Livro Historia Da Arte II

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Artes Plásticas

História da Arte II
Do Romantismo à contemporaneidade

Dilmar Santos de Miranda

Geografia
Fortaleza 12

História
2019

Educação
Física

Ciências Artes
Química Biológicas Plásticas Computação Física Matemática Pedagogia

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Sumário
Apresentação.....................................................................................................5
Parte 1 – A era das grandes inflexões e o anúncio das rupturas..............7
Capítulo 1 – O Sturm und Drang e as condições sociohistoricais e cultu-
rais do Romantismo..........................................................................................9
Capítulo 2 – As artes românticas..................................................................14
2.1. A pintura.............................................................................................14
2.2. A pintura paisagística........................................................................19
2.3. Escultura e arquitetura......................................................................21
2.4. A música ............................................................................................25
Capítulo 3 – A poética da modernidade em Charles Baudelaire.............32
3.1. O tempo de Baudelaire.....................................................................32
3.2. A poética da modernidade: o ideal de belo......................................33
3.3. A subjetividade criadora....................................................................34
3.4. Ruptura com a mímesis....................................................................36
Capítulo 4 – Realismo e Naturalismo...........................................................41
4.1. O Realismo e o Naturalismo literários..............................................45
4.2. O realismo fotográfico.......................................................................47
Parte 2 – Do Impressionismo à art nouveau do fin-de-siècle Europeu.55
Capítulo 1 – O Impressionismo.....................................................................57
1.1. As condições socioculturais da 2ª metade do século XIX europeu....57
1.2. Pequena história do movimento.......................................................58
1.3. A estética impressionista...................................................................62
1.4. A música impressionista....................................................................64
1.5. A escultura (impressionista?) de Auguste Rodin e Camille Claudel....66
Capítulo 2 – O Pós-Impressionismo e o Pontilhismo...............................71
Capítulo 3 – O fin-de-siècle europeu: Simbolismo e Decadentismo .....80
3.1. A pintura simbolista............................................................................82
Capítulo 4 – A época do novo estilo da belle époque: a Art nouveau ...87
4.1. A arquitetura da belle époque.........................................................89
4.2. A pintura.............................................................................................90
4.3. A belle époque tropical......................................................................92

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Parte 3 – Das vanguardas às artes contemporâneas...............................99
Introdução .............................................................................................101
O contexto sociohistórico das vanguardas ..........................................101
Capítulo 1 – As vanguardas do modernismo (I).......................................104
1.1. Expressionismo...............................................................................104
1.2. A música expressionista.................................................................113
1.3. O cinema expressionista ...............................................................114
1.4. Fovismo ...........................................................................................118
Capítulo 2 – As vanguardas do modernismo (II)......................................123
2.1. Cubismo...........................................................................................123
2.2. Abstracionismo, Construtivismo e Suprematismo........................128
2.3. O Dadaísmo ...................................................................................132
2.4. O Surrealismo..................................................................................134
2.5. O Futurismo.....................................................................................140
Capítulo 3 – Triunfo e expansão do modernismo ...................................143
3.1. A Escola de Bauhaus......................................................................143
3.2. O Modernismo nas Américas.........................................................145
Capítulo 4 – Dos anos 1960 à contemporaneidade.................................151
4.1. A Pop-art..........................................................................................151
4.2. A Op-art............................................................................................153
4.3. As novas linguagens da contemporaneidade...............................154
Sobre o autor..................................................................................................168

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Apresentação

Um texto dedicado ao estudo dos períodos mais recentes da história


das artes, como o presente livro, enfrenta temas de grande relevância, dentre
os quais nos chama a atenção a grande inflexão que as artes irão sofrer a
partir do que se convencionou chamar de Romantismo, termo que reserva
grandes ambiguidades e imprecisões, tanto no que se refere aos seus limites
temporais quanto às próprias formalizações das obras do período, conforme
iremos analisar mais detalhadamente no seu devido momento.
Ao dividir a história das artes ocidentais em dois livros, delimitando o
primeiro na cobertura de um largo período que vai do paleolítico superior (arte
rupestre) ao Neoclassicismo do século XVIII, e o atual livro, que vai do Ro-
mantismo à Arte Contemporânea, procuramos, precisamente, enfatizar neste
último, essa grande inflexão que, a partir do século XIX, aponta para um qua-
dro de rupturas com alguns cânones cruciais da estética da tradição que se
origina na Antiguidade clássica grega.
Buscando uma intenção propedêutica, adiantaremos um importante
pressuposto indicativo de um traço singularizador das artes que emergem na
“Idade Contemporânea”, cujo arbítrio historiográfico ocidental estabeleceu
seus inícios em 1789, data da Revolução Francesa, designação que não deve
ser confundia com o período da “Arte Contemporânea”, noção que procura
dar conta da produção artística que alguns críticos e historiadores apontam
ter início nos anos 1960, período que outros definem como a era da morte da
arte, como veremos na terceira unidade deste livro.
Trata-se de um momento bastante profícuo à proliferação de estilos di-
fíceis de serem reduzidos a um termo que congregue a inventiva dos autores
de obras irredutíveis a nomenclaturas classificatórias capazes de dar conta
de uma unidade estilística. Ora pelas delimitações imprecisas dos períodos,
ora por suas intenções pouco nítidas, ora pelos estilos totalmente díspares ou
pelas afinidades com o que passou a ser conhecido como o fim das grandes
narrativas, o período da Arte Contemporânea se caracteriza igualmente pela
dissolução dos grandes estilos, conforme foram marcados, por exemplo, os
grandes períodos da arte gótica, do classicismo renascentista, da arte barroca
ou neoclássica (v. História da Arte I).
Alguns autores afirmam que vivemos na pós-modernidade (termo bas-
tante amplo e, por isso, vago para dar conta das múltiplas determinidades

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constitutivas da vida contemporânea), cujas manifestações artístico-culturais
são de natureza acentuadamente fragmentada. Para buscar seu melhor en-
tendimento, talvez, encontremos esboços explicativos na arte e na cultura da
primeira metade dos anos 1800.
Este é um dos objetivos do presente livro, subsidiado por um permanen-
te empenho crítico-reflexivo sobre esta arte que nos é contemporânea e, em
cujas formas, se inscreve o ritmo nervoso e veloz de um mundo que nunca
mais foi o mesmo, desde as grandes transformações trazidas pelo dinamis-
mo dos choques, conforme nos lembra Walter Benjamin, tomando a Paris do
século XIX como paradigma da moderna sociedade urbano-industrial, cujas
ressonâncias nos submetem, hodiernamente, a novos modos de percepção e
expressão em todas as esferas de nossas existências.

O Autor

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Parte 1
A era das grandes inflexões e o
anúncio das rupturas

Objetivos
• Esta unidade tem com objetivo analisar o momento em que as artes oci-
dentais passaram a sofrer grandes transformações em seus principais câ-
nones e princípios definidores de sua natureza, formas e finalidades, a
começar pelo Romantismo, movimento artístico que procurou romper com
o racionalismo presente na forma e no conteúdo do estilo imediatamente
anterior ao seu surgimento – o Neoclassicismo.

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Capítulo 1
O Sturm und Drang e as
condições sociohistoricais
e culturais do Romantismo
O século XIX é caracterizado como uma época de grandes agitações socioeco-
nômicas, políticas e culturais, graças às grandes mudanças advindas das Revolu-
ções Industrial e Francesa, tornando o fazer artístico ainda mais complexo. Assim,
podemos identificar, no decorrer desse século, vários movimentos que produzi-
ram obras de arte inspiradas em diferentes tendências e concepções, compreen-
dendo escolas e estilos bastante distintos tais como o Romantismo, o Realismo, o
Impressionismo, o Pós-Impressionismo, o Simbolismo e o Decadentismo.
Comecemos pelo Romantismo, responsável por anunciar rupturas em
relação aos velhos cânones da estética da tradição como a mímesis artística,
o belo ideal, a subordinação do fazer artístico aos ditames da razão, dentre
outros. O termo Romantismo, usado para designar um estilo artístico e uma
estética do pensamento ocidental, guarda muitas imprecisões.
Alguns ideais do movimento romântico já se manifestam no auge do ra-
cionalismo da Aufklärung (Iluminismo) alemã. O poeta/filósofo Friedrich Schil-
ler (1759-1805), p.ex., ao contrário do que preconizava a estética de natureza
autotélica e desinteressada de linhagem kantiana, propõe à arte tarefas com
vocação ética e política, como faz em A educação estética do homem, obra que
reúne cartas escritas entre 1791/93, onde defende a necessidade da precedên-
cia do homem estético ao homem ético. Nessa obra ele brada menos luz, mais
calor, consigna que parece adensar justamente o cotejo dessas duas épocas.
O movimento pré-romântico do Sturm und Drang irrompe na Alemanha
por volta de 1770 (ano de nascimento do filósofo Hegel e do compositor Bee-
thoven), portanto, em pleno vigor do ideal iluminista, do Neoclassicismo e do
apogeu do sistema musical tonal. Com a adesão de personalidades do mundo
da cultura, como Schiller, Johann G. von Herder (1744-1803) e Johann W.
von Goethe (1749-1832), o movimento ganhou fôlego se apresentando como
uma espécie de Romantismo avant la lettre. Alguns eventos culturais ocorri-
dos na Alemanha da época sevem de referência para indicar alguns de seus
traços mais relevantes.

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MIRANDA, D. S. de

O livro Sofrimentos do jovem Werther (1774), de Goethe,


que comovera intensamente o leitor alemão, sobretudo, os mais
jovens, provocando, segundo consta, muitos suicídios entre eles,
já se apresenta como uma obra romântica. O mesmo poder-se-ia
dizer da obra Os bandidos, também conhecida como Os bandolei-
ros, peça do jovem de Schiller, estreado em 1782.
Mas esses mesmos autores “românticos”, para embaralhar
mais ainda as nossas classificações, afastam-se posteriormente
de seus traços para adotar a estética classicista da Grécia antiga.
A geração do Sturm und Drang é também conhecida como a ge-
ração do “Classicismo de Weimar”, referência à cidade onde Goe-
the, Schiller e Herder passam a residir na mesma época (onde os
três, inclusive, iriam falecer), irmanados pela admiração dedicada
à arte e cultura gregas, considerada por Goethe como expressão
da “perfeição inacessível” da beleza ideal e eterna. Mas a Grécia
desse “Romantismo classicista”, não é a mesma dos cânones pre-
conizados, por exemplo, pelos mestres Winckelmann e Lessing,
Grupo escultórico de Goethe e Schiller em
os grandes defensores do ideal clássico da arte grega, analisados
Weimar no capítulo dedicado ao período neoclassicista anterior (História
da Arte I) (v. JIMENEZ, 1999, p.152).
Portanto, ao termo Romantismo subjazem imprecisões tanto de ordem
temporal quanto conceitual, um termo difícil de definir. “Friedrich von Schlegel
exige duas mil páginas para tentar a operação. É uma forma como uma outra
qualquer de dizer que é impossível” (JIMENEZ, op.cit. p. 150).
Um importante autor que aporta mais água para o moinho das indefini-
ções é o enciclopedista Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), que, a despeito
de ser um pensador pleno do século XVIII, portanto, do pleno século do Iluminis-
mo, navegou no contra fluxo das Luzes, ao defender a idéia do bom selvagem,
aquele ser ainda não corrompido pela racionalidade civilizatória, ideal apropria-
do pelo Romantismo do séc. XIX, bem como fortalecer a concepção de uma
linguagem unitária nos primórdios da civilização, conforme defende no Ensaio
sobre a origem das línguas. Para fundamentar sua noção de música como
linguagem dos sentimentos, Rousseau desenvolve uma teoria sobre a gênese
da linguagem falada no seu Ensaio. Conforme escrevemos na História da Arte I

“para ele [Rousseau], teria existido no passado mítico das sociedades,


uma unidade entre fala e música. Essa indissolubilidade permitia ao
homem em estado natural, expressar suas paixões de modo pleno. A
civilização teria rompido tal unidade. As línguas, ab origine, eram acen-
tuadas musicalmente e, por um perverso efeito da civilização, ficaram
desprovidas daquela melodicidade original, tornando-se aptas apenas
para expressar uma linguagem racional” (MIRANDA, 2010, p.23).

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

Através do canto, a música recupera sua natureza original. Rousseau


valoriza a melodia, a linguagem natural das emoções por imitar as paixões,
ainda que de forma indireta: as imita por força daquela afinidade eletiva original
com a linguagem, com a forma que expressam nossos sentimentos.
Walter Zanini, outro autor atento às imprecisões do período, ao se deter
sobre a efervescência característica do Romantismo e as dificuldades para
defini-lo, afirma ser mais fácil detectar o fenômeno do que explicá-lo.

”... não será jamais possível circunscrever com exatidão esse ciclo
cultural, afirmado inicialmente na literatura. A grande exposição sobre
as artes plásticas da era romântica, promovida há anos na Inglaterra,
tomou como referência cronológica o período de 1780 a 1848. São
muitos, contudo, os historiadores da matéria que alongam sua dura-
ção, recuando a 1750/60. Não lhes falta razão para isso. É comum
a premissa das noções subdivisórias, como a trilogia formada pelo
Pré-Romantismo, Romantismo e Pós-Romantismo. Por estas proposi-
ções, a época romântica propriamente dita limitar-se-ia aos anos entre
c.1829-50, mas uma tal redução serve apenas a salientar sua etapa de
maior agudez (ZANINI, 2008, p. 186).

Como se percebe, o autor mostra-se bastante prudente para qualquer


tipo de delimitação mais categórica. Ao mencionar Goethe, Herder e Schiller,
ou Rousseau, como fizemos acima, foi para referendar as hesitações que se
apresentam quando o tema é o Romantismo. Se existiu em parte do séc. XVIII
(em pleno Classicismo iluminista), um período pré-romântico, existiu igualmente
um período do Romantismo tardio no séc. XIX (quando o realismo/naturalismo
já lhe reage) representado, p.ex., pela obra musical de Richard Wagner.
Portanto, na moldura dessas duas épocas (o Pré-Romantismo e o Ro-
mantismo tardio), é possível detectarmos intenções, obras, autores, traços e
estéticas comuns capazes de agrupar um tipo de estilo que ficou caracteri-
zado como Romantismo. De um modo geral, a rebelião romântica se carac-
teriza pelo seu anti-racionalismo, englobando num grande conjunto, a crítica
da cultura ocidental – seus valores morais, sociais, políticos e estéticos. Os
românticos implodem a dicotomia racionalista: razão versus sensibilidade.
Na fase pré-romântica, chama-nos a atenção, o interesse de Herder
pela expressão arcaica que reside na poesia visceralmente ligada aos senti-
mentos populares, além dos elementos originalmente musicais dessa lingua-
gem poética. Crítico do enciclopedismo francês e do Iluminismo alemão, Her-
der postava-se contrário à idéia de uma razão gestora de toda intuição, fruto
da dicotomia razão/sensibilidade. Reconhece na música, “arte da humanida-
de”, o vértice das possibilidades estéticas humanas: poética e musicalidade
brotam da mesma fonte, seguindo unidas indissoluvelmente.

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MIRANDA, D. S. de

Tal como Rousseau, também para Herder o canto primordial, onde mú-
sica e poesia são a mesma coisa, é a linguagem própria do homem. Recondu-
zi-las ao seu caráter original, significava o redescobrimento da raiz comum de
um povo. A valorização romântica do primitivo e do irracional via na memória
popular o arquivo vivo de um passado idealizado. O ímpeto romântico faz com
que os artistas se voltassem de preferência, “para o passado de suas respecti-
vas nações, privilegiando assuntos que dissessem respeito a elas” (SUPINIC,
1997, p.661).
No interior do código musical do Romantismo, a consciência política de
países forjados nas guerras anti-napoleônicas, ganha relevo para estimular a
pesquisa de temas nacionais, estabelecendo certo sinal de igualdade entre
romantismo e nacionalismo. No momento em que se forja o sentimento de
nacionalidade, a partir da constituição dos estados modernos, vários países
se vêem frente à questão da unidade espiritual, como expressão de sua iden-
tidade nacional. Postula-se, então, “um substrato cultural e uma ‘alma’ que dê
vida à nova unidade política, substrato e alma que estariam no povo enquanto
matriz e origem telúrica” (MARTIN-BARBERO,1997, p.26).
Para o Romantismo, a vaga racionalista varrera os sentimentos mais
espontâneos, fazendo que as elites perdessem grandes valores como cora-
gem e entusiasmo, subsistidos no espírito do povo, por ter se mantido distante
do racionalismo assepsizante das elites. “Os Românticos esperam que a afir-
mação da alma popular, [...], da imaginação, simplicidade e pureza populares
quebre o racionalismo e o utilitarismo da Ilustração, considerada por eles cau-
sa da decadência e do caos social” (CHAUÍ, 1994, p.17).
Enfim, aquela cultura definidora de unidade nacional, encontrava-se,
em estado latente e bruto, no mundo camponês, nas crenças e religiosidade,
nas lendas, nas histórias infantis, na música e nas danças, mas, sobretudo, na
poesia popular, “tesouro da vida”. O povo, coletividade dos “bons selvagens”,
cuja vida peculiar consignada como “comunidade orgânica” tinha como mo-
delo a vida pastoral, era o único depositário da tradição e legítimo guardião da
cultura de uma nação. “Afirmando a bondade natural e a pureza sentimental
do povo anônimo e orgânico, o Romantismo localiza a Cultura Popular: é guar-
dião da tradição, i.e, do passado (CHAUÍ, op. cit. p. 20).
Só a sensibilidade e a intuição podiam captar o espírito do povo e não
a razão. A rebelião romântica, ao valorizar a experiência do espontâneo, sem
mediações racionalizantes, dignifica a alma popular como lugar da emergên-
cia de uma arte e de uma cultura, fontes primárias de inspiração até mesmo
para as elites. A partir daí, o Romantismo construirá um novo imaginário: a
fonte popular adquire status. Herder publica os Volkslieder (1778), conferindo
autenticidade à poesia que vem do povo. As várias modalidades das práticas

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

culturais populares são, igualmente, valorizadas pelos irmãos Jacob e Wi-


lhelm Grimm (contos do imaginário popular) e por Ludwig Joachim von Arnim
(cantos e religiosidade populares). Também a poesia desfruta de status espe-
cial para os irmãos Grimm, que valorizam, justamente, o anonimato das obras
culturais populares, emprestando uma constitutividade orgânica às suas cria-
ções, por pertencer a todo o povo.
Na Alemanha, uma importante reflexão acadêmica irá aportar con-
tribuições teóricas decisivas ao Romantismo. Para as Ciências do Es-
pírito, afinadas com o ideário romântico, era possível a construção da
“psicologia social” e “história” de um povo, objetivadas em sistemas cul-
turais, arte, religião etc. Compreender tais objetivações era compreender
o homem e sua cultura. Sentimentos, representações, vontade etc., ten-
deriam a expressar dado “estilo de pensamento” de uma época. Essas
objetivações podiam ser estudadas como uma totalidade, pois refletiriam
uma “concepção” específica de mundo. Assim, cada espírito da época
expressaria o espírito de um povo.
Em suma, a grande contribuição romântica nos fortalece a reflexão
qualificadora das práticas culturais forjadas na alma das camadas populares,
atestando uma sensibilidade espontânea de suas visões de mundo e de for-
mas de enfrentamentos da sua existência. Nessa perspectiva, o fazer cultural
estaria intimamente ligado às práticas populares da tradição, grosso modo,
chamado de folclore. São práticas anônimas, vivenciadas por pessoas per-
tencentes a uma comunidade de interesses e de sentidos, sem preocupações
estéticas inovadoras, praticadas no interior de um mundo rural tradicional.

Texto complementar
“Para [os irmãos Grimm], ‘todo épico escreve-se a si mesmo’, não é feito (não é ar-
tefato) mas, como as árvores, brota e cresce por si mesmo. Por esse motivo, os Grimm
designarão a poesia popular como ‘poesia natural’. Na mesma perspectiva, Românticos
suecos, filandeses, russos, partem em busca da religião natural, anterior ao cristianismo
romano e ao protestantismo e superior a eles. Mesmo no interior do cristianismo, um
escritor como Chateaubriand dedicará uma capítulo de Le Génie du Christianisme às ma-
nifestações antigas, aos ritos e festivais populares, às crenças e superstições, liberado-as
do peso da crítica Ilustrada. Esse retorno à religião popular explica ainda por que a Idade
Média – comunitária, camponesa, pastoril, guerreira e mescla de crenças bárbaras locais e
cristianismo nascente – funcionará no imaginário romântico num duplo registro, i.e, como
origem perdida e como finalidade a resgatar contra o capitalismo”.
(CHAUÍ,1994,p. 18).

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Capítulo 2
As artes românticas
2.1. A pintura
Se a arquitetura foi, por excelência, a arte que melhor representou os desíg-
nios e as intenções estéticas de determinados períodos da arte do passado,
como o Românico e o Gótico do medievo, no Romantismo será a pintura
a exercer essa mesma primazia. Conforme vimos, nos começos do séc.
XIX, o Romantismo ganhará um grande reforço aportado pela reação anti-
-napoleônica, conferindo cores nacionalistas a muitas de suas realizações,
sendo o espanhol Francisco José Goya y Lucientes (1746-1828), o artista
mais representativo dessa tendência. No início, aliado aos franceses, sendo
nomeado pintor de José Bonaparte, irmão mais velho de Napoleão e rei da
Espanha (1808-1813), Goya retrata alguns generais. Mas o horror da guerra
e as atrocidades acometidas pelas tropas do imperador irão lhe inspirar uma
de suas obras mais notáveis: Os fuzilamentos de 3 de maio, onde transborda
uma inventiva poderosa e ardentemente imaginativa. No quadro, podemos ver
típicos traços barrocos, como a diagonalidade e o contraste do claro/escuro,
procurando, com isso, dar mais dramaticidade plástica ao episódio.

Os fuzilamentos de 3 de maio (1814-1815)

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

Esse quadro reporta ao episódio ocorrido na noite anterior do dia 2 de Comentário sobre o
quadro Fuzilamentos...
maio de 1808, quando revolucionários espanhóis enfrentam, num desassom- “A luz concentrada sobre
bro de coragem, os soldados e suas montarias, ferindo-os com punhais, paus o homem de camisa
e lanças. O marechal Joachim Murat, comandante da infantaria francesa, de- branca, com os braços
cide reprimir violentamente os revoltosos. O episódio ganha grande expres- abertos e levantados, nos
dá a certeza da morte
sividade plástica nos traços do artista, pelo grande contraste que reflete a iminente e já vivida pelos
desigualdade das forças em conflito: de um lado os soldados uniformizados da companheiros tombados
infantaria francesa, empunhando seus fuzis; do outro, os espanhóis revolto- no chão. O tratatmento
sos, cada um deles aguardando sua vez de ser fuzilado. Nesse grupo, desta- dado pelo artista à pintura
é importante na medida
ca-se a figura central do revolucionário com os braços erguidos, cujo intenso em que universaliza
foco de luz ilumina e realça o branco de sua camisa. A intenção alegórica à o tema da repressão
crucificação é flagrante nas mãos que apresentam os estigmas. As vítimas política, superando
são apresentadas em grupos de três: os que estão aguardando o fuzilamento, o fato particular da
Espanha. Goya cosegue
cobrindo o rosto aterrorizado, os que estão no momento sendo fuzilados e os isso acentuando o
corpos inertes do já assassinados. Goya não esquece a igreja representada contraste entre o aspecto
na primeira fila das vítimas, por um frade ajoelhado que parece abençoá-las. individualizado dos
homens qua vão morrer
Finda a guerra, após a restauração da monarquia espanhola, Goya mi- e o aspecto anônimo dos
gra para a França onde cria uma obra extraordinária, cujo exuberante croma- soldados que matam,
tismo e poderosa técnica plástica antecipam o impressionismo, cujo influxo representados sem rosto.
é declaradamente assumido pelo O fuzilamento ocorrido
em 3 de maio de 1808 é,
pintor Oscar-Claude Monet. então, apenas um pretexto
Outra característica de para Goya expressar, de
Goya é o imaginário fantástico que forma geral, as lutas da
liberdade contra a tirania.
cultiva com maestria, sobretudo No dizer de Lionello
os traços que retratam o que, para Venturi, ‘a pintura de Goya
ele, representa o monstruoso da é um símbolo eterno da
natureza humana. Esta estética é revolta popular contra a
opressão’ “ (PROENÇA,
possível ser identificada em suas 1989, p. 127).
“pinturas negras”, conjunto imagé-
tico que revela a alma atormentada
de um artista visionário, adiantado
em seu tempo, anunciando, no li-
mite, as vanguardas que virão. E o
quadro que melhor experiencia for-
malmente esse tormento, perten-
cente à série Caprichos (cujo título
original era Sueños) é El sueño de
la razon produce monstruos.
A tela representa o artista
dormindo, em meio a animais no- O sono da razão produz monstros (Goya)

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turnos, dentre os quais se destaca uma coruja que lhe oferece um pincel, e,
abaixo, a inscrição: El sueño de la razón produce monstruos. Sua intenção é
transparente. A tela representa um sonho, e nele há visões de pesadelo. Mas
quem, efetivamente, está sonhando? O termo sueño é ambíguo. Significa
“sono” e “sonho”. Tal ambiguidade aparenta ser intencional. O artista parece
estar pensando em sono. Portanto, sua tradução mais fiel seria O sono da
razão produz monstros (v. ROUANET, 1996, p.295)

“Ou seja, quando o artista dorme, sua razão também dorme, e esse du-
plo sono engendra o sonho. Quem sonha é o artista. Mas podemos usar
a liberdade semântica que nos é oferecida pelo castelhano e interpretar
a palavra sueño, em seu segundo sentido, como sonho. Nesse caso, a
frase significaria ‘O sonho da razão produz monstros’. Quem sonha, ago-
ra, é a razão, e o artista adormecido seria uma alegoria da razão” (Id. ib.).

O imaginário de Goya voltado para o monstruoso motivou uma lavra


extraordinária de estampas feitas em água-tinta, novidade técnica variante
da água-forte, onde as linhas do desenho deixam de ser fixas para per-
mitir sua alteração mediante manchas. Tais estampas surpreendem pelo
seu teor inusual afastado do tradicional, como o tema bíblico, histórico ou
algo do gênero. São visões fantásticas de bruxas ou aparições espantosas
vistas como expressão dos poderes da estupidez e reação à opressão e
à crueldade humanas da Espanha da época, ou então figurações dos pe-
sadelos do artista.
A estampa O colosso (1810-18), uma das mais fan-
tásticas dessa lavra, representa, certamente, um dos mais
alucinantes de seus sonhos. Trata-se de uma figura colossal
sentado à borda do mundo.

“Podemos aferir o seu tamanho colossal pela minúscula paisagem


do primeiro plano, e apreciar como ele reduziu casas e castelos a
meros pontos. Podemos fazer nossa imaginação esvoaçar em torno
dessa medonha aparição, a qual é desenhada com uma clareza de
contornos que leva supor um estudo do natural. O monstro parece
descansar numa paisagem enluarada como um íncubo maligno”
(GOMBRICH, 2008, p. 488).

Goya é um artista que vive numa crucial dobra do


tempo, que sinaliza, a um só tempo, direções díspares que
adensam sentidos ambivalentes, traço característico do fim
do século oitocentista, como vimos, em que o mundo artís-
tico-cultural europeu hesita entre um classicismo agônico,
mas que parece apresentar algum sinal de sobrevida, e o
O Colosso (Goya)

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

Romantismo reagente aos excessos da racionalidade castradora do ímpeto e


do entusiasmo da subjetividade criadora da cultura popular e dos artistas com
ela afinados.
Apresentando certa afinidade temática em relação a Goya, o poeta/pin-
tor inglês William Blake (1757-1827), mais jovem do que o espanhol, recolhido
em seu próprio mundo, desdenhou a arte e os cânones oficiais da academia,
voltando-se para seu interior profundamente místico, visto por alguns contem-
porâneos como um artista insano, por outros como um gênio das artes. Criou
diversas gravuras, ora para ilustrar seus próprios poemas, ora para produções
alheias, como O livro de Jó da Bíblia, A divina comédia de Dante Alighieri, bem
como para diversos artistas de sua época.
Porém, um de seus trabalhos mais impressionantes, dentro da temática
do imaginário maravilhoso e fantástico, é O ancião dos dias (1794), realizado
para ilustrar seu poema Europa, uma profecia. Inspirado na figura divina de
Michelangelo, a quem demonstrava declarada admiração, Blake compôs a
imagem de Deus, sob a ótica de uma peculiar mitologia, através da figura de
um ancião de vasta cabeleira e membros alongados que, curvado sobre o
universo, parece medi-lo com um compasso. Sem nuançar seus contornos,
Blake usa tons de cores quentes (vermelho, amarelo e laranja), para compor,
no centro da ilustração, a figura divina envolta em formas circulares, donde,
na parte inferior, irradiam cachos dourados, como um sol que procura iluminar
a escuridão da área mais externa da composição.
Assim como Goya, o pintor
francês Eugene Delacroix (1799-
1863), valoriza também o histó-
rico em suas criações. Visitando
Marrocos, como membro de uma
missão diplomática, incumbido
de registrar os usos e costumes
desse país, Delacroix vivenciou
uma experiência estética deci-
siva em sua arte. Sua visão do
país leva-o a retratar uma reali-
dade onde mistério e exotismo
se misturam. Pela contemplação
do quadro A agitação de Tanger
– com o uso da luz e do colorido
do céu e a luminosidade contras-
tando com as partes sombrias da
tela, é possível perceber traços
O ancião dos dias (William Blake - 1794)

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MIRANDA, D. S. de

que antecipam o Impressionismo. Sob a ótica do teor temático, o


pintor se mostra um apaixonado pelo movimento da multidão em
espaços públicos, tema recorrente e de crucial importante para di-
tar a estética de vários movimentos do séc. XIX, conforme veremos
na análise de Charles Baudelaire, em O pintor da vida moderna.
O tema da agitação das multidões nas ruas retorna na mais fa-
mosa tela de Delacroix – A Liberdade guiando o povo, pintada para
exaltar a Revolução de 1830, de grande valor pictórico assegurado
pelo uso das cores e o contrastes das luzes e sombras. Tal como em
Goya em Os fuzilamentos de 3 de maio, o páthos romântico de Dela-
croix compõe toda a cena a partir da figura central luminosa feminina,
cujo gestual de todo o corpo, empunhando na mão direita a bandeira
tricolor francesa e na esquerda um mosquete encimado por uma baio-
neta, não deixa dúvidas quanto à determinação de conduzir o povo,
que comanda com vigor, até a vitória final contra a tirania, passando
A agitação de Tanger (Delacroix) por cima dos corpos já mortos. Conforme o título da tela, não se trata
apenas de uma mulher, mas encarna a própria liberdade. Não se trata
também apenas de uma revolta contra questões específicas dos anos 1830,
mas da luta universal contra a tirania, cujo modelo mais próximo retido na me-
mória dos franceses é a Revolução de 1789, com a tomada de Bastilha, signo
maior da derrubada do poder opressor absoluto.

A Liberdade guiando o povo (Delacroix)

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

2.2. A pintura paisagística


A paisagem, como tema pictórico, já estava presente no séc. XVIII, mas era
vista como arte menor, sobretudo, os artistas que dedicavam com mais afinco
a cenas bucólicas como residências campestres, parques, jardins ou vistas
pitorescas. Tal apreciação mudou em fins do século, graças ao espírito ro-
mântico de valorização da natureza. “A elevação de um gênero menor ao nível
do sublime foi uma postura consciente e deliberada da pintura e da literatura”
(ROSEN, 2000, p. 189). A partir de então, consagrados artistas, desfrutando
maior liberdade de escolha temática para expor sua inventiva, se dedicaram a
elevar esta modalidade de pintura, emprestando-lhe nova dignidade. Entre a
corrente da pintura paisagística que soube aproveitar em grande intensidade
a nova liberdade temática, destaca-se a escola inglesa.
Conforme vimos em História da Arte I, a arte da jardinagem inglesa se di-
ferenciava do geometrismo cartesiano do jardim francês, cujo exemplo paradig-
mático é Versalhes. Assim como seus jardins, a pintura paisagística romântica in-
glesa caracteriza-se, de um lado, pela busca do naturalismo, pelo aproveitamento
realista, enquanto inspiração, dos elementos da própria natureza, por outro lado,
pela contínua reinvenção no uso das cores naturais causadas pela luz solar. Para
alguns historiadores, tal traço nos permitiria ver nesses ingleses o anúncio, com
algumas décadas de antecedência, a estética dos impressionistas franceses.
Dentre os pintores ingleses destacam-se Joseph Mallord William Turner (1775-
1851) e John Constable (1776-1837), ambos se dedicando à paisagem, porém
demonstrando nítida inflexão dos novos tempos advindos do industrialismo, como
é o caso de Turner, com a paisagem natural invadida pela máquina.

Veneza: o grande canal (Turner)

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Turner é a própria expressão dos grandes movimentos de valorização


plástica da natureza, mediante a pesquisa da luminosidade natural, pois um
de seus principais empenhos foi a aplicação da incidência da luz sobre as co-
res da maneira mais espontânea possível, conferindo uma “atmosfera” natural
em suas criações. Podemos flagrar tal tendência em duas de suas telas O
grande canal, Veneza (1835) e Chuva, vapor e velocidade (1844).Na primeira,
Turner combina a representação fiel da realidade com sua típica “atmosfera”.
A composição obedece a duas ordens cromáticas bem distintas. À esquerda,
são realçados os tons claros, amarelo e laranja, em estado puro, sem nenhum
artifício neutralizador pelo uso do branco. Por isso, são muito mais brilhantes,
inclusive seus reflexos nas águas do canal, sobretudo se postos em contraste
com as partes de cores neutralizadas à direita, com toda cena encoberta pela
luminosidade do branco que se destaca do fundo azul do céu do Adriático.
Em Chuva, vapor e velocidade, a locomotiva e a velocidade, represen-
tando o industrialismo da época, fazem ingresso na pintura de Turner, que
substitui o contorno nítido de cada detalhe da composição, como faz na tela
anterior, por formas, em esboço, da máquina e dos trilhos sobre os arcos de
um viaduto, num todo coesionado pela névoa dourada produzida pela umi-
dade do ar e pelo vapor da locomotiva. Sua preocupação principal são as
cores brilhantes concentradas no centro da tela. O aspecto interessante da
obra reside na representação do movimento veloz da máquina, um dos seus
primeiros registros nas artes plásticas, querendo, com isso, expressar a toma-
da de consciência do artista de que a máquina invadiu a paisagem natural e
começou a integrar o universo da pintura.

Chuva, vapor e velocidade (Turner)

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

Ao contrário de Turner, a pintura de Constable, buscando retratar a pai-


sagem da vida cotidiana, é serena e ligada à região interiorana da Inglaterra
onde o pintor nasceu e trabalhou ao lado do pai com quem aprendeu o ofício
de moleiro. Já artista, estudioso dos efeitos da luz natural e preferindo traba-
lhar ao ar livre, procedimento que será adotado pelos futuros impressionistas,
suas telas procuravam registrar as alterações da natureza tais como a névoa,
a chuva fina, a luz tênue do sol, a umidade. Muitos temas recorrentes de suas
pinturas, a exemplo dos moinhos de vento, barcaças com cereais, faziam parte
da vida prosaica do artista quando jovem, ao lado do pai. Um exemplo bastante
representativo da pintura paisagística de Constable é a tela A carroça de feno.

A carroça de feno (Turner)


A tela expressa todo o talento do artista no controle do espectro de cores
que demonstra com fidelidade o resultado de uma arte conseguida com muito
estudo e observação e do contato direto com a natureza, cujo efeito é de uma
admirável vivacidade. O que mais ressalta na tela é o jogo de luz, uma das
obsessões do artista que a considerava o elemento da natureza fundamental
para a pintura paisagística: a luminosidade vinda do céu é replicada pelo brilho
refletido nas águas do riacho, emprestando mais claridade luminosa a toda
composição e maior serenidade à paisagem.

2.3. Escultura e arquitetura


Ao contrário da pintura mais afeita à originalidade e à pulsão livre do espírito ro-
mântico, a arquitetura e a escultura parecem ter encontrado sérios obstáculos ao
desenvolvimento de uma arte mais característica similar àquele espírito e tempe-

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ramento. Se pintores, como Turner, souberam compatibilizar a máquina na cena


paisagística, de forma orgânica e equilibrada, como representação de um fenô-
meno dos novos tempos, sem trair o imaginário do belo, com toda a pujança su-
blime, os arquitetos sobretudo não souberam fazer uso do material “pesado” ad-
vindo do processamento e do maquinismo dos engenhos mecânicos da época.
Zanini atenta para a defasagem da arquitetura “em relação à dinâmica
cultural da época ... [pois durante anos] o arquiteto desprezará os materiais e
processos técnicos da Revolução Industrial, aferrando-se à cultura dos esti-
los pré-existentes” (op.cit.,p. 189). Cita, a seguir o teórico e historiador suíço
Sigfried Giedion. “Até que não se adapte à nova realidade ambiental e não re-
conheça as possibilidades arquitetônicas existente nos modernos métodos de
construção, nenhuma tradição relevante para a época poderá desenvolver-
-se” (apud ZANINI, id., ib.).
Na verdade, como era de se esperar, o acelerado crescimento das
grandes cidades postulou mais edificações. Suas áreas rurais foram trans-
formadas em gigantescos carteiros de obra. Assim, a quantidade de constru-
ções para atender a essa demanda tanto para fins públicos (museus, fóruns,
teatros, estações, ministérios, prédios administrativos), como para fins priva-
dos, como residências, fábricas, hotéis, não foi suficiente para definir um estilo
próprio para o período, e o ecletismo acabou sendo a saída, por ser capaz de
apresentar modelos de qualquer estilo do passado para ser reaproveitado no
presente, resultando quase sempre em choques no uso de espaços original-
mente pensados para funções bem distintas das exigidas por edificações da
sociedade urbano-industrial. Dessa forma, os arquitetos ficaram a meio ca-
minho, ora do gótico, ora do neoclassicismo, podendo ainda edificar no estilo
renascentista, moçárabe, oriental, dentre outros,

Palácio de Westminster

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

Fiquemos com dois exemplos paradigmáticos. O primeiro vem da In-


glaterra, materializado na construção do Palácio de Westminster, iniciada em
1840, destinado ao Parlamento bicameral britânico.
Sua história traz elementos para se avaliar as dificuldades enfrentadas
pelos arquitetos da época. Após o incêndio da velha Câmera, em 1834, imor-
talizado numa das telas de Turner (O incêndio das casas dos lordes e dos co-
muns), depois de longo debate público sobre os vários estilos propostos e re-
jeitar qualquer desenho neoclássico que conotasse ideais revolucionários ou
republicanos, como o Capitólio americano, a Comissão Real acabou por esco-
lher o projeto barroco de Charles Barry (1795-1860), por conter valores conser-
vadores. Conforme afirma Gombrich, as liberdades civis inglesas descansavam
sobre fundamentos do medievo, e que o lógico seria erguer a sede da liberdade
inglesa em estilo gótico (cf. op.cit. p. 500). Por ser um especialista em estilo
renascentista, Barry teve que aceitar a assessoria de Augustus Welby Pugin
(1812-1852), um artista versado em detalhes góticos. A grosso modo, as tarefas
de construção ficaram assim divididas: Barry ficou responsável pelo estilo formal
do prédio, sua estrutura e o ordenamento do edifício, enquanto que Pugin se
encarregou da decoração da fachada externa e do interior.
O outro exemplo nos vem da França com a construção de L’Opera de
Paris, que, mesmo sendo realizada na 2ª metade do séc.XIX (1861-74), a con-
cepção de autoria de Charles Garnier (1825-98), representa o ecletismo da
arquitetura característica da fase anterior, apogeu do pensamento e estética
romântica na filosofia, literatura, pintura e música.
Sua idealização se deu no contexto da grande
reforma urbana de Paris, comandada pelo prefeito
Georges-Eugène Haussmann, durante o 2º Império
de Napoleão III, caracterizado por um poder dita-
torial, por ter marginalizado o poder legislativo e as
forças de oposição. Durante esse período Paris foi
centro de exposições mundiais, de diversos Salões
de pintura, para onde convergiam a divulgação do
progresso cultural e industrial de várias regiões do
mundo. Para a construção do L’Opera, Haussmann
recebeu, em 1859, a autorização de promover a
limpeza de 12.000 m² de terreno. O projeto sofreu
várias interrupções e numerosos incidentes devido a L’Opera de Paris (foto de 1900)
problemas de diversas ordens: a guerra franco-prus-
siana, a queda do Segundo Império, a Comuna de Paris, além do grave proble-
ma do próprio terreno, extremamente pantanoso, exigindo contínuos e longos
bombeamentos da água subterrânea, antes das fundações serem lançadas.

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MIRANDA, D. S. de

Seu exterior expressa formas em estilo renascentista e neobarroco. A


despeito do ecletismo desmesurado de sua decoração feita em mármore,
bronze, estuque dourado, candelabros, lustres e pinturas, o conjunto arquite-
tônico consegue conciliar a grandiosidade da construção com a concepção
moderna de uso do espaço.

“A ornamentação era porém considerada necessária, pois somente ela


fazia da construção uma ‘obra de arte’. Este desenvolvimento da ar-
quitetura oficial do segundo império francês tornou-se modelo para a
última fase da Inglaterra vitoriana, para a Alemanha guilhermina, para
a representação do novo estado italiano após 1871, para a América do
Norte e do Sul” (BAUMGART, 2007, p.292).

