Usos Do Passado Sensível em Ambiente Digital

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histórias em contextos globais

USOS DO PASSADO SENSÍVEL EM


AMBIENTE DIGITAL: O “BRASIL: NUNCA
MAIS DIGITAL” E O PROJETO “EVA.
STORIES”

Uses of the sensitive past in the digital environment: the “Brasil:


Nunca Mais Digital” collection and the “eva.stories” project

Miguel Barboza Castroa


https://orcid.org/0000-0002-2865-6795
E-mail: [email protected]
a
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Departamento de História, Porto Alegre, RS, Brasil

DOSSIÊ
História digital e global: novos horizontes para a investigação histórica

Esboços, Florianópolis, v. 27, n. 45, p. 249-263, maio/ago. 2020. 249/342


ISSN 2175-7976 DOI https://doi.org/10.5007/2175-7976.2020.e68390
RESUMO
O presente artigo refletirá sobre usos do passado sensível no ambiente digital. Para tanto, serão
utilizados como objetos de análise duas iniciativas: o “Brasil: Nunca Mais Digital” e o “eva.stories”. A
primeira iniciativa diz respeito ao projeto lançado em 2013, que insere o acervo do “Brasil: Nunca Mais”
na era digital, tornando seus arquivos acessíveis a qualquer pessoa em qualquer parte do mundo –
antes disponíveis apenas em acervos físicos, impressos ou microfilmados. A segunda é o projeto “eva.
stories”, criado em 2019, que parte da seguinte premissa: “E se uma menina, durante o Holocausto,
tivesse Instagram?” A iniciativa se utiliza do Instagram (principalmente do formato “stories”) para
desenvolver setenta episódios retratando eventos ocorridos com Eva Heyman – adolescente de 13
anos enviada ao campo de concentração em Auschwitz-Birkenau, em 1944. O objetivo do artigo visa
por em perspectiva essas iniciativas (inseridas em seus respectivos contextos históricos, técnicos,
metodológicos etc.), a fim de pensar seus usos e refletir sobre efeitos da instrumentalização do passado
em ambiente digital (e no escopo da histórica pública). A ideia é pensar o papel da internet enquanto
catalisadora de formas de disseminar, resistir e pensar sobre a memória e eventos traumáticos, além
de compreender sua interação com diferentes audiências.

PALAVRAS-CHAVE
História Digital. Usos do passado. Internet.

ABSTRACT
This article reflects on sensitive uses of the past in the digital environment. To attain this aim, two
initiatives are approached as objects of analysis: “Brasil Nunca Mais Digital” [the “Brazil: Never Again”
digital collection] and “eva.stories”. The first of these initiatives is the project launched in 2013, which
inserts the “Brasil: Nunca Mais” documentation into the digital age by making its archives accessible to
anyone anywhere in the world (as previously, it was only available in physical, printed or microfilmed
collections). The second initiative is the “eva.stories” project, created in 2019 with the following premise:
“What if a girl in the Holocaust had Instagram?” It uses Instagram (mainly, its “stories”-feature) to produce
seventy episodes depicting events with Eva Heyman – a 13-year-old girl sent to the Auschwitz-Birkenau
concentration camp in 1944. The aim of this paper is to put these initiatives into perspective (considering
their respective historical, technical and methodological contexts, among other aspects) to think about
their uses and examine the effects of the instrumentalization of the past in the digital environment (and in
the field of public history). Its final purpose is to reflect on the role of the Internet as a catalyst of ways to
disseminate, resist and think about memory and traumatic events, while understanding its interactions
with different audiences.

KEYWORDS
Digital History. Uses of the past. Internet.

Esboços, Florianópolis, v. 27, n. 45, p. 249-263, maio/ago. 2020. 250/342


ISSN 2175-7976 DOI https://doi.org/10.5007/2175-7976.2020.e68390
Usos do passado sensível no ambiente digital: o “Brasil: Nunca Mais Digital” e o projeto “eva.stories”

C
omo retratar um evento que, por sua monstruosidade, foi durante certo tempo
irrepresentável? Há forma de divulgar o testemunho do sobrevivente e assim
“simbolizar o real”, o traumático? Essas perguntas exprimem questões que
suscitaram e suscitam debates1 extensos no campo das humanidades. No entanto,
desde os anos 2000,2 o boom da internet e da computação desenvolveu uma era digital
que cada vez mais faz do humano a simbiose do analógico/digital e, consequentemente,
produz implicações aos usos de passados sensíveis no ambiente on-line – e fora dele.
Ao longo do trabalho, pretende-se pensar os efeitos da instrumentalização do
passado no ambiente digital, inseridos no escopo da história pública, em que a relação
entre audiência e historiador não é a mesma tradicionalmente3 constituída no campo
da História. Preconiza-se, nesse ambiente de intervenção pública do historiador e
de seus domínios, uma “autoridade partilhada” (FOSTER, 2014), em que o público
é enxergado “não como exclusivamente, ‘audiências’, consumidores de história,
mas, em alguma medida, [...] público gerador de história” (MALERBA, 2017, p. 141).
Portanto, essa interação entre público e historiador acerca desses usos do passado
configura-se um dos pontos de reflexão do presente artigo.
Levando em conta o que foi apresentado até aqui, serão examinadas as
iniciativas “Brasil Nunca Mais Digital” e o “eva.stories”, buscando entender e propor
a reflexão em torno dos usos do passado traumático/sensível, em plataformas tão
distintas, com públicos-alvo diversos e instrumentais técnicos e “teóricos” variados.

