Casanova

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CASANOVA

LAURENCE BERGREEN

CASANOVA
A VIDA DE UM GÉNIO SEDUTOR

Tradução de
PEDRO CARVALHO E GUERRA & RITA CARVALHO E GUERRA
Para Zata, Jacqueline e em memória da minha mãe
«O amor é três quartos curiosidade.»
— GIACOMO CASANOVA
P REF ÁC IO

Hoje em dia, Giacomo Casanova personifica o arquetípico amante


latino e há um pouco de Casanova em quase toda a gente. Mas para os
seus contemporâneos do século XVIII, o nome Casanova significava
outra coisa — o veneziano aventureiro, espião, duelista, jogador,
ilusionista e autor de perto de cem romances, poemas e dissertações.
Jean-Jacques Rousseau, Voltaire, Catarina a Grande, Benjamin Franklin,
Mozart e Lorenzo da Ponte — o libretista de Don Giovanni de Mozart
e figura extravagante por direito próprio — eram todos amigos e cor-
respondentes. Para eles, Giacomo Casanova personificava o espírito
de liberdade e, mais do que isso, de libertinismo — de prazer sexual
sem limites. Pensamos na Europa do século XVIII como sendo a Era
da Revolução ou a Era do Iluminismo, mas esta foi também a Era de
Casanova, o arrivista veneziano que encarnou as suas paixões e praze-
res. E pensamos em Casanova como um grande narcisista, embora este
tenha desempenhado muitos outros papéis na sociedade, enquanto
procurava um lugar que correspondesse à imagem exaltada e frágil que
tinha de si próprio. Tratou-se de uma figura genuinamente chocante
que, por acaso, também era um génio literário, psicológico e matemá-
tico; um mestre da autorreinvenção e da autopromoção; um batoteiro
dedicado, burlão e ilusionista que inventou a lotaria francesa (ainda em
uso atualmente); e fez de si uma das primeiras celebridades da era mo-
derna.
Porque continuamos fascinados por este indivíduo arrogante,
mais de dois séculos após a sua morte? Ele não era bonito, nem tinha
boa educação, nem vinha de boas famílias. Não tinha estatuto nem
poder. De alguma maneira, este filho pobre de uma atriz transformou-
-se a si próprio no mais famoso libertino de sempre e numa figura lite-
rária de relevo na sua era. A sua vida era tão vivida em cartas quanto
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na cama. Casanova é lendário por personificar o arquétipo do eterno


romântico, promíscuo, sedutor, no entanto, os seus feitos menos
conhecidos, mas igualmente notáveis em matemática e literatura, só
foram reconhecidos muito tarde e apenas parcialmente. Partiu cora-
ções de Veneza a Paris, passando por Praga. Casanova exaltava as mu-
lheres mesmo enquanto as explorava. Preferia fazer o amor (quanto
mais romântico, melhor) em vez da guerra, enquanto vivia as suas fan-
tasias sexuais e românticas. O seu desejo não conhecia limites; este foi
um homem que afirmou ter seduzido a própria filha e tê-la atraído
para o ver fazer amor com a mãe. Como é que este zé-ninguém teme-
rário acabou por estar ligado às mais belas mulheres e às mentes mais
brilhantes da época? Como conseguiu ele escrever a dissertação eróti-
ca perfeita? Como é que este filho menos amado e ostracizado se
transformou no mais famoso amante da história?
O verdadeiro Casanova (num retrato produzido pelo seu irmão
Francesco) tinha uma escassa semelhança com a imagem popular do
lendário sedutor. Era alto — pelo menos um metro e oitenta e dois de
altura — moreno, ossudo, com uma grande testa e um nariz proemi-
nente que fazia com que parecesse um ganso gigante. Costumava usar
uma peruca empoada, em voga na época, calças de seda justas, chapéu
preto de três bicos e um tabarro, ou capa, por norma de cor preta, que
caía sobre os ombros e era decorado com folhos. O mais espantoso é
que os verdadeiros venezianos, e só os venezianos, usavam a bauta, ou
manto, máscara branca rija, a toda a hora ou quase. Os membros da
nobreza, tanto homens como mulheres, usavam máscaras em público
e, muitas vezes, em privado. Nos teatros, os porteiros asseguravam-se
de que as máscaras estavam no seu lugar, embora os patrícios as pu-
dessem retirar mal a peça começasse. Quando se encontravam com
embaixadores por motivos oficiais, os patrícios tinham de usar a bauta,
tal como os emissários. A fantasia completa era o rosto que Veneza
apresentava ao mundo e a si mesma.
As mulheres da República escondiam-se por trás de sinistras
moretta pretas, uma máscara de veludo mantida no lugar por um botão
que prendiam entre os dentes, evitando que quem a usava falasse.
(O nome vinha da palavra moro, o termo veneziano para a cor preta.)
Era também conhecida como servetta muta, ou «máscara silenciosa» e era,
quando muito, ainda mais estilizada e sinistra do que a bauta. Estas fan-
tasias não eram usadas apenas no carnaval nem em bailes. Com algumas
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exceções, os venezianos usavam-nas durante todo o ano e as leis vene-


