Ciencias Sociais 2020-08-10 Dabana Namone
Ciencias Sociais 2020-08-10 Dabana Namone
Ciencias Sociais 2020-08-10 Dabana Namone
DABANA NAMONE
ARARAQUARA – S.P.
2020
DABANA NAMONE
ARARAQUARA – S.P.
2020
DABANA NAMONE
Ao Senhor Deus todo poderoso pela vida, saúde e fé que me deu para acreditar nos
meus sonhos.
Aos meus pais: Cam-nate Namone e Nhinte Nabissum-io (que está com Deus no
outro mundo), arquitetos de toda minha trajetória e aos meus filhos, Miguel Cam-nate de
Lima Namone e Fina Namone, que são motivos da minha luta, da minha inspiração, da minha
alegria e do meu viver.
À toda minha família, pelo apoio material e moral, encorajamento e confiança que
depositaram em mim, principalmente, ao meu falecido irmão Dr. Joaquim Namone. Que a sua
alma descanse em paz. Também, agradeço especialmente a minha namorada e noiva Gisele
Fátima de Lima, pelo amor, ajudas incalculáveis e companheirismo durante essa longa
jornada de estudos e luta.
À UNESP, pela oportunidade de me formar um cientista social, especialmente, ao
professor Dagoberto José Fonseca pela orientação, encorajamento e confiança, mesmo diante
de tantas adversidades que vivi desde a graduação. Aos membros da banca de defesa dessa
tese pelas ricas contribuições, nomeadamente, o Prof. Dr. Edmundo Antônio Peggion da
UNESP/Araraquara - SP, o Prof. Dr. Alexandre Antônio Timbane da UNILAB/Campus dos
Malês – BA, a Profa. Dra. Neusa Maria Mendes Gusmão da UNICAMP/Campinas – SP, a
Profa. Dra. Sabrina Rodrigues Garcia Balsalobre da UNILAB/Campus dos Malês – BA e as
suplentes, a Profa. Dra. Cristina Mandau Ocuni Cá do Instuto Dom Bosco da educação- CE, a
Profa. Dra. Eva Aparecida da Silva da UNESP/Araraquara - SP, a Profa. Dra. Tatiane Souza
da Universidade Federal de Uberlândia – MG. Também, as Profas. Dras. Eva Aparecida da
Silva, Rosane de Andrade Berlinck e Renata Medeiros Paoliello, ambas da
UNESP/Araraquara - SP, que contribuíram imensamente com o meu exame de qualificação.
Ao CLADIN, ao LEAD e, particularmente ao Grupo de Estudos e Pesquisas “União
Africana” (GEPUA) da Faculdade de Ciências e Letras – Campus Araraquara/UNESP que
propiciou que eu pudesse avançar, aprimorar e dialogar sobre temas relacionados aos meus
estudos e interesses acadêmico-científicos, bem como não deixaram de fazer com que eu me
comprometesse cada vez com o meu país e meu povo.
Agradeço de fundo do coração a todas as pessoas que me apoiaram direta e
indiretamente na vaquinha que fiz pela internet, na qual pedi ajuda financeira para realização
da pesquisa de campo na Guiné-Bissau, que resultou nesse trabalho, especialmente à Profa.
Dra. Sabrina Rodrigues Garcia Balsalobre pela correção dessa tese.
A escrita é uma coisa e o saber é outra. A escrita é uma fotografia do
saber, mas não saber em si. O saber é uma luz que existe no homem.
A herança de tudo aquilo que nossos ancestrais vieram a conhecer e
que se encontra latente em tudo o que nos transmitira [...]”
Na Guiné-Bissau falam-se várias línguas étnicas e a língua crioula, a mais falada. Contudo, a
língua portuguesa é a oficial e a única de ensino, embora seja falada apenas por 11% da
população, cuja maioria reside na capital Bissau. A transmissão dos conhecimentos entre
diferentes grupos étnicos do país é dominada pela tradição oral. Por exemplo, a educação
entre os Balantas-Nhacra, protagonistas dessa pesquisa, é transmitida via cultura oral e na
língua materna. Sendo assim, a presente pesquisa analisou as consequências da língua
portuguesa (LP) na trajetória escolar dos estudantes em Guiné-Bissau, especialmente dos
alunos da 1ª a 4ª classe (série) da etnia Balanta-Nhacra, na região de Tombali, sul do país.
Especificamente, apresentou-se a estrutura sociopolítica, cultura material e imaterial e as
diferentes fases da educação entre os Balantas-Nhacra; descreveram-se os objetivos da
política de assimilação e da LP na educação do conquistador português no território, hoje
Guiné-Bissau; analisou-se a política linguística adotada pelo Estado da Guiné-Bissau e os
motivos que levaram a elite política (a maiora assimilada pela educação colonialista) que
dirigiu a luta de independência do país, a escolher a LP como a única do ensino no país;
discutiu-se o impacto da LP na trajetória escolar dos alunos guineenses, particularmente, os da
etnia Balanta-Nhacra na região de Tombali. Inicialmente, avançou-se com a hipótese de que a
LP contribui para o fracasso ou insucesso escolar dos alunos no país, especificamente, as
crianças Balantas-Nhacra do ensino básico da região de Tombali, porém, essa hipótese não foi
confirmada no campo. O que se confirmou, graças à observação direta, somada a análise dos
dados feitos pelo pesquisador, foi o insucesso do próprio sistema de ensino, na medida em
que a LP é a única e obrigatória no ensino. Além disso, a LP é ensinada como a língua
materna das crianças, cuja maioria desconhece o idioma, sobretudo no interior do país, caso
das crianças Balanta-Nhacra de Tombali, que só falam a língua materna, pois poucas falam o
crioulo. Portanto, concluiu-se que o insucesso escolar não é dos alunos. Estes apenas sofrem
as consequências do insucesso de sistema do ensino, pautadas na língua estranha da realidade
sociocultural guineense. Sendo assim, a tese sugere discussões sobre o impacto da LP no
ensino; mudança no currículo escolar e no planejamento linguístico; adoção da educação
intercultural focada na valorização da diversidade cultural e sociolinguística do país. Como
referenciais teóricos, optou-se pela tradição oral; pela antropologia da educação; pela
antropologia linguística e pela educação intercultural. A metodologia utilizada consiste, na
pesquisa bibliográfica/documental e a pesquisa de campo: entrevista e observação direta, nas
escolas e nas tabancas/aldeias pesquisadas.
In Guinea-Bissau, several ethnic languages are spoken and the Creole language is the most
widely spoken. However, the Portuguese language is the official and the only language of
education, although it is only spoken by 11% of the population, the majority of whom live in
the capital Bissau. The transmission of knowledge between different ethnic groups in the
country is dominated by oral tradition. For example, education among Balantas-Nhacra,
protagonists of this research, is transmitted via oral culture and in the mother tongue.
Therefore, the present research analyzed the consequences of the Portuguese language (PL)
on the school trajectory of students in Guinea-Bissau, especially of students from the 1st to
the 4th grade of the Balanta-Nhacra ethnic group, in the region of Tombali, south of the
country. In particular, the socio-political structure, material and immaterial culture and the
different stages of education among the Balantas-Nhacra were presented; the objectives of the
assimilation policy and the PL in the education of the Portuguese conqueror in the territory
today Guinea-Bissau were described; the linguistic policy adopted by the State of Guinea-
Bissau and the reasons that led the political elite (the largest assimilated by colonialist
education) that led the country's independence struggle, to choose PL as the only one in the
country; the impact of PL on the school trajectory of Guinean students was discussed,
particularly those of the Balanta-Nhacra ethnic group in the Tombali region. Initially, it was
put forward with the hypothesis that PL contributes to students' failure or academic failure in
the country, specifically, the Balantas-Nhacra children of basic education in the Tombali
region, however, this hypothesis was not confirmed in the field. What was confirmed, thanks
to direct observation, added to the analysis of the data made by the researcher, was the failure
of the teaching system itself, as the PL is the only and mandatory in teaching. In addition, PL
is taught as the mother tongue of children, most of whom do not speak the language,
especially in the interior of the country, such as the Balanta-Nhacra children of Tombali, who
speak only the mother tongue, as few speak Creole. Therefore, it was concluded that school
failure is not the students'. These only suffer the consequences of the failure of the education
system, based on the strange language of Guinean socio-cultural reality. Thus the thesis
suggests discussions about the impact of PL on teaching; change in school curriculum and
language planning; adoption of intercultural education focused on valuing the country's
cultural and sociolinguistic diversity. As theoretical references, we opted for the oral tradition
as well as the anthropology of education; linguistic anthropology and intercultural education.
The methodology used consists of bibliographic/documentary research and field research:
interview and direct observation in schools and in the researched tabanca/villages.
BM Banco Mundial
EB Ensino Básico
HV História de Vida
IDAC Instituto de Ação Cultural
LC Língua Crioula
LE Língua Estrangeira
LM Língua Materna
LN Línguas Nacionais
LO Língua Oficial
LP Língua Portuguesa
ZL Zonas Libertadas
SUMÁRIO
Preâmbulo 20
1. APRESENTAÇÃO DA TESE . 25
2. CAMINHOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS 40
2.1 Caminhos teóricos 40
2.1.1 Tradição oral como referencial teórico 41
2.1.2 Antropologia da educação como referencial teórico 46
2.1.3 Antropologia linguística como referencial teórico 51
2.1.4 Educação intercultural como referencial teórico 55
2.2 Caminhos metodológicos: pesquisa bibiográfica e documental, entrevista e
observação direta 60
3. GUINÉ ANTES E APÓS A CHEGADA DOS PORTUGUESES 76
3.1 Alta Guiné: situação geográfica e sua breve história 76
3.2 A chegada dos navegadores portugueses no território da Guiné-Bissau: a educação
lusa antes e após a Conferência de Berlim 82
3.2.2 O papel da Igreja Católica na educação lusa na Guiné Portuguesa 94
3.2.3 Reforma de ensino luso na Guiné Portuguesa e os fatores que a condicionaram 98
3.2.4 Impacto da língua portuguesa na educação lusa 100
3.3 Luta de independência e educação das zonas libertadas 103
3.3.1 Impacto da língua portuguesa na educação nas zonas libertadas 110
4 OS GRUPOS ÉTNICOS DA GUINÉ-BISSAU: CULTURA MATERIAL E
IMATERIAL ENTRE OS BALANTAS-NHACRA 116
4.1 Teoria da etnicidade, de grupos étnicos e de identidade étnica 116
4.2 Os grupos étnicos da Guiné-Bissau: diversidade em tela 122
4.2.1 Os Balantas da Guiné-Bissau: divisão em subgrupos e a organização sociopolítica 126
4.2.2 Balantas-Nhacra e a produção da existência imaterial: prática religiosa, ritos de
iniciação, cerimônia fúnebre 133
4.3 Balantas-Nhacra e a produção da existência material: agricultura e criação de gado
135
4.3.1 Produção de arroz de Bolanha/Málu 135
4.3.2 Criação de gado: vaca como bem simbólico da família 146
5 EDUCAÇÃO ENTRE OS BALANTAS-NHACRA: AS FASES DE VIDA
MASCULINA E FEMININA 154
5.1 Educação nas fases da vida masculina 158
5.1.1 Primeira fase da educação masculina: grupo de BIDOGN NE NHARE 159
5.1.2 Segunda fase da educação masculina: o grupo de NGHÁE 167
5.1.3 Terceira fase da educação masculina: grupo de BIDOGH (BLUFU em Crioulo) 175
5.1.4 Quarta fase da educação masculina: grupo de BILANTE BINDAN 179
5.2 Educação nas fases da vida feminina 187
5.2.2 Segunda fase da educação feminina: grupo de MBI FULA 191
5.2.3 Terceira fase da educação feminina: grupo de BININ BINDAN 196
6 GUINÉ-BISSAU PÓS-INDEPENDÊNCIA: POLÍTICA EDUCATIVA E
LINGUÍSTICA E SEU IMPACTO 204
6.1 Entraves da campanha de alfabetização 209
6.2 Experiência do CEPI: uma educação voltada para o desenvolvimento rural que o
governo ignorou 211
6.3 Educação de 1980 à atualidade 215
6.4 Situação sociolinguística da Guiné-Bissau 218
6.4.1 Subfamília Oeste-Atlântica 220
6.4.2 Subfamília Mande 221
6.4.3 A política linguística na Guiné-Bissau e seu impacto na educação 225
6.4.4 Consequência da língua portuguesa no insucesso escolar na Guiné-Bissau 231
7 DADOS SOCIOLINGUÍSTICOS DOS ESTUDANTES E PROFESSORES
ENTREVISTADOS: APRESENTAÇÃO, ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO 239
7.1 A língua materna (LM/L1), a língua segunda (L2) e a língua terceira (L3) dos
estudantes entrevistados 242
7.1.1 A língua balanta (LBal) como a Língua Materna (LM/L1) da maioria dos estudantes 243
7.1.2 A língua crioula (LC) como língua segunda (L2) dos estudantes entrevistados 249
7.1.3 A língua portuguesa (LP) como a Língua Terceira (L3) de 50% dos estudantes
entrevistados 251
7.2 A língua que os alunos falam em casa, na escola e com o professor na aula 252
7.2.1 A língua que o/a aluno/a fala em casa 254
7.2.2 A língua que o/a aluno/a fala na escola 255
7.3.1 A língua que o/a professor/a fala com os estudantes na sala de aula 261
7.3.3 A língua que os estudantes fazem as provas, segundo os/as professores/as 263
7.3.4 Análise e interpretação de dados 264
7.4 As opiniões dos professores e dos especialistas em educação e em línguistica sobre
ensino das línguas étnicas nas escolas 270
7.4.1 As opiniões dos professores e dos especialistas em educação e em linguistica sobre
ensino da língua crioula nas escolas 277
7.4.2 As opiniões dos professores e dos especialistas em educação e em linguistica sobre o
ensino dos nossos valores culturais nas escolas 281
8 IMPACTOS NEGATIVOS DA LP NOS ALUNOS GUINEENSES: CASO DAS
CRIANÇAS BALANTAS-NHACRA DA REGIÃO DE TOMBALI 287
8.1 A língua portuguesa é ensinada como língua materna na Guiné-Bissau 288
8.1.1 A LP como principal fator de insucesso escolar na Guiné-Bissau 291
8.1 2 Fraco domínio da LP por parte dos professores e a falta de formação docente como fator
de insucesso dessa língua 305
9. À GUISA DE CONCLUSÃO 309
REFERÊNCIAS 322
APÊNDICES 336
APÊNDICE 1 - Roteiro de entrevista para professores/as 337
APÊNDICE 2 - - Roteiro de entrevista para especialistas em linguística e em educação 340
APÊNDICE 3 - Roteiro de entrevista para estudantes 342
APÊNDICE 4 - Apresentação dos estudantes na LP, LC e língua étnica 343
20
Preâmbulo
ensino básico Justado Vieira e depois no Liceu Dr. Agostinho Neto, mas também
procurava uma bolsa para estudar fora do país. Foi assim que, em outubro de 2005,
participei no processo seletivo para bolsas na embaixada do Brasil e passei. Logo em
março de 2006, vim para o Brasil cursar Ciências Sociais na Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP/Campus de Araraquara.
Meus anos iniciais do curso foram muitos difíceis, pois tinha enormes
dificuldades na LP, principalmente na parte gramatical, no que tange à produção do
texto acadêmico. Ainda hoje, tenho certas limitações nesse sentido. Além disso, outro
problema é o do português do Brasil, ele é diferente do português da Guiné-Bissau,
tanto na forma de falar como na de escrever. Esses problemas me incomodavam
bastante.
Mas o que me deixou ainda mais incomodado e que me obrigou a escolher a
LP como tema de pesquisa foi um problema que aconteceu com alguns estudantes da
Guiné-Bissau que, em 2009, chegaram ao Brasil para cursar Letras na UNESP de
Araraquara. Esses estudantes, ao iniciarem o curso de Letras, começaram a apresentar
muitas dificuldades na LP, tanto ao falar, ao ler, como escrever e esses problemas foram
se agravando até chegar ao período das provas, nas quais a maioria tirava nota zero. A
preocupação era tanta e chegou-se até uma vez que uma das professoras, indignada com
a situação, falou na reunião do conselho de curso que esses estudantes deveriam ser
mandados de volta para seu país de origem, porque ela não conseguia entender qual o
motivo deles terem tantas dificuldades na LP, se a Guiné-Bissau era um país de língua
oficial portuguesa.
A situação ficou tensa porque essa professora insistia para que esses estudantes
fossem mandados de volta para Guiné-Bissau, ou para que a UNESP encontrasse outra
saída para eles. Tal situação obrigou esses estudantes a se transferirem do curso de
Letras para outros, mas, mesmo assim, eles continuaram a enfrentar as mesmas
dificuldades, que só foram ultrapassadas individualmente ao longo dos diferentes
cursos.
Foi a partir desse momento que tomei a iniciativa de pesquisar esse tema.
Embora, a principio pretendia esse assunto envolvendo todos os estudantes de PALOPs
no Brasil e em Portugal. O que seria muito difícil, tendo em conta a sua abrangência.
Aí, a minha ex-orientadora Professora Dra. Renata Medeiros Paoliello me sugeriu a
mudar de tema para estudar o impacto da língua portuguesa nos estudantes dos PALOP,
ou simplesmente os da Guiné-Bissau no Estado de São Paulo. Mas também não tive
22
sucesso nesse segundo projeto, porque me exigia muito esforço para conseguir trabalhos
que falassem do assunto, enquanto isso o tempo passava. Eu estava no mês de março de
2018, que era o meu terceiro ano de curso do doutorado. E a minha orientadora, na
época, sentia-se, de certa forma, culpada pelo fato de eu não conseguir avançar na tese.
Ela me dizia “Olha Dabana, acho que vou solicitar à coordenadora do programa de Pós-
graduação (a Profa. Dra. Carla Gandini Giani Martelli) para te passar para o professor
Dagoberto, pois apesar de meu esforço, sinto dificuldades em te orientar, porque não
conheço a realidade africana, em particular a do seu país”.
Passando alguns dias, o programa me mandou mensagem informando que a
partir de agora o meu orientador passava a ser o professor Dagoberto. E o professor
mandou mensagem confirmando essa mudança e explicando os motivos que levaram o
programa a tomar essa medida. Ele pediu-me, inclusive, para marcarmos uma reunião
de orientação em decorrência de elaborarmos o texto da tese para o exame de
qualificação. No momento, escorria lágrimas no meu rosto de tristeza, pois havia
perdido uma orientadora exemplar e que se esforçava muito para me orientar. Ela se
esforçou muito para me orientar no mestrado1 e conseguiu, mas não no doutorado. Ela
sempre me dizia e escrevia o seguinte: “se precisar, pode falar comigo quando e aonde
quiser”.
Mas, depois disso, eu também chorei de alegria, pois, estava sendo orientado
pelo professor Dagoberto que conhece bem a realidade africana – foco da minha
pesquisa e que foi também meu orientador na graduação e no inicio do mestrado, além
do que era o coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas “União Africana” vinculado
ao Centro de Estudos das Culturas, Línguas Africanas e da Diáspora Negra (CLADIN)
e ao Laboratório de Estudos Africanos, Afro-Brasileiros e da Diversidade (LEAD) da
faculdade mencionada, grupo que eu também era membro. À época do meu ingresso no
mestrado era para o professor Dagoberto ser o meu orientador, mas ele estava com
excesso de orientandos e o programa me mudou para a professora Renata.
Nessa reunião de orientação solicitada pelo Professor Dagoberto, tendo lido o
meu projeto, ele me falou o seguinte: “Olha, Dabana, eu entendo a sua preocupação de
estudar o impacto da LP nos estudantes de PALOPs, especialmente os da Guiné-Bissau,
como também entendo sua dificuldade de avançar com esse projeto, porque além desse
1
O referido mestrado, cujo título da dissertação é intitulado “A luta pela independência na Guiné-Bissau
e os caminhos do projeto educativo do PAIGC: etnicidade como problema na construção de uma
identidade nacional”, foi realizado e defendido por mim na UNESP/Campus de Araraquara, em 2014,
graças à brilhante orientação da Profa. Dr. Renata Medeiros Paoliello. (Cf. NAMONE, 2014).
23
tema ser vasto para se estudar, há pouco tempo para você desenvolver essa pesquisa,
visto que já estamos no terceiro mês do seu terceiro ano de curso e precisamos nos
preparar para o seu exame de qualificação”.
Em seguida, o professor me disse: “Por que você não conta a sua história? Fale
do impacto da LP na sua trajetória escolar, como um Balanta que nasceu e cresceu na
sua tabanca falando a sua língua materna e aprendeu pela oralidade a sua cultura. Ou
seja, analise o impacto da LP na trajetória escolar dos estudantes Balantas da região que
você nasceu, fazendo o contraponto com a sua língua materna e com a tradição oral
balanta”. E disse: “Isso será mais fácil para você desenvolver, porque vai falar da sua
experiência”.
Ainda o professor me aconselhou dizendo o seguinte: “Mas entenda que o
problema da educação em Guiné-Bissau, como nos demais países do PALOP, se dá, na
minha hipótese, mais como uma resistência à transmissão do conhecimento e do saber
tradicional. Resistência essa construída a partir da cultura escrita estruturada pelo
conquistador e em sua língua de dominação. Nesse sentido, não há um sucesso ou um
fracasso escolar dos estudantes guineenses, em geral, e dos Balantas-Nhacra, em
particular, em decorrência da educação ser realizada na língua portuguesa. Se houver,
não é propriamente um fracasso ou um insucesso dos estudantes em ler ou escrever, mas
da elite política e socioeconômica de assimilados do país, que buscaram introduzir a LP
como a língua de ensino e de aprendizagem para toda a nação após a independência.
Pense nesse argumento para a sua pesquisa e tese de doutorado”.
O professor parecia conhecer a minha infância e lia meu pensamento. Ele sabia
e entendia o que me incomodava. Mas, na sua sugestão, deixou a entender que era para
mim começar tudo de novo. Aí, perguntei a ele: “Professor, mas vou ter que fazer outro
projeto novo, de novo?”. Ele me respondeu: “Não, Dabana, você vai continuar com o
mesmo projeto, só que em vez de estudantes do PALOP, agora você vai falar dos
Balantas”. Eu insisti: “Professor, mas não tem muitos estudos sobre esses Balantas
(Balantas-Nhacra). Como vou conseguir a referência bibliográfica?” O professor
respondeu: “Esse é seu desafio como pesquisador e isso é vantajoso para você. Porque
você mesmo terá que ser a referência, seu guia e dialogar com o seu povo, os Balantas.
Você tem que contar a sua história como um Balanta que é e tem que entrevistar os
Balantas, pois, eles que são a sua fonte. Trabalhe com a tradição oral dos Balantas”. Aí
respirei um ar de alívio, porque agora tudo parecia ficar mais fácil para mim. Ficou, de
24
fato, porque uma semana depois reestruturei o projeto e quatro meses depois eu tinha o
relatório do exame de qualificação pronto e depois segui até essa etapa final.
No entanto, estudar não foi nada fácil, porque, pelo fato de não ter bolsa, tinha
que trabalhar no cinema para me sustentar. Eu ia para aula de manhã e permanecia até
umas 11:30 horas. Então, eu saía correndo para fazer a minha marmita em casa. Eu
tinha que entrar no serviço às 14:00 e trabalhava até às 22:30 horas todos os dias.
Por outro lado, como não tive bolsa, não tinha dinheiro para comprar a
passagem, a fim de fazer a minha pesquisa de campo. Portanto, tive que tirar meu
dinheiro de rescisão de contrato com o cinema para comprar a passagem de ida. A de
volta comprei graças à vaquinha que fiz pela internet 2 e pela contribuição dada pelo
Programa de Pós-Graduação citado de R$ 1.062,00. A ideia brilhante da vaquinha foi de
minha namorada, agora noiva-esposa Gisele Fátima de Lima, a quem me faltam
palavras para agradecer.
2
Endereço da vakinha. Disponível em: <https://www.vakinha.com.br/vaquinha/ajuda-para-terminar-
doutorado>. Acesso: 11/04/2020.
25
1. APRESENTAÇÃO DA TESE
Fonte: https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2017/01/guine-6174-p16949-memoria-
dos-lugares.html. Aceso em 20 de setembro de 2018.
3
A economia do país depende principalmente da agricultura e da pesca. A castanha de caju é o maior
produto de exportação e o arroz é o cultuvo básico de alimentação (NAMONE, 2014, p. 15).
26
O país foi um dos cinco da África invadidos por Portugal4, tendo sido dominado
por este último desde 1446 até 1973, ano que conquistou a sua independência unilateral,
depois de quase 11 anos de luta armada contra colonialistas portugueses, que iniciou em
23 de janeiro de 1963 e terminou em 24 de setembro de 1973. Essa independência foi
reconhecida pelo governo luso em 10 de setembro de 1974, após a queda do regime
salazarista (NAMONE, 2014). Esse processo de luta pela independência foi dirigido por
Amílcar Cabral, fundador e líder do Partido Africano Para Independência da Guiné e
Cabo-Verde (PAIGC), movimento libertador criado para conduzir essa luta. A referida
luta contou com a participação de todos os grupos étnicos, principalmente, os Balantas,
que marcaram maior presença nela (CABRAL, 1978).
Em Guiné-Bissau, falam-se várias línguas étnicas, como também a língua
crioula, a mais falada, sobretudo nas cidades. As línguas étnicas são amplamente faladas
pelos seus respectivos grupos étnicos, caso, por exemplo, dos Balantas Nhacra,
população protagonista dessa pesquisa.
A LP é a oficial do país, mas, apesar de ser adotada como a língua oficial, é
falada por um número minoritário da população. Segundo o Instituto Nacional de
Estatística e Censo (INEC, 1991), 11% da população, enquanto que Scantanburlo (2013,
p. 28) avança com 11,08%; e Couto & Embaló (2010) consideram que 13% da
população a fala como a segunda ou a terceira línguas, cuja maioria mora nas zonas
urbanas, especialmente na capital Bissau, o que segundo os autores reflete
negativamente na aprendizagem de alunos.
4
Os demais países que foram invadidos por Portugal são Angola, Cabo Verde, Moçambique e São Tomé
e Príncipe.
28
1994). Essa decisão foi tomada por Amilcar Cabral, líder dirigente dessa luta, após ter
chegado à conclusão de que tanto a LC quanto as diversas línguas étnicas faladas no
país não possuem códigos gráficos, nem as normas de escrita estabelecidas, fatos que
impediria sua adoção como línguas de ensino. Para isso, segundo Cabral, a língua
portuguesa seria a única de ensino naquele país, até que as condições reais de adoção da
língua crioula no ensino fossem criadas (CABRAL, 1979). Mas, Amilcar Cabral não
teve a sorte de ver essas condições reais se realizarem ou não, pois, foi assassinado na
vizinha Guiné Conacri, em 20 de janeiro de 1973, oito meses antes da proclamação
unilateral da independência da Guiné-Bissau.
Após a independência, a ideia de manter a LP como a oficial e a única do ensino
foi seguida pela elite política, na sua maioria assimilada e de ascendência cabo-
verdiana, que esteve no topo da lista desse processo de luta de independência, no qual
atuou na área diplomática e na estratégia militar. Sendo assim, a LP passa a ser imposta
como de uso obrigatório na escola, continuando até hoje como a única língua de ensino
em quase todas as escolas do país. Embora, recentemente, algumas poucas escolas de
autogestão5 implementam o ensino bilíngue Crioulo-português.
Sabe-se que, na Guiné-Bissau, a transmissão dos conhecimentos entre diferentes
grupos étnicos do país é dominada pela tradição oral, que é a sua principal forma de
educação ao longo de gerações. Aliás, até hoje nesse país, a cultura oral tem
predominância sobre a cultura escrita, visto que, nas zonas rurais onde reside a maioria
da população, tanto a transmissão dos saberes, como as relações sociais são baseadas na
oralidade e pelas línguas étnicas. Por exemplo, todos os seis subgrupos de Balantas da
Guiné-Bissau6 têm a tradição oral como principal forma de transmissão de
conhecimentos.
No caso específico dos Balantas-Nhacra, população protagonista dessa pesquisa,
a sua forma de educar os seus filhos e de se educarem são estritamente baseadas na
cultura da oralidade, usando a sua língua como principal veículo nesse processo
educativo. Uma criança Balanta-Nhacra que nasce e cresce na sua comunidade, aprende
5
As escolas de autogestão surgiram no país graças às iniciativas dos pais e encarregados da educação das
crianças, sobretudo, nas comunidades rurais, em colaboração com as missões da Igreja Católica, tendo em
vista sucessivas greves dos professores, que prejudicam os estudos das crianças. Nesse sentido, as
missões ajudam com materiais para construção das escolas, materiais didáticos, como também, pagam
alguma parcela do subsídio aos professores e a outros funcionários da escola, enquanto os pais pagam o
resto de subsídio e organizam a gestão da escola.
6
São eles: Balantas-Kuntóhe, ou Balantas Bravos; Balantas-Nhacra ou Balantas de dentro; Balantas-
Patch ou Balantas de Fora; Balantas-Naga ou Binaga; Balantas-Mansoanca ou Cunante; Balantas-Mané
ou Balantas Bijaa. (Detalhes seguem no capítulo 2).
31
tudo pela oralidade e através da sua língua materna: ouvindo, observando, memorizando
e praticando.
A educação entre os Balantas-Nhacra se manifesta em todas as suas práticas
culturais, (tanto na cultura material como na imaterial), mas, principalmente, nos ritos
de iniciação, tanto para o sexo masculino como para o sexo feminino e está dividida em
fases, sendo as fases do sexo masculino compostas por BIDOGN NE NHARE; NGHÁE;
BIDOG e BILANTE BINDAN e as fases do sexo feminino compostas por KINRÃ; MBI
FULA e BININ BINDÁN. Cada uma dessas fases está dividida em subgrupos, com
exceção da fase de KINRÃ (mais detalhes sobre o assunto seguem na seção 5). Esse
modelo de transmissão de saberes ou de educação continua funcionando até hoje.
Sabe-se que, assim como em todos os países do continente africano, na Guiné-
Bissau, inclusive as fronteiras linguísticas extrapolam os limites das suas fronteiras
geográficas, delimitadas violentamente pelos imperialistas europeus na Conferência de
Berlim7. Por exemplo, a língua balanta é falada na Guiné-Bissau, no Senegal, na Guiné-
Conacri e na Gambia. A sua expansão por quase toda África ocidental deve-se à
imigração ou à presença da etnia balanta nesses territórios.
Além de ser o principal veículo de comunicação, a língua é uma ferramenta
chave no processo de ensino e de aprendizagem, pois é através dela que os
conhecimentos são transmitidos. Mas se a língua de ensino não é compreendida e nem
dominada pelos estudantes, em vez de ajudar, ela torna-se o próprio obstáculo do
processo acima referido. Isso ocorre na medida em que o aluno não apenas tem
dificuldades de compreender as matérias dadas pelo professor, como também, tem
dificuldades de realizar as provas, uma vez que não consegue expressar a sua opinião
livremente no texto, devido à falta de domínio da língua do ensino.
