TEXTO 02 - PLANTÃO Temporalidade Kairológica Do Dasein
TEXTO 02 - PLANTÃO Temporalidade Kairológica Do Dasein
TEXTO 02 - PLANTÃO Temporalidade Kairológica Do Dasein
e Plantão Psicológico
RESUMO
O plantão psicológico é uma modalidade de prática psicológica. que
depende da prontidão do psicólogo para o momento propício do cuidado,
que é quando aquele que busca atenção psicológica o faz. Nesse sentido,
rompe com o modelo tradicional do atendimento psicológico em
consultório. Esta comunicação discute uma questão central para a
compreensão do sentido do plantão psicológico numa perspectiva
fenomenológica existencial, tal como tem sido realizado no Laboratório de
Estudos em Fenomenologia Existencial e Prática em Psicologia (LEFE), a
saber, a temporalidade do Dasein. O plantão psicológico tem
disponibilizado para a comunidade atenção psicológica no momento em
que o cliente – pessoa ou instituição – o busca. O serviço é oferecido por
pós-graduandos e graduandos e conta com uma equipe de supervisores de
prontidão. É uma postura de aproximação do outro a partir de seu mundo,
reconhecendo a singularidade de quem procura o psicólogo. Isso rompe
com a lógica tradicional, que busca modelos psicológicos gerais
explicativos sobre o ser humano e as possibilidades de intervenção na vida
comunitária. Tradicionalmente, a psicologia se assenta na cronologia para
interpretar os processos psicológicos como desenvolvimentais, assim como
para planejar as intervenções. Mas a temporalidade existencial é “tempo
para”, momento propício para (kairos). O modo autêntico de assumir a
existência é chamado de decisão antecipadora (Augenblick), que rompe
com a ilusão de eternidade e continuidade do tempo cronológico (kronos),
revelando que cada momento da existência é único. Fiel a essa
compreensão, o plantão psicológico rompe com o modelo cronológico no
qual o psicólogo realiza o diagnóstico, o planejamento e a intervenção.
Estes momentos são contemporâneos e não se diferenciam, coadunando-se
sutil e delicadamente de seu ‘objeto’: a existência que sofre. Feita esta
apresentação, apresento um breve relato de um atendimento em plantão
psicológico realizado na clínica-escola da Universidade de São Paulo a fim
de explicitar suas especificidades.
Mat06 \l 1046 ] Sofrer (ou padecer) liga-se ao verbo grego paskho, que
significa “ser afetado”, “sofrer alguma ação externa” [ CITATION Mar02 \l 1046 ] ,
remetendo à dimensão incontrolável da vida, ao seu lado passivo, que,
como facticidade, é momento estrutural do existir. [ CITATION Hei12 \l 1046 ]
Quem procura atendimento psicológico está tendo que lidar com uma
situação em sua vida que interrompe a familiaridade cotidiana e aponta
para a intranquila condição de poder-ser e ter-que-ser.
Do ponto de vista dos procedimentos, o plantão psicológico se
configura pela disponibilização de atendimento por um ou mais psicólogos
num horário previamente delimitado a quem o procurar. Pode ocorrer em
clínicas, clínicas-escola e em instituições. No LEFE ele ocorre às terças-
feiras das 17:00 às 19:30. Quem procura o serviço nesse horário é atendido
pela equipe de plantonistas composta alunos de graduação do primeiro ao
quinto ano, psicólogos formados, especializandos e pós-graduandos. Todos
contam com uma equipe de supervisores disponíveis ao longo do plantão
para realizar supervisão após ou durante o atendimento.
