A Criatura - Andrew Pyper
A Criatura - Andrew Pyper
A Criatura - Andrew Pyper
SUMÁRIO
ANTERROSTO
FOLHA DE ROSTO
DEDICATÓRIA
SUMÁRIO
A CRIATURA PARTE 1
O NOVO MUNDO
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
A CRIATURA PARTE 2
O VELHO MUNDO
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
CAPÍTULO 27
CAPÍTULO 28
CAPÍTULO 29
CAPÍTULO 30
CAPÍTULO 31
CAPÍTULO 32
CAPÍTULO 33
CAPÍTULO 34
CAPÍTULO 35
CAPÍTULO 36
CAPÍTULO 37
CAPÍTULO 38
A CRIATURA PARTE 3
LIVRE
CAPÍTULO 39
CAPÍTULO 40
CAPÍTULO 41
CAPÍTULO 42
CAPÍTULO 43
CAPÍTULO 44
CAPÍTULO 45
CAPÍTULO 46
CAPÍTULO 47
CAPÍTULO 48
CAPÍTULO 49
CAPÍTULO 50
AGRADECIMENTOS
PÁGINA DE DIREITOS AUTORAIS
“Não acha que existem coisas que não compreende,
mas são reais? Não acredita que pessoas podem ver
coisas que outras não conseguem? [...] O mal da ciência é
querer explicar tudo e, se não consegue, diz não ter explicação.”
BRAM STOKER
Drácula
—A—
CRIATURA
PARTE 1
O NOVO MUNDO
—A—
CRIATURA
ANDREW PYPER
CAPÍTULO 1
Não importa o tempo que faça, a dra. Lily Dominick vai a pé para o
trabalho todos os dias. Subindo a Segunda Avenida, saindo de seu
apartamento e atravessando a ponte Robert F. Kennedy até as
vastas superfícies de quadras de esporte e campi institucionais da
ilha Randall. A partir dali, o caminho mais curto para o Centro
Psiquiátrico Judicial Kirby seria a estrada secundária que passa
debaixo da interestadual, mas Lily se mantém junto ao rio, tendo por
companhia apenas os corredores mais dedicados e algumas babás
entediadas empurrando carrinhos. Leva mais tempo, mas ela
sempre chega cedo. Não há nada em sua vida que pode atrasá-la.
Nesta manhã, uma maravilha de céu azul de outubro, ela faz uma
pausa para olhar a ilha de Manhattan, que invariavelmente, da
perspectiva de quem olha na direção sul, a faz pensar em uma
turma de escola enfileirada por ordem de altura: os atarracados
prédios de apartamentos e conjuntos habitacionais que vão se
elevando até as exibidas torres do centro da cidade. Mesmo assim,
não é essa a vista que prende sua atenção. Ela olha para o outro
lado das águas agitadas, para o menor prédio de todos — bem ali, a
sua frente, onde teve de ficar de pé, cercada de estranhos nas fotos
escolares de sua adolescência — e tenta analisar a si própria, da
mesma maneira que faria com os acusados que interroga em seu
trabalho.
Por que você está pensando no chalé hoje?
Por causa do meu sonho na noite passada.
O velho sonho. Aquele que há anos você não tinha.
Sim, já faz algum tempo.
O sonho de cavalgar um cavalo branco através do bosque depois
da morte de sua mãe?
Não da “morte”. Do assassinato. E não acho que tenha sido um
sonho. Não acho que tenha sido um cavalo.
Ainda hoje? Você acha que realmente aconteceu? Você ainda
acredita em mágica?
Lily não tem uma resposta para essas últimas perguntas. O que a
deixa em uma situação parecida com a da maioria dos seus
clientes. Eles podem contar o que viram, como fizeram, que
argumentos as vozes dentro deles apresentaram. Mas será que
tudo aconteceu mesmo? É como perguntar a uma criança se a
criatura que vive embaixo de sua cama é real.
Ela tem um dom para o serviço. Algo que vai além de seus
desempenhos excepcionais nas provas e da obsessão com o
trabalho, algo confundido com ambição, mas que era, na verdade, o
bem-estar que sentia caminhando pelos corredores do hospício. Ela
encontra música nos palavrões gritados e nos gemidos infernais que
vêm das celas. E há os clientes. Mutiladores, perseguidores,
adoradores de suas próprias igrejas de magia negra. Almas
malignas que a maioria das pessoas, seus colegas, inclusive,
considera além de qualquer compreensão. Lily, no entanto, não vê
as coisas dessa forma. Ela consegue entrar nas florestas
queimadas e nas cidades destruídas que são as mentes deles e
encontrar a trilha de suas intenções, o cerne de seus desejos,
enterrados sob cinza e pedras.
“Por que você fez isso?” É a pergunta final dela, na maior parte
das entrevistas.
“Não sei”, responde o assassino ou o estuprador.
“Eu sei”, diz Lily.
Ela começa a andar de novo, na direção dos muros claros do
Kirby, à frente, sua falta de beleza e enormidade que nem tentam
disfarçar o fato de ali ser uma casa de loucos. A maior parte das
pessoas com quem ela trabalha, os assistentes sociais e
enfermeiros, costuma dizer que o prédio é horroroso, ou, como um
procurador de gravata-borboleta que costuma dar em cima dela,
sendo sempre rejeitado, gosta de dizer, “o Pandemônio nos Portões
do Inferno”. Lily discordava totalmente. Era verdade que ela
trabalhava em um lugar para onde ninguém quer ir. Por isso achava
sua aparência arquitetonicamente honesta. Havia um motivo para se
parecer com o inferno.
Havia muitos outros empregos aos quais Lily poderia ter se
candidatado, posições menos exigentes, em que ela enviaria
criminosos violentos para instituições públicas como o Kirby sem ter
de lidar diretamente com eles. Sã e salva. Mas nunca desejou isso.
Era satisfatório encontrar algo com o qual sentisse afinidade na sala
de aula da universidade, mas, assim que começou no Kirby, ela
achou eletrizante a prática de sua profissão. Lily tinha um talento
especial para ouvir ecos das vozes demoníacas nos pensamentos
de seus clientes, uma espécie de empatia que seu supervisor, dr.
Edmundston, acreditava destiná-la a um sucesso ainda maior do
que ela já conhecera, ainda que admitisse que isso o deixava um
pouco assustado. Às vezes, Lily também se sentia um pouco
assustada. Mas, apesar de o Kirby representar o lugar mais imundo
da prática psiquiátrica, Lily havia encontrado ali tudo de que
precisava. Ela ganhava mais do que o suficiente para uma mulher
solteira que não saía muito em um apartamento mediano. E nunca
quis que seu trabalho fosse seguro.
Não se podia admitir isso, não era profissional, era errado, mas
Lily se sente estimulada, quase excitada, ao vislumbrar as mentes
mais doentias. É como olhar para a beira de um precipício. Se você
chegar muito perto, pode sentir como seria dar mais um passo e ver
o mundo sumir sob seus pés.
Uma mulher vem correndo em sua direção.
Não muito diferente dos maratonistas emaciados que dão voltas
pela cidade, noite e dia. Normalmente passam sem se dar conta da
presença dela. Mas aquela mulher, com os cabelos escuros presos
numa trança que bate em um ombro e depois no outro a cada
passada, olha diretamente para ela.
Havia apenas duas fotos, ao menos que ela conhecesse,
quadrados brilhantes saídos dos lábios de câmeras Polaroid.
Retratos de uma mulher que Lily comparava com ela mesma, nos
quais às vezes se via, às vezes não. Mas, quando a corredora olha
para trás ao passar, Lily a reconhece.
Aquela mulher que corre é idêntica a sua mãe.
—A—
CRIATURA
ANDREW PYPER
CAPÍTULO 3
O homem está a sua espera. O arquivo não tem muito a dizer, além
de sua falta de nome, a descrição do crime violento pelo qual foi
preso e a observação de ele estar estranhamente calmo no
momento da prisão. Ele está sentado à mesa de aço, as mãos sobre
os joelhos. Na foto tirada pela polícia, seu olhar firme sugeria
motivos inimagináveis. Agora, a três passos de distância, ele olha
para Lily, e ela não tem a menor ideia sobre o que se passa na
cabeça dele, ainda que o consiga sentir entrando em sua mente
para tentar descobrir seus pensamentos.
Psicopata.
Havia muitas palavras que não deveriam ser usadas que sua
segunda voz adorava sussurrar em seu ouvido. “Psicopata” era uma
delas. Nunca se dizia isso deles. Nos poucos anos de sua carreira
relativamente recente, ela observara os pacientes — não, isso
também havia mudado, agora eles eram clientes — e as palavras
imputadas a eles iam e vinham, como se levadas por ondas. Bipolar
para o que um dia fora insano, alto risco para os perigosos.
Mas a verdade — a verdade que não podia ser dita por alguém na
posição da dra. Lily Dominick — é que aqueles enviados ao Kirby
eram todos psicopatas, todos perigosos à sua maneira.
Este não é muito diferente dos outros.
Lily fecha a porta de segurança atrás de si, deixando a mão
pousada sobre a maçaneta por um segundo a mais que o
necessário, para evitar o olhar do homem.
Anormal.
É preciso estar preparado na presença de pessoas assim, mesmo
que as pernas delas estejam acorrentadas a uma mesa aparafusada
no chão. Elas podem ser tão trapaceiras nas coisas que dizem
como nas coisas que fazem. Mas esse homem — há alguns
segundos, um número em um arquivo; agora, real — é alguém que
fez uma coisa horrível e que, no momento em que ela ergue seus
olhos, a encara, transmitindo algo ao mesmo tempo brutal e sereno.
O olhar que eles compartilham é estranhamente íntimo, o tipo de
olhar que ela imagina ser trocado por amantes. É uma das coisas
que torna esse sujeito diferente dos outros. Provavelmente é isso o
que o torna perigoso, mais até do que outros psicopatas
acorrentados a mesas com que ela se defronta nessas salas que
cheiram a, e têm a cor de, ervilhas cozidas.
Lily se recorda do que foi fazer ali. Isso sempre ajuda. Quando
entra nessas salas, seus sentimentos são forçados a desaparecer.
Há apenas as perguntas que ela faz e a maneira como eles
respondem.
Foi isto o que a atraiu, inicialmente, na psiquiatria criminal: Lily
não trata seus clientes, ela os avalia. Não há qualquer obrigação de
prescrever remédios ou curar, apenas de classificar, chegar a uma
conclusão sobre a capacidade deles de fazer a coisa terrível da qual
são acusados, bem como de reconhecer ou não que é terrível. Ela
apresenta suas perguntas e eles respondem, ou ficam em silêncio,
ou vomitam bile do outro lado da mesa de aço, nas entranhas desse
edifício mais presídio que hospital. Às vezes, o cuspe acerta a sua
pele.
Ela solta a maçaneta, dá um passo adiante e se dá conta, pela
segunda vez, de que aquela manhã não será tranquila.
O homem ali sentado, meio que sorrindo para ela, é diferente dos
outros. Como ela pode afirmar isso? Não se trata de seu rosto, nem
de seu corpo. Ambos são agradáveis, ainda que de uma maneira
não convencional. A força esbelta e o peito largo de um nadador,
uma força que Lily pode ver mesmo nos dedos entrelaçados de
suas grandes mãos. Suas bochechas, maxilar e queixo são
definidos, a pele esticada contra os ossos. Ela calcula que ele
nasceu em um país estrangeiro, mas não consegue imaginar a que
lugar pertencem aqueles traços.
O que realmente o destaca são os olhos. Grandes e profundos,
vivos, de uma sagacidade animal. Íris cinzentas, quase
completamente engolidas por pupilas negras. Olhos que comunicam
múltiplos pensamentos simultâneos, ainda que, na aparência,
permaneçam suaves, piscando com um senso de humor
compartilhado. Os olhos não o tornam melhor nem pior que os
outros, nem necessariamente são. Certamente não inocente.
Apenas diferente.
“Qual foi o nome que me deram?”
Um sotaque impossível de identificar. Lily tenta alinhá-lo com uma
cultura, um continente, mas tem a sensação de que é uma mistura
de lugares e classes sociais. Há Leste Europeu em sua base,
depois um operário russo, com um traço do Nordeste dos Estados
Unidos, o inglês de Oxford na versão de um clube de discussão da
Ivy League. Ela monta todo esse quebra-cabeça com base em meia
dúzia de palavras.
Ele pigarreia. Lily ainda não o respondeu. Ela não dirá nada até
que ele fale de novo.
“Seus papéis”, diz ele, apontando com o queixo para o arquivo
que ela tem sob o braço. “Estou curioso. Como vocês se referem
neste lugar àqueles que não têm nome?”
“Designamos um número temporário para eles. Até descobrirmos
a identidade do cliente.”
“E se vocês não descobrirem?”
“Todos têm um nome.”
“Você está enganada, doutora.”
Ele traz à memória dela um de seus professores da pós-
graduação. A maneira como a questionava, de modo a levá-la a
novas conclusões. No caso do professor, ela se deu conta tarde
demais de que era uma forma sutil de flerte. Com aquele homem ela
tem certeza de que não se trata disso. Por outro lado, teve a mesma
certeza com relação ao professor.
“Você não trazia qualquer documento de identificação quando foi
preso”, retruca ela. “E se recusou a ajudar os policiais dizendo quem
é. Mas isso não significa que você não tenha um nome.”
O homem sorri. Uma simples mudança em sua expressão, que
faz Lily se sentir — o quê? Inquieta. Tonta e com o coração
acelerado, a princípio uma reação ao charme sedutor, algo que logo
se torna desagradável, a náusea que antecede o vômito.
“Talvez você possa me ajudar”, sugere ele.
“Ajudar você?”
“Você é médica, certo?”
“Certo.”
“Isso acarreta obrigações profissionais para aqueles como eu.”
“Como você?”
“Os acusados.” Ele dá de ombros, fazendo um ruído como se
alisasse lençóis por dentro de sua camisa. “Os perversos.”
“Como você descreveria sua doença?”
“Eu disse ‘perverso’, não ‘doente’.”
“Sua perversidade, então.”
“Estou acostumado demais com ela para descrevê-la.”
“Então você acha que meu trabalho é explicá-la a você?”
“Não. Quero sua ajuda em um problema completamente
diferente.”
“E qual seria?”
Ele sorri de novo. E, mais uma vez, ela se sente indefesa, da
mesma maneira poderosamente perturbadora de antes.
“Talvez você possa resolver o problema da ausência de um nome
para mim”, diz ele.
Um brincalhão. Um convite irritante para um jogo inofensivo. No
entanto, há também uma autoridade imperiosa em suas palavras.
Suaves, gentis, mas que chegam a Lily como uma ordem. A voz
dele é tão persuasiva que é quase física.
Lily fecha os olhos. Abre-os.
Isso dispersa o feitiço dele. Não que ela ache que aquele homem
é mágico ou coisa do gênero. “Feitiço” é a única palavra que vem a
sua mente.
“Podemos falar do motivo de você estar aqui?”, pergunta ela.
“Claro.” Ele ri, um rosnado de fumante. “Mas é um pouco estranho
conversar com você desse jeito.”
“De que jeito?”
Ele aponta em direção à cadeira vazia do outro lado da mesa, a
sua frente. “Você de pé e eu sentado. É uma situação que, entre
outras coisas, considero muito pouco cavalheiresca.” Ele sacode as
pernas, e as correntes em torno de seus tornozelos se agitam e
tilintam. “Eu levantaria, mas meus limites não permitem.”
“Está bem. Vou sentar, então”, diz Lily, mas ela não se move.
Pouco cavalheiresca.
A expressão a detém. Lily aposta que nunca foi pronunciada
naquela sala. Ela teria esperado um tom de sarcasmo, dado o lugar
onde estão, dada a situação complicada em que o homem se
encontra, mas ele está claramente falando sério. Um cavalheiro. É
assim que ele se vê, é assim que ele quer que ela o veja. Só isso
bastaria para fazer dele um caso interessante, se o turbilhão de
outras observações em sua cabeça já não houvesse feito isso.
“Vou sentar”, repete ela, e dessa vez realmente se senta.
Ela abre o arquivo. Ele olha para ela. Ela está tão consciente do
olhar dele que as letras dançam nas páginas.
Chega de babaquice, sua segunda voz lhe diz. Você está
parecendo mais doida que ele.