Nas instituições de ensino da Guiné-Bissau, desde o básico ao superior, é
comum encontrar aviso que incentiva/obriga os alunos a usar a LP, seja nas cidades
como nas zonas rurais. Os avisos abaixos foram fotografados pelo pesquisador nas
instituições de ensino do país. O primeiro (cf. foto 01) foi registrado na porta da sala de
7
A Conferência de Berlim foi realizada pelos países imperialistas europeias, entre 15 de novembro de
1884 a 26 de fevereiro de 1885, na qual foi decidida a divisão do continente africano em vários territórios,
que constituem os atuais países desse continente. O objetivo dessa divisão territorial visa atender seus
interesses políticos, econômicos e culturais. Fato que violou flagrantemente os direitos fundamentais dos
africanos: seus direitos consuetudinários, suas fronteiras linguísticas e suas formas de educação, baseadas
na tradição oral. (cf. FONSECA, 2007).
32
uma das universidades do país e o segundo (cf. foto 02) na parede duma das escolas
pesquisadas na região de Tombali.
Foto 2: Regras de comportamento para os alunos de ensino básico, caso de EBU de Mato-
Farroba
são: Como essas crianças e adolescentes vão ter mais habilidade, mais domínio numa
língua que nem sequer é falada na realidade cultural em que vivem, ou seja, nas suas
tabancas? Como terão o sucesso escolar numa língua de ensino na qual eles não têm o
seu domínio da capacidade expressiva e compreensiva? Como vão pensar e falar sempre
uma língua que estão tendo contato pela primeira vez na escola? A língua é
indissociável da cultura? A sua concepção do mundo não se realiza a partir da sua
língua materna e das suas referências culturais?
São essas questões que formam a espinha dorsal dessa tese. Isto é, são essas as
questões centrais que analisamos nessa tese. Desse modo, são dois os principais motivos
nos levaram a essa pesquisa: 1) a transmissão de conhecimentos, isto é, a educação entre
os Balantas-Nhacra, da região de Tombali, é baseada principalmente na tradição oral,
veiculada através da sua língua materna; 2) nessa região, ninguém fala português como
língua materna, talvez por ser uma das mais distante dos centros urbanos,
principalmente, da capital Bissau. Os seus moradores falam diariamente as suas línguas
maternas (línguas étnicas). As crianças começam a ter seus primeiros contatos com a
língua portuguesa na escola, enquanto em casa falam a sua língua materna
regularmente, embora essa língua seja ágrafa.
Essas preocupações somadas não só aos fatores históricos acima descritos, como
também a minha experiência de trajetória escolar, como um Balanta-Nhacra que nasceu
e cresceu na tabanca, que teve os seus primeiros contatos com a LP na escola e as
dificuldades decorrentes disso, são os motivos que nos levaram a escolher esse tema de
pesquisa.
Essa pesquisa, portanto, analisou as consequências da LP na trajetória escolar
dos estudantes na Guiné-Bissau, especificamente, nos alunos do ensino básico (1ª a 4ª
classe) da etnia Balanta-Nhacra, na região de Tombali. Especificamente, a pesquisa
visa: a) Analisar a política linguística adotada pelo Estado da Guiné-Bissau; b) Analisar
o impacto da LP na trajetória escolar dos alunos da etnia Balanta-Nhacra na região de
Tombali; c) Analisar e discutir a importância da educação intercultural baseada na
diversidade cultural que constitui a Guiné-Bissau; e) Discutir a importância das línguas
maternas dos alunos e valorizar a cultura oral, como também, a experiência dos alunos
no currículo escolar da Guiné-Bissau.
Inicialmente, levantamos a hipótese de que a LP contribui para o fracasso ou
insucesso escolar dos alunos no país, especificamente, as crianças Balantas-Nhacra do
ensino básico da região de Tombali, porém, essa hipótese não foi confirmada no campo.
35
O que se confirmou, graça à observação direta, somada à análise dos dados feitos pelo
pesquisador, é o insucesso do próprio sistema de ensino, na medida em que a LP é a
única e obrigatória no ensino. Além disso, ela é ensinada como a língua materna das
crianças, estas, cuja maioria desconhece esse idioma, sobretudo no interior do país, caso
das crianças Balanta-Nhacra de Tombali, que só falam a língua materna, pois poucas
falam o crioulo. Portanto, concluiu-se que o insucesso escolar não é dos alunos. Estes
apenas sofrem as consequências do insucesso do sistema de ensino pautadas em uma
língua estranha à realidade sociocultural desta nação.
Essa tese tem a importância de fomentar as discussões sobre o impacto da LP no
sistema o ensino na Guiné-Bissau. Como também abre as possibilidades para o debate a
respeito da educação intercultural, tendo em vista a diversidade cultural do país. Nesse
sentido, intenta-se incentivar debates e discussões sobre a importância do ensino das
línguas maternas dos alunos e da LC, valorizar a cultura oral e a experiência dos alunos
no currículo escolar do país.
Nessa pesquisa, usamos quatro referenciais teóricos que se seguem: trazemos a
tradição oral, como referencial teórico, especialmente, a tradição oral africana, a partir
da concepção de Hampaté Bâ (2010) e Vansina (2010). Em segundo momento,
trazemos a antropologia da educação como referencial teórico, na medida em que a
referida ciência preocupa-se em conceber a educação para além dos limites do espaço
físico da escola. Ou seja, a educação existe também onde possa não existir a escola
(BRANDÃO, 1981; ROCHA, & TOSTA, 2009; GUSMÃO, 2011; 2015).
Do mesmo modo, trazemos a abordagem teórica da antropologia linguística e o
seu diálogo com a sociolinguística, em particular, o debate referente ao preconceito
linguístico ou intolerância linguística. Destaca-se a concepção de que a língua não é
apenas um meio de comunicação, é, sobretudo, um veiculo de expressão de valores, de
crenças, de pensamentos, isto é, a expressão de identidade de seus falantes (CUNHA,
1987; DURANTI, 2001; KI-ZERBO, 2006; NGUNGA, 2007; BAGNO, 2009b, 2011;
TIMBANE, 2013; BALSALOBRE, 2015; GARCÉS, 2018).
Por último, trazemos a educação intercultural como referencial teórico
destacando seu foco na interação mútua pautada no respeito entre diversos sujeitos
envolvidos no processo de ensino e de aprendizagem (WALSH, 2001; QUEIROZ,
2007; CANDAU; RUSSO, 2010; CANDAU, 2012; FLEURI, 2012).
Os caminhos metodológicos percorridos, que permitiram a realização dessa tese,
basearam-se na pesquisa bibliográfica/documental, como também na pesquisa de
36
KINRÃ (que não tem subdivisão); ii) grupo de MBI FULA, subdividido em: MBI FULA
SONH, MBI FULA NHUG e MBI FULA DAN e iii) grupo de BININ BINDÁN,
subdividido em: MBI-IEGLE, THATA, SADE e BASSANA. Esta seção visa mostrar que
os Balantas-Nhacra têm a sua forma específica de educação, através da qual os mais
velhos transmitem conhecimentos aos mais novos. Essa educação é realizada oralmente
e pela língua materna. Isso significa dizer que uma criança Balanta-Nhacra, que nasce e
cresce na sua tabanca, tem uma bagagem cultural e uma experiência de aprendizagem
acumulada, que deve ser valorizada na escola. Ou seja, uma pedagogia que deve
estabelecer um diálogo com as pedagogias escolares.
Na sexta seção, analisamos a política educativa e a política linguística adotadas
pela elite política que dirigiu a luta pela independência (na sua maioria assimilada) e
que assumiu o destino do país após a independência. Constatamos que essas políticas
são estranhas à realidade sociocultural do país, pois essa elite adotou a LP não apenas
como a oficial, mas também como a única do ensino no país. As bibliografias usadas
para desenvolver essa seção apontam que a LP tem gerado consequências negativas no
processo de ensino e apredizagem na Guiné-Bissau, sobretudo, na trajetória escolar dos
alunos.
Na sétima seção, fizemos a apresentação, análise e interpretação dos dados
sociolinguísticos dos alunos e dos professores entrevistados nas quatro escolas
pesquisadas. Para os alunos, procuramos informações a respeito de seus dados pessoais
(o nome, sexo, idade, cidade ou tabanca/aldeia do nascimento, região de nascimento,
grupo étnico a que pertence e nível escolar), como também, a língua materna, a língua
segunda e a língua terceira desses estudantes e, ainda, a língua que falam em casa, na
escola e com os seus professores na sala de aula.
Para os professores, as entrevistas dizem respeito à língua que falam com seus
alunos na sala de aula, à língua que esses alunos falam entre si na sala de aula e à língua
que esses alunos utilizam para fazer as provas. O intuito dessas entrevistas é o de: i)
analisar o impacto da realidade sociolinguística desses estudantes, como também da LP
na sua trajetória escolar; ii) compreender se existe conflito linguístico na escola ou não
– em caso afirmativo, compreender o porquê; iii) estabelecer em que medida esse
suposto conflito interfere no processo de ensino e de aprendizagem e no aproveitamento
escolar do aluno ao longo da sua trajetória escolar.
Constatamos que a maioria desses alunos fala a língua balanta como materna, a
LC como segunda e a LP como a terceira de alguns, enquanto outros não têm a língua
38
terceira. Constatamos também, através de observação direta nas escolas, que a maioria
desses alunos fala com mais frequência a sua língua materna (a língua balanta) no
recinto escolar ou quando conversam entre si. Na sala de aula, a língua balanta e a LC
são as mais faladas quando esses alunos conversam entre si. A LP é a menos usada.
Alguns alunos tentam falar a LP devido à imposição ou incentivo do professor,
enquanto a maioria prefere ficar calada, quando o assunto é falar o português. Portanto,
comprovamos que esses alunos enfrentam muito conflito linguístico na escola, na
medida em que convivem com três línguas em simultâneo no ambiente escolar: a língua
étnica (no caso Balanta), a LC e a LP. Essa situação gera muitas dificuldades e
desmotivação para esses alunos, resultando inclusive nas reprovações e abandono
escolar de alguns. Portanto, sugerimos a necessidade de se valorizar e usar a língua
materna dos alunos como de ensino, como também, a escola levar em consideração a
experiência e a aprendizagem que o aluno adquiriu em casa. Ou seja, sugerimos que o
governo guineense deve urgentemente adotar a educação intercultural e ou
multicultural, com vistas a valorizar a diversidade cultural que é a riqueza que a Guiné-
Bissau tem em abundância.
Na oitava seção, analisamos as consequências negativas da LP na trajetória
escolar dos alunos guineenses, especialmente, das crianças do ensino básico (1ª a 4ª
classe) da etnia Balanta-Nhacra da região de Tombali, com base nos relatos dos
professores, pedagogos e linguístas entrevistados. Esses relatos são unânimes em
afirmar que a LP é a principal causa de insucesso escolar que esses alunos enfrentam,
justamente porque, além de não dominarem a LP, ela é ensinada como se fosse a língua
materna deles. Por outro lado, os professores desses alunos, além de a maioria não ter
formação docente, têm muitas dificuldades na LP de Portugual que é usada no sistema
de ensino guineense, incluindo os formados. Portanto, todos esses problemas resultam
nas dificuldades que muitos alunos enfretam na sua trajetória escolar.
Finalmente, na nona e última seção, além de sugestões, apresentamos as
conclusões da tese, isto é, as sínteses dos principais resultados alcançados pela pesquisa.
Ou seja, concluímos que: 1) a metodologia usada para ensinar a LP (como a língua
materna) não é adequada à realidade sociolinguística da Guiné-Bissau, pois a LP
desempenha a função da língua estrangeira para quase todos os alunos do país,
principalmente, os das zonas rurais, caso das crianças balantas-nhacra protagonistas
dessa pesquisa. Portanto, ao contrário das teses que apontam o insucesso escolar das
crianças na Guiné-Bissau, em particular na região de Tombali, na verdade, o insucesso
39
Sabe-se que o objetivo da tese de doutorado é o de trazer algo novo para a área
em que a pesquisa se insere. Tal novidade pode surgir a partir da contribuição das
pesquisas anteriores para a pesquisa a ser desenvolvida ou através do esforço do autor
em busca da originalidade para sua pesquisa.
É nesse sentido que essa pesquisa procura mostrar que, em sociedades
multiétnicas ou pluriétnicas como a guineense, a educação se realiza para além da sala
de aula. Ela se realiza também na vida vivida numa determinada comunidade, na prática
da tradição oral dos diferentes grupos étnicos. Por exemplo, entre os Balantas Nhacra, a
educação é efetuada em diferentes etapas de ritos de iniciação, na atividade pastoril
praticada pelos pastores de gado (Bidog ne Nhare), nos encontros realizados pelos
grupos de Nhaé, Bidogn, Bilante Bidan, Mbi-Fula, Binin Bindan. Portanto, o sistema do
ensino do país tem o desafio de reconhecer, de respeitar e de valorizar essa diversidade
cultural, pois só assim que podemos falar numa verdadeira democracia.
Sendo assim, construímos nessa seção os caminhos teóricos e metodológicos a
serem trilhados para o desenvolvimento dessa pesquisa. Caminhos esses que se iniciam
com o referencial teórico da tradição oral, especialmente a africana, a partir da
concepção de Hampaté Bâ (2010) e Vansina (2010). Soma-se ao referencial teórico da
antropologia da educação, que se faz presente nessa pesquisa e que oferece importantes
contribuições para se pensar a educação num país fortemente baseado na cultura oral.
41
8
A África Subsaariana corresponde à parte do continente africano situado ao sul do Deserto do Saara.
Essa parte do continente africano era chamada pelos europeus e árabes de África Negra, em razão da
predominância de pessoas de pele mais escura nessa região.
42
Vale dizer que, na sociedade balanta, uma pessoa que não passou pela escola de
iniciação, mesmo tendo diploma universitário, é considerada imatura pelo fato de
desconhecer diversos códigos que regulamentam o comportamento e a vivência nessa
sociedade. Esses códigos podem variar desde a fala, o olhar, a expressão facial, a
expressão bucal, o ruído no esôfago, o toque de tambor (bombolon em crioulo e
fimbumbur ou finkilim em balanta), o assopro do chifre do animal (ftebm), entre outros
códigos. Todos eles desempenham importante papel educativo na sociedade Balanta
Nhacra.
Na tradição oral balanta, o rito de iniciação em seus diversos estágios, seja ele
referente ao sexo masculino ou ao sexo feminino, desempenha importante papel
educativo e social, como será detalhado na terceira seção. Através do rito de iniciação,
as pessoas iniciadas recebem vários ensinamentos que servem para regulamentar seus
comportamentos na sociedade, por meio dos quais elas passarão a ser reconhecidas
como suficientemente maduras dentro da sociedade, podendo assumir grandes
responsabilidades no seio da família – maior detalhamento será oferecido na seção que
trata sobre a educação entre os Balantas Nhacra.
No entanto, no mundo moderno em que vivemos, ainda existem muitas tensões
entre a escrita e a oralidade. À escrita é associado o estatuto da cultura, da civilização,
da modernidade, do avanço científico e tecnológico; enquanto à oralidade cabe o
estatuto do primitivismo e da selvageria.
Hampaté-Bâ (2010) ressalta que, nas nações modernas, onde a escrita tem
precedência sobre a oralidade, onde o livro constitui principal veículo da herança
cultural, durante muito tempo julgou-se que povos sem escrita eram povos sem cultura
e, portanto, sem história, haja vista que os seus conhecimentos são transmitidos
oralmente, de boca ao ouvido, de geração em geração (HAMPATÉ BÂ, 2010). Sendo
assim, são tratados como atrasados, analfabetos e subdesenvolvidos, por entender-se
que seus conhecimentos não podem ser arquivados como documentos escritos, correndo
grande risco de perder detalhes ao longo do tempo. Ademais, são desvalorizados,
porque se considera que são conhecimentos banais, do tempo antigo, e não servem
como conhecimentos científicos, pois são baseados no senso comum etc.
Contudo, segundo o autor, essa não é a maneira certa de se colocar o problema,
pois para ele a escrita é uma coisa e o saber é outra (HAMPATÉ BA, 2010). Ou seja, o
44
saber vai além da escrita. Como refere um tradicionalista 9 em assuntos africanos, mestre
Tierno Bokar, citado por Amadou Hampaté Bâ,
Esse modo de pensar – de acordo com o qual povos sem tradição escrita são
povos sem cultura, sem saber ou sem conhecimento – não é verdadeirdo e nem
comprovado cientificamente. É de salientar que muitas são as vozes que criticam e
desvalorizam os conhecimentos baseados na tradição oral, visto como cientificamente
inválidos. Nosso objetivo, nesta pesquisa, visa quebrar esses paradigmas que
caracterizamos como ideológicos. Pois entendemos que qualquer conhecimento, seja ele
científico ou não, tem por baixo do “tapete” um cunho ideológico.
Ao longo dos séculos, o eurocentrismo lança luz aos conhecimentos ditos
hegemônicos produzidos na Europa ocidental. Além disso, conhecimentos usurpados de
outros povos e tornados seus também são difundidos para o resto do planeta como
verdades únicas. Em contrapartida, desvalorizam os conhecimentos das outras
realidades, sendo esses tratados como senso comum, inúteis ou sem fundamento
científico e os seus produtores classificados como selvagens.
Apesar dessas interpretações, é comprovado que povos sem tradição escrita são
detentores de conhecimentos científicos de alto nível. Dentre muitos exemplos, apenas
na área da saúde, podemos citar que muitos conhecimentos médicos sobre tratamentos
de várias doenças e conhecimentos farmacêuticos sobre plantas medicinais usados nos
países ditos “avançados” são absorvidos dos curandeiros tradicionais africanos que não
sabem ler e nem escrever as línguas europeias. Até hoje, muitos pesquisadores da área
de saúde vão à África fazer as pesquisas e apreender com esses curandeiros/médicos
tradicionais (BARROS, 2004).
A tradição oral é um conhecimento indispensável para o avanço científico e
tecnológico. Outro exemplo disso se revela em muitas pesquisas que são desenvolvidas
atualmente, na África e nos outros continentes, pelos arqueólogos, paleontólogos,
9
Tradicionalista é um africano especialista em tradição oral.
45
ensino formal podem até não existir, mas existe aprendizagem inerente à prática social e
da vida.
Nesse sentido, segundo Tosta (2013) o diálogo entre a antropologia e a educação
escolar é de fundamental importância e necessária para compreender uma das questões
fundamentais na escola: a diversidade cultural e a construção identitária que permeiam
os processos de aprendizagem e de socialização (TOSTA, 2013).
O atual contexto de exacerbação da globalização e de reivindicação das
identidades em que vivemos nos coloca os desafios de repensar a educação no mundo
todo, sobretudo nos países constituídos pela diversidade cultural como a Guiné-Bissau.
Tais desafios impõem pensar os modelos de educação que superem os modelos
herdados do passado, cujas características homogeneizantes negam a diversidade
humana e acabam por engendrar processos de exclusão de diferentes segmentos sociais
(GUSMÃO, 2011).
A Guiné-Bissau se encontra amarrada ao modelo de educação do conquistador
português que herdou logo após a independência na década de 1970 10. Esse modelo é
baseado na valorização da cultura do conquistador, especialmente a sua língua. É esse
modelo que prevalece até hoje, o que traz graves consequências para o país como um
todo e para os alunos em particular, pois a maioria não a domina, fato que prejudica a
sua aprendizagem.
Sendo assim, apostar no referencial teórico e metodológico da antropologia da
educação é de extrema importância para enfrentar esse problema. Por meio dela, é
possível entender que a educação extrapola os limites dos muros escolares. Ou seja, a
educação se realiza na prática sociocultural de cada grupo específico da humanidade,
através de diversas manifestações culturais, especialmente a tradição oral e os ritos de
iniciação.
Sendo assim, o método etnográfico é o mais privilegiado e recomendado para a
pesquisa e para se enfrentar o problema da educação na realidade cultural permeada
pela diversidade, como a de Guiné-Bissau. Defendemos o uso da etnografia, como
refere Gusmão (2015), associada às teorias antropológicas, e não apenas como técnica
de coleta de dados usada de maneira solta, como tem feito muitos pesquisadores de
outros campos científicos que desconhecem ou ignoram as teorias antropológicas.
10
Esse modelo era exercido através da chamada política de assimilação – que visava assimilar uma
pequena parcela dos nativos guineenses à cultura do conquistador, desvalorizando as culturas dos nativos
guineenses, especialmente as suas línguas.
48
A língua é o meio que os seres humanos, enquanto seres sociais, usam para
transmitir os seus sentimentos, as suas ideias, as suas paixões, os seus conhecimentos, a
sua concepção de mundo, as suas culturas, através de um processo chamado
comunicação (NGUNGA, 2007). A comunicação é estabelecida através de vários sinais
convencionais chamados genericamente de linguagem. Ela varia de um grupo social
para outro.
Contudo, vale a pena salientar que a língua não é apenas um meio de
comunicação. Ela é, sobretudo, um veículo de expressão de valores, de crenças, de
pensamentos, isto é, a expressão de identidade de seus falantes. Segundo Cunha (1987,
p. 99), “a língua de um povo é um sistema simbólico que organiza sua percepção do
mundo”. Para Duranti (2000), se quisermos compreender o papel da língua na vida das
pessoas, precisamos ir além do estudo de sua gramática apenas, mas entrar no mundo da
ação social, no qual as palavras são encaixadas, sendo constitutivo de atividades
culturais específicas, tais como contar histórias, pedir um favor, mostrar respeito, entre
outras.
Segundo Garcés (2018), sem a linguagem humana não seria possível a existência
da cultura humana. Acrescentamos que sem a linguagem e sua composição por códigos
e diferentes formas de expressão oral ou escrita (qual seja, a linguagem gestual: verbal e
não verbal; linguagem gráfica: logográfico = pictografia, exemplo: pintura rupestre;
ideografia, exemplo: os números, significados de uma palavra; fonográfico = alfabetos,
silábicas, etc.), que diferentes grupos humanos usam para se comunicar, seria
impossível a existência da cultura humana e de sua diversidade. Daí, a importância do
estudo da Antropologia linguística.
A Antropologia linguística é definida como um ramo da ciência antropológica
que estuda o ser humano, partindo do princípio da linguagem com que se comunica 11.
Segundo Duranti (2000), a Antropologia linguística estuda o papel da língua na vida das
pessoas em todos os aspectos: na oralidade, na escrita, no gestual ou no simbolismo. Na
mesma linha de raciocínio, de acordo com Garcés (2018), a Antropologia linguística
nos permite compreender a linguagem humana como expressão da cultura. De acordo
11
Disponível em: http://cultura.culturamix.com/antropologia/antropologia-linguistica .Acesso em: 30 de
junho de 2018.
52
nação significa negar ou ignorar a identidade cultural do seu povo. Nesse sentido, todas
as línguas têm ligações com as culturas dos seus falantes, o que significa dizer que tem
seu valor para os seus usuários.
O grupo étnico Balanta Nhacra, como qualquer outro grupo étnico da Guiné-
Bissau, utiliza a sua língua não só na comunicação do dia a dia, mas também na
transmissão de conhecimentos às novas gerações, sendo componente importante da sua
cultura. Isso significa dizer que nenhuma língua é neutra de cultura dos seus falantes.
Tanto a língua portuguesa como as línguas locais faladas em Guiné-Bissau – o crioulo e
as línguas étnicas – identificam os seus falantes. Sendo assim, cada língua tem o seu
valor dentro do contexto social em que é usada.
Segundo os sociolinguistas, nenhuma língua tem mais valor que as outras. Para
esses cientistas e profissionais acadêmicos, a tentativa de valorizar uma língua em
detrimento das outras é um preconceito linguístico ou uma intolerância linguística
(BAGNO, 2009b, 2011; FIRMINO, 2005; NGUNGA, 2007; INTUMBO, 2007).
Portanto, nesta tese, dialogamos também com a linguística, em particular com a teoria
sociolinguística referente ao preconceito linguístico e/ou a intolerância linguística.
Cabe ressaltar que, neste novo contexto da globalização econômica, política e
social e de mundialização cultural, as línguas ditas hegemônicas (como inglês,
espanhol, francês, português etc.) exercem papel político de grande envergadura.
Principalmente, na divulgação e disseminação da cultura dos seus países de origem.
Fato que contribui e tem contribuído no desenvolvimento econômico, social e cultural
desses países. Por outro lado, as culturas e as línguas dos países conquistados pelos
imperialistas europeus são desvalorizadas e marginalizadas, sendo tratadas como
dialetos e tendo a sua condição de produção e de utilização negada. As línguas ditas
hegemônicas desempenharam fortes influências na conquista colonial, especialmente na
educação, servindo-se como elementos privilegiados de prestígio social, de ascensão
social e, principalmente, como ferramenta de desigualdade social entre os povos
conquistados.
Joseph Ki-Zerbo (2006) critica esse uso político da língua e ressalta a
importância de valorizar as línguas maternas africanas na escola. Para ele, o problema
das línguas
Vale recordar que é desde a década de 1980 que a Declaração Universal dos
Direitos Linguísticos (UNESCO, 1986) recomenda que os direitos linguísticos sejam
considerados direitos fundamentais do homem.
Por sua vez, trazemos a perspectiva intercultural de educação para esse debate,
destacando a sua relevância para o sistema de ensino num país culturalmente
diversificado como a Guiné-Bissau.
Nessa mesma linha de raciocínio, Fleuri (2012, p. 21) considera que o desafio da
interculturalidade é o de “reconhecer as diferenças entre os agentes socioculturais no
mundo contemporâneo e de potencializar a conexão crítica, criativa e decolonial entre
seus respectivos contextos”.
De acordo com o autor, a educação intercultural consiste basicamente em:
acadêmicos, nas audiências públicas nas câmaras dos vereadores e deputados, como nas
deliberações referentes a políticas públicas para educação (WALSH, 2001; QUEIROZ,
2007; CANDAU; RUSSO, 2010; CANDAU, 2012; FLEURI, 2012).
Falando a esse respeito, Queiroz (2007, p. 21-22) afirma o seguinte:
pesquisador precisasse e que seriam usados para fins meramente acadêmicos, não
conseguimos ter sucesso. Fomos submetidos a um insuportável processo burocrático de
aguardar a decisão do diretor do ensino básico que estava de licença fora do país.
Depois de vencer essa etapa, fomos atrás e pediram de novo para fazer outra carta para
o Ministro que até hoje não tivemos seu retorno. Documentos oficiais que usamos
foram conseguidos graças aos trabalhos publicados, quais sejam: artigos, teses,
dissertações e relatórios que pesquisamos na internet.
Já a pesquisa de campo foi realizada na Guiné-Bissau, concretamente na região
de Tombali, setor de Catió. A pesquisa foi feita nas quatro (4) escolas, a saber: Ensino
Básico Unificado de Mato-Farroba (EBU DE MATO-FARROBA), Ensino Básico
Unificado de Cufar (EBU DE CUFAR), Escola de Autogestão de Mato-Farroba,
conhecida como Escola Tona Namone (EAG TONA NAMONE) e Escola de
Autogestão de Areia, chamada Escola Abêne (obrigado na língua balanta) (EAG
ABÊNE). As duas primeiras são do Estado e duas últimas funcionam em regime de
autogestão, ou seja, são fundadas e mantidas pela associação dos pais e encarregados da
educação, com o apoio das missões católicas. Mas, para facilitar a identificação dessas
escolas na análise de dados acrescentamos os números1 e 2 nos nomes das referidas
escolas, como se segue: (EBU-1 DE MATO-FARROBA); (EAG-1 TONA NAMONE);
(EBU-2 DE CUFAR ) e (EAG-2 ABÊNE).
A escola (EBU-1 DE MATO-FARROBA) localiza-se na tabanca de Mato-
Farroba, situada a 12 quilômetros da cidade de Catió – a capital da região de Tombali. É
uma escola pública, mas, como muitas outras, ela está abandonada à própria sorte, pois
nela há falta de recurso em todos os sentidos, desde insfraestrutura que está em estado
avançado de degradação, não há praticamente materiais didáticos para alunos e
professores, como também, falta de professores.
Devido à falta de professores para dar cobertura a todas as escolas estatais,
obrigou os pais e encarregados da educação das crianças a contratar alguns jovens dessa
tabanca e das outras vizinhas que terminaram ensino médio como professores, a quem
são pagos pelos próprios pais e encarregados dessas crianças. Entrentanto, alguns pais
não cumprem com esse dever, fato que desmotiva esses professores a ponto de alguns
não comparecerem todos os dias na escola.
Por outro lado, as escolas do Estado da Guiné-Bissau vivem quase sempre em
greves, porque os professores passam meses sem ver o pagamento dos seus salários.
Assim, eles aparecem nas aulas quando os convêm. A título de exemplo: das várias
62
vezes em que eu fui fazer a pesquisa nessa escola, encontrava apenas um professor
dando aulas para duas ou três turmas ao mesmo tempo. Ele entrava numa turma passava
apontamento no quadro e se dirigia para outra, assim sucessivamente.
Inclusive, fiz várias tentativas sem sucesso, para depois conseguir fazer uma
entrevista com o Diretor dessa escola, visto que ele se encontrava sempre ausente. Na
entrevista, ele mesmo justificou a sua ausência, pois não se sente motivado para
trabalhar, porque além de não ser pago seu salário regularmente, a escola encontra-se
praticamente abandonada pelo governo. Essa situação chega ao ponto de ele mesmo
tirar dinheiro do seu bolso para comprar cadeados para as portas da escola, além de
outras reparações custeadas por ele.
acordo com o diretor da escola (Nghala Na Lana), 75% dos salários são pagos pelos pais
e 25% pela Missão Católica. Nessa escola, as aulas funcionam regularmente durante
todo o ano letivo e os professores não costumam faltar. Embora todos esses professores
não tivessem formação docente, são dados cursos de capacitação na área de LP e de
didática, pela ONG portuguesa: Fundação Fé e Cooperação (FEC).
pessoais como também graças ao apoio dos pais e encarregados da educação das
crianças que pagam salários antecipadamente. Essa escola conseguiu também apoio de
Projetos de Desenvolvimentos Dirigidos pelas Comunidades (PDDC) financiado pelo
Banco Mundial, o que resultou na construção de mais dois pavilhões e uma sala para os
professores e refeitório. Esses tipos de iniciativas, segundo o Diretor dessa escola
(Quinito Gomes), dão mais motivação para professores continuarem a trabalhar.
b) Observação direta que foi realizada tanto dentro das salas de aulas, como no
recinto escolar, tendo como intuito identificar como os estudantes e seus respectivos
professores lidam com a língua portuguesa (LP), a língua crioula (LC) e as línguas
étnicas, através da sua participação na aula, sua interação aluno/a e professor/a, como
também de alunos/as entre si.
Dos 16 estudantes entrevistados, 13 são da etnia Balanta-Nhacra, número que
corresponde a 81,25% e outros 3 são das etnias: Bafada, Fula e Nalu respectivamente,
correspondendo a 6,25% cada (cf. quadro 3 e gráfico 2 abaixo). Escolhemos
aleatoriamente 4 (quatro) estudantes por escola, sendo um por cada nível de
escolaridade. Desse total, oito (8) são do sexo masculino e oito (8) do sexo feminino.
71
questão (MINAYO, 1993). Nesta pesquisa, optamos pela segunda, visto que precisamos
recolher relatos dos nossos informantes especificamente sobre a questão da educação,
seja escolar ou da tradição.
Fizemos entrevistas semiestruturadas com o intuito de permitir que os nossos
informantes se sintam à vontade para expor as suas ideias de forma livre, visando
responder as questões previamente definidas no roteiro, embora, sendo aplicadas com
base numa conversa informal. Assim, o pesquisador poderia intervir ao longo da
entrevista para direcioná-la ao seu objetivo, apenas quando fosse necessário. Segundo
Boni & Quaresma (2005, p. 75), “esse tipo de entrevista é muito utilizado quando se
deseja delimitar o volume das informações, obtendo assim um direcionamento maior
para o tema, intervindo a fim de que os objetivos sejam alcançados”.