zianas determinavam punições severas para aqueles que violassem
o código.
Os homens achavam frequentemente Casanova desconcertante
e pomposo. «Achei-o um cepo», escreveu o biógrafo James Boswell
depois de se conhecerem. «É um dândi, convencido, inchado pela
vaidade como um balão e espalhafatoso como uma azenha», disse o
dramaturgo veneziano Pietro Chiari, um feroz rival. Mas as mulheres
respondiam ao seu charme, amabilidade e à sua ágil astúcia. Embora
estivesse relutante em admiti-lo, Casanova não era completamente
heterossexual; sentia-se atraído por homens mascarados de mulher e
por mulheres mascaradas de homem. Tudo acerca dele era ambíguo,
simultaneamente desconcertante e encantador.
Deitou-se com cento e vinte e duas mulheres, pelas suas contas e,
talvez, com alguns homens. Numa sociedade dedicada ao excesso e ao
prazer, muitos venezianos celebravam mais conquistas do que as que
faziam, mas, ao contrário daqueles outros libertinos, registou todos os
pequenos pormenores dos seus feitos em detalhes vívidos, por vezes
pornográficos. Neste Kama Sutra de Veneza, revelou, com uma exatidão
e meticulosidade surpreendentes, os feitos de uma vida, apreciando os
seus pequenos pecados, as suas conquistas, reveses e prazeres carnais.
Em busca de vingança devido à sua falta de estatuto à nascença, embar-
cou na demanda de uma vida para corrigir esse erro, colocando-se a si
mesmo em posição de fornicar. Terá usado o sexo como uma arma de
destruição de classe, tendo tido oito filhos fora do casamento, cada
um deles com uma mulher diferente com quem se recusou casar. Por
vezes, comportava-se como um patife, outras, como um génio. Era o
arquétipo do mau namorado: irresistível, perigoso, amoral. Casanova
não era o único hedonista dedicado da sua época, nem era a figura lite-
rária mais brilhante, e não era, certamente, o único vigarista, mas era
único a desempenhar plenamente os três papéis.
Embora o lugar de Casanova na história da sensualidade e no
conhecimento do amor estejam assegurados, é uma surpresa para muitos
que tenha sido uma pessoa de carne e osso, uma figura excecional do
Iluminismo. A sua Histoire de ma vie, em doze volumes escritos em
francês, representa a mais importante fonte de informação acerca da
sua vida e dos seus amores e uma visão caleidoscópica da sua época.
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As suas três mil e setecentas páginas, pela bela e firme mão de Casanova,
repousam na Biblioteca nacional de França (BnF), em Paris. São uma
adição recente. Depois de uma comissão francesa ter declarado a obra
um tesouro nacional, a BnF pagou nove milhões de dólares pela com-
pra do manuscrito: a aquisição mais cara da história da biblioteca.
Casanova, extremamente vaidoso, teria ficado muitíssimo orgulhoso
com esta confirmação do seu lugar central nas letras francesas e na vi-
da intelectual da sua época.
Se o seu épico de sedução, espionagem e ascensão social tivesse
sido publicado durante o período em que viveu, teriam chocado os
seus contemporâneos e comprometido as vidas e reputações de vene-
zianos proeminentes e de outras personalidades importantes, cujos
pontos fracos e escapadelas oferecem uma leitura tão agradável.
As transgressões sexuais, até mesmo a sedução da sua filha ilegítima,
que pode até ter ficado grávida do filho de Casanova — seu filho e neto
— foram aqui reveladas num mundo tão disciplinado como amoral.
Casanova publicou extensamente durante a sua vida. Concluiu
um romance de ficção científica de vários volumes; uma história da
Polónia, também em vários volumes; traduziu a Ilíada para francês;
compôs quatrocentos poemas; instaurou uma polémica refutando
Voltaire; redigiu perto de duas mil cartas acerca de qualquer ideia que
lhe viesse à cabeça; e deixou cerca de três mil páginas de projetos literá-
rios inacabados, tudo isto enquanto procurava casos amorosos ardentes
e intrigas elaboradas. Era hipersexual e hiperliterário.