Uma das influências mais patentes do L’Opera de Paris, encontramos


no projeto do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, cópia em escala reduzida
do modelo francês, inaugurado em 1909, igualmente idealizado pela grande
reforma urbana sofrida pela então capital federal, na gestão do prefeito Perei-
ra Passos, engenheiro que conhecera pessoalmente as reformas de Haus-
smann e que aqui levou, a ferro e fogo, seu projeto de renovação urbana
iniciada em 1904, que passou a ser conhecida como operação bota-abaixo.
A situação da arte escultórica, não encontrando meios mais originais
de expressão, pouco diferiu do quadro arquitetônico acima analisado, salvo
o caso singular de Eugène Rodin, cuja obra provoca grandes polêmicas ao
se tentar enquadrá-lo em alguns dos estilos do séc. XIX, inclusive entre os
românticos, conforme será visto mais adiante.
A tridimensionalidade sólida da obra escultórica parece que provocou
certo desconforto em relação ao espírito e temperamento românticos dos
artistas da época, cujos ímpetos de suas subjetividades criadoras pareciam
encontrar melhor expressão em pequenas obras e esboços que, raramente,
chegavam a termo em monumentos concluídos, ou então tomar o caminho de
volta rumo ao estilo barroco de cunho visivelmente teatral.
Importa aqui frisar o papel exercido na época pelas academias de arte,
cuja influência parece ter sido mais forte entre os escultores, ao ditar nor-
mas, no limite, invioláveis, solidificando um formalismo totalmente avesso a
qualquer manifestação do páthos característico dos pintores românticos. No
entanto, surgiram algumas exceções. Tomemos como caso exemplar La Mar-
seillaise (1833-36) do escultor François Rude (1784-1855).

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

La Marseillese (François Rude)


Esse conjunto escultórico foi criado para o Arco do Triunfo da Étoile
parisiense. O enorme relevo possui cerca de 13 por 8 metros, representando
a insurreição popular de 1792 que radicaliza o ideário da Revolução de 1789,
inclusive com a destituição de Luís XVI e a proclamação da República. A esté-
tica do monumento preferiu a simbologia clássica misturada com o imaginário
antigo-medieval no lugar de traços mais realistas, mediante a figuração de
guerreiros romano-gauleses conduzidos ao triunfo encimados por uma figura
feminina encarnando a França. Diz-nos Baumgart que essa dupla referência
– Roma e a França antiga representada por gauleses – “pretende afirma que
somente a França revolucionária entrou na posse da herança de Roma na
Europa. Idéias patriótico-históricas servem à simbolização de um aconteci-
mento político do passado recente” (op.cit., p.299)

2.4. A música
Um dos maiores índices de mudança dos cânones da tradição, iremos encon-
trar na grande alteração da estética musical que começa a ocorrer no apagar
das Luzes. Como homem da Ilustração, Kant colocara a música como tribu-
tária de sensações vindas de um único sentido, as belas sensações auditivas,
vendo na sua mudez à razão, uma incapacidade essencial, ao contrário de

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outras artes como a pintura e a poesia, que nos proporcionam “equivalentes


intuitivos de verdades morais, religiosas, ou metafísicas. Parecia-lhe, pois, a
beleza dos sons como a mais pobre e a mais insuficiente do universo artístico”
(NUNES, 1998, p.75).
Sem força conceitual, resta-lhe o posto de uma arte cortesã e frívola, desli-
zando-se do coro das igrejas para a intimidade dos círculos mundanos. O músico
era um protegido pelo mecenato, com o encargo de criar para determinadas fun-
ções, como levar o fiel à concentração religiosa, animar um ambiente festivo em
banquetes ou casamentos ou criar um clima de agradável indolência quando ne-
cessário. Daí os filósofos de extração racionalista não concederem importância,
sobretudo à música instrumental, vista como jogo de sensações agradáveis ou
como arabesco abstrato, muda à razão e sem conteúdo intelectual, moral ou edu-
cativo só tinha poder sobre os nossos sentidos. Em suma, uma arte assemântica.
No séc. XIX, as coisas começam a mudar. O criticado pressuposto da
assemanticidade da música, não é refutado pelo Romantismo que o considera
com olhos distintos, ao fazer dessa “fraqueza”, sua maior virtude. Como vimos,
os românticos implodem a dicotomia da tradição racionalista: razão versus sen-
sibilidade. A musicalidade da língua primordial não é só sentimento ou imedia-
ticidade da emoção versus reflexividade da razão: a língua original é, a um só
tempo, razão e sentimento, reflexão e imediaticidade, em estado rude e semi-
nal; é criação, onde todas as faculdades humanas, anterior a toda distinção abs-
trata, estão reunidas. A música instrumental pura está mais próxima desse ideal.
A música é tão mais significativa quanto mais livre da fala. A indeter-
minação censurada na música instrumental agora é atribuída à linguagem
verbal. A linguagem musical (eis a grande contribuição romântica) pertence a
outra ordem e se julga com normas distintas: na música se oculta a expressão
mais autêntica e original do homem. Onde a linguagem se mostra impotente,
a música capta o real num nível bem mais profundo.
A aspiração à união de todas as artes, como pretende o Drama de Ri-
chard Wagner, com sua arte total, sem dúvidas, se inspira no conceito de
alguns enciclopedistas sobre a origem comum da música e da poesia. A con-
cepção romântica da música, i.e, a aspiração à união e convergência de todas
as artes sob sua égide, recebeu certamente influxos rousseaunianos sobre a
origem comum da música e da poesia.
A autonomização da música instrumental, no curso do séc. XIX, conce-
deu-lhe um prestígio extraordinário, assombrando a vida cultural européia. O
estatuto romântico investe-lhe de um valor inestimável, tornando-a a arte de
maior prestígio. Paradigma estético por excelência, ela é invejada por pintores
e poetas, por ser capaz de trabalhar suas formas e linguagem, sem precisar
de referência direta à realidade exterior.

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

Na observação desse longo processo de tensões, avanços e recuos, a Athenäum


tradicional fraqueza assemântica da música tornara-se, para a geração dos Revista de curta
irmãos Schlegel da Revista Athenäum, uma virtude. A música, ao contrário existência (1798-1800),
da fala, não nos permite emitir enunciados concretos e, como representação fundada pelos irmãos
Friedrich (1772-1829)
do sentimento, só o faz de modo vago e ambíguo. A música, como linguagem
e August Wilhelm von
imperfeita, não comunica emoções. O que ela faz é excitá-las, falando direto Schlegel (1767-1845,)
aos nossos nervos, ultrapassando todas as convenções. Seu sentido “não e Ludwig Tieck (1773-
estaria baseado em um sistema arbitrário como o da linguagem, onde as pa- 1853), grande importância
para a difusão do ideário
lavras são o que são simplesmente porque o dicionário e a cultura, que elas
proto-romântico alemão,
representam, assim o afirmam. [Seu papel] era algo mais físico, [...]animal”. onde, além dos seus
(ROSEN, idem, p.198). fundadores, escreveram
diversos artistas e
Em Arthur Schopenhauer encontramos o elaborador por excelência da
escritores, como Goethe,
estética musical romântica, ao apresentar a mais acabada sistematização fi- Novalis, Herder dentre
losófica da música segundo os ideais do movimento. A grande polêmica entre outros.
semanticidade e assemanticidade é resolvida pela anulação da oposição das
duas instâncias - representante e representado, i. e, pela sua plena identifica-
ção. Não a existindo, não há porque indagá-la da sua possibilidade. Para ele,
o conceito diz o mundo e a música é o mundo. Nasce daí, a questão funda-
mental da sua estética, i.e, a relação entre a música e o mundo, e, em defi-
nitivo, a relação entre música e sentimentos. Nesses termos, Schopenhauer
partilha da visão da inefabilidade da música, tema recorrente que sempre re-
torna com mais vigor. Só podemos falar da música por metáforas, visto que
ela constitui-se como uma linguagem absoluta e intraduzível. Daí somente ela,
enquanto linguagem inefável, ser capaz de significar as dimensões inefáveis
do mundo. Para ele, a música é a fonte suprema do conhecimento, revelando
o sentido a priori das coisas, antes mesmo delas serem significadas pela lin-
guagem comum. O conteúdo de verdade da música está no fato dela não ser
representação e sim expressão.
Importa observar a radicalidade da inflexão dada pelo autor. Como de-
dução lógica do primado da música sobre o conceitual e no contrafluxo dos
racionalistas, sua música predileta é a instrumental, por se apresentar essen-
cialmente pura, isenta de qualquer mescla, limpa de conceitos que obscure-
cem sua nitidez e a cercam de outras formas de expressão que não lhe são
próprias. Ele não nega a possibilidade da união entre música e poesia, por se
tratar de expressões muito diferentes da mesma essência íntima do mundo.
Mas a música deve manter intacta sua dignidade e sua função; daí condenar
todo propósito imitativo. Tais princípios são partilhados por vários românticos.
A escuta romântica implica uma particular condição de arrebata-
mento, quase um arroubo místico, fora de qualquer esquema lógico ou
pré-julgamento formal, visto que a música é uma convocação direta ao

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MIRANDA, D. S. de

coração. O poder dionisíaco da música potencializa nossas faculdades


vitais, pondo-nos em estado de embriaguez. Berlioz, que extravasou sua
exuberante personalidade em numerosos ensaios críticos, diz: “ao escutar
certos trechos de música, minhas forças vitais parecem multiplicar: sinto
um prazer delicioso, mas o raciocínio não tem nele papel nenhum” (apud
FUBINI, 1971, nota 54/114).
O horizonte onde se move a estética wagneriana é o mesmo conceito
romântico da arte como expressão, junto à convergência com as demais ar-
tes, para o logro de sua mais completa tradução. Porém, o desejo da arte total,
i.e, de unificar todas as artes sob a égide da música não é novo. A estética
wagneriana ambiciona a integração orgânica de todas as artes sub specie
musicae, o ideal da Arte Total. O Drama wagneriano não é um gênero musical
nem literário. Arte-síntese na sua unidade é a própria arte. Seria o termo bem
sucedido dessa aspiração. Como Schopenhauer, também Richard Wagner
(1813-83) aceita a música como “a linguagem imediata do coração”, porém
infletindo sua orientação. Como a música pura não pode expressar a indivi-
dualidade ou um conteúdo determinado e claro, e a linguagem instrumental
não pode dar sensações, a não ser gerais, o Drama wagneriano pretende pôr
termo a todas essas insuficiências, dando fim à alienação da música pura em
si mesma, reintegrando-a, numa só arte, ao sentido do conceito. Para Wag-
ner, toda a história da música não é mais do que a história das tentativas mal
sucedidas de resolver esse dilema.

Richard Wagner (Retrato de Renoir – 1882)

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

Wagner pretende justamente recuperar aquela autêntica unidade ori-


ginal da linguagem. A auto-suficiência vigente da música lhe impõe um limite:
“em seu orgulho, a música havia se transformado em sua antítese; do fato
que concerne ao coração, havia se transformado em fato que concerne à
inteligência”. Para superar essa impotência expressiva, a poesia deverá re-
correr “ao órgão primitivo do sentimento íntimo da alma, a língua dos sons”,
i.e, “à expressão redentora da música”, pois ela representa o único meio de
redimir a linguagem das insuficiências históricas que vive, uma vez privada
de seu conteúdo lírico-sentimental. “A língua dos sons é princípio e fim da
língua das palavras”. A solução está no retorno ao estado original onde poeta
e músico “são uma só e mesma coisa, porque cada um sabe e sente o que
o outro sabe e sente: agora formam os dois o homem artístico completo”
(citações retiradas de Obra de Arte do Futuro, de Wagner, apud FUBINI,
op.cit. p. 128 e 129). Wagner, quando está prestes a concluir o livro Ópera e
Drama, escreve: “[...] a linguagem dos sons como pura emancipação do sen-
timento expressa precisamente o que a linguagem das palavras não pode
expressar; logo, considerado sob nosso ponto de vista intelectual, humano,
expressa simplesmente o inexpressável” (apud FUBINI, op. cit. p. 130).
Como se sabe, a estética romântica coroará todo aquele longo e tortu-
oso itinerário dos constantes embates entre a inefabilidade da linguagem mu-
sical e a linguagem explicitamente semântica da poesia. A posição iluminista
fica totalmente intervertida: a música é tão mais significativa quanto mais livre
e afastada da linguagem verbal. A indeterminação sempre reprovada na mú-
sica instrumental, agora somente existe do ponto de vista da linguagem das
palavras. Isto porque a linguagem da música – eis a grande contribuição dos
românticos – pertence a outra ordem e se julga com normas bem distintas:
nesta linguagem, se oculta a expressão mais pura e original do homem.
Encontramo-nos uma vez mais no epicentro da visão romântica da
música, a única capaz de dar conta de uma realidade inefável, de desvelar
os mistérios dos afetos humanos, por ser ela mesma constituída de inefa-
bilidade, de sua linguagem expressar os “excessos próprios de sentidos”
da existência humana.
Wagner será igualmente um autor fundamental do romantismo tardio,
ao revolucionar a estética musical do sistema tonal, pelo anúncio da dissolu-
ção do tonalismo, presente na abertura da ópera Tristão e Isolda (1857-59). Ao
contrário das melodias e harmonias tonais que se utilizam de uma linguagem
musical carregada de sentidos que apontam para uma narrativa evolutiva,
com princípio, meio e fim, a densa espessura da música wagneriana traz ao
ouvinte formas simultâneas e contraditórias de perceber e vivenciar o tempo,
como no caso do famoso acorde de Tristão e Isolda, onde coabitam a conso-
nância do tonal e a dissonância do trítono, sem sua imediata resolução.

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MIRANDA, D. S. de

Sequência cromática Por indicação do próprio compositor, o início da ópera deve ser lento
ou cromatismo e langoroso. Já no prelúdio, a crispação melódico-harmônica é exacerbada,
Sequência melódica em pela exasperação da tensão adiada por mais de dois minutos, onde peque-
que o discurso musical
nas sequências cromáticas* ascendentes provocam o encontro de notas que
sobe ou desce em
intervalos de semitons, irão constituir o trítono sem objetivo de repouso resolutivo imediato.
desfazendo, assim,
qualquer possibilidade
de ordenar a escala,
como ocorria, p.ex.,
com a escala diatônica
tonal, cuja sequência,
tomando como modelo o
tom fundamental em dó
maior, possui a seguinte
progressão intervalar:
dó-ré, ré-mi (2 intervalos
de um tom; mi-fá (1
semitom); fá-sol, sol-lá,
lá-si (3 intervalos de um
tom); si-dó (1 semitom)
fechando a oitava.

Tristão e Isolda na concepção de Herbert Draper (1863-1920)


O famoso acorde será retomado em vários momentos da ópera, ora de
forma isolada, ora de forma simultânea, com outros trechos melódico-harmô-
nicos inteiramente escritos na linguagem tonal. Assim alternam-se, de forma
ambivalente, tempos com princípio, meio e fim (nexo causal tonal) e fluxos de
tempo inconclusos (momentos cromáticos sem resolução). O acorde, que
tanto fascinou Nietzsche, gerou na época muitas controvérsias, visto que “mú-
sicos e teóricos não estavam seguros de como classificar o acorde em um
sistema tonal” (ROSEN, 2000, p. 633).
Além desses procedimentos melódico-harmônicos de tensão adiada, o
autor indica outros: intensas pausas de silêncio, acréscimos de instrumentos
de diferentes timbres para interpretar a mesma sequência melódica, passa-
gens para regiões do registro mais agudo. Tudo isso ajuda no tensionamento
do acorde, cuja sonoridade recebe ainda níveis com intensidade maior, cons-
tituindo assim o clímax da tensão, até o momento de encontro de sua reso-
lução tonal. O uso intensivo do cromatismo chega ao limiar da dissolução
do tonalismo. Trechos cromáticos já haviam sido utilizados por outros com-
positores, mas, até então, nenhum havia feito com a sua vigorosa intenção
dramático-expressiva à maneira wagneriana. Segundo Jacques Chailley “o
cromatismo do Tristão [...] representa técnica e espiritualmente, o apogeu da
tensão [grifos no original]” (apud NATTIEZ, 1984, p. 247).

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

Como vimos, Wagner apenas anuncia a dissolução do código tonal,


mas sua efetivação só foi possível no ambiente das vanguardas europeias
das primeiras décadas do século XX, tendo sua expressão máxima na figura
de Arnold Schönberg, membro da “Segunda Escola de Viena”, ao criar o sis-
tema dodecafônico a ser visto adiante.

Texto complementar
Sobre Goya
“A coruja tirânica que quer impor sua vontade ao artista é a razão narcísica do hiper-
-racionalismo. Os morcegos são as larvas e os fantasmas do irracionalismo. Dois animais
deficitários, truncados. O morcego tem uma audição aguda, mas é cego. A coruja enxerga
de noite, mas não de dia. Falta um terceiro animal na zoologia de Goya, mais completo.
Não, não falta. Ele está no canto direito, enorme, olhando fixamente o espectador. É um
gato. O gato ouve tudo e tem uma visão diurna e noturna. Sabe dormir e sabe estar acor-
dado. E sabe relacionar-se com o Outro, sem arrogância, ao contrário do seu primo selva-
gem, o tigre, e sem servilismo, ao contrário do seu inimigo domestico, o cão. É a perfeita
alegoria da razão dialógica, da razão que despertou do seu sonho, é atenta a todos os sons
e todas as imagens, tanto do mundo de vigília como do mundo onírico, e conversa demo-
craticamente com todas as figuras do Outro, sem insolência e sem humildade” (ROUANET,
1996. pp. 298-299).

Sobre os românticos
“É bastante diferente quando se encara a mera natureza, sem criatura viva, como sim-
ples local de ação de uma pintura – utilizando-a, se necessário, para colorir a represen-
tação da ação, tal como o fazem com frequência o pintor histórico e o pintor épico – e
quando, de maneira exatamente inversa (tal como o pintor de paisagens) se transforma a
Natureza pura na heroína da pintura, tendo as pessoas como meros figurantes [os ‘extras’
em uma produção teatral]. O primeiro método possui inúmeros exemplos em Homero,
e quem poderia se igualar ao grande pintor da Natureza na verdade, individualidade e
vivacidade com que nos apresenta o palco dessas pinturas dramáticas? Mas coube aos
modernos [...] a tarefa de tornar essa parte da Natureza, nas paisagens e nos poemas, o
objeto de sua própria representação e, assim, através desse novo ramo eles enriqueceram
o domínio da arte que os antigos parecem haver limitado à humanidade e àquilo que se
assemelha ao humano”.
(Friedrich Matthisson, apud ROSEN, op.cit.p 189s)

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Capítulo 3
A poética da modernidade
em Charles Baudelaire
A uma passante

A rua em torno era um frenético alarido.


Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão suntuosa,
Erguendo e sacudindo a barra do vestido;

Pernas de estátua. Era-lhe a imagem nobre e fina,


Qual bizarro basbaque, afoito, eu lhe bebia
No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,
A doçura que envolve e o prazer que assassina.

Que luz... e a noite após! – Efêmera beldade


Cujos olhos me fazem nascer outra vez,
Não mais hei de te ver senão na eternidade?

Longe daqui! Tarde demais! nunca talvez!

Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,

Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!

(Tradução de Ivan Junqueira)

3.1. O tempo de Baudelaire


Existem personalidades capazes de captar os sentidos de mudança inscritos
no curso da história e perceber a importância de seu tempo quando frações
curtas do tempo parecem condensar anos, ao provocar profundas rupturas,
liberando um magma desconstrutor/reconstrutor, para abrir novas perspec-
tivas e inúmeras possibilidades de criação nos mais diferentes domínios da
ação humana. Charles Baudelaire (1821-1867) certamente foi uma dessas

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

personalidades. Ele compõe a galeria de artistas/pensadores* que passaram Artista/pensador


a surgir em determinado momento da vida cultural européia. Determinada
personalidade do mundo
Assim Baudelaire (2002) profere sua teoria sobre o belo:
das artes e da cultura
“Esta é uma bela ocasião para estabelecer uma teoria racional e his- que surge, a partir do
período pré-romântico
tórica do belo, em oposição à teoria do belo único e absoluto; para
europeu, e que sabia
mostrar que o belo inevitavelmente sempre tem uma dupla dimensão, aliar o fazer artístico
embora a impressão que produza seja una [...]. O belo é constituído com a reflexão crítico-
por um elemento eterno, invariável, [...] e por um elemento relativo, filosófica, provocando
circunstancial, que será, se quisermos, [...] a época, a moda, a moral, fortes ressonâncias nos
a paixão. Sem esse segundo elemento, que é como o invólucro apra- rumos da vida cultural
subsequente. Além de
zível, palpitante, aperitivo do divino manjar, o primeiro elemento seria
Baudelaire (O pintor da
indigerível, inapreciável, não adaptado e não apropriado à natureza vida moderna e outros
humana” (p. 852) ensaios), fazem parte
dessa galeria Goethe
Mas qual foi o tempo do poeta? Ele foi um homem pleno do séc. XIX. O (Escritos sobre arte),
poeta captou intensamente o momento em que o capitalismo pós-revolução Schiller (A educação
industrial moldava a vida citadina dos grandes aglomerados urbanos, onde estética do homem),
Richard Wagner Obra de
multidões se esbarravam nas ruas, vitrines das galerias exibiam fetiches mer- arte do futuro e Ópera e
cadológicos e a última moda exposta sedutoramente oferecia-se ao consumo drama). Com incidência
imediato, a fotografia recém inventada estabelecia um novo olhar percepti- menor, encontramos em
vo. No interior da multidão desses novos lugares urbanos, constituída de ho- outras épocas artistas/
pensadores, a exemplo
mens de negócios, donas de casa, transeuntes em frenética movimentação, do polímata humanista do
desempregados, encontra-se a figura do flâneur, nova personagem citadina Renascimento Leonardo
que, a um só tempo, integra e se afasta das multidões, e que tudo observa, Da Vinci (v. História da
deambulando pela cidade, com seu ritmo próprio. Arte I).

3.2. A poética da modernidade: o ideal de belo


No interior dessa multidão iremos encontrar o poeta, um flâneur especial, que,
como o instantâneo de um clique fotográfico, capta os choques originários das
multidões e os transmuda em inspiração poética, como faz em A uma passan-
te. O soneto adensa, de forma extraordinária, o temário-síntese da sua poética
bem como princípios conceituais básicos que devem presidir a inventiva do
artista moderno: o tema recorrente da multidão no "frenético alarido” da rua; a
passante, da qual, mesmo de forma fugaz, a sensibilidade do poeta é capaz
de sorver sua “dor majestosa”; a “imagem nobre e fina” fincada em “pernas de
estátua”, suporte da eterna beleza clássica; a expressão de sentimentos opos-
tos, da “doçura que envolve e o prazer que assassina”, que dilaceram a alma
do poeta; o instante-já, um fugaz aqui/agora no arco de uma jornada completa:
“que luz... e a noite após!”; a fugacidade da beleza imortalizada na “efêmera
beldade” que não será mais vista “senão na eternidade”; o instantâneo foto-

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MIRANDA, D. S. de

gráfico que, mesmo cada um tomando rumos opostos, “pois de ti já me fui, de


mim tu já fugiste”, tornou possível o poeta ver, amar e, ser percebido, pois “tu
que eu teria amado, ó tu que bem o viste!”
Temas como a moda e a multidão com suas personagens – o trapeiro, o
vendedor de vinho, os velhos –, bem como o épico contido da vida prosaica e
os costumes da época, e, o que é mais importante, sua poética derivada des-
ses novos eventos urbanos, postulam novas posturas diante do fazer artístico:
o valor da imaginação criadora, a crítica à arte mimética e o conceito de ideal
relativo de belo, opondo-se ao belo ideal absoluto, constituem o corpus de
uma nova estética tanto para o artista como para o fruidor de sua arte.
Partindo da reflexão sobre as condições da produção artística de sua
época, Baudelaire conclui pela necessidade de formular uma teoria do belo
que seja racional (a porção absoluta e eterna do belo) e histórica (a porção re-
lativa do belo), rompendo, assim com a idéia clássica do belo. Em O pintor da
vida moderna, percebe que a maioria dos artistas tendia a negar a beleza do
seu presente, buscando-a no passado, fazendo com que o próprio teor da arte
findasse por se comprometer em obras obscuras e vazias de sentido estético,
visto que a essência do presente, como conteúdo próprio da sua arte, não era
apreendida. Nota ainda que os artistas clássicos foram fiéis à sua época ao
extraírem dela a beleza presente, captando a essência do seu entorno históri-
co. Mas eles se limitaram a representar uma beleza idealizada, sem incorporar
em suas obras, a beleza existente nos fenômenos cotidianos e, nesse aspec-
to, o artista moderno deve diferir-se, pois os clássicos devem ser apenas fonte
de estudo, para conhecer a lógica e a técnica de suas criações.

3.3. A subjetividade criadora


O que diferencia os artistas de épocas distintas e o que determina sua singu-
laridade deve prover da cultura e dos costumes de cada época, e de como
essa experiência fica impressa na sua memória. A representação do belo é
uma ação mediada pela subjetividade do artista, e o conteúdo de sua arte é o
resultado da realidade vivenciada e filtrada por sua memória e expressa pelo
seu sentimento. Sendo a subjetividade crucial no processo de criação, isso
implica necessariamente rupturas com a concepção clássica do belo.
No texto Salão de 1846, afirma que “como são sempre o belo ex-
presso pelo sentimento, a paixão e o devaneio de cada um, ou seja, a
variedade na unidade, ou as diversas faces do absoluto” (p.674), assim
a beleza se manifesta de múltiplas formas. Portanto, ele deixa clara a im-
possibilidade de se compreender o belo dentro de uma concepção acadê-
mica, enquanto único e absoluto, rompendo, com isso, com uma tradição
que perdurou desde a antigüidade clássica até sua época, em meados do

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

séc. XIX. Vivendo num tempo em que as academias possuíam um peso


canônico no direcionamento da criação das artes, Baudelaire tece seve-
ras críticas aos “mestres-mandarim” da arte que prescrevem as normas a
serem seguidas pelo aluno-artista, como se eles fossem os únicos deposi-
tários do saber verdadeiro sobre as artes.
Ainda profundamente vinculados à tradição clássica e insensíveis às
profundas modificações pela qual transita a sociedade urbano-industrial, apre-
sentam uma ameaça à própria arte. Esses “mestres-mandarim“, a quem os ar-
tistas fazem juramentos, ameaçam liquidar a arte. A única lei que o artista deve
seguir é seu próprio sentimento do mundo. A liberdade torna-se a condição in-
dispensável para a produção artística e a representação do belo. Os critérios a
serem definidos para a criação só podem provir unicamente do próprio artista.
No texto Exposição Universal de 1855 critica um desses mestres das
academias, “modernos-professores-jurados de estética”.

“O insensato doutrinário do belo sem dúvida diria disparates; aprisiona-


do na deslumbrante fortaleza de seu sistema blasfemaria contra a vida
e natureza, e seu fanatismo grego, italiano ou parisiense o convenceria
a proibir esse povo insolente de fruir, sonhar ou pensar através de pro-
cedimentos que não os seus” (p. 772/773)

Mais adiante, afirma que: “O artista depende apenas de si mesmo. Ele


promete aos séculos vindouros somente suas próprias obras. Ele só responde
por si próprio. Morre sem filho. Foi seu rei, seu sacerdote e seu Deus” (p. 776).
A questão da liberdade do artista vincula-se intimamente à faculdade de
imaginação, crucial para a produção da obra de arte, por ser superior a todas
as demais que devem se colocar a seu serviço. A imaginação é considerada a
rainha das faculdades e não se confunde com fantasia. É uma faculdade que
analisa e sintetiza os fenômenos que serão expressos esteticamente. Por me-
lhor que seja a técnica utilizada, se o artista for desprovido de imaginação pro-
duzirá certamente obras medíocres. A imaginação decompõe toda a criação e
dá um novo ordenamento e configuração aos fragmentos, ressignificando-os.
Dotado de um olhar perceptivo aguçado, o artista parte de outra perspec-
tiva, que retira do real fragmentado, o sentido que já lhe fora designado a fim de
dar uma nova significação, ou seja, forma um novo sentido, ou, como quer Bau-
delaire, “produz a sensação do novo”. Ele enfatiza o étimo comum ars ao termo
arte e ao verbo articular, enquanto junção das partes: o artista é o agente capaz
de juntar as partes na refiguração de um todo que ele dota de sentido estético.
O entretecimento entre liberdade e imaginação deve-se à própria exi-
gência da arte, posto que, sem imaginação não há criação e, por sua vez,
a criação que segue os parâmetros da imaginação requer que o artista não
dependa de normas pré-estabelecidas de uma estética canônica.

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MIRANDA, D. S. de

3.4. Ruptura com a mímesis


A faculdade da imaginação como condição para se produzir arte verdadeira
contrapõe-se à arte mimética. Para esta, enquanto cópia da natureza, a ima-
ginação é totalmente descartável. No Salão de 1859, Baudelaire afirma que
a “cópia é inimiga da arte” e considera que a natureza não oferece nenhum
critério de verdade. A natureza não pode ser copiada tal qual ela é, visto que
não se conhece a natureza em-si. Ela se apresenta incompleta, restando ao
artista dar cabo dessa incompletude, através de seu gesto estético. No Salão
de 1846, afirma que o ideal de perfeição não existe, por isso não é possível
uma imitação perfeita da natureza, pois esta é lacunar. Para Baudelaire, “o
ideal absoluto é uma tolice” (p.700). Mais adiante afirma:

“o ideal não é esta coisa vaga, esta coisa aborrecida e impalpável que
flutua no teto das academias. Um ideal é um indivíduo reerguido pelo
indivíduo, reconstruído e restituído pelo pincel ou pelo cinzel à radiosa
verdade de sua harmonia primitiva”. (p.702)

Referindo-se ao pintor que utiliza a faculdade da imaginação, cita a fra-


se “a natureza outra coisa não é senão um dicionário” (p. 887) que Delacroix
usava com frequência.

“Para bem compreender a amplitude do sentido implicado nessa frase,


deve-se imaginar os usos ordinários e numerosos do dicionário. Neste,
procura-se o sentido das palavras, [...sua etimologia] enfim, extraem-se
dele todos os elementos que compõem uma frase ou uma narrativa;
mas ninguém jamais considerou o dicionário como uma composição,
no sentido poético da palavra. Os pintores que obedecem à imagina-
ção procuram em seu dicionário os elementos que se acomodam à
sua concepção, e ainda ajustando-os com uma certa arte, dão-lhes
uma fisionomia bem nova. Aqueles que não têm imaginação copiam o
dicionário” (id.).

Baudelaire lê nessas palavras uma fonte ampla de pesquisa: a busca do


significado das palavras, ou seja, o sentido explícito não se encontra na pró-
pria natureza, mas, a partir dela, na subjetividade do artista. No caso, o pintor
compõe a sua obra, faz sua própria leitura.
A severa crítica de Baudelaire aos realistas origina-se dessas duas di-
mensões de sua poética: o uso da imaginação criadora e a ruptura com a
mímesis. Os realistas se limitavam a copiar a realidade, não a partir de seus
sentimentos e imaginação, senão a partir do que viam e julgavam ser o real
em si. Os mesmos pressupostos estéticos que o levaram a dirigir severas
críticas aos realistas estão igualmente presentes no combate que trava contra
Eugène Delacroix (Foto de
Nadar – c. 1860) a pintura paisagística. Baudelaire, ao comentar os pintores paisagistas, re-

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O diorama, engenho
clama da falta de imaginação presente na maioria de suas obras. A imitação
muito difundido na Paris
tão presente nesse estilo levou-o a afirmar, com tristeza e sarcasmo, que os do Século XIX, cujo
paisagistas estão presos ao verdejante, ao copiar a natureza, chamando-os termo foi inventado pelo
de “animais herbíveros”. inventor Louis Daguerre,
em 1822, era um quadro
Para Baudelaire a paisagem não são campos, ervas e árvores, mas sobre- iluminado na sua parte
tudo, ruínas e, com tom melancólico, diz preferir toda a artificialidade dos diora- superior por uma luz
mas,* pois estes, pelo menos, sabem expressar a ilusão útil e contemplar cená- móvel, produzindo uma
ilusão ótica. Pinturas
rios de teatro. O que é ostensivamente artificial, por não ter qualquer pretensão de
bucólicas como árvores,
se aproximar da natureza nem de parecer verdadeiro, mas apenas provocar um plantas, animais ou
forte efeito, possui mais proximidade com a verdade, do que os paisagistas que então, fatos históricos,
continuam a imitar a natureza com o objetivo de representar o verdadeiro. eram expostos, de modo
bem realista, com fins
instrutivos ou para mero
entretenimento. Pintada
sobre uma tela de fundo
curvo, iluminada de
certo modo procurando
simular um contorno real,
a cena passava uma
ilusão de profundidade
e de movimento,
dando a impressão de
tridimensionalidade, além
da redução compactada
em escala para reforçar
a ilusão de realismo.

Diorama (paisagem)
Para Baudelaire, tal atitude é contrária à arte, pois o elemento relativo
do belo é expresso também pelo temperamento do artista. A imparcialidade
adotada por determinados artistas, negando sua própria subjetividade, não
permite que o belo seja expresso, por sua insistência numa arte mimética. Ao
contrário da estética realista em que o artista encontra-se subordinado à rea-
lidade externa, tornando-se inclinado a retratar o que tem diante dos olhos, o
pintor moderno não deve expressar o que vê, mas o que sente e como sente.

“Dia a dia a arte diminui o respeito por si mesma, prosterna-se diante


da realidade exterior, e o pintor torna-se cada vez mais inclinado a
pintar não o que sonha, mas o que vê. No entanto, é uma felicidade
sonhar, e era uma glória exprimir o que se sonhava” (p. 803).

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Para Baudelaire, o artista, em si, é um intérprete e o fruidor deve inter-


pretar sua interpretação. Se o artista, ao elaborar a sua obra, está fazendo uma
tradução da realidade por ele vivenciada ou sonhada, essa tarefa distancia-se
totalmente da cópia da natureza, e a intenção da arte é mesmo a de estabelecer
o distanciamento da realidade ou da natureza, no sentido de fugir das garras da
imitação e possibilitar que as imagens registradas na memória expressas na
obra de arte, recriem a natureza a partir da tradução feita pelo artista.
De fato, toda a interpretação implica a explicitação das camadas de
sentidos que podem estar contidos numa determinada obra-de-arte, do sen-
tido explícito inscrito pelo artista ao sentido subjacente ao que está explícito,
passando pelo sentido dado pelo espírito contemplante da obra.
As reflexões em O Pintor da Vida Moderna, já anunciadas em ensaios
anteriores, como Salão de 1846, Salão Universal de 1855 e Salão de 1859, no
que se refere, em especial, à sua relação com a arte mimética, deixam claro
que a representação do belo, ou melhor, dizendo, a expressão artística revela
uma realidade muito mais verdadeira e nítida do que a própria realidade na-
tural. A realidade exterior movimenta-se tão rapidamente, metamorfoseia-se a
cada instante que não pode oferecer a menor segurança ou estabilidade. Daí
igualmente a cópia da realidade não oferecer nenhuma segurança.
A lembrança é algo registrado na memória e manifesto a partir de al-
gum estímulo propiciado por fatores externos, sendo a memória o conjunto
de impressões e registros adquiridos, via experiência, e é a partir dessas duas
noções - memória e experiência - que o autor elabora sua teoria da estética,
pilares sobre os quais a arte se erige. As imagens devem ser extraídas da
memória. A produção artística deverá ser o resultado do que foi observado e
acumulado durante o dia na memória.
Existe um modelo do artista moderno: o desenhista Constantin Guys
(C.G.), ao descrever seu modo de observar seu entorno. Para ambos, Baude-
laire e C.G., a observação do flâneur é um ato indispensável que antecede o
fazer artístico. Após colher todos os dados, a partir da observação dos aconteci-
mentos diurnos, C.G. se lança em seus desenhos, executando-os com rapidez
e atenção concentrada, temendo que algo possa cair no esquecimento antes
de ser expresso no papel. Essa rapidez proposta é a tentativa de tudo extrair da
memória, antes que algo se esvaeça (v. BAUDELAIRE, 2002, p. 854 ss).
Não existe uma relação fidedigna com o que foi visto ou com os fatos
observados nas imagens fixadas. C.G. é chamado de “homem do mundo”
(p,855), versado na arte da observação, da moda e dos costumes de sua
época (v. gravura abaixo), sabendo mover-se em meio à multidão, sem
nada deixar despercebido. As idéias não lhe chegam pela inspiração, mas
pelo esforço intelectual árduo, pelo combate que empreende contra a fuga

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

das impressões. A agilidade necessária no processo de criação artística


deve-se também ao tempo exterior ao sujeito, onde tudo transcorre veloz-
mente. Daí a exigência de um fazer artístico mais célere, mas com uma
atenção muito aguçada, a fim de não perder um detalhe sequer retido na
memória desses materiais “involuntariamente acumulados” adquiridos pela
experiência do artista.

Duas moças e dois soldados (Constantin Guys)


A figura de C.G. é novamente mobilizada como modelo do artista mo-
derno, ao vê-lo como um homem que conhece e compreende os mistérios
do mundo, de suas causas e de seus costumes. Afirmando ser encantado
pela multidão e, a um só tempo, mantendo-se oculto da mesma, esse grande
observador se movimenta freneticamente nas grandes metrópoles. O prazer
desse admirável observador consiste em residir no inconstante, no que não
permanece. Baudelaire compara esse flâneur imerso em suas observações,
mas, a um só tempo, imerso anonimamente na própria multidão, a um “reser-
vatório de energia” que nela penetra. Essa atitude corresponde à necessidade
de trazer todo o movimento e energia da multidão para seu interior, como um
alimento necessário para executar sua produção artística.
É devido às constantes mudanças ocorridas na vida cotidiana que o ar-
tista deverá estar atento em suas observações, tentando captar essa realida-
de fugaz, detendo o maior número de impressões possível. Para tanto, requer-

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MIRANDA, D. S. de

-se uma nova ótica, um olhar a partir de uma nova perspectiva que possibilite
ao artista, após ter apreendido o maior número de dados registrados em sua
memória, expressá-los em sua arte. A isso Baudelaire, sempre pensando em
C.G., atribui a tarefa do artista moderno.

Agora à hora em que os outros estão dormindo, ele está curvado sobre
sua mesa, lançando sobre uma folha de papel o mesmo olhar que há
pouco dirigia às coisas, lutando com seu lápis, sua pena, seu pincel, lan-
çando a água do copo até o teto, limpando a pena na camisa, apressan-
do, violento, ativo, como se temesse que as imagens lhe escapassem,
belicoso, mas sozinho, e debatendo-se consigo memo” (p. 858 e 859).

A habilidade e a agilidade, como também a pressa que o artista deve


executar a sua obra, como vimos, justificam-se na medida em que todas as
imagens captadas durante o dia sejam expressas antes que se esvaeçam na
memória do artista. A forma de execução da atividade artística deverá corres-
ponder ao mesmo processo empreendido durante as suas andanças à captu-
ra das imagens diurnas.
Em suma, nada escapou da pena de Baudelaire no que concerne ao
mundo das artes e cultura de sua época. Sua consciência da duração do
tempo sugere uma verticalização adensada, e nela a idéia de que esse tempo
é estritamente reduzido, aquela fração de tempo que é capaz de condensar
anos, é um tempo tão curto e concentrado que possibilita a autoconsciência
do poeta. Baudelaire ocupou-se, praticamente, de todas as correntes estéti-
cas e estilos que marcaram o seu século, como o Neoclassicismo (francês),
o Pré-Romantismo, o Romantismo, as pinturas paisagísticas, o Realismo e o
Naturalismo. Antecipou-se ao Simbolismo do fim do século, em seus poemas
de cunho místico-satânico. Só não se ocupou do Impressionismo, por ter mor-
rido anos antes do aflorar do movimento, apesar de ter se colocado a favor de
artistas que iriam posteriormente integrá-lo e que estavam sendo hostilizados
pela crítica e defensores dos cânones do academicismo.