Contudo, é bom deixar claro que não conseguimos ter êxito nesse sentido, com
os homens grandes e as mulheres grandes12 Balantas-Nhacra que entrevistamos. Ou
seja, sentimos muitas dificuldades de delinear as respostas, ou intervir ao longo da
entrevista para direcioná-la ao nosso objetivo, como sugerem (BONI & QUARESMA,
2005), pois, para os Balantas-Nhacra, interromper ou cortar palavra a pessoa para
perguntar outra coisa ou pedir que seja resumida, além de ser uma falta de respeito, se
deve entender que a resposta de qualquer pergunta tem um fato histórico por traz dela.
Posto que eles/elas não respondiam a pergunta diretamente, faziam uma retrospectiva
histórica, explicando cenários históricos dessa pergunta e muitas vezes não chegavam a
dar as respostas específicas que almejávamos. Fato que nos causou dificuldades para
resumir as ideias expressas em cada resposta.
As entrevistas foram gravadas com os seguintes materiais: uma câmera
fotográfica marca SONY CYBER-SHOT de 16.1 MEGA PIXELS, um telemóvel
(celular) marca SONY XPERIA e um segundo telemóvel marca SAMSUNG-313
ML/DS.
A seção a seguir traz a descrição e a análise historiográfica, antropológica e
sociológica sobre: 1) a Guiné-Bissau antes e após a chegada dos portugueses; 2) a
educação levada a cabo pelos invasores portugueses (doravante educação lusa ou ensino
luso) e o impacto da língua portuguesa no referido país; 3) a luta de independência e a
educação das zonas libertadas: impacto da língua portuguesa.
12
Os termos homem grande e mulher grande (em balanta Alante Ndan ou Amin Ndan) são formas de
tratamentos usados pelos Balantas-Nhacra para se dirigir a um humem ou a uma mulher que passou pelo
último rito de iniciado, principalmente, um ancião ou uma anciã.
75
13
A Conferência de Berlim contou com a participação de países europeus (Alemanha, Áustria, Hungria,
Bélgica, Dinamarca, Espanha, França, Grã-Bretanha, Itália, Noruega, Países Baixos, Portugal, Rússia e
Suécia) e também com o Império Otomano e com os Estados Unidos. O objetivo declarado era o de
"regulamentar a liberdade do comércio nas bacias do Congo e do Níger, assim como novas ocupações de
territórios sobre a costa ocidental da África. (cf:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Confer%C3%AAncia_de_Berlim. Acesso em 04 de julho de 2018).
76
Fonte: https://suburbanodigital.blogspot.com/2015/04/mapa-da-guine-bissau.html
seu interior ficaram fora da área de interesse de viajantes e autores árabes”. Muito
embora o autor admita que “é provável que desde a época do Império de Gana 14
existissem relações comerciais entre a savana e as regiões cobertas de florestas”
(PERSON, 2010, p. 337). O interior dessa região também foi tardiamente e
precariamente ocupado pelos conquistadores europeus. Por outro lado, a região é
caracterizada pela fragmentação da população em vários grupos étnicos, alguns com
estruturas sociais e práticas culturais semelhantes e outros apresentam essas
características totalmente diferentes.
A tradição oral é uma realidade fortemente presente nessa região, desde os
tempos primordiais até hoje. Ela se realiza através de ritos de iniciação, de contos, de
provérbios, de instrumentos musicais, como o tambor, o bombolom (tambor feito de
tronco de árvore – muito usado pela etnia Balanta) e de outras diversas literaturas orais
que são praticadas de diferentes formas dependendo dos grupos étnicos.
É de salientar que grande parte da população dessa região resistiu fortemente à
conquista e à dominação portuguesa, como os Balantas da Guiné-Bissau, chamados
pelos lusos de “rebeldes” por resistirem até o fim à sua dominação. Muitos grupos
étnicos não foram atingidos pela cultura portuguesa e mantiveram as suas práticas
culturais. Isso não quer dizer que não tenham sofrido mudanças e adaptações ao longo
do tempo por diversos outros fatores, entre os quais os impactos, mesmo que à
distância, dessa presença lusa no litoral.
Vale ressaltar que, antes da Conferência de Berlim, o continente africano não era
dividido entre países como ocorre atualmente. Se hoje existe a delimitação geográfica
de cada um dos países africanos, como é o caso da Guiné-Bissau, essa divisão
arbitrária15 resultou do evento acima referido. Apesar de ser um assunto polêmico, que
merece debate profundo, o nosso objetivo aqui é fazer uma breve contextualização
histórica da região que é a atual costa ocidental africana, especialmente a chamada “Alta
Guiné”, região na qual se encontra a Guiné-Bissau. A proposta, portanto, é a de traçar
um panorama histórico da chegada dos conquistadores portugueses neste último
território e as atividades que ali praticaram até a saída forçada em 1974.
14
Império do Gana, Reino do Gana ou Império de Uagadu, foi um antigo império que dominou a África
Ocidental durante a Idade Média. Localizava-se entre o Deserto do Saara e os rios Níger e Senegal,
muitos quilômetros ao norte do atual país chamado Gana. Este Império foi destruído pelo Império Mali.
15
Usamos o termo “arbitrária” porque julgamos que a divisão do continente africano pelos imperialistas
coloniais violou gravemente as fronteiras étnicas e a forma de vida dos seus habitantes.
78
16
Cf. https://pt.wikipedia.org/wiki/Imp%C3%A9rio_do_Gana. Acesso em 04 de setembro de 2018.
79
Fonte: https://jornalggn.com.br/noticia/a-cidade-de-timbuktu-e-a-primeira-universidade-do-
mundo. Acesso em 5 de mar. de 2018.
17
Cf. https://jornalggn.com.br/noticia/a-cidade-de-timbuktu-e-a-primeira-universidade-do-mundo. Acesso
em 5 de mar. de 2018.
80
Fonte: https://jornalggn.com.br/noticia/a-cidade-de-timbuktu-e-a-primeira-universidade-do-
mundo. Acesso em 5 de mar. de 2018.
O Mali era um reino do povo Malinkés (da etnia Mandinga), cujo fundador foi
Sundyata Keita. Ele assumiu o poder em Cangaba, por volta de 1230, e começou a
conquistar as terras ao redor, que eram ricas em minerais valiosos como ouro e sal. O
81
18
Cf. https://br.answers.yahoo.com/question/index?qid=20090709091800AAnIwhO.
82
Apesar de sua vastidão, o Império do Mali não era um estado unitário nem
homogêneo, era sim formado por reinos, cidades-estados e aldeias que obedeciam
conselhos de anciãos. Sendo assim, a expansão do Império do Mali em vários
kalifados/farins (reinos) – governados por mansas (reis em mandingas) – foi
responsável pelo surgimento do reino de Gabu, também conhecido por Kaabu, reino
mandinga que existiu entre 1537 e 1867 na região da Senegâmbia (especificamente, no
nordeste da atual Guiné-Bissau, mas estendendo-se à Casamansa, no Senegal). A sua
ascensão na região se deu graças às suas origens como antiga província do Império do
Mali. Após o declínio do Império do Mali, Gabú ou Kaabú tornou-se um reino
independente (LOPES, 1999). Segundo autor, o Reino de Kaabu foi derrubado pelos
fulas.
19
O Darwinismo social refere-se à “superioridade da raça branca” e à “inferioridade da raça negra” pela
grande dificuldade de os negros “apreenderem os valores próprios da civilização ocidental”. Dessa forma,
a “raça negra” teria de viver sob a tutela da “raça branca”, para não regredir ao “estado natural de
selvageria”. Enquanto o Etnocentrismo ocorre quando um indivíduo, um grupo ou uma determinada
sociedade se julga melhor ou pior do que outro, levando em comparação os padrões culturais ou a
condição social. Ou seja, a apreciação positiva ou negativa de padrões culturais do outro.
84
povos negros para ascender precisavam ser devidamente “educados”, cabendo à Europa
essa tarefa missionária (HERNANDEZ, 2005).
Essas teorias alimentaram as políticas educativas levadas a cabo pelos
imperialistas europeus na África. Contudo, é importante frisar que, devido à contradição
e à diversidade de ponto de vista dos próprios países europeus que se lançaram à
dominação dos povos africanos, essas políticas educativas foram definidas em duas
vertentes: a política de diferenciação, desenvolvida e praticada pelos impérios inglês e
alemão, e a política de assimilação, desenvolvida e praticada pelos impérios português,
francês e belga.
A política de diferenciação adotada, sobretudo pela Grã-Bretanha, embora, fiel
ao projeto civilizatório ocidental, que via a África como periférica, tinha
paradoxalmente dois pontos básicos: baseava-se em generalizar a civilização britânica,
por outro lado, defendia a manutenção e proteção das sociedades indígenas,
incorporando os representantes africanos (chefias tradicionais) na administração indireta
das colônias. Ao mesmo tempo, introduziam a educação britânica com o objetivo de
tornar os africanos aptos a entrar na economia moderna, com o objetivo de melhorarem
suas próprias sociedades. Essa perspectiva era sustentada pela convicção de que as
mudanças econômicas, sociais e políticas deveriam ser atreladas às próprias instituições
africanas, pois seria mais eficiente construir partindo das próprias noções tradicionais de
justiça e de ordem do que impor padrões europeus compreensíveis apenas por uma
minoria (HERNANDEZ, 2005).
Por sua vez, a política de assimilação, praticada especialmente por Portugal nas
suas colônias africanas, defendia estritamente os princípios tradicionais das histórias das
nações conquistadoras. Ela tinha também como objetivo “converter” gradualmente o
africano em europeu – português (ALMEIDA, 1981; HERNANDEZ, 2005). O que
significava que a organização, o direito consuetudinário e as culturas locais baseadas na
tradição oral deveriam ser transformados. Para isso, utilizavam o ensino da língua da
metrópole (aliás a única oficial), a religião e a moral cristãs, os costumes, a tradição
escrita e o modo de vida ligados à Europa, dividindo africanos entre “assimilados/
civilizados” e “indígenas / não-civilizados” (KI-ZERBO, 1999; HERNANDEZ, 2005).
A política de assimilação era baseada na ideia de que os africanos eram povos
incivilizados que se encontravam em estado de atraso e que deveriam ser gradualmente
arrancados da sua condição de “ignorância” e transformados em indivíduos
“civilizados”, racionais e respeitáveis, podendo assim adquirir o estatuto de cidadãos
85
De acordo com o autor, “nada há que não possa ser feito de forma ‘civilizada’ ou
‘incivilizada’. Daí ser sempre difícil sumariar, em algumas palavras, tudo o que se pode
descrever como civilização” (ELIAS, 1990, p. 23). Na nossa leitura, o conceito de
civilização tem uma conotação política, sobretudo, no pensamento ocidental. Essa
discussão está presente tanto na análise de Elias (1990) como na de Cuche (2002). Na
visão de Elias, o conceito de civilização:
20
A Conferência de Berlim ocorreu entre 19 de novembro de 1884 e 26 de fevereiro de 1885 e resultou
na partilha da África entre as potências coloniais europeias (Inglaterra, França, Portugal, Espanha,
Holanda, Itália, Bélgica e Alemanha). Esse período marca o início da conquista oficializada no continente
africano. A África foi dividida em fatias, sem que se considerassem a história, a cultura, o poder
tradicional e as fronteiras étnicas dos povos africanos (SILVA, 1997; HERNANDES, 2005).
87
Cacheu. Isso porque o interior do território foi tomado pela guerra de ocupação que
regime colonial desencadeou contra os nativos autóctones de diferentes etnias, que
lutavam contra a usurpação dos seus territórios e de seus poderes (detalhes sobre essa
guerra seguem-se ao longo dessa seção).
Entretanto, cabe ressaltar que, apesar de cinco séculos da ocupação territorial
portuguesa na Guiné-Bissau, seu sistema educativo era muito limitado e começa a ser
expandido somente nas décadas de 1950 e 1960. Os motivos dessa expansão devem-se à
emergência e ao avanço dos movimentos independentistas africanos dos territórios
conquistados pelos portugueses21, como também à pressão da comunidade
internacional, principalmente da Organização das Nações Unidas (ONU), que exigia de
Portugal a concessão de direitos à autodeterminação dos povos a ele ainda mantidos sob
a conquista colonial (SILVA, 1997; HERNANDES, 2005).
A partir das pressões feitas pela ONU, o governo salazarista passou a denominar
as terras invadidas – “suas colônias” – como províncias ultramarinas, ou seja,
províncias de Portugal de além mar. Essa estratégia, ou falsa ideia, foi propagada pela
expansão da educação e de outras políticas que tinham como intuito convencer as
Nações Unidas de que Portugal não tinha colônias, mas, sim, províncias ultramarinas,
cujos “supostos” cidadãos teriam os mesmos direitos dos cidadãos portugueses nativos.
Um exemplo notável dessa estratégia adotada em Guiné-Bissau foi o programa
chamado “política para uma Guiné melhor”, inaugurado pelo então governador António
de Spínola, na década de 1960, através do qual o governo português tentou investir na
modernização administrativa: com a expansão da educação, construção de casas
populares para os nativos, tanto das cidades como das aldeias (casas chamadas fileiras),
e também com a construção de postos de saúde, entre outros investimentos (cf. SILVA,
1997; FURTADO, 2005).
Apesar disso, esses investimentos não tiveram sucesso e continuidade devido à
intensificação da luta armada levada a cabo pelo Partido Africano para Independência
da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) contra o conquistador português. A apresentação
desse cenário é de fundamental importância para entender como se deu a educação do
conquistador na Guiné-Bissau.
Posto isso, parece-nos pertinente dividir a educação lusa implementada na Guiné
Portuguesa em duas fases: a primeira inicia-se na primeira metade do século XVI,
21
Como o Partido Africano para Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), que lutou e conquistou
a independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde.
88
especificamente em 1471 e vai até a primeira metade do século XIX, em 1834, após o
governo liberal conquistar o poder em Portugal; a segunda fase inicia-se a partir dessa
última data e ganha terreno após a realização da Conferência de Berlim até o
reconhecimento da independência da Guiné-Bissau por Portugal em 1974.
Na primeira fase, a educação colonial funcionava de uma forma não
institucionalizada e era ineficiente, uma vez que se limitava apenas aos africanos que
colaboravam com o regime colonial (CÁ, 2000; FURTADO, 2005). Essas pessoas são
conhecidas como os “grumetes” ou os “lançados” ou ainda os “luso-africanos”, na sua
maioria são descendentes de europeus ou de cabo-verdianos (cf. AUGEL, 2007),
vulgarmente conhecidos como “assimilados”. Eles, geralmente, ocupavam a função de
servidores lusos de baixo escalão. A respeito dessa primeira fase da educação do
conquistador, Furtado (2005) afirma que:
Por outro lado, Ocuni Cá (2005) ressalta que desde a descoberta da Guiné-
Bissau por Nuno Tristão, em 1446 e após dois séculos, não havia praticamente nenhum
sinal de atividades educacionais dos portugueses naquele território. Segundo o autor,
22
Revolução de Setembro é a designação dada ao golpe de Estado que ocorreu em Portugal a 9 de
setembro de 1836 que derrubou o Devorismo (grupo de políticos liberais que se instalou) e levou à
promulgação da constituição portuguesa de 1838 (cf.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Revolu%C3%A7%C3%A3o_de_Setembro).
90
23
Um maior detalhamento sobre essa guerra será realizado ainda nesta seção.
24
Palhotas são casas cobertas de palha ou ramos de árvores. Esse é o modelo de construção de casas de
vários países africanos. Por sua vez, o Imposto de Palhota é um tributo que os conquistadores portugueses
cobravam por cada casa dos nativos africanos dos territórios conquistados. Esse imposto era pago ou em
dinheiro ou em produtos agrícolas (arroz, milho, feijão, entre outros) ou em animais (vacas, porcos,
cabras, galinhas) ou ainda em trabalho manual.
91
25
A campanha de pacificação foi, na verdade, um conflito sangrento que os sucessivos governadores da
Guiné Portuguesa levaram a cabo contra os nativos das diferentes etnias do território. O objetivo dessa
campanha era neutralizar, pela força das armas, a resistência dos nativos, que se recusavam a pagar os
impostos de palhotas, resistindo à usurpação dos seus poderes e privilégios e à interdição da sua tradição
cultural, exigindo a liberdade nos seus territórios (NAMONE, 2014, p. 48).
92
26
Sendo os maiores produtores de arroz no país, os Balantas, especialmente os do Sul, eram obrigados a
ceder boa parte desse produto para o pagamento de tributo ao governo luso. A cobrança de impostos era
realizada pelos cipaios – soldados africanos a serviço do regime colonialista, comandados por um oficial
luso. O ancião Isnaba na Nsanca da aldeia de Gantone e o ancião Arima Na Katche da aldeia de Komo
lembram-se de castigo que as pessoas sofriam nesse período. Os dois relataram que, além de as aldeias
serem obrigadas a pagar imposto de palhota, seus moradores eram obrigados a realizar trabalho forçado,
como carregar pedras que são usadas na construção de estradas, sem nenhuma remuneração. Nesse
trabalho, havia pressão psicológica (insulto), violência corporal (chicotada) e bofetada (levar tapa na cara)
por parte dos cipaios. (Ancião Isnaba na Nsanca. Gantone/Guiné-Bissau e ancião Arima Na Katche.
Komo/Guiné-Bissau. jul.: 2019. Entrevista consedida a Dabana Namone).
93
O Estatuto do Indígena era uma lei que visava à “assimilação” dos nativos na
cultura lusa. Essa lei estabelecia três grupos populacionais: os indígenas, os assimilados
e os brancos, estes últimos os portugueses natos. Os primeiros eram considerados como
aqueles que não têm direitos civis ou jurídicos e nem cidadania. Segundo este estatuto,
Importante ressaltar que o governo luso mantinha relação estreita com a Igreja
Católica. Essa relação tinha como principal objetivo submeter os africanos à dominação
lusa através da evangelização.
Por sua vez, Furtado (2005, p. 251) considera que a instrução pública era,
contudo, muito limitada e elitista. Em toda a Guiné-Bissau, as estatísticas publicadas em
1918, referentes ao ano de 1917-1918, apresentavam um total de 63 alunos que tinham
conseguido aprovações nos exames do 1º grau (de 1ª e 3ª classe) e 2º grau (4ª classe),
como se pode verificar pela Tabela nº 1 a seguir.
Vale lembrar que os conteúdos cobrados nesses exames dizem respeito à
realidade portuguesa: língua portuguesa, história, geografia, literatura, entre outros
assuntos de Portugal. Do mesmo modo, a maioria dos professores e das professoras era
portuguesa (cf. FERREIRA, 1974; ALMEIDA, 1981; CÁ, 2008).
A partir desses dados, podemos concluir que poucos nativos guineenses tiveram
acesso à educação lusa, pois se consideramos que essas cidades são as que
apresentavam maiores números de habitantes nesse período de conquista colonial, e se
muitos nativos tivessem acesso a essa educação, seria razoável ter mais estudantes
aprovados nos exames acima mencionados. Mas o que se revela é o inverso.
É de se salientar que a educação lusa funcionava predominantemente nas cidades
com maior influência dos conquistadores portugueses, como essas constantes na tabela
acima. Essas cidades apresentam as seguintes características: são litorâneas e, portanto,
favoráveis às atividades comerciais, talvez, por isso tenham sido as primeiras ocupadas
pelos invasores portugueses.
98
assimilado, teria que renunciar a sua cultura e a sua língua em proveito da cultura
europeia “civilizada”, devendo falar corretamente a língua portuguesa. A esse respeito,
levantam-se as seguintes questões: como um nativo “indígena” que nasceu e
permaneceu residente em um meio social cujas pessoas falam determinada língua,
estando ele ligado sempre à tradição oral – a base da sua cultura – conseguiria assimilar
e “falar corretamente” a língua portuguesa num modelo da educação que ensina apenas
o básico (rudimento)? Para falar corretamente uma língua, precisaria-se compreender a
sua estrutura gramatical, ou pelo menos praticá-la diariamente ao longo de tempo para
ter o seu domínio. Em que medida, portanto, a língua portuguesa poderia se expandir a
todo território guineense numa educação que dividia a população do mesmo território
em duas classes, dando privilégio a uns em detrimento dos outros? Essas são questões,
entre outras, que essa pesquisa procura responder.
Cabe ressaltar que é na base dessa ideologia de “dividir para melhor dominar”
que a língua portuguesa foi instituída como a única de ensino na educação lusa na Guiné
Portuguesa. Sendo assim, o africano (assimilado) que a falava se sentia orgulhoso, pois
se considerava civilizado ao modelo ocidental, renegando a sua cultura e a sua língua.
Além disso, a língua portuguesa possibilitava ascensão social a quem a falava, pois,
através de seu domínio, os assimilados conseguiam emprego na administração colonial
(apesar da baixa remuneração) e uma vida razoavelmente organizada ao estilo
português. Ao passo que os nativos “indígenas”, que não falavam a língua do
conquistador, eram marginalizados e excluídos da educação lusa. Por outro lado, os
próprios indígenas resistiram à aculturação portuguesa, mantendo-se afastados e
resistentes à cultura do dominador a qual não se sentiam identificados, conservando as
práticas das suas culturas materiais e imateriais.
A língua portuguesa foi usada na educação lusa também para estigmatizar e
desvalorizar as línguas étnicas e a língua crioula faladas em Guiné-Bissau. Essas línguas
são preconceituosamente chamadas pelos conquistadores de dialetos, ou ladim, línguas
dos pretos, línguas de povos selvagens ou ainda línguas dos cães27 (ZAMPARONI,
2002) e eram proibidas, principalmente nas cidades ou nas instituições públicas.
Enquanto isso, a língua portuguesa era vista como a de privilégio e da civilização.
A esse respeito, Albert Memmi (1966) afirma que:
27
Grifo nosso.
102
Até hoje, muitas pessoas consideram as línguas africanas como dialetos. Mas,
contemporaneamente, o termo “dialeto” levanta muitos debates entre os linguistas, pois
para muitos sociolinguistas é um preconceito linguístico tratar uma língua falada por um
determinado grupo humano como “dialeto”. Segundo Timbane (2013, p. 264), “um
dialeto não é uma língua, pois esse termo traz uma sensação preconceituosa, uma
sensação de inferioridade.” De acordo com Bagno (2011),
28
Grifo nosso.
103
Marcelino dos Santos, Mário Pinto de Andrade, Vasco Cabral, o próprio Amílcar
Cabral, entre outros. Eles receberam influência de várias organizações de cunho
político-cultural, tais como: Movimento Pan-Africanista29; Partido Comunista
Português (PCP)30; Movimento de Unidade Democrático ala Juvenil (MUD Juvenil),
Clube Marítimo Africano, Conferência de Bandung, entre outras organizações (cf.
NAMONE, 2014).
Sendo assim, em 1952, após concluir a formação e trabalhar como pesquisador
na Estação Agronômica Nacional, em Lisboa, Cabral manifestou o desejo de regressar à
sua terra natal, a então Guiné Portuguesa. Aprovado em concurso, foi contratado pelo
Ministério do Ultramar como adjunto de serviços agrícolas e florestais da Guiné
Portuguesa, na Estação Agrária Experimental de Pessubé, em Bissau. Em 1953, foi
nomeado pelo governo da Província da Guiné Portuguesa para dirigir um
recenseamento agrícola (IGNATIEV, 1984; CASSAMA, 2014). A exigência do
trabalho o fez visitar todos os cantos do território, o que lhe possibilitou ter contato com
as populações camponesas, com quem mais tarde contou na luta de independência. É de
se salientar que esse trabalho agronômico no campo permitiu a Cabral ter um contato
mais próximo com as diferentes etnias do país.
Em 1954, após terminar o recenseamento agrícola, ele tentou criar um clube
desportivo e recreativo, mas na verdade seu objetivo era preparar clandestinamente uma
juventude revolucionária e anticolonialista, tendo como finalidade desencadear o
movimento de independência. Depois de ser descoberto pela Polícia Internacional de
Defesa do Estado (PIDE), o clube foi interditado pelo governo local e Amílcar Cabral
foi obrigado a regressar a Portugal com direito a visitar a família uma vez por ano.
Justamente em uma dessas visitas, no ano de 1956, Cabral com a colaboração dos
cincos camaradas (Aristides Pereira, Luiz Cabral, Fernando Fortes, Júlio de Almeida e
Elizes Turpan) fundaram o PAIGC, numa reunião clandestina na casa de Aristides
Pereira (IGNATIEV, 1984).
Desde a sua fundação, de 1956 até março de 1972, o PAIGC era um Movimento
Revolucionário de Libertação, cuja sigla era PAI – Partido Africano para a
Independência; depois desta última data, foi transformado em Partido Africano para
29
Pan-africanismo é um movimento político, filosófico e social que promove a defesa dos direitos do
povo africano e da unidade do continente africano no âmbito de um único estado soberano para todos os
africanos, tanto na África como na diáspora (HERNANDEZ, 2005).
30
Este partido, durante muitos anos, foi a única força oposicionista organizada que apoiava as
reivindicações da juventude universitária, às quais os estudantes das colônias africanas também aderiam
ativamente (cf. MATEUS, 1999).
106
Foi com esta estratégia que o PAIGC conseguiu o apoio da população dos
diferentes grupos étnicos guineenses para a luta, sobretudo no sul do país, onde há
florestas densas favoráveis à guerra de guerrilhas. Essa região é ocupada
majoritariamente pelos Balantas-Nhacra.
Depois de conquistar o apoio popular, o PAIGC saiu da clandestinidade e adotou
a tática de guerrilha, iniciando assim a ação direta, isto é, a sabotagem contra os
interesses econômicos colonialistas, mediante a destruição de estradas, pontes, redes
elétricas e sistemas de comunicação.
No plano externo, de 1960 a 1962, o partido iniciou a formação dos militantes e
quadros do partido, que contou com o apoio de seguintes países: União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas (URSS) – atual Rússia –, China, Cuba, Checoslováquia,
República Democrática de Alemanha, Marrocos, Argélia. Esses países, sobretudo, a
Rússia, a China e Cuba, ajudaram não só com a formação dos quadros militares e
políticos do partido, como também deram importante apoio bélico e logístico, dentre os
quais: armas e munições de altas potências, medicamentos, gêneros alimentícios,
médicos, entre outros.
Salienta-se que a Guiné Conacri desempenhou um papel fundamental nessa luta,
uma vez que era o país no qual estava instalada a direção do partido. Com efeito, o
PAIGC iniciou a luta armada em 1963, com um primeiro ataque ao aquartelamento
português de Tite, no sul da Guiné-Bissau. Um ano depois, os portugueses sofreram a
primeira e maior derrota militar, na conhecida batalha de “Komo”, também na região
sul do país. Segundo Lopes (1982),
o ataque durou cerca de três meses e levou à morte 650 homens. Foi a
mais importante batalha da luta armada guineense. Tratava-se de uma
região que o PAIGC já havia libertado e que os colonialistas
pretendiam recuperar, mas o seu fracasso foi total (LOPES, 1982, p.
25).
todo, especialmente nesse universo empírico locus de nossa pesquisa, ou seja, as zonas
rurais.
Gostaria, mais uma vez, de chamar a atenção para o fato de que o conceito de
analfabetismo só faz sentido em sociedades pautadas pela cultura escrita. Portanto, é
uma grande contradição usar esse conceito no projeto de educação pensado para Guiné-
Bissau nessa época de luta. Também, não devemos perder de vista que o conceito de
analfabetismo foi um dos pilares utilizados pelos colonialistas para justificar a
dominação dos outros povos, ditos analfabetos, incivilizados ou selvagens e que
precisavam ser basicamente instruídos, ou seja, alfabetizados para assimilarem às
culturas do conquistador dita civilizada.
Voltando ao projeto educativo do PAIGC, importa referir que, para atingir os
objetivos traçados no Congresso de Cassacá, o partido iniciou a criação de instituições
jurídico-administrativas nas regiões que conquistou – isto é, nas Zonas Libertadas (Z.L),
dentre os quais o sistema educativo. A educação nas zonas libertadas tinha como
objetivo contrapor-se à educação lusa, ou seja, era uma resistência e um meio de
transformação administrativa das áreas rurais controladas pelo partido, gerando um
isolamento do sistema dos invasores portugueses.
As escolas implementadas nessas regiões, segundo Cá (2005, p. 48), “na sua
primeira fase estavam representadas pelas escolas do campo, onde se encontravam
crianças esquecidas e rejeitadas pela educação colonial”. Elas eram ensinadas a ler, a
escrever e a contar sem se considerar questões pedagógicas, pois na época não havia
professores com formação pedagógica para realizarem o processo de alfabetização e
letramento. Os professores eram monitores escolares sem formação adequada e eram
orientados a ensinar as crianças a disciplina: “formação militante” e “noções de política
que abriam horizontes de reflexão sobre as razões da luta do país, da África e do
mundo” (ANDRADE, 1981, 125-126).
Desse modo, essa educação funcionava de maneira informal, pois, segundo
Cabral (1979), qualquer pessoa podia ser professor, seja ela dirigente do PAIGC,
combatente do partido, ou qualquer pessoa da comunidade, bastando passar a sua
experiência de vida para os mais jovens. Significa dizer que era uma educação baseada
na tradição oral, através da experiência dos mais velhos (anciãos), mesclando-se com
um elemento da modernidade, isto é, da escrita. Tal educação ocorria embaixo das
árvores, podendo ser de dia ou à noite em volta da fogueira, em barracas improvisadas,
onde o tronco das árvores era usado como cadeiras.
110
Cabral (1979) afirma que a língua crioula será ensinada na Guiné-Bissau, tal
como desejam muitos camaradas do seu partido, mas isso só será realizado depois de
muitos estudos bem feitos a respeito dela. Por enquanto, a língua de ensino no país seria
112
a língua portuguesa, pois, para o autor, todas as línguas são válidas para os guineenses,
tanto a língua portuguesa como a língua crioula e que ninguém é filho mais puro da
Guiné-Bissau, só pelo fato de falar apenas o crioulo:
Cabral percebeu de forma clara os problemas reais que seu partido enfrentava
nesse período da luta e seu desdobramento após a independência da Guiné-Bissau. De
fato, trata-se de um território caracterizado por uma diversidade cultural e linguística
muito acentuada, cuja tradição oral é a base da relação social de quase 100% (cem por
cento) da população, que se comunicava com as línguas maternas faladas, sendo todas
ágrafas. Ou seja, o PAIGC teria grandes desafios a enfrentar na educação,
especialmente quando o assunto era a língua de ensino. Diante desses desafios, não
restava dúvidas para o líder do PAIGC de que a língua portuguesa teria que ser a única
de ensino na Guiné-Bissau, até que, depois da independência, o país reunisse as
condições viáveis para ensinar as línguas maternas, especialmente o crioulo (CABRAL,
1979). Para o autor, a língua portuguesa é a única no país com características que a
língua crioula e as étnicas não tinham (a escrita). Além disso, é ela que o país pode usar
para comunicar-se com o mundo, para avançar na ciência e na tecnologia. Cabral (1979)
afirma que a única coisa que nós, os guineenses e os cabo-verdianos, podemos
agradecer aos “tugas”31 – os portugueses – depois de ter roubado tanto na nossa terra, é
o fato de estes nos “deixarem a sua língua”, o que “é uma honra”.
