PAULO SERGIO FOCHI Rev
PAULO SERGIO FOCHI Rev
PAULO SERGIO FOCHI Rev
São Paulo
2019
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
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FOCHI, Paulo Sergio. A Documentação Pedagógica como estratégia para a construção do
conhecimento praxiológico: o caso do Observatório da Cultura Infantil - OBECI. Tese
apresentada à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo para obtenção do título de
Doutor em Educação.
Banca Examinadora
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Dedico esta tese a todas as crianças, professoras,
coordenadoras pedagógicas e diretoras das escolas
participantes do OBECI, pela curiosidade, pelo
assombro, pela coragem e pelo compartilhamento
do desejo em fazer uma escola amável e honesta
para os meninos e as meninas.
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Esta tese contou com o auxílio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior – Capes por meio de concessão de bolsa sanduíche no exterior.
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Agradecimentos
Costumo dizer que os agradecimentos das teses e dissertações costumam ser uma parte
recheada de humanidade nos trabalhos. De alguma forma, é onde se fala dos encontros, das
vulnerabilidades, da finitude, do acolhimento e dos afetos. Por isso, quando me coloquei a
escrever os meus agradecimentos, me recordei de uma das crônicas do livro Não existe mais
dia seguinte, do querido amigo Vitor Necchi. A primeira crônica, Provas que vivi, narra cenas
que gostaria de ver em fotos que não existem, e, por isso, precisa se dedicar a recordar esses
instantes que permanecem sem registros.
Conforme fui listando os nomes daqueles que quero agradecer, assim como o autor,
desejei imensamente ter as “provas” de seus gestos, supondo que, em fotografias, eu pudesse
expressar melhor a emoção e meu sentimento de agradecimento a todas as palavras, abraços,
conversas e disponibilidade de cada um e cada uma que foi companheiro/a dessa longa e intensa
jornada que é doutorar-se. Como não as tenho, tentei escrever algumas palavras. Assim, com
um grande carinho, agradeço:
à Liliane, Juliana e toda equipe da EMEI Joaninha; à Silvana, Carolina, Gilnéia e toda
equipe da Espaço Girassol; à Ivana, Vanessa e toda equipe da Escola Mimo de Gente; à
Alexandra, Luciane L. e toda equipe da EMEI João de Barro; à Cristiane e Danielle e toda
equipe da EMEI Aldo Pohlmann; à Luciane V., Luciane P. e Letícia, por aceitarem ser mais
que companheiras na pesquisa no OBECI, serem cúmplices e entusiastas em partilhar sonhos e
esperanças. Por estarem ao lado das crianças e por manterem acesa a curiosidade e o desejo por
saber mais;
à Mônica Appezzato Pinazza, minha orientadora, pela acolhida na USP, por ter
compreendido o meu tempo para fazer as coisas acontecerem, pelo entusiasmo com a tese e por
ter se colocado de forma tão disponível e aberta ao longo desses quatro anos;
à Teresa Godall, pela acolhida em Barcelona, pela sua escuta e abertura em dialogar,
pelas provocações e pela disponibilidade em me receber na Universidad de Barcelona;
à professora Tizuko Kishimoto, pelo seu olhar atento na banca de qualificação e pelo
aceite em fazer parte dessa etapa final;
à professora Maria Carmen, a Lica, professora e amiga que tive o privilégio de
construir ao longo desses últimos anos, pelo aceite em estar ao meu lado em mais uma etapa da
minha vida;
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à professora Maria da Graça, que me estendeu os dois braços em todos os momentos
que precisei, desde o começo do doutorado até o final. Teu carinho, cuidado, escuta e
entusiasmo são a razão de eu ter conseguido chegar ao fim. Não há palavras que poderão
expressar todo o meu agradecimento a ti;
à Julia Oliveira-Formosinho, que me acolheu em Portugal com olhos entusiasmados e
generosos, pelos diálogos tão produtivos, pelo constante incentivo para fazer esta tese e
continuar nos caminhos da Pedagogia, por me ensinar tanto e me inspirar a transformar a
realidade;
às professoras que compõem a banca de avaliadores suplentes, professoras Marcia
Gobbi, Silvia Cruz, Monica Baptista, Susana Fernandes e Tacyana Ramos, por aceitarem estar
de alguma forma ao meu lado neste momento tão importante;
ao professor João Formosinho, que, com toda a generosidade, me provocou a pensar
tanto sobre metodologia e, especialmente, pelo carinho e diálogos compartilhados;
à Josiane Pareja, minha grande amiga e parceira de tantos sonhos, que me acolheu em
São Paulo, que me incentivou, me escutou e foi parceira de tantas risadas e conversas longas,
que foi presença e apoio incondicional em todos os momentos;
ao Carlos, que chegou no meio do caminho, me oferecendo carinho e disponibilidade,
que pegou em minha mão para atravessarmos essa caminhada juntos, que foi presença na
solidão do doutorado sanduíche, que me encorajou e me escutou de forma tão amorosa nos
momentos em que precisei;
às minhas grandes amigas Ana Luiza, que me ofereceu o pôr-do-sol, conversa fiada e
disponibilidade, Queila, que vibrou a entrada no doutorado e que foi companhia constante, e
Sariane, pelas trocas, encontros e gestos sinceros;
aos meus colegas e amigos da Unisinos, Maurício, Marita e Isabel, que me apoiaram
durante esse período e, especialmente, à Sabrina, pela revisão atenta e cuidadosa da tese;
ao grupo do Contextos Integrados de Educação Infantil, especialmente à Meire, que
me acolheram e partilharam esse percurso;
à Carol, minha terapeuta, que me ajudou tanto para que o Paulo homem (re)encontrasse
o Paulo menino nesse momento do doutorado. Talvez foi por esse encontro que a tese chegou
ao fim;
à minha família, meu pai Sergio, minha mãe Jurema (in memorian), minhas irmãs
Daniela e Fernanda, minha madrinha Olga e minha vó Maria (in memorian), que me viram
crescer e me ofereceram o que tinham para me ajudar a chegar aqui.
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FOCHI, Paulo Sergio. A Documentação Pedagógica como estratégia para a construção do
conhecimento praxiológico: o caso do Observatório da Cultura Infantil - OBECI. Tese
(Doutorado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo,
2019.
RESUMO
Esta tese tem sua problemática de pesquisa centrada na constituição de uma comunidade de
apoio ao desenvolvimento profissional, o Observatório da Cultura Infantil – OBECI, e na
Documentação Pedagógica como estratégia para a construção do conhecimento praxiológico.
O OBECI, criado em 2013, é composto por quatro escolas de Educação Infantil (duas públicas
e duas privadas) da região metropolitana de Porto Alegre, RS, e tem como questão central a
organização da vida cotidiana das instituições de Educação Infantil de modo que evidencie o
papel da criança no processo educativo, convidando a reposicionar o papel do professor. A
estratégia que este observatório tem utilizado para investigar e formar é a Documentação
Pedagógica fundada por Loris Malaguzzi. Por isso, parte desta tese dedica-se a reconstituir o
pensamento de Malaguzzi a respeito da Documentação Pedagógica a partir dos projetos
supervisionados pelo pedagogo ao longo de 30 anos (1963 – 1993). Além disso, buscando
evidenciar o conhecimento praxiológico sustentado pela Documentação Pedagógica e
construído pelo OBECI, é narrado o processo de criação desse Observatório, suas ideias
centrais, seus processos formativos e o modo como tem desenvolvido o tema da Documentação
Pedagógica a partir de Malaguzzi. A partir disso, apresenta-se o conhecimento praxiológico
emergente do OBECI a respeito do espaço educativo, dos materiais, da gestão do tempo, da
organização do grupo e da relação entre adulto e criança. Tal conhecimento, derivado do
trabalho de formação desenvolvido, é restituído desde o ponto de vista dos próprios
profissionais das escolas, assim como, do investigador, a fim de explicitar a Pedagogia
desenvolvida nesses contextos. Destaca-se que esta tese afirma a Pedagogia como campo de
conhecimento, logo, para responder as exigências deste campo, optou-se por um estudo de caso
pelos processos de uma investigação praxiológica (FORMOSINHO, 2016; OLIVEIRA-
FORMOSINHO, FORMOSINHO, 2012). Por fim, conclui-se que uma tese desenvolvida nos
domínios da Pedagogia, ou seja, interessada nos processos de transformação do cotidiano
praxiológico situado e contextualizado, encontra no modelo narrativo sua melhor forma de
expressão enquanto uma tese pedagógica.
Palavras-chave: Pedagogia. Educação Infantil. Desenvolvimento Profissional. Investigação
Praxiológica. Documentação Pedagógica.
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FOCHI, Paulo Sergio. Pedagogical Documentation as a strategy for the construction as
praxiological knowledge: the case of Observatory of Childhood Culture - OBECI. Tese
(Doutorado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo,
2019.
ABSTRACT
This study has the research problem centered on the constitution of a community to support
professional development named Observatory of Childhood Culture - OBECI, and in the
Pedagogical Documentation as a strategy for the praxiological knowledge construction. The
OBECI, created in 2013, is composed by four Early Childhood Education (two public and two
private) in the metropolitan region of Porto Alegre - RS and has as central question the
organization of day to day life in these institutions evidencing the role of the child in the
educational process, inviting to reposition the teacher’s role. The strategy that this observatory
has used to investigate and form is the Pedagogical Documentation founded by Loris
Malaguzzi. Therefore, part of this dissertation is devoted to reconstituting the Malaguzzi’s
thoughts regarding Pedagogical Documentation from the projects supervised by the pedagogue
over 30 years (1963 - 1993). In addition, in order to demonstrate the praxiological knowledge
supported by the Pedagogical Documentation and built by the OBECI, the text narrates the
creation process of this Observatory, his central ideas, his training processes and the way in
which the subject of Pedagogical Documentation has been developed from Malaguzzi. From
this, we present the emergent praxiological knowledge of OBECI for the educational space,
materials, time management, group organization and the relationship between adult and child.
Such knowledge, due to the work training developed, is shared from the point of view of the
school’s professionals, as well as the researcher, in order to explicit the pedagogy developed in
these contexts. Highlighting that this dissertation affirms the Pedagogy as a field of knowledge
and to respond all requirements of this field, we chose a case study through the praxiological
research process (FORMOSINHO, 2016; OLIVEIRA-FORMOSINHO, FORMOSINHO,
2012). Finally, I concluded that a dissertation developed in the field of Pedagogy, in other
words, interested in transformation process of praxiological day to day situated and
contextualized, find in the narrative model a better expressive way while a pedagogical
dissertation.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 14
PARTE I .................................................................................................................................. 21
PARTE II ................................................................................................................................ 60
1.1 Preparar o terreno para construir uma revolução pedagógica: o período entre
1945 e 1963 .......................................................................................................................... 68
11
2.1 O processo de análise e de formação para chegar aos Organizadores da Ação
Pedagógica no/do OBECI ................................................................................................... 246
2.5.1 Diversos arranjos para os diversos momentos da jornada educativa ...... 296
12
MÃOS PARA SENTIR O TEMPO
13
INTRODUÇÃO
Mobilizado pela mini-história que dá abertura a esta tese, retomo um dos ensaios mais
brilhantes que li sobre teoria e prática fora dos domínios da Educação. O arquiteto finlandês
Juhani Pallasmaa, no seu livro La mano que piensa, relaciona diretamente as mãos com a nossa
capacidade de pensar e expõe de que forma na história da nossa civilização as mãos ocupam
um papel crucial na transformação da destreza, da inteligência e das capacidades conceituais
do homem. Nos oito ensaios que compõem o livro, o arquiteto problematiza o predomínio da
palavra em nossa civilização e mostra o quanto a corporeificação dos conceitos ainda é
silenciada mesmo que ocupe um papel fundamental na elaboração do conhecimento tácito da
vida cotidiana. Também a professora Viviane, por meio de três imagens, narra a aventura de
Pedro em compreender que o tempo do seu gesto com o barro transforma o estado das coisas.
O tempo, o gesto, as transformações e o conhecimento em processo poderiam compor o campo
semântico da trajetória que deu origem a esta tese. Mais além, na metáfora de Palasmaa e de
Pedro, reconheço-me e encontro a síntese da compreensão do que é conhecimento nesta
investigação.
O conhecimento, em seu escopo cognitivo, emocional e social, forma um todo
complexo que não separa a mente do corpo, a razão da emoção. Nesse sentido, é muito difícil
apartar a compreensão que construímos a respeito de algo da sua vivência. Não se sabe ao certo
os limites do que molda e o que é moldado nessa relação dialógica entre a cultura e o biológico,
ou, dizendo de outra forma, dos limites da linguagem que temos para conceituar e a nossa
experiência existencial no mundo. Pallasmaa (2012, p. 14) afirma “nem é a cabeça o único lugar
do pensamento cognitivo, uma vez que nossos sentidos e toda nossa existência corpórea
estruturam, produzem e armazenam diretamente conhecimentos existenciais silenciosos. O
corpo humano é uma entidade sábia”. Nesse sentido, conforme o autor constrói seu argumento
sobre a inteireza do conhecimento, também mostra que os limites que estabelecemos entre a
racionalização de um conhecimento e a experiência que o gera é, senão, um modo artificial que
dispomos para inventar uma dada realidade.
A obra desse arquiteto é, para mim, uma metáfora da tese que apresento. As mãos
misteriosas, que trabalham, que se fundem com os olhos e mente, como fala Pallasmaa (2012),
é a representação das instituições que, juntas, constituem o contexto de minha pesquisa: o
Observatório da Cultura Infantil – OBECI1. Assim como as mãos se desenvolveram ao longo
1Nesta tese, sempre que me refiro ao Observatório da Cultura Infantil, utilizarei OBECI, Observatório ou a essa
comunidade de apoio ao desenvolvimento profissional.
14
da história da civilização, refinando seu gesto, esse contexto tem se transformado e tem sido
transformador em cada uma das instituições que o compõem. E é justamente sobre os processos
de transformação que esta tese se interessa e está comprometida.
Por isso, o que compartilho nas próximas páginas é uma jornada de aprendizagem
intensa que perseguiu a recursividade entre uma dada circunscrição teórica (as pedagogias
participativas), que cria uma dada lente de leitura para essa realidade, e um contexto específico
de pesquisa (o OBECI), que se constituiu e se transformou para criar novas realidades. Logo, a
tese, enquanto conhecimento que produz, está fertilizada por um encontro pessoal com a
complexidade do objeto estudado. Essa é também a síntese do campo em que esta tese se
inscreve, o da Pedagogia, que é uma ciência que se constitui entre a teoria, a prática, as crenças
e os valores (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2007). Daí de sua exigência em ser tramada na
complexidade e na sutileza da experiência, ou, então, “[...] estará fadada a permanecer alienada
e especulativa – e pode, na melhor das hipóteses, apenas elaborar relações racionais entre os
elementos aparentes” (PALLASMAA, 2012, p. 151).
Além desta Introdução, cujo título é Mãos para sentir o tempo, organizei outras três
partes centrais e algumas Considerações Finais, em forma de conclusão desta tese. Cada parte
da tese pode ser lida individualmente, considerando que há o desenvolvimento de um
argumento central e estruturante para as partes e para a tese como um todo. O texto também
pode ser lido em seu conjunto, já que as partes estão entrelaçadas em suas complexidades e
recursividades que uma tese situada no campo da Pedagogia exige. A centralidade da tese está
na parte III, quando desenvolvo sobre o OBECI e a escrevo no paradigma da narratividade
respondendo a exigência de uma peça metodológica nos domínos da praxiologia. Ao mesmo
tempo, tanto a parte I, em que apresento os pressupostos que orientaram a pesquisa, como a
parte II, em que desenvolvo sobre a construção de um conceito central para a tese que é o da
Documentação Pedagógica em Loris Malaguzzi, auxiliam a dar os devidos contornos à
discussão central, por isso, é que optei por tal organização.
As mini-histórias que dão título a cada parte da tese são metáforas do cotidiano das
escolas2 que compõem o OBECI e que, além de simbolizar uma chave de leitura para o texto,
são também a voz das crianças e dos professores que se entrelaçam ao longo da tese. Assim,
tomando emprestado algumas metáforas que Pallasmaa (2012) constrói em sua obra para tornar
2 Embora no Brasil não haja um consenso sobre a terminologia utilizada para nomear a instituição que acolhe as
crianças da Educação Infantil (centro, unidade, escola), na tese irei adotar o termo escola, pois, no contexto do Rio
Grande do Sul, região em que se realiza a pesquisa, é dessa forma que se nomeia. Reforço que com isso não estou
enfatizando a escolarização da Educação Infantil, muito pelo contrário, a defesa da tese é que se reconheça a
especificidade desta etapa da Educação Básica.
15
visível a interação entre as emoções, a imaginação, a inteligência, a produção (a obra, a prática),
a teoria e a vida, apresento o modo como estruturei esta tese.
16
A história que carrego em meus ossos
Pallasmaa (2012, p. 150) afirma que não há como fazer algo em um determinado
campo sem ter a consciência da tradição em “[...] em seus ossos. [...] A grande dádiva da
tradição é que podemos escolher nossos colaboradores”. Daí que, na Parte II, reconstruo o
pensamento pedagógico de Loris Malaguzzi sobre o tema da documentação pedagógica.
Malaguzzi é quem funda o conceito de Documentação Pedagógica de que nos valemos
no interior do OBECI, estratégia fundamental para o desenvolvimento do processo formativo
para essa comunidade. No entanto, na medida em que avanço no desenvolvimento da escrita da
tese, senti uma forte necessidade de sistematizar a reflexão sobre o tema da Documentação
Pedagógica em Loris Malaguzzi, uma vez que o que temos à disposição na língua portuguesa,
italiana, espanhol, catalã e inglesa, não mostra o percurso desenvolvido pelo pedagogo a esse
respeito.
Por isso, cartografo um conjunto expressivo de materiais (textos, capítulos de livros,
vídeos, entrevistas, revistas, projetos publicados, catálogo das mostras) que tratam do conjunto
de trabalhos supervisionados por Malaguzzi ao longo de 30 anos e remonto o modo como o
pedagogo foi construindo o conceito de Documentação Pedagógica ao passo que foi também
construindo o conhecimento praxiológico junto às escolas de Reggio Emilia.
Anteriormente a essa sistematização, eu já tinha me debruçado sobre esse referencial
por muitos anos e esboçado algumas categorias que sintetizavam as ideias centrais sobre o tema
da Documentação Pedagógica em Loris Malaguzzi. Assim, na medida em que fui trabalhando
com os materiais que utilizei para o desenvolvimento do tema, reiterei algumas ideias iniciais
e reconfigurei outras para estruturar o pensamento do pedagogo sobre a estratégia da
Documentação Pedagógica. O argumento, por fim, é de que o conceito da Documentação
Pedagógica emerge contemporaneamente ao momento em que se constrói o conhecimento
praxiológico nas escolas de Reggio Emilia e, por sua vez, é a estratégia para sustentá-lo.
Sem dúvida, uma das companhias de uma tese é a herança teórica: a tradição, como
fala Pallasmaa (2012), que em si constrói a sua própria sabedoria. Mas também há outras
companhias, que são aquelas que compõem a própria pesquisa. Não há obra que se faça sozinha.
17
O trabalho que constitui a tese propriamente dita é o esforço de colaboração e vontade
de muitas pessoas. Esses sujeitos são os que compõem as instituições participantes do OBECI
e que estiveram ao longo dos seis anos da pesquisa comprometidos em olhar para os seus
cotidianos pedagógicos com vista a transformá-los.
Assim, na Parte III, mostro a constituição do OBECI e o modo como essa comunidade
de apoio ao desenvolvimento profissional tem sustentado um dado processo formativo. A
construção deste Observatório surge com a finalidade de constituir uma comunidade com
profissionais da educação infantil que estivessem interessados em refletir sobre o cotidiano
pedagógico e problematizá-lo para transformar.
Nessa parte, trato sobre a constituição e sustentação dessa comunidade de apoio ao
desenvolvimento profissional bem como as crenças formativas em que fomos nos inscrevendo.
Indico as instituições que compõem o OBECI por meio de cartas de identidade e explicito os
diferentes processos formativos que fomos construindo ao longo dos seis anos. Também discuto
as ideias centrais que partilhamos, tais como a focagem no cotidiano, a perspectiva de criança
e currículo, com isso, mostro a herança teórica que partilhamos. Além disso, como uma das
ideias centrais no OBECI é a Documentação Pedagógica, apresento o modo como temos
compreendido essa estratégia na tentativa de traduzir como investigamos dentro do
Observatório.
Graças ao trabalho densamente documentado ao longo destes seis anos, alguns
conteúdos e processos formativos foram emergentes e mostraram a necessidade de refletir e
constituir algumas linhas orientadoras para o trabalho pedagógico. A isso chamamos de
Organizadores da Ação Pedagógica e, com esses organizadores, restituo o conhecimento
praxiológico produzido no interior do OBECI a partir do quadro teórico que temos nos situado
e que foi sustentado a partir da Documentação Pedagógica.
O enigma da vida
Por fim, seguindo as pistas de Pallasmaa (2012, p. 152-153), termino a tese com o
propósito de “[...] entrelaçar os vários códigos em uma visão de mundo múltiplo [...]”. O
arquiteto recupera a função primeira da arquitetura, dizendo que a ela cabe a função de dar os
significados existenciais de como ocupar o mundo (PALLASMAA, 2012).
Encerrar a tese com as aprendizagens que fiz ao longo desse percurso foi o modo que
encontrei para compartilhar com os leitores a complexa trama que é investigar, formar e situar-
18
se na Pedagogia, pois isso significa estar implicado com a vida em processo de professores,
coordenadores pedagógicos, diretores, crianças, e a minha mesmo, como pesquisador. Ao longo
da tese, tomando emprestado o conceito de Oliveira-Formosinho (2002a), fui construindo uma
arquitetura de diálogos para dar a concretude de como acredito que Pedagogia que comungo
pode dar novos significados à formação dos professores e às jornadas de aprendizagem das
crianças. Esse é meu enigma de vida, como diz Pallasmaa (2012). E tem encontrado sua forma
de resistir a todas as injustiças sociais por meio de uma Pedagogia que verdadeiramente acolha
os direitos das crianças e dos adultos que trabalham com elas.
Pallasmaa (2012, p. 153) advoga que “[...] a arte não deveria aumentar ou reforçar a
miséria humana, e sim aliviá-la”. Acredito, por fim, que a aspiração de uma tese pedagógica
não pode ser a de sublinhar a miséria educacional, justificando-se pelo intento de representação
da realidade. Ao contrário, o propósito deve ser o de alargar as possibilidades, criar novos
horizontes possíveis e investigar ideias e novos modos de nos colocar como investigadores.
Além disso, colocar os professores e crianças em uma relação educativa, oferecendo a eles e,
sobretudo, comprometido com eles, a construção de possibilidades de uma nova utopia
cotidiana.
19
UM MESMO CAMINHO PARA
OS MÉTODOS E PARA AS
ASPIRAÇÕES
20
PARTE I
1. ABRINDO PORTAS
21
Esse compromisso me leva ao encontro de um campo teórico que ajuda a responder
sobre como construir uma escola mais honesta, como nos fala Bruner3 (1999 apud STROZZI,
2016, p. 62), e mais amável, como advoga Malaguzzi (apud Hoyuelos, 2006), uma vez que, ao
pensar no cotidiano das instituições da Educação Infantil, reconheço a oportunidade de
responder à exigência ética para com os direitos das crianças e dos adultos que ali estão
(SOUSA; FOCHI, 2017). Daí que, desde meu percurso no mestrado, assumo a Pedagogia como
campo de conhecimento, pois percebo que é na relação pensante do acontecer das coisas que
conseguimos renunciar aos discursos dominantes. Estou entendendo por “discursos
dominantes” aquilo que Dahlberg, Moss e Pence (2003, p. 190) chamam de nexus saber-poder:
“[...] aqueles regimes de verdade que tentam determinar para nós o que é verdadeiro ou falso,
certo ou errado, o que podemos ou não podemos pensar e fazer”.
De fato, a Pedagogia acolhe a natureza do conhecimento em movimento, e, por isso,
refletir sobre aquilo que se faz é crucial para responder aos pedidos sociais. Isso porque a escola
situa-se em uma lógica de mudança, uma vez que representa uma instituição que,
necessariamente, encontra-se situada em uma sociedade que se transforma cada vez mais
rapidamente.
Não apenas o interesse pelo campo da Pedagogia se originou em meu mestrado4.
Naquela ocasião, eu estava interessado em saber sobre as ações dos bebês em contextos de vida
coletiva e, por isso, acompanhei, durante pouco mais de três meses, a vida de oito bebês e dois
adultos estáveis no cotidiano de um berçário, buscando capturar os “[...] espaços vazios,
momentos em que, aparentemente, nada acontece, mas que possuem a síntese e a beleza da
vida” (FOCHI, 2013, p. 46).
Embora meu interesse estivesse centrado nos bebês, considerei fundamental a troca
ativa com os adultos responsáveis, em especial, com a professora daquele grupo. Por essa razão,
após as tardes em que acompanhava o cotidiano dos bebês, ocorreram encontros junto à
professora para contrastar reflexões a partir dos registros gerados tanto por mim, quanto por
ela. Essa experiência demonstrou-se muito produtiva para o processo formativo daquela
3 Fala realizada por Jerome Bruner nas escolas de Reggio Emilia, citada por Paola Strozzi no texto Um dia na
escola, um cotidiano extraordinário In: ZERO, Project. Tornando visível a aprendizagem: crianças que
aprendem individual e em grupo. São Paulo: Phorte, 2014. p. 60-79.
4 FOCHI, Paulo Sergio. “Mas os bebês fazem o quê no berçário, heim?”: documentando ações de comunicação,
5 John Dewey, Michael Fullan, Andy Hargreaves, Lawrence Stenhouse, Loris Malaguzzi, José Contreras, Julia
Oliveira-Formosinho, João Formosinho e Mônica Appezzato Pinazza também abordam sobre a consciência da
prática educativa. Aqui, no entanto, apenas estou indicando sumariamente o percurso do OBECI e, posteriormente,
na parte 3, desenvolverei com profundidade o tema.
6 Conforme terminologias utilizadas em alguns documentos que temos disponível no cenário nacional, a
organização etária para a Educação Infantil se divide em bebês, crianças bem pequenas e crianças pequenas.
23
nesse cenário que nasce o lócus de pesquisa desta tese, o OBECI, um pequeno grupo de escolas
com o interesse particular na reflexão e transformação de seus contextos. Uma comunidade que,
inicialmente, formou-se pelas equipes gestoras (diretora e coordenadora pedagógica) de três
escolas que aceitaram meu convite para reunirem-se sistematicamente e problematizar suas
instituições pensando a respeito das dinâmicas da vida cotidiana, da ação pedagógica, do lugar
das crianças e do papel do professor, da gestão pedagógica e da formação dos professores. Essa
comunidade foi se ampliando e, hoje, envolve cinco instituições, além do trabalho formativo
que logo se alargou, abarcando seus professores7.
Importante destacar que, ao tempo do início do OBECI, não havia ingressado no
doutorado, e isso não foi por acaso. Entendo que uma pesquisa situada na formação de
professores envolve uma temporalidade alargada para acolher a amplitude de aspectos que
precisam ser considerados para não cair apenas em fabulações de mudanças, ou seja, “[...]
slogan inoperante, como a retórica profissional e política vem fazendo” (ROLDÃO, 2001, p.
116). Assim, em 2015, é que ingressei formalmente no doutorado, garantindo um largo tempo
para o desenvolvimento da pesquisa, seis anos ao todo.
Há um dilema fundamental e transversal que atravessa esta pesquisa: querer constituir-
se uma tese que responda à Pedagogia enquanto um campo de conhecimento em si mesmo, que
conhece as suas fronteiras, mas não as delimita, porque a sua essência está no diálogo e na
integração (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2007; SOUSA, FOCHI, 2017). Portanto, em se
tratando da relação pedagógica na Educação Infantil, que busca o nexo “[...] entre o saber o que
fazer e aceitar o desconhecido” (CONTRERAS, 2010, p. 247), o desafio é como desenvolver
um texto que possa contribuir com a construção do estatuto da Pedagogia, mas que não se
transforme em um receituário, reduzindo e simplificando a complexidade do ato pedagógico, e
tampouco caia em abstracionismos e jogos discursivos que não apontam horizontes ou pistas a
serem pensadas por quem faz Pedagogia.
Oliveira-Formosinho (2007) identifica dois modos de se fazer pedagogia: o modo
transmissivo e o modo participativo e, a cada um desses, também identifica características
distintas em relação à concepção de criança e de adulto, da visão de mundo e de escola, de
compreensão sobre a aprendizagem e a relação educativa. Tais visões não se distinguem apenas
por questões epistemológicas, mas especialmente pelo modo que cada uma compreende o
7 Embora cinco escolas participem do OBECI, para fins de pesquisa, são quatro instituições que compõem a
investigação: duas públicas e duas privadas. Na Parte III desta tese, explicito com mais detalhes essa questão e a
constituição do OBECI.
24
acesso e a mediação aos processos sócio-histórico-cultural pelos quais crianças e adultos
participam (SOUSA, FOCHI, 2017).
De fato, a Pedagogia que busco é aquela situada na família das Pedagogias
Participativas, que em sua pluralidade reconhece a criança e o adulto como partícipes da
construção das suas jornadas de aprendizagem (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2007). Uma
Pedagogia que se desenvolve em companhia sincrônica (com as famílias, com as crianças, com
os pares formadores e investigadores) e diacrônica (reconhecendo a herança teórica que nos
sustenta) (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2017). Busco um tipo de Pedagogia “[...] que me
oriente, que me ajude a construir um sentido do que fazer, que não se apresente como uma
resposta metodológica, como um plano de ação” (CONTRERAS, 2010, p. 248). Por isso, uma
Pedagogia que não se afasta do saber que nasce da experiência e não se reduza a modelos
assépticos e silenciadores. Pelo contrário, “[...] uma pedagogia que não nos roube a pergunta
pessoal pelo sentido do que fazemos [...]. Uma pedagogia que, enquanto nos mostra um
caminho, não nos tire nenhuma das perguntas que esse próprio caminho vai nos mostrando
como respondê-las” (CONTRERAS, 2010, p. 248).
Sendo professor da área da Educação Infantil e formador de professores para essa
etapa8, meu interesse ao ter realizado esta pesquisa foi o de conhecer os contextos que fazem
parte da pesquisa e intervir no cotidiano pedagógico desses contextos, de modo colaborativo e
com vistas à transformação, qualificando-os baseado em uma ética que respeita as crianças e os
adultos em sua condição aprendente, criadora, pensante e atuante no e com o mundo. Parto do
pressuposto de que é preciso evidenciar o papel da criança no processo educativo, convidando
a reposicionar o papel do professor nesse processo, a fim de construir um conhecimento
praxiológico que responda à complexidade das instituições de Educação Infantil sem que se
perca a criança e o adulto na relação educativa.
Assim como a busca pela relação pensante com o acontecer das coisas e dos saberes
provenientes da experiência para construir o conhecimento praxiológico, o trabalho que está
em curso no OBECI diz muito do que pretendo que esta tese evoque. Ou seja, a crença que
tenho de que quando fazemos algo com um determinado grau de consciência, criamos uma
atmosfera possível para renunciar aos discursos dominantes e transformar os contextos em que
estamos inseridos. Nesse sentido, na sequência, serão apresentadas as perguntas que norteiam
este estudo, bem como as hipóteses e objetivos da tese.
8Desde 2013, atuo como coordenador e professor da Especialização em Educação Infantil na Universidade do
Vale do Rio dos Sinos – Unisinos e, desde 2014, como professor de graduação em Pedagogia na mesma
universidade.
25
1.1 As perguntas, hipóteses e objetivos da tese
Esta tese tem como hipótese que uma comunidade de apoio ao desenvolvimento
profissional pode dar suporte ao desenvolvimento profissional e organizacional, ocupando-se
da Documentação Pedagógica como estratégia para a construção do conhecimento
praxiológico. Nesse viés, entendo por conhecimento praxiológico o conhecimento situado, que
articula dialogicamente o sujeito ao seu contexto para responder à complexidade do cotidiano
pedagógico. É um esboço da epistemologia da prática construída na dialogia entre o interior e
o exterior, ou seja, entre a práxis9 (ação situada) e a interatividade com uma dada herança teórica
(modelos pedagógicos e pedagogos) e atravessada por uma ética (crenças e valores)
(OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2007). Por isso, o conhecimento praxiológico não se trata de
uma descrição da prática nem da aplicação de uma teoria, mas da elaboração de um
conhecimento pedagógico que emerge junto aos práticos e que se sustenta em um quadro teórico
para responder à complexidade da transformação da prática educativa cotidiana.
Formosinho e Oliveira-Formosinho (2012, p. 601) advogam que “[...] se nós queremos
desenvolver conhecimento sobre a transformação, nós precisamos praticar a transformação
[...]”; portanto, trata-se de “[...] agir e investigar a ação para a transformação; formar na ação
transformando-a; investigar a transformação para construir o conhecimento praxiológico”
(OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2016a, p. 18).
Assim, o fenômeno estudado nesta tese é complexo, situado e multidimensional. Isto
é, aceita a incerteza e o inacabamento próprio do conhecimento humano e, por isso, não acredita
que este seja “[...] um processo linear, acumulativo, que avança iluminando onde estava escuro,
ignorando que toda luz também produz, como efeito, sombra” (MORIN, ROGER, DOMINGO,
2002, p. 49-50). Dado seu contextualismo, o caminho desta tese foi se construindo conforme
seu próprio caminhar para responder a sua autoprodução e auto-organização sistêmica
(MORIN, 2017). Logo, não tem a pretensão de ser um pensamento completo (MORIN,
ROGER, DOMINGO, 2002), mas um pensamento que busca construir uma explicação
aceitável dos fenômenos que se estuda sem dogmatizar ou compreendê-los como verdades.
Contudo, para dar visibilidade aos acontecimentos, interações e conhecimentos produzidos, os
processos de transformação investigados são densamente documentados e suficientemente
aproximados dos contextos pesquisados (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2016a).
27
Desde minha experiência de pesquisa no mestrado, tenho assumido a posição de que
o papel da investigação em educação e do investigador, tal qual destaca Alarcão (2001, p. 136),
pode ser definido pelo “[...] desejo de conhecer e, se possível, intervir [...]” em uma realidade
situada10. Comungo, tal como Lewin advoga (1988, p. 41 apud ARAÚJO, 2011, p. 102), da
ideia de que “[...] investigação que apenas produza livros não será suficiente”. No atual cenário
brasileiro, poderíamos dizer que as investigações que apenas servem para alimentar o currículo
lattes e que não se comprometem com a transformação dos contextos de pesquisa –
permanecendo ancoradas em teorias interpretativas que por vezes aniquilam e desempoderam
ainda mais a escola e os profissionais – não podem ser suficientes para uma investigação em
educação.
Recentemente, compreendi que essa natureza de investigação se situa nos domínios da
investigação praxiológica (FORMOSINHO; OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2012; OLIVEIRA-
FORMOSINHO, 2016a; FORMOSINHO, 2016). Essa perspectiva de investigação compreende
que, para o cumprimento efetivo dos direitos das crianças e dos profissionais das escolas
infantis, é preciso avançar o plano discursivo, ou a retórica nominalista, ou seja, “[...]a
manipulação nominal de conceitos sem qualquer influência no quotidiano praxiológico, a
adoção do nome sem o respectivo conteúdo praxiológico” (OLIVEIRA-FORMOSINHO,
2016a, p. 19). A definição de praxiologia, como teoria e estudo da práxis, circunscreve essa
possibilidade de, simultaneamente, investigarmos o campo, refletirmos e nos engajarmos ética
e moralmente com ele (OLIVEIRA-FORMOSINHO, FORMOSINHO, 2012; PINAZZA,
2014; FORMOSINHO, 2016).
Oliveira-Formosinho (2016a, p. 19), ao referir-se à investigação praxiológica, desvela
a relação emergente deste domínio investigativo no que tange à formação, à transformação e à
informação:
Estamos perante uma estratégia que visa formar para transformar através da
investigação da transformação. Assim, a investigação praxiológica informa,
transforma e forma. Informa através da produção de conhecimento sobre a realidade
em transformação; transforma ao sustentar a produção de mudança praxiológica
através de uma participação vivida, significada e negociada no processo de mudança;
forma, pois produzir a mudança e construir conhecimento sobre ela é uma
aprendizagem experiencial e contextual, reflexiva e colaborativa que pode, na
linguagem de Boaventura de Sousa Santos, emigrar para outros lugares cognitivos.
11Na sequência, irei tratar com maior aprofundamento sobre a investigação praxiológica.
12Nos últimos anos, diferentes fundações e organizações da sociedade civil sem fins lucrativos têm ocupado um
importante nicho na formação de professores. Mônica Knöpker (2018), em sua tese “Fazendo o neoliberalismo
29
natureza de organização formada por um pequeno grupo de escolas e refletir sobre os
desdobramentos é parte estruturante desta pesquisa para posterior análise dos processos
formativos nela constituídos e o conhecimento praxiológico emergente dessa comunidade.
Também o modo como a formação foi acontecendo dentro dessa comunidade pode
revelar uma possibilidade formativa a outros contextos. Por isso, a descrição densa desse
processo objetiva, ao mesmo tempo, (i) partilhar o modo que a pesquisa ocorreu em nível
metodológico; (ii) evidenciar os processos formativos vivenciados dentro do OBECI; e (iii)
localizar os conteúdos emergentes a partir desta comunidade de apoio. Pressuponho que a
cartografia dos conteúdos emergentes dessa comunidade de apoio ao desenvolvimento
profissional pode conter indícios importantes para a formação de professores e para a
construção do conhecimento praxiológico da Educação Infantil.
A segunda questão propõe:
2. De que modo a Documentação Pedagógica pode ser utilizada como uma
estratégia para a construção e explicitação do conhecimento praxiológico?
Essa pergunta se desdobra em duas:
a. Em que medida a Documentação Pedagógica cria, sustenta e explicita
o conhecimento praxiológico?
b. Como as comunicações a respeito da vida cotidiana das escolas,
decorrentes do processo formativo do OBECI, evidenciam suas
concepções de criança, de docência e da Pedagogia?
No Observatório, percebemos a Documentação Pedagógica como uma forma de
produzir conhecimento praxiológico sobre a Educação Infantil a partir da oportunidade de
aprender a olhar as experiências das crianças na escola e evidenciar o seu papel no processo
educativo, convidando a reposicionar o papel do professor e a construir um contexto educativo
de qualidade. Nessa estratégia, a comunicação13 das experiências dos meninos e meninas revela
a concepção que o adulto tem a respeito das crianças, da docência e da Pedagogia. Assim, tem-
funcionar ‘dentro de nós’: um estudo sobre a atuação de organizações da sociedade civil sem fins lucrativos na
forma(ta)ção docente”, analisa os efeitos de verdade que tais grupos pretendem disseminar. Um recente exemplo
é a elaboração da Base Nacional Comum Curricular que foi iniciada por um conjunto de professores e
pesquisadores universitários e representantes das secretarias estaduais de educação e foi finalizada por um grupo
de organizações da sociedade civil lideradas por outra grande corporação “sem fins lucrativos”.
13 Estou chamando comunicação todo o material físico que a escola ou o professor constroem a partir de um
processo investigativo com as crianças. Essas comunicações, geralmente, são vídeos, painéis, exposições, livros,
livretos e apresentações em Power Point. A comunicação é parte da estratégia da documentação pedagógica, mas
não é em si a estratégia da documentação pedagógica. Ao longo da tese, isso será amplamente discutido.
30
se nessas comunicações a possibilidade de interpretar e reprojetar o trabalho educativo além de
explicitar as crenças pedagógicas partilhadas pela instituição.
Uma vez entendido isso, optou-se por reconstruir os conceitos da Documentação
Pedagógica em Loris Malaguzzi a partir dos projetos documentados e publicados ao longo de
30 anos de sua trajetória junto às escolas municipais de Reggio Emilia14. Assim, ao mesmo
tempo que se restitui a constituição do conceito da Documentação Pedagógica, também se
restitui o conhecimento praxiológico construído no interior daquelas instituições.
Do mesmo modo, buscou-se nesta tese compreender e restituir o conhecimento
praxiológico que no interior do OBECI tem se desenvolvido ancorado pela estratégia da
Documentação Pedagógica. Além de revelar nossas concepções de criança, professor e escola,
entendo que o conhecimento pedagógico situado pode oferecer elementos estratégicos para a
compreensão de uma dada perspectiva de Pedagogia Participativa na Educação Infantil no
cenário brasileiro, e torná-la partilhável pode servir como fonte de inspiração a outros
contextos.
A Documentação Pedagógica é para o OBECI aquilo que conecta e sustenta os
diálogos entre as instituições participantes. Também é o modo pelo qual constituímos a
triangulação entre investigação, formação e Pedagogia. Logo, institui-nos como uma
comunidade de apoio ao desenvolvimento profissional que constrói e explicita o seu
conhecimento praxiológico emergente.
Desse modo, esta tese tem como objetivo geral compreender de que maneira a
construção de uma comunidade de apoio ao desenvolvimento profissional que se vale da
estratégia da Documentação Pedagógica contribui para a transformação da vida cotidiana das
instituições participantes ao mesmo tempo que constrói e explicita um dado conhecimento
praxiológico.
Desse objetivo, decorrem os seguintes objetivos específicos:
a) Aprofundar o conhecimento a respeito da constituição de comunidades de
apoio ao desenvolvimento profissional;
b) Explicitar os processos formativos vividos no contexto do OBECI;
c) Compreender os processos e os conteúdos emergentes do processo de
formação em contexto em uma comunidade de apoio do desenvolvimento
profissional;
14
As razões da delimitação dos 30 anos serão explicitadas na Parte II desta tese, uma vez que o trabalho de
Malaguzzi com as escolas públicas de Reggio Emilia completou quase meio século.
31
d) Compreender e refletir acerca da Documentação Pedagógica como estratégia
de formação, transformação e explicitação do conhecimento praxiológico;
e) Refletir e explicitar o conhecimento praxiológico emergente dos contextos que
compõem o OBECI.
Na sequência, seguindo a discussão sobre os aspectos que estruturam o desenho desta
investigação, discuto a textualidade da tese, enfatizando o entendimento que construo a respeito
de uma tese pedagógica e também a abordagem metodológica, apresentando os dados utilizados
bem como os instrumentos e técnicas para a interpretação.
32
2. TEXTUALIDADE E ABORDAGEM METODOLÓGICA DA TESE
A clássica obra de Umberto Eco, Como se faz uma tese, sustenta que a tese “[...]
constitui um trabalho original de pesquisa, com o qual o candidato deve demonstrar ser um
estudioso capaz de fazer avançar a disciplina a que se dedica” (ECO, 2008, p. 2). Destaca, ainda,
que envolve um esforço em se “descobrir” algo, considerando que, em se tratando de uma tese
no campo humanista, obviamente não se faça referência a uma descoberta revolucionária (o
autor exemplifica com a teoria da relatividade), mas a “descobertas mais modestas” (ECO,
2008, p. 2). De qualquer modo, revolucionária ou modesta, é fato que a descoberta, ou a tese,
“deve produzir um trabalho que, teoricamente, os outros estudiosos do ramo não deveriam
ignorar, porquanto diz algo de novo sobre o assunto” (ECO, 2008, p. 2).
O autor ainda elenca dois aspectos importantes para uma tese “servir” após seu
término. O primeiro consiste em pensar a tese como o mote para algo maior, para alguma coisa
que possa ser desenvolvida posteriormente (ECO, 2008). O segundo, algo que contribua com o
campo, lugar em que os profissionais possam encontrar horizontes, como o autor exemplifica:
“que ajude o diretor de um organismo [...] em sua profissão” (ECO, 2008, p. 5).
Ademais, fazer a tese significa ter competência de projetar um percurso, quer seja pela
capacidade de recolher, relacionar e reexaminar dados, quer seja pelo modo com o qual
compartilha o percurso de pesquisa. Isso significa dizer que “[...] não importa tanto o tema da
tese quanto a experiência de trabalho que ela comporta” (ECO, 2008, p. 5). O autor italiano
observa, que ao contrário do que se possa imaginar, “[...] não foi sobre economia política, mas
sobre dois filósofos gregos, Epicuro e Demócrito” (ECO, 2008, p. 5) a tese desenvolvida por
Marx. Ou seja, não sendo um acidente de percurso da pesquisa, ocorre que “Marx foi talvez
capaz de analisar os problemas da história e da economia com a energia teórica que conhecemos
exatamente porque aprendeu a pensar sobre os seus filósofos gregos” (ECO, 2008, p. 5).
Seguindo as pistas de Eco (2008), parece-me que esta tese atende à exigência de
avançar no campo do qual me dedico; convoca os demais pesquisadores da área para pensar a
partir do que aqui está sendo discutido; situa-se em um plano maior, ou seja, a pesquisa não foi
criada para a tese e nem se pretende que ela esgote por aqui; e, por fim, dá horizontes aos
profissionais do campo.
Eco (2008) identifica alguns tipos de tese: a preterida Tese Panorâmica, enfadonha e
perigosa, segundo o autor; a Tese Monográfica, preferível pelo seu caráter ensaístico; a Tese
Histórica, que situa um conceito neste ou naquele autor, neste ou naquele período de tempo; a
33
tese Teórica, “que se propõe atacar um problema abstrato” (ECO, 2008, p. 11) e, quase como
uma variação desta; a Tese Experimental, como uma alternativa para as disciplinas aplicadas,
“[...] pois há o direito de enfrentar experimentalmente uma questão a fim de obter um método
de pesquisa e trabalhar em condições razoáveis de laboratório, com a devida assistência” (ECO,
2008, p. 12). Dentre estas, refere-se à Tese Histórica e à Teórica como possíveis de serem
elaboradas na Pedagogia.
Nas descrições dos diferentes tipos de tese tratadas por Eco (2008), confesso ter
dificuldade para situar, tanto do ponto de vista teórico quanto metodológico, a tese que aqui
apresento. Na perspectiva de Pedagogia que comungo, não se trata de escrever um trabalho que
aproxime uma teoria já consagrada a um contexto ou tipo de práticas que dele emergem.
Também não considero produtivo o simples apanhado de perspectivas em um dado período
histórico ou “igreja teórica”, com a finalidade de enunciar conceitos. Tenho a impressão de que,
na maioria desses casos, o campo empírico – geralmente apartado do restante da tese – serve
apenas para justificar os conceitos, as hipóteses e as teorias já previstas de antemão. Mesmo em
perspectivas mais próximas do paradigma pós-estruturalista, a minha suspeita é que a empiria
serve somente como disparador para discursos elitistas, para não dizer egoístas, que, no fim,
servem apenas ao próprio pesquisador ou a pequenos e seletos grupos distantes da escola15.
No percurso de elaboração desta tese, refletindo sobre as provocações de Eco (2008),
fui remontando alguns argumentos que não apenas podem me ajudar a defender esta pesquisa
como uma tese, mas de tipificá-la como uma tese pedagógica16. Por isso, mobilizado em (i)
contribuir com o campo da Pedagogia, em especial, a Pedagogia da Infância; (ii) evidenciar
aspectos que considero fundamentais para aqueles que, assim como eu, estão interessados em
compreender e transformar os contextos de Educação Infantil e acreditam na formação de
professores contextualizada à possibilidade desta transformação; (iii) construir a tese a partir de
contextos reais, do envolvimento com o campo e de um trabalho prolongado, que, ao mesmo
tempo que delimita um recorte de análise para a tese, não impede a continuidade do trabalho
que está envolvido; (iv) fazer visível o percurso da tese tanto no nível investigativo quanto no
nível formativo; e (v) pensar o quadro teórico que já temos constituído no campo da(s)
Pedagogia(s) da Infância como orientação do trabalho investigativo, formativo e da ação
15 Não é objetivo aqui fazer um apanhado dos tipos de pesquisa em educação que temos produzido no Brasil nos
últimos tempos. A crítica que faço é a partir do campo teórico em que me situo e, ao longo da tese, o explicito.
16 E talvez, com isso, abrandar meu problema em não me contentar apenas em produzir a tese, mas de contribuir
17Ao escolher a Pedagogia como campo de conhecimento a ser desenvolvido o estudo, desde o mestrado, deparo-
me com as questões metodológicas. Nos trabalhos de tese e dissertação acessados, observo que há uma forte
tendência na utilização de metodologias oriundas de outros campos (Sociologia, Antropologia, Filosofia,
Psicologia, Artes). Logo, os textos produzidos estruturam-se de acordo com essas áreas. Em minha dissertação,
escolhi uma estratégia pedagógica (Documentação Pedagógica) para utilizá-la como metodologia de pesquisa e
escrevi um texto com algumas características que considero pedagógicas. Na tese, busco a investigação
praxiológica como alternativa para tratar dos processos de transformação, que, do meu ponto de vista, são o tipo
de metodologia que mais se enquadra no campo da Pedagogia, pois há um exercício em qualificar as ideias sobre
um texto pedagógico e de exercitá-lo na própria escrita da tese.
35
metodológica que contribui “[...] no sentido de melhor cumprir o desiderato de fundir a ação e
a investigação, incluindo as vozes dos participantes” (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2016a, p.
18).
Em uma revisão realizada sobre os paradigmas do conhecimento nas investigações da
práxis educativa, João Formosinho (2016) chama atenção para os limites da perspectiva
aplicacionista e positivista nas pesquisas em educação. O principal é que tal modo de
compreender a realidade, além de simplificá-la, não se centra nos contextos e nem nos
processos, mas em generalizações insuficientes que são apresentadas como verdades.
A resposta para a complexidade da investigação em educação para esse autor está na
investigação praxiológica, e, assim, destaca oito ideias centrais sobre esse domínio
investigativo18, a saber (FORMOSINHO, 2016):
a) Assumir a complexidade da experiência das crianças e do ato educativo;
b) Reconhecer o holismo do ser humano;
c) Reconhecer que a ação humana é contextual e situada culturalmente;
d) Reconhecer que a ação humana não é completamente previsível;
e) Reconhecer a conectividade no desenvolvimento humano;
f) Reconhecer que o rigor está na proximidade e não na distância;
g) Assumir a intersubjetividade da educação;
h) Assumir como variável central a perspectiva pedagógica desenvolvida nos
contextos pesquisados.
A respeito dessas ideias, sumariamente, pode-se dizer que o holismo a que Formosinho
(2016) se refere, acolhe a complexidade e renuncia as simplificações ou divisões tanto em
relação à noção das crianças e adultos como à noção da ação educativa. Segundo o próprio
autor, “uma visão holística da educação é o respeito pela complexidade das identidades da
pessoa humana [...], pela sua experiência de aprendizagem do mundo e de si próprias, e pela
complexidade do ato de educar” (FORMOSINHO, 2016, p. 21).
Nesse sentido, para investigar em educação é preciso conjugar esforços para construir
uma compreensão das dinâmicas “[...] recursivas entre as partes [...]” (FORMOSINHO, 2016,
p. 23), não reduzindo assim a um processo somatório, pois “[...] o todo não assimila as partes,
e a soma das partes não substitui o todo” (FORMOSINHO, 2016, p. 22). Logo, o autor destaca
que a construção social dos contextos os localiza em um dado recorte espaço-temporal e uma
18 Essas ideias foram extraídas e sintetizadas a partir de um montante de cinco páginas em que Formosinho (2016,
p. 21-26) explicita de forma ampliada cada uma delas.
36
dada cultura. Por isso, para atender a essa dimensão situada, é necessário compreender
ecologicamente a aprendizagem, uma vez que “a aprendizagem de cada criança, e do grupo, a
aprendizagem dos profissionais, desenvolve-se nos seus contextos plurais e sociais e nas suas
interações” (FORMOSINHO, 2016, p. 23).
Da mesma forma, considerar a construção social da realidade e agência dos sujeitos
implica reconhecer sua imprevisibilidade, mesmo que parcial. É próprio da linguagem não
conseguir explicar a ação humana, tampouco temos como categorizar e antecipar suas ações.
Assim, do mesmo modo que as ações humanas não são totalmente previsíveis, “[...] a
aprendizagem e o progresso das crianças e dos profissionais também não o são”
(FORMOSINHO, 2016, p. 23).
Por certo, diferentemente do paradigma positivista que confere rigor no
distanciamento, aqui, a proximidade é um sine qua non para o investigador (FORMOSINHO,
2016). Quanto maior for a proximidade do investigador com o contexto investigado, melhor
poderá compreender as dinâmicas das situações educativas. Bogdan e Biklen (1994, p. 48)
também chamam atenção para o fato de que “os investigadores qualitativos assumem que o
comportamento humano é significativamente influenciado pelo contexto em que ocorre”;
assim, é somente na proximidade que o investigador pode compreender o modo pelo qual,
mutuamente, contexto e sujeitos se influenciam.
Dessa maneira, “o conceito de rigor na investigação praxiológica é o oposto [do
paradigma positivista] – baseia-se na proximidade, na interação intensa com os atores, na
colaboração com eles e na longa imersão do investigador/formador no contexto”
(FORMOSINHO, 2016, p. 24). Somente assim é possível documentar densamente as diferentes
vozes para poder narrar a complexidade do fazer educativo. Como o próprio Formosinho (2016,
p. 22) destaca, “esquecemo-nos de que a maneira como vemos o mundo é aprendida”: é na
proximidade que também se assume o valor subjetivo das lentes do investigador. O
conhecimento que se produz, portanto, é também subjetivo, mas,
na triangulação das vozes dos atores [...], ao longo dos tempos do cotidiano de
aprendizagem, e a triangulação de instrumentos pedagógicos de observação que
interrogam a documentação pedagógica e a fazem falar sobre a aprendizagem
experiencial, situada, contextual, cultural, são de importância primordial para
conseguir uma apreciação mais autêntica das aprendizagens transformativas, dos seus
processos e realizações (FORMOSINHO, 2016, p. 25).
37
e as Pedagogias Participativas têm visões de mundo, de ser humano e de conhecimento
drasticamente diferentes (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2007).
Não considerar esse aspecto é não entender a estreita relação entre uma dada escolha
pedagógica e o que ela provoca como processo educacional. É considerar que a Pedagogia é
neutra. Portanto, “a situacionalidade da ação educativa que convoca o contexto e a cultura
pedagógica para a sua coerência e compreensão requer que a intencionalidade educativa analise,
compreenda e interprete a variável contextual central – a pedagogia desenvolvida”
(FORMOSINHO, 2016, p. 26). Quando se explicita a Pedagogia, é lhe dado um nome,
afastando-se dos riscos e perigos que há nas pedagogias anônimas (FORMOSINHO, 2007), nas
pedagogias oficiosas do sistema (FORMOSINHO; MACHADO, 2005), nas pedagogias sem
nome (FORMOSINHO, 2018), que se centram na “racionalização burocrática da vida social,
construindo progressivamente a pedagogia burocrática como pedagogia ótima”
(FORMOSINHO, 2018, p. 20).
Um outro aspecto que me faz creditar maior importância para as investigações
praxiológicas é o alerta que Cochran-Smith e Lytle (2002, p. 138) fazem para o fato de que “a
maior parte da investigação educativa é percebida pelos docentes como algo irrelevante para o
trabalho de cada dia, logo suas crenças na investigação são contaminadas e, assim, não aceitam
que a investigação possa ser relevante e nem que eles mesmos possam ser investigadores”.
Sacristán (2012), ao analisar o campo das tendências investigativas na formação de professores
no ideário pós-positivista, compreende a Pedagogia como uma ciência que não se reduz à
técnica pedagógica: “a prática pedagógica é uma práxis, não uma técnica. E investigar sobre a
prática não é o mesmo que ensinar técnicas pedagógicas” (SACRISTÁN, 2012, p. 95). É, então,
a partir dessa afirmação que se funda a metáfora do professor reflexivo (Dewey e
posteriormente Schön), ou do professor investigador (Stenhouse), superando uma visão
receptiva e aplicacionista.
Sacristán (2012) também tenciona a relação teoria e prática que, a meu ver, fornece
advertências pertinentes a serem problematizadas quando se reflete a respeito da formulação de
uma tese pedagógica. A primeira dessas advertências é “se com a reflexão busco a prática, é
porque a ciência não pode me dar. Esta afirmação deveria levar-nos a pensar, a nós que
acreditamos estar fazendo ciência” (SACRISTÁN, 2012, p. 96). Nesse sentido, questiono-me:
se produzir uma tese é contribuir com o estatuto de um campo, o que é produzir ciência no
campo pedagógico?
38
A respeito disso, Sacristán (2012) diferencia ciência de pensamento e aponta que todos
nós, em um primeiro nível, atuamos de acordo com o que pensamos. No caso específico que o
autor está discutindo, sobre o que e como estamos produzindo ciência na formação de
professores e qual seu valor para os próprios professores, comenta: “[...] o grande fracasso da
formação de professores está em que a ciência que lhes damos não lhes serve para pensar”
(SACRISTÁN, 2012, p. 99).
Formosinho (2001) e Oliveira-Formosinho (2005) afirmam que na formação dos
professores estão envolvidas a experiência como alunos, a formação profissional e, dentro dela,
a prática pedagógica (estágio). Logo, na experiência de ser aluno por tantos anos, aprende-se,
mesmo que de maneira implícita, sobre ser professor. Como destaca Oliveira-Formosinho
(2005, p. 4), “o posterior processo de formação profissional poderá desconstruir e reconstruir
essas aprendizagens ou simplesmente estabilizá-las”. No entanto, para desconstruir e
reconstruir as aprendizagens que sustentam a docência, é preciso superar os abstracionismos e
generalismos da formação profissional.
Agimos pelo que pensamos, não pela ciência que nos deram, e isso significa que
estamos agindo de acordo com as nossas crenças e valores; agir pela ciência – e a ciência pode
nos fazer pensar – significa mobilizar o pensamento para modificar o nosso modo de agir
(SACRISTÁN, 2012). Porém, o próprio Sacristán (2012, p. 100) observa que “o pensamento
não explica a ação, o pensamento é parte da ação, mas não é toda a ação. [...] Os professores,
por mais que pareça estranho, são pessoas que sentem e querem... não só pensam”. Assim,
significa que existe outra parte da ação, que não é o pensamento, mas sim a “vontade” que o
outro tem.
Um processo investigativo que visa à construção do conhecimento praxiológico não
pode perder de vista as vontades que motivam os professores a agir do modo que agem, para
então, convidá-los a transformar seu cotidiano pedagógico, uma vez que “[...] para educar é
preciso que se tenha um motivo, um projeto, uma ideologia. Isso não é ciência, isso é vontade,
é querer fazer, querer transformar. E querer transformar implica ser modelado por um projeto
ideológico, por um projeto de emancipação social, pessoal, etc” (SACRISTÁN, 2012, p. 100).
Aliás, Bruner (2001) já abordou isso ao discutir sobre a relação entre agência e
colaboração como os “inimigos da hegemonia”, e afirma que “o objetivo da agência e da
colaboração competentes no estudo da condição humana é atingir não a humanidade, mas mais
a consciência. E mais consciência sempre implica mais diversidade” (BRUNER, 2001, p. 97).
A emancipação social profissional desejada no interior de uma instituição se dá, assim, na
39
intersecção do acolhimento das diferenças e do reconhecimento da capacidade de agir de cada
professor.
A partir dos argumentos que vêm sendo apontados, pode-se afirmar que o campo
pedagógico é complexo por isso torna-se difícil de estabilizar princípios ou verdades
homogêneas e, dada a sua dinamicidade, árduo de ser traduzido. Mas, ao mesmo tempo, requer
uma explicitação pedagógica para emancipar e melhor compreender o conhecimento
profissional prático.
Ao que tudo indica, a tendência para responder a essa complexidade implica a
superação de uma visão de homem reativo, passando ao reconhecimento da agência do homem
como criador. Além do mais, estabelece um diálogo respeitoso entre o conhecimento já
sistematizado com o produzido pelos práticos, visto que “a formação de profissionais tem um
referencial central na epistemologia da prática” (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2016a, p. 20), e
isso indica uma modalidade específica de produção de conhecimento. Ademais, o
conhecimento é entendido em sua provisoriedade, ou seja, é preciso a aceitação dos limites na
representação cognitiva da realidade.
Essa relação entre homem e conhecimento, ao mesmo tempo em que manifesta a
efemeridade sobre os processos cognoscentes, também põe valor ao conhecimento tácito. Nesse
sentido, as reflexões de Sacristán (2012, p. 96) apontam para outra particularidade de se fazer
uma tese pedagógica: “não há conhecimento firme, seguro, que possibilite uma prática correta,
porque a prática deve ser inventada pelos práticos. Quer dizer, a prática não pode ser inventada
pela teoria [...]. O problema é saber o papel que cumpre a teoria na invenção da prática”.
Se, por teoria, entendermos a definição apontada por Rinaldi (2012, p. 113-114), talvez
seja possível encontrar o lugar de um determinado tipo de teoria na invenção da prática:
Assim, teoria é aquilo que nos dá um lugar para as coisas do mundo que estavam aí,
ocupando espaços anônimos ou invisíveis. Ao passar para o campo da possibilidade de ser
explicada, compreendida, nomeada, mesmo que provisoriamente, abre janelas para outros
40
mundos possíveis (BRUNER, 1997a). Nesse sentido, a teoria é, inevitavelmente, a prova de
que não estamos sozinhos. Somos interpelados pelas pessoas, pelas coisas – são nossos
intercessores, segundo Deleuze (1992) – para podermos criar um conceito, uma explicação.