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Capítulo 4
Realismo e Naturalismo
Realismo e naturalismo sempre foram ideais perseguidos por aqueles
que buscavam de alguma forma retratar o que consideravam ser o verdadei-
ro real. As pinturas rupestres do paleolítico superior eram dotadas de formas
com traços realistas, à medida que se procurava retratar os animais, como
representações mais fieis possíveis do modelo original, para, com isso, obter
sucesso na caça.
Com o passar do tempo da história das artes ocidentais, as representa-
ções visuais, via pinturas ou estátuas, alternavam conforme seu objetivo, ora
pela busca mais natural, ora pela busca de formas idealizadas. Vimos, p.ex.,
que, no medievo cristão, a plasticidade visual da época, assim como o canto
gregoriano, negava qualquer expressão da materialidade e sensualidade do
corpo, algo distinto do que acontecerá no Renascimento, quando a represen-
tação do corpo buscava certa síntese entre a idealidade das formas clássicas
do belo grego e a sensualidade humanista antropocêntrica mais realista dos
tempos modernos.
De qualquer forma, a mímesis “realista”, enquanto cânone da tradição,
sempre perdurou como uma espécie de reserva estético-estilística a ser usa-
da pelos artistas. Mas, se se buscava o figurativismo naturalista/realista, os
temas nem sempre o acompanhavam, cingidas de preferência a teores mito-
lógicos, bíblicos ou históricos.
O Realismo que começa a se manifestar na 2ª metade do séc. XIX,
como forte reagente ao Romantismo, possui suas especificidades relativas à
sua época. Se até então, pensava-se que as artes plásticas deviam expressar
os eventos e personagens históricas de maior relevo e que os camponeses ou
a nova classe operária emergida no seio das contradições e conflitos da nova
sociedade urbano-industrial capitalista, só seriam adequados às artes se esti-
vessem idealizados em suas formas, surge um grupo de artistas que insurge
contra as convenções acadêmicas. Nesse contexto irrompe a pintura realista,
caracterizada, sobretudo, pela necessidade de representar a realidade com a
mesma objetividade positivista dos cientistas naturais.
Ao contrário do que queria Baudelaire, não cabia ao artista “aperfeiçoar”
esteticamente a natureza, pois sua beleza residia na realidade tal como se

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MIRANDA, D. S. de

apresentava. A função do artista seria a de tão somente desvelar os aspectos


mais expressivos da realidade objetiva. A veemente crítica de Baudelaire aos
realistas origina-se de duas dimensões de sua poética: o uso da imaginação
criadora e a ruptura com a mímesis. Para ele, os realistas se limitavam a co-
piar a realidade, não a partir de seus sentimentos e imaginação, senão a partir
do que viam e julgavam ser o real em si. O Realismo buscava a imparcialida-
de, aquela objetividade positivista apontada acima, pois a representação do
real tal como se apresentava já era, em si, bela e verdadeira. Se Baudelaire
pregava ao artista ser discípulo apenas de si mesmo, devendo seguir as pul-
sões de sua imaginação e sentimento, realistas como Gustavo Courbet se
diziam discípulos apenas da natureza.
Por isso, o Realismo pictórico descartou completamente os temas míti-
cos, épicos, religiosos, históricos ou literários. Devia-se criar a partir da realidade
imediata e não imaginada. Com isso, surgiu uma vertente realista voltada para
o social, engajando-se em causas revolucionárias. Deu-se a politização de sua
arte. O grande desenvolvimento tecnológico das forças produtivas capitalistas,
com seu sistema fabril-industrial, provocou na outra ponta da sociedade o cres-
cimento da classe operária, vivendo nas grandes cidades sem as mínimas con-
dições de vida – condições salariais, de trabalho e de moradia. Surge então a
“pintura social”, denunciando as injustiças e o fosso das desigualdades entre a
opulência da burguesia detentora dos bens de produção, de um lado, e a massa
de operários, detentora apenas de sua força de trabalho, de outro.
Dentre os maiores representantes franceses do Realismo pictórico, es-
tão Gustave Courbet (1819-1877), Jean-François Millet (1814-1875) e Édou-
ard Manet (1832-1883), cada um com características bem distintas.
Recusadas suas telas pelo Salão de Paris, Courbet construiu, em 1855,
um rústico pavilhão bem próximo ao Salão, para a exposição de quarenta e
quatro quadros, auto-batizada de Le Realisme, G.Courbet, título que acabou
por nomear todo o movimento. Seus quadros resultavam num instantâneo da
realidade, como um clique fotográfico, resultando expressivas telas de cunho
sólido e concreto. A simpatia de Courbet pela causa dos trabalhadores e dos
despossuídos, como podemos ver na tela Moças peneirando o trigo (1853-54)
e Os cortadores de pedras (s/d), é flagrante.
Usava de cores fortes não nuançadas como o ocre, o marron e o pre-
to, conforme podemos perceber nos quadros citados. É importante observar
que as duas telas têm em comum cenas de trabalho representadas em grupo
distinto de mulheres e homens, cuja postura corporal retesada, tanto da moça
que penera os grãos de trigo e quanto do rapaz que carrega uma pesada
pedra, revela de forma exacerbadamente realística, o esforço do trabalho ma-
nual exigido dos trabalhadores para o desempenho de suas tarefas.

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

Moças peneirando o trigo


Courbet pertenceu aos quadros do anarquismo e,
como tal, se engajou nos movimentos revolucionários de
sua época, com ativa participação nos famosos eventos
históricos da Comuna de Paris de 1871, tendo, inclusive,
sido eleito para o seu Conselho. O pintor Jean-François
Millet é o artista igualmente dotado de sensibilidade social
e, para tanto, usa do paisagismo pictórico romântico para
composições plásticas de cenas prosaicas campesinas,
conforme faz nas telas A fiadeira, Ângelus (1859), Pastora
Os cortadores de pedra (II)
com seu rebanho (1864) e As respigaderas (1857).

As respigaderas (Millet)

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Nesta tela, o artista busca, igualmente, retratar o árduo trabalho feminino no


campo, em cores sombrias e formas fortes das vestes das mulheres, em nuances
coloridas das peças que cobrem suas cabeças, em contraste com o tom pastel
do chão do campo, dos montes de feno ao fundo, e o tônus das cores do céu.
Nenhum evento dramático, nem cena idílica campestre. São três camponesas
que se movem lentamente, concentradas no cumprimento de suas tarefas.

“Suas três camponesas assumiram uma dignidade mais natural e mais


convincente do que a dos heróis acadêmicos. O arranjo, que parece casu-
al à primeira vista, corrobora essa impressão de tranquilo equilíbrio. Há um
ritmo calculado no movimento e na distribuição das figuras que confere
estabilidade ao todo e nos faz sentir que o pintor considerava o trabalho
da colheita uma cena de solene significado” (GOMBRICH, op.cit., p. 511).

Manet, visto como precursor do Impressionismo, na fase inicial de sua


vida artística, contribuiu igualmente para o Realismo. Por descendência fa-
miliar, ele pertencia ao círculo burguês parisiense. Certamente, por isso, seu
realismo diferia do de Courbet, adotando certo ar aristocrático, passando
ao largo das questões sociais. Sendo, inicialmente aceito pelo convencio-
nalismo acadêmico, dele se afastou quando teve sua tela Almoço na relva
(1863), assim como vários trabalhos de outros artistas, rejeitada pelo júri do
Salão dos Artistas Franceses. Esse grupo de artistas recorreu ao Imperador
Napoleão III que concordou em montar uma exposição paralela ao Salão
Oficial, que se chamou Salão dos Recusados (“Salon des Refusés”), dele
participando, dentre outros, Paul Cézanne.
A iniciativa acabou por provocar certo sucesso, por vias oblíquas, visto que
um grande o público acorreu ao Salão, mais com intenções de apupar do que
celebrar um evento que acabou por levar muita
água para o moinho da renovação das artes mo-
dernas. O episódio inaugurou, de fato, um enfren-
tamento entre artistas renovadores e a estética
do oficialismo acadêmico, provocando cisões
entre os que os apoiavam e os que os rejeitavam.
O quadro recusado causou grande es-
cândalo na época, devido à presença de uma
mulher nua, displicentemente sentada, entre
dois homens elegantemente vestidos. Desco-
briu-se anos depois que a tela foi inspirada num
quadro da Renascença, O concerto campestre,
provavelmente do pintor Ticiano e um quadro
original de Rafael, representando um grupo de
divindades típicas do período clássico.
Almoço na Relva (Manet)

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

Não se trata de uma simples cópia. Manet se inspirou apenas nas per-
sonagens daquelas obras para criar uma composição nitidamente mais con-
temporânea. Sua originalidade em relação a tais obras se apresenta com
nitidez no realismo das personagens presentes na tela, pois se tratava de três
personalidades conhecidas da vida parisiense – uma modelo, um irmão e um
escultor amigo do artista –, e não figuras mitológicas típicas do classicismo
renascentista. A única figura mitológica é Vênus mais ao fundo. No canto es-
querdo inferior da tela, uma pequena composição de natureza morta.
Na aparente dispersão dos elementos constitutivos do quadro, existe
um sistema organizativo de formas triangulares que dá unidade plástico-or-
gânica à composição: três figuras em primeiro plano, a Vênus ao fundo sobre
as águas de um pequeno riacho, e um pássaro que sobrevoa toda a cena em
seu ponto mais elevado. A luminosidade do corpo da modelo contrasta com
os tons escuros dos homens vestidos e das árvores que emolduram a cena,
luminosidade que é replicada, em menor escala, na abertura da luz do sol no
cenário ao fundo. Críticos de arte apontam tal luminosidade como um traço
anunciador do Impressionismo que logo virá (v. PROENÇA, op.cit.p.135).

4.1. O Realismo e o Naturalismo literários


O escritor francês Honoré de Balzac (1799-1850) um dos nomes mais expres-
sivos do realismo literário, apesar de algumas obras terem sido criadas ainda
dentro da tradição do romantismo francês, dedicando-se ao que passou a ser
conhecido como “romance de costumes”, instaura o realismo das cenas prosai-
cas da vida privada francesa. Segundo o que o próprio Balzac gostava de afir-
mar, “A sociedade francesa seria ela mesma historiadora, não sendo eu senão
o secretário” (apud CUNHA, 2003, p. 531). A comédia humana, obra complexa
que reúne oitenta e oito romances, novelas e contos, cujo realismo exerceu de-
clarada influência no estilo naturalista de Emile Zola, busca retratar a realidade
da vida das elites francesas da época, sobretudo de uma aristocracia decaden-
te, a quem nutria simpatias, num mundo já nitidamente burguês.

“Que Balzac tenha sido obrigado a contrariar suas próprias simpatias


de classe, que ele veja a necessidade da derrota de seus aristocratas
favoritos e que ele os descreva como pessoas que não merecem melhor
destino, que ele veja os verdadeiros homens do futuro somente onde,
naquela época, poderiam ser vistos – eis o que eu considero um dos
maiores trunfos do realismo e uma das maiores características do velho
Balzac” (carta de Engels a Miss Harkness, em abril de 1888, apud VAS-
QUEZ, 1978, p. 32)

Outro romancista de grande envergadura na escola realista/natura-


lista é Gustave Flaubert (1821-1880), que demarcou a literatura francesa

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ainda influenciada por influxos românticos – cujo autoridade intelectual de


maior peso foi o escritor/poeta Victor Hugo (1802-1885), autor de Os mise-
ráveis –, pela profundidade de suas análises psicológicas, pela sua “verda-
de de pequenos e grandes fatos”, seu senso de realidade, sua clarividên-
cia sobre condutas sociais e pelo vigor estilístico em grandes romances,
como Madame Bovary (1857), e A educação sentimental (1869).
O primeiro, o mais famoso de sua verve, é um mergulho na tragédia da
vida romântica da província. A força de sua escrita foi tal que criou o termo bo-
varismo, tributário do nome da heroína Emma de Bovary, a personagem sem-
pre entediada com o prosaísmo da vida do interior, com o amor medíocre de
um casamento sem perspectivas, tornando-a uma mulher insaciável em rela-
ção à sua vida de pequeno-burguesa, casada com um médico provinciano, a
quem trai na busca de um amor sonhado que lhe trouxesse um outro sentido
de vida (v. referência do filme Madame Bovary, no final desta unidade).
Segundo consta, o romance teria um cunho muito auto-biográfico, e
provocara grande escândalo na época, tendo em vista que a própria burgue-
sia se viu ridicularizada por Flaubert. Ao ser levado às barras do tribunal, para
se defender contra as acusações de obsceno e imoral e perguntado quem era
a heroína do romance, teria respondido: “Madame Bovary sou eu”!
Não podemos deixar de mencionar a corrente literária que radicalizou
o realismo plástico, e que passou a ser conhecida como Naturalismo. Tal
corrente acrescentou, de fato, ao Realismo, uma extrema preocupação cien-
tífica, fruto do desenvolvimento das ciências experimentado na 2ª metade
do séc. XIX (evolucionismo darwinista, darwinismo social, determinismo ge-
ográfico, dentre outros princípios teóricos da época). O ambiente social, as-
sim como o meio físico e geográfico, passaram a ter peso na construção da
narrativa das personagens de romances oitocentistas. Determinismo e here-
ditariedade são elementos constitutivos para compor traços psicológicos de
personagens. Temas como adultério, traços patológicos, crimes e a situação
de miséria da população são descritos acentuando o páthos necessário para
a composição de cenas e tramas dos romances. Por tais razões,
o Naturalismo foi considerado um Realismo levado aos extremos.
Vejamos o autor mais identificado com o Naturalismo. O es-
critor francês Émile Zola (1840-1902) é sempre apontado como o
mais representativo do estilo. Seu texto O romance experimental,
de 1880 é considerado uma espécie de manifesto do movimento.
Mas sua obra mais expressiva, que mostra todo seu engajamento
à causa contra as condições subumanas dos trabalhadores das
minas francesas é Germinal (1885), que apresenta um salto de
qualidade na estética naturalista, colocando-a num patamar de
Emma Bovary com um amante (filme de puro realismo e crueza.
Jean Renoir)

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Para escrever o romance utilizou-se, talvez pela primeira vez na litera-


tura, do método de vivência participante/militante, para melhor captar a real
situação de trabalho nas minas de carvão da França, passando dois meses
trabalhando como autêntico mineiro, vivendo em seu meio, comendo e be-
bendo nas mesmas tavernas.
Experimentou no próprio corpo as condições de um trabalho penoso
que exigia extremo esforço para empurrar um pequeno vagão cheio de car-
vão, as condições de extrema periculosidade do trabalho subterrâneo em am-
biente que atinge extremos níveis de calor e de umidade, o trabalho de esca-
vação do carvão, a promiscuidade das casas dos mineiros, os baixos salários
e a fome. No momento mais agudo de conflito, Zola acompanha de perto o
movimento grevista dos mineiros.
Como resultado, o romance Germinal é um narrativa detalhista que des-
creve as condições subumanas de vida de uma comunidade de trabalhadores de
uma mina de carvão francesa. Após entrar em contato com o ideal socialista que
povoava o imaginário e a vida concreta da classe operária européia na época, os
mineradores revoltam-se contra a opressão e se organizam uma greve, exigindo
condições de vida e trabalho mais favoráveis. A manifestação é reprimida e neu-
tralizada, permanece entretanto viva a esperança de luta e conquista.
As idéias de Zola levaram-no ao engajamento a uma causa que mobili-
zou a França: sua carta aberta J’accuse (“Eu acuso”) ao presidente da Fran-
ça, Felix Faure, publicada na primeira página do jornal parisiense L’Aurore,
em 13 de janeiro de 1898, onde acusa o governo de anti-semitismo, por
condenar precipitadamente o capitão Alfred Dreyfus, militar do exército fran-
cês, por traição.

4.2. O realismo fotográfico


A fotografia foi um invento revolucionário com ressonâncias em vários aspec-
tos das artes do séc. XIX e seguinte. Ela aprofundará, de um lado, a questão
da representação realista das artes visuais, principalmente a questão da cópia
mimética, por isso, rejeitada por Baudelaire. Mas, sobretudo, junto com os
estudos da ótica e da incidência da luminosidade solar, ela irá obrigar os artis-
tas plásticos a repensarem a estética de suas composições, contributo maior
para os impressionistas que, sob o comando de Monet, se recusam a pintar
nos ambientes fechados de seus ateliers, levando seus cavaletes para pintar
ao ar livre (en plein air).
A invenção da fotografia introduziu, inclusive, na cena da crítica artísti-
ca, uma grande querela. Seria ela uma forma de arte ou não, sendo Charles
Baudelaire um dos seus críticos mais ferozes que, por razões já conhecidas,
defendia a ausência de valor estético num engenho que apenas copiava rea-

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MIRANDA, D. S. de

listicamente a natureza, sem nenhuma contribuição da imaginação inventiva


de uma subjetividade criadora. Ademais, a fotografia colocou em cheque a
concepção da arte como resultado do agenciamento de formas estéticas a
partir do uso direto da mão humana, visto ser possível se obter imagens sem
sua aplicação exclusiva.
A possibilidade da reprodução ad infinitum de cópias fotográficas intro-
duziria uma outra ordem de problema que atribuia valor estético apenas a um
só exemplar, o original criado pelo artista. Este critério avaliativo será retoman-
do nos anos 1930, com o famoso texto de um dos destacados membros da
chamada Escola de Frankfurt, o ensaísta filósofo Walter Benjamin que dedi-
cará dois importantes trabalhos sobre o tema: Pequena história da fotografia
e seu ensaio mais famoso, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade
técnica, dedicado, sobretudo, às possibilidades artísticas do cinema, invento
possibilitado a partir da invenção da fotografia.
Baudelaire entra plenamente no debate sobre a fotografia, afirmando
que uma das grandes ameaças à arte na época moderna é a indústria fotográ-
fica, onde vê o sonho da multidão ser realizado: ver sua própria imagem. Essa
nova invenção pode fornecer a imagem exata da natureza na sua reprodução,
podendo ampliar o que existe de minúsculo no universo microscópico natural,
exagerando suas formas, extremamente úteis para quem quer guardar na me-
mória a cópia da natureza, em estado perfeito.
Observa Baudelaire que a fotografia, enquanto cópia exata da natureza,
coincide com a idéia de arte como mímesis. Assim, a fotografia realiza, de
modo perfeito, a idéia de arte enquanto reprodução da natureza. Referindo-se
aos realistas, diz Baudelaire que a arte imitativa não necessita mais dos artis-
tas que compreendem o belo como a busca do verdadeiro, que é a imagem
perfeita da natureza. Eis o comentário áspero de Baudelaire (2002):

“um Deus vingador atendeu aos desejos dessa multidão. Daguerre foi
seu Messias. E então ela se diz: ‘já que a fotografia nos dá todas as
garantias desejáveis de exatidão (eles crêem nisso, os insensatos!), a
arte é a fotografia’. A partir desse momento, a sociedade imunda lan-
çou-se como um único Narciso, para contemplar sua trivial imagem
sobre o metal. Uma loucura, um fanatismo extraordinário tomou conta
de todos esses adoradores do sol” (p.801)

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

Baudelaire considera a fotografia como o refúgio dos pintores não dota-


dos de imaginação, possuidores de uma visão pequena e distorcida da arte.
Tais pintores não tiveram empenho suficiente para estudar, procurando na
fotografia o expediente mais disponível e próximo da arte imitadora, um modo
de se autoproclamarem artistas e de considerarem a fotografia uma arte.
Essa filha do progresso tecnológico representa tão somente um avanço
material e não espiritual. Sua atitude contrária ao progresso é extremamente
negativa. Progresso significa “queda progressiva da alma”, “predomínio pro-
gressivo da matéria”. Se Baudelaire elabora uma estética que foge totalmente
do realismo jamais poderia conceber o progresso de outro modo. Daí decorre
sua condenação à fotografia.
O receio de Baudelaire era de que a fotografia, considerada como arte,
substituísse a pintura, uma vez que o artista-fotógrafo precisava apenas acio-
nar o clique da máquina, e submeter o filme exposto à luz uma sequência de
procedimentos químicos, até chegar ao negativo, fazendo deste um número
infindável de cópias, tão precisas e perfeitas quanto a realidade que pretendia
reproduzir, captada pela câmera obscura (v. p. 801s).
O advento da fotografia não representou apenas uma impactante re-
volução técnica para o registro de eventos para documentar de forma ve-
rossímel, fatos históricos ou prosaicos da vida cotidiana. Ela possibilitou,
sobretudo, uma revolução estética para as artes visuais, provocando uma
profunda “crise de representação”, pois muitos artistas plásticos se viram im-
potentes, nos limites da arte mimética, de reproduzir a realidade tal como a
foto era capaz de fazer, o que os obrigou a novas formas representativas da

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MIRANDA, D. S. de

realidade, dedicando-se aos experimentos formais/visuais de novos modos


de expressão, o que está no germe de uma série de escolas e estilos que
virão emergir, sobretudo no séc. XX, mas cujas primeiras ressonâncias são
sentidas ainda no séc. XIX com o Impressionismo.

“Quando você vê tudo o que é possível exprimir por meio da fotografia, des-
cobre tudo o que não pode ficar por mais tempo no horizonte da represen-
tação pictoral. Por que o artista continuaria a tratar de assuntos que podem
ser obtidos com tanta precisão pela objetiva de um aparelho de fotografia?
Seria absurdo, não é?” (Trecho do diálogo de Picasso com o fotógrafo hún-
garo Brassai, em 1939, In “Arte no século XX”, apud CUNHA, op.cit.p. 291)

Charles Baudelaire (foto de Felix Nadar-c. 1856)

Atividades de avaliação
1. Considerando o tempo do Romantismo, quais são as principais dificulda-
des de sua identificação enquanto estilo, bem como seus principais traços
que o fazem diferenciar do Neo-classicismo?
2. Considerando a afirmação de Baudelaire que seu tempo foi crucial para
elaborar uma “teoria racional do belo”, descreva e analise essa teoria e o
seu tempo.

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

3. Quais as diferenças básicas entre os princípios estéticos do Romantismo


e do Realismo?
4. Elabore uma reflexão bem pessoal sobre a “crise da representação” trazida
pela fotografia, e seus principais impactos provocados pela sua invenção
nas artes da segunda metade do século XIX.

Texto complementar
Como funciona a daguerreotipia
O processo da daguerreotipia foi inventado por Luis Daguerre (1787-1851) e apresen-
tado na Academia de Ciências de Paris, em 19 de agosto de 1839. Essa data é geralmente
considerada o marco inicial da fotografia.
A daguerreotipia consiste num processo em que ocorre a formação de imagens sobre
uma placa de cobre recoberta por uma camada de prata. Esta placa é colocada numa
câmera escura – o daguerreótipo –, contendo um pequeno orifício por onde entra um
feixe de luz que projeta sobre a placa as imagens dos objetos que estão no exterior. Como
a prata é sensível à luz, as imagens ficam registradas na placa que, a seguir, é revelada
em vapor de mercúrio. Obtém-se assim uma imagem em negativo que, ao ser fixada em
solução alcalina, torna-se positiva.
Na verdade, a daguerreotipia nasceu de um princípio descoberto por Joseph Niepce
(1765-1833), que usava betume e lavanda sob a ação da luz para produzir imagens. Con-
tudo, os primeiros negativos que obteve apresentavam baixa densidade, ou seja, eram
esbranquiçados, com pouco contraste entre o claro e o escuro. Niepce teria realizado a
primeira fotografia por volta de 1826. Daguerre se associou a Niepce em 1829, com a fina-
lidade de aperfeiçoarem o processo inicial. No entanto, com a morte de Niepce, Daguerre
continuou pesquisando e conseguiu melhorar a impressão das imagens, introduzindo o
usa da prata. O daguerreótipo obteve sucesso e plena aceitação.
(PROENÇA, op.cit.p. 184, adaptado de Ana Maria Guariglia, Folha de São Paulo,
19/08/1987)

@
Leituras, filmes e sites
Filmes
Madame Bovary
O romance de Gustave Flaubert serviu de roteiro para várias versões no ci-
nema, dentre elas a de Claude Chabrol (1993), cineasta da Nouvelle Vague
francesa, e a do americano Tim Fywell (2000). Mas certamente a versão que
melhor se vincula à nossa história da arte, graças a uma especificidade esté-
tica de rara ocorrência, é a versão de Jean Renoir de 1933, grande cineasta
francês, filho do célebre pintor impressionista Pierre Auguste Renoir. O diretor
consegue levar à tela os usos e costumes da vida interiorana do séc. XIX

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MIRANDA, D. S. de

francês, quando a camponesa Emma se casa com um médico provinciano,


portanto um homem simples do interior, sem nenhuma ambição mundana,
enquanto Emma visa ascender socialmente, num ambiente adverso às suas
ambições. Ávida leitora de romances idílicos, Emma é progressivamente cor-
roída pela frustração e hostilidade ao que julga ser a mediocridade do marido.
Entediada pela monotonia conjugal e pela vida interiorana, procura fugir do
tédio da vida real, mediante a idealização de uma outra vida que tinha como
modelo o teor dos romances sentimentais, ora sonhando, ora buscando emo-
ções pelo adultério com vários amantes.
Richard Wagner
Longo filme, em quatro DVDs, do diretor Tony Palmer (1983), com o ator inglês
shakespeariano Richard Burton no papel do compositor, que retrata sua vida
e obra, desde antes da revolução de 1848, acompanhando o seu exílio na
Suíça, seu resgate pelo Rei Ludwig II da Bavária que o protege durante vários
anos, até o seu triunfo final na cidade alemã de Bayreuth, onde constrói um
teatro de dimensões adequadas para apresentar suas longas óperas, como
o ciclo do Anel do Nibelungo, tetralogia de sua obra operística. As músicas
inovadoras, como Tristão e Isolda, suas idéias políticas, seu encontro/desen-
contro com o filósofo Nietzsche, seu nacionalismo germânico exacerbado e
até o seu declarado anti-semitismo, são contextualizados e apresentados no
filme de forma extraordinária.
Quando Nietzsche chorou
Filme do diretor Pinchas Perry (2007), baseado no romance homônimo de
Irvin Yalom, traçando elementos ficcionais e reais, narra um encontro fictício
entre o filósofo alemão Friedrich Nietzsche e o médico Josef Breuer, professor
de Sigmund Freud. Nietzsche é ainda um desconhecido, pobre e com tendên-
cias suicidas. Breuer passa por uma má fase após ter se envolvido emocio-
nalmente com uma de suas pacientes, Bertha, com quem cria uma obsessão
sexual. Breuer é procurado por Lou Andreas-Salomé, escritora alemã de gran-
de personalidade sedutora e amiga de Nietzsche, com quem teve um relacio-
namento atribulado e que está empenhada em curá-lo de sua depressão.

Referências
BAUDELAIRE, Charles. Prosa e verso. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2002.
BAUMGART, Frizt. Breve história da arte. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2007.
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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

FUBINI, Enrico. La Estetica Musical del Siglo XVIII a nuestros Dias. Bar-
celona: Barral Ed. 1971.
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Parte 2
Do Impressionismo
à art nouveau do
fin-de-siècle Europeu

Objetivos
• Esta unidade busca introduzir o aluno na reflexão das artes da segunda
metade do século XIX, cujos cânones ficaram bastante abalados com o
devenvolvimento das pesquisas das propriedades da luz, bem como pela
invenção e difusão da fotografia, com grandes ressonâncias, sobretudo
nas manifestações dos movimentos como o Impressionismo, o Pós-im-
pressionismo e a art nouveau do fin-de-siècle europeu que já apontam
para as grandes rupturas que irão se efetivar pelas vanguardas modernis-
tas retratadas em vários movimentos e estilos do século XX.

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Capítulo 1
O Impressionismo
1.1. As condições socioculturais da 2ª metade do século
XIX europeu
O Impressionismo é visto por alguns analistas, a exemplo de Bernard Denvir
(1976), como o movimento artístico europeu mais importante, desde o Re-
nascimento, graças às inovações visuais que aportou ao mundo das artes. A
partir dele, o enfoque estético-conceitual da natureza alterou-se: no lugar da
tradicional figuração que a representava a partir do que nela se via, partiu-se
para o enfoque perceptivo da experiência visual do olhar que a contemplava.
O ano de 1874 é fixado como o momento deflagrador da revolução do
Impressionismo, termo derivado da tela Impressão, nascer do sol (1872), do
pintor Claude Monet. Ele eclodiu graças a um conjunto de causas ocorridas
nas diferentes esferas da vida europeia, sobretudo graças aos avanços tec-
nológicos e ao desenvolvimento científico da fotografia e da ótica, além da
pesquisa sobre a propriedade da luz e das cores, ocorridos no contexto de
grandes movimentos político-sociais que marcaram a vida política de vários
países do continente.

Impressão, nascer do sol (Monet)

A despeito da relativa autonomia da pulsão inventiva do artista, as in-


surreições artístico-culturais possuem seus condicionantes causais dissemi-

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MIRANDA, D. S. de

nados e derivados de experiências de caráter estético, de novos princípios e


perspectivas que vão sendo gradativamente consolidados até o seu momento
de deflagração, provocado por um inesperado evento, um texto-manifesto,
um gesto, ou mesmo, um fato aparentemente ocorrido sem maiores importân-
cias, quase ao acaso.
A Europa e a França em particular, atravessaram um século pleno
de acontecimentos que agitaram a vida dos seus habitantes: logo em seus
começos, as guerras napoleônicas seguidas de movimentos nacionalistas,
a restauração do Ancien Régime na França provocando as revoluções de
1830 e 1848, o Segundo Império de Napoleão (1848-1870), a guerra franco-
-prussiana e a unificação dos estados alemães e italianos (1870), a Comu-
na de Paris, (1871). O crescimento industrial consolidou o grande capital,
provocando no plano externo, a corrida imperialista de alguns países, rumo
aos novos mercados conquistados pela expansão colonial, e, no plano in-
terno, o acirramento das lutas político-ideológicas entre um monarquismo
decadente que buscava ainda alguma sobrevida, e os embates de ideias
entre liberais, socialistas e anarquistas. Ao mesmo tempo, a produção em
massa das novidades mercadológicas, acarretando um maior consumo,
a popularidade da fotografia (v. realismo fotográfico) e a influência da im-
prensa – tanto para a difusão das diferentes ideologias como para fins de
entretenimento, a exemplo dos folhetins romanescos – contribuem para
gestar novas sociabilidades e atitudes baseadas no dinamismo citadino e
a espiral de sensações efêmeras.
A intensidade do processo de industrialização criou condições para
a consolidação de novos segmentos sociais – classes médias e proletá-
rias – submetidos a uma intensa excitação de signos massivos da socia-
bilidade urbana. Criou-se assim uma ciranda vertiginosa de nexos: novos
segmentos/ novos gostos/novas demandas/ novas estéticas, enfim, novos
códigos sígnicos elaborados no seio dessa moderna sociabilidade urbano-
-industrial, sobretudo no campo das artes e da cultura. Pairava no ar a ne-
cessidade de uma nova estética. Nesse contexto de desejo de renovação
surge o movimento impressionista que será, inclusive, responsável pela
abertura de novas vias para os movimentos vanguardistas das grandes
tendências das artes do séc. XX.

1.2. Pequena história do movimento


Nesse torvelinho de desejos de renovação, o campo das artes plásticas
foi o primeiro a se mostrar mais sensível para reagir ao convencionalismo
acadêmico, ainda marcado, sobretudo, por valores neoclássicos, e, em me-

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

nor escala, pela estética romântica. Instituições oficiais como a Academia das
Belas-Artes eram alvo de constantes ataques cada vez mais acirrados. Os
Salões oficiais para mostra das telas, de grande importância para a carreira
dos artistas, sobretudo, os mais jovens – muitos deles freqüentavam cursos
livres em ateliês não acadêmicos –, desejosos de ganhar reputação no mer-
cado das artes, começaram a ser objeto de contínua insatisfação. As obras
eram escolhidas por um grande júri, formados por renomados pintores e pro-
fessores acadêmicos (os “mestres-mandarim”, segundo Baudelaire), e seus
critérios de escolha começaram a exasperar cada vez mais, gerando protes-
tos públicos.
Nos círculos boêmios, admirava-se justamente a arte de estética mais
livre daqueles que haviam se insurgido contra os valores acadêmicos de seu
tempo, a exemplo do realista Gustave Courbet. Entre esses jovens achavam-
-se Édouard Manet (que já ganhara uma menção honrosa no Salão de 1861),
Claude Monet, Camille Pissaro, Paul Cézanne, Auguste Renoir e Alfred Sisley.
O apoio de artistas mais experientes nos contatos com marchands, como o
pintor Eugène Boudin, grande amigo e conselheiro de Monet, tido como ante-
cipador do Impressionismo, foi de grande importância nesses começos ainda
hesitantes. Nas palavras de Boudin,

"... a época dos românticos já estava encerrada. Daqui por diante, de-
vemos buscar as belezas simples da natureza, vista em toda a sua
variedade e frescor [...] Tudo o que pintado diretamente no lugar onde
se encontra tem sempre uma força, um vigor e uma vivacidade que não
se volta a encontrar no ateliê [...] (deve-se) mostrar uma obstinação
extrema em conservar a primeira impressão, que é a melhor e a mais
verdadeira” (apud CUNHA, op.cit. p. 346).

Para se ter a ideia da emulação artística no campo das artes plás-


ticas da França da época, basta considerar a quantidade de obras envia-
das para a seleção do grande júri do Salão de 1863: em torno de cinco mil
trabalhos, sendo que desses, cerca de três mil foram recusados pelo júri.
Pode-se imaginar a reação do meio artístico contra tal decisão. Ressoan-
do fortemente nos periódicos da época, toda essa agitação chegou aos
ouvidos do imperador que, inesperadamente, e por vias oblíquas, ajudou
a deflagrar o movimento impressionista, ao autorizar uma exposição alter-
nativa à oficial, o que foi devidamente documentado no jornal Moniteur, de
24 de abril daquele ano.
Como vimos, em 1855, Courbet já havia usado um espaço alternativo
para exposição de suas obras, inaugurando o Realismo. Embora o afluxo para
ver as obras dos recusados tenha sido grande, movido mais curiosidade do
que aprovação à arte dos novos, o salão foi mal recebido pelo público que

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demonstrou uma hilaridade hostil, assim como a imprensa, mesmo aquela


que sempre se mostrava mais simpática aos jovens artistas. Somente perso-
nalidades como Émile Zola e Baudelaire tomaram partido das obras expostas,
por nela perceberem marcas revolucionárias da modernidade.
Após o Salão dos Recusados, muitos dos artistas passaram a se en-
contrar para refletir sobre as possibilidades de suas obras que, a despeito das
singulares estilísticas de cada um, perseguiam algo novo que já pairava no ar,
coesionados pela preocupação de encontrar uma nova estética que revolu-
cionasse as artes de seu tempo. É interessante notar que, nos anos 1860, o
termo impressão para designar algo dos trabalhos do grupo começava a cir-
cular recorrentemente, ora de forma depreciativa, ora elogiosa. Referindo-se
ao jovem Charles Daubigny, visto como o mais transgressor dessa geração, o
escritor/poeta Théophile Gautier fez o seguinte comentário:

“É realmente lamentável que este paisagista de sentimento tão autên-


tico, tão justo e natural, dê-se por satisfeito com uma impressão e seja
tão descuidado com os detalhes. Seus quadros não passam de esbo-
ços [...] oferecem apenas manchas de cor justapostas" (apud Moreau-
-Nélaton, Daubigny raconté par lui-même, In CUNHA, op.cit., p 346).

Por outro lado, no mesmo ano de 1863, o crítico Jules Antoine Castag-
nary, amigo e defensor de Courbet, fazia o seguinte comentário sobre Johan
Jongkind, pintor de origem holandesa que sofrera influências de Monet: "Gos-
to muito, pois é um artista até as pontas dos dedos, e nele vejo uma sensibi-
lidade rara e genuína. Nele, tudo consiste na impressão” (apud CUNHA, id.
p. 347). A constituição de um corpo de jurados mais receptivo aos novos, no
Salão de 1865, fez com que os pintores jovens participassem, destacando-se
Degas, Monet, Pissaro, Manet, Renoir e Sisley. Cézanne ainda não se faz
presente. Na época, a crítica se divide, ora com ataques acirrados, ora com
defesas apaixonadas.
No salão de 1866, as discussões recrudescem graças à defesa
explícita de Zola a favor de Cézanne, cuja rejeição ao seu trabalho pa-
recia algo já anunciada, pressentida pelo escritor que reage antecipa-
damente mediante três artigos contundentes contra o corpo de jurados
e a estética acadêmica. Sugere uma reedição do Salão dos Recusa-
dos. Mas a reação mais dura estava reservada para a mostra seguin-
te (1867), quando muitos dos artistas “realistas”, designação corrente
dada aos futuros impressionistas, foram desclassificados.
De qualquer forma, todos esses percalços e provações serviram
para temperar a vontade desses artistas, passando a exercer um impor-
tante papel na coesão mais solidária entre eles, fazendo-os se aproximar

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

mais e mais uns dos outros. Entre 1866 e 1869, como era costume dos
círculos boêmios da Paris, capital do Século XIX, na feliz expressão de
Walter Benjamin, passam a se reunir no café Guerbois, lugar de intensa
dialogia na partilha de ideias, métodos e novos procedimentos técnicos, no
cotejo de convicções, divergências, na busca comum dos rumos do movi-
mento. A guerra franco-prussiana no início da década seguinte, dispersa
temporariamente o grupo.
Finda a guerra, com a derrota francesa e a restauração da III República,
e a experiência da Comuna de Paris em 1871, os artistas irreverentes do café
Guerbois reúnem-se para novas investidas, julgando que novos ventos lhes
favoreciam. Um marchand chamado Paul Durand-Ruel, sensível à nova esté-
tica, decide investir em 21 obras de diversos artistas como Manet, Monet, Pis-
saro, Sisley e Degas. Acreditando na mudança positiva do ambiente cultural e
estético da França, nos anos 1870, Monet, na melhor “tradição” das mostras
alternativas, lança, em 1874, a idéia de um salão unificador, subvencionado
pelos próprios artistas, para, assim, se libertarem definitivamente do júri e dos
“mestres-mandarim”, o que é aceito por todos, à exceção de Manet – ainda
sentindo o sucesso obtido no Salão do ano anterior, teme que aquela ousadia
pudesse lhe fechar as portas da Academia.
Assim, eles organizam sua primeira exposição no estúdio do fotógrafo
Félix Nadar (não por acaso, devido à importância da fotografia para o mo-
vimento), com telas de Auguste Renoir, Edgar Degas, Alfred Sisley, Berthe
Morisot, Claude Monet, contando ainda com a adesão de outras personalida-
des do mundo das artes plásticas da geração anterior como o pintor Eugène
Boudin e o gravurista Félix Bracquemond, num total de 29 participantes e 165
trabalhos, resultado bastante expressivo considerando as condições hostis da
época para a nova proposta que desafiava a tradição canônica da Academia
Real das Artes, dos “mestres-mandarim” de sempre, da má-vontade da crítica
da imprensa e do público de um modo geral. Nesse Salão alternativo sobres-
saia a tela Impressão: o nascer do sol, de Monet.
Referindo-se diretamente a essa tela, surge o juízo pejorativo de Louis
Leroy, que, achando risível o título dado pelo artista, usa da ironia dizendo-se
“impressionado” pela “impressão” da suavidade do pincel do artista, afirmando
que um papel de parede (elemento imprescindível para a decoração de inte-
riores francesa) era mais elaborado do que aquela cena marinha.
Vemos, portanto, que, oscilando entre apreços e desprezos, o termo
que já vinha circulando acaba sendo aceito pelo próprio Monet e outros artis-
tas que o adotam, monstrando-se cônscios de estar criando um movimento
profundamente renovador para as artes plásticas. O movimento, no decor-
rer das décadas seguintes até a virada do séc. XX, provocou, além do que

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ocorreu nas artes plásticas, marcantes ressonâncias em outras linguagens,


a exemplo da literatura e da música, tendo seu maior representante nesta
última, o compositor Claude Debussy. Assim, a despeito de todos os per-
calços, vicissitudes e embaraços, o Impressionismo acabou sendo aceito,
conquistando um relevante lugar na história da pintura, tornando-se o grande
paradigma estético, ao inspirar significantes rupturas das artes do séc. XX.
É interessante fazermos aqui um cotejo com a arte musical, tendo em
mente o que ocorrera em meados do séc. XIX. Se o cromatismo de Wagner
presente no acorde inicial da ópera Tristão e Isolda anuncia mas não rompe
em definitivo com a tradição musical tonal, o que irá ocorrer somente com
o dodecafonismo de Arnold Schönberg, nos anos 1920, algo similar ocorre
com o Impressionismo, que anuncia mas não rompe em definitivo com a pin-
tura-figurativa da tradição, o que irá ocorrer somente no século seguinte, so-
bretudo com o Abstracionismo não figurativo de várias correntes vindouras.

1.3. A estética impressionista


Os impressionistas descartaram tanto os cânones acadêmicos
como os preceitos do Realismo. Buscaram os elementos primeiros
e fundamentais plásticos não mais focados em temáticas nobres ou
na cópia fiel da realidade, mas procuraram enxergar na tela a obra de
arte em si mesma. O saber acumulado sobre a ótica e a incidência
da luz, bem como o estudo do movimento e seus efeitos efêmeros e
fugazes da modernidade foram ressignificados esteticamente em rá-
pidas e grossas pinceladas, como principal elemento da plasticidade
impressionista, cujas telas eram pintadas en plein air para que o artista
Claude Monet em seu barco-estúdio pudesse captar melhor as variações da luminosidade natural do dia,
(Manet) bem como as variações cromáticas da natureza, algo já preconizado
por alguns românticos como Delacroix, através da consigna "il faut
sortir de l'atelier!" (“é preciso abandonar o atelier”).
Mais uma vez, a figura de Monet ganha relevância, ao impulsionar seus
colegas a abandonar o ambiente fechado dos estúdios e só pintar diante da
luz natural. Para isso equipou um pequeno barco, espécie de um estúdio mí-
nimo móvel, para poder observar as variações da luz natural e os efeitos pro-
vocados nas águas do rio. Manet, que o visitara nesse pequeno barco lhe fez
homenagem retratando-o na tela Claude Monet em seu barco-estúdio (1870).
Para a nova estética, a pintura devia revelar as diferentes tonalidades dos
objetos adquiridas de forma distinta conforme a incidência da luz do sol no
decorrer do dia. Tanto a natureza como as motivações para a arte se alteram
a cada instante “ao passar uma nuvem diante do sol, ou a provocar reflexos
sobre a água ao sabor do vento” (GOMBRICH, op.cit. p. 518).

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

O artista não devia perder tempo para misturar e unir suas cores na
palheta, procurando efeitos cromáticos em suas tonalidades, conforme os câ-
nones da tradição, mas deviam levá-las de forma pura diretamente à tela, em
pequenos golpes fragmentados do pincel, e colocadas lado a lado, não se
preocupando com os detalhes, senão com o efeito estético obtido no todo da
obra, cabendo ao olhar contemplante combinar as várias tonalidade e cores
durante o processo de formação da imagem e assim obter, pela fruição, o
resultado plástico final. Para isso, era importante captar o momento da pintura
instantânea, tendo como referência perceptiva o clique fotográfico.
Com ousadia e irreverência plástica, a fluidez dos contornos fazia as
figuras perderem nitidez e precisão, visto que o desenho deixa de ser o ele-
mento estruturante da composição pictórica para dar lugar à plasticidade das
formas obtidas pelo uso de manchas e cores transpostas para a tela sem
preparação, a partir das sensações visuais captadas de imediato. O preto é
praticamente banido e as partes sombreadas, representadas por ele na esté-
tica tradicional, ganham luminosidade colorida.
O contraste claro-escuro devia ser obtido pelo jogo de luz e sombra
conforme a lei das cores complementares, a exemplo do amarelo próximo à
cor violeta. Certamente a maior contribuição da estética impressionista reside
no procedimento da mistura das cores e as tonalidades obtidas que deixam
de ser uma questão técnica para ganhar uma dimensão ótica (v. PROENÇA,
op.cit. p.140). De fato, como vimos anteriormente, os efei-
tos da pesquisa ótica e a invenção da fotografia provoca-
ram um influxo decisivo sobre a composição de cores e
a formação de imagens na retina do olhar contemplante,
ressoando profundamente nas técnicas da plasticidade
impressionista.
Quanto á concepção temática, afastam-se da pin-
tura realista, não se dedicando a causas sociais. Nas
suas telas são recorrentes cenas ribeirinhas, em jardins,
cafés, teatros e festas. Pinta-se um instante de algo em
permanente mutação. Mas é importante frisar que nem
todos os adeptos do Impressionismo seguiram à risca
todos seus procedimentos, a exemplo de Edgar Degas
(1834-1917), dono de uma carreira bem pessoal.
De rara formação acadêmica, ao contrário dos de-
mais, Degas nutria admiração por Ingres, fazendo, com
isso valorizar mais o desenho do que a cor, paixão decla-
rada dos impressionistas. Ademais, Degas foi pintor co-
medido de paisagens e de cenas en plein air. Suas telas A primeira bailarina (Degas c.1878)

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MIRANDA, D. S. de

são inspiradas em cenas de interiores e sua luz é preferencialmente artificial.


