A Dança No Contexto e Os Novos Contextos Da Dança

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A DANÇA NO CONTEXTO E OS NOVOS CONTEXTOS DA DANÇA

Isabel Marques

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
MARQUES, Isabel. A dança no contexto e os novos contextos da dança. In SANTAELLA,
Lúcia e MOTA, Eversosn (orgs.). Dança sob o signo do múltiplo. Barueri: Estação
das Letras e Cores, 2020.

Desde que propus em 1996 que o contexto sociopolítico/cultural dos estudantes deveria
estar no foco da organização do conhecimento em dança nas escolas, outras pautas sociais,
políticas e culturais têm se adensado, ampliando aquilo que havia definido na época como
contexto dos estudantes.
Nos últimos anos, as lutas e causas identitárias, o crescimento das mediações
tecnológicas e o avanço do empreendedorismo neoliberal sobre a educação têm conduzido
novas práticas pedagógicas e modificado substancialmente propostas curriculares. Confere-nos
perguntar como o ensino de dança se insere nessas novas redes de relações que ampliam e
diversificam aquelas discutidas na década de 1990.
__
Proponho-me aqui, a convite dos editores desse livro, a revisitar dentro dos limites
__
que um artigo permite a Proposta Pedagógica da Dança no Contexto que vem sendo
desenvolvida desde 1989, quando defendi o Mestrado no Laban Centre (Londres); mas,
principalmente, desde que tive o privilégio de contribuir como assessora de Dança com o
“Projeto de Reorientação Curricular Interdisciplinaridade Via Tema Gerador” da Secretaria
Municipal de Educação de São Paulo (SME-SP) na gestão Paulo Freire/Luiza Erundina (1989-
1993).
Naquela época, a Dança não fazia parte oficial do currículo do município, a rede pública
de ensino pouco conhecia a Abordagem Triangular de Ana Mae Barbosa e o trabalho de Paulo
Freire estava pela primeira vez sendo oficialmente implantadas na cidade de São Paulo __ uma
cidade que naquele momento votou em um partido de esquerda (PT), desafiando anos de
ditadura militar e acreditando na redemocratização do país.
Nos trinta anos que nos separam do início dessa longa trajetória, a Proposta Pedagógica
da Dança no Contexto foi tomando rumos próprios, sem perder, no entanto, princípios que
considero dos mais caros a Paulo Freire (1983ab): a educação como ato político, pronúncia do
mundo e prática da liberdade. É em torno desses princípios que faço aqui essa revisita.

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A pandemia da Covid 19 como lupa
Estamos definitivamente diante de uma nova era. Para historiadora Lilia Schwarcz
(2020), a pandemia da Covid 19 marca o início do século 21, pois mostra os limites das
tecnologias que, para ela, definiram o século 20. A autora enfatiza que o desenvolvimento
tecnológico foi incapaz de evitar a crise sanitária global, e, principalmente, o acirramento das
desigualdades sociais características desse novo século.
No que tange à dança e seu ensino, no entanto, creio que esse marco da virada definitiva
de século não se dá, necessariamente, pelos limites, mas sim pela expansão do uso das
tecnologias: com a pandemia da Covid 19 e o fechamento das escolas, academias de dança,
universidades e projetos socias __ aliadas ao fechamento dos teatros e locais de apresentação __
as tecnologias estão, aparentemente de modo definitivo, sendo incorporadas às práticas de
dança.
As novas experiências digitais trazidas pelo confinamento à parcela privilegiada da
população também descortinaram a outra face do universo tecnológico: um mundo
empreendedor que contaminou e foi acolhido em nossos cotidianos privados, muitas vezes sem
escolha ou crítica. Especialmente no período do isolamento mais severo, nossas casas viraram
‘homeoffices’ e os estudantes faziam/fazem ‘homeschooling’ (fortalecendo, inclusive, o plano
neoliberal de privatização do ensino por meio da educação remota há muito tempo no cerne das
discussões entre governo federal e empresários da Educação).
Novos horários, funções, rotinas demarcadas, tarefas domésticas estipuladas e bem
distribuídas se sobrepuseram às relações tradicionais das casas; muitos lares cederam à
produtividade, às metas, às competências, à otimização do tempo, à superação dos obstáculos
e estabeleceram novos ritmos de convivência e outras formas de afeto, em geral avessas ao que
convencionalmente se entende por casa, doméstico, ‘domus’.
Em suma, uma camada privilegiada da população recebeu da pandemia da Covid 19
esse duplo pacote, a compulsoriedade das telas atrelada ao modus operandi de um capitalismo
mutante; experienciamos de fato ‘as redes digitais como um dispositivo neoliberal’ (vide HAN,
2018). Por outro lado, uma nova face da exclusão digital vigente foi colocada em evidência: a
falta de políticas públicas para uma educação remota, reforçando a discriminação e as
desigualdades sociais já existentes.
Por muitos meses, a comunicação planetária e o universo das relações artístico-
educacionais foram necessariamente confinados às telas, tempo suficiente, creio, para

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repensarmos práticas e conceitos do passado e presentificarmos possibilidades de futuro nos
campos da dança e da educação. Pergunto-me como esses outros-novos conceitos, práticas,
experiências, descobertas, afetos e relações realçados pela pandemia da Covid 19 permeiam as
transformações já em curso para o ensino de dança hoje?

A DANÇA NO CURRÍCULO

“Foi publicada nesta quarta-feira (3) a Lei 13.278/2016, que inclui as artes visuais, a dança, a
música e o teatro nos currículos dos diversos níveis da educação básica. A nova lei altera a
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB — Lei 9.394/1996) estabelecendo
prazo de cinco anos para que os sistemas de ensino promovam a formação de professor/aes/as
para implantar esses componentes curriculares no ensino infantil, fundamental e médio”
Fonte: Agência Senado

A introdução do ensino de dança nos currículos da educação básica enfrentava nos anos
1990 dois grandes entraves diretos: a legislação vigente e a formação de professores/as em
dança. Em minha pesquisa de doutorado apontava na época um grande avanço na legislação no
que dizia respeito à arte no currículo escolar, antes atividade (Lei 5692/1971), então elevada ao
posto de disciplina obrigatória na educação básica (Lei 9394/1996). Levantava e discutia
também a escassez de professores/as licenciados em Dança que pudessem qualificar os
processos de ensino e aprendizagem nessa área do conhecimento (vide MARQUES, 1996,
1999).
Hoje essa situação já é bem distinta. Agora, não somente a legislação garante a dança
como área de conhecimento independente nas escolas (Lei 13.278/2016), assim como cresceu
de forma significativa o número de Cursos Superiores em Dança cujo foco é a formação
específica de professores/as: entre públicos e privados, já passam de 34 cursos, sendo que no
ano de 1996 eram apenas 6 (vide CARVALHO, 2019).
Esses números por si só demonstram uma mudança substancial no quadro das políticas
públicas para o ensino de dança na educação básica e apontam para um quadro bem mais
otimista em se tratando da dança como componente curricular. Do imperativo que se colocava
na década de 1990 de incluir, introduzir e implementar a dança nos currículos escolares,
passamos hoje a uma necessidade de refletir sobre os processos de organização desse
conhecimento nas instituições de ensino. Aparentemente, já estamos convencidos da
importância da inclusão da dança no currículo, mas que caminhos trilhar?

