Falso Self

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Aletheia 30, p.50-58, jul./dez.

2009

Os conceitos de verdadeiro e falso self e suas implicações


na prática clínica
Gabriela Bruno Galván
Maria Lúcia Toledo Moraes Amiralian

Resumo: O objetivo deste artigo é refletir sobre os conceitos de verdadeiro e falso self e sua
manifestação na clínica contemporânea; bem como as possibilidades de intervenção a partir da
psicanálise winnicottiana. O conceito de falso self proposto por Winnicott é de grande valia para
se pensar nos relatos recorrentes de pessoas que procuram análise ao viverem episódios de
angústia intensa e esvaziamento do sentido da vida, ao mesmo tempo em que não encontram, seja
em seus relacionamentos afetivos, seja em sua vida profissional, nada que justifique este sentimento
de irrealidade e vazio. Por meio da discussão de um caso clínico, os conceitos de verdadeiro e
falso self são articulados com a prática e abrem a reflexão para o papel de espelho do analista, no
manejo destes casos.
Palavras-chave: Si-mesmo, Winnicott, psicoterapia psicanalítica, estudo de caso.

The true and false self concepts and its implications on clinical practice
Abstract: The objective of this article is to reflect about the concepts of true and false self and
their manifestations in contemporary clinic; as well as the possibilities of intervention using
Winnicott’s psychoanalysis. The false self concept proposed by Winnicott is of great value to
think about the recurrents reports of persons that search for analysis after experiencing intense
anguish episodes and emptying of the sense of life, and simultaneously they cannot find, neither
in their affective relationships nor in their professional lives, anything that could justify such
feeling of unreality and emptiness. Through the discussion of a clinic case, the concepts of true
and false self are articulated with the practice and open the reflection to the analyst’s mirror role
in the management of those cases.
Key words: Self, Winnicott, psychoanalytic psychotherapy, case study.

Introdução

A clínica contemporânea apresenta desafios significativos ao analista no que se refere


ao diagnóstico e consequente manejo dos casos, principalmente daqueles que adquiriram
certa estruturação psíquica refletida em conquistas sociais; como formação acadêmica,
exercício profissional eficiente e/ou relacionamentos afetivos mais ou menos satisfatórios.
Todavia, esses pacientes procuram análise ao se depararem com vivências de extrema
angústia, que parecem descoladas de sua realidade, sendo que além de não conseguirem
nomear estes estados e dar-lhes significado próprio, vivenciam a sensação de uma não
compreensão de si, um não saber, uma ausência de sentido de si mesmo.
Este trabalho tem como objetivo refletir sobre essa angústia que se apresenta ao
indivíduo a despeito de sua vida estar aparentemente correndo de forma “satisfatória”
e dentro do esperado pelo meio que o cerca e até por ele próprio. Alguns casos clínicos
suscitaram essa reflexão, por terem como eixo comum a queixa de uma ausência de
sentido para os sofrimentos vividos. Em algum momento de suas vidas, essas pessoas

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foram surpreendidas por certa perplexidade diante de sentimentos como angústia, tristeza
e vazio. Procuraram análise, porém convencidas que seu sofrimento era descabido diante
de sua realidade: ou seja, avaliavam a sua existência a partir de parâmetros externos e,
sob esse olhar, não encontravam uma coerência entre o que pensavam que deveriam
sentir e aquilo que realmente sentiam. A possibilidade de se perceber tendo necessidades
e vontades que não estavam de acordo com o que consideravam correto, normal, geral e
esperado era algo assustador e ameaçador.
Para refletir sobre essa vivência, recorro à teoria do amadurecimento de Winnicott,
que permite alcançar uma compreensão profunda acerca dessa questão. Olhando a partir
desse referencial teórico, é importante destacar um princípio básico: para que possa se
constituir como um indivíduo, o ser humano conta com um potencial inato em direção ao
amadurecimento, que necessita de um ambiente facilitador para se realizar. Este potencial
herdado é o que Winnicott (1983) vai chamar de self central ou verdadeiro.
Bollas (1992) destaca dois aspectos fundamentais do verdadeiro self. Um deles diz
respeito à questão do verdadeiro self como potencial herdado e o outro à importância
da experiência como possibilidade de existência. Aqui, o que se quer frisar é o fato de
que em se tratando de um potencial, o verdadeiro self não tem forma ou significado a
priori, não está estabelecido ao nascimento, no sentido que não é estático; ele “encontra
sua expressão nos atos espontâneos” (Bollas, 1992, p.20). A importância da experiência
na constituição do verdadeiro self decorre justamente deste aspecto potencial apontado
acima. É por meio da experiência e, necessariamente da experiência vivida na relação
com um outro, que podemos entrar em contato com o verdadeiro self. Ou seja, é por meio
da experiência que o potencial herdado ganha contorno e pode emergir.

