O Consumo Cultural Das Famílias Brasileiras
O Consumo Cultural Das Famílias Brasileiras
O Consumo Cultural Das Famílias Brasileiras
1 INTRODUÇÃO
Diversos argumentos têm justificado ou exigido o dimensionamento dos processos
de produção e consumo cultural. O principal deles diz respeito ao peso da produção
cultural nos processos de desenvolvimento e integração social. Por um lado, a
cultura perpassa todas as dimensões da vida em sociedade e se relaciona com a
sociabilidade e sua reprodução. Por outro, em sentido mais restrito, liga-se aos
direitos e à cidadania.
O mercado não é simples espaço de trocas de mercadorias, mas também um
lugar onde se processam interações sociais e simbólicas. Da mesma maneira, o
consumo não é um simples movimento de satisfação de necessidades básicas ou
de apropriação de bens. O consumo implica uma ordem de significados e posições
sociais. Consumir certos bens diz algo sobre quem consome, sobre sua posição
social, seu status, o lugar a que pertence ou os vínculos que é capaz de estabelecer.
É possível dizer que o consumo implica reunir pessoas e distingui-las. Por essa
razão, pode-se afirmar que o consumo cria ordem, classifica as pessoas e as associa
aos bens; enfim, o consumo ordena informações e organiza significados sobre as
estruturas sociais.
O consumo também tem relações com a cidadania, com o direito ao acesso
a certos bens e serviços. O direito à cultura implica elementos presentes em todas
as gerações de direitos – ou seja, direitos civis, políticos e sociais. Consumir, nesse
caso, significa o acesso não somente a bens como aqueles relacionados às artes, mas
* Esta pesquisa fez parte de um conjunto de análises empreendidas pela Diretoria de Estudos Sociais (Disoc), do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (Ipea), em parceria com a Unesco e o Ministério da Cultura (MinC). Agradecimentos especiais a Fernando Gaiger.
cultura tem nesse número um piso, sendo possivelmente maior do que ele. As áreas
culturais são heterogêneas e envolvem diferentes modalidades de organização em-
presarial e tecnológica, assim como as operações de circulação também se apresentam
em formas absolutamente diferenciadas. Assim, cada área ou segmento cultural
tem diferentes inserções e graus de participação na dinâmica da produção cultural.
O exemplo do audiovisual é claro a respeito dessa complexidade. As trans-
formações pelas quais o cinema passa indicam as profundas reformulações que ele
enfrenta com as constantes mudanças tecnológicas, em razão da evolução da tele-
visão, do vídeo, dos DVDs, da disseminação das videolocadoras, e assim por diante.
A queda da freqüência às salas de cinema tem inúmeras razões adicionais que não
se limitam às transformações internas do setor; mas o que se quer ressaltar aqui
são as mudanças que a área do audiovisual teve de enfrentar nas últimas décadas,
estabelecendo relações íntimas com as diversas áreas de mídia nas suas estratégias
de revitalização. Em resumo, mudanças tecnológicas, segmentação de mercados,
preços, reorganização das cadeias de produção refletem-se nos usos, nas práticas e
nos padrões das despesas culturais.
Nesse contexto, o poder público tem se mostrado bastante despreocupado
no que se refere à ação ordenada nas cadeias de produção de bens culturais, embora
sua intervenção na forma de financiamento e fomento tenha se ampliado. Ou
seja, o dimensionamento do consumo das famílias é extremamente importante,
mas deve ser acrescido de informações para permitir ações mais pontuais ou
abrangentes na cadeia de produção do entretenimento e da cultura. Mas é rele-
vante saber que o consumo das famílias atinge a casa dos R$ 30 bilhões, enquanto
o montante de recursos aportados pelos três níveis de governo em pouco ultrapassa
os R$ 2 bilhões.
Neste texto, depois desta introdução e da próxima seção, que contém consi-
derações metodológicas gerais, são apresentados na seção 3 os montantes de gas-
tos culturais das famílias em seus diferentes componentes de consumo e descritas
algumas variáveis socioeconômicas que condicionam o consumo cultural, entre
elas, escolaridade da pessoa de referência, cor, gênero e renda da família. Depois
apresenta algumas interpretações relativas à disponibilidade de equipamentos no
domicílio, nas cidades (equipamentos públicos) e aventa a possibilidade de que a
distribuição e presença de equipamentos seja uma variável explicativa importante
para a compreensão dos padrões de consumo cultural. Também são mostradas as
desigualdades espaciais do consumo cultural. A seção 4 mostra que os bens e os
serviços culturais fazem parte da vida das famílias brasileiras e se constituem em
bens necessários ao seu padrão de reprodução.