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Ainda sobre hegemonias e pronúncias de mundo
Os cinco anos previstos em Lei para implantação de programas, conforme a epígrafe, já
estão em sua fase final. Avançamos em relação à presença da dança no currículo, sem dúvida
nenhuma, mas vale retomar que

“... repensar a educação e a dança no mundo contemporâneo, quer no âmbito artístico


profissional, quer na escola básica, significa também repensar todo este sistema de
valores e ideais concebidos desde o século XVIII que foram incorporados ao
pensamento educacional ocidental” (MARQUES, 1999, p. 48).

A proposta que se colocava na época era a de formular possibilidades de ensino de dança


que não estivesse limitado às prerrogativas e modelos das instituições escolares com bases
europeias e/ou norte-americanas __ portanto patriarcais, capitalistas e colonialistas. Em vez de
__
ser enquadrada pelo sistema escolar, sonhei que a dança/arte poderia teria o potencial de __
transformar a própria escola e, com isso, contribuir com a construção de uma nova configuração
social, mais ética e mais democrática (vide MARQUES, 1999). Para mim, naquela época,

“... uma abordagem/pensamento de ensino que ‘respeitasse’ a organização interna em


processos artísticos abertos indeterminados estaria questionando e colocando em xeque
todo um sistema de valores arraigados a uma pedagogia ‘iluminista’ há séculos em
vigor” (MARQUES, 1999, p. 52)

No entanto, historicamente, escolarizar a dança foi o caminho mais curto para que essa
área de conhecimento coubesse nas instituições escolares cujas práticas se apoiavam em
metanarrativas iluministas para “encontrar solos comuns a todos, de maneira total e consensual,
sobre os quais se pudesse construir e edificar valores, ideias e comportamentos universais”
(MARQUES, 1999, p. 49). Preocupava-me na época a ideia de que, para pertencer ao universo
escolar, a dança teria de operar pautada pelo conhecimento linear, proposicional, dual,
intelectual da didática ocidental tradicional que se enraíza no pensamento iluminista.
Desse modo, a dança, para que fosse aceita nos currículos escolares, não raramente foi
destituída de seu caráter indeterminado, imprevisível, não linear, aberto e intuitivo. Mais além,
levantei hipótese de que “a escola frequentemente [representava] uma camisa de força para a
arte [dança] a ponto de transformá-la em processos vazios, repetitivos, enfadonhos, que se

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[convertiam] exclusivamente em técnicas, atividades curriculares, festas de fim de ano”
(MARQUES, 1999, p. 45).
Pergunto-me até que ponto logramos, nesses últimos vinte anos, modificar de fato essa
herança iluminista universalizante de nosso sistema escolar e de nossas propostas para o ensino
de dança?
A constatação de que as metanarrativas iluministas sobre a escola “[representavam] e
[generalizavam] um discurso patriarcal, branco, europeu, etnocêntrico, dualista, imperialista,
separatista e logocêntrico, imposto como verdade única e comum a todos os seres humanos”
(MARQUES, 1999, p. 51) colocou-se claramente, há vinte anos, como uma denúncia. Estava
posto um alerta, ou uma forma de levar a conhecimento algo que estava velado. À época, estava
em jogo a discussão de que, ao universalizar concepções, conceitos e práticas de ensino e
aprendizagem da dança, estávamos claramente incidindo e reforçando uma rede de privilégios
hegemônicos.
Hoje, pergunto-me como seriam propostas para o ensino de dança que pudessem abrir
espaços para aqueles e aquelas não privilegiadas e que durante séculos se quer foram
oficialmente nomeados pela educação formal. Onde estão, como dançam, que vozes emitem,
que afetos enredam, que sonhos têm as mulheres, negros, crianças, idosos, indígenas, pessoas
com deficiência, LGBTQIA+ em nosso sistema escolar? E nas aulas de dança?
Já temos maior clareza hoje de que não basta denunciarmos a universalização das formas
do saber demarcada pela supremacia da razão patriarcal, colonialista e capitalista, crença esta
que vem há décadas aprisionando a arte e seu ensino nas ‘grades curriculares’. Urge
repensarmos as salas de aula de dança como lugares que desconstruam privilégios e atuem
explicitamente dentro de uma perspectiva antissexista, antirracista, não heteronormativa e com
bases não capitalistas.
É urgente trazermos à superfície propostas que forjem tempos e espaços diferenciados
para que vozes e corpos de grupos não hegemônicos tenham nos currículos práticas que vão
além da denúncia. Diante das demandas e lutas atuais, é no mínimo contundente que esses
grupos/pessoas estejam diretamente envolvidos na construção de currículos para a dança,
trazendo outras formas de pronunciar o mundo.
A pronúncia do mundo, para Paulo Freire, é uma das funções da educação. Ao afirmar
que “a educação é o encontro dos homens [pessoas] para a pronúncia do mundo” (FREIRE,
1983, p. 79), o autor reforça a ideia de que a pronúncia do mundo é eminentemente relacional

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__
e o universo das relações, afirma, é plural, dialógico, participante e criativo e, por isso mesmo,
transformador (FREIRE, 1982). Ademais,

“é primordialmente no universo das relações que são construídos e constituídos os


múltiplos sentidos que internalizamos e compartilhamos que revestem de sentidos nossa
existência nos entrelaçamentos das redes sociais [...] as relações proporcionam
aprofundamento, ampliação e crítica do conhecimento” (MARQUES, 2010, p. 134-5).

