Critica Marxista À Pecheux e Althusser e Bakhtin

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PÊCHEUX E BAKHTIN EM CONTRAPONTO – MARXISMO


E LINGÜÍSTICA EM QUESTÃO

Claudiana Narzetti – UNESP-Araraquara/FAPEAM

0 Introdução

Tornou-se comum, nos trabalhos de análise do discurso de orientação pecheutiana, a


referência à teoria desenvolvida por Mikhail Bakhtin e seu Círculo. Conceitos desse autor, tais como
polifonia e dialogismo, são freqüentemente utilizados quando se trata de analisar os objetos
investigados nesses trabalhos.
Entretanto notamos que a referência a Bakhtin não se fez presente nos primeiros trabalhos de
análise de discursos realizados na França a partir do final dos anos 60, bem como nos textos
fundadores da análise do discurso (AD), como a Análise Automática do Discurso, de 1969. De fato,
conceitos bakhtinianos só começaram a ser usados na AD francesa no início dos anos 80, quando o
corpo teórico da disciplina passava mais uma vez por revisões, retificações e deslocamentos e
configurava-se o que posteriormente ficou conhecido como a sua terceira época.
Parece-nos oportuno, portanto, refletirmos sobre o percurso da obra bakhtiniana no interior da
AD francesa: por que, no momento em que essa obra é recebida entusiasmadamente na França, ela é,
como veremos a seguir, explicitamente rejeitada pelo principal articulador da AD?
A partir de meados dos anos 70, começa a ser estudada, na França, a obra Marxismo e
Filosofia da Linguagem, de Bakhtin/Voloshinov. Os principais interessados nessa obra eram,
principalmente, os lingüistas marxistas engajados no desenvolvimento da Sociolingüística. Uma
apresentação dessa obra foi feita, antes de sua publicação francesa (que data de 1977), por Marcellesi e
Gardin em Introdução à sociolingüística, de 1974. Assim é que, em 1976, instala-se no Centro de
Estudos e Pesquisas Marxistas (CERM), do qual Pêcheux participava, um debate sobre as
contribuições de Bakhtin/Voloshinov ao desenvolvimento de uma lingüística de base marxista. Esse
debate foi, justamente, encetado por Marcellesi e Gardin, que tinham interesse particular em utilizar os
conceitos do filósofo russo na realização de tal projeto.
Todavia, para Pêcheux, que também participava do CERM, e esteve presente no estudo da
obra de Bakhtin/Voloshinov, este autor não podia ser uma referência teórica válida para a Lingüística.
Segundo Maldidier (2003), “O Marxismo e Filosofia da Linguagem, longe de abrir uma perspectiva
para os lingüistas marxistas inquietos com a relação linguagem/sociedade, representava a seus olhos
[de Pêcheux] um retorno a um estado pré-teórico” (p. 60).
Mas o que seria, na perspectiva de Pêcheux, esse “retorno a um estado pré-teórico” da referida
obra? Pêcheux falou muito pouco de Bakhtin e seu Círculo, (uma das poucas menções explícitas a
Bakhtin se encontra em A língua inatingível (1983), que Pêcheux escreveu juntamente com Françoise
Gadet). No entanto, é possível, levando-se em conta a problemática teórica de Pêcheux e do Círculo de
Bakhtin, entender o que seria, para o primeiro, esse “retorno a um estado pré-teórico”.
Um primeiro passo é explicar que, para Pêcheux, estado pré-teórico é o mesmo que estado
pré-científico. Em sua posição epistemológica, toda ciência se opõe a uma ideologia, sendo esta
entendida como um conjunto de representações falseadas do real. Toda ciência é produzida num
espaço que antes era ocupado pela ideologia. O conhecimento da ideologia só é possível com a
produção da ciência que toma seu lugar. Todo “conhecimento” anterior à produção de uma ciência é
ideológico ou pré-teórico ou pré-científico.
Outro passo é analisarmos o que nos diz Thomas Herbert (pseudônimo com o qual Pêcheux
assinou seus dois primeiros artigos, onde se encontra o “planejamento” de seu projeto de construção
