto é, tais contornos sociais não
favoreceram nem a adoção de um viés popular e nem mesmo um elitismo nacionalista
no âmbito do publicismo.

Essa mescla de ideários ou hibridismo cultural pelo domínio da Metrópole


portuguesa, originário da situação colonial, foi reforçado pelo fato de que os filhos da
elite nativa iam estudar na Europa, sendo que a maioria estudaria na Universidade de
Coimbra. Soma-se, ainda, o fato da contínua imigração portuguesa, pois grande parte de
letrados lusos vinha para o Brasil16. A ausência de universidades na Colônia reforçava a
hibridação cultural e educacional que já se iniciara nos séculos anteriores ao Oitocentos,
adquirindo maior intensidade no século XVIII. Foi, especialmente, a partir de 1808,
com a migração do Rei e sua Corte de funcionários para o Rio de Janeiro, e a partir de
1815, com a elevação do Brasil a Reino Unido a Portugal, que essa visão indissociada
do mundo português e do brasileiro se consolidou.

Tal aspecto constitui uma questão-chave para esta abordagem dos usos políticos
do publicismo, pois se trata de uma condicionante que iria pesar sobre a formatação e os
sentidos políticos do publicismo, face à sua vinculação com os interesses da elite dos
nascidos na Colônia. Deste modo, a identificação das gerações de elites de ilustrados
coimbrãos e, mesmo após, da geração dos brasileiros com os moldes da dominação
política portuguesa pode ser vista como efeito da formação e socialização, alcançada

16
A vinda de estrangeiros para o Brasil, ainda que vedada pela Metrópole, foi uma constante no período
colonial, sendo verificada desde o Século XVI, atraídos pela descoberta da mineração. Francisco Iglesias
aponta que em 1549 haveria em torno de 2 a 3 mil portugueses no Brasil. Já no Século XVIII esse número
saltara para em torno de 300 mil (IGLESIAS: 2001: 75).
61

pela primeira geração referida em Coimbra e nas esferas administrativas e políticas da


Metrópole.

Por tal razão, verifica-se que os ideários políticos das frações da elite que iriam
investir no publicismo brasileiro, apropriando-se da dimensão dos manuais de
“interpretação constitucional” ao longo da existência do Império, ainda quando
contraditórios, foram todos forjados nos marcos dessa cultura unionista ou
“lusobrasileira”, reforçada pela inserção docente, política e burocrática em Portugal, que
até 1822 possuía um Regime Absolutista, e, posteriormente, no Brasil. Reitere-se que o
Estado Português, contratando agentes letrados como funcionários públicos, colocava-
se à frente da situação que afetava o mundo ibérico nesse contexto, em face da escassez
de públicos consumidores para os produtos culturais ou bens simbólicos.

Infere-se das questões levantadas que o ambiente social em que a vida


intelectual e científica dos publicistas brasileiros se estruturou na transição do Século
XVIII para o XIX, estava caracterizado pela circulação internacional de ideias e da
situação regional diante da preeminência do poder do Estado Português sobre a
formação e atuação intelectual e científica17 (NEVES: 1999: 9). Portanto, é necessário
destacar que o publicismo mobilizado pelas elites letradas brasileiras, nesse momento,
esteve marcado pela progressiva intensificação da concorrência entre dois pólos: o
primeiro caracterizado pela mobilização contestatória do poder português, baseada na
percepção do problema regional, especialmente do Norte e Nordeste, com destaque para
os pernambucanos de 1817; o segundo, um publicismo “da ordem”, ou seja, de opção
monarquista, centralista e pró-Unionismo com Portugal, vinculado mais às elites do
sudeste, com destaque para o Rio de Janeiro e São Paulo.

Esse movimento gerou, progressivamente, as bases de uma cisão no publicismo


brasileiro que foi mobilizado desde a transição do Setecentos para o Oitocentos, até o
momento crucial da luta emancipacionista (1820-1822), em que se torna mais nítida a
concorrência entre as posições e interesses regionais. Portanto, tal cenário não aponta
apenas uma condição em que se destacava o papel central exercido pelo Estado

17
Neste sentido, a historiadora Lúcia Neves salienta que “A dependência dos intelectuais ilustrados ao
programa da Coroa portuguesa foi uma das características fundamentais da vida cultural luso-brasileira no
final do setecentos, perpetuando-se ao longo de todo o século XIX” (NEVES: 1999: 9).
62

português na modelagem científica e cultural das elites lusas e brasileiras, mas,


sobretudo, indica que essa influência era maior em relação às elites carioca e paulista.

Assim, o que se extrai desse panorama social de transição do Setecentos para o


Oitocentos é que as frações das elites intelectuais ou letradas vivenciaram um padrão de
lutas entre frações regionais e os grupos mais ligados ao Rio de Janeiro, especialmente,
São Paulo, em que se fez uso de uma progressiva mobilização e politização do
publicismo, em um contexto de dependência em relação ao Estado, sem o financiamento
do qual não poderiam atuar ou manter-se.

Como acima referido, a Coroa Portuguesa exerceu, concomitantemente, o papel


de contratante, de mercado consumidor e de espaço de consagração das elites
intelectuais desse período, recrutando burocratas na intelectualidade, reforçando com
isso crença de que conhecimento é poder (NEVES: 1999: 15). Portanto, a partir dessas
considerações, é possível questionar como tal herança da transição Setecentista-
Oitocentista, baseada no hibridismo Metrópolde-Colônia ou ideário lusobrasileiro,
mobilizado de modo combinado com o padrão de múltipla inserção das elites
brasileiras, repercutiu sobre a produção do publicismo, tomando-se, primeiramente, o
conjunto de intervenções gerado no cenário da conjuntura emancipacionista, entre 1820
e 1822.

1.2 O periodismo como veículo do publicismo: conflitos de caráter regional e o


discurso de Estado

Sabe-se que a partir do final do século XVIII, a parcela letrada da elite brasileira
formada em Coimbra passou a compor os quadros burocráticos e políticos na Metrópole
portuguesa, exercendo funções públicas destacadas, dentre os quais têm-se os nomes de
José Bonifácio de Andrada e Silva, Hipólito José da Costa, Manoel de Arruda Câmara,
José Vieira Couto, o bispo Azeredo Coutinho (NEVES: 1999: 15). Essa parte da elite
letrada constituiu o grupo dos publicistas “da ordem” dentro desse contexto, formando
uma verdadeira “família intelectual”, ou seja, tratava-se de agentes comprometidos com
63

a solução dos problemas de Estado a partir do domínio de técnicas e conhecimentos


especializados, adquiridos tanto na formação coimbrã, quanto na experiência
jornalística, política e administrativa.

No entanto, saliente-se que tais agentes podem ser tomados como “publicistas”,
mas não propriamente como “constitucionalistas”, porque o Reino de Portugal não
contava até 1822 com uma “Constituição”, no sentido moderno e formal de um Código
Nacional contendo um conjunto de normas que estabelecessem os fundamentos do
Regime Político.

Esses agentes foram “publicistas” porque compunham, na realidade, a vanguarda


da política reformista portuguesa, nascida no final do século XVIII e que, no início do
século XIX, iriam atuar decisivamente nas lutas pelos destinos políticos do Brasil,
engajando-se, posteriormente, na mobilização pela concretização da Independência
brasileira. Assim, ao lado dos revolucionários, especialmente os pernambucanos de
1817, com suas publicações contestatórias, essas fatias da elite, sobretudo carioca e
paulista, foram induzindo à introdução, no Brasil, de um padrão de intervenção política
via mescla entre produção intelectual (jornalística ou científica) e engajamento político
(NEVES: 1999: 16).

Esse dado é de fundamental relevância e justifica porque seria insuficiente tomar


apenas o cenário posterior à Independência como ponto de partida para analisar as
práticas classificadas como manifestações do publicismo brasileiro e o surgimento do
publicismo como manuais de “interpretação constitucional”. Deste modo, entende-se
que é necessário considerar como uma das variáveis sociais de maior força explicativa
dos contornos assumidos pelo publicismo brasileiro no Oitocentos essa herança de
oposição, concorrência ou luta política entre uma tradição regional (e de ênfase
nordestina) de contestação ao domínio centralizador português e, após, carioca, contra
as frações da elite coimbrã, moldadas pela experiência político-administrativa e
formação superior, sobretudo, jurídica, das elites.

No entanto, o multiposicionamento caracterizava os grupos, com maior ênfase


no caso da elite letrada coimbrã, distanciada dos movimentos de contestação ao regime
colonial. Ambos os pólos refletem as apropriações de ideários políticos norteamericanos
64

e europeus originários do século XVIII e do início do século XIX, visível pela


comparação dos materiais publicados, em que termos, expressões, noções e teorias
políticas estrangeiras são comuns, mas têm usos diversos e contraditórios.

As visões de mundo europeias foram capitaneadas pelas teorias francesas,


porém, a elas conferindo usos ligados aos interesses das camadas mobilizadas. Nesse
sentido, podem ser citados como principais marcos regionais contestatórios os
movimentos da Inconfidência Mineira (1789), da Conjuração Baiana ou Revolta dos
Alfaiates (1798) e da Revolução Pernambucana (1817).

Com base nessa constatação, verifica-se que os ideários políticos, ainda que
mobilizados em tais movimentos possam ser considerados resultantes da herança
lusobrasileira de teor iluminista, moldaram-se em uma combinação de múltiplos
interesses regionais e locais com as ideologias importadas, pois neles não estiveram
engajados apenas certas frações de elite, como os grandes proprietários de terras e
políticos18, mas também indivíduos e grupos de camadas populares, clérigos, parcelas
iletradas e militantes de tendências políticas “radicais”19.

Isso reflete uma maior variedade de posições sociais e de interesses políticos


implicados nesses movimentos, o que representa fator relevante para uma primeira
diferenciação nos usos políticos do publicismo brasileiro: de um lado, como ferramenta
popular e de contestação política, de outro, linguagem dos agentes das elites de Estado,
letrados e multiposicionados.

Quanto ao perfil das elites coimbrãs que mobilizam o publicismo em defesa da


Monarquia e da manutenção da união com Portugal, cabe ressaltar que a sua formação
se deu em uma sociedade portuguesa na qual a “modernização ocidental” só chegou ao
final do século XVIII, pois o denominado “Iluminismo Português” só se iniciaria a

18
Examinando-se a origem social e a profissão dos inconfidentes, dos revolucionários baianos de 1789 e
dos revolucionários pernambucanos de 1817, verificamos a predominância de ofícios e atividades
identificadas como sendo as da classe média (BARRETTO: 1989: 36).

19
Exemplifica um caso de liderança exercida com base em um ideário político “radical” em movimentos
sociais desse período a atuação de Cipriano Barata, um dos líderes da Conjuração Baiana. Mesmo sendo
letrado e político, identificava-se com a oposição “radical” ou “exaltada” ao regime (MOREL: 1999:
119).
65

partir de 1773, com as reformas na educação. Saliente-se, ainda, que apesar da


radicalidade da expulsão dos jesuítas e afastamento das ordens religiosas do domínio
escolar, as Reformas Pombalinas não foram dotadas de um contorno revolucionário, não
questionando a preservação da Monarquia e permanecendo focadas no “reformismo” e
no “pedagogismo” (CARVALHO: 2006: 67).

Quanto ao contato das elites lusobrasileiras com as correntes teóricas francesas,


reitere-se que apesar de Pombal “não ter promovido em todo o Reino a difusão do
Iluminismo francês, pois considerava que este continha elementos capazes de pôr em
perigo a autoridade em geral e a autoridade real em particular. Desta forma, as obras de
Rousseau e Voltaire continuavam proibidas na nova ordem” (CARVALHO: 2006:67), e
o contato das elites brasileiras com as vertentes teóricas francesas se dava ou por
intermédio de contrabando de livros, burlando a censura do Paço, ou nos contatos da
elite ilustrada com esses livros na própria Europa.

Assim, para entender a tendência de uso do publicismo como linguagem de


Estado pelas elites do Rio de Janeiro e São Paulo, é relevante frisar que as reformas de
Pombal sobre a Universidade portuguesa (na qual tais grupos eram formados como os
novos cientistas, políticos e funcionários lusobrasileiros) refutaram as propostas mais
revolucionárias, sendo fruto do Iluminismo português “politicamente conservador”. Foi
com esse teor moderado e reformista que elas repercutiram no Brasil, mesmo após a
reação contra as reformas educacionais de Pombal, ou seja, a “Viradeira” de D. Maria I,
em 1777. Portanto, detecta-se que a linha do reformismo conservador deixaria sua
marca nas concepções políticas desse grupo de políticos brasileiros que estudaram e
conviveram em Coimbra a partir desse momento, até porque “a maior parte dos
políticos brasileiros da primeira metade do século XIX estudou em Coimbra após a
reação” (CARVALHO: 2006: 69).

Essa característica “reformista conservadora” repercutiu no teor do publicismo


associado aos interesses dessas frações da elite, detentora de capital cultural e de
relações sociais que permitiam a expressão de opiniões variadas sobre a conjuntura
política e econômica. Suas motivações estavam diretamente identificadas com os
problemas e demandas mais urgentes do Estado (Reino Unido de Portugal, Brasil e
Algarves).
66

O que se pode extrair dessa linha de raciocínio é que, se por um lado houve
apropriação popular de ideários políticos exógenos, sobretudo norteamericano e francês,
no âmbito dos movimentos sociais, por outro lado o publicismo jornalístico foi mais
uma ferramenta das parcelas da elite letrada, com seu perfil conservador, que herdaram
os traços da múltipla inserção em postos políticos, acadêmicos e estatais.

Distinguindo-se por setores de atividade, vê-se que não se tratava, assim, de uma
elite exclusivamente “burguesa”, no sentido econômico de homens “de negócios”, elite
comercial ou industrial, mas muito mais de uma “elite de Estado”, isto é, de indivíduos
originários da alta esfera política e da alta Administração Pública (CHARLE: 1987).

Saliente-se ainda, quanto à linguagem originária do treinamento jurídico desses


grupos da elite, que o Direito “científico” estava mesclado com a legislação, que até
1808 era portuguesa (AB’SABER: 2008: 55). Isto porque vigorava no Brasil
Colônia um conjunto de normas todas portuguesas (como as Cartas de Doação e Forais
das Capitanias, os Alvarás, Regimentos dos Governadores-Gerais, as Leis e Ordenações
Reais) que convivia com regras geradas no improviso do cotidiano local.

Esse fator de mescla entre o domínio da legislação e da “doutrina” sobre o


sistema jurídico não deve ser desconsiderado, porque, diferentemente do que sustenta
Wolkmer (2005: 49), a vigência do “Direito Português” das Ordenações Afonsinas
(1446), Manuelinas (1521) e Filipinas (1603), concomitante à vigência de muitas “leis
extravagantes” nativas decretadas pela Administração Colonial, especialmente em
matéria comercial, não permitia a percepção do “Direito Português” como “alienígena”
e nem o uso de obras jurídicas portuguesas como “importação” de saber20.

Tal situação de indistinção explica, portanto, a origem de um padrão de

20
Entende Wolkmer que “o modelo jurídico hegemônico durante os primeiros dois séculos de
colonização foi, por consequência, marcado pelos princípios e pelas diretrizes do Direito alienígena –
segregador e discricionário com relação à própria população nativa -, revelando, mais do que nunca as
intenções e o comprometimento da estrutura elitista de poder. Desde o início da colonização, além da
marginalização e do descaso pelas práticas costumeiras de um Direito Nativo e informal, a ordem
normativa oficial implementava, gradativamente, as condições necessárias para institucionalizar o projeto
expansionista lusitano. A consolidação desse ordenamento formalista e dogmático está calcada
doutrinariamente, num primeiro momento, no idealismo jusnaturalista; posteriormente, na exegese
positivista” (WOLKMER: 2005:49).
67

identificação existente no domínio das elites jurídicas coloniais, com repercussão após a
Independência, inclusive do “direito público”, com o interesse do Estado em um sistema
legal heterogêneo: de um lado, com as normas e doutrinas originárias do domínio
metropolitano, beneficiadas pelo caráter oficial, e de outro, no plano local, com as
normas e sentidos de feitio nativo, atinentes às demandas e problemas de administração
da Colônia.

Ressalta-se, assim, que o Direito no começo do Oitocentos, integrou o cenário de


crise do sistema colonial, e começou a repercutir, progressivamente, a condição
contraditória da realidade social e política. Isto porque a dimensão “científica”, ou seja,
doutrinária do Direito ainda identificada com o Estado Português e com o Direito luso,
levava os advogados a recorrerem aos doutrinadores portugueses, para dar conta da
interpretação da legislação metropolitana vigente. Nesta perspectiva, a tarefa de
desenvolver um arcabouço teórico sobre o Direito, relativamente autônomo em relação
ao domínio jurídico português, não poderia ser encapada por “juristas”, isto é, por
agentes identificados com um ambiente de produção de saberes teóricos e criação de
obras jurídicas.

As elites de bacharéis brasileiros, compostas por “práticos” (advogados,


magistrados e políticos) não tiveram condições de fazer florescer um espaço de
produção autônoma de doutrina jurídica, através da produção de obras de Direito, antes
da Independência e da criação dos cursos jurídicos brasileiros (AB’SABER: 2008: 57).

Então, essa escassez de produção de obras jurídicas brasileiras não esteve


condicionada apenas pela formação dessas elites em Coimbra, mas pela condição
mesma da vigência do sistema de dominação colonial. Essa situação afetou tanto a
esfera do “Direito Privado”, quanto o “Direito Público”, originando em relação a este
último uma situação de “verdadeira indigência” que se estenderia até a República
(AB’SABER: 2008: 57). Desta forma, se destaca a condição de dependência dos
bacharéis brasileiros em relação à produção de obras jurídicas originárias da Europa,
sobretudo, naquele momento, dos juristas de Portugal.

Deste modo, infere-se que o cenário colonial do início do Oitocentos não


oferecia outra via para a mobilização de saberes jurídicos, em torno da concorrência de
68

ideários políticos, a não ser pelo caminho do publicismo jornalístico. Mesmo após a
migração da Corte e a elevação do Brasil à condição de Reino Unido, o contexto não
pode ser visto como propício à criação e autonomização relativa de espaço da “Ciência
Jurídica” ou doutrina jurídica “brasileira”. Por isso, considera-se que a projeção do
domínio metropolitano sobre as práticas jurídicas condicionou, progressivamente, à
adesão ou à contestação ao sistema político português, empregando para tanto o único
meio para publicismo viável no cenário local: o jornalismo.

Portanto, a adoção do caminho jornalístico e panfletário para expressão dos


ideários políticos das frações letradas das elites nativas não pode ser considerada como
uma opção, mas mais como um efeito da ausência de condições sociais para a formação
de um espaço voltado à autonomização da dimensão teórica nativa. Neste sentido, a
utilização das obras jurídicas lusas persistiria como ferramenta de formação e
interpretação das leis. Ela também não pode ser entendida como uma “falha” das demais
frações de letrados que não eram juristas coimbrãos, pois o cenário colonial não oferecia
formação superior. Não havia um mercado editorial para escoar as posições tomadas
pelas frações letradas da população, ainda mais reduzidas pelo volume de iletrados e
escravos.

Deste modo, algumas estruturas sociais criadas no Brasil a partir de 1800, e


sobretudo, após 1815, com a elevação do Brasil à condição de Reino Unido à Portugal
em consequência da transmigração da Corte para o Rio de Janeiro em 1808, influiriam
na percepção e na posição social das elites nativas em relação ao domínio português,
moldando os posicionamentos de um modo mais binário: em torno do “unionismo” com
Lisboa ou pela contestação do modelo político. Essa clivagem ideológica se acentuou a
partir de 1800, com a decadência da economia nordestina sustentada pelo comércio do
açúcar com Portugal.

Desta forma, mesmo antes da transferência da Corte para o Brasil, já havia


fatores sociais que possibilitaram uma diferenciação e confronto de posições, com viés
regional, opondo as frações letradas do norte e nordeste às elites de bacharéis coimbrãos
que tiveram papel relevante na reestruturação burocrática da Colônia, principalmente,
no circuito do Rio de Janeiro, reestruturação esta reforçada a partir de 1815 com a
69

elevação do Brasil à condição de Reino Unido a Portugal21.

Questiona-se, neste sentido, além dos fatores conjunturais, também os elementos


estruturantes do engajamento distinto de frações letradas à prática do publicismo,
levando em consideração os contornos do modelo político e do arcabouço jurídico
vigente no Brasil durante o período colonial que adentraram o Oitocentos. Portanto,
assumem relevância os aspectos relacionados às lutas sociais e regionais, pois apontam
os caminhos políticos que o publicismo iria repercutir ao longo do Século XIX, mesmo
antes da “Revolução Constitucional” portuguesa e da conjuntura emancipacionista
(1820-1822).

1.3 O Seminário de Olinda e a Impressão Régia: a estruturação da concorrência


entre o “regional” e o “central” no publicismo brasileiro

Como acima referido, as repercussões da Revolução Francesa em Portugal


moldaram-se como o advento do Iluminismo conservador e reformista dos pombalinos
portugueses. Essa orientação, que defendia a tutela do Estado Português sobre a vida
social, incluía a produção de bens simbólicos, promovendo os traços politicamente
centralizadores da cultura lusobrasileira, condicionando, portanto, as formas de
intervenção política dos bacharéis brasileiros que se formaram em Coimbra nesse
período.

Associada à ausência de Universidades na Colônia, que foi mantida inclusive


durante o período de Reino Unido a Portugal (de 1815 até 1822), a orientação política
reformista dos pombalinos coimbrãos influenciou a fundação de instituições
educacionais e editoriais, originadas de propósitos diferentes, porém repercutindo a
valorização conferida ao plano da difusão de ideias, o que teria influência sobre as
diversas orientações expressas através do publicismo no cenário brasileiro. No início do
Oitocentos, o Iluminismo coimbrão se combinaria com os diferentes interesses regionais

21
Florestan Fernandes adota essa percepção: “É provável que a transferência prévia da Corte tenha
contribuído também para quebrar o acentuado provincianismo colonial e para alargar o horizonte cultural
dos setores mais ativos e esclarecidos das elites dos estamentos senhoriais” (FERNANDES: 2005: 73).
70

brasileiros, repercutindo as lutas entre os agentes identificados com as demandas


regionais, especialmente do norte e nordeste, e aqueles que, embora também regionais,
se apresentavam como “centrais”, isto é, as elites do sudeste, cujos representantes já
estavam inseridos nas altas posições políticas e burocráticas centralizadas na Metrópole
e, após, no Rio de Janeiro. Nesta linha, procura-se destacar alguns fatores que
contribuíram para estruturar a mobilização política no Brasil, através do publicismo,
nesse cenário das duas primeiras décadas do Século XIX.

1.3.1 O Seminário de Olinda: publicismo de contestação à Metrópole e ao Rio de


Janeiro

A fundação do Seminário de Olinda, em Pernambuco, pelo Bispo Azeredo


Coutinho, em 1800, representou um elemento relevante de influência na promoção da
formação cultural de orientação cientificista e lusoiluminista em Pernambuco, tendo
como base inicial a perspectiva pombalina, de refutação do ensino exclusivamente
centrado no teológico com orientação jesuítica, substituindo-o por um ensino
“científico”, “naturalista” e “utilitarista”, focado na solução dos problemas e no
aproveitamento dos recursos do cenário regional e brasileiro (BARRETTO: 1989: 48).

O ambiente cultural gerado no âmbito do Seminário de Olinda teria exercido um


papel de peso, até mesmo decisivo, na formação da posição revolucionária que
repercutiu, de modo mais específico, sobre o Clero pernambucano, dentro do qual o
agente que representa o mais nítido exemplo é Frei Caneca, e de modo geral, sobre os
revolucionários de 1817 e 1824 (BARRETTO: 1989: 50). O Seminário de Olinda
apareceu, então, como um centro de formação e treinamento das elites pernambucanas,
identificado, portanto, com as demandas regionais. Porém, também representou uma
alternativa para famílias das classes urbanas medianas, sem recursos para enviarem os
filhos para a Universidade de Coimbra.

Logo, a formação intelectual oferecida no Seminário de Olinda pode ser


considerada um fator que contribuiu não apenas para a formação religiosa, mas para a
71

formação filosófica, científica e “política”, promovendo habilidades como a docência e


o domínio da prática jornalística, combinadas com uma visão regional. O Seminário
aparecia então como o local de treinamento intelectual das elites e extratos da camada
média urbana da província pernambucana, distintas em face do fator geográfico e
econômico em relação ao sudeste.

Geraram-se, assim, as condições para a formação de um pólo intelectual


específico, que na realidade foi um pólo de atuação política regional, situado no norte-
nordeste, com apelo à formação de “cientistas” de perfil naturalista, utilitarista e,
progressivamente, mais “revolucionário”. Isto pode ter favorecido a articulação com as
demandas sociais e os interesses econômicos das frações da elite pernambucana,
especialmente, os da lavoura do açúcar e do algodão, que seriam eufemizados como
“causas” regionais, como ilustra o publicismo de Frei Caneca.

Deve-se considerar, ainda, que o ambiente provincial, com seu perfil de


desenvolvimento econômico, foi relevante para a fecundidade do trabalho de formação
intelectual empreendido no Seminário de Olinda. Assim, tratava-se de um cenário de
distinção de interesses políticos tanto em relação ao sudeste, quanto no âmbito interno
da província de Pernambuco. A região comportava, ao norte, as culturas do açúcar e do
algodão, esta destinada ao comércio com a Inglaterra e os Estados Unidos, e, portanto,
mais identificada com a Revolução Industrial. Ao sul, predominava a produção
açucareira, dependente de Portugal. Essa dualidade expunha o conflito entre a nova e a
velha estrutura de comércio, o que explicaria o feitio assumido pelos movimentos
emancipacionistas e republicanos ocorridos em Pernambuco (MELLO: 2001: 21).

Neste sentido, pode se considerar que o Seminário de Olinda esteve situado em


um contexto social caracterizado, sobretudo a partir de 1817, por um “ciclo
revolucionário”, mobilizado na promoção de um movimento de Independência,
diferente do processo que teve lugar no Rio de janeiro (MELLO: 2001: 17). Pode-se
considerar que o Seminário de Olinda representou um foco de ação política que
empregou o recurso à difusão cultural como forma de contestação ao padrão político da
Corte e que abriu espaço à canalização das reivindicações provinciais, inclusive à
orientação política “rousseauniana”, que apareceu no publicismo brasileiro com Frei
Caneca.
72

Essa orientação esteve em oposição ao publicismo dos agentes identificados com


o padrão pombalino coimbrão de tendência monarquista, unionista e “centralista”, sendo
que em muitos casos, eles estavam posicionados na imprensa22 e na própria estrutura de
Estado e situados no Rio de Janeiro, São Paulo e Minas.

Os efeitos políticos dessa iniciativa não foram sentidos somente após a


Independência, podendo-se assinalar o caso da Revolução de 1817, ocorrida em
Pernambuco, como um movimento social em que se mobilizou ideários políticos de teor
publicista, durante o período de Reino Unido a Portugal23. Isto confirma que em relação
à situação das letras, artes e ciências no Brasil Colônia (até 1815) e, após, durante o
período do Reino Unido (1815-1822), mesmo sem universidades locais, frações letradas
das elites atuaram como “publicistas” e “doutrinadores”, ainda que predominassem os
mais influenciados pela lógica conservadora das reformas pombalinas, ou seja, pela
Ilustração Portuguesa (AB’SABER: 2008: 116).

Frisa-se, aqui, que as reivindicações expressas nos princípios pedagógicos e no


recrutamento de professores para o Seminário de Olinda, como instituição educacional
confessional que também abrigava os filhos da elite pernambucana, apontam a adoção
de uma visão liberal, porém com ênfase nativista e de teor utilitarista, o que significava
a valorização da noção de “Ciências Naturais” em detrimento da Retórica e da Teologia,
ou seja, em uma ênfase no ensino de disciplinas que auxiliassem a conhecer as
características da região e do Brasil, a geografia, a biologia e a química que forneciam
as peculiaridades da realidade nativa, como formação adequada às elites comprometidas
com o progresso nacional (BARRETTO: 1989: 49).

Por fim, verifica-se que a contestação pernambucana do domínio político


centrado no eixo Rio de Janeiro – São Paulo – Minas Gerais impregnou uma vertente do

22
Como foi o caso do bacharel coimbrão Hipólito José da Costa, autor do Correio Braziliense, o “jornal
de um homem só” editado em Londres, de 1808 a 1822. Nele, Hipólito veiculava um publicismo de teor
monarquista, expressando uma posição unionista com Portugal, com teor reformista e antirrevolucionário,
tendo, inclusive, criticado no jornal o Movimento Pernambucano de 1817 (PAULA: 2001: 28).

23
As revoltas como manifestação de ideários publicistas na época colonial é mencionada por Boris
Fausto, que denomina tais eventos como “movimentos de rebeldia e consciência nacional”, enfatizando
que foram permeados por um sentimento de “conspiração contra Portugal e de tentativas de
independência” que “tinham a ver com as novas ideias e fatos ocorridos na esfera internacional, mas
refletiam também a realidade local” (FAUSTO: 2006: 62).
73

publicismo ligada à formação oferecida no Seminário de Olinda e aos movimentos


revolucionários de Pernambuco (1817 e 1824). Essa vertente foi expressa nos textos de
Frei Caneca, alcançando a sua “Crítica da Constituição Outorgada” (JUNQUEIRA:
1976). Deve-se, ainda, tomar em conta que a contribuição desse “pólo” e de seus
agentes ao processo político brasileiro foi pouco enfatizada, considerando-se que
representou uma alternativa política e se projetou como modelo concorrente ao padrão
de atuação e orientação do núcleo da elite carioca-paulista-mineira24 (MELLO: 2001:
16).

1.3.2 A Impressão Régia: investimento estatal da Corte na apropriação do


publicismo

Outro elemento, este ligado ao domínio metropolitano e situado no Rio de


Janeiro, que pode ser tomado como “pólo” estruturante da orientação política do
publicismo, foi a fundação da Impressão Régia. Através dessa instituição, o governo e
as elites administrativas expressaram a visão “estatal”, e, portanto, monarquista, após
1815, de teor “unionista”, “reformista”, porém, “centralista”. Essa instituição apareceu
em 1808, a partir da migração da família real e da Corte para o Rio de Janeiro.

Com a fundação da Impressão Régia, se iniciava a edificação de um lugar oficial


destinado à difusão de informações sobre regras legais e administrativas, além de
ideários políticos, culturais e científicos, ligados mais diretamente aos interesses da
Coroa. A criação da Impressão Régia, em 13 de maio de 1808, dia do aniversário do
Príncipe Regente, aponta explicitamente, em seu decreto de fundação, a motivação
política de “auxiliar na educação pública”.

A pedagogia de Estado emanada da Impressão Régia obteve repercussão sobre a

24
Para uma discussão mais aprofundada sobre esse tema, ver a posição do historiador Evaldo Cabral de
Mello. O autor sustenta que a pouca ênfase na contribuição pernambucana, e sobretudo, do engajamento e
do publicismo de agentes como Frei Caneca na definição dos contornos da luta política pelo tipo de
Independência a ser efetuado no Brasil se deve à visão dominante na historiografia brasileira que sofreria
o peso da tradição “saquarema”, aderindo à visão dos heróis e comprando a tese da predestinação das
elites do sudeste para fazer a Independência, definir os contornos da nacionalidade brasileira e estabelecer
o Estado Unitário e Monárquico (MELLO: 2001: 16).
74

difusão do publicismo encampado pelas frações das elites coimbrãs inseridas nas esferas
políticas e administrativas, como ilustra o caso de José da Silva Lisboa. O, futuro
Visconde de Cairú, que seria um dos deputados da Assembleia Constituinte de 1823 e
que foi autor de obras econômicas e jurídicas25, foi um dos diretores da Impressão Régia
(HALLEWELL: 2012: 113).

Contrariamente ao caso do Seminário de Olinda, que não contou com


investimentos estatais para sua fundação, uma vez que o Bispo Azeredo Coutinho teve
de recorrer aos setores privados, isto é, à elite agrária pernambucana para financiar seu
funcionamento, a criação da Impressão Régia atendia diretamente às demandas do
Governo Português e seus escalões administrativos, apontando que o Estado investiu
recursos públicos quando se tratou de promover a difusão das leis e a apologia do
Regime Político.

Neste ponto, é fundamental destacar que por mais de uma década, ou mais
precisamente durante quatorze anos (de 1808 a 1822), a Impressão Régia, enquanto
organismo estatal, deteve o monopólio das publicações no Rio de Janeiro, perfazendo
nesse período um volume em torno de 1192 publicações, dentre as quais figuravam
basicamente: “documentos de governo, cartazes, volantes, sermões, panfletos e outras
publicações secundárias”, sendo relevante o fato de que os materiais que publicava, na
maior parte, se constituíam em textos com temas de interesse governamental, científico
e militar (HALLEWELL: 2012: 114). Isso representa a iniciativa de elaboração e
difusão do publicismo ajustado aos interesses do Governo e, também, o acesso
privilegiado aos meios e recursos de publicação para as frações das elites associadas ao
poder central e situadas em torno da Corte, no Rio de Janeiro.

Estes aspectos interessam diretamente a esta abordagem, pois indicam aspectos


que contribuíram para distinguir e estruturar a concorrência entre duas orientações
distintas presentes no publicismo brasileiro desde o início do Século XIX. Eles indicam,

25
José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairú, teria sido um político liberal na orientação econômica, mas
conservador na visão política, o que significava referendar a proposta da “pedagogia de Estado”
encampada pela Impressão Régia. Sua adesão à Monarquia, ao Catolicismo e sua apologia da
Constituição de 1824, apareceram expressas no primeiro manual de “interpretação constitucional”
brasileiro publicado pela Typographia Nacional, em duas partes, a primeira em 1824, e a segunda em
1825 e intitulado: “Constituição Moral e Deveres do cidadão com exposição da moral pública conforme o
espírito da Constituição do Império” (DUTRA: 2004: 151).
75

ainda, que a iniciativa de monopólio estatal da produção cultural foi gerenciada do Rio
de Janeiro para os demais locais, colocando os interesses do Governo nas mãos da elite
“central”, “alta burocracia” ou elite “de Estado”, recrutada para a tarefa de propulsora
do publicismo “legítimo” e “oficial”.

Deve-se levar em consideração, portanto, o efeito político alcançado com a


fundação da Impressão Régia: engajar a elite de Estado na tarefa de elaboração do
publicismo “oficial”. Assim, compreende-se o sentido da afirmação de que a Imprensa
Régia inaugurou a prática da imprensa periódica no Brasil26, com a Gazeta do Rio de
Janeiro, em 1808, e com O Patriota, em 1813, incentivando também o surgimento de
tipografias em outras províncias, como a de Antônio da Silva Serva, na Bahia. Deste
modo, se pode constatar que o publicismo “oficial”, “central” ou “de Estado” encontrou
na Impressão Régia a sua principal estrutura social e propiciou o financiamento editorial
para as elites políticas associadas aos interesses da Corte.

Esse aspecto deve ser frisado: as publicações que eram difundidas através da
Imprensa Régia contavam com o financiamento da Coroa e, portanto, da vinculação aos
interesses do governo e dos escalões em seu entorno, formado, predominantemente, pela
burocracia lusa. Isso auxilia a explicar porque a Gazeta do Rio de Janeiro difundia mais
notícias europeias do que locais, com destaque para a situação da Inglaterra em relação
aos ataques de Napoleão (SILVA: 2009: 15).

O publicismo ali adquire a feição de divulgação de normas jurídicas e


administrativas e de análise conjuntural da vida econômica, social e política. O
publicismo das frações letradas cariocas e de outras frações regionais articuladas com o
Rio de Janeiro, encontrou, desta forma, um canal de expressão através da Impressão
Régia. Por isso verifica-se um dúplice papel das publicações: primeiro, a tarefa
cotidiana e dinâmica de difundir regras administrativas e, segundo, no encargo de
noticiar a conjuntura do momento. Neste sentido, as gazetas se diferenciavam dos
jornais, uma vez que nestes se poderia encontrar matérias redigidas com “maior
26
Conforme Maria Beatriz Nizza da Silva “Para uma colônia que até então se limitava a ler
esporadicamente a Gazeta de Lisboa e os demais periódicos de Portugal, não há dúvida de que a
circulação de notícias locais tornou os habitantes do Brasil mais atentos ao que se passava em seu próprio
território, além de serem informados acerca da guerra na Europa e das mudanças políticas que se
sucederam” (SILVA: 2009: 15).
76

erudição e a análise de questões relacionadas com a agricultura, o comércio, a história


natural, a economia política, entremeadas, por vezes, com um pouco de poesia”
(SILVA: 2009: 16).

No que se refere à dimensão das obras “científicas” de autores brasileiros,


aquelas que tratavam de temas econômicos, como as orientadas pela linha liberal de
autoria de José da Silva Lisboa, foram publicadas pela Impressão Régia, que prestava
ainda serviço às livrarias privadas, como a de Paulo Martin e outros livreiros do Rio de
Janeiro, demonstrando a amplitude de sua influência no meio editorial27
(HALLEWELL: 2012: 117).

De acordo com essa percepção, constata-se, primeiramente, que apesar das


conhecidas medidas metropolitanas de restrições às atividades políticas, econômicas e
culturais brasileiras, em que se destaca a vedação da instauração de tipografias e do
comércio de livros no Brasil28, houve produções literárias, artísticas e científicas no
Brasil, e não apenas aquelas promovidas pelas frações letradas de brasileiros que foram
impressas em Portugal (HALLEWELL: 2012: 96).

Em segundo lugar, percebe-se que as frações letradas das elites nativas


assumiram, em certa medida, a tarefa de atuar como “publicistas brasileiros”, mesmo
antes do impacto político e da transformação econômica e cultural promovidos com a
vinda da Corte Portuguesa para o Rio de Janeiro em 1808, pois já havia “estudiosos da
realidade social, doutrinadores dos problemas por ela apresentados”, isto é, agentes do
meio social e político ligados às práticas doutrinárias de teor publicista29 (AB’SABER:
2008: 116).

Conclui-se, então, conforme a definição das categorias mencionada na

27
Deve-se tomar em consideração o fato de que a ampliação do mercado de livros nesse contexto
ganhava também um maior impulso com a divulgação de obras importadas (SILVA: 2009: 16).

28
Do qual é exemplo o Alvará de 20 de março de 1720, que proibia as “letras impressas” no território
brasileiro (HALLEWELL: 2012: 93).

29
Há referência a nomes de gerações nascidas a partir de meados do Setecentos, como: José da Silva
Lisboa, (1756-1823), Hipólito José da Costa Pereira (1774-1823). Este é considerado o primeiro jornalista
brasileiro, editor do jornal Correio Braziliense, publicado em Londres, criado em 1808 (AB’SABER:
2008: 116).
77

Introdução, que ser incorporado ao grupo dos “publicistas brasileiros” nesse momento
histórico significava integrar um dos “pólos” regionalizados, que delimitavam, através
de instituições como o Seminário de Olinda e a Impressão Régia, as fronteiras do
espaço de atuação intelectual das elites letradas. O publicismo elaborado no Brasil e
difundido durante esse período (1800-1824) foi influenciado por tal concorrência
ideológica e política, confrontando “revolucionários” de norte a sul, em que os
movimentos nordestinos, especialmente os pernambucanos, se destacaram, com as
frações de políticos-bacharéis e jornalistas situados na Corte, detentores de uma
orientação unionista ou “lusobrasileira”, emanada do espírito monarquista coimbrão.

A geração das elites de letrados formados em Coimbra, que alcançou


intervenção direta na esfera política e atuou também no publicismo, contou com a
ferramenta da difusão das produções através da Impressão Régia. Já do outro lado, os
publicistas “regionais” dos panfletos e periódicos, dos quais o exemplo pernambucano
de Frei Caneca e dos revolucionários de 1817 e 1824 é um caso ilustrativo, forjaram-se
em torno do Seminário de Olinda. Assim, infere-se que mesmo diante da inexistência de
Universidades e Editoras na vida brasileira, o publicismo não deixou de se expressar e
repercutir as lutas políticas entre as frações de elite e setores sociais com interesses
regionais e ideológicos diversos. O fato de ter sido expresso, primeiramente, pela via da
imprensa, decorre dos constrangimentos que inviabilizavam a constituição de
Universidades e de um mercado editorial relativamente autônomo no Brasil.

Portanto, a imprensa passou a ser, nesse contexto, o veículo de expressão de


usos políticos distintos e concorrentes de termos e expressões, imprimindo uma
combinação de caracteres diferenciados e até mesmo contraditórios nos textos, como o
teor conjuntural das discussões apresentadas e a exposição doutrinária, mais conceitual.
Além disso, verifica-se que o tom entusiástico e explicitamente militante dos textos, que
em certos casos vinha permeado por expressões retóricas e termos ideológicos, era
coerente com a meta pedagógica de ensinar o “povo”, ou seja, com o objetivo de
domesticar a população, vista como massa inculta ou incapaz de se autogovernar. O
publicismo desse cenário opõe dois modelos “ideais” de Estado e de dominação
política: o monárquico e unitário ligado à Corte contra o padrão federalista e
republicano originário da região Norte e Nordeste, com destaque para Pernambuco.
78

Esses aspectos apontam para as condicionantes sociais que contribuíram para


enquadrar as mobilizações intelectuais sobre a política (publicismo) como próprias ao
ambiente jornalístico e do discurso panfletário, favorecendo os agentes detentores de
maior volume de capitais sociais (conhecimento médio ou superior, erudição, titulação,
experiência administrativa e política, redes de relações familiares e com o poder de
Estado, recursos financeiros, apoio das elites urbanas e rurais), passíveis de ser
reconvertidos em melhores habilidades para o manejo dos instrumentos de difusão
cultural, com destaque para a imprensa e as obras jurídicas.

Disto, verifica-se que o horizonte brasileiro começava a favorecer os usos


políticos de termos, conceitos e noções integrantes do capital de “competências” (capital
econômico e cultural) detido por agentes dotados de saberes superiores, sobretudo
jurídicos, através da imprensa. O publicismo se expressaria, assim, pelo caminho
jornalístico e panfletário e iria refletir, desta forma, a busca das elites letradas por meios
de expressão de seus interesses políticos, sociais e econômicos, que não poderiam ser
difundidos de outro modo. Antes de 1808 a produção local de obras jurídicas estava
praticamente inviabilizada pela censura e pela ausência de condições estruturais para
esse empreendimento, como inexistência de editoras, de universidades e a escassez de
público alfabetizado na população local, impedindo a formação de um mercado letrado
consumidor.

Esse conjunto de fatores favoreceu a via do jornalismo e do panfletismo, que a


partir de 1808, seriam os meios de difusão do relativo “ímpeto cultural modernizante”
das elites nativas, letradas e conhecedoras das novas teorias políticas europeias, que
apostaram na via do “ecletismo” e do “cientificismo”, como contrapontos à ênfase
católica e romanista, predominante na cultura jurídica herdada de Portugal e vigente
durante o período colonial (1500-1822).

O fato de ter havido mobilização política, inclusive através do publicismo, no


contexto anterior à outorga da Constituição de 1824, com difusão pública de
argumentos baseados em teses adotadas por parte dos atores da elite letrada, na forma
de discursos e impressos (sobretudo textos escritos em jornais e panfletos, que
empregam termos e expressões na disputa de sentidos sobre o poder, o Estado, o
Direito, a nação, a cidadania, dentre outros), demonstra que o comportamento dos atores
79

políticos não pode ser explicado como uma resultante direta de regra constitucional
(LACROIX: 1992).

Infere-se, daí, que algumas das características do espaço social que moldaram a
mobilização jornalística do publicismo e sua politização nesse cenário foram: a) a
inserção dos agentes no contexto colonial em crise e já distanciado do universo
acadêmico-científico metropolitano; b) o teor modelado pelos diversos usos políticos de
conceitos, princípios e teorias; c) o caráter fluido; d) exposição do caráter “engajado”
em uma das causas em jogo, isto é, o perfil militante do autor, pois mesmo em caso de
anonimato, o fundamento ideológico do posicionamento era exposto; e) natureza
conjuntural, isto é, voltado ao tratamento imediato de questões prementes ou “do
momento”; f) a velocidade de circulação dos textos.

Por tais razões, esse modo de intervenção política e de difusão de ideários


políticos permitia uma percepção mais clara da identificação do agente com um dos
“lados” do jogo político. O publicismo jornalístico e panfletário não implicava na
dissimulação das posições e ideologias. No Segundo Capítulo, passa-se a aprofundar a
análise das condições que circundaram os usos do publicismo jornalístico e panfletário
no contexto da emancipação do Brasil e da fundação do Estado Nacional.
80

CAPÍTULO 2 – O PUBLICISMO NA CONJUNTURA: A INTENSIFICAÇÃO


DAS LUTAS PELA FUNDAÇÃO DO ESTADO NACIONAL

A politização dos jornais e panfletos no cenário emancipacionista não repercutiu


apenas o “ímpeto cultural modernizante” das elites nativas (FERNANDES: 2005: 43),
letradas e conhecedoras das novas teorias políticas europeias, que apostaram na via do
“ecletismo” e do “cientificismo”, como contrapontos à ênfase católica e romanista,
predominante na cultura jurídica herdada de Portugal.

Embora o movimento cultural seja uma dimensão relevante, porque indica uma
vinculação das elites coimbrãs à nova cultura jurídica européia dita “jusnaturalista30”,
que não favorecia situar como problema político a questão da legitimidade do Regime e
acatava a noção absoluta de propriedade como direito natural, ela não é suficiente.