Repertórios da resistência e da existência


Por trás de uma pronúncia plural/relacional de mundo, sem privilégios ou formação de
guetos, encontra-se uma questão ética crucial para os tempos atuais: “como vivemos juntos?”
(YEATMAN,1994, p. 120 em MARQUES, 1999, p. 89). Decorrente dessa questão, coloca-se
também uma questão de cunho curricular: que danças são essas que visibilizam e se posicionam
politicamente contra a desigualdade e a favor da justiça social ao mesmo tempo que vislumbram
o estabelecimento de um coletivo que não seja a somatória de indivíduos?
Uma das respostas que tenho visto e encontrado como maior assertividade nas escolas,
e que não pautava minhas discussões e práticas da década de 1990 com tanta potência, é a
revitalização de repertórios de dança que enraízam e corporeificam ancestralidades, visibilizam
identidades de gênero, denunciam violências e redimensionam as lutas milenares de grupos e
povos. As resistências e lutas do povo negro, das mulheres, dos povos originários, assim como
LGBTQIA+ estão (re)encontrando repertórios de danças que os tornem visíveis, fortalecidos e
__
pessoas de direitos diante das arbitrariedades são resistências e existências que com-vivem
entre a escola e o mundo da dança.
Volto aqui à uma questão central posta na década de 1990 a respeito do ensino de
repertórios e técnicas codificadas, principalmente em ambiente escolar. A meu ver, as danças
codificadas dificilmente poderiam ser descoladas de um conjunto de valores e crenças que
constituem as escolhas corporais e de movimento desses dançares. Ou seja, enfatizava que
códigos de dança historicamente construídos também ensinariam histórias nem sempre
desejadas ou desejáveis. Em função dessa linha de pensamento, enfatizei a importância da
presença de processos de criação em detrimento de técnicas codificadas e repertórios prontos
nos currículos escolares.
Essa ênfase na importância dos processos de criação se dava em função de discussões
sobre a hegemonia da dança europeia sobre as pedagogias da dança no Brasil. Essa hegemonia,

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pautada pelo imaginário social e por práticas efetivas de ensino de dança, traziam o balé como
base necessária para qualificar tecnicamente qualquer pessoa a dançar todas as danças.
Sobretudo, afirmava na época que “o ensino do balé clássico como base [trazia] consigo
resquícios de marcas, valores e significados de uma cultura do século XVIII que [acabavam]
sendo incorporados pelo mundo da dança em pleno final do século XX” (MARQUES, 1999, p
68).
Essa crença provinha e ao mesmo tempo reforçava a máxima iluminista universalizante
do ‘bem comum’ tendo que “o ensino do balé clássico [acabava] representando [...] um ideal
fortemente enraizado de ensino, de corpo, de mulher, e de Arte que [permeava] o pensamento
educacional na área de dança no Ocidente desde o século XVIII” (MARQUES, 1999, p. 68)
que mesmo quando não era efetivamente ensinado nas escolas, fazia parte do tecido de
concepções, ideários e práticas curriculares. Era isso que queríamos, desejávamos,
sonhávamos?
A ideia de que o balé poderia ser trabalhado como uma “dança étnica” (vide
KEALIINOHOMOKU, 1983), ou seja, mais uma entre as diversas e diferentes danças a serem
ensinadas e aprendidas, resolveu parcialmente a questão das hegemonias e jogos de poder que
atravessam o ensino dessa técnica. Deixou, no entanto, a cargo dos professores/as decidirem
quando, onde e com quem é interessante o aprendizado desse repertório/técnica. Nem sempre
esses processos de ensino levam em conta, problematizam e refletem sobre as raízes e origens
do balé, seus valores, crenças e imaginários imbricados às propostas corporais desse dançar,
perpetuando ocultamente um mesmo sistema de valores, crenças e ideias.
Trago essa digressão para discutirmos, mesmo que de forma não exaustiva, outro lado
dessa tessitura político social atrelada os processos de ensino e aprendizagem de repertórios nas
escolas. Não mais ligados a grupos hegemônicos, mas sim a grupos historicamente silenciados,
o ensino de repertórios reencontra em situações educacionais lugares de reconhecimento,
visibilidade, força e empoderamento. Os movimentos e lutas que chamo aqui genericamente de
identitárias, se pensadas em termos repertórios de dança, estão se apresentando como um
antídoto múltiplo contra técnicas e repertórios universalizantes.
O argumento de fundo contra o balé como base situava-se no que esse código em si
carregava em termos de valores e crenças que deveriam ser questionados enquanto ‘solo
comum’ a todos e a todas. Poderíamos nos dias de hoje pensar ao revés: em vez de nos
prendermos a códigos colonizadores, podemos nos servir também de repertórios que nos trazem

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outros valores, crenças, outros modos de vida e morte que não os hegemônicos. Mas, seria isso
o suficiente?
Muitas vezes, na minha experiência, esses repertórios de suma importância são
literalmente repassados pontualmente no ambiente escolar sem que se tome o devido cuidado
pedagógico, pois trilham metodologias de ensino muitas vezes, acredito, avessas aos processos
políticos que esses repertórios engendram.
Cria-se um impasse: até que ponto esses repertórios identitários realmente podem ser
realizados em seu potencial de pronúncia e transformação a partir de propostas pedagógicas
hegemônicas? Quando aprendidos a partir de práticas pedagógicas tradicionalmente herdadas
da Europa e dos Estados Unidos __ organização espacial em filas, linhas, diagonais, ‘quem sabe
mais’ à frente, cópia reprodutora de modelos, contagem métrica, impossibilidade de pergunta
etc. __ estariam esses repertórios, tão caros às lutas dos grupos não privilegiados, propiciando
pronúncias de mundo?
Mais além, pergunto-me se práticas e propostas pedagógicas não tradicionais como as
abordagens somáticas, a Abordagem Triangular e a própria Proposta Pedagógica da Dança no
Contexto (do ponto de vista metodológico), por mais abertas, sensíveis, experienciais e
dialógicas que sejam, não estariam também apresentando-se como formas externas e
potencialmente colonizadoras de aprendizado de repertórios não hegemônicos. Esse é um
assunto para outro artigo.

Leitura e leituras da dança


Parafraseando Paulo Freire, propus que leituras da dança são também leituras de mundo
__ __
e que essas leituras que compreendem fazeres e contextualizações históricas poderiam
trazer aos processos criativos e interpretativos (repertórios) de dança outras nuances, sabores,
escutas e visões a respeito das danças que atravessam nossos corpos. Resumidamente, leituras
diversas da dança teriam o potencial de descortinar formas compreender, desvelar,
problematizar e eventualmente transformar contextos em que nossas danças estão situadas (vide
MARQUES, 2010).
Os referenciais de leitura da dança historicamente construídos e que nos são hoje
apresentados e possíveis no mundo ocidental são os referenciais da Coreologia de Rudolf Laban
que, resumidamente, sistematizou princípios de organização do movimento humano
vislumbrando que agenciam a arte da dança. Situa-se aí uma segunda discussão/denúncia que

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julguei necessária na década de 1990 sobre a hegemonia da dança europeia sobre nossas formas
de ensinar e aprender dança na contemporaneidade.
Os princípios de Laban, datados da primeira metade do século 20, quando
compreendidos como instrumentais de leituras da dança, podem incidir na mesma questão,
anteriormente discutida, em relação ao balé: a estrutura e sistematização da dança descrita e
idealizada por ele são circunscritas a tempos e espaços e, por se pretenderem universais, são
também universalizantes do ponto de vista patriarcal e colonizador/eurocêntrico (vide
MARQUES, 1999). Hoje, ouso também dizer que são heteronormativos.
Além disso, o trabalho de Laban, não raramente, ainda é, em pleno século 21, entendido
como sinônimo genérico de ‘dança criativa’ que por sua vez é tida como ‘modalidade’ de dança
na educação para todos os corpos, tempos e espaços, portanto, uma proposta universal.
Confusões conceituais à parte, pois já foram discutidas em outros textos, resta-nos reafirmar
que o trabalho de Rudolf Laban

“... poderia ser entendido [...] como uma das múltiplas vozes do mundo da dança e da
educação. Portanto, não representaria A base fundadora dos princípios educacionais
para a dança criativa da criança e do adolescente, mas uma possibilidade de
desenvolver trabalhos e análise de dança que sejam também educacionais”
(MARQUES, 1999, p. 89).

