Wundt
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Wundt
209-20, 2009
resumo
Embora seja geralmente louvado nos manuais de história da psicologia como fundador da psicologia ci-
entífica, grande parte da obra de Wilhelm Wundt permanece desconhecida por parte dos psicólogos con-
temporâneos, sobretudo no que diz respeito à relação entre filosofia e seu pensamento psicológico. O
presente artigo pretende apresentar uma visão geral dos pressupostos filosóficos envolvidos na funda-
mentação do projeto wundtiano de uma psicologia científica. Após uma breve contextualização geral de
sua obra e a exposição de alguns problemas de interpretação na literatura contemporânea, são enfatizadas
as concepções de objeto e método da psicologia. Além disso, são apresentados dois princípios funda-
mentais de seu projeto psicológico, a saber, o princípio do paralelismo psicofísico e o princípio da sínte-
se criadora. Ao final, alguns mal-entendidos são desfeitos, sugerindo a atualidade do pensamento de
Wundt para os debates contemporâneos na psicologia.
Introdução
209
Saulo de Freitas Araujo
a partir de conceitos e expressões da própria tradição filosófica alemã que lhe pre-
cedeu (Leibniz, Wolff, Kant, Hegel, Herbart, Schopenhauer etc.), que estão bem dis-
tantes do vocabulário psicológico da tradição norte-americana predominante no ce-
nário contemporâneo.
Se levarmos em consideração todos esses fatores, não causa nenhuma surpresa
o fato de não termos até hoje um claro entendimento da obra de Wundt, especialmente
de sua psicologia como um todo. Embora seu nome seja bastante citado nos manuais
introdutórios de psicologia, o alcance e a importância de seu projeto permanecem ainda
desconhecidos por grande parte dos psicólogos atuais. E mesmo na literatura especia-
lizada, há uma carência de estudos mais detalhados, que possam corrigir os inúmeros
equívocos surgidos ao longo do século xx na historiografia da psicologia. Em várias oca-
siões, Wundt tem recebido um tratamento caricatural – sendo retratado, por exemplo,
como representante do associacionismo britânico, fundador do estruturalismo (ao lado
de Titchener) e também defensor da introspecção tradicional – que demonstra a au-
sência de um contato mais cuidadoso com seus textos originais por parte dos autores
em questão (cf. Boring, 1950; Marx e Hillix, 1995).
As correções que merecem ser feitas nas interpretações tradicionais acerca do
pensamento de Wundt e de seu lugar na história da psicologia são muitas. Em um tra-
balho anterior (Araujo, 2007a), discutimos brevemente os três aspectos que nos pare-
cem mais urgentes: sua biografia, seu projeto de uma Völkerpsychologie e seu sistema
filosófico. Neste trabalho, contudo, vamos nos ater apenas ao último, especialmente
no que diz respeito à íntima relação entre a filosofia e a psicologia wundtiana.
Embora os contemporâneos de Wundt tivessem dedicado vários trabalhos ao seu
sistema filosófico (cf. Eisler, 1902; Heussner, 1920; König, 1909; Nef, 1923), nenhum
deles logrou fazer uma análise suficientemente profunda da sua relação com o desen-
volvimento de seu projeto de psicologia. Da segunda metade do século xx até hoje, só
há um único livro dedicado à filosofia de Wundt, que é Arnold (1980). O autor, contu-
do, devido ao seu comprometimento ideológico, só consegue ver relações com o “idea-
lismo” por toda parte. Por outro lado, os trabalhos que pretendem analisar teorica-
mente seu projeto psicológico fazem pouca ou nenhuma conexão com o seu sistema de
filosofia, limitando-se na maior parte das vezes a certas afirmações de caráter mais
genérico (cf. Bringmann e Tweney, 1980; Juttemann, 2006).
O que parece ter fugido à atenção de boa parte dos intérpretes atuais de Wundt,
antes de mais nada, é o fato de não ter sido a psicologia, mas sim a filosofia que ocupou
o lugar central no seu projeto intelectual. Wundt foi acima de tudo um filósofo, cujo
objetivo último era elaborar um sistema metafísico universal – uma visão de mundo –
baseado nos resultados empíricos de todas as ciências particulares. Nesse sentido, sua
psicologia é parte integrante desse projeto maior e só pode ser adequadamente com-
preendida dentro dele. Quem não compreender isto, tratando-a isoladamente, jamais
compreenderá o verdadeiro significado de seu trabalho psicológico. Nesse sentido, é
preciso resgatar a íntima relação que existe entre psicologia e filosofia na obra de Wundt.