A formação jurídica coimbrã, com seu teor “jusnaturalista”, adequava-se bem


aos interesses das elites urbanas e rurais brasileiras, preocupadas com a manutenção do
comércio e da propriedade escrava, mantendo viva a defesa da população na condição
de “súditos” da Monarquia Absolutista Portuguesa, pela obediência que ainda repousava
sobre as diversas crenças nativas na validade dinástica de fundamento teocrático.
Contudo, ela deve ser analisada considerando-se, também, o peso da intensificação da
concorrência política intraelites na conjuntura da Independência.

Este fator alterou o perfil dos periódicos e panfletos, implicando na promoção de


usos políticos dos jornais e afetando o molde e o papel da difusão do publicismo.

2.1 Do padrão descritivo de conjunturas europeias aos “problemas e interesses


nacionais”: a politização do publicismo brasileiro no contexto de 1820-1822

Verifica-se que o padrão mais narrativo de descrições conjunturais das situações

30
O Jusnaturalismo é uma vertente da filosofia jurídica centrada na noção de “direito natural” ou “lei
natural”, apropriada de modos diversos conforme a época e contexto social. Para a sua apropriação em
Portugal no contexto de transição entre o século XVIII e XIX, ver: KIRSCHNER: 2009.
81

europeias, próprias do publicismo nascente a partir de 1808 e reforçado com a fundação


da Impressão Régia em 1815, progressivamente altera-se, levando os textos jornalísticos
e panfletários a repercutirem no Brasil os ecos da crise política que emerge com a
Revolução do Porto em 1820. Deste modo, no bojo dos textos jornalísticos e
panfletários, os diversos agentes ligados a diferentes interesses políticos e econômicos
colocaram ênfase nas tomadas de posição manifestadas pelos deputados brasileiros e
pelos portugueses nas Cortes de Lisboa, instauradas em face da Revolução do Porto de
1820 e da elaboração da Constituição do Reino (PRADO Jr.: 2012: 49), que entrou em
vigor em 1822.

Nota-se que essa forma de mobilização intensificou no Brasil a apropriação e


circulação de conceitos e teorias de publicistas estrangeiros, dotando de sentidos locais
tais conceitos, exprimindo demandas por redefinição das instituições políticas. Para
isso, os agentes lançaram mão em seus textos de termos, expressões e conceitos
importados da filosofia política e do constitucionalismo de autores estrangeiros, como
Burke, Constant, Montesquieu, Bentham, Voltaire, Rousseau, Condorcet, dentre outros,
moldando o arcabouço alienígena aos problemas locais, colaborando para formatar uma
nova linguagem política e diante de um público maior (NEVES: 2003: 37).

Disso decorre que a mobilização de autores diversos identificados como


publicistas estrangeiros, com proeminência para a presença francesa, representou uma
das ferramentas relevantes para a moldagem das noções e sentidos atribuídos às práticas
pelos publicistas brasileiros. Esse ponto é fundamental para a discussão em torno da
“interpretação constitucional” que surgiria posteriormente, já no período monárquico,
pois apresenta a ampla difusão de variados sentidos atribuídos ao termo “constitucional”
(NEVES: 2003; 2009 (a); 2009 (b) LUSTOSA: 2010).

A ocorrência da denominada Revolução do Porto, de 1820, representa, portanto,


um fator conjuntural que influiu sobre a expansão da publicística através do jornalismo
e periodismo, frisando-se sua ambiguidade, por ser liberal no sentido de estar baseada
em um ideário ilustrado, porém comportando aspectos controversos em face dos
diferentes interesses locais e europeus envolvidos. Assim, tem-se um quadro de disputas
pelo direcionamento ideológico do processo político, em que se definiu a posição da
burguesia lusa, que em face da crise econômica portuguesa não desejava a emancipação
82

do Brasil, mas sim seu retorno à condição de colônia portuguesa (FAUSTO: 2006: 71).

Neste ponto, deve-se ter em consideração que a partir de 1821 aflorou e acirrou-
se em Portugal e no Brasil a concorrência entre pelo menos quatro “correntes” ou eixos
de luta política identificadas com diferentes facções e que influem sobre o publicismo:
a) a posição “lusa” ou favorável à supremacia da Coroa Portuguesa e ao retrocesso do
Brasil ao status colonial; b) a posição unionista ou de defesa da manutenção da
condição do Brasil de Reino Unido a Portugal; c) a posição “radical” da defesa da
emancipação com autonomia do Brasil, porém com a adoção do sistema monárquico
constitucional, e por fim, d) a posição “extremada” dos emancipacionistas republicanos
(FAUSTO: 2006: 73).

Constata-se, assim, que em um primeiro momento, correspondente ao período


entre 1821 e 1822, não havia um ideário político homogêneo e unívoco, definindo o
sentido do termo “constitucional”. Ao contrário, havia uma multiplicidade de sentidos,
atribuídos aos conceitos que foram empregados para definir e julgar a legitimidade dos
modelos políticos em concorrência, que eram, então, veiculados como alternativas
possíveis31.

Também se saliente a mudança de padrão na orientação política dos portugueses


em relação ao Brasil em face da queda de Napoleão em 1814, pois desde esse momento
a elite portuguesa acreditava não mais existir mais a razão principal que ocasionou a
vinda e a manutenção da presença do Rei D. João VI no Rio de Janeiro32, o que acirrou

31
Ao tratar do papel dos impressos e livros, Lúcia Neves menciona que: “(...) nesse debruçar-se sobre a
história dos livros e impressos, dois momentos mostram-se fundamentais: o Setecentos e o longo século
XIX. Na primeira temporalidade, encontram-se as novidades em relação às práticas de leitura, à
constituição do esboço de uma voz geral, mas também as resistências em relação a tais propostas por
meio do papel repressivo da Inquisição e da censura. Na segunda, o livro se integra ao tecido cultural e
político da sociedade, revestindo-se as palavras, por meio de tais escritos, de conotações particulares e
diversas, fazendo com que uma simples ideia, ao transcender seu contexto originário, projete-se no tempo
sob a forma de um novo conceito, que transforma aqueles discursos contemporâneos em práticas capazes
de revelar as diversas identidades políticas e sociais presentes naquela conjuntura histórica” (NEVES:
2009:8).

32
“Naquela altura, as linhas de divisão passavam pelo retorno ou não de Dom João VI a Portugal. O
retorno era defendido no Rio de Janeiro pela “facção portuguesa”, formada por altas patentes militares,
burocratas e comerciantes interessados em subordinar o Brasil à metrópole, se possível nas linhas do
sistema colonial. Opunha-se ao retorno o “partido brasileiro”, constituído de grandes proprietários rurais
das capitanias próximas à capital, burocratas e membros do Judiciário nascidos no Brasil”(FAUSTO:
2006: 72).
83

as demandas de retorno do Rei a Lisboa e influiu sobre a intensificação do confronto


político em torno da definição da posição do Brasil em relação a Portugal (FAUSTO:
2006: 72).

Dentro dos marcos desse contexto é fundamental destacar a dimensão binária de


oposição entre uma posição “brasiliense” e uma posição “portuguesa” a caracterizar o
enfrentamento político que moldou o espaço em que atuaram os agentes dos discursos
nos jornais e panfletos, meio empregado pelos agentes alfabetizados da época para
intervir na disputa que se travava. O retorno do Rei a Portugal, em 1821, colocou a
questão em termo, deslocando o interesse político dos agentes para o processo eleitoral
que consistiu nas eleições para a definição dos políticos que seriam os deputados
brasileiros a atuar nas Cortes de Lisboa (FAUSTO: 2006: 72).

Nesse novo cenário, entre os anos 1821 e 1822, constata-se que os jornais e os
panfletos, principais tipos de periódicos, eram os veículos mais utilizados na difusão das
visões políticas por atores sociais, conferindo significados a termos e expressões
importadas de outros cenários, sobretudo europeu, como constitucionalismo,
Constituição, regime constitucional e outros correlatos.

O abandono da perspectiva de adotar o Conselho de Procuradores Gerais das


Províncias, convocado em fevereiro de 1822 por ideia de José Bonifácio, como órgão
representativo das aspirações nacionais (FAORO: 2000: 281) e a sua substituição pela
convocação, pelo Regente Dom Pedro, de eleições para uma Deputação brasileira para
as Cortes de Lisboa são elementos que indicam o relativo peso político que o
publicismo via imprensa já representava naquele momento.

Enquanto principal modo de reivindicação e interpretação das conjunturas, o


publicismo jornalístico e panfletário exercido pelas frações letradas expressava as
manifestas inconformidades das elites nativas com a possível manutenção da submissão
colonial e representava uma forma de pressão sobre a esfera da construção das crenças
políticas. Verifica-se, assim, que o publicismo foi uma arma de intervenção política
importante no contexto brasileiro entre os anos de 1821 e 1823, isto é, em um período
de marcantes transformações sociais, caracterizado até mesmo como “revolucionário”
(RODRIGUES: 1975:51).
84

Quanto à repercussão da Revolução do Porto sobre os ideários políticos no


Brasil, Raymundo Faoro aponta o “liberalismo imigrado”, que passaria a integrar o
“patrimônio cultural da nação” (FAORO: 2000: 280). Nessa interpretação, teria havido
uma combinação entre o ideário manifestado no Movimento em Portugal (“sopro
inesperado, inovador e subversivo”) e as aspirações emancipacionistas brasileiras, já
expressas nos Movimentos do Século XVIII e início do XIX em Minas Gerais, Bahia e
Pernambuco (Idem).

Quanto ao “casamento” das influências, o enciclopedismo, a Revolução


Francesa (1789) e a Independência Americana formariam a base dessa “nova onda”, que
seria atravessada também, de modo contraditório, pela ideologia da Restauração
Francesa de 1814. Desse misto de noções importadas e adotadas pelos brasileiros, o
publicismo herdaria uma divisão em duas vertentes: uma vertente “rousseauniana” com
ênfase na soberania popular, em que a representação nacional precederia ao Rei,
contrapondo-se a uma corrente defensora da precedência do Monarca sobre as
instituições representativas (FAORO: 2000: 280).

A relevância desse aspecto aparece referida, em face de que a segunda vertente


teria sido a adotada por Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, autor do projeto
constitucional debatido na Constituinte de 1823 e, também, por Carneiro de Campos,
autor do texto da Constituição de 1824 e Regente Provisório em 1831 (FAORO: 2000:
280).

Portanto, verifica-se que o cenário brasileiro, especialmente no Rio de Janeiro,


São Paulo, Minas Gerais e Pernambuco, entre 1820 e 1822, repercutiu, através da
intensificação na prática do publicismo, a formação, o treinamento e a experiência
política de certos agentes das elites nos usos políticos de termos e expressões ligadas à
elaboração e difusão de sentidos do “constitucionalismo” importados do publicismo
estrangeiro, sobretudo francês (NEVES: 2003; NEVES: 2009; PRADO: 2012).

Por isso, apontar os significados diversos mobilizados nesses usos políticos da


imprensa e o do panfletismo33, com os aspectos contraditórios na mobilização dos

33
Note-se que o próprio D. Pedro I usou o termo “partido” e “facção” por ocasião da dissolução da
Assembleia Constituinte em 1823, com sentido de parcialidade e desunião. Também José Bonifácio
85

termos e expressões importados e incorporados ao cenário local, é uma tarefa preliminar


ao estudo dos sentidos contidos em seu desdobramento na forma de “interpretação
constitucional” durante o Regime monárquico34.

Como já referido, os conceitos e noções políticas eram importados da política e


do Direito europeu e norteamericano, nítidos nos jornais e panfletos (NEVES: 2003:
36). Deste modo, o que interessa de forma direta a esta abordagem é apreender os
contornos da intensificação desse recurso, através do qual a palavra “constitucional” foi
não apenas introduzida no cenário brasileiro, mas, dotada de sentidos diversos,
empregada como instrumento no manejo da qualificação da política, como modo de
interpretar os problemas colocados pela situação brasileira.

2.2 A “praga periodiqueira” da conjuntura emancipacionista: concorrência pela


definição legítima de “constitucional” e o explícito engajamento dos publicistas

Os formatos das publicações de discursos publicistas apontam para o traço


comum consistente no caráter explícito do engajamento político dos autores, apesar dos
formatos variados e do frequente recurso aos pseudônimos. Assim, além dos textos de
análise de conjuntura política, havia explicitação do engajamento político nas formas
literárias, sobretudo nos poemas e, inclusive, naqueles de teor irônico em forma de
orações, como o Padre Nosso Constitucional35. Observa-se, neste sentido, que o cenário

criticava as posturas dos “facciosos”, “carbonários”, “anarquistas”, “demagogos” e “republicanos”


(RODRIGUES: 1975: 53).

34
O historiador José Honório Rodrigues remete a esta questão, ao reconhecer os contextos
revolucionários como momentos privilegiados de difusão de termos e sentidos políticos (1975: 51).
Assim, “as revoluções são criadoras de um vocabulário político novo”, são “indutoras de palavras
políticas novas, criadas em outros países, ou em outras revoluções”. Assim, a Revolução Francesa foi o
movimento que mais intensamente produziu um conjunto variado de termos políticos, exportados para o
mundo. No caso do Brasil, desde a Revolução Pernambucana de 1817, mobilizavam-se termos tais como:
revolução, pátria, patriota, liberal, partido, partidista, partidário, facção, deputado, “brasileiro”,
“brasiliano” ou “brasilense”, paraíba, crioulo (negro nascido no Brasil), botafogo (tolo, pedante, mal-
educado). (RODRIGUES: 1975: 52).
35
“Constituição portuguesa, que estás em nossos corações, santificado seja o teu nome, venha a nós o teu
regime constitucional, seja feita sempre a tua vontade, um melhoramento na agricultura, navegação e
comércio nos dá hoje e cada dia; perdoa-nos os defeitos e crimes passados, assim como nós perdoamos
aos nossos devedores, não nos deixes cair em tentação dos velhos abusos, mas livra-nos destes males,
assim como do despotismo ministerial, ou anarquia popular. Amém” (NEVES: 2003: 41).
86

foi influenciado pela adesão das elites lusobrasileiras à “praga periodiqueira” da Europa,
onde o financiamento estatal através da Typographia Real, pela Impressão Régia e pela
Imprensa Nacional foram constantes. Nesse sentido, com base em levantamento
publicado em fonte historiográfica, verifica-se que foram lançados cerca de 20
periódicos no Brasil entre 1821 e 1822 (NEVES: 2003: 43). Os itens constam dos
quadros a seguir.

Quadro 1 - Folhetos “constitucionais” brasileiros (publicações contendo referências ao


publicismo) entre 1821 e 1822

Título do Panfleto Local de publicação Editora Ano

Reflexões Filosóficas Rio de Janeiro Tipografia Real 1821


sobre a liberdade e a
igualdade
Constituição Explicada Rio de Janeiro Gazeta do Rio de 1821
Janeiro

Diálogo entre a Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1821


Constituição e o
despotismo

Os corcundas do Porto: Rio de Janeiro Tipografia Nacional 1821


farsa em verso com o hino
anti-corcundal

Regeneração Rio de Janeiro Imprensa Régia 1821


Constitucional ou guerra e
disputa entre os corcundas
e os constitucionaes
Fonte: NEVES (2003).

Os dados reunidos no quadro apontam a expressiva utilização da palavra


“constitucional”, em geral opondo-se à “Constituição”, sendo a primeira ligada à
aspiração de “liberdade” do Brasil (aspiração de ter ou de ser um regime constitucional),
e a segunda vinculada ao “despotismo” luso (o retorno à inaceitável condição colonial),
identificada com a posição dos deputados lusos das Cortes Portuguesas. Outro aspecto
que também é possível verificar é a significativa dependência do financiamento estatal
para a difusão de veículos de imprensa e para a publicação dos folhetos, o que se
percebe pela forte presença da Tipografia Nacional e da Imprensa Régia e, portanto, o
87

efeito de concentração dos debates políticos no Rio de Janeiro.

Por isso, fica nítida a relação de proximidade dos autores dos materiais com o
centro do poder político, implicando em proximidade com o próprio Regente Dom
Pedro e seus aliados. Verifica-se, portanto, que o recurso ao espaço da imprensa,
fundada em 1808 com a criação da Imprensa Régia, reproduziu-se de modo exponencial
durante o momento das lutas pró e contra a ruptura com o sistema político Unionista e
da consolidação da Independência em 1822. A listagem no quadro a seguir reúne os
dados de local e ano de publicação dos materiais, permitindo verificar a expansão do
debate para outros focos regionais e os empregos do termo “constitucional”, indo da
defesa do unionismo com Portugal à propaganda do emancipacionismo brasileiro, e
sendo manejado tanto pelos jornais mais “conservadores” (monarquistas tradicionais ou
liberais moderados), quanto pelos mais “radicais” (monarquistas parlamentaristas e até
republicanos).

Quadro 2 – Publicismo em Periódicos lançados no Brasil na conjuntura de acirramento da


luta emancipatória por província e ano de lançamento (1821 a 1823)

Título do periódico Local/ano de publicação

O Correio Braziliense Londres - 1808


O Amigo do Rei e da Nação Rio de Janeiro - 1821
O Bem da Ordem Rio de Janeiro - 1821
O Conciliador do Reino Unido Rio de Janeiro - 1821
Diário do Rio de Janeiro Rio de Janeiro/1821

Volamtin Rio de Janeiro/1821

Despertador Brasiliense Rio de Janeiro - 1821


O Espelho Rio de Janeiro - 1821
Sabatina Familiar dos Amigos do Bem Comum Rio de Janeiro - 1821
O Revérbero Constitucional Fluminense Rio de Janeiro - 1821
A Malagueta Rio de Janeiro - 1821
Sentinela da Liberdade a beira-mar da Praia Grande Rio de Janeiro - 1823

Idade d’Ouro Bahia - 1811


Semanário Cívico Bahia -
Diário Constitucional Bahia - 1821
Aurora Pernambucana Pernambuco - 1821
88

Segarrega Pernambuco - 1821


Conciliador Nacional Pernambuco - 1821
Gazeta Pernambucana Pernambuco - 1821
Conciliador do Maranhão Maranhão - 1821
Brasil Rio de Janeiro - 1822
A Verdade Constitucional Rui de Janeiro - 1822
Correio do Rio de Janeiro Rio de Janeiro/1822
Compilador Constitucional, Político e Literário Rio de Janeiro - 1822
Brasiliense
O Analysador Constitucional Bahia - 1822
Espreitador Constitucional Bahia - 1822
A Abelha Bahia - 1822
O Marimbondo Pernambuco - 1822
O Tamoyo Rio de Janeiro - 1823
Fonte: Neves (2003).

Os dados acima reunidos permitem refletir sobre a centralidade do termo


“constitucional” nos múltiplos e contraditórios usos políticos do publicismo, em que,
por exemplo, o sentido de “crítica ao despotismo” se unificava com a defesa da posição
nacionalista, ou seja, a defesa da ruptura com a associação de Brasil e Portugal. Os
significados diversos e mesmo concorrentes presentes nas tomadas de posição desses
agentes foram sendo unificados e acabaram convergindo para a defesa da emancipação
brasileira, à medida em que a deputação brasileira retorna de Lisboa desapontada com a
posição majoritária das Cortes, de declarado colonialismo, invalidando as tentativas
unionistas dos brasileiros.

Assim, os partidários do sentido unionista de “Constituição”, ou seja, de defesa


da União entre Brasil e Portugal, com uma só Constituição para todo o “Império
Lusobrasileiro”, vão partir do enfrentamento com os defensores da posição
emancipacionista e sua correspondente defesa de uma Constituição “para o Brasil e do
Brasil”, a ser elaborada por deputados constituinte brasileiros, chegando, após 1821, na
adesão à proposta dos segundos.

Em ambos os casos, o traço comum a ser assinalado é que o publicismo,


enquanto “imprensa de opinião”, pela expressiva presença de bacharéis coimbrãos,
89

revelou a mobilização de um vocabulário fortemente vinculado ao discurso jurídico,


ainda que nem todos os seus autores fossem juristas. Isto porque os discursos aparecem
moldados com termos como: “constitucional”, “Constituição”, “constituinte” e outros
afins. Nesse viés, deu-se a alavancagem de um padrão de publicismo moldado pela
implicação de dois atributos: o domínio das ferramentas retóricas do discurso jurídico,
em que o termo “constitucional” adquiria força simbólica, e o explícito engajamento e
inserção político-administrativa dos agentes que figuravam como “publicistas”.

Visto para além de uma prática de interação social através da comunicação


escrita, afetada por uma conjuntura específica, o publicismo desse contexto pode ser
problematizado como o fenômeno que introduziu os usos políticos do termo
“constitucional” no Brasil, cujos contornos produziram efeitos de longa duração. O
principal desses efeitos foi contribuir para legitimar a ambivalência dos agentes no
exercício simultâneo da “elaboração do publicismo” e na “prática política”. Deste
modo, pode verificar que esses “jornalistas”, “panfletistas” ou “gazeteiros” eram
homens políticos que figuraram como agentes da disputa pelo sentido correto de
“constitucional”, antes mesmo do advento de uma “Constituição” formal e “do Brasil”,
o que só veio a ocorrer com a outorga da Constituição de 1824”36.

Outro efeito de longa duração relevante é a concentração do debate político,


reafirmando o domínio de certa zona geopolítica ou um centro emanador do publicismo
brasileiro. Isto porque esses materiais foram produzidos e circularam, principalmente,
entre o Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador, o que se liga ao fato de que as províncias
do Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia representavam regiões de concentração não apenas
do poder político, mas também do poder econômico durante a fase crítica de transição
do sistema colonial para a adoção formalizada do Estado monárquico independente.

36
A vinculação dos autores de jornais e panfletos com a atividade política é um elemento relevante a ser
destacado não apenas para a compreensão do domínio dos temas “políticos” e da conjuntura europeia,
mas para que se reflita sobre a sua posição na esfera política e sua relação com o poder de Estado,
sobretudo pela facilidade de acesso às editoras oficias. Segundo a historiadora Virgínia Silva: “Os anos
entre 1820 e 1822 foram importantes para o florescimento da imprensa de opinião em decorrência das
medidas que estabeleceram sua liberdade de circulação no Brasil, mas também por conta do largo uso dos
jornais como instrumento político-doutrinário”, sendo que esses materiais estavam “estreitamente
vinculados à atividade política exercida pelos mais variados agentes sociais e facções (...).” (SILVA:
2009: 172).
90

O processo de diferenciação de interesses políticos repercutiu, portanto, na


variedade dos sentidos atribuídos ao termo “constitucional” e expressões afins no
publicismo, o que tornou cada vez mais visível a contradição entre os “exaltados” ou
“radicais” (autonomistas, regionalistas ou federacionistas) e os unionistas ou centralistas
dentro do quadro inicial das lutas emancipacionistas do período da Independência.
Nesta linha, a defesa dos interesses de integridade do “Reino” pelos unionistas ou dos
interesses do “povo” pelos autonomistas-regionalistas, no âmbito do publicismo,
refletia, na realidade, as lutas entre as camadas sociais, mesclando interesses das elites
urbanas com as demandas dos setores senhoriais emergentes, sendo uma parte de
contrários aos interesses identificados como “recolonizadores” e “portugueses” e outra
aliada às demandas de autonomia regional.

A visão unionista, que se modificou no âmbito do processo constituinte de


Lisboa, assumindo após 1821 uma posição emancipacionista, lutou via publicismo
jornalístico e panfletário para garantir a supremacia da lógica monárquico-centralista
como a visão dominante, orientadora e aglutinadora do engajamento político da maioria
das elites nativas37.

Ainda se pode inferir das informações acima a “nacionalização” do publicismo,


no sentido de apropriação e usos das teses estrangeiras pelas elites nativas. Isto porque,
com exceção do Correio Brasiliense, de Hipólito José da Costa, lançado em Londres em
1808, e que também possuía apelo publicista, todos os demais periódicos foram
lançados no Brasil, concentrados, ainda que em proporções distintas, nas províncias do
Rio de Janeiro, em que se situava a sede do governo, e no Nordeste, com destaque para
Bahia e Pernambuco.

Quanto aos sentidos variados e contraditórios presentes nos termos e noções


expressos no ambiente jornalístico, evita-se empregar uma classificação dicotômica,
como “esquerda” e “direita”, por entendê-la pouco adequada para descrever o cenário
do início do século XIX. Opta-se por buscar os sentidos atribuídos na terminologia
37
Um desses sentidos atribuídos ao publicismo vem de uma visão do Direito Português como estando em
oposição aos costumes jurídicos originalmente nativos do Brasil, sendo, portanto: “o anti-Moderno,
absolutista, escolástico, ligado ao Direito Romano, ao modelo do patrimonialismo, ao sistema das
capitanias hereditárias e aos interesses dos fazendeiros, às elites agrárias, aos senhores de escravos”
(WOLKMER: 2005: 35).
91

empregada pelos próprios agentes, porque permitem verificar as direções múltiplas que,
nas conjunturas, foram se combinando e formando orientações políticas mais nítidas.

Assim, empregava-se, dentre outros, termos como: “brasilienses”, “brasilianos”,


“absolutistas”, “corcundas”, “emancipacionistas”, “liberais”, “unionistas”, “lusos”,
“portugueses”, “governistas”, “oposicionistas”, “moderados”, “conservadores”,
“exaltados” e “radicais”. Ao adentrar no vocabulário empregado pelos agentes, reduz-se
o risco de impor ao passado, certas categorias de compreensão do mundo já originárias
do século XX ou do século XXI38.

Deste modo, pode-se considerar como caso ilustrativo de um posicionamento


“constitucionalista”, com o sentido de “brasiliense” e “não-unionista”, o periódico
Revérbero Constitucional Fluminense (SILVA: 2009). Seus autores, Joaquim
Gonçalves Ledo e Januário Cunha Barbosa, ilustrados, participaram ativamente do
processo de Independência, situados em posições políticas do pólo emancipacionista,
vinculados a grupos de matizes republicanos e democratas, que acabaram por aderir à
solução monárquica e ao apoio a D. Pedro I, porém frisando a necessidade de
convocação de uma assembleia constituinte do Brasil (COSTA: 2007).

Publicado entre 15 de setembro de 1821 e 8 de outubro de 1822 e contemplando


em torno de 12 páginas, o jornal expressava as opiniões dos seus autores, voltadas à
defesa de um sistema representativo, com eleições diretas para a assembleia
constituinte, porém mantendo a mesma divisão social entre cidadãos e não-cidadãos
existente à época e baseada na renda e na condição de homem livre. O jornal também
contemplava uma sessão aberta ao público com o título de “Correspondências”, em que
publicavam textos de leitores. Nesta parte, se manifestavam opiniões de muitos atores
políticos, por vezes protegidas pelo anonimato dos pseudônimos (SILVA: 2007:175).

O caso do Revérbero Constitucional Fluminense demonstra, no entanto, uma

38
A refutação da dicotomia esquerda-direita para explicar a esfera política nesse contexto também se
justifica pela inexistência de partidos políticos nesse contexto, referido como a passagem de uma
“desolação colonial” para um “entusiasmo cívico”. Nessa linha de entendimento, José Honório Rodrigues
ressalta que “Não havia partidos, mas facções de correntes de opinião”. Neste sentido, é mais adequado
falar em “sectários, liberais, conservadores, radicais”, como “grupos pré-partidários” (RODRIGUES:
1975: 10). A posição de que não havia partidos políticos no Brasil antes de 1837 é adotada também por
José Murilo de Carvalho (CARVALHO: 2006: 204).
92

certa ambiguidade, uma vez que optou pela “índole moderada” e “reformista”, expressa
ao classificar as ideologias manifestadas no contexto e ao identificar, com certa ironia, a
existência de seis “partidos” naquele cenário, enquadrando-se no último: o Partido dos
Indiferentes, o Partido dos Flutuantes, o Partido dos Desejadores do Governo Antigo e
Inimigos da Inovação (Corcundas), o Partido dos Republicanos (radicais democratas), o
Partido dos Aderentes às Cortes de Lisboa (Unionistas) e, por fim, o Partido dos
Aclamadores do Príncipe Regente, aglutinando as posições separatistas e monarquistas
(RODRIGUES: 1975: 12).

O caso do Correio do Rio de Janeiro representa outro jornal que também tomou
posição como discurso “brasiliense” e separatista, apontado como a folha mais radical
do Rio de Janeiro, por estar alinhada com as posições que seriam defendidas por Frei do
Amor Divino Caneca e Cipriano Barata, líderes do movimento pernambucano de 1824
(LUSTOSA:2010: 12). Lançado em abril de 1822, teria sido o primeiro jornal a
reclamar a convocação de uma assembleia constituinte nacional, sendo que seu editor
reivindicava também a inserção de uma cláusula de “Juramento Prévio” da Constituição
pelo Imperador.

O português João Soares Lisboa, editor do jornal, era um comerciante instalado


no Brasil havia mais de vinte anos. Não possuía curso superior nem havia estudado em
Coimbra, tendo vindo muito jovem para o Brasil. Este fator somado ao seu “estilo
apaixonado” e ao “ímpeto com que assumia a defesa de temas polêmicos” o
transformaram em alvo de muitas críticas (LUSTOSA: 2010: 13). O Correio do Rio de
Janeiro representava, neste sentido, o meio de expressão do discurso dos dominados.

É interessante confrontar a visão “radical” expressa nas páginas do Revérbero e


do Correio com a posição “moderada” difundida em O Tamoyo, jornal dos irmãos
Andrada, que no contexto formavam um grupo opositor ao de Gonçalves Ledo e
Januário da Cunha Barbosa. Nesse jornal, José Bonifácio, coimbrão, monarquista e
promotor do protagonismo político de D. Pedro I, apresentava, no entanto, um
panorama político bastante semelhante. Para ele haveria duas grandes ideologias em
confronto no Brasil desse período: os “Chumbistas”, que defendiam a manutenção da
condição de Reino Unido a Portugal, e o “Partido” Separatista, que defendia a
emancipação.
93

A diferença da classificação apontada pelo Tamoyo é que dentro deste segundo


estariam abarcadas posições divergentes: os Absolutistas ou Corcundas, que defendiam
a Independência, porém com um governo Monárquico Absolutista; os Constitucionais,
que também sendo separatistas desejavam uma Monarquia Limitada por liberdades civis
e políticas (moderados); e por fim, os Exaltados ou Democratas Radicais, que por sua
vez reivindicavam uma Monarquia Federal, com restrição de poder ao monarca e maior
poder aos corpos legislativos. O Tamoyo mencionava ainda a existência do “partido
neutro” ou dos oportunistas, fazendo menção à posição dos que somente se
preocupavam com a manutenção de seus privilégios (RODRIGUES: 1975: 14).

Verifica-se, nesse sentido, que a formação ideológica dos autores do Revérbero


Constitucional Fluminense expressava a posição reformista da elite letrada coimbrã,
explicitando a defesa da “regeneração da Monarquia” para atender à “vontade geral” da
“nação brasileira”. Para tanto, indicava usos das noções extraídas das Luzes Portuguesas
mescladas com ideias de Rousseau, refletindo os aspectos contraditórios dos interesses
em jogo, em que se colocavam simultaneamente uma propaganda monárquica ladeada
por elogios ao sistema republicano norteamericano (SILVA: 2007: 177).

Para apontar com maior clareza os contornos do investimento dessas frações


letradas no jornalismo de teor político, reitere-se que Joaquim Gonçalves Ledo, ao lado
de Januário Barbosa, desempenhava o papel de líder da denominada “elite brasiliense”,
tanto na Imprensa quanto na Maçonaria de orientação francesa. Tanto eles quanto João
Soares Lisboa, redator do “exaltado” Correio do Rio de Janeiro, exercitariam o
publicismo como interpretações “radicais”, no sentido de reivindicar a orientação
política para o lado dos dominados (base de homens letrados ou não-letrados, sem
grande propriedade e homens livres e pobres), o que significava um apelo maior à
representação parlamentar como garantia da liberdade política do que à defesa da
Monarquia ou da proeminência da figura do Imperador. Porém, destaca-se, ambos os
grupos se posicionavam à frente das ocorrências que desembocaram na aclamação de D.
Pedro I como Imperador em 12 de outubro de 1822 (LUSTOSA: 2010:11).

Deve-se reiterar que não apenas frações da elite com curso superior tiveram
acesso ao publicismo via imprensa nesse contexto. Isto porque “a liberação da imprensa
possibilitaria a escritores e leitores brasileiros a abertura para uma multiplicidade de
94

ideias e atitudes”, permitindo que “gente das mais diversas origens e formações
aproveitasse a porta aberta pela imprensa para se lançar na vida política” (LUSTOSA:
2010: 11). Desta forma, um outro efeito importante gerado por essa “abertura” ao
“discurso popular” constitui a possibilidade da convivência entre a linguagem mais
erudita dos bacharéis com a linguagem mais popular das frações letradas, mas não
“ilustradas”, caracterizando a mescla de sentidos e expressões mobilizadas nos
discursos moldados pelos embates travados no meio jornalístico.

Neste sentido, salienta-se como relevante para esta abordagem a caracterização


da linguagem mobilizada no publicismo jornalístico39como “mista”, uma vez que
admitia a convivência da erudição com a escrita de feição mais popular, folclórica, até
mesmo chula, ou seja, não erudita. Essa mescla linguística indica que o publicismo de
via jornalística se diferenciaria significativamente do publicismo manejado nos
discursos elaborados pelos bacharéis em Direito formados na Europa, com suas obras
jurídicas e manuais de “interpretação constitucional”, em que se representariam como
“juristas”, isto é, autoridades “científicas”.

Deste modo, destacam-se dois pontos: em primeiro lugar, o poder simbólico do


publicismo jornalístico originava-se de estar visceralmente atrelado à dinâmica da
conjuntura; em segundo, ressalta-se sua precária legitimidade “científica”, por mesclar a
erudição do vocabulário ilustrado com os sentidos originários do senso comum,
expresso na linguagem popular, folclórica e chula.

Por um lado, estes fatores possibilitaram sua conversão em espaço mais amplo
de intervenção social sobre os acontecimentos políticos, pois “defender ideias no âmbito
da instituição ou publicá-las em algum panfleto era uma intervenção direta na vida
política do Império. Não era apenas discutir a política, mas executá-la” (PEREIRA:
2010: 48) No entanto, por outro lado, não poderia constituir-se, exclusivamente, a
médio e longo prazo, na única via para o manejo do publicismo, sobretudo diante da
tarefa de sustentação da legitimidade “jurídica” e “científica” do Regime Monárquico.
39
Para Lustosa os “aforismos, expressões populares, até mesmo chulas, que eram elementos da
linguagem popular do Brasil do começo do século XIX foram conservados nas páginas desses jornais, nos
proporcionando a possibilidade de identificar muitas permanências, falares que chegaram aos nossos dias.
Esse estilo de escrever mais coloquial vai ser especialmente adotado pelo grupo que Lúcia Bastos
classificou de elite brasiliense em oposição à elite coimbrã”. (LUSTOSA: 2010: 11).
95

Conclui-se, daí, que a difusão da representação de agentes como publicistas no


cenário da emancipação comportou a inserção de indivíduos de diversas origens,
enunciando diferentes tomadas de posição política, e nesse sentido, a significação de
“constitucional” só pode ser apreendida no cenário social desse desenrolar histórico. A
elaboração jornalística e panfletária repercutiu as divergências e as convergências de
sentido intraelites ilustradas e entre estas e as camadas letradas populares. Os ideários
diversos desses grupos, baseados em posições sociais, interesses econômicos e ideários
políticos conflitantes, amalgamaram-se na reunião entre o “dizer a política” e o “fazer
política”, mesmo porque parte significativa de seus agentes estavam diretamente
inseridos nas instâncias políticas oficiais, na maçonaria e nas esferas administrativas do
governo lusobrasileiro.

A descoberta das obras jurídicas como novos meios de expressão do publicismo


apareceu como um desdobramento da prática do publicismo jornalístico e panfletário,
intensificado no cenário das mobilizações da conjuntura emancipacionista. Em cenário
modificado, a partir da formalização da Independência do Brasil, a geração coimbrã das
elites de Estado iria assumir a tarefa do publicismo para expressar os sentidos de
“constitucional” com outro formato e com novas finalidades.

Verifica-se, portanto, que o publicismo introduzido com a literatura iluminista no


Brasil esteve ligado à difusão do ideário que marcou as mobilizações políticas
autonomistas e emancipacionistas que ocorreram no período colonial, isto é, às
insurreições do século XVIII, como a Inconfidência, e que encontrou um momento
propício à sua intensificação no período entre 1821 e 1823. Como a elite política da
época era formada predominantemente por bacharéis formados na Europa, e sobretudo
em Coimbra, esse fator explica o manejo das doutrinas publicistas estrangeiras na
discussão brasileira sobre o sentido do “regime constitucional”, com a mobilização de
um discurso político formatado pelas expressões “constitucional”, “constituinte”,
“Constituição”.

Nesse ambiente, os usos de noções como “constituição”, “constitucional” e


“constituinte” também se devem ao impacto local da Revolução de 1820 em Portugal,
cuja meta era a derrubada do regime absolutista. Essa constatação é um elemento chave
96

para se apreender o ambiente cultural em que se forma o espaço do publicismo no


Brasil, indicando caminhos para se situar a invenção da “interpretação constitucional”
no terreno brasileiro.

Assim, considera-se que a elaboração doutrinária da vida política que se expressaria


em manuais de interpretação constitucional a partir de 1824 não pode ser vista, portanto,
apenas como uma resultante direta da fundação e da progressiva consolidação de
instituições de ensino jurídico superior no país, pois ela conta com um passado de
acúmulo de experiências de mobilização política de discursos, com a apropriação
histórica de capitais culturais e políticos, concretizada ao longo desse processo
contextualizado de intervenção publicística através da imprensa.

Com relação à primeira geração de políticos brasileiros que exerceram o papel de


publicistas, em que se situam José Bonifácio de Andrada e Silva, Antônio Carlos e
Joaquim Francisco de Andrada e Silva, cabe referir os três fatores que foram
considerados como de significativa importância como estratégia de unificação da elite
política brasileira: a expressiva maioria dos membros da elite política possuía ensino
superior, sendo uma “ilha de letrados num mar de analfabetos”; a concentração da
educação superior na formação jurídica; e a concentração dos estudos em Coimbra e,
posteriormente, em quatro capitais provinciais (CARVALHO: 2006: 65).

Ainda cabe destacar, quanto aos contornos gerais do pensamento dos políticos-
bacharéis da geração emancipacionista, a opinião que defende o efeito de longa duração
na reprodução de um padrão não científico e doutrinário-manualístico da elaboração
publicista no pós-Independência. Isto porque antes da Independência, as ideias
revolucionárias se concentravam na ação dos padres, médicos e maçons (CARVALHO:
2006: 86), formando um arcabouço de usos militantes e radicalizados das teorias
constitucionais estrangeiras que penetravam no Brasil, com destaque para a ênfase nas
ideias políticas revolucionárias francesas.

Assim, conforme esse entendimento, o horizonte cultural promovido com a prática


do publicismo nativo militante iria repercutir pouco na conformação posterior do âmbito
constitucional-doutrinário, pois na doutrina selecionada como bibliografia curricular dos
cursos jurídicos, se percebe o predomínio de posições de adesão forte ou moderada ao
97

status quo. Ou seja, por longo tempo, após a consolidação do Brasil independente e
apesar do isolamento dos alunos de Coimbra ter sido rompido com a criação das escolas
de Direito no Brasil, “as ideias radicais continuaram ausentes dos compêndios
adotados” (CARVALHO: 2006: 85).

A estagnação da cultura jurídica portuguesa e a disposição nobiliárquica das elites,


em uma sociedade apegada ao protagonismo do Rei e da nobreza, são fatores
ressaltados como parte da herança colonial legada ao imaginário intelectual brasileiro40.
Ainda é preciso ressaltar como esse modelo afetava a educação superior em Portugal41.

Reitera-se que o fator da existência de uma herança cultural de matriz juridicista


é relevante para a compreensão do êxito na importação e mobilização do
constitucionalismo europeu, especialmente o francês, que funcionou como motor do
discurso político anticolonialista entre a elite mobilizada no contexto 1821-182242.

O uso dos panfletos, folhetos e periódicos no contexto dos anos 1820-1822 como
veículos de imprensa utilizados nas lutas travadas em torno da difusão dos ideários
políticos em jogo aponta que nesse cenário, apesar da importação, muitas vezes
clandestina, de livros estrangeiros, não era através de manuais de doutrina
constitucional que as elites engajadas tratavam das questões constitucionais43. Os

40
Segundo Venâncio Filho: Assim, quando Portugal, na peripécia do processo das descobertas, depara-se
com a Terra de Santa Cruz, a Colônia que passará a ser, em pouco tempo, a joia mais preciosa do Império
Português, iria sofrer os influxos desse condicionamento cultural, ao mesmo tempo em que as populações
que para aqui vinham compostas de degredados e de elementos da pequena nobreza, teriam de se adaptar
a um novo tipo de atividades econômicas. Por isso mesmo, a rarefação do poder político, nos primeiros
séculos, dá margem a um processo de fortalecimento do poder privado (...). Nesse quadro de privatismo,
o processo cultural que se exerce sobre a nova colônia é devido em parcela primordial à Companhia de
Jesus (VENÂNCIO FILHO: 2005: 3).

41
Venâncio Filho entende que: “Por força do predomínio da Companhia de Jesus na Universidade de
Coimbra, a cultura portuguesa nos séculos XVI e XVII e na primeira metade do século XVIII conservar-
se-ia impermeável às transformações que se processavam no continente europeu após o Renascimento,
com a expansão dos estudos científicos e a disseminação do método experimental” (VENÂNCIO FILHO:
2005: 5).

42
Para Lúcia Neves: “(...) de acordo com o pensamento da elite coimbrã e brasiliense, a regeneração
política deveria ser portadora de uma Constituição que enterrasse o “maldito sistema de colônia”
juntamente com “o cabeçudo despotismo”. Nesse sentido, “o grito de liberdade, levantado no Douro,
repetido no Tejo”, ensejou no Brasil os mesmos princípios de liberdade proclamados “do soberbo
Amazonas até ao Rio da Prata” (NEVES: 2003: 125).

43
A predominância do espaço jornalístico sobre a produção de obras, como meio de difusão de noções
políticas nesse período, foi apontada por Neves, que afirma: “Entretanto, muito mais do que obras de
98

modos de produção do publicismo brasileiro foram afetados pela formalização da


Independência nacional e pelo processo de institucionalização do Estado Nacional,
desencadeados a partir de 1822.

Desde esse momento, a demanda pela legitimação do sistema político firmado


na Constituição de 1824 começou a influir sobre a forma como a elite letrada iria
desempenhar a tarefa de elaboração dos sentidos das instituições políticas.

Considera-se, daí, que um dos elementos que demonstra o alcance dessa


modificação de cenário institucional consiste no aparecimento de uma nova forma de
elaboração e difusão do publicismo: os manuais de “interpretação constitucional”. Pode-
se, a partir daí, questionar como ocorreu essa “invenção” da doutrina constitucional no
Brasil Império, a partir de 1824, momento em que começam a ser publicadas obras
jurídicas que mobilizam os sentidos da “Constituição” e dos “princípios” do “direito
público e constitucional”.

O investimento na construção da “legitimidade científica” para o modelo


institucional e social, diferenciada do publicismo jornalístico, os políticos-bacharéis
passaram a mobilizar um tipo de intervenção política através do discurso jurídico
especializado, isto é, a “interpretação constitucional” via manuais. Para isso, contaram
com algumas condições específicas da conjuntura histórica, como a migração de
livreiros estrangeiros para o Rio de Janeiro, especialmente os franceses. O que se passa
a analisar a seguir.

cunho teórico, foram os folhetos políticos, panfletos e periódicos, publicados entre 1821 e 1823, que, sem
dúvida, mais contribuíram para veicular e difundir a cultura política, plasmada na tradição de uma
Ilustração mitigada, de que se imbuíra o Vintismo. Traçando um caminho entre a história e a política, esta
imprensa permitia a circulação das informações em todos os setores sociais, trazendo à tona os
acontecimentos diários que passavam do domínio privado ao público, fazendo os fatos políticos
adquirirem o status de novidades. (...) Muitos desses escritos haviam sido editados em Portugal, durante o
movimento de 1820, e se destinavam a propagar a proposta de um constitucionalismo monárquico,
profundamente inspirado nas ideias pregadas durante a revolução da Espanha (...). Era frequente a venda
de constituições espanholas, tanto em Portugal, quanto no Brasil (...)” (NEVES, 2003: 39).
99

2.3 A influência dos livreiros franceses no Rio de Janeiro: importação do


publicismo “liberal” e seus usos para a legitimação do Regime Imperial

A migração de livreiros franceses para o Brasil44 foi expressiva no século XIX,


sendo uma tendência forte no período pós-Independência. Esse comércio representou
uma porta de entrada para o publicismo estrangeiro, sobretudo, francês, pois
funcionavam como estabelecimentos de importação e difusão de obras políticas e
publicistas estrangeiras, disponibilizando, dentre outras, os manuais ou “Cursos” de
Direito Público e Constitucional aos leitores brasileiros.

Assim, verifica-se que ocorreu a formação, ainda que incipiente e concentrada


nas cidades litorâneas, especialmente no Rio de Janeiro, de um mercado editorial a
partir de 1824. Isso representa um fator relevante, pois informa a autorização do Estado
para a importação e consumo de obras estrangeiras no cenário nacional. Pela ênfase em
uma variedade de livros, incluindo as obras sobre política, filosofia, ciências variadas,
literatura, e também Direito Público e Constitucional, detecta-se que o publicismo pôde,
então, sair da clandestinidade e adquirir um estatuto de “área do conhecimento”
legítima, e, portanto, acessível ao espaço cultural das elites letradas brasileiras. Veja-se
a amostra de livreiros no quadro a seguir.