Controle. Lily considera esse o seu maior talento. Ela esteve nesta
sala com homens que prometeram matá-la, confessaram atos
indescritíveis entre acessos de riso, disseram coisas tão abjetas que
ela teve de tomar um banho assim que saiu dali. Uns dois deles
chegaram a fasciná-la por alguns momentos, até que ela finalmente
encontrou o alçapão que eles mereciam em um dos manuais de
diagnóstico, percebendo que aquele fascínio era apenas o
entusiasmo passageiro do desafio profissional. Passando por tudo
aquilo, por todos aqueles condenados, ela havia mantido o controle.
Mas agora, com aquele homem, ela sente algo totalmente
diferente. Não é medo, mas a agitação que se experimenta quando
se está perto de alguém capaz de uma violência imprevisível. Já
percebeu que ele é inteligente, que é preciso estar preparada para
surpresas desagradáveis. Ainda assim, sua excitação não é aquela
que se tem quando se está diante de um adversário respeitável.
Deve-se à noção de que este momento representa algo para ela,
algo importante, de uma maneira impossível de compreender agora,
mas que, se ela se mostrar merecedora, acabará entendendo. Além
da sensação inabalável de que ele está aqui por causa dela. Lily
sente como se ele a elogiasse apenas por estar sentado aqui, um
prisioneiro, olhando para ela.
Pare com isso. Controle-se. Já.
“Você compreende do que é acusado?”, pergunta Lily.
“Sim, compreendo.”
“Agressão em primeiro grau. Isso é um crime grave.”
“‘Uma pessoa é culpada de agressão em primeiro grau quando,
no intuito de desfigurar séria ou permanentemente outra pessoa, ou
de destruir, amputar ou incapacitar um membro ou órgão do corpo
dela, causa tal injúria àquela pessoa ou a um terceiro.’ Creio ser
essa a subseção pertinente.”
“Você memorizou o código penal?”
“Não por inteiro. Falta poesia nele, não acha? Mas eu pedi para
olhar o livro, e eles deixaram.”
“Sim.”
“Sim o quê?”
“Eu diria que essa é a subseção relevante. ‘Intuito de desfigurar
séria ou permanentemente.’”
Ele franze o nariz, e a palavra fofo pisca na mente de Lily. Sexy,
corrige sua incômoda segunda voz. Não fofo. Mas, definitivamente,
sexy.
“Eu discordaria do ‘permanentemente’”, diz ele. “A cirurgia plástica
hoje em dia faz coisas maravilhosas.”
Ela pensa em escrever Transtorno de Personalidade Narcisista?
=> falta de compaixão; ferimento direto infligido à aparência, não ao
corpo da vítima em suas notas, mas não quer interromper o fluxo de
palavras entre os dois.
“Você poderia me contar o que aconteceu?”, pergunta ela.
“Eu arranquei as orelhas de um homem.”
“Não havia uma faca?”
“Não era preciso usar uma faca.”
“Isso não é comum.”
“Não?”
Ele pisca. De modo tão lento, com a sala tão silenciosa, que ela
pode ouvir.
“Arrancar as orelhas de alguém com as próprias mãos”, diz ela.
“Eu diria que não é algo comum. Como você fez isso?”
Ele mostra suas mãos. Junta os dois indicadores com os
respectivos polegares, formando dois círculos. “Eu as peguei assim
e puxei, desse jeito.” Ele solta as mãos, e as algemas fazem um
tinido ao bater na mesa.
“Foi o que bastou?”
“O corpo humano é mais maleável do que as pessoas imaginam.
Mais frágil, também.”
“Você se aproximou dele por trás?”
“Não. Ele vinha de um lado, e eu do outro.”
“Ele não tentou impedir você?”
“Como tentar impedir algo que não se espera que vá acontecer?”
“Você falou com ele?”
“Sim.”
“O que você disse?”
“Inspire.”
“Por quê?”
“Porque eu sabia que ele faria isso. E porque, quando ele
expirasse, eu teria terminado.”
Mais uma vez, Lily precisa fixar seu olhar nas páginas do arquivo
sobre a mesa, usando-as como uma âncora que a prende ao mundo
lá fora.
“Eu vi as fotos”, ela diz, usando o polegar para passar as páginas.
“Apenas com as mãos — não acreditava que isso fosse possível.”
“Normalmente, não. Suponho que não.” O homem balança a
cabeça, como se ouvisse um comentário inesperado.
“E você não é normal.”
“Nem um pouco.”
“Então diga-me”, continua Lily, olhando novamente para ele.
“Compartilhe comigo seu segredo ensurdecedor.”
Ele ignora a piadinha dela, tão facilmente como ela havia caído na
dele.
“É claro que demanda certa força”, responde ele. “E é preciso não
hesitar. Isso mais que tudo.”
“Você não hesitou porque aquele homem merecia o que você fez
com ele?”
“Não, não. Você entendeu mal.” Ela pensa mais uma vez naquele
professor, lembrando-se, agora, da impaciência dele. “Eu não hesito
em nenhum de meus atos.”
Ela faz uma anotação no arquivo. Um rabisco taquigráfico. Ele a
observa enquanto ela escreve, e Lily tem certeza de que ambos
consideram essa uma ação sem qualquer sentido.
“Você acredita que uma declaração como essa torna mais fácil
descobrir qual é o meu problema”, ele diz. “Algo na área sociopática,
imagino.”
“É um aspecto interessante. Apenas isso. Mas gostaria de saber
mais.”
“Estou à sua disposição, doutora.” Ele tenta abrir os braços em
um gesto de compreensão, mas as algemas o impedem, então
apenas ergue as mãos unidas à frente de seu rosto, como em uma
prece.
Quando ele as abaixa, Lily estuda seu rosto, sem desviar o olhar.
Ele nunca seria tomado por um homem bonito, talvez nem mesmo
vistoso, mas é indiscutivelmente atraente. O nariz, longo e de
narinas abertas, os vestígios de barba, os olhos com os cantos
ligeiramente caídos, transmitindo uma expressão que podia ser
tanto de empatia como de mágoa permanente. Havia sinais de força
no menor de seus movimentos. Não os músculos saltados de quem
vive malhando, mas um corpo rijo e cheio de nervos, como uma
corda trançada. Ela se enganara em sua impressão inicial dele
como um nadador. Há uma elegância nesse esporte — o progresso
de um corpo contra um elemento que oferece resistência — na qual
ele não teria interesse. O cliente de Lily tem a presença física de
alguém que nunca fez nada simplesmente pelo prazer atlético, mas
apenas para provocar uma alteração imediata em seu ambiente,
seja proporcionar prazer, seja infligir dor. Ela se dá conta de que a
natureza dele se divide, em partes iguais, entre amante e brigão de
rua.
É a boca. Outras partes também, mas Lily acha que, mais do que
tudo, é a boca. Cheia e de contornos nítidos. Uma boca para ser
beijada, para a qual se abrir. “Não sou especialista”, é o que Lily
sempre diz quando Denise mostra uma foto de algum ator em uma
das revistas que leva para o trabalho, perguntando se ele é um
tesão. “Acho que é bonito, mas não sou especialista.” Como se
fosse necessário ser especializado em algo para avaliar a aparência
de alguém.
“Por que você decidiu machucar um estranho?”, pergunta,
abaixando de novo seus olhos para o arquivo.
“Estava perto.”
“De quê?”
“Do carro da polícia parado na West Broadway.”
“Você queria ser visto?”
“Sim.”
“Para ser preso?”
“Sim.”
“Por que as orelhas dele?”
“Eu precisava fazer algo fora do comum.”
“Por quê?”
“Não são esses os tipos que mandam para você? Os tipos
assustadores?”
“Então você fez isso porque queria ser trancado em uma
instituição psiquiátrica para criminosos?”
“De jeito algum, doutora. Eu fiz isso porque queria ver você.”
Lily apoia as costas na cadeira. O homem não faz qualquer gesto
em sua direção, mas ela sente o cheiro da pele dele, como se ele
houvesse colocado as mãos sobre seu rosto. Um odor de madeira
queimada, bem como de algum destilado. Serragem e carne velha
do açougue.
“Você acha que sabe quem eu sou?”, ela diz, imediatamente
dando-se conta de que essa é a pergunta errada. Se um cliente
acredita haver uma relação entre ele e a pessoa que o examina, é
importante mostrar que essa conexão é um efeito colateral da
anormalidade, uma ilusão de intimidade. Uma médica na posição
dela precisa ou recolocar as coisas nos trilhos, ou simplesmente
encerrar a entrevista e tentar de novo em outro momento. Lily
cometeu um erro. Ela deu àquele homem a oportunidade de afirmar
suas convicções. Que é exatamente o que ele faz.
“É claro que eu conheço você”, responde ele.
“Então me conte.”
“Você é a dra. Lily Dominick. Trinta e seis anos de idade. Solteira,
sem filhos. Completou a residência em psiquiatria criminal em
Brown e, antes disso, graduou-se summa cum laude em biologia na
Universidade de Michigan. Tudo com bolsa integral, com um ou
outro emprego de meio expediente. O Kirby é seu único local de
trabalho desde que você começou, o que, acredito, foi uma escolha
sua. Você queria o melhor. O que, no seu campo de trabalho,
significa o pior.”
“Meu nome. É com isso que você está trabalhando”, retruca Lily,
com um tom intencionalmente áspero, para disfarçar o tremor em
sua voz. “Os nomes da equipe aqui são de conhecimento público.
Meu currículo está em algum lugar da internet, junto da minha data
de nascimento, pelo que sei. Uma eficiente busca na internet. O que
é muito diferente de saber quem eu sou.”
“Verdade. Falando assim, você não passa de uma coletânea de
fatos para mim. Mas eu espero que isso mude em breve.”
“Não vai.”
“Agarre-se a suas dúvidas, doutora. Elas lhe darão consolo por
algum tempo.”
“Até o quê?”
“Até que tudo se transforme em pó. Até que sua antiga vida
termine e uma nova comece.”
Ela rabiscou outra anotação. Dessa vez, para compor a pergunta
correta, aquela que lhe permitiria sair daquele nó de enigmas cada
vez mais apertado.
“Se você realmente me conhecesse”, diz ela, “saberia os nomes
da minha mãe e do meu pai.”
“Esperta! Colocando armadilhas para mim!”
“Como assim?”
“Você nunca teve um pai, até onde sabe, pelo menos. E sua mãe
— qual é o termo educado na América? ‘Morta’ não, claro que não!
Vocês são alérgicos a essa ideia neste país, até mesmo à simples
menção disso. Sua mãe se foi. Mas foi ela que eu conheci
pessoalmente. Antes que você nascesse e até que ela...”
“... morresse. A palavra não me ofende.”
“Claro que não! Que médico ficaria ofendido? Morresse. Assim!
Sejamos adultos.”
Não passa de um bem-sucedido tiro no escuro — adivinhar que
ela era filha de mãe solteira, sem nomes, nenhuma circunstância
específica —, mas Lily tem de se esforçar para manter isso em
mente. Ele está jogando verde, nada além disso. Como a vidente
que se arrisca com o parente morto cujo nome começa por uma
vogal (“Tio Ed!”) e ganha o crédito por ser espantosamente precisa,
aquele homem está tateando na expectativa de que ela o ajude a
encontrar uma particularidade qualquer. Algo que ela não vai fazer.
Em primeiro lugar, porque seu trabalho é virar o jogo nessa
entrevista. Em segundo, porque não gosta da ideia de que ele tenha
o mínimo conhecimento, ainda que falho, de seu passado.
“Há uma série de problemas em sua proposição”, afirma Lily, com
toda tranquilidade.
“É mesmo?”
“Para começar, parecemos ter a mesma idade. O que significaria
que, se eu era uma criança quando conheceu minha mãe, você
também era uma criança. Então, mesmo que a houvesse conhecido
— o que eu duvido —, você não se lembraria, pois seria muito novo
para isso.”
“Você falou que havia alguns problemas. Pode citar outro?”
“Você não deu um nome a minha mãe, nem disse em que
circunstâncias a conheceu.”
Há um relógio na parede, e o homem olha para ele, calculando,
com razão, que essas entrevistas têm limites de tempo
preestabelecidos. Suas correntes retinem sob a mesa, enquanto
pondera que abordagem adotar.
“Tenho muitas coisas a dizer que você classificaria como
inacreditáveis logo de cara. Essas suas dúvidas me deixam em
desvantagem, especialmente aqui, onde não posso lhe mostrar
coisas, apenas falar”, diz ele. “Ainda assim, aguardo ansiosamente
nossas discussões futuras, doutora. Elas vão demandar um bom
tempo. E a demonstração vai ajudar.”
“Daqui onde estou, posso observar mais do que você imagina”,
diz Lily, colocando os cotovelos sobre a mesa. “E minha audição é
ótima. Meu trabalho é escutar.”
“Então escute isso. Não sou igual a ninguém que já tenha
passado por este lugar. Sou um caso extraordinário.”
“Era isso que você estava tentando mostrar quando atacou aquele
homem daquela forma?”
Ele inspira lentamente e com força. “Vamos parar de falar dele.”
“Ele não é a razão pela qual estamos juntos agora?”
“Não. Ele não significa nada.”
“A dor que você provocou. Você está dizendo...”
“NÃO!”
O homem se põe de pé. Dá um coice nas correntes das pernas
com tanta força que a mesa e até o chão tremem. Com os punhos
cerrados, ele evita oscilar. Lily hesita, mas um segundo depois se
endireita na cadeira.
“Não estou aqui para explicar um crime banal! Não sou um caso a
ser estudado! Achei que você...”
Ele se cala no instante em que se dá conta de que está gritando.
Senta. Seus olhos se dirigem para a porta, como se esperasse um
policial entrar. Lily também meio que espera isso. Mas, seja porque
o guarda do outro lado do vidro está muito ocupado molhando sua
rosquinha, seja porque ele aguarda um sinal da parte dela, a porta
permanece fechada.
“Estou aqui para lhe dar um presente”, diz o homem, a voz
apenas um sussurro.
Lily fecha o arquivo. “Preciso ir.”
“Por favor, fique.”
“Essas entrevistas não podem ocorrer se...”
“Prometo que não farei isso de novo. Serei paciente. E é um
presente realmente extraordinário. Por favor, Lily.”
A maneira como ele fala o nome dela. O som, com o sotaque
dele, parece mais próximo de sua pronúncia verdadeira do que
quando ela mesma o pronuncia. Ela se deixa ficar, em parte para
confirmar seu diagnóstico ao saber o que ele quer lhe dar de
presente, em parte para ouvi-lo pronunciar seu nome de novo.
“Que presente?”, pergunta.
“Algo que eu nunca compartilhei por completo com outra pessoa.”
“Um segredo.”
“Se é um segredo, está debaixo do nariz da humanidade há um
bom tempo.”
“Um conhecimento especial, então.”
“Apenas a verdade, doutora.”
Lily larga a caneta. Faz um sinal para que ele prossiga.
“É verdade que, por nossas aparências, parecemos pertencer à
mesma geração”, começa ele. “O que significaria que eu era uma
criança na mesma época em que você. Mas a verdade é que nunca
fui uma criança.”
“Metaforicamente.”
“Nada disso.”
“Não entendo.”
“Vim ao mundo nesta forma adulta, na qual permaneci por toda a
minha vida. Uma vida que já se estende por mais de duzentos anos,
dra. Dominick.”
Lily assente com a cabeça da maneira mais casual possível e
pega de novo a caneta. Faz outra anotação no arquivo.
Ele estava o tempo todo indo nessa direção, ela se dá conta agora.
Era a intensidade dele — sua atratividade perturbadora — que a
havia tirado do rumo. Mas ele agora está entrando no foco do
diagnóstico, exatamente como todos os outros. O que torna esse dia
igual a todos os outros que vieram antes. Isso faz com que ela se
sinta velha. Uma velha de duzentos anos.
“A maior duração já registrada para uma vida humana é de cento
e vinte anos”, argumenta. “Você está ciente disso?”
“Cento e vinte anos e cento e sessenta e quatro dias. Sim, estou
ciente disso.”
“Então você se considera uma exceção?”
“Sim.”
“Como?”
“Nas palavras mais simples? Não sou um ser humano.”
Ah, lá vamos nós, pensa Lily. O que vai ser? Alienígena ou anjo?
É sempre um dos dois. Ainda que ela esteja preparada para dar a
esse aqui o crédito de aparecer com alguma coisa mais original.
“Você pediu por essa pergunta, 46874-A”, diz Lily, lendo o número
da etiqueta de identificação do arquivo. “Se você não é humano, o
que você é?”
