Psicologia Evolucionista

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Armando Correa de Siqueira Neto

Psicologia Evolucionista
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SIQUEIRA NETO, Armando Correa de
Psicologia Evolucionista / Armando Correa de Siqueira Neto
Mogi Mirim – São Paulo: 2016.

1. Evolucionismo 2. Psicologia 3. Antropologia


4. Paleontologia
______________________________________________
4

“O homem seleciona somente para seu próprio bem; a natureza o faz


só para o bem do ser que tem a seu cuidado.”

Charles Darwin
5

Introdução.................................................................. 06
O Sistema Ordo.......................................................... 07
Parece que foi ontem.................................................. 17
Salto evolutivo............................................................ 20
Além das suposições pré-históricas................................ 24
Vamos rever o tema agressão?.................................... 27
A saga do Homo sapiens.............................................. 30
Dois caminhos e um só destino..................................... 33
A superação do Homo sapiens....................................... 35
Homo entorpecidus..................................................... 40
O lado sombrio da civilização........................................ 43
Uma babá muito louca................................................. 45
O psiquismo a serviço da informação genética................ 48
Muito além do que somos............................................ 52
Controle social e autocontrole....................................... 55
A ponte Darwin-Freud: o sexo na evolução humana......... 57
Maravilhas da evolução biológica.................................... 61
Mais de você em você mesmo...................................... 64
Afortunada rebeldia.................................................... 66
Caos, ordem e desenvolvimento..................................... 68
O poder de criação do homem...................................... 70
Potencial de aprendizagem e autossuperação.................. 73
Quem acredita na tabula rasa?..................................... 75
Jogo de cartas marcadas?............................................ 77
Evolução criativa......................................................... 79
Os despertares da inteligência evolutiva.......................... 81
O círculo vicioso da expectativa autoenganada................ 83
Uma beleza invisível.................................................... 92
A ilusão do eu........................................................ 94
Referências................................................................ 101
O autor...................................................................... 103
6

Introdução

Desde os registros de Anaximandro (610-547 a.C.), passando por


Tito Lucrécio Caro (99-55 a.C.), Conde Buffon (1707-1788), Jean Baptiste
de Lamarck (1744-1829), Erasmus Darwin (1731-1802) até Alfred Russell
Wallace (1823-1913), e Charles Darwin (1809-1882), o evolucionismo
demonstra já ter sido observado desde há considerável tempo, e suas
implicações práticas levaram a uma rica associação com outros campos do
saber, tais como a biologia, antropologia, sociologia, paleontologia,
arqueologia, geologia e a psicologia, causando reviravoltas no modo de
compreender o ser humano em suas muitas formas de desenvolvimento. A
ciência da psicologia vem ganhando maior espaço ao analisar as evidências
evolucionistas e lhe imprimir ideias até então adormecidas.

Por que somos como somos em relação à vida parental, no sexo, no


uso das emoções e do intelecto? Que influências se destacam tanto da
genética quanto do ambiente no transcorrer da vida? Eis algumas das
importantes questões a serem refletidas com base na moderna psicologia
evolucionista.
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O Sistema Ordo

Do primitivo e caótico descontrole


ao sutil controle contemporâneo do ser humano

Ordo, em latim, significa ordem, e o seu sentido aqui analisado


diz respeito ao estabelecimento de organização controlada, obtida a
duras penas (a morte de muitos de nossos antepassados pré-
históricos por falta de alimento e desproteção frente ao ambiente
hostil no qual viviam), capaz de superar períodos obscuros e caóticos,
levando-nos a novos patamares de sobrevivência, longe de serem
ideais ainda, porém mais seguros do que foram outrora.

Quem sente a fome corroer, por exemplo, sabe o que significa a


ausência de alimento, e, ainda pior, quão desolador fica sem a
expectativa de consegui-lo. Aquele que se vê inseguro conhece de
perto a eficaz ação do medo (estimulado destacadamente pela
amígdala cerebral) a lhe roubar o sono e, por vezes, a esperança,
podendo chegar ao extremo do pânico e de outras circunstâncias das
quais queremos nos manter distantes. Os objetivos voltam-se
ferrenhamente à solução da indesejável instabilidade, com senso de
urgência, a fim de dar cabo à forte ansiedade que teima em não
desgrudar. A prioridade de resguardo se estabelece com a mesma
facilidade invasiva dos ataques temerosos. Acaso não é o medo capaz
de estimular maquinações defensivas de causar assombro?

A criação e a manutenção do sistema de proteção

Ordo é um sistema criado pelo ser humano (ainda que seja


difícil percebê-lo, pois foi se desenvolvendo evolutivamente sem que
se precisasse ter consciência a seu respeito), uma exigência
adaptativa cuja finalidade foi a de estabelecer controle frente à
constante ansiedade experimentada diante de tamanha insegurança
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nas épocas sombrias e desprazerosas cuja lei da selva dava as cartas


e as tomava sem qualquer cerimônia, fazendo do acaso um jogador
indesejado, porém inevitável, à mesa da vida (e ainda o é, se
considerarmos tantos eventos imprevisíveis e estatísticas tão
pobremente formuladas com base em poucos dados, conforme bem
descreve o físico estadunidense Leonard Mlodinow), além das
doenças e acidentes que podiam ser fatais, aumentando as tristes
chances do mal-estar se impor.

Como resposta defensiva à espinhenta e traumática


experiência, além do assustador prognóstico, deu-se início ao sistema
de controle, estimulado pelas estruturas cerebrais, sobretudo a mais
primitiva na qual se aloja o medo, a fim de melhor salvaguardar as
informações genéticas da espécie em constante perigo, dentre os
quais, o da temível extinção. Ainda: não nos esqueçamos do próprio
homem, perigosa criatura para os seus próprios, brilhantemente
registrado nas afirmações do filósofo inglês do Século XVII, Thomas
Hobbes: “o homem é o lobo do homem”, levando à exigência da
criação de um estado controlador e protetor.

Ressalte-se que uma antiga artimanha de sobrevivência foi ir


além do instinto de agrupamento (tão ricamente percebido na
natureza), e, com o tempo, estreitar os laços de convivência através
de encontros entre vários clãs nômades existentes, qual se mostra
através das evidências encontradas no acampamento paleolítico de
Doni Vestonice, na República Checa, cuja troca de objetos variados (e
informações) atestam-lhe as distâncias geográficas de seus visitantes
europeus.

Em momento posterior, outra manobra foi a construção de


casas neolíticas, e tanto Çatal Hüyük (cidade com 5 mil habitantes
aproximadamente) quanto Jericó datam inequivocamente a
antiguidade de tal intenção cuja estratégia mostrava-se
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crescentemente mirando uma melhor sobrevivência. O sedentarismo


fincou os pés por meio da agricultura e da criação de animais,
provando que o modelo de convivência podia dar certo. Mas o seu
preço logo foi estabelecido, pois ossadas de parentes (um tipo de
escritura definitiva) enterrados no meio das residências de 24 metros
quadrados ao sul da Turquia revelaram que já se valorizava a
propriedade privada em demasia, ao ponto de escravizar muitas
mulheres (ossos bem desgastados da articulação dos dedos dos seus
pés em razão de sua postura laboral ao ter de moer os grãos das
colheitas, coisa não encontrada nos pés masculinos), garantindo que
se reduzissem as chances de elas se envolverem com outros homens
e resultar no nascimento e na criação de potenciais filhos
extraconjugais, protegendo, pois, a valiosa herança em questão: o
imóvel.

E, na sequência, o modelo de civilização que, ao que tudo


indica, começou na Suméria, cujas tábuas de argila (perto de 24 mil
delas) encontradas na biblioteca babilônica de Nínive (ou de
Assurbanipal), expõem documentalmente a presença de escolas,
padrões de ensino e ações corretivas correspondentes, medicina,
matemática, arquitetura sofisticada (Zigurates, templos que ainda
impressionam ao leigo e ao profissional da área de construção),
sistema de classes e leis. Basicamente, é a referência adotada até os
dias atuais. Segurança é o lema constante.

E se focalizássemos, em menor escala, a apreciação sobre o


indivíduo, não encontraríamos o mesmo sistema funcionando ante as
pressões que recebe desde a sua infância? O sistema não reside
dentro da unidade que compõe o conjunto social, e não foi
exatamente a partir de tal recurso particular que se estabeleceu a
proteção em níveis grupais, revelando uma só necessidade de
segurança no mosaico formada pela espécie? Não criamos defesas
(fantasias que atenuam o mal-estar que se instala, fugas e negações
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a fim de evitar certos confrontos que nos incomodam


emocionalmente) sem perceber que assim o fizemos em prol de
nossa sobrevivência?

O uso de substâncias químicas (elas também existem em nosso


organismo), apesar de seus danos, não tem por objetivo confundir a
pesada realidade na tentativa de mantê-la distante, qual a descrição
de Freud: “Devemos a tais veículos [intoxicantes] não só a produção
imediata de prazer, mas também um grau altamente desejado de
independência do mundo externo, pois sabe-se que, com o auxílio
desse ‘amortecedor de preocupações’, é possível, em qualquer
ocasião, afastar-se da pressão da realidade...”, observando-se o
prazer e o desprazer como fatores altamente influenciadores.

É, pois, mais do que provado o triunfo da sobrevivência obtido


ao custo de sangue, suor e lágrimas, e então foi possível chegarmos
até ao ponto em que nos encontramos, que, se não se mostra ideal, é
no mínimo louvável, porque foi o que nos garantiu a passagem pelo
estreito e perigoso corredor do ambiente que nos cerca.

O preço do sistema protetor

Mas Ordo, como qualquer outro sistema, tem o seu preço, e é


sobre tal custo que nos debruçaremos doravante, procurando
entender até que ponto ganhamos com mais segurança por um lado,
e, sem perceber, perdemos, pouco a pouco, na outra margem, um
bem precioso: a liberdade. Não vimos que nos escapava por entre os
dedos imenso tesouro como pagamento da dívida contraída ao selar o
contrato que estabeleceu o sistema protetor.

Hoje, depois de decorrido considerável tempo desde a criação


do pacto de sobrevivência, sentimo-nos (sem perceber com clareza)
profundamente sufocados pelos juros e correção originados do débito
adquirido. A impressão que se tem é a de que fomos devorados pelo
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monstruoso controle que fugiu ao próprio controle do sistema. Um


servo que se tornou senhor. Um tirano, propriamente dito.

Mas uma coisa deve ser considerada: tal descontrole não


advém de nós mesmos, que, acomodados a um relativo mas
significativo nível de segurança, não levantamos o véu da
inconsciência e observamos claramente o que criamos, a fim de dar
novo rumo, menos caro e mais eficiente? Pois, do contrário, não
seremos obrigados a rever a questão na urgência que exige atropelos
e novas decisões que nem sempre atingem a causa, ou melhor
dizendo, levando-nos vindouramente, de forma desesperada, a
apagar o fogo dos sintomas por longos períodos não previstos por um
adequado diagnóstico e seu consequente tratamento?

Ordo é um sistema poderoso, e está presente em aspectos


cruciais da sociedade: economia (desde seus antigos modelos de
troca, elaborado comércio, produção e serviços, baseados ora na
atuação autorreguladora do mercado de consumo, ora contando com
o intervencionismo político, cuja tentativa é sempre a de levar o
homem a trocar a amarga instabilidade pela convidativa e adocicada
segurança, estimulado pelo desafio e a vontade), política (leis de
regulação e proteção social, centralização e direcionamento do
dinheiro captado através dos impostos, relações diplomáticas,
decisões militares de conquista e, com ênfase, de defesa) e religião
(o surgimento da fé primitiva, superstições e a adoração aos deuses,
e seus fins relacionados à proteção e sobrevivência, da sorte que
rondava através dos riscos pré-históricos até a atual e elaborada
instituição religiosa, com dogmas e documentos variados com
objetivos próprios dirigidos aos seus fiéis), estabelecendo os limites
do jogo da convivência por meio das normas e regras.

Oficialmente dizendo, das leis que regulam o que é permitido e


o que não é, incluindo, a propósito, a mecanicidade observada nos
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comportamentos padronizados e limitantes de obediência, quais os


posicionamentos de fila de espera nos muitos ambientes que assim o
demandam; os constantes avanço e interrupção de fluxo dos veículos
no trânsito; sexo em momentos e lugares pré-determinados; o
cumprimento de horários (por anos), a carga de trabalho requerida
pelas organizações; a frequência escolar; as rotinas relacionadas a
dormir, comer, beber (há dias certos para a ingestão de álcool!),
dentre muitíssimos outros.

Em suma, o que se vê é uma imensa repetição comportamental


inconsciente baseada no sistema controlador de proteção. ‘É assim
mesmo’, diz-se para justificar o parcialmente justificável. Tudo em
nome da importante proteção egoísta existente na combinação de
certos genes e o ambiente da espécie. Mas, não é devido pensar
também sobre as influências contemporâneas de criação de medo
através da concentração permanente de informações perigosas
bombardeadas pela mídia, cujo interesse é atrair a atenção dos
tantos telespectadores possíveis? As ameaças podem ser tanto reais
quanto imaginárias, conforme já experimentamos em várias
oportunidades.

O egoísmo, muitíssimo mal compreendido, tem o seu


fundamental papel, pois ele sempre serviu como mola impulsionadora
de defesa e sobrevivência. Sem ele não resistiríamos às dificuldades.
Com ele, superamos obstáculos e sobrevivemos, transmitindo às
gerações vindouras as preciosas informações genéticas. Portanto, não
se trata de gostar de seu conceito (distorcido ou até bem
compreendido), pois o genoma carrega as ordens de adaptação e
longevidade desde os primórdios. Não diz respeito a uma
interpretação aceitável socialmente, mas de uma exigência biológica.

Porém, nem só de egoísmo viverá o homem, haja vista o santo


remédio poder se tornar um veneno caso ele não seja dosado, e
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mesclado à outra prescrição fundamental: o altruísmo. Assim, o que


é do egoísmo lhe compete tão somente, e o altruísmo (a ajuda
mútua, a troca), por sua vez, tem cadeira cativa no teatro da vida.
Evidentemente, o egoísmo ainda se impõe ao altruísmo conforme é
possível verificar através da convivência, fazendo evidenciar a longa
estrada que se tem à frente para modificar tal cenário ainda carente
de consciência sobre o que nos favorece de verdade e o que nos
atrasa pesadamente.

As falhas do sistema

Eis outro ponto essencial à compreensão, há os furos em meio


ao conjunto de ações obedientes: furar as filas, avançar em sinal
vermelho, chegar constantemente atrasado no serviço, tomar bebidas
embriagantes em qualquer hora, dia ou lugar, se drogar, agredir,
mentir... Demonstramos a nossa insatisfação diante de pressões e
incompetências provindas do desprazeroso sistema protetor. As
transgressões são um tipo de comunicação (ainda que inconsciente)
de nossa parte, misturadas, em graus que variam, à indolência e ao
jogo de ludibriar (somos programados pela natureza com tal
dispositivo de sobrevivência). Não são elas válvulas de escape
também?

Em maior escala, guerras são travadas em nome da


sobrevivência há muito tempo: defenda-se ou morra! É claro que a
complexidade envolvida nos eventos bélicos contempla também
cobiça, autoengano e psicopatologias (e rica fluidez de testosterona),
mas o seu fundo é o medo que se assenta na ignorância que ainda
predomina no atual estágio evolutivo. Se temo que me ataquem,
avanço antes, ou revido diante do primeiro passo dado pelo
“inimigo”. O autoengano é entorpecedor ao ponto de levar cada lado
de uma batalha a crer que por detrás da linha opositora há seres
repugnantes, e que merecem morrer. Pessoas inferiores, afirmam
14

tantos soldados em diferentes entrevistas ao redor do mundo. É o


único modo de “encorajar” alguém a ferir, e a matar outrem, do
contrário, tudo fica mais difícil, embora as doenças mentais
acompanhem boa parte das tropas em seu retorno para casa. O
psiquismo pode ser enganado até um ponto, dali por diante...

Propaganda enganosa também tem o seu papel de destaque


por parte de lideranças e da mídia (já se usava tal estratégia na
antiguidade, a exemplo de Júlio Cesar e legiões romanas que
exterminaram milhares de celtas, cheios de ouro, sob a justificativa
de barbarismo e falta de submissão ao império, mas que, verificado à
luz da pesquisa séria, constatou-se que muitos deles eram
organizados, e, destaque-se, respeitavam a opinião feminina em seu
meio, diferentemente do inimigo “civilizado” que tinha a mulher em
inferior plano) que pintam o lado de lá com pesadas cores a fim de
estimular o ódio cego, capaz de motivar vigorosamente o ataque.

Obviamente que tais rebeldias (os comportamentos que


agridem à ordem estabelecida) são uma ameaça à continuidade do
sistema de proteção, mas o próprio sistema se tornou uma ameaça
maior ao progresso integral do ser humano ao ter-lhe engessado. E o
que chama a atenção é o fato de que presos (ou reféns) ao sistema
de proteção, não percebemos que o nosso desenvolvimento está bem
comprometido, pois agimos limitadamente, atendendo, grosso modo,
quase que somente a necessidade de proteção (e as comodidades
nela circunscritas), tristemente em detrimento da evolução
intelectual, apoiada pela reflexão e o pensamento crítico.

Mais: no fundo, se pensar bem, não somos tão avançados e


modernos como teimamos em achar com base na tecnologia
alcançada (é uma boa dose de autoengano), pois poucos são os que
verdadeiramente inventam algo, e a maioria é apenas um punhado
de usuários que, empobrecidamente, subutiliza os muitos recursos
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disponíveis nos equipamentos que adquire, por exemplo. Tentamos


ver em nós o que outros poucos foram capazes de realizar.

Corremos de um lado para o outro, dia e noite, atrás de nos


mantermos seguros e comodamente confortáveis. Buscamos o
dinheiro através do trabalho (e a ele nos fixamos avidamente para
não perdermos a fonte que sustenta os sonhos, e assim nos
prendemos à roda repetitiva da eterna manutenção), a fim de
comprarmos as fantasias que criamos em nossas mentes, com a
ajuda da mídia. Todavia, à luz da razão, considerável parte de tais
itens desejados não são essencialmente necessários.