“BRASIL: NUNCA MAIS DIGITAL”: DE GERAÇÃO EM


GERAÇÃO, AGORA ON-LINE
O projeto “Brasil: Nunca Mais” foi uma iniciativa de religiosos – ligados,
principalmente, às igrejas católica e presbiteriana – e de advogados que objetivavam
colher informações, junto ao Superior Tribunal Militar (STM), a respeito de violações
dos direitos humanos pelo Estado brasileiro ao longo da ditadura civil-militar, além de
preservar os processos judiciais de desaparecimento no período de redemocratização
para reunir essa documentação em um “livro-denúncia”. Advogados de presos políticos
acusados pelo Estado brasileiro percebem que podem se aproveitar do período de
24 horas, da custódia provisória dos autos (a partir de 1979 com a promulgação da
Lei da Anistia) para executar um processo de reprodução (e futura divulgação) dos
processos. A partir do financiamento de entidades ligadas à Igreja4 foi possível dar

1
Sobre essa questão, é possível comentar sobre o Historikerstreit, a “querela dos historiadores”, ocorrida
no campo político e intelectual alemão na década de 1980. Grosso modo, se trata de uma disputa em
torno do modo mais adequado de se retratar os eventos da Segunda Guerra Mundial, principalmente
sobre a Alemanha nazista e o Holocausto. Além desse evento, o conceito vergangenheitsbewältigung
(que significa “reconciliar-se com o passado”) também pode ser citado para compreender essa disputa.
2
A partir dos anos 2000 percebe-se uma alteração na internet e na forma em que os usuários se
relacionam com ela. Trata-se da passagem da web 1.0 para a web 2.0, que prova a passagem de um
uso passivo para um uso ativo da rede (SILVEIRA, 2018).
3
“As mudanças quanto às práticas profissionais dos historiadores são de tal ordem [...] que devemos
nos interrogar sobre qual impacto da história digital sobre as formas de narração do passado e sobre
os tempos históricos [...]” (NOIRET, 2015, p. 29).
4
Conselho Mundial de Igrejas (CMI), através de Philip Potter e Charles Roy Harper Jr. “Durante o processo
de reprodução dos 707 processos, foram consumidos mais de 350 mil dólares” (BAUER, 2012, p. 10).

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início ao processo de cópia e microfilmagem dos autos judiciais, desenvolvendo-se na


clandestinidade5 devido ao receio de apreensão da documentação fotocopiada.
O trabalho foi finalizado em 1985, reunindo mais de 850 mil cópias e 543
microfilmes. Após isso, foi desenvolvido o chamado “Projeto A”, que comporta
quase 7 mil páginas divididas em doze tomos. Com o auxílio de jornalistas (Ricardo
Kotscho e Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto) foi produzido o “Projeto B”, que
visava construir a síntese do material reunido e a produção de um livro. Assim, com
alguns poucos meses de regime democrático no Brasil, em 15 de julho de 1985, o
“Projeto B” foi lançado com o nome de “Brasil: Nunca Mais”, e em “[...] poucos dias,
tornou-se o livro mais vendido em todo o país [...]” (BAUER, 2012, p. 11), tendo sido
reimpresso vinte vezes nos primeiros dois anos de lançamento. Os documentos do
projeto foram doados à Unicamp que, por sua vez, os inseriu no acervo do Arquivo
Edgar Leuenroth, em 1987. Como “medida de segurança” foram feitas 25 cópias do
“Projeto A”, distribuídas entre instituições nacionais e estrangeiras; e o material original
(microfilmes e conteúdo dos processos do STM) enviado ao Latin American Microfilm
Project (LAMP).
Com o que foi analisado até o momento, fica evidente o grande impacto que
o “Brasil: Nunca Mais” teve no país, principalmente por se tratar da maior iniciativa
da sociedade civil em torno dos direitos à memória, verdade e justiça. No entanto,
apesar da grande circulação do livro, tendo seu acervo documental espalhado por
universidades e instituições dentro e fora do Brasil, surgiu a necessidade de acompanhar
o impulso tecnológico que, desde os anos 1990, se torna cada vez mais inevitável,
e inserir o acervo do “Brasil: Nunca Mais” no ambiente digital potencializando, ainda
mais, o acesso aos processos, a divulgação dos crimes lesa humanidade cometidos
pelo Estado brasileiro durante a ditadura civil-militar e impactando gerações de
pesquisadores e novas gerações da sociedade civil acerca do respeito à dignidade da
pessoa humana. É dessa forma que surge, em 2005, o “Centro de Referência Virtual
Brasil Nunca Mais”,6 que disponibilizou na íntegra a digitalização do “Projeto A”, sendo
o primeiro passo em direção da inclusão do “Brasil: Nunca Mais” na era digital.
Com o projeto embrionário de inserção do “Brasil: Nunca Mais” no ambiente da
web, criaram-se as bases do que veio a ser o “Brasil: Nunca Mais Digit@l”. A partir do

