Wundt

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scientiæ zudia, São Paulo, v. 7, n. 2, p.

209-20, 2009

Uma visão panorâmica da


psicologia científica de Wilhelm Wundt
Saulo de Freitas Araujo

resumo
Embora seja geralmente louvado nos manuais de história da psicologia como fundador da psicologia ci-
entífica, grande parte da obra de Wilhelm Wundt permanece desconhecida por parte dos psicólogos con-
temporâneos, sobretudo no que diz respeito à relação entre filosofia e seu pensamento psicológico. O
presente artigo pretende apresentar uma visão geral dos pressupostos filosóficos envolvidos na funda-
mentação do projeto wundtiano de uma psicologia científica. Após uma breve contextualização geral de
sua obra e a exposição de alguns problemas de interpretação na literatura contemporânea, são enfatizadas
as concepções de objeto e método da psicologia. Além disso, são apresentados dois princípios funda-
mentais de seu projeto psicológico, a saber, o princípio do paralelismo psicofísico e o princípio da sínte-
se criadora. Ao final, alguns mal-entendidos são desfeitos, sugerindo a atualidade do pensamento de
Wundt para os debates contemporâneos na psicologia.

Palavras-chave ● Filosofia da psicologia. Wundt. Conceito de experiência. Paralelismo psicofísico.


História da psicologia.

Introdução

As dificuldades que o leitor moderno encontra para se familiarizar com o pensamen-


to psicológico de Wilhelm Wundt (1832-1920) podem ser classificadas em dois tipos.
Em primeiro lugar, podemos facilmente reconhecer os obstáculos externos que impe-
dem tal aproximação: a extensão de sua obra, a falta de uma edição crítica de referên-
cia, a ausência de novas edições, traduções parciais e nem sempre confiáveis, além de
outros menores. Entretanto, com uma dose de interesse e persistência por parte do
leitor, é possível superá-los em um espaço relativamente curto de tempo. Há, contu-
do, um outro tipo de obstáculo, que aponta para uma dificuldade inerente à própria
obra e parece exigir algo mais do que a paciência do leitor para sua superação. Em ou-
tras palavras, trata-se da dimensão propriamente intelectual da mesma. Wundt é um
típico professor alemão do século xix, cuja vasta erudição é uma de suas característi-
cas essenciais. Assim, não só escreve de forma bastante rebuscada – com longos pe-
ríodos intercalados por várias orações subordinadas – como constrói seu pensamento

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a partir de conceitos e expressões da própria tradição filosófica alemã que lhe pre-
cedeu (Leibniz, Wolff, Kant, Hegel, Herbart, Schopenhauer etc.), que estão bem dis-
tantes do vocabulário psicológico da tradição norte-americana predominante no ce-
nário contemporâneo.
Se levarmos em consideração todos esses fatores, não causa nenhuma surpresa
o fato de não termos até hoje um claro entendimento da obra de Wundt, especialmente
de sua psicologia como um todo. Embora seu nome seja bastante citado nos manuais
introdutórios de psicologia, o alcance e a importância de seu projeto permanecem ainda
desconhecidos por grande parte dos psicólogos atuais. E mesmo na literatura especia-
lizada, há uma carência de estudos mais detalhados, que possam corrigir os inúmeros
equívocos surgidos ao longo do século xx na historiografia da psicologia. Em várias oca-
siões, Wundt tem recebido um tratamento caricatural – sendo retratado, por exemplo,
como representante do associacionismo britânico, fundador do estruturalismo (ao lado
de Titchener) e também defensor da introspecção tradicional – que demonstra a au-
sência de um contato mais cuidadoso com seus textos originais por parte dos autores
em questão (cf. Boring, 1950; Marx e Hillix, 1995).
As correções que merecem ser feitas nas interpretações tradicionais acerca do
pensamento de Wundt e de seu lugar na história da psicologia são muitas. Em um tra-
balho anterior (Araujo, 2007a), discutimos brevemente os três aspectos que nos pare-
cem mais urgentes: sua biografia, seu projeto de uma Völkerpsychologie e seu sistema
filosófico. Neste trabalho, contudo, vamos nos ater apenas ao último, especialmente
no que diz respeito à íntima relação entre a filosofia e a psicologia wundtiana.
Embora os contemporâneos de Wundt tivessem dedicado vários trabalhos ao seu
sistema filosófico (cf. Eisler, 1902; Heussner, 1920; König, 1909; Nef, 1923), nenhum
deles logrou fazer uma análise suficientemente profunda da sua relação com o desen-
volvimento de seu projeto de psicologia. Da segunda metade do século xx até hoje, só
há um único livro dedicado à filosofia de Wundt, que é Arnold (1980). O autor, contu-
do, devido ao seu comprometimento ideológico, só consegue ver relações com o “idea-
lismo” por toda parte. Por outro lado, os trabalhos que pretendem analisar teorica-
mente seu projeto psicológico fazem pouca ou nenhuma conexão com o seu sistema de
filosofia, limitando-se na maior parte das vezes a certas afirmações de caráter mais
genérico (cf. Bringmann e Tweney, 1980; Juttemann, 2006).
O que parece ter fugido à atenção de boa parte dos intérpretes atuais de Wundt,
antes de mais nada, é o fato de não ter sido a psicologia, mas sim a filosofia que ocupou
o lugar central no seu projeto intelectual. Wundt foi acima de tudo um filósofo, cujo
objetivo último era elaborar um sistema metafísico universal – uma visão de mundo –
baseado nos resultados empíricos de todas as ciências particulares. Nesse sentido, sua
psicologia é parte integrante desse projeto maior e só pode ser adequadamente com-