Se devemos estabelecer uma teoria para o self verdadeiro, acho que é importante
enfatizar como esse self-essência é a presença singular do ser que cada um de
nós é; o idioma da nossa personalidade (....) No entanto, o idioma da pessoa não
é um texto escondido e enfurnado na biblioteca do inconsciente, esperando por
sua divulgação através da palavra. É mais um conjunto de possibilidades pessoais
únicas, específicas desse indivíduo e sujeitas, em suas articulações à natureza da
experiência vivida no mundo real. (Bollas, 1992, p.21-22).

Safra (2005) acrescenta que o self central é o potencial herdado que “é experienciado
como uma continuidade de ser, e que adquire em seu próprio modo e em sua própria
velocidade uma realidade psíquica e esquema corporal pessoais” (p.41). Para este autor,
o que um ser humano pode ser capaz de conhecer de verdade é aquilo que ele é capaz
de criar; no sentido de conceber subjetivamente o mundo e ter a vivência de criá-lo, sem
que a externalidade se imponha precoce e invasivamente.
O self verdadeiro necessita à sua maneira e em seu tempo, a partir do contato com
o ambiente facilitador, adquirir uma realidade psíquica pessoal que lhe permita sentir-se
real, sentir que o mundo é real e experimentar a continuidade de sua existência. “O gesto
espontâneo é o self verdadeiro em ação. Somente o self verdadeiro pode ser criativo e
sentir-se real” (Winnicott, 1983, p.135)
Para que seja possível a expressão do verdadeiro self é necessário que algumas
condições tenham sido garantidas desde o início do desenvolvimento. Safra (2005)

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descreve esse início em termos do encontro do corpo do bebê com o corpo materno: “as
experiências organizam-se em formas sensoriais: de sons, de calor, de tato, de ritmos,
de motilidade, entre outras. Estes inúmeros registros são presenças de vida, de ser. São
fenômenos em que a presença da mãe é o self da criança” (p.78). Por meio da elaboração
imaginativa das funções do corpo, em contato com um outro, o corpo vai se tornando
soma, “corpo psíquico”. Nesse momento do desenvolvimento não há diferenciação
mãe-bebê, do ponto de vista do bebê; é o momento da dependência absoluta, onde a
mãe-ambiente necessita fornecer as condições básicas de sustentação que permitam a
realização paulatina e ininterrupta do vir-a-ser do bebê.
Dessa forma, o papel do ambiente no momento inicial de dependência absoluta é
a adaptação sensível e total às necessidades do bebê. A mãe suficientemente boa permite
que o bebê crie o mundo e viva a ilusão de onipotência. Assim, o self verdadeiro pode se
manifestar na medida em que não há ameaças à sua continuidade.
No estágio da dependência absoluta, o bebê nada sabe do mundo exterior, relaciona-
se com um objeto subjetivamente concebido, experiência que lhe permite construir
a base de confiança inicial para caminhar rumo à integração e à separação eu – não
eu. Esta separação pode acontecer na medida em que há a aquisição da capacidade de
relação com um objeto objetivamente percebido. Se acontecer um surgimento precoce,
no sentido de anterior à prontidão do bebê, do objeto objetivamente percebido, “o bebê
terá um desenvolvimento egoico ‘prematuro’, em detrimento de seu sentimento de self”
(Outeiral, 2001, p.86).
Khan (1984) acredita que de todo indivíduo tem o senso da totalidade de seu self e “que
esta experiência de self pode ficar deslocada ou oculta, ou pode até deixar de personalizar-se,
caso o cuidado ambiental na infância não favoreça a sua adaptação” (p.367).
Pensando em um desenvolvimento saudável, por meio da existência corporal e da
elaboração imaginativa das funções corpóreas, o bebê caminha no sentido da integração
no tempo e no espaço, descobre o mundo e, ao mesmo tempo, realiza o alojamento da
psique no corpo. Dessa forma o indivíduo se desenvolve a partir do centro e “o contato
com o ambiente é uma experiência do indivíduo (em seu estado de ego-id indiferenciados,
a princípio)” (Winnicott, 2000, p.297).
Como contraponto, temos uma forma encontro bebê-ambiente, onde não há
adequação ao movimento do bebê; o que caracteriza a intrusão do ambiente e, no lugar da
vivência de experiências individuais, temos reações à intrusão. Isso pode gerar uma forma
de existência onde um padrão externo marque a individualidade do ser, e o que ocorre
é uma constante adaptação a esse padrão: “A mãe implementa no sentido de realizar o
gesto do bebê através de sua própria resposta. Se ela é incapaz de responder a ele através
da identificação, ele deve compulsivamente se submeter para poder sobreviver” (Phillips,
2006, p.190). Podemos dizer que o indivíduo que não pode ser, reage.
As falhas de maternagem em um momento primitivo do amadurecimento prejudicam
o indivíduo justamente em seu sentimento de ser, na constituição de um si mesmo que se
reconheça como tal. O falso self surge no contato com uma mãe “incapaz de reconhecer,
autenticar e confirmar a singularidade ímpar de seu bebê, obrigando-o a se submeter e
acomodar às insuficiências dela” (Doin, 2001, p.225). Diante da falha ambiental, o falso
self se constitui como uma tentativa de substituição da função materna que falhou, na