Ele sorri. Mas é um sorriso diferente dos anteriores. Há uma
tristeza em seu rosto que se transmite para ela, e um desespero
toma imediatamente conta de seu peito.
“Acho que a resposta para isso é o porquê de eu estar aqui”, diz
ele.
“Você já disse isso. Para que alguém lhe dê um nome.”
“Não, Lily.” O rosto dele se aproxima do dela por sobre a mesa,
mais perto do que ela havia imaginado que as correntes permitiriam.
“Para que você saiba o que eu sou.”
Desaba de chofre sobre ela. O medo.
O homem a deixara em alerta desde o momento em que ela
entrara na sala. Mas, até agora, não havia se sentido realmente
apavorada.
Para que você saiba o que eu sou.
As camadas de uma descoberta indesejável que ele implicava
apenas com essa frase, uma escuridão que vai mais além de
qualquer condição psiquiátrica — isso a atinge como uma bala de
gelo no peito.
“Tenho outro compromisso”, murmura enquanto ajeita o arquivo e
se levanta. “Teremos de marcar...”
Sem querer, ela derruba a cadeira, que cai ruidosamente no chão.
Isso parece atrair a atenção do guarda, pois ela escuta o zumbido
da porta destravando. A apenas três metros dali, mas parecendo o
triplo da distância. Ela não coloca a cadeira no lugar. Ela não olha
para o homem.
“Alison”, diz o homem acorrentado.
“O que você disse?”
“Ela usou outros nomes em épocas diferentes da vida, mas esse
deve ser aquele pelo qual você a conheceu.”
Lily não consegue encontrar palavras. Ou ar. Ela vai até a porta,
mas, ao chegar lá, sua mão fica congelada na maçaneta.
“Sua mãe”, prossegue ele. “Eu a conheci, Lily. De uma forma que
você nunca imaginou. Nem imagina.”
“Como você...”
“Sua mãe não era quem ela dizia ser. De maneira alguma.”
“Isso não é...”
“Ela lhe contou uma história. E, à medida que crescia nas casas
de outras pessoas, você passava essa história adiante, até poder
construir a sua própria. Mas eu vim aqui para dizer que o que você
sabe de suas origens contém apenas uma minúscula parte da
verdade.”
Lily tem de usar toda a força de vontade, mas se volta para
encará-lo. “Então por que não me conta? Conte-me a verdade.”
“Seu pai não era um homem chamado Jonathan. As poucas fotos
que você tem são de um estranho, que lhe foram entregues por sua
mãe para que parecesse que você era fruto de um relacionamento
breve, que eles haviam tomado caminhos diferentes.”
“Chega.”
“Enquanto a mulher que você conhece como Alison era sua
mãe...”
“Cala a boca!”
“Alison era sua mãe, mas o homem naquelas fotos — Jonathan —
não teve qualquer participação na sua concepção.”
“Você está enganado”, diz ela. “Jonathan Dominick era meu pai.”
“Não, não era.”
“Como você pode saber?”
“Porque eu sou seu pai.”
—A—
CRIATURA
ANDREW PYPER
CAPÍTULO 5
A aparência do homem não é tão boa quanto nas fotos. Lily estima
que esse é o padrão. E ele não é tão interessante como seu perfil
prometia — escalador, investidor “de alto nível” em fazendas de
energia solar —, mas é bonito o bastante, interessante o bastante.
Lily não consegue evitar compará-lo ao homem que entrevistara
naquela manhã, considerando-o inferior.
Que diabos há com você? Aquilo era uma sessão com um cliente.
Um psicopata. Isto é um encontro.
É uma luta contínua para se lembrar do nome do homem
bebericando o vinho e cortando o linguado a sua frente, do outro
lado da mesa. A fim de não esquecer, ela cita o nome na conversa
sempre que possível.
“Mas, Tim, você nunca tem medo quando olha para baixo, do pico
da montanha?”
“Posso fazer uma pergunta pessoal, Tim?”
“Eu gostaria de ir embora agora, Tim.”
Essa última é antes de a sobremesa chegar.
“Você está se sentindo bem?”, pergunta ele, já empurrando a
cadeira para trás, como se estivesse pronto para executar a
manobra de Heimlich em Lily.
“Eu realmente gostaria de ir ao seu apartamento”, é sua resposta.
Até ela fica surpresa com isso.
Ele está surpreso também. Mas essa surpresa não o impede de
se erguer e fazer o gesto de assinatura para o garçom, para que lhe
traga a conta.
Não sou um mito. Nem uma história, um conto de fadas ou uma lenda.
Não sou um ser humano, ainda que quase sempre seja confundido com um,
mas sou composto de partes do corpo humano, entre outras coisas, algumas
que entendo e outras que permanecem misteriosas, mesmo para mim.
Um nome.
Às vezes, penso se não seria melhor não ter um. Há um poder nele que só
ocasionalmente pode ser vislumbrado, pequenos pedaços da realidade
observada que forçam a pessoa a imaginar o todo. Ao longo dos séculos, esse
poder foi atribuído a diferentes coisas: deuses, dragões, bruxas. É uma das
razões pelas quais decidi prosseguir.
Neste momento, o mundo pode me chamar pelo meu pseudônimo preferido.
O anjo guerreiro.
Michael.
Há livros sobre mim. Clássicos, à sua maneira. Em nenhum deles sou
Michael, mas, ainda assim, sou eu quem está por trás de todas as suas
invenções. Eles representam a obra da minha vida, ainda que não reconheçam
minha participação neles.
A criatura sem nome de Victor F. O outro eu do dr. Jekyll. O conde da
Transilvânia.
Shelley, Stevenson, Stoker.
Eles ganharam fama, que no entanto não os alcança onde estão agora, na
terra fria de seus túmulos. Ao contrário deles, estou vivo.
E, ao contrário dos monstros cuja criação é atribuída a eles, sou real.
Londres
12 de outubro de 1812
Acaba aqui.
Lily vai até a janela e a abre, coloca a cabeça para fora e examina
o quarteirão, à esquerda e à direita. Tem certa expectativa de que
ele ainda esteja lá embaixo, esperando na esquina, para acenar
antes de escapulir.
Psicopata.
Um homem que acredita ter duzentos anos e ter sido a inspiração
de Frankenstein, O Médico e o Monstro, Drácula.
Se você não é humano, o que você é?
Um psicopata como todos os outros. Mais imaginativo que a
maioria, mas essa continua a ser a única resposta. O que impede
Lily de acreditar totalmente nisso é a questão de como ele conhece
o segredo dela. Aquele tão dissimulado que permanece oculto até
dela própria.
Não sou um mito.
Lily começa a tremer, não consegue parar. Isso é o choque, ela
diz a si própria. As últimas vinte e quatro horas se fragmentando em
vozes, frases escritas em um papel antigo. Uma horrenda colagem.
Sou um caso extraordinário.
O homem saindo da cozinha de Lionel.
Estou aqui para lhe dar um presente.
Os dentes prateados.
Se é um segredo, está debaixo do nariz da humanidade há um
bom tempo.
Lily observa o bilhete manuscrito — aquele rascunhado em seu
apartamento, alertando-a para não chamar a polícia — e percebe,
pela primeira vez, que há alguma coisa escrita no verso.
Budapeste
Atrás dela, o telefone toca.
Ela olha para o seu canto da cidade, o sol do novo dia pintando de
amarelo os tijolos e o concreto, e os carros trepidando na luz
amanteigada. O cheiro fraco de castanhas torradas e esgoto, que
ela considera o perfume específico de Nova York. Junto de alguma
coisa que, ela diz a si própria, não passa de imaginação. Alguma
coisa animal. A palha molhada e o hálito de cavalo de um estábulo.
—A—
CRIATURA
PARTE 2
O VELHO MUNDO
—A—
CRIATURA
ANDREW PYPER
CAPÍTULO 9
Ela relê as páginas do diário de Michael tantas vezes que acaba por
se ver alternando entre dois pontos de vista. Como uma psiquiatra,
ela vê o texto como a articulação de um transtorno de personalidade
altamente desenvolvido que maquinou uma identidade a partir da
história impossível de suas origens. Mas ela então lê de novo, e vê
que ao menos parte pode ser verdade.
Não sou um ser humano, ainda que quase sempre seja
confundido com um.
Lily não pensa nem por um segundo que Michael tenha nascido
em 1811. Mas ele talvez seja húngaro. E talvez sua família tenha
considerado sua psicose uma possessão demoníaca quando ele era
jovem (não seria a primeira vez que ela lidaria com um cliente e
seus cônjuges ou familiares que acreditam ver um fundo
sobrenatural em suas condições).
Talvez, depois de vir para os Estados Unidos, Michael tenha, de
alguma forma, conhecido a mãe de Lily.
Pode ser que eles tenham se esbarrado em um hospital ou algo
parecido, em algum lugar. Considerando sua idade, ele devia ser o
filho de outro paciente, mas crescido o bastante para falar com ela,
lembrar-se dela. A própria Lily não sabe muito sobre sua mãe, além
de que, após seu nascimento, as duas se mudaram de um trailer
para um quarto de motel, depois para o chalé no norte. Era uma
existência nômade, decorrente do fato de serem pobres. Mas havia
algo mais. Os remédios, por exemplo. Começava e parava,
começava e parava. Muito provavelmente uma paranoica, como
Michael. No caso de sua mãe, havia a crença de que estavam atrás
dela. Lily tem uma vaga lembrança de perguntar quem eram essas
pessoas.
“Aquelas que sabem”, respondeu ela.
Para Lily, a doença mental de sua mãe tem um gosto: o chá
amargo e, pior ainda, as sopas que ela era obrigada a tomar quando
criança. Eram misturas que sua mãe devia fazer a partir daquilo que
colhia na floresta, porque Lily não tem qualquer recordação das
duas indo a uma loja de alimentos orgânicos, e, de qualquer forma,
o chalé no Alasca era longe de tudo. O gosto da comida, relembrado
décadas depois, deixa Lily enjoada, mas também com raiva, como
se os caldos de sua mãe tivessem outro objetivo além de alimentá-
la. Seriam algo do tipo new age, remédios do movimento
antivacinação? Seriam uma punição?
Lily relê todas as páginas mais uma vez.
Não nascido, mas feito.
Michael não tem duzentos e quatro anos de idade. Ele não é a
inspiração dos três romances góticos mais respeitados do século
XIX.Ele não foi criado por um alienista, e sim veio ao mundo da
mesma maneira que qualquer pessoa. Ele não é seu pai.
Mas é possível que saiba algo sobre sua mãe que ela mesma não
sabe. E, se for assim, ela precisa dele.
Denise é a única pessoa para quem Lily telefona a fim de avisar que
ficará fora por algum tempo. Sente que alguém precisa saber. Mas,
assim que ela conta que foi muito afetada pela perda do dr.
Edmundston e decidiu passar um tempo fora, tudo parece dar
errado.
“Para onde você vai?”, pergunta Denise, tentando disfarçar o
alarme na voz.
“Não sei ainda. Pensei em apenas ir para o aeroporto e escolher
algo no quadro de partidas.”
“Isso não parece coisa sua.”
“Acho que é por isso que quero fazer assim.”
“É por causa de Lionel?”, pergunta Denise. “Ou há algo mais?”
“O que você quer dizer com algo mais?”
“É que você... há medo em sua voz. E você não é uma pessoa de
ter medo.”
“Meu amigo acaba de morrer. Assassinado. Provavelmente por
uma pessoa com a qual eu fui a última a falar. Você não acha que
eu deveria ter medo?”
“Você acha que eu também devo me preocupar?”
“Ele não voltará ao Kirby”, diz Lily, e, no mesmo instante, acredita
que isso seja verdade.
“Por que não?”
“Minha profissão é diagnosticar personalidades.”
“E daí? Isso faz com que você leia mentes?”
Depende da mente, pensa ela, mas não diz.
“Vejo você quando voltar”, diz Lily.
“Tome cuidado.”
“Sempre.”
Ela está fechando a mala quando recebe um trote pelo telefone.
É como Lily tenta tratar isso mais tarde, lutando para se
convencer de que não há qualquer ligação entre os acontecimentos
dos últimos dias, que a arrancaram de sua vida normal, e o estranho
ao telefone, perguntando se ela é a dra. Lily Dominick, sem revelar
seu nome.
“Quem está falando?”
“Precisamos nos encontrar.”
“Foi aquele site de encontros quem lhe deu meu número? Se
foram eles...”
“Quero proteger você.”
“... isso é crime. Disseram que minha privacidade seria...”
“Você não está segura.”
O homem tem uma voz forte, que transpira autoridade
profissional. Lily tenta imaginar o dono daquela voz e o vê como
fisicamente imponente e atraente. Isso quase a distrai da frase
assustadora que ele acaba de pronunciar.
“Isso é uma ameaça”, ela diz. “Também é crime.”
“Preste atenção, Lily. Não há tempo a perder. O que está
acontecendo — não é nada do que você imagina. Mas eu não posso
— outros podem estar nos ouvindo. Apenas diga um local e vá
direto para lá. Vou encontrar você. O que eu...”
“Quem está falando?”
“Meu nome é Will”, responde a voz. “Temos algo em comum.
Alguém. Apenas escolha um...”
Ela desliga. Depois de verificar no identificador de chamadas que
a ligação vinha de um número bloqueado, ela desconecta o
telefone, antes que ele ligue de novo.
Um trapaceiro. Seus dados pessoais hackeados de uma conta na
internet. Um engraçadinho soltando uma dupla de insinuações
vagas que atingiriam qualquer um. Temos algo em comum. Alguém.
Lily rejeita o telefonema, pensa nele como trote, ainda que não
acredite totalmente nisso.
Ela tem certeza de que ele continua tentando ligar e pensa em
reconectar o telefone, nem que seja para ouvir novamente aquela
voz ao mesmo tempo insistente e reconfortante, mas, no fim das
contas, vai embora para não pensar mais no assunto e pega um táxi
para o aeroporto.
Por enquanto, nenhum desastre, diz sua voz interior. Mas não faltam
maus presságios.
Cornualha, Inglaterra
22 de novembro de 1812
Era noite quando chegamos à casa do doutor. Ele removeu meu capuz, o
mundo feito de pálidas camadas de sombras. Velas queimavam na janela da
casa, um sinal luminoso deixado para o doutor por sua esposa. Mas eu não
deveria dormir ali. Ele me conduziu até a residência da criadagem, na encosta
junto aos estábulos.
Meu quarto não passava de uma cela, com um colchão de palha, um jarro
d’água e um penico.
Perguntei a Eszes, na porta, se ele realmente acreditava que a corrente na
maçaneta e o cadeado trancado à chave bastariam para me manter ali.
“Boa noite”, disse ele, ignorando minha pergunta.
“Boa noite, pai.”
Fiquei escutando enquanto ele se arrastava pelo corredor, para dirigir-se à
casa onde dormia sua família, que, sonhando, ignorava tudo aquilo.
—A—
CRIATURA
ANDREW PYPER
CAPÍTULO 11
O estábulo está aquecido pelo hálito dos animais, que olham para
ela de suas cocheiras, o couro deles pálido como as duas lâmpadas
fracas que pendem das vigas do teto. Lily retribui os cumprimentos
silenciosos deles com uma reverência, que ela executa antes
mesmo de se dar conta do que está fazendo.
Os garanhões desviam o olhar dela, voltando-se para o outro lado
do estábulo, onde está Michael.
“Você deve estar com frio”, diz ele. “Venha, afaste-se da porta.”
Lily se aproxima dele, seus pés descalços se arrastando pela
palha no chão de concreto, e sente que a temperatura aumenta a
cada passo. Não sabe dizer se isso se deve ao calor coletivo dos
animais ou ao fato de estar mais perto dele. Ela para, deixando ficar
entre eles a cabeça do último cavalo nas cocheiras. Um de seus
olhos líquidos nela, o outro nele.
“Fico contente que você tenha a chance de ver por si própria.
Aquele que você acariciou hoje — aquele ali, ao seu lado —
pertence à mesma linhagem que o dr. Eszes tanto apreciava. Gosto
de pensar que um toque já basta para nos aproximar mais.”
“Foi para isso que você me trouxe até aqui?”, pergunta ela. “Para
que eu colocasse minha mão em um cavalo?”
“Sim, é uma das peças do quebra-cabeça.”
“Ok. Fiz como você queria. Agora deixe-me ir embora.”