No entanto, bastaria esse adendo, ou seja, relativizar pontos de vista e propostas


pedagógicas para que não sejam universais e universalizantes, reconhecendo seus ‘lugares de
fala’ __
para continuarmos usando esses referenciais? Ou, na luta pelas liberdades e ações
políticas que se encontram entrelaçadas a propostas de ensino de dança a favor da diversidade,
seriam necessárias outras formas de ensinar e aprender que (re)nasçam daqueles e daquelas que
pertencem aos grupos não hegemônicos?
Ainda, seria importante perguntar se há de fato outras vias de educação dentro desse
sistema patriarcal, colonial e capitalista que, justamente, gerou as formas de ensinar que
conhecemos no mundo ocidental. Fico por enquanto com a indagação __ entendendo-a em forma
__
de pergunta do curador e escritor norte-americano, Nato Thompson, citando Adorno e
Horkheimer: “uma vez que as pessoas aceitaram um mundo cultural produzido pelo capital [...]
seria bastante difícil fazê-los reagir contra ele” (THOMPSON, 2015, p. 10).

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O conservadorismo por trás das telas
Quando a educação e a arte foram obrigadas a assumir definitivamente as telas, elas já
pertenciam ao capital, e o auge da nossa tecnologia de comunicação revelou nosso
conservadorismo.
Ouso dizer, que, talvez, a nossa falta de conhecimento, de habilidade, ou de intimidade
com telas e plataformas, tenha nos levado nesse período de pandemia de volta a formas
tradicionais de ensino; ouso também dizer que estamos nesses tempos de distanciamento social
mais conservadores em nossas formas de ensinar e aprender e até mesmo de dançar. No entanto,
lançar mão de formas tradicionais de ensino de dança parece não ter sido uma tarefa muito
árdua __ já nas primeiras semanas de pandemia as redes estavam infestadas de ‘lives’ e ‘clips’
com a tradicional forma ‘5, 6, 7, 8’ dos repertórios, sequências e exercícios a serem
simplesmente copiados e reproduzidos por quem está do outro lado da tela. Em outras palavras,
viu-se instaurada nas redes sociais a educação bancária em seu esplendor, mas fantasiada de
‘inovação, novidade e novas oportunidades’.
Seria isso um retrocesso em relação às lutas e conquistas travadas por tantos anos em
__
relação à dança no currículo uma dança dialógica, problematizadora, sensível, consciente?
Seria só ‘culpa das tecnologias’ e ‘culpa da pandemia’ ou será que as aulas de dança para a
maioria da população sempre tiveram esse perfil hegemônico bancário e somente agora estamos
tendo possibilidades de ver/assistir melhor esse mundo da dança fora da bolha universitária?
Vimos nesse momento histórico sendo cúmplices de que, a partir de um meio
extremamente ‘contemporâneo’, repetem-se práticas pedagógicas centenárias que cristalizam
relações potencialmente transformadoras de ensino e aprendizagem de dança. As tecnologias
têm se mostrado, no que tange a essa parcela da população que se serve das telas para
continuidade aos estudos de dança, parceira da perpetuação de um sistema desigual,
hiperindividualista e hiperconsumista nas práticas de ensino de dança.
Gostaria de pontuar algumas questões ligadas à educação remota a que estamos
assistindo e o ensino de dança para podermos repensar as relações entre arte, ensino e sociedade
diante desses novos contextos sociais.
As aulas convencionais de dança que invadiram as telas no primeiro momento da
pandemia da Covid 19, entre muitas coisas, trouxeram de volta a supremacia da visão aos
processos de ensino. Diante das telas, ver tornou-se mais crucial do que escutar, sentir, tocar.
Ver e copiar é a forma mais tradicional e convencional de ensinar dança que conheço. Não que
isso seja condenável, mas seria bom estarmos atentos a tudo que subjaz a essa forma de ensinar

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e aprender dança, principalmente no que se refere às práticas iluministas universalizantes
discutidas anteriormente.
O pesquisador português Boaventura de Sousa Santos (2019) nos lembra que a visão
sem reciprocidade, no mundo ocidental capitalista, patriarcal e colonialista, estaria no topo da
hierarquia dos sentidos por ter sido associada à cognição, ou seja, à mente, a uma razão
preponderante e, digo eu, supostamente ‘melhor’. Mais adiante, o autor coloca que a
supremacia da visão excluiu e relegou a segundo escalão os outros sentidos, instituindo uma
escala de valores que privilegia, obviamente, o poder hegemônico. Diante do imperativo das
telas, essa hierarquia dos sentidos fica ainda mais evidente, reforçando valores e conceitos de
corpo e dança até certo ponto já superados teoricamente no universo do ensino de dança.
A supremacia da visão na cultura ocidental também é tema de estudos da pesquisadora
feminista nigeriana Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí que coloca que

“A razão pela qual o corpo tem tanta presença no Ocidente é que o mundo é percebido
principalmente pela visão. A diferenciação dos corpos humanos em termos de sexo, cor
da pele e tamanho do crânio é um testemunho dos poderes atribuídos ao “ver”
(OYĚWÙMÍ, 2002, p. 3)

A autora nos alerta para o fato de que o olhar, no mundo ocidental, é um convite para
diferenciar, sobretudo diferenciar corpos. O problema, vejo, é que a diferença, diz a autora, é
geralmente expressa como degeneração, o que consagra hierarquias e define relações de poder
que distanciam pessoas. Não é preciso falar sobre as consequências nefastas para a sociedade
de aulas de dança cujo foco de aprendizagem reduz-se à visão.
__
A visão e, portanto, uma referência externa __ como única e mais importante forma
de ensinar e aprender dança já havia de certa forma sido posta de escanteio pelo movimento
somático das décadas de 1980/90. A expressão Educação Somática foi cunhada por Thomas
Hanna, filósofo norte-americano que propunha um olhar/sentir para dentro de si nas práticas
corporais. Esse movimento, quando incorporado às aulas de dança, garantiu às mesmas um
maior cuidado com o corpo, e, principalmente, trouxe propostas de estabelecer experiências
corporais que tivessem a primeira pessoa como referência, um corpo percebido a partir de si
mesmo, ‘de dentro para fora’ (vide GREEN, 2001, entre outros).
A incorporação da Educação Somática em cursos de superiores de dança foi sem dúvida
uma importante quebra de paradigmas para o ensino de dança no Brasil e no mundo. Trouxe