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busca de proteger o verdadeiro self e dar-lhe condições para se desenvolver: “trata-se (o
falso self) de uma forma primitiva de auto-suficiência na ausência do cuidado. Ele começa
a emergir, em sua forma mais severa, na infância” (Phillips, 2006, p.190)
Podemos, então, entender o falso self como uma defesa que oculta e protege o
verdadeiro self. Na medida em que o verdadeiro self é a fonte dos impulsos pessoais
(Winnicott, 1994, p.36), a existência por meio de um falso self torna a vida esvaziada de
sentido e permeada por um senso de irrealidade e de que a vida não vale a pena.
Mello Filho (2001) aponta a necessidade das pessoas com predominância de
defesa do tipo falso self, de esconder e negar a sua realidade interna, na medida em que
a perda ou o abandono, ainda que parcial, do falso self, desperta temores de perda de
limites, desintegração, aniquilação. Assim, a vivência de irrealidade também decorre do
fato destes indivíduos experimentarem sentimentos e impulsos não condizentes com a
idealização mental estruturada e mantida à custa de uma inibição mais ou menos rígida
de sua espontaneidade e criatividade.

A mente é a principal morada do falso self, disse-nos muitas vezes Winnicott,


contrastando-o com o verdadeiro self, relacionado aos processos fisiológicos
básicos, principalmente ao funcionamento do coração e à respiração. Assim, a
intelectualização é uma das expressões mais frequentes de indivíduos falso self, que
pretendem, com uma hipertrofia de seus aspectos intelectuais, encobrir tudo aquilo
que é mais genuinamente humano, instintivo, vital. (Mello Filho, 2001, p.151).

Winnicott postula diversos níveis de falso self, considerando desde uma atitude
social, não patológica, no sentido da renúncia à onipotência e garantia do convívio social
– presente na saúde – até o falso self que se implanta como real, em total submissão,
onde o self verdadeiro permanece oculto, o que implica na ausência do que poderíamos
chamar de gesto espontâneo. No grau extremo existe um sentimento de vazio, de que a
vida não vale a pena, que não há razão para viver; nos graus menos extremos Winnicott
(1990) aponta para uma organização secundária cindida, ou seja, uma possível regressão
diante de dificuldades encontradas num estágio posterior do desenvolvimento, o que nos
faria supor algum grau de sucesso na estruturação inicial primitiva. Esta diferenciação
traz consequências no trabalho clínico, em termos de diagnóstico e intervenção.

