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' R. K. MERTON P H. ROQ1JEPLO
T. S. K1JHN F. GIL
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W. 0. HAGSTROM R. HoRTON
J. HABERER A. MASLOW
G. B. VAN ALBADA A. N. WHITEHEAD

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CRITICA
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CIENCIA
SOCIOLOGIA E IDEOLOGIA DA· CI:E:NCIA

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Organização e Introdução de
JORGE DIAS DE DEUS

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2 ª edição

''\ I

ZAHAR EDITORES
'RIO DE JANEIRO
Si. '.\!

Copyright © by Jorge Dias de Deus


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INDICE
capa de
!t" ÉRICO
~ UMA INTRODUÇÃO, ALGUNS COMENTÁRIOS E TR1':S
OPINIÕES SOBRE A CIÊNCIA ..................... . 9
t' Introdução ........................................... . 11

i.' ANTOLOGIA DE TEXTOS SOBRE SOCIOLOGIA E IDEO-


36
\1 ~1
LOGIA DA CUl:NCIA ......••..................•.....
- Os imperativos institucionais da ciência., R. K. MERTON 37
1 ~2 -fA fu:nt;ão do dogma na investigação cientifica,
;
'T. S. KUHN ................................... . 53
3 - O cont-role social dos cientistas, W. O. HAGSTROM ..• 81
4 - Politização na ciência, J. HABERER . • . . . . . . . . . . . . . 107
6 - Ciência e capital, G. B. VAN ALBADA . . . . . • . . . . . . 136
6 - Oito teses sobre o significado da ciência, Ph. RO·
QUEPLO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 140
7 - O plano da ciência, F. GIL ..................... . 158
8 - Diferenças entre culturas tradicionais e cul.tura.s de
orientação científica, R. HORTON . . . . . . . . . . . . . . . . . 187
9 - As necessidades de conhecimento e o seu condiciona•
í 1,: menta pelo medo e pela. cOTagem, A. MASLOW . • . . . . 206
219
10 - A reação romântica, A. N. WHITEHEAD .......... .

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1 Direitos para a língua portuguesa concedidos a
t,,:, ZAHAR EDITORES
Caixa Postal 207, ZC-00, Rio
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Impresso no Brasil
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1- OS IMPERATIVOS INSTITUCIONAIS DA
CIÊNCIA 'f.
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R. K. MERTON l'<;ii,
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A ciência, como qualquer outra atividade que envolve
colaboração social, está sujeita a mudanças de fortuna. Por
difícil que esta simples idéia possa parecer às pessoas
criadas numa cultura que dá à ciência um lugar proemi-
nente, se não de predomínio, na ordem das coisas, é evi-
dente que a ciência não é imune aos ataques, à restrição
e à repressão. VEBLEN, que escreveu já faz bastante tem- I['
,,[
po, pôde observar que a fé da cultura ocidental na ciên-
cia era ilimitada, indiscutível e sem igual. A rebelião con-
'I;
tra a ciência, que então parecia tão improvável, que so-
mente interessava ao intelectual tímido acostumado' a pe• t
sar todas as contingências, por remotas que fossem, agora
se impôs à atenção tanto do cientista como do leigo. Os
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contágios locais de antiintelectualismo ameaçam tornar-se 'V
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epidêmicos.
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1 X. CI:E:NCIA E SOCIEDADE t
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Os ataques incipientes e reais à integridade da ciên-


11 cia têm levado os cientistas a reconhecerem sua dependên-
J, cia de certos tipos de estrutura social. Manifestos e de- ~
1
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clarações de associações científicas são dedicados às re- '•
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* Referência: uA ciência e a estrutura social democrática", 1:~1
cap. XVIII, de SoCWl-Ogia, Teoria e Estrutura, Editora Mestre Jou, J_'
i[: São Paulo, 1970. Tradução de Miguel Maillet do original Social '.:f]
Theorv and Social Structure, Free Press, 1967. Reproduzido com ~
I' autorização das Editoras Macmillan e Mestre Jou.
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38 A Os IMPERATIVOS INSTITUCIONAIS DA CtfNCJA 39
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CRÍTICA DA CIÊNCIA Ili,
um acervo de conhecimentos acumulados, provenientesida :--~
lações entre a ciência e a sociedade. Uma instituição que ·N:
sofre ataques tem que examinar de novo seus fundamen- aplicação desses métodos; 3) um conjunto de valores e \l
;,.
tos, revisar seus objetivos, buscar sua explicação racio- costumes culturais que governam as atividades chamadas -1f

nal. As crises convidam à autocrítica. Agora que têm que cientificas; ou 4) qualquer combinação dos itens anterio- ·[i•
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enfrentar ameaças ao seu modo de vida, os intelectuais res. Aqui estamos tratando, preliminarmente, da estrutu-
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foram lançados a um estado de aguda conscientização : ra cultural da ciência, isto é, de um aspecto limitado da
consciência da própria personalidade como elemento in- ' ciência como instituição. Assim, pois, examinaremos não
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tegrante da sociedade, e das obrigações e interesses cor- os métodos da ciência, mas os costumes que os circundam.
respondentes. ' A torre de marfim é indefensável quando Sem dúvida, os cânones metodológicos são muitas vezes
suas muralhas são assaltadas. Depois de prolongado pe- expedientes técnicos e, ao mesmo tempo, obrigações mo-
ríodo de relativa segurança, durante o qual o culto à ciên- rais, mas são apenas estas últimas que agora nos interes-
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cia e a difusão dos conhecimentos tinham chegado a uma ram. Este é um ensaio sobre a Sociologia da Ciência, não
posição de destaque, se não de primeiro plano, na escala uma incursão da metodologia. De modo análogo, tam- lf~,;
de valores culturais, os cientistas se vêem obrigados a pouco trataremos das descobertas concretas da ciência
justificar os caminhos da ciência para os homens. Assim (hipóteses, uniformidades, leis) , salvo quando forem per-
eles fecharam o circulo, levando-o de volta ao ponto e mo- tinentes aos sentimentos sociais padronizados em relação ,.
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mento em que a ciência reapareceu no mundo moderno. à. ciência. Não se trata de uma aventura de polimatia.
Três séculos atrás, quando a instituição da ciência pouca O ethos da ciência é esse complexo de valores e nor- w
·11:
1