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não somente uma nova abordagem de ensino, mas entendo que também outras formas de
compreensão do conhecimento em dança. Não é à toa que pesquisadoras feministas abarcaram
a Educação Somática como um caminho para o ensino de dança como forma de desconstrução
do patriarcado (vide GREEN, 2001, entre outros).
Não discutirei aqui críticas e desdobramentos dessa abordagem, mas somente gostaria
de levantar que, infelizmente, vejo que a dependência e o privilégio da visão no aprendizado
nas telas a que estamos assistindo hoje nas redes sociais não é um mero ‘retrocesso pandêmico
ocasional’, mas talvez um retrato do pequeno alcance da inclusão de uma educação mais
sensível no mundo do ensino de dança no Brasil. Resta-nos perguntar como seria possível
ampliar essa abordagem para aulas e experiências online sem que se torne mais uma ferramenta
de compra e venda de imagens e resultados.
Inegavelmente, o olhar soberano do professor/a sobre os estudantes, dos adultos sobre
as crianças, do homem (professor/a adulto) sobre a mulher (estudante, criança ou adolescente)
tão discutidos na literatura feminista estão sendo reforçados nas aulas de dança pelos meios
digitais: o foco direcionado, o plano de visão, o zoom, a bidimensionalidade, entre outros,
dificultam outras formas de relação na tela que sejam mais interativas, perceptivas, relacionais.
No entanto, esse olhar soberano do professor/a sobre o corpo, esse olhar que pode impor,
‘degenerar’ e reforçar relações de poder está de certa forma sendo desafiado justamente pelo
uso das tecnologias pelos estudantes. Vale estudar com mais profundidade e extensão uma
‘inversão de poder’ que tem se colocado nas relações mediadas pelas telas: o olhar dos
estudantes também está focado sobre os corpos dos professores/as como nunca esteve e isso
pode ser bem invasivo, constrangedor, avaliativo e desafiante para a relação pedagógica
tradicional.
Ademais, estudantes, atrás das telas, tem tido um ‘poder’ de manusear suas câmeras
como quiserem e participar das aulas sem controle total do professor/a (não estou considerando
aqui a avaliação punitiva nem medidas posteriores às aulas): câmera fechada, aberta com ângulo
escolhido, gallery view (mostrar-se para todos), pin vídeo (colocar alguém em evidência),
speaker view (close de que está falando), spot light (alguém o coloca em evidência), hide non
vídeo participants (sair de cena completamente) são opções oferecidas por plataformas que
reconfiguram formas de ver e se deixar ver/ou não que nem sempre estão sob o jugo dos
professores/as.

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Ainda há um agravante: nem sempre todos estão no mesmo modo de ver, o que pode
deixar o professor/a sem possibilidades de ação ou reação no modo como está sendo visto ou
mesmo sobre o que os estudantes veem.
Resumidamente, a introdução/organização da dança no currículo, diante das causas
identitárias e do crescimento/consolidação das mediações tecnológicas encontra-se novamente
diante de uma necessidade de tomada de decisões, mesmo que provisórias e fluidas. Para Paulo
Freire, “decidir significa romper” (FREIRE, 2014, p. 307); romper é para ele uma decisão ética
e política, pois, diz ele, se opõe a ficar em cima do muro. E “essa coisa de assumir a politicidade
da educação deixa às vezes a gente profundamente inquieto, demanda decisão política, demanda
optar e não há opção que não seja ruptura” (FREIRE, 2014, p. 218).
Teremos coragem de romper de fato com aquilo que a pandemina da Covid 19
escancarou? Romper com a necropolítica, mesmo que ofereça lucros; romper com o
empreendedorismo, mesmo que ofereça sobrevivência; romper com formas mediáticas de
ensino/arte mesmo que ofereçam visibilidade e pretenso ‘sucesso’; romper com determinados
modelos pedagógicos, mesmo que sejam ‘eficazes’?

AVANÇO NEOLIBERAL
As amarras e grilhões patriarcais, capitalistas e colonialistas que forjaram o sistema
escolar brasileiro mal foram compreendidos e desconstruídos em relação à dança e seu ensino
e já estamos diante de outros modelos que formatam de maneiras diferentes essas mesmas
práticas de ensino. Nas últimas décadas, vimos assistindo à escolarização da arte, que antes se
dava em função de práticas pedagógicas de fundo iluminista universalizante, aliar-se ao
neoliberalismo. O que era uma questão de escola, currículo, escolarização hoje pode ser vista
como uma questão de corporativização do ensino.
Se outrora escolarizamos a dança a fim de que se tornasse atividade e recurso
educacional pronto a produzir e reproduzir valores iluministas universalizantes e perpetuar
relações de poder, ao abraçar as políticas e práticas neoliberais, a dança é escolarizada para que
se torne mercadoria, transformando artista/professor/a em fornecedor e o cidadão em
consumidor. Das duas formas, a escolarização da dança faz com que continuemos inseridos na
rota central daqueles que fazem rodar esse sistema de tantos privilégios, discriminação e
violências.
O sonho de que a dança pudesse transformar a escola para que outras relações sociais
fossem possíveis, foi substituído pela constatação (mesmo que empírica) de um risco

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permanente: o risco de que o sistema escolar ceda definitivamente às forças de uma sociedade
tecnopatriarcal neoliberal (no sentido usado por PRECIADO, 2020) e transforme o ensino de
dança em negócio, bem posicional, ou capital social.

Para consumir cada vez mais


O novo movimento de escolarização da dança que se dá via mergulho no neoliberalismo
tornou-se mais visível a partir da crise sanitária mundial que alçou às telas/tecnologias o papel
protagonista das relações de ensino e aprendizagem. Em função disso, temos hoje maior clareza
de que “o regime neoliberal se serve massivamente da tecnologia digital” (HAN, 2018, p. 43)
e que essa relação tem delineado outros contextos para o ensino de dança nas instituições de
ensino.
Em seu primeiro momento, a pandemia da Covid 19 fez, sobretudo, com que nos
tornássemos explicitamente vendedores e consumidores desenfreados de educação e arte. Em
poucas semanas, aulas de dança rapidamente se tornaram produtos vendáveis e consumíveis
pelo meio digital. Pelo que pude perceber, esse movimento se deu em vários setores: artistas
independentes, academias de dança, projetos sociais e, inclusive, nas escolas formais.
A tônica geral desse movimento foi uma espécie de pacto com o sistema que exigiu dos
profissionais da dança uma mudança ‘ágil e rápida’ visando à adaptação às aulas remotas que
melhor servissem a ‘clientela’, mesmo que na esfera pública. Na maioria das instituições de
ensino, não houve a pausa propriciada pelo ‘lockdown’, mas sim uma aceleração e
intensificação do trabalho docente em outras direções. Artistas, professores/as e técnicos
trabalhadores da dança, diante da ameaça da redução de salários e do desemprego, engrossaram
o grupo daqueles que querem a qualquer custo otimizar seu desempenho e ativar a
produtividade.
A pandemia da Covid 19 lançou profissionais a quase uma euforia, típica, conforme
coloca o filósofo sul coreano radicado na Alemanha Byung-Chul Han, de uma sociedade onde
“o neoliberalismo, como mutação do capitalismo, torna o trabalhador um empreendedor”
(HAN, 2018, p.14). O ‘espírito empreendedor’, produtivo e eficiente, sobrepôs-se às incertezas
da ciência, ao isolamento social e ao luto.
Aparentemente, a pandemia da Covid 19 nos permitiu que víssemos de forma mais clara
como a dança e seu ensino, nas escolas formais ou fora delas, podem ceder ao universo que gira
em torno do consumo. Quantos cursos online fizemos para “nos renovarmos”? Quantas aulas
buscamos simplesmente porque estavam de graça? De quantas formações fizemos parte

