BNCC e Literatura - Cosson
BNCC e Literatura - Cosson
BNCC e Literatura - Cosson
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literatura?
Rildo Cosson17
Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
Resumo
Desde versões preliminares, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) tem sofrido
muitas críticas. Vários foram os estudos que apontaram falhas conceituais e
metodológicas tanto no campo das disciplinas específicas quanto da pedagogia. No caso
do ensino de língua materna, a situação não foi diferente. A despeito dessas críticas, o
documento final ainda apresenta uma orientação frágil e limitada de ensino da literatura.
Neste estudo, a partir de uma reflexão bibliográfica não exaustiva, essas críticas são
retomadas, objetivando localizar o lugar do ensino da literatura na BNCC. Para tanto, a
análise abrange o cenário do Movimento Global de Reforma Educacional no qual essa
nova legislação se insere, a constituição do ensino de língua portuguesa nas últimas
décadas e as próprias concepções de literatura e seu ensino escolar nessa nova
legislação educacional. O resultado da análise é que, apesar da pretensa modernização
que do ensino de língua materna e o atendimento às transformações sociais e culturais
demandadas sobretudo pela massificação do acesso à internet, a BNCC repete a posição
ancilar ao ensino de língua portuguesa dada à literatura pelas orientações curriculares
que a precederam.
Palavras-chave
Ensino de literatura. BNCC. Ensino de L1. Leitor literário.
Neste artigo, seguindo a trilha aberta por esses e outros estudos (PORTO e
PORTO, 2018; IPIRANGA, 2019; CECHINEL, 2019; AMORIM e SILVA, 2019;
SILVA e SILVA, 2020), pretende-se apresentar criticamente o lugar dado ao ensino de
literatura na BNCC tendo como base metodológica um levantamento bibliográfico e
uma análise textual da própria legislação. A proposta, porém, não é fazer uma revisão e
síntese dos estudos críticos já existentes, nem realizar uma análise minuciosa das
orientações dadas para o ensino escolar da literatura no documento – tarefa, aliás, já
executada pela maioria dos textos citados anteriormente –; mas sim elaborar uma
reflexão a partir do levantamento e da análise que funcione como um suplemento para
se debater com professores a questão, segundo as características de suas escolas e da
formação que buscam oferecer para seus alunos. Para tanto, este artigo está dividido em
três partes que são antecedidas por essa introdução e precedidas por considerações
finais. Na primeira, traça-se o contexto de onde emerge a BNCC enquanto parte de um
movimento global de reforma educacional. Na segunda parte, delineia-se o contexto
interno do ensino de língua materna, apontando especificamente para a situação
brasileira. Na terceira, sintetizam-se as fragilidades, limitações e dificuldades que a
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BNCC pode trazer para o ensino de literatura em dois tópicos que atravessam e dão
forma às novas orientações curriculares: o conceito de literatura e o lugar destinado à
literatura na escola.
1 O cenário externo
Não se pode falar do lugar do ensino de literatura na BNCC sem que se faça
antes, ainda que brevemente, uma localização desse documento no campo da educação
e, mais especificamente, do ensino da língua materna ou L1. Dessa forma, quando se
busca verificar a que propósito educacional atende a BNCC, tem-se como cenário outras
tantas alterações curriculares que têm acontecido no mundo globalizado. Nesse
contexto, assim como outras propostas de reformas do sistema educacional que já
vivenciamos anteriormente, a BNCC é parte de um movimento mais amplo de
‘modernização’ que desde o final do século XX atravessa vários países, o qual foi
designado por Pasi Sahlberg (2016) como Global Educational Reform Moviment, cuja
sigla GERM pode também ser lida ironicamente como acrônimo.
2 O cenário interno
18 “a clearly utilitarian and pragmatic concern with international tests and measures”; “the need to place
language teaching in a larger context of literacy (or ‘multiliteracy’) and citizenship”.
superpõem e até se opõem ao longo das várias competências e habilidades descritas no
documento. Dessa forma, o que se pode falar é de uma concepção dominante que parece
determinar as prescrições de uso dos textos literários em todo o ensino básico.
Essa posição dominante é ocupada pela noção tradicional da literatura como Página | 42
texto escrito, ou seja, a condição primeira para um texto ser literário é que tenha registro
escrito. É isso que se depreende da indicação, feita no segmento da Educação Infantil,
de que “o contato com histórias, contos, fábulas, poemas, cordéis etc. propicia a
familiaridade com livros” (BRASIL, 2018, p. 42, doravante apenas página), isto é,
mesmo que esses gêneros tenham origem oral e circulem oralmente por meio da
mediação do professor é a passagem deles pela escrita que lhes garante lugar na escola e
o estatuto de literário. Mais adiante, já tratando do componente Língua Portuguesa no
Ensino Fundamental, há a distinção entre o livro de literatura e outras manifestações
culturais e artísticas, como filmes e gêneros da cultura digital (p. 68). Nesse caso, a
literatura é não só o texto escrito, mas um texto escrito que é veiculado em um
determinado suporte que é o livro. Essa existência da literatura via seu suporte mais
conhecido é ainda mais evidente quando se verifica um contraste entre livro e texto:
“Mostrar-se interessado e envolvido pela leitura de livros de literatura, textos de
divulgação científica e/ou textos jornalísticos que circulam em várias mídias” (p. 74),
ou, ainda, na ênfase dada à materialidade, à condição de produto no alinhamento de
livro e brinquedo: “em textos de resenha crítica de brinquedos ou livros de literatura
infantil” (p. 123). Mesmo quando se troca o livro pelo texto, é ainda a condição de
escrito e impresso que parece guiar a oposição entre o literário e outros tipos de texto,
conforme se verifica em: “uma formação estética, vinculada à experiência de leitura e
escrita do texto literário e à compreensão e produção de textos artísticos
multissemióticos” (p. 84). O mesmo acontece quando se enumeram manifestações
artísticas diversas e o texto literário é identificado com o romance Terra Sonâmbula,
mas não o texto dramático, a peça teatral baseada no romance Macunaíma, certamente
porque se está levando em consideração a encenação e não apenas a parte escrita (p.