,,1I justificação podia apresentar para. conseguir o apoio da mas efetivamente tonalizado, que se considera como cons-
1
1
:i' sociedade, os filósofos naturais eram levados assim mes- tituindo uma obrigação moral para o cientista. 1• As nor-
~ í! mo a justificar a ciência como um meio para fins cultu- mas são expressas em forma de prescrições, proscrições,
,,1:1 ralmente válidos de utilidade econômica ou de glorifica- preferências e permissões, que se legitimam em relação
1
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ção de Deus. O cultivo da ciência não era então-um valor com valores institucionais. Esses imperativos, transmiti-
evidente por si mesmo. Mas, com a interminável corrente dos pelo preceito e pelo exemplo e reforçados por sanções, 'f'
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!l de êxitos obtidos pela ciência, o instrumental se transfor- são assimilados em graus variáveis pelo cientista, forman-
iI:l mou em final, os meios se transformaram em fins. Assim do assim sua consciência cientifica ou, se preferirmos ·r,,
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fortalecido, o cientista chegou a considerar-se indepen- usar a palavra moderna, seu superego. Embora o ethos
dente da sociedade e a encarar a ciência como empresa da ciência não tenha sido codificado," pode ser inferido
que se justifica por si mesma e que "está" na sociedade, do consenso moral dos cientistas expresso nos usos e cos-
mas não "faz parte" dela. Era necessário que se desse um tumes, em numerosas obras sobre o espírito científico e
ataque frontal contra a autonomia da ciência, para trans- na indignação moral que suscitam as contravenções do
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formar esse isolacionismo otimista em participação rea-
lista do conflito revolucionário das culturas. A conseqüên-
cia dessa associação leva a clarificar e reafirmar o ethos
ethos.
O estudo do ethos da ciência moderna nada mais é
que uma introdução limitada a um problema maior: o
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da ciência moderna.
'l A palavra ciência é um vocábulo enganosamente am- 18
! Sobre o conceito do ethos, ver SuMNER, Folkways, 36 e segs.; 'f
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plo, que designa grande diversidade de coisas diversas,
embora relacionadas entre si. É usada geralmente para
HANS SPEIER,"The social determination of ideasii, Social Research,
1938, 5, 196 e segs.; MAX SCHELER, Schriften aus deni N'achlass
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indicar: 1) um conjunto de métodos ·característicos por (Berlim, 1933), 1, 225-62. ALBERT BAYET, cm seu livro sobre este

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meio dos quais os conhecimentos são comprovados; 2) assunto, logo abandona a descrição e a análise e se põe a moralizar;
ver sua La, morale de la, science (Paris, 1931). 'f
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i<I 2 Conforme diz BAYET: "Cette morale [de la scien.ce] n'a pa.s
1
1 Como esse trabalho foi escrito em 1942, é evidente que a eu ses théoriciens, ma.is elle a, eu. se!J artisan!J. Elle n'a, PM exprimé
explosão de Hiroxima contribuiu para que maior número de cien~ son. idéal, mais elle l'a servi: il est impliqué da.i,,s l'existen.ce même
tistas percebesse as conseqüências sociais das suas descobertas. de la, science". Op. ci.t., 43.