O acúmulo excessivo de bens e poder, além da manutenção a


qualquer preço (há casos exorbitantes de pessoas e grupos que
vivem em razão de se manterem no status de segurança em que se
encontram, se não almejam mais, é claro, fazendo qualquer coisa em
nome de tal condição, inclusive usar do conhecimento acerca dos
medos humanos para atingir certo resultado manipulador que pode
estar maquiado de proteção) é claramente uma demonstração
desesperada (e reconhecidamente inteligente também) de se
defender. Não obstante, dessa forma, é fruto de uma condição
psicopatológica.

Mas as motivações, notadamente inconscientes, estão


enraizadas no cérebro primitivo, que, por mais que já tenham se
banhado na especial camada do neocórtex (a porção lógica, de
planejamento e avaliação), ainda patina no gelatinoso solo das
emoções primevas do medo. Vivemos com a cabeça na vaidade
futurista e com os pés no atrasado solo das necessidades primitivas.

Questões reflexivas acerca do sistema

Porquanto resta perguntar: e a busca pelo avanço de maior


inteligência, inclusive a capacidade de encontrar novas saídas ao
aprisionamento que sequer enxergamos por ora, julgando-nos livres
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para fazer o que pretendemos? Não somos condenados à cegueira e


ao cárcere por conta da própria crença na pretensa sabedoria?
Perdemos tempo com o nosso “consentimento”? Ainda que de forma
inconsciente, não é o cachorro correndo atrás do próprio rabo?

Não nos percebemos encarcerados pelas limitações alcançadas


depois de longa jornada utilizando o Sistema Ordo, o qual requer
superação mais do que imediata? Por que não desconfiamos dos
nossos comportamentos repetitivos e enquadrados que nos causam
desconforto em alguns casos, e profunda tristeza noutros? Já não
ocorreu a dúvida de que somos reféns do sistema por nós criado?
Então não é hora de analisar seriamente tal sistema?
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Parece que foi ontem

Embora se possa alegar que dez mil anos se situem


longinquamente no calendário, e que são necessárias muitas
gerações de pessoas para cumprir tal período, as maneiras de se
viver primitiva e contemporânea demonstram relativizar o tempo a
cada análise que se faz acerca de como vivemos em sociedade ontem
e hoje. Ao comparar como os nossos antepassados neolíticos se
estabeleceram nas primeiras cidades criadas no planeta com a nossa
atual forma de se relacionar socialmente, é possível encontrar lá
atrás os vestígios das sementes que até hoje dão frutos com o
mesmíssimo sabor, alguns adocicados, outros...

A arqueologia revelou há certo tempo a cidade de Çatal Hüyük,


situada ao sul da Turquia, na qual conviveram cerca de seis mil
pessoas, em 8.000 a.C., em casas de formato retangular, feitas de
tijolos crus, com acesso por um andar superior e através de escadas,
pois não havia qualquer rua que as interligasse. Andava-se sobre elas
para ir e vir. A sua distribuição interna, conforme as evidências
apontam, indica lugar específico para o uso comum, qual uma lareira,
e ornamentos de parede (chifre de touro) e estatuetas femininas
decoravam os 24 metros quadrados de construção existentes em
média. Conseguiu-se, inclusive, recriar um mapa local com as muitas
residências, a partir do desenho original encontrado cravado em
pedra -- é o primeiro mapa de que se tem conhecimento.
18

Porém, chama a atenção outros tipos de evidências trazidas à


luz no sitio arqueológico turco, tais como restos de cereais, pilões de
pedra e cerâmica. A produção alimentícia, através do plantio, da
colheita, do processamento e da estocagem ganhava vulto após
ap ter-
se deixado para trás o ancestral hábito da caça e da coleta. E, em
meio a tais achados, constatou-se
constatou se a presença de ossos de pés
femininos bem desgastados nas juntas em razão da forçosa posição
de moagem -- fato este não evidenciado nos ossos dos pés
masculinos, que, diferentemente, indicaram desgaste na região da
rótula, levantando a suspeita de que os homens permaneciam
sentados por longos períodos. Lembrou de algo semelhante?

Então, consegue imaginar a vizinhança tão próxima se


comunicando diariamente,
diariamente, contando sobre suas dores e amores,
esperanças e frustrações, raiva e alegria, a respeito das amenidades
relacionadas aos trabalhos típicos da lavoura e da lida com os
animais, o relacionamento conjugal e a criação dos filhos, os quais
deviam ser muito
o importantes haja vista emergir a necessidade de
mão de obra com o crescimento da produção local? Percebe o
provável disse-me-disse
disse cotidiano ali presente com tanta gente
convivendo em casas tão próximas umas das outras, com ocupações
similares, além das ideias diferentes que cada um devia ter em
relação aos seus próprios direitos e deveres? Parece que foi ontem.
Nem parece que faz tanto tempo assim desde o surgimento deste
19

primeiro modelo de convívio na primitiva cidade de Çatal Hüyük e a


maneira de se relacionar dos tempos atuais.
20

Salto evolutivo

Após anos de intensa pesquisa, a ciência conseguiu se


aproximar, em considerável grau, da realidade acerca da origem do
ser humano. Empregando métodos e análises, alguns pesquisadores
ao redor do mundo, a sua maioria amparada por universidades e
institutos de reconhecida seriedade e tradicionalismo investigativo,
conseguiram aproximar o homem pré-histórico do atual.

Basicamente, com o uso do teste “Carbono-14” (C-14), foi


possível datar uma série de ossos antigos, em destaque, as
evidências do Homem de Neandertal e do Cro-magnon - notadamente
entre 40.000 e 30.000 anos atrás. Por outro lado, com a utilização
dos exames de DNA, foram comparadas amostras dos homens pré-
históricos e contemporâneos. Resultado: descobriu-se que o
Neandertal extinguiu-se provavelmente há 30.000 anos, e o Cro-
magnon resistiu, aperfeiçoando-se com o passar do tempo, até
chegar à contemporaneidade. Ou seja, de acordo com as análises das
informações genéticas, somos os herdeiros do antigo Homo sapiens
ou Cro-magnon. Mais: achados em terras alemãs, tais como escultura
de mamute e corpo feminino, além de flauta e calendário lunar
(serviu para identificar hábitos migratórios de certas caças), atestam
a significativa capacidade simbólica e de expressão e planejamento
presentes nos ditos “selvagens” pré-históricos.

Há, no entanto, complicações que orbitam ao redor da questão,


relacionadas a não aceitação dos fatos que, aos poucos, confirmam a
Teoria da Evolução, estabelecida por Charles Darwin, cuja publicação
do livro “A evolução das espécies” deu-se em 1859. Tal oposição não
se baseia em evidências e tampouco se pauta por qualquer linha de
raciocínio. Ela se dá tão somente no campo da especulação,
21

mormente banhada em tons emocionais alterados, permitindo, assim,


apenas a emissão de ideias órfãs de embasamento e a completa
surdez contra qualquer parecer lógico que tente expor argumentação.
Aliás, por se tratar de uma oposição surda e também cega, sequer
tais oponentes ouvem e leem a respeito do assunto. Eles se apegam
ao senso comum (irresponsavelmente despreparado) ditado pela
imprudente intolerância dos seus pares. E ao redor de uma “missão
acima de qualquer lógica”, atiram-se impiedosos e cheios de raiva às
discussões que normalmente eles próprios iniciam diante de qualquer
notícia que lhes chegue, seja através de um noticiário ou de um
infeliz comentário. Ressalve-se, porém, que existem pessoas mais
ponderadas e de consistente formação acadêmica que se reúnem a
fim de analisar a melhor maneira de combater a tempestuosa teoria
darwiniana. É o caso da “Teoria do Design Inteligente”, concebida na
Universidade da Califórnia, em 1993, através da coordenação do
Professor Phillip Johnson. Mas é possível contar nos dedos quem se
compromete com a seriedade da análise, haja vista a maioria se
aventurar descabidamente a lançar-se contra o evolucionismo
darwiniano sem ter noção daquilo para o que se arrisca criticar. A
propósito, vale a pena perguntar: curiosamente, não nos é comum
perceber a expressão da raiva em situações socialmente aceitáveis,
cujo grupo comum permite que tais desabafos (muitos ocorrem
através de vociferações tipicamente animais) preencham o ambiente
das acusações aqui avaliadas? Eis a contradição, aquele que se opõe
à sua própria origem animalizada, age qual um selvagem
descontrolado apenas por não aceitar uma ideia.

A questão, infelizmente, não se limita a oposição feita à Teoria


da Evolução. Pouco se perderia com a longa e exaustiva briga que se
trava desde o surgimento de tal proposição polêmica. No entanto, ao
não se analisar o arsenal de evidências e rejeitar as reflexões
correspondentes, o homem continua se achando mais do que é de
22

fato, um ser especial acima de qualquer suspeita. A perda é enorme.


Ele não se incomoda com o seu atrasado estágio na escala da
evolução e, consequentemente, se acomoda, dificultando o seu
próprio desenvolvimento. Autoilusão?

O que lhe garante o falso status da posição privilegiada e a


sensação de grandeza é o autoengano, defesa psíquica (ricamente
estudada por alguns autores de outras épocas e de hoje, incluindo-se
instituições de peso no meio acadêmico) que gera incontáveis ilusões
com a finalidade de aplacar o mal-estar causado pela realidade. Não
se trata de uma mentira contada para si mesmo, pois que seria
impossível sustentá-la á luz da própria consciência, mas de uma
verdade inventada, pedaço a pedaço, pouco a pouco, convincente e
conveniente, sobre a qual é possível construir outras ideias e
prosseguir a penosa jornada da sobrevivência.

Logo, convencido que fica com a invenção gerada por sua fértil
imaginação, e com o convidativo bem-estar que lhe acompanha,
defende-a fervorosamente, qual um advogado que faz de tudo para
convencer os outros da sua veracidade, sem perceber que tenta, na
verdade, convencer-se por meio de repetidas exposições. Alguém que
descreva um dado evento, por exemplo, e, com o tempo acrescenta
novas informações ao relato, sem se dar conta do enxerto
imaginativo presente nas suas palavras, passa a acreditar no
resultado alterado e o apresenta de modo convincente, pois não pode
titubear diante do mais astuto embrulhão, o autoengano, que leva o
seu autor à crença de que é tudo quanto se acha ser, e, por outro
lado, que não é o que de fato é por se desagradar profundamente a
respeito. Evita-se o sofrimento de ter de perceber-se tão menos
quanto se é de verdade. Porém não faz evitar a aflição causada pelo
atraso que teima em patinar na estrada evolutiva. Foge-se ao mal-
estar imposto pela realidade, mas não se escapa à verdade dos
23

gritantes resultados que evidenciam os níveis do próprio


desenvolvimento. Duvida? Olhe-se a si mesmo e ao seu redor!

Assim sendo, ao negar os aspectos mais evidentes da suas


próprias características animais, o homem trai a si mesmo ao
mascarar autoenganadamente a realidade que deveria ser ponto de
partida, ainda que doloroso, para novas e maiores distâncias na
jornada da evolução. Acomoda-se satisfeito com a falsa percepção de
que alcançou elevada estatura. Perde a chance de dar saltos
evolutivos sem par. Tropeça na própria perna da infantilidade,
consumido pelo medo e pela falta de consciência a seu próprio
respeito. Uma verdadeira riqueza enterrada sob o solo da ignorância
pessoal se perde sem qualquer cerimônia. Somente o incômodo
causado pela realidade é capaz de provocar transformações a altura
de grandes feitos. Cito uma frase, desconhecendo o seu autor, capaz
de estimular a ponderação aqui pretendida: “Observa-te a ti mesmo
como faria teu pior inimigo, e tornar-te-ás teu melhor amigo.”

A teoria evolucionista não é matéria de disputas pueris, mas um


conjunto de ideias que podem provocar reflexões naquele que
pretende ultrapassar a barreira autoimposta pela falta de visão,
modificando-se favoravelmente, e, finalmente, superando-se.
24

Além das suposições pré-históricas

O achado pré-histórico encontrado há alguns anos, um mamute


de 3,7 cm de comprimento, pesando 7,5 gramas, esculpido em
marfim, guardado na Universidade de Tübingen (Alemanha), acesso:
www.uni-tuebingen.de/uni/qvo/highlights/h54-eiszeit.html, datado de
35.000 anos, pode promover reflexão e compreensão acerca dos
nossos antepassados, e também revelar o quanto ainda nos
aproximamos deles mesmo depois de vasto tempo na escalada
evolutiva.

Foto - Fonte: (Jensen/Lingnau, Abteilung Ältere Urgeschichte, Universität Tübingen)

Chama a atenção cada detalhe do feitio do animal, fazendo


levantar hipóteses de certas capacidades presentes nos humanos que
habitaram o planeta há considerável tempo. Contrariamente ao que
se pregou até então, percebe-se refinada habilidade laboral no dito
“selvagem” pré-histórico. Tal Homo sapiens, além de sobreviver
25

caçando e coletando, procriando e descobrindo novas formas de


prosseguir na sua jornada, dedicava-se, ao que tudo indica, à
produção tecnológica e artística, incluindo-se a escultura – descobriu-
se também pintura e música. Ou seja, gerava-se naquela época
longínqua, cultura com significativo nível de qualidade.

A breve análise do mamute de Tübingen faz emergir as


seguintes observações: (1) O seu artesão possuía, primeiramente, a
capacidade simbólica de representação dos registros cotidianos
armazenados na memória, levando-o a reproduzir, através da
escultura, o enorme animal que lhe era comum à época em que
produziu a obra. Percebe-se, ainda, a utilização de técnicas no feitio
da escultura: (2) Nota-se proporcionalidade em relação à referência
(o mamute biológico) e a escultura, haja vista os estudos atuais
demonstrarem o formato de tal animal a partir das ossadas
encontradas em algumas regiões do globo terrestre. (3) A tromba é
esculpida rente à parte frontal do mamute, e encerra-se em contato
direto à perna, facilitando o trabalho, pois o entalhe que faz separar
um membro do outro é simples, além de eficiente na conservação do
produto encontrado intacto. (4) Há linhas que contornam o animal
esculpido, dando-lhe a perspectiva de articulação e mobilidade de
acordo com a realidade da própria referência registrada e reproduzida
pelo artista em questão. (5) Evidencia-se certo refinamento e
compreensão técnica acerca dos instrumentos empregados no feitio,
possíveis ferramentas de pedra, conforme sugerem os estudiosos.
Não obstante, acrescenta-se o fato de que na produção de esculturas,
quando pequenas como é o caso, as ferramentas devem ser
igualmente delicadas, pois, do contrário, dificilmente se chegaria ao
resultado que se alcançou.

Porquanto, a partir dos itens apreciados, é possível inferir que o


nosso ancestral era dotado de capacidades intelectuais presentes na
contemporaneidade do século 21, as quais apresentam qualidades
26

relacionadas à inteligência cinestésica, através da coordenação


motora fina; ao refinamento resultante do uso de ferramentas
delicadas e proporcionais ao tamanho da escultura e conhecimento
técnico que o ajudou a produzir, com economia da atividade
artesanal, os entalhes típicos, além de proporcionar maior segurança
à conservação, a qual fez chegar tal arte aos dias atuais, depois de
35.000 anos da sua produção.

Parece-nos que o ontem e o hoje se aproximaram


demasiadamente. A mão pré-histórica pôde nos tocar sutilmente por
meio da pequena análise da escultura do mamute encontrado na
Alemanha. Desta forma, vale perguntar: O passado está tão longe do
quanto imaginávamos? Mais: O que o futuro ainda nos promete?
27

Vamos rever o tema agressão?

Antes mesmo de apontar vítimas e culpados sobre o caso


australiano Zangief Kid, o qual envolveu diretamente duas crianças
em atos agressivos e violentos, é fundamental que se estabeleça
oportunamente a reflexão que permita analisar honestamente, e com
maior alcance, alguns aspectos presentes na agressividade existente
no ser humano, o Homo sapiens modernizado, mas em formação
social que requer mais avanços evolutivos apesar do que já
conquistou até então.

Para tanto, vale a pena recorrer aos estudos realizados nas


últimas décadas, os quais apontam o homem como um ser ainda
dotado de estruturas cerebrais primitivas cujas funções estão
relacionadas à sua sobrevivência. Ou seja, quer se goste ou não, não
somos o “bom selvagem” poetizado por Jean-Jacques Rousseau no
Século XVIII, vítima apenas da sociedade que corrompe sem
qualquer escrúpulo. A nossa natureza nos predispõe ao
desencadeamento de comportamentos variados agressivos, por vezes
impensados, diante de uma combinação de fatores. Não somos
meramente bichos descontrolados, é claro que não. Apenas não se
pode defender a tese de que somos anjos mal resolvidos. Tampouco
se defende aqui a permissividade da agressão natural apenas pela
compreensão inevitável de que as informações genéticas milenares
estão entranhadas em nós em tom determinista.

O psicólogo evolucionista estadunidense Steven Pinker, por


exemplo, vem estudando a violência humana há considerável tempo
e alega que a maior dificuldade de compreensão a seu respeito é que
há significativa resistência por trás das muitas trincheiras sociais cuja
crença no homem puramente bom, porém desvirtuado na sua
28

trajetória natural, impede que se pense de modo mais crítico, levando


o mito ao seu infeliz fortalecimento. Assim, emplaca-se
continuamente a ideia de que as causas da violência a serem
combatidas encerram-se apenas nos sistemas sociais e nos projetos
de educação, sentenciando, pois, a crucificação de muitos pais (vários
são exemplarmente bons!) em relação aos seus filhos. É evidente que
o sistema inadequado contribui ao desencadear certas informações
contidas nos genes. Somem-se à receita os disparos fisiológicos
decorrentes e o impulso agressivo emerge em vários formatos. Mas
eis que o DNA se mostra qual um importante protagonista na novela
da convivência que ainda requer altruísmo e bom senso.

Ainda, acrescente-se o fato de estarmos experimentando


transformações individuais e coletivas cada vez mais rapidamente
frente aos avanços tecnológicos, enxurradas de informações e
aumento populacional de quase 7 bilhões de habitantes ao redor do
globo competindo por uma vaga de trabalho, sem falar nos que
disputam por itens básicos como água e comida cotidianamente, uma
perigosa combinação que pode levar a inadaptações, resistências e
toda sorte de efeitos que variam enormemente. Não há uma resposta
pronta, existem ponderações a respeito (fontes científicas oferecem
mais sustentação e minimizam a margem de erro).

