Cópia de MARCHI, SALETTE MAFALDA OLIVEIRA
Cópia de MARCHI, SALETTE MAFALDA OLIVEIRA
Cópia de MARCHI, SALETTE MAFALDA OLIVEIRA
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
por
2
Universidade Federal de Santa Maria
Centro de Artes e Letras
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais
elaborada por
Salette Mafalda Oliveira Marchi
COMISÃO EXAMINADORA:
3
“Eu, mulher” sou afetada diretamente e na minha vida diária por aquilo que tem sido feito do
sujeito da mulher; eu paguei em meu próprio corpo por todas as metáforas e imagens que
nossa cultura considerou adequado produzir sobre a mulher. A metaforização se alimenta de
meu eu corporal, num processo de “canibalismo metafísico”.
Rosi Braidotti
4
RESUMO
Dissertação de Mestrado
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais
Universidade Federal de Santa Maria
5
ABSTRACT
6
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
7
FIGURA 23 – Orlan - A origem da guerra, 1989. ...................................................................... 55
FIGURA 24 – Orlan – ao expor Santa Orlan: como paródia de Santa Teresa. .......................... 61
FIGURA 26 – Fotos do filme Entr’acte, de René Clair, com Picabia dançando. ....................... 67
FIGURA 38 – Andy Warhol, Marilyn Monroe, 1968, Serigrafia sobre tela. .............................. 83
FIGURA 40 – As mulheres têm que estar nuas para entrar no Museu Metropolitano?
Guerrilla Girls, 1989. Pôster. ............................................................................... 88
8
FIGURA 46 – Judy Chicago, The Dinner Party, técnica mixta. ................................................. 100
FIGURA 54 – Orlan em sua quarta cirurgia, 8 dez. 1991, Paris. ................................................ 114
FIGURA 59 – Orlan, com implante, resultado de sua sétima cirurgia, 1993. ............................. 119
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 11
CAPÍTULO 1 .................................................................................................................... 17
O CORPO COMO PRETEXTO ............................................................................... 17
1.1 O corpo na ciência e na arte: um trajeto nem tão dialógico ....................................... 17
1.2 Este estranho objeto do desejo ...................................................................................... 35
1.3 O que nos olha, o que vemos .......................................................................................... 37
1.4 Deus criou o homem a sua imagem e semelhança, mas deus não criou a mulher .... 39
1.5 Transgressão e desobediência feminina: entre a fuga da caverna de Platão e a
negação da caverna de Batman ..................................................................................... 42
1.6 Imagem dialética do corpo de Orlan ............................................................................ 48
CAPÍTULO 2 ..................................................................................................................... 59
A TRAJETÓRIA DE UM CORPO QUE SE DESMANCHA NO AR ........ 59
2.1 Quando a presença da obra passa a ser sustentada pelo discurso ............................. 59
2.2 Performance e transgressão, do início do século XX à era do bisturi ....................... 61
2.3 Carnal art, body art, body modification… o cérebro não pode parar e nem as
máquinas ......................................................................................................................... 73
2.4 O híbrido antes e depois do pós-moderno .................................................................... 80
CAPÍTULO 3 ..................................................................................................................... 88
O QUE ABALA, PROVOCA E PERTURBA NA OBRA DE ORLAN ...... 88
3.1 “Do women have to be naked to get into the Met. Museun?” ........................................ 88
3.2 A construção do corpo político nas experiências artísticas de mulheres ................... 95
3.3 O corpo “é lugar de debate público” ............................................................................ 98
3.4 O corpo híbrido na obra de Orlan .............................................................................. 107
3.5 Ser ou não ser: o que diria Freud de Orlan? ............................................................. 112
CONSIDERAÇÕES LONGE DO FINAL: ESPELHO, ESPELHO MEU... ................ 120
REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 121
10
INTRODUÇÃO
11
pelas inovações da informática aplicada na vida doméstica, tem-se ao alcance o maior número
de imagens criadas nos últimos quinhentos anos.
É nesse ponto que as imagens corporais aparecem com força e presença no script
imagético da atualidade e são colocadas em cena pelas tecnologias como objeto estético, com
a função de exercer, no quotidiano, o prazer de uma idealização. Compartilhadas de maneira
coletiva, tais imagens têm o corpo como modus operandi e parte do aparato visual constituído
pela Internet, entre outros meios de difusão de imagens. Na sociedade contemporânea, que
tem como base o estilo de vida fixado no hedonismo, na valorização da aparência, as imagens
corporais só podem acontecer na atração e na presença do outro: pode-se compreender, assim,
a necessidade de se projetar um corpo sempre presente, numa infinidade de situações e
acontecimentos.
A veiculação da representação das imagens do corpo, em suas diferentes formas de
exposição, opera novo sentido aos lugares em que estão inseridas, constituindo-se de forma
perturbadora em corpo dinâmico, sempre renovado e plural. Nesse sentido, importa observar
como é tecida a cadeia de mensagens corporais na atualidade, sendo um exemplo o que ocorre
com a publicidade, que se utiliza do corpo, a semelhança da arte, transformando-o em objeto.
Cabe também fazer referência, sem atribuir valor de juízo normativo, à multiplicação sem
limites dessas imagens – em que o corpo é visto e encenado ao máximo, sendo, muitas vezes,
gerador de distúrbios de ordem psico-social provocados pela exigência de uma estética
corporal perfeita a exemplo das práticas do body building, o que está vinculado com o mito da
eterna juventude e, consequentemente, da imortalidade.
Acompanhando as mudanças que emergem da nova ordem social, pensa-se o corpo,
hoje, independente das instâncias pessoais ou coletivas. Entretanto, ele se constitui em
elemento fundamental da produção de subjetividade na qual se manifesta, percebendo-se,
nesse processo, uma reversão de valores na contemporaneidade.
Com efeito, a partir do fim de uma estética universal, do relativismo moral, do
surgimento de outros modos de vida associativa, da constituição de novos modelos de família,
um novo entendimento de corpo se estabelece. Isso não significa que deixaram de existir
sistemas reguladores sociais, mas que outras formas de poder estão instauradas 1. No
momento, portanto, trata-se de perceber novas categorias para compreender a precariedade de
conceitos que até então orientavam a intenção e o fazer artístico, reconhecendo-se o
desaparecimento dos princípios rígidos que norteavam a arte de um modo geral.
1
Trata-se de novas relações sociais que, entretanto, não serão abordadas aqui, considerando-se que esse assunto
demanda uma série de reflexões que escapam ao propósito central da pesquisa.
12
No emprego das novas tecnologias para a realização de experiências artísticas,
por meio das diferentes formas de manipular, expandir o corpo e, assim, romper com o
corpo-modelo no cenário da arte contemporânea, revelam-se exemplos significativos
artistas como Orlan, Mona Hatoun e Sterlac. Em suas propostas estéticas, o modo como
o corpo é transformado em objeto de arte, pela apropriação e incorporação de matérias
ou corpos estranhos no momento de criação, faz com que ele adquira autonomia e
ultrapasse os limites biológicos, apresentando-se como um outro, diferentemente da
ideia de corpo carne, orgânico, natural.
São outras maneiras de pensar e conceber o humano. O corpo “natural” não é
mais o destino do sujeito, seu limite com o mundo: o contorno humano delimitado pela
pele se potencializa com outros contornos e desafiam a humanidade, extrapolando os
limites da mutabilidade.
Dessas atitudes advêm práticas de rompimento não só de valores estéticos, como de
valores éticos e morais, levando a que também sejam rompidas as barreiras que separam o
real da ficção. Esse rompimento serve de suporte para o surgimento de manifestações
referentes à participação direta do público, compartilhada com a experiência estética do
artista. Nessas práticas, o artista utiliza seu corpo como meio para ser transformado em arte e
se modifica por meio de cirurgias, implantes, transplantes de próteses, cortando, abrindo e
mostrando o corpo em um acontecimento real. Mais que a própria obra, essas práticas passam
a ser geradoras de subjetivação de significados para o público que interage e vivencia o
momento de criação. Exemplos disso são as operações cirúrgicas que Orlan vem realizando
desde 1990, e que são parte da análise aqui realizada sobre a sua obra.
Acredita-se que essa interação da arte determina hoje uma estética com capacidade de
entrar no cotidiano das pessoas, destacando-se esse processo como um todo. Em tal processo,
as novas tecnologias e o espaço virtual desempenham um papel fundamental, lugar por
excelência de partilha com outros corpos: no momento da ação, o artista passa a exibir sua
performance, valendo-se da internet, em tempo real, para um público de diferentes lugares.
Em diversos campos, como nas áreas ligadas à comunicação, o território que permeia
a arte, principalmente quando vinculada às práticas híbridas das novas tecnologias, abre-se à
possibilidade de discutir e analisar as atuais formas de expansão corporal e a consequente
alteração de sensibilidades geradas a partir das mudanças do estatuto do corpo.
Desse modo, a sociedade deve estar preparada para receber e pensar essa nova
natureza corporal, no momento em que as fronteiras entre natural e artificial estão ameaçadas
pelos resultados advindos do deslocamento de significados, produzidos a partir de
13
experiências artísticas transgressoras. Nesse deslocamento, a arte e a ciência perdem seus
limites de definição, tornando, assim, permeáveis as fronteiras dos seus sistemas, rompendo
com padrões seculares instituídos de suas categorias.
A partir de tais pressupostos, evidencia-se que as alterações de significados e
mudanças do estatuto do corpo são facilitadas pelos processos de hibridação 2, promovidos
pela inserção da tecnologia e da ciência na produção da arte contemporânea. A inclusão do
corpo como arte, nesse processo, motiva esta investigação, voltada, de forma particular, para a
produção da artista performática Orlan, que utiliza as novas tecnologias e a técnica multimídia
para recriar uma nova natureza corporal.
Define-se, então, como objetivo central da pesquisa, investigar, na obra de Orlan, o
seu trabalho autobiográfico, que consiste na criação de uma série de personagens construídos
por meio de intervenções cirúrgicas e novas tecnologias, a partir da aplicação de elementos de
natureza artificial ao corpo (próteses) e fontes diversas (personagens da arte).
Trata-se de rever, no âmbito dessas intervenções, como são abordadas questões
relacionadas a gênero, além de se discutir criticamente as inter-relações entre arte e tecnologia
na configuração das imagens corporais atuais, constituintes de um sistema social cada vez
mais articulado pela dimensão icônica dos signos.
Por esse percurso de análise, problematiza-se o resultado final das operações de Orlan;
questionando-se se colocam a construção de uma nova identidade feminina de corpo,
sugerindo, dessa forma, uma nova política feminista, ou, ao contrário, se há a total destruição
de qualquer parâmetro identitário, traduzindo uma identidade livre de associações e de
vínculos sociais. A hipótese que se apresenta é a de que, por um ou por outro modo, pode-se
identificar, nesse processo artístico, a existência de uma manifestação de caráter contestatório
e suas respectivas implicações em âmbito social, longe do modelo feminista de artistas e
ativistas dos anos 60 e 70 do século XX.
Leva-se em consideração que a construção do imaginário a respeito do corpo feminino
foi moldada a partir de estereótipos socialmente criados por parâmetros de beleza idealizada,
isto é, fiel a “modelos” clássicos que remontam ao olhar imposto pelo poder masculino de
cada época.
2
O conceito tem referencial teórico no estudo de Icléia Cattani, em “questões teóricas e conceituais”,
Mestiçagens na arte contemporânea. No artigo, a autora aborda diferenças entre o hibridismo, o sincretismo e a
mestiçagem. Uma das diferenças entre eles, é que o primeiro mostra mistura e cruzamento de procedimentos,
operando uma fusão entre seus elementos, que origina um produto de ordem diferente. A autora sintetiza com a
ideia de que, “[...] mesmo em obras com novas tecnologias sobre as quais predominam análises em que as
hibridações são colocadas como predominantes, essas diferenças existem às vezes e marcam sentidos diversos”
(CATTANI, 2007, p. 26).
14
Uma outra questão que se coloca diz respeito às mudanças trazidas nessa proposição
estética: são elas capazes de abalar os conceitos de gênero, a negação de valores do “olhar”
masculino? As seguintes hipóteses foram levantadas a partir dessa indagação:
1. as imagens corporais de Orlan, construídas com a intervenção cirúrgica da tecnologia
e veiculadas pelas mídias, estão vinculadas a uma nova noção de arte, por meio de
elementos configurados ao corpo, com capacidade de afetar, de forma significativa, a
ideia de feminino;
2. as imagens da arte contemporânea produzidas por esses meios são inseridas de modo a
resultar em uma nova concepção estética corporal, oriunda da discussão mais ampla
do corpo pós-moderno, promovendo, assim, a revisão das noções de corpo, de estética
e de gênero.
15
um outro modo de pensar a cultura corporal feminina na atualidade, a partir de uma nova
ordem política elaborada sob o estatuto da transgressão corporal.
Em continuidade, mas sem pretender estabelecer “uma” conclusão, são abordados dois
aspectos presentes na arte de Orlan: a identidade, que exige uma reflexão não só de gênero
como também de ética, e a criação de outra configuração corporal, a investir novos sentidos
ao seu próprio corpo.
16
CAPÍTULO 1
Quando se fala de forma crítica sobre a ideologia patriarcal que enfatizou a relação
hierarquizada entre os sexos e que permeou a história da ciência, da arte e das sociedades,
observa-se hoje, em várias teorias feministas, a desconstrução dessa ideologia com novas
definições de feminino e, consequentemente, de corpo. Para tal desconstrução, os discursos
feministas questionam os lugares e personagens da história que fizeram do corpo feminino um
território de dominação, e que roubaram as suas plurissignificações.
Desse modo, para uma definição de representação do corpo, e na busca de seu
entendimento, não se pode deixar de contemplar a questão de gênero. De acordo com Teresa
de Lauretis (1994, p. 217), “A construção de gênero é o produto e o processo tanto da
representação quanto da autorrepresentação”. Assim, tentar definir o que significou e o que
significa o conceito de gênero, mais especificamente em relação ao que representa e define o
corpo feminino, exige associar tal tentativa não à natureza biológica natural dos sexos, mas,
sim, ao resultado de uma construção social e política. Nessa associação, há que se considerar
muitas coisas que já foram escritas a respeito dessa “matéria”, do corpo matéria, nomeado
forma, que revela uma “natureza”; matéria essa desprovida de passividade, lugar de muitas
encenações e representações.
Torna-se importante, para entender o corpo contemporâneo, analisar o processo
histórico de construção das diferenças entre o homem e a mulher, considerando os parâmetros
da sexualidade definidos socialmente. Torna-se importante, assim, analisar a construção do
corpo enquanto gênero e o corpo como representação, pois acredita-se que essa diferença
esteve cristalizada no discurso e nas práticas dos estudiosos da anatomia, da biologia, da
filosofia e da sociologia, compreendendo-se que tais questões nada têm de coesas e se
estruturam em múltiplas interpretações e ações.
Uma parte dessa análise funda-se nas teorias de Laqueur (2001), desenvolvidas a partir
do seu questionamento do “modelo de sexo único”. Esse modelo, nos estudos biológicos,
apontou para a existência de um sexo - o masculino - que se legitimou por meio das suas
representações simbólicas em interesses de toda ordem com o propósito de poder. Assim
17
atuando, o corpo masculino se institucionalizou como sistema medidor das relações no mundo
e constituiu o modo de funcionamento social, até hoje circunscrito à dominação masculina.
Segundo Laqueur (2001), os estudos voltados para a questão do “sexo único”
remontam à Antiguidade Clássica e se estendem até o século XVII, mostrando que os limites
e a diferença entre o masculino e o feminino são de natureza política, servindo para exaltar o
mito de uma sociedade cuja medida de autoridade era dada por uma ordem social fundada e
valorizada no sistema patriarcal. Para ele, “[...] o modelo de sexo único pode ser
compreendido como um exercício para preservar o Pai, que representa não apenas a ordem,
mas também a própria existência da civilização em si” (LAQUEUR, 2001, p. 71).
Essa condição autoritária do homem, e consequentemente a submissão da mulher, tal
como se vê no decorrer dos séculos, aparece notadamente entre os gregos dos tempos heróicos
e mais ainda os dos tempos clássicos, segundo a concepção materialista da história (ENGELS,
2006). Trata-se do momento da constituição e do nascimento do Estado, com a legitimação do
direito paterno à herança, isto é, dos bens acumulados herdados pelos filhos, o que, para
alguns críticos marxistas, levou à derrota do “poder feminino” anteriormente constituído pela
organização das gens matriarcais.
Já para o anatomista Galeno (c.130-200), do ponto de vista da sexualidade, a
inferioridade da mulher em relação ao homem não decorria da hierarquia, mas de um
importante componente biológico. Na sua análise da anatomia interna, o corpo da mulher era
uma versão “menor” do corpo masculino, sendo os órgãos internos femininos uma versão
invertida dos masculinos. As mulheres eram, para Galeno, “homens invertidos”, pois “não se
encontraria uma única parte masculina que não tivesse simplesmente mudado de posição”
(apud LAQUER, 2002, p. 42)
A simples observação biológica do corpo, e ainda de maneira deturpada, foi usada
para a sustentação de uma condição social de desigualdades entre os sexos, pontuando a
posição de inferioridade construída histórica e socialmente para as mulheres. Nesse sentido,
não se pode perder de vista que os desdobramentos políticos e sociais advindos do monopólio
masculino – na figura do fálico - alcançaram sua supremacia, podendo-se acrescentar, sua
imortalidade. Isso porque o pênis esteve e ainda está culturalmente associado ao poder,
estabelecendo o masculino como dimensão para todas as coisas.
Falo é o imponente símbolo de poder e potência eternamente ereto - considerando-se a
sentença, ancorado no pensamento de Lacan, as mulheres não deveriam se desculpar por não
ter um pênis. Trata-se de perceber o sentido da palavra falo utilizado por Lacan: ela está
ligada ao poder; seu uso e a forma simbólica falocêntrica instauram um discurso masculino
18
sobre o corpo feminino. Nesse sentido, torna-se relevante apontar os vários tipos de poder
utilizados para a dominação e perpetuação da moral judaico-cristã.
As representações e as imagens, como instrumentos pedagógicos importantes para o
registro do que moralmente era legítimo na sociedade em que foram concebidas, eram a base
que possibilitava o entendimento entre as leis a serem apreendidas e a formação do
imaginário. Aqui, o conceito de imaginário está centrado no que Lacan chamou de “categorias
conceituais” juntamente com o Real e o Simbólico. Citado por Santaella (2001, p. 188-193),
Lacan afirma que, no imaginário, “[...] trata-se sempre de uma imagem constitutiva de, quer
dizer, produzida por um sujeito individual e proposta para a contemplação, para o fisgamento
do imaginário do observador, visto que é próprio do eu se projetar nas imagens em que se
espelha”. Diante disso, fica clara a importância da imagem para o sujeito, dado que é nela que
ele se reconhece.
O tema da imagem do corpo feminino na arte, tanto o idealizado quanto o
representado de maneira imperfeita em relação ao ideal 3, é muito complexo e extenso. Torna-
se relevante, assim, a apresentação de um painel histórico dessa temática, ainda que sintético.
Inicia-se pela Idade Média que, com exceção do seu período final, teve a figuração da
imagem corporal ligada à condição hierárquica da sociedade. A igreja, que exercia o poder
social e político, elegeu normas de representação das imagens, adotou a negação da natureza
humana nas figuras de Cristo e dos Santos e, nesse sentido, valorizou a natureza divina
constituída de puro espírito em detrimento de sua corporeidade. A maioria das representações
desse período pouco retratou a imagem da mulher, exceto a da Virgem, que não era vista
como “mulher”, mas como a mãe de Jesus, personificada como justa, acolhedora, isenta de
pecado. Aquela que no nome “Virgem” já traz a condenação de se negar ao prazer, portadora
de virtudes, representa o modelo perfeito de corpo assexuado, como aparece na obra de
Cimabue – A Madona de Santa Trinità (1260) e em A Madona Rucellai (1285), obra de
Duccio di Buoninsega.
3
Para uma visão mais ampla da “estética do feio”, no que se refere ao social em geral e ao feminino em
particular, ver de Umberto Eco, História da feiúra, 2007, capítulo VI e capítulo VIII.