A questão fundamental, que permanece sem solução definitiva na interpretação
do pensamento psicológico de Wundt, diz respeito à continuidade ou ruptura de seu
projeto de uma psicologia científica. Teria Wundt formulado várias psicologias dife-
rentes, introduzindo modificações essenciais em cada uma delas? Ou haveria um sis-
tema unitário e coerente de psicologia, cujas alterações posteriormente introduzidas
não modificariam a unidade essencial do projeto como um todo? Isso nos conduz a
uma outra questão, que se refere justamente aos interesses e pressupostos filosóficos
de Wundt, que estão na base de sua psicologia. Em trabalho anterior (Araujo, 2007b),
procuramos mostrar como sua evolução filosófica determinou as mudanças que ele
introduziu na sua concepção de psicologia, de forma que a fundamentação de seu pro-
jeto psicológico deve ser vista dentro desta perspectiva. Mas há muitos outros aspectos
desta relação que merecem ser futuramente investigados, a fim de que façamos maior
justiça ao pensamento de Wundt.
O objetivo desse artigo é bem modesto, na medida em que pretende apenas ofe-
recer uma visão panorâmica de alguns pressupostos filosóficos subjacentes à psicolo-
gia de Wundt. Não se pretende de modo algum um tratamento exaustivo de todos os
aspectos relevantes neste debate. Trata-se aqui apenas de apresentar um quadro geral
relacionado a algumas das ideias centrais de sua psicologia. Para isso, deixaremos de
lado toda a discussão relativa ao seu projeto psicológico inicial (as obras situadas entre
1858 e 1863) (cf. Araujo, 2003) e também à classificação dos processos psicológicos
propriamente ditos (Araujo, 2007c) para nos dedicar apenas à sua fase já madura, en-
tendida aqui a partir do final da década de 1880.
1 A definição da psicologia
A definição de psicologia apresentada por Wundt pode ser assim resumida: a psicolo-
gia é uma ciência empírica cujo objeto de estudo é a experiência interna ou imediata
(cf. Wundt, 1896a, 1896b). No entanto, nessa definição, aparentemente simples, há
uma expressão que precisa ser esclarecida, a saber, ‘experiência imediata’, que funda-
menta toda a psicologia wundtiana. O que Wundt entende por este conceito?
É necessário, em primeiro lugar, entender o significado do termo “experiência”
em Wundt. Para ele, a experiência em geral é um todo unitário e coerente, que pode ser
concebido e elaborado cientificamente a partir de dois pontos de vista distintos, po-
rém complementares: toda experiência pode ser analisada pelo seu conteúdo pura-
A psicologia desfaz novamente esta abstração realizada pela ciência natural para
poder investigar a experiência em sua realidade imediata. Ela fornece, portanto,
informações sobre as interações dos fatores subjetivos e objetivos da experiência
imediata e sobre o surgimento dos conteúdos particulares desta última, assim
como de sua relação. A forma de conhecimento da psicologia é, pois, em con-
traposição à da ciência natural, imediata e intuitiva, na medida em que a própria
realidade concreta, sem a utilização de conceitos auxiliares abstratos, é o substrato
de suas explicações (p. 12 – itálicos no original).
Esse aspecto da teoria wundtiana permanece em grande parte ignorado por seus
intérpretes, que insistem em incluir Wundt entre os defensores da introspecção clás-
sica (cf. Araujo, 2007b).
Há, porém, um segundo aspecto a ser considerado nessa questão do método
observacional. A crítica de Wundt à introspecção não significa que a observação pura
esteja definitivamente descartada da psicologia. Segundo ele, existem fatos psíquicos
que, embora não sejam objetos reais do mundo externo, possuem o caráter de objetos
psíquicos, na medida em que sua natureza é relativamente estável e independente do
observador. Além disso, eles têm uma outra característica em comum, que os torna
adequados à observação: a inacessibilidade pelo método experimental. Mas que obje-
tos psíquicos são esses? São aquilo que Wundt chama de produtos mentais surgidos ao
longo da história, como a linguagem, a religião, os mitos e os costumes, que dependem
de certas condições psíquicas gerais, que podemos inferir com base em suas caracte-
rísticas objetivas. É aqui que se manifestam os processos mentais superiores, também
inacessíveis à experimentação.
Uma característica fundamental desses produtos mentais é que eles pressupõem
a existência de uma comunidade de muitos indivíduos que compartilham certa menta-
lidade, embora sua fonte última sejam sempre as características psíquicas de cada um
dos indivíduos. É por estarem ligados a uma comunidade, a um grupo étnico ou a uma
totalidade cultural que Wundt chamou esse domínio de investigação psicológica de psi-
cologia dos povos (Völkerpsychologie), que complementa a psicologia individual ou ex-
perimental na busca de uma compreensão das leis gerais da vida psíquica (Wundt,
1888b). Nos últimos 20 anos de sua vida (1900-1920), Wundt dedicou-se principal-
mente a esse empreendimento – baseando-se sempre em estudos e relatos linguísticos,
históricos e etnológicos – que teve como resultado dez extensos volumes, além de en-
saios isolados.
