Barclay Introdução

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BARCLAY - INTRODUÇÃO ÀS CARTAS PASTORAIS

Cartas pessoais
1 e 2 Timóteo e Tito se consideraram sempre um grupo separado de Cartas, distintas
das outras Epístolas de Paulo. A razão mais óbvia é que só elas, junto com a pequena Carta
a Filemom, estão dirigidas a pessoas, enquanto que o resto das Cartas paulinas o estão a
Igrejas. O Cânon Muratoriano, que foi a primeira preparada oficial dos livros do Novo
Testamento, diz que foram escritas "como expressão do sentimento e afeto pessoal". São
Cartas privadas mais que públicas.

Cartas eclesiásticas
Mas logo se começou a ver, que apesar de que à primeira vista são Cartas pessoais e
privadas, têm um significado e uma importância que vão mais além da mera referência
pessoal. Em 1 Timóteo 3:15 destaca-se o fim destas Cartas. São dirigidas a Timóteo para
que “se eu tardar, fiques ciente de como se deve proceder na casa de Deus, que é a igreja do
Deus vivo, coluna e baluarte da verdade”. Estas Cartas foram escritas para assinalar a
conduta própria daqueles que vivem na casa de Deus. De modo que, então, compreendeu-
se que estas Cartas não só têm um significado pessoal, mas também têm o que se poderia
chamar um significado eclesiástico. Assim, pois, o Cânon Muratoriano diz referindo-se a
elas, que apesar de serem Cartas pessoais, escritas com afeto pessoal, "são ainda
consideradas com respeito pela Igreja Católica, e na confecção da disciplina eclesiástica".
Tertuliano disse que Paulo escreveu: "Duas cartas a Timóteo e uma a Tito, com respeito ao
estado da Igreja (de ecclesiastico statu)". Não nos surpreende então que o primeiro nome
que se lhes desse fora o de Cartas Pontifícias. Este tipo de cartas estão escritas pelo pontifex,
o sacerdote, aquele que controla a Igreja.

Cartas pastorais
Mas pouco a pouco começaram a adquirir o nome pelo qual ainda são conhecidas —
As Epístolas Pastorais. São Tomás de Aquino em 1274, escrevendo a respeito de 1 Timóteo
disse: "Esta carta é como se fosse uma regra pastoral que o Apóstolo deu a Timóteo." Em
sua Introdução à segunda Carta, escreve: "Na primeira Carta dá a Timóteo instruções sobre
o ordem eclesiástica; na segunda refere-se ao cuidado pastoral que deve ser tão grande para
estar dispostos a aceitar o martírio pelo cuidado do rebanho. Mas esta designação realmente
se afirmou a partir do ano 1726, quando um grande erudito chamado Paul Anton deu uma
série de conferências famosas a respeito delas, as quais chamou Epístolas Pastorais.
Estas Cartas, pois, referem-se ao cuidado e organização da Igreja e do rebanho de Deus;
dizem aos homens como devem comportar-se na comunidade de Deus; instrui-lhes a
respeito de como administrá-la, como devem ser os líderes e pastores, e como enfrentar as
ameaças que põem em perigo a pureza da fé e a vida cristãs.

A Igreja em crescimento
O interesse principal destas Cartas está em que nelas achamos um quadro da Igreja
nascente como em nenhum outro lugar. Nessa época a Igreja era uma ilha num mar de
paganismo. As mais perigosas infecções a ameaçavam por todos os lados. Seus integrantes
estavam a um passo de sua origem e antecedentes pagãos. Teria sido muito fácil para eles
escorregar e reincidir no estilo de vida pagão do qual provinham. Uma atmosfera poluente
os rodeava. Algo muito interessante e significativo é que os missionários nos dizem que de
todas as Cartas as Epístolas Pastorais falam mais diretamente à situação das Igrejas jovens.
A situação que se expõe nestas Cartas se revalida diariamente na Índia, na África e na China.
Estas Cartas não podem perder nunca seu interesse porque nelas vemos, como em nenhum
outro lugar, os problemas que continuamente acossam a Igreja em crescimento.

