Critica Marxista À Pecheux e Althusser e Bakhtin
Critica Marxista À Pecheux e Althusser e Bakhtin
Critica Marxista À Pecheux e Althusser e Bakhtin
0 Introdução
como os instrumentos teóricos necessários à produção do objeto dessa nova disciplina. Mais tarde, no
artigo “A propósito da análise automática do discurso: atualizações e perspectivas” (1975), Pêcheux,
falando de seu trabalho teórico, reafirma que ele se assenta sobre essa tripla base ou “tríplice aliança”.
Herbert (1966, 1968) e Pêcheux (1975) afirmavam que era sobre uma série de conceitos
dessas três ciências que se poderia produzir um conjunto de conceitos particular que constituiria o
quadro teórico e o método de análise próprios da AD e de outras ciências do domínio da história.
Ora, o que possivelmente Pêcheux lia nas linhas de Marxismo e Filosofia da Linguagem
(MFL) e em outros trabalhos do Círculo de Bakhtin era a ignorância, por parte do Círculo, do núcleo
do corte epistemológico dessas ciências, ou seja, o ponto em que elas realizaram sua revolução teórica.
É claro que Bakhtin, Voloshinov e Medvedev reconheciam o caráter científico do
materialismo histórico; eles até propunham o desenvolvimento de teorias da linguagem e da literatura
com base nessa ciência: “Indicar o lugar dos problemas da filosofia da linguagem dentro do conjunto
da visão marxista do mundo: este é o objetivo de nossa primeira parte” (BAKHTIN/VOLOSHINOV,
1979, p. 13); “Este é o conjunto de problemas imediatos que o estudo marxista das ideologias enfrenta.
(...). É nosso propósito abordar as tarefas concretas de apenas um dos ramos desse estudo: as tarefas
do estudo literário” (BAKHTIN/MEDVEDEV, 1991, p. 15).
O mesmo se pode dizer da lingüística: seu estatuto científico não era negado.
Bakhtin/Voloshinov (1979, p. 86) afirma: “O fato de que a lingüística e a filologia estejam voltadas
para a palavra estrangeira não é produto do acaso ou de uma escolha arbitrária dessas duas ciências”
(grifo nosso).
Mas, como dissemos acima, o que era ignorado pelo Círculo, na visão de Pêcheux, era o lugar
dessas teorias em que fora realizada uma revolução teórica. A teoria de Marx era tomada como um
bloco homogêneo, o que significava que o grupo não reconhecia a descontinuidade do pensamento de
Marx e, conseqüentemente, a existência de conceitos não-científicos em certos pontos dessa teoria.
Também a lingüística, ou ainda, a filosofia da linguagem, era tomada em bloco, não havendo
uma distinção entre teorias lingüísticas pré-científicas e científicas: por um lado, um Humboldt e um
Vossler eram colocados lado a lado com Saussure, citado, em MFL, como um grande representante do
objetivismo abstrato:
A chamada escola de Genebra, com Ferdinand de Saussure, mostra-se como a mais
brilhante expressão do objetivismo abstrato em nosso tempo [...]. Saussure deu a
todas as idéias da segunda orientação uma clareza e uma precisão admiráveis. Suas
formulações dos conceitos de base da lingüística tornaram-se clássicas. E mais, ele
levou todas suas reflexões a seu termo, dotando assim os traços essenciais do
objetivismo abstrato de uma limpidez e de um rigor excepcionais
(BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1979, p. 70).
Nessa passagem, vemos que Bakhtin/Voloshinov não reconhece Saussure como o fundador da
ciência lingüística e como aquele que produziu seu objeto de investigação, a língua. Ao contrário, a
definição saussuriana de língua é criticada como ficando aquém do verdadeiro objeto de uma teoria da
linguagem:
A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de
formas lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada [...], mas pelo
fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das
enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua
(BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1979, p. 109).
sentido como produto da intenção do falante. Com a teoria do valor, Saussure explicava o sentido
como o produto da relação entre elementos que ocupam certas posições estruturais no sistema da
língua, e não como produto da intenção do falante.
Ora, na concepção de Pêcheux, o motivo pelo qual o Círculo de Bakhtin não conseguia
enxergar o corte epistemológico fundador dessas ciências, seu núcleo científico, sua revolução teórica,
era o fato de o Círculo estar preso na perspectiva do humanismo teórico. E o humanismo era, para
Pêcheux, pré-teórico. Veremos, a seguir, o porquê e as conseqüências disso.