Então, sem atirar a pedra da pretensa “justiça” no garoto


Richard Gale, nem depositar a capa do heroísmo no jovem Casey
Heynes, as intervenções sociais deveriam repensar a forma de
controle contra tais abusos de forma objetiva e eficaz, é óbvio. E por
outro lado, valendo-se do poder da educação, muitas escolas
poderiam direcionar aos seus alunos o conhecimento acerca da sua
real natureza, na tentativa de estimulá-los à reflexão da própria
condição em que se encontram (reduzindo o autoengano a respeito
da santidade terrena), ponto de partida para mudanças internas
29

fundamentais, capazes de, um tanto que seja, acompanhar outras


conquistas obtidas.
30

A saga do Homo sapiens

O que ainda nos falta para compreender o quanto se perde ao


evitar a autoavaliação e, ao encararmo-nos no espelho da verdade,
assumirmos uma nova e promissora postura de autossuperação? Por
que é tão difícil convencer a si mesmo de que se é tão atrasado em
relação ao desenvolvimento humano, mantendo-se preso ao
autoengano que alimenta o jogo ditado pela exorbitante vaidade e a
danosa acomodação? Quem, em sã consciência, deixaria de dar os
passos rumo ao autodomínio, alcançando mais visão, autonomia e
liberdade, se soubesse que é fruto de um passado que pouco difere
do presente – somos presas do inconsciente e da exagerada
bestialidade biológica que há tempos serve para a própria
sobrevivência -, o qual pode, se não houver a devida intervenção,
repetir-se no futuro, como tem ocorrido incessantemente, com
exceção dos avanços tecnológicos, que, se refletido adequada e
seriamente, compreender-se-á que têm servido, grosso modo, para
gerar conforto e infantil disputa por hora? Uma fuga diante de outra
luta ainda mais difícil?

Para tanto, se é importante analisar com profundidade a


questão, devemos recuar no tempo e caminharmos até o ponto em
que nos encontramos, para então reavaliarmos o que se pode fazer
em favor de um porvir bem mais interessante. Você sabia que já se
obteve compreensões acerca de quem foram os nossos ancestrais e
como eles provavelmente viveram? Resumidamente, somos herdeiros
do homem de Cro-magnon, de acordo com parte das ossadas e
objetos datados em 35.000 anos atrás por meio do teste denominado
Carbono-14, e, cuja comparação conosco, deu-se através dos exames
de DNA. Tais antepassados, além da sobrevivência, ocuparam-se com
31

a produção de esculturas (algumas guardadas na Universidade de


Tübingen, na Alemanha, a exemplo do mamute, do corpo de mulher,
da ave voadora e do leão sentado), de instrumentos musicais
(flautas) e do planejamento de caça com o uso de artigo relacionado
(calendário lunar).

Assim, comprovou-se que havia inteligência e habilidades


variadas, além da sensibilidade, nos ditos “selvagens” pré-históricos.
Vale a pena perguntar: então, essencialmente, tanto na longínqua
época dos comprovados ancestrais quanto na atualidade, o homem
possui características fundamentais semelhantes? É claro que houve
avanços, mas também ocorreu muita brutalidade na era da
civilização, exemplificada no escravismo histórico e nas barbáries
ainda presentes. Será que evoluímos tanto quanto se acredita? Ou
assim o cremos para dar alívio à dor que certamente se instalará
assim que tomarmos a legítima consciência acerca do assunto? Mas
não é justamente por causa do abençoado mal-estar que se pode
gerar movimento e sair da acomodação que só emperra o
desenvolvimento? Por que permanecemos encolhidos no cantinho das
situações cômodas se é através do incômodo que se sai do lugar e
alcança-se nova posição evolutiva?

Tal apreciação da trajetória humana pode nos posicionar frente


ao autoengano de negar o grau de atraso ao qual ainda nos
encontramos reféns. Porquanto, a cegueira de não perceber-se
devidamente, a autoilusão que minimiza o sofrimento causado pelos
fatos, a tentadora acomodação e os perigosos reforços sociais
ecoados com estrondo, tais como: “É assim mesmo...” e “Não tem
jeito...”, levam o Homo sapiens a reduzir (e muito!) a sua marcha
evolutiva, perdendo valiosas oportunidades que lhe escapa inocente e
inconsequentemente. Que tal pensar de forma profunda e frequente a
respeito, para se experimentar um novo e mais estimulante mundo à
disposição? Mas, destaque-se, a decisão é íntima. Ninguém pode
32

tomá-la por outrem. Eis a questão: Ser ou não ser mais do que se
ousou imaginar-se um dia?
33

Dois caminhos e um só destino

A natureza nos favoreceu com várias informações genéticas;


destacam-se duas: sobrevivência e adaptação ao custo do egoísmo e
convivência altruísta. A primeira já se evidenciou mais claramente
desde os estudos evolucionários de Charles Darwin. A segunda,
contudo, começa a despontar recentemente através dos trabalhos
realizados na Universidade Harvard, pelas mãos do biólogo
evolucionário Marc Hauser, cuja publicação recebeu o nome de
“Mentes Morais” – o cérebro possui um mecanismo geneticamente
determinado para adquirir regras morais. Portanto, estamos diante de
dois extremos severos que geram conflito em grossa parte do tempo
de incontável número de pessoas. Por que coexistem dentro de nós
duas informações de peso que se chocam tão intensamente, podendo
causar, em última análise, alguns distúrbios mentais. Um desatino
desnecessário aparentemente.

Para que o ser humano pudesse sobreviver constou-se em seu


DNA o vale-tudo da sobrevivência e do aperfeiçoamento, levando-o a
se modificar e alcançar aptidão necessária à seleção natural. Do
contrário, ele (e qualquer projeto de descendência) já se encontraria
extinto. Por sorte, a inteligente e instintiva informação genética é
superior à nossa capacidade de raciocinar, sobrepondo-se à
ingenuidade e passividade que inevitavelmente já teriam nos
apagado do livro da vida. Há algo grandioso e imperceptível nesta
sábia arquitetura, não acha? Mesmo Darwin concordou à sua
maneira, ao descrever: “Não me parece haver qualquer
incompatibilidade entre a aceitação da teoria evolucionista e a crença
em Deus.”
34

Por outro lado, a programação genética que deve facilitar a


aquisição e a aceitação psicológica das regras para o adequado
convívio social e o consequente desenvolvimento do altruísmo, incide
sobre o lado sobrevivência-a-qualquer-custo (e vice-versa),
controlando parte da sua potência, a princípio perigosa caso nada lhe
detenha, sem, no entanto, lhe enfraquecer em demasia naquilo para
o que foi previamente determinada. Novamente nos deparamos com
a providencial sabedoria invisível, não é? Sem esse sentimento de
preocupação alheia (ainda que lhe falte aperfeiçoamento na transição
ego-mundo) também já teríamos nos extinguido.

Então, faltam-nos consciência e ajuste à frente, pois se trata de


uma enorme jornada acerca do desenvolvimento humano. Por tal
razão, dispomos das essenciais informações genéticas que tanto nos
estimulam ao movimento, ora conflitante, ora evolutivo. Dois
caminhos e um só destino. Sobrevivência e altruísmo opondo-se,
regulando-se e, finalmente, gerando o terceiro e vital elemento: a
evolução.
35

A superação do Homo sapiens

O homem possui uma imensa dívida consigo mesmo. Trata-se


da superação do autoengano, elemento de defesa psíquica que atua
em seu socorro cada vez que a verdade se impõe dolorosa. O
autoengano provavelmente surgiu nos primórdios do uso do
raciocínio, quando o ser humano passou a se perceber sob a luz da
razão. Ele precisou defender-se do mal-estar que lhe invadiu
impiedosa e esmagadoramente, acerca das imposições que a vida lhe
sobrepôs, desenvolvendo, assim, o jogo da autoilusão; exercitado e
aperfeiçoado desde então, chegou à contemporaneidade.

Todavia, ascender ao degrau evolutivo de tal superação requer


o rompimento com a etapa infantil na qual grossa parte das pessoas
ainda se encontra inconscientemente envolvida, atingindo novo e
vital estágio de maturidade. Para tanto, uma importante providência
a ser tomada é parar de apontar o dedo da culpa para o lado de fora
de si e entender definitivamente que há uma responsabilidade
pessoal a se assumir integralmente frente às consequências
causadas. O medo exagerado é a emoção sem freio que pode fazer
descontrolar o projeto de amadurecimento. Porém, se houver
compreensão suficiente acerca dos ganhos advindos da própria
evolução, abranda-se o temor naturalmente a partir da perspectiva
de que o crescimento assusta e gera dor, mas, invariavelmente será
superior ao estado de ignorância que a tudo subjuga e faz retardar o
potencial avanço em nós existente.

Não se pode eliminar, contudo, a autoilusão; dispositivo criado


pela sábia natureza. Não se descarta facilmente uma informação
genética tão primitiva sem oferecer algo melhor em seu lugar, pois o
que importa é a aptidão para a adequada continuidade da espécie. O
36

que se pode fazer é reduzir-lhe a potência através da tomada de


consciência a seu respeito, minando em graus significativos o seu
alcance, penetração e sobretudo o controle sobre os pensamentos e
emoções, cuja submissão encarcera o ser humano, levando-o a ficar
refém inconsciente de si mesmo.

O homem crê inocentemente que consegue se


autocompreender baseando-se tão somente no nível de percepção
que atingiu. Um erro a ser corrigido. Mesmo depois de milênios de
evolução, considerando-se o nosso ancestral, o homem de Cro-
magnon, originado entre 90.000 e 40.000 anos atrás, e o uso cada
vez maior da nova camada cerebral, o neocórtex, pouco se avançou
no terreno da consciência pessoal. Sabe-se hoje que há 35.000 anos
existiam pinturas rupestres, especialmente em algumas cavernas da
França, esculturas de animais (mamute) e de seres humanos
(notadamente de mulheres), na Alemanha; instrumentos musicais de
sopro; rituais espirituais relacionados à morte; estratégia de caça
sugerida através da análise dos ossos bem mais preservados do que
os do Homem de Neandertal à mesma época, o qual se agarrava às
perigosas presas, causando traumas variados e, inclusive, a morte
prematura – são evidências datadas pelo método Carbono-14 (C14).
O homem atual se autoengana sentindo-se não apenas civilizado em
relação aos “selvagens” que hoje figuram nos livros, mas qual um ser
esperto que a tudo domina.

Infelizmente, como dominador o homem soube apenas conter o


seu próximo, fazendo-lhe mal em graus que variam da simples
retenção ao cruel sadismo e, em certos casos, agindo de modo
psicopático por meio de comportamentos caracterizados pela frieza
afetiva. Assim evidenciou-se, por exemplo, através de milhares de
mortes de africanos que atravessaram o Atlântico rumo ao Novo
Mundo – vários, se houvesse suspeição de doença, eram amarrados e
jogados vivos às profundezas do mar -, entre 1700 e 1850, além dos
37

maus tratos permanentes que sofreram cada um (e seus


descendentes) dos que sobreviveram. Foi justamente quando se deu
a civilização que, através dos costumes, das leis e do amparo
religioso que o homem passou a escravizar o homem. Mesopotâmia,
China, Egito, Grécia, Roma, América Pré e Pós-colombiana deram a
sua aula de escravização com tenebroso primor registrado
inequivocamente pelas obscuras páginas da história. Outros registros
macabros de dominação vicejam no século 20: os campos de
concentração nazista e os seus 6 milhões de judeus durante a
Segunda Guerra Mundial; a imposição comunista que esmagou, sem
constrangimento, ao menos 60 milhões de pessoas que se opuseram
ao regime, dentre tantos outros. Ressalte-se que cada época e local
teve sua própria alegação para impor a escravidão ou seus ideais,
mas o que se aprecia aqui, todavia, é o fenômeno comum da
dominação perpetrado pelo homem.

Dominar a si mesmo, no entanto, faltou em demasia. O


autodomínio é uma meta. Sabe-se que não é uma coisa simples de se
empreender e lograr êxito, mas o primeiro passo leva ao segundo,
que leva... Consciência, vontade e persistência devem dar as mãos e
não se soltarem mais. Mas, muita acomodação e má vontade são
percebidas em pleno século 21. O fato é que ainda se vê o ser rude
esconder-se atrás da aparência social à espreita de uma oportunidade
para mostrar as suas garras afiadas, seja através de uma tola
desavença, seja por meio de uma discussão no trânsito com
estranhos ou nas agressões entranhadas nas relações familiares
entre marido e esposa e pais e filhos.

Na verdade, se for possível admitir, sem recorrer ao


autoengano, mesmo sob a dor da torturante luz do reconhecimento,
o bicho ainda está bem solto. Embora se use o polimento ao
cumprimentar os outros e fazer média social para a manutenção do
apreço de quem se tem especial interesse, o animal rudimentar com
38

organismo e DNA extremamente semelhantes aos de outros seres


locais está presente no “civilizado” convívio cotidiano. Tanto na
vizinhança quanto dentro de casa, a pré-história e a história
coabitam. A autoilusão faz o seu jogo ao entorpecer as ideias do seu
autor, alegando-lhe que os outros são atrasados, e ele, ao contrário,
é tão somente uma vítima que se vê obrigada a se defender dos
ataques violentos, usando para isso, de igual ou superior violência.
Não se reflete, porém, que se é prisioneiro das informações genéticas
e, portanto, por mais que se tente controlar o impulso animal
(empregando-se imposição social e autoimposição), é, grosso modo,
somente através da consciência a esse respeito que se pode evoluir e
deixar para trás, gradativamente, o lado natural, grotesco e por
vezes perigoso.

O entorpecimento psicológico turva a mente daquele que se


acomoda e pouco luta em seu próprio favor, pois enquanto houver a
crença de que os outros são os culpados pelo tipo de vida que se leva
pouco se andará na direção do crescimento. Enquanto a
responsabilidade não recair sobre si mesmo, a infantilidade
permanecerá disfarçada de azar e infelicidade. Enquanto não se
acreditar que é pelas próprias mãos que se abre o caminho da vida,
nenhuma estrada poderá levar ninguém ao seu justo destino.
Enquanto a fantasia se sobrepor a realidade de que a fé sem obras
faz milagre, nem céu, nem terra poderão se mostrar verdadeira e
legitimamente grandes. Não é à toa que se tornou famoso o grego
Sócrates, que tanto cultivou a reflexão (conhece-te a ti mesmo) e a
análise das equivocadas impressões que temos acerca de nós
mesmos e das coisas ao nosso redor, fato este que o levou à
sentença de morte (sob a acusação de corromper os jovens,
desrespeitar os deuses e violar as leis) por maioria de votos dos
quinhentos atenienses que o julgaram em 399 a.C.
39

Porquanto o grande objetivo no momento – excelente período


de conturbações globais que propiciam a autorrevisão por meio da
autoavaliação -, além de sobreviver, é virar o jogo e passar a dar as
cartas. É a superação do homo sapiens, do salto que se pode dar ao
invés de se manter nas passadas lentas e frustrantes tão comumente
observadas. Da inconsciência acerca daquilo que se crê ser à
consciência do que se é de fato. Do autoengano exagerado à noção
mais realista sobre si mesmo. Da culpa alheia à responsabilidade
pessoal. São atitudes essenciais, sem as quais se emperra o processo
da transformação pessoal. Sem enxergar a ferida não procuramos a
ajuda necessária. Aceitando-a com a devida clareza, porém,
corremos em direção do auxílio.

Você quer mudar e se superar? Não é uma pergunta qualquer e


pressupõe análise crítica, profunda, antes que se responda. O ponto
central está no fato singular de que somente você pode se autorizar a
autoavaliar-se, optando, por direito (quiçá o dever), ao
desenvolvimento em maior escala.
40

Homo entorpecidus

Desde que os nossos ancestrais pré-históricos iniciaram o


desenvolvimento do neocórtex, ou camada de massa cinzenta
cerebral mais recente, cuja função diz respeito ao uso da razão,
muita coisa mudou – já existiam outras estruturas primitivas
relacionadas ao instinto e às emoções. Saltos tecnológicos
conduziram o homem até ao quase inimaginável. Da pedra lascada à
modificação genética, o mundo foi testemunha de cada avanço obtido
através do pensamento e da ousadia. Mas tal avanço revela dois
aspectos dignos de nota: a evolução, por um lado, gerou o convívio
regrado entre as pessoas pelas determinações do que se
convencionou chamar de sociedade, e, por outra parte, as razões que
levaram o ser humano a empreender (e aceitar), obstinadamente,
tamanha empresa. Indaga-se, pois: que motivos impulsionaram o
homem a inventar tanto?

É possível estabelecer facilmente duas justificativas. Uma delas


é o conforto, pois nós somos atraídos pelo prazer e inversamente
repelimos o desprazer, reforçando, portanto, o apego ao bem-estar
que deriva de cada invento, além da economia de energia e
acomodação pessoais que se estabelecem inevitavelmente.

Outra prova versa sobre o desenvolvimento humano,


considerando-se tanto a aprendizagem quanto a mudança -
elementos fundamentais à sobrevivência e ao progresso evolutivo -,
sem as quais seria impossível a convivência humana.

Inicialmente, o ser humano teve que lidar do modo mais


grosseiro com os reveses impostos pela vida. Para melhorar a
condição em que se encontrava precisou pensar e aprimorar o
41

intelecto. Eis o preço cuja moeda foi a reflexão. Todavia, quanto mais
penetrava no novo universo da sapiência, tanto mais se abriam os
seus olhos diante de novos problemas mais sutis e menos
motivadores: a natureza mostrava-se nua e crua para aquele que
conseguira superar alguns graus de inconsciência a esse respeito. Do
ser tosco e sombrio que ficava para trás, em razão do homem que
desabrochava na direção da luz do saber, rompeu-se a cegueira que
camuflava a causticante realidade. Nasceu dai uma dor, profunda e
agonizante, levando o seu autor a ter de se defender. Eis a maçã
bíblica do paraíso?