“Não estou prendendo você, doutora.”
“Você está atrás de mim.”
“Engano seu”, retruca ele, os olhos negros como os dos animais
nas cocheiras. “É você que está me seguindo.”
Ele não chega mais perto, mas é como se o fizesse. Lily sente um
frio cada vez maior dentro de si, que ela imagina vir da parte mais
esperta de seu cérebro, a parte além do pensamento que sabe que
ela cometeu um erro terrível e será assassinada aqui. Isso a inunda
de um terror gélido e pesado, começando em seus pés e subindo
até seu coração, fechando sua garganta. Mas, além do terror, há
também raiva por ter acreditado nos instintos que a trouxeram até
aqui, a avaliação de que ele não a machucaria. Instintos, ela mais
que ninguém deveria saber, são o que nos afasta da razão. Instintos
fazem você ser morto.
“Por que estamos aqui?”, pergunta Lily, lutando para engolir a
saliva fria em sua boca.
“Você deve imaginar.”
“Estou perguntando a você. Por que estamos aqui, Michael?”
O canto de seus lábios se retorce, mostrando que ele não está
convencido da tentativa dela de bancar a doutora de novo,
interrogando um paciente. Ele tem controle total, e ela sabe disso.
Mas algo o faz virar a cabeça, como se para organizar as ideias,
antes de repousar seu olhar sobre ela.
“Este é o verdadeiro significado do sangue”, diz ele. “Olhar para
alguém e ver a si próprio.”
“Não me pareço em nada com você.”
“Talvez não fisicamente. Mas eu me reconheço em você.”
“Uma ilusão.”
“Sua solidão é ilusória? Você já se perguntou por que não tem
amigos de verdade, um marido, um amante?”, diz, seus lábios
tomando a forma de algo que pode ser um sorriso de piedade.
“Como você se conforma com sua incapacidade de amar?”
Ela tem de esconder o esforço que faz para respirar. É a surpresa
do que ele acabou de dizer. Exatamente o mesmo tipo de perguntas
que, em seu trabalho, Lily faz aos autores de massacres e
psicóticos que têm de viver em isolamento, só que, desta vez, feitas
a ela. E ela não tem qualquer resposta a dar.
Michael fala de novo, mudando de assunto, antes que ela possa
apresentar uma resposta não convincente.
“Está ciente de que há pessoas atrás de você?”
“Havia um homem em Budapeste. Mas eu o despistei.”
“Ele é apenas um de muitos. E eu duvido que o tenha despistado
por muito tempo.”
“O que essas pessoas querem?”
“Eu. Então, se estão atrás de você, é porque sabem de nossa
relação.”
“Relação? Essa não é, nem de longe, a palavra certa.”
“E qual seria a palavra certa?”
Lily não pode responder, então se esforça para fazer com que as
coisas retomem o rumo que acredita ser necessário para
permanecer viva no momento seguinte, e no próximo. Fazer com
que a história seja dela, não dele.
“Fale sobre minha mãe”, diz ela.
“Quando for a hora certa.”
“Não temos muito tempo.”
“Temos a noite toda. E mais, se assim quisermos.”
Ele semicerra os olhos. Um sinal de alerta. Não me pressione. Lily
sabe do que ele é capaz, mas, ao mesmo tempo, lembra-se, pelo
seu treinamento médico, que, para sobreviver a uma interação como
essa, ela não pode se permitir parecer intimidada. É crucial que
parte da autoridade com a qual começou no Kirby seja preservada,
e, para isso, ela não pode ceder totalmente ao que ele decida falar,
e quando.
Ele vai tentar fazer disso uma questão física, ela se recorda do dr.
Edmundston aconselhando-a antes de sua primeira entrevista
sozinha com um cliente, um tipo que desmembrava as pessoas.
Você deve manter isso uma questão mental.
“Você precisa ter cuidado”, ela ouve Michael dizer. “Se eles a
encontrarem, não diga nada. Enrole-os até que eu alcance você. Se
não fizer assim, eles vão matá-la. Entendeu?”
“Eles são da polícia?”
“São vigilantes”, responde ele. “Uma versão sofisticada dos
camponeses com tochas e foices.” Ele ri um pouco disso, e esse
som faz com que Lily comece a tremer, incapaz de se controlar.
Ela precisa resistir, manter os limites entre ela e ele. Ela viu o que
ele fez com o dr. Edmundston, e o quão calmo estava, o quão
confiante. Tão calmo e confiante como está agora. Isso a leva a
falar abertamente com ele, ser honesta com ele, confessar todos os
seus sentimentos, de modo que esses sentimentos possam ser
compreendidos.
“Quero ir embora”, diz ela.
“Você está com medo?”
“É claro que estou!”
Ela não queria admitir isso. Ela queria, em vez disso, lembrá-lo de
que ele está desesperadamente doente, mas acabou. Ela pretende
ir à polícia, contar que ele fez tudo para que ela parecesse uma
assassina. Ela perdeu o controle disso por alguns momentos, mas
não vai deixar escapar de novo o que realmente conta. Em vez
disso, apenas grita a plenos pulmões a única fração de seus
pensamentos da qual tem certeza. Ela está com medo.
Um silêncio se impõe entre os dois. Ele pisca a intervalos
regulares, como se contasse em sua mente, medindo a vida e a
morte dela.
“Por que você está fazendo isso comigo?”, diz Lily, sentindo as
lágrimas correrem em seu rosto, a garganta tão fechada que é como
falar por um canudo.
“Fazendo o quê? Você está aqui porque veio.”
“Porque eu não tive escolha!”
Ele enfia a mão no bolso de seu sobretudo. Tira dali um objeto em
uma sacola plástica.
“Aqui”, diz ele. “Pegue sua escolha.”
Lily nota que a sacola está manchada de sangue, mas isso não a
impede de ver sua faca Henckel lá dentro. Ela estende a mão e a
apanha, segurando-a junto a seu corpo como se quisesse mantê-la
aquecida.
Michael dá um passo para trás. É sua chance de ir embora. Mas
alguma coisa a prende ali.
“Era você, não era, no porão da velha casa ontem?”, pergunta ela.
“Minha querida filha, estou muito grato por você ter ido até lá. Por
mais que as circunstâncias fossem desagradáveis, fez com que eu
me sentisse um pai de verdade pela primeira vez. O patriarca
levando sua prole para ver seu lugar de origem! Um rito de
passagem para nós dois.”
Michael leva a mão até o peito, e Lily olha para trás, para ver
todos os sete garanhões abaixarem suas cabeças.
“Nunca vi cavalos fazerem isso”, ela diz.
“Foi exatamente o que o cavalariço do dr. Eszes falou quando os
viu fazendo isso”, ri Michael. “Naquele instante, ele decidiu me odiar.
Ele era um homem cheio de ódio por natureza. Um traço ao qual eu
seria indiferente se ele, às vezes, não descontasse sua frustração
nos cavalos. Quando o chicote batia no couro deles, eu podia sentir.
A raiva dos cavalos instantaneamente se tornou minha.”
O calor de estar perto dele provoca em Lily mais um calafrio, que
se demora no topo de sua cabeça, como um bando de aranhas se
espalhando por seus cabelos.
“Como era?”, pergunta ela. “Quando o médico trouxe você para
cá?”
Ele analisa a pergunta, percebendo a tentativa de distraí-lo. Mas o
prazer que sente no fato de os dois estarem ali, juntos, pode ser
visto em seu rosto e acaba por derrotar a irritação empedernida com
o fato de ela estar tentando manipulá-lo.
“Venha”, diz ele, abrindo a porta do estábulo vazio a seu lado.
“Não podemos ficar de pé a noite toda.”
Lily entra e se senta num canto, as costas contra a parede, seu
corpo se acomodando na palha. Michael escolhe o canto oposto ao
dela, mas não senta, apenas se agacha. Isso lhe permite olhar tanto
para ela como para as portas dos estábulos.
“Eles me davam tarefas, que eu cumpri nos primeiros dias”,
começa ele. “Mas logo fiquei com fome, apenas bebericando dos
frascos com sangue Lipizzan. Eu ficava enojado de beber sangue
de animais, especialmente desses garanhões brancos, que eram o
mais próximo que eu podia imaginar de irmãos.”
“Você não estava feliz com sua liberdade?”
“Eu não era livre. Não ainda. Mas eu adorava cavalgar. Não
precisei de qualquer aula, não que me houvessem oferecido
alguma. O cavalariço era contra eu cavalgar, mas logo ele tinha
mais medo de mim do que do médico, que ficava sempre na casa
de fazenda, a porta trancada. Em apenas uma semana, os papéis
de todos os alojados aqui se inverteram, de modo que eu, que
dormia no menor quarto e tinha a posição mais inferior de todas,
podia fazer o que bem quisesse. E o que eu mais queria fazer era
me alimentar.”
Ele se ajoelha e vai até ela. Lily não se move, apenas pressiona
mais as costas contra a parede. Há a preocupação de que o menor
sinal de apreensão possa detonar um ataque, então ela se
concentra nele, o homem agora ajoelhado a menos de meio metro
dela.
“Quando você começou?”
Ela havia perguntado a mesma coisa a pelo menos uma dúzia de
assassinos em série antes, mas, dessa vez, percebe um tom de
intimidade na pergunta, um interesse pessoal completamente
distinto da necessidade de terminar uma avaliação médica.
“Nunca vou esquecer de, uma noite, cavalgar até Eger e amarrar
o cavalo a uma árvore na praça”, responde ele. “Como meu
garanhão brilhava na noite! Havia uma escola de música ali, a
mesma que existe até hoje. Mesmo no frio úmido de novembro as
janelas estavam parcialmente abertas, deixando escapar na noite
uma sinfonia de aulas: piano, flauta, violino. E uma voz que cantava
uma ária. Un Moto di Gioia mi Sento, de Mozart. Não foi a perfeição
da música que me comoveu, e sim sua beleza triste, a maneira pela
qual lamentava a brevidade da vida ao mesmo tempo em que
celebrava a alegria de viver. Abriu uma porta em mim. Foi a música
do meu primeiro assassinato.”
Ele fecha os olhos. Saboreando a lembrança do som, da noite.
Depois, a recordação da violência faz com que ele reabra os olhos,
mais brilhantes e escuros que um minuto antes.
“Quem?”
“Uma camareira”, responde ele. “Que caminhava ao longo do rio.
Eu a segui, pleno de exaltação e doçura. Essa era a minha poesia,
eu tinha certeza. A caçada. A expectativa da carne, uma música em
si. Ela ouviu os passos se aproximando por trás, e eu podia senti-la
estudando suas alternativas — correr, gritar por socorro, enfrentar
seu perseguidor, fosse quem fosse —, mas ela decidiu não fazer
nada. Depois disso, eu me acostumei com essa inação, mas, na
ocasião, fiquei surpreso que a garota tenha deixado sua morte
chegar tão facilmente. Isso me levou a falar com ela. Uma voz
amigável, perguntando como chegar à praça principal. Nesse
momento, ela se virou. Não que acreditasse que eu fosse um
visitante perdido, mas porque era assim que havia sido treinada,
como todas as pessoas civilizadas são treinadas.
“A pele dela. Acho que é minha maior lembrança. A forma como
ela brilhava na luz fraca da lua minguante. O rugido do sangue em
seus membros, como uma cachoeira. Ao falar comigo, ela sorriu,
porque eu também falei com ela — algo sobre uma viagem longa e
a necessidade de encontrar uma pousada para passar a noite —, e
ela pensou que o perigo havia passado. Até fez uma piada, algo
sobre percevejos na estalagem e como eles faziam de você seu
café da manhã, antes mesmo de você tomar o café da manhã, e
quando eu ri — quando nós dois rimos —, dei o bote.”
A mão de Michael se ergue na direção dela. Não adianta tentar
escapar, então o corpo de Lily se enrijece ainda mais, uma boneca
de madeira esperando o toque dele.
“Ainda não havia desenvolvido meus dentes de metal e estava
excitado e desajeitado como um virgem, o que, de certa forma, eu
era”, prossegue. “Basta dizer que as coisas foram mais confusas e
barulhentas do que o ideal. Mas era uma cidade húngara — as
pessoas cuidavam do próprio nariz. Eger fora seguidamente trocada
entre líderes feudais e soldados das cruzadas. Não era a primeira
vez que eles ouviam gritos no meio da noite. De qualquer forma, a
garota silenciou assim que comecei a me alimentar com vontade —
a costumeira submissão decorrente do choque, como eu descobriria
depois —, mas podia sentir o medo em seu corpo, como o coração
disparado de um pardal. Ergui os dentes de sua garganta e falei
com ela. Nem lesz több fájdalom, ígérem.”
“O que isso significa?”
“Não haverá mais dor, prometo. Quis dizer que não haveria mais
luta, mordidas e dilaceramento, mas, assim que acabei de falar,
percebi o outro sentido de minhas palavras. Nós dois percebemos.
Não haverá mais dor nesta vida. Ela havia carregado um fardo. Eu
podia sentir o gosto dele — as características de seu sangue diziam
muito mais coisas do que qualquer sommelier pode ler em uma
safra — e sabia que ela havia sido ferida, magoada. O que não
significa que estivesse feliz de estar em meus braços nas margens
encharcadas do Eger-Patak enquanto sua pulsação desacelerava
até parar. Mas ali havia, creio, certo grau de resignação. Como uma
estudante que não havia se preparado bem ouvindo que não teria
de fazer o teste que tanto temia. Não haveria mais testes, nunca
mais.”
Ele acariciou o rosto dela com a ponta dos dedos.
Fuja, fuja, fuja, dizia a voz interior de Lily. Você tem de fugir.
O olhar dele pode ser de tristeza, um arrependimento oculto vindo
à tona. Isso a deixa com a sensação de que ela pode encontrar uma
brecha para fugir se usar as palavras certas, o tom correto. Mas,
assim que fala, ela percebe seu engano.
“Tem consciência de que o que fez foi errado?”, ela pergunta.
Michael retira a mão do rosto dela e agarra um punhado de palha,
que esmaga lentamente com seus dedos.
“Tão errado quanto torcer o pescoço de uma galinha”, diz ele.
“Suas noções de certo e errado são o instrumento de juízes e
religiosos, ferramentas obtusas usadas para construir jaulas. Mas eu
e você — nós escolhemos a liberdade, certo?”
Ele se aproxima mais um pouco, e uma nova onda de pânico
toma conta dela. Lily abre a boca para tentar impedir o seu avanço.
“O que você fez?”, pergunta ela. “Quero dizer, depois de terminar.”
“Quando cheguei à casa do doutor, o dia estava quase
amanhecendo, e minha fome já estava voltando”, conta ele,
sentando-se de novo, perto o bastante para que ela sinta seu hálito
morno. “A camareira havia me mostrado não apenas a vida a minha
frente, mas como me alimentar de sangue humano me tornava
ainda mais forte do que eu já era. Estava embriagado com a ideia
da minha própria grandeza. E, como acontece com os bêbados, eu
só queria beber mais.”
“Então ela não foi a única aquela noite?”
“Não. Mas não tenho qualquer remorso em relação ao segundo.
Quando coloquei o garanhão de volta em seu cercado e tomei a
direção do meu quarto, o cavalariço me barrou. Ele começou a me
açoitar por ter pego um cavalo sem sua autorização. Então, creio
eu, ele viu o sangue em meu rosto. Tentou fechar a porta, mas eu
também havia ganhado velocidade. Era como se tivesse todo o
tempo do mundo para levantar minha mão, segurar a porta. Tempo
para resolver como iria matá-lo. Teria sido com meus dentes, se não
soubesse que ele era um imundo ignorante. Então segurei a cabeça
dele em minhas mãos, como se fosse beijá-lo. Em vez disso, parti
sua coluna vertebral. Ele estava morto, mas não parei. Torci sua
cabeça até arrancá-la. Depois atirei longe seu crânio, que ouvi bater
em um tronco de carvalho na escuridão.”
Fuja, fuja, fuja. Saia daqui!
A voz dentro de Lily não passa de um murmúrio abafado neste
momento.
“Não foi como eu havia planejado. Mas estava acontecendo”, diz
ele. “O fim de minha breve atuação como homem. Eu sabia que o
que acontecesse dali em diante seria minha verdadeira vida.
Caminhei na direção da casa do doutor com uma única palavra se
repetindo em minha mente. Gyilkosság, gyilkosság, gyilkosság.