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40 A CRfrICA DA CIÊNCIA ÜS IMPERATIVOS INSTITUCIONAIS DA CIÊNCIA 4J [!'i
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estudo comparativo da estrutura institucional da ciência. gados para esse fim proporcionam a definição relevante '
Ainda que as monografias detalhadas, reunindo os mate- do conhecimento : predições empiricamente confirmadas
riais comparativos necessários, sejam poucas e espalha- e logicamente congruentes. Os imperativos institucionais
das, proporcionam alguma base para o pressuposto pro- (mores) derivam da meta em vista e dos métodos. Toda
visório de que "a ciência tem oportunidade de desenvol- a' estrutura de normas técnicas e morais leva à consecução
vimento, numa ordem democrática, integrada com o ethos \' do objetivo final. A norma técnica da prova empírica, su-
da própria ciência". Isto não significa que o cultivo da ficiente, válida e digna de fé, é um requisito prévio para
ciência esteja restrito às democracias.• As estruturas so- a comprovação das previsões exatas; a norma técnica da
ciais mais diversas têm proporcionado certo apoio à ciên- congruência lógica, um requisito prévio para a predição
cia. Basta lembrarmos que a Accademia del Cimento foi
patrocinada por dois Médicis; que Carlos II tem direito
sistemática e válida. Os mores da ciência têm uma expli-
cação racional metodológica, mas são moralmente obriga-
,,
ao reconhecimento da história por ter concedido carta .de tórios, não somente porque são eficazes do ponto de vista
privilégio à Real Sociedade de Londres e por ter patroci- do procedimento, mas também porque são considerados
nado o Observatório de Greenwich; que a Academia de justos e bons. É um conjunto de prescrições tanto morais
,I Ciências em Paris foi fundada sob os auspícios de como técnicas.
Luís XIV, mediante a recomendação de Colbert; que, Quatro passos de imperativos institucionais - uni-
, I' ' pressionado por Leibniz, Frederico I fundou a Academia versalismo, comunismo, desinteresse e ceticismo organi-
' de Berlim, ao passo que a Academia . de Ciências de zado - compreendem o ethos da ciência moderna.
São Petersburgo foi instituída por Pedro,', o Grande (para
refutar a opinião de que os russos eram bárbaros). Mas
i''I Universalismo
esses fatos históricos não implicam uma ligação fortuita
I' da ciência e da estrutura social. Resta ainda a questão da O universalismo 4 encontra expressão imediata no
proporção entre o desenvolvimento científico e as .poten- cânon de que as pretensões à verdade, quaisquer que se-
i, cialidades científicas. É certo que a ciência se desenvolve jam suas origens, têm que ser submetidas a critérios im-
em diversas estruturas sociais, mas quais fornecem me- pessoais preestabelecidos : devem estar em consonância
lhor contexto institucional para seu maior desenvolvi- com a observação e com o conhecimento já previamente
mento? confirmado. A aceitação ou a rejeição dos pedidos de in-
gresso nos registros da ciência não devem depender dos
atributos pessoais ou sociais do requerente; não têm im-
O ETHOS DA CI1':NCIA portância em si mesmas a raça, a nacionalidade, a religião
A meta institucional da ciência é o alargamento dos e as qualidades de classe ou pessoais. A objetividade
conhecimentos certificados. Os métodos técnicos empre- exclui o particularismo. A circunstância de que as formu-
lações cientificamente verificadas se referem a seqüências 1
e correlações objetivas milita contra todas as tentativas r
3 ToCQUEVILLE foi mais longe: "O futuro provará se essas paixões de impor critérios particulares de validez. Um decreto de "
11
[para a ciência] raras e fecundas, ao mesmo tempo, nascem e se
desenvolvem tão facilmente entre as sociedades democráticas, como
nas comunistas aristocráticas. Quanto a mim, confesso que me custa
Nuremberg não pode invalidar o processo Haber, nem a
lei da gravitação pode ser revogada por anglofobia. O
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acreditar nisso". Democracy in America (Nova Iorque, 1898), II, 51. f
Veja-se outra expressão da mesma idéia: "É impossível estabelecer 4 Para uma análise básica do universalismo nas relações sociais, 1
uma relação causal entre as democracia e a ciência e afirmar que ver TALCO'IT PARSONS, The Social System. Para uma expressão da i,,"
somente a sociedade democrática pode proporcionar o solo adequado crença de que a "ciência é completamente independente das fronteiras
para o desenvolvimento da ciência. TodaYia, não pode ser mera coin- nacionais, das raças e dos credosu, ver a resolução do Conselho da
·.r! cidência que a ciência, na realidade, tenha florescido em épocas de- Associação Americana para o Progresso da Ciência, Science, 1938,
mocráticaft". HENRY E. SIGERIST, "Science and democracy", Science 87, 10; também "The advancement of science and society: propose<l
and Society, 1938, 2, 291. world association'', Nature, 1938, 141, 169.
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Os IMPERATIVOS INSTITUCIONAIS DA CIÊNCIA 43
42 A CRÍTICA DA CIÊNCIA