A superstição reinava na Veneza de Casanova. Acreditava-se que


a magia e o diabo faziam com que as pessoas se perdessem nas ruas la-
birínticas da cidade ou até que enlouquecessem. Os venezianos reco-
nheciam de modo rotineiro a existência de fantasmas. Até hoje, alguns
venezianos juram que quando tocam ligeiramente nas paredes de uma
casa, conseguem sentir a presença dos que partiram e ouvir as suas
vozes.
A República abrangia cento e dezoito pequenas ilhas numa lagoa
ou pântano, colonizadas por refugiados desesperados de Roma, Pádua
e de outras cidades pilhadas por invasores nos primeiros séculos da
era cristã de Roma. Revoltando-se contra os prelados e generais, esta-
beleceram o primeiro Doge — um título que derivava de dux, o termo
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em latim para líder — no ano de 726 e apropriando-se dos ornamentos


do império. Em 828, os mercadores venezianos fizeram desaparecer
de Alexandria relíquias de São Marcos, um dos Discípulos, e levaram-
-nas para Veneza, onde ainda se encontram atualmente, na Basílica de
São Marcos, o centro espiritual da cidade.
Para lá dos limites da lagoa, o Iluminismo — dedicado à reforma
social, ao avanço do conhecimento e à liberdade sexual — fazia circu-
lar novas ideias estimulantes pela Europa Ocidental, mas os venezia-
nos rejeitavam, obstinadamente, as influências externas. O Casanova
educado e multilingue criticou claramente Voltaire e Rousseau, duas
das figuras preponderantes do Iluminismo. No entanto, poderá ter
sido Casanova que Voltaire tinha em mente quando, em 1770, afirmou
que a perfeição é inimiga do bem. Casanova estava tão longe quanto
possível de ser perfeito; a sua mensagem é uma mensagem de come-
moração da exploração sexual como caminho para a realização e para
a iluminação. Ainda assim, manteve-se fiel à ordem antiga, familiar e
corrupta; preferia a emoção da fuga à responsabilidade da liberdade.
Acreditava devotamente em Deus e tinha pena dos que não acredita-
vam. Mas como um libertino, maçom, epicureu e devoto da Cabala,
estava sempre a tentar transpor os limites das instituições venezianas
para exaltar o «eu» — e a sua sexualidade. Acreditava em tudo o que
lhe passava pela frente: religião, filosofia, magia, ciência e, especial-
mente, no amor. Apimentou a Era do Iluminismo com sexo e mais
sexo. Explorou mulheres descaradamente. Em simultâneo, entregou-
-se a si mesmo às mulheres que possuía. «Não conquisto, submeto»,
explicou. Ele exaltava as mulheres para além da razão. Cada um dos
casos amorosos era, para ele, um encontro da mente e do espírito, um
vislumbre da eternidade e do êxtase.
LIVRO UM