do que hoje chamamos de AD) acerca das ciências sociais de fato instituídas e acerca da base teórica
sobre a qual ele iria constituir uma teoria do discurso de base científica.
Para Herbert, no campo das ciências sociais, nos anos 60, era possível afirmar a existência de
somente três ciências fundadas de fato – a ciência da história (materialismo histórico ou marxismo), a
lingüística e a psicanálise. Tal fundação houvera sido possibilitada pelo corte epistemológico operado,
respectivamente, por Marx, Saussure e Freud. Desse modo, somente essas três ciências poderiam ser
base para a construção de uma teoria e uma análise do discurso. E deveriam ser. Elas funcionariam
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como os instrumentos teóricos necessários à produção do objeto dessa nova disciplina. Mais tarde, no
artigo “A propósito da análise automática do discurso: atualizações e perspectivas” (1975), Pêcheux,
falando de seu trabalho teórico, reafirma que ele se assenta sobre essa tripla base ou “tríplice aliança”.
Herbert (1966, 1968) e Pêcheux (1975) afirmavam que era sobre uma série de conceitos
dessas três ciências que se poderia produzir um conjunto de conceitos particular que constituiria o
quadro teórico e o método de análise próprios da AD e de outras ciências do domínio da história.
Ora, o que possivelmente Pêcheux lia nas linhas de Marxismo e Filosofia da Linguagem
(MFL) e em outros trabalhos do Círculo de Bakhtin era a ignorância, por parte do Círculo, do núcleo
do corte epistemológico dessas ciências, ou seja, o ponto em que elas realizaram sua revolução teórica.
É claro que Bakhtin, Voloshinov e Medvedev reconheciam o caráter científico do
materialismo histórico; eles até propunham o desenvolvimento de teorias da linguagem e da literatura
com base nessa ciência: “Indicar o lugar dos problemas da filosofia da linguagem dentro do conjunto
da visão marxista do mundo: este é o objetivo de nossa primeira parte” (BAKHTIN/VOLOSHINOV,
1979, p. 13); “Este é o conjunto de problemas imediatos que o estudo marxista das ideologias enfrenta.
(...). É nosso propósito abordar as tarefas concretas de apenas um dos ramos desse estudo: as tarefas
do estudo literário” (BAKHTIN/MEDVEDEV, 1991, p. 15).
O mesmo se pode dizer da lingüística: seu estatuto científico não era negado.
Bakhtin/Voloshinov (1979, p. 86) afirma: “O fato de que a lingüística e a filologia estejam voltadas
para a palavra estrangeira não é produto do acaso ou de uma escolha arbitrária dessas duas ciências”
(grifo nosso).
Mas, como dissemos acima, o que era ignorado pelo Círculo, na visão de Pêcheux, era o lugar
dessas teorias em que fora realizada uma revolução teórica. A teoria de Marx era tomada como um
bloco homogêneo, o que significava que o grupo não reconhecia a descontinuidade do pensamento de
Marx e, conseqüentemente, a existência de conceitos não-científicos em certos pontos dessa teoria.
Também a lingüística, ou ainda, a filosofia da linguagem, era tomada em bloco, não havendo
uma distinção entre teorias lingüísticas pré-científicas e científicas: por um lado, um Humboldt e um
Vossler eram colocados lado a lado com Saussure, citado, em MFL, como um grande representante do
objetivismo abstrato:
A chamada escola de Genebra, com Ferdinand de Saussure, mostra-se como a mais
brilhante expressão do objetivismo abstrato em nosso tempo [...]. Saussure deu a
todas as idéias da segunda orientação uma clareza e uma precisão admiráveis. Suas
formulações dos conceitos de base da lingüística tornaram-se clássicas. E mais, ele
levou todas suas reflexões a seu termo, dotando assim os traços essenciais do
objetivismo abstrato de uma limpidez e de um rigor excepcionais
(BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1979, p. 70).

