Merton-233 Compressed
Merton-233 Compressed
Merton-233 Compressed
)°,;
' R. K. MERTON P H. ROQ1JEPLO
T. S. K1JHN F. GIL
• ,
W. 0. HAGSTROM R. HoRTON
J. HABERER A. MASLOW
G. B. VAN ALBADA A. N. WHITEHEAD
·'l
i"
A,
'','J
,�,
.s,
CRITICA
•,C•t
,..'.,
·<1;
�'.�:
,
DA-
,:,'i
Q:
!,,,
.\,,,..,
CIENCIA
SOCIOLOGIA E IDEOLOGIA DA· CI:E:NCIA
,:,/,
·':;
,-.;
Organização e Introdução de
JORGE DIAS DE DEUS
' 1
�-
2 ª edição
''\ I
ZAHAR EDITORES
'RIO DE JANEIRO
Si. '.\!
INDICE
capa de
!t" ÉRICO
~ UMA INTRODUÇÃO, ALGUNS COMENTÁRIOS E TR1':S
OPINIÕES SOBRE A CIÊNCIA ..................... . 9
t' Introdução ........................................... . 11
19 7 9
'
!"
1 Direitos para a língua portuguesa concedidos a
t,,:, ZAHAR EDITORES
Caixa Postal 207, ZC-00, Rio
'• i
Impresso no Brasil
f';;,J
fj
~1-
' ,,
,
,,
i·"
'[.'.
'
1- OS IMPERATIVOS INSTITUCIONAIS DA
CIÊNCIA 'f.
i\<'
R. K. MERTON l'<;ii,
,'I
A ciência, como qualquer outra atividade que envolve
colaboração social, está sujeita a mudanças de fortuna. Por
difícil que esta simples idéia possa parecer às pessoas
criadas numa cultura que dá à ciência um lugar proemi-
nente, se não de predomínio, na ordem das coisas, é evi-
dente que a ciência não é imune aos ataques, à restrição
e à repressão. VEBLEN, que escreveu já faz bastante tem- I['
,,[
po, pôde observar que a fé da cultura ocidental na ciên-
cia era ilimitada, indiscutível e sem igual. A rebelião con-
'I;
tra a ciência, que então parecia tão improvável, que so-
mente interessava ao intelectual tímido acostumado' a pe• t
sar todas as contingências, por remotas que fossem, agora
se impôs à atenção tanto do cientista como do leigo. Os
,j I
contágios locais de antiintelectualismo ameaçam tornar-se 'V
!i'
li
1 '),
; ,)
epidêmicos.
~
1
1 X. CI:E:NCIA E SOCIEDADE t
i
it
j~
nal. As crises convidam à autocrítica. Agora que têm que cientificas; ou 4) qualquer combinação dos itens anterio- ·[i•
,~i
enfrentar ameaças ao seu modo de vida, os intelectuais res. Aqui estamos tratando, preliminarmente, da estrutu-
.-1t~:
foram lançados a um estado de aguda conscientização : ra cultural da ciência, isto é, de um aspecto limitado da
consciência da própria personalidade como elemento in- ' ciência como instituição. Assim, pois, examinaremos não
:1rr
tegrante da sociedade, e das obrigações e interesses cor- os métodos da ciência, mas os costumes que os circundam.
respondentes. ' A torre de marfim é indefensável quando Sem dúvida, os cânones metodológicos são muitas vezes
suas muralhas são assaltadas. Depois de prolongado pe- expedientes técnicos e, ao mesmo tempo, obrigações mo-
ríodo de relativa segurança, durante o qual o culto à ciên- rais, mas são apenas estas últimas que agora nos interes-
i,i
cia e a difusão dos conhecimentos tinham chegado a uma ram. Este é um ensaio sobre a Sociologia da Ciência, não
posição de destaque, se não de primeiro plano, na escala uma incursão da metodologia. De modo análogo, tam- lf~,;
de valores culturais, os cientistas se vêem obrigados a pouco trataremos das descobertas concretas da ciência
justificar os caminhos da ciência para os homens. Assim (hipóteses, uniformidades, leis) , salvo quando forem per-
eles fecharam o circulo, levando-o de volta ao ponto e mo- tinentes aos sentimentos sociais padronizados em relação ,.