V E NE Z A
C AP ÍTUL O 1

ZAN ETTA

De todas as mulheres da vida de Giacomo Casanova, a sua


exuberante e esquiva mãe, Zanetta Farussi, foi a primeira. Era conhe-
cida do público pelo seu nome de palco, La Buranella, um tributo à
sua casa ancestral na ilha minúscula e alegre da lagoa veneziana cha-
mada Burano, salpicada de casas pintadas de fúcsia, verde-azulado,
amarelo, verde, lima, azeitona e outras tonalidades extravagantes. Dela,
Casanova absorveu uma encantadora mistura de artifício, excentricidade
e ilusão.
Filha de um sapateiro, Zanetta transformou-se numa atriz de fes-
tival e cortesã, a heroína de um conto de fadas para adultos. Veio ao
mundo a 27 de agosto de 1707, a filha ilegítima de Girolamo Farussi e
da viúva Marzia Baldissara e foi batizada a 4 de setembro na antiga
igreja de San Giacomo dell’Orio, no centro de Veneza. No espaço de
meses, a pequena família instalou-se na paróquia de San Simeone
Profeta e a 31 de janeiro de 1709, os seus pais casaram e mudaram-se
novamente, desta vez, para a Calle delle Muneghe, uma zona cheia de
gente e exuberante na paróquia de San Samuele.
Aquele inverno foi, alegadamente, o mais frio dos últimos qui-
nhentos anos. A lagoa veneziana transformou-se num bloco de gelo.
O gado pereceu, as cristas das galinhas gelaram e caíram, rebentando
no ar gélido e os viajantes pereceram. A fome foi ubíqua. Os venezia-
nos resistiram, como sempre. Grande parte da populaça veneziana,
que sonhava subir aos palcos, arranjava emprego como cabeleireiros,
vendedores de bilhetes, instrutores de canto e de atuação, ajudantes de
teatro e especialistas em iluminação. As suas fileiras engrossavam com
arrumadores, bengaleiros e pretensos atores. Os dramaturgos desejosos
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de atenção liam os seus guiões a ouvintes indiferentes e os admiradores


secretos das atrizes movimentavam-se para verem os seus ídolos. Carlo
Goldoni, um estudante veneziano que estudava para o sacerdócio, tentou
pela primeira vez adaptar comédias gregas e romanas ao teatro e trans-
formou a comédia física de improviso conhecida como commedia del-
l’arte. As assistências sentiram-se perfeitamente em casa com as figuras
padrão do género — Pantaleão, Polichinelo, Columbina — e as suas
rotinas impulsivas. Toda a gente sabia o que Arlequim diria antes de as
palavras saírem da sua boca, por isso Goldoni deu novas palavras às
personagens. Os atores passaram a confiar nos seus diálogos e orienta-
ções em palco. Para alimentar a fome da novidade, improvisou os seus
guiões numa questão de dias. Os direitos de autor e os royalties eram
coisas desconhecidas. Quando Goldoni entregou dezasseis peças intei-
ras ao seu agente numa temporada, não recebeu qualquer bónus pelos
seus esforços — «Nem um centavo para além do salário anual, nada
de nada.» Recebeu ainda assim muitos louvores, mas, comentou, «uma
pessoa precisa de mais do que glória para viver».