Ele mesmo gostava de se autodenominar de “realista” ou artista independen-
te. O que o identificava, sobretudo, com os demais colegas do movimento era
a captação fotográfica de temas dos instantes da vida das pessoas – uma
cena do cotidiano de senhores burgueses numa cena de pregão da bolsa
(A bolsa de algodão de Nova Orleans de 1873) ou um postura corporal de
cenas prosaicas de mulheres se banhando e se penteado ou a série com o
tema das mulheres bailarinas (A primeira bailarina de 1878). O instantâneo
captado pelo pincel de Degas passa uma autêntica atmosfera fixada por um
clique fotográfico.
Outra característica que o diferencia dos demais impressionistas volta-
dos mais à pintura, reside no fato de Degas se dedicar também a pequenas
esculturas forjadas em bronze, cuja expressiva parte desse conjuntos de peças
encontra-se no acervo permanente do MASP em S. Paulo, nas 73 peças adqui-
ridas pelo colecionador Assis Chateaubriand, dentre elas A bailarina de 14 anos
(1 m de altura), uma exceção entre peças de dimensão mais reduzida.
Contudo, certamente a obra que melhor sintetiza toda a integridade da
estética impressionista é a série de telas A catedral
de Rouen pintada por Monet entre 1892-93, perfa-
zendo 50 imagens. Observando a fachada desse
magnífico templo gótico, o artista retratou-o em vá-
rios momentos do dia, a partir de diferentes pontos
de vistas, desde sua exposição em pleno sol ao pré-
dio envolto em névoa azulada, procurando sempre
realçar as diferenças da incidência da luz e as cores
expressas nas tonalidades cromáticas que a edifica-
ção tomava no decorrer das horas do dia e as dife-
rentes impressões que lhe causavam.

1.4. A música impressionista


O compositor mais identificado com o Impressio-
nismo musical é o francês Claude Debussy (1862-
1918), qualificação que não goza de unanimidade,
visto que, para certos autores, é difícil transpor tal
designação, aplicada a uma linguagem plástica
como a pintura, para a linguagem musical, tida
como a mais abstrata e subjetiva das artes.
Inicialmente impactado por Wagner, ele fre-
A Catedral de Rouen (Monet) quentou os festivais de Bayreuth (1888 e 89), tornan-

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do-se “vítima do feitiço de Parsifal” (ROSS, 2009, p. 54). Mas logo se desvenci- Ninfas e Náiades
lha desse feitiço. A busca por novas linguagens o conduziu a outras fontes. Na As ninfas, consideradas
Exposição Universal de Paris de 1889, ele entra em contato com as sonorida- pequenas divindades,
des “exóticas” de países colonizados, cujas culturas musicais deslumbravam a são figuras femininas
pertencentes à
escuta européia, como as escalas ciganas, moçárabes, russas, e outros modos
corte dos deuses da
da Europa oriental. Debussy restou maravilhado com os efeitos das ressonân- mitologia grega, sendo
cias dos gongos de uma trupe teatral do Vietnam, bem como um conjunto de frequentemente alvo
gamelão javanês, com sua escala minimalista pentatônica, ao provocar uma da cobiça luxuriosa
dos sátiros. Náiades
cascata delicada de timbres que deixavam uma animação suspensa no ar.
são ninfas aquáticas
Sobre isso, escreveu Debussy: “contém todas as gradações, até mes- (nascentes, rios, lagos,
mo algumas que não sabemos mais nomear, de modo que tônica e dominan- fontes e pântanos)
extremamente belas,
te [tons básicos do código tonal] não passam de fantasmas vazios para uso
semelhantes às sereias,
de crianças espertas” (apud, ROSS, op.cit. 55). No meio dessa profusão de igualmente dotadas de
sons, a escala de tons inteiros, sua sonoridade mais característica, inspirada vozes inebriantes.
nas práticas musicais da Europa central, sobretudo russas, ganha proemi-
nência. Foi seu uso reiterado que deixava pairar no ar uma atmosfera de per- O russo León Bakst
(1866-1924) foi pintor,
manente suspensão, passando uma ideia de paisagem luminosa sem con-
cenógrafo gravurista,
tornos definidos que revelou afinidades estéticas com o estilo impressionista. ilustrador e figurinista,
Sua composição “Prelúdio à tarde de um fauno”, em 1894, poema sin- com forte intervenção
na cena artística de
fônico baseado em Stéphane Mallarmé, é apontada como marco da música
sua época (virada do
moderna. O poema conta, num clima de extrema sensualidade, a história de século XX). Frequentou
uma figura mítica, um fauno que toca sua flauta num bosque e fica excitado intensamente o círculo
com a visão de outras figuras míticas femininas, ninfas e náiades*, e tenta artístico-literário da
Rússia, cujo integrante
alcançá-las em vão. Extremamente fatigado se entrega a um profundo sono,
mais ilustre era o crítico
conseguindo, nas visões sonhadas, alcançar as figuras femininas. de arte e empresário
Várias passagens do prelúdio sugerem at- Sergei Diaghilev, fundador
do Ballets Russes.
mosferas fugidias, mais um traço apontado como
Conviveu com artistas
tendo correspondência com a estética impressio- do estilo simbolista, a
nista, sem a progressão lógica de um todo temá- ser vistos mais adiante,
tico típico do classicismo (a exemplo da forma- dos quais recebeu certa
influência. Foi também
-sonata), ou um leitmotiv do Drama wagneriano
professor de arte, tendo
(pequenos motivos melódicos vinculados a perso- como aluno, entre 1908-
nagens ou situações dramáticas). O poema sinfô- 10, o pintor Marc Chagall
nico inspirou os Ballets russes de Vaslav Nijinsky (1887-1985), artista
russo que transitou na
em 1912, considerado revolucionário na ocasião,
estética vanguardista das
devido à sua extrema sensualidade. primeiras décadas do
Sentindo-se mais livre dos constrangimen- séc. XX, como o Cubismo
e Fauvismo, deles
tos que exigiam o uso da dialética tensão/repou-
recebendo influxos em
so do sistema tonal, buscou satisfações estéticas O Fauno Nijinsky na arte de sua longuíssima carreira
numa espécie de “livre prazer melódico” em blo- León Bakst artística posterior.

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MIRANDA, D. S. de

cos sonoros, bem distantes daquele discurso tonal, desde que lhe provocas-
sem uma sutil e suave escuta. Outras obras que lhe conferem a qualificação
de impressionista são os Noturnos (Nuvens, festas e sereias) e La mer, peças
onde é ressaltado o clima marcado pela suavidade fugidia de caráter fluido
e vago, com sutis jogos harmônico-melódicos, em que as formas musicais
aparentam se dissolver. Debussy valorizou acordes isolados, timbres, pau-
sas, cotejos contrastante de registros. Assim como o Impressionismo plásti-
co, sua música trouxe enorme contribuição para a construção de uma nova
fase da música erudita ocidental.

1.5. A escultura (impressionista?) de Auguste Rodin e


Camille Claudel
Um artista que apresenta percalços para definir seu estilo é o es-
cultor Auguste Rodin (1840-1917) – mesmo ano de nascimento de
Monet –, tendo um raro e extraordinário reconhecimento ainda em
vida, talvez um das maiores glórias recebidas por um artista em seu
próprio tempo. Ele foi visto ora como um romântico tardio, ora como
um realista ou um impressionista, ou então como integrante da art
nouveau do fin-de-siècle europeu, o que pode se explicar talvez
pela existência de 77 anos que o fez conviver com a arte de dife-
rentes matizes e conhecer diferentes correntes e escolas.
Se seu primeiro trabalho, a Idade do bronze (1877), impres-
siona a crítica e o público pelo seu intenso realismo, outras obras
o sinalizam como impressionista. Gombrich, p.ex., atenta para as
violentas discussões entre seus críticos, provocadas por algumas
de suas obras, identificando-o com os rebeldes impressionistas, so-
A mão de Deus (Rodin) bretudo pelo desprezo que Rodin nutriu pela superfície bem acaba-
da, assim como os impressionistas, deixando algo para ser completado pelo
olhar fruidor.
Em certas criações, como A mão de Deus (1898), deixou “parte da pe-
dra sem tocar para passar a impressão de que sua figura estava emergindo
do caos e tomando forma” (GOMBRICH, op.cit. p. 528), onde deixa escapar
certa ambiguidade intencional em que a mão criadora divina é a própria mão
do escultor em plena atividade inventiva. Para Rodin, assim como também
para Rembrant, uma obra era dada por finda quando alcançava seus objeti-
vos artísticos.
A análise de Rodin, de sua arte e seu tempo, ficaria incompleta se não
considerássemos a escultora Camille Claudel (1864-1943), figura feminina,
rara num mundo quase exclusivo de homens artistas. Camille, irmã mais ve-

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

lha do poeta francês Paul Claudel, teve uma intensa e tumultuada relação
amorosa com Rodin (v. referência do filme Camille Claudel), com quem convi-
veu e partilhou sua estética e obras.
Nascida no interior da França, logo cedo, Camille demonstra um talento
precoce para esculpir. Com 17 anos, toma o rumo de Paris e ingressa na acade-
mia que tem como mestre Auguste Rodin. Lá cria suas primeiras obras que nos
chegam ao conhecimento, como Paul aos treze anos, dedicada ao irmão. Seu
trabalho impressiona o mestre que reconhece seu talento pela solidez obtida.
Admitida, logo a seguir, no atelier de Rodin, colabora na execução das
Portas do Inferno inspirada na Divina Comédia de Dante Alighieri, onde, inclu-
sive, a célebre escultura O pensador, em menor dimensão, compõe o portal,
e o monumento Os burgueses de Calais, uma de suas obras mais impactan-
tes. Tendo colaborado durante anos com o escultor, segundo alguns críticos,
obras de um ou de outro possuem tantas afinidades e semelhanças de con-
cepção e estilo que não se pode saber com precisão qual a obra do mestre ou
da discípula, ou quem inspirou quem ou quem copiou quem.
Entrando num ciclo bastante tumultuado em sua relação com Rodin,
procura se autonomizar e se distanciar, tanto na escolha temática como no
tratamento escultórico. Tal distanciamento segue até o rompimento final em
1898. A ruptura é marcada e narrada pela famosa obra A Idade Madura, ex-
pressão de fim de uma fase e início de um novo e sofrido ciclo criativo.

A idade madura (Camille Claudel)

Vivendo só, as perturbações mentais a fazem ingressar num ciclo para-


noico. Críticos amigos ajudam a organizar duas grandes exposições, para lhe
proporcionar reconhecimento, segurança afetiva e financeira. As exposições
obtêm, de fato, grande sucesso de crítica, o que não foi suficiente para fazer

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MIRANDA, D. S. de

Camille sair da crise, já doente demais para se reconfortar com o êxito obti-
do. É desta fase a escultura O abandono (1905), onde Camille ousa apre-
sentar um nu masculino ajoelhado diante da mulher que, de pé, em posição
desejante, parece querer se entregar ao ato de amor, algo bastante inco-
mum numa obra de artista mulher. A escultura revela em estado puro todo o
páthos da artista, na integridade e justeza do sentido original do termo grego.
Sua saúde mental sofre novos surtos de paranoia. Acusa Rodin de
querer se apossar de seus trabalhos, passando a viver um grande abatimen-
to físico e intensa depressão, recusando se alimentar e desconfiando de
todos. A morte do pai, em 1913, agrava ainda mais esse quadro. Passa seus
últimos 30 anos de vida praticamente internada numa instituição do interior,
onde falece em 19 de outubro de 1943, aos 79 anos incompletos.
Unidos e separados em vida, por uma conflituosa relação
de amor/ódio, os dois se acham atualmente reunidos na perma-
nência da arte de ambos sob o mesmo teto do Museu de Rodin,
em Paris. As obras citadas lá se encontram, bem como a escultura
O homem que anda (“L’homme qui marche”) realizada entre 1900-07, uma
das mais imponentes, um gigante majestoso de mais de 2 metros de altura em
bronze esculpido, comparável a outra obra de imponência monumental, de
quase 3 metros de altura, em homenagem a Honoré de Balzac (1892-1897),
atualmente nos jardins do Museu.

Honoré de Balzac (Rodin)

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

O homem que caminha (Rodin)


O que mais impressiona em O homem que anda, apresentada pela pri-
meira vez ao público, no pavilhão especial reservado a Rodin da Exposição
Universal de 1900, é a sensação ambivalente contida em duas situações dia-
metralmente opostas. Rodin consegue passar a ideia de solidez fixa na postura
corporal da escultura de um homem sem cabeça e sem braços em que inte-
ressa tão somente expressar parte do corpo – o torso e pernas – firmemente
plantada no chão mas que, a um só tempo, parece querer, a qualquer momento,
se arrancar da base que lhe sustenta, se projetando totalmente para a frente
para expressar a sensação de movimento do corpo que deseja caminhar. Esta
escultura, assim como O torso, se apresenta de forma incompleta, revelando
apenas o essencial para o artista, passando talvez a noção de que a porção
apresentada já é plenamente suficiente pelo sentido nela contido do todo.

Texto complementar
Sobre a Catedral de Monet
“Nesse ano [1892], de passagem a Rouen, ele ficou encantado pela catedral da ci-
dade. Da janela, ele não a via inteiramente, ele conseguia perceber apenas a fachada e
isso determinava a composição das telas da primeira fase do ciclo: o olhar do pintor não
vislumbrava senão a fachada e uma pequena fração do céu sobre ela. Na composição,

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MIRANDA, D. S. de

a catedral transformada pelas mãos talentosas de um arquiteto e de um escultor numa


espécie de rendilhado de pedra, ou mais precisamente, uma parte desse edificío, ocupa
toda a tela. [...] A segunda parte do ciclo foi pintada em 1893 [...]. Monet pintou a catedral
de um outro ponto de vista. [... ...]// No decorrer desse trabalho, Monet travou uma luta
encarniçada com o sol. O que mais o interessava na ocasião, era o jogo de nuances. Reu-
tersward nota com precisão que um dos traços mais remarcáveis da série Catedrais são
as variações dos valores: ‘toques luminosos fortes e débeis que se entretecem em novas
combinações de nuances, o jogo vivo de reflexos transmitiam os efeitos luminosos quase
imperceptíveis’”.

(In CLAUDE MONET, catálogo do artista, pp. 60 e 66)

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Capítulo 2
O Pós-Impressionismo e o
Pontilhismo
Uma das ressonâncias mais diretas do Impressionismo se reflete em al-
guns artistas contemporâneos do movimento, como o holandês Vicent Van
Gogh (1853-1890) e o francês Paul Gauguin (1848-1903), representantes
do chamado Pós-Impressionismo, período que vai da última exposição
impressionista em 1886 ao surgimento do Cubismo, na primeira década
do séc. XX. Além desses dois artistas, o movimento abriga pintores de
tendências bem distintas, como Paul Cézanne (1839-1906), remanescen-
te do Impressionismo e Georges Seurat (1859-1891), também conhecido
integrante do Pontilhismo.
A arte de Vicent Van Gogh, quando assume a pintura de vez, é pura pai-
xão em forma de cor – seu elemento fundamental para a pintura –, e luz. Até de-
cidir pela arte, por sugestão do irmão Theo, o que fez já em idade madura, teve
uma trajetória meio errática e uma existência praticamente solitária, aliviada pela
convivência com o irmão, com quem manteve intensa correspondência quando
separados, cujas cartas formam uma espécie de ininterrupto diário, onde ex-
põe suas noções estéticas, com impressionantes passagens de sua visão de
vida. Nunca chegou a constituir uma família nem sobreviver por seus próprios
meios. Teria vendido poucos quadros em vida, por valores bem modestos. Aos
37 anos, não resiste a uma de suas constantes crises e se suicida.
Filho de um pastor protestante, era homem pro-
fundamente religioso, chegando a pregar a bíblia entre
os mineiros belgas, fase de sua pintura ligada à estética
tradicional holandesa, pelo uso do claro-escuro e o temá-
rio social. A tela Os comedores de batata (1885) é dessa
fase e nos revela um estética de tonalidade sombria e de
pessoas com semblante melancõlico.
Depois de viver com a família, e de algumas rela-
ções amorosas frustradas, inclusive tentativas de casa-
mento, muda-se para Paris, em 1886, dividindo um apar-
tamento com o irmão, em Montmartre. Por intermédio
de Theo, que trabalhava numa loja de arte, trava conhe- Os comedores de batata (Van Gogh)

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MIRANDA, D. S. de

cimento com renomados artistas impressionistas como Monet, Renoir, Sis-


ley, Pissaro, além de Signac, Seurat e Toulouse Lautrec. Este o introduz no
consumo do absinto, bebida bastante popular na época, também conhecida
como "fada verde" devido aos efeitos alucinógenos, usada no meio artístico-
-boêmio parisiense. Na ocasião, abandona a temática sombria da fase holan-
desa, adotando tons mais claros. Ao conhecer a obra de Millet, começou a
nutrir uma grande simpatia pelo seu paisagismo. Em 1887, ano que conhece
Gaugin, expõe alguns quadros.
No ano seguinte, abandona Paris transferindo-se para a cidade de Ar-
les, na região de Provença, ao sul da França, perto do Mediterrâneo, área
com vastas plantações de flores realçadas pelos contrastes luminosos, onde
passa a pintar ao ar livre. A explosão da intensa e pura luz mediterrânica o
liberta de qualquer compromisso com o naturalismo, se auto-declarando um
colorista arbitrário. Apaixonado pela cor e luz locais, experimenta um período
de intensa produção. Muda-se mais uma vez, agora para Anvers, tranqüila
cidade ao norte da França. Apesar das crises nervosas, continua produzindo
em grande intensidade: em três meses, pinta cerca de 80 telas, entre as quais
o Trigal com corvos (1890).

Trigal com corvos (Van Gogh)

A adesão da pintura en plein air não o impede de dedicar sua arte a in-
teriores como faz ao retratar seu próprio quarto da morada de Arles, em cores
fortes à maneira de suas paisagens, sem nuances dos contornos do mobiliário
que compõe seu aposento.

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

O quarto do artista em Arles (Van Gogh)

A carta escrita ao irmão Theo (v. Texto complementar) sobre a ideia que
alimentava sobre seu quarto contém explicações extraordinárias sobre sua
concepção enquanto artista, conferindo ao texto, uma espécie de súmula de
sua estética: sua intenção, o uso das cores, a disposição dos objetos da cena,
a composição almejada, a atmosfera pretendida.
Van Gogh deixa claro sua deliberada aplicação arbitrária das cores,
pois não se propunha a uma representação “correta”. Intencionava o em-
prego de formas e cores na representação de seu quarto, para passar sua
experiência estética, e que as demais pessoas, ao contemplá-lo, experien-
ciassem o mesmo.
Van Gogh morreu nos deixando um extraordinário legado contendo um
variado repertório de expressão plástica: 10 gravuras, 879 telas, 1756 dese-
nhos. Em vida não chegou a obter o reconhecimento nem do público nem dos
críticos. Posteriormente, foi considerado um dos maiores gênios da pintura,
sendo um dos responsáveis pela abertura das nossas artes plásticas para o
experimentalismo da arte moderna.
Seu contemporâneo Paul Gauguin chegou a participar da 5ª exposição
coletiva impressionista em 1880, e da sua 6ª e última exposição em 1886,
com 19 telas. Porém, dotado de ideias bem distintas, começou a se afastar
dos impressionistas, ao aplicar, dentre outros procedimentos, cores puras nos
objetos, igualmente de modo arbitrário, demarcando com precisão os con-
tornos das figuras, como faz em Jacó e o anjo, tela de 1888, e na tela Cristo
amarelo, de 1889.

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MIRANDA, D. S. de

Cristo amarelo (Gauguin)


Chamado por Van Gogh quando este residia em Arles, se junta ao artis-
ta, assimilando seu amor pelas cores claras. Dele extrai alguns ensinamentos
que irá aplicar quando se retira para o Tahiti, tendo antes uma pequena estada
em Paris, após um sério desentendimento com Van Gogh
já acometido de sérias perturbações mentais. Como De-
lacroix, que foi buscar inspiração para sua arte em terras
exóticas do norte da África, assim também fez Gaugin, ao
procurar novas sensações nos mares do sul das ilhas da
Polinésia Francesa. Na vivência com os nativos, nos anos
1890, numa belíssima e ensolarada região subtropical,
criou uma obra que constitui o acervo mais conhecido de
sua trabalhos, desenvolvendo uma temática e uma forma
voltada para a vida simples dos moradores das ilhas, uma
civilização outra, bastante estranha ao olhar dos contempo-
râneos europeus, cujo julgamento, ao tomar conhecimen-
to desse acervo, quando Gauguin regressou à França, foi
bem incisivo declarando-o adepto de um estilo selvagem.
A tela transmite um clima idílico de uma região para-
disíaca representada pelas duas jovens, de seios de fora,
em posição bem natural, retratadas em cores puras e defi-
nidas que dão forma a um cenário de tranquila suavidade e
paz de espírito.
Jovens taitianas com flores de manga (Gauguin)

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

Paul Cezzane, natural de Aix-en-Provence, sul da França, experimentou,


com certa proximidade, algumas das iniciativas impressionistas, sendo contem-
porâneo de alguns de seus mais renomados representantes como Monet, Re-
noir, Sisley e Pisarro. Com estes, compartilha o espaço do Atelier Libre Suisse,
em Paris, sobretudo Pisarro com quem mais se afina, para estudar pintura. Ten-
do participado de alguns salões de mostra alternativa, começando pelo Salão
dos Recusados, seguiu uma carreira bem peculiar, ao lado de outros artistas,
que passaram por aquele movimento sem aderi-lo com total dedicação, como
fora o caso de Gauguin e Van Gogh, conforme acabamos de ver.
Ao contrário do último, desfrutou, ainda em vida, de estabilidade finan-
ceira, pois o pai era banqueiro, com quem trabalhou em seu estabelecimento,
após o retorno à cidade natal, depois da decepção sentida pela tentativa frus-
tada de ingressar na Academia de Belas Artes de Paris.
Sua boa situação financeira o fez livre das preocupações com a venda
de suas obras, podendo assim consagrar sua vida na busca de experimentos
estéticos para sua obra à qual se dedicou com exigente afinco, colocando
como meta atingir certo patamar de perfeição artística, ideal que perseguiu
por toda a sua vida.

Auto-retrato (Cézanne c. 1875)

Além das paisagens, cultivou naturezas mortas (exemplo abaixo), retratos


e figuras humanas em grupo. Seu procedimento técnico, ao estudar e analisar os
valores plásticos das paisagens ou naturezas mortas, concentrava-as em diferen-
tes volumes e planos que traçava à base de pinceladas paralelas, sempre perse-
guindo o geometrismo das figuras, subordinando-as à unidade da composição.

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MIRANDA, D. S. de

Natureza morta com maçãs e laranjas Monte Santa Vitória (Cézanne)


(Cézanne/1895-1900)

Até encontrar seu estilo, além das incursões na seara impressionista,


oscilou entre o romantismo de Delacroix e o realismo de Courbet. Um dos
seus traços que mais o demarcava da estética impressionista foi não se pre-
ocupar com o fugidio e o instante, buscando “a estrutura íntima da natureza”.
Assim, retratou em suas telas o estável. Ambicionava as formas dessa perma-
nência nas cores fortes, sem descuidar, de forma equilibrada, da luminosidade
diáfana natural. E o maior e melhor testemunho de tal fato encontra-se na
série de pinturas realizada no sul da França, do Monte Santa Vitória. Entre
1895 a 1900, observa e estuda a paisagem irregular e rochosa dessa região
próxima à sua terra natal. O cenário labiríntico e pedregoso lhe impressionou
de tal forma que chegou a alugar uma cabana para se dedicar intensamente
à célebre série de telas da Montanha.
Os tons azuis, amarelos e verdes plasmam esta montanha do sul da
França, sob um céu de intensa claridade meridional, que irá servir de modelo
para Cézanne fazer seus experimentos, a exemplo do estudo de sucessivas
versões da montanha, registradas em diversas telas, da variação das cores dife-
rentemente do procedimento de Monet na Catedral de Rouen. Ao contrário do
impressionista que variava as tonalidades conforme alteravam a luz e a sombra,
Cézanne alterava as próprias cores apresentadas de modo simplificado, dando
à montanha e a seu entorno paisagístico formas e planos geométricos de cor.
Foi justamente essa redução da paisagem a simples e volumosas for-
mas geométricas circulares – esferas, cilindros e cones, formas fundamentais
da natureza, nas palavras do próprio artista –, bem como o uso de cores fortes,
que faz dele um precursor das vanguardas das artes plásticas do novo século.
Esta pintura é vista como uma obra inaugural do cubismo de Picasso que,
aliás, juntamente com Matisse e outros artistas, gostava de dizer que “Cézan-
ne foi o pai de todos nós”. Ele parece ter lançado uma longa ponte entre o
Impressonismo e as várias correntes modernas da arte do séc. XX, passando
ainda a ter uma posição destacada na fase do chamado Pós-Impressionismo.

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

A aproximação do fin-de-siècle na Europa disseminou uma atmosfera


de excitação de signos de renovação em vários campos das atividades hu-
manas, sobretudo no mundo das artes e da cultura, o que era fortalecido com
as conquistas científicas acerca das teorias da cor e da ótica. Nesse contexto
surge Georges-Pierre Seurat, vindo de um meio abastado burguês parisiense
que lhe proporcionou uma formação acadêmica na Escola de Belas Artes.
Seus primeiros trabalhos traem influxos dos mestres renascentistas apresen-
tando uma estética bem disciplinada. Como Cézanne, também transitou pelo
Impressionismo, apreciando seus artistas, mas rejeitou o cunho espontâneo
e a dissolução formal de suas figuras, buscando restaurar com sua pintura a
estrutura e as formas plásticas com mais definição.
Seurat, um dos mais jovens daquela talentosa geração de artistas, foi
igualmente tomado por esse elã criativo do fin-de-siècle, e atento ao que os
impressionistas fizeram com relação às cores e à percepção ótica, radicaliza
sua concepção, contribuindo para sua renovação, ao introduzir, junto com o
colega Paul Signac (1863-1930), uma técnica mais apurada no trato da cor,
chamada Divisionismo ou Pontilhismo, preferindo ele mesmo chamar de pin-
tura ótica, conforme se vê na pintura Tarde de domingo na ilha da Grande
Jatte, uma de suas telas mais célebres, pintada entre 1884-1886.
Ambos se consideravam adeptos do Impressionismo, ambos igualmen-
te usaram temas impressionistas como paisagens, diversões ao ar livre, etc.,
mas seu diferencial está precisamente no uso mais científico da cor. Uma das
teorias sobre a cor desenvolvida na época era a inexistência de uma “cor-em-
-si”, i.e, a propriedade cromática de dada superfície não era algo imanente e
essencialmente constitutivo dela mesma, mas dependia da forma como as
tonalidades eram dispostas na tela, além ainda da intervenção do olhar na
estruturação da ordem e do sentido buscado pelo artista. O que menos im-
portava era a temática, seja esta a reprodução de um teor mitológico ou de
costumes de uma época, ou então a configuração de uma atitude psicológica
das personagens representadas.
Como podemos perceber na sua tela, Seurat enfatiza os valores da
cor das formas, purificadas “de toda escória da matéria” (BAUMGART, op.
cit. p. 327). Sua técnica consistia em separar os componentes químicos das
cores, de modo que, em vez de serem misturadas como pigmentos na paleta
e depois aplicadas à tela, elas eram misturadas pelo olhar que contempla
a tela, a partir da distância certa. Tudo, por mais minuciosamente que seja
apresentado, faz parte de um todo estético. A tela passa a receber inúmeros
minúsculos fragmentos coloridos ou micro-pontos, cabendo ao olhar contem-
plante reorganizá-los na mente, ou melhor ainda, na imaginação e reconstruir
uma totalidade de sentido estético.

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MIRANDA, D. S. de

Tarde de domingo na Ilha da Grande Jatte (Seurat)

A técnica do Pontilhismo, também compartilhada pelo pintor Paul Sig-


nac, outro artista que, no início da carreira, se deixou influenciar pelo Impres-
sionismo, participou com Seurat, na criação do estilo, sendo, assim, detentor
de algumas de suas afinidades estéticas, apresentando, no entanto, alguns
traços bem peculiares.
Em que pese sua preocupação com a definição dos contornos das
figuras, como se observa no quadro Grande canal, Veneza (1905), inclusi-
ve nos pequenos detalhes, como os troncos delgados que emergem das
águas para atracar as gôndolas, por outro lado, Signac usa uma granula-
ção mais forte obtida por minúsculas de pigmentos em tonalidades doura-
das numa escala maior do que seu colega Seurat. Além do mais, o uso do
dourado distribuído de modo contíguo à cor rosa, tanto no céu como nas
imagens refletidas nas águas do canal, empresta ao todo composicional
um leve tônus que nos lembra a estética impressionista.

Grande canal – Veneza (Signac)

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

É certamente devido a isso que alguns historiadores preferem designar


esse estilo como neo-impressionista, diferentemente das telas de Van Gogh,
Gauguin e Cézanne, vistas como obras pós-impressionistas, querendo, as-
sim, dizer que, no caso desses artistas, teria havido uma ultrapassagem de
estilo que marcou a pintura francesa da 2ª metade do séc. XIX. Já a designa-
ção neo-impressionista significaria, de certa forma, a retomada do estilo, em
novos moldes.
Todos esses movimentos artísticos, mesmo apresentando formaliza-
ções estéticas que não chegam a romper radicalmente com a arte figurativa
(a estética que mais anunciou tal traço está presente em algumas correntes
mais incisivas do Impressionismo), foram de importância crucial, como uma
espécie de legado multiforme, para o movimento das vanguardas artísticas
que marcarão a vida cultural européia, a partir do início do séc. XX.

Texto complementar
O Quarto em Arles, segundo o próprio Van Gogh
“Eu tinha uma nova idéia na cabeça e aqui está o seu esboço ... desta vez, trata-se
simplesmente do meu quarto, só que a cor se encarregará de tudo, insuflando, por sua
simplificação, um estilo mais impressivo às coisas e uma sugestão de repouso ou de sono,
de um modo geral. Numa palavra, contemplar o quadro deve ser repousante para o cére-
bro ou, melhor dizendo, para a imaginação.
As paredes são violeta-pálido. O piso de ladrilho vermelho. A madeira da cama e as
cadeiras, amarelo de manteiga fresca; os lençois e as almofadas, de um tom leve de limão
esverdeado. A colcha, escarlate. A janela, verde. A mesa de toalete, laranja; a bacia, azul.
As portas, em lilás.
E é tudo. Neste quarto nada existe que sugira penumbra, as cortinas corridas. As am-
plas linhas do mobiliário, repito, devem expressar absoluto repouso. Retratos nas paredes,
um espelho, uma toalha e algumas roupas. [...]
Trabalhei nele o dia inteiro, mas você pode ver como a concepção é simples. As grada-
ções de cores e as sombras estão suprimidas; o quadro está pintado em camadas leves e
planas, livremente jogadas nas telas à maneira de estampas japonesas”.
(apud, GOMBRICH, op.cit. p. 548)

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Capítulo 3
O fin-de-siècle
europeu: Simbolismo e
Decadentismo
Mal-estar da civilização O termo fin-de-siècle, expressão francesa que significa "final do sécu-
Conceito cunhado por lo", engloba tanto o encerramento do séc. XIX quanto os começos do novo
Sigmund Freud, criador século, querendo denotar, ao mesmo tempo, um sentimento de decadência
da psicanálise, em sua assim como de esperança de uma nova era, o que, em certa medida, explica
obra de 1930, para expor o mal-estar da civilização*, experienciado nessa dobra do tempo do mundo
o sentimento de mal-estar
do homem dilacerado entre ocidental, ambivalência essa que costuma estar sempre presente no portal
as pulsões do princípio do de uma nova época, portando atitudes e sentimentos díspares e ambíguos.
prazer da esfera individual, Se nos é difícil precisar determinados períodos definidores de estilos e
o que acarretaria em
consequências destrutivas, escolas, como já assinalamos, cada vez que nos avizinhamos da contempora-
e a necessidade das neidade, essa dificuldade aumenta. Isso deve, sobretudo, pela pluralidade de
normas da cultura e da movimentos artísticos que ocorrem não apenas no fin-de-siècle europeu, mas
civilização do princípio nos continentes sob sua hegemonia cultural, até a Primeria Grande Guerra.
de realidade, que regram
suas condutas no seio da É assim que lemos, p.ex., no livro Simbolismo, de Anna Balakian, que
sociedade, para preservá-la. nos alerta que, desde o começo, esse movimento se apresentou híbrido, cons-
tituindo um problema para sua pesquisa, pela dificuldade de “classificação
dos escritos, profusa e aparentemente disparatados na forma e no conteúdo,
reunidos em volta de um rótulo que teve desde o início múltiplas conotações”
(BALAKIAN, 2007, p. 12). Suas hesitações chegam ao ponto de cogitar em
rejeitar o termo “simbolismo”. A citação dessa autora possui um valor analítico
que se aplica não somente ao movimento em questão, mas, sobretudo, pela
sua validade para outros momentos da história das artes, conforme, insisti-
mos, já atentamos algumas vezes em nosso texto.
Tanto o movimento simbolista quanto o decadentista podem ser vistos
como desdobramentos do Romantismo, em oposição à ideologia cientificista
da sociedade urbano-industrial da 2ª metade do séc. XIX, que acaba também
por se infiltrar no mundo das artes. Reagindo às possíveis vinculações fre-
quentes entre arte e técnica, com predomínio desta para definir a estética da
produção artística, exacerbadas sobretudo em certas criações naturalistas, os

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

simbolistas e decadentistas enfatizaram o ideal poético ampa-


rado numa expressão mais lírico-alegórica.
A força do Simbolismo se manifestou, em seus inícios,
no movimento literário que surge na 2ª metade do séc. XIX, na
França, se estendendo às primeiras décadas do século seguin-
te, com fortes traços antinaturalistas, já em curso, pelo menos,
duas décadas antes, conforme vimos em Baudelaire, ele próprio
visto como um pioneiro do movimento. Seu marco inicial é to-
mado pelo manifesto do poeta Jean Moréas (1886). Negando
uma arte que busca uma estreita correspondência formal com a
realidade, sua expressão se dava mediante uma poética encan-
tatória, carregada de simbologias alegorizadas, algo que ultra-
passasse o sentido superficial e imediato das coisas.
Assim, os simbolistas imergiam em sentimentos pessimis-
tas e melancólicos, alucinações deformadas, apelavam para o
misticismo satânico (v. Baudelaire) – “a crueldade e a fealdade
do real, sensualidade, carnal exasperada” (CUNHA, op.cit. 596).
O tema da morte com sua estética mórbida era bastante recor-
rente, cujo exemplo a seguir é bastante expressivo. A morte do coveiro (Carlos Schwabe)
O autor do quadro A morte do coveiro é o pintor alemão
Carlos Schwabe (1877-1927), que, ao entrar em contato com artistas simbolis-
tas em Paris, acabou recebendo influxos do movimento. Como seu estilo era
considerado de forte teor literário, foi um dos artistas que melhor soube interagir
organicamente com a poética simbolista. Por isso, foi muito solicitado para ilus-
trar livros de simbolistas, tendo trabalhado nas obras As flores do mal de Bau-
delaire e Pelléas e Melisande de Maurice Maeterlinck (1862-1949), cujo tema
ganhou uma versão musical do compositor impressionista Claude Debussy.
O quadro é uma síntese plástica da literatura simbolista, contida nas fi-
guras e nos tons usados: ao contrário da tradicional imagética cristã que sem-
pre representa a figura do anjo em tonalidade branca e luminosa, o anjo de
Schwabe, ao velar a morte do coveiro, possui asas e vestes negras que con-
trastam com a palidez da tez angelical e com a neve imaculada do cemitério,
configurando, assim, uma composição sombria e macabra.
No fin-de-siècle francês, o sentimento de decadência, que finda por pe-
netrar no imaginário de poetas e artistas, associava-se à própria ideia de que a
França era uma cultura em decadência. E o termo décadent, cuja conotação
pejorativa inicialmente estigmatizava a jovem geração de poetas e escritores
que deram origem ao movimento simbolista, antes de ser assim denominado,
acabou sendo assumido positivamente, a partir do soneto Longuer (1883) em
que o poeta Paul Verlaine anuncia: "Je suis l'Empire à la fin de la Décadence"
("Sou o Império no fim da Decadência").

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Esses jovens intelectuais dos anos 1880/90, identificados por uma vi-
são pessimista do mundo, acompanhada por uma postura estética subjetivis-
ta, pela descoberta do inconsciente, sentiam inclinados para as dimensões
misteriosas da existência. Em 1886, influenciado por Verlaine, Anatole Baju
funda a revista Le décadent littéraire et artistique, onde publica o manifesto
decadentista em que é possível divisar embrionariamente ideias que serão
incorporadas à estética dos futuros movimentos futurista e dadaísta.
O fin-de-siècle europeu, sobretudo o parisiense, tinha, como uma de
suas maiores características, a pluralidade de tendências nos vários campos
do saber e das artes. É a época dos círculos boêmios artístico-literários, no
bairro de Montmartre, que transitavam pelos bistrôs, cafés e boulevards pa-
risienses e que darão origem a vários movimentos artísticos de vanguarda
caracterizados por uma pluralidade de “ismos” que, segundo certa contagem,
teria chegado a quarenta. Porém, alguns tiveram proeminência, conforme ire-
mos ver na unidade III.
Se por um lado, havia um culto à modernidade por parte dessas corren-
tes, advindo das transformações científicas, por outro, havia uma descrença
no mundo artístico, pelo esgotamento da estética e técnicas que já não cor-
respondiam à realidade do fin-de-siècle de um novo mundo que começava a
se desvendar.
Uma série de revistas literárias e de manifestos era lançada para vei-
cular o desejo de mudança e os princípios do ideário estético, bem como
traçar os rumos e propostas de novos movimentos. O manifesto passou a ser
o instrumento mais importante para veicular esse ideário, e o Simbolismo foi o
primeiro movimento a dele se utilizar.

3.1. A pintura simbolista


A pintura simbolista, que não teve o mesmo prestígio alcançado pela literatu-
ra, surge na mesma época do Neo-impressionismo. Enquanto Seurat e Sig-
nac criavam uma arte de pura visualidade fincada sobre princípios da ótica,
o Simbolismo seguia uma trilha mística e anticientífica. Igualmente associada
à idéia de esteticismo, por força de sua busca obstinada a formas precio-
sas, bem como a procedimentos estilísticos e temáticos extraídos do mundo
subjetivo, a pintura simbolista não devia representar o real como queriam os
naturalistas ou realistas, mas revelá-la mediante símbolos, uma realidade cuja
representação escapava a uma apreensão consciente e racional.
Reagindo ao que consideravam um materialismo exacerbado, substra-
to do cientificismo da época, muitos dos artistas participavam de sociedades
exotéricas, como Pierre Puvis de Chavannes (1824-1898), cuja produção ex-

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

pressava um mundo onírico de fantasias, como vemos na tela Alegoria da


vida (1873). Ele e seu compatriota, o francês Gustave Moreau (1826-1898)
são considerados seus maiores pintores simbolistas. Interessante notar que
ambos, com uma diferença apenas de dois anos de idade entre eles, convi-
veram com os importantes movimentos artísticos da França, como o Impres-
sionismo e o Neo-impressionismo, sem qualquer adesão às suas estéticas,
pois optaram por manter de forma mais sólida e precisa os delineamentos de
suas figuras. Outro traço interessante é que suas obras tidas como simbolis-
tas foram criadas antes do seu período áureo (anos 1880-90), a exemplo das
telas abaixo.
Chavannes, que participou de vários Salões oficiais franceses, desde
os anos 1850, se caracterizou pelo muralismo, pintura em tela de grandes
dimensões, tendendo para temas alegóricos da mitologia antiga, como a tela
Alegoria da vida. Devido a isso, seu estilo foi admirado pelos simbolistas.

Alegoria da vida (Chavannes)


Gustave Moreau tinha nas cenas bíblicas um de seus temas favoritos,
sobretudo a história de Salomé, considerada a musa simbolista do final do sé-
culo europeu, por ter se tornado uma das figuras que exercia grande fascínio
no imaginário artístico da época. Fazem parte desse temários dois quadros
do pintor que ficaram famosos: Salomé tatuada (1876) e Salomé exigindo a
cabeça de João Batista, da mesma época (v. abaixo). Baseado nessa tela, o
escritor inglês Oscar Wilde escreveu o drama Salomé (1891), que inspirou,
por sua vez, o libreto de Hedwig Lachmann para a ópera num ato do compo-
sitor Richard Strauss.
Sua encenação no início do séc. XX provocou uma série de protestos
pelo erotismo que permeava o espetáculo. O comentário do crítico Ernst Dec-
sey na época dá um testemunho inelutável de como a encenação de Salomé
representou uma espécie de arte total – aquela linguagem coesionadora de

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MIRANDA, D. S. de

várias linguagens artísticas como queria Wagner – do movimento simbólico,


reunindo a inspiração plástica de Moreau, o texto do escritor Oscar Wilde ins-
pirador do libreto para a arte musical da ópera Salomé de Richard Strauss.