<fi,,
mento em que a ciência reapareceu no mundo moderno. à. ciência. Não se trata de uma aventura de polimatia.
Três séculos atrás, quando a instituição da ciência pouca O ethos da ciência é esse complexo de valores e nor- w
·11:
1
,,1I justificação podia apresentar para. conseguir o apoio da mas efetivamente tonalizado, que se considera como cons-
1
1
:i' sociedade, os filósofos naturais eram levados assim mes- tituindo uma obrigação moral para o cientista. 1• As nor-
~ í! mo a justificar a ciência como um meio para fins cultu- mas são expressas em forma de prescrições, proscrições,
,,1:1 ralmente válidos de utilidade econômica ou de glorifica- preferências e permissões, que se legitimam em relação
1
,.
ção de Deus. O cultivo da ciência não era então-um valor com valores institucionais. Esses imperativos, transmiti-
evidente por si mesmo. Mas, com a interminável corrente dos pelo preceito e pelo exemplo e reforçados por sanções, 'f'
,1 \ii
!l de êxitos obtidos pela ciência, o instrumental se transfor- são assimilados em graus variáveis pelo cientista, forman-
iI:l mou em final, os meios se transformaram em fins. Assim do assim sua consciência cientifica ou, se preferirmos ·r,,
t+:
fortalecido, o cientista chegou a considerar-se indepen- usar a palavra moderna, seu superego. Embora o ethos
dente da sociedade e a encarar a ciência como empresa da ciência não tenha sido codificado," pode ser inferido
que se justifica por si mesma e que "está" na sociedade, do consenso moral dos cientistas expresso nos usos e cos-
mas não "faz parte" dela. Era necessário que se desse um tumes, em numerosas obras sobre o espírito científico e
ataque frontal contra a autonomia da ciência, para trans- na indignação moral que suscitam as contravenções do
'f
f
,,
formar esse isolacionismo otimista em participação rea-
lista do conflito revolucionário das culturas. A conseqüên-
cia dessa associação leva a clarificar e reafirmar o ethos
ethos.
O estudo do ethos da ciência moderna nada mais é
que uma introdução limitada a um problema maior: o
rfÍI
t
i1
da ciência moderna.
'l A palavra ciência é um vocábulo enganosamente am- 18
! Sobre o conceito do ethos, ver SuMNER, Folkways, 36 e segs.; 'f
!; ,/
plo, que designa grande diversidade de coisas diversas,
embora relacionadas entre si. É usada geralmente para
HANS SPEIER,"The social determination of ideasii, Social Research,
1938, 5, 196 e segs.; MAX SCHELER, Schriften aus deni N'achlass
t
·-('
indicar: 1) um conjunto de métodos ·característicos por (Berlim, 1933), 1, 225-62. ALBERT BAYET, cm seu livro sobre este
\·
'
meio dos quais os conhecimentos são comprovados; 2) assunto, logo abandona a descrição e a análise e se põe a moralizar;
ver sua La, morale de la, science (Paris, 1931). 'f
i
,1·:
i<I 2 Conforme diz BAYET: "Cette morale [de la scien.ce] n'a pa.s
1
1 Como esse trabalho foi escrito em 1942, é evidente que a eu ses théoriciens, ma.is elle a, eu. se!J artisan!J. Elle n'a, PM exprimé
explosão de Hiroxima contribuiu para que maior número de cien~ son. idéal, mais elle l'a servi: il est impliqué da.i,,s l'existen.ce même
tistas percebesse as conseqüências sociais das suas descobertas. de la, science". Op. ci.t., 43.
r{! )i
~.