Antecedentes eclesiásticos das Pastorais


Mas desde o princípio estas Cartas apresentaram problemas para os estudiosos do Novo
Testamento. Muitos têm sentido que, tal como estão, não podem proceder diretamente da
mão e da pena de Paulo. Este sentimento não é novo e pode comprovar do fato que Marcion,
quem, apesar de ser herege, e ser primeiro em fazer uma lista dos livros do Novo
Testamento, não as incluiu entre as Cartas de Paulo. Vejamos o que é o que faz duvidar de
que provenham diretamente da mão de Paulo.
Nestas Cartas nos confrontamos com a imagem de uma Igreja que conta com uma
organização eclesiástica bastante desenvolvida. Há anciãos (1 Timóteo 5:1, 17-19; Tito 1:5-
7); há bispos, ou superintendentes ou supervisores (1 Timóteo 3:1-7; Tito 1:7-16); há
diáconos (1 Timóteo 3:8-13). Lendo 1 Timóteo 5:17-18 nos inteiramos de que nessa época
os presbíteros eram funcionários assalariados. Os anciãos que dirigiam bem deviam ser tidos
em conta para lhes pagar um salário dobrado, como teria que traduzir-se, e se insiste a Igreja
a lembrar que todo trabalhador merece seu pagamento. Vê-se ao menos o começo da ordem
das viúvas que chegou a ser tão importante mais adiante na Igreja primitiva (1 Timóteo 5:2-
16). Existe claramente dentro da Igreja uma estrutura bastante elaborada, que para alguns é
muito para pertencer aos primeiros tempos em que Paulo viveu e trabalhou. Pareceria como
se a Igreja tivesse dado os primeiros passos para chegar a ser a instituição altamente
organizada que foi mais tarde e que é hoje.

O período dos credos


Até diz-se que nestas Cartas podemos ver o surgimento do período dos credos. A
palavra fé mudou seu significado. Nos primeiros tempos, nas Cartas mais importantes de
Paulo, fé sempre quis dizer fé numa pessoa; é a união pessoal mais íntima possível em amor,
confiança, obediência com relação a Jesus Cristo. Mais tarde se converteu em fé num credo;
chegou a ser a aceitação de certas doutrinas. Diz-se que nas Epístolas Pastorais podemos ver
o surgimento desta mudança. Mais adiante virão homens que se separarão da fé e darão
lugar às doutrinas de demônios (1 Timóteo 4:1).
Um bom servo de Jesus Cristo deve alimentar-se com as palavras da fé e da boa
doutrina (1 Timóteo 4:6). Os hereges são homens de mentes corruptas réprobas quanto à fé
(2 Timóteo 3:8). A tarefa de Tito é a de repreender os homens para que sejam sãos na fé
(Tito 1:13). Isto se nota especialmente numa expressão que é peculiar às Pastorais. Timóteo
vê-se obrigado a reter "o bom depósito que habita em nós" (2 Timóteo 1:14). A palavra
paratheke que é utilizada nesta passagem significa depósito, no sentido de um depósito que
se confiou a um banqueiro ou a alguém para que o guarde. É algo que, característica e
essencialmente, foi confiado e que deve ser devolvido ou entregue absolutamente inalterado.
O que quer dizer que se acentua a ortodoxia. Em lugar de ser uma relação próxima e pessoal
com Jesus Cristo, como o era nos emocionantes e vibrantes dias da Igreja primitiva, a fé se
converteu na aceitação de um credo ortodoxo. Ainda se sustenta que nas Pastorais nos
encontramos com os ecos e fragmentos dos credos mais primitivos:
“Deus foi manifestado em corpo,
Justificado no Espírito,
Visto pelos anjos,
Pregado entre as nações,
Crido no mundo,
Recebido na glória.”
(1 Timóteo 3:16, NVI).
Isto indubitavelmente parece um fragmento de um credo para ser recitado e repetido.
“Lembra-te de Jesus Cristo, ressuscitado de entre os mortos, descendente de Davi,
segundo o meu evangelho” (2 Timóteo 2:8). Isto parece lembrar uma oração de um credo
aceito.
Dentro das Pastorais indubitavelmente há indicações de que começaram os dias da
insistência na ortodoxia e na aceitação de credos, e que começaram a murchar-se os dias da
primeira emocionante descoberta pessoal de Cristo.

