O Laboratorio Egipcio

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INTRODUÇÃO À

HISTORIA DA
ARQUITETURA
DAS ORIGENS AO SÉCULO XXI
CAPÍTULO 3
O Laboratório Egípcio

O Egito como laboratório de arquitetura


Na exposição dos problemas arquitetônicos é muito interessante
encontrar uma espécie de laboratório de arquitetura, ou seja, um
lugar onde os problemas básicos possam ser reduzidos na sua com-
plexidade, assim como são reduzidos e estudados em um laborató-
rio científico.
1 A singularidade do Egito o transforma num verdadeiro labo-
ratório arquitetônico. Raramente se encontrará outro país cuja es-
trutura seja tão simples e regular, e essa estrutura geográfica - tão
simples e evidente - facilita a abstração e o simbolismo dos con-
ceitos fundamentais. O Egito também é adequado para verificar
nossas hipóteses devido à sua dimensão física e também à sua es-
tabilidade quase atemporal. O Egito é, portanto, como um grande
laboratório em que os acontecimentos e situações arquitetônicas se
dão com simplicidade em condições geográficas e históricas muito
especiais.
O Egito se apresenta como a essência da Antiguidade, como
escreve Sigfried Giedion: "Em todo o mundo sempre existiu algu-
ma forma de arte, mas a história da arte como esforço continuado
não começa nas cavernas do sul da França ou entre os índios ame-
ricanos. N.ão..existe relação direta entre esses estranhos começos
e nossos dias, mas realmente há uma tradição direta passada do
mestre ao discípulo e do discípulo ao admirador ou ao escriba, que
relaciona a arte da nossa época com a arte do vale do Nilo de 5 mil
anos atrás, porque os artistas gregos.a.prend..e.r.aJD com os egípcios, e
todos nós so;:;os ;run~s dos gregos". Daí a formidável importância
da herança egípcia na arquiteti.ira ocidental. l
!
Qs limites fíE_cos egípcios ~ão uma das bases da sua singula- ,
ridade. Situado no nordeste da Africa, junto ao trópico, o Egito se /
desenvolveu ao longo do Nilo - entre a primeira catarata e o Mar _
Mediterrâneo - ao longo da borda ocidental do Saara, o maior de-
serto do mundo, onde não chove quase nunca e as únicas águas que
existem se encontram a grande profundidade, salvo alguns oásis.
O Nilo se transforma, então, numa dádiva dos céus e o Egito
numa dádiva do Nilo - como o definiu Heródoto -, e é a espinha
do país, cujas cheias regulares fertilizam suas margens, permitindo
30 INTRODUÇÃO À HISTÓRIA DA ARQUITETURA