A história de Júlia1

Júlia procurou análise aos 22 anos. Filha única, morava com a mãe e a avó. Não
tinha contato com seu pai havia alguns anos, trabalhava como funcionária pública, em
uma área administrativa que não era relacionada à sua profissão. Havia iniciado nesse
emprego antes de terminar a faculdade e permanecia nele, apesar de sentir-se bastante
insatisfeita. O que mais chamava a atenção nela era a sua luta interna constante, entre
dar voz às suas angústias e, em seguida, esvaziá-las: “Eu fiquei muito angustiada esta
semana, sai do trabalho, fui para casa com muita vontade de chorar e chorei muito. É o

1
O nome da paciente, bem como alguns dados de sua história foram modificados como forma de evitar sua
identificação e proteger sua privacidade

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fim! Não tenho motivos para ficar assim, não tenho nenhuma desgraça na minha vida,
não nasci na favela, nunca fui maltratada, não me falta nada em casa, ficar desse jeito
é coisa de quem não tem o que fazer”. Júlia não entendia como podia sentir (ser), sem
necessariamente reagir.
Ao mesmo tempo, por meio da elaboração intelectual, ela tentava dar algum
contorno para aquilo que se apresentava como angústia e insatisfação. Porém, uma vez
que a sua fala ficava descolada de sua vivência, não produzia nenhum alívio para sua dor,
apenas a frustração de não conseguir controlar seus sentimentos e vivências.

Um risco particular se origina da não rara ligação entre abordagem intelectual


e o falso self. Quando um falso self se torna organizado em um indivíduo que tem
um grande potencial intelectual, há uma forte tendência para a mente se tornar o
lugar do falso self, e neste caso se desenvolve uma dissociação entre a atividade
intelectual e a existência psicossomática (Winnicott, 1983, p.132).

Júlia passou alguns meses neste ritmo. Havia uma ausência de si e de uma história
que sentisse como verdadeira e significativa a ponto de merecer a sua dor e seu sofrimento.
Sentia seu passado de tal forma vazio que pouco falava dele e quando o fazia era sem afeto,
como quem conta uma história que não lhe diz respeito. Ao mesmo tempo necessitava
afastar qualquer proximidade comigo, sendo que era difícil até mesmo entrar em seu
discurso de perguntas e respostas que, aparentemente, prescindiam de um outro. As minhas
intervenções eram frequentemente seguidas de um: “E o que vou fazer com isso, isso não
é importante.” Neste momento da relação, sentia-me num lugar inóspito, sabia que ainda
não estava em contato direto com a Júlia e que, para que isso acontecesse, necessitava
poder estar com ela da forma como se apresentava, sem intervenções ou interpretações
que pudessem ser sentidas como invasivas.
A sua primeira aproximação foi por meio de um pedido. Em uma determinada sessão
me disse que tinha muito medo de não conseguir saber se a análise a estava de fato ajudando,
tinha medo de continuar porque de alguma forma eu a induzia à isso, mesmo que não fosse
o melhor para ela. O que ela pedia era alguma coisa muito primitiva em termos de relação
– que eu fosse confiável, no sentido de não invadi-la, não impor o meu gesto. O seu receio
era que eu não fosse confiável no sentido de ser alguém que poderia lhe oferecer algo que
não fosse por ela concebido; que não fosse de encontro à sua necessidade. Temia novamente
ser invadida por algo externo. Júlia queria saber se podia estar comigo ou se eu me imporia
a ponto dela não mais saber se a necessidade atendida na relação terapêutica seria a minha
ou a dela. Seria possível ser, comigo, ou novamente se submeteria?
A possibilidade de confiar é uma premissa indispensável para uma entrega, para estar
com um outro que não seja ameaçador e não iniba o próprio gesto. Dias (1999) aponta
que, em Winnicott, a confiabilidade é a característica central do ambiente facilitador e
está diretamente relacionada à dependência, cujo protótipo é o estado de dependência
absoluta do bebê com relação à mãe no início da vida. Ainda segundo a autora, no estágio
inicial do desenvolvimento, confiabilidade significa que a mãe cuida para que o bebê tenha
preservada a sua continuidade de ser, mantendo-o na área de ilusão de onipotência, onde
o mundo se apresenta conforme é concebido subjetivamente. Assim, o bebê durante o
tempo necessário vive a ilusão de criar o mundo por meio de seu gesto e de manter sobre