Mesmo que não percebamos, existe algo que emerge da nossa experiência no e com o mundo,
que nos mobiliza a atribuir significados. Por isso, o papel da teoria na construção da prática,
tendo a herança pedagógica do século XX como fonte (OLIVEIRA-FORMOSINHO,
KISHIMOTO, PINAZZA, 2007), é o de restituir e sustentar a visão de mundo, de homem
(especialmente a de criança) e de conhecimento.
Ainda, no âmbito da relação entre o investigador e os contextos, nos domínios da
práxis, faz-se necessário o alargamento da concepção de investigador. Como afirma
Formosinho (2016, p. 29), “na investigação praxiológica, o investigador é o principal
instrumento da pesquisa e um ator essencial para a transformação”, pois, ao mesmo tempo,
desempenha o papel de investigador e de formador. Por sua vez, como um princípio ético, é de
fundamental importância que este declare suas intenções (FORMOSINHO, 2016)19.
Isso coaduna com o que Bogdan e Biklen (1994, p. 47) afirmam sobre o papel do
investigador: “na investigação qualitativa, a fonte direta de dados é o ambiente natural,
construindo o investigador o instrumento principal”. Também Bogdan e Biklen (1994, p. 48)
alertam que “para o investigador qualitativo divorciar o ato, a palavra ou o gesto do seu contexto
é perder de vista o significado” e recorrem a Clifford Geertz para ampliar suas ideias, reiterando
que “uma boa interpretação do que quer que seja – um poema, uma história, um ritual, uma
instituição, uma sociedade – conduz-nos ao coração daquilo que pretende interpretar”
(GEERTZ, 1973 apud BOGDAN; BIKLEN, 1994, p. 48).
No caso específico desta tese, o investigador assume esse papel de importância como
um dos instrumentos da pesquisa, tanto do ponto de vista do papel de formador, que promove
e sustenta os processos de transformação, como no papel de investigador, para poder analisar,
compreender e restituir o conhecimento praxiológico produzido. A proximidade do
investigador, como já afirmado, é ponto fulcral na investigação praxiológica.
Como já discutido, a investigação educacional praxiológica estuda os processos da
transformação educativa; logo, a práxis é o lócus da investigação (OLIVEIRA-
FORMOSINHO, 2016a; FORMOSINHO, 2016). Práxis é “a ação educativa situada [...],
fecundada em saberes teóricos e investigativos, assumindo um sistema de crenças, valor e ética.
19No Apêndice A, constam os modelos de Termos de Consentimentos livres e Esclarecidos, além do Termos de
Acordo feito com as escolas participantes deste estudo. Estes foram alguns dos cuidados éticos desta pesquisa.
41
A práxis é uma ação complexa que procura no cotidiano a ética das relações e das realizações,
da participação de todos os atores envolvidos” (FORMOSINHO, 2016, p. 27).
Assim, o conhecimento praxiológico é o que se busca com esse tipo de investigação.
Isso significa a explicitação das teorias, a contextualização da prática e a sustentação nas
crenças e valores. Segundo Formosinho (2016, p. 28), “é uma práxis que resulta da integração
de saberes, técnicas, e rotinas, com as emoções, sentimentos e afetos que envolvem toda a ação
humana”. Essa categoria de conhecimento, o praxiológico, é o que sustenta a práxis e, ao
mesmo tempo, que emerge dela. É o que orienta e ajuda a explicitar as crenças pedagógicas, as
concepções teóricas e a reforçar a visão democrática da construção do conhecimento.
Ainda sobre o que tange ao papel do investigador e do investigado, compartilho o que
Sacristán (2012, p. 94) adverte: “os professores trabalham, enquanto nós fazemos discursos
sobre eles. [...] Esta situação sociológica, política e epistemológica pode ser uma explicação do
que tem sido a investigação sobre professores”. Acredito que, em se tratando de um trabalho
como este, há de se superar o discurso sobre os professores e passar a produzir com eles. Aliás,
Stenhouse (1998) já advertia a respeito dessa questão ao diferenciar uma investigação em
educação de uma investigação sobre educação. Além disso, o investigador deve assumir uma
posição implicada, dialogada e cooperativa com os professores, acolhendo e criando um espaço
legítimo em que ele possa revistar sua própria experiência. Por isso que Goodson (2007a;
2007b), ao tratar do capital narrativo, advoga sobre a promoção da voz do professor e não
apenas de escutá-la:
[...] em outras palavras, o modo como as pessoas teorizam, projetam, historiam sua
vida e suas orientações, será uma nova forma de capital cultural que inaugurará um
novo modo de reprodução social. É isto que procuro e que penso ser uma linha de
pesquisa animadora e instigante, de estímulo e curiosidade, não apenas porque é de
interesse acadêmico para mim, mas porque tem um potencial significativo para alterar
as modalidades sociais de mudança (GOODSON, 2007a, p.80).
Assim, narrar também pode ser uma forma de negociar significados para nossas vidas
e de produzir teorias, projetando futuros. E produzir esse capital narrativo, em termos
pedagógicos, poderá ser uma alternativa de mudança na medida em que os professores e as
crianças, na escola, se sentirão engajados ética e moralmente aos seus discursos, sentimentos e
ações.
Em nosso percurso no interior do OBECI, o capital narrativo está diretamente ligado
à estratégia da Documentação Pedagógica. Para os professores, coordenadores e gestores,
comunicar as jornadas de aprendizagem dos adultos e das crianças representa a construção de
42
uma trama de sentidos que nos ajuda a compreender a cultura da infância e a cultura pedagógica,
mais do que explicar.
Morin (2017, p. 51) alerta que “explicar não basta para compreender. Explicar é
utilizar todos os meios objetivos de conhecimento, que são, porém, insuficientes para
compreender o ser subjetivo”. Por assim entender, não documentamos para construir um
acúmulo de materiais textuais e imagéticos sobre as crianças, mas documentamos para construir
um capital narrativo que nos ajude a compreender a aventura do conhecer que os meninos e
meninas fazem desde sua chegada ao mundo, que professores instituem na sua prática
pedagógica e que se transforma em um testemunho ético, cultural e pedagógico. Nesse sentido,
“a compreensão humana nos chega quando sentimos e concebemos os humanos como sujeitos;
ela nos torna abertos a seus sofrimentos e suas alegrias. [...] É a partir da compreensão que se
pode lutar contra o ódio e a exclusão” (MORIN, 2017, p. 51).
Morin (2017) defende ainda que tentar compreender a humanidade envolve superar as
separações e distanciamentos para, então, conjugar uma pedagogia conjunta. Segundo o
filósofo, fazer isso é a “iniciação à lucidez”, ou seja, sujeitarmos um mesmo acontecimento a
diferentes pontos de vista para adentrarmos nas diferentes camadas e possibilidades que há em
um mesmo acontecimento cria um contínuo recomeço, é regenerativo.
O distanciamento que, com frequência, percebe-se nas investigações entre quem faz a
pesquisa e quem é pesquisado mantém instalada uma correspondência que se reproduz na
relação pedagógica (quer na relação professor – criança, quer no formador – professor): um
sabe e diz como deve ser feito, enquanto o outro não sabe e depende das regras estabelecidas
pelo outro para conduzir o seu caminho. É importante refletir a respeito da conexão entre o
saber do professor e o saber externo, ou entre o saber produzido no espaço da escola pelos
práticos e o saber que poderá ser produzido fruto da investigação sobre a prática em um diálogo
entre o interno e o externo, ou, entre uma experiência local e a construção de sentidos que se
pode fazer em nível global.
Na verdade, isso se assemelha ao que Moss (2016) comenta na relação entre o
conhecimento produzido em um âmbito micro e a forma pela qual pode ter representatividade
e significado em um plano macro20 sem que se perca a construção de significado situada. Para
tal ideia, o autor estabelece algumas características que, hoje, uma pesquisa deve adotar:
20Assim como os demais autores a que recorri para elaborar as reflexões acerca de uma tese pedagógica, Peter
Moss não discute a respeito disso. O autor está tratando sobre como o conhecimento que foi produzido em Reggio
Emilia pode ser inspiração e exemplo para outros contextos mais amplos. No entanto, o que o autor destaca como
característica de pesquisa e da produção do conhecimento na contemporaneidade me ajudam a pensar a elaboração
de uma tese pedagógica.
43
[...] uma visão que respeite uma ampla gama de pesquisas e trate os achados como
conhecimento local, sempre produzidos em um contexto particular, sempre parcial,
provisório e sempre sujeito à deliberação, ao diálogo e à interpretação; em outras
palavras, nenhuma pesquisa pode ou deve absolver cidadãos da responsabilidade de
pensar e atribuir significados (MOSS, 2016, p. 120).
Pois parte de uma visão democrática do mundo que assenta nos valores da liberdade,
colaboração, solidariedade e participação, numa epistemologia da contextualização
que valoriza a ação situada, contextual, comunitária e cultural, numa epistemologia
da participação que vive a distribuição do poder e a ética da participação, numa
45
Documentação Pedagógica tem se revelado uma importante estratégia para sustentar e
compreender o conhecimento praxiológico construído na interatividade entre crianças e adultos
nas instituições de Educação Infantil (FOCHI, 2013, 2016b; OLIVEIRA-FORMOSINHO,
2016c; SOUSA, FOCHI, 2017).
Referente ao aspecto metodológico para a construção de uma tese pedagógica,
recupero algo que chamei de “três movimentos coincidentes” em meu estudo de mestrado
quando utilizei da estratégia da Documentação Pedagógica para o desenvolvimento da pesquisa
(FOCHI, 2013, p. 54-55):
Ao revistar esses argumentos, reafirmo minha crença a respeito dessa estreita relação
entre o campo teórico escolhido (a Pedagogia), a abordagem metodológica utilizada para levar
a cabo a pesquisa (nos domínios da investigação praxiológica), a força que há na Documentação
Pedagógica como estratégia para a construção do conhecimento praxiológico, o endereçamento
do estudo (os professores e as escolas) e algo que se pretende desenvolver nesta tese, a estrutura
da escrita pela qual é comunicado o estudo em questão (o texto pedagógico).
Alarcão (2001) observa que as questões ontológicas, epistemológicas e metodológicas
não são suficientes para pensarmos um paradigma de investigação, e acrescenta outras duas
questões: teleológica, “[...] ou seja, a relação do investigador com o destino a dar ao
conhecimento gerado ou as repostas às perguntas ‘a quê e a quem se destina?’” (ALARCÃO,
2001, p. 137), e dialógica, que se refere “[...] às formas de comunicação do conhecimento na
relação do investigador com os outros (indivíduo e sociedade), que implica a resposta à
pergunta ‘como divulgar e difundir?’” (ALARCÃO, 2001, p. 137).
46
Esses dois aspectos levantados por Alarcão (2001) me remetem a um texto de
Contreras (2010), que discute “a busca por texto pedagógico”, destacando o quão raro é
encontrar, na atualidade, um texto do gênero:
Contreras (2010), ao referir-se aos diversos educadores que no passado produziram
textos que nos ajudam a entender a educação, as relações travadas entre as crianças e os adultos,
os modos como se concebia o conhecimento, observa que hoje temos pouca literatura a respeito.
E, dentre as perguntas e hipóteses que autor lança sobre esse fenômeno, questiona se antes havia
experiências mais abertas à escuta e não tanto a uma relação predeterminada e gerencialista,
assim como temos hoje. Ou, se antes os professores se perguntavam a respeito do seu fazer e
do seu papel, enquanto hoje temos esse papel pré-fixado. Ou, ainda, se hoje perdemos a atenção
em relação às crianças e à juventude, deixando de ter interesse por escutar o que eles têm a nos
dizer, mantendo-nos mais preocupados com o que extrair deles. Nesse viés, pontua:
Ou não será, talvez, que o que temos perdido seja a potência da literatura em educação,
isto é, os modos de escrever que estão atentos às palavras e a sua força exploratória e
expressiva, aquela escritura como modo de indagação das vidas que vivemos e na
linguagem que nos ajuda a perceber, a pensar e a criar? Será que a própria linguagem
da pedagogia e, portanto, a possibilidade de pensar e fazer educação, tem se
identificado cada vez mais com os modos de administrar sistemas do que com as
formas de atender e entender a infância e a juventude e a nossa relação com elas?
(CONTRERAS, 2010, p. 253).
A busca por textos pedagógicos, pelo autor, é também um anseio frente à formação de
professores que, segundo o estudioso, carece de textos que tenham algo a dizer para aqueles
que se encontram em seus processos iniciais de formação. A ausência desse tipo de texto, ao
meu ver, representa a ausência daquilo que é “pedagógico” nos cursos de Pedagogia, além
disso, reforça a dificuldade de circunscrever e firmar essa área em seu estatuto científico.
Todavia, de um modo especial, atribuo a ausência dos textos pedagógicos à falta de autores,
dentro e fora da escola, que possam ter o que dizer, que se sintam encorajados e identificados
com a ação pedagógica, com aquilo que emerge das relações travadas com as crianças, com
outros adultos e com o próprio conhecimento que está sempre em construção. Contreras (2010,
p. 249, grifo do autor) argumenta que:
Não busco teorias, e sim textos. Não busco uma escrita que se apresenta como um
compendio de saber, mas sim aquela que se situa simplesmente como um texto, com
o desejo de contar, que não classifica aquilo que se escreve como teoria ou como
prática. E sobretudo, busco textos com um autor ou autora que tem algo a dizer a
respeito do que se passa com sua experiência de educador ou educadora; me interessa
essa visão de quem faz, cria, escuta, pensa e vai fazendo emergir algo que nasce desse
escutar, pensar, olhar o que faz. Precisamente porque estou buscando aquele saber que
não se coloca por cima do que se vive, e que não se desconecta de quem o vive, me
interessam os textos de quem conta desde sua experiência docente.
47
Essa ideia de texto pedagógico responde, ao meu ver, às questões teleológicas e
dialógicas apontadas por Alarcão (2001), pois remetem tanto a um nível da forma de texto a ser
difundido, como ao tipo de conteúdo que interessa em um plano pedagógico. Nesse viés,
acredito que uma tese pedagógica é aquela que consegue dar conta de exaltar a potência de uma
literatura pedagógica.
Listo alguns pedagogos que, no curso da história, produziram textos pedagógicos:
Célestin Freinet, Loris Malaguzzi, Bruno Ciari, Mario Lodi, Madalena Freire. E, ainda, a
sugestão de Contreras (2010), Vivian Gussin Paley, que, segundo o autor, é a expressão máxima
de uma potência literária pedagógica:
Quando digo potência literária não estou pensando tanto em suas qualidades como
literatura, mas sim em sua forma de escrever como um modo de pensar o que vive, o
que faz, o que chega dos meninos e meninas com quem compartilha seu fazer
cotidiano e na forma que sua escritura alcança aquele nível de reflexão viva que te
coloca como leitor nesse pensar sobre aquilo que ela está perguntando-se
(CONTRERÁS, 2010, p. 253).
22Na Parte III desta tese, desenvolvo a respeito das mini-histórias e dos processos documentais, demonstrando
como as escolas que participam do OBECI têm produzido essas modalidades de textos pedagógicos.
49
A respeito das mini-histórias, tenho experimentado, junto das minhas orientadas de
graduação no curso de Pedagogia, a escrita de categorias de análise dos seus trabalhos de
conclusão de curso utilizando as mini-histórias23. Outra modalidade de texto pedagógico que
tenho utilizado são os diários. Com algumas orientandas, experimentamos a construção de
diários a respeito de algumas crianças, focalizando um tópico em questão, narrando, em um
período de tempo mais prolongado, o percurso dessas crianças, a relação dos adultos, e as
questões que se podem pensar a partir desses escritos24. Outro ponto que quero destacar é o uso
das mini-histórias nos Estágios Supervisionados em Educação Infantil, também no curso de
Pedagogia. Inspirado pelo que estamos desenvolvendo no OBECI, tenho proposto às alunas a
escrita de uma mini-história semanal como mote para indicar os rumos do planejamento da
semana seguinte e comunicar para as famílias a vida cotidiana. Ao final, as alunas elegem
algumas das mini-histórias escritas ao longo do estágio demonstrando o “fragmento da vida
cotidiana” que marcou o período da intervenção e elaboram uma reflexão a partir desta. É
interessante observar o modo pelo qual as alunas têm operacionalizado a escrita das mini-
histórias e dos diários, e, mais interessante ainda, os desdobramentos e efeitos formativos que
eles provocam nas alunas. Esses exercícios têm sido interessantes na elaboração de textos
pedagógicos dentro do curso de Pedagogia.
Voltando às questões teleológicas e dialógicas, segundo Alarcão (2001), ao anunciar
as tendências evolutivas nos paradigmas de investigação, uma das características dos textos
comunicados é serem “mais humanistas, com a interpenetração de estilos de gêneros e recursos
a imagens, metáforas explicativas e exploração de modalidades multimídias” (ALARCÃO,
2001, 140). Essa é uma boa pista e, ao mesmo tempo, um bom exemplo do que considero na
produção de uma tese pedagógica. As imagens, os textos, as metáforas e outros recursos de
linguagem auxiliam na construção de textos plurais, pois a imagem não precisa ser utilizada
como recurso ilustrativo à palavra escrita, mas, contemporaneamente, ser uma metalinguagem.
Nesse caso, cria-se uma abertura para o interlocutor produzir novas interpretações, respeitando
23 Um dos trabalhos aborda a transformação dos espaços internos e dos materiais ao longo do estágio
supervisionado com crianças de 2 e 3 anos. As mini-histórias produzidas pela aluna servem como estrutura para
articular as análises a respeito do quadro teórico sobre os espaços e as brincadeiras das crianças no contexto
organizado por ela (DAL-RI, 2016). Em outro trabalho de conclusão de curso, a aluna discute sobre os segredos
do pátio de crianças de 4 e 5 anos. Ao construir mini-histórias sobre as brincadeiras das crianças no pátio e
compartilhar com elas, Oliveira (2016) descobre novas narrativas e pistas para a construção de algumas categorias
para pensar a organização do espaço externo.
24 Com uma orientanda, por exemplo, produzimos o diário de duas crianças de 11 meses ao longo de três meses,
compartilhando as suas experiências cotidianas como modo de pensar um currículo narrativo (MARQUES, 2016).
Com outra orientanda, produzimos o diário de duas crianças, focalizando sua interação com a literatura infantil,
destacando em dois diários narrativos os modos pelos quais duas crianças contam histórias a partir do uso de livros
literários (MORSCHEL, 2016).
50
os diferentes interlocutores e construindo “escritos de divulgação com vários níveis de
profundidade, com vistas a uma maior acessibilidade por públicos diversos; [...] a divulgação
de estudos em aberto, sem apresentação de conclusões” (ALARCÃO, 2001, p. 140).
Vale lembrar que Hoyuelos (2006) advoga sobre o quão importante as metáforas são
para aproximarmo-nos da infância. Segundo ele, Malaguzzi utilizava-se das metáforas como
“uma conquista criativa capaz de reinterpretar o mundo para vê-lo com outras lentes”
(HOYUELOS, 2006, p. 176). As metáforas servem para nos ajudar a dar nomes ou criar
explicações para fenômenos e coisas que resultam difícil porque é próprio da linguagem de que
dispomos. Logo, Hoyuelos (2006, p. 176) observará que, na obra pedagógica de Malaguzzi, a
metáfora “abre o mundo do possível, do indeterminado, da transgressão imprescindível para
abordar a realidade de maneira inesperada. Desta maneira, a metáfora para Loris é uma força
transformadora do real, uma rede de novos valores criativos distantes das garras do já sabido”.
Escrever uma tese pedagógica é, assim, uma conquista criativa para refletir
textualmente como estruturar um texto que não aparte a teoria da empiria, sem fazer
aproximações simplistas entre um campo teórico consolidado e os dados empíricos gerados.
Pelo contrário, uma tese pedagógica precisa ser concebida como a produção do conhecimento
praxiológico que se traduz na escrita de um texto pedagógico e, portanto, se estabelece na
relação dialógica entre prática, teoria e um sujeito portador de crenças e valores.
Arrisco afirmar que uma tese pedagógica não serve para explicar fenômenos abstratos
a partir da aproximação de teorias estabelecidas, tampouco para paralisar-se em críticas
retóricas ou em discursos nominalistas isentos de comprometimento com o contexto de
pesquisa. Também não é utilitarista, em um senso prescritivo, ou, ainda, verificável de hipóteses
a priori estabelecidas. Suponho, longe disso, que uma tese pedagógica é aquela que enfrenta
efetivamente o nexus saber-poder travado no âmbito da relação pedagógica (centrado no adulto
e na transmissão do conhecimento), no âmbito da formação (na hierarquia entre o saber
especializado e o saber do prático), assim como, no âmbito da investigação (em que a escola, o
professor e as crianças são apenas motes de discursos no saber do especialista que vai até a
escola dizer como fazer). Enfrenta tais nexus de saber-poder, posto que uma tese só é
pedagógica porque sua centralidade está na transformação dos contextos educativos.
Buscando responder a essa perspectiva de tese pedagógica, na seção seguinte, discuto
o desenho metodológico explicitando, portanto, os instrumentos e técnicas para a interpretação
dos dados.
51
2.2 O desenho metodológico da tese
52
2.2.1 Estudo de caso pelos processos de uma investigação praxiológica
Esta tese caracteriza-se como um estudo de caso pelos processos de uma investigação
praxiológica25. Como afirmam Amado e Freire (2013, p. 125), os estudos de caso, “pela sua
natureza holística, tendem a refletir a complexidade dos fenômenos que estudam”. Também
Stake (2007, p. 11) reforça “[...] que um estudo de caso consegue captar a complexidade de um
caso único”, por isso, justifica-se como o melhor a ser estudado. Para esses autores, a
perspectiva holística do estudo de caso oferece ao investigador a mútua compreensão da
particularidade e da complexidade de um caso singular.
Um primeiro aspecto a ser compreendido é a própria definição de qual é o caso
(STAKE, 2007; AMADO, FREIRE, 2013). O caso “caracteriza-se pela sua delimitação natural
ou integridade fenomenológica [...] e deve ser reconhecido como tal pelos membros que a
constituem” (AMADO, FREIRE, 2013, p. 126-127). O caso é “algo específico, algo complexo,
em funcionamento. [...] O caso é um sistema integrado” (STAKE, 2007, p. 16). O caso desta
tese é o OBECI: é um contexto de desenvolvimento profissional específico pois envolve um
grupo de pessoas específicas que se encontram para um determinado tipo de atividade com um
determinado fim: a transformação dos seus contextos de origem.
Também os contextos de origem (escolas) compõem a complexidade deste caso
específico. Os gestores, coordenadores pedagógicos e professores, assim como as
transformações que estes vêm realizando nas escolas, são as próprias variáveis que, em um
estudo de caso, são impossíveis de serem separadas do contexto. Se o OBECI se constitui por
essas pessoas que se encontram para debater, compartilhar, refletir e retroalimentar os processos
de transformações das suas escolas, o caso em questão a ser analisado e interpretado é o
fenômeno caracterizado no interior do OBECI, que é gerado pelo próprio OBECI nas escolas e
que constitui o OBECI por aquilo que as escolas produzem no seu interior.
Portanto, o segundo aspecto a ser compreendido é ter a clareza de qual fenômeno se
pretende entender no caso específico. Stake (2007, p. 238) destaca que o critério primordial
para definir o fenômeno a ser estudado em um caso é a oportunidade de aprender, já que “[...]
nem tudo sobre o caso deve ser estudado”. Já para Amado e Freire (2013, p. 127), “qualquer
fenômeno apresenta múltiplos aspectos e o investigador precisa selecionar aquele ou aqueles
25Em busca realizada sobre outras pesquisas que se situam em um estudo de caso com processos da investigação
praxiológica, apenas foi encontrado o trabalho de Joana Catarina Mendes da Silva de Sousa, cujo título é Formação
em Contexto: um estudo de caso praxiológico, do ano de 2016, defendida na Universidade Católica Portuguesa,
com orientação da professora Júlia Oliveira-Formosinho (SOUSA, 2016).
53
sobre os quais se concentrará na recolha e análise de dados, de modo a compreender as
interações entre o fenômeno em estudo com seus contextos”.
No caso do OBECI, o fenômeno que se busca compreender é a construção do
conhecimento praxiológico sustentada por meio da estratégia da Documentação Pedagógica no
interior de uma comunidade de apoio ao desenvolvimento profissional. Para tal, não se pretende
fazer comparações entre as quatro escolas participantes, mas, a partir das experiências que estas
escolas vivenciaram nos seis anos da pesquisa, interpretar para construir compreensão
aprofundada dos sentidos produzidos no interior do Observatório sobre o fenômeno em questão.
Oliveira-Formosinho (2002b, p. 91, grifo meu), em um texto que aborda
especificamente sobre o uso dos estudos de caso em Educação, afirma que “conduzir um estudo
de caso para construir compreensão aprofundada é hoje corrente, no âmbito das ciências
humanas e sociais, e é compatível com diferentes correntes teóricas, com diferentes técnicas de
investigação e com diferentes paradigmas epistemológicos”. Também Kishimoto (2002, p. 153)
afirma que o estudo de caso “[...] é uma metodologia de pesquisa adequada à investigação de
questões atuais da prática pedagógica, ao possibilitar o mergulho no seu contexto”. A natureza
dinâmica do conhecimento pedagógico e a emergência de reflexões que respondam à
complexidade do ato educativo nos convocam a buscar um quadro metodológico que também
responda a essa dinamicidade e complexidade.
A respeito da generalização, Stake (2007) salienta que o objetivo de um estudo de caso
é a particularização, já que a preocupação primeira é o caso em si, em sua unidade e
complexidade: “o propósito do estudo de caso não é representar o mundo, mas representar o
caso” (STAKE, 2007, p. 245). Nesse sentido, esta investigação se caracteriza como um estudo
de caso intrínseco (STAKE, 2007), pois busca criar compreensão dos fenômenos que
caracterizam o caso em si. Logo, o que posso inferir é que os dados de um estudo podem ser
generalizáveis com a finalidade de compreender outras realidades ao mesmo tempo que nos
fornecem indícios para avançar epistemologicamente em relação ao fenômeno estudado.
Por fim, Amado e Freire (2013, p. 136) afirmam que “o estudo de caso implica que o
investigador se situe no quadro do paradigma da complexidade, o único que nos permite
reconhecer que tudo é solidário com tudo”. Essa afirmação corrobora o que anteriormente já
foi tratado a respeito da complexidade do fenômeno educativo e da necessidade em buscar um
quadro teórico e metodológico que acolha tal complexidade.
54
Uma vez discutidos os argumentos orientadores para um estudo de caso, passo agora
ao modo pelos quais os dados foram tratados nesta tese, valendo-me da análise de conteúdo e
da triangulação dos dados.
55
Nesta investigação, esses dois recursos de textos pedagógicos (processos documentais
e mini-histórias) serviram para construir a triangulação dos dados e a análise do conteúdo. Além
desses recursos, sistematicamente foi realizada a escrita de alguns documentos reflexivos,
convidando os profissionais envolvidos com o OBECI a pensar sobre os processos formativos
e transformativos vividos tanto em um nível pessoal como institucional. Também, em todos os
encontros do grupo gestor, foi escrita uma memória que reúne o que é discutido dentro do grupo.
A cada encontro, um participante escreve a memória e disponibiliza a todos antes do encontro
seguinte. Além disso, foi utilizado o caderno de notas do pesquisador como uma espécie de
diário de campo, que apoia na compreensão dos processos analisados. Todos esses dados foram
fundamentais para a elaboração do texto da tese, uma vez que é a partir da imersão e dos
movimentos de ida e retorno aos dados que foi possível ir construindo a narrativa da construção
do OBECI e das transformações nas escolas participantes. No quadro abaixo, sintetizo os
documentos utilizados para compor os dados de análise para a tese.
56
encontros; (2017) 70 páginas referente aos 14 encontros; (2018) 85 páginas referente aos 14
encontros
Documento elaborado pelas escolas, no final de 2016, para reflexão sobre os impactos nas
Reflexões sobre a
instituições a partir da participação no OBECI. Documento organizado em quatro partes. Na
participação das
primeira, uma reflexão sobre a escola; na segunda, reflexão do diretor; na terceira, reflexão do
escolas no OBECI
coordenador pedagógico, e, na quarta parte, a reflexão dos professores que participaram dos
Produzido pelos
Grupos de Investigação-Ação (GIAs).
professores com apoio
(2016) documento, com total de 77 páginas, referente às cinco escolas; (2017) documento,
dos coordenadores
com total de 70 páginas, referente às cinco escolas; (2018) documento com total de 60
pedagógicos e diretores
páginas
Cadernos com anotações do pesquisador a respeito dos encontros com o Grupo Gestor,
Notas do pesquisador
encontros com os professores nos GIAs, encontros das Escolas Observadoras, Jornadas e
Produzido pelo
demais atividades ligadas ao OBECI.
pesquisador
5 cadernos de anotações.
Fonte: elaborado pelo autor.
57
Após quatro anos da pesquisa, a proximidade com o campo e uma análise flutuante
(AMADO, 2013) das memórias fizeram com que se chegasse a algumas categorias emergentes
(FORMOSINHO, 2016). Na condução do trabalho, que seguiu nos dois anos seguintes, essas
categorias foram sendo dialogadas e explicitadas para o grupo, resultando no que nomeamos
como Organizadores da Ação Pedagógica (ver Parte III desta tese).
Com o uso do software MaxQDA26, foram analisadas criteriosamente as memórias
escritas pelos participantes do OBECI, estruturando o seu conteúdo a partir das categorias que
a priori se havia levantado na análise flutuante, atentando-se também para as possíveis
categorias emergentes. A leitura exaustiva desse material possibilitou a estruturação das
categorias e subcategorias considerando o quadro teórico, objetivos e hipóteses da pesquisa.
O manejo desses dados foi fundamental para os últimos dois anos de pesquisa,
explicitando nos documentos que foram elaborados nesse período a compreensão que o grupo
construiu ao longo dos quatro anos iniciais do OBECI. Assim, especialmente na Parte III desta
tese, em que se discute o percurso do Observatório, construo tal reflexão a partir dessa ampla e
adensada análise dos dados, que não apenas constroem a dialogia do texto em termos das vozes,
dos feitos e das identidades presentes, como também respondem à exigência do que é uma
investigação nos domínios da praxiologia. De fato, esta terceira parte é tipicamente um texto
vivo e legítimo de uma investigação praxiológica porque atende a essa triangulação que
Oliveira-Formosinho (2016a) e Formosinho (2016) destacam: da formação, da investigação e
da intervenção.
Também vale destacar que a análise de conteúdo foi utilizada para a leitura dos
materiais que estruturam a Parte II desta tese, em que se analisa o conteúdo de diversos projetos
supervisionados por Malaguzzi, buscando compreender a construção do conceito da
Documentação Pedagógica.
26Segundo Nodari, Soares, Wiedenhoft e Oliveira (2014, p. 4), “os Softwares de Análise de Dados Qualitativos
(SADQ) são programas que utilizam bancos de dados que possibilitam uma extensão na forma com que textos
podem ser trabalhados, proporcionando maneiras de administrar e estruturar os aspectos da análise qualitativa”.
Para esses mesmos autores, em relação especificamente ao software do MaxQDA, “O Maxqda, pacote lançado em
1989, permite organizar, avaliar e interpretar os dados coletados, facilitando a criação de relatórios que podem ser
compartilhados com outros pesquisadores” (NODARI; SOARES; WIEDENHOFT; OLIVEIRA, 2014, p. 5).
58
A HISTÓRIA QUE CARREGO EM MEUS OSSOS
59
PARTE II
Desde meu primeiro contato com a Documentação Pedagógica, o grande propósito que
identifico nessa estratégia é o de recuperar o sujeito epistêmico, de problematizar o nosso “estar
no mundo” ou estar em uma instituição educativa, provocando-nos a assumir a autoria dos
percursos que ali são trilhados. Isso significa responsabilizar-se subjetivamente com o cenário
educativo que temos, ou seja, assumir que a realidade não está dada e distanciada da nossa
relação com ela.
Não delegar a ação pedagógica ao senso comum, tampouco a teorias abstratas, mas
conseguir construir uma prática em que a reflexão do próprio estar com as crianças permeie um
universo mais profundo de interpretação tem coincidido com aquilo que alguns autores estão
procurando compreender na constituição do estatuto da Pedagogia enquanto uma ciência
praxiológica (MALAGUZZI, 1968; FREIRE, 1979; ROCHA, 2001; HOUSSAYE et al., 2004;
BARBOSA, 2006; OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2007; PINAZZA, 2014; MEIRIEU, 2016).
Dessa forma, a escolha da Pedagogia como campo de conhecimento e da
Documentação Pedagógica como estratégia educativa são coincidentes no seu fim, ou seja, na
transformação da realidade e na construção do conhecimento praxiológico. Do mesmo modo,
a constituição de uma comunidade de apoio ao desenvolvimento profissional como o OBECI27
transforma-se em lócus privilegiado para acolher e desenvolver este campo de conhecimento e
esta estratégia, já que esta também se constitui a partir do conhecimento situado e do objetivo
de transformar a realidade.
A Pedagogia é a ciência que traduz as teorias e os conceitos que atualmente estamos
buscando no campo educativo para a primeira infância (conceitos como a perspectiva de criança
e currículo das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil - DCNEI, por
exemplo). Mais ainda: dentro da Pedagogia é que podemos formular estratégias para concretizar
tais ideias. Daí que a Documentação Pedagógica, sendo uma estratégia genuinamente do campo
pedagógico, pode ser uma importante resposta contra a traição do potencial das crianças e dos
adultos (MALAGUZZI, 2001). Nessa perspectiva,
27 O OBECI já foi tratado sumariamente na Parte I e será amplamente discutido na Parte III.
60
No entanto, as teorias e os conceitos atuais sobre documentação pedagógica
beneficiam dos diálogos em torno dos paradigmas da metodologia de investigação das
últimas cinco décadas do século XX (Azevedo, 2009), bem como dos debates do final
do século XIX e de todo o século XX em torno do ethos das pedagogias participativas
(OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2016c, p. 113, grifo do autor).
61
ação docente e sobre as crianças gera a produção de um conhecimento dinâmico e atualizado”
(FOCHI, 2015a, p. 149).
Destaco que usualmente se reduz a Documentação Pedagógica apenas a um conjunto
de registros com tema pedagógico, associando-a somente ao campo da visibilidade dos
percursos das crianças, mais especificamente aos registros, ao documento em si28. Tenho
entendido a Documentação Pedagógica enquanto um conceito do campo pedagógico e, por isso,
tenho chamado de estratégia para diferenciar do verbo documentar (ato de produzir registros) e
do substantivo documentação (o produto comunicado). Para Hoyuelos (2004) a ideia de
estratégia é uma oposição a linearidade do pensamento positivista, logo, uma estratégia se
constói no curso da ação, modificando-se conforme os eventos vão surgindo e demandando
novas soluções para responder à complexidade inerente de toda a ação educativa (HOYUELOS,
2004). Hoyuelos (2004, p, 71), citando Capra (1996), dirá que a estratégia supõe: “a) a atitude
para empreender ou buscar na incerteza tendo em conta a própria incerteza; b) a atitude para
modificar o desenvolvimento da ação em dunção do aleatório e do novo”. Por isso, a
Documentação Pedagógica enquanto uma estratégia, configura-se um conceito potente para o
o campo pedagógico já que acolhe a dinamicidade e as incertezas do campo de modo a
responde-lo frente a sua complexidade.
São dois os processos coexistentes que envolvem a estratégia da Documentação
Pedagógica: um está relacionado ao modo como o professor planeja, organiza e cria estratégias
de aprendizagem e o outro está relacionado à forma como torna visíveis as aprendizagens das
crianças. Portanto, o processo de comunicar as experiências das crianças na escola é um dos
pilares que estruturam a Documentação Pedagógica, mas não o único.
Na verdade, Malaguzzi (2001) diz que a comunicação é uma atitude ética para tornar
visível a competência das crianças e, ao mesmo tempo, de tornar pública a importância da
instituição e de seus profissionais para os meninos e as meninas. Assim, o momento da
comunicação deve ser compreendido em uma perspectiva de processo, de provisoriedade e de
resultado.
Processos, pois o que interessa comunicar não é o que as crianças fazem ou sabem,
mas como as crianças operam para construir seus saberes, quais as estratégias utilizadas ou
construídas por elas para alcançar seus desejos, uma vez que “documentar como aprendem as
28Recentemente conduzi, por encomenda do MEC, uma pesquisa que recolheu amostras, de todas as regiões do
país, daquilo que as escolas estão nomeando como Documentação Pedagógica. É muito presente a ideia do registro
apenas como entendimento de documentação pedagógica, ausente de reflexão e de articulação com a didática
cotidiana.
62
crianças é uma das questões fundamentais da escola ativa, da escola que valora, respeita e confia
na criança, do qual desconhecemos os limites de seu potencial” (RTEIC, 2012, p. 14).
Provisoriedade, visto que implica assumir que o conhecimento é provisório. Não estamos
falando de verdades únicas e absolutas sobre as crianças, tampouco se deseja que o processo
comunicado seja compreendido como um retrato da realidade, ao contrário, é sempre uma
forma de interpretação que adultos estão construindo sobre os percursos dos meninos e das
meninas na escola. Por fim, resultado, pois existe um compromisso de evidenciar os caminhos
que resultaram da ação das crianças em seus projetos pessoais ou em grupos. Mesmo que parcial
ou provisório, existe algo a ser compartilhado, se entendermos o percurso que as crianças vão
traçando também como um produto de sua experiência educativa.
No entanto, é importante enfatizar que aquilo que é concretizado em uma comunicação
para ser compartilhado tem sentido educativo quando nascido da reflexão e da ressignificação
da prática educativa, pois seu valor está em articular o conteúdo ao processo (DAHLBERG,
MOSS, PENCE, 2003). O conteúdo refere-se àquilo que as crianças dizem, fazem e o modo
como os adultos se relacionam com isso, enquanto o processo refere-se à possibilidade de rever
o conteúdo e o modo como se comunica a respeito (DAHLBERG; MOSS; PENCE, 2003).
Logo, entendo que a Documentação Pedagógica constrói um novo sentido ao termo
didática, ressignificando-a com um especial sentido investigativo da vida cotidiana e com um
valor testemunhal de uma imagem de criança, adulto e escola. Essa forte relação entre a
Documentação Pedagógica e a didática que se constrói na vida cotidiana é uma espécie de
didática gestáltica que Malaguzzi criou como alternativa a todo o aparato musculoso que a
escola tem. Para o pedagogo, a gestalt “[...] é um caminho de saída decente e culta para
abandonar o monopólio que, até então, mantém no campo educativo a palavra verbal como
única forma de relação na ação didática” (HOYUELOS, 2004a, p. 111). Daí sua preocupação
em comunicar sobre a pedagogia das escolas a partir de outras linguagens que não apenas a
palavra, como podemos ver nos exemplares das comunicações provenientes dos projetos que
serão analisadas e amplamente discutidas a seguir.
Isso posto, para desenvolver sobre o tema da documentação pedagógica, optei por
reconstruir o conceito a partir dos projetos emblemáticos que deram origem às comunicações
em forma de publicações (livros, vídeos, artigos) das experiências das escolas de Reggio Emilia,
no centro – norte da Itália, na região de Emilia Romagna, no período em que Loris Malaguzzi
esteve à frente deste modelo educativo. Decidi fazer um mergulho profundo nos projetos
documentados e nos textos que Malaguzzi escreveu, sobretudo com a publicação recente
63
sistematizada por Peter Moss e uma equipe de Reggio Emilia (Paola Cagliari, Marina
Castagnetti, Claudia Giudici, Carla Rinaldi e Vea Vecchi29) em que compilam transcrições de
palestras, cartas enviadas por Malaguzzi, textos escritos para revistas e jornais e outros
documentos do pedagogo. É importante reforçar que o conhecimento produzido por Malaguzzi
são as próprias escolas, vivas, em seus projetos educativos com o mais alto grau de consciência
pedagógica, ética e política.
Também há inúmeros textos introdutórios que Malaguzzi escreveu para contextualizar
ou explicitar alguns conceitos dos projetos que foram publicados das experiências das escolas
de Reggio Emilia30. O pedagogo sempre teve uma grande preocupação em explicitar os
conceitos que muitas vezes poderiam passar desapercebidos quando se lia uma comunicação de
um projeto, já que, para o pedagogo, a comunicação dos projetos era uma importante
concretização do conhecimento que estava desenvolvendo.
Além destes textos, a obra e pensamento de Malaguzzi foi sistematizada por Alfredo
Hoyuelos em sua tese de doutorado e publicada em quatro livros31. Esses livros têm um valor
muito grande para compreender o cenário ampliado e complexo em que podemos situar o
pedagogo italiano. Hoyuelos nos ensina a ler Malaguzzi, que vale dizer, não é tarefa simples,
já que o pedagogo italiano se ocupa de inúmeras metáforas e imagens para explicitar suas ideias.
O livro organizado por Susanna Mantovani, Nostalgia del futuro: liberare speranze
per una nueva cultura dell’infanzia, para homenagear Malaguzzi após sua morte, também reúne
textos importantes para a compreensão da sua longa trajetória, e o livro Loris Malaguzzi e la
scuola a nuovo indirizzo, de Franco Frabboni e Battista Quinto Borghi, discute a construção da
pedagogia social e popular do pedagogo italiano. Ambos os livros, dedicados a problematizar
e ampliar a obra desenvolvida por Malaguzzi na cidade de Reggio Emilia, também foram
importantes para o mapeamento que aqui se fez.
Para o OBECI, a Documentação Pedagógica é assumida como teoria e metodologia
de investigação, formação e transformação, e nós temos nos debruçado sobre uma ideia de
Documentação Pedagógica situada, ou seja, estamos falando das contribuições originárias de
29 O livro foi originalmente publicado em inglês com o título Loris Malaguzzi and the Schools of Reggio Emilia:
a selection of his writings and speeches: 1945 – 1993 e posteriormente traduzido para o espanhol com o título
Loris Malaguzzi y las escuelas de Reggio Emilia.
30 Posteriormente indicarei quais são os projetos analisados.
31 La complejidad en el pensamiento y obra pedagógica de Loris Malaguzzi, 2003; Loris Malaguzzi: biografia
pedagogica, 2004a; La ética en el pensamiento y obra pedagógica de Loris Malaguzzi, 2004b; La estética en el
pensamiento y obra pedagógica de Loris Malaguzzi, 2006.
64
Loris Malaguzzi e de sua experiência com as escolas municipais de Educação Infantil de Reggio
Emilia32.
Os projetos documentados em Reggio Emilia, supervisionados por Malaguzzi,
oferecem uma multiplicidade de interpretações. Há neles o valor da pluralidade, pois
estabelecem uma relação entre pensamento e significado, transformando-se em uma plataforma
aberta que nos oferece a oportunidade de pensar mais e melhor sobre diferentes aspectos das
crianças, dos adultos e da Pedagogia.
Embora estejamos falando de uma estratégia educativa que já completa mais de
cinquenta anos, ainda não temos tão claramente circunscritos os conceitos que compõem a
Documentação Pedagógica. Como muito do que Malaguzzi desenvolveu, existe o valor da
intuição, a sua vasta e diversificada herança teórica e a atenção ao emergente da prática, o que
jamais o obrigou a estagnar em ideias ou conceitos elaborados por ele próprio. Talvez por isso
seja tão difícil estruturar sua obra e pensamento.
É importante destacar que “ler Malaguzzi” tem sido uma tarefa que envolve um amplo
exercício de relações e articulações com outros textos, autores, imagens e pensamentos.
Sobretudo no exercício de análise que me propus fazer, em que tive de buscar os materiais
oriundos dos projetos para melhor compreender do que tratavam seus exemplos e apontamentos
e, assim, ler as imagens elegidas, a forma das publicações, o fio narrativo, as vozes das crianças
e dos professores. É um tipo de leitura que particularmente me agrada exatamente pela força
que há em cada palavra, imagem e metáfora utilizada pelo pedagogo e que nos faz migrar para
outros lugares cognitivos e interpretativos.
Realizei um levantamento dos projetos documentados e publicados no período de
1963, data de abertura da primeira escola municipal de Reggio Emilia, até 1993, período
anterior à morte de Malaguzzi (30 de janeiro de 1994). Foi me valendo de três conceitos-chave
da Documentação Pedagógica que me movimentei para compreender e cartografar as categorias
de análise que apresento:
(i) Metainterpretação, que na literatura italiana encontramos como ricognizione,
conceito-chave para a observação e análise daquilo que foi documentado. É um
modo de re-conhecer e re-interpretar algo que já aconteceu;
(ii) Progetazzione, palavra emprestada do campo da arquitetura e sem tradução
para o português, significa o modo como o conhecimento é colocado em
32 Durante os anos de 1968 e 1974, Malaguzzi foi assessor pedagógico no município de Modena. Algumas de suas
elaborações iniciais a respeito da Documentação Pedagógica também se deram neste município. No entanto, foi
em Reggio Emilia que desenvolveu principalmente seu trabalho (HOYUELOS, 2004a; 2006; BORGHI, 1998).
65
relação para a construção de novos saberes. Denota que o conhecimento se
constrói in itinere, e, portanto, não está dado. Daí que o tipo de pensamento
que se reconhece nessa estratégia é o pensamento projetual e o porquê que a
Documentação Pedagógica por vezes se confunde com a própria didática do
trabalho desenvolvido;
(iii) Restituição, termo que significa devolver com significado algo. Restituir a
experiência é construir o significado de um percurso, mesmo que de forma
provisória e parcial, devolvendo e dando valor à aprendizagem e à
subjetividade do outro.
Durante estes trinta anos analisados, compreendi o quanto o conhecimento sobre a
Documentação Pedagógica é fruto do próprio desenvolvimento da imagem de criança, da
docência e da própria identidade das escolas. Há, sem dúvida, um marco no desenvolvimento
da experiência de Reggio Emilia que foi o próprio entendimento sobre a Documentação
Pedagógicos nos anos 80, quando da realização da primeira grande mostra “L’occhio se salta il
muro”.
Do mesmo modo, a estruturação das categorias foi um processo que se desenvolveu
muito antes da tese. Nos últimos dez anos, tenho me ocupado em ler, estudar, fazer cursos e
levar a cabo as ideias da Documentação Pedagógica. Na medida em que fui me apropriando
dessa concepção, também fui estruturando um modo de explicar as ideias centrais da
Documentação Pedagógica. Assim, as categorias que utilizei para contrastar com os projetos
analisados foram sendo elaboradas ao longo de muitos anos, mas, no exercício de escrita que
me propus fazer para esta tese, foi revisto e reestruturado na medida que a imersão no material
utilizado indicava pistas importantes a serem consideradas33.
Assim, identifiquei os conceitos que compreendi construírem o pensamento relativo à
Documentação Pedagógica em Loris Malaguzzi. Inicialmente, havia pensando em construir
temporalmente estes argumentos, mas, ao analisar cada projeto, entendi que poderia facilitar a
compreensão do leitor e ser mais fiel ao próprio pensamento complexo do Malaguzzi se
realizasse uma apresentação menos linear possível, e, sim, estruturada pela força dos conceitos
internos da Documentação Pedagógica. Assim, a apresentação do infográfico a seguir (Figura
1) é simplesmente para dar uma visão da linha do tempo dos projetos analisados para
compreensão temporal.
33Para a elaboração das categorias, também me inspirei no que Tomaselli e Zocchi (2009) sugerem como resposta
ao questionamento do porquê documentar: para construir memória, para dar identidade, para refletir, para projetar,
para construir sistema, para comunicar, para construir qualidade e para inovar.
66
Figura 1 – Linha do tempo dos projetos analisados
34Bateson foi genial ao propor uma ideia de estética como o ser sensível à estrutura que conecta as coisas aos
acontecimentos.
67
compreender o pensamento de Malaguzzi é também compreender que a Pedagogia se faz na
proximidade das crianças e dos contextos, não por mera aplicação ou importação de modelos.
Antes, no entanto, irei situar brevemente algumas questões históricas e políticas que
antecederam este período e que são basilares para o que veio a ser desenvolvido posteriormente
como um modelo de trabalho, de formação, de investigação e de comunicação das experiências
educativas35.
1.1 Preparar o terreno para construir uma revolução pedagógica: o período entre 1945 e
1963
35 As imagens utilizadas ao longo da tese, serão referenciadas as fontes ao final da tese. Além disso, destaco que
elas servem como uma linguagem a mais para compreensão do percurso pedagógico aqui apresentados, não como
simples ilustração.
68
Durante esse período, ocorreram importantes negociações entre os grupos civis, de
representações feministas e de trabalhadores com o poder público para a municipalização das
escolas. A mudança da gestão das instituições era uma condição fundamental para a
transformação que se desejava, uma vez que, praticamente em sua totalidade, estavam sob o
domínio da igreja católica. Este fato foi marcante para a concretização do ideal de escola pública
e laica.
Do mesmo modo, com a municipalização das instituições, começou a ampliação da
oferta, e foi aí que se abriu uma porta para as negociações das condições de trabalho dos
profissionais que atuavam nas escolas infantis e, especialmente, para a compreensão e
afirmação da noção de Gestão Social Participativa, momento em que as famílias e os
profissionais das escolas formaram comissões para debater a gestão das instituições e discutir
o seu financiamento (Comitati Scuola-Città) 36.
Também foi nesse período que Malaguzzi realizou suas primeiras experimentações
pedagógicas. É nessa época que organizou os primeiros seminários de estudos e as primeiras
mostras de desenhos das crianças na cidade.
Nas colônias de férias que haviam em Reggio Emilia e que, por algum tempo,
Malaguzzi foi responsável, propôs para os profissionais envolvidos construírem uma espécie
de documento biográfico das crianças para poder utilizá-lo como instrumento para diálogo com
as famílias. Esse é, sem dúvida, o primórdio do que mais tarde foi se sofisticando para se
transformar na Documentação Pedagógica nas escolas de Educação Infantil.
Também era uma época intensa e fértil na transformação social e cultural na Itália. Já
circulavam no campo da Educação Infantil as contribuições do pensamento de Maria
Montessori (1870 – 1952), de Rosa Agazzi (1866 – 1951) e Carolina Agazzi (1870 – 1945), as
quais Malaguzzi, embora já houvesse manifestado suas críticas, reconhecia a importância e o
valor para a construção do campo. Nesta mesma altura, Malaguzzi aproximou-se de Bruno Ciari
e de todo o pensamento do Movimento de Cooperação Educativa, cujo principal referente era
o francês Celestin Freinet. Para Malaguzzi (1980 apud HOYUELOS, 2004a, p. 60), Bruno Ciari
representava “[...] a inteligência mais apaixonante da pedagogia da infância”.
36A respeito deste tópico, pode ser aprofundado nas obras Una storia presente: l’esperienza dele scuole comunali
dell’infanzia a Reggio Emilia, de Ombretta Lorenzi, Ettore Borghi e Antonio Canovi (2001), na obra Loris
Malaguzzi: biografia pedagógica, de, Alfredo Hoyuelos (2004a) e na obra Loris Malaguzzi y las escuelas de
Reggio Emilia, de Paola Cagliari, Marina Castagnetti, Claudia Giudici, Carla Rinaldi, Vea Vecchi e Peter Moss
(2017). Nesta última obra, há diversos textos, transcrições e conferências que Malaguzzi realizou ao longo do
período que esteve à frente do trabalho desenvolvido em Reggio Emilia.
69
Bruno Ciari já havia desenvolvido um trabalho de grande valor nas proximidades de
Reggio Emilia, em Bolonha. Além disso, foi um forte defensor da municipalização das escolas
infantis, segundo Hoyuelos (2004a, p. 60): “Ciari trabalhou para dar uma identidade pública à
escola da infância e pensava que a formação da criança se realiza através de um projeto de
educação integral, na qual a prática da liberdade estaria garantida somente se fosse retirada do
monopólio e poder da educação católica”.
Ciari é considerado um marco na educação democrática italiana, além de defender as
ideias de uma escola não confessional e não autoritária. Sua formação é marcada pelo
pensamento de John Dewey e Celestin Freinet. Era preocupado em fazer da escola um campo
de promoção cultural e não um instrumento de privilégio de alguns, de conexão com a vida e
da formação de “[...] um novo homem para uma nova sociedade” (CIARI, 1978, p. 18). Bruno
Ciari faleceu em 27 de agosto de 1970 com apenas 47 anos.
As ideias de Malaguzzi coadunam com as de Ciari, quer seja pela retirada da educação
da infância dos domínios religiosos, quer seja pela renovação pedagógica. Para ambos, “a escola
devia trabalhar para construir uma didática credível, autêntica e capaz de promover a
potencialidade da criança e uma renovada profissionalidade do professor” (HOYUELOS,
2004a, p. 60).
Também foi neste período,
meados dos anos sessenta, que
Malaguzzi se interessou pelos estudos
de Jean Piaget e, com a atenção
fortemente voltada para as crianças de
3 a 6 anos, propôs uma série de estudos
e intervenções para compreender as
estruturas lógicas do pensamento
infantil. Para o pedagogo, “as
estruturas básicas dos conceitos matemáticos são idênticas a das estruturas básica do
pensamento” (MALAGUZZI, 1967, p. 143). Porém, vale advertir que o pedagogo italiano não
estava propondo uma educação setorizada, disciplinar para as crianças, ao contrário, para
Malaguzzi (1967, p. 143-144), “o pensamento lógico se constrói e se aperfeiçoa tanto com o
estudo da ciência, da linguagem falada e escrita, do desenho, da arte, da música, etc”.
Malaguzzi (1967) estava convencido que era na experiência pessoal da criança que ela
nutriria seu pensamento. Na sua relação com o entorno - os adultos, as outras crianças, os
70
materiais (preferencialmente não estruturados, adverte o pedagogo), a cultura como um todo -,
a criança participa “[...] de uma tensão cultural que favorece sua perfeita integração com os
outros elementos de vida e de educação” (MALAGUZZI, 1967, p. 142).
No ano de 1967, a Scuola di Cella, a primeira escola inaugurada depois da segunda
guerra mundial que até então era administrada pela UDI (Unione Donne Italiane), é
municipalizada e passa a ser chamada de Scuola XXV Aprile, em alusão à data em que terminou
o período fascista na Itália. Em 1968, Malaguzzi assumiu como consultor das Escolas
Municipais de Modena. Começou, nesse momento, um duplo desafio: continuar o trabalho que
estava fazendo em Reggio Emilia e iniciar um novo trabalho em uma nova cidade.
Até aqui, já havia se avançado muito, especialmente no que diz respeito à estruturação
política e legal que sustentaria o trabalho que posteriormente foi se desenvolvendo. Duas
escolas já haviam sido abertas sob a responsabilidade do governo municipal. Muitas das escolas
que eram gestadas por cooperativas estavam sendo municipalizadas.
Analisando o percurso de Malaguzzi até a data de seu falecimento, em 30 de janeiro
de 1994, arrisco-me a dizer que foi a partir do início dos anos 1960 até o início dos anos 1990
que o pedagogo construiu e concretizou sua obra pedagógica. Obviamente, graças ao que já
havia construído junto com seus inúmeros parceiros de trabalho e à mudança radical de quase
20 anos pós-guerra que tornaram possível aos anos precedentes ser o período de efervescência
pedagógica de todo o trabalho.
Nesse período de 30 anos (1963 – 1993), mapiei os projetos, estratégias formativas,
revistas e exposições que identifiquei como emblemáticos para o que veio a ser reconhecido
como a Documentação Pedagógica, marca essencial das escolas infantis municipais de Reggio
Emilia. É possível perceber que estes projetos são marcados por profunda transformações na
medida em que se percebia a complexidade do trabalho pedagógico.
São seis as categorias que estruturei para pensar a Documentação Pedagógica como
estratégia: i) renovar o pensamento pedagógico; ii) escutar as crianças e construir diálogos; iii)
criar pertencimento e transformar os contextos; iv) criar situações de aprendizagem
significativas; v) comunicar e construir memória; vi) fortalecer a identidade.
Na sequência desta parte da tese, apresentarei seis categorias que estruturei a partir da
imersão na obra de Loris Malaguzzi e nos projetos supervisionados pelo pedagogo. Ao longo
dessas categorias, ao mesmo tempo que dou visibilidade aos conceitos estruturantes da
Documentação Pedagógica, mostrarei o conhecimento praxiológico produzido ao longo da
experiência pedagógica das escolas de Reggio Emilia.
71
2. A DOCUMENTAÇÃO PEDAGÓGICA COMO ESTRATÉGIA PARA A
RENOVAÇÃO DO PENSAMENTO PEDAGÓGICO
O fim dos anos 1960 e o início dos anos 1970 são um período em que Malaguzzi se
interessou em defender a Pedagogia como a ciência que poderá transformar e renovar o
pensamento pedagógico. Em uma conferência realizada em Modena, Malaguzzi (1968), ao
apontar a necessidade de enfrentar diversos problemas na transformação política e pedagógica
do que se desejava construir como modelo de escola da infância, lançou uma pergunta
importante: “qual é a posição da pedagogia frente aos nossos problemas?” (MALAGUZZI,
1969c, p. 161).
Na sequência, o pedagogo convidou para que voltemos para nossas crenças e
retomemos que ideia de Pedagogia temos. Consequentemente, para responder à pergunta
anteriormente feita por Malaguzzi, só é possível “se tivermos uma concepção dinâmica e não
mumificada da pedagogia” (MALAGUZZI, 1969c, p. 161). A reivindicação feita por
Malaguzzi é muito importante para compreendermos o valor da Pedagogia e sua diferenciação
em relação a outros campos do conhecimento. Sua crítica à imobilidade do conhecimento
pedagógico da época não é privilégio daquele tempo. Muito pelo contrário, mais do que nunca
é basilar a renovação e o reconhecimento da Pedagogia em sua dinamicidade, isso porque o
locus da Pedagogia é a práxis educativa (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2007) e, por isso, é de
sua essência, como campo de conhecimento, a atualização e a renovação:
Mais profundo ainda é o que Malaguzzi manifesta quando se trata de pensar uma
pedagogia da infância. Para o pedagogo, “uma pedagogia viva, autêntica em suas funções e em
seus valores, a pedagogia que nós desejamos, tende a separar o máximo possível a Escola da
Infância do velho e do novo modelo assistencial, da velha e da nova forma de fingir educar”
(MALAGUZZI, 1969c, p. 161).
Com efeito, o que Malaguzzi já havia compreendido era que a escola, a docência e a
própria criança deveriam ser sempre um tema de interrogação, de contínua revisão e
reformulação da compreensão, pois são temas que precisam estar de acordo com os contextos
em que estão inseridos. Por esse ângulo, sempre que nos voltarmos aos temas da infância e da
72
sociedade como um todo, é preciso reconhecê-los em sua dinamicidade. Logo, como afirma
Vecchi (2013, p. 106), “o conhecimento pedagógico e psicológico, por consequência, deve estar
aberto sempre para os canais de escuta e interpretação para evitar converter-se em filtros
demasiado míopes ou opacos para a realidade que atravessa”. Mais ainda, em se tratando da
época e do contexto local que o pedagogo estava inserido, era urgente mudar as visões de
criança que se tinha: uma criança passiva, vazia e que ainda não era.
Distanciar-se dessa visão significa mudar não apenas a prática educativa estabelecida
nas escolas, mas “[...] colocar a primeira pedra para a reestruturação da escola básica que se
deseja como um fato absolutamente improrrogável, que pode inovar na educação da criança,
dos jovens e adolescentes” (MALAGUZZI, 1969c p. 162). Para Malaguzzi, era preciso assumir
um campo de conhecimento que atendesse à dinamicidade com que se modificam as noções de
criança e de conhecimento, e, por conseguinte, tal campo deveria responder à complexidade
que emerge em cada tempo histórico e cultural.
Mas Malaguzzi tinha uma visão muito definida a respeito de que Pedagogia estava se
referindo. Vecchi (2013) irá alertar a crítica que Malaguzzi já havia feito em relação à formação
pedagógica. Segundo a autora, a formação pedagógica tende a separar a teoria da prática e
transforma a “[...] prática na prima pobre” (VECCHI, 2013, p. 106). Por isso, Malaguzzi
utilizava a imagem de uma bicicleta como metáfora de sua visão pedagógica: “para avançar,
temos que pisar com força em ambos os pedais e manter um bom equilíbrio; um pedal
representa a teoria; e o outro, a prática; pisando apenas em um pedal não chegaremos tão longe”
(MALAGUZZI apud VECCHI,
Crenças e
2013, p. 106). valores
Sou partidário dessa visão a
respeito da Pedagogia. Acredito que
não podemos cair no risco de nos
Teoria
ocupar de teorias – por mais belas e
sedutoras que possam ser – sem
inseri-las em um contínuo confronto Prática
73
e que transforma e é transformado pelo movimento teoria-prática. Este alguém produz o
equilíbrio e o desequilíbrio à Pedagogia, cria movimento, pausas, acelerações e esperas.