19
Figura 1 – Duccio di Buoninsegna. n Siena, A Madona Rucellai. 1285. Têmpera sobre madeira. a 450 cm x l 290
cm. Galleria degli Uffzi, Florença.
A versão de sexo único defendido por Galeno encontrou espaço nas ideias de
pensadores medievais e percorreu o caminho das ciências no Renascimento. Não há dúvida de
que os pesquisadores e estudiosos do corpo, naquele período histórico, buscavam explorar
novos saberes e descobertas por meio de conhecimento técnico-científico. No entanto, isso,
por si só, não resolveu as velhas concepções, pois aqueles estudos ainda demonstravam o
corpo como constituído de um só organismo corpóreo, mantendo o modelo do corpo
masculino sobre o qual se assentava a representação do feminino. O corpo continuava a
incorporar visualmente o feminino sob a ótica masculina, mesmo numa sociedade que
exaltava os avanços do progresso e da ciência como portadores de verdade.
O corpo de uma só carne estava diretamente ligado a determinada ordem política e
cultural, e se manifestava por meio de representações em ilustrações anatômicas 4, portadoras
de visualidades elevadas ao grau de verdade, em detrimento dos reais agentes fisiológicos e
evidências clínicas que já se tinham na época, como se pode constatar na figura 2.
4
Segundo observa Laqueur (2002, p. 106), as ilustrações eram vistas como tal, “[...] porque essas imagens, e
muitas outras, não são simples resultado de convenções representativas nem resultado de erro. A visão mundial
faz com que a vagina pareça-se a um pênis para os observadores da Renascença”.
20
Figura 2 – Reprodução de Vesalius, em uma edição de 1586 de Valverde: à esquerda, uma estrutura semelhante
a um pênis; à direita, as formas femininas de onde foi extraída.
21
Figura 4 – Torso feminino, na forma de uma peça artística quebrada, de onde foi extraída a vagina semelhante ao
pênis da figura acima, segundo as convenções artísticas e científicas do Renascimento.
22
Figura 5 – Uma escultura de mulher ganha vida e sai do pedestal, para demonstrar que o útero é como o pênis e
que os testículos e vários vasos também se correspondem. Isagoge brevis (1522), de Jacopo
Berengario.
23
Figura 6 – O modelo aponta para o útero, mostrando como o colo do útero se parece com o pênis. De
Berengario.
Leonardo da Vinci, interessado que foi por vários assuntos, também se valeu de
estudos anatômicos para a pintura, como mostra a figura 7.
Figura 7 – A versão de Leonardo do isomorfismo entre o ventre e o escroto, à direita acima e à esquerda abaixo,
é peculiar, pois ele apresenta o canal deferente do homem curvo para assemelhar-se à forma do útero.
A imagem do pênis/vagina é mais convencional.
24
Vale ressaltar, nas gravuras anatômicas renascentistas, a presença da perspectiva que,
com seus efeitos de realidade, atribuía a dimensão de verdade sobre o corpo. O anatomista
ilustrador criava processos e situações sem a preocupação com a humanidade do corpo,
tornado objeto exposto, voltado apenas à mostra do momento da experiência representada.
Como se pode observar na ilustração da figura 8, a representação do corpo feminino
expressa o poder masculino. O mundo da ciência, por meio de suas representações,
funcionava como condutor de processos que estabeleciam aportes para que o homem
apreendesse e controlasse a “natureza” feminina. Nessa perspectiva reside, em embrião, a
afirmação do corpo feminino como potencial mercadoria, o que será manifestado mais tarde.
Ainda, pode-se notar que a representação das diferenças anatômicas entre o corpo masculino e
o corpo feminino já se encontrava na ideologia do olhar do observador, e não somente nas
verdadeiras estruturas dos órgãos expostos.
Figura 8 – Útero grávido com a vagina tipo pênis: a bexiga foi empurrada para a esquerda e o feto é visto
de perfil.
25
É esse olhar construído do homem ocidental que irá nortear todas as representações do
feminino, como se observará nos capítulos seguintes.
A história do modelo de sexo único parece confirmar a ideia do corpo social dividido
em dois sexos opostos, com direitos e obrigações sociais distintas. Dentro dessas estruturas, a
mulher estava reduzida à reprodução, sendo um corpo desestabilizador, enquanto que a
estrutura masculina emergia como homem e universo, com uma autoridade que criava e se via
criada para ela mesma e para o outro (mulher).
A história do sexo único no mundo de dois sexos estava repleta também de mitos e
fábulas, fora dos meios científicos e em detrimento desses. Eram contadas histórias de
mulheres que mudaram de sexo, a exemplo de Pare, Iphis ou Marie-Germain. O corpo,
enquanto lugar de metamorfose, passava de uma condição biológica para a esfera do
imaginário. Essa reversibilidade de corpo ou sexo encontrava-se presente em contextos
históricos particularmente determinados, nos quais a transformação do corpo ocorria dentro
de uma lógica libertadora e transgressora de posições. Isso é possível de se compreender em
uma sociedade na qual o princípio de distinção era baseado na diferenciação de direitos, tanto
no campo jurídico quanto no social. Sendo assim, o corpo possuidor de pênis era, nos padrões
sociais, o corpo detentor de poder. Entretanto, na impossibilidade de se nascer com pênis,
podia-se, de forma imaginária, possuir um e com esse deslocamento se apagaria do mundo da
realidade as contradições inerentes a toda diferença.
Para entendimento sobre o imaginário feminino, usa-se o conceito revisitado por
Margaret Whitford, no texto “Releitura de Irigaray” (1989). Nele, a autora reinterpreta e
defende os argumentos de Irigaray, no sentido de efetuar mudanças na ordem simbólica.
Whitford interpreta que,
As mudanças da estrutura dos corpos, porém, não se davam de maneira tão tranquila:
ser homem ou mulher defini-se como uma estratégia social que supunha assumir um papel
cultural, dentro de um padrão moral e estético.
A partir do final do século XV, a visão humanista que caracterizou o Renascimento,
quando a luta existente era pela libertação da razão com o triunfo do individualismo, fez
prevalecer o caráter científico, metódico e totalitário. Nesse contexto, a arte, a exemplo da
26
ciência, desenvolveu uma preocupação crítica em relação à natureza, novos valores foram
buscados, apesar de que ainda não se estava diante de uma sociedade caracterizada por uma
verdadeira revolução moral. Na pintura, por meio do uso da perspectiva, criou-se um novo
significado para a representação, que conduziu, no decorrer do tempo, até à tela eletrônica.
As imagens corporais deveriam ter a harmonia da natureza e estavam simbolicamente
ligadas a virtudes como juventude e beleza, mas eram vistas, ainda, como um instrumento que
transmitia valores ligados à religião, embora de maneira diferente do conceito de corpo do período
medieval.
A pintura clássica renascentista passa a sensação de imagem escultórica, pois a
representação dos corpos tem como fundação a estatuária grega. Na pintura de Sandro
Botticelli, Primavera (1510), observa-se a clareza de contornos, característica dos artistas da
escola florentina, com sua acentuada volumetria.
Figura 9 – Sandro Botticelli. Primavera. C 1470/80. Têmpera sobre madeira. a 175,5 cm x l 278,5cm. Galleria degli
Uffzi, Florença.
Figura 10 – Gianlorenzo Bernini. O Êxtase de Santa Tereza. 1645-52. Mármore, tamanho natural. Capela Cornaro, Santa
Maria della Vittoria, Roma.
Outro exemplo são as considerações feitas por Gombrich, sobre a obra de Rubens,
Alegorias sobre as bênçãos da paz, 1629-30:
Ele não tinha uso para as formas ‘ideais’ da beleza clássica, que considerava
demasiado remotas e abstratas. Seus homens e mulheres são seres vivos, tal como os
via e lhe agradavam. E assim, como a esbelteza não era moda na Flandres dos seu
tempo, algumas pessoas objetam às ‘mulheres gordas’ em seus quadros
(GOMBRICH, 1999, p. 403).
28
Figura 11 – Peter Paul Rubens. Alegoria sobre as bênçãos da paz. C 1629/30. Óleo sobre tela. a 203,5 cm x 298 cm.
National Gallery, Londres.
Pode-se notar que, no Barroco, o corpo humano foi representado repleto de energia,
deslocamentos e pulsões, para fortalecer a relação do objeto representado com o observador,
considerada como um princípio de fusão entre obra e espectador. Também, no contexto
cultural do Barroco, foram explorados temas referentes ao horror e à morte, aparecendo a
representação da mulher feia. De acordo com Eco (2007, p. 169), as imperfeições da mulher
foram, por vezes, expostas como elemento de interesse e por outras como estímulos de prazer,
podendo-se observar que as produções dessas imagens foram influenciadas e forjadas segundo
interesses de agentes institucionalizados, como o estado absolutista e a igreja, que eram os
poderes vigentes na época.
Abre-se um parêntese para uma breve reflexão sobre a imagem da mulher gorda. Ela foi
representada de diferentes maneiras e significados, que variavam de acordo com as estratégias
sociais adotadas de cada época. Se, em determinados momentos históricos, a figura da mulher gorda
representava feminilidade, fertilidade e maternidade, a exemplo das mulheres de Rubens, em outros,
a gordura funcionou como um signo social pejorativo, no sentido de estar associada à mortalidade,
abjeção e feiura. Isso leva a constatar que ela foi usada como meio segregador, pensada e
concebida como um modo político de separação discriminatória das mulheres em classes e etnias.
Como observa Russo (1995), no século XIX, a gordura deixou de ser um sinal de riqueza para ser
cena de pobreza, em uma cultura sexual e socialmente dividida. Nesse sentido, as mulheres gordas
passaram a ser estigmatizadas e vistas como o receptáculo de vergonha e de desejo reprimido,
representadas como aberrações e lugar de doenças.
29
Durante o século XVII, o sexo era ainda classificado como categoria sociológica e não
ontológica, a biologia regia as normas culturais e, assim, a cultura era gerada nos princípios
da biologia. Essa ambivalência se tornou necessária tanto nos aspectos sociais quanto
psicológicos.
Para Laqueur (2001, p. 191), o sexo como se conhece hoje foi inventado no século
XVIII: “há duas explicações para a forma como os dois sexos modernos, como nós
imaginamos, foram e continuaram a ser inventados: uma é epistemológica e a outra, falando
em termos gerais, é política”.
As teorias epistemológicas do século XVIII implicavam no fato de que o corpo era
visto no plano da natureza e se distinguia das concepções da religião, credos, superstições e
ficção. Elas passaram também a classificar o masculino e o feminino como sexos biológicos
opostos e incomparáveis.
Para os teóricos do campo da política, como Hobbes e Locke, a autoridade - fosse ela
do rei sobre o súdito, do escravizador sobre o escravo ou do homem sobre a mulher -, não se
constituía em bases naturais, lei divina ou na ordem cósmica transcendental. Para eles, o ser
era visto como uma entidade sem sexo e cujo corpo não importava para a política; essas
ideias, como se percebe, iam contra o direito à diferença e todas as complexidades e
problemáticas dele advindas. Sobretudo, eram os homens os que faziam o contrato social e,
dessa forma, criaram o conjunto de “regras” com leis que garantiram a sobrevivência do
sistema patriarcal, pois eram os homens que se tornavam os chefes de famílias e nações 5.
Como se pode observar, em qualquer das teorias, são os homens e não as mulheres que
fornecem as estratégias e convenções para as práticas sociais e culturais, bem como das
ciências e das representações estéticas.
Entende-se, dessa maneira, que a questão das distinções identitárias se constitui no
objeto que permeará as artes, a cultura e a ciência no liberalismo. O corpo, e em especial o
corpo feminino, será novamente posicionado e relacionado socialmente com base em supostas
diferenças biológicas, agora defendidas por antropólogos como Roussel e Moreau, os quais, a
partir das diferenças corporais, defendem a existência de leis sociais e legais diferenciadas
entre homens e mulheres.
5
Essas considerações, bem como as que seguem e constituem esse painel histórico, tem como base as
investigações de LAQUER (2001).
30
Cientistas como Vogt e Arthur Keith fizeram uso de metáforas que postulavam
analogias entre “diferenças raciais e sexuais” 6, ou ainda, “entre diferenças de raça e classe”
(STEPAN, 1994, p. 77) e, a partir delas, começaram a produzir novas informações. Exemplo
são as analogias feitas entre as mulheres e as raças por eles consideradas “inferiores”, como
os negros. Em tais construções analógicas, o formato da cabeça determinava o estágio em que
se encontrava o desenvolvimento humano. Também faziam parte desse grupo, por terem essa
estrutura de crânio, os loucos e os criminosos.
A diferença construída por analogia também se observa nas teorias de Darwin, as
quais tinham como fundamento o processo discriminatório de “seleção natural”. Nelas, as
analogias eram aplicadas tanto para questões relacionadas ao sexo quanto para as raciais: o
processo de “seleção natural” é que iria determinar a vida.
No século XIX, a aparência física do homem europeu e branco é que constituía
um dos elementos formadores e instrumento inquestionável da característica do que se
denominava “civilizado” e “humano”. Diante desse quadro, a sociedade positivista
promovia, quando necessárias, algumas alterações corporais na estrutura física e
simbólica dos sujeitos em suas representações.
Nos anos de 1800, também dentro da classificação de gênero e classe, a aceleração
dos processos de mecanização, provocou transformações que afetaram de forma significativa
a sociedade como um todo: o corpo foi transformado em um instrumento de trabalho e a
máquina se tornou extensão do humano. Dentro dessa perspectiva, o progresso foi gerado em
várias partes do planeta, ativando e provocando conflitos raciais e de gênero. No caso desses
últimos, pode-se citar como exemplo, o movimento sufragista (1870), ocorrido na Inglaterra,
no qual ativistas questionaram a desvalorização das mulheres quanto aos direitos e
responsabilidades cívicas. O corpo na sociedade industrial usado como gerador de renda, na
medida em que o aumento da produtividade se firmava nos finais do século XIX e persistia
durante o século XX, cumpriu um papel fundamental no processo de desenvolvimento
capitalista rumo à globalização econômica atual.
Contraditoriamente, porém, na lógica capitalista que explorou a capacidade máxima de
trabalho humano, foi a máquina e não o homem - de forma criativa -, que introduziu o ritmo
de vida repetitivo, acelerado e dinâmico, de maneira a suprir o mercado, com novas e mais
mercadorias (superacumulação). Sobre o capital e seus processos de reprodução da vida
6
Essas referências que dizem respeito a questões de raça e gênero foram elaboradas a partir do artigo de Nancy
Stepan, Raça e Gênero: o papel da analogia na ciência, (org. Heloisa Buarque de Holanda, 1994, p. 72-96).
31
social, Harvey (2006, p. 307) descreve: “o processo mascara e fetichiza, alcança crescimento
mediante a destruição criativa, cria novos desejos e necessidades, explora a capacidade do
trabalho e do desejo humanos [...]”.
A interpretação do corpo social, nesse período, passou por certa “assexualidade”, e
isto se deu pelo fato de se evitarem determinados confrontos e ameaças, que poderiam ser
originados pelas versões anteriores do corpo. A sociedade tecnocrata certamente estimulou
uma parte das mulheres ativistas feministas a elaborarem discursos que se apropriaram da
secular visão da diferença biológica dos corpos. Nessa perspectiva, homens e mulheres seriam
totalmente determinados à incompatibilidade, argumento usado até mesmo para substituir a
interpretação teleológica masculina do corpo.
No século XIX, a feminista Millicent Fawcett 7 posicionava-se contra a visão do corpo
assexuado recorrente nos discursos públicos de então, afirmando que “nós não advogamos a
representação das mulheres por não haver diferença entre homens e mulheres, mas
exatamente pela diferença que existe entre eles” (apud LAQUEUR, 2001, p. 245 - grifos da
autora). Segundo ela, eram exatamente as experiências das mulheres as que importavam à
constituição de uma legislação capaz de garantir seus direitos, como o de usufruir mais
liberdades, usando daquilo que era inerente as suas qualidades femininas para, assim,
crescerem em poder e força.
Como se pode ver, já estão postas nessas ideias algumas das concepções feministas
que serão posteriormente relacionadas aos limites e afrontamentos filosóficos do
essencialismo, que determina a distinção e a separação entre sexo e gênero no que diz respeito
às igualdades e diferenças.
O século XX desponta com inquietações e mudanças. Assistiu-se, especialmente nas
grandes cidades, a explosão dos limites fixos dos territórios da ciência, das culturas e das
certezas do século anterior em relação aos campos biológico, científico e políticos.
Ainda persistiram, contudo, pensamentos calcados no progresso mecanicista e outras
implicações se verificaram nas noções de tempo e de espaço. Em razão disso, surgiram
características particulares nas tramas econômicas e sociais, com consequências que
interferiram nos modos de vida e nas relações sociais.
A civilização, durante o século XX, e, sobretudo, depois da segunda guerra, vê uma
aceleração dos processos tecnológicos e da transformação do corpo, que passa a ser
questionado até mesmo nos meandros da escala evolutiva: o corpo é dotado de características
7
Para um apanhado mais amplo sobre a condição da mulher, ver Millicent Fawcett, “The Emancipation of
Women”, Fortnight Review, 50, novembro de 1891.
32
que suprem as demandas geradas na sociedade da informação. Nesse processo, teve impacto,
entre outras “descobertas”, a de Freud, que, em 1905, revela a existência do orgasmo vaginal,
declarando existir outro ponto de prazer nas mulheres além do clitóris. Nessa perspectiva, o
conceito de corpo vai sofrer alterações sob novos parâmetros e aportes teóricos no campo da
ciência, da tecnologia e ou da arte, bem como as teorias feministas irão despertar e criar
questionamentos e possibilidades para a construção de outras identidades e corporeidades.
Como se pode observar, a história política das mulheres começou a ganhar forma a
partir do século XIX e tentou-se, desde então, reverter – por meio de um processo crescente
de revisão dos conceitos de gênero, corpo e sexo – a história que fora construída de maneira
discriminatória e hierárquica. Buscou desmontar, assim, uma situação hegemônica de
autoridade masculina que se valeu da representação das mulheres construída por meio de uma
iconologia fisiológica de superfície.
Dessa maneira, as imagens corporais, além de serem um instrumento para o exercício
de poder, justificavam as desigualdades existentes entre as mulheres e os homens. No centro
dessa questão, está colocada a dominação masculina, portadora de uma ordem social que
confere maior importância a valores que foram determinados como pertinentes à esfera
masculina. Nesse sentido, o sexo é o fator por excelência da dominação, condicionante social
da superioridade do homem, o que lhe confere autoridade. Isso terminou por se manifestar
como marca no corpo físico e emocional de mulheres e homens, e fortaleceu um processo de
culturalização “machista”.
O poder atribuído socialmente aos homens é decorrência de processos sociais que são
constituintes dos simbólicos culturais dos sujeitos. O corpo, nesse sentido, atuou como
divisor, o espaço por excelência da dominação masculina que foi cotidianamente reproduzida
nas relações pessoais. Os vínculos oriundos desse tipo de relação e a maneira como os sujeitos
passaram a se relacionar foram incorporados e fortalecidos pelas instâncias institucionais da
família, religião e educação, assim se construindo como corpo social. Desse modo, essas
instituições foram formadoras de uma mentalidade que colocou o corpo biológico como
modelo para uma definição de sistemas reguladores de toda ordem moral e estética.
É possível pensar que, se o corpo masculino determina as normas, aquilo que não é
determinante de normas, isto é, o que se estabelece pela transgressão, está associado ao corpo
feminino.
No âmbito de todo esse processo de subjetivação, está inscrito o que se instituiu como
a ordem natural das coisas. Para o pensamento corrente, as situações derivadas dessas relações
assimétricas são inevitáveis, imutáveis, fazendo com que homens e mulheres aceitem o que
33
foi determinado como sendo da natureza masculina e da natureza feminina, do que é possível
a um e impossível ao outro: a força é da natureza do homem, enquanto a mulher é vista como
o sexo frágil; o poder é masculino, a submissão feminina. Os vínculos que se estabelecem
entre o dominador e o dominado com esse tipo de relação são da ordem do simbólico, e o
dominado, muitas vezes, não tem consciência da sua própria dominação.