5
Em uma sala comercial, com funcionários e copiadoras, fingindo se tratar de uma copiadora comum.
“As cópias, então, eram remetidas a São Paulo, inicialmente em ônibus noturnos e, posteriormente,
por meio de aviões de carreira, ou por carro. Surgiu nesse momento a preocupação com a apreensão
do material pela repressão [...] a alternativa para a preservação foi microfilmar as páginas de todos os
autos judiciais e remetê-las à sede do Conselho Mundial de Igrejas, em Genebra – Suíça.” Disponível
em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br/historia.html. Acesso em 18 jul. 2019.
6
A inciativa foi desenvolvida com o apoio de alguns centros de referência, como, mais destacadamente,
o Armazém Memória. O Armazém é um centro de referência criado em 2001 que inicia sua atividade
mapeando os arquivos do relatório do “Brasil: Nunca Mais”. Nas palavras do coordenador do projeto,
Marcelo Zelic (também foi diretor executivo do “Brasil: Nunca Mais Digit@l”), o centro visa “[...] colaborar
para o desenvolvimento de políticas públicas, que possam garantir ao cidadão brasileiro o acesso à
sua memória histórica [...] criando condições para que a memória da resistência histórica do povo
brasileiro a tantas adversidades fique acessível ao cidadão para consulta e estudo não só na internet,
como também nas universidades, escolas, casas de cultura, entidades civis e centros de formação
populares espalhados pelo país”. Em 2005 o Armazém Memória inseriu a digitalização do “Projeto A” na
web, no Centro de Referência Virtual Brasil Nunca Mais. O projeto foi financiado com recursos públicos
da Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia.
Informações disponíveis em: http://www.armazemmemoria.com.br. Acesso em: 18 jul. 2019.

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Usos do passado sensível no ambiente digital: o “Brasil: Nunca Mais Digital” e o projeto “eva.stories”

pedido de repatriação dos arquivos do “Brasil: Nunca Mais” – que estavam no Center
for Research Libraries, em Chicago, Estados Unidos – pelo Ministério Público Federal
(MPF) e da parceria entre diversas entidades públicas e privadas foi possível iniciar os
procedimentos necessários para a inserção desse extenso acervo na internet.
Após a obtenção dos 543 microfilmes, iniciou-se o processo de conversão
do material analógico para material digital (digitalização), realizado por meio do
Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP). Assim, seguiu-se executando
procedimentos técnicos em torno da verificação de documentos danificados, da
classificação de imagens danificadas e do tratamento digital das imagens geradas
(cerca de 870 mil). A indexação do material foi feita através da DOCPRO,7 logo em
seguida foi possível realizar a hospedagem do site, feita a partir de um servidor do
MPF – por essa razão o domínio “mpf.mp.br” no endereço eletrônico do site. Em 9 de
agosto de 2013 foi realizada a cerimônia de lançamento do site e, a partir dessa data,
após quase trinta anos do lançamento do livro “Brasil: Nunca Mais”, o acervo completo
dos 710 processos judiciais, que ao longo dos anos foram copiados, microfilmados,
catalogados, escondidos, transportados por longas distâncias, digitalizados e, por fim,
divulgados na íntegra na internet, tornou-se disponível, gratuitamente, em qualquer
parte do mundo e por qualquer pessoa no ambiente digital. Foi o início de uma nova
fase do projeto, de relevância “histórica, social, jurídica e pedagógica”8 em busca da
defesa e do respeito da memória, da verdade e da justiça.
Após esse primeiro momento do artigo, de análise e reflexão do projeto “Brasil
Nunca Mais Digital”, cabe agora dar prosseguimento às reflexões aqui propostas
e tratar sobre uma segunda iniciativa, que também se insere no meio digital, para
promover seus objetivos on-line em torno de um evento histórico sensível – o projeto
“eva.stories”.

EVA.STORIES: AS REDES SOCIAIS E A REPRESENTAÇÃO


DE UM PASSADO SENSÍVEL ON-LINE
No final de 2019, o perfil do “eva.stories” possuia cerca de 1,6 milhão de
seguidores em sua página no Instagram. Essa quantidade denota o forte impacto9
dessa iniciativa no campo da mídia social e fora dele. Essa é uma das razões para o
desenvolvimento de projetos desse tipo no ambiente digital. De acordo com Elisa Miles
(2001, apud MANCA, 2019, p. 190, tradução nossa), “[...] a internet tem um grande
potencial para ajudar a expor histórias complexas que interligam uma variedade
de cronologias com experiências e as torna disponíveis para aqueles interessados

7
Empresa de software brasileira que desenvolve programas que permitem reunir os arquivos
digitalizados em um acervo digital e garante a “[...] visualização e, principalmente, pesquisa livre e
instantânea em conteúdo gerado a partir de papel ou documentos eletrônicos”. Disponível em: http://
docpro.com.br/new/. Acesso em: 18 jul. 2019.
8
Citação da frase proferida pelo coordenador do Armazém Memória e do “Brasil: Nunca Mais Digital”,
Marcelo Zelic, na conferência de lançamento do site “BNM@”, no canal do YouTube da CNV, disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=VvJwCNX6LTM. Acesso em: 18 jul. 2019.
9
Além desse impacto, notado na quantidade de seguidores, o projeto apresenta outro indicativo que
revela sua grande repercussão. Trata-se da grande quantidade de jornais que noticiaram e exploraram
questões referentes ao “eva.stories”, como The New York Times, El Pais, The Guardian, O Globo,
Haaretz, Deutsche Welle etc.