O que distingue a Pedagogia que emerge das escolas municipais de Reggio Emilia é
que os professores “[...] dão forma, por meio dos projetos educativos e da prática cotidiana, às
teorias expressas sem traí-las” (VECCHI, 2013, p.113) e sem apegar-se demasiadamente a elas,
abrindo espaço para a dúvida e assumindo que “o ato de escutar a realidade cultural, social e as
crianças modifica as teorias de referência” (VECCHI, 2013, p.113). Ou seja,
Como qualquer atividade humana, a pedagogia nos exige ter os ouvidos atentos para
as coisas que nos rodeiam, especialmente porque versa sobre a educação e essa
preciosa parte da humanidade que são as crianças. Caso contrário, se arrisca a perder
o contato com o centro de sua reflexão e prática – as crianças – e transforma-se em
uma disciplina baseada simplesmente em série de regras que podem aplicar-se, a
princípio, demasiadas seguras em si mesmas e “cristalizadas” com o tempo (VECCHI,
2013, p. 106).
Segundo Vecchi (2013, p. 105), a Pedagogia que Malaguzzi reivindicava era “uma
pedagogia sensível às linguagens poéticas e não contida rigidamente em fórmulas pré-
concebidas”. A abertura de Malaguzzi a outras disciplinas e campos de conhecimentos não o
distanciava da Pedagogia, ao contrário, sua curiosidade e atenção para a vida contemporânea
fazia com que Malaguzzi levasse para as discussões pedagógicas os diferentes aspectos que
encontrava em suas tantas e variadas leituras. Na verdade, “estas leituras se reinterpretavam e
se relacionavam com a pedagogia, algo que Malaguzzi fazia sem perder nunca de vista a parte
vital da pedagogia: conectar-se com as crianças pequenas” (VECCHI, 2013, p. 105).
Como já foi mencionado anteriormente, a Pedagogia acolhe de modo especial a
estratégia da Documentação Pedagógica exatamente por tratar da dinamicidade e da
dialogicidade em relação ao contexto em que estão situadas.
A ideia de Malaguzzi a respeito da necessidade da observação também é fruto dessa
época. O pedagogo estava convencido da necessidade do adulto aprender a ver a criança para
poder construir a relação educativa. Para o pedagogo, isso significa “[...] tirar a criança do
anonimato” (MALAGUZZI, 1967, p. 141). Nesse sentido, observar, na perspectiva
malaguzziana, não é contrastar com padrões predefinidos (DAHLBERG, MOSS, PENSE,
2003; HOYUELOS, 2004a; FOCHI, 2013), mas assumir uma postura crítica e interessada
frente à criança em sua relação com o contexto de que faz parte. É uma busca constante e
inacabada por compreender e se assombrar com as belezas e descobertas sobre o que e como as
crianças fazem e aprendem. Em suma, Malaguzzi (1967, p. 140) dirá que
74
o que se necessita, citando Claparède, é de uma constante presença da postura
científica, quer dizer, da nossa atitude de nos assombrarmos frente aos fatos cotidianos
em nossa vida profissional, de ter o desejo de interrogar estes fatos e de tentar obter
uma resposta, submetendo-os à observação metódica e ao experimento.
Tudo isso foi redesenhando a cultura do interior das escolas. Malaguzzi parecia ter
encontrado o ponto exato para fazer uma grande revolução. Seu diálogo com as diferentes áreas
enriquecia os debates que o pedagogo travava. Com a arquitetura, Malaguzzi delineou os
projetos arquitetônicos das escolas, do mobiliário e da atmosfera estética que a ele era tão cara,38
e dela, assim como do design, vai buscar sua compreensão de projeto e de pensamento
projetual39. Na sua relação com a arte, Malaguzzi incorporou dentro da escola a presença de
outros profissionais, tais como a figura do atelierista40 e do diálogo com o teatro41, para fazer
crescer o valor para as tantas linguagens da criança, as cem, como ele próprio mais tarde
escreveu. Com a literatura, Malaguzzi aproximou as professoras do universo fantástico42. O
37 Embora o interesse de Malaguzzi no tema da observação tenha se dado cedo, o aprimoramento da compreensão
por parte dos professores precisou de mais tempo. Em um tópico a seguir, irei tratar disso.
38 Essa valoração podemos perceber em seus diálogos e aproximações com Tullio Zini.
39 O termo progetazzione, que mais tarde será discutido, é um empréstimo que Malaguzzi irá buscar na arquitetura
e no design para mudar o paradigma do planejamento na Educação Infantil. Um dos seus interlocutores é Bruno
Munari, referência no que diz respeito ao tema da projetualidade no design.
40 Profissional de formação artística que desenvolve um trabalho semelhante ao do coordenador pedagógico, mas
que trabalha em parceria com os professores de referência das turmas nos projetos de aprendizagem das crianças,
na elaboração das documentações pedagógicas e na formação.
41 Como exemplo, podemos falar da entrada de Mariano Dolci, que foi o primeiro marionetista a ser contratado
Gramática da fantasia, escrito por Rodari, é dedicado às escolas de Reggio Emilia, pois decorre de um trabalho
de formação que realizou na cidade, em novembro de 1972, chamado de “Encontros com a fantasia”.
75
pedagogo sabia da importância dos múltiplos diálogos: esta era a demanda do pensamento
moderno - “[...] a universalidade e ecumenicidade da cultura” (MALAGUZZI, 1967, p. 139).
E foi assim que se tornou visível e mais dialógico o trabalho desenvolvido dentro das
escolas em Reggio Emilia. Foram anos determinantes para o que, mais tarde, veio a ser
reconhecida como uma das experiências mais exitosas no campo da renovação pedagógica na
educação da infância.
Malaguzzi também antecipou aquilo que se tornou o antídoto à escolarização e à ideia
de improvisação do trabalho do professor, ou seja, a Documentação Pedagógica. Segundo o
pedagogo, “a professora observa, encoraja, anota, volta a propor, comprova. As professoras têm
cadernos de observação onde atualizam com fatos significativos do seu trabalho, de suas
experiências, das diferentes atuações das crianças, com uma atitude de reflexão crítica e de
maravilha” (MALAGUZZI, 1968, p. 149).
Aborrecia-o a falta de hábito do registro dentro do âmbito educativo. Também era do
seu incômodo todo o aparato musculoso – divisão disciplinar, organização do tempo por
períodos, centralidade nos conteúdos, a homogeneização da aprendizagem, a compartimentação
da visão de criança, para citar alguns destes itens que compõem este aparato – que a escola de
Ensino Fundamental já tinha e que a Educação Infantil havia incorporado de algum modo.
Igualmente não suportava o espontaneísmo. O cotidiano educativo, como o próprio Malaguzzi
definia, “[...] era uma verdadeira universidade, ou seja, um lugar de aprendizagem real e
respeitável” (CAGLIARI et al. 2017, p. 119). Daí seu grande esforço em criar estratégias para
que os professores fossem tomando consciência sobre o seu próprio fazer, sobre o conhecer as
crianças e assumir o valor cultural e político que uma escola representa em uma dada sociedade.
Uma das estratégias que apareceu no final da década de 1970 são os planos de
formação. Malaguzzi escreveu um plano de trabalho em parceria com as professoras da Scuola
Anna Frank e Scuola Robinson, primeiras escolas municipais de Reggio Emilia. A ideia era
investigar, junto das crianças, possibilidades expressivas a partir das histórias de Robson
Crusoé e Pinóquio. Na verdade, esse plano de trabalho foi decorrente da prática que
anteriormente já havia sido conduzida pelo pedagogo em ambas as escolas. A partir desse
trabalho, “percebemos a oportunidade de oferecer a atenção e a reflexão dos colegas como um
dos muitos pontos de referência para a temática educativa da infância e, com isso, estamos
convencidos de que possa animar também em outras escolas discursos e confrontos concretos”
(MALAGUZZI, 1969a, p. 151).
76
A proposta de compartilhar um plano de trabalho com outras pessoas que não
estiveram presentes ao longo da experiência é uma chave importante de compreensão a respeito
da Documentação Pedagógica. Não se trata de um relato de experiência, que mostra pontos
altos ou pontos baixos de um trabalho, mas se oferecem as reflexões e os pensamentos que um
determinado grupo construiu no sentido de “animar” e gentilmente oferecer um, dentre tantos,
itinerários de trabalho43. Sem sombra de dúvidas, esta é uma marca do trabalho de Malaguzzi.
Até hoje, quando acessamos os projetos que foram desenvolvidos nas escolas de Reggio Emilia
é, de alguma maneira, uma oportunidade de se ocupar da reflexão que um determinado grupo
fez e que pode nos mostrar a interlocução entre uma dada herança teórica, uma práxis e a chave
de leitura interpretativa desse grupo em um certo contexto. Obviamente, não se trata de tentar
repetir como uma receita, mas de compreender os aspectos centrais que podem oferecer a outros
grupos, outras escolas, possibilidades de construírem seus próprios trabalhos44.
Nesse plano de trabalho, Malaguzzi fez uma forte crítica às perspectivas
metodológicas que “[...] tornam-se espaços metódicos demasiados amplos para a
ocasionalidade, a dispersão e a espontaneidade” (MALAGUZZI, 1969a, p. 151). Considero
esse aspecto muito importante de ser destacado, já que é comum ver associado ao trabalho de
Reggio Emilia uma falsa e equívoca leitura de “livre expressão”45. Logo, chama atenção a
necessidade de se criar um itinerário de trabalho a ser oferecido para as crianças e as
professoras:
43 Podemos citar como exemplo o projeto publicado no livro As cem linguagens da criança: a abordagem de
Reggio Emilia na Educação da Primeira Infância – volume 1, organizado por Carolyn Edwards, Lella Gandini e
George Forman (1999), com a narrativa do projeto “Múltipla simbolização no Projeto do Salto em Distância” (p.
177-194).
44 Um exemplo de translado de planos de trabalho pode ser acessado no livro As cem linguagens da criança: a
abordagem de Reggio Emilia na Educação da Primeira Infância – volume 1, organizado por Carolyn Edwards,
Lella Gandini e George Forman (1999), com a narrativa do projeto “A cidade na neve – aplicação da abordagem
multissimbólica em Massachusetts”, que se inspira no projeto a Cidade na chuva, desenvolvido em Reggio Emilia
(p. 235-252).
45 A esse respeito, desenvolvo também na Parte III ao relacionar com os modelos de escola que Tonucci sugere.
77
proporcionemos de acordo com as disponibilidades objetivas dos protagonistas”
(MALAGUZZI, 1969a, p. 152).
Também o documento se refere à orientação de que seja feita uma “exposição
permanente” e sugere que esta proposta esteja em relação com o processo de investigação das
duas histórias:
[...] se trata de uma preciosa documentação que cresce com o conto e que exige um
boa localização entre o interior e o exterior das salas: como satisfação para os autores
e como estímulo continuamente disponíveis para a memória e para a reflexão das
crianças; e, finalmente, como testemunho de um trabalho realizado por e com as
crianças, que as famílias possam ler de forma clara e apreciar (MALAGUZZI, 1969a,
p. 156).
Nossas responsabilidades estavam claras. Muitos olhos, não todos benevolentes, nos
seguiam. Tínhamos que nos equivocar menos possível, encontrar rapidamente nossa
identidade cultural, tornar-se conhecidos, nos armar de confiança e respeito. [...] Era
uma época de efervescência. De ajustes e adaptações contínuas das ideias, da seleção
de projetos e intenções que tínhamos que produzir conciliando as expectativas das
crianças, das famílias e refletir nossas competências ainda que estavam por
amadurecer (MALAGUZZI, 2012, p. 31 apud CAGLIARI et.al, 2017, p. 115).
É inegável que, nesse período, germinou o que, na década seguinte, começou a ser
concretizado. Na experiência pedagógica de Reggio Emilia, a virada para os anos de 1970 é um
marco de ruptura com o passado. Foi entre o ano letivo de 1970 e 1971 que se deu a construção
da emblemática Scuola Diana e, imediatamente, na sequência, a aprovação do novo
78
regulamento para as escolas da infância e para as creches46. Foi a partir desse novo regulamento
que se definiu a exigência de formação para os profissionais, a definição da carga horária de 36
horas semanais, o tempo dedicado para a formação e planejamento e a dupla pedagógica
(docência compartilhada). Nesse mesmo período, foi aberta a primeira creche municipal (para
crianças de 0-3 anos), o que significava uma mudança significativa para o modelo de educação
que se tinha na Itália.
Tudo isso formou o contexto ideal para Malaguzzi empreender suas ideias e sua força
pedagógica. Com a expansão do atendimento (na década de 1970, abriram-se mais de 15 escolas
municipais e mais de 10 creches municipais) e com o cenário que haviam construído na década
anterior, Malaguzzi se dedicou profundamente ao trabalho pedagógico.
Malaguzzi não suportava o anonimato das crianças. Também não lhe agradava a ideia
do trabalho pedagógico permanecer escondido ou apenas confiado à memória. Ele acreditava
que era necessário criar “um testemunho cultural e pedagógico da própria profissão”
(HOYUELOS, 2006, p. 194).
Também sabia que os professores não gostavam muito de escrever sobre sua prática e
sobre as crianças. Segundo o pedagogo, “é mais fácil que um caracol deixe rastros do seu
próprio caminho, do seu trabalho, que uma escola ou uma professora deixar marcas escritas de
seu caminho, do seu trabalho” (MALAGUZZI, 1989 apud HOYUELOS, 2006, p. 195).
A estratégia dos diários de turma, ou cadernos de trabalho, ou caderneta de fatos e
reflexões47, são um marco importante para compreender os ideais pedagógicos de fundo de
Malaguzzi no começo de sua jornada como pedagogista. Os diários foram a ferramenta para o
pedagogo manter-se próximo ao trabalho dos professores e de convidá-los a dar testemunho
sobre a própria experiência profissional:
Se tratava de grandes cadernos, com linhas ou quadriculados, escritos com uma certa
elegância e uma ordem indiscutível. [...] Na primeira página, se indicava o nome da
escola e grupo, os nomes das professoras que irão escrever e o ano escolar de
referência; na segunda página, se anota o nome de todas as crianças, a data de
nascimento e as respectivas datas de ingresso [...]. Poderia ocorrer de se colocar a
fotografia das crianças. Não faltavam os desenhos das crianças, as cartas e
convocatórias de reunião da direção (BORGHI, 1998, p. 189).
48 O texto com a análise dos diários foi publicado por Battista Quinto Borghi no livro organizado por Susanna
Mantovani em homenagem a Loris Malaguzzi: Nostalgia del futuro: liberare speranze per una nueva cultura
dell’infanzia, publicado pela Edizioni Junior em1998.
49 “Upstream”, em inglês, “a monte”, em italiano: rio acima, literalmente, ou por cima. É uma expressão utilizada
pequena distância focal, mas com amplo campo visual, já a segunda é utilizada para fotografar a grandes distâncias
com boa qualidade focal.
80
grande angular. No segundo modelo, percebe que o professor encontra “[...]
uma linha de discurso[...]” (BORGHI, 1998, p. 191), ou seja, um aspecto a ser
aprofundado longitudinalmente através de “[...] microepisódios e experiências
individuais” (BORGHI, 1998, p. 191), por exemplo, observar, registrar e
refletir sobre o processo de adaptação de uma determinada criança.
c) Desordem e ordem – o autor explica que “existe uma modalidade de
compilação dos diários que faz pensar que a professora não havia intenção de
organizar segundo alguma ordem significativa de conteúdo, limitando-se à
progressiva ordem dos dados dos acontecimentos” (BORGHI, 1998, p. 192).
Neste caso, o autor vai dizer que este professor funciona por “imersão” e não
por “abstração” (BORGHI, 1998, p. 192). De um modo, ganha-se no sentido
de compreensão da natureza sistemática dos acontecimentos. Já do outro, vale-
se da atenção ao contexto, “aos problemas que surgem no dia a dia” (BORGHI,
1998, p. 192). Em ambos, não se trata “de um sinal de desordem ou confusão,
mas simplesmente um modo de entender a ação educativa” (BORGHI, 1998,
p. 192).
d) Variáveis implícitas e variáveis explícitas – um dos fortes conteúdos dos
diários são os “fragmentos da vida cotidiana” (BORGHI, 1998, p. 192). O autor
observa que, mesmo diante de uma quantidade diversa de situações presentes
nos diários, é possível observar alguns fios condutores, como variáveis, que
explicitam um conteúdo que está implícito na própria situação cotidiana. O
autor cita alguns exemplos:
• o número diário de crianças: a prática de contar com as crianças quantos
estão presentes e quantos estão faltando se apresenta como um ritual
significativo e forte: “contar todos os dias oferece um sentimento de
pertencimento para cada um e fortalece a ideia de grupo” (BORGHI, 1998,
p. 192).
• o menu diário: a prática de “relembrar que coisa se come diariamente
contribui para descrever a história da comunidade de que se faz parte e que
por um certo tempo se divide a mesma mesa” (BORGHI, 1998, p. 192) é
um dos aspectos reconhecidos no contexto de análise dos diários. Há um
valor cultural e simbólico na comida; assim, valorizava-se muito a
81
oportunidade de compartilhar os horários de alimentação nas escolas,51 pois
“há uma relação com a comida de que era muito personalizada e não
anônima como nas atuais circunstâncias de cozinhas industrializadas”
(BORGHI, 1998, p. 192).
• a pedagogia do cotidiano: os diários continham o verdadeiro valor da
continuidade e descontinuidade que há na vida cotidiana, ou seja, “todos os
diários evidenciavam aquilo que acontecia dia após dia” (BORGHI, 1998,
p. 193). A partir dos relatos cotidianos, é possível ir compreendendo a
atmosfera em que se situava aquele grupo de crianças e adultos,
reconhecem-se as características de um dado tempo, de uma dada
localidade e de um dado grupo de pessoas.
e) Trabalho educativo da professora: pensar e agir – a prática de registro no
diário se dá ao término dos acontecimentos: “A professora, através da escrita,
repercorria, a posteriori e em silêncio, àquilo que havia precedentemente
realizado com as crianças” (BORGHI, 1998, p. 194). O autor afirma que esta
modalidade é distinta das demais, pois não permite que o professor pare e
reflita com calma sobre o que passou, sendo “[...] similar a um combatente que
se coloca no fronte durante uma ação de defesa e que não lhe é consentido parar
e continuar a fazer a sua batalha sem poder parar muito para olhar o entorno e
compreender o que está acontecendo” (BORGHI, 1998, p. 194). E é desse
posicionamento que vem o nome do caderno de “fato e reflexão”, pois uma vez
registrado o fato escolhido para constar no diário, oferecia, posteriormente, ao
professor a possibilidade de refletir longitudinalmente aquilo que foi anotado.
Também era uma característica importante dos diários a noção de que eles eram
do grupo e não de cada professor, ou seja, o docente devia compilar “o
pensamento e ação de todos os professores do grupo e não individualmente”
(BORGHI, 1998, p. 194). Nesse sentido, o diário configurava-se como uma
voz polifônica do grupo, sujeito a múltiplos olhares e percepções.
f) Sujeito e contexto – um dos aspectos muito importantes dos diários é a relação
entre sujeito e contexto. “Raramente as crianças estavam presas em si mesmas
[...], mas mais frequentemente em relação à dinâmica que incessante e
51É importante destacar que Malaguzzi deixou seu trabalho em Modena exatamente porque não estava de acordo
com a decisão da administração municipal em centralizar as refeições em uma cozinha central e com isso deixar
de serem feitas em cada escola (BORGHI, 1998; HOYUELOS, 2004a).
82
constantemente se envolvia” (BORGHI, 1998, p. 194). Graças ao forte
interesse de Malaguzzi pela perspectiva de Vigotsky, sua orientação para as
professoras era para que se centrassem no contexto que as atuações das crianças
se desenvolviam. Nesse sentido, Malaguzzi orientava as professoras para “não
prender a criança nela mesma e ter em conta também o contexto no qual está
inserida, pois fazer isso não significa apenas prestar atenção na evolução de
cada criança, mas acolher também aquilo que contribui para determinar tal
evolução” (BORGHI, 1998, p. 194). Dessa forma, Malaguzzi defendia que a
cultura se transformava na “caixa de ferramentas” das crianças, entendendo
que seu pertencimento, em um sentido antropológico, dava-se pelo “direito da
criança ao desenvolvimento da mente e da sua aproximação aos saberes”
(BORGHI, 1998, p. 194). Acreditava-se, assim, que “a documentação, para
ser válida, deve[ria] ser contextualizada” (BORGHI, 1998, p. 194).
g) Abordagem experimental e ecológica – em alguns casos, os diários
perseguem uma determinada situação particular e, por isso, o professor acaba
registrando e reunindo elementos por um certo período. No entanto, isso não
significa que a narrativa ocorra linearmente. Graças à condição vivencial, in
loco, em que os professores estão inseridos, vão percebendo que “um problema
remete a outro problema até que a atenção originária parece não existir mais”
(BORGHI, 1998, p. 195). Isso porque a professora parece ir criando uma lente
de aumento graças à quantidade de registros que vai produzindo: “A professora
tende a registrar tudo aquilo que vê quase com a convicção que a quantidade
de informações recolhidas possa dar a ver qualquer coisa de nova e de diferente
do que se havia visto inicialmente” (BORGHI, 1998, p. 195). Nesse sentido,
as coisas não são vistas isoladamente, mas percebidas em suas relações de
interdependência, ampliando os sentidos. Na verdade, “os diários se
manifestam em um ponto de vista ecológico, aberto à incessante mudança de
condições e cuidadoso em captar as situações em sua riqueza e complexidade”
(BORGHI, 1998, p. 195).
h) Abordagem estática e dinâmica – muitos dos diários possuem uma espécie
de descrição das próprias reações subjetivas dos professores diante de
determinadas situações. Isto, no entanto, “oferece a possibilidade da reanálise
sobre a própria atitude em cada situação educativa que se está envolvido”
83
(BORGHI, 1998, p. 196). Este olhar distanciado oferece o tempo necessário
para o reexame e a compreensão mais ampliada de uma dada situação. Assim,
o autor também destaca que “o diário, neste caso, torna-se um instrumento de
auto clarificação da própria ação educativa. Trata-se de uma visão retrospectiva
para reler o trabalho à distância e com um olhar objetivo e imparcial”
(BORGHI, 1998, p. 196).
É importante destacar que não se encontra o termo “documentação pedagógica” nos
textos que datam até o final dos anos 80. É na virada dos anos 80 para os anos 90 que começam
a ser nomeadas a união das diferentes estratégias de observação, registro, interpretação e
comunicação como Documentação Pedagógica. No entanto, podemos perceber, a partir dos
binômios apontados por Borghi (1998), que, desde as primeiras experiências com o que veio a
ser posteriormente nomeado como Documentação Pedagógica, houve a compreensão de que
esta seria uma estratégia oportuna para o professor conhecer e reconhecer a sua prática e de
pensar sobre a ação pedagógica e retirá-la das sombras do automatismo. Neste caso, os registros
feitos nos diários, aspecto central para a estratégia da Documentação Pedagógica, são fontes de
reflexão, análise, memória e suspensão do fazer cotidiano. Acolhem a visão do professor sobre
si mesmo e sobre a experiência educativa como um todo, incluindo as crianças em suas atuações
plurais. Tornam especial o efêmero, que facilmente poderia passar despercebido, ou mesmo,
mostram a grandeza de um projeto de aprendizagem. Na verdade, o que vemos é o nascimento
de uma estratégia baseada na pesquisa do professor sobre a sua própria formação, sobre o
respeito ao valor contextual das crianças e sobre o valor da narratividade como forma de
produzir conhecimento e renovação do pensamento pedagógico.
Esses elementos conformam o reconhecimento do ato educativo na complexidade que
há nele. Percebemos que nos diários existe uma amplitude de interesse, ou seja, os projetos e a
vida cotidiana têm o mesmo valor educativo. O ato de comer e uma situação de um dado projeto
não se opõem ou se distanciam frente ao
valor subjetivo para a criança, pois
ambos compõem a jornada de
aprendizagem dos meninos e meninas.
Um outro tipo de diário
também foi emblemático na história
pedagógica de Reggio Emilia.
Publicado pela primeira vez em 1983, Il
84
diário al nido per fermare la storia dei bambini: storia di Laura (O diário na creche para
narrar a história das crianças: história da Laura), o documento narra o processo de chegada
de uma criança de 10 meses à creche por meio de imagens e anotações das professoras. Em
pouco mais de 15 páginas, Laura, a protagonista, tem suas
aventuras e desventuras de chegada na creche Arcobaleno
narrada pelos olhos das duas professoras, Eluccia e Ivetta, que a
acompanham nesse momento.
No diário, há uma das imagens mais emblemáticas da
história pedagógica das escolas infantis municipais de Reggio
Emilia. A última história do diário, Il tic-tac dell’orologio,
mostra um momento especial entre Laura e Eluccia olhando um
catálogo repleto de imagens. A professora narra o profundo
interesse de Laura com as imagens do catálogo. Destaca as
palavras que a menina ensaia ao ver imagens de homens e
mulheres, “mamãe” e “papai”, e sublinha o cuidado e atenção de
Laura ao virar cada página. Ao encontrar umas imagens de
relógios no catálogo, a professora comenta à Laura que é igual
ao que ela estava usando, e aproxima do ouvido de Laura para
que a menina perceba o som dos ponteiros. Laura, atentamente,
fixa-se ao som do relógio da professora e, após alguns instantes,
coloca seu ouvido nas imagens de relógio do catálogo parecendo
buscar o “tic-tac”. Esta sequência de imagens se encontra ainda
hoje na entrada da creche, em um grande painel, e representa
uma grande metáfora do projeto educativo de Reggio Emilia.
Este diário foi reimpresso em inglês com o título The
diary of Laura: perspectives on a Reggio Emilia Diary, editados
por Carolyn Edwards e Carla Rinaldi no ano de 2009. Nessa
versão além da cópia do diário original em italiano com tradução
para o inglês, narra-se o reencontro de Laura e sua mãe, 20 anos
após a experiência original do diário, com as professoras na
creche Arcobaleno. Também, nessa versão, há textos reflexivos
de diferentes especialistas que analisam a contribuição que o
documento pode ter ao campo educativo.
85
Carla Rinaldi, pedagogista da creche, escreve um texto introdutório do diário alertando
para o valor que este tipo de documento pode ter para os educadores, “para autoanalisar-se,
junto aos colegas, o como e o porquê dos acontecimentos e dos comportamentos de cada
criança; para informar aos pais e juntos, ler e interpretar os ‘sinais da criança no contexto da
experiência’” (RINALDI, 2009, p. 25-26). Por sua vez, também há um valor do documento
para os pais, “[...] como uma ocasião para se aproximar da criança e (re)indagar através dos
olhos dos educadores [...] para conhecer como a criança é distante dos pais e imersas em uma
área existencial diferente daquele familiar” (RINALDI, 2009, p. 26). Também há um valor para
as crianças, como uma oportunidade de que esse documento, “quando a criança cresça, lhe
conceda a possibilidade de ler alguns fragmentos da sua própria história” (RINALDI, 2009, p.
26).
É importante destacar que a escolha em construir um diário está relacionada à leitura
de uma dada realidade. Naquele contexto, o serviço educativo para o 0-3 anos ainda era uma
novidade e havia uma certa insegurança por parte dos pais. A construção do diário foi um meio
de conexão e relação com as famílias para mostrar o valor da experiência educativa para as
crianças menores de 3 anos. Mais ainda: foi uma oportunidade para a própria equipe educativa
compreender seu papel nesse momento, pois se ocupava de refletir sobre o processo de
acolhimento das crianças na sua chegada à creche.
Mais uma vez, o que se pode perceber é a compreensão que havia de que um projeto
educativo se faz no engendramento de diferentes aspectos que marcam a vida cotidiana das
crianças em suas jornadas de aprendizagem. Do mesmo modo, essa compreensão assinala um
valor ecológico e contextualizado que é dado às diferentes experiências dos meninos e meninas
nas creches e pré-escola. O valor narrativo das experiências já estava sendo germinado para o
que posteriormente ganha força e vai caracterizando-se como uma marca da experiência
reggiana. O professor compreende que narrar e compartilhar sobre sua prática transforma-se
em uma oportunidade produtiva para reconhecer o seu próprio fazer, conhecer as crianças e de
torná-la visível.
Há um último aspecto que gostaria de destacar a respeito dos diários. Não se trata de
transformá-los em instrumento burocrático, mas de compreendê-los como “instrumento
precioso que dá lugar à história, única e partilhada, de cada criança e seus educadores, marcando
o começo de um trajeto em comum, que se construirá a partir de relações recíprocas”
(ARCOBALENO, 1995, p. 25).
86
3. A DOCUMENTAÇÃO PEDAGÓGICA COMO ESTRATÉGIA PARA ESCUTAR AS
CRIANÇAS E CONSTRUIR DIÁLOGOS
52Per fare il ritratto de um leone (vídeo). Comune di Reggio Emilia, junho, 1987, 30min.
53 Mais adiante, nesse mesmo capítulo, irei apresentar outros projetos que estavam localizados nessa mesma
investigação da relação das escolas com a cidade e aprofundarei melhor o tema.
87
Este primeiro vídeo didático dos projetos de Reggio Emilia nasceu da convicção de
Malaguzzi em comunicar o projeto e os objetivos educativos e de utilizá-lo na formação de
outros professores (HOYUELOS, 2004a). Essa estratégia se conecta com aquela utilizada pelo
pedagogo com os planos de formação nos anos sessenta: um projeto vivido com as crianças,
quando densamente documentado e refletido, pode ser de grande valor para outros profissionais
aprenderem e compreenderem melhor as crianças e o papel do professor.
Ao longo dessa experiência, podemos encontrar elementos importantes na
compreensão do pensamento pedagógico de Malaguzzi e, sobretudo, do que deve se ter em
mente ao valer-se da estratégia da Documentação Pedagógica. Um desses aspectos é o “[...] de
nunca esquecer que um projeto deve ser contextualizado o máximo possível” (HOYUELOS,
2004a, p. 107). Malaguzzi (2005d, p. 54) destaca a respeito disso quando narra sobre o projeto:
88
crianças, descobrindo e explorando o mundo. Hoyuelos (2004a, p. 107-108) pontua que
É por isso que o projeto Per fare il ritratto de un leone é considerado um marco na
construção da visão teleológica educativa de Malaguzzi a partir de uma outra visão de criança
(HOYUELOS, 2004a). Uma imagem de criança que Malaguzzi reclama ser sempre declarada
através do modo como propomos uma determinada situação de aprendizagem e do modo como
narramos e argumentos a respeito.
A criança de Malaguzzi, feita de cem linguagens, foi um marco importante neste projeto.
Gambetti (2016, p. 178) explica que a experiência deste projeto “[...] se conectava com a teoria
das cem linguagens da criança – as muitas maneiras com que as crianças se expressam, contam
histórias e experimentam”. Isso porque Malaguzzi propunha que se experimentassem diversas
linguagens com as crianças para investigar sobre o leão: sombra, argila, desenho, fotografia,
medidas, fantasias, teatro de marionetes. Vale lembrar que o primeiro esboço do poema “as cem
linguagens” data de fim dos anos setenta, contemporaneamente ao projeto. Este é uma versão
mais curta e diferente da que mundialmente ficou conhecida, mas que mostra o intento de
Malaguzzi em expressar por meio do texto a relação entre a imagem de criança e as propostas
que estavam vivenciando nos diferentes projetos das escolas.
O brincar do autorretrato
Me busco para encontrar-me
E para tomar-me a mão
O brincar de carpintaria
A cabeça pensa
Depois
As mãos falam
Um pensamento criativo gera muitos outros
89
O brincar de música
Também os sons podem
ser gerados pelo uso
imaginativo da razão
O brincar de escultura
Reinventar as coisas
Para inventar outras coisas
O brincar de impressão
Para dizer
A quem quero bem
As coisas de que gosto
O brincar de marionetes
O marionete
Pelas coisas
Que dirá
Que não dirá
Que fará
Que não fará
Para fazer o possível
Aquilo
Que não é
É impossível
O que é (MALAGUZZI, s/d, p. 292)
A reciprocidade entre os
aspectos didáticos e os aspectos
comunicativos são centrais na
estratégia da Documentação
Pedagógica. Ou seja, não se separa a visão de conhecimento, criança e adulto que se declaram
por meio das diferentes comunicações (vídeo, painéis, slides, livretos e etc) do modo como se
faz acontecer o dia a dia da instituição.
Amelia e Giovanni relatam o quanto Malguzzi e Carla Rinaldi os provocavam a pensar
e melhorar tanto o modo como conduziam o projeto, quanto o modo como documentavam. A
professora e o atelierista falavam da “eterna insatisfação” de Malaguzzi, convidando sempre a
explicitar as razões das escolhas feitas, “as capacidades das crianças tinham o poder de fasciná-
lo e de conquistá-lo, e quando essa última não acontecia de modo apropriado, ou quando a
proposta não era adequada em relação a tal capacidade, expressava críticas duríssimas”
(HOYUELOS, 2004a, p. 108).
90
Essa era a ética de Malaguzzi. Sua fidelidade para com as crianças o movimentava e
fazia com que provocasse os professores e atelierista que trabalharam com ele de forma intensa.
Os desenhos do leão se transformaram em símbolo do projeto educativo de Reggio
Emilia. Ele estampa livros e diversas publicações, além disso, desde 1995, também é um prêmio
concedido a pessoas ou instituições que apoiam os projetos das escolas de Reggio Emilia, o
prêmio “Leoni di Piazza San Prospero”. A data de entrega do prêmio anualmente é a mesma
data do falecimento de Malaguzzi, 30 de janeiro.
Outro projeto de longa duração, Luna Park degli uccelini (Um parque para os
pássaros) (1992), foi o último projeto supervisionado por Malaguzzi. Assim como o anterior,
este projeto teve como pedagogista Carla Rinaldi, o atelierista Giovanni Piazza e as professoras
Amelia Gambetti e Teresa Casarini, na Scuola La Villeta.
O projeto foi acompanhado por George Forman e Lella Gandini, pesquisadores dos
Estados Unidos que já conheciam alguns projetos desenvolvidos em Reggio Emilia. No entanto,
os pesquisadores tinham o desejo de acompanhar todos os momentos do desenvolvimento de
um projeto para poder apresentar aos educadores norte-americanos a respeito da anatomia dos
projetos reggianos. Foi então que pediram
autorização a Malaguzzi para documentar em vídeo
o desenvolvimento de um projeto em todas as suas
etapas. Malaguzzi, não por acaso, os conduz para a
Scuola La Villeta, uma vez que estava seguro de que
ser acompanhado por pessoas de fora, por um longo
período, seria bem acolhido por parte daquela
equipe (GANDINI, 2015).
91
Na assembleia “o que podemos fazer”, um
pequeno grupo de criança de 5 e 6 anos decidiu
projetar um parque de diversão para os pássaros.
Para Malaguzzi, as assembleias eram um dos
momentos importantes da jornada diária das
crianças, pois nesses momentos os meninos e
meninas vivenciavam verdadeiros laboratórios de
cidadania e democracia. Também para o pedagogo, especificamente nesse tipo de assembleia
que se faz em diversas situações ao longo do ano, eram oportunidades para “[...] se discutir e
formular novos projetos de trabalho” (MALAGUZZI, 2006b, p. 11).
Esse projeto foi levado a cabo por um pequeno grupo de crianças. A elas cabia ir
informando ao grande grupo sobre o desenvolvimento do projeto e, em certos momentos,
acolhendo as ideias e propostas.
O projeto Luna Park degli uccelini aconteceu no ano seguinte em que a escola já havia
realizado uma investigação sobre o quintal, Il parco, “[...] no qual as crianças haviam registrado
com um gravador o som do parque com os animais e com os elementos naturais” (HOYUELOS,
2004a, p. 180). Atentos ao fato que de que algumas crianças não haviam participado
diretamente do projeto do ano anterior e que ainda poderiam ser aprofundados muitos aspectos
sobre o tema do quintal, Malaguzzi propôs acolher os argumentos das crianças sobre um parque
para os pássaros:
92
pequenos grupos e de reconhecer que elas produzem suas teorias para construir sentidos
particulares e coletivos. Nesse sentido, Hoyuelos (2004a, p. 179) destaca que
um aspecto importante é ver em que modo as crianças são capazes de construir teorias,
como elas têm origem e como são expressas através da linguagem verbal, gráfica e
relacional. A inovação está em analisar com proximidade o como nascem as teorias e
em que modo essas teorias se originam na relação ou interação social quando se criam
grupos de cooperação e grupos de discussão entre as crianças.
Hoyuelos (2004a, p. 180) irá destacar que, nesse projeto, podemos compreender “[...]
como também se pode perceber, em outras ocasiões, a confiança na possibilidade da infância.
Uma confiança que a Malaguzzi parece ser sempre insuficiente”.
54
An amusement Park for birds. George Forman; Lella Gandini; Loris Malaguzzi; Carla Rinaldi; Giovanni Piazza;
Amelia Gambetti. (vídeo), Performanetics Press: 1993, 1h45min.
93
Esses encontros foram cruciais para a
perceber quais eram as perguntas e que
caminhos poderiam seguir no projeto. A
primeira pergunta que se fez às crianças foi
“Vocês se lembram que coisa havia no quintal
no último ano?” (HOYUELOS, 2004a;
GANDINI, 2016). A partir dessa pergunta,
lançada em uma assembleia, foi se estruturando
o projeto na medida em que outras assembleias
foram acontecendo e as crianças foram
avançando em suas investigações e diferentes
propostas organizadas por Amelia e Giovanni.
Poucas vezes se vê explicitado o papel
do adulto nas comunicações dos projetos ao
longo dos trinta anos analisados55. Ocorre que,
nesse projeto, o papel do adulto foi motivo de
muitas discussões e confrontos. O uso do vídeo
como recurso para acompanhar o
desenvolvimento do projeto também
possibilitou às educadoras reconhecerem suas
modulações nas intervenções com as crianças.
Gambetti (2016, p. 178) relata que esse foi sempre um exercício difícil, mas de muitas
aprendizagens: “ser observado enquanto você está envolvido em um relacionamento com as
crianças é uma situação que também o ajuda a aprender as estratégias de questionar e de como
intervir interagindo com elas”.
Aqui pode-se, também, destacar a forte relação entre o projeto desenvolvido e as
escolhas em relação a sua comunicação. Essa é uma dimensão basilar para a Documentação
Pedagógica, já que a relação entre a estratégia didática e o modo de construir a comunicação
correspondem a uma escolha que coloca adultos e crianças a investigarem seu entorno. Logo,
é importante ressaltar que aquilo que é compartilhado não é a Documentação Pedagógica em
si, mas apenas a comunicação. A Documentação Pedagógica é a estratégia sustentada na
55
Além desse, o outro projeto que aborda a respeito do papel do adulto é Scarpa e metro, que será abordado logo
a seguir.
94
observação, nos registros produzidos, na interpretação com a finalidade de projetar e na
comunicação.
A comunicação desse projeto em formato de vídeo e de publicação também foi um
esforço para comunicar sem fechar conclusões, deixando aberto, para que quem assistisse ou
lesse, para criar suas próprias conclusões.
Nesse projeto, em especial, Malaguzzi escreveu um capítulo, que se pode ter acesso
na publicação Le fontane, especificamente sobre o papel do adulto. Com muito cuidado para
não se transformar em uma receita, o pedagogo italiano vai declarando pistas importantes na
reconceitualização do papel do adulto na Educação Infantil.
Uma dessas pistas é referente à necessidade de aprender a observar, pois assim “[...]
se consolida o valor da observação como procedimento de investigação das formas de
aprendizagem e desenvolvimento” (MALAGUZZI, 2006c, p. 13). Isso é explicado pela visão
de conhecimento declarada por Loris, que, além disso, é uma outra pista que é dada a respeito
do papel do educador: “a forma de aprender e de conhecer é individual e o que interessa é
descobrir e compreender que interações servem aos pequenos para construir seu conhecimento
e sua capacidade, e a forma que estas podem ser
aprofundadas ou modificadas” (MALAGUZZI,
2006c, p. 13).
Quando se parte de uma visão de
conhecimento que não está dada, pronta, observá-
la como estratégia para conhecer as crianças e
conhecer os modos como aprendem se converte em
longo e contínuo caminho para o adulto entrar em
relação com cada menino e menina,
compartilhando com isso as jornadas de
aprendizagem. Aprende o adulto sobre a criança
enquanto a criança aprende sobre o que deseja
aprender.
Um outro aspecto apontado pelo
pedagogo é saber apoiar as crianças em suas
decisões, comunicações e atividades. Para isso, é
preciso saber “respeitar os tempos de ação e de
pensamento das crianças, assim como os tempos de
95
pausa e de indecisão. [...] Ajudar as crianças a expressar com clareza as suas reflexões, [...] a
não ter medo de equivocar-se, a confiar na legitimidade de suas ideias” (MALAGUZZI, 2006c,
p. 14).
Para conseguir atender a esse perfil de educador, a sugestão é sustentar por meio de
pilares da Documentação Pedagógica, já que aqui reside uma constante investigação,
suspensão, compreensão e ressignificação da identidade da escola, dos professores e das
crianças na relação educativa.
Nesse projeto, especificamente,
compreendemos que o papel dos professores
envolve registrar, observar e interpretar o
processo de construção do conhecimento para
outorgar os conhecimentos construídos entre as
crianças, das crianças com os adultos, delas em
seus contextos relacionais.
Por fim, esse foi também um projeto
com grande participação das famílias. Como as
estratégias de comunicação eram ampliadas, em
diversos momentos foi compartilhado, com as
famílias, o desenvolvimento do projeto,
convidando-os a participarem junto das crianças
e dos professores. A concretização disso foi a
construção do parque com as famílias: “em um
desses encontros, foram os próprios pais que tiveram a ideia e expressaram o desejo de construir
eles mesmos uma fonte para os pássaros” (HOYUELOS, 2004a. p. 181).
Sem nenhuma dúvida, das imagens emblemáticas que se têm da experiência
pedagógica de Reggio Emilia, uma delas é fruto desse projeto. Obviamente, pelo
acompanhamento que George Forman e Lella Gandini deram e, com isso, pela divulgação
internacional que foi feita, o Parque dos Pássaros assim como o Leão da Praça São Próspero
são ícones da experiência pedagógica reggiana.
96
4. A DOCUMENTAÇÃO PEDAGÓGICA COMO ESTRATÉGIA CRIAR
PERTENCIMENTO E TRANSFORMAR OS CONTEXTOS
56Projetos como La città e la pioggia, El león y su retrato e Luna park degli uccelini são alguns exemplos de
projetos que estavam envolvidos nesta grande temática.
97
relação à cidade e de que forma já manifestam sua relação de pertencimento a um dado lugar.
A terceira, quarta e quinta perguntas exploram os limites entre o urbano e o rural e buscam
saber se as crianças dão identidade ao ambiente e como estabelecem relação entre as pessoas e
o seu entorno. A sexta pergunta se desenvolve buscando compreender como a criança identifica
as funções e atividades que acontecem na cidade. Para as autoras, essa pergunta se relaciona
com a primeira, pois “[...] ajuda a compreender as experiências que a criança vive diretamente
na cidade e aquelas outras que vive indiretamente, através das figuras adultas que o rodeiam”
(BONILAURI; DESTEFANI, 1995, p. 71). Por fim, a sétima e a oitava perguntas procuram
revelar que experiências as crianças têm em relações a temas políticos da cidade.
A segunda parte estava voltada para o desenvolvimento específico de cada escola a
partir da identificação de subtemas que representassem “diversos significados dos hábitos
locais, bem como, do espaço urbano como espaços de signos e símbolos ou como espaço vital”
(BONILAURI; DESTEFANI, 1995, p. 68-69).
Participaram cerca de 8 a 10 crianças em cada escola, da faixa etária de 5 e 6 anos, e,
de acordo com o andamento de cada projeto em cada escola, poderia se optar em ampliar a
experiência para o restante das crianças ou apenas em manter o pequeno grupo e ir criando
situações de comunicação e compartilhamento para o grande grupo nas assembleias. Em relação
ao adulto, os professores em parceria com os atelieristas deveriam se aprofundar no tema
anteriormente, buscando compreender possíveis pontos de aprofundamento e de ampliação com
as crianças e deveriam eleger quais instrumentos de recolha de dados, de observação e de
registro utilizariam ao longo do desenvolvimento do projeto (BONILAURI; DESTEFANI,
1995).
Diante dessas consignas, os subtemas identificados por cada escola, a partir do grande
tema, foram organizados conforme mostra o Quadro 03.
99
A prefiguração não se trata de uma antecipação
de proposta que deverá ser repetida pela criança, mas uma
experimentação pessoal do adulto para poder vislumbrar
mundos possíveis, como diria Bruner (1997b),
posteriormente construídos e significados pelas crianças.
Havia o desejo de saber como as crianças se
movimentavam e construíam suas narrativas sobre a
cidade com a chuva. Como observa Malaguzzi (2005a, p.
80), “A cidade e a chuva são uma das infinitas versões da
cidade. Uma versão que conecta a acontecimentos
particulares, que desloca as experiências, percepções e os
pensamentos das crianças”.
Para Hoyuelos (2004a, p. 146), neste projeto, há
claramente um salto conceitual na experiência
pedagógica reggiana, “[...] poder refletir sobre o modo
pelo qual as crianças agem na cidade com chuva e em
poder refletir sobre o modo pelo qual as crianças
conceitualizam a relação entre elas e a cidade modificada
pela chuva”.
O projeto La città e la pioggia também foi um
laboratório para as reflexões a respeito de uma
transformação didática que Malaguzzi desejava. Na
virada para os anos 80, “Malaguzzi havia lido a teoria da
percepção e da Gestalt, provavelmente havia ficado
fascinado, e sente a necessidade impulsora de verificar de
que modo tais ideias podem ser transformadas em uma didática” (HOYUELOS, 2004a, p. 111).
Essa foi uma alternativa que o pedagogo buscou por muito tempo, por meio de muitas
estratégias, para romper com o aparato musculoso da escola da palavra. Assim, uma das
estratégias marcantes neste projeto foi a criação, por assim dizer, da abordagem multissimbólica
(FORMAN; LEE; WRISLEY; LANGLEY, 1999), que também pode ser identificada em tantos
outros projetos e que, ainda hoje, poder ser vista como uma constante no trabalho desenvolvido
em Reggio Emilia.
100
Forman (1989) comenta a respeito dessa experiência com o projeto em destaque como
uma oportunidade singular para aprendermos a fazer boas perguntas para as crianças. Perguntas,
segundo ele, que ajudam a criança a pensar sobre o que estão pensando.
Na abordagem multissimbólica, as crianças começam com uma espécie de discussão
verbal sobre ideias gerais a respeito da chuva (primeiro ciclo: discussão). Enquanto aguardavam
a chuva, realizaram alguns desenhos iniciais sobre suas teorias a respeito da chuva (segundo
ciclo: desenhos iniciais e discussão adicional). Esses desenhos servem como uma plataforma
de teorias para orientar o professor em como ampliar as propostas que são oferecidas para as
crianças. Veja-se o exemplo abaixo:
57 Os ciclos que Forman, Lee, Wrisley e Langley (1999) identificam são Discussão; Desenhos iniciais e desenho
adicional; Simulação; Uso do Desenho como referência; A experiência; Os desenhos após a experiência;
Ampliação; Aprofundamento; Mais ampliação e aprofundamento.
58 A abordagem simbólica é um dos focos de investigação do OBECI. Na Parte III desta tese, poderá ser
compreendido mais a respeito quando será tratado sobre os Processos Formativos, especificamente, no Grupo de
Investigação-Ação Ciclos de Simbolização.
101
água da chuva do céu para mãos no chão, levando até as casas, uso de uma sequência
de fotografias que mostram um céu em transformação e desenho posterior dessas
mudanças no papel, desenho de uma cidade antes e durante um temporal, e desenho
de muitos exemplos mais de aprendizagem multissimbólica (FORMAN, LEE;
WRISLEY; LANGLEY, 1999, p. 236).
Quando o projeto foi comunicado – vale lembrar que esse foi um projeto que fez parte
da exposição I cento linguaggi dei bambini (As cem linguagens da criança) – , é possível
perceber dois aspectos importantes: o primeiro, que podemos ver as teorias de cada criança em
relação à cidade na chuva, como nos desenhos e narrativas a seguir. Isso se deve ao fato de que
o registro e a observação das teorias das crianças vinham sendo uma tônica nos projetos
reggianos. Além disso, a interpretação dessas teorias como catalizadora para a construção da
continuidade do projeto também pode ser fortemente percebida.
102
O outro aspecto é que há uma clara relação entre a didática gestáltica experimentada
por Malaguzzi nesse período e o modo como é comunicado a respeito. Ou seja, também são
utilizados recursos evocativos para além da palavra, que mostram, por meio de sequências de
imagens, narrativas visuais. Essa foi se transformando em uma marca para o trabalho
comunicativo realizado nesta experiência educativa.
Em se tratando de imagens, vamos para o final dos anos de 1980, quando Malaguzzi
supervisionou o primeiro projeto na creche, I piccolissimi del cinema muto (Os pequenos do
cinema mudo). Nesse projeto, o que podemos perceber é a força que Malaguzzi dá para os
gestos, olhares e expressões a partir de imagens no lugar das narrativas verbais das crianças,
como se pode perceber muito nos outros projetos.
Esse foi um projeto muito debatido entre as professoras da creche Nido Gianni Rodari,
Sonia Cipolla e Evelina Recerberi, a pedagogista Tiziana Filippini e Loris Malaguzzi. Ocorre
que o pedagogo tinha muito interesse em construir a comunicação de um projeto na creche que
tornasse visível uma outra imagem de criança e de serviço educativo para essa idade. Ele tinha
a consciência de que até então haviam colocado mais atenção nas experiências da pré-escola e
que, embora existissem algumas experiências pontuais de comunicações sobre pequenos
projetos ou situações cotidianas da creche, havia uma lacuna nos projetos das escolas de Reggio
Emilia com mais densidade e maior clareza em comunicar alguns conteúdos importantes sobre
os bebês na creche.
A expertise de Malaguzzi sempre foram as crianças da pré-escola. Por isso, de um
lado, havia um interesse por parte do pedagogo em se aproximar dos bebês e das crianças bem
pequenas e, do outro, um desafio em conseguir cumprir com seu papel de provocador para a
equipe da creche. Como conta Hoyuelos (2004a), por essa razão, não houve uma sintonia
103
imediata entre Malaguzzi e a equipe. Precisou de um tempo e de uma grande disponibilidade
de ambos os lados para que esse projeto também se tornasse uma oportunidade de
aprendizagens mútuas entre Malaguzzi e a equipe da creche.
Estruturada como uma narrativa teatral em quatro atos, a comunicação conta a
aventura de um pequeno grupo de crianças de 1 e 2 anos com um peixe, real e ficcional, na
creche. A palavra é praticamente ausente nessa comunicação, e isso não é por acaso. Malaguzzi
problematizava as questões ainda recorrentes naquela época que discutiam o que acontecia com
as crianças e que era anterior à palavra:
Nós mantemos a opinião de que as crianças nascem falando e falam com todo o
mundo. Que a palavra, composta de sons que podemos identificar e interpretar,
embora ainda demore para aparecer, não é um fato que impeça ou obstaculize a
irreprimível, vital, ávida busca das crianças para construir amizades e pedir, enviar e
reconhecer mensagens e discursos (MALAGUZZI, 2004a, p. 9).
104
No segundo ato, momento do conflito da narrativa, é contado o momento quando um
grande peixe de espuma aparece na sala dos bebês dentro de um caracol. Como narra Hoyuelos
(2004b), o peixe de espuma surge quando Malaguzzi se interroga sobre as experiências gráficas
das crianças e propõe para as educadoras utilizar um peixe que se pudesse manipular. Animado
com essa possibilidade, Malaguzzi pede a Mariano Dolci que fizesse um outro peixe de espuma
pequeno. Eis que as crianças criam um grande conflito: o peixe grande come o peixe pequeno.
106
para aproveitar o significado dos conflitos, experimentar a fascinação e apreciar as formas de
aprendizagem reelaboradora e criativa, fundamentadas no descobrimento”.
Por fim, uma outra advertência que Malaguzzi (2004b, p. 12) faz é a de que “as
crianças nascem já preparadas e predispostas a atuar e pensar ativamente. Geneticamente
abertas para socializar, comunicar, memorizar, retro atuar, transformar, aprender a pensar, as
crianças se tonam competentes interatuando com as pessoas, as coisas, as ideias”. Essa visão
de criança, fortemente declarada em todos os projetos e comunicações, é, sem sombra de
dúvidas, a revolução do pensamento de Malaguzzi. Não porque é discurso, mas porque é
traduzida uma visão de criança no modo como os contextos são oferecidos a elas e como
cotidianamente são travadas as relações dos adultos com os meninos e meninas.
107
5. A DOCUMENTAÇÃO PEDAGÓGICA COMO ESTRATÉGIA PARA CRIAR
SITUAÇÕES DE APRENDIZAGEM SIGNIFICATIVAS
Os três projetos que analiso nesta categoria são significativos na declaração da noção
de conhecimento e aprendizagem no pensamento de Malaguzzi, pois mostram a proximidade e
interesse do pedagogo pelo socioconstrutivismo (construtivismo social).
A vinculação de Malaguzzi com o socionstrutivismo não é naturalmente localizável
em seus escritos. Pode-se dizer que foi um percurso longo, por diferentes campos e áreas de
conhecimento pelos quais o pedagogo percorreu. No entanto, ocupando-se da reflexão
desenvolvida pelos norte-americanos, George Forman e Carolyn Edwards, e de seu biógrafo,
Alfredo Hoyuelos, pode-se afirmar a vinculação de Malaguzzi a essa abordagem.
Um dos indícios notáveis é o forte apelo de Malaguzzi para que as escolas não
realizassem as investigações com as crianças no grande grupo. Para o pedagogo, o valor da
aprendizagem das crianças é a compreensão de que o conhecimento é uma construção tanto
subjetiva (e, portanto, individual), como de grupo.
Para Forman e Fyfe (2016), um sine qua non de uma prática educativa de qualidade é
ter a clareza sobre a visão de conhecimento em que se está atuando. E, nesse caso, a crença em
uma perspectiva socioconstrutitivsta (ou co-construtivista, como Forman e Fyfe (2016) se
referem) implica fazer uma passagem da centralidade no conteúdo e nos fatos para voltar-se ao
como se aprende e como se constrói sentido ao que se aprende. Nas palavras dos autores, “a
educação das crianças se baseia em ajudá-las a criar sentido, a negociar com as outras em um
contexto de simbolização (Gardner, 1983), comunicação (Tharp; Gallimore, 1988), narrativa
(Engel, 1994; Taylor, 1993) e metáfora (Bruner, 1990)59” (FORMAN; FYFE, 2016, p. 249).
Então, os autores, ao analisarem o trabalho desenvolvido em Reggio Emilia, preferem
nomear esse tipo de aprendizagem como “aprendizagem negociada” (FORMAN; FYFE, 2016):
59 Os autores citam as seguintes obras no excerto: BRUNER, J. S. Acts of meaning. Cambridge: Harvard
University, 1990; ENGEL, S. The Stories children tell: making sense of the narratives of childhood. New York:
W. H. Freeman, 1994; GARDNER, H. Frames of mind: the theory of multiple intelligences; New York: Basic
Books, 1983; TAYLOR, P. Narrative, pluralism, and decolonization: recent Carribean literature. College
Literature, v. 20, n. 1, p. 78-89, 1993; THARP, R. G; GALLIMORE, R. Rousing minds to life: teaching, learning,
and schooling in social context. Cambridge: Harvard University, 1988.
108
objetos ou materiais de modo que o professor (observando suas estratégias) possa
inferir quais são as suas teorias, dadas essas estratégias (FORMAN; FYFE, 2016, p.
249-250).
109
de Educação Infantil ao poder observar os procedimentos e processos das crianças na
construção do conhecimento:
60 Tive a oportunidade de escutar o relato da professora que conduziu esse projeto, Laura Rubizzi, em curso
extensivo que participei sobre o Papel do Coordenador Pedagógica a partir dos pressupostos de Reggio Emilia
(2014-2018) com módulos em Buenos Aires (Argentina) e Reggio Emilia (Itália). Na ocasião, foi que compreendi
muitos dos caminhos que atravessam e levam a construção de um projeto desde a perspectiva desta abordagem
educacional.
111
exigia uma narração teatral do que acontecia com uma relação coerente entre imagem e texto
que relatassem o que estava ocorrendo”. A esse respeito, discutiram intensamente as diferentes
modalidades de registro e observação do projeto e decidiram que fariam uma documentação
direta, ou seja, que se estruturassem de antemão os procedimentos e a focagem de interesse e
uma documentação sobre o que poderia emergir em cada situação (HOYUELOS, 2004a).
Além da estrutura da comunicação, os elementos que Laura, Paola, Vea e Malaguzzi
discutiram ao longo do projeto, fez surgir uma modalidade específica de planejamento (o que
mais tarde veio a ser chamado por eles de proggetazione). Hoyuelos (2004a, p. 133) comenta
os detalhes desse processo de elaboração do planejamento:
Como narra Laura, o projeto foi um exemplar riquíssimo de como uma questão
simples, como uma competição de salto em distância, poderia se converter em um desafio a
crianças e adultos. Por isso, Malaguzzi promoveu alguns encontros com especialistas no tema
da matemática para que as professoras e a atelierista pudessem aprofundar seus conhecimentos
a respeito da linguagem matemática. Para Malaguzzi, essa poderia ser uma oportunidade para
desconstruir a imagem que muitos – inclusive ele – tinham da matemática, como algo terrível
e assustador (HOYUELOS, 2004a, 2004b). Hoyuelos (2004a, p. 132) alerta que Malaguzzi
defendia uma perspectiva de matemática contextualizada, bem diferente da didática tradicional:
113
Situado em uma temática muito semelhante, Scarpa e metro (Sapato e metro) (1991),
também é um exemplar de projeto que se movimenta dentro dessa zona de investigação: a
sonda, o socioconstrutivismo e a maneira como as crianças afrontam os conhecimentos lógico-
matemáticos. Esse projeto também ocorreu na Scuola Diana e se ocupou de compreender o
modo como as crianças experimentavam os conceitos de medida. Foi realizado pela professora
Marina Castagnetti, pela atelierista Vea Vecchi e por um grupo de 6 crianças (1 menina e 5
meninos) durante duas semanas (sessões de, aproximadamente, 40 ou 50 minutos diários).
Na introdução de uma das publicações a respeito do projeto, Malaguzzi (2005b, p. 10)
reforça a noção do que entende por sonda: “[...] nossa investigação – ou sonda como nós a
chamamos – não é nem uma simulação nem um experimento de laboratório, mas sim se inicia
em um problema que as crianças tornam como um fato seu”. Dito de outro modo,
A experiência se inicia em uma situação da vida real: o desejo das crianças em ter
outra mesa para trabalhar no espaço da sala. Chamamos o carpinteiro e as crianças
perguntaram:
- Poderia nos fazer uma mesa como esta?
- Necessito das medidas. Respondeu o carpinteiro. As crianças, temendo perder a
oportunidade, disseram:
- Nós daremos as medidas. As crianças e o carpinteiro nos olharam, pedindo nossa
aprovação.
- Claro, será um grande desafio! Imediatamente o carpinteiro advertiu as crianças:
- Sabem medir? A resposta das crianças foi rápida:
- E vocês? Sabem como fazer uma mesa exatamente igual a essa? E assim começa a
aventura (CASTAGNETTI et al, 2005, p. 12).
Esse era um projeto especial uma vez que mostrava o modo como um conhecimento
lógico matemático é experimentado e significado pelas crianças a partir de um problema
cotidiano, diferente de modo como se apresentava nos livros de didática: artificializado, com
problemas fictícios, abstratos. Para o pedagogo, “se cremos que a educação deve partir de
experiências reais, então a escola deve apropria-se dessas experiências e convertê-las em
centros de estudo, investigação e aplicação prática” (MALAGUZZI, 2005b, p. 10).
114
Malaguzzi (2005b) ainda informa os tipos de encaminhamentos que foram
estabelecidos com as crianças: a decisão de trabalhar todas as manhãs no projeto, a
possibilidade de que as seis crianças poderiam decidir se trabalhariam individualmente ou no
pequeno grupo, a liberdade que teriam para tomar as decisões a respeito do andamento do
projeto. Como o pedagogo ressalta, “é muito curioso ver até que ponto as crianças se
comprometem com o projeto. As crianças tiveram todo o tempo de que necessitavam para
pensar e fazer, criar e trocar ideias e resolver as aplicações práticas” (MALAGUZZI, 2005b, p.
11). Também foi acordado que, durante o projeto, o pequeno grupo de crianças que havia se
voluntariado a participar informaria para as demais crianças o andamento.