Quadro 3 - Livreiros e editores no Brasil Império por localização e ano de fundação

Livreiro Sede Ano

Livraria De Plancher Rio de Janeiro 1824

Villeneuve Rio de Janeiro 1834

Laemmert Rio de Janeiro 1893

Garnier Rio de Janeiro 1844

44
Tais informações podem ser encontradas em trabalhos que se referem à questão da difusão do livro no
Brasil, dentre os quais cita-se: HALLEWELL (2012); FONSECA e SEELAENDER (2008); HESPANHA
(2006); NEDER (1995).
100

Briguiet-Garnier Rio de Janeiro 1934

Lombaerts Rio de Janeiro 1848

Louis Mongie Rio de Janeiro 1832

Casa Garraux (Livraria Acadêmica) São Paulo 1863

Typographia Nacional (sucessora da Rio de Janeiro 1822 (?)


Imprensa Régia)
Paula Brito Rio de Janeiro 1831

Francisco Alves Rio de Janeiro 1854

Fonte: HALLEWELL (2012).

Essa amostra de onze livreiros aponta para a intensa vinda ao Brasil de editores
estrangeiros e a concentração da instalação desses agentes no Rio de Janeiro,
especialmente no ano de 1824, coincidindo com o contexto da outorga da Constituição
imperial brasileira. A inserção do incipiente mercado editorial na capital do Império
contrasta com a existência de apenas uma casa editora fora do Rio de Janeiro, situada
em São Paulo, cidade que seria, a partir de 1827, a sede de um dos dois únicos Cursos
Jurídicos do período.

Tal concentração regional pode indicar a dependência dos editores em relação ao


auxílio econômico e político do governo imperial e sua articulação com as esferas da
alta Administração Pública, bem como o interesse da Coroa em promover a difusão de
um publicismo apologético da Monarquia centralista, ou seja, da difusão de obras que
legitimassem a direção política adotada por Dom Pedro I e seus apoiadores.

Outra questão a ser enfatizada é que sendo a capital do novo Estado e já


contando, desde 1808, com maior concentração urbana de letrados e de circulação de
pessoas, o Rio de Janeiro seria o local mais rentável para esse tipo de negócio, pela
perspectiva de maior consumo de livros. Deste modo, em um momento inicial, São
Paulo e Olinda, que seriam as cidades sedes dos Cursos Jurídicos brasileiros, não foram
beneficiadas, aparecendo como mercados secundários e ainda pouco atrativos aos
livreiros e editores estrangeiros e nacionais nesse contexto.
101

Quando se pretende problematizar a influência dessas condicionantes sobre o


publicismo que se direcionaria para o formato dos manuais de Direito a partir de 1824,
o fator mais relevante a ser considerado é que, dentre os livreiros e editores no Brasil do
período imperial, se encontrava um número expressivo, quase absoluto, de comerciantes
franceses, o que pode ser apontado como variável forte na explicação das condições que
contribuíram para a promoção do publicismo que dominava o cenário francês 45 daquele
momento, combinando-se com o domínio da Monarquia Bragantina no Brasil
Independente. Assim, as obras de filósofos revolucionários, como Rousseau e outros,
passariam a ser confrontadas com obras de publicistas moderados, conservadores,
monarquistas e restauracionistas.

Desta forma, destaca-se, neste contexto, o livreiro De Plancher, por se tratar de


um caso ilustrativo da rede de influências entre editores e Governo, pois a Coroa
favoreceu a instalação do mercado editorial e das editoras para atuar na seleção de obras
a serem difundidas no Brasil. Aspectos como o engajamento político do proprietário
aparecem como fatores a ser considerados no entendimento da articulação entre o
publicismo desejado e o publicismo importado, pela ênfase em manuais de doutrina
francesa, diante da existência de diversos outros modelos ideológicos disponíveis46.

Desde sua atividade na França, que já experimentava um cenário de crise


política, De Plancher atuava no ramo editorial que se tornara cada vez mais concorrido.
Sua prática esteve articulada com a difusão do pensamento político antiabsolutista, o
que implicava na publicação e venda de diversos de constitucionalistas franceses47.

45
Os primeiros editores instalaram-se no Brasil vindos da Europa especialmente a partir da segunda
metade do século XIX. Plancher, Garnier, Leuzinger, Laemmert, Jacintho Ribeiro dos Santos, Francisco
Alves, além da exceção do brasileiro Francisco de Paula Brito, destacaram-se no grupo que passou a se
dedicar aos negócios envolvendo o mercado editorial brasileiro (PIVATTO: 2010: 43).

46
Famoso na França por editar obras vinculadas ao pensamento iluminista, o tipógrafo e livreiro Pierre
Plancher aportou em território brasileiro em 23 de fevereiro de 1824. Pretendia proteger-se da
perseguição que sofria pelo governo de conde d‘Artois que tornou-se rei da França com o nome de Carlos
X, após a morte do irmão Luís XVIII em 1824 (FUTATA e MIZUTA: 2008).

47
Apesar desses embates e da precária liberdade de comércio e de expressão, Plancher demonstrava
habilidade para exercer sua atividade de editor de obras que veiculavam ideias ligadas ao pensamento
liberal. Em sete anos, publicou em Paris 150 títulos, um número considerável diante das adversidades da
época. Vários expoentes do liberalismo francês tiveram suas obras publicadas na tipografia de Plancher:
102

Assim, é referido que “seu principal interesse era a política”, sendo que sua empresa na
França era conhecida como a “livraria política” (HALLEWELL: 2012: 149). Publicou
ainda em Paris, em 1818, a obra: “Coleção completa das obras publicadas sobre o
governo representativo e a constituição atual da França, formando uma espécie de curso
de direito constitucional”, obra de Benjamin Constant (Idem).

Com o apoio do Imperador Pedro I, De Plancher pôde desenvolver sua atividade


de livreiro e editor, utilizando seus equipamentos de impressão e encadernação que
havia trazido de Paris. No anúncio de seus produtos, em 1824, afirmava poder
proporcionar “aos brasileiros uma perfeita compreensão do verdadeiro sistema da
monarquia constitucional”. Já em 1827 indicava dentre os autores trazidos de Paris os
nomes de: “D’Alembert, Biot, Briant, Broussais, Carnet, Condillac, Constant, Diderot,
Dumas, Dupuis, Miguet, Mirabeau, Montesquieu, Parisset, e Poiret, além de Bignon,
Blackstone, CasimirPérier, Fox, Foy, Guizot, Lannguinais, Pagès, Pitt, Say e Adam
Smith” (HALLEWELL: 2012: 151).

Outro dado relevante a ser destacado consiste na autorização recebida por De


Plancher para publicar a Constituição de 182448, devido às boas relações com D. Pedro
I, tendo sido nomeado Impressor Imperial em apenas três meses de sua chegada ao Rio
de Janeiro, inclusive tendo utilizado o nome de “Typographia Imperial e
Constitucional” (HALLEWELL: 2012: 153). Sendo assim, constata-se que havia uma
“linha editorial” bastante nítida na atuação do livreiro francês, que se instalou no Rio de
Janeiro em 1824 e que teria escolhido vir para o Brasil em razão da prévia existência de
“fortes laços culturais com a França”, pois “livros franceses já eram importados em
volume razoável e uma boa parte do comércio de livros existente estava nas mãos de

Benjamin Constant, François Guizot, RoyerCollard, Madame de Staël, Destutt-Tracy, Dupont de l’Eure,
ProsperBarante (...). (FUTATA e MIZUTA: 2008).

48
Neste sentido, Laurence Hallewell enfatiza que: “A Constituição foi um êxito espetacular e lançou as
bases de sua prosperidade; obter a permissão para imprimi-la constituiu um feito memorável, após uma
longa luta com a Typographia Nacional, vitória que se deveu tanto à qualidade do seu trabalho como à
força de suas amizades em altos cargos” (HALLEWELL, 2012: 151).
103

franceses” (HALLEWELL: 2012: 150).

Logo, reitera-se que um dos principais efeitos disso consistiu na maior


circulação do publicismo estrangeiro no Brasil, que começa a se beneficiar do novo
mercado de obras. Daí até 1827, com a criação dos dois cursos jurídicos, aumentaria a
demanda por manuais jurídicos. Mesmo que muito restrita ao universo das elites de
bacharéis, alunos e professores dos Cursos de Direito, esse mercado representava um
negócio relativamente rentável dentro das condições do cenário local, refletindo
perspectivas econômicas abertas com a Independência49.

Neste sentido, pode-se dizer que a criação dos cursos jurídicos em 1827 foi um
fator a incrementar a inserção dos livreiros franceses no Brasil, fomentando o comércio
livreiro relacionado ao universo das elites letradas, sobretudo dos bacharéis em Direito,
necessitados de novas fontes doutrinárias, além de apenas as lusas, para embasar o
aprendizado acadêmico e o exercício das carreiras jurídicas. Como exemplifica o caso
do livreiro De Plancher50, essa migração de editores franceses contribuiu para que se
difundisse a publicística francesa, americana e inglesa, abrindo o universo do
publicismo, antes quase exclusivamente jornalístico, a uma nova forma de mobilização
de ideário políticos: as obras jurídicas.

Portanto, esse fator conjuntural deve ser tomado em consideração para


compreender como a fórmula dos manuais de “interpretação constitucional” passou a
integrar o plano do publicismo brasileiro no período Imperial. Repita-se que a presença

49
Anote-se, o fator de que o contexto em que De Plancher desembarcou no Brasil foi “em meio à revolta
diante dos atos do imperador tais como a dissolução da Constituinte e o rumo político que imprimiu ao
processo de construção do estado nacional” (FUTATA e MIZUTA: 2008). Essa conjuntura coloca a
questão da relação do livreiro com o apoio à causa monárquica através da difusão de obras monarquistas,
quase como uma retribuição à acolhida de D. Pedro I.

50
O aspecto econômico da condição de estrangeiro foi assim ressaltado: “Assim, verifica-se um paradoxo
entre a direção ideológica do editor-livreiro na França e a estabelecida no Brasil, mas tal contradição não
passa de aparência. Exilado de seu país, Plancher buscou apoio nas instituições políticas brasileiras e,
visto que o encontrou, não poupou esforços para mantê-lo. Afinal, a manutenção do poder de seus aliados
lhe rendia, além do apoio, a isenção de impostos, o que garantia o funcionamento com êxito de sua
atividade comercial. Por esse motivo Ezequiel Correia dos Santos, do Nova Luz Brasileira, atacava
Plancher chamando-o de corcunda, o que significava, no vocabulário político, ser partidário do
despotismo” (FUTATA e MIZUTA: 2008).
104

de obras de publicistas franceses no acervo da Casa Editorial De Plancher indicava


também a função de propiciar aos interessados o acesso sistemático ao pensamento de
publicistas liberais, monarquistas e restauracionistas, com destaque para Guizot (1787-
1874) e Benjamin Constant (1767-1830). O político e historiador francês François
Guizot era um representante do “liberalismo defensor de um estado forte, centralizador
e regulador da ordem social”51, enquanto Constant “defendia um liberalismo onde o
Estado não deveria ser centralizador e a sociedade deveria se sobrepor a ele”, em face
da “autonomia do Parlamento”. (FUTATA e MIZUTA: 2008).

As ideias políticas de François Guizot e Benjamin Constant alcançaram


significativa influência no cenário político brasileiro do Oitocentos. Conforme destaca
Ricardo Vélez Rodrigues (RODRIGUES: 2012), François Guizot, nascido em Nimes,
na França, em 1787, filho de uma família da burguesia protestante francesa, era formado
em Direito na Sorbonne, e posteriormente, tornou-se professor de História nessa
Universidade. Guizot destacou-se como formulador do denominado “Liberalismo
Doutrinário”, expressão que referia o grupo de parlamentares franceses cuja linha de
atuação era inseparavelmente intelectual e política e o qual Benjamin Constant também
integrava.

O político François Guizot compôs a oposição à Restauração conservadora


francesa, tomando parte na composição do governo liberal a partir de 1830. Ostentando
uma orientação política “moderada”, Guizot estava situado em um contexto
restauracionista e monarquista e pretendia “finalizar a Revolução”, ou seja, construir um
governo liberal representativo estável, racional, que garantisse as liberdades sem levar a
uma nova ruptura pela tensão em nome da democracia. Sua produção historiográfica lhe
deu renome, sendo que ao lado de Victor Cusin, estruturou o ensino público na
França52. Neste sentido, a doutrina “liberal moderada” de Guizot combinava-se bem
com os interesses políticos dominantes no cenário brasileiro, em que a maior parte da

51
A influência de Guizot no publicismo brasileiro foi referida por Rodrigues (2012).
52
Conforme o verbete GUIZOT, François do Dicionário de Obras Básicas da Cultura Ocidental,
disponível em http://www.videeditorial.com.br/dicionario-obras-basicas-da-cultura-ocidental/f-g-h-
i/guizot-françois.html. Acesso em 14/04/2004.
105

elite política refutava o abolicionismo, bem como qualquer movimento revolucionário


de caráter popular e radicalmente democratizador.

Deste modo, a difusão de obras de publicistas franceses no Brasil Império aponta


para o interesse do Estado e das elites políticas de enfatizar e difundir no Brasil as
doutrinas liberal-moderadas, com teor contrário ao governo democrático de viés popular
ou revolucionário. Portanto, foram essas doutrinas que forneceram a base do repertório
nacional, sustentado em traduções integrais ou pontuais de obras e em usos nativos
desses ideários estrangeiros.

Aponta-se, por fim, as contradições entre a visão “liberal” do editor, como no


caso do livreiro De Plancher, e os desafios postos por sua nova situação local, isto é, a
condição de imigrante no Brasil, que gerava dependência em relação ao Governo e às
redes de relações com homens influentes, refletindo a complexidade em que se
encontrava o próprio universo brasileiro no momento53.

Infere-se dessa condição que a influência do publicismo de vertente liberal-


moderada francesa no cenário brasileiro está associada às demandas da elite política,
pois vem dessa fração a necessidade de incorporação do ideário político ao ordenamento
jurídico. Tratava-se, portanto, de parte de uma démarche política específica das elites
integradas ao círculo do poder governamental, que incluía a demanda de superação da
“revolução da independência” pela institucionalização do Estado Monárquico.

Verifica-se que tais elementos ajudam a entender a identificação prática do


publicismo francês como uma fonte legítima para a elaboração dos conceitos de
“constitucional” e afins no âmbito do publicismo brasileiro, sobretudo, influindo na
adoção da fórmula pedagógica possibilitada pelos manuais de “interpretação
constitucional”, uma forma de as elites ensinarem ao povo o caminho até a estabilidade
política.
106

Um efeito significativo dessa influência francesa sobre as práticas doutrinárias


brasileiras, expressada pela significativa citação de autores franceses e na tradução de
obras francesas, é a apropriação de conceitos e sua ressignificação, com base em
demandas específicas.

Detecta-se, assim, dentro do quadro de ênfase conferida ao pensamento francês, que


o debate doutrinário centrou-se na função e extensão do Poder Moderador, em que se
mobilizaram doutrinas como a de B. Constant e F. Guizot. E mesmo após esse período
inicial, com o advento de uma nova geração de políticos-doutrinadores brasileiros (a
partir de 1850), que poderia ser considerada “consolidadora”, o debate sobre a
Monarquia e o Poder Moderador traduziram a permanência do padrão de investimento
em doutrina jurídica com recurso à apropriação local do ideário publicista francês.

2.4 A invenção dos manuais de interpretação constitucional: o publicismo jurídico


da elite política “coimbrã”

A invenção dos manuais de interpretação constitucional pode ser apreendida


como um fenômeno resultante do processo histórico e social brasileiro acima referido.
Nele se apontam as condições herdadas pelas elites letradas lusobrasileiras a partir de
sua formação e socialização coimbrã. Estas, associadas a sua experiência político-
administrativa no Estado Português, combinaram-se com a mobilização de ideários
políticos estrangeiros no bojo dos movimentos sociais brasileiros no final do século
XVIII e nas lutas emancipacionistas.

No entanto, considera-se que a partir da Independência e, mais precisamente, a


partir do processo constituinte de 1823 e da outorga de uma Constituição formal em
1824, surge um novo contexto. Os modos de praticar e expressar o publicismo, como
tomadas de posição políticas, começa a partir de então a assumir outro caráter e
formato.

Essa nova formação ou mise en forme passa a ser eminentemente jurídica,


consistindo na elaboração de obras jurídicas, com destaque para os “manuais de Direito
107

Público e Constitucional” ou “Comentários à Constituição”. Nesse tipo de produção


intelectual se sobressai o capital cultural do agente, que vem a beneficiar de modo
intenso aqueles que possuem uma formação em Direito.

Nesta ótica se pode verificar que a elite letrada constituída de políticos-bacharéis


detentores de uma formação jurídica estava em condições e efetivamente passaria a
exercer o novo papel oficial de publicistas, superando o padrão de acompanhamento
conjuntural dos fatos políticos típico do jornalismo e panfletismo anteriores.

Desta forma, tal conjuntura representa o processo de institucionalização do


Estado nacional independente, em cuja cena política se colocou a delimitação da figura
jurídica central da “Constituição”, ou seja, o ato político que se converte na expressão
normativa do poder. A partir da consolidação dessa etapa, em que uma fração da elite
imperial soube se posicionar no “momento “constituinte” (FRANÇOIS: 1996: 17) de
forma articulada com os interesses de D. Pedro I, a intervenção das frações letradas de
políticos-bacharéis ganha um papel decisivo.

Portanto, não se deve considerar apenas o peso das figuras centrais de D. Pedro
I, dos irmãos Andrada e dos demais deputados brasileiros que haviam participado das
Cortes Lisboetas, no trabalho constituinte em 1823. Embora essas personagens sejam
tomados pela historiografia brasileira como decisivos nesse processo, deve-se
considerar que ocorre a partir de 1824 uma contínua prática de um novo formato de
publicismo, que passa a ocupar lugar ao lado do publicismo já operado através do
jornalismo.

A conversão das tomadas de posição políticas, sobretudo aquelas em favor da


legitimação da ordem, representada esta normativamente pela Constituição de 1824,
aponta para a oportunidade aberta às elites políticas imperiais de investirem nos
manuais de interpretação constitucional, a nova forma assumida pela “fala autorizada”,
a cargo dos políticos-bacharéis.

Nesta linha, se deve pontuar a importância da variável de conjuntura que foi o


movimento de organização do Estado, agora em bases nacionais. Essa etapa, designada
como a da “construção da ordem” (CARVALHO: 2008), não foi concluída
108

imediatamente após a Independência, mas perdurou durante o Primeiro Reinado (1822 -


1831) e alcançou, até mesmo, o Período Regencial (1831 - 1840). Tal contexto implicou
na reformulação das regras do Direito que vigoravam desde a época colonial, com as
alterações a partir da vinda da Corte para o Rio de janeiro (1808) e durante o período do
Brasil Reino Unido (1815-1822), gerando, progressivamente, a necessidade de
reordenar o ordenamento jurídico para torná-lo correspondente ao estatuto de nação.

Interessa aqui salientar que a elite política “coimbrã”, que assumiu a tarefa de
“construção” do Estado brasileiro e da definição constitucional (no plano da regra
jurídica) do Regime Político, estava identificada com o Despotismo Ilustrado português,
defensor da centralização política em torno da Coroa. Os coimbrãos, que formaram um
“partido” durante o Primeiro Reinado, eram chefiados pela antiga burocracia
lusobrasileira, cujos agentes haviam pertencido aos quadros do segundo escalão do
governo de D. João VI (LYNCH: 2010: 27). Portanto, esses agentes defendiam uma
“modernização pelo alto”, com a futura abolição do tráfico negreiro e da escravidão,
isto é, defendiam a subordinação do interesse provincial ao governo central e ao
reformismo imperial, fundada nos princípios da “ordem” e da “autoridade” (LYNCH:
2010: 28).

Desta forma, o antagonismo político dos coimbrãos com o “partido” brasiliense,


estava centrado em duas questões: a defesa, por parte deste, do federalismo de
inspiração norte- americana e do protagonismo da Câmara dos Deputados, contra a tese
da autonomia decisória do Imperador, dotado de papel atuante no processo político, que
foi a bandeira dos conservadores (LYNCH: 2010: 28).

Uma implicação relevante desse embate político sobre a definição das regras do
Regime Político no plano constitucional foi reforçar o peso dos conhecimentos
jurídicos, favorecendo os “políticos-juristas”, os que podiam se identificar como
“publicistas”, ou seja, como os detentores do conhecimento da “Constituição” e do
“Sistema Constitucional”. Por isso, a figura do “publicista do Direito” adquiriu maior
destaque nesse contexto de “construção do Estado” no Brasil (IGLESIAS: 2001: 124).
Demonstra a prioridade conferida ao “processo constituinte” o fato de que a elaboração
de um projeto de Constituição iniciou no âmbito da Maçonaria, antes mesmo da
Independência em 1822 (LEAL: 2002: 108), sendo posterior a sua apresentação e
109

discussão durante a Constituinte de 1823, por Antônio Carlos de Andrada. Mais ainda,
salienta-se a divergência acirrada entre “coimbrãos” e “brasilienses” no âmbito da
Assembleia de 1823 (LYNCH: 2010: 26), seguida pelo decreto de dissolução da mesma
e da outorga imperial da Constituição de 1824.

O projeto de Constituição outorgado por D. Pedro I, redigido pelo coimbrão José


Joaquim Carneiro de Campos, Conselheiro de Estado, Senador e deputado constituinte
de formação jurídica que havia integrado a Assembleia de 1823, consagrou a posição
dos “coimbrãos, mantendo o modelo econômico baseado na escravidão, que persistiu
como legítimo, ao lado das novas regras institucionais centralizadoras.

Por isso, é relevante frisar que a formação lusobrasileira de origem pombalino-


coimbrã recebida pela elite coimbrã, herdada da época colonial e da fase de Reino
Unido a Portugal, foi articulada em 1824 com os interesses econômicos das elites
nativas, sobretudo, agrárias, ligadas à economia de exportação, e assim, forjou uma
oposição político-partidária “liberal” identificada com uma posição reformista da
estrutura de Estado.

Destaca-se, como pertinente a esta abordagem que as mesmas frações de elite


lusobrasileiras que estiveram, primeiramente, incumbidas da consolidação da
Independência, assumiram em 1824 a liderança na tarefa de construção institucional do
Estado e de consequente reconstrução do seu “arcabouço jurídico”, no qual a
concorrência pelo teor da “Constituição” desempenhou um papel central. Isto mostra
que o contexto de fundação institucional do Brasil como nação independente teria efeito
de longa duração sobre o social, pois desencadearia uma supervalorização do papel
político dos “juristas publicistas”, frente à demanda de “criação de uma elite jurídica
própria e plenamente adequada ao ambiente brasileiro” (HOLANDA: 2004: 414).

Assim, esse cenário trouxe ao debate das frações letradas e à discussão


parlamentar na Assembleia Constituinte de 1823, o problema do recrutamento de
agentes para o exercício das novas funções políticas, inserindo o tema das
consequências da ausência de Universidades e de academias jurídicas no Brasil,
destacando o papel político do ensino jurídico.
110

O tradicional padrão do publicismo periodístico, expresso através das gazetas,


jornais e panfletos, já não seria, portanto, suficiente diante dessa necessidade de
construir a ordem legal e recrutar agentes capacitados a ocupar os espaços burocráticos
e políticos, bem como de construir o arcabouço de conhecimentos legítimos sobre as
regras constitucionais, o formato e funcionamento das instituições estatais e a definição
dos moldes “legítimos” da vida política brasileira.

Embora sem abdicar do periodismo jornalístico e do panfletismo, a elite ilustrada do


Império, desde o Primeiro Reinado começou a mobilizar a noção de “Constituição”
como referência da formulação de um conjunto de textos representados, então, como
publicismo jurídico, já então revestido de uma aura “científica”, “técnica”, garantia de
universalidade e aparentando “neutralidade” em relação à política. Essa apropriação se
deu, especialmente, pela elite “coimbrã”, portanto, foi combinada com uma visão moral
e católica da autoridade monárquica, herdada da universidade portuguesa reformada por
Pombal.

Trata-se aqui, por conseguinte, de se apreender as condicionantes sociopolíticas


que permitiram a certos agentes da elite política imperial investir no discurso publicista
jurídico. Assim, essa verificação recai sobre a concorrência com o padrão do publicismo
engajado, jornalístico e panfletário, intensificado no contexto de lutas de 1821-1823, a
partir da apropriação do publicismo jurídico (1824-1885) pelos “coimbrãos”, tomado
como a invenção da “interpretação constitucional” no Primeiro Reinado (1824-1831).

Reitera-se que mobilizar a “Constituição” através de manuais de doutrina


jurídica consiste em um tipo de prática ligada à estratégia política de legitimação
“apolítica” de um sistema de dominação. Ela só pode ser compreendida, portanto, se for
problematizada dentro do cenário de jogo pelo poder e de lutas pelo monopólio dos
sentidos da política. Nisto, o contexto da primeira metade do Oitocentos oferece um
panorama social adequado para o estudo das diferenças e continuidades entre as
representações do publicismo jornalístico e do publicismo jurídico, com base nos
percursos dos agentes da geração coimbrã.

O processo de formalização e institucionalização do Regime Político Imperial,


denominado de “construção do Estado” (IGLESIAS: 2001: 124) ou “construção da
111

ordem” (CARVALHO: 2008), percorreu o longo período de 1822 a 1840, incluindo o


Primeiro Reinado e as Regências, e termina com o começo do Segundo Reinado,
iniciado com o golpe da Maioridade. Já o período que se inicia a partir de 1840 inaugura
a segunda fase do Brasil Monárquico, denominada de etapa da “consolidação”.

Como acima referido, o contexto da “construção do Estado” desencadeado com a


formalização da Independência em 1822, aponta para a necessidade de articulação entre
as frações da elite engajadas na Independência, de modo a conquistar sua convergência
em torno da formatação das instituições do Regime Monárquico, com D. Pedro I à
frente da Monarquia.

Lembre-se que ainda antes da Independência nacional, como consequência do


abandono da perspectiva unionista por parte dos deputados brasileiros que estiveram
presentes nas Cortes constituintes de Lisboa, já havia uma mobilização de parte da elite
brasileira pela reivindicação de uma assembleia constituinte. Isso volta a ser colocado
em cena após 1822, com a superação da iniciativa do Conselho dos Procuradores das
Províncias. Porém, em sua formalização ainda se reflete a percepção híbrida da situação
brasileira, típica do unionismo54. A convocação imperial da “Assembleia Geral
Constituinte e Legislativa” se deu em 3 de junho de 1823 (RODRIGUES: 1974: 25).

Assim, a mesma fração da elite letrada componente da geração luso-brasileira ou da


elite coimbrã, com sua alta inserção política, não teria apenas o compromisso de
elaborar o projeto da Constituição (na verdade, a partir de um modelo já debatido e
aprovado no âmbito maçônico antes de 182355), discuti-lo e aprová-lo, mas também o
de dar continuidade a sua afirmação, pela posterior elaboração parlamentar dos
regulamentos normativos, e o de fazer a própria elaboração teórica de sentidos, como
demandas derivadas, uma vez que não existe um conjunto de “regras jurídicas” sem o

54
Esse aspecto é relevante para se detectar o alcance da influência política lusa, revelada pela decisão de
D. Pedro I quanto ao início do processo de organização institucional do novo país. Observe-se que no
decreto de convocação da constituinte brasileira consta que “para a mantença da integridade da
monarquia portuguesa e justo decoro do Brasil” estava sendo convocada “uma assembleia luso-
brasiliense, que, investida, daquela porção de soberania que essencialmente reside no povo deste grande e
riquíssimo continente, constituía as bases sobre que se devam erigir a sua independência, que a natureza
marcara e de que já estava de posse, e a sua união com todas as outras partes integrantes da grande família
portuguesa, que cordialmente deseja” (RODRIGUES: 1974: 25).

55
De acordo com a informação contida na “História Constitucional do Brasil”, do político republicano
Aurelino de Araújo Leal (LEAL: 2002: 108).
112

correspondente “corpo de doutrinas”56 .

Neste cenário, tem-se que a ocorrência dos embates de poder intraelites, que tiveram
como desfecho a dissolução da Assembleia Constituinte em novembro de 1823 e a
subsequente outorga da Constituição de 1824 pelo Imperador, aponta para a gravidade
adquirida pelo conflito de interesses e para a importância da necessidade de novos
meios de rearticulação e conciliação política entre as frações da elite situadas nos
diversos postos do poder político e burocrático.

A partir daí, pode-se destacar três fatores que podem ser considerados repercussões
dessa demanda política conjuntural colocada pelo processo de institucionalização do
Estado Nacional ou de “construção da ordem”: primeiramente, a formação de um
mercado editorial com forte presença de livreiros franceses no Brasil a partir de 1824;
em segundo lugar, o começo do investimento de agentes da elite política na produção de
manuais de interpretação constitucional; e, por fim, a criação dos cursos jurídicos em
1827, recaindo na instauração de uma cadeira de Direito Constitucional. Esses fatores
serão analisados mais detidamente no Capítulo 3.

56
Essa indissociabilidade entre a dimensão “prática” e dimensão “teórica” é própria ao universo jurídico.
Essa combinação foi referida por Pierre Bourdieu como a “força da forma”, uma vez que tanto a doutrina
jurídica quanto o procedimento judicial aspiram à universalidade (2006: 243). Também Tereza Cristina
Kirschner faz alusão ao poder dos “doutrinadores” quando descreve o foco de resistência às reformas do
ensino jurídico na Universidade de Coimbra encampada pelo Marquês de Pombal: “Nesse contexto, as
mudanças propostas na reforma do direito não seriam viáveis apenas por um ato de vontade política.
Dependiam também de uma mudança profunda do estilo de trabalho dos juristas, para os quais as leis, até
então, submetiam-se a um sistema de princípios jurídicos doutrinais e jurisprudenciais, produto de um
saber corporativo ciosamente defendido. A ciência jurídica tradicional não se amparava em um corpo de
leis, mas sim em um corpo de doutrina – o sistema dogmático da tradição romanística -, nomeadamente as
obras de Bartolo e seus seguidores. A argumentação jurídica partia da autoridade daqueles juristas, do
cotejo de opiniões, da invocação de precedentes jurisprudenciais e da utilização das formas de raciocínio
particulares a esse fim” (KIRSCHNER: 2009: 28).
113

CAPÍTULO 3 – O PUBLICISMO A PARTIR DA INDEPENDÊNCIA: AS LUTAS


REGIONAIS, A ELITE COIMBRÃ E A INVENÇÃO DOS “MANUAIS DE
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL”

No Capítulo anterior demonstrou-se que os usos do termo “Constituição” foram


historicamente construídos e que os sentidos mobilizados foram distintos, porque
repercutiram a intensificação da concorrência política no contexto da emancipação
brasileira. Neste cenário, o publicismo se expressou, predominantemente, através do
meio jornalístico e do panfletismo, cuja politização explica-se pela conjuntura dos
confrontos emancipacionistas, refletindo diferentes interesses traduzidos em orientações
políticas e que, em muitos casos, foram contraditórias (como o constitucionalismo
concebido enquanto unionismo com Portugal e o constitucionalismo tomado como
independência nacional; ou a definição monárquica e a definição republicana).

Nesta ótica, compreende-se os usos políticos do termo “Constituição” e das


expressões afins como somente podendo ser apreendidos no plural, como faceta do
processo de lutas políticas de contextos determinados. Dito em outras palavras, é na
estrutura das lutas sociais que se tem o fator explicativo forte capaz de apontar como se
estabeleceu a predominância de um sentido sobre os demais, diante da concorrência de
uma pluralidade de significados políticos, até mesmo antagônicos, atribuídos à noção de
“sistema constitucional”: o sentido da emancipação nacional com modelagem
monárquica, unitária, centralista e representativa.

É preciso destacar, ainda, o processo social complexo de criação nativa e de


apropriação cultural de conceitos e significados, pois este aponta que a imprensa
desempenhou o papel de ambiente para a difusão pública de visões de mundo e posições
políticas tanto eruditas quanto mescladas com o senso comum e o imaginário popular.
Entretanto, dentro dessa diversidade de interesses e linguagens, também havia em
comum um certo teor revestido da linguagem e dos sentidos próprios ao universo da
juridicidade, em que os termos “constitucional” e “Constituição”, importados dos
movimentos e das teorias político-jurídicas estrangeiras, especialmente, do Liberalismo
francês de Benjamin Constant e Guizot, refletiram de modo geral e difuso a
114

predominância do sentido do “anti-despotismo” (NEVES: 2003: 149)57.

Verifica-se, em face disso, que tal processo de mobilização local implicou nos
usos de termos e ideários europeus, possibilitando novas apropriações locais e usos
nativos, que foram projetados no cenário brasileiro a partir das lutas emancipacionistas.
No caso do Brasil, essa mobilização ligou-se, portanto, ao molde da estrutura social
colonial e escravista, influenciada, então, pelos movimentos europeus e pela
desagregação do Império Português, com seus consequentes reajustamentos
econômicos, sociais, culturais e políticos58.

Esse publicismo jornalístico teve o efeito de longa duração de introduzir termos


e expressões como “Constituição”, “regime constitucional”, “Estado constitucional”, e
“assembleia constituinte” na cena política brasileira. Esses termos representaram
naquele momento as “fórmulas” apropriadas e projetadas pelas frações ilustradas e
pelos extratos sociais populares como “ideários políticos”. Portanto, a condição de
letrado, pelo acesso prévio às teorias iluministas europeias e às palavras de ordem do
Movimento de 1820 de Portugal, denominado de “Regeneração”, pode ser tomado
como um fator relevante nessa construção de sentidos (NEVES: 2003: 141).

Infere-se, disso, que ainda que o movimento independentista no Brasil, cujas


raízes remontam a 1808, sendo deflagrado em 1821, tenha logrado aglutinar, nos
marcos da conjuntura, as tomadas de posição divergentes em torno da defesa da
Monarquia, isto não autoriza a negligenciar a concorrência e a distinção na condição dos

57
Quanto a essa apropriação liberal do termo, releva frisar que: “O triunfo do liberalismo ganhou forma
nos jornais e folhetos, por meio de um instrumento que realizava, na prática, esse ideário político: a
Constituição. Símbolo da Regeneração vintista iniciada em 1820, a palavra exprimia o anseio político de
todos os membros das elites política e intelectual, tanto do Brasil, quanto de Portugal. “Cortes e
Constituição” foi o grito dos portugueses que ecoou por todo o mundo luso e retumbou em terras
brasileiras. A Constituição, a Lei Fundamental de um povo, devia ser elaborada por uma Assembleia
composta de representantes da Nação, no caso, as Cortes Gerais e Extraordinárias de 1821 e, mais tarde,
no Brasil, pela Assembleia Legislativa e Constituinte de 1823” (NEVES: 2003: 148).

58
O cenário brasileiro de 1821 apresentava essa tensão e incerteza quanto aos destinos do Brasil.
Conforme refere Teresa Cristina Kirschner: “Enquanto os debates e as tentativas de acordo sobre a
questão do Brasil no contexto do império português prosseguiam em Lisboa, a notícia do movimento
constitucionalista agitava o Rio de Janeiro. A partir da liberação da imprensa promulgada nas bases da
constituição portuguesa em março de 1821, vários periódicos e folhetos, contendo diferentes versões
sobre os eventos políticos, começaram a circular na capital. Novas tipografias, como a Nova Oficina
Tipográfica e a Tipografia do Diário, surgiram na cidade. Nelas imprimiam-se os periódicos e panfletos
que comentavam a nova situação em Portugal (KIRSCHNER: 2009: 201).
115

agentes que fizeram uso do publicismo jornalístico. O fato de convergirem as opiniões


para a defesa da separação brasileira de Portugal, com adoção da Monarquia liderada
por um herdeiro dos Bragança, pela aproximação do vocabulário comum adquirido em
Portugal – e baseado nas “Luzes Mitigadas” recebidas na escola jurídica de Coimbra
(NEVES: 2003: 141) – com a fala popular, não só não nega, como aponta a persistência
da hierarquia social existente, em que a dominação dos “monarquistas moderados” se
sobrepunha às reivindicações dos extratos populares, dos federalistas republicanos e dos
monarquistas “corcundas”, “absolutistas”, “exaltados” ou “radicais”.

É relevante destacar, ainda, a fluidez com que se processava a apropriação


desses conceitos e termos como parte do ritmo impresso aos acontecimentos do jogo
político. A maior visibilidade dos diferentes interesses sociais (e econômicos) em jogo e
a mutação das representações conforme a conjuntura, são ilustrados pela designação
preliminar das Cortes de Lisboa como “liberais”, e após, como “despóticas”. Além
disso, D. Pedro I tinha uma imagem social de governante “liberal” e “constitucional”,
passando posteriormente a ser visto como “absolutista” ou “tirano” (KIRSCHNER:
2009: 205).

Nesta linha, entende-se que o ponto crucial e estruturante da ligação entre a


mobilização de vocabulário moldado e compartilhado pelas frações letradas da elite e a
convergência em torno da defesa emancipacionista com solução monárquica foi a
difusão da polarização entre os “corcundas” e os “constitucionais”, identificados os
primeiros com os regalistas portugueses, e os segundos com os “brasilienses” (NEVES:
2003).

Nesse embate ficou claro que os agentes moldaram a nomenclatura


“constitucional” como já dotada de nítida associação à posição de “brasiliense”, ou seja,
à defesa da emancipação nacional e dos “interesses do Brasil” contra os “portugueses”,
sem necessariamente romper com o ideal monárquico. A partir daí, foi sendo reforçada
sua identificação com a monarquia unitária e centralista. Assim, a vinculação do termo a
uma retórica nacionalista combinou-se tanto com a oposição ao sistema “monárquico
absolutista”, que, mantido pelo domínio português, era considerado exploratório, quanto
ao modelo norteamericano “republicano” e “federativo”.
116

A representação de “corcundas” serviu muito bem nessa disputa, pois através


dela determinados agentes foram identificados como os inimigos da “Constituição”, isto
é, os grandes adversários políticos “do Brasil”: os defensores de uma Monarquia forjada
com base na supremacia do governo “português”. A adjetivação pejorativa de
“corcunda” foi amplamente empregada no embate para desqualificar os adversários da
elite brasileira ou “brasiliense”, dentre os quais estavam situados muitos dos políticos
que participaram como deputados brasileiros nas Cortes portuguesas em 1822, e que,
tendo se identificado, primeiramente, com a posição unionista, mas defensora da sede
do governo do Reino no Brasil, aderiram, posteriormente, à posição emancipacionista,
como o jornalista Hipólito José da Costa59.

Nesta linha de raciocínio, é relevante salientar que a análise do contexto


emancipacionista demonstra que o termo “constitucional” foi empregado não para
definir algo juridicamente, no sentido usual de estar de acordo com as normas da
“Constituição”. A definição foi sobretudo política. Assim, o sentido político era dado
pelo seu negativo, ou seja, somente seria “constitucional” uma prática, uma conduta, um
indivíduo, uma regra, uma instituição ou um regime que não fosse “corcunda”,
promovendo uma tendência de exclusão dos adversários da cena política.

Dentro dessa lógica, a concorrência de sentidos políticos adquiriu naquele


momento uma feição binária, moldada em antagonismos político-ideológicos, sendo o
principal a representação de “constitucional x corcunda”. Essa oposição permitiu
enquadrar os lusos em geral e, especialmente, a elite “portuguesa” como contrária aos
interesses brasileiros, ou seja, condenar certos grupos sociais como identificados às
posições políticas e burocráticas da supremacia de Portugal em relação aos interesses
das elites brasileiras. Esse significado recaiu, em geral, sobre os comerciantes lusos.

Este sentido originário forjou os atributos do inimigo da ocasião como: o


“homem anticonstitucional”, considerado “satélite do despotismo”, como sendo todos
59
Para a discussão sobre a mudança de posição de Hipólito José da Costa, através do jornal Correio
Braziliense, veja-se a obra de Sergio Góes de Paula (PAULA: 2001). Também em Aurelino de Araújo
Leal se encontra comentário sobre os nomes de deputados brasileiros eleitos e que atuaram nas Cortes de
Lisboa, no contexto da Constituinte Portuguesa, e que fortemente empenhados na defesa da posição
unionista combinada com a garantia de autonomia política brasileira (autonomistas), acabariam ao fim
desapontados com a resistência dos deputados lusos (centralistas), tendo realizado, por isso, um “trabalho
inútil”: Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, José Bonifácio de Andrada e Silva, Martim Francisco
Ribeiro de Andrada, Joaquim Gonçalves Ledo, Lino Coitinho, Vilela e Araújo Lima (LEAL: 2002: 25)
117

aqueles que subornam ou aliciam, os bajuladores, portadores dos defeitos morais da


ambição e da cobiça, os puxa-sacos, corteses, corcovos, ou seja, que se abaixam perante
os Reis e os grandes (RODRIGUES: 1975: 55).

Reitera-se, assim, a relevância dessa construção social de sentidos, alicerçada na


mobilização de vocabulários como mecanismo de significação e ressignificação da ação
política. Nessa dinâmica, o capital cultural (como o título de bacharel e o domínio da
linguagem e dos saberes jurídicos, tanto os teóricos e retóricos, quanto a experiência ou
“prática”) desempenhou um papel fundamental.

A dimensão conjuntural colocou o jornalismo no centro das lutas


emancipacionistas. O desdobramento histórico do auge das lutas discursivas pela esfera
“jornalística” em posteriores lutas discursivas através do “saber jurídico” não eliminou a
politicidade ativa do periodismo, mas pôs em cena uma nova forma de mobilização,
surgida a partir da Independência: os manuais de “interpretação constitucional” escritos
pela elite de bacharéis.

Portanto, estas novas armas de combate político não podem ser adequadamente
analisadas sem se levar em conta sua inserção no “todo” da vida social do Brasil, o que
conduz a uma perspectiva sócio-histórica de longa duração (BRAUDEL: 2013:48;
BURKE: 1997: 55), por ser esta o viés que permite indagar-se sobre a repercussão
intergeracional de padrões de práticas sociais sobre formas de intervenção observadas
em contextos posteriores. Esse eixo de análise sócio-histórica permite problematizar a
reprodução não apenas das estruturas sociais, mas das formas de intervenção e
construção de sentidos do social60. Nesta ótica, o cenário do Brasil Império pode ser

60
Relevante frisar que o interesse por abordagens de processos sociais (longa duração) existiu tanto da
parte da História quanto da Sociologia, refletindo o interesse em fenômenos não situados apenas dentro
da perspectiva conjuntural, ocorrencial, do presente ou do “tempo curto”. Essa vertente da História e das
Ciências Sociais possibilita, portanto, investigar objetos em dimensão inter-geracional e estrutural. Neste
sentido, é elucidativa a definição de Fernand Braudel: “Por estrutura, os observadores do social entendem
uma organização, uma coerência, relações bastante fixas entre realidades e massas sociais. Para nós,
historiadores, uma estrutura é sem dúvida, articulação, arquitetura, porém mais ainda, uma realidade que
o tempo utiliza mal e veicula mui longamente. Certas estruturas, por viverem muito tempo, tornam-se
elementos estáveis de uma infinidade de gerações: atravancam a história, incomodam-na, portanto,
comandam-lhe o escoamento. Outras estão mais prontas à se esfacelar. Mas todas são, ao mesmo tempo,
sustentáculos e obstáculos. Obstáculos, assinalam-se como limites (envolventes, no sentido matemático)
dos quais o homem e suas experiências não podem libertar-se. Pensai na dificuldade em quebrar certos
quadros geográficos, certas realidades biológicas, certos limites da produtividade, até mesmo, estas ou
aquelas coerções espirituais: os quadros mentais também são prisões de longa duração” (BRAUDEL:
118

tomado como o contexto em que a “interpretação constitucional” foi inventada pelas


elites como instrumental estratégico na luta política. Este é o foco do capítulo 3.

3.1 O cenário Imperial: mudanças estruturais e novas armas para o jogo político

Neste capítulo se adentra no cenário do Brasil Imperial, verificando-se que a


elite de políticos-bacharéis foi a camada privilegiada, em comparação a outros
ilustrados, para a tarefa de mobilização do repertório publicista “oficial”. Isto porque
esses políticos possuíam a condição de bacharéis em Direito, podendo investir na
construção e difusão de seu reconhecimento como “juristas”. De certo modo, os juristas
formavam uma elite dentro da elite dos letrados do Império.

Enquanto “doutos” ou “jurisconsultos”, um grupo de políticos-bacharéis poderia


conquistar uma posição de superioridade social que correspondesse à tarefa de construir
não apenas o arcabouço normativo do regime político (como se daria com a participação
na Assembleia Constituinte), mas, sobretudo, a operar meios de garantir sua
legitimidade e manutenção por longa duração. Dotar a ordem política de regras jurídicas
é uma tarefa que demandaria e promoveria, deste modo, uma permanente mobilização
dos agentes da elite política, especialmente, os que possuíssem formação em Direito, a
protagonizar a demarcação das fronteiras “interpretativas” do novo regime político.

Por tal razão, se pode considerar que o publicismo, nos moldes em que até então
vinha servindo como meio de embate entre ideários políticos através dos jornais e
panfletos, não seria nem suficiente, nem mesmo o mais adequado para atender aos
interesses das elites políticas, sobretudo as frações mais diretamente encarregadas da
tarefa de legitimação do regime: os políticos que se aglutinam em torno da “Trindade
Saquarema” e formam o Partido Conservador, em 1837.