Para tal, Cabral (1979) chama atenção aos camaradas do seu partido que, para
levar o povo à frente e avançar na ciência, o português teria que ser a língua do ensino
na Guiné-Bissau, até que se estabelecessem as regras gramaticais para o crioulo. Ele
concluiu dizendo que se ensinassem aos alunos guineenses como o crioulo surgiu da
língua portuguesa e das línguas africanas. Isso facilitaria a aprendizagem da língua
lusitana.
31
Tugas é o termo designativo de “português” em Guiné-Bissau.
113
No que diz respeito às Z.L., a literatura aponta que o ensino na língua portuguesa
teve dificuldade de se afirmar nessas zonas e essa dificuldade persiste no país até o
momento atual, visto que tanto os professores como os estudantes não tinham e ainda
não têm domínio desse idioma, especialmente a sua estrutura gramatical, uma vez que
não é a que os guineenses usam no dia a dia em casa (PEREIRA, 1976, ALMEIDA,
1981; FURTADO, 2005; CÁ, 2005; CANDÉ, 2008; CRUZ, 2013; NAMONE;
TIMBANE, 2017). Até o presente, as tradições orais, as línguas étnicas e o crioulo
continuam fazendo parte da comunicação cotidiana desses estudantes e dos professores,
o que impede o domínio da língua portuguesa.
A maioria dos estudantes nas Z.L. era formada por filhos de combatentes em luta
e os órfãos de guerras (como, por exemplo, os filhos dos combatentes balantas). Esses
estudantes não falavam a língua portuguesa, pois nasceram e cresceram nas suas
tabancas, localizadas nas zonas rurais, nas quais só falavam a língua da sua etnia e um
pouco de crioulo. Os que tinham domínio da LP eram filhos de dirigentes do PAIGC –
Amílcar Cabral, Aristides Pereira, Luiz Cabral e outros que passaram pelo processo de
assimilação através da educação lusa –, a maioria de origem cabo-verdiana, os quais já
falavam a língua portuguesa em casa. O que significa dizer que os filhos dos dirigentes
do Partido teriam maior facilidade de apreender as matérias ensinadas em língua
portuguesa em comparação aos filhos dos combatentes oriundos das comunidades
rurais, onde essa língua é desconhecida.
Bourdieu (1998) problematiza essa questão quando afirma que os filhos dos pais
com maior capital cultural adquirido pelos estudos têm maior chance de obter bom
rendimento e de se destacarem na escola, em comparação aos filhos cujos pais são
desprovidos desse capital. Contudo, é uma tendência, o que não quer dizer que seja
regra geral, pois depende também do esforço e de grau de inteligência de cada pessoa.
Por exemplo, na Guiné-Bissau há muitos estudantes oriundos do interior, cujos pais são
desprovidos de capital cultural (na perspectiva bourdienana), que se destacam na escola
mais do que os da cidade, cujos pais são mais escolarizados.
No caso específico da etnia Balanta-Nhacra residente no sul do país, que
também participou massivamente na luta de independência, apesar de um número
considerável dos seus filhos ingressarem na educação das Z.L, grande parte deles teve
dificuldade de progredir, porque enfrentava dificuldades em aprender LP. Essa
dificuldade somada a outras questões culturais (tais como ajudar na lavoura) obrigavam
muitos a abandonar os estudos. Nesse sentido, para muitos pais, a educação formal,
115
entendida por eles como de brancos, não tinha sentido real para suas vidas. O que tem
sentido para eles é o trabalho no campo (lavoura e todos os trabalhos ligados à vida da
comunidade – tabanca). Por isso, muitos pais preferiam que seus filhos estivessem na
lavoura e não na escola. Muito embora, hoje em dia, a percepção esteja mudando, pois
muitos pais, sobretudo os mais jovens, descobriram a importância da escola para o
futuro dos seus filhos, fato que os motiva a matricularem seus filhos na escola.
A seção a seguir foi dedicada à análise descritiva do grupo étnico Balanta da
Guiné-Bissau, especificamente, os Balantas-Nhacra residentes na região de Tombali –
sul do País – com destaque à sua produção de existência material (agricultura e
pecuária) e imaterial (ritos de iniciação, casamento e cerimônias fúnebres).
116
Barth (1969) considera essa definição como ideal e “não muito diferente em seu
conteúdo da proposição tradicional que postula uma raça = uma cultura = uma
linguagem = uma sociedade = uma entidade que rejeita ou discrimina outras” (apud
POUTIGNAT; STREIFF-FERNART, 2011, p. 191). Para ele, os grupos étnicos não são
unidades sociológicas discretas, nem unidades sociais estruturadas em torno de traços
culturais distintivos, portadores da especificidade grupal.
Na definição de Barth, os grupos étnicos são vistos como uma forma de
organização social que se identifica e é identificado por outros como se constituísse uma
117
Na verdade, o que interessa para Barth nessa parte não é o conteúdo cultural,
pois, para ele, a cultura não é a causa principal e, sim, a consequência, ou seja, o
resultado. O importante para ele é o limite negociado pelo grupo étnico em contextos
precisos, ao desenvolver sua interação com os demais (POUTIGNAT; STREIFF-
FERNART, 2011).
Essa perspectiva interacionista, defendida por Barth, tem como objetivo
ultrapassar a oposição entre as concepções objetivista e subjetivista da identidade
(CUCHE, 2002). Segundo o autor, a perspectiva objetivista concebe a identidade a
partir de certos critérios considerados objetivos, tais como: “origem comum (a
hereditariedade, a genealogia), a língua, a cultura, a religião, a psicologia coletiva (a
personalidade básica), o vínculo com um território etc.” (CUCHE, 2002, p. 180).
Portanto, um grupo sem estes elementos não pode reivindicar uma identidade cultural
autêntica.
Ao contrário, a concepção subjetivista entende a identidade como sentimento de
vinculação ou identificação a uma coletividade imaginada. Para esta perspectiva, “a
identidade é uma questão de escolha individual arbitrária: cada indivíduo seria livre para
escolher suas identificações” (CUCHE, 2002, p. 180).
De acordo com Cuche (2002), a perspectiva interacionista defendida por Barth
recusa a assumir uma das duas concepções, pois para essa corrente teórica,
De acordo com Cuche (2002), Barth (1969) define a identidade étnica como um
modo de categorização utilizado pelos grupos para organizar as suas trocas. Para este
último,
Barth (1969) argumenta ainda que “o que cria fronteiras entre grupos étnicos não
é a diferença cultural, mas sim a vontade de se diferenciar e o uso de certos traços
culturais como marcadores de uma identidade específica” (BARTH, 1969 apud
CUCHE, 2002, p. 200). De acordo com este autor,
Essa concepção relacional da etnicidade, defendida por Barth foi criticada por
alguns antropólogos contemporâneos. Por exemplo, Poutignat & Streiff-Fenart (2011)
consideram que o ponto fraco de Barth é que ele usa os conceitos de organização e de
interação social de forma muito geral, para analisar todo tipo de identidade coletiva
(religiosa, política, familiar, de classe social, de geração, etc.), isto é:
Toda vez que está em causa à relação entre “eles” e “nós”. É aí que se
apaga a própria noção de etnicidade: continua sem resposta a questão
de saber o que é especificamente “étnico” na oposição entre “eles” e
“nós” e nos critérios de pertença que fundam esta oposição.
Certamente Barth concorda que traços culturais diferenciadores
traçam a linha de demarcação entre grupos étnicos, mas pouco lhe
importando quais, uma vez que podem variar no decorrer do tempo e
ao sabor das interações com outros grupos (BARTH, 1969, apud
POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011, p.12).
Por outro lado, Manuela Carneiro da Cunha (1987), apesar de defender esta
concepção, referente ao fato de que a etnicidade é uma organização eminentemente
política utilizada pelos grupos étnicos para marcar a sua identidade, ela critica a ideia
interacionista, segundo a qual a etnicidade é uma retórica, utilizada por um grupo para
marcar as suas fronteiras perante os outros em contato. Cunha (1987) defende que a
etnicidade tem o importantíssimo significado para grupos que operam politicamente
120
como categorias que selecionam para demarcar sua identidade. Portanto, ela se apóia na
idéia de Lèvi-Strauss, segundo a qual “os traços culturais selecionados por um grupo ou
fração de uma sociedade não são arbitrários, embora sejam imprevisíveis” (LÈVI-
STRAUSS, 1958 apud CUNHA, 1987, p. 103).
A autora vai ainda mais a fundo na questão para mostrar como a cultura joga um
papel importante no fenômeno chamado etnicidade. Para ela, a etnicidade não é
aleatória, mas sim uma linguagem, não no sentido de remeter a algo fora dela, mas no
de permitir a comunicação no sentido antropológico do termo. Isto é, a etnicidade é uma
representação que permite a comunicação entre os grupos étnicos numa determinada
sociedade, na qual este fenômeno se opera. Segundo a autora, a etnicidade é uma forma
de organização política utilizada pelos grupos étnicos em intenso contato. Enquanto
forma de organização política, ela só existe em um meio mais amplo (daí a sua
exacerbação em situações de contato muito próximo com outros grupos), e é esse meio
mais amplo que fornece as categorias dessa linguagem (CUNHA, 1987).
Ao contrário de Barth, Cunha (1987) destaca a importância da cultura nesse
cenário. Segundo ela, a cultura original de um grupo étnico na diáspora ou na situação
de intenso contato não se perde ou se funde simplesmente, e sim adquire uma nova
função e que se acresce a outras, enquanto se torna cultura de contraste. Nesse novo
processo, a cultura tende a se acentuar, tornando-se mais visível, e a se simplificar,
reduzindo-se a um número menor de traços que se tornam diacríticos.
A autora dá ênfase à língua, afirmando que a língua de um povo é um sistema
simbólico que organiza sua percepção do mundo, portanto, ela serve como elemento
diferenciador por excelência, como se revela na importância conferida aos “dialetos 32”
na organização dos movimentos separatistas. E destaca: “não é à toa que os movimentos
separatistas enfatizam dialetos e os governos nacionais combatem o polilinguismo
dentro das suas fronteiras” (CUNHA, 1987, p. 99-100). Portanto, alguns traços culturais
são selecionados pelos grupos étnicos para marcarem a sua identidade.
Cunha (1987) reconhece que o problema do uso da etnicidade levanta muitas
polêmicas, na medida em que toca diretamente na questão da adequação da identidade
32
Em casos como esse, utilizamos o conceito de línguas étnicas em vez de “dialetos”, pois, de acordo
com os linguistas, especificamente os sociolinguístas, o conceito de “dialeto” tem sido utilizado como
estereótipo para classificar as línguas das minorias étnicas como inferiores. O que para eles é um
preconceito linguístico que vem reforçando intolerância linguística. De acordo com os sociolíngustas,
todas as línguas são válidas como tais (cf. NGUNGA, 2007, BAGNO, 2009b, TIMBANE, 2013, entre
outros).
121
O autor enfatiza com maior detalhe a organização sociopolítica destas três etnias
Bijagós, Balantas e Banhus, dizendo o seguinte:
O segundo grupo é composto por grupos étnicos Fulas e Mandingas e têm como
principal característica a fé islâmica. De acordo com o autor, eles são:
É importante destacar que Lepri (1986) fez essa descrição dos grupos étnicos da
Guiné-Bissau baseando-se na teoria formulada por Amilcar Cabral, segundo a qual o
que explica diferentes formas de participação dos grupos étnicos do país na luta pela
independência se relaciona com a organização sociopolítica de cada um. Nesse sentido,
para Cabral (1978), alguns grupos são de organização social de tipo horizontal, cuja
relação social funciona de maneira igualitária, sem hierarquia de poder, de líder e
125
33
Atualmente, os Fulas são a maioria no país, tendo em vista a imigração de grande contigente deles
vindos principalmente da vizinha Guiné Conacri.
126
Sossos 1,2% e outros34, 5,3%. Os grupos minoritários no país são: Pajadincas, Banhus,
Bambarás, Bagas, Cassancas entre outros em estado de extinção (INEC, 1991). Esses
dados nos deixem com certas dúvidas, visto que a “miscigenação étnica atingiu um
nível consideravel” no país, derivado de casamentos interétnicos (CARDOSO, 1995, p.
279). Portanto, é impossível falar de grupo étnico no país sem levar em consideração
esse fenômeno.
Portanto, o nosso intuito nessa seção é falar dos Balantas, sua subdivisão e sua
organização sociopolítica, com ênfase nos Balantas-Nhacra, sem pretendermos ser
essencialistas, ou seja, levando em consideração a existência da miscigenação étnica no
país.
34
Percentagem acrescentada por Nóbrega (2003), sem citar os respectivos grupos étnicos.
35
Cf. «Kultur Balanta». West AfricanLanguagesandCultures. Disponível em:
<https://web.archive.org/web/20150414065301/http://www.laaf.me/en/culture/balante.php>. Acesso em
12abril de 2019.
36
Nhacra é nome de uma pequena cidade localizada na região de Oio.
127
37
Importante explicar que termo Buhungue acima mencionado significa na língua balanta nome de um
tipo de passarinhos migratórios, que vivem em grupos e se alimentam principalmente de arroz. Acredita-
se que o nome Buungue de Brassa Buhungue é atribuído aos Balantas-Nhacra em função de sua forte
migração de Norte, - região de OIO para Sul (TOMBALI) em busca de terras favoráveis à prática de
agricultura. Pois, os Balantas Nhacra são os que mais migram internamente em busca de melhores terras
para lavoura de arroz (Máalu na língua balanta)
128
38
Negrito nosso.
129
Cabral (1978) faz uma explicação mais detalhada sobre a sociedade fula e a
manjaca, classificando-as como estratificadas e hierarquizadas de cima para baixo. Ele
afirma o seguinte:
Não tem classes por cima umas das outras. Os Balantas não têm
chefes grandes, os “tugas” [portugueses] é que lhes arranjaram chefes.
39
Negrito nosso.
130
Cabral vai nos permitir fazer ressalva à sua afirmação referente à mulher balanta,
quando afirma que “a mulher participa na produção, mas é proprietária do que produz o
que lhe confere uma situação privilegiada, pois a sua liberdade é efectiva,” (Cabral,
1978, p. 101). Falta esclarecer que tipo de produção a mulher tem pleno direito de
propriedade. Na verdade, a produção que pertence à mulher balanta é aquela feita num
espaço menor e em pequena escala, por exemplo, uma pequena produção de mancara
(amendoim), de batata, de mandioca, de arroz, ou de legumes ou verduras. Essa sim é a
sua propriedade pessoal, que ela normalmente usa para comprar as suas roupas e as dos
filhos, mas, muitas vezes, ela a usa também para ajudar no sustento de sua família e do
marido. Existe, por sua vez, a propriedade da família, em que a mulher participa
ativamente na produção, que não é para ela pessoalmente e sim para benefício da
família como um todo. Por exemplo, o arroz produzido em grande escala nas bolanhas,
em que a mulher balanta participa intensamente, isto é, a qual cabe a ela a
responsabilidade de plantar, não é para benefício pessoal dela, mas para consumo da
família.
3. Segundo o autor, “existem diferentes situações intermediárias40 entre estes dois
grupos extremos” (CABRAL, 1978, p. 101). Nesse sentido, de acordo com o autor:
Cabe destacar que, em comparação com outros grupos étnicos que compõe a
Guiné-Bissau, os Balantas são os que mais participaram na luta pela independência
desse país e são, até hoje, maioria nas forças armadas guineenses. Os motivos que
levaram a sua participação massiva, tanto nessa luta como na forma armada, variam de
acordo com a opinião de cada analista. Portanto, é um dos assuntos que merecem um
estudo aprofundado, o que não é nosso foco nessa altura. Justamente por esse motivo,
sugerimos aos pesquisadores, interessados em estudar os Balantas, a estudar esse tema
tão relevante.
Voltando ao tema da estrutura sócio-política balanta, é de frisar que os
estudiosos compartilham a ideia de que os Balantas são conhecidos como povo
socialmente igualitário. É um povo que detesta a hierarquia social baseada nos líderes e
41
Grifo nosso.
132
Não é por acaso que tanto os imperadores Mandingas do reino de Kaabú, como
os conquistadores portugueses, os chamavam de rebeldes, após tentativas frustradas de
dominá-los, com exceção dos Balantas Mané, que foram dominados pelos Mandingas
como acima mostramos. Aliás, Seide (2017, p. 21) afirma que “é por conta da sua
rebeldia que originou o seu nome atual BALANTA”. Corroborando com Cammilleri
(2010, p. 15), para quem, na língua Mandinga, o termo “(EBALANTA) significa homem
rebelde, que não se submete de jeito algum”. O autor explica que se fizéssemos a
decomposição da palavra ficaria: E (eles), BALA (negar), NTA (morfema repetitivo) =
eles continuam a negar, a recusar (CAMMILLERI, 2010, p. 15). De acordo com Seide
(2017, p. 21), “numa tradução livre, significa rebelde, resistente, bravo ou simplesmente
aquele que não se submete”.
Talvez daí a origem de nome Balanta, pois, segundo o autor, ela foi atribuída
pelos Mandingas ao grupo étnico Balanta antes da chegada dos portugueses na costa da
133
Guiné e esse nome se tornou mais vulgar e acabou prevalecendo até dias de hoje.
Contudo, Frehu (2013) contraria o ponto de vista dos dois autores acima mencionados.
Para ele, o nome Balanta vem do termo (Bilante), que na língua balanta significa
homens. Segundo o autor, os conquistadores portugueses copiaram esse nome das
mulheres balantas que, na conversa entre elas, perguntavam umas as outras onde estão
os Bilantes (homens) e foi a partir desse momento em que os portugueses começaram a
chamar essa etnia de Balanta.
O que é inegável é que os Balantas são resistentes a qualquer tipo de dominação
ou submissão. Esse fato influencia na sua migração do norte para sul do país, com o
objetivo de afastarem-se dos perseguidores (Imperadores Mandingas e conquistadores
portugueses), como também em busca de terras férteis para agricultura.
Sendo assim, considerando os propósitos desta pesquisa, as questões que devem
ser feitas são: até que ponto essa resistência ajuda ou atrapalha no processo de ensino e
de aprendizagem dos jovens Balantas na educação básica? Em que medida essas
questões culturais entram em conflito com a cultura do conquistador, em particular a sua
língua? Em que medida a educação dos Balantas-Nhacra (baseada na cultura oral) entra
em conflito com a cultura escrita? Portanto, a análise da estrutura sociopolítica de
qualquer outro grupo étnico, como o caso aqui de Balantas, em especial os Balantas-
Nhacra, é de suma importância, na medida em que nos permite averiguar e/ou
questionar até que ponto ela interfere no processo de ensino e aprendizagem dos
Balantas e na aceitação ou não da LP nesse processo. Essas são, entre outras questões,
que essa pesquisa visa analisar.
É impossível falar de Balantas-Nhacra na região de Tombali, sem falar da sua
produção de existência material – produção agrícola, especialmente de arroz (MAALU)
e pecuária Gado/Vaca (NHAARE) e imaterial (cerimônias tradicionais, ritos de iniciação
e culto às divindades – Aule/Gkletcha).
Aúle42 ou Fad ne kpan (o protetor da morança43). Tal Aúle/Fad, feito de paus ou ferros
é fixado numa pequena barraca (Fram) ou junto de uma árvore caseira, chamada
Mkubm, que ficam na entrada da morança ou no meio dela. Balantas-Nhacra fazem
adoração a esse Fad ou Kgletcha – (nome chamado no momento de pedido) pedindo a
proteção, a saúde, a paz e alimentos à família, sendo tal pedido feito pelo ancião da
morança. Dependendo de grau da cerimônia, matam-se a galinha e a cabra, jogando-lhe
o sangue, ou simplesmente faz-se a comida com leite de vaca para a oferenda.
Todas as atividades realizadas pelos Balantas-Nhacra (a produção agrícola, os
ritos de iniciação, os casamento, as festas, as viagens, dentre outros) iniciam-se primeiro
pelo pedido de proteção e que todas as maldades sejam evitadas pelo Aúle ne Quetada
(divindade da tabanca) ou Fad ne Kpan (protetor da morança).
Acredita-se que haja pessoas mal intencionadas, isto é, os feiticeiros que sempre
aproveitam qualquer oportunidade ou situação para fazer mal as outras pessoas. O
feiticeiro, na concepção desses grupos étnicos, é a pessoa que faz contrato com o
Irã/Aúle em troca de algum benefício e, em consequência disso, entrega uma pessoa ou
um animal como pagamento. Existem muitas acusações de feitiçaria entre os Balantas-
Nhacra. Acusações que, muitas vezes, termina em violência, até inclusive a morte do
acusado.
Na concepção dos Balantas-Nhacra, não existe morte natural. Toda morte leva à
investigação do xamã. Logo que morre a pessoa, a família indigita dois grupos de duas
pessoas (um homem e uma mulher) para fazer a investigação (kibele Nchique) ao
chique/Quéda (xamã). Depois de fazer o cruzamento dessas duas investigações e a
partir das informações obtidas é que se decide como será o funeral. Se as informações
indicam, por exemplo, que a pessoa falecida era feiticeira, aí os Balantas amarram um
Mtchatch (djon gago em crioulo), que é um objeto feito de paus amarrados e coberto de
panos e é carregado por dois homens grandes, enquanto um terceiro que faz perguntas a
tal Mtchatch, isto é, ao falecido. Por exemplo, você participou na morte de fulano? Se é
verdade, as duas pessoas que carregam esse Mtchatch movimentam em direção ao
entrevistador. Segundo a crença balanta, é a pessoa falecida que está revelando os
crimes que cometeu. É, assim, que esse falecido segue revelando as maldades que fez
contra outras pessoas: as pessoas que matou, as doenças que provocou a outras pessoas.
42
Nome de Aúle é dado a qualquer divindade ou entidade espiritual, podendo ser de casa ou do mato. No
entanto, Aúle de casa é conhecido com o nome de Fad.
43
Conjunto de casas de um agregado familiar.
135
Assim também, se a pessoa falecida não cometeu nenhum crime e se foi morta
por alguém a investigação vai revelar isso. Muito embora o nome da pessoa que matou
não seja mencionado diretamente, o xamã dá pistas que levam as pessoas a adivinhar se
é fulano ou sicrano.
A produção de existência imaterial entre os Balantas-Nhacra consiste
fundamentalmente nos diversos tipos de ritos de iniciação, que são as principais formas
de transmissão de conhecimentos dos mais velhos para os mais novos entre gerações.
Esses ritos de iniciação desempenham função pedagógica de alto nível, pois são através
deles que os iniciados são ensinados a se comportar e assumir grandes
responsabilidades, tanto na sociedade Balanta, como em qualquer outra sociedade.
Existem diversas fases de ritos de iniciação para ambos os sexos: masculino e
feminino. Para o sexo masculino, há três fases de iniciação, a saber: NHÁE (iniciação
para grupos de moços que ainda não podem casar), NGHES (iniciação para grupos de
moços que agora podem casar) e FÓO (iniciação para grupos de homens grandes, onde
o agora iniciado pode assumir a responsabilidade da morança e da sua família). Para
além dessas fases de iniciação, há também a de BIDOGN NE NHARE, que apesar de
não ser rito de iniciação em si, é uma fase de aprendizagem para uma criança
(moçinho). Ele adquire muitas experiências que servem para sua vida futura. Já para o
sexo feminino, são duas as fases de iniciação: MBI-FULA (iniciação para entrar no
grupo de meninas/moças ainda não casadas) e IEGLE (noiva/a menina casada). Como
também existe a fase de KINRÃ, que apesar de não ser uma iniciação, é uma importante
fase da educação para a vida futura da menina. (Síntese de entrevistas com homens e
mulheres grandes no campo).
44
Terreno alagado na época chuvosa e preparado especificamente para produção de arroz. Ela é dividida
em forma de vários campinhos de futebol – conhecidos na língua crioula como prik, e em balanta fuil.
136
quantidade, no início de século XX, do Norte para Sul, principalmente, para a região de
Tombali, que é uma das mais férteis do país, favorável à produção agrícola. Segundo
Handem,
Os Balantas habitam de preferência nas terras baixas do litoral, próximo dos rios
e mares, ou seja, na área conhecida como “a 3ª zona ecológica do país: a faixa costeira
coberta de tarrafes (mangal) e palmares (palmeiras), e que fica parcialmente inundada
na estação da chuva” (HANDEM, 1986, p. 56). Tombali é a região com estas
características, sendo a que apresenta a maior produção de arroz no país. Por isso, essa
região é conhecida como o celeiro econômico da Guiné-Bissau.
A relação dos Balantas com a terra funciona, fundamentalmente, no plano
espiritual. Não é apenas uma boa condição climática que favorece a produção agrícola
(uma boa safra), mas, sim, a mediação estabelecida com o Aúle ne Quintada (Irã, ou
seja, grande divindade protetora da aldeia). Pois é a mediação com esse Aúle ne
Quintada que vai garantir a chuva que favorece a produção e, consequentemente, uma
boa colheita. Por isso, todo o sistema de produção de Balantas-Nhacra inicia-se
primeiro por um pedido de proteção feito através de uma prática ritual. Deste modo,
antes de iniciar as atividades agrícolas, os homens grandes – os anciãos da Tabanca
fazem um ritual matando uma vaca, um porco ou uma cabra (bode) para pedir proteção
ao Aúle ne Quintada, para que haja chuva em abundância a fim de garantir uma boa
colheita (safra).
Esse ritual costuma ser realizado no início da época chuvosa (entre maio e
junho). Após a realização dessa cerimônia, a família dona da tabanca45 autoriza o início
das lavouras – preparando um pequeno espaço na saída da morança, onde é deitada a
semente de arroz, o que sinaliza que qualquer pessoa da tabanca pode começar a sua
lavoura. Mas, antes desse anúncio, ninguém pode começar a lavoura, pois isso significa
45
Vale esclarecer que cada tabanca balanta tem o seu dono/proprietário, que é a primeira pessoa que
fixou residência nela. Nesse caso, a sua família alargada (morança) é considerada a dona da tabanca.
137
a violação do direito da família dona da tabanca – que pode até levar a morte de quem
desobedecer a essa regra cultural.
Após esse ritual, começa-se a preparação do terreno (Bolanha em crioulo e
Sambe em balanta). A lavoura compreende três etapas: a primeira começa com a
preparação de terreno para sementeira de arroz – (Buas Malu). Esse terreno pode ser o
quintal de casa ou um lugar mais próximo da casa. Também essa sementeira é preparada
na Bolanha, num terreno específico. Depois de o arroz crescer, será arrancado e levado
para semear em cada unidade de bolanha (prik);
encontra-se uma lâmina de ferro bem afiada (Pugn), como se seguem nas fotos abaixo.
Enquanto o ato de plantar arroz fica sob a responsabilidade das mulheres, que fazem um
trabalho minucioso, pois as plantas do arroz são enterradas uma a uma no solo, com o
dedo polegar ou com ajuda de um pau bifurcado (HANDEN, 1986). Apesar de existir a
divisão sexual do trabalho, há a colaboração entres as partes, por exemplo, enquanto os
homens estão na lavoura, as mulheres preparam o almoço e levam para eles na bolanha,
como também quando as mulheres estão plantando arroz, os homens ajudam elas a
arrancar arroz e levar para bolanha que elas estão plantando.
Esse trabalho agrícola é executado pela camada mais jovem da tabanca de
ambos os sexos em colaboração com os adultos que não chegaram à terceira idade.
Depois da plantação, começa a fase de vigia de arroz para não ser estragado
pelos animais ou aves, como testemunha Handen (1986):
46
O grupo de Ngháe é a segunda fase da educação masculina, entre os Balantas-Nhacra e o grupo de Mbi
Fula é a segunda fase da educação feminina. Para mais informação, confira a subseção intitulada: as fases
da educação dos Balantas-Nhacra.
142
para depois ser abatido/chutado tirando os grãos (cf. a terceira foto abaixo), que depois
de serem peneirados pelas mulheres são transportados de canoa para casa.
não é para guardar, é para gastar, porque um indivíduo não pode ser muito mais que o
outro”.
Na mesma chave, Imbali (1992, p. 4) afirma que “os comportamentos dos
produtores BALANTA não se definem exclusivamente em função dos critérios
econômicos de rentabilidade monetária”. Ou seja, eles não produzem arroz para
comercialização em larga escala ou exportação e, sim, como bem de consumo familiar,
pois os Balantas-Nhacra usam arroz como principal produto de troca por outro produto.
Por exemplo: usam arroz para comprar bebidas alcoólicas, tabacos, animais, roupas,
ingredientes para preparar a comida, dentre outros. Apesar disso, atualmente, devido à
liberalização econômica, muitos jovens também conseguem vender uma parte de arroz
produzido para comprar produtos e abrir seus negócios (uma taberna, por exemplo).
O arroz serve também para garantir a realização das práticas culturais – ritos de
iniciação, cerimônias (toca choro47 em crioulo e Káfe em balanta), casamento e outras
festas. Se não tiver uma boa safra, os Balantas não conseguem realizar essas festas, pois
não terão como receber a multidão que vem para esses eventos. Por exemplo, se uma
família não tiver arroz não consegue realizar a cerimônias de toca choro dos seus entes
queridos (pais, mães ou tios e tias). Ou seja:
47
É uma cerimônia festiva realizada pelos balantas e por outros grupos étnicos da Guiné-Bissau, entre os
quais: Pepel, Mancanha, Manjaco, em homenagem à alma de um ancião ou ancião falecido.
145
A questão de trocas econômicas visando à obtenção de lucros não era bem vista
pelos Balantas-Nhacra. Acerca disso, uma pesquisa feita pelo sociólogo guineense Faustino
Fidut Imbali, em 1992, tinha como objetivo entender por que os Balantas-Nhacra de
Tombali48, apesar de serem os maiores produtores de arroz na Guiné-Bissau, são os que
menos praticam a atividade comercial e um dos que mais passam fome no período de crise
alimentar. Na nossa leitura, o resultado obtido pelo Imbali (1992) sugere que o problema
está na organização sociocultural desse grupo étnico. Pois, segundo o autor,
Até uma data bem recente (meados dos anos 1980), não havia
praticamente atividades comerciais entre os BALANTA da zona
estudada, em que o dinheiro entrasse como intermediário principal,
isto é, os produtos eram trocados pelo arroz, em outras palavras, arroz
era a moeda principal. Com a expansão do mercado, esta situação tem
vindo a mudar, embora timidamente, já que até hoje a maior parte das
transações praticadas entre os BALANTA faz-se sem passar pela
moeda (IMBALI, 1992, p. 13).
48
O universo empírico da pesquisa foi na tabanca de Mato-Farroba e Gantone, localizadas a 12 e 13 Kms
respectivamente da cidade de Catió – a capital da região de Tombali.
146
respeitado, honrado, prestigiado, portanto, considerado rico. Ele costuma ter muitos
amigos importantes, ter muitas mulheres, muitos filhos, ter enormes bolanhas (terrenos
de lavoura) e muito arroz, entre outros. Mas, também, tem muitos inimigos invejosos,
portanto, enfrenta muitas guerras.
Quando uma pessoa desse tipo morre, na sua cerimônia de toca choro, seja
Kiritch Kisonh ou Kiritch Kidán (Káfe)49 é sacrificado muito gado, sobretudo, as vacas
e os porcos. Isso ocorre porque seus familiares, parentes, amigos/as, cunhados/as,
amigos da sua família, querem matar uma vaca ou um porco para mostrar a honra e o
respeito que têm. Além disso, a pessoa que matou o animal pode se exibir e mostrar o
seu poder. Por isso, na cerimônia de toca choro, os Balantas muitas vezes costumam
matar muito gado (vacas e porcos). Ou seja, é uma demonstração de poder simbólico
entre os Balantas.