2 METODOLOGIA
A Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) faz o levantamento da composição
dos dispêndios das famílias por classe de rendimentos e segundo as principais
características demográficas e educacionais. Adicionalmente dá valiosas informações
sobre o padrão distributivo dos recebimentos, a evolução do endividamento e o
perfil de dispêndio.
O consumo faz parte de estratégias culturais. Considerá-lo como tal implica
dizer que ao selecionar bens e deles se apropriarem, as pessoas definem o que
consideram valioso socialmente, com quem desejam estabelecer trocas ou laços de
solidariedade, quem convidam à mesa e quem dela excluem.
A POF impõe uma limitação metodológica, pois os dispêndios não podem
ser considerados, pelo menos não diretamente, um indicador de preferência e das
estratégias de ordenação de significados.
Os preços e os salários, e sua variação ao longo do tempo, são fatores que
fazem com que os dispêndios das famílias não guardem relações diretas com as
unidades de produtos e serviços consumidos como bens valorizados culturalmente
e, portanto, não podem ser usados como indicadores das prioridades de consumo
nas estratégias de reprodução social das famílias. O consumo responde a um cálculo
global que envolve aspectos econômicos, mas também aspectos simbólicos e sociais.
Outro fator que impede que a estrutura de gastos das famílias se refira dire-
tamente às preferências culturais é que parte do consumo cultural não é feita no
mercado, mas implica estratégias coletivas (festas cotizadas, por exemplo) ou do
próprio poder público (shows, eventos, subsídios, serviços de bibliotecas, museus
etc.). Esses não se constituem propriamente em gastos monetários das famílias,
mas mobilizam valores e relacionam-se com práticas valorizadas.
Mesmo com esses dois elementos limitadores do escopo das análises e que
dificultam conclusões mais definitivas – até com a hipótese de forte correlação
entre gastos e preferência não descartada –, pode-se explorar uma hipótese fraca,
mas que descreva algo sobre o consumo de cultura das famílias a partir da POF.
Dessa forma, a investigação foi reduzida à observação de uma cesta de bens que
provisoriamente foram considerados como bens culturais.1
O consumo é aqui definido nos termos de Douglas e Isherwood, ou seja,
como área das relações sociais em que as transações são realizadas livremente,
1. Para considerações metodológicas complementares, consultar Reis, Silveira e Andreazzi (2002) e Silveira, Bertasso e Magalhães
(2003).
apenas limitadas pela percepção das próprias intenções, além da lei e do comércio,
portanto, das regras culturais e da moral, que definem padrões de consumo.
Os bens culturais são aqueles que se relacionam com necessidades materiais
e culturais, úteis para proporcionar informações, entretenimento e posicionar social
e estruturalmente as pessoas umas em relação às outras.
Nesse último sentido, os bens culturais remetem a processos de integração e
exclusão social; referem-se a processos institucionais de reconhecimento e valori-
zação das possibilidades das expressões culturais diferenciais. Também se relacionam
com a cidadania ao expressarem o direito de acesso e qualificação de informações
úteis. Os itens culturais podem referir-se a:
a) leitura (livros didáticos e não-didáticos, revistas, jornais etc., ou seja, mídia
escrita);
b) fonografia (CDs, discos de vinil, aparelhos ou equipamentos);
c) espetáculo vivo e artes (circo, artes, teatro, balé, shows, música etc.);
d) audiovisual (cinema, práticas amadoras, TV a cabo, equipamentos e
conteúdos);
e) microinformática (equipamentos e internet); e
f ) outras saídas (boate, danceteria, zoológico etc.).
Esses itens também foram reagrupados em consumo no interior ou fora do
domicílio, para explorar algumas idéias sobre o tamanho e o número de vínculos
de sociabilidade que podem expressar. Embora não tenha sido possível desdobrar
interpretações nessa direção, esse foi o espírito original. As informações foram
mantidas, na expectativa de que possam ilustrar de alguma forma a importância
das práticas domiciliares no consumo cultural.
TABELA 1
Distribuição do dispêndio cultural por itens e características da prática
Itens de despesa cultural Total (R$) %
(continuação)
chegam a R$ 4,6 bilhões ou 14,6% do total cultural. Desses gastos o maior peso é
com equipamentos, mas é importante registrar os gastos com internet, que repre-
sentam 16,6% (R$ 776 milhões).