Em suma, a psicologia dispõe, assim como a ciência natural, de dois métodos de
investigação, que dão origem a duas formas complementares de estudo psicológico: o
experimento, que a psicologia individual ou fisiológica utiliza na análise dos processos
psíquicos inferiores (sensação, percepção, representação); e a observação dos produtos
mentais, através da qual a Völkerpsychologie investiga os processos psíquicos superio-
res. É importante termos sempre em mente que essa subdivisão da psicologia decorre
parcialmente de uma necessidade metodológica, que em princípio não compromete a
unidade do seu objeto de estudo, a saber, os processos psíquicos revelados na experiên-
cia. Além disso, o objetivo final de ambos os tipos de investigação é um só: a descoberta
das leis gerais da vida mental.
Uma outra parte essencial do sistema teórico de Wundt são os chamados princípios ou
postulados gerais, que servem de fundamento para todas as investigações psicológicas
e garantem, pois, a própria autonomia da psicologia. Ao longo de sua obra, Wundt con-
sidera vários desses princípios. Contudo, como esses são muitas vezes apenas desdo-
bramentos de princípios anteriores, vamos considerar aqui apenas os dois postulados
principais, que fundamentam a autonomia da psicologia: o princípio do paralelismo
psicofísico e o princípio da causalidade psíquica.
O paralelismo psicofísico é uma doutrina acerca do problema mente-corpo, que
tem suas raízes principalmente na hipótese da harmonia pré-estabelecida de G. W.
Leibniz (1646-1716). Embora contenha variantes, caracteriza-se principalmente pela
afirmação de que o físico e o psíquico são processos paralelos, que não interagem en-
tre si e que não podem ser reduzidos um ao outro. É uma doutrina bastante influente
na filosofia e na psicologia do século xix, consistindo na tentativa de superar tanto o
dualismo de substâncias quanto o monismo materialista.
Em certo sentido, Wundt se mantém fiel à tradição filosófica e utiliza o parale-
lismo psicofísico para sustentar a irredutibilidade do mental ao físico. Como a experiên-
cia, segundo ele, pode ser conhecida a partir de duas perspectivas distintas (objetiva e
subjetiva), é possível que certas partes da experiência mediata possam ter uma corres-
pondência direta com partes da experiência imediata. No entanto, essa correspondência
ou correlação entre o mental e o físico impede que um possa ser reduzido ao outro,
dadas as limitações de cada um dos pontos de vista (cf. Wundt, 1894). Por outro lado, a
particularidade do paralelismo de Wundt está no fato de ele não ser utilizado como um
princípio metafísico, mas sim como expressão de um fato empírico, a saber, a
irredutibilidade de nossa própria experiência subjetiva na vida cotidiana:
Conclusão
ideias muito antigas e já criticadas. Isso para não falar nas aplicações práticas da psi-
cologia, que muitas vezes são oferecidas prematuramente, sem uma validação e uma
fundamentação suficientes.
O pensamento de Wundt caminha na contramão de toda essa situação contempo-
rânea. Primeiro, ele considerava um equívoco a separação entre filosofia e psicologia,
tendo em vista os efeitos negativos disso. Embora a filosofia também pudesse perder,
segundo ele, seria a psicologia a mais prejudicada, pois jamais poderia prescindir de
uma fundamentação filosófica sólida de seus princípios e conceitos, exatamente para
evitar cair em contradições e posições ingênuas. Segundo, sua defesa do método experi-
mental nunca esteve separada da formulação de teorias psicológicas abrangentes e siste-
máticas, que pudessem esclarecer os fenômenos estudados. Além disso, criticava tam-
bém as aplicações prematuras da psicologia. Como a psicologia, no seu entender, estava
ainda em estado de consolidação, ele via com muitas reservas suas aplicações apressa-
das. Assim, o psicólogo contemporâneo de forma alguma perderia seu tempo ao se apro-
ximar da obra de Wundt. Entre outras coisas, ele poderia despertar sua consciência
para a necessidade de uma reflexão sistemática e contínua acerca do conhecimento
psicológico produzido, além de ampliar seus horizontes sobre a fundamentação filo-
sófica da psicologia. Em qualquer um dos casos, Wundt deixaria de ser uma mera curio-
sidade histórica ou um antepassado apenas formalmente reverenciado para se tornar
um autor cuja relevância para o presente merece ser ao menos seriamente discutida.
abstract
Although Wilhelm Wundt is often praised in history of psychology textbooks as the founding father of
scientific psychology, a large part of his work is ignored by contemporary psychologists, especially that
concerned with the relationship between philosophy and his psychological thought. The aim of this article
is to present an outline of the philosophical assumptions underlying Wundt’s project for a scientific psy-
chology. After a brief review of the context of his work and a presentation of some problems of interpre-
tation in contemporary literature, his views on the subject matter and method of psychology are exam-
ined. Moreover, two fundamental principles of his psychological project are presented: the principle of
psychophysical parallelism and the principle of creative synthesis. Finally, having cleared up some mis-
understandings, the relevance of Wundt’s thought for contemporary debates in psychology is suggested.
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