Porquanto após trágico diagnóstico, restava ao enfermo o


automedicamento cuja cura lhe asseguraria a retomada do prazer
roubado pela olhadela que dera na inoportuna realidade. Foi então
que, sem se dar conta, passou a fazer uso do autoengano, tornando
as coisas mais suaves, pelo menos na sua aparência. Pelo menos
enquanto lhe fosse permitido ludibriar a si próprio.
42

E o engodo deu certo. O entorpecimento resultante foi bom. O


pesar febril cedeu. (Mas a infecção da ignorância não arredou o pé.)
O aconchego morno das vantagens relacionadas ao bem-estar e a
acomodação que se sucederam ajudaram a sustentar tamanha
arapuca. As estratégias se sofisticaram, e de invenções como o
agrupamento social das pessoas, legalizando o poder, o controle, e a
submissão (e a aspiração para tal), o suplício original revestiu-se de
roupagem aceitável. Com o tempo, cada invento, o casamento, por
exemplo, incorporou-se tão enraizadamente que o artificial
transformou-se em natural. É infantil, mas até hoje é percebido
assim.

Entretanto, a inconsciência ainda domina o homem. Para sair


dela é preciso enfrentar, mesmo sob forte dor, a realidade que o
psiquismo teima em negar. O próprio fato de o ser humano ser bem
pouco consciente sobre o seu próprio estado já é uma evidência da
escuridão em que se encontra mergulhado. Pior: se autoiludir,
convencido de que se situa em um alto grau de consciência, pouco
lhe criará incômodo, e, assim, dificilmente sairá do lugar, restando
atrasado e bastante inconsciente dos deveres e direitos que têm para
consigo mesmo. Não sem antes retirar, reflexiva e gradativamente, o
manto do entorpecimento que lhe atrasa consideravelmente a própria
evolução rumo à maturidade real e não autoenganada, como se pode
perceber atualmente com certo esforço consciente.
43

O lado sombrio da civilização

Selvageria e civilização podem ser descritas como etapas


culturais da humanidade. É claro que há aspectos civilizados
encontrados antes mesmo do estágio denominado civilização, tal
como a arte (pinturas rupestres e esculturas) de 35.000 anos atrás,
datada pelo método carbono-14 (C14), e, por outro lado, provou-se,
com facilidade, existir selvageria ao longo da fase civilizada,
percebida tão somente através da pesquisa histórica e da
observação. Tal fato é digno de nota e reflexão acerca do ser humano
e sua evolução. Não obstante, há um item que merece redobrada
atenção: a escravização humana, que nos leva a reavaliar a sua
origem, pois há diferença gritante entre o período selvagem e o
civilizado. No primeiro, não há evidência (algum desenho rupestre
que seja) de que o homem tenha se submetido à escravidão. No
segundo, porém, tal fato viceja em cada capítulo da história desde a
Mesopotâmia, a China e o Egito, por exemplo, sem falar dos gregos e
romanos, dos povos da América Pré-Colombiana ou dos estimados 6
milhões de africanos que atravessaram o Oceano Atlântico rumo ao
Novo Mundo, entre 1700 e 1850.

Com as muitas descobertas a respeito do homem de cro-


magnon, nosso ancestral surgido entre 90.000 e 40.000 anos atrás,
demonstrou-se que ele possuía substancial nível de inteligência,
através dos achados arqueológicos, além da sua refinada estratégia
de caça, que lhe permitiu proteção e sobrevivência com maior
qualidade – seus ossos estão mais preservados do que os do homem
de neandertal, que geralmente se feria quando agarrava às perigosas
presas ao atacá-las. Então, poder-se-ia teorizar que existiu a
possibilidade de o homem escravizar o próprio homem nessa época.
44

Todavia isso não ocorreu. Não há prova que sustente tal ideia. Assim,
restou voltar os olhos críticos para a civilização, que se constituiu,
ainda que primitivamente nos primórdios, por meio das leis e regras
estabelecidas no seio de cada sociedade, incluindo-se a escravidão
autorizada.

Então, é uma coincidência, ou a escravidão surgiu a partir da


sociedade civilizada? Mais: a escravidão poderia ter aparecido antes,
mas não havia respaldo (costumes ou leis) que a validasse? Até
agora, não notamos o lado sombrio da civilização, que consentiu e
aprovou legalmente a escravização de muitos homens ao longo dos
últimos milênios? A civilização é tão boa quanto a sua própria
propaganda? A conveniência e o oportunismo de alguns, baseados
nas diretrizes civilizadas, articularam a favor da escravidão alheia?
Por onde andou a civilização (nós, os seus representantes), todo esse
tempo, que não viu (ou não quis ver) nada disso?

Mas, cumpre-se ressaltar: há outros tipos de escravização, tal


como a psicológica (aparência física e posição social e financeira). O
autoengano é seu fervoroso representante, levando o homem,
entorpecidamente, a se autoperceber como alguém melhor do que é
de fato. Logo, emerge a questão: você pretende manter-se
aprisionado ou irá refletir e lutar para se libertar gradativamente,
ajudando, inclusive, a aperfeiçoar o modelo de civilização atual?
45

Uma babá muito louca

No demasiado estado psicológico inconsciente em que ainda


nos encontramos – basta verificar os inúmeros comportamentos
descontrolados e inconsequentes presentes nas pessoas -, portanto
bastante infantil, vale a pena lançar uma pergunta pretensiosa:
Quem pajeia o ser humano enquanto ele não adquire a maturidade
necessária para tomar, com maior consciência, as rédeas da sua
vida? Pela análise reflexiva que se seguirá, resta responder que o
próprio homem é babá de si mesmo.

Serão considerados dois aspectos na apreciação: genética e


convivência. De um lado, sabe-se que somos “reféns” das
informações advindas dos genes. Em estudos recentes sobre a
fidelidade nos relacionamentos, por exemplo, mostrou-se que o
homem sempre prezou a quantidade e a mulher, por outro lado, a
qualidade. Em outras palavras, o que interessa para o homem, do
ponto de vista biológico, é manter contato sexual com várias
parceiras, pois há um número considerável de espermatozóides a
serem disseminados e a dar continuidade à espécie. A mulher, ao
contrário, geralmente expele um óvulo. Logo, na maioria dos casos,
ela preza a seletividade, pois tal qualidade determinará, com grande
chance de acerto, o tipo de filho que terá. Tais características
encontram-se presentes nas informações genéticas que pretendem
cuidar da sobrevivência e da evolução da espécie. Eis, mesmo sem
percebê-lo, um exemplo de babá que sempre cuidou do ser humano
desde outrora.

A questão, contudo, não para por ai. Há outro dispositivo capaz


de gerar conflito frente à infidelidade animal. Desde muito cedo,
dispomos instintivamente da capacidade de desenvolver o apego com
46

quem convivemos. Graças a tal condição, aprendemos a dirigir e


receber afeto. Um tipo de preparação para a vida adulta, sem a qual
se torna difícil manter qualitativamente bem um relacionamento. Eis
outro modelo de babá com o qual o homem pode contar. Mas aqui
reside um problema, haja vista a exagerada interpretação social que
damos ao apego ao transformá-lo em instrumento de perigosa fusão
monogâmica e forte dominação, e não em apoio vincular mútuo. Por
tal fato, somado às aprendizagens obtidas no decorrer da vida, tais
como as proibições legais, morais e religiosas a respeito das questões
sexuais e da poligamia, gera-se uma gama de conflitos. Mas convém
ressaltar que os conflitos servem para nos incomodar e fazer mexer
aquilo que tende à acomodação, levando-nos a novos e fundamentais
desenvolvimentos.

Porém, ao observar o choque que se instala entre genética e


convivência sobre os relacionamentos, verifica-se que há pouco
controle acerca dos comportamentos, pois as pessoas não se dão
conta de tal fato, ignorando as informações dos genes e a sua
relevância na ideal continuidade da vida e o impacto causado pelas
criações sociais, a exemplo do controle conjugal. Então, tendo em
vista a falta de consciência sobre pontos tão cruciais, a sorte do ser
humano repousa na habilidosa estrutura que possui cuja combinação
inclui o psiquismo e a biologia e é através dela que, mesmo sob o véu
da inconsciência, vários dispositivos são acionados, oferecendo-lhe
cobertura em pontos onde não se enxerga. É a babá temporária do
homem, até que ele alcance, com o devido esforço, o estado de
consciência que lhe possibilite pensamentos e decisões maduros,
alterando, inclusive, as informações genéticas que influenciarão as
gerações vindouras – flexibilidade constatada nas constantes
mutações sofridas ao longo de milhares de anos. Percebe o nível de
responsabilidade aqui existente?
47

É de admirar que haja uma babá dentro de nós. Como é


possível existir tamanha sabedoria desde há muito? Mas, em razão de
tal babá perambular em meio às escuras vielas subterrâneas do mapa
inconsciente, ainda ocorre um punhado de erros grosseiros que
desencadeiam notáveis conturbações originadas nos excessos dos
conflitos. Porquanto, por hora, pode-se denominá-la de babá muito
louca.
48

O psiquismo a serviço da informação genética

Dentre as dúvidas acerca do papel do psiquismo na


sobrevivência da informação genética, foram selecionadas aqui
quatro perguntas para provocar a necessária reflexão. (1) É possível
ao ser humano desenvolver inovadores processos psíquicos à medida
que novas e imperativas demandas do convívio social - crescimento
populacional abundante e consequente competitividade pela
sobrevivência - surjam como obstáculo à adaptação e continuidade
da espécie? (2) Tal capacidade de inovação psicológica diz respeito à
plasticidade adaptativa animal inerente às mudanças sofridas pela
pressão externa do meio ambiente cuja transmissão das
correspondentes informações genéticas se dá às gerações seguintes?
(3) Que tipo de conflito pode se estabelecer diante do embate entre o
egoísmo da sobrevivência e o altruísmo da convivência, ambos
detectados pelo estudo evolucionista? (4) Qual o papel (e poder) do
pensamento lógico frente à poderosa força advinda das informações
genéticas impressas nos típicos comportamentos da sobrevivência?

Desde a publicação de “A origem das espécies”, de Charles


Darwin, em 1859, novas ideias acerca da origem e evolução humanas
se instalaram no meio científico e nas muitas opiniões sociais com as
suas ousadas e revolucionárias elucidações sobre o tema. Dali por
diante, ferrenhos opositores passaram a se revezar na batalha dos
argumentos que tentam manter hasteada a bandeira da indignação
gerada pela pretensão darwiniana. Revolta e censura são despejadas
aos montes sobre o evolucionismo, mesmo por parte daqueles que
pouquíssimo contato tiveram com a teoria. Autoengano? Por ventura
a imagem idealizada que o homem faz de si mesmo é proporcional à
antipatia que tem sobre a sua própria origem? Por outro lado,
seguidores e simpatizantes rendem-lhe homenagens póstumas
49

através de novos estudos, os quais reforçam os conceitos


fundamentais, e, por vezes, ampliam a biblioteca evolucionista com
novas e ainda mais desconcertantes descobertas.

Como parte desta análise, urge apontar que a demografia


global compõe-se atualmente de 6,6 bilhões de pessoas, e prossegue
em franca expansão. Evidencia-se, concomitantemente, a
desproporção que prevalece em relação à péssima qualidade de vida
registrada, cuja desnutrição já atinge mais de um bilhão de seres
humanos em 2009, conforme a estimativa da Organização das
Nações Unidas (ONU). Agreguem-se a este nebuloso cenário, os
crescentes efeitos nocivos causados pela irrefletida destruição
imposta à natureza, fonte essencial da vida. Mais: o desequilíbrio que
marcha impiedoso e veloz com as rédeas soltas do desemprego
(muita gente, pouca vaga e despreparo técnico; soluções
reducionistas; política), vitimando muitos trabalhadores. Ainda: a
violência, que ronda a paz de espírito e sobressalta os ânimos,
computando números que aumentam exponencialmente, sufocando e
criando uma atmosfera de medo e, em alguns casos, de pânico. Não
é de espantar que tais pressões, combinadas, provoquem o acúmulo
do desespero nas pessoas, levando-as a se comportar, às cegas, de
modo ativamente egoísta, dificultando, consequentemente, o
desenvolvimento do altruísmo. Salve-se quem puder?

É uma luta sem igual. De um lado, há informações genéticas


que cobram a sobrevivência a qualquer preço. De outro, conforme os
estudos realizados na Universidade Harvard, pelo biólogo
evolucionista Marc Hauser, o cérebro possui um mecanismo
geneticamente determinado para adquirir regras morais. Egoísmo e
altruísmo se confrontam ferozmente em razão de tentarem
estabelecer a sobrevivência e a convivência social, ambas
fundamentais à evolução humana. No entanto, a variável, neste tipo
de estudo, a competitividade, oscila em graus conforme o número de
50

participantes no jogo da vida. Isto é, quanto mais pessoas, maior é a


luta pela sobrevivência. E, para agravar a questão, quanto menos
recursos básicos (alimento, trabalho, segurança, esperança), menor é
a preocupação com os outros. Mais egoísmo, menos altruísmo na
complexa relação crescimento-sobrevivência.

Não obstante, o surpreendente potencial humano e o confronto


assinalado na forte competitividade que se alastra a passos largos,
fazem emergir, em maior dimensão, novas soluções que, a princípio,
podem trazer alívio e novo desenvolvimento à espécie. O próprio
conflito entre o egoísmo e o altruísmo pode ser a chave para abrir a
porta que dá acesso à nova direção no convívio entre as pessoas,
levando-as a rever os conceitos de sobrevivência e a modificar,
gradativamente, as informações genéticas que impactarão
oportunamente as futuras gerações.

Decorre que, todo conflito psíquico gera uma resposta


autorreguladora como efeito adaptativo à inquietante novidade que
se instalou. Não significa, contudo, que tal ajuste dê conta de
estabilizar o desarranjo, tendo em vista a inconsciência a seu
respeito, além do nível em que se encontra desenvolvido, tal como
qualquer outra capacidade humana. Quanto mais o ser humano se
conhece, e aos seus processos psicológicos, tanto melhor será o
controle sobre eles, além da qualidade que desabrocha no jardim dos
resultados. Entretanto, quantos conhecem tais “mistérios”? Aos
poucos, o psiquismo tenta gerar adaptação e avanço, variando de
pessoa a pessoa. Tal resposta autorreguladora, pois, para alcançar o
melhor efeito desejável em sua proposta, leva o seu autor a
experimentar em si mesmo, de modo inconsciente ainda, aquilo a que
submeteu outrem, aplicando-se uma ação concreta de igual teor e
contrária ao motivo que desencadeou o conflito, na tentativa de
neutralizar (ou minimizar) os efeitos da fonte provocadora. Trocando
em miúdos, o que se faz ao outro, recebe-se (através de si mesmo)
51

igualmente, seja algo prazeroso ou desprazeroso. Sábia natureza! Em


silêncio, ela toma o controle daquilo que ainda não se mostrou
devidamente à luz da consciência. Nada substitui tão efetivamente a
experiência que conduz à aprendizagem cujo significado é capaz de
valorizar e dar sentido ao conteúdo aprendido. Sentir na pele o que
se proporciona aos outros ainda é o melhor caminho para se
compreender as regras do jogo, realçando, conforme tal
entendimento, o altruísmo, e, minimizando o egoísmo, sem, porém,
esquecer-se do seu vital papel na luta pela sobrevivência.

Eis a importância da razão no processo conflitante que pretende


alavancar ainda mais aptidão, evolução e continuidade à espécie
humana, a qual demanda sobrevivência e ao mesmo tempo adequada
convivência, pois, quanto menor o grau de tal consciência, tanto mais
se lutará na direção oposta, valendo-se tão somente dos
comportamentos egoístas gerados pelas primitivas informações do
“vale-tudo” tão bem entranhadas na codificação genética. O saber
racional pode influenciar o desencadeamento da pretendida mudança
que diz respeito à superação por hora exigida conforme a bifurcação
seletiva que se nos apresenta. Apenas sobreviver já não atende às
necessidades atuais do desenvolvimento. É preciso ir além e valer-se
de outras fontes genéticas, pobremente utilizadas pela falta de visão
a seu respeito. É o psiquismo a serviço da genética. Ou ainda, a
cabeça a serviço da evolução.
52

Muito além do que somos

Qual é o nosso verdadeiro tamanho em relação ao


desenvolvimento humano? Será que somos potencialmente maiores e
bem pouco se enxerga a respeito? Não ver o prêmio futuro pode
causar desânimo e até oposição frente ao exigido e essencial
exercício do crescimento que se tem no presente? Nada é de graça! O
que pode nos levar a perceber tal possibilidade de avanço para que o
estímulo resultante nos impulsione em direção a um nível evolutivo
sem precedentes, superando as lentas passadas com as quais temos
caminhado através da estrada da vida?

Para tratar sobre o processo evolutivo, é prudente lançar mão


da teoria darwinista encontrada no livro “A origem das espécies”, a
qual atribui ao tempo, o acaso e a seleção natural o resultado daquilo
que hoje somos. A valiosa aptidão que se adquire faculta ao ser
humano (e às outras espécies) a possibilidade de manter-se vivo e
ainda transmitir tais informações à sua descendência. No entanto,
esbarra-se em uma delicada e complexa questão: como foi possível
ter-se dado a gênese de tudo que conhecemos sem se levar em conta
um criador com a necessária capacidade de planejar e concretizar?

Alguns pontos permanecem obscuros sem a devida análise, tais


como as capacidades de desenvolvimento preexistentes (semelhantes
aos típicos softwares da informática): desenvolvimento do apego para
o convívio; aquisição da linguagem; aprendizagem do saber e
formação da inteligência; constituição do jeito ético de ser; eclosão
das muitas consciências; noção e sentimento espiritual, por exemplo.

As discussões são travadas, infelizmente, em planos distintos e


isolados, com rara chance de conciliação. Vê-se orgulho, teimosia,
53

fanatismo e cegueira obstruírem o acesso ao merecido conhecimento.


Tal sapiência é capaz, a propósito desta reflexão, de promover maior
consciência e melhor desempenho na escalada rumo à maturidade
pessoal que hoje é pobremente encontrada no convívio social.

Não obstante, é possível detectar algumas movimentações em


prol de novas e interessantes perspectivas. Em 1993, o Professor
Phillip Johnson, da Universidade da Califórnia, reuniu alguns
estudiosos de diferentes áreas para que se debatesse o tão polêmico
assunto. Dentre alguns aspectos lá refletidos, destacou-se que havia
uma lacuna não preenchida por Charles Darwin. O fato é que, acerca
da primeira vida primitiva, segundo o que se concluiu, não seria
possível à seleção natural atuar antes da existência da primeira célula
viva. A seleção natural só atua sobre organismos capazes de se
reproduzirem. Então, o que causou, inteligentemente, o início da
vida? A tal indagação, respondeu-se com o que se denominou de
“Teoria do Design Inteligente”, condição anterior à existência. Assim,
é possível atribuir, de modo mais equilibrado, à maneira de cada lado
na ferrenha contenda, uma nova e mais justa explicação (ainda que
temporária, pois sabemos muito pouco ainda a respeito de muita
coisa) para a origem das espécies e sua evolução. Vale a pena, ainda,
lembrar da afirmação de Darwin na qual não lhe parecia existir
qualquer incompatibilidade entre a aceitação da teoria evolucionista e
a crença em Deus. Será que há um esboço, ao menos, de
harmonização entre as partes concorrentes?