O acesso à internet tem sido saudado como uma nova modalidade de acesso
que, em muitos casos, simboliza a democratização da cultura, mas uma aproximação
rápida mostra que essa prática é restrita aos 2/10 de maior renda, que realizam
87% dos gastos com internet e 71% dos gastos com microinformática. Mesmo
assim, o uso dessas tecnologias tem permitido uma reestruturação global do con-
sumo, modificando-lhe o tempo e a estrutura dos serviços a que dão suporte.
As tecnologias multimídias transformaram os mercados livreiros e musicais,
criaram museus, bibliotecas e hemerotecas virtuais etc. e vieram para alterar pro-
fundamente o acesso aos bens culturais. Infindáveis discussões a respeito de direitos
de autor e da qualidade do fazer cultural desdobram-se com a configuração desses
novos paradigmas tecnológicos. Seja qual for o resultado desses debates, é necessário
reconhecer que essas tecnologias já transformaram definitivamente as formas de
acesso e as relações com a produção e o consumo de bens simbólicos.
No entanto, há que se enfatizar as desigualdades e a pouca abrangência do
acesso. Em 2002, 14% da população possuíam computador em casa e apenas
10% tinham internet, o que é revelador tanto do potencial quando das dificuldades
na ampliação da cobertura.
GRÁFICO 1
Montantes dos dispêndios culturais fora do domicílio
(Em R$ milhões)
2.319
2.143
1.227
TABELA 2
Porcentagem do dispêndio cultural no domicílio ou fora no total por tipo de família
Itens de despesa cultural Sem filhos Com filhos Com filhos Total
até 18 anos acima de 18 anos
Práticas em casa 82 87 77 82
Participação
Práticas fora de casa 18 13 23 18
percentual
Consumo cultural 100 100 100 100
todos os tipos de famílias, mas é interessante notar que é ligeiramente superior nas
famílias sem filhos. Em parte, os itens que respondem por essas diferenças são
cinema (4,6%) e TV a cabo (8,6%) (tabela 3).
Os gastos com audiovisual são menores para as famílias com filhos maiores.
Possivelmente, parte desses gastos foi realizada em outros períodos do ciclo de
vida da família, com a aquisição de equipamentos etc. Também é importante
observar que o percentual de gastos com conteúdos de audiovisual nessa categoria
de família chega a 8% dos dispêndios totais.
O dispêndio com espetáculo e artes também é ligeiramente superior nas
famílias com filhos maiores, em especial nos espetáculos vivos como teatro, dança e
visitação a museus.
A mesma categoria de famílias (com filhos maiores no domicílio) consome
em proporção ligeiramente superior CDs, discos de vinil, fitas etc., embora o
menor gasto com equipamentos faça com que os gastos com produtos da indústria
fonográfica sejam ligeiramente inferiores aos das famílias com filhos até 18 anos.
TABELA 3
Consumo cultural por tipo de família
(Em %)
Outras saídas (boate, danceteria, zôo etc.) 7,2 4,0 11,2 7,3
TABELA 4
Dispêndios culturais das famílias por escolaridade da pessoa de referência
Itens de despesa cultural Até 11 anos de estudo (a) 12 anos ou + de estudo (b) (b)/(a)
2. As famílias com pessoa de referência mais escolarizada despendem mais do orçamento com a educação.
TABELA 5
Porcentagem do dispêndio cultural das famílias por escolaridade da pessoa de referência
no total
Itens de despesa cultural Até 11 anos de estudo 12 anos ou + de estudo
(como a leitura) têm um consumo maior por parte dos grupos de maior escolarização.