[,
40 A CRfrICA DA CIÊNCIA ÜS IMPERATIVOS INSTITUCIONAIS DA CIÊNCIA 4J [!'i
'''
estudo comparativo da estrutura institucional da ciência. gados para esse fim proporcionam a definição relevante '
Ainda que as monografias detalhadas, reunindo os mate- do conhecimento : predições empiricamente confirmadas
riais comparativos necessários, sejam poucas e espalha- e logicamente congruentes. Os imperativos institucionais
das, proporcionam alguma base para o pressuposto pro- (mores) derivam da meta em vista e dos métodos. Toda
visório de que "a ciência tem oportunidade de desenvol- a' estrutura de normas técnicas e morais leva à consecução
vimento, numa ordem democrática, integrada com o ethos \' do objetivo final. A norma técnica da prova empírica, su-
da própria ciência". Isto não significa que o cultivo da ficiente, válida e digna de fé, é um requisito prévio para
ciência esteja restrito às democracias.• As estruturas so- a comprovação das previsões exatas; a norma técnica da
ciais mais diversas têm proporcionado certo apoio à ciên- congruência lógica, um requisito prévio para a predição
cia. Basta lembrarmos que a Accademia del Cimento foi
patrocinada por dois Médicis; que Carlos II tem direito
sistemática e válida. Os mores da ciência têm uma expli-
cação racional metodológica, mas são moralmente obriga-
,,
ao reconhecimento da história por ter concedido carta .de tórios, não somente porque são eficazes do ponto de vista
privilégio à Real Sociedade de Londres e por ter patroci- do procedimento, mas também porque são considerados
nado o Observatório de Greenwich; que a Academia de justos e bons. É um conjunto de prescrições tanto morais
,I Ciências em Paris foi fundada sob os auspícios de como técnicas.
Luís XIV, mediante a recomendação de Colbert; que, Quatro passos de imperativos institucionais - uni-
, I' ' pressionado por Leibniz, Frederico I fundou a Academia versalismo, comunismo, desinteresse e ceticismo organi-
' de Berlim, ao passo que a Academia . de Ciências de zado - compreendem o ethos da ciência moderna.
São Petersburgo foi instituída por Pedro,', o Grande (para
refutar a opinião de que os russos eram bárbaros). Mas
i''I Universalismo
esses fatos históricos não implicam uma ligação fortuita
I' da ciência e da estrutura social. Resta ainda a questão da O universalismo 4 encontra expressão imediata no
proporção entre o desenvolvimento científico e as .poten- cânon de que as pretensões à verdade, quaisquer que se-
i, cialidades científicas. É certo que a ciência se desenvolve jam suas origens, têm que ser submetidas a critérios im-
em diversas estruturas sociais, mas quais fornecem me- pessoais preestabelecidos : devem estar em consonância
lhor contexto institucional para seu maior desenvolvi- com a observação e com o conhecimento já previamente
mento? confirmado. A aceitação ou a rejeição dos pedidos de in-
gresso nos registros da ciência não devem depender dos
atributos pessoais ou sociais do requerente; não têm im-
O ETHOS DA CI1':NCIA portância em si mesmas a raça, a nacionalidade, a religião
A meta institucional da ciência é o alargamento dos e as qualidades de classe ou pessoais. A objetividade
conhecimentos certificados. Os métodos técnicos empre- exclui o particularismo. A circunstância de que as formu-
lações cientificamente verificadas se referem a seqüências 1
e correlações objetivas milita contra todas as tentativas r
3 ToCQUEVILLE foi mais longe: "O futuro provará se essas paixões de impor critérios particulares de validez. Um decreto de "
11
[para a ciência] raras e fecundas, ao mesmo tempo, nascem e se
desenvolvem tão facilmente entre as sociedades democráticas, como
nas comunistas aristocráticas. Quanto a mim, confesso que me custa
Nuremberg não pode invalidar o processo Haber, nem a
lei da gravitação pode ser revogada por anglofobia. O
I
'i
,,.
acreditar nisso". Democracy in America (Nova Iorque, 1898), II, 51. f
Veja-se outra expressão da mesma idéia: "É impossível estabelecer 4 Para uma análise básica do universalismo nas relações sociais, 1
uma relação causal entre as democracia e a ciência e afirmar que ver TALCO'IT PARSONS, The Social System. Para uma expressão da i,,"
somente a sociedade democrática pode proporcionar o solo adequado crença de que a "ciência é completamente independente das fronteiras
para o desenvolvimento da ciência. TodaYia, não pode ser mera coin- nacionais, das raças e dos credosu, ver a resolução do Conselho da
·.r! cidência que a ciência, na realidade, tenha florescido em épocas de- Associação Americana para o Progresso da Ciência, Science, 1938,
mocráticaft". HENRY E. SIGERIST, "Science and democracy", Science 87, 10; também "The advancement of science and society: propose<l
and Society, 1938, 2, 291. world association'', Nature, 1938, 141, 169.
·l:':1l
;1:!