O plantão psicológico seguia o modelo das walk in clinics
americanas. No Brasil, esse modelo é transformado em “porta de entrada”
para os serviços psicológicos oferecidos por clínicas, substituindo a triagem
por já propiciar ao “sofrente” uma explicitação do sentido da procura à luz
do momento de vida no qual a procura acontece, resgatando sua capacidade
de lidar com seu existir. Para as clínicas, é um serviço interessante, pois
não forma filas de espera. Diferentemente do modelo de consultório, o
plantão foca no encontro entre plantonista e “sofrente”, de modo que o
espaço onde ocorre (o setting) é secundário. Por isso, é possível atender um
volume maior de pessoa. Além disso, o plantão pode ir aonde estão as
pessoas que precisam procurar atenção psicológica, como hospitais,
escolas, centros de convivência, etc. Diferentemente das clínicas, onde
quem sofre encaminha-se ou é levado ao local do atendimento, nesses
outros espaços a procura pode ser por um olhar, pelo estar próximo, por
uma conversa superficial que brota do encontro com o psicólogo. Para que
ocorra, é necessário que o psicólogo- plantonista esteja desperto para
reconhecer a procura e inclinar-se na direção do outro. Inclinar-se é a
etimologia de clínica – kliné – caracterizando como clínica a solicitude
libertadora (Fürsorge) do psicólogo. [ CITATION Hei12 \l 1046 ] Ser-clínico,
portanto, neste contexto, é estar de prontidão.
O tema desta comunicação é a prontidão como modo ôntico de
temporalização do plantonista. Tal prontidão funda a possibilidade da
procura por atenção psicológica no momento propício. Diferencio o
momento propício (kairós) de procura do planejamento, agendamento e
previsibilidade que caracterizam o modelo tradicional dos serviços
psicológicos, baseado no tempo cronológico. A temporalidade da
existência humana é kairológica. [ CITATION Hei10 \l 1046 ] A atitude do
psicólogo que se propõe a cuidar da existência que sofre deve considerar
essa especificidade.
Mir09 \p 57 \l 1046 ] Para Hipócrates, trata-se mesmo de uma arte médica, pois
os seres humanos são variados, cabendo a cada um, um tratamento
específico a ser administrado no momento favorável. O médico grego não
trabalha, portanto, com certezas. Porém, se ele perde o kairós, o tratamento
falha. [ CITATION Mir09 \l 1046 ]
1
Nome fictício. Os dados estão modificados a fim de preservar a identidade do “sofrente”.
fazer alguma coisa enquanto está dormindo?” No momento penso em
sonambulismo, mas antes de dar uma resposta pronta, que encerraria a
possibilidade de desvelar-se o sentido de sua procura, pergunto a que ele se
refere e iniciamos um diálogo no qual o acompanho no clareamento da
experiência que originou esta pergunta e de seu contexto de vida no qual
esta experiência irrompe como interrupção da tessitura cotidiana.
Édson é porteiro e frequentemente trabalha no turno da noite. Certa
vez, tendo trabalhado 3 turnos ininterruptos, já que o outro porteiro faltou e
não encontraram um substituto, chega em casa, cansado, onde sua
namorada o aguarda. Enquanto ele toma banho ela prepara o jantar. Em
seguida deitam-se e têm relações sexuais. Ele faz questão de enfatizar que a
leva ao orgasmo várias vezes e que, depois disso, cai no sono. Ao
acordarem, ela conta que enquanto ele dormia, tiveram outra relação sexual
e que para ela foi a melhor que já tiveram. Conta isso aparentando
vergonha. Essa narrativa é entrecortada pela repetição de sua pergunta
inicial. Minha resposta, que até então era “precisamos entender o que é
feito enquanto se dorme antes de podermos afirmar se é normal”, é
substituída por “para a Psicologia não importa se é normal ou não, pois se
você está aqui com esta pergunta é porque você sente que algo fora do
normal aconteceu na sua vida.” “Mas é possível ter relação sexual quando
está dormindo?”, reitera ele. Respondo que “aparentemente sim e que
precisamos buscar uma compreensão de como ele se sente com isso, pois
essa dúvida me parece que o está atormentando e pode estar interferindo
em seu relacionamento amoroso.” De fato estava, pois eles recentemente
terminaram o namoro, embora ele considere que está dando um tempo. Da
primeira vez ele achou estranho que pudesse ter acontecido, pesquisou na
internet, mas não encontrou nada a respeito e acabou deixando de lado. Até
que, certa vez, ao telefonar para a loja onde sua namorada trabalha, a
gerente atende o telefone e diz para ele, em tom jocoso, que ele precisava
dar umas aulas ao marido dela, que não tem conseguido ter relações sexuais
com ela nem acordado. Sente-se humilhado por ter algo tão íntimo e
estranho compartilhado com pessoas alheias ao namoro, mas não diz nada a
namorada. Aliás, em geral diz muito pouco à namorada sobre como se
sente. Eles conversam sobre “coisas do dia a dia”, veem televisão juntos.