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preendida dentro dele. Quem não compreender isto, tratando-a isoladamente, jamais
compreenderá o verdadeiro significado de seu trabalho psicológico. Nesse sentido, é
preciso resgatar a íntima relação que existe entre psicologia e filosofia na obra de Wundt.
A questão fundamental, que permanece sem solução definitiva na interpretação
do pensamento psicológico de Wundt, diz respeito à continuidade ou ruptura de seu
projeto de uma psicologia científica. Teria Wundt formulado várias psicologias dife-
rentes, introduzindo modificações essenciais em cada uma delas? Ou haveria um sis-
tema unitário e coerente de psicologia, cujas alterações posteriormente introduzidas
não modificariam a unidade essencial do projeto como um todo? Isso nos conduz a
uma outra questão, que se refere justamente aos interesses e pressupostos filosóficos
de Wundt, que estão na base de sua psicologia. Em trabalho anterior (Araujo, 2007b),
procuramos mostrar como sua evolução filosófica determinou as mudanças que ele
introduziu na sua concepção de psicologia, de forma que a fundamentação de seu pro-
jeto psicológico deve ser vista dentro desta perspectiva. Mas há muitos outros aspectos
desta relação que merecem ser futuramente investigados, a fim de que façamos maior
justiça ao pensamento de Wundt.
O objetivo desse artigo é bem modesto, na medida em que pretende apenas ofe-
recer uma visão panorâmica de alguns pressupostos filosóficos subjacentes à psicolo-
gia de Wundt. Não se pretende de modo algum um tratamento exaustivo de todos os
aspectos relevantes neste debate. Trata-se aqui apenas de apresentar um quadro geral
relacionado a algumas das ideias centrais de sua psicologia. Para isso, deixaremos de
lado toda a discussão relativa ao seu projeto psicológico inicial (as obras situadas entre
1858 e 1863) (cf. Araujo, 2003) e também à classificação dos processos psicológicos
propriamente ditos (Araujo, 2007c) para nos dedicar apenas à sua fase já madura, en-
tendida aqui a partir do final da década de 1880.

1 A definição da psicologia

A definição de psicologia apresentada por Wundt pode ser assim resumida: a psicolo-
gia é uma ciência empírica cujo objeto de estudo é a experiência interna ou imediata
(cf. Wundt, 1896a, 1896b). No entanto, nessa definição, aparentemente simples, há
uma expressão que precisa ser esclarecida, a saber, ‘experiência imediata’, que funda-
menta toda a psicologia wundtiana. O que Wundt entende por este conceito?
É necessário, em primeiro lugar, entender o significado do termo “experiência”
em Wundt. Para ele, a experiência em geral é um todo unitário e coerente, que pode ser
concebido e elaborado cientificamente a partir de dois pontos de vista distintos, po-
rém complementares: toda experiência pode ser analisada pelo seu conteúdo pura-