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ele um controle mágico. Na falta desta experiência o bebê não alcança a confiança na
realidade de si-mesmo, pois o mundo apresentou-se como uma realidade externa muito
precocemente e de forma invasiva.
Júlia, após se reassegurar que eu não iria me impor a ela – mas que eu poderia
estar com ela e vê-la a partir de suas próprias necessidades – começou a permitir que eu
estivesse mais presente nas sessões, rompendo gradativamente o seu esquema de falas
seguidas de autocríticas. Passou a falar mais frequentemente da relação com sua mãe. A
princípio dizia que sua mãe não interferia em suas escolhas, não se sentia pressionada
por ela; o seu relato era sempre baseado em sua admiração pela mãe e em um profundo
sentimento de gratidão, que mais tarde foi se configurando como um intenso sentimento
de dívida com essa mulher que havia dedicado sua vida a cuidar da filha: “Minha mãe
não me exige nada, ela só quer que eu seja feliz”.
Ao mesmo tempo ao olhar para suas próprias escolhas, começou a perceber que
seguia literalmente os caminhos trilhados por sua mãe. Prestou o concurso público por
iniciativa de sua mãe e passou a exercer a mesma função que sua mãe havia exercido
durante muitos anos. Tinha o desejo de deixar este emprego e dedicar-se às artes plásticas,
porém tinha muito medo de se decepcionar e também sentir-se insatisfeita nesse novo
trabalho. Seguir os passos da mãe era uma maneira de viver a partir do falso self, como
Winnicott (1983) aponta, ao mostrar que o falso self se submete ao ambiente como forma
de proteger o verdadeiro self e isso se inicia nas primeiras etapas do amadurecimento.

Através deste falso self o lactente constrói um conjunto de relacionamentos falsos,


e por meio de introjeções pode chegar até uma aparência de ser real, de modo que
a criança pode crescer se tornando exatamente como a mãe, ama-seca, tia, irmão
ou quem quer que no momento domine o cenário (Winnicott, 1983, p.134).

Vivia intensamente a sensação de não se sentir real, sentia-se uma eterna farsa, a
ser descoberta – por ela mesma e pelos outros – a cada momento, a cada escolha que se
mostrasse insatisfatória. Em cada desejo que surgia, para cada escolha que se apresentava,
retornava a dúvida de quanto isto seria verdadeiro, se seria algo genuinamente seu ou
uma ilusão, que se esvairia – por não ser real – assim que fosse concretizada.
Com relação a seu pai, dizia não sentir sua falta, pois nunca esteve ao seu lado. No
início avaliava a relação de seus pais de forma bastante racional, segundo ela, não tinham
ficados juntos porque não se davam bem, seu pai era muito assediado pelas mulheres e
sua mãe não confiava nele.
Júlia percebia, aos poucos, que estava bastante insatisfeita com sua vida. De
forma geral, o seu trabalho era desgastante e o que a mantinha nele era uma sensação de
segurança que temia abandonar. Começou a questionar esta necessidade de segurança e,
ao reconstruir a história de sua família, percebeu-se repetindo medos e inquietações de sua
avó e de sua mãe, que pouco tinham arriscado diante do medo, por exemplo, de perder o
emprego e não conseguir outro. Seu namoro, que já havia sido mais intenso e era uma das
poucas experiências afetivas significativas que ela sentia como real – onde ela se sentiu de
fato presente – estava tornando-se uma relação distante que ela também temia perder. A
necessidade de segurança, o medo de perder e, principalmente o medo de não ser nada ao
não ser aquilo que se esperava dela, passaram a ser um tema frequente nas sessões.