Com as outras namoradas que teve, assim como com sua ex-mulher (foi
casado há alguns anos e tem um filho com ela), sempre foi de não falar
sobre a relação, nem gostar quando elas tentavam falar sobre isso.
O motivo para o término foi a recorrência desse acontecimento. Duas
semanas antes da procura pelo plantão psicológico, aconteceu novamente
de, ao despertar, sua namorada dizer que tiveram uma relação sexual
enquanto ele dormia e que tinha sido ótima novamente. Esse acontecimento
rompe com sua autocompreensão cotidiana. Primeiro, inaugura a
possibilidade de fazer coisas sem que esteja em vigília; assim como pode
ter relações sexuais, poderia fazer ou dizer muitas coisas sem a intenção
que a vigília permite. Segundo, inaugura uma dúvida que se irradia por
toda sua história quanto a já ter passado por isso. Terceiro, coloca em
xeque seu bom desempenho sexual, que ele faz questão de enfatizar, pois
descobre que dormindo dá mais prazer para sua namorada do que desperto.
Quarto, sente-se usado por ela para realizar o desejo sexual dela. Quinto,
tem que lidar com a contradição de sentir-se mal por fazer algo que na
convivência pública é tão bem visto: sexo. Estas são algumas das questões
que se insinuam a cada repetição da pergunta sobre ser normal fazer coisas
dormindo. Meu esforço é de remeter a pergunta genérica, impessoal, à sua
experiência e com isso caminhamos juntos na explicitação dessas questões,
mas logo ele conclui novamente com a pergunta inicial.
Tendo feito esse movimento algumas vezes e iluminado brevemente
o motivo de sua procura – resgatar alguma familiaridade consigo, rompida
pela descoberta de sua vida sexual enquanto dorme – caminhamos para o
encerramento da sessão. Pergunto a ele como imagina que se sentiria se eu
dissesse a ele que é normal tal experiência. Responde que continuaria
achando estranho, pois como pode alguém ter relações sexuais, que
inclusive agradam a parceira, enquanto dorme? Exponho a ele que, a meu
ver, uma resposta para a pergunta que ele trazia para o plantão psicológico
não resolveria seu questionamento. Sua procura estava motivada pelas
implicações do acontecimento em sua vida cotidiana, sobretudo no
relacionamento amoroso atual. E que é nesse âmbito que ele pode agir.
Pois, ao distanciar-se de sua namorada – coprotagonista do acontecimento
desalojador – permanece refém de suas reflexões na tentativa de resgatar
uma identidade rompida no e pelo coexistir. Tal ruptura convoca a novas
possibilidades existenciais, que podem ser assumidas, experimentadas,
lapidadas na convivência. Na sessão isso é dito da seguinte forma: você
está tentando lidar sozinho com algo que envolve vocês dois; afinal, a
relação sexual, seja desperto, seja dormindo, com a namorada envolve os
dois. Como é um acontecimento compartilhado, é necessário dialogar,
expor-se e ouvir o que ela tem a dizer a fim de que juntos destinem este
acontecimento e construam novos modos de coexistência, mas que no
relato dele aparece sua falta de hábito (restrição?) de comunicar-se com
suas parceiras. Ele gesticula como que concordando e encerro a sessão
dizendo que o plantão psicológico está aberto semanalmente e que ele é
bem-vindo a retornar quando lhe convir.
Concluindo...
Nesta terça-feira foi esta a história de vida que apareceu para mim e
que neste encontro buscou uma destinação. Enquanto isso, colegas
atendiam outras pessoas que passam por situações completamente
diferentes, mas que têm em comum o rompimento da malha cotidiana
familiar. Todos os que procuram o plantão estão assumindo neste momento
fazer algo com o que lhes acontece ou aconteceu e que desaloja. Trata-se
do momento propício para projetar-se em novas possibilidades existências
(modos de ser), cabendo ao psicólogo plantonista devolver ao outro o
cuidado que já é seu. De prontidão para se inclinar sobre o sofrer daquele
que procura, no momento propício, o plantonista é clínico.
Referências bibliográficas