Salomé exigindo a cabeça de João Batista (Moreau)


O Decadentismo, nessa mesma época, se faz igualmente presente na
Bélgica, a exemplo do grupo de pintores que passou a se conhecido como
Les Vingt (“Os Vinte”), reunindo os artistas James Ensor (1860-1949), Theo-
dor Toorop (1858-1928) e Henri van de Velde (1863-1957), com obras povoa-
das de teor macabro, grotesco e mergulhadas na esfera do inconsciente.
Atuando de forma mais independente, apresentando, porém, afinida-
des com o esoterismo decadentista do grupo Les Vingt, o pintor belga Jean
Delville (1867 -1953) foi um típico artista simbolista, devido à sua participa-
ção em associações esotéricas, a exemplo da Sociedade Rosa Cruz, sendo
ainda um estudioso da cabala e do ocultismo, bem como de temas ligados
ao satanismo.
Delville engajou-se na causa messiânica de uma arte idealista reden-
tora. Em 1900 publica A missão da arte em que defende o papel do artista,

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

cujo destino era elevar o espírito do público fruidor de suas obras, mediante a
apresentação do ideal de beleza, composto de três atributos absolutos: o belo
espiritual, o belo plástico e o belo técnico.

O tesouro de Satã (Delville)


Essa estética ocultista se apresenta extraordinariamente exuberante na
tela O tesouro de Satã (c.1890), onde se pode contemplar uma massa mul-
tiforme incandescente de corpos humanos, expressa em fortes cores quen-
tes, em tonalidade dourada, e que jazem no ambiente do inferno, encimados
por uma gigantesca figura repleta de tentáculos que se estende sobre aquele
amálgama de corpos, numa espécie de oferenda preciosa destinada a Satã.

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MIRANDA, D. S. de

Texto complementar
“Antes de banirmos este termo [Simbolismo], devemos, entretanto, relembrar que a
falta de acordo sobre o seu significado não se limita ao destino da palavra ‘simbolismo’,
mas, antes, indica uma tendência geral da crítica que conduz à destruição de todos os
rótulos. Algo semelhante, p.ex., ao que ocorre com o que se denominava ‘clássico’ e que
agora é apenas ‘barroco’. Como reação às rígidas classificações anteriores, existe atual-
mente uma tendência a buscar o que há de não-clássico em um clássico, de não-românti-
co em um romântico e – que nos interssa – o que há de não-simbolista em um simbolista.
Mas neste desejo generalizado de livrar a individualidade dos autores de seu confinamen-
to a um grupo, é bom lembrar que, conquanto possam parecer arbirárias, as classificaçãos
são salvaguardas necessárias contra as excentricidades de uma crítica impressionista e
de digressõres biográficas. Se, como se acredita, há uma perda de identidade particular
do autor por meio da categorização com rótulos, é igualmente perigoso deixá-lo em um
vácuo e atribuir unicamente seus acertos e faltas pessoais a traços que são, na verdade, a
estilização de uma herança comum”.
(BALAKIAN, op.cit.p.15)

“Dissimular o estado de decadência em que estamos seria o cúmulo da insensatez.


Religião, costumes, justiça, tudo decai, ou antes, tudo sofre uma transformação ine-
lutável.
A sociedade se desagrega sob a ação corrosiva de uma civilização deliquescente. [... ...]
Nós seremos as vedetes de uma literatura ideal, os precursores do transformismo la-
tente que desgasta as camadas superpostas do classicismo, do romantismo e do natura-
lismo; em uma palavra, nós somos os enviados de Alá clamando eternamente o dogma
elixirizado [sic], o verbo demasiadamente sutil do decadentismo triunfante”.
(Fragmentos do manifesto decadentista de Anatole Baju, apud TELES, 1994, pp.57-58).

“Já propusemos a denominação de Simbolismo como a única capaz de designar ra-


zoavelmente a tendência atual do espírito criador em arte. Este denominação pode ser
mantida...
A concepção do romance simbólico é polimorfa: por vezes uma personagem única se
move nos meios deformados por suas alucinações, seu temperamento: nessa deformação
aloja-se o único real ...
Assim, desdenhoso do método pueril do Naturalismo – o senhor Zola foi salvo por um
maravilhoso instinto de escritor – o romance simbólico construirá sua obra de deformação
subjetiva, alentado por este axioma: a arte não saberia procurar no objetivo senão um
simples ponto de partida extremamente sucinto”
(Fragmentos do manifesto O Simbolismo de Jean Moréas, apud TELES, op.cit. pp. 63 e 65).

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Capítulo 4
A época do novo estilo da
belle époque: a Art nouveau
Reverberações simbolistas e decadentistas desse fin-de-siècle ressoam por
toda a Europa, assumindo feições próprias em cada país, destacando-se o
estilo de um período que passou a ser chamado de belle époque de l’art nou-
veau, i.e, a bela époque da arte nova, designação essa que adotará nomes
conforme a língua e as artes de cada país, mas que, no limite, apresentam
afinidades estéticas entre si.
Após a série de movimentos de afirmação nacional provocada, sobre-
tudo, pelas guerras anti-napoleônicas, a Europa, a partir da 2ª metade do séc.
XIX, experienciou uma cultura de cunho cosmopolita que se inicia nos anos
1870 – queda de Napoleão III, derrota francesa na guerra contra os prussos,
Comuna de Paris, união da Alemanha e Itália, corrida imperialista – indo à 1ª
Grande Guerra (1914-18).
Nesse período, muitas capitais europeias tiveram um expressivo au-
mento populacional devido, sobretudo, ao crescente êxodo rural de uma po-
pulação que, não tendo as mínimas condições de vida digna no campo, migra
para as cidades, atraída pelo seu desenvolvimento.
São pessoas que irão se juntar à massa de empregados e desempre-
gados já residentes nessas cidades e que passam a constituir o exército de
reserva da força de trabalho proletária que impulsiona a sociedade urbano-in-
dustrial. Nesse contexto são frequentes situações de conflitos que consolidam
o ideário de diversas doutrinas sociais, como o comunismo, o socialismo e o
anarquismo, movimentos que se colocam contrários à exploração capitalista.
A difusão dessas doutrinas polariza os campos formados por defenso-
res e opositores do capitalismo, o que gerou enfrentamentos, à vezes, bas-
tante violentos, inclusive, com a dura repressão sofrida por estes últimos. Tal
clima chegou a ter ressonâncias nas artes, porém com menor intensidade do
que ocorrera, p.ex., com o Romantismo e o Realismo. É precisamente nesse
último quartel do século que a expressão belle époque passa a nomear a
atmosfera artístico-intelectual do período, marcado por profundas transforma-
ções culturais traduzidas em novos modos de viver e de pensar.

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Para a burguesia européia, a belle époque, como o próprio termo


conota, foi considerada uma era glamurosa e de beleza, marcada por
inovações como o telefone, o telégrafo sem fio, a bicicleta, o automó-
vel, que alteram a percepção e o uso do espaço e do tempo, e invadem
a cena cultural que passa a ter uma agitada vida, com a introdução
de novidades no campo do entretenimento das massas: os cabarés,
o cancan, as operetas, os balés, os cafés-concerto, mas sobretudo, o
cinema que terá um papel fundamental na definição do lazer popular, a
partir de então.
O impulso elétrico exercerá uma função crucial na indústria do
lazer, pois, além do cinema, ele será igualmente importante para acio-
nar os parques de diversão. Para muitos, o entretenimento oferecido
às massas citadinas proporcionou momentos de fuga para atenuar os
rigores da realidade cotidiana das pessoas.
Assim, a belle époque caracterizou-se por um modo de vida de
um inusitado entretenimento para as massas citadinas, incentivada
pelo desenvolvimento dos meios de comunicação e transporte gerados
Típico cartaz em estilo Art nouveau
pelos lucros do mundo de negócios que passam a ter um incremento
inédito da política imperialista, que articulou mais estreitamente as princi-
pais cidades integradas à ordem internacional capitalista.
Nessa mesma época se assiste ao desfile de vários estilos das lingua-
gens artísticas que ganham consistência e valor como expressão estética dos
novos tempos: Impressionismo, Pós-impressionismo, Neo-impressionismo,
Decadentismo, Simbolismo, pavimentando o caminho das revolucionárias
produções artísticas do novo século. É justamente no contexto dessa época
que surge um estilo que receberá na França a designação de Art nouveau,
que teria surgido do nome de uma loja parisiense que comercializava móveis
e elementos decorativos que seguiam o estilo que iria marcar toda uma época.
O termo Art nouveau contará com outras designações em vários países
como Jugendstil na Alemanha, Flower art ou Modern Style na Inglaterra e
Floreale na Itália. O estilo é marcado por sua função decorativa que foge dos
padrões clássicos, buscando traços estilizados de formas orgânicas como flo-
rais e pela valorização do trabalho artesanal, dentre outros.

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

Conjunto de cartazes no estilo Art nouveau

Como podemos observar no conjunto de cartazes da época, a estética


Art nouveau, reagindo ao uso abusivo de motivos tradicionais, valoriza os or-
namentos, as cores vivas e as curvas sinuosas baseadas nas formas elegan-
tes das plantas, dos animais e das figuras femininas.
Além da primazia expressiva na arte arquiteônica, a Art nouveau possui
uma intenção essencialmente decorativa sendo suas principais obras facha-
das de edifícios, espaços para decoração como mobiliário, portões, vasos,
porta-joias, bem como as próprias jóias, vitrais e cerâmica. Importa ainda lem-
brar que o Simbolismo igualmente legou contribuições à Art nouveau.

4.1. A arquitetura da belle époque


O desenvolvimento industrial trouxe para o interior da cena artístico-cultural
um repertório de novos materiais que interferiram diretamente na estética e
conteúdo das artes do período da belle époque. O vidro, o ferro, o cimento e
o alumínio permitiram novas configurações na arte arquitetônica, imagináveis
para o período anterior ao industrialismo.
A Paris - capital do Século XIX do tempo de Baudelaire, como vimos, já
apresentava diversos inventos, como o diorama, o daguerreótipo precursor
da fotografia, as galerias com suas vitrines, que interferiam diretamente no
modo de vida de seus habitantes.

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E será precisamente a arquitetura que irá fornecer uma produção típica


da Art nouveau. Assim, por ocasião do centenário da Revolução Francesa,
em 1889, Paris irá abrigar uma imponente estrutura metálica que passa a ser
o signo arquitetônico por excelência de toda essa época – a Torre Eiffel, pro-
jeto integralmente realizado em ferro pelo engenheiro A.G. Eiffel incorporada
definitivamente ao cenário da arte dessa era.

4.2. A pintura
Na ambiência da belle époque, dos artistas que se dedicam à linguagem das
artes plásticas, alguns merecem destaque. Da França, nos vem Toulouse-
-Lautrec (1864-1901, certamente, uma referência obrigatória, também iden-
tificado como integrante da fileira dos pós-impressionistas. Dedicando-se à
pintura e à litogravura, Lautrec foi um típico artista frequentador da vida bo-
êmia francesa típica da época, o que certamente contribuiu para sua curta
existência, sabendo, como poucos, retratá-la em sua arte. No entanto, mesmo
vivendo menos de 36 anos e, desses, tendo produzindo menos de 20 anos, o
que deixou como legado foi importantíssimo por ter revolucionado a estética
do design gráfico da publicidade da época, sendo seu estilo uma marca da
Art nouveau.

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Cartazes publicitários de Toulouse-Lautrec Secessão de Viena


Movimento do fin-de-
siècle austríaco criado em
1897, por artistas como
Gustav Klimt, Kolomon
Moser, Josef Hoffmann,
Otto Wagner, dentre
outros, que rompem
com a Academia de
Belas Artes de Viena, ao
se insurgirem contra o
conservadorismo de suas
normas e seus cânones,
sobretudo a orientação
tradicional do historicismo.
A consigna que
caracteriza a conceção
estética do movimento era
a seguinte: a cada tempo
a sua arte, e a cada arte a
sua liberdade.

O fotógrafo - Place Pigalle (1894)


A última década do fin-de-siècle marca a difusão pelo continente euro-
peu dos conceitos da estética decadentista da Art nouveau. Na Áustria, Gus-
tav Klimt (1862-1918) é o artista mais emblemático para articular as figurações
decorativas com as temáticas decadentistas, como indica um conjunto de fi-
guras femininas, de forte alegorização sensual. Klimt estudou desenho orna-
mental vienense na Escola de Artes Decorativas. Foi personagem destacada
do movimento Secessão de Viena*. Assim como Lautrec, Klimt nos legou uma
vasta obra que inclui pinturas, murais, esboços e outros objetos de arte.

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Sua obra mais famosa, O beijo, verdadeiro ícone do Jugendstil (termo


em língua alemã que encerra estreita afinidade estética com a Art nouveau),
é onde o artista experimenta uma mudança de estilo, pelo uso reiterado de
motivos geométricos, deixando figurar apenas algumas porções realistas para
permiter sua percepção. A cobertura da obra é feita pelo uso da técnica dos
mosaicos (evocando o estilo bizantino), onde realismo e alegoria abstrata se
confrontam e, a um só tempo, se complementam.

O beijo (Klimt)
O quadro é inspirado no próprio artista e sua amante Emilie, femme
fatale que aparenta submissão, transmite uma intensa sexualidade, e cons-
titui o climax da fase dourada do artista, tornando-se autêntico emblema do
movimento Secessão de Viena. Depois dessa fase, Klimt viaja para Paris e
entra em contato com a arte de Toulouse-Lautrec e com o Fauvismo, um dos
movimentos que compõe o mundo das vanguardas das artes do novo século,
alterando significativamente seu estilo, o que faz abandonar os motivos geo-
métricos e a sumptuosidade do dourado.

4.3. A belle époque tropical


O Brasil, assim como ocorreu em outros países, também recebeu influxos
da, belle époque europeia. Recém-ingresso na modernidade do mundo ca-
pitalista, após a instauração da nova ordem republicano-burguesa, nossas
elites queriam instalar a civilização do progresso, da higiene e do trabalho,
exigindo, assim, uma ampla modernização das principais cidades do país.

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Perseguindo o estilo de vida da belle époque européia, especialmen-


te do grand monde parisiense, são adotados em várias capitais brasileiras
projetos de higienização e saneamento. Planos de embelezamento urbano,
compreendendo edifícios, jardins, coretos, cafés, monumentos, obedecem a
padrões europeus.
S. Paulo abre avenidas e ruas largas, adota o bonde elétrico, urbaniza
sua região central, constrói o Teatro Municipal (1911). Higienópolis torna-se
o bairro da elite que se protege das febres que dizimam a população pobre.
Belém, com intensa vida cultural, impulsionada pelo surto industrialista inter-
nacional, sobretudo com o uso automobilístico da borracha, abre largas ruas
arborizadas. Lojas como a Paris na América vendem os modelos elegantes
trazidos diretamente da capital francesa. Companhias de ópera se apresen-
tam com exclusividade no Teatro da Paz (Belém), ou no Teatro de Manaus.
Fortaleza constrói o Teatro José de Alencar (1910), com estrutura metálica
escocesa e o interior em estilo Art nouveau. O mesmo estilo é também usado
no Mercado dos Pinhões na área central de capital cearense.

Theatro José de Alencar (Fortaleza)

No Rio de Janeiro, devido à enorme importância da capital da jovem


república, será a elite carioca que irá perseguir de forma mais decidida, o
estilo de vida da belle époque, procurando importar o glamour parisiense,
modelo da modernidade européia, sonhando com a civilização e o progresso
aqui nos trópicos.
Essas elites possuíam aspirações claramente expressas no projeto ci-
vilizatório de modernidade, com exigências de adoção de um estilo de vida
europeu. E uma condição dessa possibilidade era a existência de um povo de
raça branca, únicos agentes da cultura e modernidade européias. Para isso
a migração de trabalhadores livres do velho mundo dera grande contribuição,
para substituir a mão de obra dos escravos negros. Mas residia na herança

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MIRANDA, D. S. de

escrava, com seus efeitos em várias esferas da vida brasileira, o maior entra-
ve para a realização daquele sonho. O Rio tornara-se uma cidade predomi-
nantemente negra, por receber no curso do século, um grande contingente de
escravos e libertos.
A proposta das elites exclui as práticas culturais afro. De um lado, o
estilo de vida burguês chic, de “bom gosto”, recém-ingresso na modernidade
européia, do carnaval clean veneziano, do bal masqué, com seus pierrôs, co-
lombinas e arlequins, do carnaval das “emoções comedidas”. De outro, a festa
afro-popular das rodas de samba e capoeira, dos batuques e candomblés,
dos cordões e dos blocos de sujos.
Da parte da elite, importa-se tudo: moda, arquitetura, música como a
polca, as valsas e mazurcas, os minuetos, as óperas e operetas, o teatro
vaudeville, as estátuas dos jardins, a Art nouveau. Pereira Passos, prefeito do
Rio, apresenta-se como um Haussmann tropical, o reformador de Paris, onde
Passos vivera no reinado de Napoleão III, quando Paris sofrera uma grande
intervenção urbana, sob os auspícios daquele reformador.
Lá, a Cidade-luz procura romper com sua arquitetura medieval, de ruas
estreitas e tortuosas, cenário propício para abrigar as “classes perigosas” de
grande ímpeto sedicioso, o que não conseguiu impedir as barricadas da Co-
muna de Paris, em 1871. Cá, o Rio procura romper com seu passado colonial,
demolindo a cidade que abrigava uma população “bárbara” e “imunda”, ce-
nário de ruas estreitas e tortuosas, utilizadas pelas barricadas dos revoltosos
contra a vacina obrigatória de Oswaldo Cruz em 1904.
O projeto das elites busca calar a cultura popular, complexa coesão de
nossa riqueza étnico-cultural. Nada escapa aos olhos da repressão policial.
Daí a perseguição a diversas práticas populares. Impõem-se severas restri-
ções aos cordões e batuques. Mas o alvo preferido da repressão são as festas
da Penha e o carnaval cheio de danças, músicas e ritmos maliciosos, com
seus cordões e blocos de “sujos”. O poeta Bilac é quem ataca com veemên-
cia, os “abomináveis cordões”, vistos por ele como versão bárbara e tropical
da “antiga usança de procissões báquicas”.
Dá-se também a condenação de práticas musicais tradicionais como
a seresta e seu instrumento símbolo indispensável - o violão - nas rodas de
estudantes boêmios, visto pelas elites como símbolo de vadiagem. O pró-
prio movimento “regenerador” encarrega-se de dar o golpe de misericórdia
na boemia, com a demolição da infra-estrutura que a sustenta: as pensões
do centro. Existia uma cidade com um casario de “fachadas monstruosas”,
entregue aos mestre-de-obras de “péssimo gosto”, sem saneamento.
Existia uma cidade habitada por um “povo feio e sujo”, sem as mínimas
condições de higiene, vivendo em sórdidos cortiços e estalagens coletivas,

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

em ruelas tortuosas, estreitas, em declive, com uma “cultura bárbara e cos-


tumes selvagens”, como cuspir no chão quando estavam nos bondes, andar
sem camisa e descalços no centro de uma cidade, que se queria asséptica e
limpa, no melhor modelo das capitais européias.
Para combater o mau-gosto, o desarmonioso, o grotesco, a elite cario-
ca cria a Liga Contra o Feio, em1908 e a Liga da Defesa Estética em 1915.
O caráter conflituoso entre a elite e a cultura afro-popular era flagrante.
A intenção das elites era a de anular a cultura negra. No entanto, existia no
meio do caminho, uma cidade colonial, atrasada, carente de um porto mo-
derno que pudesse atracar navios de maior calado, para transportar produtos
refinados de procedência européia; uma cidade desprovida de vias largas que
deveriam estar conectadas com troncos ferroviários e rede de armazéns e
estabelecimentos de atacado e varejo.
Assim, é implantado o projeto regenerador (para as elites), operação
bota-abaixo (para o povo), termos distintos que designam o desejo moder-
nizante das classes dominantes. Em 1904, inicia-se na área central do Rio
uma grande intervenção, com a modernização do cais do porto, a abertura
de grandes e largas avenidas, dentre estas destaca a Av. Central, hoje Av. Rio
Branco, a construção de praças e jardins, a edificação de imponentes prédios
como o Teatro Municipal, a Biblioteca Nacional e a Academia Nacional de
Belas Artes, além de vários outros, para diversos usos. O Rio civiliza-se é a
consigna da moda e da belle époque tropical (v. Miranda, 2001).

Theatro Municipal do Rio de Janeiro no ano de sua inauguração (1909)

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MIRANDA, D. S. de

Atividades de avaliação
1. Considerando o tempo do Impressionismo, quais as grandes descobertas
e invenções do mundo científico-tecnológico que provocaram grande im-
pacto e mudança de rumos nas artes visuais do seu período?
2. Faça um cotejo entre os estilos impressionista e expressionista, enfatizan-
do suas principais diferenças.
3. Quais as principais mudanças trazidas pelo movimento artístico do fin-de-
-siècle europeu, cujas repercussões ressoariam no movimento modernista
do início do século XX?
4. Descreva o estilo Art-nouveau e suas repercussões na chamada belle
époque brasileira.

@
Leituras, filmes e sites
Filmes
Sede de viver
1956: dirigido por Vincent Minelli e co-dirigido por George Cukor, sobre a vida
de Vincent Van Gogh, com o ator Kirk Douglas no papel do artista e Anthony
Quinn no papel de Paul Gauguin. O filme foi adaptado da novela com o mes-
mo nome de Irving Stone, cobrindo grande parte da existência atormentada
do pintor holândes, sua relação conflituosa com o amigo Gauguin e o apoio
afetuoso do irmão Theo, passado nos vários ambientes em que viveram, so-
bretudo nas regiões iluminadas que inspiraram a arte do pintor. Nota-se nos
créditos finais, a extensa lista de museus e outras entidades e colecionadores
que cederam as pinturas originais usadas no filme.

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

Camille Claudel
Filme de 1990 dirigido por Bruno Nuytten que, ao mostrar o talento artístico
da escultora francesa, (com a atriz Isabelle Adjani no papel de Camille Clau-
del), apresentando diversos exemplares de suas obras, explora sua relação
tumultuada com o o mestre Auguste Rodin (Gerard Dépardieu). Embora con-
tando com a amizade do grande compositor “impressionista” Debussy, cai em
desgraça junto à sociedade parisiense da época.

Referências
BALAKIAN, Anna. O simbolismo. São Paulo. Perspectiva: 2007.
BAUDELAIRE, Charles. Poesia e prosa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar: 1995
BAUMGART, Frizt. Breve história da arte. São Paulo: Ed. Martins Fontes,
2007.
DENVIR, Bernard. Impressionismo. Barcelona: Editorial Labor, 1976.
_________________. O fovismo e o expressionismo. Barcelona: Editorial
Labor, 1977.
CUNHA, Newton. Dicionário da cultura. São Paulo: Perspectiva/SESC-SP,
2993.
GOMBRICH, E. H. A história da arte. Rio de Janeiro: LTC, 2008.
JIMENEZ, Marc. O que é estética. São Leopoldo: Editora Unisinos, 1999.
MIRANDA, Dilmar. Tempo da festa X tempo do trabalho: transgressão e
carnavalização na belle époque tropical. Tese de doutorado em Sociologia.
USP/São Paulo. 2001.
________________. História da arte I (da pintura rupestre ao neoclassi-
cismo. Fortaleza, 2010.
PROENÇA, Graça História da arte. São Paulo: Editora Ática, 1989.
ROSS, Alex, O resto é ruído escutando o século XX. São Paulo: Compa-
nhia Das Letras, 2009.
TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e modernismo brasilei-
ro apresentação e crítica dos principais manifestos vanguardistas. Petrópolis:
Editora Vozes, 1994.
VASQUEZ, Adolfo Sanches. Ideias estéticas de Marx, Rio de Janeiro: Ed.
Paz e Terra, 1978.
CLAUDE MONET catálogo do artista. N. York: Parkston Press International,
2006.

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MIRANDA, D. S. de

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Parte 3
Das vanguardas às artes
contemporâneas

Objetivos
• Esta unidade tem como objetivo primordial o estudo dos principais mo-
vimentos e estilos da arte moderna que assumiram deliberadamente, na
virada do século XX, o papel de vanguarda com vistas a revolucionar as
artes ocidentais, mediante a radicalização da ruptura com praticamente
todos os seus predicados e cânones tradicionais. Ademais, pretende-se
igualmente com esta unidade introduzir a reflexão sobre os rumos da arte
contemporânea, pontuando algumas de suas linguagens mais marcantes,
bem como problematizando aspectos polêmicos apresentados por pensa-
dores da contemporaneidade.

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

Introdução
O contexto sociohistórico das vanguardas
Devemos estar atentos para as tendências que começam a se insinuar no
mundo das artes, a partir da segunda metade do séc. XIX, cuja explosão plena
dar-se-á no inicio do séc. XX, para entendermos com mais propriedade a arte
na contemporaneidade. Dentre tais tendências destacam-se as seguintes: o
esgotamento do mecenato protetor da comunidade dos artistas e a constitui-
ção de um mercado das artes anônimo, as posturas transgressivas em rela-
ção aos rigores dos cânones das academias de artes, a “crise de representa-
ção”, ou o “colapso da representação”, conforme prefere designar Grombrich
(2007, cap. Da representação à expressão) com o aflorar de uma arte não
figurativa ou abstrata, a dissolução da comunidade de interesses e sentidos
estéticos que caracterizou o mundo das artes desde a Antiguidade clássica
até fins do séc. XIX, a dissolução dos grandes períodos caracterizados por es-
tilos e escolas com a irrupção de novas linguagens artísticas, a exemplo das
instalações e a videoarte, fazendo com que a inventiva subjetiva passasse a
ser mediada cada vez mais pela tecnologia.
São fatos cujos fios se entretecem dentro de um contexto sociocultural
marcado por grandes episódios da história da humanidade – do abrir do séc.
XX aos nossos dias –, como o intenso desenvolvimento do capitalismo liberal
da sociedade urbano-industrial, as guerras entre nações coloniais culminando
com a Primeira Grande Guerra (1914-18), a Revolução Comunista na Rús-
sia (1917), a crise do mundo dos negócios no entre-guerra culminada com o
crash da bolsa de valores de Nova Iorque (1929), seguida da grande crise no
mundo capitalista, a ascensão (1933) e queda do nazismo com a Segunda
Guerra Mundial (1945), a recuperação do pós-guerra abrindo um longo ciclo
de relativa estabilidade econômica em vários países sob a hegemonia dos
EUA, propiciando um real aumento do poder aquisitivo, o que levou inclusive
ao incremento do consumo de bens culturais, postulando novos signos e pos-
turas estéticas, o desenvolvimento acelerado das novas tecnologias digitais
intervindo diretamente na subjetividade inventiva dos artistas.
A chamada sociedade pós-industrial, originária diretamente da socieda-
de urbano-industrial, que já havia destruido elos sagrados da sociedade tra-
dicional, passa a ser o lócus por excelência para o entretecimento dos novos
laços e formas singulares da sociabilidade do mundo hodierno.
Já algum tempo, o fazer artístico vinha deixando de ser um ofício trans-
mitido de geração a geração, conforme vinha ocorrendo desde a Antiguidade.
Com exceção das primeiras manifestações rupestres do paleolítico superior

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MIRANDA, D. S. de

dos primeiros “artistas” da humanidade, que não contou com uma geração pre-
cedente que lhes ensinasse, o acervo e repertório das obras de arte foram sen-
do enriquecidos e, com isso, os saberes e técnicas desse fazer artístico foram
igualmente sendo acumulados e transmitidos a cada geração. No medievo e no
período renascentista, a transmissão das técnicas do ofício de artista era feita
mediante o estreito convívio que ocorria no interior das corporações e oficinas
entre mestres e aprendizes, procedimento que passou a constituir, no período
moderno, uma espécie de disciplina intelectual ensinada nas Academias. Eram
estas instituições que promoviam os Salões de Exposição, e que passaram a
ser objeto de crítica, a exemplo dos textos de Baudelaire, vistos anteriormente.
Até então, considerando ainda os diversos tipos de instâncias protetoras
dos artistas – da pólis grega ao mecenato do período neoclássico, passando
pelos mercadores das cidades-estado italianas, o mecenato régio, papal e ecle-
siástico –, era possível identificar aquela comunidade de sentidos estéticos, que
dava visibilidade à cadeia de interesses que fortalecia os elos constitutivos entre
a criação da obra de arte e seu meio de difusão e de fruição, o que foi possível
até fins do período neoclassicista, ou seja, até fins do séc. XVIII.
Examinando um caso paradigmático vindo do mundo da música, a
vida de Mozart (1756-1791) é um exemplo trágico de um autor que buscou
sua autonomia para viver de sua arte num momento que não permitia ain-
da tal ousadia, pagando caro por isso. Apesar de sua genialidade e fama,
Mozart morre na miséria, sendo enterrado na vala comum para indigentes.
Anos depois, Beethoven, vivendo numa época em que o artista já havia
adquirido certa autonomia (primeira metade do séc. XIX), desfruta as benes-
ses de sua própria arte ainda em vida e, quando morre, toda Europa celebra
seu gênio. A mesma fama em vida é desfrutada por Wagner (segunda metade
do séc. XIX) que chega a construir um teatro e conceber um festival na cidade
alemã de Bayreuth para encenar suas óperas e usufruir financeiramente de
suas mega produções.
Se por um lado, o artista ganha autonomia, podendo agora definir o teor
e a forma para suas criações, por outro, não contando mais com a proteção
do mecenato, passa a depender cada vez mais do mercado das artes, uma
terra de ninguém, um universo anônimo constituído de possíveis fruidores de
suas obras. Constrói-se assim um novo campo de interesses e embates entre
o artista e esse público sem rosto e sem nome.
Em tese, a ruptura com aquele meio tradicional abre uma ampla possi-
bilidade de livre escolha temática e de pesquisa em relação à forma. Contudo,
na prática, não é o que irá ocorrer. Essa multidão sem rosto e nome, diluidora
dos laços de solidariedade daquela comunidade de interesses e sentidos es-
téticos, perdendo os referenciais do passado, com gostos variados forjados

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

numa sociedade que se prima pela velocidade do efêmero, sujeita aos cho-
ques e antagonismos entre o tradicional e a modernidade, o estabelecido e
o novo, a imitação e a experimentação, não é capaz de constituir um mundo
fruidor compatível com os anseios de uma nova geração de artistas.
Abre-se, assim, um espectro ilimitado de possibilidades. A quebra de
afinidades e consensualidade de interesses e valores estéticos conduz a
constantes conflitos entre o artista e um público que se vê chocado com uma
arte que fragmenta o espaço pictórico com cores inesperadas, com a plasti-
cidade de formas abstratas ou imagens exacerbadamente distorcidas pelos
sentimentos, que se utiliza de materiais como tecidos, madeira, papel, no lugar
da tradicional tinta, por uma conduta de vida que escolhe uma estética da
existência para épater la bourgeoisie (“chocar a burguesia”).
Os choques, vicissitudes e incertezas desse novo mundo que se abre
para uma nova era, acabam por incorporar o teor e a forma de uma arte que
não mais se preocupa em constituir escolas. Daí o surgimento de uma série
de “ismos” definidores de inúmeros estilos de uma nova geração de artistas
que só tem em comum a constituição do que se convencionou nomear de
“vanguardas” do séc. XX, cujos diversos movimentos foram abrigados sob
a grande designação de Modernismo pelo historiador da cultura Peter Gay
(cf. Modernismo: o fascínio da heresia, 2009): expressionismo, dadaísmo,
cubismo, surrealismo, concretismo, suprematismo, construtivismo, fauvismo
(ou fovismo), tachismo, futurismo, neoplasticismo, e, no Brasil, o movimento
modernista que irrompeu na Semana de 22, conforme veremos adiante. O
Modernismo cobre um período que vai da virada do séc. XX aos anos 1960,
quando o mundo da cultura e das artes sofre uma forte inflexão na escolha
das linguagens, temática e formalizações estéticas, caracterizando as artes
da contemporaneidade.

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Capítulo 1
As vanguardas do
modernismo (I)
1.1. Expressionismo
1.1.1. O Expressionismo plástico
Tomado em sua acepção lato sensu, o termo expressionismo é atribuído a
qualquer manifestação subjetiva e psicológica da inventiva artística humana.
Assim, o Expressionismo transcenderia épocas e lugares, fazendo com que
vários autores, com alguma frequência, qualifiquem como expressionistas
“Expressão é o artistas como Pieter Brueghel, Hieronimus Bosch, Michelangelo, El Greco,
contrário de impressão. Goya, Van Gogh, Gaugin, dentre outros.
A impressão é um Ademais, o termo expressão costuma ser empregado para contrapor ao
movimento do exterior
para o interior: é a termo representação. Este último apenas presentifica, de modo alusivo, algo
realidade (objeto) que se ausente, enquanto que aquele é a própria manifestação imediata da coisa em
imprime na consciência si, como quer, p.ex., Schopenhauer ao afirmar que o conceito diz o mundo
do (sujeito). A expressão e a música é o mundo, ou, em outras palavras, o conceito (esfera do signo)
é um movimento inverso,
do interior para o exterior: apenas representa o mundo, enquanto que a música (esfera da essência) é a
é o sujeito que por si própria expressão do mundo em si mesmo.
imprime o objeto [...]. Podemos verificar certa afinidade conceitual do expressionismo lato
Diante da realidade, o
impressionismo manifesta sensu nas páginas do citado livro de Gombrich que dedica o último capí-
uma atitude sensitiva, tulo do seu livro Arte e ilusão (2007), para apontar a grande inflexão que a
o Expressionismo uma arte contemporânea sofre ao abandonar a representação para abraçar a
atitude volitiva” (ARGAN, expressão.
2008, p. 227)
Cunha (2003), em seu Dicionário da cultura, assim registra o conceito
geral do empressionismo:

Quando uma obra de arte é concebida com intenso emocionalismo,


quando a forma é tratada de modo a slientar em demasia as afecções
subjetivas do autor, essas características revelam uma disposição que
se convencionou chamar de expressionista (p. 270)

A estética expressionista stricto sensu se apresentou como verdadeira


antítese tanto em relação ao Romantismo como ao Realismo do séc. XIX.
Adotando arbitrariamente cores fortes e violentas, sem relação direta com o
tônus cromático do objeto figurado, o artista expressionista buscou manifestar

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sua preferência pela temática da solidão, angústia e miséria. A cor não serve
para representar o tônus cromático da realidade que pinta mas para expressar
a sensibilidade (sensações) do artista. A cor fica por conta do arbítrio do artista
para revelar seu mundo interior. A visão amargurada da vida provocou um
forte desejo de experienciar novas sensações e dimensões da imaginação.
A estética expressionista preconizava o arrebatamento individual e a primazia
da expressão do irracional e do subjetivo, e, sofrendo influxos diretos do Sim-
bolismo e do Decadentismo, sentiam-s atraídos por temas inusuais e proibi-
dos como a magia, o apelo sexual e o demoníaco.
O termo expressionismo (do fr. expressionisme) foi usado pela primeira
vez logo na abertura do século XX (1901) pelo pintor francês Julien-Auguste
Harvé para designar alguns quadros do Salão dos Independentes de Paris,
para contrapor ao Impressionismo. Na verdade, a grosso modo, poderíamos
dizer que a grande diferença entre as motivações e intenções do Impressio-
nismo e o Expressionismo residiria no fato de que, no primeiro, o artista pinta
conforme vê e, no segundo, como sente. Em outros termos, a motivação e
intenções do Impressionismo partiriam de fora para dentro, e no, Expressio-
nismo, de dentro para fora.
O Expressionismo, junto com o “Fauvismo francês”, ou Fovismo (v. adian-
te), foi o primeiro grande movimento integrante das chamadas vanguardas ar-
tísticas da cultura europeia da virada do séc. XX que se fez presente inicial e di-
retamente na pintura, mas que se irá se manifestar em várias outras linguagens
das artes visuais, bem como na música, literatura, cinema, teatro, dança, etc.
O Expressionismo não chegou a se constituir um estilo uniforme com traços
comuns, mas um movimento heterogêneo que agregou artistas de tendências va-
riadas e que defendiam uma arte mais subjetiva e intuitiva, onde predominasse a
visão interior do artista – a "expressão" – frente à plasmação da realidade como
queriam os artistas impressionistas. Provocando um efeito de percepção estéti-
ca distorcida, o artista expressionista exacerba formas e traços das figuras para
expressar subjetivamente a realidade natural ou humana, não como as vê, mas
como as sente. Daí se afirmar que o Expressionismo dá primazia à manifestação
da sensibilidade mais do que à descrição objetiva do real.
O Expressionismo procurava com frequência desvelar o lado sombrio
e pessimista da vida, a angústia existencial do indivíduo, que, na moderna
sociedade industrializada, via-se alienado e isolado. Assim, mediante a distor-
ção da realidade, visava impactar o espectador, procurando atingir, de forma
exacerbada, seu lado mais emotivo e sensível.
O Expressionismo trouxe para a cultura moderno-contemporânea uma
nova visão das artes, entendida agora como uma forma de captar a existên-
cia, de refigurar em imagens exacerbadamente disformes, o substrato que se
esconde sob a realidade aparente. Os expressionistas se utilizavam das artes

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como uma forma de refletir os seus sentimentos, o seu estado anímico, pro-
penso ao desalento, à melancolia, ao pessimismo, ao ceticismo e à evocação
ao Decadentismo.
As profundas mudanças políticas ocorridas no fin-de-siècle alemão, so-
bretudo a criação do Segundo Reich (1871), logo após a unificação dos estados
alemães e prussianos realizada por Birmarck, constroem a cena cultural propi-
ciadora, enquanto resistência a esse estado de coisas, para a emergência dos
grupos de artistas das Secessões (v.glossário, Secessão de Viena, unidade II)
que se vinculam aos primórdios do movimento expressionista. A unificação dos
estados germano-prussianos, sob o domínio do kaiser Guilherme I, foi seguida
pela inviabilidade do recém-criado império exercer uma tutela absoluta sobre a
política cultural das várias regiões. Na verdade, foram 21 estados unificados.
Assim, tais estados preservaram uma relativa autonomia da inventiva de
seus artistas. Mas a tentativa autoritária de impor uma arte acadêmica oficial para
celebrar o kaiser, mediante uma linguagem voltada para representar temas históri-
cos, provocou o movimento das Secessões, principalmente os grupos Die Brucke
(“A ponte”) de Dresden, em 1905, e Der blaue Reiter (“O cavaleiro azul”), de Muni-
que, c. 1911. O círculo de “A ponte” se destacou especialmente pelos ganhos do
desenvolvimento das artes gráficas, o que explica seus primeiros experimentos
na arte da xilogravura, além da pintura, enfatizando, em sua técnica, o contraste
claro-escuro e o vigor artístico sobre a madeira, traço marcante da estética mais
usada pelos expressionistas, como podemos observar nos trabalhos de Otto Mul-
ler (1874-1930) e na impressionante xilogravura de Emil Nolde (1867-1956).

O profeta (xilogravura de Nolde, 1913) Duas mulheres entre as canas


(xilogravura de Muller, 1909)

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Já os artistas do movimento “O cavaleiro azul”, afastando-se das provo-


cações dos artistas de “A ponte”, por eles criticadas por julgarem exageradas,
optaram pela ênfase no aspecto espiritual. Seu representante mais ilustre foi
o pintor de origem russa Wassily Kandinsky (1866-1944), quando ligado ao
grupo Der Blaue Reiter compondo largas formas coloridas bastante expressi-
vas, a ser apreciadas de modo independente. Kandinsky, um artista profunda-
mente místico, via uma profunda correspondência entre a pintura e a música,
por nela enxergar a mais espiritual e abstrata das artes. Assim também a arte
pictórica deveria se afastar de qualquer preocupação figurativa para abraçar
formas não convencionais da tradição pictórica.
Por isso, a influência da arte musical foi crucial no nascimento da arte
abstrata, que, por natureza, não deveria tenta representar o mundo exterior
senão expressar, de forma imediata, os sentimentos interiores da alma huma-
na. Percebemos aqui uma grande afinidade estético-conceitual com o filósofo
alemão Schopenhauer que, como vimos, dizia que a música era a própria ex-
pressão do mundo. Kandinsky com frequência utilizava referências musicais
para designar suas obras a exemplo do termo “Improvisação” ou “Composi-
ção”, conforme vemos no quadro abaixo. O artista colocava sua arte contrária
à celebração dos valores de uma sociedade morta pelo materialismo, optando
por traços não figurativos, pelo fluxo intenso de cores que transbordam o di-
namismo das linhas de suas composições como podemos verificar em seu
quadro Composição IV, pintado em 1911, período de constituição do Abstra-
cionismo, conforme veremos adiante.
Artista claramente místico e espiritualista, Kandinsky busca incessan-
temente o próprio conteúdo da arte, sua essência e alma, apresentando-se
como um artista abstracionista. Para ele, as referências externas do mundo
real inexistem.