"
Os IMPERATIVOS INSTITUCIONAIS DA CIÊNCIA 43
42 A CRÍTICA DA CIÊNCIA
de um Carlos II, a invocar a moral da ciência para cen- Por inadequadamente que seja posto em prática, o
surar a Royal Society pela suposta exclusão de John etlws da democracia compreende o universalismo como
Graunt, o aritmético político, e as suas instruções no sen- princípio-guia predominante. A democratização equivale à
tido de que "se encontrassem mais comerciantes assim, eliminação progressiva de restrições ao exercício e desen- ]:'-'
devem ser depreciadas de maneira sistemática. "Pode-se var e ampliar a igualdade de oportunidades. O aparelho
político destinado a pôr em prática os valores democrá-
aduzir, pela história da ciência, que os fundadores da pes-
quisa em ;Física e os grandes descobridores, desde GALILEU ticos pode, em conseqüência, variar, mas as normas uni- i!
e NEWTON até os físicos inovadores cie nossos dias, foram versalistas são mantidas. Na medida em que uma socie-
quase exclusivamente arianos, sobretudo de raça nórdi- dade é democrática, oferece oportunidade para o exercicio
ca". As palavras modificativas "quase exclusivamente" de critérios universalistas na ciência.
constituem base de todo insuficiente para negar aos "pá-
rias" todos os direitos ao êxito científico. Então a ideo- "COMUNISMO"
i: ! logia é "arredondada" pelo conceito de ciência boa ou má:
1
1 a ciência realista e pragmática dos arianos opõe-se à ciên- O "comunismo", rio sentido não-técnico e amplo de 1
1 cia dogmática e formal dos não-arianos. 7 Ou se procuram propriedade comum dos bens, é um segundo elemento in- !
fundamentos para a exclusão, no fato extracientífico de tegral do ethos científico. As descobertas substantivas da
'~ que os cientistas sejam inimigos do Estado ou da Igreja. 8 ciência são produto da colaboração social e estão desti-
'i 1 nados à comunidade. Constituem herança comum em que
, '
os lucros do produtor individual estão severamente limi-
'1 JOHANNES STARK, Na,ture, 1938, 141, 772; "Philipp Lenard als tados. Uma lei ou teoria não é propriedade exclusiva do
deutscher Naturforscher'', Nati,,'IU1,/,ozialisticke Mo'IU1,tskefte, 1936, 7, descobridor e dos seus herdeiros, nem os costumes lhes
r; 106-112. Isto me lembra o contraste de DUHEM entre a. ciência "alemã" L
j
:r;
" ,{:
'.=.-1
·l:1
46 A CRÍTICA DA CIÊNCIA _i(
,;•,,
ÜS IMPERATIVOS INSTITUCIONAIS DA CIÊNCIA 41 ~.{!
;
pelas razões e princípios da ética científica. O direito do :{i
cíentista à sua propriedade intelectual limita-se à gratidão e as novás entradas na comunidade da ciência são rotu- +i
·,1c,
e à estima que, se a instituição funciona com um mínimo ladas com os nomes dos nacionais: serve de testemunho ,,ti
·.H
de eficácia, são mais ou menos proporcionais aos aumen- a controvérsia sobre as pretensões rivais de NEWTON e de :fl
tos trazidos ao fundo de conhecimentos. A eponimia - LEIBNIZ acerca do cálculo integral. Mas tudo isso não '}'
por exemplo, o sistema de COPÉRNIOO, a lei de BOYLE - é, ameaça a situação do conhecimento científico como pro-
portanto, ao mesmo tempo, recurso mnemônico e come- priedade comum. 1\i
morativo. O conceito institucional da ciência como parte do do- ):t!
;iÍJ
mínio público está ligado ao imperativo da comunicação
Dada a importância institucional de gratidão e da es-
tima como o único direito de propriedade do cientista so-
bre os seus descobrimentos, o interesse pela prioridade
dos resultados. O segredo é a antítese dessa norma; a ple-
na e franca comunicação é o seu cumprimento. 11 A pres-
i'!1
,'Jc1
científica é uma reação "normal". As controvérsias sobre são para a difusão dos resultados é reforçada pela meta ,fl
prioridade que marcam a história da ciência moderna são institucional de ampliar as fronteiras do saber e pelo in- J1
produto da importância institucional concedida à origina-
lidade. • Surge uma cooperação competitiva. Os resulta-
centivo da fama, a qual depende, naturalmente, da publi-
cídade. Um cientista que não comunica suas importantes <J,~,
.