Há um elemento diferenciado nesse projeto, pouco visto nos demais, que é a
possibilidade de comunicar a respeito do papel do adulto. Nem sempre conseguimos localizar
as ações dos adultos nas comunicações de Reggio Emilia daquela época. Via-se, sempre, a
imagem da criança, as modalidades de construção do conhecimento por parte delas, os
conteúdos envolvidos com os projetos, o que concretamente as crianças elaboraram, mas,
excetuando um ou dois projetos, não havia muitas pistas sobre o papel do adulto.
No Scarpa e metro, graças à disponibilidade da professora de diariamente construir
uma síntese a respeito do desenvolvimento do projeto e do contínuo intercâmbio com
Malaguzzi a respeito, podemos compreender melhor a respeito do papel do adulto, assim como
há a manutenção das reflexões a respeito do trabalho em pequenos grupos de crianças
(HOYUELOS, 2004a). Malaguzzi (2005b, p. 11) irá destacar que
O papel do adulto pode ser percebido tanto na narrativa que é feita sobre o percurso
do projeto como no texto final que escrevem na publicação referente. No texto que se intitula
A aventura de aprender, as professoras envolvidas, Maria Castagnetti, Laura Rubizzi e Paola
Strozzi, que trabalharam em colaboração com a atelierista Vea Vecchi, contam sobre a
aprendizagem como uma aventura das crianças e dos adultos a respeito da compreensão sobre
a noção de medida construída pelas crianças e as diversas estratégias utilizadas por elas em
informar suas teorias. Nesse sentido, a surpresa por descobrir algo não pode ser perdido de vista
quando se propõe algo às crianças, inclusive a do adulto em relação a elas. Castagnetti et al.
(2005, p. 67) alertam algo muito importante a esse respeito:
115
[...] nossa consciência da importância que assume a documentação no projeto orienta
a seleção dos instrumentos e o modo de observar. Finalmente, devemos abandonar a
crença (encucada em nós pela nossa formação como professores) de que sempre
sabemos o que é que as crianças devem aprender, que é democrático que todas as
crianças aprendam tudo do mesmo modo, e que um professor é melhor quanto mais
saiba por antecipação o que tem que fazer e como fazer.
117
dar respostas às crianças, famílias, professores e à cultura do entorno que investiga e controla
novas paisagens de conhecimento” (CASTAGNETTI et al, 2005, p. 66).
118
Uma mistura de analogia, fabulações, mistério e simbolismo. São ingredientes suficientes para
fazer com que a criança manifeste o próprio desejo de interrogar o próprio assombro”.
O espaço ficcional das investigações sobre a sombra são situações perfeitas para as
crianças redescobrirem e inventarem enredos lúdicos61. Como destaca Spaggiari (1999, p. 8),
“as palavras, as ações, as imagens e os pensamentos que são apresentadas na publicação Tutto
ha un’ombra meno le formiche exaltam, como valor cardinal da educação, a ‘liberdade criativa’
tão cara à Rodari”.
A liberdade criativa de que falava Gianni Rodari era de grande fascínio a Malaguzzi,
isso justifica o convite feito no início dos anos setenta para uma formação com os professores
das escolas infantis de Reggio Emilia que se chamaram “encontros com a fantasia” (dando
origem ao célebre livro de Rodari “Gramática da Fantasia”, como já destacado anteriormente).
Um outro fator que, provavelmente, demarque a presença de uma investigação tão
criativa e densa sobre a sombra é a presença de Mariano Dolci, marionetista que trabalhou por
muitos anos junto a Malaguzzi e com as escolas municipais de Reggio Emilia. Como podemos
ver em outros projetos, já havia experimentações com a linguagem da sombra embora ainda
não fosse o conteúdo central do projeto. De toda forma, há o germe daquilo que culmina em
uma investigação, como a deste projeto dedicado inteiramente à sombra.
Voltando à publicação decorrente do projeto, percebe-se que as crianças transladam e
colocam em relação um sentido ficcional de imaginação e de brincadeira na relação com as
sombras, com um sentido físico de exploração e de construção de teorias sobre como se faz
uma sombra, quem faz a sombra, como controlar a sombra, o que é a sombra.
Por consequência, Malaguzzi se encanta com as teorias que as crianças criam sobre a
sombra e sobre os usos que as crianças fazem de algumas palavras para dar sentido à experiência
que estão vivendo, ou mesmo da liberdade que as crianças sentem para inventar palavras. No
prólogo que escreve para a publicação, Malaguzzi (1999) vai retomando diversas frases das
61Na Parte III, apresento como temos tratado o tema das sombras em um dos Grupos de Investigação-Ação (GIA)
como mote para investigação das crianças.
119
crianças que podem ser encontradas ao longo do livro e que, para o pedagogo, são verdadeiros
exemplares do quanto as crianças são pesquisadoras o tempo todo.
Da mesma forma, o pedagogo continua, por meio dessas vinhetas do projeto, “a
esclarecer que as crianças não vivem - como muitos ainda afirmam - dimensões e reflexões
míticas e pré-intelectuais, ao contrário, são capazes de construir pensamentos e reflexões porque
o conhecimento está com elas desde o nascimento, no próprio coração da vida” (MALAGUZZI,
1999, p. 28).
Há um outro ponto interessante que se encontra no
projeto sobre a investigação da sombra noturna, o que
significou para as escolas terem que repensar o modo como
acompanhar as crianças nessas investigações. Passear pela
cidade à noite pode ser algo da ordem do impensável. Não
para educadoras que estão maravilhadas com as
descobertas das crianças frente a um fenômeno tão familiar
e ao mesmo tempo tão misterioso:
120
Especialmente na publicação, podemos perceber essa
ambivalência, por assim dizer, do conhecimento subjetivo e do
conhecimento partilhável. Em certos momentos, vamos
acompanhando a elaboração da criança individualmente e,
imediatamente em seguida, já estamos em meio a um colóquio de
pensamentos e ideias de um pequeno grupo de crianças.
Por fim, há aqui uma questão importante, assim como
nos projetos que temporalmente antecedem a esse: não
percebemos com clareza o papel do adulto. E isso não é por acaso,
“Malaguzzi era consciente de que havia deixado em segundo
plano para dar mais evidência aos processos das crianças”
(HOYUELOS, 2004a, p. 151). Também, segundo Hoyuelos (2004a), ainda não eram tão bem
documentados os projetos de tal sorte que pudéssemos compreender os processos das crianças
desde um ponto de vista narrativo. Isso irá surgir com mais força nos projetos subsequentes a
esse.
121
6. A DOCUMENTAÇÃO PEDAGÓGICA COMO ESTRATÉGIA PARA COMUNICAR
E CONSTRUIR MEMÓRIA
Se, por um lado, os projetos documentados por Malaguzzi são importantes para
compreendermos a didática que foi sendo construída, por outro lado, o modo como eles foram
comunicados também revelam a natureza ideográfica do pedagogo em relação à imagem de
criança, de adulto e de escola.
Comunicar os percursos das crianças significava, para Malaguzzi, tornar visível o
modo como elas construíam o conhecimento, reconhecer como o adulto criava condições para
as crianças e, logo, construir identidade e memória para uma verdadeira escola da infância. Ao
mesmo tempo que desacreditava no modo como a academia vinha produzindo o conhecimento
educacional, Malaguzzi percebia que as práticas pedagógicas, quando bem documentadas e
bem comunicadas, se converteriam na melhor forma de colocar em relação a teoria e a prática.
Lá no início, no final dos anos sessenta e nos inícios dos anos setenta, Malaguzzi
experimentou um modo de comunicar os projetos das crianças por meio das exposições dos
desenhos que os meninos e meninas haviam feito nas escolas. Essa foi uma das primeiras
tentativas que o pedagogo encontrou para chamar atenção da comunidade para que percebessem
o valor da escola na formação das crianças. Mais ainda, era para ele uma oportunidade de
mostrar o potencial das crianças e assim entender que a escola não poderia trair esse potencial,
mas converter-se em espaço privilegiado para a aprendizagem, e essa era uma visão política de
Malaguzzi. A relação entre a pedagogia e a política não era apenas uma adição de dois campos,
mas uma afirmação de que pedagogia é política (BORGHI, 2017).
Depois das experiências com as mostras de desenhos, a recém-inaugurada Scuola
Diana experimenta algumas propostas que se transformam em marco no que diz respeito à
reflexão da Documentação Pedagógica na obra e no pensamento de Loris Malaguzzi.
Lembremos que esta escola está situada em uma das praças centrais de Reggio Emilia, no
Centro Histórico (Parco del Popolo), e que, por isso, havia um grande interesse por parte da
administração pública para que ali se construísse um cinema, cujo nome seria Diana. Até o fim
da construção da escola, foi preciso lutar para que se mantivesse a perspectiva da construção
desse local.
Malaguzzi acompanhou a construção desta escola, não apenas para garantir que ali se
fizesse mais uma escola, mas a partir de inúmeras sugestões, desejava que a arquitetura
122
traduzisse os ideais educativos dos quais reivindicava, como pode ser percebida na carta
enviada por Malaguzzi ao prefeito da cidade naquela ocasião:
Após muitos entraves, até que a abertura da escola pudesse ser concretizada,
Malaguzzi propôs à Vea Vecchi, atelierista importante no cenário educativo de Reggio Emilia,
para que organizasse uma exposição aberta à cidade para mostrar o trabalho que havia sido
realizado no primeiro ano da instituição. Na ocasião, as professoras recém haviam descoberto
a máquina fotográfica e, com isso, surgiu uma nova forma de narrar os percursos de
aprendizagem das crianças. Assim nasceu a exposição Il Picione (Os Pombos).
O percurso narrado na exposição Il picione representa um novo estilo de trabalho
daquela época, algo que foi se consolidando e se transformando até chegar ao que hoje
conhecemos e que foi apresentado nos projetos anteriores. A comunicação desse projeto na
exposição foi feita por meio de painéis, divididos em cinco partes, que tinham como intuito
mostrar os diferentes sentidos da investigação que as crianças haviam realizado sobre a
observação dos pombos: “o corpo do pombo (investigação geral), a parte do corpo do pombo
(investigação analítica), o uso do corpo (investigação instrumental), relação e orientação
espacial (investigação psicossociológica) e as hipóteses (investigação possível)62”
(HOYUELOS, 2004a, p. 72).
Vea, com sua visão artística, ofereceu um apuro estético ao modo como foi
comunicada a investigação das crianças, aliando imagens que mostravam os meninos e meninas
durante o processo e as investigações gráficas que haviam realizado. Mesmo para quem não
tivesse acompanhado o percurso de investigação, era possível compreender o modo como as
crianças haviam se movimentado no projeto. Aliás, essa era a ideia central da exposição, e a
linguagem fotográfica era o recurso perfeito para comunicar esse propósito.
63Agradeço imensamente todas as contribuições que Mara Davoli me deu a partir de entrevista e conversas
pessoais que tivemos nos últimos dois anos.
124
[...] carrega um título que é essencialmente um presságio. Que o olho, assim como ele
representa, aqui se transforma em um chamado para ver e compreender as novas
tarefas culturais na sociedade da visão e imagem e, aqui, ainda evocado como uma
figura conceitual que resume os problemas de crescimento e promoção da criança e
do homem, tem a força e a teimosia de pular o muro. O muro da incongruência, do
banal, das velhas regras, das coisas rígidas e fechadas, das ações indescritíveis,
automatizadas e retóricas que ainda se movem entorno da imagem de homem e do
projeto educativo da criança. Como dissemos, um presságio. Uma tentativa.
127
No entanto, com a divulgação da
exposição, aparecem dois problemas: o primeiro,
relativo à preocupação de Malaguzzi de que as
escolas municipais de Reggio Emilia fossem
confundidas com escolas de arte. E, para ele, isso
poderia ser um risco muito sério. Além de se tratar
de algo absolutamente diferente, para Malaguzzi,
confiar a potencialidade da criança apenas aos
aspectos artísticos poderia cair no mesmo
problema de confiar às crianças somente o ponto
de vista da palavra. Perdia-se a inteireza da criança
que Malaguzzi tanto defendia.
Logo, o pedagogo propõe que alguns
novos projetos sejam incorporados na exposição
de tal modo que mostrem outras linguagens e
experiências em destaque. Ao mesmo tempo, para o catálogo da exposição, Malaguzzi propõe
a Vea e Mara que buscassem personalidades italianas de diferentes campos do conhecimento
para oferecerem seu olhar aos projetos compartilhados na exposição64. Mara Davoli (2017), em
entrevista, conta o desafio que foi andar pela Itália com painéis da exposição debaixo dos
braços, explicando para essas pessoas o trabalho que estava sendo feito. Não se conhecia muito
sobre o trabalho desenvolvido no interior das escolas e tampouco se tinha familiaridade em
fazer uma exposição cujo tema estivesse centrado nos percursos de aprendizagem das crianças.
Outro problema que apareceu foi em relação ao nome da exposição. Segundo
Hoyuelos (2004a), Malaguzzi e sua equipe percebem que o nome L’occhio si salta il muro
resultava difícil de ser traduzido e mantido o sentido em outras línguas. Além disso, Malaguzzi,
ainda preocupado com a possibilidade de uma errônea compreensão sobre o trabalho
desenvolvido em Reggio, acredita que o então nome da exposição, carregando a palavra “olho”,
daria muito acento à dimensão visual, e não sobre a ideia de inteireza da criança que eles
reclamavam. Mais ainda, na ocasião do convite a Berlim, ter uma exposição, em 1986, cujo
64Dentre as personalidades que aparecem no catálogo, destaco: Giulio Carlo Argan (estudioso da história da arte),
Carlo Bernardini (estudioso da física e da matemática), Andrea Branzi (arquiteto e diretor da Domus Academy)
Clotilde Pontecorvo e Egle Becchi (professoras universitárias de Pedagogia), Francesco Tonucci (pesquisador de
Educação) entre outros.
128
nome carregasse a palavra “muro”, parecia ser totalmente inadequado desde o ponto de vista
histórico, político e social.
Assim, Malaguzzi decide mudar o
nome da exposição para I cento linguaggi
dei bambini65, evidenciando, assim, a
coerência conceitual advogada por ele.
Em 1987, a exposição viajava para
o outro lado do oceano, aos Estados Unidos,
e se realizava uma versão, em inglês,
juntamente com um catálogo nas duas
línguas (italiano e inglês). A respeito disso,
pode-se notar que há uma clara evolução do
modo como se narrava fotograficamente,
no catálogo de 1984, e como foi se
transformando na medida em que a mostra
foi girando em outros países, outras
culturas.
65A mostra percorreu diversos países, tais como: Edição Italiana - Itália (Reggio Emilia, Bolonha, Fano, Bari,
Roma, Palermo, Torino, Varese, Ascoli Piceno, Napoli), Suécia (Estocolmo, Boras, Eskilstuna, Ümea, Kalmar,
Göteborg), Dinamarca (Odense, Århus, Copenaghen, Aalborg), Noruega (Arendal, Hamar, Stavanger), Finlândia
(Valkeaakoski), Alemanha (Berlim, Frankfurt, Hamburg, Brandeburg, Bremen, Stuttgart, Essen/Bielefeld, Kyritz,
Düsseldorf), Islândia (Reykjavik), Reino Unido (Glasgow, Newcastle upon Tyne, London, Cardiff, Belfast, Exeter,
Bristol, Bradford, Coventry), Austrália (Melbourne, Perth), Holanda (Amsterdam), Israel (Tel-Hai), França
(Blois), Japão (Tokio), Hong Kong, Luxemburgo, Chile (La Serena, Santiago, Punta Arenas, Valparaiso); Edição
Inglesa – USA (San Francisco, Fort Worth, Syracuse, Amherst, Holyoke, Boston, Cambridge, Newton, White
Plains, Washington, Dayton, Detroit, St.Louis, Oklahoma City, Memphis, Salt Lake City, Lexington, Columbus,
San Rafael, Portland, Des Moines, Chicago, New York, South Bend, Pittsburgh, Norwich, Austin, North
Darmouth, Winston Salem, Santa Fe, Casper, Richmond, Fresno, Oakland, Atlanta), Canadá (Vancouver, British
Columbia Calgary, Alberta).
129
Houve mudanças, não apenas do ponto de vista da qualidade da narrativa visual, mas
da incorporação de projetos – como já analisados e comentados anteriormente – que começaram
a mostrar não somente o percurso das crianças, mas também o papel do adulto (por exemplo,
Luna Park).
É importante dizer que, nessa mesma época, houve uma grande mudança reflexiva no
pensamento pedagógico das escolas de Reggio Emilia, com a incorporação da ideia da
proggetazione (como tratado anteriormente). E o catálogo, tal como a exposição, sublinham
essas transformações didáticas.
Como exemplo disso, Hoyuelos (2004a, p. 124) destaca os processos do cavallini,
ponti e sedie, “[...] com o objetivo de analisar as estratégias individuais do pensamento, para
valorizar a subjetividade de cada menino e menina”.
130
131
Como mostrado nas imagens anteriores, a professora tenta reproduzir o processo de
construção utilizado pela criança para deixar em pé um cavalinho. Essa experiência foi a que
deu origem para as mini-histórias como mote de comunicação. No entanto, essa modalidade em
que o adulto reproduz o processo da criança não teve êxito, razão de encontrarmos apenas três
publicações em formato de mini-história dessa natureza. Por outro lado, a possibilidade de
comunicar em pequenos episódios se manteve como uma marca de Reggio Emilia. Um grande
exemplar do uso das mini-histórias como estratégia de comunicação é a publicação The hundred
languages in Ministories: told by teachers and children from Reggio Emilia.
133
7. A DOCUMENTAÇÃO PEDAGÓGICA COMO ESTRATÉGIA PARA
FORTALECER A IDENTIDADE
134
espontaneísta e, do mesmo modo, criticou inúmeras vezes o modo como a universidade
distanciava as reflexões que fazia no seu interior da vida concreta das escolas.
Nesse sentido, o fato da revista ser mensal, dava a Malaguzzi a possibilidade de
escrever textos com temas emergentes do contexto, ou seja, dava ao pedagogo a oportunidade
de discutir os temas contemporâneos. Além disso, trouxe a característica de narrar situações
cotidianas das escolas por meio de imagens, não apenas com textos. E isso, sem dúvida,
transformou-se em uma das características da produção do conhecimento pedagógico de Loris
Malaguzzi: mostrar as crianças através das imagens era também uma forma de dar voz a elas,
em especial, de tornar visível uma imagem de criança inteira, em suas múltiplas linguagens.
Mas Malaguzzi também sabia que era estratégico convidar professores vinculados à
universidade. Hoyuelos (2004a) destaca dois nomes: Susanna Mantovani e Egle Becchi, duas
grandes e importantes pesquisadoras que foram fundamentais para a continuidade da revista
posteriormente.
Hoyuelos (2004a) lembra ainda que até então havia duas grandes revistas de circulação
no campo da Educação Infantil: Scuola Materna e Vita dela Infanzia - a primeira, de inspiração
católica e oriunda das reflexões das Irmãs Agazzi, e a segunda para divulgação do pensamento
montessoriano.
Em 1984, a revista Zerosei é encerrada por motivo
de restruturação da editora e, no início de 1985, é continuado
o projeto da revista Zerosei com um novo nome, Bambini, e
uma nova editora, Edizioni Junior. A revista Bambini existe
até hoje e teve Malaguzzi como diretor geral até 1993,
levandoa assinatura de Malaguzzi em quase 100 artigos.
Cabe ainda destacar um último aspecto: Malaguzzi é
muitas vezes acusado de não ter produzido uma grande obra
como os grandes pensadores dos últimos séculos. Porém aqui
reside um problema na compreensão do que significa uma
“grande obra”.
A grande obra de Loris Malaguzzi foi um projeto educacional que existe até hoje,
traduzido em um conjunto de escolas e creches municipais e que tem revolucionado o modo
como se pensa, se faz e se fala sobre a Pedagogia, sobre as crianças e sobre o conhecimento
pedagógico.
135
A grande obra de Malaguzzi foi responder aos dilemas de sua época, em textos
generosos e densos ao mesmo tempo. Malaguzzi era um grande e voraz leitor. Interessava-lhe,
sobretudo, saber, como já se falou neste estudo. Seus breves textos endereçados às revistas
Zerosei e Bambini mostram um outro modo de produzir conhecimento, diferentemente dos
cânones oficias, mas que responderam e ainda respondem à complexidade de se fazer uma
escola de qualidade e amável, como o próprio Malaguzzi reivindicava, para os meninos e as
meninas.
A grande obra de Malaguzzi foi estruturada nos projetos documentados por ele e seus
companheiros de trabalho que oferecem, por meio de imagens, excertos das falas das crianças
e textos dos professores, identidade ao trabalho pedagógico, ao texto pedagógico e à Pedagogia.
Concretiza a imagem de criança inteira e capaz, que se traduz no respeitoso modo que lhe são
oferecidas as situações de aprendizagem e pela forma que é narrada, ou seja, por ter sido tirada
do anonimato.
O importante legado de Malaguzzi foi a construção de um conhecimento praxiológico
que, como tal, se renovou e continua se renovando para responder às demandas de sua época.
A obra de Malaguzzi segue como uma potente fonte de inspiração à Pedagogia contemporânea
e nos ensina a respeitar e escutar as crianças em suas cem linguagens. É uma obra que reinvidica
o fortalecimento das identidades plurais que existem dentro de cada escola nas vozes dos
profissionais, das famílias e, especialmente, das crianças. Mas também, do reconhecimento da
identidade que uma instituição dedicada aos bebês e crianças precisa defender para não cair nas
amarras dos modelos transmissivos e escolarizantes que ainda persistem em existir.
Para o OBECI, especificamente, a obra de Malaguzzi serviu como referente para
estruturar o modo como investigamos o cotidiano pedagógico e, por sua vez, o modo como
temos construído o conhecimento praxiológico por meio da estratégia da Documentação
Pedagógica, conforme será apresentado na Parte III. Seu legado é parte importante de nossa
herança pedagógica, o que tem permitido construirmos uma prática situada, mas que é
fecundada nas importantes contribuições que temos aprendido com esse importante pedagogo
do século XXI. Criar um modo de ler e compreender a trajetória do Malaguzzi para devolve-la
à comunicade profissional e acadêmica, é uma homenagem a esse grande intelectual que
construiu um dos mais importantes projetos educativos que temos atualmente e que acreditava
no valor das relações e da partilha como ideia central para a transformação da sociedade.
136
A OBRA NÃO SE FAZ SOZINHA
66
Esta tese não tem como foco o debate sobre o fenômeno que tem se nomeado como “produtivismo acadêmico”.
O destaque se faz como alerta e justificativa da não vinculação do OBECI aos modelos de grupo de pesquisa nas
universidades. Para saber mais sobre o produtivismo acadêmico, é possível consultar Bianchetti; Valle (2011);
Pimenta (2014); Vosgerau; Orlando; Meyer (2017); Patrus; Dantas; Shigaki (2015).
138
e emocionais. Perguntas que não aceitam respostas rápidas e que acolhem a temporalidade das
soluções, buscando com otimismo a transformação cotidiana de todos os processos educativos.
Para investigar, nossa estratégia tem se ancorado no legado de Loris Malaguzzi, em
especial, sobre a reflexão a respeito da Documentação Pedagógica. Como já discutido na Parte
II, o modo como o pedagogo constrói a ideia de Documentação Pedagógica está entrelaçado
com uma dimensão didática e testemunhal da prática pedagógica, situada em um plano
socioconstrutivista e complexo de aprendizagem e conhecimento.
Dahlberg (2016) sumarizou o pensamento de Malaguzzi sobre a Documentação
Pedagógica como “o processo de tornar visível o trabalho pedagógico (ou outro) visível ao
diálogo, interpretação, contestação e transformação” (DAHLBERG, 2016, p. 229). Trata-se de
uma compreensão da escola como locus privilegiado para a prática democrática, “uma prática
que abre um espaço público, um fórum na sociedade civil, onde discursos dominantes podem
ser visualizados e negociados” (DAHLBERG, 2016, p. 229). Negociar a realidade sócio-
histórico-cultural é um valor da Documentação Pedagógica que requer compreender a
subjetividade de quem observa, registra, interpreta e comunica os processos educativos.
Nesse sentido, assumir um ponto de vista é também assumir uma dada ética, e,
portanto, responsabiliza-nos como adultos e como sociedade, mostrando que “não é possível
esconder-se atrás de alguma objetividade ou critério científico presumidamente oferecido por
especialistas” (DAHLBERG, 2016, p. 229). Para isso, Malaguzzi (2001) destaca que a
Documentação Pedagógica envolve o acompanhamento e a interpretação sistemática dos
processos educativos por meio do uso da fotografia, de vídeos, das produções das crianças, das
anotações dos professores para transformar a realidade e construir testemunho ético, político,
pedagógico e cultural sobre as crianças, os adultos e o projeto educativo da escola. É por isso
que Hoyuelos (2006) sintetiza o pensamento de Malaguzzi a respeito da Documentação
Pedagógica enfatizando que se trata de uma estratégia extraordinária para o diálogo, para a
mudança e para o compartilhamento.
Desde o começo do OBECI, apoiados pela Documentação Pedagógica, a pergunta
chave que tem nos guiado é como organizar a vida cotidiana da instituição de Educação
Infantil de modo que evidencie o papel da criança no processo educativo, convidando a
reposicionar o papel do professor e a construir um contexto educativo de qualidade? Tal
pergunta revela uma de nossas crenças importantes: de que as atividades da vida cotidiana são
a espinha dorsal do trabalho pedagógico na Educação Infantil, pois nelas reside um verdadeiro
139
laboratório de cidadania, de participação, de aprendizagem e de pertencimento a um dado
contexto. Por isso, uma das ideias que nos guiam é o valor da vida cotidiana.
Também, nessa pergunta, expressa-se um dos principais desafios que temos
enfrentado: reposicionar a criança e o adulto sem perder a nenhum dos dois na relação
educativa. Temos percebido que há uma mescla entre as pedagogias diretivas (centradas no
adulto e que perdem a criança) e as pedagogias não diretivas (centradas na criança e que perdem
o adulto) como predomínio das práticas pedagógicas. Explicitar isso tem nos ajudado a buscar
em qual tipo de pedagogia queremos nos situar, e, mesmo nas inúmeras contradições que
significa fazer essa busca, tentar afirmar uma pedagogia relacional que reconheça a centralidade
da criança mas que também saiba identificar a importância do papel do adulto no processo
educativo. Como Malaguzzi (1972; 1988) sempre afirmou, para conseguir reconhecer a
competência da criança, é preciso ter adultos competentes também.
Assim, temos entendido que um contexto educativo de qualidade se constrói buscando
uma escola amável, como nos ensinou Malaguzzi (apud HOYUELOS, 2013), ou seja, uma
escola ativa, inventiva, habitável, testemunhada, um lugar de investigação, de aprendizagem,
de reflexão em que se encontrem bem as crianças, os profissionais e as famílias. Recuperando
o entendimento de Bondioli e Savio (2015, p. 24), compreendemos que “qualidade é uma
construção de significados em torno da instituição e do serviço, uma reflexão compartilhada
que enriquece os participantes, uma troca e uma transmissão de saberes.”
Isso posto, nesta terceira parte da tese, explicito o modo como o OBECI está sendo
construído e que escolhas estão sendo feitas desde sua criação. Assim, apresento os contextos
que constituem esse Observatório, as ideias que guiam nossas ações e, dentre estas, a
Documentação Pedagógica como estratégia central, nossos processos formativos e, por fim,
nossos Organizadores da Ação Pedagógica.
140
como reposicionar-se frente à relação educativa com os meninos e meninas. Professores,
coordenadores pedagógicos e diretores investigam como comunicar a respeito do que
investigam. As crianças investigam seu entorno para conhecer a si mesmas e o mundo físico e
social, para dar significados e construir suas teorias provisórias. Também eu, como pesquisador,
investigo a constituição desta comunidade de apoio ao desenvolvimento profissional e o modo
pelo qual é construído o conhecimento praxiológico no seu interior. Estamos falando de uma
interatividade entre os modos de investigar e de sustentar, por meio dessa investigação, a
construção de um conhecimento situado.
Trata-se de um conhecimento dialógico entre o interno e o externo: interior de cada
sala referência e o contexto da escola; interior de cada escola e o OBECI; do interior do OBECI
e a retroalimentação do trabalho pedagógico das escolas. A ideia é, portanto, que o
conhecimento se constrói entre o binômio interno e externo, “[...] como par justapostos,
tentando centrar a questão sobre o professor e a professora como sujeitos cognoscentes e sobre
a relação complexa e não linear entre ensino e conhecimento na medida em que o professorado
se implica em contextos e relações” (COCHRAN-SMITH; LYTLE, 2002, p. 13).
Essa é uma mudança radical, sobretudo, se pensarmos na visão hierárquica que a
universidade ocupa em relação às escolas em termos de pesquisa. Construir o conhecimento
entre a visão interior das escolas e a visão exterior do pesquisador pode alimentar tanto o fazer
e o pensar da própria instituição quanto da própria universidade. Mudar isso é modificar uma
lógica da construção do conhecimento e das relações entre teoria e prática. Como afirma Rinaldi
(2012, p. 184), “há uma ideia arrogante de uma separação contínua entre teoria e prática, cultura
e técnica”. Logo, a tônica nos práticos da escola se dá na perspectiva de ajudá-los a compreender
e transformar a própria prática ao tempo que se reconhece e nomeia a própria epistemologia da
prática, inalcançável nos domínios apenas de uma teoria isolada.
Nesse sentido, para construir esse conhecimento interno e externo, Erickson (2002, p.
9) observa que “investigar significa não apenas olhar de forma penetrante frente a algo que
pretendemos falar, mas também, seguir os rastros, os vestígios das coisas. Investigar, então, é
dar um segundo olhar; é conceder uma especial atenção a todas as possibilidades”. Lançar um
segundo olhar para buscar compreender outras formas de constituir a escola de Educação
Infantil, a formação dos professores e a própria pesquisa é o que tem caracterizado nosso modo
de nos constituir como uma comunidade que investiga.
Tratando ainda sobre o tema da investigação, destaco a análise que Tonucci (1977)
realiza sobre três modelos de escola para crianças. A primeira, a escola das liçõezinhas, ou seja,
141
que tem sua centralidade em pequenas lições, coloca a criança como uma expectadora “[...] de
um programa que só a ingenuidade ou ignorância de quem prepara as programações
antecipadamente supõe que possa ser atrativo para os meninos e meninas” (TONUCCI, 1977,
p. 22). Esse modelo de escola geralmente funciona pautado pelas datas comemorativas
(geralmente, de cunho religioso, com acento no consumo, estereotipado), ou, ainda, pelas
transições de estações do ano como mote para uma nova “atividade”. Essa é uma escola que
“[...] pede precocemente para a criança que renuncie a sua curiosidade, [...] uma escola que quer
parecer o máximo possível ao modelo da escola fundamental” (TONUCCI, 1977, p. 22). Em
outros termos, poderíamos dizer que essa escola pertence a um modelo pedagógico diretivo e
de um modelo epistemológico empirista (BECKER, 1994).
Na segunda, a escola das atividades, ou, a escola da livre expressão, em contraposição
ao modelo anterior de escola, a criança sempre escolhe o que fazer e, se por acaso pedir ao
professor “o que fazer”, possivelmente o adulto lhe dirá “faça o que quiser!”. No entanto, essa
resposta angustia a criança, abandonando-a sobre sua própria sorte. Como adverte Tonucci
(1977, p. 24), “temos nessa forma de fazer escola uma forma de hiperestimulação da criança
que produzirá muito, mas de maneira estéril”. Esse modelo de escola, muitas vezes, forja uma
ideia de respeito às crianças, pressupondo que deixá-las fazer o que querem, isentando o papel
do adulto, é oferecer aquilo de que as crianças precisam. Mas esse é um modelo de escola que
abandona as crianças e justifica, inclusive, o retorno ao modelo anterior – o das liçõezinhas –
como resposta à aprendizagem das crianças. Falamos aqui de um modelo pedagógico não
diretivo e de um modelo epistemológico apriorista (BECKER, 1994).
Por fim, a terceira é a escola da investigação. Uma escola que “nem confia ao sentido
materno e nem à improvisação, mas tem necessidade de educadores preparados de uma forma
nova e global: que une riqueza cultural crítica e científica” (TONUCCI, 1977, p. 26). Uma
escola que não abandona a criança e tampouco centra-se em programas prescritos. Uma escola
que tem na curiosidade da criança o motor para estabelecer uma relação entre os saberes e as
experiências das crianças com o patrimônio que a humanidade sistematizou, ou seja, que
compreende seu papel na organização de contextos que deem acesso ao patrimônio sócio-
histórico-cultural. Essa é uma escola situada em um modelo pedagógico relacional e em um
modelo epistemológico construtivista (BECKER, 1994).
Nosso trabalho, tanto no interior do OBECI, quanto nas escolas que o constituem, tem
se localizado nesse terceiro modelo, de escolas que investigam e que desejam compreender os
processos de construção do conhecimento tanto das crianças, como dos adultos. Entre todas as
142
contradições e ambiguidades que significa se transformar, nosso intento tem sido o de promover
o isomorfismo pedagógico entre a formação interna no OBECI, que fomenta a capacidade dos
professores, coordenadores pedagógicos e diretores de investigar sobre sua prática, e, ao mesmo
tempo, que incentiva esses profissionais a promoverem as investigações das crianças dentro das
escolas:
143
respeito das práticas educativas, é despertar no adulto a sua capacidade para ver criticamente a
pedagogia latente nas escolas, reveladas por aquilo que está em curso na vida cotidiana da
instituição. Além disso, compreender e interpretar as atuações das crianças para, então, saber
planejar e projetar a continuidade do seu próprio fazer como professores, coordenadores
pedagógicos e gestores.
Por isso a perspectiva assumida é a formação em contexto, pois “conceitualiza-se
como forma de mediação pedagógica para o desenvolvimento profissional praxiológico”
(OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2016b, p. 93). Essa noção de desenvolvimento profissional na
Educação Infantil foi exaustivamente tratada pelos estudos de Oliveira-Formosinho (2002a;
2009b; 2016b)67. A ideia de desenvolvimento profissional é defendida como um “processo
contínuo de melhorias das práticas docentes [...], incluindo momentos formais e não formais,
com a preocupação de promover mudanças educativas em benefício dos alunos, das famílias e
das comunidades” (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2009b, p. 226). A autora diferencia esse
conceito da ideia de formação contínua. Para a autora, enquanto a formação contínua se centra
no processo ensino/formação, a perspectiva de desenvolvimento profissional focaliza o
processo de aprendizagem/crescimento.
Segundo Oliveira-Formosinho (2009b), o desenvolvimento profissional está
intimamente ligado ao desenvolvimento organizacional, curricular e das aprendizagens. Para
compreender melhor a respeito, tomo como exemplo o sistema anunciado pela autora ao
explicitar o modelo de desenvolvimento profissional adotado pela Associação Criança.
Para Oliveira-Formosinho e Formosinho (2002, p. 6), nessa associação, “o
desenvolvimento profissional é um processo vivencial não puramente individual, mas um
processo em contexto”. A partir dos argumentos da autora, podemos, então, pensar que a tônica
está:
● nos processos – reconhecimento das necessidades e definição de estratégia de
ação pelos participantes (professores, coordenadores pedagógicos e gestores);
● nos conteúdos concretos aprendidos – construção de um conjunto de
conhecimentos fundamentais para a prática pedagógica (a herança teórica dos
pedagogos do século XXI, por exemplo);
● nos contextos de aprendizagem – formação centrada na escola como lócus
situado;
67
Conforme Oliveira-Formosinho (2002ª, 2002b) em outros contextos da educação, o tema do desenvolvimento
profissional também já foi tratado por outros autores, tais como Fullan (1982) e Garmston; Lipton; Kaiser (2002).
144
● na aprendizagem de processos – reconhecimento dos processos de
aprendizagem das crianças e dos próprios adultos (metacognição);
● na relevância para as práticas – foco em responder aos problemas emergentes
do cotidiano praxiológico;
● no impacto na aprendizagem das crianças – modo como o desenvolvimento
profissional, organizacional, curricular e das aprendizagens afeta diretamente
na criação de oportunidades de aprendizagem para as crianças.
Em tal perspectiva, acredita-se que a formação não prescinde do indivíduo, mas nasce
dos saberes de sua experiência e, por isso, pode-se dizer que é na intersecção entre as diferentes
dimensões do desenvolvimento que reconhecemos a participação dos profissionais. Do mesmo
modo como não podemos olhar uma criança isolada, também não devemos fazer isso com os
professores. A instituição (contexto) de que o professor participa impacta no desenvolvimento
profissional, e sua formação e autoformação impactam no desenvolvimento do seu contexto.
Esse é um jogo dialógico, como um jogo de espelhos que são colocados um frente ao outro e já
não se sabe mais quando começa e quando termina o reflexo de um e de outro. Logo, aprender
a se observar, observar as crianças e observar a própria instituição é, em analogia aos
observatórios de astronomia, uma forma de compreender os fenômenos que estão entrelaçados
pelas incertezas, provisoriedades, dinâmicas e inacabamentos que, neste caso, é fazer uma
pedagogia da infância.
A partir dessa definição de formação, também encontramos a legitimidade dos “não
saberes”, tanto quanto daqueles saberes já existentes. Assim, conforme defende Pinazza (2014,
p.56), “a tarefa do programa formativo é trazer à consciência das pessoas envolvidas a sua
condição de inacabamento ou inconclusão”. Assumimos, então, que enfrentar o desafio de fazer
educação significa assumir que a aprendizagem profissional não está centrada em um período
da vida (o de formação universitária, por exemplo), mas é um projeto de longo prazo, sem data
para acabar, uma aprendizagem que se dá ao longo da vida (lifelong learning).
Em um relato de uma das participantes do OBECI no documento de reflexão que se
faz a cada final de ano, aparece o quanto sua participação em uma comunidade de apoio ao
desenvolvimento profissional tem transformado a si mesma e o cotidiano da escola:
145
minhas certezas para dar lugar à escuta das crianças. Saber que a cada
15 dias nos encontramos para falar da vida da escola, dos conteúdos
de verdade, me dá ânimo. [...] Documentar o cotidiano tem nos ajudado
a confrontar as certezas e a compartilhar com todos os envolvidos na
escola para ampliar nossos debates. [...] Acolher as miudezas da vida,
observar, acompanhar, interpretar, aprender a focar na criança,
compartilhar os percursos, são possibilidades para se fazer uma escola
que esteja atenta as especificidades das crianças, que acolha a cultura
infantil. Luciane V., Coordenadora Pedagógica, EMEI João de
Barro. Caderno de Reflexões, 2016, p. 6-7.
68
Por isso que, desde 2014, temos organizado uma Jornada de Educação Infantil direcionada para outras
instituições e profissionais como forma de compartilhamento dos temas que temos desenvolvido dentro do OBECI.
O site e as publicações também têm esse mesmo sentido, que é o de construir um patrimônio pedagógico e partilhá-
lo.
146
desenvolvimento profissional de educadores de infância. Embora em sua tese não desenvolva
nenhum tipo de conceito a respeito desse tipo de comunidade, ao observar os projetos que a
autora classifica como comunidades de apoio ao desenvolvimento profissional, pude notar
como características-chave a promoção da qualidade dos contextos, as aprendizagens das
crianças e as aprendizagens dos profissionais69.
Percebo que, além dessas também serem características-chave do OBECI, esse
Observatório pode ser entendido como uma comunidade de apoio ao desenvolvimento
profissional porque:
a) é um espaço de formação e transformação que tem como pressuposto comum
a estratégia da Documentação Pedagógica;
b) organiza-se com a finalidade de ser um espaço/tempo para o compartilhamento
de dúvidas, de diálogo, de negociação, de cooperação em torno da
aprendizagem profissional;
c) gera aprendizagem para e com seus participantes a partir de observáveis dos
próprios contextos;
d) é um espaço de reflexão e retroalimentação sobre e para o cotidiano
praxiológico;
e) produz, como uma estrutura social, produz conhecimento praxiológico situado;
f) tem o comprometimento de visibilizar os percursos das crianças e dos
professores, a fim de criar uma memória pedagógica e cultural sobre a
Educação Infantil, sobre a docência na Educação Infantil e sobre as crianças;
g) visa à construção da qualidade dos contextos de aprendizagem das crianças e
dos profissionais;
h) propõe-se a promover as escolas participantes como comunidades de prática
(NIZA, 2009; WENGER, 2010) para os profissionais e como comunidades
embrionárias (DEWEY, 2002) para as crianças.
A respeito dos tópicos levantados anteriormente, é importante fazer algumas
explicitações. O termo comunidade de prática é tratado por Niza (2009, p. 346) como sendo “o
contexto social onde tem lugar a aprendizagem através das trocas que asseguram os progressos
no trabalho”. Já Wenger (2010) entende que uma comunidade de prática é sempre um sistema
69
Identifico outras experiências que poderiam compor a lista de comunidades de apoio ao desenvolvimento
profissional, embora elas mesmas não se auto denominam dessa forma: Reggio Emilia (Reggio Children), Parma
Infanzia, Fundazione Crescere, na Itália; Rosa Sensat, na Espanha; Instituto Pikler-Loczy, na Hungria; Escuelas
Pesta, no Equador.
147
social de aprendizagem. Por crer nisso, o autor faz destaque para o fato de que as pessoas se
agrupam pelo tipo de atividades que exercem. A partir disso, a prática compartilhada não apenas
reúne as pessoas em torno de algo mas constrói saberes e modos de ser e estar. No meu
entendimento, o OBECI é provocador de que as escolas se tornem comunidades de prática a
partir do momento em que vai definindo modos de conceber e fazer um determinado tipo de
pedagogia.
Construir uma comunidade é também tirar o professor do “isolamento docente 70”
(COCHRAN-SMITH; LYTLE, 2002) e considerar que seu trabalho não se faz apenas na
relação direta com as crianças, mas no diálogo e reflexão da sua própria prática com outros
profissionais. Por isso, as estratégias estruturantes do Observatório71 ocorrem em horário de
trabalho e exigem das escolas a dispensa dos professores, coordenadores e gestores para
participar, salvo a Jornada de Educação Infantil anual e os Encontros das Escolas Observadoras,
que ocorrem em sábados, pois implicam a participação de todos os profissionais das escolas.
No entanto, o isolamento docente não é apenas uma questão de estruturação da jornada de
trabalho, mas também uma forma que “[...] diminui a oportunidade do professor mostrar seus
êxitos (e também) protege o direito a ocultar seus fracassos” (LITTLE, 1987, p. 60), mais ainda,
o isolamento atua como um mecanismo que encerra o professor em si mesmo, desviando a
perspectiva da docência como uma atividade colaborativa e social (COCHRAN-SMITH;
LYTLE, 2002).
Já a ideia de comunidades embrionárias para as crianças, propostas por Dewey (2002,
p. 26), reconhece, na escola, “a possibilidade de associar-se à vida, de tornar-se uma segunda
morada da criança, onde ela aprende através da experiência direta, em vez de ser apenas um
local onde decora lições”. Assim, a escola é um verdadeiro laboratório de cidadania, de
aprendizagem da cultura, de legitimidade da curiosidade das crianças e de promoção da cultura
infantil e pedagógica.
Na sequência, além de compartilhar o modo como as escolas participantes foram
convidadas e os movimentos de permanências, chegadas e partidas das instituições, construo
cartas de identidade das escolas em diálogo com as profissionais das instituições.
70
Segundo as autoras, “o isolamento docente ocorre em todas as etapas da carreira profissional e está muito bem
documentado nos estudos de Goodlad (1984); Lieberman y Miller (1984); Lortie (1975)” (COCHRAN-SMITH;
LYTLE, 2002, p. 135). No Brasil, o tema sobre o trabalho, o emprego e a carreira na Educação Infantil já foi
tratado por Vieira e Souza (2010) e Gomes (2012).
71
Na sequência, irei tratar, com maior detalhamento, as estratégias do OBECI, mas, neste caso, estou referindo-
me ao Grupo Gestor e aos Grupos de Investigação-Ação.
148
1.2 As escolas que participam do OBECI
A participação das escolas ocorreu por meio de carta-convite. Naquela ocasião, foram
convidadas cinco escolas, de cinco municípios diferentes. A razão central da escolha das escolas
convidadas se deu por existir algum tipo de contato prévio, como, por exemplo, a gestora de
uma delas havia sido minha aluna em um curso de extensão, a gestora de outra havia feito
contato para uma formação interna em sua escola e a coordenadora de outra havia sido minha
colega em curso de especialização. No entanto, o que nos unia era o fato de eu perceber o desejo
dessas profissionais em compreender como transformar as escolas de que faziam parte. Na
carta-convite, expressei essa questão:
É com muito prazer que entro em contato para convidar sua escola de Educação
Infantil para participar do Observatório da Cultura Infantil - OBECI. Esse projeto
envolve um processo formativo às escolas participantes à luz da Abordagem da
Documentação Pedagógica. Interessado em criar instrumentos que renovem as
práticas pedagógicas, ao mesmo tempo, criar uma nova cultura sobre a escola, sobre
as crianças e sobre a docência, o OBECI tem como objetivo fortalecer uma rede de
escolas interessadas em promover um trabalho de qualidade e atento às crianças,
sobretudo, que torne visível uma imagem de criança rica e capaz (MEMÓRIA DOS
ENCONTROS DO OBECI. Carta Convite, 2013, p. 2).
149
Atualmente, somos cinco escolas participantes e três representantes da Secretaria
Municipal de Educação de Novo Hamburgo. O grupo foi se constituindo e se transformando,
novos integrantes vieram compor e outros já não fazem mais parte. Nos encontros de cada final
de ano em que refletimos e retomamos o percurso para decidir os horizontes pelos quais
seguiremos, com frequência nos remetemos a esse primeiro dia e a essa primeira imagem com
um certo entusiasmo pela comunidade que conseguimos constituir. Também percebo que,
nesses documentos de reflexão, há diversas manifestações do valor de estar em grupo, de ter
um espaço para dialogar e de retirar das abstrações os conteúdos e processos da transformação.
Nos dois trechos a seguir, pode-se perceber a respeito:
Não sei nem como, mas com ajuda do grupo algumas mudanças
começaram a acontecer [...]. O grupo do Obeci então passou a ser
companheiro, apoio, cobrança e balizador da caminhada que fazemos
para transformar a escola em um lugar cada vez melhor. Gilneia,
psicóloga, Espaço Girassol. 2016, p. 7
150
Como já dito, em 2013, éramos três instituições72: EMEI Aldo Pohlmann (Novo
Hamburgo), Espaço Girassol (Canoas) e Escola de Educação Infantil Mimo de Gente (Porto
Alegre). No ano seguinte, houve a entrada da EMEI João de Barro (Novo Hamburgo) e de uma
terceira escola municipal73, compondo um total de cinco escolas. Dadas essas alterações de
gestão mencionadas anteriormente, uma das escolas que iniciou com o OBECI, a EMEI Aldo
Pohlmann, a partir de 2015, deixou de compor o grupo e, agora, em 2018, retorna a fazer parte.
Uma outra instituição, que entrou em 2014, permaneceu apenas naquele ano e decidiu não
continuar em função de mudanças na gestão e problemas de saúde de uma das profissionais
participantes. Em 2015, iniciou a EMEI Joaninha e uma outra escola municipal de Novo
Hamburgo que, na ocasião, era dirigida pela anterior diretora da EMEI Aldo Pohlmann. Essa
instituição permaneceu no OBECI até 2017 embora a antiga diretora estivesse nesse cargo
apenas por um ano. A razão da saída dessa escola do OBECI se deu em função da
impossibilidade da coordenadora em continuar frequentando os encontros devido ao tamanho
da instituição (já que funcionavam turmas de pré-escola e turmas de ensino fundamental,
totalizando cerca de 800 crianças e adolescentes).
Mesmo com esse movimento, desde 2014, o Observatório se mantém com cinco
escolas, sendo sempre três públicas e duas privadas. Para fins desta pesquisa, irei trabalhar
apenas com os dados das quatro escolas que iniciaram e permaneceram até o presente momento:
EMEI João de Barro, EMEI Joaninha, Espaço Girassol e Escola de Educação Infantil Mimo de
Gente74.
Essas instituições são bastante diversas em termos da característica de atendimento, de
estrutura e de número de crianças e profissionais. Estamos falando de duas tipologias de
mantenedora, a pública e a privada; de arquiteturas que incluem os atuais prédios do
Proinfância75 e de escolas que se constituem em casas adaptadas. Algumas das escolas atendem
toda a etapa da Educação Infantil (0-6 anos), algumas apenas a etapa creche (0-3 anos) e outra
72
As escolas foram consultadas sobre o desejo do nome ser informado nesta tese ou não – no caso, poderia ser
utilizado algum nome fictício. Todas as escolas optaram para que seus nomes fossem informados. Além disso,
todas as participantes também optaram que fossem utilizados seus nomes verdadeiros ao longo da tese.
73
Não serão informados os nomes das duas instituições que não estão mais no OBECI, apenas será explicitado,
para fins de compreensão, a respeito do trânsito e composição de escolas participantes no Observatório.
74
A Escola Municipal de Educação Infantil Aldo Pohlmann participou no início do OBECI, em 2013 e 2014. Na
troca de gestão, a EMEI deixou de fazer parte e retornou em 2018. Para efeitos de pesquisa, dada a ausência da
escola por longo período, essa instituição não compõe os dados utilizados nesta pesquisa.
75
Segundo Coelho (2015, p. 7), “O Proinfância é um programa do governo federal, criado em 2007, cujo objetivo
principal é prestar assistência financeira, em caráter suplementar, ao Distrito Federal e aos municípios para a
construção e aquisição de equipamentos e mobiliários para creches e pré-escolas públicas. A sua implementação
abrange cinco dimensões: a disponibilização de projetos arquitetônicos padrão, o financiamento de obras, a
aquisição de mobiliário e equipamentos, o assessoramento técnico-pedagógico e o custeio de novas matrículas”.
151
apenas algumas turmas da Educação Infantil. O número de crianças também é bastante variado,
automaticamente, o quadro de profissionais também se modifica. As escolas atendem em turno
parcial e integral e são de municípios com realidades sócio econômicas distintas.
Assim, o cenário que está configurado no atual momento é esse apresentado no Quadro
04:
76
Na Parte I deste trabalho, falou-se sumariamente sobre os processos documentais. Na sequência desta parte,
serão abordados com maior profundidade.
152
nas próprias escolas, optamos por fazer o que chamamos de “Escola amiga”. Ou seja, uma das
escolas que estava visitando a escola anfitriã, ao realizar um passeio pela instituição, fazia
algumas fotos e anotações para a construção de um processo documental que era contrastado
com um quadro analítico sobre organização de espaços e materiais que construímos a partir das
indicações de Oliveira-Formosinho e Andrade (2011), Araújo (2011), Oliveira-Formosinho e
Araújo (2013) e outros referentes que vínhamos estruturando dentro do OBECI77. A cada novo
encontro, portanto em uma nova escola, essa proposta se repetia, e a escola que havia feito o
processo documental da instituição anterior apresentava seu olhar destacando os pontos que
considerava “fortalezas” do trabalho e outros pontos que sinalizava com a possibilidade de
qualificar. Construímos isso como uma possibilidade de oferecer um olhar estrangeiro para cada
escola, intuindo que esse olhar pudesse oferecer elementos para qualificar o trabalho.
A partir desse material é que também compus essa carta de identidade de cada escola
para tentar expressar a sua dimensão social, cultural e pedagógica. Nela há uma pluralidade de
vozes: a minha, como pesquisador, a das participantes das próprias escolas, a dos documentos
da escola, a do olhar das outras escolas do OBECI e a das crianças a partir das imagens
selecionadas. Esse material será apresentado a seguir.
77
Posteriormente irei explicitar estes referentes construídos quando abordarei os Organizadores da Ação
Pedagógica.
78
Agradeço a disponibilidade de Luciane L. e Alexandra no apoio necessário para a recolha de informações, bem
como o material elaborado pela Espaço Girassol, em 2017, na ocasião das visitas das escolas amigas.
153
A partir da LDB de 1996, que determina a
Educação Infantil como primeira etapa da Educação
Básica, as creches passam a ser de responsabilidade
da Secretaria de Educação e Desporto municipal, o
que implica a alteração do nome para Escola
Municipal de Educação Infantil João de Barro.
Desde 2007, a EMEI se encontra em prédio
próprio com amplo pátio externo. A João de Barro
tem feito um grande investimento na organização dos
espaços e na oferta de materiais que rendem grandes
investigações pelas crianças. Tanto os espaços
externos quanto os internos têm sido pensados para
que as crianças habitem a escola. Para a João de
Barro, organizar os espaços de forma acolhedora para
as crianças é uma forma de traduzir a imagem de
criança capaz e com direito a participar da vida
cotidiana.
Em 2014, iniciou sua participação no
OBECI, e, desde então, a equipe gestora e os
professores têm feito grandes jornadas de
aprendizagem e de transformação da escola. Dos
conteúdos que temos desenvolvido no interior do
Observatório, a João de Barro tem sido uma grande
referência na elaboração de mini-histórias da vida
cotidiana. Essa estratégia tem se efetivado em todas
as turmas e está servindo como grande instrumento
de comunicação e diálogo com as famílias.
Aliás, a participação das famílias é uma
marca que faz parte da história dessa instituição. Em
1974, registra-se a primeira Associação de Pais, cujo
objetivo era o de reunir-se mensalmente para discutir
normas e diretrizes de funcionamento e planejar
154
atividades para arrecadação de fundos e na promoção
da conscientização dos pais em relação à educação dos
filhos.
É uma característica dessa escola o
investimento na formação dos professores em
contexto, auxiliando-os a compreender seu cotidiano
para poder transformá-lo. E, dessa natureza de
formação realizada, são também estabelecidas
relações com as famílias para o compartilhamento dos
percursos das crianças individualmente, por meio de
relatos que as professoras fazem com apoio de
documentações construídas ao longo do percurso.
Anualmente é realizada a Mostra dos
Observáveis, um momento para dar visibilidade aos
percursos de investigação das crianças na escola. É
uma oportunidade para as famílias participarem e
experienciarem com as crianças um pouco das
propostas desenvolvidas ao longo do ano.
Também, semestralmente, é feita a entrega de
portfólios, um material que narra a trajetória (de
quem?), oportunizando que as crianças e as famílias
possam revisitar, refletir e compartilhar experiências
vividas. Tal material possibilita às professoras dar
visibilidade à escuta e observação feitas dos percursos
e teorias pelos quais passam as crianças. Além disso,
a escuta e a observação revelam suas preferências, a
forma como se relacionam com as propostas, seus
parceiros preferidos, suas narrativas: uma
comunicação dos processos vividos na escola. Os pais
também são constantemente convidados a
participarem de situações da vida cotidiana da escola:
para contar uma história, fazer uma receita, tocar um
instrumento. Também são realizadas, mensalmente,
155
reuniões com a Associação de Pais com o objetivo de
envolvê-los na organização de atividades para
arrecadar fundos para a escola, fazer alguns reparos e
discutir temas sobre seu funcionamento.
O trabalho com o Brincar Heurístico também
se transformou em uma marca da prática pedagógica
dessa escola. Desde a sua entrada no OBECI, a
proposta com o brincar heurístico caracteriza-se, na
escola, como estratégia escolhida para ajudar os
professores a compreenderem melhor as dimensões
do trabalho pedagógico na creche, valorando a
competência e o protagonismo das crianças em
descobrir o mundo por elas mesmas.
As práticas da vida cotidiana, como comer,
deslocar-se pela escola, realizar a higiene e o
descanso, são temas caros à João de Barro, o que, por
sua vez, têm se transformado em um tema de muito
investimento na qualificação desses momentos.
A EMEI, atualmente, atende cerca de 105
crianças com idade referente à creche (faixa etárias de
4 meses a 3 anos). A atual diretora é Luciane L. e a
coordenadora pedagógica, Alexandra.
156
1.2.2 EMEI Joaninha79
79
Agradeço a disponibilidade de Juliana e Liliane no apoio necessário para a recolha de informações, bem como
o material elaborado pela Mimo de Gente, em 2017, na ocasião das visitas das escolas amigas.
157
construir segredos e de compartilhar brincadeiras, algo
que não se difere do interior de cada sala. As salas
referências têm se estruturado para responder a
aspectos importantes que temos desenvolvido dentro
do OBECI: descentralizar do adulto a prática
pedagógica por meio das opções diversas de espaços
circunscritos para as brincadeiras das crianças e para a
possibilidade de se agruparem em pequenos grupos
conforme a característica de cada faixa etária.
Em consonância com o propósito da criação
de unidades do Proinfância, a EMEI Joaninha é um
local de grande investigação e reflexão sobre o trabalho
pedagógico na Educação Infantil. A escola tem como
objetivo permanente construir um cotidiano de
qualidade para as crianças e adultos. Para isso, nas
formações, pensamos e refletimos sobre as práticas
cotidianas, sempre colocando a criança no centro do
projeto educativo, fazendo escolhas pedagógicas
pautadas em propostas significativas, assim como
fazendo uma escuta sensível e respeitando a
individualidade de cada uma.
Em 2015, quando entrou no OBECI, esse
percurso ganha acento e direcionamentos importantes.
Atualmente, a EMEI é uma grande referência para o
trabalho com o Brincar Heurístico, transformando
como um dos projetos estruturantes para o trabalho da
escola. Logo, a EMEI Joaninha tem professor que atua
especificamente com o trabalho do brincar heurístico,
investigando e documentando os processos heurísticos
dos meninos e meninas.
158
Outra característica da escola é o trabalho
em pequenos grupos, tanto na jornada quanto nas
sessões, o que qualifica a aprendizagem das crianças
e contribui para um olhar mais individualizado sobre
cada uma.
Também virou uma marca da escola o
trabalho com as mini-histórias, servindo como
estratégia de comunicação e diálogo com a
comunidade educativa. Narrar imagética e
textualmente as rapsódias da vida cotidiana tem
ajudado as professoras dessa EMEI a compreender
melhor as crianças e, com isso, construir pautas para
o próprio trabalho. O trabalho dessa escola com as
mini-história e com as investigações sobre o Brincar
Heurístico é fortemente sustentado pelas condições
de diálogo e partilha entre as professoras e a
coordenação pedagógica.
Essa instituição atende crianças da faixa
etária de 1 ano aos 4 anos; excetuando as turmas das
crianças de 4 anos, as demais são em turno integral.
Na escola, há uma Associação de Pais e Mestres,
desde 2014, e, bianualmente, é realizada eleição para
a composição dos representantes. A atual diretora é
Juliana e a coordenadora, Liliane.
159
1.2.3 Espaço Girassol80
80
Agradeço a disponibilidade de Silvana, Carolina e Gilneia no apoio necessário para a recolha de informações,
bem como o material elaborado pela EMEI João de Barro, em 2017, na ocasião das visitas das escolas amigas.
160
conceito de que o atendimento à criança deve ser
pensado e organizado de modo específico e baseado em
pressupostos teóricos. O espaço físico da escola por si
só fala da importância que a Educação Infantil merece
e que, na época de sua inauguração, não era comum na
cidade. A organização dos espaços na escola e a forma
como estruturou aspectos de seu funcionamento, como
o livre acesso dos pais, a disposição das salas
convergentes para uma área central, o não uso de
uniformes, a forma personalizada de acolher as famílias
no processo de adaptação e olhar a criança, a não
adoção de materiais pedagógicos massificados, a
proposta alimentar e o contato com a natureza, entre
outros tantos que fizeram da Espaço Girassol uma
escola diferenciada, concretizam concepções fundantes
da pedagogia que a escola acredita.
A escola percorreu uma caminhada de onze
anos antes de ingressar no OBECI, e, nesse período, foi
se afirmando em suas propostas pedagógicas e, acima
de tudo, promovendo a especialização de sua equipe de
trabalho.
Em 2013, a Espaço Girassol iniciou no
OBECI, desde então a escola participa do Observatório.
O OBECI veio complementar o trabalho já existente e
alavancou mudanças significativas, trazendo
questionamentos e iniciando um ciclo de
transformações na escola. Passa-se, então, a observar
com olhar crítico para toda a organização pedagógica e
a gestão a fim de garantir o protagonismo infantil e o
respeito à infância, abandonando algumas práticas
automatizadas. Mudanças começam a ocorrer a partir
do exercício de pensar sob a perspectiva da criança, e
161
reconfiguram-se, na escola, o questionamento sobre as
datas comemorativas, a organização dos espaços e do
tempo, a estruturação de um espaço para o exercício da
cidadania e da prática política, a reorganização dos
momentos de alimentação, a forma de comunicar o
processo de aprendizagem das crianças, o planejamento
da jornada de trabalho, o acolhimento das famílias e,
mais recentemente, de forma específica, a prática com o
Brincar Heurístico e os Ciclos de Simbolização.
Nesse período, a escola/equipe sentiu a
necessidade de fortalecer e evidenciar sua proposta e,
provocada pelo OBECI, construiu os Referenciais da
Espaço Girassol, que são cinco: Aprendizagem
Protagonizada, Bem-estar, Educação ambiental,
Relação escola-comunidade, Competências
socioemocionais. É através deles que todas as ações e
propostas são desenvolvidas dentro da escola.