a vida ao seu redor e tornando possível o florescimento dos assenta-


mentos urbanos. Como as terras que se oe ríeficiam das cheias têm
uma largura que não ultrapassa 20 quilômetros na maior parte do
seu percurso de quase 2 mil quilômetros de extensão, isso ocasiona
certa unidimensionalidade vital, fazendo do espaço egípcio quase
um eixo linear, um oásis longitudinal, em que a vida se desenvolve
até onde chega a ação benfeitora das águas e dos aluviões fluviais .
Ao longo do inverno as neves se acumulam nas montanhas
da África centro-oriental. Na primavera chegam as chuvas e a neve
se derrete; enormes quantidades de água desce,m dos morros em
direção aos rios e aos grandes lagos da região, e a corrente vai abrin-
do caminho para o norte . O Nilo se enche por causa dessas águas
e transborda a partir do mês de julho, enchendo o vale com um
aluvião - primeiro de cor verde, depois vermelha - que fertiliza o
------ solo egípcio e inicia o ciclo biológico. Dessa maneira, o verde é a
cor da esperança, e o vermelho a cor da vida; a cultura grega - e,
por extensão, a cultura ocidental - herda esse conceito cromático
e esse simbolismo egípcio. A partir do mês de setembro, as águas
começam a recuar e o rio recupera sua normalidade em dezembro,
depois de dar ao país duas coisas fundamentais: água e limo ferti-
lizador. Desse modo, a terra se renova constantemente, tornando
possível a agricultura.
Era necessário descobrir exatamente quando se produziam as
cheias do Nilo, com o intuito de aproveitá-las ao máximo. Assim, os
encarregados das irrigações mediram e estudaram cuidadosamente
o nível das águas do rio dia a dia e descobriram que, em média, as
cheias ocorriam a cada 365 dias , o que levou aos habitantes do Nilo
a elaborar um calendário simples, no qual se baseia ainda hoje o
nosso calendário, com pequenas modificações.
Além diss~~ as enchentes anuais do Nilo apagavam os limi-
J tes entre as terras a e prüpnedade md1VIdual, tornando necessário
descobrir alguma fónnulã para de terminá-los novamente . Isso len-
- tamente deu lugar a _métodos_d_e_cálculo que conhecemos com o
_n ome de geometria, o que significa medição da terra. Da mesma
forma se desenvolveràm outros ramos das ciêncías matemáticas e
ainda a escrita, como veremos mais adiante .
Esse marco geográfico também condicionou o marco históri-
co . De fato, as irrigações possibilitaram o desenvolvimento de uma
grande civilização no vale do Nilo, em cuja porção setentrional -
uma faixa navegá".'el até mesmo para as embarcações mais simples
- se desenvolve ao longo de seis milênios uma das civilizações mais
antigas do mundo, quase totalmente isolada das demais, e das quais
se mantém como ente separado por mais de 3 mil anos.
A leste e a oeste de seu vale linear só havia um deserto que os
exércitos estrangeiros dificilmente podiam atravessar; ao norte esta-
va o Mediterrâneo e nas primeiras épocas não existiam barcos ade-
quados para o transporte de exércitos através desse mar; e, ao sul, se
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ncontrava a Primeira Catarata, que impedia eventuais inimigos de


;ealizar incursões pelo ~ilo. Durante muito tempo, então, 0 Egito
viveu seguro e isolado, hvre de guerras e invasões, o que significava
bem-estar, mas também falta de intercâmbio. As formas e os méto-
" dos antigos continuaram sendo úteis, geração após geração.
Pode-se falar de uma espécie de presente eterno estendido de
_maneira constante, quase atemporal.
O Egito presenciou 2 mil anos de civilização entre 5000 e
3000 a.C., antes de alcançar sua primeira unidade política ao se
unificar o Alto e o Baixo Egito.
Desde então, e apesar da distinção entre dinastias e Impérios
Antigo, Médio e Novo, e dos correspondentes períodos de transi-
ção, esta civilização permaneceu isolada, quase sempre limitada às
margens do Nilo, pois só no Império Novo - em 1500 a.C. - ela
saiu esporadicamente de seu território e avançou.
O Egito resulta, assim, em um laboratório estável e imper-
meável que desenvolve uma civilização própria; um laboratório
que reduz a complexidade das dimensões arquitetônicas espaço-
temporais, admitindo só a linearidade como dimensão urbana e a
superfície como dimensão arquitetônica e evitando com astúcia a
temporalidade.
Tudo isso nos será muito útil para estabelecer os fundamentos
da arquitetu§ _analisando as consequências científicas que podem
surgir dessas abstrações conscientes.

As noções de orientação e ortogonalidade


O curso anual do Nilo marca um eixo fluido unidirecional, constan-
te, que vai de sua foz, ao norte, até sua desembocadura, ao sul; eixo
de grande importância, porque está ligado ao processo da vida, que
depende dele. Este pode ser definido como o eixo maior.
Junto dele, a clara organização do tempo em dias determina {
a aparição de um eixo menor definido pelo curso diário do Sol, o
3.1 A dualidade do
qual - por sua proximidade dos trópicos - nasce e se põe todos os
eixo menor no Egito:
dias no mesmo lugar. Essa__ permanência cosmol~ica constitui um a leste, as cidades
processo normal para os egípcios e determina um eixo transversal dos vivos; a oeste, as
cujos extremos são o leste, por onde nasce o sol, e o oeste, onde se cidades dos mortos.
oculta. O leste está ligado à vida, e o oeste está relacionado com a Legenda: 1, Abu Sim-
bel; 2, Asuan e Ilha
morte, criando uma dualidade e um simbolismo que fez dedicar a de Philae; 3, Edfu; 4,
margem oriental do território aos vivos, enquanto a parte ocidental Tebas, Carnac e Luxor,
ficava reservada aos mortos (Figura 3.1). em frente ao Vale dos
O Nilo e o Sol são as imagens dos eixos maior e menor: o Reis e ao Vale das Rai-
' Nilo corre de sul a norte, estabelecendo uma direção espacial pri- nhas e Deir-el-Bahari;
5, Heliópolis e Mênfis
mária; o Sol aponta à outra direç;o. Unidos, os elementos funda-
(Cairo), de frente para
mentais da natureza egípcia estabelecem uma estrutura espacial Sakkara e Gizé; 6, a
Í s'imples. Os dois eixos mencionados nos trazem um._resultado ar- cidade helenística de
- quitetônico que é a orientação, problema sempre imp~rtánTepara Alexandria.
32 INTRODUÇÃO À HISTÓRIA DA ARQUITETURA