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Enquanto se percebia com muita necessidade de romper com sua realidade atual e de
ir à busca de algo que fizesse mais sentido e com muitas dúvidas a respeito da possibilidade
de encontrar sentido em alguma coisa, ela foi revendo a sua mãe internamente. Percebia
que sua mãe não havia conseguido separar-se de sua própria mãe, avó de Júlia e que a opção
por não casar com seu pai não fora propriamente uma escolha, mas uma impossibilidade
de rompimento com essa relação inicial.
Sabia exatamente o que sua mãe pensaria de cada uma de suas atitudes, de seus desejos,
de suas escolhas e lutava constantemente contra a angústia de frustrá-la, e contra o medo
de destruí-la ao fazer suas próprias escolhas e diferenciar-se dela. Sua mãe era aquela que a
queria feliz, porém tinha um ideal de felicidade diferente daquele que Júlia descobria para
si mesma. Aos poucos ela conseguia abrir espaço para a expressão de seu verdadeiro self.
Em uma sessão, um ano após o início da análise, ela conta que tinha ficado muito
angustiada em seu trabalho e que tinha procurado uma pessoa que era médium, e que
esta pessoa havia visto que tinha um espírito muito pesado que a acompanhava, o que a
deixava muitas vezes triste e deprimida. Conta que essa pessoa rezou e tirou este espírito
de perto dela. Depois disso sentia-se muito melhor, estava feliz e impressionada com o
que havia acontecido. Trouxe este relato para a sessão dizendo que para ela este episódio
tinha um sentido profundo e, ao mesmo tempo, que tinha receio do que eu pensaria sobre
isto. Temia que eu achasse tudo isso uma bobagem e que, a partir desta avaliação pudesse
destruir o sentimento de tranquilidade que estava dentro dela naquele momento. Eu lhe
disse que percebia a importância do que havia vivenciado e do alívio que estava sentido.
Sem críticas, sem questionamentos, sem interpretações.
Júlia se permitia dar um significado próprio a uma experiência vivida, mesmo
imaginando que não seria o mesmo significado que eu poderia dar a partir do meu papel
de analista / mãe. Ela arriscava existir a partir de si mesma e, ao mesmo tempo me testava
enquanto ambiente, para saber se a possibilidade dela não ser aquilo que eu supostamente
esperava dela me destruiria ou se eu sobreviveria. Sobreviver aqui significava não
interpretar o seu sentimento de alívio – obtido por meio do encontro com a médium –
de forma a atingir em sua veracidade e intensidade a sua vivência. Cabia a mim, como
analista, mostrar-lhe que eu continuaria igualmente presente e confiável, de forma que
ela poderia ser ela mesma, diferente de mim.
Depois desta sessão, ela procurou o pai, que não via desde que tinha 10 anos e que
se mostrou muito receptivo à sua iniciativa. Nesse momento ela conseguiu olhar para
sua relação com o pai de forma descolada do olhar da mãe. A distância entre ela e seu pai
havia sido inaugurada no início de sua vida pela sua mãe, que temia que o pai – pelo seu
jeito de ser – frustrasse a filha com uma presença intermitente. Ao voltar a se aproximar
do pai, Júlia não temia mais ser frustrada por ele, nem frustrar sua mãe. Nesse mesmo
período conheceu um rapaz com quem se envolveu, o que a levou a terminar seu namoro,
não sem muitas dúvidas e intenso sentimento de culpa pela troca de namorado e pela
desaprovação que isto causaria em sua família.
Pouco tempo após este episódio, ela parou a análise. Penso que a análise permitiu
que ela entrasse em contato e deixasse emergir aspectos de seu verdadeiro self, até então
protegidos por um falso self construído à imagem e semelhança da mãe e que isto foi
possível na medida em que pude exercer o papel de espelho, de forma que ela pudesse
se ver, abrindo espaço para uma existência com sentido próprio.

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O vislumbre do bebê e da criança vendo o eu (self) no rosto da mãe e, posteriormente,
num espelho, proporcionam um modo de olhar a análise e atarefa psicoterapêutica.
Psicoterapia (...) é um derivado complexo do rosto que reflete o que há para ser visto.
Essa é a forma pela qual me apraz pensar em meu trabalho, tendo em mente que, se
o fizer suficientemente bem, o paciente descobrirá seu próprio eu (self) e será capaz
de existir e sentir-se real. Sentir-se real é mais do que existir; é descobrir um modo
de existir como si mesmo, relacionar-se aos objetos como si mesmo e ter um eu (self)
para o qual retirar-se, para relaxamento (Winnicott, 1971, p.161).

