Falso Self
Falso Self
Falso Self
2009
Resumo: O objetivo deste artigo é refletir sobre os conceitos de verdadeiro e falso self e sua
manifestação na clínica contemporânea; bem como as possibilidades de intervenção a partir da
psicanálise winnicottiana. O conceito de falso self proposto por Winnicott é de grande valia para
se pensar nos relatos recorrentes de pessoas que procuram análise ao viverem episódios de
angústia intensa e esvaziamento do sentido da vida, ao mesmo tempo em que não encontram, seja
em seus relacionamentos afetivos, seja em sua vida profissional, nada que justifique este sentimento
de irrealidade e vazio. Por meio da discussão de um caso clínico, os conceitos de verdadeiro e
falso self são articulados com a prática e abrem a reflexão para o papel de espelho do analista, no
manejo destes casos.
Palavras-chave: Si-mesmo, Winnicott, psicoterapia psicanalítica, estudo de caso.
The true and false self concepts and its implications on clinical practice
Abstract: The objective of this article is to reflect about the concepts of true and false self and
their manifestations in contemporary clinic; as well as the possibilities of intervention using
Winnicott’s psychoanalysis. The false self concept proposed by Winnicott is of great value to
think about the recurrents reports of persons that search for analysis after experiencing intense
anguish episodes and emptying of the sense of life, and simultaneously they cannot find, neither
in their affective relationships nor in their professional lives, anything that could justify such
feeling of unreality and emptiness. Through the discussion of a clinic case, the concepts of true
and false self are articulated with the practice and open the reflection to the analyst’s mirror role
in the management of those cases.
Key words: Self, Winnicott, psychoanalytic psychotherapy, case study.
Introdução
Se devemos estabelecer uma teoria para o self verdadeiro, acho que é importante
enfatizar como esse self-essência é a presença singular do ser que cada um de
nós é; o idioma da nossa personalidade (....) No entanto, o idioma da pessoa não
é um texto escondido e enfurnado na biblioteca do inconsciente, esperando por
sua divulgação através da palavra. É mais um conjunto de possibilidades pessoais
únicas, específicas desse indivíduo e sujeitas, em suas articulações à natureza da
experiência vivida no mundo real. (Bollas, 1992, p.21-22).
Safra (2005) acrescenta que o self central é o potencial herdado que “é experienciado
como uma continuidade de ser, e que adquire em seu próprio modo e em sua própria
velocidade uma realidade psíquica e esquema corporal pessoais” (p.41). Para este autor,
o que um ser humano pode ser capaz de conhecer de verdade é aquilo que ele é capaz
de criar; no sentido de conceber subjetivamente o mundo e ter a vivência de criá-lo, sem
que a externalidade se imponha precoce e invasivamente.
O self verdadeiro necessita à sua maneira e em seu tempo, a partir do contato com
o ambiente facilitador, adquirir uma realidade psíquica pessoal que lhe permita sentir-se
real, sentir que o mundo é real e experimentar a continuidade de sua existência. “O gesto
espontâneo é o self verdadeiro em ação. Somente o self verdadeiro pode ser criativo e
sentir-se real” (Winnicott, 1983, p.135)
Para que seja possível a expressão do verdadeiro self é necessário que algumas
condições tenham sido garantidas desde o início do desenvolvimento. Safra (2005)
Winnicott postula diversos níveis de falso self, considerando desde uma atitude
social, não patológica, no sentido da renúncia à onipotência e garantia do convívio social
– presente na saúde – até o falso self que se implanta como real, em total submissão,
onde o self verdadeiro permanece oculto, o que implica na ausência do que poderíamos
chamar de gesto espontâneo. No grau extremo existe um sentimento de vazio, de que a
vida não vale a pena, que não há razão para viver; nos graus menos extremos Winnicott
(1990) aponta para uma organização secundária cindida, ou seja, uma possível regressão
diante de dificuldades encontradas num estágio posterior do desenvolvimento, o que nos
faria supor algum grau de sucesso na estruturação inicial primitiva. Esta diferenciação
traz consequências no trabalho clínico, em termos de diagnóstico e intervenção.
A história de Júlia1
Júlia procurou análise aos 22 anos. Filha única, morava com a mãe e a avó. Não
tinha contato com seu pai havia alguns anos, trabalhava como funcionária pública, em
uma área administrativa que não era relacionada à sua profissão. Havia iniciado nesse
emprego antes de terminar a faculdade e permanecia nele, apesar de sentir-se bastante
insatisfeita. O que mais chamava a atenção nela era a sua luta interna constante, entre
dar voz às suas angústias e, em seguida, esvaziá-las: “Eu fiquei muito angustiada esta
semana, sai do trabalho, fui para casa com muita vontade de chorar e chorei muito. É o
1
O nome da paciente, bem como alguns dados de sua história foram modificados como forma de evitar sua
identificação e proteger sua privacidade
Júlia passou alguns meses neste ritmo. Havia uma ausência de si e de uma história
que sentisse como verdadeira e significativa a ponto de merecer a sua dor e seu sofrimento.