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mente objetivo (experiência mediata) ou subjetivo (experiência imediata). No primeiro


caso, abstrai-se o sujeito da experiência e coloca-se toda a ênfase nos seus objetos
(mundo externo), enquanto que, no segundo caso, investigam-se os aspectos subjeti-
vos da experiência e sua relação recíproca com todos os conteúdos da mesma (mundo
interno). Com base nesses dois pontos de vista, surge uma dupla possibilidade de se
fazer ciência empírica: a ciência natural (física, química, fisiologia, etc.), que se ocupa
com os conteúdos específicos da experiência mediata (objetos do mundo exterior), e a
psicologia, que tem como objeto toda experiência imediata (aspectos subjetivos da ex-
periência). Essas duas ciências trabalhariam de forma complementar, com o intuito
de abranger o conteúdo da experiência como um todo (cf. Wundt, 1889).
Mas por que a nossa experiência externa é mediata, enquanto que a interna é
imediata? Porque o acesso aos objetos da natureza é sempre mediado pelas caracterís-
ticas constitutivas do sujeito da experiência (estrutura biológica, cognitiva etc.) e, por-
tanto, indireto. No caso do mundo subjetivo, não há nenhuma mediação, uma vez que
cada um de nós tem acesso direto a sua própria experiência subjetiva. É a partir dessa
assimetria, pois, que Wundt justifica a diferença epistemológica entre a psicologia e as
ciências da natureza:

O objetivo da ciência natural consiste, no sentido mais geral, no conhecimento


da realidade objetiva, isto é, dos objetos, cuja existência real deve ser pressuposta
após a abstração das características que lhe foram atribuídas exclusivamente pela
atividade subjetiva de representação. Em consequência disso, a ciência natural
nunca pressupõe os objetos como eles são imediatamente dados, como reais.
Ao contrário, seu modo de conhecer é mediato e conceitual, na medida em que o
objeto que resta, após a abstração de certos elementos da experiência imediata,
só pode ser pensado conceitualmente (Wundt, 1896a, p. 24 – itálicos no original).

A psicologia desfaz novamente esta abstração realizada pela ciência natural para
poder investigar a experiência em sua realidade imediata. Ela fornece, portanto,
informações sobre as interações dos fatores subjetivos e objetivos da experiência
imediata e sobre o surgimento dos conteúdos particulares desta última, assim
como de sua relação. A forma de conhecimento da psicologia é, pois, em con-
traposição à da ciência natural, imediata e intuitiva, na medida em que a própria
realidade concreta, sem a utilização de conceitos auxiliares abstratos, é o substrato
de suas explicações (p. 12 – itálicos no original).

Ao definir a psicologia como ciência da experiência imediata, Wundt pretendia


atacar uma concepção de psicologia, muito comum em sua época, que tratava a mente

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como se fosse uma substância ou entidade, seja espiritual (espiritualismo) ou material


(materialismo). Para ele, essa forma de fazer psicologia estaria equivocada porque se
baseia em hipóteses metafísicas que extrapolam toda a possibilidade de experiência.
Como sua intenção era fundar uma nova psicologia – autônoma e independente de
teorias metafísicas –, a única alternativa era recusar por completo essas concepções
metafísicas acerca do objeto da psicologia e propor uma outra, que se atenha à expe-
riência psicológica propriamente dita. Na psicologia wundtiana, só há aquilo que é
dado na experiência, entendida sempre como um conjunto de processos interligados
(Wundt, 1911a [1904]).
É importante enfatizar que, também de acordo com a definição apresentada por
Wundt, não há uma diferença essencial de natureza entre o mundo interno e o externo
– uma vez que a experiência é um todo organizado que abrange ambos –, mas apenas
uma diferença na maneira de abordá-los. Por isso, a relação entre a psicologia e as
ciências da natureza deve ser de complementaridade. Elas se complementam, na me-
dida em que fornecem relatos diferentes da mesma experiência, sem que haja a possi-
bilidade de haver uma subordinação ou redução de uma à outra.
Um outro ponto importante a se considerar aqui é a relação entre psicologia e
filosofia. De todas as ciências empíricas, Wundt considera que a psicologia é aquela
cujos resultados mais contribuem para a investigação dos problemas gerais da teoria
do conhecimento e da ética, os dois principais domínios filosóficos para ele. Se a psi-
cologia, portanto, é complementar às ciências naturais, podemos dizer que é prepara-
tória para a filosofia. Em outras palavras, os resultados das investigações psicológicas
podem servir de guia para a construção de um sistema filosófico (cf. Wundt, 1889).