determina o papel social que está chamado a desempe-•


chauvinista pode riscar o nome dos cientistas estrangei- nhar. O homem de ciência pode ser transformado em ho-
ros nos manuais de história, mas as formulações dos re- mem de guerra e atuar em conseqüência. Assim, em 1914,
feridos cientistas continuam sendo indispensáveis para a o manifesto de S3 cientistas e professores alemães - entre
ciência e a tecnologia. Seja echt-deutsch ou cem por cento os quais Baeyer, Brentano, Ehrlich, Haber, Eduard Meyer,
norte-americano. o resultado final de um experimento, al- Ostwald, Planck, Schmoller e Wassennann - desencadeou
guns estrangeiros sempre intervêm em qualquer novo uma polêmica em que individualidades alemãs, francesas
progresso técnico. O imperativo de universalismo tem e inglesas recobriram seus sentimentos políticos com o
raízes profundas no _caráter impessoal da ciência. manto da ciência. Cientistas desapaixonados impugna-
Todavia, a instituição da ciência é apenas parte de ram as contribuições do "inimigo", acusando-o de tendên-
uma estrutura social maior, com a qual nem sempre está cias nacionalistas, contubérnios, desonestidade intelectual,
integrada. Quando a cultura maior se opõe ao universa- incompetência e falta de talento criador. 5 Mas esse mes-
lismo, o ethos da ciência é submetido a fortes tensões. O mo desvio dessa norma do universalismo pressupunha,
etnocentrismo não é compatível com o universalismo. realmente, sua legitimidade. Porque o preconceito nacio-
Particularmente, em épocas de conflitos internacionais, nalista só é vergonhoso quando julgado de acordo com a
em que a situação sublinha fortemente as lealdades na- norma do universalismo; dentro de outro contexto insti-
cionais, o cientista está sujeito aos imperativos antagô- tucional é definido como virtude: é o patriotismo. Assim,
nicos do universalismo científico e do particularismo etno- pelo próprio fato de condenar sua violação, são reafirma-
cêntrico. •• A estrutura da situação em que se encontra das as normas morais.
Mesmo sob as pressões em contrário, cientistas de
4a Isto íoi escrito em 1942. Em 1948, os líderes políticos dà todas as nacionalidades solidarizaram-se com o padrão
Rússia soviética acentuaram a importância que concedem ao naciona-
lismo russo e começaram a insistir no caráter "nacional" da ciência. universalista usando as palavras mais francas. Foi reafir-
Num editorial intitulado "Contra a ideologia burguesa no cosmopo- mado o caráter internacional, impessoal, virtualmente
litismo", Voprosy filosofii, 1948 1 n.0 2, traduzido no Current Digest anônimo, da ciência.• (PASTEUR disse: "Le savant a une
of tke Soviet Press de 1.0 de fevereiro de 1949, vol. 1, n.0 1, p. 9, patrie, la science n'en a pas"). A negação da norma se
lia-se o seguinte: "Só um cosmopolita sem pátria, profundamente
insensível aos destinos reais da ciência, poderia negar, com desprezível considerava uma quebra da fé.
indiferença, a existência das matizadas formas nacionais em que a O universalismo encontrou nova expressão, ao exigir
ciência vive e se desenvolve. Em vez da verdadeira história da que todas as carreiras fossem abertas ao talento. A base
ciência e dos caminhos concretos do seu desenvolvimento, o cosmo-
polita apresenta conceitos fabricados de um tipo de ciência super-
nacional e sem classe, despojada, por assim dizer, de toda a riqueza 6 Para uma coleção instrutiva de documentos desse gênero, ver
de coloração nacional, despojada do brilho vivo e do caráter especifico · GABRIEL F'ETTIT e MAURICE LEuDET, Les allemands et ú:r, science
do trabalho criador de um povo e transfprmado numa espécie de (Paris, 1916). FÉLIX LE DANTEC, por exemplo, descobre que tanto
espírito desencarnado... O marxismo-leninismo despedaça as ficções EHRLICH como WEISMANN perpetraram fraudes tipicamente germâ~
cosmopolitas concernentes à ciência supraclassista, não-nacional, "uni- nicas no mundo da. ciência ("Le bluff de la science allemande").
versal" e demonstra definitivamente que a ciência, como toda a PIERRE DUREM conclui que o "espírito geométrico" da ciência alemã
cultura numa sociedade ou nação determinada pode predispor os abafou o uesprit de finesse": La science allemande (Paris, 1915-);
cientistas a enfocar a atenção sobre certos problemas, a se mostrar HERMANN KELLERMANN, Der Krieg der Geiste-r (Weimar, 1915),
sensíveis a uns problemas e pão a outros, dentro dc1,; fronteiras da replica vigorosamente. O conflito estendeu-se ao período de pós-
ciência. Isto tem sido observado há muito tempo, mas é fundamental- guerra; ver KARL KHER.KHOF, Der Krieg gegen die Deutscke W'LSsen-
mente diferente da segunda questão: os critérios de validez dos tí- scha,ft (Halle, 1933).
tulos para que um conhecimento seja considerado científico não são 6 Ver a profissão de fé do professor E. GLEY (em PETTIT e
assuntos de gosto ou de cultura nacionais. Cedo ou tarde, os títulos LEUDET, op. cit., 181): " .. . il ne peut y avoir une vérité allemande,
em competição para a validez são fixados pelos fatos universalistas anglaise, italienne ou ;apona,ise pas plu.s qu'une frança,ise. Et parle-r
da natureza que estão em consonância com uma· teoria e não com de science allema:nde, anglaise ou /rançai.se, e' est énoncer une propo-
outra. O trecho acima transcrito é de primordial interesse como sitim contTadictoire à. l'idée même de la science". Ver também as
exemplo da tendência do etnocentrismo e das lealdades nacionais afirmações de GRA.SSET e RICHET, ibid.
agudas a penetrar os próprios critérios da validez científica.
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1
44 A CRfTICA DA CIÊNCIA Os IMPERATIVOS INSTITUCIONAIS DA CrílNCIA 45 I'
1
-1
raciomil é fornecida pela meta institucional. Restringir Assim, os expoentes de uma cultura que abjura os padrõ;s 1
universalistas se sentem obrigados a prestar homenagem,
as carreiras científicas por outros motivos que a falta de
competência é prejudicar a promoção do saber. O livre de boca para fora, a esse valor no campo da ciência. O L,
1i·1
acesso às atividades científicas é um imperativo funcio- universalismo é tortuosamente louvado em teoria, mas su- 1:.1
nal. Coincidem a conveniência e a moral. Daí a anomalia primido na prática. 1!

de um Carlos II, a invocar a moral da ciência para cen- Por inadequadamente que seja posto em prática, o
surar a Royal Society pela suposta exclusão de John etlws da democracia compreende o universalismo como
Graunt, o aritmético político, e as suas instruções no sen- princípio-guia predominante. A democratização equivale à
tido de que "se encontrassem mais comerciantes assim, eliminação progressiva de restrições ao exercício e desen- ]:'-'

os admitissem imediatamente e sem discussão". volvimento de talentos socialmente valorados. Os crité- (


Por aí se vê também que o ethos da ciência pode não rios impessoais de realização e a não-estabilidade de status il:'
1;·
concordar com o da so_ciedade em geral. Os cientistas po- caracterizam a sociedade democrática. Na medida em
dem assimilar normas de casta e cerrar suas fileiras a in- que persistem restrições, são consideradas como obstá- '1i,
divíduos de classe julgada inferior (como, na época, o culos no caminho da democratização total. Assim, na me- tf:
comerciante acima citado), independentemente do seu ta- dida em que a democracia do laissez-faire permite a !I'
lento e realizações. Mas isto provoca uma situação ins- acumulação de vantagens diferenciais para certos setores ''I11
tável. Recorre-se a ideologias complicadas para esconder da população, diferenciais que não estão vinculadas com i:;
a incompatibilidade entre a moral de casta e a meta insti- diferenças demonstradas de capacidade, o processo demo- !
tucional da ciência. ~ necessário demonstrar que os indi- crático conduz à crescente regulagem pela autoridade po- :
víduos de casta inferior são intrinsecamente incapazes de lítica. Em circunstâncias cambiantes, é necessário intro-
1
trabalho científico ou, pelo menos, que suas contribuições duzir novas formas técnicas de organização para conser- 1