Assassinato, assassinato, assassinato. Para mim, soava como uma
pergunta, uma resposta e um motivo. A única palavra da qual eu
precisava. Eszes havia fechado as venezianas das janelas do
térreo, mas foi muito fácil quebrar uma delas com meu punho. O
vidro me cortou. Um talho que ia do pulso ao cotovelo. Mas não
havia dor. A sensação era a de uma pluma roçando ao longo do
meu braço. No mesmo momento em que eu subia no parapeito da
janela, podia sentir o formigamento da cicatrização, os dois lados do
corte se reunindo. Quando cheguei ao pé da escada e ouvi o
médico gritar para sua esposa e seu filho que permanecessem em
seus quartos, o sangue no meu braço já havia secado.”
“Ele sabia que era você.”
“Não me surpreenderia se ele houvesse passado a noite em claro
esperando que eu aparecesse. O que significa que eu já devia
contar com o rifle. O doutor estava no alto da escada, a arma
apontada para mim. Usava um camisolão, lembro bem. Que deixava
ver suas canelas cheias de veias azuis, as patelas macias como
ovos cozidos. Disse-lhe para largar o rifle, mas ele respondeu ‘Não’
ao mesmo tempo em que abaixava o cano, até a arma pender
frouxamente em seus braços. ‘No chão’, ordenei, e ele novamente
disse não, mas se dobrou para colocar o rifle no alto da escada.
Parte de mim queria perguntar, pela última vez, qual era o elixir que
ele havia descoberto para vencer a morte. Mas, ao chegar no topo
da escada e olhar nos olhos do doutor, vi, pela primeira vez, que ele
mesmo não sabia qual era o segredo. Por isso não me havia
contado. Utilizara uma combinação de ingredientes e agora não se
lembrava exatamente de como era a receita. Eu não apenas estava
sozinho. Eu era um acidente. ‘Minha esposa. Filho’, sussurrou ele.
Segurei-o com firmeza e cravei os dentes em sua garganta. O
sangue dele, em comparação ao da camareira, tinha gosto de coisa
velha. O azedume do vinho avinagrado.”
Lily sente o sangue sumir de suas faces e vê que Michael apruma
a cabeça, mostrando ter percebido.
“Sem dúvida, a questão da piedade está agora emergindo em sua
avaliação”, diz ele. “Não teria eu já tirado muitas vidas por uma
noite? Olhando para trás, posso concordar com você. Mas é preciso
entender que nem sempre sou o que pareço ser. Há pelo menos
duas versões de mim mesmo: aquela que conta esses
acontecimentos para você agora, e a outra, uma cacofonia
irrefreável de desejos. O Id, o subconsciente, o demoníaco. O nome
não faz diferença. Ele canta sua própria canção e segue em frente
até terminar.”
“Foi essa sua persona que matou a família daquele homem.”
“Muito bem, doutora! Devo contar como foi? A esposa de Eszes
estava na cama. Quando me viu entrar, pingando o sangue de seu
marido, ela suspirou. Era o som do horror que sentia, claro, mas
tinha a mesma carga ofegante da antecipação erótica. Isso fez com
que eu me decidisse. O cavalariço e o médico eu havia apenas
provado, mas eu consumiria a sra. Eszes até ficar saciado. Depois
disso, quase me esqueci do garoto. Encontrei-o escondido atrás do
guarda-roupa, em seu quarto. Uma cópia cômica de seu pai, os
traços finos e a boca arrogante. Mas suas lágrimas me atingiram
com o peso da inocência. Era minha primeira noite de assassinatos.
Achei que deveria estabelecer exceções a respeito de quem eu me
alimentaria. Crianças, por exemplo. Agachei-me junto ao menino.
‘Sou seu irmão’, disse, saindo do quarto, empurrando o corpo do pai
dele para o lado a fim de abrir caminho para descer as escadas e
chegar até a porta da frente, à luz do amanhecer. Tudo isso antes
de mudar de ideia e voltar. Se serve para melhorar seu juízo, saiba
que agi com rapidez.”
Ele faz uma pausa, e Lily percebe que os cavalos estavam tão
hipnotizados pela voz dele quanto ela. Os animais aguardam que
ele prossiga, e, ainda que a história a tenha assustado — ainda
mais que muitos dos acontecimentos narrados tenham se passado
aqui —, ela aguarda também.
Michael não se move. Ela abre os lábios para falar, mas ele ergue
a mão. Um olhar estranhamente alerta modifica seus traços de tal
forma que ele parece uma pessoa totalmente diferente. Ou algo que
não uma pessoa.
Ele se aproxima dela engatinhando e para quando seus lábios
estão a poucos centímetros da orelha dela.
“Há alguma coisa lá fora”, sussurra ele.
Ela presta atenção, mas somente a expectativa do que ele dirá ou
fará a seguir soa em sua cabeça.
“Não se mova”, exige ele.
Ele não a toca, mas ela sabe que ele o fará, e esse pensamento,
em vez de assustá-la, faz com que seja levada por pesadas
camadas de sono. No início, há resistência — ninguém sabe que ela
está aqui, ela nunca mais vai abrir os olhos se os fechar agora —,
mas a sensação é mais forte. A escuridão cai sobre ela como
paredes de um túnel que desabam.
“Boa noite, Lily”, diz, beijando seu rosto.
Há apenas o relinchar solitário do cavalo no estábulo ao lado
daquele onde eles estão, um som que ela percebe como um alerta,
depois mais nada.
—A—
CRIATURA
ANDREW PYPER
CAPÍTULO 15
Ela está na cama de seu quarto de hotel, deitada por cima dos
lençóis, sentindo um frio que a cobre como uma lápide de pedra.
Amanheceu: há uma fresta cinzenta por entre as cortinas fechadas.
Suas pernas não respondem de imediato a seu desejo de rolar o
corpo e se levantar; então, em vez disso, ela ergue a cabeça.
A faca, observa sua voz interior. Onde está a faca?
Ela procura com o olhar e a encontra, ainda no saco plástico
manchado de sangue, parcialmente enfiado sob o travesseiro a seu
lado. Ele deve tê-la carregado do estábulo até o quarto, colocando-a
na cama e deixando-a ali enquanto sonhava.
Lily lava a faca na pia do banheiro, embrulha-a em uma toalha de
rosto e a guarda em sua mochila. Depois, abre as cortinas para
olhar o jardim, a campina e o bosque por onde andou na noite
passada. É muito cedo, de modo que o sol ainda não dispersou a
névoa junto ao chão. Ela está prestes a se afastar da janela quando
percebe que a névoa não é a única coisa que se move pela
campina.
Um dos garanhões para e olha para ela da borda da floresta, seu
corpo mais branco que a neblina, fazendo com que ele pareça feito
de nuvens. É o Lipizzan que estava na cocheira perto dela e de
Michael, aquele que havia prestado atenção na história e relinchado
ao ouvir o som de passos se aproximando.
Outro cavalo aparece, depois outros. Logo há seis parados ali.
Havia sete no estábulo, diz sua voz interior. Onde está o outro?
Aquele que você acariciou?
Algo próximo ao pânico toma conta de Lily.
Foi ele, pensa ela, e logo tem certeza sobre isso. Foi assim que
ele escapou. Ele pegou o sétimo cavalo.
Na recepção do hotel há dois policiais. Um se comunica pelo rádio
e o outro olha pela porta, como se mal pudesse esperar para
retomar uma atividade externa da qual sente muita falta ficando aqui
dentro. Ao se aproximar do funcionário na recepção, Lily ordena a si
própria que fique calma. Ao mesmo tempo, é óbvio que aconteceu
algo sério, e fingir que não havia notado nada só vai chamar
atenção para si.
“Está tudo bem?”, pergunta ela, enquanto assina o recibo do
cartão de crédito.
“Temo dizer que houve um assassinato”, responde ele em
linguagem formal, o ‘temo que’, um maneirismo que acaba
carregando seu sentido literal, pois o homem parece
verdadeiramente perturbado. E, ao ver isso nele, Lily também sente
medo.
“Meu Deus. Sabe quem morreu?”
“Um homem que trabalhava nos estábulos”, responde o
funcionário. Imediatamente, Lily pensa no homem que falou com ela
ontem, aquele com o rosto cheio de capilares estourados.
“Soltaram os cavalos”, diz Lily, sentindo que precisa falar algo,
mas pensando em Michael, se ele ainda estaria próximo.
O recepcionista a olha de maneira estranha e está prestes a
perguntar algo, quando um dos policiais o chama.
Lily sabe que, se não sair agora, não sairá mais. Ela escapole de
fininho pela porta da frente e caminha na direção dos estábulos. Ali
há mais policiais. Um camburão, três carros, uma ambulância, todos
com as luzes de sinalização piscando sem parar. Ao passar, ela vê
um grupo de policiais no bosque, a seus pés um corpo coberto por
um lençol.
Quando um deles olha na direção de Lily, ela desvia o olhar para a
estrada. Imagina que vão chamá-la de volta, mas consegue
alcançar a estrada sem qualquer interrupção e encontra o ponto de
ônibus onde havia sido deixada na véspera. Ela ouve o veículo se
aproximar da curva antes de vê-lo e, um segundo antes que ele
apareça, pega a faca embrulhada na toalha e a enterra bem no
fundo de uma lata de lixo repleta de bitucas de cigarro.
—A—
CRIATURA
ANDREW PYPER
CAPÍTULO 16
Ela veio até aqui para recuperar algo de sua mãe. É tão valioso para
ela que nem a ameaça de morte a fez desistir, nem os encontros
com um assassino, nem a voz interior constantemente lembrando-a
do quão idiota ela está sendo. Mas só a compulsão basta para
explicar o fato de ela ter tomado essas decisões?
O que “mãe” significa para Lily?
É uma pergunta típica da dra. Lily. Uma que ela faz a si própria.
Ela se lembra do cabelo de sua mãe. Mais exatamente, Lily se
lembra de sua mãe escovando os cabelos, os longos movimentos
que costumava fazer à noite, sem se importar com a moradia
miserável onde se encontravam, nem com o fato de não haver
ninguém para vê-las despenteadas.
Ela se lembra da cantoria. As canções deviam ser inventadas,
porque Lily nunca ouviu nada no rádio que pudesse conectar às
melodias que sua mãe cantarolava. Baladas, cantigas de roda e de
ninar. Músicas nas quais Lily encontrava conforto, mas também algo
inquietante, como se a voz de sua mãe fornecesse a trilha sonora
de seus sonhos, que invariavelmente tomavam rumos
inesperadamente assustadores.
Ela se lembra de que a mãe era péssima na cozinha.
Podem ter pesado as limitações de viver sempre em movimento,
arrumando o que fosse possível em lojas de conveniência e paradas
de caminhoneiros, depois os enlatados e a carne de alce
malpassada que as sustentavam no chalé. O corpo de Lily se
arrepia só de pensar nas coisas que sua mãe a fazia comer. As
sopas fumegantes, sempre temperadas demais, com óleo demais e
sabores que a faziam pensar em cogumelos esquisitos e pinhas. E
os chás. Infusões caseiras às quais se adicionavam sementes de
anis e cânfora, além de outros pós e plantas que faziam o nariz de
Lily arder.
“Beba”, dizia sua mãe, sem obrigá-la, mas sem deixar que ela
largasse a xícara cheia. “É bom para você, doçura.”
“Isso arde.”
“Significa que está fazendo o que deveria fazer.”
“E o que isso deveria fazer?”
Lily se lembra dos braços de sua mãe puxando-a para per-to, o
cheiro de fuligem do suéter dela, a pele morna de seu pescoço
sardento.
Diodati
—A—
CRIATURA
ANDREW PYPER
CAPÍTULO 18
É uma corrida curta. O que deveria levar uma hora, talvez mais, no
verão sombrio de 1816, quando os Shelley passaram uma
temporada ali, exige hoje apenas quinze minutos de carro. Lily pede
que o motorista espere por ela, e ele se acomoda no pequeno
estacionamento junto ao portão da villa.
Ela caminha pela estradinha ladeada por arbustos e árvores
cuidadosamente plantados de modo a ocultar as mansões e
consulados do outro lado. Lily reconhece o imóvel antes mesmo de
confirmar o endereço no pilar de pedra: Diodati, 9. Sua busca na
internet lhe informou que o local foi transformado em um condomínio
de apartamentos e que os visitantes não podiam passar do meio-fio,
mas, para Lily, basta estar aqui e ver por si mesma. Basta para quê?
Para entender como alguém como Michael se imaginou sendo.
Estar em um lugar onde outros estiveram antes de você, um lugar
onde a história foi feita, inserindo-se em uma conexão direta com
essa história. Mary, seu marido poeta Percy, a protocelebridade
lorde Byron estiveram aqui. Onde ela está agora.
Há um declive gramado junto ao imóvel, onde um solitário banco
de pedra encara o lago. Lily desce até lá por uma trilha gasta, que
pode ter sido a mesma que Mary usava para chegar até o lago,
exceto que hoje a trilha é cortada por cercas e sebes de outras
propriedades. Ela vislumbra as águas agitadas do lago Leman
através dos galhos nus, mas não consegue chegar até lá.
Quando ela se vira para voltar, ele está ali, sentado no banco de
pedra. Olhando não para a villa ou para o lago, mas para ela.
Lily anda o mais devagar que pode até ele, demorando-se na
esperança de que alguém — um turista, um jardineiro, o taxista —
se junte a eles, mas eles continuam sós.
“Sente-se comigo, Lily.”
“E se eu me recusar?”
“Por que você o faria?”
“Você é um fugitivo. Um criminoso violento. Psicótico. Eis três
motivos.”
“Agora pense nas razões de você estar aqui. Se você for honesta,
verá que elas não têm a ver com minhas ameaças — não mais. De
qualquer modo, uma rejeição provocaria minha ira, e você já viu o
resultado disso.”
Ele dá um tapinha no lugar a seu lado no banco. Lily se senta, a
pedra dura sob suas coxas.
“Green me mostrou as fotos”, diz ela. “Elas não provam nada.”
“Você está escutando o que diz?”
Sim, Lily escuta o que diz. E é o som dos últimos esforços de sua
mente na luta contra o que ela sente. Contra o que ela sabe.
Ele fecha sua mão sobre a dela. O toque dele é morno, transmite
o zumbido de sua energia, um tilintar de contrabaixo. Ela não
consegue retirar a mão. Não que ela tente.
“Como você conheceu minha mãe?”
“Estamos quase lá. Antes dela — minha única esposa — tenho de
falar do meu primeiro amor.”
Ele aperta a mão dela com mais força, o que a faz relaxar,
puxando-a para as palavras dele, como uma corrente marítima.
“No instante em que vi Mary Shelley, quis que ela me amasse”,
conta ele. “Ela me amou? Quem sabe? A autenticidade das
emoções não é minha especialidade. O que se sabe é que eu
poupei a sua vida, e em troca ela tomou a minha. Porque, apesar de
ter preferido seu marido anêmico e uma existência de luta
manchada de tinta, ela moldou algo a partir de sua traição. Um livro.
Um romance de horror gótico escrito em resposta a uma disputa
proposta por Byron, uma disputa que ela indiscutivelmente venceu.
A primeira obra-prima do gênero, que assumiu ser sobre os perigos
da ciência, mas que sempre será, para mim, uma espécie de carta
de amor não correspondido.”
Lily tenta imaginar como seria o lugar naquela época, mas, em
vez disso, ela claramente detecta qual era a sensação de estar ali.
De ser Mary Shelley, uma adolescente conhecendo o homem
sentado a seu lado agora. É ridículo. Mesmo assim, ela sente essa
possibilidade naquela mão que a segura.
“Mais tarde a descreveram como belíssima, mas isso não é
correto”, continua ele. “É melhor dizer que ela era inglesa. Uma
deselegância física contrabalançada pelo orgulho. E pela
inteligência. Uma mente que, de alguma forma, se anunciava
naqueles passos de pombinha, o nariz fino e empinado, farejando
novas metáforas. Para mim, Mary Shelley era um retrato irresistível
da própria Inglaterra.”
“Foi para isso que você veio até aqui? Para vê-la?”