Há uma forte correlação entre os anos de estudo e o desenvolvimento dessas habi-
lidades e elas estão presentes em grande parte das demandas por freqüência aos
cinemas e no consumo de conteúdos de TV a cabo e de vídeo caseiros. Em muitos
casos, o consumo de imagens é exigente em termos de habilidades de leitura em
GRÁFICO 2
Curva de Lorenz da renda familiar per
per capita
capita e curvas de concentração das despesas
em consumo e dos gastos em cultura
(Participação acumulada de renda, consumo e cultura, em %)
100
90
80
70
60
50
40
30
20
10
0
0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100
Participação acumulada da população – ordenada pela renda domiciliar per
per capita
capita (%)
Fontes: IBGE/POF de 2002-2003. Elaboração dos autores. Despesas de consumo Gastos em cultura Renda
dispêndio cultural, sendo, todavia, responsáveis por cerca de 15% das despesas de
consumo. Por outro lado, os 10% mais ricos despendem 40% dos gastos em
cultura e se apropriam de parcela semelhante da renda, ainda que, no que concerne
aos dispêndios de consumo, respondam por 30%. As despesas de consumo são
menos concentradas que a renda, dado que o orçamento das famílias pobres se
concentra quase exclusivamente nas despesas de consumo, sendo marginais os
gastos em ativos e os destinados ao pagamento de impostos. Já os gastos em con-
sumo têm um grau de concentração semelhante ao da renda.
Os dados da tabela 6, onde constam os valores do índice de Gini da renda
familiar per capita e dos coeficientes de concentração dos gastos familiares per
capita do consumo e dos gastos culturais, mostram o quadro acima descrito, com
o Gini da renda de 0,59 pouco superior ao coeficiente de concentração das despesas
em consumo (0,58) e bem superior ao das despesas de consumo (0,47). No que
diz respeito à concentração dos gastos com os agregados de bens e serviços culturais
“‘construídos’ verificam-se, grosso modo, três comportamentos. Há aqueles gastos
cuja concentração é muito semelhante aos do conjunto dos bens culturais, quais
sejam: audiovisual e outras saídas, com esse último agregado mostrando-se menos
concentrado que as despesas culturais. Os dispêndios com a indústria fonográfica
são bem menos concentrados que os gastos culturais em geral, sendo eles, inclusive,
mais bem distribuídos que os gastos de consumo em geral”. E, por fim, há os
TABELA 6
Brasil: valor mensal familiar per capita e coeficiente de concentração da renda, das
despesas em consumo e dos gastos culturais – 2002-2003
Valor mensal familiar per capita Coeficiente de Participação (%)b
Variável
(R$ de janeiro de 2003) concentraçãoa
Renda 501,48 0,593 100
Despesas de consumo 405,38 0,468 81
Gastos em cultura 15,19 0,575 4
Audiovisuais 6,26 0,573 41
Espetáculos 1,02 0,631 7
Indústria fonográfica 2,21 0,398 15
Leitura 2,37 0,627 16
Informática 2,22 0,691 15
Outras saídas 1,10 0,550 7
Fonte: IBGE/POF de 2002-2003. Elaboração dos autores.
a
São coeficientes de concentração em relação à renda, ou seja, a população está ordenada pela renda familiar mensal per capita. Assim, no
caso da renda, é o índice de Gini. Consideraram-se os rendimentos e os gastos monetários e não-monetários.
b
As participações dos gastos em cultura são relacionadas às despesas de consumo e para os itens de cultura a base são as despesas totais em
cultura.
gastos mais concentrados que são em ordem crescente: os com leitura, com espe-
táculos e com microinformática.
Os gráficos 3 e 4 ilustram essa diferenciação entre os níveis de concentração,
associando, no caso, a participação acumulada com o total dos gastos culturais
com a participação acumulada dos gastos em cada um dos itens de cultura. Quanto
mais abaixo da linha de 45°, mais concentrados são os gastos frente aos gastos
culturais, ou seja, mais contribuem com a concentração das despesas de consumo. Por
outro lado, quanto mais acima da referida linha, melhor a distribuição desse gasto.
Por exemplo, o que as famílias gastam em média com informática é similar
ao que elas gastam com bens da indústria fonográfica. No entanto, o gasto com
fonografia distribui-se por um número maior de famílias, enquanto o da
GRÁFICO 3
Curvas de concentração dos gastos em leitura, espetáculos e informática
(Participação acumulada de gastos em itens de cultura, em %)
100
90
80
70
60
50
40
30
20
10
0
0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100
Participação acumulada de gastos em cultura (%)
Fontes: IBGE/POF de 2002-2003, microdados. Elaboração Ipea/Disoc. Leitura Espetáculos ao vivo Informática
GRÁFICO 4
Curvas de concentração dos gastos em audiovisual, indústria fonográfica e outras saídas
(Participação acumulada de gastos em itens de cultura, em %)
100
90
80
70
60
50
40
30
20
10
0
0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100
Participação acumulada de gastos em cultura (%)
Itens de despesa cultural A/B Total = 100% C Total = 100% D/E Total = 100% Total
124
Consumo cultural por 100 domicílios (R$) 244.729 372 78.195 119 24.106 37 65.836
Consumo cultural por 100 pessoas (R$) 68.314 376 21.982 121 6.588 36 18.171
01/06/07, 15:44
O CONSUMO CULTURAL DAS FAMÍLIAS BRASILEIRAS 125
TABELA 8
Proporção de cada bem no total dos dispêndios culturais por classe de renda
(Em %)
GRÁFICO 5
Composição do consumo cultural por estrato de renda
(Em %)
20,1
12,1
9,0
8,2 8,0
4,9 5,5
4,3 4,7 4,7
3,4 2,8 2,9
2,4 2,0 2,2 2,2
1,0 1,5 4,7 1,3
0,4
A/B C D/E
Audiovisual Leitura Espetáculo ao vivo e artes Cinema
Fonte: IBGE/POF de 2002-2003.