Nesta ótica, não seria com base em uma autoconsciência de sua “missão” como
“dirigente do povo” por parte das elites políticas que se poderia explicar por que o

2013: 50).
119

publicismo passou a ser representado como parte da competência de um grupo


determinado de indivíduos, recrutados dentre a “boa sociedade” da elite branca, culta e
organizada dos políticos-bacharéis, especialmente nos alinhados com o “saquaremismo”
(MATTOS: 1987: 116). O fenômeno do aparecimento dos “intérpretes da
Constituição”, os “publicistas” ou “constitucionalistas” a partir de 1824 só pode ser bem
compreendido quando se levar em consideração não apenas a concorrência intraelites,
nem apenas a questão da distinção da elite em relação aos “profanos”, mas também a
luta das elites para afastar do discurso oficial sobre a ordem política todas as categorias
que contestavam o regime e ameaçavam a legitimidade da ordem, beneficiando-se,
portanto, do acesso ao publicismo pelos jornais.

Um fato que ilustra essa percepção por parte dos mais próximos ao Imperador
foi o conjunto de medidas repressivas à imprensa adotadas por José Bonifácio e seu
grupo de apoio, após o 7 de setembro, repercutindo a crise entre estes e os “liberais” do
Rio de Janeiro, como Gonçalves Ledo e Januário Barbosa, que criticavam o curso da
política da Corte, levando à decretação da censura. As ações como o fechamento de
jornais e a prisão de mais de trezentos indivíduos que atuaram como militantes do
movimento da Independência repercutiram até mesmo em Pernambuco, onde contra as
quais se manifestou o ativista político Frei Caneca (MELLO: 2001: 40).

Reitere-se, ainda, que essa política implicou no Decreto imperial determinando o


envio de forças militares das Províncias para o Rio de Janeiro, medida na qual Frei
Caneca via a iniciativa de debilitar as províncias de sua defesa e assegurar, com isso, a
supremacia da elite do Rio de Janeiro, que detinha o domínio da Corte (MELLO: 2001:
41).

Outro aspecto a ser salientado quanto à proeminência de bacharéis em Direito na


elite política imperial é que essa condição favorecia a percepção simbólica dos
“políticos” não apenas com base na imagem que a elite fazia de si mesma: homens
ricos, proprietários de terras e de escravos, cultos, letrados, eruditos, detentores de uma
formação superior. O acesso à atividade política condicionado pela posse do capital da
formação jurídica repercutia também como uma associação mais específica: as práticas
dos homens políticos eram, simultaneamente, práticas de Direito.
120

Logo, em um contexto em que inexistia consenso sobre o modelo político a ser


adotado61, a autoridade dos políticos-bacharéis para a “interpretação da Constituição” já
estava assentada na própria estrutura hierarquizada da sociedade imperial e foi ainda
mais reforçada pela composição da Assembleia Constituinte de 182362. A majoritária
presença de bacharéis em Direito na Assembleia Constituinte de 23 garantia a
supremacia do poder dos “juristas” nesse processo, com destaque para os magistrados e
os desembargadores, que atuaram lado a lado com outras frações letradas63.

Toma-se em consideração que a primeira medida política adotada a partir da


Independência foi a convocação de eleições para a Assembleia Constituinte, inclusive já
prevista meses antes do 7 de setembro, o que reflete o sentido de urgência impresso na
preocupação das elites políticas com a formalização do Regime Monárquico (FAUSTO:
2006: 79).

Desta forma, reitera-se o reforço da autoridade dos “juristas” nessa conjuntura


fundadora ou de institucionalização do poder. A função política e, portanto, prática do
“publicismo” esteve direcionada à elaboração da regra constitucional: organizar
juridicamente o Estado, estabelecer o sentido da hierarquia e moldar os contornos da
vida política.

Aquela via jornalística e panfletária, anterior à oficialização da Independência e


do processo constituinte, seria alterada com o início formal da construção institucional

61
A Independência não assegurou a estabilidade política do Império. O contexto que abrange o Primeiro
Reinado e o Período Regencial (1822-1840) pode ser considerado um cenário de profunda instabilidade
política, de “flutuação”, de rebeliões e de ausência de consenso sobre as linhas que deveriam ser adotadas
na organização do Estado (FAUSTO: 2006: 79).

62
Uma linha dominante na historiografia brasileira repercute essa representação social que consiste em
considerar os políticos-bacharéis do Império como uma elite de “juristas”. José Honório Rodrigues
exemplifica essa percepção quando indica quem foram os “grandes juristas” que atuaram na Assembleia
de 1823: José da Silva Lisboa, Joaquim Carneiro de Campos, seu irmão Francisco Carneiro de Campos,
Luís José Carvalho e Melo e Antonio Luis Pereira da Cunha (RODRIGUES: 1974: 273).

63
Quanto às categorias ocupacionais presentes na composição da Assembleia Constituinte de 1823, tem-
se referência à inserção de dezesseis padres, dois matemáticos, dois médicos, dois funcionários públicos,
sete militares, sendo a maioria de bacharéis em Direito, como juízes e desembargadores. O recrutamento
dessas duas últimas categorias para o trabalho constituinte teria gerado uma situação atípica: a falta de
juízes nos tribunais, o que teria obrigado a Assembleia a recomendar ao Imperador o provimento de suas
vagas (RODRIGUES: 1974: 28).
121

do Estado brasileiro. As frações com acesso à esfera decisória, sobretudo os agentes


situados nos círculos mais próximos ao governo imperial, assumiram a tarefa
constituinte, adentrando no Conselho de Estado e no Conselho de Ministros. O ato de
força que consistiu na dissolução da Assembleia Constituinte de 1823 pelo Imperador
com o apoio da tropa não desfez essa realidade, mas, pelo contrário, até a reforçou, na
medida em que foi de dentro do circuito dos deputados constituintes que foi recrutado o
autor do novo texto que seria imposto em 25 de março de 1824 por D. Pedro I64.

Parte-se, nesta lógica, da percepção de que a característica forte do publicismo


emancipacionista, assimilando as características de um ambiente social em que o
jornalismo, era a sua maior acessibilidade à participação social difusa no embate de
opiniões e ideários políticos. Sua apreensão conjuntural do político era mais “aberta”,
plural, mesclada pela convivência do discurso erudito com o popular. Isto aponta que
esse espaço não consistia em um lugar previamente dominado pela elite de políticos-
bacharéis, nem mesmo por um partido político ou uma associação civil. A pluralidade
política expressada no jornalismo da Independência indica que não esteve apropriado,
nem destinado, predominantemente, a um único grupo, como os “juristas”, nem
vinculado a uma única causa política.

O predomínio do publicismo jornalístico, no entanto, foi afetado pelo processo


de institucionalização do Estado. Este teria promovido o investimento da elite de
políticos-bacharéis na apropriação dessa função de construção de sentidos políticos
“autorizados”, “oficiais” e “legítimos”, em condições bastante desiguais: os agentes
inseridos nos mais altos escalões de governo, ao publicarem manuais de “interpretação
constitucional” criam as condições para uma forma diferenciada de legitimação do
Regime Imperial. A autoridade dos “juristas” e a “neutralidade” de sua linguagem
jurídica são os capitais que possibilitam assumir em condições de superioridade política
a apologia da ordem nos moldes inscritos na regra de 1824.

Por este viés, a manutenção da liberdade de imprensa, embora já fosse vista como
um dos pilares do “liberalismo” e do “governo constitucional”, combinada com a

64 64
Foi um Conselho de Estado criado em 13 de novembro de 1823, composto por dez ministros, a
estrutura que formalizou o grupo os políticos incumbidos de elaborar o novo projeto de Constituição.
Entre eles estava Carneiro de Campos, apontado como o principal autor da obra (BARRETO: 2010: 287).
122

pluralidade de orientações políticas expressas pelo publicismo dos jornais e panfletos,


representava um risco para as elites imperiais, a partir de 1822. A experiência de
intervenção política através de um canal relativamente aberto às manifestações de
indivíduos de diversas categorias ocupacionais e extratos sociais, com diferentes níveis
de instrução, era um fator que ameaçava a legitimação da ordem vitoriosa em 1822 e
que seria formalizada em 1824.

Isto porque, reitere-se, o publicismo jornalístico e panfletário se inseria em uma


conjuntura de intensificação de conflitos (1821-1823) e respondia a uma demanda social
que não estava contida e restrita ao domínio exclusivo das frações letradas da elite
imperial. Ao contrário, ele correspondia às reivindicações sociais difusas, diversas,
antagônicas e mescladas por interesses contraditórios. Por isso, seu potencial de
determinação dos sentidos do “regime constitucional” levava ao um rumo incerto e
imprevisível, tanto quanto foram imprevistas as consequências para o Brasil do
Movimento Constitucionalista do Porto, em 1820 (NEVES: 2003: 148).

Por isso, é relevante destacar que a participação social, que era mais ampla e difusa
na mise-en-scène do vocabulário “constitucional” que presidiu o tratamento das
questões políticas pelo jornalismo e panfletismo na Independência, contrasta,
substancialmente, com o tratamento de “questões políticas” enquanto “questões
constitucionais”, o que passou a ser, a partir da Independência nacional, não uma
função da elite política em geral, mas sobretudo uma tarefa própria aos “juristas”.

Essa construção social de uma distinção muito específica que cerca a


modelagem do circuito restrito de “intérpretes da Constituição” é o pano de fundo da
presente análise e uma das chaves de explicação da Tese. Não basta tomar a figura do
“político-bacharel” e do “jurista” simplesmente como sinônimos. É necessário entender
que o pertencimento ao grupo de “juristas publicistas” significava adentrar o espaço de
uma verdadeira elite dentro da elite: os atores da política com “P” maiúsculo (GRIJÓ:
2005: 69).

Logo, não foi o fato de se ter uma “Constituição”, oficialmente formalizada em


1824, que explica a invenção da “interpretação constitucional” pela elite imperial. Ao
contrário, foi a estratégia de circunscrever a determinação do que seria legítimo, em
123

termos políticos, à autoridade simbólica de um grupo recrutado dentro da elite de


políticos-bacharéis, convertida em “intérpretes da Constituição”, o que levou à
construção política da centralidade da “Constituição” e, portanto, da “interpretação
constitucional” como modo privilegiado de assegurar a dominação política.

Esta noção é fundamental para se apreender as condições do investimento de um


grupo da elite de políticos-bacharéis em manuais de “interpretação constitucional” no
Império: tomá-lo enquanto uma estratégia política e coletiva. Refuta-se, com isso, a
explicação simplificadora de que, pela precariedade do ensino jurídico no Império, esse
tipo de investimento em obras jurídicas tenha representado apenas uma busca pontual
por “status” intelectual e por promoção cultural, por parte de quem já estava, na
realidade, situado nos altos escalões do poder estatal (ADORNO: 1988: 34).

Rejeita-se também a compreensão apresentada por Ângela Alonso de que o


Império não possuía um documento fundador e de que não houve por parte dos agentes
identificados com a ordem política monárquico-centralista (os políticos “saquaremas”
ou conservadores) um investimento em defendê-la65, quadro que somente teria se
alterado como reação ao movimento intelectual da geração 1870, por seu caráter
contestatório do status quo imperial (ALONSO: 2002: 52). Essa visão negligencia não
só a politicidade da “Constituição” imposta em 1824 mas também a dimensão da
produção jurídica.

Nesta Tese defende-se uma opinião contrária: a de que o investimento da elite


letrada, sobretudo a fração “conservadora”, na produção doutrinária em nome da
legitimação do Regime Monárquico foi uma constante durante toda a vigência do
regime imperial e se processou desde a sua inauguração formal com a outorga da
Constituição em 1824, assumindo após a forma de manuais de “interpretação
constitucional”.

65
A posição de Ângela Alonso negligencia completamente a dimensão da produção de literatura jurídica
durante o Império, inclusive não dotando a “Constituição” de 1824 de significação política. Seu
entendimento nega politicidade ao plano das obras jurídicas. Ele corresponde, portanto, a uma adesão ao
ponto de vista do Direito, cioso da autonomia absoluta do enunciado e das formas jurídicas em relação ao
peso dos constrangimentos sociais e políticos, tratados sempre como “externos” (BOURDIEU: 1986).
Segundo a socióloga: “O status quo imperial esteve mais representado em modos de pensar e agir do que
em doutrinas explicitamente formuladas. O Império não contou com um texto de fundação. Seus
princípios básicos estão na lei de Interpretação do Ato Adicional de 1841, que não toma mais que duas
páginas. Os valores estavam encarnados nas próprias práticas políticas” (ALONSO: 2002: 52).
124

Cabe reiterar aqui o significado, já exposto anteriormente, que se adota nesta


Tese quanto à categoria central de “manual de Direito”. Não se trata aqui de estudar sua
produção enquanto “obra jurídica” ou “obra científica”, mas como uma ferramenta de
poder simbólico (BOURDIEU: 1986), isto é, um instrumento de dominação, fruto da
divisão do trabalho ideológico (BOURDIEU: 2011: 68), cujo reconhecimento como
“obra jurídica” é o que estabelece sua “neutralidade”, “imparcialidade”, “objetividade”
e “universalidade”.

Daí vem sua eficácia na dissimulação das tomadas de posição política, sejam
elas apologéticas ou contestatórias da ordem. Os manuais de “interpretação
constitucional” representam, portanto, muito mais do que uma via de expressão da
“doutrina jurídica”, mas uma importante arma no jogo político, porque oferecem ao
agente um trunfo de peso: a possibilidade de fazer política ofuscando sua orientação
ideológica e engajamento político (e no caso Imperial, seu vínculo partidário), pela aura
de cientificidade modelada pela linguagem jurídica.

Por isso, não se trata aqui de ver na modelagem jornalística do publicismo


apenas um antecedente histórico do “constitucionalismo” contemporâneo, aderindo-se a
um plano de evolução linear, um modo de formatação da política, adotado para a
difusão de ideários mais acessível aos não juristas e expositora do engajamento
explícito em causas políticas. Esse formato do publicismo, embora não tenha
desaparecido no século XIX, inclusive como prática extra-acadêmica das frações
letradas posicionadas nas escolas de Direito imperiais, representa o contraponto de um
padrão elitizado de publicismo, cuja formatação ficou restrita aos “doutos”, tornando-se
portanto, “distinta”, pedagógica e elitizada em sua linguagem: os manuais de “Direito
Público e Constitucional”.

Problematizar as condições em que se processou essa forma de concorrência


política entre o publicismo jornalístico e panfletário e a “interpretação constitucional”
através de manuais jurídicos é contribuir para a compreensão do alcance das estratégias
de luta política subjacentes à construção e manutenção da ordem imperial66.

66
“(...) Se todas as análises de Ciência Política estão de acordo em apresentar o Direito, e em particular o
direito constitucional, como uma das linguagens da legitimidade política, elas geralmente guardam
silêncio sobre as condições, simultaneamente práticas e cognitivas, da formatação jurídica das atividades
125

3.2 A contestação ao Regime Político: o publicismo de Frei Caneca como crítica ao


Projeto da Constituição de 1824

A formação de um panorama de obras de doutrina constitucional que se


direcionaram para a apologia do sistema político adotado em 1824 operou-se, também,
pela exclusão do publicismo enquanto portador da contestação ampla do referido
modelo. Assim, ao problematizar a mobilização dos sentidos da “Constituição” por uma
parte dos políticos-bacharéis, é necessário salientar que a elite procedeu a uma tentativa
de delimitação de “fronteiras” através da seleção da bibliografia “autorizada” de
“Direito Constitucional”, resultando no afastamento de determinados agentes e de suas
produções doutrinárias do âmbito dos manuais.

Esse aspecto de negação ao direito de entrada de contestadores no “círculo” dos


intérpretes autorizados da ordem é um dos efeitos relevantes da sua apropriação pelas
elites políticas situadas em torno da Corte e, também, de São Paulo. Esta questão
permite pôr em discussão as condições em que a disputa pelo monopólio da definição
do Regime durante o Primeiro Reinado traduziu-se nos usos políticos da “interpretação
constitucional”.

Nesta linha, se pode situar o caso dos textos doutrinários de Frei do Amor
Divino Caneca sobre o Projeto de Constituição de 1824. Sua produção de “interpretação
constitucional”, ainda que pela via jornalística, ilustra não simplesmente uma
contestação política a mais na história do Império, mas a mobilização da elaboração
teórica na forma de “interpretação constitucional” para expressar uma posição de
oposição ampla ao Regime ali formalizado. O constitucionalismo de Frei Caneca
representou, politicamente, a versão mais dominada expressa na forma de “interpretação
constitucional” no Oitocentos.

Sua análise criticando a totalidade do Projeto de Constituição de 1824 reflete


não apenas a posição de Frei Caneca dentro da cena política nacional, mas a condição
periférica dos pernambucanos, e em geral, das elites açucareiras do norte e nordeste em
relação às frações da elite política situadas em torno da Corte, ou seja, o poder do

políticas”. (FRANÇOIS: 1992: 102). Tradução livre da autora.


126

sudeste (Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais).

O fato de a “interpretação constitucional” elaborada por Frei Caneca ter se


apresentado na forma de artigos de imprensa, em que denunciava o caráter
antidemocrático e, portanto, a inaceitabilidade da Constituição de 1824 pelos
brasileiros, aponta para sua condição ocupacional e regional. Como letrado, clérigo,
nativista e “revolucionário pernambucano”, com participação nos Movimentos de 1817
e 1824, Frei Caneca não era um “político-bacharel” graduado em Direito em Coimbra.

Formado pelo Seminário de Olinda, Frei Caneca era reconhecido pelo alto grau
de erudição (MELLO: 2001: 11), mas seu posicionamento político contestador do
Regime moldado a partir de 1822, e a ausência de uma formação em Direito são fatores
que contribuíram para afastá-lo do espaço dos “intérpretes da Constituição”. O recurso
ao publicismo pela Imprensa não indica apenas a menor familiaridade com a elaboração
de “obras jurídicas”, como os “manuais” de direito, mas o uso do periódico “Typis
Pernambucano”, por ele mesmo fundado, neste caso, aponta a sua posição periférica, no
plano regional, e dominada no cenário político, cujas elites se situavam no sudeste,
principalmente em torno da Corte.

Embora os textos de Frei Caneca estejam, atualmente, inseridos nas listagens dos
dicionários de obras políticas produzidas no período monárquico (PRADO: 2012), eles
não constam nas referências que remetem à “bibliografia” classificada como de “Direito
Público e Constitucional” publicadas durante o Império67. Essa exclusão expõe a
estratégia de demarcação das fronteiras do grupo autorizado a falar em nome da
Constituição, ou mesmo a criticá-la, porém dentro dos limites circunscritos pela fração
dos homens políticos dominantes.

A partir dessa constatação, é relevante verificar como a produção de manuais por


parte dos políticos-bacharéis brasileiros mais inseridos politicamente e, portanto, mais
identificados com o modelo do Regime Imperial fixado na Constituição de 1824,
67
Nas listagens das obras jurídicas, publicadas no período imperial, classificadas como bibliografia de
Direito Constitucional, fornecidas por Alecrim (2011) e Dutra (2004), o nome e os textos de Frei Caneca
não aparecem. Ele também não foi citado na bibliografia de Direito Público elencada em 1857 pelo
político José Antônio Pimenta Bueno em seu manual de doutrina constitucional (KUGELMAS: 2002:
72).
127

repercutiu, a partir da fundação dos cursos jurídicos em 1827, sobre a formatação da


“bibliografia” ligada ao universo disciplinar. Desse modo, o predomínio da posição
“conservadora” refletiria na estruturação da cadeira de “Direito Público e
Constitucional” durante longo período no Brasil Império.

3.3 A elite coimbrã e sua “interpretação constitucional”: publicismo “brasileiro”


versus a mobilização das traduções

Interpretar um texto legal é uma forma de exercício de poder simbólico,


consistindo em uma prática restrita a um grupo determinado e limitado de agentes
sociais, a quem é consentido falar “a fala autorizada”, emitindo opinião certificada pelo
Estado, ou seja, falar a fala oficial e legítima. Isto significa, portanto, o poder de definir
os contornos do social e do político em nome da maioria, do “povo” ou da “nação”, isto
é, falar em nome daqueles que não tem acesso ao poder de falar (BOURDIEU: 2004:
83).

Nesta perspectiva, enquanto poder simbólico, o ato de produzir manuais de


“interpretação da Constituição” esteve amparado pelo poder político. Sabe-se que o
acesso à prática de “interpretar a Constituição” é desigualmente distribuído na
sociedade e nunca é um ato neutro e desinteressado. Ele implica, necessariamente, no
recurso às estratégias culturais de apropriação de sentidos, em que a narrativa do
passado68 constitui uma ferramenta fundamental (BOURDIEU: 1981). A criação do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1838, representa também uma estratégia
de institucionalização dessa tarefa de apropriação do passado nacional.

Logo, indagar do sentido político do ato de interpretar um texto normativo, e


sobretudo, quando se trata da norma constitucional, implica reconhecer que o trabalho
de elaboração teórica dos juristas se situa no âmbito da mobilização do poder simbólico,
ou seja, da “violência simbólica legítima cujo monopólio pertence ao Estado e que pode

68
Para exemplificar outro caso em que se recorreu à apropriação do passado e à recontagem da história
com fins de apropriação política ver a análise de Luiz Alberto Grijó sobre os políticos do Partido
Republicano Rio-Grandense (GRIJÓ: 2010).
128

se utilizar do exercício da força física” (BOURDIEU: 1986: 3). A “lógica interna das
obras jurídicas”, na medida em que “delimita o espaço dos possíveis” ou o “universo
das soluções propriamente jurídicas”, é um fator essencial para o alcance desse poder
simbólico do Direito (BOURDIEU: 1986: 4).

Neste sentido, é relevante destacar que a prática da interpretação de textos legais


pelos juristas está intrinsecamente ligada à existência do Estado, ao qual se liga o
trabalho dos juristas como agentes que operam a “historicização da norma, adaptando as
fontes às circunstancias novas, descobrindo possibilidades inéditas, deixando de lado o
que esteja superado, uma vez que a operação hermenêutica de declaração dispõe de uma
imensa liberdade, em face da elasticidade dos textos legais” (BOURDIEU: 1986: 8).

O que se infere dessa abordagem, é que como prática ligada ao poder de Estado,
a interpretação jurídica é ao mesmo tempo uma causa e um efeito político, o que fica
mais nítido no caso da !interpretação constitucional”. Portanto, o peso desse tipo de
intervenção política em uma sociedade e contexto determinados depende da existência
de certas condições sociais e históricas.

Em casos como o do Brasil Império, em que a elite política constituía-se de um


pequeno “clube” restrito a algumas poucas famílias e em que não se configurava um
“campo jurídico” propriamente dito, isto é, em que o Direito não formava um “universo
social autônomo” em relação a outras esferas e práticas sociais (BOURDIEU: 1986: 3),
entende-se que pelo menos deveria existir um processo de formação e consolidação do
poder de Estado que promovesse a difusão da crença no mito da Constituição como
fundamento da ordem social e política, o que levaria à aceitação do momento de
elaboração constituinte como um momento fundador da sociabilidade (FRANÇOIS:
1996).

Assim, o grau de assimilação dessa crença pelo meio social e político dependem
do processo histórico formador do poder estatal que explica a importância conferida ao
trabalho doutrinário exercido pelos juristas. Desta forma, a autoridade dos juristas pode
ser entendida como resultante da afirmação do domínio político, que se utiliza da força
simbólica do Direito. Esta, por sua vez, se assenta sobre o acúmulo de diversos capitais
sociais pelos juristas agentes, que em conjunto são percebidos como sua “vocação” e
129

sua “competência” para explicar o sentido legítimo das regras jurídicas. Isto garante que
aquilo que é herdado e adquirido possa ser visto como fruto de aptidão natural. Esses
são os efeitos de naturalização e universalização, próprios ao Direito, na medida em que
não colocam o problema de sua legitimidade (BOURDIEU: 1986: 5).

Ao defender a Constituição, os juristas estão lutando pelo monopólio da


significação “correta” do Direito e, na realidade, estão defendendo o arbitrário de
decisões concretas, utilizando a metáfora da vontade constitucional, que passa a ser a
razão de ser do trabalho explicativo a cargo dos publicistas. Trata-se, portanto, de uma
função mediadora, que constrói a legitimação de sentidos do texto, situando-se entre a
dominação política direta (decisão, lei) e a sua imposição ao corpo social (alcance ou
“eficácia”). Na visão jurídica, os doutos são, portanto, os juristas que se encarregarão da
tarefa de “interpretar a Constituição”, atribuindo-lhes sentidos, definindo as condições
de aplicação da regra, a partir do domínio dos saberes científicos do “Direito Público e
Constitucional”.

Neste sentido, é importante frisar que o próprio estatuto de “intérprete do


Direito” é eminentemente problemático, porque de um lado supõem que a regra é
polissêmica, e que portanto, seu significado seja múltiplo, confuso e, até mesmo,
contraditório; de outro, a interpretação jurídica está voltada à construção dogmática, isto
é, a eleger certezas que contornam o Direito, contribuindo para sua eficácia normativa
(CHEVALLIER: 1993: 259).

Assim, pode-se ponderar que ao introduzir a dúvida e, ao mesmo tempo, ao


construir certezas jurídicas, a interpretação é uma tarefa sempre suspeita, arriscada a
reforçar o instituído ou solapar seus fundamentos. Ela é, nesse sentido, um “ato de
autoridade” (CHEVALLIER: 1993: 260).

Outro aspecto fundamental sobre a interpretação jurídica é que ela implica


necessariamente em um processo de desqualificação dos profanos, ou seja, ela sempre
exigirá um conjunto de competências específicas de que só os juristas dispõem
(CHEVALLIER: 1993: 261). Por conta disso, os atributos exigidos para a legitimação
da posição de intérprete de textos legais e, sobretudo, da regra constitucional, girariam
em torno da neutralidade, do desinteresse, da independência, que são características do
130

“ethos” jurídico (CHEVALLIER: 1993: 262).

A partir daí tem-se uma questão relevante para a compreensão dos usos políticos
dos manuais de doutrina constitucional no Brasil Império: a interpretação jurídica des-
historiciza a regra, ou seja, faz com que o texto legal não se apresente mais como
produto de uma relação de força política circunstancial, mas como fruto da necessidade
e da incontestabilidade. Deste modo, o discurso jurídico do legislador anônimo é
distinto do discurso político dos parlamentares (Idem).

No caso do Brasil Império, como a carreira política, em geral, iniciava a partir da


magistratura, e as elites políticas eram constituídas de bacharéis em Direito, e a atuação
política não implicava na abdicação da carreira jurídica, a “interpretação da
Constituição” foi empreendida em uma condição de profunda ambivalência, pois os
“juristas” que falavam o discurso doutrinário do Direito Constitucional eram,
simultaneamente, os homens políticos que atuavam nos altos postos de poder provincial
e nacional.

Esse aspecto que caracteriza o investimento das elites imperiais na produção


simbólica da “Constituição de 1824” difere, essencialmente, do caso francês, em que a
afirmação de um campo jurídico deveu muito à profissionalização e autonomização do
trabalho doutrinário, como estratégia de distinção social e profissional que acabou
colocando não apenas os profanos, mas também os “práticos” (magistrados, promotores
e advogados) de lado, gerando uma linha de demarcação da fronteira “científica” do
Direito (CHEVALLIER: 1993: 263).

Nessas condições de ambiguidade, os “manualistas” introduziram, a partir de


1824, a crença na existência de um sentido correto da “Constituição”, uma visão que
procurava naturalizar o modelo político-social, a partir das visões de mundo que foram
arbitrariamente construídas. Para tanto, necessitavam ocultar a origem do que, na
realidade, tratava-se de um texto enunciado e que seria mobilizado de modo distinto por
um conjunto diversificado de atores sociais (FRANÇOIS: 1996: 258).

Portanto, reitera-se que problematizar essa mitologia e o alcance de sua força


simbólica demanda nunca limitar a análise apenas à biografia provada dos personagens,
131

reproduzindo-se a própria legitimação do “círculo estreito dos produtores de doutrina”.

Deve-se, ao contrário, levar em consideração o contexto social e político, inserir


esses agentes em seu tempo e apontar as condições do meio social em que a “doutrina
jurídica” foi mobilizada, adquiriu relativa autonomia e gerou efeitos políticos. É
fundamental tomá-la, portanto, como um recurso estratégico na elaboração da imagem
oficial do país perante as outras nações e na disputa entre os agentes pelo que está em
jogo nos embates sociais e profissionais, não a isolando do contexto histórico e do
universo social, o que só reproduziria e reforçaria a representação ideológica que a
doutrina procura dotar a si mesma69 (DEZALAY: 1993: 232).

Nesta perspectiva, aplica-se esse viés metodológico para a problematização da


intervenção política através da construção de um espaço da “doutrina jurídica”,
apropriado pelos produtores de “interpretação constitucional” no Brasil Império,
buscando identificar a “história social dos vínculos institucionais de produção e
acumulação do capital doutrinal”, isto porque, através da doutrina “os dominantes
podem reforçar suas posições e lhes institucionalizar, uma vantagem que lhes permite
desqualificar seus adversários e de se reservar o monopólio do discurso legítimo
(DEZALAY: 1993: 234).

É necessário referir que nas contribuições da Sociologia Política de matriz


francesa, em geral, a mobilização da doutrina jurídica, como recurso de luta e meio de
legitimação política, é abordada como uma espécie de encomenda dos políticos aos
juristas, na forma de um serviço especializado prestado por agentes do Direito aos
atores da esfera política. Daí a relevância da abordagem sócio-histórica, que permite
verificar as condições do contexto estudado.

Assim, no caso do Brasil Monárquico, esse viés analítico deve ser relativizado,
pois a realidade social estava moldada pelas formas culturais, sociais, econômicas e
políticas herdadas do sistema colonial escravista, na qual não havia um campo ou
espaço jurídico de fronteiras nitidamente definidas. Não havendo um ambiente

69
Verifica-se que os juristas encarregados da elaboração teórica do Direito procuram apresentar-se a si
próprio como “cientistas do Direito” e a doutrina como resultante de pesquisas científicas, tendo sempre
por fim o aperfeiçoamento do Direito, estando por isso, em condições de emanar noções imunes aos
constrangimentos e pressões do mundo social (DEZALAY: 1993: 232).
132

exclusivo do publicismo, os bacharéis eram multiposicionados, pois se moviam em um


cenário social difuso, inserindo-se nas esferas sociais, econômicas, políticas e
burocráticas simultaneamente. Nessas condições, possuir uma formação superior e,
sobretudo, jurídica era uma condição para a inserção em postos da política e da
burocracia. A “interpretação constitucional” no Brasil Império esteve mesclada com
outras formas de ação social, como a atuação jornalística, política e burocrática. Não é
viável, portanto, abordá-la como um serviço de juristas que tenha sido prestado aos
políticos.

Da identificação do amplo recurso dos agentes dessa época aos periódicos e


panfletos como meios de externar posições políticas, se verifica que a atribuição dos
sentidos ao ideário constitucional adquiriu um peso relevante como dimensão de
intervenção política. O publicismo assim veiculado propiciou o debate entre letrados e
gerou a incorporação de termos como “Constituição”, “constitucional” e
“constitucionalismo! no cenário local, mesmo antes da existência formal de uma
Constituição brasileira, o que só veio a ocorrer mais tarde, com a outorga da Carta de
182470.

Importante ressaltar que a elite local engajada no processo de emancipação


conhecia o ideário europeu publicista, que já fora mobilizado nos movimentos
anticoloniais do século XVIII, que por sua vez repercutiram a conjuntura internacional
marcada pela difusão das referências às revoluções europeias e norteamericana,
sobretudo a Revolução Francesa. A adesão das elites locais ao vocabulário do
publicismo como linguagem de definição do Estado constitucional indica o
conhecimento e o domínio de teorias e noções importadas, adquirido em Coimbra, e
cujos sentidos foram adaptados à empresa emancipacionista local. No caso brasileiro, a
ausência de Universidades locais fez com que o periodismo e o jornalismo fossem os

70
Conforme a historiadora Lúcia Neves: “Uma nova linguagem política, estruturada sobre os princípios
básicos da Ilustração portuguesa, veio à tona no Brasil após a eclosão do movimento do Porto de 1820.
Esse vocabulário traduziu-se na produção editorial que alcançou um grande impulso com a publicação
dos folhetos, panfletos e periódicos da época. Ao longo do ano de 1821, os escritos, que documentam esse
ideário esclarecido, pautavam-se em dois conceitos opostos que definiam a cultura política luso-brasileira:
de um lado, o de despotismo e, de outro, o de liberalismo/constitucionalismo. Esses conceitos
englobavam um conjunto de palavras que anunciavam princípios, definiam direitos e deveres do cidadão,
ilustrando aquilo que os indivíduos do passado acreditavam estar transmitindo através de suas
mensagens” (NEVES: 2003: 119).
133

principais meios de difusão de textos a título de “publicismo”.

Em relação à orientação política do publicismo dos “coimbrãos” é relevante


destacar que se inserem em um momento de consolidação da Independência nacional
pela fração no poder71, que tinha diante de si o desafio de primeiramente “substituir as
instituições coloniais por outras mais adequadas a uma nação independente” (COSTA:
2010: 133).

Assim, analisar os percursos dos agentes do publicismo através de amostra de


manuais de “doutrina constitucional” possibilita extrair dados pertinentes à questão do
grau de inserção política dos agentes dessa fração da elite do Império, bem como saber
se houve simultaneamente uma trajetória docente. Conta-se, para a composição de um
quadro de dados, com informações extraídas predominantemente de fontes secundárias
consistentes em Dicionários Biográficos e obras de teor historiográfico que aludem aos
agentes que publicaram manuais entre 1824 e 1854 (ALECRIM: 2011; ADORNO:
1988; BARRETTO e PAIM: 1989, BLAKE: 1899; JUNQUEIRA: 2011; MATTOS:
1997).

Reitere-se que as condições em que atuaram os “intérpretes da Constituição” no


Brasil Império eram de uma quase indiferenciação das práticas do político e do jurídico.
Não se tratava de uma porosidade entre dois espaços sociais distintos, mas de uma
identificação entre a atuação da alta elite política e do “jurista” bacharel em Direito. Um
dos fatores mais demonstrativos da não profissionalização e da não autonomia dos
juristas reside na condição dos magistrados, que eram nomeados por indicação política e
se filiavam aos Partidos Políticos. Neste sentido se poderia considerar que o espaço
Direito no Império estava apreendido pela política (FRANÇOIS: 2003).

Essa situação aponta para uma importantíssima chave de explicação do tipo de


vínculo que se estabelecia entre a política (inclusive partidária) e o Direito no cenário

71
Saliente-se a questão da posse de capital cultural e de capital político, indicando que essa “nova elite”
de políticos constituiu-se de herdeiros do poder colonial, não sendo nem nova, nem inexperiente. Esse
aspecto foi levantado por Emília Viotti da Costa: “Não se tratava de homens inexperientes que
enfrentavam pela primeira vez problemas relacionados com política e administração. Eram, na sua
maioria, homens de mais de cinquenta anos, com carreiras notáveis de servidores públicos, que haviam
desempenhado vários cargos a serviço da Coroa portuguesa durante o período colonial e, por isso,
estavam bem preparados para levar a cabo a sua missão” (COSTA: 2010: 133).
134

imperial: a inevitabilidade da “politização” do Direito, isto é, a condição de explícita


parcialidade político-partidária que recaía sobre as práticas ditas judiciais. Os agentes da
magistratura imperial funcionavam, em conjunto, como a voz da ordem, isto é, como
representantes do Império, atuando na mediação entre este e os interesses privados
(escravistas, comerciais, agrários) enraizados nas esferas provinciais e locais
(KOERNER: 20120: 46).

A partir dessas considerações pode-se passar a analisar a amostra de agentes da elite


imperial que atuaram como autores de manuais de “doutrina constitucional”, com base
no quadro adiante.

Quadro 4– Amostra de agentes que mobilizaram manuais como “intérpretes da Constituição”


por ano e local de nascimento, ano e local de formação e inserção ocupacional, política e
burocrática

Nome Ano de Local de Local e ano de Cargos Públicos e/ou Postos políticos
nascimento nascimento Graduação ocupados
José Maria de 1798 Lisboa Universidade Lente de Direito Natural no curso jurídico
Avelar de Coimbra; de São Paulo durante 44 anos (1827 a 1871);
Brotero
Ano: não
identificado. Conselheiro do Imperador D. Pedro I.

José Da Silva 1754 Bahia Universidade Magistrado em Portugal; ouvidor da


Lisboa de Coimbra- comarca de Ilhéus; Professor Régio de
1779 Filosofia Racional e Moral na Bahia (1782-
1797); professor Substituto de Língua Grega
na Bahia; Pesquisador de História Natural
da vila de Cachoeira; Deputado e Secretário
da mesa da Inspeção da Bahia (1798);
Nomeado Professor do curso de Economia
Política no Rio de Janeiro (1808); Deputado
da Real Junta do Comércio, Agricultura,
Fábrica e Navegação do Brasil (1808);
Deputado da Assembleia Constituinte de
1823.
José Paulo de 1796 Belém, Pará Universidade Desembargador da Relação da Bahia; Juiz
Figueroa de Coimbra- do Crime do bairro de S. José da Corte do
Nabuco de 1819 Rio de Janeiro; Juiz de Fora do Rio de
Araújo Janeiro; Desembargador da Casa da
Suplicação; Juiz dos Falidos; Assessor do
Juízo do Cirurgião-mor do Império;
Deputado Fiscal da Junta de Fazenda dos
Arsenais do Exército, Fábricas e Fundições,
Promotor das Justiças; Desembargador de
Agravos da Casa da Suplicação; Chanceler
da Casa da Suplicação; Ministro do
Supremo Tribunal de Justiça.
Lourenço José 1796 São João D’El Universidade Desembargador;
Ribeiro Rey, Minas de Coimbra.
135

Gerais Ano: não Lente da Academia Jurídica de Olinda.


identificado.
Silvestre 1769 Lisboa, Congregação Cargos políticos, diplomáticos em Portugal,
Pinheiro Portugal do Oratório Inglaterra, Holanda e França.
Ferreira (Portugal),
Ano: não
identificado.
José Cesário 1792 Ouro Preto, Faculdade de Desembargador; Conselheiro de Estado;
de Miranda Minas Gerais Direito da Ministro do Supremo Tribunal da Justiça;
Ribeiro Universidade Mandatos:
de Coimbra.
Ano: não Presidente de Província: 1837 a 1838;
identificado. Deputado Geral: 1826 a 1829;
Deputado Geral: 1830 a 1833;
Presidente de Província: 1835 a 1836;
Deputado Geral: 1837 a 1837;
Deputado Geral: 1838 a 1841;
Deputado Geral: 1843 a 1843; Senador:
1844 a 1844; Senador: 1845 a 1847;
Senador:1848 a 1849; Senador:1850 a 1852;
Senador: 1853 a 1856.
Pedro Autran 1805 Salvador, Faculdade de Diretor da Faculdade de Direito do Recife;
da Mata Bahia Direito de Aix, professor da Faculdade de Direito do Recife
Albuquerque França. 1827
Conselheiro do Imperador (D. Pedro II)

Francisco de 1792 Pernambuco Universidade Juiz de Fora, Ouvidor, Desembargador da


Paula de Coimbra, Relação da Bahia e Desembargador da
d’Almeida e 1820 Relação de Pernambuco; Deputado Geral e
Albuquerque Senador do Império (1838-1869).

Fontes: Alecrim (2011); Barreto e Paim (1989); Blake (1899); Junqueira (2011); Sítio do Portal do
Supremo Tribunal Federal (www.stfjus.br), acesso em 27/08/2013; Sítio do Centro de Documentação do
Pensamento Brasileiro (www.cdpb.org.br), acesso em 27/08/2013; http://www.e-
biografias.net/jose_alencar/, acesso em 27/08/2013;
http://familytreemaker.genealogy.com/users/p/o/Sergio-R-Porto-Rio-de-Janeiro/FILE/0004text.txt,
(acesso em 29/10/2013).

Detecta-se a partir dessa amostra que aos agentes que investiram em publicismo
jurídico via manuais ostentam alto índice de inserção burocrática, sobretudo na
magistratura, combinada com o exercício de mandatos parlamentares, havendo um caso
de participação na Assembleia Constituinte de 1823. Trata-se, portanto, de um conjunto
de agentes formados no modelo jurídico coimbrão, na época em que emanava a
orientação reformista-moderada, monarquista e politicamente centralizadora, que se
tronaram características da cultura lusobrasileira, já anteriormente discutidas.

Caso representativo que ilustra esse perfil e se insere nesse grupo é o da


produção de obra de “interpretação constitucional” por José da Silva Lisboa. Isto porque
136

em sua produção ficam nítidos os traços da cultura jurídica coimbrã, exemplificados no


percurso de Silva Lisboa, posteriormente agraciado com título de Visconde de Cairú. O
baiano atuou nos trabalhos constituintes de 1823, sendo que “se tornaria uma das
maiores figuras da Constituinte” (RODRIGUES: 1974: 27).

A partir dos dados, pode-se verificar que a mobilização de agentes em torno da


composição de uma bibliografia nacional e oficial da cadeira de “Análise da
Constituição do Império” foi sendo moldada a partir de 1824, não apenas com a
importação de obras portuguesas e francesas, mas também com a produção dos
publicistas brasileiros de formação coimbrã. Esses agentes foram políticos e eram
dotados de capital científico e de experiência estatal, somando à erudição a inserção
política e administrativa nos postos de governo. Sua produção de doutrina introduz o
elemento novo na prática do publicismo: escrever obras jurídicas significa investir na
ambivalência da dupla legitimação: como políticos e como “juristas”.

Escrevendo sobre o sistema político e os interesses do Brasil, os publicistas da


elite coimbrã passam a ocupar a função de produtores do discurso autorizado sobre a
política, inscrevendo os argumentos na temporalidade de longa duração, baseada no
universal e no atemporal, própria aos livros jurídicos. Assim, esse novo formato de
publicismo estava baseado na produção de obras dotadas da sistemática de manuais de
“doutrina constitucional”: o saber legítimo sobre o Estado brasileiro.

A partir dessa amostra se constata que a tradição da prática do publicismo


jornalístico, mobilizado na conjuntura da Independência, com sua natureza
explicitamente política, isto é, expressamente engajada nas causas daquele contexto, se
modifica. Os “manualistas” passam a ofuscar, a partir de 1831, a vinculação com um
dos dois amplos grupos que disputavam os rumos da política imperial: o campo
conservacionista (“saquaremas”) ou o grupo contestatório (liberais). Isso porque os
sentidos dominantes de “constitucional” moldado através dos manuais de “Direito
Público e Constitucional” foram elaborados, em maior medida, pelos políticos alinhados
ao grupo de sustentação do modelo “centralista”, o que mais investiu em manuais no
período de “construção da ordem”: de 1824 a 1854.

O panorama indica que os sentidos do político e do “interesse público” foram


137

majoritariamente mobilizados na forma de “Comentários à Constituição” por homens


situados em postos nucleares do poder, demonstrando que a defesa da “Constituição”
significava legitimar a condição de vetor político atribuída ao Imperador e ao “cérebro
da Monarquia”: o Conselho de Estado. O papel central de D. Pedro II no sistema ligava-
se à sustentação das políticas favoráveis aos interesses da lavoura escravista e do alto
comércio, inclusive o tráfico negreiro.

Registre-se que a Constituição de 1824 silenciou sobre a escravidão,


invisibilidade que favorecia a imagem do Brasil como “nação moderna e civilizada”
perante os governos estrangeiros e suas elites com iniciativas abolicionistas. Tais
aspectos indicam que esse pequeno grupo de letrados cumpria um papel político de
grande importância ao investir em manuais de “interpretação constitucional”:
descrevendo juridicamente um Brasil idealizado e de acordo com os olhos dos
“consumidores externos” ela auxiliava a ocultar o escravismo e a exclusão social da
população livre e pobre (FRANCO: 1997), projetando uma imagem positiva do país no
cenário internacional (GRIJÓ: 2005).

Esse traço é reforçado pela amostra de trajetórias dos novos publicistas, ativos a
partir de 1824, pois sua acumulação de postos situava-se nos espaços mais próximos ao
Chefe do Executivo e titular do Poder Moderador. Esse fator deve ser ponderado ao se
analisar suas produções simbólicas, os manuais de “interpretação constitucional”, isto é,
ao situar as tomadas de posição eufemizadas em definições normativas da
institucionalidade política, produzindo as novas “questões constitucionais” do período.

A adoção da estratégia de defender o modelo centralista através dos manuais de


“Direito Público e Constitucional” pode a ser vista, nesta perspectiva, como um
fenômeno de grupo, um recurso da elite política que contribuiu para fazer a afirmação
da “constitucionalidade” e “validade jurídica” da fórmula que moldava a Monarquia
centralizada, em que as prerrogativas do “Poder Moderador” eram priorizadas, bem
como a função do Conselho de Estado, os limites da atuação da Câmara dos Deputados,
a vitaliciedade do Senado, o jogo eleitoral, a economia exportadora e escravista, a
oficialidade da religião católica e a natureza “não federativa” do regime.

Assim, o cenário que iria se delineando após a ruptura com Portugal, herdou,
138

portanto, as características que formaram o padrão brasileiro de expressão das lutas


políticas através da mobilização de ideários políticos, em que se destaca a sua
representação de intervenção direta dos agentes (os jornalistas publicistas) na
conjuntura dos acontecimentos. Mais favorecida pela velocidade de circulação, pela
maior acessibilidade e pela capilaridade das gazetas e dos folhetos, essa representação
de intervenção política direta se distinguiu, todavia, como intervenção mediata e
mediadora através dos manuais doutrinários das elites letradas após 1824.