“De maneira alguma. Eu vim para tentar ver o celebrado Byron,
cuja fama de monstro pervertido provocava em mim um interesse
pessoal. Não era difícil encontrá-lo. Todo mundo nos cafés de
Genebra comentava o fato de ele ter alugado a Villa Diodati. Peguei
um quarto em uma hospedaria do outro lado do lago, bem ali”, diz
Michael, apontando para além das árvores. “Os estalajadeiros
sabiam da vantagem de estar tão próximos do poeta, então
ofereciam telescópios que alugavam por meia hora. Por meio deles
era possível espiar a residência de Byron e aguardar para ver o
grande homem surgindo, com sorte com uma donzela nua ou uma
pena na mão. Vi Mary Shelley pela primeira vez por uma dessas
lentes.”
Ele suspira. Um confronto com emoções ocultas, que o
surpreende ainda mais que a Lily.
“E aí você acabou ficando por causa dela.”
“Fiquei para encontrar um objetivo”, diz ele, mudando de posição
a fim de olhar diretamente para ela. “Naquele verão, eu já havia
aperfeiçoado meus hábitos de assassinato. Também já havia notado
que eu não envelhecia da mesma maneira que os outros homens;
meu rosto, minha pele, tudo estava exatamente como no dia em que
fora criado. Que dom! Mas isso trouxe novas perguntas a minha
mente: se deveria viver para sempre, como ocuparia meu tempo?
Que tal arte, poesia, música? A resposta estava do outro lado do
lago. Considerando seus gênios, Percy Shelley e lorde Byron
poderiam ser meus irmãos. Talvez fossem cegos ao que havia de
horrível em mim, vendo apenas o sublime. Porém, para ser honesto,
era sempre na garota que eu pensava quando observava as
atividades dos moradores da villa. Era a imaginação dela que me
convocava. Veja bem, não sou o único a ler mentes. Mary Shelley
podia sentir que eu estava próximo, assim como você me sente por
perto agora.”
Lily olha para trás a fim de confirmar que eles continuam
sozinhos. Não apenas o gramado está vazio como nenhum som,
seja da estrada, seja das casas em volta, chega até eles. É como se
o mundo houvesse congelado pelo tempo em que os dois ficam ali
sentados no frio banco de pedra, de mãos dadas.
“Nos dias que se seguiram, comecei a caminhar nos limites da
propriedade Diodati, escondendo-me naquelas fileiras de vinhedos
que você vê ali”, prossegue ele. “Mary tinha uma criança com ela,
um filho, então eu tinha de esperar até que surgisse um momento
em que estivesse sozinha para me dirigir a ela. Comecei a ficar
impaciente, meu desejo de conversar crescendo para um desejo de
me alimentar. Certa noite, fui até a villa com o intuito de entrar na
casa e pegar Mary. Estava a caminho, atravessando o gramado
iluminado pela lua”, com o dedo no ar, ele mostra seu avanço de
algumas centenas de metros, “quando senti uma presença me
observando de uma das janelas do segundo andar.”
“Era ela”, diz Lily.
“Ela não levava qualquer vela, mas a lua brilhava o suficiente para
pintar sua silhueta, seus cabelos soltos, os longos dedos ingleses
agarrados à janela, como se para manter-se de pé. Eu estava com
meus dentes e mãos de metal, e fiquei pensando se ela conseguiria
vê-los na luz fraca. Ela cedeu à curiosidade e ficou me olhando. E
eu devolvi seu olhar. Era a primeira vez que eu permitia que alguém
me observasse claramente daquela forma, no meio de uma caçada.
Essa exposição me deixou excitado. Você pode me considerar tolo,
mas eu considerei romântico.”
Ele pesquisou tudo isso, tenta dizer uma parte de seu antigo eu.
Biografias, estudos críticos. Ele está inventando.
Lily sabe que essa é a conclusão a que ela deve se ater, porém
não pode evitar a sensação de perceber algo familiar na história que
ele conta, algo que não tem qualquer ligação com um livro famoso.
É como se ela possuísse um conhecimento nebuloso, fragmentado,
disso, desde seu nascimento, como se conta das almas
reencarnadas que se recordam de vidas passadas.
“O que você fez?”, pergunta ela.
“Houve uma interrupção — um cachorro latindo, pelo que me
lembro — e eu me afastei, voltando para a escuridão, sentindo os
olhos dela nas minhas costas com uma tal intensidade que era
como se eu fosse um poema e ela estivesse me memorizando. Mais
tarde, ela escreveu sobre aquele momento, de maneira disfarçada.”
Michael inclina a cabeça e recita o texto de memória.
“‘... o artista... ele dorme, mas está desperto; ele abre seus olhos;
veja, a coisa horrível está a sua cabeceira, abrindo suas cortinas
sobre ele com olhos amarelos, límpidos, mas reflexivos.’”
“Mary escreveu isso?”
“Sim.”
“Não me lembro disso no livro.”
“É dos diários dela. A narrativa de um sonho no qual ela é o
artista. E eu sou a ‘coisa horrível’. É claro que eu não sabia sobre
isso quando escapuli e voltei para minha hospedaria. Tudo o que eu
sabia era que nunca mais me permitiria desejar me alimentar
daquela mulher na janela. Tudo o que eu queria era cortejá-la.”
Michael fixa os olhos nas árvores no declive a sua frente, em
busca de um ponto específico à margem do lago.
“Costumava haver uma trilha que margeava o lago, e, duas
manhãs depois, eu estava lá, colocando minhas roupas após um
mergulho, quando ela veio até mim”, conta ele. “Ela se apresentou
apenas como Mary. Falamos sobre o que nos havia trazido ao lago
Leman. Eu disse que era um especialista em folclore húngaro em
uma licença sabática da universidade. Quando perguntei por que
estava andando sozinha, ela disse que gostava de caminhadas
desde que seus pais a enviaram a um canto remoto da Escócia
quando ela era pequena. A solidão e o contato com a natureza a
ajudavam no que ela chamava de ‘sonhar acordada’.
“‘Posso assegurar a você que não sou um sonho’, falei, na mesma
hora lamentando o flerte tão óbvio. Mas ou ela não percebeu, ou
então gostou, porque aquilo pareceu apenas atrair mais sua
atenção. ‘Fale-me sobre você. Não há nada de que eu goste mais
do que ouvir histórias’, disse ela, sentando-se na grama, a pouco
mais de um metro da trilha. Pode não parecer nada de mais para
você, Lily, mas a atitude dela foi muito audaciosa — sentar-se perto
de um desconhecido e pedir que ele lhe conte uma história.”
“Você voluntariamente lhe contou tudo?”, pergunta Lily, surpresa
com a ponta de ciúmes em sua voz.
“Não de imediato. Eu lhe disse que meu nome era Michael. Ela
contou dos ‘homens da casa’, que ficavam acordados até tarde,
bebendo e criticando os mais recentes lançamentos literários de
Londres, um assunto sobre o qual ela sabia discorrer, mas não
conseguia, porque eles a mandariam cuidar da criança. Não me
lembro de muito do que ela falou naquele primeiro encontro. Minha
lembrança está mais ligada à maneira como me olhava. Era
impossível saber se suspeitava que fosse eu a criatura que avistara
da sua janela havia duas noites, ainda que o modo como ela
analisava meu rosto fizesse crer que sim. Talvez fosse apenas seu
olhar de escritora, captando detalhes que, mais tarde, seriam
relembrados nas páginas. Sendo totalmente ignorante nesses
assuntos, eu queria acreditar que ela me olhava daquele jeito
porque estava se apaixonando.”
Lily se torna subitamente consciente da maneira como olha para
ele. Seria amor o que Michael veria? E se ele visse amor, estaria
inteiramente errado?
“O que ela fez?”, pergunta Lily, dando-se conta de que está
curiosa para saber se fará a mesma coisa, seja lá o que for.
“Nada. O que importa é o que eu fiz. Porque, antes que ela se
pusesse de pé, eu me inclinei para beijá-la. Ela nem retribuiu nem
se afastou. Diria que pareceu provar o sabor dos meus lábios.
Perguntei se poderia vê-la no dia seguinte. ‘Bem, você pode, se
estiver por aqui e eu estiver caminhando de novo’, respondeu ela,
as faces coloridas por dois perfeitos círculos carmim. ‘Tenho uma
história absolutamente extraordinária para lhe contar’, disse. ‘Algo
que nunca contei a ninguém. Acontecimentos que normalmente são
considerados assombrosos.’ Ela fez que sim com a cabeça ao ouvir
isso. E então, sem dizer uma palavra sequer, ela levantou e
prosseguiu seu caminho pela trilha, pegou uma curva e
desapareceu.”
“Você me contou o motivo de compartilhar sua história comigo”,
diz Lily, afastando-se dele para resistir à vontade de se aproximar
mais. “Mas por que compartilhar com ela?”
“Porque eu queria que minha amante — minha amante imaginária
— fosse aquela a traçar meu retrato com palavras”, responde ele
depois de alguns instantes de reflexão. “Veria ela um homem ou um
monstro? Dos três escritores aos quais eu me desnudei, nenhum
mostrou o que eu gostaria de ver. Foi por isso que parei de ir atrás
deles. E por isso encontrei você.”
Lily sente um calor em sua garganta, em suas faces, e se dá
conta de que está corando. Ela viraria o rosto, mas isso apenas
destacaria mais seu rubor, então fica imóvel e espera que ele
prossiga.
“Havia outro motivo para compartilhar minha história com Mary
Shelley”, diz ele. “Uma disputa que eu queria que ela vencesse.
‘Byron nos apresentou um desafio’, contou Mary na manhã seguinte,
quando nos encontramos junto ao lago. Eu já havia confessado que
sabia quem ela era e quem estava na villa. ‘Cada um de nós vai
escrever uma história sobrenatural. Mas as ideias me
abandonaram’, disse Mary, sorrindo para mim. ‘Ah, Michael. Sobre o
que devo escrever?’ Falei que ela devia escrever sobre mim. Saiu
antes que pudesse evitar, ainda que eu tivesse quase certeza de
que ela teria usado os pormenores que eu já havia relatado. Eu já
me sentia ligado a ela. Ela era culta, talentosa e possuidora de uma
imaginação excepcional. Mais que isso, porém, Mary era ambiciosa.
“Nós nos beijamos novamente ali na grama. Seria nosso segundo
e último beijo, e acho que parte de mim sabia disso. ‘Você me
prometeu uma história’, falou Mary assim que nosso abraço se
desfez. Eu lhe contei que não era o que parecia ser. Eu lhe contei
que não era um homem. Não um ser humano, sob qualquer ponto
de vista. Ela se afastou um pouco de mim, mas não por medo. Mary
Shelley viera até aqui em nome da descoberta de algo estranho e
notável, o tipo de coisa que eu havia chamado de ‘acontecimentos
normalmente considerados assombrosos’, e mais precisamente em
como ela transformaria tudo isso nas palavras de um romance,
aquilo que eu estava prestes a dar vida, ao entregar a ela. ‘Se não é
um homem, o que é você?’, perguntou ela.”
Michael se move no banco, como se estivesse prestes a levantar,
e Lily sente um princípio de tristeza com a perspectiva de que ele
solte sua mão. Ele, no entanto, segura a mão dela com ainda mais
força.
“Não é engraçado, Lily, como essas palavras ecoam as que você
pronunciou em nosso primeiro encontro? E, assim como a você, eu
disse a verdade a Mary. Quando acabei, esperava que ela me
fizesse inúmeras perguntas. Achei que ela me tomaria por um louco.
Mas, ainda que possa ser apenas arrogância de um apaixonado,
prefiro acreditar que ela aceitou tudo como verdade. É por isso que
o livro de Mary tem tanto impacto. Eu disse esperar que, agora, ela
vencesse a disputa de histórias sobrenaturais. ‘Bem, penso que nós
podemos dar a tudo isso um propósito melhor’, disse ela. Eu me
recordo bem desse ‘nós’. Significaria isso ela e seu marido, que
muitos críticos, mais tarde, afirmariam ter escrito o livro? Ou ela se
referia a mim?”
A força que ele exerce sobre a mão de Lily está a um passo de
provocar dor — e logo começa a doer —, mas ela olha para o rosto
dele e vê uma nova raiva, que o deixa desfigurado.
“Sem mim não haveria Frankenstein”, ele diz. “Em vez de me
alimentar com seu sangue, foi ela que se alimentou de mim. Aquela
garota devorou minha vida e criou outro monstro, parte feito de mim,
parte de seu próprio sonho gótico. Até seu marido ficou surpreso
com a história e com sua origem, ‘como todo corno se surpreende’.”
Ele solta a mão dela. O ar está mais frio que há alguns instantes,
jatos deixam rastros que se cruzam nos céus, um caminhão de
entregas se esforça ruidosamente para subir a estrada atrás deles.
“Você sobe a colina, e eu desço”, diz ele, já se levantando.
“Espere. Eu preciso...”
“Não olhe para trás. Vá andando. E isto”, ele diz, colocando um
DVD em um envelope plástico junto dela. “É para você.”
Ele parte. Caminha sem pressa, mas, ainda assim, cobre a
distância entre o banco de pedra e a borda das árvores em um
quarto do tempo que Lily havia levado para chegar. De alguma
forma, ele encontra um vão entre as sebes, ou um buraco na cerca,
porque em um instante está ali, e no outro já foi engolido pelas
sombras.
Ela volta para o estacionamento pelo mesmo caminho que fez
antes. O táxi está onde ela o deixou, e o motorista liga o carro assim
que a vê.
“Você o viu?”, pergunta o motorista quando ela se acomoda no
banco de trás.
“Quem?”
“Frankenstein”, diz ele com um riso gutural antes de deixar o
estacionamento.
—A—
CRIATURA
ANDREW PYPER
CAPÍTULO 19
O táxi a deixa na porta do hotel, mas ela não entra. Em vez disso,
caminha mais uma quadra, até o prédio de Eric Green. Lily sabe
que, se for necessário convencer qualquer outra pessoa da história
incrível que tem de encarar sobre Michael — convencer os outros
de que não está louca por acreditar que há algum grão de verdade
nas invenções dele —, ela precisará do máximo de provas possível,
e as fotos de guerra de Green são tudo o que existe.
Dessa vez, as duas portas do prédio estão destrancadas. Assim
como a porta do apartamento de Green. Lily a empurra com o
cotovelo, com o cuidado de não tocar em nada com as mãos, e
entra no labirinto de pilhas de livros e documentos.
Ela o encontra no chão. De barriga para cima, os olhos fechados
por trás das lentes embaçadas, braços esticados, como se alguém o
tivesse carregado e colocado ali enquanto dormia. As duas marcas
de picada no pescoço e o sangue que forma um halo em torno da
cabeça são os únicos sinais de que ele nunca mais vai acordar.
Ele está diante do arquivo do qual havia tirado as fotos de
Bachmeier.
É tolice ficar ali por mais tempo. Mas ela precisa ter certeza.
Lily contorna o cadáver de Green com cuidado, para não deixar
qualquer parte do seu pé tocar o sangue, que continua a se
espalhar. A gaveta de cima está aberta. Ela dá uma olhada. O
álbum de fotos e tudo o que havia sobre Bachmeier desapareceram.
Edimburgo
10 de dezembro de 1878
Outro escritor.
Dadas as décadas que se passaram desde meu encontro com Mary Shelley,
pode-se ver meu grau de contenção. Por mais que eu tenha admirado
Frankenstein, Mary adornou sua ficção de tal forma que, ainda que eu soubesse
ser a criatura por trás da Criatura, nunca poderia ver o livro como um relato
verdadeiro. O que eu busco agora é algo totalmente diferente. Um jornalista que
possa traduzir minha vida em palavras — fatos em vez de metáforas,
reportagem em vez de poesia.
Nos últimos meses em Londres, passei os dias lendo todas as revistas onde
tal talento pudesse ser encontrado. Macmillian’s, Pall Mall, Illustrated London
News. Foi em uma delas que vi pela primeira vez o nome Robert Louis
Stevenson.
Viajei para Edimburgo, onde Stevenson vive na casa dos pais, em uma rua
elegante na área central da cidade. Ontem à noite, dei uma caminhada por ali,
e, ao bater na casa, a porta foi aberta por um homem de aparência cômica. Alto,
magro como um graveto, o cabelo ensebado e comprido, a postura de um grilo.
Até suas roupas eram excêntricas: pijama, com uma casaca de veludo por cima.
O mais engraçado era seu rosto. Oval, uma nova expressão a cada instante, os
olhos arregalados em um alerta zombeteiro.
“Robert Stevenson?”, perguntei.
“Se você é um cobrador, por favor, volte quando meu pai estiver em casa.”
“Não estou aqui para tratar de dívidas. Acredito que você tem algo do qual
preciso.”
“E isso seria...?”