descobertas à irmandade científica - por exemplo, um ,,i
dos da competição são comunizados 'º e' a estima cresce HENRY CAVENDISH - converte-se em alvo de reações am- 11
para o produtor. As nações alegam direitos à prioridade'ºª ',:.1
bivalentes. É estimado pelo seu talento e, talvez, pela sua ":}t,
1 modéstia; mas do ponto de vista institucional, sua modés- .~
lt 9
NEWTON falava por dura experiência quando observou que
"a filosofia [natural] é wna dama tão impertinentemente litigiosa
tia está gravemente deslocada, tendo-se em conta a obri-
gação moral de compartilhar a riqueza da ciência. Embo- }Ili
1l que um homem sofreria tanto, em se envolver num processo judicial,
quanto ter que tratar com ela". RoBERT HOOKE, indivíduo social~
ra partindo de um leigo, o comentário de ALDOus HUXLEY
sobre CAVENDISH é instrutivo a esse respeito: "Nossa
l:
:;;,;
mente móvel, que subiu de situação unicamente po1· suas· realizações
admiração pelo seu gênio é mitigada por alguma desapro- ,,.
!~
O caráter comunal da ciência reflete-se também no re- motores de novas empresas econômicas. " Outros pro-
conhecimento por parte dos cientistas de que dependem curam resolver o conflito invocando o socialismo. 1 • Essas
de uma herança cultural à qual não têm direitos diferen- propostas - as que pedem remuneração econômica para
ciais. A observação de NEWTON - "se enxerguei mais os descobrimentos científicos e as que pedem uma mu- i
longe foi porque estava sobre os ombros de gigantes" - dança do sistema social para deixar que a ciência prossi-
exprime ao mesmo tempo o sentimento de estar em dívida ga em sua tarefa - refletem as discrepâncias no conceito
com a herança. comum e a confissão do caráter essencial- da propriedade intelectual.
mente cooperativo e acumulativo das realizações científi-
cas. 12 A humanidade do gênio científico não é somente DESINTERESSE
culturalmente adequada, mas é também a conseqüência A .ciência, como ocorre com as profissões liberais e
da compreensão de que o progresso científico implica a científicas em geral, inclui o desinteresse como elemento
colaboração das gerações passadas e presentes. Foi CAR-
lt LYLE, e não MAXWELL, que se entregou a uma concepção
institucional básico. Não se deve considerar o desinteresse
igual ao altruísmo, nem a ação interessada igual ao egois-
criadora de mitos da história. mo. Essas equivalências confundem níveis institucionais
O comunismo do ethos científico é incompatível com e de motivação:·na análise. 17 Ao cientista têm sido atribuí-
a definição da tecnologia como "propriedade privada" dos a paixão de saber, uma curiosidade ociosa, um inte-
numa economia capitalista. Obras recentes sobre a "frus- resse altruísta pelo benefício da humanidade e muitos
tração da ciência" refletem esse conflito. As patentes re- outros motivos especiais. A procura das motivações dis-
gistram direitos exclusivos de uso e, muitas vezes, de tintivas parece ter sido mal orientada. É antes um padrão
não-uso. A supressão da invenção nega a explicação· ra- típico de controle institucional de uma ampla margem de
cional da produção e da difusão científicas, como se deduz motivações o que caracteriza o comportamento dos cien-
da sentença de um tribunal no caso de Estados Unidos tistas. Pois uma vez que a instituição impõe uma ativi-
contra a American Bell Telephone Co. "O inventor é um dade desinteressada, é do interesse do cientista confor-
indivíduo que descobriu algo de valor. É sua proprie- mar-se, sob pena de sanções e, na medida em que a nor-
dade absoluta. Pode subtrair do público seu conheci- ma foi assimilada, sob pena de conflito psicológico.