devem ser depreciadas de maneira sistemática. "Pode-se var e ampliar a igualdade de oportunidades. O aparelho
político destinado a pôr em prática os valores democrá-
aduzir, pela história da ciência, que os fundadores da pes-
quisa em ;Física e os grandes descobridores, desde GALILEU ticos pode, em conseqüência, variar, mas as normas uni- i!
e NEWTON até os físicos inovadores cie nossos dias, foram versalistas são mantidas. Na medida em que uma socie-
quase exclusivamente arianos, sobretudo de raça nórdi- dade é democrática, oferece oportunidade para o exercicio
ca". As palavras modificativas "quase exclusivamente" de critérios universalistas na ciência.
constituem base de todo insuficiente para negar aos "pá-
rias" todos os direitos ao êxito científico. Então a ideo- "COMUNISMO"
i: ! logia é "arredondada" pelo conceito de ciência boa ou má:
1
1 a ciência realista e pragmática dos arianos opõe-se à ciên- O "comunismo", rio sentido não-técnico e amplo de 1
1 cia dogmática e formal dos não-arianos. 7 Ou se procuram propriedade comum dos bens, é um segundo elemento in- !
fundamentos para a exclusão, no fato extracientífico de tegral do ethos científico. As descobertas substantivas da
'~ que os cientistas sejam inimigos do Estado ou da Igreja. 8 ciência são produto da colaboração social e estão desti-
'i 1 nados à comunidade. Constituem herança comum em que
, '
os lucros do produtor individual estão severamente limi-
'1 JOHANNES STARK, Na,ture, 1938, 141, 772; "Philipp Lenard als tados. Uma lei ou teoria não é propriedade exclusiva do
deutscher Naturforscher'', Nati,,'IU1,/,ozialisticke Mo'IU1,tskefte, 1936, 7, descobridor e dos seus herdeiros, nem os costumes lhes
r; 106-112. Isto me lembra o contraste de DUHEM entre a. ciência "alemã" L
j

e a ciência "francesa". concedem direitos especiais de uso e disposição. Os di-


8 "Tem.os afastado [ os 'negadores marxistas'] não como repre- reitos de propriedade na ciência são reduzidos ao mínimo
sentantes. da ciência, mas como partidários de uma doutrina política
que inscreveu em sua bandeira a destruição de todas as ordens. Com
tanta maior decisão tivemos de agir, quando a ideologia dominante lamos a dignidade da ciência livre ... " BERNHARD RUST, Das na.tio-
de uma ciência livre de valores e de condições lhes servia de res- nalsozialistiche Deutschland und die Wissenschaft (Hamburgo, 1936),
guardo para prosseguirem em seus planos. Não fomos nós que vio• p. 13.

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46 A CRÍTICA DA CIÊNCIA _i(
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ÜS IMPERATIVOS INSTITUCIONAIS DA CIÊNCIA 41 ~.{!
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pelas razões e princípios da ética científica. O direito do :{i
cíentista à sua propriedade intelectual limita-se à gratidão e as novás entradas na comunidade da ciência são rotu- +i
·,1c,
e à estima que, se a instituição funciona com um mínimo ladas com os nomes dos nacionais: serve de testemunho ,,ti
·.H
de eficácia, são mais ou menos proporcionais aos aumen- a controvérsia sobre as pretensões rivais de NEWTON e de :fl
tos trazidos ao fundo de conhecimentos. A eponimia - LEIBNIZ acerca do cálculo integral. Mas tudo isso não '}'
por exemplo, o sistema de COPÉRNIOO, a lei de BOYLE - é, ameaça a situação do conhecimento científico como pro-
portanto, ao mesmo tempo, recurso mnemônico e come- priedade comum. 1\i
morativo. O conceito institucional da ciência como parte do do- ):t!
;iÍJ
mínio público está ligado ao imperativo da comunicação
Dada a importância institucional de gratidão e da es-
tima como o único direito de propriedade do cientista so-
bre os seus descobrimentos, o interesse pela prioridade
dos resultados. O segredo é a antítese dessa norma; a ple-
na e franca comunicação é o seu cumprimento. 11 A pres-
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científica é uma reação "normal". As controvérsias sobre são para a difusão dos resultados é reforçada pela meta ,fl
prioridade que marcam a história da ciência moderna são institucional de ampliar as fronteiras do saber e pelo in- J1
produto da importância institucional concedida à origina-
lidade. • Surge uma cooperação competitiva. Os resulta-
centivo da fama, a qual depende, naturalmente, da publi-
cídade. Um cientista que não comunica suas importantes <J,~,
.
descobertas à irmandade científica - por exemplo, um ,,i
dos da competição são comunizados 'º e' a estima cresce HENRY CAVENDISH - converte-se em alvo de reações am- 11
para o produtor. As nações alegam direitos à prioridade'ºª ',:.1
bivalentes. É estimado pelo seu talento e, talvez, pela sua ":}t,
1 modéstia; mas do ponto de vista institucional, sua modés- .~
lt 9
NEWTON falava por dura experiência quando observou que
"a filosofia [natural] é wna dama tão impertinentemente litigiosa
tia está gravemente deslocada, tendo-se em conta a obri-
gação moral de compartilhar a riqueza da ciência. Embo- }Ili
1l que um homem sofreria tanto, em se envolver num processo judicial,
quanto ter que tratar com ela". RoBERT HOOKE, indivíduo social~
ra partindo de um leigo, o comentário de ALDOus HUXLEY
sobre CAVENDISH é instrutivo a esse respeito: "Nossa
l:
:;;,;
mente móvel, que subiu de situação unicamente po1· suas· realizações
admiração pelo seu gênio é mitigada por alguma desapro- ,,.
!~

lf,; científicas, era notavelmente "litigioso".