“Talento.”
Ele deu um risinho. Uma risada de menino, que provocou um acesso de tosse
tão violento que eu pensei que morreria bem ali na porta.
Perguntei se poderia levá-lo para tomar um drinque e conversar sobre a
missão que eu tinha em mente.
Ele deu um passo à frente e fechou a porta atrás de si. “Você pode me levar a
qualquer lugar para um drinque, meu bom homem”, ele disse. “Mas, enquanto
você sabe meu nome, eu ainda preciso aprender o seu.”
“Michael Eszes.”
“Bem, Michael”, disse o grilo, jogando um braço sobre meus ombros. “Sei de
um excelente lugar para discutir missões.”
Ele me conduziu até um clube, onde seus trajes chamaram atenção, mas,
depois de pedirmos ostras e duas garrafas de um bom champanhe, as
vestimentas dele não foram motivo suficiente para nos expulsarem. Enquanto
comíamos (ou ele comia, e eu bebia), eu ficava cada vez mais impressionado
com a quantidade de vinho, depois gim, que ele jogava goela abaixo, seu pomo
de adão pulando para cima e para baixo, assim como o resto de seu corpo. Ele
me corrigiu quando o chamei por seu nome de batismo.
“Chame-me de Skivvy. É como meus amigos me chamam.”
“É o que somos agora? Amigos?”
“Se você está pagando por isso, sim, somos melhores amigos.” Ele se
recostou na cadeira, ajeitou seus longos cabelos para trás das orelhas com os
dedos e disse estar pronto para ouvir a proposta.
“Pertenço a este mundo e a outro”, disse eu ao escocês magrelo. “Sou um
intelectual e um monstro, em um único homem.”
Skivvy olhou para mim com o que assumi ser uma seriedade zombeteira.
“Cuidado, meu amigo. Há um livro aí.”
“É como se eu fosse duas pessoas, possuído por duas faces, duas
personalidades. Em resumo, praticamente não sou humano.”
“Você fala em duas faces. Mas só vejo uma.”
“Venha comigo”, disse. “Deixe-me mostrar-lhe a outra.”
Saímos do clube com Stevenson imaginando que iríamos para alguma outra
diversão, mais obscena. Em vez disso, fomos cambaleando até a George
Street, até que vi um homem a nossa frente. Propus que o seguíssemos. Não
tenho dúvidas de que Skivvy pensou tratar-se de um jogo. Graças a isso, ele
conseguiu abafar outro acesso de riso e caminhou pé ante pé ao meu lado.
Quando estávamos a meros três passos do estranho, em uma rua lateral perto
da Charlotte Square, nossa presa desacelerou o passo. Ele se virou para nós.
Sorriu para Stevenson. Mas, ao me ver, ele se retraiu.
“Jesus”, disse o homem.
“Não precisa ter medo, meu bom...”, começou Stevenson, mas ele se calou
quando eu dei um pontapé no joelho do homem, com tanta força que o osso
atravessou a parte de trás de sua perna. Assim que ele caiu, eu o chutei de
novo — dessa vez, na cabeça. Seu crânio virou para trás, e ele ficou olhando
para o céu, como se contasse as estrelas.
Voltei-me para Stevenson e vi em seu rosto. Alongado em repouso, e agora
ainda mais esticado, com a boca escancarada. Não apenas pelo choque de
testemunhar algo inominável, mas pela oportunidade que ali havia.
Ele viu uma história.
Edimburgo
12 de dezembro de 1878
Edimburgo
11 de maio de 1887
Edimburgo
12 de maio de 1887
Vim para matar Stevenson; ainda assim, esta noite ele continua vivo.
Por quê? Não sei se tenho a resposta. Talvez seja simpatia. O que aconteceu
foi que cheguei dois dias antes de o pobre homem enterrar seu próprio pai. E
então o vi, caminhando sozinho em sua roupa de luto, e, à medida que me
aproximava, tive de admitir que era impossível não sentir pena daquele espectro
que fumava sem parar.
Ao me ver, ele parou, sabendo que era inútil gritar, correr. Falei com ele nos
termos mais claros: sua vida poderia ser poupada, mas apenas se ele partisse
da Europa em exílio em algum lugar distante, onde seu palavrório não pudesse
ser ouvido. Ele teria de levar junto sua mãe, sua esposa, sua enteada e seu
filho. Ele teria de deixar a Escócia e Londres, bem como o mundo literário, para
trás, ou eu faria com todos eles coisas muito além dos sonhos mais sombrios do
sr. Hyde.
Acredito que, desta vez, ele não vai me ignorar.
—A—
CRIATURA
ANDREW PYPER
CAPÍTULO 21
Talvez possa correr até a rua, chamar um táxi e fugir de tudo isso,
deixar que Michael e Will joguem sem ela. Não é problema dela. O
que está acontecendo agora, o bater assustado de seu coração, a
cumplicidade em uma operação da qual nenhuma polícia ou
governo está oficialmente ciente — não há a menor necessidade de
que Lily participe disso. Ela é uma mulher capaz de manter um
segredo. Ela e Mary Shelley têm isso em comum.
Lily está prestes a escapulir quando as luzes se apagam.
Seus companheiros de viagem já viram isso antes, a julgar pelos
suspiros e os murmúrios de Que merda! Mesmo quando o trem
estremece e para em pleno túnel, entre as estações Tottenham
Court Road e Goodge Street, os sinais de alarme à sua volta são
mínimos. Um arquejo claustrofóbico a meio metro de Lily, de uma
mulher que agora estica a cabeça para cima, como se lutasse para
respirar na superfície da água. O solitário grito assustado de Não!,
vindo de uma voz masculina, na outra ponta do vagão.
Eu disse que havia algo errado, fala a voz de Lily.
Um minuto se passa.
A mulher claustrofóbica abaixa a cabeça e olha diretamente para
Lily. Através da semiobscuridade, seu pânico faz o rosto dela se
retorcer, mantendo-o dessa forma, como se vestisse uma máscara
de horror personalizada.
Mais um minuto.
Sob os pés deles, chegou a se ouvir um ronco do motor do trem,
numa promessa de que começaria a se movimentar a qualquer
momento, mas agora só há o silêncio. As luzes, a ventilação, toda a
operação mecânica morre.
É isso que concede aos demais a permissão para entrar em
pânico.
A mulher claustrofóbica ergue seus braços e irrompe em soluços.
Passageiros sentados se levantam, pressionando aqueles que já
estavam de pé, de modo que seus corpos fundidos se deslocam
para a frente e para trás. O homem que berrou o solitário Não!
retoma seus gritos, mais altos a cada vez.
Lily se sente puxada para longe da porta. Cotovelos e ombros
investem contra ela, empurrando-a para o chão sem ar. Ela está a
meio caminho quando os gritos e berros se juntam para emitir a
mesma frase.
Calem-se!
Quase todos o fazem, de modo que o anúncio que vem sendo
repetido pelo sistema de som pode ser ouvido.
“Não deixe nada em sua mente, exceto uma coisa”, diz a voz de
sua mãe, a centímetros de sua orelha.
“Que coisa?”
“Aquilo que você precisa fazer. Porque você tem de ter certeza. E,
assim que você tiver certeza, não hesite.”
Lily segura o rifle o mais firme que pode, mas o cano traça
círculos hesitantes, por mais que ela tente acertar a posição. O foco
dela se alterna entre isso, a voz de sua mãe e a escultura feita de
varetas amarradas, de pé a quarenta metros, por trás das árvores.
Mais que qualquer coisa, é a sensação de sua mãe junto dela que
transpassa o momento. Seu corpo fundido com o dela, sua
constituição forte mantendo Lily firme, como uma espécie de
exoesqueleto. Lily fora instruída a se sentir uma só coisa com a
arma, mas ela foi além disso. Ela é uma com sua mãe, com o rifle, a
floresta, a terra sob seus pés.
Mas não com o homem de varetas.
É o que ele é; não uma escultura, e sim uma forma humana que
sua mãe havia fabricado a partir de galhos que serviam de braços e
pernas, um quadrado de casca de árvore como tronco e um
cogumelo grande como rosto. Um alvo.
“Estou pronta”, diz Lily.
“Tem certeza?”
“Sim.”
“Então vá.”
Ela imediatamente se arrepende, odeia a si mesma por isso, mas
faz o que sua mãe lhe disse para não fazer. Ela hesita.
“Vá! Agora, Lily. Agora!”
—A—
CRIATURA
ANDREW PYPER
CAPÍTULO 28
Will e Lily voltam para o quarto dela, retomam suas posições — ela
reclinada, ele sentado ao pé da cama — e passam algum tempo
olhando um para o outro, como se quisessem confirmar que estão
ambos ali, que ambos testemunharam o que acabaram de vivenciar,
a confissão que ela fez.
“Há outros como você?”, pergunta Will por fim, rompendo o
silêncio. “Quero dizer, ele tem outros filhos?”
“Ele me disse que eu sou a única, e eu acredito.”
“O que ele quer de você?”
“Companhia.”
Will está prestes a fazer outra pergunta quando o rádio preso a
seu cinto desperta, com uma explosão de estática. Soterrada pelo
ruído branco está uma voz que ambos reconhecem ser a do homem
do lado de fora do pub em Londres. Suas frases cortadas pela
recepção ruim.
... problema... rumpel... perigo...
“Estas paredes aqui — são à prova de bombas à moda antiga”,
diz Will, levando o rádio até sua orelha. “São uma merda para a
recepção.”
“O que significa ‘rumpel’?”
“O código que usamos para o alvo. Abreviação de
Rumpelstiltskin.” Will aperta um botão no aparelho. “Aqui é Líder
Um. Fale de novo. Câmbio.”
Outra série de estalos, apenas uma palavra atravessa o ruído.
“Merda.”
“Eu ouvi ‘abertura’”, diz Lily.
“Eu também.”
Will está na porta do quarto de Lily quando para e olha para ela.
“Você vem?”
Lily se levanta da cama rapidamente, e sua cabeça parece sair
flutuando, solta do pescoço. Ela luta contra a tontura, esticando as
mãos para os lados, como um equilibrista na corda bamba.
Will sai às pressas pelo corredor, tirando a arma do coldre. Ao
fazer a curva, ele se vira para ter certeza de que ela vem logo atrás.
“Você tem de correr!”
Will dá tantas voltas e é tão mais rápido que Lily imagina uma linha
os unindo, uma corda de pular, como aquelas que ela e seus
colegas usavam nas viagens da escola. Desde que sinta essa linha
entre eles, ela não precisa ter medo de se perder — basta continuar
movendo as pernas.
Ele para e abre uma porta ao lado da sala-observatório onde
estiveram há alguns minutos. Ela fica no corredor enquanto Will
entra na antecâmara do lado de fora da cela. De sua posição, pode
ver a maca, o vaso sanitário nos cantos. Ela então se dá conta de
que não seria possível ver essas coisas se a porta da cela estivesse
fechada.
“Temos de sair daqui”, diz ela.
Mas Will não escuta. Ela acompanha a direção do olhar dele e vê
o caçador do pub londrino no chão, braços e pernas bem abertos,
como se houvesse tentado amortecer sua queda de uma grande
altura. Ao lado, está a cabeça do caçador. Não estava presa ao
resto do corpo. Olha para Lily com um horror semelhante ao dela.
“Ele não está aqui”, fala Will, e é como se estivesse a quilômetros
de distância. Ele segura o rosto dela e a faz olhar para ele.
“Ele não está aqui”, repete Will. “O que significa que eu tenho de
tirar você daqui. Entendeu?”
Antes que Lily possa assentir, ouve-se um tiro. Um único e inútil
estalo, seguido pelo grito de um homem.
“Agora”, diz Will.
—A—
CRIATURA
ANDREW PYPER
CAPÍTULO 36
Will olha para trás a todo instante enquanto eles correm. O olhar
dele é tão desesperado que ela conclui que a criatura está se
aproximando, mas decide não olhar para trás e verificar.
Apesar de não ouvirem mais nenhum tiro, há outro grito. Diferente
do anterior. Lily deduz que o primeiro tiro não derrubou a criatura. E
que o segundo homem que gritou nem teve tempo de sacar a arma.
Ela espera ouvir o uivo ou a gargalhada do monstro em meio a
sua própria respiração sufocada, e alguns segundos depois
realmente ouve ambos, ainda que não tenha certeza de que não
passa de sua imaginação. Isso pode não fazer qualquer diferença.
Imaginar é tornar real. Ouvir é deixar entrar.
Will abre uma porta na metade de um corredor mais largo que os
demais. Ela o segue e vê lá dentro um escritório: uma mesa de
metal, um arquivo, uma cadeira cujo estofamento escapa pelos
buracos do tecido.
“Pegue isto”, diz Will, virando-se para entregar sua própria arma.
Ela a segura na palma da mão como um pássaro de asa quebrada.
“Fique na porta e assegure-se de que ninguém entre.”
Lily se coloca a alguns centímetros da porta, olhando para os dois
lados. Vê cerca de nove metros à direita, e uma lâmpada
fluorescente pisca em seus estertores, projetando sombras
irregulares no chão.
Atrás dela, Will tira um envelope grande e um GPS de uma gaveta.
Quando ele o liga, emite um sinal, e sua tela se ilumina. Ele o
analisa antes de bater em sua lateral.
Lily se vira. “Qual o problema?”
“Colocamos um chip de localização quando ele estava apagado”,
diz Will. “Este aparelho deveria informar onde ele está, mas aqui
funciona tão bem como os rádios.”
Ela olha o corredor de novo. A lâmpada agora pisca
ininterruptamente, de modo que, por um milésimo de segundo, ela
pensa ver a coisa que não é Michael em uma área escura. Mas, na
piscada seguinte, desaparece.
“E agora?”, pergunta ela.
“Caímos fora.”
“Para que lado?”
“Direita ou esquerda. Você decide.”
Lily devolve a arma para ele e toma a esquerda, afastando-se da
lâmpada fluorescente, que, com um estalo, fica preta.
“Por aqui”, diz ela.
A seu dispor,
Cliente no 46874-A
—A—
CRIATURA
PARTE 3
LIVRE
—A—
CRIATURA
ANDREW PYPER
CAPÍTULO 39
Will sai correndo pela porta dos fundos, seguindo os gritos de Jim
Hurst, e já está no meio do estacionamento quando Lily chega lá
fora.
Ela corre atrás dele por um declive coberto de uma camada fina
de gelo e escorrega, a escopeta escapando de suas mãos. Ao se
pôr novamente de pé e recuperar a Mossberg, ela vê, de relance,
Will passar correndo entre outros dois quarteirões de casas. Ela o
segue, de cabeça baixa contra a neve que cai, cada floco uma
picada em sua pele.
Por trás das casas está o campo de beisebol que ela avistou ao
entrar na cidade. Ao se aproximar, ela vê três homens junto à cerca
no fundo do campo. Michael segura Jim Hurst, o braço em torno do
pescoço dele. Will está a cerca de nove metros deles, com o rifle
apontado.
Lily para na divisão entre a grama congelada e o saibro que
marca o centro do campo. Michael a vê. Exibe seus dentes
prateados em um sorrisinho estranho.
“Estamos todos aqui”, diz ele.
Em uma passada larga, ele se aproxima dela, o braço em torno da
garganta de Jim tão apertado que o homem não consegue falar ou
respirar.
“Largue-o”, ordena Will.
“Eu me lembro de você”, diz Michael, movendo seu olhar de Lily
para Will. “Da sua irmã também.”
A fúria de Will o congela. Cada membro de seu corpo está prestes
a explodir, exceto sua mente, fixa nas palavras do homem.
“Quanto mais jovens, melhor, descobri”, continua Michael. “É
claro, deve ter sido terrível para você.”
Ele se aproxima. De maneira tão relaxada que é fácil esquecer o
quão rapidamente ele atravessa as distâncias. Michael está agora
diante de Will. De repente, ele ataca, rápida e diretamente, seus pés
mal tocando o chão enquanto ele voa para a frente.
“Não!”
Will atira, mas a voz de Lily representa uma distração que, mesmo
à queima-roupa, desvia a bala de seu alvo. Ela atravessa o ombro
de Jim Hurst, em vez do rosto de Michael.
Lily olha os lábios inchados de Hurst se mexerem, ainda que
nenhum som saia deles. É como se estivesse ensaiando um beijo.
Will atira de novo.