Foto 3325: Gado matado na cerimônia de toca choro (KÁFE) Balanta Nhacra (A)
49
Se a pessoa que morreu é nova, a cerimônia é considerada Kiritch Kisonhe. No entanto, se o/a
falecido/a é maior de idade, a cerimônia é considerada Kiritch Kidánh ou simplesmente Káfe. Mas é
impotante salientar que uma pessoa importante desse tipo que referimos acima, mesmo sendo ainda um
pouco nova, o seu toca choro costuma ser considerado Káfe, como sinal de honra a sua pessoa.
149
Foto 34: Gado matado na cerimônia de toca choro (KÁFE) Balanta-Nhacra (B)
Foto 35: Toca choro (Káfe) como ponto de encontro de diferentes pessoas e gerações e também
como espaço de manifestação de traços diacríticos
Importante deixar claro que o roubo de vacas praticado pelos Balantas, no tempo
antigo (durante o período colonialista), é diferente do roubo do tempo atual. Segundo as
palavras de homens grandes entrevistados, naquela época, o roubo de gado tinha grande
significado, porque a vaca era roubada para benefício da família, para enriquecer a
família, para dar honra e respeito à família e não para o beneficio do indivíduo que a
rouba.
Por isso, é importante reforçar esse ponto acerca dos Balantas-Nhacra: para eles,
a vaca não é bem pessoal do seu dono em si, é bem da família. E, em hipótese nenhuma,
o dono pode vender ou matar para comer, ou, ainda, para fazer qualquer outra coisa com
a sua vaca sem o aval da família. É a família, portanto, que decide o que deve fazer com
a vaca, não o dono ou o ladrão que a roubou e a trouxe para casa. Por isso que, segundo
esses homens grandes, um ladrão de gado era muito protegido e defendido pela família
151
e pela comunidade. Por isso, quando ele era pego no roubo, a sua família ou os seus
parentes se mobilizavam para pedir perdão e pagar a multa cobrada pela família vítima
de roubo.
Quando é para cumprir rito de iniciação (fanado na língua crioula e Fóo na
língua balanta), essa pessoa é honrada pela família, pintando seu corpo com a tintura
vermelha (extraida da árvore Pungha) e rodeando seu corpo com cordas cujas pontas
são amarradas a estacas de madeira – tipo pregos. Essas cordas e estacas são parecidas
às que são usadas para amarrar e prender uma vaca que a família acaba de adquirir, ou
seja, uma vaca roubada. Enquanto isso, tocam Finquilim ou Bombolom para honrá-lo.
(Finquilim ou Bombolom é um instrumento musical feito de tronco de árvore – Cf. foto
abaixo).
Mas, para esses homens grandes, hoje em dia, os jovens roubam as vacas só para
matarem e venderem ou, ainda, venderem vivas e usar esse dinheiro para beber, fazer
fama, e cobiçar mulheres dos outros. Ou seja, o roubo de gado não tem mais aquele
significado simbólico do tempo antigo e eles lamentam, por outro lado, que jovens
Balantas que roubam vacas hoje não conhecem as técnicas de roubo. Segundo eles, não
152
se pode sair roubando gado das pessoas aleatoriamente, porque o roubo tem suas regras,
por exemplo, não se pode roubar gado de um parente, ou de uma família de segundo ou
terceiro grau que mora numa outra tabanca distante. Por isso, no tempo antigo, a família
era consultada pelos ladrões, ou seja, as pessoas mais velhas das famílias eram
consultadas e indicavam onde se poderia ou não se poderia roubar. Eram esses mais
velhos que indicavam também a quem os ladrões poderiam se dirigir para pedir
orientação na tabanca que pretendiam roubar e quais caminhos estratégicos poderiam
usar para fugir (Síntese de entrevistas realizadas com homens grandes de Gantone e
Mato-Farroba, junho e julho de 2019).
Portanto, o gado (a vaca) é símbolo de poder entre os Balantas-Nhacra. Por isso,
nas cerimônias de toca choro, é habitual ver os famosos ladrões dançando e se exibindo
com a corda rodeada ao corpo, proferindo palavras que simbolizam coragem, habilidade
de roubar e poder – o que para os Balantas representa valentia e, também, risco de vida.
Lembro-me de uma cerimônia de toca choro em que fui fazer etnografia. Muitos
jovens traziam vacas e porcos para matar. Nessa ocasião, os famosos ladrões – donos
desses animais – dançavam e exibiam facões e remos de canoa. Um deles dizia:
“enquanto outros homens dormiam à noite com as suas esposas, eu trabalhava”. Ou
seja: enquanto vocês homens dormiam à noite com as vossas mulheres, eu roubava o
vosso gado!
É de salientar que o nosso intuito sobre esse assunto não visa fazer apologia ao
roubo de gado praticado pelos Balantas, nem tão pouco defendê-lo, muito pelo
contrário. O objetivo aqui é descrever a produção material e imaterial dos Balantas-
Nhacra. Neste caso específico, o propósito é o de destacar a importância atribuída ao
gado e o valor simbólico da vaca na interpretação desse grupo étnico.
Para concluir, cabe esclarecer que a descrição que fizemos nessa seção visa
trazer à tona as manifestações culturais dos Balantas-Nhacra, tendo como objetivo
mostrar que a língua não está isolada da cultura. Ela é uma ferramenta integrante da
cultura. Isto significa dizer que ensinar uma língua numa realidade social em que ela é
desconhecida, gera conflito linguístico, para o aprendiz (criança/adolescente), na
medida em que ela/ele está acostumada/o a interpretar o mundo a partir da sua língua e,
portanto, partindo da sua realidade cultural.
Por exemplo, a concepção de mundo de uma criança nascida e crescida nessa
realidade cultural é diferente da concepção de mundo de uma criança nascida e crescida,
por exemplo, em Portugal ou no Brasil. Será diferente, até mesmo, de uma criança de
153
outra etnia da Guiné-Bissau, por exemplo, uma criança da etnia Fula no interior de
região de Gabú ou de uma criança da etnia Bijagó numa das ilhas de mesmo nome.
Assim, o que está em causa aqui são as vivências e as convivências com a sua própria
realidade cultural.
Por tudo isso, gostaríamos de reforçar que a língua não está desvinculada da
cultura. Nesse sentido, uma criança Balanta-Nhacra aprende a falar qualquer língua,
tendo como referência os códigos da sua língua e da sua cultura. É a mesma coisa para
uma criança de qualquer região de Portugal. Ou seja, cada ponto de vista é visto a
partir de um ponto. Isto é, uma criança Balanta-Nhacra enxerga o mundo a partir de
ponto de vista da sua referência cultural, como também uma criança portuguesa
enxergar o mundo a partir do ponto de vista da sua referência cultural.
Portanto, quando se pensa na questão da educação, especialmente na questão da
língua de ensino, a diversidade cultural deve ser levada em consideração, pois cada
grupo humano, ou grupo étnico, tem a sua forma de educação e a sua língua própria.
Desse modo, os Balantas-Nhacra têm a sua língua e a sua forma de educação
(transmissão de conhecimentos) baseada na oralidade. Educação essa que descrevemos
na seção a seguir.
154
Se alguém diz que nós Balantas não temos história é porque essa
pessoa não nos conhece, não conhece a nossa cultura. Nós temos
muitas histórias ricas. A nossa história não é muito conhecida porque
não a escrevemos, não temos a escrita. Os brancos que podiam saber
da nossa história por quê? Porque eles que têm a escrita. Porque o que
você escreve e guarda fica arquivado e, se a nova geração que chega
souber ler, vai ver que tem uma história escrita em tal época. Mas
como não escrevemos o que fazemos? Guardamos a nossa história na
cabeça. Por isso que fazemos ritos de iniciação em várias fases da vida
para transmitir aos iniciados a nossa educação, para eles também
transmitirem esses ensinamentos às gerações vindouras. Esses ritos de
iniciação, ou seja, essa transmissão de conhecimentos que fazemos em
várias fases de idade é que é a nossa escrita. Porque você não pode
deixar escapar o que aprendeu desde furfat, Ndaha, Nkuman, Ngháe
Sonh, Ngháe Nhogn, NgháeDán, Nghés, Shon, Adogn Dán, Nshan
Sonh, Nshan Mon e Buhoó. Esses conhecimentos são cuidadosamente
memorizados pelos mais velhos de cada fase de idade e transmitidos
aos novos iniciados e, assim, sucessivamente. Também, as mulheres
fazem a mesma coisa (Iariassi Na Ndegde. Gantone/Guiné-Bissau,
jul.: 2019. Entrevista concedida a Dabana Namone).
Foto 27: Ancião Arima Na Kadje (tabanca de Komo) explicando como funciona a educacao
masculina
Foto 38: Ancião Isnaba Na Nsanca (tabanca de Gantone) explicando como funciona a educação
masculina
Foto 39: Ancião Arima Na Kadje e homem grande Deuna Na Sanha com o pesquisador Dabana
Namone
Foto 40: Homens grandes de Gantone na entrevista com o pesquisador Dabana Namone
(Da esquerda à direita: IariIassi Na Ndegde, Ancião Isnaba Na Nsanca, Fogna Na Nsanca, Ndjif Na
Nsanca, Blata Na Mbuna, Demna Na Iala; Alsau Na Biana)
Os guineenses fazem sempre uso da oralidade na sua vida quotidiana. Nas zonas
rurais, as atividades diárias de cada grupo étnico são baseadas estritamente na oralidade,
como é o caso dos Balantas-Nhacra. Assim, uma criança balanta, desde que se entende
como gente, aprende todas as suas tarefas domésticas através da oralidade.
Segundo a explicação dos BILANTE BIDAN (homens grandes) acima
mencionados, na sociedade Balanta, quando nasce uma criança (seja menino ou
menina), ele/ela mantém-se sempre ligado/a à mãe durante todo processo de
amamentação, que dura entre dois a três (2 a 3 anos50). Porém, a partir de três a cinco (3
a 5 anos – período de desmame), a criança começa a desvincular-se pouco ao pouco de
sua mãe. A partir desse período, a educação das crianças deixa de ser um papel
exclusivo das mulheres e passa a ser separada por sexo: os meninos começam
paulatinamente a lidar com as tarefas masculinas e as meninas com as tarefas femininas.
As tarefas das meninas serão explicadas, com mais detalhes, no item da educação
feminina.
Na educação masculina, a partir de quatro (4 anos) em diante, os Balantas-
Nhacra começam a atribuir nomes a cada faixa etária dos meninos. A faixa etária de
quatro a cinco (4 a 5 anos) ganha o nome de MOSCLAS (aquele que lambe a colher ou a
pá de mexer a comida). O nome é dado considerando que o menino, nessa idade, ainda
não se desligou totalmente da mãe e da avó e, no momento em que elas fazem a comida,
quando provam o sal, ele também pede para provar. Daí o nome MOSCLAS.
Com a idade compreendida entre cinco a seis (5 a 6 anos), surge a classe de
NIDAWÁE: aquele que, ao chorar, chama sempre o nome da mãe ou fala que vai dar
queixa à mãe. Com essa idade, o menino já está se afastando da mãe e começa a ter
mais contato com seus colegas de idade ou com os mais velhos do que ele. Como na
brincadeira, entre eles acontecem brigas e uma ou outra criança chora chamando a mãe,
pois ela ainda é tida como protetora. Por isso, o nome NIDAWÁE.
Após esse período, começa a fase de transição da criança, quer dizer, de
desligamento total da proximidade com a mãe para entrar no grupo BIDON NE NHARE
(grupo de pastores de vacas). Nesse momento, o menino começa a aprender mais com
50
No entanto, segundo dois anciãos acima mencionados (Arima na Kadje e Isnaba na Nsanca), no tempo
antigo (tempo deles), a criança mamava até 5 ou 6 anos de idade.
159
os irmãos mais velhos, ou com o pai ou o avô a cuidar dos animais: vacas, porcos,
cabras etc. Ele começa também a dormir junto com os irmãos mais velhos e a comer
junto com os colegas de idade. Ele aprende a lutar e a ganhar mais coragem, entre
outros aprendizados. É, nesse período, que começa a primeira fase da educação dos
Balantas-Nhacra.
Um assunto importante que merece destaque e que consta num dos relatos
desses homens grandes, embora mais jovem, revela a tensão entre a tradição oral
balanta e a tradição escrita. Segundo sua explicação, alguns pais ou encarregados de
educação não deixam seus filhos estudarem para estes se dedicarem exclusivamente nas
atividades BDOGN NE NHARE (cuidar de vacas). O que, segundo eles, demostra a
importância que o Balanta atribui ao gado (considerado sinônimo de poder). Para os
informantes, na tradição Balanta-Nhacra, quanto mais vacas uma pessoa tiver, mais
admiração e mais respeitada ela será na sociedade, tendo em vista que as vacas e os
porcos são animais indispensáveis na cerimônia de Cáfe (toca choro Balanta51). Isto é,
quanto maior o número de vacas e porcos abatidos numa cerimônia de Cáfe – toca
choro realizada por determinada família – maior admiração, valentia e respeito essa
família conquista do público. Por isso, segundo esses homens grandes, muitos pais, em
vez de mandar os filhos para escola, preferem mandá-los cuidar de gado para não se
perder ou ser roubado pelos ladrões.
51
Cáfe ou toca choro é uma cerimônia que os Balantas fazem para homenagear a alma de um idoso/a que
morreu.
166
Foto 50: Homens grandes de Mato-Farroba, falando sobre educação entre Balantas-Nhacra
(De lado esquerdo: Psina Na Nquetch-nha, Ndami Na Nful, Uibiten Na Bitugh, Bidin-te Na Brama. De
lado direito: Sínate Na Ufna, Kpansau Na Lassa, Camtala Na Bitã, João Na Ufna e Malam Na Brama.)
Além dos pais, no caso dos meninos, e das mães, no caso das meninas,
as irmãs ou os irmãos também são vistos como referência para essas
crianças, sem esquecer que também outros adultos da família podem
167
a) NGHÁE SONH (Ngháe pequeno): para entrar nesse grupo, os NKUMAN (aqueles
meninos maiores entre BIDOGN NE NHARE) são capturados e levados pelo grupo de
NGHÁE para serem iniciados (BIET NGHÁE), passando agora a fazer parte desse
grupo. O menino já não é mais NKUMAN, agora é NGHÁE SONH.
168
A partir desse momento, ele não tem mais a obrigação de cuidar das vacas, salvo
em caso de a família não ter uma criança para essa tarefa, mesmo assim, ele só pode
desempenhar essa função de forma limitada e em caso excepcional, com a autorização
aprovada pela assembleia de NGHÁE DAN. Essa função agora fica sob responsabilidade
dos irmãos ou primos menores. Em caso de falta deles, a responsabilidade é da família
(pai ou qualquer membro da família), pois o novo iniciado agora vai dedicar maior parte
do seu tempo fazendo trabalhos mais pesados e de maior responsabilidade, tais como:
lavoura, cortar arroz, cortar palha para cobrir a casa, cortar paus para fazer a vedação da
morança (conjunto de casas da família) etc. Ou seja, ele passa agora a fazer todos os
trabalhos que uma pessoa adulta faz na sua casa, podendo solicitar apoio dos seus
colegas. Também tem que participar sempre nas atividades organizadas ou nos trabalhos
realizados pelo gupo de NGHÁE e estar sempre junto dos seus colegas.
Esses novos iniciados são caracterizados pelo tipo de vestimentas que usam e
seus comportamentos dóceis de obediência e respeito aos mais velhos. Quando acabam
de ser iniciados, levam no pescoço, nos braços e na cintura os aneis (Iotch ne Ngháe)
feitos de cordas de fibras de um tipo de árvore rasteiro, amarram uma banda de tecido
na cintura afiada a uma concha de um marisco marinho (Ftífo), amarram também um
outro tipo de tecido na cintura, cortado em bandas (Nlatar), usam uma blusa típica feita
de bandas de pano (Ncanamae), colocam pulseira de alumínio (Quichot) no pulso
esquerdo (cf. a imagem abaixo)52. Cada um desses instrumentos tem um significado
simbólico na cultura NGHÁE. Por exemplo, a concha de marisco amarrada na cintura
(cf. a cintura do segundo moço, da esquerda à direita) serve como protetor, para além de
outros significados secretos que não podemos divulgar. Portanto, eles devem saber o
significado de cada vestimenta e instrumento que usam, pois são cobrados pelos mais
velhos para explicar o que cada um desses instrumentos ou roupas representa e quem
não sabe ou erra é castigado ou punido – o grupo a qual pertence pode sofrer a multa
por causa do erro de um membro.
52
Esses Ngháe Sonh não usaram tanto Nlatar, como Ncanamae e quichot nesta imagem.
169
grupo será multado, porque isso fere muito as regras das duas partes.
Isto é, os dois desobedeceram ao que foram ensinados. (Pansau Na
Lassa. Mato-Farroba/Guiné-Bissau, jul.: 2019. Entrevista concedida a
Dabana Namone).
Nas fotos abaixo, os da esquerda são os recém-iniciados que ainda não são
liberados para conversar com as suas namoradas; enquanto os da foto à direita já são
liberados, podendo conversar e namorar as moças a eles designadas. O próprio uso ou
não de alguns acessórios já representa os que são mais novinhos – e ainda não têm
certas liberdades – e os que são mais maduros e têm mais liberdades.
NGHÁE DAN para ser castigado. Sobre esse assunto, o homem grande Pansau Na Lassa
comentou o seguinte:
pontas agudas, podendo usar qualquer enfeite e abusar de extravagância (cf. as duas
fotos a seguir).
Foto 53: Ngháe Nhug (Ngáe do meio)
c) NGHÁE DAN (Ngháe Grande): são os mais velhos do grupo NGHÁE, a quem cabe
fiscalizar se os inferiores na hierarquia estão cumprindo ou não às regras do grupo, caso
contrário, aplicam punição cabível, que varia de multa a castigo corporal. Cabe a eles
também tomar as medidas contra qualquer membro do grupo que cometer um ato que
fere seus princípios e que é reprovável pela sociedade balanta, como por exemplo,
engravidar uma menina (MBI FULA) ou ter relação sexual com uma mulher – posto que
nenhum NGHÁE deve engravidar uma menina e muito menos ter relação sexual com a
mulher casada.
173
Eles são geralmente conhecidos como animadores das tabancas. O tempo todo
tocam vários tipos de instrumentos, tais como: tambores de diferentes tipos (Ciko,
Dondon, Tumba), também sopram chifre da Gazela (Ftebm), usam apitos de diferentes
tipos (de alumínio, de metal, de plástico ou de pau), usam na cintura instrumentos
metálicos que provocam muito barulho (Kpãe). Tudo isso é para chamar atenção ou
encantar o público que os assiste. Nas cerimônias de toca choro, ou em outras festas,
organizam campeonato de danças como também de luta corporal, na qual competem
NGHÁES de diferentes tabancas para o público avaliar quem são os vencedores – o que
dá orgulho e prestígio ao vencedor, pois significa a demonstração da força e de poder.
transformado em NGHÉS. Nesse rito, ele é preparado para conviver com as mulhres,
para ser futuro marido e pai de família.
Tal como o grupo de NGHÁE, o grupo de BIDOGH também é composto por três
sobgrupos:
a) Nghés: recém-iniciados;
b) Tshon: entre estes, há vários subgrupos da mesma faixa etária, de 3 a 4;
c) Bidogh Bindan: são aqueles que estão no topo da hierarquia desse grupo.
proteção contra qualquer tipo de feitiçaria. Esses cantam e dançam fazendo peditório de
dinheiro, arroz, galinha ou qualquer produto.
Foto 337: Nghés Sonh (Nghéss pequenos) novos iniciados, na marcha de despedida (A)
Foto 34: Nghés Sonh (Nghéss pequenos) novos iniciados, na marcha de despedida (B)
Foto 60: Shon. Da esquerda à direita tem o mais velho, o de meio e o mais novo
Foto 61: Nshan sonh ou Nshan Biháme (Nshan pequeno ou Nshan novos)
Esse rito é realizado no mato, onde os BITANTE BIDAN ficam junto com os iniciados
durante três meses, ensinando-lhes tudo o que diz respeito à sociedade de BILANTA
BINDAN.
É de salientar que, para ser iniciado no FÓO, não se decide ir por livre e
espontânea vontade, mas é a família que indica as pessoas que devem ir. Nesse caso, a
posição na hierarquia ou a idade não contam muito, pois o que é levado em
consideração é a posição que a pessoa ocupa na linhagem familiar mais alargada
(parentesco). Como explica o homem grande Ndjif Na Nsanca:
Portanto, um Nshan sonh – que acaba de ser iniciado – aprende muitas coisas no
mato. Uma delas é a língua do Bombolom (Mbumbur). Mas se uma pessoa que tenha
passado pelo rito de iniciação de BILANTE BIDAN, tendo ficado três meses no mato e,
mesmo assim, não entenda o básico dessa língua é chamado de surdo, o que é
vergonhoso, porque não trata-se de simples surdez. Segundo homem grande N´tamuta
Na Bitã esse termo tem um significado profundo na interpretação dos BILANTES
BIDAN (N´tamuta Na Bitã Mato-Farroba/Guiné-Bissau, jul.: 2019. Entrevista concedida
a Dabana Namone).
184
Foto 36: Homens grandes tocando Bombolom (Mbumbur) na cerimônia de toca choro (A)
Foto 37: Homens grandes tocando Bombolom (Mbumbur) na cerimônia de toca choro (B)
b) NSHAN MON (Nshan preto, os de meio): é a categoria que vem depois de NSHAN
SONH. Eles têm, entre outras funções específicas, lavar e vestir o cadáver antes de ser
enterrado. Um Nshan Mon pode desempenhar a função de ancião da morança, em caso
de ausência deste.
185
traços diacríticos são marcadores da hierarquia e são exibidos com mais frequência num
evento onde os homens grandes (BILANTE BINDAN) estão reunidos, tais como:
cerimônia de toca choro (kiricht), casamento, entre outros.
5.2.1 Primeira fase da educação feminina: Kinrã ne Mbi Fula (levar à menina à
criação)
Existe, entre os Balantas Nhacra, uma prática cultural que é levar as meninas
para criação, chamada em língua balanta de KINRÃ, ou em outras palavras B´lab ne Mbi
Fula (levar a menina à criação). Ela funciona da seguinte forma: quando nasce uma
menina, uma das tias paternas (irmã ou prima do pai) pode, por direito, pedir essa
menina para criação e depois dá-la como a nova esposa ao marido. Segundo a
explicação das mulheres grandes (Toiole Na Sanha e Bininba Na Mbana), o pedido de
criação é feito pela tia à sua família, levando para o efeito um pano que depois será
entregue à mãe do bebê e bebidas alcoólicas para os mais velhos da família: homens e
mulheres. Se o pedido for aceito, depois de 4 ou 5 anos, a tia pode levar a criança para
criação (Toiole Na Sanha e Bininba Na Mbana. Mato-Farroba/Guiné-Bissau. Jul.: 2019.
Entrevista concedida a Dabana Namone). A partir de então, essa criança jamais trata
aquela tia como tal, e sim como Fada Nin ou Baba Nin (pai materno) ou simplesmente
Nrã (a criadora).
Foto 69: As mulheres Balantas Nhacra explicando como funciona a educação feminina (A)
Foto 40: As mulheres Balantas Nhacra explicando como funciona a educação feminina (B)
54
Aqui fizemos o resumo geral das informações que essas mulheres nos passaram. Porém, ao longo do
texto destacaremos as contribuições individuais de cada uma delas. Importante salientar que as mais
novas não falaram nenhuma palavra sequer, ou seja, permaneceram caladas ao longo de toda entrevista.
Supomos que isso seja obediência e respeito às regras. Pois, nas regras dos Balantas-Nhacra, no meio dos
mais velhos, o menor só tem direito a palavra se for autorizado, caso contrário, essa é considerada Bdjem
(desrespeito aos mais velhos).
190
Foto 71: Menina pequena que foi levada a criação (Kirã), varrendo e tirando o lixo.
Foto 72: Mbi Fula Balanta pilando arroz e a pequena de lado olhando atenta e aprendendo
É de esclarecer que há também caso de a menina não ser levada para criação
(Kirã) desde pequena, mas somente quando ela atingir a idade de casamento. Nesse
caso, ela aprende as tarefas domésticas e todos os ensinamentos referidos na casa dos
seus pais (com a mãe ou com as outras mulheres que ali estão).
Depois que a menina cresce e atinge a idade de mais ou menos 17 a 18 anos, ela
se casa, passando a ser a nova esposa do marido da sua mestra. É assim que muitas
meninas são dadas ao casamento na sociedade balanta. Elas não têm a liberdade de
191
a) MBI FULA SONH (Mbi Fula pequeno): para serem iniciadas, as Mbi Fula Sonh,
estando ou não no processo de KINRÃ, ao atingirem certa idade (11 a 12 anos), elas são
levadas pelas mais velhas para bolanha – fazenda distante da aldeia, onde os Balantas
cultivam arroz –, especificamente, no mangal (tarafe) para serem iniciadas (Biétma
Kifúla), passando a fazer parte de grupo de MBI FULA. Nesse ritual, a assembleia de
MBI FULA realiza várias reuniões no mesmo lugar, num período de mais ou menos 15
dias, ensinando as novas ingressantes a ter bom comportamento na sociedade: respeitar
e obedecer às ordens das pessoas mais velhas, especialmente, a Rã (criadora); fazer a
tarefa doméstica (varrer a casa, pilar o arroz, catar a água, pescar, cozinhar, lavar louças,
192
carregar arroz, plantar arroz etc.) sem antes ser chamada para tal. Também recebem
ensinamento de como devem lidar com o grupo de NGHÁE, especialmente, o primeiro
namorado, com quem não se pode cruzar no caminho ou cumprimentar sem a
autorização das superiores (MBI FULA DAN). Caso contrário, podem sofrer punição
que varia entre multas e chutes.
Elas são identificadas pelas suas vestimentas e por seus comportamentos.
Quando recém-iniciadas, usam pulseiras de alumínio no braço, amarram um pano na
cintura e usam blusas sempre limpas, cuidam dos cabelos, falam baixos, são obedientes
e respeitosas.
Elas devem obediência sempre às mais velhas. Quando fazem um trabalho, por
exemplo, carregar arroz, nas regras MBI FULA SONH, tem por obrigação de carregar
utensílios das mais velhas, o que significa ter respeito para com os mais velhos, mesmo
havendo outras meninas menores, tal como segue na segunda foto abaixo.
193
Foto 7441: Mbi Fula, carregando arroz do porto para casa (A)
Foto 42: Mbi Fula, carregando arroz do porto para casa (B)
b) MBI FULA NHUG (Mbi Fula do meio): são responsáveis por educar e orientar as
novas iniciadas, segundo as regras estabelecidas pelo grupo. Também cabe a elas
fiscalizar se as menores estão ou não cumprindo as regras. Caso contrário, comunicam a
infração às mais velhas a quem cabe decidir a punição.
c) MBI FULA DAN (Mbi Fula grande): são as mais velhas, a quem cabe observar e
fiscalizar se as inferiores na hierarquia estão cumprindo as regras corretamente, caso
contrário podem aplicar punição cabível.
195
É de salientar que cada MBI FULA deve ter o seu namorado no grupo de
NGHÁE, sendo que o namoro segue de acordo com a faixa etária de ambas as partes. Ou
seja, o namorado de MBI FULA SONH (MBI FULA PEQUENO) deve ser de grupo de
NGHÁE SONH (NGHÁE PEQUENO); do mesmo modo, o namorado de MBI FULA
196
NHUG (MBI FULA DO MEIO) deve ser do grupo de NGHÁE NHUG (NGHÁE DO
MEIO); e, ainda, o namorado de MBI FULA DÁN (MBI FULA GRANDE) deve ser um
NGHÁE DAN (NGHÁE GRANDE). Os namorados são escolhidos na assembleia de MBI
FULA de acordo com os critérios estabelecidos pelo grupo, depois a decisão é
comunicada ao grupo de NGHÁE.
Importa frisar que, na sociedade balanta, uma MBI FULA jamais pode se casar
ou ter filhos sem ter passado pelo rito de iniciação de casamento (KPAL). A gravidez,
neste caso, é considerada um erro gravíssimo e repudiado, podendo acarretar sérios
problemas de saúde tanto para a mãe como para o futuro bebê e até levar a morte. Para
evitar esses problemas, ela precisa passar pela cerimônia de purificação (lavagem). Uma
MBI FULA grávida é uma vergonha e desonra para sua família e para suas colegas. Por
isso, quando uma menina fica grávida, ela sofre muitas torturas psicológicas e até
tortura física, podendo levá-la a morte55.
Portanto, para uma MBI FULA poder se casar e engravidar, ela deve passar pelo
rito de iniciação de BNIN BINDAN, ou seja, a realização de casamento (KPAL), que é a
terceira fase da educação feminina. Nesse momento, ela não é mais MBI FULA e, sim,
uma MBI IEGLE (noiva).
a) MBI IEGLE: é a noiva nova que acaba de ser casada, passando pelo rito de iniciação
de BININ BINDAN (KPAL). A partir desse momento, ela é transformada numa pessoa
adulta, madura e responsável na sociedade, tendo que obedecer as regras e as ordens de
55
A título de exemplo, lembro-me do caso de uma moça que engravidou e, em consequência disso, foi
espancada pelas colegas até a morte e as meninas foram presas por quase um ano. Esse fato aconteceu
em 1994, na tabanca de Mato-Farroba, região de Tombali.
197
BININ BINDAN, especialmente, a sua mestra (Nrã), como também, respeitar e obedecer
ao seu marido.
A cerimônia de casamento KPAL funciona da seguinte forma: assim que chegar
o ano da menina ser dada ao casamento, a família do marido (anciãos e anciãs) faz o
pedido de casamento à família da esposa com antecedência de mais ou menos seis
meses, levando bebidas alcoólicas e folhas de tabaco. Em contrapartida, a família da
esposa determina o valor do dote a ser pago pela família do marido. Se as duas partes
chegarem a um acordo, a data de casamento é marcada e a moça é avisada. Antes da
data de casamento, a moça é levada pelas mulheres grandes e acompanhada pelas suas
colegas para se despedir da sua família e de parentes que residem em diferentes
tabancas. Elas cantam e dançam, homenageando a moça. A família e os parentes, por
seu lado, parabenizam a menina, presenteando-a com dinheiro, arroz, galinhas, porcos
etc. Esses presentes são usados para comprar suas roupas e a dos futuros filhos, pois
agora ela vai passar para uma nova fase (fase adulta) e de grande responsabilidade
familiar.
No dia de KPAL (casamento), a moça é levada pelas BININ BINDAN (grupo de
mulheres grandes) para a casa do responsável da família do marido (pai ou avô) para
cumprir o ritual, tornando-a IEGLE (noiva). Ela é coberta de pano preto na cabeça e de
outras cores amarradas no tronco até os pés. Vestidos que ela vai usar durante dois ou
três meses.
198
No sexto dia após a cerimônia de KPAL, a noiva é levada a um rio para fazer a
lavagem de purificação (Kuhasse). Apenas depois dessa data que ela pode começar a
dormir com o marido. Nesse dia de Kuhasse, todos os homens são expulsos da morança
(conjunto de casas de uma família) pelo dia todo, num raio de 200 metros ou mais, pois
o evento é sagrado e têm muitos segredos que homens não podem saber. Por isso, eles
são proibidos de ficar perto, sob pena de serem punidos com multa ou com feitiço, que
pode levar o infrator à loucura ou à morte.