Continuamente foram fortalecidas estratégias ideológicas para a perpetuação
dessa“ordem natural das coisas”. A esse propósito, Pierre Bourdieu (1999, p. 83) observa:
34
além de preconceito, uma conduta que tenta manter a autoridade masculina longe dos
conflitos e das possíveis resistências.
Por isso a reflexão em torno dessa questão não pode ser superficial ao se imaginar as
relações como uma estrutura mecânica, na qual a ordem do sistema está posta, sem sofrer
reação. Uma ideia assim acaba por relegar a autonomia do sujeito dominado, bem como a
resistência e a mobilização das mulheres para a real efetuação de reformas políticas, capazes
de desmantelarem esse contexto.
Tudo isso é fruto de uma trajetória, pois a produção de conceitos feministas a
propósito de inventar a mulher como um sujeito autônomo se sedimenta no cotidiano e nas
vivências das próprias mulheres, contradizendo Simone de Beauvoir: ao invés de sua célebre
frase, “uma mulher não nasce mulher, torna-se mulher” 8, afirma-se que uma mulher já nasce
mulher.
Ao longo da história, a arte sempre explorou o corpo como seu objeto: com o ideal de
beleza, testemunho de uma época, no classicismo grego; descarnificado na figura bizantina;
fragmentado pelos cubistas; cortado pela body art e, recentemente, banalizado por meio da
cultura de consumo, na qual as mensagens corporais são verdadeiras obsessões.
É possível perceber, também, o poder que as imagens despertam numa cultura
dominada pelas aparências, na qual o corpo se torna um signo do desejo e uma mercadoria.
No universo de imagens produzidas pela propaganda, cinema, televisão, e até mesmo pela
arte, dá-se a manipulação de uma série de sentidos por meio de códigos sutilmente inseridos;
utilizando-se de tecnologias, cria-se um cenário de mensagens visuais que servem para
persuadir, influenciar e induzir consumidores, a partir do corpo.
Na sociedade da informação, a indústria cultural globalizada não está preocupada em
produzir valores de permanência, mas, sim, em produzir “coisas” efêmeras. Na sua aparência,
o corpo, que contém o valor de uso prometido pela indústria da cultura visual, surge com a
função de venda: o corpo oferecido é usado como objeto de desejo, é o estético-corpo-
mercadoria usado como instrumento. A mercadoria retira a sua linguagem estética do corpo,
as pessoas retiram a sua expressão estética dos objetos anunciados. Nessa fusão entre o valor
de troca e o desejo, as necessidades de consumo do corpo tornam-se vitais e, na medida em
8
Simone de Beauvoir, 1980, “O Segundo Sexo”.
35
que a estética da mercadoria é recebida pelo sujeito espectador, ela impõe comportamentos
fictícios diante da realidade. Isso significa adotar modos de ser, incluindo adquirir o corpo que
se deve ter e a roupa que se deve usar. Assim, no simulacro das aparências, o espectador se vê
enganado pelas mais belas ilusões em relação às suas necessidades; é o desajuste entre o
corpo que o sujeito deseja e o que ele não pode ter. Nesse sistema de representações, torna-se
necessária uma constante inovação na estetização do corpo, gerada pela também constante
exigência de maiores lucros.
Para acontecerem tais transformações no campo estético, a sociedade de consumo
utiliza-se da mídia, valendo-se de seus aparatos, lança intermitentemente novas gerações de
homens e mulheres que satisfazem e se satisfazem com esse mercado. Para tanto, recorrem às
referências de modelos “perfeitos” na composição de novos padrões de beleza, nos quais a
imagem do corpo é explorada como um meio de se atingir um fim (lucro).
Em virtude de tal maquinação da mídia são criados os estereótipos. No corpo atual, a
ordem das representações é invertida, as imagens corporais no imaginário se esvaem, as
representações simbólicas do corpo com finalidade de uso real estão presentes e, num
constante deslizamento entre imaginário e simbólico, o corpo é coberto de aparências, de
simulações. As “medidas” do mercado impõem suas escalas, o espaço da vitrine, das mídias,
da passarela é constantemente confundido com o real.
A mídia e a indústria divulgam ao mesmo tempo juventude e beleza como acessórios
fundamentais da nova linguagem padronizada. O fetichismo da juventude, aliado à
obrigatoriedade de se ser jovem, tem suas consequências nesses novos padrões de beleza do
corpo desejado, em que os movimentos de gosto e de estilo criados pela sociedade encontram
o seu ímpeto num entusiasmo sempre renovado por novos modelos. Nesse universo de
consumo, a propaganda investe em imagens idealizadas, que, praticamente, não dão espaço
para as diferenças, para o estranho, para o imperfeito.
Ao mesmo tempo em que essas imposições da sociedade de consumo constroem um
estereótipo de corpo eternamente jovem, paralelamente abrem-se a discussão, apoiada nos
teóricos da pós-modernidade que defendem e constroem outras verdades, nas quais o corpo, o
indivíduo, tem direito de ser valorizado por ser diferente.
Assim, observam-se hoje alterações nos significados das representações do corpo que
começam a se emancipar das amarras impostas. Com as mudanças nos eixos de poder e de
conhecimento, não mais centralizados, a história da imagem corporal acompanha e reflete
esses movimentos, que são sempre condicionados por fatores políticos e econômicos. E, de
certo modo, a arte incorpora essas mudanças de conceito e comportamentos.
36
A aplicação de novos sentidos resulta no nascimento de um novo corpo, que é marcado
pela subjetivação, pela perda de organicidade e, metamorfoseado, difere daquele corpo que se
acreditava integral e sublimado, independente da imposição dos aparelhos de coerção e dos
aparatos culturais como a moda e a mídia. Essas são constituídas segundo as normas e os
interesses da sociedade à qual pertencem, que impõe suas marcas na matéria corporal, e cuja
capacidade de sugestionar está sendo questionada no decorrer dos últimos anos.
Hoje, portanto, não se tem mais uma única maneira certa de fazer e ver as coisas,
admitindo-se outras verdades e modos de vida. Dessa forma, a arte, incorporada à circulação
maior dos bens culturais, por meio dos aparatos tecnológicos de comunicação de massa, nega
tudo o que se conceituava como obra: é o fim das narrativas artísticas.
9
No subtítulo fez-se jogo de linguagem a partir do título O que vemos, o que nos olha do livro de Didi-
Huberman. O que nos olha, o que vemos remete de maneira simplificada à construção do olhar da mulher diante
da imagem que ela vê de si, imagem essa que, de certo modo, remete à imagem que o olhar masculino construiu
da mulher. Essa analogia com o título de Didi-Huberman tem origem na análise feita por este autor dos escritos
de Joyce, em Ulisses: “[...] eis que surge a obsedante questão: quando vemos o que está diante de nós, porque
outra coisa sempre nos olha, impondo um em, um dentro?” (HUMERMAN, 2005, p. 30). Em outra passagem
Huberman conclui: “devemos fechar os olhos pra ver quando o ato de ver nos remete, nos abre a um vazio que
nos olha, nos concerne e, em certo sentido, nos constitui”. Ainda, Stephen Dedalus, personagem de Joyce,
questiona: “quem escolheu esta cara para mim?” (apud HUBERMAN, 2005, p. 32).
10
A respeito dessas analises, ver especialmente o artigo “Prazer visual e cinema narrativo” de 1975, da cineasta e
feminista Laura Mulvey, no qual ela relata como os filmes holydianos tornaram o corpo feminino objeto de
prazer do espectador masculino. Seu relato é historicamente importante para um entendimento da construção do
olhar sobre o corpo da mulher.
37
Sendo construções sociais e objetivas, não trazê-las para o campo ideológico seria adotar uma
posição arbitrária e reducionista, posto que as relações de poder não são estáticas, mas
também construídas, não como fatos isolados e particularizados, mas constituintes de toda
uma realidade social.
Nas sociedades dominadas pelo masculino, o espectador vê o corpo feminino
essencialmente por um prisma de poder de um sexo sobre o outro, o olhar do espectador é
mediado por um sistema social em que prevalece a autoridade machista. A representação do
corpo feminino é destinada a dar prazer e a oferecer ao espectador uma sensação agradável, e
o cinema é um dos instrumentos de reprodução ideológica para a exibição de imagens
sexualizadas da mulher. De certa forma, com isso o cinema legitima a “invasão” do olhar
masculino sobre o corpo feminino, tendo a capacidade de formular um considerável poder de
decisão e de formular um olhar ideológico que se verifica também em vários outros âmbitos
da vida social.
Em 1975, a cineasta e feminista Laura Mulvey (2008) analisou essas questões no seu
texto referência, “Prazer visual e cinema narrativo”. Esse ensaio, segundo a autora, foi escrito
quando o movimento feminista discutia questões de representação, e nele ela abordou a
representação do feminino pelo cinema, utilizando a semiótica e a psicanálise para a sua
crítica, contribuindo com esse momento político. Nas palavras de Mulvey, “os códigos
cinematográficos criam um olhar, um mundo e um objeto, de tal forma a produzir uma ilusão
talhada à medida do desejo” (2008, p. 452). Para ela, a representação social do feminino pelo
cinema hollywoodiano é o efeito produzido no espectador ao converter a imagem da mulher
em “objeto” de prazer, manifestada na capacidade que o cinema tem de construir um olhar
subjetivo masculino.
A câmera é o recurso utilizado no cinema para aproximar o espectador do objeto
representado, e essa proximidade estabelecida com a imagem representada do feminino faz o
espectador usufruir o corpo como objeto de prazer visual. Assim, o espectador, conduzido
pela objetiva, constrói a imagem e é deslocado para um estreito relacionamento com os
personagens, passando a coexistir um amplo jogo de manipulação. Por meio da câmera, ele
não tem muito espaço para um distanciamento mais crítico em relação à imagem que está
usufruindo. Parece, assim, ser considerável a contribuição do olhar do espectador como porta-
voz da dominação masculina em relação à imagem representada do feminino.
Sobre a ordem simbólica falocêntrica, Mulvey observa:
38
Num mundo governado por um desequilíbrio sexual, o prazer no olhar foi dividido
entre ativo/masculino e passivo/feminino. O olhar masculino determinante projeta
sua fantasia na figura feminina, estilizada de acordo com essa fantasia. Em seu papel
tradicional exibicionista, as mulheres são simultaneamente olhadas e exibidas, tendo
sua aparência codificada no sentido de emitir um impacto erótico e visual de forma a
que se possa dizer que conota a sua condição de ‘para-ser-olhada’ (2008, p. 444).
1.4 Deus criou o homem a sua imagem e semelhança, mas Deus não criou a mulher
Essa metáfora cristã instiga pelo que afirma: se Deus criou o homem a sua imagem e
semelhança, esse homem seria uma cópia de Deus, permitindo concluir que as mulheres não
foram criaturas merecedoras da criação divina. Foram cópias de uma cópia, criadas a partir da
costela do homem. Eva, a segunda mulher de Adão, é a personificação do pecado por ter sido
seduzida pelo demônio ao comer o fruto proibido. Por ter levado Adão a cometer o mesmo
delito, foi castigada por Deus, sofreu uma série de punições e, segundo a Bíblia, toda a
Humanidade sofre, até hoje, por esse ato transgressor. A mulher, portanto, não é vista com
vontade própria, mas, antes, como vontade do homem. A Bíblia, entretanto, menciona uma
outra mulher, Lilith, aquela que seria a primeira mulher de Adão e que, por desobediência, foi
transformada em monstro feminino. Na tradição hebraica, transformou-se em demônio de
aparência híbrida, mulher alada desafiadora das leis divinas, e simboliza o lado negro da lua.
Essa aversão à mulher - especialmente à mulher transgressora - vem de tempos
remotos e está associada à ideia de que era ela quem produzia a desarmonia, não sendo assim
digna de confiança. Por isso e porque também se entregava aos prazeres da carne, o que
recebeu maior ênfase no universo cristão, a imagem da mulher era a da corporização do mal
como apontava o Canon Episcopi no século IX. Conforme Eco, “certas mulheres depravadas,
que invocaram Satanás e foram desviadas por seus logros e seduções, crêem e afirmam que
durante a noite cavalgam certas bestas, em companhia de uma multidão de mulheres, no
séqüito de Diana [...]” (2007, p. 206).
39
No decurso da Idade Média, surgiram também as representações de mulheres
“velhas”, o que, segundo Eco (2007, p. 159), era o “símbolo da decadência física e moral, em
oposição ao elogio canônico da juventude como símbolo de beleza e pureza”. É difícil
conhecer as origens mais precisas dessas representações, mas se sabe que a quebra de
comportamento feminino estava intimamente ligado à imagem do corpo da mulher e isso se
manifesta por sinais físicos, em analogia com a “deformidade” moral. Desse modo, o corpo
simbolizava o que não era considerado justo e aceito socialmente.
Como se vê, a imagem da mulher associada ao pecado e representada como tal
ultrapassou o tempo e os limites geográficos em que foi concebida e, de certa forma, se
mantém até hoje, garantindo o comportamento e as práticas culturais em relação à
dominação feminina, sustentada por seu caráter misógino. Nesse sentido, como aponta
Laqueur (2001, p. 32), “[...] há e houve uma considerável e frequente tendência
misógina em grande parte da pesquisa biológica sobre as mulheres; a história trabalhou
claramente para ‘racionalizar e legitimar’ as distinções, não só de sexo, mas também de
raça e classe, com desvantagem para os destituídos de poder”.
Desde meados do século XVIII, nas sociedades ocidentais, é feita essa associação
entre misoginia e estética, e se pode observar que a representação da imagem do corpo
feminino está ligada a valor moral, fiel a um modelo, como também observa Eco (2007).
Quando se dá a não aceitação desses valores pela mulher, a criação de imagens distorcidas do
feminino constitui-se como elemento de punição.
Figura 12 – Francisco Goya, O Sabá das bruxas, 1797-1798, Madri, Museu Lazaro Galdiano.
40
Para Freud, os complexos femininos têm origem no fato da ausência do pênis, mas
essa afirmação do pai da psicanálise vem sendo questionada 11. Tudo indica que aquilo que foi
dito, repetido, transmitido e assimilado acerca do complexo das mulheres está ligado a uma
camada mais profunda da existência feminina. Ou, de certa forma, provém daquilo que as
mulheres têm de “essencialista”: o termo é empregado por Danto (2006) para uma definição
em relação à filosofia da arte, mas é perigoso em seu sentido mais amplo por estar ligado à
existência de uma identidade fixa e universal da mulher, o que levaria a concordar com uma
forma de opressão, termo criticado por alguns discursos feminista 12.
Para Danto (2006, p. 217),
Com essa ressalva, adota-se esse termo por entender-se que ele pode ser aplicado a um
pluralismo que vai muito além dos limites e separações entre sexo masculino e feminino, pois
é a presença de algo que está na origem do ser e que, segundo o autor, ainda precisa ser
pesquisado.
A essência feminina está no modo como são manifestos, através dos tempos, alguns
sintomas e determinados comportamentos que são comuns às mulheres e que transpassam as
fronteiras de época, de religião e de moral. No entanto, se existe algo de intrínseco na atitude
feminina, também se percebe a influência visível do que é incorporado, introjetado ao
feminino e se pode classificar como traços comportamentais de natureza cultural, política e
social, que são ideais associados à questão de gênero de cada época. Pode-se então afirmar
que essas questões não pertencem à essência porque elas são condicionantes externas, pois o
que pertence à essência nada tem a ver com valores e padrões de ordem política, social e
moral. É claro, porém, que, por razões óbvias, somos sujeitos sociais, e a busca da essência de
forma alguma exclui a análise histórica dos acontecimentos.
11
Esse é um fundamento bastante relevante da crítica do feminismo. As noções dessas questões têm como
embasamento os estudos de Irigaray, nos quais a psicanalista faz objeções às teorias de Freud. Ela afirma que as
mulheres “não têm a menor necessidade do pênis nem do falo, mas sim, muito mais, de nascer para si mesmas e
de ganhar elas mesmas sua autonomia, e não menos que a liberdade de caminhar – ou seja, a liberdade de
afastar-se e aproximar-se de todas as maneiras” (1989, p. 171-186).
12
Para um entendimento mais profundo sobre o “essencialismo” nas teorias feministas contemporâneas, ver o
artigo de Rosi Braidotti, no livro Para além do falo: uma crítica a Lacan do ponto de vista da mulher (1989). A
autora desmistifica o uso incorreto do termo e constrói fundamentada formulação referente a uma posição teórica
feminista distintiva e relevante para a questão essencialista, pois afirma que as políticas estratégicas do
essencialismo são agora as políticas da mudança.
41
Historicamente, o ser humano carrega consigo uma dependência em relação à sua
imagem corporal formada por sistemas simbólicos de representação. Está na sua gênese,
pois é por meio da imagem que ele constrói a noção de seu corpo, constituindo-se,
assim, como sujeito. Nesse processo de constituição, o humano procurou se inventar, ou
por artifícios como o vestuário e os ornamentos, ou por transformações corpóreas que
marcam a própria carne, culturalmente determinadas por códigos de conduta. Desses, é
exemplo a tatuagem, que tanto pode ter apenas caráter estético quanto ser marca de uma
história social e pessoal. No passado, ela serviu de identificação de um submundo, um
sinal visível de exclusão social vinculado a seres inferiores, a marujos sem terra fixa, a
prisioneiros de guerra e de regimes como o nazismo, que imprimiu marcas nos corpos de
judeus e homossexuais, em um momento em que o corpo deixou de ser propriedade do
indivíduo para ser propriedade do Estado.
Por esse ângulo, as alterações operadas no corpo levam a crer que, desde os povos pré-
históricos, “o homem não é verdadeiramente natural”, segundo Dorfles (1990, p. 18), pois foi
sempre cercado de artifícios, como pinturas corporais, incisões, perfurações, ornamentos e
vestuário. Essas modificações do corpo como valor de identidade dão a dimensão das imagens
corporais de acordo com os locais de inscrição, pelo modo como elas foram elaboradas,
segundo códigos, hábitos, costumes e rituais, e como afetaram de maneira considerável a
percepção e a concepção que os sujeitos tinham de si e de seu contexto. O sistema de imagens
sempre fez parte da formação dos simbólicos sociais.
Pode-se observar que esses sistemas simbólicos das representações corporais e dos
artifícios são distintos para o sexo masculino e para o feminino e vão além da simples
necessidade de diferenciação, mesmo quando situados em uma mesma época. Essa distinção
se apresenta, quase sempre, como um meio separador do que socialmente é colocado em dois
pólos, e que permite pensar o homem e a mulher enquanto pertencentes a espécies diferentes,
tanto no que respeita as representações corporais, em se tratando da expressão da sexualidade,
quanto à existência de uma sensibilidade especificamente feminina.
Sabe-se que a alegoria filosófica de Platão, no Livro VII da República, refere-se a uma
caverna onde homens trancados e de costas para a luz da entrada veem apenas sombras de
objetos refletidos nas paredes. Trata-se de um questionamento da condição humana em só
perceber a aparência (fenômeno) da realidade (ideias).
42
Como narrativa contemporânea, longe, por certo de qualquer aprofundamento ou
sentido filosófico, encontra-se a caverna do Batman. Inacessível, principalmente às mulheres.
Lá é o lugar onde o personagem esconde a sua verdadeira identidade. Na sua vida não existe a
presença feminina, o que leva à dúvida de se estar diante de alguém autossuficiente - um
supermacho - ou de um sujeito incapaz de assumir o que realmente gostaria de ser.
A caverna, como metáfora, tem aproximação com o corpo feminino, como parte
daquilo que é profundo, escondido, terreno, escuro, material. Se essa imagem simbolicamente
corresponde às imagens naturais da mãe terra, em seu sentido etimológico aproxima-se do
termo grotesco, um adjetivo masculino, de sentido pejorativo: é “coisa” bizarra, disforme e
ridícula. Em sua raiz, essa instigante e complexa palavra traz ambiguidade, pois grotesco
origina-se de grota-esco ou caverna, um substantivo feminino que segundo o Dicionário
Houaiss significa cavidade profunda de uma rocha, podendo ser desdobrada como cavidade,
parte oca no interior de um corpo ou objeto. Muitas são as narrativas míticas e alegóricas
sobre cavernas e algumas instigam mais por seus personagens e pela moral que veiculam.