Desta vez ele acerta Hurst na perna e também atinge a coxa de
Michael, ainda que só o primeiro dê sinais de ter sentido algo. Hurst
começa a ter espasmos, o choque provocando uma convulsão que
parece ainda mais artificial, porque nenhum membro seu toca o
chão. Uma marionete nas mãos de um titereiro que empurra ambos
para a frente.
O corpo de Hurst acerta Will antes que ele consiga dar outro tiro.
Ele cai de costas, o rifle voa para trás. Quando agita os braços
tentando descobrir onde está a arma, Michael larga Hurst em cima
dele, de modo que, por alguns segundos, os dois homens ficam
lutando para desembaraçar pernas e braços. Então Will consegue
soltar um de seus braços e tenta sacar a pistola do coldre em sua
cintura. Antes que a alcance, Michael chuta o pulso dele com tanta
força que o quebra, com um estalo perfeitamente audível.
A escopeta, diz Lily a si própria. Está nas suas mãos.
Ela ergue a coronha e mira em Michael. Está escuro, mais escuro
ainda neste instante do que naquele que o antecedeu, e todo o seu
corpo treme por algo que não é o frio. Mas ela havia carregado a
Mossberg com balas para atingir alvos à queima-roupa, e é
impossível ficar mais perto do que está agora.
Michael para e olha diretamente para ela, um olhar tão
desprotegido e transparente que ela não tem escolha a não ser
retribuí-lo. Ele olha para Lily com o desejo de um homem
memorizando os traços de sua amante antes de abandoná-la para
sempre.
E, de repente, antes que diga uma palavra, antes que ela possa
atirar, ele se transforma.
De Michael para Hyde. Dele para a coisa.
O monstro ergue Will pelo pulso quebrado e leva a garganta do
homem até sua boca. Os dentes se cravam. Atravessam a pele.
“Não!”
Lily puxa o gatilho, mas cambaleia para trás e o tiro passa longe
do alvo. Recarrega.
Uma vez. Tem de ser de uma única vez.
Ela mira bem no meio do peito da criatura.
Mas, no instante em que ela atira, ele se dobra para evitar a bala.
Ileso.
Lily recarrega de novo. Só agora vê que a criatura, quando se
moveu para escapar do tiro, arrastou Will junto, dessangrado e
tendo espasmos, seu rosto inexpressivo.
A criatura espera até que Lily olhe de novo para ela. Então
balança sua mão com garras e enfia as cinco lâminas no dorso de
Will, joga-o sobre seus ombros e vai até ela.
Lily se vira. Manda suas pernas se moverem, mas elas não lhe
obedecem por completo, os joelhos fracos, as coxas pesadas. A
cada contato de seus pés no chão, ela espera sentir as lâminas
cortando suas costas.
Ela para um instante e sabe que é um erro olhar para trás. Mas
olha mesmo assim. A criatura está tão próxima que Lily não terá
tempo de chegar ao aclive antes de ser alcançada. A criatura
avança, Will aos solavancos em cima de seus ombros.
Ela ergue a escopeta. Atira.
A criatura vacila, e Lily vê o motivo: um semicírculo de sangue
logo acima do quadril. Ele toca o ferimento com sua mão livre. Olha
para ela e emite um som ao mesmo tempo animal e mecânico. O
uivo de um lobo combinado com o silvo agudo de uma serra elétrica.
Lily se dirige ao estacionamento das casas. No meio do caminho,
pensa em atirar novamente, mas não tem certeza de quantos
cartuchos ainda restam. Dois. Talvez apenas um. Talvez nenhum.
Entre no carro. Entre e vá embora.
Ela chega ao estacionamento e olha para trás. A criatura solta um
jorro de baba e sangue que derrete a neve, formando um círculo
escuro. E retoma a perseguição.
As chaves. Onde estão as chaves? Ela encontra o aro metálico
em seu bolso e abre a porta.
A criatura chega e larga o corpo de Will no chão.
Lily pula na picape e fecha a porta no exato instante em que a
criatura ataca, enfiando as garras na maçaneta.
Ela liga o carro e engata a ré sem olhar para trás, tentando chegar
à estrada. A criatura, porém, não a larga. Arranhando o para-brisa,
suas garras raspando a porta, um guincho metálico, como alguma
coisa viva e em sofrimento.
Com um pulo, a picape vai para a frente. Lily dá uma olhada no
retrovisor.
O monstro está lá, balançando o corpo de Will pelos tornozelos
como se ele não passasse de um saco de roupa suja. Seus dentes
se chocam antes de a criatura irromper em um novo uivo de riso
histérico, ou fúria, ou dor. Exceto que não é nada disso. É um som
que não comporta nenhum sentimento humano.
—A—
CRIATURA
ANDREW PYPER
CAPÍTULO 46
Três pancadas. Cada uma seguida pelo ruído surdo de nós dos
dedos raspando na madeira. Assim como sua mãe havia feito há
muitos anos, depois da terceira pancada Lily se levanta e vai até a
porta.
“Michael?”
Um silêncio ainda mais profundo.
Ela cola o rosto na porta e pode sentir a coisa do outro lado:
braços pendendo ao longo do corpo, ombros curvados, cabeça
inclinada para a frente.
Para dar certo, terá de ser rápido: destrancar a porta, dar dois
passos para trás, abrir um buraco no peito dele. Três ações
comprimidas em uma.
Ela destranca a porta. Dá dois passos para trás. Ergue o cano da
escopeta e apoia a coronha em seu ombro.
A porta não se abre pela força, e sim sozinha, lentamente. A parte
de baixo dela raspa o chão impulsionada pelo ar frio que vem de
fora.
Ela teria de atirar agora. Agora. Agora.
“Will?”
Ele dá um passo à frente, e as tábuas do piso soltam um gemido
aborrecido por causa do peso. Os olhos rolam nas órbitas, pousam
nela um instante e depois giram de novo. A boca abre e fecha, os
lábios estalam. O reflexo de morder e mastigar sendo testados
antes do ato.
Assim como as mulheres que Michael havia oferecido a Stoker no
quarto alugado no Soho ou como a série de experiências
fracassadas, as noivas que ele havia tentado fazer antes de
encontrar a mãe de Lily, aquele era Will apenas na aparência
externa, vivo somente na capacidade de se mover, matar e comer.
Pela primeira vez, o rosto marcado e disforme combina com a
monstruosidade do restante dele.
“Por favor, não”, diz ela, ao mesmo tempo em que ajusta a mira.
A coisa responde avançando. Um pé e depois o outro, cada passo
mais seguro que o outro.
Ter dom.
Um ruído escapa de sua boca. Tenta de novo. Podem ser
palavras, pode não ser nada.
Perto longe.
Está a menos de um corpo de distância quando Lily consegue
ouvir corretamente.
Perdoe-me.
Ela puxa o gatilho.
—A—
CRIATURA
ANDREW PYPER
CAPÍTULO 48
A coisa que um dia fora Will cambaleia para trás. Lily só deixa cair a
escopeta depois de ver a criatura olhar para o próprio peito, os olhos
momentaneamente focados no sangue que encharca seu casaco.
A criatura toca o ferimento e pressiona, não para estancar a
sangria, mas sim para colocar a mão dentro de si, sentir em torno de
sua espinha, como se buscasse alguma coisa caída em uma piscina
de água salobra.
Olha mais uma vez para Lily. E então cai de lado no chão e fica
imóvel.
Lily se abaixa para pegar a escopeta, mas aí lembra que a arma
agora é inútil. É pouco provável que haja outra arma no chalé. Isso
não a impede de procurar. Embaixo da pia há uma panela de ferro.
Em uma prateleira, uma lata de feijões cozidos. Ela pensa em pegar
os dois, mas acaba largando ambos onde estão.
Qual é o plano, doutora? Você vai psicoanalisá-lo até a morte?
Pela porta aberta, olha a clareira e as árvores mais adiante. Ela
não consegue vê-lo, mas sabe que Michael está lá, observando-a.
Ele vai farejar você se não a vir, vai rastrear você se não a farejar.
Ele vai ler sua mente.
“Por que você não cala a boca se não tem qualquer ideia para
dar?”, chia ela.
Mas eu tenho uma ideia.
Há trinta anos, sua mãe lhe disse para onde ir. Não devia haver
nada no trailer junto ao riacho, mas ela precisa acreditar que havia
uma razão para sua mãe dizer que aquele era um lugar secreto. Se
nada desse certo, pelo menos Lily não morreria aqui, no mesmo
lugar, no mesmo chão onde sua mãe havia morrido.
Ela se afasta da porta, colocando-se fora de vista. Ainda deve
demorar algumas horas para escurecer, calcula. Deve ficar aqui e
esperar que anoiteça? Se a ideia é correr para o trailer — ou para
qualquer outro lugar —, será impossível fazer isso sem um mínimo
de luz do sol, mas ela acredita que um pouco mais de sombra do
crepúsculo de inverno pode ajudar a servir de cobertura.
Isso lhe dá tempo de encontrar uma chave de fenda, em uma das
gavetas da cozinha, que usa para arrancar as tábuas que cobrem a
janela do quarto. Foi aqui que Lily e sua mãe dividiram a cama, há
uma eternidade, bem abraçadinhas pela manhã, depois de o calor
do fogão ter se extinguido durante a madrugada. Foi aqui que ela
viu o monstro matar sua mãe.
A lembrança disso e o que ele fizera a Will reavivam seu ódio.
Não importa se ele já contava com esses sentimentos por parte
dela, se naquele exato momento ele detectava sua raiva, que brilha
sobre ela como um holofote. Ela está cheia de ficar se controlando.
Ela o odeia e se permite odiá-lo. O calor desse ódio atravessa todo
o seu corpo, agindo como um anestésico, de modo que, ao
atravessar a janela e cortar seu antebraço em um caco de vidro, ela
mal percebe a dor.
Não há um caminho claro, mas ela acha que seus instintos
conseguirão levá-la ao local onde deveria estar o trailer. Depois de
avançar vinte metros, ela para e tenta ouvir algo, olha para ver o
caminho já feito. Nada. Mas ela sabe que Michael está próximo.
Esse é o fim prolongado que ele disse que ela teria, e mal começou.
Ela afasta os galhos de um espinhoso ginseng siberiano e chega
a uma clareira menor do que aquela do chalé.
O trailer continua lá. Mais enferrujado que da última vez em que o
viu, ao voltar aqui há alguns anos, e seu equilíbrio sobre quatro
blocos de cimento está mais precário, porém ainda é algo sólido, no
qual se pode entrar sem o risco de que ceda sob seus pés.
Ela coloca os dedos no buraco onde costumava ficar a fechadura.
Galga os dois degraus e entra.
Lily examina o interior do trailer e vê o que esperava: uma
desordem em ruínas. Armários de compensado vazios, latas
corroídas, uma mesa de fórmica aparafusada na parede, um
exemplar de O Lobo da Estepe destruída pela umidade. Um cheiro
forte de amônia de urina animal a sufoca.
Por que sua mãe a mandaria para este lugar? Não há nada aqui
com que ela possa se defender, nenhum canto onde se esconder.
Seja o que for que tinha em mente, desapareceu.
A não ser que nunca tenha estado aqui dentro, psicopata.
Lily se lembra daquela tarde quando encontrou sua mãe deitada
no chão junto ao trailer. Sempre achou que havia flagrado sua mãe
no meio de alguma coisa que ela queria manter em segredo. Mas e
se ela quisesse que Lily a encontrasse ali? E se a ideia fosse que
ela tentasse descobrir o que sua mãe lhe havia deixado, para que o
encontrasse quando estivesse crescida o bastante para entender o
segredo?
Ela sai, deita de costas e desliza para baixo do trailer, afastando a
neve com as mãos. Depois que todo o seu corpo está lá embaixo, é
mais fácil se mover, mas ela teme que o menor toque abale um dos
apoios e a esmague.
Sob o trailer, há uma colcha de retalhos de tábuas de
compensado, quadrados de metal aparafusados aqui e ali para
cobrir os buracos, um par de barras enferrujadas ao longo da
estrutura, sustentando-a. Lily curva a cabeça, vira de lado para ver
em torno de seus pés. Nada.
E então, algo estranho pregado na base do trailer.
Uma caixa de madeira.
Lily a reconhece. Uma simples caixa quadrada de pinho, com um
cadeado na fechadura, que ela recorda ver sua mãe tirando de uma
fronha que guardava na mala. “O que tem aí?”, havia perguntado
Lily.
“As cinzas do seu avô”, respondeu sua mãe. Lily não quis fazer
mais perguntas, temendo aborrecer a mãe.
Ela desliza até lá e vê que a caixa está completamente presa.
Sem ferramentas, não será possível tirá-la de lá. A chave de fenda.
Aquela que havia usado para escapar pela janela do chalé. Ainda
em seu bolso.
Ela usa a chave de fenda como uma cunha entre o cadeado e a
lingueta da caixa. Puxa para baixo.
“Merda!”
A dor vem junto com o movimento brusco. Ela sente que seu dedo
quebrou. A boa notícia é que a lingueta parece ter cedido um pouco.
Mais alguns puxões devem arrancá-la de vez.
Ela retira o indicador, que já começa a inchar, usando agora o
dedo médio. E segura o pulso direito com a mão esquerda para
puxar a chave de fenda com mais força.
É melhor ter dois dedos quebrados que esperar para que ele me
puxe daqui.
Ela conta até três e puxa para trás, com a maior força possível.
Com um som metálico, a lingueta é arrancada da madeira, e a
tampa abre. Um saco plástico cai ruidosamente no chão.
Cinzas não fariam tanto barulho.
Ela pega o saco e olha dentro. Um par de luvas com garras
metálicas encurvadas no lugar dos dedos. Um conjunto de dentes
de metal. As pontas afiadas, os pré-molares longos como agulhas
de sutura.
Ela usava isso para caçar.
O segredo do lugar secreto.
Ela os deixou para você.
Lily desliza de volta para fora, levando o saco consigo. Seu
indicador latejando. Ao examiná-lo, a articulação faz um ângulo de
noventa graus. O inchaço se espalhou para o resto da mão, que
está inchada e dura como uma bola de beisebol.
Ao sair de baixo do trailer, ela fica ali, olhando atentamente para a
trilha e os arbustos em torno. Nenhum movimento, nenhuma pegada
nova. Ela se ergue, desliza as costas pela lateral do trailer e abre a
porta. Há um rangido tão alto que ela quase a fecha de novo, mas
se dá conta de que não tem opção a não ser entrar.
Ela fecha a porta e procura algo com que possa trancá-la. O
melhor que consegue é um pedaço de corda largado no balcão da
cozinha: ela amarra um ponta no buraco onde ficava a fechadura e
outra no cano embaixo da pia. Nem de longe será capaz de impedir
que a criatura invada o trailer, mas lhe dará algum tempo.
Lily se afasta da porta, bem abaixada para não ser vista pelas
pequenas janelinhas de vidros quebrados. Ao chegar na parte
traseira, abre o saco e retira os objetos.
Estão surpreendentemente conservados: o couro das luvas e as
tiras para prendê-las nos pulsos ainda flexíveis e resistentes, as
lâminas tão afiadas que, ao tocar uma com o polegar, ela se corta.
Vá em frente...
—A—
CRIATURA
ANDREW PYPER
CAPÍTULO 49
Não há nada em sua mente, nem um som, nem uma voz, nem um
pensamento. A vida morna dentro dele, ciciante, pulsante. Tão
perto, tão disponível que é como se estivesse ali somente para ela.
Um presente.
FIM
AGRADECIMENTOS
Diretor Editorial
Christiano Menezes
Diretor Comercial
Chico de Assis
Gerente Comercial
Giselle Leitão
Editores
Bruno Dorigatti
Raquel Moritz
Editores Assistentes
Lielson Zeni
Nilsen Silva
Designers Assistentes
Arthur Moraes
Flavia Castro
Finalização
Sandro Tagliamento
Revisores
Ana Kronemberger
Isadora Torres
Marlon Magno
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
Angélica Ilacqua CRB-8/7057
Pyper, Andrew
A criatura / Andrew Pyper ; tradução de Cláudia Guimarães.
— Rio de Janeiro : DarkSide Books, 2019.
ISBN: 978-65-5598-069-1
Título original: The Only Child
1. Ficção norte-americana 2. Ficção gótica (Gênero literário) 3. Contos de terror I. Título II.
Guimarães, Cláudia
18-0161 CDD 813.6
[2019]
Todos os direitos desta edição reservados à
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Rua Alcântara Machado, 36, sala 601, Centro
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