mento ... " 13 As reações a essa situação conflitante têni A ausência virtual de fraudes nos anais da ciência,
sido diversas. · Como medida defensiva, alguns cientistas que parece excepcional quando comparada com outras es-
chegaram a patentear sua obra para garantir que seria feras de atividade, foi atribuída às qualidades pessoais
posta à disposição do uso público. EINSTEIN, MILLIKAN, dos cientistas. Por implicação, os cientistas se recrutam
COMPTON, LANGMUIR tiraram patentes. 14 Fizeram-se pres- entre as fileiras dos que apresentam um grau pouco ha-
sões sobre os cientistas para que se convertessem em pro- bitual de integridade moral. Não há, na realidade, provas
satisfatórias de qµe isso seja assim; pode-se encontrar
12 É interessante saber que o aforismo de NEWTON é uma frase uma explicação mais admissível em certas características
estereotipada, conhecida pelo menos desde o século XII. Pareceria distintivas da própria ciência. Ao implicar, como implica,
confirmar que a dependência das descobertas e das invenções sobre
as bases culturais existentes já fora notada muito tempo antes dos a verificabilidade dos resultados, a pesquisa científica está
enunciados dos modernos sociólogos. Ver Isis, 1935, 24, 107-9; 1938,
25, 451-2.
13 167 U. S. 224 (1897), citado por B. J. STERN, "Restraints 15 VANNEVAR BUSH, "Trends in engineering research", Sigma
upon the utilization of inventions", The Annals, 1938, 200, 21. Para XI Quartercy, 1934, 22, 49.
16 BERNAL, ap. ci.t., 165 e segs.
estudo mais aprofundado, e/. outros trabalhos de STERN citados na
mesma revista; ver também WALTON HAMILTON, Patents and Free 17 TALCOTT PARSONS, "The professions and social structure'',
Enterprise (Temporary National Economic Committee Monograph, Social Forces, 1939, 17, 458•9; cf. GEORGE SARTON, The History o/
N.0 31, 1941). Sci.ence and tke New Humanism (Nova Iorque, 1931), 130 e segs.
14 HAMILTON, op. cit., 154; J. ROBIN, L'oeuvre scientifique, sa A distinção entre obrigações e motivos institucionais é, naturalmente,
protection juridique, Paris, 1928. o conceito chave da Sociologia marxista.
",i.
v
50 A OúTICA DA . ~CIA ÜS IMPERATIVOS !NSTITUCIONAJS DA CIÊNCIA 51
debaixo do controle exigente dos colegas peritos. Em ou- É provável que a reputação da ciência e sua elevada
tras palavras·--, e a observação poderá sem dúvida ser in- posição ética na estima dos leigos sejam devidas, em
terpretada como lesa-majestade - as atividades dos cien- grande parte, às realizações tecnológicas. 100 Toda nova
tistas.:estão submetidas a um policiamento rigoroso, sem tecnologia atesta a integridade do cientista. A ciência rea,
paralelo, talvez; em qualquer outro campo de atividade. liza suas pretensões. Mas sua autoridade pode ser e é
k.exigência de desinteresse tem firme alicerce no caráter aproveitada para propósitos interessados, precisamente
público e testável da ciência e podemos supor que essa porque os leigos não estão amiúde em situação de distin-
circunstância contribuiu para a integridade do homem de guir as pretensões espúrias, dessa autoridade, das legíti-
ciência. Existe competição no campo da ciência, compe- mas. As declarações presumivelmente científicas dos por.-
tição que se intensifica pela importância que se dá à prio- ta-vozes totalitários sobre a raça, a economia ou a história
i1· ridade como critério de realização e, em condições com- são, para os leigos incultos, da mesma ordem que as in-
petitivas, podem surgir incentivos para eclipsar os rivais formações dos jornais sobre um universo em expansão ou
por meios ilícitos. Mas esses impulsos encontram escas- a mecãnica de ondas. Em ambos os casos, declarações e '
sas oportunidades para se manifestarem no campo da informações tais não podem ser testadas pelo homem da 1
i;,
pesquisa cientifica. Cultismo, camarilhas informais, pu- rua e, em ambos os casos, podem ser contrárias ao bom :,:1
blicações prolificas mas banais - podem-se usar essas e senso. Talvez os mitos possam parecer mais admissiveis, i
outras técnicas para a promoção pessoal. 18 Mas, em ge- e seguramente mais compreensíveis ao público em geral,
ral, as pretensões espúrias parecem ser -negligíveis e ine- que as teorias cientificas acreditadas, já que estão mais i_·,1
tuação esta que conduz à estabilidade institucional. timo à ciência, dá prestígio à teoria anticientifica.