Cabe, pois, ponderar exaustivamente acerca de tal proposta,


repensando, portanto, o que somos verdadeiramente no aqui e
agora, enquanto seres carecedores de considerável consciência e
desenvolvimento. Mas cumpre-se salientar o gigantesco potencial a
ser extraído através do necessário e pertinente exercício. Há muito
mais dentro de nós do que se pode perceber, mas cabe a cada um se
54

autoconhecer por meio da autoavaliação e tirar as próprias


conclusões com o passar do tempo.
55

Controle social e autocontrole

Qual é a sua opinião sobre a convivência entre as pessoas? Ela


leva em conta o lado primitivo tão presente nas nossas informações
genéticas? Ou as leis que tentam dominá-lo? Ainda: você tem
percebido alguma adequação evolutiva no controle social, ou a
maneira de fiscalizar tem sido a mesma desde longa data?

Há duas forças poderosas que controlam o ser humano em prol


do convívio social: a imposição externa, que se dá através dos
costumes e leis, e a interna, fruto da introjeção da primeira; da sua
aceitação legítima (parcial ou total), além da conveniência nela
implícita, em razão do interesse que cada um tem de fazer parte da
sociedade – obter apreço, sobrepor-se aos demais. As duas forças
controladoras são, no entanto, fonte de pressão adaptativa aos
moldes sociais e requerem constante policiamento. Do contrário, o
descontrole se impõe e causa riscos previsivelmente desastrosos.
“Enquadrar para conviver” é a regra do jogo civilizado para os
milhões de participantes que buscam o seu lugar ao sol na
convivência comum.

É claro que nos primórdios da vida humana as duas forças não


existiam. O tempo, a evolução e a necessidade de ajustes
comportamentais se encarregaram de introduzi-las gradualmente.
Mas, interessa-nos muito a análise que se deve fazer dos resultados
de tal fiscalização. Para tanto, é preciso refletir a partir de algumas
questões: será que o controle social existente possui a força
necessária para levar a maioria das pessoas ao enquadre e
consequente autocontrole requerido pelas determinações das
sociedades contemporâneas? Tal controle ainda é viável, mediante
tantas e tamanhas transformações ocorridas nas últimas décadas? Se
56

há defasagem no modelo controlador, que alternativa pode-se


propor? Mais: quem está interessado no assunto, e disposto a
colaborar com novas e oportunas sugestões?

A discussão ainda está limitada a poucos. Porém, o seu


interesse deve pertencer a todos. Afinal, aquele que se mantém
alheio acerca das coisas que podem lhe favorecer ou desfavorecer
não apenas ignora o controle sobre o seu próprio futuro, mas prende-
se a um modelo de presente fatalista, no qual o destino é sempre
uma surpresa, reforçado, ainda, pelas repetidas e limitadas
impressões do passado. Já pensou em tomar para si as rédeas da sua
vida? E o que você acha de estabelecer o autocontrole, determinando
sabiamente o que melhor lhe convém, respeitando devidamente o
seu próximo? Não está em você mesmo a construção e aplicação da
cartilha que controla o convívio social? E quanto às próximas
gerações, não estará na adequada educação (familiar e acadêmica) a
oportunidade de estimular o afloramento da responsabilidade pessoal
que fundamenta o essencial autocontrole?
57

A ponte Darwin-Freud: o sexo na evolução humana

Decerto que Freud (1856-1939) foi influenciado por alguns


pesquisadores ao tomar contato com suas ideias. O pequeno
Sigmund já era um leitor de mão cheia à infância e adentrava aos
mistérios da vida através dos livros que lia noite e dia, alcançando,
passo a passo, uma visão bastante particular de assuntos humanos
bem abrangentes. Foi assim que o pai da Psicanálise conheceu a
Teoria da Evolução de Charles Darwin (1809-1882), publicada em
1859, levando-o a refletir acerca da origem do homem e o seu
desenvolvimento, inclusive a relevância da Seleção Sexual no
processo evolutivo, da qual extraiu impressões que provavelmente o
estimularam a elaborar a sua própria teoria posteriormente. Nas
obras psicanalíticas encontram-se variadas citações a respeito: “...fiz
uso de certas idéias teóricas apresentadas por Darwin...” ou ainda,
“...as pesquisas de Charles Darwin e seus colaboradores e
precursores puseram fim a essa presunção por parte do homem. O
homem não é um ser diferente dos animais, ou superior a eles; ele
próprio tem ascendência animal...” Porquanto não é segredo a
existência de uma conexão de aprendizagem cuja influência
intelectual fez brotar novas flores no jardim do conhecimento
evolutivo, capaz de mudar sobremaneira o jeito de se enxergar a
humanidade e suas interações.

Estabeleceu-se, então, uma ponte entre Darwin e Freud,


levando o ser humano a dar novos passos na direção de inusitadas
compreensões, notadamente a importância do sexo na evolução
humana, tal como o desenvolvimento psicossexual existente na
criança. É através do que se denominou de “Fases Psicossexuais do
Desenvolvimento” que Freud pormenoriza a construção da
58

sexualidade que deverá culminar nas relações juvenis e adultas --


Fase Oral: destacando a boca como a primeira área do corpo onde se
focaliza a energia libidinal e inicialmente a pulsão básica do bebê é
receber alimento e carinho; Fase Anal: com o crescimento, a criança
entre 2 e 4 anos aprende a controlar os esfíncteres anais, e o foco
libidinal passa a se localizar no domínio fisiológico; Fase Fálica: ao
redor dos 3 anos, a criança já nota o seu órgão sexual e tende a
ocorrer estimulações nessa região, causando-lhe prazer, e entre os 5
e 6 anos até o começo da puberdade, denomina-se de período de
latência em razão de as aprendizagens sociais repressoras já terem
se estabelecido como regra de convivência; e, finalmente, Fase
Genital: fase final do desenvolvimento biológico e psicológico com o
retorno da energia libidinal aos órgãos sexuais. Ou seja, o sexo não
surge pronto na puberdade, qual um dispositivo que é ativado sem
qualquer competência anteriormente adquirida. Aprendizagem e
evolução tanto orgânica quanto psicológica moldam gradativamente a
sexualidade até ao ponto da maturidade para que a mesma aja com
vistas ao seu inequívoco papel milenar de reprodução e continuidade
da espécie, considerando-se também o apego qualitativo entre as
partes e os disparos hormonais.

Não existem, pois, outros processos com fases de


desenvolvimento também, a exemplo da aquisição da linguagem:
balbuciar, palavras e sintaxe? Por que seria radicalmente diferente a
aquisição da sexualidade?

Em um extremo da ponte, Darwin explicou a Seleção Natural


através da adaptação dos seres vivos aos diferentes ambientes, cujas
características favoráveis são herdadas sucessivamente, e
características desfavoráveis tornam-se menos comuns, levando,
inclusive, ao surgimento de novas espécies com a emergência de
novas e contínuas adaptações. Assim, o que não fosse adequado à
adaptação deveria ser descartado sob pena de seguir-se à extinção.
59

Todavia ele se deparou com um problema colossal que lhe roubou


noites de sono, dentre alguns exemplos perturbadores, destacou-se o
caso do pavão, que contrariava as determinações da Seleção Natural
com a sua imensa cauda multicolorida, capaz de chamar a atenção de
predadores facilmente e levar a respectiva espécie ao fim. Eis que
depois de muito pensar concluiu com primazia o fato de existir, além
da Seleção Natural, a Seleção Sexual -- a luta entre indivíduos de um
mesmo sexo, mormente o macho, pela posse de outro sexo, ainda
que existam críticos discordantes que apontem o sexo como uma
função social --, a qual dotou diferentes espécies de artifícios
(características morfológicas e comportamentos) que atraíssem
parceiros para que se executasse a reprodução com maior qualidade.
Bingo! A sábia natureza soube promover tanto meios de adaptação
através de características favoráveis herdáveis quanto atributos
atrativos relacionados ao refinado processo seletivo sexual existente.

Noutro extremo, Freud deparou-se com a construção natural da


sexualidade, passo a passo, fase a fase. Ele percebeu, como
pesquisador sério e vigoroso que era, como se desenrola o
desenvolvimento do sexo desde a infância, alimentando,
consequentemente, o arsenal de informações que o ajudou a localizar
no ser humano, inclusive, obstruções relacionadas ao fluxo das fases
psicossexuais e suas decorrências psicopatológicas, além da
formulação respectiva, ressalte-se, dos tratamentos propostos no
corpo do universo de ideias psicanalíticas.

O sexo tornou-se, desde tempos imemoriais, um mecanismo


precioso que oferece aos seres vivos condições de aperfeiçoamento e
adaptação aos ambientes, levando-os à sobrevivência e a graus
evolutivos sem os quais a vida cessaria. A atividade sexual é, de
longe, um fator determinante não apenas para a reprodução da
espécie, mas uma condição estratégica que reúne táticas específicas
de se aperfeiçoar ao cruzar genes diferentes e proporcionar seres
60

melhores na sua constituição e capacidade adaptativa. Não se pode


falar em vida e evolução sem se exaltar o sexo, seu desenvolvimento
ao longo do tempo, sua razão mais profunda de ser, seu incalculável
valor. O primitivismo da vida sexual nos trouxe até aqui,
atravessando todo tipo de sorte pelos caminhos que se impuseram na
jornada vital, e daqui a certo tempo, nossos descendentes
seguramente olharão para trás e terão o entendimento de que novos
avanços se deram no processo de reprodução e aptidão.

As belezas existentes nas visões de Darwin e Freud ultrapassam


em muito a fraca compreensão que se pode ter acerca da
sexualidade, cuja relevância no processo educacional, desde cedo,
em momento adequado, deveria ser defendida com unhas e dentes, a
fim de fazer despertar no complexo ser humano a sabedoria de
autocompreender-se melhor ao invés de atravessar uma vida inteira
desconhecido de si mesmo, e, ainda, sem se aceitar mais
amplamente por força da opressão e dos conflitos causados pelo crivo
civilizatório por motivos que sabidamente poderiam ser-lhe melhor
explicados. A ponte entre Darwin e Freud é tão somente uma ponte,
porém ela pode nos levar à reflexão de que assuntos ainda pouco
discutidos na sua profundidade estão relacionados entre si, e que há
razões lógicas para se alcançar resultados importantes obtidos de
equações proporcionadas pela natureza.
61

Maravilhas da evolução biológica

A natureza é cheia de mistérios. Porém, se levantarmos o véu


que a encobre, com o devido esforço da pesquisa e reflexão, é
possível enxergar algumas das suas exuberantes maravilhas,
especialmente o minúsculo universo microscópico. Refiro-me ao
processo de duplicação das células existentes em nós, seres
humanos. Pode-se considerar relativamente recente o estudo
aprofundado acerca de tal tema, pois a descoberta do microscópio
remonta a 1591, pelas mãos, provavelmente, dos holandeses Hans e
Zacharias Janssen. Mas coube a Antonie van Leeuwenhoek (1632-
1723), outro holandês, as primeiras observações de material
biológico.

Assim, foi possível compreender eventos biológicos que outrora


não se faziam visíveis, e, portanto, muito avanço acumulou-se desde
então. Entre um passo e outro na escalada do saber construído
através dos estudos realizados a partir do uso do microscópio, é
possível dar destaque a um processo relacionado ao controle de
qualidade existente na replicação das células. Ainda que não se tenha
consciência a seu respeito, lá está tal funcionamento, permitindo a
continuidade salutar da vida.

Convém, então, observar alguns trechos extraídos da literatura


das Ciências Biológicas. Eles oferecem rica explanação acerca do
processo aqui apreciado. Na descrição dos professores
estadunidenses, Guyton e Hall, “o verdadeiro processo pelo qual uma
célula se divide em duas novas células é chamado de mitose. [...]
“durante o intervalo de cerca de uma hora, entre a replicação do ADN
[ácido desoxirribonucléico], ou DNA, em inglês, e o começo da
mitose, existe um período de intenso reparo e de “revisão”
62

(proofreading) dos filamentos de ADN. Isto é, sempre que


nucleotídeos inadequados forem combinados aos nucleotídeos do
filamento original, que serviu de molde, enzimas especiais removem
os trechos defeituosos e os substituem por nucleotídeos
complementares adequados. [...] devido ao reparo e à revisão, o
processo de transcrição quase nunca comete erros”. Logo, as
atividades de reparação e de revisão, ocorridas durante a interfase,
período que antecede a mitose, são fundamentais, pois reduzem
sobremaneira as chances de ocorrerem erros que levariam a
mutações genéticas danosas. Não obstante, vale a pena levantar
algumas questões: o que determina o funcionamento de tais ações
reparadoras e revisoras? Como elas surgiram? Quando? Você percebe
algo profundamente sutil e inteligente nesses tipos de operações
qualitativas e protetoras?

É prudente iniciar a ponderação através da análise da


informação genética cujas alterações se deram em incontáveis vezes
ao longo do processo evolutivo das espécies. Muito provavelmente,
há considerável tempo, a necessidade de adaptação biológica,
considerando-se a conservação das características comprovadamente
úteis e a modificação e aperfeiçoamento de outras menos
interessantes levou ao desenvolvimento das mutações que
proporcionaram a continuidade da vida e melhorias às gerações
seguintes. De tal fato, conforme a pressão exercida pelo meio em
relação aos avanços prementes, deve ter surgido, dentre outras
características, a capacidade de automonitoramento voltada à
replicação celular. Com o passar do tempo e a prática contínua,
chegou-se a um grau de perfeição que poucos erros conseguem
passar pelo crivo do competente processo de reparação denominado
“revisão do ADN.” Você percebe grandiosidade nisso?

Urge indagar, pois, como é que tal informação surgiu nos


primórdios do processo aqui apreciado? Como foi que se deu, pela
63

primeira vez, a atividade reparadora e revisora, ainda que de forma


primitiva? Nessa fronteira que divide a ciência e o desconhecido é que
reside outro mistério a ser desvendado oportunamente. E nada
impede de se pensar a respeito, na tentativa de se buscar respostas
que permitam maior compreensão sobre o homem, e também que se
tire proveito de tal saber, favorecendo ainda mais o desenvolvimento
humano. Mesmo sem enxergar, grande é a nossa sorte, por ter algo
tão inteligente trabalhando em nosso favor, não é?
64

Mais de você em você mesmo

Aquele que se esconde atrás da falta de conhecimento, perde


bastante, pois reduz significativamente a marcha da própria
evolução, além de se manter escravo do seu manipulador
inconsciente, impedindo, por outro lado, que a consciência se
expanda e seja, cada vez mais, o melhor guia das inevitáveis
escolhas que surgem ao longo da vida. A própria inconsciência acerca
de tal questão já denota empobrecida pontuação na escala do
desenvolvimento. Mais: as gerações descendentes podem manter o
status da situação caso se acomodem e não ultrapassem os
ignorados portões de questões tão importantes. Assim, por mais que
tenhamos andado pelas vielas da história, muito atraso ainda se vê
nas esquinas desse caminho.

A fim de analisar o assunto, é possível recorrer à comparação


entre os nossos antepassados e a população atual. Sabe-se que o
Homo sapiens sapiens, chamado de Cro-Magnon, datado de 35.000
anos atrás, possuía características até hoje em nós existentes, tais
como capacidade de raciocínio abstrato e linguagem. São
interessantes os achados desta época, a exemplo das muitas pinturas
rupestres nas cavernas e, particularmente, do mamute de 4 cm de
altura e 7,5 gramas de peso, esculpido em marfim, guardado na
Universidade de Tübingen, na Alemanha. É claro que houve
transformação entre uma época e outra. Todavia, a mudança se deu
extremamente lenta. Ela não beneficiou devidamente, por exemplo, a
escolarização das emoções e tampouco primou pela introjeção da
ética. As sociedades contemporâneas sofrem em demasia por tal
descuido. Em incontáveis ocasiões, os descontrolados
comportamentos revelam o longínquo passado tão presente em nós.
65

O homem primitivo, nas palavras de Freud, sobrevive potencialmente


em cada indivíduo. Não obstante, uma coisa é ignorar, outra é
desdenhar. O que se pode fazer a respeito de uma premente e ágil
melhora em favor do desenvolvimento humano?

Não há mágica, e o tempo se imporá inevitavelmente, causando


a frustrante sensação de que há pouco remédio para tamanho
diagnóstico. No entanto, é possível obter ganhos valiosos, desde que
o projeto inspire a missão de empreendê-lo cuidadosa e
dedicadamente. O processo de transformação é moroso e se dá
através da boa educação que contemple, dentre outros fatores, o
estímulo à reflexão e ao autoconhecimento – especialmente a
autocrítica de se perceber exageradamente atrasado no gráfico
evolucional - para que, em razão do desconforto que se segue, a
pessoa decida modificar-se, pois, do contrário, no estado acomodado,
ela será negligente e inconsequente para com o seu próprio
adiantamento. Cumpre alertar a respeito das artimanhas do
autoengano, rapidamente acionado pelo sofrido ego que não admite
entrar em contato com as próprias deficiências, proporcionando ao
seu autor a boa sensação de que se é evoluído, até melhor do que
tantos outros. Porém, cuidado: é puro blefe, desespero que corre às
cegas nos subterrâneos do psiquismo!

O hábito da autoavaliação das insuficiências permite ao homem


enxergar mais acerca de si mesmo e entender que não deve reduzir
as passadas que buscam o desenvolvimento, o qual, infelizmente,
ainda não foi compreendido à altura do benefício que pode oferecer,
pois só experimenta o doce gosto da evolução quem se dissocia, em
boa conta, da amarga taça da autoilusão.
66

Afortunada rebeldia

Somos ávidos pela estima social e nos esforçamos por


conquistá-la frequentemente. A sua dependência atinge graus
exorbitantes na escala das posições sociais, pois a simpatia, sua filha,
é um poderoso instrumento que abre as portas e dá acesso ao que
tanto se anseia para benefício próprio. Contudo, se de um lado somos
incontroláveis consumidores do apreço alheio que pode nos beneficiar
convenientemente, de outro, não se pode tapear a própria origem
animal da qual somos reféns desde a origem mais primitiva cuja
informação genética – modificada e adaptada – faz resultar, ainda
nos dias atuais, nos mais variados tipos de comportamento afeitos ao
egoísmo e às indelicadezas tão facilmente identificáveis no cotidiano.
É o confronto entre a natureza rústica e a roupagem civilizatória.