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simplesmente para adquirirmos “novas mercadorias”, já que as antigas – aulas presenciais –
não nos serviam mais? Quem não perdeu ‘lives’, congressos, seminários, ‘aulas master’ sem se
culpar de não ter ‘aproveitado todas essas oportunidades’, sem achar que ‘está ficando para
trás’?
Estaríamos vendendo e comprando aulas e danças online sem nos darmos conta de que,
nas palavras do indígena e ativista brasileiro Ailton Krenak (2020), “não comemos dinheiro”?
Ou seja, sem nos lembrarmos de que nossa existência nesse planeta não depende da economia
nem da acumulação de bens materiais?
Ao contrário disso, as redes sociais nos revelaram um grande avanço em direção à
transformação dos profissionais dança em ‘empreendedores de si mesmos’ que se automotivam,
otimizam suas performances e se sentem livres (vide HAN, 2017a, 2018). Refiro-me a
quantidade enorme de profissionais que tiveram de se realfabetizar rápida e eficazmente para
dominar plataformas, gravações em vídeo, apresentação diante das câmeras etc. no afã de
consolidarem produtos vendáveis nessa nova situação de mercado __ tanto para abrirem outros
flancos de trabalho quanto para se manterem onde já trabalhavam (nas academias de dança,
escolas formais, ONGs, projetos governamentais etc.).
A imensa quantidade de produtos de dança e ensino lançada na internet em resposta às
novas demandas me remete à análise de Ailton Krenak sobre a situação global atual. O autor
relaciona o consumismo e os modismos, essa sucessão de troca de produtos na sociedade atual
a “...uma tentativa de nós, humanos, nos projetarmos em matéria para além dos corpos. Isso nos
dá a sensação de poder, de permanência, a ilusão de continuarmos existindo” (KRENAK, 202,
p. 17).
Teríamos nos lançado nas redes sociais com produtos de todos os tipos (aulas,
videodanças, clipes etc.) na ilusão de com isso podermos sobreviver ao vírus que ameaça nossos
corpos e, portanto, nossa profissão? Teria sido o mercado neoliberal tomado como ‘tábua de
salvação’ para uma profissão que, até então, era definida e dependente da interação presencial
de corpos?
De fato, a existência como sinônimo de consumo na sociedade neoliberal já foi criticada
e discutida por vários autores. Nato Thompson, por exemplo, afirma que poder e capital operam
no nível da cultura, pois no universo da economia criativa, ‘fazer cultura’ equivale a ‘fazer
dinheiro’. Segundo ele, fomos cooptados pelo mundo corporativo e pelo sistema capitalista;
somos o que produzimos e mais, “somos o que entendemos do século 20” (THOMPSON, 2015,
p. 7).

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Na sociedade tecnopatrialcal neoliberal a educação como negócio não é mais uma
surpresa ou novidade e a transformação da dança em produtos foi apenas engrossada pelas
exigências de isolamento social da pandemia da Covid 19. Aos espetáculos de fim de ano e
dancinhas em festas comemorativas que são ‘vendidas’ para comunidade escolar como mostra
de produtividade, aliam-se hoje as aulas gravadas, os clipes e vídeodanças, as ‘stories’ e ‘posts’
na rede social tik tok. Rápidas, ágeis, eficientes e eficazes, são também formas de fazer
continuar girando roda do consumo dentro das exigências do mercado.
Resta-nos pensar se seria possível encontrar fissuras no sistema que nos permitiriam
experienciar a dança como definida por tantos filósofos e pensadores: dança como fruição da
vida, não voltada para o cosumo/utilidade, “uma dança cósmica, [...sem] reduzi-la a uma
coreografia ridícula e utilitária” (KRENAK, 2020, p. 108). Utilitária de vários pontos de vista,
creio: utilitária porque é vendável em diferentes meios e plataformas, porque satisfaz clientes,
ou até mesmo porque cumpre a legislação e ‘acalma’ as vozes dissonantes das militâncias
antirracistas, antissexistas e anti LGBTQIA+fóbicas.
O grande mercado das aulas de dança exposto nas redes sociais, nos sites e nas
plataformas educacionais revelaram, a meu ver, o excesso de positividade do mundo
contemporâneo neoliberal de que tanto nos fala Byung-Chul Han (2017a, 2018). Puseram em
cheque a própria ideia do autor de que a dança é um antídoto contra os valores, práticas e ideais
capitalistas neoliberais; vimos que nem sempre a dança é “...um luxo que foge totalmente do
princípio do desempenho” (HAN, 2017, p. 35) ou ainda “um espaço onde nos demoramos”,
uma festa “onde cessa o tempo cotidiano” (HAN, 2017, p. 113). Sucumbimos?
Como tudo em uma sociedade cuja vida se volta para o consumismo desenfreado, para
o excesso e hiperpositividade, a troca e aquisição do novo, percebo esse movimento frenético
de produção-compra-venda de aulas e danças já atingiu seu auge. Passada a euforia,
aparentemente nos acomodamos às pressões do mercado. O período de visibilização da
superprodutividade nas redes sociais passou rápido, mas consolidou valores e posicionamentos
e nos impele a repensar sobre caminhos e possibilidades para a dança e seu ensino nesse
presente que se volta para um futuro da presença.