2 Os métodos de investigação psicológica

Para entendermos sua proposta metodológica para as investigações psicológicas, é pre-


ciso partir daquela distinção que Wundt estabeleceu entre ciência natural e psicologia.
Como afirmamos anteriormente, essa diferença não está na natureza do que é estuda-
do, mas sim no ponto de vista a partir do qual ele é considerado. Por isso, os métodos
de investigação em psicologia também não podem diferir daqueles empregados nas
ciências naturais, a saber, o experimento e a observação. O primeiro consiste na inter-
ferência proposital (manipulação) do pesquisador sobre o início, a duração e o modo
de apresentação dos fenômenos investigados (como na física, na química e na fisiolo-
gia). A observação, propriamente dita, refere-se à mera apreensão de fenômenos ou
objetos, sem que haja qualquer interferência por parte do observador (como na botâ-
nica, na anatomia e na astronomia).

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Ao transportar essa dualidade metodológica para a psicologia, Wundt vai intro-


duzir uma espécie de divisão de tarefas, de acordo com as possibilidades de aplicação
de cada um dos métodos. Surge, então, a distinção entre a psicologia individual, fisio-
lógica ou experimental, de um lado, e a psicologia dos povos (Völkerpsychologie), de ou-
tro. No primeiro caso – cujos resultados podem ser vistos já na primeira edição dos
Elementos de psicologia fisiológica (Wundt, 1874), até hoje seu livro mais conhecido –,
o experimento deve ser utilizado diretamente nos estudos sobre a sensação, a percep-
ção e a representação, uma vez que se pode investigar cuidadosamente tanto o início
quanto o curso desses processos, tendo sempre em vista a análise do complexo em ter-
mos de seus elementos constituintes. No segundo, a única alternativa possível é a ob-
servação, pois se tratam de fenômenos culturais e coletivos (linguagem, mito, religião
etc.), que escapam ao controle experimental (cf. Wundt, 1900).
Neste ponto, é necessário apresentar um breve esclarecimento sobre o estatuto
da observação na psicologia wundtiana. Em decorrência daquela distinção entre expe-
riência imediata e mediata, Wundt vai ser obrigado a postular uma outra diferença en-
tre ambas, que vai acabar influenciando as características do método observacional.
Segundo ele, enquanto a experiência mediata ou externa nos revela objetos estáveis
(pedra, árvore etc.), isso de modo algum acontece em nossa experiência imediata, cujo
conteúdo é apenas um conjunto de processos (percepção, atenção, representação etc.),
muitas vezes extremamente complexos. Além disso, é muito difícil que, mesmo em
situações frequentemente repetidas, os mesmos elementos objetivos da experiência
imediata venham acompanhados da mesma condição do sujeito. Por outro lado, a psi-
cologia não pode desconsiderar, ou colocar entre parênteses, como fazem as ciências
naturais, esses processos subjetivos da experiência, uma vez que este é precisamente o
assunto de seu interesse. Considerando, pois, essa peculiaridade dos eventos mentais,
a psicologia estaria diante de um impasse, na medida em que a observação pura de nossa
própria experiência subjetiva (introspecção ou auto-observação pura) é ilusória:

Uma auto-observação planejada, como é recomendada pela maioria dos psicólo-


gos, é apenas uma fonte de autoilusões. Pois, como neste caso o sujeito que ob-
serva coincide com o objeto observado, é óbvio que o direcionamento da atenção
para os fenômenos modifica os mesmos. Além disso, uma vez que em nossa cons-
ciência o espaço para muitas atividades simultâneas diminui com o aumento na
intensidade das mesmas, tal modificação consiste quase sempre na supressão
geral dos fenômenos que se querem observar (Wundt, 1883, 2, p. 482).

No intuito de resolver esse problema crucial da psicologia, Wundt estabeleceu


uma diferença entre a introspecção tradicional ou auto-observação (Selbsbeobachtung),

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de um lado, e a percepção interna (innere Wahrnehmung), de outro (cf. Wundt, 1888a).