Por conta disso, se pode identificar dois padrões de publicismo: o publicismo


engajado, de feitio jornalístico e panfletário do período da Independência, e o
publicismo jurídico dos manualistas ou “intérpretes da Constituição”, surgido como
repercussão da institucionalização política e da outorga da Constituição de 1824 sobre o
modelo anterior.

O novo padrão de elaboração e difusão de ideários políticos expresso através de


manuais de “interpretação constitucional” indica que, se por um lado, a reprodução do
publicismo engajado não cessou durante o Império, mantendo-se a imprensa como
espaço de exteriorização das lutas e tomadas de posição sobre a conjuntura política, por
outro passou a concorrer com o novo espaço dos doutos e seu padrão de publicismo: o
publicismo jurídico.

Essa “descoberta” do espaço da “doutrina jurídica” como um locus viável para


os usos políticos do publicismo pode ser problematizada, portanto, como uma estratégia
de intervenção política camuflada das elites e de ocultamento da real situação social
brasileira diante do quadro exterior, resultante da mudança de status político da
sociedade brasileira a partir de 1824. Com a formalização “constitucional” da
Monarquia, estabelecida como Regime Político, os bacharéis ligados à Corte se
convertem na elite de políticos e burocratas e se fixam no espaço de poder, adquirindo
uma nova legitimidade na hierarquia política e institucional, dentre outras distinções
sociais.

Deve-se considerar que, durante as primeiras três décadas após a Independência,


não se trata de atuação de novos agentes, mas de indivíduos pertencentes à mesma elite
coimbrã já poderosa, que iria adaptar-se ao novo modelo de publicismo. Somente a
139

partir da segunda metade do século XIX é que iria ascender uma nova geração de
juristas publicistas, já formados nas escolas brasileiras.

De posse desse panorama histórico e social, é possível se responder às questões


propostas na Introdução desta abordagem, especialmente, à indagação de qual foi o
papel do publicismo jurídico expresso em manuais de “interpretação constitucional”
mobilizados durante Império e se repercutiu, tal como o publicismo engajado e
jornalístico da Independência, as oposições partidárias e as alianças políticas intraelites,
a hierarquia da dominação moldada pela aliança entre a estrutura de produção
econômica, centrada na monocultura exportadora escravista e o predomínio político da
fração identificada com a “modernização” via centralismo político.

Desta forma, entende-se que o processo social que cerca o engajamento de


agentes políticos na construção do sentido dominante da “doutrina constitucional
nacional” não pode ser compreendido sem se levar em conta, previamente, a
apropriação das formas eufemizadas de luta política, propiciada pela circulação de obras
de “doutrina constitucional” estrangeiras no cenário local, e que pode caracterizar a
primeira metade do Oitocentos como uma espécie de “era do publicismo francês”73,
com efeitos de longa duração sobre a prática doutrinária nacional (ALECRIM: 2011).

No entanto, é relevante salientar que essa influência francesa, refletindo na adesão


de publicistas brasileiros ao posicionamento moderado, liberal e monarquista
restaurador de Guizot e Benjamin Constant, que inspirou a visão dos políticos bacharéis
ligados ao Partido Liberal fundado em 1831 e mesmo ao Partido Conservador, fundado
em 1837 (MELO: 1979: 21), contribuiu para o fechamento do “panteão de intérpretes da
Constituição” de 1824. Por isso, obras de juristas com posições contrárias ao sistema
político instaurado em 1824 foram desclassificadas do panorama dos manuais de
“doutrina constitucional” sancionados pela fração dominante dentro da elite: os
“saquaremas”.

Empregando-se a noção de círculos do poder (BARMAN e BARMAN apud

73
O próprio subtítulo da obra de Octacílio Alecrim (2011) “influencias francesas” refere a essa
representação do período monárquico como a do predomínio do publicismo francês.
140

LIMA e LOPES FILHO: 2010: 6.276), detecta-se a diferenciação hierárquica nas


posições da elite política, mensurados tomando como referência a posição do
Imperador74. Relacionando-a com a amostra acima, essa noção auxilia a compreender a
posição dos “intérpretes da Constituição” como bacharéis coimbrãos que investiram em
manuais apologéticos à Constituição de 1824 como estando majoritariamente situados
no primeiro círculo – o mais próximo à família imperial –, ou seja, inseridos no círculo
mais próximo do “Poder Moderador”.

Isto porque na amostra de sete indivíduos, dois estariam situados no círculo


intermediário, dois no terceiro e três no círculo mais restrito, sendo estes os políticos:
José Cesário de Miranda Ribeiro, Pedro Autran da Mata Albuquerque e Francisco de
Paula d’Almeida e Albuquerque. Estes agentes chegaram a ocupar postos no Senado e
no Conselho de Estado, as mais altas esferas do poder político no Império.

Da análise dos percursos da primeira amostra de agentes, ou seja, os coimbrãos


ou atuantes entre 1824 e 1854, verifica-se que o engajamento político em altos postos e
a experiência burocrática, associados com o título de bacharel em Direito, formaram
uma constante. Também se destaca que a inserção política e burocrática não cessou nem
se reduziu com a criação dos cursos jurídicos em 1827, pois os agentes que foram
investidos da condição de lentes não deixaram de atuar em outras esferas ocupacionais.

No caso do Brasil, os publicistas coimbrãos contribuíram para enraizar um


padrão de produção de doutrina mais conservador e conectado ao exercício de funções
políticas e administrativas do que ligada ao exercício exclusivo da docência jurídica.
Isso auxilia a explicar o fechamento do círculo de manualistas, com a exclusão dos
políticos liberais “exaltados” ou “radicais”: federacionistas, republicanos e
abolicionistas.

74
A noção de “círculos de poder” foi apresentada por Roderick Barman e Jean Barman (1976), que
apontam a existência de três espaços: um círculo mais restrito abrangendo a família imperial, o Conselho
de Estado, o Conselho de Ministros e o Senado; um círculo médio representado pelos membros da
Câmara dos Deputados, o Alto Comando das Forças Armadas, a Suprema Corte de Justiça, os presidentes
de províncias e os eleitos para o Senado em listas tríplices; e o último círculo, que abrangeria os juízes, os
presidentes de províncias de menor importância e os deputados substitutos. Conforme Barman e Barman
apud LIMA e LOPES FILHO: 2010: 6.276).
141

3.4 O predomínio da ordem nos manuais de “interpretação constitucional”: a


defesa da moral católica, da Monarquia centralizada e do Conselho de Estado

A partir da outorga da Constituição de 1824, que significou a vitória do modelo


político centralista contexto de “construção da ordem” coloca o problema da
legitimação do sistema político, definido como Monárquico Representativo. A
constatação desse cenário permite problematizar o investimento da elite política em um
novo tipo de publicismo, eminentemente jurídico e praticado na forma de obras de
Direito.

Assim, a mesma parcela da elite política coimbrã assume essa tarefa,


imprimindo certas características aos manuais de interpretação constitucional, como
exemplifica o tom moral-católico e a orientação política moderado-conservadora,
tendente à defesa do sistema monárquico tal como previsto nos dispositivos da
Constituição.

Aqui se conta com uma amostra de agentes que mobilizaram a “interpretação da


Constituição” na elaboração do publicismo a partir de 1824. Essa amostra foi obtida a
partir do cotejo de três fontes secundárias (ALECRIM: 2011, DUTRA: 2004 e PRADO:
2012). Tais referências, com teor historiográfico, apresentam listagens de autores e
obras jurídicas como integrantes da produção de manuais de “Direito Público e
Constitucional” no período de 1824 a 1854.

Constata-se que a amostra permite questionar as condições da descoberta da


“Constituição”, apontando os contornos da intervenção política combinada com o
manejo de saberes jurídicos específicos. Os políticos-bacharéis desse grupo foram
classificados como elite coimbrã75 por sua formação, em geral, ter se dado na
Universidade portuguesa. Verifica-se a amostra de autores de manuais no próximo
quadro.

75
Como é ilustrativo o caso do lusobrasileiro e católico José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairú, mais
citado pela autoria de obras econômicas de teor liberal, mas que publicou em 1824 e 1825,
respectivamente, dois volumes de um manual de doutrina constitucional intitulados: “Constituição moral
e deveres do cidadão com exposição da moral pública conforme o espírito da Constituição do Império” e
“Suplemento à Constituição moral, contendo a exposição das principais virtudes e paixões e Apêndice das
máximas de La Rochefoucauld e doutrinas do cristianismo”, ambos pela Typographia Nacional.
142

Quadro 5 – Manuais de “interpretação constitucional” da elite coimbrã por autor, ano e


local de publicação e editora (1824-1854)
Nome Obras de Direito Data de publicação Local de publicação Editora
constitucional
publicadas
José Maria de Avelar Princípios de 1829 Rio de Janeiro Não
Brotero direito natural; identificado
compilados, etc.
Rio de Janeiro,
1829.

Princípios de 1837
direito publico
universal: analyse
de alguns" São Paulo
paragranhos de Não
Watel. identificado

Filosofia do Direito
Constitucional Não Identificado Não Identificado Não
Identificado

José da Silva Lisboa Constituição moral e 1824 Rio de Janeiro Typographia


deveres do cidadão Nacional
com exposição da
moral pública
conforme o espírito
da constituição do
Império

Suplemento à 1825
constituição moral,
contendo a
exposição das
principais virtudes e
paixões e Apêndice
das máximas de La
Rochefoulcald e
doutrinas do
cristianismo
José Paulo de Figueroa Diálogo 1827 Rio de Janeiro Imp. Tip. De
Nabuco de Araújo constitucional Plancher
brasiliense
Lourenço José Ribeiro Análise da 1829 Pernambuco Manuscrito
Constituição Política
do Império do Brasil
Silvestre Pinheiro Observações sobre a 1831 Paris Of. Tipog. De
Ferreira Carta Constitucional Casimir
do Reino de Portugal
e a Constituição do
Império do Brasil
José Cesário de A Questão das 1832 Rio de Janeiro Imp. Tip. De
Miranda Ribeiro Reformas da Pancher
Constituição do
Império na
Assembléia
143

Legislativa;
Exposição 1822 Rio de Janeiro
Justificativa do
Procedimento do
Deputado José
Cesário de Miranda
Ribeiro sobre a
questão das
Reformas da
Constituição do
Império na
Assembléia Geral
Legislativa
Pedro Autran da Mata Constituição Política 1842 Não encontrado Não encontrado
Albuquerque do Império
Francisco de Paula Breves Reflexões 1854 Paris Tip. De W.
d’Almeida e Retrospectivas, Remquet C.
Albuquerque Políticas, Morais e
Sociais sobre o
Império do Brasil
Fontes: Alecrim (2011); Blake (1899); Dutra (2004); Mattos (1997); Prado (2012).

Esta amostra aponta a existência de doze publicações que gravitaram em torno


dos “princípios do Direito Público universal” e da “Constituição” publicadas durante o
Regime Imperial. A década de 1830 é a que apresenta o maior espaçamento entre as
publicações (de 1831 para 1842). Esse “hiato”, que se situa entre a Abdicação (1831) e
o início do Período das Regências (1831 a 1840), pode ser explicado como
consequência do redirecionamento da atenção das elites para a “crise política” e para a
“crise social”. Estas, acirradas com a renúncia do Regente Feijó, desenharam um
cenário “perigoso” e instável de embates entre “conservadores”, “liberais moderados” e
“liberais radicais” em torno dos projetos de reformas legais descentralizadoras (1832,
1834) e pela ocorrência das diversas revoltas provinciais.

A amostra também indica a forte presença dos editores franceses no Brasil, bem
como a existência de dois agentes com publicação de doutrina no exterior, sendo ambas
em Paris. Esse dado permite deduzir as condições de relativa aproximação entre o
constitucionalismo brasileiro e a doutrina francesa, confirmando a percepção da
influência francesa no ideário “jurídico” desse período.

O panorama desses manuais jurídicos indica a relação entre o predomínio da


144

formação jurídica em Coimbra com o alto índice da inserção político-administrativa dos


agentes, inclusive no cenário internacional português, mas em certos casos, também no
francês (como é o caso do diplomata Silvestre Pinheiro Ferreira) como explicativa da
tendência a produzir uma forma de mobilização “constitucional” de contorno moral e
religioso. Neste sentido, a “interpretação constitucional” vem sustentada em elementos
como a “vontade Divina” e permeada de apologias à “Constituição”, que era a
outorgada de 1824.

Em alguns casos, essa fundamentação apologética, moral e religiosa da ordem


política de 1824 apareceu integrada por dedicatórias à própria pessoa do Imperador D.
Pedro I, como no caso da obra de José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairú. Reitera-se,
no entanto, que essa tendência não se processou de forma absoluta, até mesmo porque
certos agentes eram magistrados e professores vinculados ao Curso de São Paulo ou de
Olinda e priorizavam fundamentações diversas. No entanto, também enquanto “lentes”
alguns desses “intérpretes da Constituição” buscaram produzir efeitos sobre os futuros
bacharéis. Este aspecto apontado por Venâncio Filho quanto ao caso do Desembargador
e Lente de Olinda, Lourenço José Ribeiro76.

No caso de José da Silva Lisboa está ilustrado de modo nítido o uso político
“conservador” da “interpretação constitucional”, em que se verifica a explícita relação
entre política e fé católica, apresentada na forma de um manual jurídico voltado para a
elaboração da Moral Constitucional. Sua produção jurídico-doutrinária, editada em três
volumes, somada a mais um volume de adendo, publicados entre 1824 e 1825, Silva
Lisboa desenvolve sua “interpretação constitucional” intitulada de “Constituição Moral

76
Segundo Venâncio Filho, o Lente de Olinda Lourenço José Ribeiro: “escreveu trabalhos inéditos,
explicando as lições de Direito Constitucional”. Venâncio Filho enfatiza esse efeito de promoção
doutrinária do valor da Constituição sobre as divisões partidárias radicalizadas existentes em
Pernambuco, citando Carlos Honório de Figueiredo: “desse insano trabalho, imensa vantagem resultou
não só a seus discípulos (como eles diziam) como também a toda a Província, porque era a Constituição
ali mal olhada pelos dois Partidos, que então a retalhavam. Os absolutistas a desprezavam, receando que
pela sua demasiada franqueza, viesse a degenerar em um Governo republicano e os republicanos a
detestavam por causa do Poder Moderador, que considerava hostil às liberdades públicas e um
despotismo encoberto. As lições do Desembargador Ribeiro os enganaram em excelente erro, muito mais
quando, transcritos nos seus periódicos, correram toda a Província. E foi então que se formou o grande
Partido Constitucional, que é hoje o maior e mais forte de toda a Província” (VENÂNCIO FILHO: 2005:
43).
145

e Deveres do Cidadão: Com Exposição da Moral Pública conforme o Espírito da


Constituição do Império”. É relevante destacar a postura de reforçar o vínculo entre o
autor e o poder instituído, representado pelo fato de Cairú dedicar a obra ao Imperador
Dom Pedro I. Os volumes publicados por Silva Lisboa constituem um dos mais
extensos trabalhos de “interpretação constitucional” produzidos no Oitocentos.

Os manuais interpretativos da “Constituição” escritos por Silva Lisboa, cuja


primeira parte foi publicada pela Thypografia Nacional, em 1824, e as duas últimas
partes e o suplemento publicados em 1825, expressaram, portanto, um pensamento que
mobilizava a “filosofia moral jusnaturalista”, adquirida no Curso de Cânones e Filosofia
em Coimbra, após a reforma pombalina dessa Universidade, onde apesar das
modificações curriculares, o monarquismo e o compromisso com a religiosidade
católica permaneciam.

Um tipo de repercussão desses aspectos aparecia nas dedicatórias, em que se


apontava uma síntese das razões, sobretudo de Estado, que motivam as reflexões
políticas embutidas em sua elaboração77. A linguagem erudita, o conteúdo moral, o alto
teor de universalismo e de generalização presentes nessa amostra indica que a posse do
capital cultural adquirido em Coimbra, somada à posição na alta esfera do poder
implicava em um condicionamento para a formatação jurídica do debate político:
quanto mais alta a posição do agente na hierarquia do poder, mais eufemizado era o tom
do discurso.

A partir dessas constatações, pode-se questionar se existiu e, em caso afirmativo,

77
Exemplifica esse tipo de dedicatória, o livro de Silva Lisboa: “À SUA MAGESTADE IMPERIAL O
SENHOR D. PEDRO I. A principal Honra, que os sábios da antiguidade tributarão aos Fundadores dos
Impérios, teve por motivo a consideração de estabelecerem a Moralidade Nacional como a Solida Base do
Edifício Político. O immortalLyrico amigo de Augusto bem o advertia, que as mais sãas Leis do Império
Romano se constituirão vãas sem bons costumes do Povo. Sendo objecto de geral censura a decadência da
Moral Publica , pelo contagio da infidelidade, propagado nas Revoluções de ambos os Hemispherios, he
digno do GRANDE CARACTER de VOSSA MAGESTADE IMPERIAL o Dar Patrocínio aos estudos
das doutrinas que podem contribuir a formar Cidadãos de Heróico Espirito Publico, e ao mesmo tempo
excitar, virtuosa emulação nos Engenhos Brasileiros, para com seus escriptos e exemplos darem credito
ao Império do Brasil em tão importante repartição dos conhecimentos humanos. Eis, Senhor, a razão
porque me animei a supplicar a VOSSA MAGESTADE IMPERIAL a Mercê de Permittir-me que
dedique ao Seu NOME esta synopse literária de huma Sciencia, que deve faze rmui essencial parte da
INSTRUCÇÀO PÚBLICA. José da Silva Lisboa” (LISBOA: 1824).
146

como foi empreendida a reação dos políticos “liberais”, especialmente, no que se refere
à posição dos “históricos”, “exaltados” ou “radicais”, isto é, dos agentes situados em
posições periféricas em relação ao domínio restrito dos homens da Corte e de seus
manuais “conservadores”.

3.5 O recurso à publicação das traduções de obras francesas a partir de 1831:


estratégia de contestação dos políticos-bacharéis dominados à “interpretação
constitucional” oficial

Com base nos argumentos apresentados, parte-se de uma listagem de obras


traduzidas por brasileiros na área de “Direito Público e Constitucional”, a partir da qual
se pode tentar “fixar o grau de receptividade da parte de publicistas brasileiros em face
de autores estrangeiros, em um período que se inicia após o estabelecimento da
“Constituição” de 1824 (ALECRIM: 2011: 71). Veja-se uma amostra de traduções de
obras de doutrina estrangeiras, e francesas, por agentes brasileiros conforme o quadro a
seguir.

Quadro 6 - Amostra de comentários e traduções brasileiras de obras estrangeiras de


doutrina constitucional no século XIX
Autor da tradução Doutrina traduzida Sistema(s) jurídico(s) Cidade e ano de Editora
estrangeiro(s) ou publicação
autor(es)
estrangeiro(s)
traduzido(s) ou
comentado(s)
D.G.L.D’Andrade Lições de Direito Ramón Sales Olinda, 1831 Tipografia
Público Pinheiro Faria
Constitucional
Não identificado Tática das Jeremy Benthan Olinda, 1832 Não identificado
Assembléias
Legislativas
Jerônimo Figueira “Dos Poderes do Richard Philips Olinda, 1832 Não Identificado
de Melo Júri”
Lopes Gama “Introdução aos Torombert Olinda, 1837 Não Identificado
Princípios do Direito
Político”
Casemiro José de “Elementos de Mcarel Recife, 1842 Não Identificado
Morais Sarmento Direito Público”
Antônio Pedro de “Da Soberania do Ortolan Recife, 1848 Não Identificado
Figueiredo Povo e dos Princípios
do Governo
147

Republicano”
João Silveira de “Preleções de Direito Raynal, Montesquieu, Recife, 1871; Não identificado
Sousa Público Universal” Mably
2ª ed. 1882.
José Soriano de “Apontamentos de Referências sobre a Recife, 1883 Não Identificado
Sousa Direito parte costumeira do
Constitucional” Direito constitucional
Inglês
Tobias Barreto “Responsabilidade Sistema Parlamentar Local Não Não Identificado
dos Ministros no Inglês Identificado
Governo
parlamentar”; Período: 1871-1882

“A Questão do Poder
Moderador”
“Programa de Direito
Público Universal”
Fonte: Alecrim (2011).

Como se pode verificar na amostra foram publicados onze títulos no formato de


traduções de obras de “Direito Público e Constitucional” estrangeiras, sendo que oito
foram publicadas em Olinda/Recife, e no caso das três em não foi identificada a cidade
de publicação, a autoria de Tobias Barreto permite supor que foram lançadas também
em Pernambuco.

O quadro indica, apesar das lacunas nos dados disponíveis sobre as editoras, a
ocorrência de uma estratégia de contestação do Regime Monárquico ligada ao cenário
pernambucano, ao buscar nas traduções de publicistas estrangeiros uma fundamentação
não só comparativa com o modelo político brasileiro, mas indicativa de que esse
modelo não era o único possível, revelando-se o arbitrário da escolha. Deste modo,
pode-se verificar que esse recurso representou um canal viável para a veiculação de
“modelos constitucionais” diversos do brasileiro, como os “presidencialistas”,
“federalistas” e “republicanos”, o que era uma forma de colocar em questão a
legitimidade do modelo político monárquico e centralizado, que adentrou também pelo
Segundo Reinado (1840-1889).

Nota-se, ainda, que a partir de 1870 tem-se sete obras traduzidas, sendo uma
148

reeditada em 1882. Este período foi o da eclosão das Reformas Abolicionistas e do


Movimento da “geração 1870”, do qual Tobias Barreto fazia parte (ALONSO: 2002). O
Movimento da “geração 1870”78 empregou largamente o recurso às publicações em
formatos variados: obras literárias, “científicas” e ensaios políticos. Utilizou-se também
dos jornais, buscando difundir pela imprensa os ideários federalistas, abolicionistas e
republicanos. Isto aponta que essa mobilização da “publicística” se inseriu em cenário
de “crise” do Regime Imperial com sentido contestador, buscando a reforma das
instituições. Mais precisamente, a geração contestadora de 1870 atuou no contexto de
embates em torno das reformas políticas de teor abolicionista, empreendidas desde 1870
pela “ala” reformista do Partido Conservador (da qual uma das lideranças foi José
Antônio Pimenta Bueno, o Marquês de São Vicente) e que desencadeou a sua cisão e a
perda de sua principal base de apoio: a lavoura escravista (ALONSO: 2002).

Assim, a partir de 1870 seria possível analisar o recurso às traduções de obras


“constitucionalistas” com o emergir de uma contestação mais generalizada ao modelo
político, com maior visibilidade da “posição crítica” à continuidade do governo
monárquico. Por estarem concentradas em Olinda/Recife, isto é, no circuito “periférico”
do norte/nordeste, constata-se a vinculação dessas traduções com uma estratégia do pólo
dominado do publicismo jurídico imperial.

As frações da elite inseridas nas escolas de Direito de São Paulo e de


Olinda/Recife estavam imersas nesse contexto de domínio político dos homens da Corte
(Rio de Janeiro). Por isso, é de se frisar que o fato de manuais de publicismo estrangeiro
traduzidos por brasileiros terem sido mais editados em Pernambuco do que no Rio de
Janeiro/São Paulo, indica a estratégia de uma fração da elite letrada nordestina no
investimento em uma “alternativa constitucional comparatista” entre o Regime

78
Esse Movimento político de caráter reformista, e não revolucionário, também teve uma dimensão
intelectual, na qual os diversos grupos de agentes empregaram a estratégia de produção simbólica e
mobilização de repertórios de política científica, formulando os esquemas explicativos da sua crítica ao
sistema imperial. No entanto, como se pode verificar no Anexo 2 da obra de Ângela Alonso, na extensa
produção teórica dos diversos grupos que integraram esse Movimento, o formato de manuais de
“interpretação constitucional” praticamente não aparece, com exceção de apenas três publicações: de
Tobias Barreto (1871), Anfriso Fialho (1885) e Francisco Antônio Almeida (1889), cujos títulos invocam
a crítica aberta ao Regime Monárquico e a necessidade de uma nova constituinte. Isto reforça a percepção
de que os manuais estiveram mais identificados com a elite política defensora da ordem. Ver Alonso
(2002: 356).
149

Brasileiro e os modelos “constitucionais” de outros países. Deve-se levar em conta que


as frações da elite originárias de Olinda/Recife foram afetadas pela concentração do
poder econômico e político na Corte e se beneficiavam, portanto, do Curso Jurídico
pernambucano para alcançar uma ascensão social. Isto se verifica no recrutamento de
magistrados para o Estado Imperial, que foi maior dentre os egressos do Curso de
Pernambuco, apontando que restava o caminho burocrático aos herdeiros das elites
“provincianas”, isto é, aos não vindos da Corte (GRIJÓ: 2005: 52).

Tal condição possuía, portanto, uma nítida relação com o processo de


hierarquização das elites a partir da Corte, somada ao declínio social, político e
econômico sofrido pelas elites agrárias do norte/nordeste, sobretudo, pela lavoura
açucareira, desde o início do Século XIX, agravado pelo posterior ciclo de consolidação
do Regime Imperial (1850) alavancado com a supremacia econômica do café do sudeste
(MELLO: 2001).

Ainda mais acentuada no final do Segundo Reinado, essa decadência política e


econômica do Nordeste repercutiu como viés internacionalista no âmbito dos manuais
publicados em Pernambuco. Tal aspecto refletia o recurso a um “constitucionalismo
alternativo” ao padrão dos manuais “saquaremas” e “luzias” com seus debates centrados
nos problemas políticos “nacionais”. O perfil dominante nos manuais publicados no Rio
de Janeiro foi de uma interpretação centrada na restrita “exegese da Constituição” de
182479, o que demonstrava a estrutura da dominação política existente no Império. Em
certa medida, o publicismo de manuais de cunho mais “liberal”, “comparatista” e
“internacionalista” foram publicados predominantemente em Olinda/Recife, o que
perduraria até 1885 (ALECRIM: 2011: 63).

A regionalização das traduções de obras do “constitucionalismo estrangeiro”

79
Octacílio Alecrim fez alusão a essa problemática ao informar que: “Com efeito, o ensino do “Direito
Constitucional” precondicionado à análise estrita da Constituição de 1824 significava obviamente uma
diretiva interessada, porque importava em “reduzir” a matéria ao campo de um documento escrito
qualificado como “constituição”, representativo de uma forma-tipo de governo, contra a qual
naturalmente não deveria prevalecer nenhuma ideia de evolução” (2011: 62).
150

desde a década de 1830 até o final do Regime remete, portanto, às estratégias de lutas
intraelites, em face da desigualdade regional e não apenas frente à hierarquia existente
entre os Partidos Políticos (“luzias” e “saquaremas”) (MATTOS: 1987: 132). A
orientação doutrinária majoritária dos manuais produzidos na Corte foi conservadora e
também se ligou à doutrina francesa, porém sustentando a identificação entre a posição
centralista e a defesa “nacionalista” da Constituição de 1824. Esse uso político serviu,
inclusive, para a legitimação da Lei de Interpretação do Ato Adicional de 1834, posta
em vigor em 1841.

Embora também havendo lentes alinhados com a visão conservadora na escola


jurídica pernambucana, como os casos de Pedro Autran da Mata Albuquerque e Braz
Florentino Henriques de Sousa (SIMÕES: 1983), a tendência conservacionista e
centralizadora foi mais intensa nos manuais publicados no Rio de Janeiro.

Portanto, a concorrência política entre “conservadores” e “liberais” através dos


manuais de “interpretação constitucional” não se estabeleceu apenas entre os agentes
posicionados na escola jurídica paulista, em que havia disputas entre os lentes
“saquaremas”, como Sá e Benevides, e os lentes “liberais exaltados”, como Avelar
Brotero (SIMÕES: 1983). Posições “conservadoras” e “liberais” também foram
mobilizadas por agentes que atuaram na Faculdade de Direito de Olinda/Recife, como
Zacarias de Góis e Vasconcelos e Tobias Barreto (Idem). Este último não foi incluído
na amostra de trajetos dos “intérpretes da Constituição” pertencentes à elite “brasileira”
devido à publicação (póstuma) de seus manuais de “direito constitucional” ter ocorrido
após o advento da Primeira República80.

Assim, a amostra de traduções de “doutrina jurídica” estrangeira publicadas em


Pernambuco indica que estas serviram como um recurso para a fundamentação da
fórmula “comparativa” do regime brasileiro com modelos estrangeiros que fossem
alternativos (descentralizados ou federativos). Tratou-se, por esta ótica, de uma
estratégia mobilizada por agentes que jogaram com a imagem de “intérpretes da
Constituição” para difundir argumentos favoráveis à descentralização política e que

80
Veja-se a biografia e amostra de títulos publicados por Tobias Barreto disponível no sítio do Centro de
Documentação do Pensamento Brasileiro (CPDOC).
151

propunham uma maior abertura da disciplina de “Direito Público e Constitucional” a


conhecimentos de modelos políticos estrangeiros, não apenas franceses, uma linha mais
nítida no curso jurídico pernambucano)81.

Essa dimensão estrutural também repercute a chegada dos livreiros franceses ao


Rio de Janeiro, em que os próprios livreiros do Império, como o francês De Plancher,
indicavam aos clientes quais os livros que deveriam ser consultados no estudo de
determinada disciplina (ALECRIM: 2011: 63). Aponta-se que a formação das elites
jurídicas coimbrã e brasileira contava com os livros de publicismo francês importados e
disponibilizados nas livrarias e tipografias nacionais, que embora não estivessem
restritas à importação dos autores franceses82, refletiam o acesso privilegiado a essas
fontes doutrinárias monarquistas e liberais.

A importação e adesão à bibliografia dos publicistas franceses, como Guizot,


articulou-se ao momento da denominada “construção do Estado”, e contribuiu para que
as elites políticas se deparassem com o dilema entre ensinar a “Análise da Constituição
do Império”, em uma submissão ao Sistema Monárquico dotado do Poder Moderador e
demais estruturas centralistas inaugurado com a outorga da Carta de 1824 (referendado
novamente a partir do Regresso de 1837), ou optar pela doutrina de “Direito Público e
Constitucional”, o que levaria à necessidade de comparar “a Constituição”, isto é, o
Regime Monárquico brasileiro, com outros modelos, inclusive republicanos e
federativos, revestindo-se o dilema político em questão disciplinar de ensino jurídico.

Por fim, é importante frisar, como antes referido, que ao se problematizar a

81
Verifica-se que essa relação entre a demanda de legitimação do Regime político e o potencial simbólico
do trabalho teórico dos juristas foi uma dimensão relevante do publicismo nesse período, como ressalta
Alecrim: “Para os legisladores e ministros do Império, até Franco de Sá, havia portanto o propósito
manifesto de se fazer do ensino do direito constitucional nas duas Faculdades de Direito existentes no
país uma espécie de análise puramente formal da carta política “outorgada”, e, consequentemente, uma
exegese intencional do regime político imobilizado no texto” (ALECRIM: 2011: 62).

82
Há referência em torno dessa questão, como se pode constatar pelo comentário de Octacílio Alecrim:
“Ademais, os estudos de direito constitucional fora das Faculdades já a esse tempo não eram mais feitos
através dos “livros” indicados pelo livreiro imperial Plancher...; Pimenta Bueno consultava em São Paulo
publicistas estrangeiros como Delome, Blackstone e Lajounais; Nabuco, entrava em intimidade com A
Constituição Inglesa de Bagehot entre as “novidades” da Livraria Lailhacar, no Recife; e no cafundó de
Escada, Tobias Barreto traduzia e comentava Gneist, professor na universidade de Berlim” (ALECRIM:
2011: 63).
152

“interpretação constitucional” mobilizada pelos políticos-bacharéis desde o contexto do


Primeiro Reinado, é necessário pontuar a crise gerada pela Abdicação em 1831, dada
em que se situa a fundação do Partido Liberal (BRASILIENSE: 1979: 17). Este cenário
foi marcado pelas lutas políticas acirradas que cercaram o advento do Modelo
Regencial, e dentro deste momento, os embates motivados pela discussão do projeto de
Reforma Constitucional de teor “liberal” representada pelo Ato Adicional de 1834.

Desta forma, a mobilização de “doutrina constitucional” deve ser situada no


movimento histórico, e neste caso, foi a transição entre o Primeiro e o Segundo
Reinados, intercalada pelo Período das Regências. A partir desse contexto de
intensificação das disputas, os usos políticos do “Direito Público e Constitucional”
adquiriram um peso maior. A conjuntura de alternância política e de enfrentamento
social de grupos aparece associada à remodelagem do panorama político, com a
formação de dois partidos políticos imperiais: O Partido Liberal (1831) e o Partido
Conservador (1837). Este último surgido em face das reivindicações “conservadoras”
expressas na defesa da necessidade de se interpretar o Ato Adicional de 1834, e que
foram canalizadas para a reversão das medidas descentralistas originárias do movimento
“liberal” de 1832 (BRASILIENSE: 1979: 21).

Esses aspectos auxiliam a interrogar os sentidos políticos da prática de


“interpretar a Constituição” a partir da formação das primeiras turmas de bacharéis
graduados nas escolas de Direito brasileiras (São Paulo e Olinda), cuja atuação política
liga-se ao cenário pós-Regresso Conservador de 1837 e ao advento da “fase de
consolidação” que se inicia com a instauração do Segundo Reinado (1840).
153

CAPÍTULO 4 - O PAPEL POLÍTICO DA DOUTRINA CONSTITUCIONAL NO


SEGUNDO REINADO: A ELITE “BRASILEIRA” E A AMBIVALÊNCIA DOS
“INTÉRPRETES DA CONSTITUIÇÃO”

Neste quarto capítulo se discute o problema da relação entre o contexto, o


percurso dos agentes da “interpretação constitucional” e os usos da ferramenta dos
manuais durante o Segundo Reinado e, mais precisamente, a partir de 1850. Neste
sentido, é fundamental destacar que o Segundo Reinado (1840-1889) representa um
período em que começava a ascender ao poder de Estado uma geração de bacharéis já
formada no Brasil e em que principiava a circulação das elites letradas, como
consequência da criação das escolas de Direito, da manutenção da centralidade da
economia rural escravista e da busca dos herdeiros da elite rural por formação e
ocupações “na cidade”. O Segundo Reinado pode ser considerado, portanto, como a
fase em que se iniciou o processo de urbanização do Brasil (SODRÉ: 2004: 57).

Mas tal processo de mudança não significava que o Segundo Reinado iniciasse
em um quadro de vazio legal e institucional, pois apesar da Abdicação de D. Pedro I em
face da Revolução de 7 de abril de 1831, já havia estado em vigor, outorgada, a
Constituição de 1824. Seu texto assegurava, no plano institucional, a Monarquia, o
Poder Moderador, a Câmara Temporária, o Senado vitalício e o Conselho de Estado, ou
seja, moldava a centralização política pela formalização do regime na regra jurídica
(BRASILIENSE: 1979: 17).

A crise política que levara à renúncia de Diogo Feijó e às rebeliões provinciais


do contexto Regencial (1831 a 1840) moldaram um quadro de instabilidade política, de
acirramento de lutas e de ocorrência de movimentos de tom contestatório da ordem
monárquica (“liberais”, “republicanos”, “federalistas”) que emergiram em várias regiões
do país, como no caso do Rio Grande Sul, com a Revolução Farroupilha, deflagrada em
1835. Assim, um dos efeitos desse cenário de crise, agravada com a Abdicação do
primeiro Imperador, foi a aglutinação de interesses e visões de mundo em torno de
agremiações políticas.

A descentralização política implementada pelas Reformas “Liberais” do início


154

dos anos 30, como o Código Criminal de 1832 e o Ato Adicional de 1834, somada aos
movimentos revolucionários do período regencial (1831 – 1840) foram os fatores que
motivaram a fundação dos dois partidos que se mantiveram dominantes na vida política
até o final do Império (CARVALHO: 2006: 204). Os partidos políticos surgiram,
portanto, a partir de um cenário de “crise” e instabilidade política, aspecto que necessita
ser enfatizado de modo a se compreender que a década de 40 do século XIX não
representou um período de passividade e previsibilidade política, mas de desafio às
elites políticas no sentido de encontrar estratégias eficazes para apaziguar ou, ao menos,
controlar os níveis das disputas que já haviam iniciado na década anterior e assumido
caráter violento.

Assim, o problema da “desordem” indica a persistência de ações contestatórias


durante os anos 40, como a Revolta Liberal de 1842, movimento que envolveu São
Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Também exemplifica esse cenário convulsionado
a Revolta Praieira de 1848 em Pernambuco (FAUSTO: 2006: 95).

Esses cenários de “crise objetiva”, combinada com o discurso “crítico” sobre a


ordem, podem ser considerados momentos propícios para a “ruptura herética para com a
ordem estabelecida e para com as disposições e representações que ela engendra em
torno dos agentes moldados segundo suas estruturas” (BOURDIEU: 1981: 69).
Portanto, é relevante frisar que as décadas de 30 e 40 repercutiram a disputa política que
adquiriu um formato intensificado e polarizado, colocando para as elites o dilema de
aderir entre uma posição conservadora ou “saquarema” ou liberal ou “luzia” ou, ainda,
“radical”, “exaltada”, “republicana”.

Esta última posição atentava contra o próprio regime instituído, que era a
Monarquia, restando como viável somente em uma via de ação camuflada, por ser
contra a “ordem”, “inconstitucional”, uma espécie de “impossível político”, isto é, ao
republicanismo (e até certo momento, ao abolicionismo) só restava a ação
“revolucionária”. Desta forma, os Partidos Conservador e Liberal representavam os
únicos “admitidos” para a ação política, pelo menos até fins da década de 60. Ambos
não colocavam em questão a forma monárquica do regime, semelhança que auxilia a
explicar o fato de ser comum a passagem de políticos de um campo para o outro
(FAUSTO: 2006: 98).
155

Com relação aos aspectos da distinção programática ou ideológica entre essas


agremiações políticas, não há consenso entre os especialistas. As posições dos
historiadores são bastante diversas: para alguns não houve diferença significativa entre
ambos87, enquanto que para outra linha, sustentada em argumentos variados, houve sim
uma significativa distinção88. Na presente abordagem não se visa estabelecer qual das
posições historiográficas seria a correta.

Segue-se a orientação de que se houve diferenças, por outro lado houve também
semelhanças entre os “luzias” e os “saquaremas”. No entanto, a dimensão importante
que não pode ser desprezada é aquela que aponta não apenas as distinções e ou as
similitudes, mas sobretudo a hierarquia política entre ambos. Isto porque somente por
este viés se pode verificar as condições em que foram mobilizadas estratégias e recursos
para a manutenção da posição de superioridade política do Partido Conservador
(MATTOS: 1987: 128) e o modo como buscaram enfrentar essa supremacia os agentes
do campo liberal. É neste viés que se pode inserir a produção de manuais de
“interpretação constitucional” durante o Segundo Reinado.

Em um relato diferente, Américo Brasiliense sustentou que, após a Abdicação,


três partidos entraram em combate pelo monopólio do poder: o Partido Restaurador
(que aspirava à volta de D. Pedro I), o Partido Liberal (que defendia reformas
constitucionais, porém conservando a Monarquia) e o Partido Republicano (defensor da
abolição da Monarquia). No entanto, o Partido Liberal estava dividido entre “liberais
moderados” e “liberais exaltados”, estes defensores de uma Monarquia Federativa. A
“ala” moderada tornou-se majoritária e dominante, mas firmou um acordo com os
“exaltados” para unificar a “bandeira liberal” e conseguir implantar o programa de
reformas (BRASILIENSE: 1979: 17).

Esse Programa de Reformas do Partido Liberal, apresentado em 1832, foi


aprovado na Câmara dos Deputados, estabelecendo a Monarquia Federativa e a
Tripartição de Poderes e extinguindo o Poder Moderador, o Conselho de Estado e a

87
Para essa questão, ver Carvalho (2006: 202). Também Ilmar de Mattos aponta que com argumentos
diferentes, Oliveira Vianna, Caio Prado Jr., Maria Isaura Pereira de Queiroz e Nestor Duarte afirmam ser
apenas aparente a distinção entre os partidos conservador e liberal (MATTOS: 1987: 130).
88
Para Mattos seria o caso de João Camilo de Oliveira Torres, Fernando de Azevedo, Manoel Maurício
de Albuquerque, Azevedo Amaral, Raymundo Faoro e José Murilo de Carvalho (MATTOS: 1987: 131).
156

vitaliciedade do Senado. A Reforma também propunha transformar os Conselhos Gerais


das Províncias em Assembleias Provinciais eleitas, instituía a eleição bienal para a
Câmara dos Deputados e a distinção entre os impostos nacionais e os impostos
provinciais, garantindo que as Províncias obtivessem receita própria. Enviado ao
Senado, este alterou praticamente tudo, através de emendas. A Câmara rejeitou as
emendas, e houve a fusão das duas Casas Legislativas, para sua discussão e votação
(BRASILIENSE: 1979: 19).

Em 1834 foi aprovado o Ato Adicional à Constituição, que ficou muito aquém
do Programa Liberal de 1831, mas suprimiu o Conselho de Estado. Esse momento
marca a fase das Regências, sendo a primeira delas encabeçada pelo “liberal” Diogo
Feijó, que renunciou em 1837 pela falta de apoio parlamentar. Com a renúncia do
Regente, iniciava um “levante” de parlamentares a defender que o obstáculo à “ordem
política” e à “paz social” consistia no próprio Ato Adicional de 1834 (BRASILIENSE:
1979: 21). Desta forma, era necessário “interpretá-lo”, isto é, reduzir seu alcance.

Sabe-se que a “culpa” da crise foi elaborada e atribuída ao Ato Adicional de


1834: enfraquecia a autoridade, atacava o governo e comprometia a unidade nacional
(Idem). Daí se originou o Partido Conservador, cujo “Programa” não necessitava ser
elaborado e apresentado formalmente, pois segundo afirmava José de Alencar, era o
próprio texto da Constituição de 1824 (PARANHOS: 2013: 38).

Logo, até 1841, com as medidas adotadas no âmbito do “Regresso de 37”,


enraizou-se um processo de centralização política, com a sustentação do papel central
dos membros do Partido Conservador de “defender a Constituição” (PARANHOS:
2013: 38). Portanto, o posicionamento de maior ou menor adesão ao texto da
Constituição de 1824 diferenciava conservadores “puros” ou “saquaremas” de
conservadores “reformistas” ou “progressistas”. As medidas centralizadoras
prosseguiram após 1840, como a reabertura do Conselho de Estado, em 1841,
anteriormente extinto pelo Ato Adicional de 1834. Por força da aprovação da Lei de
Interpretação de 1841, todo o aparato administrativo e judiciário retornou ao controle do
poder central (FAUSTO: 2006: 94).
157

José de Alencar afirmava que defender a Constituição de 1824 era a “missão


divina” do Partido Conservador, implicando na adesão aos valores da “tradição,
“moderação”, “prudência”, “reforma gradual” em um sistema político em que “o Rei
reina, governa e administra” (PARANHOS: 2013: 38).

Essa adesão maior dos políticos conservadores à defesa da “Constituição”, como


se o texto originário de 1824 não houvesse sido modificado com o Ato Adicional,
permite observar a perspectiva da superioridade política do campo conservador pela
apropriação da “interpretação constitucional” no Segundo Reinado. Apesar de não ser
evidente em um plano quantitativo, em face de que a proporção de filiação dos
Ministros ao Partido Conservador e ao Partido Liberal distinguia-se pouco (43,89%
filiavam-se ao primeiro, e 49,64% ao segundo). Da mesma forma, o número de
gabinetes ministeriais conservadores foram quatorze, contra quinze ministérios liberais
(CARVALHO: 2006: 211), uma diferença ínfima.

Deste modo, um fator que aponta a existência e a permanência da dominação


conservadora consiste na duração dos ministérios conservadores no poder, em relação
aos liberais: foram vinte e seis anos de governo “saquarema”, contra treze anos de
governo “luzia”, isto é, o Segundo Reinado representa o dobro de “saquaremismo” em
comparação ao domínio liberal (CARVALHO: 2006: 210). Por tal ótica, interessa
identificar não apenas quem compunha, mas como agia a “geração saquarema”, aquela
ligada ao empreendimento da conservação da ordem hierarquizada e escravocrata e da
economia agroexportadora e, também, ao processo de consolidação do Império,
enquanto defesa do formato monárquico e centralista do Estado Nacional (MATTOS:
1987: 126).

Destaca-se também que em face do Brasil ser o único país escravocrata e


monárquico da América, cercado por Repúblicas, a elite política (e, sobretudo, a fração
“conservadora” da elite imperial) foi desafiada a elaborar modos de justificação para
essa condição, que era oposta à realidade política internacional. Essa elite foi
encarregada de explicar por que o Brasil seria um caso “especial” e poderia, então, ser
“diferente” dos demais países americanos. A defesa da Monarquia, do Imperador como
titular do Poder Executivo e do Poder Moderador, do Conselho de Estado, da
vitaliciedade do Senado e da manutenção do regime escravista era tarefa a ser
158

desempenhada pelos agentes ilustrados, especialmente, os identificados como


“conservadores” ou “saquaremas”.

A tarefa legitimadora demandou que diversos recursos fossem mobilizados,


implicando em adentrar vários meios culturais, como o periodismo, a arte, as ciências, o
teatro, a historiografia e a literatura. Através desta, atuaram agentes como José de
Alencar, Gonçalves de Magalhães e Gonçalves Dias. Assim, o político conservador José
de Alencar exemplifica os usos políticos da literatura para fins de construir a imagem
idealizada do indígena como o “herói” nacional, de modo a celebrar a miscigenação da
“raça nativa” com o europeu português, sem precisar tocar na questão da escravização
do africano (MATTOS: 1987: 127).