Violências no/do hiperindividualismo


Aparentemente em função de pressões externas (de mantenedores, clientes, estudantes
ou mesmo do Estado), o processo de aprendizado de novas técnicas, moderações tecnológicas
e marketing pessoal rapidamente se revelou como autocobrança, auto culpa e até mesmo auto

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flagelo de muito profissionais. O cansaço, a exaustão, a depressão e o esgotamento reportados
por professores/as que em semanas tiveram, sem opção, de ingressar no mercado do ensino
remoto, não pode ser reportada e atribuída apenas ao isolamento e ao confinamento social de
um acontecimento histórico específico. Mesmo antes da ‘quarentena’, já vivíamos outro tipo de
violência que está intimamente ligado à sociedade de consumo neoliberal: a violência sistêmica.
A violência sistêmica nasce da positividade e se alicerça no individualismo. “Ela se
manifesta como exagero e desproporção, como excesso, exuberância e exaustão, como
superprodução, super acumulação, super comunicação super informação” (HAN, 2017b, p.
169). A violência sistêmica “... não é uma violência da exclusão. Ao contrário, ela transforma
todos em incluídos, sim; como presidiários do sistema, obrigando-os a se auto explorarem”
(HAN, 2017b, p. 168).
Nessa linha de pensamento, não existe mais um sistema opressor, “ao contrário, eu
próprio exploro a mim mesmo de boa vontade na fé de que possa me realizar. E eu me realizo
na direção à morte. O otimismo a mim mesmo para a morte nesse contexto não é possível haver
nenhuma resistência, levante ou revolução” (HAN, 2017a, p. 116).
Se analisarmos esse período da pandemia veremos que professores/as, de suas casas e
usando suas máquinas, transformaram seus lares em salas de aula, não raramente se
culpabilizaram pela falibilidade e pelas dificuldades diante das tecnologias de ensino, pelas
câmeras fechadas dos estudantes ou pela inabilidade de motivá-los. Muitas vezes sem suporte
técnico-pedagógico das instituições de ensino, profissionais foram obrigados a manter atrás das
câmeras o mesmo ritmo e qualidade de ensino que tinham, revelando as entranhas de um
sistema de violências que os isolou, individualizou e não raramente transformou sua liberdade
em servidão voluntária aos meios digitais (vide HAN, 2018).
Byung-Chul Han aponta uma importante questão relacionada à violência sistêmica
merecedora de especial atenção em relação ao universo da arte e da educação: “em virtude de
sua positividade, [a violência sistêmica] não é percebida como violência” (HAN, 2017b, p.
169). Isso faz com que não interrompamos esse ciclo de superprodutividade, cobranças e culpas
imputadas ao indivíduo por seu próprio fracasso e ao fim, colapsemos. No caso de profissionais
de ensino, esse ciclo da violência é ainda mais preocupante, pois estudantes são incluídos nessa
roda da fortuna e, direta ou indiretamente, ensinados a operar suas vidas segundo essa mesma
lógica.

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Resta-nos perguntar o que pode a arte contra as violências nessa tríplice aliança entre as
tecnologias, o patriarcado e o neoliberalismo que absorvem as relações humanas,
transformando-as em um jogo de interesses monetários?
Ao contrário do que se desejaria, a dança que vira mercadoria vem alimentando essa
aliança e, provavelmente por isso, tem sido absorvida tão bem pelo sistema educacional que
cede aos imperativos dos índices, metas, número qualis, relatórios, certificações, formação de
lideranças e alta produtividade. Ou seja, aparentemente, a maioria das instituições de ensino
__ __
reconhecidas da educação infantil ao ensino superior não conseguiram fazer frente aos
princípios do mundo hiperindividual neoliberal e reformataram a dança para que coubesse nessa
forma de atuação.
Digo isso pois não é só no universo da gestão institucional que a ‘tríplice aliança’ se faz
__ __
visível. As aulas de dança em si e o universo da criação artística muitas vezes geram e
alimentam as máximas da produtividade, da competitividade, do autoflagelo, do superconsumo
e da hiperindivualidade. Penso, claro, nos festivais competitivos, nas conhecidas rivalidades
individuais em companhias de dança, na exigência de ineditismo em editais, prêmios e
contratações que geram superprodutividade e esgotamento de professores/as e artistas.
Penso também, principalmente, nas aulas de dança cujo foco é somente o
‘aprimoramento’ do indivíduo, esse ‘olhar para si’ __ quer seja ele técnico, sensorial ou estético
__
que desconsidera e/ou não (re)conhece os outros com quem compartilham o espaço da dança
__
e do olhar. Essas práticas mantêm o isolamento necessário entre as pessoas mesmo se com
proximidade e toque físico __ que condiz com uma sociedade hedonista, narcísica e consumista.
As aulas e espetáculos de dança podem ser, para quem vende, um produto monetarizado, para
quem compra, um alimento narcísico que os mantém nos trilhos do hiperindividualismo
neoliberal, está consolidada a aliança.
Os filósofos franceses Gilles Lipovetsky e Jean Serroy (2011) notam que o
hiperindividualismo (segunda onda do individualismo que nasce no período moderno) está
relacionado à dissipação de coletivos como a família, igreja, partidos políticos (incluiria aqui a
escola e as companhias de dança tradicionais) que de certa forma freavam a individualização
extrema. A dissolução dessas instituições como estruturantes de ideologias e comportamentos,
segundo os autores, libertou indivíduos das imposições coletivas e comunitárias. Com isso,

“A dinâmica de individualização rompeu a ordem tradicional que fazia prevalecer as


tradições e os interesses de grupo sobre os desejos das pessoas. A instituição obrigatória

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e diretiva de antigamente se metamorfoseou em instituição emocional e flexível, em
laço contratual que se pode construir e reconstruir livremente” (LIPOVETSKY e
SERROY, 2011, p. 53)

Para os autores, “o hiperindividualismo coincide com a diminuição das consciências de


classe e com uma identificação menos forte com as famílias políticas” (LIPOVETSKY e
SERROY, 2011, p. 49). Ao atomizar o social, completam, “... o reconhecimento do indivíduo
como referencial absoluto, última bússola moral, jurídica de nossos contemporâneos [são]
desligados de todas as antigas formas de inclusão coletiva” (p. 52)
Não é à toa, creio, que muitas escolas e espaços de dança se adaptaram tão bem ao
ensino remoto convencional (não relacional) e, com facilidade e sem muito estranhamento por
parte dos estudantes, voltaram para o ensino presencial demarcando espaços individuais com
fita adesiva em suas salas de aula. Espaços de dança aparentemente se adaptaram muito bem à
‘vida à la carte’ emblemática do hiperindividualismo, pois, a meu ver, essas aulas também estão
centradas na “primazia da realização de si” (LIPOVETISKY e SERROY, p. 48).
Ao pensarmos na dissolução de coletivos históricos como parte geradora de um
hiperindividualismo nefasto ao planeta, não podemos incidir no equívoco de desejar reconstruir
essas mesmas instituições como antídoto à destruição da espécie. Penso não ter de volta
instituições moralistas, castradoras, excludentes, impositivas e autoritárias, mas sim na
possibilidade de articular novas em formas de agregação; agregações que priorizem os coletivos
não como um conjunto adicionado de pessoas ou um gueto impermeável de identidades, mas
sim como grupos que se entendem e dançam na fusão e respeito entre o individual e o coletivo.
Costumo dizer que a cozinha não estará limpa se cada um lavar o seu prato. A sala de
aula não é um conjunto de alunos, assim como a ‘coreografia’ não é um conjunto de passos e
__
um trabalho artístico não é um conjunto de intérpretes cada um focado em sua própria
interpretação, desempenho e “brilho”. É o mesmo que dizer que a dança não estará completa,
inteira se cada um dançar o seu solo, mesmo que em um mesmo espaço cênico. Busco um
trabalho artístico/educativo de grupo em que esteja no próprio dançar a cumplicidade e criação
do grupo.
Em outras palavras, proponho que a sociedade, no meu entender, precisa de danças que
dissolvam o hiperindividualismo, desvelando espaços que se criam nos tempos compartilhados
dos corpos que são tomados pela experiência coletiva. Ainda acredito que as danças podem
pronunciar mundos e que estão ligadas à