vação; parece-nos que um homem assim é egoísta e an-
ti
10 Embora possa estar marCS.da pelo comercialismo dominante

i: na sociedade em geral, uma profissão como a medicina admite que


o saber é de propriedade eomuni. Ver R. H. SHRYOCK, "Freedom
and interference in medicine", Tke An.nals, 1938, 200, 46. " .. . a pro-
ti-social". Os epítetos são particularmente instrutivos por-
que implicam a violação de um imperativo institucional
~I
:~
'-'.:$:
!' definido. Ainda quando não se liga a um motivo ulterior,
1
/fissão médica ... naturalmente franzia o sobrolho ante às patentes
tiradas por médicos. . . A profissão regular tem. . . mantido essa
posição constantemente, contra os monopólios privados, desde o advento
a ocultação das descobertas científicas é condenada. i
:~~
!ll• da lei de patentes do século XVII". Agora está surgindo uma si-
tuação ambígua, em que a socialização da prática médica é combatida
as dos nazistas no século XX. (Cf. nota 7 do mesmo trabalho.)
O nacionalismo particularista não faz apreciações imparciais sobre
>t
~i·.
em círculos onde não se discute a socialização dos conhecimentos. o curso do desenvolvimento científico. ·:~,
' toa Agora que os russos adotaram oficialmente tão profunda 11 Cf. BERNAL, que observa: "O desenvolvimento da ciência mo-,
reverência pela pátria, chegam a insistir na importância de deter-
minar as prioridades nos descobrimentos científicos. Assim, dizem
derna coincidiu com a rejeição definitiva do segredo". BERNAL cita
uma passagem notável de RÉAUMUR (L'Art le convertir le forgé en
·~1
.;·,.·
•·:
eles: "A mais ligeira. desatenção a questões de prioridade na ciência, acier) no qual a obrigação moral de publicar as pesquisas está expli-
1~ o mais leve descuido, devem pois ser condenados, porque deles se citamente relacionada com outros elementos do ethos da ciência.
' 1
aproveitam nossos inimigos, que encobrem sua agressão ideológica P. ex.: " .. . il eiit gens qui trouverent é'Õrange que feusse publié
1i com um.a conversa cosmopolita sobre a suposta inexistência de quesrões
1 !~ des secrets, qui ne devoient pa.s être revelés. . . est-il bien sur qu.e
de prioridade na ciência, isto é, as questões relativas aos indivíduos nos déccnwertu soient si fort à. n.ous que le public n'y ait pa.s droit.
que fazem contribuições ao acervo geral da 'cultura universal". E qu' elles ne lui a.ppa,rtiennent pa,s en quelque sorte?. . . resterait iJ,
prosseguem: "O povo russo tem a história mais rica. No curso da bien des circrmsta.nces, OU nous soions absolument Maitres des nos
sua história criou a cultura mais rica e todos os demais países do décou:uertes? ... Nous nou.s devons premier"ement à notre Patrie, ma:is
mundo se abeberaram nela e continuam a fazê-lo ainda hoje". 11,0u.s devons a.usai a.u reste du monde, ceux qui tra:vaillent pour per•
Vopro~ füosofii, op. cit., pp. 10, 12. Isto lembra as reivindicações fectionner les Sciences et les Arts, doivent même se regarder com.me
nacionalistas que se fizeram na Europa ocidental no século XIX e les citoyem du mo'l1.de e-ntier''. J. D. BERNAL, The Social Function of
Science, 150-151.
1{·
',,