Elaboração dos autores. Microinformática Indústria fonográfica Outras saídas (boate, danceteria, zôo etc.)
TABELA 9
Equipamentos culturais de uso doméstico por classe de renda
(Em %)
Dos domicílios brasileiros 85,5% têm televisão em cores; mas nas classes de
renda mais altas (A/B) essa presença é de 99,6%, enquanto nas classes D/E é de
74%. Surpreende saber que a televisão em preto-e-branco ainda está em 8,4% dos
domicílios e em 11% dos domicílios da classe D/E. Os artefatos de recepção de
som, de informações, mas sobretudo de música, também estão presentes de forma
significativa nos domicílios (conjunto de som, 58,1%; gravador e toca-fitas, 13,6%;
rádio de mesa e portátil, 18,5% e 20,4%, respectivamente), sendo que nos domi-
cílios de menor renda esses equipamentos são mais raros.3
As diferenças são maiores para o microcomputador (presente em apenas
18,3% dos domicílios, em 60,8% dos mais ricos e em apenas 1,4% nas classes D/
E); o videocassete, que está em 37% dos domicílios – em 87,4% dos mais ricos e
apenas em 6,7% dos mais pobres; e, mais interessante, os toca-discos a laser e
DVDs, que se encontram em apenas 6,1% e 5,1% dos domicílios e estão em
pouquíssimos domicílios D/E. Assim, a distribuição desses três bens que, se
universalizada – imagina-se – tornaria o acesso a conteúdos audiovisuais mais
equânime, é um indicador de uma brutal desigualdade no acesso a informações e
às tecnologias contemporâneas de circulação de mensagens e imagens.
As cifras mostram a grande universalidade da televisão como forma de acesso
a informações e fonte de entretenimento. Os meios de comunicação fechados são
pouco acessíveis, o que é ressaltado pelo baixíssimo acesso a internet, TV a cabo e
microcomputador no Brasil. Os consumidores de música distribuem-se entre os
que a acessam pelo rádio, os pouquíssimos possuidores de equipamentos domici-
liares que permitem escolher as músicas preferidas, e aqueles que o fazem na
“telinha”.
De qualquer maneira, essas informações, junto com referências sobre práticas
e usos do tempo livre, revelam a configuração contemporânea dos hábitos culturais
e mostram a importância da televisão na crônica dos costumes e dos gostos cole-
tivos (ver RIBEIRO, 2003). O rádio teve grande papel na configuração dos modos
de falar, no consumo, nas informações, na formação de imagens, e até nos modos
de vestir. Assim, deu contribuição relevante do ponto de vista político e à união de
ouvintes de regiões culturais diferentes. A televisão por seu turno deve ter hoje um
papel inigualável na produção e reprodução do imaginário, dado que grande parte
dos conteúdos audiovisuais passa em algum momento por ela.
Por outro lado, os sistemas restritos de informação (internet e
microinformática) remodelam estilos de consumo e não se limitam aos impactos
3. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), de 2002, 88% da população possuía, em 2002, rádio nos
domicílios.
TABELA 10
Equipamentos culturais presentes nos municípios de região metropolitana
(Em %)
têm lojas de discos e livrarias. Portanto, pode-se ver que a distribuição de equipa-
mentos entre municípios é bastante desigual. O mesmo acontece com a distribuição
dos equipamentos dentro dos municípios, como o demonstram muitos estudos.
Isso explica, em parte, o diferencial de acesso a bens culturais entre classes sociais.
Entre os equipamentos culturais tradicionais, a distribuição é mais desigual.