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cognitiva e emocionalmente [...]”.10 Assim, a fim de entender o uso do passado em


uma rede social como o Instagram (entre outras questões que serão abordadas), é
necessário nesse momento entender o contexto em que o projeto se alçou e as bases
dessa iniciativa na web. O perfil “eva.stories” baseou-se no “Éva lányom” (“Minha filha
Eva”), o diário de Eva Heyman, publicado em 1948, em húngaro, por sua mãe Zsolt
Agnes.11 Trata-se de um livro que reúne trinta diários escritos por Eva a partir do dia
em que comemorava seu aniversário de 13 anos, com um recorte delimitado entre
13 de fevereiro e 30 de maio de 1944 – três dias antes da data de sua deportação
para Auschwitz-Birkenau. Eva se referia a seu diário12 como seu “melhor amigo”
(HOLLAND, 2012, p. 53); sendo assim, a ele confiava os detalhes de seus dias, desde
seus sentimentos até a descrição do que acontecia em sua família e em sua cidade.
É com essa ideia em relação ao diário que Eva Heyman anotou dia após
dia os acontecimentos em sua cidade, Nagyvárad (Oradea), na Hungria. A menina
descreveu sua família, e contou, por exemplo, sobre os presentes que recebeu deles
em seu aniversário. Discorria sobre seus hobbies, os esportes que praticava, os
idiomas que conhecia e um de seus sonhos: o de ser repórter fotográfica. Além de
narrar os acontecimentos comuns na vida de uma menina de sua idade – como uma
paixão por um menino de sua escola ou os momentos de lazer com sua amiga Marta
–, Eva permite que o leitor do diário “[...] tenha um senso de como essa adolescente
conseguiu criar para si ferramentas narrativas para analisar o que acontecia ao seu
redor e assumir uma postura crítica não apenas aos que a atacavam, mas aos que
atacavam a família dos demais judeus, e também da sua própria família” (SCHWARTZ,
2015, p. 119, tradução nossa).13
Ao longo do tempo, Eva registra sua angústia e seu temor com as situações
que vêm acontecendo em sua cidade, mas principalmente com amigos e a própria
família. Nota o impacto da legislação antijudaica no trabalho de seu avô: “Vovô era o
presidente dos farmacêuticos de nossa cidade, mas agora ele foi retirado por que é
judeu”.14 Assim, em uma perspectiva testemunhal sob a ótica pessoal, Eva descreve,
de maneira indireta, uma mudança que paulatinamente avança até atingir a população
de Nagyvárad, com o acirramento das políticas antissemitas – até o ponto de inflexão

10
No original: “[...] the Internet has great potential in helping to expound complex histories that interweave
a variety of chronologies and experiences, and making these available to those interested in engaging
cognitively and emotionally [...]”.
11
Ao longo dos anos, o livro lançado por Zsolt Agnes ganhou publicações em diferentes línguas, como
a edição em hebraico (1964), em inglês (1974), em alemão (2012), em francês (2013) e em espanhol
(2016). Até o momento, não há edição em língua portuguesa.
12
Há um artigo polêmico a respeito da mãe de Eva Heyman, que gira em torno da ideia de que Zsolt
Agnes seria a verdadeira autora dos diários de Eva. O artigo de Gergely Kunt, publicado em 2016,
defende essa ideia, utilizando como sustentação, entre outros argumentos, o fato de não existir
manuscritos originais dos diários. Segundo Kunt “[...] the book was written by the mother in the format
and style of a young girl’s diary to explore Éva Heyman’s shot life from the child’s perspective and to
help Ágnes process her grief over her daughter” (KUNT, 2016, p. 117).
13
No original: “[...] the diary gives the reader a sense of how this adolescent girl managed to create for
herself the narrative tools to analyze what is happening around her and to take a critical stance not only
toward the perpetrators who destroy her, her family’s and other Jewish people’s lives, but also toward
members of her family”.
14
Trecho retirado do livro The Diary of Éva Heyman, Yad Vashem, (1974, p. 30, tradução nossa).
Disponível em: https://www.yadvashem.org/education/educational-materials/books/dear-diary.html.
Acesso: em 20 jul. 2019.

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Usos do passado sensível no ambiente digital: o “Brasil: Nunca Mais Digital” e o projeto “eva.stories”

no diário, no dia 19 de março de 1944, em que Eva descreve com profundo pavor a
chegada dos alemães. No mês seguinte, em abril, o aguçamento da ocupação nazista
em Nagyvárad provoca a apreensão da bicicleta de Eva, e a obrigação de os judeus
usarem “estrelas de Davi amarelas”. Em maio, inicia-se um novo turning point no
capítulo do diário de Eva e na vida da cidade, com a ordem alemã de obrigar judeus a
deixar suas casas e seus pertences a fim de seguir para os guetos.
Assim, a menina continua descrevendo o que vive naquele novo ambiente – as
punições ao descumprimento de ordens nazistas, as proibições, o medo que sente e a
necessidade de escrever sobre tudo aquilo, como se fosse só o que restasse de tudo
o que tinha ou como se fosse um modo de escapar dos horrores.
No fim do mês de maio de 1944, Eva faz sua última anotação no diário: “Eu não
posso escrever mais, querido diário, as lágrimas caem dos meus olhos”.15 Três dias
após, a menina foi uma das deportadas para a Polônia e, posteriormente, enviada à
câmara de gás no campo de concentração de Auschwitz-Birkenau.
A partir dos horrores do testemunho de Eva, mais de setenta anos depois dos
acontecimentos o empresário judeu Mati Kochavi em colaboração com sua filha Maya
Kochavi financiaram, roteirizaram e dirigiram o que veio a se tornar o projeto “eva.
stories”. A ideia era “atualizar” a memória do holocausto para a “geração millennial”,
imaginando Eva Heyman sem um diário e uma caneta em mãos, mas sim um
smartphone e uma conta no Instagram.
Em entrevista ao jornal The New York Times, o empresário diz que “A memória
do Holocausto fora de Israel está desaparecendo”, e justifica a necessidade de se fazer
presente no Instagram. A rede social criada em 2010 gira em torno do compartilhamento
de fotografias, vídeos, mensagens e a aplicação de “filtros”. Rapidamente, o Instagram
se tornou um dos aplicativos mais usados no mundo: três anos após ser lançado já
contava com cerca de 150 milhões de usuários ativos.16 Em 2017, o número subiu
para 800 milhões.
Sobre a rede social, as autoras Ramos e Martins (2018) dizem que “É sob
a promessa de captura e compartilhamento de momentos do mundo, que versa o
Instagram, em um trânsito intenso entre o singular e o banal [...]”, e assim, por meio
de shares, likes, tags, comentários, emojis e demais funcionalidades,17 é possível
interagir com os posts e com os demais usuários da rede.
Dessa forma, usufruindo das ferramentas presentes no Instagram (além de um
marketing intenso também no “ambiente analógico”), mas principalmente dos stories,
no dia 1º de maio de 2019 (“Dia da Memória dos Mártires e Heróis do Holocausto”,
em Israel), o perfil foi lançado. Transformando pouco mais de trinta diários escritos por