Nessa passagem, vemos que Bakhtin/Voloshinov não reconhece Saussure como o fundador da
ciência lingüística e como aquele que produziu seu objeto de investigação, a língua. Ao contrário, a
definição saussuriana de língua é criticada como ficando aquém do verdadeiro objeto de uma teoria da
linguagem:
A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de
formas lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada [...], mas pelo
fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das
enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua
(BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1979, p. 109).

Por outro lado, Bakhtin/Voloshinov, ao comentar os conceitos saussurianos, dava ênfase


apenas aos de língua e fala, e ignorava completamente o de valor, que seria o núcleo científico da
teoria de Saussure.
Na perspectiva pecheutiana, o materialismo histórico e a lingüística haviam sido construídos
por meio de uma ruptura com o que o grupo althusseriano chamava de humanismo teórico, que era a
forma por excelência de todo o pensamento teórico de então. No ato de sua fundação, a perspectiva
humanista, antropológica, foi abandonada em detrimento de uma perspectiva anti-humanista teórica.
No caso da lingüística, os conceitos de sistema lingüístico, valor, relações paradigmáticas e
associativas, dentre outros, formavam um sistema teórico que podia explicar a linguagem sem o
conceito de homem, o que se traduziria, por exemplo, em termos de liberdade do falante, e na tese do
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sentido como produto da intenção do falante. Com a teoria do valor, Saussure explicava o sentido
como o produto da relação entre elementos que ocupam certas posições estruturais no sistema da
língua, e não como produto da intenção do falante.
Ora, na concepção de Pêcheux, o motivo pelo qual o Círculo de Bakhtin não conseguia
enxergar o corte epistemológico fundador dessas ciências, seu núcleo científico, sua revolução teórica,
era o fato de o Círculo estar preso na perspectiva do humanismo teórico. E o humanismo era, para
Pêcheux, pré-teórico. Veremos, a seguir, o porquê e as conseqüências disso.

1. O humanismo teórico

Na concepção de Althusser e seu grupo, do qual participava Pêcheux, o humanismo teórico é


uma orientação filosófica, que se caracteriza pelo fato de usar categorias, tais como “homem”,
“alienação”, “essência humana” etc. para explicar a sociedade e a história. Essas categorias
desempenham papel teórico importante nessas filosofias.
Segundo Althusser (1978): “O homem centro do mundo – no sentido filosófico do termo –
essência originária e fim de seu mundo, eis o que se pode chamar de humanismo teórico no sentido
pleno da palavra” (p. 160).
As filosofias clássicas, anteriores a Marx, teriam sido todas construídas sobre a base desse
humanismo. Althusser reconhece que essa filosofia teve méritos, tais como o de lutar contra a
feudalidade e o de devolver ao homem sua dignidade. Ela também produziu vários pensadores
importantes, uns declaradamente humanistas, como Feuerbach, e muitos outros, que sem mencionar
esse título, trabalham a partir dos “conceitos” de homem e essência humana.
Entretanto, na leitura althusseriana, essa filosofia é inseparável da burguesia em ascensão de
quem ela exprimia as aspirações. Ela é produto da hegemonia da burguesia. A idéia, própria ao
humanismo, de um homem livre, sujeito de seus pensamentos e ações, é adequada aos ideais da
burguesia, já que essa liberdade é também liberdade para comprar, vender e possuir.
A problemática humanista não se fazia presente apenas na filosofia e seus ramos, mas também
nas teorias ditas científicas sobre o homem e a sociedade. Para Althusser (1979), o humanismo “foi,
para séculos inteiros, a evidência mesma, e ninguém pensava em pô-la em questão nas suas próprias
mudanças internas” (p. 200). O humanismo teórico era a forma por excelência de todo o pensamento
teórico burguês.
Na concepção dos althusserianos, o problema do conceito de humanismo é ser ideológico, já
que “designa antes de tudo um conjunto de realidades existentes, mas que, diferentemente de um
conceito científico, não dá o meio de conhecê-los” (Althusser, 1978, p. 196). Em outras palavras, o
humanismo teórico é uma ideologia, e todas as teorias construídas sobre a sua base também o são.
Para os althusserianos, o próprio Marx, durante sua juventude teórica (obras do período de
1840-1845), teve como fundamento o humanismo. Sua teoria de então era forte e rigorosamente
embasada na categoria de homem, essência humana e nas que lhe são correlatas. Marx, no entanto,
abandona o humanismo, nas obras da maturidade, quando há uma mudança radical de sua
problemática. Rompendo com o humanismo teórico e construindo uma concepção materialista da
história, ele produz conceitos científicos, como os de “classes sociais”, “modo de produção”,
“formação social”, “força de trabalho”, “relações de produção”. Estes conceitos formavam um sistema
capaz de explicar a sociedade e a história, sem necessidade do antigo conceito de homem.
Nesse momento de sua trajetória, Marx critica as pretensões teóricas do humanismo e o define
como ideologia.
Uma das conseqüências mais fortes da ruptura teórica de Marx é forma nova de compreender
as relações sociais e os homens concretos.
Uma boa explanação do modo como as ideologias humanistas representam as relações sociais
nos é dado por Herbert ([1966], 1973, p. 17). Sua função consiste em um trabalho de redução das
relações sociais a relações interindividuais: para a ideologia, o que existe na sociedade são indivíduos
que se relacionam entre si e não sujeitos de classes sociais antagonistas. Por outro lado, as ideologias,
retirando os indivíduos de suas classes, reagrupam-nos em outras categorias, definindo-os como
sujeitos religiosos, morais, jurídicos etc. Consequentemente, o caráter de classe das relações sociais e a
inserção dos indivíduos nessas relações ficam totalmente esquecidos.
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Na teoria marxista, contrariamente, postula-se a existência de classes sociais antagonistas e