As propostas oferecidas para cada faixa etária
também foram repensadas, levando em consideração as
necessidades e interesses das crianças. As investigações
com os Ciclos de Simbolizações ocupam o lugar dos
antigos projetos inflexíveis e descontextualizados,
possibilitando uma aprendizagem mais participativa e
real para as crianças. Assim como o Brincar Heurístico
que, a cada sessão, possibilita descobertas tanto para as
crianças, quanto para as educadoras, ao desconstruir
uma prática centralizada no adulto, potencializando a
observação, a escuta e a reflexão.
Ao pensar em momentos que respeitem as
crianças, a sua cultura e a sua família, a escola foi
estabelecendo outras formas de ser escola e relacionar-
se com toda a comunidade. Desta forma, foram
propostas atividades de integração e confraternização
162
sem cunho religioso ou com viés de consumo, e, sim,
privilegiando os encontros culturais verdadeiros e
significativos para todos.
Atualmente a escola atende 84 crianças no
horário das 7h até as 19h, para todas as faixas etárias
da Educação Infantil (4 meses a 5 anos e 11 meses). A
diretora é Silvana, que conta com o apoio da
coordenadora Carolina e da psicóloga Gilneia.
163
1.2.4 Escola de Educação Infantil Mimo de Gente81
81
Agradeço a disponibilidade de Ivana e Vanessa no apoio necessário para a recolha de informações, bem como
ao material elaborado pela SMED NH, em 2017, na ocasião das visitas das escolas amigas.
164
É uma escola aberta para ouvir os pais e
preocupada em atender cada criança nas suas
necessidades; por isso, pensa e desenvolve
possibilidades para incluir meninos e meninas em
suas singularidades.
A Mimo tem uma biblioteca com uma
vasta coleção de livros infantis. Essa biblioteca é
conhecida como “Mimoteca”. A mediação de
leitura é pensada como um dos grandes valores da
escola; por isso, buscam-se diversas alternativas
para colocar as crianças em contato com a
literatura. Essa é uma maneira de espalhar e
provocar o hábito da leitura.
Desde 2013, a escola faz parte do OBECI
e, atualmente, uma de suas fortalezas é o trabalho
com o Brincar Heurístico, que se fortaleceu dentro
da escola, transformando-se em uma prática
cotidiana. A partir do Brincar Heurístico, as
professoras têm descoberto o valor da
documentação da prática como estratégia para
auxiliar a desnaturalizar o óbvio e a transformar o
modo como se relacionam com as crianças. Além
disso, essa estratégia tem contribuído fortemente
para repensar o papel do adulto, a seleção dos
materiais e a organização dos espaços e do tempo.
Há um grande investimento na formação
dos professores, iniciando o ano com a Jornada
Pedagógica interna. Além disso, também são
convidados profissionais a participarem de cursos
externos à escola, e, mensalmente, acontecem
reuniões de formações com a equipe a fim de
discutir e alinhar questões referentes ao trabalho
com as crianças.
165
Outra fortaleza da Mimo de Gente são as
fotografias. O modo como as profissionais da escola
capturam a ação das crianças são reveladoras da
transformação do olhar da própria instituição como um
todo, que vem percebendo cada vez mais a
complexidade e a força que existem em cada gesto e
olhar dos meninos e meninas.
A partir do GIA dos Ciclos de Simbolização,
a escola está apostando no investimento do desenho da
criança e tem espalhado as marcas das crianças em toda
escola, incluindo as sinalizações do interior da
instituição. Esses desenhos também estampam as
camisetas dos funcionários e das crianças, que,
orgulhosas, vestem e mostram as belas imagens.
Geralmente todo material gráfico produzido na escola
provém dos desenhos infantis.
A escola também incentiva a autonomia dos
meninos e meninas com pequenas ações, como servir-
se durante as refeições do que quer comer, escolher se
irá dormir ou não, transitar pela escola para ir ao
banheiro ou dar recados a outras turmas, trocar de
ambientes sem fila. Estes e outros processos são
observados e analisados para que mais possibilidades
possam ser oferecidas às crianças.
A Escola Mimo de Gente é, na definição da
própria instituição, um lugar onde a criança brinca,
convive e aprende. A diretora é a Ivana e a
coordenadora pedagógica, Vanessa.
166
1.3 As ideias assumidas como guias do trabalho
167
pressuposto de que o conhecimento que a humanidade vem construindo está em contínuo
desenvolvimento.
As pedagogias participativas acolhem diferentes modelos pedagógicos, são plurais, e,
ao contrário da pedagogia transmissiva, é na explicitação do conhecimento em nível da teoria,
dos princípios e da ética que é possível a transformação do cotidiano praxiológico. Como já
afirmou João Formosinho (2013, p. 16), “para a renovação da prática pedagógica das escolas
na direção de uma prática fundamentada, é essencial a sua transformação em práxis pedagógica,
o que só se pode realizar utilizando pedagogias explícitas.”
No Observatório, nosso quadro referencial se estabelece a partir de modelos
pedagógicos e pedagogos das famílias das pedagogias participativas, tais como Loris Malaguzzi
e a experiência de Reggio Emilia (Reggio Approach), Elinor Goldschmied, Emmi Pikler e o
Instituto Pikler-Loczy, a Pedagogia-em-participação, John Dewey, Gianfranco Staccioli, Penny
Ritscher, Alfredo Hoyuelos, entre outros. Buscamos, nessa herança teórica, “a ruptura com a
pedagogia transmissiva através da desocultação dessa naturalização que está por detrás da
perpetuação da pedagogia transmissiva e através da proposição de uma práxis pedagógica
alternativa fundamentada em teorias” (FORMOSINHO, 2013, p. 20).
Também temos dialogado com outros campos do conhecimento, tais como o design, a
arte, as ciências naturais, a arquitetura, a filosofia, a psicologia, entre outras. No entanto, nossos
diálogos não ocorrem por subordinação a esses outros campos, mas como possibilidade de
ampliação e enriquecimento das possibilidades dos debates pedagógicos. Afirmamos a
Pedagogia como a ciência que responde à complexidade da escola de Educação Infantil.
Com esse quadro referencial, vamos construindo uma constelação teórica própria que
nos ajuda a fundamentar nossa prática e a apoiar nossos diálogos. A explicitação e a
contextualização desse referencial é o que tem sustentado a transformação tanto em nível das
práticas pedagógicas nas escolas, como na formação dos profissionais e na investigação.
Formosinho (2013, p. 16) afirma que “a pedagogia baseia-se num saber práxico organizado em
torno dos saberes que se constroem na ação situada, em articulação com as concepções teóricas
e com as crenças e valores”. Nesse sentido, a Pedagogia que comungamos não se faz por meio
de aplicação ou aproximação de teorias, tampouco de uma prática que se fundamenta na
ausência reflexiva dos práticos, que acabam se apoiando em um modus operandi assentado na
tradição. Mas a Pedagogia se faz e se refaz na interatividade de uma práxis contextualizada e
fundamentada em uma herança teórica explícita:
168
Em síntese, a interatividade entre saberes, práticas e crenças, a centração nos atores
como co-construtores da sua jornada de aprendizagem em um contexto de vida e de
ação pedagógica determinado, através da escuta, do diálogo e da negociação,
conduzem a um modo de fazer pedagógica caleidoscópico, centrado em mundos
complexos de interações e interdependências, promovendo interfaces e interações.
Esse modo de fazer pedagógico configura a ambiguidade, a emergência, o imprevisto
como critério do fazer e do pensar, produzindo possibilidades múltiplas que definem
uma pedagogia transformativa. Estas são características que fogem à possibilidade de
uma definição prévia total do ato de ensinar e aprender, exigindo a sua
contextualização cotidiana (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2007, p. 19).
Para dizer de outro modo, compreender os impactos daquilo que diariamente estamos
fazendo nas creches e pré-escolas demanda desnaturalizar matrizes fortemente constituídas em
cada adulto que opera dentro das instituições. Assim, para produzir rupturas, o que buscamos é
criar um espaço legítimo para as dúvidas e perguntas. Talvez, dessa forma, seja possível
constituir uma “formação que mobilize os professores, a partir de suas aprendizagens
experienciais, providenciando oportunidade de interpretá-las e reconstruí-las por meio do
exercício reflexivo individual e coletivo” (PINAZZA 2014, p. 55).
Nesse mesmo sentido, também compreendemos que a construção de um quadro de
ideias partilhadas se aproxima do que Oliveira-Formosinho e Formosinho (2002, p. 27)
apontam sobre a tipologia de intervenção da Associação Criança, pois afirmam que, em tal
associação, existe um processo de intervenção “[...] co-operada (operada conjuntamente), o que
implica necessariamente co-laboração (laboração em conjunto)”. Ademais, “essa característica
de intervenção cooperada por colaboração exige um genuíno propósito de aceitar uma
caminhada em comum. [...] A cooperação exige a progressiva partilha de um referencial
educativo” (OLIVEIRA-FORMOSINHO; FORMOSINHO 2002, p. 27, grifo dos autores).
Sobre esse referencial educativo partilhado, falarei brevemente a seguir.
169
1.3.1 A criança e o currículo
Para ser coerente com as ideias antes postuladas a respeito de um modelo de escola
que investiga e, por isso, se situa em modelos epistemológicos relacionais e nas pedagogias
participativas, no OBECI, também temos nos interrogado sobre as noções de criança e currículo
para compreender de que modo estabelecer a conexão entre esses dois campos (ou forças, nos
termos de Dewey) que, muitas vezes, são colocados como opostos. Dewey (2002, p. 157),
problematizando a respeito da criança e do currículo, afirmará que “o processo educativo é
exatamente a interação destas forças. Esta visão, de uma em relação à outra, como facilitadora
de uma interação mais completa e livre é a essência da teoria educativa”. Para esse autor,
quando transformamos a criança e o currículo como antagonistas e damos centralidade no que
separa, inventamos um problema e não colocamos a devida energia no aspecto prático do
conflito.
Assim, Dewey (2002) aponta que, se nos centrarmos no conflito, poderemos
compreendê-lo sem perder a natureza relacional de cada um dos lados, enquanto que a nossa
tradição insiste em colocar um em oposição ao outro e, com isso, anula a relação existente.
Logo, é se mantendo no antagonismo entre criança e currículo que nascem as seitas, e,
novamente, ou optam por abandonar a criança a sua própria sorte (pedagogias não diretivas),
ou optam em artificializar a articulação dos saberes e da experiência da criança com a cultura
(pedagogias diretivas). Assim,
170
embrionário e vital e compreendamos que a criança e o currículo são apenas dois limites que
definem um só processo”.
Compreendendo dessa forma, podemos nos centrar nas especificidades e limites entre
as crianças e o currículo sem perder de vista a interação que há entre essas duas forças. Assim,
Dewey (2002) segue afirmando que o mundo da criança tem como princípio a inteireza, e os
significados e os sentidos são construídos a partir dos seus vínculos práticos e emocionais -
enquanto o currículo, em suas abstrações e necessidades de categorização, aproxima-se do
mundo adulto e, por isso, deve servir como meio de interpretação do mundo da criança. Mais
uma vez, o acento está na interação entre as condições internas das crianças (ímpeto por
aprender) e as condições externas criadas pelo professor em nível de recursos e de interpretação.
Para mostrar essa interação entre as crianças e o currículo, aqui entendido como mundo dos
significados, tomo como exemplo essa mini-história, narrada pela professora Raquel, de um
grupo de crianças de 5 anos a respeito de um grande debate sobre a diferenciação entre bicho e
animal e do modo como negociam suas visões a respeito disso.
O elefante é animal e
Sapo é um animal pequeno em o escorpião é bicho.
cima do bicho pau. Valentina
Marcos
171
As crianças procuram construir teorias para explicar os acontecimentos que passam a
perceber no seu entorno. Constroem teorias, como afirma Rinaldi (2012), ou seja, criam uma
explicação plausível sobre algum fenômeno ao mesmo tempo que reconhecem sua
provisoriedade e colocam sob negociação com seus pares e com os adultos. Por outro lado,
como adultos, podemos traçar diversas conexões entre o modo como as crianças experimentam
a explicação das diferenças entre o que é bicho e o que é animal com o modo como as ciências
naturais, por exemplo, foram construindo categorizações sobre insetos, animais, etc. Nesse
sentido, concordo com Rinaldi (2012, p. 205) que “os sentidos que as crianças produzem, as
teorias explicativas que elas desenvolvem na tentativa de encontrar respostas são da máxima
importância, pois revelam, de maneira vigorosa, como percebem, questionam e interpretam a
realidade e seus relacionamentos com ela.”
Assim, defendo que o grande propósito da Educação Infantil é criar condições para
que as crianças se sintam encorajadas a construir explicações sobre o mundo, e não que sejam
receptoras de um saber pronto e acabado. Para isso, o professor precisa aprender a ouvi-las e a
restituir os modos como as crianças estruturam seus próprios mapas cognitivos, emocionais e
sociais para não ficarem esquecidos ou apenas em nível de decoração.
Ao mesmo tempo, é preciso oferecer as condições externas para que as crianças
possam tomar iniciativas e encontrar no contexto próximo delas os instrumentos para ajudá-las
a nomear, explicar e significar os fenômenos. Logo, “o que importa não é dar valor a alguma
coisa, mas, acima de tudo, entender o que há por trás dessas questões e teorias, e o que há por
trás delas é algo verdadeiramente extraordinário” (RINALDI, 2012 p. 206).
É seguindo esse espírito que temos afirmado que nosso desafio tem sido o de
reposicionar criança e adulto na relação educativa, e, para tal, uma das pistas tem sido
compreender a relação entre a criança e o currículo.
Renunciamos ao discurso da criança vazia e passamos a acolher a dimensão histórica
e cultural de cada menino e menina. Estamos abandonando a ideia de criança abstrata e
começando a aprender a escutá-las em suas subjetividades. Estamos deixando de ver a criança
de forma compartimentada e passando a percebê-la holisticamente. Temos um longo caminho
para deixar de serem gerúndio as velhas visões e imagens de criança que marcam o modo como
os adultos se relacionam com cada menino e menina e avançar para novas formas de se
relacionar.
Esse deslocamento em que nos encontramos em relação à imagem da criança não é
diferente se pensarmos na compreensão da identidade da Educação Infantil como a primeira
172
etapa da Educação Básica. Já não nos serve a instituição assistencialista para as crianças,
tampouco o que buscamos é a instituição que prepara para a etapa seguinte. A instituição de
Educação Infantil é, segundo o Parecer 20/2009 que a orienta,
[...] sujeito histórico e de direitos que, nas interações, relações e práticas cotidianas
que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva. Brinca, imagina, fantasia,
deseja, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre a
natureza e a sociedade, produzindo cultura (BRASIL, 2010, p. 12).
173
Essa ideia de criança não representa algo simples de ser incorporado nas práticas
cotidianas. Ainda somos fortemente atravessados por crenças que minimizam as competências
das crianças, que não autorizam a sua participação nas decisões cotidianas e, em muitas
ocasiões, que as tratam como sujeitos vazios, sem nenhum tipo de experiência prévia,
praticamente um sujeito sem história e sem identidade.
Assim, colocar-se diante da experiência concreta de cada uma das instituições e refletir
sobre o lugar das crianças significa enfrentar as crenças sobre a imagem de criança que cada
um de nós tem e que orientam nossas formas de atuar e de nos relacionar com os meninos e as
meninas para poder ressignificá-los. Talvez esse seja o ponto de encontro mais coerente entre
teoria e prática (HOYUELOS, 2004b).
Do ponto de vista da ação pedagógica, essa visão de criança precisa encontrar eco em
uma ideia de currículo que supere a lógica do conhecimento acabado a ser transmitido. Logo, a
dimensão de currículo que a DCNEI afirma nos ajuda a fazer isso, pois trata o currículo como
um
[...] conjunto de práticas que buscam articular as experiências e os saberes das crianças
com os conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural, artístico, ambiental,
científico e tecnológico, de modo a promover o desenvolvimento integral de crianças
de 0 a 5 anos de idade (BRASIL, 2010, p. 12).
Essa visão ampliada do que significa currículo na Educação Infantil aproxima o mundo
da criança do mundo do adulto. Isso porque, ao compreender as práticas da vida cotidiana como
uma das dimensões curriculares, além de orientar um certo modo de organizar os contextos
educativos em direção ao bem-estar global das crianças, acolhe a experiência de cada menino
e menina como modo de subjetivação e de produção de sentidos.
Além disso, dá o devido acento na perspectiva de que se articulem os saberes e as
experiências das crianças com os patrimônios que a humanidade já sistematizou. Isso está em
perfeita harmonia com o debate que Dewey (2002, p. 163) propõe como alternativa de
superação do antagonismo entre a criança e o currículo, pois “os fatos e as verdades que entram
na experiência presente da criança e aqueles contidos nos assuntos-matérias dos estudos são os
termos inicial e final de uma mesma realidade”.
A linha que conecta a criança ao currículo é exatamente a interatividade dessa
dimensão que acolhe a vida cotidiana e que se movimenta no sentido de ampliar horizontes. É
isso que responde à inteireza da criança que está expresso na visão de criança e currículo da
DCNEI (2009) e também reclamada por Dewey (2002).
174
Por fim, tanto a visão de criança como de currículo tem sido problematizada,
comunicada e apoiada pela estratégia da Documentação Pedagógica. Dessa mesma maneira,
ainda estamos caminhando no sentido de pensar como comunicar as experiências das crianças
no interior das escolas, demonstrando os modos como elas operam e constroem suas
experiências de aprendizagens, e de perceber como são “[...] capazes de criar mapas
intencionais sobre seus percursos de aprendizagem, demonstrando que o desejo em descobrir o
mundo estrutura esquemas de ações” (FOCHI, 2013, p. 160). Nosso exercício tem sido
aproximar a vida cotidiana com as demais oportunidades que podemos oferecer para as crianças
de modo que ampliem seus horizontes. Porém, estamos tentando fazer isso sem hierarquizar
conhecimentos, pois partimos da ideia de que, desde a chegada das crianças na cena humana,
ela está aprendendo.
Uma premissa importante para o OBECI e para as escolas que o compõem é a de que
problematizar a vida cotidiana significa entrar no subsolo da Educação Infantil, ou seja, naquilo
que sustenta a transformação e que esconde os maiores desafios. Sustenta a transformação, pois
envolve a tomada de consciência sobre o dia a dia de uma creche e pré-escola e do valor que as
atividades cotidianas ocupam na vida das crianças e dos adultos. Também porque no cotidiano
está o conteúdo da vida, da cultura e das relações, e uma escola não pode se apartar disso para
responder ao seu papel social, político e pedagógico. Esconde grandes desafios pelo
enfrentamento aos dilemas que é necessário ser feito quando se pretende transformar o
cotidiano pedagógico, mudar o que está instituído.
Para uma mudança na lógica da relação entre adultos e criança, por exemplo, é preciso
modificar o espaço, e, para tal, se faz necessário construir uma nova compreensão sobre a gestão
do tempo (todos os momentos não podem ser conduzidos pelo adulto, logo, o espaço precisa
ser satisfatório82). Não adianta apenas organizar o espaço de forma diferente se não é
problematizado o modo como as relações ali podem se estabelecer. A simples modificação do
espaço e da gestão do tempo envolve não apenas os professores que atuam diretamente com as
crianças, mas também os demais funcionários que precisam limpar a sala de referência e o
82
Ainda nesta Parte III, quando forem tratados os Organizadores da Ação Pedagógica, estes tópicos serão
desenvolvidos. Aqui apenas estou citando a título de exemplo.
175
coordenador pedagógico que deve fazer a gestão dos horários de atividades de planejamento de
todos os professores da escola.
Por tudo isso, consideramos a vida cotidiana a espinha dorsal do nosso trabalho. Tanto
do ponto de vista das crianças como dos adultos, em cada momento da vida cotidiana, existem
extraordinárias possibilidades para aprender e para gerar um bem-estar global. As pequenas
coisas, como deslocar-se de um lugar para o outro, compartilhar uma refeição, ser higienizado
ou higienizar-se, disputar um brinquedo, comemorar um aniversário ou tirar um casaco porque
está quente, são práticas sociais que vão inserindo os meninos e meninas em uma dada cultura
e podem, quando dadas as condições adequadas para tal, representar um marco importante para
o desenvolvimento e para o bem-estar das crianças. Logo, o debate sobre a vida cotidiana é algo
do campo da gestão da escola e da gestão pedagógica do professor que precisam estar em
perfeita sintonia para efetivar transformações que respondam às necessidades das crianças e dos
adultos.
Cabanellas et al (2007, p. 35) afirma que é necessário “iluminar a complexidade
natural das atuações infantis para que o olhar do adulto mude, para encontrar novas vias de
abordagens didáticas, mais viáveis, mais respeitosas e mais ricas, para romper os limites que
separam a cultura da infância da cultura do adulto”. A afirmação da autora põe um desafio
crucial, uma vez que nos faz entender que a diversidade de situações que temos tratado com
banalidade ou como mera repetição, como as anteriormente citadas, são fruto também de uma
compreensão limitada sobre as crianças e sobre sua relação com o contexto.
Do mesmo modo, Brougère e Ulmann (2012, p. 2) advertem que as aprendizagens da
vida cotidiana, “se não completamente negadas como saberes, também não são
verdadeiramente reconhecidas como tais”. Para as crianças, esse não reconhecimento dessas
aprendizagens que elas intensamente vão construindo pela sua natureza de recém-chegadas
banaliza parte importante de sua trajetória educativa, mesmo que, no fundo, são essas as
aprendizagens que estruturam e sustentam as condições internas para o desenvolvimento de
outras aprendizagens ditas formais. Brougère e Ulmann (2012, p. 2) concordam que “relegadas
ao segundo plano, as aprendizagens da vida cotidiana permanecem confinadas no invisível
mesmo quando contribuem para desenvolver inúmeros conhecimentos naqueles lugares oficiais
destinados a transmitir um saber válido e reconhecido”.
Quando entendemos que as diferentes situações da vida cotidiana implicam uma ampla
e complexa rede de atuações das crianças, conectadas com situações concretas e que respondem
a necessidades diversas dos meninos e meninas, remodelar a lógica de compreensão do trabalho
176
pedagógico é tirar da sombra os temas da vida cotidiana e reposicioná-los como parte de uma
ecologia educativa complexa.
Vejamos um episódio da vida cotidiana, narrada a partir da mini-história das
professoras Karin e Sissa, em uma turma de faixa etária 2 da EMEI Joaninha.
Esse breve episódio, mas não menos profundo, remete a uma máxima de Brougère
(2012, p. 14) quando afirma que a “vida cotidiana não é genética; trata-se de uma construção
humana particular”, e, como tal, nos leva a saber agir em uma determinada cultura, a
compreender as maneiras de fazer, de ser e de estar no e com o mundo de que se participa.
Nesse sentido, “o cotidiano pode então ser aprendido como a base, o suporte ou mesmo o
fundamento de qualquer prática social” (BROUGÈRE, 2012, p. 14).
Compartilhar uma tarefa pode ser um modo de estabelecer vínculos e ir construindo
um lugar de participação e envolvimento de uma criança nova na turma, um gesto diário de
construção de proximidade e afeto. Como lembra Galardini (2017, p. 23), “a grande ambição
da escola deve ser criar em seu interior uma comunidade de interesses recíprocos, em que
177
professores e crianças aprendem juntos e avançam juntos; uma comunidade em que as crianças
são convidadas para serem membros competentes tal como os adultos”. Além disso, Ritscher
(2011, p. 116) reforça que participar da vida cotidiana “[...] é um gesto de cultura, significa
assumir uma responsabilidade pessoal para o entorno coletivo. É um costume de cidadania
ativa”.
Há um outro elemento importante que se pode refletir a partir do episódio: o da
continuidade. Para as crianças, a continuidade acaba “[...] estabelecendo hábitos, isto é,
momentos reconhecíveis pela sua identidade e repetitividade” (BONDIOLI; MANTOVANI,
1998, p. 32), e, na vida cotidiana, a repetição é inerente ao próprio mundo cotidiano. Brougère
(2012, p. 18) afirma que “criar o mundo cotidiano é aprender o mundo, entender como ele
funciona para mergulhar nele. O mundo cotidiano é um mundo aprendido, na passagem da
estranheza à familiaridade”.
Por isso, ir compreendendo que algumas coisas se repetem oferece para os meninos e
meninas a possibilidade de familiarizar-se com seu entrono e de decidir sobre sua participação,
assegurando-lhes de que aquele momento não representa a totalidade da sua jornada educativa,
mas parte dela. Além disso, ajuda na construção da noção da temporalidade que é tão difícil de
ser assimilada pelas crianças dessa faixa etária. Mas é importante alertar: reconhecer alguns
elementos de continuidade não é o mesmo que estabelecer uma rotina tal como conhecemos no
campo da Educação Infantil83.
A chegada, o lanche da manhã, o almoço, o lanche da tarde e a despedida são marcas
temporais inevitáveis das crianças em uma jornada educativa. Pensar a continuidade é
suficientemente satisfatória levando em consideração esses momentos, mantendo-se aberto ao
inesperado e à diversidade de outras situações que podem ir tramando o todo da jornada. É um
justo equilíbrio entre a continuidade e a descontinuidade, tal como a vida.
Quando as crianças chegam a uma instituição, como a escola de Educação Infantil,
entram numa outra vida cotidiana e, por isso, o que é evidente para os outros não é para quem
está chegando (BROUGÈRE, 2012). Por isso, a aprendizagem torna-se intencional, explícita e
vai, aos poucos, tramando-se uma tessitura de temporalidades, relações e sentidos que tornam
aquele que antes chegava como parte daquele novo grupo social. Por isso é que Galardini (2017,
p. 21) observa que “o cotidiano representa a realidade das crianças; é em sua vida diária, em
83
A esse respeito, sugiro a leitura do livro Por amor e por força: as rotinas na educação infantil, de Maria Carmen
Silveira Barbosa, Editora Penso, 2006.
178
seus ritmos habituais e familiares, onde encontra os fundamentos das regras e dos significados
compartilhados que conseguem que sintam responsáveis e tenham segurança”.
Vida cotidiana e aprendizagem formam um binômio que explicitam a natureza das
jornadas de aprendizagem das crianças e dos adultos na Educação Infantil, pois, tal como
anuncia Brougère (2012, p. 23), “a vida cotidiana é feita de múltiplas ocasiões de aprender. E,
de modo simétrico, aprender é uma atividade da vida cotidiana, e não uma atividade que só
poderia encontrar lugar rompendo com ela”.
Também Strozzi (2016, p. 62) observa que a contínua atenção e reorganização do
cotidiano nas escolas de Reggio Emilia são alternativas para manter próxima uma dada crença
teórica do seu contexto prático, pois “quando separamos a teoria da organização do trabalho
pedagógico, o risco é sempre muito alto. Isto é, o risco é de criar uma escola, como diz Bateson,
‘que desinforme em vez de formar, porque tira o pulsar da vida’”. Logo, muitos mais importante
do que compreender o que deve ocorrer cotidianamente, é preciso problematizar o como isso
ocorre no dia a dia e o como é compreendido pelos adultos. Staccioli (2011, p. 22, grifo meu)
lembra que “[...] colocar atenção no como significa respeito, significa ver a realidade pelo que
é, significa reflexão, significa afeto pelas coisas que se faz (e pelas pessoas que estão conosco)”.
Discutir sobre como as atividades da vida cotidiana acontecem no dia a dia de uma escola
significa compreender a composição de uma jornada educativa e decidir, portanto, as condições
externas que precisam ser criadas para gerar um bem-estar global.
Comer, descansar, andar pela escola, encontrar os amigos, fazer amigos, brincar, ir
para a caixa da areia, descobrir por onde passa a água em um conjunto de canos, podem ser
atividades da vida cotidiana das crianças e merecem ser acolhidas no seu valor educativo.
Carvalho e Fochi (2016, p. 158) destacam essa “unidade de inteireza da vida” que existe na
vida cotidiana, pois nela se “[...] subvertem as perspectivas lineares, isto é, não se trata de
conceber uma ideia de primeiro sentir, depois pensar, depois comunicar, mas, ao contrário, de
modo interdependente e circular, se sente, se pensa e se comunica como um mesmo processo
tramado por vários fios”.
No OBECI, acreditamos que qualificar a vida cotidiana significa pôr atenção no modo
como as crianças estão vivendo suas infâncias. Garantir que os meninos e as meninas tenham
tempo para as diversas oportunidades educativas que acontecem em uma instituição, sem
apressá-los, sem artificializar os modos que eles podem apreender o mundo, é um aspecto
central na invenção da docência. E isso significa reposicionar o adulto “[...] para podermos
transformar esse percurso em uma longa e bonita jornada a ser percorrida de mãos dadas, como
179
alguém que acompanha, acolhe, cuida, compartilha e impulsiona a experiência de vida do
outro” (FOCHI, 2014, p. 110).
Na sequência, para atender a essas ideias de criança, currículo e focagem na vida
cotidiana, mostro como temos desenvolvido, em termos da formação, o trabalho dentro do
OBECI.
180
das Escolas Observadoras (semestral), a Jornada de Educação Infantil (anual) e a Mostra de
Mini-histórias (anual).
Nos encontros do Grupo Gestor e dos Grupos de Investigação-Ação (GIA), é
fundamental que o trabalho seja em um grupo não muito ampliado, dada a natureza de reflexões
e o modo como acontecem as discussões e os encaminhamentos para o trabalho dentro das
escolas. Já a proposta dos Encontros das Escolas Observadoras e da Jornada de Educação
Infantil (e, dentro dela, a Mostra de Mini-histórias) reside em compartilhar alguns temas
comuns que temos discutidos nos pequenos grupos para todos os demais profissionais das
escolas e, no caso da Jornada, inclusive para profissionais de outras instituições.
Todos os processos de formação84 surgiram por um propósito e uma razão diferente;
logo, cada um deles tem sua própria estrutura. Percebemos, por exemplo, que precisávamos
discutir com um pequeno grupo de professores questões relativas à aprendizagem dos bebês e
o papel do professor para essa faixa etária; por isso, criamos o GIA do Brincar Heurístico. Um
outo exemplo, na medida em que o tema das mini-histórias começou a ser incorporado com
mais força pelas escolas como estratégia de trabalho, diz da necessidade de reunir toda a equipe
das escolas para discutir com mais profundidade sobre o tema, e assim, estruturamos os
Encontros das Escolas Observadoras.
Cada processo de formação tem sua própria importância, mas é o seu conjunto que cria
uma reciprocidade dinâmica para a transformação dos contextos educativos. O que conecta
todos os processos de formação são:
a) os conteúdos emergentes das situações da vida cotidiana, que são para nós a
espinha dorsal do trabalho, pois compreendem os conteúdos intelectuais
necessários para a formação e para a transformação;
b) a figura do coordenador pedagógico, que participa de todos os momentos, pois
representa uma ligação sistêmica entre a gestão da escola e gestão do trabalho
pedagógico do professor;
c) a documentação pedagógica como estratégia para construir um conhecimento
praxiológico partilhado, contextualizado, negociado, e para dar visibilidade
sobre o modo como as crianças aprendem e como a ação pedagógica pode
acontecer.
84
No Apêndice B, sistematizei um quadro com os diferentes processos de formação, carga horária e público
envolvido entre os anos de 2013 e 2018.
181
Os conteúdos e processos de que temos tratado dentro do OBECI, graças à estratégia
da Documentação Pedagógica, mantêm-se como um rico patrimônio pedagógico para cada uma
das escolas e para as demais escolas participantes85. É esse patrimônio pedagógico que
efetivamente vai se constituindo como o projeto educativo da instituição e, por sua vez,
induzindo a uma certa prática tanto para os profissionais que já atuam, como para aqueles que
chegam.
Ao longo dos seis anos, foram sendo explorados aspectos da vida cotidiana das escolas
e compartilhadas reflexões entre as instituições que pudessem contribuir para a tomada de
decisões em um alto nível de consciência. Destaco ainda que a produção do conhecimento que
vem sendo realizada com os profissionais destas instituições e o compartilhamento do trabalho
com a comunidade evocam aquilo que Dahlberg (2016, p. 230) destaca como a superação do
“[...] pensamento que caracteriza o mercado de trabalho e os relacionamentos puramente
contratuais”, e esta mesma autora evidencia que “ao tornar o trabalho pedagógico visível e
sujeito ao debate aberto e democrático, a documentação pedagógica oferece a possibilidade
para que a educação infantil ganhe novo prestígio e legitimidade social”.
Na sequência, vou tratar cada um dos processos de formação que temos utilizado
dentro do OBECI e explicitar o conteúdo e os processos desenvolvidos, as estratégias e os
participantes.
85
Em seguida, tratarei de cada um dos processos formativos que, atualmente, temos utilizado e destacarei os
conteúdos que já foram tematizados em nossas investigações.
86
Em uma das instituições, a equipe gestora é formada pela diretora, coordenadora pedagógica e psicóloga. Neste
caso, as três profissionais participam do Grupo Gestor.
87
Atualmente participam três assessoras da Secretaria Municipal de Educação, e o sentido dessa participação é
apoiar as três escolas municipais que fazem parte do OBECI e poder se valer das reflexões que temos feito dentro
do Observatório na rede municipal como um todo.
88
Nos dois primeiros anos, os encontros eram mensais. Na medida em que começou a se sentir a necessidade de
mais tempo, passamos a fazer encontros quinzenais. Desde 2015, os encontros permanecem quinzenalmente.
182
constituição do projeto educativo (macros intervenções), e este é também o grupo em que se
define o funcionamento desta comunidade de apoio ao desenvolvimento profissional.
É importante destacar que a razão do OBECI ter nascido com esse grupo gestor é o
foco na construção de um sentido de gestão próxima, implicando estes profissionais com a vida
cotidiana da escola que respeite os direitos das crianças e dos adultos. A ideia de uma gestão
próxima é advinda das perspectivas pedagógicas de Loris Malaguzzi, que sempre perseguiu a
descentralização de gestão, dizendo que considerava impossível um bom trabalho enquanto
existisse muita distância entre a gestão e o cotidiano das crianças. Nas palavras de Tonucci
(1998, p. 34), “Malaguzzi defendia a ideia que só com a sensibilidade e o cuidado que se pode
dedicar às coisas próximas é que se pode fazer uma experiência de alto nível, assim como
merecem as crianças”.
A definição dos conteúdos de investigação é decorrente de um exercício reflexivo que
se faz no início de cada ano nos primeiros encontros do Grupo Gestor, ou na análise do percurso
vivido ao longo do ano projetando o próximo. Apoiando-nos na estratégia da Documentação
Pedagógica, vamos construindo observáveis para olhar para a vida cotidiana das escolas e
contrastar, dentro do OBECI, para poder projetar a transformação e realizá-la, como, por
exemplo, no ano de 2016, em que cada coordenadora pedagógica acompanhou a jornada de
uma das turmas de sua escola para compreender o modo como a organização do cotidiano
privilegiava a participação das crianças ou não. Em outra oportunidade, em 2017,
coordenadoras pedagógicas e diretoras elaboraram uma mini-história sobre uma cena do
cotidiano e foram convidadas a buscar os conteúdos que poderiam ser refletidos a partir dela.
Houve ainda o momento em que foi sendo percebida a temática que aprofundaríamos naquele
ano, 2018, a partir das memórias escritas ao longo do ano anterior.
Um exemplo é a comunicação Alimentação na Mimo de Gente: construindo princípios
para nutrir com afeto que a escola organizou e que eu apresento um excerto na sequência. O
tema da alimentação é uma constante pauta de reflexão no OBECI. Desde 2013, esse assunto
aparece como um dos aspectos da organização da jornada educativa que precisa ser
problematizado e transformado. No caso da Escola Mimo de Gente, essa questão vem sendo
olhada pela instituição de diferentes formas desde 2013.
Como síntese, os problemas giravam em torno da concepção dos professores de que
comer era apenas uma tarefa diária; logo, entregavam os pratos já servidos, as frutas
descascadas e picadas. As crianças eram apressadas e suas ações se resumiam, na maior parte
das vezes, em escolher se iam ou não comer, a quantidade e o tipo de alimento. Atreladas a isso,
183
as condições também dificultavam transformações: refeitório pequeno e número grande de
turmas.
Desde então, a escola foi avançando em sua investigação para compreender a
realidade, pensar estratégias de transformação e implementá-las. Reconhecido o terreno, a
coordenadora pedagógica e a diretora foram escutando as versões das crianças e as versões das
professoras sobre esse momento e, a partir dessa escuta, foram realizando formações dentro da
escola.
Nessa comunicação do ano de 2016, a escola optou por retomar as narrativas do ano
anterior que as crianças e as professoras fizeram sobre o momento das refeições. Como pode
ser visto, a constatação do Lucas era de que havia muito barulho e pouco tempo, e da professora,
a falta de tempo e a mecanização desse momento, incluindo a entrega das frutas cortadas para
acelerar o processo. Como paralelo disso, a comunicação construída pela coordenadora e pela
diretora mostra os princípios para alimentação que havia sido elaborado junto à equipe da escola
ao longo dos três anos: ambiente organizado, paciência, respeito e autonomia. Essas palavras-
chave representavam aquilo que a instituição havia conseguido definir como as ideias
irrevogáveis (postulados) para o momento da alimentação no contexto da instituição, ou seja,
nos limites e possibilidades que lá existem. Por fim, as narrativas atuais das crianças e das
professoras e algumas cenas atuais das refeições para expressar o que já havia avançado em
direção aos princípios elaborados.
184
Independentemente do modo utilizado para circunscrever a temática a ser investigada,
os conteúdos do Grupo Gestor são sempre vinculados à vida cotidiana, tais como o momento
das refeições (almoço ou lanches), o momento do descanso, o ritmo da jornada educativa em
cada turma, o momento da higiene (troca de fraldas), as chegadas e partidas dos bebês, o
trabalho em pequenos grupos89, as microtransições. Cada vez mais, temos compreendido que
esses temas são o verdadeiro conteúdo do projeto educativo e, por isso, os conteúdos
formativos.
Envolver os coordenadores pedagógicos e gestores com os temas da vida cotidiana é
responsabilizar a equipe pedagógica da instituição pelo funcionamento e pela concretização do
projeto educativo, descentralizando, assim, o papel do professor como o único responsável pela
dimensão pedagógica. A propósito: é dessa forma que temos afirmado a pedagogia dentro das
instituições, como a ciência que sustenta as práticas pedagógicas e que conecta a todos em volta
de um mesmo propósito.
89
No Apêndice C, há um quadro com uma síntese de todos os conteúdos que as escolas têm tratado a cada ano no
interior do OBECI.
185
Aqui vale destacar um ponto importante. Na metade do primeiro ano do OBECI, em
2013, percebemos que, embora estivéssemos estudando a respeito da Documentação
Pedagógica, não estávamos construindo a memória do trabalho desse Observatório. Por essa
razão, decidimos que, em cada encontro, uma pessoa seria responsável por sistematizar de
forma textual o que havia sido discutido. Chamamos esse documento de “Memória”. No
intervalo dos encontros, a memória é compartilhada em um grupo virtual para ser lida no
começo do encontro posterior. Esta tem sido uma forma de produzir uma continuidade do
trabalho que temos desenvolvido e de construir um material que sistematiza as vozes do
desenvolvimento da nossa história. Escrever a respeito do que estamos discutindo e,
especialmente, garantir que todos participantes possam escrever a partir de suas impressões foi
um exercício muito importante para a construção da história formativa e metodológica desse
grupo. Aliás, foi graças a isso que pude cartografar os conteúdos emergentes do OBECI.
Um outro aspecto que é de fundamental importância é a construção de um vínculo
colaborativo entre os participantes do Grupo Gestor, porque, nesse grupo, estamos criando o
que Hargreaves (1998) define como culturas profissionais docentes. Para o referido autor, a
cultura é composta por forma (padrões de comportamento e relacionamento) e conteúdo
(construído por aquilo que os outros pensam, fazem e dizem) dos membros de um determinado
grupo. No tocante a respeito das culturas profissionais docentes, está se referindo, portanto, ao
modo como os professores se relacionam e desenvolvem seu trabalho na escola e para a escola
e ao modo como se traduzem em práticas as crenças, os valores e os padrões de comportamento
com as próprias crianças, com os outros adultos e com a própria escola.
Hargreaves (1998) define cinco tipos comuns de culturas profissionais: individualismo
fragmentado, balcanização, colegiado artificial, colaboração e mosaico fluído. Não é intenção
aqui revisar cada uma dessas definições, mas sinalizar aquela que, em minha interpretação,
representa o que constituímos no interior do OBECI, ou seja, a cultura profissional da
colaboração.
As características de uma cultura profissional docente colaborativa, segundo
Hargrevaes (1998), seria a da partilha, da confiança e do apoio, do trabalho em conjunto, do
aperfeiçoamento contínuo. Essas são características que se notam fortemente no Grupo Gestor
do OBECI. Não foram qualidades elencadas a priori como condição de participação. São, ao
contrário, uma análise que só é possível de ser feita no distanciamento e na revisitação das
memórias construídas no interior do Observatório e dos documentos reflexivos que os
participantes produziram.
186
Não sabíamos, mas para que um grupo de escolas distintas compartilhando suas
fragilidades, escutando críticas e ponderações e assumindo determinados níveis de reflexão e
de trabalho em conjunto pudesse dar certo, tais características seriam chave, quer seja para a
continuidade do Observatório, quer seja para a própria transformação de cada escola.
Nos primeiros movimentos de compartilhar a respeito do que cada escola desejaria
refletir, era notável que estavam preocupadas em mostrar um problema solucionado com
sucesso antes de expor qualquer tipo de fragilidade da instituição. Hargreaves (1998, p. 189)
descreve uma imagem representativa a respeito dessa tentativa de manter escondidas a dúvida
e as fragilidades: “tal como a ostra que neutraliza um grão de areia irritante, cobrindo-o com
camadas de pérola, os professores isolados parecem cobrir as suas dúvidas e inadequações
irritantes com camadas reconfortantes de ilusão pessoal”.
Foi preciso aprender a confiar no grupo e, talvez, a compreender que a tentativa de
mascarar um problema jamais abriria as portas para uma possível transformação. Nesse sentido,
entendo que as escolas conseguiram ir percebendo que a fragilidade de uma também era a
fragilidade das demais, e que o grupo que ali estava se constituindo estava aberto ao diálogo e
empenhado em colaborar mutuamente.
Além disso, na medida em que o grupo foi percebendo a possibilidade dos encontros
do Observatório se configurarem como verdadeiros espaços legítimos de dúvidas e um tempo
dedicado a olhar profundamente para as próprias escolas sem tentar mascarar os problemas,
também se desvelou a problemática da formação que realizavam dentro das escolas: (i) não
estava servindo para transformar a vida cotidiana; (ii) não eram abordados temas que pudessem
transformar a prática dos professores em prol das crianças, (iii) não existia nenhuma
metodologia de trabalho formativo dentro das escolas. Na verdade, concluiu-se o que
Hargreaves (1998, p. 234) já havia anunciado: “os professores não se encontram quando
deviam, encontram-se quando não há nada para discutir, e estão envolvidos em esquemas de
treino com pares que não compreendem bem ou não conseguem fazer funcionar com os colegas
adequados”.
Assim, o trabalho do primeiro ano foi importante para a construção da forma de
trabalho do OBECI - tanto em nível organizacional (a construção de uma cultura colaborativa),
quanto em nível formativo (produzir observáveis do cotidiano das escolas e partilhar no OBECI
com a finalidade de querer ver e compreender) - assim como para a circunscrição do conteúdo
deste observatório: a vida cotidiana da escola, as aprendizagens das crianças, o modo de narrar
e os processos formativos dos professores.
187
Ao longo destes seis anos, o fortalecimento dessa cultura profissional docente
colaborativa (HARGREAVES, 1998) também consolidou a ideia de comunidade
comprometida com a transformação dos contextos que ali estamos construindo. A respeito
disso, recupero o que Roldão (2006) discute ao tratar da ampliação da reflexão do trabalho
colaborativo. Segundo a autora, para além de um grupo de pessoas estarem envolvidas em uma
mesma tarefa, existem outras importantes características a considerar:
Senão exatamente essas seis características, pois a autora está se referindo à escola,
mas seu sentido geral diz muito do que foi consolidado dentro do OBECI. Partilhar um tema
tornou-se motivo para criar engajamento do grupo com o desejo de qualificar e de encontrar
rumos a serem tomados. A investigação que uma escola está levando a cabo é um conteúdo
partilhado com as demais e uma possibilidade de contrastes sobre diferentes pontos de vista que
podem qualificar e auxiliar no trabalho. Celebramos aquilo que Oliveira-Formosinho (2009a)
tão bem nos ensinou: que aprendemos melhor em companhia.
No grupo, as experiências de cada participante, seus saberes e a história de cada
instituição enriquecem as possibilidades formativas de cada um exatamente porque não se
pretende cancelar as diferenças, e, sim, celebrá-las. Sabemos que o trabalho em que estamos
envolvidos tanto nas escolas como no próprio OBECI é um trabalho que se situa no campo da
pluralidade, das teorias plurais, das visões plurais.
Graças à participação da coordenadora pedagógica, começamos a criar uma homologia
dos processos do OBECI para dentro dos processos formativos das escolas. Ou seja, os modos
como temos levado a cabo nossas investigações dentro do Observatório têm servido como
formação ao coordenador pedagógico como formador de dentro da escola.
É no debate sobre essa relação entre as coordenadoras pedagógicas e as professoras
dentro das escolas que surge o outro processo formativo que temos desenvolvido no OBECI:
os Grupos de Investigação-Ação.
188
1.4.2 Grupos de Investigação-Ação
189
do professor e a investigação da prática são elementos fundamentais para a melhoria da
educação (STENHOUSE, 1998). Na mesma linha, Cochram-Smith e Lytle (2002) abordam
uma noção de professor que investiga intencional e sistematicamente. As autoras justificam que
as matizes dadas ao termo professor investigador objetivam diferenciá-lo de uma investigação
por acaso, espontânea, pressupondo que a intencionalidade também representa um grau de
reflexão dos professores que sabem se fazer perguntas ou de perguntar sobre o seu entorno. E,
a respeito da sistematicidade, não apenas responde a uma certa crença de investigação, mas de
que no campo educacional o hábito em produzir dados para poder analisá-los e contrastá-los é,
sem dúvida, uma estratégia para a construção do conhecimento pedagógico.
Malaguzzi (2001) também já tratou do tema, destacando que o conhecimento dos
professores é um dos conhecimentos mais profundos sobre os problemas da educação, e que,
por isso, “o papel da teoria consiste em ajudar aos professores a compreender de forma eficaz
a natureza de seus problemas” (MALAGUZZI, 2001, p. 84). No entanto, isso não se faz por
aproximação da teoria com a prática, mas da construção de uma prática situada e fundamentada
em uma teoria de base (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2007).
O pedagogo também defende a natureza aprendente do professor como peça
fundamental da prática pedagógica. Seguindo essas pistas de Malaguzzi (2001, p. 85), temos
problematizado dentro dos GIA que “a atitude de aprender e re-aprender com as crianças é a
linha do nosso trabalho. Trata-se de conseguir que as crianças não tomem a forma da
experiência, mas sim, que sejam elas as que dão forma à experiência”.
Mas pensar na formação de um grupo que incida na investigação com os professores,
pelos professores e na sua formação, também convoca refletir sobre os modelos de
aprendizagem dos adultos. Considerando o percurso que temos desenvolvido dentro de cada
GIA, os argumentos da aprendizagem experiencial postuladas por Kolb (1984) ajudam a
clarificar os processos de aprendizagem dos professores e coordenadores. Para esse autor,
191
e) Como manutenção e espaço de partilha, para cada GIA, criamos um grupo
virtual no facebook, como uma espécie de ambiente virtual de aprendizagem
(AVA) para postagens dos observáveis das investigações das escolas e para
reforçar a interação entre as escolas e postagens de textos, vídeos e outros tipos
de materiais formativos.
f) Os GIA também são um espaço de formação de formadores. O modo como
tratamos as discussões sobre o cotidiano pedagógico e e como vamos
retroalimentando sua transformação oferecem aos coordenadores modelos e
estratégias para construir seus próprios percursos formativos dentro das
escolas.
g) A mobilização da criação do GIA era fazer com que as discussões que
estávamos fazendo dentro do Grupo Gestor chegassem com mais força dentro
de cada sala referência. Sempre estive consciente de que havia o risco do
OBECI se transformar em uma ilha de discursos apartada do mar de realidade
que é a escola se mantivéssemos nossas reflexões presas no próprio grupo.
Em 2015, criamos o primeiro Grupo de Investigação-Ação com ênfase nos Ciclos de
Simbolização propostos por Malaguzzi (2001), convidando um professor de pré-escola e a
coordenadora pedagógica de cada escola para encontros sistemáticos. Nos anos subsequentes,
além de dar continuidade ao primeiro, organizamos outros três GIAs: o do Brincar heurístico,
o dos Jogos de Luz e Sombra (que mais tarde se transformou em diálogos entre crianças e
tecnologias) e o do Acompanhamento Projetual. Na sequência, comento brevemente cada um
dos GIAs.
192
Fui entendendo junto ao Grupo Gestor que essas práticas em relação ao desenho dizem
muito dos modos como os professores estão agindo na Educação Infantil. Em outras palavras,
ou se permanece em uma pedagogia diretiva, centrada no adulto (desenho pronto), ou, então,
nas pedagogias não diretivas, que abandonam as crianças, supondo que a simples relação destas
com o material riscante e a folha branca fará com que descubram os mistérios e as alegrias de
registrar no papel suas teorias a partir do desenho.
Nesse caso, e essa foi uma frase repetida pelo grupo do OBECI inúmeras vezes,
percebemos que o desenho era o mote para o debate de tantos outros aspectos da relação
educativa. Por isso, o que estava em jogo era descobrir como ser professor de crianças pequenas,
mas também ampliar a compreensão sobre o desenho como uma das linguagens das crianças.
O que permanecemos em busca, em termos de Pedagogia, são aquelas epistemologias
relacionais, pois, conforme já tratei em outro texto,
[...] é possível colocar em relação tanto os saberes das crianças quanto os saberes dos
adultos. Não se trata de uma pedagogia não diretiva, que supõe que o que as crianças
precisam aprender já nasce com elas, que é inato a elas. Também não é o contrário,
uma pedagogia diretiva, que percebe a criança como vazia, tabula rasa, cabendo ao
adulto “preenchê-la” com os saberes já adquiridos por ele (FOCHI, 2016a, p. 5).
193
194
Na Espaço Girassol, há uma mandala de temperos e ervas, e, seguidamente, ela é alvo
de diálogos entre as crianças. A professora Roberta decidiu embarcar nessa conversa e
investigar com as crianças qual o significado de mandala.
Utilizando os Ciclos de Simbolização, a professora foi buscando compreender que
narrativas as crianças tinham sobre a mandala da escola. “Essa Mandala parece um labirinto de
chás”, falou Marcelo. Maria Clara concordou: “Tem dois círculos, um bem grande e outro
menor e quatro canteiros... Por que não é um labirinto redondo de chás ao invés de Mandala?”.
A investigação foi avançando e as narrativas das crianças também foram se transformando.
“Mandala significa pegadas para seguir, é um caminho... Mas que talvez possa se transformar
em um vestido diferente! Entende?”, disse Layla. “Assim, é uma coisa com muitos segredos”,
retomou Maria Clara. Matheus resolveu explicar o surgimento da mandala: “Acho que o
asteroide soltou fogo, e explodiu! Então o fogo derreteu o asteroide, e assim profe... Destruiu o
asteroide e se transformou em uma Mandala!”. Depois de muito segredos e mistérios
partilhados, Valentina concluiu: “Eu sou minha Mandala!”.
Ao longo da investigação, é possível perceber que não apenas as narrativas orais se
transformavam, como os desenhos iam ganhando detalhes e elementos a mais. O espaço da sala
referência também foi ganhando elementos da cultura que pudesse servir de instrumentos para
as crianças. A comunicação elaborada pela professora também mostra concepções. O valor pelo
traço das crianças, as imagens selecionadas, as palavras escolhidas para ir tecendo a narrativa
de uma investigação tornam visíveis outras crenças sobre a infância, sobre a docência e sobre
a Educação Infantil.
195
A proposta de trabalho com os Ciclos de Simbolização de Loris Malaguzzi é para
compreender “como as crianças aprendem a revisar verbalmente e a debater fatos, a agir ou a
delinear seu entendimento atual, fazer representações gráficas de suas descobertas e invenções,
e desenvolver notações e scripts para a comunicação desse conhecimento” (FORMAN, 1999,
p. 180). Nesse sentido, a reflexão sobre os Ciclos de Simbolização vem para nos ajudar a
responder a inúmeros questionamentos relativos à prática pedagógica, tais como O que é projeto
na Educação Infantil? Como investigar com crianças de 3 a 6 anos? Qual a relação entre
pensamento projetual e investigação com crianças pequenas? Como dar visibilidade para as
teorias das crianças?
Ao longo dos três anos, as professoras passaram a experimentar esse tipo de
investigação multissimbólica como uma das principais estratégias para compreender a
construção das teorias das crianças em suas “cem linguagens”. Fomos entendendo que o
desenho, quando há um investimento e acompanhamento por parte do adulto, transforma-se em
plataformas de grandes narrativas das crianças, em um canal de abertura para dar sentido ao
mundo.
Com base no que foi vivenciado, compreendeu-se que é preciso saber criar bons
contextos para a investigação, sabendo eleger materiais adequados para retroalimentar o
percurso da investigação de tal modo que as diferentes linguagens fossem generativas uma das
outras e também que a intervenção do adulto pudesse servir como ponte para as crianças irem
ampliando e transformando seus desenhos.
No GIA sobre o Brincar Heurístico, participaram professores que atuam com turmas
de 0-3 anos, cerca de 2 ou 3 representantes de cada escola, além das coordenadoras pedagógicas
das instituições. Nesse grupo, levamos a cabo uma investigação sobre as diferentes modalidades
do Brincar Heurístico com crianças pequenas: cesto de tesouros, jogo heurístico e bandejas de
experimentação para problematizar algumas noções pedagógicas gerais.
A reflexão sobre o Brincar Heurístico é inspirada no trabalho desenvolvido por Elinor
Goldschmied e trata-se de uma proposta para qualificar as oportunidades educativas na creche.
Para essa autora, significa fomentar a concentração e a autoatividade das crianças bem
pequenas. Segundo Majem e Òdena (2010), Goldschmied propõe algo muito mais amplo do
que um método de organizar a brincadeira para as crianças, mostrando-nos como aproveitar a
196
atividade espontânea de investigar, ou de “xeretar”, que os meninos e meninas já carregam
como oportunidades para criação de enredos lúdicos.
Tanto o cesto de tesouros, como o jogo heurístico e as bandejas de experimentação
têm como denominador comum a exploração de materiais não estruturados e do que acontece
com eles quando combinados os elementos entre si. Portanto, essas três modalidades compõem
o que poderíamos nomear como Brincadeira Heurística.
A razão de escolher o Brincar Heurístico foi exatamente para problematizar o papel do
professor e o modo como os bebês brincam na creche. As três modalidades do Brincar
Heurístico colocam o adulto em uma situação privilegiada para apoiar os meninos e as meninas
em suas descobertas, de modo a interferir o mínimo possível, mas criando as condições
adequadas a partir da organização do espaço e dos materiais. Durante a brincadeira, o professor
ocupa um papel importante para sustentar a atividade espontânea das crianças, e isso exige uma
postura de disponibilidade, atenção e silêncio, permitindo que as crianças sigam seu ritmo e
possam se concentrar em sua atividade de descoberta dos materiais não estruturados ofertados
a elas.
Ao longo dos encontros, ao mesmo tempo em que refletíamos sobre como organizar a
sessão, os melhores materiais para gerar investigações das crianças, o tempo necessário e o
modo de organizar o espaço, reconhecemos como uma grande dificuldade o papel do adulto.
Tanto no que diz respeito à consigna que deveria ser dada para as crianças antes de
iniciar a sessão (o que fazer e como agir durante a sessão), assim como a análise das atuações
das crianças a partir do material documentado, foram os grandes tópicos desse GIA. Por isso,
as professoras foram organizando dois tipos de filmagens e edição de vídeo. O primeiro foi
referente ao modo de organizar uma sessão de cesto de tesouros, de jogo heurístico, de bandeja
de experimentação, mostrando todas as etapas que envolvem propor isso na creche. Esse tipo
de vídeo foi sendo construído na medida em que íamos assistindo pequenos episódios das
escolas e íamos entendendo algumas ideias-chave para refletir a respeito; além disso, tinham
como finalidade mostrar para outras professoras como ocorriam as sessões. O outro tipo de
filmagem que foi organizado objetivava especificamente compreender de que modo as crianças
exploram os materiais e que interpretações podemos fazer a partir disso. Nesse segundo tipo de
vídeo, episódico, as professoras se detiveram em filmar passagens em que as crianças estavam
realizando uma ação em que era possível perceber o início, o meio e o fim dos seus gestos. A
partir desse segundo vídeo, foram se organizando algumas comunicações com a finalidade de
narrar as aprendizagens das crianças.
197
A mini-história que a professora Fabiana, da EMEI João de Barro, escreveu sobre um
episódio da bebê Eduarda em uma sessão do Cesto de Tesouros revela a riqueza do olhar de
uma professora que passa a compreender a complexidade dos gestos e dos olhares das crianças.
Em vez de narrar com palavras generalizadoras, que minimizam as aprendizagem das crianças,
Fabiana narra imprimindo a sutileza dos gestos da Eduarda explorando os objetos.
Esse GIA iniciou em 2016 e se estendeu até 2018. Decorrente dele, as professoras
participantes e as coordenadoras escreveram um livro chamado “O Brincar Heurístico na
creche: percursos pedagógicos no Observatório da Cultura Infantil – OBECI”, narrando suas
198
experiências com cada uma dessas modalidades a fim de oferecer sua experiência para que
outros professores possam pensar a prática com essa modalidade em suas (FOCHI, 2018)
199
como uma primeira resposta a essas análises, realizamos uma série de encontros para tratar
disso que já anunciávamos como Organizadores da Ação Pedagógica90.
Assim, este GIA do Acompanhamento Projetual foi um movimento a mais nessa
construção de uma certa gramática pedagógica, embora nossa pretensão não seja exatamente
fundar uma gramática pedagógica, mas explicitar o nosso modo de pensar, fazer, refletir a
prática pedagógica. Oliveira-Formosinho (2016d, p. 139) destaca que “a gramática pedagógica
progressivamente apropriada representa a saída da letargia da pedagogia implícita rotineira e
costumeira (‘sempre fiz assim...’) para uma pedagogia explícita que sabe mostrar a ação
imbuída de pensamento e fundada na ética”.
Compartilho três fragmentos da investigação que as professoras Viviane e Julia, da
EMEI João de Barro, construíram ao longo do GIA com as crianças da faixa etária 2 sobre a
construção com materiais não estruturados. Essa temática surge da observação das professoras
sobre o interesse das crianças em construir. O primeiro fragmento, os indícios iniciais:
90
No próximo capítulo, irei tratar especificamente sobre os Organizadores.
200
Depois de muito avançar com as construções em diferentes propostas, as professoras
organizaram uma sessão inspiradas na Landart, com pedras e outros elementos da natureza. Eis
que observam que as pedras viram grande atração das crianças para construir, pois a
irregularidade da forma das pedras causa desequilíbrio e instabilidade; além disso, elas podem
se transformar em muitas coisas, de astronautas a pizzas.
201
As pedras foram prolongando a investigação e, na combinação com outros materiais,
novos rumos foram sendo pensados para dar continuidade nas investigações das crianças.
Reflexo, pedras virtuais que apareciam no espelho: aprender a ir construindo as sessões a partir
da reflexão que foi se construindo a respeito do próprio percurso e conseguir traduzir isso em
narrativas que revelam a força das crianças e das professoras foi, sem dúvida, um dos principais
avanços deste GIA.
202
Resultados da experiência com esse grupo é que elegi as mini-histórias que abrem cada
parte desta tese. Parte significativa dos dados que apresento no capítulo seguinte sobre os
Organizadores da Ação Pedagógica também é oriunda desse trabalho, pois, em certa medida,
ela representa o amadurecimento construído no OBECI ao longo dos seis anos de sua história.
203
A luz “[...] é um dos grandes componentes
da nossa percepção estética relacionados à emoção”
(CEPPI; ZINI, 2013, p. 54). Brincar com a luz e
com sombra é um laboratório estético, no sentido
malaguzziano de que a estética é entrar em
ressonância com o mundo (MALAGUZZI, 2001).
Mais ainda, é aventurar-se em desvendar os
mistérios entre a ciência e a arte, entre o real e o
virtual, algo que fascina as crianças e os adultos.
Como um ateliê, a proposta desses
encontros é sempre vivenciar os materiais
disponibilizados e pensar nas possibilidades que
eles podem se desdobrar na prática com as crianças.
Por isso, criamos esse encontro para que os
professores tivessem uma aprendizagem
experiencial (LEAVERS, 2014), ou seja, com foco acentuado no processo, essa ideia de
aprendizagem experiencial propõe ao adulto, professor de crianças, a experiência que se
imagina propor a elas. Não demorou para as propostas começarem a aparecer nas escolas, como
nestes dois casos narrados por meio das mini-histórias das professoras Samantha e Tatiane da
Escola Mimo de Gente.