Entre a agitação, um jovem ator, de seu nome Gaetano Casanova,


apaixonou-se por uma atriz chamada La Fragoletta — diminutivo
de «morango». Na realidade, esta criatura voluptuosa era Giovanna
Benozzi. Por volta de 1713, Gaetano abandonou a sua cidade de onde
era oriundo, Parma, para se lhe juntar em Veneza, onde ela geria dois
teatros, San Luca e San Samuele, em nome da poderosa dinastia
Grimani. Muito mais tarde, Giacomo afirmou ter ouvido que Gaeta-
no, seu pai, tinha começado a sua carreira como bailarino e, depois, se
virara para a atuação, «tornando-se mais famoso pela sua integridade
de carácter do que pelo seu talento» — um modo diplomático de dizer
que não tinha talento.
Algo correu mal na perseguição de Gaetano a La Fragoletta e ela
fugiu para Paris com outro grupo de teatro. Ficando para trás em
Veneza, Gaetano passou a fazer parte da mobília no teatro de San
Samuele, representando papéis em farsas e em pantomimas e estando
alojado na Calle degli Orbi numa casa que era propriedade de fabrican-
tes de calçado que alugavam quartos a atores. No conto de Giacomo,
o pequeno lar incluía Girolamo Farussi, a sua mulher, Marzia e a sua
filha de dezasseis anos, Zanetta.
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Gaetano apaixonou-se por Zanetta em 1723 e deparou-se de


imediato com resistência. «Sendo um ator», explicou Giacomo nas
suas memórias, «[Gaetano] não podia esperar tê-la conseguindo o con-
sentimento de Marzia, sua mãe, ainda menos o de Girolamo, seu pai»
que «achava que um ator era uma abominação». Quando Girolamo
morreu no ano seguinte, Marzia recuperou o direito de viver a sua vi-
da na Calle delle Muneghe, numa casa que era propriedade de uma
obra de beneficência e o principal obstáculo da união de Zanetta com
Gaetano foi derrubado. A 24 de fevereiro de 1724, casaram-se na igreja
de San Samuele.
Na interpretação dramática de Casanova, os amantes fugiram,
com Marzia «protestando ruidosamente» e o seu pai «morrendo de
desgosto» pouco depois do casamento, não antes. Na realidade menos
teatral, os recém-casados mudaram-se para casa de Marzia, a sogra
viúva de Gaetano, que acolheu a sua companhia e compromisso ho-
norável. Por uns tempos, a vida foi tão normal quanto possível para
um casal de jovens atores em dificuldades, em Veneza. Gaetano man-
teve o seu emprego no teatro e Zanetta aceitava, ocasionalmente, pe-
quenos papéis, apesar da sua promessa de abandonar o teatro após o
casamento. A jovem e vivaz criada chamou a atenção do dono do tea-
tro, Michele Grimani, que pertencia a uma das famílias mais influentes
de Veneza, uma casta muito unida de cerca de quatrocentas famílias.
Era, de facto, uma personagem augusta. Os rumores acerca da sua re-
lação nunca cessaram, especialmente quando Zanetta ficou grávida —
muito provavelmente de Gaetano.
Casanova escreveu que «nasceu deste casamento nove meses
mais tarde, a 2 de abril de 1725» e foi batizado três dias depois. Assim
contava o relato oficial das suas origens. Nos seus últimos anos, vol-
tou a abordar o assunto da sua paternidade escrevendo e publicando
um longo relato satírico, Nè amore, nè donne, afirmando que Michele
Grimani, não o perseguido Gaetano Casanova, era o seu verdadeiro
pai. Muita da identidade e do legado de Casanova como o galante, se-
dutor e erudito estão ligados ao enigma da sua paternidade. Se o pai
foi, de facto, o humilde e bem-intencionado ator de Parma, a persona-
gem extravagante que o filho criou para si foi um dos atos de maior su-
cesso de autocriação da época, um desempenho de uma vida inteira que
ultrapassou tudo o que ambos os pais poderiam ter imaginado. Mas se
o pai foi o aristocrático Grimani, os seus pais nunca poderiam casar.
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A nobreza veneziana tinha frequentemente filhos fora do casamento