O que não se enxerga, entretanto, é que paga-se um alto preço


por cada cota de investimento que se faz socialmente à espera das
“espontâneas” retribuições que se seguem peculiarmente através das
relações de troca de favores. Tal custo se deve ao enquadramento a
que nos submetemos a fim de atender ao que os outros esperam,
sobretudo aqueles por quem temos especial interesse. Assim, se um
dado benefício pessoal acena-se possível, ainda que vagamente, nos
esmeramos em adequar-se à moldura daquilo que se espera de nós
na contrapartida de recebermos o merecido prêmio. Para tanto,
passamos da cara fechada ao sorriso amistoso e da crítica severa à
desmedida bajulação com vistas ao rendimento de tal aplicação. Em
incontáveis casos, chegamos mesmo a nos convencer de que assim o
fazemos naturalmente e sem segundas intenções. É o aliviador
autoengano ao afastar o mal-estar que tenta impor a verdade em vão
ao se intrometer onde não foi convidado.
67

O enquadre da submissão pessoal em troca da aceitação social


exige do seu autor o bloqueio da autenticidade, razão pela qual leva a
média de pensamentos a se aglutinar ao redor da aparência e a
limitar o uso da inteligência criativa que, basicamente, é estimulada
frente ao diferente e não ao comum. Porquanto ganha-se na
convivência com o ajuste socializável – credite-se também o fato de
ele ser um importante agente civilizatório - e perde-se,
significativamente, com o bloqueio da criação e da inovação. Ora, se
um dos requisitos mais essenciais do mundo contemporâneo, em
destaque a área profissional, é justamente a criatividade, capaz de
fazer enxergar além do vulgar e propor saídas alternativas para os
problemas que se avolumam por sua natureza crescentemente
complexa em decorrência da acirrada competitividade, então muitos
andam, inequivocamente, a lentas passadas, retardando a
progressão que poderia ocorrer mais estimulante e velozmente.

É de convir, pois, que o enquadre imposto pela necessidade de


estima social geralmente dá resultado naquilo que se propõe fazer.
Todavia, ao fixar-se nesse modelo de convivência a pessoa tende a
restringir tanto o exercício da criatividade e do autodesenvolvimento
quanto o campo de atuação pelo simples motivo de ela se acomodar
submissamente como forma de se satisfazer com o seu lugar ao sol.
Mas não percebe, tristemente, que é atingida por uns poucos e fracos
raios da luminosidade e quentura, em contraste à abundância que lhe
aguarda ao preço de romper, dosadamente, com o enquadre social
autoimposto.

Afortunada é a rebeldia da autenticidade ante tal enquadre; ela


é uma poderosa chave para mudar a crença aprisionadora e abrir
porta bem maior do que se supõe existir, pois verdadeiro portal é
aberto àquele que ultrapassa criativamente os limites da mesmice e
resolve questões até então insolúveis a despeito da simpatia social,
pois na hora do “vamos ver” o que conta é o resultado.
68

Caos, ordem e desenvolvimento

É com extremada relevância que a desordem se impõe aos


ritmos ordenados da vida, provocando a oportunidade de
desestabilizar e, portanto, incomodar e convidar ao desassossego,
permitindo assim os avanços que só acontecem mediante mudanças.
Aquele que espera por estabilidade contínua certamente se frustrará,
além de não compreender a essência das transformações e do
desenvolvimento, retardando maior velocidade a que tem direito nas
passadas que adentram o saber e o estreitamento da relação entre o
presente e o futuro.

O caos faz parte da sobrevivência e aperfeiçoamento das


espécies, em destaque o ser humano. Algumas ciências assim o
atestaram inequivocamente através das comprovadas transformações
geológicas e das mutações genéticas que imprimiram novos
resultados ao longo de milhares de anos. Sem a devida inquietude
tendemos à acomodação aprisionadora. As sociedades se
beneficiaram do espinho caótico que lhes importunou ao ponto de se
reorganizarem dramaticamente (política e economicamente, por
exemplo) a fim de se manterem sobreviventes na corrida global e
quiçá galgar lugar no atraente ponto alto do pódio.

Mas como se processa tal análise na vida corporativa? Um


interessante foco incide sobre os profissionais cujo desempenho
evolutivo se situa, grosso modo, em escores empobrecidos. Embora
alguns poucos alcancem altas pontuações na escala dos resultados,
muitos outros, contudo, demonstram rigidez e atraso. Dentre os
inúmeros fatores que se combinam e estabelecem a fórmula de tal
resistência ao progresso destacam-se a falta de clareza sobre o que
se quer fazer de fato na vida; a ausência de métodos para o melhor
69

aparelhamento frente à competição que se torna crescentemente


mais agressiva (não se pode esquecer a poderosa informação
genética acerca da luta pela sobrevivência); falsas e enraizadas
crenças que sinalizam o paternalismo estatal ou de qualquer outra
fonte como o adequado remédio social em detrimento do esforço
próprio e da autonomia consequente; e, notadamente, a
incompreensão que orbita na esfera das perturbadoras alterações
sociais.

Se o chacoalhar das conturbações que antecede as inovações


profissionais for entendido apenas como um mal-estar inevitável, sem
se extrair dele maior proveito que estimule o crescimento, então
resta somente fazer-lhe oposição, impedindo, por conseguinte, a
própria imersão na oportunidade que passa bem à frente mas é
irrefletidamente ignorada. O trem passa e o passageiro fica. A fumaça
exalada na estação é vista como um malefício intoxicante que lhe
serve oportunamente de desculpa para não ingressar na
beneficiadora viagem. É o autoengano dando as cartas no triste jogo
do atraso e da omissão do desenvolvimento para consigo mesmo.

Enquanto não houver abertura e maior consciência sobre a


serventia do caos das transformações, pouco (ou nada) se enxergará
acerca da ordem e do desenvolvimento que se sucedem
peculiarmente. As corporações devem estimular a gestão da mudança
em seus colaboradores, é claro, mas é certo que deve partir deles,
logicamente, a reflexão e o movimento que pretendem atrair a
prosperidade.
70

O poder de criação do homem

É necessário ao homem entrar em contato consigo mesmo, de


forma profunda e permanente, levando-o à libertação do atraso ao
qual se submete, fruto tão somente das impressões autocriadas
desde os primórdios. Para tanto, é prudente apreciar o que já se
conquistou: do simples agrupar-se em bando primitivo à complexa
convivência na sociedade contemporânea. Do manuseio do fogo pré-
histórico à combustão que impulsiona os meios de transporte atuais.
Da formação rudimentar da comunicação ao moderno e sofisticado
sistema de informações online. Da imagem animalesca natural que o
precedeu à escultural silhueta deliberadamente manipulada e tão
avidamente perseguida. Ou, resumidamente, do sonho à realização
de tudo quanto lhe foi possível empreender. Ele pode bem mais,
todavia não acredita, porquanto não ousa pensar a respeito. Pois, a
partir do momento em que investir em impensados terrenos, ali
certamente lhe renderão novos e interessantes resultados. Assim
procede-se desde o advento dos primeiros traços da inteligência.

Logo, à exceção dos recursos naturais, todo o resto foi


inventado para fins da adaptação humana (e também atender à
obsessão pelo conforto que hoje faz adoecer pela acomodação física,
intelectual e espiritual), obedecendo às informações genéticas que
sempre impuseram a sobrevivência, o aperfeiçoamento e a
continuidade transmitida às gerações posteriores. Emerge, portanto,
a perspectiva de que o homem possui imenso poder de criação.
Embora soe óbvia tal afirmação, ela é desconhecida ou duvidosa para
grossa parte da população, haja vista poucos se darem conta de que
carregam consigo tamanha capacidade criadora. Ela ainda permanece
no campo do mistério. Muito do que se concretiza ainda diz respeito
71

aos desejos inconsequentes, sem a devida consciência daquilo que


deve ser ambicionado, e do correspondente e necessário grau de
empenho e persistência, levando muitos a desistir das suas
realizações. De um lado, há desejos concretizados inadequadamente,
e de outro, existem aqueles que são abandonados durante a sua
própria gestação.

A questão, contudo, não se encerra. Deve-se considerar, ainda,


que as invenções geradas pelo homem podem ruir de modo
igualmente poderoso, deixando-lhe à mercê do fracasso – ainda que
possa recuperar-se posteriormente e prosseguir a sua jornada.
Refiro-me ao fato de as invenções serem apenas efeitos causados
pelas ideias humanas, e como tal, serem frágeis, pois elas são sólidas
apenas na aparência. Basta analisar a falta de controle existente nas
sociedades ao redor do mundo, a corrupção alastrada e a violência
(maneira pela qual se expressa o nosso lado primitivo ainda muito
presente) atestam facilmente tal descontrole e a pretensa solidez
(além da infantilidade na escala evolutiva). Tal autoengano é
necessário em razão da esperança depositada na ordem das coisas.
Do contrário, perder-se-ia a fé e o rumo. Apegamo-nos
vigorosamente ao jogo tecido pela teia da autoilusão. No entanto, os
exageros voltados ao conforto egoísta têm se sobrepujado às
necessidades comunitárias, dificultando exageradamente a
manutenção das conquistas inventadas. Ou seja, muito desejo tanto
egoísta quanto inconsequente produziu-se nos últimos tempos,
levando, doentiamente, o convívio social ao sufocamento.

Entretanto, só o homem, inventor da atual situação, pode


modificar o cenário. Mas é preciso convencer-se disso primeiramente,
pois, infelizmente, os poucos desejos de transformação favorável
percebidos por hora são abortados pela descrença que se instalou
ferozmente através de outros tantos desejos inconsequentes.
Reflexão, consciência e ação podem mudar profundamente o que se
72

tem em mira. Eis o poder de criação do homem, que só pode ser


percebido mediante o testemunho consciente do seu autor.
73

Potencial de aprendizagem e autossuperação

É prudente compreender a dinâmica evolutiva do potencial que


regula o acesso a cada nova aprendizagem a que se destina o
aprendiz. Por potencial, entende-se aquilo que é possível – por vezes,
o “impossível” também. Algo anteriormente disponível, mas que
necessita de certo exercício para tornar-se manifesto. Potência e ato.
Qual a geração de um ser e o seu respectivo parto. É por tal
exigência prática que se obtém um determinado tipo de resultado
para o que se pretende enquanto manifestação da aprendizagem.

No entanto, emerge uma intrigante lista de perguntas: por que


uns enxergam mais potencial de aprendizagem do que outros? Que
razões levam alguns a avançar bem mais, mesmo em condições de
igual estímulo recebido pelo meio de convivência? Ainda: E aqueles
que, apesar da miséria a que foram submetidos desde a sua infância,
extraíram de si muito mais do que se acreditou ser possível? Que
limitação encarcera a pessoa à escuridão da ignorância, tendo em
vista a ampla possibilidade de libertação existente na luz do saber?

Dentre as possíveis hipóteses (considere-se a combinação delas


também), destaque-se o avanço e as restrições do próprio potencial
de aprendizagem. Refiro-me à capacidade de expansão do potencial,
cuja elasticidade, resultante da aprendizagem e seus progressos, é
capaz de determinar maior ou menor perspectiva a respeito das
possibilidades de se investir na busca por mais conhecimento. Quanto
menos ocorre tal desenvolvimento, tanto menor é a dilatação do
potencial, e reduzida é a visão que se tem de maiores possibilidades.
Por outro lado, mais crescimento é sinônimo de maior dimensão
potencial e correspondente expectativa.
74

O potencial, portanto, não se encontra totalmente disponível


àquele que investe na sua aprendizagem. Ele oferece apenas uma
parte de si à transformação que culminará no ato. Assim, sugiro a
existência do que denomino de “Potencial Primário de Aprendizagem”
(PPA), ou potencial total, que é disforme, e assume uma posição pré-
potencial, que, à medida que é bombardeado por investidas do
aprendizado, produz dois resultados distintos: 1) parte dele
transforma-se em produto acabado para o que se potencializou
inicialmente e; 2) a outra parte se modifica em produto semi-
acabado, ou “Potencial Secundário de Aprendizagem” (PSA), à
disposição de novos estímulos e mudanças. A disponibilidade da
aprendizagem, pois, encontra-se na condição imediata, através do
PSA, o qual pode, conforme o grau de desenvolvimento atingido,
estimular a transformação do PPA, levando o aprendiz a perceber
maior terreno a ser percorrido, com crescente motivação, na
aquisição do saber.

Porquanto, muito pouco percebe acerca do quanto se pode


avançar, aquele que se estimula empobrecidamente, limitando-se a
uma pequena predisposição relacionada à expansão do potencial de
aprendizagem. Todavia, felizmente, enxerga bem mais quem investe
em maior grau na própria aprendizagem, fazendo crescer os limites
do PSA e, sobretudo, do PPA e da expectativa de ainda maior
investimento. Quem vê menos, pouco acredita que pode ir longe,
limitando-se. Quem vê mais, não só acredita como avança pela trilha
dos próprios esforços evolutivos, superando-se.
75

Quem acredita na tábula rasa?

Quem acredita na tábula rasa? Quem crê nos fatores genéticos?


Quem considera ambas as possibilidades na hora de preparar as
aulas, planejar o modo de absorver melhor a frustração e o desgaste
gerados pelas múltiplas respostas obtidas dos diferentes tipos de
alunos numa mesma sala educacional? Longe de pretender apaziguar
os radicais de plantão (sobretudo os seguidores da mente límpida
inicial), e relativizar a questão, e, do modo mais fácil querer atenuar
este duro embate secular, é fundamental que se conheça mais
profundamente cada lado da moeda que divide não apenas os
profissionais da educação (e de outros setores), mas cria conflito na
esfera pessoal, na intimidade que tenta refletir a respeito do que se
sabe acerca do assunto e o que se observa na prática docente (e no
lar!).

Não adianta apenas alegar (para os mais moderados) que o


meio termo é a tábua salvadora, haja vista ter-se comprovado, sem
ressalvas, que ora a genética impõe-se altiva, a exemplo de certas
características determinantes (dos pais e de ancestrais anteriores a
eles) observáveis já na pequena infância, e outras com o decorrer do
tempo, ora o ambiente bate o pé e dá as cartas no jogo evolutivo,
sem se esquecer de que ambos conspiram para uma adequada
finalidade: a melhor adaptação possível da espécie. Como bem
expressou o psicólogo evolucionista estadunidense Steven Pinker, “Os
genes que constroem um fêmur não podem especificar a forma exata
da cabeça no topo do osso, pois ela tem de articular-se com o
acetábulo no quadril, que é moldado por outros genes, pela nutrição,
idade e acaso. Assim, a cabeça e o acetábulo ajustam sua forma
conforme fazem a rotação um contra o outro quando o bebê
76

esperneia no útero.” Ao afirmar que se leva em conta tanto um


quanto o outro, é crucial que se compreenda o que já se conquistou
por meio da pesquisa e o imenso cosmos do saber ainda a ser
explorado pela dimensão e complexidade presentes.

Se o professor tende para a tábula rasa, e nela deposita as suas


aspirações de ensino, como lhe é possível diagnosticar aspectos
típicos da genética que lhe fogem ao entendimento? Mais: que tipo de
intervenção pode ser desenvolvida se o quebra-cabeça assume a
configuração do todo contando apenas com algumas peças? Por que
não ponderar? Autoengano? É preciso lembrar que a informação (em
quantidade e qualidade) é o X da questão, e se ela falta ou é
insuficiente, deficiências ganham terreno na esfera da educação.
Portanto, além do conhecimento técnico que se tem em mira na
aprendizagem, torna-se premente que se saiba muito mais sobre as
bases que estimulam, desestimulam, facilitam, dificultam, fortalecem,
enfraquecem, calcadas no ambiente, é claro, mas na genética
também.

Quem deseja desconsiderar um lado (notadamente a natureza),


e seguir a sua jornada educacional sem rever o tema? Que aridez o
aguarda na estrada das relações humanas e do cumprimento da
importante tarefa de estimular o aprendizado e a superação própria?
Quem acredita na tábula rasa? Quem pretende arregaçar as mangas
e investir pesado no estudo da natureza humana e da sua parceria
com a criação?
77

Jogo de cartas marcadas?

Após tantos anos de pesquisa, compreende-se melhor hoje o


peso que possui cada um dos lados de uma antiga disputa: genética
versus ambiente. Doenças entranhadas no genoma, por exemplo,
prontas para dar o bote ao longo da vida, podem perder a sua força
natural diante de uma vida com qualidade (cada pessoa deve
encontrar o seu ponto de ajuste), e, assim, um adequado ambiente
pode se mostrar o santo remédio para o “irremediável”. A
predisposição teórica de certas informações genéticas pode ficar
apenas na vontade e não ganhar terreno na prática diária do viver
mediante fatores como alimentação, exercícios físicos, equilíbrio
emocional, ocupação mental etc. Porém, caso o cotidiano não seja
salutar, certas letras do DNA tendem a concretizar as promessas
nelas embutidas, então o famigerado “destino” se cumpre
rigorosamente.

A linguagem é outro bom exemplo, haja vista todo ser humano


nascer equipado biologicamente com ela, e, se não houver nenhum
acidente de percurso tal como uma doença ou lesão cerebral que
afetem regiões fundamentais da fala, ou um forte trauma psicológico,
a criança poderá desenvolvê-la nas suas já conhecidas etapas.
Todavia já se comprovou que mesmo dispondo de tal recurso
genético, se não houver uma estimulação adequada no convívio com
outras pessoas, os resultados podem variar do desfavorável ao
extremamente empobrecido.