Composição IV (Kandinsky)

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MIRANDA, D. S. de

É possível, de um modo geral, vislumbrar no interior do movimento ex-


pressionista, uma profunda crítica tanto ao racionalismo reinante quanto ao
estágio do desenvolvimento da sociedade européia, cujo clímax foi a deflagra-
ção da Primeira Guerra. No confronto entre sensibilidade e razão, o Empres-
sionismo procurou a exacerbação de uma sensibilidade aflitiva e atormenta-
da, traduzida pelo uso de cores violentas e temática voltada para a solidão
e a miséria, refletindo a amargura que penetrava na comunidade artística e
intelectual da Alemanha pré-bélica, bem como da Primeira Grande Guerra e o
entre-guerra (1918-1939).
Na Alemanha, a irrupção do Expressionismo, em suas várias lin-
guagens estéticas, não foi algo fortuito, visto que ele pode ser explicado
pelo estado de profunda reflexão e atividades no mundo das artes, no
curso do séc. XIX empreendida por pensadores, artistas e filósofos do
movimento romântico, e as várias correntes de pensamento estético
Positivismo: doutrina advindas de personalidades marcantes como Schopenhauer, Nietzche
filosófica e sociológica e Wagner, e de autores como Konrad Fiedler (Para julgar obras de arte
criada pelo francês
visual - 1876), todos aportando importantes contribuições teóricas que
Auguste Comte (1798-
1857), que buscou irão marcar artistas do final daquele século.
estabelecer as bases A constatação maior desses aportes é a profunda ruptura entre o artista
de um pensamento
e o mundo exterior, o ambiente que o envolve, fato que o torna num ser intro-
que preconizava o
conhecimento científico vertido e afastado da sociedade, procurando expressar em suas linguagens
como única forma artísticas o irreal. Alia-se a isso o ambiente cultural da época que se afasta do
do saber verdadeiro, gosto clássico helênico e que agora se volta para admirar a arte do medievo
desprezando outras
e obras de autores célebres de outras épocas e escolas, como Bruegel e
formas do conhecimento
que não podiam El Greco, bem como a arte popular, primitiva e exótica, dos países coloniza-
ser comprovadas dos – principalmente da África, Oceania e Extremo Oriente – com os quais a
cientificamente, por Europa passa a ter contato mais frequente, a partir da sua difusão desde os
pertencerem à esfera
fins do séc. XIX, pelos museus etnográficos, quando as vanguardas artistas
teológico-metafísica.
Só era validado como identificaram nesta arte, uma maior liberdade de expressão pela originalidade
conhecimento científico das formas, materiais e concepção de volume e cor.
o que era obtido pela
Na esfera da vida política da Alemanha, alia-se a todos esses fatos, o
experiência e por fatos
observáveis do mundo repúdio ao reinado de Guilherme II por parte de artistas e intelectuais que se
sensível. O positivismo sentiam constrangidos pelo militarismo pangermanista e imperialista do kai-
exerceu grande influência ser. No plano das intenções estéticas, é possível identificar nas origens do
entre políticos e militares
estilo expressionista, a recusa do positivismo* e da ideologia cientificista, i. e,
brasileiros, sobretudo em
alguns protagonistas da a recusa ao ideário que hegemonizou a Europa durante a maior parte do séc.
instauração da República XIX, mergulhada no industrialismo capitalista, representado na forte crença na
(1889), levando inclusive evolução humana baseada no inelutável progresso da ciência e da técnica.
o lema positivista de
Ordem e progresso para a Um traço identificador do estilo expressionista é encontrado na distor-
bandeira nacional. ção deliberada da imagem com o uso de cores vibrantes que remetem ao

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

sobrenatural ou ao fantástico, da retomado do traço gótico que se opõe à so-


ciedade burguesa da época, imersa no cenário racionalista cientificista. Sua
estética vibrante e de clima alucinógeno expressa deliberadamente um des-
colamento da realidade, para realçar a visão bem pessoal do mundo.
A obra mais emblemática do Expressionismo é O grito (1893) do no-
rueguês Edvar Munch (1863-1944) representando uma figura andrógina em
momento de intensa angústia. “Já é tempo de pararmos de pintar cenas de
interiores, com pessoas lendo ou mulheres fazendo meias. Devemos criar
pessoas vivas que respiram, sentem, sofrem e amam”. Esse pensamento,
retirado das páginas de diário de Munch, expressa, na justa medida, sua con-
cepção em relação à intenção de sua obra. Pavor, angústia, tortura e deses-
pero são sentimentos recorrentes em seus trabalhos.
O próprio artista assim descreve a inspiração que teve para seu quadro:

“Eu estava andando por uma estrada com dois amigos. O sol estava
se pondo e eu comecei a ficar aflito com um sentimento de melancolia.
De repente o céu se tornou vermelho-sangue, eu parei e me encostei a
uma cerca, me sentindo supercansado e encarando as nuvens verme-
lhas que se penduravam como sangue e uma espada, sobre o fiorde
preto-azulado e a cidade. Meus amigos continuaram, eu permaneci
absorto, tremendo de medo. Eu ouvi (senti) um grito sem fim, bem alto
e de natureza bem aguda” (apud DENVIR, 1977, p. 17).

O grito de Munch

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MIRANDA, D. S. de

O grito é a expressão sígnica em estado puro da incomunicabilidade e


da solidão. O formato da boca do rosto deformado, emoldurado pelas duas
mãos alongadas da figura central em primeiro plano, parece determinar todos
os demais desenhos sinuosos presentes na composição, como se fossem
círculos “concêntricos” deliberadamente distorcidos, a partir da irradiação da
boca emissora “do grito sem fim”. Mais ao fundo, em segundo plano, dois ho-
mens trajando fraque e cartola se mostram distantes e indiferentes à angústia
do ser que grita, como se nada estivesse ocorrendo.
O grito foi precedido por outra obra de Munch, O desespero (1892), cuja
recorrência estética (tônus cromático, figuras humanas e linhas sinuosas)
guarda semelhanças, ao passar a mesma expressão de pavor e desesperan-
ça. Assim, são vistos o mesmo “vermelho-sangue” do céu e o “vermelho” das
nuvens contornadas por linhas sinuosas desenhadas na parte superior, com
reverberações sombrias e escuras na sua parte inferior. Neste quadro, o rosto
da figura em primeiro plano encontra-se menos deformada do que em O grito.

O desespero de Munch

O Expressionismo plástico se revigora no continente europeu na


obra de artistas como o belga James Ensor (1860-1949) e o alemão Lovis
Corinth (1858-1925). Durante anos, Ensor conviveu com os pais proprie-

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

tários de uma loja de suvenires numa pequena cidade da Bélgica, no meio


de porcelanas e, por ocasião do carnaval, entre máscaras baratas. Nesse
ambiente Ensor construiu seu universo artístico, transitando inicialmente
pelo Naturalismo e Impressionismo. Fazia uso, com maestria, de cores
com tonalidades fortes e contrastantes, cujas composições notabilizavam-
-se por figuras insólitas, personagens burlescas ou mórbidas, com apelos
à fantasmagoria (figuras mascaradas ou esqueletos), exacerbando sen-
sações de angústia pela vida. Seus trabalhos são realizações satíricas da
sociedade de sua época.
Sua arte antiacadêmica pendia para o macabro. Nutriu-se igualmente
da grande tradição artística do seu país, sobretudo de Bruegel, autor da tela
Combate entre o Carnaval e a Quaresma (v. História da Arte I), mostrando
preferência pela temática popular. A entrada de Cristo em Bruxelas (1889)
expressa a paixão de Cristo em plena festa popular carnavalcesca, causando
grande impacto e escândalo na época. Sua obra mescla crítica religiosa, polí-
tica e social, apresentando um Cristo humilde e bondoso entrando em Bruxe-
las, no meio de uma festa pagã, retratada pela multidão em cenas irreveren-
tes, de cunho burlesco, cheia de bêbados, vagabundos e foliões com diversos
tipos de máscaras, inclusive com figuração da morte, traço recorrente de sua
estética, como se vê na figura mascarada de caveira, em primeiro plano, sen-
do considerada uma obra representante do Expressionismo belga.

A entrada de Cristo em Bruxelas (1888/89)

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Não tão famoso em sua época, Ensor não deixa de re-


velar grande efeito plástico que mostra tanto apuro técnico
quanto domínio conceitual expresso em suas composições, a
exemplo do Auto retrato com máscaras (1899).
Assim como o belga Ensor, o alemão Lovis Corinth tam-
bém transitou do Impressionismo ao Expressionismo, época em
que foi professor da artista Anita Malfatti, personalidade do mun-
do das artes plásticas brasileiras, pertencente à corrente mo-
dernista que irrompe na Semana de 22. Corinth pertenceu ao
movimento Secessão de Viena (cf. glossário). O quadro Ecce
homo é um de seus primeiros trabalhos da fase expressionista,
quando o artista já havia se afastado do estilo impressionista da
sua juventude. Nele, ao contrário de outros pintores que recor-
reram ao tema, desde o Renascimento, Corinth traz para seu
tempo a expressão de sofrimento de um Cristo sem a barba
típica, querendo talvez com tal escolha, apresentar a face to-
talmente desnuda para melhor expressar a dor que o homem
Cristo sentia naquele instante de intenso sacrifício e paixão.

Ecce Homo (1925) de Corinth Ecce Homo de Ticiano (1548) Ecce Homo de Caravaggio (1605/06)

Uma vertente da estética Se o Expressionismo buscou retratar o contexto histórico-cultural dos


do expressismo plástico
será retomada nos Estados
primórdios da Primeira Guerra Mundial, na Alemanha pós-guerra, o estilo se
Unidos, durante as décadas apresentou como a formalização estética mais apropriada para retratar o cli-
de 1940/50 que se manifesta ma sombrio de terror disseminado pela ascensão do nazismo.
principalmente nas obras
dos pintores Jackson
Na verdade, o estilo se identifica com as inspirações artísticas no inte-
Pollock, Mark Rothko e rior do contexto da crise aguda que se instala na frágil República de Weimar*
Willem de Kooning, e que que se instaura após a catastrófica derrota infringida a uma Alemanha arrui-
passou a ser designada nada e humilhada pelo Tratado de Versalhes (1919). Assim, o Expressionismo
como expressionismo
abstrato, estilo a ser visto
se revigora como formalização de uma proposta estética, bem como postura
mais adiante.

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

moral de confronto ao poder militar que, aos poucos, se instala em terras ger- A expressão Ecce Homo
mânicas e que depois se estende a outros países europeus. (Eis o Homem), segundo o
evangelho de S. João, foi
Não foi por acaso que o regime nazista combateu ferozmente o Ex- usada por Pôncio Pilatos
pressionismo por considerá-lo uma arte degenerada, relacionando-a inclusive para exibir Jesus Cristo
com o comunismo, como algo imoral e subversivo, visto que sua “fealdade e à multidão, com o corpo
todo ensanguentado e
inferioridade artística” era uma representação da decadência da arte moder- a cabeça coroada de
na. Um ano após a chegada ao poder, o nazismo organiza uma exposição em espinho, ironicamente
Munique, com o título justamente de Arte degenerada, procurando, com isso apresentado como Rei
mostrar o que se criou na República de Weimar era para ser desprezada por dos Judeus, antes de
realizar sua via sacra a
ser uma arte de baixa qualidade. caminho da crucificação.
Foram incluídas nessa rubrica mais de 16 mil obras confiscadas de O tema é recorrente na
vários museus (dessas, cerca de 5 mil foram diretamente destruídas), não história da arte plástica
cristã por inspirar desde
somente de artistas da cultura alemã, mas também de artistas estrangeiros o Renascimento tanto
como os pós-impressionistas Van Gogh e Gaugin, o expressionista Edvard outros artistas, como,
Munch, o fovista Henri Matisse, o abstracionista Marc Chagall, os cubistas p. ex., o Ecce Homo
Pablo Picasso e Georges Braque, dentre tantos outros. dos pintores italianos,
o renascentista Ticiano
(1548) e o barroco
Caravaggio (1605),
cujos quadros podem
ser vistos ao lado. Ecce
Homo - como alguém se
Logo da Der Sturm (A tempestade), torna o que se é – intitula
revista do Expressionismo alemão também uma das obras
de Nietzsche (1844-1900),
de teor autobiográfico,
1.2. A música expressionista publicado postumamente
em 1908.
Como vimos, o Expressionismo se fará presente em várias linguagens artísti-
cas, como a música, o cinema, as artes cênicas etc. Na música, especialmen-
te no período do entre-guerra, o Expressionismo serviu-se de uma extrema
emotividade traduzindo-se em composições bastante complexas e rigoro-
samente estruturadas. As formas tonais convencionais foram rompidas pelo
afastamento das “belas harmonias”, realçando acordes dissonantes, usados
com grande intensidade e força, o que fez com que o estilo recebesse de
forma desqualitificante o título de atonalismo. Ao distorcer deliberadamente o
som e a harmonia tradicionais, por se afastar do chão tonal, deixava a escuta
da melodia quase sempre irreconhecível.
Um compositor da época visto como expressionista, devido à sua ópera
Salome, foi O Richard Strauss (1864-1949). A figura bíblica de Salomé, como
vimos, foi tema bastante recorrente entre os artistas do fin-de-siècle europeu.
A ópera teve duas estréias marcantes (em 1905, na cidade alemã de Dresden
e, em 1906, na cidade austríaca de Graz), pelo escândalo provocado pelo
seu tema, mas que, ao mesmo tempo, impactara o público. A edição de 1906

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MIRANDA, D. S. de

contou com a presença de diversas personalidades da vida musical européia,


como Gustav Mahler, Puccini, Arnold Schoenberg, Alban Berg, e até mesmo
uma personagem fictícia, Adrian Leverkuhn, protagonista do romance Doutor
Fausto de Thomas Mann.
O tema da ópera, baseado em Oscar Wilde, como vimos, provocou uma
cadeia de protestos, pelo erotismo que permeava o espetáculo, notadamente
a cena em que Salomé, após receber, numa bandeja, a cabeça decepada de
João Batista como trofeu pela dança dos sete véus diante de Herodes, erotiza
a cena beijando os lábios inertes e inermes do profeta ainda banhados de san-
gue. Herodes, entre arrependido e horrorizado, ordena: “Matem esta mulher!”
Segue uma profusão caótica de sons: trompas insinuam figuras ligeiras de ui-
vos indistintos, tímpanos percutem golpes secos, madeiras emitem guinchos
agudos. A ópera termina, de fato com oito compassos de puro ruído. “Nunca
se ouviu nada mais satânico e artístico no palco operístico alemão”, escreveu
na época o crítico Ernst Decsey (apud ROSS, op. cit., p.23).
Na realidade, o Expressionismo da ópera faz uso de diversas estruturas
harmônicas, do tonalismo à politonalidade, passando por inusitadas modu-
lações, ambiguidade tonal e o cromatismo extremado como a fase expres-
sionista do compositor austríaco Arnold Schoenberg (1874-1951), antes de
sua fase mais conhecida do serialismo dodecafônico, principalmente seu ciclo
de lieder (canções) intitulado Pierrot Lunaire (1912). Nessa obra, Schoenberg
usa o canto no limite da fala, como Sprechgesang – “cantofalado” – o que
significa trazer para o domínio melódico toda gama de ruidismo dos timbres
da voz e das entoações. Assim se expressa Mário de Andrade, de forma inso-
fismável, sua admiração pela obra de Schoenberg:

“Com efeito na admirável criação de Schoenberg, a voz não é nem fala


nem canto é ... é a ‘sprechgesang’ (“cantofalado”). Dessa experiência
resultou (...) num poder de experiências de todo gênero, vocais, ins-
trumentais, harmônicas, rítmicas, sinfônicas, conjugação de sons e de
ruídos, etc., etc., de que resultou a criação duma, por assim dizer, nova
arte, ... a quase música. Arte esta que pela sua primitividade ainda não
é música exatamente como certas manifestações de clãs africanas,
ameríndias e da Oceania”. (Mário de Andrade, citado por Gerald Tho-
mas/Livio Tratemberg, in folheto do Luartrovado baseado em Pierrot
Lunaire, SESC/Pinheiros, SP, 2007).

1.3. O cinema expressionista


A despeito de sua manifestação tardia, em relação às outras artes, pois o Ex-
pressionismo cinematográfico surge no início da República de Weimar (1919),
certamente, ele foi a linguagem que melhor difundiu para o mundo a estética
expressionista alemã, presente sobremaneira na obra de três grandes cineas-

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

tas: Robert Wiene (1873-1938), Friedrich Wilhelm Murnau 1888-1931) e Fritz


Lang (1890-1976), falando de temas como a morte, a angústia da grande ci-
dade, e subjacente a tais temas pairava a ambiência sombria vivenciada pela
Alemanha do entre-guerra. Porém, mais do que o teor temático, seu traço
mais relevante refere-se à inovação estética de sua forma.
Atores e diretores, oriundos em sua maioria do teatro, transpuseram
suas técnicas já desenvolvidas no palco para a tela, como o forte jogo de luzes
e holofotes, presentes em muitos filmes expressionistas. No lugar do dina-
mismo das câmeras, sobressaem vários tipos de efeitos mais frequentes que
jogam com iluminação em detalhe, a fantasmagoria do jogo de sombras nas
lentes da câmera. Destaca-se igualmente o uso de outro importante recurso
técnico: os espelhos provocando a deformação dos rostos.
Aliavam-se a tais técnicas, as performances teatrais cujos rostos acentu-
avam uma maquiagem marcante com olhos esbugalhados, expressões distor-
cidas e esgares deliberadamente exagerados, além de uma mímica expressiva
pela linguagem corporal dos intérpretes. Um dos exemplos mais impactantes do
Expressionismo cinematográfico é a performance do premiado artista alemão
Emil Jannings no papel de Mefistófelis do Fausto de Murnau (1926).
O gabinete do Dr. Caligari (1919)
de Robert Wiene apresenta uma temáti-
ca sombria de suspense e mistério numa
ambiência citadina, com personagens
desempenhando uma performance as-
sustadora, com o uso de excessiva dra-
maticidade e cenografia fantástica de
recriação do imaginário humano. Edifica-
ções distorcidas, em estilo cubista, cor-
redores e caminhos que aparentam não
ter fim, são completadas por um figurino
e uma maquiagem excessivamente ma-
cabra, Dr. Caligari é uma personagem bi-
zarra e tétrica que hipnotiza suas vítimas
para levar a cabo objetivos como assas-
Cartaz do filme O gabinete
sinatos. O clima de terror e de dramatici-
do Dr. Caligari
dade trágica do filme, assim como a obra
Nosferatu de Murnau, foi visto por diversos críticos como alusão premonitória
ao período do nazismo que se avizinhava no cenário político da Alemanha. No
final, o filme provoca uma indagação: o que é real e o que é alucinação? Tal
ambiguidade intencional joga com a aparência do real e o engano dos senti-
dos, querendo com isso, nas intenções do cineasta, demonstrar que é próprio
do cinema (a chamada sétima arte) ser pura ilusão.

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MIRANDA, D. S. de

Cena de O gabinete do Dr.Caligari de Wiene


O repertório cinematográfico de Murnau contou com uma das obras
mais representativas do estilo expressionista: o filme Nosferatu, uma sinfonia
de horrores (1922), baseado em Drácula de Bram Stoker (1897), certamente
o filme mais clássico do Expressionismo alemão. Seu Nosferatu tornou-se a
representação imagética por excelência do Mal, algo que prenunciava a Ale-
manha das décadas seguintes.

Nosferatu de Murnau (1922)

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

Figura esguia, alta e esquálida, com o nariz, orelhas


e dentes extremamente pontiagudos, o estranho e ater-
rorizante Nosferatu obtém grande êxito ao representar a
figura da personagem macabra de Stoker, a encarnação
do horror em estado puro. Sua formalização estética, ou
seja, sua imagem fílmica é a própria expressão em si do
conteúdo do ser maligno. Ser noturno do mundo das tre-
vas, Nosferatu encontra-se perdido no passado de uma
terra distante – a Transilvânia.
O terceiro cineasta expressionista é o austríaco Fritz
Lang que se destaca principalmente em dois filmes: Dr. Ma-
buse (1922) e Metrópolis (1927). O primeiro representa uma Cena de Nosferatu de Murnau (1922)
das primeiras obras cinematográficas construída sob a égide das descobertas
da psicanálise, do mundo do inconsciente e da esquizofrenia, a partir das teorias
de outro austríaco, o psiquiatra Sigmund Freud. O dr. Mabuse, mestre do disfar-
ce e da telepatia, é a personagem doentia que comete seus crimes, cuja mente
criminosa passa a comandar as pessoas à distância, hipnotizando-as.

Dr. Marbuse
Já o filme Metrópolis, visto como uma obra prima precursora do cinema
voltado à ficção científica, estabelece de forma bastante expressiva a relação
entre o mundo das máquinas e os operários das grandes cidades, realçan-
do o sentimento de perda da humanidade no meio de todo esse processo.
O filme foi realizado a partir de uma cidade cenográfica. Ele é ambientado

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MIRANDA, D. S. de

numa mega cidade futurista cujos extratos estão divididos em duas classes
fundamentais: o extrato responsável pelo planejamento e gestão urbana, que
tem uma vida de luxo entre teatros e estádios, na parte superior da Terra em
grandes arranha-céus, e os operários, que habitam e trabalham no subsolo,
tendo uma existência de horrores e muitos deles terminam sendo sacrificados
a Moloch, uma divindade monstruosa.

Metrópolis de Fritz Lang


Assediado pelo nazismo para se transformar num cineasta do regime,
Lang recusa o convite, migrando para os EEUU, onde se vê constrangido a
renunciar o Expressionismo alemão agora reciclado para o cinema americano
de Hollywood, sendo por isso bastante criticado.

1.4. Fovismo
Alguns autores apontam o movimento fauvista como uma vertente francesa
do Expressionismo germânico (Alemanha e Áustria), com o qual guarda afini-
dades estéticas. O termo fovismo, originário do francês fauve (fera), foi cunha-
do durante o Salão dos Independentes de Paris, em 1905, pelo crítico de arte
Louis Vauxcelles (o mesmo que atribuíra o termo cubismo para a arte de Pa-
blo Picasso e Georges Braque), para caracterizar a arte do grupo de artistas
que se formara em torno do pintor francês Henri Matisse (1869-1954). Para
chamar a atenção da arte dos integrantes do grupo, Vauxcelles os denomina
de fauves (animais selvagens).

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

A novidade estética fovista, que recebera influxos diretos do pós- Escola de Paris
-Impressionismo, em especial de Cézanne e Van Gogh, caracteriza-se pela (École de Paris)
Designa um grupo de
simplicidade das formas bem como pela intensidade do uso de cores puras, artistas não-franceses na
sem tons nuançados ou misturas nas paletas. As cores são irreais tais como sua maioria, que residiam
saem dos tubos de tinta, na organização das suas composições. Matisse, e trabalhavam em Paris,
sua figura de maior expressão, destacou-se pelo total afastamento do realis- em dois momentos
distintos da história da
mo plástico, tanto nas suas formas como nas suas representações cromáti- arte moderna: antes da
cas. Um exemplo paradigmático de sua estética fovista pode ser encontrada Primeira Grande Guerra,
no quadro Natureza morta com peixes vermelhos, de 1911. e outro grupo que residiu
e trabalhou na capital
francesa no período
entre-guerra. No início
do século, participaram
os seguintes pintores: o
espanhol Pablo Picasso
(1881-1973), o russo Marc
Chagall (1887-1985), o
italiano de origem judaica
Amedeo Modigliani (1884-
1920) e o holandês Piet
Mondrian (1872-1944).
Do grupo do entre-guerra,
participaram, dentre
outros, o pintor catalão
Joan Miró (1893-1983)
e o escultor romeno
Constantin Brancusi (1876
–1957).

Natureza morta com peixes vermelhos


Como grupo, a existência dos fovistas foi curta. Poucos de seus inte-
grantes mantiveram-se fiéis ao estilo original, outros partiram para novas ex-
periências, inclusive do Expressionismo propriamente dito responsável pela
criação da Escola de Paris*, momento crucial para a criação do que se pas-
sou a designar arte do séc. XX.
O depoimento de Matisse de 1908, citado por Cunha, é um manifesto
cristalino dos princípios estéticos de como Matisse se afasta dos cânones
tanto do Impressionismo, influenciado pelas conquistas da ciência da época,
como da vertente expressionista germânica, voltado para o disforme e sensa-
ções mórbidas. E podemos vislumbrar o testemunho plástico desses princí-
pios num de seus quadros mais famosos, A dança, de 1910.

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MIRANDA, D. S. de

Ballets Russes
Grupo que começou atuar
em 1909, inicialmente
como grupo de teatro de
verão, transformando-se
logo a seguir, em 1911,
em corpo permanente
de balé. Sob o comando
do produtor cultural
Serguei Diaghilev, o balé
configurou-se numa
espécie de experiência
de arte total moderna
do século XX – a
Gesamkunstwerk, o ideal
de obra de arte de Wagner
-, à medida que aglutinou
sob sua égide, os
melhores compositores,
coreógrafos, dançarinos,
cenógrafos e designers
da época, integrando A dança de Matisse
diversas linguagens em
Este quadro – o mais famoso do pintor francês – apresenta cinco figu-
suas produções. Além
do compositor russo ras de mulher nuas dançando, no sentido horário, em torno de um eixo ima-
Stravinsky, Diaghilev ginário. A composição realça o predomínio de duas cores primárias – o azul
contratou os artistas e o vermelho alaranjado, aludindo a uma luminosidade própria, e o verde
plásticos Picasso e
que a complementa, criando silhuetas recortadas que se fundem num todo
Matisse, e o poeta e
cineasta francês Jean estético equilibrado entre o verde e o azul. As cores criam uma impressio-
Cocteau, bem como nante unidade plástica. A idéia de leveza expressa pelo movimento e ritmo
os dançarinos Vaslav das formas femininas arredondadas, contrastando com o vigor e o dinamis-
Nijinski, responsável
mo dos corpos dançantes, passando energia, é flagrante.
pela coreografia de A
sagração da primavera, Alguns autores identificam em A dança afinidades estéticas dionisía-
Anna Pavlova, George cas com o frenesi embriagante do pulso rítmico de A sagração da primavera,
Balanchine, dentre outros.
de Igor Stravinsky. O balé em dois atos, encenado pela primeira vez, em
Paris, em 1913, pelo Ballets Russes, apresenta uma forma composicional
inédita reveladora da flagrante primazia da percussão pulsional em relação
à altura melódica, afrontando a tradição euro-ocidental milenar. Trechos são
marcados por acordes movidos por uma pulsação constante, onde não só
os instrumentos de percussão, mas todas os demais naipes e timbres, como
cordas e sopros, passam a exercer, solidariamente, função percussiva na
peça de caráter ritualístico.

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

Texto complementar
Sobre Ensor
“Significativamente, o principal recurso expressivo que ele [Ensor] utilizava em sua
obra era um esqueleto, às vezes vários na mesma tela. Eles aparecem entregues a tarefas
bastante cômicas, geralmente à vontade dentro de casa, na variada vida imaginária de
Ensor. Um esqueleto se afunda confortavelmente numa poltrona bem estofada, olhando
alguns objetos chineses; outro desenha; outro está tocando clarinete. Ele mostra esque-
letos voadores, o maior deles com uma enorme foice, aterrorizando uma multidão que
tenta fugir” (GAY, op. cit., p. 125).

A República de Weimar
A República de Weimar (1919-1933): a ordem republicana alemã é instaurada logo
após a Primeira Grande Guerra, que sucede o Império do Keiser Guilherme II, tendo com
sistema de governo o parlamentarismo, onde o Presidente da República nomeava um
chanceler (primeiro ministro), responsável pelo poder Executivo. As circunstâncias de sua
criação foram excepcionais. Já sentido a derrota, as autoridades militares, poder solidi-
ficado desde o domínio autoritário de Bismarck durante a unificação da Alemanha, em
1870, transferem o poder para políticos dos partidos de ideologia republicano-democrata
alemão, que se encarregam de negociar a paz, após sofrer uma humilhante derrota.
A pequena cidade de Weimar, situada na região centro-oriental do país, de intensas
evocações do período clássico/romântico do tempo de Goethe, Herder e Schiller, foi es-
colhida para sediar a elaboração da constituição republicana alemã. Desse modo, a Repú-
blica de Weimar passou a designar o período entre 1919 e 1933, sendo este o ano da as-
censão do partido nazista ao poder, mediante a nomeação de Adolf Hitler como chanceler.
A despeito das condições bastante adversas, com a nova ordem republicana enfren-
tando uma série de problemas políticos, sociais e econômicos, que impediam o restabele-
cimento da estabilidade numa Alemanha devastada, durante esses poucos anos, vicejou
no país e na vizinha Áustria, uma rica atmosfera de intensas realizações no campo da
cultura e das artes, a exemplo da Escola de Bauhaus, tendo à frente o arquiteto Walter
Gropius; o Instituto de pesquisa social (mais conhecida como Escola de Frankfurt), criado
pelos filósofos Theodor Adorno, Max Horkheimer, contando mais tarde com a participa-
ção de Walter Benjamin; o Círculo de Viena, grupo formado por filósofos dedicados à
filosofia da linguagem e da lógica, como Moritz Schlick, Rodolf Carnap, Alfred Tarski e W.
Quine; a Segunda escola de Viena, formada por músicos como Arnold Schoenberg, Anton
Weber e Alban Berg; o cinema expressionista de Robert Wiene, Friedrich Wilhelm Murnau
e Fritz Lang, antes de sua fase americana; a dramaturgia épica de Bertold Brecht.
Todos esses movimentos irão se dissipar com a instauração do nazismo, provocando,
dentre outros efeitos, a diáspora desses intelectuais e artistas por alguns países euro-
peus não ocupados pelas tropas hitleristas, mas, sobretudo, para a América do Norte. Esta
grande contradição entre a Alemanha das luzes e da extrema efervescência cultural de um
Goethe e as sombras do militarismo de Bismarck foi tema do livro A cultura de Weimar do
ensaísta inglês Peter Gay (1978) São Paulo: Ed. Paz e terra.

Depoimento de Matisse
“A tendência dominante na cor deve ser a de servir o melhor possível à expressão [...]
O lado expressivo das cores se impõe a mim de modo puramente instintivo. Para pintar
uma paisagem de outono, não tentarei me lembrar das cores que convêm a essa estação;
inspirar-me-ei apenas na sensação que ela me proporciona: a pureza glacial do céu, de

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MIRANDA, D. S. de

um azul acre, exprimirá a estação tão bem como a tonalidade das folhagens [...] A escolha
de minhas cores não repousa em nenhuma teoria cientifica [...] procuro simplesmente
empregar cores que expressem a minha sensação [...]. Sonho com uma arte de equilíbrio,
de serenidade, desprovida de motivos inquietadores ou deprimentes; uma arte que seja,
para todo trabalhador cerebral, para o homem de negócios ou para o artista das letras,
por exemplo, um lenitivo, um tranquilizador mental semelhante a uma boa poltrona que
o faz repousar de suas fadigas físicas”
(Notas de um pintor de Henri Matisse, apud CUNHA, 2003, p. 280).

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Capítulo 2
As vanguardas do
modernismo (II)
2.1. Cubismo
Devido à grande participação de Pablo Picasso nesse estilo, o Cubismo tor-
nou-se o movimento estético mais famoso do modernismo plástico do séc.
XX. Os criticos e historiadores da arte são unânimes em apontar a origem do
cubismo nos trabalhos de Cézanne, que, como se viu, enxergava na nature-
za, formas geométricas estruturantes – cilindros, cones e esferas –, conforme
o artista buscou realizar em sua série de quadros do Monte Santa Vitória,
referidos anteriormente.
Porém, os cubistas radicalizam a concepção de Cézanne. Do final dos
anos 1910 ao deflagrar da Primeira Guerra Mundial, fase do Cubismo analítico,
de curta duração (cf. PROENÇA, 1989, p. 154), o estilo é caracterizado pela
descontrução da obra em todos os seus elementos formantes. Com isso a arte
cubista, em sua fase analítica, revolucionou a organização pictórica, rompendo
com a tradição da ilusão em perspectiva da Renascença,
bem como com a trimendisionalidade dos objetos, estabe-
lecendo novas relações entre as formas e os espaços da
composição plástica, decompondo-a em figuras geométri-
cas sem nenhum compromisso de fidelidade com sua apa-
rência real.
A pintura cubista projeta a figuração pictórica sem
resquícios de perspectiva tradicional, lançando o fruidor
a contemplar todos os lados das figuras representadas
apenas na unidimensionalidade simultânea de um só pla-
no frontal, cujo jogo cromático – com predomínio das não
cores como o preto e o cinza, ou alguns tons marrons e
ocres – conferia paradoxalmente à composição uma sen-
sação de quarta dimensão.
Um exemplo dessa fase é o clássico quadro Les
demoiselles d’Avigon (1907), cujas faces das duas mu- Les demoiselles d’Avigon (1907)
lheres à direita estão cobertas por máscaras de evoca-

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MIRANDA, D. S. de

ção ibérica e africana, testemunhando o recente interesse do pintor pela


chamada “arte primitiva”, diferenciando-as nitidamente dos rostos lisos das
três outras figuras femininas.
Segue a fase do Cubismo sintético, mais duradoura, que reage à ten-
dência exacerbada de fragmentação dos objetos, buscando com isso, um
retorno ao reconhecimento das figuras, o que não significou uma recuperação
do figurativismo realista. Nessa fase, o cubismo se utilizava da colagem, intro-
duzindo materiais como fragmentos de madeira, papel, tecido, metal e vidro
no espaço pictórico, assim como letras e números, criando com isso outros
efeitos e texturas, despertando experiências estéticas de percepção tátil. A
cor, desprezada na fase analítica, retorna mais expressiva. Pertence a essa
fase, o quadro Natureza morta, o dia (1929), de Georges Braque (1882-1963),
companheiro de Picasso.

Natureza morta, o dia (Braque)


Sem sombra de dúvida, Picasso é a figura maior não apenas do
cubismo, mas do clâ dos artistas modernistas do século XX. “Homem dos
sete instrumentos”, segundo Gay (2009), destacou-se em diversas áreas
das artes: desenho, pintura, escultura, artes gráficas, colagem, cerâmica,
cenografia (foi dele o cenário da peça Parade, do compositor francês Eric
Satie, em 1917).

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

Pablo Picasso em seus 92 anos de vida, teve um existência plena de


experiências em suas várias dimensões, experienciando intensamente o que
certos pensadores denominam de estética da existência. Fascinado pelas
máscaras africanas, passa por várias fases e estilos, algumas de caráter pes-
soal, como as fases azul e rosa, ou de forma mais coletiva no interior do movi-
mento cubista, como os períodos analítico e sintético, vistos acima.
Nascido de uma família de artistas, na cidade de Málaga, região da
Andaluzia, no litoral sul da Espanha mediterrânea, seu gênio precoce para o
desenho e pintura chamou a atenção de seus contemporâneos, principalmen-
te do pai, um pintor e desenhista de talento mediano, que lhe proporciona o
estudo mais sistemático das artes.
Sua infância é passada na cidade natal, quando já se interessa, em
seus primeiros desenhos pelo tema das touradas. Morou em outras cidades
espanholas antes de se fixar em Paris. Residiu em Málaga, La Coruña (cida-
de na orla ocidental da Espanha atlântica), novamente Málaga, Madri, onde
se instala em 1897, e Barcelona. Nessa cidade, frequenta a culta vanguarda
espanhola no cabaré Els Quatre Gats, importante passo para conhecer a arte
moderna francesa. Em 1900, nas instalações desse cabaré, abre ao público
a sua primeira exposição. A estada em Barcelona representou um importante
momento para sua formação artística (v. Texto complementar), antes de se
mudar para Paris, com 19 anos de idade.
Em Paris, capital artística da Europa, passa a ter uma atividade febril
bastante criativa, provocando a admiração na comunidade de artistas, tornan-
do-se, com o tempo, a figura mais ativa da Escola de Paris (v. glossário). Fre-
quenta o círculo de intelectuais e artistas dos bairros boêmios de Montmartre
e Montparnasse, como André Breton, Guillaume Apollinaire e Gertrude Stein,
dentre outros. Em Montmartre, convive também com o espanhol Juan Gris e
o poeta-pintor francês Max Jacob.
O momento do entre-guerra europeu, com as nefastas experiências do
nazi-facismo (Hitler na Alemanha e Mussolini na Itália) aliado às ditaduras ibé-
ricas (Francisco Franco na Espanha e Oliveira Salazar em Portugal), mobiliza
a resistência de intelectuais e artistas de todos os matizes – anarquistas, re-
publicanos liberais, socialistas e comunistas –, cujo ponto culminante dar-se-á
na Guerra Civil Espanhola (1936-39).

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Dentre as obras de Picasso desse período destaca-se o grande mu-


ral mundialmente conhecido Guernica (1937), seu mais célebre trabalho não
apenas pelo que se acha expresso no teor e na forma da composição, mas
também pelo significado que a obra ganha, como arte engajada que busca
expressar o terror da guerra provocada pela barbárie das tropas nazi-facistas.

Guernica (1937)

Os fatos: como uma espécie de laboratório macabro, o comando aéreo


alemão da Legião Condor realiza, em abril de 1937, sob ordem direta do gene-
ral Franco, um bombardeio-teste sobre Guernica, como forma de ensaio das
famosas blitzkrieger alemãs, ataque relâmpago em massa para surpreender o
inimigo, muito usado na Segunda Grande Guerra pelas forças do III Reich hitle-
rista. O pequeno vilarejo, na região basca, ao norte da Espanha, foi escolhida
para tal operação, num rápido bombardeio que se mostrou cruelmente eficaz.
Em 26 de abril de 1937, na tarde de uma fatídica segunda-feira, os avi-
ões da Legião Condor fazem despejar o inferno, em forma de bombas, sobre
a população camponesa da pequena cidade, totalmente indefesa. Resultado:
mais de 1.600 pessoas mortas e cerca de 900 feridas, numa população de
menos de 7 mil habitantes, provocando grande comoção internacional, o que
faz as forças franquistas, usando um estratagema diversionista, atribuir o ata-
que aos comunistas.
Mesmo próximo da esquerda intelectual e artística européia da época,
com amigos anarquistas e comunistas, Picasso até então não demonstrara
grande interesse pela política, mas a atrocidade das forças nazi-fascistas em
Guernica não o deixa mais indiferente ao sofrimento de seus compatriotas,
passando a adotar cada vez uma postura pacifista.
Picasso projeta esteticamente Guernica para o centro das atenções, ao
expressar no famoso mural toda a atrocidade e o horror da matança de uma

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

população civil. Ele aproveita o convite para participar, em Paris, da Exposição


Internacional sobre a Vida Moderna, em 4 de junho de 1937, um evento de
repercussão mundial, onde estariam presentes artistas de várias partes do
planeta, para expor, pela primeira vez, Guernica.
O terror do bombardeio lhe causou repulsa e indignação, concentrando-
-se durante cinco meses na realização da composição, um grande mural de
350 cm x 782 cm. Para expressar o clima tétrico e sombrio do horror contido
no episódio, o artista opta por tonalidades das não cores, também conhecidas
como cores neutras: o negro, o branco e o cinza.
A composição, â maneira cubista, encontra-se encimada por uma
luz que se irradia a partir de um olho-lâmpada que ilumina os horrores da
guerra, na sua parte central, representados por pedaços de corpos es-
quartejados. Ainda no centro vê-se um cavalo, em disparada, como uma
força irracional incontrolável. À direita, impassível, vemos a imobilidade de
um touro e logo abaixo, uma mulher com uma criança morta nos braços.
Seu desespero se expressa no intenso clamor emitido por uma boca es-
cancarada voltada para os céus. Alguns críticos vêem nesse detalhe uma
Pietá dos tempos modernos.
Porções geometricamente despedaçadas de uma figura masculina do-
minam, em primeiro plano, grande espaço das partes inferiores da tela. No
espaço central iluminado, voltado mais à direita, vemos os seios expostos de
uma mulher grávida, parecendo implorar pela vida, enquanto outra, na extre-
midade direita, em contraponto simétrico à mãe com o filho morto no colo, er-
gue inutilmente os braços para o vazio, tendo ao fundo uma casa à esquerda
em chamas. Picasso consegue, com sua arte, impactar o mundo e expressar,
com indignação, o uso da racionalidade na tecnologia mais avançada da épo-
ca, a serviço da barbárie e do extermínio.
Além do valor estético de Guernica, sua historia é cercada de vários fa-
tos. Um dos mais difundidos narra que o próprio Picasso, ao ser indagado por
um oficial nazista que acabara de ver uma reprodução da obra, por ocasião da
ocupação de Paris, se tinha sido ele que tinha feito a pintura, teria respondido
de imediato: “Não, foram vocês!”
O outro episódio de grande significado para o mundo das artes e da po-
lítica internacional foi a proibição expressa do próprio artista, da exposição do
mural em solo espanhol enquanto o ditador Franco vivesse. Durante o segun-
do conflito mundial, o quadro ficou sob a guarda do Museu de Arte Moderna
de Nova Iorque (MOMA), e só retornou à Espanha em 1981, seis anos após a
morte do ditador, em 1975, e depois de uma longa peregrinação, cujo retorno
é celebrado pelos espanhóis como “el último exilado”. Hoje, Guernica integra
o acervo permanente do Museu Rainha Sofia, em Madri.

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MIRANDA, D. S. de

A genialidade ímpar e a personalidade exuberante de Picasso talvez


não tenham permitido um maior realce de outros importantes artistas cubistas
contemporâneos, como o francês Fernand Léger (1881-1955), cujos traços
traduzem otimismo em relação ao maquinismo da sociedade da sua época,
por ele visto como promessa de novos tempos (v. abaixo Elementos mecâni-
cos) e seu compatriota Juan Gris (1887-1927), pintor de grande talento que,
mesmo vivendo apenas quarenta anos, deixou uma obra de extraordinário
valor para a arte cubista, conforme podemos verificar em Homem no café,
de 1914. A convite de Diaghilev, Gris participa, como cenógrafo, de algumas
importantes realizações do produtor russo.

Elementos mecânicos de Léger (1918-23) Homem no café de Juan Gris (1914)

2.2. Abstracionismo, Construtivismo e Suprematismo


2.2.1. O Abstracionismo
Vimos que, ao estabelecer uma relação de correspondência entre a pintura e
a música – esta última sendo vista como a mais espiritual, interior e abstrata
das artes –,Kandinsky buscou essa mesma dimensão essencial abstracionis-
ta na arte pictórica, mediante uma estreita afinidade conceitual entre ambas.
Como consequência, o abstracionismo de Kandinsky estabeleceu um cânone
sagrado: a existência desnecessária da relação imediata entre as formas e as
cores de um objeto, como condição de possibilidade de expressão de beleza
e do conteúdo de verdade de uma obra de arte, levando, assim, às últimas
consequências a crise da representação da arte figurativa tradicional.