afirma-se o primado das relações sobre os elementos que as compõem. Assim, o primado está nas
relações entre as classes e nas relações que os indivíduos concretos estabelecem enquanto pertencentes
a determinada classe, historicamente situada, e não nos indivíduos tomados isoladamente,
independentemente da história (Cf. ALTHUSSER, 1980, p. 133-146).
Conseqüentemente, na teoria científica de Marx, segundo a leitura de Althusser, o homem, o
indivíduo concreto não tem lugar, não é um conceito utilizável, uma vez que o homem apenas ocupa
um lugar nessas relações.
[...] a estrutura das relações de produção determina lugares e funções que são
ocupados e assumidos por agentes da produção, que nunca são mais do que
ocupantes desses lugares, na medida em que são portadores dessas funções
(ALTHUSSER, 1980, p. 130).

Dessa forma, a análise marxista da história e das sociedades tem um modo específico de
compreender as relações sociais. Estas são entendidas como relações entre classes e não como relações
entre indivíduos ou entre grupos humanos.
É uma das maiores mistificações teóricas pensar que as relações sociais são
redutíveis às relações entre os homens, ou mesmo grupos de homens; isso é supor
que as relações sociais são relações que só colocam em questão homens, quando
elas colocam igualmente em questão as coisas, os meios de produção, vindos da
natureza material (ALTHUSSER, 1978, p. 163).

Os homens, na formação social capitalista, são tratados nas relações econômicas e sociais
como suporte de relações, como lugares, como funções. As relações jurídicas tratam o homem como
sujeito de direito, isto é, capaz de propriedade. As relações políticas tratam-no como cidadão livre para
votar. As relações ideológicas tratam-no como sujeito obediente ou não às idéias dominantes
(ALTHUSSER, 1978, p. 164-5).
Conseqüentemente, aquilo que o humanismo chama de homem não existe, é uma categoria
vazia. A teoria marxista, partindo da tese de que os homens concretos são a síntese de múltiplas
determinações, como as enumeradas acima, pode chegar a explicar o que são de fato os homens
concretos.
Althusser alerta para o fato de que, mesmo a teoria marxista tendo revelado, no momento de
sua fundação, o humanismo como uma ideologia, esse humanismo continua a existir e a assediar o
campo científico:
O anti-humanismo teórico de Marx não suprime, pois, de nenhum modo a
existência histórica do humanismo. Tanto depois como antes de Marx se encontram
no mundo as filosofias do homem, e hoje alguns marxistas são tentados a
desenvolver os temas de um novo humanismo teórico (ALTHUSSER, 1979, p.
204).

É a presença desse humanismo teórico que Pêcheux identifica em MFL, fortemente orientada
pelo pensamento de Plekhanov. O filósofo francês, ao contrário, partilhava desse anti-humanismo
teórico do Marx maduro, acreditando não ser possível fazer um uso científico do “conceito” de
“homem” e da concepção de sociedade de orientação humanista. É a partir dessa perspectiva do grupo
althusseriano que Pêcheux se posiciona para criticar certos conceitos do Círculo bakhtiniano.