Portanto, identificar os marcos desse contexto é fundamental para a


compreensão da mobilização política de obras jurídicas na forma de “interpretação
constitucional” que se processou entre 1850 e 1888, para o quê se adota a perspectiva de
que houve semelhanças e diferenças entre as demandas dos dois partidos, mas também
de que, porém, se consolidou uma “direção saquarema” de longa duração, consistente
em impor aos “luzias” a derrota no campo de batalha (armada) e também em confinar as
suas pretensões à “revolução” a meras “rebeliões” (MATTOS: 1987: 129).

Este aspecto é muito elucidativo para esta abordagem, pois permite, por
exemplo, situar o funcionamento das duas Escolas Jurídicas, criadas em 1827, dentro do
panorama histórico marcado por essas características: o avanço de uma dominação
conservadora e a reação da posição dominada, em que se situavam como oposicionistas
os “liberais”. Também permite observar os percursos dos agentes e o teor de seus
manuais de “interpretação constitucional” dentro desse enquadramento, buscando
identificar as posições alinhadas com o “saquaremismo” e os usos identificados com a
contestação “liberal”.

Tendo isto em vista, entende-se que desde a formação das primeiras turmas
graduadas em Direito no Brasil, a partir de 1832, uma parte da elite de bacharéis seria
recrutada para a tarefa de mobilização do poder simbólico em defesa do Regime
Imperial. O discurso jurídico era bastante adequado para esse fim. Este ponto é
relevante porque permite verificar os padrões de mobilização dos manuais diante dessa
159

disputa, ainda que no interior desses dois partidos não houvesse consenso, identidade de
origem social, nem homogeneidade ideológica89.

Busca-se, aqui, responder à questão de pesquisa sobre a relação entre as posições


dos agentes na esfera política e os sentidos inscritos na apropriação da doutrina jurídica.
Manteve-se, portanto, o emprego da metodologia sócio-histórica, baseada na inserção
dos atores e suas práticas no panorama político daquele contexto, combinada pela
análise de dados de percurso de uma amostra de agentes e de manuais de “interpretação
constitucional” publicados entre 1857 e 1888.

Reitere-se que não se trata apenas de identificar e listar os nomes de quem


figurou como “publicista” durante o Segundo Reinado ou mostrar quais foram as
“escolas” ou “vertentes” doutrinárias desenvolvidas por indivíduos ou grupos. O
objetivo, diversamente, é apreender a relação entre as posições na estrutura de poder e
os usos dos manuais de “interpretação constitucional” dentro de uma dinâmica de
transições políticas (consolidação da ordem, apogeu, declínio).

Verificar de onde foram recrutados e selecionados esses agentes é fator que


auxilia a explicar a direção política de seus posicionamentos “constitucionais”, pois o
recrutamento é uma variável explicativa relevante dos grupos sociais (CORADINI:
2008: 15). O foco é colocado, portanto, na verificação da lógica social subjacente a esse
processo de constituição de um agrupamento e de suas posições (CORADINI: 2008:
16). Considera-se como premissa que uma das formas pelas quais os políticos-bacharéis
afirmavam a cientificidade da sua “doutrina” consistia em aproximar a sua elaboração
textual das regras de formatação que regiam a produção de trabalhos científicos em
outras “Ciências” ou disciplinas90.

89
Como a distinção “interna” ao campo liberal que os distinguia em: liberais “históricos”, liberais
“moderados” e liberais “radicais” (quase republicanos). Para essas distinções, ver Brasiliense (1979).

90
Esse aspecto foi também salientado por Guedes: “Sendo a doutrina um Discurso Científico, obedece às
normas para trabalhos científicos, firmando teorias ou estabelecendo interpretações sobre a ciência
jurídica; dessa forma, desenvolvendo uma reflexão contínua. Tem como premissa a atividade de fazer
persuadir. As marcas são aquelas utilizadas para construir a própria imagem dentro dos padrões
necessários para ser legitimada. Assim, podemos admitir que os discursos doutrinários existem com a
finalidade de descrever certa situação, como uma reflexão científica, mas acabam tendo outra finalidade
na medida em que servem para elucidar dúvidas, sendo citadas na lógica da argumentação do discurso
decisório. Por conseguinte, a doutrina acaba por adquirir natureza prescritiva, pois, ao preencher uma
lacuna na lei, ganha força de lei, tornando-se norma para casos semelhantes” (GUEDES: 2011: 32).
160

Este aspecto possibilita indagar sobre a função política da “cientificização”


operada através da colocação de temas políticos no bojo da doutrina constitucional a
partir de 1857, inclusive diante da ampliação do mercado de bens simbólicos, culturais,
jurídicos, gerado pelo funcionamento das duas escolas de Direito e pelos contornos
econômicos da fase de “consolidação” e “apogeu” do Império. O pressuposto é de que o
investimento de um grupo não se explica pela existência oficial de uma “Constituição” a
interpretar, a Constituição de 1824 (e as reformas posteriores), mas como estratégia de
ocultar o engajamento no jogo político.

A produção de manuais jurídicos durante o Segundo Reinado também foi


afetada pelo fomento do comércio de livros no Rio de Janeiro, com sua característica
predominância francesa, e pela fundação das escolas superiores, que incluíram no
currículo a cadeira de “Direito Público e Constitucional”, denominada de “Análise da
Constituição do Império” (ALECRIM: 2011: 60).

4.1 Trajetos dos novos publicistas: a elite “brasileira” e a disputa política pelo
sentido da “Constituição” no Segundo Reinado

Parte-se aqui de uma amostra de manuais de “interpretação constitucional”


publicados durante o Segundo Reinado, ou seja, na segunda metade do século XIX. Este
recorte temporal se justifica, como acima referido, porque mais exatamente do período
de 1850 em diante, tem-se o momento de “consolidação” da Monarquia sob o comando
de D. Pedro II, sustentando a denominada política da “Conciliação”.

Este contexto também apresenta características de ascensão cultural e econômica


do Brasil, motivada por fatores como a aprovação da Lei de Extinção do Tráfico
Escravo (1850), a expansão da produção cafeeira e dos investimentos em infraestrutura
161

urbana (transportes, telégrafos, energia a gás). Sendo o Segundo Reinado, sobretudo


após 1850, o momento em que se situa o novo ímpeto de investimentos em manuais de
doutrina constitucional, encontra-se aqui um importante ponto de análise: como os
manuais doutrinários repercutiram essa nova etapa do Regime Imperial.

Nesta linha, procura-se identificar a repercussão da hierarquização do espaço


político, primeiramente polarizado entre o Partido Conservador (Saquarema) e o Partido
Liberal (Luzia), sobre a diferenciação das formas e do teor das tomadas de posição
política através dos manuais. Com isso, também é possível comparar a mobilização dos
manuais deste período com a produção existente no cenário anterior (1824 a 1854).
Neste caso, visa-se cotejar os usos políticos do discurso “constitucional” no momento
de “construção do Estado” (a primeira metade do Oitocentos), ligados à elite “coimbrã”,
com o período da “consolidação da Monarquia” (segunda metade do Oitocentos), que
abarca a publicação de manuais pela elite política “brasileira”.

Assim, recorre-se à amostra expressa no quadro a seguir, montada a partir de


referências biográficas, originárias de fontes primárias (manuais impressos ou
digitalizados) e fontes secundárias (biografias, obras sobre as elites imperiais,
dicionários biográficos e sítios de documentação biográfica).

Quadro 7 – Amostra de dados biográficos e de percurso dos autores de obras de “Direito Público e
Constitucional” do Segundo Reinado por nome, ano e local de nascimento, ano e local de graduação
em Direito
Nome Ano de Local de Ano e Local de Graduação
Nascimento Nascimento

José Antônio Pimenta 1803 Santos , São Paulo 1832, Faculdade de Direito de São Paulo
Bueno

Zacarias de Góis e 1815 Bahia 1837, Academia de Direito de Olinda


Vasconcelos

José Carlos Rodrigues 1844 Cantagalo, Rio de Não identificado


Janeiro

Brás Florentino 1825 Paraíba Faculdade de Direito do Recife, 1850


Henriques de Sousa
162

José Pedreira França Não Não identificado Não identificado


Júnior identificado

José Maria Correia de 1833 Campos dos Bacharel em Letras pelo Colégio Pedro II (Rio de
Sá e Benevides Goytacazes, São Janeiro). Doutor em Ciências Sociais e Jurídicas
Paulo pela Faculdade de Direito de São Paulo

José de Alencar 1829 Mecejana, Ceará Faculdade de Direito de São Paulo, 1850.

Joaquim Rodrigues de Não Não identificado Não identificado


Sousa identificado

Nicolau Rodrigues dos Não Não identificado


Santos França e Leite identificado

Policarpo Lopes de 1814 Bahia Não identificado


Leão

Joaquim Pires 1827 Recife Não identificado


Machado Portela

F. Franco de Sá Não Não identificado Não identificado


identificado

Hermenegildo Militão Não Não identificado Não identificado


de Almeida identificado

Manuel Godofredo de 1848 Recife Não identificado


Alencastro Autran
Ano 1869

Paulino José Soares de 1807 Paris, França Iniciou o curso em Coimbra (1823)
Sousa
Graduou-se em 1831 na Faculdade de Direito de
(Visconde do Uruguai) São Paulo.

Fontes: Alecrim (2011); Blake (1899); Dutra (2004); Prado (2012). Sítio do Portal do Supremo Tribunal Federal
(www.stfjus.br), acesso em 27/08/2013; Sítio do Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro
(www.cdpb.org.br), acesso em 27/08/2013; http://www.e-biografias.net/jose_alencar/, acesso em
27/08/2013; http://familytreemaker.genealogy.com/users/p/o/Sergio-R-Porto-Rio-de-
Janeiro/FILE/0004text.txt, (acesso em 29/10/2013).

Infere-se da amostra que 15 indivíduos mobilizaram a “doutrina constitucional”


nesse contexto, iniciando por José Antônio Pimenta Bueno, nascido em 1803. Tratava-
se de um grupo formado no Brasil, representando, por isso, uma elite de letrados já
“brasileira”. Pelo menos cinco agentes estudaram nas escolas nacionais de São Paulo ou
Olinda/Recife (Pernambuco). Já o nascimento em províncias diversas aponta a
diversificação da origem regional, indicando a mobilidade ou circulação dos agentes do
163

grupo. A partir do quadro abaixo, se pode verificar dados de percurso, como modo de
identificar a existência de padrão de inserção política.

Quadro 8 – Inserção profissional, política e administrativa da amostra de “intérpretes da


Constituição” do Segundo Reinado
Nome Cargos burocráticos e/ou políticos

José Antônio Presidente de Província do Mato Grosso.


Pimenta Bueno
Presidente da Província do Rio Grande do Sul.
Ministro do Gabinete Imperial.

Presidente do Conselho de Ministros.

Zacarias de Góis e Inicia a carreira política no campo conservador em 1840, como Deputado na assembleia da
Vasconcelos Bahia; em 1850 ingressa na Câmara dos Deputados.
1860 – Ruptura com o Partido Conservador e inserção no Partido Liberal.
Lente da Academia Jurídica de Olinda.

Líder do partido Liberal; três vezes Presidente do Conselho de Ministros (1862-1864).


Senador do Império.
Título de “Conselheiro” concedido por D. Pedro II e Título nobiliárquico de Marquês de São
Vicente.

José Carlos Fundou com José da Silva Costa, em São Paulo, a Revista Jurídica (1862-73). Em 1863, ainda
Rodrigues como estudante, publicou Constituição política do Império do Brasil.
No âmbito do Jornalismo: Diretor e principal redator do Jornal do Comércio. Em Nova York,
publicou dois jornais em português: o Novo Mundo (1870-9), coadjuvado por Sousa Andrade,
e a Revista Industrial (1878-9). Em Londres, colaborou no Time e no Financial News (1882) e
negociou o primeiro empréstimo provincial ao Brasil, em favor de São Paulo. Regressando ao
Brasil (1890), comprou o Jornal do Comércio, que dirigiu por 25 anos.

Brás Florentino Nomeado professor na Faculdade de Direito do Recife em 1865; Presidente da Província do
Henriques de Sousa Maranhão (1869-1870).

José Pedreira Trajeto não identificado.


França Júnior

José Maria Correia Foi presidente das províncias de Minas Gerais, de 14 de maio de 1869 a 26 de maio de 1870;
de Sá e Benevides foi Presidenete de Provìncia do Rio de Janeiro, de 1 de junho a 27 de outubro de 1870;
Foi Lente da Faculdade de Direito de São Paulo.

Orientação política: Monarquista e conservador.

José de Alencar Romancista.


Em 1858 abandona o jornalismo para ser chefe da Secretaria do Ministério da Justiça, onde
chega à Consultoria.
Detentor do Título de Conselheiro.

Professor de Direito Mercantil.


Eleito deputado pelo Ceará em 1861, pelo partido Conservador, sendo reeleito em quatro
legislaturas.
Autor de "Iracema".

Joaquim Rodrigues Desembargador.


164

de Sousa Trajeto não identificado.

Nicolau Rodrigues Trajeto não identificado.


dos Santos França e
Leite

Policarpo Lopes de Magistrado;


Leão
Desembargador;
Membro do Conselho do Imperador;
Presidente da Província do Rio de Janeiro – 1863-64.

Joaquim Pires Presidente e Vice-Presidente de Províncias.


Machado Portela
Deputado-Geral
Diretor do Arquivo Nacional (1873-1898).

F. Franco de Sá Trajeto não identificado.

Hermenegildo Professor catedrático da Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais.


Militão de Almeida

Manuel Godofredo Juiz de Direito no Pará.


de Alencastro
Jornalista, músico, poeta.
Autran

Paulino José Soares Magistrado.


de Sousa
Deputado pela Província do Rio de Janeiro; Presidente de província do Rio de Janeiro (1836-
(Visconde do 1840).
Uruguai)
Magistrado e diplomata brasileiro nascido em Paris;
Porta-voz da classe dirigente do império, líder do grupo fluminense;

Jurista na área do Direito Público e Constitucional;

Integrou a então poderosa oligarquia do segundo reinado, o famigerado Triunvirato de


Saquarema, do qual faziam parte, além dele, o Visconde de Itaboraí, Joaquim José Rodrigues
Torres (1802-1872), e o magistrado e político brasileiro Eusébio de Queirós Coutinho Matoso
da Câmara (1812-1868);
Foi um dos idealistas do Partido Conservador;
Ministro da Justiça em 1840 e 1841-1843, ocasião em que restaurou o Conselho de Estado e
reformou o Código do Processo Criminal;

Ministro dos Negócios Estrangeiros (1843-1844);


Senador do Império (1849) na bancada do Partido Conservador;
Ministro de Negócios Estrangeiros (1849-1853) que antecipou, por meio de atos e gestões
diplomáticas, a campanha militar que culminaria na queda do caudilho argentino Juan Manuel
de Rosas, na campanha militar de Monte Caseros (1852);
Desembargador da Relação da Corte (1852);

Conselheiro de Estado (1853) e recebeu no ano seguinte, o título de Visconde do Uruguai.


Enviado a Paris (1855) como enviado extraordinário para tratar dos limites do império com a
Guiana Francesa, a chamada Questão do Oiapoque;
Ministro do Supremo Tribunal de Justiça (1857);
Publicou vários trabalhos de cunho parlamentar, jurídico, administrativo e político, entre eles
165

Ensaio sobre o direito administrativo (1862) e Estudo prático sobre a administração das
províncias (1865)
Morreu no Rio de Janeiro, então capital do Império, aos 58 anos.

Fontes: Alecrim (2011); Blake (1899); Dutra (2004); Prado (2012), Simões (1983). Sítio do Portal do Supremo
Tribunal Federal (www.stfjus.br), acesso em 27/08/2013; Sítio do Centro de Documentação do
Pensamento Brasileiro (www.cdpb.org.br), acesso em 27/08/2013; http://www.e-
biografias.net/jose_alencar/, acesso em 27/08/2013;
http://familytreemaker.genealogy.com/users/p/o/Sergio-R-Porto-Rio-de-Janeiro/FILE/0004text.txt,
(acesso em 29/10/2013).

Pode-se deduzir do quadro que a juridicização do debate político se vinculou


apenas parcialmente à atuação na esfera do ensino jurídico; em contraste, sua
articulação com a alta esfera política e administrativa (burocrática), implicando
passagem pela Câmara dos Deputados, Senado, Conselho de Estado e Conselho de
Ministros, além de presidência de Províncias. Isto permite inferir que o investimento em
“interpretação constitucional” não teve por norte a ação de “homens exclusivamente da
ciência”, sendo mobilizada por burocratas, como os magistrados, e pela alta elite
política (Senadores, Deputados, Conselheiros de Estado e Presidentes de Província), que
atuou no mesmo período em que se constituiu a tradição extra-acadêmica do
“bacharelismo liberal” (ADORNO: 1988). Esse tipo de publicação contrastava na forma
e no teor com a produção jornalística engajada em causas políticas e, portanto,
explicitamente militante dos estudantes de Direito, especialmente dos alunos da escola
paulista91.

No quadro 9 exposto a seguir visa-se a adentrar no âmbito da representação


social desses políticos-bacharéis, magistrados e professores, na figura de “autores” de
manuais que aparecem classificados como bibliografia da disciplina de “Direito

91
Isto porque, como mencionado, o papel político adquirido pelo publicismo jurídico pela via dos
manuais doutrinários não só não implicou o abandono da via jornalística, como não significou menor
relevância da mobilização pela imprensa, sobretudo porque a partir de 1827, essa via jornalística do
publicismo foi encampada pela Imprensa Acadêmica organizada e mantida pelos alunos das escolas de
Direito: “Na imprensa, veiculavam-se grandes modelos de pensamento que conferiam forma à prática
política de defender e de atacar sobre o que se via às voltas do mundo acadêmico: as condições da
agricultura, a vida partidária, a prática eleitoral etc. [...A academia] foi uma verdadeira escola de
costumes. Humanizou o embrutecido estudante proveniente do campo; civilizou os hábitos enraizados
num passado imediatamente colonial; disciplinou o pensamento no sentido de permitir pensar a coisa
política como atividade dirigida por critérios intelectuais” (ADORNO: 1988: 155).
166

Constitucional” publicada até 1885 (ALECRIM: 2011: 66).

Veja-se uma amostra obtida da comparação de listagens contidas em fontes


primárias (manuais jurídicos impressos ou digitalizados) e fontes secundárias (obras
sobre a produção jurídica da elite imperial, sítios e dicionários biográficos).

4.2 Os manuais de “interpretação constitucional” da elite “brasileira” como


discurso da ordem: entre o “conservadorismo” e o “liberalismo moderado”

Extraída de fontes secundárias, a amostra contém itens que foram classificados


dentro do elenco das “obras políticas do Brasil Imperial” (PRADO: 2012). Em outra
referência, aparecem como listagem de obras de “História Constitucional”
(RODRIGUES: 1978: 155), e em uma terceira fonte, o conjunto foi apresentado como
“bibliografia” da disciplina de “Análise da Constituição do Império” (ALECRIM: 2011:
64).

As diferenças no modo de enquadramento das produções demonstram a dúvida


que paira sobre a forma de pensar esse tipo de mobilização: como “obra jurídica”, ela
poderia interessar aos juristas representados como historiadores do Direito; quando vista
como mobilização política, enquadra-se no âmbito do “pensamento político brasileiro”;
para os historiadores, uma fonte que registra a “história das ideias jurídicas ou
políticas”. Por isso, reitera-se que, nesta Tese, se trata de fazer uma Sociologia História
e Política, isto é, uma Sócio-História Política que visa objetivar os dados enquanto meio
de entender como se processou o emprego desse recurso simbólico de legitimação da
ordem, também usado para sua contestação parcial, que consiste na produção de
manuais de “interpretação constitucional”.

Sem a pretensão de abraçar o fenômeno de forma exaustiva, via-se contribuir


para a análise de uma fração representativa dos usos políticos do discurso jurídico no
Segundo Reinado. Veja-se o quadro adiante.
167

Quadro 9 – Manuais de “interpretação constitucional” da elite “brasileira” por autor,


título, orientação política, ano e local de publicação e editora (1857 – 1882)
Autor Título Ano de publicação Cidade Editora

José Antônio Pimenta Direito Público 1857 Rio de Janeiro Tip. e Imp. de
Bueno Brasileiro e Análise Jacques
da Constituição do Villeneuve
Império.

Orientação política:
Monarquista e
Conservadora.

Zacarias de Góis e Da natureza e limites 1860 Rio de Janeiro Typographia


Vasconcelos do poder Moderador. Universal de
Reedição: 1862
Laemmert

Orientação “liberal
progressista”. Não
contestador da
Monarquia.

José Carlos Rodrigues Constituição Política 1863 Rio de Janeiro Ed. Eduardo &
do Império do Brasil Henrique
- seguida do Ato Laemmert
Adicional, da Lei de
sua Interpretação e
de outras. (Tipo de
obra: “Constituição
Anotada”, faz
comentários aos
dispositivos).

Orientação: “liberal
situacionista”, não
contesta a
Monarquia e os
privilégios do
Senado

Brás Florentino O Poder Moderador. 1864 Recife Tip. Universal


Henriques de Sousa Ensaio de Direito
Constitucional.

Orientação política
conservadora,
monarquista,
católico e centralista.

José Pedreira França A Organização dos 1865 Bahia Não


Júnior Poderes identificado
Constitucionais nas
Monarquias
Representativas.
168

Orientação política
não-identificada.

José Maria Corrêa de O art. 6º da 1865 São Paulo Não


Sá e Benevides Constituição é identificado
constitucional?

Analyse da
Não
Constituição Política 1870 São Paulo
identificado
do Império do
Brazil.

Orientação política
conservadora,
monarquista,
centralista.

J. de Alencar Uma Tese 1867 Rio de Janeiro Livraria


Constitucional. A Popular de A.A.
Princesa Imperial e o da Cruz
Príncipe consorte no Coutinho
Conselho de Estado.

Orientação política
Conservadora,
monarquista,
centralista,
escravista.

Joaquim Rodrigues de Análise e 1867 São Luis do Tip. de B. de


Sousa Comentário da Maranhão Matos
Constituição Política
do Império do Brasil
ou
Teoria e Prática do
Governo
Constitucional
Brasileiro.

Orientação política:
conservadora
moderada,
monarquista, com
apologia da Const.
de 1824, porém
defendia a separação
do Poder Real do
Poder Executivo.

Nicolau Rodrigues dos Considerações 1872 Rio de Janeiro Tip. M.A.A. de


Santos França e Leite Práticas sobre a Aguiar
Constituição do
Império do Brasil.
169

Orientação política
não identificada

Policarpo Lopes de Considerações sobre 1872 Rio de Janeiro Não


Leão a Constituição identificado
Brasileira.

Orientação política
não identificada.

Joaquim Pires Constituição Política 1876 Rio de Janeiro Tipografia


Machado Portela do Império do Brasil Nacional
confrontada com
outras Constituições
e Anotada.

Orientação política;
Liberal. Comparação
entre o sistema
brasileiro e os
sistemas de outros
países.

F. Franco de Sá A Reforma da 1880 Rio de Janeiro Tipografia


Constituição. Estudo Nacional
de História Pátria e
Direito
Constitucional.

Orientação política:
não identificada.

Hermenegildo Militão Estudo de algumas 1880 Rio de Janeiro Tip. do


de Almeida questões Cruzeiro
constitucionais.

Orientação não
identificada.

Manuel Godofredo de Constituição Política 1881 Rio de Janeiro Ed. H.


Alencastro Autran do Império do Brasil Laemmert
Comentada.

Orientação
Conservadora.

Paulino José Soares de Ensaio sobre o 1862 Rio de Janeiro Tipografia


Sousa Direito Nacional
Administrativo.
170

Orientação
Conservadora,
“saquaremista”,
defesa do Poder
Moderador e da
política
centralizadora.

Pedro Autran da Mata Direito Público 1882 Rio de Janeiro Ed. H.


Albuquerque Positivo Brasileiro Laemmert
(2ª Ed).

Orientação política
monarquista e
conservadora.

Fontes secundárias: Sítio do Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro (CDPB), disponível em


http://www.cdpb.org.br/ (acesso em 30/08/2013); Alecrim (2011), Blake (1899); Dutra (2004), Prado (2012). Fontes
primárias: os manuais dos agentes.

Como acima referido, a amostra ilustrativa das publicações desse grupo foi
montada a partir do cotejo de referências sobre a produção intelectual das elites
imperiais classificada como “obras jurídicas”. Dentre estas, foram selecionadas as
registradas como pertencentes à área de “Direito Público” ou à disciplina de “Direito
Público e Constitucional” e lançadas durante o período de 1857 a 1888 (ALECRIM:
2011; DUTRA: 2004; PRADO: 2012; BLAKE: 1899).

A orientação política presente no manual foi extraída com base na análise de


conteúdo dos próprios textos dos manuais que se encontram disponíveis para consulta
(reeditados por meio impresso ou acessíveis em meio eletrônico). É preciso registrar
aqui o problema da escassez de dados sobre a vinculação político-partidária nas
biografias dos autores de obras jurídicas, embora a maioria desses agentes tenha atuado
diretamente nas altas esferas políticas imperiais. Deste modo, se recorreu às fontes de
informações sobre a vida partidária no cenário imperial, buscando dados que indicassem
a inserção desses agentes no espaço partidário. Assim, a amostra se baseia em uma
pesquisa empírica que não pretendeu ser exaustiva, mas apresentar um conjunto
representativo do padrão de atuação política e de sua relação com os usos da forma
eufemizada de poder representada pelos manuais de “interpretação constitucional”.

Atingiu-se um total de 16 manuais produzidos pelo grupo que compõem a elite


171

“brasileira” de “publicistas” ou “constitucionalistas”. Desse conjunto, o primeiro


aspecto que se pode extrair é quanto à proeminência da centralização da produção
doutrinária situada na sede da Corte, o Rio de Janeiro. No universo de 16 manuais, 12
foram lançados no Rio de Janeiro, sendo apenas 1 no Recife (a outra cidade que sediava
um Curso Jurídico, a partir de 1854), 1 na Bahia, 2 em São Paulo e 1 em São Luís do
Maranhão. Na amostra apenas uma obra não está identificada quanto à cidade de
publicação.

Por contrastar com a diversidade de origem geográfica dos autores, estes dados
indicam o objetivo político da produção de “doutrina constitucional”, apontando a
ligação desta com suas carreiras profissionais e políticas situadas no Rio de Janeiro,
pois os manuais não foram lançados predominantemente nas duas cidades onde nesse
momento funcionavam os Cursos Jurídicos imperiais: Recife e São Paulo.

Nas condições da sociedade imperial, este fator indica que as referidas obras
foram direcionadas a um público que não era constituído, necessariamente e
imediatamente, pelos estudantes e professores de Direito. Ao contrário, como a Corte
era o centro político do país, este aspecto assinala que a eufemização de questões
políticas reconstruídas como “problemas constitucionais” vinculava-se muito mais às
disputas intraelites, aos “olhares estrangeiros” e às demandas de uma legitimação
“técnica” e “teórica” para as reivindicações das frações rurais e urbanas da Corte e do
sudeste cafeeiro, representadas por esses políticos-bacharéis. Pela localização das
publicações é possível verificar a posição periférica das outras províncias, como
Pernambuco, Bahia, Maranhão. Note-se que muitas sequer aparecem na amostra, como
é o caso do Rio Grande do Sul.

Do universo empírico de 16 obras, se identificou a orientação política em 10


casos, baseando-se a classificação no seguinte critério de distinção: a) conservador; b)
liberal (moderado ou situacionista) e c) liberal “radical”. A amostra indica a existência
de 7 manuais com posição “conservadora” e 3 com posição “liberal”, entendendo
“liberal” como liberal “moderado” ou “situacionista”, ou seja, não contestador da
Monarquia em si, estando fora da amostra obras de “liberais “exaltados” ou “radicais”:
172

os abolicionistas, os federacionistas e os republicanos. Assim, o panorama encontrado


retrata a acomodação do publicismo jurídico ao sistema político vigente e a exclusão de
opiniões adversas à manutenção da Monarquia.

Deste modo, verifica-se que a dimensão da “interpretação constitucional”


desempenhou um papel de sustentação do Regime Imperial, em que o maior
investimento nesse tipo de recurso de poder simbólico foi realizado pelos políticos-
bacharéis e professores de orientação “conservadora”: “saquaremas”, monarquistas,
católicos, centralistas, defensores do Poder Moderador e da manutenção do modelo
político e social hierarquizado (voto desigual, restrição ao acesso à participação
política). Vale ressaltar também que a questão da economia agrário-escravista foi
tratada de modo omissivo, ou seja, não foi comentada por uma parcela desses autores,
como os “saquaremas” José Antônio Pimenta Bueno e Paulino Soares e o “liberal”
Zacarias de Góes e Vasconcelos.

Outro ponto a ser destacado a partir da amostra é que a quantidade de manuais


publicados no período indica uma reprodução desse tipo de investimento, iniciado pela
elite “coimbrã”. Considera-se que a “estreia” da elite ‘brasileira” se deu com a
publicação do manual constitucionalista do político conservador ou “saquarema” José
Antônio Pimenta Bueno, o Marquês de São Vicente, datada de 1857. A partir dessa data
nota-se a continuidade desse tipo de investimento ao longo de quatro décadas,
demonstrando que não se tratou de uma ação isolada de uma facção política ou da
iniciativa de um ou dois indivíduos. Se é correto afirmar que Pimenta Bueno, apontado
como um dos protagonistas da dominação “saquarema”, foi, simultaneamente, o “jurista
da Coroa”, também é verdadeiro que não esteve sozinho na disputa política pela
consolidação do sentido legítimo da “regra constitucional”.

A referida amostra indica que os 16 manuais foram publicados ao longo de 25


anos, isto é, entre 1857 e 1882. Essa quantidade representa uma média de publicação
de1 livro de “interpretação constitucional” a cada 2 anos. Pela comparação com a
amostra de manuais de “interpretação constitucional” publicados pela elite “coimbrã”,
cujo total foi de 12 obras publicadas em 30 anos (entre 1824 e 1854), constata-se uma
173

significativa continuidade e, mesmo, um aumento no volume de mobilização desse


recurso pelos “consolidadores” do Regime Imperial.

Quadro 10 – Comparativo de investimento das elites “coimbrã” e “brasileira” em obras


jurídicas de “interpretação constitucional”
Geração Número de Período Quantidade de manuais
indivíduos
“Coimbrãos” 8 1824 a 1854 (30 anos) 12

“Brasileiros” 16 1857 a 1882 (25 anos) 16

O quadro aponta ainda que houve uma duplicação no “círculo” dos “intérpretes
da Constituição”, acompanhando a urbanização e a formação de bacharéis a partir das
escolas brasileiras. Estes dados também indicam que a elite imperial “brasileira” refletia
um apego ao ideal da “Constituição”, representando sua própria “missão” como a de dar
continuidade à tarefa de erguer o edifício político nacional dentro de um molde
“constitucional”, tomando a apropriação da dimensão jurídico-doutrinária como
estratégia eficaz dessa “missão política”.

A linha temporal da intervenção política através de manuais jurídicos de “Direito


Público e Constitucional” demonstra que esse fenômeno pode ser tomado como a
continuidade de um esforço coletivo das elites letradas imperiais, ou seja, o empenho de
um grupo de agentes da elite política imperial que, identificados com um ou outro dos
campos político-partidários existentes, investiu na mobilização da “Constituição” como
forma “neutra”, “imparcial”, “científica”, “técnica” e “asséptica” de intervenção
política. E nesses atributos da teorização jurídica, a elite encontrou um meio de
preservação de seu estatuto político.

Com relação à orientação política dos manuais, relacionada com o percurso dos
agentes, se constata a presença dos integrantes da esfera política, de escalões diversos,
e, em menor número, de indivíduos situados nas academias de Direito de São Paulo e
Olinda (Recife), como: Braz Florentino Henriques de Sousa, José Antônio Pimenta
174

Bueno, José Maria Correia de Sá e Benevides, Joaquim Rodrigues de Sousa, Paulino


Soares, Zacharias de Góis e Vasconcelos.

Por isso, detecta-se a característica da ambivalência de papéis: a posição do


“político”, de decidir a ordem, aparece simultaneamente com o papel do “jurista”, de
“interpretar” a ordem. Esse atributo de dupla legitimidade expressou-se na forma de
mobilização dos saberes jurídicos como “Direito Público e Constitucional”, indicando a
necessidade de eufemização dos posicionamentos sobre o Regime Imperial, a partir do
obscurecimento do engajamento político propiciado pela “fala autorizada”,
“pedagógica”, “científica” e “neutra” dos manuais de Direito. O domínio das
denominadas “letras jurídicas”, especialmente aquele engendrado como “publicismo”,
deve ser considerado, portanto, como uma ferramenta essencial da composição de uma
alta elite nacional, habilitada para desempenhar a política com “P” maiúsculo92.

Um último aspecto a ser apontado a partir dessa amostra é quanto à


nomenclatura empregada pelos agentes para o título das mesmas. Pode-se observar o
uso de títulos generalistas, sobretudo, nos manuais dos políticos “conservadores”, como:
“Comentários à Constituição do Império”, “Lições de Direito Público e Constitucional”,
“Direito Público Brasileiro”, “Constituição Comentada”, “Direito Público e Análise da
Constituição”, etc. Este formato indica o emprego do recurso de generalidade e
92
Desta forma, a lógica de eufemização de posicionamentos políticos não pode ser explicada unicamente
com base na necessidade de responder às questões da política interna, regional e local, mas, sobretudo,
como mecanismo correspondente àquilo que Joaquim Nabuco denominava de política com “P”
maiúsculo, ou seja, o conjunto de tarefas que estavam a cargo de uma alta elite, uma elite dentro da elite.
Esse papel cumpriria, portanto, àqueles poucos agentes que assumissem a tarefa da “grande política”
atuando na esfera das instituições nacionais, visando a sustentar a construção e a preservação da imagem
de “nação civilizada” que as elites políticas brasileiras desejavam apresentar aos países “civilizados”,
especialmente, aos europeus (GRIJÓ: 2005:70). Assim, embora a citação seja longa, a explicação
fornecida por Luiz Alberto Grijó é bastante elucidativa e merece ser reproduzida na íntegra: “Os agentes
políticos sob o Império tinham que dar conta tanto das práticas de patronagem e clientela das quais
dependiam em grande parte suas posições, quanto daquelas propiciadas ou formalizadas pelos títulos
escolares, militares, nobiliárquicos, pelos serviços prestados ao imperador, pela retórica e a eloquência,
pelas experiências, conhecidos e conhecimentos adquiridos em viagens ao exterior, pela desenvoltura nas
letras jurídicas, principalmente, e/ou literárias em geral. Tinham que lidar com líderes paroquiais, mas,
quanto mais alto na hierarquia dos cargos e posições, ou seja, quanto mais próximo do Rio de Janeiro e,
neste, mais alto na hierarquia institucional que culminava na casa imperial, podiam lograr uma maior
autonomia frente aos condicionantes das redes de reciprocidade para se manter nos postos, o que tornava
maior a necessidade de contar com recursos outros que não apenas ou principalmente os devidos a um
lugar nas redes de reciprocidade ou ao pertencimento a um importante grupo familiar. Se tal âmbito não
estivesse presente ou não fosse também importante, seria mesmo inconcebível a manutenção da unidade
nacional ao longo do século XIX”. Grifo nosso. (GRIJÓ: 2005: 71).
175

universalidade, com vistas a dotar a obra de uma aura de amplitude temática e de


desinteresse em questões pontuais, mais identificáveis como “problemas políticos”.
Essa estratégia de linguagem neutralista, objetiva, abstrata e impessoal, aparece em
maior número de casos dos manuais de autoria dos “saquaremas’.

Constata-se, assim, uma importante diferença das produções “saquaremas” em


relação aos manuais dos “liberais”, menos adeptos do formato “generalista” e mais
afeitos às discussões pontuais. Também quanto ao aspecto das datas das edições,
verifica-se, ainda, a exclusão de manuais de “interpretação constitucional” de “liberais
ilustres”, como o lente de Olinda Tobias Barreto Menezes, cuja produção não fora
lançada no período monárquico, sendo obras póstumas, publicadas após o advento do
Regime Republicano. Por essa razão, esse material não fez parte da mobilização
“liberal” de “doutrina jurídica” no Império.

Quadro 11 - Amostra de manuais de “Direito e Política” e de “Direito Constitucional” de


autoria de Tobias Barreto de Menezes por título, ano e local de publicação e editora

Autor Título Ano de publicação Local de Editora


publicação

Tobias Barreto de Preleções de 1926 Edição do Estado Pongetti


Menezes Direito de Sergipe; Rio de
Constitucional Janeiro

Não identificado Não


Direito Público Não identificado
identificado
Brasileiro
Instituto
1962
Rio de Janeiro Nacional do
Estudos de Direito Livro
e Política
Petrópolis;Brasília
Ed. Vozes/
A questão do 1977 Instituto
Poder Moderador e Nacional do
outros ensaios Livro
brasileiros

Fonte: Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro – Sítio:


http://www.cdpb/tobias_barreto.pdf
176

Oura questão relevante sobre a relação entre a esfera política e a produção de


doutrina é quanto ao efeito disciplinar da concorrência política entre a posição
“conservadora” e a posição “liberal”. Este problema será tratado no tópico a seguir.

4.3 Efeito disciplinar da luta política entre “conservadores” e “liberais”: a


“Análise da Constituição do Império” contra o “Direito Público e Constitucional”

A prática doutrinária representou um tipo de investimento político realizado por


agentes da elite política coimbrã (1824-1850), modelado como estratégia de difusão de
uma forma jurídico-discursiva, voltada à defesa e consagração do modelo de Estado
Monárquico fixado na Constituição de 1824. Através da confecção de manuais de
doutrina de “Direito Público”, uma típica tarefa de juristas, os percursos políticos dos
agentes da amostra dessa geração mostram que eles se mobilizaram em torno da
consolidação e legitimação do aparato de poder do Estado Imperial fundado em 1824, e
apesar da crise política que levou à Abdicação de D. Pedro I em 1831 e da instauração
do governo regencial, verifica-se que houve uma certa continuidade na publicação de
manuais.

O aparecimento e permanência desse novo padrão de publicismo, moldado como


saber jurídico, aponta para o fato de que mesmo se as estruturas do ensino jurídico
permaneceram frágeis e deficientes, elas estiveram relacionadas à definição de um
currículo de disciplinas e seleção de bibliografia. Pode-se, portanto, considerar como
um esforço de afirmação das elites de Estado a criação de uma cadeira de Direito
Público e Constitucional, e pode-se problematizar sua formatação como “Análise da
Constituição do Império”.

Essa nomenclatura aponta que a criação dos cursos jurídicos obedeceu ao peso da
questão da legitimação do Regime instaurado em 1824, visando-se à reprodução dos
padrões de publicismo que deram sustentação a sua consagração. A existência do novo
espaço acadêmico passaria, assim, a justificar o direcionamento do publicismo para a
modelagem de um conhecimento jurídico específico sobre o regime brasileiro.
177

Mesmo que os publicistas partissem do referencial teórico oriundo do Direito


Português e da experiência do publicismo jornalístico da Independência, eles já
passariam a atuar associados à demanda de elaboração de obras jurídicas nacionais e de
manuais de “doutrina” que mobilizassem os sentidos da Constituição do Império.

Assim, também pode ser considerada como uma variável relevante para explicar a
prática do publicismo jurídico a partir de 1824, e que se vincula ao processo de
institucionalização política do Estado brasileiro, o conjunto de iniciativas legais para a
criação e reforma das escolas de ensino jurídico no Brasil. Nesse tema, se destaca a
previsão da cadeira de “Direito Público e Constitucional” nos estatutos do ensino
jurídico do Visconde da Cachoeira, aprovados em 1827, e nas legislações de reforma do
ensino jurídico que surgiram em momentos posteriores.

A dimensão do ensino jurídico é relevante para a análise do processo de


“reinvenção” do publicismo como “interpretação constitucional” ou “doutrina
constitucional”, pois tal como no caso francês analisado por Sacriste (2011), permite
problematizar as relações entre Regimes Políticos e reprodução de ideários através dos
sistemas de educação.

No caso francês de transição para o Regime da Terceira República, entre 1870 e


1914, tem-se um exemplo de mobilização de agentes e de obras acadêmicas para fins de
legitimação de ordens políticas. Na França os professores de Direito Constitucional da
faculdade de Direito de Paris formaram um corpo de agentes recrutados pelos políticos
do novo regime republicano para produzirem as teorias constitucionais, com sua
linguagem sofisticada, que propusessem soluções para os problemas suscitados pelo
jogo político (SACRISTE: 2011: 14).

Mobilizando seu vocabulário próprio, os professores de “Direito Constitucional”


tratariam de delimitar teoricamente, no novo cenário político republicano, categorias
como: “cidadão”, “representante”, “ministro”, “funcionário”, dentre outras, dotando-as
dos sentidos associados à elite dominante, promovendo a grande influência do
publicismo jurídico sobre os grupos sociais suscetíveis de ascender às diferentes
posições que os juristas contribuem para codificar (Idem).
178

No caso francês, verifica-se, portanto, que os políticos republicanos de 1879 viram


no Direito Constitucional o meio de justificação dos princípios da nova ordem política
republicana, isto é, seu principal vetor de legitimação, promovendo a ancoragem social
da República nascente (SACRISTE: 2011: 15). Essa análise sobre o caso francês é
bastante útil para o enfoque da “invenção da interpretação constitucional” no Brasil
Império, não apenas no que tange à proximidade do recorte temporal, mas,
fundamentalmente, porque ilustra um cenário em que o trabalho teórico dos juristas foi
manejado em articulação com a elite política dominante, com destaque para a utilização
do espaço do ensino jurídico de Direito Público para fins de difusão de sentidos
políticos e de legitimação da ordem.

Voltando-se ao caso brasileiro, é necessário pontuar que os três marcos legais da


estruturação do ensino jurídico no Império refletem o processo de formatação do
“Direito Público e Constitucional” não apenas como cadeira do mundo acadêmico, mas
como indício vital para a compreensão das lutas políticas, eufemizadas como confrontos
sobre a definição dos conteúdos, que permitem investigar a relevância política atribuída
à reprodução sistemática, acadêmica e, portanto, já “técnico-científica” da
“interpretação constitucional” legítima.

Assim, os Estatutos de 1827 do Visconde da Cachoeira previam um ensino do


constitucionalismo combinado entre o “Direito Público Pátrio” e o “Direito Público
Universal” (ALECRIM: 2011: 61). Aparece nessa fórmula a articulação entre o modelo
nacional da Carta outorgada e a possibilidade de sua confrontação com “princípios
universais do constitucionalismo”, isto é, com outros modelos e sistemas constitucionais
diversos do adotado no Brasil.

Mas os debates parlamentares sobre os cursos jurídicos, que já haviam iniciado


durante os trabalhos da Assembleia Constituinte de 1823, e o projeto convertido em lei
por decreto pelo Imperador D. Pedro I, prevendo que em 1825 seria estabelecido um
curso jurídico na Corte, foram interrompidos com o fechamento da assembleia e a
outorga da Constituição em 1824. Desta forma, a ampla documentação que registra
esses debates, projetos e legislações representa fonte de elementos importante para a
verificação da dimensão adquirida pelo problema político do saber jurídico (GRIJÓ:
2005), sendo predominante a crença dos agentes de que os cursos e as disciplinas dos
179

currículos forneciam “alternativas para o funcionamento do Estado” (BASTOS: 1998:


2).

A proposta de criação de uma Universidade em São Paulo, vinda do deputado


Fernandes Pinheiro foi contestada pelo político baiano José Luís de Carvalho e Melo, o
Visconde da Cachoeira (1764-1826), formado em Direito em Coimbra e também
deputado constituinte em 1823. Cachoeira foi o político bacharel responsável pela
elaboração dos estatutos dos Cursos Jurídicos brasileiros que entraram em vigor em
1827, sendo que os havia elaborado já em 1825. Ele representa uma fração da elite de
formação jurídica coimbrã comprometida naquele cenário com uma visão nacionalista
combinada com a defesa da função estratégica do ensino jurídico para o poder político:
o de atendimento das demandas de preenchimento dos empregos públicos
(RODRIGUES: 1974: 86).

No debate constituinte sobre a localização da universidade ou dos cursos, ele


defendeu a sede da Universidade na Corte, ou seja, no Rio de Janeiro, e não em São
Paulo, mas acabou aprovando a ideia dos dois cursos, um em Olinda e outro em São
Paulo, com a adoção provisória dos regulamentos da Universidade de Coimbra
(RODRIGUES: 1974: 87).

Porém, o aspecto mais relevante nesse debate constituinte documentado sobre a


instituição das escolas superiores e, particularmente, do ensino jurídico no Brasil não é
nem o problema regional nem uma preocupação de teor científico, mas o interesse
político suscitado com essa questão, ou seja, verifica-se a percepção majoritária ou
mesmo generalizada entre os atores envolvidos naquele contexto de que se tratava de
uma estratégia de afirmação da nacionalidade e da adoção de modelos políticos
(BASTOS: 1998: 2)93.