15
Trecho retirado do livro The Diary of Éva Heyman, Yad Vashem. No original: “I can’t write anymore,
dear diary, the tears run from my eyes” (1974, p. 104). Disponível em: www.yadvashem.org/education/
educational-materials/books/dear-diary. Acesso em: 20 jul. 2019.
16
Disponível em: www.businessinsider.com/instagram-has-150-million-monthly-active-users-2013-9.
Acesso em: 20 jul. 2019.
17
Outra funcionalidade para entender a natureza do “eva.stories” são os próprios stories. A ferramenta
surgiu em 2016 e ao longo dos anos ganhou inúmeros updates que complementam suas funções.
Basicamente, permite ao usuário postar uma imagem ou algum vídeo de quinze segundos de duração
que permanece no perfil do usuário ao longo de 24 horas – ou permanentemente, caso o usuário
queira arquivá-lo. É possível adicionar aos stories algumas colagens, textos em diferentes formatações,
efeitos, filtros, emojis, hashtags, geotags etc.

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Eva em setenta stories; o “eva.stories” apresenta a dramatização dos acontecimentos


registrados, por uma equipe formada por quatrocentas pessoas e um orçamento de 5
milhões de dólares.18
A partir da premissa “E se uma menina, durante o Holocausto, tivesse
Instagram?” e da ideia de levar o smartphone (e a internet) até 1944, os setenta
“episódios” mostram Eva gravando vídeos no formato selfie, e inserindo efeitos
e frases em imagens publicadas em sequência. Além disso, o uso de hashtags –
#reporterlife; #thisis13; #truelove; #lifeduringwar – e geotags – #Home; #Park, #School,
#Grandpapharmacy etc. – é frequente. Assim, como se fosse uma adolescente de
2019, Eva “utiliza” as redes sociais para compartilhar um pouco de seu mundo e de
sua realidade. O choque de linguagens e de zeitgeist (espírito de época) é sentido
desde o começo, mas se intensifica conforme a “trama” conduz Eva para os momentos
mais graves da perseguição nazista. Da alegria das comemorações de aniversário até
as primeiras impressões de Eva das políticas antijudaicas; do horror misturado com
filtros e stickers, com o smartphone gravando em formato vertical (padrão dos stories)
até as cenas de entrada de tanques e tropas alemãs na cidade, esse estranhamento
também pode ser explicado por se tratar de uma iniciativa inovadora. Isso não se
deve ao uso de mídia social para trabalhar com o tema do Holocausto (PFANZELTER,
2017), mas das características técnicas e do formato stories, escolhido pelos Kochavi,
para retratar um passado sensível, em que sempre há uma linha tênue entre uma
representação que banalize ou não, desrespeite ou não, represente ou não.

CONVERGÊNCIAS E DISPARIDADES: REFLEXÕES


NECESSÁRIAS E DIÁLOGOS POSSÍVEIS ENTRE “BRASIL
NUNCA MAIS DIGITAL” E “EVA.STORIES”
Após analisar individualmente questões em torno da criação, do desenvolvimento
e da execução das duas iniciativas, cabe, neste momento, avançar na análise e pensar
diferentes níveis acerca de implicações dos projetos – tanto no campo da História
e dos variados usos do passado como naqueles relacionados ao meio on-line. No
entanto, antes disso, se faz necessário discutir pontos de convergência e assimetrias
entre os projetos, de modo que seja possível pensá-los em conjunto e, assim, colocá-
los em perspectiva.
Enquanto o “Brasil Nunca Mais Digital” insere-se na internet com o objetivo de
ampliar o acesso e expandir as possibilidades documentais de seu acervo (além de
outras metas já explicitadas anteriormente), o projeto “eva.stories” ambiciona, além de
criar um buzz marketing, atingir emocionalmente um público-alvo jovem, de modo que
“impacte” quem assista, e que os horrores da Shoah não sejam esquecidos. Trata-se,
portanto, de “largadas” semelhantes, mas trajetórias completamente distintas. Suas
“largadas” partem do uso de passados traumáticos, cada qual com sua especificidade
histórica, e do trabalho com o legado e com a memória desses eventos, que encontram
na internet um meio de atingir suas finalidades. Seus caminhos é que acabam por se
diferir, visto que, grosso modo, um digitaliza e garante o livre acesso à documentação

18
Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/perfil-no-instagram-eva-stories-conta-trajetoria-
de- adolescente-vitima-do-holocausto-23636725. Acesso em: 20 jul, 2019.