LUZ E SOMBRA
204
NÃO É BRINCADEIRA, É TEATRO!
De uma prática inicial apenas com a luz e a sombra, passamos a incorporar outros
instrumentos digitais, e esse GIA eventual acabou se transformando em um núcleo para refletir
a relação entre a digitalidade e as crianças. Essa é uma certa resposta às crianças de hoje,
superando a ideia de pensar sua relação com a linguagem tecnológica com softwares e jogos de
computador ou o uso instrumental de novas tecnologias. A proposta, ao contrário, é buscar
compreender o pensamento digital para ampliar os tipos de investigações que se faz com as
crianças.
Entre 2017 e 2018, realizamos três encontros focalizando essa temática e em alguns
são notórios os desdobramentos nas práticas das professoras.
205
desses encontros, em relação às demais propostas, é o fato de ser mais expositivo em virtude
do número total de participantes, cerca de 100 profissionais.
Os conteúdos destes encontros foram escolhidos a partir da leitura que estávamos
fazendo das necessidades das escolas, especialmente daqueles professores e demais
profissionais que não estavam vinculados diretamente em algum dos processos de formação do
OBECI. Assim, os temas dos Encontros das Escolas Observadoras foram Documentação
Pedagógica, mini-histórias, transições educativas e Organizadores da Ação Pedagógica.
Um dos grandes dilemas que aparece dentro do OBECI é como podemos compartilhar
com outras instituições aquilo que estamos tratando no Observatório. Decorrente disso,
anualmente, organizamos uma jornada aberta a outras instituições que não fazem parte do
OBECI para o compartilhamento dos temas que estamos internamente aprofundando.
Este evento envolve um número expressivo de participantes, a última, em 2018, foi
800, e os temas abordados, nos últimos anos, foram Pedagogia da Comida (2014), Pedagogia
do Cotidiano (2015), Documentação Pedagógica (2016) e Brincar Heurístico e Ciclos de
Simbolização (2018). O formato das jornadas é sempre com a participação de palestrantes
convidados para aprofundar os temas e a apresentação de comunicações das escolas do OBECI
sobre as investigações que levam a cabo no Grupo Gestor ou nos diferentes Grupos de
Investigação-Ação. Nas últimas duas jornadas, também realizamos a “Mostra de Mini-
Histórias: espalhando boas histórias da vida cotidiana” com exemplares selecionadas no interior
de cada escola do OBECI.
Uma vez apresentados nossos processos de formação, discuto, na sequência, a
estratégia que é transversal a todos esses processos e que tem nos ajudado a compreender como
reposicionar crianças e adultos na relação educativa. Além disso, diferentemente da parte II,
em que restituo o pensamento de Loris Malaguzzi sobre a Documentação Pedagógica, aqui
mostro o modo como temos compreendido e desenvolvido o tema da documentação dentro do
OBECI a partir da inspiração desse pedagogo.
206
1.5 A Documentação Pedagógica no Observatório da Cultura Infantil
Conforme já tratado na Parte II desta tese, a obra de Malaguzzi é a que inspira o OBECI
a pensar a Documentação Pedagógica com uma importante estratégia para a construção do
conhecimento praxiológico e para dar testemunho ético, cultural e pedagógico das nossas
crenças a respeito das crianças, dos profissionais e da identidade da Educação Infantil.
Em uma entrevista, Malaguzzi (2001, p. 61) conta que “o trabalho com a
documentação pedagógica declarou o nosso modo de agir com as crianças. Forçou, de maneira
agradável, a refinar os métodos de observação e registro de tal maneira que os processos de
aprendizagem das crianças tornaram-se a base dos diálogos com os pais”. A construção de um
modo de estar com as crianças, de compreender e dar visibilidade aos processos de
aprendizagem e de se relacionar com a comunidade são os aspectos centrais que reconheço na
Documentação Pedagógica.
Além disso, a forte aderência do OBECI em situar-se em um modelo de escola e
comunidade com acento na investigação redefine os limites da teoria e da prática dentro das
escolas e nos impulsiona a fazer uso de estratégias que nos ajudam a construir uma certa
coerência entre nossos marcos conceituais e nossos marcos de ação.
No plano do marco conceitual, partilhamos de uma visão democrática de mundo, da
noção do conhecimento como construção de significados, da abertura à pluralidade de visões e
da perspectiva de que as crianças e os adultos partilham jornadas de aprendizagem a partir de
seus processos de participação na construção de sentidos. Por isso, entendo que a
Documentação Pedagógica não cabe em uma pedagogia qualquer (PINAZZA; FOCHI, 2018),
ela se situa na família das pedagogias participativas (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2016c;
PINAZZA; FOCHI, 2018), pois acolhe o sentido contextual, reflexivo e autoral que tais
pedagogias comungam.
A Documentação Pedagógica é uma forma a mais nesta busca por constituir uma
Pedagogia que se estabelece a partir do debate, da negociação, do trabalho em equipe e da
curiosidade e para a curiosidade. Uma pedagogia que acolhe a dúvida e os inacabamentos como
potencialidades para se recriar nas relações e nas incertezas; por isso, uma Pedagogia que não
se filia às abstrações conceituais e aos reducionismos e explicações simplistas. Uma Pedagogia
que confia na competência das crianças e dos adultos para construir jornadas de aprendizagens
em parceria, de forma participativa e emancipatória.
207
Também aprendemos com Malaguzzi (2001, p. 84) que “a prática se converte em um
interlocutor necessário e decisivo para o êxito da teoria”, o que implica ajudar os professores,
coordenadores pedagógicos e gestores a problematizar e construir um grau de reflexividade
sobre seus contextos.
Assim, do ponto de vista do marco da ação, temos entendido que, dentro do OBECI, a
estratégia da Documentação Pedagógica, simultaneamente, ajuda-nos a (i) qualificar nossa
capacidade de escutar as crianças, (ii) refletir a organização das propostas e da própria vida
cotidiana, harmonizando as demandas e necessidades dos meninos e das meninas com as da
instituição e dos adultos, (iii) criar abertura para transformar os contextos em que estão
inseridos, (iv) vivenciar percursos de formação contextualizado e com alto grau de
reflexividade para os profissionais, (v) construir um conhecimento situado e fecundado em
teorias e (vi) narrar as aprendizagens das crianças, dos adultos e da identidade da escola.
Dessa forma, no Observatório, a Documentação Pedagógica é entendida como uma
estratégia de formação, de investigação e de sustentação de um dado conhecimento
praxiológico. Como Bonás (2011, p. 54) destaca, “a documentação interpreta, escreve teoria
sobre uma prática que, ao mesmo tempo, se legitima”. Conecta, portanto, a contemporaneidade
que há entre o mundo da prática e o mundo da construção de significados, sem se abster da forte
exigência interpretativa que é construída a partir de marcos referenciais. Também Bonás (2011,
p. 54) reforça que a Documentação Pedagógica “[...] não deixa de estar intimamente ligada à
ética, não deixa de ser uma escolha, um posicionamento, uma tomada de decisão. Não deixa de
ser também uma formulação de como nós somos como professores e professoras, que escola
somos e para onde direcionamos nosso olhar”.
É por isso que para nós, no interior do OBECI, além de ser uma possibilidade de
declarar nossas concepções, a Documentação Pedagógica é uma estratégia central para nos
ajudar a investigar, compreender e explicitar internamente a Pedagogia como um sistema
complexo de crenças, valores, teoria e prática. E, exatamente pela sua explicitação, ascendemos
a outros níveis de compreensão e de realização de uma prática pedagógica fundamentada e
situada. Daí que a Documentação Pedagógica é uma estratégia importante para a construção e
sustentação do conhecimento praxiológico e para o testemunho de nossa imagem de criança, de
adulto e de escola.
Desde o surgimento do OBECI91, estamos permanentemente atentos às necessidades
formativas que podem responder à complexidade da ação pedagógica; por sua vez, o que
91
Como já mencionado em detalhes no item 1.4 sobre os Processos de formação do OBECI.
208
conecta os diferentes processos formativos é a estratégia da documentação pedagógica. Assim,
desenhamos o funcionamento do Grupo Gestor com os coordenadores pedagógicos e diretores
para investigar a formação e gestão do trabalho pedagógico das instituições, também com os
Grupos de Investigação-Ação em que convidamos professores e coordenadores pedagógicos
para olharem para seu trabalho com as crianças com vista a transformá-lo, e, não diferente, nas
Jornadas e nos Encontros das Escolas Observadoras, compartilhamos os percursos de
aprendizagens que estamos construindo dentro das escolas e do Observatório.
Assim, ancorados pelos conceitos já explicitados anteriormente e fortemente
inspirados pelo percurso de Loris Malaguzzi, dentro do OBECI, desenhamos um caminho que
tem nos ajudado a problematizar a Documentação Pedagógica como estratégia para construir o
conhecimento praxiológico e para tornar visíveis os percursos de aprendizagem. Como nos
alerta Oliveira-Formosinho (2016c, p. 114, grifo do autor), “a documentação, enquanto meio
para revelar a aprendizagem das crianças e dos profissionais, necessita de clarificação teórica e
conceitual, bem como de clarificação ao nível da techne, isto é, de como fazê-la”.
Portanto, a proposta desta seção é compartilhar o modo como temos compreendido e
realizado a Documentação Pedagógica tanto em nível da construção dos processos formativos
e investigativos (que chamamos de processo documental), estruturando uma certa “didática” do
trabalho do professor diretamente com as crianças, como no nível de comunicação das
aprendizagens, tornando visível nossa imagem de criança, de adulto e de escola.
Frequentemente se vê a Documentação Pedagógica sendo tratada apenas como um
documento em si, ou um produto concreto (PINAZZA; FOCHI, 2018). No entanto, a
Documentação Pedagógica não é apenas produto, mas uma estratégia de investigação que
resulta em um produto com ênfase no processo (FOCHI, 2013). Cientes desse desafio, no
OBECI, nós criamos um ciclo de investigação que pressupõe a interatividade entre dois níveis
focais. Um deles auxilia na elaboração de processos reflexivos e no planejamento da prática
pedagógica aberto ao mundo das crianças. O outro nível não é uma etapa posterior ou anterior,
mas uma outra camada que simultaneamente vai gerando informes que dão sentido e restituem
a prática pedagógica e as aprendizagens das crianças e dos adultos. No esquema a seguir,
presente na Figura 02, esboço a síntese do modo como tenho compreendido a Documentação
Pedagógica e da maneira como tenho desenvolvido essa compreensão junto às escolas
participantes do OBECI.
209
Figura 02 – Níveis da Documentação Pedagógica
Como já tratei em outros textos92, acredito que há dois níveis focais do trabalho na
Documentação Pedagógica: o primeiro, interno, em que são gerados os processos documentais
da construção de uma prática observada, registrada e interpretada para a sua retroalimentação e
para a identificação das zonas de construção de conhecimento das crianças, dos profissionais e
da instituição. O segundo nível, externo, trata da comunicação das crenças e dos valores que a
instituição construiu, da comunicação dos percursos de aprendizagem das crianças e do modo
como elas interpretam e elaboram sentidos para si mesmas, para os outros e para o mundo, ou
seja, é um nível de compartilhamento e diálogo democrático com a comunidade.
Quando nos valemos da Documentação Pedagógica como estratégia para investigar
algo, propositadamente estamos optando por observar e registrar os acontecimentos em nosso
contexto a fim de refletir e tornar visíveis as descobertas do cotidiano das crianças e dos adultos
em suas jornadas de aprendizagens.
As reflexões desses dois níveis focais são sustentadas por aquilo que tenho chamado
de Pilares da Documentação Pedagógica: observar, registrar e interpretar. Esses pilares dão a
tônica metodológica que subjaz a Documentação Pedagógica como uma estratégia para a
92
Em um texto publicado em um período acadêmico (FOCHI, 2016b), havia esboçado uma primeira formulação
a respeito desses níveis focais da Documentação Pedagógica. Desenvolvi e ampliei essa formulação no texto de
qualificação desta tese (FOCHI, 2017) e, mais recentemente, em uma pesquisa que conduzi para o Ministério da
Educação e Unesco (FOCHI, 2019). Por isso, embora indique a referência da primeira formulação, é importante
destacar que tenho continuamente refletido sobre esse tema e realizado pequenas alterações no esquema que
apresento neste texto, muito embora a ideia central permaneça a mesma já indicada desde a primeira publicação.
210
reflexão e a transformação dos contextos ao mesmo tempo que comunica as crenças e valores
de uma dada instituição ou grupo de profissionais. Além disso, a ideia de identificá-los por meio
de verbos é exatamente para acentuar sua qualidade de ação, de movimento e de
interconectividade que há entre esses três pilares que são entendidos como partes inseparáveis
de um mesmo processo.
Observar é compreendido como uma “tentativa de enxergar e entender o que está
acontecendo no trabalho pedagógico e o que a criança é capaz de fazer sem qualquer estrutura
predeterminada de expectativas e normas” (DAHLBERG; MOSS; PENCE, 2003, p. 192). Isso
significa saber colocar em suspensão nossas ideias pré-fixadas a respeito das crianças para
querer conhecê-las, compreender seus processos de aprendizagem e criar a temporalidade
necessária para refletir sobre a própria relação com os meninos e meninas.
Registrar é uma forma de garantir modos concretos de nos enxergar e enxergar as
crianças na vida cotidiana das escolas. Como afirma Malaguzzi (1988), é um modo de tirar as
crianças do anonimato para iluminar a complexidade de suas ações. Os registros servem
simultaneamente para ir construindo os observáveis que retroalimentam o trabalho pedagógico
e servem como material para a elaboração das comunicações.
Interpretar tem um caráter ativo, ou seja, de interpretação para projetar algo. O termo
em italiano é progettazzione, que não tem tradução para o português. No OBECI, tenho tratado
o termo com o sentido de interpretar para projetar, como um meio para refletir sobre o trabalho
pedagógico de maneira rigorosa, metódica e democrática, perspectivando a proposição de
organizar, planejar e realizar a transformação do cotidiano pedagógico.
Além disso, os interesses dos dois níveis focais da Documentação Pedagógica são bem
ampliados e envolvem os diferentes âmbitos que compõem uma instituição educativa. Tanto no
primeiro nível, que se centra na “didática” do cotidiano, ou seja, nos modos de pensar, fazer e
narrar a cotidianidade pedagógica, como no segundo nível, em que se comunica a respeito dos
percursos de aprendizagem, o interesse atravessa questões relativas ao âmbito do professor, das
crianças, do projeto educativo da escola e da relação entre eles.
Nesse sentido, destaco que a documentação pedagógica tem como interesse investigar
e tornar visíveis:
a) os distintos aspectos da vida cotidiana, como o momento da alimentação,
os deslocamentos entre os diferentes espaços, o momento da troca;
211
b) as diversas camadas das interações entre as crianças ou das crianças com
os adultos, da constituição das amizades entre elas, do como se tornam
grupo no cotidiano das instituições e de como interagem com o seu entorno;
c) das brincadeiras como valor para a promoção da cultura infantil;
d) dos projetos de investigação levados a cabo com as crianças em pequenos
ou grandes grupos e do modo como aprendem e constroem sus teorias;
e) do projeto educativo da instituição como reflexão e tradução dos valores
e princípios da escola.
Por esse espectro ampliado de interesses, é que a Documentação Pedagógica acaba
incidindo na constituição de uma prática altamente reflexiva, resultando em uma postura de
investigação e de transformação do contexto. Quando declaradas as concepções que emergem
desse processo, interrompe-se o círculo vicioso de fazer abstrações genéricas nos documentos
que a escola comunica e de criar abismos entre o dito e o feito. Testemunhar a prática
pedagógica e as aprendizagens das crianças envolve “uma certa dose coragem, a coragem de
tornar pública essa decisão” (BONÁS, 2011, p. 54), ou seja, como nos relacionamos e
nomeamos a infância, a docência e a Educação Infantil.
Tanto no primeiro como no segundo nível, a incidência está na promoção da cultura
da infância e a promoção de uma cultura pedagógica. Nesse sentido, reafirma-se a crença de
que a escola é espaço privilegiado para a garantia dos direitos das crianças e reconhece na
pedagogia a possibilidade de inovar e estabelecer-se como ciência que efetivamente contribua
com os modos de fazer, pensar e comunicar a complexidade do que se faz em uma instituição
de Educação Infantil.
Por isso, na interatividade entre os dois níveis da Documentação Pedagógica, acredito
que sejam mobilizadas três dimensões importantes:
a) o planejamento do contexto educativo, em que se organizam os tempos, os espaços,
as materialidades e os diferentes arranjos de grupos com maior consciência e
assertividade em termos de resposta das necessidades das crianças, graças ao nível de
reflexividade dos adultos;
b) a construção e concretização de um projeto educativo, que não se limita a um
documento escrito, mas que se mantém vivo, comunicado e constantemente revisitado
pelos diferentes atores da escola, traduzido no cotidiano da instituição;
c) um modo contextualizado e permanente de formação dos professores.
212
O exercício de construir a ação pedagógica implicada na observação, no registro e na
reflexividade do cotidiano educativo mobiliza o professor a aprender tomar consciência sobre
o seu próprio fazer. Assim, comunicar, posteriormente, também o responsabiliza e lhe confere
a devida importância e valor no processo educativo de uma criança.
O desdobramento desses níveis focais constituiu a construção de um ciclo de
investigação. Tal ciclo é resultado dos seis anos que temos experienciado no OBECI a respeito
do tema em busca de compreender algumas pistas para orientar o trabalho dos professores,
coordenadores pedagógicos e gestores. Essas pistas, em suas ambiguidades e contradições,
tentam expressar a nossa tônica na investigação e a crença de que o modelo pedagógico ao qual
nos filiamos é aquele relacional e participativo, ou seja, que nem abandona a criança a sua
própria sorte e nem é demasiado intervencionista. Também expressa o modo como temos
tentado acolher a dimensão da vida cotidiana como uma das forças para o bem-estar e para a
construção de percursos de aprendizagens das crianças.
213
professores realizam com as crianças e com a equipe gestora, que realiza os processos
formativos e a consolidação do projeto educativo.
Na sequência, para apresentar detalhadamente os diferentes momentos do ciclo de
investigação que temos desenvolvido no OBECI, tratarei de cada tópico estabelecendo
articulação com excertos das investigações que temos desenvolvido no Observatório.
214
Recolher, organizar e analisar os observáveis, reelaborando os momentos
significativos em um documento contínuo e em processo para refletir o passado e o presente e
projetar o futuro, é o que temos chamado de processo documental. O processo documental93 é
um documento construído a partir da coleção de observáveis e que serve de bússolas para
auxiliar o professor a se movimentar dentro das investigações que realiza com seu grupo de
crianças ou mesmo de investigações que um grupo de professores ou a própria instituição está
colocando em curso.
O processo documental é a construção de uma certa organização dos observáveis
gerados no cotidiano pedagógico que, ao serem revisitados, servem para o professor notar,
anotar e refletir sobre o caminho que está trilhando. Além disso, conforme o processo
documental vai sendo elaborado, além do professor poder conhecer melhor como as crianças
aprendem, o processo documental ajuda a decidir como dar continuidade às propostas e aos
processos de investigação das crianças, pois esses documentos se constituem a partir de
observações e registros que vão sendo contrastados, refletidos e interpretados para projetar entre
pares (professor e professor; professor e coordenador pedagógico).
Entendo que a construção de uma práxis refletida e densamente documentada é peça-
chave para a construção de contextos de qualidade, pois construir qualidade significa “[...]
deixar vestígios da memória, produzir continuidade, refletir, projetar, comunicar, transferir
conhecimento” (TOMASELLI, ZOCCHI, 2009, p. 27).
Há uma ruptura importante no que diz respeito à noção da temporalidade da
aprendizagem dos meninos e meninas, pois o processo documental acaba mostrando que a
aprendizagem das crianças não é tão desorganizada e desconexa como se pensa. Uma vez que
a construção desse documento é realizada continuamente, pode-se perceber as transformações
e conexões das teorias das crianças, ou mesmo os modos como exploram e experimentam certas
materialidades e conceitos. Também é possível compreender o valor contextual e social da
aprendizagem, pois torna visíveis as relações que as crianças vão estabelecendo entre si para
negociar significados.
Assim, o processo documental representa o passado, o presente e o futuro. Ou seja, é
um elo de recuperação e memória da história da criança, da aprendizagem da criança e do grupo,
das decisões tomadas pelo professor ou mesmo da história que a própria instituição trilhou.
Também é motor para a tomada de decisão do aqui e agora, auxiliando o adulto a eleger qual o
93
No OBECI, geralmente temos utilizado o software Microsoft Power Point® para construir o Processo
Documental. Na sequência deste texto, irei utilizar um processo documental construído no interior de um GIA por
duas professoras a respeito de uma investigação com crianças de 2 anos.
215
caminho que pretende percorrer dentro de uma investigação – quer seja no âmbito das crianças,
quer seja da escola e dos professores. Ao mesmo tempo, é a construção de um sentido de
continuidade para o futuro, pois cria uma conexão entre as situações de aprendizagem que se
transformam em oportunidades de aprofundamento nas investigações das crianças.
Nos processos documentais que temos estruturado dentro do OBECI, vamos
organizando episódios que mostrem os interesses das crianças e, a partir disso, vamos
identificando perguntas generativas e zonas de investigação para o professor ou a equipe
pedagógica irem construindo o caminho que pretende trilhar junto das crianças. Ao longo desse
material, incorporam-se os instrumentos de planejamento e as reflexões sazonais que os
professores realizam. Sempre que identificamos um rumo para a investigação, para ampliar e
complexificar os diferentes conteúdos que podem estar relacionados à zona circunscrita para
investigar, os professores criam uma constelação de possibilidades. Essas constelações servem
apenas aos adultos e não têm outro propósito senão o de criar uma abertura no horizonte de
possibilidades. Assim, o professor ensaia pequenas narrativas visuais e textuais em formato de
episódios elaboradas a partir do conjunto dos observáveis do cotidiano educativo.
O que vai sendo produzido ao longo do primeiro nível se configura como um
planejamento refletido, que nasce da escuta ativa do adulto em relação às crianças; portanto,
que se traduz no modo como se organiza o cotidiano pedagógico e que é capaz de narrar seus
percursos de aprendizagem. Assim, os processos documentais vão construindo um rico
patrimônio do conhecimento praxiológico elaborado pelas professoras no exercício reflexivo
sobre a práxis pedagógica. Esse material já se configura como um grande testemunho ético,
cultural e pedagógico sobre o trabalho desenvolvido, assim como é a partir dele que se
retroalimenta a continuidade da prática e se decide sobre as comunicações que serão feitas
durante ou ao final da investigação.
Finalmente, pode-se dizer que esse primeiro nível é aquele que se ocupa com a
transformação. O cotidiano de cada instituição precisa ser visto como algo que dê o que pensar.
Por sua vez, quando observado, registrado e refletido, o cotidiano autoriza e encaminha as
tomadas de decisões sobre a criação de um contexto educativo que acolhe o universo das
crianças.
Dentro desse primeiro nível, há duas camadas: produzir observáveis para construir o
caminho da investigação e projetar e reprojetar a ação educativa. Passo a discutir cada uma
delas.
216
1.5.1.1 Produzir observáveis para construir o caminho da investigação
217
mas sim o resultado de escolhas que, enquanto tal, pressupõe uma assunção de responsabilidade
no que diz respeito aos significados da ação educativa”. Por isso, selecionar e contrastar os
observáveis que irão compor os processos documentais é um importante exercício para
construir uma “experiência conscientizadora” (GANDINI, GOLDHABER, 2002) e para poder
chegar à zona de investigação e às perguntas generativas da investigação.
Vejamos um trecho inicial do processo documental construído pelas professoras Karin
e Sissa, da EMEI Joaninha, no Grupo de Investigação-Ação do Acompanhamento Projetual
(2018), que mostra fragmentos do percurso de investigação das crianças de faixa etária 2 anos
em torno do tema da comida.
218
A observação das professoras dos interesses das crianças em brincar de comidinha
mobilizou-as a criar contextos de aprendizagens que gerassem mais possibilidades a essa
brincadeira simbólica. Tudo se transformava em enredos para cozinhar, fazer bolos, fazer
churrasco. Ao compartilharem esses primeiros observáveis no GIA do Acompanhamento
Projetual no OBECI, apresentei a elas o conceito de Loose Parts (teoria das partes soltas), do
arquiteto britânico Simon Nicholson (1972)94, propondo dar continuidade à investigação sobre
a temática da comida em diálogo com essa teoria da arquitetura.
Definido o rumo da investigação, as professoras construíram uma pequena narrativa
que explicita o Contexto Observado e Refletido (fato e reflexão) para, então, identificar a Zona
de Investigação (âmbito conceitual) que está articulada com os campos de experiência,
patrimônio cultural e pedagógico e a formulação das Perguntas Generativas (âmbito operativo)
que guiarão o trabalho do adulto. Esses três campos constituem um instrumento de intenção
investigativa, que foi
elaborado no interior do
OBECI para criar a articulação
entre o planejamento das
sessões e a estratégia da
Documentação Pedagógica.
94
A respeito do conceito de Loose parts, ou teoria das partes soltas, desenvolvo nos Organizadores da Ação
Pedagógica no item dos Materiais.
219
Também exercitamos,
no GIA, a construção de uma
constelação de possibilidades
com o intuito de ampliar a
compreensão sobre o objeto
estudado e tornar visíveis as
diversas possibilidades que se
podem explorar a partir de um
mesmo aspecto. Essa constelação
serve essencialmente aos adultos
e não tem finalidade de ser uma lista de assuntos a serem investigados com as crianças, é apenas
uma constelação de possibilidades para o professor prefigurar possibilidades de se movimentar
com as crianças. A ideia de fazer essas constelações surgiu da observação de que muitas vezes
as professoras acabavam ficando na obviedade do tema. Costumo chamar essa prática de
investigação “globo repórter: como nascem, como se reproduzem, onde vivem...”. Para
descontruir essa tendência, construímos as constelações para ampliar e diversificar o máximo
possível os olhares sobre o que se pretende investigar.
A partir daí, as professoras decidem dar continuidade ao ato de investigar esse tema e
vão estruturando sessões e as retroalimentando a partir da continuidade das próprias sessões.
Aqui entramos na segunda camada do primeiro nível.
220
tempo que criam uma certa
atmosfera cultural para fomentar a
elaboração de hipóteses, negociação
de ideias e construção de sentidos
entre as crianças.
A ideia de sessão que temos
desenvolvido dentro do OBECI se
difere da perspectiva de atividades.
Trata-se de um conjunto aberto de
possibilidades proposto pelo adulto a
partir da organização de contextos de aprendizagem, o que significa pensar com clareza a
organização do espaço, a seleção de materiais, a organização de pequenos grupos e a garantia
de tempo para as crianças viverem suas experiências (FOCHI, 2015b). As sessões são sempre
um recorte espaço-temporal que um pequeno grupo de crianças participa para levar a cabo as
suas investigações. Ao longo da jornada, não necessariamente todas as crianças participam da
mesma sessão, pois, em um período de turno integral, por exemplo, o que temos conseguido
realizar é no máximo uma sessão por turno95.
Para planejar as sessões, também elaboramos um instrumento de planejamento,
conforme pode ser visto no excerto do processo documental a seguir. Esse instrumento é
desdobramento do instrumento anterior (instrumento de intenção investigativa) e convida o
professor a tomar consciência sobre os Organizadores da Ação Pedagógica que orientam a
estruturação das sessões:
organização do grupo e tempo;
organização do espaço e dos
materiais; o planejamento do
que será observado e como será
observada a sessão. É válido
ressaltar que, nesse terceiro
aspecto, o guia de orientação
são as perguntas generativas do
instrumento anterior.
95
A esse respeito, irei tratar com mais detalhes no item Organizadores da Ação Pedagógica. Lá diferencio o
planejamento de sessão e o planejamento de contexto.
221
Na sequência do processo documental destacado, além de exemplificar uma sessão
com materiais não estruturados, também mostra o momento em que as professoras se valem de
imagens de outros momentos das crianças brincando de fazer comida para restituir a elas o
percurso de investigação. Como Davoli (2011, p. 19) destaca, “devemos permitir aos meninos
e meninas, e a nós mesmos, tempo para refletir sobre o que se faz e como se faz. São os
processos de metalinguagem e metaconhecimento que nos permitem construir conhecimento”.
Restituir, assim, ajuda às crianças a reconhecerem como aprendem, não apenas o que aprendem.
Um outro aspecto importante de ser sublinhado nesta segunda camada do primeiro
nível diz respeito ao projetar e reprojetar como possibilidades de construção da continuidade.
As sessões ou um conjunto de sessões se transformam em situações de aprendizagem que
podem se converter em importantes momentos para as crianças construírem sentido para o
conhecimento gerado. Quando um professor elabora suas estratégias a partir da escuta ativa dos
percursos das crianças, consegue construir jornadas de aprendizagem que permitem aos
meninos e meninas irem elaborando, aprofundando e ganhando intimidade com os saberes e os
objetos de investigação. A desconexão das propostas oferecidas às crianças são reveladoras do
como não compreendemos sua competência para atribuir significado a sua própria
aprendizagem. Malaguzzi (2001) falava da capacidade das crianças em criarem seus próprios
222
mapas cognitivos, emocionais e sociais, o que significa considerar que “as experiências de
aprendizagem das crianças envolvem tempo. [...] Como a realidade da criança é ainda bastante
fragmentada, marcada pelo ‘aqui e agora’, a possibilidade de continuidade garante o
crescimento e qualidade das experiências dos meninos e meninas” (FOCHI, 2015a, p. 225-226).
A partir dos processos documentais, decide-se o que, para quem, com quem, como,
quando e onde97 serão compartilhadas as comunicações que tornam visíveis os processos de
aprendizagens das crianças, a intencionalidade do adulto e o projeto educativo da instituição.
225
Nesse folheto, por exemplo, no tempo em que investigávamos a partir dos ciclos de
simbolização de Loris Malaguzzi (2001) o modo como as crianças compreendiam sobre o
funcionamento do olho e do olhar, percebemos que os meninos e meninas construíam algumas
teorias a respeito do tema. Logo, decidimos criar esse folheto para tornar visível, desde o ponto
de vista gráfico, como das vozes das crianças, a pluralidade e complexidade de suas ideias. É
importante destacar que, apesar da escolha desta comunicação se tratar das “teorias das
crianças”, outras comunicações a respeito dessa mesma investigação poderiam ser feitas com
outras chaves de leitura.
Ademais, vale destacar que, em algumas situações, o que é comunicado está
diretamente vinculado com as perguntas generativas que foram elaboradas inicialmente, em
outros casos, o que é comunicado é emergente do processo, ou seja, nasce da interpretação e
reflexão do professor a respeito de um tópico que não havia sido vislumbrado inicialmente. Ou
seja, existe uma ampla temporalidade das comunicações, pois estas não são resultado de um
processo de compilação de registros, mas da intencionalidade de contar algo que está em
processo, in itinere.
A decisão de compartilhar não é apenas para evidenciar nosso respeito e amorosidade
em relação às crianças (BONÁS, 2011), compartilhamos para nutrir nas famílias novas formas
de reconhecerem seus filhos e para ganhar notoriedade, no trabalho do professor, tal como a
complexidade da aprendizagem das crianças. Também comunicamos para olhares externos à
escola, e isso acaba tornando o documento compartilhado um lugar de encontro para crescer
juntos, além de constituir um rico patrimônio pedagógico. Deixar memória pedagógica sobre o
que é feito nas escolas pode ser uma afirmação a respeito de um momento particular da vida
das crianças em espaços institucionais. E construir a memória das crianças é também construir
a memória da instituição. Tendo em vista que a Educação Infantil é uma instituição ainda
recente em nossa realidade, o valor da comunicação como memória é também uma defesa e
afirmação do valor político que é para as crianças esta instituição.
A esse respeito, Dahlberg, Moss e Pense (2005) destacam que a estratégia da
Documentação Pedagógica pode se converter em uma verdadeira ética do encontro, pois a
abertura para as experiências das crianças é a tradução da coragem para a construção ética da
relação com o outro e o mundo. No modo como comunicamos as aprendizagens dos meninos e
meninas, criamos pontos de encontro que conectam o mundo dos adultos e o mundo das
crianças. Como Malaguzzi (2001) sempre afirmou, tornando visíveis as experiências
educativas, podemos criar e afirmar uma identidade a respeito da instituição de Educação
226
Infantil, da docência com crianças pequenas e de uma nova imagem de criança, rica,
competente, feita de “cem linguagens”. Aliado a isso, temos investido em construir um outro
tipo de competência, que poderíamos chamar da elaboração de uma certa proficiência técnica
para “[...] desenvolver rotas de comunicação” (FILIPPINI, 1999; FILIPPINI et al, 2016).
Como nosso trabalho se assenta na Documentação Pedagógica, foi preciso aprender a
comunicar. No ano de 2015, sentimos a necessidade de compreender melhor a forma, além do
conteúdo da comunicação. Comunicar envolve uma linguagem específica, que, para além do
que comunicamos, é preciso compreender como comunicar de forma assertiva as jornadas de
aprendizagem das crianças e dos adultos. Um dos campos que tem nos ajudado a compreender
melhor a comunicação é o design da informação.
Campos (2016, p. 49, grifos do autor), retomando os conceitos de Niemeyer (2010),
afirma que “o design participa de um processo de comunicação amplo, que parte de um gerador,
é mediado por um produto98 portador de uma mensagem direcionada a um interpretador”. Ao
tratar o design da informação dessa forma, Campos (2016) propõe uma mudança no
entendimento da comunicação como uma simples representação ou apresentação de dados, mas
“[...] como articulação dos processos compreendidos na comunicação entre os polos de geração
e interpretação” (CAMPOS, 2016, p. 49). O profissional que está construindo a comunicação
dos processos na Documentação Pedagógica (o produto em si) pode atuar de maneira mais
próxima tanto do gerador quanto do interpretador das mensagens, “mas sempre está envolvido
com os processos de semiose, ou seja, de construção dos significados inerentes ao produto para
a geração de sentidos, através da configuração de mensagens a serem interpretadas” (CAMPOS,
2016, p. 49).
No interior do campo do design da informação, há alguns princípios que têm nos
auxiliado na reflexão sobre como elaborar, do ponto de vista técnico, cognitivo e estético, as
comunicações das nossas investigações. Campos (2016) e Fronza, Blum e Lima (2014),
indicando os estudos de Petterson (2013), destacam três princípios estruturantes para auxiliar o
design da informação quando se pretende sistematizar uma comunicação de maneira
satisfatória:
a) Princípios funcionais - Elementos que precisam ser levados em conta durante
a fase inicial da preparação da comunicação.
98
A autora observa que produto é empregado “[...] na acepção abrangente de resultado de um projeto de design”
(CAMPOS, 2016, p. 49).
227
o Definição do problema - etapa em que se analisa gerador e
interpretador, mensagem pretendida, meio e forma adequada para a
representação;
o Criação da estrutura - construção de uma lógica hierárquica das
informações a partir de um design gráfico. A estrutura de uma
comunicação está diretamente ligada à ênfase que se estabelece entre
as informações;
o Definição da clareza visual - legibilidade do material, ou seja, relação
entre cor do plano de fundo e a fonte (tipografia), tipo de fonte, tamanho
da fonte;
o Simplicidade - simplicidade de um material facilita a interpretação da
mensagem. Quanto menos esforço a audiência precisa fazer para
compreender a lógica que estrutura as informações, melhor acontece a
comunicação.
o Saber dar ênfase - para melhorar a atenção da audiência sobre o que se
pretende comunicar, pode-se elencar elementos para oferecer ênfase
(texto maior ou em destaque, imagem maior ou em destaque);
o Construção da unidade -coerência e harmonia entre as partes que
formam o todo da comunicação.
b) Princípios cognitivos – elementos que estruturam a compreensão e o
significado na mensagem transmitida.
o Mediar a atenção – o material informativo precisa manter a atenção da
audiência em si próprio. Por isso, é importante evitar excessos de
informação e é preciso definir com clareza a mensagem que se pretende
comunicar;
o Mediar a percepção – quando se constrói um material informativo,
despertam-se emoções e sentimentos no interpretador. É preciso ter
clara a experiência que se quer transmitir.
o Mediar o processamento mental – a informação precisa evitar
ambiguidades sem ser fechada em uma única explicação. É possível
construir uma mensagem clara com abertura para o interpretador criar
suas próprias narrativas.
228
o Evocar a memória – o interpretador sempre parte de um elemento
conhecido para dar significado ao que está vendo e, ao mesmo tempo,
o que está vendo passa a compor o seu repertório pessoal.
c) Princípios estéticos – o que é referente à estética geral do material informativo
(comunicação).
o Criação de harmonia – relativo à harmonia entre todos os elementos
gráficos do material.
o Proporção estética – no sentido de compreender aquilo que está dentro
do repertório estético do interpretador do material.
A partir desses princípios, é que podemos tentar harmonizar o complexo jogo existente
entre linguagem verbal e linguagem não verbal, e, conforme Campos (2016), pela linguagem
sincrética, que é uma das mais utilizadas no design, já que este se utiliza de códigos distintos
para compor o material informativo. Segundo a autora, “os diferentes modos das linguagens
gráficas combinam-se para gerar significados, que são interpretados pelos usuários, dando
origem aos sentidos das mensagens no processo de comunicação do produto” (CAMPOS, 2016,
p. 52).
Construir uma comunicação na Documentação Pedagógica “significa deixar uma
marca estética e narrativa de forma visual, audiovisual e escrita de um processo educativo que
estamos observando e refletindo” (HOYUELOS, 2012, p. 4). Portanto, compreender a
linguagem comunicativa envolve percorrer temas que dificilmente temos tratado na formação
pedagógica. Narrar visual ou textualmente e saber harmonizar tais linguagens, conseguindo
informar algo ao mesmo tempo que não se reduza isso que se quer informar a uma descrição
simplificada do processo educativo, é um grande exercício que temos tentado empreender
dentro do OBECI.
Sabemos que, no nosso caso, forma é conteúdo e vice e versa. Ou seja, o modo como
comunicamos os percursos das crianças também constrói uma dada estética da infância e da
Educação Infantil que, inclusive, pode subverter a lógica estereotipada de atividades, do
universo colorido e já conhecido dos personagens da televisão que com frequência temos visto
conectados a tudo que se refere às crianças99. Hoyuelos (2007) e Oliveira-Formosinho (2016b)
também já discutiram o que se esconde por trás de uma “folhinha de atividade”: há uma
99
Carlos Laredo (2003) tem chamado isso de “curral da infância”, referindo-se aos padrões das produções na arte
e na cultura que têm se desenvolvido para crianças.
229
pedagogia implícita carregada de concepções sobre aprendizagem, sobre a docência e sobre a
própria criança.
Ainda sobre a forma e o conteúdo narrativo (textual e imagético) em comunicações na
Documentação Pedagógica, Hoyuelos (2015) elenca cinco princípios que podemos levar em
conta a partir da obra de Ítalo Calvino no livro “As cidades invisíveis” (1993):
Esses princípios foram tema de grandes debates nos encontros do OBECI, retomados
em diversos momentos, tendo em vista sua complexidade. Construir uma forma de comunicar
é também um processo formativo intenso e extenso. Envolve, inclusive, as noções estéticas que
cada professor, coordenador pedagógico e gestor têm e como podem romper com esses padrões
e construir novos. A aposta que tenho feito dentro do Observatório é a de ampliar a “coleção de
exemplos100” dos profissionais e, junto a isso, sempre que discutimos sobre o conteúdo do que
está sendo comunicado, também abordo as questões da forma, inclusive nos seus aspectos
técnicos.
Concordo com Hoyuelos (2012, p. 4) ao afirmar que quando comunicamos algo
também construímos sua existência: “a documentação não se limita de fazer visível as coisas
que já existe, mas sim, faz existir as coisas sobretudo porque torna visível e, portanto, possível.
Essa é uma forma de entender a educação das crianças como incerteza, enigma e mistério”.
Em se tratando dos diversos formatos que se pode comunicar, no OBECI, temos
utilizado a mini-história com a finalidade de tornar visíveis situações episódicas do cotidiano.
100
A expressão “coleções de exemplos” é tratada pelo artista e crítico contemporâneo Thierry De Duve, e eu a
escutei pela primeira vez em uma banca de doutorado pelo professor Marcos Vilella Pereira quando este se referiu
à diferença entre repertório e coleção. De Duve (2009, p. 51) dirá que "a arte não é um conceito, é uma coleção de
exemplos” e difere, com isso, da ideia de repertório, pois, em uma coleção, não temos fim, e sempre será diferente
para cada um. Essa ideia de De Duve (2009) coaduna com a de Eco (2010) quando trata do quanto o homem gosta
de listar e de como esse modo primitivo de listar, na medida em que as pessoas se aproximaram da compreensão
da dimensão do infinito, tornou-se a forma como elas se mobilizam para dar sentido a sua própria vida. Isso
significa que essas listas também se modificaram, devido à busca da ideia da permanência da magia, ou daquilo
que escapa das listas sem limites, mantendo-se, assim, um espaço para o sem-fim. ECO (2009, p.) diz: “A lista é
a origem da cultura [...] o que a cultura quer? Tornar a infinitude compreensível”.
230
Como já mencionei anteriormente, a mini-história é um tema que me interessou durante a
dissertação e que, desde então, tenho me aprofundado a respeito. A ideia da mini-história está
ligada à revisitação dos observáveis produzidos pelos professores no cotidiano pedagógico. A
partir de uma breve narrativa imagética e textual, o adulto interpreta esses observáveis de modo
a tornar visíveis as rapsódias da vida cotidiana. Essas rapsódias são fragmentos poéticos,
portanto sempre episódicos, que, quando escolhidos para serem interpretados e compartilhados,
ganham valor educativo, tornam-se especiais pelo olhar do adulto que acolhe, interpreta e dá
valor para a construção de uma memória pedagógica.
Esse exercício de olhar para um material que já existe, buscando extrair sentidos, é
uma experiência ímpar de autoformação para o professor, pois implica fazer uma escolha dentre
tantas. Uma escolha de que, de alguma forma, o próprio professor faz parte. E fazer isso implica
deixar algo de fora, não escolher. Como Malvasi e Zoccatelli (2013, p. 32) observam, “não se
trata de pensar em dar novo significado a tudo o que acontece no cotidiano, mas de o evidenciar,
procurando chegar ao âmago das pequenas ou grandes histórias que, em cada dia, ganham vida
nas creches e nos jardins de infância, colocando no centro o sentido e verdadeiro valor daquela
experiência”.
Ainda a respeito da mini-história, as escolas têm feito o exercício de construir uma
mini-história por semana para que os pais possam ir acompanhando o valor dessas rapsódias da
vida cotidiana. A ideia de partilhar uma única mini-história por semana é também um convite
para os pais aprenderem a olhar as outras crianças, compreendendo que elas estão em um
contexto social. O compartilhamento dessa mini-história semanal é via rede social da escola e
murais na instituição. No final do ano, o conjunto dessas mini-histórias são compiladas e
contam a história pedagógica do grupo que temos chamado de “Dia após Dia na turma ‘x’”.
Seguindo essa linha para compreender a linguagem da comunicação e me fazendo
valer da regra de ouro do jornalismo, os 6W, mostro, na Figura 04, como adaptei para a
Documentação Pedagógica essa estrutura e compartilho cada um dos 6 pontos a fim de mostrar
a construção de uma mini-história feita ao longo da investigação das professoras Karin e Sissa,
com as crianças da faixa etária 2 da EMEI Joaninha, sobre a comida, fruto do processo
documental apresentado no primeiro nível.
231
Figura 04 – Perguntas para pensar a comunicação
232
aniversário. Assim, as professoras definiram que
a protagonista dessa mini-história seria Milena,
de 2 anos, e o que seria contado os bolos de
aniversário de Milena.
A comunicação, Para quem?, poderá
ser endereçada às crianças, às famílias ou aos
colegas de profissão. Para cada um deles, há
particularidades a serem observadas no estilo de
linguagem utilizada, nos observáveis escolhidos,
no local em que será afixado (por exemplo, sendo para as crianças um painel, este deve estar
na altura delas) e na mensagem que se pretende contar. É certo que uma mesma comunicação
pode ser lida por todos, mas a intenção de quem produz a comunicação é fundamental no
direcionamento de ideias que se pretendem partilhar:
a) Para as crianças – O primeiro aspecto a ser considerado sobre as
comunicações endereçadas às crianças é o fato de que mostramos a elas que
existe um adulto interessado no que ela tem a dizer. E esta mensagem implícita
é fundamental para a criança confiar e ter uma imagem positiva de si
(ALTIMIR, 2011). O outro ponto é a observação de Malvasi e Zoccatelli
(2013, p. 35) de que “encorajar a formação da identidade de cada criança
significa valorizar a sua história pessoal”, e, no caso do seu tempo em uma
instituição, o valor da história de cada criança também se dá a partir “da
construção das relações com outras crianças e adultos, dos percursos de
exploração e das emoções ligadas à criação e à descoberta” (MALVASI;
ZOCCATELLI, 2013, p. 35). Quando comunicamos endereçando às crianças,
oferecemos a elas a oportunidade de ver outra vez seu percurso, abrimos um
espaço para que possam compreender o modo como apreendem, o modo como
fazem e como constroem significado. Isso significa restituir às próprias
crianças a sua aprendizagem. Quando fazemos isso, estamos, com as crianças,
colecionando exemplos particulares sobre nós mesmos, mergulhando fundo em
um processo de autoconhecimento e de aprendizagem.
b) Para as famílias – As comunicações direcionadas às famílias desempenham
diferentes papéis. Um deles é de criar pontes para diálogos entre escola e
família. Subverter a lógica passiva de receber informes semestrais para uma
233
cultura de diálogo, transforma a participação dos pais no processo educativo
das crianças. Assim, quando comunicamos para as famílias, não apenas lhes
mostramos o valor de um serviço educativo, mas também lhes oferecemos a
oportunidade de conhecer e (re)conhecer seus filhos a partir de outros olhares.
Sentindo-se seguros ao conhecer melhor as jornadas educativas das escolas, os
pais podem descobrir diferentes formas de apoiar o trabalho que ali é feito. Em
resumo, comunicar para as famílias “[...] representa refletir juntos sobre os
significados das experiências que as crianças estão vivendo, representa investir
na construção partilhada da história de crescimento de cada criança”
(MALVASI; ZOCCATELLI, 2013, p. 36).
c) Para outros profissionais – É fato que a comunicação possui em si um grande
valor formativo, pois, além de servir ao profissional que a elaborou, cria um
testemunho pedagógico que pode migrar para outros contextos como fonte de
reflexão e inspiração. Por isso, sempre que uma comunicação é direcionada aos
pares, é possível confrontar conceitos, dar valor à profissão e construir
instrumentos de trabalho que não são meras incorporações abstratas. Nesse
sentido, uma boa comunicação para os pares profissionais é, também, uma boa
oportunidade de fazer novas perguntas e inventar novos modos de trabalhar
com as crianças. É uma chance de desafiar os discursos dominantes
(DAHLBERG; MOSS; PENCE, 2003). É um modo de traduzir as escolhas e
de “[...] exprimir a vontade de ser visível [...]” (MALVASI, ZOCCATELLI,
2013, p.34) e de declarar “[...] quem são os protagonistas da experiência [...]”
(DOLCI, 2011, p.29).
No caso da mini-história que as professoras Karin e Sissa construíram, o
endereçamento delas são os pais. Portanto, os recursos de linguagem utilizados em termos de
imagem e texto buscam evocar as famílias para que conheçam os enredos lúdicos que as
crianças criam na vida cotidiana e o modo como as professoras acolhem o universo das crianças.
Já definidos os protagonistas, o assunto e o endereçamento, a próxima etapa é
selecionar os observáveis, Com quê?, que serão utilizados na elaboração da comunicação.
Selecionar um ou mais observáveis para comunicar a respeito de algo e de alguém exige que,
além de estar atento ao endereçamento, se reflita sobre o equilíbrio, a legibilidade e a
expressividade do material utilizado. Em geral, há uma forte tendência pelo uso de imagem
preterindo a escrita, no entanto, é bom relembrar a advertência de Malaguzzi (2001, p. 45): “é
234
mais fácil um caracol deixar rastros de onde passou que um professor deixar marcas do seu
trabalho”. Escrever implica assumir um alto grau de responsabilidade sobre como nomeamos e
definimos o que interpretamos. Juan Mata (2012) adverte que, para as crianças, devemos utilizar
a nossa melhor linguagem, não a mais simplificada. Isso não é simples e talvez, por isso,
preterimos tanto a escrita.
As diferentes linguagens (escrita, fotográfica, videográfica, gráfica...), quando bem
combinadas, amplificam a expressividade dos documentos e abrem possibilidades de leituras
mais ampliadas e abertas. Juntas, estas linguagens “[...] possuem um fortíssimo valor
comunicativo e representativo, por terem a capacidade de evocar e falar com cada um de nós,
respeitando a sensibilidade individual e possibilitando a transmissão de conexões e cruzamento
com outras imagens, outras passagens, outras linguagens” (MALVASI; ZOCCATELLI, 2013,
p. 42).
No caso da mini-história sobre a Milena, as professoras optaram em recolher imagens
da menina, em diferentes situações do cotidiano pedagógico, que mostrassem essa repetição em
fazer bolos de aniversário, independentemente do material utilizado. Lembrando que, neste
caso específico, as imagens servem como motor para a construção da narrativa da mini-história.
São vários os formatos de comunicação, Como?, que podem ser utilizados: painéis,
vídeos, exposição, mini-história, portfólios, livretos, projeções. No entanto, nem todos os
formatos respondem às demandas de cada situação que se pretende comunicar. No caso da
Milena, foi escolhida a mini-história pelo seu caráter episódico e pela intenção das professoras
em realizar uma comunicação mais breve.
No quadro a seguir, exemplifico alguns formatados e suas possíveis utilizações.
235
Quadro 05 – Formatos de comunicação
Formato Como pode ser utilizado
É um formato interessante para comunicar o projeto educativo da instituição. Cria uma “segunda
pele”.
Painel Pode ser mais permanente e dar a identidade de determinadas áreas.
Pode comunicar a respeito de projetos de aprendizagem ou, também, de uma zona de investigação
específica.
São narrativas breves que narram episódios da vida cotidiana. Podem ser realizadas semanalmente e
Mini-histórias afixadas em local visível para as famílias.
Podem ser uma estratégia para ir contando a respeito do grupo ao longo de um ano de trabalho.
Nem sempre os formatos que se utilizam de uma linguagem estática respondem à necessidade que se
Vídeos pretende comunicar. Às vezes é fundamental escutar as crianças, vê-las em movimento. Neste caso, a
edição e a decuopage de vídeos podem transformar-se em ricos materiais comunicativos.
Uma parede, na recepção da escola, um computador e um projetor podem servir muito quando se
Projeções
pretende comunicar algo mais episódico.
Todos os formatos anteriores podem ser utilizados em uma reunião de pais como disparadores para
Reuniões de dialogar, conhecer e aprender mais sobre as crianças. Uma compilação provisória de cenas do
pais cotidiano em um Power Point também pode servir para comunicar a respeito de algo que se pretende
dialogar com as famílias.
237
No capítulo seguinte, desenvolvo a respeito dos Organizadores da Ação Pedagógica.
Esse tema, como será amplamente discutido a seguir, é um ponto central desta tese, pois
evidencia o conhecimento praxiológico desenvolvido por essa comunidade de apoio ao
desenvolvimento profissional sustentada pela estratégia da Documentação Pedagógica.
238
2. ORGANIZADORES DA AÇÃO PEDAGÓGICA
101 Me remeto a texto já publicado em que comento especificamente ao modo como temos encaminhado o
planejamento dentro do OBECI. Obviamente, essa perspectiva de planejar está alinhada às ideias dos autores que
tem nos inspirado no Observatório.
239
suas dimensões espaço-temporais e, consequentemente, na promoção de relações e interações.
Estou de acordo com o que destaca Branzi (2013, p. 129): “as revoluções mais bem-sucedidas
geralmente são aquelas que começam exatamente pelo pequeno, pelo diário, pelo
indispensável”.
A vida cotidiana tem um valor muito grande tanto no que diz respeito às aprendizagens
que dela decorrem, como do clima que ela pode gerar. Nesse sentido, uma das finalidades do
planejamento de contexto é a descrição e a reflexão da vida educativa a partir de observáveis
da vida cotidiana com vista a organizá-la para melhor responder às necessidades dos sujeitos
nela envolvidos.
Isso posto, as dimensões do planejamento de contexto envolvem a organização do
espaço da sala de referência, os tipos de materiais disponibilizados, o modo como é gestado o
tempo e as possibilidades dadas às crianças para se auto organizarem ou para o adulto propor
organizações diferentes para os arranjos de grupos (grande grupo, pequenos grupos, trios,
duplas). Além dos aspectos relativos ao espaço, aos materiais, aos tempos e aos arranjos de
grupo, é preciso lembrar que temos de ir reconstruindo outras dinâmicas da relação entre adultos
e crianças, como poderá ser visto a seguir, pois isso está diretamente atrelado aos aspectos
anteriores, é simultaneamente condição e resultado.
Também o planejamento de contexto requer problematizar o modo como as
microtransições ocorrem. Para nós, pensar a respeito dessas transições da vida cotidiana (que
internamente no OBECI passamos a chamar de microtransições) significa ser coerente com a
imagem de criança que pensa, que sente, que deseja e, assim, que precisa ser respeitada desde
a sua condição humana. Mas não só isso, também significa reconhecer que os contextos em que
as crianças estão inseridas e o como elas os vivem impactam direta e profundamente os seus
modos de compreender a natureza relacional (criança-criança; adulto-criança; adulto-adulto).
Portanto, problematizar as microtransições envolve contrapor práticas automatizadas e pôr
acento nas interações e relações para estruturar a jornada educativa.
Por fim, o planejamento de contextos também engloba a reflexão e a tomada de decisão
sobre as atividades de atenção pessoal. David e Appel (2010), valendo-se da abordagem de
Emmi Pikler, referem-se aos momentos da alimentação, da higiene e do descanso como
atividades de atenção pessoal. Em geral, esses momentos estão longe de serem refletidos dentro
das escolas e mais parecem uma corrida de obstáculos em que o único objetivo é finalizar o
momento da forma mais rápida possível. Quando se compreende que essas também são
situações importantes e, por isso, devem ser planejadas, podemos dar um outro ritmo ao
240
funcionamento da jornada educativa que seja mais respeitoso e que acolha as temporalidades
das crianças e que promova o envolvimento e a participação dos meninos e das meninas na
aventura e na desventura que implica cada uma dessas atividades de atenção pessoal. Como
destaca Òdena (1995, p. 24), “não podemos esquecer que a criança evolui e aprende graças a
sua própria atividade”; logo, o seu papel não pode ser passivo, como se o comer, o descansar e
o higienizar-se fosse apenas uma necessidade fisiológica, quando não é. É fisiológica, mas
também é cultural, representa marcos de autonomia e, portanto, é também moral. Quando bem
pensadas, as atividades de atenção pessoal são laboratórios embrionários para a participação
ativa, para o comprometimento com o seu entorno, para o convívio e para o autoconhecimento.
Uma vez que o contexto esteja Figura 5 - Planejamento
planejado, a outra modalidade é o
planejamento de sessão, ou seja, propor a
pequenos ou grandes grupos situações
significativas de aprendizagem que articulem
os seus saberes com aqueles já sistematizados
pela humanidade (FOCHI, 2015b).
Como já tratado no capítulo sobre a
Documentação Pedagógica no OBECI102,
sessão não é sinônimo de atividade. Planejar a
sessão corresponde ao desenho de um
percurso praticável com bases em algumas Fonte: Elaborada pelo autor
102
No capítulo sobre documentação, são explicitados os instrumentos de planejamento de sessão.
241
como não compreendemos sua competência para atribuir significado a sua própria
aprendizagem (FOCHI, 2019).
Também no planejamento de sessão, refletimos sobre a organização do espaço, os
materiais ofertados, a organização do tempo e do grupo e o tipo de intervenção necessária do
adulto. Compreender essas dimensões do planejamento tem nos ajudado a reposicionar as
crianças e os adultos na relação educativa.
Ambos os planejamentos, de contexto e de sessão, coincidem na crença de que criar
modelos alternativos para o funcionamento das escolas significa estranhar o familiar para
estabelecer novos modos de estar com as crianças e de promover jornadas de aprendizagens.
Assim, como pode ser visto, o tema relativo aos espaços, materiais, tempos, grupos e papel do
adulto estruturam as reflexões a respeito do planejamento e constituem, para o OBECI, o que
nomeamos como Organizadores da Ação Pedagógica.
É curioso observar que esses temas muitas vezes são entendidos como decorativos ou
como dados no contexto escolar. Ou seja, o modo como o contexto está organizado e como
promove as interações, nessa visão decorativa do contexto, não implica desenvolvimento do
sujeito. A ausência de perguntas sobre esses elementos parece mostrar uma certa ideia de
desenvolvimento humano que não considera o valor do contexto para a aprendizagem das
crianças. Assim, é facilmente justificado que a criança seja vista isoladamente, sem considerar
a relação que se estabelece entre o contexto educativo ofertado e sua aprendizagem.
No entanto, a perspectiva de que a criança é um sujeito biologicamente cultural
(ROGOFF, 2005) implica considerar a trama de representações, símbolos e interações a que ela
está sujeita. Os contextos de que ela participa, e, dentre esses, a escola, converte-se em um
privilegiado espaço para o seu desenvolvimento global, por isso, é preciso prestar “atenção à
ecologia em que a criança se encontra, impregnada por complexas circunstâncias do ambiente,
assim como de ideias, representações, expectativas dos adultos que colocam em marcha
estratégias para sua socialização” (COMELLES, 2011, p. 13). Nesse sentido, em consonância
com os estudos realizados no campo de orientação construtivista, o modo como os contextos
são organizados favorecem, dificultam ou consolidam as experiências de aprendizagem das
crianças.
Revisando a literatura pedagógica da área, aquilo que no OBECI nomeamos como
Organizadores, também coincide, em certo ponto, com o que Bondioli (2011, p. 27) tem
chamado de organização pedagógica, citando o espaço, o tempo e o grupo como elementos que
“[...] contribuem a desenhar a fisionomia educativa da vida cotidiana na escola” (BONDIOLI,
242
2011, p. 27). Bondioli (2011) trata desses três temas articulando com um sistema de avaliação
do contexto educativo de modo que “analisa a interação dinâmica que se estabelece entre a
organização do contexto, o modelo pedagógico e as práticas educativas da instituição,
destacando sua indissociabilidade” (COMELLES, 2011, p. 14). Para Bondioli (2011), quando
a instituição passa a problematizar e refletir sobre essa organização pedagógica, explicita a
pedagogia latente e a qualidade do contexto educativo.
Barbosa (2006) também já anunciou categorias similares em seu estudo de
doutoramento a respeito das rotinas. A organização do ambiente, o uso do tempo, a seleção e a
oferta de materiais e a seleção e as propostas de atividades são, para a autora, os elementos
constitutivos das rotinas: “o momento da categorização e de classificação é necessário para que
se possa compreender melhor a função pedagógica e social da rotina, verificar seus modos de
operar e, quem sabe, poder redimensioná-las” (BARBOSA, 2006, p. 117). Barbosa (2006), em
uma vasta análise em diferentes organizações de instituições no Brasil e no exterior, busca
evidenciar a pedagogia que se esconde na organização das rotinas e mostra a relação que se
estabelece desta com os demais elementos indicados.
Em meu estudo de mestrado (FOCHI, 2013), também elenquei esses elementos,
nomeando-os como categorias pedagógicas para a prática reflexiva do professor de Educação
Infantil: o espaço, os materiais, o tempo, a organização de grupo e o tipo de intervenção do
adulto. O foco, no entanto, é mostrar que essas categorias são uma alternativa para “[...] gerar
a condução da prática pedagógica por meio de outras vias, ou seja, parece que o interesse do
adulto não é tanto planejar atividades para as crianças realizarem, mas criar as condições
adequadas, ou satisfatórias, para que elas atuem” (FOCHI, 2013, p. 151). Por isso, destaco que
as categorias servem como pontos de atenção que se deve dar para a realização da prática
pedagógica, sustentadas em um certo quadro teórico e que constituem marco para a construção
de uma epistemologia relacional (FOCHI, 2013).
Nos modelos pedagógicos emergentes do último século, também há forte relação entre
os temas que encontramos no OBECI e aqueles encontrados em alguns modelos. Oliveira-
Formosinho (2016d) nomeia-os de dimensões curriculares integradas da Pedagogia-em-
Participação: o espaço e os materiais, o tempo, a interação, a observação, o planejamento e
avaliação das crianças, os projetos e atividades e a organização de grupos. Nesse sentido, “a
interconectividade destas dimensões tem como objetivo o desenvolvimento de identidades
plurais e relações cooperativas, pertenças participativas, explorações comunicativas,
significados narrativos” (OLIVEIRA-FORMOSINHO; FORMOSINHO, 2013, p. 18).