Somente essa última poderia ser utilizada como recurso metodológico, devido ao fato
de poder ser reforçada pelo controle experimental das condições externas da expe-
riência, o que, segundo Wundt, eliminaria os riscos da introspecção tradicional e li-
vraria a psicologia das duras críticas feitas por diversos autores ao introspeccionismo.
De acordo com ele:

No que ele [o psicólogo], porém, repete experimental e arbitrariamente um pro-


cesso percebido inicialmente apenas por acaso e o modifica sistematicamente,
no sentido de substituir as condições de seu aparecimento, a percepção inicial-
mente casual transforma-se em uma observação, na qual as deficiências da per-
cepção interna são superadas ou pelo menos colocadas dentro dos limites mais
estreitos possíveis (Wundt, 1921, 3, p. 166).

E este é exatamente o ponto em que o método experimental na psicologia prova


ser o único meio seguro de observação psicológica. O cientista natural pode
retornar à vontade ao seu objeto. O psicólogo, contudo, só pode retornar a um
processo interno observado sob certas condições, se ele reproduzir artificialmente
as mesmas condições, ou seja, com a ajuda do método experimental (p. 167).

Esse aspecto da teoria wundtiana permanece em grande parte ignorado por seus
intérpretes, que insistem em incluir Wundt entre os defensores da introspecção clás-
sica (cf. Araujo, 2007b).
Há, porém, um segundo aspecto a ser considerado nessa questão do método
observacional. A crítica de Wundt à introspecção não significa que a observação pura
esteja definitivamente descartada da psicologia. Segundo ele, existem fatos psíquicos
que, embora não sejam objetos reais do mundo externo, possuem o caráter de objetos
psíquicos, na medida em que sua natureza é relativamente estável e independente do
observador. Além disso, eles têm uma outra característica em comum, que os torna
adequados à observação: a inacessibilidade pelo método experimental. Mas que obje-
tos psíquicos são esses? São aquilo que Wundt chama de produtos mentais surgidos ao
longo da história, como a linguagem, a religião, os mitos e os costumes, que dependem
de certas condições psíquicas gerais, que podemos inferir com base em suas caracte-
rísticas objetivas. É aqui que se manifestam os processos mentais superiores, também
inacessíveis à experimentação.
Uma característica fundamental desses produtos mentais é que eles pressupõem
a existência de uma comunidade de muitos indivíduos que compartilham certa menta-
lidade, embora sua fonte última sejam sempre as características psíquicas de cada um

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dos indivíduos. É por estarem ligados a uma comunidade, a um grupo étnico ou a uma
totalidade cultural que Wundt chamou esse domínio de investigação psicológica de psi-
cologia dos povos (Völkerpsychologie), que complementa a psicologia individual ou ex-
perimental na busca de uma compreensão das leis gerais da vida psíquica (Wundt,
1888b). Nos últimos 20 anos de sua vida (1900-1920), Wundt dedicou-se principal-
mente a esse empreendimento – baseando-se sempre em estudos e relatos linguísticos,
históricos e etnológicos – que teve como resultado dez extensos volumes, além de en-
saios isolados.
Em suma, a psicologia dispõe, assim como a ciência natural, de dois métodos de
investigação, que dão origem a duas formas complementares de estudo psicológico: o
experimento, que a psicologia individual ou fisiológica utiliza na análise dos processos
psíquicos inferiores (sensação, percepção, representação); e a observação dos produtos
mentais, através da qual a Völkerpsychologie investiga os processos psíquicos superio-
res. É importante termos sempre em mente que essa subdivisão da psicologia decorre
parcialmente de uma necessidade metodológica, que em princípio não compromete a
unidade do seu objeto de estudo, a saber, os processos psíquicos revelados na experiên-
cia. Além disso, o objetivo final de ambos os tipos de investigação é um só: a descoberta
das leis gerais da vida mental.

3 Princípios fundamentais da psicologia wundtiana

Uma outra parte essencial do sistema teórico de Wundt são os chamados princípios ou
postulados gerais, que servem de fundamento para todas as investigações psicológicas
e garantem, pois, a própria autonomia da psicologia. Ao longo de sua obra, Wundt con-
sidera vários desses princípios. Contudo, como esses são muitas vezes apenas desdo-
bramentos de princípios anteriores, vamos considerar aqui apenas os dois postulados
principais, que fundamentam a autonomia da psicologia: o princípio do paralelismo
psicofísico e o princípio da causalidade psíquica.
O paralelismo psicofísico é uma doutrina acerca do problema mente-corpo, que
tem suas raízes principalmente na hipótese da harmonia pré-estabelecida de G. W.
Leibniz (1646-1716). Embora contenha variantes, caracteriza-se principalmente pela
afirmação de que o físico e o psíquico são processos paralelos, que não interagem en-
tre si e que não podem ser reduzidos um ao outro. É uma doutrina bastante influente
na filosofia e na psicologia do século xix, consistindo na tentativa de superar tanto o
dualismo de substâncias quanto o monismo materialista.
Em certo sentido, Wundt se mantém fiel à tradição filosófica e utiliza o parale-
lismo psicofísico para sustentar a irredutibilidade do mental ao físico. Como a experiên-