N
a arquitetura, ainda que em alguns períodos não seja determinan-
te (Figura 3.2).
Assim, se no mundo egípcio a orientação determina a localiza-
ção dos vivos e dos mortos , no mundo medieval ela será responsável
O L pela implantação dos edifícios sagrados, tanto cristãos como islâ-
micos. A orientação é a relação do homem com a abóbada celeste.
É este o conceito sagrado da orientaçã;, que se complementa com
um conceito prático da mesma, perfeitamente percee_tível n~ rans-
ferência da cabana neolítica à casa orientada.
Etimolog;-;;-aménte, orientar-se signific a voltar-se .para Q_Q[_ien-
te, localizar nascer do Sol, ponto fixÕ na _cultura egípcia. Leste
3.2 Orientação e e oeste - nascente e pq_{'._nte - , ~~mo extremos opostos da j!-)rnada
axialidade. diária do egípcio, são conceitos reais, perfeitos e mensuráveis na
realidade.
Ap_ós esses co1.1ceitos, surge um conceito abstrato gue <1_efine o
sul ou meiQ-dia, e seu oposto, o norte, ponto absolutamente irreal,
o qual , em que pese sua abstraçl!Q, tem sido considerado emnõssos
dias a origem e o deterininante da orientação e , em particular, da
orientação arquitetônica. Esse norte já não é uma direção da vida,
mas um fato racion-a( um conceito intelectual, básico para o esta-
belecimento das relações arquitetônicas abstrat~s no futuro.
Há um fato histórico curioso que revela esplendidamente essa
realidade. Quando no Império Novo - cerca de 1500 a.C. - Tutmó-
sis I sai do vale do Nilo, invade a Síria e avança até o alto do Eufra-
tes, os soldados egípcios se surpreendem com a direção da corrente
fluvial do Eufrates, um rio que corria do norte ao sul. Como o Nilo
flui para o norte, eles se referem ao norte como "rio abaixo".

Horizontal e vertical
Por outro lado, a conjunção desses dois eixos produz uma conse-
quência fundamental para nosso estudo, porque de sua combina-
ção surge uma estrutura espacial simples, a retícula - chamada de
quadrícul~ se ambos os eixos se cortam perpendicularmente (Fi-
gura 3.3) -, a qual, por sua vez, define um plano, o plano horizon-
tal, 9_gual é a origem de uma arquitetura que se rclere a, ele como
elemento orient~do. Toda a arquitetura parte do conceitQ...de plano
horizontal e se baseia na distinção entre ele e o resto do espaço.
Já mencionamos o papel simbólico do arado no longo processo
até a urbanização. Com o arado, o homem traça as primeiras linhas
sobre a sup-e"rfície do solo. Nas várzeas periodicamente inundadas
do Nilo, do Eufrates e do Tigre, do Ganges ou dos grandes rios da
China, o arado vai abrindo sulcos paralelos que definem parcelas
mais ou menos reta_ngulare~ na sua forma. A~ soci~cJ.acJ.es ª&!"ÍCO-
las n_ecessitam um sistema simples de parcelamento do solo pãia a
3.3 Eixo maior e eixo
menor no Egito : da re-
delimitação das_plantações e das propriedades rurais; assim como
tículo à quadrícula. um sistema de tecido urbano para o reparce lãmento e a remarcação
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11 ---