243
No High Scope, chama-se roda da aprendizagem ativa e têm-se como ideias
fundamentais para orientar o trabalho pedagógico a observação da criança, a interação adulto-
criança, o ambiente físico e os horários e rotinas (POST; HOHMANN, 2003). Nesse modelo,
essa roda da aprendizagem ativa é uma forma do adulto tomar consciência da sua prática para
apoiar as iniciativas das crianças e sustentá-las (HOHMANN; WEIKART, 2011).
Na experiência de Reggio Emilia, não há uma sistematização clara sobre essas
categorias, mas dada a minha vasta leitura a respeito dessa experiência, posso inferir que a ideia
do espaço como um terceiro educador, a cultura do ateliê103 (destacando o valor dos materiais e
da projetualidade), a dupla pedagógica, a organização em pequenos grupos e a Documentação
Pedagógica compõem as ideias que guiam o trabalho pedagógico nas escolas municipais dessa
cidade. A dimensão do tempo e de pequeno grupo, por exemplo, é percebida no modo como a
jornada das crianças é organizada, ou seja, entre situações em pequenos e grandes grupos104,
envolvimento nos projetos e em outras situações do cotidiano.
O Movimento da Escola Moderna (MEM) chama de organização do cotidiano de vida
e aborda a organização do grupo, a organização dos espaços e materiais e a organização
temporal do cotidiano (FOLQUE; BETTENCOURT, 2018). Estes compõem os pressupostos
do processo educativo e é onde se fundamenta a dinâmica social da atividade educativa (NIZA,
2013).
Quando falamos de modelos ligados à creche, Elinor Goldschmied também apresenta
alguns itens relativos à organização do trabalho pedagógico: a organização do espaço para
viver, aprender e brincar (nomeado como espaço satisfatório), o educador referência (pessoa-
chave) e o valor da atividade lúdica, com a proposta do cesto de tesouros e jogo heurístico que
se pode perceber a preocupação com os materiais (GOLDSCHMIED; JACKSON, 2006). Na
concepção de Goldschmied (1981), acolher as crianças em um ambiente institucional deve
harmonizar o cuidar e o educar; logo, é dever dos adultos atentarem para todos esses itens
necessários para estruturar as condições de bem-estar global dos meninos e meninas.
103
Cultura de ateliê é um termo que vem sendo discutido muito em Reggio Emilia. Na medida em que as escolas
foram incorporando o trabalho com o espaço do ateliê e os mini ateliês dentro das escolas, compreenderam que a
prática que se estabelecia dentro desses espaços era um modo de ser e estar com as crianças em todas as
investigações independentemente do espaço em si. Por isso, passou-se a utilizar a expressão cultura do ateliê para
dar ênfase à ideia da ação das crianças, da investigação das materialidades, do pensamento projetual para
concretizar algo, do tipo de material que se oferece para as crianças, da sedução estética do ambiente.
104
Recordo, por exemplo, em uma das oportunidades em que estive em Reggio Emilia, na Scuola de Infanzia do
Centro Internacional Loris Malaguzzi, que, em um grupo de 22 crianças de 3 e 4 anos, havia 9 situações
simultâneas acontecendo.
244
Na experiência de Pikler-Loczy, também conseguimos localizar alguns elementos
fundamentais para o professor se movimentar no trabalho pedagógico. O espaço e os materiais
são denominados de entorno positivo ou entorno ótimo (GODAL, 2016), termo que significa a
criação de um espaço seguro, que responda às necessidades das crianças para o seu movimento
livre e da oferta de materiais que promovam a brincadeira. A relação adulto e criança também
é um elemento fundamental para o bem-estar das crianças e caracteriza-se pela forma e pelo
conteúdo que são estabelecidos nessa relação. Um adulto de referência ocupa um papel
importante para cada pequeno grupo de crianças nas atividades de atenção pessoal, ao passo
que os demais adultos se envolvem com essas mesmas crianças em outras situações do
cotidiano. O tempo é uma chave de leitura importante para a experiência húngara, em especial,
o respeito ao tempo das crianças em suas situações cotidianas.
De modo geral, pode-se observar que essas dimensões/categorias/organizações
compõem uma zona de reflexão para o professor se movimentar e refletir sobre o cotidiano
praxiológico. Mais ainda, são parte importante dos modelos pedagógicos, pois, como já afirmou
Oliveira-Formosinho (2007, p. 31, grifos da autora), “uma ideia, uma teoria, uma pedagogia
não existe, no âmbito educativo, por si, qual essência platônica. Existe na práxis, pois a práxis
é a casa da pedagogia”.
Para nós, do Observatório, a necessidade de ir reconhecendo, nomeando e estruturando
isso que chamamos de “Organizadores da Ação Pedagógica” surgiu na medida em que íamos
percebendo as lacunas do trabalho que se realizava dentro das instituições, a falta de coerência
entre a prática dos professores de uma mesma escola e o grau de compreensão que fomos
construindo sobre o papel do contexto para as aprendizagem das crianças. Notávamos que os
projetos pedagógicos não expressavam e nem induziam um determinado tipo de prática. Aliada
a isso, a ausência do debate pedagógico nos cursos de formação também deixava lacunas para
práticas sem sentidos para as crianças, transformando-se em um conjunto de tarefas a serem
cumpridas.
Os Organizadores da Ação Pedagógica são uma forma de concretizar as concepções
de cuidado e de educação e sintetizar e ou efetivar o projeto pedagógico. Estruturam as
concepções e a proposta da ação educativa dos profissionais tanto no campo da práxis como no
da formação e podem - quando ativamente discutidos, elaborados e criados por todos os
interlocutores envolvidos na sua execução - facilitar a construção de ricas aprendizagens.
Esses Organizadores retomam uma ideia interessante de que uma certa ideia de
didática pode ser pensada desde as crianças. Como a centralidade do trabalho pedagógico na
245
Educação Infantil deve estar nos meninos e nas meninas, pensar uma didática desde as crianças
significa colocar um adulto em relação, auxiliando a desenvolver a sua competência de
observação e interpretação necessária para compreender o mundo da criança e ser seu parceiro
na construção de significados no e para o mundo. Esse é um grande antídoto para os materiais
e sistemas prontos – que mais do que nunca, estão batendo na porta das escolas – ou para as
ideias espontaneístas que atribuem na livre expressão o seu credo pedagógico.
Seguindo a sugestão de Hawkins (2016, p. 93), a melhor forma de respeitar uma
criança é saber traduzir esse respeito na organização do contexto e do ambiente educativo de
modo que “potencialize seus interesses e talentos e que aprofundem seu envolvimento na
prática e no pensamento”. Reconhecer os Organizadores da Ação Pedagógica ajuda o professor
a se movimentar através de elementos que criam conectividade entre o que se diz e o que se
faz, transformando-se em uma estratégia para não criar um vácuo educacional, mas atento para
a riqueza e promessa de novidades que os meninos e meninas carregam consigo (HAWKINS,
2016).
Como o modo que temos reconhecido, refletido e transformado a vida cotidiana tem
se apoiado a partir da estratégia da Documentação Pedagógica, é dessa forma que passamos a
reconhecer os conteúdos e processos emergentes. Assim, os Organizadores surgem das
“saliências partilháveis” (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2016b, p.) entre as escolas, ou seja,
tanto em nível das possibilidades como dos limites, abordar os Organizadores é mergulhar nas
entranhas da pedagogia latente para torná-la explícita, com nome (FORMOSINHO, 2018).
Nesse sentido, antes de discutir cada um dos Organizadores, apresento o modo como eles foram
desenvolvidos em termos de formação e pesquisa dentro do OBECI.
246
processo integrado, precisam ser explicitados os movimentos feitos para se chegar ao que será
apresentado na sequência.
Para o projeto de qualificação desta tese (FOCHI, 2017), havia sido realizada uma
análise flutuante das Memórias do OBECI dos anos de 2013 a 2016. A partir dessa primeira
análise, imediatamente após a qualificação, foi novamente realizada a análise de conteúdo do
conjunto de Memórias com o apoio do software MAXQDA para poder compreender a narrativa
do processo dessa comunidade de apoio ao desenvolvimento profissional. A partir dessa análise,
ficou evidente que havia uma necessidade de entrar em temas que auxiliassem o professor e a
equipe pedagógica das instituições a estruturarem questões relativas à organização pedagógica,
tendo em vista as várias situações em que se discutiu a respeito de temas como o espaço, os
materiais, o tempo, os grupos e o papel do adulto. Mais do que apenas constatar essa
necessidade, a análise de conteúdo permitiu que se verificasse que já havia algumas pistas que
indicavam uma certa compreensão do OBECI em relação a esses temas, mesmo que ainda não
estivessem explicitadas ao grupo.
Isso posto, organizamos dois Encontros das Escolas Observadoras, em 2017,
dedicados a discutir esses tópicos, que passei a chamar de Organizadores da Ação Pedagógica.
No primeiro Encontro, foram apresentados os Organizadores e alguns conceitos-chave
encontrados na literatura que tratam desses temas. Na ocasião, fui delineando, junto aos
professores e a equipe pedagógica das escolas, alguns pontos de atenção para cada um dos
Organizadores, estabelecendo relação entre o percurso do OBECI ao longo dos anos anteriores,
as cenas do cotidiano que tínhamos produzido e a literatura da área.
Depois desse encontro, que ocorreu no primeiro semestre, até o encontro seguinte, no
segundo semestre, cada instituição foi refletindo a respeito dos Organizadores em diálogo com
o próprio cotidiano. A partir disso, no segundo Encontro das Escolas Observadoras 105, as
próprias escolas retomaram os elementos já levantados anteriormente para pensar quais seriam
efetivamente os pontos de atenção para cada um dos Organizadores anunciados em cada
agrupamento etário. Essa ideia de olhar a partir da organização administrativa (por faixa etária)
das turmas foi uma estratégia para poder construir a reflexão, em pequenos grupos, que não
fosse organizada por escolas, mas que pusesse as professoras e equipe pedagógica das escolas
em diálogo a partir de um ponto em comum. Assim, os professores das escolas se organizaram
em grupos e, a partir dos observáveis que foram produzidos no próprio cotidiano, elencaram os
105
Como, nesse período, eu estava fora do país para o doutorado sanduíche, elaborei a organização do encontro
junto das coordenadoras pedagógicas e diretoras, e foram elas que conduziram o encontro.
247
pontos de atenção para o espaço, materiais, tempo, organização de grupo e papel do professor
e, ao final desse encontro, compartilharam para o grande grupo com o objetivo de verificar as
saliências partilháveis (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2016b).
Desde então, com vista a esses pontos, temos aprofundado o tema e buscado
compreender esses Organizadores nas diferentes investigações que temos levado a cabo dentro
do OBECI. Em 2018, no Grupo Gestor, a centralidade de nossa investigação foram as
microtransições e, no GIA de Acompanhamento Projetual, a globalidade do trabalho das
professoras. Em ambos os grupos, os Organizadores da Ação Pedagógica foram sendo
experimentados e aprofundados. Mesmo em 2016, com os GIA do Brincar Heurístico e os
Ciclos de Simbolização, os Organizadores já estavam lá, ainda que não fossem anunciados e
reconhecidos por nós. Prova disso é que o livro sobre o Brincar Heurístico106, que foi lançado
em 2018, explicita claramente esse avanço e as narrativas das professoras se organizam
exatamente a partir dos organizadores. Para nós, esses organizadores constituem a elaboração
de um conhecimento praxiológico.
Neste caso, é interessante destacar que esta tese tem um papel importante na restituição
das reflexões acerca desses Organizadores desenvolvidos internamente no OBECI. Devolvê-
los ao OBECI, elaborados, refletidos e contrastados com o que produzimos, é dar a essa
comunidade um retorno significativo da investigação que se realizou. Ademais, a proposta é
também tornar visível o conhecimento praxiológico construído tanto em nível dos práticos
(professoras, coordenadoras pedagógicas, diretoras) como em nível do investigador e formador.
Esses dois níveis, além de serem complementares e estarem em interatividade, servem ao
mesmo tempo para mostrar como tem se respondido às exigências dos próprios contextos
participantes do OBECI, assim como devem servir para migrar para outros contextos e inspirar
outras realidades.
Assim, com a finalidade de mostrar o conhecimento praxiológico construído pelos
práticos e evidenciar a relação existente entre os Organizadores, optei por apresentar uma
comunicação de uma das escolas que exemplifica como esses estão a serviço da reflexão da
prática pedagógica. Entendi que compartilhar uma comunicação inteira, tal como foi produzida
pela escola, daria a noção da totalidade da reflexão e possibilitaria a compreensão dos
organizadores em ação a partir dos próprios usuários.
106
FOCHI, Paulo (org). O Brincar Heurístico na creche: percursos pedagógicos no Observatório da Cultura
Infantil – OBECI. Porto Alegre: Paulo Fochi Estudos Pedagógicos, 2018.
248
O contexto desta comunicação é parte de uma investigação sobre as microtransições
que foi levada a cabo no ano de 2018 pelo Grupo Gestor. A escolha dessa comunicação deve-
se à investigação realizada pela coordenadora Liliane e pela diretora Juliana que se deu na sala
de referência da faixa etária 2 das professoras Sissa e Karin, que participam do Grupo de
Investigação-Ação do Acompanhamento Projetual no OBECI. Nessa comunicação, vê-se o
resultado de uma proposta em que a direção e as professoras partilham conscientemente de um
mesmo referencial, e, embora a investigação que as professoras estavam levando a cabo fosse
outra107, os Organizadores eram sua forma de estruturar a prática pedagógica.
Além disso, foi uma opção minha apresentar essa comunicação tanto em termos de
conteúdo quanto de forma da comunicação, tal como a equipe diretiva elaborou, para também
compartilhar essa competência comunicativa que foi sendo desenvolvida ao longo desses seis
anos do OBECI.
Na sequência da comunicação apresentada, discuto cada um dos Organizadores para
aprofundar a respeito e estruturar um referencial que possa ser partilhado não apenas entre as
escolas do OBECI, mas também entre outros contextos, possibilitando sua migração. Até então,
não tínhamos estruturado sobre o tema dos Organizadores a esse nível dentro do OBECI, por
isso o conhecimento praxiológico que restituo, a partir da experiência que temos desenvolvido,
mostra uma dada compreensão situada sobre os temas do espaço, materiais, tempo, grupo e a
relação adulto e criança, mas que está em diálogo com a literatura que compõe nosso quadro
referencial. Além disso, com o intuito de mostrar o modo como, nas outras escolas e em outras
situações, os Organizadores da Ação Pedagógica são utilizados, para cada uma das categorias,
apresento alguns recortes menores em forma de imagens utilizadas no âmbito das nossas
reflexões, mini-histórias, trechos de processos documentais ou comunicações para sublinhar
algumas ideias-chave.
107
No capítulo sobre a Documentação Pedagógica, serão apresentados trechos da investigação das professoras
com as crianças.
249
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2.2 A organização do Espaço Educativo
Quaisquer que sejam as limitações de um prédio, sempre há algo que pode ser feito
para torná-lo mais confortável e atrativo para os adultos e as crianças que nele passam
longas horas do dia (GOLDSCHMIED; JACKSON, 2006, p. 33).
Muitos autores concordam que há uma pedagogia implícita no modo como organizam-
se os espaços108. Caggio (1998, p. 33, grifo do autor) afirma que “o espaço fala da pedagogia
elegida, mais ou menos explicitamente, e das contradições que existem entre o declarado, o
possível e o praticado [...]”. Por ser o elemento que favorece ou impossibilita as relações, por
impulsionar a ação das crianças e dos adultos, por comunicar a partir dos materiais e do modo
como está organizado, o espaço ganha uma força maior que o projeto educativo em si, pois “o
estilo de um professor e de uma escola não se define tanto pelo que se afirma na programação
escrita, mas sim pelo que se faz na cotidianidade concreta” (CAGGIO, 1998, p. 33).
Da mesma forma, há um certo consenso que o modo como os espaços estão
organizados favorece menos ou mais a aprendizagem das crianças, isso porque gera um clima
menor ou maior de cooperação, diálogo e interação das crianças entre elas, delas com os adultos
e delas com o entorno. Como destaca o arquiteto Andrea Branzi (2013), criar um espaço
relacional é entrar nas questões essenciais das funções do espaço (para que serve) e das relações
que dele decorrem. A pergunta “para que servem” os espaços é importante para auxiliar na
reflexão sobre como organizar e responder às necessidades das crianças e dos adultos. Uma sala
de referência, por exemplo, é um espaço que precisa responder a múltiplas funções: precisa ao
mesmo tempo ser um lugar para o grupo mas também ser o lugar para cada criança, ou seja,
deve fortalecer a identidade grupal e as identidades de cada um; é um espaço para aprendizagens
plurais e que igualmente precisa acolher a pluralidade de temporalidades (de cada criança, do
grupo de criança, dos adultos, da instituição); é um espaço que serve ainda a distintas funções
(também são realizadas as refeições, o descanso). O modo como o espaço está organizado pode
representar o acesso aos instrumentos da cultura (OLIVEIRA-FORMOSINHO; ANDRADE,
2011) e pode ser fonte inesgotável para gerar um clima de pertencimento e de fortalecimento
das relações.
Seguindo nesse mesmo sentido, Rinaldi (2013, p. 122) observa que os espaços “[...]
podem ser experienciados não como tempo e espaço para reproduzir e transmitir conhecimentos
já estabelecidos, mas como um lugar para a verdadeira criatividade”. O que a autora propõe
108
Citando alguns: Caggio (1998), Malaguzzi (2001), Horn (2004, 2017), Cabanellas e Eslava (2005); Oliveira-
Formosinho e Andrade (2011), Gariboldi (2011), Ceppi e Zini (2013).
263
significa uma ruptura nas matrizes pedagógicas transmissivas e um convite para a criação de
um ambiente estético, que compreende a capacidade do homem em religar-se ao mundo para a
criar significados, para a inventividade, para fluir as relações. Nos meandros do pensamento de
Loris Malaguzzi, conhecer está relacionado com a dimensão estética. Para o pedagogo, a
estética é uma condição de estarmos em ressonância com o mundo. Conhecer é esta vibração
estética da criança com o mundo a sua volta, "[...] é a vibração estética que nos empurra a dar
nomes, nomes às figuras e cores, e às figuras e cores que parecem não existir" (MALAGUZZI,
2005, p. 83).
Também tem se reconhecido que o espaço possui uma linguagem, uma dimensão
comunicativa que “[...] tende a influir e regular os comportamentos dos indivíduos, e
especialmente dos sujeitos em processo de desenvolvimento” (GARIBOLDI, 2011, p. 99). Para
Hoyuelos (2005, p. 172), pensar no espaço, desde seu âmbito comunicativo, é diminuir as
distâncias entre as identidades dos sujeitos com o espaço, em que “o direito à identidade de
cada pessoa possa encontrar acolhimento, intercâmbio e enriquecimento mútuo”.
O espaço é, em suas características físicas, expressivas e simbólicas, recurso
pedagógico e aspecto fundamental para a qualidade da organização do contexto educativo,
sobretudo para aquelas instituições que acolhem o universo da brincadeira dos meninos e
meninas como eixo central da prática pedagógica na Educação Infantil e que assumem que a
escola pode ser um espaço privilegiado para a aprendizagem.
Embora a tônica da discussão esteja na sala referência, a compreensão do espaço como
uma categoria pedagógica precisa ser ampliada para todos os demais ambientes de uma escola,
desde a área da entrada, em que se pode declarar a metáfora da identidade pedagógica
(VECCHI, 2013), como os banheiros, o refeitório, os corredores, os espaços externos109.
Como já tratado anteriormente, a organização dos espaços nos diferentes modelos
curriculares das pedagogias participativas é um ponto de muita atenção, tendo em vista que, a
partir disso, se mobiliza uma outra forma de ser e estar com as crianças.
Dentro do OBECI, de uma maneira geral, temos entendido que a organização do
espaço deve permitir à criança:
a) brincar e articular seus saberes e experiências com o patrimônio que a
humanidade já sistematizou;
109
Em recente estudo, Horn (2017) realiza diversas proposições a respeito da organização dos espaços e dos
materiais nos diferentes ambientes de um prédio escolar (especialmente aqueles prédios do Proinfância), tanto do
ponto de vista interno quanto do ponto de vista externo.
264
b) expressar sua potencialidade, sua curiosidade, suas explorações e investigações
sozinhas, com outras crianças e adultos;
c) escolher onde e como brincar, realizar seus projetos pessoais e participar de
projetos coletivos;
d) encontrar lugares para descansar e contemplar;
e) sentir-se parte e partícipe da construção da identidade cultural do grupo que faz
parte a partir da natureza ideográfica construída no espaço;
f) reconhecer-se no modo como o espaço comunica a respeito de sua identidade
pessoal e coletiva;
g) sentir-se acolhida pela natureza estética (padrão harmônico, iluminação,
sonoridade, temperatura);
h) participar dos cuidados e da organização.
Aprendemos com Loris Malaguzzi (2001) que o espaço precisa ocupar o lugar de um
terceiro educador. No entanto, na realidade brasileira, em que nem sempre dispomos de uma
dupla pedagógica (professor e professor), como falava Malaguzzi, mas de um professor e outros
adultos (auxiliares, monitores, estagiários), essa ideia de um terceiro educador precisa ser
contextualizada e refletida. Horn (2004, p.) chamou de “solidária parceria entre espaço e
educador” e, com isso, sugere que as dinâmicas da vida no interior da escola também sejam
marcadas por uma rede de relações da cultura e da vida familiar das crianças. Portanto, entre o
espaço e o educador, há uma cultura que se forma e é formada pela participação das crianças,
pelo modo como se organiza e arranja o espaço, pelos materiais ofertados, pelo papel que os
adultos ocupam, por aquilo que se comunica interna e externamente.
Marina Ballo (1991) realizou um estudo sobre a relação entre a organização do espaço
educativo e o papel do educador, categorizando-os em três tipos. O primeiro é aquele bastante
conhecido por todos nós: um conjunto de mesas para as crianças, a mesa do professor em
posição principal e um armário com materiais armazenados. O professor organiza sua jornada
de modo que sua centralidade vá controlando o ritmo e as atividades das crianças, de tal sorte
265
que todas as crianças façam, todas juntas, a mesma atividade, ao mesmo tempo e da mesma
forma110. Como destaca Ballo (1991, p. 43), “nesta realidade, esse estar na escola para a criança
não coincide com estar com outros, mas sim, apenas fazer ao lado dos outros”. Nesse tipo de
organização, há uma desvalorização das relações entre as crianças, a não ser nos poucos minutos
de recreio ou atividades livres no pátio. Aliás, momento em que geralmente o professor
desaparece totalmente de cena e não se interessa pelo que pode emergir do encontro entre os
meninos e meninas. Também nesse tipo de organização o professor é quem determina tudo o
que as crianças desejam e necessitam: “o resultado é a anulação dos desejos das crianças como
ser individual” (BALLO, 1991, p. 43). A imagem de criança que está por trás desse tipo de
organização é de um sujeito passivo, vazio e que não sente, não deseja, não é.
Esse é um exemplo de organização do espaço que não tem outra função a não ser
regular e conter as crianças em um ambiente fechado. A iniciativa da criança é praticamente
anulada e a centralidade do adulto acaba por cegá-lo e deslocá-lo da relação com as crianças.
O segundo tipo de organização é aquele em que se definem pequenos espaços, ainda
que não estejam bem estruturados. Mantém uma zona central destinada às mesas para a
realização das “atividades pedagógicas” e, assim como o espaço está organizado, a centralidade
permanece nas atividades em que o professor figura a pessoa chave e os usos dos espaços
circunscritos se restringem apenas aos momentos de transição, de espera ou recreativos. Esse
tipo de espaço mantém a mesma organização do tempo, em que o professor conduz todos os
momentos da jornada com todo o grupo fazendo a mesma coisa, ou melhor, “a ideologia ainda
é priorizar o momento do trabalho, isto é, da atividade do programa. A tarefa é fazer a turma
trabalhar” (BALLO, 1991, p. 46).
Como no primeiro tipo, as atividades que as crianças podem gestar de maneira
autônoma não têm valor pedagógico. O brincar permanece como preenchimento do tempo. Uma
vez que a tentativa de organizar os cantos não é satisfatória – quer seja pela ausência de
materiais, quer pela falta de circunscrição adequada -, estes não exercem nenhuma função a não
ser a de acomodar alguns poucos materiais que ficam à disposição das crianças.
O terceiro e último tipo de organização do espaço apresentado por Ballo (1991) é
radicalmente diferente dos anteriores. Um dos fatores que explica isso é que o modo como se
organiza esse espaço descentraliza a figura do adulto e muda a hierarquia dos diferentes
momentos da jornada educativa. Nesse tipo, não há uma área com mesas para as atividades
formais. Os cantos estão bem circunscritos e estruturados de tal modo que criem zonas menores
110
Como Formosinho (1987, p.) já chamou, “currículo uniforme pronto a vestir em tamanho único”.
266
em que as crianças possam se auto-organizar em pequenos grupos, favorecendo os processos
colaborativos. Os materiais que compõem cada canto se encontram nas áreas por razões claras
e bem definidas e são em quantidade suficiente. Como destaca Ballo (1991, p. 52), “se pode
dizer, portanto, que o espaço/área contém o poder que antes se colocava ao educador e serve de
espaço de transição entre a autonomia e a individualização.”
Aqui, o espaço se converte em um verdadeiro dispositivo pedagógico, que não apenas
muda o cenário pedagógico como mobiliza outra forma de organizar o tempo e as relações
(adulto-criança; criança-criança).
Seguindo essa perspectiva, é importante lembrar que Froebel já abordou em sua obra
um conceito importante para pensar a organização do espaço: a autoatividade da criança, ou
seja, “pela ação, [a criança] expressa intenções em contato com o mundo externo”
(KISHIMOTO, PINAZZA, 2007, p. 44). Na verdade, o que o pedagogo alemão propunha era
de que a “auto-atividade [...] implica[sse] não meramente que o aprendiz faça tudo por si, mas
que ele poderá ser beneficiado somente pelo que faz” (FROEBEL, 1896 apud KISHIMOTO,
PINAZZA, 2007, p. 45). Em uma mini-história da Escola Mimo de Gente, as professoras
Samantha e Tatiane narram uma cena da vida cotidiana da turma em que Lorenzo, um menino
de 5 anos, percebendo seu cansaço e sabendo que na sua sala de referência havia um espaço
para descanso, organizou-se para poder atender sua necessidade. Esse fato exemplifica a força
que há em um espaço que está organizado de modo que descentralize do adulto e favoreça que
a criança tome a iniciativa em atender suas necessidades. Entendo que pensar a auto-atividade
não pode estar apenas voltado às situações de brincadeira ou de alguma outra atividade
considerada mais estruturada, mas a todas as situações da vida cotidiana que são fontes
inesgotáveis de aprendizagem dos meninos e meninas.
267
Esse conceito pode ser interessante para levarmos em conta a relação existente entre a
organização dos espaços e a descentralização do adulto, visto que, se satisfatório, a criança pode
criar sua própria atividade de acordo com as condições externas ofertadas. Estamos falando
aqui de uma negociação entre condições internas (iniciativa, interesse, autonomia das crianças
e sua capacidade de agir) e condições externas (qualidade do espaço organizado para as
atividades das crianças). Nesse sentido,
268
aprendizagens”. Ou seja, essa mudança na organização do espaço cria uma dinâmica menos
verticalizada entre adultos e crianças e mais aberta aos processos de co-construção do
conhecimento. Assim,
Como foi tratado no tópico anterior, a circunscrição dos espaços em áreas distintas
favorece uma outra dinâmica entre as crianças, das crianças com os adultos e de cada criança
consigo mesma, redefinindo o papel do professor.
Um dos elementos-chave para pensar a circunscrição dos espaços é apoiar diferentes
brincadeiras e atividades das crianças. Por isso, observar as necessidades e características de
cada faixa etária, assim como o modo de auto-organização das crianças são fatores
fundamentais para a definição de quais e de quantas áreas serão necessárias para ser
organizadas, por exemplo, em um grupo de crianças de 2 anos, o modo como elas se auto-
organizam é absolutamente distinto do modo que as de 4 anos fazem. Enquanto as mais velhas
já brincam em grupos de 3 a 5 crianças, as menores brincam individualmente ou em duplas, ou
269
seja, ainda não constituem a noção de grupo. Do mesmo modo, as crianças de 2 anos têm um
fascínio por subir e descer desníveis, além de possuírem um grande prazer em se esconder em
pequenos espaços. Enquanto que as crianças de 4 anos gostam de construir cenários e enredos
mais complexos para suas brincadeiras, experimentar papéis sociais a partir de jogos simbólicos
e a desenhar, recortar, colar e brincar com papéis (deixar marcas).
Esses são alguns exemplos que, longe de tentar definir características gerais e abstratas
para cada faixa etária, são, na verdade, algumas características que temos observado no interior
das escolas do OBECI para conseguir estruturar a organização dos espaços de acordo com cada
grupo etário. O fato é que a estruturação das áreas circunscritas precisa ser organizada tendo
em vista a dinâmica do grupo de crianças que habita aquele espaço e, longe de ser apenas espaço
recreativo, precisa se converter em um contexto que acolhe as subjetividades das crianças e cria
um sentido de pertencimento.
O arquiteto coreano Yi-Fu Tuan, em sua obra Topofilia: um estudo da percepção,
atitudes e valores do meio ambiente111, define o conceito de topofilia como sendo “todos os
laços afetivos dos seres humanos com o meio ambiente material” (TUAN, 1980, p. 107). Com
isso, o arquiteto dá um nome para uma amplitude de sentimentos e emoções que os ambientes
produzem. Tuan (1980) associa ainda o valor emocional e o prazer que o meio ambiente
desperta, conferindo um novo status, o de lugar. Mais tarde, o mesmo autor tem publicado no
Brasil a obra Espaço e lugar: a perspectiva da experiência em que aprofunda essa diferenciação
entre esses dois conceitos, mostrando que, embora possa parecer se tratar da mesma coisa, o
significado do lugar está diretamente vinculado à emoção a que nos relacionamos com um
determinado espaço, encontrando e ou transformando-o em um lugar (TUAN, 1983).
Nos estudos desse arquiteto, sua análise direciona para o valor perceptivo que há entre
a relação dos sujeitos com o meio ambiente e mostra que, apesar de todos dispormos dos
mesmos sentidos, a experiência e a noção de mundo que cada indivíduo tem é diferente em
virtude da cultura em que está inserido. Nesse sentido, o arquiteto mostra a estreita relação
existente entre os aspectos biológicos e os culturais para perceber e se relacionar com os
espaços.
Tomando emprestados os conceitos de Tuan, entende-se que, ao circunscrever o
espaço da sala referência em áreas, é preciso considerar a dimensão topofílica, ou seja, é preciso
111
A obra Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente foi originalmente publicada
em inglês no ano de 1974. No Brasil, teve a primeira edição publicada com a revisão técnica e tradução da
professora Lívia de Oliveira (UNESP). Em 1983, a obra Espaço e Lugar: a perspectiva da experiência também
foi publicada no Brasil e, mais recentemente, Paisagens do medo (2006).
270
se perguntar de que forma as crianças estabelecem elos afetivos com os espaços que ocupam e
que elementos no espaço contribuem para que este se torne lugar.
Quando a criança começa a falar, sente a necessidade de nomear e ordenar o que está
a sua volta. Interessar-se pelo meio ambiente físico e conhecê-lo faz parte de sua tarefa de
organizar suas vivências. Assim, conforme vai crescendo, começa a estabelecer laços com
objetos e lugares (TUAN, 1983). Um exemplo de organização do espaço é a sala das professoras
Karin e Sissa da faixa etária de 2 anos112. No mapa elaborado pela coordenadora pedagógica,
são sinalizados quantos espaços e quais espaços as professoras organizaram. Na comunicação
que foi apresentada no início desta seção, podem ser percebidos os diferentes usos das crianças
em relação às áreas e como elas vão transformando os espaços em lugares habitados pela
infância.
112
A sala das professoras é reorganizada diariamente para o horário do sono, isso explica porque a área central é
mais livre.
271
Observar, portanto, as crianças para construir as áreas circunscritas é elemento-chave.
Não se trata apenas de dividir o espaço em pequenos ambientes, deslocando armários da parede,
mas de responder às necessidades e interessas das crianças de tal modo que se criem opções
diversas para as crianças brincarem e investigarem seu entorno.
Um outro elemento importante para pensar a circunscrição do espaço é o conceito de
ambiente psicológico que Gariboldi (2011) toma emprestado de Kurt Lewin. Segundo
Gariboldi (2011, p. 100), “o comportamento humano está em função, tanto das características
do indivíduo como do ambiente. [...] a influência do ambiente é decisiva não apenas por suas
características objetivas, mas também pelo como se representa na mente da pessoa”. Seguindo
esse raciocínio, a circunscrição do espaço em pequenas áreas também deve considerar a
dimensão daquilo que é gerenciável pelas crianças, o que oferece a elas um “[...] espaço de vida
do sujeito” (LEWIN, 1951 apud GARIBOLDI, 2011, p. 100). Uma grande sala sem limites
compatíveis com o tamanho das crianças é absolutamente perturbador, pois não oferece a
possibilidade das crianças definirem e estruturarem os modos como o seu entorno mais próximo
pode e deve funcionar. Por outro lado, quando há limites claros, a criança consegue estabelecer
normas de funcionamento, decidir sobre quem pode fazer parte e quais os códigos autorizados
dentro daquele lugar.
Quando aprendemos a observar as crianças, notamos que sempre que elas se
encontram em uma sala que não tem circunscrições, é dada a oportunidade delas inferirem no
espaço, muito possivelmente elas criem – por meio de almofadas ou cadeiras – limites para sua
área de brincadeira, ou escolham um lugar pequeno – como embaixo da mesa do professor –
para brincar. Isso não é um simples detalhe, mas uma necessidade auto reguladora da criança.
Ou seja, o espaço de vida do sujeito se estrutura a partir dos fatores físicos e sociais em que “as
iniciativas lúdicas, as condutas sociais e o grau de atenção da criança influenciam em seus
processos de aprendizagem” (GARIBOLDI, 2011, p. 101). Um exemplar do que estou me
referindo aqui é a mini-história com a jornada de Isis e Milena na comunicação apresentada
inicialmente, pois mostra o valor das áreas circunscritas e o modo como as meninas vão
gerenciando a participação de outras crianças, como transitam entre as áreas e a forma como
criam enredos lúdicos.
A circunscrição do espaço também precisa ser analisada a partir da ideia de
continuidade. Na medida em que as crianças reconhecem as possibilidades que os espaços
circunscritos oferecem, podem antecipar as atividades que querem desenvolver em cada espaço
e desfrutar do prazer do já sabido. Por isso, ter os materiais adequados (blocos de madeira na
272
área de construção; canetas hidrocor, tintas, pincéis, argila e papéis na área do ateliê, por
exemplo) disponíveis para as crianças em cada área circunscrita, é também permitir que elas
possam tomar iniciativas sobre o que, como, quanto e quando desejam fazer algo, concentrando-
se no seu processo e nas interações que dali emergem. Quando o espaço não é uma constante
transformação e responde a uma certa continuidade, associada a sua satisfatória organização,
‘fala-se menos de ordem e antes se propicia um cotidiano ordenado em que a criança possa ser
autônoma e cooperativa” (OLIVEIRA-FORMOSINHO, ANDRADE, 2011, p. 12).
No entanto, não pode ser confundido continuidade com paralisia. A organização dos
espaços precisa ser flexível o suficiente para responder às necessidades das crianças que, por
sua vez, possivelmente se transformem ao longo do ano, ou seja, “segue o metabolismo das
transformações em relação ao uso e à função das coisas” (BRANZI, 2013, p. 134). Em uma
turma de berçário, por exemplo, os bebês começam o ano sem engatinhar e muitos terminam
caminhando. Automaticamente, o modo como o espaço deve estar organizado precisa responder
a essas transformações das crianças. Do mesmo modo, em períodos mais quentes, áreas com
água são mais adequadas do que nos períodos mais frios, ou, ao contrário, nos períodos mais
frios, ter pequenos ninhos com almofadas que aquecem são mais interessantes que no verão.
Quando é organizado o espaço em áreas circunscritas, além de gerar mais espaços (ou
lugares) dentro de um único espaço, também é uma forma de criar “um espaço para cada coisa
e um espaço para todos” (ÒDENA, 1995, p. 34). Como o tamanho dos espaços cria um
microclima propício para as relações das crianças, a circunscrição dos espaços acaba se
transformando em “um sistema difuso de incubadoras no qual novos vínculos podem ser
ativados e criados dentro das redes de relações” (MALAGUZZI, 2001, p. 59).
273
a situação, a disponibilidade. O outro cenário, as emoções dos acontecimentos, diz respeito ao
que emergem das experiências documentadas. Trata-se da possibilidade de dar visibilidade
àquilo que é invisível: é o dito e o não dito, o que se sabe e o que não se sabe, o que se pensa e
o que não se pensa sobre os acontecimentos.
Nós precisamos que alguém nos narre a vida. Somos constituídos por essas narrativas
que nos são feitas ao longo de nossa existência. Barcena e Mèlich (2000, p. 113) irão dizer que,
“ao narrar para o outro, a história de vida de um pode adquirir sentido para a existência tanto
do narrador como do personagem da narração”. Ao narrar para a criança no espaço que ela
habita, cria-se uma identidade emocional em relação ao ambiente, além dela ir aprendendo
como aprende, ou seja, de ver restituídos seus processos como uma possibilidade de
metacognição sobre sua própria aprendizagem, como pode ser visto na comunicação que foi
apresentada inicialmente quando essa se refere ao senso de pertencimento ou quando mostra o
papel do professor em observar, registrar e comunicar os processos das crianças.
Quando os espaços comunicam, narrando as aprendizagens das crianças, eles “revelam
a presença das crianças mesmo quando elas estão ausentes” (CEPPI, ZINI, 2013, p. 33). Dão
identidade e valor pedagógico aos vestígios da infância, geram uma espécie de “pele psíquica,
uma segunda pele provedora de energia constituída de textos, imagens, objetos e cores” (CEPPI,
ZINI, 2013, p. 33).
Comunicar a identidade do espaço também pode servir para recuperar as memórias
dos acontecimentos de cada área circunscrita, ou mesmo das identidades de determinados
lugares, como refeitório, banheiros e entradas das escolas. Compor esses espaços com imagens
ou outros elementos da cultura reforça um microclima e dá importância para aprendizagens
banalizadas. As imagens a seguir, por exemplo, foram captadas pela diretora Ivana e pela
coordenadora Vanessa ao longo da investigação que o grupo gestor fez sobre as microtransições
para que o banheiro da escola fosse ambientado com as marcas identitárias daquele lugar.
274
Também o espaço pode comunicar o
patrimônio cultural, artístico, científico, ambiental que
a nossa sociedade vem construindo ao longo dos anos,
criando laços de conexão entre a criança e o mundo de
que ela faz parte, como nesta imagem da sala da
professora Raquel que organizou a sala com imagens
dos insetos, tema de investigação das crianças. Essa é
uma característica da comunicação do espaço, mas
também da habitabilidade e da significatividade. Isso
significa uma ruptura aos desenhos estereotipados e à
ideia de “decoração” com personagens de desenhos
animados. Ao contrário, assume-se que as escolhas
que são feitas para compor a identidade do espaço são
expressões das nossas crenças sobre as crianças, sobre
a docência e sobre a Educação Infantil.
2.3 Os materiais
275
cuidadosas, vorazes ao tocarem algo. Já se sabe, a partir dos estudos da neurobiologia e da
neurociência, o “coprotagonismo dos sentidos na construção do conhecimento e da memória
individual e coletiva” (CEPPI, ZINI, 2013, p. 24).
Nesse sentido é que destaco o conceito de multissensorialidade (CEPPI; ZINI, 2013),
ou seja, a abertura do corpo em sua inteireza para a experiência sensorial no e com o mundo
evoca à sinestesia o seu papel na cognição, na criação e até mesmo na formação dos processos
identitários. Segundo Ceppi e Zini (2013, p. 24), “o estado sinestésico é a condição de vida
típica da plasticidade sensorial das crianças pequenas”.
No entanto, como comentam Ceppi e Zini (2013), com a transformação do panorama
tátil devido à industrialização no pós-guerra, a sensibilidade do tato muda radicalmente devido
ao empobrecimento dos contrastes entre os materiais: a madeira é alisada e passa por um longo
processo de industrialização até chegar ao receptor, a ascensão do plástico domina a paisagem
tátil das pessoas. Empobrece a variedade de materiais e empobrece a nossa capacidade de
percebê-los.
Quando se pensa no binômio material e escola, também pode remeter a uma paisagem
sensorial bem empobrecida, basta considerar as listas de materiais enviadas às famílias e ver as
filas de pais comprando os “materiais escolares” nas
papelarias no início de cada ano. Em função disso, a
reflexão sobre os materiais é um tema importante para
pensarmos como uma das categorias dos Organizadores
da Ação Pedagógica. Mudar a compreensão sobre qual
tipo de material deve compor a paisagem de
materialidades de uma escola significa interpelar a
compreensão que temos da construção do conhecimento
pelas crianças e qual o papel que o contexto tem nisso.
Por isso é que, conectado ao conceito de
multissensorialidade, deve estar o de polimaterialidade,
ou seja, é preciso que as crianças tenham acesso a uma
amplitude de materialidades para amplificar e
complexificar suas percepções e compreensões do seu
entorno. No entanto, a polimaterialidade não pode ser
entendida como a construção de um tapete ou painel dos
sentidos para que as crianças caminhem artificialmente
276
em um dado momento do dia dedicado a isso; ao contrário, a polimaterialidade deve estar
presente no entorno dos meninos e das meninas, na vida cotidiana, como nas imagens da sala
da professora Raquel, na Escola Espaço Girassol, em que se percebe que a ampla variedade de
materiais são fontes de exploração e de inventividade das crianças, que nesta cena testam suas
hipóteses sobre as casas dos insetos. Nesse sentido, há um forte convite para que seja revista a
paisagem visual de cada sala referência e de cada escola e que transformem aquele cenário de
cores primárias e predominantemente plástico por uma outra estética, que dá abertura a uma
paleta de cores, de texturas, de odores e de formas muito mais ampliada e diversificada.
Tonucci113 (2008, p. 11) define “o termo ‘materiais’ no sentido mais estrito e elementar
possível, indicando só aquele que em si não é nada, que não tem absolutamente nem forma e
nem significado próprio e por isso espera que quem o utilize dê forma e significado”. A questão
é que esse autor associa os materiais com a possibilidade de expressão e comunicação da criança
com o mundo, tentando diferenciar assim da ideia de materiais como “[...] passatempos
estúpidos [...]” (TONUCCI, 2008, p. 14). Ou seja,
os materiais são pontes entre o eu interno da
criança e o eu externo, são possibilidades de
materializar (forma e estrutura) conceitos, de
interpelar a cultura. Não querendo estabelecer
paralelos entre as crianças e os artistas, mas, tal
como uma obra que se concretiza pela experiência
do artista com os materiais, as crianças também
necessitam de uma ampla e rica materialidade que
permita, mesmo em um sentido inicialmente
exploratório e mais tarde projetual, concretizar
suas ideias. Gosto dessa cena da EMEI Joaninha
em que Isabely decide fazer um bolo de
aniversário com material não estruturado, tema
que estão investigando profundamente com o
grande grupo.
113 Tonucci se interessou por escrever sobre os materiais, tema não muito usual em suas obras, devido ao seu
encantamento pessoal com as materialidades que lhe remetiam a sua própria infância e ao sentido expressivo que
eles ocuparam na sua vida. Esse autor é um dos poucos da pedagogia que encontrei tratando sobre o tema. Os
demais autores com os quais trabalho, neste capítulo, são oriundos dos campos da arquitetura e das artes visuais.
277
Nesse sentido, acredito que o tema dos materiais, desde a perspectiva que Tonucci
apresenta, é de grande relevância no atual cenário em que muitas crianças vivem. O forte apelo
da virtualidade cada vez mais precoce distancia a criança da concretude do material, ou seja,
daquilo que faz com que ela descubra as propriedades da materialidade e, consequentemente,
corporeifique os conceitos decorrentes da sua experiência. Também essa virtualidade não abre
espaço para as crianças saírem de si mesmas, ou seja, não se presta tal qual os materiais, a ser
uma ponte entre o interior e o exterior dos meninos e das meninas. É por isso que muitos estudos
hoje têm apontado ressalvas na relação coexistente entre o desenvolvimento da linguagem e o
tempo de exposição a computadores, tablet, celular.
Vila e Cardo (2005, p. 47) igualmente observam que “o que habitualmente se entende
por brinquedo, que oferecem uma grande gama de cores e outras qualidades, nos parecem que
provocam ações limitadas; são atrativos à primeira vista, mas pobres em brincadeira e em
criatividade para as crianças”. Não se trata de demonizar os brinquedos, mas de reclamar a
atenção que se deve dar a outros tipos de materiais, que usualmente não se concebem como um
material escolar, e, assim, transformar as paisagens sensoriais das escolas.
Para começar a tratar sobre os tipos de materiais que podem compor o cenário
educativo, retomo a definição dada por Tonucci (2008, p. 11):
Se por materiais queremos indicar tudo aquilo com o que se faz algo, que serve para
produzir, para inventar, para construir, deveríamos falar de tudo o que nos rodeia,
desde a água à terra, das pedras aos animais, do corpo às palavras... inclusive das
plantas e a nuvens [...]. Também as roupas, brinquedos e livros... Porque tudo isso
pode ser material para construir nas mãos de uma criança que vive em um ambiente
onde inventar é lícito e desejável.
A ideia central do que estou tratando como material está diretamente ligada à ação da
criança com ele. Não é apenas o material em si que me interessa, mas a possibilidade de
negociação entre a ação da criança e o material que dá o valor do ponto de vista educativo. Na
exploração das crianças em relação ao seu entorno físico e social, elas tocam, experimentam,
colocam, tiram, apertam, jogam, deixam cair, esfregam, batem, empilham, montam,
desmontam, equilibram, desequilibram, repetem, reagem ao que sentem, expressam... e tantas
outras ações que poderiam ir ampliando a lista de tudo aquilo que fazem para ir compreendendo
os fenômenos a sua volta. E assim, “esse descobrimento dos diferentes fatores que compõem
278
nosso entorno faz do gesto dos meninos ou das meninas uma atividade de espírito científico, no
qual, através da curiosidade, conhecem nosso mundo” (VILA, CARDO, 2005, p. 17).
Nesse sentido, quanto mais ampliada for nossa compreensão sobre as propriedades dos
materiais, mais podemos oferecer para as crianças em termos de possibilidades e acesso.
Goldschmied e Jackson (2006) sugerem uma lista ampliada de materiais que podem ser
utilizados para o cesto de tesouros e que servem de grande inspiração, tais como materiais
naturais (castanhas, nozes, conchas, pedras etc), objetos feitos de materiais naturais (alças de
sacolas, bolas de lã, cestos etc), objetos de madeira (colher, cubos, castanholas etc), objetos de
metal (chaves, correntes, forminhas etc), objetos de couro, têxteis, borracha e pele (bola de
borracha, bolsa de couro etc) e papel e papelão (caixas, cilindros etc).
Ceppi e Zini (2013, p. 82-83) se referem a mapas polares, destacando os adjetivos que
ajudam a perceber as percepções sinestésicas dos materiais. A partir desse mapa, também se
consegue visualizar uma lista infindável de possibilidades de materiais a partir das propriedades
destes.
Aqui cabe destacar que a ideia do que é material natural e material artificial não tem
limites tão bem definidos. Como lembram Ceppi e Zini (2013, p. 84), o debate sobre o quão
natural é um material está diretamente ligado com as noções do pensamento moderno e pós-
moderno, “a opinião moderna considerou por muito tempo que a redução fosse um fenômeno
positivo, enquanto a cultura pós-moderna de hoje valoriza mais [...] a coexistência de diferentes
materiais com lógicas contrastantes, em sistemas descontínuos”.
Para Ceppi e Zini (2013, p. 84), “o conceito de ‘natural’ está sujeito à verificação, e a
atenção mudou o foco para o grau de manipulação de um material, o quanto ele foi processado
e se fornece alguma informação sobre suas características ‘genéticas’ ou se elas foram
transformadas”. Para esses autores, a definição do que é natural parece estar localizada no
280
quanto se consegue perceber e acessar a materialidade em sua unidade original, ou seja, a
centralidade é a matéria em si.
Já para Palasmaa (2011, p. 30, grifo do autor), “os materiais naturais expressam sua
idade e história, além de nos contar suas origens e seu histórico de uso pelos humanos. Toda a
matéria existe em um continuum temporal”. Diferentemente da visão anterior, a qualidade dada
ao material como natural está na sua temporalidade, ou seja, na sua história. O arquiteto
finlandês se refere a esse aspecto justamente contrapondo ao material industrializado, que não
permite aos nossos olhos perceber sua idade, e alerta: “esse temor dos traços do desgaste e da
idade se relaciona com nosso medo da morte” (PALASMAA, 2011, p. 32).
Meu interesse não é tanto em colocar limites tão definidos sobre o que é natural ou
artificial (industrializado), mas de compreender que a escolha dos materiais entra em sintonia
com fatores:
• Ambientais – temos que nos sensibilizar a produzir menos lixo e saber
aproveitar os recursos que temos em abundância no nosso entorno (terra, areia,
pedras) sem devastá-los. Essa conexão das crianças com os materiais do seu
entorno religa (resgatando a etimologia da palavra religião) os meninos e as
meninas ao mundo natural, creditando a eles “a responsabilidade de estabelecer
novos modos de estar e relacionar-se com o nosso entorno” (FOCHI, 2015d, p. 6);
• Culturais – há uma história em cada material. Na cultura gaúcha, por exemplo,
uma cuia de chimarrão tem um enredo cultural, tal como pode ser visto na
comunicação apresentada quando Isis e Milena sentam para uma roda de
chimarrão. Tonucci (2008, p. 15) comenta que alguns materiais “[...] estão unidos
à milenar história artística e artesanal do homem, desde as grandes obras de arte de
todas as épocas até as pequenas e preciosas obras artesanais daqueles ateliês que
hoje estão desaparecendo”. Os materiais criam enredos narrativos e simbólicos
para as crianças; além disso, a relação estabelecida por elas com os materiais,
dominando seus usos, é um modo de participar e pertencer a uma determinada
cultura;
• Econômicos – é preciso encontrar alternativas viáveis para garantir que os
contextos educativos tenham uma variedade e riqueza de materiais e que não seja
custoso ou insustentável do ponto de vista financeiro. Dialogar com empresas
locais que tenham determinados tipos de materiais de descarte, ou convidar as
281
famílias para prestarem atenção aos materiais que descartam em suas casas (potes,
caixas, chaves, correntes, mangueiras etc) pode ser uma alternativa razoável.
• Potencial criativo – a definição de quais materiais devem ser ofertados às
crianças deve ser balizada pelo seu potencial criativo. O arquiteto Simon Nicholson
(1972, p. 5), fundador do conceito da teoria das partes soltas (loose parts), acredita
que “a criatividade é jogar com os componentes e variáveis do mundo para
experimentar e descobrir coisas novas e formar novos conceitos”. Para ele, quanto
maior as possibilidades de interação das crianças com uma variedade de materiais,
maior capacidade de experimentar e criar novas respostas aos problemas do seu
entorno ela terá.
Por isso, a escolha que temos feito é de ampliar os tipos de materiais a partir de sua
qualidade (tecido, madeira, plástico, vidro), durabilidade (resistente, delicado, efêmero) e
fisicalidade (textura, temperatura, cor, cheiro, sabor).
A escolha dos materiais está diretamente associada às nossas crenças sobre o tipo de
escola, à imagem de criança e à função do professor. Tonucci (2008) estabelece uma relação
entre os materiais escolhidos e os três tipos de escola114: das liçõezinhas, da livre expressão e
da que investiga (TONUCCI, 1977). Segundo o autor, na escola das liçõezinhas, “os materiais
são os instrumentos para comentar a lição da professora com desenhos e trabalhinhos. E do
mesmo modo que a liçãozinha é autoritária, o uso dos materiais é passivo” (TONUCCI, 2008,
p. 13). A passividade dos materiais se assemelha à compreensão que nessa escola se tem da
criança e do seu processo de conhecimento.
Na escola da livre expressão, os materiais deixam de ser passivos e ganham a
centralidade. O objetivo é o próprio material, no entanto, como adverte Tonucci (2008, p. 14),
“a atividade por si mesma, a criança que pinta por pintar, modela por modelar, provoca a
repetição de estereótipos”. Como não há nenhuma ponte que conecte o desejo da criança com
o material, após ela esgotar as possibilidades encontradas por ela própria, parte para um outro
material.
114Já tratei a respeito das três escolas que Tonucci nomeia no capítulo sobre o OBECI – sugiro colocar o número
do capítulo.
282
Já na escola que investiga, “os materiais não são nem
passatempo estúpidos, nem objetivos de atividades, mas sim [...] os
meios para expressar-se e comunicar-se” (TONUCCI, 2008, p. 14).
Nesse modelo de escola, os materiais servem à criança para inventar,
criar, experimentar, investigar e concretizar suas ideias, são
instrumentos para elaborar e responder aos problemas que a criança,
um grupo de criança ou o próprio adulto reconhecem. Quando as
crianças começam a se fazer perguntas sobre a sombra, por exemplo,
a professora oferece materiais que ajudam as crianças a compreender
melhor e mais profundamente sobre suas perguntas de investigação,
como nas imagens das professoras Samantha e Tatiana da escola
Mimo de Gente.
A partir dessas ideias, no OBECI, temos feito o exercício
de problematizar a respeito dos materiais considerando que a criança
possa:
a) Escolher os materiais que lhe interessem;
b) Agir sem muita intervenção adulta; portanto, deve ser seguro o suficiente
para que a criança utilize;
c) Explorar por conta própria;
d) Criar enredos narrativos e visuais;
e) Combinar diferentes materiais para ampliar e complexificar suas
brincadeiras;
f) Ter tempo para brincar com os materiais;
g) Acessar os materiais sem depender do adulto;
h) Ter acesso à diversidade de tipos;
i) Ter acesso à quantidade satisfatória;
j) Ser apoiada na exploração dos materiais quando estes exigem o
conhecimento de determinadas técnicas;
k) Descobrir a resposta natural dos materiais (se deixar cair um vidro, por
exemplo, quebrará);
l) Criar suas próprias coleções de materiais.
Em troca, para atender a isso, é preciso que o professor fique atento para alguns fatores
essenciais:
283
• Segurança – é uma premissa básica, o professor precisa estar suficientemente
seguro na escolha dos materiais ofertados. Para as crianças bem pequenas, por
exemplo, materiais como sementes ou com pontas precisam ser avaliados – ou
evitados. Além disso, certos tipos de materiais podem ser utilizados, mas terão uma
durabilidade menor, implicando sua substituição ou retirada. A higiene dos
materiais também é um fator de segurança, por isso vale dizer que determinados
materiais podem ter uma demanda diferente de higienização do que outros, de
qualquer forma, é preciso prever a higienização com uma certa regularidade. O
essencial é estar suficientemente tranquilo em relação aos materiais para
possibilitar que o adulto não fique mediando a interação das crianças;
• Diversidade – é importante compreender que a qualidade, fisicalidade e
durabilidade dos materiais são fontes de informações para as crianças; por isso, na
medida em que se amplia a paisagem cromática, textual, de odores, de sabores, de
peso, de temperatura, um universo de possibilidade, de linguagens, de conceitos,
de símbolos, de sensações se amplia para as crianças. Quanto mais rica for a
diversidade de materiais ofertados para as crianças, mais possibilidades de
investigação elas terão.
• Quantidade – é fundamental oferecer muito do mesmo, especialmente quando
se fala de materiais não estruturados. As crianças são colecionadoras e uma
quantidade satisfatória amplia as possibilidades de “fabricação” pelas crianças, ou
seja, da combinação dos materiais as crianças fabricam novas estruturas a partir da
união, separação, experimentação (SINCLAIR; STAMBAK 2012). Além disso,
uma quantidade satisfatória de materiais diminui os conflitos, já que as crianças
não ficam ansiosas por tomar posse do material já que este é escasso.
• Negociabilidade – é um elemento importante saber eleger materiais que entre
eles geram novas combinações e possibilidades. Ao contrário das práticas
correntes, os materiais individualizados não são oferecidos com a premissa de
esgotar as suas possibilidades (um dia caixas, outro dia tecidos, outro dia cordas).
Quando o professor reflete sobre as qualidades dos materiais e oferece às crianças
certas combinações de materiais, permite que os meninos e meninas negociem a
relação entre os materiais e os explorem potencialmente, assim, oferecendo em um
mesmo dia cordas, caixas, tecidos, prendedores de roupas, muitas coisas podem
284
surgir. As professoras Viviane e Julia, fomentando
o interesse das crianças da faixa etária de 2 anos da
EMEI João de Barro sobre as construções,
ofereceram blocos translúcidos com um foco de
luz, que ao mesmo tempo que possibilitavam a
construção real com os materiais, virtualmente se
formava a sombra da construção com diferentes
texturas para sombra produzida, já que o material
era feito de madeira e acrílico colorido. Essa é uma
bela amostra do que pode gerar a negociabilidade
dos materiais.
• Acesso – é fundamental pensar no acesso,
quando se fala em materiais. Isso significa
problematizar a capacidade do adulto em
selecionar quais materiais, em qual quantidade e de
que forma eles podem ser disponibilizados para as
crianças. É importante que, na organização do espaço, como já discutido
anteriormente, cada área tenha disponíveis os materiais que a correspondem, por
exemplo, blocos, caixas, cones, cds, entre outros materiais, na área de construção;
tintas, pincéis, folhas, argila, tripés na área do ateliê. Novamente, a função dos
materiais é que a criança possa saber escolher qual responde melhor a sua intenção,
ao seu desejo em fazer algo.
• Organização – é feita uma ruptura na necessidade do adulto ordenar quando se
organiza um ambiente, como destacam Oliveira-Formosinho e Andrade (2011). O
modo como os materiais são armazenados, disponibilizados e a manutenção disso
é fator decisivo para que ele mesmo regule o uso por parte das crianças.
Finalmente, vale lembrar que todos os espaços da escola podem se valer dessas
reflexões a respeito dos materiais. A relação da criança com seu entorno, em sua inteireza de
sentidos e percepções, não tem hora e nem espaço, é da própria estrutura vital da criança
conhecer e se relacionar com o mundo.
285
2.4 A organização do tempo
Se é verdade que existe uma pedagogia no espaço e nas materialidades, também é que
existe no tempo educativo. A reflexão sobre a organização do tempo que aqui faço parte do
pressuposto de que há uma via dupla que precisa ser conciliada dentro da escola: (i) o tempo
institucional, ou seja, o fluir e o ritmo das diversas situações cotidianas que envolve desde os
horários de entrada, saída, momentos das refeições até os períodos de trabalho dos funcionários
e usos dos espaços, e (ii) o tempo das crianças, que, embora elas já participem de um espaço
social fora do ambiente familiar desde muito cedo – portanto, já sendo expostas à coletividade
e a todas as estruturas que em cada espaço social existe –, ainda se encontram em processo de
elaboração da construção do sentido do tempo que emerge a partir das próprias vivências que
compartilham nos diferentes espaços que frequentam. Nigito (2004; 2011) observa que, nas
ciências sociais, essas duas vias é o que se reconhece pelo conjunto de significados culturais e
sociais e a subjetividade individual do tempo.
Nesse sentido, pensar a gestão do tempo dentro das escolas não é uma questão apenas
de estruturação objetiva, mas de “[...] um dispositivo de socialização e de aprendizagem [...]”
(NIGITO, 2004, p. 45). Isso porque a especificidade das crianças que frequentam a Educação
Infantil envolve, ao mesmo tempo, construir sua própria noção interna de tempo e compreender
e internalizar a noção social do tempo.
Daí o interesse em compreender a organização do tempo nas escolas, uma vez que se
reconhece que a experiência educativa que os meninos e as meninas vivem dentro das
instituições influencia o modo pelo qual constroem sua própria identidade e o modo como
poderão, não apenas participar dos tempos sociais, mas também interrogá-los115. Nessa mesma
linha, Nigito (2004, p. 44) destaca que “a aquisição de um sentido de tempo compartilhado por
parte da criança pequena e a própria possibilidade de conceituar o tempo são fortemente
influenciadas pelo modo como ele é gerido [...] pelos adultos que têm responsabilidade
educativa”.
Dentro do OBECI, considerando o papel que os adultos e a instituição ocupam na
construção da noção do tempo pelas crianças e o modo como a estruturação desse tempo
repercute diretamente no respeito e no bem-estar dos meninos e das meninas, temos apostado
115 Barbosa (2006; 2013) vem discutindo a necessidade de interrogarmos a noção de tempo que as crianças estão
vivenciando dentro das creches e pré-escolas, chamando atenção, especialmente, para o fato de que as instituições
estão inseridas as crianças precocemente ao tempo do capital. Outros autores, como Staccioli e Ritscher (2005),
Ritscher (2011) e Francesch (2009), também reivindicam a lentidão do tempo nas escolas como uma noção de
respeito e de contradiscurso a essa sociedade que valoriza demasiadamente a produtividade.