93
A opinião expressa por Aurélio Wander Bastos em estudo sobre a evolução do ensino jurídico no Brasil
reflete essa percepção: “Ao contrário do que tradicionalmente se supunha, as conclusões mais importantes
sobre o conteúdo geral dos documentos não se referem aos debates sobre a localização das academias –
São Paulo e Olinda (os locais preferidos), Minas, Rio de Janeiro e Bahia (os locais preteridos) -, mas às
contradições teóricas de uma jovem nação que se debatia entre as pressões e prioridades da
institucionalização política e as necessidades de afirmação de uma incipiente sociedade civil, sujeita às
diretrizes institucionais ainda marcadas pelos contornos e confrontos coloniais. Esses cursos, que, aliás,
não surgiram no Brasil destituídos de qualquer significado histórico, representam, inclusive, o
rompimento com as formas físicas e acadêmicas da pressão metropolitana sobre os estudantes brasileiros
que, em Coimbra, buscavam conhecimento e preparo profissional (BASTOS, 1998: 2).
180

Os Estatutos do Visconde da Cachoeira que entraram em vigor em 1827 continham


um caráter conservador, no sentido de manterem o ensino jurídico dentro de um molde
tradicional originário do sistema coimbrão e direcionarem o estudo para a reprodução
do perfil centralizador encampado pela fração conservadora da elite política, mais
próxima ao Imperador. Isso explica por que essa legislação “sempre sofreu a resistência
das elites civis e liberais brasileiras” (BASTOS: 1998: 4), ainda que tenha sido o
instrumento predominante da regulação desse espaço até 1831, ano da abdicação do
Imperador Pedro I, e tenha voltado a ter influência política a partir de 1851, justamente
na conjuntura de consolidação monárquica do Segundo Reinado.

O predomínio de uma visão “conservadora” do gerenciamento do ensino jurídico no


Brasil está associado à defesa de um maior controle do Estado, ou seja, da Coroa sobre
as normas que regem esse espaço. Essa questão foi referida como nítida nas “propostas
imperiais sobre os cursos jurídicos, durante a Assembleia Constituinte de 1823”, em que
“nunca estiveram, aliás, dissociadas das possibilidades de um controle mais próximo do
Estado e de uma distância maior do Parlamento” (BASTOS: 1998: 4).

A opção pela manutenção da unidade territorial que se manifestou como defesa do


centralismo em torno do Imperador, implicou na permanência da instituição do Poder
Moderador, representando uma forte justificativa para o modelo político. Essa lógica
repercutiu sobre a questão da reprodução dos saberes técnicos que se pusessem a
serviço do governo, em que o Direito e, sobretudo, o publicismo jurídico
institucionalizado nas academias se colocam em relevância.

Desta forma, pode-se concluir que esse é um aspecto também decorrente da


influência da articulação entre a noção de estratégia de defesa nacionalista e da
necessidade do centralismo político sobre a esfera do ensino jurídico. Este, vale
ressaltar, diz respeito ao maior peso atribuído ao “Direito Público e Constitucional” no
currículo, como locus da visão política dominante e da adoção da matriz jusnaturalista
como fulcro orientador dos saberes sobre o mundo privado, ou seja, da regulação das
esferas civil e comercial (ADORNO: 1988: 142).
181

As opções da elite política que empreendeu a consolidação da Independência


apontam que “desde cedo elegeu-se a educação como mecanismo político-ideológico de
recrutamento dos agentes incumbidos da direção dos negócios públicos” (Idem). Neste
sentido, a influência do pensamento político monarquista, católico e defensor do
liberalismo econômico do Visconde de Cairú, José da Silva Lisboa, sobre a projeção do
modelo de curso jurídico no Brasil deve ser mencionada, pois se posicionava, desde
1808, favorável ao estudo de Adam Smith e outros autores do liberalismo econômico,
mas como abertamente contrário à divulgação das obras de filosofia política de
pensadores publicistas como Rousseau, Montesquieu e Locke no cenário brasileiro
(BASTOS: 1998: 15).

Saliente-se ainda, com relação a esse aspecto, a observação de que “até 1850 a
grande maioria dos membros da elite foi educada em Coimbra”, implicando em que o
modelo de ensino coimbrão foi relevante na formação jurídica dos brasileiros, mesmo
após a fundação dos cursos de Olinda e São Paulo em 1827. Em relação ao ensino
jurídico nas Escolas de Direito do Brasil, refere José Murilo de Carvalho que apesar da
concentração regional (Olinda e São Paulo), havia mais uma concentração do que uma
dispersão, em virtude da extensão do reino (CARVALHO: 2006: 82).

Outro aspecto relevante a ser apontado é que “o governo central manteve sempre
estrita supervisão das escolas superiores, sobretudo as de Direito. Diretores e
professores eram nomeados pelo Ministro do Império, programas e manuais tinham que
ser aprovados pelo Parlamento” (CARVALHO: 2006: 83)94.

Logo, é possível explicar-se por que, em meados do século XIX, tem-se um


momento distinto do contexto 1822-1831, pois o Regime da Monarquia brasileira
recoloca, a partir de 1840, com o início do Segundo Reinado, a questão do domínio
sobre o ensino jurídico. Portanto, a herança do padrão coimbrão somada à memória das

94
Deve-se frisar, no entanto, o aspecto contraditório salientado por Carvalho, cuja opinião é de que “Esse
conservadorismo contrasta com o comportamento dos que se formaram em outros países europeus,
sobretudo na França, e dos que se formaram no Brasil, aos quais, estranhamente, parecia mais fácil entrar
em contato com o Iluminismo francês. As academias, as sociedades literárias, as sociedades secretas,
formadas no Brasil, e as próprias rebeliões que precedem a Independência exibem quase que
invariavelmente a presença de elementos formados na França ou influenciados por ideias de origem
francesa, os primeiros em geral médicos, os segundos, padres (CARVALHO: 2006: 85).
182

experiências de repressão de conflitos sociais que existiram sob as Regências (quando


os liberais estiveram no governo) são elementos que iriam fazer repercutir as reformas
“regressistas” também sobre o plano curricular.

Verifica-se, então, que a elite política “conservadora” do Segundo Reinado


recolocou em questão a função estratégica da reprodução dos saberes jurídicos,
reforçando novamente a percepção da necessária defesa ideológica do modelo de
Estado, convertida agora em defesa do centralismo político da Coroa pela reativação do
Conselho de Estado e a manutenção do Poder Moderador.

Trata-se de uma nova conjuntura política que manteve em sua complexidade a


característica de permanecer voltada para a preocupação com os meios de defesa e
consolidação do regime político. Desse modo, o Regresso conservador iniciado em
1837 e desdobrado nos anos posteriores, que implicou em adoção de novas legislações
centralizadoras, é um fator relevante a moldar a situação do “papel do publicismo
jurídico”: a memória das lutas pela superação (militar) dos vários conflitos regionais
espalhados no país durante a década de 40 e da dificuldade de restauração da
monarquia, somente alcançada com o golpe da Maioridade antecipada de D. Pedro II
(1841), influencia esse modelo.

Nesse momento entrou em vigor a segunda legislação sobre o ensino jurídico: o


Decreto n. 1.386, de 28 de abril de 1854, que enfrentaria em um novo cenário, o velho
dilema da situação monárquica brasileira em um continente republicano (IGLESIAS:
2001: 216), traduzida para o universo jurídico como a escolha entre explicar a
“Constituição do Império” ou o “Direito Público e Constitucional”.

Com base na data e teor dessa Reforma, verifica-se que o retorno à cena do embate
“Análise da Constituição do Império” versus “Direito Público e Constitucional” no
Segundo Reinado indica a persistência do dilema político traduzido para a versão
disciplinar. Manteve-se no currículo a cadeira de “Análise da Constituição do Império”,
que seguiu sendo concebida como “exegese puramente nacional” (ALECRIM: 2011:
61), pois tal era a posição defendida pelos monarquistas ligados a Dom Pedro I, linha de
direção política que seria mantida e reforçada a partir do Segundo Reinado, com um
novo grupo de manualistas, defensores da Monarquia e do poder Moderador, a qual
183

ilustra o livro do político “saquarema” e publicista paulista José Antônio Pimenta


Bueno, publicado em 1857, como antes já referido.

Logo, constata-se que a dimensão normativa que abarca as legislações sobre o


ensino jurídico imperial permite verificar a predominância da orientação política
centralizadora, voltada à conservação do modelo político de 1824, recuperado com o
Regresso Conservador de 1837. Essa orientação continuou a imprimir o sentido
dominante do ensino do Direito Constitucional, repercutindo também a partir de 1850.

Por isso, tem-se que o referido Decreto n. 1.386, de 28 de abril de 1854, que
instituiu a segunda reforma no ensino jurídico imperial, não apenas estabeleceu a
mudança da denominação “cursos” para “faculdades” e transferiu o Curso Jurídico de
Olinda para Recife, mas também contribuiu para “reformar mantendo” a lógica até
então estabelecida. Isto pode ser detectado pelo fato de que o novo regramento manteve
a sistemática da nomeação imperial dos diretores das faculdades.

Outro aspecto a destacar é que o referido Decreto tornou permanentes as cadeiras de


“Direito Romano” e de “Direito Administrativo” (VENÂNCIO FILHO: 2005: 66),
fatores relevantes que apontam para a sustentação, através do “Direito Romano”, do
pensamento patrimonialista coimbrão, que se reproduziu no fundamento jusnaturalista
com relação ao “Direito Civil” (favorecendo a manutenção da licitude da propriedade
privada e da escravidão) e favoreceu, através do “Direito Administrativo”, a
continuidade do centralismo reinante com a legitimação do “Direito Público”.

Já o Decreto 1.568 de 1855 apenas regulou as matérias previstas no anterior, pois


em seus “262 artigos” tratou de questões como a dos “exames preparatórios, matrículas,
habilitações, concursos para lentes substitutos, encarregados das faculdades e polícia
acadêmica” (VENÂNCIO FILHO: 2005: 68).

Portanto, infere-se que da primeira legislação adotada, em 1827, vem a


nomenclatura e o sentido de uma cadeira voltada a reforçar o sistema político brasileiro,
denominada de “Análise da Constituição do Império”. Tal nomenclatura indica que, em
face de divergências ideológicas entre as frações da elite política imperial, foi vitorioso
o ensino do funcionamento do regime político nacional, moldado pela Carta outorgada
184

em 1824 e nas normas constitucionais regressistas posteriores, sobretudo a Lei de


Interpretação do Ato Adicional (1840).

Essa orientação predominou sobre a defesa das noções de um saber universal e


geral, isto é, de ensinar o Direito Público “universal”, racional e abstrato, o que
implicava a necessidade de comparar o caso brasileiro com outros regimes. Detecta-se,
neste sentido, a prevalência da preocupação com a defesa da reprodução escolar do
Regime Político brasileiro, moldada pelas normas Regressistas originárias do campo
conservador, a serem traduzidas como “análise da Constituição de 1824” (ALECRIM:
2011: 62).

A acomodação do constitucionalismo estrangeiro, com ênfase em Guizot e


Constant, adaptando-os aos interesses e à própria realidade local, possui relação com a
disputa entre os publicistas em torno do predomínio do “direito constitucional
universal” ou da “análise da Constituição do Império” (ALECRIM: 2011: 61). A
questão didática colocada pelo Visconde mostra a preocupação central com a
incorporação da defesa do regime político95.

Desta forma, na segunda metade do século XIX, quando o ensino sofreu a reforma
de 1854, a questão do regime político voltou a afetar o ensino do modelo constitucional
mais intensamente do que nas disciplinas do “Direito Privado”, indicando a percepção
das elites sobre o potencial de politicidade contido na transmissão do publicismo 96. Nas
duas reformas subsequentes do ensino jurídico brasileiro no século XIX (a Reforma
Franco de Sá, em 1885, e a Reforma Benjamin Constant, de 1891), não houve alteração

95
No tocante à didática da cadeira de Análise da Constituição do Império, os Estatutos do Visconde da
Cachoeira, mandados regular a Lei dos Cursos “naquilo em que forem aplicáveis”, preceituavam, entre
outras, a seguinte receita: “... o Professor (explicará) o direito público pátrio, definindo-o
competentemente, e extremando-o do particular, e regulando-se pelas disposições gerais do direito
público universal, fará aplicação dos seus princípios ao que há de semelhante na legislação pátria, e dará a
conhecer aos seus ouvintes a constituição antiga da Monarquia, e a atual do Império” Grifos do autor.
(ALECRIM: 2011:61).

96
Em 28 de abril de 1854, em consequência do Decreto nº 1.386, os Cursos Jurídicos de Olinda e São
Paulo passaram a se denominar Faculdades de Direito e receberam novos Estatutos, valendo registrar
ainda que foi nesse ano que se transferiu para Recife a Faculdade de Direito de Olinda. Esta reforma,
sendo ministro o Barão e Visconde de Bom Retiro (Couto Ferraz), manteve a cadeira de Análise da
Constituição do Império na concepção primitiva de uma exegese puramente nacional, se bem que tivesse
estabelecido em relação ao Direito Civil Pátrio a necessidade de uma análise e comparação com o
Direito Romano. Grifos do autor. (Idem).
185

no âmbito do constitucionalismo, pois mantiveram a abordagem centrada na Carta de


1824, embora alterassem a denominação da cadeira para “Direito Constitucional”
(ALECRIM: 2011: 61).

A politicidade em torno do ensino do constitucionalismo ficou visível nessa


controvérsia97. Assim, a modificação na orientação do ensino da cátedra de Direito
Constitucional, que ocorreu em 1885, se deu em meio ao contexto iniciado por volta de
1870 e o início do século XX, descrito como a “Ilustração Brasileira” (VENÂNCIO
FILHO: 2005: 75) e, por Ângela Alonso, como movimento intelectual da geração 1870
(ALONSO: 2002).

Para Venâncio Filho, o movimento teria repercutido como uma “reação científica”,
implicando na ascensão de um “liberalismo cientificista”, sendo que “o cientificismo
reclama também a liberdade de ensino e crê firmemente no poder da concorrência (...)
(VENÂNCIO FILHO: 2005: 76). Atenta-se para o efeito transgeracional dessa
percepção, pois essa forma de organização do ensino jurídico não ficou restrita ao
oitocentos, mas adentra o século XX e o regime republicano, alterando
significativamente o cenário do espaço jurídico brasileiro98.

Portanto, a questão do ensino jurídico e das escolas de Direito não demonstra apenas
a possibilidade de as elites conferirem um feitio científico ao publicismo, contando com
a combinação entre a importação de obras estrangeiras e a produção local de manuais
que já circulavam desde 1824. Ela traz à tona a dimensão política dos saberes jurídicos,
pois a partir dos estatutos do Visconde da Cachoeira e das legislações posteriores,

97
Com efeito, o ensino do “direito constitucional” precondicionado à análise estrita da Constituição de
1824 significava obviamente uma diretiva interessada, porque importava em “reduzir” a matéria ao
campo de um documento escrito qualificado “constituição”, representativo de uma forma-tipo de
governo, contra a qual naturalmente não deveria prevalecer nenhuma ideia de evolução. Para os
legisladores e ministros do Império, até Franco de Sá, havia, portanto, o propósito manifesto de se fazer
do ensino de Direito Constitucional nas duas faculdades de Direito existentes no país uma espécie de
análise puramente formal da carta política “outorgada”, e, consequentemente, uma exegese intencional do
regime político imobilizado no texto (ALECRIM: 2011: p. 62).

98
Para Venâncio Filho “A ideia do ensino livre vai ser, efetivamente, até 1915, o grande tema dos debates
educacionais em matéria de ensino superior e, especialmente, de ensino jurídico. De vigência curta,
durante o Império, é restaurada pela Reforma Benjamin Constant, no que se refere à criação de faculdades
livres, e reimplantada pela Reforma Rivadavia Correia, de 1911, cujos resultados maléficos levarão à sua
supressão pela Reforma Carlos Maximiliano, de 1915” (VENÂNCIO FILHO: 2005: 87).
186

constata-se que a definição da abrangência da cadeira e a escolha da bibliografia a ser


utilizada pelos lentes foi tratada como um problema político.

Verifica-se, ainda, que essa dimensão repercutiu a oposição entre os adeptos do


ensino centrado da Constituição de 1824 (visão dos políticos ligados ao “núcleo
saquarema”, ou seja, ao centro de poder da Coroa, defensores da legitimidade do Poder
Moderador, a vitaliciedade do Senado e a existência do Conselho de Estado) e os
defensores de um estudo “amplo”, “universalista” e “comparado” do Direito Público
(bandeira dos agentes posicionados nos quadros liberais, que questionavam a não-
restrição legal ao Poder Moderador, o Conselho de Estado, a vitaliciedade do Senado e a
irresponsabilidade política dos Ministros).

Desta forma, o mercado de obras doutrinárias não girava apenas em torno das
aulas ministradas nas escolas jurídicas, porque ao lado da demanda por um tipo de saber
didático, útil para as aulas de Direito, esse mercado de material teórico, ainda que
iniciante, interagiu com o contexto de demanda por legitimação política do regime
instituído com a Carta de 1824. Pode-se indagar aqui da motivação docente dos agentes,
verificando a questão do exercício da função de lente da cadeira de Interpretação da
Constituição, também em face do domínio de um mínimo de conhecimentos teóricos,
conforme a legislação previa99.

A questão da relação entre o exercício da docência, a titularidade da cadeira de


Direito Constitucional e a produção de manuais de interpretação constitucional pode ser
analisada a partir de amostra de agentes que compuseram o espaço docente, como no
caso da Academia de São Paulo. Observe-se a amostra no quadro adiante.

99
Verifica-se referência ao fato de que: “No tocante à didática da cadeira de Análise da Constituição do
Império, os Estatutos do Visconde da Cachoeira, mandados regular a Lei dos Cursos “naquilo em que
forem aplicáveis”, preceituavam, entre outras, a seguinte receita: “... o Professor (explicará) o direito
público pátrio, definindo-o competentemente , e extremando-o do particular, e regulando-se pelas
disposições gerais do direito público universal, fará a aplicação dos seus princípios, ao que há de
semelhante na legislação pátria, e dará a conhecer aos seus ouvintes a constituição antiga da Monarquia, e
a atual do Império. Exporá mais nas suas lições as diversas formas de governo, já simples, já composto,
para chegar gradualmente a expor no que consiste o governo misto, constitucional e representativo, de
modo que nesta parte da jurisprudência pública se estabeleçam os seus verdadeiros limites, do que
depende a consolidação do governo” (ALECRIM: 2011: 61).
187

Quadro 12 - Lentes da Academia de São Paulo por autoria de manual de doutrina de


“Direito Público e Constitucional”, cadeira ministrada e cargos ocupados (1827-1883):

Nome Período Obra de doutrina Cadeira Cargos ocupados


constitucional

José Maria de 1827-1872 Princípios de Direito Direito Natural Secretário da


Avelar Brotero Público Universal Faculdade

Filosofia do Direito
Constitucional
José Maria Correa 1865-1890 Filosofia Elementar Direito Natural Juiz Municipal (RJ);
de Sá e Benevides do Direito Público Presidente de
Interno, Temporal e Província (MG, RJ);
Universal (1867) Deputado
Provincial.
Análise da
Constituição Política
do Império do Brasil
(1891)
Carlos Leôncio da 1870-1901 Sem produção Direito Natural Ministro do Império
Silva Carvalho Direito Público e (1878-79);
Constitucional. Deputado Geral;
Bibliotecário;
Diretor da
Faculdade (1890);
Conselheiro de
Estado.
Américo Brasiliense 1882-1896 Colaboração no Direito Romano Deputado
de Almeida projeto da provincial;
Constituição Presidente de
Republicana Província (PB, RJ).
Deputado Geral
Brasílio Rodrigues 1883-1901 Não produziu Direito Comercial Juiz; Senador da
dos Santos doutrina Constituinte;
Deputado Federal.

Fonte: ADORNO (1988).

Verifica-se que no cenário da escola paulista não havia uma correlação direta
entre a docência em Direito Público ou Constitucional e a produção de doutrina
constitucional, sendo esta prática de dissociação ligada à estrutura deficiente dos cursos
jurídicos. Esta dissociação esteve aliada à tradição de baixa valorização da produção
teórica em Direito no Brasil, por sua vez herdada da escola de Direito da Universidade
de Coimbra. Esta, focada mais na reprodução de textos do jusnaturalismo europeu,
permaneceu influente no Brasil, sustentando o ideário acadêmico, mesmo após o fim do
período colonial e proclamação da Independência, mantendo-se ainda sob a vigência da
188

Constituição de 1824100.

Infere-se dessa amostra que a produção de obras de “doutrina jurídica” não


constituía uma exigência para a inserção do agente na carreira docente e nem mesmo no
espaço das carreiras jurídicas, sendo, no máximo, um fator que conferia ao autor um
certo “prestígio entre os estudantes” ou “uma espécie de aura, fonte segura de carisma”,
pois sobretudo a produção de conhecimentos “nunca se constituiu em atividade
principal, ou a ela se lhe creditou notoriedade como lente ou jurisconsulto” (ADORNO:
1988: 132).

Tal padrão se prolongou durante o século XIX até o começo do século XX,
porque “outros grandes jurisconsultos que o Império conheceu, egressos da Academia
de Direito de São Paulo, não foram – nenhum deles - membros do corpo docente desse
estabelecimento de ensino” (1988, p. 133) e cita como exemplo “José Antônio Pimenta
Bueno, Teixeira de Freitas, Conselheiro Lafaiete e Rui Barbosa” (ADORNO: 1988:
132). Detecta-se a partir dessa amostra que a condição de lente não estaria, durante o
império, necessariamente vinculada à elaboração teórica, configurando-se apenas uma
relação de possibilidade101.

Isto remete ao fator estrutural do ensino, pois a carreira de professor de Direito


estava restrita ao âmbito de apenas duas faculdades existentes e não era atrativa do
ponto de vista financeiro, nem em termos de prestígio social, porque os recursos
investidos na própria instalação dos cursos eram poucos, resultando em uma situação
bastante precária102. Esse ambiente onde se moldou o “bacharelismo”, tal como definido

100
Esse aspecto foi pontuado por Sergio Adorno, que refere: “Por mais estranho que possa parecer, figuras
tão expressivas na história política brasileira, como Carneiro de Campos (Visconde de Caravelas), Couto
Ferraz, João da Silva Carrão, Martim Francisco Ribeiro de Andrada, José Bonifácio de Andrada e Silva,
Leôncio de Carvalho, Dutra Rodrigues, Américo Brasiliense e Costa Bueno não deixaram uma única obra
de Direito, a despeito do legado legislativo que alguns deles deixaram à posteridade. Assim, a
importância que obtiveram com políticos foi inversamente proporcional ao papel que teriam
desempenhado como jurisconsultos”. Grifos nossos (ADORNO: 1988: 132).

101
A destinação política das obras jurídicas aparece na percepção de Sérgio Adorno: “Tudo indica que a
produção de conhecimentos jurídicos era pratica social independente da condição de lente; vale dizer, na
sociedade brasileira, àquela época, a Academia de Direito de São Paulo não constituía locus privilegiado
da produção da ciência jurídica (...)”. (ADORNO: 1988: 134).

102
Essa precariedade, que não se restringia apenas às instalações das faculdades, foi apontada por
Venâncio Filho: “As dificuldades para o funcionamento dos cursos eram, porém, de toda ordem, tanto
189

por Adorno (1998), mostrava que “àquela época, ser acadêmico/bacharel representava
oportunidades preferenciais de apropriação de cargos nas diversas instâncias da
burocracia estatal, a par de se configurar fonte segura de prestígio e poder” (ADORNO:
1988: 28).

Logo, pode-se deduzir que para conquistar uma posição como autor de doutrina
constitucional, naquele contexto, não se exigisse como condição sine qua non o
exercício da docência na disciplina de Direito Constitucional, sendo que os bacharéis
com investidura em carreiras burocráticas ou políticas já estavam situados em postos
“altos”, reservados às escalas mais restritas da elite, e portanto, suficientemente
legitimados a “explicar a Constituição” com base em seu conhecimento do Direito e em
sua “experiência prática”.

No entanto, deve-se ressaltar que uma fração de lentes dos cursos jurídicos integra a
população de autores de manuais, sendo um fator indicativo da tendência geral, ainda
que reduzida pelo contexto, de modelagem do espaço da “doutrina” como um lugar
afeito à identificação entre ensino e “competência teórica”. Dentre os agentes da
produção de manuais de “doutrina jurídica” que tiveram passagens nas escolas de São
Paulo e Olinda/Recife como lentes, citam-se os casos de Braz Florentino e Zacarias de
Góis e Vasconcelos. Neste sentido, é preciso salientar que no contexto imperial o
discurso constitucional que emergiu não esteve nem exclusivamente ligado nem
completamente separado do mundo acadêmico.

Por essa razão, é necessário salientar que no caso do contexto monárquico


brasileiro, o universo acadêmico e a questão do exercício da docência em Direito
Constitucional não podem ser tomados como os únicos critérios para explicar o
surgimento da categoria de “intérprete da Constituição”. O Brasil Império refletiu a
multifuncionalidade da elite letrada, sendo que os manualistas não foram
exclusivamente professores (ADORNO: 1988: 139).

Todavia, mesmo que a produção teórica não fosse uma exigência para o ingresso

quanto às instalações materiais quanto ao pessoal. Em relação às instalações materiais, tiveram os cursos
jurídicos de se abrigar à sombra de velhas instituições eclesiásticas, o que ocorreu tanto em São Paulo
como em Olinda” (VENÂNCIO FILHO: 2005: 37).
190

na carreira docente, administrativa ou política, e que a carreira docente jurídica não


fosse tão atrativa às elites quanto as funções políticas, verifica-se um volume
significativo de investimentos na produção de manuais de “doutrina jurídica” desde
1824 até 1885, e que se intensifica a partir de 1850. Logo, torna-se necessário analisar
de modo mais abrangente os trajetos dos agentes que no contexto monárquico se
projetaram como “intérpretes da Constituição” e que nem sempre foram “lentes” nas
Escolas de Direito.

Verifica-se, então, a longevidade da influência lusobrasileira, que não valorizava


a atividade docente, associada à visão conservadora que sustentava a defesa do Regime
Monárquico, do Poder Moderador, do Conselho de Estado e da vitaliciedade do Senado.
Somados, esses fatores contribuíram para solidificar a posição jurídico-doutrinária
dominante, repercutindo os interesses dos políticos do campo conservador e sua posição
superior na hierarquia política do Império. Tal influência sobre a elaboração doutrinária
de manuais jurídicos pode ser considerada longa, porque mesmo no contexto de crise do
Regime, com a entrada em vigor do Decreto nº 9.360 em 17 de janeiro de 1885, se
manteve a sua formatação baseada, predominantemente, na exegese da Constituição em
vigor103. Vale lembrar que este decreto instituiu a Reforma Franco de Sá, estabelecendo
a criação da cadeira sobre História do Direito Nacional, o que modificou a denominação
da “Análise da Constituição do Império” para “Direito Constitucional”.

Neste sentido, deve-se levar em conta que a “interpretação constitucional” via


manuais de “doutrina” repercutia posições políticas e que, em certa medida, alcançou
eficácia simbólica em favor da manutenção do Regime Monárquico, como efeito
aglutinador, pois conseguiu unificar posições de partidos políticos situados em campos
divergentes e opostos, como “conservadores” e “liberais”. Constata-se, a partir dessa
questão, que após a Abdicação de D. Pedro I (1831) e das Rebeliões do período
Regencial, moldou-se um novo desapontamento da parte dos “liberais”, cuja origem

103
Segundo informa Octacilio Alecrim: “O ensino do “direito constitucional” precondicionado à análise
estrita da Constituição de 1824 significava obviamente uma diretiva interessada, porque importava em
“reduzir” a matéria ao campo de um documento escrito qualificado “constituição”, representativo de uma
forma-tipo de governo, contra o qual naturalmente não deveria prevalecer nenhuma ideia de evolução”
(ALECRIM: 2011: 62).
191

remontava à dissolução da Assembleia Constituinte em novembro de 1823 e às medidas


repressoras que a Coroa passou a adotar em face das reações à outorga da Carta de 1824
promovidas pelo país (LEAL: 2002: 146), principalmente no que se refere à censura à
liberdade de expressão pela limitação da liberdade de imprensa104. O período Regencial
trouxe as reformas liberais dos anos 30, mas foi “neutralizado” pelo Regresso de 1837.
Assim, a partir de 1840, o cenário era de domínio “conservador”.

Nesta perspectiva, busca-se a seguir apreender os moldes de uma parcela de


manuais publicados a partir de 1857, tomados como casos ilustrativos de usos políticos
da “interpretação constitucional” no Segundo Reinado, relacionando a inserção política
com os posicionamentos “jurídicos”.

4.4 Casos representativos de usos políticos de manuais de “interpretação


constitucional” publicados no Segundo Reinado

Neste item se finaliza a análise buscando tratar de alguns casos de mobilização


da “doutrina constitucional” como ilustrativos da combinação entre posicionamentos
políticos e engajamento partidário que foram obscurecidos na intervenção através da
“interpretação constitucional”. Destaca-se que tais agentes foram identificados na linha
da História Política e da História das Ideias Políticas (SALDANHA: 2001) de modo
diverso da presente proposta. Aqui não se trata da seleção de “protagonistas” da vida
política ou jurídica imperial, pois isto conduziria à fixação na noção de “grandes
personagens”, desprezando a dimensão coletiva do fenômeno social ou político.

104
Essa questão da censura foi pontuada por Aurelino Leal como inobservância da garantia de liberdade
de expressão inserida na Constituição de 1824, mas que na realidade, já era vivenciada no Brasil desde
1808 e intensificada na campanha emancipacionista em 1821. Em sua posição de historiador do Império,
o político republicano diria que: “No entanto, ‘o sagrado código’ não estava sendo mais que um
phantasma de estatuto político, suspenso ostensivamente para uns na parte relativa às franquezas da
liberdade individual, e, para todos, pode-se dizer que em mero estado potencial, ou de promessa não
realizada...Porque a verdade é que o regimen constitucional não passava de um rótulo collado ao
absolutismo. Aliás, enquanto não existiu Constituição, houve mais liberdade que após o juramento da
Carta”. (LEAL: 2002: 146).
192

Esta percepção foi detectada em abordagens biográficas sobre a atuação política


de José Antônio Pimenta Bueno, representado como “o” publicista do Império
(ALECRIM: 2011; CARVALHO: 2006). A tendência a enfatizar a atuação de
determinados indivíduos personaliza a análise, pois não os insere na análise sociológica
ou politológica apenas como casos ilustrativos de um conjunto, que na realidade, foi
bem mais amplo. Negligencia-se, com isso, o caráter coletivo da ação social, impresso
nas estratégias de luta política e sua dimensão social.

As referências biográficas se concentram em alguns integrantes de um


movimento ou padrão de prática social, em detrimento do estudo da posição de outros.
Na elite “brasileira” encontrou-se maior quantidade de fontes de pesquisa para agentes
como: José Antônio Pimenta Bueno, Paulino Soares, Braz Florentino e Zacarias de Góis
e Vasconcelos, o que indica a adesão à versão dos próprios agentes da elite e minimiza a
dimensão coletiva do fenômeno dos usos políticos do publicismo.

4.4.1 A “interpretação constitucional” de José Antônio Pimenta Bueno

Como visto, a representação como “o publicista do Império”, oculta ou


dissimula que José Antônio Pimenta Bueno foi muito mais do que um “jurista”
destacado, mas sobretudo um homem político inserido nas altas esferas do poder e
atuante na vida imperial, vinculado à promoção de grandes reformas a partir de 1860-
70. Pimenta Bueno ilustra o caso de um “jurista político” que foi um líder “saquarema”
situado no conjunto de dezesseis indivíduos que se representaram como “publicistas” ou
“constitucionalistas”. O percurso de Pimenta Bueno aponta uma origem social modesta,
como menino que não nascera em família abastada, mas mediana, na cidade de Santos,
em São Paulo, realizando um trajeto de ascensão social a partir da formação acadêmica
em Direito e da proteção de um político influente.

Desta forma, sua trajetória apresenta muitos elementos comuns com os percursos
traçados, de um modo geral, pela elite imperial, característicos dos políticos-bacharéis
193

do Segundo Reinado, como: a graduação em Direito, a reconversão de campo político


(do Liberal para o Conservador ou vice-versa), a condição de tornar-se, primeiramente,
magistrado, para poder ingressar na vida política, e o apadrinhamento de um político
importante, no caso pelo líder liberal Martim Francisco Ribeiro de Andrada
(KUGELMAS: 2002: 20). O que diferencia o caso de Pimenta Bueno no grupo de
“publicistas” é que ele representa um caso de “direção política”, pois ocupou cargos
políticos no topo do Estado, como os postos de Chefe do Conselho de Ministros,
Senador e Conselheiro de Estado (NOGUEIRA e FIRMO: 1973: 109) e apresentou os
projetos de lei abolicionistas de 1870 (KUGELMAS: 2002:26).

Outro fator importante sobre Pimenta Bueno diz respeito à sua proximidade com
a pessoa do Monarca, indicando seu papel de verdadeiro “conselheiro jurídico privado
do Imperador” (ALECRIM: 2011: 68), o que repercutiu sobre o plano de sua produção
doutrinária, na forma de usos do saber constitucional no manual “Direito Público
Brasileiro e Análise da Constituição do Império” (1857).

As relações de sua elaboração teórica e inserção político-partidária somente


podem ser verificadas com o estudo da trajetória de José Antônio Pimenta Bueno,
investigando-se em que medida o agente que ocupou diversos cargos eletivos – como
deputado, no período de 01-01-1845 a 18-09-1847, senador, no período de 07-05-1853 a
19-02-1878, e também no Poder Executivo – repercutia suas posições na construção dos
conceitos jurídicos.

Quadro 13 - Cargos não eletivos ocupados por J. A. Pimenta Bueno por período

Cargo ocupado no Poder Executivo Período

Presidente da Província do Mato Grosso 26-08-1836 a 15-09-1838

Presidente da Província do Rio Grande do Sul 06-03-1850 a 03-11-1850

Ministro 7º Gab. do IIº Império (x) (Justiça) 08-03-1848 a 30-05-1848

Ministro 7º Gab. IIº Império (Estrangeiros) 29-01-1848 a 07-03-1848

Ministro 8º Gab. IIº Império (Justiça) 08-03-1848 a 30-05-1848


194

Presidente do Conselho de Ministros 24º Gab. 29-09-1870 a 06-03-1871

Ministro do 24º Gab. IIº Império (Estrangeiros) 29-09-1870 a 06-06-1871

Fonte: KUGELMAS (2002).

A partir desses dados infere-se a ampla inserção política e administrativa do


“saquarema” São Vicente, passando por diversos postos de indicação e nomeação
política, especialmente no domínio do Poder Executivo, o que indica sua relação de
proximidade com “círculo dos mais próximos” do Imperador D. Pedro II. Seu “Direito
Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império” aparece intitulado de forma a
garantir a impessoalidade da análise do “intérprete”, que no teor da obra não enfatizou o
“direito público universal”, mas sim a Constituição de 1824. O título da obra
representava, assim, uma “taxonomia” (KUGELMAS: 2002: 35).

Pimenta Bueno foi considerado por Eduardo Kugelmas como sendo “jurista
erudito e de formação intelectual sólida, político moderado e conciliador, e sobretudo
um discreto preferido do monarca, era o homem talhado para a tarefa de não apenas
analisar, mas de enaltecer a Constituição de 1824” (KUGELMAS: 2002: 34). O
compromisso político com o Partido Conservador e o aspecto de proximidade pessoal
ao Imperador repercutiram no manual como comentários abstratos a cada dispositivo e
na escassez de críticas ao funcionamento efetivo das instituições, mesmo trinta anos
após a entrada em vigor do modelo. Também se detecta a estratégia de ofuscar a
importância das Reformas Liberais da década de 30, sobretudo, as mudanças na
Constituição e no sistema político incorporadas com o Ato Adicional de 1834.

José Antônio Pimenta Bueno empreendeu um tipo de análise exaustiva dos


dispositivos da Constituição de 1824, inserindo comentários sobre as regras reformadas
pelo Ato Adicional de 1834 e pela Lei de Interpretação do mesmo, de 1841. Porém, sua
remissão ao “histórico” de surgimento do Ato de 1834, constante da “seção 2ª” da obra,
omite que se tratava do contexto de luta política entre “liberais” e “conservadores” e que
o Ato foi consequência da aprovação parcial do Projeto liberal, ou seja, de que foi uma
Reforma política de caráter “liberal” e contestatório do sistema centralizado, restituído
195

em 1841105. Constata-se, assim, que o “conservador moderado” São Vicente empregou


estratégias de “edição” do passado histórico, não problematizando a origem outorgada
da Constituição e nem os sentidos de resistência, contestação e “reação” contidos nas
“Reformas Constitucionais” das décadas de 1830 e 1840.

O título do manual de Pimenta Bueno possui em parte uma representação


ambivalente, sendo o “Direito Público” a encarnação da “Ciência”, o domínio da teoria
jurídica como conhecimento acumulado pela humanidade, um saber “universal”,
domínio da elite letrada. Já a “análise da Constituição”, representava a inteligibilidade
do sistema político vigente, traduzido aos leigos pela pena dos “doutos” ou
“publicistas”. Desse modo, o manejo da linguagem e o uso do sentido de cientificidade
emprestado à “interpretação constitucional” por Pimenta Bueno reflete a sua posição na
hierarquia social e política, repercutindo como apologia da “Constituição”106.

Dedicando o seu manual aos herdeiros da elite, eufemizados como “mocidade


estudiosa” que “em breve terá de governar o Estado”, Pimenta Bueno investe em
demonstrar sua erudição ao oferecer, no início da obra, uma lista de autores e fontes do
“Direito Constitucional” que inclui trinta e oito nomes de autores, a maioria
estrangeiros, sendo que em torno de trinta e um eram franceses (KUGELMAS: 2002:
74).

Por fim, na sua defesa da ordem vigente, Pimenta Bueno utiliza no manual a
mesma denominação que era empregada na disciplina de “Direito Constitucional” que
foi mantida ao longo do Império: “Análise da Constituição do Império”. Como

105
Pimenta Bueno explicava, ao tratar na “seção 2ª” das “atribuições da Assembleia Geral, conservadora
da forma de governo e da ordem política”, que a aprovação do Ato Adicional era a entrada em vigor de
uma “lei promulgada em 12 de agosto de 1834 que fez adições e alterações à Constituição de 1824. Entre
outras determinações, suspendeu o exercício do poder Moderador durante a Regência, suprimiu o
Conselho de Estado e criou Assembleias Provinciais com maiores poderes em substituição aos antigos
Conselhos Gerais” (KUGELMAS: 2002: 121).

106
Mas o problema da distinção entre “direito público” e a “Constituição” é resolvido pela “síntese” ou
identificação de ambos no caso brasileiro. Segundo Pimenta Bueno: “Nosso Direito Público positivo é a
sábia Constituição política que rege o Império: cada um de seus belos artigos é um complexo resumido
dos mais luminosos princípios do Direito Público filosófico ou racional. Procuraremos, pois, desenvolvê-
los; não separaremos um do outro; aquele é a nossa lei pública, este é a fonte esclarecida, de que ela foi
derivada” (Pimenta Bueno apud KUGELMAS: 2002: 58).
196

anteriormente referido, a disputa entre conservadores e liberais repercutiu sobre a


academia jurídica, traduzido como concorrência entre o estudo do “direito público”, de
tom “universal”, portanto, comparativo com outros sistemas de dominação, e a “Análise
da Constituição do Império”, como reprodução dos dispositivos constantes do texto em
vigor, já reformado em 1841, estratégia da elite “conservadora” para reproduzir o teor
da “Constituição” como a referência do pensamento e da prática política das elites.

Além do caso de atuação doutrinária do político Pimenta Bueno, a perspectiva de


análise coletiva sobre o alcance que adquiriu o publicismo jurídico nesse momento
demanda incluir a obra de doutrina de “Direito Administrativo”, de Paulino José Soares
Do Souza, o Visconde do Uruguai, na amostra de casos representativos.

Embora designado como obra de “Direito Público e Administrativo”, o manual


integrou a amostra de “intérpretes da Constituição” porque nela o integrante da
“Trindade Saquarema”, Paulino Soares, tratou da questão do “Poder Moderador” como
tema de “Direito Político” ou “Direito Constitucional”. Assim, o livro de Direito
Administrativo, de Paulino José Soares de Souza, juntamente com o manual de Direito
Constitucional de Pimenta Bueno, podem ser considerados como dois casos
representativos de produções com orientação conservadora no Segundo Reinado, sendo
ambos publicistas que aderiram a uma filosofia eclética107 (BARRETO e PAIM: 1989:
110).
Salienta-se mais uma vez a forte inserção política de Paulino Soares, que
pertencendo ainda à geração de brasileiros que obteve uma formação em Coimbra,
concluída no Brasil, assumiria posteriormente funções na magistratura e na cúpula
política108. O investimento de políticos conservadores, como Uruguai e São Vicente, na

107
Esse viés filosófico foi salientado em análise do pensamento de Uruguai: “Precisamente o Visconde do
Uruguai definiria as regras do que denominou de Ecletismo Esclarecido desta forma: “Para copiar as
instituições de um país e aplicá-las a outro, no todo ou em parte, é preciso primeiro conhecer o seu todo e
o se jogo perfeita e completamente...Há muito o que estudar e aproveitar (no sistema criado por outros
povos) por meio de um ecletismo esclarecido. Cumpre porém conhecê-lo a fundo, não copiar servilmente
como o temos copiado, muitas vezes mal, mas sim acomodá-lo com critério como convém ao país”
(BARRETO e PAIM: 1989: 110).

108
Seu trajeto mostra as repercussões políticas dessa inserção: “Um dos principais artífices do Partido
Conservador, tendo-lhe incumbido, como Ministro da Justiça do gabinete conservador que subiu em
1841, conceber e implantar as instituições de âmbito nacional, em especial na oportunidade da elaboração
do Código de Processo Criminal” (BARRETO e PAIM: 1989: 110).
197

difusão de manuais de doutrina apareceu, então, nesse contexto, como ligada à sua
ampla inserção política e posição de cúpula do Estado, como recurso à disposição desse
ideário. O seu domínio do saber jurídico permitiu mobilizar o publicismo não apenas
em viés jornalístico ou panfletário, mas elaborando obras sofisticadas de Direito, para
poder angariar a legitimidade conferida pela formulação mais erudita, abstrata e
científica da linguagem manualística. Isto também se manifesta no caso do pensamento
conservador na doutrina constitucional de Braz Florentino.

4.4.2 O caso de Braz Florentino Henriques de Souza

Já o caso do manual de doutrina constitucional de Braz Florentino Henriques de


Souza representa tomada de posição de teor conservador e tradicional. No manual O
Poder Moderador: Ensaio de Direito Constitucional, Braz Florentino Henriques de
Souza, nascido em 1825, desenvolve concepções de posição ultraconservadora, em que
mobiliza noções cristãs para a defesa da Monarquia e do Poder Moderador. Pertencendo
à geração de juristas formados pela Faculdade de Direito do Recife em 1850, ele
defendia uma posição mais radical, tradicionalista e considerada “autoritária”109,
portanto, minoritária até mesmo no seio do grupo conservador, sendo um “simpatizante
da monarquia absoluta” (BARRETO e PAIM: 1989: 114).

Esse publicista ingressou na carreira docente na mesma faculdade em que se


graduou, em 1856, tornando-se catedrático de Direito Público, e direcionando-se, mais
tarde, para a disciplina de Direito Civil (BARRETO e PAIM: 1989: 114). Ostentando a
tendência de não dedicação exclusiva a uma disciplina, característica típica dos lentes
desse contexto histórico, Braz Florentino não foi somente um publicista, mas produziu
trabalhos teóricos em diversas disciplinas do Direito, como se verifica no quadro

109
Isto porque: “Sua defesa do poder Moderador cifra-se na doutrina da necessidade imperativa da
existência de um poder supremo, colocado acima de todos os outros, ao qual não se recusa a chamar de
absoluto” (BARRETO e PAIM: 1989: 115).
198

abaixo.

Quadro 14 – Produção Doutrinária geral de Braz Florentino Henriques de Souza

Título da obra Disciplina Local e ano de publicação Editora

Direito Comercial do Direito Comercial Não identificado Não identificado


Império

Direito Comercial Recife, 1852


Não identificado
Comércio a Retalho

Código do Processo Direito Penal Recife, 1860 Tipografia Universal


Criminal de primeira
instância do Império do
Brasil anotado.

Estudo sobre o Recurso à Direito Processual Recife, 1867 Tipografia da Esperança


Coroa

O casamento civil e o Direito Civil Recife, 1859 Não identificado


casamento religioso

O Poder Moderador, ensaio Direito Constitucional Recife, 1854 Tipografia Universal


de Direito Constitucional,
contendo a crítica do título Reeditada em 1978 Editora do Senado
V, do Capítulo I da Federal/Editora
Constituição Política do Universidade de Brasília
Brasil

Fonte: DUTRA (2004).

Assim, a partir da análise do trajeto e das publicações doutrinárias dessa amostra


de autores, se pode constatar que o pensamento político conservador do Império, não se
manifestou unicamente através de periódicos, dos debates parlamentares e dos panfletos
políticos. Ele também mobilizou, através da elaboração e difusão de obras jurídicas e
manuais doutrinários, a interpretação constitucional como um recurso para a
formalização jurídica das lutas políticas.

Essa mobilização de doutrina jurídica pode ser inserida como uma das faces do
esforço dos políticos na sustentação do formato institucional diante das crises que
afetaram a Monarquia ao longo do século XIX, dentre as quais destacam-se como
momentos cruciais a Abdicação do Imperador em 1831, o Golpe da Maioridade de Dom
Pedro II e as várias Insurreições Regionais emergentes nos anos 1835-1870, sendo este
199

último período o que situa a publicação do manual de Braz Florentino na defesa da


maior concentração do poder na figura do Imperador. Convergente, portanto, é essa
orientação dos manuais, moldados por uma seleção de doutrinas importadas da Europa,
sobretudo inglesas e francesas, com o predomínio do centralismo político, contribuindo
a doutrina para a manutenção da monarquia durante praticamente todo o século XIX110.