Em alguns momentos, transferencialmente eu ocupava o lugar de mãe que desejava e


esperava atitudes dela às quais ela temia não corresponder. Ao longo do tempo, passei a ocupar
o lugar da mãe suficientemente boa que permitia que ela pudesse encontrar seu caminho,
porque sobrevivia à separação. Nesse sentido parar a análise pode ser compreendido como a
possibilidade de vivenciar novas situações e relações a partir de outro padrão. Júlia manteve-se
em contato comigo, me mandava notícias de sua vida, às vezes do aspecto profissional – havia
se desligado do emprego anterior e estava trabalhando como autônoma – outras vezes de
viagens e passeios que fazia e nos quais sentia que estava vivendo “coisas boas”.
A análise de Júlia mostrou claramente que a tarefa do analista diante de pacientes com
predomínio de defesas do tipo falso self não é uma tarefa simples. Facilitar e reconhecer
a expressão do verdadeiro self do paciente demanda mais do que interpretações e muitas
vezes pode ser uma tarefa realizada também fora do âmbito da análise. Uma questão
importante é de que forma é possível se constituir como um ambiente confiável, que
permita ao indivíduo que procura ajuda criar o mundo a partir de seu gesto. Como aparece
e como se reconhece esse gesto na clínica, na relação analítica e, mais amplamente na vida
relacional de uma pessoa? Aqui penso que é importante voltar à questão da experiência,
apontada no início como fundamental para o estabelecimento de verdadeiro self. Diz Safra
(2005): “O ser humano precisa apropriar-se do espaço no mundo. A dimensão criativa do
ser humano, que se constitui no gesto, dá ao indivíduo a possibilidade de tomar o espaço
como elemento participativo de seu self” (p.94).
Winnicott mostra que é da ilusão, vivida inicialmente como a onipotência de criar o
mundo, que surgem os fenômenos transicionais e o espaço potencial: “Há uma evolução
direta dos fenômenos transicionais para o brincar, do brincar para o brincar compartilhado,
e deste para as experiências culturais” (Winnicott, 1971, p.76). Para Safra (2005) é no
espaço potencial que o paciente pode continuar desenvolvendo e enriquecendo o seu
self. Daí a importância dada por Winnicott para a criatividade e para as manifestações
culturais como possibilidades de existência na experiência. É no espaço potencial que
se dá o entrelaçamento da subjetividade e da observação objetiva; é a área intermediária
entre a realidade interna do indivíduo e a realidade compartilhada (Winnicott, 1971, p.93).
A criação do espaço potencial não se limita, portanto, há um setting específico, como o
clínico terapêutico. Há outras possibilidades de encontro, que vão além da relação inicial
mãe-bebê, do brincar infantil e da clínica psicanalítica.
No caso de Júlia, é possível que ela não tenha tido oportunidade de se encontrar
no olhar da mãe; que este olhar tenha refletido a própria mãe – suas angústias e
inseguranças; sua impossibilidade de se separar de seus próprios pais; seu medo de

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ser abandonada e frustrada pelo pai de Júlia, que a impediu de levar adiante este
relacionamento e a conduziu à decisão de afastá-lo da filha para protegê-la, nos
mesmos moldes que se protegeu.
O encontro terapêutico configurou-se como o espaço potencial onde Júlia pôde
começar a experienciar a criação do seu mundo a partir de dentro. Desta forma, pôde começar
a se ver, havendo condições para emergir o verdadeiro self como uma forma autêntica de ser,
experimentar e estar no mundo. O que se transformou em Júlia, não foi necessariamente o
que se expressou em atitudes concretas – a mudança de emprego ou a procura pelo pai – mas
foi o reconhecimento de algumas vivências como internas, com sentido próprio.
Dessa forma, o existir ganha outro status: passa a fazer parte da dimensão do real, o
indivíduo passa a sentir-se e também sentir o mundo como algo real, um lugar no qual é
possível estar de verdade e com o qual é possível se relacionar, no sentido de ser tocado
e também de tocar, ser presença e realizar, de alguma forma, seu gesto.

Referências

Bollas, C. (1992). Forças do destino. Psicanálise e idioma humano. Rio de Janeiro:


Imago Ed.
Dias, E. O. (1999). Sobre a confiabilidade: decorrências para a prática clínica. Natureza Humana
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Doin, C. (2001). Espelho e pessoa. Em: J. Mello Filho (Org.), O ser e o viver: uma visão
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Khan, M. M. R. (1984). Psicanálise: teoria, técnica e casos clínicos. Rio de Janeiro:
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Mello Filho, J. (2001). O ser e o viver: uma visão da obra de Winnicott. São Paulo: Casa
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Outeiral, J. (2001). O olhar e o espelho. Em: J. Outeiral, S. Hisada & R. Gabriades (Orgs.),
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Safra, G. (2005). A face estética do self. Teoria e Clínica. Aparecida: Ideias & Letras:
São Paulo: Unimarco Editora.
Winnicott, D. W. (1971). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago Ed.
Winnicott, D. W. (1983). O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria
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Winnicott, D. W. (1990). Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago Ed.
Winnicott, D. W.(1994). Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas.
Winnicott, D. W. (2000). Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro:
Imago Ed.
_____________________________
Recebido em janeiro de 2008 Aceito em maio de 2009

Gabriela Bruno Galván – Psicóloga, Mestre em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano (USP);
Doutoranda do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP).
Maria Lúcia Toledo Moraes Amiralian – Doutora em Psicologia Clínica (USP); Docente do Instituto de Psicologia
da Universidade de São Paulo (IPUSP).

Endereço para contato: [email protected]

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