2. O humanismo bakhtiniano em história e lingüística

A concepção de sociedade inerente aos trabalhos do Círculo, na perspectiva de Pêcheux,


baseia-se em conceitos tais como os de “corpo social”, de “grupos humanos” etc., o que está
relacionado com o tratamento das relações sociais como meras relações interindividuais. E isso
configura, para o filósofo, um retorno ao humanismo teórico. Um dos índices mais fortes dessa
perspectiva humanista da teoria bakhtiniana é o uso do conceito de interação, social e verbal. Esse
conceito mostra que essa teoria se inscreve em uma problemática inversa a de Pêcheux, na qual quem
tem o primado são os elementos e não as relações, uma posição partilhada pela psicologia social. Para
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esta, os indivíduos em interação social é que são objeto de uma ciência, já que primeiramente
existiriam os indivíduos e só depois eles se organizariam em grupos.
Apelando para o que nos diz Herbert ([1966] 1973), poderíamos afirmar que a concepção
apresentada pelo Círculo reproduz a ideologia, uma vez que esta última representa a estrutura social
como um conjunto de pontos subjetivos (os indivíduos concretos) ordenados nunca em função da
classe, mas sempre segundo um determinado princípio racional – moral, religioso, jurídico etc. (Cf.
BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1979, p. 99-102).
A concepção de sociedade presente em Marxismo e Filosofia da Linguagem como um
conjunto de indivíduos que se organizam em grupos, interagem socialmente e se encontram numa rede
infinita de comunicação verbal ignora o fato estrutural de que os indivíduos não gozam de igualdade
de condições, sejam econômicas sejam discursivas.
Ora, esse discurso da igualdade de condições é, para Pêcheux/Herbert, o discurso das
ideologias burguesas, que têm a função de produzir e conservar “as diferenças necessárias ao
funcionamento das relações sociais de produção nas sociedades de classe, e antes de tudo a ‘diferença’
fundamental: trabalhador/não-trabalhador” (HERBERT, [1968] 1995, p. 67). Desse modo,
Bakhtin/Voloshinov acaba por reproduzir este discurso da ideologia burguesa.
É claro que Bakhtin/Voloshinov (1979) não ignora ou despreza a existência de classes sociais
e a luta de classes. Para ele, “... classes sociais diferentes servem-se de uma só e mesma língua. Por
conseqüência, em todo signo ideológico confrontam-se índices de valor contraditórios. O signo se
torna a arena onde se desenvolve a luta de classes” (p. 32).
No entanto, para Pêcheux ([1977] 1990), as concepções do Círculo sobre classes sociais e luta
de classes são aquelas próprias de um “sociologismo reformista”. Em primeiro lugar, porque acredita
que há a uma “essência social do homem” e que a existência de classes, a diferença, é apenas uma
contingência histórica. E em segundo lugar, porque “subordina a divisão à unidade, e pensa a
contradição como resultado do encontro de contrários preexistentes, separando, assim, a existência das
classes e a luta das classes” (PÊCHEUX, [1977], 1990, p. 249), encarando esta última como um efeito
da existência das classes.
Pêcheux afirma, ainda, que a tendência sociologista da lingüística, onde certamente incluía os
trabalhos bakhtinianos, substitui “a análise das relações de produção por uma teoria das relações
sociais que não é outra coisa que uma psicossociologia das relações inter-individuais” (PÊCHEUX;
GADET [1977], 1998, p. 9).
Desse modo, a teoria bakhtiniana fica cega para as determinações históricas do discurso no
sentido da determinação dos discursos pela luta de classes. Diferentemente, a perspectiva pecheutiana
tem como pressuposto a luta de classes como constitutiva dos discursos e dos sentidos. Essa diferença
qualitativa na teoria dos dois filósofos é conseqüência, em parte, da diferença qualitativa no modo
como entendem a teoria marxista.
O embasamento da teoria bakhtiniana naquilo que o grupo de Althusser chamou de
humanismo teórico é que configura seu “retorno a um estado pré-teórico”, segundo Pêcheux.
Conforme afirmamos há pouco, a orientação humanista de Bakhtin/Voloshinov (segundo
pensava Pêcheux) não permite que enxergue a revolução teórica produzida por Saussure ao produzir o
conceito de valor. Essa orientação humanista também é o que mantém Voloshinov preso a uma
concepção de língua enquanto tendo uma função de comunicação entre os homens.
Vejamos uma passagem de Marxismo e Filosofia da Linguagem:
Qualquer enunciação [...] constitui apenas uma fração de uma corrente de
comunicação verbal ininterrupta (concernente à vida cotidiana, à literatura, ao
conhecimento, à política etc.). Mas essa comunicação verbal ininterrupta constitui,
por sua vez, apenas um momento na evolução contínua, em todas as direções, de
um grupo social determinado (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1979, p. 109).