Uma heresia perigosa


É evidente que no primeiro plano da situação em que se escreveram as Pastorais havia
uma perigosa heresia que estava ameaçando o bem-estar da Igreja cristã. Se podemos
distinguir os distintos rasgos característicos dessa heresia, poderemos chegar a identificá-la.
Caracterizava-se por um intelectualismo especulativo. Questionava (1 Timóteo 1:4);
os que estavam envolvidos deliravam a respeito de questões (1 Timóteo 6:4); tinha a ver
com questões néscias e insensatas (2 Timóteo 2:23); deviam-se evitar estas questões (Tito
3:9). A palavra que em todos os casos se usa para questões é ekzetesis, que significa
discussão especulativa. Esta heresia era obviamente o campo dos jogos intelectuais, ou
melhor dizendo, os pseudo-intelectuais da Igreja.
Outra característica era a vaidade. O herege é vaidoso, apesar de que na realidade não
sabe nada (1 Timóteo 6:4). Existem indicações de que estes intelectuais se localizavam num
plano acima dos cristãos comuns; na verdade, poderiam ter dito que a salvação total estava
fora do alcance do homem comum e só aberta para eles. Há momentos em que as Epístolas
Pastorais sublinham a palavra todos de uma maneira muito significativa. A graça de Deus,
que traz salvação, manifestou-se a todos os homens (Tito 2:11). A vontade de Deus é que
todos se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade (1 Timóteo 2:4). Os intelectuais
tratavam de que as maiores bênçãos do cristianismo fossem possessão exclusiva de uns
poucos escolhidos; e, em contradição a essa exclusividade, a verdadeira fé dá ênfase ao amor
de Deus que abrange tudo.
Dentro dessa heresia havia duas tendências opostas. Havia uma tendência ao ascetismo.
Os hereges tentavam estabelecer leis especiais com respeito às comidas, esquecendo que
tudo o que Deus criou é bom (1 Timóteo 4:4-5). Enumeravam muitas coisas que
consideravam impuras, esquecendo-se de que para os puros todas as coisas são puras (Tito
1:15). Não é totalmente impossível que considerassem o sexo como algo sujo e que
desprezassem o casamento, e até tentassem persuadir os que estavam casados a renunciarem
a ele, porque em Tito 2:4 se afirma que os deveres singelos da vida conjugal estão vinculados
ao cristão.
Mas também é evidente que esta heresia terminava na imoralidade. Os hereges até
invadiam as casas e induziam a mulheres fracas e insensatas à concupiscência e aos desejos
carnais (2 Timóteo 3:6). Caracterizavam-se pela luxúria (2 Timóteo 4:3). Professavam
conhecer a Deus, mas eles próprios eram abomináveis (Tito 1:16). Estes hereges saíam para
impor-se às pessoas, trabalhar para seu próprio proveito e fazer dinheiro com seus falsos
ensinos. Para eles, obter lucros tinha a ver com a piedade (1 Timóteo 6:5); e ensinavam e
enganavam para conseguir um lucro sujo (Tito 1:11). Por um lado esta heresia dava lugar a
um ascetismo que não era cristão e por outro, produzia uma imoralidade que tampouco o
era.
Esta heresia estava caracterizada por palavras, lendas e genealogias. Estava cheia de
conversas vãs e de argumentos inúteis (1 Timóteo 6:20). Produzia genealogias intermináveis
(1 Timóteo 1:4: Tito 3:9). Também mitos e fábulas (1 Timóteo 1:4; Tito 1:14).
Em alguns aspectos e até certo ponto estava vinculada com o legalismo judeu. Entre
seus devotos estavam os que pertenciam à circuncisão (Tito 1:10). A finalidade dos hereges
era o ser mestre da Lei (1 Timóteo 1:7). Inculcavam às pessoas fábulas judias e
mandamentos de homens (Tito 1:14).
Finalmente, estes hereges negavam a ressurreição do corpo. Diziam que qualquer
ressurreição que o homem fosse experimentar já tinha sido efetuada com antecedência (2
Timóteo 2:18). Esta provavelmente seja uma referência aos que sustentavam que não existia
a ressurreição do corpo, e que o cristão experimentava uma ressurreição espiritual na
experiência do batismo, quando morria com Cristo e ressuscitava novamente com Ele
(Romanos 6:4).