4.4.3 O publicismo de Paulino Soares de Sousa

Também ilustrativo dessa combinação de formação intelectual com interesse das


elites políticas imperiais pelos usos do saber jurídico para fins políticos é o caso do líder
saquarema Paulino José Soares de Sousa, o Visconde do Uruguai. Seu manual de
doutrina Ensaio sobre o Direito Administrativo, originalmente em dois volumes,
publicado pela Tipografia Nacional na cidade do Rio de Janeiro em 1862, alcançou duas
edições111. Paulino Soares de Sousa foi um dos mais destacados políticos conservadores
do período do Império, cuja biografia revela a precoce mobilização do saber jurídico e
do capital de relações políticas para o ingresso na carreira pública112.

110
Nessa perspectiva deve-se levar em consideração a reprodução de aspectos originários da herança
cultural lusobrasileira, como a tendência à importação de ideias e teorias: “O Império brasileiro realizara
uma engenhosa combinação de elementos importados. Na organização política, inspirava-se no
constitucionalismo inglês, via Benjamin Constant. Bem ou mal, a Monarquia brasileira ensaiou um
governo de gabinete com partidos nacionais, eleições, imprensa livre. Em matéria administrativa, a
inspiração veio de Portugal e da França, pois estes eram os países que mais se aproximavam da política
centralizante do Império. O direito administrativo francês era particularmente atraente para o viés estatista
dos políticos imperiais. Por fim, até mesmo certas fórmulas anglo-americanas, como a justiça de paz, o
júri e uma limitada descentralização provincial, serviam de referência quando o peso centralizante
provocava reações mais fortes” (CARVALHO: 2012: 23).

111
Tal habilidade de teórico pode ser considera central no percurso do agente: “Paulino José Soares de
Souza, o Visconde do Uruguai, foi o principal teórico da corrente conservadora do Segundo Império e um
dos principais construtores das instituições políticas que perduraram até a queda do regime. Não foi
filósofo. Seu pensamento e sua ação cingiram-se ao campo do Direito e da Política. Não obstante, em
várias passagens de sua obra maior, publicada em 1862, o Ensaio Sobre o Direito Administrativo,
inspirada no que ele denomina de ‘ecletismo esclarecido’, encontra-se um pensamento moral muito
semelhante ao que será eventualmente sistematizado por Paul Janet, quando o filósofo eclético francês,
publicou em 1874, a obra La Morale” (RODRIGUES: 2011: 139).

112
Essa precocidade na inserção política reflete a importância que a combinação entre “aplicação nos
estudos” e apadrinhamento político possuía desde o início do contexto Imperial e se reproduziu no
200

O caso do manual de Paulino Soares de Sousa se enquadra dentro da


característica de autoria de um agente com inserção no círculo mais estreito do poder e
multiposicionado na elite113, com investimento na mobilização do domínio do saber
jurídico. Sua produção está veiculada como integrante do universo disciplinar do
“Direito Administrativo”, mas ele não deixou de manifestar sua articulação com o
discurso do “Direito Constitucional”, a relação de subordinação entre ambos os saberes
e a preeminência do Direito Constitucional sobre o Direito Administrativo, repercutindo
a dominação da centralização política sobre a estruturação da esfera burocrática114

Em seu manual de doutrina jurídica, “Ensaio sobre o Direito Administrativo”,


justificou o tratamento do tema do Poder Moderador em seu livro, mesmo tratando-se
de um tema de teor “político” ou “constitucional”, por sua relevância e influência sobre
a Administração Pública (CARVALHO: 2002: 306). A elaboração do manual de Direito
Administrativo de Paulino José Soares de Sousa, publicado em 1862, pode ser analisada
enquanto parte do esforço das frações da elite política mais identificadas com o
centralismo monárquico para a introdução no Brasil da lógica do “espírito público”

Segundo Reinado: “Paulino tinha 25 anos quando Evaristo da Veiga incluiu seu nome na lista tríplice do
Partido Moderado, para a primeira legislatura da Assembleia Provincial, da recém criada Província
Fluminense. Foi eleito e assim ingressou na carreira política. Dois anos depois, já havia granjeado o
respeito de todos os membros da Assembleia, pela sua cultura e saber jurídico. Foi então convidado pelo
Regente Feijó para assumir a pasta da Justiça. Não aceitou o convite, alegando que ainda não estava
preparado para exercer tão alto cargo. Não obstante, em 1836, contando apenas 29 anos, foi nomeado, por
Feijó, Presidente da Província do Rio de Janeiro” (RODRIGUES: 2011: 139).

113
Ana Maria Moog Rodrigues destaca que a aquisição desse perfil se deu ao longo do trajeto político de
Uruguai: “A partir de então, eleito para sucessivas legislaturas, ocupou vários cargos no governo. Por
duas vezes foi Ministro da Justiça, (1840 e 1841); por três vezes foi Ministro dos Negócios Estrangeiros
(1843, 1849 e 1852); foi nomeado Senador vitalício pelo Imperador, e membro do Conselho de Estado.
Como Ministro da Justiça, foi o principal redator do novo Código do Processo que tornou efetiva a Lei de
Interpretação do Ato Adicional, da qual ele mesmo havia sido o relator quando deputado, e da qual
resultou a consolidação do poder central do país e sua definitiva unificação. Na prática, a Lei de
Interpretação do Ato Adicional revogava grande parte da autonomia que havia sido atribuída às
províncias na anterior reforma da Constituição; autonomia que fora inspirada no modelo da organização
dos Estados Unidos da América” (Idem).

114
Na reedição de sua obra, publicada sob a direção de José Murilo de Carvalho em 2002, verifica-se o
entendimento de Paulino sobre a hierarquia disciplinar do Direito: “(...) O direito público interno ou
constitucional subdivide-se em direito constitucional ou político e em direito administrativo. (...) O direito
constitucional ou político é aquela parte da legislação de um povo que regula a forma do seu governo, a
extensão, limites e harmonia dos poderes políticos, e as garantias dos direitos civis e políticos do
cidadão”. E aderindo à posição do francês Laferrière, afirma: “Definem o Direito Administrativo: o
complexo de regras ou leis que determinam as relações entre os administradores e administrados”
(CARVALHO: 2002:84).
201

associada ao “Estado-Cientista” (CHATELET, DUHAMEL et PISIER-KOUCHNER:


1985: 321).

Isto porque a expressão Estado-Cientista corresponde a uma característica das


sociedades contemporâneas que reside na articulação entre Estado e Ciência,
“instituindo uma ordem singular e radicalmente nova” e na qual o discurso e as
atividades científicas assumiriam, progressivamente, maior relevância (Idem). Embora
se possa ponderar que em países periféricos e não industrializados essa tendência não se
manifestasse, pois ela se verificaria somente ao final do século XIX e inícios do século
XX por sua vinculação com a Revolução Industrial, pode-se analisar o manual jurídico
do Visconde do Uruguai como precursor, pois ao reivindicar a “especialização
científica” para o tratamento das “questões de interesse público”, promoveu uma
articulação entre Ciência (Jurídica) e pensamento de Estado.

Saliente-se, neste sentido, que mesmo sem promover a industrialização do país,


a segunda metade do Século XIX no Brasil representa um contexto de maior
diferenciação no enfrentamento político. Isso se deu a partir do final das Regências e
das medidas do Regresso Conservador. A instauração do Segundo Reinado, em 1840,
período a partir do qual Paulino iniciará sua carreira política, passa a repercutir a luta
entre Conservadores (saquaremas), Liberais Moderados e Liberais “Radicais”
(federalistas e republicanos). Por isso, a doutrina jurídica elaborada a partir de 1850
também passou a refletir tais orientações “modernizadoras” e condições de disputa
política. Os “intérpretes da Constituição”, como formadores do arcabouço teórico do
“Direito Público brasileiro” adquiriram, nesse cenário, peso fundamental.

A fração de elite letrada implicada na construção do “Direito Público e


Constitucional” e que era exatamente a mesma implicada na construção das próprias
instituições, na qual se insere Paulino e outros agentes, se empenhou em definir as
questões de interesse público, colocando no centro do debate a questão da extensão dos
poderes do Imperador, dotado da prerrogativa exclusiva do Poder Moderador.

Também as questões da manutenção do Senado Vitalício e da existência do


Conselho de Estado aparecem como centrais na disputa intraelites, moldando um
panorama no qual as medidas liberais do período regencial, dentre as quais a mais
202

relevante foi o Ato Adicional de 1834, foram sendo alteradas pelo Regresso de 1837,
com a Lei de Interpretação do Ato Adicional, aprovada em 1840. Esse movimento, visto
como representativo da “transação” ou convergência política entre os conservadores e
os liberais, na realidade colocou os liberais em posição dominada115.

Tal moldura da disputa entre facções políticas acabou por reforçar a


conveniência de se mobilizar o poder de legitimação representado pela linguagem
apolítica e universalista do Direito, veiculando como doutrina jurídica o debate das
questões “de interesse público”, o que foi favorecido pelo fato de que os seus agentes
eram também juristas, mas amplamente inseridos no topo do campo político116. Assim,
o padrão das obras jurídicas aparece caracterizado pelo domínio teórico inclusive de
fontes estrangeiras, e moldado em feitio pedagógico, voltados a “ensinar o povo” e
“educar a juventude”.

Os manuais de “Direito Público e Constitucional” estiveram, a partir de 1857,


abarcando as disciplinas de Direito Administrativo e Direito Constitucional, o que
indica que o domínio da dogmática jurídica passou a ser recolocado como ferramenta
útil no enfrentamento político e na difusão de posições ideológicas sobre o regime, pois
com ela se poderia adentrar a via do ensino do Direito e, portanto, da formação das
novas gerações da elite (BARBOSA: 2008).

115
Essa delimitação de problemáticas políticas constitui eixo relevante para a compreensão do papel
simbólico do publicismo jurídico, pois através dele se operava a definição “científica” das questões
políticas relevantes. Assim: “O tema do Poder Moderador – do mesmo modo que o Senado Vitalício e a
existência do Conselho de Estado – polarizou as atenções até a década de 30. Parte da elite inclinava-se,
então pelo regime republicano, de que é uma expressão clara o fato antes mencionado da eleição do
Regente por voto direto. Vigorou, entretanto, uma solução de compromisso, que consistia no
fortalecimento do Poder Central em mãos de uma autoridade selecionada entre os políticos sem entretanto
abolir a monarquia” (BARRETO e PAIM: 1989: 106).

116
Por isso, é relevante destacar que: “A discussão travar-se-á entre a fundamentação conservadora e a
fundamentação liberal. O ponto de vista conservador estará expresso nos livros: Direito Público
Brasileiro e Análise da Constituição do Império (publicado em 1857 e reeditado em 1858 e em 1878), de
José Antônio Pimenta Bueno, Marquês de São Vicente; Ensaio sobre administrativo (1864, reeditado em
1978), de Braz Florentino Henriques de Souza (...). O ponto de vista liberal estará expresso no livro Da
natureza e limites do poder Moderador (1861, reeditado em 1978), de Zacarias de Góes e Vasconcelos”
(BARRETO e PAIM: 1989: 107).
203

4.4.4 O manual de Zacarias de Góis e Vasconcelos

O caso representativo de um uso político “liberal” extraído da amostra acima é a


obra Da Natureza e limites do poder Moderador. O manual é de autoria do líder político
liberal Zacarias de Góis e Vasconcelos. Trata-se, como apontam os dados de percurso
do agente, de um caso de autor com alta inserção política, sobretudo, parlamentar, e
com atuação no Poder Executivo e na docência em Direito no Curso de Olinda.

No manual publicado em 1860 e reeditado em 1862, Zacarias expressamente


“responde” às críticas dos adversários políticos e se contrapõe ao entendimento dos
conservadores, expresso nos livros de José Antônio Pimenta Bueno e de Paulino José
Soares de Sousa (OLIVEIRA: 2002: p. 30). Saliente-se que Zacarias não era um liberal
“exaltado” ou “radical”, defendendo a Monarquia Representativa e não se contrapondo
à existência do Poder Moderador, mas apenas exigindo a responsabilidade dos
Ministros de Estado pelos atos do Imperador.

Se comparado com o percurso de Pimenta Bueno, o trajeto do Conselheiro


Zacarias apresenta a inversão de ter iniciado na carreira política no campo conservador,
pelo apadrinhamento do político conservador Francisco Gonçalves Martins, futuro
Visconde de São Lourenço (OLIVEIRA: 2002:10) e após, em 1860, encaminhar-se para
o campo Liberal. Com larga experiência política e administrativa, uma vez que foi
Presidente de província do Piauí e de Sergipe, em 1850 passa a integrar a Câmara dos
Deputados, iniciando uma carreira política nacional que lhe permitiria participar de
quatro ministérios e chegar à Presidência do Conselho de Ministros por três vezes, entre
1862 e 1864, e à posição de Senador (Idem).

Caracteres como a inserção oposicionista, a postura menos impessoal, por ser


“independente em relação ao ponto de vista partidário e intransigente em suas
convicções doutrinárias”, a “falta de impersonalidade” (OLIVEIRA: 2002: 21) e a
“capacidade de se tornar crítico mesmo das atuações dos próprios colegas de Partido”,
constituem disposições que o distanciavam do perfil desinteressado, “científico” e
neutralista dos manuais de doutrina jurídica, melhor manejados pelos políticos
conservadores, como Pimenta Bueno e Paulino de Sousa.
204

O título, o formato e o conteúdo de seu livro Da Natureza e dos Limites do


Poder Moderador não o apresentam no formato tradicional de um manual de Direito
Público e Constitucional, mas nas palavras do próprio Zacarias, como um “opúsculo”,
“destinado a apenas ser, como em verdade foi, distribuído por amigos e conhecidos”
(OLIVEIRA: 2002: 63). Este aspecto reflete a relação entre os atributos do agente e o
perfil da sua produção teórica, atestando seu menor alcance.

Destaca-se que na segunda edição da obra, em 1862, Zacarias sublinhou, na


apresentação do texto ao leitor, que a justificativa de sua reedição se devia à
necessidade de responder ao trabalho do Visconde do Uruguai. Essa disposição, que
repercute no livro a sua posição dominada na esfera política, ainda que fosse inserido
nas mais altas esferas, restringe sua exposição, pois problematizou apenas uma questão:
a responsabilidade dos Ministros pelos atos do Poder Moderador, tese que reivindicava
a prestação de contas do Poder Executivo perante o Poder Legislativo. Para isso, não
formulou um amplo e sistematizado “manual” comentando os temas da “Constituição”.
Sua produção jurídica repercutia sua posição na hierarquia política: Zacarias de Góis e
Vasconcelos representa um caso de contestação parcial ao Regime Monárquico, ou seja,
a “interpretação constitucional” de uma fração dominada da elite política, cujo teor era
rebater a tese da irresponsabilidade pelos atos do Poder Moderador, defendida em
manuais de “Direito Público e Constitucional” como o do conservador José Antônio
Pimenta Bueno e do “saquarema” Paulino Soares.

Constata-se, então, que o maior investimento em publicismo jurídico e o mais


eficiente na representação universalista, manejo de vocabulário “científico” e uso de
linguagem apolítica, isto é, na eufemização do político, veio da pena dos
“conservadores”, com o sentido de promover a defesa da Monarquia com a fórmula:
Poder Moderador Irresponsável + Centralismo político e administrativo + Conselho de
Estado + Senado Vitalício. A contestação dessa linha em manuais apresentou-se como a
defesa da Monarquia, porém reivindicando a limitação do Poder Moderador pela
submissão do Poder Executivo ao Poder Legislativo, especialmente, à Câmara dos
Deputados.
205

Quanto a outras questões políticas inseridas na “Constituição” e nas Reformas


posteriores, como a cidadania, percebe-se pela amostra de manuais que a restrição ao
exercício da participação, pela imposição de critérios qualitativos e censitários para o
acesso ao voto, não foi um tema priorizado ou criticado. Ele somente seria enfrentado
ao final do Império, com a lei eleitoral de 1881, que acionava o voto direto. Porém,
registre-se a ressonância do publicismo conservador, pois a norma restringia a
participação eleitoral, requerendo que o votante fosse alfabetizado, o que inviabilizava
que os ex-escravos se tornassem cidadãos ativos politicamente (CARVALHO: 2012:
24).

Sabe-se que o problema do alcance dos direitos de cidadania somente foi


“descoberto” pelas elites políticas a partir das medidas abolicionistas, sobretudo, da Lei
Áurea de 1888, demonstrando a repercussão disso sobre os interesses econômicos das
elites de proprietários de escravos e dos grandes produtores rurais, afetando, sobretudo,
os interesses econômicos da grande lavoura escravista carioca e paulista. Desde 1873,
São Paulo, província beneficiada pelo crescimento da produção e exportação do café, já
contava com o Partido Republicano Paulista (Idem). Reitere-se que o contexto imperial
repercute a centralidade do problema de organizar o Estado e garantir a unidade política
do país, moldando o governo estabelecido pela efetividade da ordem social e pela união
das províncias. Assim, os aspectos relativos à nacionalidade foram legados ao segundo
plano (CARVALHO: 2012: 23).

Pela amostra analisada, infere-se que a “interpretação constitucional” formatada


em manuais jurídicos durante o Império foi, na verdade, um tipo eufemizado de prática
política, não apenas pelas questões políticas ali tratadas, mas, sobretudo, por ter sido
uma prática de políticos. Não havia naquele contexto condições para uma relativa
independência da produção jurídica em relação às esferas do poder político. Desta
forma, os homens políticos eram atuantes no jornalismo, na docência, na advocacia, na
magistratura, na atividade parlamentar e governamental e eles mesmos foram os agentes
da elaboração jurídica. Por terem sido multiposicionados, não reuniam, portanto,
condições de atuar com autonomia em relação aos constrangimentos originários do
mundo social e político. Trata-se, dessa forma, do fenômeno da ambivalência, enquanto
ação simultânea de explícito engajamento político e de elaboração da política na forma
206

eufemizada da linguagem jurídica.

Ainda que mobilizada também pelo grupo dos políticos liberais, que não se
encontravam na mesma posição hierárquica que os conservadores, mas abaixo destes, o
publicismo jurídico, a partir dos anos 1850, refletiu a predominância do poder dos
segundos, embora ambos os polos apareçam sustentados na importação e usos de
conceitos e doutrinas estrangeiras, sobretudo francesas.

Infere-se desse panorama que a “interpretação constitucional” de políticos como


Pimenta Bueno, Paulino Soares e José de Alencar exemplificam um uso político de
orientação “conservadora” ou “saquarema” nos marcos do Segundo Reinado, tanto
quanto as construções literárias sobre a nacionalidade brasileira, orientadas pelo
“indianismo”, em que se destacaram nomes como o do político conservador José de
Alencar, que, juntamente com as narrativas historiográficas do passado colonial e
Imperial, estiveram favorecidas pelo “tempo saquarema” (MATTOS: 1987).

Portanto, como referido, o desencadear da estratégia da “interpretação


constitucional” da estrutura política não foi simples efeito de ambição pessoal de certa
fração da elite dos políticos-bacharéis, mais interessados na aquisição de outro tipo de
status, conferido pelo trabalho intelectual diferenciado, para além da sua alta posição
política, econômica e da disseminada posse de títulos nobiliárquicos (ADORNO: 1988:
134). Ela não pode ser entendida também apenas como resultante direta da competência
intelectual ostentada por certos agentes, gerando uma prática acessória em relação à
intervenção direta nas decisões políticas.

A significativa presença de políticos, tanto os conservadores ou “saquaremas”


quanto os “liberais moderados” no espaço doutrinário indica, ao contrário, que se
tratava de um investimento contínuo da alta política monárquica apropriado pelas elites
de Estado117, fração que operacionalizou a camuflagem ou neutralização do seu

117
A construção de uma elite de Estado invoca a combinação de estruturas sociais e estruturas mentais,
baseadas em “mecanismos que tendem a assegurar a sua reprodução ou sua transformação”
(BOURDIEU: 2013:13). A formação dessa elite se dá em dimensão geracional, em contextos nos quais se
mobiliza um conjunto de fatores que visando a moldar a homogeneidade social e cultural, base do
“espírito de corpo”. A educação superior exerce nesse aspecto um papel muito relevante. Para abordagem
do tema, consultar o clássico: “La Nobleza de estado: educaciónde elite y espiritu de cuerpo”. Nela o
sociólogo francês discutiu as condições de “disciplinamento do espírito” no caso francês, enfatizando o
papel da Escola Nacional de Administração (ENA) na formação dos quadros burocráticos e de governo.
207

engajamento político-partidário como forma de sustentar, pela via da “doutrina


jurídica”, a legitimidade de suas tomadas de posição políticas e da imagem “civilizada”
de uma “nação brasileira”, ocultando problemas graves da esfera social, como a
escravidão e a marginalização dos homens livres não proprietários, isto é, a condição
social da população pobre dentro da ordem escravocrata (FRANCO: 1997).

Por isso, tal processo não propiciou somente a “neutralização” e naturalização


das visões de mundo da política através dos argumentos moldados em “interpretação
constitucional”, mas contribuiu para a construção da representação social do
constitucionalista, autorizado pela condição de “jurista” a falar sobre política
selecionando os assuntos e silenciando sobre aquilo que afetava os interesses das
camadas proprietárias. Ao traduzir tomadas de posição políticas para o plano da
“doutrina jurídica”, esses agentes políticos com domínio do Direito, inseridos no topo
da esfera política e partidária, contribuíram para moldar no Brasil o padrão de
ambivalência que caracteriza a autoridade dos “juristas”, sem que isso seja visto como
“contradição”. Diversamente do caso francês, no Brasil imperial se iniciou a construção
social do “jurista” não como agente relativamente autônomo em relação ao poder, mas
como aquele que pode “fazer política” e, ao mesmo tempo, “dizer o Direito”.

A “interpretação constitucional” mobilizada no Império não possuiu uma única


orientação política. Ela foi mobilizada por conservadores e também por liberais, na
defesa do centralismo político e na sua relativa contestação. No entanto, em ambos os
casos ela promoveu a validação de um modo específico e elitizado de intervenção
política, em que uma elite dentro da elite empreendeu a formatação do político em
jurídico. Isso foi possível com a apropriação da tarefa de elaborar o “Direito Público e
Constitucional”. Como prática voltada à legitimação “neutra, universal e científica” de
um modelo de Estado e de sistema político, ela pode ser considerada um instrumento da
ação política brasileira, vinculado ao processo de disseminação da lógica cientificista no
século XIX, isto é, do gouverner par la science (DÉLOYE, IHL et JOIGNANT: 2013).

Por isso, ao se refutar o argumento de uma motivação “científica” para o


investimento crescente em elaboração constitucional ou explicá-lo como resultante da
busca pessoal desses políticos por mais uma forma de status, o de intelectual
(ADORNO:1988: 134), não deve deixar escapar que a invenção da “interpretação
208

constitucional” no Império foi coletiva.

Os dados permitem inferir que o crescimento da publicação de manuais a partir


de 1857, sendo o primeiro manual da geração “brasileira” o livro de Pimenta Bueno
publicado em 1857, corresponde à fase de mobilização política em torno da
consolidação do regime político imperial e da estrutura estatal centralizada, demandas
dos políticos conservadores, já iniciadas com as medidas do “Regresso Conservador” a
partir de 1837.

4.4.5 Os políticos e as obras excluídas da dimensão dos manuais de


“interpretação constitucional”

Por fim, identifica-se pela amostra a dominação dos políticos-bacharéis


conservadores em todo o período do Império, mantida inclusive pela permanente
exclusão de obras tidas como de autoria de políticos “liberais históricos”, “radicais” ou
“exaltados”. Desse modo, políticos e autores de livros como o liberal federalista
Aureliano Cândido Tavares Bastos, alagoano, bacharel em Direito, parlamentar,
Ministro de Estado (REIS: 1975: p. 7) que publica em 1870 a obra “A Província”, não
escreveu manuais de Direito e suas obras políticas não foram classificadas entre os
manuais dos “intérpretes da Constituição” nas fontes pesquisadas. Por isso, se pode
considerar que obras tidas como de orientação “romântica e utópica” e de um “quase
republicanismo”, que teriam caracterizado sua atuação política (SILVA: 1999: 219), não
continham a disposição neutralista adequada à formatação atemporal, a-histórica e
universalista das produções jurídicas.

As críticas ao poder centralizado do Estado Imperial e à função econômica que


lhe competia (Idem), empreendidas e expostas em suas obras, não apenas em A
Província, de 1870, mas também em Os males do presente e as esperanças do futuro,
Cartas do Solitário e O Vale do Amazonas, não permitiriam que o agente fosse admitido
no âmbito do publicismo jurídico legitimado pelo ensino jurídico, não tendo sido
inseridas na bibliografia oficial da cadeira de “Análise da Constituição do Império”.
209

Isto porque, principalmente, em A província não apenas “há a crítica de todo o


sistema em vigor”, mas também aparece a exigência de modificações. Em seu tom de
geopolítico, Tavares Bastos defendia uma posição oposta àquela dos “intérpretes”
oficiais da Constituição Imperial: “A tese fundamental era a da autonomia provincial,
que só poderia ser alcançada, efetivamente, em seu entender, com a adoção do
federalismo, portanto, a descentralização, que levaria a uma autonomia essencial,
urgente, a ser completada com a redivisão territorial” (REIS: 1975: 8).

Logo, infere-se que as obras de Tavares Bastos continham reivindicações que


conflitavam frontalmente com a direção centralista dos políticos conservadores,
alicerçada nos interesses econômicos das elites agrárias, sobretudo do meio rural carioca
e paulista, não podendo, portanto, ultrapassar a fronteira simbólica e passar a integrar o
universo do publicismo jurídico oficial.

Também se refira quanto ao conjunto dos publicistas excluídos do espaço oficial


composto pelos manuais de “doutrina constitucional”, o caso do político baiano
Cipriano José Barata. Como liderança carismática, sua atuação política foi marcada pelo
explícito patriotismo, situada como “exaltada” ou “radical”. Barata atuou na Conjuração
Baiana de 1798 e mobilizou seu ideário político através do publicismo jornalístico
engajado desde 1821, tomado posição frente às causas emancipacionistas e
descentralistas. Foi o fundador, em 1823, do jornal “Sentinela da Liberdade”, modelo
reproduzido por militantes federalistas e republicanos por todo o país (MOREL: 1999:
117).

O político não teve suas ideias e escritos118 modeladas como obras de


publicismo jurídico. É relevante salientar que o perfil de Barata o situava como um
político “fora do Estado”, isto é, “Cipriano nunca participou de nenhum cargo
administrativo, de nenhum Poder Executivo (nacional ou local) e nem teve emprego
público, exercendo apenas uma vez o mandato de deputado” (MOREL: 1999: 113).
118
Consta que Cipriano Barata produziu publicismo, deixando “uma significativa obra impressa e
manuscrita entre 1823 e 1835 – jornais de opinião e manifestos, além dos anais parlamentares das Cortes
de Lisboa em 1822 – onde, em meio ao intenso combate das circunstâncias, formulou pontos de vista, que
merecem ser melhor estudados nas referências ao momento de criação de um Estado nacional no Brasil e
no reconhecimento de uma certa heterogeneidade de visões políticas, dentro de um fundo comum, que na
maior parte do tempo mantinha a perspectiva de uma monarquia constitucional e da integridade territorial
do Império” (MOREL: 1999: 113). Apesar de sua vasta e densa contribuição jornalística e parlamentar,
Barata não produziu nenhum manual de Direito Público e Constitucional.
210

Outro aspecto relevante a ser destacado quanto ao perfil de Cipriano Barata é de


que sua linguagem política e sua apresentação corporal manifestavam a proeminência
da “paixão”, no estoicismo, na disposição de “morrer pela pátria”, pela relação paternal
e afetiva, pelo patriotismo nacionalista, não só em sua linguagem, mas inclusive na sua
vestimenta, pois defendia que as pessoas usassem as roupas fabricadas no país. Desse
modo, “Se aceitamos a distinção entre vocação política e vocação científica, verifica-se
que Cipriano Barata não desenvolveu esta última”, mesmo possuindo formação superior
e tendo sido contemporâneo de José Bonifácio na Universidade de Coimbra (MOREL:
1999: 112).

Casos como os de Frei Caneca, Tavares Bastos, Cipriano Barata e Joaquim


Nabuco ilustram exemplos de agentes da elite letrada que atuaram politicamente, porém
não integraram o grupo dos “doutos” produtores de manuais de “interpretação
constitucional” no Império. A diferença de percursos e de atributos são fatores
relevantes para a compreensão do fechamento do círculo de intérpretes do Direito que
produziram publicismo jurídico na forma de manuais.

A predominância do perfil ambivalente dos agentes, simultaneamente políticos e


juristas, aponta para a polarização da doutrina constitucional entre os atores mais
integrados à cúpula política, formatando o debate doutrinário em clara tradução para o
publicismo da natureza da luta política entre “conservadores” e “liberais moderados”,
especialmente, a partir do Segundo Reinado.

A exclusão dos “liberais radicais”, defensores da descentralização política (como


Frei Caneca, Teófilo Otoni e Tavares Bastos), os liberais republicanos (como Saldanha
Marinho, Américo Brasiliense, Aristides Lobo, Lafayete Pereira) e os abolicionistas
(como Joaquim Nabuco), embora tenham publicado obras de repercussão e muitos
panfletos políticos, indica que a contestação mais forte e ampla ao molde político e
social do Regime Imperial ficou de fora do âmbito dos manuais de “Direito Público e
Constitucional”.

Esses fatores auxiliam a entender como se definiu e reproduziu, pela via da


mobilização do saber jurídico nos manuais de “interpretação constitucional”, mais uma
parte integrante das fronteiras simbólicas do político.
211

CONCLUSÃO:

A participação social mais ampla e difusa verificada na mise-en-scène do


vocabulário “constitucional” no cenário dos embates emancipacionistas apontou os
múltiplos e variados sentidos atribuídos ao termo “Constituição” e afins. Essa
plasticidade, que presidiu o tratamento das questões políticas pelo jornalismo e
panfletismo nas lutas de independência, contrastaria substancialmente com o tratamento
de “questões políticas” enquanto “questões constitucionais”, o que passou a ser uma
tarefa desempenhada por determinada parcela da elite de políticos-bacharéis do Império,
falando como “juristas” e “intérpretes da Constituição”.

O Brasil Império, considerado um contexto de identificação entre o Direito e a


Política, em que contar com o título de bacharel em Direito consistia em uma porta de
entrada para o circuito da elite e em que a nomeação para o cargo de magistrado era o
primeiro passo para o ingresso na carreira política, não havia condições para uma
relativa autonomização da profissão de “jurista”. Soma-se a isso a precariedade do
ensino jurídico (por escassez de recursos, infrequência de lentes e alunos, problemas
disciplinares) no estrito circuito formado por apenas duas faculdades de Direito durante
toda a vigência do Regime Imperial: Faculdade de Olinda/Recife e Faculdade de São
Paulo.

No entanto, foi exatamente em tais condições que uma “bibliografia” de “Direito


Público e Constitucional” foi produzida e publicada. Levando-se em consideração que o
“manual de Direito” é um tipo de produção intelectual que assume o formato de “obra
jurídica didática” (isto é, representa uma fonte sintética de saberes jurídicos,
apresentada de forma pedagógica, ou seja, voltada para formar os alunos e informar a
“prática” dos bacharéis em Direito em uma determinada área ou disciplina jurídica), a
amostra de vinte e oito manuais encontrada na pesquisa empírica, recobrindo um
período de 58 anos (1824 a 1882), somada com a amostra de 11 traduções de obras
estrangeiras de “Direito Público e Constitucional”, publicadas em cinco décadas (entre
1831 e 1882), permite considerar essa produção como uma forma de uso político do
Direito, predominantemente voltado para sustentar o modelo político conservador.

Assim, a primeira conclusão extraída da análise do contexto imperial relacionada


212

com o universo empírico pesquisado é de que a apropriação dos sentidos de


“Constituição” se iniciou no período das lutas emancipacionistas, através do publicismo
jornalístico e panfletário. Naquele cenário (1821-1822), a variada combinação de
sentidos expressava os diversos interesses em disputa no jogo político, em que agentes
letrados e populares lutaram pela definição do modelo de Estado. Porém, o feitio
relativamente acessível, “plural” e conjuntural do publicismo jornalístico-panfletário
não o condicionava como um espaço exclusivo da elite de políticos-bacharéis. Além
disso, a explicitação das posições ideológicas e o emprego da linguagem popular
expunham o engajamento dos agentes em “causas” e visões de mundo.

A modelagem narrativa de acontecimentos e de atos de personagens, a


circulação rápida dos jornais, gazetas e panfletos, o caráter explícito do engajamento
político dos autores das matérias (em muitos casos protegidos por pseudônimos), a
maior capilaridade e o ritmo que acompanhava a dinâmica da conjuntura são os
atributos do publicismo jornalístico, vinculado à antiga luta emancipacionista, que
definiu os sentidos do que deveria ser entendido por “constitucional” nos quadros da
polarização entre “constitucionais” e os “corcundas”. Desse modo, o contexto do
período compreendido entre 1821 e 1822, caracterizado pela intensificação do embate
político através da imprensa, foi a conjuntura favorável à introdução do vocabulário
“constitucionalista” e à sua mobilização política, porém de um modo explicitamente
“político”.

Verificou-se que a partir da herança da formação jurídica coimbrã das elites


brasileiras e de uma experiência de publicismo engajado na Independência, surgiram os
manuais de “Direito Público e Constitucional”, uma invenção da elite política imperial.
Uma das causas que explica essa “invenção” da interpretação constitucional no Brasil
Império foi a tarefa coletiva, a cargo de uma parcela das elites políticas, de defender a
legitimidade do Regime Imperial em um modo que aparecesse aos olhos do “público”
(frações letradas e a própria elite política) como sua missão “cívica”, porém originária
de opiniões “jurídicas”, portanto, desinteressadas ou não “engajadas”. A defesa de um
modelo ideal para o Regime Imperial poderia ser apresentada, assim, como resultante de
uma necessidade “científica”, “técnica”, “neutra”, “objetiva”, “imparcial” e
“desinteressada”: a opinião do jurisconsulto constitucionalista.
213

A pesquisa empírica demonstrou que, na verdade, os jurisconsultos eram parte


da elite política imperial. Nesse sentido, seus manuais foram meios de eufemizar em
questões de debate “constitucional” aquilo que era o conjunto de interesses e
reivindicações políticas. Não se tratava de discutir a “Constituição” em si, pois esta é,
na realidade, um mito fundador que permite camuflar os usos políticos do saber
jurídico, mas de abrir terreno para uma defesa sofisticada e pouco acessível da
manutenção do “espírito de 1824”. No Segundo Reinado, essa estratégia foi empregada
e beneficiou, principalmente, o bloco conservador ou “saquarema”, em que se situavam
José Antônio Pimenta Bueno, Paulino Soares, José de Alencar e Braz Florentino.

Já em uma linha “liberal reformista”, houve a contestação pontual e “moderada”


ao status quo, pelo manual do “liberal-progressista” Zacarias de Góis e Vasconcelos. A
obra intitulada Da Natureza e dos Limites do Poder Moderador expunha a tese da
Responsabilidade dos Ministros pelos atos do Poder Moderador, o que implicava a
reivindicação da prestação de contas por parte do Poder Executivo diante da Câmara
dos Deputados. Portanto, a disputa intraelites pela supremacia do Poder
Moderador/Executivo (conservadores) ou Legislativo (liberais) repercutiu pela via da
“interpretação constitucional”. Porém, a explicitação do tema “político” no título
descaracteriza o texto de Zacarias como “manual”. Soma-se a isso a própria
apresentação do livro, em que o político não ocultava seu uso como “resposta” aos
adversários políticos. Isto refletiu não somente uma inabilidade pessoal para sustentar a
ambivalência da posição de “político” e, simultaneamente, de “jurista”, mas a situação
dominada dos grupos “liberais”, mesmo daqueles agentes melhor inseridos nos postos
decisórios da ordem política imperial.

Na primeira amostra de manualistas, os que detinham formação coimbrã, o caso


de José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairú, aponta um exemplo de agente inserido na
esfera burocrática e política, investindo em obras de “interpretação constitucional” para
educar e ensinar aos cidadãos a moral adequada ao Regime Monárquico Constitucional.
Mas a amostra de doze manuais de “interpretação constitucional” indica que Lisboa
integrou um coletivo. Desde 1823, os embates entre as frações da elite recolocaram em
foco a política como problema “constitucional”, mobilizando então os sentidos do
objeto “Constituição”. A difusão e a apropriação do publicismo europeu e,
especialmente, francês no cenário brasileiro, contribuíram para tanto.
214

Desde a vinda dos livreiros franceses para o Rio de Janeiro em 1824, com
destaque para Pierre Plancher, se verifica a promoção da ênfase na apropriação da
Constituição a partir das noções dos ideólogos franceses entre os letrados, sobretudo em
relação ao perfil e às teses dos “liberais doutrinários” François Guizot e Benjamin
Constant. Os manuais deste teriam tido influência no próprio texto imposto em 1824,
ressignificando a noção de “poder neutro” desenvolvida por B. Constant em Poder
Moderador, mais alinhada aos interesses políticos da fração da elite brasileira mais
ligada ao imperador D. Pedro I.

Assim, detectou-se que a concorrência interna ao mundo da elite política em


torno da definição do regime não só não cessou durante o Primeiro Reinado, como se
intensificou com a abdicação do Imperador Dom Pedro I em 1831. A existência formal
de uma Constituição (1824) passou a fornecer um trunfo na luta política, aparecendo
como objeto de disputas entre “conservadores” e “liberais”, haja vista as duas
significativas “reformas constitucionais” aprovadas pelo Parlamento a partir do período
Regencial: o Ato Adicional de 1834, de caráter liberal-descentralizador, e seu
contraponto Regressista, a Lei de Interpretação do Ato Adicional, de 1841. Logo, tanto
nos cenários de “construção” como de “consolidação” da ordem, houve contínuo e
progressivo investimento em manuais de “interpretação da Constituição”.

A continuidade de investimento de uma parcela das elites políticas imperiais em


“interpretação constitucional” através da publicação de manuais de Direito aparece no
universo empírico da pesquisa, indicando um total de trinta e nove manuais, incluindo
as onze traduções de obras de “Direito Constitucional” estrangeiras, publicadas entre
1824 e 1882. Mesmo que a amostragem não pretendesse ser exaustiva, e a metodologia
da pesquisa sócio-hitórica tenha sido qualitativa, verifica-se que a mobilização desse
recurso atingiu a cifra de trinta e nove manuais produzidos por brasileiros durante o
Império. Em se tratando do caso de saberes específicos a uma “área” ou disciplina
jurídica e em um cenário em que havia apenas dois cursos jurídicos, esse dado é
relevante e significativo do investimento nesse tipo de produção jurídica por parte das
elites imperiais.

Com relação aos dezesseis manuais de autores que se inserem no grupo de


215

bacharéis formados no Brasil, se identificou a orientação política em dez casos, sendo


sete com posição “conservadora” e três com posição “liberal”, entendendo “liberal”
como liberal “moderado” ou “situacionista”, ou seja, não contestador da Monarquia em
si, não aparecendo na amostra manuais de políticos identificados como “liberais
exaltados” ou “radicais”. Não por acaso, agentes como José Antônio Pimenta Bueno,
Paulino Soares e Zacarias de Góes e Vasconcelos utilizaram seus manuais de “Direito
Público e Constitucional” para “editar” o passado histórico, e não tocaram em questões
como a dissolução da Assembleia Constituinte em 1823 e na origem “outorgada” da
Constituição de 1824.

Os defensores da descentralização política (como Frei Caneca, Teófilo Otoni e


Tavares Bastos), os republicanos (como Saldanha Marinho, Américo Brasiliense,
Aristides Lobo, Lafayete Pereira) e os abolicionistas (como Joaquim Nabuco), embora
tenham publicado panfletos e obras, não figuram como autores de manuais de “Direito
Público e Constitucional” no Império. Pode-se inferir daí que esse grupo de agentes não
investia nesse tipo de produção, baseada em uma retórica de “neutralidade”, “não
engajamento” e “impessoalidade”, típicas das estratégias simbólicas de dissimulação do
engajamento político ou político-partidário, tal como foram os manuais jurídicos do
Império. Esses agentes engajados em causa políticas recorreram a outros formatos de
produção para emitir opinião para intervenção política em termos intelectuais.

Constatou-se, portanto, que a dimensão da “interpretação constitucional”


desempenhou muito mais um papel de legitimação e sustentação do Regime Imperial,
sobretudo em sentido “saquarema”, o que aparece refletido no maior investimento nesse
tipo de recurso de poder simbólico pelos políticos-bacharéis e professores de orientação
“conservadora”: monarquistas, católicos, centralistas, defensores do Poder Moderador e
da manutenção do modelo político e social hierarquizado (com voto desigual e várias
forma de restrição ao acesso à participação política e às arenas decisórias).

Dessa forma, questões como a dependência nacional da economia agrário-


exportadora, especialmente, do café do sudeste, a escassez de investimentos na
industrialização nacional, e a manutenção da mão-de-obra escrava, apesar da aprovação
216

de leis como a de proibição do tráfico (1850), não foram tratadas por uma fração
representativa de “intérpretes da Constituição imperial”. Esse papel omissivo e seletivo
dos “problemas nacionais” apareceu em uma parcela desses agentes, como: Pimenta
Bueno, Paulino Soares e Zacarias de Góes e Vasconcelos.

A pesquisa permitiu concluir que o fato de haver dois Cursos de Direito e uma
“Constituição” oficialmente formalizada em 1824 não é suficiente para explicar as
causas da invenção da “interpretação constitucional” por uma fração da elite política
imperial. Esta explicação só pode ser fornecida com base em uma abordagem social e
histórica do fenômeno, que relacione os agentes com o seu contexto de intervenção.

Nessa perspectiva, conclui-se que a mobilização dos manuais pode ser vista como
uma estratégia de intervenção política, usada para disputar a definição legítima do
Regime Monárquico e circunscrever a determinação do que seria legítimo em termos
políticos, à autoridade simbólica de uma parcela dessa elite. De políticos-bacharéis,
determinados agentes se tornaram “intérpretes da Constituição”, o que parte da
construção social da figura da “Constituição” e dos manuais de seus analistas
autorizados como modo privilegiado de “explicação” do mundo político aos profanos.

Revestidos da possibilidade de manejar a linguagem “científica” do Direito, os


agentes desenvolveram um tipo de argumentação sobre o poder, que sendo igualmente
política e ideológica, não explicitava o seu engajamento político. Convertidos em
juristas, eles puderam tratar das questões políticas como questões de Direito
Constitucional. Isto ocorreu, sobretudo, a partir de 1850, ou seja, do período conhecido
como o “auge do Império”, já que em meados do século XIX se tratava da “Transação”,
isto é, da predominância da política de consolidação do Estado, e portanto, da elite
responsável pela dominação conservadora, dependente da atuação de saquaremas,
instalados no topo da esfera política.

A inserção dos “intérpretes da Constituição” no topo do poder, em postos como


a Presidência de Províncias, no Conselho de Estado, no Conselho de Ministros, no
Senado e na Câmara Temporária, bem como nas lideranças de seus respectivos partidos,
os situou em condições de mobilizar esse patamar sofisticado, erudito e especializado
217

do discurso político que é a “interpretação constitucional”, voltada para projetar no


exterior, especialmente, no mundo europeu, uma imagem “civilizada” e “moderna” da
“nação” Brasil.

Disto se infere que a predominância dos interesses na legitimação do Regime


Monárquico, maior por parte dos “conservadores” (considerando-se que as mais
relevantes reformas do arcabouço normativo do Império dependeram, em grande parte,
de sua iniciativa, ou adesão), explica a predominância quantitativa e qualitativa dos
manuais dos “saquaremas”, como repercussão no espaço da doutrina jurídica da
hierarquização da esfera política.

A hierarquia entre os Partidos Políticos imperiais também foi a distinção entre os


manuais de Direito Público e Constitucional, sendo que os mais sistematizados e
universalistas foram os de autores “conservadores”, e os menos universalistas e menos
sistematizados foram os dos liberais. Assim, a diferente formatação e conteúdo de uma
amostra de obras reflete a dominação política vitoriosa dos conservadores e a posição
dominada dos liberais, embora o padrão de eufemização do debate político tenha sido
mobilizado por ambos os lados.

Por fim, o processo de configuração de uma “bibliografia” de “Direito Público e


Constitucional” veiculada durante o Regime Monárquico apontou que a “interpretação
constitucional” pode ser considerada como uma dimensão integrante das práticas de
intervenção política através do Direito, tendo sido formulada em condições de
multiposicionamento das elites letradas e repercutindo o recurso a uma representação
social caracterizada pela “ambivalência”: atuavam como “políticos” e falavam como
“juristas”.

O modo sofisticado e universalista do publicismo de feitio jurídico propagado no


Brasil Império serviu mais como arma de legitimação do Regime Político aos políticos-
bacharéis conservadores ou “saquaremas” do que como instrumento de contestação a
outras frações da elite política, repercutindo a hierarquia do plano político. A
perspectiva sócio-histórica de análise do fenômeno, enquanto investimento coletivo,
apontou os lugares privilegiados da argumentação de caráter publicístico: o parlamento
e a imprensa, passaram a concorrer, de modo desigual, com o publicismo através dos
218

manuais de “interpretação constitucional”, porque a opinião política autorizada dos


agentes, representados como doutos do Direito, os beneficiava com a aparente
apoliticidade, característica tradicional e marcante do discurso jurídico das elites
brasileiras.
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