ó campo da ciência difere bastante, a esse respeito,
daquele de outras profissões. O cientista não lida com CETICISMO ORGANIZADO
uma clientela leiga, como o fazem o médico e o advogado.
A .possibilidade de explorar a credulidade, a ignorância ou Como vimos ·no capítulo anteriol', o ceticismo organi-
·a ·necessidade do leigo está assim consideravelmente re- zado se inter-relaciona de diversas maneiras com os outros
duz.ida, A fraude, a chicana e as pretensões irresponsáveis elementos do ethos científico. É um mandato ao mesmo
(charlatanismo) são ainda menos prováveis do que entre tempo metodológico e institucional. A suspensão do julga-
as.profissões de "serviço", Na medida em que as relações mento,· até que ."os.fatos estejam. à mão", e o exame im-
·entl'e os cientistas e os leigos adquirem importância su- parcial das crenças, de acordo com critérios empíricos e
perior, desenvolvem-se incentivos para burlar a moral da lógicos, :têm envolvido periodicamente a ciência em con-
I• \1 ciência. O abuso da autoridade dos peritos e a criação de flitos· com outras instituições. A ciência, que coloca ques-
pseudoci.:incias entram em campo quando a estrutura de tões de fato,. incluídas as potencialidades, concernentes a
!.1 controle exercida por cólegas qualificados se torna ine- todos os aspectos da natureza e da sociedade, pode entrar
1 ! ficiente. 10 em conflito com outras atitudes em relação a esses mes-
mos dados que foram cristalizados e, amiúde, ritualiza-
dos por outras instituições. O pesquisador cientifico não
18 Ver o relatório de LoGAN WILSON, The Academic Man, 201
e segs.
" Cf. R. A. BRADY, The Spirit and Structure o/ German Fa.s- 1'98 FRANCIS BACON formulou um dos primeiros e mais sucintos
cism (Nova Iorque, 1937), Cap. II; MARTIN GARDNER, ln the Name enunciados desse pragmatismo popular. "0 que é mais útil na prática
o/ Science (Nova Iorque: Putnam's, 1953). é o mais correto na teoria". N ovum Organum, Livro II, 4.
~-
i 52 A CRITICA DA ~NCIA
1
'
1 respeita a separação entre o sagrado e o profano, entre • ·I
o que exige respeito sem crítica e o que pode ser objeti- ~-1· 1'•
vamente analisado ("Ein Professor ist ein Mensch der
anderer Meinung ist"). 11!
Esta parece ser a·fonte das rebeliões contra a chama- f
,i
'
da intromissão eia ciência em outras esferas. A resistên-
cia por parte da religião organizada tem perdido impor-
,.
J tância em comparação com a dos grupos econômicos e
:1
:: políticos. A oposição pode também existir completamente
ji à parte da introdução de descobertas científicas específi- 2 - A FUNÇÃO DO DOGMA NA INVESTIGAÇÃO
CIENTIFICA "', "'"' :i_i
cas que parecem invalidar dogmas particulares da Igreja,
I Ir ) da economia ou do Estado. É antes uma apreensão difu-
sa, muitas vezes vaga, de que o ceticismo ameaça a dis-
I{ i tribuição de poder vigente. O conflito acentua-se sempre T. S. KUHN
que a ciência leva sua pesquisa a zonas novas nas quais
já existem atitudes institucionalizadas, ou sempre que Estou certo de que cada um dos participantes deste
11 outras instituições ampliam sua área de controle. Na so- simpósio se expôs, a dada altura de sua carreira, à idéia
ciedade totalitária moderna, o anti-racionalismo e a cen- do cientista como o investigador sem preconceitos em
i tralização do controle institucional servem ambos para
1,
,, busca da verdade; o explorador da natureza - o homem
limitar o campo deixado à atividade científica. que rejeita preconceitos quando entra no laboratório, que
'I·. 1:, coleciona e examina os fatos crus, objetivos, e que é fiel
1
'1: '
; a tais fatos e só a eles. Estas são as características que
,, ..
fazem do testemunho dos cientistas um valioso elemento
na propaganda de produtos variados e em exclusivo nos
!'. Estados Unidos. Mesmo perante uma audiência interna-
cional não é preciso esclarecer mais. Ser científico é,
entre outras coisas, ser objetivo e ter espírito aberto. .¾