Os primórdios do gnosticismo
Existe então alguma heresia que abranja todo este material? Sim, e seu nome foi
gnosticismo. Seu pensamento básico é que tudo é essencialmente mau e que só o espírito é
bom. Esta crença tinha diversas conseqüências.
O gnóstico cria que a matéria é tão eterna como Deus; e que quando Deus criou o
mundo, teve que utilizar essa matéria essencialmente má. Isto teve conseqüências muito
importantes para o pensamento. Significava que para eles Deus não era nem podia ser o
criador direto do mundo. Para tocar essa matéria imperfeita tinha enviado uma série de
emanações — que chamavam éons — cada vez mais afastadas do, até que no final obteve
uma emanação ou éon tão distante que pôde manipular a matéria e criar o mundo. De modo
que entre Deus e o homem se estendia uma escada e uma série de emanações. Cada uma
delas tinha seu nome e sua genealogia. Assim, pois, o gnosticismo contava literalmente com
intermináveis fábulas e genealogias. Se o homem queria chegar alguma vez a Deus tinha
que subir por essa escada de emanações; e para obtê-lo necessitava um conhecimento
especial que incluía toda classe de contra-senhas para poder passar cada degrau. Só uma
pessoa de alto calibre intelectual podia ter esperança de adquirir esse conhecimento,
conhecer as contra-senhas e chegar dessa maneira a Deus. A pessoa comum nunca podia
escalar mais além dos degraus mais baixos do caminho em direção a Deus. Estava atada à
Terra, e só o intelectual podia dominar essas especulações e adquirir o conhecimento e
chegar a Deus.
O que é pior, se a matéria era má em sua totalidade, então o corpo também o era. Disso
surgem duas possíveis conseqüências opostas. Ou o corpo deve ser combatido, submetido,
desprezado, tido em menos, o que resultava num ascetismo rigoroso, no qual se eliminavam
dentro do possível todas as necessidades corporais, e se destruíam no possível todos os
instintos, em especial o instinto sexual; ou, se o corpo for totalmente mau, podia-se sustentar
que não importava o que se fizesse com ele; portanto seus instintos, desejos e luxúria podiam
fartar-se e saciar-se e libertar-se, porque o corpo não tinha importância. O gnóstico portanto,
convertia-se ou num asceta, ou num homem para quem a moral deixava de ter significação.
E mais ainda, se o corpo for mau, então evidentemente não pode haver tal coisa como
a ressurreição do corpo. Os gnósticos esperavam a destruição do corpo e não sua
ressurreição.
É evidente que isto encaixa acertadamente na situação das Epístolas Pastorais. No
gnosticismo vemos o intelectualismo, a soberba intelectual, as fábulas e as genealogias, o
ascetismo e a imoralidade, a negativa de contemplar a possibilidade de uma ressurreição
corporal, que são todos elementos da heresia contra a qual foram escritas as Epístolas
Pastorais.
Falta localizar um só elemento desta heresia: o judaísmo e o legalismo de que falam
estas Cartas. Mas isso também encontrou seu lugar. Algumas vezes o gnosticismo e o
judaísmo davam-se as mãos, e conformavam o que se poderia chamar uma aliança profana.
Já assinalamos que os gnósticos insistiam em que para ascender a escada até Deus era
preciso um conhecimento muito especial; e que alguns deles sustentavam que para levar
uma boa vida era essencial um ascetismo estrito. Alguns judeus proclamavam que
precisamente a Lei judia e suas normas sobre os mantimentos proviam esse conhecimento
especial e esse necessário ascetismo; de modo que houve momentos em que o judaísmo e o
gnosticismo iam de mãos dadas.
É evidente que a heresia que está no pano de fundo das Epístolas Pastorais é o
gnosticismo. E há alguns que utilizaram este mesmo fato para tentar provar que Paulo não
pôde havê-las escrito, porque, dizem, o gnosticismo não apareceu até muito mais tarde. É
bem verdade que os grandes sistemas formais desta crença, conectados com nomes como
Valentin e Basilides, não surgiram até o século II; mas estas grandes figuras só
sistematizaram o que já existia. As idéias básicas estavam na atmosfera que rodeava a Igreja
primitiva, já nos dias de Paulo. É fácil ver seu atrativo, e também é fácil ver que, se tivessem
tido a oportunidade de florescer e desenvolver-se sem vigilância, poderiam ter transformado
o cristianismo numa filosofia especulativa e destroçado a religião cristã. É fácil ver que ao
enfrentar o gnosticismo a Igreja estava enfrentando um dos maiores perigos que ameaçaram
a fé cristã.