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cia, segundo ele, pode ser conhecida a partir de duas perspectivas distintas (objetiva e
subjetiva), é possível que certas partes da experiência mediata possam ter uma corres-
pondência direta com partes da experiência imediata. No entanto, essa correspondência
ou correlação entre o mental e o físico impede que um possa ser reduzido ao outro,
dadas as limitações de cada um dos pontos de vista (cf. Wundt, 1894). Por outro lado, a
particularidade do paralelismo de Wundt está no fato de ele não ser utilizado como um
princípio metafísico, mas sim como expressão de um fato empírico, a saber, a
irredutibilidade de nossa própria experiência subjetiva na vida cotidiana:

Do ponto de vista do tratamento empírico da vida mental, o princípio do


paralelismo psicofísico contém apenas o pressuposto de que todo evento mental
tem um processo físico correspondente, enquanto que o inverso disso não é de
modo algum exigido, uma vez que inúmeros processos fisiológicos não têm rela-
ção alguma não só com os próprios fenômenos da consciência, mas também com
seus processos auxiliares, que ocorrem no sistema nervoso central (Wundt, 1889,
p. 584-5).

Partindo da possibilidade de uma correspondência entre os processos mentais e


físicos, Wundt observa que existem vários conteúdos da nossa experiência que só podem
ser conhecidos a partir de um único ponto de vista, seja ele físico (por exemplo, no
caso dos estados e processos cerebrais) ou psicológico (por exemplo, no caso dos aspec-
tos qualitativos da experiência religiosa). Nesse caso, seríamos obrigados a reconhecer
a autonomia do conhecimento psicológico e estaríamos justificados a supor uma causa-
lidade própria para o domínio dos processos mentais, da mesma forma que supomos a
causalidade física na natureza. Os dois tipos de causalidade, segundo Wundt, são com-
plementares e nunca poderiam entrar em contradição entre si (cf. Wundt, 1911b [1910]).
Um desdobramento importante da causalidade psíquica é o princípio da síntese
criadora, uma das ideias centrais na psicologia wundtiana e que a diferencia de outras
teorias psicológicas da época. Para Wundt, embora os complexos psíquicos sejam com-
postos por elementos simples, eles possuem características próprias, que não perten-
cem a nenhum de seus elementos em particular. Isso acontece graças ao processo psí-
quico que Wundt chamou de fusão (Verschmelzung), que é um dos tipos possíveis de
ligação dos elementos. É, pois, através da fusão que a causalidade psíquica se mani-
festa, produzindo as novas propriedades qualitativas de nossa experiência subjetiva.
Podemos afirmar, portanto, que a fusão é o processo mental primário – na medida em
que funda a complexidade psíquica –, enquanto que a associação é apenas um proces-
so secundário, o que distancia Wundt da tradição do associacionismo britânico (cf.
Araujo, 2007b, 2007c).

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Vale ressaltar que há uma íntima relação entre o princípio do paralelismo


psicofísico e o princípio da causalidade psíquica. Juntos, eles fornecem a fundamen-
tação da autonomia epistemológica da psicologia em relação às demais ciências parti-
culares, garantindo assim a irredutibilidade da primeira em relação seja à neurociência
seja à física propriamente dita, o que afastaria Wundt de qualquer tendência materia-
lista contemporânea (cf. Araujo, 2006).