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Usos do passado sensível no ambiente digital: o “Brasil: Nunca Mais Digital” e o projeto “eva.stories”

de um vasto acervo histórico, enquanto outro escolhe tanto uma linguagem como
uma abordagem narrativa própria. São tratos completamente distintos com o passado
sensível e modos de comunicar que se distinguem e, por si, definem suas trajetórias.
Seus públicos variam e, por conseguinte, exigem-se dos projetos abordagens que
compreendam e atraiam essas audiências. Fica evidente então que uma é direcionada
a jovens, a uma “geração millennial” hiperconectada da mídia social, enquanto outra
direciona seu foco, não somente, mas principalmente, a um público de pesquisadores
ou interessados, de modo geral, em temas relativos ao período ditatorial brasileiro.
Apesar do itinerário próprio que cada projeto determina para si, é possível
encontrar pontos de convergência, de diálogo? Tendo em vista o que está sendo
refletido neste artigo, a resposta é sim. A explicação parte da ideia de “história pública
digital”, um meio ainda incipiente na historiografia brasileira, mas que pode fornecer
caminhos analíticos interessantes para entender o que une as iniciativas.
Mesmo que não se autodeclarem nem pretendam ser projetos de história
pública per se, são exemplos, e não modelos cristalinos, do que se pode chamar de
“história pública digital”. Entendendo esse campo/abordagem como mecanismo de
amplificação e divulgação de conhecimento histórico “feita para, com e pelo público”
(MAUAD; SANTHIAGO; BORGES, 2018, p. 12), percebe-se também que se vale
do meio digital e da internet para potencializar suas possibilidades – tanto técnicas
como práticas. Nesse sentido, se torna possível pensar em alternativas que levem em
conta formatos, narrativas e variadas abordagens de entrelace com o público. Afinal, a
argamassa dos dois projetos é a web, visto que são dependentes de funcionalidades
digitais e, de outro lado, da cibercultura (LÉVY, 1999), que define suas próprias
características e modus operandi – como no caso “eva.stories”. Ainda que possuam
“largadas” similares e trajetórias distintas, os projetos teriam uma “linha de chegada”
comum? A resposta está na compreensão das “linguagens” dos projetos e de suas
escolhas de uso do passado.
A forma pela qual o “Brasil: Nunca Mais Digital” insere-se na discussão sobre os
usos do passado pode ser entendida a partir da análise feita por Knauss em que fala
sobre a transmutação de documentos, mais especificamente sobre os documentos
da polícia política que “[...] nasceram para perseguir os cidadãos, considerando-os
inimigos de Estado, ou ‘inimigos internos’”. Contudo, hoje eles são “[...] instrumentos
da garantia de direitos dos cidadãos frente ao Estado” (KNAUSS, 2009, p. 10). Assim,
existe uma “transformação de finalidade” desses documentos e uma ressignificação
do próprio uso do passado, cuja finalidade é direcionada para políticas de reparação,
busca pela verdade, justiça, memória e a superação desse passado junto à sociedade.
A internet, portanto, torna-se um veículo potencializador dos objetivos do projeto e
agregador, no sentido em que reúne em um único espaço (site) quantidades enormes
de materiais documentais acessíveis a qualquer um em qualquer parte do mundo –
unido aos campos de uma “história pública digital” que amplia seus “domínios” até as
mais diferentes audiências, não necessariamente havendo mediação de historiadores
profissionais. O “Brasil: Nunca Mais Digital” cumpre sua finalidade, que se manteve
muito parecida com a ideia gerada nos anos 1970, mas que “se atualizou” para tornar
possível a reflexão e a conscientização sobre os horrores da ditadura civil-militar
brasileira, cujas marcas ainda são sentidas hoje.
É de modo distinto que o “eva.stories” se utiliza do passado traumático. Com
a proposta de “impressionar”, levar o testemunho de Eva e uma representação da
Shoah (atualizada para 2019), o perfil de Instagram inegavelmente alcançou espaço

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na “opinião pública” e atingiu audiências em todas as partes do mundo. O projeto,


então, optou por representar o traumático, o sensível, atualizando-o e inserindo
linguagens e formatos que não dialogam com a experiência do Holocausto. Ao retratar
um evento extremo, é preciso “levar a sério as formas de representação, [o que]
significa reconhecer o seu poder de mover, influenciar, ofender e ferir” (HARTMANN,
2000, p. 208). Portanto, ao determinar a linguagem que empregaria, o projeto opta por
determinada forma de narrar e de representar esse evento extremo e, dessa maneira,
pormenoriza sua agência na web.
O “eva.stories” decide levar o smartphone a 1944, inserir hashtags aos stories
em diferentes ocasiões e filmar em formato selfie momentos como a ida ao gueto
judeu e até mesmo a deportação, por viagem de trem, ao campo de concentração
polonês – não descrito nos diários de Eva. Além de fazer um movimento em
torno da ficcionalização do testemunho, as escolhas feitas pelo projeto provocam
o entendimento que o objetivo de “chocar” a audiência que assistia aos stories e
utilizar uma linguagem “tão jovem” e tão atual no Instagram objetivava transformar o
espectador em uma “vicarious witness” ou “testemunha de substituição” (HARTOG,
2013b). O público é atingido de tal maneira que o “exercício de empatia” se torna
um instrumento que potencializa a experiência e aproxima o horror e o trauma do
espectador, tornando-o, assim, partícipe daquele passado sensível. À vista disso,
como se pode pensar em transformar essa audiência hiperconectada em “testemunha
delegada”, trazendo a ela uma experiência de choque e de impressionismo? Visto
que a experiência “[...] a ser transmitida é a de inumanidade sem comparação com
a experiência do homem ordinário. É nesse sentido que se trata de experiências
extremas” (RICŒUR, 2007, p. 186).
Em matéria da ABC News, intitulada “When a selfie goes too far: How Holocaust
memorial sites around Europe combat social media disrespect”, discute-se sobre
como o uso das mídias sociais pode tornar a experiência de visitar um campo de
concentração algo desrespeitoso.19 Assim sendo, como não traçar um paralelo disso
com o formato proposto pelos Kochavi para trabalhar com a história de Eva? Além
disso, como não refletir sobre um processo de dessensibilização, que torna rotineiro
ver “imagens extremas” e impede a devida reflexão e sensibilização? A respeito
disso, Geoffrey Hartmann (2000, p. 208-209) menciona que “[...] a mídia nos tornou
a todos coespectadores involuntários das atrocidades apresentadas plasticamente e
a cada hora. A dessensibilização que descrevi leva a um medo racional: será nossa
capacidade para a simpatia finita e rapidamente exaurível?”.
Dito isto, é evidente, portanto, que se trata, inevitavelmente, de “linhas de
chegada” distintas entre o “Brasil Nunca Mais Digital” e o “eva.stories”. Não porque
escolhem abordagens distintas, mas por que produzem resultados díspares. Acervos
digitais conseguem um espaço importante na web (por exemplo, a Internet Archive
e seu “Wayback Machine”) e na crescente historiografia da história digital. Mesmo
que possa ser encarado como pouco atrativo a variados públicos, o “Brasil: Nunca