A linguagem das Pastorais


Mas o argumento mais poderoso contra a origem paulina, vindo direto das Pastorais, é
um fato que aparece muito claro na versão grega, mas não nas traduções. O número total de
palavras nelas é de 902, das quais 54 são nomes próprios; e destas 902 palavras não menos
de 306 nunca aparecem em outras Cartas de Paulo. Isto seria 36 por cento, ou seja que mais
de um terço de seu vocabulário está totalmente ausente do que aparece nas outras Cartas de
Paulo. O que é pior, 175 palavras destas Epístolas não aparecem em nenhuma outra parte
do Novo Testamento. Por outro lado, é justo dizer que nas Epístolas Pastorais há 50 palavras
que aparecem nas outras Cartas de Paulo, mas em nenhum outro lugar do Novo Testamento.
Além disso, é certo que quando as outras Cartas de Paulo e as Pastorais dizem a mesma
coisa o fazem de diferente maneira, utilizando palavras e expressões distintas para expressar
a mesma idéia.
Também muitas das palavras favoritas de Paulo estão ausentes por completo das
Pastorais. A palavra stauros (cruz) e stauroun (crucificar) aparecem 27 vezes nas outras
Cartas de Paulo, e nunca nas Pastorais. Eleutheria e as palavras afins que têm que ver com
liberdade aparecem 29 vezes nas outras Cartas de Paulo, e nunca nas Pastorais. Huios, que
significa filho, e huiothesia, que significa adoção, aparecem 46 vezes nas outras Cartas e
nunca nestas.
Mais ainda, o grego é um idioma que tem muitas pequenas palavras chamadas
partículas e enclíticas. Algumas vezes indicam um tom de voz. Todas as orações gregas
estão unidas à oração que as precede, e estas pequenas palavras intraduzíveis são as uniões.
Dessas partículas, enclíticos, preposições e pronomes, aparecem 112 nas outras Cartas de
Paulo, que as utiliza um total de 932 vezes, mas não aparecem nunca nas Pastorais.
Claramente aqui há algo que deve ser explicado. Devido à força do vocabulário e ao estilo,
encontramos difícil crer que Paulo escreveu as Epístolas Pastorais no mesmo sentido em
que escreveu suas outras Cartas.
A atividade de Paulo nas Pastorais
Mas talvez a dificuldade mais óbvia é que estas Cartas mostram a Paulo ocupado em
atividades que não têm capacidade em sua vida tal como a conhecemos através do livro dos
Atos. Claramente conduziu uma missão a Creta (Tito 1:5). E se propõe passar um inverno
em Nicópolis que está no Epiro (Tito 3:12). É claro que na vida de Paulo tal como a
conhecemos não há capacidade para esta missão e este inverno. Mas bem pode ser que
justamente aqui tenhamos tropeçado com a solução do problema.
Libertou-se a Paulo de seu encarceramento em Roma?
Façamos uma pausa para resumir. Vimos que a organização da Igreja nas Pastorais é
mais elaborada que em qualquer outra das Cartas de Paulo. Vimos que a ênfase na ortodoxia
e em guardar o que se nos deu em custódia pareceria pertencer a uma segunda ou terceira
geração de cristãos, quando a emoção da nova descoberta está desaparecendo, e quando a
Igreja está a caminho de transformar-se numa instituição. Vemos que Paulo é descrito
levando a cabo missões que não têm capacidade no esquema de sua vida que conhecemos
através de Atos. Mas o estranho a respeito deste último livro é que deixa nas trevas tudo o
que aconteceu a Paulo em Roma. Termina dizendo que Paulo viveu por dois anos numa
espécie de semi-cativeiro pregando o evangelho abertamente e sem impedimento (Atos
28:30-31). Mas Atos não nos diz como terminou seu cativeiro, se terminou com a soltura de
Paulo ou se foi condenado e executado. É certo que a crença geral é que terminou com sua
morte, mas existe uma corrente de tradição, que não se pode desprezar, que nos diz que
terminou com sua libertação que durou por dois ou três anos mais, voltando a ser
encarcerado e executado finalmente em torno do ano 67 d.C. Consideremos esta questão,
porque é de grande interesse. Não poderemos chegar a uma resposta segura, mas ao menos
podemos investigar — ainda que fiquemos com a incógnita.