ainda que as regras da sua sociedade impedissem o casamento com os
de fora. Se Giacomo Casanova era, de facto, filho ilegítimo de Grimani,
pertencia a uma classe de crianças numerosa, mas não reconhecida, e o
casamento de Zanetta servia para encobrir a sua indiscrição. De qual-
quer das maneiras, a criança seria sempre um proscrito, alguém com
acesso negado ao mundo rígido e privilegiado da nobreza veneziana.
Enquanto permanecesse em Veneza, seria diariamente recordado da
sua falta de estatuto. Seria ele um príncipe ilegítimo ou um indigente?
Esta crise de identidade animou-o, provocou-o e atormentou-o ao
longo dos anos. Casanova viria a passar a vida a tentar convencer e,
ocasionalmente, a forçar a entrada no círculo do qual acreditava ter si-
do excluído.
Inquieta e ambiciosa, Zanetta atraiu a atenção de Goldoni sobre
si mesma, que tentava emular a imagem do grande cómico francês do
século anterior, Molière. Mas isto era Itália. «Em França», aconselhara-
-o um encenador outrora, «podes tentar agradar ao público, mas aqui
em Itália tens de consultar os atores e as atrizes.» Isso era tão verdade
na vida como no palco; em Veneza, as personalidades eram mais im-
portantes do que os costumes e entre as mais atrativas que Goldoni
encontrou estava Zanetta. Ele achou-a «bonita e muito talentosa» e
conseguiu-lhe um papel de cantora nos seus interlúdios musicais, en-
cantando as audiências com o seu «gosto, ouvido perfeito e execução».
Enquanto fazia uma digressão por Londres, Zanetta deu à luz o
seu segundo filho, Francesco, em 1727. Giacomo era o filho que ela
deixara para trás em Veneza; o bebé Francesco ficou a seu lado em
Londres. Tornou-se no seu preferido, aquele que, mais provavelmen-
te, teria sucesso na vida. E o que seria de Giacomo? Ficou com o pa-
pel do descendente esquecido e inconveniente. No entanto, este filho
menos amado e abandonado tornou-se no mais famoso amante dos
tempos modernos, assim como num génio matemático e da literatura.
E Francesco? Tornou-se num artista apreciado da sua época; a sua fa-
ma ultrapassou em larga medida a do seu estouvado irmão mais velho.
À medida que se tornava adulto, Giacomo ia-se familiarizando
com os contornos da carreira teatral da sua mãe e da sua tentativa de
forjar uma identidade própria; ela legou ao filho esta vontade de criar a
sua própria identidade. Anos mais tarde, viajou para Londres, Dresden
e Praga, as cidades onde ela vivera, amara e atuara, como se estivesse
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a tentar captar a sua glória esmorecida. Onde quer que fosse, procurava
o rosto, os braços, os lábios, os olhos e o cheiro da sua jovem mãe em
todas as amantes que encontrava. Na sua mente, eram todas manifes-
tações de Zanetta, portanto seduziu-as para que o seduzissem a ele.
A história de como este patinho feio desfavorecido se transfor-
mou no elegante cisne veneziano conhecido como Casanova é espan-
tosa. Enquanto criança, nunca falava e era considerado um pouco im-
becil, destinado ao anonimato. Giacomo, que acabaria por escrever
doze volumes de memórias recordando pessoas e acontecimentos da
sua vida com um pormenor refinado e cativante, afirmou não ter
quaisquer recordações dos primeiros oito anos da sua vida.