ººººº ººººº
ººººº
3.4 A retículo e a quadrícula no templo de Luxor, em Tebas.

depois de um transbordamento ou de uma cheia. A trama retilínea


satisfaz tudo isso e permite planejar o uso do território.
Assim como a lógica do arado conduz à trama reticulada no
campo, a lógi~? -~ª -~º-~tru_ÇãO e a necessíaâde de divi-
são cómoda do teg_e no e da moràdia levam a uma trama reticulada
do assentamento.
Mas e-iüste um segundo elemento inicial: a diretri~ ~c.al,
que também tem uma origem vital e que faz referência a uma rela-
ção cósmica. Nos trópicos, o SÕi se ergue na abóbada celeste du-
rante o dia e se coloca diretamente sobre nossa c~eç~ ao meio-dia. _7
A dir~çã.9 ~r.tk.al é resultado da relação do plano horizontal em que
estamos com a abóbada celeste~ ou seja, da realidade com _i .infi-
nito. -Assim, sem per-cfei o caráter mítico-mágico de relação do ho- ,1
mem com o universo, a diretriz vertical também faz parte do início - A_

da arquitetura, podendo-se dizer qu-; esta se ?rigina com um plano 'i


horizontaTreal, funcional, e uma diretriz vertical que não perde seu ...J
caráter simbólico.

3.5 A retículo e a quadrícula no templo funer6rio de Ramsés li ou Rame-


seum, em Tebas.
34 INTRODUÇÃO À HISTÓRIA DA ARQUITETURA

A introdução da vertical como princípio de organização na


arquitetura egípcia é uma das grandes mudanças desde a isotro-
pia pré-histórica. Durante três milênios, mantivemos o método de
composição com base em planos horizontais e diretrizes verticais: a
horizontal é a linha do repouso; a vertical é a linha do movimento;
uma e outra se combinam com o ângulo reto que, junto com elas,
adquire valor preponderante n;i arquitetura.
Da interdependência dos três componentes surge o triângulo
retângulo composto por uma linha vertical e uma horizontal com
seus pontos extremos unidos, que exerce uma atração quase mágica
quando se descobrem suas propriedades e leis ocultas.
A ordenação ortogonal da retícula - não pelo giro dei~, mas
pela definição da vertical - e sua transformação em quadrícula, o
significado desta última e a concepção espacial arquitetônica que
ela acarreta conduzem a uma definição mais completa de arquite-
tura na qual a axialidade e a simetria são consequência desse novo
princípio de organização.

Axialidade e simetria
Junto com~ ortogonalíc!ade, a axialidade é o conceito fundamental
característico da arquitetura egípcia-, r esultado da mesma limitação
geográfica que fazia do Egito um território linear vertebrado e~ tor-
no do Nilo e organizado como sistema uniforme de comunicação
e transporte: tanto pela sua corrente, quanto pelos ventos que so-

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3.6 Os conceitos geométricos da arquitet , · ..
ção longitudinal e na planta do tem d ura egipc,a, exempl,f,cados na se-
p IO e Consu, em Carnac.
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pram no sentido contrário e reforçam essa direção ou eixo primário


no percurso humano.
U~ eixo~ ~ma linha imaginária com a qual todos os pontos
de uma superficie, volume ou espaço mantêm uma determinada
relação. Este eixo primário determina a vida egípcia: faz surgir a
-axialidade e a simetria, e as relaciona com ele, não se podendo ima-
-ginar uma sem a outra (Figura 3.6).
Mas são várias as formas da simetria. A simetria axial ou bi-
lateral resulta no uso da vertical como princípio de organização. A
imagem especular se converte em lei essencial da escultura e da
arquitetura na aurora da história. Na matemática, botânica, zoolo-
. gia, cr:istalografia e estrutura atômica, a simetria axial é aceita como
princípio organizador. Por sua vez, a simetria translativa ou série re-
sulta da repetição rítmica das formas, e é, sem dúvida, o modelo
mais antigo, remontando à pré-história; essa modalidade de sime-
tria surge do deslocamento horizontal de determinada forma, como
em uma ornamentação linear cujo motivo se repete regularmente e
cria uma ordem compositiva.

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