Em primeiro lugar, é evidente que quando Paulo estava detento em Roma não
considerava impossível sua soltura; em realidade pareceria como se a esperasse. Quando
escreve aos filipenses do cárcere, diz-lhes que nesse momento envia a Timóteo, e logo
continua: “E estou persuadido no Senhor de que também eu mesmo, brevemente, irei”
(Filipenses 2:24). Quando escreveu a Filemom, enviando de volta o Onésimo, diz: “E, ao
mesmo tempo, prepara-me também pousada, pois espero que, por vossas orações, vos serei
restituído” (Filemom 22). Claramente Paulo estava preparado para ser libertado, quer o
tenha sido quer não.
Em segundo lugar, lembremos um plano que Paulo tinha muito perto de seu coração.
Antes de ir a Jerusalém na viagem em que foi detido, escreveu à Igreja de Roma, e nessa
Carta estava planejando uma visita a Espanha. Escreve: “Quando em viagem para a
Espanha, pois espero que, de passagem, estarei convosco...”, “...passando por vós, irei à
Espanha” (Romanos 15:24,28). Nesse momento projetava visitar a Espanha e de passagem
ir a Roma. Realizou alguma vez esta visita?
Clemente de Roma, quando escreveu à Igreja de Corinto em cerca do ano 90 d.C, disse
que Paulo tinha pregado o evangelho no Este e no Oeste; que tinha instruído a todo mundo
(o Império romano) na verdade; e que foi à extremidade (terma, o término) do Ocidente
antes de seu martírio. O que quis dizer Clemente ao referir-se à extremidade do Ocidente?
Clemente escrevia de Roma, e para qualquer pessoa nessa cidade a extremidade do Ocidente
não podia ser mais que a Espanha. Certamente parece que Clemente cria que Paulo tinha
chegado a Espanha.
O maior de todos os historiadores primitivos da Igreja foi Eusébio. Em seu relato da
vida de Paulo escreve: "Lucas, que escreveu os Atos dos Apóstolos, terminou sua história
dizendo que Paulo viveu dois anos completos em Roma como prisioneiro, e que pregou a
palavra de Deus sem impedimentos. Então, depois de ter feito sua defesa, diz-se que o
apóstolo saiu mais uma vez em seu ministério da pregação, e que ao voltar para a mesma
cidade pela segunda vez, sofreu o martírio" (Eusébio, História Eclesiástica 2,22.2). Não diz
nada a respeito da Espanha, mas conhece a história dá que Paulo tinha sido libertado de seu
primeiro encarceramento em Roma.
O Cânon Muratoriano, a primeira lista dos Livros do Novo Testamento, descreve o
plano de Lucas ao escrever os Atos: "Lucas relatou o Teófilo fatos dos quais ele foi
testemunha ocular, como também, num lugar à parte, evidentemente declara o martírio de
Pedro (provavelmente se refira a Lucas 22:31-33); mas omite a viagem de Paulo de Roma a
Espanha." Evidentemente o Cânon Muratoriano conhecia esta viagem do apóstolo.
No século V dois dos grandes pais do cristianismo afirmam a existência da viagem de
Paulo a Espanha. Crisóstomo em seu sermão sobre 2 Timóteo 4:20 diz: "São Paulo depois
de sua estada em Roma partiu rumo a Espanha." São Jerônimo em seu Catálogo de
escritores diz que Paulo "foi despedido por Nero para que pregasse o evangelho de Cristo
no Ocidente".
Sem dúvida alguma existe uma corrente da tradição que sustenta que Paulo viajou a
Espanha.
Este é um assunto sobre o qual teremos que tomar nossa própria decisão. O que nos faz
duvidar da historicidade da viagem de Paulo a Espanha é que nesse país não há nem existiu
nunca, tradição alguma de que Paulo trabalhasse, e pregasse ali; não existem histórias a
respeito dele, nem lugares que tenham que ver com o seu nome. Seria realmente estranho
que se tivesse apagado totalmente a lembrança dessa visita. Bem pode ter sido que toda a
história a respeito da soltura e da viagem de Paulo ao ocidente surgisse simplesmente como
uma dedução da intenção expressa por Paulo de visitar a Espanha em Romanos 15. Em
termos gerais pode-se afirmar que a maioria dos estudiosos do Novo Testamento não
pensam que Paulo tenha sido liberto da prisão; o consenso geral opina que a única coisa que
livrou a Paulo do cárcere foi a morte.