1. O humanismo teórico
Dessa forma, a análise marxista da história e das sociedades tem um modo específico de
compreender as relações sociais. Estas são entendidas como relações entre classes e não como relações
entre indivíduos ou entre grupos humanos.
É uma das maiores mistificações teóricas pensar que as relações sociais são
redutíveis às relações entre os homens, ou mesmo grupos de homens; isso é supor
que as relações sociais são relações que só colocam em questão homens, quando
elas colocam igualmente em questão as coisas, os meios de produção, vindos da
natureza material (ALTHUSSER, 1978, p. 163).
Os homens, na formação social capitalista, são tratados nas relações econômicas e sociais
como suporte de relações, como lugares, como funções. As relações jurídicas tratam o homem como
sujeito de direito, isto é, capaz de propriedade. As relações políticas tratam-no como cidadão livre para
votar. As relações ideológicas tratam-no como sujeito obediente ou não às idéias dominantes
(ALTHUSSER, 1978, p. 164-5).
Conseqüentemente, aquilo que o humanismo chama de homem não existe, é uma categoria
vazia. A teoria marxista, partindo da tese de que os homens concretos são a síntese de múltiplas
determinações, como as enumeradas acima, pode chegar a explicar o que são de fato os homens
concretos.
Althusser alerta para o fato de que, mesmo a teoria marxista tendo revelado, no momento de
sua fundação, o humanismo como uma ideologia, esse humanismo continua a existir e a assediar o
campo científico:
O anti-humanismo teórico de Marx não suprime, pois, de nenhum modo a
existência histórica do humanismo. Tanto depois como antes de Marx se encontram
no mundo as filosofias do homem, e hoje alguns marxistas são tentados a
desenvolver os temas de um novo humanismo teórico (ALTHUSSER, 1979, p.
204).
É a presença desse humanismo teórico que Pêcheux identifica em MFL, fortemente orientada
pelo pensamento de Plekhanov. O filósofo francês, ao contrário, partilhava desse anti-humanismo
teórico do Marx maduro, acreditando não ser possível fazer um uso científico do “conceito” de
“homem” e da concepção de sociedade de orientação humanista. É a partir dessa perspectiva do grupo
althusseriano que Pêcheux se posiciona para criticar certos conceitos do Círculo bakhtiniano.
esta, os indivíduos em interação social é que são objeto de uma ciência, já que primeiramente
existiriam os indivíduos e só depois eles se organizariam em grupos.
Apelando para o que nos diz Herbert ([1966] 1973), poderíamos afirmar que a concepção
apresentada pelo Círculo reproduz a ideologia, uma vez que esta última representa a estrutura social
como um conjunto de pontos subjetivos (os indivíduos concretos) ordenados nunca em função da
classe, mas sempre segundo um determinado princípio racional – moral, religioso, jurídico etc. (Cf.
BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1979, p. 99-102).
A concepção de sociedade presente em Marxismo e Filosofia da Linguagem como um
conjunto de indivíduos que se organizam em grupos, interagem socialmente e se encontram numa rede
infinita de comunicação verbal ignora o fato estrutural de que os indivíduos não gozam de igualdade
de condições, sejam econômicas sejam discursivas.
Ora, esse discurso da igualdade de condições é, para Pêcheux/Herbert, o discurso das
ideologias burguesas, que têm a função de produzir e conservar “as diferenças necessárias ao
funcionamento das relações sociais de produção nas sociedades de classe, e antes de tudo a ‘diferença’
fundamental: trabalhador/não-trabalhador” (HERBERT, [1968] 1995, p. 67). Desse modo,
Bakhtin/Voloshinov acaba por reproduzir este discurso da ideologia burguesa.
É claro que Bakhtin/Voloshinov (1979) não ignora ou despreza a existência de classes sociais
e a luta de classes. Para ele, “... classes sociais diferentes servem-se de uma só e mesma língua. Por
conseqüência, em todo signo ideológico confrontam-se índices de valor contraditórios. O signo se
torna a arena onde se desenvolve a luta de classes” (p. 32).
No entanto, para Pêcheux ([1977] 1990), as concepções do Círculo sobre classes sociais e luta
de classes são aquelas próprias de um “sociologismo reformista”. Em primeiro lugar, porque acredita
que há a uma “essência social do homem” e que a existência de classes, a diferença, é apenas uma
contingência histórica. E em segundo lugar, porque “subordina a divisão à unidade, e pensa a
contradição como resultado do encontro de contrários preexistentes, separando, assim, a existência das
classes e a luta das classes” (PÊCHEUX, [1977], 1990, p. 249), encarando esta última como um efeito
da existência das classes.