19
Sobre isso, vale destacar a declaração feita no perfil do @AuschwitzMuseu”: “When you come to
@AuschwitzMuseum remember you are at the site where over 1 million people were killed. Respect
their memory. There are better places to learn how to walk on a balance beam than the site which
symbolizes deportation of hundreds of thousands to their deaths”. Disponível em: https://twitter.com/
auschwitzmuseum/status/1108337507660451841. Acesso em: 22 jul. 2019.

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Usos do passado sensível no ambiente digital: o “Brasil: Nunca Mais Digital” e o projeto “eva.stories”

Mais Digital” não perde sua relevância para a sociedade nem para a web. Seu foco
não está, propriamente, em estruturas digitais, no acompanhamento de atualizações
frequentes em softwares, mas na busca pela garantia do acesso amplo e irrestrito
de documentações e da memória histórica de resistência e luta de um dos episódios
recentes mais traumáticos da história nacional. No entanto, formatos como o “eva.
stories” podem ser encarados, a posteriori, como peça publicitária ou uma experiência
de sensibilização de jovens diretamente imbricada a uma “datada” usabilidade,
dependente de softwares e da continuidade de interfaces que se mantenham
fazendo sentido mesmo após anos ou após aceleradas atualizações. Visto que suas
funcionalidades são produto do “estado da internet da época” (uma espécie de “zeitgeist
digital”) –, conforme atualizações surgem, aplicativos, redes sociais e iniciativas ficam
à mercê de obsolescências inexoráveis.
Por fim, o que se tentou fazer aqui foi entrelaçar essas duas iniciativas, quando
possível, e compreender seus pontos de convergência e suas disparidades. Para
conseguir colocá-las em perspectiva, foi necessário pensar no que as une, a web ou
os usos que fazem do passado. E assim pensar nas contribuições que as iniciativas
trazem para debates importantes na historiografia sobre passados traumáticos,
memória e, mais recentemente, a relação da internet e a História.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo do presente artigo foi possível refletir, em diferentes níveis, sobre
dois projetos que utilizam o meio digital para divulgar e, cada um a sua maneira,
tornar determinado passado acessível – seja facilitando a pesquisa documental, seja
representando acontecimentos a partir do smartphone. Diante de suas proximidades e
pontos de afastamento, o diálogo entre os projetos apontou para uma “história pública
digital”. Ainda que não se pretendessem “modelos cristalinos”, apresentam seus
méritos no que se refere ao enfrentamento ao esquecimento de passados sensíveis.
Ao mesmo tempo, fermentam discussões importantes sobre os usos do passado e
suas possibilidades no meio digital.
Por meio das novas tecnologias e desse ambiente digital, “[amplia-se] a
percepção que os historiadores tinham da própria tecnologia, [e] seu uso passou
a ser mais problematizado” (LUCCHESI, 2014, p. 47). Por isso, muito mais do que
uma mídia ou uma ferramenta, a web torna-se também um campo de trabalho para o
historiador – que cada vez ganha mais sentido e urgência no aprofundamento de suas
bases metodológicas e teóricas.
O “Brasil Nunca Mais Digital” é um repositório on-line de arquivos judiciais, e
seu próprio histórico de construção, desde os anos 1970, já se configura como campo
de exploração de conhecimento histórico, diverso em possibilidades de pesquisa.
Permite o avanço em estudos sobre o período ditatorial brasileiro, ao mesmo tempo
que promove a luta pelos direitos humanos, pela memória e pela justiça.
O “eva.stories”, para além dos apontamentos feitos ao longo do artigo, é objeto
de problematizações e desdobramentos analíticos que ultrapassam os limites do
extenso debate sobre a Shoah, ou sobre a vida de Eva Heyman e sua família. Suas
possibilidades configuram um campo de estudo diverso que envolve, por exemplo, a
representação de situações extremas, a ficcionalização, os usos do passado e suas
particularidades através da internet, as redes sociais como ambiente de propagação