Conclusão

O pensamento wundtiano permanece ausente do horizonte da psicologia contemporâ-


nea. Seja como mera curiosidade histórica seja como antepassado a ser cegamente lou-
vado e eternamente relembrado – como em um ritual mecânico e alienante –, o trata-
mento dado a Wundt no desenvolvimento da psicologia ao longo do século xx, sobretudo
na tradição norte-americana, parece ser indicativo de um sintoma mais geral: o pro-
gressivo distanciamento dos psicólogos em relação a suas próprias raízes e às condi-
ções intelectuais que tornaram possível o projeto de uma ciência psicológica. Isso se
deve, em primeiro lugar, tanto à falta de acesso às obras originais e à ausência de tra-
duções quanto ao grande desserviço prestado pelos manuais tradicionais de história
da psicologia, que insistem em apresentar uma caricatura do autor, ao invés de situá-
lo adequadamente em relação ao contexto e à trama original de suas ideias. Há, contu-
do, um segundo aspecto fundamental que talvez tenha exercido uma influência ainda
mais decisiva, a saber, a predominância do pragmatismo como perspectiva geral sobre
o conhecimento humano, que acabou provocando uma espécie de horror à filosofia e
às discussões metafísicas entre muitos psicólogos contemporâneos. É compreensível,
pois, que as extensas considerações filosóficas e as profundas elaborações teóricas de
Wundt sobre o conhecimento psicológico não despertassem mais o interesse de toda
uma nova geração de psicólogos.
É exatamente dentro desta perspectiva que nos parece oportuno considerar a
questão da atualidade de Wundt. Se olharmos para a situação atual da psicologia cientí-
fica, não é difícil perceber sua enorme dispersão teórica e sua frágil fundamentação
filosófica. Muitos psicólogos, orgulhosos de sua separação institucional e de sua apa-
rente autonomia intelectual, foram levando cada vez mais a sério a ideia de um des-
prezo pela filosofia, chegando mesmo a proclamar a total inutilidade das discussões
filosóficas. Não por acaso, encontram-se muitas vezes soterrados por uma montanha
de dados empíricos isolados, que não são capazes de integrar em um todo coerente.
Ou então, o que é ainda mais grave, acabam defendendo posições filosóficas de forma
ingênua e desarticulada, não percebendo que as mesmas são a repetição camuflada de

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ideias muito antigas e já criticadas. Isso para não falar nas aplicações práticas da psi-
cologia, que muitas vezes são oferecidas prematuramente, sem uma validação e uma
fundamentação suficientes.
O pensamento de Wundt caminha na contramão de toda essa situação contempo-
rânea. Primeiro, ele considerava um equívoco a separação entre filosofia e psicologia,
tendo em vista os efeitos negativos disso. Embora a filosofia também pudesse perder,
segundo ele, seria a psicologia a mais prejudicada, pois jamais poderia prescindir de
uma fundamentação filosófica sólida de seus princípios e conceitos, exatamente para
evitar cair em contradições e posições ingênuas. Segundo, sua defesa do método experi-
mental nunca esteve separada da formulação de teorias psicológicas abrangentes e siste-
máticas, que pudessem esclarecer os fenômenos estudados. Além disso, criticava tam-
bém as aplicações prematuras da psicologia. Como a psicologia, no seu entender, estava
ainda em estado de consolidação, ele via com muitas reservas suas aplicações apressa-
das. Assim, o psicólogo contemporâneo de forma alguma perderia seu tempo ao se apro-
ximar da obra de Wundt. Entre outras coisas, ele poderia despertar sua consciência
para a necessidade de uma reflexão sistemática e contínua acerca do conhecimento
psicológico produzido, além de ampliar seus horizontes sobre a fundamentação filo-
sófica da psicologia. Em qualquer um dos casos, Wundt deixaria de ser uma mera curio-
sidade histórica ou um antepassado apenas formalmente reverenciado para se tornar
um autor cuja relevância para o presente merece ser ao menos seriamente discutida.

Saulo de Freitas Araujo


Professor Doutor do Departamento de Psicologia,
Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil.
[email protected]

abstract
Although Wilhelm Wundt is often praised in history of psychology textbooks as the founding father of
scientific psychology, a large part of his work is ignored by contemporary psychologists, especially that
concerned with the relationship between philosophy and his psychological thought. The aim of this article
is to present an outline of the philosophical assumptions underlying Wundt’s project for a scientific psy-
chology. After a brief review of the context of his work and a presentation of some problems of interpre-
tation in contemporary literature, his views on the subject matter and method of psychology are exam-
ined. Moreover, two fundamental principles of his psychological project are presented: the principle of
psychophysical parallelism and the principle of creative synthesis. Finally, having cleared up some mis-
understandings, the relevance of Wundt’s thought for contemporary debates in psychology is suggested.

Keywords ● Philosophy of psychology. Wundt. Concept of experience. Psychophysical parallelism.


History of psychology.

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Saulo de Freitas Araujo

referências bibliográficas
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