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

Para Kandinsky, devia existir uma total despreocupação de empenho


representativo da realidade, ou seja, uma total ausência de buscas narrativas
de forma figurativa, seja de cenas da natureza viva ou morta, seja de fatos
históricos, religiosos ou mitológicos.
Sua tela A batalha, de 1910, é referência para o início da escola abstrata
do modernismo (cf. PROENÇA, op.cit., p.159), também conhecida como Abs-
tracionismo informal, para diferenciar do Abstracionismo geométrico formal do
holandês Piet Mondrian (1872-1944). No quadro, podemos ainda vislumbrar
figurações simplificadas, como lanças eretas, linhas sinuosas de montanhas,
as cores em curva acentuada de um arco-íris, ou então uma fortaleza. No
entanto, a impressão que mais se destaca no todo da obra é um conjunto de
planos e a diagonalidade de linhas e as cores, desde o a cor neutra de um
nítido negro à suavidade das manchas cromatizadas.

A batalha de Kandinsky (1910)


O holandês Piet Mondrian, anteriormente voltado para o Abstracio-
nismo informal mais próximo de Kandisky, conforme atesta a série de ár-
vores pintadas entre 1908 e 1912, posteriormente, nas décadas de 1920
e 30, opta pelo abstracionismo formal-geométrico, como podemos ver na
Composição de 1921, quando faz desaparecer de sua obra linhas diago-
nais e curvas, para enfatizar a horizontalidade e a verticalidade de suas
composições, cujas espessas linhas negras delimitam com nitidez o jogo
dos campos das cores de dimensões distintas que preenchem as formas
retangulares e quadradas que estruturam suas composições em rígido ge-
ometrismo, obtendo, como resultado, um paradoxal equilibrio assimétrico.
Composição de Mondrian (1921)

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2.2.2. O Construtivismo
A história das artes plásticas russas do séc. XX é rica de ex-
perimentos, conforme atesta a obra do pintor, escultor e arqui-
teto Vladimir Tatlin (1885-1956), que, ao visitar Paris em 1912,
fica fascinado com os cubistas, sobretudo com a estética da
colagem, iniciando um ciclo de pinturas em relevo, usando di-
versos materiais.
Tatlin viveu os momentos agitados da Revolução So-
viética (1917), sob a liderança de Vladimir Lenin (1870-1924),
primeiro chefe de Estado da União Soviética. Tatlin adere à re-
volução, vinculando-se aos militantes russos (os bolcheviques).
No campo das artes, um dos princípios estéticos que ecoa com
vigor na época, parte do russo Maiacovsky (1893-1930), um dos
poetas mais importantes do séc. XX, que preconiza em alto som:
sem forma revolucionária não há arte revolucionária!, consigna
que fará deslanchar um ímpeto febril de intensa pesquisa entre
os artistas na busca de novas formas de expressão plástica, em
sintonia com os novos tempos da sociedade russa.
O contato de Tatlin com a colagem cubista serviu de es-
tágio mediador para a fase seguinte, ou seja, a construção de
vários tipos de objetos estéticos esculturais a partir da madeira,
A Torre de Tatlin (c. 1918) metal e vidro, resultando em obras completamente abstratas,
importante patamar para o aflorar do Construtivismo. Tatlin, junto com Anton
Pevsner (1886-1962), escultor que, ao contrário do primeiro, sai do país, após
as intervenções de política cultural soviética voltada para o chamado realismo
socialista, são diretamente responsáveis pela a criação de objetos abstratos,
por eles denominados de “construções”, ao invés das tradicionais esculturas.
Sua “construção” mais famosa é o Monumento à III Internacional, ou a
Torre de Tatlin, idealizada para celebrar a Revolução de 1917. Foi, inicialmen-
te criada para ser instalada em Petrogrado, projeto jamais executado em es-
cala real, existindo atualmente apenas modelos reduzidos. Com a ascensão
de Josef Stalin (1978-1953) ao poder, em 1922, e a instauração do realismo
socialista (estilo que impõe conteúdo e formas que traduzam a sociedade so-
viética), as experiências estético-formais da vanguarda russa passam a ser
perseguidas em todas suas frentes, inclusive o construtivismo que cai em des-
graça, enterrando definitivamente o projeto do Monumento.
A obra Superfície desenvolvida (s/d), “construção” de Anton Pevsner,
consegue, de forma bastante exitosa, passar a idéia de movimento e leveza,
devido ao jogo dinâmico da irradiante luz que vaza no interior do objeto, em
contraste com o escuro do sinuoso material sólido na fechada cor negra.

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

Construção superfície desenvolvível de Pevsner

2.2.3. O Suprematismo
Fechando a análise da vanguarda artística russa, não podemos deixar de nos
referirmos ao Suprematismo, movimento renovador que, ao exacerbar a pureza
do racionalismo geométrico e o fim da representação, enfatizou as formas es-
téticas básicas centradas sobretudo em formas geométricas planas quadradas
e circulares e, eventualmente retângulos, triângulos e cruzes. Porém, diferente-
mente do proto-cubismo de Cézanne, ou do cubismo de Picasso e Braque, que
buscam, de modo mais ou menos explícito, formas geométricas estruturantes
como cones, cilindros e círculos, ao retratar objetos da natureza viva ou morta,
no suprematismo, as referências externas à obra são completamente abolidas.
Em 1913, Malevich expõe na mostra O alvo, na cidade de Moscou, o qua-
dro Quadrado preto sobre um fundo branco, que apresenta uma forte imagem
de uma forma quadrada negra contrastando com um fundo branco, na reali-
dade, dois quadrados, um dentro do outro, com os lados paralelos aos da tela.

Quadrado preto sobre um fundo branco de Ma-


levich (1913)

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Em 1918, Malevich retoma e radicaliza sua proposta estética minimalis-


ta em outra obra chamada Quadrado branco sobre fundo branco.

Origem da palavra
Dadaísmo
A escolha do nome dadá
se deu fortuitamente, visto
que Tzara teria aberto um
dicionário, deixando seu
dedo indicador cair ao
acaso sobre uma palavra
qualquer da página,
e a palavra apontada
foi “dada”, o que na
linguagem infantil francesa
significa “cavalo”,
querendo com isso dizer
Quadrado branco sobre fundo branco (1918)
que o elo semântico da
palavra escolhida era Esses quadros, de extrema simplicidade, expressam composições pu-
menos importante do ras e cerebrais, que se abdicam de qualquer sensualidade, mas não de sen-
que o sentido do gesto
sibilidade, visto que esta, para os artistas suprematistas, era obtida mediante
aleatório, visto que a
própria arte que queria a fruição de suas formas libertas das impurezas que cercam a representação
qualificar teria igualmente dos objetos, prejudicando com isso, a própria percepção pura desses mes-
perdido o sentido num mos objetos.
mundo dilacerado pela a
dor e sofrimento causados
pela crueldade do conflito 2.3. O Dadaísmo
mundial.
Por ocasião da Primeira Guerra, muitos intelectuais e artistas europeus proce-
dentes de várias nacionalidades, opositores do confronto bélico que buscava
pela violência resolver as pendências entre as potências imperialistas, se re-
fugiaram na cidade de Zurique da neutra Suiça. Na época, a cidade abrigou
um movimento literário denominado Dadá, designação escolhida a esmo pelo
poeta húngaro Tristan Tzara (1893-1963), sem nenhum sentido explícito às
suas intenções direcionadas a manifestar seu desalento e decepção com os
rumos do desenvolvimento científico, bem como com os da filosofia, religião e
política, importantes setores da vida européia incapazes de impedir a violência
que se abateu sobre a Europa.
Na mesma ocasião, as descobertas do médico-psiquiatra Sigmund
Freud (1853-1939), revelando que nossos atos obedecem mais a impulsos
psíquicos incontroláveis comandados pelo nosso inconsciente do que por
escolhas lógico-racionais, extrapolaram o mundo científico e começaram a
ganhar espaço no mundo da cultura e das artes. Dessa forma, o Dadaísmo,
Fac símile da capa da revista assim como posteriormente o movimento surrealista, procurou manifestar te-
DADAphone (nº 7) órica e esteticamente o uso do automatismo psíquico e das pulsões da inven-

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tiva, livres de liames da racionalidade estruturada na esfera do consciente,


combinando elementos ao acaso – da mesma forma como o nome dadá fora
escolhido – como condição de possibilidade para o fazer artístico, usando
sobremaneira a colagem na pintura, cujas intenções não são mais estético-
-plásticas, mas, no limite, éticas, satíricas e irônicas, visando a uma profunda
crítica ao status quo do continente europeu.
Contribuiu solidariamente para o espírito dadaísta, o surpreendente e im-
pactante gesto do artista franco-americano Marcel Duchamp(1887-1968), com
sua famosa obra Fontain, A fonte, assinada sob o pseudônimo R. Mutt, ao criar
o mictório branco de cerâmica esmaltada, a partir de um urinol em posição in-
vertida, e que buscou status de obra de arte, quando Duchamp resolveu enviar
para participar de uma mostra de arte e depois reinstalá-lo em vários museus.
Nunca o conceito de arte tradicional foi tão seriamente ameaçado. Mes-
mo as experimentações mais radicais do Cubismo, Abstracionismo ou Su-
prematismo, que rompem com a representação figurativa, mantêm ainda a
criação na esfera da inventiva subjetiva do artista. Agora, a proposta dadaísta
de Duchamp de obra de arte busca seus objetos no repertório dos utensílios
prosaicos da vida cotidiana.
A intencionalidade estética da obra autoral, a busca do belo e do subli-
me, a pulsão criativa da subjetiva estética, nada disso configura mais a obra
de arte. Esta deve ser procurada nos objetos encontrados na rotina ordinária.
Agora, o objeto adquire estatuto artístico ou provoca uma experiência estéti-
ca, subordinado ao arbítrio do fruidor. Já vimos que o próprio Duchamp havia
proferido que quem faz a obra de arte ser arte são os olhadores.

A fonte de Duchamp (1917)

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Para chegar a tal resultado, Duchamp realizou um percurso iniciado


em 1913, quando colocou uma roda de bicicleta sobre um banco e a fez girar
em seu estúdio. Em 1915, decidiu batizar esse trabalho, bem como outros
objetos como secador e pá de retirar neve, de ready-mades, ou seja, objetos
prosaicos prontos, retirados de seu contexto original. Em 1917, envia A fonte
para participar de um concurso de arte dos EUA, cujo júri a rejeita por julgar
que a peça não apresentava nenhum valor artístico. No limite, uma anti-arte,
conceito que o autor, por motivos distintos dos seus críticos não rejeitaria.
A proposta estética dos ready-mades acabou provocando a percepção
contemporânea do que seja arte, ao insistir na concepção de que o ato inven-
tivo não devesse ser apoiado somente na originalidade, mas na possibilidade
de transferência de utensílios prosaicos da vida cotidiana, passando assim
a ser re-significados para o campo das artes. Com o passar dos anos – e,
Roda de bicicleta sobre um mesmo na época, parece ter sido essa a intenção de Duchamp – seu gesto
banquinho (1913)
tornou-se em si mesmo, um ato estético de questionamento radical da natu-
reza da obra de arte, sua função na sociedade, bem como a autoridade dos
críticos e curadores de mostras e dos museus para determinar o que era arte
na sua época e para a posteridade.
Ao se tornar famosa mundialmente, A fonte tornou-se um ícone da arte
moderna, alargando o caminho para o percurso das vanguardas do séc. XX.
O próprio Tzara reconheceu no surpreendente gesto uma identidade dadaís-
ta. Duchamp dialogou com o escritor surrealista André Breton (1896-1966) e o
músico minimalista norte-americano John Cage (1912-1992). Seu legado foi
fundamental para as experimentações subsequentes dos novos estilos e várias
outras linguagens, a exemplo do citado Dadaísmo e o Surrealismo, além do
Expressionismo abstrato norte-americano dos anos 1940-50, a Arte conceitual,
a Pop-art, a Op-art e as instalações que começam a se manifestar nos anos
1960, prenunciando a Vídeo-arte e outras linguagens da contemporaneidade.
Muitos dos ready-mades originais, inclusive A fonte, não mais existem.
Alguns se perderam, outros foram quebrados ou descartados. Somente répli-
cas feitas pelo próprio artista estão expostas pelo mundo, inclusive A fonte da
mostra Marcel Duchamp: uma obra que não é obra “de arte” no MAM de São
Paulo, em 2008, para celebrar os 60 anos do museu, onde algumas réplicas
expostas foram feitas pelo próprio artista, em 1964.

2.4. O Surrealismo
O movimento surrealista, como vimos, apresenta grandes afinidades estético-
-conceituais com o Dadaísmo em relação ao papel do automatismo psíquico na
produção das obras de arte, graças à ênfase que ambos os movimentos atri-
buem à pulsão espontânea da criação. Aquela rebeldia antiburguesa detectada

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no princípio do épater la bourgeoisie (chocar a burguesia), misturada com atitu-


des anarquistas das vanguardas em resposta ao espírito bélico das potências
européias responsáveis pela deflagração do grande conflito mundial, além das
descobertas freudianas dos impulsos inconscientes, bem como da simbologia
onírica, construíram um sólido patamar para a irrupção do Surrealismo.
Em 1919, o escritor e poeta francês André Breton, juntamente com outros
artistas e intelectuais, dentre estes o escritor Louis Aragon (1897-1982), funda
a revista Litterature, órgão de grande importância para a divulgação da causa
surrealista. Nessa ocasião entra em contato com o dadaísta Tristan Tzara. Em
1924, Breton lança, em Paris, o primeiro Manifesto surrealista em que preconiza
a associação livre da criação artística ao automatismo psíquico puro.
Como podemos ver no texto complementar abaixo, contendo fragmen-
tos desse manifesto, para o Surrealismo a arte não resulta das camadas racio-
nais e lógicas do consciente, mas, ao contrário, ela irrompe como expressões,
via de regra, absurdas e ilógicas, do inconsciente ou subconsciente, como
as figurações oníricas dos sonhos e da imaginação. Assim proclamam a arte
nunca é fruto da razão inteiramente desperta. “Podiam admitir que a razão
pode dar-nos a ciência, mas afirmava, que só a não-razão pode dar-nos a
arte” (GROMBRICH, op. cit., p. 592).
Além do campo literário, a estética surrealista se fará igualmente pre-
sente em duas outras linguagens marcantes: na pintura e no cinema.

2.4.1. O Surrealismo plástico


Vários artistas plásticos abraçaram a estética Surrealista, cujos estilos se ma-
nifestavam em duas tendências básicas: a figurativa e a abstrata. Entre os pin-
tores da primeira tendência, encontramos o catalão Salvador Dali (1904-1989)
e o russo Marc Chagall (1887-1983). Na segunda, encontramos outro artista
catalão, Joan Miró (1893-1983), e o pintor alemão Max Ernst (1891-1976).
Vejamos a obra dos dois espanhóis da Catalunha. Salvador Dali é, cer-
tamente, o artista mais célebre, considerado mestre do Surrealismo plástico.
Seus trabalhos conseguem impressionar pelas inusitadas combinações de
imagens bizarras e oníricas, no limite, alucinantes, com inesperados resulta-
dos, pela excelência de sua qualidade plástica.
Um dos seus trabalhos mais conhecidos é A persistência da memória,
concluído em 1931. Este quadro de dimensões reduzidas (24 cm x 33 cm), e
que Dali teria levado apenas duas horas para compô-lo, contém uma temáti-
ca recorrente das preocupações humanas – o tempo e a memória, plastica-
mente expressos por relógios dependurados, cujo tempo parece escorrer na
própria flacidez inconsistente do maquinismo, sobre objetos que os sustentam

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a exemplo de um galho de árvore seca, um grande bloco sólido de calcáreo


polido (ou seria um grande móvel?), cuja composição é inserida numa indefi-
nida paisagem insólita, entre o céu, a terra e o mar.

A persistência da memória de Dali (1931)


Joan Miró, quando entrou em contato com o Surrealismo, já pintava
com traços próximos ao que se considera estilo naïf (ingênuo em francês)
como o quadro O carnaval de Arlequim (1924), mas, já no ano seguinte partici-
pava da primeira exposição surrealista, realizada na Galeria Pierre, em Paris,
onde, além dele, Max Ernst, Jean Arp e Giorgio de Chirico participaram Pi-
casso, Man Ray e Paul Klee, dentre outros artistas. A adesão de Dali dar-se-ia
posteriormente à exposição.

O carnaval de Arlequim de Miró (1924)

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

No entanto, o quadro que projeta o estilo de Miró mundialmente é Nú- Auschwitz


meros e constelações em amor com uma mulher (1941). Observe-se que o O município polonês
de Auschwitz, sul da
Surrealismo plástico é acompanhado do mesmo princípio surreal para desig-
Polônia tornou-se
nar o nome de suas obras, cujos títulos, como no presente caso, atribuem bastante conhecido pela
relações aparentemente aleatórias, à maneira de inspirações igualmente oní- crueldade do complexo
ricas como as cores e os motivos de suas composições. do Auschwitz-Birkenau,
nome de um conjunto de
campos de concentração,
tornando-se símbolo maior
da barbárie infringida
pelo holocausto do povo
judeu perpetrado pelo
nazismo. Com a Polônia
ocupada pelas tropas
nazistas, em 1940, Hitler
ordena a construção,
nesta área, de vários
campos de concentração
e um de extermínio.
Todo esse complexo
macabro de horrores,
composto de três campos
principais e trinta e nove
auxiliares localizavam-
se nos municípios de
Auschwitz e Birkenau.
Após a Segunda Guerra,
o pensador alemão
Números e constelações em amor com uma mulher (Miró) Theodor Adorno escreveu
A educação depois de
Realizada em plena Segunda Grande Guerra – motivo talvez de se es- Auschwitz, ensaio que
perar algo mais sombrio –, a composição optou pelo lado mais iluminado da se tornou famoso pela
existência, procedimento usado por vários artistas conscientes da importância problematização que
desenvolve, porque
de uma arte a serviço da esperança e do retorno do colorido da vida (ainda não
o texto ressalta que
se conhecia a barbárie de Auschwitz*), quando atravessavam momentos cru- a principal meta da
ciais de sofrimento impingidos por ditaduras negadoras da humanidade, como educação deve ser a
ocorreu na União Soviética stalinista e na Alemanha nazista. Essa famosa obra de evitar a repetição de
Auschwitz. Os horrores
foi pintada usando a técnica da aquarela e da tinta guache sobre papel.
da barbárie continuarão
As aquarelas usam de pigmentos que facilmente se dissolvem na água existindo enquanto
e são fixados com goma-arábica ou resinas plásticas, para obter materiais persistirem as condições
que levaram a Auschwitz.
que imprimem mais luminosidade às cores. Via de regra, os artistas a usam
para realçar a policromia da natureza. Já o guache, obtido igualmente à base
de água, da goma-arábica e um tipo de pó colorido, se diferencia da aquarela,
porque, em sua composição, usa uma espécie de tinta branca, tornando-o
mais opaco. Desse modo, o artista, como fez Miró, pode obter tonalidades
mais escuras para contrastar com as porções mais claras e coloridas, e, as-

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sim, realçar mais ainda seu lado iluminado, o que seria mais difícil com o uso
apenas da aquarela. O clima obtido pela claridade e jogo de cores e das várias
pequenas formas aleatoriamente dispostas na composição nos passa a sen-
sação de cumplicidade amorosa insinuada pelo seu título.

2.4.2. O Surrealismo cinematográfico


Existe um aspecto interessante na estética surrealista. Tendo como berço o
mundo literário da França, a Espanha será o país que mais sobressai como
pátria das duas maiores expressões do Surrealismo plástico, que acabamos
de analisar, sem mencionar Picasso, com incursões próximas ao estilo. E será
também nesse país que irá irromper um grande realizador do cinema surrea-
lista, o diretor Luiz Buñuel (1900-1983).
Conforme vimos analisando, as tendências radicais que revoluciona-
ram as artes ocidentais começaram a se manifestar na virada do séc. XX,
quando se dão os começos da crise que conduz à Primeira Guerra Mundial.
No entre-guerra, sobretudo nos anos 1930, várias linguagens das vanguar-
das artísticas atingem seu ponto culminante, precisamente no interior da cri-
se avassaladora do capitalismo mundial, fermentando ainda mais o contexto
polarizador entre tendências radicais: de um lado, as experiências revolucio-
nárias, cujo maior êxito foi a revolução russa de outubro de 1917 e, de outro,
a reação contra-revolucionária do nazi-fascismo da Alemanha e Itália. Nesse
conturbado cenário surge em 1928 a obra extraordinária de Buñuel: primeira-
mente, o filme Um cão andaluz, e, dois anos depois, A idade do ouro.
Oriundo de uma abastada família de fazendeiros, Buñuel morou em Ma-
drid, com 17 anos, quando entra em contato com diversas correntes de van-
guarda da época, destacando-se, na esfera artística, o jazz norte-americano
e na política, a ideologia revolucionária comunista. Entra também em contato
com a célebre “Geração de 27”, amplo grupo constituído de intelectuais e
artistas que se empenhavam em trabalhar com as tendências vanguardistas
da arte e da poesia, destacando-se o poeta Federico García Lorca e Salvador
Dalí, formando, com eles, um agitado círculo da boemia madrilenha, frequen-
tadora de salões literários, cafés e bordeis.
Seu contato mais intenso com o cinema se dá em 1920, quando par-
ticipa da criação do primeiro cineclube espanhol. Em 1925, muda-se para
Paris, onde estuda cinema e começa a frequentar os literatos liderados por
Breton. Já adepto da estética surrealista, realiza seus primeiros experimentos
cinematográficos, e, em 1929, escreve o roteiro, em parceria com Dalí e dirige
Um cão andaluz, verdadeiro manifesto estético cinematográfico, criado à luz
da psicanálise, ao explorar o inconsciente humano, numa sequência de cenas
oníricas, tornando-se verdadeiro marco na história do cinema.

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

Buñuel relata, na época, as perspectivas criativas que a linguagem cine-


matográfica lhe abria, contando com possibilidades técnicas e estéticas que
lhe permitiam realizar quanto à desproporcionalidade de imagens oníricas,
algo impossível em relação às artes tradicionais. Para Buñuel, a linguagem
cinematográfica seria a mais completa tradução do automatismo psíquico
perseguido pela estética surrealista.

Cena de Um cão andaluz


Realizado com a deliberada intenção de chocar e não de portar senti-
do, na acepção lógica tradicional, o filme Um cão andaluz é cinema surreal
em estado puro: ao invés de algo como “era uma vez”, já começa lançando
o expectador num atemporal “oito anos depois”, seguido de uma sucessão
de imagens profundamente impactantes, a começar pela mais terrível, cruel
e célebre dos quadros: um homem (o próprio Buñuel), empunhando uma na-
valha afiadíssima, faz um corte profundo no olho de uma mulher. Seguem
cenas, ora com referências a amigos (a ex. do poeta García Lorca), ora apre-
sentando obsessões pessoais (a ex. da mão cheia de formigas). Enfim, uma
série de imagens e situações, sem qualquer narrativa linear aparentemente
desbaratadas. Assim escreve o co-roteirista Salvador Dali:

Meu ideal, ao escrever o roteiro com Buñuel, foi o de apresentar a linha


reta e pura de conduta de um ser (para certos analistas Jesus Cristo)
que persegue o amor em meio aos ignóbeis ideais humanitários, patri-
óticos e outros miseráveis mecanismos da realidade (catálogo de lan-
çamento do Studio 28, completado por texto de Breton, [... e]. Aragon
[...], apud CUNHA, 2003, p.613)

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MIRANDA, D. S. de

2.5. O Futurismo
Fechamos este capítulo com o Futurismo. A despeito de ser um dois primeiros
movimentos estéticos do início do séc. XX, alinhado aos outros movimentos
vanguardistas, conforme vimos até aqui analisando, deixamos sua aborda-
gem para o final, devido ao seu caráter insólito.
Ao contrário das outras estéticas das vanguardas do início do séc. XX
que resistem radicalmente ao maquinismo decorrente da sociedade urbano-
-industrial do capitalismo tardio, o Futurismo busca celebrar a máquina, a velo-
cidade, o desenvolvimento tecnológico e o dinamismo do novo século, trans-
formando as sensações provocadas por tal estado de coisas em experiência
estética, conforme podemos ler em alguns fragmentos do manifesto do poeta
italiano Fillippo Tommaso Marinetti, publicado no jornal francês Le Figaro, em
20 de fevereiro de 1909:

Nós queremos cantar o amor ao perigo, o hábito à energia e à temeri-


dade.

Os elementos essenciais de nossa poesia serão a coragem, a audácia


e a revolta.

Tendo a literatura até aqui enaltecido a imobilidade pensativa, o êxtase


e o sono, nós queremos exaltar o movimento agressivo, a insônia febril,
o passo ginástico, o salto mortal, a bofetada e o soco. Nós declaramos
que o esplendor do mundo se enriqueceu com uma beleza nova: a be-
leza da velocidade. Um automóvel de corrida com seu cofre adornado
de grossos tubos com serpentes de fôlego explosivo ... um automóvel
fugidor, que parece correr sobre a metralha, é mais belo que a Vitória
de Samotrácia.

[...] [...]

Nós queremos glorificar a guerra – única higiene do mundo – o milita-


rismo, o patriotismo, o gesto destrutor dos anarquistas, as belas ideias
que matam, e o menosprezo à mulher [grifos nossos].

É para a Itália que lançamos este manifesto de violência agitada e


incendiária, pela qual fundamos hoje o Futurismo, porque queremos
livrar a Itália de sua gangrena de professores, de arqueólogos, de cice-
rones e de antiquários (apud TELES, op. cit. pp. 91-92).

Mesmo próximo, em certo momento, de intelectuais de esquerda, inclu-


sive do pensador e político marxista Antonio Gramsci (1891-1937), fundador
da revista Ordine Nuovo, Marinetti manifestou seu apoio explícito ao fascismo
o que o faz se afastar da esquerda italiana. Ao defender o reino do maquinis-

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

mo, os futuristas exaltavam igualmente uma arte da velocidade, da guerra, da


violência e da destruição, o que levou à condenação de vários pensadores,
vendo em tal concepção uma justificativa estética do facismo que se instalaria
na Itália, na década de 1920.
Um exemplo da apologia à velocidade e ao dinamismo da máquina en-
contramos no quadro Automóvel + velocidade + luz, do italiano Giacomo Balla
(1871-1958) pintor que, em 1910, manifesta publica-
mente sua adesão ao movimento futurista.
Em 1913, surge uma importante vertente es-
tética na música vinculado ao movimento futurista,
quando o pintor/compositor Luigi Russolo (1885-
1947) lança o manifesto L’arte dei rumori (a arte de
ruídos), onde explicita suas bases conceituais. Para
ele, os ruídos advindos da sociedade urbano-indus-
trial aumentara significativamente nossa percepção
para apreciar sons complexos (para além dos tradi-
cionais sons musicais do código tonal, p.ex.).
Russolo concebeu vários instrumentos como o
intonarumori (ruído de máquinas), que geravam rugi-
dos, assovios, pancadas, gemidos e outros sonoridades do gênero, destina-
dos a performances musicais orquestrais como o Gran Concerto Futuristico
(1917), provocando reações violentamente hostis na ocasião.

O intonarumori (ruído de máquinas) do músico/poeta Russolo

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MIRANDA, D. S. de

Texto complementar
Picasso em Barcelona
“Em Barcelona, um cabaré foi inaugurado [...], em 1897, a partir do modelo do Chat
noir parisiense [famoso cabaré da belle époque parisiense frequentado, dentre outros bo-
êmios, pelo pintor-ilustrador Toulouse-Lautrec] [...]. Ali se reúnem os jovens decididos a
ajudar o futuro século XX a romper com o que o precede. É El Quatre Gats (onde dizemos
que não haverá um gato pingado, os catalães dizem que haverá quatro), instalado na Casa
Marti, uma construção neogótica do bairro velho. Pere Romeu, que também esteve em
Montmartre, é o patrão, o animador desse estranho estabelecimento, que funciona como
sala de exposição, teatro de marionetes e sombras chinesas, lugar de reunião da Socieda-
de Wagner e onde se encontram, com copos de cervejas na mão, artistas e escritores de
vanguarda [... que] sentem-se em casa, e ali Pablo Picasso abre os olhos e o espírito a uma
arte mais viva do que a ensinada nas escolas”.
(PLAZY, 2005, p.29s)

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Capítulo 3
Triunfo e expansão do
modernismo
3.1. A Escola de Bauhaus
A Staatliches-Bauhaus (em alemão, Casa estatal da constru-
ção, ou simplesmente Bauhaus, Casa da construção, como
ficou conhecida) foi uma das experiências mais originais
vivenciada durante a República de Weimar. Foi uma esco-
la de artes pouco convencional ligada aos movimentos de
vanguardas artísticas do séc. XX, fundada em 25 de abril de
1919, em Weimar, pelo arquiteto Walter Gropius (1883-1969),
transferida em 1926, para Dessau, por motivos práticos e ide-
ológicos, mantendo-se em intensa atividade artístico-pedagó-
gica até a ascensão de Hitler em 1933, tornando-se uma das
mais importantes expressões do design e da arquitetura fun-
cional moderna, verdadeiro centro irradiador e renovador no
campo das idéias do urbanismo, da compatibilização entre
arte e tecnologia industrial e da própria educação das artes.
Para Gropius, seu ensino deveria dissolver a rígida
separação entre as “belas artes”, noção que teve seu apo-
geu nos séc. XVIII/XIX, e as “artes decorativas”, criadoras Cartaz da Escola de Bauhaus
de objetos para o dia a dia, e que ganharam grande impulso
com as revoluções industriais da era moderna, propiciando inclusive o uso
de novos materiais, a exemplo que ocorreu com a estética da Art nouveau.
Por isso, o programa didático-pedagógico, com um acentuado caráter prático,
visava desenvolver a capacidade dos alunos no domínio das possibilidades
concretas e estéticas de materiais como pedra, madeira, metal, argila, vidro,
têxteis, plásticos, direcionando-os para a fabricação de objetos da vida cotidia-
na, como móveis, talheres, louças etc.
A intenção primordial do projeto pedagógico de Bauhaus era desenvolver
uma proposta de ensino das artes que desenvolvesse um aprendizado integra-
do, como explicita o crítico Michel Ragon: Bauhaus visava à reunião da “pintura,
escultura, arquitetura, desenho industrial, numa mesma ação; reconciliar as ar-
tes e os ofícios, a artes e a técnica” (apud PROENÇA, op. cit., p.175).

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MIRANDA, D. S. de

Para a proposta de Gropius, era fundamental o desenvolvimento de uma


sensibilidade estética adquirida pela imersão dos jovens em práticas artístico-
-culturais para a realização de boas performances de futuros profissionais.
Segundo suas próprias palavras,

Era objetivo da Bauhaus formar pessoas com talento artístico para se-
rem designers na indústria, artesãos, escultores, pintores e arquitetos.
[...] O fato de o homem de hoje estar desde o princípio por demais
entregue à tradicional formação especializada – que só lhe pode trans-
mitir saber especializado, mas não lhe torna compreensível o sentido
e a razão do seu trabalho, nem sua relação do mundo como um todo
– foi enfrentado pela Bauhaus mediante a ênfase, no primeiro plano
da formação, não apenas e desde o início na profissão, mas no ser
humano, em sua disposição natural de entender a vida como totalidade
(GROPIUS,1997, p. 38).

Dentro dos limites de uma escola de arquitetura e design industrial que


buscavam aliar arte e tecnologia, mediante o desenvolvimento de habilidades
que uniam o trabalho do artesão e do artista, a proposta de Bauhaus busca-
va a interatividade da dimensão estética, social e política de um projeto que
perseguia a formação de jovens artistas de acordo com os anseios de uma
sociedade baseada nos princípios de uma democracia liberal, onde as fun-
ções deveriam ser efetivadas pela complementaridade e não pela hierarquia.
Para a obtenção de tal objetivo, seu programa didático, além de com-
preender um currículo voltado ao estudo dos novos materiais, bem como
a cor, base necessária para a formação técnica e estética da questão das
formas, os alunos desenvolviam um programa cultural que compreendia téc-
nicas do teatro experimental e outras atividades de cunho artístico-cultural.
Dentre os professores que passaram por Bauhaus, estiveram os fa-
mosos pintores representantes das correntes modernistas da Europa, como
Wassily Kandinsky, o pintor suíço-alemão Paul Klee (1879-1940) e o húngaro
Marcel Breue (1902-1981), que revoluciona o design mobiliário moderno com
sua famosa cadeira criada em 1923.

Cadeira de Marcel Breue (1923)

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

3.2. O Modernismo nas Américas


3.2.1. A Semana de Arte Moderna (Brasil)
As ressonâncias das vanguardas modernistas se fazem sentir nas Américas.
No Brasil, a Semana de Arte Moderna representou uma violenta lufada de re-
novação no mundo das artes nacionais. A Semana ocorreu em São Paulo, em
1922, quando a capital paulista já era uma metrópole de grande envergadura,
movida sobretudo pelo mundo dos negócios do café, tornando-se um centro
irradiador da cultura moderna do país.
Durante três dias, as diversas linguagens como a pintura, escultura, li-
teratura, poesia e música, foram celebradas no palco do Teatro Municipal –
prédio em estilo Art nouveau inaugurado 11 anos antes –, expressando uma
espécie de gesto fundador, ao provocar uma guinada decisiva nos rumos das
artes modernas brasileiras, pela sua ousadia na renovação daquelas lingua-
gens pela busca de experimentação e liberdade inventiva de seus autores.
As reverberaçãos da Semana foram sentidas, posteriormente, de forma mais
forte e incisiva.
Participaram da Semana os escritores Mário de Andrade e Oswald de
Andrade, o escultor Victor Brecheret, os poetas Menotti Del Pichia e Guilher-
me de Almeida, o compositor e maestro Heitor Villa-Lobos, os pintores Emilia-
no Di Cavalcanti e Anita Malfatti dentre tantos outro. O programa da Semana
constou das seguintes atividades:
• 13 de fevereiro (2ª feira) – Abertura oficial do evento com a conferência
do escritor Graça Aranha, sobre o tema “A emoção estética da Arte Moder-
na”. Com o teatro lotado e o sagão abrigando várias pinturas e esculturas
espalhadas pelo seu espaço, que provocam estupefação e repúdio por
parte do público, o dia transcorreu com relativa calma.
• 15 de fevereiro (4ª feira) – a píanista Guiomar Novaes, a despeito de não
ser uma artista afinada com as propostas modernistas da Semana, inter-
preta alguns autores consagrados da música erudita, recebendo, por isso,
restrições por parte dos modernistas. A atração da noite é a palestra de
Menotti del Pichia que apresenta novos escritores e poetas, dentre estes
Manuel Bandeira que tem um de seus poemas em estética moderna, Os
sapos, lido por Ronald de Carvalho, sob os apupos da platéia, devido à
acerba crítica ao parnasianismo. A noite termina em grande tumulto.
• 17 de fevereiro (6ª feira) – noite dedicada à arte musical, com a presença
de Heitor Villa-Lobos que se apresenta em trajes a rigor (casaca), calçan-
do sapato num dos pés e noutro um chinelo, devido a um calo inflamado,
interpretado pelo público como uma atitude “futurista” desrespeitosa, sen-
do por isso, violentamente vaiado.

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MIRANDA, D. S. de

Mesmo sem unidade de propósitos no seio modernista, seu ideário foi


difundido por dois órgãos principais: a Revista Klaxon, cujo nome deriva da bu-
zina externa dos automóveis da época e circula de maio de 22 a janeiro de 23;
e a Revista de Antropofagia, que surge em consequência do Manifesto Antro-
pófago, de Oswald de Andrade e circula de maio de 1928 a fevereiro de 1929.

3.2.2. O Muralismo (México)


O movimento muralista mexicano, onde se busca a articulação estética da
pintura, escultura e arquitetura, ocorre logo após à Revolução Mexicana, em
1910, a primeira grande mobilização social na América Latina no séc. XX,
quando surgem os heróis populares Emiliano Zapata e Pancho Vila. Em que
pesem as distinções estilísticas entre seus principais artistas, o movimento
transmite uma idéia de monumentalidade atravessada por influxos do Rea-
lismo e de alguns estilos das vanguardas modernistas européias como o Ex-
pressionismo e o Cubismo.
Para os três maiores artistas representantes do movimento – Diego
Rivera (1886-1957), José Clemente Orozco (1883-1949) e David Siqueiros
(1896-1974) –, a arte mural possibilitou uma arte pública e coletiva, que rom-
pia com o individualismo da pintura de cavalete, a despeito de produções re-
alizadas por eles desse modo. Para eles, a estética dos grandes painéis se
apresentava como a forma mais adequada para denunciar as extrema injusti-
ças e as desigualdades sociais de um país marcado pela violência contra as
populações indígenas e camponesas do México.
Todos os três assumiram em vida firmes convicções da ideologia comu-
nista, e, em termos estéticos, adotaram a perspectiva colocada na introdução

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

da História da Arte I, aos nos referirmos ao caráter inalienável da sociabilidade


da obra de arte que se efetiva na fruição contemplante do outro.
A vida artística de Rivera possui dois episódios que revelam as con-
tradições conflituosas entre a questão da autoria/autonomia da obra de arte
e a propriedade privada de quem a encomenda. O primeiro episódio refere-
-se ao grande painel Sonho de uma tarde dominical na Alameda Central,
pintado por Rivera, encomenda para o restaurante de um luxuoso hotel da
capital do México, cujo dono, avocando o direito de propriedade da obra,
impedia que o público a contemplasse, para desgosto do seu autor.
O outro episódio se passa em Nova Iorque. A declarada adesão ao co-
munismo não impediu que Rivera recebesse, em 1932, o convite do grande
capitalista Nelson Rockfeller para pintar um grande moral para o Radio Corpo-
ration Arts Building no Rockefeller Center. A obra, iniciada em 1933, continha
uma grande manifestação do Primeiro de Maio (data comemorada em prati-
camente todos os países do mundo, exceto nos EUA), com uma massa de
trabalhadores, empunhando bandeiras vermelhas, liderada pela figura central
de Lenin. Rockfeller não aceita o teor do painel e Rivera se recusa a modificá-
-lo. Sem acordo, o painel é destruído em nome dos direitos de propriedade
privada sobre a obra de arte. Posteriormente, o painel é reconstruído pelo
artista na Cidade do México sob o título Homem, controlador do universo. Eis
um belo exemplar da arte mural de Diego Rivera, expressando dinamismo
policrômico e monumentalidade.

Desfile do Primeiro de Maio


em Moscou (1956)

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MIRANDA, D. S. de

3.2.3. O Expressionismo abstrato (Estados Unidos)


Se durante milênios, a arte ocidental teve como centro irradiador as culturas
antigas ou clássicas do Oriente Médio e da Europa – Mesopotâmia, Egito,
Grécia, Bizâncio, Itália, Holanda, França, Espanha, Inglaterra e Alemanha –,
os dois grandes conflitos mundiais da 1ª metade do séc. XX desorganizaram
a vida do Velho Mundo, deixando-o exausto e esgotado, provocando fortes
ressonâncias em seu mundo artístico-cultural.
Com isso, será dos EUA que partirá um grande movimento
de renovação arte do pós-guerra, provocando influxos inclusive no
Velho Mundo, após receber ressonâncias tardias dos estilos van-
guardistas europeus do início do séc. XX, sobretudo o Futurismo, o
Expressionismo e o Cubismo: o chamado Expressionismo abstrato,
nome atribuído ao crítico de arte norte-americano Harold Rosem-
berg, em 1952, tendo na figura do pintor Jackson Pollock (1912-
1956) seu maior representante, com grande popularidade nos meios
artísticos do país. A designação foi dada graças às afinidades estéti-
cas com a grande intensidade emocional identificada no congênere
europeu, sobretudo o alemão, aliada à estética que dissolveu o figu-
rativismo, postura presente em várias escolas abstratas da Europa
como, por exemplo, o Futurismo e o Cubismo.
Concomitante às experiências americanas, ocorreu algo
Foto de Pollock em ação
correspondente na França, cujo estilo foi denominado de Tachis-
mo (do fr. tache, literalmente mancha ou borrão). Trata-se de um procedimento
estético de puro uso da tinta, buscando efeitos nas formas, cores e luzes sem
preocupações figurativistas. Mas foi Pollock que levou ao extremo o desenvol-
vimento dessa técnica ao se libertar inclusive do cavalete, ao colocar deitadas
no chão suas imensas telas para, com a ponta dos pinceis, pingar e respingar
linhas, em camadas superpostas de pigmentos, ou, então, espargir jatos de
tinta, sempre de modo aleatório, obtendo formas de surpreendentes texturas.

Para Grombrich, o emaranhado obtido por Pollock

Satisfaz dois padrões opostos da arte do séc. XX: o anseio de simplici-


dade e de esponteneidade pueril, que suscita a lembrança de garatujas
infantis numa época da vida anterior àquela que as crianças começam
a formar imagens; e, na extremidade oposta, o interesse sofisticado
pelos problemas de uma “pintura pura” (op. cit. p. 604)

Utilizando-se da pintura automática, procedimento estético com afi-


nidades à escrita automática dos surrealistas – ou com as improvisaões
jazzísticas –, Pollock foi saudado como um dos pioneiros da chamada ac-
tion painting, a “pintura em ação”. Rodopiando ou dançando, Pollock, ao
contrário do pintor contemplativo, se deixava levar pelo próprio rítmo dos

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

seus gestos que plasmavam as texturas policrômicas obtidas nas telas


estiradas no chão.

Convergência de Pollock (1952)

Texto complementar
Antropofagia e modernismo de Oswald de Andrade

Tupi or not tupi that is the question.