É importante observar, nessa passagem, que o filósofo entende que a função da linguagem é
permitir a comunicação entre pessoas, homens, grupos de pessoas. A sociedade é representada aí como
um conjunto de indivíduos sociais que se comunicam através de um mesmo código. Para entendermos
o que Pêcheux pensa dessa concepção, basta observarmos a seguinte tese de Herbert ([1968] 1995):
Se o homem for pensado como o animal que se comunica com seus ‘semelhantes’,
não compreenderemos jamais por que é precisamente pela forma geral do discurso
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que as dissimetrias, as dessemelhanças entre os agentes do sistema de produção são


asseguradas (p. 73).

Como se pode perceber, a concepção de relações interindividuais e de linguagem como


comunicação entre os homens implicam-se mutuamente, formando um par que anda junto. Pêcheux
recusa essa concepção de linguagem e mostra que o discurso, muitas vezes, ao invés de comunicar,
produz a não-comunicação, instrumento de dominação.
A seguinte afirmação de Maldidier (2003) traduz muito bem a posição de Pêcheux quanto ao
estudo do sentido:
Certos dos lingüistas marxistas, em nome do marxismo, estavam prontos a
emprestar a via aberta por Voloshinov em 1929 [...]. Michel Pêcheux manteve,
desde esta época, e até o fim, uma posição clara: a questão do sentido não pode ser
regulada na esfera das relações interindividuais, nem tampouco na das relações
sociais pensadas no modo da interação entre grupos humanos (p. 61).

Na teoria do Círculo, pensava-se o sentido como resultado das intenções, conscientes, do


falante, que regula seu enunciado em função do seu interlocutor. Categorias como intenção e
consciência representam, aos olhos de Pêcheux, o retorno da perspectiva humanista na pesquisa
lingüística. Uma crítica que Bakhtin/Voloshinov (1979) faz ao pensamento saussuriano se dirige à tese
de que não interessa ao estudo da língua a relação que o signo mantém “com o indivíduo que o
engendra” e nem o ponto de vista do locutor “enquanto sujeito que exprime sua vida interior” (p. 69).
Essa crítica, na perspectiva de Pêcheux, estaria fundada na orientação humanista do pensamento
bakhtiniano.

3 Considerações finais

Tratamos, neste breve estudo, dos motivos pelos quais Pêcheux afirmou que a obra Marxismo
e filosofia da linguagem (Bakhtin/Voloshinov, 1979) representava um “retorno a um estado pré-
teórico”. Vimos que o principal motivo era o fato de Pêcheux considerar que a teoria bakhtiniana ali
presente tinha uma orientação humanista teórica, a qual teria sido revelada por Marx como uma mera
ideologia e, portanto, um obstáculo epistemológico ao desenvolvimento de uma ciência.
Se aceitarmos hoje a posição de Pêcheux a respeito da base ideológica humanista da teoria
bakhtiniana, deveríamos perguntar: não foi ela que possibilitou ao filósofo russo pensar as relações
sociais numa perspectiva mais ampla do que aquela da oposição explorador/explorados? Afinal, seria
muito redutor pensar que somente as relações sociais de classe determinam os discursos, quando há
uma quantidade enorme de outros tipos de relações (entre pais e filhos, entre professor e alunos, entre
marido e esposa, entre médico e paciente etc.) exercendo alguma forma de determinação sobre o
conteúdo e a forma do dizer.

Referências

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