Não obstante, mesmo que o ambiente tenha o seu papel crucial


na vida do ser humano, somos reféns de informações genéticas que
sequer podemos ter consciência a seu respeito. Egoísmo, altruísmo,
compaixão, sexo, agressão. De algumas se pode escapar, de outras,
78

no entanto... Ou seja, independentemente de acharmos que temos o


livre-arbítrio da nossa própria vida, e que tomamos decisões
autônomas, a coisa não funciona bem assim? Ninguém é tão livre?
Quantas escolhas fizemos que já não estavam na fila das tendências?
Quantos pontos de vista “originais” estabelecemos que já não se
encontravam escondidos atrás das cortinas genéticas nos palcos da
vida? Afinal, é tudo um jogo de cartas marcadas? Cadê a liberdade de
escolha?

É preciso cautela e detalhamento para avaliar tais questões.


Contudo, é certo que elas dizem respeito ao jogo evolutivo que impõe
toda a herança genética de antepassados em nós disponível (hoje
somos o resultado das muitas adaptações que venceram a teimosa
extinção), e o ambiente, que, quanto maior for a consciência a seu
respeito, tanto melhor poderá ser a articulação entre a natureza e a
criação.

Saber mais, pois, é um dos importantes objetivos a se atingir.


Não somos tão livres em um jogo de cartas marcadas, é evidente que
há poderosas forças biológicas atuando em direções pré-
estabelecidas. Por outro lado, não é visível que está em nossas mãos
como a natureza poderá se manifestar, dependendo de que modo lhe
imprimimos a nossa forma de pensar e agir, pesquisar, avaliar e
mudar o que for necessário?
79

Evolução criativa

A aparente estabilidade que encobre as lentas modificações


sofridas desde a existência da primeira célula primitiva é apenas uma
ilusão acerca do equilíbrio tão amplamente desejado pelo ser
humano, que sempre almejou se sentir seguro ante o caos que
verdadeiramente é a nossa realidade. Contudo, nada detém a
essencial marcha da vida, que é capaz de proporcionar novos
caminhos a cada obstáculo que surge na vasta caminhada evolutiva.
E é justamente em razão de cada conflito que se impõe a
superação criativa e a vital adaptação, cuja informação genética é
transmitida à geração seguinte, como no caso dos seres humanos,
por exemplo. Não é à toa que se diz, popularmente, que a
necessidade é a mãe da invenção. Quando o avanço é crucial, e é
preciso deixar para trás algo do qual não se precisa mais, portas
desconhecidas se abrem a novos acessos. Um fator determinante
neste cenário de modificações voltadas à sobrevivência é a
aprendizagem, que permite a aquisição de novos saberes
relacionados às maneiras de se lidar com o mundo em constante
mudança.
Aprender é ampliar as capacidades inteligentes presentes no
homem, levando-o a extrair mais recursos de si mesmo. A cada nova
aprendizagem, nova desestabilização surge, rompendo com o
temporário equilíbrio. Por sorte, pois é através de tal inconstância
que se obtêm novas e cruciais respostas às frequentes questões do
desenvolvimento. Então, quanto mais se aprende e mergulha-se no
mar da sabedoria, tanto melhores serão as chances de encontrar
abundantes recursos em si mesmo a fim de transpor cada barreira
que, inevitavelmente, surgirá ao longo da vida.
80

Aprender, contudo, requer do aprendiz constantes doses de


vontade e espírito persistente na aquisição do saber. E, no atual
estágio evolutivo em que nos encontramos, somos presas fáceis da
cegueira e da acomodação, as quais nos levam, convenientemente,
ao descrédito relacionado ao conhecimento – fugimos dos livros, da
reflexão e da criação – e à conformação com o próprio estado
notadamente atrasado.
Queixamo-nos consideravelmente de tal marasmo, mas não
empreendemos as mudanças criativas que certamente podem auxiliar
na virada da mesa das nossas próprias inquietudes. Tememos as
mudanças sem entender que nelas residem as auroras do avanço e
da sobrevivência. Desejamos o sossego em demasia sem nos dar
conta de que a sua serventia é temporária, e
não permanente. Despercebidamente, lutamos contra nós mesmos.
Vê-se nisso o desgastante embate que o ser humano trava consigo
mesmo no escuro proporcionado pela falta de conhecimento.
Evoluir criativamente, portanto, diz respeito (e muito!) ao
envolvimento que se tem com o saber e a prática do pensamento
reflexivo, cujos resultados, via de regra, são ideias inteligentes, que
procuram substituir velhos recursos por novos, à medida que as
transformações fazem-se imperiosas para o nosso aperfeiçoamento e
a vital continuidade.
81

Os despertares da inteligência evolutiva

Ao comparar os achados pré-históricos do homem de


Neandertal e do homem de Cro-magnon (nosso antepassado),
emergiu uma importante pergunta: o que os diferencia tanto, a ponto
de justificar o considerável desnível de inteligência existente entre
ambos, ainda que a leitura genética os aproxime? Os recentes
estudos apontam para algumas possíveis respostas, as quais se
relacionam ao tipo de convívio, além da alimentação rica em proteína
obtida pela carne ingerida (desenvolvimento cerebral), fato já
verificado por meio da análise dos isótopos das partes proteicas
presentes nos ossos das duas espécies.
As evidências mostram que os Neandertais viviam em pequenos
grupos de 15 a 20 membros, e sua atividade comum era a caça, a
qual contava com o apoio coletivo, haja vista eles terem de se lançar
à sorte quando se deparavam com enormes e perigosos animais
(significativa porcentagem das ossadas está quebrada e perfurada).
Para ter êxito, foi necessário o mínimo de comunicação entre eles
(sua laringe é idêntica à nossa, permitindo um sistema de linguagem
à época), além do tamanho do crânio, com variação entre 1.200 e
1750 cm³ (maior que o nosso em alguns casos). Logo, nem o tipo de
alimentação, nem a anatomia do Neandertal o impediram de
deslanchar na escalada evolutiva. O que foi então?

Uma das hipóteses mais bem aceitas no seio da comunidade


científica é o despertar mais aguçado da inteligência humana a partir
de dois fatores: o desenvolvimento tecnológico de ferramentas
específicas frente a cada nova dificuldade encontrada pelos Cro-
magnons (criatividade e flexibilidade) e a farta rede de comunicação
entre os seus grupos dispersos nas muitas regiões (inteligência
82

social), o que levou ao exercício das trocas de objetos por eles


produzidos: armas (pequenas pontas de lança de obsidiana, uma
rocha vulcânica de fácil manipulação encontrada em lugares
longínquos), adornos (colares feitos dos dentes humanos e réplicas
esculpidas de conchas marítimas) e o arsenal artístico (pinturas,
esculturas e instrumentos musicais: a flauta primitiva).

Os Neandertais, contudo, possuíam uma mente inflexível, tanto


que seus instrumentos de caça não tiveram mudança significativa ao
longo da sua existência. Era empobrecido o nível de interação entre
os grupos, assim, ao que tudo indica, houve um sistema de
comunicação que serviu apenas para as atividades localizadas de
caça e convivência mínima dentro do pequeno agrupamento. Eles se
limitavam pela baixa qualidade de produção tecnológica e a escassa
interação social, impedindo a expansão da aprendizagem e de novos
horizontes cujas descobertas normalmente estimulam o
desenvolvimento.

Cabe, pois, a nossa mais profunda reflexão, pois os louros e


glórias transportados através das sucessivas superações (algumas
mais ágeis, outras...) assinadas nos genes da continuidade,
contrastam às vagarosas passadas dadas atualmente e ao potencial
disponível. Será que nos acomodamos? Por ventura nos sentimos
bem superiores a tudo o que observamos ao nosso redor e assim
colocamos o burro na sombra? Será que não é o momento de acordar
com uma chacoalhada reflexiva e perceber que há muito (é indizível o
tanto!) à frente? Se o passado permitiu o despertar da inteligência
evolutiva, o presente também pode fazê-lo, não? E o futuro, o que
esperar dele? Não chegamos ao cume da montanha, estamos na sua
base. Será que a cegueira produzida pelo autoengano impede o
acesso a novos e maiores saltos na jornada que muito promete se
houver empenho?
83

O círculo vicioso da expectativa autoenganada

Resumo

As expectativas depositadas no outro, se não atendidas, podem


causar frustração, raiva e tristeza, em graus que variam conforme a
necessidade de cada um ser atendido em tais demandas. Várias
expectativas são bem claras, cuja consciência permite que se elabore
uma nova estratégia que vise a alcançar o desejo até então frustrado
em outro momento oportuno. No entanto, há algumas expectativas
que demonstram ser insaciáveis (normalmente relacionadas à
ausência de atenção, reconhecimento e valorização), levando a um
círculo vicioso de mal-estar resultante, chegando mesmo a se
estender por uma vida inteira, caso não se enxergue a raiz da
questão, que na maior parte das vezes não é evidente. Não obstante,
é comum, e até cômodo, culpar outrem por tal infortúnio emocional,
mas o que não se sabe é que tais expectativas (surgidas qual um
mecanismo de defesa, o autoengano, presente na informação
genética cuja preocupação é se adaptar e lograr a sobrevivência da
espécie), que levam ao círculo vicioso da frustração, da raiva e da
tristeza, se originam, via de regra, na infância, e acompanham a
pessoa até a vida adulta, levando-a a manter um quadro antigo,
mascarado e atualizado de “novas demandas”. Somente a séria
autorrevisão (e psicoterapia) permite que se tome a devida
consciência, e, assim, reduzam-se os efeitos de tal processo
repetitivo.
84

Introdução

Por que é tão intolerável perceber no outro (pais, cônjuge,


filhos, etc) a ausência de acolhimento em algumas questões
emocionais importantes? É o outro de fato que não atende a tal
apelo, demonstrando insensibilidade, ou somos nós que esperamos
algo que o outro não pode oferecer? Equivaleria afirmar que o outro
igualmente se sente frustrado conosco quando espera algo que não
dispomos?

Antes de analisar as questões formuladas, contudo, é


fundamental que se compreenda um pouco melhor a natureza
humana, a fim de abrir caminho para apresentar algumas hipóteses a
respeito da expectativa, da eventual frustração, da raiva e da tristeza
decorrentes, apoiando-se, portanto, na psicologia evolucionista, na
neurociência e nas teorias da personalidade.

Aspectos evolucionistas relevantes

Está presente em nós, através da informação genética, o


autoengano, elemento crucial que permite uma melhor tolerância
adaptativa ao ser humano frente às dificuldades impostas pelo
ambiente. Não fosse por tal artimanha, reduzir-se-ia a capacidade de
suportar sensações dolorosas emocionais, podendo levar a um sério
declínio das expectativas, e, por conseguinte, a provável desistência
de se planejar e empreender projetos de vida, haja vista a vontade
ser desestimulada pela ausência de horizontes definidos. Em última
instância, a morte pareceria um final bem vindo diante de tamanho
mal-estar causado pela falta de sonhos e fantasias; elementos
85

capazes de dar cor e brilho às pinceladas que imprimimos sobre as


brancas telas da vida.

Com efeito, o autoengano, portanto, assume o papel de manter


acessa a chama da expectativa. Não obstante, esta autoilusão
encontra-se livre para atuar em outros sítios psicológicos, tais como
na aproximação e manutenção das relações sociais (viver em grupo é
muito mais seguro do que se manter solitário para enfrentar os
típicos perigos existentes, ainda que os atuais modelos de sociedade
sejam deficientes), na vida conjugal e criação dos filhos (mesmo que
existam dificuldades, o mais importante é a sobrevivência da prole,
que carrega os genes para a posteridade, do contrário, a extinção da
espécie pode se tornar uma ameaça bem próxima de se concretizar).
Mais: acomodados que somos, deixamo-nos levar pelo autoengano
em outros casos (sem que tenhamos a devida consciência, é claro),
nos convencemos de que somos mais do que de fato somos, e
dificilmente aceitamos as deficiências em nós presentes, quando
muito, fazemos uma breve menção, reduzindo-lhes o tamanho,
desconsiderando as inevitáveis consequências. Cremos que sabemos
mais coisas do que os outros, dirigimos os carros melhor que os
demais, por exemplo, e, na contrapartida, os outros é que erram, são
imprudentes... Logo, somos movidos, em boa dose, por
predisposições biológicas que, por um lado, nos protegem e nos
mantêm vivos na escalada evolutiva, e, por outro, somos reféns do
jogo criado pelo autoengano.

Destaque-se, pois, a força com que atua o autoengano ao gerar


diferentes tipos de expectativas, capazes de levar o ser humano a
crer naquilo que muitas vezes inexiste (ainda que eventualmente
venha a existir um dia), e que pode manter-se apenas como pura
fantasia, levando a frustrações que incomodam em graus que variam
conforme cada um consegue responder naquele momento de vida.
Não é raro esperarmos comportamentos específicos das outras
86

pessoas de acordo com as nossas necessidades, e delas pouco (ou


nada) obter, desencadeando a frustração, a raiva e a tristeza.

As emoções

O cérebro atual é fruto de incontáveis mudanças evolutivas


ocorridas ao longo do tempo, e tais transformações permitiram que o
ser humano alcançasse tamanho sucesso tecnológico, observado
através dos equipamentos e sistemas operacionais disponíveis no
mercado. No entanto, tal fator diz respeito, em maior escala, à esfera
da razão (impulsionada naturalmente pela motivação), cuja demanda
histórica crescente de desenvolvimento deveu-se aos interesses do
conforto obtido em cada nova descoberta ou aperfeiçoamento. Ou
seja, foram os prazerosos resultados que mantiveram o homem na
estrada do crescimento racional a fim de mantê-lo produzindo os
bens que vigorosamente aspira tanto para a sua sobrevivência
quanto para o seu deleite.

O fato, contudo, é que se prezou em demasia a razão, deixando


de lado a emoção. Não se ouve tratar do desenvolvimento das
emoções. Há incredulidade, inclusive, a este respeito. As emoções
podem ser desenvolvidas? Pergunta-se. Podem, sim, é uma resposta
importante a ser observada. Logo, lá estão as emoções, em estado
bem primitivo, obviamente, cumprindo as suas funções. O foco aqui
pretendido observará o medo, a raiva, e a tristeza, na importante
tentativa de explicá-los, ainda que resumidamente, pois eles estão na
mira do “círculo vicioso da expectativa autoenganada”.

A tristeza, pois, serve para aquietar e levar à introspecção,


alcançando, conforme se investe nesta direção, a reflexões que
permitam uma observação dos acontecimentos íntimos (difíceis de
87

serem observados no cotidiano, pois somos presas dos estímulos


externos, além de gerarem dor emocional). A autorrevisão é
fundamental, e deveria ser realizada com frequência, tanto quanto se
perceba a sua necessidade, a fim de se buscar maior qualidade de
vida e harmonia consigo mesmo. Mas o medo e o descontrole podem
cegar a respeito de tal responsabilidade pessoal, então perdemos a
chance de entrar em contato com a nossa porção mais escondida.

A raiva, por sua vez, destina-se a impulsionar o ser humano


quando o mesmo se encontra em uma difícil situação de escolha.
Quando a indecisão reina, e se tem um prazo para escolher entre
uma coisa e outra, somos tomados a agir com raiva,
impetuosamente, em boa parte das vezes, do contrário, ficamos
passivos, acomodados, e não optamos; e optar tem um significado
essencial na linguagem evolutiva da sobrevivência e adaptação. A
raiva também nos posiciona nas condições de ataque ou defesa
mediante um estímulo externo percebido pelo cérebro como
ameaçador (mesmo que seja apenas uma impressão, e não algo real,
concreto). A estratégia é manter a informação genética preservada,
para que possa ser transmitida oportunamente às descendências.

Do mesmo modo, com o propósito de manter o genoma intacto,


sem arranhões, o medo torna-se o escudeiro mais preocupado em
estimular o estado de alerta, com grandes propensões a fugir de
enrascadas que causem danos, sobretudo os mais significativos.
Todavia, o medo pode ganhar dimensões enormes, e gerar fobias de
toda ordem, se houver pressão e ansiedade suficientes para tanto. E,
com destaque, o medo pode ativar defesas psicológicas (o
autoengano) quando certas ameaças se fazem presentes.

Então, desde a infância, período em que ocorre um significativo


desenvolvimento (intelectual, psicológico etc), se a criança não for
capaz de obter para si a satisfação daquilo que precisa: acolhimento,
88

atenção (observe-se que as suas expectativas podem ser maiores em


relação ao que é possível ser ofertado pela contraparte), ela poderá
desencadear graus de ansiedade relacionados a tais faltas, ainda que
prossiga em seu crescimento. Tais crianças tendem a ficar
aguardando o que lhes falta através de expectativas fantasiosas, quer
seja, o autoengano, defensivamente, qual uma esperança de que
tudo possa melhorar de uma hora para outra, ou, ainda, na forma de
queixa ou afrontação em várias oportunidades (por meio de outros
caminhos, a exemplo de polemizar diferentes assuntos domésticos,
ou seja, questões “alheias” à falta de atenção), como tática, ainda
que inconsciente, de obter certa dose da tão aspirada atenção. Mas o
preço a se pagar pela artimanha inconsciente diz respeito à
insatisfação resultante, haja vista ter-se atingido apenas a borda do
alvo, cujo centro está longe de ser alcançado em razão de estar
desalinhado, na raiz, entre as expectativas, de um lado, e, de outro,
o que é possível (de fato) de ser oferecido.

Posteriormente, na fase adulta, por conseguinte, as defesas


podem ser constantemente acionadas se houver a percepção de
estímulos desagradáveis (rejeição, indiferença, suspeita de
rompimento do relacionamento) que causem fortes ansiedades.
Assim, o autoengano continuará a funcionar na vida adulta tal como
fazia na infância, nos casos em que as expectativas são frustradas;
estas, normalmente estão relacionadas à autoestima (atenção,
reconhecimento, valorização). O “adulto” persegue com empenho,
sem se dar conta, é claro, a mesma necessidade íntima que tanto
esperou na infância, além de discussões e brigas que podem
acontecer, indo desde leves provocações até explosões emocionais,
conforme cada caso.

O medo de se sentir mal aciona o autoengano, que entra em


cena na tentativa de proteger, reduzindo o estresse e a ansiedade
que se instalam avidamente. Mas, em boa parte das vezes, tal
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autoilusão diz respeito à fantasia de que o outro mudará os seus


comportamentos e passará a atender às necessidades emocionais de
tal demanda. È claro que é dificílimo que isso ocorra (para não dizer
impossível), e a frustração chega com força, pois a expectativa não
se alinha com a realidade, levando à raiva, como outra resposta
defensiva que pretende intervir no ambiente e ajustá-lo, e também à
tristeza, como uma oportunidade de rever a situação e encontrar uma
solução mais adequada. Pergunta-se, no entanto: quantas pessoas
aproveitam tal ocasião para fazer uma autorrevisão e mexer com
firmeza no que é preciso? Sem a autoavaliação, vê-se o seguinte
resultado: é defesa atrás de defesa se armando contra as impressões
geradas pelo cérebro (grosso modo, tais impressões dizem mais
respeito a interpretações errôneas e hipervalorização do quadro
negativo do que a fatos reais).