48 A C!úTICA DA CIÊNCIA ÜS lMPERApYOS INSTITUCIONAIS DA CIÊNCIA 49 ,


l e

O caráter comunal da ciência reflete-se também no re- motores de novas empresas econômicas. " Outros pro-
conhecimento por parte dos cientistas de que dependem curam resolver o conflito invocando o socialismo. 1 • Essas
de uma herança cultural à qual não têm direitos diferen- propostas - as que pedem remuneração econômica para
ciais. A observação de NEWTON - "se enxerguei mais os descobrimentos científicos e as que pedem uma mu- i
longe foi porque estava sobre os ombros de gigantes" - dança do sistema social para deixar que a ciência prossi-
exprime ao mesmo tempo o sentimento de estar em dívida ga em sua tarefa - refletem as discrepâncias no conceito
com a herança. comum e a confissão do caráter essencial- da propriedade intelectual.
mente cooperativo e acumulativo das realizações científi-
cas. 12 A humanidade do gênio científico não é somente DESINTERESSE
culturalmente adequada, mas é também a conseqüência A .ciência, como ocorre com as profissões liberais e
da compreensão de que o progresso científico implica a científicas em geral, inclui o desinteresse como elemento
colaboração das gerações passadas e presentes. Foi CAR-
lt LYLE, e não MAXWELL, que se entregou a uma concepção
institucional básico. Não se deve considerar o desinteresse
igual ao altruísmo, nem a ação interessada igual ao egois-
criadora de mitos da história. mo. Essas equivalências confundem níveis institucionais
O comunismo do ethos científico é incompatível com e de motivação:·na análise. 17 Ao cientista têm sido atribuí-
a definição da tecnologia como "propriedade privada" dos a paixão de saber, uma curiosidade ociosa, um inte-
numa economia capitalista. Obras recentes sobre a "frus- resse altruísta pelo benefício da humanidade e muitos
tração da ciência" refletem esse conflito. As patentes re- outros motivos especiais. A procura das motivações dis-
gistram direitos exclusivos de uso e, muitas vezes, de tintivas parece ter sido mal orientada. É antes um padrão
não-uso. A supressão da invenção nega a explicação· ra- típico de controle institucional de uma ampla margem de
cional da produção e da difusão científicas, como se deduz motivações o que caracteriza o comportamento dos cien-
da sentença de um tribunal no caso de Estados Unidos tistas. Pois uma vez que a instituição impõe uma ativi-
contra a American Bell Telephone Co. "O inventor é um dade desinteressada, é do interesse do cientista confor-
indivíduo que descobriu algo de valor. É sua proprie- mar-se, sob pena de sanções e, na medida em que a nor-
dade absoluta. Pode subtrair do público seu conheci- ma foi assimilada, sob pena de conflito psicológico.
mento ... " 13 As reações a essa situação conflitante têni A ausência virtual de fraudes nos anais da ciência,
sido diversas. · Como medida defensiva, alguns cientistas que parece excepcional quando comparada com outras es-
chegaram a patentear sua obra para garantir que seria feras de atividade, foi atribuída às qualidades pessoais
posta à disposição do uso público. EINSTEIN, MILLIKAN, dos cientistas. Por implicação, os cientistas se recrutam
COMPTON, LANGMUIR tiraram patentes. 14 Fizeram-se pres- entre as fileiras dos que apresentam um grau pouco ha-
sões sobre os cientistas para que se convertessem em pro- bitual de integridade moral. Não há, na realidade, provas
satisfatórias de qµe isso seja assim; pode-se encontrar
12 É interessante saber que o aforismo de NEWTON é uma frase uma explicação mais admissível em certas características
estereotipada, conhecida pelo menos desde o século XII. Pareceria distintivas da própria ciência. Ao implicar, como implica,
confirmar que a dependência das descobertas e das invenções sobre
as bases culturais existentes já fora notada muito tempo antes dos a verificabilidade dos resultados, a pesquisa científica está
enunciados dos modernos sociólogos. Ver Isis, 1935, 24, 107-9; 1938,
25, 451-2.
13 167 U. S. 224 (1897), citado por B. J. STERN, "Restraints 15 VANNEVAR BUSH, "Trends in engineering research", Sigma
upon the utilization of inventions", The Annals, 1938, 200, 21. Para XI Quartercy, 1934, 22, 49.
16 BERNAL, ap. ci.t., 165 e segs.
estudo mais aprofundado, e/. outros trabalhos de STERN citados na
mesma revista; ver também WALTON HAMILTON, Patents and Free 17 TALCOTT PARSONS, "The professions and social structure'',
Enterprise (Temporary National Economic Committee Monograph, Social Forces, 1939, 17, 458•9; cf. GEORGE SARTON, The History o/
N.0 31, 1941). Sci.ence and tke New Humanism (Nova Iorque, 1931), 130 e segs.
14 HAMILTON, op. cit., 154; J. ROBIN, L'oeuvre scientifique, sa A distinção entre obrigações e motivos institucionais é, naturalmente,
protection juridique, Paris, 1928. o conceito chave da Sociologia marxista.
",i.

v
50 A OúTICA DA . ~CIA ÜS IMPERATIVOS !NSTITUCIONAJS DA CIÊNCIA 51

debaixo do controle exigente dos colegas peritos. Em ou- É provável que a reputação da ciência e sua elevada
tras palavras·--, e a observação poderá sem dúvida ser in- posição ética na estima dos leigos sejam devidas, em
terpretada como lesa-majestade - as atividades dos cien- grande parte, às realizações tecnológicas. 100 Toda nova
tistas.:estão submetidas a um policiamento rigoroso, sem tecnologia atesta a integridade do cientista. A ciência rea,
paralelo, talvez; em qualquer outro campo de atividade. liza suas pretensões. Mas sua autoridade pode ser e é
k.exigência de desinteresse tem firme alicerce no caráter aproveitada para propósitos interessados, precisamente
público e testável da ciência e podemos supor que essa porque os leigos não estão amiúde em situação de distin-
circunstância contribuiu para a integridade do homem de guir as pretensões espúrias, dessa autoridade, das legíti-
ciência. Existe competição no campo da ciência, compe- mas. As declarações presumivelmente científicas dos por.-
tição que se intensifica pela importância que se dá à prio- ta-vozes totalitários sobre a raça, a economia ou a história
i1· ridade como critério de realização e, em condições com- são, para os leigos incultos, da mesma ordem que as in-
petitivas, podem surgir incentivos para eclipsar os rivais formações dos jornais sobre um universo em expansão ou
por meios ilícitos. Mas esses impulsos encontram escas- a mecãnica de ondas. Em ambos os casos, declarações e '
sas oportunidades para se manifestarem no campo da informações tais não podem ser testadas pelo homem da 1
i;,
pesquisa cientifica. Cultismo, camarilhas informais, pu- rua e, em ambos os casos, podem ser contrárias ao bom :,:1
blicações prolificas mas banais - podem-se usar essas e senso. Talvez os mitos possam parecer mais admissiveis, i

outras técnicas para a promoção pessoal. 18 Mas, em ge- e seguramente mais compreensíveis ao público em geral,
ral, as pretensões espúrias parecem ser -negligíveis e ine- que as teorias cientificas acreditadas, já que estão mais i_·,1