Para Russo (2000), o grotesco não teve sua origem em um fenômeno de caráter
natural, mas em um acontecimento histórico-cultural: em uma escavação, foi encontrado o
Palácio Domus Áurea 13 (Roma, século XV), descoberta importante para uma nova visão da
cultura renascentista por nele ter sido encontrada uma série de desenhos em que partes do
corpo humano se combinam com vegetais e animais. Isso, contudo, por si só não determina a
origem do grotesco, pois essas formas já haviam sido encontradas na Roma Clássica. A
definição do grotesco como categoria apareceu com o interesse em tratados estéticos como De
Architectura de Vetruvius (c. 27 a. C.), que associava o estilo clássico com a ordem natural e,
consequentemente, definia o grotesco como o representante das associações irracionais, do
fútil, do artificial e de elementos que a arte clássica excluía de seu repertório.
No mundo pagão, segundo Russo (2000) anterior ao advento do cristianismo, as
criaturas híbridas faziam parte da imaginação do coletivo, enquanto que nas sociedades
ocidentais elas foram incorporadas pela arte cristã e marginalizadas. Isso originou figuras
“sujas”, que durante muito tempo foram consideradas triviais e rebaixadas, não obstante
figurassem como simples elementos decorativos na arte “popular”.
Importa destacar, no entanto, que o grotesco surge somente em relação às normas que
excede. O grotesco feminino, para Mary Russo (2000), está muitas vezes relacionado ao
híbrido, sendo ele um lugar das associações, intrincamentos, mesclas e justaposição de
13
Sobre isso ver Nicole Dacos, La Decouverte de la Domus Aurea et la Formation des Grotesques à la
Renaissance. Londres: Warburg Institute, 1969.
43
elementos que, aparentemente, não são da mesma natureza. Exemplo é a personagem do filme
de Tod Browning, Freaks 14.
Figura 13 – Freaks, 1932, direção de Tod Browning. O corpo mutilado de Cleópatra é exibido como uma
mulher-pinto, transformada em mulher má. A feminilidade é inerte, hipervisível e
sadicamente vista como horror.
que as mulheres recorriam com frequência ao grande espaço de uma imagem central,
geralmente uma flor ou uma versão abstrata de uma forma floral, rodeada de pregas
e ondulações, como na estrutura de uma vagina [...] em muitas delas aparece um
orifício central, cuja organização formal funciona com frequência como uma
metáfora do corpo feminino ( apud MAYAYO, 2003, p. 90-91).
14
Para um entendimento sobre aberrações e a cultura freak, ver Leslie Fiedler, Freaks: mysths and images of the
secret self Nova York: Simon and Schuster, 1978.
44
Figura 14 – Judy Chicago, Peeling Back, 1974, lapís sobre tela, 90X72 cm, San Francisco Museum of
Art, San Francisco.
45
Em Dados: 1º A Queda de Água, 2º O Gás de Iluminação, (1946-66) de Marcel
Duchamp, uma figura nua e de pernas abertas mostra uma fenda entre as coxas.
Figura 16 – Vista através da porta da instalação: Dados: 1º A Queda de Água, 2º O Gás de Iluminação, 1946-66.
242,5X177,8X124,5cm, Filadélfia (PA), Philadelphia Museum of ArtGift of the Cassandra
Foundation.
Tanto na obra de Coubert quanto na de Duchamp vê-se que os rostos não estão à
mostra do espectador, escondendo assim as suas identidades.
Relacionando ao corpo de Orlan, a associação se dá entre o que é superfície corporal,
que está à mostra como artifício, com o que é estranho, no sentido da transformação, dos
deslocamentos, da combinação de elementos que fazem emergir uma figura híbrida. Não se
coloca no que é de profundidade, interno, como a menstruação que, em muitas culturas, era
vista como impureza, o biológico que implica em morte e nascimento, ligado à materialidade,
e como tal, corpo natural sem artifício.
46
Figura 17 – Refiguração pré-colombiana, Self-Hybridation nº1, 1998, 116x166 cm ou 74x104 cm. Cibachrome.
Ajuda técnica na edição digital: Pierre Zovilé.
15
Para leitura relevante dessa questão, ver Henri-Pierre Jeudi, O corpo como objeto de arte, 2002, p. 83 a 88, no
qual o autor fala das funções e sentidos atribuídos socialmente à pele, e traz entre alguns exemplos a escultura
intitulada Vanits, de Gregor Erhart (1500), um conjunto formado de três corpos de costas, um para o outro, um
casal de jovens e uma senhora idosa.
47
Figura 18 – Máscara mbangu meta preto, meta branco, rosto de mulher euro-stéphanoise com bobs, 2000.
Fotografia digital, tiragem em papel fotográfico colorido: 125x156cm.
Trata-se do surgimento de um novo corpo, que pode ser aberto, repleto de distorções,
próteses, acrescentado, múltiplo e mutável. Desse modo, origina-se um corpo em
transformação constante, na busca não de uma identidade única, mas de várias, ligado à
subjetividade e à mercê de múltiplas determinações, que estão além da divisão de corpo
biológico (natural). No caso de Orlan, as mutações em seu corpo são obtidas por cirurgias
plásticas, performance e, como já foi indicado, ela, a partir de 2000, constrói corpos híbridos
com recursos da tecnologia digital.
16
Disponível em: http://www.stanford.edu/class/history34q/readings/Orlan/Orlan2.html. Acesso em: 17 de abril
de 2009.
48
As suas mais importantes influências são a obra de Marcel Duchamp e o movimento
de Maio de 68. Seu trabalho consiste em transformar permanentemente o seu corpo por
performances, manipulação de imagens suas computadorizadas ou, de forma radical, por meio
de intervenções cirúrgicas, realizadas a partir da década de 1990. Após a sua morte, pretende
doar o seu corpo a um museu, como peça mais importante de uma instalação vídeo-interativa.
Orlan é uma artista que investiga e explora o território da arte corporal. Faz parte da
geração de artistas críticos do pós-guerra que souberam imprimir novos valores às
experiências artísticas contemporâneas. Eles são alguns dos fundadores de práticas artísticas
que exploraram os meios tecnológicos para a produção de sentidos em processos híbridos.
São práticas norteadoras de princípios que conduziram várias gerações de artistas jovens a
abandonarem a pintura narrativa e outros suportes tradicionais, habitualmente usados na arte.
Sobre isso, Danto (2006, p. 165) observa,
[...] que a pintura começou a assumir na era pós-narrativa, quando seus pares
não eram pinturas de outros tipos, mas performances, instalações e, é claro,
fotografias, arte da terra, aeroportos, trabalhos em fibra e estruturas
conceituais de todos os tipos e ordens. A era pós-narrativa proporciona um
imenso menu de escolhas artísticas, e em sentido algum impede que um artista
faça todas as escolhas que quiser.
17
Termo criado por Orlan.
49
há séculos determinava duplo papel em relação a homens e mulheres, preservando tabus e
virtudes castradoras e, com isso, negando o direito às mulheres de disporem livremente de
seus corpos.
A partir dessa tomada de consciência, a arte de Orlan passou a anunciar os
desconfortos de uma feminilidade antiestética e narcisista 18 em seu trabalho. A analogia que
se faz com o narcisismo é a quebra do espelho, isto é, da imagem da mulher como o reflexo
do olhar masculino. Sua atitude perante a vida e a arte não deve ser entendida como a
ocultação de uma condição feminina, mas, sim, como a superação da expressão individual: ela
via e sentia as coisas do mundo e da arte do ponto de vista mais complexo e social. Assim,
radicalizou seu fazer artístico, de modo a incorporar a crítica às experiências artísticas, além
de questionar as relações de poder como um todo.
Um de seus primeiros trabalhos na década de 70 propunha medir prédios
institucionais e lugares públicos, utilizando o seu corpo como instrumento de medição,
como módulo. As performances consistiam em quantas “Orlans” teriam os prédios ou
praças. Nesse trabalho, já estão colocados, em sentido simbólico, os princípios
questionadores de sua imagem diante da sociedade.
Na atuação de militante, reivindica o direito das mulheres de disporem livremente de
seus corpos e declara a liberdade sexual. Isso pode ser observado na performance, Beijo da
artista (1976), na qual, no jogo de cena, ela oferece seu corpo para qualquer um e a todos.
Com relação a essa performance, Lydie (2001) observa que Orlan oferece, sem
descriminação, a homem ou mulher, heterossexual ou homossexual, considerados amantes
potenciais, uma comunicação orgíaca de baixo custo, conforme imagem abaixo.
18
Narcisismo pode ser entendido, levando em conta as considerações de Mulvey, em Prazer visual e cinema
narrativo (1975), como uma fusão entre o espectador e o personagem com o qual ele se identifica, e o prazer que
resulta do ato de olhar.
50
Figura 19 – Performance Beije a artista, com a cliente, na FIAC, no Grand Palais, 1977. Fotografia em
preto e branco.
51
Figura 20 – Vênus-Orlan, 1994, 126x134 ou 46x48, caixa iluminada com fotografia colorida. Uma fusão do seu
rosto com o de Vênus de Botticelli.
Figura 21 – Primeira performance Sugery ou a operação Unicorn, 1990, fotografia colorida – 110x165 cm,
figurino de Charlotte Calberg.
52
Em um importante cruzamento de materiais, costuras, cores e texturas, os corpos
resultantes desses procedimentos híbridos remetem à sensação de não haver mais lugar para a
própria Orlan, estabelecendo-se, consequentemente, uma antítese na emancipação natural e
psicológica da imagem. Ampliam-se, dessa forma, as possibilidades de expansão de um novo
corpo, que traz a dialética de estar sempre presente dentro de sua própria ausência, que traz
consigo a sua “auto-não-representação”. Com isso, o corpo se transforma em espaço de
discurso político e meio denunciador da arte institucional, principalmente a regida por
princípios masculinos.
Assim, é possível perceber que a noção de transgressão em Orlan, que está na base
dessa pesquisa, mostra-se pelo rompimento da aparência corporal da mulher, determinada por
parâmetros socialmente assimilados.
O corpo também serve como espaço de desconstrução de paradigmas, quando é
transformado e profanado por meio de elementos alheios à iconografia sacra. Com isso, Orlan
altera o imaginário religioso das representações que durante séculos apregoavam a piedade e a
entrega feminina, tal como visto na representação de virgens desde a Idade Média.
Na performance Virgem Negra e Virgem Branca (Fig. 22), encontra-se essa reflexão,
bem como a inversão: a história da virgem constitui um fenômeno estranho e retrógrado,
por conta da imagem sublime como vem sendo escrita e representada até hoje na
sociedade ocidental. Essa obra de Orlan quebra com a genealogia como tradição única e
ininterrupta que isola e exclui as mulheres entre as boas e as más, trazendo ainda a
leitura de uma representação que pode ser comparada à imagem da mulher mãe sensual e
sexuada.
53
Figura 22 – Vídeo e céu em Skai 19, a assunção da Virgem Negra e Branca, 1983 – 120x160 cm,cibachrome
stuck e alumínio.
O corpo na obra de Orlan contém, ainda e por trás de suas representações, a afirmação
de que na sociedade ele é constituído de muitas máscaras, a fim de exercer o poder do
disfarce. Esse disfarce se dá no sentido de engano, de se negar a ser corroído pelo tempo, de
exercitar o poder de esconder, assim como a própria história das mulheres tem sido
disfarçada, ocultada e não reconhecida.
De maneira simbólica, Orlan recorre a essa questão, em 1989, ao transformar A origem
do mundo, de Courbet, no seu A origem da guerra. Neste trabalho, ao invés da vagina,
representa o pênis de um homem de pernas abertas, na mesma posição da mulher do quadro
de Courbet. A máscara 20 está colocada como disfarce e dela o olho do espectador não se
desprende. É difícil afastar o olhar, como num processo de hipnose e, ao mesmo tempo, há o
esvaziamento da imagem, considerada a importância que a crítica faz ao poder masculino, e
por seu caráter antifalocêntrico, dentro de princípios feministas. A forma como Orlan mostra a
imagem é o exemplo de uma subversão do ícone do falo, a partir de um “contemplar
19
O termo corresponde a ondas de ar, bem como a 1ª estação mundial de TV sem assinatura que usa somente a
tecnologia digital e sem cópias.
20
A máscara é vista nesse contexto como algo feminino (para homens e mulheres) e, como problematiza Mary
Anne Doane, o objeto ou a coisa mascarada pode “criar uma distância da imagem, para gerar uma problemática
dentro da qual a imagem pode ser manipulada, produzida e interpretada por mulheres” (apud RUSSO, 2000, p. 86).
54
masculino” por meio da visão feminista, eliminando, dessa maneira, qualquer outra
possibilidade de interpretação.
Orlan é uma artista que provoca o público e a permanência da sua obra parece ser o
que menos lhe interessa. Pode-se compreender que, para ela, está em jogo, na arte, é muito
mais uma questão social do que estética: estar contra os poderes de opressão do sistema sobre
os indivíduos.
O corpo, que se pode encontrar no trabalho de Orlan, é consequência de valores de
ordem moral e pressupõe o escape individual escolhido pela artista para demonstrar o
descontentamento diante de uma sociedade que impõe ao corpo o modelo perfeito ou
idealizado, pois ele é o lugar principal do que se denomina humano. Porém, entende-se que
essa atitude da artista é o resultado de um corpo que transcende ao que a natureza e a
sociedade determinam. Na obra de Orlan, evidencia-se, ainda, uma profunda crítica à
concepção do corpo cristão, que se separa da alma, e que, segundo os dogmas, incorporou a
dor como forma de conversão à redenção.
Assim, o resultado apresentado por Orlan são os inúmeros deslocamentos da estética
corporal sensorial para outras esferas ligadas a diferentes sentidos e conhecimentos, não
interessando a temporalidade, o lugar e o humano: é um território sempre em aberto. Isso
remete simbolicamente a Pierre Levy e o seu espaço cosmopédia, lugar em que se organizam
novos saberes, sempre aberto a novas dinâmicas. O corpo de Orlan se aproxima da proposta
de Levy, pois
55
[...] a cosmopédia contrapõe um grande número de formas de expressão: imagem
fixa, imagem animada, som, simulações interativas, mapas interativos, sistemas
especialistas, ideografias dinâmicas, realidades virtuais, vidas artificiais etc. No
limite, a cosmopédia contém tantas semióticas e tipos de representação quanto se
pode encontrar no mundo (LEVY, 1998, p. 182).
Orlan não impõe limites à investigação corporal, pois a própria questão dos limites do
corpo está sempre em aberto, em inter-relação com o externo. A complexidade das
construções corporais da artista pode ainda remeter às seguintes considerações de Levy: “[...]
as paisagens e fronteiras da cosmopédia são móveis, com zonas de maior ou menor
estabilidade. Seus mapas estão em permanente redefinição” (1998, p. 182).
Assim é o corpo de Orlan.
Também as observações de Massimo Canevacci (1990) sobre o corpo na atualidade
permitem comparação com o corpo “aberto” de Orlan. Para esse teórico,
O corpo é, portanto, um espaço para o debate político e, como sustenta Orlan (apud
PEARL, 2001), é no corpo mostrado e aberto ao público que se vislumbra a construção de
novos sentidos e relações de poder. Nessas construções, a identidade não está bem definida e
não se pode percebê-la somente pela lógica da razão, mas é sentida como formações incertas
de personagens incertos. Justamente por esses personagens se inscrevem a desconstrução e o
esvaziamento de sua imagem, dando lugar a outras e novas representações.
O que Orlan faz com seu corpo talvez possa aludir ao jogo infantil que Didi-Huberman
(2005, p. 79) relata em “A dialética do visual, ou o Jogo do esvaziamento”, sobre a criança
que, deixada sozinha no quarto e na ausência da sua mãe, percebe os objetos que estão em seu
entorno e “povoam a sua solidão”: uma boneca, um carretel, um cubo, o lençol da cama, ou
seja, o que ela vê e como vê e o que ela faz com os objetos que estão diante de si. A criança
procura assim, criar uma imagem, algo que possa estar exposto ao seu olhar e a sua
disposição, e que a distancie da solidão, da ausência, da perda e da própria espera. Mais do
que isso, a construção dessa imagem é para a criança algo tangível, uma imagem
transformada em objeto concreto, que poderá ser alterado no momento da intervenção,
transformação, destruição. No caso da boneca, o que era atitude passiva do olhar e da ação da
criança, com um movimento se torna ato de controle sobre o objeto. A “vingança”, como diz
o autor, “convoca uma estética”, e é instaurada, dessa forma, a identidade imaginária da
56
criança (HUBERMAN, 2005, p. 81). Essa atitude, que num primeiro momento é de
perplexidade, alcança seu “prazer” com o “assassinato” do brinquedo, quando o ato torna-se
forma de poder. A “boneca é imitação” por ter forma de corpo humano, mas, diante da
criança, a boneca é o objeto manipulável, existindo o desejo de modificá-la, de quebrar a
semelhança da imitação. Poder modificar é o desejo da criança. Orlan repete a menina e o seu
desejo,
21
Imagem dialética a que Didi-Huberman se refere é extraída do conceito de Benjamin, que também é analisada
por Canevacci no artigo “Imagens dialéticas na cultura urbana” (1990). O conceito fica claro na p. 152 do livro
Antropologia da comunicação visual, quando o autor cita uma carta escrita por Benjamin, para Felicitas, mulher
de Adorno, na qual escreve que “A imagem dialética não reproduz o sonho [...]. No entanto, parece-me que ela
contém as instâncias, o ponto de irrupção do despertar, e que cria a sua figura justamente com esses pontos,
como uma constelação com os pontos luminosos. Trata-se também aqui, portanto, de esticar um arco, de vencer
uma dialética: aquela entre imagem e despertar”.
57
performances, na busca de novas expressões e valores – tanto na representação do corpo
quanto nos seus meios e espaços de apresentação – e fazendo uso de novas tecnologias,
inclusive digital como já citado.
Quanto aos espaços de apresentação das performances de Orlan, são suas ações que
fazem o espaço existir, pois suas intervenções podem ocorrer em qualquer lugar, reforçando a
relação entre a obra e o espectador. Mesmo assim, quando os espaços tradicionais das galerias
e museus são usados para as intervenções, eles tomam outras dimensões de território, o que se
deve ao fato da obra criar outros sentidos e conceitos para o local em que são apresentadas.
Na obra de Orlan, o corpo em mutação, por seu caráter híbrido, inclui as misturas de
fontes, materiais, procedimentos, suportes e meios, faz com que esteja sempre aberta a muitas
e variadas interpretações e este pertence ao domínio do público, não tendo, portanto, lugar no
privado. Essa ideia se mantém até certo ponto, pois se, por um lado, atesta a inexistência de
limites, por outro, em se tratando de intervenções cirúrgicas, necessita de um aparato
tecnológico que se compõe de aparelhos e instrumentos invasivos e, consequentemente,
precisam de salas especiais para serem utilizadas.
Diante disso, a obra de Orlan também se impõe como meio desintegrador de discursos
que ainda consideram a arte, a ciência, a tecnologia - e as relações dessas com o humano -,
como campos distintos. Conceitos que insistem em distintas separações entre corpo e
máquina, favorecidos por bases sociais que ainda afirmam o corpo humano, considerando
tradições artísticas, religiosas e sólidos e fixos paradigmas comportamentais.
Hoje, em uma nova ordem de conceitos maleáveis, construiu-se a noção de indivíduo
sem identidade fixa. Ações efetuadas no âmbito da arte, como as praticadas por Orlan,
promovem relações de mutabilidade num claro sentido de escapar às limitações impostas.
Por tudo isso, a obra de Orlan situa-se nas estratégias de rupturas e mudanças da
arte contemporânea. O termo contemporâneo é aqui entendido conforme a percepção de
Danto: não como algo relacionado ao que esteja acontecendo no momento presente, mas
à arte contemporânea “produzida dentro de certa estrutura de produção jamais antes
vista em toda a história da arte” (DANTO, 2006, p. 12). Isso demonstra o que a arte
pode trazer de novos processos, bem como o quanto ela pode ser maleável. De acordo
com Danto (2006), nas sociedades atuais não se permitem pensamentos predeterminados
no campo da arte, bem como não mais existem limites históricos, tudo sendo permitido e
dando vazão à liberdade estética.