Pêcheux afirma, ainda, que a tendência sociologista da lingüística, onde certamente incluía os
trabalhos bakhtinianos, substitui “a análise das relações de produção por uma teoria das relações
sociais que não é outra coisa que uma psicossociologia das relações inter-individuais” (PÊCHEUX;
GADET [1977], 1998, p. 9).
Desse modo, a teoria bakhtiniana fica cega para as determinações históricas do discurso no
sentido da determinação dos discursos pela luta de classes. Diferentemente, a perspectiva pecheutiana
tem como pressuposto a luta de classes como constitutiva dos discursos e dos sentidos. Essa diferença
qualitativa na teoria dos dois filósofos é conseqüência, em parte, da diferença qualitativa no modo
como entendem a teoria marxista.
O embasamento da teoria bakhtiniana naquilo que o grupo de Althusser chamou de
humanismo teórico é que configura seu “retorno a um estado pré-teórico”, segundo Pêcheux.
Conforme afirmamos há pouco, a orientação humanista de Bakhtin/Voloshinov (segundo
pensava Pêcheux) não permite que enxergue a revolução teórica produzida por Saussure ao produzir o
conceito de valor. Essa orientação humanista também é o que mantém Voloshinov preso a uma
concepção de língua enquanto tendo uma função de comunicação entre os homens.
Vejamos uma passagem de Marxismo e Filosofia da Linguagem:
Qualquer enunciação [...] constitui apenas uma fração de uma corrente de
comunicação verbal ininterrupta (concernente à vida cotidiana, à literatura, ao
conhecimento, à política etc.). Mas essa comunicação verbal ininterrupta constitui,
por sua vez, apenas um momento na evolução contínua, em todas as direções, de
um grupo social determinado (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1979, p. 109).
É importante observar, nessa passagem, que o filósofo entende que a função da linguagem é
permitir a comunicação entre pessoas, homens, grupos de pessoas. A sociedade é representada aí como
um conjunto de indivíduos sociais que se comunicam através de um mesmo código. Para entendermos
o que Pêcheux pensa dessa concepção, basta observarmos a seguinte tese de Herbert ([1968] 1995):
Se o homem for pensado como o animal que se comunica com seus ‘semelhantes’,
não compreenderemos jamais por que é precisamente pela forma geral do discurso
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3 Considerações finais
Tratamos, neste breve estudo, dos motivos pelos quais Pêcheux afirmou que a obra Marxismo
e filosofia da linguagem (Bakhtin/Voloshinov, 1979) representava um “retorno a um estado pré-
teórico”. Vimos que o principal motivo era o fato de Pêcheux considerar que a teoria bakhtiniana ali
presente tinha uma orientação humanista teórica, a qual teria sido revelada por Marx como uma mera
ideologia e, portanto, um obstáculo epistemológico ao desenvolvimento de uma ciência.
Se aceitarmos hoje a posição de Pêcheux a respeito da base ideológica humanista da teoria
bakhtiniana, deveríamos perguntar: não foi ela que possibilitou ao filósofo russo pensar as relações
sociais numa perspectiva mais ampla do que aquela da oposição explorador/explorados? Afinal, seria
muito redutor pensar que somente as relações sociais de classe determinam os discursos, quando há
uma quantidade enorme de outros tipos de relações (entre pais e filhos, entre professor e alunos, entre
marido e esposa, entre médico e paciente etc.) exercendo alguma forma de determinação sobre o
conteúdo e a forma do dizer.
Referências
ALTHUSSER, Louis. O objeto de O Capital. In: ALTHUSSER, Louis et al (orgs). Ler O Capital, v.
II. Rio de Janeiro, Zahar, 1980. p. 7-152.
________. [1965]. A favor de Marx. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
________. Sustentação de tese em Amiens. Posições, Rio de Janeiro, v.I, p. 131-167, 1978.
BAKHTIN, Mikhail/VOLOSHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo:
Hucitec, 1979.
BAKHTIN, Mikhail/MEDVEDEV, Pavel. The formal method in literary scholarship. Baltimore e
Londres: Johns Hopkins University Press, 1991.
HERBERT, Thomas. [1966]. Reflexões sobre a situação teórica das ciências sociais e, especialmente,
da psicologia social. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, epistemologia, 2, (nº 30, 31), p. 3-36, 1973.
________. Observações para uma teoria geral das ideologias. [1968]. Rua, Campinas, n.1, p. 63-89,
Tradução de Carolina M. R. Zuccolillo, Eni P. Orlandi e José H. Nunes. 1995.
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