Paulo e as Epístolas Pastorais


O que podemos dizer então a respeito da conexão de Paulo com estas Cartas? Se
podemos aceitar a tradição da libertação de Paulo, e seu retorno à pregação e ao ensino, e
de sua morte ao redor do ano 67 d.C., então poderemos crer que as Cartas tal como são
provêm de sua mão. Mas, se não cremos nisso — e as evidências são em quase sua totalidade
contrárias — diremos então que as Epístolas Pastorais não têm nada que ver com Paulo?
Devemos lembrar que o mundo antigo não pensava nestas coisas da mesma maneira que
nós. Não veria nada de mal em que se enviasse uma carta utilizando o nome de um grande
mestre, se estava seguro de que a carta dizia as mesmas coisas que esse mestre teria dito sob
as circunstâncias contemporâneas. Era algo natural e possível que um discípulo escrevesse
no nome de seu mestre. Ninguém, nem no mundo nem dentro da Igreja, teria visto mal que
diante de uma nova e ameaçadora situação um discípulo de Paulo a enfrentasse escrevendo
em seu nome. Pensar que é algo falsificado é não compreender absolutamente a mentalidade
do mundo antigo. Acaso vamos, então, ir completamente ao outro extremo e dizer que algum
discípulo de Paulo enviou esta Carta em seu nome muitos anos depois de sua morte, e num
momento em que a Igreja estava muito mais organizada que durante a vida de Paulo?
A nosso entender, isso é precisamente o que não podemos dizer. É bastante incrível
que um discípulo pusesse na boca de Paulo a afirmação de ser o primeiro dos pecadores (1
Timóteo 1:15). A tendência de um discípulo seria dar ênfase à santidade de Paulo, e não
falar a respeito de seus pecados. Também é bastante incrível que qualquer que escrevesse
no nome de Paulo desse a Timóteo o conselho simples e cotidiano de beber um pouco de
vinho por causa de sua saúde (1 Timóteo 5:23). O texto de 2 Timóteo 4 é tão pessoal e tão
cheio de detalhes íntimos e carinhosos, que ninguém a não ser Paulo pôde havê-lo escrito.
Onde está a solução então? Bem pode ter sucedido algo como o seguinte. É óbvio que
muitas das Cartas de Paulo se perderam. Evidentemente, além de suas importantes Cartas
públicas, Paulo deve ter tido uma contínua correspondência privada e dela só possuímos
uma Carta, a pequena Epístola a Filemom. Só ela escapou à destruição que é o destino de
toda correspondência privada. Agora, pode ter acontecido que em tempos posteriores alguns
fragmentos da correspondência de Paulo estivesse em mãos de algum mestre cristão. Este
viu que a Igreja de seus dias e de sua localidade de Éfeso estava ameaçada por todos os
lados. Havia heresias tanto dentro como fora dela. Ameaçava-a a queda de seu alto nível de
pureza e verdade. Estava-se degenerando a qualidade de seus membros e de seus
funcionários. Este mestre tinha em sua posse pequenas Cartas de Paulo que diziam
exatamente as coisas que deviam ser ditas, mas, tal como estavam, eram muito breves e
fragmentárias para ser publicadas. De modo que tomou e amplificou, dando-lhes uma
significação suprema para sua própria situação e as enviou à Igreja.
Nas Epístolas Pastorais ainda estamos ouvindo a voz de Paulo, e muitas vezes a ouvimos
falar com uma intimidade pessoal única, mas pensamos que a forma das Cartas deve-se a
um mestre cristão que evocou a ajuda e o espírito de Paulo quando a Igreja de seus dias
necessitava a guia que só Paulo poderia ter-lhe dado.

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