58
CAPÍTULO 2
59
ligados à criação artística apontam para uma alteração do foco do objeto artístico para o
sujeito-artista.
O reconhecimento dessa situação leva a crer que a arte vai contra os sentidos de tudo
aquilo que a produção moderna defendia na forma e na linguagem, ficando assim difícil
avaliar a arte contemporânea por meio do repertório teórico-crítico desenvolvido pelos
sentidos das produções modernas. Essas questões levam alguns teóricos pós-modernos, como
Hal Foster (1983), a afirmar que a libertação do eu leva o sujeito a uma alienação: esse eu
oposto a uma sociedade e o movimento do indivíduo para dentro de si, rompem com a
política, situando-se na análise da psicologia. O pluralismo, defendido por alguns na pós-
modernidade, não é composto de sujeitos independentes de um conjunto social, e esse eu não
é estranho à história, pois é nela que se constitui. Assim, importa o discurso dos artistas e
críticos para a compreensão de uma nova maneira de se produzir arte, essa sim, impregnada
de historicidade e, por isso mesmo, passível de ser pensada e conceituada por palavras.
Deve-se salientar que, se o eu não está fora da história, assim como o sujeito teórico
não se sustenta fora das relações de uma determinada época, a teoria da arte não pode
prescindir do comprometimento da vida social, e seus alicerces teóricos são decorrentes de
pressões exercidas dentro da dialética da produção artística.
Desses discursos, originou-se a ideia de que a arte não é meramente manifestação
pessoal, elevando-a para o campo objetivo da história, para a esfera do discurso teórico e a
exploração formal, reunindo-se, dessa maneira, para produzir um sentido coletivo.
A autonomia estética da arte, contra as normas da mimesis, pelo artista moderno,
consagrou a ruptura plástico-formal para a criação do novo repertório artístico, não só em
relação ao passado, como com relação às vanguardas. É decisiva a ideia de que a pluralidade
dos ismos foi liberada, dando lugar a novas manifestações de caráter fragmentário e subjetivo,
manifesto na nova articulação da arte.
Da crise do modernismo surge um artista que rompe com fronteiras entre pintura,
desenho e escultura e, de maneira contraditória, utiliza materiais de todo tipo na construção
dos repertórios plástico-formais. Nesse procedimento, busca, nas várias esferas do saber e do
cotidiano, fragmentos da história entre o passado e o presente, e a identidade do fazer artístico
torna-se, assim, fugidia, fluida, causando certo estranhamento, já que o discurso não consegue
mais fixá-la. Orlan é exemplo dessa combinação de objetos aleatórios.
60
Figura 24 – Orlan – ao expor Santa Orlan: a virgem, fotografada em pé, vestida como paródia de Santa Teresa
em êxtase: olhos revirados, contorções, envolta por drapeados da roupa, traduz a ascensão do que
está escondido. Na cena, o Barroco se faz presente num grandioso casamento com Deus.
61
souberam ousar, que resistiram à passagem do tempo e dos modismos. Nesse percurso, pode-
se notar a adesão de diferentes gerações de artistas, em diferentes lugares.
Como apontado anteriormente, os artistas das vanguardas europeias estavam
diretamente ligados à descoberta de novas soluções para a arte. Embora as primeiras
abordagens artísticas refletissem a preocupação desses artistas em concretizar as suas ideias,
concentrando-se em objetos materiais considerados artísticos, alguns procuravam outros
meios de expô-las, incorporando a arte na vida cotidiana. Com tal pensamento, partiram para
a exploração das potencialidades do corpo, matéria pela qual eles puderam se expressar. E o
corpo tornou-se parte da obra. Mais que suporte para a manifestação, o corpo era o objeto da
manifestação, a origem da nova experiência e, acima de tudo, um fenômeno que nascia no
cenário urbano, em meio a dissidências e indefinições.
A partir daí, as ideias tradicionais de arte começaram a desaparecer, pois, na
sociedade moderna, a arte e a vida passaram a ser entendidas como dinamismo e fluidez.
A intelectualidade europeia participava do nascimento de um meio de expressão que, em um
mesmo acontecimento, mesmo espaço e tempo fundia a arte, o corpo, ruído, imagem, música
e - acima de tudo - atitude. De certo modo, o que acontecia na cena não deixava de ser
tradução da dinâmica que caracterizava as grandes cidades, lugar onde o espaço e as
referências visuais eram múltiplos.
Desencantados com a sociedade pós Primeira Guerra, artistas, escritores e filósofos
incitavam o público por meio de suas ideias e obras. Suas atitudes visavam a induzir a platéia
a uma reação violenta contra todas as formas de opressão. Tal comportamento resultou no
florescimento de discussões relacionadas à existência humana, bem como em discursos acerca
de assuntos referentes ao corpo, incidentalmente ou não. Houve um aumento extraordinário
do número de ações e experiências artísticas em todos os grandes centros da Europa, o que
mais tarde resultou na arte da performance.
No início, os primeiros trabalhos desses artistas foram produzidos de maneira
aleatória. Tanto os saraus literários quanto a experimentação de novos elementos nas
intervenções e nas apresentações oscilaram entre a afirmação e a autodestruição, muitas vezes
quase sem definição de coisa alguma.
Entretanto, na tentativa de explicar o mundo e subverter padrões sociais, os artistas
valeram-se da palavra. Assim, o pensar o mundo se deu em termos de manifestos incendiários
e essa apropriação da palavra fez da performance futurista um meio de pensar a arte em forma
de textos. Em 1909, Paris vivia um momento de mudanças, inquietações e perturbações.
Nesse cenário, o poeta italiano Filippo Tommaso Marinetti lançou seu primeiro manifesto
62
futurista no jornal Le Figaro, questionando os valores estéticos desfrutados nas academias
européias. Naquele mesmo ano, foi com a peça Roi Bombance que Marinetti estabeleceu o
tipo de performance que mais tarde tornaria evidente o futurismo.
O futurismo se consolidou com o “Manifesto técnico da pintura futurista”, publicado
em 1910, pelos pintores Umberto Boccione, Carlo Carrà, Luigi Russolo, Gino Severini e
Giacono Balla, mais Marinetti. Este serviu de inspiração para a nova pintura futurista,
mostrando como as obras poderiam transmitir, de forma concreta, as propostas de um
postulado teórico, como bem mostra Goldberg (2006). A primeira exposição coletiva,
amparada pelos princípios do futurismo, aconteceu em Milão, com obras de Carrà,
Boccioni e Russolo, entre outros, em 1911, um ano após o lançamento de seu manifesto
(GOLDBERG, 2006).
A partir de então, os pintores futuristas, usando de teorias alicerçadas nos manifestos,
chegaram a instituir em seu proveito certos preceitos que também justificavam as suas
atividades como performers. A performance configurou-se, assim, como um espaço que
proporcionava ao artista, quando em atividade, sentir-se em um lugar onde tudo era possível.
No momento da ação, a experimentação e a criatividade eram potencializadas e não havia
limites, criando um espaço em que o corpo era portador de significações de toda ordem, a
peça fundamental de um jogo maior. Para Goldberg (2006, p. 4), a performance “[...] dava a
seus praticantes a liberdade de ser, ao mesmo tempo ‘criadores’ no desenvolvimento de uma
nova forma de artista teatral, e ‘objetos de arte’, porque não faziam nenhuma separação entre
sua arte como poetas, como pintores ou como performers”.
O pintor Russolo é um bom exemplo disso. Em suas experiências, ele explorou o
ruído, dando origem ao manifesto “Arte dos ruídos”, no qual faz uma série de
considerações acerca da definição de som musical, mostrando aspectos significativos
dos sons que eram extraídos do barulho dos motores, do burburinho das grandes cidades,
trens e carros. Dessa combinação, surgiu a música do ruído, que foi incorporada às
performances (GOLDBERG, 2006).
O movimento dinâmico das máquinas foi também fonte de inspiração para os artistas
performers na construção de repertórios para a dança e o teatro, em que o objeto de interesse
estético era o corpo, usado igualmente como importante instrumento de comunicação com o
público. Um exemplo é a peça O mercador de corações, de Prampolini e Casavolo,
apresentada em 1927. Na encenação, participavam marionetes e figuras humanas que
combinavam movimentos ritmados em gestos exatos e ocupavam quase a totalidade do
espaço cênico. A orientação espacial poderia ser percebida dentro de uma configuração
63
formal mais ampla de estrutura com tipo geométrico, como num jogo abstrato. Nessas ações,
percebe-se o significado contido nos gestos que lembravam a exatidão mecânica.
64
Os encontros literários e artísticos do celebre Cabaré Voltaire foram o ponto de
partida dos artistas rumo a uma nova postura diante da vida e da arte, o movimento que
incorporou efetivamente os elementos necessários para uma expressão completamente nova
no universo artístico. Em meio a pinturas, roupas, música, dança e manifestos, o grupo
dadaísta instaurou a sua rebelião contra os valores vigentes. Nesse processo, o corpo do artista
desempenhou um papel determinante: serviu de suporte necessário para propagar as ideias
anárquicas de seus membros.
Em suas performances, o artista Dada atacava o público com ofensas diretas. Suas
manifestações tinham um caráter destrutivo, exploravam a subjetividade e pregavam a
libertação do sujeito de toda e qualquer instituição. O artista Dada vivia à margem do
comportamento “normal”, o seu objetivo era decretar o fim da supremacia na arte. Exemplo
disso foi a exposição dos Independentes, realizada em 1917 e organizada entre outros por
Walter Arensberg, Picabia e Marcel Duchamp, que expôs a sua célebre “A fonte”.
O Surrealismo foi outro importante movimento nos percursos da performance. Anos
antes do surgimento desse movimento, e na apresentação que fez para o balé Parade,
Apollinaire antecipou o que Goldberg (2006, p. 67), denominou de “Novo Espírito”, e que em
seu cerne trazia a concepção do Surrealismo. Goldberg ainda observa que Parade definiu o
que seria adotado pela performance nos anos que sucederam o pós-guerra.
Figura 26 – Figura de Picasso para o Empresário Americano em Parade, 1917. Balé Parade, obra de Erik Satie,
Pablo Picasso, Jean Cocteau, e Léonide Massine.
65
Com as descobertas das teorias de Freud sobre o inconsciente humano e o caminho já
percorrido pelo Dada, criaram-se as condições para o surgimento do Surrealismo, cuja tônica
é a intuição e o sonho. Por meio de cadeias associativas, os surrealistas criaram imagens e
situações nunca antes vividas. Nesse universo, o corpo expandiu-se. Não sendo mais somente
matéria orgânica, a pele estendeu-se aos limites da mente, os objetos tomaram o lugar do
corpo, antes lugar por excelência do humano.
Na peça Les Mamelles de Tirésias, escrita por Apollinaire, em 1903, e apresentada em
junho de 1917, entre os objetos que constituíam o cenário, figurava uma banca de jornal que
adquiria existência própria na cena, por meio de gestos e ações humanas: o objeto perdia a sua
condição de objeto e se revelava um personagem vivo. A trama também levava para o palco
os conflitos femininos ao direcionar abertamente a fala da personagem Thérèse a um público
masculino e ao encorajar as mulheres a romperem com as questões domésticas que a elas
tradicionalmente são destinadas. Ao corpo de Thérèse estavam presos dois balões que
simbolicamente representavam seus seios; em determinado momento, ela os explodia, como
meio de transgressão. Ao livrar-se dos seios, Thérèse libertava-se da identidade que
secularmente e por meio da sua biologia fora construída para as mulheres. Rompia-se, assim,
a ligação com a sua própria natureza. Com essa atitude, a protagonista negava-se a perpetuar a
definição de identidade feminina em termos exclusivamente sexuais. Térèse também
converteu seu corpo quando, com barba e bigode, anunciava que mudaria seu nome para o
masculino Tirésias 22.
É importante observar como a concepção de liberdade do movimento Surrealista
contribuiu para o entendimento das performances dos anos antecedentes ao “Manifesto
surrealista”: alicerçada na irracionalidade e no inconsciente, defendendo a livre associação de
pensamento - que diretamente se liga às novas criações -, essa liberdade permitiu que as
imagens desfrutassem de formas e contextos com origem nos sonhos.
Na década de 1920, o cinema também já estava sendo incorporado nas performances.
Em 1924, durante um dos intervalos do balé Relâche, uma performance de Picabia com a
colaboração de René Clair, Rolf de Maré, Duchamp e Man Ray, era projetado um filme
roteirizado pelo próprio Picabia, intitulado Entr’acte.
22
Tirésias é o personagem na obra de Ovídio, Metamorphoses, que experimenta o amor como homem e como
mulher.
66
Figura 26 – Fotos do filme Entr’acte, de René Clair, com Picabia dançando. Entr’acte foi apresentado “entre os
atos” de Relâche. Duchamp e Man Ray também aparecem no filme, jogando xadrez.
67
mais equilibrada e harmônica e, para a maioria dos seus integrantes, o significado maior da
escola estava na possibilidade de fazer do uso da arte um meio de construir uma sociedade
mais livre e justa.
Na peça Ballett Triádico, Schlemmer combinou figurino, dança, música, mímica,
paródia e sátira. Segundo Magdalena Droste (2001), nesse ballet, o que prevalecia como meio
expressivo era a trajetória do movimento ritmado dos bailarinos. Este, somado ao figurino, às
cores e aos planos matemáticos que compunham o cenário, criava a unidade necessária para
conferir um aspecto não-humano aos personagens.
Figura 27 – Oskar Schlemmer: O guarda roupa do Ballett Triádico na revista Wieder Metropol, 1926 no teatro
metropolitano de Berlim.
68
Por volta de 1933, um grupo de estudantes e docentes oriundo da Bauhaus constituiu,
na Carolina do Norte, uma comunidade que logo atrairia artistas, escritores, dramaturgos,
bailarinos e músicos. Esse embrião deu origem à escola de arte Black Mountain College, que
teve John Rice como diretor e como professores Josef Albers e Xanti Schawinski, também
originários da Bauhaus. Josef Albers elaborou para a Black Mountain College um currículo
interdisciplinar, com forte orientação das ideias e do estilo da escola alemã. Schawinski
elaborou uma nova didática e criou novo programa de “estudos cênicos”, envolvendo uma
ampla pesquisa sobre espaço, forma, cor, luz, e som. Trabalhava, portanto, com outra
concepção de método educacional e com um programa que continha os preceitos que
procuravam introduzir a performance como meio de convergência entre as diversas artes. Isso
se viu na primeira encenação de Spectrodrama, em que Schawinski propôs um
entrecruzamento das artes e da ciência, definindo o teatro como um lugar de atividades e
experimentações e, na segunda performance, Dança Macabra (1938), espetáculo visual que
teve a inclusão e participação do público, usando máscaras e capas.
Figura 28 – Dança macabra, de Xanti Schawinski, apresentada no Black Mountain College em 1938.
69
Cunninghan orientou os movimentos que libertaram o corpo da rigidez de movimentos
programados e sequenciais, procurando enfatizar o valor existente e a singularidade de
cada movimento no espetáculo. Tais princípios são encontrados na obra Dezesseis
danças para solista e companhia de três (1951).
Figura 29 – Merce Cunningham em Dezesseis danças para solista e companhia de três, 1951.
Na New School for Social Research, onde foram professores, John Cage e Merce
Cunninghan influenciaram artistas mais jovens, como o pintor George Segal, Allan Kaprow,
Richard Higgins, essencialmente quanto ao componente estético do acaso e do acidental,
dentro dos princípios orientadores do Surrealismo e do Dadaísmo.
No decorrer da década de 1950, continuaram a se desenvolver inúmeras manifestações
artísticas que envolviam diversas formas, linguagens e meios de expressão, em um processo
de conjunção de tempo, espaço e corpo. Também as tendências de maior liberdade na busca
do novo foram reforçadas pelo Existencialismo, que em muito influenciou e motivou
movimentos das gerações de jovens artistas do final da década de 1960. Essas gerações, que
faziam da resistência ou agressão à ordem estabelecida a sua bandeira, entendiam que as
propostas racionalistas apresentadas na primeira metade do século XX não
representaram inovação, a não ser quanto a uma maior acumulação de capital sem uma
distribuição correspondente.
Segundo Goldberg (2006), entre os artistas que redimensionaram as atividades
artísticas e as relações cotidianas, Kaprow foi, sem dúvida, a personalidade marcante na arte
da performance dos anos 1960. Suas ações artísticas sofreram grande influência da pintura
70
gestual de Jackson Pollock, que defendia a incorporação direta e espontânea do corpo à arte, e
este passava ser visto como objeto e sujeito do ato de criação. Os eventos eram apresentados
de forma coletiva, o público participava de maneira mais intensa das atividades performáticas.
A partir da apresentação 18 Happenings em 6 partes (1959), na Reuben Gallery, em Nova
York, os críticos constituíram o termo happenings como sendo o denominador comum de
eventos de caráter semelhante ao desenvolvido por Kaprow.
Enquanto os happenings aconteciam, tirando o corpo de sua inacessibilidade, Robert
Rauschenberg apresentava a sua primeira performance, Pelicano (1963). Segundo Rush
(2006, p. 31), Rauschenberg foi um dos primeiros artistas das artes visuais a propor e a
explorar as multimídias - os meios de comunicação de massa - nas performances, cruzando
arte e tecnologia. Apresentadas em diversos lugares, grandes prédios e cinemas, essas
performances tornavam o espaço elemento determinante da sua natureza. Open Score (Bong),
apresentada em Nova York em 1966, contou com a participação de quinhentos integrantes e
consistia em uma partida de tênis. Para essa performance, foram utilizados equipamentos
tecnológicos como raquetes equipadas com aparelhos radiotransmissores, os quais produziam
efeitos sonoros, e câmeras infravermelhas que captavam imagens do movimento dos artistas e
as projetavam em grandes telas.
O racionalismo, que sustentou a modernidade e considerava o real enquanto o
cognoscível pela razão, pela inteligência, em detrimento da intuição, da vontade e da
sensibilidade, acabou por induzir formas de ação e de pensamento geradas por utopias. Essa
compreensão, somada às ideias de algo infinito, levou o francês Yves Klein (1928) a criar o
movimento da “Revolução Azul”: para ele, “o azul é fundamental como puro [...] fundamental
porque inviolável, distante da terra, longe de tudo que se passa, misturas, corrupções. Longe
deste espaço de movimento que engana e desvia” (apud PEARL, 2001).
Klein, muitas vezes indo além dos limites do corpo, buscava a harmonia do cosmo,
como seu “salto no vazio”, mímica, nas palavras de Pearl (2001). Tal ação representava um
verdadeiro voo no ar e com as Antropométrias, do período Azul, se constituíam de
performances cujas ações eram pinturas “ao vivo”. Yves Klein usava modelos femininos que
serviam como pinceis, as quais, por meio de movimentos, deixavam na tela a marca de seus
corpos. Essa atitude de Klein aponta para o abandono do espaço do ateliê; como ele mesmo
afirmava, “rasgar o véu do templo do ateliê [...] e não deixar oculta nenhuma parte de meu
processo” (apud GOLDBERG, 2006, p. 137).
71
Figura 30 – Apresentação pública das Antropometrias, período azul, de Yves Klein, 9 de março de 1960.
À luz dessas questões, pode-se constatar que, a partir dessa década, a “arte corporal”
estava sedimentada na base de questionamentos sociais e políticos, por meio dos quais os
artistas exploravam em profundidade as tensões e potencialidades do corpo, evidenciando
uma série de situações em que o corpo é tomado como objeto da arte e seu meio de expressão.
72
2.3 Carnal Art, Body Art, Body Modification… o corpo não pode parar e nem as máquinas
73
A arte de Acconci é compreendida como a da não inibição, uma vez que a exibição é
feita pelo abandono das regras existentes de uma sociedade em que a vida social do indivíduo
é regulada pela inflexibilidade.