Os teatros estão presentes em maior quantidade nos municípios das RMs de São
Paulo (66,7% dos municípios metropolitanos), Belo Horizonte (60%) e Rio de
Janeiro (58,8%). Os museus estão muito mais presentes nos municípios da região
de Porto Alegre (58,1%). Os cinemas têm presença pequena nos municípios me-
tropolitanos (25% deles têm cinema).
Embora seja pequeno o universo de pessoas com acesso – 44% dos municípios
metropolitanos e perto de 10% da população tinham acesso doméstico à internet
em 2002 –, algumas regiões já têm cobertura maior. As regiões de Belo Horizonte,
São Paulo e Porto Alegre têm um número maior de municípios com esse serviço.
De fato, a região Sudeste tem a maior cobertura de população com internet no
domicílio, aproximadamente 14% ou 10 milhões de pessoas (Pnad de 2002).
Como se vê (tabela 10), nas regiões de maior densidade populacional, maior
presença de serviços urbanos e maior renda, é grande a heterogeneidade de situações,
em especial no que se refere à cobertura e à presença de equipamentos culturais.
Mesmo assim, aí são maiores as possibilidades de acesso a bens culturais. Para
reverter essa situação é indispensável que o poder público, em seus diversos níveis
de ação, assuma a responsabilidade na provisão de acesso a esses diversos bens de
forma a distribuir e a ampliar o número de equipamentos e facilitar o acesso a
toda a população.
A presença de equipamentos nos municípios aumentou entre 1999 e 2001.
Disso se depreende o dinamismo do setor audiovisual, do comércio musical e de
livros, e os avanços da internet que, menores em termos de cobertura, ainda assim
apresentam grande potencial de expansão. A tabela 11 apresenta os dispêndios de
alguns bens culturais selecionados e consumidos nas RMs.
Os dispêndios com cinema concentram-se no Brasil metropolitano (65%
dos dispêndios são aí realizados). Para espetáculos e artes, os gastos são de 52,7%
do total, vídeo, 44,5%, e CDs e outros suportes de música, 55,4%. Portanto os
mercados culturais estão em grande parte concentrados nessas regiões, devido às
condições demográficas, de renda e de mercado de trabalho, mas também à pre-
sença de equipamentos.
TABELA 11
Dispêndios culturais selecionados realizados nas regiões metropolitanas e no Brasil
Cinema % Espetáculo % Livro % CD, vinil, % TV a cabo %
RM/Brasil ao vivo e fita etc.
artes
Belém 7.859 0,6 12.840 0,6 5.711 1,0 14.486 1,2 8.673 0,4
Fortaleza 19.255 1,6 18.271 0,9 18.580 3,3 34.373 2,8 39.561 1,8
Recife 30.335 2,5 32.843 1,5 8.823 1,6 42.627 3,4 14.668 0,7
Salvador 38.509 3,1 51.413 2,4 10.969 2,0 67.882 5,5 71.836 3,3
Belo Horizonte 45.170 3,7 102.275 4,8 18.474 3,3 68.579 5,6 117.811 5,4
Rio de Janeiro 203.427 16,6 253.631 11,8 55.966 10,0 108.241 8,8 472.849 21,5
São Paulo 325.695 26,5 496.590 23,2 124.026 22,1 242.848 19,7 463.336 21,1
Curitiba 36.440 3,0 66.390 3,1 14.897 2,7 28.156 2,3 58.394 2,7
Porto Alegre 50.915 4,1 69.477 3,2 17.082 3,1 53.469 4,3 82.308 3,7
Goiânia 22.910 1,9 10.353 0,5 5.157 0,9 7.074 0,6 10.025 0,5
Brasília 16.843 1,4 15.614 0,7 6.916 1,2 16.322 1,3 15.448 0,7
Brasil metropolitano 797.358 65,0 1.129.697 52,7 286.600 51,2 684.056 55,4 1.354.909 61,6
Brasil total 1.227.048 100,0 2.143.077 100,0 559.937 100,0 1.235.588 100,0 2.199.819 100,0
Fonte: IBGE/POF de 2002-2003. Elaboração dos autores.