286
na perspectiva de compreender a organização do tempo partindo da ideia de jornada educativa.
São várias as razões que nos ajudam a sustentar essa ideia, começo pela questão etimológica da
palavra.
A palavra jornada, etimologicamente falando116, está conectada à palavra dia (dies, em
Latim). No Latim vulgar, a palavra dia se transformou em diurnus, referindo ao que acontece
diariamente, todos os dias. Dessa base, surgiu diurnata, o que se faz em um dia e, logo, no
Italiano, giornata e, no Francês, journée, o trabalho ou o trajeto feito num dia. Com o passar
dos anos (por volta do século XVI), a palavra jornada, que carregava consigo o sentido de
tempo e espaço, perde seu acento no sentido temporal e passa a ser relacionada quase que
exclusivamente a distância, ao trajeto.
Curiosamente, a palavra jornaleiro – que originalmente significa “aquele que é pago
por dia de trabalho” e atualmente se utiliza apenas para “vendedor de jornais” – se conecta, do
ponto de vista etimológico, com a palavra jornada. Em Francês, papier journal significava
“escrito diário, texto renovado a cada dia” que, com o tempo, acabou ficando apenas a palavra
journal, que, no português, utiliza-se jornal. Daí que nossa metáfora para pensar o tempo é a
jornada, pois, além de falar do transcorrer de um dia, envolve também aquilo que é renovado a
cada dia, mesmo na estrutura prévia e conhecida que se repete. Todos os dias da semana as
crianças vão para escola, tem uma mesma sala de referência com um mesmo grupo de colegas
e um mesmo professor (ou mais). Chegam, lancham, brincam, almoçam, descansam, fazem
outro lanche, brincam novamente e se despedem para, no próximo dia, repetir todas essas
situações novamente. Essa é a linha de continuidade da jornada, que em uma certa medida, faz
com que as crianças possam ir reconhecendo a estrutura do seu dia, o que as tranquiliza. No
entanto, a renovação dessa repetição também gera uma abertura para que a novidade apareça.
O prazer do já sabido possibilita se aventurar em novas descobertas que produzem a
descontinuidade, outra linha que trama a jornada educativa. As relações que são travadas entre
as crianças, delas com os adultos e com seu entorno, é o elemento primordial para a renovação,
no sentido de abertura ao novo. Nigito (2004, p. 44), tratando sobre os elementos da
continuidade e descontinuidade do tempo, sugere que este é em um jogo de oscilações que “se
traduzem em uma vivência que se articula entre o pólo do familiar, do habitual e do previsível,
e o pólo do inédito, do inesperado e do estimulante”.
116Essas informações foram organizadas a partir do site Origem da Palavra, www.origemdapalavra.com, que se
ocupa em tratar exclusivamente da discussão sobre a etimologias das palavras.
287
A predominância de qualquer um dos extremos – só o familiar ou só a novidade –
parece não ser interessante para as crianças (e também para os adultos). Se todos os dias a
jornada educativa é um caos, as crianças não conseguem se dedicar aos processos do que estão
vivendo porque precisam compreender o tempo todo a estrutura. Por um outro lado, se é sempre
igual, rotineiro, não acolhe a novidade que as crianças carregam consigo117.
Um outro fator que nos mobiliza a pensar a gestão do tempo como jornada educativa
é a ideia de colocar o acento no giorno (dia) da criança. Muitas vezes, crianças que permanecem
em turno integral nas instituições e têm dois professores distintos (e as vezes, com o mesmo
professor) vivenciam dois turnos totalmente desconexos, apenas conectados pelo horário do
almoço, tendo em vista o modo como o tempo é pensado e organizado118. Assim, ao invés de
pensar na rotina como elemento decisório para organizar o tempo, a reflexão se direciona em
sentido à jornada da criança na escola, ou seja, como uma tentativa de acolher o seu tempo
subjetivo em meio às outras temporalidades: das outras crianças, dos adultos, da instituição.
Nesse mesmo sentido, dentro da jornada educativa, estão contemplados os distintos
momentos que a compõe: de brincar, de pátio, de refeições, de higiene, de descanso, de estar
com o grande grupo escutando uma história, de estar em pequenos grupos envolvidos em uma
investigação, de chegar, de partir etc. Todos esses momentos, de igual valor pedagógico,
precisam ser refletidos desde o momento em que a criança chega à escola até o momento de ir
embora. E, como lembra Ritscher (2011), o que está em jogo é como as crianças o vivem, e
não, simplesmente, passar por eles (novamente, como uma corrida de obstáculos).
Na medida em que é compreendido que o acento deve estar na jornada da criança, é
legítimo que, em uma turma de berçário (bebês menores de 2 anos), por exemplo, desconstrua-
se a lógica de que todas os bebês devem comer, descansar e ser higienizados ao mesmo tempo
em nome da rotina institucional. Para os bebês, esses momentos precisam ser o mais
individualizado possível, porque, antes de ser uma oportunidade social (que será mais tarde), é
um momento de saciar suas necessidades físicas e uma aprendizagem individual: aprender a
comer, aprender a utilizar os apetrechos do momento da comida (talheres, prato, copo). Um
bebê não consegue “esperar mais cinco minutos” para almoçar e depois dormir, pois sua
117 Malaguzzi (2001) já falava sobre a criança ser portadora do inédito. Arendt (2007) também se refere aos novos
em seus começos, referindo-se à natalidade.
118 Godoi (2015) em seu estudo de mestrado, orientado pela professora Mônica Appezzato Pinazza, trata a respeito
Nigito (2011) propõe que se estranhe a arquitetura temporal das escolas, partindo do
pressuposto de que o modo como a organizamos não seja um fato incontestável, muito pelo
contrário, seja compreendido como escolha e esta deve estar sujeita a ser contestada, revisada,
transformada. Para essa autora, a arquitetura temporal engendra as dimensões afetiva,
psicológica, social e objetiva (física) do tempo, que, juntas, constroem um sentido que não é
apenas da ordem do tempo objetivo e subjetivo, mas da própria existência dos sujeitos
(NIGITO, 2011).
Entendo que interrogar essa arquitetura temporal envolve ampliar a compreensão sobre
a organização do tempo na escola para além de sua dimensão institucional, mas vê-la como
estratégia para gerar bem-estar para as crianças e os adultos, para criar a oportunidade do
119Quando definitivamente compreendermos isso, não veremos mais bebês pegando no sono enquanto almoçam
porque os professores o fizeram esperar. E, mais triste ainda, ver professores filmando e achando engraçada uma
cena de tamanho desrespeito e descuidado. Isso era o que Pikler chamava de doces maldades.
289
encontro e da partilha, para construir um ritmo em que os meninos e as meninas possam
encontrar tempo para construir sentidos pessoais e coletivos, ou seja, elaborar sua experiência.
Barbosa (2006) critica que o modo como o tempo na Educação Infantil está organizado
pendula entre o tempo mecânico e a inserção ao tempo do capital. Para a autora,
Nesse sentido, não se trata nem do tempo mecânico e nem do tempo da produção, o
que desejamos é que a jornada educativa seja refletida como um tempo em que as necessidades
das crianças sejam contempladas e que sirvam de horizonte para pensar as temporalidades da
instituição.
Alguns postulados importantes que nos orientam é o de que a criança possa:
a) Brincar diariamente, quer seja no pátio, quer seja na sala referência;
b) Ter tempo para se alimentar, descansar e viver as situações de higiene sem
pressa;
c) Ter tempo para levar a cabo suas investigações pessoais;
d) Compartilhar de propostas em pequenos ou grandes grupos sem ser
apressada;
e) Desfrutar do prazer de descobrir e de fazer algo, para que não se transforme
em tarefas a serem cumpridas;
f) Ter tempo para viver as microtransições entre os diferentes momentos da
vida cotidiana;
g) Ter tempo para explorar livros, fantasias, jogos simbólicos e canções em
que experimente papéis e enredos lúdicos;
h) Ter tempo para estar com os amigos;
i) Ter tempo com situações de deleite e prazer;
j) Ter tempo para narrar e compartilhar suas teorias, ideias e histórias;
k) Ter tempo de chegar e de se despedir.
Como pode ser visto, nesses postulados, a dimensão de tempo que se reivindica nos
ambientes educativos se traduz basicamente pelo tipo de atividade das crianças e pelo modo
como o adulto a propõe.
290
Por isso, para dar conta desse desafio, a estrutura que tenho proposto é partir da lógica
de que todas as crianças vivem situações de alimentação, descanso ou repouso, de higiene ou
de se higienizar e de se vestir ou se desvestir. Para esse grupo de atividades, tomo emprestado
o conceito de Emmi Pikler, no Instituto Lóczy, e as nomeio de atividades de atenção pessoal.
Não sendo essas atividades, há outro conjunto amplo que envolve todas as demais: brincar,
investir em algo, ouvir uma história, cantar uma canção, pintar, esculpir, entre outras, e que,
embora reconheça que possam ser individuais, em duplas, trios, pequenos grupos ou grande
grupo, tenho chamado de atividades coletivas, ou seja, mesmo sendo singular, designa-se ao
que acontece na coletividade120.
Por um outro lado, o adulto pode propor as diferentes situações (atitividades de atenção
pessoal ou coletivas), conduzindo-as a partir de um arranjo que dê a possibilidades das crianças
optarem. Dentre estas situações, por exemplo, podemos ter o descansar após o almoço para as
crianças de 4 anos que se caracteriza como uma atividade de atenção pessoal e poderia ser um
momento optativo, ou seja, as crianças que desejam descansar podem ir para o local apropriado
para isso e as que não queiram terão outras opções do que fazer (jogos de mesa, ver livros etc).
O desenho para mostrar esse encontro entre a atividade da criança – que é sempre a
base – e o modo como o adulto a propõe podem ser visualizados no esquema a seguir. São
quatro quadrantes que expressam isso: atividade de atenção pessoal em momentos conduzidos;
atividade de atenção pessoal em momentos optativos; atividade coletiva em momentos
conduzidos; atividade coletiva em momentos optativos.
120Òdena (1995) comenta que é difícil tentar catalogar as distintas atividades das crianças em uma instituição; no
entanto, como a própria autora observa, é importante tentar fazer certas circunscrições para tomar consciência e
para auxiliar o adulto a organizar sua prática pedagógica.
291
A ideia não é delimitar exatamente como cada situação cotidiana pode ser classificada,
mas criar um cenário reflexivo que possa auxiliar o professor a problematizar o modo como
organiza a jornada educativa, escapando da armadilha de justificar que o tempo institucional é
o que determina, ou que as crianças podem fazer o que querem. A escola, sendo uma instituição,
tem uma estrutura que precisa estar em harmonia com as necessidades das crianças, dos pais e
dos profissionais. A grande questão é não continuar colocando as necessidades das crianças em
segundo plano, ou responder a uma ideia de organização da jornada educativa pautada na
expectativa da produtividade.
Vale destacar sobre o tempo das microtransições, tão importante e tão apagado das
reflexões dos adultos. Entre um momento e outro, é fundamental que se reflita de que modo o
professor intervém e propõe a mudança da situação. Na
comunicação que foi partilhada no início deste capítulo, a
professora passou a convidar as crianças que estavam brincando
no pátio individualmente para ir para a sessão que ela havia
programado para um pequeno grupo. Essa mudança aconteceu
após a coordenadora convidar as professoras a refletirem de que
modo poderiam transitar entre o grande grupo para o pequeno
grupo de um modo generativo, ou seja, que “[...] pode constituir-
se uma ocasião de crescimento e aprendizagem” (OLIVEIRA-
FORMOSINHO; PASSOS; MACHADO, 2016, p. 36). Pensar
as microtransições como parte da jornada educativa significa
mobilizar outras estratégias para construir o fluir da jornada de
modo que respeite as crianças. Outro fragmento de nossas
investigações que acredito demostrar o valor do tempo das
transições é essa cena em que a professora Jéssica da EMEI João
de Barro, observando que uma das crianças poderia necessitar
ser trocada, dirige-se até a menina e conversa com a ela a
respeito e depois pergunta se pode verificar sua fralda. Esse
trecho, parte da investigação sobre as microtransições,
demonstra um salto de compreensão sobre o tempo das
microtransições, mas também sobre o tempo das relações, do
respeito e da importância do papel do adulto.
292
Um outro aspecto que gostaria de destacar é que, em nossas observações, percebemos
que uma sequência de momentos conduzidos deixa as crianças exauridas. Mais ainda, quando
começamos a fazer uma análise do como estavam organizadas as jornadas educativas das
escolas participantes do OBECI121, percebemos que há uma forte tendência de que isso ocorra
sem que se perceba o quanto é enfadonho para as crianças. Um exemplo clássico é o período
do final da manhã para o início da tarde. Em geral, as crianças têm uma proposta conduzida no
final da manhã, depois almoçam, são todas colocadas para dormir, acordam e são convidadas
para uma roda de conversa que antecipará o lanche da tarde e, na sequência, uma nova proposta.
Em termos do tempo- relógio, estamos falando do intervalo de aproximadamente 5 horas, entre
as 10 horas da manhã até as 15 horas da tarde. Em todo esse tempo, as crianças passaram por
momentos conduzidos pelo professor. Quando se observa isso com algum guia de reflexão,
pode-se reorganizar a jornada educativa criando intervalo com momentos optativos. Seguindo
o exemplo dado, antes do almoço, é melhor que as crianças estejam em um momento optativo
(por exemplo, brincando nos espaços da sala ou no pátio), depois que acordam, poderão
novamente brincar nos espaços da sala ou no pátio. Quebrando a sequência de, no máximo, 3
situações consecutivas de momentos conduzidos com um momento optativo, muda-se
radicalmente a relação das crianças com os adultos, porque muda a relação delas com o tempo,
os espaços e as relações.
Seguramente, esse é um tema que pode ser estudado de forma ampliada, buscando
compreender os padrões de comportamento das crianças e alternativas distintas para conseguir
conciliar o tempo de cada menino e menina com o tempo da instituição.
121 E eu tenho feito isso em diferentes situações (tais como consultorias, estágios etc) e o resultado é o mesmo.
293
disso, o desenvolvimento humano é inseparável dos processos sociais, porque é resultado da
participação do sujeito na cultura e na sociedade.
Essa crença pressupõe a natureza social do conhecimento, e, portanto, acredita-se que
isso ocorre a partir de uma construção que nasce do sentido da ação humana, daquilo que Bruner
(2006) chama de qualidade nata do ser humano, que é a curiosidade em aprender para fazer uso
dos instrumentos culturais da nossa sociedade (BRUNER, 2008; ROGOFF, 1993). Logo, essa
visão se opõe a ideia de que o conhecimento é acabado, pronto e fechado, e que, por isso, ocorre
por vias de aquisição.
Por esse ângulo, o papel da educação na aprendizagem negociada está em ajudar a
criança a criar sentido sobre sua própria experiência, a negociar significados com outras
crianças e adultos, em um contexto de diálogo, simbolização e prazer pelo reconhecimento do
próprio processo de aprender (metacognição).
Segundo Forman e Fyfe (2016), o papel dos professores na aprendizagem negociada é
o de compreender as hipóteses e teorias das crianças sobre seu entorno e conseguir traduzir, em
um contexto que as oportunize, possibilidades de experimentarem e de se sentirem encorajadas
a compartilhar suas explicações sobre distintos fenômenos (sociais, culturais, naturais etc).
Mesmo para os bebês e para as crianças bem pequenas, que não se utilizam da palavra para
narrar sua própria experiência, é possível “[...] explorar novos objetos ou materiais de modo
que o professor (observando suas estratégias) possa inferir quais são as suas teorias”
(FORMAN; FYFE, 2016, p. 250). Além disso, a aprendizagem negociada está diretamente
ligada à Documentação Pedagógica. Isso quer dizer que também é papel do professor saber
narrar para argumentar sobre as jornadas de aprendizagens dos meninos e das meninas, não
apenas para torná-las visíveis, mas para restituir à própria criança os seus percursos de
aprendizagem.
Como pode ser visto, negociar, compartilhar, dialogar, são palavras estruturantes para
essa perspectiva de aprendizagem. Logo, a pergunta que pode ser feita nesse momento é se
conseguimos imaginar um grupo de 20 crianças negociando e dialogando ativamente sobre
algum problema ou produto em comum ao mesmo tempo. Possivelmente a resposta seja
negativa. O que se pode encontrar na literatura sobre esse tema é que a construção de um
contexto que favorece as relações é fundamental para o processo de socialização das crianças
(ISAACS, 1973; EDWARDS; GANDINI; NIMMO 1994; MALAGUZZI, 2001; JOHNSON;
JOHNSON, 2001; TOGNETTI, RUBINO, ZINGONI, 2003; KRECHEVSKY, MARDELL,
2009; SAVIO, 2011).
294
Com isso, já se anunciam dois pontos importantes: o primeiro, a socialização é uma
aprendizagem complexa, ou seja, se desenvolve por uma conjugação de múltiplos fatores que
estão relacionados às categorias geracionais, aos grupos sociais de que as crianças participam,
ao suporte que adultos ou crianças mais experientes oferecem aos meninos e meninas. Barbosa
(2017, p. 7) lembra que o conceito de socialização tem se modificado nos últimos anos,
especialmente na assunção da ideia do “ser humano como sujeitos plurais, em constante
construção e atualização, em um processo de socialização que também não é único, mas com
muitas e diferentes influências e interpretação dessas influências”. Também Savio (2011, p.
132) ressalta que sustentar as atividades sociais em um grupo “necessita capacidades de
elaboração refinadas para compreender e conectar a variedade e quantidade de informações,
pontos de vista e demandas, a princípio contraditórias, que caracteriza a participação em um
grupo”.
Daí o segundo ponto, as condições do ambiente que as crianças estão inseridas são
estruturantes para a promoção de contextos relacionais. Nesse sentido, a competência do adulto
em criar configurações de diferentes arranjos de grupo para responder melhor às necessidades
das crianças é fundamental, além do apoio que pode oferecer para as crianças construírem os
recursos internos necessários para estar em um grupo com outras crianças.
Um parâmetro empírico significativo, para nós do OBECI, é observar o modo como
as crianças se arranjam em suas brincadeiras. O bebê começa a brincar sozinho e, aos poucos,
compartilha sua atenção com outro bebê. Um pouco mais tarde, as crianças começam a brincar
em duplas e, conforme o tempo vai passando, começam a agregar uma ou duas crianças a mais
em suas brincadeiras (formam, aos poucos, trios). Até o final dos seis anos, idade da Educação
Infantil, possivelmente o máximo de crianças reunidas ativamente em uma mesma situação não
passe de seis crianças.
Seguindo nesse raciocínio, é fácil compreender as razões do porquê se dá valor para
os pequenos grupos de aprendizagem. No Observatório, temos afirmado, desde o princípio, que
a prática pedagógica precisa se organizar a partir de estratégias que auxiliem a criança a
construir seus conhecimentos na interação com outras crianças e adultos, em que o que está em
jogo não é apenas o conteúdo intelectual da situação, mas os conteúdos e processos emocionais,
afetivos e sociais. É em meio a essas situações que, além da criança aprender a construir
explicações sobre seu entorno, ela também aprende a estar com os outros de uma maneira
respeitosa e a se sentir respeitada.
295
Ou seja, estamos tratando – assim como já abordado no organizador do tempo – do
fato de que a socialização da criança também precisa ser interpretada desde um ponto de vista
pedagógico. Nesse sentido, Savio (2011, p. 137) observa que é preciso compreender
profundamente a respeito dos processos de socialização das crianças para ir mais além do
simples agrupamento por razões administrativas, já que “a socialização natural não pode ser
considerada garantia de desenvolvimento e aprendizagem”.
Isaacs (1973) ressalta três condições para socialização das crianças: a primeira, a
estabilidade do grupo, que oferece para as crianças a possibilidades de ir se conhecendo melhor
e conhecendo seus pares para compartilhar experiências, apoiar e sentir-se apoiada pelo grau
de intimidade e confiança construído. A segunda, a qualidade do ambiente, especialmente no
que diz respeito à natureza lúdica, está diretamente relacionada com os organizadores do
espaço e dos materiais, pois, como já foi mencionado anteriormente, a possibilidades das
crianças atuarem com liberdade no espaço e de se autogestionarem está relacionada ao tipo de
material e ao modo como o espaço está organizado. Por fim, a terceira condição é a presença
do adulto, que deve ajudar o grupo a regular-se e auxiliar nos momentos em que é necessária a
compreensão de novos recursos relacionais que as crianças desconhecem (por exemplo, como
ela pode dizer ao colega que naquele momento ela precisa de um material que se encontra de
posse dele).
Portanto, se é certo que a socialização faz parte de um processo de aprendizagem,
também é que a gestão pedagógica pode ser de grande valia para a construção do sentido de
grupo a partir do modo como se organiza a jornada educativa, já que estar juntos não é suficiente
para estar em um grupo de aprendizagem.
296
é preciso ter presente que não apenas em situações “conduzida[s] em primeira pessoa pelo
adulto que as atitudes sociais das crianças se desenvolvem, mas é em espaços íntimos e em
situações de duplas, e progressivamente em pequenos grupos, que as crianças realizam as
primeiras experiências sociais entre pares”. Assim, tanto do ponto de vista da dinâmica da
jornada quanto das diferentes necessidades das crianças, promover arranjos distintos de grupo
representa a qualidade profissional de uma equipe em pensar a ecologia pedagógica em seu
amplo aspecto, que é educar e cuidar crianças em uma escola.
Construir um horizonte reflexivo para a organização dos grupos é uma forma de evitar
que a única oportunidade das crianças estarem em pequenos grupos aconteça apenas quando o
professor realiza o que comumente se define como “pátio livre, atividade livre”. Ou melhor, ter
a consciência da importância da aprendizagem social é compreender que “a interação entre as
crianças tem um valor fundamental na experiência dos primeiros anos de vida. Trata-se de uma
demanda, de um desejo, de uma necessidade que toda criança tem e que quer satisfazer em
situações adequadas que favoreçam essas interações” (MALAGUZI, 2001, p. 58).
Por esse ângulo, no OBECI, nossa reflexão caminha em sentido a garantir que a criança
possa:
a) Viver em um ambiente que favoreça a construção das relações;
b) Construir amizades e estar próxima dos amigos;
c) Viver situações estáveis com pequenos grupos para fortalecer relações;
d) Compartilhar de investigações com seus pares com tempo suficiente e
materiais adequados;
e) Estar sozinha quando assim desejar;
f) Ser ouvida quando desejar se manifestar no grande grupo;
g) Ser respeitada no seu desejo de ficar em silêncio;
h) Ser apoiada na busca de recursos para expressar seus desejos, suas emoções
e sentimentos;
i) Viver conflitos tendo no adulto o suporte para compreendê-los.
Um aspecto importante de ser destacado é o longo processo que exige para construir
um clima de cooperação e de envolvimento entre as crianças em um grupo. Isso requer
estratégias conscientes por parte dos adultos e a abertura para ir modulando a prática pedagógica
com vistas a esse horizonte.
Krechevsky e Mardell (2009, p. 286) definem grupo de aprendizagem como “um
conjunto de pessoas que estão envolvidas emocional, intelectual e esteticamente na solução de
297
problemas, na elaboração de produtos e na construção de significados”. Para chegar a esse grau
de envolvimento, que caracteriza efetivamente um grupo de aprendizagem, é preciso criar um
ambiente que favoreça a qualidade social dos pequenos grupos (SAVIO, 2011), isto é, gerar um
clima de confiança e intimidade ligado a um percurso de aprendizagem social das crianças que
se dá pelo quão habituadas estão em construir jornadas de aprendizagens em pequenos grupos.
Nesse sentido, passo agora a explorar algumas ideias particulares dos diferentes
arranjos de grupo ao longo da jornada educativa.
298
Para Malaguzzi (2001, p. 58), “as interações das crianças em pequenos grupos
permitem negociações e dinâmicas mais frequentes, interessantes, produtivas e diversas, e não
menos importantes que as que se dão entre crianças e adultos”. Isso decorre exatamente pelo
clima amistoso que ocorre, ou seja, há menos variáveis por parte das crianças para gerenciarem
(menos crianças, menos variáveis). Para o pedagogo italiano,
Do ponto de vista de situações de conflitos que podem surgir, tanto as crianças têm
mais condições de gerenciá-las como os professores podem intervir de forma que auxiliem as
crianças a compreender a situação em si.
Também interessa sublinhar que, em um grupo de bebês, dando como exemplo uma
sessão de cesto dos tesouros, organiza-se um trio ou um quarteto de bebês para configurar uma
sessão que contribua com o ambiente tranquilo que essa modalidade do brincar exige. No
entanto, é muito comum que, durante as sessões, os bebês permaneçam parte significativa do
tempo explorando os objetos sozinhos. Porém, é importante destacar que, nesse caso, o olhar
interessado de um bebê para o modo como o outro bebê explora um objeto faz parte dos
primórdios dos jogos de interação entre os bebês (STAMBAK et al, 2011; GOLDSCHMIED,
JACKSON, 2006). Assim, a organização do pequeno grupo está para criar o ambiente adequado
para as necessidades das crianças e favorecer que esse prelúdio do jogo social aconteça.
299
(MALAGUZZI, 2016, p. 83), em que as crianças elaboram suas próprias regras, administram
os modos como podem funcionar, experimentam papéis, vivenciam conflitos, resolvem os
conflitos etc. Na comunicação apresentada no início deste capítulo, há diversos episódios que
exemplificam isso: no momento em que a professora convida as crianças que participarão da
sessão, as demais estão no pátio brincando; no trecho em que é abordado o tempo do grande
grupo, também se evidencia o modo como as crianças se arranjam nos espaços e, com mais
força ainda, na mini-história sobre a Jornada de Ísis e Milena, mostra a jornada das duas
meninas nos diferentes espaços e os diferentes enredos lúdicos criados por elas.
Cabe ressaltar que essa é, na verdade, uma situação em que as crianças estão no grande
grupo, mas o modo como o ambiente está organizado (em termos de tempo, espaço e materiais)
promove que elas se auto-organizem em pequenos grupos. Por isso, diferentemente dos
pequenos grupos nas sessões, aqui ocorre um fenômeno distinto, em que algumas crianças serão
mais flutuantes, ou seja, não permanecerão muito tempo em nenhum agrupamento de crianças
mas também não levarão a cabo uma brincadeira sozinha; outras crianças poderão permanecer
longos períodos brincando sozinhas; já outras poderão estabelecer duplas, trios ou pequenos
grupos e darão continuidade em um longo período nessa configuração.
Já em grupos de bebês e crianças bem pequenas, os processos de interação geralmente
acontecem por aquilo que Stambak e Barrière (2011) chamam de “pré-colaborações” de uma
atividade compartilhada: um começa a guardar objetos em um receptáculo e outro inclui-se na
brincadeira. Um outro exemplo é a organização de pequenos lugares para os bebês se
esconderem, ou mesmo, a oferta de objetos como tecido, caixas e potes. Essa brincadeira do
aparecer e do desaparecer cria, entre os bebês e dos bebês com os adultos, enredos lúdicos que
favorecem a ampliação dos jogos sociais. Embora a temporalidade dessas relações seja distinta
das crianças maiores, é fundamental que o adulto compreenda que há “um equilíbrio entre os
dois polos, cognitivos e afetivos” (STAMBAK; BARRIÈRE, 2011, p. 48), logo são os
primórdios do jogo social entre as crianças.
Na investigação sobre as microtransições, por exemplo, a diretora Silvana, da Escola
Espaço Girassol, acompanhou as chegadas e despedidas no berçário, e um dos desdobramentos
da organização do espaço e da oferta de materiais não estruturado nesses momentos foram as
brincadeiras que os bebês começaram a criar entre eles. Esse recorte de uma das cenas em que
Laís se aventura em entrar na caixa enquanto Manuela observa o desafio é uma situação
300
interessante para observar a relação entre os bebês em
situações que eles próprios se organizam. Uma vez que as
condições do entorno oferecem essas possibilidades, os
desafios são partilhados e sustentados pelo olhar cúmplice
de uma amiga que apoia a jornada de aprendizagem da outra
e celebram a conquista.
301
No caso dos bebês, não recomendo que seja proposto que todos estejam em uma
situação de grande grupo. Mesmo em momentos como contar uma história ou compartilhar uma
canção, é mais adequado seguir a própria configuração dos bebês do que os colocar em roda.
Se aproximar de um ou dois bebês e interagir com ele(s) a partir de um livro ou de uma canção,
responde melhor às suas necessidades.
Cabe destacar que temos discutido significativamente sobre a prática de contar
histórias na Educação Infantil dentro do OBECI. Entendo que contar uma história é uma das
formas de mediar a leitura, mas não a única. Em geral, destaco que a mediação de leitura pode
ser feita por meio (i) do acesso a livros pela própria organização da sala; (ii) da participação do
adulto como leitor, ou seja, se disponibilizando a ler livros dessa área da sala com livros; (iii)
do uso de livros informativos como recurso de pesquisa com as crianças, inclusive,
disponibilizando a elas e (iv) do compartilhamento de histórias pelo puro deleite. Nesse último
caso, por exemplo, é o que envolveria o grande grupo, mas compartilhar uma história precisa
ser com o único interesse de dividir com as crianças um produto da cultura. É momento de
compartilhamento e não de trampolim para projetos. Particularmente, não considero adequado
utilizar livros de literatura infantil para serem utilizados como porta para projetos. Um livro de
literatura precisa se bastar nele mesmo, é a experiência literária e humana que está em jogo.
Como pode ser visto, há diferentes possibilidades para criar arranjos do grupo, o que
não apenas responde a uma necessidade vital das crianças, como cria possibilidades de
transformar a própria experiência de estar com as outras crianças em uma privilegiada
oportunidade de aprendizagem social.
302
Malaguzzi (2001), Hoyuelos (2006), Rinaldi (2012) e Oliveira-Formosinho (2016)
afirmam que, a partir da imagem que temos de criança, construímos nossos sistemas de relação
com elas, ou seja, se partimos de uma criança que ainda não é, anteciparemos a ela tudo o que
precisa para tão logo “ser”, mas, se nossa imagem de criança está centrada no que ela já é,
buscaremos uma posição nessa relação que acolha seu mundo interno e a encoraje para construir
significados no mundo que acaba de chegar. Também a partir do nosso imaginário, de nossas
crenças, das nossas experiências como aluno, da nossa formação e da nossa cultura, temos uma
ou mais imagens sobre o que é ser professor. Cabem muitas imagens na intersecção entre
criança e professor no ambiente da Educação Infantil.
Muitas vezes, as crianças, na Educação Infantil, estão sujeitas a uma dupla relação
assimétrica de poder: primeira, do adulto frente à criança na sociedade, que considera agressão
quando dois adultos brigam, maus tratos quando se machuca um animal, mas considera
educação dar palmadas nas crianças. Essa mesma sociedade considera engraçados e divertidos
vídeos e postagens em redes sociais de crianças em situação vexatória, inclusive publicadas por
aqueles que são responsáveis por elas. Segunda, a relação naturalizada dentro do ambiente
escolar entre professor e aluno, que pressupõe que o professor é quem define tudo, até mesmo
o que a criança deve sentir, pensar, comer e fazer em longas jornadas diárias. Ademais,
considera adequado as crianças andarem em fila segurando a camiseta uma das outras, que ri
de um bebê pegando no sono durante o almoço, que grita, que ameaça. Enquanto essas relações
não forem interrogadas, nós continuaremos a reproduzir as mazelas e as desigualdades da
sociedade no modo de estar com os meninos e as meninas.
Não se pode atribuir única e simplesmente à proporção adulto-criança o modo como
se dão as relações na Educação Infantil. É também isso, mas muito mais. É uma imagem de
criança que não sente, que não pensa, que não é, que não ascendeu à categoria do humano, e,
por isso, autoriza-se esse tipo de relação122.
Como um modelo alternativo de estar com as crianças, que admiro e desejo que todas
possam ter, remeto-me ao “convite especial” que as professoras Karin e Sissa fazem para cada
criança antes de começar a sessão, aproximando-se delas e convidando-as123, como narrado na
comunicação que abre os Organizadores. É sútil, por vezes, quase imperceptível, mas
radicalmente diferente do que dar três palmas e soltar um grito em meio ao pátio anunciando
122 Por um outro lado, não me espanto, em um país que ovaciona um presidenciável que exalta torturador e que
chama “esse povo dos direitos humanos” como um grupo querendo privilégios, é, no mínimo, compreensível,
porque gera tanto espanto tratar com dignidade as crianças.
123 E lembrando que antes de irem ao pátio, as crianças e as professoras, em grande grupo, já haviam combinado
a organização da jornada.
303
que a criança A, B, C e D devem se aproximar da professora para ir para “a atividade” ou, pior,
chamar o grupo todo para colocar 20 crianças a fazer algo ao mesmo tempo. É preciso estar
muito consciente do nosso papel com as crianças para que cada instante seja permeado por
“essa cultura da hospitalidade na forma de se aproximar do outro também como acolhida,
enigma, incógnita ou mistério” (HOYUELOS, 2017, p. 12).
Hoyuelos (2017), em um artigo brilhante sobre a relação adulto e criança, compartilha
algumas cenas de professoras que ele admira pela forma como se relacionam com cada menino
e menina. Para esse autor, a questão que as une é que cada uma “tem muito claro que o encontro
com o outro é de respeito e não de domínio” (HOYUELOS, 2017, p. 12). Escolher o respeito
como via da relação com as crianças, além de ser ético, é um ato revolucionário em tempos de
tamanha austeridade frente ao outro.
Ser professor de Educação Infantil implica um gesto de grande responsabilidade, que
requer, além do domínio pedagógico, metodológico e cultural, uma abertura e disponibilidade
para se relacionar com as crianças (CATARSI, 2013). A respeito do professor da primeira
infância, Mantovani e Perani (1999) advertem que essa é uma profissão a ser inventada, e,
embora se refiram especificamente à creche, creio que o apelo não seja diferente para a
Educação Infantil como um todo, como já sublinhado por Rocha e Batista (2015), quando
demonstram que ainda a visão médico-higienista e assistencialista é predominante nas práticas
das professoras.
É importante lembrar que o debate em torno da relação do professor com as crianças
tem efeito no relacionamento com as famílias, abrindo vias de diálogo e de superação de uma
postura binária na educação das crianças. Como destaca Catarsi (2013, p. 10),
Essa visão ampliada e global da criança inclui não apenas a esfera imediata de sua
participação, como é o caso da escola, mas os outros contextos dos quais ela faz parte. Assim,
desde o ponto de vista que educar as crianças é um processo de co-responsabilização entre
família e escola, abrir-se ao diálogo e informar e dar a possibilidade das famílias pensarem
sobre o modo como os professores se relacionam com as crianças pode ser o motor propulsor
para construir novas imagens de criança na sociedade.
Seguindo esse caminho, no âmbito das relações, no OBECI, acreditamos que a criança
precisa:
304
a) Ser respeitada em sua singularidade;
b) Participar dos diferentes momentos da vida cotidiana;
c) Iniciar suas atividades e ser respeitada pelo que está fazendo;
d) Ser acolhida em seus temores, esperanças, incertezas, sonhos e
motivações;
e) Ter suas ideias e voz consideradas como elementos de investigação, de
proposição do trabalho pedagógico.
Nesse sentido, pensando em contribuir com a (re)invenção dessa profissão, mas dando
um especial acento ao tópico das relações, já que acredito que o pedagógico, o metodológico e
o cultural já foram em certa medida tratados124, destaco os pontos a seguir: o acolhimento do
universo das crianças, o desafio de não criar dependência e não criar abandono; além disso, as
interações como o coração da Pedagogia.
Staccioli (2013, p. 25) define muito bem o sentido de acolhimento quando comenta
que esse não pode ser um sentimento restrito a um determinado momento do dia ou do ano, mas
“um método de trabalho complexo, um modo de ser do adulto, uma ideia-chave no processo
educativo”. Quando o acolhimento se transforma em uma postura do adulto para estar com as
crianças, a lacuna que há entre os dois mundos diminui, mudando com isso a hierarquia das
relações e dos diferentes momentos da jornada educativa.
Por esse ângulo, organizar o ambiente em termos de espaço, materiais e tempo é a
tradução concreta do que significa acolher, já que é preciso efetivar, na vida cotidiana, um modo
distinto de estar com as crianças. Da mesma forma, propor situações em pequenos grupos
porque se compreende a natureza organizativa dos meninos e meninas é acolher as suas
necessidades. Não manter centralizado no adulto o pulsar da vida da escola e estabelecer um
ritmo que considera as temporalidades das crianças é sintoma de uma transformação que
compreende que as relações dos adultos com as crianças podem se dar por outras vias.
124Em hipótese alguma, estou querendo separar a dimensão relacional das dimensões pedagógicas, culturais e
metodológicas. Apenas para seguir a indicação de Catarse (2013) e respondendo ao objetivo desta seção, darei
ênfase à dimensão relacional, inclusive evidenciando sua interface metodológica, pedagógica e cultural.
305
Durante uma investigação das crianças da faixa etária 2 da EMEI João de Barro, o
interesse pelas construções foi se ampliando ao longo do ano, de pequenas construções com
blocos e peças menores, passou a grandes construções, como fazer a casa do lobo no pátio. A
professora Viviane, além de já ter acolhido os interesses das crianças por construir, equilibrar,
subir torres, aceitou o convite de um pequeno grupo de crianças que resolveu construir uma
grande casa do lobo cheia de histórias e enredos. Assim, acolher tornou-se um gesto sútil de
disponibilidade e capacidade de saber recuar para não invadir com as próprias expectativas os
interesses das crianças.
Staccioli (2013, p. 28) reforça que “acolher uma criança é, também, acolher o seu
mundo interno, as suas expectativas, os seus planos, as suas hipóteses e as suas ilusões”. Por
isso é que a postura do professor deve criar margens para as crianças levarem a cabo suas ideias
e visões sobre o seu entorno e a si mesmas, em se solidarizar e se comprometer com as
dificuldades das crianças em expressarem seus sentimentos, auxiliando-as a perceber o que está
acontecendo e como podem expressá-las.
306
2.6.2 Não criar dependência e não criar o abandono
Muitas vezes, na busca por um equilíbrio em estar com as crianças, acaba-se caindo
em polarizações. Em um dos polos, está a dependência. Do ponto de vista objetivo, ela ocorre
pelo modo pelo qual está centralizada a relação educativa no adulto para que a criança possa
realizar qualquer tipo de atividade na escola: depender do adulto que pegue um material que
não está acessível, esperar a permissão do adulto para poder brincar depois de uma série de
propostas conduzidas, aguardar na mesa do almoço até que todos os colegas acabem de comer
para poder ir ao banheiro. Do ponto de vista subjetivo, isso ocorre na relação de
interdependência que se cria com a criança nos excessos de elogios e aprovações que o adulto
cria para satisfazer a criança. Isso gera uma dependência emocional que faz com que a criança
só se sinta satisfeita quando o adulto consentiu com a aprovação, não percebendo o seu próprio
sentimento frente à situação (TARDOS, 2008).
No outro polo, está o abandono. Nesse ponto, há um adulto indiferente, que se perde
entre uma visão romantizada da criança e que supõe que ela pode dar conta de tudo ou de que
ela ainda é muito nova para participar, expressar ou compreender algo. Além disso, esse adulto
não cria as condições adequadas para as crianças realizarem suas próprias atividades,
abandonando a criança a sua própria sorte sem fazer nenhum tipo de investimento, sem criar
horizontes para ela. Essa é uma visão que não percebe que a criança se desenvolve pela sua
participação nos contextos em que está inserida, e, portanto, esses contextos pressupõem
interações, acesso aos instrumentos da cultura, diálogos, construção da confiança para realizar
suas próprias atividades etc.
Uma alternativa a esses dois modelos pode ser encontrada nos pressupostos de Emmi
Pikler e de suas companheiras de trabalho no Instituto Lóczy. Para Tardos (2008), uma das
condições fundamentais para a construção da autonomia da criança está na relação adulto e
criança: “a criança, para sentir desejo de atuar, para ser capaz desta aprendizagem baseada na
atividade autônoma, tem a necessidade de uma relação profunda, que lhe proporcione o
sentimento de segurança, condição necessária para um estado afetivo conveniente” (TARDOS,
2008, p. 51).
Assim, Tardos (2008) destaca dois níveis de impacto que a relação adulto e criança
pode gerar na atividade autônoma. O primeiro nível diz respeito aos “aspectos imediatos do
comportamento do adulto” (TARDOS, 2008, p. 53), ou seja, significa o adulto perceber a
distinção entre os seus desejos e projeções frente aos desejos e necessidades das crianças. A
307
autora toma como exemplo um bebê explorando um objeto e atento à atividade que ele mesmo
iniciou, quando o adulto, pela sua necessidade em ter o bebê no colo, desvia a atenção dele
chamando-o ou já o pegando em seus braços. Nesse exemplo, é importante perceber que a
necessidade em ter o bebê no colo é do adulto, não da criança. É óbvio que uma das
necessidades das crianças é corporal e está relacionada ao contato físico, mas não é a única. Daí
que entra o segundo nível, que envolve a forma como a criança é considerada ou identificada
frente ao adulto (TARDOS, 2008). Assim como já mencionei anteriormente que a imagem de
criança que temos é um aspecto-chave para o modo como nos relacionamos com ela, para
Tardos (2008, p. 55), aqui reside toda a estrutura que estabelecerá os códigos da relação: “a
criança é nossa companheira na relação, nossa interlocutora em um diálogo. A criança não é
simplesmente o objeto de nossas atenções e afetos”.
Relacionar-se com a criança como nos relacionamos com outro ser humano pressupõe
que ela sente, tem seus desejos e dará sinais das suas necessidades. Nosso papel, portanto, é
garantir que ela se sinta capaz e sinta prazer em sua própria atividade, que tenha as condições
externas adequada e que possa reconhecer no adulto um parceiro que lhe oferece segurança e
tranquilidade. Esse é o desafio que faz parte da aventura em construir essa trama de relações
respeitosa entre adulto e criança.
a interatividade entre saberes, práticas e crenças, a centração nos atores como co-
construtores da sua jornada de aprendizagem em um contexto de vida e de ação
pedagógica determinado, através da escuta, do diálogo e da negociação, conduzem a
um modo de fazer pedagógico caleidoscópico, centrado em mundos complexos de
interações e interdependências, promovendo interfaces e interações (OLIVEIRA-
FORMOSINHO, 2007, p. 19).
309
O ENIGMA DA VIDA
310
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Olha! Exclama Lívia, surpresa por descobrir que as frutas que manipulava acabaram
pintando suas mãos. Essa também poderia ser a minha exclamação na altura em que me ocupo
a escrever as considerações finais desta tese, não apenas pela surpresa – e alívio – em chegar
ao fim, mas pela emoção que é regressar ao trabalho escrito e perceber a jornada de
aprendizagem construída.
Nas minhas incursões na obra de Malaguzzi, fui compreendendo que conhecer e
aprender, além de ser uma atitude cotidiana, é uma manifestação da nossa relação com o entorno
e que, por isso, conectado à aprendizagem, está o valor da surpresa e do espanto frente ao
mundo. Para Malaguzzi (1988), estética é a capacidade de entrarmos em ressonância com o
mundo, daí que o pedagogo costuma relacioná-la à aprendizagem, nomeando-a como uma
estética do conhecer. Fazer uma tese envolve uma dada estética do conhecer, ou seja, pressupõe
fazer escolhas, estabelecer relações entre as diferentes partes, conjugar vozes, dar mais força
para alguns elementos que para outros, e, especialmente, dar forma (o objeto tese) ao
conhecimento construído ao longo de pelo menos quatro anos.
É justamente por isso que escolhi a mini-história O enigma da vida como abertura para
as considerações finais, pois, inspirado pela surpresa de Livia e Davi, também quero terminar
esta tese expressando o meu testemunho de uma jornada intensa de aprendizagem, quer seja
como formador, quer como investigador. Dentre tantos aspectos que poderia abordar aqui,
escolhi aqueles que são transversais na tese e que poderiam passar desapercebidos, a saber: o
tom narrativo, as vozes da tese, a proximidade como elemento central da investigação
praxiológica e a triangulação da Pedagogia.
Se aventurar em produzir uma tese distante dos domínios que conhecemos – Bruner
(1997b) chama esse percurso de paradigmático ou lógico-científico – foi, sem dúvida, uma
experiência necessária na afirmação do campo de conhecimento ao qual me vinculo: a
Pedagogia. A escolha pela narrativa como forma de construção da realidade (BRUNER, 2001)
está diretamente ligada ao compromisso subjetivo que assumo frente à investigação realizada.
Cada modo de pesquisar nos obriga a fazer escolhas sobre como estruturar a textualidade que
resultará da pesquisa, entendo, nesse sentido, tomando emprestado de Italo Calvino (2015, p.
75), que “escrevemos para que o mundo não escrito possa exprimir-se por meio de nós”. Assim,
escrever sobre a Pedagogia da formação (ou do adulto), a Pedagogia da criança e a Pedagogia
da investigação desta tese me posiciona na narratividade pelo modo como se criam círculos de
311
compreensão em torno do objeto de estudo e pela “preocupação com a condição humana”
(BRUNER, 1997b, p. 15), que é própria da narrativa.
A investigação que dá origem à tese e ao objeto tese são testemunhos de um percurso
em que se buscou compreender de que modo uma comunidade de apoio ao desenvolvimento
profissional, ancorada pela estratégia da Documentação Pedagógica, pode sustentar e gerar um
certo conhecimento praxiológico a partir dos processos de transformações que a própria
comunidade foi provocando. Por isso, especialmente na parte III, narro a criação do OBECI
para tramar a Pedagogia que o sustenta e o conhecimento praxiológico que emerge nesse
Observatório. Também narro as escolhas, os conteúdos, a arquitetura de diálogos (OLIVEIRA-
FORMOSINHO, 2012) que fomos construindo para sustentar nossos processos de formação e
a práxis das professoras nas escolas. Nesse sentido, estou de acordo com a afirmação de Bruner
(1997b, p. 17), quando afirma que “a narrativa trata das vicissitudes das intenções humanas” e,
com isso, ressalta que a narratividade é a melhor estratégia para acolher a atividade mental
humana e sua relação com os instrumentos da cultura.
Também destaco a parte II da tese, quando reconstituo o percurso de Malaguzzi para
elaborar o conceito da Documentação Pedagógica, o tom narrativo abriu espaço para que a
análise dos projetos não perdesse o valor da experiência pedagógica que havia neles. Quando
Bruner (1997b) sublinha as vicissitudes da intenção, recupera qualquer coisa de original da ação
humana, que é agir e reagir ao mundo. A experiência das escolas municipais de Reggio Emilia,
iniciadas pelo brilhante trabalho de Malaguzzi, é um marco em nossa história recente da
Pedagogia exatamente porque mostra como uma comunidade se mobiliza para transformar seu
entorno social depois da devastação de uma guerra. Com isso, não tenho dúvida de que jamais
se “fará Reggio fora de Reggio”, mas também estou certo de que é preciso honrar com o legado
pedagógico que Malaguzzi deixou. A mim e ao OBECI, Malaguzzi é fonte de grande
inspiração. É uma das vozes que nos ajuda a construir nossa jornada de aprendizagem e que nos
impulsiona a usar de determinadas lentes teóricas para responder ao nosso entorno social. Fazer
esse caminho de compreensão sobre sua obra é um modo que encontrei para contribuir com o
campo da Educação Infantil e de explicitar nesta tese a construção de um dos conceitos-chave
de Malaguzzi, e de que, no OBECI, nos valemos para investigar e formar, que é a
Documentação Pedagógica.
Oliveira-Formosinho e Formosinho (2012) destacam que a narratividade também
acolhe as diferentes vozes, os diferentes feitos e as diversas identidades, e, por isso, representa
uma eleição ética de olhar os participantes da pesquisa e de preservar suas identidades. Isto
312
posto, a minha escrita se situa nos domínios da narratividade, pois ao passo que constrói uma
narrativa praxiológica da Pedagogia sobre os processos de transformação, abre as portas para a
compreensão e o diálogo entre as diferentes vozes.
A esse respeito, destaco que um dos desafios que encontrei na escrita desta tese foi o
de conciliar as vozes da tese. Pela abordagem metodológica que escolhi, a investigação
praxiológica, inevitavelmente assumo diferentes vozes dentro do texto, mostrando os diferentes
papéis que ocupei ao longo da pesquisa (como formador, como investigador). Também acolho,
em primeira pessoa (o eu do outro), as vozes das professoras, das coordenadoras pedagógicas,
das diretoras e das crianças, criando uma outra camada no texto, o que confere a ele a polifonia
própria de um texto narrativo.
No entanto, o eu da tese (o meu eu, o eu das profissionais e das crianças das escolas),
muitas vezes, não dava conta e, por isso, foi preciso criar o nós, que não apenas expressa a
minha voz e a voz das profissionais e das crianças das escolas, mas uma nova voz. Ou seja, isso
que parecia ser um problema para a gramática tradicional, constitui-se uma marca ética.
Pendular entre o eu – referindo-me a minha trajetória, investida como formador e investigador
e o eu das profissionais e das crianças – e o nós – referindo-me ao percurso desenvolvido no
diálogo com as professoras, coordenadoras pedagógicas e diretoras das escolas dentro do
OBECI – foi o modo natural que as diferentes vozes desta tese pedagógica dialogaram na
construção do conhecimento praxiológico aqui apresentado.
Nesse sentido, a tese acaba por se transformar em uma terceira voz, que Pascal (apud
OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2016) refere-se como we-ness, ou seja, na soma entre a minha
voz com a voz das profissionais das escolas, não apenas se conciliam as vozes, mas se cria uma
nova voz que é resultado desse diálogo polifônico. Essa terceira voz, o we-ness, resulta de um
processo em que a força das vozes das profissionais com a força da voz do investigador e
formador criam não apenas vozes em conjunto, mas uma terceira realidade, que é a relação
entre as duas vozes que agora compartilhamos e alimentamos em conjunto. O we-ness é a voz
do OBECI, uma voz que se constitui pela minha voz e pela voz de cada profissional que faz
parte dessa comunidade.
Tanto o tom narrativo quanto a polifonia de vozes desta tese pedagógica me parecem
ser uma exigência própria da investigação praxiológica. Aliás, a esse respeito, gostaria de
reforçar o papel que o pesquisador ocupa nessa forma de investigar, já que aqui reside o rigor
e a ética da pesquisa.
313
Como já discutido na parte I da tese, o investigador é o principal instrumento da
pesquisa (FORMOSINHO, 2016) e sua proximidade com o campo é o que torna possível
promover as transformações e compreender a complexa trama em que elas se dão. O duplo
papel de formador e investigador, e o modo como olhei para o cotidiano que não é meu (o das
escolas), mas do qual também faço parte a partir dos processos de formação que desenvolvo
dentro do OBECI e que se desdobram no interior das escola, me exigiu compreender uma outra
temporalidade das transformações.
Isso está melhor expresso na parte III da tese, quando não apenas anuncio o papel do
pesquisador em uma investigação praxiológica (tal como na parte I), mas narro o percurso do
OBECI e, ao narrá-lo, narro o percurso das escolas que o compõem. Essa evidência de um
processo vivido integrado só pôde ser narrada por causa da proximidade, o que me fez crescer
em compreensão sobre os processos formativos, sobre a Pedagogia e sobre a investigação, mas
também me possibilitou traduzir o nosso percurso em um texto pedagógico.
É importante destacar que muitos desafios foram os que vivenciei ao longo dos seis
anos da pesquisa: a dinâmica das escolas, que envolve mudança constante nos quadros
funcionais, a própria movimentação de entrada, saída e permanência das instituições no OBECI,
as expectativas de cada um e suas possibilidades de gerar mudança dentro das escolas em que
atuam, os processos de resistência dos professores, o tempo de compreensão sobre alguns temas
complexos e tantos outros desafios próprios de uma comunidade que envolve diferentes
instituições. Poder acompanhar as demandas que foram aparecendo e respondê-las de alguma
forma me exigiu ter uma certa intimidade suficientemente distante. Esforço que me mobilizou
estar próximo, para acompanhar125 e sustentar os processos de transformação, mas, com
distância, poder oferecer um olhar que ajudasse a desnaturalizar as práticas pedagógicas e o
funcionamento das instituições.
Retomar essa jornada de aprendizagem desenvolvida ao longo da tese também me
remeteu à triangulação da Associação Criança, que institui um modelo de investigação (a
investigação praxiológica), um modelo de formação (a formação em contexto) e um modelo
pedagógico (a Pedagogia-em-Participação) (OLIVEIRA-FORMOSINHO, FORMOSINHO,
2017). Essa triangulação aborda os diferentes âmbitos para o pensar, o fazer e o dizer do
cotidiano pedagógico, pois trata da interatividade entre uma pedagogia do adulto, uma
125 Isso me remete ao que Hoyuelos me disse em uma conversa durante meu estágio doutoral no exterior: “só
critique o que puderes acompanhar”. A proximidade nos ensina a fazer uma crítica que ajuda a migrar para outros
lugares cognitivos, como costuma lembrar Júlia Oliveira-Formosinho.
314
pedagogia da criança e um modo de produzir o conhecimento praxiológico (que se sustenta nas
crenças, valores, teorias e práticas) (OLIVEIRA-FORMOSINHO; FORMOSINHO, 2017).
Também no OBECI temos pensado a respeito disso. Ao longo da tese, explicitei
(especialmente na parte III) a fundamental importância entre a aprendizagem do adulto (em
seus processos de formação) e a aprendizagem da criança (na pedagogia praticada no cotidiano
pedagógico por esse adulto), o que se traduz na partilha de uma visão de mundo, de homem, de
aprendizagem. Quando narro os processos de formação e mostro a interatividade deles com o
cotidiano pedagógico das escolas, não estou tratando de mundos opostos, mas da consequência
de um dado tipo de formação (que, neste caso, é fortemente inspirado na formação em contexto)
com os resultados que ele almeja: qualificar o cotidiano pedagógico das crianças e dos adultos.
Logo, investigar uma práxis situada e contextualizada também requer um modelo que acolha
esses processos de transformação em sua complexidade e dinamicidade, e acolha as
subjetividades das crianças e dos adultos. Daí que, nesta tese pedagógica, escolho a investigação
praxiológica como modelo de investigação.
Por fim, destaco que se perguntar sobre como é fazer uma tese pedagógica implicou
abrir mão dos modelos de tese que faziam parte do meu repertório e apostar numa jornada
intensa de aprendizagem. A construção desta tese foi um exercício de idas e regressos, de
desenhos em mapas mentais, de insistência e abandono, de diálogos, de suspensão, de coragem.
Mas isso me fez perceber o que significa a aventura e a desventura do aprender, e me mostrou,
como sujeito aprendente e curioso que sou, a travessia que significa formar e investigar situado
na Pedagogia, ou seja, de estar engajado eticamente com a vida em processo das crianças, das
professoras, das coordenadoras pedagógicas e das diretoras.
O OBECI foi uma oportunidade singular na minha vida, que, além de ter se
transformado em uma comunidade que apoia processos de desenvolvimento profissional e
organizacional, se transformou em um lugar de luta e resistência frente às desigualdades sociais
e frente aos discursos massivos que vêm ganhado espaço na educação. O OBECI é nosso espaço
de voz – das crianças e dos adultos –, que recupera o passado (por meio da nossa herança
teórica), que cria um presente (por meio do cotidiano pedagógico dos contextos envolvidos) e
que gera um futuro (por meio do conhecimento praxiológico que temos produzido).
315
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niños y peces. Barcelona: Octaedro, 2004.
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p. 129 - www.reggiochildren.it
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p. 131 - REGGIO CHILDREN. The hundred languages in Ministories: told by teachers and
children from Reggio Emilia. Worcester: Davis, 2016
p. 130 - REGGIO CHILDREN. The hundred languages in Ministories: told by teachers and
children from Reggio Emilia. Worcester: Davis, 2016
p. 152 – 165 – Processo Documental, Grupo Gestor, João de Barro; Joaninha; Espaço Girassol;
Mimo de Gente, OBECI, 2017
p. 183 – 1984 - Processo Documental, Grupo Gestor, Mimo de Gente, OBECI, 2015.
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p. 192 – p. 194 – Comunicação, GIA Ciclo de Simbolização, Espaço Girassol, OBECI, 2017.
p. 224 – Folheto, GIA Ciclo de Simbolização, João de Barro; Joaninha; Espaço Girassol; Mimo
de Gente, OBECI, 2017.
p. 284 – Processo Documental, GIA Acompanhamento Projetual, João de Barro, OBECI, 2018.
p. 305 – Processo Documental, GIA Acompanhamento Projetual, João de Barro, OBECI, 2018.
338
APENDICE A – MODELOS DE TERMOS DE CONSENTIMENTO E AUTORIZAÇÃO
Eu,_______________________________________________________________, inscrito(a)
no CPF sob o nº ________________ e portador(a) do RG nº. __________________, residente
e domiciliado na cidade de __________________ /RS, na Rua/Av.
__________________________________________________, na qualidade de responsável
legal do/a meu/minha filho/a, _______________________________________________, que
frequenta a instituição
__________________________________________________________, cedo de forma
gratuita, total e definitivamente a Paulo Sergio Fochi, doutorando em Educação na
Universidade de São Paulo – USP, que desenvolve a pesquisa intitulada: A construção do
conhecimento praxiológico no Observatório da Cultura Infantil - OBECI, na linha de pesquisa
Didática, Teorias de Ensino e Práticas Escolares e orientado pela professora Dra Monica
Appezzato Pinazza (FE USP).
No âmbito desta pesquisa que acontece desde 2013, as instituições participantes são convidadas
a i) registrar o cotidiano para refleti-lo; ii) criar estratégias de intervenção na instituição de
modo a qualificar a ação pedagógica dos profissionais envolvidos (professores, direção,
coordenadores); iii) comunicar as aprendizagens das crianças e os processos de ação dos
professores. Os registros utilizados são realizados pelos profissionais da instituição e ocorrem
através de foto, vídeo, gravações de voz e uso dos exemplares das produções das crianças.
O pesquisador compromete-se a esclarecer qualquer dúvida ou questionamento que
eventualmente os participantes venham a ter durante a pesquisa.
Os responsáveis que aqui assinam, autorizam o uso da imagem e voz para divulgação dos dados
gerados ao longo da pesquisa para fins exclusivos de divulgação acadêmico-científica em
eventos, revistas científicas, livros, capítulos de livros e demais publicações voltadas a área, em
números indeterminado de vezes, haja vista o caráter educacional e pedagógico da pesquisa.
Contato do Pesquisador:
Paulo Sergio Fochi
51 999688214
[email protected]
Assinatura de ciência
Data: ___/___/____
339
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Contato do Pesquisador:
Paulo Sergio Fochi
51 999688214
[email protected]
Assinatura de ciência
Data: ___/___/____
CPF:_________________________
Nome Completo:_________________________________________
340
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Contato do Pesquisador:
Paulo Sergio Fochi
51 999688214
[email protected]
Assinatura de ciência
Data: ___/___/____
CPF:_________________________
Nome Completo:_________________________________________
341
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Contato do Pesquisador:
Paulo Sergio Fochi
51 999688214
[email protected]
Assinatura de ciência
Data: ___/___/____
CPF:_________________________
Nome Completo:_________________________________________
342
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Contato do Pesquisador:
Paulo Sergio Fochi
51 999688214
[email protected]
Assinatura de ciência
Data: ___/___/____
CPF:_________________________
Nome Completo:_________________________________________
343
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Contato do Pesquisador:
Paulo Sergio Fochi
51 999688214
[email protected]
Assinatura de ciência
Data: ___/___/____
CPF:_________________________
Nome Completo:_________________________________________
344
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Contato do Pesquisador:
Paulo Sergio Fochi
51 999688214
[email protected]
Data: ___/____/____
345
APENDICE B – SISTEMATIZAÇÃO DE CARGA HORÁRIA E ATIVIDADE DOS
PROCESSOS FORMATIVOS DO OBECI
346
APENDICE C – SISTEMATIZAÇÃO DOS CONTEÚDOS DOS PROCESSOS
FORMATIVOS DO OBECI
2015
Atividades comum / Microtransição: ir ao
2016 Pensamento Projetual Postura do adulto
turno da manhã banheiro
Microtransição: Microtransição: Microtransição: grande
2017 Transição: adaptação
descanso consignas do adulto grupo – pequeno grupo
Microtransição: Microtransição: Microtransição: grande
2018 Microtransição: Troca
almoço chegadas e partidas grupo – pequeno grupo
Cesto de tesouros, Jogo Cesto de tesouros, Jogo Cesto de tesouros, Jogo Jogo Heurístico,
2015
GIA Ciclo de
2016 Com olhos de criança Com olhos de criança Com olhos de criança Com olhos de criança
Folhas Mandala Os voos de Pedro Para que serve o
2017 umbigo?
Porto Alegre vista Arquitetura de insetos Construções Inventário de Receitas
GIA Acp.
Projetual
pelas crianças
2018
FE – Faixa etária
GIA – Grupode Investigação-Ação
347