Outro artista da mesma geração de Acconci é o californiano Chris Burden, que levou o
corpo para além dos limites de tolerância da dor e arriscava a vida em performances que
tinham como ação rastejar sobre vidros, a prática de crucificação ou o disparo de tiros sobre
seu próprio corpo. Sua postura levava a crer que por meio da dor poderia transcender a
realidade física, fazer-se existir. Para estabelecer uma comparação que explique melhor o
processo do artista, utiliza-se à frase de Argan (1999, p. 532) “A salvação não reside na razão
que faz projetos, mas na capacidade de viver com lucidez a causalidade dos acontecimentos.
Tudo se resume a encontrar o ritmo próprio e não perdê-lo, aconteça o que acontecer”.
É interessante notar que os sacrifícios, que remetem ao flagelo do corpo nas
performances de artistas como Hermann Nitsch e Gina Pane, admitem a associação com algo
que transcende preceitos oriundos dos antigos rituais pagãos e cristãos.
Figura 32 – Hermann Nitsch, (Aktion) 46th Action, apresentado no Munich Modernes Theater, 1974.
74
Em Gina Pane a postura é a de quem se coloca diante da realidade para conhecê-la,
pois ela trata a dor como um fenômeno em si, assume uma batalha com seu corpo externo e
seu eu, a fim de abrir espaço para a sua própria vida.
Figura 33 – Gina Pane, Ação sentimental, ação realizada na Galeria Diagrama em Milão, 1973. Fotografia
colorida 120X 100 cm. Cortesia Anne Marchand.
76
superfície. Cria-se, dessa forma, um espaço desterritorializado para o corpo, como aponta
Levy (1996, p. 21): “quando uma pessoa, [...], um ato, uma informação se virtualizam eles se
tornam ‘não-presentes’, se desterritorializam. Uma espécie de desengate os separa do espaço
físico ou geográfico ordinários e da temporalidade do relógio e do calendário”.
Percebe-se, a partir de então, que as imagens virtuais estão prontas para serem
distribuídas, manipuladas, criadas e recriadas como novos modos de expressão artística,
implicando em uma nova sensibilidade que conduz a uma prática de “escritura híbrida”,
interpretativa, rica em camadas de sentido, prontas para serem usadas por um vasto público. O
numérico traz, assim, um novo paradigma, renovando de forma profunda as ferramentas, os
materiais e os conceitos, de tal maneira irreversíveis e impositivas que acabam afetando todas
as atividades humanas. Por intermédio de meios eletrônicos, efetua-se nova produção de
significações, bem como a desconstrução da lógica herdada do funcionalismo, eliminando-se
a distinção racionalista entre real e imaginário para melhor se entender o sentido de
imaginário. Para Aumont (1999, p. 118), o imaginário pertence ao território da imaginação e,
como faz parte da capacidade natural de criação, é consequentemente produtora de imagens
interiores, podendo ser exteriorizadas entre legibilidade e transmissão de significados pela
construção de outras leituras. Aqui, importa a afirmação de Belting (2006, p. 144):
O corpo, com sua inclusão nos processos artísticos que implicam nesses sistemas
tecnológicos e cujo destino final é a circulação dessas imagens como parte integrante de um
processo comunicacional, constitui, nessa trama de significações, uma estrutura controlada e
modificada. Por isso, na era eletrônica, os conceitos de corpo e de objeto foram alterados, pois
eles não podem ser considerados uma unidade integral, mas a compilação de códigos num
software que torna virtualmente possível qualquer forma ou função.
Pela própria linguagem do computador, e a partir de conexões bastante simples, tornou-se
possível abranger todas as linguagens e formas de expressão, transmiti-las e traduzi-las,
propiciando experiências artísticas interativas. Nesse tipo de arte, são utilizados os recursos
interativos da máquina, que necessitam da resposta criativa do espectador, participantes ativos do
processo. Um exemplo de Computer art é o trabalho Dança com o dervixe virtual: corpos
virtuais, que Diane Gromala começou a desenvolver no início dos anos 90.
77
Figura 34 – Dança com o dervixe virtual: corpos virtuais, a artista explorou na obra as respostas corporais provocadas
pela imersão tecnológica.
Essa experiência estética da relação com o corpo leva a uma vertigem de não mais se
sentir a própria duplicação. Assim, a arte corporal é um processo de mediação, em que os
artistas se lançam em busca dos meios tecnológicos para experimentar e explorar os limites do
corpo, construindo a si mesmos como um lugar sem fronteiras entre o externo - realidade
objetiva – e o interno – experiência subjetiva.
78
Desse modo, é possível constatar que a arte corporal vinculada às tecnologias vai além
das representações e interpretações das imagens do corpo. O que ainda persiste é a questão da
semelhança do corpo, seja o corpo-prótese, corpo-tecnológico, corpo-objeto, corpo-arte,
corpo-virtual. O corpo como objeto de arte, como experiência da desconstrução da imagem
humana, daquilo que durante muito tempo foi considerado como identidade da natureza
humana, é reconstruído sem qualquer solidez. Como preconizava Marx no século XIX, “tudo
que é sólido se desmancha no ar”. O corpo, nesse deslocamento de sentido, é fluído de um
híbrido da zona fronteiriça entre o que é representação e dessemelhança.
Para estabelecer uma comparação que explique melhor esse último ponto, utiliza-se
um exemplo do artista australiano Stelarc. O autor revela que “nesta era de sobrecarga de
informações, o importante não é mais a liberdade de ideias, mas a liberdade de forma –
liberdade para modificar e mudar o corpo” (apud DOMINGUES, 1997, p. 53).
O trabalho de Stelarc se caracteriza por abolir toda distinção entre o que é orgânico e o
que é máquina, como nas performances por ele desenvolvidas com a ampliação do corpo por
meio de próteses e softwares. O corpo não precisa ser aberto para receber a tecnologia, a pele
não é mais a linha divisória entre o que é interno e externo.
Figura 35 – Terceira Mão, performance realizada por Stelarc, consiste da adição ao corpo do artista de uma mão
artificial, capaz de executar movimentos ativados por sinais de EMG dos músculos abdominais e da
perna.
79
supremo, possibilitando ao humano e à máquina se ajustarem e se incluírem, acomodando-se
e, assim, ultrapassando os limites da lógica humana.
80
Como aponta Santaella (2004, p. 135), “são muitas as razões para esse fenômeno da
hibridização, entre os quais devem estar incluídas as misturas de materiais, suportes e meios
[...]”. E tudo isso está disponível aos artistas para ser usado nas suas experiências.
Atualmente, o processo híbrido cruza procedimentos e materiais, rompe com a fronteira
existente entre o suporte e a linguagem. Pode-se dizer que a hibridação tem como resultado o
embricamento, a sobreposição, a fusão, a incrustação, o que permite colocar em jogo uma
série de associações por meio do deslocamento de seus elementos constitutivos. Não só é o
lugar do impuro, mas também o da instabilidade.
A experiência sensível da obra híbrida está na forma como o artista conduz a migração
das imagens e dos objetos de um contexto para outro. É a trama de relações que se forma,
advindas de naturezas diferentes, gerando tensões por meio de combinações inesperadas.
Nesse sentido, a obra se apresenta de forma aberta a novas modificações, com múltiplas
possibilidades de intervenções.
Esse novo desafio para a arte foi antecipado pelo Cubismo, no início do século
XX. A invenção da colagem passou a integrar a composição de novos significados.
Segundo Pablo Picasso (citado por PERLLOFF, 1993, p. 95), “o propósito do papier
collé era dar a ideia de que diferentes texturas podem entrar numa composição para se
tornar a realidade na pintura, que rivaliza assim com a realidade na natureza”. E, ainda:
“Esse objeto deslocado penetra num universo para o qual não foi feito e no qual retém,
em certa medida, a sua estranheza”. A estranheza em relação ao objeto artístico também
foi revelada pelo Dadaísmo, sobretudo a partir de Marcel Duchamp, com a forte
influencia do poeta Raymond Roussel (MINK, 1994, p. 29-33), que desestruturou as
definições tradicionais da arte, proporcionando o questionamento sobre uma outra
dimensão do olhar.
O novo enunciado, criado a partir de então, não se compõe de “coisa” vazia e alienada
à criação, mas é determinante de novas formas expressivas, quebrando com a tradição
figurativa da imagem, até mesmo em oposição à abstração. Desse modo, criaram-se novos
sentidos, novos problemas de interpretação iconológica. Nessa perspectiva, uma obra é um
veículo mutável para a representação de uma série de proposições que origina, a cada
momento, novas formas de expressão, complexas e ambíguas, transformando-se num foco de
interpretações conflitantes. Além disso, a obra de arte “original” começa a dar lugar à cópia, a
partir do momento em que o artista não mais se preocupa com a peça única. É o caso de
L.H.O.O.Q, de Duchamp, realizada em 1919, e que consiste de um cartão postal ilustrado
com a Mona Lisa, no qual foram acrescentados, a lápis, um bigode e cavanhaque.
81
Figura 37 – L.H.O.O.Q, 1919 ready-made retificado, lápis sobre uma reprodução da Mona Lisa, 19,7X 12,4 cm,
Filadélfia (PA), Philadelphia Museaum of Art: Collection Louise and Walter Arensberg.
Tais questões foram assim apreciadas por Archer (2001, p. 182): “a perda da
originalidade significava que tudo era uma cópia e que, sem um original, a ideia de cópia,
com suas insinuações pejorativas, não fazia sentido”. Isso, por um ângulo. Por outro, a
apropriação de imagens faz sentido num mundo onde tudo se copia. Esse percurso da obra e a
sua competência reprodutora geraram diversas proposições pela Pop Art, com o uso de
imagens e produtos da cultura de massa, por meio da banalidade de seus materiais como
objeto de interesse estético.
Desde então, o próprio conceito de arte foi posto em xeque. Já não mais interessa a
dicotomia forma/conteúdo, pois os produtos se evidenciam no objeto artístico como algo para
além da própria arte. Segundo Archer, (2001, p. 11) “sem uma evidência mais clara de que o
material havia passado por algum tipo de transformação ao ser incorporado à arte, não se
podia dizer que a própria arte oferecia qualquer coisa que a vida já não proporcionasse”. Tal
constatação encontra-se no trabalho de Andy Warhol que, de posse de elementos e situações
comuns do cotidiano, construiu a sua obra de maneira sensacionalista, bem como a sua
própria imagem. É o que se vê presente em Gold Marilyn Monroe: depois da morte da atriz,
em 1962, Warhol transformou uma foto de Marilyn num ícone da cultura popular.
Considerando-se que o banal é fonte de inesgotável potencial, o artista pop consegue esse
intento em seu processo criativo.
82
Figura 38 – Andy Warhol, Marilyn Monroe, 1968, Serigrafia sobre tela,13X13cm, Nova Iorque, The Museum of
Modern Art.
84
que instiga o estudo aprofundado das dimensões e esferas de desempenho da arte
contemporânea em uma nova civilização: a sociedade da informação (LEVY, 1993).
A partir daí, a arte passa a ser troca, informação, não mais analogia. É uma sequência
de planos, multiplicidade de acontecimentos: é a estética da saturação. O homem
contemporâneo vê o que consegue ver. Essa imediatez da expressão se manifesta pelo uso das
técnicas que mostram o quão efêmero é o controle do significado dentro de uma estrutura
complexa: “Dotada de uma vida quase autônoma, a obra digital pode se multiplicar, se
modificar indefinidamente, basta dotá-la de parâmetros para que se desenvolva; não existe
obra parada, consumada” (CAUQUELIN, 2005, p. 156).
Com isso, são necessários novos suportes à materialidade da imagem, que se projeta
para além do espaço-tempo real, de tal modo que se desterritorializa rumo à virtualização.
Aqui, o virtual tem por sinônimo a força, no sentido de que se pode transitar, por meio dele,
com uma gama de possibilidades de realização do objeto (LEVY, 1996, p. 17).
Deve-se considerar, então, que o virtual está além da questão do antagonismo com o
real. Jean Baudrillard afirma (2001, p. 41-42):
do meu ponto de vista, [...] fazer acontecer um mundo real é já produzi-lo, e o real
jamais foi outra coisa senão uma forma de simulação. Podemos, certamente,
pretender que exista um efeito de real, um efeito de verdade, um efeito de
objetividade, mas o real, em si, não existe [...] agora, o virtual é o que está no lugar
do real, é mesmo sua solução final na medida em que efetiva o mundo em sua
realidade definitiva e, ao mesmo tempo, assinala sua dissolução.
Assim, pode-se considerar que é por meio da cultura tecnológica que, muitas vezes, se
adquire conhecimento do objeto virtual, uma imagem sem um suporte aparente, o lugar em
que o virtual aparece como uma dimensão do real. Isto é, na medida em que as imagens são
oferecidas por meio das simulações, dificultam a separação entre o real/virtual porque formam
um único corpo composto, no sentido de o virtual não ser apenas aquilo que se desprende do
objeto real, mas de ter um corpo próprio, sendo o próprio objeto. A arte, nesse cenário,
apresenta-se aberta e a imagem resultante desses caminhos leva a reflexões relativas a novos
formatos enquanto experimento visual.
As imagens construídas por meio tecnológico, ao perderem a sua corporeidade,
enunciam novos saberes e novas sensibilidades, que percorrem o atual território da
visualidade. De acordo com Canclini (2003, p. 329),
85
a visualidade pós-moderna [...] é a encenação de uma dupla perda: do roteiro e do
autor. A desaparição do roteiro quer dizer que já não existem os grandes relatos que
organizavam e hierarquizavam os períodos do patrimônio, a vegetação de obras
cultas e populares nas quais a sociedade e as classes se reconheciam e consagravam
suas virtudes.
Sobre a perda do autor, Canclini (2003) afirma que a arte digital interativa, por meio
de seu espaço de memória, possibilita ao artista liberar seu imaginário para criar imagens, sem
o referencial de um modelo real físico ou moral.
Nesse sentido, Orlan apresentou, em 1996, Este é meu corpo, este é meu software,
obra que se constituiu em uma cabeça virtual, sem o corpo, que se comunicava com ela e o
público, tornando obsoleta a presença do corpo físico.
A partir do uso dos recursos gráficos do computador, a imagem de Orlan tomou uma
outra dimensão no campo da iconografia, bem como da iconologia: abandonou o traço
“convencional” da pintura ou da fotografia com as suas superfícies e planos para entrar no
nível do ponto, processo de produção da imagem que não depende mais do suporte físico, mas
computacional.
Em 1993, Orlan realizou, em Nova Iorque, uma cirurgia que foi convertida em cena e
transmitida via satélite para Paris, Toronto e Tóquio. De forma interativa, permitia a
participação do público, tornando íntimos do espectador o ato da encenação e o seu corpo. A
presença de Orlan era real, havia uma assistência ao ato, e as imagens do seu corpo
transmitidas em rede motivaram a construção de novas relações sociais.
Figura 39 – Sétima performance cirúrgica Omnipresence NY. Orlan com agulha de anestesia no lábio superior.
Novembro 21, 1993
86
A artista cria, assim, uma nova ordem no campo da visualidade e da percepção, uma
arte fundada no entrecruzamento das diferenças estéticas e culturais. As imagens de Orlan vão
além de seu ato de criação para passar a integrar as redes de informação, pois são retiradas de
um contexto de presença, no qual desfrutam de certa permanência no espaço e no tempo, e
são transportadas para o uso transitório e instantâneo do suporte técnico, por meio de
combinações que as transformam em imagens numéricas.
87
CAPÍTULO 3
3.1 “Do women have to be naked to get into the Met. Museum?”
Figura 40 –“As mulheres têm que estar nuas para entrar no Museu Metropolitano?” Guerrilla Girls,
1989. Pôster.
88
passa a ser fator determinante de valores -, o corpo deixa de ser corpo político e passa a ser
corpo “pertencente”. Portanto os princípios estéticos e morais que definem as corporeidades
são construídos por narrativas masculinas que se valem de ideias abstratas de representação e
não concretas de realidade. Não existe, nesse contexto, imagem gratuita e tampouco a
representação é isenta de parcialidade.
Por um longo período da história da arte, a mulher foi o objeto representado, sendo
praticamente invisível como sujeito criador. Para Patrícia Mayayo (2003), isso decorre do fato
de o processo de criação artística estar desde o início inscrito e inserido em estruturas e
sistemas de modelos sociais institucionais fundados na legitimação patriarcal, ainda que em
sentido contrário houvesse a defesa de uma efetiva participação feminina no campo artístico.
Essa situação que reduziu as mulheres à questão de gênero acabou, porém, se sobrepondo ao
sujeito criador.
Do Renascimento até o século XIX, o estudo e o conhecimento do corpo humano nu
era uma condição obrigatória à formação de artistas e os estudantes passavam muito tempo de
seus estudos fazendo cópias de esculturas da antiguidade clássica.
Até por volta dos anos de 1850, o uso do modelo nu era proibido nas escolas públicas,
bem como o acesso das mulheres a esses locais, o que só foi possível em 1893, na Royal
Academy de Londres.
No que diz respeito ao fazer artístico, e ainda segundo Mayayo (2003), as mulheres, na
Idade Média, dedicavam-se a atividades de tapeçaria e bordado, mas tais tarefas não eram
atividades exclusivamente femininas, pois monges também as realizavam. Há, ainda, indícios
de mulheres monjas e aristocratas que, no final dessa época, dedicavam-se às artes das
iluminuras, o que auxiliou, posteriormente, no surgimento das mulheres artistas do
Renascimento.
Com a revolução renascentista, as mulheres das classes mais privilegiadas tiveram
acesso à educação, e dentre as virtudes de uma verdadeira aristocrata estavam as habilidades
para a pintura, a música e a poesia. Conforme Manguel (2001, p.134), “[...] o século XVI
permitiu a algumas mulheres certo grau de liberdade artística”, e dessa liberdade usufruíram
Santa Caterina dei Vigri (1413-1463), musicista e pintora de miniaturas que, em 1712, foi
canonizada pela igreja, e Sofonisba Anguissola (1532-35/1625), considerada como exemplo
do ideal de aristocracia das mulheres da época.
89
Figura 41 – Sofonisba Anguissola, Auto-retrato, 1563. Óleo sobre tela, 88,9X81, 3 cm, Coleção de Earl Spencer,
Althorp, Northampton.
90
Figura 42 – Lavinia Fontana, Retrato de Antonieta Gonzáles, 1594-1595, óleo sobre tela, Musée du
Château de Blois.
91
Figura 43 – Artemísia Gentileschi, Susana e os velhos, 1610. Óleo sobre tela, 170X121 cm, Col.
Schönborn, Pommersfelden.
A história conta a recusa da heroína ao assédio dos anciões, pelo que foi acusada de
adultério e condenada à morte. De maneira contraditória, a iconografia ocidental transformou
a imagem do corpo de Suzana em uma imagem sensual e exuberante, um lugar que propicia
legitimação ao prazer da escopofilia, definida por Mulvey (2008, p. 440) “como ato de tornar
as outras pessoas como objetos, sujeitando-as a um olhar fixo, curioso e controlador”. Esse
processo foi usado por uma parte dos pintores renascentistas e barrocos que, usando técnicas
da ilusão de espaço, criaram movimentos adequados ao olho humano, congelando o olhar do
espectador na imagem talhada ao prazer.
A partir do final do século XVII e início do século XVIII, os motivos estéticos
voltavam-se aos conceitos das academias. O novo modo de se fazer arte dentro das academias
e os espaços de exibição da obra ao público sugeriram novas relações sociais, que afetaram a
execução e a difusão da arte. Assim, a posição social e intelectual da mulher artista começa a
mudar, mas é sabido que a posição da academia em relação a elas foi contraditória desde o
princípio. Em alguns momentos, as mulheres não foram aceitas nos quadros acadêmicos. Em
outros, as artistas não usufruíram os mesmos benefícios dos homens. Seguindo-se Mayayo
(2003), a própria Academia de Paris foi contra a admissão de mulheres, embora a elas tenha
aberto as suas portas durante o reinado de Luis XIV e em 1706.