TABELA 13
Regiões metropolitanas: dispêndio cultural, participação por domicílio, por pessoas e na
renda
(Em %)
Belo Horizonte 8,2 3,0 854,3 98,3 241,4 95,9 2,8 96,3
Rio de Janeiro 24,7 3,2 943,4 108,5 293,4 116,6 3,1 107,3
São Paulo 38,1 2,9 978,5 112,5 282,6 112,3 2,9 100,1
Porto Alegre 7,2 2,7 822,8 94,6 257,9 102,5 2,7 92,7
Brasil metropolitano 100,0 2,9 869,4 100,0 251,7 100,0 2,9 100,0
Fonte: IBGE/POF de 2002-2003. Elaboração dos autores.
que ofertem bens culturais. Também se convive com uma produção simbólica
que circula em aura de raridade, não pela sua raridade e genialidade intrínseca,
mas em razão da falta de apoios institucionais consistentes. Nesse cenário, o bem
cultural distante e produzido por especialista ganha um encanto que permite tanto
sua sacralização quanto seu desprezo, dada a dificuldade para entendê-lo.
No entanto, é interessante notar a expressão da participação dos dispêndios
culturais no orçamento das famílias. Nas grandes regiões divididas por décimos
de renda, a proporção é de 3,0% para o Brasil (tabelas 14 e 15). A maior proporção
está no nono décimo, com 3,4%, e a menor, 2,2%, no terceiro decil. Entre os
decis das grandes regiões, a proporção apenas é menor no primeiro decil da região
Nordeste com 2%. Nas regiões, a menor proporção dos dispêndios culturais é a
do Centro-Oeste, com 2,6%.
Se se tomam as RMs, a proporção é um pouco maior. Para o Brasil metro-
politano, a proporção da cultura nos gastos das famílias é de 3,4%. A menor propor-
ção está no segundo decil, 2,2%. A menor proporção está na RM de Belém, no quinto
decil, com 1,3%. No total das RMs, a menor participação é de Goiânia, com 2,7%.
Portanto, a participação de cada decil no consumo cultural total não varia
muito, o que indica que todas as famílias consomem cultura e dispensam recursos
TABELA 14
Proporção dos dispêndios culturais no total das grandes regiões e no Brasil
(Em %)
Decis de renda Belém Fortaleza Recife Salvador Belo Horizonte Rio de Janeiro São Paulo Curitiba Porto Alegre Goiânia Brasília Brasil metropolitano
1 1,9 3,1 1,9 3,4 1,9 1,6 3,2 3,2 3,6 2,5 6,2 2,7
2 3,4 2,4 2,4 2,5 2,5 2,1 1,8 3,4 2,0 2,6 2,3 2,2
136
3 2,9 2,1 2,4 2,8 2,5 2,5 3,0 3,5 3,7 2,4 6,3 2,9
4 1,9 2,6 3,5 2,7 3,5 2,7 3,1 2,5 2,0 2,5 3,3 2,9
5 1,3 2,7 3,1 2,8 2,9 2,2 3,2 3,5 2,9 3,3 3,3 2,9
6 3,0 2,9 2,6 2,9 3,0 3,6 2,2 2,6 3,5 2,0 4,6 2,8
7 2,4 3,0 3,2 2,8 4,4 3,1 4,1 2,8 3,8 2,5 5,5 3,6
8 2,7 2,7 3,1 3,1 3,4 4,7 4,1 2,8 3,5 2,5 2,9 3,8
9 3,3 3,1 3,4 4,1 4,0 4,2 3,7 3,7 3,7 3,0 4,0 3,8
10 3,6 3,1 2,8 3,8 3,5 3,7 3,7 2,7 3,0 2,9 2,6 3,5
FREDERICO BARBOSA DA SILVA – HERTON ELLERY ARAÚJO – ANDRÉ LUIS SOUZA
Brasil metropolitano 3,0 3,0 2,9 3,4 3,5 3,6 3,5 3,0 3,2 2,7 3,6 3,4
Fonte: IBGE/POF de 2002-2003. Elaboração dos autores.
01/06/07, 15:44
O CONSUMO CULTURAL DAS FAMÍLIAS BRASILEIRAS 137
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho demonstrou a grande heterogeneidade do comportamento de con-
sumo cultural no Brasil. Essa heterogeneidade deve ser considerada na elaboração
das políticas culturais. Os consumidores valorizam a cultura como peça de meca-
nismos que organizam informações e interações sociais. A POF mostra padrões de
acesso à leitura e às artes tradicionais, de uso do tempo livre e de estratégias de
lazer. Também mostra que a televisão é a rainha dos consumos de lazer, com pre-
sença quase universal na casa. O consumo de jornal e periódicos também é grande,
mas está longe de ser universal. Os dispêndios das famílias com cinema, teatro ou
espetáculos são infinitamente maiores do que o fomento público a essas atividades.