O Círculo Vicioso da Expectativa Autoenganada

Considerando-se os aspectos evolucionistas relevantes, que


versam acerca do autoengano, enquanto medida defensiva que tenta
preservar, a todo custo, as informações genéticas presentes no ser
humano, e que tal artifício pode ocorrer tanto para proteger, em
medidas naturais e adequadas, quanto no estado exagerado, a ponto
de faze crer em coisas bem longe de serem concretizáveis, ou,
trocando em miúdos, de nos levar a criar fantasias variadas, e,
também, as emoções, cuja dinâmica está intimamente relacionada a
muitos comportamentos defensivos (que normalmente nos
acompanham desde a infância, indevidamente, até a vida adulta, por
exemplo: esperar do outro coisas que sequer sabemos se ele possui,
mas as esperamos com todas as forças), é possível antecipar, com
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certo grau de clareza, que os resultados esperados serão, via de


regra, frustração, raiva e tristeza.

Ressalte-se
se que tal processo se repete continuamente, pois
enquanto não houver o cessamento de se esperar
autoenganadamente, tudo se repetirá, com possibilidade de ampliar
amp a
intensidade em razão de novas expectativas (igualmente
autoenganadas) sobre novos caminhos que deverão se abrir para
solucionar o que, no íntimo, demonstra não ser resolvido nunca.

Observe-se,
se, todavia, que o círculo vicioso da expectativa
autoenganada
anada mantém-se
mantém se pela inconsciência a seu respeito. A crença
de que se está no caminho certo (logo não há necessidade de se
mexer, modificar qualquer coisa em si mesmo), e que o outro é que
91

precisa mudar é o que sustenta o cenário. É mais cômodo querer


mudar o mundo do que a si próprio, pois dá trabalho ter de investir
em si mesmo, e quanto aos outros, basta ficar no desejo. Por outro
lado, caso ocorram autorrevisões suficientes, a ponto de fazer
enxergar o autoengano, o quadro pode mudar, evitando-se esperar
do outro o que provavelmente ele não pode oferecer (talvez já
tivesse até ofertado naturalmente, caso existisse de fato), cessando a
expectativa autoenganada, e, consequentemente, a frustração, a
raiva e a tristeza relacionadas à autoilusão do caso em foco.

Vale a pena inverter a situação, propondo que se reflita sobre o


quanto o outro também espera de nós, por coisas que também não
dispomos (naquele momento de vida, ou por toda ela), e o quanto
também lhe frustramos, causando raiva e tristeza igualmente.
Ficamos tão admirados, que alegamos já ter oferecido aquilo que se
pede (que pode ser insuficiente), a ponto de cremos que o outro é
ingrato. Mas não passa por nossas cabeças o fato de que o outro cria
expectativas autoenganadas sobre nós, assim como o fazemos em
relação a ele.
92

Uma beleza invisível

Com as recentes descobertas científicas, fruto da dedicação de


áreas como paleontologia, antropologia, arqueologia, biologia,
evolucionismo, e outras, os crescentes recursos tecnológicos (o Santo
Graal da pesquisa), além da sorte para encontrar as evidências, o
trabalho de escavação e o planejamento em cada projeto, e da verba
para custear cada etapa crucial, tornou-se possível tomar maior
contato com o nosso passado, levando-nos a compreensões cada vez
mais esclarecedoras ao abrir os olhos e contemplar o inestimável
conjunto humano ao qual pertencemos.

Exames refinados de DNA, em institutos de impecável


reputação -- como o Max Planck, em Leipzig, na Alemanha --,
alcançam o código genético de até lascas de ossos fossilizados cuja
datação remonta a muitos milhares de anos, identificando com
estonteante precisão, as misturas de sequências genéticas de
variadas espécies em seres humanos híbridos encontrados em
regiões distantes no planeta, em cavernas, por vezes.

Trata-se de um imenso mosaico, que apenas pode ser visto, em


perspectivas maiores, à medida que os pequenos detalhes (evidência
a evidência, teste a teste, conexão a conexão) ganham terreno no
caminho do desenvolvimento. Não obstante, neste mesmo cenário
multifacetado, encontra-se a chave interior para a nossa própria
sobrevivência, lei irrevogável e genialmente disposta no código da
vida, ou os genes, pois, trata-se exatamente da capacidade
adaptativa para enfrentar o mundo invisível dos micro-organismos
(bactérias, por exemplo) aos quais somos expostos. Trocando em
miúdos, a mistura entre espécies diferentes de humanos (Homo
sapiens, Homo neanderthalensis, Homo erectus, Homo denisovensis),
ocorrida há considerável tempo, permitiu que trechos genômicos de
93

importância capital ao sistema imunológico fossem acrescentados aos


novos herdeiros, de populações que se movimentavam pelo globo
terrestre, aumentando a sua resistência contra inimigos comuns até
aos dias de hoje. É o que se chama de atalho evolucionário, ao invés
de ter de esperar por mutações naturais que levariam demasiado
tempo, abrindo, tenebrosamente, brecha para eventuais extinções. É
o pulo do gato pré-histórico!

Cruzamentos entre os diferentes ampliou, inteligentemente, o


sistema imunológico humano. Não é algo que se veja externamente
por razões infinitamente microscópicas e também reservadas à vida
interna orgânica. Só é possível enxergar, superficialmente, qualquer
variedade através de características tais como cor de pele e
anatomia. É bem pouco!

Por fim, vale a pena refletir, a variedade não apenas reflete


beleza aos olhos, mas dispõe segurança e preservação, ela é um
mecanismo enriquecedor natural altamente eficaz ao processo
evolutivo. Ainda, poder-se-ia perguntar se diversidade nas relações
sociais também se encontra carregada de belezas invisíveis, além do
que é possível enxergar comumente... Por ventura não ganharíamos
mais, caso abríssemos as portas universais ao bem diferente
(pessoas e suas ideias), em vez de nos mantermos em certas
reservas tribais?
94

A ilusão do eu

É preciso acreditar que somos do jeito que pensamos ser, afinal


sempre foi assim que nos conhecemos. Que outra forma existe?
Quem disse que podemos ser outra coisa que não exatamente o que
somos? É possível eu não ser como me imagino? Ou as pessoas são
como são, e impossível seria ser diferente? Não nos reconheceríamos,
não seríamos nós?

Mas é preciso desacreditar também...

Quem garante que o que pensamos e fazemos todo dia vêm


somente do eu aparente, e não de outro pedaço dentro de nós, que
sequer desconfiamos existir? Um lado que pode estar lá, de modo
silencioso realizando automaticamente (lembre-se dos instintos) um
punhado de coisas contra as quais já levantamos suspeita vez por
outra, qual a persistente repetição de “erros” normalmente afetivos e
emocionais que nos levam a esperar pela realização de uma dada
fantasia que nunca se realiza, e que até já avaliamos tal
impossibilidade à luz da razão. Sou eu mesmo a me lançar nesse jogo
de resultado frustrante, cheio de raiva e de torturante tristeza? Se já
sei que o caminho é falso, que razões me levam a me manter nele? E
o que dizer de “escolhas” profissionais influenciadas profunda e
imperceptivelmente pelos pais? Quantos comportamentos dos nossos
pais (de novo!) repetimos alegando serem eles legitimamente nossos
quando somos confrontados por um observador externo atento? Nós
percebemos o fluxo no qual prosseguimos por forças alheias à nossa
própria?

E, no entanto, desviamos a nossa atenção, deixando pra lá os


insolúveis mistérios. Por que não pensamos seriamente a respeito?
Do que fugimos ao não entrar em contato mais profundamente
conosco? Afinal, não estamos convencidos de que somos o que somos
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pelo que sempre percebemos a vida toda? Acaso tememos encontrar


algo além do eu tão avidamente entendido como único? E se há mais
de nós em nós mesmos, apenas com aparências e funcionalidades
diferentes daquelas que conhecemos superficialmente?

O eu inconsciente?

E se considerarmos outros aspectos na reflexão sobre se somos


mais do que o eu que conhecemos em nós? Que tal a ideia de
inconsciente, uma porção psicológica (amplamente estudada pelo
fundador da Psicanálise, Freud) que tenta resolver as questões,
sobretudo as emocionais, que a consciência não consegue lidar bem:
certas decisões que de tão pesadas nos colocam contra a parede do
medo, levando-nos a protelá-las, e de cuja resposta só Deus sabe
quando a teremos. Há inconsciência acerca de alguns processos
internos conforme é possível verificar adiante.

O organismo autônomo

E alguns funcionamentos orgânicos (respiração, digestão,


ajustes hormonais, reprodução celular e seus reparo e revisão dos
filamentos de ADN no início do processo denominado ‘Mitose’, defesa
imunológica a micro-organismos invasores, etc) que nem prestamos
atenção, e mesmo assim, nas adequadas condições, agem sem
qualquer autorização consciente de nossa parte, apenas trabalham,
quais desconhecidos dentro de alguém que se julga conhecido de si
mesmo. Não é irônico?

Poderosas influências sociais

Mais: é possível levar em conta, ainda, as forças invisíveis


sociais que nos arrastam aos mais pitorescos (por vezes perigosos, se
apontarmos a estética que rouba ricos nutrientes em troca de
empobrecidas silhuetas quase cadavéricas) comportamentos de
ajuste, mesmo que muitos teimem em afirmar o contrário: Sou o que
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sou, e não sigo nenhum modismo, não sou escravo do que a


sociedade diz! Entretanto, não somos reféns do já conhecido
espetáculo social? E quanto aos carros? Não são mesmo um símbolo
de poder divulgados pela mídia, e quem os dirige não se sente
poderoso ao ponto de a autoestima elevar alguns números no ranking
da aparência, qual proposto pelas propagandas (estas já observadas
ao longo do tempo desde o começo do Século XX, através dos
conceitos de Edward Bernays (1891-1995), sobre a irracionalidade e
manipulação das pessoas)? Quem admite tal observação? Não!
Compro carro para transporte somente, defende-se aquele que não
precisaria se preocupar com defesa, haja vista achar que o seu eu
não faz parte de uma suposta estrutura maior.

Os silenciosos conflitos e a psicopatologia

Ainda: como iluminar a obscura incompreensão que paira sobre


certos males que assolam a população: depressão, pânico, obsessões
e compulsões, anorexia, etc, sem considerar um lado imperceptível
dentro de nós, capaz de criar tais doenças em razão de conflitos mal
resolvidos (dentre outros fatores), provocando-nos a encontrar uma
solução. Então, ainda que não enxerguemos, não é brilhante a
natureza, dotando-nos de tal mecanismo que visa proteger (ao
estimular os ajustes necessários), consequentemente, a informação
genética que precisa ser salvaguardada e transmitida às gerações
seguintes?

A força genética por trás dos bastidores

E os genes herdados, a propósito, não fazem parte de um lento


e colossal processo evolutivo que gerou aperfeiçoamento adaptativo?
Não somos influenciados por tantas e profundas informações de longa
data (combinadas com o ambiente), a ponto de nos faltar o tal
controle baseado no eu, que tanto afirmamos existir sem qualquer
cerimônia? Por ventura os rompantes agressivos que saltam de
97

dentro de nós ocasionalmente não fazem parte da nossa natureza


animal (inclua-se a parte do cérebro primitivo existente), levando-nos
a uma tentativa de maquiá-la com as mais absurdas justificativas?
Não é a inveja tão odiada por nós quão persistente em aparecer em
nossas próprias bocas quando afirmamos que certas pessoas são
infelizes, burras, medrosas, levianas, feias, justamente quando os
seus sucessos nos incomodam a ponto de nos voltarmos tanto para
elas com empenhada crítica ferina? Cativar outrem e obter certo
controle sobre a situação para atender a necessidades pessoais não é
designado convenientemente como troca de favores ao invés de
manipulação? Mas como reconhecer os fatos se vemos o que
queremos ver apenas?

As relações amorosas de “livre” escolha

Considere: por que somos levados a escolher determinado tipo


de companhia para as relações amorosas, alegando que somos livres
para a seleção, se na verdade, com a devida análise, tendemos a nos
“encaixar” conforme a semelhança de características essenciais dos
pais, e, como aponta a pesquisadora estadunidense Laura Kipnis, do
status social, nível de cultura e inteligência, além de cheiros atrativos
sexualmente já identificados pela neurociência, perfil físico ideal para
acasalamento e também para o cuidado da prole (ressalte-se a
liberação de ocitocina, substância química que ajuda a estreitar o
vínculo afetivo, além de reduzir a agressividade), ou seja, a
predominância de fatores que sequer temos noção de existirem? Por
falar em neurociência, já se comprovou que o cérebro responde a
estímulos antes mesmo de termos a consciência da resposta, quer
dizer então que algo foi recebido, processado e devolvido sem que
tenhamos percebido. Onde se encontra o eu nessa hora?

Fazer sem saber e negar através do autoengano


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E o que dizer do autoengano? A negação em perceber aquilo


que grita aos sentidos, qual uma mãe que, inicialmente, não
“enxerga” o vício do filho nas drogas, por exemplo, a fim de manter
distante o mal-estar que lhe cutuca em cada situação reveladora:
comportamentos diferentes, olhos vermelhos, alteração da rotina
horária, sumiço de objetos em casa, etc. Mais: não estudar e esperar
bom resultado na prova. Provocar sutilmente alguém por certo tempo
e se espantar profundamente numa eventual ocasião em que tal
pessoa age grosseiramente: o que eu fiz pra merecer isso? Estacionar
em local proibido e se revoltar por receber uma multa. Comprar um
objeto por um valor abaixo do mercado e se surpreender com a sua
condenável qualidade. Achar que o copo a mais de bebida alcoólica
não fará mal e maldizer a vida pelo “acidente” de trânsito ou os
“inesperados” enjoos e dores de cabeça.

Egoísmo maquiado de altruísmo

E quantos comportamentos altruístas, se verificados


rigorosamente com toda a honestidade, almejam, no fundo, atender
a desejos puramente egoístas, conforme muito se percebe nos típicos
atos de doação. (Note-se que a própria pessoa revela tal objetivo ao
alegar que se sente leve, pra cima, quer seja, seu próprio ganho,
mas “vê” apenas o altruísmo presente em si, e nada mais.) E mesmo
em outros tantos atos de altruísmo é possível expor, se retirado o
véu da cegueira, a tentativa de redimir certas culpas que sequer são
percebidas sem a devida luz da consciência.

A linguagem primitiva universal

Ao que tudo indica, existe em nós uma complexa estrutura


psíquica, que o tempo todo, ao longo da vida, comunica imensa
quantidade de informações, as quais mesmo sem a nossa
consciência, articulam os rumos de incontáveis comportamentos e
decisões que tomamos, haja vista ser necessário, até o momento
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pelo menos, contarmos com ajuda tão preciosa. Mas como é possível
definir tal parte inconsciente que tanto usa de linguagem quase
imperceptível para nos guiar vida afora?

Quando refletimos a respeito da linguagem cotidiana (coisa rara


de ser pensada, pois dificilmente nos voltamos para os processos
internos a fim de lhes conhecer ou tomar ciência de sua presença),
alcançamos, via de regra, tão somente as limitadas palavras que
compõem o peculiar vocabulário da nossa cultura (o que o eu
alcança), que, por semelhança a outras culturas encontra nas outras
línguas, correspondentes vocábulos, senão próximos em seu
significado, desconsiderando, por outro lado, a linguagem
inconsciente universal e primitiva, mormente captada através de
escuta treinada psicanalítica -- poder-se-ia afirmar que falamos duas
línguas simultaneamente, uma consciente e outra inconsciente.

E, embora seja possível perceber tal linguagem inconsciente se


manifestar por meio de simbologia claramente identificável no
discurso do interlocutor, e ser possível alçar-lhe compreensão por via
da interpretação, não reconhecemos a sua mais profunda
universalidade, aquela que deu ao homem nos tempos primevos, a
capacidade de comunicar (a língua mãe comum a todos), desde as
impressões corporais (o corpo sempre falou) até as pinturas
rupestres, passando, posteriormente, à linguagem específica dos
grupos sociais que a criaram, e à escrita, nos moldes que a
caracterizam através dos registros.

Não é o inconsciente por ventura o agente que fala desde há


muitíssimo tempo por meio dos símbolos, tornando-os a linguagem
primitiva universal (percebida inclusive nas pinturas e esculturas pré-
históricas, além da imensa possibilidade de expressão artística
musical potencialmente existente nos respectivos instrumentos
arqueológicos também encontrados em vários sítios de estudo), e a
100

partir de tal estrutura de comunicação nasce cada uma das línguas


com as quais tomamos contato até a contemporaneidade? O eu sabe
disso?

Questões gerais sobre a ilusão do eu

Como negar em si mesmo tais aspectos, passando por cima de


um monte de evidências que apontam para uma única situação: não
somos exatamente o que cremos ser? Não é verdade que quanto
menos nos conhecemos, mais frágeis ficamos diante de tantas
situações que requerem de nós escolhas mais conscientes e
maduras? E o que há de tão surpreendente em reconhecer dentro de
si um complexo sistema até então desconhecido que tanto trabalha
(do jeito que pode por hora) em prol da adaptação e da
sobrevivência? O eu, pois, é uma ilusão, respeitada a condição de
ignorarmos os seus outros aspectos? A ilusão do eu perde terreno à
medida que decidimos entender quão desconhecidos somos de nós
mesmos, e nos lançamos a um mergulho interior com a finalidade de
se apropriar daquilo que é de direito a todo ser que pensa: a
consciência sobre a inconsciência que nos atrasa consideravelmente a
jornada do desenvolvimento.
101

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103

O autor

Psicólogo, professor e mestre em liderança. Ministrou cursos e


palestras no Brasil e no exterior. Pesquisador dos campos da
psicologia organizacional, educacional e sócio-econômico, com
experiência em orientação de pesquisa. Autor e coautor dos livros
Gigantes da Liderança, Gigantes da Motivação e Educação 2006.

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