Durante esse tempo, ela é ensinada sobre todas as regras de mulheres grandes.
Essas regras ela deve respeitar e cumprir, sobretudo, respeitar e obedecer ao seu marido,
199
a sua mestra e às mulheres grandes. Sendo assim, a ela é indicada uma conselheira a
quem cabe à responsabilidade de acompanhá-la e orientá-la nessa jornada de KIEGLE
(noivado). A partir desse momento, essa IEGLE (noiva) passa a ser responsável por
todas as tarefas domésticas: pilar arroz, varrer a casa, catar a água, cozinhar, lavar a
louça etc.
Um dos comportamentos típicos de IEGLE é de ajoelhar, estendendo as mãos no
chão e curvando a cabeça para cuprimentar um visitante que chega a casa, ou qualquer
pessoa com quem ela se cruza no caminho. Ela também se mantém sempre calada
durante o período que cobre a cabeça com o pano, podendo falar o mínimo necessário e
em voz baixa apenas com as mulheres.
Depois de deixar de usar pano na cabeça e no tronco, ela passa a usar uma blusa
longa que cobre seu tronco até aos pés. É o período em que a maioria já se encontra
grávida. Nesse período, a ela é dada a liberdade de conversar com as pessoas.
Foto 48: TAHTA SONH (Tahta pequenas), numa cerimônia de KÁFE (toca choro)
Foto 49: TAHTA NDAN (Tahta grande), numa cerimônia de KÁFE (toca choro)
d) BASSANA: é o grupo de início de terceira idade aos 70 anos. Elas que coordenam o
grupo de BININ BIDAN. Elas se dedicam mais às atividades domésticas que não exigem
muita força física, mas que exigem muito domínio técnico. São as atividades mais
artesanais, tais como: fabricação de sal, fabricação de sabão, extração de óleo de palma
(azeite de dendê), tecelagem de redes de pesca, de bordados, preparo de hortaliças,
dentre outras.
Uma criança Balanta Nhacra nascida e crescida na sua tabanca convive com
essa educação, com esse tipo de transição de conhecimento. Muitas passaram por uma
ou por outra fase dessa educação. Muitos meninos passaram pela fase de BIDOGN NE
NHÁRE, como também, muitas meninas pela fase de KINRÃ ou mesmo de MBI FULA,
portanto, eles ou elas têm uma larga bagagem cultural que vão levar como experiência
para o resto da sua vida. E essa bagagem cultural deve ser reconhecida e valorizada na
escola.
Esses conhecimentos são transimitos oralmente dos mais velhos aos mais novos
e esses, por sua vez, têm o dever de memorizá-los e transmiti-los às gerações vindouras.
De salientar que essa forma de educação continua organizando o modo de viver entre os
Balantas-Nhacra da Guiné-Bissau.
203
Vale ressaltar que cada grupo étnico do país tem a sua forma específica de
educação baseada na tradição oral e transmitida através da língua materna. Poranto, as
questões que se colocam são: como a política estatal lida com essa forma de educação?
Qual é o impacto da política educativa e linguística no sistema de ensino guineense?
204
Definir uma política linguística e educativa que explicite a favor das línguas africanas [...];
cultivar a vontade política de promover uma política de educação multilíngue e multicultural
(UNESCO, 1986).
Com todo esse poder concentrado no PAIGC, não foi tão difícil instalar os
órgãos centrais, mas foi complicado fazê-los funcionar, pois, segundo Furtado (2005),
extensão do sistema de educação do PAIGC, que contava em 1972 com 164 escolas,
258 professores e 14.531 alunos” (KOUDAWO, 1995, p. 108), pois o agravamento da
guerra limitava a extensão da educação às zonas libertadas. Entretanto, após a
independência, importava não apenas assegurar a máxima cobertura dessa região, mas
também introduzir o sistema educativo do partido nas zonas que tinha permanecido sob
controle da administração colonial até 1974 (os centros urbanos como Bissau, Bafatá,
Gabu e outros), onde a necessidade de estender a nova educação era agravada pela
necessidade sentida pela direção do PAIGC de descolonizar as mentes das pessoas
consideradas submetidas por largo período de tempo ao sistema do ensino colonial
(KOUDAWO, 1995). Os desafios a se enfrentar eram visíveis. Vejamos:
A jovem nação se encontrava num estado de extrema pobreza, resultado tanto da
exploração colonialista, como de 11 (onze) anos de luta armada de libertação, com
elevadas taxas de analfabetismo (99%), uma acentuada assimetria entre a capital e as
regiões do interior e uma notável inexistência de recursos humanos qualificados nas
diferentes áreas de administração;
Aumento explosivo da procura dos alunos pelo ingresso à escola, tendo em conta
a ideia eufórica dos independentistas de formar um “Homem Novo” com vistas à
reconstrução nacional.
Por outro lado, o partido viu-se confrontado com a coexistência de dois sistemas
de educação contraditórios: a) o sistema introduzido pelos portugueses durante a
dominação colonial, concentrado nos centros urbanos; e b) um sistema educativo que o
partido estava construindo, nas zonas libertadas, pelo qual a escola se integrava ao
trabalho produtivo na vida das tabancas.
No entanto, este último ponto se constituiu como o maior desafio para o governo
do PAIGC, pois o intuito era transformar os dois sistemas contraditórios num único que
correspondesse à realidade do país (KOUDAWO, 1995). Para o efeito, duas alternativas
foram apresentadas:
A primeira alternativa foi a de fechar as escolas herdadas do colonialismo até a
concepção de um projeto global para o país, em que se definisse uma política
educacional clara e se formassem os quadros necessários à execução das devidas
tarefas. Tratava-se de construir um novo sistema educativo, para um novo contexto
social, orientado para objectivos genuínos, decorrentes dos novos ideais político-
ideológicos forjados durante a luta da libertação nacional;
207
Uma reforma dessa natureza deveria se basear: a) numa análise credível de suas
consequências futuras; b) num estudo de campo abrangente e viável que visasse
conhecer, a fundo, a realidade sócio-econômica, cultural e linguística do país, com a
participação das próprias comunidades; e c) num estudo preventivo sustentável em
termos de captação de recursos humanos, materiais e financeiros que permitissem a sua
efetiva viabilidade.
A título de exemplo, a campanha nacional de alfabetização levada a cabo na
época revelou a falta de um estudo e planificação credível que avaliasse seu
enquadramento à realidade cultural do país, como também tornou evidente a falta de
uma planificação antecipada do seu custo em termos de recursos humanos, materiais e
financeiros.
6.2 Experiência do CEPI: uma educação voltada para o desenvolvimento rural que
o governo ignorou
Interessante à proposta colocada pelo autor nesta óptica. Ou seja, por que não
um plurilinguismo a partir de uma perspectiva inovadora e inclusiva dos membros da
comunidade (alunos, professores, pais e encarregados de educação e homens grandes)?
Ao longo de sete anos do seu funcionamento (1977-1984), o CEPI formou
quadros de alta qualidade de reconhecimento nacional e internacional. Muitos egressos
são atualmente altos funcionários em diversos setores de atividade, dentre os quais:
agricultura, pecuária, educação, animação cultural, gestão de conflitos e as organizações
não governamentais (ONG) que atuam nas zonas rurais.
Apesar de sua rica experiência, o sistema de ensino do CEPI não recebeu
incentivo do governo no sentido de promover a sua expansão e garantir a sua
continuidade, nem beneficiou de seu pleno apoio para uma articulação eficaz com o
resto do sistema educativo do país. Pelo contrário, o CEPI foi abandonado e em seu
lugar o governo criou os centros de experimentação de educação e formação (CEEF).
Segundo Koudawo (1995, p.116-117), “a falta de encorajamento pelo governo e
a não compreensão da função e da finalidade do CEPI estão na origem do abandono
desta experiência educativa na década de 1980”. É obvio que o governo não consegue
pensar em um sistema de educação voltado para o desenvolvimento rural e adequado à
necessidade do país se, efetivamente, não se sabe que tipo sociedade pretende construir
e que tipo de desenvolvimento rural deseja para o país. “Na ausência destes elementos
de referência, a única solução é recusar toda e qualquer educação voltada ao mundo
rural e adotar um referencial exógeno” (SENA, 1995, p. 72).
215
A década de 1980 foi marcada pela crise política, decorrente do golpe de Estado
denominado Movimento Reajustador 14 de Novembro, liderado pelo ex-primeiro
ministro João Bernardo – Nino Vieira, um dos grandes comandantes da frente de luta de
libertação. Esse golpe derrubou Luiz Cabral do poder, rompendo assim com o projeto
de Unidade Guiné-Cabo Verde, tendo como consequência a revisão constitucional e,
por conseguinte, a revisão do projeto educativo do PAIGC – baseado em um modelo
socialista.
Esse período (de 1980 até 1993) foi marcado pela constante crise política, dentre
a qual se destaca o caso de 17 de outubro de 1985, ou seja, a suposta tentativa de golpe
de Estado frustrado, cujos pressumíveis autores (nomeadamente Paulo Correia – vice-
presidente da República e Ministro da Justiça e do Poder local –, Dr. Viriato Pã –
Procurador Geral da República – e mais quatro outros) foram condenados à pena de
morte que culminou com o fuzilamento de seis indivíduos e mais de 50 pessoas
condenadas a vários anos de prisão. Essas e outras crises políticas cíclicas provocaram
uma crise social aguda.
A par disso, a comunidade internacional não poupava críticas e sanções ao
regime de partido único na época, com todas suas vicisitudes, incentivando a abertura
do país ao neoliberalismo. Foi assim que o regime iniciou a abertura política voltada aos
países capitalistas. Um exemplo dessa abertura política é a assinatura de acordos de
cooperação com estes países e com as instituições financeiras internacionais, orientadas
pelo programa neoliberal de ajuste estrutural. Para minimizar a crise econômica que
assolou o país, o governo recorreu ao Banco Mundial (BM) e ao Fundo Monetário
Internacional (FMI), com os quais o governo assinou acordo no âmbito do Programa de
Ajuste Estrutural (PAE) e do Programa de Estabilização Econômica (PEE), tendo como
objetivo a renegociação da dívida externa e a concessão de financiamento com vistas à
reestruturação da economia e do investimento no setor econômico e social do país.
Para a concessão desse financiamento, essas agências internacionais exigem do
governo a realização de reformas institucionais em todos os setores da administração
pública e privada do país. No setor da educação, a reforma visa: i) tornar o ensino
básico gratuito com o intuito de aumentar o acesso das crianças à educação básica; ii)
ampliar a infraestrutura escolar, a produção e a distribuição de materiais didáticos; iii)
reduzir o índice de analfabetismo dos adultos.
216
Ainda o documento reconhece que “não resta dúvida de que o sistema de ensino-
formação da Guiné-Bissau tem estado muito aquém das reais necessidades do país,
sobretudo em termos de sua adequação” (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 1988, p. 2).
A partir de década de 1990, apesar de o BM e o FMI terem ainda forte influência
no setor social guineense, a educação foi orientada para atender as recomendações da
Declaração Mundial sobre a Educação Para Todos aprovada na Conferência de Jontiem
(1990), realizada na Tailândia, na qual consta que cada pessoa, seja criança, jovem ou
adulto, deveria ter acesso às oportunidades educativas direcionadas para a satisfação das
suas necessidades básicas de aprendizagem (leitura, escrita, expressão oral, cálculo,
resolução de problemas) e os conteúdos básicos de aprendizagem (conhecimentos,
habilidades, valores e atitudes) necessários à sobrevivência e ao pleno desenvolvimento
de potencialidades. Esses instrumentos permitiriam ao ser humano viver e trabalhar com
dignidade, participar no desenvolvimento, melhorar a qualidade de vida, tomar decisões
fundamentais e continuar a aprender.
No entanto, a sua aplicação deveria ser adaptada às realidades dos países e das
culturas com o decorrer do tempo. Porém, esses objetivos não foram atingidos, tendo
em conta a constante instabilidade política, principalmente, a guerra civil de 1997-1998,
que provocou profunda destruição do país, cujas consequências vivemos até hoje.
Igualmente, os objetivos da Conferência Internacional sobre Educação para todos,
realizado em Dacar (Senegal) e os objetivos de Desenvolvimento do Milênio, previstos
217
até 2015, consideravam criar condições para que o direito à educação fosse uma
realidade para os países em vias de desenvolvimento e que contribuísse para a redução
da pobreza, particularmente, oferencendo atenção especial à educação das raparigas
(meninas). Essas metas não foram atingidas pela Guiné-Bissau, pois uma parte
considerável dos guineenses não tem acesso à educação, sobretudo nas zonas rurais.
Além disso, a qualidade do ensino é extremamente fraca, tendo em vista que o
sistema de ensino adotado é totalmente distante da realidade do país (o seu modo de
produção material e imaterial, como também a sua diversidade cultural). É um sistema
homogêneo e pautado na lógica do conquistador, isto é, promove valores culturais deste
último e, em contrapartida, nega a diversidade cultural, marginaliza as identidades
étnicas, desvaloriza as tradições orais existentes no país e invisibiliza as diferenças
existentes entre alunos na sala de aula. Um sistema desse tipo, numa sociedade plural
como a Guiné-Bissau, não teria outro resultado a não ser aumentar cada vez mais a
desigualdade social, conflitos sociais e a miséria.
Portanto, queremos chamar atenção para o fato de que o PAIGC, apesar do seu
discurso optimista e encorajador de reconstrução nacional após a independência, na
prática, deixou a sociedade guineense muito a desejar, pois o partido não conseguiu
traduzir em medidas concretas todas as orientações que prometia à população antes e
depois da independência, sobretudo à população camponesa, a maioria do país. O
governo não conseguiu implementar todas as orientações desenhadas, tendo em conta a
escassez de recursos, sobretudo recursos humanos qualificados, e a pouca experiência
dos próprios governantes, que não tinham a qualificação técnica necessária para
administrar o país e suprir a grande demanda da população.
Nesse sentido, a educação levada a cabo na Guiné-Bissau, desde a
independência até os dias de hoje, não correspondeu às expectativas da maioria da
população, portanto, não atendeu às necessidades do país. Assim sendo, mesmo
defendendo teoricamente uma educação que promovesse valores nacionais, na prática, o
Estado guineense herdou o modelo educativo colonialista de forma paradoxal, tendo a
LP – desconhecida pela maioria do público estudantil – como a única de ensino, sem, no
entanto, criar condições viáveis que permitissem o uso das línguas nacionais.
Entre os vários sectores, a educação foi assumida como uma tarefa exclusiva de
responsabilidade do Estado, contudo, as experiências educativas realizadas nessa área,
para responder à necessidade do seu alargamento à maior parte da população, não
chegaram a atingir os objetivos propostos. Isso porque tais experiências, importadas na
218
56
Grifo nosso.
220
Nessa tabela, não foi levada em consideração a língua francesa, que atualmente
ocupa um lugar de prestígio na Guiné-Bissau, sobretudo depois da liberalização do
Comércio e da adesão do país, em 1997, à Comunidade Econômica para o
Desenvolvimento dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) e à União Econômica e
Monetária do Oeste Africano (UEMOA), adoptando o Franco das colônias francesas na
África (FCFA) como moeda. Atualmente, muitas pessoas consideram que a
percentagem dos falantes dessa língua é igual ou superior a dos falantes de LP, tendo
em conta a forte imigração dos países vizinhos, maioritariamente francófonos, tendo
também crescido o número de estudantes guineenses que escolhem esses países
francófonos para fazer a formação superior, tendo em conta a vantagem dessa língua
para o acesso ao mercado de trabalho. Além disso, não consta nessa tabela a língua
árabe, falada por muitas pessoas que professam a religião islâmica, que atualmente
ocupa a primeira posição no país.
Outro estudo feito pelos linguistas Mann e Dalby (1987 apud
SCANTAMBURLO, 2013, p. 22-23) destaca que, na Guiné-Bissau, além do crioulo e
do português, falam-se mais outras 25 línguas étnicas, pertencentes a duas subfamílias:
Oeste-Atlântica e Mande das sete famílias Niger-Congo.
luta de libertação, que ela adquiriu o estatuto de língua de unidade nacional, pois era a
principal língua que os combatentes usavam entre si e com a população:
Primeira (L1) “por ser a primeira língua de aprendizagem da criança e com a qual esta
estabelece os seus primeiros laços afectivos, sendo estes determinantes para o seu
desenvolvimento cognitivo e social” (GROSSO, 2010, p. 63). Para Spinassé, (2006, p.
5) a aquisição da Língua Materna faz parte da formação do conhecimento de mundo do
indivíduo, pois além de competência linguística, adquire também os valores pessoais e
sociais. No entanto, segundo a autora,
Nesse caso, segunda a autora, “a língua dos pais pode não ser a língua da
comunidade, e, ao aprender as duas, o indivíduo passa a ter mais de uma L1 (caso de
bilinguismo). Uma criança pode, portanto, adquirir uma língua que não é falada em
casa, e ambas valem como L1” (SPINASSÉ, 2006 p. 5).
No que se refere à Segunda Língua (L2), de acordo com a mesma autora, a sua
aquisição se dá “quando o indivíduo já domina em parte ou totalmente a(s) sua(s) L1,
ou seja, quando ele já está em um estágio avançado da aquisição de sua Língua
Materna. Para o domínio de uma L2, é exigido que a comunicação seja diária e que a
língua desempenhe um papel na integração em sociedade” (SPINASSÉ, 2006, p. 5).
Importa dizer que ainda não há consenso entre os linguistas sobre o conceito de
língua segunda (L2) e de língua estrangeira (LE) (LEIRIA, 2004). Por exemplo,
pesquisadores da escola gerativista, não distinguem os dois conceitos,
de uma língua estrangeira (LE) não se estabelece com um contato tão grande ou tão
intenso com ela. Segundo Silva (2005, p. 99), uma Língua Estrangeira é aprendida sob
condições formais, geralmente em contexto escolar.
Sendo assim, cabe analisar a política linguística adotada pelo governo, desde a
independência até hoje, e a posição ocupada pela LP, como também seu impacto no
processo de ensino e de aprendizagem na Guiné-Bissau, tendo em conta a diversidade
sociocultural e linguística do país.
Contudo, dizer que essas línguas não têm escrita por isso não podem ser usadas
no ensino é, na nossa visão, apenas pretexto que visa encobrir o verdadeiro motivo, ou
no mínino falta de vontade política. Vale lembrar que nenhuma língua surgiu com a sua
227
escrita, na medida em que as línguas escritas que existem hoje foram transformadas
como tais a partir de alfabetos já existentes. Portanto, os dirigentes guineenses poderiam
investir nesse sentido, criando condições para a realização dos estudos e produção de
materiais didáticos nas nossas línguas maternas, começando pela língua crioula, o que
permitiria usá-las como de ensino.
Aliás, causa estranheza dizer, atualmente, que a língua crioula da Guiné-Bissau
não tem escrita, pois existem muitos registros escritos nessa língua. A título de
exemplo, podemos citar: textos literários – poesias, romances e contos, escritos por
guineenses –, textos bíblicos e materiais escolares escritos pelas missões católicas e
evangélicas, e ainda resumos de trabalhos acadêmicos escritos por estudantes
guineenses da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira
(UNILAB) etc. O que falta é sistematização e formalização da escrita dessa língua pelo
poder público. Ou seja, o que assistimos na Guiné-Bissau é que, além de constante
ruptura institucional que coloca em risco qualquer projeto governamental, há pouco
interesse dos nossos governantes em usar as LN (crioulo e as línguas étnicas) como de
ensino, em proveito da LP, a qual, até hoje, ocupa posição muito frágil no país, como
mostramos em algumas seções deste trabalho.
Segundo Machado (1996, p. 186), entre os cinco países africanos de língua
oficial portuguesa (PALOP, a saber, Angola, Cabo-Verde, Guiné-Bissau, Moçambique
e São Tomé e Príncipe), “é na Guiné-Bissau que o português encontra uma posição mais
frágil, devido às dificuldades que o país encontra para desenvolver as estruturas de
apoio ao ensino da LP”.
Acrescentamos mais três fatores como decisivos para a fragilidade da LP: a)
apesar de ela ser oficialmente considerada como língua de ensino, na prática, é raro
encontrar família guineense que a fala cotidianamente fora do ambinte escolar; b) a LC
encontra-se em expansão acelerada e assume cada vez mais a função de língua de
unidade nacional; c) as línguas étnicas são fortemente implantadas nas zonas de maior
concentração das etnias que as falam.
Nessa ordem de ideia, Santos (1987) considera que, muito embora o estatuto
oficial da LP seja importante nas relações políticas, económicas e culturais com o
exterior e internamente em alguns espaços institucionais como a escola, a sua
consequência negativa logo se apresenta, ou seja, ela não encontra tradução na vida
quotidiana da população, pois não é em português que a grande maioria aprende a falar,
228
mas, sim, na LC e nas línguas étnicas. Seguindo o mesmo raciocínio, Candé (2008)
sustenta que:
Concordamos com Candé (2008), quando afirma que para as crianças e jovens
que falam apenas as suas LM e que não têm a oportunidade de adquirir a LP no
ambiente familiar ou em outro ambiente social, antes da sua entrada na escola, o
português pode ter um estatuto mais próximo da língua estrangeira – portanto, ela está
mais para LE do que para L2. Nesse caso, levamos em consideração o conceito de
Português como Língua Estrangeira que, segundo Flores (2013, p. 10), “aplica-se
apenas aos casos dos alunos que aprendem o português em contexto de instrução formal
(na escola) e não têm qualquer contacto com ela fora da sala de aula”. Portanto,
podemos afirmar que a LP é LE para estudantes das zonas rurais, por exemplo, das
quatro escolas pesquisadas na região de Tombali (Guiné-Bissau), em que a LP é usada
apenas na sala de aula, enquanto no recinto escolar e em casa esses alunos falam as suas
línguas étnicas e/ou a LC. Isso se deve ao fato de que estes estudantes entram em
contato com a LP pela primeira vez apenas na escola.
Pode-se concluir que a LP não foi escolhida para atender a necessidade
comunicativa e educativa da grande maioria dos alunos guineenses, mas sim a) para
privilegiar um pequeno grupo social no país; b) como língua de se estabelecer contatos
com o mundo a fora; e c) como a língua oficial que visa promover a unidade nacional.
Pois, na formação dos Estados nacionais modernos, a língua oficial simboliza a unidade
nacional. Sendo assim, em vários países africanos, a política linguística tem como
objetivo principal a unificação do povo à nação. Nesse contexto, a língua oficial
desempenha a função de poder simbólico ou relação de força simbólica dessa
unificação.
Na sua análise sobre o papel político que a língua, especialmente a língua oficial,
desempenha nas relações sociais de um país, particulamente na educação, Bourdieu
(1998) compara essa relação à estabelecida no mercado econômico – nesse caso, trata-
229
De acordo com o autor, a língua oficial está enredada pelo Estado, tanto em sua
gênese como em seus usos sociais, sendo inculcada por este e legitimada pelos seus
aparelhos ideológicos: a escola e várias outras instituições públicas. Bourdieu (1998)
defende que é na formação do Estado-nação que se criam as condições que legitimam o
mercado linguístico. Mercado esse que confere poder à língua oficial, vista enquanto
elemento regulamentador de todas as práticas linguísticas:
57
Se entendermos o analfabetismo como um conceito que define a pessoa desprovida de conhecimento da
escrita.
232
é levado a perceber o conteúdo até ao ponto de poder relacioná-lo com a sua realidade,
num contexto comunicativo (CANDÉ, 2008). “Os alunos decoram frases
mecanicamente, sem nenhum senso crítico, porque o ensino da gramática ou o
funcionamento da língua é exclusivamente baseado na memorização” (COUTO;
EMBALÓ, 2010, p.41). Essa atitude reflete negativamente no resultado do aluno, pois,
em momentos de avaliação, esses alunos não conseguem desenvolver seu próprio
raciocínio.
A metodologia da memorização inibe a criatividade do aluno e faz com que ele
fique preso em frases pré-elaboradas e ditas pelo professor, o que acarreta graves
consequências para o próprio aluno, em particular, e para o sistema de ensino em geral.
Uma das principais consequências desse método é o maior índice de reprovações e
abandono escolar, fato que também não contribui para a melhoria de qualidade da
educação (NAMONE; TIMBANE, 2018). Acerca disso, Chico (2012, p.70) nos chama
atenção:
Ainda Cruz (2013, p. 38) critica que “a escola guineense parte do princípio de
que os alunos já sabem falar a LP antes de entrarem para a escola [...]. Esquece-se, no
entanto, que a língua que falam antes de irem para a escola não é a língua de ensino”. A
autora critica a própria metodologia utilizada no ensino do Português na Guiné-Bissau,
pois, segundo ela, a língua portuguesa é ensinada como se fosse a língua materna dos
alunos.
233
O Prof. EBU2-1 reclama ainda que eles (professores) não gostam de falar a LP,
explicando que, quando um professor fala a LP com seu colega, ele em vez de
responder em português, responde em crioulo. Ele vai ainda mais longe, afirmando que
a Guiné-Bissau tem problema sério no ensino, pois há muitos diretores de escolas que
têm também muitas dificuldades de leitura:
Nós professores não usamos a LP, quando você fala português com
seu colega ele te responde só em Crioulo, isso não é bom. No meu
ponto de vista, vejo que devemos encarar a LP como a nossa língua
oficial, como língua de inter-relação social, como língua de
cooperação, como língua do colono e em qualquer serviço público que
você vai percebe que todos os documentos estão escritos somente na
LP. Portanto, devemos encará-la com seriedade. (...) Se você dá aula e
mistura com outros professores vai ver que temos problema sério. Um
dos exemplos disso aconteceu num curso de língua portuguesa que
fizemos. O curso foi realizado pela Fundação Fé e Cooperação – FEC,
(uma instituição portuguesa que atua na área da Educação), aí você vê
o grau de dificuldade de um diretor de escola para ler o texto. Muitos
lêem como se fossem alunos de 1ª classe. Ou seja, lê com muitas
234
Esse problema ajuda a piorar a qualidade do ensino no país, pois materiais dessa
proveniência são inadequados à realidade dos alunos guineense, principalmente os do
interior e esse fato pode interferir negativamente na sua aprendizagem. Constatamos in
loco essa falta de materiais didáticos nas escolas pesquisadas, sobretudo nas públicas,
como relatam os professores entrevistados nessas escolas. Sobre esse assunto, o Prof.
EBU1-1 afirma o seguinte:
O relato desse professor deixa claro que falta um plano de ensino adequado,
fornecido pelo Ministério da Educação para todas as escolas. Entretanto, mesmo que
existisse um plano, faltam materiais de apoio que acompanhem esse plano. Por outro
lado, falta uma rigorosa inspeção por parte do Ministério, a ponto de permitir que cada
professor trabalhe do seu jeito. O Prof. EBU1-1 considera ainda que:
As contribuições desse autor são de suma importância, pois servem como lição
de reflexão para os goverrnantes guineenses repensarem a política linguistica vigente no
país, desde a independência até hoje. Política essa que teoricamente atribuiu a LP o
estatuto de língua oficial (LO) e do ensino, porém, na prática, ela desempenha
consequências negativas na trajetória escolar dos estudantes guineenses, especialmente
nas zonas rurais onde as línguas étnicas e a LC são predominantes, impedindo a
evolução da LP. Portanto, tendo em vista essa grave situação, o governo guineense
deveria rever a sua política linguística, promovendo a escrita e a normatização gráfica
da LC e das línguas étnicas, com o intuito de se adaptar o sistema de ensino à realidade
sociolinguística dos alunos na sua diversidade.
Os dados sociolinguísticos dos estudantes das 4 (quatro) escolas pesquisadas,
mostram a necessidade de adotar as línguas maternas dos alunos no currículo escolar
guineense. Ademais, revelam a importância de esse currículo se pautar na valorização
da diversidade cultural do país, como também a importância de se valorizar as
experiências coletivas do grupo étnico que alunos levam de casa para a escola.
239
Esta seção apresenta, analisa e interpreta dados das entrevistas que realizamos
com os estudantes das 4 (quatro) escolas 58 pesquisadas na região de Tombali,
concretamente, no setor de Catió e seus respectivos professores. Para os alunos,
procuramos informações a respeito de seus dados pessoais (nome, sexo, idade, cidade
ou tabanca/aldeia do nascimento, região de nascimento, grupo étnico a que pertence e
nível escolar), como também, a língua materna, a língua segunda e a língua terceira
desses estudantes e ainda a língua que falam em casa, na escola e com os seus
professores na sala de aula. Para os professores, as entrevistas dizem respeito à língua
que falam com seus alunos na sala de aula; a língua que esses alunos falam entre si na
sala de aula; e a língua em que esses alunos fazem as provas.
O intuito dessas entrevistas é o de analisar o impacto da realidade
sociolinguística desses estudantes, como também da LP, na sua trajetória escolar. Existe
conflito linguístico na escola, ou não? Em caso afirmativo, por quê? Em que medida
esse conflito interfere no processo de ensino e de aprendizagem e no aproveitamento
escolar do aluno ao longo da sua trajetória escolar? Em caso negativo, por quê?
Para entrevistar os estudantes, elaboramos três tipos de questionários como
descrito abaixo:
a) O primeiro tipo visa obter dados pessoais do estudante, tais como: 1) nome, 2)
sexo, 3) idade, 4) Cidade ou tabanca/aldeia do nascimento, 5) região de nascimento 6)
grupo étnico a que pertence e 7) nível escolar.
b) O segundo tipo tem como objetivo obter dados sociolinguísticos de cada
estudante entrevistado, sendo assim, perguntamos: 1) a sua língua materna (L1); o seu
nível de fluência: fluente, razoável, básico, péssimo ou não a fala; 2) a sua língua
segunda (L2); seu nível de fluência: fluente, razoável, básico, péssimo ou não a fala; 3)
a sua língua terceira (L3); seu nível de fluência: fluente, razoável, básico, péssimo ou
não a fala; 4) a língua que fala em casa; 5) a língua que fala na escola; 6) a língua que o
professor fala com eles na sala de aula; 7) a língua que fala com o professor na sala de
aula (cf. Apêndice: 3).
58
São as escolas apresentadas no primeiro capítulo, na parte da metodologia.
240
c) Já no terceiro tipo, pedimos aos estudantes que se apresentem nas três línguas:
na Língua Portuguesa (LP); na Língua Crioula (LC); e na língua étnica de cada um/a,
falando o seu nome, sua idade, onde mora e qual classe (série) estuda. (cf. Apêndice: 4)
O quadro que segue apresenta os dados pessoais dos estudantes entrevistados nas
quatro (4) escolas. Isto é, seus nomes, sexo, idade, cidade ou tabanca de nascimento,
região de nascimento, grupo étnico a qual cada um pertence e seus níveis escolares.
Quadro 7: Dados pessoais dos estudantes de quatro (4) escolas, quanto ao sexo, idade,
cidade/tabanca e região de nascimento, grupo étnico e nível escolar
EBU-1 DE MATO-FARROBA
EBU-2 DE CUFAR
241
maior. O que não quer dizer que a LC não seja usada nessas tabancas, ela é usada sim,
sobretudo, no ambiente de contato interétnico, por exemplo, na escola.
A seguir, apresentamos os estudantes segundo a língua materna (L1), a língua
segunda (L2) e a língua terceira (L3) nas quatro escolas pesquisadas.