No entanto, as formas de organização dos espaços de consumo acentuam as
distâncias sociais e o isolamento das famílias no domicílio. Os espaços públicos
são escassos e pouco acessíveis. Ademais a dinâmica da vida urbana, com espaços
e deslocamentos confusos, desorganizados e caros impedem ou não incentivam o
uso intensivo dos espaços urbanos para o entretenimento, lazer e práticas culturais.
Nesse sentido, as políticas culturais implicam ações organizadas no espaço urbano,
portanto, exigem ações intersetoriais.
Também fica claro que a renda afeta o consumo e o acesso a bens culturais.
Nas grandes regiões e RMs, quase 50% do montante dos gastos culturais é feito
pelos dois decis mais ricos em termos de renda. No entanto, a proporção dos
gastos das famílias gira em torno de 3%, com ligeiras oscilações para mais ou para
menos. É um lugar comum – que não custa entoar como mantra: é importante
aos formuladores culturais a defesa de políticas de inclusão e aumento de renda.
As formas em que estão organizados os cotidianos das cidades e a estrutura do tempo
disponível para o lazer tornam imprescindível que se faça o fomento à produção
artística, mas parece necessário que essas ações sejam acompanhadas de intervenções
sistemáticas nas condições do consumo (transporte, logística para consumos asso-
ciados ao lazer e à cultura, segurança, localização de equipamentos etc.) e nas
condições dos públicos (educação, renda, acesso a outros serviços públicos etc.).
Práticas culturais
Freqüência
Classe A/B Classe C Classe D/E
Sempre assiste à tv 85 88 75
Sempre ouve rádio 81 83 74
Sempre vai a shows 14 14 8
Sempre aluga filmes 36 27 5
Nunca vai ao cinema 31 61 83
Nunca vai ao teatro 56 81 92
Nunca lê ou consulta livros 41 60 73
Nunca lê ou consulta revistas e jornais 49 62 75
Fonte: Ribeiro (2003). Elaboração dos autores.
TABELA 17
Dispêndios culturais por domicílio: itens selecionados
(Em %)
TV a cabo 279 34 2 45
Shows 5 2 1 2
Música 94 31 9 25
Aluguel de filmes 226 61 9 50
Cinema 127 26 4 25
Teatro 99 31 9 26
Livro 51 14 3 12
Leitura de jornais e revistas 307 86 16 71
Internet 102 11 1 16
Fonte: IBGE/POF de 2002-2003. Elaboração dos autores.
REFERÊNCIAS
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pública. Espaço e Debates – Revista de estudos regionais e urbanos, v. 23, n. 43-44, jan./dez. 2003.
CANCLINI, N. México: a globalização cultural numa cidade que se desintegra. Consumidores e
cidadãos – conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1995.
CASTRO, P. F.; MAGALHÃES, L. C. G. de. Recebimento e dispêndio das famílias brasileiras:
evidências recentes da pesquisa de orçamentos familiares (POF) – 1995/1996. Brasília: Ipea, dez.
1998 (Texto para discussão, n. 614, reproduzido no volume 1 deste livro).
DOUGLAS. M.; ISHERWOOD, B. O mundo dos bens – para uma antropologia do consumo. Rio
de Janeiro: Ed. UFRJ, 2004.
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________. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2002-2003 – primeiros resultados. 2a ed. Rio de
Janeiro: IBGE, 2004.
REIS, C. O. O.; SILVEIRA, F. G.; ANDREAZZI, M. F. S. Avaliação dos gastos das famílias com
assistência médica no Brasil: o caso dos planos de saúde. Brasília: Ipea, dez. 2002 (Texto para
discussão, n. 921, reproduzido no volume 1 deste livro).
RIBEIRO, V. M. (Org.). Letramento no Brasil. São Paulo: Ação Educativa; Global; Instituto Paulo
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ROCHE, D. História das coisas banais – nascimento do consumo séc. XVII-XIX. Rio de Janeiro:
Rocco, 2000.
SILVEIRA, F. G.; BERTASSO, B.; MAGALHÃES, L. C. G. de. Tipologia socioeconômica das famí-
lias das grandes regiões urbanas brasileiras e seu perfil de gastos. Brasília: Ipea, out. 2003 (Texto para
discussão, n. 983, reproduzido no volume 1 deste livro).