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“uma proposta para a educação contemporânea [... que] nos permite como artistas,
docentes e cidadãos continuar girando o caleidoscópio, criando e recriando, no tempo
presente e nos espaços ilimitados, as perspectivas de viver e de transformar que existem
na indeterminação das redes de comunicação contemporâneas” (MARQUES, 1999, p.
118)

EDUCAR DANÇAR É UM ATO POLÍTICO

“O político enquanto homem livre precisa agir,


ele deve produzir belos atos, belas formas de vida,
para além daquilo que se faz necessário é útil à vida [...]
a salvação do belo é igualmente o resgate do político”
(HAN, 2017a, p. 120)

É difícil, e nem sempre possível ou até mesmo desejável, vislumbrarmos essa dança que
virá após a experiência da pandemia da Covid 19. Mais do que nunca, o futuro é de fato
imprevisível __ não somente indeterminado. Como seria, de acordo com essa epígrafe, resgatar
o político, a ação sobre o mundo na conexão com o belo, ou seja, com a arte?
__
Adiamos tantos compromissos pensando no futuro congressos, cursos, projetos,
viagens, encontros, reformas. Trazendo novamente Ailton Krenak, “quem está apenas adiando
compromissos como se tudo fosse voltar ao normal, está vivendo no passado” (KRENAK,
2020, p. 89). Queremos viver no passado?
A forma como estamos nos deixando levar pelo empreendedorismo nas nossas
telas/palco/salas de aula, a maneira como a quarentena foi quebrada, a força com que o
hiperindividualismo retomou as ruas, a prevalência necropolítica me fazem questionar se o
futuro já virou passado, na continuidade do mesmo, ou se ainda estamos, afetados pela
experiência pandêmica, dispostos a encontrar alternativas para não destruirmos nossa própria
existência.
Paulo Freire, já em 1993, no alerta a respeito das armadilhas neoliberais na educação
mostrando que o pragmatismo que se sobrepõe à leitura crítica de mundo traz consigo “uma
prática educativa imediatista, interesseira” (FREIRE, 2014, p. 292) que se opõe aos processos
de compreensão e intervenção política no mundo. A educação como ato político é trazida
claramente por Paulo Freire ao colocar que

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“Há uma responsabilidade ética, social, de todos nós, no sentido de tornar a nossa
sociedade menos má. Eu costumo dizer que tornar o mundo menos feio é um dever de
cada um de nós. Nem sempre esse dever é percebido, sim sobretudo assumido. Se você
me perguntar se esta é uma questão pedagógica ou política, eu diria que é política. É
preciso não só estar convencido do dever social de transformar, mas assumir isso.
assumir a percepção que temos o dever de transformar significa partir para uma prática
coerente com esse pensamento’ (FREIRE, 2014, p. 161)

Quando no início desse artigo propus que nossas casas haviam se transformado em
verdadeiros mundos corporativos, apelei também para que, ao tomarmos consciência desse
assalto, pudéssemos pensar alternativas e agir politicamente. Creio que “já é tempo de
rompermos com essa casa mercantil. Já é hora de transformar essa casa mercantil novamente
numa moradia, uma casa de festas onde valha mesmo a pena viver” (HAN, 2017a, p. 128)
Como nossas aulas de dança poderiam escapar ou até mesmo fazer frente e propor
alternativas aos tempos e espaços forjados pelo tecnopatriarcado neoliberal? Se a dança
enquanto arte tem o potencial de quebrar e romper com tempos cotidianos, tenhamos a coragem
desse tomar essa decisão: romper com o tempo das rotinas de trabalho empreendedor,
experienciarmos medidores de tempo que não correspondam às métricas do relógio capitalista
e sim às necessidades internas e externas das danças e dos encontros.
Que tal sairmos das telas e das salas de aula e transitarmos entre espaços não
convencionais que transformem nossas danças assim como possam ser transformados por elas?
Que tal buscarmos em nossas danças e aulas de dança esses encontros em espaços outros em
uma perspectiva relacional: ou seja, não situar o corpo e suas diferenças enaltecidas pela visão,
mas sim nos percebermos no dançar dos corpos em suas múltiplas pronúncias, nas telas ou fora
delas?
A dança que compartilhamos em sala de aula, para que não virem produtos para
consumo individual que geram violências e alimentem um sistema de desigualdades, deve no
meu entender ir além dos exercícios, das atividades, das sequências, das explorações de
movimento ou das experimentações corporais. Cada vez mais me volto para a proposta de que
nossas salas podem ser espaços cênicos, que “processos de criação artística [podem] ser revistos
e repensados como processos explicitamente educacionais” (MARQUES, 1999, p. 112) e vice-
versa. Esse é, para mim, o papel do artista/docente, atuar junto as estudantes como fonte viva

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de arte e educação (vide MARQUES, 1999), para que as salas de aula sejam celebrações, e não
eventos.

Na cultura Krenak, povo originário de Minas Gerais, existe uma tradição: suspender o
céu dançando, para que “as mudanças referentes à saúde da Terra e de todos os seres aconteçam
nessa passagem [...]. Suspender o céu é ampliar horizontes de todos, não só dos humanos”
(KRENAK, 2020, p. 46).
Perguntei a Ailton Krenak em uma roda de conversa remota promovida pela SP Escola
de Teatro se a dança contemporânea (pois é a dança que pratico) também poderia suspender o
céu e assim potencializar outras visões de mundo. Ele respondeu que, para os Krenak, a vida é
uma dança, e a dança vem do espírito, e não do corpo __ o corpo se movimenta, o espírito dança.
“Se você tiver uma arte com potência de afetar mundos”, me disse Krenak, “seu corpo será
tomado. Um corpo tomado é um corpo fora do tempo para fazermos essa dança cósmica” __

fora do tempo tecnopatriarcal empreendedor neoliberal, pensei... conseguiremos? perguntei-


me. Tentaremos, fica o convite.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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