7.1 A língua materna (LM/L1), a língua segunda (L2) e a língua terceira (L3) dos
estudantes entrevistados
O Quadro que segue apresenta a língua materna (LM/L1), a língua segunda (L2)
e a língua terceira (L3) dos estudantes estrevistados nas 4 (quatro) escolas.
Quadro 8: As línguas: materna (LM/L1), segunda (L2) e terceira (L3) faladas por estudantes
das 4 escolas por nível de fluência
EBU-1 DE MATO-FARROBA
(péssimo)
EBU-2 DE CUFAR
7.1.1 A língua balanta (LBal) como a Língua Materna (LM/L1) da maioria dos
estudantes
habitantes dos centros urbanos. No caso específico dessa pesquisa, a língua balanta é a
língua materna da maioria dos estudantes entrevistados, como revelam o quadro (08)
acima e o gráfico (5) abaixo.
Nota-se que, dos 16 (dezesseis) estudantes entrevistados, 12 (doze) falam a
língua balanta como língua materna (L1), 2 (dois) falam a língua crioula como língua
materna (L1), 1 (um) fala a língua fula como língua materna (L1) e outro 1 (um) fala a
língua sosso como língua materna (L1). Deste modo, na EBU-1 DE MATO-
FARROBA, 4 (quatro) estudantes (100%) consideram a língua balanta como a L1.
Também, na EAG-1TONA NAMONE, localizada na mesma tabanca de Mato-Farroba,
4 (quatro) indicaram a língua balanta como a L1, correspondente a (100%); já na EBU-
2 DE CUFAR, o cenário é totalmente diferente, ou seja, 1 (um) estudante (25%)
apresenta a língua fula como a L1; do mesmo modo, 1 (um) estudante (25%) escolheu a
língua sosso como a L1, apesar de pertencer à etnia Nalu, também 1 (um) (25%),
embora, seja da etnia Balanta considera a língua crioula (LC) como a L1, (isso se deve
ao fato de ele ter nascido na cidade de Farim – a capital da região de Oio), enquanto que
outro 1 (um) (25%) considera a língua crioula como a L1. Por último, na EAG
ABÊNE, localizada na tabanca de Areia, três (3) estudantes (75%) declararam ter a
língua balanta como L1 e 1 (um) (25%) fica com a língua crioula como a L1. (cf.
gráfico 5 abaixo).
245
Gráfico 5: Percentagem dos estudantes falantes por línguas maternas nas 4 escolas
120%
100% 100% Balanta como (L1)
100%
80% 75% Crioulo como (L1)
Veja que esses alunos balantas não têm dificuldades apenas na LP, também, têm
dificuldades na LC. A única saída que a professora encontrou para fazer os alunos
compreenderem a explicação das matérias era aprender a língua materna deles. No
entanto, apesar de os/as professores/as usarem a língua balanta como de reforço, uma
vez que a maioria é balanta ou aprende a falar a língua balanta, o uso dessa língua
parece não ser o suficiente para esgotar os problemas enfretados pelos alunos, porque
esses alunos não fazem avalições na língua balanta, mas, na LC e na LP que eles ainda
não dominam. Podem até entender as perguntas se forem explicadas em balanta, mas
não saberão respondê-las em crioulo ou em português, porque não têm conhecimento
suficiente dessas línguas para poder elaborar respostas nelas, a não ser que sejam
perguntas diretas do tipo “o que é tal coisa?” ou “defina tal coisa”. Essas perguntas
podem ser encornadas e depois respondidas tal como está escrito no seu caderno, fato
que induz muitos alunos guineenses a encornar as definições. Mas se for uma pergunta
de correspondência, uma pergunta dissertativa ou uma explicação, o aluno já não
consegue se expressar, porque lhe falta a capacidade argumentativa na língua de ensino.
Percebemos que muitos alunos ficam tímidos, passivos e não conseguem expor
suas opiniões ou dúvidas na sala de aula, justamente porque têm dificuldades de falar a
língua de ensino – a LP. Percebemos também que, quando um aluno fala errado a LP, os
seus colegas riem dele e seu erro é encarado como piada. Isso, além de ser bullying,
contribui para baixa autoestima e desmotivação do aluno. O que leva a considerar que,
nesses tipos de caso, a LP reproduz a desigualdade de aproveitamento escolar, na
medida em que o aluno que a tem como L1 ou L2 tem maior chance de conseguir
melhor aproveitamento escolar em relação àquele que a tem como LE.
No caso de Moçambique, em que, segundo PNUD (2000) apud Neto; Norte
(2008, p, 3-4), “apenas 6,5% da população tinha português como língua materna,
247
acredita-se que a adoção desta como a língua do ensino oficial tem sido desvantajosa
para o sistema educacional e reprodutora de desigualdade social”. Nesse sentido,
NGUNGA (2000) afirma que, nas primeiras séries do sistema escolar, a língua tem sido
um dos fatores que inviabilizam a progressão escolar, porque a maioria das crianças que
ingressam na escola pela primeira vez não sabe falar a língua oficial de ensino – no
caso, a língua portuguesa.
Importa salientar que existe um debate sobre o efeito das línguas maternas no
desempenho educacional da população. Nesse sentido, a UNESCO (2000) aponta que
crianças que iniciam a carreira escolar na sua língua materna têm melhor desempenho
escolar nas primeiras séries. Este debate é reforçado por especialistas em ensino de
línguas maternas, que consideram a língua materna de fundamental importância no
processo de ensino e de aprendizagem de qualquer estudante:
onde esta língua nem sequer é utilizada nas discussões e debates dos
diplomas que vão reger os destinos do povo. (DIALLO, 2007, p. 21).
7.1.2 A língua crioula (LC) como língua segunda (L2) dos estudantes entrevistados
Nas entrevistas, a maioria dos alunos confirmou ter o crioulo como língua
segunda. A LC é atualmente a mais falada no país, sendo a L1 de muitos citadinos,
enquanto nas áreas suburbanas e rurais desempenha a função de L2 de maioria dos
habitantes, especialmente a camada juvenil, incluindo a maioria dos estudantes. Como
se pode ver no gráfico a seguir, num total de 16 estudantes entrevistados, 14 falam a LC
como L2, enquanto 1 (um) indicou a língua balanta como a L2 e outro 1 (um) conta a
LP como a L2:
250
120%
100% 100% Balanta como L2
100%
75% 75% Crioulo como L2
80%
60% Português como
40% 25% 25% L2
Sosso como L2
20%
0% 0%0%0% 0% 0%0%0% 0%0%0% 0% 0%0%
0% Fula como L2
EBU-1 de Mato- EAG-1 TONA EBU-2 de Cufar EAG-2 ABÊNE
Farroba NAMONE (Areia)
(Mato-F)
7.1.3 A língua portuguesa (LP) como a Língua Terceira (L3) de 50% dos
estudantes entrevistados
Com relação à lingua terceira (L3), verifica-se que do total de 16 estudantes, oito
(50%) consideram que falam a LP como L3, sete (43,75%) não a têm e um (6,25%) tem
a língua balanta como L3.
No que se refere às escolas, verificamos que na EBU-1 DE MATO-FARROBA
dois (50%) reportaram ter a língua portuguesa (LP) como terceira e outros dois (50%)
afirmaram não ter nenhuma língua terceira. O mesmo cenário se verifica na EAG-1
TONA NAMONE. Referente à EBU-2 DE CUFAR, dois (50%) citam a língua
portuguesa (LP) como terceira, enquanto um (25%) considera a língua Balanta como a
sua terceira e outro (25%) não tem nenhuma língua terceira. Na EAG-2 ABÊNE, dois
(50%) estudantes revelaram ter a LP como a terceira e outros dois (50%) declaram não
ter L3 (cf. quadro 08 e Gráfico 7).
Gráfico 7: A língua terceira (L3) falada por estudantes entrevistados nas quatro escolas
É importante perceber que todos esses estudantes não falam a LP como língua
materna (L1), nem como língua segunda (L2), sendo a terceira de apenas 8 (oito). Essa
ocorrência chamou a nossa atenção, uma vez que o uso da LP acontece apenas na sala
de aula, pois no recinto escolar tanto os/as alunos/as como os/as professores/as falam o
crioulo ou as línguas étnicas.
Sendo assim, resolvemos pedir para os/as estudantes se apresentarem na LP,
falando o nome completo, a idade, onde mora (nome da tabanca de residência) e classe
252
(série) que estuda. No que se refere aos 8 (oito) estudantes que não falam nenhuma
língua terceira, na apresentação individual, cada um reafirmou que não sabe falar a LP.
Enquanto dos outros 8 (oito) que afirmaram ter a LP como a terceira língua (L3), sendo
dois por escola fizeram as seguintes apresentações na referida língua:
Aluna EBU2-4: “Eu chamo-me Aluna EBU2-4, tenho 16 ano de idade, moro num
Cufar, eu estudo 4º ano”.
Aluno EAG2-3: “Bo tari, eu chamo-me Aluno EAG2-3, tenho 12 ano idade, moru
em Sua, estudamos 3ª classe”.
Aluna EAG2-4: “Eu chamo-me Aluna EAG2-4, tenho 14 ano idade, moro em Sua,
estuda 4ª classe”.
Aluno EBU1-3: “Eu chama-se nome Aluno EBU1-3, ami tenho 13 ano ami mpadido
na Iussi, na estuda 3ª classe”.
Aluno EAG1-3: “Aluno EAG1-3, moro em Mato-Forroba, 3ª class, tenha 12
ano....idade”.
Aluna EAG1-4: “Chama-me Aluna EAG1-4, more em Mato Farroba, ntene 18 ano,
na estuda 4ª- classe”.
Aluno EBU2-3: “Chamo-me Aluno EBU2-3, tenho 16 ano de idade, moro em
Cufar”. [O estudante não terminou a sua apresentação. ]
Aluna EBU1-4, da escola (EBU-1 DE MATO-FARROBA), apesar de dizer que a
sua língua terceira (L3) é a LP, não conseguiu se apresentar nela, afirmando que não
sabe falar a referida língua.
Portanto, esse teste, somado às observações diretas que realizamos nessas
escolas, permitiu-nos concluir que a grande maioria desses alunos/as apresentaram
muitas dificuldades na LP ensinada nas escolas guineenses. Contudo, muitos desses
alunos conseguem ler e escrever algumas frases em LP, como alguns mostraram. Agora,
para eles se expressarem oralmente em LP, interpretar um texto, ou escrever um texto
de forma livre já é mais difícil.
7.2 A língua que os alunos falam em casa, na escola e com o professor na aula
O quadro a seguir mostra a língua que os alunos falam em casa, na escola e com
o professor na sala de aula. O objetivo é entender qual é a língua mais falada em cada
253
um desses espaços, como também, analisar o porquê de ela ser a mais falada e qual o
seu impacto na aprendizagem do aluno.
Quadro 9: A língua que os alunos falam em casa, na escola e com o professor na aula
Nome do aluno/a A língua que o A língua que o (a) aluno (a) A língua que o
(a) aluno (a) fala fala na escola (a) aluno (a) fala
em casa com o prof (a) na
aula
EBU-1 DE MATO-FARROBA
EBU-2 DE CUFAR
EAG-2 ABÊNE-Areia
59
Na língua em que consta jogo da velha (#), significa que o aluno não conseguiu se apresentar nessa
língua, apesar de dizer que a fala.
254
O que chama nossa atenção, tanto no quadro (09) como no gráfico (8), é que
nenhum desses estudantes fala a LP em casa, seja como língua materna (L1) ou como
língua segunda (L2). Isso ocorre pelo fato de que os moradores dessas localidades (as
tabancas em que a pesquisa foi realizada) não falam a LP no seu cotidiano. Eles falam
as suas línguas étnicas (a língua balanta principalmente) e o Crioulo, neste último caso,
quando se comunicam com as pessoas de outras etnias que não sabem falar a língua
local.
Procuramos também saber qual é a língua que os alunos mais falam na escola,
especificamente, no recinto escolar e o que causa essa ocorrência.
255
120% 100%
100% Língua balanta
75% 75%
80% Língua crioula
60% 50%
Língua portuguesa
40% 25%25% 25% 25%
20% Línguas crioula/portuguesa
0% 0% 0% 0% 0% 0% 0% 0%
0% Línguas criola/balanta
EBU-1 DE EAG-1 TONA EBU-2 DE EAG-2 ABÊNE
MATO- NAMONE CUFAR Línguas Cri/balan/portug.
FARROBA
EAG-2 ABÊNE, 75% na escola EBU-2 DE CUFAR, outro 75% na escola EAG-1
TONA NAMONE e 50% na escola EBU-1 DE MATO-FARROBA.
Se fizermos uma análise com base nesse resultado, em que a LC aparece como a
mais falada, podemos, portanto, concluir que isso ocorre devido ao fato de que a
referida língua é a mais usada num ambiente em que interagem pessoas de diferentes
etnias, como no caso da escola, no mercado, nas cidades e em outros lugares similares.
Portanto, sendo a escola um lugar de interação entre diferentes grupos étnicos, a
probabilidade de o aluno falar a LC (tida como a língua de comunicação interétnica)
nesse lugar é maior. Porém, a observação direta que fizemos nas escolas pesquisadas
permitiu-nos constatar os seguintes cenários:
Primeiro cenário: na escola EBU-1 DE MATO-FARROBA, localizada na
tabanca do mesmo nome, verificamos que na sala de aula: os estudantes falam a língua
Balanta quase exclusivamente entre si. Só falam o crioulo, quando conversam com o
professor ou com o colega de outra etnia. Apesar de a LP ser a obrigatória nessa escola,
ela é quase inexistente no vocabulário dos estudantes. Isso se agrava, talvez, porque os
professores aparecem nas aulas quando os convêm, alegando estado de abandono em
que são relegados pelo governo, que levam meses sem pagar salários e subsídio de
isolamento. No recinto escolar: os estudantes falam quase exclusivamente a LBal60.
Também nessa escola quase todos os estudantes são Balantas, com exceção de um
número reduzido de outras etnias que também falam a LBal com muita fluência.
Segundo cenário: na escola EAG-1 TONA NAMONE, também localizada na
tabanca de Mato-Farroba, constatamos que, na sala de aula, os estudantes falam com
mais frequência a língua balanta, principalmente os de 1ª, 2ª e 3ª classe. Essa situação
muda aparentemente quando o professor exige deles o uso do Crioulo. Os da 4ª classe
falam mais a LC e um pouco da LP, fato que se deve ao incentivo do professor, pois a
escola trabalhar com o projeto Bilíngue Crioulo-Português, por isso, essas duas
línguas são encorajadas, embora as línguas étnicas (caso da língua balanta, a dominante
na tabanca) não seja rigorosamente proibida. No recinto escolar, a LBal é usada quase
que exclusivamente.
Acredita-se que o uso da língua balanta acontece com mais frequência, porque
os estudantes dessas três classes são quase todos da etnia balanta, com exceção de dois,
60
Usamos abreviatura Lbal para designar a língua balanta.
257
sendo um da etnia Mandinga e outro da etnia Fula (2ª e 3ª classe respectivamente), que
falam a língua balanta fluentemente.
Verificamos também que, muitas vezes, os professores recorrem à língua balanta
para esclarecer as dúvidas dos estudantes, já que todos os professores falam balanta
perfeitamente, mesmo um que é da etnia Bijagó fala a língua balanta sem a menor
dificuldade. A fala da Profa. EAG1-1 é reveladora disso: “na nossa escola, a maioria
dos alunos só fala balanta, até quando falo em crioulo alguns ficam me olhando
pãããã...[risos]. Isso quer dizer que não entendem muita coisa em Crioulo, só em
Balanta. Mesmo assim, insisto em Crioulo para ajudá-los a ter habilidade”. (Profa.
EAG1-1. Mato-Farroba/Guiné-Bissau, jun./jul.: 2019. Entrevista concedida a Dabana
Namone). A professora afirma ainda o seguinte:
7.2.3 A língua que o/a aluno/a fala com o professor (a) na sala de aula
7.3 A língua que o professor fala com seus alunos na sala de aula, a língua que os
alunos falam entre si e a língua que eles fazem as provas
Quadro 10: A língua que o professor fala com os estudantes na sala de aula, a língua que
estudantes falam entre si e a língua que estudantes fazem as provas
EBU-1 DE MATO-FARROBA
EBU-2 DE CUFAR
7.3.1 A língua que o/a professor/a fala com os estudantes na sala de aula
falam as línguas nacionais (crioulo e as línguas étnicas) na sala de aula, pois o uso
dessas línguas era proibido nas escolas, sendo a LP dada como a única que deveria ser
falada. Embora, atualmente, o Ministério da Educação recomende o uso dessas línguas
apenas como de reforço, mesmo assim, alguns professores ainda sentem medo de usá-
las na presença, por exemplo, de inspetor, como afirma o DRE/C2:
7.3.2 A língua que os estudantes falam entre si na sala de aula, segundo os/as
professores/as
12,50%
12,50%
A LP apenas
A LC e a LP
75%
A LC apenas
Mas, na nossa observação direta nas escolas, constatamos que os alunos das duas
escolas do Estado (EBU-1 DE MATO-FARROBA e EBU-2 DE CUFAR) fazem provas
exclusivamente na LP, como foi confirmado pelos respectivos professores. Enquanto
nas duas escolas de autogestão (EAG-1 TONA NAMONE e EAG-2 ABÊNE), alunos
de 1ª e 2ª classes fazem todas as provas na LC, somente a prova da disciplina de
Português que é feita na LP, enquanto que os da 3ª e 4ª classes fazem todas as provas na
LP e a da disciplina de Crioulo é feita na LC.
O que chama a nossa atenção é que, apesar de a LP ser a menos falada pela
maioria dos alunos, como mostram os dados, ela continua sendo considerada a única
língua de ensino, sobretudo, nas escolas estatais. Portanto, estamos perante duas
265
É importante afirmar que a maioria dos professores guineenses fala uma ou mais
línguas étnicas e o crioulo. Contudo, merece destaque o fato de que, às vezes, os
professores são colocados em regiões, áreas ou comunidades dominadas por uma
determinada língua étnica que não fala. Neste caso, justifica-se o programa de
submersão, na medida em que os alunos são obrigados a falar a língua de ensino e
proibidos de falar a sua LM/L1. Na década de 1990, em que esse autor fez pesquisa
sobre o assunto, tanto a LC como as línguas étnicas eram muitos probidas nas escolas.
O autor esclarece ainda que:
61
O autor considera, nesse caso, a LC como a L1 e a LP como L2, fato que leva a crer que ele se refere às
zonas urbanas, pois nas zonas rurais, como no contexto dessa pesquisa, a LP desempenha função da
língua estrangeira (LE), levando em consideração o conceito de língua estrangeira, como destacamos num
dos capítulos anteriores.
266
62
O assunto será analisado no próximo capítulo.
267
Para Santos (1989), citado por Gusmão (2000), a questão está no fato de haver
um mecanismo que separa a educação do ensino, e nisto que reside a esquizofrenia da
escola:
língua que não dominam, mas que é imposta como obrigatória na escola, significa que
elas estão sendo silenciadas.
De igual modo, se a escola não valoriza a diversidade cultural do contexto social
na qual está inserida significa que seus alunos estão sendo silenciados e tratados como
simples objetos do processo de ensino e aprendizagem, na medida em que esse processo
é pautado no caráter homogeneizador e monocultural, negando a diversidade cultural e
sociolinguística dos seus sujeitos ativos (os alunos).
É de se salientar que, atualmente, vivemos num contexto de globalização e
mundialização cultural em que essa consciência do caráter homogeneizador e
monocultural da escola é cada vez mais intensa. Entretanto, também está mais presente
a consciência da necessidade de se romper com essas práticas e de construir práticas
educativas que valorizem a diferença, a diversidade cultural e a heterogeneidade.
Segundo Candau (2011, p.13), “não há educação que não esteja imersa nos processos
culturais no contexto em que se situa. Nesse sentido, não é possível conceber uma
experiência pedagógica desvinculada totalmente das questões culturais da sociedade”,
porque a escola é por excelência um espaço de convivência intercultural.
Consoante Gómez (2001), citado por Candau (2011), a escola é um espaço de
cruzamento de culturas, portanto, um espaço fluido e complexo, atravessado por tensões
e conflitos:
O Prof. EAG1-2 acha que, em vez das línguas étnicas, seria então melhor
implementar a LC, deixando aquelas apenas como de reforço:
Por sua vez, o Prof. EBU2-2 considera que as línguas étnicas não devem ser
usadas na sala de aula como instrumento de trabalho, mas apenas como línguas de
apoio:
63
É um dos casos que anotamos numa das passagens desse trabalho. De um aluno balanta que disse ao seu
colega que não entendeu a explicação que o Prof. EBU2-2 deu na LP e o colega dele explicou o fato ao
professor, que se sentiu comovido com a situação, uma vez que ele professor também não sabe falar a
língua materna do aluno – a língua balanta.
273
como vocês usam essas línguas étnicas?” Acompanhem a resposta da Profa. EAG2-1: “Os da
etnia nalu não têm problema de falar a língua crioula, temos mais dificuldades com os da etnia
balanta. Porque eles só falam balanta em casa, só balanta, balanta, balanta. Agora, os Nalus
não têm problema porque falam mais a LC em casa”.
O DRE/C2, que é licenciado em língua portuguesa, concorda com a
implementação das línguas étnicas no ensino:
Acho que as línguas étnicas podem ser adotadas como de ensino, até
porque algumas organizações como ONG Effetivo Intervencion
experimentou o ensino bilíngue: língua balanta - LP com as crianças
de tabanca Gantone e encaixou. Os professores dessa organização
mostravam às crianças uma imagem que elas conhecem na sua
comunidade e na sua língua e chamavam o seu nome na língua balanta
depois explicavam como a mesma imagem é chamada na LP, então,
fizeram essa interligação entre as duas línguas e funcionou, pois, essas
crianças passaram a falar a LP com muita facilidade. Portanto, pode
funcionar com as línguas étnicas sim. Por exemplo, se você for dar
aulas na área povoada pelos fulas, se você iniciar com a LP que nunca
tiveram contato vão ter dificuldades, mas se você partir da língua
deles fazendo interligação com a LP vai encaixar. Mesma coisa, se
você explicar uma operação matemática na LP esses alunos vão ter
dificuldades. Exemplo, uma criança que nem passou pelo jardim de
infância e começa a primeira classe com seis anos de idade se você
falar a LP com ela vai ficar te olhando pããã... Nem sabe se essa língua
é da Guiné-Bissau. Mas, se o professor domina a língua fula, por
exemplo, pode explicar aquela operação matemática nessa língua,
depois volta para a LP, assim, fica mais fácil a criança familiarizar
com essa língua. Então, as nossas línguas étnicas podem ser
aproveitadas, podem até não serem as línguas que todos os conteúdos
serão trabalhados, mas, que servem como línguas de suporte de
aprendizagem. (DRE/C2. Catió/Guiné-Bissau, jun; 2019. Entrevista
concedida a Dabana Namone).
no seu território que traz outros bens? Esses países africanos, outros
até falam quase que exclusivamente as línguas maternas das suas
comunidades nos meios de comunicação social em detrimento das
línguas internacionais. Por quê? Porque valorizaram primeiramente as
suas próprias línguas”. (DRE/C1. Catió/Guiné-Bissau, jun; 2019.
Entrevista concedida a Dabana Namone).
O DRE/C1 chama atenção ao fato de que nós guineenses temos que valorizar,
em primeiro lugar, as nossas línguas maternas, porque só valorizando-as é que vamos
desenvolver estudos sobre elas. Ele acrescenta:
Muitas das vezes dizemos que existem vocábulos da LP, por exemplo,
que não sabemos traduzir para nossas línguas maternas, mas, não.
Porque não fizemos estudos a esse respeito e precisamos fazê-los.
Porque existem vários significados entre línguas. É só fazer a
comparação. Por exemplo, se eu te digo que isso aqui é um óculos e
depois falo que é uma coisa que se usa para proteger os olhos, não é a
mesma coisa que eu falei? É a mesma coisa. Porque na LP ou na LC
posso dizer que é óculos, mas, na língua balanta, por exemplo, posso
dizer que é coisa de proteger os olhos. Não é óculos que falei? É
óculos. O nosso problema é que não fizemos estudos das nossas
línguas e quando você não faz estudo de uma língua, terá logo
dificuldades de traduzi-la na escrita. (DRE/C1. Catió/Guiné-Bissau,
jun; 2019. Entrevista concedida a Dabana Namone).
64
O informante se refere ao padre italiano: Luigi SCANTABURLO, que além desse dicionário, também,
escreveu vários materiais didáticos na LC, usados atualmente no projeto de ensino bilíngue: Crioulo-
Português. Ele é um dos grandes influenciadores do projeto de ensino bilíngue Crioulo-Português na
Guiné-Bissau, especialmente nas ilhas de Bijagós.
276
Ele insiste enfatizando que não valorizamos as nossas línguas étnicas e destaca a
intolerância que alguns guineenses têm contra a pessoa que fala a sua língua étnica no
meio do público diverso:
Para DRE/C1, as nossas línguas étnicas estão caminhando para a extinção, pois,
“estão perdendo terrenos para a língua crioula, porque hoje em dia a nova geração fala
língua étnica misturada com o Crioulo”. E lamenta que:
Por exemplo, Cabo Verde está lutando muito, fazendo paralelismo entre o
Crioulo caboverdiano e o português até no ensino secundário. Por quê?
Porque qualquer cabo-verdiano sabe falar a LC perfeitamente, pode falar a
LP errada, mas não a LC. Por isso que decidiram investir na LC. E nós
guineenses, o que estamos a fazer? Estamos a forçar a LP. Se muitas pessoas
ainda não sabem falar a LC, como a LP vai ser a nossa língua de ensino? Ela
é, mas não deveria ser. Não podemos negar a LP, porque ela que é a nossa
277
Por outro lado, o Prof. EBU1-2 concorda que a LC pode ser implementada no
ensino e justifica a razão da sua aceitação:
Ele pensa que essa ideia de usar a LC no ensino é uma forma de tirar o aluno da
sua língua materna para língua crioula, pois se o aluno fala a língua crioula fica mais
fácil transitar para língua portuguesa. Igualmente, a Profa. EAG1-1 é da opinião de que
278
a LC deve ser implementada no ensino, porque os alunos têm mais domínio dela em
comparação à LP:
De acordo com o Prof. EBU2-2, a LC não dever ser ensinada na escola porque
não é a nossa língua de negócio com o mundo a fora. Como exemplo, o professor diz
que se um funcionário sair do país para resolver assunto de Estado nos outros países não
vai falar a LC e, sim, a LP:
Acho que a LC dever ser usada sim. Quer dizer no caso de cidade
como caso aqui de Catió, as crianças do centro da cidade não têm
problema, mas aquelas do interior que saem das tabancas para estudar
aqui apresentam maior dificuldade. Por isso que o projeto bilíngue foi
implementado, pois não usamos apenas língua crioula e a língua
portuguesa, mas usamos também as línguas étnicas como de reforço,
para facilitar a compreensão dos alunos que ainda têm dificuldades
naquelas duas línguas. (Profa. EAG2-1. Areia/Guiné-Bissau, jun;
2019. Entrevista concedida a Dabana Namone).
De acordo com a Profa. EAG2-2: “para mim se for implementada, que sejam
somente nas escolas primárias (de 1ª a 4ª classe), porque os alunos de ciclos (5ª e 6ª
classes) ou liceus (7ª a 12ª classes) já sabem falar a LC”. (Profa. EAG2-2. Mato-
Farroba/Guiné-Bissau, jun; 2019. Entrevista concedida a Dabana Namone).
Por sua vez, DRE/C1 concorda que a LC deve ser implantada no primeiro ciclo
(1ª a 4ª classe) e deve ser mista. Ou seja, deve ser um ensino bilíngue (entre línguas
étnicas e a LC), porque, segundo ele, essa é a fase em que a familiarização da criança
com a língua depende do meio onde ela vive. Portanto, no seu ponto de vista, o ensino
280
Mas, para ele, se tiver uma etnia predominante naquela comunidade, pode-se
usar aquela língua como de reforço à LC, por exemplo, uma criança da etnia Pepel, que
mora na comunidade dominada pelos Balantas, tem tendência de dominar a língua
balanta. Além disso, ela tem dupla vantagem, porque “aprende a língua balanta e a LC e
em pé de igualdade com os seus colegas Balantas. Também na passagem para outros
níveis, eles seguem em pé de igualdade com a mesma capacidade de aprendizagem,
para depois ir aprender a LP”. (DRE/C1. Catió/Guiné-Bissau, jun; 2019. Entrevista
concedida a Dabana Namone).
Ainda o DRE/C1, avança com a opinião de que:
Hoje nas tabancas é difícil uma pessoa falar a sua língua étnica sem
tocar na LC, sobretudo, a camada mais jovem. Isso significa dizer que
estamos em condição de aprender com as nossas línguas étnicas e com
o Crioulo para que nos outros níveis aprendermos com a LP.
(DRE/C1. Catió/Guiné-Bissau, jun; 2019. Entrevista concedida a
Dabana Namone).
Por seu lado, o DRE/C2 é da opinião de que a LC pode ser implementada desde
que seja adotada uma escrita que a torne de uso convencional, pois, para ele, em nada
adianta ensinar uma língua que não é convencional até na escrita e dá exemplo de termo
281
crioulo: “Cuma” com letra “C” e “Kuma” com letra “K” que para ele sugere
ambiguidade, os dois significa em português “como vai?”. Segue sua opinião:
Até que pode ser, porque há dias alguns colegas estiveram numa
conferência na cidade de Cacheu em que essa questão foi discutida.
Essa questão está sendo pensada, porque para você adotar a LC como
de ensino primário tem que ser uma língua convencional até na
escrita. Não é? Porque, por exemplo, se eu falar “Cuma” e outra
pessoa fala “Kuma”, (como em português) alguém pode dizer que
primeiro está errado enquanto outro pode dizer que segundo está
errado. Isso pode acontecer porque a LC ainda não é convencional,
pois todas as línguas têm as suas regras gramaticais, embora exista
uma gramática implícita que é nativa, exemplo, se eu pronunciar uma
palavra em crioulo alguém pode-me dizer que não é assim que se fala,
é assim. Embora, não temos uma gramática escrita que balize todas as
regras (DRE/C2. Catió/Guiné-Bissau, jun; 2019. Entrevista concedida
a Dabana Namone).
ele explica que não significa ensinar os valores culturias na escola da mesma forma que
são ensinados em casa, pois:
A Profa. EAG1-1 acha apenas aspectos positivos dos valores culturais que
devem ser ensinados, deixando de lados aspectos negativos. Ela acredita que, muito
embora não possamos ensinar todos os aspectos positivos, é possível apontar alguns que
podem ser ensinados:
Para o Prof. EAG1-2, os nossos valores culturais devem ser ensinados, o que
para ele é louvável. Ele sugere que às crianças devam ser ensinados pelo menos nossos
valores comportamentais:
apenas como história e lembrança de como eram os nossos antepassados, suas culturas e
valores:
Nossos valores culturais devem ser ensinados, pois tem aqueles bons
que devem continuar a existir, mas têm outros que eu vejo que são de
antiguidades que alguns devem ser anulados ou devem ser contados
apenas como história e lembrança de como eram os nossos
antepassados, suas culturas e valores que elas têm e não têm. Caso
concreto de algumas culturas como recrutamento de Nghaé. Até
desejo que mesmo que continua, mas que as crianças que passaram
por ela sejam fortemente educadas e orientadas de como comportar na
sociedade, não ofender as pessoas, respeitar qualquer que seja pessoa:
os mais velhos, a família e de que a partir desse momento você não
pode dirigir palavras ofensivas a ninguém, não pode roubar, não pode
fazer isso, isso, isso. De que deve seguir apenas um bom caminho.