492).
É por ser escrita que a literatura pode e precisa ser separada das outras artes
ainda que caminhem juntas no mesmo campo devidamente nomeado artístico-literário
no Ensino Fundamental. Aliás, essa divisão não está apenas no título, mas também na
própria definição do campo como “Campo de atuação relativo à participação em
situações de leitura, fruição e produção de textos literários e artísticos” (p. 96, grifo
nosso). Ela também se faz presente na enumeração de direitos: “direito à literatura e à
arte, direito à informação e aos conhecimentos disponíveis” (p. 86); e de áreas
disciplinares: “não somente da Geografia, mas também de outras áreas (como
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Matemática, Ciência, Arte e Literatura)” (p. 359). Tal separação é necessária porque,
sendo escrita ou definida como arte da escrita, a literatura não tem o mesmo estatuto que
as demais artes na escola. Essas, a despeito da precariedade do espaço que ocuparam e
continuam a ocupar na escola, sempre foram concebidas essencialmente como práticas,
já a literatura, a despeito de vagas considerações sobre a produção de textos literários, é
centralmente fruição: “Está em jogo a continuidade da formação do leitor literário e do
desenvolvimento da fruição” (p. 504, grifo nosso). Em outras palavras, apesar de ser
enfaticamente caracterizada como uma arte ou discurso artístico e estético ao longo do
documento, a literatura é, de fato, uma arte pela metade, uma arte diminuída porque
apenas recepção, uma arte que está na escola a serviço outro que não a si mesma,
conforme uma orientação curricular que a BNCC supostamente teria deixado para trás
por ser tradicional.
Por fim, essa posição de texto escrito da literatura está plenamente de Página | 44
acordo com a tradicional concepção de herança cultural, a literatura como um conjunto
obras, um tesouro recebido do passado e que deve ser preservado e transmitido pela
escola. É isso que se inscreve na prescrição de “identificar assimilações, rupturas e
permanências no processo de constituição da literatura brasileira” através da “leitura e
análise de obras fundamentais do cânone ocidental, em especial da literatura portuguesa,
para perceber a historicidade de matrizes e procedimentos estéticos” (p. 525), ou seja,
sendo a literatura um conjunto de obras escritas ao longo da história do país nada mais
natural que se busque acompanhar essa trajetória de acumulação de capital literário
nacional pela inserção e contraste com percursos similares na matriz portuguesa e na
cultura ocidental. Dessa forma, embora as expressões “estilo de época” e “período
literário” tenham sido elididas da BNCC, a história da literatura que se faz por meio da
periodização estilística continua implicitamente presente, até porque não se postula uma
alternativa à sua adoção. Ao contrário, em lugar de se considerar a tradição literária
como um intertexto sistêmico, mantém-se o velho critério nacionalista/regional dos
românticos que adota para a história literária o modelo organicista em que a literatura
brasileira é um galho da árvore da literatura ocidental, conforme se pode ler na
“inclusão de obras da tradição literária brasileira e de suas referências ocidentais – em
especial da literatura portuguesa –, assim como obras mais complexas da literatura
contemporânea e das literaturas indígena, africana e latino-americana” (p. 500). A
simples anexação de outras produções “setorizadas” dentro deste modelo, obviamente,
não resolve a questão, mesmo reforçando a ideia de cânone por meio da exigência de
“complexidade” e atendendo aparentemente a preceitos legais.
Conclusão
Referências Página | 49
Abstract
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From its preliminary versions, the National Common Curricular Base (BNCC) has
come under much criticism. Several studies have pointed out conceptual and
methodological flaws both in the field of specific disciplines and in pedagogy. In the
case of mother tongue education, the situation was no different. In spite of the
criticisms, the final document still presents a fragile and limited orientation of literary
education. In this study, based in a bibliographic reflection, these criticisms are resumed
with the objective of situating the place of literary education in the BNCC. To this end,
the analysis comprehends both the scenario of the Global Educational Reform
Movement in which this new legislation is inserted and the constitution of Portuguese
language education in the last decades, as well as the concepts of literature and its
schooling in this new educational legislation. The result of the analysis is that, despite
the supposed modernization of the mother tongue teaching and the attendance of social
and cultural transformations demanded above all by the widespread access to the
internet, the BNCC repeats the ancillary position to the teaching of Portuguese language
given to literature by the guidelines curriculum that preceded it.
Keywords
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Recebido em: 24/02/2021
Aprovado em: 25/05/2021