Sentia seu passado de tal forma vazio que pouco falava dele e quando o fazia era sem afeto,
como quem conta uma história que não lhe diz respeito. Ao mesmo tempo necessitava
afastar qualquer proximidade comigo, sendo que era difícil até mesmo entrar em seu
discurso de perguntas e respostas que, aparentemente, prescindiam de um outro. As minhas
intervenções eram frequentemente seguidas de um: “E o que vou fazer com isso, isso não
é importante.” Neste momento da relação, sentia-me num lugar inóspito, sabia que ainda
não estava em contato direto com a Júlia e que, para que isso acontecesse, necessitava
poder estar com ela da forma como se apresentava, sem intervenções ou interpretações
que pudessem ser sentidas como invasivas.
A sua primeira aproximação foi por meio de um pedido. Em uma determinada sessão
me disse que tinha muito medo de não conseguir saber se a análise a estava de fato ajudando,
tinha medo de continuar porque de alguma forma eu a induzia à isso, mesmo que não fosse
o melhor para ela. O que ela pedia era alguma coisa muito primitiva em termos de relação
– que eu fosse confiável, no sentido de não invadi-la, não impor o meu gesto. O seu receio
era que eu não fosse confiável no sentido de ser alguém que poderia lhe oferecer algo que
não fosse por ela concebido; que não fosse de encontro à sua necessidade. Temia novamente
ser invadida por algo externo. Júlia queria saber se podia estar comigo ou se eu me imporia
a ponto dela não mais saber se a necessidade atendida na relação terapêutica seria a minha
ou a dela. Seria possível ser, comigo, ou novamente se submeteria?
A possibilidade de confiar é uma premissa indispensável para uma entrega, para estar
com um outro que não seja ameaçador e não iniba o próprio gesto. Dias (1999) aponta
que, em Winnicott, a confiabilidade é a característica central do ambiente facilitador e
está diretamente relacionada à dependência, cujo protótipo é o estado de dependência
absoluta do bebê com relação à mãe no início da vida. Ainda segundo a autora, no estágio
inicial do desenvolvimento, confiabilidade significa que a mãe cuida para que o bebê tenha
preservada a sua continuidade de ser, mantendo-o na área de ilusão de onipotência, onde
o mundo se apresenta conforme é concebido subjetivamente. Assim, o bebê durante o
tempo necessário vive a ilusão de criar o mundo por meio de seu gesto e de manter sobre
Vivia intensamente a sensação de não se sentir real, sentia-se uma eterna farsa, a
ser descoberta – por ela mesma e pelos outros – a cada momento, a cada escolha que se
mostrasse insatisfatória. Em cada desejo que surgia, para cada escolha que se apresentava,
retornava a dúvida de quanto isto seria verdadeiro, se seria algo genuinamente seu ou
uma ilusão, que se esvairia – por não ser real – assim que fosse concretizada.
Com relação a seu pai, dizia não sentir sua falta, pois nunca esteve ao seu lado. No
início avaliava a relação de seus pais de forma bastante racional, segundo ela, não tinham
ficados juntos porque não se davam bem, seu pai era muito assediado pelas mulheres e
sua mãe não confiava nele.
Júlia percebia, aos poucos, que estava bastante insatisfeita com sua vida. De
forma geral, o seu trabalho era desgastante e o que a mantinha nele era uma sensação de
segurança que temia abandonar. Começou a questionar esta necessidade de segurança e,
ao reconstruir a história de sua família, percebeu-se repetindo medos e inquietações de sua
avó e de sua mãe, que pouco tinham arriscado diante do medo, por exemplo, de perder o
emprego e não conseguir outro. Seu namoro, que já havia sido mais intenso e era uma das
poucas experiências afetivas significativas que ela sentia como real – onde ela se sentiu de
fato presente – estava tornando-se uma relação distante que ela também temia perder. A
necessidade de segurança, o medo de perder e, principalmente o medo de não ser nada ao
não ser aquilo que se esperava dela, passaram a ser um tema frequente nas sessões.
Referências
Gabriela Bruno Galván – Psicóloga, Mestre em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano (USP);
Doutoranda do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP).
Maria Lúcia Toledo Moraes Amiralian – Doutora em Psicologia Clínica (USP); Docente do Instituto de Psicologia
da Universidade de São Paulo (IPUSP).