Hoje em dia o aluno dirige ofensas a outros colegas na frente do
professor. (Prof. EBU2-1Cufar/Guiné-Bissau, jun./jul.: 2019.
Entrevista concedida a Dabana Namone).
Para o Prof. EBU2-2, os nossos valores cultuais devem ser ensinados, porque
têm muita importância para nossa sociedade. O professor critica que os jovens
guineenses estão adotando valores culturais de outros países em detrimento dos valores
culturais das nossas etnias e usa o carnaval brasileiro, como exemplo:
Para DRE/C2, os nossos valores culturais devem ser ensinados sim, pois,
segundo ele, temos valores culturais ricos e completos:
Por que estamos falando dos valores culturais de outros povos, por
exemplo, de Portugal e não os nossos? Em vez de falar aos alunos, a
contar a história de Luiz de Camões, por que não falamos para cada
um contar a história de sua etnia? (DRE/C2. Catió/Guiné-Bissau, jun.:
2019. Entrevista concedida a Dabana Namone).
De acordo com DRE/C1, nossos valores culturais devem ser ensinados muito
mais, muito mais, pois na sua opinião os valores culturais são o início da civilização
humana. Afirma que muitos conhecimentos de algumas culturas específicas foram para
a ciência. Para ele, temos valores culturais muito ricos, mas os desprezamos e dá
exemplo desses tipos de desprezos:
Este especialista explica que, nos tempos passados, quando não tínhamos
telefone, nem utilizávamos correios, nem rádios, nossos antepassados se comunicavam
sem problemas:
Ainda de acordo com ele, temos muitas coisas importantes que negamos e
estamos a perder as nossas tradições, os nossos valores culturais:
65
Bombolon (em crioulo) ou Fibumbur (em balanta) é um instrumento musical e de comunicação
utilizado principalmente pela etnia balanta, tanto na cerimônia de toca choro, quanto para comunicar
falecimento de um homem grande balanta (LANTE NDAN), como também para chamar uma reunião entre
homens grandes (BILANTE BIDAN). Bombolon ou Fibumbur é feito de tronco de árvore grande e
consistente, que é aberto ao meio e cavado por dentro até atingir uma grande profundidade, contendo dois
lábios que permitem a saída de som bem alto.
286
Mas, para ele, não é isso que está sendo feito com as crianças guineenses. O que
ocorre hoje na Guiné-Bissau é como se a LP fosse língua materna delas, partindo do
princípio de que elas já sabem falar a LP. Nesse contexto, o aluno estuda LP até a
sétima, oitava e nona classe, mas, mesmo assim, não sabe usá-la para se comunicar. Ou
seja, o aluno faz um percurso de 7 a 9 anos ouvindo a LP sem conseguir falar o idioma:
língua balanta (LBal) para LC e desta para LP. Isso cria muias
dificuldades para ele. (O DRE/C2. Catió /Guiné-Bissau, jun.: 2019.
Entrevista concedida a Dabana Namone).
Ainda o DRE/C2 critica que, em vez de ensinar o aluno a ter contato e aprender
os vocabulários da LP através da oralidade, fazendo-os dialogar entre si, eles são
ensinados logo de início apenas a gramática:
Chico (2012) já vinha chamando atenção sobre a metodologia usada para ensinar
a LP nas escolas guineenses, ao considerar que:
Diallo (2007) foi mais radical no assunto, considerando que nenhum país do
mundo conseguiu desenvolver-se na base de um sistema educativo em que o ensino é
exclusivamente ministrado numa língua em que a maioria da população ignora. Para ele
“o desenvolvimento durável é possível só quando acompanhado por um sistema
educativo em que as comunidades beneficiárias se apropriam dele” (DIALLO, 2007, p.
8). E ainda afirma que
Mas este problema continua sendo ignorado, até hoje, pelos sucessivos
governantes guineenses, que em vez de adotar uma metodologia de ensino da LP
adequada à realidade sociolinguística do país, continuam ensinando-a como a LM/L1
para os alunos, cuja maioria não tem o mínimo conhecimento dela.
Tendo em conta os fatos acima relatados, consideramos que, apesar de não ser o
único, a LP é o pricipal fator de insucesso escolar na Guiné-Bissau, na medida em que é
ensinada como a LM/L1 num país cuja maioria dos alunos a tem como língua
estrangeira (LE).
Importa referir que, inicialmente, avançamos com a hipótese de que a LP
contribui para o fracasso ou insucesso escolar dos alunos no país, especificamente, as
crianças Balantas-Nhacra do ensino básico da região de Tombali, porém essa hipótese
não foi confirmada no campo. O que se confirmou é o insucesso do próprio sistema de
ensino, na medida em que a LP é ensinada como a língua materna das crianças, cuja
maioria a desconhece, sobretudo no interior do país, caso das crianças Balanta-Nhacra
de Tombali, que só falam a língua materna, pois poucas falam o crioulo. Portanto,
concluiu-se que o insucesso escolar não é dos alunos. Estes apenas sofrem as
consequências do insucesso no sistema de ensino pautado em uma língua estranha à
realidade sociocultural desta nação.
Falando dos principais fatores que causam as dificuldades dos alunos, inclusive
as reprovações, O Prof. EBU2-2 fez uma observação crítica nesse sentido, enfatizando
aspectos negativos da LP no ensino guineense atualmente. Como exemplo disso, o
professor lembra um fato que aconteceu entre ele e um aluno da etnia Balanta dentro da
sala de aula, na escola de ensino básico unificado de Cufar na qual trabalha:
O caso relatado por esse professor sobre seu aluno não é um caso isolado. É,
sim, o retrato de um problema que a maioria dos alunos enfrenta na escola,
principalmente nas zonas rurais, como é o caso dos alunos balantas pesquisados. A LP é
praticamente inexistente no seu vocabulário, fato que gera muitas dificuldades ao longo
da trajetória escolar deles.
Pecebe-se que esse aluno, além de ter dificuldades na LP e na LC, apresenta
também outros problemas decorrentes do anterior, isto é, timidez, medo ou vergonha de
apresentar suas dúvidas e expressar suas opiniões na sala de aula. Nesse caso, apesar de
estar com dúvidas, ele mesmo não conseguiu apresentá-las ao professor. Isso acontece
porque o aluno/a fica com medo ou vergonha de falar a LP, pensando que se errar será
alvo de ridicularização por parte dos seus colegas. Ou seja, é uma realidade que
acontece com muitos estudantes guineenses, que ficam praticamente passivos na sala de
aula devido ao fato de ter dificuldades na LP, ficam com medo ou vergonha de falar
para não sofrer bullying por parte dos colegas, fato que obriga muitos/as a ficarem o
tempo todo calado/a na sala de aula.
O Prof. EBU2-2 aponta ainda as consequências negativas da LP no ensino
básico, dizendo o seguinte:
Também, a Profa. EAG2-2 acha que o primeiro fator de dificuldade dos alunos
está na falta de domínio da LP:
Porque em casa o aluno fala a sua língua materna e na escola tem que
apreender digamos, a língua moderna, quer dizer a LP. Mas, nesse
sentido, o que o professor deve fazer não é entrar profundamente na
LP, mas, ir lentamente com o aluno para conseguir enquadrá-lo na LP,
ensinando-o coisas básicas, como por exemplo: pedir licença, pedir
água, pedir isso, falar aquilo e outro. Assim, ele vai aprendendo a
chamar outras coisas pouco a pouco e somando as palavras na LP e
não na língua de casa. Logo, em termos de falar a LP na escola o
aluno pode ainda ter dificuldade, mas, se o professor expressar, aquele
aluno vai compreender. [...] Mas, também, a causa de reprovação
deve-se à falta de interesse dos próprios alunos. (Prof. EBU1-2 Mato-
Farroba/Guiné-Bissau, jun./jul.: 2019. Entrevista concedida a Dabana
Namone).
O DRE/C1 aponta ainda outro erro que muitos professores guineenses cometem
contra seus alunos:
O DRE/C1 lamenta que “os nossos professores não estão muito preparados para
lidar com esse tipo de problema e reprovam muitos alunos por causa disso”. E volta a
reafirmar:
O DRE/C1 lamenta ainda que o nosso ensino tem deficiência de língua, mas não
descobrimos e estamos a forçá-lo e, consequentemente, estamos a degradar nosso
sistema. Explica que podemos utilizar materiais didáticos, mas são apenas materiais de
apoio, o veículo principal é a língua. Por isso, para ele:
O DRE/C2, que é especialista em LP, explica que vários fatores contribuem para
dificultar a aprendizagem do aluno ao longo de sua trajetória escolar, a língua é uma
delas. Pois, para ele, não adianta a pessoa dizer que o seu foco é, por exemplo, a
matemática, querendo com isso desprezar a língua, porque a língua é transversal a todas
as áreas de conhecimento:
usam em casa. De acordo com o autor, a dificuldade é maior nos estudantes cujas
famílias são desprovidas de capitais – quais sejam, cultural, econômico, político ou
social – especialmente os das zonas rurais, que enfrentam realidades escolares distantes
da sua, fato que provoca um índice lamentável de evasão escolar (MONTEIRO, 1993).
Na mesma linha de pensamento, Cá (2015) considera que o fracasso dos alunos deve ser
analisado por vários fatores e um desses fatores é o linguístico. Pois, para essa autora:
8.1 2 Fraco domínio da LP por parte dos professores e a falta de formação docente
como fator de insucesso dessa língua
da sua família. Isto acontece porque, no interior, eles são abandonados à própria sorte.
Segundo ESP/FEC1:
Por seu lado, o Prof. EBU2-2 responsabiliza o Estado da Guiné-Bissau pelo mau
desempenho da LP no ensino, afirmando, dentre outras coisas, que os professores
precisam de reciclagem para melhorar seu nível de LP e não só:
Cruz (2013, p. 33) opina que “a LP tem tido muitas dificuldades para se afirmar
como a língua de comunicação no contexto escolar da Guiné-Bissau, isto para não
falarmos no quotidiano da vida social dos guineenses”. Para a autora,
Embaló (2008, p. 102) reconhece que o crioulo, embora não seja a língua de
ensino, “não deixa de ser o recurso de muitos professores, que por deficiência do
307
A própria condição das escolas em que esses professores lecionam precisa ser
colocada em pauta: degradação de infraestrutura escolar, baixos salários – que ainda não
são pagos corretamente –, número em excesso de alunos por turma, dentre outros
fatores que os desmotivam, fazendo agravar ainda mais o insucesso escolar.
9. À GUISA DE CONCLUSÃO
Nós guineenses devemos valorizar as nossas línguas maternas, pois elas são as
nossas riquezas culturais. Desse modo, apenas valorizando-as que vamos começar a
investir no sentido de devesnvolver suas escritas e usá-las no ensino. Fato que ajudaria
não apenas a elevar a autoestima das nossas crianças, como também contribuiria para a
progressão escolar delas e tornaria a nossa educação inclusiva e de qualidade.
Para tirar o nosso sistema de ensino da situação degradante em que se encontra,
devemos implementar um ensino bilíngue (Crioulo-Português) em todo o território
nacional. Nesse sentido, no ensino básico (1ª a 6ª classe), devemos usar a LC como a
principal de ensino, uma vez que ela é falada pela maioria da população e a LP seria
apenas um disciplina, sendo ensinada como L2. No ensino fundamental (7ª a 9ª classe),
a LP continuaria como disciplina, ensinada como L2, mas com carga horária maior. Já
no ensino médio (10ª a 12ª classe), seria o inverso, ou seja, a LP passaria a ser ensinada
como língua básica de ensino e o crioulo como disciplina.
Contudo, sabemos que uma parcela considerável dos guineenses ainda não
domina a LC, como também, a grande parte das nossas crianças não a tem como LM,
sobretudo nas zonas rurais. Nesse sentido, nas regiões em que a maioria das crianças
não domina este idioma, podemos experimentar o ensino trilíngue (língua étnica
dominante na região-Crioulo-Português). Por que a língua étnica dominante na região?
Cito como exemplo a experiência que tivemos na pesquisa de campo que deu origem a
essa tese. Nesta pesquisa, constatamos que numa dada região geográfica onde
predomina uma determinada etnia, as crianças de outras etnias que residem na mesma
área têm maior tendência de falarem a língua dessa etnia. Por exemplo, nas escolas
pesquisadas na região de Tombali, setor de Catió, a maioria das crianças de outras etnias
falava a língua balanta – dominante nessa área – praticamente em pé de igualdade com
as crianças balantas.
A minha sugestão é a de que, nessas áreas, pode-se experimentar ensino
trilíngue: língua étnica dominante-Crioulo-Português nas escolas localizadas nas áreas
com essas características. Aí vamos avançando e enfrentando os futuros problemas ou
desafios que vão surgindo em decorrência dessa mudança de currículo escolar. Mas isso
é uma sugestão minha. Outras pessoas podem ter sugestões melhores que essa, então,
vamos colaborar para melhorar a qualidade do nosso sistema de ensino e promover o
310
Entre 1993 a 1997, foi experimentado esse tipo de ensino com as seguintes
línguas: xichangana-português (na província de Gaza) e nyanja-português (na província
de Tete). Essa experiência deu resultado positivo, pois o número de reprovação
diminuiu consideravelmente em relação aos anos anteriores, quando o ensino era apenas
na LP (NGUNGA, NHONGO, LANGA et al. 2010).
O modelo de ensino bilíngue apresenta-se dividido em três fases
correspondentes aos ciclos, que perfazem no total, três (3) ciclos: primeiro ciclo, que
311
Para Firmino (2005, p. 67), “qualquer pessoa que fala a sua L1 é socialmente
entendida como um forte indicador da sua identidade étnica”.
Em Cabo-Verde, a experiência de Educação Bilíngue iniciou-se em 2013/2014
no 1º ciclo, enquadrado num doutoramento sobre a introdução da educação bilíngue em
cabo-verdiano e português (CARDOSO; MATIAS, 2016). O projeto do ensino bilíngue
partiu da linguista Ana Josefa Cardoso. Discorrendo acerca desse projeto de ensino
bilíngue em Cabo-Verde, Rosa (2017, p. 6) afirma o seguinte:
Não podemos continuar a fingir que a nossa língua materna não existe
e mantê-la fora do sistema educativo. Não me parece sensato
continuar a fazer ouvidos moucos e fingir que no final da escolaridade
todos os alunos têm um domínio suficiente do português para as suas
necessidades, quando nem sequer têm consciência das diferenças entre
a sua língua materna e o português. [...] É necessário olhar para a
educação bilíngue com seriedade, investir na formação de professores
e na criação de condições para que não se mantenha eternamente
como uma experiência dependente apenas da boa vontade e do
empenho de algumas pessoas.
De acordo com Rosa (2017, p. 5), “o projeto tem como objetivo principal
valorizar a língua materna, mas também através da língua materna, promover uma
melhoria no que diz respeito ao ensino/aprendizagem da língua portuguesa”. Na
observação da autora, “a língua caboverdiana hoje tem seu alfabeto, sua gramática
própria e suas regras de escrita, um conjunto que viabiliza o ensino da língua materna
nas escolas” (ROSA, 2017, p. 3).
312
66
Cf. https://pt.wikipedia.org/wiki/Pedagogia. Acesso em 17 de junho de 2018.
314
Significa dizer que a Pedagogia Balanta direciona seu foco para estudar a
educação, ou os conhecimentos transmitidos pela oralidade e a relação que esses
conhecimentos estabelecem com os transmitidos na escola. O intuito aqui é mostrar
como os conhecimentos da oralidade que o aluno guineense (por exemplo, Balanta) traz
de casa, ou seja, - adquirida através da experiência coletiva e da cultura singular do seu
grupo étnico - podem servir como subsídios importantes para auxiliá-lo a estabelecer
um diálogo crítico com os conteúdos ensinados na escola. Para isso, a valorização da
sua língua materna, como também da diversidade cultural, torna-se fundamental.
O que significa dizer que a educação escolar deve começar na língua materna do
educando, levando em consideração a sua realidade cultural. Isso significa dizer que o
aluno deve ser um sujeito atuante no processo de ensino e aprendizagem e não apenas o
seu objeto (FREIRE, 1975). Pois o aluno não é uma tábula rasa (ITURRA, 1990). Ele
traz a sua bagagem cultural para a escola e essa bagagem deve ser respeitada e
valorizada. Queremos com isso dizer que a língua materna do aluno deve ser valorizada
e ensinada na escola, pois é através dela que o aluno compreende o mundo.
A língua portuguesa deve ser introduzida paulatinamente nos níveis avançados, a
partir de uma metodologia que a coloca no seu devido lugar – de língua estrangeira que
ela é para maioria dos alunos guineenses. Assim sendo, não se pode esperar o sucesso
escolar do aluno a partir de uma língua que ele desconhece.
Nesse contexto, a Pedagogia Balanta surge exatamente para levantar o véu da
tradição oral e mostrar a sua importância na educação escolar e na pesquisa científica.
Na nossa leitura, em uma sociedade multiétnica, onde a oralidade tem predominância
sobre a escrita, a educação escolar deve estabelecer um diálogo com a educação
transmitida pela tradição oral, valorizando as línguas maternas dos alunos. Caso
contrário, ela deixará de atender suas principais funções: a inclusão social e a qualidade.
No caso específico dessa pesquisa, pretendemos analisar e interpretar as consequências
da LP no processo de ensino e de aprendizagem, ou seja, na trajetória escolar dos alunos
da Guiné-Bissau, especialmente na etnia Balanta-Nhacra na região de Tombali e trazer
para a academia a importância de saberes, de conhecimentos e da educação transmitida
através da tradição oral no referido grupo étnico.
É importante destacar que apesar de ter seu foco voltado para estudar a tradição
oral, a Pedagogia Balanta não nega a educação escolar ou a tradição escrita, pelo
contrário, estabelece relação com ela. Ou seja, a Pedagogia Balanta preocupa-se em
chamar a atenção de que, para a educação escolar ser inclusiva e de qualidade, ela
315
caros a atual realidade social do mundo globalizado em que vivemos (FONSECA, 2003;
2012). Isso significa também valorizar as línguas maternas dos alunos, pois não
podemos pensar na educação escolar de qualidade, deixando de lado às diversidades
culturais contidas nelas, deixando de lado as línguas maternas e a forma de transmissão
de conhecimento das pessoas as quais é destinada essa educação. É para tudo isso que a
Pedagogia Balanta visa contribuir.
Gostaríamos de enfatizar que para se constituir enquanto método de pesquisa, a
Pedagogia Balanta tem por objetivo dialogar com os seguintes referenciais teóricos e
metodológicos: a) a Tradição Oral, b) a Antropologia da educação; c) a Antropologia
linguística; d) Educação multicultural e e) Educação intercultural. O intuito é que esses
referenciais nos permitam tecer um panorama mais abrangente das teorias sociais que
debruçam sobre as questões da educação, permitindo-nos fazer uma análise sócio-
antropológica da educação na Guiné-Bissau.
Constatamos que: a) a educação guineense segue um modelo exógeno e
homogêneo de ensino, o qual desvaloriza os conhecimentos locais e as línguas maternas
dos alunos. b) os conhecimentos de outras áreas como – por exemplo, a antropologia da
educação, que analisam a educação para além do espaço físico da escola – são
ignorados; c) a educação guineense é analisada somente de um ponto de vista
homogênea e positivista, tendo a escola como único lugar de transmissão de
conhecimento.
O processo educativo guineense é tratado como “ensino-aprendizagem”, ou
seja, com hífen (-). Mas esse processo não deveria ser encarado assim. Deveria ser
ensino e aprendizagem com a letra (e). Por quê? Porque o hífen (-) tem como
significado juntar as duas coisas separadas: ensino e aprendizagem, com intuito de
usar o ensino escolar como condição que leva à aprendizagem. Ou seja, nega-se a
aprendizagem que o aluno traz de sua comunidade.
É para essa questão que Iturra (1990) chama a nossa atenção, quando refere-se
que as instituições escolares negam a heterogeneidade e as condições socioculturais dos
alunos, na medida em que praticam apenas ensino e negam a aprendizagem que o aluno
adquiriu através das experiências coletivas e da cultura singular do seu grupo étnico.
Na instituição chamada escola, supõe-se que o ensino leva à aprendizagem. Por
exemplo, o que acontece nas escolas de Tombali pesquisadas reflete a ideia
conservadora de que é o ensino que leva à aprendizagem daí, portanto, ensino-
aprendizagem e não ensino e aprendizagem. Em outras palavras, o que acontece é
317
conseguir falar ou expressar suas opiniões por escrito ou oral na LP, o fato é que não
dominam essa língua a ponto de poder se expressar e de fazer avaliações nela. Elas são
muito inteligentes, pois conseguem expressar as suas opiniões livremente e com
sabedoria na sua língua materna (a língua balanta), o que não conseguem fazer na LP,
simplesmente por falta de domínio desta.
Como podemos constatar nos relatos dos professores e de especialistas em
educação e em linguística que entrevistamos, a LP é um dos principais fatores, senão o
mais decisivo, no insucesso escolar na Guiné-Bissau. Desse modo, os alunos enfrentam
dificuldades no processo de ensino e de aprendizagem, porque não dominam a LP,
dificuldades essas que os perseguem ao longo da trajetória escolar e da vida. Muitos
entram na universidade apresentando as mesmas dificuldades.
Os relatos dos nossos informantes atentam para o fato de que o não domínio da
LP obriga os muitos alunos a decorar os conteúdos das disciplinas, sendo a única saída
para eles conseguirem se sair bem nas provas – enquanto outros recorrem à cábula para
conseguirem tirar notas positivas. Mas, se a prova exigir uma resposta dissertativa, ou
para aluno expressar a sua opinião, a maioria já não consegue ter êxito, porque não
domina a LP a ponto de poder expressar a sua opinião no texto de forma livre.
As dificuldades que esses alunos Balantas-Nhacra pesquisados enfrentam na
escola por causa da LP não estão restritas apenas a eles, mas acontece também com os
alunos de outras etnias e em outros cantos do país. Fato que revela que a política
linguística e o planejamento linguístico da Guiné-Bissau devem ser revisados e
adequados a sua realidade sociolinguística, cultural e educacional.
A medida urgente que o governo guineense deve tomar no setor da educação é a
redefinição de uma política linguística que leva em consideração a diversidade
linguística da Guiné-Bissau. Para isso, é preciso investir na produção e distribuição de
materiais didáticos das línguas étnicas e do Crioulo, tendo em conta a realidade
específica de cada região, criando condições para que o ensino plurilíngue seja eficaz e
eficiente.
Estamos conscientes que a pesquisa está muito longe de esgotar os problemas
que o tema suscita, mas, antes, levanta possibilidades para que novas pesquisas possam
ser realizadas com a mesma preocupação. Portanto, a nossa tese vai nessa direção, isto
é, apontar que o sistema educacional da Guiné-Bissau, em particular o que atinge a
população da região de Tombali, está em franca dissonância com a realidade
sociocultural vivida pelas crianças, adultos e idosos, bem como não atende também a
321
maioria dos professores que somente utilizam a língua portuguesa no seu ofício de
ensinar, ou seja, o seu uso fica restrito à sala de aula.
Além disso, transparece-nos que a etnia Balanta-Nhacra – a partir de sua cultura
e de sua altivez, de ter lutado e resistido ao conquistador português, de não aceitar as
estruturas de poder vinculadas à hierarquia – também estabelece de maneira apropriada,
segundo as suas convicções, uma resistência à língua portuguesa, posto que ela
representa uma língua estrangeira, alheia aos seus interesses, aos sentidos e aos
símbolos que guardam e constatam como valor cultural e humano, os quais expressam
no seu dia a dia em língua Balanta.
Assim, somos contrários às teses que apontam o insucesso escolar das crianças
na Guiné-Bissau, em particular na região de Tombali. No entanto, a partir da vasta
literatura acadêmica e científica arrolada nesse estudo, podemos afirmar que o insucesso
ou o fracasso é o do sistema educacional e da metodologia didático-pedagógica adotada
pelas lideranças políticas e educacionais do país desde 1973, quando de nossa
independência, enquanto país soberano, ao não terem procurado estabelecer uma
educação intercultural.
Ao abraçar a língua do conquistador português no seu projeto educativo,
cultural, social e linguístico, as lideranças políticas, econômicas e ideológicas presentes
na Guiné-Bissau procuraram, sim, dialogar com o mundo da civilização euro-ocidental,
mas não conseguiram e não têm conseguido fazer com que a sua população seja incluída
no jogo político-econômico internacional, especialmente aquela que está nas zonas
rurais e sendo dependente do orçamento governamental para ter acesso aos direitos
básicos, como ter uma educação que respeita os direitos humanos e os direitos
linguísticos, enquanto política de Estado. Esse contexto faz com que se mantenha e se
amplie a desigualdade social a partir de uma educação assimilacionista, ainda que
pautada em um projeto de homem novo baseado nos princípios dos independentistas
africanos, entre os quais, não podemos deixar de citar Amilcar Cabral e o próprio
ideário do PAICG.
322
REFERÊNCIAS
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2009.
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2009.
_________. O que é uma língua? Imaginário, ciência e hipótese. In: LAGARES, X. C.;
BAGNO, M. Políticas da norma e conflitos linguísticos. São Paulo: Parábola, 2011.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/emtese/article/viewFile/%2018027/16976. Acesso
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_________. A economia das trocas linguísticas: o que falar quer dizer. São Paulo:
Editora da Universidade de são Paulo, 1998.
_________. A arma da teoria: unidade e luta I. 1ª ed. Lisboa: Seara Nova, 1978. p.
234.
CRISPIM, L. Portugês, língual oficial, língual segunda. In: Solla, Luísa (Orgs).
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espaços, problemas e reflexões. Volume II. Lisboa: ESE Setúbal, 1994.
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Zahar. 1990.
HAMPATÉ BA, A. A trdicao viva. In: História geral da África. I Metodologia e pré-
história da África. Brasilia: UNESCO, 2010.
KERR, G. Uma breve história de África: das origens da raça humana à Primavera
Árabe. Lisboa: Bertrand, 2013.
LEITE, F. Aquestão ancestral: África Negra. São Paulo: Editora Palas Atena/Casa das
Áfricas, 2008.
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Disponivelem:https://www.google.com.br/search?biw=1360&bih=657&tbm=isch&sa=
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gs_l=img.3...2089275.2093988.0.2095925.3.3.0.0.0.0.187.337.0j2.2.0....0...1c.1.64.img.
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https://suburbanodigital.blogspot.com/2015/04/mapa-da-guine-bissau.html. Acesso em 17 de
junho de 2020.
336
APÊNDICES
337
Sexo: M ( ) F ( )
A sua idade?-------------------
Pertence a algum grupo étnico? Sim () não (). Se sim, qual? ------------------------Se não,
porquê --------------------------------------------------
Qual é a sua língua materna LM? --------------Você a fala fluente () razoável () pouco ()
não fala ()?
Qual é a sua língua segunda L2? --------------Você a fala fluente () razoável () pouco ()
não fala ()?
O senhor acha que eles enfrentam ou não as dificuldades na prova e reprovam por causa
da língua de ensino? sim (), não (), porquê? ---------------------------------
alunos que passam por essa realidade ou não. Sim (), não (). Se sim, quais? E por quê?
Se não por quê?-------------------------------------
7. Na sua opinião, os nossos valores culturais deveriam ser ensinados na escola ou
não? Sim (), não (). Se sim, qual aspecto, por exemplo, e por quê? Se não, Por quê?------
OBS: Se o(a) senhor/a quiser escrever no verso da folha e também se quiser dizer algo a
mais, fica a vontade.
Sexo: M ( ) F ( )
A sua idade?-------------------
Nível de escolaridade?---------------curso/s?-----------------------instituição/ões de
ensino?------------------país/países?--------------------
Pertence a algum grupo étnico? Sim () não (). Se sim, qual? ------------------------Se não,
porquê ------------------------------------------------------------------------------------------------
Sexo: M ( ) F ( )
5. Qual é a sua língua materna LM? -------------- Você a fala fluente () razoável ()
pouco () mal () não fala ()?
8. Qual língua você fala em casa? ---------E qual língua você fala na escola? --------
10. Qual língua você fala com o professor na sala de aula? ----------------------
11. Apresente-se em português, falando seu nome, sua idade, de onde você é e qual
classe (série) você estuda: Apresentou-se fluente () razoável () pouco () mal () não se
apresentou ();
12. Apresente-se em Crioulo, falando seu nome, sua idade, de onde você é e qual
classe (série) você estuda: Apresentou-se fluente () razoável () pouco () mal () não se
apresentou ();
13. Apresente-se na sua língua étnica, falando seu nome, sua idade, de onde você é e
qual classe (série) você estuda: Apresentou-se fluente () razoável () pouco () mal () não
se apresentou ().
343
No teste que fizemos com os estudantes entrevistados, os quais solicitamos que cada um
se apresente nas três línguas a seguir: a língua portuguesa, a língua crioula e na sua
língua etnica, falando seu nome, sua idade, a tabanca que mora e qual classe (série)
estuda. Na língua crioula a maioria das apresentações foi classificada como razoável,
nas línguas todas as apresentações foram classificadas como fluentes, com exceção de
uma estudante da etnia nalu que afirma que entende a língua nalu, porém, não sabe
expressar nela. Já na LP o resultado foi totalmente diferente, ou seja, no total de 16
(desesseis), 9 (nove) não conseguiram se apresentar, 3 (três) se apresentaram mal -
cometendo erros básicos e misturando a LP com a LC -, outros 3 três fizeram uma
apresentação razoável, cometendo poucos erros e apenas 1 (um) apresentou-se
fluentemente, como se segue abaixo.
EBU-1 DE MATO-FARROBA
Aluno EBU1-1
1) Apresentação na língua portuguesa: o estudante disse que não sabe falar a lingua
portuguesa e, portanto, não se apresentou;
Aluna EBU1-2
1) Apresentação na língua portuguesa: a estudante disse que não sabe falar português e,
portanto, não se apresentou;
Aluno EBU1-3
1) Apresentação na língua portuguesa: eu chamasse nome Aluno EBU1-3, ami tenho 13 ano
ami mpadido na Iussi, na estuda 3ª- classe. Ou seja, o estudante apresentou-se com muitas
dificuldades, misturando português com o Crioulo. Apresentação classificada como fraca;
Aluna EBU1-4
1) Apresentação na lin língua gua portuguesa: a estudante não respondeu nada, ficou quieta e
com vergonha;
Aluno EAG1-1
1) Apresentação na língua portuguesa: o estudante não se apresentou, afirmando que não
sabe falar a língua portuguesa;
Aluna EAG1-2
Aluno EAG1-3
Aluna EAG1-4
EBU-2 DE CUFAR
Aluno EBU2-1
Aluna EBU2-2
3) Apresentação na língua nalu: a estudante não se apresentou, pois afirma que entende a
língua nalu, porém não sabe se expressar nela.
Aluno EBU2-3
Aluna EBU2-4
EAG-2 ABÊNE
Aluno EAG2-1
Aluna EAG2-2
1) Apresentação na língua portuguesa: a estudante afirma que não sabe fala a língua
portuguesa;
Aluno EAG2-3
Aluna EAG2-4