92
Apesar dessa resistência, durante o século XVIII algumas mulheres conseguiram se
sobressair, como a retratista Elizabeth-Louise Vigée-Lebrun (1755-1842), admirada como
artista e por sua exuberante beleza. É dela o Auto-retrato com chapéu de palha, de 1782,
pintura em homenagem ao retrato de Rubens, O chapéu de palha (1622-25). A obra da artista
foi muito apreciada pela realeza e aristocracia. Mesmo com a Revolução Francesa, a situação
das mulheres artistas não mudou, pois a Sociedade Popular e República das Artes, fundada
em 1793, com o argumento que as mulheres eram “diferentes dos homens em todos os
aspectos”, fecharam, de maneira antagônica, as portas à participação delas (MAYAYO,
2003).
Um dos aspectos a salientar do final do século XVIII é que, apesar de todas as
reprimendas em relação às mulheres, foi crescente o número daquelas que expunham
publicamente os seus trabalhos, como Césarine Davin-Mirvault e Constance Marie
Charpentier, discípulas de Jacques-Louis David (idem, ibidem).
Figura 44 – Constance Marie Charpentier, Auto-retrato de Mademoiselle du Val d’Ognes, 1801. Óleo sobre,
161,3X128,6 cm, The Metropolitan Museum of Art, Nova York.
93
A pintura de Charpentier, Portrait de Mademoiselle du Val d’Ognes (1801), durante
muito tempo foi atribuída a David e considerada um “belo” exemplar da pintura da época.
Depois que o quadro foi atribuído à artista, as opiniões quanto à qualidade da obra variaram:
ela passou para uma categoria de valor menor, considerada feminina, em uma clara
demonstração de preconceito em relação a gênero.
Conforme Mayayo (2003), durante o século XIX despontam algumas mulheres que
buscaram inserção nos gêneros pictóricos de domínio masculino, como é o caso da artista
britânica Elizabeth Thompson (1846-1933), pintora de quadros de batalhas. Também nesse
período, aparece o nome da francesa Rosa Bonheur (1822-1899), que na intenção de realizar
estudos para as suas pinturas, se travestia de homem como maneira de ter acesso a lugares
considerados masculinos, aqueles fora do domínio doméstico.
Os aspectos determinantes para esse comportamento existiam principalmente na
Inglaterra vitoriana, que valorizava o ideal burguês de feminilidade na imagem da mulher
recatada, vivendo em função da vida familiar. Desse modo, a arte realizada por mulheres era
vista diferentemente da arte feita por homens, traduzindo uma visão hierarquizada de gênero:
enquanto o fazer artístico das mulheres estava limitado ao espaço doméstico e sua arte era
considerada “delicada”, a arte masculina era de domínio público.
Mesmo com o crescente número de mulheres artistas, ao longo do século XIX, o
panorama era ainda incerto, com proibição de acesso às escolas de formação artística, o que
dificultava a prática profissional e levava as mulheres a buscarem formação em estúdios
alternativos. Contudo, não foram poucas as artistas que começaram a mostrar insatisfação
com o estado das coisas e, ao lutarem pelos seus direitos, fizeram-se ouvir, tiveram
reconhecimento no meio e conquistaram um espaço no âmbito das academias.
A história mostra que, ainda assim, durante o século XX, a posição da mulher no
universo artístico em geral se revelava diferente da condição do homem, tendo elas enfrentado
adversidades de toda ordem. Isso é explícito nos Manifestos Futuristas italianos e russos, nos
quais se lê que “nós queremos destruir os museus, as bibliotecas, as academias de toda
natureza, e combater o moralismo, o feminismo [...]”. Está-se, pois, diante de um espelho que
olha e questiona: “quem tem medo de Virginia Woolf ?” 23
23
A sentença refere-se à peça escrita em 1962 por Edward Albee. Quem tem medo de Virginia Woolf
integra a dramaturgia contemporânea e foi adaptada para o cinema em 1966, com direção do americano
Mike Nichols. A adaptação foi utilizada como paródia ao texto de Albee por acharem-se confrontos entre
o que foi defendido pelos futuristas e o título da peça. Virginia Woolf, há mais de setenta anos, já dizia
que “as mulheres durante todos esses séculos serviram de espelhos dotados do poder mágico e delicioso
de refletir a figura do homem ampliada duas vezes” (WOOLF apud LAURETTIS, 1977, p. 35). Assim,
94
3.2 A construção do corpo político nas experiências artísticas de mulheres
tomando por base o argumento da escritora, entende-se que as mulheres, quando parecem assemelhar-se aos
homens, são consideradas ameaçadoras.
95
O percurso do movimento feminista foi descrito por diversas teorias e ações e, longe
de chegar a um termo comum e ser um movimento unificado, marcou uma trajetória de
experimentações e transgressões de normas importantes para as conquistas alcançadas em
questões relacionadas ao direito de escolha quanto à reprodução, liberação sexual e direito ao
aborto, áreas consideradas controvertidas.
Manuel Castells (2006, p. 231) ao analisar essa diversidade do movimento feminista,
explica que as mulheres estavam divididas entre o feminismo liberal e o feminismo radical.
Por isso, em determinados momentos, o campo liberal foi defensor de igualdade entre homens
e mulheres, enquanto que o radical lutava pela afirmação da existência de uma essência
feminina. Declaravam, com isso, a superioridade das ações e práticas das mulheres que
levariam à construção de um mundo melhor. Tal atitude estava presente no que defendia a
escritora Virginia Woolf, para quem esse mundo melhor seria possível por meio da atuação
profissional das mulheres, fundada numa ordem de valores diferenciados e essencialmente
femininos, fora de qualquer modelo imposto pelo masculino (MAYAYO, 2003).
Entretanto, além da diversidade e pluralidade de conceitos, ideias e experiências, o que
é bastante natural num processo complexo como esse, as mulheres buscavam uma identidade
própria e uma conscientização política que as afastasse definitivamente daquela introjetada
pelo patriarcalismo. Longe de ser compreendida como algo que uniria a todas, a construção de
uma subjetividade feminina passou a ser protagonista das diferenças. Nesse momento, até
mesmo os movimentos lésbicos, que por direito encontravam dentro do feminismo o espaço
conquistado com muita persistência, passaram por uma série de questionamentos dentro das
práticas de diversos grupos feministas. O que naquele momento estava colocado para esses
grupos era enfrentar o próprio preconceito entre as mulheres quanto às formas de sexualidade,
mas o crescimento e a influência do movimento lesbiano foi um grande desafio para o
movimento feminista como um todo.
Algumas feministas, como a americana Betty Friedan, fundadora da Organização
Nacional da Mulher – NOW (1966), negavam a participação do movimento lésbico, mas essa
sua negação falhou a partir do momento em que Patrícia Ireland, presidente da NOW,
declarou ser bissexual. Com isso, durante aqueles anos, o movimento feminista mostrou a
fragilidade de uma geração que até então não sabia muito bem como combater o objeto que a
dominava. Aos poucos, porém, as mulheres conseguiram transformar esse dilema em algo
concreto: sua participação efetiva em várias esferas da vida pública.
Uma vez preparadas as bases do movimento, era natural que as suas consequências
recaíssem no trabalho de mulheres, em quase todas as suas instâncias de atuação. Ao mesmo
96
tempo, elas descobriram em seus corpos aquilo que as fazia diferente dos homens e que, de
certa forma, as ligava a uma autoridade patriarcal, tanto do ponto de vista institucional quanto
psicológico: o sexo.
Nas fileiras feministas, o corpo foi reivindicado de todas as formas e por toda
uma geração de mulheres negras, brancas, asiáticas, lésbicas ou heterossexuais, bem
como de artistas que fizeram da arte corporal um instrumento transgressor de crítica à
sociedade então existente. Tal atitude perpassou a dimensão política e social da condição
das mulheres e foi traduzida em formulações de cunho crítico às teorias feministas
relativas às questões de gênero.
Se existia o movimento feminista que agia dentro de um coletivo social, a ação das
mulheres artistas se dava de forma individual: a transgressão passou a ser um ato individual
contra os padrões sexistas que foram construídos socialmente durante séculos.
Na década de 1970, apareceram mulheres que começaram a explorar mais
efetivamente a arte da performance, até então quase que exclusiva aos homens. Entre as
artistas precursoras da arte performática estão Shigeko Kubota, que integrou o grupo Fluxus,
Carolee Schneemann, que se destacou em apresentações nas quais utilizava materiais abjetos,
e Mariana Abramovic, militante do partido comunista iugoslavo. Essas artistas começaram a
apresentar seus corpos como objeto de manifestação e expressão da arte e também como meio
de contestação.
Figura 45 – Mariana Abramovic durante a performance Thomas Lips, (1975/2005), no Solomon R.. Guggenheim
Museum de Nova York.
97
É nesse período que aparece Orlan, atuando de maneira diferente daquelas que, em
suas experiências performáticas, buscavam a construção de uma identidade feminina a partir
da instauração de uma nova ordem social e moral, com a destituição das instituições da marca
de gênero.
As concepções feministas disseminadas nos Estados Unidos no final dos anos de 1960,
e depois na Europa, no início da década de 1970, levaram uma parcela significativa de artistas
a adotar a performance como forma de expressão.
O mundo ainda vivia a Guerra do Vietnã e estavam intensificando-se as lutas pelos
direitos dos negros, mulheres e gays. Por isso, a ideia de liberdade então vigente no meio
artístico impulsionava o abandono de outras manifestações artísticas e a adesão à prática da
Arte Corporal. A consciência que se instaurava se dividia entre as possibilidades de
desenvolvimento individual e o fim da sociedade burguesa moderna.
Nesse cenário cultural propício aos homens, a crítica - feita por críticos, diga-se - dava
certo favorecimento e proteção aos artistas em detrimento às artistas, como bem mostra a
feminista Lucy Lippard: “as sementes de meu feminismo estão na minha revolta contra o
patronato de artistas por Clement Greenberg, contra a imposição a todos do gosto de uma
classe [...]” (apud ARCHER, 2001, p. 125).
Por tais razões, as mulheres começaram a questionar e a confrontar sua condição de
artistas em relação à condição masculina, reivindicando a presença e a participação no espaço
público. Essa situação levou a intensificar a militância artística e a, partir disso, surgiram
estatísticas produzidas pelas primeiras ativistas, como observa Archer (2001, p. 124):
A atitude dessas mulheres personifica bem a arte de caráter político que pontuou a
produção de mulheres na década de 1970, contribuindo para a formulação de uma arte
feminista que estabeleceu uma relação explícita com o movimento. Como se pode observar, a
98
relação entre as artistas e o feminismo remonta à própria história desse movimento, o que
permitia legitimar e trazer à tona a discussão da exclusão do trabalho feminino da história da
arte. Discutia-se, então, o rompimento com a herança do passado artístico que residia na
história artística escrita sob a égide masculina e a necessidade de uma reescritura dessa
história, agora sob o ponto de vista feminino.
Para isso, foi necessária a busca da subjetividade feminina, isto é, da presença (eu) e
do retorno à interioridade. A presença (“para o mundo e para mim mesma”) surge como
possibilidade de tecer uma linguagem de signos próprios, assim permitindo a relação com o
exterior de forma a se deslocar de si.
A referência inicial para compreender-se a construção da “presença feminina” na arte
no início dos anos 1970 é a artista norte-americana Judy Chicago que, com Miriam Schapiro,
organizou o primeiro programa de Arte Feminista, no Califórnia Institute for the Arts, como
meio de propagar as teorias feministas (CHICAGO, 1979).
No programa, eram realizadas intervenções por meios visuais no intuito de levantar
questões de gênero. As artistas trabalhavam no limite entre o que buscavam enquanto
identidade sexual feminina e a crítica à dominação masculina do mundo. Para elas, essa
dominação nada mais era que o jogo de poder existente nas relações e que se mantinha na
perspectiva das mulheres como sujeitos neutros, engendradas por uma existência universal
cujo parâmetro era a mulher branca, ocidental, heterossexual e de classe média.
Na obra de Chicago, The Dinner Party, 1973/74, a instalação consistia de uma mesa
em forma de triângulo equilátero, com treze lugares em cada lado. Ao se valer dessa figura,
simbolicamente negava a hierarquia de lugares concedidos aos homens na mesa, partindo do
princípio de que todos os lados de um triângulo são iguais. Analogicamente, a forma
triangular remetia à representação da vagina. Desenhou também trinta e nove jogos de mesa
dedicados a mulheres que fizeram parte da História, como a imperatriz bizantina Teodora,
Safo de Lesbos, poetisa do século 7 a.C., a escritora Cristine de Pizan, do século XV,
Ártemis, irmã de Apolo e deusa predileta de Hipólito, e a escritora Virginia Woolf. Tentava,
com isso, resgatar o papel de importantes mulheres, subvertendo as narrativas tradicionais.
99
Figura 46 – Judy Chicago, The Dinner Party, técnica mixta, 1440X1290X90 cm, Coleção da artista.
100
Figura 47 – Faith Wilding, Sacrifício, 1970. Instalação, técnica mixta. Programa de arte feminista,
Fresno State College.
A questão de identidade, nos anos 1970, era debatida por muitas artistas.
Consequentemente, a luta política e o engajamento de algumas delas situavam-se no centro de
uma crítica teórica feminista radical. Outro fator que influenciou o pensamento feminista foi a
retomada de textos relacionados à arte e à cultura de alguns filósofos e teóricos políticos como
Marx, Lukács, Adorno e Marcuse, discutidos pelos chamados “neomarxistas”.
As artistas buscavam uma representação do feminino e da mulher que fosse criada a
partir das e pelas próprias mulheres. Judy Chicago, no entanto, com suas ideias e práticas,
construídas em função de termos exclusivamente sexuais, acabou por limitar a definição de
identidade. Até esse momento, as discussões giravam em torno da preocupação de reafirmar
a identidade na própria representação e conteúdo da obra, e essas representações, muitas
vezes, referiam a figura da vagina, de modo a simbolicamente traduzir as experiências
femininas. Elas visavam a que essas manifestações fossem produzidas a partir de suas
próprias problemáticas e, consequentemente, pela real identificação entre a intérprete e a obra
apresentada na busca da igualdade pela afirmação da diferença.
Essa definição identitária acontecia quando as artistas procuravam glorificar,
artisticamente, a imagem dos órgãos sexuais femininos como representação da condição de
ser mulher ou com aquelas que se apoiavam nas questões somente de gênero.
101
No que diz respeito a essa questão, consideram-se as formulações de Archer: a
identidade “[...] apesar de reconhecida como tal, não era uma questão que pudesse se
confirmar aos limites do gênero. A identificação e a compreensão de que alguém se diferencia
dos outros englobam considerações sobre sexualidade, classe social, origem racial e cultural”
(2001, p. 134).
A abordagem de Archer não difere das concepções de Judith Butler 24 no aspecto do
reconhecimento de que não existe um único sujeito mulher, ou seja, uma identidade que seja
comum a todas as mulheres. Para ela, “[...] o gênero não se constrói sempre da mesma forma
em distintos contextos históricos e porque se cruza com outros componentes discursivos de
identidades como a raça, a classe social, a origem étnica e orientação sexual” (1990, p. 3).
De fato, nessa ideia não existe a construção de mulher enquanto sujeito único e
estável. Por tudo que já fora dito e feito a respeito da condição social das mulheres, naquele
momento tornava-se imprescindível a presença de uma prática de poder ativista que levasse
em conta as questões de raça e de sexualidade.
Como respostas a essas questões, assistiu-se a uma crescente exploração do corpo,
com destaque para a sua exibição, de forma a chocar o público. Isso decorreu das práticas
anteriores dos anos 1960, fundadas em modelos radicais de ação ativista nos quais as
mulheres negavam os modos de comportamentos convencionais da sociedade - bem como a
por elas sofrida discriminação racial e social – e, sempre que possível, conflitavam por meio
de ataques.
As reivindicações, manifestadas em performances, ao mesmo tempo em que
incomodavam o público, também o entusiasmava. Considerando as práticas e consequências
dessas atitudes, Pearl (2001, p. 86) afirma que “[...] nesta efervescência reivindicadora, a
linguagem do corpo aparece como um paradigma de liberdade: liberações do indivíduo, da
mulher, dos excluídos, dos minoritários ou oprimidos, seja ele quem for”.
As mulheres promoviam, assim, alterações que, de certa forma, abalavam as estruturas
do meio social em que atuavam, possibilitando que os padrões instaurados fossem
questionados tanto no aspecto social quanto nos discursos de algumas feministas que
eliminavam as particularidades e os interesses de classe das mulheres.
Nessa nova tentativa de ação, foram efetuadas transgressões nos limites do que se
julgava como identidade feminina, principalmente em relação aos “falsos” discursos que
24
Judith Butler, teórica feminista e militante lésbica, autora de Gender Trouble. Feminism and theSubversion of
Identity, publicado em 1990.
102
circulavam nos meios acadêmicos, afirmando que as mulheres, independentemente de suas
condições sociais, são determinadas a serem todas “iguais”.
Desse modo, as mulheres direcionavam críticas à construção do corpo como algo
mutante, que precisava ser redimensionado conforme suas potencialidades e, com histórias
pessoais, visavam à fusão de outras identidades e sexualidades. Nessa perspectiva, afrontavam
a ordem e a tranquilidade impostas por padrões e comportamentos socialmente aceitos.
As ações políticas promovidas pelas mulheres mostraram uma inversão de papéis
mediante o jogo de elementos usados na construção da obra, o que de certo modo resultava
em um distanciamento delas próprias como mulheres e de sua condição, criando,
consequentemente, uma subversão de identidade.
Com essa proposição, Adrian Piper ironizou o papel que lhe fora atribuído socialmente
– o de mulher ocidental, branca, heterossexual. Por isso, e a exemplo de outras artistas
mulheres que já haviam pontuado essa questão, assumiu uma identidade inquietante, na
performance Eu sou a localização #2 (1975), na qual pinta o rosto de branco, acrescenta ao
visual um bigode, cabelo em estilo black e anuncia: “Sou um rapaz anônimo do Terceiro
Mundo, vagando em meio à multidão, dizendo a mim mesmo, em voz alta, que sou a
localização da consciência... Sou hostil à presença dos outros e, ao mesmo tempo, dela me
distancio” (apud ARCHER, 2001, p. 134).
103
Com essa afirmação, Adrian Piper deslocou a questão da sexualidade e da raça para a
esfera política, criando para si uma figura andrógina e culturalmente ambígua, que levava o
público a refletir criticamente sobre o que a sociedade atribuía ao indivíduo. Ao se deslocar
para outras posições, apagava provisoriamente as diferenças entre os sexos e as imposições de
gênero, enquanto resultado de uma construção social e política, dominada pelo homem.
Archer (2001, p. 133) reconstitui o desenvolvimento dessas práticas feministas e as
consequências delas advindas:
Muitas outras artistas encontraram nessas premissas o seu espaço no território da arte e
fundamentaram os seus trabalhos em denúncias de caráter político, como fez a americana
May Stevens ao produzir uma obra inspirada em Rosa de Luxemburgo, comunista alemã
assassinada pelo governo de Stálin.
104
Nancy Spero, em Tortura das mulheres (1976), abordou a lenda babilônica de Marduk
e Tiamat, na qual o corpo da deusa Tiamat é dividido ao meio para a formação do céu e da
terra. A obra de Spero constituía-se de grandes painéis com fragmentos de textos e imagens e,
ao lado de cada painel, havia o relato de uma chilena que fora presa e torturada durante a
ditadura do general Augusto Pinochet. A análise dessa questão permite verificar a existência
de duas vertentes: uma, que se realiza por meio de um sistema de expressão e significação na
busca de identidade e atribui valor real às representações da mulher; outra, que se encontra na
desconstrução de identidades, em que não há uma “imagem de mulher” ou uma imagem
única, mas várias mulheres, em permanente construção e em diferentes situações.
Essas perspectivas paradoxais acabaram por anunciar uma outra tomada de
consciência, rompendo com os princípios de distinção, para encenações que passam a
contemplar a relação feminino/masculino. Isso se encontra na crítica e na obra de vários
artistas que encarnaram as convergências e separações dos seres nas suas performances,
buscando, talvez, a fusão sobre a qual estaria fundada uma nova ordem cósmica humana.