Em agosto de 1733, tudo mudou quando o seu «órgão de memó-


ria se desenvolveu». E atentem: «Eu estava no canto de uma sala,
apoiado na parede, a segurar a cabeça e a olhar fixamente para o san-
gue que me corria do nariz para o chão. A minha avó Marzia, de quem
eu era o animal de estimação, veio até mim, lavou-me o rosto com
água fria e, sem conhecimento de ninguém da casa, subiu a bordo de
uma gôndola e levou-me até Murano. Esta era uma ilha densamente
povoada a cerca de meia hora de distância de Veneza. Saindo da gôn-
dola, entrámos numa cabana onde encontrámos uma mulher idosa
sentada numa enxerga, com um gato preto nos braços e cinco ou seis
mais à sua volta. Era uma bruxa.»
Marzia conversou com a bruxa em friulano, incompreensível
para Giacomo, e deu-lhe um ducado de prata, depois do que «ela abriu
um baú, pegou em mim ao colo, colocou-me dentro desse mesmo
baú, fechou-o e trancou a tampa, dizendo-me que não tivesse medo».
Enquanto permaneceu na escuridão, com um lenço de assoar apertado
contra o nariz de onde escorria sangue, ouviu o «riso alternado com
choro, gritos, cantos e várias pancadas no baú». A bruxa salvou-o e su-
jeitou-o a «inúmeras carícias». A seguir, embrulhou-o num lençol, reci-
tou encantamentos, libertou-o e, por fim, deu-lhe de comer; depois,
retomou as carícias com um unguento relaxante e vestiu-o enquanto o
advertia de que o seu sangramento diminuiria desde que ele não con-
tasse a ninguém qual fora o seu tratamento. Caso contrário, sangraria
até à morte. Uma «senhora encantadora» acabaria por visitá-lo e a sua
«felicidade dependeria dela».
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Regressou a casa com a avó e nessa altura, «vi ou creio que vi»,
acrescentou com cuidado, «uma bela e resplandecente mulher a descer
pela chaminé [...] com uma coroa na cabeça com uma exuberância de
pedras que pareciam brilhar com o fogo». Ela sentou-se na sua cama e
abriu várias caixas pequenas. «Depois de proferir um longo discurso,
do qual nada entendi, e de me ter beijado, partiu como chegou.»
Na altura, Giacomo não contou a ninguém o seu incidente místi-
co. Manteve-o em segredo «no recanto mais secreto da minha memó-
ria crescente», para ser revelado anos mais tarde, quando escreveu as
suas memórias. Era a sua primeira recordação, e também a mais pode-
rosa, o mito da sua origem, o conto do vigário, o de que o Giacomo
em sofrimento ficou novamente saudável por intermédio de uma
mulher agradável e resplandecente. «Os medicamentos para as piores
doenças não se encontram sempre nas farmácias», refletiu; podem ser
encontrados nos mais profundos recantos do cosmos ou do coração.
Apesar desta manifestação de uma sensualidade feminina que tanto lhe
salvou a vida como lhe reavivou o intelecto em hibernação, manteve-se
mais cético do que místico. «Nunca houve feiticeiros nesta terra», ex-
plicou, apenas aqueles «capazes de convencer [os outros] a acreditarem
que eles o eram.»
Após o tratamento, Giacomo parecia tão desesperado como
sempre, «muito má companhia», nas suas próprias palavras. «As pes-
soas tinham pena de mim e deixavam-me sozinho; toda a gente acredi-
tava que eu não viveria muito tempo. A minha mãe e o meu pai nunca
me falaram.» Ainda assim, ressuscitou milagrosamente. A hemorragia
diminuiu. A sua mente começou a agitar-se e «em menos de um mês,
aprendi a ler».

Com o intelecto vem a desilusão. Três meses mais tarde, recordou


Giacomo com um calafrio, ele e o seu irmão mais novo, Francesco,
estavam a observar o pai, que tinha desistido de atuar, a trabalhar no
seu estúdio de oculista. «Reparei que estava na mesa um grande cristal
redondo cortado em facetas.» O quão arrebatador era segurá-lo à altura
dos olhos e contemplar «tudo multiplicado». No momento seguinte, «ao
dar conta que ninguém me estava a ver, aproveitei a oportunidade para
o meter no bolso». Enquanto o seu pai procurava o valioso objeto,
Francesco afirmou sinceramente que não sabia dele e Giacomo disse
com falsidade a mesma coisa.

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