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de memórias e divulgação do passado etc. Dada a sua amplitude, sobre tal campo
não se pôde discorrer longamente neste artigo.
Não se tratou aqui de analisar formas inteiramente distintas, ou novas abordagens
de comunicar e utilizar o passado, visto que tanto acervos como produções fílmicas e
literárias já trazem consigo inúmeras características dos projetos abordados neste texto.
Mas, obviamente, essas iniciativas apresentam particularidades inegáveis, abordadas
e explicitadas nos dois primeiros capítulos deste artigo, e que se desdobram através
da internet. Tratou-se, no entanto, de formatos já conhecidos, que se reinventaram
e combinaram com um ambiente “novo”, capaz de alcances e de grande relevância,
tanto teórica como social.
Em relação aos historiadores, as práticas da sociedade em torno da web
geram “atualizações” inegáveis e intransponíveis no métier dos historiadores
contemporâneos, e transformam a própria prática histórica, “[...] fazendo-os cruzar os
limites da academia em direção ao grande público” (SILVEIRA, 2018, p. 49). Levando
em conta a concepção de diluição da autoridade do historiador, torna-se possível
pensar em um ambiente digital que não se centra somente em atingir ou engajar
audiências, mas capaz de incentivar agentes de divulgação e problematização do
conhecimento histórico na internet.
É nesse sentido que projetos como o “Brasil: Nunca Mais Digital” e “eva.stories”
podem ser altamente valiosos – além de democratizar o acesso a documentações
e desenvolver estratégias narrativas de confrontação de “passados-presentes” com
a sociedade, fermentam ponderações sobre práticas do campo da história, do trato
com o passado e suas implicações nas estruturas de bits e bytes de atualizações
aceleradas, ainda incipientes principalmente no cenário historiográfico brasileiro.
Por fim, ao longo do artigo, foi possível traçar um panorama sobre as duas
iniciativas – não se limitando a classificar, adjetivar ou simplesmente descrever.
Procurou-se colocar ambos os projetos em perspectiva, e então discorrer acerca das
implicações dos usos do passado sensível no meio on-line. Ficou evidente, portanto,
que debates e reflexões não se encerram aqui, e que se está longe de se esgotar
implicações, e de determinar caminhos singulares ou conclusivos para os crescentes
debates a respeito da relação entre “era digital” e a História. O que, neste momento,
torna-se relevante destacar é a percepção sobre as possibilidades das estruturas da
web para as práticas de historiadores e historiadoras, além dos caminhos que podem
ser seguidos ao representar ou “democratizar o acesso a determinado passado”. No
entanto, não se trata de gravitar em torno de uma “tecnofilia” (que empobrece o debate),
mas de perceber as iniciativas como produtos de seus tempos e produtos desse meio
digital que as retroalimenta. Nesse ínterim, além das ponderações já colocadas,
almejou-se repensar campos e abordagens, além de encorajar o amadurecimento, tanto
teórico como metodológico, de escopos ligados à “história digital” e das “humanidades
digitais”. Entende-se que em um mundo em constante aceleração (HARTOG, 2012),
inundado por compartilhamento de momentos “instantâneos”, o passado acaba sendo,
cada vez mais, vivenciado no presente e, portanto, cabe ao nosso tempo procurar
formas de lidar com novidades epistemológicas ou antigas feridas que ainda fazem
parte do nosso cotidiano.

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Usos do passado sensível no ambiente digital: o “Brasil: Nunca Mais Digital” e o projeto “eva.stories”

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Usos do passado sensível no ambiente digital: o “Brasil: Nunca Mais Digital” e o projeto “eva.stories”

NOTAS

AUTORIA
Miguel Barboza Castro: Graduado. Mestrando, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de História, Porto Alegre, RS, Brasil.

ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA


Avenida Bento Gonçalves, 9500, 91501-970, Porto Alegre, RS, Brasil.

ORIGEM DO ARTIGO
Este artigo decorre de discussões desenvolvidas ao longo da disciplina “O testemunho da história
recente do Brasil: história e literatura” realizada durante o mestrado acadêmico do Programa de Pós-
Graduação em História, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

AGRADECIMENTOS
Gostaria de fazer os devidos agradecimentos à pesquisadora Larissa Medina Marques, a quem estimo
muito, pela atenção, incentivo e as valiosas conversas que, sem dúvidas, enriqueceram as reflexões
desenvolvidas. Estendo os agradecimentos à professora Mariluci Cardoso de Vargas, pela qualidade
das aulas ministradas e pelos insights que acabaram por motivar a escrita deste artigo.

FINANCIAMENTO
Essa pesquisa foi financiada por bolsa de mestrado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior (CAPES), processo n. 88882.346317/2019-01.

APROVAÇÃO DE COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA


Não se aplica.

CONFLITO DE INTERESSES
Não houve conflito de interesses.

LICENÇA DE USO
Este artigo está licenciado sob a Licença Creative Commons CC-BY. Com essa licença você pode
compartilhar, adaptar e criar para qualquer fim, desde que atribua a autoria da obra.

PUBLISHER
Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em História. Portal de Periódicos
UFSC. As ideias expressadas neste artigo são de responsabilidade de seus autores, não representando,
necessariamente, a opinião dos editores ou da universidade.

EDITORES
Flávia Florentino Varella (Editora-chefe)
Rodrigo Bragio Bonaldo

HISTÓRICO
Recebido em: 2 de novembro de 2019
Aprovado em: 19 de fevereiro de 2020

Como citar: CASTRO, Miguel Barboza. Usos do passado sensível no ambiente digital: o “Brasil:
Nunca Mais Digital” e o projeto “eva.stories”. Esboços, Florianópolis, v. 27, n. 45, p. 249-263, maio/
ago. 2020.

Esboços, Florianópolis, v. 27, n. 45, p. 249-263, maio/ago. 2020. 263/342


ISSN 2175-7976 DOI https://doi.org/10.5007/2175-7976.2020.e68390

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