. fiéa.zes. A transformação da norma de desinteresse em perto da experiência de sentido comum e da tendência 1



prática é firmemente apoiada ·pela necessidade que os cultural. Por isso, em parte devido às conseqüências dos
cientistas têm, mais cedo ou mais tarde, de prestar contas triunfos cientificos, a população em geral torna-se mais T,,.
suscetível a misticismos novos expressos em termos apa-
il perante os seus colegas. Coincidem em grande parte os
ditames do sentimento socializado e da conveniência, si- rentemente cientificos. A autoridade, tomada de emprés-
1

tuação esta que conduz à estabilidade institucional. timo à ciência, dá prestígio à teoria anticientifica.
ó campo da ciência difere bastante, a esse respeito,
daquele de outras profissões. O cientista não lida com CETICISMO ORGANIZADO
uma clientela leiga, como o fazem o médico e o advogado.
A .possibilidade de explorar a credulidade, a ignorância ou Como vimos ·no capítulo anteriol', o ceticismo organi-
·a ·necessidade do leigo está assim consideravelmente re- zado se inter-relaciona de diversas maneiras com os outros
duz.ida, A fraude, a chicana e as pretensões irresponsáveis elementos do ethos científico. É um mandato ao mesmo
(charlatanismo) são ainda menos prováveis do que entre tempo metodológico e institucional. A suspensão do julga-
as.profissões de "serviço", Na medida em que as relações mento,· até que ."os.fatos estejam. à mão", e o exame im-
·entl'e os cientistas e os leigos adquirem importância su- parcial das crenças, de acordo com critérios empíricos e
perior, desenvolvem-se incentivos para burlar a moral da lógicos, :têm envolvido periodicamente a ciência em con-
I• \1 ciência. O abuso da autoridade dos peritos e a criação de flitos· com outras instituições. A ciência, que coloca ques-
pseudoci.:incias entram em campo quando a estrutura de tões de fato,. incluídas as potencialidades, concernentes a
!.1 controle exercida por cólegas qualificados se torna ine- todos os aspectos da natureza e da sociedade, pode entrar
1 ! ficiente. 10 em conflito com outras atitudes em relação a esses mes-
mos dados que foram cristalizados e, amiúde, ritualiza-
dos por outras instituições. O pesquisador cientifico não
18 Ver o relatório de LoGAN WILSON, The Academic Man, 201
e segs.
" Cf. R. A. BRADY, The Spirit and Structure o/ German Fa.s- 1'98 FRANCIS BACON formulou um dos primeiros e mais sucintos
cism (Nova Iorque, 1937), Cap. II; MARTIN GARDNER, ln the Name enunciados desse pragmatismo popular. "0 que é mais útil na prática
o/ Science (Nova Iorque: Putnam's, 1953). é o mais correto na teoria". N ovum Organum, Livro II, 4.
~-
i 52 A CRITICA DA ~NCIA
1
'
1 respeita a separação entre o sagrado e o profano, entre • ·I
o que exige respeito sem crítica e o que pode ser objeti- ~-1· 1'•
vamente analisado ("Ein Professor ist ein Mensch der
anderer Meinung ist"). 11!
Esta parece ser a·fonte das rebeliões contra a chama- f
,i
'
da intromissão eia ciência em outras esferas. A resistên-
cia por parte da religião organizada tem perdido impor-
,.
J tância em comparação com a dos grupos econômicos e
:1
:: políticos. A oposição pode também existir completamente
ji à parte da introdução de descobertas científicas específi- 2 - A FUNÇÃO DO DOGMA NA INVESTIGAÇÃO
CIENTIFICA "', "'"' :i_i
cas que parecem invalidar dogmas particulares da Igreja,
I Ir ) da economia ou do Estado. É antes uma apreensão difu-
sa, muitas vezes vaga, de que o ceticismo ameaça a dis-
I{ i tribuição de poder vigente. O conflito acentua-se sempre T. S. KUHN
que a ciência leva sua pesquisa a zonas novas nas quais
já existem atitudes institucionalizadas, ou sempre que Estou certo de que cada um dos participantes deste
11 outras instituições ampliam sua área de controle. Na so- simpósio se expôs, a dada altura de sua carreira, à idéia
ciedade totalitária moderna, o anti-racionalismo e a cen- do cientista como o investigador sem preconceitos em
i tralização do controle institucional servem ambos para
1,
,, busca da verdade; o explorador da natureza - o homem
limitar o campo deixado à atividade científica. que rejeita preconceitos quando entra no laboratório, que
'I·. 1:, coleciona e examina os fatos crus, objetivos, e que é fiel
1
'1: '
; a tais fatos e só a eles. Estas são as características que
,, ..
fazem do testemunho dos cientistas um valioso elemento
na propaganda de produtos variados e em exclusivo nos
!'. Estados Unidos. Mesmo perante uma audiência interna-
cional não é preciso esclarecer mais. Ser científico é,
entre outras coisas, ser objetivo e ter espírito aberto. .¾

Provavelmente nenhum de nós acredita que o cien-


tista da vida real na prática consegue preencher tal ideal.

• Referência: do livro Scientific Cha,nge, A. C. CROMBIE, org.,


li 1~- Heinemann, 1953. Reproduzido com autorização da Editora Heine-
mann Educational Books Ltd.
1

•• As idéias desenvolvidas neste artigo foram extraídas, numa


r:il forma drasticamente condensada, do primeiro terço da minha mono--
grafia (KUBN, 1962). Algumas delas foram também parcialmente
]
t ,f desenvolvidas num ensaio anterior (KUHN, 1959a).
Sobre o assunto consultar também CoHEN (1952) e BARBER
(1961). Agradeço a BARBER o envio da cópia desse útil artigo. Acima
de tudo, os interessados com a importância de tomadas de posição
quase dogmáticas como uma necessidade para uma investigação cien-
tifica produtiva deverão consultar as obras de PoLANYI, em particular
(1958) e (1951). A discussão que aparece neste artigo mostra que
PoLANYI e eu divergimos de algum modo quanto às tomadas de po-
sição dos- cientistas, mas isso não deve esbater a larga margem de
corcordância nas questões discutidas explicitamente no que se segue.

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