O princípio de comunhão, mesmo reconhecendo-se os indícios de suas
impossibilidades e do que sempre foi considerado incomensurável, sustentou as performances
de Marina Abramovic e Ulay. Nelas exemplificam-se as tensões advindas das ligações e
separações entre o homem e a mulher e as da divisão política entre o Leste e o Oeste, pois a
artista nasceu na Sérvia, ex-Ioguslávia, e Ulay, na Alemanha. Em seus trabalhos é muito
presente o desejo da fusão e a impossibilidade de realizá-lo. Em Veneza, no ano de 1976,
realizaram a performance Relação no espaço, com duração de uma hora. Os movimentos
eram realizados para que os seus corpos nus se tocassem ao se cruzarem e, aos poucos, os
corpos ritmados aceleravam-se até o momento em que colidiam de forma violenta. Em outro
momento, para concretizar a fusão de suas imagens, Marina e Ulay tatuaram em um dos dedos
o número 3, considerado o número do hermafroditismo. Com isso, suas atitudes visam a
apagar a diferença até no campo sexual. É interessante observar que mesmo nesses rituais de
aproximação já está posto o princípio de separação, como bem mostra mais adiante a artista.
Na performance dos “cabelos”, intitulada Relação no tempo, de 1977, em determinado
momento a figura por eles encenada poderia relacionar-se à androgenia: de costas um para o
outro, com os cabelos trançados juntos, permaneceram nessa posição por 17 horas. Mesmo
unidos pelos corpos, estavam separados pelo tempo e pelo cansaço. Para Marina, tais
intervenções foram momentos em que o contato, mesmo físico, tornava-se uma espécie de
separação: “[...] entre 7h e 10h a relação com os cabelos existe plasticamente, os corpos fazem
o mesmo, mas por dentro existe uma separação” e “depois da performance, nós estamos
105
vazios, sem nenhum sentimento, absolutamente longe de tudo e quando nos encontramos
frente ao vídeo, as fotos, sempre falta alguma coisa”.
Figura 50 – Marina Abramovic e Ulay, Relação no espaço, 1976. Performance na Bienal de Veneza.
106
Haraway 25 assumiu uma postura radical em relação à dissolução das diferenças sexuais ou até
mesmo do humano, o que está presente em seu discurso sobre as qualidades de uma criatura
híbrida - ciborgue - em total comunhão entre o humano e a máquina. É uma forma emergente
de realidade social e ficção, um símbolo de libertação feminista, uma criatura “pós-genero”,
portanto, uma construção instável e flexível por sua natureza humano-máquina.
Embora a passagem do tempo e a evolução em todos os sentidos, as ideias feministas
oriundas das décadas de 70 e 80 ainda não conseguiram encontrar novas referências para os
novos meios de dominação, principalmente aqueles que se utilizam das novas tecnologias e
das mídias de comunicação de massa.
É certo, porém, que hoje as mulheres estão mais aptas a mostrar a sua capacidade de
reinventar a trajetória que lhes foi deixada.
Obras de artistas que se valem do corpo em suas ações, como Chris Burden, Matthew
Barney e Orlan, fazem surgir possibilidades inusitadas ao modificar de forma transgressora as
imagens corporais. Ao apresentar um corpo que é ‘outro’, eles possibilitam uma nova
conjunção estética que se impõe no momento da instauração da obra. São corpos habitantes
do inconsciente, personagens de mundos imaginários que tomam formas arbitrárias por meio
de um deslocamento da materialidade corpórea para um espaço de estranhamento. As imagens
desses artistas vão além de seu ato de criação. No momento do processo artístico, o artista é
um inventor de anatomias que ultrapassam os limites do humano, passando a transitar em uma
nova rede de significações.
Longe dos tradicionais processos de representação artística do corpo, esses artistas
transgridem pela não aceitação da normalização estética imposta pelos padrões sociais. Com
isso, permitem a vivência de novas corporeidades, que podem ser caracterizadas pela
indistinção entre o que é humano e o corpo mutante que supera os limites e se liberta do que
foi imposto e culturalmente chamado de natureza. Essa ideia de corpo vem a substituir a
dualidade que remonta ao corpo mortal, alma imortal.
As imagens de corpos artificiais multiplicam-se em infinitas possibilidades, bem como
a mudança de sua enunciação e significado, envolvendo a re-materialização, a ambiguidade e
25
Donna Haraway é feminista e professora da Universidade da Califórnia, Santa Cruz, onde leciona Teoria
Feminista e Estudos da Ciência e da Tecnologia, autora do ensaio Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e
feminismo socialista no final do século XX (1987).
107
a redefinição do corpo. Nesse processo criativo, que consiste em reunir elementos
acrescentados, a ideia de corpo se altera. O corpo não é mais o objeto desejado, mas o objeto
que deseja o orgânico, o pulsar que ultrapassa o humano. Vai além daquilo que é revelado,
formando uma cadeia de relações com o campo de produção do imaginário, por meio do qual
se estabelece um deslocamento com o objeto artístico, no sentido de indicar uma posição que
não é sua. Cria, dessa maneira, um protótipo de corpo superior, cuja representação
desestabiliza o sentido do real.
Sabe-se que a aceitação de formas estéticas por uma sociedade depende da
combinação de valores que esta mesma sociedade determina, capazes de definir as diversas
atitudes dos indivíduos diante de suas representações. Para Calabrese (1987, p. 107), “as
sociedades muito normalizadas estabelecem frequentemente homologações entre as várias
categorias de valor. Tomemos, como exemplo, quatro categorias: ética, estética, morfológica
e tímica”. Para cada categoria, há um valor de juízo dentro dos limites aceitos por uma
sociedade, julgando o que é o bem, o belo, a forma e - até mesmo - as emoções.
Se for considerado aquilo que é visível para o olhar, na situação de mediação que se
estabelece entre o espectador e o meio em que ele está inserido, entra em ação o sujeito que
olha, e este sempre será alguém que participa da imagem, emocional e cognitivamente. Os
atos perceptivos e psicológicos pelos quais o espectador faz existir a imagem, criam, assim,
caminhos para entender o processo de significação das imagens no imaginário 26. Por meio da
formação do imaginário, efetua-se a relação entre o sujeito e o simbólico: as formações
imaginárias atuam como intermediárias, substitutas, no sentido de representarem, às vezes,
imagens materiais. Desse modo, se as imagens estão centradas em objetos do imaginário, elas
podem alterar os dados da representação em um processo de associação com imagens do real.
A partir disso, as experiências criativas de artistas como Orlan são sustentadas por um
novo sentido, são uma nova forma de projeção do corpo, longe dos padrões estabelecidos pela
arte da representação e distante das teorias analógicas. O corpo é uma construção que permite
ao observador um diálogo persistente pelo jogo, submetendo o novo modelo a toda uma série
de combinações possíveis de significados. Estabelece uma nova leitura, compondo-o em
corpo-prótese e o transformando de modo quase irreversível, isto é, sem qualquer
comprometimento com o corpo original.
26
Buscamos o sentido de imaginário em Aumont (1988, p. 52), o qual, com base nas teorias de Lacan, afirma
que o sujeito é resultado do simbólico, sendo ele (o sujeito) uma rede de significantes, e o sentido só aparece na
relação entre o sujeito e o simbólico, mas essa relação não pode ser direta, pois o simbólico se constitui sem a
interferência do sujeito.
108
Orlan, como artista performática, por meio de suas intervenções cirúrgicas e do uso de
próteses, ultrapassa as fronteiras da espécie, expandindo as potencialidades do corpo
biológico. Assim, a representação do corpo por meio tecnológico é portador de uma nova
ordem estética. Segundo Henri-Pierre Jeudy (2002, p. 119),
tudo o que Orlan faz para transfigurar seu corpo em objeto de arte deve frustrar as
significações cirúrgicas e se opor ao funcionamento biológico que associa esse
gênero de operação a experiências futuristas. Em semelhantes performances, ela
arrisca tornar-se vítima das técnicas que utiliza sobre seu próprio corpo.
109
Nesse sentido, o discurso crítico de Orlan é contra uma ordem simbólica que também
é a da moral. A partir dessa perspectiva, segundo Pearl (2001, p. 103), torna-se necessário
salientar que:
110
Nessa associação entre o corpo original e o corpo reconstruído, as formas de corpo se
projetam como, ao mesmo tempo, “primitivas” e “evolutivas”. São imagens corporais
portadoras de ambiguidades, talvez comparáveis com as imagens existentes nas fotografias
enigmáticas de Sherman ou nas imagens instigantes como as de Mathew Barney, sendo
possível, também, fazer referências a Sterlac.
Figura 51 – Matthew Barney, o Gigante, personagem interpretado pelo próprio Barney que protagoniza de Cremaster 5,
um universo híbrido e alegórico de filmes, fotografias, objetos e cenários, 1997.
Pode-se dizer, portanto, que elas negam os antigos cânones estéticos, questionando os
valores pré-estabelecidos daqueles que afirmavam a imagem artística como “fonte das
sensações belas e agradáveis”.
Trata-se hoje de um corpo sem nenhum princípio hierárquico, que não participa de um
estatuto, preservando apenas um sentimento “original” de pura percepção estética. Como
consequência, tem-se a instauração da obra de arte que nos intriga, perturba, desestabiliza e
nos coloca em contato com o imprevisto e com a incerteza da nossa própria identidade.
O que interessa hoje não é o corpo presente como tal, mas enquanto objeto de
experiências, indicador de sinais, o que traz sempre a possibilidade de pensá-lo sob novas
premissas. Admite-se, portanto, novos ângulos conceituais, entendendo-se que, muitas vezes,
111
o que renova nossa relação com o corpo está em nós, sujeitos que o construímos e
reconstruímos.
Na obra de Orlan, não se questiona uma identidade feminina, pelo contrário, propõe-se
a problematização dos conceitos de identidade. Isso aparece em suas atitudes, ao redesenhar
seu corpo durante a apresentação de suas performances, principalmente, as que são realizadas
por meio de cirurgias plásticas. Nesses casos, e não tendo por objetivo uma melhora de sua
aparência, ela incita uma cisão na imagem que foi construída sobre a mulher, sobre a
obrigatoriedade da “eterna juventude” que foi adotada como um valor nas sociedades
contemporâneas.
O início de sua carreira artística aconteceu em 1964, ela tinha 17 anos quando encenou
sua primeira performance, intitulada, Corpo-Escultura. A partir daí, ela começou a questionar
a própria natureza corporal e a quebrar tabus.
Figura 52 – Orlan parindo ela mesma, 1964, da série Corpo-Escultura aumentado artificialmente. Fotografia
P&B: 81X76cm, com moldura.
Nessa apresentação, ela expôs o corpo nu que também foi fotografado em preto e
branco. No trabalho, pode-se observar os preceitos subjacentes que marcarão a criação de seus
personagens e o seu gosto pela provocação, denúncia e exibição.
112
Em 1977, na Fiac, com a performance Le Baiser de L’artiste (O beijo da artista), a
provocação se deve à apresentação do corpo como uma máquina de vender beijos.
Figura 53 – Beije a artista, Orlan está sentada atrás de uma fotografia de tamanho natural de seu busto nu. O
visitante que coloca uma moeda na fenda recebe um beijo (1977). Fotografia, preto e branco,
110x165cm. Coleção Casa Européia da Fotografia.
A ação acontecia no momento em que se colocava uma moeda numa abertura na roupa
da artista, situada à altura do peito, e o público recebia como recompensa um beijo da
performer. Nessa performance, o ato se tornou transgressor pelo fato de oferecer um prazer de
baixo custo, que expõe uma denúncia, conforme explicita Orlan: “utilizando meu corpo como
material, eu coloco em causa o mercado da arte e reivindico o direito das mulheres de
disporem livremente de seus corpos” (citada por PEARL, 2001, p. 97).
No ano de 1978, Orlan realizou a primeira performance com a utilização de cirurgia
plástica. A obra da artista foi influenciada pelas experiências artísticas de Duchamp e pelas
ações revolucionárias do movimento de maio de 68, como bem mostra Lydie Pearl (2001).
Segundo a autora, tanto Orlan quanto Michel Journiac são exemplos de artistas que fizeram
críticas ao estado, contestaram as instituições e todas as formas de poder.
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Conforme a análise de Pearl (2001), no trabalho artístico de Orlan também se pode
observar uma crítica dirigida à alienação dos sujeitos, que é provocada pelas mídias de massa.
A artista desenvolveu suas performances no desejo de criar imagens e autoimagens sem se
submeter à tirania imposta pelos meios de comunicação, que acabam por determinar certos
padrões de “beleza”.
Foi a partir de 1990, contudo, que teve início uma série de performances, nas quais
Orlan modificou seu rosto de forma radical com a utilização de operações cirúrgicas. Dessa
maneira, ela criou para si diferentes personagens, transformando seu corpo em uma
“entidade” autônoma, instaurando, assim, a desobediência a padronizações estéticas.
Figura 54 – Orlan manuseando a cruz preta e a cruz branca, em sua quarta cirurgia, 8 dez. 1991, Paris.
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No processo de intervenção, está colocado o princípio de indeterminação de um corpo
mutável, que está sempre sendo atualizado, contradizendo o que foi determinado pela
natureza, em sentido simbólico e bíblico, do que deveria ser a imagem e semelhança de Deus.
Esse princípio fundamenta A reencarnação de Santa Orlan: a performance aconteceu em
meio a um cenário barroco, em que a sala cirúrgica pode ser instalada tanto em galerias
quanto em museus, para que a ação aconteça em forma de espetáculo e que se dê de maneira a
se tornar pública. Dessa performance participou, além da equipe de cirurgiões vestida com
roupas desenhadas por grandes estilistas, a assistência que fazia perguntas à artista
parcialmente anestesiada no momento da cirurgia.
O rosto pretendido por Orlan 27 nesse processo artístico-cirúrgico foi resultado da
mixagem de imagens extraídas de obras renascentistas, de personagens femininas, não pelo
que elas representam enquanto beleza, mas por suas personalidades, transgressões e atitudes:
o nariz é da escultura de Diana, obra pertencente à escola de Fontainebleau. A escolha se deve
ao fato de Diana, figura mitológica, deusa da caça, ter sido uma personagem agressiva,
aventureira e também desobediente aos deuses e aos homens.
Figura 55 – Pintura a óleo pertencente a escola de Fontainebleau, com data aproximada de 1550.
27
Essas informações foram encontradas no site da artista. Disponível em: www.orlan.net.
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A testa foi inspirada em Mona Lisa, pintura de Leonardo da Vinci, pelo que a imagem
desperta enquanto identidade e mistério, pois, para alguns, poderia ser o autoretrato do artista.
A boca foi retirada de Europa, obra de Boucher. Essa personagem mitológica tem como
característica a ousadia: Europa, ao olhar para o outro lado, desejou o que não conhecia e se
aventurou num futuro desconhecido.
Figura56 – Leonardo da Vinci. Mona Lisa. c. 1503-5. Óleo sobre painel, 0,76 m x 0,56 m. Museu do
Louvre, Paris.
116
Figura 57 – Sandro Botticelli. O nascimento de Vênus. c. 1480. Têmpera sobre tela, 1,74 m x 2,79 m. Galeria dos
Ofícios, Florença.
117
Figura 58 – Detalhe da obra Vênus-Orlan, 1994.
118
Figura 59 – Orlan com implante, resultado de sua sétima cirurgia, 1993.
Em muitos aspectos, a opção por olhar para o corpo físico e para o eu subjetivo como
uma forma de construir a ideia de identidade vem sendo questionada por um grande número
de discursos que tramitam nas diversas esferas do conhecimento, como a psicanálise, a
filosofia, a antropologia e a arte. Trabalhar com esferas tão amplas como essas, requer que se
priorize determinada área em detrimento de outras. Aqui, o recorte realizado sob o foco da
arte buscou entender as possibilidades de vivências no mundo contemporâneo, investigando
as bases culturais, materiais e imateriais das sociedades, aproximando a arte e a tecnologia.
O desenvolvimento de uma reflexão sobre como são consideradas as questões que
envolvem a diversidade das expressões constituintes da cultura, advindas da sociedade
tecnológica e dos processos de intervenção da arte corporal, evidencia uma série de conflitos
que vão da ordem moral e estética até os conflitos culturais de identidade existentes nessas
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aproximações. Com isso, percebe-se os seus impactos na materialização e na simbolização
dos processos artísticos contemporâneos.
Em outro sentido, é necessário ampliar a investigação sobre as múltiplas bases
culturais para se avaliar as possibilidades de intervenção da produção de arte que tenha
significado no cotidiano das pessoas. Essa avaliação permite compreender a arte como cultura
dessa sociedade complexa, diversa e fragmentada e como estratégia de diálogo entre a
materialização das atividades artísticas em sistemas de objetos capazes de compor as
dimensões da vida social.
Se no Pós-Modernismo, por um lado, pode-se usufruir liberdade e pluralismo,
concedendo-se abertura para novos modos de pensar e tolerância para com os pensamentos
divergentes, por outro, cada vez mais ressaltam-se as contradições e complexidades existentes
nas teorias contemporâneas quanto à definição de arte, de indivíduo e de coletivo.
Uma investigação da obra de Orlan e a compreensão da sua produção artística exige
observar o contexto político, social e cultural em que está inserida. Não há como entendê-la
devidamente, criticamente, sem considerar a relação estabelecida entre as práticas estéticas
oriundas da sociedade pós-moderna, com base nas tecnologias que introduzem novos valores
para a arte, e as imposições de um sistema que faz da arte uma mercadoria. A arte de Orlan,
por ser inscrita em seu próprio corpo, tem o seu valor comercial estabelecido por um forte
apelo publicitário e por uma grande divulgação, que associa o nome da artista a sangue, carne,
cenário e grandes estilistas, sendo, para além de seu trabalho artístico, o seu próprio produto.
Essa ideia confronta tanto o idealismo daqueles para quem a arte é intocável quanto a
dos que entendem a arte como um novo produto capaz de conciliar estética e formas
simbólicas com experiências artísticas compartilhadas coletivamente.
Na obra de Orlan, está presente não o que é acrescentado, mas, afirmativa e
contraditoriamente, uma presença subtraída que se impõe como imagem espectral capaz de
ser duplicada em um estranhamento, e que não é o “outro” por que esse “outro” pode ser um
outro corpo qualquer. É o “estranho”, que se impõe no lugar das categorias estéticas
tradicionais, estranho esse que para Freud conduz aquilo que deveria ter ficado à sombra, mas
que, por algum modo, vem à luz.
A presença do corpo, do modo como é apresentado pela artista francesa, abala,
provoca e perturba o espectador, posto na situação de voyeur. Tanto para a psicanálise quanto
para a arte contemporânea, o corpo objetável da artista implica em algo que vai além da
suposta tranquilidade da ideia que se tem do belo. Sugere, de certa forma, a realização da
metamorfose do corpo que passa a existir por si só, como afirma Haraway, (2000, p. 50):
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“meu mito do ciborgue significa fronteiras transgredidas, potentes fusões e perigosas
possibilidades”. Entretanto, a autonomia do corpo não está relacionada com um modelo físico
material de algo que se quer imitar, um modelo referente. Ao contrário, o que está em jogo é
exatamente a desconstrução de uma estética corporal pautada por categorias discursivas da
estética clássica, como elementos de poder político. Nesse sentido, concordando-se com
Haraway, essa construção se constitui em “um dos componentes de um necessário trabalho
político” (2000, p. 50).
O corpo mostrado, aberto em suas infinitas possibilidades, não precisa se submeter às
regras, ao igual. O exibir estético, nesse caso, torna-se o contrário do representar, o espelho é
quebrado, a subversão se estabelece. As imagens do corpo, aparecem relacionadas com o
psíquico da artista, que se impõem como projeção cultural de uma revolta interior. A
transgressão dessas imagens se dá pelo fato de serem ambíguas, estranhas, grotescas e avessas
àquilo que é socialmente aceito e considerado “normal”.
Pode-se então questionar, por fim, se está colocada, nessa atitude de Orlan, a formação
de novos modos de discurso feminista, diferente das formações de movimentos feministas
criados em esferas públicas e coletivas. Sem pretender avançar no caminho de possíveis
respostas, essa é apenas uma das tantas indagações provocadas pela arte de Orlan.
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