Ante dos portugueses descobrirem o Brasil,
o Brasil tinha descoberto a felicidade.
A alegria é a prova dos nove.
(Fragmentos do Manifesto Antropófago de O. Andrade)
O carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça.
Pau-brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo.
A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança.
(Manifesto da Poesia Pau-Brasil de O. Andrade)
Os manifestos oswaldianos, como boa parte do modernismo dos anos 20, procuram se
livrar de um pesado fardo proveniente de uma tradição beletrista, considerada estéril, da
cultura nacional. A radicalidade da proposta antropofágica pode ser aferida pelo ataque
feroz que sua poética desfere contra os “epígonos do parnasianismo”, um Brasil visto pelos
“mitos do bem dizer”, onde triunfava o “patriotismo ornamental”, no dizer de Antônio
Cândido. [...] A exigência de novos postulados estéticos para a linguagem artística é, para
Andrade, decorrência imperiosa de um esprit nouveau da época, por ele captado [...]. É
nítida a contribuição recebida dos modernistas, sobretudo do dadaísmo.
Ver com olhos livres. A voracidade da estética antropofágica desenvolve uma dialética
desconstrutivista/reconstrutivista, o que foi assinalado por Paulo Prado, no prefácio escri-
to em 1924 para o poema de Andrade, texto que mais parece ser um manifesto sobre o
Manifesto Pau-Brasil. “A poesia ‘pau-brasil’ é, entre nós, o primeiro esforço organizado
para a libertação do verso brasileiro... um período de construção criadora sucede agora às
lutas da época de destruição revolucionária, das ‘palavras em liberdade’...Sejamos agora
de novo, no cumprimento de uma missão étnica e protetora, jacobinamente brasileiros.

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MIRANDA, D. S. de

Libertemo-nos das influências nefastas das velhas civilizações em decadência ... Espere-
mos também que a poesia ‘pau-brasil’ extermine de vez um dos grandes males da raça - o
mal da eloquência balofa e roçagante” (Prado, in Andrade, 1990a, p.58s). A cabeça antro-
pofágica é como a cabeça de Juno, de duas faces. Uma, a que dessacraliza, é desconstru-
tiva. A outra, a que rearticula os materiais anteriormente deserarquizados e devorados /
reinventados e reapropriados, é reconstrutiva.
Para Andrade, a nova linguagem poética possui bases sólidas na nova era industrial.
Prefigura-se o desafio que uma arte, desauratizada pela indústria cultural, enfrentará a
partir dos novos tempos. O dado novo precisa ser canibalizado. “Houve um fenômeno
de democratização estética nas cinco partes sábias do mundo... Veio a pirogravura. As
meninas de todos os lares ficaram artistas...Apareceu a máquina fotográfica. E com to-
das as prerrogativas do cabelo grande, da caspa e da misteriosa genialidade de olho
virado - o artista fotógrafo. Na música, o piano invadiu as saletas nuas, de folhinha na
parede. Todas as meninas ficaram pianistas. Surgiu o piano de manivela, o piano de
patas. A pleyela. E a ironia eslava compôs para a pleyela. Stravinski. A estatuária andou
atrás. As procissões saíram novinhas das fábricas”(Andrade, 1990b, p.42). Mas talvez,
o novo dado tecnológico a jogar um papel fundamental na linguagem antropofágica, via
dadaísmo e outras expressões do modernismo europeu, é o cinema com sua linguagem
fragmentada, com a montagem de imagens múltiplas, com a velocidade de um tempo
elidido, com o abandono da idéia de “ilusão da realidade”, e de um nova arte sujeita
a seus próprios e novíssimos cânones. Em termos de proposição de novos postulados
e paradigmas estéticos o cinema está para o antropofagismo, assim como a televisão
estará, mais tarde, para o tropicalismo.
Nossa reflexão sobre o antropofagismo estaria incompleta se não abordássemos, ainda
que sumariamente, a questão da concepção oswaldiana acerca do regionalismo e do nati-
vismo indigenista. “Ser regional e puro em sua época”. Andrade rejeita proclamações regio-
nalistas estreitas e exclusivistas. Antropofagismo significa tensão dialética entre o regional e
o universal. Ser regional é ser brasileiro na contemporaneidade universal. Mais uma vez o
modelo dadaísta, no imaginário antropofágico: o movimento europeu exercia uma função
crítica dessacralizante de contestação à arte aurática elitista e excludente. O triunfo da ci-
vilização tecnológica reveste-se de condições possibilitadoras da democratização dos bens
culturais. No caso brasileiro, aquela função crítica possuía mais um front de combate - a
consciência beletrista estéril, enraizada na ancestralidade bacharelesca e na mentalidade
dos jurisconsultos das tertúlias de salão, expressão de uma cultura livresca radicada numa
economia atrasada agro-exportadora. Essa postura não podia escapar das presas antropo-
fágicas. Como qualquer outro motivo de deglutição, era devorada e reinventariada numa
nova perspectiva.
Outro solo tropical bastante fértil onde o antropofagismo também vicejou foi o do em-
bate travado no interior do próprio movimento modernista. Em 1926, as propostas mais
radicais do movimento de Andrade sofreram um processo de diluição, com fortes traços
de adernamento conservador. Essa versão edulcorada recebeu o nome de “verdamarelis-
mo”, liderada pelos escritores Plínio Salgado e Mennotti del Pichia, futuros participantes
do Integralismo. [...] Contra o “verdamarelismo”, O. Andrade irá cunhar a famosa frase,
muito reverenciada pela Tropicália: “triste xenofobia que acabou numa macumba para
turista”. [...] Ao bon sauvage de Rousseau, aclimatado por José de Alencar e Gonçalves
Dias, contrapõe o “mau selvagem”, o canibal de Montaigne, para devorar as imposturas
do civilizado.
(MIRANDA, 1997, pp. 136 a139).

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Capítulo 4
Dos anos 1960 à
contemporaneidade
Dissemos, na introdução deste livro, que a noção de arte contemporânea bus-
ca dar conta da produção artística dos anos 1960, época caracterizada pelo
esgotamento das propostas das vanguardas iniciadas nos primeiros decênios
do século. Define-se também essa mesma época como a era da morte da
arte, tomando o conceito de Arte como foram entendidas durante séculos, as
manifestações sensíveis expressas a partir da Renascença. Ou então, que o
que realmente morreu não teria sido a arte mas a história da arte, conforme
prefere Arthur Danto (2006). Costuma-se dizer também que vivemos na pós-
-modernidade, cujas criações artístico-culturais são de natureza acentuada-
mente fragmentada.

4.1. A Pop-art
As experimentações formais abstratas, perseguidas com afã radical, sobretu-
do na passagem da segunda metade do séc. XX, teriam levado alguns artistas
se voltarem às figurações concretas, pelo uso de imagens de objetos do co-
tidiano dos expectadores, buscando, com isso, estabelecer um vínculo direto
de suas vidas com a arte. Surgia, em Nova Iorque, em fins dos anos 1950, a
Pop art, abreviação do inglês popular art, sendo Andy Warhol (1930-1987) e
Roy Lichtenstein (1923-1997), dois marcos do novo estilo.
A intenção dessa tendência não era a representação realista de objetos
prosaicos, mas a busca do imaginário estético popular do americano médio
urbano interagindo com a sociedade.
Para isso, personagens de história em quadrinhos, faits divers das revis-
tas de variedades, cartoons, bandeiras, embalagens, itens do cotidiano como
eletrodomésticos, lâmpadas, pasta de dente, imagens de celebridades, en-
fim, um conjunto de produtos-símbolo das grandes massas americanas e da
tecnologia industrial era tomado como tema. Em seus aspectos formais, os
recursos expressivos da Pop-art se inspiravam nos métodos das mass mídia,
como o cinema e a televisão, bem como nos procedimentos estéticos das
campanhas publicitárias.

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MIRANDA, D. S. de

Os trabalhos mais famosos de Andy Warhol – e experimentador da vi-


deoarte – são as reproduções em série de personalidades míticas contem-
porâneas, como as atrizes Marilyn Monroe e Liz Taylor, o líder chinês Mao-
-tsé-tung, o cantor Elvis Presley, Che Guevara, Richard Nixon, Pelé, dentre
outras, a partir de uma fotografia-modelo. Sem alterar as expressões, Warhol
provoca alterações formais, num inusitado jogo de contrastes e saturação de
cores, misturando técnica de reprodução mecânica com artesania de uma
refinada serigrafia, querendo talvez mostrar, pelo uso sutil de sua criação ar-
tística, que os mitos reproduzidos em série são manipulados para o consumo
das grandes massas.

Marilyn Monroe de Warhol (1967)


A intenção de crítica ao consumismo contemporâneo parece estar
igualmente presente nos trabalhos em que usa como inspiração as latas
da sopa Campbell, ícone da praticidade da vida moderna americana por
se tratar de uma sopa pronta para ser tomada. Trata-se de um produto
onipresente, facilmente encontrável tanto nas gôndolas de qualquer su-
permercado como nas prateleiras de qualquer vendinha do interior nor-
teamericano. Suas latas em cor vermelha e branca tornaram-se famosas

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

mundialmente, a partir da pintura do


artista pop, conforme vemos na ilus-
tração aqui apresentada.
Roy Lichtenstein buscou nos íco-
nes dos super-herois das histórias em
quadrinhos, inspiração artística para
expor sua crítica à cultura de massa.
Em seus quadros a óleo e tinta acríli-
ca expandiu os traços das histórias em
quadrinhos e dos anúncios publicitá-
rios, reproduzindo manualmente com
Garota com fita no cabelo de Lichtenstein
grande fidelidade seus procedimentos
(c.1965)
estéticos gráficos. O artista demonstrou
predileção por cores brilhantes, planas e bem delineadas como o azul mari-
nho, amarelo, vermelho e branco, provocando grande impacto visual. O uso
do preto em seus contornos realçava mais ainda suas pinturas.
Tanto Warhol como Lichtenstein, ao apresentar técnicas e temas pró-
ximos da percepção do cotidiano dos espectadores, pareciam ter uma preo-
cupação comum: provocar no espectador um misto de percepção ambígua e
marcos poucos nítidos entre a arte e o anúncio comercial.

4.2. A Op-art
Coetânea à Pop-art, surge igualmente nos anos 1960, a Op-art, abreviação
do inglês optical art, “arte ótica”, cujo estilo apresenta figuras geometrizadas
coloridas ou em preto e branco, que, ao serem combinadas de certa forma,
provocam sensação de dinamismo e movimento no espectador.
Na verdade, este movimento estético buscou expressar, através do ilu-
sionismo ótico, uma arte que deveria expressar a possibilidade constante das
alterações da realidade em que o espectador vive. Este, p.ex., ao mudar do
ponto do espaço de apreciação de um quadro da Op-art, deverá ter a impressão
de que seus traços se alteram, as cores se modificam e as figuras se movem.
A Op-art tem como predecessor o estilo do artista francês de origem hún-
gara Victor Vasarely (1908-1997). Vasarely teve contato com a experiência de
Bauhaus conhecendo os trabalhos de Kandinsky e Paul Klee. Sentiu-se, na
época, atraído pelo estilo de Piet Mondrian e Kasimir Malevich. Residindo em
Paris, a partir dos anos 1930, começa a desenvolver o grafismo, época em que
cria seu trabalho Zebra, considerada a primeira grande obra op-art. Nos decê-
nios seguintes, inicia uma série de trabalhos num estilo geométrico abstrato,
com efeitos óticos de movimento e instabilidade de formas, com preferência
para redes e tramas, bem como um acentuado ilusionismo de perspectivas.
Como a vida contemporânea, sua op-art buscava uma constante alteração. Totem, escultura de Vasarely (s/d)

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MIRANDA, D. S. de

Land art 4.3. As novas linguagens da contemporaneidade


Também conhecida como
earth art ou earthwork, Se abrimos o livro História da Arte I com a indagação O que é arte?, finali-
mais uma linguagem zamos, agora, esta História da Arte II com uma pergunta bastante mais con-
surgida nos EUA, em
tundante: O que é arte hoje? Se a pergunta já mostrava a pertinência de
fins dos anos 60, é uma
modalidade de arte, cuja sua grande complexidade, tal traço encontra-se bastante exponenciado nos
intervenção do artista tempos hodiernos. O conceito contemporâneo de arte busca dar conta de um
se dá em terreno natural amplo e variado conjunto de manifestações e linguagens artísticas, tais como,
e aberto, igualmente
a pop-art e op art (já apresentadas), a Land art*, performances, happenings,
trabalhado para integrar-
se à obra, obtendo-se instalações, fotografia conceitual, body art, Arte conceitual, Videoarte, com
assim um resultado sua variedade infindável de estilos.
estético que integra a
O artista multimídia pernambucano Paulo Bruscky (1949 - ) apresentou
intervenção humana (o
que Hegel denominava na 29ª edição da Bienal de São Paulo (2010), fotos de sua performance, em que
de belo humano) com a se vê o artista em várias situações nas ruas ou interiores das casas de Recife,
natureza (o belo natural, a exemplo de um nicho envidraçado da Livraria Moderna, fazendo o papel de
para o mesmo filósofo). A
vitrine, onde o aristas se apresenta portando no pescoço um letreiro feito à mâo
land art teria surgido como
reação à exacerbação apresentanto a seguinte questão: O que é arte? Para que serve a arte? numa
do minimalismo de certas típica performance de arte conceitual, conforme veremos mais adiante.
tendências estéticas, É quase impossível buscar um campo comum de caracterização da arte
pelo desencanto em
contemporânea, a não ser se consideramos que tal objetivo é alcançado pela co-
relação às sofisticadas
tecnologias da industrial leção de características indicando os seguintes aspectos: nenhuma preocupação
cultural, reforçada pelo em atender uma determinada escola ou época, valendo-se do mix de vários esti-
empenho de preservação los; tendência à desconstrução estética ou o mix de várias linguagens artísticas;
da natureza expressa
primazia da experiência estética do espectador, em relação à obra de arte em si;
pela consciência
ecológica de grupos de “desestetização da arte” ou “repúdio da estética”; “eliminação do objeto de arte e
artistas da época. Por sua substituição pela idéia”; dissolução do conceito “rígido” de arte: ela está em
sua impossibilidade de todos os lugares, nas prateleiras e gôndolas dos supermercados, nos letreiros de
exposição, a não ser por
luz néon dos anúncios comerciais e lojas, nos cartazes, em qualquer perfoman-
registros fotográficos
ou outros meios, alguns ce com pretensão estética; relativização “absoluta” do critério do gosto; defesa
viram nessa linguagem radical da neutralidade estética; substituição do gozo estético pelo empenho inter-
afinidades com a arte pretativo do expectador que consiste em acumular o máximo de esclarecimento
conceitual
e vivência anti-intelectual sobre a obra de arte e o mínimo de incompreensão da
intenção do artista; o objeto de arte como mais um jogo de linguagem.
Na contemporaneidade, a arte conceitual, que finda por ser mais uma
linguagem, e algumas linguagens como a performance, a instalação e a vi-
deoarte, têm se destacado no campo das manifestações artísticas, raramen-
te, realizadas de forma isolada.

4.3.1. Arte conceitual


Toda arte, lato sensu, a rigor é conceitual, uma vez que qualquer obra de arte
implica uma dimensão concreta sensível – uma escultura, uma pintura, uma

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música – e uma dimensão abstrata que encerra uma espécie de conceitu-


ação estética que representa ou expressa o belo, o sublime, a angústia, o
medo, o espanto, a harmonia, enfim, um conceito abstrato.
Mas o termo arte conceitual, em seu estrito sentido histórico, usado pela
primeira vez num texto do músico Henry Flynt, em 1961, ganha a seguir foros
de legitimidade para designar um conjunto extremamente diversificado de for-
mas e manifestações contra o que se dizia ser o racionalismo
das artes “tradicionais” do séc. XX, i.e, as artes que até então
eram vistas como linguagens de vanguarda.
Para a arte conceitual, a idealidade do conceito, encerrada
na obra artística, passa a ter prevalência, no extremo, exclusivida-
de, sobre o produto final concretizado no resultado sensível, po-
dendo este ser até dispensável. Em suma, a tradicional máxima de
que o sentido estético da arte, como uma pintura ou uma escultura,
deveria se situar na materialidade do próprio objeto, passou a ser
severamente constestada pela idéia de que, na práxis artística da
contemporaneidade, o conceito e o contexto passaram a constituir
sua dimensão fundamental.
Em certas circustâncias, a exposição de uma obra con-
ceitual, em sua forma mais típica, é acompanhada pela sua
teorização. Abandona-se a materialidade do objeto estético em
si para priorizar as discussões teóricas sobre a conceitualidade
da linguagem artística, transformando-a, no limite, numa meta-
linguagem, em que o próprio discurso sobre arte se investe de O terno de feltro de Beuys (1970)
valores estéticos de uma obra de arte. Serve-nos de exemplo
ilustrativo a performance de Paulo Bruscky, narrada acima, em que o artista
apresenta seu questionamento sobre o que é arte e sua utilidade, como me-
talinguagem da reflexão da própria arte e, a um só tempo, realiza um gesto
artístico, portanto, uma obra de arte.
Conforme costuma acontecer na história das artes, suas origens não
são facilmente detectáveis. Disseminando-se pelo mundo, nos anos 1960,
alguns historiadores apontam a fase norteamericana de Marcel Duchamp,
dos anos 1930, e a concepção da antiarte de seus ready-mades, como ver-
dadeiro precursor da arte conceitual.
Esta teria também recebido grande influxo do artista alemão Joseph
Beuys (1921-1986), com seu princípio estético “pensar é plasmar”, ou seja,
“o fato de que o arranjo de certos elementos táteis e visuais serviria princi-
palmente para desencadear pensamentos ou percepções inusuais, embora
presentes na realidade cultural” (CUNHA, 2003, p 51).
Acrescenta ainda Cunha

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Este conceito de arte alargado ou de obra aberta exigiria, portanto,


mais do que uma simples contemplação, dirigindo-se a uma atividade
introspectiva ou meditativa. Avesso [às artes plásticas], o conceitualis-
mo optou majoritariamente pelo uso, seleção, modificação ou correla-
ção de objetivos já disponíveis ou fabricados (id., ib.).

4.3.2. A instalação e o happening


As instalações eram realizadas pela articulação de tensões estabelecidas
entre seus diversos componentes e pela relação entre estes e os traços do
entorno em que eles se inserem, ganhando assim, uma tridimensionalidade
espacializada, ao estabelecer uma relação formal com o entorno. Uma ins-
talação pode incluir performance teatral e/ou musical, objetos, fotografias, ví-
deos etc., tudo interagindo entre si, bem como com o público espectador. Tal
interatividade passa a ser uma condição de necessidade fundamental para a
efetivação da instalação.
Dessa forma, ao contrário das linguagens das artes tradicionais, que exi-
gem um foco de contemplação (a escuta ou a visão, por exemplo), uma instala-
ção provoca a fragmentação sensorial e a percepção de sentido do todo estético,
unidade que é obtida pelo concurso de vários sentidos: visão, audição, tato e, até
mesmo, o paladar, articulados pela experiência estética na sua integridade.
Uma forma afim com a instalação, guardando, no entanto, certa espe-
cificidade em suas origens, é o happening (acontecimento em português),
termo cunhado pelo crítico norteamericano Allen Krapov, em Nova Iorque, nos
anos 1960, espécie de versão cênica da pop-art, em que os artistas tentam
ultrapassar as linhas que separam a arte da vida. Na verdade, tal tipo de atua-
ção foi utilizado por artistas dadaístas e surrealistas, em ambientes fechados,
no início do século.
Sua criação, realizando ações previstas, às vezes ensaiadas, combi-
nadas com atos inesperados e únicos, semelhantes a atos cênicos, buscam
provocar impacto no espectador a tomar consciência do seu corpo em rela-
ção ao tempo/ espaço de sua realidade.
Uma dos exemplos mais célebres ocorridos no Brasil, podendo ser
apontado como ato pioneiro do happening nacional foi o desfile do artista
plástico e escritor Flávio Resende de Carvalho (1899-1973), provocando uma
intervenção impactante à luz do dia, em pleno Viaduto do Chá em 1956, re-
alizando o evento Experiência Nº 3, em que o artista veste saiote e blusa de
mangas curtas e folgadas, conjunto denominado Traje Tropical.

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

Flávio Carvalho em seu Traje tropical usado na Experiência nº 3

4.3.3. A performance
Com a fusão do happening com a arte conceitual, nos anos 1970, nasce a
performance, via de regra, uma modalidade de linguagem artística envolven-
do atividades cênico-gestuais, podendo ser mais intimista ou uma grande
apresentação de cunho teatral, tendo um caráter minimalista de poucos mi-
nutos ou grandes cenas de várias horas, fruto de improvisos sem roteiro, ou
intervenções bem ensaiadas. O termo performance tem sua origem no inglês,
para significar a apresentação interpretativa de uma peça teatral, musical ou
de dança. Assim como o happening, a performance pode combinar várias
linguagens como música, poesia, dança, teatro, arte conceitual, fotocópias e
vídeo, porém com uma diferença, pois, além de poder ser apenas registrada
por vídeo ou fotos, sem a presença de espectadores, a perfomance não conta
com a participação ativa do público.
No Brasil, mais uma vez, o pioneiro das performances foi Flávio Car-
valho: em 1931, realizou sua Experiência nº 2, caminhando com um boné na
cabeça e em sentido contrário, no meio de uma procissão de Corpus Christi,
causando duplo estranhamento entre os participantes do ato religioso.
As origens mais recentes de experiências performáticas são encontra-
das no grupo Fluxus, que surge nos anos dos anos 60, integrado por artistas
de várias linguagens como música, artes visuais, poesia, todos irmanados
pela crítica acerba ao consumismo e ao mercado das artes. Assim como vá-
rias outras linguagens, deixaram-se influenciar no começo, pelos movimentos
de vanguarda como o Surrealismo, o Dadaísmo e o Construtivismo russo.

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MIRANDA, D. S. de

Anterior às novas tecnologias digitais, os integrantes do Fluxus es-


tabeleceram um grande diálogo, em que trocavam idéias e elaboravam
ousadas intervenções artísticas inovadoras, tudo difundido mediante uma
rede de correspondência de interatividade estética, somente hoje possível
pela internet. Nesses eventos, encontram-se os primeiros experimentos
de arte conceitual, performances, arte-postal, manifestos, ficando patente
a postura em prol de uma arte anti-intelectual, profundamente conectada
com a vida cotidiana.
Por outro lado, as novas mídias têm permitido atuações performáticas
isoladas, as chamadas performances de “estúdio”, em que a filmadora registra
gestos intimistas do artista, quase sempre em situações ritualistas. São “casos
particulares, exercícios executados no estúdio, filmados, não necessariamen-
te apresentados. Em vez de objetos vendáveis [...], o processo físico de cria-
ção da arte tornou-se a própria obra. A filmadora representava ‘o outro’, ou o
público” (RUSH, 2006, p. 41).
Essa vertente nos levanta uma questão bastante relevante para refletir
sobre os rumos da arte contemporânea. Na extremidade oposta das inten-
ções da publicização da obra de arte dos muralistas mexicanos que levaram
às últimas consequências a constitituvidade essencial da sociabilidade do fa-
zer artístico, a performance “solitária”, ao contrário do princípio da “arte para
os outros”, enfatiza a intenção de “arte para si”.
Muitas vezes, as performances apresentavam como suporte, o próprio
corpo do artista, o que passou a ser conhecido como body art, também dos
anos 60, cujos episódios mais chocantes são as automutilações com derra-
mamento de sangue, atos que têm provocado sérios questionamentos quanto
ao conceito formal e às intenções éticas dessas manifestações.

4.3.4. A Videoarte
Esta modalidade artística é, certamente, a linguagem que melhor traduz os
rumos e tendências da arte contemporânea. Graças ao grande impulso inova-
dor das novas tecnologias digitais, de raríssima veiculação na mídia tradicio-
nal, como a TV e o cinema comercial, a videoarte busca circuitos alternativos
na internet, entre seus praticantes e aficcionados, além do acolhimento em
espaços tradicionais como as galerias e os museus.
O uso e a prática intensiva da videoarte fizeram com que se abandonas-
se a nomenclatura tradicional de artes plásticas para artes visuais com vistas
a incluir outros meios como o cinema, a fotografia, a televisão a arte-postal,
a própria videoarte etc., além da pintura, escultura, gravura, desenho, e, no
limite, a arquitetura.

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

Em termos técnicos, a videoarte é a linguagem que se utiliza de ima-


gens elaboradas eletronicamente, digitalizadas mediante as novas tecnolo-
gias e apresentadas em monitores, aparelhos de televisão, telas, podendo
ser armazenadas em mídias como DVDs, CDs ou pen-drives, daí sua quase
ilimitada e extrema facilidade de acesso e manuseio para realizar experimen-
tos de forma mais abrangente e aberta.
A videoarte teria seus experimentos pioneiros com o artista Andy Wa-
rhol, realizador de vários filmes experimentais, mas sua expressão artística
com maior visibilidade se dá com o músico sulcoreano Nam June Paik (1932-
2006), integrante do grupo Fluxus, que usa o vídeo como elemento principal
interagente para imagens e espectadores. Auxiliado pelas novas tecnologias,
a videoarte consegue projetar imagens para uma miríade de direções, obri-
gando o público a interagir de modo imediato com as mesmas.
Em 1956, Paik passou a residir na Alemanha onde estuda história da
música na Universidade de Munique. Em sua estada germânica, entra em
contato com o compositor Karlheinz Stockhausen e o músico minimalista
norteamericano John Cage, trabalhando com ambos no estúdio de música
eletrônica. O artista também conhece o arteconceitualista Joseph Beuys. A
partir de então, Paik se inspira para criar arte eletrônica. É quando começa a
participar do grupo Fluxus, considerado um movimento de arte neo-dadaísta.
Influenciado pelo minimalismo de Cage e pelo uso de sons e ruídos do coti-
diano em suas músicas, Paik faz sua grande estréia na exibição conhecida
Exposition of Music-Electronic Television, no qual espalhou aparelhos de tv em
vários lugares, e utilizou imãs para distorcer as imagens. Esta obra, conhecida
por TV Magnet, é vista como a primeira intenção de realização da videoarte.
Mudando para Nova Iorque, em 1964, Paik inicia seus trabalhos como
a violoncelista Charlote Moorman, e, juntos, começam a desenvolver uma es-
tética combinando vídeo, música e performance. É desse período o trabalho
TV Cello, em que os dois fazem uma pilha de televisores que toma a forma
de um violoncelo. Quando Moorman friccionava seu arco sobre as cordas do
instrumento, suas imagens e dos demais violocenlistas que participavam da
performance, surgiam nas telas dos televisores.
O episódio de Paik gravando o papa Paulo VI na Quinta Avenida, em
Nova.Iorque, em 1965, com uma câmera Portapak, um aparelho portátil
de gravação de vídeo feita a partir do interior de um taxi, de forma tosca e
pouco elaborada, depois exibido para amigos e artistas no Café à Gogo,
é apontado por outros como o ato fundador da videoarte (v. RUSH, 2006,
pp. 77-78).

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MIRANDA, D. S. de

Fingerprints de Paik (2006)


A videoarte surgiu como veículo de manifestação estética no con-
trafluxo do seu uso comercial na televisão empresarial, mídia ícone da
cultura de consumo, escolhendo-a como alvo preferido de seus ataques.
Os artistas do Fluxus procuravam, mediante novos suportes audiovisuais,
criar uma espécie de “anti-televisão”, pela crítica radical aos seus ideais
e aos modelos comerciais da época, invertendo seu uso mais frequente.
Num rico contexto febril de ações de natureza artístico-cultural, várias lin-
guagens se entreteciam – artes plásticas, música, poesia, dança e teatro
– propiciando uma febril troca de idéias protagonizada pelo Fluxus, onde
novas tecnologias já eram experienciadas e testadas de forma adequada
como expressões artísticas.
Nos anos 1980, o uso das imagens da videoarte buscou provocar novas
sensibilidades estéticas. Nos anos 1990, a partir do uso comercial privado da
internet e o franco desenvolvimento das novas tecnologias digitais, o uso das
redes das comunidades virtuais interconectadas desenvolveu e difundiu ainda
mais suas possibilidades estéticas, trazendo um novo aporte para a videoarte,
propiciando-lhe um sensível salto de qualidade.
Com os softwares atuais, os avanços tecnológicos permitem ampliar o
leque de suas possibilidades criativas. As novas tecnologias voltadas para o
mundo das artes e da cultura, seja para fruição, criação ou troca de informa-
ções, passam a exercer um novo papel na interconexão de seus usuários.
Revoluciona-se, assim, o circuito criação, comunicação e fruição, fora da
cadeia tradicional, cujos setores encontravam-se bastante seccionados.
Criou-se no mundo das virtualidades um novo espaço denominado ci-
bercultura. Segundo o pensador Pierre Lévy “a quantidade bruta de dados

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

disponíveis se multiplica e se acelera. A densidade dos links entre as infor-


mações aumentam vertiginosamente nos bancos de dados, nos hipertextos
e nas redes” (1999, p. 13), possibilitando que as pessoas se banhem no que
Lévy denomina de “dilúvio informacional”.
O ciberespaço permite uma fluidez maior daqueles diferentes setores,
possibilitando “contatos transversais entre os indivíduos” (id.ib.). O mesmo
agente pode exercer múltiplas funções, onde permite uma fluidez plástica
dos seus respectivos papéis. O ciberespaço permite igualmente os pro-
cessos apropriativos e re-significativos dessas tecnologias, possibilitando
os nexos entre agentes, invenções e recursos técnicos para experimentos,
fazendo com que tais recursos, associados às redes, propiciem criações
solidárias à distância.
Os ambientes virtuais da cibercultura, ao abrir possibilidades infindáveis
de links, bancos de dados, hipertextos, etc., disponibilizam experiências esté-
ticas das mais diversas modalidades. Enfim a cibercultura se investe de uma
valia incomensurável para a formação da cultura de fruições estéticas diversi-
ficas. Nesse contexto, as experiências da videoarte alcançam uma possibili-
dade de expansão praticamente ilimitada.
A videoarte tem permitido a expressão estética para diversos tipos de
militância contemporânea, como manifestações pró questões de gênero,
opção sexual, defesa do meio ambiente, minorias étnicas, contra a globa-
lização etc.

Reflexões finais
Recuperando toda a história das artes ocidentais – dos primórdios artísticos
das inscrições rupestres à contemporaneidade – perpassada por marcantes
épocas, com seus grandes estilos, escolas e artistas, períodos vistos como
expressão de grande transcendência estética, alguns pensadores vislumbram
uma interessante abordagem que identifica três grandes momentos defini-
dores da natureza, intenção, forma e conteúdo da produção artística desse
imenso arco de tempo:
(a) a arte antes da era da arte, compreendendo o largo período que se
inicia no paleolítico superior, com as primeiras manifestações protoartísticas
até chegar a arte do medievo, quando a criação artística dependia exclusiva-
mente de instâncias externas à sua própria manifestação;
(b) a arte na era da arte, compreendendo o momento propriamente de
uma arte que busca sua afirmação autônoma, com a irrupção autoral e busca
de autonomia da arte renascentista até chegarmos às ressonâncias tardias
das vanguardas modernistas dos anos 1960;

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MIRANDA, D. S. de

(c) a arte após o fim da arte (também definidada como era da morte da
arte), compreendendo toda a produção estética que ignora totalmente a tra-
dição canônica das artes, dissolvendo, em consequência, o conceito “rígido”
de arte, conforme já apontamos: desconstrução de substancialidade material
da obra de arte, cedendo lugar ao conceito ou à experiência estética da re-
cepção; fragmentação infindável de estilos; manifestação coletiva das várias
linguagens anulando suas respectivas especificidades; conceito de pan-este-
tismo proferindo que a arte está em todos os lugares e que todos nós somos
artistas, ou, “todo mundo é artista”, conforme proclamou Joseph Beuys, nos
anos 1950; afirmação da neutralidade estética pela relativização “absoluta” do
critério do gosto; posturas éticas questionáveis, como insinuação de pedofilia,
cropofilia e automutilação (cf. RUSH, op. cit.); uma arte solipsista, ou seja,
ações performáticas solitárias, negadoras da sociabilidade da arte tradicional.
O solipsismo estético tem sido um dos traços mais questionáveis e comba-
tidos do fazer artístico da contemporaneidade. Alguns textos contundentes, con-
tendo severas críticas a traços acima apontados, podem ser encontrados no arti-
go Arte contemporânea – tolerância até de mais do filósofo francês Dany-Robert
Dufour, em Le Monde Diplomatique, edição brasileira, abril de 2010, e no livro A
grande feira, uma reação ao vale-tudo na arte contemporânea (2009), do crítico
de arte Luciano Trigo. No primeiro texto, o filósofo coloca em cheque precisamen-
te a criação de espaços restritos auto-referentes entre artistas para a emulação
recíproca de apreciação de suas obras. Afirma textualmente o filósofo:

A arte contemporânea funciona da seguinte maneira: pela provocação,


eu chamo o outro a me seguir, desafiando-o a ousar fazê-lo. Dessa
forma, trago o outro para o meu nível, circunscrevo um lugar onde fica-
mos entre nós, círculo restrito de espíritos superiores, onde tudo pode
ser dito. E ninguém ousa discordar (DUFOUR, 2010. p. 36).

No mesmo artigo, o filósofo denuncia o que considera um engodo esca-


tológico do belga Jan Fabre, fazendo referência a uma apresentação recente
feita no Museu do Louvre, onde expõe “uma seleção de excreções diversas
do próprio mestre [sic]” (id. ib.). O autor cita um “artigo corajoso” do sociólogo
francês Jean Beaudrillar (pensador insuspeito pelo bom trânsito que desfruta
no meio artístico contemporâneo), que, para ele, desmontou o engodo: “Toda
essa mediocridade pretende sublimar-se passando ao segundo e irônico nível
da arte. Mas é tão nula e insignificante no segundo nível como no primeiro. A
passagem ao nível estético não salva nada, bem ao contrário: é uma medio-
cridade à segunda potência” (apud DUFOUR, passim). Fazendo referência
à dimensão negativa que a arte carrega (sua força de dizer não à realidade
fática existente), Baudrillard via nessa nulidade à segunda potência um total
desperdício. Para Baudrillard, no que concorda Dufour,

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A arte possui de essencial a capacidade de se desfazer das certezas


mais arraigadas, com o único propósito de relançar a busca pelo sen-
tido, a busca por sentidos novos. A arte não se reduz a um discurso, a
uma mensagem, ela diz o que ainda não sabemos, torna visível o que
ainda não estava no repertório, agrega outras perspectivas ao mundo
conhecido (apud DUFOUR, passim).

Já o livro de Luciano Trigo direciona sua crítica às artimanhas do mundo


dos negócios da arte contemporânea, envolvendo artistas, galerias, marchan-
ds e museus, com repercussões no próprio conceito de arte, tomando como
caso emblemático de sua reflexão a obra The Physical Impossibility of Death
in the Mind of Someone Living (“A impossibilidade física da morte na mente de
alguém vivo”), do artista plástico inglês Damien Hirst, destacado membro da
Young Bristish Artists.
A obra consiste no trabalho criado em 1992, um tubarão-tigre morto num
tanque de formol, vendido em 2004, por 12 milhões de dólares ao administra-
dor de fundos americanos Steven Cohen, na época a operação mais cara no
mercado de arte contemporâneo. Em 2006, o administrador recebeu uma má
notícia: “o tubarão estava se decompondo. O pequeno alvoroço no mundinho
da arte foi logo abafado. Artista e colecionador negociaram a substituição do
animal original e não se falou mais no assunto” (TRIGO, 2009, p. 7).

A impossibilidade física da morte na mente de alguém vivo de Hirst (1992)


Para Trigo, o episódio é paradigmático por adensar aspectos relevantes
para a discussão sobre a arte contemporânea: a especulação desenfreado
do mercado de artes, a importância do marketing, o papel dos atores (artis-
ta, marchands, críticos, produtores culturais, investidores de arte e das redes
sociais do campo da arte) e, sobretudo, os conceitos, valores e sentidos esté-

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MIRANDA, D. S. de

ticos, incluindo autoria, inventiva criativa, diálogo com as vanguardas moder-


nas e relevância histórica, aspectos apontados por Baudillard e mencionados
pelo filósofo Dufour.

Atividades de avaliação
1. Apresente e reflita sobre as principais correntes do modernismo de van-
guarda das primeiras décadas do século XX: escolha dois ou três estilos,
enfatizando sua estética e suas intenções.
2. Que repercussões foram sentidas no novo mundo (continente americano)
provocadas pelas correntes européias de vanguardas?
3. Faça uma reflexão bem pessoal sobre as principais mudanças da estética
e intenção das artes contemporâneas.
4. Qual a linguagem artística contemporânea com que você mais se identifi-
ca? Por que?

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Leituras, filmes e sites
Filmes
O mistério de Picasso (1956)
Documentário do diretor francês Henri-Georges Clouzot que registra durante
78 minutos, o próprio artista pintando uma série quadros, na verdade, lâminas
de vidro que, por acordo prévio, foram quebradas após a filmagem. No filme,
podemos apreciar, em tempo real, o surgimento de diversas obras do genial
pintor, sua técnica e forma de trabalho, no momento de sua própria criação –
desde os primeiros esboços que induzem a enganos de expectativas do que
está sendo pintado, as transformações em curso das formas, até a figuração
final das obras.
Modigliani: paixão pela vida (2004)
Do diretor e roteirista Mick Davis, trata-se de uma interessante cinebiografia
do famoso artista italiano de origem judaica Amedeo Modigliani (1884-1920),
na performance do ator Andy Garcia. A narrativa do filme possui um duplo
eixo: a rivalidade artística e pessoal de Modigliani com Picasso e seu trágico
romance com Jeanne Hebuterne (inspiradora da estética alongada das figu-
ras femininas do artista), cuja família católica interfere na sua relação com
o artista judeu. Outras figuras históricas surgem no decorrer do filme como

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a escritora Gertrude Stein, a artista Frida Kahlo e Olga, esposa de Picasso,


Jean Cocteau, Diego Rivera, dentre outros (v. menção ao filme em Miranda,
História da Arte I, 2010).
Frida (2004)
Da diretora norte-americana Julie Taymor, o filme retrata a vida atribulada da
pintora mexicana Frida Kahlo (Salma Hayek), desde a adolescência, quando
contrai poliomielite, até a sua morte. Frida foi uma das principais protagonista
da cena artística e política mexicana, tendo inclusive casado com o muralis-
ta Diego Rivera, numa relação aberta que causou grandes conflitos com o
artista. Apesar de uma existência cheia de sofrimentos, inclusive físicos, de-
corrente de um grave acidente de trânsito num bonde, quando seu corpo foi
transpassado por um para-choque, Frida, filiada ao partido comunista mexi-
cano, não deixou de criar e participar ativamente da vida política e cultural do
México. Entre seus relacionamentos, consta Leon Trosky que viveu exilado
no México, onde foi assassinado a mando de Stalin.
Pollock (2000)
Comovente cinebriografia do primeiro artista a se tornar uma celebridade da
pintura norte-americana, trata-se de um projeto pessoal do ator/diretor Ed Har-
ris, no papel do artista. O filme aborda a vida e a obra do artista (1912-1956),
que, até falecer num acidente de carro, teve uma trajetória de fama e deca-
dência ao longo da existência marcada por uma inventiva singular, sobretudo
em sua fase de criatividade do que passou a ser conhecida como Expres-
sionismo abstrato caracterizado pelas grandes telas colocadas no chão para
receber pinceladas vigorosas ou pingos de tinta espargidos em sua superfície,
tendo como resultado, uma obra de impressionante textura policrômica. Seus
procedimentos criativos receberam a denominação de action painting.
O sorriso de Monalisa (2003)
Fazendo referência ao famoso quadro Monalisa de Leonardo da Vince, o filme
dirigido por Mike Newell, a despeito de não ter sido bem recebido pela crítica,
apresenta um tema interessante sobre a questão do que é arte e suas mudan-
ças de conceito na contemporaneidade. A ficção fílmica recria os usos e cos-
tumes de uma atmosfera típica americana, no início dos anos 1950, quando
uma jovem professora de artes (Julia Roberts), que recebera uma educação
liberal na Universidade de Berkeley, Califórnia, passar a dar aula de história da
arte numa escola feminina tradicionalista, a Wellesley College, cujo objetivo
maior era educar jovens para um excelente casamento com futuros maridos
bem sucedidos no mundo político e de negócios dos EUA. A atuação da pro-
fessora liberal provoca o previsível choque de visões de mundo e conflitos,
não só com as jovens alunas mas também com a direção da tradicional insti-
tuição de ensino norte-americano.

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MIRANDA, D. S. de

Baskiat: traços de uma vida (1996)


Filme norte-americano, dirigido por Julian Schnabel, narra a história do artista
Jean-Michel Baskiat de origem haitiana, que, até ter sua carreira impulsionada
por Andy Warhol, era um desconhecido grafiteiro dos muros das ruas de Nova
Iorque. A partir daí, passa a ter uma rápida ascensão, cuja fase mais criativa
se dá entre 1982-85, tornando-se uma celebridade no mundo das artes plásti-
cas, cujas obras passam a ser adquiridas por colecionadores do mundo todo.

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História da Arte II - do romantismo à contemporaneidade

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MIRANDA, D. S. de

Sobre o autor
Dilmar S. Miranda é Doutor pela Universidade de São Paulo, área de concen-
tração em Sociologia da Música, é professor associado do curso de Filosofia
do Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará, sendo res-
ponsável pelas disciplinas Estética e Filosofia da arte. Possui vários ensaios
publicados sobre Filosofia da Música como Razão, sentidos e estética mu-
sical, Natureza e linguagem musical e Tristão e Isolda: o anúncio dionisíaco
da dissolução do pacto tonal. Lançou em 2009 o livro Nós a música popular
brasileira.

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